ÉVORA, Fátima - Séc. XIX - O Nascimento Da Ciência Contemporânea

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Coleção CLE V.

11
FÁTIMA R. R. ÉVORA (ed.) 16257
CF-31721

SÉCULO 1:

0 NASCIMENTO

DA CIÊNCIA

(•juai
Coleção CLE V.11
Centro de Lógica, Epistemologia e História da
Ciência (CLE), projetado e organizado em 1976
e implantado oficialmente na Unicamp em 1977,
tem como membros, docentes e pesquisadores de vários
Institutos e Faculdades da UNICAMP e outras
Universidades brasileiras e estrangeiras.
Criado com o objetivo central de desenvolver
atividades nas áreas de Lógica, Epistemologia e História
da Ciência e pesquisas interdisciplinares, o CLE mantém
intenso intercâmbio acadêmico com pesquisadores e
instituições do Brasil e do exterior; organiza regularmente
seminários e encontros científicos; coordena trabalhos
de pesquisa; assessora cursos de pós-graduação de
natureza interdisciplinar; mantém acervo bibliográfico e
acervo de documentação que proporcionam subsídios a
pesquisadores e estudantes; e promove a publicação de
dois periódicps e uma coleção de livros: Manuscrito-
Revista Internacional de -filosofia, criada em 1977;
Cadernos de História e Filosofia da Ciência, criado em
1980; e z Coleção CLE, criada em 1987. Além dos
recursos financeiros provenientes da UNICAMP, o CLE
recebe subsídios de inúmeras instituições nacionais e
internacionais de apoio à pesquisa.

A Coleção CLE dirige-se especialmente ao público


brasileiro e latino-americano interessado nas áreas de
Lógica, Epistemologia, Metodologia e História das
Ciências. É uma coleção de livros, com dois títulos
anuais, cujo objetivo é a publicação de monografias,
ensaios, teses e cursos nessas áreas do conhecimento.
Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
FÁTIMA R. R. ÉVORA (ed.)

SECUIO XIX:

0 NAMNIO

DA CIÊNCIA

CONMOÉEA

Volume 11 - 1992

COLEÇÃO CLE
Coleção CLE V.11
Copyright © by Fátima R.R, Évora, 1992
Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada
em sistemas eletrônicos, fotocopiada, reproduzida por meios
mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do
editor.

ISSN: 0103-3147
Primeira Edição, 1992

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca do CLE

Século XIX : o nascimento da ciência


Se26 contemporânea / Fátima R. R. Évora, ed.-
Campinas : UNICAMP, Centro de Lógica,
Epistemologia e História da Ciência, 1992.
(Coleção CLE ; v. 11)

Anais do VII Colóquio de História da


Ciência, ocorrido de 12 a 15 de outubro
de 1991, em Águas de Lindóia, SP.

1. Ciência - História - Século XIX. I. Évora


Fátima Regina Rodrigues. II. Colóquio de História
da Ciência (7. : 1991 : Águas de Lindóia, SP)
____ 19.CDD 509.034

índice para catálogo sistemático


1. Ciência : História ; Séc. XIX

Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência


Cidade Universitária "Zeferino Vaz"
C.P. 6133
13081-970 - Campinas, SP.

IMPRESSO NO BRASIL
Coleção CLE V.11
SÉCULO XIX:

O NASCIMENTO

DA CIÊNCIA

CONTEMPORÂNEA
Coleção CLE V.11
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COLEÇÃO CLE

Editor

Ítala M. LofFredo D'Ottaviano

Conselho Editorial

Newton C.A. da Costa (USP)

ítala M. LofFredo D,Ottaviano (UNICAMP)

Fátima R.R. Évora (UNICAMP)

Osmyr F. Gabbi Jr. (UNICAMP)

Michel 0. Ghins (UNIV. LOUVAIN)

José A.D. Guerzoni (UNICAMP)

Zeljko Loparic (UNICAMP)

Oswaldo Porchat Pereira (USP)

CENTRO DE LÓGICA, EPISTEMOLOGIA


E HISTÓRIA DA CIÊNCIA
Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
Sumário

Prefácio xiii

Agradecimentos xxi

Os autores xxiii

Parte I
* História e Filosofia da Ciência

1. História e filosofia da ciência: uma dependência necessária?


- Fátima R.R. Évora 3

Parte II
t Frege e a Lógica Moderna.

2. A concepção fregeana da lógica - Michael Wrigley 23

3. 0 princípio de razão suficiente e a lógica segundo Arthur


Schopenhauer - Jean-Yves Béziau 35
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Parte III
* Ciência e Filosofia de Poincaré

4- A Filosofia da Matemática de Poincaré - Jairo José da


Silva 43

Parte IV
* O Nascimento das Lógicas Não-Clássicas
* As Geometrias Não-Euclidianas

5. 0 ambiente matemático do século XIX e a lógica do sé-


culo XX - Newton C.A. da Costa 59

6. A lógica clássica e o surgimento das lógicas não-clássicas


- ítala M.L. D'Ottaviano 65

7. Considerações sobre as lógicas não-clássicas - Cláudio


Pizzi 95

8. Lógicas não-clássicas, teoria da informação e inteligência


artificial - Walter Camielli 101

9. Algumas questões conceituais ligadas ao advento das


geometrias não-eudidianas - Amo Viero 111

Parte V
* Ciência e Método em Mach e Duhem

10. Duhem e Galileu: uma reavaliação da leitura duhemiana


de Galileu - Pablo Rubén Mariconda 123

11. A equivalência dinâmica segundo Mach e a teoria geral


da relatividade - MichelGhins

12.0 aparelho de Morin revisitado - Marcos Danhoni


Neves 177
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Parte VI
♦ Comte e o Positivismo Científico
* Empirismo no século XIX

13. A. questão da indução em J.S. Mill - Mario


Guerreiro 187

l^. É a filosofia da ciência de Comte "positivista"? -


Alberto Oliva 195

15. Esboço de um programa de revisão da tradição positi-


vista na sociologia: Durkheim - Washington Luis de
Souza Bonfim 221

Parte VII
* Questões Epistemológicas da Ciência
Contemporânea no Século XX

16. A metodologia de Claude Bernard como antecipação da


metodologia popperiana - Luiz H.A. Dutra 247

17. Razão e descontinuidade na ciência contemporânea: duas


perspectivas diferentes - Marly Bulcão 261

18. 0 caráter intransparente da filosofia em face da objeti-


vidade científica - Marconi Pequeno 273

Parte VIII
* O Nascimento da Mecânica Quântica e da Cristalografia
* Evolução da Análise Dimensional

19. Planck e o nascimento da mecânica quântica: sugestões


para estudo de condicionantes históricos recentes -
Roberto Cintra Martins 287

20. Conceitos sobre estrutura cristalina no século XIX -


Mabel Rodrigues 309
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21. A evolução da análise dimensional. Vaschy (1890) a
Buckingham (1914), o teorema Pi - Fernando Lobo
Carneiro 329

Parte IX
* Surgimento da Teoria Eletromagnética
* Termodinâmica
* As Origens da Mecânica Estatística

22. A filosofia da ciência de H. Hertz (1857-94) - Paulo


César C. Abrantes 351

23. Helmholtz e a conservação da energia - Osvaldo Melo


Souza Filho 377

24- A obra termodinâmica de Einstein (1902-1904) e a me-


cânica estatística de Gibbs - Borisas Cimbleris 405

25. O nascimento da ciência cognitiva e suas raízes na fí-


sica do século XIX - Maria Eunice Gonzales 413
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Prefácio

0 presente volume é constituído por parte das Atas do VÊ


Colóquio de História da Ciência, dedicado ao tema Século XIX: 0
Nascimento da Ciência Contemporânea, que teve lugar em Águas de
Lindóia, de 12 a 15 de outubro de 1991.
Organizados, desde 1985, pelo Centro de Lógica, Epistemologia e
História da Ciência (CLE), da UNICAMP, os Colóquios de História
da Ciência têm por objetivo estimular a produção, divulgação e
discussão de trabalhos, de alto nível acadêmico, sobre História da
Ciência.
Tradicionalmente nossos Colóquios de História da Ciência são
temáticos, propiciando a discussão aprofundada dentro de um único
tema geral com o qual todos os participantes estão familiarizados.
0 século XIX, período ao qual foi dedicado este VII Colóquio,
insere-se historicamente em um período mais amplo que se inicia com
a Revolução Francesa e estende-se até a Primeira Grande Guerra.
Esta "época de ouro" da ciência, que deu origem à ciência contem-
porânea, caracterizou-se pelo divórcio entre a ciência e a filosofia, e
assistiu ao desenvolvimento de métodos experimentais e matemáticos,
fundados na dinâmica de Newton e na química quantitativa de La-
voisier e, sem dúvida, foi marcada por magníficos êxitos das ciências
exatas e naturais acompanhados de aprimoramentos cada vez maio-
res de instrumentos de medidas de grande precisão e de importantes
aplicações técnico-industriais.
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xiv Prefácio

Organizam-se novos domínios da física, química e matemática, e


já na primeira metade do século XIX ocorrem importantes desen-
volvimentos representados, por exemplo, pela ascensão da teoria on-
dulatória da luz, pelo estudo da corrente elétrica e da relação entre
eletricidade e magnetismo, pelo início da termodinâmica e pela de-
terminação do princípio de conservação de energia.
A partir da segunda metade do século XIX ocorre o estabeleci-
mento da termodinâmica e da mecânica estatística, surgem várias
teorias eletromagnéticas, culminando com a descoberta das ondas
eletromagnéticas, e intensificam-se as polêmicas relativas ao éter.
Os diferentes ramos da matemática têm, ao longo do século XIX,
um magnífico desenvolvimento que, juntamente com novas aborda-
gens lógicas dão origem à matemática formalizada do século XX.
Face ao domínio extremamente amplo da ciência no século XIX, o
Comitê Organizador do VII Colóquio de História da Ciência concluiu
ser impossível em um único colóquio dominar o conjunto da produção
científica deste período. Assim sendo, optou-se por enfocar, neste
evento, alguns aspectos da ciência do século XIX que, a nosso ver,
foram fundamentais para o nascimento da ciência contemporânea.
A partir de uma perspectiva lakatosiana de que a filosofia da
ciência sem história da ciência é vazia e história da ciência sem filoso-
fia da ciência é cega procurou-se também enfatizar, neste colóquio, a
estreita ligação existente entre história da ciência e filosofia da ciência.
Assim, foi dedicado um espaço à discussão sobre racionalidade
epistêmica e sobre a metodologia científica deste período, e à análise
da relação entre ciência e filosofia e da noção de crise das ciências que
surge a partir do final do século XIX.
Mesmo as análises históricas específicas, como as do surgimento
da teoria eletromagnética, dos trabalhos de Hertz e Helmholtz e da
origem da mecânica estatística, foram feitas sem perder de vista as
conseqüências epistemológicas que derivam destes estudos de casos.
Foram escolhidos para este Colóquio os seguintes temas es-
pecíficos:
1) A ciência e método em Duhem e Mach; 2) Comte e o positi-
vismo científico; 3) Frege e a lógica moderna; 4) 0 nascimento das
lógicas não-clássicas; 5) As geometrias não-euclidianas; 6) 0 surgi-
mento da teoria eletromagnética; 7) A ciência e a filosofia de Poin-
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Prefácio xv

caré; 8) A termodinâmica e as origens da mecânica estatística e 9) O


nascimento da mecânica quântica e da cristalografia.
Procurou-se reproduzir neste volume o tratamento tópico que es-
truturou o VII Colóquio de História da Ciência, dividindo-o em partes
dedicadas aos temas específicos acima citados.
Na Parte I é feita uma análise da relevância da filosofia da ciência
para a história da ciência, e vice-versa, a fim de fornecer subsídios
para a reflexão sobre o estatuto ontológico da história da ciência.
As partes H e IV são dedicadas respectivamente a Frege e à lógica
moderna, às geometrias não-euclidianas e ao nascimento das lógicas
não-clássicas.
M. Wrigley, no Capítulo 2, discute aspectos centrais da visão fre-
geana da natureza da lógica, tais como a sua rejeição da possibilidade
de uma perspectiva metaiógica, que ao ver de Wrigley são bastante di-
ferentes das modernas visões. E discutido ainda como estes aspectos
da concepção de J. Gottlob Frege (1848-1925) moldaram os resulta-
dos filosóficos que este esperava obter pela redução da matemática
à lógica. J. Y. Béziau, no Capítulo 3 discute o princípio de razão
suficiente (Nihilest sine ratione) e a lógica da filosofia de Arthur
Schopenhauer (1788-1860).
Os artigos dos Capítulos 5, 6, 7 e 8 correspondem às participações
de Newton da Costa, ítala D'Ottaviano, Cláudio Pizzi e Walter Car-
nieili, respectivamente, na mesa redonda intitulada O nascimento das
lógicas não-clássicas, que foi coordenada por Andréa M. A. Loparic.
As participações de da Costa e Pizzi foram impressas essencialmente
na forma em que foram apresentadas no Colóquio, enquanto que os
trabalhos de ítala e Carnielli são versões ligeiramente modificadas de
suas contribuições originais.
Da Costa caracterizou, através do ambiente matemático do século
XIX, o surgimento da lógica matemática clássica formalizada e das
lógicas não-clássicas. A seguir, ítala, a partir de uma análise sucinta
do desenvolvimento da lógica de Aristóteles (384-322 a.C.) até o final
do século XIX procurou caracterizar a sistematização contemporânea
da lógica clássica e o surgimento das lógicas não-clássicas em geral,
introduzindo com mais detalhes as lógicas polivalente e paraconsis-
tente. Pizzi abordou questões relativas às lógicas modais e às lógicas
intuicionistas. Finalizando a mesa redonda, Carnielli discutiu algu-
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xvi Prefácio

mas aplicações contemporâneas das lógicas não-clássicas em geral.


Viero, no Capítulo 9, examinou algumas questões conceituais re-
lativas ao advento das geometrias não-euclidianas, procurando en-
tender, a partir deste exame, todo o movimento que culminou com o
surgimento das geometrias não-euclidianas no século XIX.
A ciência e filosofia de Henri Poincaré (1854-1912) é alvo de
análise na Parte III, Capítulo 4, onde Jairo da Silva enfoca diver-
sos aspectos da filosofia da matemática em Poincaré, tais como o seu
convendonalismo em geometria, o seu anti-logicismo em aritmética e
as suas restrições às definições matemáticas pelo princípio do círculo
vicioso.
A quinta parte deste volume é dedicada à ciência e método em
Mach e Duhem. No Capítulo 10, Pablo Mariconda faz uma rea-
valiação da posição de Pierre Duhem (1861-1917) concernente à re-
volução científica do século XVII centrando a discussão na contri-
buição de Galileo (1564-1642). Mariconda divide sua análise da visão
de Duhem em duas partes: na primeira discute a tese duhemiana da
continuidade do desenvolvimento científico aplicada à mecânica, e na
segunda, reavalia a crítica de Duhem à defesa realista da cosmologia
no século XVII.
Michel Ghins, no Capítulo 11, analisa o programa para uma teo-
ria da gravitação e da inércia proposto por Ernest Mach (1838-1916)
discutindo as dificuldades internas desta teoria. Ghins procura mos-
trar que o programa de Mach, tal como ele o apresenta, não satisfaz
às exigências empiristas machianas. O artigo segue refletindo sobre a
exigência machiana de relatividade dinâmica em relação à teoria da
relatividade geral de Einstein.
Um resgate histórico-metodológico do aparelho didático proposto
por Morin, em meados do século XIX, para o estudo da queda dos
corpos desde o The Science of Mechanics de Ernest Mach, é feito por
Danhoni no Capítulo 12.
A parte VI é dedicada às discussões sobre o positivismo científico
e empirismo no século XIX. No Capítulo 13, as tentativas de John
Stuart Mill (1806-1873) e John Keynes (1883-1946) de resolver o pro-
blema da indução de Hume (1711-1776) é analisado por Guerreiro.
Oliva, no Capítulo 14 procura mostrar como o positivismo está longe
dos clichês epistemológicos que o apresentam como um estreito fatu-
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Prefácio xvii

alismo. Com isso, o autor pretende tornar manifesto que as críticas


ao observacionalismo, especialmente candentes na filosofia da ciência
posterior aos anos 20, não atingem tão profundamente a filosofia da
ciência comteana quanto seus críticos sugerem.
/
O papel do quadro conceituai estabelecido por Emile Durkheim
(1858-1917) na consolidação da Sociologia como disciplina científica
é discutido por Bonfim no Capítulo 15.
As questões epistemológicas envolvidas no nascimento da ciência
contemporânea continuam sendo alvo de discusão na parte VII. Lujz
Dutra, no Capítulo 16, procura mostrar em que medida o método
experimental elaborado por Claude Bernard (1813-1878) antecipa a
metodologia do falseamento proposta por Karl Popper (1902- ) cerca
de meio século mais tarde.
As profundas transformações ocorridas no campo da ciência a
partir do final do século XIX representaram um rico material para
a reflexão filosófica, metodológica e histórica sobre a ciência, esti-
mulando o aparecimento de novas teorias e sistemas epistemológicos.
Marly Bulcão analisa duas destas teorias que, embora diferentes pro-
curam, segundo a autora, compreender as revoluções da ciência con-
temporânea a partir da crítica à idéia de razão absoluta.
Os processos e paradigmas segundo a teoria crítica de Jurgen
Habermas (1929- ) são discutidos por Marconi no Capítulo 17.
A oitava parte deste volume é dedicada ao nascimento da
mecânica quântica e da cristalografia, assim como à evolução da
análise dimensional.
Fernando Lobo Carneiro, no Capítulo 19, discute a evolução
da análise dimensional a partir de 1890, com as contribuições de
Vaschy, quando a análise dimensional começa a ser aplicada de
modo sistemático à formulação das equações físicas, à interpretação
de resultados experimentais e ao estabelecimento das condições de
semelhança. O artigo de Lobo Carneiro discute ainda as contri-
buições de Lord Rayleigh (1842-1919), Albert Einstein (1879-1955) e
Buckingham (1867-1940) a esta nova etapa da análise dimensional,
que conta com o chamado "teorema </>" como sua principal ferra-
menta.
O nascimento da mecânica quântica é analisado por Cintra Mar-
tins, no Capítulo 20, dedicado ao estudo dos antecedentes imedia-
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xviii Prefácio

tos da descoberta por Max Planck, em 1900, de que o átomo so-


mente pode emitir ou absorver energia em quantidades discretas,
múltiplas de uma quantidade elementar, proporcional à freqüência
de radiação: os "quanta" de energia. A publicação, em 1900, das
novas concepções planckianas marca, segundo Cintra, o nascimento
da mecânica quãntica.
Mabel Rodrigues analisa, no Capítulo 21, as origens, no século
XIX, da cristalografia de Raios X, que se estabeleceu no século XX,
com os trabalhos sobre difração de raio X de Max Laue e dos Bragg,
pai e filho. Este artigo discute particularmente os conceitos básicos
de simetria, desenvolvidos durante o século XIX, que permitiram a
aplicação do fenômeno recém-descoberto às substâncias cristalinas.
O surgimento da teoria eletromagnética, da termodinâmica e as
origens da mecânica estatística são objetos de análise da última parte
deste volume, começando com um artigo de P. Abrantes dedicado à
discussão da física e da filosofia da ciência de H. Hertz (1857-1894) e
suas relações com seu trabalho científico.
Hertz, Mach, Duhem, Boltzmann e Poincaré, como Abrantes
aponta, fazem parte daquele grupo de grandes cientistas, da segunda
metade do século XIX, que também se destacaram pela profundi-
dade de sua reflexão filosófica, exercendo influência decisiva sobre
a filosofia da ciência do nosso século. Segundo Abrantes, o estudo
da interação entre a prática científica e a auto-consciência meto-
dológica e axiológica encontra nestes autores um rico material, que
sem dúvida nos leva a refletir sobre a tendência, em correntes de
filosofia da ciência contemporânea, de se demarcar de forma excessi-
vamente nítida o contexto da descoberta e o contexto de justificação,
o nível do conhecimento substantivo e o nível do conhecimento me-
todológico.
No Capítulo 23, Mello e Souza analisa as idéias fundamentais
de Hermann von Helmholtz (1821-1894) com respeito à conservação
da energia, refletindo sobre a visão essencialmente mecanidsta da
natureza de Helmholtz.
A história da mecânica estatística e da termodinâmica é analisada
nos dois capítulos finais por Borisas Cimbleris e Eunice Gonzales.
Cimbleris faz, no Capítulo 24, um paralelo entre três artigos de
Albert Einstein (1879-1955) publicados entre os anos de 1902 e 1904
Coleção CLE V.11
Prefácio xix

sobre os fundamentos da física estatística e o livro de Gibbs (1839-


1903) sobre mecânica estatística, publicado em 1902, discutindo as
diferenças epistemológicas destas abordagens.
Eunice, por sua vez, dedica seu artigo, no Capítulo 25, à analise
de alguns aspectos históricos e metodológicos da ciência do século
XIX que desempenharam um papel fundamental no nascimento da
ciência cognitiva, que foi estabelecida há mais ou menos trinta anos,
mas que, segundo a autora tem suas raízes na mecânica estatística e
na termodinâmica do século XIX.

Campinas, outubro de 1993.

Fátima Regina Rodrigues Évora


Coleção CLE V.11
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Agradecimentos

A organização de um Colóquio e a posterior publicação de seus


"Proceedings" envolve inúmeras pessoas e instituições, sem a coo-
peração das quais estes trabalhos não seriam possíveis. Quero, por-
tanto, agradecer a todos aqueles que, direta ou indiretamente, parti-
ciparam do VII Colóquio de História da Ciência, dedicado ao tema
Século XIX: 0 Nascimento da Ciência Contemporânea e, agora, da
publicação deste volume, que corresponde a parte das Atas deste
evento.
Contudo, gostaria de exprimir aqui o meu reconhecimento espe-
cial a alguns colegas, particularmente à Profa. Dra. ítala M. L.
D'Ottaviano, diretora do Centro de Lógica, Epistemologia e História
da Ciência, por ocasião do VII Colóquio de História da Ciência, pelo
apoio e pelo convite que me fez para coordenar este evento e, poste-
riormente, para publicar este "Proceeding" na Coleção CLE, por ela
dirigida.
Sou muito grata ao Prof. Dr. Osvaldo Pessoa Jr. pela amizade e
pela ativa colaboração junto à coordenação do VII Colóquio.
Agradeço também a todos os participantes do VII Colóquio cuja
presença propiciou discussões aprofundadas em história da ciência,
objetivo principal dos nossos colóquios.
Ao amigo Marcos Munhoz agradeço pelo muito que me auxiliou
na organização do VII Colóquio e pela imensa dedicação ao Centro
de Lógica.
Coleção CLE V.11
xxii Agradecimentos

 cooperação e participação de todas estas pessoas possibilita-


ram que o VII Colóquio de História da Ciência fosse um evento de
altíssimo nível acadêmico. Nível este que se reflete nos artigos que
ora se publica. Gostaria, portanto, de agradecer aos colegas confe-
rencistas que participam comigo desta publicação.
Pela cuidadosa preparação dos manuscritos deste livro agradeço
à Eliane Morelli Abraão e à Nilza Clarice Galindo, a quem agradeço
também pelo efícientíssimo trabalho de digitação e diagramação dos
originais.
Finalmente quero agradecer à FAPESP, pelo suporte financeiro -
primeiro com o auxílio, juntamente com o CNPq, para a realização do
VII Colóquio - e agora subsidiando a publicação deste volume. Quero
estender este agradecimento ao Centro de Lógica, Epistemologia e
História da Ciência da UNICAMP pelo apoio e espaço dedicado a
estudos relativos à história e filosofia da ciência, desde a sua criação
em 1976.
Coleção CLE V.11
Os Autores

Alberto Oliva é Doutor em Filosofia pela UFRJ (1986), Professor


Adjunto da mesma Universidade e Coordenador do Centro de Epis-
temologia e Lógica do Departamento de Filosofia da UFRJ. Também
é Pesquisador 1 do CNPq. Sua área de pesquisa é filosofia da ciência,
em especial problemas epistemológicos das ciências sociais. A esma-
gadora maioria dos artigos e das traduções feitas pertencem ao campo
da filosofia da ciência.

Arno Aurélio Viero é Mestre em Filosofia pela PUC/RJ. Atual-


mente é Auxiliar de Ensino II (área de Lógica) junto ao Departamento
de Filosofia da PUC/RJ. Professor substituto no Departamento de
Filosofia da UFF (Universidade Federal Fluminense). Sua área de
pesquisa é: filosofia da lógica e da matemática.

Borisas Cimbleris é engenheiro de minas, metalurgista e civil pela


Escola Nacional de Minas e Metalurgia da Universidade do Bra-
sil (atual Escola de Minas de Ouro Preto, Universidade Federal de
Ouro Preto), 1948. Master of Science in Nuclear Engineering, North
Carolina State College, Raleigh, NC, USA (atual North Carolina
State University), 1956. Doutor em Termodinâmica (Livre Docente),
UFMG, 1964. Professor Emérito da Universidade Federal de Minas
Gerais, 1984. Sua área prioritária de pesquisa é história da ciência,
em especial história da termodinâmica, com os seguintes temas prin-
cipais: termodinâmica (fundamentos), termodinâmica dos fenômenos
Coleção CLE V.11
xxiv Os Autores

irreversíveis, 2° princípio, economia da energia, fontes alternativas de


energia, futurologia das máquinas térmicas.

CLÁUDIO Pizzi atualmente é Professor-Associado de Filosofia da


Ciência junto à Universidade de Siena, Itália. Autor de vários ar-
tigos científicos sobre Filosofia da Ciência e Lógica, além de livros
sobre Lógica e Teoria das Probabilidades. E também tradutor para
o italiano de obras de referência em lógica modal e reponsável por
verbetes em lógica e filosofia para diversas enciclopédias.

Fátima Regina Rodrigues Évora é física pelo Instituto de Física


e Química de São Carlos/USP, Mestre em Lógica e Filosofia da Ciência
pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas IFCH/UNICAMP
(1987). Doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da USP com a tese: "A evolução do conceito de
inércia". É membro do Centro de Lógica, Epistemologia e História
da Ciência - CLE da UNICAMP, editora dos Cadernos de História e
Filosofia da Ciência e autora de diversos artigos na área de história da
ciência e de dois livros dedicados à Revolução Copernicano-galileana.
Atualmente é professora do Departamento de Filosofia do IFCH da
UNICAMP, onde desenvolve pesquiseis na área de história da ciência.

Fernando Lobo Carneiro nasceu no Rio de Janeiro e formou-se


em engenharia civil na Escola Politécnica da Universidade do Brasil,
hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalhou como pes-
quisador no Instituto Nacional de Tecnologia, nas áreas de tecnologia
do concreto e de engenharia estrutural. Desenvolveu em 1943 um
método para determinação da resistência à tração dos concretos que
é hoje adotado internacionalmente e conhecido em outros países como
"método brasileiro". Em 1968 ingressou, como professor titular, na
Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia Civil
e coordenou o convênio de cooperação em engenharia offshore, entre
a UFRJ e a Petrobrás. Por sua intensa atividade de pesquisador de
renome internacional, recebeu o Prêmio de Ciência Bernardo Hous-
say (1984), concedido pela OEA, o título de Doutor Honoris Causa
da UFRJ (1987) e o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência
e Tecnologia, do CNPq, em 1990. Desde 1964 dedica-se também à
história da ciência, com contribuições originais sobre Galileu e sobre
Coleção CLE V.11
Os Autores xxv

a evolução da análise dimensional e da teoria da semelhança e dos


modelos físicos.

Ítala M. Loffredo D'Ottaviano é professora livre-docente em


Lógica e Fundamentos da Matemática do Departamento de Filo-
sofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.
Doutorou-se pela UNICAMP, com pós-doutoramento na Universi-
dade da Califórnia, Berkeley e Universidade de Oxford. Trabalha em
lógicas não-clássicas, tendo sido professora visitante em universida-
des brasileiras e estrangeiras. Secretária da Sociedade Brasileira de
Lógica, diretora do Centro de Lógica, Epistemologia e História da
Ciência de 1986 até o final de 1992 e editora do periódico The Jour-
nal of Non-Classical Logic. Atualmente é editora da Coleção CLE,
presidente da Sociedade Brasileira de Lógica e do Committee on Lo-
gic inLatin America da Association for Symbolic Logic.

Jairo José da Silva é professor do Departamento de Matemática


da UNESP/Rio Claro. Licenciado em Física, Mestre em Matemática
pela USP, "Candidate in Philosophy" pela Universidade da Califórnia
em Berkeley e Doutor em Filosofia pela UNICAMP.

Jean-Yves Béziau é doutorando de Filosofia da Universidade de


Paris VII. Possui vários trabalhos publicados na área de lógica, es-
pecialmente lógicas abstratas e na área de filosofia, particularmente
sobre a filosofia de Schopenhauer. Esteve no Brasil com uma bolsa
Lavoisier, por um ano (1991-1992), trabalhando com Newton C. A.
da Costa no Departamento de Filosofia/USP. Atualmente está na
Universidade de Wrodaw, como bolsista do Governo Polonês.

Luiz Henrique de Araújo Dutra é Mestre em Lógica e Filosofia


da Ciência pela UNICAMP (1990) com a dissertação: "A demarcação
entre ciência e metafísica: a crítica de Popper ao positivismo lógico".
Atualmente é Professor Assistente I no Departamento de Filosofia da
UFSC. Suas áreas de pesquisa são: filosofia da ciência e epistemolo-
gia; a maior parte de suas publicações são nessas duas áreas.

Marconi José Cavalcanti Pequeno é Mestre pela Universidade


Federal da Paraíba (1989), com a tese "A liberdade em Sartre". Atu-
almente cursa o Doutorado na Universidade de Strasbourg, França.
Coleção CLE V.11
xxvi Os Autores

As áreas concernentes à maioria de suas publicações são: ontologia;


ética e filosofia da linguagem.

Marcos César Danhoni Neves é Mestre em Física pela UNI-


CAMP (1986) com a dissertação "Astronomia de régua e compasso;
de Kepler a Ptolomeu". Doutor em Educação pela mesma Univer-
sidade (1991) com a tese "Uma perspectiva fenomenológica para o
professor em sua expressão do: '0 que é isto, a ciência' Atual-
mente é Professor Adjunto II do Departamento de Física da Univer-
sidade Estadual de Maringá. Suas áreas prioritárias de pesquisa são;
ensino de física; história da física aplicada ao ensino; instrumentação
astronômica; ensino não-formal.

Maria Eunice Quinei Gonzales é Mestre em Lógica e Filosofia


da Ciência pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas IFCH da
UNICAMP (1984), Doutora em Filosofia pela Universidade de Essex
(Inglaterra), 1989, com a tese: "A cognitive approach visual percep-
tion". Atualmente é professora do Departamento de Filosofia da Fa-
culdade de Filosofia e Ciências da UNESP/Marília, onde desenvolve
pesquisas sobre aspectos cognitivos da percepção visual e modelos
computacionais da mente, com ênfase em redes neurais (neural net-
work).

Maria Mabel M. de Medeiros Rodrigues é Doutora em Ciências


pela Escola de Engenharia de São Carlos, USP (1968), com a tese
"Determinação da estrutura cristalina do Veronal 11". Livre-Docente
em Cristalografia pelo Instituto de Física e Química de São Car-
los, USP (1979), com a tese "Estudo estereoquímico comparativo de
algumas neolignanas". Atualmente é professora aposentada pelo Ins-
tituto de Física e Química de São Carlos, USP. Área prioritária de
pesquisa: química estrutural. A maioria de suas publicações versa
sobre química estrutural.

Mário A. L. Guerreiro é Doutor em Filosofia pela UFRJ e Pro-


fessor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFRJ. Autor de
"Problemas de filosofia da linguagem" (EDUFF, Niterói, 1985) e "0
dizível e o indizível" (Papirus, Campinas, 1989) e co-autor de "Para-
digmas filosóficos da atualidade", organizado por Maria Cecília M. de
Carvalho (Papirus, Campinas, 1989). Membro do ILTC - Instituto
Coleção CLE V.11
Os Autores xxvii

de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência e da SBEC - Sociedade Bra-


sileira de Estudos Clássicos. Pesquisador I do CNPq. Seus artigos
e trabalhos apresentados em Congressos concentram-se nas áreas de
filosofia da linguagem, filosofia da lógica e teoria do conhecimento.
Sua atual pesquisa no CNPq, em fase de conclusão, tem como objeto
a busca de um critério de demarcação dos discursos ficcional e não-
ficcional.

Marly Bulcão doutorou-se em Filosofia pela UFRJ (1990) com


a tese "Razão: contemplação ou trabalho - Brunchvicg e Bachelar
diante da ciência". Atualmente é professor-adjunto da mesma Uni-
versidade. Autora de inúmeros artigos e de um livro "O racionalismo
da ciência contemporânea: uma análise da epistemologia de Gaston
Bachelard" (1981), tem como área de pesquisa principal epistemolo-
gia e história das ciências.

Michael Wrigley é Doutor pela Universidade da California em


Berkeley. Atualmente é Professor Assistente no Departamento de Fi-
losofia do IFCH/UNICAMP, membro do Centro de Lógica, Epistemo-
logia e História da Ciência e editor-associado da Revista Manuscrito
e pesquisador do CNPq. Suas áreas de pesquisa são: O desenvolvi-
mento da filosofia de Wittgenstein, filosofia da matemática, filosofia
da linguagem.

Michel Ghins é Doutor em Filosofia pela Université Catholique de


Louvain (Louvain-La-Neuve), 1982. Atualmente é professor do De-
partamento de Filosofia da Université Catholique de Louvain. Autor
de numerosos artigos em francês, inglês e português, e de um livro
traduzido e publicado pela Coleção CLE intitulado "A Inércia e o
Espaço-Tempo Absoluto: de Newton a Einstein"; está preparando
um livro introdutório à filosofia da ciência.

Newton C.A. da Costa é atualmente professor titular do Depar-


tamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP. Engenheiro civil e bacharel em Matemática pela
Universidade Federal do Paraná, obteve os títulos de doutor em ma-
temática, livre-docente e professor titular pela mesma instituição.
Foi professor titular dos Departamentos de Filosofia e Matemática
da UNICAMP, sendo membro fundador do Centro de Lógica, Episte-
Coleção CLE V.11
xxviii Os Autoces

mologia e História da Ciência da UNICAMP. Dedica-se à lógica, aos


fundamentos da matemática e à filosofia da ciência. E o fundador das
lógicas paraconsistentes, tendo nos últimos anos resolvido importan-
tes questões relativas aos fundamentos da física. Com vasta produção
científica e inúmeros discípulos, tem sido professor visitante em mui-
tas universidades do Brasil e do exterior. E membro da Academia de
Ciências do Estado de São Paulo e do Institui International de Phi-
losophie de Paris, tendo sido agraciado recentemente com o Prêmio
Moinho Santista 1993 - Lógica Matemática.

Osvaldo Melo Souza Filho é Mestre em Ensino de Ciências


(Física) pelo Instituto de Física e pela Faculdade de Educação da
USP, com a dissertação: "Evolução da idéia de conservação da ener-
gia - um exemplo de história da ciência no ensino de física". Atu-
almente é Professor da Academia da Força Aérea de Pirassununga
e doutorando em Filosofia da Ciência pelo Departamento de Filoso-
fia da FFLCH/USP. Suas áreas de pesquisas são: história e filosofia
da termodinâmica. Atualmente, pesquisa a termodinâmica de Pierre
Duhem era relação com a sua concepção de ciência e sua pesquisa
historiagráfica.

Pablo RubÉn Mariconda é Mestre em Filosofia pelo Departa-


mento de Filosofia da FFLCH da USP, com a tese: "Teoria da ciência
e metodologia; a teoria do método na lógica da investigação científica
de Karl Popper" em 1979. Doutorou-se em filosofia, pela mesma ins-
tituição, com a tese: "A teoria da ciência em Pierre Duhem", defen-
dida em 1986. Atualmente é professor do Departamento de Filosofia
da USP, onde desenvolve pesquisas nas áreas de lógica, filosofia da
ciência, teoria do conhecimento e história da ciência.

Paulo César Coelho Abrantes é Mestre em história e filoso-


fia da ciência pela Universidade de Paris (Nanterre, França), 1978.
Doutorou-se em filosofia pela Universidade de Paris I, 1985, com a
tese: "A recepção na França das teorias de Maxwell em eletricidade e
magnetismo". Atualmente é professor do Departamento de Filosofia
da UnB, onde desenvolve pesquiseis nas áreas de ciência cognitiva e
história e filosofia da ciência.
Coleção CLE V.11
Os Autores xxix

Roberto Cintra Martins é Doutor em Engenharia de Sistemas e


Computação da COPPE/UFRJ (1987) com a tese "Informática e so-
ciedade". Pós-Doutorado em Filosofia e História da Ciência no Deuts-
ches Museum de Munique (1988-90), tendo como tema: "Ciência e
Ética". Atualmente é Professor Adjunto no Instituto de Matemática
e na COPPE/UFRJ. Sua área prioritária de pesquisa é "História e
filosofia da ciência" e os temas da maioria de suas publicações são:
ética, ciência e tecnologia; história da física moderna; educação em
ciência e engenharia.

Walter Alexandre Carnielli é Doutor e Livre-Docente em Ma-


temática pelo IMECC/UNICAMP em 1982 e 1986, respectivamente,
na área de lógica e fundamentos da matemática; é autor de cerca
de 20 artigos de pesquisa e de um livro sobre teoria da computação,
além de colaborador em outros, e co-editor de revistas científicas in-
ternacionais. Atualmente, é Professor Adjunto do Departamento de
Filosofia do IFCH/UNICAMP. Professor visitante na França, Itália,
Venezuela, Alemanha e Polônia, fez pós-doutorado na Universidade
da Califórnia, em Berkeley e é ex-bolsista da Fundação Alexander
von Humboldt na Alemanha. Suas áreas de interesse atuais são as
lógicas não-clássicas e aplicações à Inteligência Artificial, teoria da
prova e combinatória infinita.

Washington Luís de Sousa Bonfim é aluno do Mestrado em


Ciência Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Ja-
neiro (IUPERJ). Suas publicações tem como tema principal questões
teórico-metodológicas das ciências sociais. No entanto, sua área pri-
oritária de pesquisa hoje é a literatura política regional do Brasil.
Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
Parte I

* História e Filosofia da Ciência


Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
1

História e Filosofia da Ciência: uma


Dependência Necessária?

Fátima Regina R. Évora

"A filosofia da ciência sem a história da


ciência é vazia, e a história da ciência sem
a filosofia da ciência é cega." (Imre Laka-
tos)

A reflexão sobre o estatuto ontológico da história da ciência, so-


bre os objetivos do discurso historiográfico, sobre o papel da história
da ciência frente a outras disciplinas, bem como a reflexão sobre a
determinação do objeto da historiografia da ciência, do seu método e
dos padrões (ou metacritérios), capazes de fornecer subsídios para a
crítica dos produtos historiográficos, é fundamental para aqueles que
se dedicam à história da ciência, aqueles que pretendem reconstruir
a história de uma teoria ou de um conceito científico.
A meu ver, a análise da relevância da filosofia da ciência para a
história da ciência e vice-versa ocupa um papel central na reflexão
sobre o estatuto ontológico da história da ciência, uma vez que nas
últimas décadas inúmeros filósofos e historiadores da ciência têm ad-
Coleção CLE V.11
4 História e Filosofia da Ciência

vogado em favor da idéia de que a história da ciência e a filosofia da


ciência dependem uma da outra.
Contudo, como nos afirmou Laurens Laudan em um artigo escrito
em 1968:
O casamento entre as duas disciplinas, sancionado e perpetuado pela
existência de dezenas de departamentos acadêmicos consagrados à
questão, parece, muitas vezes, mais imaginário do que real e mais
forçado do que natural. £ evidente que a presença de departamentos
e cadeiras universitárias com nomes híbridos não é suficiente, por si
mesma, para demonstrar uma afinidade real entre os dois tópicos.
Além disso, na prática efetiva, os dois são, com freqüência, inteira-
mente irrelevantes um para o outro. E difícil imaginar, por exemplo,
como e por que o historiador, que escreve sobre a evolução da teo-
ria da valéncia ou sobre a ciência na França revolucionária, extrairia
mais benefícios do estudo da filosofia da ciência do que, por exemplo,
do estudo da história política ou da sociologia. De maneira análoga,
é pouco provável que o filósofo da ciência interessado nos paradoxos
da confirmação ou no estatuto existencial de entidades teóricas ob-
tenha grandes esclarecimentos de um exame demorado da história
da alquimia ou da botânica sistemática.
Mas, se os argumentos destinados a estabelecer a interdependência
geral entre a história da ciência e a filosofia da ciência são menos con-
vincentes do que querem admitir alguns dos seus defensores, existe
entretanto, um excelente argumento para apoiar uma tese de inter-
dependência ligeiramente mais fraca. Em vez de adotar a tese de
que estudos históricos em geral são de grande valia para o filósofo
da ciência e vice-versa, creio que deveríamos sublinhar que tanto a
história da ciência quanto a filosofia da ciência têm, ambas, uma
preocupação comum e um interesse específico numa questão parti-
cular: a história das teorias do método científico (LAUDAN, 1980,
p. 5-6).

Ao ver de Laudan, a análise da evolução das teorias do método


científico é fundamental para aqueles que pretendem compreender
tanto a história quanto a filosofia da ciência, já que quando tentamos
reconstruir a história de uma determinada teoria ou de um deter-
minado procedimento científico não podemos ignorar as opiniões dos
cientistas em questão sobre as teorias metodológicas de seu tempo as
quais muitas vezes exerceram influências marcantes em certos desen-
volvimentos na ciência.
Seria difícil [afirma Laudan] conceber uma apresentação adequada
da mecânica celeste de Newton, da ótica de Descartes, das teorias
elétricas de Ampère, da termodinâmica de Duhem, da sociologia
Coleção CLE V.11
Fátima Regina R. Évora 5

de Comte ou do behaviorismo de Skiner, que deixasse de exami-


nar minuciosamente as idéias metacienlíficas e metodológicas desses
cientistas. Como mostrou Kuhn, mesmo quando são pouco pro-
nunciadas as idéias metodológicas de um determinado cientista, os
padrões metodológicos da sua época (por exemplo, os critérios para
as explicações aceitáveis e os cânones de uma experimentação) afe-
tam, muitas vezes, a prática da ciência, jamais podendo ser a priori
postos de lado como irrelevantes (LAUDAN, 1980, p. 6).

Do mesmo modo, o filósofo da ciência deverá olhar para a história


do método científico. Embora alguns ainda relutem em admitir que
a filosofia da ciência tenha uma história anterior ao Círculo de Viena,
ela possui uma longa e característica história, tão rica e sugestiva
quanto outro ramo da filosofia. Ignorar estas teorias do método ci-
entífico veiculadas no passado trará sem dúvida prejuízo para a filo-
sofia da ciência, pois de uma forma ou de outra estas teorias condici-
onaram as atuais teorias metodológicas, e constituem parte essencial
da história do próprio objeto de estudo do filósofo da ciência.
A crença da relevância da história da ciência para a filosofia da
ciência contemporânea é contestada, ao ver de Laudan, pelos po-
sitivistas lógicos, os quais conceberiam a filosofia da ciência, antes
de mais nada, como uma análise cuidadosa e detalhada da estru-
tura lógica e dos problemas conceituais da ciência contemporânea,
enquanto que ais filosofias da ciência anteriores se ocupavam com pro-
blemas filosóficos de teorias científicas já superadas. Se admitirmos
esta tese, nâo há nenhuma razão para acreditarmos que a investigação
da história da filosofia da ciência possa trazer qualquer benefício para
a filosofia da ciência de nossos dias, já que as filosofias da ciência do
passado tratavam de um conjunto radicalmente diverso de teorias
científicas. A afirmação deste tipo, Laudan responde:
[eles se esquecem, porém, do] fato de que muitos dos principais pro-
blemas da filosofia da ciência são problemas que ressurgem permar
nentemente, problemas que não são engendrados por nenhuma teo-
ria em particular, mas por virtualmente qualquer teoria. Problemas
como os da formação de conceitos na ciência, da natureza da lei,
da indução, dos métodos experimentais, das hipóteses, da discri-
minação entre os elementos a priori e os empíricos nas teorias; esses
problemas e outros semelhantes não foram inventados pela recente
filosofia da ciência, nem as soluções contemporâneas que a eles se
oferecem são totalmente originais e sem antecedentes (LAUDAN,
1980, p. 14-5).
Coleção CLE V.11
6 História e Filosofia da Ciência

Laudan, contudo, adverte para os perigos de uma pseudo-história,


volúvel e pretensiosa, como, por exemplo, aquela que incluiria, sem a
menor documentação, todas as figuras céticas da história da ciência
e da filosofia como patronos intelectuais do positivismo lógico. Lau-
dan também reconhece que a história do método científico se ressente
ainda da atenção insuficiente dada à evolução histórica dos conceitos
fundamentais da própria metodologia. Ainda carecemos de uma res-
posta satisfatória sobre as circunstâncias precisas em que se desenvol-
veram, por exemplo, noções como leis, indução, hipóteses, refutação,
experimento e outros conceitos metacientíficos que estão a exigir uma
cuidadosa investigação histórica.
Se tivéssemos tais conhecimentos, poderíamos talvez compreen-
der melhor a aversão por hipóteses que Newton, Comte e Mill ma-
nifestavam. Assim como poderíamos perceber com maior clareza as
diferentes intenções dadas à palavra indução por inúmeros cientistas
(Mill e Whewell, por exemplo).
Embora Laudan tenha sublinhado a necessidade de reconhecer a
história da metodologia como um tema autônomo e não apenas um
apêndice menor da história da epistemologia ou da história da ciência,
ele afirma que:

seria manifestamente absurdo sugerir que é possível compreender


o seu desenvolvimento fora do contexto de certas suposições epis-
temológicas de caráter geral e de problemas científicos específicos.
Importa, em particular, esquivar o erro que consiste em separar se-
letivamente as controvérsias metodológicas das questões científicas
que lhes conferiram substância e significação. O debate renascen-
tista sobre as hipóteses, por exemplo, só pode ser apreciado em
função das doutrinas astronômicas discutidas na época. Do mesmo
modo, o debate que se desenrolou no final do século dezenove acerca
dos méritos metodológicos dos modelos estava estreitamente ligado
à polêmica científica entre os atomistas e os energeticistas. Outro
ponto evidente de confluência se encontra na conexão entre a filo-
sofia corpuscular e as questões metodológicas no século dezessete.
Visto que os cientistas muitas vezes acham conveniente usar armas
metodológicas quando não conseguem derrotar seus adversários com
armas experimentais, o historiador do método [conclui Laudan] sem-
pre deve procurar a motivação científica tática que se esconde sob
a adoção de uma determinada regra ou teoria metacientífica. Sem
pretender sugerir que as discussões metodológicas sempre tomam a
forma de uma apologia pro sua scientia, é forçoso reconhecer que os
cientistas muitas vezes se voltam para a metodologia na esperança de
Coleção CLE V.11
Fátima Regina R. Évora 7

racionalizarem as suas próprias convicções teóricas e procedimentos


experimentais (LAUDAN, 1980, p. 13-4).
Não se pode deixar de concordar com os pontos levantados por
Laudan, e com a tese de um enfraquecimento da idéia da interde-
pendência entre a história e a filosofia da ciência. Contudo, eu creio
que Laudan dirige sua crítica à situação extrema, àqueles que de-
fendem uma tese de interdependência absoluta, e estes, a meu ver,
não representam a maioria. Ao contrário, a maioria dos que, como
eu, defendem a tese da interdependência entre a história e a filosofia
da ciência não negam as especificidades de cada uma destas disci-
plinas, e as reconhecem como disciplinas autônomas, com objetivos,
métodos e metacritérios, de auto-avaliação de seus produtos, parti-
culares. História e filosofia da ciência não são a mesma coisa.
O que defendemos é que para a compreensão completa da evolução
de um determinado episódio da história da ciência há necessidade
de se levar em conta a filosofia da ciência. Isto não quer dizer que
não existam momentos no trabalho do historiador ou do filósofo da
ciência em que estas disciplinas se tornem irrelevantes uma para a
outra. Mas eu vou um pouco mais adiante que Laudan, embora sem
defender a interdependência absoluta, mas fortalecendo um pouco a
sua tese. Eu creio que a dependência mútua entre a história e a filo-
sofia da ciência decorre, como apontou Laudan, do interesse comum
pela história do método científico, mas também da interdependência
existente entre a epistemologia e a própria ciência. Interdependência
esta que está presente não apenas nas teorias científicas do passado,
quando filósofos eram ao mesmo tempo cientistas, como Galileo, Des-
cartes ou Aristóteles, mas também em teorias contemporâneas, como
bem nos afirmou Albert Einstein:
A epistemologia sem contato com a ciência torna-se um esquema va-
zio. A ciência sem epistemologia é, na medida em que seja possível
assim concebê-la, primitiva e grosseira. Entretanto, tão logo o epis-
temólogo, que procura por seu sistema claro, tenha encontrado o ca-
minho em direção a tal sistema, inclina-se a interpretar o conteúdo
do pensamento científico no sentido do seu sistema, e a rejeitar tudo
o que não esteja adequado a seu sistema. O cientista, entretanto,
não pode incumbir-se de levar tão longe sua busca de sistematização
epistemológica.[...]. Ele portanto deve parecer ao epistemólogo sis-
temático como um tipo de oportunista inescrupuloso: ele parece ser
realista na medida em que procura descrever um mundo indepen-
dente dos atos de percepção; idealista porque considera os conceitos
Coleção CLE V.11
8 História e Filosofia da Ciência

e teorias como livres invenções do espírito humano; positivista, pois


só julga seus conceitos e teorias justificadas pelo fortalecimento de
uma representação lógica das relações entre as experiências senso ri-
ais. Ele pode até mesmo parecer um platônico ou pitagórico, pois
considera o ponto de vista da simplicidade lógica como um instru-
mento indispensável e efetivo para sua ciência (EINSTEIN, 1970, p.
684).

Apesar das diferenças que Einstein aponta entre a epistemologia e


a ciência - e tomadas as devidas precauções com respeito ao uso des-
tas grandes generalizações (realistas, positivistas), que via de regra
mascaram semelhanças metodológicas e ocultam diferenças significa-
tivas entre cientistas e filósofos rotulados por etiquetas que nem sem-
pre refletem pontos controvertidos, que são importantes na história
de uma determinada disputa metodológica - Einstein é enfático ao
afirmar que a ciência sem epistemologia é primitiva e grosseira.
Se aceitarmos este ponto de vista, devemos aceitar também que a
história da ciência não pode prescindir da epistemologia, sob pena de
estar desprezando parte essencial da história do seu próprio objeto
de estudo.
Resumindo:
1. A história da ciência depende da filosofia da ciência, e vice-
versa, na medida em que ambas mantêm uma interdependência com a
história das teorias do método científico. Ao se reconstruir a história
de um determinado episódio da história da ciência deve-se levar
em conta as idéias metodológicas dos cientistas em questão (ainda
que pouco pronunciadas) e os padrões metodológicos de sua época
(critérios para as explicações aceitáveis e os cânones de uma experi-
mentação). Do mesmo modo, o filósofo da ciência deverá levar em
conta as teorias do método científico veiculadas no passado, já que de
algum modo estas condicionam as teorias metodológicas posteriores
e constituem parte essencial do próprio objeto de estudo destas novas
teorias.
2. A história da ciência depende da filosofia da ciência na me-
dida em que o seu objeto de estudo, que é a ciência, mantém uma
interdependência com a epistemologia.
Imre Lakatos porém aponta um outro papel que a filosofia da
ciência desempenha ao longo do trabalho do historiador da ciência.
E bastante conhecida a famosa afirmação de Lakatos, parafrase-
Coleção CLE V.11
Fátima Regina R. Évora 9

ando Kant, que a "filosofia da ciência sem a história da ciência é


vazia, e que a história da ciência sem a filosofia da ciência é cega"
(Lakatos, 1971, p. 91).
Sem dúvida é uma afirmação de grande impacto, mas o que tinha
Lakatos em mente? Segundo ele, esta paráfrase o inspirou a tentar
explicar de que modo a história da ciência deveria aprender com a
filosofia da ciência e vice-versa. Ele nos mostra, no artigo no qual a
frase acima serve de epígrafe, que:
1. a filosofia da ciência proporciona metodologias normativas com
cujos termos o historiador reconstrói a 'história interna' e chega deste
modo a uma explicação racional do desenvolvimento do conhecimento
objetivo.
2. as metodologias rivais podem ser avaliadas com a ajuda da
história da ciência (normativamente interpretada).
Analisemos o primeiro ponto: uma das questões que está por
trás desta reflexão de Lakatos é o questionamento sobre o objeto da
historiografia da ciência. 0 historiador da ciência não pode prescindir
de critérios de demarcação entre o que é ciência e o que não é
ciência, entre a atividade científica e outras atividades, sob pena de
estando diante de um determinado episódio da história não saber se
ele faz ou não parte do seu objeto de estudo. Mas que critérios são
estes? São eles absolutos? Quem os determina? E exatamente neste
ponto que, a meu ver, a interdependência entre a história e a filosofia
da ciência se apresenta de forma mais contundente.
A reconstrução histórica é intrinsecamente uma tarefa seletiva e
interpretativa, e sem dúvida é a prévia posição filosófica adotada pelo
historiador da ciência que agirá como um dos instrumentos mais im-
portantes de seleção e interpretação. Todo historiador da ciência,
como notou Lakatos, ao reconstruir a evolução de uma determinada
teoria ou procedimento científico pressupõe, ainda que não explicita-
mente, uma determinada teoria da racionalidade científica.
Portanto, nenhuma história da ciência é absolutamente neutra,
no que se refere a posições filosóficas, pois os historiadores da ciência
não estão imunes às filosofias da ciência1.
1
Diversos autores nos últimos trinta anos tém advogado em favor desta idéia.
A este respeito ver; LAKATOS (1970) e (1971), AGASSI (1963), GRÚBAUM
(1963).
Coleção CLE V.11
10 História e Filosofia da Ciência

A postura de Lakatos frente à história da ciência ílca bastante


clara quando ele descreve o procedimento que deveria ser adotado,
ao seu ver, por aqueles que pretendem escrever um estudo histórico:
1) dá-se uma reconstrução racional; 2) tenta-se comparar esta re-
construção racional com a história real e criticar tanto a própria re-
construção racional por carecer de historicidade como a história real
por carecer de racionalidade. De maneira que todo estudo histórico
deve ser precedido por um estudo heurístico [e conclui]; a história
da ciência sem a filosofia da ciência está cega (LAKATOS, 1970, p.
138).

O termo história da ciência (aí entendida a história interna)


abriga, segundo Lakatos, duas histórias: uma história real e uma se-
gunda história que seria uma reconstrução racional da história real,
sendo a história da ciência real sempre mais rica que a sua recons-
trução racional.
Lakatos considera que estas reconstruções são racionais porque,
de acordo com sua concepção, o historiador parte de uma teoria da
racionalidade científica ou metodologia, seja ela qual for, para sele-
cionar os fatos que devem fazer parte de sua reconstrução, e, certa-
mente, ele omitirá tudo o que seja 'irracional' à luz de sua teoria da
racionalidade.
A opção do historiador da ciência por uma determinada teoria
da racionalidade científica terá conseqüências decisivas sobre o resul-
tado do seu trabalho. Por exemplo, a demarcação fundamental entre
a história interna/normativa e a história externa/empírica difere de
uma metodologia para outra. Além disso, cada teoria da raciona-
lidade do progresso científico proporciona um sistema teórico para
a reconstrução racional da história da ciência, por exemplo, afirma
Lakatos:
A história interna dos indutivistos consta de pretensas descobertas
de fatos firmes e das supostas generalizações indutivas. A história in-
terna dos conuenctono/isfas consta de descobertas íactuais, das cons-
truções de sistemas de classificação e suas substituições por outros
sistemas supostamente mais simples. A história interna dos falsifi-
cacionistaa expõe conjecturas audazes, progressos que são ditos ter
sempre aumento de conteúdo e, sobretudo, nos apresenta "experi-
mentos cruciais negativos" vitoriosos. A metodologia dos programas
de investigações cientificas [defendida por Lakatos], finalmente, en-
fatiza a prolongada rivalidade teórica e empírica dos maiores progra-
mas de investigações, problemáticas progressivas e degenerativas, e

Coleção CLE V.11


Fátima Regina R. Évora 11

a vitória, lentamente conseguida, de um programa sobre outro (LA-


KATOS, 1971, p. 105).
Estas diversas historiograíias internas têm, ao ver de Lakatos, seus
paradigmas vitoriosos característicos, por exemplo, as generalizações
indutivas feitas por Kepler a partir das precisas observações de Ty-
cho Brahe; juntamente com o descobrimento da lei da gravitação, por
Newton, generalizando indutivamente os phenomena de Kepler rela-
tivos ao movimento planetário, sem dúvida alguma correspondem a
alguns dos principais paradigmas da historiografia indutivista. Esta
visão de Lakatos pode ser criticada como o fez Thomas Kuhn afir-
mando:
O que Lakatos concebe como história, não é, de modo algum história,
mas filosofia que inventa exemplos. Feita desta forma, a história não
poderia ter, em princípio, o menor efeito sobre a posição filosófica
prévia que exclusivamente lhe deu forma. Isto não supõe afirmar que
a reconstrução histórica não seja intrinsecamente uma tarefa seletiva
e interpretativa, nem que uma posição filosófica prévia não desempe-
nha qualquer papel enquanto instrumento de seleção e interpretação.
Trata-se antes de reafirmar que, no único tipo de história que pode
ter interesse filosófico, uma prévia postura filosófica não é o único
princípio seletivo, e também que, enquanto princípio seletivo, esta
posição não é inviolável. Quando um relato histórico exige notas
marginais que completem suas construções, chegou o momento de
reconsiderar sua posição filosófica (KUHN, 1971, p. 143).
Esta afirmação de Kuhn não apenas contesta a visão de Laka-
tos sobre o papel da filosofia da ciência ante a história da ciência,
como também contesta a forma como Lakatos supõe que a história
da ciência pode ajudar a filosofia, ou seja, ele contesta que metodo-
logias rivais possam ser avaliadas com a ajuda da história da ciência
(normativamente interpretada).
No que se refere ao primeiro ponto da crítica kuhniana - que a
história tal qual concebida por Lakatos nada mais é do que filosofia
que inventa exemplos - é instrutiva a resposta de Lakatos a críticas se-
melhantes. Segundo ele, a tese de que antes de filosofar necessitamos
de mais exemplos é equivocada, e além disso uma teoria indutivista
da historiografia2 é utópica. A história sem nenhum elemento teórico
é impossível, ainda que não explicitado, obscurecido por uma variação
2
E interessante notar a diferença existente entre, por um lado, a historiografia
indutivista da ciência, segundo a qual a ciência se desenvolve mediante o descobri-
Coleção CLE V.11
12 História e Filosofia da Ciência

eclética de teorias, ou por uma confusão teórica, este elemento teórico


está sempre presente.
Quanto ao segundo ponto da crítica de Kuhn, Lakatos responde
que a história da ciência normativamente interpretada pode agir como
árbitro na escolha entre metodologias alternativas. A idéia básica
de Lakatos é a seguinte: todas as metodologias devem ser toma-
das como teorias (ou programas de investigação) historiográficas (ou
meta-históricas) e portanto passíveis de crítica, ou seja, as recons-
truções históricas racionais a que elas conduzem podem ser submeti-
das à crítica. Para isso ele desenvolve um método historiográfico de
crítica em forma dialética.

Partirei [afirma Lakatos] de um caso especial: primeiro ^refuto' o


falsificacionismo ^ aplicando * o falsiílcacionismo (a um metanível his-
toriográfico-normativo) a si mesmo. Depois aplicarei também o fal-
sificacionismo ao indutivismo e ao convencionalismo, e, na realidade,
demonstrarei que todas as metodologias estão destinadas a terminar
por ser 'falseadas' com a ajuda desta máquina de guerra Pyrrhoni-
ana. Por último 'aplicarei', não o falsificacionismo, senão a meto-
dologia dos programas de investigação científica (novamente a um
metanível historiográfico-normativo) ao indutivismo, ao convencio-
nalismo, ao falsificacionismo e a si mesma, e mostrarei que - com este
metacritério - as metodologias podem ser criticadas e comparadas
construtivamente. Esta versão historiográfico-normativada da meto-
dologia dos programas de investigação científica fornece uma teoria
geral de como comparar lógicas rivais de descobrimentos, na qual
a história (em um sentido que há de ser cuidadosamente especifi-
cado) pode ser vista como um 'teste' de suas reconstruções racionais
(LAKATOS, 1971, p. 109).

Para Lakatos, cada metodologia da ciência determina uma de-


marcação característica (e clara) entre história interna (primária) e
história externa (secundária); além disso ele defende que, ambos, his-
toriadores e filósofos da ciência, devem estabelecer o melhor possível
a distinção entre fatores externos e internos. E conclui:

mento de fatos puros (na natureza) e (possivelmente) as generalizações indutivas,


e, por outro lado, a teoria indutivista da historiografia da ciência, segundo a qual
a historiografia da ciência se desenvolve mediante o descobrimento de fatos pu-
ros (na história da ciência) e (possivelmente) as generalizações indutivas. Alguns
historiógrafos indutivistas podem considerar as "conjecturas audazes", os "experi-
mentos cruciais negativos", e inclusive os "programas de investigação progressivos
e degenerativos" como "fatos históricos puros" (LAKATOS, 1971, p. 127-8).
Coleção CLE V.11
Fátima Regina R. Évora 13

A história da ciência é freqüentemente uma caricatura de


suas reconstruções racionais; que as reconstruções racionais são
freqüentemente caricaturas da história real; e que algumas histórias
da ciência são caricaturas de ambas: da história real e de suas re-
construções racionais (LAKATOS, 1971, p. 122).

A relevância da história da ciência para a filosofia da ciência, e


vice-versa, torna-se, a meu ver, ainda maior diante da situação de
crise em que se encontra a filosofia da ciência contemporânea; nas
últimas décadas todas as formas de justificacionismo ou verificacio-
nismo, quer racionalistas, quer empiristas, fracassaram, apesar do
enorme esforço realizado pelos racionalistas clássicos em tentar sal-
var os princípios sintéticos a priori do intelectualismo e dos empi-
ristas clássicos para tentar salvar a certeza de uma base empírica
e a validade da inferéncia indutiva. Para todos eles a honestidade
científica exigia que não se afirmasse nada que não estivesse de-
monstrado. Todavia, ambos foram derrotados: os kantianos pela
geometria não-euclidiana e a física não-newtoniana, e os empiristas
pela impossibilidade lógica de estabelecer uma base empírica [como
assinalaram os kantianos, os fatos não podem demonstrar enuncia-
dos] e de estabelecer uma lógica indutiva... Resultou que todas as
teorias são igualmente indemonstraveis (LAKATOS, 1970, p. 92).

Mesmo as tentativas neo-justificacionistas ou probabilistas não re-


sistiram às críticas filosóficas contemporâneas, principalmente aque-
las de Karl Popper, para quem todas as teorias não só são igualmente
indemonstráveis, como igualmente 'improváveis', uma vez que o esta-
belecimento de uma 'lógica da inferéncia provável', ou de uma 'lógica
da probabilidade', se encontra diante das mesmas dificuldades que o
estabelecimento da lógica indutiva.
As várias correntes falsificacionistas3 que surgiram contempora-
neamente propondo uma outra saída a fim de manter a possibilidade
do pensamento racional não tiveram melhor sorte.
O falsificacionismo dogmático ou naturalista que defende a
existência de uma fronteira natural (i.e. psicológica) entre os enunci-
ados teóricos e os enunciados de fatos ou observacionais, e a possibili-
dade de se assegurar o valor veritativo dos enunciados observacionais
3
De acordo com estas correntes, embora um sistema científico não possa ser
dado como válido definitivamente em sentido positivo, sua forma lógica deve ser tal
que torne possível validá-lo através de recurso a provas empíricas em um sentido
negativo. Deve ser possível, em princípio, refuti-lo pela experiência.
Coleção CLE V.11
14 História e Filosofia da Ciência

de modo indubitável a partir dos fatos, não sobreviveu às críticas,


particularmente as de Popper e Lakatos, que consideram falsos os
dois pressupostos básicos sobre os quais é sustentado o falsiílcacio-
nismo dogmático. Segundo Lakatos, a psicologia testifica a impossibi-
lidade de se determinar uma fronteira psicológica entre os enunciados
teóricos e os enunciados de fato (enunciados básicos); e a lógica a
impossibilidade de se determinar, de modo indubitável, o valor veri-
tativo dos enunciados a partir da experiência, já que os enunciados só
podem ser justificados por outros enunciados, o que torna sem dúvida
os enunciados observacionais falíveis.
"Se [os enunciados observacionais] são falíveis, então o conflito
entre teorias e enunciados de fato não são falsificações, senão simples-
mente inconsistências" (Lakatos, 1970, p. 92). Portanto o critério
de refutabilidade do falsiíicacionista dogmático, segundo o qual uma
teoria será refutada quando os enunciados teóricos forem contradita-
dos pelos enunciados de fato, é inútil. Como também é inútil o seu
critério de demarcação, segundo o qual só é dita científica uma teoria
que tenha uma base empírica; este critério, se adotado, eliminaria
a classe mais importante das que comumente se consideram teorias
científicas.
O que resta ao filósofo interessado em descrever a ciência e o
progresso do conhecimento científico?
Se todas as teorias científicas não são demonstráveis, nem probabi-
lizáveis, nem contra demonstráveis, então os céticos estavam certos:
a ciência não é mais do que uma especulação vã e não existe algo
como o progresso no conhecimento científico (LAKATOS, 1970, p.
101).
Lakatos, decepcionado com este fim, tentou encontrar um meio de
não ter que se render ao ceticismo, elaborando uma teoria da ciência
capaz de explicar o progresso científico, enquanto progresso racional,
tentando encontrar os critérios sobre os quais se baseia a eliminação
de teorias. Esta teoria da ciência, segundo Lakatos, corresponde a
uma extensão do que ele chama de falsificacionismo metodológico
sofisticado, que constitui um ramo do convencionalismo, que já estava
parcialmente presente em Popper.
A racionalidade científica popperiana não reside na tentativa de
demonstrar, ou tornar provável uma dada teoria, nem no fato de
podermos deduzir a partir dela determinados enunciados, mas antes

Coleção CLE V.11


Fátima Regina R. Évora 15

no fato de podermos examiná-la criticamente, sujeitá-la à tentativa


de refutaçào, inclusive com testes obtidos mediante observações4. A
receita de Popper pode ser resumida nas seguintes palavras: valentia
nas conjecturas de uma parte e austeridade nas refutações de outra. A
refutação popperiana, contudo, tem um caráter de convenção, ela não
pressupõe, como o faz a falsificacionista dogmática, a possibilidade
de se assegurar de modo indubitável o valor veritativo dos enunciados
que se referem à base empírica5.
Sob o prisma lógico, o teste de uma teoria depende de enunciados
básicos, cuja aceitação ou rejeição depende, por sua vez, de nossas
decisões [de aceitá-los temporariamente como verdadeiros]. Dessa
forma, são as decisões que estabelecem o destino das teorias (POP-
PER, 1972, p. 108).

O falsificacionismo popperiano, embora aparentemente mais


plausível que o dogmático, tem sido duramente criticado nas últimas
décadas, tendo sofrido um grande golpe após as críticas de Thomas
Kuhn e Paul Feyerabend. Ambos apoiam suas críticas sobre a história
da ciência, na certeza de que esta não pode ser posta de lado como
irrelevante para as metodologias, embora as conseqüências episte-
mológicas que cada um deles deriva de seu estudo de casos sejam
completamente diferentes.
Não é nosso objetivo aqui analisar as várias teorias episte-
mológicas que surgiram nas últimas décadas, bastando para os nossos
objetivos traçar algumas linhas que indiquem o estado de crise em que
se encontra a filosofia da ciência contemporânea. Certamente há ne-
cessidade de uma nova abordagem geral da ciência, que talvez possa
ser desenvolvida a partir dos programas de investigação científica de
Lakatos.
4
Para uma discussão mais detalhada sobre o falsificacionismo popperiano ver:
ÉVORA, F.R.R., 1988, v.l, p. 1-10.
5
A refutação de teorias, segundo Popper, depende de enunciados básicos (enun-
ciados de fatos singulares que podem atuar como premissas falsificador as), que
para serem considerados científicos devem ser passíveis de testes intersubjetivos,
o que implica em que outros enunciados suscetíveis de testes intersubjetivos pos-
sam ser deduzidos dos enunciados que devem ser submetidos a teste, e assim ad
infinttum. E claro que a exigência popperiana é de suscetibilidade de testes ad ín-
fimtum. A opção de parar com a cadeia de provas, e conseqüentemente a aceitação
do último enunciado básico submetido a teste, requer uma decisão, a saber, a de
aceitá-lo temporariamente como verdadeiro.
Coleção CLE V.11
16 História e Filosofia da Ciência

Contudo, eu creio que a saída da crise pressupõe uma epistemolo-


gia com avesso historiográíico, que considere não somente a história
dos métodos científicos, mas também a própria história da ciência,
já que, como foi afirmado anteriormente, as idéias metodológicas dos
cientistas e os padrões metodológicos de sua época afetam a prática
científica, mas também constituem reflexos desta mesma prática.
Portanto, ao se analisar uma determinada corrente epistemológica
não se pode deixar de refletir sobre a história da ciência pois, como
apontou Laudan, não se deve separar seletivamente as controvérsias
metodológicas das questões científicas que lhes conferiram substância
e significação.
Finalmente, eu gostaria de encerrar este artigo analisando um
último aspecto que, a meu ver, evidencia a mútua dependência entre
história da ciência e filosofia da ciência, que decorre da relevância da
história da ciência para a própria ciência, que por sua vez, como foi
visto acima, é essencial para a epistemologia, a qual sem contato com
a ciência torna-se um esquema vazio.
A meu ver, um cientista interessado em conseguir o máximo
conteúdo empírico, desejando compreender tantos aspectos de sua
teoria quanto possíveis, deverá adotar metodologia pluralista compa-
rando as teorias com outras teorias, e não apenas com a experiência,
dados ou fatos, e deverá tentar aperfeiçoar concepções que aparente-
mente não resistem à competição, e não simplesmente afastá-las. Isto
porque as alternativas de que ele necessita para manter o processo de
competição também podem ser colhidos no passado.
Um exemplo de que a ciência também pode progredir reto-
mando antigas teorias, olhando-as de um novo modo, é a revolução
copernicano-galileana.
A teoria astronômica introduzida por Nicolas Copérnico (1473-
1543) que está no embrião da ciência moderna, não nasceu da ob-
servação de novos fatos, nem da falta de explicação de fatos antigos,
mas, antes de uma reinterpretação neoplatônica de fatos bastante
conhecidos pelos astrônomos do século XV6.
6
A teoria copernicana não nasceu do conflito entre um expectativa e uma ob-
servação, nem do conflito entre teoria e novas observações, ela também não é
fruto da falha do paradigma astronômico ptolomaico na aplicação de seus próprios
problemas tradicionais, pois embora o sistema ptolomaico apresentasse algumas
pequenas inexatidões que impediam a elaboração de um calendário preciso e se
Coleção CLE V.11
Fátima. Regina R. Évora 17

Copérnico realizou o progresso retomando as idéias de antigos pi-


tagóricos tais como Philolaus (século IV a.C.), que colocou o fogo
no centro do Universo e transformou a Terra em mais uma estrela
girando entre outras; Heráclides de Pontos (387-315/10 a.C.), que
considerou o cosmo infinito e propôs uma teoria semi-heliocêntrica,
segundo a qual Vênus e Mercúrio giram ao redor do Sol, enquanto
este e os outros corpos celestes giram ao redor da Terra, que é dotada
de um movimento de rotação diária em torno do próprio eixo; e Aris-
tarchos de Samos (310-231 a.C.), que supôs que as estrelas fixas e o
Sol estão imóveis e dotou a Terra de um duplo movimento; rotação
diurna em torno do seu próprio eixo e a translação ao redor do centro
do Universo, onde está o Sol.
Estas antigas teorias, abandonadas há mais de mil anos, são re-
tomadas por Copérnico e adaptadas às necessidades de predições as-
tronômicas e de salvar os fenômenos. Á astronomia ptolomaica, então
dominante, é criticada a partir de princípios de simplicidade e har-
monia próprios da filosofia neo-platônica ou platônico-pitagórica - da
qual Copérnico era adepto - mas estranhos à astronomia ptolomaica
de forte teor instrumentalista7.
Embora a astronomia ptolomaica estivesse diante de alguns pro-
blemas internos ao campo da astronomia (ver notas 6 e 7), o sis-
tema copernicano não representa uma saída satisfatória, pois este

apresentasse suficientemente emaranhado e difuso devido às contínuas introduções


de excêntricos e equantes, a astronomia do século XVI nào havia entrado num es-
tado de crise. O sistema copernicano nem é mais preciso, nem mais simples que
o sistema original de Ptolomeu. Se nos limitarmos a considerar os círculos dos
mecanismos de longitude para o Sol, Lua e planetas, Copérnico requer 18 círculos,
enquanto Ptolomeu 15. A teoria copernicana também não nasceu de contradições
internas à teoria ptolomaica. E embora se esta última fosse interpretada realistica-
mente ela estaria em contradição com a teoria aristotélica das cascas esféricas, isso
não gera um problema, uma vez que ela não se propunha a descrever a real estru-
tura do Universo; a teoria astronômica ptolomaica de forte teor instrumentalista
se propunha antes a fazer boas previsões e a salvar os fenômenos.
7
Um astrônomo que não tivesse sido tão influenciado pela filosofia neo-platônica
que ressurgia em fins da Idade Média, como o foi Copérnico, conviveria bem com
a idéia da impossibilidade da construção de uma astronomia, que fosse simul-
taneamente simples, precisa e harmônica. A simultaneidade destes requisitos era
necessária à ciência copernicana, porém à ciência ptolomaica era apenas desejável.
Não se pode refutar uma teoria porque ela não satisfaz os requisitos de uma outra
teoria.
Coleção CLE V.11
18 História e Filosofia da Ciência

último estava diante de objeções físicas muito mais fortes que as


objeções físicas à astronomia ptolomaica e violava importantes as-
pectos da física aristotélica, por ele aceita, e sem propor uma teoria
alternativa8. 0 que só é feito por Galileo Galilei (1564-1642) que con-
vencido da verdade da doutrina copernicana tenta desenvolver uma
nova mecânica capaz de sustentar a teoria astronômica de Copérnico
e de afastar os argumentos dinâmicos que se opunham a ela; para
tanto se introduzem novos conceitos, que embora incompatíveis com
os elementos conceituais do senso comum e de caráter aparentemente
especulativo, acabam por abalar a velha teoria aristotélica, que só foi
completamente abandonada após o desenvolvimento da nova teoria
do movimento proposta por Isaac Newton (1642-1727).
Portanto a importante revolução científica dos séculos XVI e XVII
tem uma imensa dívida com o passado; não quero com isso dizer que
seja possível encontrar no cosmo antigo e medieval todos os frag-
mentos do pensamento de Copérnico. Sem dúvida, ao longo dos seis
livros que compõem o magnífico De Revolutionibus Orbium Coeles-
tium, existem diversos elementos novos introduzidos por Copérnico,
uma complexidade matemática e um rigor na descrição dos movimen-
tos de cada um dos planetas que inexistem em Philolaus, Heráclides
de Pontos e Aristarchos de Samos.
Contudo, eu não posso deixar de salientar que a ciência pode
aprender com a história da ciência e pode progredir retomando, e
reformulando, antigas teorias, como o fez Copérnico.
Este papel heuristicamente positivo da história da ciência frente
à ciência, também se manifesta na própria busca do entendimento de
teorias, como bem notou C. Truesdell, no prefácio ao seu Essays in
the History of Mechanics:
A ciência matemática está viva hoje, viva não somente nas suas fo-
lhas mais novas, mas também em seus ramos que se estendem para o
8
Por exemplo, Copérnico, a fim de dar conta do fenômeno da paralaxe estelar,
estende o Universo a um ponto considerado inadmissível para sua época; e diante
do fenômeno das pedras caindo, Copérnico propõe um duplo movimento natural
para os corpos terrestres, opondo-se à teoria aristotélica de movimento, segundo
a qual cada corpo simples é dotado de um único movimento natural, que no
caso das coisas terrestres é retilíneo, Copérnico rompe com a distinção aristotélica
entre dinâmica celeste e mecânica terrestre, mas não chega a propor uma física
alternativa, capaz de substituir a aristotélica, e que implicasse o abandono da
velha divisão qualitativa do cosmo em dois mundos diferentes.
Coleção CLE V.11
Fátima Regina R. Évora 19

passado. Eu conheço jovens que leram as palavras de Gibbs, Kelvin,


Stokes e Cauchy, e até mesmo de Euler e Newton, nao para deco-
rar seus próprios artigos com referências antigas, nem para escrever
uma história, mas em busca do entendimento e método, revelado pe-
las palavras de gigantes intraduzíveis por pigmeus (TRUESDELL,
1968)9.
Portanto, embora reconhecendo que a história e a filosofia da
ciência sejam disciplinas autônomas, com objetivos, métodos e me-
tacritérios de auto-avaliação de seus produtos, particulares, eu creio,
como procurei mostrar ao longo deste artigo, que estas disciplinas de-
vem ser desenvolvidas mantendo uma interdependência, a qual só vem
enriquecer o produto final do trabalho dos historiadores e filósofos da
ciência.

Bibliografia

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Laudan, L. Teoria do método científico de Platão a Mach. Ca-


dernos de História e Filosofia da Ciência, supl. 1, p. 1-77,
1980.
9
Esta afirmação de Truesdell é feita no contexto de sua crítica à prática de
alguns historiadores da ciência que ávidos em apontar-nos, por exemplo, a dívida
dos cientistas do século XVII para com o século XVI, parecem considerar irre-
levante o que um cientista de hoje pode pensar acerca de qualquer aspecto da
ciência do passado, incluindo sua dívida ou reação contra ele.
Coleção CLE V.11
20 História e Filosofia da Ciência

Lakatos, I. Falsification and the Methodology of Scientific Re-


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PoPPER, K. The Logic of Scientific Discovery. London : Hutchinson


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Truesdell, C. Essays in the History of Mechanics. New York :


Springer-Verlag, 1968.
Coleção CLE V.11
Parte II

* Frege e a Lógica Moderna


Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
2

A Concepção Fregeana da Lógica

Michael Wrigley"

Em 1913 o jovem Wittgenstein declarou que "o trabalho dos


lógicos modernos trouxe um avanço na lógica apenas comparável
àquele que fez nascer a astronomia da astrologia e a química da al-
quimia" (cf. McGuinness, 1988, p. 169). Quando disse isso Witt-
genstein estava, sem dúvida, pensando no trabalho do seu mestre,
Gottlob Frege. Talvez Wittgenstein estivesse exagerando um pouco
quando deu a entender que tudo antes de Frege, incluindo o trabalho
de figuras como Aristóteles, os estóicos e os escolásticos medievais,
estavam no mesmo nível da alquimia e da astrologia, mas seus pon-
tos de vista sobre a importância do trabalho de Frege na história
da lógica são quase universalmente compartilhados e completamente
justificados. Quine, por exemplo, descreve o Begriffsschrift de Frege,
de 1879, como nada menos que "um livro fino que marcou o começo
da lógica moderna" (Quine, 1960, p. 163). Por que o trabalho de
Frege é considerado tão importante? Talvez a sua contribuição mais
fundamental tenha sido o seu método de analisar a lógica de as-

'Gostaria de agradecer a Jairo José da Silva, Osvaldo Pessoa Jr. e Walter


Carnielli pela ajuda na preparação da versão brasileira.
Coleção CLE V.11
24 A Concepção Fregeana da Lógica

serções envolvendo generalidade múltipla por meio de quantificado-


res e variáveis ligadas. Como Michael Dummett observou, ao fa-
zer isso, Frege teve sucesso na resolução de um problema que derro-
tou todos os grandes sistemas lógicos do passado - da antigüidade
clássica, da índia, da Europa Medieval - e apenas este fato teria
sido suficiente para assegurar o lugar de Frege na história da lógica
(Dummett, 1981, p. xxxi).
As contribuições de Frege, naturalmente, vão além disso. Ele re-
velou uma unidade subjacente entre partes da lógica, que até então
tinham sido consideradas bem separadas; por exemplo, a lógica de
asserções hipotéticas e a lógica de asserções categóricas podem ser
trazidas juntas num único sistema lógico por meio da sua análise dos
quantificadores. Além disso, Frege apresentou o seu sistema lógico
com um rigor e uma clareza conceituai nunca antes atingida e que
não seria igualada por décadas. No Begriffsschrift ele foi bastante
claro sobre a necessidade de se fazer uma distinção entre as regras
de inferência de um sistema lógico e os axiomas deste sistema, e de
se evitar a confusão de pensar as regras de inferência como asserções
no interior do próprio sistema. Neste aspecto, o trabalho de Frege é
muito superior ao de Russell e Whitehead, que fracassaram comple-
tamente ao discutir estas questões.
De fato, citando novamente Michael Dummett, o Begriffsschrift
de Frege é superior em rigor a tudo (incluindo os Principia) antes
do Grundzúge der theoretischen Logik de Hilbert e Ackermann, pu-
blicado quarenta e nove anos depois, em 1928 (Dummett, 1981, p.
xxxvi). E uma medida da duradoura influência do trabalho de Frege
que todos esses aspectos sejam agora simplesmente pressupostos. No
entanto, no período de mais de um século desde os dias de Frege, a
lógica, naturalmente, não permaneceu a mesma. Ela se desenvolveu
de maneiras muito diferentes. Em primeiro lugar, agora conhecemos
muito mais a respeito das propriedades de sistemas formais do tipo
que Frege criou, devido às descobertas sobre completude e incomple-
tude, decidibilidade e indecidibilidade, etc. E, em segundo lugar, a
lógica que Frege criou foi estendida em muitas direções com a invenção
de novos tipos de lógica, como a lógica modal, lógica multivaluada,
lógica temporal, etc.
Entretanto, as diferenças entre a lógica contemporânea e a lógica
Coleção CLE V.11
Michael Wrígley 25

de Frege não são apenas uma questão de posterior elaboração for-


mal. Além dos seus aspectos puramente formais, o trabalho de Frege
envolve certos pressupostos filosóficos sobre a natureza e o papel da
lógica, e o que eu gostaria de fazer neste trabalho é trazer à tona quais
seriam estes pressupostos e mostrar como, ao contrário dos aspec-
tos puramente formais do trabalho de Frege, estes pressupostos são
muito diferentes do tipo de perspectiva filosófica associada à lógica
contemporânea. Além do mais, os aspectos puramente formais do
trabalho de Frege são, em grande medida, completamente indepen-
dentes desses pressupostos filosóficos de fundo. E então possível, para
um importante filósofo contemporâneo como Philip Kitcher, que re-
jeita praticamente todos os aspectos dos pontos de vista filosóficos de
Frege, ainda dizer que o trabalho formal de Frege "constitui o maior
desempenho isolado em toda a história da lógica - sem exceções"
(Kitcher & Aspray, 1988, p. 5).
Frege não começou como lógico - seu primeiro treinamento foi
como matemático, e penso que se nos perguntarmos porque um ma-
temático se interessou por lógica, ajudaríamos a iluminar os pressu-
postos filosóficos da lógica subjacente a Frege. O projeto intelectual
central de Frege era a tentativa de mostrar que a matemática era
de natureza puramente lógica (ou pelo menos que a aritmética era
- ele nunca viu a geometria como parte da lógica). E foi para levar
a cabo este projeto que Frege desenvolveu o seu sistema de lógica.
E o fato de que seu interesse primário tenha sido usar a lógica para
esclarecer a natureza da matemática ajuda a explicar um aspecto
bastante fundamental dos pontos de vista de Frege em lógica, qual
seja, seus pontos de vista a respeito da relação entre a sua linguagem
lógico-formal e a linguagem natural. Pois este é um fato sobre o qual
Frege freqüentemente comenta: ele vê as linguagens naturais como
logicamente defeituosas em muitos aspectos.
No prefácio do Begriffsschrift Frege explica:
... eu acredito poder tornar mais clara a relação entre a minha
"notação conceituai" e a linguagem ordinária se eu compará-la à
relação entre o microscópio e o olho. Este, devido à gama de sua
aplicabilidade e facilidade com que se adapta às mais variadas cir-
cunstâncias, tem uma grande superioridade sobre o microscópio.
Evidentemente, visto como um instrumento óptico, ele revela muitas
imperfeições que usualmente passam despercebidas... [Mas] tão logo
Coleção CLE V.11
26 A Concepção Fregeana da Lógica

propósitos científicos coloquem fortes condições quanto à agudeza de


resolução, o olho mostra-se inadequado (FREGE, 1972, p. 104-5).

O tipo de aspecto da linguagem natural que Frege considera


como um defeito lógico é ela conter expressões sujeitas à imprecisão
("vagueness") e permitir a formação de expressões que não têm ne-
nhum valor-verdade, ou permitir as variações do sentido de um nome
próprio em função do seu uso por diferentes pessoas - algo que Frege
diz (em Sentido e Referência) wdeve ser evitado na estrutura teórica
de uma ciência demonstrativa e não deve ocorrer numa linguagem
perfeita" (Frege, 1984, p. 158).
Esta idéia então de que a linguagem natural é defeituosa (e imper-
feita) marca uma diferença fundamental entre Frege e o modo como a
maquinaria lógica criada por ele foi usada por uma parte importante
da tradição analítica em filosofia - uma tradição quo começou com o
Tractatus de Wittgenstein. Para Wittgenstein, a linguagem natural
não apenas é mas deve ser, como ele diz, "logicamente perfeitamente
em ordem". E filósofos posteriores como Davidson e Montague, sem
mencionar a lingüística pós-chomskiana, têm - claro que nem sem-
pre pelas mesmas razões - seguido Wittgenstein na rejeição da idéia
fregeana de que as linguagens são logicamente defeituosas.
Este desejo de substanciar a afirmação de que a linguagem não é
em nenhum sentido logicamente defeituosa produziu reações diferen-
tes relativas aos aspectos da linguagem que Frege via como defeitu-
osos. Por um lado, há a reação exemplificada pelo Wittgenstein do
Tractatus, e também por Davidson, que afirma que mesmo que na
superfície a linguagem natural possa parecer logicamente defeituosa,
se nós a analisarmos para descobrir sua estrutura lógica profunda
veremos que isto não é realmente verdade. Os defeitos aparentes per-
tencem apenas à aparência superficial da linguagem e não à sua verda-
deira natureza. Assim, para dar um exemplo concreto, Wittgenstein,
no Tractatus, afirmou que a imprecisão de algumas expressões da lin-
guagem natural é apenas aparente e desaparecerá com a análise. Uma
reação diferente - exemplificada por Montague, Zadeh, da Costa, e
muitos outros - é aceitar que os fenômenos que Frege via como lo-
gicamente defeituosos são aspectos genuínos da linguagem natural,
mas negar que eles sejam na verdade defeitos e estender a maqui-
naria formal da lógica para mostrar como é perfeitamente possível
Coleção CLE V.11
Michael Wrígley 27

dar um tratamento formal sistemático e rigoroso a eles. Foi com


este objetivo em mente que as lógicas "fuzzy", de "truth-value-gap"
e paraconsistentes foram desenvolvidas.
Sua atitude negativa em relação à linguagem natural distingue
nitidamente Frege de uma corrente muito importante da filosofia con-
temporânea. Entretanto, é certamente falso que seus pontos de vista
sejam universalmente rejeitados, pois existe uma outra corrente igual-
mente forte e influente, à qual pertencem Russell, Carnap e Quine,
que aceita os pontos de vista de Frege, ou seja, que a linguagem na-
tural é logicamente defeituosa. De fato, em alguns aspectos, ela vai
consideravelmente mais longe do que Frege na condenação da lin-
guagem natural. Talvez seu exponente mais radical seja Quine, que
não hesita em rejeitar partes substanciais da linguagem natural como
logicamente incoerentes - modalidades, atitudes proposicionais, etc.
Segundo ele, qualquer coisa associada com intensionalidade deve ser
rejeitada.
Assim, mesmo que nem todos concordem com os pontos de vista
de Frege quanto à questão das imperfeições ou perfeições lógicas da
linguagem natural, alguns certamente concordam e toda problemática
está ainda bastante viva. Acredito que todo esse debate levanta al-
gumas questões fundamentais a respeito da relação entre linguagens
lógico-formais e linguagens naturais, pois qual é exatamente o nosso
critério a respeito do que é e do que não é um defeito lógico? 0 inte-
resse principal de Frege era usar a lógica para esclarecer a natureza da
matemática, por isso ele não deu muita atenção a esta questão. En-
tretanto, esta é uma questão de fundamental importância levantada
pelos seus trabalhos em lógica e que permanece no centro da filosofia
contemporânea. Se Frege estava ou não certo em condenar a lingua-
gem natural como defeituosa permanece uma questão em aberto.
Entretanto, existe um outro aspecto no qual a concepção fregeana
da lógica difere muito mais fundamentalmente de qualquer concepção
contemporânea, e que nós podemos enfocar ao considerar este projeto
de analisar a matemática em termos da lógica. Se um filósofo afirmar
que toda matemática (ou uma parte dela) é meramente uma parte da
lógica, isso levanta uma questão bastante óbvia, a saber, a questão
de qual é o interesse filosófico que este resultado tem se ele puder ser
estabelecido com sucesso. E a resposta a esta questão, por sua vez,
Coleção CLE V.11
28 A Concepção Fregeana da Lógica

depende em última análise da questão ulterior e mais fundamental


de qual é a natureza própria da lógica.
Outros filósofos que seguiram os passos de Frege aceitando a idéia
geral de que a matemática é de natureza puramente lógica, notada-
mente Russell e Carnap, deram diferentes respostas a essa questão
fundamental e, conseqüentemente, a tese básica do logicismo tinha
(ou supunha-se ter), para eles, um resultado filosófico bastante dife-
rente do que tinha para Frege. Ao verificarmos qual era a resposta
de Frege a esta questão, podemos apreciar aqueles aspectos do seu
pensamento que o separam muito mais fundamentalmente de todos
os lógicos contemporâneos.
Para alguém cujo principal objetivo é reduzir a matemática à
lógica, Frege diz surpreendentemente muito pouco a respeito da na-
tureza da lógica. Existem, de fato, duas questões distintas que pre-
cisam ser respondidas aqui. Em primeiro lugar, como delimitamos
a classe da lógica - quais proposições pertencem à lógica e quais
não pertencem? Em segundo lugar, qual é a propriedade filosofica-
mente interessante que pertence às proposições da lógica e que faz
a redução da matemática à lógica reveladora? No que se refere à
segunda questão, acredito que a resposta é simplesmente que Frege
acreditava que a lógica era epistemologicamente segura. Assim, ao
mostrar que a matemática era uma parte da lógica, Frege teria mos-
trado que a matemática também estava imune a qualquer dúvida
epistemológica. (Vale a pena repetir que os outros que aderiram ao
ponto de vista logicista em matemática - Russell e Carnap - espe-
ravam por resultados bastante diferentes na redução da matemática
à lógica. No caso de Russell, isto nada tinha a ver com a defesa da
matemática contra o ceticismo; mas era, na verdade, parte de um
ataque ao idealismo e, para Carnap, supunha-se que o logicismo de-
veria mostrar como a matemática poderia ser explicada dentro de
uma epistemologia radicalmente empiricista.)
Entretanto, voltando ao primeiro e mais fundamental ponto, qual
é o critério básico de Frege e quais proposições são lógicas e quais não
são? A resposta de Frege é que proposições lógicas distinguem-se de
outras espécies de proposições por sua generalidade. Esta visão da
lógica tem várias conseqüências. Uma delas é que Frege não diz com
clareza se existe uma diferença essencial entre proposições lógicas e
Coleção CLE V.11
Míchael Wrigley 29

não lógic&s. Este problema foi retomado pelo primeiro Wittgenstein


que, numa observação muito conhecida em uma das suas primeiras
cartas a Russell, reclamou que a teoria da lógica de Russell não fazia
justiça ao fato de que as proposições lógicas eram essencialmente di-
ferentes de todas as outras espécies de proposições. Esta reclamação
de Wittgenstein era dirigida a Russell, mas aplica-se igualmente a
Frege. A generalidade vem em graus e, se as proposições lógicas são
simplesmente a espécie mais gerai de proposição, então, é difícil ver
como elas podem ser essencialmente diferentes em espécie de quais-
quer outras espécies de proposição.
Entretanto, não é totalmente claro que uma teoria correta da
lógica deva ver as proposições lógicas como essencialmente diferen-
tes - basta lembrar de pontos de vista como os de Quine como um
exemplo de um modo de ver a lógica que transforma em uma vir-
tude a negação de que tal diferença exista. Daí não há nada neste
aspecto dos pontos de vista de Frege sobre a lógica como sendo com-
pletamente geral que o separa fundamentalmente de todos os lógicos
contemporâneos. Apenas quando nos voltamos a um outro aspecto
da perspectiva de Frege é que encontramos tal diferença.
0 que devemos nos perguntar aqui é em qual sentido, exatamente,
Frege acreditava que a lógica era completamente geral. Embora ne-
nhum lógico contemporâneo negue que a lógica seja completamente
geral, o que o lógico quereria dizer com isto e o que Frege quis dizer
são bastante diferentes. A diferença crucial é que Frege vê as pro-
posições da lógica como tendo conteúdo - de tal modo que elas são
gerais no sentido de ter um conteúdo completamente geral. Além do
mais, Frege via as proposições lógicas como tendo um conteúdo fixo.
Ele não via a possibilidade que seu sistema lógico pudesse ser inter-
pretado - isto é, dotado de conteúdos diferentes - e pelo menos parte
da razão para isto era sua crença de que a lógica era absolutamente
geral. A partir de uma perspectiva contemporânea, e em um sentido
diferente, é verdade que a lógica é geral, mas não porque, como Frege
pensava, ela diz respeito a qualquer coisa, mas, pelo contrário, por-
que não é a respeito de nada em particular, podendo ser interpretada
de modo a se aplicar a qualquer domínio dado. Nesta perspectiva
não-fregeana é totalmente natural a idéia de várias possíveis inter-
pretações diferentes do cálculo lógico. Isto está ligado à profunda di-
Coleção CLE V.11
30 A Concepção Fregeana da Lógica.

ferença entre a concepção da lógica em Frege e em Boole. O próprio


Frege explicou a diferença entre os objetivos do seu Begrxffsschrift e
o trabalho de Boole da seguinte maneira:
Li [no trabalho de Boole] não há qualquer preocupação com o
conteúdo. Por contraste, podemos agora explicitar o objetivo da
minha "escrita-conceituaT. Desde o começo eu tinha em mente a
expressão de um conteúdo (FREGE, 1972, p. 12).
A concepção de lógica em Frege como tendo um conteúdo e sendo
completamente geral implica que ele não poderia fazer sentido da
idéia de uma metaperspectiva na qual nós podemos considerar dife-
rentes possíveis interpretações do formalismo da lógica. Assim não é
a mera falta de interesse que é responsável pela completa ausência em
Frege de uma semântica da lógica. Na verdade, tais investigações são
ininteligíveis do seu ponto de vista. E apenas como resultado de uma
tradição lógica completamente diferente, derivando de figuras como
Boole, Schrõder e Lõwenheim, é que a dimensão semântica da lógica
contemporânea nasceu. O artigo clássico de Van Heijenoort (1967)
destacou pela primeira vez de maneira clara esta distinção entre a
concepção de lógica de Frege e aquela da lógica contemporânea (cf.
Van Heijenoort & Dreben, 1986; Goldfarb, 1979; Ricketts,
1985; Sluga, 1987; e Hylton, 1980, 1990, 1991, para importantes
discussões subseqüentes sobre o tema). Apenas quando a maquina-
ria formal de Frege foi liberada dos pressupostos filosóficos restritivos
que ele havia feito sobre a natureza da lógica é que foi possível unir
o vigor e o poder do seu formalismo lógico com os "insights" comple-
mentares da tradição rival e a lógica pôde assumir a forma que nós
conhecemos hoje.
Além de impedi-lo, desta forma, de atingir a concepção de uma
metaperspectiva, a visão fregeana da lógica teve duas conseqüências
posteriores importantes que a separam nitidamente da lógica mo-
derna, e que eu gostaria de mencionar brevemente como conclusão.
A primeira diz respeito à atitude de Frege com relação às demons-
trações de consistência - um dos problemas que estavam no cerne
da sua polêmica com Hilbert sobre a natureza da geometria. Para
Hilbert, tanto a geometria quanto a lógica eram sistemas formais
abstratos que poderiam ter diferentes interpretações, e era necessário
mostrar que estes sistemas eram consistentes. A idéia que estava na
base do programa de Hilbert da umetamatemática" - um programa
Coleção CLE V.11
Michael Wrígley 31

que foi imensamente frutífero - era a busca de demonstrações de


consistência. Mas para Frege toda a idéia de uma demonstração de
consistência era desnecessária pois, para ele, as proposições lógicas
tinham um conteúdo fixo e eram verdadeiras. Frege sabia imediata-
mente, sem a necessidade de uma demonstração, que o seu sistema
lógico era consistente. uDa verdade dos axiomas [da geometria]^, es-
creve Frege, "segue imediatamente que eles não contradizem um ao
outro. Então, não se precisa de uma prova" (Carta a Hilbert, 27 de
dezembro de 1899; Frege, 1980, p. 37). (Ou pelo menos ele pensava
que sabia! Lembremos do paradoxo de Russell). Desta forma, todo
um ramo frutífero da lógica foi excluído pela perspectiva básica de
Frege a respeito da lógica.
A segunda limitação, que segue dos pontos de vista de Frege sobre
a lógica, é a rejeição da possibilidade de qualquer forma de lógica
não-clássica. Frege não discute explicitamente lógicas não-clássicas,
mas considerou efetivamente as geometrias não-euclidianas, e tinha o
seguinte a dizer sobre elas:
A geometria nâo-euclidiana deve ser contada entre as pseudo ciências,
ao estudo da qual alguma importância será dada, mas apenas como
curiosidade histórica... ela deve ser despida do papel de ciência e
alinhada como peça de museu junto com a alquimia e a astrologia
(FREGE, 1984, p. 169).
Frege disse isso porque ele não podia aceitar a idéia de uma geo-
metria como um sistema abstrato capaz de diferentes interpretações.
Ele certamente diria o mesmo a respeito das lógicas não-clássicas.
(E muito irônico que Frege tenha dito isto em 1900, quando Eins-
tein estava começando a mostrar que as geometrias não-euclidianas
definitivamente não eram peças de museu).
A maquinaria formal de Frege é, e certamente permanece, uma
parte fundamental da lógica do século XX, mas seus pressupostos
filosóficos que para ele estavam essencialmente ligados a ela são os
aspectos do seu trabalho que devem ser rejeitados e postos no museu,
e isso mostra em que medida Frege tinha seus pés plantados firme-
mente no século XIX.

Referências Bibliográficas
Dummett, M. Frege: Philosophy of Language, 2.ed. London :
Duckworth, 1981.
Coleção CLE V.11
32 A Concepção Fregeana da Lógica

Frege, G. Collected Pape rs on Mathematics, Logic and Philosophy.


Oxford : Blackwell, 1984.

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don Press, 1972.

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Blackwell, 1980.

Goldfarb, W. Logic in the Twenties: the Nature of the Quantifier.


Journal of Symbolic Logic, v. 44, n. 3, p. 351-68, 1979.

Hylton, P. RusselFs Substitutional Theory. Synthese, v. 45, p.


1-31, 1980.

. Russell, Idealism and the Origins of Analytical Philosophy.


Oxford : Clarendon, 1990.

. Logic in RusselFs Logicism. In: Bell, D. & Cooper, N.


(eds.) The Analytical Tradition: Meaning, Thought and Know-
ledge. Oxford : Blackwell, 1991.

McGuiNNESS, B.F. Wittgenstein: a Life. Berkeley/Los Angeles :


University of Califórnia Press, 1988.

K.itcher Íí Aspray, W. (eds.) History and Philosophy of Modem


Mathematics. Minneapolis : University of Minnesota Press,
1988.

Quine, W.V. Word and Object. Cambridge : MIT Press, 1960.

RlCKETTS, T. Frege, the Tractatus and the Logocentric Predica-


ment. Nous, v. 19, n. 1, p. 3-15, 1985.

SLUGA, H. Frege against the Booleans. Notre Dame Journal of


Formal Logic, v. 28, n. 1, p. 80-98, 1987.

Van Heijenoort, J. Logic as Language and Logic as Calculus.


Synthese, v. 17, p. 324-30, 1967.

Van Heijenoort, J. k Dreben, B. Introductory Noie to 1929,


1930 and 1930a. In: Feferman, S. et al. (eds.) K. Gôdel
Coleção CLE V.11
Michael Wrígley 33

Collected Works. Oxford : Oxford University Press, 1986. V.l,


p. 44-59.
Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
3

O Principio de Razão Suficiente


e a Lógica segundo

Arthur Schopenhauer*

Jean-Yves Béziau"

1. Schopenhauer e a lógica
Raramente estuda-se o que disse Schopenhauer a respeito da ló-
gica. Isso sem dúvida resulta do fato de que os lógicos em geral não
se interessam por este filósofo, e aqueles que estudam a obra de Scho-
penhauer não conhecem a lógica. Não obstante, poderíamos lembrar
que Wittgenstein foi um grande leitor de Schopenhauer, mas ele não
fez comentários explícitos sobre os pensamentos de Schopenhauer re-
lativos à lógica.

'Artigo original em francêt, apresentado no VII Coldquio de História da


Ciência sob o titulo Ltpríncipe de raiton suffitante et Ia logique dons
losophie de Schopenhauer, e traduzido para este volume por Osvaldo Pessoa Jr.
"Este trabalho pôde ser realizado durante a estadia do autor no Brasil gra-
ças a uma Bolsa Lavoisier do Ministério de Assuntos Estrangeiros do Governo
Francês.
Coleção CLE V.11
36 O Principio de Razão Suficiente

2. A relação entre o princípio de razão suficiente e os princí-


pios lógicos

Tradicionalmente considera-se que os princípios fundamentais do


pensamento enquanto faculdade de raciocínio são três: o princípio de
identidade, o princípio de não-contradição e o princípio do terceiro
excluído. Estes princípios primordiais da lógica foram estudados,
desenvolvidos e formalizados quando a lógica foi matematizada, no
início do século XX.
Um outro princípio todavia permaneceu oculto para a lógica mo-
derna, o princípio de razão suficiente, que em sua forma mais simples
se enuncia nihil est sine ratione (nada é sem razão). Este princípio
foi proposto por Leibniz, que o considerou como o mais fundamen-
tal de todos os princípios. Pode-se perguntar qual é a relação deste
princípio com os outros três: é ele da mesma natureza? E ele um
printípio lógico? Pode ele por seu turno ser formalizado? Ou será
que ele é um desses princípios metafísicos evanescentes e inefáveis a
respeito dos quais a lógica não saberia falar?

3. Pertinência do pensamento de Schopenhauer a esse res-


peito

Ao nos interrogarmos sobre esse assunto torna-se crucial nos re-


ferirmos à obra de Schopenhauer. Este filósofo foi o primeiro a ter
desenvolvido uma reflexão completa sobre esse princípio em sua tese
de doutorado Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente
(1813- 1847-1864), sendo que esta obra constitui, como ele próprio
disse, os prolegômenos a sua obra magistral 0 Mundo como Vontade
e Representação (1819-1844-1859); assim, toda a filosofia de Scho-
penhauer se orienta a partir de uma reflexão sobre este princípio,
sendo pois interessante estudar a relação deste princípio com os ou-
tros princípios puramente lógicos.

4. O princípio de razão suficiente como fundamento do mun-


do como representação

Para Schopenhauer o mundo tem duas faces; o mundo como von-


tade e o mundo como representação. 0 mundo como representação
tem por fundamento o princípio de razão suficiente:
Coleção CLE V.11
Jean-Yves Béziau 37

No conhecimento a consciência, apresentando-se como sensibilidade


externa e interna (receptividade), entendimento e razão, se decompõe
em sujeito e objeto e não contêm mais nada. Ser objeto para o su-
jeito e ser nossa representação é a mesma coisa. Todas as nossas
representações são objetos do sujeito e todos os objetos do sujeito
são nossas representações. Ora, encontra-se que entre todas as nos-
sas representações existe uma relação submetida a uma norma e pela
forma, determinável a prtort, em virtude da qual nada de existente
por si nem de independente, menos ainda de singular, nem de sepa-
rado, pode tornar-se objeto para nós. É esta relação que é expressa
pelo princípio de razão suficiente, em sua universalidade (SCHOPE-
NHAUER, 1983, cap. III, §16).

5. As quatro formas do princípio de razão suficiente


A originalidade do pensamento de Schopenhauer no que tange
ao princípio de razão suficiente se deve a que ele distinguiu quatro
formas diferentes deste princípio, como indica o título de sua obra.
A cada uma dessas formas do princípio corresponde uma classe de
representações (lado do objeto) e uma faculdade (lado do sujeito),
que podem ser expostas sucintamente na tabela que se segue.

Sujeito Objeto Princípio


de Razão
Suficiente
entendimento representações sensíveis, devir
completas, imediatas, empíricas
e intuitivas
sensibilidade formas a prtori da intuição: ser
pura o espaço e o tempo
razão representações abstratas: conhecer
conceitos = representações de
representações
consciência sujeito da vontade agir
de si

6. O princípio de razão suficiente do conhecimento


A lógica é a teoria da razão, por conseguinte ela está ligada mais
particularmente ao princípio de razão suficiente do conhecimento. A
razão permite não somente formar conceitos, mas também ligar es-
tes conceitos entre si, ou seja, formar juízos, isso que se chama na
Coleção CLE V.11
38 O Princípio de Razão Suficiente

linguagem própria raciocinar. O princípio de razão suficiente do co-


nhecimento pode ser enunciado assim: "tudo justamente tem uma
razão". A verdade de um juízo consiste justamente em sua razão.
Schopenhauer distingue quatro fundamentos possíveis para os juízos,
donde resultam quatro tipos de verdade.

Razão do Juízo Tipo de Verdade


outros juízos verdade lógica (formal)
representações sensíveis verdade empírica (material)
intuições puras verdade transcendental
condições formais verdade metalógica
de todo pensamento

"Encontram-se apenas quatro juízos de uma verdade metalógica"


(Schopenhauer, 1983, cap. V, §33), que são o princípio de identi-
dade, o princípio de contradição, o princípio do terceiro excluído e o
princípio de razão suficiente do conhecimento, o qual Schopenhauer
agora enuncia: "a verdade é a relação de um juízo a qualquer coisa
fora de si como sendo sua razão suficiente" (Schopenhauer, 1983,
cap. V, §33). Deste ponto de vista os três princípios ditos lógicos se
dispõem ao lado do princípio de razão suficiente (ao menos de uma de
suas formas), e estes quatro princípios resultam todos de um "exame
da razão por ela mesma" (Schopenhauer, 1983, cap. V, §33).

7. Formalização do princípio de razão suficiente


Inspirando-se nessas considerações, pode-se muito bem tentar for-
malizar esta forma do princípio de razão suficiente. N.C.A. da Costa
propôs várias formalizações possíveis deste princípio, respondendo a
uma pergunta feita a ele por F. Wolff sobre a possibilidade de forma-
lização deste princípio. Esta formalização se faz no contexto da lógica
proposicional estendida modal. As quatro formulações propostas por
N.C.A. da Costa são as seguintes:

VÇ3pHP <?)&□(? => 9)1

V93phO(p O q)ka{p =* 9)]


Coleção CLE V.11
Jean-Yves BézJau 39

Vq3ph(<i => p)kD(p => ?)]


Vg3p[-iO(g => p)&iO(p => g)]

Não se pode utilizar a lógica proposicional estendida simples por-


que as negações das duas fórmulas seguintes, como observou N.C.A.
da Costa, são tautologias.

V93pKp o g)&(p =* 9)]

V93p[-i(9 => p)&(p => 9)]


Poder-se-ia igualmente propor a seguinte formulação metaformal:
para todo q, existe p tal que q p e p h q.

8. Problemas relacionados a esta formalização


Essas tentativas interessantes não são contudo senão um ponto de
partida, e resta lhes dar uma interpretação que faça sentido tanto do
ponto de vista da lógica formal quanto do ponto de vista filosófico.
Pode-se sublinhar que elas diferem do pensamento de Schope-
nhauer; todas essas formalizações exprimem com efeito que todo juízo
(ou proposição) tem uma razão que é ela mesma um juízo (ou pro-
posição). Ora, para Schopenhauer isso só concerne aos juízos cuja
verdade é lógica. Este princípio seria por assim dizer uma forma es-
pecífica da forma particular do princípio de razão suficiente que é o
princípio de razão suficiente do conhecimento. Formalizar o princípio
de razão suficiente do conhecimento ou ainda o princípio de razão
suficiente em sua forma geral é um outro problema.

Referências Bibliográficas

Schopenhauer, A. De la quadmple racine du príncipe de raison


suffisante. Trad. por J. Gibelin. Paris : J. Vrin, 1983 [orig.
1813].
Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
Parte III

* Ciência e Filosofia de Poincaré


Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
4

A Filosofia da Matemática

de Poincaré

Jairo José da Silva

Eu não tenho a pretensão, nesta conferência, de expor com aceitá-


vel grau de completude a filosofia da matemática de Poincaré. Este é
um trabalho que excederia o meu tempo e, certamente, o meu talento.
Se lhes relembro fatos conhecidos é porque acredito que eles merecem
ser lembrados, mormente neste encontro que procura refletir sobre a
aurora da ciência contemporânea, onde Poincaré brilha como a estrela
da manhã.
Mas, curiosamente, Poincaré se indispôs contra todas as novas te-
orias que costumamos identificar com o novo espírito da matemática
nos fins do século XIX e primeiros anos deste século: a nova lógica,
a teoria dos conjuntos, o formalismo hilbertiano. A vertigem do in-
finito, o jogo formal, a logística, não causam em Poincaré nenhum
frisson, a não ser, claro, de repulsa.
Poincaré é um matemático que se considera intuitivo, que faz ma-
temática com um olho nas ciências naturais, na física e na astronomia
em especial, que reserva para a psicologia um papel central em epis-
temologia. Em muitos aspectos, Poincaré encarna exemplarmente o
cientista do século XIX.
Coleção CLE V.11
44 A Filosofia, da Matemática de Poincaré

É meu objetivo aqui expor, e tentar esclarecer, os problemas que


mais preocupam Poincaré em filosofia da matemática: o papel da in-
tuição, a constituição da noção de espaço, a rejeição do logicismo e do
conjuntismo, o princípio do círculo vicioso. Procurei, sempre que me
pareceu possível, buscar os pressupostos filosóficos que o orientaram
no tratamento de cada um deles.
Começo por aquilo que Poincaré considerava a própria faculdade
de invenção, a intuição.
Em geral, à intuição compete prover-nos de objetos. Neste sen-
tido difere da evidência, com a qual freqüentemente se confunde na
linguagem ordinária, e cuja função é revelar-nos a verdade indepen-
dentemente da razão discursiva. Deixando de lado a intuição sensível,
que é a mera percepção por meio dos sentidos, a existência de uma
forma de intuição que nos dê acesso a um domínio de objetos ideais
é uma questão amplamente disputada. Em particular, pergunta-se
se é lícito supor a intuição dos objetos da matemática. Em Kant,
mesmo que seja negada a existência de uma forma intelectual de in-
tuição, admite-se uma variante formal de intuição, independente dos
sentidos, mas judiciosamente circunscrita pelas formas a priori da
percepção.
Em Husserl, a intuição de objetos ideais deve ser entendida como
uma operação da consciência que constitui numa seqüência de atos
explicitáveis, e sobre a base da percepção sensível, os objetos que a
esta são inacessíveis. Em ambos, a intuição não deve ser entendida
como uma revelação de um objeto transcendental a uma consciência
passiva, mas, antes, como um esforço ativo da consciência na consti-
tuição do seu objeto.
Poincaré é bem menos rigoroso na caracterização e circunscrição
do papel da intuição. Ela freqüentemente se confunde com a evidência,
donde a possibilidade de se falar de um desvelamento intuitivo da
verdade, porém, na maior parte das vezes, sem o poder de impô-la
independentemente da razão lógica. Numa única circunstancia a in-
tuição, em Poincaré, impõe-se à lógica como o fundamento último da
verdade. Precisamente na intuição matemática mais fundamental,
*
a do número puro. E apenas por seu intermédio que a matemática
transcende o finito e os limites estéreis da tautologia lógica. Voltare-
mos a este assunto em breve.
Coleção CLE V.11
Jairo José da Silva. 45

Em Poincaré, a intuição é/ uma faculdade do espírito cuja função


é essencialmente heurística. E pela intuição que se descobre e se in-
venta, mas é pela lógica que se justifica. Â intuição cabe o papel in-
ventor da imaginação criadora, e como tal ela corta transversalmente
todos os níveis de atividade do sujeito cognoscente: a percepção, o
entendimento, a imaginação e a razão.
Às vezes, a intuição matemática age como uma forma mais sutil
de percepção sensível, por exemplo, quando Klein avên que sobre
uma superfície de Riemann dada existe sempre uma função admitindo
singularidades dadas, ao substituir a superfície em questão por uma
superfície metálica cuja condutividade elétrica varia segundo certas
leis e ao fazer passar por ela uma corrente elétrica cuja distribuição
sobre a superfície metálica define uma função cujas singularidades
são exatamente como a teoria as prevê.
À maneira do entendimento, a intuição realiza sínteses originais
fundadas freqüentemente na analogia e numa forma de indução seme-
lhante à indução física, ao conjecturar para um domínio a validade
de um teorema qualquer análogo a um outro válido num contexto
diverso ou ao pressupor a validade geral de um resultado para o qual
verificam-se vários casos particulares.
Como subsidiária da razão, a intuição pode dar, condensados num
único momento, todos os momentos de uma cadeia dedutiva, pois
sendo uma cadeia de tautologias dadas numa certa ordem, a dedução
pode ser intuida como a "visão" desta ordem.
Enfim, como dissemos, cabe à intuição o papel criador e se qui-
sermos compreender como age é à psicologia que devemos colocar as
questões, pois, como nos diz Poincaré, "não há lógica e epistemologia
independentes da psicologia" (1924, p. 117). A evidência deve ser
entendida em função dos mecanismos psicológicos que a criam.
Como irá fazer Hadamard alguns anos mais tarde, Poincaré de-
bruça-se sobre o problema da psicologia da invenção matemática e
acredita que há aí dois níveis distintos de atividade, um inconsciente,
de ação meramente combinatória, outro, também inconsciente, ou
pelo menos parcialmente inconsciente, de ação seletiva. À consciência
cabe o papel organizador e justificador. A atividade por excelência
criativa é a da seleção. Para Poincaré, inventar é selecionar. E
imperativo, então, supor a existência de um princípio seletivo, de
Coleção CLE V.11
46 A Filosofia da Matemática de Poincaré

uma função avaliadora, que irá buscar no amálgama das combinações


aleatórias da ação inconsciente propedêutica à invenção aquela par-
ticular combinação que irá ascender à consciência no insight criativo.
A esta função avaliadora Poincaré chama de intuição e seu motor é
uma sensibilidade de natureza estética com particular penchant para
a harmonia e a simplicidade.
Alain Connes e Jean-Pierre Changeux sugerem que esta função
avaliadora está ligada a estados emocionais, o que é de se esperar
dadas às ligações entre o córtex cerebral e o sistema límbico.
Mas a esta intuição Poincaré não reconhece jurisprudência sobre
a verdade. Ela nos pode apontá-la mas não pode justiílcá-la.
Entretanto, subsiste em Poincaré uma forma de intuição auto-
suficiente que não pode justificar-se senão por si própria, que trans-
cende os limites da lógica e instaura uma legalidade irredutível às
suas leis. E a intuição do número puro e das suas verdades, expres-
sas nos axiomas de Peano que, naturalmente, incluem o princípio de
indução completa.
Poincaré é posto diante de um dilema. Por um lado, pressupor
uma forma de intuição como um dar-se original e irredutível, que
põe frente à consciência um domínio potencialmente infinito de uni-
dades homogêneas em sucessão ininterrupta, conjuntamente com as
verdades que nela se fundam expressas pelos axiomas de Peano. Por
outro, tomar estes axiomas como uma definição implícita da noção
de número. Vejamos o que faz Poincaré decidir pela primeira alter-
nativa. Para ele, uma definição, explícita ou implícita, não cria um
objeto por decreto, é preciso que seu direito constituinte seja justifi-
cado pela demonstração da sua consistência com os fatos em estoque
ou, como diz Poincaré, consigo mesma. Em particular, deve-se de-
monstrar que um sistema de postulados é consistente antes que se dê a
ele o direito de definir implicitamente um objeto ou uma noção. Ora,
têm-se, segundo Poincaré, dois modos de se fazer isto. 0 primeiro,
nas suas palavras, a demonstração de consistência por exemplos, ou
seja, pela exibição de um modelo para o sistema de postulados. 0
segundo, pelo exame direto das conseqüências lógicas deste sistema.
0 primeiro método envolve claramente, no caso dos axiomas de
Peano, uma petição de princípio, pois é impossível exibir-lhes um
Coleção CLE V.11
Jairo José da Silva 47

modelo sem o pressuposto de uma doação intuitiva ou da aceitação


implícita da validade dos próprios axiomas.
0 segundo, talvez menos claramente mas certamente não me-
nos inevitavelmente, também envolve petição de princípio. Como o
conjunto das conseqüências lógicas dos axiomas de Peano é numeri-
camente infinito, nós não podemos examiná-las caso a caso. Porém,
podemos verificar que entre os axiomas não há nenhuma contradição
explícita e que de um conjunto onde não há contradições explícitas
não se podem derivar, pelas nossas regras de dedução, senão asserções
explicitamente consistentes e daí, pelo princípio de indução completa,
dado que as derivações lógicas têm comprimentos arbitrariamente
grandes, inferir que contradições nunca aparecerão. Fica agora evi-
dente a petição de princípio.
Assim, é à intuição que a noção de número puro deve sua exis-
tência. Poincaré irá criticar todos os esforços logicistas de reduzi-la
à lógica. 0 princípio de indução completa é, assim, o exemplo mais
fundamental e mais simples de um juízo sintético a priori. Sintético
porque irredutível a uma tautologia, a priori porque, justamente,
dado numa forma pura de intuição.
Se Poincaré é aceitavelmente kantiano em aritmética, e digo acei-
tavelmente porque não o é completamente, uma vez que, para ele, as
proposições individuais da aritmética são proposições analíticas, seu
afastamento de uma postura kantiana é muito mais flagrante em ge-
ometria. Na verdade, a filosofia da geometria em Poincaré tenta ser
explicitamente anti-kantiana, mas, como veremos, não é totalmente
bem sucedida nas suas intenções.
Incidentalmente, Poincaré e Frege são pólos opostos em filosofia
da matemática. Enquanto o primeiro é kantiano em aritmética e
anti-kantiano em geometria, o segundo inverte esta polaridade.
Contra Kant, Poincaré irá afirmar que o espaço não é uma forma
imposta a cada uma das nossas representações consideradas indivi-
dualmente.
Mais ainda, para Poincaré, antes que uma intuição a priori, o
espaço é um conceito induzido pela experiência. Esclareçamos este
ponto. 0 espaço, diz Poincaré, não é exatamente um conceito a
posteriori que o entendimento extrai da experiência, mas, antes, um
conceito do entendimento, e neste sentido não empírico, que a ex-
Coleção CLE V.11
48 A Fiioso/ía da Matemática de Poincare

periência nos sugere, um conceito que o entendimento nos oferece


como um instrumento cômodo para a classificação eficiente das nos-
sas sensações e que, em última análise, nos torna mais aptos na luta
pela sobrevivência. A noção de espaço é, para Poincaré, uma con-
quista evolutiva.
0 espaço físico é um contínuo amorfo, i.e., sem nenhuma estrutura
geométrica predeterminada e, portanto, mais apto ao tratamento to-
pológico que geométrico, disposto indiferenciadamente a acolher esta
ou aquela geometria, conforme nos ditem as conveniências.
A rigor, não existe apenas uma representação do espaço, mas
várias, pois diferentes grupos coordenados de sentidos sugerem di-
ferentes noções de espaço. Tomemos um deles como ilustração, o
espaço motor.
Nós estamos constantemente submetidos a estímulos sensoriais,
táteis, visuais, auditivos, etc. E vital à nossa sobrevivência desen-
volvermos uma estratégia para reagir a eles. Uma primeira e mais
fundamental distinção é entre estímulos que têm origem no nosso
próprio corpo e aqueles que lhe são independentes. A capacidade de
fazer esta distinção pode significar reagir ou sucumbir a um ataque
externo.
Assim, somos levados a distinguir as alterações das nossas im-
pressões perceptíveis entre mudanças internas, que são voluntárias
e acompanhadas de sensações musculares, e mudanças externas que
são, contrariamente, involuntárias e desacompanhadas de sensações
musculares. Esta primeira distinção marca a fronteira entre o eu e o
mundo, entre o interno e o externo, e é a nossa primeira conquista na
luta pela vida.
Poincaré nos diz que para um animal incapaz de movimento, ou
seja, de mudanças internas associadas a alterações de impressões per-
ceptivas, não haveria nenhuma noção de espaço.
Podemos, subseqüentemente, classificar as mudanças externas em
dois subgrupos, o das mudanças de estado, que são aquelas não com-
pensáveis por mudanças internas, e o das mudanças de posição ou
deslocamentos, que são as que podem ser compensadas, ou anuladas,
por mudanças internas.
Vamos introduzir uma noção de identidade no conjunto das sensa-
ções musculares voluntárias, dois grupos de tais sensações são iden-
Coleção CLE V.11
Jairo José da Silva. 49

tificados quando são ambos suscetíveis de corrigir o mesmo deslo-


camento. De modo análogo, definem-se dois deslocamentos como
idênticos quando são passíveis de serem corrigidos pela mesma mu-
dança interna.
Definimos um ponto no espaço motor como o conjunto de todas
as mudanças internas às quais correspondem grupos indistinguíveis,
pelo critério acima, de sensações musculares voluntárias. Esta ca-
racterização depende, evidentemente, do pressuposto de que todas
as mudanças internas referem-se a uma posição inicial fixa do meu
corpo. 0 que nos diz, de imediato, que o espaço é relativo. Não faz
sentido a noção de um espaço absoluto.
Se as sensações musculares associadas a dois pontos quaisquer
distintos fossem rigorosamente distintas então o espaço seria discreto.
Entretanto, nossas sensações não são tão finas e, conseqüentemente,
as mudanças que definem um ponto não formam uma classe rigoro-
samente desconexa daquela das mudanças que determinam outros
pontos da sua vizinhança. 0 espaço motor é, então, um contínuo.
No contínuo físico pode-se passar de um ponto para outro que lhe
é distinto por um ponto intermediário indistinto dos pontos extremos.
A expressão formal deste paradoxo do contínuo éA=B, B=Ce
A ^ C. Poincaré nota que é justamente este paradoxo que o contínuo
matemático quer eliminar. Ao idealizarmos o ponto do espaço físico
no ponto inextenso do espaço geométrico e realizarmos uma passagem
ao limite da fineza dos nossos sentidos, reduzimos a igualdade entre
pontos à identidade e eliminamos, assim, a contradição formal do
próprio ser do contínuo.
Poincaré define no espaço motor a noção topológica de dimensão
e conclui que são seis as suas dimensões. Novamente contra Kant,
Poincaré mostra que a tridimensionalidade do espaço não é um dado
a priori irrecusável. Se reduzimos, por uma ulterior identificação de
movimentos, para três as dimensões do espaço, é porque assim nos
pareceu mais cômodo.
Dos deslocamentos no espaço sobressai-se um grupo em parti-
cular, o dos deslocamentos dos corpos sólidos, precisamente porque
esses corpos nos são os mais familiares e a geometria euclidiana é
exatamente a geometria dos seus deslocamentos. E que, novamente
por comodidade, impomos ao espaço a estrutura euclidiana.
Coleção CLE V.11
50 A Filosofia, da Matemática de Poincaré

Mas, esquecidos de que uma geometria em particular é, para Poin-


caré, apenas uma forma cômoda de descrever fatos empíricos, con-
fundimos o nosso conforto com uma necessidade intrínseca das nossas
representações e proclamamos a geometria euclidiana como a estru-
tura natural do espaço.
Assim, os axiomas da geometria euclidiana, ou de qualquer outra,
não são julgamentos sintéticos a priori nem, muito menos, expressões
de fatos empíricos. Eles são convenções sugeridas, é certo, pela ex-
periência mas rigorosamente livres e independentes do seu arbítrio.
Os axiomas da geometria são definições disfarçadas, portanto,
não lhes cabe nenhuma noção intrínseca de verdade e apenas a con-
sistência lhes compete como critério de qualificação. Se eles nos
parecem evidentes, é ao hábito que devemos imputar esta suposta
evidência.
Para Poincaré, não apenas é concebível um mundo não-euclidiano
mas, também, um mundo simultaneamente euclidiano e não-euclidiano
Outros espaços representativos, como o espaço visual e os espaços
táteis, são também contínuos físicos com propriedades topológicas,
como a dimensão, peculiares. No entanto, nossas representações não
são projetadas neste ou naquele espaço segundo a sua origem senso-
rial, mas em um único espaço.
Poincaré descreve como, por novas identificações de sensações, nós
levamos a cabo a identificação dos vários espaços representativos na
constituição de um único espaço físico.
A geometria é apenas um contexto conveniente onde expressamos
as leis segundo as quais as nossas representações se sucedem. Por
isso, várias geometrias são possíveis.
A experiência não pode decidir entre elas porque a experiência
pode ser sempre interpretada de modo a confirmar qualquer uma de-
las. Por exemplo, se o deslocamento de um corpo não se conforma
à descrição euclidiana, é mais simples supor que o deslocamento não
é rígido do que supor que o espaço não é euclidiano. Contraria-
mente, na teoria geral da relatividade é mais cômodo admitir-se a
não-euclidianidade do espaço.
A experiência incide sempre sobre os corpos e nunca sobre o
espaço. Então, como ela pode nos ensinar o que quer que seja so-
bre ele?
Coleção CLE V.11
Jairo José da Silva 51

Resta-nos perguntar: quão sérios são os argumentos de Poincaré


contra Kant? Lembremos que, para Kant, o espaço é a forma ne-
cessária das nossas representações do sentido externo. Nenhum dos
argumentos de Poincaré tem força contra esta asserção pois, como
já dissemos, a representação de uma impressão como externa é já o
primeiro passo para a constituição da noção de espaço, o que vale
dizer que, necessariamente, o que quer que seja representado como
externo já está representado no espaço. Por outro lado, Poincaré nos
dá fortes razões para duvidar de que o espaço seja, como quer Kant,
uma intuição singular e não um conceito com múltiplos exemplos. Se,
finalmente, a noção de espaço não é, em Poincaré, empírica, não é,
muito menos, a priori. Se não é extraída da experiência, mas apenas
sugerida por ela, a noção de espaço também não lhe é imposta a des-
peito dos seus reclamos e das suas conveniências. Entre o empirismo
e o racionalismo Poincaré acomoda-se no virtuoso meio termo.
As diatribes de Poincaré contra Kant podem parecer um pouco
vieux jen. Mais excitantes serão, por certo, os embates de Poincaré
com os matemáticos de seu tempo quanto à natureza da matemática.
Passemos a eles.
Os logicistas, formalistas e cantorianos são os adversários contra
os quais Poincaré joga toda a força da sua inteligência e da sua ironia,
causando aqui e ali estragos consideráveis.
Poincaré dedica algum esforço para detectar a origem dos para-
doxos da teoria cantoriana dos conjuntos, como o de Burali-Forti, e
outros que lhe são aparentados. Seu interesse não é saná-la dos seus
eventuais males, mas mostrar que a teoria é essencialmente inconsis-
tente. Por isso, seus ataques não se centram somente na teoria de
Cantor mas também nos diferentes sistemas que lhe são alternativa-
mente propostos, como a axiomática de Zermelo e a teoria dos tipos
de Russell.
0 primeiro diagnóstico de Poincaré é que a origem dos parado-
xos deve ser imputada à crença no infinito atualizado. 0 infinito,
proclama Poincaré, é sempre potencial. A razão para o banimento
do infinito acabado da comunidade das noções matemáticas está na
interpretação que nos oferece Poincaré do que vem a ser um enun-
ciado significativo em matemática. Segundo ele, um enunciado ma-
temático qualquer só tem algum significado se puder ser verificado.
Coleção CLE V.11
52 A Filosofia, da Matemática de Poincaré

Não é muito claro o que Poincaré entende por verificável, mas com
um pouco de esforço é possível oferecer-lhe uma interpretação. Poin-
caré parece estar dizendo que um enunciado é verificável se puder-
mos reduzi-lo, por substituição dos termos definidos que nele apare-
cem pelas suas definições, e pela exclusiva aplicação das regras da
lógica, a uma tautologia. E claro que entre estas regras lógicas não
constam nem o princípio de indução completa nem qualquer outro
princípio sintético. Conseqüentemente, só os enunciados particula-
res são passíveis de verificação, e um enunciado geral é verificável se
todas as suas instâncias particulares o forem.
E o que tem a ver este critério com o infinito? Simples, explica
Poincaré, como nenhum enunciado onde conste o infinito é verificável,
ele não tem direito de cidadania em matemática, a não ser como uma
abreviação conveniente. E lá se vão todos os ordinais e cardinais
transfinitos de Cantor.
Por que enunciados "infinitos" não são verificáveis não é algo que
fique muito claro. Se, por exemplo, A é um conjunto infinito deíinível
por uma expressão verificável, não seria o enunciado x G A verificável,
mesmo envolvendo um conjunto infinito? Parece que, neste caso,
Poincaré diria que o infinito comparece na expressão x G A apenas
aparentemente, uma vez que esta expressão é equivalente àquela que
define o conjunto.
0 que o critério de Poincaré elimina não são os conjuntos infinitos,
mas os conjuntos não definíveis por expressões verificáveis.
Mas como Poincaré finca pé em apontar para o infinito atuali-
zado o caminho do desterro, devemos buscar os seus reais motivos
para tanto. E eles estão, é claro, no construtivismo de Poincaré, que
não pode admitir a existência de nada que não tenha sido convenien-
temente constituído. 0 que vale dizer em matemática, que não tenha
sido consistentemente definido. Mas um conjunto é um organismo
que não pode existir antes que exista cada um dos seus órgãos. E um
objeto de segunda ordem cuja existência depende da prévia existência
de cada um dos seus elementos. Como não podemos em nenhum mo-
mento dispor da definição de cada um de uma quantidade infinita de
objetos, um conjunto infinito nunca estará propriamente constituído.
Mesmo que a sua definição não implique em contradição.
Para Poincaré, um conjunto é um objeto dependente dos seus ele-
Coleção CLE V.11
Jairo José da Silva, 53

mentos que, como uma entidade considerada extensionalmente, não


pode preexistir a eles. Assim, não existe nenhum conjunto infinito
atualizado na comunidade dos objetos matemáticos.
Infelizmente, Poincaré não pode se satisfazer com uma solução
dos paradoxos baseada na eliminação do infinito atualizado. Russell
apresenta-lhe o paradoxo do menor inteiro não definível por uma sen-
tença com menos de cem palavras portuguesas, e que, no entanto, o
é pela sentença anterior. Este paradoxo não envolve nenhum infinito.
Poincaré deve sair novamente a campo a buscar um responsável
por este paradoxo. Não demora a encontrá-lo: um círculo vicioso
particularmente insinuante e nefasto. Qualquer paradoxo, diz ele,
de algum modo envolve uma definição imprópria, que procura ca-
racterizar o objeto ou noção definidos em termos de uma totalidade
que os contenha ou pressuponha. A essas definições Poincaré chama
de impredicativas e ao princípio que as desqualifica como legítimas
definições, de princípio do círculo vicioso.
Por que, pergunta Poincaré, alguém tomaria uma definição impre-
dicativa como legítima? Resposta: porque aceitaria, uoí/d, a existência
do infinito atual. Explicação: essas definições envolvem, em geral, a
quantificação irrestrita sobre uma classe infinita. Para que fosse não
circular essa classe deveria ser um infinito atualizado.
Mas como há definições impredicativas envolvendo apenas clas-
ses finitas, Poincaré deve recorrer ao seu critério de significação para
banir de vez com todas elas. Como as definições impredicativas não
podem, sem envolver regressão infinita, ser substituídas ao termo de-
finido, um enunciado onde compareça um termo impredicativamente
definido não pode ser reduzido a uma tautologia, isto é, não pode ser
verificado.
0 princípio do círculo vicioso assim justificado é, para Poincaré, a
verdadeira solução deis antinomias, e qualquer teoria matemática que
não se conforme a ele está aberta à contaminação pelos paradoxos.
Em particular, é impredicativo o axioma de compreensão ilimitada da
teoria dos conjuntos de Cantor e o seu uso na definição do conjunto
universal ou do maior ordinal está fadado, no diagnóstico de Poincaré,
à contradição.
Poincaré não é menos intransigente com a teoria dos tipos, que
Russell procura desenvolver em conformidade com o princípio do
Coleção CLE V.11
54 A Filosofia da Matemática de Poincaré

círculo vicioso. Em primeiro lugar, diz Poincaré, os tipos da hie-


rarquia são indexados por ordinais; logo, a teoria dos tipos pressupõe
a teoria dos ordinais. Como se pode, então, fundar a teoria dos ordi-
nais na teoria dos tipos?
Além disso, é claro, Poincaré se indispõe contra o axioma da re-
ducibilidade que, segundo ele, não é mais fundamental nem psicolo-
gicamente mais natural que o princípio de indução matemática que
se espera demonstrar por ele.
A axiomática da teoria dos conjuntos de Zermelo, designada a
disciplinar a teoria de Cantor não é, segundo Poincaré, menos isenta
de críticas.
Poincaré distingue entre classificações predicativas e impredicati-
vas segundo sejam, respectivamente, inalteráveis ou constantemente
rearranjadas pela introdução de novos elementos. Numa classificação
predicativa um elemento já classificado não corre o risco de ser desa-
lojado no curso posterior da classificação.
Segundo Poincaré, a lógica formal nada mais é que o estudo das
propriedades comuns a toda classificação predicativa. Logo, as clas-
sificações impredicativas são logicamente intratáveis, dando origem a
paradoxos, como o de Richard.
Consideremos agora um conjunto infinito qualquer Me uma pro-
priedade P definida com relação a todos os elementos de M, 0 axioma
de compreensão de Zermelo garante a existência de um subconjunto
5 de Af dos elementos que satisfazem P. Diz Poincaré, "como só existe
o infinito potencial, sempre existirão novos elementos sendo anexados
a M, o que pode mudar o significado de P".
Assim, pode haver um constante entrar e sair de elementos de 5,
uma ininterrupta alteração da classificação determinada por P.
*
E claro que se aceitarmos que o conjunto infinito está dado de
uma vez por todas e o sentido de P está definitivamente determi-
nado, o problema desaparece. Ou seja, a teoria de Zermelo, não
menos que a de Cantor, pressupõe a existência do infinito atual e,
conseqüentemente, a validade de definições e classificações impredi-
cativas.
E isto Poincaré não pode aceitar.
No logicismo, Poincaré é particularmente sensível à tentativa de
se reduzir à lógica a noção de número natural. E isto porque ele
Coleção CLE V.11
Jairo José da Silva 55

está firmemente convencido de que o número inteiro é o único objeto


natural do pensamento matemático. Além do número a matemática
não tem um objeto próprio, a ela compete apenas revelar e dar voz
à estrutura subjacente ao mundo.
As teorias matemáticas não tém por objetivo revelar-nos a verda-
deira natureza das coisas ...
Seu único objetivo i coordenar as leis físicas que a experiência nos
faz conhecer, mas que, sem o socorro da matemática, nós não po-
deríamos nem mesmo enunciar (1943, p. 245).
Assim, uma definição em matemática, em geral, não cria ou se-
leciona um objeto, mas um nome, um conceito que nos pode ser
útil para expressarmos a harmonia do mundo. A matemática é ape-
nas uma linguagem. Mas, supõe-se, não a aritmética. Esta tem um
objeto próprio revelado numa intuição necessária, o número puro.
Querer eliminá-lo pela lógica é mais do que Poincaré pode suportar.
Assim, Poincaré critica a axiomática de Peano interpretada como
uma definição implícita da noção de número natural. Como já vimos
ela só teria este poder se se pudesse demonstrar a sua consistência
sem petição de princípio, o que, segundo Poincaré, não se pode.
Além disso, seria também preciso demonstrar que não atribuímos aos
números outras propriedades que não as deriváveis dos axiomas, ou
seja, seria preciso mostrar a completude do sistema. 0 que Poincaré
não acredita, com uma certa clarividência, possível.
Poincaré critica também as definições de número natural de Bu-
rali - Forti e de Couturat, como envolvendo um círculo e as definições
de Whitehead e Dedekind como impredicativas. 0 número natural,
proclama Poincaré, é um dado da intuição. Esta intuição que Hil-
bert despreza no seu formalismo, que é por isso, também um alvo
dos ataques de Poincaré. A matemática não é um jogo formal, de-
monstrar teoremas não pode ser tarefa de máquinas. Como poderia
sê-lo se a criação matemática é seleção, que é, por sua vez, fortemente
influenciada por fatores estéticos?
Na nova matemática e na nova lógica que surgem com Cantor, Pe-
ano, Hilbert, Frege, Zermelo, Poincaré não vê senão círculos viciosos,
banalização formal, inconsistência, hermetismo e objetivos inatingi-
dos.
A primeira vista, Poincaré pareceria ser um matemático reacioná-
rio, um construtivista rabugento incapaz de acompanhar as novas ten-
Coleção CLE V.11
56 A Filosofia da Matemática de Poincaré

dências da sua ciência. Mas, por outro lado, Poincaré soube apreciar
e acatar as revoluções, talvez muito mais surpreendentes da física do
seu tempo: a mecânica relativística e a mecânica quântica. Estas pelo
menos, poderia dizer Poincaré, ajustam-se aos fenômenos resolvendo
problemas ao invés de criá-los.
Como matemático, Poincaré foi um dos decanos da chamada es-
cola francesa, que conta entre os seus membros com contemporâneos
seus, também predicativistas, como Borel, Baire e Lebesgue, e nos
legou criações belíssimas em áreas até hoje vivas como a topologia
algébrica, a teoria dos sistemas dinâmicos e a teoria das probabilida-
des.
Se Poincaré nos parece um pouco demodé por oposição à ma-
temática formalista, enfim vencedora, da escola alemã, nós não po-
demos nos esquecer do renascimento da matemática intuicionista,
principalmente como reação às limitações intrínsecas do formalismo.
Se as críticas de Poincaré ao logicismo foram um empecilho ao de-
senvolvimento da lógica na França, elas certamente estavam presentes
na mente dos lógicos que, fora da França, tiveram que responder a
elas.
Assim, as críticas de Poincaré têm um duplo papel, restritivo e,
simultaneamente, estimulante, e nossa primeira impressão de Poin-
caré como um reacionário a ser esquecido deve, a bem da verdade,
ser substituída pela imagem de Poincaré como um precursor das mo-
dernas correntes construtivistas em Matemática, além de uma figura
de relevância na própria história da lógica.

Bibliografia

Poincaré, H. Últimos pensamentos. Rio de Janeiro ; Garnier, 1924.

. Science et méthode. Paris : Flammarion, 1927.

. La science et 1'hypothèse, Paris : Flammarion, 1943.

. La valeur de la science. Paris ; Flammarion, 1970.


Coleção CLE V.11
Parte IV

* O Nascimento das Lógicas

Não-Clássicas

* As Geometrias Não-Euclidianas
Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
5

O Ambiente Matemático no Século XIX

e a Lógica do Século XX*

Newton C.A. da Costa

Neste trabalho apresentaremos um pequeno resumo de algumas


das idéias básicas da matemática do século XIX, as quais influencia-
ram fundamentalmente toda a cultura e, em particular, contribuíram
diretamente, ou foram causa indireta ou heurística do surgimento da
lógica matemática e, principalmente, das lógicas não-clássicas.
0 século passado foi um dos períodos áureos da matemática e
houve alguns acontecimentos fundamentais para a cultura, para o
pensamento em geral, mas, em particular, para aquilo que nos inte-
ressa aqui, acontecimentos e fatos que contribuíram para o surgimento
da lógica matemática clássica e da lógica não-clássica.
Um dos pontos essenciais considerado é o surgimento das geome-
trias não-euclidianas, com as idéias de Lobatchevski e Bólyai princi-
palmente e, posteriormente, com as de Riemann, de geometrias que
eram diferentes da geometria clássica.
'Este artigo do prof. Newton da Costa corresponde à sua participação
na abertura da mesa redonda intitulada "O Nascimento das Lógicas Não-
Clássicas", coordenada pela proía. Andréa Loparic e composta pelos profs. I.M.L.
D'Ottaviano, C. Pizzi e W. Catnielli.
Coleção CLE V.11
60 O Ambiente Matemático no Século XIX

Não discutiremos, aqui, o significado desse fato. Talvez tenha


sido um dos maiores acontecimentos na história da cultura, e as ge-
ometrias não-euclidianas servem, até hoje, de motivação heurística
ou analógica para a construção de lógicas não-clássicas. Vasiliev e
Lukasiewicz, quando construíram seus sistemas não-clássicos, sem-
pre declararam-se motivados pelo surgimento das geometrias não-
euclidianas.
Na verdade, quando me refiro a geometrias não-euclidianas, con-
sidero não somente a geometria de Lobatchevski e Bólyai e a forma-
lização usual da geometria de Riemann, mas, também, a concepção
riemanniana de espaço, porque a expressão "geometria de Riemann"
tem dois sentidos completamente distintos. Um é o de uma das três
geometrias elementares não-euclidianas, e o outro é a teoria geral dos
espaços de Riemann, que mudou radicalmente a noção de espaço e
constitui uma modificação tão radical quanto a provocada pela geo-
metria de Lobatchevski e Bólyai.
Outro ponto fundamental consiste na construção e desenvolvi-
mento da geometria projetiva. A geometria projetiva é uma geome-
tria mais geral que a euclidiana e se afasta da noção usual de espaço.
Desargues, Poncelet, Chasles e quase todos os geòmetras do século
passado desenvolveram enormemente essa geometria e, entre as coi-
sas interessantes que descobriram, está a lei da dualidade, que mostra
que, fazendo permutaçôes de ponto por reta, a geometria projetiva do
plano permanece a mesma, uma lei análoga valendo para o espaço.
Isso indicava então que a geometria se derivava de certos axiomas
puramente formais, o que não era muito claro na época.
Todos os historiadores da Matemática, que se interessam pelos
princípios da geometria, insistem que o desenvolvimento da geometria
projetiva foi algo mais ou menos parecido ao impacto, ainda que com
menor intensidade, da geometria de Euclides; principalmente a partir
do momento em que a geometria projetiva deixou de ser construída
com base na geometria tradicional euclidiana e desenvolveu-se num
plano puramente abstrato.
Por volta da época do aparecimento das geometrias não-euclidia-
nas aconteceu uma outra coisa extraordinária, que foi a criação, feita
especialmente por Grassmann e Cayley, da geometria a um número
qualquer de dimensões.
Coleção CLE V.11
Newton C.A. da Costa 61

A obra de Grassmann constituiu-se, embora não bem compre-


endida na época, numa das maiores revoluções na história da ma-
temática. A possibilidade do desenvolvimento de novas geometrias
mostrou que esta disciplina poderia desenvolver-se de um modo abs-
trato, podendo tornar-se independente da geometria física, que é a
ciência que estuda o espaço físico real.
Ainda neste contexto, houve uma outra grande revolução na área
da álgebra, a parte numérica da matemática, em oposição à geome-
tria, com a construção, por Hamilton, das álgebras não-comutativas.
Hamilton criou o primeiro sistema matemático, os quatérnios, cuja
operação de multiplicação não era comutativa tendo levado mais de
dez anos para perceber que a lei comutativa, de que a ordem dos fa-
tores não altera o produto, podia ser derrogada. A partir desse fato,
Hamilton e toda a escola inglesa passaram a conceber a álgebra como
algo abstrato. Ao mesmo tempo, Grassmann cria toda a álgebra
linear, com a teoria dos espaços vetoriais, naturalmente numa lin-
guagem hoje superada, mostrando que havia várias operações não-
comutativas que possuíam significado geométrico.
Assim, com as obras de Hamilton e Grassmann, efetuou-se uma
mudança radical na maneira de se encarar a matemática. A ma-
temática era algo meio confundido com a ciência física e a partir des-
ses autores, ela passou a tornar-se abstrata, começando a separar-se
radicalmente das ciências naturais, especialmente da física. Mesmo
no início deste século, com Poincaré e outros, a matemática ainda
era algo difícil de se separar da física. A matemática francesa tardou
muito a adquirir uma visão mais moderna dessa disciplina, que para
os alemães já era bastante clara.
Há, também, uma coisa muito importante, que é a evolução do
método axiomático. Contribuíram para esta evolução, por exemplo,
Peano e sua escola e'vários matemáticos alemães, culminando na obra
do grande geômetra alemão Hilbert. Contrariamente à opinião de al-
guns, Peano e muitos outros já utilizavam o método axiomático, ainda
que numa visão restrita do mesmo, pois eles, por exemplo, axioma-
tizavam a geometria, apesar de que não exploravam criticamente tal
axiomatização. Hilbert dizia que o método axiomático só se comple-
tava quando se estudavam todas as alternativas de uma determinada
axiomática. Ou seja, não bastava investigar apenas a axiomática da
Coleção CLE V.11
62 O Ambiente Matemático no Século XIX

geometria euclidiana, era preciso estudar as geometrias resultantes


das substituições dos diversos postulados da geometria de Euclides.
Hilbert disse claramente em um célebre discurso, em 1900, que no
verdadeiro método axiomático se deveria tratar de todas as possibili-
dades lógicas existentes. Esse é o grande mérito da concepção genial
e absolutamente revolucionária de Hilbert.
Ainda entre as coisas que muito influenciaram não só o surgimento
da lógica, como também os estudos de fundamentação da ciência em
geral, é preciso mencionar o movimento, de origem principalmente
alemã, de aritmetização da análise. A análise matemática, que é uma
parte da matemática edifícada sobre o conceito de número, estava
cheia de raciocínios baseados em intuições geométricas e de procedi-
mentos impuros, e se começou a perceber, principalmente e através
de Weierstrass, que não eram rigorosos.
No século passado, e até meados deste, os matemáticos franceses,
com algumas exceções, concebiam a matemática como algo de na-
tureza intuitiva; para eles, a matemática era uma espécie de ciência
física. Por outro lado, os matemáticos alemães logo se apercebe-
ram, principalmente depois da influência da obra de Cantor, que a
matemática é uma ciência puramente abstrata e que era então ne-
cessário reconstruir logicamente toda a análise matemática, revendo
todos os seus fundamentos. Isto causou um impacto extraordinário
sobre o qual não entrarei em detalhes.
Finalmente, coroando todo este movimento no interior da ma-
temática, há a obra de Cantor, o genial criador da teoria dos con-
juntos. Em geral, quando se fala da obra de Cantor, não se percebe
que muito mais importante que a criação da teoria dos conjuntos
propriamente dita foi a modificação definitiva de paradigma que ela
ocasionou, talvez um dos maiores marcos da história da matemática.
Os especialistas costumam afirmar que só existem duas coisas que se
comparam à obra de Cantor: a criação da análise infínitesimal por
Leibniz e Newton e a edificação da matemática grega, principalmente
nas mãos de Eudoxo e de Euclides.
Pois bem, a grande lição de Cantor resume-se em uma frase
célebre que ele colocou como divisa em um de seus artigos, afirmando
que: "A essência da matemática radica na sua completa liberdade".
Isto significa algo profundo, na medida em que Cantor estava lu-
Coleção CLE V.11
Newton C.A. da Costa 63

tando contra uma concepção de matemática vigente em sua época.


Com esta frase, Cantor queria dizer que a essência da matemática
consiste no fato de que é possível desenvolvê-la em plano totalmente
independente do mundo físico real.
Esse é o lema que está no cerne do que denominamos concepção
matemática alemã. Havia como que um dualismo, uma polaridade,
uma espécie de luta entre a concepção cantoriana alemã e a fran-
cesa, que se opunha ao paradigma cantoriano. 0 modo de tratar a
matemática na segunda metade do século passado pelos alemães era
completamente diferente da maneira de proceder dos matemáticos
franceses, diferença de atitude que se prolongou até o começo do pre-
sente século.
0 século passado nos legou duas grandes coisas no domínio da
matemática: a visão abstrata cantoriana e a visão concreta francesa
de Poincaré, Borel, Lesbegue e dos grandes tratadistas como Goursat
e outros. Diante deste panorama, a idéia que temos é que a con-
cepção alemã passou a dominar; no entanto, sob certos aspectos, e
isto vou deixar como um problema a ser investigado, a posição in-
tuicionista/construtivista atual são como que um prolongamento do
pensamento francês e da atitude concreta de matemáticos geniais
como Poincaré. 0 que a matemática de hoje e também a lógica são
é uma espécie de síntese destas duas abordagens; da posição francesa
e da alemã.
Minhas considerações procuram resumir, ainda que de forma es-
quemática e incompleta, alguns aspectos da história da matemática
que influenciaram a criação da lógica atual, especialmente das não-
clássicas. Assim, as geometrias não-euclidianas sugeriram a possibi-
lidade de lógicas diferentes da clássica; a geometria projetiva contri-
buiu para que se concebesse a lógica de maneira formal e abstrata; as
obras de Cayley, Grassmann e Hamilton corroboraram a importância
dos desenvolvimentos provocados pelo impacto das geometrias não-
euclidianas; o cantorismo conduziu às axiomatizações da teoria dos
conjuntos e à formulação das chamadas lógicas abstratas; a concepção
matemática de Poincaré e de outros matemáticos franceses desembo-
cou no construtivismo contemporâneo das lógicas intuicionistas.
Coleção CLE V.11
64 O Ambiente Matemático no Século XIX

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Coleção CLE V.11
6

A Lógica Clássica e o Surgimento das


Lógicas Não-CIássicas

Ítala Maria Loffredo D'Ottaviano

A Lógica, ciência do raciocínio dedutivo, estuda a relação de con-


seqüência, tratando, entre outras coisas, das inferéncias válidas; ou
seja, deis inferéncias cujas conclusões têm que ser verdadeiras quando
as premissas o são.
0 objetivo da lógica consiste, portanto, na menção e estudo dos
princípios lógicos usados no raciocínio dedutivo.
Os lógicos contemporâneos edificam linguagens artificiais ade-
quadas para lidar com a relação de conseqüência, linguagens essas
que possuem pelo menos duas dimensões relevantes, a sintática e a
semântica.
Para trabalharmos numa teoria formal, é necessário explicitarmos
sua linguagem: seus símbolos e as regras de combinação às quais
estão sujeitos para a construção das expressões que são sucessões bem
formadas de símbolos, os termos e fórmulas. As regras de combinação
independem do significado destes símbolos e entre as fórmulas bem
formadas da linguagem são especificados os axiomas (leis básicas);
através dos axiomas e das regras de dedução são demonstrados os
teoremas da teoria.
Coleção CLE V.11
66 A Lógica, Clássica e as Lógicas Não-Clássicas

À dimensão combinatória de uma linguagem, encarada como puro


jogo formal, sem significado, chamamos de dimensão sintática. A
dimensão semântica das linguagens leva em consideração os objetos
extra-lingüísticos, aos quais os símbolos e expressões da linguagem se
referem, e o significado dos mesmos.
0 interesse das dimensões sintática e semântica da lógica foi sali-
entado por Carnap e Tarski.
Entretanto, até princípios do século XX havia uma única lógica,
pura, formal ou teórica, fundada por Aristóteles (384 a 322 a.C.) e
cujo sistematizador mais importante foi Frege (1848-1925).

1. De Aristóteles ao final do século XIX e a sistematização


contemporânea da lógica clássica
A história da lógica antiga inicia-se propriamente com Aristóteles,
no século IV a.C..
Na antigüidade, os gregos foram únicos na sua prática, cultivo e
gosto pelo argumento. Entre os predecessores de Aristóteles deve-
mos chamar a atenção para o trabalho dos sofistas, classe de tutores
privados da Grécia antiga; e convém mencionarmos que argumentos
falaciosos e paradoxos, argumentos que de premissas aparentemente
verdadeiras e por passos aparentemente válidos levam a conclusões
aparentemente falsas, eram conhecidos já na antiga Grécia.
A maior parte da contribuição relevante de Aristóteles, para a
lógica, encontra-se no grupo de tratados conhecidos como Organon,
mais especificamente nos Analytica Priora e no De Interpretatione.
Aristóteles criou a teoria do silogismo e axiomatizou-a de diver-
sas formas. E, além de construir o primeiro sistema de lógica das
expressões substantivas, iniciou o desenvolvimento da lógica modal,
lidando com as noções de necessidade, possibilidade e contingência
(A é contingente se A é não-necessária e não-impossível).
Bochenski 1951 observa que o silogismo é provavelmente a mais
importante descoberta em toda a história da lógica formal, pois não
é apenas a primeira teoria formal com variáveis, mas também o pri-
meiro sistema axiomático construído.
Aristóteles, entretanto, parece não ter percebido que sua si-
logística pressupunha uma teoria lógica mais geral, a das proposições.
De fato, mencionava "silogismos a partir de hipóteses", parecendo
Coleção CLE V.11
Jtaia M. Loffredo DyOttaviano 67

referir-se a alguns princípios da lógica das proposições, por ele não


explicitados.
Existem sérios indícios que nos permitem associar a lógica das
proposições aos megáricos, escola de lógicos e dialéticos socráticos do
quarto século antes de Cristo, e aos estóicos.
Da escola megárica podemos citar o paradoxo do mentiroso ("Um
homem que diz que está mentindo fala a verdade?") e discussões sobre
a veracidade da implicação como conceito funcional de verdade.
Os estóicos reconhecem a existência de dois tipos básicos de dis-
junção (a exclusiva e a inclusiva), a conjunção e a negação; os conec-
tivos são interpretados como funcionais de verdade e é discutida sua
interdefinibilidade. 0 mais interessante aspecto da lógica estóica de
proposições é sua sistematização em uma teoria dedutiva, cujos ele-
mentos são argumentos, encarados como um sistema de proposições
que contém premissas e uma conclusão.
Um dos mais antigos paradoxos conhecidos é o de Aquiles, criado
por Zenão de Elea (350-260 a.C.): Zenão argumentou porque Aquiles,
o mais rápido entre todos os corredores, não poderia ultrapassar uma
tartaruga em uma corrida, se à tartaruga fosse permitido sair na
frente.
Os árabes nada desenvolveram em lógica, independentemente do
legado grego. A lógica indiana, apesar de ter se desenvolvido indepen-
dentemente dos gregos, é pouco significativa, não utilizava variáveis
e nenhum princípio lógico chegou a ser enunciado. A lógica chinesa
não avançou além do estágio alcançado na Grécia pelos sofistas, no
século V a.C..
No Ocidente, durante os cinco séculos que se seguiram ao fim da
antigüidade e durante o período medieval, pouco ou nada foi feito
de relevante no campo da lógica, além de versões da lógica das pro-
posições e das expressões modais.
A lógica moderna teria começado de fato no século XVII, com
Leibniz, cujo programa visava a obtenção de uma linguagem univer-
sal, baseada em um alfabeto do pensamento.
Leibniz, em seu Dissertatio de arte combinatoria, publicado em
1666, introduz o projeto da construção de um sistema exato universal
de notação, uma linguagem simbólica universal baseada em um alfa-
beto do pensamento, a lingua characterica universalis, a qual deveria
Coleção CLE V.11
68 A Lógica Clássica e as Lógicas Não-ClássiciLS

ser como uma álgebra, constituindo-se de sinais básicos para denotar


noções simples não definíveis, as noções complexas sendo denotadas
por construções apropriadas que refletiam sua estrutura e envolviam
os sinais básicos. Em última análise, essa linguagem propiciaria um
conhecimento fundamental de todas as coisas.
Mais tarde, Leibniz acrescentou a seu trabalho o projeto da cons-
trução de um calculas ratiocinator, ou cálculo da razão. E apesar do
programa de Leibniz, na forma por ele introduzido, não ser teorica-
mente exeqüível, o calculas ratiocinator permanece como um impor-
tante precursor da metodologia da lógica contemporânea.
Leibniz antecipou o uso dos quantificadores. Foi ainda o primeiro
pensador a atribuir à lei da identidade ("A é A", ou "Todo A é A")
um papel especial, como uma "verdade primitiva da razão". E em
vários de seus trabalhos chamou a atenção sobre a importância da lei
da contradição e da identidade, parecendo considerá-las suficientes
para a demonstração das verdades que independem da experiência,
ou de todos os princípios da matemática.
A obra de Leibniz deveria ter desencadeado o desenvolvimento do
tratamento moderno e o reviver da lógica, que só ocorreu em fins do
século XIX. Porém, suas contribuições para a lógica permaneceram na
maioria não publicadas durante sua vida, tendo ficado desconhecidas
por 150 anos. Parte de sua obra foi publicada em Erdmann 1840 e
Gerhardt 1890 (ver Gerhardt 1978), e o restante em Couturat
1903. Historicamente, apenas generalidades do programa de Leibniz
teriam influenciado o trabalho dos lógicos que o sucederam.
Kant, apesar de sua grande influência, pouco contribuiu para a
lógica. Na verdade, no prefácio de Kant 1787 afirma que, desde
Aristóteles, por dois mil anos, a lógica não havia dado nenhum
passo importante para a frente ou para trás, parecendo portanto uma
ciência acabada e completa.
A álgebra da lógica foi introduzida pela primeira vez, simultane-
amente, em Boole 1847 (ver Boole 1958) e De Morgan 1847.
A álgebra de classes aparece em ambos os trabalhos e a álgebra de
relações aparece inicialmente em De Morgan 1860. As operações
básicas dessas álgebras obedecem às leis familiares da álgebra de
números e De Morgan 1847 inclui, em particular, as hoje conheci-
das leis de De Morgan.
Coleção CLE V.11
Jíaia M. Loffredo D'Ottaviano 69

Apesar de terem sido esses os primeiros cálculos da lógica, não


chegaram a constituir um sistema no sentido da lógica moderna, mas
um cálculo num sentido menos rigoroso.
A álgebra das relações foi desenvolvida por Peirce e Schroeder.
Peirce também introduziu a definição de ordem simples, o primeiro
tratamento do cálculo proposicional como um cálculo com dois valores
de verdade e a definição de igualdade (informalmente antecipada por
Leibniz), tendo iniciado em 1881 o tratamento dos fundamentos da
Aritmética.
0 primeiro cálculo de proposições aparece, a partir de 1877, em
artigos de McColl, que redescobre as leis de De Morgan do cálculo
proposicional.
Apesar do trabalho precursor de Leibniz, Boole, De Morgan e
Peirce, que já se contrapunham à posição de Kant sobre a lógica como
ciência acabada, o verdadeiro fundador da lógica moderna foi Gottlob
Frege, inquestionavelmente o maior lógico dos tempos modernos. 0
pensamento de Frege, praticamente desconhecido, foi descoberto por
Bertrand Russell.
Os passos essenciais para a introdução do método logístico foram
dados em 1879, no Begrxffsschrift (Frege 1977), só comparável na
história da lógica aos Analytica Priora de Aristóteles. 0 livro contém,
pela primeira vez, o cálculo proposicional em sua forma logística mo-
derna, a noção de uma função proposicional, o uso de quantificadores
e a análise lógica de prova por indução matemática em termos da
noção de uma propriedade hereditária.
Frege, em 1884, adota a tese de que a aritmética é um ramo da
lógica, no sentido de que todos os termos da aritmética podem ser
definidos com o auxílio apenas de termos lógicos e todos os teoremas
da aritmética podem ser provados a partir dos axiomas lógicos. Essa
posição é rigorosamente apresentada por Frege em 1893 (ver Frege
1966).
Outra importante contribuição de Frege é a distinção entre sen-
tido e denotação e entre uso e menção. A definição de número car-
dinal indutivo de Frege foi reapresentada, levemente modificada, por
Whitehead e Russel.
Cantor, em seu artigo de 1874, sobre a denumerabilidade dos
conjuntos infinitos, introduz uma nova teoria do infinito, na qual
Coleção CLE V.11
70 A Lógica Clássica e as Lógicas Não-Clássicas

uma coleção de objetos, mesmo que infinita, é concebida como uma


entidade completa. Em 1895 e 1897 Cantor publica seus principais
trabalhos sobre números ordinais e cardinais.
Entretanto, a aceitação ingênua de Cantor de um conjunto como
qualquer coleção de objetos num todo M definidos e separados de
nossa intuição ou pensamento conduziu, na mudança do século, ao
aparecimento dos conhecidos paradoxos de Cantor e de Burali-Forti
nos fundamentos da disciplina nascente.
A partir do paradoxo de Cantor, relativo ao maior número car-
dinal, Russel obteve o não menos conhecido paradoxo de Russel e
comunicou-o a Frege, em 1902. Como essa antinomia podia ser ob-
tida através de uma demonstração de teoremas contraditórios, a par-
tir de seus axiomas lógicos, Frege acreditou que os fundamentos de
sua construção estivessem destruídos.
Dedekind, que trabalhava sobre os fundamentos da aritmética,
sustou a publicação de sua obra.
No Apêndice do segundo volume de seu Grundgesetze der Arith-
metik, publicado em 1903, Frege fez sugestões, não muito naturais,
no sentido de alterar os axiomas inicialmente introduzidos para poder
evitar as inconsistências.
Em 1908, no "IV Congresso Internacional de Matemática", reali-
zado em Roma, Poincaré (1854-1912) conclamou a comunidade ma-
temática para que uma solução fosse encontrada com relação à crise
dos paradoxos, que pareciam abalar os fundamentos da matemática
(ver Aiti dei IV Congresso Intemazionale dei Matematici, 1909, p.
182).
Nessa ocasião, Zermelo e Russell já trabalhavam na busca de
princípios fundamentais sobre os quais uma teoria consistente, por-
tanto não contraditória, pudesse ser construída.
Whitehead e Russell, com a publicação dos Principia Mathema-
tica em 1910, 1912 e 1913 (ver Whitehead & Russell 1973), inau-
guram finalmente um novo período na história da lógica, solucionando
o problema das antinomias semânticas e sintáticas (ver D^ttaviano
1990), com uma teoria ramificada de tipos, um sistema que incorpora
o esquema de notação lógica de Peano (1894-1908) e estabelece uma
hierarquia de tipos e coleções.
A teoria de conjuntos, nascente no começo do século, resistiu à
Coleção CLE V.11
ítala M. Loffredo D'Ottaviano 71

crise dos paradoxos. Dois sistemas de teoria de conjuntos evoluíram


dos trabalhos de Zermelo (1908) e Fraenkel (1922) {Teoria de Con-
juntos ZF), e de Skolem (1923), Von Neumann (1925-1929), Bemays
(1937-1954) e Gôdel (1940) (Teoria GBN). O sistema NF de Quine e
a Teoria Tarski-Morse-Kelley surgiram posteriormente.
As teorias de conjuntos apresentam solução parcial para o pro-
blema dos paradoxos, eliminando os paradoxos da matemática, e são
sistemas potentes para a fundamentação da matemática.

2. Século XX: a lógica clássica e o surgimento das lógicas


nâo-clássicas
Podemos afirmar que a lógica aristotélica, ou lógica clássica, con-
siste do cálculo de predicados de primeira ordem, versando sobre
os conectivos lógicos de negação, conjunção, disjunção, implicação
e equivalência, sobre os quantiíicadores existencial e universal e sobre
o predicado de igualdade; e de algumas de suas extensões, como por
exemplo certos sistemas de teoria de conjuntos e certos cálculos de
predicados de ordem superior. Caracteriza-se como uma lógica de
proposições, isto é, uma lógica sentenciai com uma única categoria
semântica básica.
A partir da obra de Frege, a lógica clássica adquiriu uma forma
quase definitiva, extensa e consistente nos Principia Mathematica de
Whitehead e Russell.
Em seu estado atual é poderosa e encerra toda a velha silogística
aristotélica, convenientemente reformulada. A própria matemática
tradicional, sob certo ponto de vista, pode reduzir-se à lógica clássica.
A lógica clássica caracteriza-se por determinados princípios
básicos, de natureza sintática e semântica. Três deles são fundamen-
tais e são conhecidos como leis básicas do pensamento Aristotélico:
1) Princípio da náo-contradição: Entre duas proposições contra-
ditórias, uma delas é falsa.
Em símbolos: -«(A A -iA)

2) Princípio do Terceiro Excluído: De duas proposições contra-


ditórias, uma delas é verdadeira.
Em símbolos: A V -tA
Coleção CLE V.11
72 A Lógica Clássica e as Lógicas Não-Clássicas

3) Lei da identidade: Todo objeto é idêntico a si mesmo.


Em símbolos: (Vi)(a: = x).
A teoria de conjuntos usual, sobre a qual se pode fundamentar
a aritmética (e portanto toda a matemática tradicional), mantém a
lógica clássica, com seus princípios básicos, como lógica subjacente.
Entretanto, os paradoxos da teoria de conjuntos e questões não
solucionadas sobre o conceito de infinito deixavam ainda aos lógicos
problemas relativos à fundamentação da matemática.
0 programa de Hilbert, a partir de 1902, tinha por objetivo pro-
var que tais dificuldades podiam ser superadas, mediante uma for-
malização adequada que permitisse a demonstração metateorética da
consistência da aritmética e, portanto, da matemática. Hilbert &
Bernays 1934 (segunda edição em 1939) é um tratado de lógica
moderna e contém as idéias de Hilbert sobre os fundamentos da ma-
temática, caracterizando a distinção entre linguagem objeto e me-
talinguagem (na terminologia de Hilbert, entre matemática e me-
tamatemática). Entretanto, o famoso teorema da incompletude de
Gôdel, publicado em 1931, destruiu o programa de Hilbert. Gôdel
provou que, em qualquer sistema suficientemente poderoso para de-
senvolver a aritmética dos números naturais, não é possível demons-
trar, com métodos fínitários, sua consistência (inexistência de con-
tradição). Porém, a conseqüência mais drástica desse trabalho é que
nenhum sistema lógico, satisfazendo certas condições muito gerais,
pode pretender conter apenas verdades lógicas e a totalidade das ver-
dades lógicas.
Já no final do século XIX, alguns trabalhos pioneiros, buscando
soluções não-aristotélicas para algumas questões lógicas, foram pre-
cursores das lógicas não-clássicas em geral, como os de MacColl.
Nas primeiras décadas do século XX vários filósofos e ma-
temáticos, motivados por questões e objetivos algumas vezes distin-
tos, criaram novos sistemas lógicos, diferentes da lógica aristotélica.
Podemos afirmar que as lógicas não-clássicas diferenciam-se da
lógica clássica por:
(i) Poderem estar baseadas em linguagens mais ricas em formas
de expressão;
(ii) Poderem estar baseadas em princípios inteiramente distintos;
ou
Coleção CLE V.11
ítala M. Loffredo D'Ottaviano 73

(iii) Poderem ter uma semântica distinta.


Haack 1974 considera duas categorias principais de lógicas não-
clássicas: as que são apresentadas como complementares da clássica
e as lógicas alternativas a ela.
As do primeiro tipo não infringem os princípios básicos da lógica
clássica e não questionam sua validade universal, apenas ampliando
e complementando seu escopo. Em geral, a linguagem clássica é en-
riquecida com a introdução de novos operadores. São exemplos de
lógicas complementares, as lógicas modais, com os operadores modais
de possibilidade e necessidade; as lógicas deônticas, com os operadores
deônticos proibido, permitido, indiferente e obrigatório; as lógicas do
tempo, com operadores temporais, relevantes para os fundamentos da
física e para a lingüística; as lógicas epistêmicas, lógicas imperativas,
etc.
As lógicas heterodoxas, rivais da lógica clássica, foram concebidas
como novas lógicas, destinadas a substituir a lógica clássica em alguns
domínios do saber. Derrogam princípios básicos da lógica clássica.
As lógicas hetèrodoxas, nas quais não vale a lei reflexiva da iden-
tidade, são chamadas lógicas não-reflexivas, como, por exemplo, a
lógica quântica. Alguns sistemas não-reflexivos fortes englobam a
lógica clássica.
Nas lógicas paracompletas não é válido o princípio do terceiro ex-
cluído, ou seja, podem existir fórmulas A tais que A e a negação de A
não são teoremas. São lógicas paracompletas as lógicas intuicionistas
e as lógicas polivalentes.
Uma solução radical para o problema dos paradoxos foi defendida
por Brouwer e sua escola intuicionista, já que os paradoxos não podem
ser derivados e, portanto, não têm significado, se obedecermos as
estruturas intuicionistas.
Nas lógicas polivalentes as proposições podem assumir outros va-
lores de verdade entre o verdadeiro (1) e o falso (0).
O princípio da (não-)contradição é derrogado nas lógicas relevan-
tes e na maioria das lógicas paraconsistentes.
Nas lógicas relevantes, introduzidas em Ackermann 1956 e es-
pecialmente desenvolvidas em Anderson &c Belnap 1976, a idéia
básica é a obtenção de uma implicação, "entailment" ou implicação
relevante, livre dos chamados paradoxos da implicação material.
Coleção CLE V.11
74 A Lógica Clássica e as Lógicas Não-Clássicas

Uma teoria é consistente se não existe uma fórmula A de sua


linguagem tal que A e a negação de A sejam teoremas; é inconsistente,
em caso contrário; e é trivial se toda fórmula de sua linguagem é
teorema.
Toda teoria dedutiva baseada na lógica clássica é inconsistente se,
e somente se, é trivial.
Uma lógica é dita paraconsistente se pode ser usada como a lógica
subjacente para teorias inconsistentes e não triviais, que são chama-
das teorias paraconsistentes.
A grande relevância das teorias paraconsistentes, no que concerne
aos paradoxos, é que eles podem ser naturalmente absorvidos pela
teoria, sem quebra da força lógica, ou seja, sem trivialização.
Existem vários outros tipos de lógicas não-clássicas como, por
exemplo, as lógicas difusas (lógicas "fuzzy").
Não podemos também deixar de mencionar certos sistemas inte-
ressantes, com simultaneamente várias das características de algumas
das lógicas citadas,
A lógica moderna evoluiu muito. E, com relação a alguns tipos
de lógica, seria difícil poder identificá-los como complementares da
clássica, ou heterodoxos.
0 surgimento das lógicas heterodoxas deu origem, sem dúvida,
a importantes problemas filosóficos. Porém, seu significado parece
ainda não ter sido debatido era profundidade.
Apresentamos, a seguir, maiores detalhes sobre o surgimento das
lógicas poli valentes e paraconsistentes.

3. Lógicas Polivalentes

Jan Lukasiewicz (1876-1956) introduziu seus sistemas de lógicas


polivalentes como uma tentativa de investigar as proposições modais
e as noções de possibilidade e necessidade intimamente relacionadas
com tais proposições.
Durante a idade média, entretanto, podemos encontrar sinais de
abordagens polivalentes nos trabalhos de Duns Scotus, William de
Ockham e Peter de Rivo. No final do século XIX, algumas tentativas
de construções trivalentes aparecem em MacColl e Peirce.
Lukasiewicz, professor de Filosofia na Universidade de Varsóvia,
em 1910 publicou um livro, em polonês, na série Studium Krytyczne
Coleção CLE V.11
ítala M. Loffredo D'Ottaviano 75

e, em alemão, um artigo, no Bulletin International de VAcadémie des


Sciences de Cracovie, ambos sobre o princípio da (não-)contradição
em Aristóteles.
Nestes trabalhos, Lukasiewicz discute a relevância e necessidade
de se provar o princípio da (não-)contradição e analisa os argumentos
construídos para esclarecê-lo.
No artigo, traduzido para o inglês em 1971, na Review of Me-
taphysics, apresenta uma "exposição historicamente crítica" das três
formulações aristotélicas do princípio da (não-)contradição e também
critica, conclusivamente, as tentativas de Aristóteles para justificá-
las.
Lukasiewicz finalmente rejeita a visão aristotélica de que o
princípio da (não-)contradição é o último e maior dos princípios
lógicos. E conjectura que, como no caso das geometrias não-
euclidianas, "uma revisão fundamental das leis básicas da lógica de
Aristóteles poderia talvez levar a novos sistemas não-aristotélicos de
lógica", caracterizando-se assim como um dos precursores das lógicas
não-clássicas em geral.
Os argumentos utilizados por Lukasiewicz são analisados, em de-
talhe, em Priest & Routley 1989 e discutidos em D^Ottaviano
1990a.
De acordo com Wolenski 1989, os trabalhos de Lukasiewicz so-
bre o princípio da (não-)contradiçâo despertaram muito interesse
entre jovens estudantes e filósofos poloneses, tendo desencadeado
frutíferas discussões sobre a possibilidade da criação de lógicas não-
aristotélicas, e tendo sido escritos vários trabalhos sobre o conceito de
existência, a veracidade de sentenças envolvendo a noção de futuro,
sobre determinismo, indeterminismo, o princípio da (não-Contradi-
ção e o princípio do terceiro excluído.
Lukasiewicz, apesar de ter publicado, ainda em 1910, um outro
artigo sobre o princípio do terceiro excluído, manteve-se silencioso
sobre essas questões até 1916, quando, ao publicar seus comentários
a respeito de um livro de Zaremba sobre aritmética teórica, voltou
a enfatizar que a precisão em matemática era usualmente medida
pelas regras da lógica tradicional, porém que isso tinha se tornado
insuficiente.
Em 1918, quando se afastava temporariamente da Polônia, em
Coleção CLE V.11
76 A Lógica, Clássica e as Lógicas Não-Clássicas

seu discurso de despedida, Lukasiewicz mencionou, sem divulgar de-


talhes, que tinha construído um sistema de lógica trivalente.
Em 1920, finalmente, ao retornar à Polônia, Lukasiewicz proferiu
duas conferências em Lvov, uma sobre o conceito de possibilidade
e outra sobre a lógica trivalente, na qual introduziu uma matriz-
base para a descrição dos conectivos do sistema. Segundo a mesma
referência, Wolenski 1989, Lukasiewicz expressou suas convicções
da seguinte forma:
I think that only now do we achieve a solution which is in agree-
ment both with our intuitions and with the views of Aristotle
himself... Aristotle seems to have reached the conclusion that the
alternative ^ither there will be a sea battle tomorrow or there will
not be a sea battle tomorrow' is already true and necessary today,
but it is neither true today that 4there will be a sea battle tomor-
row' nor that 4there will not be a sea battle tomorrow'. These sen-
tences concern future contingent events and as such they are neither
true nor false today... Aristotle's reasoning does not undermine so
much the principie of the excluded middle as one of the basic prin-
cipies of our entire logic which he himself was the first to state,
namely that every proposition is either true or false. That is, it
can assume one and only one of two truth values: truth or falsity.
I call this principie the principie of bivalence... Because it lies at
the very foundations of logic, the principie under discussion cannot
be proved. One can only believe it, and he alone who considers it
self-evident believes it. To me, personaily, the principie of bivalence
does not appear to be self-evident. Thereíore I am entitled not to
recognize it, and to accept the view that besides truth and falsehood
there exist other truth-values, including at least one more, the third
truth-value (Lukasiewicz 1922, p. 125-6).

É interessante observarmos que Lukasiewicz, ao assumir a


existência de sentenças às quais deveria ser atribuído um terceiro
valor de verdade, distinto dos clássicos verdadeiro ou falso, nao rejei-
tou os princípios lógicos da (não-)contradição ou do terceiro excluído,
tendo entretanto conectado sua solução com a negação do princípio
metalógico da bivalência.
As proposições modais investigadas por Lukasiewicz são pro-
posições construídas tendo como modelo uma das seguintes ex-
pressões: ê possível que p} não é possível que p, é possível que não-p
(é contingente que p) e não é possível que não p (é necessário que p).
A frase ê possível que p foi tomada como primitiva e Lukasiewicz
expressou seu significado através de três asserções modais, por ele
Coleção CLE V.11
Itaia M. Loffredo D'Ottaviãno 77

consideradas como básicas, por razões intuitivas e históricas. E expli-


cou que não seria possível dar uma interpretação, através das tábuas
de verdade clássicas, para o operador de possibilidade, compatível
com as três propriedades básicas por ele enunciadas.
Baseando-se neste resultado, Lukasiewicz concluiu que, para que
fosse possível dar uma interpretação de tábua de verdade para o
conectivo proposicional de possibilidade, seria necessário considerar
uma semântica para o cálculo proposicional, na qual as proposições
pudessem admitir mais valores de verdade que os clássicos verdadeiro
e falso.
Como está explicado em Lukasiewicz & Tarski 1930,
Lukasiewicz escolheu os valores de verdade possíveis, inspirado numa
passagem de Aristóteles 1978 - Capítulo IX, sobre os futuros con-
tingentes e determinismo.
Assim sendo, para proposições p do tipo "haverá uma batalha
naval amanhã", Lukasiewicz atribuiu um valor de verdade v(p) inter-
mediário entre a verdade (1) e o falso (0), o qual foi denotado por
1/2.
Lukasiewicz introduziu seu cálculo proposicional trivalente £3
através da matriz M = < {0, 1}, {1},-i,>, sendo {0,^,1} o
conjunto de valores de verdade, {1} o conjunto de valores distingui-
dos de verdade e os operadores -1 (de negação) e —* (de implicação)
definidos através das seguintes tábuas de verdade:

0
P -*P P 1
0 1 0 111
1 1 12 1
1 1
2 2
1 0

0 conectivo de possibilidade M é definido por:

M{p) =dí P,

tendo como tábua corresoondente:


Coleção CLE V.11
78 A Lógica Clássica e as Lógicas Não-Clássicas

p Mp
0 0
1 1
2
1 1
Os conectivos de disjunção, conjunção, necessidade e equivalência
são definidos a partir dos anteriores.
Em 1922, Lukasiewicz generalizou seu cálculo proposicional triva-
lente para uma lógica com qualquer número finito de valores lógicos.
E, a seguir, generalizou-a para cálculos com número infinito de valo-
res de verdade. Definiu uma família Ln de sistemas polivalentes com
n valores de verdade, n = 2,3,..., Kq,
Uma exposição detalhada dos sistemas polivalentes de Lukar
siewicz foi publicada em Lukasiewicz Tarski 1930 (ver Tarski
1956 e Borkowski 1970).
E importante observarmos que o cálculo proposicional bivalente
de Lukasiewicz coincide com o cálculo proposicional clássico; e todas
as lógicas n-valentes de Lukasiewicz, com n finito ou infinito, são
subsistemas do cálculo proposicional clássico.
Lukasiewicz havia conjecturado quais seriam as axiomáticas ade-
quadas para seu cálculo trivalente £3 e para seu cálculo valente
£ko- As axiomáticas para os cálculos £3 e £n (com n finito) foram
introduzidas por Wajsberg 1931 e 1935.
Wajsberg 1935 menciona que havia provado a conjectura de
Lukasiewicz relativa à axiomatização do cálculo £n0, porém sua de-
monstração nunca apareceu publicada.
A primeira demonstração publicada da conjectura de Lukasiewicz
foi a de Rose & Rosser 1958.
Chang 1959 apresenta uma outra demonstração, de caráter
algébrico.
Moisil 1940, motivado pelas relações já bastante conhecidas en-
tre o cálculo proposicional clássico e as álgebras de Boole, iniciou o
estudo das estruturas algébricas correspondentes aos cálculos propo-
sicionais n-valentes de Lukasiewicz, com n finito, as quais denominou
álgebras de Lukasiewicz n-valentes,
Moisil analisou ainda as relações entre os cálculos polivalentes e
outros sistemas conhecidos, como por exemplo o cálculo proposicional
intuicionista de Heyting.
Coleção CLE V.11
ítala M. Loffredo D'Ottavjano 79

Entretanto, as estruturas introduzidas por Moisil não constituem


a contrapartida algébrica dos cálculos proposicionais n-valentes de
Lukasiewicz, para n > 5, as quais foram adequadamente definidas
por Cignoli 1980 e 1982.
Independentemente do trabalho de Lukasiewicz, e motivado por
certas propriedades formais de sistemas de proposições, Post 1921
também introduziu cálculos proposicionais n-valentes, conhecidos
como lógicas de Post.
As estruturas algébricas associadas às lógicas de Lukasiewicz in-
finitovalentes têm sido consideradas por vários autores, sob aspectos
diversos, baseadas em operadores distintos e mesmo sob diferentes
denominações. Estão, para as lógicas polivalentes, como as álgebras
de Boole para as lógicas bivalentes.
Entretanto, podemos afirmar que o tratamento algébrico dessas
lógicas é devido principalmente a Chang 1958 e 1959, que intro-
duz as MV-álgebras e mostra suas profundas conexões com os grupos
abelianos ordenados.
As A/V-álgebras correspondentes aos cálculos n-videntes, com n
finito, foram introduzidas por Grigolia 1973, sob a denominação de
MVn-álgebras, trabalho publicado em inglês em Grigolia 1977.
Resultados posteriores de diversos autores mostram que as MV-
álgebras são equivalentes aos grupos reticulados abelianos com uni-
dade forte, os quais as conectam com certas álgebras importantes na
mecânica estatística quántica dos sistemas de spin.
Por outro lado, as equações que definem as AíV-álgebras
associam-nas ao jogo de Ulam - o jogo que consiste em se adivinhar
um número, quando quem responde pode mentir um certo número
de vezes.
Várias aplicações das lógicas polivalentes têm sido estudadas e
desenvolvidas, tais como à teoria de circuitos elétricos (Moisil), à
lingüística, à programação de computadores e à teoria das probabi-
lidades, tendo Reichenbach tentado utilizá-las nos fundamentos da
mecânica quántica.
Porém, nos dias atuais, o interesse pela lógica polivalente
está crescendo rapidamente, devido principalmente às suas recentes
aplicações inovadoras no tratamento da informação em condições de
incerteza e aos problemas que daí se originam, inclusive de compu-
Coleção CLE V.11
80 A Lógica Clássica e as Lógicas Não-Clássicas

tabilidade e complexidade. Para o estudo destas aplicações o trata-


mento algébrico é imprescindível.
Como referências bibliográficas para o estudo das lógicas poliva-
lentes indicamos Rosser & Turquette 1952, Ackermann 1967,
Rescher 1969, Wolf 1977, Wójcicki & Malinowski 1977 e
Gottwald 1989.
Referências com ênfase nos aspectos algébricos são Cignoli
1970, Moisil 1972, Boicescu et alii 1991 e Cignoli, D^tta-
viano & Mundici 1993.

4. Lógicas Paraconsistentes1
Nas lógicas paraconsistentes o escopo do princípio da (não-)con-
tradição é, num certo sentido, restringido. Podemos mesmo dizer
que, se a força desse princípio é restringida num sistema lógico, então
o sistema pertence à classe das lógicas paraconsistentes.
De fato, nas lógicas paraconsistentes o princípio da (não-Contra-
dição, na forma -i(A A -<A) não é necessariamente não-válido, porém,
em toda lógica paraconsistente, de uma fórmula A e sua negação -iA
não é possível, em geral, deduzir qualquer fórmula B.
Apesar da filosofia oriental ter sido, em geral, mais tolerante com
a inconsistência que a ocidental, abordagens paraconsistentes não
foram tão excepcionais na antigüidade clássica, tendo sido assumi-
das por diversas escolas filosóficas, como por exemplo pelos solistas,
megáricos e estóicos.
Podemos dizer, entretanto, que o pensamento paraconsistente
/
começa no ocidente com Heráclito de Efeso.
Desde Heráclito, diversos filósofos, entre eles Hegel, Marx, Engels
e os materialistas dialéticos contemporâneos têm proposto a tese de
que as contradições são fundamentais para a compreensão da reali-
dade.
No começo deste século, a paraconsistência foi definitivamente
descoberta por vários estudiosos, todos eles trabalhando independen-
temente.
Em 1910, além da publicação do artigo e livro de Lukasiewicz,
temos a publicação do primeiro artigo de Vasiliev sobre lógicas náo-
clássicas, e a segunda edição revisada do texto básico da teoria dos

Parágrafo baseado, em grande parte, em D^ttaviano 1990a.


Coleção CLE V.11
ítala M. Loffredo D'Ottaviano 81

objetos de Meinong, tratando das objeções de Russell, no sentido de


que a teoria não respeitava o princípio da (não-)contradição.
A teoria de objetos de Meinong inclui objetos contraditórios, os
quais, devido à sua natureza, têm características contraditórias e são
susceptíveis de tratamento lógico.
A teoria de Meinong parece ter influenciado o trabalho de
Lukasiewicz, em sua fase inicial.
Meinong trabalhou dentro da lógica tradicional e nenhum deles,
Meinong, Lukasiewicz ou Vasiliev usou lógica moderna simbólica.
Podemos afirmar, entretanto, que os dois verdadeiros precursores
da lógica paraconsistente são J. Lukasiewicz e N. Vasiliev.

4.1. Nicolaj A. Vasiliev (1880-1940)


Vasiliev era médico, professor de fllosofía na Universidade de Ka-
zan, Rússia. Parece não ter tido conhecimento dos trabalhos de
Lukasiewicz de 1910, mas seus argumentos sobre a possibilidade da
construção de lógicas não-aristotélicas são muito semelhantes. E in-
teressante ter ele também argumentado que a lei do terceiro excluído
aparecia na "mente de Aristóteles com o objetivo de refutar seus
adversários, e não por razões lógicas".
Entre 1910 e 1913 (ver Arruda 1990) publicou, em russo, uma
série de quatro artigos nos quais apresenta suas idéias sobre a possi-
bilidade de derrogação de algumas formas da lei do terceiro excluído
e da lei da (não-)contradição.
Inspirado nos métodos usados por Lobatchevski na construção
de sua geometria não-euclidiana, inicialmente chamada geometria
imaginária, Vasiliev estende seus pontos de vista sobre sua lógica
não-aristotélica de conceitos a uma lógica que ele chamou de lógica
imaginária. Supõe a existência de mundos imaginários de qualquer
"dimensão lógica" finita n, os quais têm uma lógica de dimensão ra
para descrevê-los, com juízos de n diferentes qualidades e com uma
lei ontológica do (n -|- l)-ésimo excluído.
Vasiliev escreveu que "testemunhamos a lógica de um novo
tempo... é necessário alargar os limites da lógica, acreditando nas
possibilidades de vários sistemas lógicos". Entretanto, seus trabalhos
parecem não ter tido influência no desenvolvimento da lógica.
Church 1936 incluiu os artigos de Vasiliev em sua Bibliography
Coleção CLE V.11
82 A Lógica. Clássica e as Lógicas São-Clássicas

of Symbolic Logic, porém suas idéias foram apresentadas e discuti-


das, pela primeira vez, em Smirnov 1962 e Comey 1965. Kline
1965 considera Vasiliev um dos precursores das lógicas polivalentes,
o mesmo ocorrendo com Rescher 1969 e Jammer 1974.
Arruda 1977, entretanto, apresenta três abordagens diferentes
às idéias intuitivas de Vasiliev relativas à sua lógica imaginária de di-
mensão 3, obtendo em cada caso uma lógica paraconsistente. Arruda
afirma acreditar que qualquer possível formalização da lógica ima-
ginária de Vasiliev deveria conduzir necessariamente a uma lógica
paraconsistente, e não a uma lógica polivalente.
Bochvar 1939 introduz um cálculo trivalente e estuda suas
aplicações para a análise de contradições. Não podemos entretanto
afirmar que Bochvar tenha proposto um tratamento paraconsistente
das contradições, pois isso dependeria de como o terceiro valor de ver-
dade deveria ser interpretado e se seria valor designado de verdade,
sendo que Bochvar parece sugerir várias interpretações.
Priest & Routley 1989, além de sugerirem que Vasiliev poderia
ser considerado como um dos fundadores das lógicas intensionais,
apresentam Vasiliev e Bochvar como os precursores russos das lógicas
paraconsistentes e afirmam ter sido Bochvar talvez o primeiro lógico
a introduzir uma lógica de paradoxos ou cálculo de antinomias.

4.2. Stanislaw Jaskowski (1906-1965)

Jaskowski, um dos discípulos de Lukasiewicz, motivado por di-


versos problemas relativos a contradições, particularmente os concer-
nentes a "raciocínios convincentes que levam a duas conclusões con-
traditórias", construiu o primeiro sistema de lógica paraconsistente.
Seus dois artigos foram publicados era 1948 e 1949, em polonês, tendo
a primeira tradução para o inglês, de Jaskowski 1948, aparecido
apenas em Jaskowski 1969.
De acordo com Arruda 1989, as principais motivações de
Jaskowski para a construção de seu sistema são as seguintes; o pro-
blema da sistematização de teorias que contêm contradições, como
ocorre na dialética; o estudo de teorias nas quais existem contradições
causadas pela "vaguedade"; e o estudo direto de algumas teorias
empíricas cujos postulados ou princípios básicos são contraditórios.
Jaskowski salientou claramente a diferença entre sistemas con-
Coleção CLE V.11
Itaia M. Loffredo D'Ottaviano 83

traditórios, que incluem duas teses tais que uma contradiz a outra,
e sistemas super-completos, nos quais todas as fórmulas são teses,
e considera que a lógica clássica não é adequada para o estudo de
sistemas contraditórios porém não super-completos.
Baseado nessas idéias, Jaskowski propôs o problema da cons-
trução de um cálculo proposicional com as seguintes propriedades:
"1) quando aplicado a sistemas contraditórios não levaria sempre à
sua super-completude; 2) deveria ser suficientemente rico para per-
mitir inferências práticas; 3) deveria ter uma justificativa intuitiva".
Jaskowski construiu sua própria solução, apenas a nível proposi-
cional, obtida a partir do sistema modal Ss, conhecida como lógica
discussiva ou discursiva e denotada por Z)2.
A lógica discussiva é compreendida como uma formalização da
lógica do discurso e além de ser paraconsistente é também não-
adjuntiva.
As idéias subjacentes à construção do sistema D2 são bastante
interessantes e conectam as lógicas discussivas com outras classes
de lógicas recentemente estudadas, como por exemplo as lógicas
doxásticas e as lógicas não-monotônicas, estas últimas de interesse
para a ciência da computação.

4.3. Newton Carneiro AfFonso da Costa

Apesar de Jaskowski ter construído um cálculo proposicional pa-


raconsistente, podemos dizer que o brasileiro N.C.A da Costa é o
verdadeiro fundador da lógica paraconsistente.
Nos anos 50, sem conhecer os trabalhos de Jaskowski sobre o
sistema 1^2, da Costa começou a desenvolver suas idéias sobre a im-
portância do estudo das teorias contraditórias.
Em 1958 e 1959 da Costa publicou, em português, seus primeiros
trabalhos Uma nota sobre o conceito de contradição e Observação
sobre o conceito de existência em matemática. Costa 1958 propõe o
seguinte Princípio de Tolerância em Matemática: Do ponto de vista
sintático e semântico, toda teoria é aceitável, desde que não seja tri-
vial.
As idéias de da Costa estavam completamente desenvolvidas em
1963 (ver Costa 1963 e 1963a), quando começou a publicar uma
série de artigos contendo suas hierarquias de lógicas de primeira or-
Coleção CLE V.11
84 A Lógica Clássica e as Lógicas Não-Clássicas

dem para o estudo de teorias inconsistentes e não-triviais. Costa


1963 introduz os sistemas Cn, 1 < n < u; e começa com as seguintes
palavras:
Falando sem rigor, a idéia central deste artigo é a seguinte: um sis-
tema formalizado baseado na lógica clássica (ou lógica intuicionista,
ou algumas lógicas polivalentes...se inconsistente é trivial, no sen-
tido de que todas as suas proposições são demonstráveis; então, deste
ponto de vista, ele não tem nenhum interesse matemático. Entre-
tanto, por muitas razões, como por exemplo, a análise comparativa
com sistemas consistentes, e para uma análise metamatemática ade-
quada do princípio em consideração, é conveniente estudar direta-
mente' os sistemas inconsistentes. Mas para tal estudo é necessário
construir novos tipos de lógica elementar apropriados para lidar com
tais sistemas.

Um "survey" geral dos resultados publicados entre 1963 e 1974


está em Costa 1974.
Da Costa construiu inicialmente uma hierarquia de cálculos pro-
posicionais Cn, 1 < n < tu, satisfazendo as seguintes condições:

a) 0 princípio da contradição, na forma -«(A A ->4), não deveria


ser válido em geral;
b) De duas premissas contraditórias A e ->4, não deveríamos de-
duzir qualquer fórmula B\
c) Eles deveriam conter os mais importantes esquemas e regras
da lógica clássica compatíveis com eis duas primeiras condições.

A seguir, da Costa estendeu os Cn a uma hierarquia de cálculos


de predicados de primeira ordem C*,l < n < tu; de cálculos de
predicados de primeira ordem com igualdade C^,l < ra < tu; de
cálculos de descrições Dn,l < n < tu; e de teorias de conjuntos
NFn,\ < n < w, inconsistentes porém aparentemente não-triviais.
Da Costa, seus discípulos e colaboradores, em especial Arruda
(entre 1964 e 1983) têm pesquisado vários sistemas paraconsistentes,
tendo obtido resultados relativos à decidibilidade dos sistemas, estru-
turas algébricas a eles correspondentes, teoria de modelos, significado
filosófico e relações com outros tipos de lógicas não-clássicas.
Com colaboradores poloneses, discípulos de Jaskowski, da Costa
axiomatizou e desenvolveu resultados relativos ao sistema Di de
Jaskowski e outras lógicas discussivas.
Coleção CLE V.11
íta/a M. Loffredo D'Ottãviano 85

Desde 1964 as lógicas de da Costa têm sido largamente estudadas


por muitos lógicos de vários países, como Austrália, Bulgária, Itália,
Polônia, Rússia e Estados Unidos, tendo muitos autores contribuído
para o desenvolvimento destas lógicas e da lógica paraconsistente em
geral.

4.4. Considerações finais


Com a crise dos paradoxos na mudança do século, a publicação
dos Principia e a criação das teorias de conjuntos, a "ciência aca-
bada" de Kant passou por significativas transformações, que desen-
cadearam um grande desenvolvimento, com a criação de várias áreas
de pesquisa, e caracterizaram-na sob certos aspectos como disciplina
da matemática.
0 desenvolvimento das lógicas não-clássicas em geral tem aberto
várias áreas de pesquisa e propiciado solução de importantes questões
da matemática, dos fundamentos da física e da ciência da com-
putação.
A lógica paraconsistente está intimamente ligada a outros tipos
de lógicas não-clássicas, especialmente à lógica dialética, lógica rele-
vante, lógicas polivalentes e intuicionistas, lógica "difusa", à teoria
geral da vaguedade e teoria dos objetos de Meinong, bem como às
teses lógicas do "último" Wittgenstein.
O estudo das lógicas paraconsistentes, além de permitir a cons-
trução de teorias paraconsistentes, torna possível o estudo direto dos
paradoxos lógicos e semânticos, sem tentar evitá-los; o estudo de cer-
tos princípios em toda sua força, como o princípio da compreensão na
teoria de conjuntos; e talvez ele nos permita uma melhor compreensão
do conceito de negação.
Entretanto, uma análise profunda e completa do significado fi-
losófico e conseqüências filosóficas da lógica paraconsistente parece
ainda não ter sido realizado.
Trabalhos recentes conectam a lógica paraconsistente com o es-
tudo de teorias baseadas em linguagens semanticamente fechadas,
com os fundamentos da mecânica quántica e do cálculo infinitesimal.
Entre as aplicações da lógica paraconsistente, como seu uso em
ética, teorias que admitem crenças inconsistentes, lógica doxástica
e teoria das probabilidades, são de especial interesse as aplicações
Coleção CLE V.11
86 A Lógica. Clássica e as Lógicas Não-Clássicas

à ciência da computação, tais como em programação em lógica e


representação do conhecimento.
0 primeiro livro enciclopédico sobre lógica paraconsistente, recen-
temente publicado, é Priest, Routley & Norman 1989.
Para um estudo do desenvolvimento da lógica paraconsistente, do
trabalho de Jaikowski e da Costa, até recentes resultados em teoria
de modelos e computação, indicamos Arruda 1989 e D'Ottaviano
1990a.
Finalizamos, com palavras de da Costa, o fundador da lógica pa-
raconsistente:
"A lógica é hoje um dos ramos mais empolgantes do
conhecimento,.. e uma das maiores revoluções culturais de nossa
época foi a edificação das lógicas não-clássicas, particularmente das
lógicas heterodoxas, revolução semelhante à provocada no século
passado à descoberta das geometrias não-euclidianas."

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Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
7

Considerações sobre as Lógicas


Não-Clássicas*

Cláudio Pizzi

0 que as lógicas não-clássicas têm em comum é simplesmente a


mal caracterizada propriedade de não serem a lógica clássica. A não
ser que adotemos a tese anarquista de que a proliferação de teorias
divergentes é algo em si valioso, não podemos negar que a família do
infinito número de lógicas não-clássicas aparece hoje como uma selva
desnorteante. Como conseqüência, os lógicos acolhem de bom grado
qualquer instrumento conceituai que seja apropriado para ordenar
este campo cada vez mais disperso.
As lógicas não-clássicas têm necessitado desde o começo de dis-
tinções conceituais claras. Isso pode ser visto olhando para o traba-
lho de um lógico que é considerado o pai das lógicas não-clássicas, o
lógico escocês Hugh McColl (1837- 1909). McColl dividiu todas as
proposições em cinco classes, de acordo com serem verdadeiras, falsas,
possíveis, necessárias, incertas. De um ponto de vista atual, esta ta-
xonomia repousa em uma confusão: verdadeiro e falso são valores de

* Artigo original em inglês, apresentado no VII Colóquio de História da


Ciência, durante a mesa-redonda intitulada uO Nascimento das Lógicas Não-
Clássicas". Traduzido para este volume por Osvaldo Pessoa Jr.
Coleção CLE V.11
96 Considerações sobre as Lógicas Não-Clássicas

verdade, enquanto que as noções restantes são representáveis formal-


mente como operadores proposicionais que, se aplicados a proposições
verdadeiras ou falsas, fornecem outras proposições que por sua vez
podem ser ditas verdadeiras ou falsas. Assim, a lógica de McColl se
apresenta como um híbrido entre dois tipos de lógicas não-clássicas
que hoje estamos acostumados a distinguir de maneira clara: a lógica
modal e a lógica polivalente.
A confusão de McColl torna-se transparente se endossarmos uma
distinção bem conhecida e simples devida a Susan Haack (1974); a
distinção é entre lógicas que divergem da lógica clássica por serem
rivais desta, e lógicas que divergem da lógica clássica por suplemen-
tarem esta. Defensores das primeiras tendem a considerar que a
lógica clássica está errada, enquanto que defensores das últimas ten-
dem a considerá-la inadequada. Na classe dos sistemas rivais estão a
lógica intuicionista, a lógica minimal, a lógica polivalente, as lógicas
quânticas, as lógicas difusas ("fuzzy") e toda classe de lógicas para-
consistentes. Na classe dos sistemas suplementares estão as lógicas
modais, as lógicas epistêmicas, as lógicas deônticas e as lógicas do
tempo ("tense logics").
A distinção de Haack, porém, pode se tornar mais precisa. Algu-
mas das lógicas que são rivais da lógica clássica são, de fato, subsis-
temas desta, e portanto são comparáveis a esta. Este é o caso, por
exemplo, da lógica intuicionista. Salta aos olhos a importância da
lógica intuicionista para o desenvolvimento da lógica no século XX.
0 fundador do chamado intuicionismo é o matemático holandês L. E.
Brouwer (1881-1966). No início do século ele apresentou a idéia de
que qualquer verdade matemática é o resultado de uma construção
intelectual baseada na intuição mental da série de números. Uma
conseqüência desta suposição filosófica é que pode acontecer que não
tenhamos uma construção (uma prova) nem para a proposição A e
nem para sua negação não-A. Segue-se então que a chamada Lei
do Terceiro Excluído "A ou não-A" deve ser rejeitada, não podendo
ser usada como um instrumento em provas matemáticas. Dada sua
atitude mentalística, Brouwer era crítico em relação ao uso do for-
malismo lógico, mas seu aluno Arend Heyting apresentou em 1930
um cálculo formal que é igual ao clássico com a omissão da Lei do
Terceiro Excluído.
Coleção CLE V.11
Cláudio Pizzi 97

Enquanto que a lógica intuicionista de Heyting é um subsistema


da lógica clássica, as lógicas modais são, pelo contrário, extensões
lingüísticas e axiomáticas dela. A lógica modal era um ramo alta-
mente desenvolvido das lógicas antiga e medieval, e assim chamá-la
de "não-ciássica" soa como uma injúria não intencional à sua ve-
nerável tradição. No entanto, quando a lógica foi reconstruída no
século XIX como uma ciência rigorosa, não havia espaço para um
tratamento lógico de conceitos modais, ou seja, para as noções de
necessário, possível, impossível e contingente. A pretensa razão para
essa omissão era de que a quantificação universal sobre tempos ou
"casos" era considerada suficiente para fornecer a noção de necessi-
dade, e a quantificação existencial suficiente para fornecer a noção de
possibilidade. De qualquer maneira, as noções modais despertavam
pouco interesse no público matemático ao qual a lógica do século XIX
principalmente se dirigia. C.I. Lewis (1883-1964), o pai da lógica mo-
dal contemporânea, dirigiu seu ataque à lógica matemática não tanto
pela proposta desta de reduzir a lógica modal à teoria da quanti-
ficação, mas por seu questionável tratamento da implicação. Como
é bem conhecido, a implicação russelliana - o chamado condicional
material - de fato reduz toda sentença da forma "se A então B" para
a disjunção "não-A ou 5", com o resultado paradoxal de que se um
destes disjuntos é verdadeiro, a implicação como um todo também é
verdadeira. Lewis conjeturou que a interpretação correta de "p im-
plica q" é: "é impossível que p seja verdadeiro e q falso", empregando
assim essencialmente a noção modal de possibilidade. Paxa axiomati-
zar a noção de implicação em um sentido estrito, Lewis introduziu não
um mas cinco sistemas diferentes com poderes crescentes (51-55),
introduzindo desta maneira, pela primeira vez, a inquietante plura-
lidade de sistemas lógicos dedicados a axiomatizar a mesma noção.
Infelizmente, mesmo sendo capaz de provar que seus cinco sistemas
eram distintos, ele não forneceu procedimentos de decisão para eles
e nem foi capaz de associar às noções modais algo que lembrasse as
tabelas de verdade finltas da lógica clássica. Como conseqüência, pa-
recia que o único caminho aberto para se alcançar uma compreensão
do significado dos conceitos modais seria um caminho sintático. Mas
esta abordagem leva a dificuldades. Como Gõdel logo mostrou em
1933, adotando a plausível interpretação de possibilidade como con-
Coleção CLE V.11
98 Considerações sobre as Lógicas Não-Clássicas

sisténcia e de necessidade como demonstrabilidade, chega-se a um re-


sultado que é incompatível com o teorema de Gõdel, já que sistemas
formais adquirem dessa maneira a propriedade da auto-referência.
A conseqüência desses resultados negativos foi que a lógica mo-
dal ficou em uma situação secundária por toda a década de 40 e 50,
mesmo tendo Carnap provado a completude e a decidibilidade para
o sistema modal mais forte de Lewis, o S5 (1947). Deve-se também
mencionar que durante essas décadas o ambiente filosófico estava sob
a hegemonia do empirismo lógico, e havia uma atitude hostil em
relação à lógica modal. Uma parte relevante do trabalho filosófico de
W.V.O. Quine tem sido dedicada a ataques reiterados à lógica mo-
dal. Do ponto de vista de Quine, a lógica modal ou é inútil - sendo
redutível à teoria da quantificação clássica - ou é comprometida filo-
soficamente com o essencialismo aristotélico. Esta última alternativa
é sugerida por Quine através das chamadas modalidades de re, ou
seja, por sentenças nas quais se diz que o sujeito tem predicados ne-
cessários ou contingentes, que podem ser vistos como contrapartidas
das propriedades essenciais e acidentais de Aristóteles.
O empenho de Quine aparece hoje em dia, não tanto como errôneo,
mas sim como anacrônico. No final dos anos 50 vários lógicos -
Hintikka, Kanger, Montague, Kripke - conseguiram associar uma
semântica a sistemas modais fortes e fornecer um procedimento de
decisão para eles. A idéia principal do que às vezes é chamado de
semântica de Kripke é a seguinte: dizer que A é necessário em um
mundo possível m significa que A é verdadeiro na classe de mundos
possíveis que estão em uma certa relação R com m. As proprieda-
des desta relação R (às vezes chamada de relação de acessibilidade)
refletem as propriedades sintáticas dos diferentes sistemas modais e
fornecem um entendimento mais profundo de seus axiomas carac-
terísticos.
A noção de relação de acessibilidade é a chave da semântica mo-
dal e está na origem do impressionante desenvolvimento das lógicas
modais nas duas últimas décadas. Basta notar que se à acessi-
bilidade forem atribuídas as propriedades de uma relação de pre-
cedência, por exemplo, então mundos podem ser vistos como instan-
tes do tempo e a lógica modal se torna uma lógica do tempo futuro;
outras interpretações levam à lógica epistêmica, lógica condicional,
Coleção CLE V.11
Cláudio Pizzi 99

lógica deôntica, etc. Um dos avanços recentes da lógica modal que


merece ser mencionado é a lógica dinâmica, ou seja, a lógica que
representa processos de computação.
A lógica dinâmica pode ser vista como uma aplicação da lógica
modal à informática, e oferece um exemplo significativo da incrível
fertilidade da semântica de Kripke. As aplicações mais penetran-
tes da semântica modal podem porém ser encontradas no campo
da lingüística. De fato, vários fragmentos do discurso comum têm
sido analisados por meio de instrumentos derivados das lógicas mo-
dais: basta mencionar os tempos verbais (vide as lógicas do tempo -
"tense logics") e os modos (vide as lógicas dos condicionais subjunti-
vos, a lógica imperativa, as lógicas interrogativas). Podemos também
lembrar que o complicado mecanismo da chamada gramática de Mon-
tague é um subproduto da semântica modal.
Para concluir, voltemos para a taxonomia simples dada por Haack
para as lógicas divergentes, que citamos no início. Aceitando que as
lógicas modal e intuicionista são comparáveis à lógica clássica por se-
rem respectivamente mais forte e mais fraca que esta, podemos entrar
um pouco mais a fundo nesta conexão. De fato, como Gõdel sugeriu
pela primeira vez em 1933, possuímos um teorema de representação
que mapeia a lógica intuicionista em um sistema forte de lógica mo-
dal, o sistema S4 de Lewis. Outros teoremas de representação têm
sido provados para diferentes sistemas não-clássicos: por exemplo, a
lógica quãntica tem sido traduzida para uma lógica modal particular,
e o mesmo pode ser dito a respeito de algumas das mais bem conheci-
das lógicas trivalentes. Que tais traduções sejam possíveis não apenas
demonstra mais uma vez a versatilidade da lógica modal, mas mostra
que a linguagem modal é forte o suficiente para fazer a ponte entre
diferentes tipos de sistemas não-clássicos. A luz deste fato, parece
que graças ao desenvolvimento da lógica modal a contraposição bem
definida entre lógicas rivais e suplementares, defendida por Haack,
esconde de fato interconexões relevantes que são discerníveis a um
nível mais profundo.

Referências Bibliográficas
Haack, S. Deviant Logics. Cambridge : Cambridge University
Press, 1974.
Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
8

Lógicas Não-Clássicas, Teoria da

Informação e Inteligência Artificial

Walter A. Carnielli"

1. O papel histórico da Lógica


Embora o objetivo deste trabalho não seja histórico, mas espe-
culativo, podemos afirmar que até o fim do século passado a Lógica
ainda podia ser considerada um ramo da Filosofia. Juntamente com
a gramática e a retórica, a Lógica havia sido considerada parte das
"artes liberais" na educação clássica, situada num grupo separado da
aritmética, geometria, astronomia e música.
Essa situação mudou neste século, numa revolução que teve seu
ápice nos anos 30, em grande parte decorrente das preocupações dos
matemáticos que buscavam respostas para suas questões fundamen-
tais. Mas já as idéias de Leibniz, que buscava um cálculo simbólico
que pudesse dar conta de todo o conhecimento exato, e o trabalho de
Boole, que tentava matematizar as leis do pensamento, contribuíram

'Universidade de Campinas-IMECC e Centro de Lógica e Epistemologia


(CLE) - Campinas, SP - Brasil,
carnieliãi me. unicamp.br
Coleção CLE V.11
102 Lógicas Não-Clássicas

decisivamente para que a Lógica começasse a se equiparar com a geo-


metria e a aritmética enquanto uma ciência com seu próprio interesse,
e principalmente seus próprios métodos.
E geralmente aceito, contudo, que a obra de Frege tenha sido res-
ponsável por separar a Lógica definitivamente da Filosofia, e também
da Matemática. Fundava-se assim uma nova ciência, que com métodos
exatos como os da Matemática e interesses tão amplos como os da
Filosofia, os quais lhe conferiam um caráter extremamente abstrato
e idealizado, dedicava-se às conseqüências mais profundas de grandes
simplificações universais, tais como classificar as proposições em ver-
dadeiras e falsas, aceitar a lei do terceiro excluído e o princípio da
não-contradição.
Aparentemente, tal esquema ajustava-se maravilhosamente às pro-
posições matemáticas; elas prescindem do tempo, das nuances, do
consumo de energia e de tantos outros aspectos desconsideráveis em
princípio. Os paradoxos da teoria dos conjuntos, no entanto, mos-
traram a porta de saída do paraíso. 0 grande debate entre os cons-
trutivistas e os formalistas, personificados nas figuras de Brouwer e
Hilbert, originou-se desse dilema provocado pelos paradoxos; os pro-
blemas intratáveis levantados principalmente por culpa do infinito
pareciam não se ajustar à Lógica, tal como formulada. Criava-se
então, para os lógicos, a formidável tarefa de reorganizar os funda-
mentos da Matemática.
Apesar das esperanças professadas no Programa de Hilbert de que
tais dificuldades fossem meramente de ordem técnica, Gõdel mostrou
que a porta de saída do paraíso tinha que ser usada necessariamente.
Os Teoremas de Incompletude de Gõdel mostraram que em qual-
quer sistema lógico baseado nos cânones tradicionais da Lógica existe
algum problema que não pode ser resolvido. Esse fato arrasador, ali-
ado à falha em se utilizar a Lógica (tal como idealizada por Frege)
em domínios fora da Matemática, talvez tenha tido grande influência,
senão no surgimento, pelo menos no desenvolvimento das Lógicas
Não-Clássicas.
Costuma-se comparar, do ponto de vista do conteúdo revolu-
cionário. o surgimento das Lógicas Não-Clássicas com o das Geo-
metrias Não-Euclidianas. Essa comparação é talvez injusta: deve ter
sido bem mais difícil imaginar ou aceitar que por um ponto passa
Coleção CLE V.11
Walter A. Carnielli 103

mais de uma paralela a uma reta dada, que uma situação onde fa-
lha a lei do terceiro excluído, sobretudo porque as novas geometrias
nasceram no começo do século XIX, enquanto as novas lógicas apa-
receram no início do século XX. De qualquer forma, as aplicações da
Teoria de Grupos e o interesse por novas estruturas algébricas, tão
em voga no fim do século passado, podem ter contribuído para tor-
nar natural o surgimento das Lógicas Não-Clássicas, em especial das
Lógicas Polivalentes propostas por Lukasiewicz.
O que é certo é que o surgimento das Lógicas Não-Clássicas deve-
se menos a questões matemáticas, como as ligadas às Geometrias Não-
Euclidianas, que ao interesse em formalizar universos de discurso mais
complexos que o domínio matemático (o própio Lukasiewicz inspirou-
se diretamente em questões cuja origem remontam a Aristóteles, às
quais aplicou suas novas lógicas). Pode-se entrever aí o início da
liberação da Lógica, desobrigada da tarefa infindável (e impossível,
depois de Gõdel) de erigir a Matemática em fundamentos absolutos.
O amadurecimento da teoria da computabilidade colocou ainda
em evidência dois fatos fundamentais: nem todos os procedimentos
matemáticos são computáveis, e nem todos os que podem ser em
princípio computáveis, podem ser computáveis na realidade. Na ver-
dade, dentre a grande quantidade de problemas reais de interesse
tecnológico, muito poucos podem ser tratados computacionalmente
de maneira factível. Em outras palavras, não interessa muito se um
certo sistema é decidível ou não; o que importa é se ele pode ser
tratado computacionalmente dentro das limitações humanas.
Pode-se compreender então que a questão da formalização da
heurística adquire nova relevância: estudar rigorosamente a inte-
ligência e formalizar a criatividade e o processo humano de decisão
passam a ser objetos da teoria da prova automática de teoremas e da
teoria dos sistemas especialistas, por exemplo.
Um sistema especialista consiste, de certo modo, em se axioma-
tizar o conhecimento de um bom especialista sobre um tema. Essa
axiomatização deverá certamente necessitar de recursos estranhos ao
domínio matemático clássico, como por exemplo Lógicas Modais,
Lógicas Polivalentes ou Difusas, ou Lógicas Temporais. Esses pro-
cedimentos podem vir a produzir resultados interessantes, de tal
forma que certas questões filosóficas anteriormente consideradas ape-
Coleção CLE V.11
104 Lógicas Não-CIássicas

nas como curiosidade intelectual começam a ser estudadas de um


outro ponto de vista.
Dadas as dificuldades que, como sabemos, limitam a Lógica tra-
dicional, não é difícil então entender a conexão entre as Lógicas Não-
Clássicas e a Inteligência Artificial. Nesse contexto situam-se também
os novos e imprevistos usos da Lógica Clássica, como a Programação
Lógica (cujo produto mais visível é a linguagem PROLOG, uma ten-
tativa de utilizar um fragmento da Lógica de Primeira Ordem como
linguagem de programação).
Outros usos impressionantes da Lógica ocorrem ligados às questões
de arquitetura dos computadores: aparentemente, o projeto do com-
putador de 5^ geração prometido pelo ECOT (Japão), que utiliza
diretamente a Lógica de Primeira Ordem como código a nível dos
microprocessadores, foi finalizado com sucesso.
Talvez ainda não vejamos claro, mas estamos em uma nova re-
volução na Lógica, em grande parte, como mostramos, ligada ao ad-
vento dos computadores. Durante toda sua história, não se pode ne-
gar que a Lógica esteve ligada aos processos de cognição, seja como
parceira da retórica, como base das provas da existência de Deus dos
Escolásticos ou como instrumento de análise dos fundamentos da Ma-
temática. A ciência emergente conhecida como Inteligência Artificial
tem como um dos interesses os processos de raciocínio que podem ser
formulados e controlados no universo matemático computável, e na-
turalmente deve se basear na Lógica.

2. Lógicas Náo-Clássicas: teoria e perspectiva de aplicações

Uma questão importante ligada à formalização da heurística, e


que não ocorre dentro do domínio da matemática clássica, é a questão
da tolerância a falhas: um sistema inteligente tem que trabalhar sob
imprecisão da linguagem, de especificações de todo tipo, e inclusive
imprecisões de consistência. Toda base de dados ou sistema baseado
em conhecimento, que armazena eletronicamente dados e regrais de
inferência sobre estes dados, está suscetível a apresentar contradições,
pelo menos contradições lingüísticas.
Como em computação basicamente só se lida com linguagens, e
linguagens de todos os tipos, o problema das contradições lingüísticas
passa a merecer atenção.
Coleção CLE V.11
Waiter A. Camielli 105

Quando sistemas desse tipo têm como suporte a Lógica Clássica,


o resultado de informações contraditórias é a trivialização do sistema,
como conseqüência do esquema de inferéncia ((A A -iA) B), isto
é, a partir de uma contradição expressa na forma (A A -iA) pode-se
derivar qualquer informação 5, o que é certamente indesejável.
Soluções de diversos tipos têm sido propostas, basedas sempre em
algum tipo de adaptação das regras lógicas; trata-se, de um forma ou
de outra, de mergulhar os sistemas em algum tipo de ambiente lógico
não tradicional, como é o caso, por exemplo, das conhecidas Lógicas
N ão- Monotônicas.
As Lógicas Paraconsistentes (introduzidas por Newton da Costa
ver [10], [11] e [12]), vistas como sistemas formais que suportam teo-
rias inconsistentes mas não triviais, constitutem uma solução natural
para o tratamento dessa questão.
Tais lógicas, contudo, apresentam algumas dificuldades teóricas
para que possam ser plenamente aplicadas a problemas desse tipo:
métodos de dedução automática para as Lógicas Paraconsistentes fo-
ram muito pouco estudados, e elas não possuem semânticas intuitiva-
mente aceitáveis do ponto de vista dos programas de computadores.
Uma semântica alternativa, que permite inclusive o tratamento de
inconsistências em bases de dados, e outras questões conexas foram
estudadas em [6], [7] e [8].
Ainda sob o ponto de vista da tolerância à falha, outra classe
do que podemos chamar, por razões que daremos a seguir, de pro-
tológicas, são as chamadas Lógicas Difusas (ou fuzzy), utilizadas com
grande sucesso na tecnologia de ponta, principalmente na indústria
japonesa.
A teoria das Lógicas Difusas teve origem na noção de teoria de
conjuntos difusos, introduzida em 1965 por Lofti Zadeh (cf. [34]).
Existe um grande interesse nesse tipo de lógica, tanto teórico como
prático, que tem gerado extensa literatura. As referências principais
a respeito das aplicações são [20], [27], [28], [29] e [30].
A espinha dorsal da teoria de conjuntos difusa consiste na carac-
terização da relação de pertinência de um elemento em determinado
conjunto não só como verdadeira (1) ou falsa (0), mas podendo tomar
valores num intervalo real [0,1]. A partir dessa perspectiva, quase
toda estrutura matemática passa a ter uma correspondente difusa,
Coleção CLE V.11
106 Lógicas iVáo-Clássicas

bastando fusiíicar (isto é, estender a classe dos valores de verdade)


os conjuntos clássicos que nela intervém. Como não há uma maneira
canònica de proceder a essa fusificaçáo, o resultado é que não existe
uma Lógica Difusa, mas uma classe de lógicas que de uma maneira
ou de outra formalizam tais procedimentos, justificando o termo pro-
tológica que introduzimos anteriormente.
E possível pensar ainda em relações de pertinência que tomem va-
lores não agora no intervalo ou conjunto real [0,1], mas num conjunto
difuso: são as chamadas Lógicas Difusas de segunda ordem. Essa
generalização, porém, é proposta de maneira muito vaga e é aparen-
temente desnecessária : Haack (cf. [21]) apresenta argumentos muito
bem embasados contra tal generalização.
Em [16] uma motivação interessante para as Lógicas Difusas é
proposta baseando-se em experimentos dispersivos e livres de dis-
persão. As experiências não dispersivas (ou livres de dispersão) são
as de caráter funcional, ou seja, aquelas que, para uma determinada
entrada, apresentam sempre a mesma saída. Assim, se perguntamos
por exemplo se ux > 2", e dermos a x o valor 5, a resposta a essa
pergunta será sempre "sim". Há muitos exemplos naturais de expe-
rimentos que não se comportam assim. Um exemplo simples seria
fazer a mesma pergunta a várias pessoas na rua: "Uma pessoa de 50
anos é velha?"; a resposta pode ser inesperada. Experimentos desse
tipo ocorrem naturalmente na Mecânica Quântica, na Economia e
nas Ciências Sociais.
As aplicações industriais são impressionantes, principalmente na
indústria eietro-eletrônica japonesa e alemã. No Japão, foi criado um
laboratório para a "engenharia difusa internacional" (LIFE), com a
participação de 45 firmas japonesas e subsidiárias de firmas america-
nas. Além disso, podemos citar vários exemplos de produtos indus-
triais desenvolvidos com Lógica Difusa1.
Ao contrário das Lógicas Paraconsistentes, que estão muito me-
lhor estruturadas e estudadas do ponto de vista matemático, as Ló-
gicas Difusas estão ainda em estado nascente. Estas, contudo, ao
contrário das primeiras, foram criadas com exclusiva intenção apli-
1
Controle de elevadores (Fujitec/Toshiba); câmeras de vídeo (Sanyo Fisher/
Canon); máquinas de lavar, aspiradores de pó e aquecedores de água (Matsushita);
condicionadores de ar (Mitsubishi); televisores e computadores que reconhecem
padrões caligráficos (Sony); transmissão automatizada para automóveis (Subaru).
Coleção CLE V.11
Waiter A. Carnielli 107

cativa; as Lógicas Paraconsistentes foram criadas com intenções fi-


losóficas e metodológicas muito distantes de qualquer aplicação. Pa-
rece bastante surpreendente que estas venham a ser aplicadas, e que
aquelas coloquem questões relevantes à pesquisa pura.
Existe uma relação natural entre as Lógicas Difusas e as Lógicas
Polivalentes (cf. [6], [12]): algumas lógicas com vários valores de
verdade, inclusive com infinitos valores de verdade, podem ser vistas
como formalizando o conceito de "difuso" ou "vago".
Por sua vez, D. Mundici mostrou recentemente (cf. [25]) que cer-
tos jogos combinatórios, os chamados "jogos de Ulam" que consistem
em acertar um número a partir de uma série de perguntas com res-
postas da forma "sim" ou "não", onde espera-se uma mentira, estão
relacionados às Lógicas Polivalentes.
Em termos mais exatos, Mundici mostrou que a lógica de quem
vence esse jogo de Ulam é exatamente a Lógica Trivalente de Lukasie-
wicz; um perfeito exemplo de como o fenômeno de tolerância à falha,
nesse caso de grande interesse para a teoria da informação, justifica
o uso de uma Lógica heterodoxa para a qual a matemática usual não
encontra utilidade.
A amplitude das aplicações das Lógicas Não-Clássicas, formali-
zadas ou semi-formalizadas, está atingindo um tal ponto que talvez
devêssemos nos referir a um paradigma heterodoxo ao invés de sim-
plesmente nos referirmos às aplicações das Lógicas Difusas ou outras.
Parte dessa atitude, principalmente no campo da tecnologia, de-
riva de fatores estritamente mercadológicos, mas não é impossível que
haja algum interesse intrínseco real no uso das Lógicas heterodoxas:
talvez estejamos na iminência de descobrir a ciência inexata, como
contraparte da ciência exata, e mais ainda, de compreender quando
se deve apelar a uma ou a outra. Grandes sistemas multilógicos
envolvendo nuances da racionalidade humana como crença, conheci-
mento, raciocínio por analogia, hipotético e temporal, terão que ser
estudados e utilizados, fazendo com que a Lógica como disciplina se
consolide como uma área do conhecimento ao mesmo tempo profun-
damente abstrata e largamente aplicável.

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Coleção CLE V.11
9

Algumas Questões Conceituais Ligadas


ao Advento das Geometrias

Não-Euclidianas

Arno Aurélio Viero

0 surgimento das geometrias não-euclidianas no século passado


pode ser considerado, juntamente com a descoberta dos irracionais
pelos gregos e o desenvolvimento do cálculo inilnitesimal, como as três
maiores revoluções ocorridas na Matemática em todos os tempos. As
conseqüências de tal descoberta no próprio âmbito da Matemática,
bem como no da lógica, da física (ver ElNSTEIN, 1921) e do pensa-
mento em geral, são de avaliação extremamente complexa. 0 que é
certo é que a descoberta de geometrias alternativas àquela elaborada
por Euclides deu origem a uma série de especulações que acabaram
por questionar e mudar concepções muito básicas, tanto das ciências
dedutivas, bem como a forma de avaliar diversos conceitos filosofica-
mente importantes.
0 desenvolvimento técnico, ocorrido a partir da descoberta de
tais geometrias, é uma tese que dificilmente requer argumentos para
ser estabelecida. A obtenção de geometrias cada vez mais amplas,
a descoberta de estruturas abstratas cada vez mais complexas e a
Coleção CLE V.11
112 Geometrias Não-EucJidianas

possibilidade da obtenção de resultados, até então inimagináveis,


como por exemplo, a constituição de geometrias não-arquimedianas,
são uma prova contundente deste fato.
É claro que não se trata aqui de fazer uma reconstrução histórica
dos principais eventos que marcaram o surgimento das geometrias
não-euclidianas e nem das várias etapas pelas quais passou o seu
desenvolvimento. Este é um conjunto de informações que pode ser
facilmente obtido através da consulta a qualquer livro especializado
no assunto (ver Bonola, 1955).
A questão que nos preocupa aqui não é de cunho factual, ou seja,
a de aprimorar, com base em várias fontes, o momento e a relação
do conjunto de eventos que constituem aquilo que se convencionou
chamar de o surgimento das geometrias não-euclidianas, 0 que pre-
tendemos é tomar estes fatos como tendo sido estabelecidos de forma
suficientemente precisa e tratar de examinar, do ponto de vista con-
ceituai, qual a interpretação mais adequada para todo este processo.
A forma mais comum de apresentar os fatos acima referidos é
a seguinte: o postulado das paralelas foi, durante séculos, objeto
de intensa investigação. No século XIX, graças aos esforços de ma-
temáticos como Johann Bólyai (1802-1860), Nicolai I. Lobatchevsky
(1793-1856) e Georg F. B. Riemann (1826-1866), foi possível estabe-
lecer a independência do quinto postulado.
Em seguida, ter-se-ia dado uma verdadeira corrida em busca de
modelos euclidianos para as geometrias recém descobertas: Beltrami
(1868), Klein (1870), Poincaré (1882). A preocupação principal seria
a de estabelecer a consistência dos novos sistemas dedutivos cons-
truídos a partir da negação do postulado das paralelas. Com isto,
ter-se-ia estabelecido, pela primeira vez na história dos sistemas de-
dutivos, aquilo que hoje denominamos de provas de consistência re-
lativa.
Segundo esta interpretação, o ponto culminante deste processo
teria sido alcançado por Hilbert com a publicação de seu livro Os
Fundamentos da Geometria. Nesta obra, se encontra uma série de
resultados matemáticos extremamente interessantes e, entre eles, a
prova de consistência, agora, da própria geometria euclidiana, através
da utilização de modelos numéricos.
Contudo, dentro desta perspectiva, uma série de questões perma-
Coleção CLE V.11
Arno Aurélio Viero 113

nece sem respostas. Qual o real significado da questão da consistência


de tais sistemas dentro deste contexto de investigação? Gauss, por
exemplo, jamais demonstrou qualquer tipo de apreensão diante do
resultado de Saccheri que estabelecia, via reductio ad absurdum, a
inconsistência de sistemas de geometria que tivessem na sua base a
negação do postulado das paralelas.
Outro problema diz respeito à natureza e à função desempenhada
pelos modelos euclidianos para o estabelecimento das provas de con-
sistência relativa. Qual o significado e a função lógica de tais mo-
delos? Quando Klein, baseado nas idéias de Cayley, elaborou um
modelo a nível de geometria projetiva para a geometria hiperbólica,
o que ele realmente pretendia do ponto de vista conceituai? Esta
pergunta se coloca no momento em que percebemos que o resultado
em questão já havia sido obtido, em um certo sentido, por Beltrami,
em 1868, através da utilização da pseudo-esfera (tractóide) para a
representação do plano hiperbólico.
Além disto, qual o significado da prova de consistência elaborada
por Hilbert, agora, para estabelecer a consistência da própria geome-
tria euclidiana? Afinal, quem estava colocando em dúvida a coerência
interna de um dos sistemas matemáticos mais brilhantemente cons-
tituído em todos os tempos e que jamais havia gerado qualquer tipo
de contradição?
Estas são algumas questões para as quais a interpretação referida
anteriormente não propõe nenhum tipo de resposta satisfatória. A
preocupação com a consistência dos sistemas recém descobertos é
simplesmente assumida. Tal postura é justificável a partir de uma
análise conceituai detalhada de todo este contexto de investigação
que teria culminado com o trabalho de Hilbert? Tudo indica que este
tipo de interpretação não é adequada para explicar vários aspectos
referentes a esta problemática.
0 quinto postulado ou o postulado das paralelas foi, desde a an-
tigüidade clássica, um obstáculo bastante sério para a compreensão
da axiomatização da geometria como ela havia sido elaborada por
Euclides. Isto devido a dois problemas básicos, um de natureza con-
ceituai, e outro de natureza técnica.
No que diz respeito ao primeiro problema, basta um rápido examer
do conjunto dos postulados para verificarmos a complexidade do
Coleção CLE V.11
114 Geometrías Não-Euclidianas

quinto postulado em relação aos demais. Sua formulação original


está longe de possuir o caráter de auto-evidência dos demais:
Se uma reta cortando duas outras retas faz os ângulos interiores de
um lado menores que dois ângulos retos, as duas retas, se prolon-
gadas indefinidamente, irão se encontrar no lado em que os ângulos
são menores que dois ângulos retos (EUCLIDES, 1956, p. 155).
Ligadas a este problema, havia considerações de caráter pura-
mente matemático que tornavam o quinto postulado problemático. A
adoção de um tal tipo de enunciado como sendo um indemonstrável
da teoria, era discutível na medida em que era do conhecimento dos
matemáticos da época a existência de linhas que convergiam mais e
mais, uma em relação à outra, sem jamais se interceptarem em qual-
quer região finita do plano. Tais linhas são comumente denominadas
de "assintóticas".
Durante a longa história que envolveu a discussão em torno do
quinto postulado, é possível detectar duas estratégias básicas na ten-
tativa de solucionar este problema. A primeira delas foi tentar provar
que o postulado das paralelas, ou algum enunciado logicamente equi-
valente a ele, poderia ser demonstrado de uma forma direta, tendo
como base os demais postulados. Esta maneira de tentar resolver o
problema em questão acabava, geralmente, por pressupor aquilo que
se desejava demonstrar.
A outra estratégia foi a adotada por Gerolamo Saccheri (1667-
1733) que pretendia demonstrar, via reductio ad absurdum, ou seja,
de forma indireta, o quinto postulado. Provavelmente, Saccheri foi
o primeiro matemático a tentar estabelecer o fato de que a negação
deste postulado levaria a contradições.
A interpretação usual do desenvolvimento das geometrias não-
euclidianas toma como ponto de partida esta estratégia adotada por
Saccheri. E claro que as deficiências de suas demonstrações eram
amplamente conhecidas, até peio seu próprio autor, que reformulou
várias vezes o seu trabalho original. Contudo, a questão parecia es-
tar definitivamente colocada: o que, realmente, nos garantiria que
a negação do postulado das paralelas não geraria sistemas inconsis-
tentes? Daí o surgimento dos modelos euclidianos e das provas de
consistência relativa.
Claro que toda esta problemática se coloca naturalmente quando
todo este contexto de investigação é analisado de um ponto de vista
Coleção CLE V.11
Arno Aurélio Viero 115

lógico. E quando aqui nos referimos a "um ponto de vista lógico"


queremos indicar a postura surgida no estudo das ciências dedutivas
graças, principalmente, aos trabalhos de Hilbert e de Tarski. Querer
ver, na base do desenvolvimento das geometrias não-euclidianas, uma
preocupação com questões metateóricas é querer inverter todo este
processo. Foi o desenvolvimento de sistemas dedutivos alternativos
àquele elaborado por Euclides que, entre outros fatores, colaborou
para o surgimento da moderna noção de sistema formal bem como
da própria metamatemática.
E óbvio que, segundo o princípio da não-contradição, o postulado
das paralelas e a sua negação não poderiam ser simultaneamente ver-
dadeiros. Esta era uma questão que, de alguma forma, colocava os
resultados obtidos como sendo incompatíveis com a axiomatização
euclidiana.
Neste momento se fazem necessárias duas observações. A pri-
meira delas é a de que desde muito cedo foi possível perceber que
a geometria euclidiana aparecia sob forma de casos limites dos no-
vos sistemas geométricos. Esta situação é bastante clara no caso de
Lobatchevsky, que procurava ressaltar o fato de que, dadas certas
condições, a geometria euclidiana se apresentaria como um caso par-
ticular da geometria hiperbólica. No caso de Bolyai, esta preocupação
também está presente e, na sua obra, é possível detectar tentativas
feitas no sentido de produzir sistemas geométricos bastante amplos
que absorvessem como parte a geometria euclidiana (ver Torreti,
1978).
Além disto, a partir de 1872, graças aos estudos desenvolvidos
por Klein utilizando a noção de grupo, esta suposta rivalidade entre
a geometria clássica e as demais parecia ter perdido inteiramente seu
significado. Isto foi um fato muito bem observado pelo próprio Poin-
caré que, já em 1887, afirmava não haver sentido algum em colocar
a pergunta acerca da verdade ou da incompatibilidade em relação a
estruturas de grupo (ver POINCARÉ, 1956).
Uma vez delineada esta situação, a pergunta que se coloca na-
turalmente é: qual a finalidade do surgimento de modelos euclidi-
anos para as geometrias não-euclidianas? Existem várias respostas
possíveis para esta questão. Contudo, duas delas parecem indicar
fatores determinantes para o surgimento de tais modelos.
Coleção CLE V.11
116 Geometrias JVáo-Euciidiaíias

Em um primeiro momento, a existência destes modelos dariam


um suporte intuitivo para as investigações de estruturas abstratas
cujas propriedades eram de difícil compreensão. Assim, uma contra-
partida euclidiana de tais estruturas poderia, eventualmente, facilitar
bastante o entendimento e o desenvolvimento das novas geometrias.
Poderíamos citar, como exemplo da utilização desta estratégia, o de-
senvolvimento da trigonometria hiperbólica.
Além disto, desde o surgimento das geometrias não-euclidianas,
houve uma preocupação bastante grande por parte de vários ma-
temáticos em encontrar aplicações matemáticas para tais estruturas,
mostrando assim que, contrariamente ao que alguns pensavam, o seu
desenvolvimento era muito mais do que um mero exercício de ima-
ginação. Desta forma, já em 1836, Lobatchevsky publicava um tra-
balho com o título: Aplicações da geometria imaginária na resolução
de algumas integrais,
Esta parece ter sido também a opinião de Poincaré ao avaliar o
seu trabalho e o de Klein no que diz respeito à elaboração de tais
modelos:

A geometria de Lobatchevsky, sendo capaz de uma interpretação


concreta, cessa de ser um puro exercício, sem utilidade alguma,
e pode ser aplicada. Não possuo tempo para tratar aqui destas
aplicações, nem com as que Herr Klein e eu fizemos ao utilizã-las na
integração de diversas equações lineares (Poincaré, 1952, p. 43).

E claro que não se trata aqui de entrar em detalhes técnicos. 0


que é importante é indicar uma nova perspectiva a partir da qual este
estágio do desenvolvimento das geometrias não-euclidianas possa ser
entendido.
Contudo, ainda resta avaliar o papel desempenhado pelo Os Fun-
damentos da Geometria, escrito por Hilbert, dentro deste contexto.
Sem dúvida alguma esta é uma tarefa extremamente complexa que,
forçosamente, ultrapassaria o escopo deste artigo. Apesar disto, al-
gumas observações de caráter bastante geral podem ser feitas.
A obra de Hilbert teve uma importância fundamental no moderno
desenvolvimento da axiomática. Isto se deveu, em parte, pelo fato de,
no livro em questão, Hilbert ter axiomatizado a geometria euclidiana
dentro de uma concepção completamente diferente daquela adotada
por Euclides.
Coleção CLE V.11
Arno Aurélio Viero 117

Esta mudança de atitude frente à axiomática foi resultado de


uma série de transformações que, no final do século XIX, acabaram
por alterar significativamente a forma de entender a estrutura e a
função dos sistemas axiomáticos. E claro que o desenvolvimento das
geometrias não-euclidianas foi um dos fatores que contribuíram, de
forma decisiva, para que isto ocorresse. Contudo, além deste fator,
outros três foram de importância decisiva: o surgimento da álgebra
abstrata, a retomada do estudo da geometria projetiva e as tentativas
feitas no sentido de buscar uma base sólida para a análise.
Todos estes acontecimentos contribuíram para que, de uma forma
ou de outra, uma nova concepção acerca dos sistemas axiomáticos
surgisse (se esta nova concepção acabou por se mostrar adequada ou
não é um assunto bastante controvertido; ver VlERO, 1990).
Uma das principais alterações estava na forma de conceber a base
da relação de demonstrabilidade, ou seja, os axiomas. Segundo esta
nova concepção, adotada e desenvolvida por Hilbert, os axiomas não
eram mais concebidos como sendo enunciados verdadeiros e auto-
evidentes que estariam na base do sistema. De acordo com a nova
concepção, os axiomas não seriam verdades evidentes, mas sim de-
finições impUcitas dos termos primitivos da teoria.
E claro que, no momento em que se adota tal concepção a respeito
dos axiomas, tanto a questão da evidência como a própria questão da
verdade não se colocam mais. Esta manobra era um dos principais
objetivos que os defensores da chamada aaxiomática formal" preten-
diam alcançar (ver VlERO, 1990). Contudo, o problema que surge
agora é o de saber se tais definições são compatíveis entre si, e isto,
sem dúvida alguma, deve ser matéria de prova.
De resto, como seria possível demonstrar que um conceito nào im-
plica contradição? Isto não é de modo algum evidente. Do que não
se vé contradição não segue que não haja alguma, e o caráter deter-
minado da definição não garante nada (...) Isto deve, a bem dizer,
ser demonstrado (FREGE, 1983, p. 269).
Assim, através destas rápidas indicações (uma análise mais de-
talhada de toda esta problemática pode ser encontrada em VlERO,
1990), é possível perceber que o resultado de consistência da geo-
metria euclidiana obtida por Hilbert se deveu, fundamentalmente, a
razões de ordem estruturais decorrentes de uma nova forma de con-
ceber a natureza dos sistemas axiomáticos.
Coleção CLE V.11
118 Geometrías Não-Eudidianas

Desta maneira, esperamos ter indicado, de uma forma bastante


geral, como a descrição dada no início deste artigo a respeito do de-
senvolvimento das geometrias não-euclidianas, é extremamente insa-
tisfatória. Acreditamos que um aprofundamento desta questão pode,
sem dúvida alguma, nos levar a reavaliar, do ponto de vista concei-
tuai, uma série de resultados e concepções fundamentais no que diz
respeito à natureza e o significado dos sistemas axiomáticos formali-
zados.

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Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
Parte V

* Ciência e Método em

Mach e Duhem
Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
10

Duhem e Galileu
{Uma Reavaliação da Leitura Duhemiana de Galileu)1

Pablo Rubén Mariconda

Pierre Duhem foi responsável por uma verdadeira revolução his-


toriográfica na história da ciência ao redescobrir, na primeira década
de nosso século, os importantes desenvolvimentos mecânicos realiza-
dos durante a Idade Média. A referida radicalidade revolucionária
das investigações de Duhem sobre a ciência medieval consistiu basi-
camente em produzir o primeiro questionamento geral da concepção
da Revolução Científica do século XVII como uma ruptura clara e de-
cisiva com o passado imediato, conduzindo ao que Crombie2 chama a
"questão medieval'1, que pode ser sumariamente caracterizada como
o problema da relação entre a ciência do século XVII e a ciência
medieval.
^ste ensaio é uma versão consideravelmente ampliada do texto apresentado
em outubro de 1991 no VII Colóquio de História da Ciência - CLE - Unicamp. De-
sejo expressar também meu reconhecimento ao CNPq e à FAPESP pelos auxílios
recebidos.
2
CROMBIE, A.C. The Significance of Medieval Discussion of Scientihc Method
for the Scientific Revolution. In: CLAGETT, M (ed.) Criticai Prohlems in the
History of Science, p. 79-80.
Coleção CLE V.11
124 Duhem e Galileu

Ao redescobrir a mecânica medieval, Duhem produziu uma


enorme massa de evidência histórica contra a convicção gerada pe-
los próprios autores do século XVII, compartilhada por historiadores
do século XVHI como Voltaire, consolidada por Kant e, portanto,
dominante nos ambientes científicos do século XVII ao século XIX;
convicção segundo a qual a ciência e, em particular, a mecânica era
uma invenção do século XVII e que, admitindo-se que a ciência ti-
vesse antecedentes significativos, estes não deveriam ser procurados
na Idade Média, mas na Antigüidade. De modo geral, mesmo os pri-
meiros autores do século XIX que se dedicaram ao estudo da história
da mecânica - como é o caso de Charles Thurot e Giovanni Vailati3 -
consideraram os textos medievais que consultaram como comentários
da mecânica grega que não produziam avanços significativos e origi-
nais, mantendo-se assim presos àquela convicção dominante da essen-
cial irreleváncia dos desenvolvimentos medievais para o surgimento
da mecânica no século XVII.
0 próprio Duhem, que com seu trabalho Les origines de la stati-
que publicado entre 1903 e 1904 na Reme des Questions Scientifiques,
praticamente funda o campo dos estudos sistemáticos da história da
ciência medieval, não estava imune à convicção dominante. Les origi-
nes de la statique deixa transparecer em sua composição o quanto foi
surpreendente para seu autor a redescoberta da estática medieval, na
medida em que essa composição guarda uma descontinuidade entre
o propósito inicial da investigação, inteiramente compatível com a
crença dominante, e o resultado a que ela chega. Assim, em outubro
de 1903, Duhem afirmava:
Os comentários da Escolástica às Questões Mecânicas de Aristóteles
não acrescentam essencialmente nada às idéias do Estagirita; para
ver essas idéias brotarem e produzirem novos frutos, devemos esperar
o cometo do século XVI4.
3
THUROT, C. Recherches historiques sur le principe d'Archimède. Révue
Archéologique, serie nouvelle, v. 18 (1868), 19 (1869) e 20 (1869). VAILATI, G.
Scritti. Leipzig-Florença, 1911.
4
DUHEM, P. Les origines de la statique, Révue de Questions Scientifiques,
v. 54, p. 469, 1903. O tratado, As Questões Mecânicas, atribuído na passagem
a Aristóteles é hoje considerado apócrifo, embora ainda se acredite que ele per-
tence ao corpus aristotélico. Esse tratado foi influente durante a Idade Média e é
freqüentemente citado por Galileu em seus diálogos. Cf. Ross, W.D. (ed.), The
Works of Aristotle, v. 6.
Coleção CLE V.11
Paòio Rubén Mariconda 125

Entretanto, em abril de 1904, com a descoberta do texto de Jor-


danus Nemorarius, essa posição é radicalmente modificada, com toda
a dramaticidade que uma tal inversão de posição comporta:
Antes de chegar ao tratado fundamental de estática produzido na
Idade Média pelo enigmático Jordanus de Nemore, devíamos jun-
tar os fragmentos espalhados pelos manuscritos de escritos sobre a
ciência do equilíbrio compostos em Alexandria5.

A partir da descoberta dos Elementa Jordani de Ponderibus6,


Duhem direcionou sua investigação histórica no sentido de uma re-
construção sistemática da mecânica medieval, produzindo entre 1906
e 1913 uma reconstrução histórica dos desenvolvimentos medievais
na cinemática e na dinâmica, numa longa série de ensaios coletados
em três volumes nos Etudes sur Léonard de Vincy. E nesta obra
que Duhem chama a atenção para a fecundidade das correções me-
dievais da mecânica aristotélica da queda livre e do movimento dos
projéteis, apresentando pela primeira vez o tratamento cinemático
medieval do movimento uniforme e uniformemente disforme (acele-
rado ou retardado) que teve lugar nas escolas de Oxford (Merton
College) e de Paris no século XIV. No âmbito desse estudo - tal
como havia ocorrido com Jordanus Nemorarius para a estática no
século XIII - emergiram como figurais centrais no desenvolvimento
da física medieval tardia Jean Buridan e Nicole Oresme. Foi Duhem
quem descobriu e expôs a teoria medieval do impetus, desenvolvida
pelos terministas parisienses, revelando assim a origem desse conceito
central no desenvolvimento da mecânica italiana do século XVI com
Tartaglia e Benedetti e, posteriormente, na mecânica do século XVII
com Galileu.
Mas, a enorme massa de evidência histórica coletada por Duhem
contrária à visão estabelecida da Revolução Científica do século XVII,
não deve obscurecer o aspecto historiográíico fundamental de seu tra-
balho, que constitui o cerne da revolução historiográfica a que me
referi de início. A partir da descoberta de Jordanus Nemorarius e da
5
Ibidem, Révue des Questions Scientifiques, v. 55, p. 561, 1904.
8
O# Elementa Jordani de Ponderibus (Elementos dos Pesos de Jordano) foram
compostos por volta de 1246 (Cf. CLAGETT, M. La Scienza delia Meccanica nel
Medioevo. Milão : Feltrinelli, 1972, p. 139) e constituem um tratado sistemático
de estática.
7
DUHEM, P. Études sur Léonard de Vinci. Paris : F. de Nobele, 1955. 3v.
Coleção CLE V.11
126 Dühem e Gãlileu

conseqüente superação da convicção que embasava a visão histórica


estabelecida, Duhem passa a sustentar uma tese de continuidade do
desenvolvimento da ciência que, em sua articulação histórica com-
pleta, está constituída basicamente por duas partes:
1) que as condenações de 1277 marcaram a origem da ciência mo-
derna, a ruptura decisiva com Aristóteles e o começo de cosmologias
novas e imaginativas para substituir a cosmologia aristotélicad;
2) que os desenvolvimentos do século XIV, que se seguiram à con-
denação, permitiram o nascimento de novos conceitos fundamentais
para o desenvolvimento da mecânica; conceitos tais como os con-
ceitos de ímpeto, de movimento uniformemente disforme e de ace-
leração, cujos proponentes, os Doctores Parisienses, foram os pre-
cursores de Galileu.

No interior da reconstrução histórica propiciada pela tese de con-


tinuidade, encontra-se uma série de outras teses interpretativas de
conteúdo altamente polêmico, com base nas quais Duhem procura
estabelecer a originalidade e a modernidade dos conceitos e teorias
medievais com o evidente propósito de mostrar que os desenvolvi-
mentos conceituais do século XIV justificam a adoção da primeira
parte da tese de continuidade, a saber, que a ciência moderna nasce
no século XIII, e não, como supunha a visão estabelecida, no século
XVIL
Três dessas teses são particularmente importantes: 1) que a teo-
ria do impetus de Buridan já é uma teoria da inércia que contém a
concepção moderna do movimento, realizando de modo completo a
transição da concepção aristotélica do movimento como processo para
a concepção moderna do movimento como estado: 2) que Oresme é o
d
DUHEM, P. Le système du monde, v.6, intitulado ^Le reílux de
TAristotelisme. Les condemnations de 1277". As chamadas condenações de 1277
resultaram de um decreto do Bispo de Paris, Etiène Tempier, que supostamente
havia sido encarregado pelo Papa João XXI de investigar as concepções filosóficas
sustentadas na Universidade de Paris e avaliá-las frente à ortodoxia teológica.
O decreto anematizava 219 teses filosóficas e científicas, tomadas aleatoriamente,
dentre as quais se encontravam teses defendidas por Tomás de Aquino. Aristóteles,
Aegidius Romanus e Roger Bacon. Embora a Igreja não se tenha pronunciado
oficialmente acerca do assunto e o decreto de 1277 fosse revogado em 1325. as
condenações tiveram uma poderosa e decisiva influência no desenvolvimento da
filosofia e da ciência na Universidade de Paris. Para um resumo, ver: DIJKS-
TERHUIS, E.J. The Mechantzation of the World Picture. Princeton ; Princeton
University Press, 1986. p. 160-3.
Coleção CLE V.11
Pablo Rubén Marico/ida 127

verdadeiro fundador da geometria analítica em virtude de seu sistema


de representação gráfica da intensidade das qualidades (e dos movi-
mentos); 3) que o mesmo Oresme é um precursor de Copérnlco por
sua discussão da possibilidade do movimento de rotação da Terra9.

II

As considerações feitas até aqui procuraram apresentar sucinta-


mente o quadro geral das investigações históricas de Duhem; quadro
no qual se insere sua apreciação da contribuição científica de Galileu.
Passemos agora a essa apreciação propriamente dita, que pode ser di-
vidida em duas partes: de um lado, uma interpretação retrospectiva
da mecânica de Galileu frente a seus antecessores medievais e, de ou-
tro, uma avaliação crítica da defesa realista de Galileu da astronomia
e cosmologia copernicanas.
0 principal texto de Duhem em que é feita a apreciação da con-
tribuição mecânica de Galileu - e até onde sei o único em que isso é
feito - é o terceiro volume dos Etudes sur Léonard de Vinci. Logo no
início do Prefácio desse trabalho, Duhem enuncia clara e diretamente
sua posição:

A terceira série de nossos Etudes sur Léonard de Vinci, demos um


subtítulo: Os precursores parisienses de Galileu. Esse subtítulo
anuncia a idéia de que nossos estudos anteriores já haviam des-
coberto alguns aspectos e que nossas novas pesquisas iluminaram
completamente. A ciência mecânica inaugurada por Galileu, por
seus èmulos, por seus discípulos, Baliani, Torricelli, Descartes,
Beeckman, Gassendi, não é uma criação; a inteligência moderna não
a produziu de um só salto e com todas as peças a partir do momento
em que a leitura de Arquimedes lhe revelou a arte de aplicar a Ge-
ometria aos efeitos naturais. A habilidade matemática adquirida
no comércio com os geômetras da Antigüidade, Galileu e seus con-
temporâneos a utilizaram para precisar e desenvolver uma ciência
mecânica da qual a Idade Média cristã tinha posto os princípios e
formulado as proposições mais essenciais. Essa mecânica, os físicos
que ensinavam, no século XIV, na Universidade de Paris tinham-na
concebido tomando a observação como guia; eles a substituíram à
9
Para as duas primeiras teses, cf. DUHEM, P. Études sur Léonard de Vinci,
3ème. série, XIII, IV, p. 34-53 e XV, XVII, p. 375-87, respectivamente. A terceira
tese está desenvolvida em DUHEM, P. Le système du monde, tomo 9, cap. 19, p.
325-62.
Coleção CLE V.11
128 Duhem e Galileu

Dinâmica de Aristóteles, convencidos de sua impotência para "salvar


os fenômenof10.
Além da afirmação clara da total ausência de novidade da
mecânica de Galileu e da redução de seu mérito ao trabalho de sis-
tematização matemático-dedutiva e aumento da precisão dos resul-
tados alcançados pela mecânica medieval, a passagem citada adi-
anta também que a rejeição medieval da mecânica aristotélica, com
a qual se abre a possibilidade de fundar uma nova mecânica, se dá
em estrita observância da metodologia instrumentalista expressa pela
máxima com a qual os astrônomos gregos sintetizavam sua atitude
científica: tòl (pouvófLevaí"salvar os fenômenos1''). Essa
máxima expressava a decisão de manter-se estritamente no domínio
dos fenômenos observados, sem procurar inferir as causas desses
fenômenos ou discutir sua natureza.
Este último aspecto é importante, pois revela a concepção me-
todológica que embasa a tese da continuidade do desenvolvimento
histórico. A meu ver, a concepção de "salvar os fenômenos" cons-
titui o verdadeiro cerne da tese continuista de Duhem, revelando,
por assim dizer, a espinha dorsal de sua argumentação. Com efeito,
quase duas décadas antes de empreender sua reconstrução histórica
da ciência medieval, Duhem já havia desenvolvido suas concepções fi-
losóficas fundamentais acerca do objeto da teoria física e dos métodos
teórico e experimental da física, numa série de quatro ensaios publi-
cados entre 1892 e 1894 na Révue des Questions Scientifiques11. Em
resumo, para Duhem, as teorias físicas não são explicações metafísicas
que nos revelam as causas do fenômenos, mas simplesmente meios de
classificar e coordenar as leis de sucessão dos fenômenos através da
representação simbólica (matemática) e econômica dessas leis12. Ou
seja, a física teórica (a física matemática no sentido duhemiano) não
10
DUHEM, P. Études sur Leonard de Vinci, v. 3, p. v.
11
Esses ensaios de Pierre Duhem sâo os seguintes: tfQueiques réflexions au sujei
des théohes physiques", Révue des Questions Scientifiques, 31, p. 139-77, 1892;
"Physique et métaphysique", Révue des Questions Scientifiques, 34, p. 55-83,
1893; "I/École anglaise et les théories physiques", Révue des Questions Scien-
tifiques, 2a. série, v. 4, p. 345-78, 1893; e "Quelques réflexions au sujet de la
physique expérimentale*, Révue des Questions Scientifiques, 36, p. 179-229, 1894.
Esses ensaios foram publicados em português em Ciência e Filosofia, 1989, v. 4,
São Paulo, F.F.L.C.H., U.S.P. As referências serão a essa edição em português.
12
A esse propósito ver DUHEM, P. Algumas reflexões sobre as teorias físicas.
Coleção CLE V.11
Pabio Rubén Manconda 129

deve ter como objetivo a explicação deis leis experimentais por meio
de hipóteses sobre a realidade essencial inobservável (causa última),
subjacente aos fenômenos observáveis. Para Duhem,
o nó vital de todas as doutrinas errôneas de que foi objeto a física
teórica [se encontra] na tendência irresistível que nos leva a pesquisar
a natureza das coisas materiais que nos cercam e a razão de ser das
leis que regem os fenômenos que observamos13.

Ora, essa tendência só pode ser combatida, caso se delimite pre-


cisamente os objetos da física e da metafísica:
Cabe à física "o estudo dos fenômenos, cuja fonte é a matéria bruta,
e das leis que os regem" e à metafísica (ou "conhecer a
natureza da matéria bruta, considerada como causa dos fenômenos
e como razão de ser das leis físicas"14.

Essa delimitação do objeto da física teórica conduz Duhem a sus-


tentar uma concepção do trabalho científico na qual o objetivo é
produzir uma representação simbólica - arbitrária, posto que é mo-
temática, enquanto os conceitos a que pretende aplicar-se são físicos
e, portanto, contingentes - que fornece uma classificação e ordenação
econômica das leis obtidas pela observação da regularidade de su-
cessão dos fenômenos físicos. Neste sentido, o esquema simbólico
(a teoria física), na medida em que organiza os fenômenos obser-
vados num corpo conceituai dedutivamente ordenado a partir de
hipóteses arbitrariamente selecionadas dentre as próprias leis, salva
os fenômenos. Neste sentido, a física teórica (a física matemática)
simplesmente fornece regras gerais das quais as leis observadas pelos
físicos experimentais são casos particulares.
E sobre a base dessa articulação filosófica concernente ao objeto
da física teórica e ao método de "'salvar os fenômenos" que Duhem
assenta sua tese de continuidade do desenvolvimento histórico e a re-
construção histórica da ciência medieval. Isto permite mostrar que
as duas partes acima referidas da apreciação duhemiana da contri-
buição científica de Galileu são na verdade as duas faces de uma
Ciência e Filosofia, v. 4, p. 13-4 e p. 25-7, 1989; Física e Metafísica. Ciéncio
e Filosofia, v. 4, p. 41-3; La Théorte Phystque. Son Objet. Sa Structure. 2.ed.
Paris ; Mareei Rivière. 1914, especialmente os capítulos 1 e 2.
' DUHEM. P. Algumas reflexões sobre as teorias físicas. Ciência e Filosofia, v.
4. p. 25.
'DUHEM. P. Física e metafísica. Ciência e Filosofia, v. 4, p.42.
Coleção CLE V.11
130 Duliem e Galileu

mesma moeda: de um lado, a questão dos precursores de Galileu e


a conseqüente leitura que Duhem faz da mecânica galüeana numa
linha de continuidade com a mecânica medieval supõe que a teoria
cinemática de Galileu foi desenvolvida com observância do método
instrumentalista de "salvar os fenômenos"; de outro lado, a crítica que
Duhem levanta contra a defesa galileana da astronomia de Copérnico
dirige-se exatamente contra as teses realistas (metafísicas) de Galileu,
que são, portanto, criticadas em função do abandono da metodologia
de "salvar os fenômenos". Esse método confere, como se vê, unidade
e coerência à reflexão de Duhem.

III

Quanto à primeira parte, que ao desenvolvimento da mecânica,


convém deixar claro desde início que a busca de precursores medi-
evais de Galileu pode com toda propriedade ser considerada como
uma espécie de corolário da tese duhemiana de continuidade do de-
senvolvimento da ciência medieval e moderna. Isso significa que a
leitura interpretativa de Duhem tenderá a deter-se longamente na-
queles pontos em que a continuidade é visível e a minimizar e na
maioria das vezes simplesmente omitir aqueles pontos que poderiam
ser considerados como rupturas com a tradição medieval.
Assim é que, após um longo e exaustivo trabalho de reconstrução
da mecânica medieval que se estende por 560 páginas, Duhem chega
à consideração da obra de Galileu no item XXXI, resumindo sua con-
clusão em apenas 20 páginas, das quais um terço é dedicado a Beeck-
man e Descartes. Essa conclusão consiste basicamente em considerar
que o trabalho dos estudiosos medievais conduziu ao conhecimento
de
... duas das leis essenciais da queda dos corpos; (e que) a favor dessas
leis, Galileu pôde muito bem aportar novos argumentos, tirados seja
do raciocínio, seja da experiência; mas, pelo menos, não as pôde
inventai15.
E quais são essas "duas leis essenciais da queda dos corpos"? A
primeira afirma que "a queda livre de um grave é um movimento
uniformemente acelerado; a ascenção vertical de um projétil é um
movimento uniformemente retardado". A segunda, conhecida como
15
Ibidem, p. 562.
Coleção CLE V.11
Pabio Rubén Mariconda 131

teorema mertoriano da velocidade média, afirma que "num movi-


mento uniformemente variado, o caminho percorrido é o mesmo que
num movimento uniforme, de mesma duração, cuja velocidade é a
média entre as duas velocidades extremas do primeiro movimento"16.
Com efeito, basta um exame rápido da Terceira Jornada dos
Discorsi17 para perceber que efetivamente: 1) Galileu define o movi-
mento de queda de um corpo como sendo um movimento uniforme-
mente acelerado; 2) que o Teorema I - que prova o famoso teorema
mertoreano da velocidade média - é uma conseqüência direta da de-
finição de movimento uniformemente acelerado. Além disso, se se
examinam a definição de movimento uniformemente acelerado e a
prova do Teorema I, não há como negar a evidente coincidência com
o tratamento dado por Oresme a ambos.
Se com base nisso - e é nisso que consiste substancialmente o
argumento de Duhem - nos colocamos a questão que ele propõe ao
final de seu trabalho, a saber, "não nos é permitido agora invocar o
próprio testemunho do genial Pisano para saudar esses Doutores Pa-
risienses com o título de Precursores de Galileu?"18, a resposta é sim.
Mas, se invertemos a questão e nos perguntamos se esse testemunho
é suficiente para afirmar, como parece ser a intenção de Duhem no
início de seu trabalho, a total ausência de novidade da mecânica de
Galileu e seu mero caráter sistematizador dos resultados medievais,
a resposta é, ao meu ver, não.
Não posso aqui mais do que indicar os pontos que me parecem ser
suficientes para justificar essa resposta negativa; e que podem servir
como uma espécie de balizamento para uma posterior avaliação mais
profunda da posição de Duhem concernente à revolução científica do
século XVII.
0 primeiro aspecto refere-se à própria definição do movimento
uniformemente acelerado. Duhem discute longamente o erro de Ga-
lileu na famosa carta a Paolo Sarpi de 1604, na qual ele declara ter

^Ibidem, p. 561-2.
17
Daqui em diante, por motivo de brevidade, designarei por Discorsi a obra
de Galileu intitulada Discorsi e Dimostraztoni matematiche intorno a due nuove
Scienze attenenti alia Mecantca ed ai Aíovimenti Locais. Entretanto, as citações e
referências a essa obra sâo da edição em português intitulada Duas Novas Ciências,
São Paulo, Nova Stella e Instituto Cultural ítalo-Brasileiro, 1985.
18
DUHEM. P. Études sur Léonard de Vinci, p. 583.
Coleção CLE V.11
132 Duhem e GalHeu

encontrado o "princípio" do movimento uniformemente acelerado, e


mostra, com certa surpresa, que também Descartes em sua corres-
pondência com Mersenne comete o mesmo erro19. Esse erro consiste
basicamente em considerar que o movimento uniformemente acele-
rado pode ser definido como aquele movimento no qual a veloci-
dade cresce em proporção ao espaço percorrido, ao invés de defini-lo
- como seria correto e como fará posteriormente Galileu nos Discorsi
- como aquele movimento no qual a velocidade cresce proporcional-
mente ao tempo. Ora, o ponto relevante nesta discussã que, ao meu
ver, é inteiramente encoberto por Duhem, é que a decisão de subme-
ter a uma escolha as duas possíveis caracterizações do movimento e
a conseqüente decisão de aceitar uma delas como definição do movi-
mento natural de queda dos corpos, essas decisões não se podem dar
no mesmo plano da investigação medieval acerca do movimento, mas
comportam uma superação do próprio tratamento medieval.
Com efeito, no tratamento dos escolásticos do século XIV, a in-
tensidade de uma qualidade qualquer (isto é, a intensio formae da
qualidade) era considerada como uma função da extensão {exten-
sio) dessa mesma qualidade. No caso particular do movimento, os
medievais distinguiam dois tipos de extensões para as qualidades in-
tensivas fundamentais de velocidade e aceleração: 1) extensio secun-
dum distantia: a extensão segundo o caminho (distância, espaço)
percorrido pelo móvel; 2) extensio secundum tempus: a extensão se-
gundo a duração (tempo) do movimento. A variação da intensidade
da velocidade, que é a característica definitória dos movimentos dis-
formes (acelerados ou retardados), resultava assim passível de uma
dupla caracterização: seja em função do espaço, seja em função do
tempo, sem que os medievais encontrassem meio de distinguir a forma
correta da definição da aceleração. Prova disso é que tanto Buri-
dan, como Oresme, que fazem a discussão mais lúcida dessa questão

19
Ibidem, p. 566 e seg. A carta de Galileu a Fra Paolo Sarpi de 16 de outubro
de 1604 se encontra em Le Opere di Galileo Galilei, Edizione Nazionale, Vol.
X, p.115-116. A carta de Descartes a Mersenne de 13 de novembro de 1629 se
encontra em Oeuvres de Descartes, ed. Adam e Tannery, Correspondance, tomo I,
p. 69-73. Galileu retoma o erro envolvido na definição segundo a qual a velocidade
de um movimento uniformemente acelerado cresce proporcionalmente ao espaço
percorrido em Duas Novas Ciências, p. 131-2, mas seu argumento para afastar
essa definição contém uma falácia, que não será discutida aqui.
Coleção CLE V.11
Pablo Rubén Mariconda 133

no século XIV, não optam por uma delas, ficando sua discussão no
plano puramente conceituai da organicidade lógica de cada uma das
alternativas20, sem sentir a necessidade de confrontar cada uma das
alternativas em discussão com as observações dos movimentos na-
turais, sem colocar a questão genuinamente empírica - como o faz
Galileu21 - de qual delas se adapta ao movimento natural observado
dos corpos em queda.
Além disso, não basta constatar que Galileu utiliza o teorema
mertoriano em sua análise cinemática da queda livre para afirmar,
como faz Duhem, a continuidade entre o tratamento medieval e o
tratamento de Galileu, pois o teorema mertoriano só se torna uma
das expressões formais da lei da queda livre, quando se reconhece
que o movimento de queda dos corpos é um exemplo in natura de
movimento com aceleração uniforme. Ou seja, era preciso aplicar
o teorema mertoriano (Teorema I dos Discorsi) à queda livre para
deduzir a famosa lei da queda livre dos corpos (Teorema II e corolários
dos Discorsi); e isso foi feito por Galileu22 e não pelos medievais, que
"não aplicaram seus teoremas cinemáticos relativos ao movimento
uniformemente acelerado à descrição do comportamento dos corpos
em queda livre"23.
Outro aspecto da leitura de Duhem que salta aos olhos concerne
a duas omissões particularmente importantes que são, de certo modo,
conseqüências de sua adesão estrita à tese da continuidade do desen-
volvimento científico. Em primeiro lugar, Duhem não apresenta, e
conseqüentemente não discute, o grupo de três proposições que se se-
gue à prova do teorema mertoriano da velocidade média. Esse grupo
de proposições está composto pelo Teorema II e seus dois corolários
e constitui a formulação matemática da lei da queda dos corpos24.
Assim, no Teorema II, Galileu prova a proporcionalidade, num mo-
vimento uniformemente acelerado, entre os espaços percorridos e os
20
Paia uma discussão interessante dessa questão em Buridan e Oresme, ver
Clagett, Marshal, La Sciema delia Meccanica nel Medioevo, p. 9; em particular
p. 588, 591 e 600. Cf. Johannis Buridan, Quaestionea super libris quattuor de
Caelo et mundo, ed. E. A. Moody, Cambridge, Mass., 1942. Nicole Oresme, Le
livre du ciei et du monde.
J1
GALILEI, G. DuasNovas Ciências, p. 126-127.
22
Cf. a esse propósito Clagett, op. cit., p.283.
"CLAGETT, op. cit., p.17.
24
GALILEI, G. Duas Novas Ciências, p. 136-141.
Coleção CLE V.11
134 Duhem e Galileu

quadrados dos tempos e, no corolário I, apresenta a prova alternativa


segundo a qual, quando a definição de movimento uniformemente ace-
lerado é satisfeita, os espaços percorridos crescem segundo a ordem
dos números ímpares ab unitate. Ora, a discussão relevante neste
contexto deveria procurar entender porque os autores medievais não
chegaram à formulação e prova dessa relação matemática que é con-
siderada como a lei da queda dos corpos. Essa discussão Duhem não
a faz, deixando no leitor a impressão de que, a partir dos desenvolvi-
mentos medievais, a descoberta seria apenas mais um passo na mesma
direção, quando na verdade ela supõe uma ruptura com a tradição
anterior, ruptura que discutiremos adiante.
Em segundo lugar, Duhem não faz qualquer menção à Quarta Jor-
nada dos Discorsi, silenciando sobre a teoria dos projéteis de Galileu,
que se assenta em parte num princípio de composição dos movimen-
tos que está em completo desacordo com as concepções cosmológicas
dos terministas parisienses. Como reconhece Galileu, o principio de
composição opera através de um argumento ex suppositione,
pois, supõe que o movimento transversal se mantém sempre uni-
forme e que o movimento natural descendente conserva também sua
característica de acelerar-se sempre proporcionalmente ao quadrado
dos tempos e que tais movimentos e suas velocidades, ao serem com-
binados, não se alteram, nem se perturbam, de modo que em última
análise a trajetória do projétil, durante o movimento, não sofre ne-
nhuma alteração de natureza. ..25.
Isso significa basicamente que para Galileu um projétil pode estar
naturalmente animado por dois movimentos, dos quais um deles - o
movimento para baixo - seria considerado pelos medievais como na-
tural e o outro, o movimento transversal de projeção, como violento.
Ora, essa concorrência de dois movimentos de natureza supostamente
diferentes num mesmo móvel, com base na suposição de que o movi-
mento composto não sofre alteração de natureza, é impossível para
uma concepção do movimento que, como a dos terministas parisi-
enses, aceita uma distinção de natureza entre movimentos violentos
e naturais. Galileu, por outro lado, afirma que o movimento dos
projéteis é um movimento tão natural quanto o movimento de queda
de um corpo, posto que está sujeito às mesmas leis que este último.
Percebe-se neste ponto que a ruptura está muito mais no conceito de
25
Ibidem, p. 202. O grifo é meu.
Coleção CLE V.11
Pabio Rubén Mariconda 135

natureza que subjaz às teorias mecânicas de Galileu e dos terministas


parisienses.
Finalmente - o que é de meu ponto de vista o aspecto mais fun-
damental e revolucionário do pensamento de Galileu frente à tradição
dos terministas parisienses Galileu estabelece a lei da queda dos
corpos por um raciocínio que não se limita a utilizar Arquimedes ape-
nas como ideal de sistematização dedutiva, como sugere Duhem, que
se refere somente a duas leis essenciais da queda dos corpos: a lei
segundo a qual a queda dos corpos é um movimento uniformemente
acelerado e a lei de que, num movimento desse tipo, a velocidade num
dado instante pode ser medida pela distância que o corpo percorreria
em movimento uniforme, num tempo dado, com uma velocidade que
é a média entre a velocidade inicial e a velocidade no instante con-
siderado, mas silencia sobre a lei fundamental da queda dos corpos,
enunciada por Galileu da seguinte maneira:
Todos os corpos caem com a mesma velocidade, se for eliminada a
resistência do meio

ou, o que é o mesmo:


Todos os corpos caem, no vácuo, com a mesma velocidade26.
*
E basicamente no raciocínio, que conduz Galileu ao estabeleci-
mento dessa lei, que se pode encontrar a radicalidade e novidade do
tratamento dado por ele à queda dos corpos e que consiste em con-
siderar o movimento de queda de um grave como um caso particular
do fenômeno arquimediano de imersão de um corpo num meio fluido,
com a conseqüência de que a queda de um corpo não tem qualquer
relação com o peso do corpo considerado como causa intrínseca de
um ímpeto responsável pela aceleração da queda27.
26
GALILEI, G. Duas Novas Ciências, Primeira Jornada, p. 62-63.
27
Essa estreita vincularão entre ímpeto e peso do corpo pode ser percebida na
explicação que Buridan, nos Questiones octavi libri phystcorum, apresenta para a
aceleração dos corpos em queda: ^Essa parece ser também a causa pela qual a
queda natural dos graves vai se acelerando sem cessar. No início dessa queda, com
efeito, a gravidade movia sozinha o corpo; ele cai portanto mais lentamente; mas,
logo depois, essa gravidade imprime um certo ímpeto ao corpo pesado, ímpeto
que move o corpo ao mesmo tempo que a gravidade; o movimento torna-se então
mais rápido; mas mais ele se torna rápido, mais o ímpeto se torna intenso; vê-se
portanto que o movimento irá continuamente acelerando-se." (Citado por Duhem,
Etudes sur Léonard de Vinci, 3ème. série, p. 41.)
Coleção CLE V.11
136 Duhem e Galileu

O raciocínio de Galileu comporta claramente uma passagem ao


limite: se a diferença das velocidades de queda dos corpos de pesos
diferentes diminui à medida que diminui a densidade (resistência)
do meio em que se dá a queda, então no limite, isto é, num meio
de densidade nula como seria o vazio, não existirá diferença alguma
entre as velocidades dos dois corpos em queda, por maior que seja a
diferença dos pesos desses corpos.
Em suma, o raciocínio de Galileu exclui a possibilidade de dar
à queda dos corpos um tratamento dinâmico baseado na teoria do
ímpeto, pois qualquer que seja a causa da aceleração.dos corpos em
queda, ela certamente não é o próprio peso do corpo. E Galileu de-
clara explicitamente não saber qual é essa causa, sendo-lhe suficiente,
do ponto de vista dinâmico, a constatação de que os corpos apresen-
tam uma tendência de se dirigir para o centro da terra28. 0 caráter
fundamental da lei reside, portanto, justamente no fato de que, a par-
tir do estabelecimento pelo raciocínio de passagem ao limite do com-
portamento universal dos corpos com relação à aceleração de queda,
se abre a possibilidade de um estudo dos efeitos (e, portanto, de um
estudo puramente cinemático) do movimento de queda independente
de considerações acerca das causas (dinâmicas) desse movimento. E
esse tratamento cinemático independente para a queda dos corpos é
algo que nunca fez parte do horizonte da pesquisa mecânica medieval.
Mas não é apenas no estabelecimento da lei da queda dos cor-
pos que Galileu emprega o raciocínio de passagem ao limite; esse
raciocínio fica subentendido em outro ponto muito mais fundamen-
tal da sistematização da teoria do movimento e mostra com clareza
que Galileu se coloca num plano inteiramente diferente do de seus
precursores medievais, justamente no que diz respeito ao conceito
fundamental de velocidade. Com efeito, Galileu define movimento
uniforme como

aquele cujos espaços, percorridos por um móvel em tempos iguais


quaisquer, são iguais entre si29;

e chama a atenção na Advertência, que se segue imediatamente à de-


finição, que esta última difere da definição tradicional pela introdução
28
GALILEI, G. Duas Novas Ciências, p. 131.
29
idem, p. 121.
Coleção CLE V.11
Paòio Rubén Mariconda 137

da palavra quibuscunque (qualquer), com a conseqüência de que os


espaços percorridos são iguais para todos os tempos iguais:
Parece oportuno acrescentar à velha definição (que chama simples-
mente de movimento uniforme àquele que, em tempos iguais, per-
corre espaços iguais) a palavra quibuscunque, ou seja, para todos
os tempos iguais; pode, efetivamente, acontecer que um móvel per-
corra espaços iguais em tempos iguais determinados, ainda que não
sejam iguais os espaços percorridos em frações menores e iguais des-
ses mesmos tempos30.

Ora, o raciocínio que fica subentendido consistiria em tomar inter-


valos temporais iguais cada vez menores até que tivéssemos, no limite,
apenas instantes temporais. Pode-se, portanto, considerar que o mo-
vimento uniforme é aquele que, no limite, tem a mesma velocidade
em todos os instantes de tempo. A definição acaba assim, de certo
modo, dependendo da noção de velocidade instantânea31.
Entretanto, quando consideramos a análise conceituai a que os
medievais submeteram a noção de velocidade, percebemos que é de
certo modo anacrônico falar de velocidade instantânea no sentido ga-
lileano. Ao contrário, para os medievais a velocidade é uma qualidade
que é sempre caracterizada por uma intensidade e por uma extensão
que é a medida dessa intensidade, de modo que a intensidade ela
mesma é totalmente desprovida de sentido concreto. Ora, é exata-
mente nisso que reside a importância da chamada regra mertoriana da
velocidade média, referida por Duhem como sendo a segunda lei es-
sencial da queda dos corpos descoberta pelos medievais. Ela permite
definir a quantidade da intensidade da velocidade que varia uniforme-
mente por referência a um movimento uniforme de mesma extensão
(temporal ou espacial). Em outros termos, o teorema mertoriano
submete a compreensão do movimento uniformemente acelerado ao
movimento uniforme, com a conseqüência que o único conceito de ve-
locidade que tem sentido quantitativo para os medievais é o conceito
de velocidade média32,
A insistência de Galileu, na Advertência sobre a modificação da
definição tradicional de movimento uniforme, mostra que ele compre-
30
idem, p. 121-122.
31
MERLEAY-PONTY, M. Leçons sur la genèse des Théories Physiques, p. 28.
32
Sobre este importante ponto ver também Isabelle Stengers, Quem tem medo
da ciência?, p. 32-33.
Coleção CLE V.11
138 Duhem e Galileu

endeu a indispensabilidade de "possuir um conceito exato do movi-


mento uniforme, bem diferente daquele de um movimento uniforme
na media, do qual não se pode obter, mesmo de modo semi-intuitivo,
o conceito de velocidade instantânea,. 33 Este aspecto parece sufi-
ciente para mostrar que, embora Galileu utilize a regra mertoriana
para obter a medida da velocidade de um movimento uniformemente
acelerado, sua compreensão deste último não depende da noção de
velocidade média, mas antes da noção de velocidade instantânea.
A análise cinemática medieval estava, por outro lado, sujeita a
uma importante limitação no que concerne à medida dos movimen-
tos acelerados. Limitação aliás que está ligada à própria aplicação
do teorema mertoriano, pois a regra torna possível comparar e, por-
tanto, medir movimentos que têm uma extensão comum, por exem-
plo, dois movimentos acelerados que se produzem no mesmo espaço
ou no mesmo tempo. Mas era aparentemente incapaz de comparar
movimentos acelerados diferentes que se produzem em tempos dife-
rentes e espaços diferentes.
/
E neste ponto que intervém o princípio do movimento, postulado
por Galileu na Terceira Jornada dos Discorsi, segundo o qual
os graus de velocidade alcançados por um mesmo móvel em planos
diferentemente inclinados são iguais quando as alturas desses planos
também são iguais34.

Duhem não faz qualquer discussão mais detalhada desse princípio,


limitando-se a afirmar que ele pode ser encontrado em Leonardo
da Vinci, que neste aspecto teria antecipado Galileu35. Em pri-
meiro lugar, não fica claro o sentido que Duhem empresta a essa sua
afirmação, pois se é verdade que se pode encontrar em Leonardo da
Vinci uma proposição equivalente à de Galileu, não é menos verdade
que uma proposição não é em si mesma (isto é, intrinsecamente) mais
do que uma proposição, e que se a consideramos como um princípio
(hipótese, teorema, etc) é em decorrência da posição que ela ocupa
no interior de um sistema de proposições. Mas Leonardo não extrai
de seu suposto princípio nenhuma conseqüência importante, nem se
pode dizer que exista em sua obra um sistema dedutivo matemático
33
MERLEAU-PONTY, M., op. cit., p. 28. Os grifos são do autor.
34
GALILEI, G. Duas Novas Ciências, p. 133.
35
DUHEM, P. Études sur Léonard de Vinci, 3ème serie, p. 518-519.
Coleção CLE V.11
Pabio Rubén Mariconda 139

de proposições mecânicas, de modo que não fica claro em que sentido


Leonardo teria antecipado Galileu.
Mas, deixando isso de lado e retornando ao fio de nosso argu-
mento, a ausência de discussão por parte de Duhem da necessidade
e alcance do princípio postulado por Galileu obscurece totalmente o
que se pode considerar como o aspecto central da superação galileana
do tratamento mecânico medieval, que é o de permitir fazer exata-
mente aquilo que a regra mertoriana deixa de fazer, a saber, comparar
movimentos com acelerações diferentes que percorrem espaços dife-
rentes em tempos diferentes. E fácil ver como o princípio de Galileu
permite fazer isso.
Tomemos uma família de pla-
nos inclinados, AC, AD, AE,
AF, etc, todos/ de mesma
altura AB. E óbvio que
um móvel que caísse vertical-
mente por AB ou descesse pe-
los planos AC,AD,AE,AF,
percorreria distâncias diferen-
tes em tempos diferentes.
Ora, o princípio afirma que
o corpo chegaria nos pontos D
B,C,D, E, F, com a mesma
velocidade, vale dizer, teria nos pontos B,C, D, E, F a mesma ve-
locidade instantânea; e estabelece desse modo um termo comum de
comparação entre os movimentos acelerados diferentes, a saber, a
altura da queda:
Para determinar e representar este ímpeto e velocidade particular,
nosso Autor nào encontrou outro meio mais adequado do que servir-
se do ímpeto adquirido por um móvel durante um movimento natu-
ralmente acelerado, pois qualquer momento adquirido graças a esse
último movimento e convertido em movimento uniforme conserva
precisamente seu valor limite, a saber, precisamente que, durante
um intervalo de tempo igual ao da queda, percorre uma distância
que é o dobro da altura pela qual caiu36.
Em suma, dois pontos são relevantes aqui. Em primeiro lugar, o
princípio dá um sentido físico e concreto à noção de velocidade ins-
36
GALILEI, G. Duas Novas Ciências, p. 264.
Coleção CLE V.11
140 Duhem e Galileu

tantânea, proporcionando um termo comum para a medida da velo-


cidade de qualquer movimento uniformemente acelerado: esse termo
comum é fornecido pela altura a que uma dada velocidade seria ca-
paz de elevar o corpo ou, o que é o mesmo, pela altura da qual o
corpo cai até atingir a velocidade a ser medida. Em segundo lugar,
o princípio permite generalizar a classe dos movimentos de queda,
estendendo a análise da queda dos corpos ao movimento por planos
inclinados, ao movimento pendular e ao movimento dos projéteis,
todos entendidos agora como movimentos naturais. Ao meu ver, es-
ses dois aspectos são suficientes para conceder com justiça a Galileu
o título de "primeiro físico moderno" e mostrar que sua realização
pressupõe uma verdadeira superação do trabalho de seus precursores
medievais, principalmente no que diz respeito ao caráter experimen-
tal da mecânica de Galileu que, como vimos, baseia-se numa nova
concepção da natureza.
Mas deixemos de lado a defesa da originalidade da mecânica de
Galileu e concentremos nossa atenção na crítica que Duhem faz da
defesa galileana da cosmologia de Copérnico, que consideramos, no
início deste ensaio37, como segunda parte da avaliação duhemiana de
Galileu.

IV

A segunda parte da apreciação duhemiana de Galileu está ex-


pressamente formulada num ensaio publicado em 1908 com o título
erudito EíiZEIN TA ÍAINOMENA e o subtítulo acadêmico e espe-
cializado Ensaio sobre a noção de teoria física de Platão a Galileu*8.
Nesse ensaio, Duhem empreende uma investigação histórica deta-
lhada da concepção de teoria física com o objetivo de ilustrar e confir-
mar suas teses metodológicas sobre o objeto da teoria física, expostas
em seu influente livro La théorie physique. Son objet. Sa structure,
publicado em 1905.
37
Cf. Item II, p. 127.
38
Utilizo para esta exposição a seguinte edição: DUHEM, P. EÍ1ZEIN TA
<&AINOMENA (Essai sur la Notion de Théorie Physique de Platon a Galilée),
Paris, Vrin, 1990. O ensaio traduzido ao português por Roberto Martins foi pu-
blicado com o título Salvar os fenômenos nos Cadernos de História e Filosofia da
Ciência, Suplemento 3, 1984.
Coleção CLE V.11
Pablo Rübén Maríconda 141

Na verdade, o ensaio de 1893, intitulado "Physique et


metaphysique", no qual se encontra a expressão mais clara da de-
marcação duhemiana entre física e metafísica - demarcação que, como
vimos39, preside a caracterização do objeto da física e serve como base
para a adoção da metodologia de "salvar os fenômenos,, -, já contém
um esboço de reconstrução histórica que visava justificar pela tradição
(e, portanto, historicamente) a adoção dessa metodologia instrumen-
talista. Duhem localizava então essa tradição em Aristóteles e seus co-
mentadores - em particular Tomás de Aquino; nos tratados mecânicos
de Arquimedes, por exemplo, no Sobre os corpos flutuantes; e final-
mente no próprio Copérnico que, segundo Duhem40, "procede em
astronomia como Arquimedes em hidrostática". E qual é esse modo
de procedimento seguido por tão respeitável tradição?
Esse modo de proceder, essa metodologia, Duhem os encontra per-
feitamente sintetizados no Prefácio de Osiander ao De Revolutionibus
Orbium Coelestium de Copérnico, principalmente naquela passagem
que se refere à natureza das hipóteses astronômicas:
Nem é pois necessário que essas hipóteses sejam verdadeiras, nem
tampouco verossímeis, mas basta só isso: que mostrem um cálculo
congruente com as observações... Ninguém, no que diz respeito às
hipóteses, espere algo de CERTO da astronomia, porque nada disso
ela pode oferecer41.

Está claro que para Duhem a tradição nada mais faz do que
prescrever a metodologia de EúÇsci' rà yaLVÓpevoL, para a qual as
hipóteses astronômicas são artifícios (constructos) matemáticos com
os quais organizamos as observações celestes e não explicações me-
tafísicas sobre a natureza desses fenômenos observados ou sobre a
razão de ser das leis experimentais, isto é, das regularidades observa-
das na sucessão dos fenômenos.
Após essa tentativa de justificação histórica da metodologia de
salvar os fenômenos, seguem-se dois parágrafos que podem ser con-
39
Cf. p. 5 acima.
40
DUHEM, P., "Física e Metaíísica,,, Ciência e Filosofia, n. 4, p. 51-54.; p,54.
41
Cf. DUHEM, P. Física e metafísica, nota 11, p. 54. O prefácio de Osiander foi
publicado sob o título Andreas Osiander: Prefácio ao "De Revolutionibus Orbium
Coelestium" de Copérnico, com tradução, introdução e notas de Zeljko Loparic
nos Cadernos de História e Filosofia da Ciência CLE-UNICAMP, n. 1, p. 44-61,
1980.
Coleção CLE V.11
142 Duhem e Galileu

siderados como uma síntese da avaliação duhemiana da contribuição


científica dos séculos XVI e XVII e, por isso, cito-os por extenso:
No fim do século XVI e início do século XVII o espírito humano
sofreu uma das maiores revoluções que subverteram o mundo do
pensamento. As regras lógicas, traçadas pelo gênio grego, tinham
sido aceitas até então com uma inteligente docilidade pelos mestres
da Escola, depois com uma estreita servilidade pela escolástica em
decadência. Nesse momento, os pensadores a rejeitam; pretendem,
então, reformar a lógica, forjar de novo os instrumentos dos quais
a razão humana se serve e, com Bacon, criar um novum organum.
Quebram as linhas de demarcação estabelecidas pelos peripatéticos
entre os diversos ramos do saber humano; o distinguo, que servia
para delimitar exatamente as questões e para marcar a cada método
o campo que lhe é próprio, torna-se um termo ridículo do qual se
apodera a comédia. Vê-se, então, desaparecer a velha barreira que
separava o estudo dos fenômenos físicos e de suas leis da procura
das causas; então, vê-se as teorias físicas tomadas por explicações
metafísicas, os sistemas metafísicos procurando estabelecer, por via
dedutiva, teorias físicas.

A ilusão de que as teorias físicas atingem as verdadeiras causas e


a própria razão de ser das coisas penetra em todos os sentidos os
escritos de Kepler e Galileu. As discussões que compõem o processo
de Galileu seriam incompreensíveis a quem não visse nisso a luta
entre o físico que quer que suas teorias sejam não somente a repre-
sentação, mas ainda a explicação dos fenômenos e os teólogos que
mantêm a velha distinção e não admitem que os raciocínios físicos e
mecânicos de Galileu tenham qualquer coisa contra sua cosmologia.
Mas aquele que mais contribuiu para romper a barreira entre a física
e a metafísica foi Descartes43.
Duas conseqüências podem ser imediatamente obtidas a par-
tir dessa caracterização da chamada Revolução Científica do século
XVII: 1) para Duhem a profunda transformação do espírito humano
ocorrida nesse século é eminentemente metafísica e não científica,
posto que, como vimos, a revolução científica teria ocorrido no século
XIII, mais precisamente em 1277; 2) se aceitar o método de salvar os
fenômenos significa respeitar uma demarcação estrita entre física e
metafísica, então abandoná-lo significa romper o distinguo ou, como
prefere Duhem de modo ostensivamente crítico, confundir as duas
disciplinas e promover a invasão da física pela metafísica. E embora
Descartes seja o principal responsável por essa confusão entre física e
42
DUHEM, P., Física e metafísica. Op. cíí., p. 54.
Coleção CLE V.11
Pablo Rubén Mariconda 143

metafísica, Galileu compartilha com Kepler ua ilusão de que as teorias


físicas atingem as verdadeiras causas e a própria razão das coisas".
Em suma, a profunda transformação operada pelos séculos XVI e
XVII se assenta, para Duhem, numa confusão. Mais que liberadora,
essa transformação serve antes como obstáculo ao desenvolvimento
da ciência.
Nesse quadro interpretativo, o processo de Galileu só pode então
ser compreendido como uma luta entre a concepção realista (mecani-
cista) de que as teorias físicas podem explicar os fenômenos naturais e
u
os teólogos que mantêm a velha distinção [entre física e metafísica] e
não admitem que os raciocínios físicos e mecânicos de Galileu tenham
qualquer coisa contra sua cosmologia". Não há como deixar de perce-
ber, nesta linha de raciocínio, uma condenação implícita de Galileu,
uma vez que Duhem se alinha metodologicamente com os opositores
de Galileu: uos teólogos que mantém a velha distinção". 0 ensaio de
1893 já contém, assim, implícita uma condenação de Galileu, por via
de uma adesão explícita à posição da teologia católica que presidiu o
processo contra Galileu.
Duhem retoma em EÍÍZEIN TA $AINOMENA, o delicado pro-
blema do "processo de Galileu", a saber, da condenação pela In-
quisição da defesa galileana da astronomia de Copérnico. Delicado,
pois essa defesa conduziu, como se sabe: 1) em 1616, à condenação
do De Revolutionibus de Copérnico e à admoestação (instrumenta-
lista) de Bellarmino a Galileu; 2) em 1633, à condenação teológica
e cosmológica do sistema de Copérnico e à abjuração humilhante e
penitente de Galileu. Nessa retomada, não é difícil ver que Duhem
aprofunda a linha de argumentação de "Física e Metafísica", forta-
lecida pela revolução historiográfica já discutida da redescoberta da
ciência medieval.
Assim, após apresentar as hipóteses de Copérnico, que são basi-
camente duas:

[a ] que a Terra não está imóvel, nem no centro do mundo, mas


move-se em torno de si mesma, ou seja, com movimento diurno;

[b ] que o Sol é o centro do mundo e totalmente imóvel de movi-


mento local,

Duhem expressa claramente o que, no seu modo de ver, é a posição


Coleção CLE V.11
144 Duhem e Galileu

de Galileu concernente à natureza das hipóteses de Copérnico:

ele [Galileu] pretendia que as hipóteses do novo sistema não fossem


artifícios próprios ao cálculo de tabelas, mas proposições conformes à
natureza das coisas; ele pretendia que elas fossem estabelecidas por
razões de Física. Pode-se mesmo dizer que essa confirmação pela
Física das hipóteses copernicanas é o centro para o qual convergem
as pesquisas mais diversas de Galileu; é para esse mesmo objeto que
concorrem seja suas observações de astrônomo, seja suas teorias de
mecânico43.

E evidente que "Física" não expressa nesta passagem o mesmo


que entendemos hoje por esse termo. Ele está associado à noção de
"proposição conforme à natureza das coisas" e, portanto, está asso-
ciado no sentido duhemiano à metafísica, ou se se preferir, à física
no sentido aristotélico. A passagem expressa, portanto, o reconheci-
mento de Duhem de que a defesa de Galileu do sistema copernicano é
uma defesa cosmológica, para a qual concorrem tanto as investigações
mecânicas quanto as investigações astronômicas de Galileu. E essa
discussão é tida por Duhem como sendo realista.
A esse posicionamento realista de Galileu se opôs a Inquisição no
processo de 1616,

perguntando-se se essas duas proposições possuíam as marcas que,


por comum acordo, copernicanos e ptolomaicos requeriam de toda
hipótese astronômica aceitável: essas proposições eram compatíveis
com a Sã Física? Eram elas conciliáveis com as Escrituras divina-
mente inspiradas?44.

Em outras palavras, para Duhem, a Inquisição põe a questão no


mesmo plano em que Galileu conduz sua polêmica em defesa do co-
pernicanismo: no plano realista. 0 resultado parece agora inevitável.
Do ponto de vista da sã física, que é a de Aristóteles e Averrões, as
duas proposições incriminadas são stultae et absurdae in Philosophia.
Do ponto de vista das Escrituras, a primeira proposição era formaliter
haeretica, a segunda era ad minus in fide errônea.
Convém notar aqui, ainda que de passagem, que Duhem não
tece qualquer comentário acerca do dogmatismo com que a filoso-
fia natural de Aristóteles é tomada como "sã física", nem menciona
43
DUHEM, P. EQZEIN TA «MINOMENA, p. 126-7.
44
DUHEM, P. EÍIZEIN TA $AINOMENA, p. 127.
Coleção CLE V.11
Pablo Rubén Mariconda 145

o realismo pressuposto pela interpretação literal (ortodoxa) das Sa-


gradas Escrituras. A condenação das duas hipóteses copernicanas
apela de modo claro para o princípio de autoridade e não se põe no
plano estritamente metodológico da adequação dos dados observa-
cionais (mecânicos ou astronômicos) com o sistema astronômico de
Copérnico.
Contudo, Duhem parece mais preocupado em mostrar que o ve-
redito do processo de 1616, segundo o qual
é necessário rejeitar inteiramente as hipóteses de Copérnico, que não
se deve usá-las nem mesmo com o único hm de salvar oí fenômenos;
assim, o Santo Ofício advertia Galileu de não ensinar de modo algum
{quovis modus) a doutrina de Copérnico45.
só pode ser compreendido contra um pano de fundo realista da
polêmica cosmológica. Na verdade, para Duhem, a condenação pode-
ria ter sido evitada, se o confronto entre ptolomaicos e copernicanos
tivesse sido conduzido num plano estritamente metodológico:
A condenação do Santo Ofício era uma conseqüência do choque que
se tinha produzido entre dois reaiismos. Esse choque violento podia
ter sido evitado, o debate entre ptolomaicos e copernicanos podia
ter sido mantido unicamente no terreno da astronomia, se se ti-
vesse escutado os sábios preceitos referentes à natureza das teorias
científicas e das hipóteses sobre as quais elas repousam; esses pre-
ceitos, formulados por Posidonius, por Ptolomeu, por Proclus, por
Simplício, uma tradição ininterrupta os havia conduzido até Osian-
der, até Reinhold, até Mélanchton...46.
0 veredito de Duhem é claro: o abandono da metodologia de sal-
var os fenômenos e a conseqüente adesão ao realismo, à pretensão de
que o sistema de Copérnico pode explicar à verdadeira natureza dos
fenômenos astronômicos observados, ou que ele revela as causas des-
ses fenômenos - e que, portanto, pode erigir-se como uma cosmologia
alternativa à cosmologia tradicional - é a principal razão que conduz
à condenação.
45
DUHEM, P. SOZEIN TA ^AINOMENA, p. 128. Não é verdade que Galileu
tenha recebido em 1616 uma advertência expressa de não ensinar quovis modus
a doutrina de Copérnico. Ver a esse respeito, SANTILLANA, G. de, The Crime
of Galileo, Chicago : The University of Chicago Press, 1976. A afirmação de
Duhem parece atender muito mais à lógica interna de sua argumentação que
visa responsabilizar o realismo pela condenação do que a uma preocupação de
adequação histórica e factual do relato.
46
DUHEM, P. EDZEIN TA ^AINOMENA, p. 128.
Coleção CLE V.11
146 Duhem e Gaiiieu

A partir deste ponto o objetivo de Duhem se torna claro. Duhem


procura mostrar que a defesa galileana da astronomia copernicana
está baseada numa concepção insustentável do método científico. Sua
argumentação procura então estabelecer o juízo segundo o qual,
é necessário reconhecer e declarar hoje em dia que a Lógica estava
ao lado de Osiander, de Bellarmino e de Urbano VIII, e não do lado
de Kepler e de Galileo; que aqueles haviam compreendido o alcance
exato do método experimental e que, a esse respeito, estes últimos
se tinham enganado47.

E no que consiste esse engano? Ele consiste basicamente numa


concepção errônea da natureza das hipóteses científicas ou, nas pala-
vras de Duhem:
Apesar de Kepler e de Galileu, acreditamos hoje, com Osiander e
Bellarmino, que as hipóteses da Física não são senão artifícios ma-
temáticos destinados a salvar os fenômenos**.

0 argumento de Duhem tem, portanto, um caráter evidentemente


retrospectivo; ou seja, é feito do ponto de vista da concepção atual
que os físicos têm do alcance do método científico e experimental, e se
assenta no reconhecimento da falibilidade metodológica do conheci-
mento científico: nenhum método é suficiente para chegar à verdade
última, à natureza essencial dos fenômenos naturais estudados.
E por isso que para Duhem, uma vez abandonada a prudência
metodológica instrumentalista — que ele encontra admiraveimente ex-
pressa na famosa carta de 12 de abril de 1615 do Cardeal Bellarmino
a Antonio Foscarini49 -, Galileu teria se comprometido com um ra-
ciocínio que supõe que os experimentos mecânicos e as observações
astronômicas podem decidir acerca da realidade e/ou verdade de
hipóteses astronômicas concorrentes ou conflitantes. Eis no que con-
siste basicamente a estratégia metodológica galileana para Duhem:
submeter as duas teorias astronômicas conflitantes a um experimento
crucial, com base no qual se possa decidir conclusivamente por um
dos sistemas em confronto:
Duas doutrinas são apresentadas, das quais cada uma pretende ser
possuidora da verdade; mas uma diz a verdade, a outra mente; quem
47
DUHEM, P. EQZEIN TA SAINOMENA, p. 136.
48
DUHEM, P. EQZEIN TA «ÊAINOMENA, p. 140.
49
Cf. DUHEM, P. EQZEIN TA ^AINOMENA, p. 128-9.
Coleção CLE V.11
Pablo Rubén Mar/conda 147

decidirá? A experiência. Aquela das duas doutrinas com a qual ela


se recusa estar de acordo será reconhecida como errônea e, devido a
esse mesmo fato, a outra doutrina será proclamada como conforme
à realidade. A ruína de um dos dois sistemas opostos assegura a
certeza do sistema oposto como, na Geometria, o caráter absurdo de
uma proposição acarreta a exatidão da proposição contraditória50.

Ora, esse raciocínio parece aos olhos de Duhem totalmente infun-


dado basicamente por duas razões. Em primeiro lugar, porque trans-
fere para o método experimental um raciocínio de cunho geométrico
(matemático): o experimento crucial seria uma espécie de redução
ao absurdo experimental, na qual a contradição experimental repre-
sentaria o papel da contradição lógica da redução ao absurdo dos
geômetras51. Em segundo lugar, porque não percebe a falsidade da
suposição na qual se baseia a utilização como método de demons-
tração de um recurso argumentativo eminentemente refutativo tal
como a redução ao absurdo52. Mas ao refutar uma das teorias, o
experimento não prova definitivamente a verdade da outra, a não
ser que se considere que as proposições sejam contraditórias entre
si como ocorre na matemática. Certamente não se pode considerar
que os dois sistemas astronômicos sejam contraditórios neste sentido,
embora sejam evidentemente contrários: a falsidade de um sistema
permite então afirmar apenas a possibilidade da verdade do outro,
posto que ambos sistemas podem ser falsos.
A afirmação da verdade do sistema de Copérnico em face da
refutação do sistema de Ptolomeu transcende as razões puramente
lógicas - que só garantem um juízo provável - e só se sustenta por-
50
DUHEM, P. EHZEIN TA ^AINOMENA, p. 131-2.
51
DUHEM, P. La theorie physique, p. 303. "Um semelhante modo de demons-
tração parece tão convincente, tão irrefutável quanto a redução ao absurdo, usual
nos geômetras; é, de resto, sobre a redução ao absurdo que é calcada essa demons-
tração, a contradição experimental representando numa o papel que a contradição
lógica joga na outra".
52
DUHEM, P. La théorie physique, p. 308: "A redução ao absurdo, que parece
não ser mais que um meio de refutação, pode tornar-se um método de demons-
tração; para demonstrar que uma proposição é verdadeira, é suficiente encurra-
lar numa conseqüência absurda aquele que admitisse a proposição contraditória
daquela; sabe-se qual é o partido que os geômetras gregos tiraram desse modo
de demonstração." Para a análise que Duhem faz dos experimentos cruciais, ver
DUHEM, P. La théorie physique, p. 308-12; e também Algumas reflexões acerca
da física experimental. Ciência e Filosofia, v. 4, p. 95-7, 1989.
Coleção CLE V.11
148 Duhem e Galileu

que Galileu se deixa vencer pela ilusão realista de que a astronomia de


Copérnico descreve a verdadeira natureza dos fenômenos que estuda.
Ofuscado por essa ilusão, Galileu não percebe que sua argumentação
por experimentos cruciais só seria concludente quando fosse verda-
deira a suposição tacitamente aceita nesse raciocínio, a saber, que
não há outros sistemas astronômicos possíveis.
Ao se opor decididamente ao papel atribuído aos experimentos
cruciais, Duhem pretende estar também combatendo a imagem de
desenvolvimento científico segundo a qual
a ciência positiva progride por uma série de dilemas, dos quais cada
um é resolvido com o auxílio de um experimentum crucijr3.

Duliem reconhece que essa é uma imagem baconiana do pro-


gresso da ciência, mas afirma expressamente que Galileu e Francis
Bacon possuem aproximadamente a mesma opinião acerca wdo valor
do método experimental e da arte de utilizá-lo". Basta, portanto,
apenas transpor a crítica geral ao uso dos experimentos cruciais para
o caso da escolha entre os dois sistemas astronômicos, para mostrar
o caráter infundado da afirmação galileana da verdade e realidade da
astronomia de Copérnico.
Essa maneira de conceber o método experimental foi chamada a ter
uma grande voga, pois era muito simples; mas ela é inteiramente
falsa, porque é muito simples. Que os fenômenos deixem de ser sal-
vos pelo sistema de Ptolomeu; o sistema de Ptolomeu deverá ser
reconhecido como certamente falso. Não resultará de modo algum
que o sistema de Copérnico seja verdadeiro, porque o sistema de
Copérnico não é pura e simplesmente a contradição do sistema de
Ptolomeu. Que as hipóteses de Copérnico consigam salvar todas as
aparências conhecidas; concluiremos disso que essas hipóteses podem
ser verdadeiras; não se concluirá que elas são certamente verdadei-
ras; para legitimar esta conclusão, seria preciso provar anteriormente
que nenhum outro conjunto de hipóteses poderia ser imaginado, que
permitisse salvar tão bem as aparências; e esta última demonstração
jamais foi dada. No próprio tempo de Galileu, todas as observações
que se podiam invocar em favor do sistema de Copérnico não se
deixavam do mesmo modo salvar pelo sistema de Tycho Brahe?54.

A argumentação de Duhem não deixa qualquer dúvida: a con-


cepção que Galileu tem do método experimental é tosca e inadequada.
53
DUHEM, P. EQZEIN TA $AINOMENA, p. 132.
54
DUHEM, P. EílZEIN TA $AINOMENA, p. 132-3.
Coleção CLE V.11
Pablo Rubén Mariconda 149

Não se sustenta com base na mais simples análise lógica. O argumento


experimental com o qual Galileu pretende decidir sobre a verdade de
um dos dois sistemas astronômicos comete um erro banal: toma os
dois sistemas como contraditórios, quando eles são apenas contrários.
E Duhem aduz uma prova cabal do erro: Galileu não toma em con-
sideração o sistema de Brahe. Reduzido a pó o método experimental
de Galileu, pois sua forma argumentativa se assenta sobre um argu-
mento falacioso, Duhem procura levar-nos a aceitar que a Inquisição
- ou antes, a Igreja - tinha uma concepção mais adequada e mais
moderna do método experimental, concepção que Duhem resume na
adesão ao método de salvar os fenômenos.
Apesar disso, poderia parecer que, em sua conclusão, Duhem re-
conhece a contribuição de Kepler e Galileu para a unificação de inves-
tigações que a filosofia tradicional da natureza mantinha separadas,
pois afirma:

Apesar de Kepler e de Galileu, acreditamos hoje, com Osiander


e Bellarmino, que as hipóteses da Física não são senão artifícios
matemáticos destinados a salvar os fenômenos; mas graças a Ke-
pler e Galileu, exigimos deles que salvem ao mesmo tempo todos os
fenômenos do universo inanimado55.

Contudo, basta uma análise atenta do argumento que conduz a


essa conclusão de Duhem, para perceber que a contribuição de Galileu
e Kepler para a unificação da física é bastante diminuída. Com efeito,
Duhem reconhece de início que o princípio da separação cosmológica
entre Céu e Terra, no qual se assentava por sua vez a distinção entre
a mecânica terrestre e a astronomia, foi definitivamente abandonado
em vista das observações telescópicas de Galileu e que com isso ele
conseguiu unificar as duas físicas: "a física dos corpos celestes e a
física das coisas sublunares"56.
Mas Duhem afirma logo a seguir que o princípio de unificação
defendido por Copérnico, Kepler e Galileu, segundo o qual "a as-
tronomia deve tomar como hipóteses proposições cuja verdade seja
estabelecida pela física", possui dois sentidos: um sentido superfi-
cial e ilógico e outro sentido oculto, mais profundo e verdadeiro. No
primeiro sentido, a tese é entendida como se afirmasse que
55
DUHEM, P. EÍIZEIN TA $AINOMENA, p. 140.
56
DUHEM, P. EDZEIN TA ÍAINOMENA, p. 139.
Coleção CLE V.11
150 Duhem e Galileu

as hipóteses da astronomia eram juízos sobre a natureza das coisas


celestes e sobre seus movimentos reais; ela podia signiAcar que ao
controlar a adequação dessas hipóteses, o método experimental enri-
queceria nossos conhecimentos cosmológicos com novas verdades57.

É neste sentido que os astrônomos dos séculos XVI e XVII tomam


o princípio e a argumentação de Duhem, exposta acima, procurou
mostrar que nesse sentido ele é falso e nocivo. Por outro lado, no
outro sentido,
ao exigir que as hipóteses da astronomia estivessem de acordo com
os ensinamentos da física, exigia-se que a teoria dos movimentos ce-
lestes repousasse sobre bases capazes de suportar igualmente a teoria
dos movimentos que observamos aqui embaixo; exigia-se que o curso
dos astros, o Auxo e o reAuxo do mar, o movimento dos projéteis, a
queda dos graves fossem salvos com a ajuda de um mesmo conjunto
de postulados, formulados na linguagem das matemáticas58.

Ora, para Duhem, esse sentido do princípio ficava inteira-


mente dissimulado e não era conscientemente sustentado nem por
Copérnico, nem por Kepler, nem por Galileu. Que ele se tenha im-
posto a partir da síntese newtoniana é, portanto, meramente acidental
para esses autores, porque, na verdade, sua interpretação do princípio
é mais impeditiva do que revolucionária ou inovadora.

Apresentarei a seguir, em linhas gerais, as principais dificuldades


da avaliação duhemiana da contribuição cosmológica de Galileu e, em
particular, de sua defesa do copernicanismo.

1. A primeira objeção dirige-se à própria historiografia de Duhem e à


reconstrução histórica que ela propicia. Duhem parte de uma tese am-
plamente aceita no século XX: o reconhecimento da insuficiência do
método científico. Com efeito, nós concordamos que nenhum método,
por mais excelente que seja, pode conferir às conclusões da ciência na-
tural um grau maior que aquele da probabilidade, pode mostrar que
essas conclusões são mais do que hipóteses. Mas em que medida esse
juízo, quando aplicado retrospectivamente aos principais pensadores
s7
DUHEM, P. EílZEIN TA ÍAINOMENA, p. 139.
58
DUHEM, P. EÍIZEIN TA «ÊAINOMENA, p. 139-40.
Coleção CLE V.11
Pablo Rubén Mariconda 151

dos séculos XVI e XVII e, em particular, a Galileu, fornece uma ima-


gem historicamente fiel desses pensadores? Em que medida, então, a
reconstrução de Duhem nos leva a compreender a convicção contrária
dos maiores cientistas desses séculos de que seus procedimentos con-
duziam à verdadeira natureza dos fenômenos que estudavam? Parece
forçoso admitir aqui que Duhem não estava preocupado em produ-
zir uma reconstrução historicamente adequada aos fatos, mas antes
em reconstruir a história adequando-a a uma concepção metodológica
prévia, representada por uma metodologia instrumentalista estrita de
que a função das teorias físicas é salvar os fenômenos. A objeção con-
siste, portanto, em apontar uma espécie de anacronismo metodológico
na reconstrução histórica de Duhem.
Para entender a postura científica do século XVII é preciso não
esquecer as circunstâncias históricas particulares da época59. Os pro-
ponentes da nova ciência tinham razão em afirmar que, por meio da
nova combinação de procedimentos experimentais e raciocínios ma-
temáticos, estavam realizando um progresso efetivo e importante no
entendimento da natureza. Ora, se tivessem concordado que seus re-
sultados eram, no fim das contas, "meramente prováveis", poderia
parecer que eles não possuíam para seus resultados uma prerrogativa
superior ao da afirmação vaga e informal de "probabilidade", à qual
Aristóteles e seus seguidores haviam acostumado o mundo: a proba-
bilidade de uma "opinião plausível", ou ainda, conforme o caso, de
uma "especulação persuasiva", que muitos aristotélicos pensavam ser
o máximo que se pode alcançar na investigação do reino imperfeito e
contingente da "matéria". Os defensores da nova ciência, e entre eles
Galileu,
tinham a convicção profunda de que haviam conseguido atingir mais
do que isso - de que suas conclusões eram imensamente melhor fun-
damentadas e com muito maior segurança certificadas do que as
conclusões de seus oponentes aristotélicos. £ nisto eles estavam in-
teiramente corretos. Sem dúvida, estavam incorretos ao supor que
essa diferença não podia ser adequadamente expressa em termos
de "probabilidade", adequadamente interpretada. Mas esse erro

59
Obviamente, as próprias "circunstâncias históricas particulares" são, também
elas, reconstruções históricas segundo padrões, etc. Mas isto não invalida a objeção
de que Duhem não leva em consideração fatos históricos significativos que podem
ser reconstruídos com padrões neutros com relação aos seus.
Coleção CLE V.11
152 Duhem e Galileu

não era totalmente infundado, e tampouco é desprovido de razão


histórica80.

Pode-se sem dúvida condená-los retrospectivamente, como faz


Duhem, por não atender à falibilidade do conhecimento da natu-
reza, mas isso não melhora nossa compreensão histórica da revolução
científica do século XVII.
Ao contrário, a visão duhemiana do século XVII é totalmente va-
lorativa e depreciativa. Em Duhem talvez existisse mais do que em
qualquer outro pensador a necessidade de reconciliar o conflito entre
a fé católica e a ciência. No fundo, toda sua historiografia se ressente
dessa tendência a procurar reconstruir a história da ciência de modo a
torná-la compatível com as exigências de uma concepção instrumen-
talista do método científico que, estando baseada numa circunscrição
muito estreita do âmbito da ciência, deixa para a teologia e a me-
tafísica a questão da verdadeira natureza dos fenômenos observados.
Mas essa é exatamente a tentativa de conciliação do catolicismo tra-
dicional entre ciência e fé.
Pode-se ver agora como se engendra a reconstrução histórica de
Duhem. Ela se faz supondo que só se reconstruirmos a história
da ciência do ponto de vista de uma concepção instrumentalista do
método, essa história se torna coerente e orgânica. Ela é então uma
história de teorias - constructos matemáticos - constantemente de-
senvolvidas e melhoradas por pessoas que aderiram conscientemente
ao método de salvar os fenômenos. Por outro lado, nessa recons-
trução, a concepção da física como a descoberta da essência do mundo
físico natural é tida como independente da ciência - como metafísica
- e revela um padrão de desenvolvimento descontínuo, caracterizado
pela substituição de dogmas metafísicos arbitrários e conflitantes.
Por força de seu padrão interpretativo, Duhem é levado a ignorar
totalmente o impacto que as doutrinas metafísicas tiveram sobre o
desenvolvimento dá física, doutrinas como a da indestrutibilidade da
matéria, a alma do mundo ou o atomismo.
Ao reconstruir a história da mecânica no interior desse quadro in-
terpretativo, Duhem é levado a sustentar a tese de que a ciência mo-
derna nasce nos séculos XIII e XIV, no seio do pensamento católico,
80
Blake, Ralph M., Ducasse, Curt J. e Madden, Edward H. Theories of Scientific
Method. The Renaitsance through the Nineteenth Century, cap. 1, p. 21.
Coleção CLE V.11
Pabio Rubén Mâríconda 153

com a estática de Nemorarius, a cinemática do Merton College e a


dinâmica dos terministas de Paris. Desta perspectiva, os desenvolvi-
mentos dos séculos XVI e XVII - em particular aqueles ligados aos
nomes de Copérnico, Kepler, Galileu, Bacon, Descartes - são, naquilo
que é cientificamente significativo, meramente continuadores de uma
tradição anterior de pesquisa científica e, naquilo que se considera em
gerai como as características mais inovadoras desses séculos, a saber,
o método e a nova filosofia natural, os frutos da adesão injustificada
a dogmas metafísicos que só serviram para promover a invasão da
física pela metafísica.
Contudo, mais grave é que Duhem não deixa claro que o rea-
lismo de Galileu e dos inquisidores, longe de representar uma pre-
ferência meramente pessoal, traduzia na verdade uma preferência
epistemológica da época, que era uma conseqüência da exigência
de superioridade, e conseqüente autoridade, da teologia sobre a me-
tafísica e a astronomia. A adesão ao método de salvar os fenômenos
representava assim a expressão metodológica do compromisso que os
tradicionalistas estabeleciam, por um lado, com o princípio da autori-
dade teológica e, por outro lado, servia para compatibilizar a astrono-
mia de Ptolomeu com a cosmologia e filosofia natural de Aristóteles.

2. Este último ponto nos conduz à crítica que Duhem move contra a
concepção de método experimental de Galileu. Pode-se considerá-la
adequada?
E verdade que algumas vezes Galileu parece argumentar que
se existirem boas razões empíricas para rejeitar o sistema ptolo-
maico, então o sistema copernicano estará suficientemente estabe-
lecido, como se este último fosse a única alternativa possível e uma
espécie de experimentum crucis estivesse envolvido. Duhem cita em
apoio a sua interpretação a seguinte passagem do Considemzioni circa
L'opinione copemicana de Galileu:
Não acreditar que exista demonstração da mobilidade da Terra até
que esta não seja mostrada, é sumamente prudente; nem pedimos
que alguém acredite em tal coisa sem demonstração: antes, nós não
procuramos outra coisa a não ser que, pelo bem da Santa Igreja, seja
com suma severidade examinado aquilo que sabem e podem produzir
os seguidores de tal doutrina, e que não lhes seja admitido nada se
aquilo pelo que lutam não supera em grande espaço as razões da
outra parte; e quando não tivessem mais que 90 por 100 de razões,
Coleção CLE V.11
154 Duhem e Galileu

que sejam rejeitados: mas quando tudo aquilo que produzem os


filósofos e astrônomos contrários for demonstrado ser na maior parte
falso, que ela não tem absolutamente peso, que não se despreze a
outra parte, nem se repute essa parte tão paradoxal que não se creia
que jamais possa ela ser demonstrada claramente. E pode-se muito
bem fazer uma oferta tão ampla: porque é claro que aqueles que
sustentam a parte falsa, não podem ter para si nem razão, nem
experiência que sirva; quando para a parte verdadeira é forçoso que
todas as coisas concordem e sejam adequadas61.

Contudo, existem outras passagens em que Galileu, além de ad-


mitir o caráter opinativo (hipotético) das duas posições em confronto,
argumenta claramente a partir da suposição da verdade de uma delas,
que é afinal o que ocorre nas disputas, onde cada parte argumenta
acerca da falsidade da posição oposta, supondo a verdade de sua
posição:
Tal que aquela última conclusão que o autor inferia, ao dizer que
discorrendo pelos efeitos da natureza se encontram sempre coisas fa-
voráveis à opinião de Aristóteles e Ptolomeu, e jamais uma que não
contrarie Copérnico, é preciso uma grande consideração; e melhor
é dizer, que sendo uma destas duas posições verdadeira, e a outra
necessariamente falsa, é impossível que para a falsa se encontre ja-
mais razão, experiência ou reto discurso que lhe seja favorável, assim
como para a verdadeira nenhuma destas coisas pode ser repugnante.
Grande diversidade portanto convém que se encontre entre os dis-
cursos e os argumentos que se produzem de uma e de outra parte
em pró e contra a estas duas opiniões, cuja força deixarei que julgue
por si mesmo, Sr. Simplício62.

Também existem passagens em que o argumento de Galileu as-


sume a forma de um dilema entre dois sistemas contraditórios. Mas
quando isso ocorre é porque o que esta em questão não admite meio
termo: ou a Terra se move e o sistema copernicano é correto, ou ela
está parada e o de Ptolomeu é vindicado. E isso explica uma certa
ambigüidade na interpretação da Hipótese (1) de Copérnico: ela é
astronômica, por um lado, e cosmológica, por outro, na exata me-
dida em que é contrária a uma suposição fundamental da filosofia
61
GALILEI, G. Considerazioni circa L'opinione copernicana, Le Opere, Edizi-
one Nazionale, v. V, p. 368-9. Citado por Duhem, EHZEIN TA «ÊAINOMENA,
p. 130-1.
62
GALILEI, G. Dialogo sopra i due massimi sistemi dei Mondo, 2a. Jornada,
Le Opere, Edizione Nazionale, v. VII, p. 296-7.
Coleção CLE V.11
Pa.blo Rubén Mariconda 155

natural de Aristóteles, ou para usar o jargão de Duhem, à Física de


Aristóteles.

Além disso, note-se atentamente que tratando-se da mobilidade ou


repouso da Terra ou do Sol, estamos em um dilema de proposições
contraditórias, das quais por necessidade uma é verdadeira, nem se
pode de modo algum recorrer a dizer que talvez nâo esteja nem
neste nem naquele modo; ora se a estabilidade da Terra e a mobili-
dade do Sol é de facto verdadeira na natureza, e absurda a posição
contrária, como se poderá razoavelmente dizer que melhor concorda
às aparências manifestas visíveis e sensíveis, nos movimentos e cons-
tituições das estrelas, a posição falsa que a verdadeira? Quem é que
não sabe ser concordantíssima a harmonia de todos os verdadeiros
na natureza, e disso ar asperamente as posições falsas dos efeitos ver-
dadeiros? Concordará, portanto, em toda espécie de consonância a
mobilidade da Terra e a estabilidade do Sol com todos os outros
corpos mundanos e com todas as aparências, que são milhares, que
nós e nossos antecessores temos minuciosamente observado, e será
tal posição falsa; e a estabilidade da Terra e mobilidade do Sol, es-
timada verdadeira, de modo algum não poderá concordar com as
outras verdades? Se se pudesse dizer, não ser verdadeira nem esta,
nem aquela posição, poderia ser que uma se acomodasse melhor que
a outra no dar razão das aparências: mas que das mesmas posições,
das quais uma é necessariamente falsa e a outra verdadeira, se te-
nha que afirmar que a falsa responde melhor aos efeitos da natureza,
verdadeiramente ultrapassa minha imaginação63.

Entretanto, Galileu parece ter reconhecido, não sem relutância,


que mostrar que uma hipótese salva os fenômenos, mesmo quando
é melhor que qualquer outra conhecida, nâo é uma demonstração
suficiente de sua verdade:

E verdade que não é a mesma coisa mostrar que a suposição de que a


terra se move e o Sol está parado salva as aparências, e demonstrar
que essas hipóteses são realmente verdadeiras na natureza; mas é
quase tanto e ainda mais verdadeiro que por meio do outro sistema
comumente recebido é impossível dar conta dessas aparências. O
último sistema é indubitavelmente falso, assim como é claro que o
primeiro, que está adequado muito excelentemente às aparências,
pode ser verdadeiro e que nenhuma verdade maior pode ou deve
ser procurada numa hipótese que sua correspondência com os fatos
particulares64.
63
GALILEI, G. Considerazioni circo L^pinione copernicana, Le Opere, Edizi-
one Nazionale, v. 10, p. 356-7.
64
GALILEI, G. Le Opere, V, p.. 369.
Coleção CLE V.11
156 Duhem e Galileu

A passagem é significativa: ela mostra de modo claro que a con-


cepção que Galileu tem da natureza das hipóteses e do alcance do
método experimental não é tão primária e grotesta quanto Duhem
pretende ter mostrado.
Além disso, o argumento de Duhem está baseado, como vimos65,
numa identificação das concepções de Galileu e Bacon acerca da na-
tureza e alcance do método experimental. Mas essa identificação é
obviamente pejorativa e injustificada. Em primeiro lugar, porque
Bacon é um teórico do método - ou, para usar a expressão baconi-
ana, um reformador do Organon aristotélico, enquanto Galileu é um
cientista, um praticante do método experimental que não vê razões
para modificar a dialética de Aristóteles66. Em segundo lugar, porque
faz supor que, enquanto praticante do método experimental, Galileu
procura pela verdadeira natureza dos fenômenos que estuda. Ora,
isso desconhece totalmente o caráter da obra mecânica de Galileu,
particularmente as terceira e quarta jornadas dos Discorsi, na qual o
método de salvar os fenômenos é utilizado para assegurar o caráter es-
tritamente cinemático da teoria exposta. Esta é então tomada como
uma descrição matemática dos fenômenos tal como ocorrem em vista
de um conjunto muito amplo de observações e experimentos, e não
como uma explicação da causa dos movimentos observados. Ou seja,
Galileu utiliza apropriadamente o método de salvar os fenômenos
para restringir o âmbito de sua investigação. Prova cabal de que ele
não considerava sua mecânica uma explicação da verdadeira natureza
dos movimentos, mas antes uma descrição verdadeira dos movimentos
observados
* na natureza.
E claro que isto não invalida a objeção de Duhem, porque, quanto
à mecânica, Galileu é visto por ele como um continuador da mecânica
medieval, mas ajuda, por um lado, a entender o sentido pejorativo
do juízo de que católicos não-cientistas, como Osiander, Bellarmino
e Urbano VIII, possuíam uma consciência mais clara do alcance do
método experimental do que o próprio Galileu e, por outro lado, per-
mite colocar a objeção de Duhem nos devidos termos. A objeção está
endereçada ao uso do método experimental para resolver o conflito
65
Cf. p. 21 acima.
68
Cí. a esse propósito a carta de Galileu a Fortúnio Licete datada de 15 de
setembro 1640v£e Opere, Vol. XVIII, p. 247-251.
Coleção CLE V.11
Pâblo Rubén Maricoiida 157

entre duas teorias astronômicas antagônicas que Dnhem reputa como


equivalentes astronomicamente, posto que ambas permitem salvar os
fenômenos com razoável adequação.
Contudo, Duhem não deixa claro - em virtude de seu padrão inter-
pretativo - que o confronto entre os dois sistemas astronômicos, além
de tratar da questão da adequação empírica, na qual aliás Galileu
possui uma enorme massa de observações astronômicas contrárias ao
sistema ptolomaico, é fundamentalmente uma polêmica que tem como
critério último a adequação dos sistemas astronômicos a princípios
cosmológicos acerca da verdadeira natureza dos fenômenos celestes
observados. Em suma, o debate não pode ser meramente astronômico
como pretende Duhem, mas ele é antes e fundamentalmente cos-
mológico. E isso por força da própria maneira tradicional de definir
o alcance da astronomia, como o mostra Galileu:
Duas espécies de suposição foram feitas até aqui pelos astrônomos:
algumas são primeiras e concernentes à absoluta verdade na na>
tureza; outras são segundas, as quais foram imaginadas para dar
razão das aparências nos movimentos das estrelas, aparências que
mostram de certo modo não concordar com as primeiras e verdadei-
ras suposições. Como, por exemplo, Ptolomeu, antes de aplicar-se a
satisfazer as aparências supõe, não como puro astrônomo, mas como
puríssimo filósofo, antes toma dos próprios filósofos, que os movimen-
tos celestes são todos circulares e regulares, isto é, uniformes; que o
céu tem a forma esférica; que a Terra está no centro da esfera celeste,
sendo também ela esférica e imóvel, etc.: voltando-se depois para a
desigualdade que percebemos nos movimentos e nas distâncias dos
planetas, os quais parecem opor-se às primeiras suposições naturais
estabelecidas, passa para uma outra espécie de suposição, que tem
em vista encontrar as razões, pelas quais, sem mudar as primeiras,
possa acontecer a desigualdade evidente e sensível nos movimentos
das estrelas e na sua aproximação ou afastamento da Terra: para
fazer isso introduz alguns movimentos também circulares, mas so-
bre outros centros diferentes daquele da Terra, descrevendo círculos
excêntricos e epiciclos: e esta segunda suposição é aquela da qual
alguém poderia dizer que o astrônomo supõe para satisfazer aos seus
cálculos, sem obrigar-se a sustentar que ela seja re vera na natureza.
Vejamos agora em qual espécie de hipótese coloca Copérnico a mo-
bilidade da Terra e a estabilidade do Sol: que não há dúvida alguma
que, se bem considerarmos, ele a coloca entre as posições primeiras
e necessárias na natureza;.. .67.
67
GALILEI, G. Considerazioni circo L'opinione copernicana, Ic Opere, Edizi-
one Nazionale, Vol. V, p. 357.
Coleção CLE V.11
158 Duhem e Galilea

Ao apresentar o modo tradicional de definir a tarefa do astrônomo


através da distinção entre suposições primeiras (físicas e cos-
mológicas) e suposições segundas (astronômicas) e ao mostrar que
nesse modo tradicional as únicas hipóteses astronômicas legítimas
são aquelas que são fisicamente verdadeiras, isto é, aquelas que estão
baseadas em primeiros princípios físicos e cosmológicos, Galileu ex-
plicita também que a diferença entre copernicanos e ptolomaicos não
é uma diferença entre dois artifícios matemáticos destinados a salvar
os fenômenos celestes, mas antes entre duas cosmologias, ou seja, en-
tre duas filosofias naturais irreconciliáveis em vista de suas próprias
suposições primeiras.
Tudo isso deixa claro que a defesa galileana da astronomia de
Copérnico se dá num plano cosmológico, isto é, no plano metafísico
da natureza das coisas, além de mostrar também a inevitabilidade, no
modo tradicional de colocar a questão, do debate nesse plano. Mas
não se pode esquecer a dimensão eminentemente crítica dos argu-
mentos de Galileu, para a qual concorrem suas realizações científicas
astronômicas e mecânicas: o que Galileu mostrou decisivamente é
que se tomamos os fatos observados pelo telescópio e os resultados
matemáticos da nova mecânica, então não podemos mais sustentar
a cosmologia tradicional. Com efeito, as observações telescópicas de
Galileu conduziram, como o próprio Galileu reconhece, à eliminação
da distinção cosmológica tradicional entre Céu e Terra68. E nesse
mesmo plano crítico que se deve apreciar o alcance cosmológico das
teses mecânicas de Galileu. Assim, à abolição da distinção entre
movimentos naturais e violentos corresponde a eliminação da teo-
ria do lugar natural, cuja centralidade na filosofia da natureza de
Aristóteles é inquestionável. A eliminação da distinção entre grave
e leve corresponde uma crítica à teoria aristotélica dos quatro ele-
mentos, cuja utilização para a hierarquização do Cosmo aristotélico
é fundamental69. Ao estabelecimento de um sistema inércia! de co-
ordenadas métricas corresponde a eliminação efetiva da concepção
do movimento como processo e sua substituição pela concepção do

68
Cf. Galileu, Dialogo sopra i due massime sistemi dei mondo, Le Opere, Edi-
zione Nazionale, Vol. VII, la. Jornada.
69
Cf. Galileu, Duas Novas Ciências, la. Jornada.
Coleção CLE V.11
Paòio Rubén Mariconda 159

movimento como estado70. Considerados, portanto, os desenvolvi-


mentos mecânicos de Galileu em sua oposição a princípios e teses da
cosmologia natural, percebe-se claramente que o que está em jogo é
fundamentalmente o conceito de natureza.
A objeção à avaliação de Duhem consiste, assim, em afirmar que
seu padrão interpretativo, cujo cerne é uma demarcação estrita en-
tre física e metafísica, o impede de apreciar a relevância de dois
pontos básicos estabelecidos acima: primeiro, a inevitabilidade da
polêmica cosmológica; segundo, a importância dessa discussão cos-
mológica para a constituição de um novo conceito de natureza como
base metafísica para a nova ciência do século XVII.
Mas deixemos de lado a defesa de Galileu e retornemos a Duhem
para conceder-lhe o que por mérito lhe cabe. Em primeiro lugar, o
imenso trabalho e, porque não dizê-lo, o heróico trabalho de com-
pilação e reconstrução da mecânica medieval, iniciado por Duhem,
conduziu a fundar definitivamente o vasto campo de estudo a que se
dedicam os historiadores medievalistas da ciência, levando ao aban-
dono da concepção estabelecida até o século XIX, segundo a qual a
Idade Média era um período de trevas dominado pelo preconceito e
pela ignorância. Em segundo lugar, o que me parece ser mais impor-
tante, Duhem impôs ao historiador da ciência a tarefa de precisar e
refinar sua concepção de desenvolvimento da ciência, de modo a dar
conta da tensão existente nesse desenvolvimento entre continuidade
e ruptura.

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Coleção CLE V.11
11

A Equivalência Dinâmica segundo Mach

e a Teoria Geral da Relatividade*

Michel Ghins

Em primeiro lugar, gostaria de apresentar a teoria, ou antes, o


esboço de teoria, da gravitação e da inércia proposto por Mach. Em
segundo lugar, discutirei as dificuldades internas desta teoria. Final-
mente, e sem entrar em detalhes técnicos, mostrarei que a teoria geral
da relatividade está longe de satisfazer às exigências machianas sobre
um ponto preciso, porém crucial, a saber, a equivalência dinâmica de
sistemas físicos em rotação.

Mach propõe a construção de uma teoria da inércia e da gravitação


que atenda a três condições: ela deve dar conta de um importante
fato empírico, deve preencher um requisito epistemológico de caráter
empirista, e deve ser conforme a um princípio epistemológico de uni-
formidade (princípio de relatividade dinâmica).
1. 0 Jato empírico consiste na dualidade observada dos movi-
mentos. Podemos observar que os movimentos se dividem em duas
categorias: aqueles que dão lugar a fenômenos de deformação, como

'Partes deste artigo foram retomadas de GHINS, 1990.


Coleção CLE V.11
162 Mach e a Teoria Geral da Relatividade

a rotação da água contida em um balde, que são chamados de mo-


vimentos inerciais, e os outros que não manifestam tais deformações,
denominados movimentos não-inerciais.
2. Este fato requer uma explicação que esteja de acordo com
as normas do empirismo, A cada termo que ocorre em uma teoria
física deve corresponder uma entidade observável, e a cada relação
devem corresponder fenômenos que possam realizar empiricamente
esta relação. Além disso, segundo Mach, a relação de causalidade,
sendo empiricamente indiscermvel de uma relação meramente funci-
onal, deve ser eliminada. Em decorrência disso, a expressão "espaço
absoluto" é inaceitável porque o espaço absoluto é inobservável e
não possui significado empírico independentemente dos efeitos de
inércia que, segundo Newton, produz. E então impossível verificar
a existência de uma relação funcional (e, a fortiori, de causalidade)
entre o espaço absoluto e os fenômenos inerciais de deformação. Ape-
nas entidades ou acontecimentos que são separadamente identificados
de uma maneira empírica podem ser ligados por tal relação; sem isso
a afirmação do nexo funcional é desprovida de qualquer significado
empírico. Visto que é impossível identificar empiricamente o mo-
vimento absoluto independentemente dos fenômenos supostamente
associados a ele, o movimento em relação ao espaço absoluto deve
ser eliminado de uma teoria física. Toda noção de movimento em
uma teoria física diz respeito a uma alteração de distâncias do corpo
em movimento em relação a corpos observáveis, Esta é a tese da
relatividade empírica do movimento.
3. A terceira exigência, a de uniformidade, diz respeito à equi-
valência empírica de sistemas físicos em movimento. Trata-se do
princípio geral de relatividade e não da possibilidade de descrever pe-
las mesmas equações uma dada situação física em qualquer sistema
de coordenadas1. Este princípio implica a equivalência dinâmica das
seguintes situações físicas: de um lado, a Terra (ou água num balde)
em rotação em relação às estrelas consideradas em repouso, de outro
lado, as estrelas em rotação em relação à Terra considerada em re-
1
Convém distinguir aqui os sistemas de coordenadas dos sistemas de referência.
Os primeiros consistem em uma simples atribuição de números aos pontos do
espaço-tempo; os sistemas de coordenadas são desprovidos de qualquer realidade
física. Os segundos são constituídos de corpos físicos; um observador munido de
barras rígidas e de relógios realiza um sistema de referência.
Coleção CLE V.11
Michel Ghins 163

pouso. Isto é, estas situações constituem uma única situação física.


Trataremos aqui, seguindo Mach, da equivalência empírica em relação
apenas aos fenômenos mecânicos, o que chamaremos de relatividade
dinâmica. 0 princípio geral de relatividade estende esta equivalência
aos fenômenos eletromagnéticos.

Vamos examinar agora se Mach consegue elaborar uma teoria


de acordo com cada uma destas três exigências, ou se pelo menos
consegue especificar um programa consistente e fisicamente viável
para a construção de tal teoria2.
De acordo com o princípio do empirismo, Mach define o movi-
mento de um corpo como uma modificação de relações de distância
em relação a outros corpos observáveis. Todo movimento é relativo
no sentido empírico e isto é uma conseqüência imediata do princípio
do empirismo.

Quando dizemos que um corpo preserva sua direção e sua veloci-


dade no espaço, nossa asserção é apenas uma referência abreviada
ao universo todo. (...) Ao invés de determinar um corpo móvel em
relação ao espaço, isto é, em relação a um sistema de coordenadas,
observamos diretamente sua relação com os corpos do universo que
são os únicos que podem determinar um tal sistema de coordenadas
(MACH, 1960, p. 286).

Para determinar o movimento, não basta escolher arbitrariamente


algumas massas nas proximidades de um corpo e erigi-las em um sis-
tema de referência, como fazia Leibniz3. É preciso tomar um sis-
tema de referência particular no qual as massas do universo estão, na
média, em repouso.
E ilusório pensar que a definição de Mach satisfaz às exigências
de um empirismo radical que pediria que, para cada movimento,
pudéssemos efetivamente observar a totalidade das massas do uni-
verso e as suas modificações de distâncias delas (Cf. Bridgman,
2
Não pretendemos dar aqui uma interpretação fiei à letra dos escritos de Mach,
mas somente retomar, a partir destes textos, uma problemática epistemológica que
poderíamos chamar de machiana. É pelo menos duvidoso que Mach tivesse clara
consciência das três exigências mencionadas acima (em particular, da terceira),
quando formulou seu programa.
3
Aqui Mach tem mais em vista sistemas de referência físicos do que sistemas
de coordenadas.
Coleção CLE V.11
164 Macii e a Teoria Geral da Relatividade

1964). Mesmo admitindo o universo materialmente finito, não dis-


pomos de meios técnicos suficientes para determinar a distribuição
e a densidade das estrelas (ou das galáxias das quais Mach não su-
punha a existência) em um dado instante. Além disso, Mach sabia
perfeitamente que as estrelas não conservam suas posições relativas,
ainda que estas posições sejam, globalmente, bastante estáveis para
a duração das experiências ordinárias. Para durações maiores, cal-
culamos pontos ideais com a ajuda de médias estatísticas sobre um
grande número de estrelas, cujos movimentos relativos não são muito
rápidos e que conservam uma certa estabilidade global. E assim,
por exemplo, que determinamos o ponto em direção ao qual o Sol
se dirige: o ápice (Merleau-Ponty, 1965, p. 19). Para que este
método seja aplicável é preciso, obviamente, que as estrelas tomadas
como referencial sejam observáveis na prática. Logo, devem ser em
número finito, sem o que seríamos obrigados a recorrer a hipóteses de
convergência cuja justificação empírica sempre é problemática. Aliás,
Mach está ciente das dificuldades inerentes à sua definição, quando
diz:
Tentamos íoimnlar a lei de inércia de uma maneira diferente da-
quela normalmente utilizada. Esta definição preencherá as mes-
mas funções que a definição habitual enquanto um número sufici-
entemente grande de corpos permanecerem aparentemente fixos no
espaço4. Ela é aplicada com a mesma facilidade e encontra as mes-
mas dificuldades. Em um caso, somos incapazes de chegar ao espaço
absoluto, no outro, apenas um número limitado de massas está ao al-
cance de nosso conhecimento, e a soma indicada não pode ser levada
a seu termo. É impossível dizer se a nova expressão representaria
ainda a condição verdadeira das coisas se as estrelas estivessem em
movimento rápido umas em relação às outras. A experiência geral
não pode ser construída a partir do caso particular que nos é dado
(MACH, 1960, p. 298).

A lei de inércia proposta por Mach se escreve:

E miri'
= constante (i = 1,2,... ,n)
'dt . E mt .

onde /i é a massa de um dado corpo, os m,- são as massas presentes


no universo, e os rt- representam as distâncias do centro de gravidade
4
Ou ainda que pudéssemos fazer uma média estatística sobre as flutuações das
distancias como no caso da determinação do ápice.
Coleção CLE V.11
Michel Ghins 165

destas massas em relação ao da massa /x. Reparemos que a soma


é finita, Como esta soma, mesmo finita, não pode ser realizada na
prática, Mach se encontra numa situação semelhante àquela na qual
se encontrava Newton: o conjunto das estrelas e o espaço absoluto são
igualmente inacessíveis à observação efetiva, mesmo que a inobserva-
bilidade das estrelas seja somente de facto e a do espaço absoluto de
jure. Além disso, como Mach reconhece na citação acima, esta nova
lei de inércia é tão inverificável quanto a de Newton. Não podemos,
na prática, fazer variar as condições (modificar a velocidade das es-
trelas, por exemplo), do mesmo modo que não poderíamos aniquilar
as estrelas, para ver se a lei de Newton seria verdadeira no espaço
absoluto.
Além destas dificuldades, fatais para uma posição empirista ra-
dicai, surgem outros inconvenientes. Em primeiro lugar, a tese da
relatividade empírica do movimento não tem como conseqüência a
equivalência dinâmica de todos os sistemas físicos de referência. Se
Mach está de acordo com Leibniz e contra Newton-Clarke ao recu-
sar todo significado do movimento de um balde ou da Terra em um
universo vazio, não se segue daí que qualquer corpo possa servir de sis-
tema de referência de modo equivalente. Mach concede um privilégio
ao conjunto das massas do universo. Este privilégio deve ser justi-
ficado por razões empíricas. E claro que não bastam considerações
cinemáticas. De um ponto de vista cinemático, todos os referenci-
ais são equivalentes: pode-se escolher arbitrariamente qualquer um
dos corpos observáveis para determinar os movimentos. Isto é uma
conseqüência da relatividade empírica. Chamemos este enunciado
de principio de relatividade cinemática (Ver Reichenbach, 1958, p.
210).
Constatamos que os movimentos nas proximidades da Terra se di-
videm em duas categorias, conforme apareçam, ou não, deformações
do móvel, que denominamos fenômenos inerciais. Por exemplo, um
prisioneiro que é transportado com olhos vendados em um carro,
sente perfeitamente quando este vira, freia, acelera, etc., mesmo não
podendo observar corpos de referência no exterior do carro. Estes
fenômenos inerciais são associados a movimentos relativos à Terra.
Sua ausência é associada, aproximadamente e para distâncias curtas,'
aos movimentos retilíneos uniformes, e sua presença aos movimentos
Coleção CLE V.11
166 Mach e a Teoria Gerai da Relatividade

acelerados em relação à Terra. Para explicar estes fenômenos iner-


ciais, Newton tinha sido levado (porque a Terra e os outros corpos
não são adequados para esta explicação) ao espaço absoluto. Deste
modo, tinha incorporado à sua mecânica dois elementos pertencentes
à mesma categoria lógica (a categoria dos objetos): os corpos mate-
riais, que servem para determinar o movimento, e o espaço absoluto,
que tem por função explicar certos efeitos do movimento. Mach supõe
que, considerando-se que o movimento é definido em relação a massas
observáveis, estas devem também permitir explicar os efeitos inerci-
ais. Ele tenta eliminar as forças internas, ligando-as (trata-se aqui de
uma ligação funcional e não de um nexo causai) a fontes externas ob-
serváveis5. Seu argumento se funda no princípio do empirismo: não
há lugar na física para relações funcionais cujos termos não sejam
observáveis independentemente um do outro.
Resta explicar por que certos movimentos, equivalentes do ponto
de vista da relatividade cinemática, não o são do ponto de vista
dinâmico. Esta diferença fundamenta empiricamente a distinção en-
tre referenciais inerciais e não-inerciais. Os sistemas inerciais são
construídos a partir de corpos no nível dos quais não se observam
efeitos de inércia, ou, de modo equivalente, são sistemas nos quais
corpos livres de toda força estão em repouso ou em movimento re-
tilíneo uniforme. 0 princípio de relatividade da mecânica clássica (e
também da relatividade restrita) é mais restritivo que o princípio de
relatividade cinemática, já que afirma a equivalência dinâmica ape-
nas dos sistemas inerciais6, ao passo que o princípio de relatividade
cinemática, que não exclui nenhum sistema material para a deter-
minação do movimento, conduziria naturalmente a uma equivalência
mais ampla.
Na realidade, o princípio de relatividade cinemática podé ser con-
servado na mecânica clássica desde que não se recorra ao espaço ab-
soluto, porque é inteiramente legítimo determinar os movimentos em

5
Mach tentou, de modo mais geral, eliminar a noção de força da mecânica,
substituindo-a pelo produto da massa e da aceleração.
6
Na realidade, esta equivalênciajyale para toda classe de sistemas em movi-
mento relativo retilíneo uniforme. Por exemplo, todos os sistemas em movimento
' retilíneo uniforme em relação a um carroussel em rotação são equivalentes a este
carroussel, no sentido de que o movimento de um corpo livre de força externa é
descrito pela mesma equação em todos estes sistemas.
Coleção CLE V.11
Michel Ghins 167

relação a qualquer corpo. Somente a descrição dos movimentos far-


se-á segundo equações que tomarão formas diferentes, dependendo do
tipo, inercial ou não-inercial, do sistema de referência. 0 princípio
de relatividade cinemática não permite selecionar os sistemas de re-
ferência nos quais os movimentos são descritos pelos axiomas de New-
ton na forma vetorial simples. Este princípio elimina apenas os siste-
mas não observáveis, como o espaço absoluto. 0 problema consiste
em explicar por que os corpos obedecem a leis diferentes segundo
os sistemas, enquanto que a definição empírica do conceito dê movi-
mento não indica nenhuma preferência quanto à escolha de um sis-
tema material que sirva para determiná-lo. A definição de um sistema
inercial faz surgir um problema de circularidade. Newton definia um
sistema de inércia como estando em repouso ou em movimento re-
tilíneo uniforme no espaço absoluto. Como isto não constitui um
critério empírico, só podemos nos assegurar da inercialidade verifi-
cando se o sistema está livre de toda força. Ora, só podemos nos
assegurar disto ou pelo menos calcular o desvio em relação à inercia-
lidade, pressupondo a verdade das leis de Newton. A primeira vista,
a proposta de Mach parece apropriada para resolver este problema:
basta definir um sistema de inércia, ao menos localmente, como um
sistema em repouso ou em movimento retilíneo uniformé em relação
ao conjunto de massas do universo. Depois disto, constatamos empi-
ricamente a verdade das leis de Newton neste sistema. Neste caso, a
circularidade da explicação causai dos efeitos de inércia desaparece,
já que podemos identificar empiricamente e separadamente o expia-
nans, o movimento acelerado em relação às massas do universo, e o
explanandum, os efeitos inerciais.
Infelizmente para Mach, esta definição do sistema de inércia não
é satisfatória, e isto independentemente das dificuldades relativas à
soma das massas que assinalamos acima. De fato, constatamos que
um sistema material de dimensões espaciais reduzidas em queda li-
vre num campo de gravitação, o da Terra por exemplo, constitui um
sistema de inércia local; entretanto, este sistema está acelerado em
relação às estrelas. Não podemos mais fornecer a definição: um sis-
tema de referência é inercial se e somente se está em repouso ou em
movimento retilíneo uniforme em relação às estrelas7.

7
Este fato corresponde à experiência da "Torre de Pisa" que Galileu, improva-
Coleção CLE V.11
168 Mach e a Teoria Geral da Relatividade

Mach poderia retrucar: se um sistema está em repouso ou em


movimento retilíneo uniforme em relação às estrelas, ele é um sis-
tema inercial. Isto é suficiente para uma explicação dos efeitos de
inércia? A resposta é negativa. Para que a explicação funcional fosse
correta, seria preciso que todos os movimentos acelerados em relação
às estrelas fossem acompanhados de fenômenos de inércia. Um corpo
de pequenas dimensões em queda livre, e portanto, acelerado, não
manifesta deformações inerciais.
Um newtoniano, ou um machiano, poderia argumentar que no
caso de um corpo em queda livre, duas forças estão presentes, a força
de inércia e a força de gravitação, ambas anulando-se mutuamente.
Existe, de fato, uma força resultante de um movimento acelerado com
relação às estrelas. Mas não é possível distinguir empiricamente, ao
nível local, entre uma força externa (a gravitação) e uma força interna
(a inércia). Uma teoria satisfatória da inércia deve, igualmente, ser
uma teoria da gravitação, pois localmente as duas forças são ape-
nas uma. Ora, Mach tinha conservado a noção clássica da inércia e
não tinha, ao que parece, compreendido todo o alcance da proporci-
onalidade entre a massa gravitacional e a massa inercial. Podemos,
pois, concluir que a explicação de Mach da dualidade dos movimentos
não somente não é satisfatória, segundo seus próprios requisitos epis-
temológicos de natureza empirista, como também, mesmo que lhes
satisfizesse, não poderia ser aceita, por razões físicas.
Convém agora estudar em que medida a teoria geral da relativi-
dade de Einstein satisfaz às exigências de Mach. Neste ponto, en-
contramos uma dificuldade liminar. As motivações ou os elementos
machianos podem ser encaradas de numerosas maneiras8. Exami-
naremos uma questão precisa, a saber, se a teoria da gravitação de
Einstein satisfaz ao princípio geral de relatividade, ponto que, se-
gundo Reichenbach, constitui "o aspecto mais significativo das idéias
de Mach" (1958, p. 214). Veremos que a teoria da gravitação de
Einstein não,pode ser chamada de machiana sob este aspecto.
Mach pretendia explicar a concavidade da água num balde em
rotação por um movimento acelerado em relação às estrelas. A rotação

velmente, teria realizado e constitui o ponto de partida da teoria da Relatividade


Geral de Einstein.
8
Para um levantamento bastante completo pode-se consultar Goenner, 1970,
p. 200-15.
Coleção CLE V.11
Michel Ghins 169

água (£J)/estrelas (F) é a mesma no sistema de referência no qual a


água está em rotação (situação 1) e naquele em que está em repouso
(situação 2). (Ver Figura 1).

Situação 1 Situação 2

Figura 1

Visto que apenas a rotação relativa pode ser invocada como causa
empírica da concavidade observada, estes dois sistemas de referência
devem ser equivalentes de um ponto de vista físico. A relatividade
dinâmica é uma conseqüência da causalidade empírica. Para satisfa-
zer ao princípio de relatividade dinâmica, é preciso que estas situações
constituam a mesma realidade física, logo, que sejam uma situação
só. E necessário, portanto, que as leis que descrevem estas situações
sejam também idênticas; não basta que elas sejam covariantes, ou
seja, que elas tomem a mesma forma matemática em qualquer sis-
tema de coordenadas. De fato, a situação 1 poderia ser descrita por
uma equação geralmente covariante (que não muda de forma sob uma
transformação qualquer, desde que contínua, das coordenadas) mas
que seja diferente de uma equação, também geralmente covariante,
que descreva a situação 2. Mas isto é justamente o que Mach queria
evitar; toda deformação inercial devia resultar de um movimento em-
piricamente relativo. Ao comentar esta questão Reichenbach escreve:
O que há de novo na interpretação de Mach é a idéia de que a força
de inércia pode ser interpretada, na concepção relativista, como um
efeito de gravitação dinâmico. A relatividade pode ser estendida
Coleção CLE V.11
170 Macii e a Teoria Geral da Relatividade

à dinâmica se as forças puderem ser interpretadas de modo relati-


vista. A mesma força que afeta E como o resultado da rotação de
E, segundo uma interpretação, afeta-o, segundo outra interpretação,
como o resultado da rotação de F (...) as forças não são mais gran-
dezas absolutas, mas dependem do sistema de coordenadas (...).
Com a solução de Mach para o problema da rotação, o campo de
gravitação perde seu caráter absoluto [invariante no sentido ma-
temático] e é reconhecido como grandeza covariante, que varia com
o estado de movimento do sistema de coordenadas. Este resultado,
que representa o aspecto mais significativo das idéias de Mach [grifo
nosso], exprime pela primeira vez a idéia do princípio de covariãncia
generalizada (REICHENBACH, 1958, p. 214).

A relatividade dinâmica, ou seja, a equivalência das situações 1


e 2 é, sem dúvida, um ponto crucial nas idéias de Mach. Esta rela-
tividade dinâmica exige que, embora as forças sejam as mesmas nas
duas interpretações, elas têm componentes covariantes, que variam
segundo o sistema de referência. Contudo, o princípio de relatividade
geral não pode ser confundido com o princípio de covariãncia9.

E
2

Interpretação 1 Interpretação 2

Figura 2

9
Neste ponto pode-se consultar Ghins, 1990, p. 141.
Coleção CLE V.11
Michel Ghins 171

Vimos que a relatividade dinâmicà é uma conseqüência da exigência


empirista, já que se apenas o movimento acelerado relativo pode ser
escolhido como causa dos efeitos de inércia, não pode haver diferença
física entre as situações 1 e 2. Por outro lado, a existêcia do espaço
absoluto é excluída pelos requisitos empiristas. Podemos perguntar
agora se a rejeição do espaço absoluto decorre apenas da relatividade
dinâmica. Segundo Reichenbach, é possível imaginar um universo
no qual seria a rotação de F no espaço que causaria a aparição das
forças centrífugas em E. Seja este universo composto de dois siste-
mas, compreendendo cada um uma Terra (£i e E2) e uma esfera de
estrelas (Fi e F2), e suficientemente distantes para que a interação
gravitacionai seja desprezível (ver figura 2).
Suponhamos que observássemos deformações no nível dê Ei (ou
de £7), mas não ao mesmo tempo em Ei e E?. Newton concluía disto
a existência do espaço absoluto. Para Reichenbach (1958, p. 215-
7), sua existência não é incompatível com a relatividade dinâmica.
Basta admitir que, na interpretação 2, é a rotação de Fi em relação
ao espaço absoluto que é responsável pelas deformações no nível de
£1, mesmo que £1 esteja em repouso absoluto. As interpretações 1
e 2 são dinamicamente equivalentes.
Este raciocínio de Reichenbach foi criticado de maneira incorreta
primeiro por Howard Stein (1967, p. 195-6), e depois de maneira
convincente por John Earman, que escreve:
Stein nos pede para imaginar um terceiro sistema (£3, £3) tal que
£3 e £3 estejam em repouso um em relação ao outro e em relação a
£1 e £2 [ver figura 3]. A teoria de Newton prediz que nenhuma força
centrífuga será observada em £3, já que £3 não gira no espaçq ab-
soluto. Mas segundo a interpretação de Reichenbach [interpretação
2], já que £3 está em rotação, forças centrífugas deveriam ser ob-
servadas em £3. (...) esta dificuldade poderia ser superada (...) de
maneira que forças centrífugas não aparecessem se £ e £ estivessem
ao mesmo tempo em rotação em relação ao espaço absoluto (...)
A situação se agrava se imaginarmos (...) um sistema (£4,£4) no
qual £4 e £4 estão em repouso um em relação ao outro, mas em
rotação em relação a £3 e £3. A teoria de Newton prediz que forças
centrífugas aparecerão em £4. Segundo a interpretação alternativa
de Reichenbach, £4 e £4 estão ambos em repouso no espaço ab-
soluto. Isto coloca Reichenbach em dificuldade, já que a grandeza
das forças centrífugas em £4 será, segundo Newton, proporcional á
velocidade angular de £4 no espaço absoluto (EARMAN, 1970, p,
306).
Coleção CLE V.11
172 Mach e a Teoria Gerai da Relatividade

Fi

Ei El

vy
E? Ei

E3 Ez

Et E*

Interpretação 1 Interpretação 2

Figura 3
Coleção CLE V.11
Michel Ghias 173

Podemos concluir que a relatividade dinâmica implica a rejeição


do espaço absoluto, como Mach manteve. Situações suficientemente
complexas permitem quebrar a equivalência empírica de teorias que
concebem diferentemente a ação do espaço absoluto. Resumindo, os
princípios envolvidos se articulam logicamente da seguinte maneira:

Exigência empirista
i
Causalidade empírica
í
Relatividade dinâmica
i
Rejeição do espaço absoluto

Ora, a assim chamada teoria da relatividade geral, não satisfaz a


relatividade dinâmica10. Sabemos que as situações 1 e 2 (figura 1)
não são equivalentes para a teoria da gravitação de Einstein, embora
tenhamos soluções exatas das equações do campo apenas para casos
particulares de rotação (a solução de Kerr, por exemplo). Como diz
Sklar:
Na teoria geral da relatividade, com as suposições habituais sobre as
condições de limite, as duas situações dão lugar a "forças inerciais"
diferentes sobre o disco. Segundo a relatividade geral, fazer girar o
sistema do laboratório e fazer girar o mundo da matéria em torno
do sistema do laboratório não são situações fisicamente equivalentes,
contrariamente, ao que Mach nos levaria a esperar (Sklar, 1974, p.
219).

Mais uma vez, para que a equivalência dinâmica, e a fortiori, o


princípio geral de relatividade seja satisfeito, é preciso que as soluções
das equações do campo que descrevem as situações 1 e 2 sejam idênti-
cas em um dado sistema de coordenadas. Este sistema é arbitrário,
mas escolhemos, neste caso, um sistema de coordenadas cilíndricas no
qual o disco central está em repouso. Neste sistema, constatamos que
as soluções são diferentes para as situações 1 e 2 (ver Dicke, 1972).
Cada solução particular é geralmente covariante e os componentes do
10
Sobre este ponto, cuja discussão não poderia caber aqui, pode-se consultar
SKLAR, 1974, p. 219 s.; FRIEDMAN, 1983, p. 209-15 e GHINS, 1990, p. 191-
215.
Coleção CLE V.11
174 Mach e a Teoria Geral da Relatividade

campo variam em função do sistema de coordenadas. Mas o campo,


que constitui a realidade física na situação 1, não é o mesmo do que
na situação 2. Podemos, portanto, como Sklar, afirmar que a teoria
da relatividade geral não satisfaz ao requisito machiano da relativi-
dade dinâmica, nem, aliás, à causalidade empírica. Como explicar
agora que as situações 1 e 2 sejam fisicamente distintas, enquanto há
um único movimento relativo das esferas (ou do disco em relação ao
universo), a não ser recorrendo novamente ao movimento no espaço
absoluto, ou, antes, no espaço-tempo absoluto? Na primeira situação,
a rotação de F no espaço absoluto produz um campo diferente da-
quele da rotação absoluta de E. 0 que é decisivo nesta explicação
é a existência, independente da matéria, de um espaço-tempo plano
cuja estrutura (e curvatura) é modificada pela matéria. E possível
dar argumentos a favor da existência de um tal espaço-tempo11.
Podemos concluir que a teoria da relatividade geral de Einstein
não satisfaz à exigência machiana da relatividade dinâmica. Assim
sendo, a teoria de Einstein não implica o abandono do espaço-tempo
absoluto, cuja existência independente é, pelo menos, compatível com
esta teoria.

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Coleção CLE V.11
12

O Aparelho de Morin Revisitado:


Um Aparato Experimental Didático para o
Estudo daQueda dos Corp
o "The Science of Mechanics" de Emst Mach

Marcos César Danhoni Neves

1. Introdução
Na segunda metade do século XIX o general Jules Morin, do
Exército Francês, idealizou e construiu um aparelho didático, para
suas aulas no Conservatório de Artes e Ofícios de Paris, que permitia
o registro gráfico automático da queda acelerada de um corpo.
0 aparelho consistia de um cilindro que, por meio de um sistema
de relojoaria, girava com velocidade angular constante. A medida
que o corpo (um tronco de cone munido com uma caneta) caía em
queda livre, a caneta registrava no papel gráfico afixado ao cilindro
a curva característica da queda. A curva é uma parábola que revela
a relação entre as alturas de queda e os quadrados dos respectivos
tempos. 0 estudo da curva permite ainda a obtenção da relação
linear entre velocidade e tempo.
Existe uma outra variação desse aparelho que consiste de uma
placa metálica (com papel gráfico afixado) deixada cair através de
duas guias de arame. A placa fica bastante próxima de um diapasão
Coleção CLE V.11
178 O Aparelho de Morin Revisitado

munido com uma caneta para o registro gráfico (Mach, 1989, p.


178-83).
0 aparelho do general Morin é de suma importância para obter-se
a relação d = (a/2).t2 (d = distância de queda; o = aceleração da
gravidade; t = tempo gasto no percurso), ou, o que é o mesmo, a
lei dos números ímpares encontrada por Galileo (Galilei, p. 178-9).
0 "truque" de Galileo (que é resolvido por este aparelho) precisou
inclinar um plano para "diluir" o tempo de queda e assim poder
registrá-lo.
A receptividade do aparelho de Morin foi grande e marcante tendo
sido citado no "The Science of Mechanics" (Mach, 1989), e em mui-
tos outros livros didáticos de física posteriores à sua invenção. A
bibliografia enumera quatro livros básicos onde o aparelho e seu fun-
cionamento são descritos (Gabaglia, 1910, p. 114-7; Ganot, 1887,
p. 90-4; Ganot & Maneuvrier, 1904, p. 41-2; Maillard, 1911,
p. 14-6).
A proposta do presente trabalho foi a reconstrução completa desse
aparelho e a recuperação de toda a discussão anterior a ele com
relação à cinemática: a concepção aristotélica da queda dos graves;
a crítica medieval dessa concepção; a razão de queda segundo Da
Vinci; a lei dos números ímpares de Galileo; e a importância da ex-
perimentação na busca de relações matemáticas para determinados
fenômenos físicos.

2. O aparelho e seu funcionamento


O aparelho do general Morin possui um cilindro com mecanismo
de relojoaria suscetível de ser colocado em movimento de rotação
uniforme em torno de um eixo vertical, lembrando bastante o me-
canismo de "caixinhas de música". A figura 1 ilustra o aparelho
(Ganot, 1887, p. 41-2).
Na figura 1, uma haste C é colocada próxima ao cilindro, para-
lelamente a uma de suas geratrizes. Nesta haste faz-se deslizar um
bloco de bronze com a forma de um tronco de cone P, para que a
resistência oferecida pelo ar na queda seja desprezível.
O tronco de cone possui uma caneta que toca, de leve, a folha de
papel gráfico sobre o cilindro.
Existe um eixo vertical paralelo ao eixo do cilindro que contém
Coleção CLE V.11
Marcos César Danboni Neves 179

duas aletas: xe x'. Estas aletas servem para conter


do peso Q que toca todo o sistema, mediante a resistência que elas
oferecem com o ar quando o cilindro tende a acelerar.

„/r

Figura 1
Coleção CLE V.11
180 O Aparelho de Morin Revisitado

Se o cilindro estivesse parado e deixássemos cair o bloco de bronze,


a ponta de lápis traçaria no papel uma linha vertical Oh (Figura 2).
Se o bloco é recolocado em sua posição e aí mantido fixo, a ponta
de lápis, deixando-se girar o cilindro, traçaria no papel uma linha
horizontal Ot, sobre a qual comprimentos iguais corresponderiam a
intervalos de tempos iguais^ uma vez que a rotação do cilindro é
uniforme.
Porém, se se deixa cair o bloco de bronze ao mesmo tempo que
o cilindro gira, a ponta de lápis traçará no papel uma curva como a
que pode ser observada na Figura 2. Observa-se que foram traçadas
verticais eqüidistantes AA\ BB' ...S
tamente as alturas de queda durante os tempos t\, 2íi, ... (íi sendo
o tempo gasto pelo cilindro para girar de um arco de comprimento
OA).

A'

Figura 2

A experiência mostra que BB' = AAA' ou 22AA'; CC = 9 A A'


ou Z2AA'. Assim, enquanto o tempo varia proporcionalmente a 1, 2,
3, etc., a altura de queda varia proporcionalmente a 12,22,32, etc.
Deduz-se daí que a relação entre as alturas de queda e os quadra-
dos dos respectivos tempos é uma constante: h/t2 = K {h = altura
de queda; K = constante).
Além de provar a lei dos números ímpares de Galileo, o gráfico
obtido permite ainda obter a lei das velocidades. Consideremos a
Coleção CLE V.11
Marcos César Danhoni Neves 181

Figura 3:
A T B S C

D'

Figura 3

A reta tangente no ponto B' intercepta o eixo do tempo em:

T = A5/2

Chamando TB = t = TA, temos:

BC= AB=

SD = AS = 3í,
e assim por diante.
Chamando BB' = h, temos que;

CC=4h e DD' = 9h .

A tangente na figura 3 nos dá a dimensão de velocidade (v):

tagQ = vi = BB1 /TB = h/í

V2 - CC/BC = 4/i/2í = 2/i/í = 2ui


v3 = DD'/SD = 9h/Zt = 3h/t = 3vi.
Portanto, percebemos que a velocidade cresce na razão proporci-
onal ao tempo, ou seja, v = a.t (a = constante = aceleração).
Coleção CLE V.11
182 O Aparelho de Mor/n Revisitado

Do gráfico pode ser facilmente visto que é possível deduzir a


relação de Torricelli, v2 = 2gh.

3. Conclusão
Reconstruído no Departamento de Física da Universidade Esta-
dual de Maringá, o aparelho de Morin possui um cilindro com altura
de 76 cm, um diâmetro de 9,6 cm e um tempo de queda para o bloco
de bronze (considerando a velocidade de rotação do cilindro) de 0,35
segundos. O cilindro gira na razão de 2 voltas/segundo. O eixo das
aletas gira na razão de 6:1 em relação ao eixo do cilindro.
O aparelho reconstruído foi submetido a vários testes, destacando
uma ótima precisão nas medidas realizadas. O objetivo principal
agora é a simplificação da montagem do aparelho, substituindo o
mecanismo de relojoaria por um motor elétrico Singer, para que ele
seja viável em laboratórios de 2o e 3o graus.
Além do aparelho em si, foi produzido, no "Laboratório de
Criação Visual" do Departamento de Física (Universidade Estadual
de Maringá), um vídeo em curta-metragem resgatando a história da
cinemática. O vídeo enfoca, sobretudo, a relação entre técnica e
ciência (Rossi, 1989), o que permitiu, por exemplo, a construção de
um aparelho como o de Morin por um general, físico e conhecedor
de técnicas mecânicas, que o levaram a conceber um registrador para
a medida direta de um fenômeno, resolvendo assim um problema de
mais de 200 anos: o problema de Galileo da impossibilidade da pre-
cisão do tempo na queda acelerada de um corpo.

Lista Bibliográfica

Gabaglia, E.B.R. Elementos de mecânica. Rio de Janeiro : Garnier,


1910.

Galilei, G., Dialogues Conceming two New Sciences. New York :


Dover, 1954.

Ganot, A. Traité élmentaird physique. 20.ed. Paris : Hachette,


1887.

Ganot, à. & Maneuvrier, M. Petit cours de physique: purement


expérimental et sans mathèmatiques. lO.ed. Paris : Hachete,
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Marcos César Danhoni Neves 183

1887.

Mach, E. The Science of Mechanics. 6.ed. La Salle : Open Court,


1989.

Maillard, A. Le problème de physique élémentaire. 3.ed. [S.I.] :


Guibert, 1911.

Rossi, P. Os filósofos e as máquinas. São Paulo : Companhia das


Letras, 1989.
Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
Parte VI

* Comte e o Positivismo CientífiGO

* Empirismo no Século XIX


Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
13

A Questão da Indução em J.S. Mill

Mario A.L. Guerreiro

Constitui um lamentável equívoco assumir que todo e qualquer


empirista propõe ou sugere a aplicação de um método indutivo. De
um lado, é sabido que F. Bacon, J. Stuart Mill e alguns dos cha-
mados empiristas lógicos (particularmente R. Carnap e H. Reichen-
bach) elaboraram métodos baseados nas noções de indução ou de
probabilidade1; de outro lado, é igualmente sabido que tanto Berke-
ley como Hume desferiram críticas ferinas à fundamentação lógica e
epistemológica da indução. Neste sentido, pode-se asseverar que J.S.
Mill, longe de se apresentar como um seguidor de Hume, mostra-se
como uma retomada da tradição baconiana, não levando em consi-
deração - coisa que escapará ao olhar aguçado de K. Popper - a im-
portante observação de Bacon relativa à importância conferida por
ele ao caráter eliminativo do seu método indutivo: Major est vis ins-
tantiae negativae ("Maior é a força da instância negativa").
E espantoso, porém há fortes evidências de que J.S.Mill não só
não levou em consideração a supramencionada observação de Bacon
como também ignorou as objeções formuladas por Berkeley e, princi-

1
Esta última, segundo pensamos, envolvendo diretamente a primeira.
Coleção CLE V.11
188 A Questão da Indução em J.S. Mill

palmente, o famoso argumento de Hume contra a indução. Contudo,


ao estabelecer os fundamentos dos seus cânones indutivos, Mill apela
para o que chama de "princípio de uniformidade da natureza" ou de
"princípio de causação universal" - ao qual recorrerá também J.M.
Keynes (1921) na fundamentação filosófica da sua teoria da proba-
bilidade - gerando, assim, uma clara petição de princípio, caso se
considere válido o referido argumento de Hume2.
Generalizando: parece que todos aqueles que, a partir de Keynes,
Carnap e Reichenbach, ao introduzirem a noção de "probabilidade"
como uma alternativa para a noção milliana de "certeza indutiva",
não conseguiram oferecer uma resposta à altura para o espinhoso
entrave colocado por Hume, porquanto a mera substituição de uma
noção por outra mostra-se inteiramente ineficaz para a superação da
já mencionada petição de princípio. Tem-se a impressão de que como
sói ocorrer em outros contextos a sutileza das tecnicidades lógicas e
matemáticas convive com uma espantosa ingenuidade filosófica.
J.S. Mill, embora jamais recorra à noção de probabilidade - talvez
por causa do seu pressuposto infalibilista -, pode ser considerado o
precursor desta tendência, que se configura por volta da década de
vinte e que permanece no panorama contemporâneo, cuja feição geral
consiste em tentar salvar o método indutivo mediante o desenvolvi-
mento de uma lógica probabilística. Desse modo, uma investigação
do método indutivo de Mill pode se revelar interessante não só para
compreender melhor um importante filósofo da segunda metade do
século XIX, como também para lançar alguma luz sobre os funda-
mentos filosóficos das metodologias contemporâneas em que, em vez
de uma recomendação desta ou daquela versão do método hipotético-
dedutivo, encontramos esta ou aquela versão do método probabilístico
(apesar da conhecida observação de Einstein de que Deus não joga
dados).
Em A System of Logic?, J.S. Mill apresenta seu método e, entre
outras coisas, o faz afirmando textualmente que este se revelará eficaz
não só para a pesquisa científica como também para tomadas de de-
cisão referentes a assuntos práticos. Após definir a noção de indução

2
Pensamos que é bem mais fácil incorporá-lo aos nossos preceitos metodológicos
do que refutá-lo.
3
1843. 8* edição revista 1881.
Coleção CLE V.11
Mario A.L. Guerreiro 189

como "a operação de descoberta e de prova de proposições gerais",


Mill completa seu pensamento dizendo que, se suas observações são
corretas, então "uma lógica completa das ciências será também uma
lógica completa dos assuntos práticos e da vida" (Mill, 1972, v. III,
cap. 1 e 2).
Segundo pensamos, a supramencionada passagem abriga duas
proposições extremamente problemáticas:
(1) A afirmação de que o mesmo método possa dar conta de
questões metodológicas relativas aos contextos da descoberta e da
justificativa.
(2) A afirmação de que o mesmo método possa se revelar eficaz
tanto no domínio da pesquisa científica como no das tomadas de
decisão na vida prática.
Quanto à primeira afirmação, embora Mill fale textualmente em
"operação de descoberta e de prova", não se encontra, em nenhum
lugar do volumoso A System of Logic, uma explicitação das carac-
terísticas desses dois contextos inerentes ao processo da investigação
científica. Na ausência de quaisquer elucidações de caráter estrita-
mente conceituai, fica aberto um campo fértil para as controvérsias
de caráter interpretativo.
J. Trusted (1979, p. 115-6) entende que o método de Mill está
voltado para o contexto da justificativa, pois consiste basicamente
em uma série de "procedimentos para testar hipóteses e supostas
relações causais", embora o próprio Mill tivesse pensado que seu
método também poderia dar conta de aspectos relativos ao contexto
da descoberta. Trusted conclui afirmando que, embora Mill tivesse se
equivocado quanto à eficácia do seu método nos limites desse último
contexto, "ele mostra como as descobertas podem ser sustentadas por
investigações experimentais e/ou por observação direta".
Discordamos da interpretação de Trusted por duas razões:

1) Não há dúvida de que Mill minimiza ao extremo a importância


da teoria e da hipótese, e, neste ponto, cabe dizer que ele ele
é o herdeiro direto da tradição indutivista inaugurada por F.
Bacon e duramente criticada por Hume,

2) A afirmação de que Mill pretendia elaborar uma lógica da des-


coberta e, na realidade, produziu uma lógica da justificativa,
Coleção CLE V.11
190 A Questão da Indução em J.S.

parece injustificável. Considerando qué Mill não apresenta em


nenhum lugar uma demarcação desses dois domínios (como,
por exemplo, a proposta por Popper e seus seguidores), é mais
razoável pensar que ele não conferia grande relevância a essa
distinção, ou melhor: de acordo com uma certa tradição empi-
rista, entendia que a explicitação do processo da descoberta já
continha em si mesma a justificativa.

Levando em consideração essas duas razões, pensamos que a in-


terpretação de E. Nagel (1974, p. 39) é preferível à de Trusted. Se-
gundo Nagel, o objetivo de Mill era conquistar para a indução aquilo
que a lógica tradicional havia conquistado para o silogismo: formu-
lar um conjunto de regras mediante as quais as ínferências indutivas
pudessem ser testadas e estabelecidas. Nagel conclui sua observação
chamando a atenção para o aspecto de que tanto a concepção como
a execução da tarefa de Mill estavam sob o controle de um pressu-
posto fundamental da sua filosofia. Nas palavras do próprio Nagel:
"uma idéia mostra-se válida quando é traçada sua verdadeira ori-
gem". Ora, este é justamente o pressuposto básico da metodologia
implícita na teoria do conhecimento de J. Locke, que receberia uma
terrível reprovação de Kant.
Nagel prossegue asseverando que, em conseqüência desse insus-
tentável pressuposto, a discussão dos procedimentos indutivos acaba
envolvendo Mill em dificuldades insuperáveis. Entre estas, Nagel des-
taca a razão da mais espinhosa: o fato de Mill "não ter distinguido o
problema de encontrar regras da descoberta e o de encontrar critérios
gerais de validade" (grifos nossos). De acordo ainda com Nagel, em
uma passagem Mill sustenta explicitamente que "se as descobertas
são feitas pela observação e pelo experimento sem dedução, os quatro
métodos são métodos da descoberta". Contudo, incongruentemente,
Mill acreditava que seus métodos eram "regras e modelos [tais como
o silogismo e suas regras são para o raciocínio] aos quais, se os ar-
gumentos indutivos se adequam, estes argumentos são conclusivos".
Nagel conclui afirmando que as conseqüências dessas afirmações in-
congruentes foram desastrosas para a clareza da exposição, bem como
para a adequação da maior parte da análise de Mill.
Nossa posição é mais radical do que a de Nagel. Temos razões
para sustentar que a confusão dos contextos da descoberta e da jus-
Coleção CLE V.11
Mario A.L. Guerreiro 191

tificativa assomada à identificação do método científico com regras e


procedimentos para tomadas de decisão na vida prática é muito mais
desastrosa: não somente a clareza e a adequação, mas principalmente
a própria fundamentação de Mill, vão por água abaixo.
Em A System of Logic, Mill apresenta quatro métodos indutivos.
Da combinação de dois desses métodos são gerados cinco cânones, a
saber : (1) o da concordância, (2) o da diferença, (3) o dos resíduos,
(4) o da variação concomitante e (5) o da conjunção da concordância
e da diferença. Se nosso interesse fosse uma investigação das chama-
das inferências práticas ou informais; se estivéssemos voltados para
uma exposição do pensamento de Mill, teríamos de apresentar uma
explicitaçâo desses cânones. Contudo, não perdendo de vista o ar-
gumento que pretendemos desenvolver, podemos dispensar qualquer
observação sobre o caráter específico desses mesmos cânones. Conso-
ante a afirmação do próprio Mill, e este é ponto que nos interessa, seus
cinco cânones estão todos baseados em um, e somente um, princípio:
o da uniformidade da natureza ou da causação universal. Citemos o
texto de Mill:
Devemos observai, em primeiro lugar, que há um princípio implicado
na própria afirmação do que é a indução; um pressuposto relativo ao
curso da natureza e ã ordem do universo, a saber: que existem na
natureza coisas tais como casos paralelos; que o que acontece uma
vez, acontecerá - sob um grau suficiente de circunstâncias - tão
freqüentemente quanto as mesmas circunstâncias voltem a ocorrer.
Este é o pressuposto envolvido em lodo e qualquer caso de indução.
E se observarmos o curso real da natureza, descobriremos que esse
pressuposto está asssegurado (...) A proposição de que o curso da
natureza é uniforme é o princípio fundamental ou o axioma geral da
indução (MILL, 1881, 1972, III, 3; grifos nossos).

Bastaria apenas esta passagem, em que Mill assume que o futuro


será como o passado, para que seu princípio fosse refutado pelo ar-
gumento de Hume contra a indução. Todavia, Mill faz em seguida
uma breve ressalva que, em vez de atenuar, fortalece ainda mais uma
objeção baseada em Hume:
Contudo, seria um grave erro oferecer essa ampla generalização como
uma explicação do processo indutivo. Ao contrário, sustento que ela
mesma é uma instância da indução, e não se trata de nenhum modo
de uma indução do tipo mais óbvio. Longe de ser a primeira que
fazemos, é uma das últimas ou de qualquer modo uma das ultimas a
Coleção CLE V.11
192 A Questão da. Indução em J.S. Mi/i

atingir uma precisão estritamente filosófica (MILL, 1881, 1972, III,


S).
Temos portanto, como já havíamos avançado, uma clara petição
de princípio: a indução está baseada no princípio da uniformidade e
este último baseado na indução. Examinando melhor a formulação
do princípio de uniformidade ou de causação universal, perceberemos
que ele se desdobra em duas proposições:

(1) Todo evento tem de possuir uma causa, ou, dito de outro modo:
Não há efeito sem causa.

(2) Causas semelhantes produzem (e sempre produzirão) efeitos se-


melhantes.

Não há dúvida de que é incoerente aceitar (2) sem aceitar (1),


mas não é incoerente aceitar (1) e rejeitar (2). Esta distinção seria
oportuna se estivéssemos interessados na polêmica entre Hume e Kant
sobre a indução, mas, para efeito imediato, é preciso frisar que Mill,
ao formular seu princípio, tinha em mente a idéia de que (2) segue
naturalmente de (1) e a completa, de modo tal que, para ele, (1) e (2)
constituem aspectos indissociáveis na formulação do seu princípio.
J. Trusted (1979, p. 58) refuta a postulação do referido princípio
de Mill em uma passagem que se afigura à primeira vista como mera
paráfrase do conhecido argumento de Hume. Contudo, há um as-
pecto na sua formulação que pode introduzir uma relevante diferença
quanto ao ponto sustentado por Hume. De modo a destacar este
ponto, preferimos recorrer à citação textual:
Não temos experiência do futuro e, por isso mesmo, não podemos
ter certeza de que a lei da causação universal continuará válida no
futuro. Não podemos saber se, no futuro, todo evento terá uma
causa, e estamos menos seguros ainda de que um dado evento (uma
causa) será seguido pelo evento (o efeito) que o seguiu no passado.
A expressão "e estamos menos seguros ainda" parece indicar que
Trusted reconhece a diferença entre: (1) Não poder saber se, no fu-
turo, todo evento terá uma causa, e (2) Não estar seguro de que um
dado evento (uma causa) será seguido pelo evento (o efeito) que o
seguiu no passado. Apesar de Trusted ter admitido a diferença entre
(1) e (2), não temos elementos para afirmar que ele confere o mesmo
peso que conferimos a essa diferença quando a relacionamos com as
Coleção CLE V.11
Mario A.L. Guerreiro 193

proposições (1) e (2) da formulação do princípio de Mill. De modo


a esclarecer a natureza específica dessa relação, recorremos a uma
passagem de A. Ryan (1974, p. 82).
De acordo com Ryan, a maior parte dos críticos de Mill tem sus-
tentado que, na sua tentativa de oferecer métodos indutivos de prova,
ele teria tentado contornar o célebre argumento de Hume de que não
há nada que se possa considerar "certeza" indutiva. Parece que os
métodos eliminativos funcionam a partir da suposição de que pode-
mos eliminar todas menos uma possibilidade causai e chegar à for-
mulação do seguinte dilema:

A é a causa de B ou não há nenhuma causa de B.

Partindo da admissão de que "Não há efeito sem causa" constitui


uma certeza nâo-empírica e irrefutável, podemos estar certos quanto
à referida conexão causai. Desse modo, reconstruindo o argumento
de Ryan, podemos tomar o supramencionado dilema como premissa
no seguinte argumento:
(1) A é a causa de B ou não há nenhuma causa de i?
(2) B tem de possuir uma causa '
(3) A é a causa

É importante observar que, para que (1) possa ser considerado


um autêntico dilema, não um pseudodilema assumindo o lugar de
um trikma ou de um polilema, tem de haver a possibilidade de eli-
minar todas as causas de B menos uma. Não resta dúvida de que
em algumas circunstâncias especiais essa eliminação pode ser feita,
mas, na maior parte dos casos, ela não pode ser. Por exemplo: Se
constato a uma relativa distância que o pneu do meu carro está ar-
riado, sou imediatamente levado a formular uma disjunção indusiva:
"0 pino de segurança se soltou ou há um furo na câmera de ar" (pois
o ar não poderia ter escapado de outro modo). Se, ao me aproximar,
verifico que o pino de segurança não está solto, posso então formular
um dilema: "0 furo é a causa do esvaziamento dq pneu ou não há
nenhuma causa do esvaziamento".
Infelizmente, a maior parte das conexões causais, principalmente
as investigadas pela ciência, não são passíveis de redução a um es-
Coleção CLE V.11
194 A Questão da Indução em J.S. MUI

quema tão simples. Na maior parte das vezes, é extremamente difícil


eliminar todas as causas menos uma. Todavia, supondo que isto fosse
sempre possível e que (1) pudesse ser formulada como uma premissa,
a conclusão formulada em (3) dependeria do caráter irrefutável de
(2). Pondo em dúvida que (2) possa ser considerada irrefutável, Ryan
conclui seu pensamento dizendo:
Mill não podia seguir Kant supondo que (2) se tratava de uma ver-
dade sintética a priori,e isto porque não acred
deste tipo. Ele não podia admitir tampouco que era o caso de
uma verdade analítica sobre o significado de "evento", pois verdades
analíticas são todas meramente verbais e nada estabelecem sobre o
mundo exterior. Assim, a única saída pata Mill foi supor que a lei
da causação universal era uma generalização empírica (Ryan 1974,
p. 82).
Admitindo que assim fosse e admitindo que o argumento de Hume
é irrefutável, o princípio de uniformidade ou de causação universal não
escapa da já mencionada petição de princípio. Pode-se supor que a
dificuldade de Mill poderia ser contornada ou ao menos atenuada,
caso ele tivesse abandonado a noção de "certeza indutiva" e adotado
a de "graus de probabilidade" e, ao mesmo tempo, tivesse falado em
uma "expectativa de uniformidade" da parte do experimentador em
vez de postular um princípio de uniformidade inerente à natureza.
Mesmo que assim fosse, pensamos que somente o aspecto psicológico
do argumento de Hume poderia receber uma acomodação satisfatória.
0 aspecto lógico continuaria um entrave de difícil remoção.

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Coleção CLE V.11
u

É a Filosofia da Ciência de Comte


"Positivista"?

Aiberto Oliva

"Tout relatif; voiiá le »eul


príncipe abtolut" (A. Comte)

Como é notório, predomina hoje uma tendência a pespegar o ad-


jetivo "positivista" a posições epistemológicas tidas como ingênuas
ou retrógradas. Como se transformou num predicado genérico, vaga-
mente atribuível às mais diferentes posturas metacientíficas, perdeu
a maior parte de sua capacidade nomeadora a ponto de se tornar um
estereótipo filosófico totalmente descolado das mais importantes for-
mulações avançadas por Comte. Para isso muito contribuíram obras
que usaram o termo "positivista" como uma umbrella-category no in-
terior da qual foram subsumidos sistemas filosóficos com diminutos
pressupostos compartilhados (cf. Kolakowski, 1974).
Prevalece, entre nós, a tendência a qualificar de "positivista" tudo
que envolve uma equivocada "veneração dos fatos". Nosso trabalho
se empenhará em mostrar que o positivismo está, à diferença do que
supõe a maioria de seus críticos, longe de qualquer modalidade de
fatualismo/observacionalismo estreito. A verdade é que, no mais das
Coleção CLE V.11
196 É a Filosofia da Ciência de Comte "Positivista"?

vezes, a freqüência com que se emprega de modo pejorativo o epíteto


positivista é proporcional ao desconhecimento que normalmente se
tem da totalidade da metaciência comtiana. Como pretendemos evi-
tar o diagnóstico da leviandade intelectual só nos restará inferir que
a teoria comtiana do método científico é estigmatizada por ser ape-
nas parcialmente conhecida ou por ser vista como parte da filosofia
abraçada por parte de nossa elite dirigente. Só o grande influxo exer-
cido pelo positivismo no Brasil pode explicar a reação que faz da
Filosofia da Ciência de Comte um fetiche epistemológico generica-
mente desprezado.
Sem que sua prolífica e prolixa obra tenha sido efetivamente com-
pulsada, se apressam seus críticos em vinculá-la a um programa me-
tacientífico repleto de cânones de investigação inócuos, contraprodu-
centes ou até perniciosos. Nosso único consolo é o de que muito pouco
de meritório se escreveu sobre a filosofia comtiana da ciência mesmo
nos grandes centros de produção filosófica. Apenas um inexpressivo
número de trabalhos se devotou a uma cuidadosa reconstrução da
epistemologia proposta por Comte. Em língua francesa, merecem
destaque as obras de Devolve (1932), Ducassé (1939) e Levy-Bruhl
(1900). No mundo de língua inglesa, malgrado a grande influência
exercida pelo positivismo lógico, raros trabalhos se debruçaram mais
acurada e minuciosamente sobre a metaciência de Comte. Laudan
(1971) é, até onde nos é dado conhecer, uma das mais importan-
tes exceções à ligeireza analítica com que tem sido abordada a epis-
temologia positivista. Seu roteiro reconstrutivo, sem parti-pris de-
formador, coincide, no fundamental, com o tipo de análise a ser
desenvolvido neste trabalho. A diferença básica reside no fato de
que não nos propomos a prover um aperçu geral da metaciência de
Comte, e sim a demonstrar por que são infundadas as razões que
levaram seus adversários, aqui1 e alhures, a atribuírem um observa-

1
Para se ter uma visão panorâmica da obra de Comte, consulte-se a compe-
tente coletânea organizada por Evaristo de Moraes Filho para a coleção Grandes
Cientistas Sociais (São Paulo : Editora Ática, 1978) intitulada Comte. Em seu
livro Augusto Comte e o Pensamento Sociológico Contemporâneo (Rio de Janei-
ro : Livraria São José, 1957) veicula uma visão da gnosiologia positivista distante
dos clichês epistemológicos utilizados por nossa intelligentsia. Em sua sucinta ex-
posição, Evaristo corretamente desvincula a epistemologia de Comte da tradição
do empirismo metodológico rústico.
Coleção CLE V.11
Alberto Oliva 197

donalismo/fatualismo que não se faz de facto presente em sua obra.


Damos aqui proeminência à problemática da interação entre teoria
e observação em razão de terem as principais vertentes da filosofia
da ciência contemporânea assumido identidades metaexplicativas em
boa parte decorrentes dos diferentes modos de cada uma especificar
a função cumprida pelos 'fatos' no processo de geração e no de justi-
ficação das teorias.
Na verdade, o que motivou a elaboração deste artigo foi a cons-
tatação de que, entre nós, "positivista" passou a ser sinônimo de xin-
gamento epistemológico por supostamente configurar uma concepção
de ciência retrógrada comprometida com um rústico e estreito fatu-
alismo. Mas assumir tal atitude atesta apenas que não se leu aten-
tamente a obra epistemológica de Comte. Ademais, estudos compa-
rativos tornam inevitável a conclusão de que Comte, no século XIX,
perfilha concepções sobre método científico que estão longe de poder
ser menosprezadas como retrocessivas.
Dupla será a finalidade deste trabalho. Demonstrar que não há
o tão propalado fatualismo/observacionalismo em Comte e que mui-
tas das posições epistemológicas que defende são, para sua época,
avançadas e antecipam muitas das críticas que contemporaneamente
são dirigidas à hegemonia do empirismo metodológico desde F. Bacon.
Com isso, pretendemos rechaçar como infundada a tendência que faz
do positivismo, através de uma démarche de propaganda perversa, a
bete-noire da epistemologia.
Não há dúvida de que se o positivismo pudesse ser verdadeira-
mente associado a uma estreita visão fatualista de ciência poderia
ser justamente confundido com atitudes metodológicas inibidoras da
imaginatividade/explicatividade e em franco descompasso com a
inveniendi e a ars probandi efetivamente empregadas pela heurística
da produção científica. Ocorre, porém, que aqueles que acusam o
positivismo de fatualista se apoiam em declarações genéricas, citadas
pela metade, despreocupados com a unidade global do sistema epis-
temológico comtiano. Comte, a todo instante, reitera que os 'fatos'
são a basede todo conhecimento genuíno (empírico), mas' o tempo
todo reconhece que os 'fatos' não têm valor epistêmico em si:
Tal previsão, resultado necessário de relações constantes descobertas
entre os fenômenos, não permite que se confunda ciência real com
essa vã erudição que acumula maquinalmente os fatos sem aspirar a

Coleção CLE V.11


198 E a Filosofia da Ciência de Comte "Positivista"?

deduzir uns dos outros (COMTE, 1974, p. 25).

Mas o que, na obra de Comte, teria minimamente ensejado essa


suspeita de que nela podemos detectar fatualismo? No início do
Cours de Philosophie Positive, Comte emprega o adjetivo positivista
para definir ttuma maneira especial de filosofar que consiste em carac-
terizar as teorias como tendo por objeto a coordenação de fatos obser-
vados" (Comte, 1908, v. 1, p. 13). Este tipo de declaração associado
à sua tese de que é totalmente desprovida de sentido a pesquisa vol-
tada para o estudo das causas, primeiras ou últimas, e de que as
formulações metafísicas tradicionais são especulações cognitivamente
ilusórias, deu a seus críticos, que não continuaram a leitura de seus
textos, a impressão de que estavam sic et simpliciter diante de um
gratuito fatualismo antiíilosóíico. Ter batizado as ciências empíricas
como ciências de observação2 muito contribuiu para se acreditar que
Comte esposava uma ingênua visão fatualista de ciência à luz da qual
as teorias são vistas como se formando com base em observações e se
justificando como conseqüência generalizada dos fatos.
Como é sabido, Comte não se cansou de frisar que o objetivo
central da ciência é a previsão. Na verdade, o poder de previsão
dos sistemas explicativos da ciência é erigido em autêntico critério de
demarcação em condições de distinguir a racionalidade científica do
vazio especulativismo metafísico3:
A ülosofia positiva (...) descarta como necessariamente vã toda pes-
quisa das causas propriamente ditas, sejam primeiras ou finais, por
se limitar a estudar as relações invariáveis que constituem as leis efe-
tivas de todos os eventos observáveis suscetíveis de ser racionalmente
previstos uns após os outros (COMTE, 1908, v. 6, p. 424).

Cabe, no entanto, ter presente que seu critério de cientificidade,


calcado no poder de previsão, não ambiciona propriamente separar
enunciados significantes de assignificantes. A diferença do positivismo
2
Caracterizar as ciências empíricas como ciências de observação tornou-se co-
mum até mesmo entre os sociólogos. Entre nós, Florestan Fernandes não se cansou
de insistir que a sociologia é uma ciência de observação.
3
O Positivismo Lógico se propõe, a partir de 29, a radicalizar a postura anti-
metafísica de Comte salientando que as proposições do especulativismo filosófico
tradicional não são, em sua esmagadora maioria, nem verdadeiras nem falsas -
são simplesmente destituídas de significado cognitivo. Ou violam regras básicas
da sintaxe lógica ou não são em princípio suscetíveis de verificação.
Coleção CLE V.11
Alberto Oliva 199

lógico, Comte não apresenta seu critério de cientiíicidade como um


critério de signiiicatividade (Oliva, 1990b). Estatui apenas que se
estamos diante de um corpo de asserções que se revela incapaz de
prover e embasaf predições não podemos qualificá-lo de científico4.
Toda ciência tem por finalidade a previsão, que distingue a ciência
real da simples erudição, que se limita a narrar os eventos aconte-
cidos sem qualquer perspectiva de futuro (COMTE, 1908, v. 2. p.
12).

Mas Comté não se limita a fazer da "previsão sistemática (.,.)


a principal característica da ciência real" (Comte, 1908, v. 6, p.
451). Toda essa ênfase conferida à previsão se associa à atitude que
privilegia o ver, a observabilidade. A constatação do que é se constitui
na única forma de prevermos o que será, o desconhecido só pode ser
inferido com base no conhecido, o futuro com base no presente e os
casos possíveis com base nos reais. E só podemos saber como o que
é, é, recorrendo a procedimentos observacionais:
Assim, o verdadeiro espírito positivo consiste, sobretudo, em ver
para prever, em estudar o que é a fim de concluir o que será, em
consonância com o dogma geral da invariabilidade das leis naturais
(COMTE, 1974, p. 25).

E claro que ao erigir o poder de previsão em traço distintivo da


cientificidade e ao sublinhar que o potencial de prever depende estru-
turalmente da atividade de ver, Comte pareceu estar se comprome-
tendo com uma concepção observacional/fatualista de ciência. Tudo
isso associado a suas afirmações constantes de que a testabilidade é o
que distingue enunciados científicos de não-científicos levou a maioria
de seus leitores indiretos a identificar integralmente sua metaciência
com a empirista. Nosso trabalho se empenhará em mostrar que, não
obstante essas aparentes evidências de que o positivismo pouco ou
nada acrescenta ao empirismo, grandes são as diferenças subsistentes
entre o que propõe Comte em seus escritos metacientíficos e o que
4
Cointe enuncia da seguinte forma seu critério de dentiiicidade: "A perfeição
especulativa de uma ciência qualquer deve ser medida essencialmente por essas
duas considerações principais, sempre e necessariamente correlativas, ainda que
bastante distintas: a coordenação mais ou menos completa e a previsão mais ou
menos exata, Este último traço nos proporciona sobretudo o critério mais claro e
mais decisivo ao qual se deve reportar diretamente o fim último de toda ciência''
(1908, v. 2, p. 222).
Coleção CLE V.11
200 É a Filosofia da Ciência de Comte "Positivista"?

antes firmara a tradição inaugurada por F. Bacon. Não há dúvida de


que muitas de suas enunciações, atomisticamente consideradas, des-
pontam em total afinidade com alguns dos postulados metodológicos
propostos pelo empirismo clássico britânico:
Ver para prever: tal é o caráter permanente da verdadeira ciência;
tudo prever sem ter nada visto constitui apenas uma absurda utopia
metafísica, ainda muito perseguida (COMTE, 1908, v. 6. p. 439).
No entanto, não podemos descurar do fato de que, para Comte,
a predição só pode ser feita no interior de uín sistema teórico com
efetiva capacidade explicativa. Daí sua metaciência antecipar a tese
contemporânea da simetria entre explicação e predição. E como a ex-
plicação não se reduz, para Comte, à realização de observações pura-
mente inventariantes de fatos, já que pressupõe sempre teoria, ocorre
nítido afastamento do empirismo metodológico clássico. Como vere-
mos, o reconhecimento de que a ciência faz uso da arte de formular
hipóteses e o de que não tem como fazer a mais trivial observação se
não conta com uma teoria qualquer em muito antecipam as críticas
contemporâneas que serão dirigidas à longa hegemonia do empirismo
metodológico na tradição da epistemologia ocidental.
E inegável que se não tivermos uma visão panorâmica e global da
obra de Comte tenderemos a prestar atenção apenas em suas raízes
empiristas, negligenciando a forte influência recebida por Comte da
tradição racionalista. Uma leitura acurada revelará que Comte está
longe das toscas posições empiristas. Apesar de defender a tese, que
se tornou comum a partir de F. Bacon, de que a superioridade ex-
plicativa da ciência sobre outras modalidades de interpretação da
realidade, como por exemplo a metafísica, decorre do fato de possuir
uma segura base observacional, Comte não descreveu essa base como
um 'domínio de fatos' ao qual possamos ter um acesso direto, sem
mediações teóricas:
Pois se, de um lado, toda teoria positiva deve necessariamente
estribar-se em observações, é igualmente imprescindível, por outro,
que, para entregar-se à observação, nosso espírito necessita de uma
teoria qualquer. Se, ao contemplarmos os fenômenos, não os rela-
cionássemos imediatamente a alguns princípios, não apenas nos seria
impossível combinar essas observações isoladas e, por conseguinte,
delas extrair algum resultado, mas seríamos mesmo inteiramente
incapazes de retê-las; e, na maioria das vezes, os fatos passariam
despercebidos sob nossos olhos (COMTE, 1908. v. 1, p. 5).
Coleção CLE V.11
Alberto Oliva. 201


E preciso ter presente que as críticas que se avolumaram, neste
século, ao observacionalismo/fatualismo não eram triviais à época de
Comte. Seu reconhecimento de que contar com uma teoria é condição
de possibilidade para a realização científica dos fenômenos evidencia
que não estamos diante das estreitezas metodológicas que normal-
mente atribuem, sobretudo entre nós, à sua filosofia da ciência. Muito
pelo contrário. Por mais que Comte se mostre excessivamente preso
a uma concepção que acredita numa rock bottom basis of knowledge,
de tipo observacional, não há como deixar de reconhecer que o im-
portante papel que confere à Teoria não nos permite vê-los como
endossando a visão ingenuamente fatualista que seus críticos costu-
mam lhe imputar:

Em qualquer ordem de fenômeno que possa existir, mesmo as mais


simples, nenhuma verdadeira observação é possível sem que seja
primitivamente dirigida e finalmente interpretada por uma teoria
qualquer. (...) toda observação isolada, inteiramente empírica, é
essencialmente ociosa, e até radicalmente incerta. A ciência só faz
uso daquelas que se vinculam, ao menos hipoteticamente, a uma lei
qualquer; é essa vinculação que constitui a principal diferença ca-
racterística entre as observações dos cientistas e as do vulgo (...)
(COMTE, 1908. v. 4, p. 219-20).

Ao afirmar que "a pura imaginação perde inapelavelmente sua


antiga supremacia mental para subordinar-se necessariamente à ob-
servação" (Comte, 1974, p. 19), Comte não suprimiu a atividade
voltada para a reconstrução imaginativo-hipotética dos fenômenos.
Quis apenas defender o ponto de vista de que só subordinando-se à
observação vai deixar de gerar especulativismo auto-referencial e en-
sejar a identificação e real apreensão do significado epistêmico dos fa-
tos. Sugere, assim, que a imaginação sem fatos é vazia e a observação
desprovida da imaginatividade explicativa, via teoria, é cega. Nesse
sentido, subordinar a imaginação à observação não significa, como
sustenta Marcuse (1960, p. 347-8), alijá-la do processo de produção
de conhecimento:

Ainda que as diferentes ordens de especulações reais confiram, sem


dúvida, uma alta e ativa participação à imaginação, nós a temos
visto sempre necessariamente subordinada à observação, isto é, cons-
tantemente empregada no sentido de criar ou de aperfeiçoar os meios
de ligação entre os fatos constatados. (COMTE, 1908. v. 6, p. 438).
Coleção CLE V.11
202 É a Filosofia da Ciência de Comte "Positivista"?

Pode-se, assim, constatar que a metaciência de Comte se afasta


nitidamente do observacionalismo defendido por F. Bacon no Novum
Organum (Oliva, 1990a). O próprio positivismo se assume como um
movimento filosófico determinado não só "pelos preceitos de Bacon
como também pela concepções de Descartes e pelas descobertas de
Galileu" (Comte, 1908, v. 1, p. 19 e p. 28; Comte, 1929, v. 4, p.
147). Malgrado preste efusiva reverência ao pai do empirismo clássico
britânico, chamando-o de o Grande Bacon (Comte, 1908, v. 6, p.
461), Comte forjou uma filosofia da ciência que, sob a forte influência
do racionalismo, não enveredou pela defesa de um registro observacio-
nai ateórico cuja pureza seria conseqüência da completa neutralização
dos idola forjáveis pela faculdade imaginativo-intuitiva. Defendeu, ao
contrário, a necessidade de contarmos com procedimentos heurísticos
que nos tornem capazes de avançarmos hipóteses em condições de
ensejarem a integração explicativa entre os fenômenos. Daí reputar-
mos infundada a leitura de Meyerson (1908) que atribui a Comte
uma visão estritamente empirista de ciência. A verdade é que com
o racionalismo cartesiano Comte aprendera o quanto é improcedente
a atitude que desqualifica toda e qualquer atividade voltada para a
criação de hipótese como uma ruinosa antecipatio mentis. Essa a
razão pela qual Comte, em diversos momentos de sua obra, pretende
manter-se equidistante tanto do empirismo quanto do que chama de
misticismo5:
(...) determinar as atribuições respectivas da observação e do ra-
ciocínio de modo a evitar igualmente os dois escolhos opostos do
empirismo e do misticismo entre os quais devem caminhar os co-
nhecimentos reais. De um lado, devemos endossar a máxima que
felizmente se tornou, desde Bacon, vulgar segundo a qual há a ne-
cessidade contínua de erigirmos os fatos observados em base, direta
ou indireta, de toda sã especulação (...) Mas, por outro lado, descar-
tamos igualmente as disposições irracionais, hoje bastante comuns,
que reduziriam a ciência a uma estéril acumulação de fatos incoe-
rentes (COMTE, 1908, v. 6, p. 425).
Comte está em franca dissonância cognitiva com o modelo em-
pirista clássico de conhecimento, não só por rechaçar o observacio-
5
A preocupação de Comte de manter-se afastado tanto do empirismo quanto
do que denomina misticismo é recorrente em sua obra. Conferir também (1974,
p. 24; 1908, v. 6. p^ 474 onde se contrapõe ao empirismo estéril e ao misticismo
opressivo; 1929, v. 3. p. 24-5).
Coleção CLE V.11
Alberto Oliva 203

nalismo como também por conferir à matemática6 papel destacado


na forjadura das explicações desenvolvidas pelas ciências empíricas.
Desse modo, a influência do racionalismo fica patente não só por "co-
locar a ciência matemática 4a testa' da filosofia positiva" (Comte,
1908. v. 1. p. 62) como também, e sobretudo, por reconhecer que
a imaginatividade hipotética é condição de possibilidade para a rea-
lização até do mais simples registro observacional:
Permito-me, além disso, assinalar que se é verdadeiro que uma
ciência só se torna positiva quando se estriba exclusivamente em
fatos observados e cuja exatidão é geralmente reconhecida, é igual-
mente incontestável que (consoante a história do espírito humano
em todas as direções positivas) que um domínio qualquer de nosso
conhecimento só se torna uma ciência a partir do momento em que,
por meio de uma hipótese, conseguimos ligar todos os fatos que lhe
servem de base (COMTE, 1929. v. 4. p. 24-5).
Essa crítica ao observacionismo, que predominou incontestado
nos séculos XVII e XVIII, mostra ser improcedente a identificação
freqüentemente estabelecida entre positivismo e empirismo meto-
dológico rústico. A denúncia de fatualismo dá a impressão de ser
plausível quando o acusador se circunscreve às passagens da obra de
Comte que creditam importância capital aos fatos, deixando de citar
as orações adversativas, imediatamente subseqüentes, que chamam a
atenção para a necessidade de contarmos com uma teoria qualquer
para que possamos ter acesso explicativo aos fatos:
E certamente incontestável, hoje em dia, que a observação dos fatos
é a única base sólida dos conhecimentos humanos. Pode-se mesmo
dizer, tomando esse prinapio em seu máximo vigor, que toda pro-
posição que não é redutível à simples enunciação de um fato, parti-
cular ou geral, não tem sentido real ou inteligível.
Até aqui, parece manifesto o envolvimento com o fatualismo. No
entanto, a continuação do texto desfaz essa impressão:
Mas não é menos certo que o desenvolvimento da capacidade de
imaginação deve preceder a capacidade de observação (COMTE,
1929, v. 4, p. 140).
6
Como é notório, o empirismo tendeu a historicamente negligenciar o impor-
tante papel desempenhado pela matemática na organização da estrutura inferen-
cial dos sistemas explicativos das ciências empíricas. No Novum Organum não há
- sintomaticamente - uma só linha dedicada à especificação epistêmica da função
cumprida pela matemática no processo de elaboração dos conhecimentos sobre a
Natureza.
Coleção CLE V.11
204 É a Filoso/ía da Ciência de Comte "Positivista"?

Nos antípodas do que defendiam os empiristas, Comte não postula


a existência de alguma modalidade de acesso não-teórico àbase obser-
vacional. Entendidos como conjuntos integrados de ocorrências que
exprimem uniformidades empíricas com base nas quais estatuímos
as leis invariáveis da natureza, os fatos pressupõem sempre a ins-
tauração de uma ótica teórica no interior da qual adquirem signifi-
cado epistêmico. Há passagens da obra de Comte que antecipam, de
forma meridiana, a crítica mais contundente que a filosofia da ciência
contemporânea fez ao observacionalismo:
(...) o empirismo absoluto é impossível (...) O homem ,é incapaz,
por sua natureza, não somente de combinar fatos e deles deduzir al-
gumas conseqüências, mas simplesmente de observá-los com atenção
e de retê-los com segurança se não os vincula imediatamente a al-
guma explicação. Em suma, não podemos realizar observações sem
uma teoria qualquer, assim como não há teoria positiva sem ob-
servações (COMTE, 1929, v. 4, p. 141).

Inúmeros excertos da obra de Popper apresentam uma impressi-


onante "semelhança de família" com algumas das mais importantes
passagens em que Comte expõe como deve ser entendida a interação
epistêmica entre teoria e observação. Popper, infelizmente, não reco-
nhece isso. Limita-se (1971, p. 298) a citar o texto acima veiculado (o
da página 140) sem chegar à oração adversativa. Isto lhe impede de
ver em Comte um dos precursores à atitude anti-observacionalista que
frutiferamente assumiu já na sua Logik der Forschung, Aliás, Comte
é duramente atacado por Popper por esposar um ponto de vista evo-
lucionista marcado pelo otimismo historicista. Os únicos elogios que
faz a Comte são por sua ênfase às leis e à predição científica e por
sua crítica à teoria essencialista da causalidade (cf. Popper, 1976,
p. 119).
E importante ter presente que a atribuição de fatua-
lismo/observacionalismo à epistemologia de Comte não tem como
ser documentalmente respaldada por sua obra e nem ser comparati-
vamente proposta tomando-se outros pensadores - predecessores ou
contemporâneos - como marcos de referência. Analisada de um ponto
de vista histórico7, cabe reconhecer que a obra de Comte pertenceu
7
E interessante notar que Comte foi um dos primeiros epistemólogos a dar
grande importância à dimensão histórica dos estudos que fazemos sobre a. ciência:
"(...) a filosofia da ciência não seria convenientemente estudada se separada de
Coleção CLE V.11
Alberto Oliva 205

a um século em que prevalecia a pregação observacionalista de F.


Bacon. Em termos de obra metodológica, a sua foi uma das primei-
ras a reconhecer a importância capital da atividade teórica para a
realização das observações cientificamente interessantes.
E claro que a rígida postura cientistica de Comte não o levará
a admitir, à maneira de Popper, que teorias científicas podem se
formar a partir de vagas e nebulosas intuições gestadas, por exem-
plo, no campo da metafísica. Comte não dá a devida atenção aos
exemplos históricos de teorias científicas cuja gênese mostra-se cla-
ramente dependente de uma tradição filosófica de investigação. Sua
teoria separatista da racionalidade - a ciência não absorve conteúdos
ideacionais de outras modalidades de interpretação da realidade -
só é compatível com uma concepção de método para a qual a te-
oria científica não tem como deixar de formar-se na imanência do
próprio processo de investigação empírica dos fenômenos. A teoria
não é uma instauração hipotética que pode livremente transcender
os limites evidenciais demarcados pela atualidade dos fenômenos sob
investigação para depois se submeter às eventuais manifestações de
contr a-exemplos.
O racionalismo crítico vai além na crítica ao observacionalismo
tradicional, sustentando que teorias são livremente criadas, porque
faz toda sua filosofia da ciência depender crucialmente da evidência
negativa. Erigir em princípio fundamental de sua metaciência a busca
do contra-exemplo permitirá a Popper defender a tese do livre cri-
acionismo teórico - nossas conjecturas, tenham a origem que tiver,
precisam apenas ostentar uma forma que as torne passíveis de falsi-
ficação à luz de evidência desfavorável. Nesse sentido, a crítica pop-
periana ao observacionalismo pode ser radicalizada por seu rechaço
aos procedimentos verificacionistas8, que se mostram vitais para a

sua história, sob pena de conduzir a enfoques vagos e estéreis; em sentido inverso,
a história isolada dessa filosofia seria inexplicável e ociosa,, (COMTE, 1908, v. 2,
p. 236-7).
8
Como bem salienta Laudan (1971, p. 40), o uso do termo 'verificação' para
denotar algo como confirmação, mais do que exaustiva verificação, não era raro
no século XIX. O lógico e filósofo da ciência Duval-Jouve usa-o com o sentido
de confirmação em sua obra de 1844 Traité de logique, ou Essai sur la théorie
de Ia science. Não há evidência de que Duval-Jouve tenha tomado emprestado
de Comte esse termo. Mill, Herschel e Whewell fazem uso do termo 'verificação'
na acepção geral de teste empírico. Baseado em passagens como aquela em que

Coleção CLE V.11


206 E a Filosofia da Ciência de Comte "Positivista"?

tradição metacientífica a que se filia Comte. Se a autêntica testagem


eqüivale a tentativas de falsificação, então o que se exige é que a te-
oria possa entrar em conflito com a experiência, sendo de somenos
importância a matriz genética da teoria, se observacional, metafísica
ou mitológica.
As críticas feitas por Comte ao empirismo, com sua clara pos-
tura de afastamento do observacionalismo, tornam improcedentes os
ataques que têm sido dirigidos a seu pretenso fatualismo. Há, na
verdade, uma tendência arraigada a identificar no positivismo um
subproduto filosófico da tradição empirista:
O positivismo endossa a regra fundamental das escolas empiristas:
a de que todo conhecimento deve referir-se à certeza sensível da
observação sistemática que assegura a intersubjetividade. No que
tange à realidade, só a percepção pode pretender a evidência. A
observação é, portanto, "o único fundamento possível dos conhe-
cimentos realmente alcançáveis e sabiamente adequados às nossas
necessidades reais". A experiência sensível determina o acesso ao
âmbito dos fatos. Uma ciência que faz asserções sobre o real ê sem-
pre uma ciência da experiência (HABERMAS, 1973, p. 76).
Essa forma genérica de veicular a gnosiologia positivista não faz
justiça ao empenho comtiano de tentar conciliar postulados empi-
ristas com racionalistas. Não faz qualquer menção à importância
exponencial dada por Comte à atividade teórica, à arte de formular
hipóteses, e não leva em conta a crítica candente à tese do passivismo
ardorosamente defendida pelos empiristas:
(...) É necessário notar que o espírito jamais é passivo em suas
relações com o mundo. O estado do sujeito sempre acarreta al-
gum tipo de modificação nas impressões vindas do objeto ... A in-
teligência se defronta constantemente com duas obrigações opostas:
Comte declara que atoda proposição que não é estritamente redutível a simples
enundação de um fato, particular ou geral, nenhum sentido real e inteligível pode
oferecer" (COMTE, 1974, p. 19), Laudan sustenta que Comte levou tão longe a
verificação a ponto de identificá-la com significado. Ocorre, porém, que Comte
nunca usou tverificação, como estrito critério de significatividade. Não por acaso,
quando se reportam a Comte, os positivistas lógicos elogiam sua atitude pioneira
de ataque às quimeras especulativas da metafísica, mas consideram-na insuficiente
por não tocar nos "equívocos lingüísticos" da filosofia identificáveis através da
análise lógica da linguagem. Quando muito, a verificação se vincularia à noção
de significado empírico - aplicável aos enunciados que podem em princípio ser
aprovados ou reprovados pela experiência - e não à noção mais abrangente de
significado cognitivo.
Coleção CLE V.11
Alberto Oliva 207

uma tende a torná-la muito passiva e a outra muito ativa. Deve, ao


mesmo tempo, se esforçar para refletir fielmente o mundo exterior
e formar o elo de ligação sem o qual as impressões que dele recebe
permaneceriam incoerentes (COMTE, 1929, v. 3, p. 19-20).

Avaliações como as de Hab ermas deixam de levar em consideração


o que em Comte se apresenta em manifesta descontinuidade com os
princípios gnoseológicos basilares enunciados pelo empirismo clássico
britânico. Descuram que a filosofia da ciência de Comte promove uma
visão da problemática da interação entre teoria e observação bastante
avançada vis~à~vis ao fatualismo que predominara nos séculos XVII
e XVIII. Comte se afasta palpavelmente do observacionalismo pas-
sivista quando escreve que "nossa inteligência institui um comércio
onde o exterior fornece apenas os materiais" (Comte, 1929, v. 3, p.
25).
Apesar de proclamar que a ciência tem um fundamento observa-
cional ineludível, Comte confere três funções às teorias que tinham
sido negligenciadas pela maioria dos filósofos da ciência que o an-
tecederam: 1) identificar fatos; 2) estabelecer conexões entre nossas
observações; e 3) deduzir conseqüências de nossas observações. Nesse
sentido, Comte está bastante longe da compreensão da pesquisa ci-
entífica como uma atividade basicamente de fact-finding:
Se os modernos puderam convenientemente proclamar a impossibi-
lidade de se formar uma teoria sólida sem contar com o concurso de
observações adequadas, não é menos incontestável que o espírito hu-
mano não teria como combinar, e nem mesmo como recolher, esses
materiais indispensáveis sem ser sempre dirigido por algumas visões
especulativas preliminarmente estabelecidas (COMTE, 1974, p. 8).

Cumpre, a esta altura, ter presente que a arte de observar se


compõe, para Comte, de três procedimentos diferentes. A observação
propriamente dita eqüivale ao exame direto do fenômeno tal qual
se apresenta naturalmente. Já a experiência corresponde à contem-
plação do fenômeno mais ou menos modificado por circunstâncias
artificiais que instituímos expressamente com vistas a uma mais per-
feita exploração. A comparação é o procedimento que nos permite
analisar uma seqüência de casos análogos nos quais o fenômeno se
simplifica cada vez mais. Além de estabelecer essas importantes dis-
tinções, reiteradas pelos pósteros, Comte acena para a existência de
uma atividade de construtívidade explicativa, que só contemporane-
Coleção CLE V.11
208 É a Filosofia, da Ciência de Comte "Positivista"?

amente começará a ser amplamente abordada nos textos de filosofia


da ciência:
Podemos dizer, sem exagero, que os fenômenos, por mais reais que
sejam, são, na maioria dos casos, essencialmente construídos por
nossa inteligência ; até porque, não saberíamos ver imediatamente
a figura da Terra nem a curva descrita por um planeta, e nem
mesmo o movimento corriqueiro do céu. Nosso espírito só pode
formar essas diversas noções combinando, por meio de raciocínios às
vezes bastante longos e complexos, as sensações isoladas que, sem
aqueles, sua incoerência tornaria quase inteiramente insignificantes
(COMTE, 1908, v. 2, p. 8).
Como se vê, estamos diante do nítido reconhecimento de que os
fenômenos que se tornam objeto de investigação científica passam
inevitavelmente por um processo de construtividade (cf. Goodman,
1976 e Putnam, 1981), com base no qual adquirem a identidade
teórica que ostentam no interior dos sistemas explicativos. Por me-
nor que seja o nível de construtividade pressuposto, envolve o reco-
nhecimento inevitável de que a identidade dos fenômenos é em parte
conseqüência do método utilizado em sua investigação. Não se pode
falar de construtividade sem supor que, de alguma forma, as teorias
são method-dependent. Se associarmos a tese da necessidade de uma
teoria qualquer para podermos ter acesso aos fatos com a da cons-
trutividade e com a da organização dedutiva do sistema explicativo,
mostrar-se-á indefensável essa démarche que identifica positivismo
com empirismo:
Toda ciência consiste na coordenação de fatos; se as diversas ob-
servações se mantivessem inteiramente isoladas, não haveria ciência.
Pode-se mesmo dizer, em geral, que a ciência está essencialmente
destinada a dispensar, quando o comportam os diversos fenômenos,
toda observação direta, ao permitir deduzir do menor número
possível de dados imediatos o maior número possível de resultados
(COMTE, 1908, v. 1, p. 71-2).

A grande ênfase que a modernidade, sob o influxo do empirismo,


concedeu aos fatos foi aos poucos se revelando epistemologicamente
insustentável por tender a reduzir a busca de conhecimento à uti-
lização de procedimentos de inventário observacional. Cumpre no
entanto ter presente que invocar a autoridade dos fatos e o respeito
a seus veredictos evidenciais foi um dia uma atitude revolucionária
que desafiava o especulativismo auto-referencial. O positivismo se
Coleção CLE V.11
Alberto Oliva 209

destaca, como filosofia da ciência do século XIX, não por reiterar a


primazia aos fatos, e sim por representar uma das primeiras mani-
festações da consciência epistemológica de que não podemos chegar
à identificação explicativa dos fatos sem contarmos com uma teoria
qualquer:
Os fatos, por mais exatos e numerosos que possam ser, fornecem
apenas os materiais indispensáveis (...) A verdadeira ciência, longe
de ser formada por simples observações, tende sempre a dispensar a
exploração direta (COMTE, 1974, p. 24).

Os leitores apressados do positivismo não costumam dispensar


maior atenção à revisão crítica do observacionalismo/fatualismo le-
vada a cabo por Comte. Limitam-se a repelir a grande importância
que confere aos fatos, como se fosse possível a uma epistemologia
das ciências empíricas mostrar descaso pelo tipo de informação evi-
denciai que genericamente denominamos 'fatos' 9. Pode-se até con-
siderar tímida, à luz das posições assumidas pela metaciência con-
temporânea, a atitude que supõe existir uma instância observacio-
nal auto-subsistente apesar de sua identidade epistêmica ser sempre
função da teoria reconstrutiva. Mas não se pode advogar, como fa-
zem alguns, que a ambivalência que o faz pressupor, por um lado, que
há fatos em si mesmos existentes e, por outro, que só podemos ter
acesso a eles via uma teoria qualquer configure, no século XIX, uma
posição retrógrada ou pura e simplesmente a reiteração do fatualismo
prevalecente nos séculos anteriores.
O extremo destaque conferido por Comte aos fatos tem sido alvo
da mira crítica dos filósofos sociais. Muitos tendem a ver no po-
sitivismo uma filosofia que, dissimulada e obliquamente, representa
uma espécie de veneração ao que é, à ordem vigente. Entendem que
circunscrever a investigação ao que é representarem termos de onto-
logia social, colocar-se contra a irrupção de potencialidades capazes
de levarem à superação das limitações típicas da atualidade. Partem
do pressuposto de que o que existe, o que se toma como real, não se
confunde com o ser social, que abarca não só o que está hoje dado
9
Uma visão panorâmica e abrangente da problemática da interação entre teoria
e
observação pode ser encontrada no excelente livro Ohservation and Theory in
Science (Baltimore/Londres : Johns Hopkins, 1971) com textos de Ernest Nagel,
Sylvian Bromberger, Adolf Grünbaum, Maurice Mandelbaum e "Introdução^ de
^lophen Barker.

Coleção CLE V.11


210 E a Filosofia, da Ciência de Comte "Positivista"?

como existente como também tudo o que pode vir a existir como des-
continuidade. O significado político dessa ênfase às potencialidades é
o de que o vir-a-ser traz em seu bojo potencialidades revolucionárias
capazes de alterarem a atual correlação de forças entre os existentes:
O ataque positivista aos conceitos universais, sob a alegação de que
não podem ser reduzidos a fatos observados, exclui do domínio do co-
nhecimento tudo que ainda não pode ser um fato (...) Isso significa
concretamente que as potencialidades dos homens e das coisas não
se esgotam nas formas e relações dadas nas quais podem realmente
aparecer (MARCUSE, 1960, p. 113).

Nenhuma filosofia da ciência (social), salvo as de inspiração he-


geliana, manifesta propensão a destacar o "possível descontínuo" em
detrimento do que está aí dado como realidade. A ciência, por se com-
por de teorias de universalidade irrestrita, almeja dar conta do real
e do possível, procurando estabelecer vinculações de ocorrência entre
eles. Preocupada em apreender regularidades empíricas, a ciência,
em particular se natural, não teria como se dedicar a estabelecer o
contraste entre a realidade entendida como ordem vigente - e a po-
tencialidade concebida como liberação de formas de existir que não
têm como se atualizar enquanto ficamos teórica e praxiologicamente
presos aos marcos de referência do que está aí dado como realidade.
Quando Comte propõe que circunscrevamos a pesquisa ao que é, não
acalenta o "projeto conservador" de negar a existência de "mundos
possíveis". Como bem salienta (1974, p. 20), acatar o imperativo me-
todológico de confinar-se ao que é envolve renunciar à pretensão de
descobrir a origem primeira e a destinação última do que está sendo
investigado. Desse modo, só o que é dado pode-se tornar autêntico
objeto de pesquisa. Potencialidades, à luz da filosofia positivista,
são meras possibilidades apreensíveis com base na projeção do que
é, e não manifestações de potencial descontinuidade frente ao que é,
eventualmente contrárias à ordem atual das "coisas".
Não há dúvida de que a tese da unidade do método científico,
pioneiramente defendida por Comte, submetia as ciências sociais ao
mesmo tápo de ritual de pesquisa adotado pelo físico ou pelo químico.
A natureza controversa dessa tese fez com que muitos de seus críticos,
sobretudo os que defendiam o dualismo metodológico (e eventual-
mente ontológico) entre Naturwissenschaften e Geisteswissenschaf-
ten, a encarassem como a proposição de uma racionalidade unidi-
Coleção CLE V.11
Alberto Oliva. 211

mensional incapaz de apreender significados e intenções presentes na


ação social. Mas não foi a pretensa "veneração dos fatos", como
cego endosso ao que está aí dado, que levou Comte a defender a tese
da unidade do método científico, e sim sua crença de que, malgrado
eventuais peculiaridades epistêmicas desta ou daquela ciência, só há
um modo legítimo de estruturarmos nossos sistemas explicativos e de
os justificarmos:
Embora o método seja essencialmente idêntico em todas, cada
ciência desenvolve de modo especial tal ou qual procedimento ca-
racterístico cuja influência, muito pouco sentida nas outras ciências,
permanece despercebida (COMTE, 1908, v. 1, p. 59).
É claro que ao julgar as questões metafísicas como vides de sens
(1908, v. 6, p. 424), confinando-as a uma fase da evolução intelectual
da humanidade definitivamente deixada para trás quando se atinge
o estádio da filosofia positiva, Comte tornou inviáveis os programas
metafísicos de pesquisa em ciências sociais. E como as ciências so-
ciais estão, de suas origens até hoje, impregnadas de pressupostos
metafísicos, soa "utópico" o ideal comtiano de um estádio positivo
fechado em torno de sua racionalidade superior. A vingar a Lei dos
Três Estados, a ciência teve na teologia e na metafísica seus ances-
trais, mas começa sempre a partir de si mesma como sistema expli-
cativo, não existindo a possibilidade de suas teorias se formarem a
partir de materiais ideacionais elaborados em outros domínios, nos
que constituem sua pré-história. Sendo assim, a teoria qualquer, que
Comte julga necessária à observação dos fatos, não tem como provir
do campo da metafísica, que é um modo de interpretação da realidade
imprestável para a ciência. A metafísica é inelutavelmente uma etapa
anterior e inferior à ciência. Suas questões não só são destituídas de
importe cognitivo como também não têm como conter embriões de
explicações científicas. A metafísica serviu apenas de transição por
historicamente situar-se entre a infância intelectual da humanidade
- o estado teológico - e o estado fixo e definitivo da racionalidade
madura - o estado positivo:
Essas questões inacessíveis são gradualmente abandonadas e final-
mente julgadas desprovidas de sentido, de tal modo que só podemos
realmente conhecer fatos apreciáveis por nosso organismo, sem ja-
mais podermos obter alguma noção sobre a natureza íntima de al-
gum ser nem sobre o modo essencial de produção de algum fenômeno
(COMTE, 1908, v, 6, p. 424).
Coleção CLE V.11
212 É a Filosofia, da Ciência de Comte "Positivista"?

Esse radicalismo antimetafísico, já contido na contraposição ba-


coniana entre antecipatio mentis e interpretatio naturae, se revelou, à
luz da história da ciência, um preconceito epistemológico. Foi possível
constatar, através de eloqüentes exemplos históricos, que vagas e ne-
bulosas intuições podem estar na origem de sistemas explicativos da
ciência. Se assim é, a teoria com que faço observações, em contex-
tos de pesquisa científica, não tem que necessariamente pertencer
à etapa positiva de evolução do saber (e da inteligência) humano.
Sua formação (embrionária) originária pode ter-se dado no campo da
metafísica ou de qualquer outro domínio especulativo. A rígida se-
paração entre o que é metafísico e positivo deixa de poder ser estabe-
lecida da forma meridianamente separatista como pretendera Comte.
Apesar de creditar destacado papel à dedução, Comte erige a
indução em principal forma de inferência a ser utilizada pela pes-
quisa científica. Infelizmente, jamais elucida o que efetivamente en-
tende por indução. Mesmo esposando o método indutivo proposto
por Bacon-Mill, Comte se distancia do indutivismo da tradição em-
pirista quando não endossa a exigência de que as teorias devem obri-
gatoriamente se formar através de uma "lógica da descoberta" indu-
tiva segundo a qual o cientista é um observador passivo da natureza
que gradualmente registra os fatos para depois generalizá-los. Para
Comte, a indução é o modo de produzir-se a modalidade de inferência
mais importante para a ciência, e não a inevitável ars inveniendi a
ser empregada no processo de criação de teorias. 0 que realmente é
importante são os precedimentos de justificação (veriíicacionistas) e
não o modo pelo qual se deu a gênese de uma teoria:
Qualquer que seja o modo, racional ou experimental, de se fazer a
sua descoberta, é sempre de sua conformidade, direta ou indireta,
com os fenômenos observados que resulta exclusivamente sua eficácia
científica (COMTE, 1974, p. 19).
Em contraste com o famoso dictum de Newton - hypotheses
non fingo - Comte desponta como uma dos primeiros grandes epis-
temólogos conferir importância capital às hipóteses no processo de
elaboração do conhecimento científico. Chega a caracterizar as leis
da natureza como hipóteses confirmadas pela observação. A diferença
do que enfatizara a tradição epistemológica anterior, as hipóteses são
qualificadas de indispensáveis à execução de qualquer experimento
significativo:
Coleção CLE V.11
Alberto Oliva 213

... a instituição da hipótese a mais simples que possa satisfazer ao


conjunto de observações atuais não se constitui, para nossa inte>
ligência, apenas num direito bastante legítimo, mas também num
verdadeiro dever, imperiosamente prescrito pela destinação funda-
mental de nossos esforços especulativos (COMTE, 1908, v. 6, p.
456).

Comte chega a falar de uma progressiva harmonia entre nossas


concepções e nossas observações (1908, v. 6, p. 472), afastando-se,
assim, do fatualismo indutivista de que lhe acusam os críticos. Como
hoje se assume trivialmente a importância das hipóteses no processo
de elaboração de conhecimento, tende-se a subestimar o que há de
pioneiro na posição de Comte quando comparada ao que predomi-
nantemente se veiculou nos séculos XVII e XVIII, em especial nas
obras de Bacon, Newton, Ampère, Baden Powel e J.S. Mill. Comte
chega inclusive a fazer alusão a uma arte de hipóteses, que se mos-
traria decisiva nas situações de pesquisa em que temporariamente o
observável se subordina à imaginação e nas ocasiões em que cabe an-
tecipar resultados, lançando uma suposição provisória (cf. 1908, v.
2, p. 225):

Em tese geial, o domínio da conjectura é bem concebido como des-


tinado a preencher provisoriamente os intervalos que, aqui e ali, são
inevitavelmente deixados pelo domínio da realidade (COMTE, 1908,
v. 2, p. 227).

Não é difícil constatar que estamos longe do hipoteticismo elimi-


nacionista/falibilista proposto por Popper para o qual a atividade de
lançar hipóteses, junto com o diuturno empenho no sentido de refutá-
las, é o procedimento fundamental da prática de pesquisa científica.
Por perfilhar uma concepção verificacionista de cientificidade, Comte
não podia conceber a arte de inventar hipóteses como livre criação
de explicações cuja provisoriedade seria decorrência do fato de, mais
cedo ou mais tarde, poder o pesquisador defrontar-se com evidência
desfavorável sob forma de contra-exemplo. Malgrado fale de L 'art des
hypotheses,Comte abraça uma visão estritamente justificacionista de
conhecimento:

Tudo que é positivo, isto é, estribado em fatos bem constatados, é


certo; não há, quanto a isto, distinção a estabelecer (COMTE, 1908,
v. 1, p. 57).
Coleção CLE V.11
214 É a Fiiosofia da Ciência de Comte "Positivista"?

Em conseqüência, a atividade de lançar hipóteses corresponde à


etapa do processo de pesquisa marcada pela necessidade de recor-
rermos a suposições provisórias que imaginativamente antecipam a
racionalidade que se poderá depois empiricamente checar. A fase
das hipóteses é vencida quando se atinge o objetivo último da inves-
tigação científica que é o da forjadura de leis, que representam regula-
ridades de coexistência e de sucessão; mas não apenas uniformidades
sincrônicas e diacrônicas, mas universais e invariáveis regularidades
entre os fenômenos:
É nas leis dos fenômenos que consiste realmente a ciência, para a
qual os fatos propriamente ditos, por mais exatos e numerosos que
possam ser, fornecem apenas os materiais indispensáveis (COMTE,
1974, p. 24).
Nossa atividade intelectual mostra-se suficientemente excitada pela
pura esperança de descobrir as leis dos fenômenos, pelo simples de-
sejo de confirmar ou desconfirmar uma teoria (COMTE, 1908, v. 1,
p. 6).
0 que o nível hipotético, conforme definido pela epistemologia
de Comte, permite supor como existente? Que tipo de compromisso
ontológico nos autoriza a assumir uma metaciência que, ao mesmo
tempo, erige os fatos em base rochosa do conhecimento e confere
algum tipo de autonomia relativa à arte de formular hipóteses? Es-
taremos apenas autorizados a avançar conjecturas circunscritas aos
observáveis ou poderemos também discorrer hipoteticamente sobre
inobserváveis? Há passagens em Comte que parecem sugerir que não
é epistemologicamente legítima a formulação de hipóteses sobre en-
tidades inobserváveis. Neste caso, as hipóteses de Dalton sobre o
átomo, as de Young e Fresnel sobre a natureza da luz, as de Carnot
sobre o calor, as de Faraday e Maxwell sobre o éter eletromagnético
estariam de antemão impedidas de tentar ingressar no campo da pes-
quisa científica:
Quaisquer conjecturas que postulassem construtos hipotéticos ou
variáveis intervenientes seriam declaradas não-científicas (LAUDAN,
1971, p. 48).
Mas ao vincular a atividade de lançamento de hipóteses à di-
mensão subjetiva e a procedimentos antecipatórios, Comte estaria se
afastando das visões que reduzem os universos ontológicos hipoteti-
camente imagináveis ao que é, aqui e agora, espácio-temporalmente
especificável como observável:
Coleção CLE V.11
Alberto Oliva 215

Em seu estado normal, a participação da subjetividade se tor-


nará cada vez maior (...) já que é necessário que nossas hipóteses,
sempre dela emanadas, se compliquem gradualmente a fim de re-
presentar suficientemente observações cada vez mais completas e
precisas... (COMTE, 1929, v. 3, p. 25).
Ora, se as hipóteses se limitassem a praticamente estabelecer co-
nexões explicativas antecipatórias entre os fenômenos, confinadas ao
que é observável, não teriam como lidar com partículas, fluidos ou
forças imperceptíveis. Há, no entanto, passagens na obra de Comte
que tornam problemática a interpretação de Peirce de que "a noção
comtiana de hipótese verificável não nos permitiria supor algo que
não pudéssemos diretamente observar". Com base em seu endosso ao
princípio da verificabilidade, Comte só seria levado a aceitar hipóteses
que a experiência pudesse, direta ou indiretamente, confirmar ou re-
futar. O problema é que se se exige que uma hipótese só contenha
predicados observáveis, por isso muitas hipóteses verificáveis acabam
excluídas. Como Comte não defende o chamado indutivismo genético
- segundo o qual a teoria necessariamente se forma pela generalização
dos dados experiencialmente obtidos -, é possível imaginar a criação
de uma teoria da qual podemos, através do exercício da razão, derivar
conseqüências experimentais:
Uma teoria será julgada admissível quando, confrontada com os
fenômenos essenciais, consegue explicá-los suficientemente antes que
sua instituição subjetiva seja acompanhada de uma confirmação ob-
jetiva e mesmo que esse complemento de demonstração jamais possa
se realizar (COMTE, 1929, v. 3, p. 25).
De uma maneira que evoca posições metacientíficas hoje comuns,
Comte supõe possível o exercício da livre criação hipotética, ressal-
tando apenas a exigência de verificabilidade como forma de evitar o
especulativismo desprovido de base fatual:
Formamos livremente hipóteses verificáveis a fim de instituir leis su-
ficientes para nossa conduta sem aspirarmos à perfeita representação
do mundo ou ã plena satisfação do espírito (COMTE, 1929, v. 3, p.
26).
Como se vê, a hipótese precisa ser apenas passível de verificação
em princípio e pode ser formulada com base em necessidades - éxperi-
enciais ou raciocinativas - de gerar formas de antecipação explicativa
a serem submetidas ao crivo dos fatos identificados pela observação
teoricamente conduzida:
Coleção CLE V.11
216 É a Filosofia da Ciência de Comte "Positivista"?

Só imaginar hipóteses suscetíveis, por sua natureza, de verificação


positiva, mais ou menos afastada, mas sempre claramente inevitável,
e cujo grau de precisão esteja exatamente em harmonia com o que
comporta o estudo dos fenômenos correspondentes. Em outros ter-
mos, as hipóteses verdadeiramente filosóficas devem constantemente
apresentar o caráter de simples antecipação do que a experiência
e o raciocínio teriam podido desvelar imediatamente caso as cir-
cunstâncias do problema tivessem sido mais favoráveis (COMTE,
1908, v. 2, p. 226).

É claro que se estamos diante de uma hipótese cujos termos se


referem diretamente a entidades observáveis, então a hipótese pode
ser facilmente caracterizada como verdadeira ou falsa sem gerar em-
baraços epistemológicos relativos ao seu estatuto ontológico. Mas se
seus termos se referem a entidades não diretamente observáveis não
temos como assinalar-lhe um valor-de-verdade e seu importe exis-
tencial será difícil de ser especificado. Comte parece admitir como
hipotetizável o que é indiretamente verificável, o que apenas é em
princípio verificável. Sendo assim, não há por que imaginar que a
formulação de hipóteses deva se confinar a antecipar propriedades
apenas do que é diretamente acompanhável através da observação:

De sorte que nenhum fato isolado poderia ser verdadeiramente in-


corporado à ciência sem que fosse convenientemente ligado a alguma
outra noção, ao menos através da ajuda de uma judiciosa hipótese.
Além de as sãs indicações teóricas deverem freqüentemente contro-
lar e retificar observações imperfeitas, é claro que o espírito positivo,
sem jamais deixar de reconhecer a preponderância necessária da re-
alidade diretamente constatada, tende sempre, desde que possível,
a ampliar o domínio racional às expensas do domínio experimental,
substituindo cada vez mais a exploração imediata pela previsão dos
fenômenos (COMTE, 1908, v. 6, p. 425).

Tendo em vista a possibilidade de o uso de hipóteses descambar


para o especulativismo desenraizado de todo e qualquer domínio ob-
servacional possível - passível de verificação em princípio Comte
adverte que não se deve "pretender alcançar por meio da hipótese o
que, em si mesmo, é radicalmente inacessível à observação e ao ra-
ciocínio" (1908, v. 2, p. 226). Não observada esta condição restritiva
de uso, a arte de lançar hipóteses degeneraria num especulativismo
que "sai do verdadeiro domínio da ciência e torna-se necessariamente
nocivo" (1908, v. 2, p. 226):
Coleção CLE V.11
Alberto Oliva 217

Desde que esta simples regra necessária seja sempre escrupulosa-


mente observada, as hipóteses podem ser evidentemente introduzi-
das sem qualquer perigo, todas as vezes que se experimenta a ne-
cessidade, ou mesmo simplesmente o desejo justificado. Neste caso,
se substitui a exploração direta, quando impossível ou muito difícil,
pela indireta (COMTE, 1908, v. 2, p. 226).
\
A guisa de conclusão, gostaríamos de assinalar que o modo de
Comte caracterizar a interação entre teoria e observação pode-se reve-
lar, para nossas exigências metacientíilcas contemporâneas, mera re-
visão (tímida) do velho observacionalismo empirista. Poderia alguém
lembrar que, nas últimas décadas, tem recebido crescente adesão a
tese de que as teorias são apenas subdeterminadas pelos fatos, que,
dado um "domínio fatual" qualquer, vários são os caminhos teóricos
que pode inspirar. Como as teorias não são mais vistas como di-
retamente deriváveis dos fatos, sustenta-se que onde uma teoria é
possível, outras são igualmente possíveis. Conclui-se, assim, que não
há transição, de tipo demonstrativo, da evidência para a teoria:

Fatos são suscetíveis de uma multiplicidade de interpretações


teóricas (HESSE, 1978, p. 3).

Chegou-se contemporaneamente, com Feyerabend, à posição ex-


trema de propor o fim da velha distinção entre linguagem teórica e
linguagem observacional. Negando em qualquer de suas versões o
Princípio da Autonomia dos Fatos, segundo o qual os fatos existem
em si mesmos independentemente do esquema reconstrutivo adotado,
Feyerabend (1977 e 1978) sustenta que as teorias só especificam 'fatos'
compatíveis com seus pressupostos meta-explicativos (lingüísticos,
epistemológicos, ontológicos, axiológicos). Como cada teoria iden-
tifica apenas seus fatos, resulta imperioso gerar o maior número
possível de teorias não só para ampliar o conjunto dos possíveis uni-
versos de fatos como também para tornar mais abrangente o processo
de testagem, uma vez que determinados fatos, refutadores da teoria
que pretendemos testar, só podem, em certos casos, ser desvelados
com a ajuda de alternativas.
Comte está inegavelmente longe dessas críticas contemporâneas
ao observacionalismo. Seu empenho em conciliar os postulados gno-
seológicos do empirismo com os do racionalismo está muito distante
das concepções hoje prevalecentes segundo as quais nossos sistemas
Coleção CLE V.11
218 É a Filosofia da Ciência de Comte "Positivista"?

explicativos têm uma identidade epistêmica que não tem como ser re-
construída, por camadeis, a partir da base observacional. Comte não
propugna ainda o teoreticísmo que entrou em voga na metaciência a
partir dos anos 60, mas propõe uma epistemologia que retrospectiva-
mente tem a credencial de ter inovado no modo de problematizar a
interação entre teoria e observação e na função capital conferida à arte
de formular hipóteses no processo de elaboração de conhecimento. Só
isso bastaria para tomar intelectualmente descabida a postura, pre-
valecente entre nós, que tomou o adjetivo positivista uma espécie de
xingamento epistemológico. Comte não merece o adjetivo "positi-
vista" da forma como é usado por nossos epistemólogos tupiniquins.
Afinal, o positivismo, gostemos dele ou não, é um projeto filosófico,
ao passo que o antipositívismo genérico é apenas o tédio emocional
infrutífero de não se querer conhecer o adversário contra o qual se
forma (mal) a própria identidade.

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15

Esboço de um Programa de Revisão

da Tradição Positivista na Sociologia:

Durkheim

Washington Luís de Sousa Bonfim

1. Introdução
Em que pese o vivo debate que ainda se procede sobre a obra de
Durkheim em todas as escolas de Sociologia, a maior parte de seu
esforço intelectual no sentido da concretização da disciplina como
ciência parece já pertencer ao quadro geral de sua história.
Mesmo os desenvolvimentos mais recentes de sua obra, como
o funcionalismo norte-americano, já não são mais aceitos como
princípio de investigação na Sociologia. De certa maneira, este é
um fato reconfortante, pois já se disse que uma ciência que reluta
em esquecer os seus fundadores está perdida. Apesar de tudo a So-
ciologia tem avançado em seus métodos de investigação, sua base
empírica tem se alargado e o respeito que vem adquirindo nos meios
acadêmicos é maior a cada dia. E aqui temos enorme dívida para
com Émile Durkheim (1858-1917).
Assim, tendo em vista estas ponderações, pode-se partir para uma
tarefa bem desenvolvida no âmbito da ciência natural, qual seja, o
Coleção CLE V.11
222 Durkheim

estudo da "evolução" das ciências, ou, como utilizaremos aqui, o es-


tudo dos programas de pesquisa que se originaram na disciplina, em
especial, um esboço para a avaliação do programa durkheimiano.
A rigor nosso leitor sentir-se-á incomodado com os destinos que
daremos a nossa tarefa. Num certo sentido, este incômodo é pro-
positalmente estimulado, por duas razões. A primeira delas é de
ordem puramente "exdtativa". Parece não existir ainda no Brasil a
preocupação com aquilo que se denomina "História da Ciência", do
ponto de vista das Ciências Sociais. São vários os motivos: um certo
preconceito contra o nosso status científico, de parte dos historiado-
res das ciências naturais; uma debilidade dos próprios pesquisadores
sociais em compreender a necessidade deste tipo de estudo; e, em
alguma medida, os longos embróglios teóricos de que somos vítimas
congênitas.
A segunda razão pela qual estimulamos este incômodo é decor-
rente da primeira. Nosso objetivo aqui é abrir portas, fornecer fres-
tas que arejem o clima intelectual e animem o debate. Não temos
nenhuma pretensão maior que esta; nosso objetivo é, portanto, ir em
frente, certos, contudo, de que os sucessos serão muito pequenos.
*
E então neste sentido que propusemos uma modificação no título
de nosso trabalho. Originalmente, "Durkheim e a tradição positi-
vista na Sociologia: uma revisão", continha uma pretensão de dar
cabo a esta discussão. Nesta formulação que se apresenta agora,
"Esboço para um programa de revisão da tradição positivista na So-
ciologia: Durkheim", queremos apenas indicar o sentido, ou melhor,
o propósito mesmo de fazer esta revisão, porém sem a presunção de
tomá-la completa, daí a idéia de esboço para uma revisão da tradição
positivista na Sociologia, compreendo apenas a ligação entre as obras
de Durkheim e através desta, a de Auguste Comte.
Para construir este esboço, primeiramente procuramos fazer uma
breve caracterização do pensamento comtiano, que neste sentido é
a origem da tradição positiva na Sociologia. Nesta caracterização
ressaltamos os aspectos principais de suas formulações, em especial,
dedicamos atenção às proposições do Cours de Philosophie Positive
(1830-1842). O resultado desta análise é uma exposição resumida das
principais características do que se entende aqui como positivismo ou
tradição positiva.
Coleção CLE V.11
WasiiingíoD Luís de Sousa, Bonfim 223

Em seu segundo momento, este esboço procura traçar as marcas


principais, em função de nossos objetivos, da obra de Durkheim. As-
sim, as influências devidas ao paradigma científico vigente no século
XIX, as influências comtianas e as de Kant sobre o autor, são analisa-
das de forma a indicar os caminhos por onde trilhou seu pensamento.
Quanto à primeira influência devemo-la ao propósito de Durkheim: a
constituição da Sociologia como disciplina científica. Em Comte en-
contramos as idéias acerca da sociedade, da ciência e do método. Em
Kant, encontramos a origem de determinadas preocupações morais.
A terceira parte deste esboço é sobretudo indicativa: procura sali-
entar o aspecto do contexto da obra de Durkheim como um Programa
de Pesquisa Científica, quais seriam as suas componentes e quais fo-
ram as direções que a pesquisa tomou. Neste sentido, é a parte que
funciona como um corolário da discussão e projeta, ao mesmo tempo,
o sentido de novas discussões.

2. Breve caracterização do pensamento comtiano

Não parece constituir nenhum tipo de novidade iniciar uma dis-


cussão sobre aspectos da obra de Durkheim, em especial, meto-
dológicos e conceituais, fazendo-se um retorno intelectual ao pen-
samento comtiano. Ainda assim, pode-se justificar este movimento.
Em primeiro lugar, como queremos discutir o aspecto positivista da
obra Durkheim e sua influência sobre a Sociologia, nada mais óbvio
que iniciarmos a discussão remetendo-nos aos primórdios da Sociolo-
gia e mais, da própria "Filosofia Positiva". De outro lado, é ainda
surpreendente perceber que às vésperas do centenário do opúsculo
primeiro, em termos metodológicos, da Sociologia e mesmo, depois
de tantas e tantas páginas sobre ele escritas, ainda não se perceba
bem as afinidades e as divergências entre o "primeiro" positivismo
comtiano e o seu "filho pródigo" durkheimiano.
No entanto, é ainda de maior importância ressaltar as dificuldades
que se pode encontrar ao se envidar esforços no sentido de entender
o que é a "Filosofia Positiva". Uma breve leitura a este respeito
traz tantas diferenciações de visão e caracterização que logo aqui
teríamos de nos deter em longo e cansativo debate. Além disso, parece
mesmo uma parte do método que iremos discutir, a preocupação com
o retorno às formas iniciais, "primitivas", com respeito à compreensão
Coleção CLE V.11
224 Durkheim

das formas contemporâneas, atuais.


Diante destes fatos e com o objetivo de superar estes problemas
iniciais e as dificuldades daí originadas, é que iniciaremos com a dis-
cussão da caracterização do positivismo que utilizaremos aqui.
As idéias de Auguste Comte (1798-1857) expressam, de modo
geral, uma preocupação de contraposição a dois tipos de correntes
filosóficas vigentes naquela época: de um lado, os partidários do ca-
tolicismo que se opunham à nova ordem científico-social que se es-
tabelecia e, de outro lado, a própria idéia dos "Filosofia Iluminista"
de que a Idade Média seria a idade das trevas, e suas críticas que
indicavam, para Comte, um estado social "anárquico" que poderia
estabelecer-se a partir daquele ideário. Parece residir aqui a asso-
ciação entre as noções de ordem e de progresso tão caras ao autor.
Sendo assim, a Filosofia Positiva de Comte encontra-se profun-
damente marcada por uma filosofia da história e, sem dúvida, esta
desempenha papel de grande relevância em sua obra. 0 aspecto mar-
cante da proposição comtiana é a "lei dos três-estados".
Em que pese todas as afirmativas acerca da "impossibilidade",
não-verificabilidade, e mesmo, da não-refutabilidade da proposição
desta lei, pode-se, antes de mais nada, argumentar sobre um erro
básico de sua interpretação: a lei dos três-estados, ao contrário do
que pode muitas vezes ser encontrado, não é uma lei acerca do de-
senvolvimento das sociedades, ela é relativa ao desenvolvimento de
nossos métodos de investigação, de nosso conhecimento (ver Sch-
MAUS, 1982, p. 248-66).
A formulação da "lei dos três-estados" é, portanto, relativa ao que
Comte denomina métodos de filosofar. Nas suas palavras:

... o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente,


em cada uma de suas investigações, três métodos de filosofar, cujo
caráter é essencialmente diferente e mesmo radicalmente oposto: pri-
meiro, o método teológico, em seguida, o método metafísico, final-
mente, o método positivo (COMTE, 1988, p. 4).

Nesta passagem torna-se clara a proposição comtiana, e a ex-


pressão "métodos de filosofar" deve ser entendida no sentido de afas-
tar interpretações que proponham um caráter histórico geral ao enun-
ciado da lei, que se refere especificamente a estes "métodos de filoso-
far".
Coleção CLE V.11
Washington Luís de Sousa Bonfim 225

Então, quando Comte se refere a estes "métodos", ele tem em


vista a idéia de que o objetivo de toda filosofia é dar explicações
quanto aos fenômenos naturais. Assim, as três fases que vem apre-
sentar têm modos diferentes de propor estas explicações, partem de
caminhos diferentes, como afirmou, até mesmo radicalmente opostos.
O primeiro destes métodos de filosofar é denominado fictício e é
fundado na teologia. Por ele, os fenômenos naturais são explicados
através de entidades sobrenaturais, e estes seres sobrenaturais são
responsáveis pela origem, desenvolvimento e, inclusive, mudanças no
curso dos acontecimentos. A mente humana, no estado teológico,
preocupa-se com as causas primeiras e finais destes fenômenos, busca
um conhecimento absoluto. Comte divide o estado teológico em três
diferentes fases: politeísta, fetichista e monoteísta. A grande im-
portância desta divisão é que ela irá mostrar que o monoteísmo dá
condições para o surgimento de um pensamento metafísico, pois re-
sumiu a diversidade de entes explicativos a uma unidade.
No estado metafísico, os entes sobrenaturais são suprimidos como
princípios de explicação e substituídos por forças abstratas, "ver-
dadeiras entidades (abstrações personificadas)". A resolução deste
estado no seguinte, o positivo, é decorrente do mesmo princípio unifi-
cador que encontramos no estado teológico; a natureza, quando consi-
derada como a origem exclusiva de todos os fenômenos, cria condições
para a assunção do estado positivo. Contudo, Comte é bastante claro
quanto ao papel do estado metafísico no desenvolvimento da capaci-
dade de investigação humana.
Ao citar as condições teóricas que permitiram a chegada ao co-
nhecimento positivo, Comte mostra que o estado metafísico não foi
senão um estado intermediário, "de caráter bastardo", que permitiu à
inteligência humana deixar as especulações sobre a essência das coisas
e buscar as observações características do estado positivo.
Neste ponto específico, poderíamos adiantar uma discussão que
será travada adiante. Comte, quando explicita as condições teóricas
que permitiram ao espírito humano atingir a filosofia positiva, re-
vela uma preocupação metodológica quanto ao papel das hipóteses
ua construção deis teorias. Indicando que o caráter fundamental da
filosofia positiva é construir leis universais e invariáveis acerca dos
fenômenos naturais, nota que:
Coleção CLE V.11
226 Durkbeim

A mais importante dessas considerações [teóricas], recolhidas na


própria natureza do assunto, consiste da necessidade, em todas as
épocas, duma teoria qualquer para ligar os fatos, necessidade combi-
nada com a impossibilidade evidente, para o espírito humano em sua
origem, de formar teorias a partir de observações (COMTE, 1988,
p. 5).
Sobre esta posição recaem grandes controvérsias e mais tarde po-
deremos aferi-las, em especial analisando até onde Durkbeim aceita
esta posição, chamada por Laudan (1971, p. 35-53) de "interpretação
liberal" do indutivismo comtiano.
Realizada esta pequena, porém necessária, digressão, voltamos ao
nosso propósito de mostrar como a "Filosofia Positiva" se conforma
na obra de Auguste Comte.
0 estado positivo é então o "destino" a que chega o espírito hu-
mano. Suas características fundamentais podem ser resumidas de
modo a contrastar com o que é característico nos estados anterio-
res. Desta maneira, o caráter absoluto dos conhecimentos teológico
e metafísico é tornado relativo, no sentido de que não mais se está a
procura das essências e da verdade sobre os fenômenos, A observação,
que irá presidir a constituição das leis positivas, detém-se ao objetivo
de formular leis naturais invariáveis e encarar a busca de causas, quer
iniciais, quer finais, como desprovida de utilidade para a ciência.
Outra característica do estado positivo é a sua preocupação com
a previsão. 0 conhecimento destas leis naturais deve permitir ao ho-
mem o controle sobre suas conseqüências: "tout science a pour but
la prévoyance". Contudo, Laudan, ao contrário de alguns críticos
do positivismo que consideram esta preocupação como denunciadora
do caráter manipulador e controlador do conhecimento científico (ver
Santos, 1989), inscreve esta máxima como definidora da idéia de
ciência, como um verdadeiro critério de demarcação entre o conheci-
mento científico e os demais, no contexto da obra de Comte:
De fato, Comte tem ama razão metodológica muito mais interessante
para focalizar a capacidade prèditiva, pois ele a vê como um critério
de demarcação, que torna possível distinguir o domínio científico dos
domínios não-cientííicos (LAUDAN, 1971, p. 36)1.
Laudan ressalta ainda que esta preocupação com o caráter pre-
ditivo do conhecimento positivo, indica uma distinção entre a pro-
1
Grifo do autor. A tradução é nossa.
Coleção CLE V.11
Washington Luis de Sousa Bonfim 227

posição baconiana da indução e a visão de Comte. Ela seria também


importante no sentido de salientar o caráter sistemático da ciência,
em contraste com o acúmulo assistemático de dados proposto por
Bacon. Na visão comtiana, a ciência não é um mero exercício de
acumulação de observações, pois se estas forem realizadas de ma-
neira isolada, o resultado daí decorrente não poderá ser considerado
científico.
A "lei dos três estados" é, num certo sentido, o fundamento
da proposição de Comte acerca das ciências. Na segunda lição de
seu Cours de Philosophie Positive (1830-1842) pretendendo dar uma
visão geral do estado do desenvolvimento das ciências naquele mo-
mento, torna claro as suas idéias principais a este respeito.
A primeira de suas preocupações é fornecer uma crítica das clas-
sificações feitas até então. A partir desta crítica, que aponta a in-
competência dos filósofos e o caráter prematuro de suas tentativas
de classificação das ciências, ele se dirige rumo ao estabelecimento de
sua própria classificação.
Nesta, o caráter hierárquico que é proposto aparece como de
importância fundamental. Na construção da sua classificação enci-
clopédica, Comte distingue dois métodos de realização, um histórico
e outro dogmático. O caráter histórico mostra tão somente a or-
dem temporal em que surgiram as diversas ciências. No método
dogmático, o autor procura realizar uma espécie de síntese que per-
mita ressaltar os aspectos diferenciais que são estabelecidos de modo
artificial, entre as diversas ciências.
Sendo assim, Comte utiliza o seguinte prinapio na formulação de
sua classificação enciclopédica:
Ai ciências formam ama hierarquia de generalidade decrescente, mas
de complexidade crescente; cada ciência depende logicamente das
que lhe são inferiores na hierarquia e ainda assim, ao mesmo tempo,
trata de uma nova ordem de propriedades que não pode ser reduzida
àquelas que são do interesse das outras ciências (GIDDENS, 1980,
p. 381).

É por este princípio que vai distinguir, por exemplo, a física celeste
de uma física terrestre. Na sua concepção, a astronomia ou física
celeste é dotada de um grau de generalidade mais acentuado do que
a física terrestre, já que todos os corpos na Terra são governados pelas
leis da gravitação, e outras forças naturais. Assim, a física terrestre,
Coleção CLE V.11
228 Durkheim

embora trate objetos diferentes em relação à astronomia, utiliza-se de


algumas de suas noções e por isso está colocada depois desta ultima
na classificação.
Outro ponto a ser destacado na classificação comtiana diz respeito
ao problema da distinção que realiza entre a física dos corpos brutos
e a física orgânica. Esta distinção é, em ultima instância, o pano de
fundo sobre o qual ergue a classificação. Os corpos brutos são encara-
dos como sendo aqueles que tem um grau de complexidade menor, em
relação aos fenômenos orgânicos, pois não possuem um princípio or-
ganizativo. A complexidade dos fenômenos da física orgânica faz com
que seu estudo dependa, de alguma maneira, do estudo dos fenômenos
inorgânicos; no entanto, este estudo tem autonomia em relação aos
fenômenos dos corpos brutos.
Assim, a "física inorgânica" está dividida numa física celeste, que
é a astronomia e em uma física terrestre, composta pelos fenômenos
físicos propriamente ditos e pelos fenômenos químicos. A física
orgânica possui duas subdivisões: os fenômenos fisiológicos e os
fenômenos sociais:
Como resultado desta discussão, a íilosoüa positiva se encontra,
pois, naturalmente dividida em dnco ciências fundamentais, cuja
sucessão é determinada pela subordinação necessária e invariável,
fundada, independentemente de toda opinião hipotética, na simples
comparação aprofundada dos fenômenos correspondentes: a astrono-
mia, a física, a química, a hlosoha e, enfim, a física social (COMTE,
1988, p. 33).

Contudo, Comte acresce à esta classificação - considerando sua


importância e especialidade - colocando como a primeira das ciências,
a matemática.
Como resultado definitivo temos a matemática, a astronomia, a
física, a química, a fisiologia e a física social; tal é a forma enci-
clopédia que, ..., é a única logicamente conforme a hierarquia nar
tural e invariável dos fenômenos (COMTE, 1988, p. 39).

Ainda a este respeito, resta-nos ressaltar que Comte chama


atenção para o fato de que esta classificação tem ligação íntima, e
só pode ser entendida, com a idéia da "lei dos três estados". Sua
^proposição é, neste sentido, muito clara: todas as ciências passam
por aquelas fases do desenvolvimento do espírito humano. Pode-se
encontrar, então, ciências que estejam vivendo seu estado positivo ao
Coleção CLE V.11
Washington Luis de Sousa Bonfim 229

lado de outras que ainda não se desvencilharam dos estados teológico


e metafísico.
Nessa época, a física social, ou melhor, a Sociologia, encontrava-se
nesta situação. Embora constituída, a Sociologia necessitava ainda
desenvolver, de maneira efetiva, o seu espírito positivo. Porém,
Comte já traça alguns caracteres desta ciência e, em especial, utiliza-
se da íilosofía como modelo. Neste sentido, interpreta que a Sociologia
se utilizaria de conceitos "sintéticos". Além disso, ela se dedicaria aos
fenômenos de ordem estática, ligados aos estudos de interrelações fun-
cionais entre as instituições, e aos fenômenos de ordem dinâmica, que
apegados ao método histórico, analisariam os problemas da evolução
social. Comte destaca ainda o papel da observação na Sociologia.
Todavia, sua posição não é estritamente empirista. Como observa-
mos, a teoria teria o papel de diferenciar os fatos relevantes para
investigação daqueles que não o são. Metodologicamente, a expe-
rimentação, apesar das diliculdades de realização laboratorial, é le-
vantada por Comte como parte dos recursos metodológicos de que
pode dispor o sociólogo. E a comparação que será indicada como o
instrumento crucial que viabiliza a pesquisa sociológica.
De modo bastante resumido são estas as proposições gerais de
Comte com relação à "Filosofia Positiva". A "lei dos três esta-
dos", como uma lei acerca do desenvolvimento do espírito humano
na sua capacidade de explicar os fenômenos naturais; a hierarquia
enciclopédica das ciências, que sugere os contornos sobre os quais
desenvolve-se o espírito positivo; o método histórico que subjaz a es-
tas proposições; e o desejo de reforma social, baseado no princípio da
ordem, mas com uma perspectiva de progresso.
Desta maneira, esta caracterização do positivismo, na acepção
que aqui tomamos, ainda liberta dos desdobramentos referentes às
obras dos membros do Círculo de Viena, pode ser definida por quatro
pontos principais:
1) Um certo nominalismo, ou seja, na sua origem, a "Filosofia
Positiva" tendia a encarar a realidade de maneira apenas sensória.
Para Comte é a vitória dos nominalistas, no debate que travaram
com os realistas, acerca do caráter das entidades causais abstratas,
que constitui a primeira vitória do positivismo sobre o pensamento
metafísico (ver Schmaus, 1982, p. 250).
Coleção CLE V.11
230 Durkheim

2) Rejeição enfática da metafísica: A Filosofia é encarada como


parasitária da ciência;
3) A dualidade fato e valor: Aqui se expressa a idéia de que a
ciência deve afastar-se da realidade moral, não podendo ater-se a
considerações de valor;
4) A insistência na questão da "unidade do método": A idéia
de que as Ciências Naturais e Sociais partilham uma lógica comum
e talvez mesmo de uma base metodológica (cf. Giddens, 1980, p.
318).
Estes quatro pontos são, de maneira geral, balizadores da cons-
trução conceituai e metodológica de Durkheim. Muito de sua obra
repousa sobre estes pilares, embora talvez em alguns aspectos pos-
sam ocorrer divergências. A aversão à metafísica, a dualidade fato
e valor, a questão da "unidade do método", são princípios norteado-
res da empresa durkheimiana, mas não só eles, e é isto que teremos
oportunidade de discutir a seguir.

3. O projeto positivo de Durkheim

Observar a conformarão do projeto positivo - entendido aqui


como a construção de uma disciplina científica fundada nos carac-
teres gerais que expusemos em relação à obra de Auguste Comte - na
obra de Durkheim envolve uma tarefa bastante específica: analisar
as influências sofridas pelo autor, procurar através destas a dimensão
na qual ele aceita e desenvolve este projeto positivo, realçando con-
cordância e divergências com suas fontes de inspiração.
Neste sentido, poderíamos construir uma longa série de ob-
servações acerca destas influências, desde mestres como Wilhelm
Wundt, com quem estudou na Alemanha, beneficiado por uma
bolsa concedida pelo governo francês. Mais importante ainda, po-
deríamos citar as influências de Saint-Simon, que o houvera influen-
ciado também muito fortemente. Nestas influências saint-simonianas
estão o problema do método da ciência histórica, a Filosofia Posi-
tiva, o socialismo e as aspirações de renovação religiosa. Por isso é
de grande relevância e digna de nota.
No entanto, são duas outras influências que, particularmente, me-
lhor se adequam aos nossos objetivos. A primeira delas, antes de mais,
quer analisar o modo como o modelo ou paradigma científico vigente
Coleção CLE V.11
Washington Luis de Sousa Bonfim 231

no século XIX atingiu o pensamento durkheimiano. Esta influência,


talvez muito óbvia aos filósofos da ciência e também aos historiado-
res, adquire relevância quando se percebe que aos sociólogos ela não
está muito clara. 0 principal motivo desta névoa é um certo tipo de
preconceito contra determinadas leituras, preconceito este que grassa
livremente pelas escolas de Sociologia e se dissemina pelas gerações
de sociólogos, muitas vezes mais preocupados com a defesa de suas
objeções políticas do que com o debate científico objetivo e isento de
rótulos.
A segunda influência que teremos oportunidade de analisar é re-
lativa às obras de Comte. Como qualquer justificativa para este
exercício parece muito óbvia, disso não nos ocuparemos, portanto.
Contudo citaremos, ainda que muito brevemente, a influência de Kant
sobre a obra de Durkheim e nosso objetivo será o de mostrar uma das
origens das afirmações de Durkheim acerca dos fenômenos morais.
Inicialmente, a obra de Durkheim corresponde em seus aspec-
tos epistemológicos fundamentais ao paradigma científico vigente no
século XIX. De modo geral, todos os autores que ali inscreveram o
seu gênio basearam-se nestas idéias, mas o que as torna interessantes
de serem citadas é que neste momento e sob esta influência processa-
se o nascimento de um novo tipo de disciplina científica, preocupada
não mais com os fenômenos naturais, todavia com os fenômenos so-
ciais, fenômenos de estrutura e de organização social, muito embora
estes fossem vistos pela ótica que geria a observação dos fenômenos
naturais.
A primeira é mais fundamental característica deste paradigma
é a ruptura que estabelece com os demais tipos de conhecimento,
especialmente com o senso-comum. Partindo de uma definição do
senso-comum como um conhecimento auto-evidente, que pensa o que
existe da maneira pela qual existe e que tem como função recon-
ciliar a consciência comum consigo mesma (ver Santos, 1989, p.
32), a ciência procede de modo inverso, seu objetivo não consiste em
observar o que existe tal qual existe, sua preocupação é afastar-se
desta consciência imediata da realidade, é, enfim, torná-la mediati-
zada através da observação sistemática, da formulação de hipóteses
e da criação de leis universais.
No âmbito das ciências sociais, a possibilidade de ruptura epis-
Coleção CLE V.11
232 Durkheim

temológica entre ciência e senso-comum é tornada real por dois


princípios: uo princípio da não-consciência" e o "princípio do pri-
mado das relações sociais".
O primeiro princípio que, ..., estabelece que o sentido das ações
sociais não pode ser investigado a partir das intenções ou motivações
dos agentes que as realizam transborda delas (Durkbeim), e reside
antes no sistema global de relações sociais em que tais ações têm
lugar (SANTOS, 1989, p. 32).
0 segundo princípio também é devido a Durkheim e estabelece o
mecanismo da relação causai dentro dos fatos sociais. Assim, fatos
sociais só são explicados por relação causai com outros fatos sociais,
nunca em relação a fatos psicológicos ou naturais. Enfim, o que
a ciência rejeita ao romper com o senso-comum é sua tendência à
busca de "verdades" e a superficialidade de que este conhecimento se
reveste.
Outro fato básico ou noção básica do paradigma da ciência mo-
derna é a relação que se estabelece entre sujeito e objeto. Durkheim,
em geral, é primeiramente reconhecido pela sua famosa assertiva de
que se deve tratar os fatos sociais como coisas. Isto parece denotar
a plenitude do conteúdo da relação; o distanciamento, que se tra-
duz no positivismo como uma separação entre a ciência e a moral,
na dualidade fato/valor. Pode-se também estipular aqui o caráter
"instrumental" do modelo científico; ao tornar-se passivo, o objeto
sujeita-se à manipulação. Nas palavras de Bacon, a ciência torna a
pessoa humana "o senhor e o possuidor da natureza" (Santos, 1989,
p. 49.)
A quantificação é outra característica do paradigma científico que
subjaz à obra de Durkheim. Esta preocupação consiste em dotar a
observação e experimentação de uma linguagem neutra e clara, que
proporcione completo rigor na apresentação dos resultados obtidos
na tentativa de conhecer a natureza. Assim, a matemática é o meca-
nismo pelo qual se obtém todas estas características de rigor e neu-
tralidade. Esta característica está expressa na obra de Durkheim por
meio da tentativa que procede de constituir a Sociologia, de forma de-
finitiva, como fundada na observação seletiva dos fatos e na inferência
indutiva.
Neste ponto específico é difícil separar o paradigma vigente e as
proposições da Filosofia Positiva, tal qual entendida na Seção 2. É
Coleção CLE V.11
Washington Luis de Sousa Bonfim 233

incontesti a tentativa do positivismo de transplantar este modelo de


maneira completa para o âmbito das Ciências Sociais. Esta questão
parece mesmo dizer respeito às longas discussões travadas sobre a
"unidade do método". Ou seja, para muitos autores, e Comte é um
deles, o esforço científico das Ciências Sociais, no sentido de alcançar
os padrões já estabelecidos na pesquisa natural, demandaria somente
uma questão de tempo e recursos para que se atingissem tais padrões.
Aliás, o próprio desenvolvimento do espírito positivo dotava os pes-
quisadores sociais deste tipo de esperança.
A causalidade formal é outro ponto de apoio do projeto teórico
durkbeimiano. Sua preocupação com o primado do social remetia-o à
idéia de que a causalidade na Sociologia era também social; para ele as
causas de um fenômeno social só devem ser buscadas e só podem ser
encontradas em fatos sociais anteriores. Embora Durkheim reconhe-
cesse um outro tipo de causalidade na Sociologia, a que liga as causas
aos efeitos úteis que produz e que considerava o segundo tipo de pes-
quisa necessário ao desenvolvimento da disciplina, o princípio causai
descrito aqui indica uma aceitação do modelo natural de ciência.
De modo geral, estas são as principais características do modelo
científico vigente no século XIX, e que tiveram influência sobre a obra
de Durkheim.
Contudo, antes de passar à análise da influência comtiana sobre o
autor, gostaríamos de nos adiantar a uma crítica que se pode propor.
Já falávamos, inicialmente, a respeito de uma espécie de preconceito
que grassa nos meios acadêmicos das Ciências Sociais, relativo sobre-
tudo a rótulos, dispostos aprioristicamente, contra todo e qualquer
tipo de orientação intelectual que não produza frutos, do ponto de
vista de certas objeções políticas. Assim, pode-se perguntar sobre as
motivações que subjazem a uma exposição como a que acabamos de
realizar. Colocado de forma diferente, se se questionar a existência
de alguma discrepância radical entre este paradigma e as proposições
positivistas, seria óbvia uma resposta negativa, não se pode deixar de
perceber que, nos dias de hoje, o conceito, ou melhor, o rótulo "posi-
tivo" pesa sobre quase tudo em Sociologia e alguns encaram-no como
maldito. Assim, em que pese a existência de semelhanças, à título de
exemplo pode-se ver que Durkheim e Weber são encarcerados numa
mesma cela "positivista", muito embora seus projetos metodológicos
Coleção CLE V.11
234 Durkbeim

sejam razoavelmente diferentes. Como explica Florestan Fernandes,


na seguinte passagem do seu Fundamentos Empíricos da Explicação
Sociológica.

A teoria da explicação científica passou na Alemanha, graças a Kant,


por uma reinterpretação, em que foram acentuados os elementos que
condicionam e ordenam a experiência. Ao contrário do que aconteceu
na França, formou-se lá a convicção de que não se deve partir do
próprio objeto, mas da análise do conhecimento, que engendra a
idéia de objeto (FERNANDES, 1980, p. 85; grifo do autor).

Fica clara nesta passagem, a diferença nos modos de conceber o


objeto, o que tem como conseqüência a ênfase na compreensão e con-
seqüente hegemonia deste método compreensivo na Sociologia alemã,
de inspiração weberiana, contrastando deveras com o projeto estritar
mente empírico da Sociologia francesa, de inspiração durkheimiana.
Feita esta objeção, podemos passar à análise da influência com-
tiana sobre o conjunto da obra de Durkheim. Esta é largamente
discutida. Muitas vezes diz-se existir uma linha de condução direta
entre as obras dos dois autores. Contudo, ao analisarmos de perto
esta questão, o que é real diz respeito a um reduzido número de con-
fluências entre os dois pontos de vista, tendo em mente as afirmações
gerais que freqüentemente se fazem.
Assim, pode-se afirmar em primeiro lugar que a obra de Durkheim
é, em última instância, uma reação contra as proposições de Comte.
De maneira geral, Durkheim inscreve autores como Comte e Salnt-
Simon na pré-história científica do estudo dos fenômenos sociais. Re-
jeita no primeiro aquilo que é o fundamento de seu projeto intelectual,
ou seja, a proposição da "lei dos três estados", sob a argumentação
de que nela não residem evidências empíricas suficientes para propor-
cionar sua sustentação. No entanto, pode-se perceber dois sentidos
gerais sob os quais Durkheim absorve o projeto comtiano.
O primeiro sentido desta aceitação reside na idéia de estudar, ou
de propor, o estudo dos fatos sociais através do mesmo método utili-
zado para o estudo dos fenômenos naturais, ou seja, Durkheim aceita
o princípio da "unidade do método". O segundo sentido é, de certa
maneira, "político". Durkheim compartilha com Comte a oposição
ao pensamento "negativo" da Filosofia Iluminista; esta oposição é
relativa sobretudo às conseqüências, tad como, a dissolução das insti-
Coleção CLE V.11
Washington Luis de Sousa Bonfim 235

tuições, que vislumbravam neste pensamento das luzes2.


Durkheim assimila em Comte também a característica funda-
mental que este ultimo reconhecia nos fenômenos sociais. Assim,
o consenso, que era a característica que em Comte diferenciava
os fenômenos sociais de meros fenômenos biorgânicos, aparece em
Durkheim sob a forma do conceito de solidariedade. Além disso,
Durkheim também absorve a idéia de que as sociedades saem de es-
tados egoístas a estágios altruístas de convivência, e é esta modi-
ficação que permite as mudanças nos modos de governo, despotismo
ou democracia e fatalmente no império das leis, como acontece em
sociedades com algum grau de altruísmo.
Outro ponto de confluência entre os dois autores reside na rdéia de
que a Sociologia estaria dividida em estudos de dinâmica e estática.
A exemplo de Comte, Durkheim se utiliza das formulações meto-
dológicas da Biologia e define os dois tipos de pesquisa da disciplina:
os estudos de Morfologia e de Fisiologia Social.
No entanto, é do ponto de vista metodológico que estas influências
se tornam mais claras. Desta maneira, Comte influencia Durkheim
do ponto de vista de suas idéias acerca da indução e do papel auxi-
liar das hipóteses na Sociologia. Nos dois autores a indução, ou seja,
a observação, constitui o fundamento do empreendimento científico,
contudo, como adiantávamos na Seção 2, em especial Comte, não
interpreta esta influência da observação como um empirista radical.
Em sua obra, Comte ressalta o papel das hipóteses no processo de
formação das teorias. Sua idéia fundava-se na crença de que as ob-
servações devem ser precedidas por algum conhecimento anterior, que
permitiria o próprio ato da observação, como nos mostra Laudan:
... diferentemente doe indutivistas tradicionais, Comte insiste que o
cientista não é e não pode ser um observador passivo da natureza,
que gradualmente absorve e eventualmente generaliza os fatos que
assimila. Comte argumenta que a observação científica pressupõe
teoria, e sugere que o observador sem uma teoria não é de qualquer
signiácância para a ciência... (LAUDAN, 1971, p. 41; tradução é
nossa).

Contudo, neste particular, embora Durkheim concordasse com a


formulação geral de Comte, criticava o caráter circular da proposição,
2
Para uma análise mais detalhada destes aspectos, ver: Tiryakian, 1980, p.
252-316.
Coleção CLE V.11
236 Durkheim

que consistia em exigir uma teoria para a observação quando a própria


observação é que seria o ponto de partida para a construção da te-
oria. Durkheim afirma então que a Sociologia só iria beneficiar-se
das teorias à medida que progredisse; enquanto isso, deveria ater-se à
realização de descrições bem feitas, aprendendo a observar o que real-
mente interessa e não colecionar fatos que não possuem signiíicância
para a disciplina. Como afirma F. Fernandes (1980, p. 72), nos
primeiros momentos, a Sociologia necessitava de uma teoria da inves-
tigação sociológica mais do que uma teoria sociológica propriamente
dita.
Cabe ainda ressaltar dentro desta discussão, o fato, que se pode
analisar com mais detalhe em um outro contexto, de que apesar desta
posição "liberal" de Comte acerca do papel da indução na ciência, a
tradição de pesquisa que daí se segue teve um cuidado muito espe-
cial em tornar mais e mais fechada esta proposição. Desta maneira,
enquanto os positivistas, no campo da Filosofia da Ciência, os funci-
onalistas na Sociologia e Antropologia e autores isolados no âmbio da
Ciência Política insistiam com veemência no princípio da indução, a
Filosofia da Ciência que reagia às proposições do Círculo de Viena e às
ciências naturais de modo geral, dele se afastavam. Neste contexto,
é significativo ver proposições que procuram associar alguns traços
do pensamento comtiano acerca das ciências e do papel auxiliar das
hipóteses, com o pensamento popperiano e sua radical rejeição da
indução3. Então, que tipo de justificativa epistêmica se pode oferecer
a este quadro?
No contexto de nossos objetivos é impossível responder de imedi-
ato este questionamento e voltamos, por esta razão, ao propósito de
analisar a influência do pensamento comtiano sobre Durkheim. Deve-
mos então estarmos atentos aos problemas da teoria da investigação
sociológica.
Neste particular, Durkheim concorda com Comte quanto às possi-
bilidades de experimentação e de observação na disciplina. Os dois re-
conhecem a impossibilidade de experimentação direta dos fenômenos
sociais, contudo, admitem o processo indireto, exemplificado princi-

3
A este respeito, refiro-me especificamente à tentativa do Prof. Dr. Alberto
Oliva (UFRJ) de proceder esta associação. Ver o resumo de sua comunicação
apresentada no VII Colóquio de História da Ciência (CLE/UNICÀMP).
Coleção CLE V.11
Washington Luís de Sousa Bonfim 237

palmente pelo método comparativo. Esta possibilidade de experi-


mentação na Sociologia tem conseqüências sobre o processo de in-
ferência indutiva. Assim, o sociólogo não necessita trabalhar com
grande volume de dados, são suficientes aqueles que sejam realmente
significativos para a análise do fenômeno e constituição das leis. Um
clássico exemplo desta orientação na obra de Durkheim é a sua regra
para a constituição dos tipos sociais, expressa nas Regras do Método
Sociológico (1895) (1987, p. 66-77), onde afirma a inocuidade de se
colecionar dados sobre todas as sociedades a fim de constituir estes
tipos.
Comte ainda influencia Durkheim no que trata o objeto da Soci-
ologia, especialmente ao seu caráter autônomo. Os dois consideram
que a Sociologia pode se constituir como uma ciência autônoma, con-
tudo Durkheim não assimila a hierarquia das ciências que está pro-
posta na obra do autor do "Curso de Filosofia Positiva". Da mesma
forma, e em conseqüência do que precede, os autores não consideram
que o conteúdo moral dos fatos sociais impeça a existência da Socio-
logia. Neste ponto específico, a influência positiva sobre Durkheim é
forte e se traduz inclusive do ponto de vista metodológico, quando ele
define o objeto da disciplina por suas características de exterioridade
e coercividade.
Em Durkheim, apesar de haver a rejeição à proposição da lei do
desenvolvimento do conhecimento humano, "As Formas Elementares
da Vida Religiosa" (1912), pode-se encontrar semelhanças entre a
visão da evolução social que possuem os dois autores. Durkheim
admite a religião como o primeiro tipo de conhecimento e desenvolve
este argumento de forma a torná-lo uma lei. Além disso, considera
que à medida que os conceitos religiosos se secularizam vão formar a
Filosofia Metafísica e com a observação empírica se chega à ciência.
Por último, a distinção entré o normal e o patológico é também
aceita por Durkheim, o que na visão de Anthony Giddens representa
uma aceitação da parte mais intrínseca do projeto comtiano,

assim como a ciência natural nos mostra que o desenvolvimento


do conhecimento só pode ser alcançado de maneira incrementai,
também a Sociologia nos mostra que toda mudança social realmente
progressista só ocorre cumulativamente. A dependência mútua entre
progresso e ordem é um tema tão constante nos escritos de Durkheim
quanto nos de Comte (GIDDENS, 1980, p. 327).
Coleção CLE V.11
238 Durkheim

Esta visão incrementai do progresso é também a base, nos dois


autores, para a rejeição da revolução como um índice do processo de
mudança. Para eles, a revolução significava a incapacidade de uma
sociedade em mudar progressivamente, considerando as mudanças
sociais como contínuas e interligadas, nunca abruptas e dissociadas.
A obra de Kant é também uma fonte de inspiração para
Durkheim. Em especial, as suas posições em relação à moral e
também quanto ao problema do conhecimento. No que diz respeito ao
problema moral, Kant é principalmente uma fonte de redescoberta,
já que os tempos vividos pela França na época da República, eram
encarados pelos principais intelectuais como "anômicos".
No sistema ético kantiano, a moral é vinculada ao indivíduo, em-
bora sua existência se estenda para além deste, como uma condição a
priori. Durkheim aceita esta condição a priori, no entanto rejeita que
a moral esteja vinculada ao indivíduo. Assim, sendo esta condição a
priori uma estrutura transcendental devida à faculdade de entendi-
mento, sua fonte não é o indivíduo, mas a sociedade que é anterior e
posterior a este.
Em Kant, os fatos morais possuem um atributo: a inevitabilidade.
Durkheim irá propor um novo atributo, que consiste na bondade
e desejabilidade de que os homens pratiquem a moral. Durkheim
contrapõe-se a Kant em mais um momento. Para este último, os
fatos morais são dotados de universalidade; Durkheim rejeita esta
proposição e afirma que os fatos morais são adequáveis às sociedades,
sendo assim, são específicos sob este ponto de vista,
... Durldieim rnchav» que havia uma moial adequada, correspondente
à organização social de uma determinada sociedade, em determinada
fase de seu desenvolvimento (TIRYAKIAN, 1980, p. 282).
Do ponto de vista epistemológico, Durkheim assimila a proposição
da existência de estruturas a priori de organizações de nossa per-
cepção do mundo. No entanto, Durkheim critica Kant por propor
que estas estruturas estejam em poder dos indivíduos através de cate-
gorias da mente. Durkheim propõe que as estruturas do pensamento
lógico sejam coletivas, representações societárias. O nosso entendi-
mento do mundo então, não é individual, mas está condicionado pela
organização social e dela é proveniente.
O contexto destas influências sobre a obra de Durkheim nos faz
compreender o sentido que iria empregar em todas as suas obras: a)
Coleção CLE V.11
Washington Luís de Sousa Bonfim 239

as preocupações quanto à constituição da Sociologia como ciência; b)


a tentativa de superar os erros e deficiências do projeto comtiano; c)
a preocupação moral, refletindo o quadro social instalado na França
naquele período; d) o desafio de consolidar a sociedade como objeto
de estudo, isto é, no seu aspecto exterior, os fatos sociais. Tudo
isto é parte fundamental da interpretação da magnitude do trabalho
durkheimiano sob o ponto de vista da tradição positivista. Contudo,
é necessário que traçemos organicamente, isto é, de modo articulado,
os caminhos que permitirão obter a dimensão exata da magnitude da
obra de Durkheim.

4. Aspectos da obra de Durkheim como um PPC


0 grande corolário das discussões que realizamos até aqui
encontra-se na idéia de que a obra de Durkheim forma aquilo que
em Filosofia da Ciência se convencionou chamar "Programa de Pes-
quisa Científica".
Lakatos (1979, p. 109-243) ao propor esta conceituação, obser-
vava que na evolução da ciência deve-se atentar para séries de teorias
e não pequenas teorias isoladamente. Esta série de teorias oferece re-
gras metodológicas que estabelecem o que denomina como heurísticas
positiva e negativa de um Programa de Pesquisa Científica (PPC),
que é esta série de teorias. Estes PPCs são definidos por três ele-
mentos principais:
1) o núcleo do programa, que é composto de "crenças metafísicas"
e para onde a pesquisa não deve ser dirigida, dada a sua irrefutabili-
dade;
2) as heurísticas positiva e negativa. A primeira é composta por
"um programa que inclui uma cadeia de modelos, cada vez mais com-
plicados, que simulam a realidade..." (Laudan, 1977, p. 165; grifo
do autor). E a heurística positiva que possibilita o avanço do PPC,
pois resolve os "contrarexemplos" tornando-os exemplos corroborati-
vos. A heurística negativa é responsável pela proteção do núcleo do
programa. Nela estão especificados os aspectos que não devem ser
tocados, os procedimentos que mantém o PPC.
A heurística negativa do programa nos proíbe de dirigir o modus
toilens para este Núcleo5. Ao invés disso, precisamos utilizar nosso
engenho para articulai ou mesmo inventar "hipóteses auxiliar es",
que formam o cinto de proteção em torno do núcleo, e precisamos
Coleção CLE V.11
240 Durkheim

redigir o modus tollens para elas (LAUDAN, 1977, p. 163; grifos do


autor).

3) teorias adjacentes com previsões e interpretações empíricas.


Assim formulando o conceito podemos, em primeiro lugar, jus-
tificar esta idéia de que a obra durkheimiana cria um PPC para a
Sociologia. Nesta justificativa somos acompanhados por vários au-
tores e aqui citaremos apenas dois deles: Edward Tiriakyan (1980,
p. 252-316) e Matallo Jr. (1988, p. 48-63). No primeiro autor é a
"divisão do trabalho social" que surge como obra fundamental para
interpretação dos aspectos deste PPC. No texto do segundo autor
é dada relevância às "regras do método sociológico". No entanto,
ambos estão em uníssono quando afirmam o caráter progressivo que
estas idéias deram ao PPC, seja frisando o papel de conceitos como
o de ordem, a idéia de moral, a questão da consciência ou caráter sui
generis da sociedade, seja interpretando o conjunto de regras expostas
em 1895 como o ponto de partida desse PPC.
As várias ramificações a que a obra de Durkheim deu origem
também servem como ponto de apoio a esta idéia de analisá-la como
PPC. A primeira grande corrente analítico-metodológica que se ori-
gina de suas reflexões está presente na obra de antropólogos britânicos
como Radcliffe-Brown e Malinowski. As idéias gerais acerca da uti-
lização do conceito de função se estabelecem firmemente no estudo
das sociedades ágrafas e o modelo de ciência vivenciado por estes
autores é mais rígido do que o utilizado por Durkheim. Como exem-
plifica a seguinte passagem de Radcliffe-Brown,
para a Sociologia, ou antropologia social, que na minha opinião
implica o estudo dos fundamentos de cultura através dos métodos
indutivos que são usados nas ciências naturais, os fenômenos do
totemismo apresentam uin problema de tipo diferente. A tarefa
das ciências indutivas é descobrir o universal, ou geral, no par-
ticular. A tarefa de uma ciência da cultura é reduzir a rede de
complexos com que lida, a um número reduzido de leis gerais ou
princípios... (RADCLIFFE-BROWN, 1980, p. 234).

Uma outra corrente teórica originária das proposições durkheimia-


nas é ligada ao desenvolvimento do funcionalismo nos EUA, principal-
mente através das contribuições de Robert Merton e Talcott Parsons.
Neste desenvolvimento específico da "tradição durkheimiana", os es-
tudos de estratificação, integração e mudança social são de grande
Coleção CLE V.11
Washington Luís de Sousa Bonfim 241

valia. Mas a marca mais visível deste ramo é sua rejeição ao me-
canicismo que perdurava na orientação dos antropólogos britânicos.
Como descreve F. Fernandes, nesta fase se alcança uma delimitação
positiva do conceito de função social que passa a ser,
... entendida, logicamente, como uma relação de interdependência
entre nma atividade parcial e uma atividade total ou entre um com-
ponente estrutural e a continuidade da estrutura, em suas partes
ou como um todo, representando-se os elementos dessa relação de
modos diversos e em graus variáveis, quer como determinadas, quer
como determinantes (FERNANDES, 1980, p. 234).

Ou seja, ao contrário daqueles antropólogos, e mesmo ao contrário


da própria posição de Durkheim, o conceito de função não é mais en-
tendido em relação aos "efeitos úteis" de determinada instituição ou
fenômeno. Ele ganha uma dimensão de processo mais firmemente
estabelecida e evita os postulados que Merton faz alusão no seu So-
ciedade: Teoria e Estrutura (1949), quais sejam: o "postulado do
funcionalismo universal", o "postulado da indispensabilidade" e o
"Postulado da unidade funcional da sociedade"4.
Estas nos parecem ser as idéias principais acerca da proposição
de uma revisão da tradição positivista na Sociologia, que tenha como
ponto de partida a obra de Durkheim. Contudo, deve restar bastante
claro que o trabalho deste autor segue diversos caminhos dentro das
Ciências Sociais e se estamos ainda reticentes quanto à importância de
proceder esta tarefa revisionista, basta que nos lembremos das idéias
de Lévi-Strauss e do grau de filiação que este, explicitamente, relaci-
ona entre suas idéias e as de Durkheim, principalmente, o Durkheim
de As Formas Elementares da Vida Religiosa.

5. Conclusão

Especificamente em relação ao nosso autor, parece-nos que


sua obra tenha cumprido seus objetivos fundamentais. Durkheim
aproveitou-se das idéias embriônicas de Comte, quer de maneira con-
trapositiva, quer não, e dispôs a Sociologia de uma possibilidade de
constituir-se como disciplina científica, principalmente ao conseguir
4
Além do pióprío texto de Merton (1949), F. Fernandes (1980), faz uma análise
caótica destes postulados e, além disso, discorre sobre toda a tradição fundona-
üsta na Sodologia.
Coleção CLE V.11
242 Durkheim

fazer uma delimitação objetiva de seu objeto de estudo, os fatos so-


ciais. Além disso, proporcionou-nos um método próprio (objetivo-
comparativo), um objetivo "institucional" (a explicação das insti-
tuições sociais) e uma finalidade (a manutenção da organicidade so-
cial). Assim, o velho mestre tornou-se um clássico, estabelecendo um
elo entre o passado, o presente e o futuro das ciências sociais.

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Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
Parte VII

* Questões Epistemológicas da

Ciência Contemporânea no
Século XX
Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
16

A Metodologia de Claude Bernard

como Antecipação da

Metodologia Popperiana

Luiz Henrique de Araújo Dutra

Em seus comentários a respeito da filosofia de Popper, Sir Pe-


ter Medawar (1974) aponta diversos pensadores que anteciparam es-
tas mesmas concepções metodológicas e também defenderam um es-
quema hipotético-dedutivo para o raciocínio científico. Embora Me-
dawar dê mais atenção ao pensamento de Whewell e outros autores
de língua inglesa dos séculos XVIII e XIX, ele aponta também Claude
Bernard como um destes pensadores que, antes de Popper, já defen-
diam um método científico dedutivo.
Popper (1974) afirma que foi Medawar que lhe chamou a atenção
para a semelhança de sua metodologia com a de Claude Bernard. Em
suas respostas a Medawar, Popper alega também nunca ter lido antes
a Intwduction à Vétude de la médecine expérimentale de Bernard.
Tendo, então, conhecido tal obra, ele conclui que Claude Bernard foi
0
pensador que mais se aproximou de sua posição anti-indutivista
(Popper, 1974, p. 1033).
De fato, quem lê a Introdução de Bernard, não deixa de se ad-
mirar com a semelhança entre algumas idéias ali defendidas e as de
Coleção CLE V.11
248 A Metodologia de Claude Bernard

Popper. A proximidade das concepções destas duas metodologias


torna-se mais interessante se considerarmos que o livro de Bernard
foi publicado em 1865, isto é, 68 anos antes que aparecesse o Logik
der Forschung de Popper, que vem a público em 1933.
A semelhança surpreendente entre as metodologias de Popper e
Bernard já foi apontada também por J.-F. Malherbe (1981). Há,
contudo, alguns aspectos da questão que não foram considerados por
este autor. São questões metodológicas importantes, nas quais o
pensamento de Bernard parece antecipar o de Popper, tais como:
a distinção entre os contextos de invenção (ou descqberta) e justi-
ficação (ou prova) das teorias científicas; ou os papéis da indução e
da dedução no empreendimento científico.
Dada a grande aceitação que as idéias de Popper gozaram há al-
guns anos entre os biólogos (o que também é lembrado por Medawar,
além de outros), torna-se interessante perguntar, então, se a íisio-
logia (que teria em Bernard o seu Newton) não seria popperiana de
berço, isto é, se não teria entrado para o mundo das ciências empíricas
maduras já com a marca característica da metodologia que Popper
defendeu para elas. Pensar assim seria talvez um exagero, pois há
diferenças importantes entre Bernard e Popper, que devem ser con-
sideradas também.

1. Alguns conceitos metodológicos fundamentais em Popper


Popper é, com certeza, o principal defensor do método dedutivo
para as ciências empíricas. Ao formular sua metodologia, divulgada
pela primeira vez em sua Lógica da investigação, ele acreditou es-
tar remando contra a corrente. Parecia-lhe que a forma mais co-
mum de caracterizar as ciências empíricas era a de atribuir-lhes o
método indutivo. Esta era, certamente, a concepção dominante, por
exemplo, entre os empiristas. Mas tál tendência não impediu consi-
derações contrárias, isto é, posições dedutivistas, como mostra Me-
dawar (1974). E preciso lembrar que o pensamento indutivista já
havia reconhecido suas próprias dificuldades muito antes de Popper,
como revelam as discussões de Hume a este respeito. De fato, a con-
tribuição de Popper a esta questão é a de apresentar seu método
dedutivo como uma alternativa que pudesse evitar o problema lógico
da indução.
Coleção CLE V.11
Luiz Henrique de Araújo Dutra 249

O que Popper denomina problema lógico da indução é o fato de


que, em um argumento indutivo correto, a conclusão não é verda-
deira, sendo verdadeiras as premissas. Isto ocorre, diz ele, como é
sabido, porque a conclusão diz mais que as premissas. A sentença
"Todos os cisnes são brancos" não é uma conseqüência lógica da con-
junção das sentenças: "este cisne é branco", "aquele cisne é branco",
"aquele outro...", etc. Assim sendo, todas as nossas conclusões uni-
versais a respeito da natureza são meramente hipotéticas, pois não
há conjunções de sentenças particulares que sejam suficientes para
prová-las.
As conseqüências epistemológicas mais importantes destas consi-
derações lógicas são: não podemos verificar uma lei ou uma teoria
científica. Isto é, a experiência não nos pode ajudar a saber se uma
teoria científica é verdadeira. Contudo, é possível às vezes, diz Pop-
per, falsear uma teoria, embora nunca seja possível verificá-la. Este é
o ponto fundamental de Popper: há uma forma inferencial dedutiva
que permite o falseamento: o modus tollens. Um método dedutivo
baseado nesta forma pode permitir o uso da experiência para decisões
acerca da falsidade de uma teoria. Se de uma teoria deduzimos certas
conseqüências empíricas e estas não se dão, então podemos concluir
a falsidade da teoria. A forma de tal inferência é:

TDc
-i c
•• -.T

onde: T é a teoria em questão e c é a conseqüência deduzida a partir


de T. Se T implica c e temos não-c, então, temos não-T. Este
método supõe apenas que determinados enunciados de base sejam
aceitos (convencionalmente) como não-problemáticos.
0 método dedutivo falseacionista de Popper reserva para a ex-
periência um papel decisivo na avaliação (para aceitação ou rejeição)
de teorias científicas. Pois uma teoria será aceita enquanto não for
falseada. Sendo falseada, uma teoria será abandonada em favor de
uma competidora. Aqui, a exigência é que tal teoria competidora
seja capaz de resistir aos testes que derrubaram a teoria anterior,
que foi falseada. Desta forma, Popper defende que, através de fal-
seamentos, pode haver progresso do conhecimento. Portanto, fazer
Coleção CLE V.11
250 A Metodologia de Claude Bernard

o conhecimento progredir não é tentar verificar uma teoria ou pro-


curar defendê-la das infirmações que possa receber na experiência.
Ao contrário, devemos expor a teoria aos testes mais severos e não
hesitar em abandoná-la em favor de uma nova, se ela for falseada.
Segundo a metodologia proposta por Popper, o cientista deve tra-
balhar contra sua teoria e não a seu favor. Isto parece contra-intuitivo
e sugere que a metodologia proposta por Popper está longe da prática
científica da qual ela pretende dar conta. Quanto a isto há dois pon-
tos a esclarecer. Em primeiro lugar, Popper não está exatamente
preocupado em dar conta da prática real da ciência. • Ao contrário,
ele apenas procura dizer o que deve fazer o cientista se quiser pro-
mover o progresso do conhecimento. O pensamento metodológico de
Popper não é, portanto, descritivo, mas prescritivo ou normativo.
Em segundo lugar, e isto é o que talvez seja mais importante
nesta discussão, o fato de a metodologia popperiana parecer contra-
intuitiva talvez se deva a uma confusão freqüente entre os contextos
de descoberta e justificação. Se pensarmos que não parece razoável es-
perar que o cientista aja contra sua teoria, é porque pensamos no con-
texto de descoberta ou de invenção, na formulação de uma hipótese.
Aqui, certamente, o cientista só pode procurar elaborar bem suas
idéias, isto é, agir a seu favor. Mas a metodologia popperiana não se
aplica a este contexto. Trata-se de um método de teste para teorias
ou hipóteses já formuladas. Pensando, portanto, no contexto de jus-
tificação, quando uma teoria já se encontra formulada, não há nada
de estranho em desejar colocá-la à prova ou agir contra ela, ao invés
de protegê-la.

2. Ciências de observação e ciências experimentais em


Bernard
O problema de Claude Bernard era o de fazer da medicina uma
ciência experimental. Mais especificamente, a fisiologia, que seria
a base de toda a medicina, deveria ser uma ciência experimental.
Seu desejo era, portanto, que esta disciplina (e, conseqüentemente,
também a medicina) deixasse de ser uma ciência meramente de ob-
servação. Temos aqui uma distinção fundamental do pensamento
metodológico bernardiano que é completamente alheia à filosofia pop-
periana.
Coleção CLE V.11
Luiz Henrique de Araújo Dutra 251

Popper não faz distinção entre ciências de observação e ciências


experimentais. Para ele, a grande distinção a ser feita é entre sis-
temas empíricos (ou científicos) e sistemas não-empíricos (quer ma-
temáticos, quer metafísicos). A distinção entre as ciências e os siste-
mas filosóficos também se encontra, certamente, em Claude Bernard.
Mas, para este, o próprio campo das ciências está dividido em dois
ramos: as ciências de observação e as ciências experimentais.
Não se trata, para Bernard, de uma diferença de natureza entre
as ciências de observação e as ciências experimentais, mas de uma
diferença que ele denomina reaL Ele diz:
Portanto, se não há, do ponto de vista do método filosófico, uma dife-
rença essencial entre as ciências de observação e as ciências de experi-
mentação, existe, contudo, uma diferença real, do ponto de vista das
conseqüências práticas que o homem pode tirar daí... (BERNARD,
1943, p. 31).

Essa diferença, diz Bernard, é a possibilidade de agir sobre os fenôme-


nos:
É aí, precisamente, neste poder que tem o investigador de agir sobre
os fenômenos, que se encontra a diferença que separa as ciências
ditas de experimentação das ciências ditas de observação (p. 30).

Aqui é interessante notar que Bernard estabelece a diferença entre


os dois ramos científicos de uma forma que é típica do pensamento
popperiano. Para Popper, a diferença entre sistemas empíricos e
sistemas não-empíricos não é uma diferença de natureza, mas sim
metodológica (e também convencional). Isto é, os sistemas empíricos
são aqueles aos quais se pode aplicar um determinado método de
teste, o método dedutivo baseado no modus tollens.
Do mesmo modo, para Bernard, a diferença entre os dois ramos
científicos (uma diferença que ele denomina real e não de essência)
existe porque a determinadas ciências é possível aplicar um deter-
minado método, aquele que ele denomina método experimental. Essa
diferença entre ciências de observação e ciências experimentais é tam-
bém, em Claude Bernard, uma diferença metodológica, assim como
o é em Popper.
Tal distinção entre os dois ramos científicos baseava-se em uma
separação já estabelecida entre observação e experiência, que era co-
mum em diversos metodologistas anteriores a Bernard. Ele próprio
Coleção CLE V.11
252 A Metodologia de Claude Bernard

examina em seu texto as idéias de alguns autores que trataram do


assunto, como Zimmerman e Cuvier, e faz críticas a eles (Bernard,
1943, p. 8 ss), para oferecer definições alternativas de observação e
de experiência, que são as seguintes:
... a observação é a investigação de um fenômeno natural, e a ex-
periência é a investigação de um fenômeno modificado pelo investi-
gador (BERNARD, 1943, p. 26-7).
E, mais adiante, ele acrescenta:
do ponto de vista do raciocínio experimental, as palavras 'observação9
e 'experiência9 tomadas em um sentido abstrato significam: a pri-
meira, a constatação pura e simples de um fato; a segundado controle
de uma idéia por um fato (p. 27).
Assim, a diferença entre ciências experimentais e ciências de ob-
servação está na possibilidade de se modificar os fenômenos a serem
estudados ou, mais precisamente, na possibilidade de controlar uma
idéia por meio de um fato produzido, Claude Bernard diz a este res-
peito:
Uma ciência experimental ou de experimentação será uma ciência
feita com experiências, isto é, na qual raciodnar-se-á sobre fatos de
experimentação obtidos em condições que o próprio experimentador
criou e determinou (p. 27-8).
É isto que faz a diferença, diz Bernard, entre ciências como a física
(mecânica terrestre) ou a química, de um lado, e, por exemplo, a
astronomia, de outro. No caso das primeiras é possível interferir nos
fenômenos e controlá-los, enquanto que no caso da astronomia não
(P- 31).
A este respeito Claude Bernard polemiza com os vitalistas e com
aqueles que ele denomina empiristas. Para estes últimos, a medicina
deveria ser uma ciência de observação, e nunca uma ciência experi-
mental. Já o vitalismo (considerado por Bernard uma doutrina me-
tafísica contrária ao espírito científico) levava a conseqüências meto-
dológicas indesejáveis. Segundo os vitalistas, fazer experiências com
os organismos seria alterar aquela vida que se deseja estudar e, por-
tanto, impedir sua observação, como comenta Charles Lalo (1943,
p. xi). Para Claude Bernard, tornar a medicina uma ciência experi-
mental era introduzi-la na era científica e superar tanto o empirismo
quanto o vitalismo, pertencentes a etapas anteriores do desenvolvi-
mento do espírito humano (Bernard, 1943, p. 2-3). Temos aqui,
Coleção CLE V.11
Luiz Henrique de Araújo Dutra 253

como também observa Lalo, a ressonância do pensamento positivista


de Comte no pensamento bernardiano.

3. Natureza e origem da idéia experimental em Bernard


A experiência é o controle de uma idéia por um fato, diz Claude
Bernard, como vimos acima. Ela é também, diz Bernard, "uma ob-
servação provocada com um fim qualquer" (p. 33). Tal fim, diz o
texto da Introdução logo adiante, é o de controlar uma idéia pré-
concebida (p, 34). Eis o caráter da idéia que deve ser controlada por
meio da experiência, da idéia experimental, como a chama Claude
Bernard: ela é uma antecipação.
Este é um primeiro ponto no qual encontramos uma notável seme-
lhança entre as palavras de Bernard e as de Popper. Claude Bernard
diz:

Nas ciências constituídas, como a física e a química, a idéia experi-


mental se deduz como uma conseqüência lógica das teorias reinan-
tes, e ela se submete em um sentido bem definido ao controle da
experiência (p. 34).

Quase que exatamente nos mesmos termos se expressa Popper em


sua Lógica da investigação, quando diz:

De uma nova idéia, apresentada provisoriamente e ainda não justi-


ficada de modo algum (...) tiram-se conclusões através da dedução
lógica (Popper, 1959, p. 32).

E, mais adiante, Popper fala ainda do "teste da teoria por meio das
aplicações empíricas das conclusões que se podem deduzir dela" (p.
33).
Do mesmo modo, para Claude Bernard, como vimos, a idéia expe-
rimental é uma conseqüência lógica das teorias reinantes ou aceitas,
como se diz hoje em dia. Sendo tais teorias hipóteses sobre a na-
tureza, a idéia experimental possui também este caráter hipotético.
Assim, diz Bernard a este respeito:

O experimentador, como já sabemos, é aquele que, em virtude de


uma interpretação mais ou menos provável, mas antecipada, dos
fenômenos observados, institui a experiência de maneira que, na
ordem lógica de suas previsões, ela forneça um resultado que sirva
de controle à hipótese ou à idéia pré-concebida (p. 37).
Coleção CLE V.11
254 A Metodologia de Claude Bernard

É exatamente esta precedência das hipóteses com relação à experiência


que constitui uma semelhança notável de Bernard com Popper. A
posição hipotetista de Popper consiste exatamente em afirmar a pre-
cedência de nossas idéias com respeito à experiência e, assim, de não
conferir à indução nem mesmo um papel no contexto de descoberta
ou invenção, como ele diz em seu Conhecimento objetivo (cap. 1). Da
mesma forma, para Claude Bernard, a idéia antecipada é o primeiro
motor do raciocínio experimental. Ele afirma:
É & idéia que constitui, como veremos, o ponto de partida ou o
primum movem de todo raciocínio científico (BERNARD, 1943, p.
45).
Este raciocínio científico, ou prática experimental, desencadeado por
uma idéia antecipada, é descrito por Bernard da seguinte maneira:
1) Ele [o cientista] constata um fato; 2) a respeito desse fato, uma
idéia nasce em seu espírito; 3) em vista desta idéia, ele raciocina,
institui uma experiência, imagina e realiza para ela as condições ma-
teriais; 4) desta experiência resultam novos fenômenos que é preciso
observar, e assim por diante (p. 40-1).
Na verdade, este quarto momento é novamente o primeiro de uma
nova etapa de investigações. De forma que, de fato, o método des-
crito por Bernard seria constituído apenas pelos três primeiros mo-
mentos. Mas, uma vez que o cientista institui a experiência apenas
já tendo a idéia experimental que deve ser testada e em vista da qual
a experiência é projetada, podemos também deixar de lado o pri-
meiro momento, em que o cientista constata um fato, assim como o
segundo, em que ele formula uma hipótese.
Desta forma, na verdade, o método experimental seria apenas
o terceiro momento, em que a experiência é projetada. Estes qua-
tro momentos de que fala Bernard podem ser entendidos, portanto,
apenas como uma caracterização muito geral dos acontecimentos du-
rante o trabalho científico e não uma descrição metodológica, rigorosa
e exata, do procedimento científico. Isto se nota claramente no co-
mentário que o próprio Bernard faz depois de enunciar os quatro
momentos referidos. Ele diz:
O espírito do cientista se encontra de alguma forma sempre colocado
entre duas observações: uma que lhe serve de ponto de partida para
o raciocínio e outra que lhe serve de conclusão (BERNARD, 1943,
p. 41).
Coleção CLE V.11
Luiz Henrique de Araújo Dutra 255

Esta passagem deixa daro que o que realmente importa para Ber-
nard é utilizar a experiênda como controle de idéias pré-concebidas.
Este é certamente um ponto polêmico, pois a descrição dos quatro
momentos da prática experimental, se for interpretada como uma ex-
posição rigorosa de procedimentos metodológicos, pode levar à con-
dusão contrária, isto é, de que para Bernard o conhecimento começa
pela observação e não pela idéia. Neste caso, ele estaria na posição
oposta à de Popper, ao invés de preíigurá-lo. Mas há outras passa-
gens da Introdução de Bernard que esclarecem este ponto. Para ele,
não são as observações que levam às hipóteses, mas, ao contrário, são
as hipóteses que levam às observações. Ele diz:
O sentimento engendra a idéia ou a hipótese experimental, isto é, a
interpretação antecipada dos íenômenos da natureza. Toda a inicia-
tiva experimental está na idéia, pois é ela que provoca a experiência
(BERNARD, 1943, p. 56).

E, logo abaixo, Bernard volta a afirmar:


Uma idéia antecipada ou uma hipótese é, pois, o ponto de partida
necessário de todo raciocínio experimental. Sem isso, não se pode-
ria fazer nenhuma investigação, nem se instruir; poder-se-ia apenas
amontoai observações estéreis (p. 56-7).

0 sentimento de que fala Bernard na primeira destas passagens,


aquele que engendra a idéia experimental, é o primeiro momento das
experiências do espírito humano. Lembrando Comte mais uma vez,
Bernard afirma que foi o sentimento que criou as verdades de fé e
a teologia, assim como a razão criou a filosofia e a escolástica. A
experiência, por sua vez, o último destes estágios, é responsável pela
ciência (Bernard, 1943, p. 48-9). 0 sentimento, diz Bernard, "tem
sempre a iniciativa, ele engendra a idéia a ou a intuição; (...)
ele deve ser esclarecido pelas luzes da razão" (p. 49).
Ao comentar esta passagem, Charles Lalo afirma que Claude Ber-
nard se atém à sua fórmula trinitária (sentimento-razão-experiência)
a ponto de esquecer que os fatos precedem sempre e sugerem o sen-
timento (Bernard, 1943, p. 49, nota 4). Lalo faz aqui uma inter-
pretação empirista de Bernard. E verdade que Bernard afirma que,
para se ter alguma idéia sobre as coisas, é preciso observá-las antes;
e
, neste sentido, as idéias experimentais não são inatas (BERNARD,
1943, p. 57).
Coleção CLE V.11
256 A Metodologia de Claude Bernard

Mas, por outro lado, Bernard fala também de um determinismo


absoluto, que é o único princípio que dirige a investigação experimen-
tal, e dp qual temos consciência a (p. 97), isto é, inata (p. 97,
nota 2 [de autoria de Lalo]). E mais adiante, numa passagem muito
esclarecedora a este respeito, Bernard afirma;
Ele [o cientista] aperfeiçoará, pois, os meios de observação e buscará
por seus esforços sair da obscuridade; mas jamais lhe poderá vir
a idéia de negar o determinismo absoluto dos fenômenos, porque
é precisamente o sentimento deste determinismo que caracteriza o
verdadeiro cientista (p. 98).
Desta forma, vemos que o sentimento de que fala Bernard está ligado
a expectativas que temos em relação ao mundo, como diz Popper no
Conhecimento objetivo (cap. 7). Portanto, uma interpretação em-
pirista de Bernard, como aquela que propõe Lalo, não se sustenta.
Assim como Popper, Bernard é um hipotetista, isto é, ele afirma
a precedência de elementos não-empíricos na obtenção de conheci-
mento. 0 método experimental é apenas uma forma de controlar
idéias antecipadas sobre o mundo; tais idéias não têm sua origem na
experiência, elas são antecipações ou hipóteses.

4. Indução e dedução na metodologia de Bernard


Do que acabamos de ver decorre que o método propriamente dito,
proposto por Claude Bernard, de modo semelhante ao método pop-
periano, é apenas um método de teste das teorias e que, portanto, ele
se aplica apenas ao contexto de justificação. Há algumas passagens
da Introdução que são bastante claras a este respeito. Nelas, Claude
Bernard afirma claramente que não existe um método de descoberta
ou de invenção de hipóteses. Ele diz:
Não há regras a se dar para fazer nascer no cérebro, a respeito de
uma observação dada, uma idéia justa e fecunda que seja para o
experimentador uma espécie de antecipação intuitiva do espírito em
direção a uma pesquisa bem sucedida. A idéia, uma vez emitida,
pode-se somente dizer como é preciso submetê-la a preceitos defi-
nidos e a regras lógicas precisas, das quais nenhum experimentador
poderia desviar-se (BERNARD, 1943, p. 58).
Mais adiante, Bernard volta a este ponto, dizendo:
O método por si mesmo não cria nada, e é um erro de certos filósofos
ter conferido tanto poder ao método a este respeito (p. 60).
Coleção CLE V.11
Luiz Henrique de Araújo Dutra 257

E, de modo ainda mais claro:


A descoberta é, pois, a idéia nova que surge a respeito de um fato en-
contrado por acaso ou de outro modo. Por conseguinte, não poderia
haver método para fazer descobertas (p. 61).
Embora estas passagens esclareçam que Claude Bernard fala de um
método de teste apenas, elas ainda não elucidam o caráter dedutivo
de tal método. Mas isto requer uma pequena investigação a respeito
do que Claude Bernard entende por indução e por dedução.
Ele parte da idéia difundida de que a indução consiste em ir dõ
particular ao geral e que na dedução, ao contrário, se vai do geral ao
particular. Claude Bernard, contudo, diz que na prática científica não
é possível separar a indução da dedução e que, na verdade, o espírito
do homem funciona sempre por silogismo, isto é, dedutivamente (p.
80).
Aqui há uma pequena confusão de termos que precisa ser escla-
recida. Claude Bernard fala de indução e dedução em dois sentidos
diferentes. Em primeiro lugar, quando se trata de um procedimento
científico, ele fala de mctocimo indutivo ou investigativo, em oposição
ao raciocínio dedutivo ou demonstrativo. Neste caso, diz Bernard, as
duas formas do raciocínio se encontram em todas as ciências, inclusive
na matemática (p. 81). Bernard se refere ao processo de formular
uma hipótese quando fala de racioanio indutivo, investigativo, ou
ainda interrogativo (p. 82). Neste caso, o raciocínio dedutivo seria
o processo de prova, ou demonstração, ou mais especificamente, no
caso das ciências naturais, o procedimento de teste.
Mas, em segundo lugar, Bernard também emprega o termo "dedu-
ção" como sinônimo de "silogismo" (p. 80ss). Neste caso, ele está
falando de uma forma inferencial. E neste sentido que ele afirma que
a dedução é a única forma que o homem tem para "caminhar nos
raciocínios" (p. 84). Sob este aspecto, o cientista natural não se
distingue do matemático. Pois o que ambos fazem é utilizar a única
forma inferencial possível ao homem, a dedução. Claude Bernard diz:
Quando eles paztem de um princípio, o matemático e o naturalista
empregam, pois, um e outro, a dedução. Os dois raciocinam fazendo
um silogismo, somente que, para o naturalista, é um silogismo cuja
conclusão permanece dubitativa e requer verificação... (p. 84).
E apenas neste sentido lógico preciso de forma inferencial que
podemos entender a afirmação de Bernard de que indução e dedução
Coleção CLE V.11
258 A Metodologia de Claude Bernard

não se distinguem e que, de fato, a única forma de fazer inferências


é a dedução ou, como diz Bernard, o silogismo (p. 87). E é neste
mesmo sentido, portanto, que o método de teste proposto por Claude
Bernard só pode ser dedutivo. Assim como para Popper, para ele,
não há um método indutivo, nem como método de descoberta e muito
menos ainda como método de teste.

5. Falseacionismo e progresso do conhecimento segundo


Bernard
Há um último ponto a ser analisado. De fato, ele constitui talvez
a principal e mais surpreendente antecipação que Claude Bernard fez
das idéias de Karl Popper. Como vimos acima, a diferença que existe
para Claude Bernard entre o matemático e o cientista natural é que
as conclusões^ tiradas por este último permanecem dubitativas, isto
é, elas requerem teste. E aqui que a experiência entra em cena, pois
seu papel é, como diz Bernard, o de controlar nossas idéias. O teste
pode, contudo, tanto confirmar quanto infirmar uma hipótese. 0 que
ocorre, então, em cada um destes casos? Claude Bernard diz:
Que o experimentador deve submeter sua idéia à natureza e estar
pronto a abandoná-la, a modificá-la ou trocá-la, seguindo aquilo que
a observação dos fenômenos que ele provocou lhe ensinou (p. 39).
Em uma outra passagem, ele volta a este ponto, dizendo:
é preciso fazer experiências nunca para confirmar suas idéias, mas
simplesmente para controlá-las (p. 68).
E ainda:
Se se está bem imbuído dos princípios do método experimental, não
se tem nada a temer; pois, se a idéia for justa, continuamos a desen-
volvê-la; se ela for errada, a experiência é para retificá-la (p. 71).
E, em uma outra parte, que lembra Popper mais ainda, Bernard
volta a este ponto e acrescenta um comentário a respeito do progresso
científico. Ele diz:
quando, na ciência, emitimos uma idéia ou uma teoria, não deve-
mos ter por fim conservá-la, procurando tudo o que possa apoiá-la e
desviando tudo o que possa iníirmá-la. Devemos, ao contrário, exa-
minar com o maior cuidado os fatos que parecem derrubá-la, porque
o progresso real consiste sempre em trocar uma teoria antiga que
encerra menos fatos por uma nova que encerra mais (p. 72).
Coleção CLE V.11
Luiz Henrique de Araújo Dutra 259

No mesmo texto, Bemard ainda afirma:


Nas ciências experimentais, ao conttário [da matemática] sendo as
verdades apenas relativas, a ciência só pode avançar por revolução
e pela absorção das verdades antigas em uma forma científica nova
(p. 71).

Portanto, assim como Popper, Bernard afirma o progresso do co-


nhecimento, mas trata-se de um progresso que se dá não por acúmulo
de conhecimento, mas, ao contrário, por meio de modificações das te-
orias, ou de trocas de teorias, algo muito próximo do que Popper
chamaria mais tarde de progresso através de refutações.

Os pontos acima destacados mostram uma interessante seme-


lhança entre as idéias metodológicas de Claude Bernard e aquelas
que Popper defendeu mais de meio século mais tarde, embora haja,
certamente, diferenças consideráveis entre eles, algumas das quais
também foram destacadas.
Especificamente a respeito do método dedutivo de teste há ainda
uma última questão a considerar. Claude Bernard não chega a for-
mular exatamente a forma inferencial do teste das hipóteses, o que
Popper fez recorrendo ao modus tollens. Bernard também não consi-
dera, portanto, o caso em que é possível uma decisão conclusiva em
favor da falsidade, embora não da verdade das teorias, um ponto no
qual Popper insistiu bastante.
Bernard considera apenas a possibilidade de uma teoria receber
alta confirmação. E ele afirma que, neste caso, devemos continuar
duvidando e levar a investigação até uma contraprova. E acrescenta:
"sem isso, o racioanio experimental não seria completo" (p. 102).
Bernard parece sugerir aqui que a contraprova seria o limite da dúvida
e que, depois dela, a teoria poderia ser aceita sem mais problemas.
Com isto, certamente, Popper não concorda. A este respeito, o que
vemos é um distanciamento entre Claude Bernard e Karl Popper.

Referências Bibliográficas

Bernard, C. Introdution á l'étude de la médecine expérimentale.


Paris : Hachette, 1943.
Coleção CLE V.11
260 A Metodologia, de Claude Bernard

Canguilhem, G. Etudes d'historie et de philosophie des sciences.


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medecine expérimentale. Paris : Hachette, 1943. p. i-xxxi.

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sophy of Karl Popper. La Salle : Open Court, 1974. p. 959-
1197.
Coleção CLE V.11
17

Razão e Descontinuidade na Ciência


Contemporânea:
Duas Perspectivas Diferentes

Marly Bulcão

As profundas transformações ocorridas no campo da ciência a


partir do final do século XIX estimularam a reflexão filosófica, pro-
vocando o aparecimento de novas perspectivas epistemológicas que,
para se tornarem adequadas aos sistemas científicos da atualidade, ti-
veram que abandonar os valores filosóficos do passado, pois só assim
poderiam apreender a novidade que caracterizava o saber científico
que então surgia.
Dentre essas teorias epistemológicas pode-se destacar sistemas e
tendências diversas. Vamos abordar duas dessas perspectivas que,
embora apresentando divergências profundas, procuram compreender
as revoluções científicas a partir da crítica à idéia de razão absoluta.
0 idealismo crítico de Léon Brunschvicg e â epistemologia
bistórico-crítica de Gaston Bacbelard retiram de sua época a lição
de que o saber construído pelo passado é fácil e provisório e que a
verdade é "sempre filha do tempo" (Brunschvicg, 1951, p. 131).'
Daí combaterem a idéia de razão imutável e absoluta, impondo um
Coleção CLE V.11
262 Ciência Contemporânea

racionalismo da razão dinâmica e fecunda, através do qual o saber


científico aparece como processo incessantemente reformado,
Brunschvicg e B achei ar d identificam ciência e razão, mostrando
que as revoluções científicas que tiveram início no século XIX são
decorrência da renovação da própria razão. E nesse sentido que suas
maiores divergências podem ser melhor ressaltadas a partir da análise
de suas concepções de razão.
Léon Brunschvicg, através de sua vasta obra e de sua erudição
prodigiosa, faz uma reflexão sobre a ciência em seu dinamismo. Con-
sidera que, analisando as transformações, os fracassos e as "crises''
do saber científico, a razão se apreende a si mesma como potência de
dinamismo e criatividade. Não se trata, pois, de refletir sobre uma
concepção ideal de ciência, mas de se voltar para a ciência a fim de
analisar seu progresso sinuoso. Esse tipo de reflexão revela o caráter
primordial do espírito que é renovar-se inesgotavelmente, sem jamais
se cristalizar.
Refletindo sobre as transformações que ocorrem na ciência ho
século XIX, Brunschvicg mostra que estas só podem ser compreen-
didas a partir de uma perspectiva idealista. Â descoberta das geo-
metrias não-euclidianas veio demonstrar que, assim como não há um
espaço absoluto, não há também um universo que exista independem
temente do espírito. "O universo é o universo percebido por nós",
pois "o conhecimento constitui um mundo que é, para nós, o mundo.
Além não existe nada" (Brunschvicg, 1934, p. 2).
Assim sendo, a fecundidade e o dinamismo da ciência resulta da
liberdade da razão, que não tendo que se restringir à simples descrição
do mundo pôde inventar relações inéditas e imprevisíveis, dando, as-
sim, novo contorno ao universo.
0 ponto de partida do idealismo brunschvicgiano é, pois, a certeza
de que somos um espírito pensante. Através das manifestações da
razão e do sentimento de interioridade, adquirimos consciência de
nossa vida espiritual, o que nos permite afirmar nossa existência como
atividade de pensar.
Brunschvicg não aceita a idéia, de substância pensante, defendida
por algumas perspectivas idealistas. Para ele, o espírito é atividade
dinâmica de pensar e, como tal, é apreendido. Não há, portanto,
uma substância cujo atributo é o pensamento, mas uma atividade
Coleção CLE V.11
Mar/y Balcão 263

inesgotável de pensar, um espírito que é puro dinamismo e fecundi-


dade.
0 desenvolvimento da física no século XIX mostrou que esta
ciência, através de sua expressão matemática, podia prever fenômenos
que ainda não tinham sido observados. Ao lado disso, sucederam-se
experimentos, cujo objetivo era submeter ao controle experimental
as hipóteses fundamentais das teorias. Havia na ciência uma troca
constante entre razão e experiência,
Brunschvicg, apesar de desenvolver uma filosofia de cunho ide-
alista, não pôde deixar de reconhecer o papel importante da ex-
periência para o desenvolvimento científico. Entretanto, apresenta
em suas obras conotações bem específicas à noção dé experiência.
Em Introduction a la vie de l'esprit, Brunschvicg mostra que o
método experimental usado na ciência, consiste na elaboração de
relações entre determinadas circunstâncias e certos fenômenos. Es-
sas relações são estabelecidas por um procedimento analítico, através
do qual se vai eliminando as circunstâncias consideradas irrelevan-
tes. Através do método experimental se decompõe o todo complexo,
proveniente da percepção em condições ideais e com a ajuda dessas
condições ideais, recompõerse fenômeno. Como esse processo se dá
no interior da razão, pode-se concluir que ele não difere da atividade
racional propriamente dita.
Nesse sentido, a ciência é resultado da atividade organizadora da
razão. Nesta mesma obra, Brunschvicg mostra de que forma se dá
essa atividade de organização para se chegar à constituição da ciência.
Num primeiro momento, as impressões do espírito são isoladas e
incoerentes. A razão, submetendo esse caleidoscópio confuso à har-
monia de um sistema ordenado, constitui o universo, considerando-o
como algo independente e exterior. Prosseguindo no trabalho de or-
ganização, a razão retoma as impressões, constituindo, desta vez,
relações inteligíveis. E a fase da ciência, na qual o espírito não se
satisfaz apenas em conhecer o universo como algo real, procura, além
disso, compreendê-lo como inteligível. As relações racionais, esta-
belecidas nessa fase devem, por sua vez, corresponder à harmonia
do universo construído por nós. 0 processo de busca dessa corres-
pondência constitui o método experimental, e, como já vimos, é um
prolongamento da própria atividade racional.
Coleção CLE V.11
264 Ciência Contemporânea

Analisando as revoluções científicas que marcaram o século XIX,


Brunschvicg constata que estas representara verdadeiros "choques"
bruscos, através dos quais o saber se refaz, modificando suas ba-
ses e contrariando princípios que antes pareciam sólidos. Por outro
lado, essa etapa do desenvolvimento científico constitui um avanço
em relação à etapa anterior, pois nas teorias surgidas no século XIX,
as relações inteligíveis foram refeitas, tornando-se mais complexas e
mais trabalhadas. Partindo desses fatos, Brunschvicg conclui que o
progresso da ciência não se faz por acúmulo de conhecimento. Res-
salta a descontinuidade do desenvolvimento científico, mostrando que
a ciência está sempre se refazendo num processo inacabado de cons-
tituição da verdade.
Afirmar que há progresso e admitir que o desenvolvimento da
razão é descontínuo, não é o bastante. A preocupação brunschvicgi-
ana é descobrir porque a razão nega os princípios por ela instituídos
anteriormente, e descobrir o que a torna descontínua, pois só assim
poderá compreender em que consiste fundamentalmente o progresso
da racionalidade científica.
Através de uma análise histórica da ciência, Brunschvicg mostra
que a trajetória progressiva do saber científico é resultado da função
analítica da razão. Com o uso do método de análise regressiva, a
razão se torna dinâmica, desenvolvendo-se através da elaboração de
relações cada vez mais complexas.
Para que se possa compreender melhor o que acabamos de dizer,
torna-se necessário esclarecer que a análise, à qual se referem os tex-
tos brunschvicgianos, não é a análise como divisão em partes, muito
usada na química, mas sim a análise dos geômetras que é, em última
instância, resolução em noções.
Nesse tipo de análise, o raciocínio é reduzido a um procedimento
regressivo, no qual as relações racionais são sempre fundamentadas
em princípios hipotéticos. Estabelece-se, assim, uma cadeia hierar-
quizada de hipóteses, na qual cada uma delas tem seu fundamento
na precedente. Na análise regressiva não há a preocupação de saber
se a hipótese é auto-sustentável, pois o importante é mostrar que a
conseqüência está em consonância com a hipótese proposta. Assim
sendo, a segunda parte do método de análise regressiva se caracteriza
por um procedimento sintético, através do qual a razão percorre o ca-
Coleção CLE V.11
Marly Balcão 265

mlnho inverso, atravessando toda a cadeia de princípios hipotéticos


até chegar a uma proposição já conhecida. Quando isso acontece ílca
constatada a validade da hipótese.
Conforme mostra Brunschvicg, o fato de trabalhar com relações
hipotéticas, permite à razão se desenvolver através da invenção de no-
vos princípios. Ao contrário do método dedutivo, no qual os passos do
espírito já estão pre-determinados como as peças de um mecanismo,
na análise, as etapas são sempre imprevisíveis.
Pode-se então concluir que para Brunschvicg a ciência é, em
última instância, uma construção analítica. Assim, o progresso de-
terminado pelas revoluções científicas do século XIX resulta da in-
tensificação do método analítico. 0 uso da análise assegura à razão
liberdade e fecundidade, na medida em que permite que esta se renove
inesgotavelmente,
Como pudemos ver, as mudanças ocorridas no interior da ciência a
partir do século XIX representam um avanço da racionalidade, pois as
novas teorias são mais abrangentes e complexas do que as anteriores.
Os textos brunschvicgianos referem-se também a uma outra forma
de progresso da razão que está ligada ao desenvolvimento da ciência.
Trata-se de um progresso para a interioridade. Brunschvicg defende
em suas obras um humanismo ético que mostra que o progresso da
ciência e, portanto, da razão leva cio desenvolvimento da consciência
moral. Através da ciência se alcança a consciência intelectual, na
qual se abandona a perspectiva individual e particular do universo,
na medida em que se estabelece uma teia de relações objetivas. Da
mesma forma, o exercício da reflexão nos faz alcançar a consciência
moral, na qual nos afastamos do centro puramente individual de nos-
sos desejos e interesses, adotando uma norma de reciprocidade que
ensina que "o homem deve aprender a se perceber a si mesmo do
ponto de vista do outro e a perceber o outro de seu próprio ponto de
vista" (Brunschvicg, s.d., p. 721),
Neste sentido, a ciência nos ensina a ultrapassar os limites de
nossa individualidade e a estabelecer um sistema correlativo de direi-
tos e deveres, que é a regra da justiça e o fundamento do amor.
Partindo da tese principal do humanismo ético brunschvicgiano
que afirma que o desenvolvimento da consciência moral está intima-
mente ligado ao progresso da ciência, somos levados a concluir que as
Coleção CLE V.11
266 Ciência Contemporânea

revoluções científicas que tiveram início no final do século XIX e que


representam, na ordem teórica, um avanço da racionalidade, podem
levar, na ordem moral, à construção de uma sociedade mais justa.
Gaston Bachelard, refletindo sobre as revoluções científicas con-
temporâneas, afirma que a função primordial da razão é retificar-se,
instaurando verdades sempre novas. 0 racionalismo bachelardiano
se impõe como filosofia aberta e ativa, pois exalta o dinamismo da
razão, evitando a segurança das certezas e a inércia dos princípios
absolutos.
Muitos epistemólogos e historiadores da ciência defendem a tese
de que o saber científico se desenvolve por um processo cumulativo
de conhecimento. Bachelard combate essa idéia, mostrando que o
desenvolvimento da ciência se faz através da retificação das teorias
anteriores num processo incessante de renovação.
Segundo o racionalismo bachelardiano, a ciência tem uma história.
Mas essa história se mostra como um constante recomeço, pois, para
se ampliar os quadros do conhecimento, é necessário recusar o passado
e retificar o saber anterior. Pode-se então afirmar que a tese da
descontinuidade do conhecimento científico vem a ser um dos eixos
centrais do pensamento bachelardiano.
Fazendo um corte na história, Bachelard se detém nas revoluções
científicas que começam a surgir a partir do século XIX. Mostra que
o aparecimento das geometrias não-euclidianas, da teoria da rela-
tividade e da mecânica quântica é uma demonstração do progresso
descontínuo da razão. Essas teorias se constituem a partir da negação
dos princípios das teorias anteriores. Representam, entretanto, um
avanço da racionalidade, na medida em que seus sistemas são muito
mais complexos e mais abrangentes do que os da ciência do passado.
A afirmação bachelardiana da descontinuidade do saber científico
não implica, pois, em negação do progresso. Bachelard enfatiza ao
longo de sua obra que o conhecimento científico segue uma raciona-
lidade cada vez maior. Nesse sentido,
a história das ciências é sempre descrita como a história de um pro-
gresso de conhecimento^ onde cada nova aquisição no campo do sa-
ber e cada revolução de idéias, vem demonstrar o quanto a ciência
anterior era ingênua e incompleta (BACHELARD, 1972a, p. 151).
Segundo Bachelard, a dialética interna do pensamento racional só
aparece, na verdade, no século XIX. Em L^ngagement rationaliste
Marly Bulcão 267

Coleção CLE V.11


afirma que Lobachewsky, dialetizando o pensamento geométrico, pro-
move a razão polêmica em razão constituinte. Não tem mais sentido,
então, cultivar a certeza de venerar princípios absolutos, a razão pre-
cisa se arriscar.
Conforme mostra Bachelard, a ciência surgida é a expressão de um
racionalismo que trabalha no pormenor, pois reconhece que é muito
mais fácil desfazer as formulações imprecisas num campo restrito do
saber.
Le nouvel esprit scientifique descreve em detalhes esse trabalho da
razão, mostrando como a descontinuidade surge no interior de cada
noção, obrigando que toda a teoria seja reconstruída. Analisando a
constituição das geometrias não-euclidianas e da teoria da relativi-
dade, mostra que essas teorias surgem da negação de princípios que
eram considerados absolutos pela ciência anterior. Polemizando as
noções de base da teoria científica vigente, Lobachewsky e Einstein
recusam o caráter de simplicidade dessas noções, tornando-as noções
complexas, elaborando, assim, novas teorias.
Polemizar uma noção, recusando-lhe o caráter de simplicidade,
significa introduzir em sua definição determinações experimentais.
Bachelard mostra que foi isso que ocorreu em relação à noção eu-
clidiana de paralela e à noção newtoniana de simultaneidade. Per-
dendo seu sentido absoluto, essas noções passaram a ser definidas
não só teoricamente mas também experimentalmente. O raciona-
lismo da ciência contemporânea é, pois, um racionalismo aplicado.
Dessa forma, cada noção passa a ter dois sentidos: um teórico e outro
técnico. Conforme mostra Bachelard, essa bicerteza é fundamental
para fazer da ciência um pensamento vivo em constante renovação.
Analisando as revoluções científicas contemporâneas, Bachelard
mostra também que a descontinuidade é profunda e total e ocorre
em todos os níveis. Há descontinuidade em relação ao conteúdo deis
teorias científicas que constituem retificação das anteriores, há des-
continuidade da razão, que modifica seus princípios à medida que a
ciência se renova, e há descontinuidade metódica, pois os métodos
também vão se modificando através do progresso. Para Bachelard,
a ciência se desenvolve num processo inesgotável de retificação dos
princípios que implica, num nível mais profundo, em renovação da
própria razão. Ao se transformar, a razão assimila novos métodos,
Coleção CLE V.11
268 Ciência Contemporânea

que, por sua vez, vão lhe dar mais vigor, estimulando, assim, seu di-
namismo. A ciência se desenvolve, pois, pondo em risco seus métodos
e a si própria.
Segundo Bachelard, um outro aspecto da ciência funcionou como
fator de dinamismo levando à renovação do saber. Admite que a par-
tir do século XIX a ciência foi se tornando cada vez mais materialista.
Para que se possamos compreender o sentido do materialismo ba-
chelardiano, torna-se necessário ressaltar, em primeiro lugar, que este
nada tem a ver com o materialismo tradicional defendido por algumas
doutrinas filosóficas. 0 materialismo científico, ao qual se referem os
textos bachelardianos, apresenta conotações bem específicas.
Conforme mostra Bachelard, a ciência contemporânea é materia-
lista porque impõe que o conhecimento se faça por um confronto com
o mundo, por um corpo a corpo, por um trabalho das instâncias
materiais. Neste sentido, não basta observar o mundo para co-
nhecê-lo. Torna-se necessário considerá-lo como resistência, como um
obstáculo a transpor. A ciência contemporânea, penetrando nas di-
versas instâncias materiais, dedicando-se às mesclas de substâncias,
nos permite alcançar a "consciência do trabalho", através da qual
nos sentimos como corpo e nâo apenas como espírito ou como puro
pensar.
0 materialismo presente na ciência da atualidade funciona, pois,
como fator de mobilidade e dinamismo. Neste sentido, o contato com
a materialidade é algo imprescindível na construção e renovação do
saber.
Pode-se então concluir que, para Bachelard, a retificação, a rup-
tura e o materialismo, foram as molas propulsoras do desenvolvi-
mento descontínuo que vem acontecendo na ciência desde o século
XIX. Não se pode esquecer, entretanto, que a descontinuidade re-
presenta um progresso efetivo. A racionalidade atual constitui um
avanço em relação ao passado, um avanço que marca a vitória da
razão num combate feroz com a tradição e na conquista de um saber
sempre jovem e atual.
Ao analisarem as revoluções da ciência contemporânea, um
mesmo projeto une Brunschvicg e Bachelard: o propósito de com-
bater as filosofias que defendem a idéia de razão absoluta, e que,
admitindo a imutabilidade das categorias racionais, impõem à razão
Coleção CLE V.11
Mariy Balcão 269

uma estrutura fixa. Esse projeto traz em si o desejo de elaborar uma


filosofia do pensar liberto e dinâmico que seja a expressão verdadeira
e fiel da razão descontínua que se esconde nas entrelinhas das teorias
científicas da atualidade.
Comparando suas análises, pode-se concluir, entretanto, que há
profundas divergências entre suas interpretações.
Brunschvicg constata a mudança, reconhecendo que a ciência
atual está vivendo uma "crise" que leva à revisão de seus pressu-
postos e à elaboração de novas teorias. Admite a descontinuidade da
razão cuja demonstração é a própria transformação ocorrida no seio
da ciência. A preocupação de Brunschvicg é, no entanto, descobrir
o que a faz descontínua. Para isso penetra no âmago da razão, bus-
cando discernir aí sua função primordial. Seu objetivo principal é
descrever em que consiste a função específica da razão. Fortemente
influenciado por sua formação matemática, aponta o método analítico
como o fator responsável pela característica dinâmica da razão. Para
Brunschvicg, a razão se renova e se refaz devido à sua capacidade
intrínseca de estabelecer relações. Num processo infindável de re-
lacionar juízos, a razão progride, instituindo sempre novas relações,
reduzindo-se, assim, em última instância, a essa atividade anah'tica
de pensar.
Bachelard constata a mudança e se surpreende pela novidade da
ciência atual. Penetra no pormenor da teoria e mostra como a razão
trabalha no detalhe da noção. Sua epistemologja é a descrição de um
trabalho, é a descrição de um instante vivido pela ciência num campo
restrito do saber.
Refletindo sobre a concepção de razão inerente a cada uma dessas
perspectivas, pode-se chegar a divergências mais fundamentais.
Para Brunschvicg, a razão, que tem sua expressão mais fiel na
ciência, manifesta-se como análise. E, portanto, de natureza ope-
ratória. No idealismo brunschvicgiano, a razão não é substancializada
e nem é um corpo de princípios. E atividade de pensar, e função de
resolução.
A concepção brunschvicgiana de razão traz implícita, porém, a
idéia de uma espiritualidade que se acresce e aprimora através da
escalada de etapas e obstáculos que se interpõem em seu caminho.
Neste sentido, a descontinuidade se dá, apenas, no invólucro exterior
Coleção CLE V.11
270 Ciência Contemporânea

da razão.
A afirmação da ligação entre consciência intelectual e consciência
moral tem também como fundamento a idéia de unidade espiritual,
impondo, mais uma vez, a concepção de uma razão que permanece
ao longo de um caminho que dura.
Em Brunschvicg, torna-se evidente a idéia de um espírito que, gal-
gando patamares, vai chegando à plena consciência de si. Neste sen-
tido, as transformações da ciência que constituem progresso efetivo,
representam, em última instância, um meio de crescimento espiritual.
Para Bachelard, só existe a razão expressa na ciência. Como o
saber científico está em desenvolvimento constante, pode-se dizer que
a história recorrente aponta uma sucessão de razões diferentes.
Por outro lado, a razão bachelaxdiana é uma razão "encarnada",
é uma razão humana, que emerge na polêmica da "cidade científica"
como resultado de um processo argumentativo e dialógico, cuja obje-
tividade advém do fato de instituir pensamentos que passaram pelo
crivo da argumentação, tornando-se, assim, rigorosos.
A razão bachelardiana é, também, uma razão que pensa através
da fina materialidade do instrumento e que se desenvolve através da
dialética com a experiência.
Neste sentido, as revoluções da ciência são manifestações de uma
razão que aparece fundamentalmente como trabalho.
No final do século XIX a ciência sofreu profundas transformações.
Brunschvicg, fundamentando-se numa filosofia, viu nas mudanças
ocorridas no interior da ciência um caminho pontilhado de etapas,
que leva ao progresso da racionalidade, e fundamentalmente ao apri-
moramento da consciência.
Bachelard, impondo-se como filósofo da ruptura e da desconti-
nuidade, desenvolve seu raciocínio livre de pressupostos éticos ou
filosóficos; só a prática científica o determina. Neste sentido, não
há etapas a vencer, não há metas a alcançar, mas apenas verdades
sempre novas, instantes vividos pela ciência que logo os supera.
Diz Brunschvicg:
Nosso destino é procurar aproximar nosso juízo de suas condições
de inteligibilidade, de maneira que ele possa mais e mais se fundar
sobre si mesmo e encontrar a unidade (1934, p. 243).

Diz Bachelard:
Coleção CLE V.11
Marly Bulcão 271

A razão, felizmente incompleta, já não pode adormecer na tradição.


Incessantemente necessita provar e provar-se. Está em luta com
os outros, porém principalmente com ela mesma. Desta vez tem
alguma garantia de ser incisiva e jovem (BACHELARD, 1972c, p.
18).

E, na luta consigo mesma, na retificação de seus princípios, na


reconstrução de suas malhas, a razão prossegue seu caminho de des-
continuidade e de progresso, recomeçando a cada instante numa de-
monstração de que é sempre mais capaz e mais poderosa.

Bibliografia

Bachelard, G. L 'activité rationaliste de laphysique contemporaine.


2. ed. Paris : P.U.F., 1965. 223 p.

. L'actualité de 1'histoire des sciences. In: L 'engagement ratio-


naliste. Paris : P.XJ.F., 1972a.

. L'engag€ment rationaliste. Paris : P.U.F., 1972b. 205 p.


(Coletânea póstuma).

. La philosophie du non: essai d'une philosophie du nouvel esprit


scientifique. 5. ed. Paris : P.U.F., 1970,145 p.

. La valeur inductivede la
1929. 256 p.

. Le nouvel esprit scientifique. Paris : Félix Alcan, 1934. 179 p.

. Le surrationaiisme. In: L^ngagement rationaliste. Paris :


P.U.F., 1972c.

Brunschvicg, L. Écrits philosophiques. Paris : P.U.F., 1951. 3v,

. Histoire et philosophie. In: Ecrits philosophiques. Paris :


P.U.F., 1951. 3v. V.2.

. Introduction à la vie de l'esprit. 3. ed. Paris : Félix Alcan,


1911. 175 p.

. La modalité du jugement. 2. ed. Paris : Félix Alcan, 1934.


243 p.
Coleção CLE V.11
272 Ciência. Contemporânea

. Les étapes de la philosophie rnathématique. Paris : A. Blan-


cliard, 1981. 592 p.

. Les progrès de la conscience dans la philosophie occidentale.


Paris : Presses Universitaires de France, s.d.
Coleção CLE V.11
18

O Caráter Intransparente da Filosofia em


Face da Objetividade Científica:
Processos e Paradigmas Segundo
a Teoria Crítica de J. Habermas

Marconi Pequeno

Este trabalho procura investigar as condições de possibilidade que


fecundam o solo de acomodação da filosofia na idade das ciências.
Em face da objetividade do mundo empírico-analítico, a filosofia não
só foi destituída de sua função de instância fundante, como se viu
obrigada a apresentar suas credenciais para justificar sua existência.
Descortina-se aqui o cenário para um novo questionamento, qual seja:
em que medida e a partir de qual situação as ciências podem pres-
cindir da aura crítica e problematizadora que acompanha o filosofar?
Notadamente, a reflexão filosófica, volatilizada no universo técnico
da razão instrumental, não deixou de existir, embora tenha se confi-
nado em sistemas que perderam sua importância do ponto de vista
teórico-especulativo. Neste labirinto de caminhos, convém que ressal-
temos, pois, a urgente necessidade de revisitar esta problemática, uma
Vez
que as motivações que engendram a índole positivista da práxis
científica tende sempre, com acentuada eficácia, a estreitar as vias
Coleção CLE V.11
274 J. Habermas

possíveis de manifestação do pensamento filosófico em sua fase pós-


metafísica1. Todavia, cabe indagar: como recompor as pretensões de
validade da filosofia diante do alcance e da onipresença do discurso
tecnocrático? A partir de quais variantes torna-se possível conferir
à filosofia o papel de guardiã da racionalidade em meio à perda do
estatuto de cidadania do paradigma da consciência e da entrada em
cena de um novo conceito de razão? Qual o papel que se oferece
às ciências bistórico-hermenêuticas, que tipo de interação as mesmas
mantêm com a filosofia e quais as articulações que ambas podem
instituir com o arcabouço lógico-analítico das ciências formais? No
cotejo dessa atmosfera proteiforme, a questão que envolve o habitai
da filosofia, que, aliás, se viu expulsa do paraíso das ciências, encontra
ressonância na teoria crítica de um pensador notadamente contem-
porâneo deste dilema: Jürgen Habermas2.
A proposta de redesenhar o espaço da filosofia frente aos diversos
apelos de fundamentação que ainda regem sua trajetória no mundo
atual, aproxima Habermas do universo efervescente das discussões
que, sempre capitaneadas pela filosofia das ciências, ora buscam en-
quadrá-la dentro das premissas de um enfoque histórico metafísico,
ora tentam recompor, partindo de seus próprios pressupostos, sua
tão denunciada fragmentação. Num ensaio intitulado Motiv Nach-
metaphysisches Denken (Motivos de pensamento pós-metafísico), Ha-
bermas estrutura sua abordagem sob o horizonte de uma constatação
óbvia: a situação da filosofia em face deis ciências tornou-se ininte-
ligível (o termo por ele empregado é Unuebersichtlichkeit)3. Antes,
porém, de delimitarmos as fronteiras desta intransparência, tentare-
mos seguir a trajetória da filosofia em seu traçado originário a fim de
melhor caracterizar os contornos rarefeitos de seu novo perfil.
Sabemos que, em sua nascente, o pensamento filosófico, fazendo
jus à sua índole metafísica, ordena-se mediante o discurso da iden-
tidade, a doutrina das idéias e, posteriormente, através do con-
ceito forte de teoria. Tais marcos constituem o corpus teórico de
1
Sobre a relação entre a íilosoiia e as ciências, ver o interessante estudo de
LADRIÈRE, 1978.
2
Um dos pontos fundamentais da analítica habermasiana consiste em restaurar
a dimensão prática da filosofia. Sobre isso ver INNERARITY, 1985.
3
Este termo é explicado pelo Prof. Carlos Alberto M. Novaes que traduziu o
artigo de HABERMAS, 1987, p. 103.
Coleção CLE V.11
Marconi Pequeno 275

uma tradição que abrange desde Parmênides, passando por Platão,


Aristóteles, Plotino até Kant, Fichte, Schelling e Hegel. Poder-se-ia,
ademais, afirmar que mesmo as inúmeras tentativas de redimensiona-
mento de tais pressupostos, como ocorreu com o nominalismo, o ce-
ticismo e o empirismo moderno, permanecem como que ainda vincu-
lados ao horizonte de possibilidade da própria tradição. Isto significa
que a plena articulação entre aquelas três esferas - ser, idéia e teoria
- constituem a alavanca que impulsiona o movimento da história das
idéias, servindo, com efeito, de garantia à construção de um manan-
cial de categorias igualmente compartilhado por todos os matizes do
pensamento. Se, contudo, este quadro sofrerá uma profunda refração
quando por ocasião da emergência do subjetivismo moderno, a ins-
tauração deste novo paradigma - o da subjetividade consciente - não
conseguiu redimir a reflexão filosófica de seu saudosismo metafísico,
isto porque, no cerne dessa mudança, a autoconsciência, que traduz
a relação do sujeito consigo mesmo, é alçada à condição de fonte
espontânea de realizações transcendentais, ou, então, é concernida,
como Espírito, à categoria de Absoluto, da forma como nos revela o
idealismo de linhagem hegeliana. Para Habermas,

a filosofia idealista renova a ambos, o pensamento da identidade e a


doutrina das idéias, na base da subjetividade, entrevista no momento
da passagem do paradigma da ontologia para o do mentalismo... No
idealismo alemão, o pensamento metafísico assume a figura de te-
orias da subjetividade... As substâncias ideais transformam-se nas
determinações categoriais de uma razão produtora, de tal modo que
agora, numa peculiar guinada reflexiva, tudo é referido ao uno da
subjetividade produtora (HABERMAS, 1989c, p. 28).

Em face dessas considerações, nos afigura garantir que, em ambos


os casos, a razão, enquanto instância fundante totaüzadora e auto-
referente, não consegue fugir à sua destinação natural: sua démarche
permanece alimentada pelo monismo, isto é, pela nostalgia do ab-
soluto. Esta pseudoruptura, aliada à exacerbação do privilégio da
teoria frente à práxis, tão somente contribuiu para selar a supre-
macia idealista do uno, do geral e do necessário, ou, em linguagem
habermasiana,
a razão assume a herança da metafísica na medida em que garante
o primado da identidade frente a diferença e a precedência da idéia
frente à matéria (HABERMAS, 1989c, p. 28).
Coleção CLE V.11
276 X Habermas

Tudo se passa, pois, como se a crise da metafísica, em sua ma-


nifestação endógena, não conseguisse ultrapassar os limites impostos
por ela própria. Por conseguinte, se a constituição de um novo para-
digma possibilitou pelo menos ressaltar a mudança de enfoque pela
qual passaram os momentos anteriormente citados, a recuperação das
modalidades do pensamento tradicional serviu inclusive para delimi-
tar os contornos, o alcance e a amplitude de uma subjetividade que,
de antemão, sabemos, já nos surge comprometida com a preeminência
do ser e da idéia. De qualquer forma, este quadro, ao que parece, con-
tribuiu para ampliar a discussão acerca de qual o papeTque deve caber
ao sujeito cognoscente no contexto dessa mudança, haja vista que a
dicotomia essência-aparência, antes confinada na totalidade do ente,
fora substituída, quando por ocasião da separação entre ciências da
natureza e ciências do espírito, pela contraposição entre subjetividade
e objetividade. Paralelamente a este redimensionamento, a filosofia,
vendo-se pouco a pouco destituída de sua santidade canônica, trouxe
para si a eminente função de instância catalizadora do conhecimento
científico. Vejamos qual a força deste novo atributo.
Numa conferência pronunciada no Congresso da Associação
Hegeliana Internacional e que, por sinal, constitui o primeiro
capítulo de sua obra Moralbewusstsein und Kommunikatives Han-
deln (Consciência moral e agir comunicativo), Habermas se vale de
alguns pressupostos que, segundo ele, caíram em desuso, para, em
seguida, constatar o caráter incipiente de fórmulas e noções que ten-
taram confinar a filosofia em redomas protegidas ostensivamente pelo
objetivismo. No referido texto, que se intitula Die Philosophie ais
Platzhalter und Interpret (A filosofia como guardador de lugar e como
intérprete), Habermas inicialmente remonta ao pensamento moderno
lançando luz sobre a filosofia kantiana4. Kant, Diz ele: ao instituir
as bases de sua crítica à metafísica, conferiu à filosofia o papei de
mantenedora dos espaços que posteriormente seriam ocupados pelas
ciências. Nesse novo cenário, o saber filosófico passaria a definir as
condições de possibilidade do conhecimento científico. Acontece que
esta pretensão, anuncia Habermas, extrapolou os limites e, porque
não dizer, as próprias motivações da especulação filosófica, não so
porque faltou-lhe força de sustentação, mas, também, pelo fato de a

4
A respeito da discussão de Habermas com o kantismo, ver GABÁS, 1980.
Coleção CLE V.11
Marconi Pequeno 277

filosofia transcendental não se esgotar na teoria do conhecimento; ela


possui uma dimensão prática mediante a qual acede a tematização de
questões ligadas à moralidade, à liberdade e às formas de construção
do universo cultural. Nessa perspectiva, estão apontados pelo menos
dois motivos mediante os quais a missão da filosofia tornou-se inócua.
Em primeiro lugar, convém salientar que:
quando a ülosoãa se presume capaz de um conhecimento antes do
conhecimento, ela abre entre si e as ciências um domínio próprio
do qual se vale para exercer funções de dominação (HABERMAS,
1989c, p. 18).

Ora, mas se sabemos que Kant estabelece uma clivagem entre as


faculdades cognitivas da razão pura e as formas de atuação de uma
outra modalidade de razão que age e julga conforme os fundamentos
que lhe são inerentes, como, então, encontrar a unidade da razão na
multiplicidade de suas vozes? Ou, ainda, qual o viés e a faixa limítrofe
que separam a razão autodenominada "fundamentum veritatis^ das
ciências daquela que interage no contexto do Lebensweltl Poder-se-ia
oferecer como resposta o fato de a razão surgir como uma reflexão ao
mesmo tempo totalizadora e auto-referente que resiste em abandonar
sua postura fundamentalista. Habermas, aliás, anuncia que:
com a análise dos fundamentos do conhecimento, a crítica da razão
pura assume também a tarefa de criticar os abusos de uma facub
dade cognitiva que, em nós, está talhada à medida dos fenômenos.
Kant coloca no lugar do conceito substancial de razão da tradição
metafísica o conceito de uma razão que se dividiu em seus momentos
e cuja unidade, de agora em diante, só tem caráter formal (HABER-
MAS, 1989a, p. 18).

Não obstante esta separação, a filosofia permaneceu arbitrando


os diferentes domínios da cultura ao se colocar como juiz que indica
soberanamente qual o lugar que concerne às ciências, à moral e às
artes. Mas, antes de cumprir todas as suas prerrogativas, o logocen-
trismo é destronado de seu caráter de originariedade fundante por
conta de uma série de fatores. Tentemos perscrutar alguns.
0 pensamento totalizador é posto em questão pelo formalismo
que, no século XVII, iria envolver a teoria moral e o direito, pelo novo
tipo de racionalidade metódica que se impõe no século XVIII no bojo
das ciências experimentais da natureza e, finalmente, pelo surto das
ciências humanas acontecido no século XIX que tornaria a razão uma
Coleção CLE V.11
278 J. Habermas

espécie de ponto de fusão das esferas do objetivo, do subjetivo e do


social5. Nesse desiderato, a recorrência originária a uma nova base de
sustentação tornou-se, senão anacrônica, pelo menos de inferior im-
portância já que amoral, as artes e sobretudo as ciências, tornaram-se
universos insulares dos quais se pôde depreender um grau de auto-
nomia razoavelmente satisfatório para abrir mão de um sustentáculo
filosófico. Eis aqui uma das motivações que delimitam o horizonte
de tal intransparência. Esta, aliás, expandiu-se com extrema desen-
voltura uma vez que tanto as iniciativas de recomposição quanto de
crítica do solo metafísico da filosofia foram malogradas, posto que
se faziam sustentar na própria incompietude de seus pressupostos.
Em outras palavras, as críticas dirigidas à tradição desde Nietzsche
passando por Heidegger até Foucault são incipientes por se alojarem
no interior de cosmovisões fechadas, passando, em seguida, a se ali-
mentar de fragmentos teóricos extremamente suspeitos do ponto de
vista especulativo6. Noutra esfera, a reflexão filosófica viu-se condu-
zida à inquietante missão de se autoiegitimar mediante a instauração
de métodos e objetos específicos de investigação, como no caso da
fenomenologia husserliana e de alguns estudos propedêuticos de fi-
losofia analítica. Alimentando-se dessa incompietude, a filosofia ora
se viu deflacionada pelos arroubos do irracionalismo, ora foi tomada
de empréstimo pelos críticos do conhecimento científico, porquanto
neste interregno ela tournou-se, diz Habermas,

iluminação da existência (Jaspers), mito complementar das ciências


(Kolakowsky), pensamento místico de ser (Heidegger), atividade
desconstrutiva (Derrida) ou dialética negativa (Adorno) (HABER-
MAS, 1989c, p. 33).

Todos esses esforços tiveram como objetivo dizer o que é e o que


pretende ser a filosofia já que, na qualidade de não-ciência, a mesma
precisava manter o seu status indeterminado. Acrescente-se a isto o
fato de a racionalidade que engendra o conhecimento científico ter
se transformado em ideologia no momento mesmo em que se impôs
como a única forma possível de conhecimento, que, na ânsia de inter-
pretar e manipular a natureza, acabou por objetivar o saber através
5
Estas regiões correspondem, respectivamente, aos domínios dos objetos, das
vivências e sentimentos e, finalmente, das normas e instituições.
6
Sobre esta incompietude ver ROUANET, 1987.
Coleção CLE V.11
Marconi Pequeno 279

de uma técnica auto-regulada. Assim, como nos lembra Marcuse, a


ciência tornou-se instrumento a serviço de um mundo determinado,
que detém o controle, a quantificação e a dominação do real7. A re-
boque de toda essa incontida virtualidade, o conhecimento empírico-
analítico hipostasiou a auto-reflexão acerca da univocidade de seus
princípios, ao mesmo tempo em que alimentou o mito da neutrali-
dade axiológica daqueles que constróem seus fundamentos e agem
motivados pelas suas leis. 0 caráter hegemônico da razão instru-
mental em seu modus operandi, tornou, assim, o papel da filosofia
ainda mais difuso. Porém, mesmo em meio a perda de sua ipseidade,
alerta Habermas, o pensamento filosófico jamais se desviou do tema
da racionalidade, nem, tampouco, se furtou ao papel de mediador
privilegiado que tenta superar os argumentos de autoridade, a cul-
tura de especialistas e o discurso tecnicista. E tão somente por esta
via coadjuvante que a filosofia pode ocupar seu novo locus.
Habermas encontra em Richard Rorty um aclaramento das vias
de problematização acerca do espaço da filosofia face ao surgimento
das ciências modernas. Nesse ponto, ele concorda que a mesma deve
abdicar de sua função de guardiã da pluridimensionalidade do mundo
científico. Todavia, ainda que o pensamento filosófico deva abando-
nar a sua postura de guardião da racionalidade, ele pode e precisa
conservar sua pretensão de razão nas funções mais modestas de ca-
talisador e de intérprete. Isto contribui para torná-lo uma espécie de
aglutinador capaz de avizinhar as várias ciências como se fosse uma
malha interdisciplinar, Esta relação, além de livrar a filosofia de seu
peso metafísico, tornaria mais plausível sua postura de instância re-
guladora das interrelações entre os diversos sistemas epistêmicos que
vigoram no mundo atual. Não se arrogando mais o papel de tribunal
da razão, como acontecia em Kant, ela se contentaria com a modesta
função de lugar-tenente (Platzhalter), a partir de onde as ciências po-
dem se reordenar mediante as bases racionais manifestas sempre por
intermédio de uma determinada linguagem. A contextualização desse
novo caminho demonstra claramente que as ciências recusam o a pri-
ori transcendental que outrora se dizia embalar seus fundamentos em
troca de um consenso {Verstãndingung) sobre o caráter próprio de

7
Aceica do caráter instrumental/sistêmico da razão, ver ADORNO A
HORKHEIMER, 1969.
Coleção CLE V.11
280 J. Habermas

suas leis e de sua aplicabilidade na vida prática. A filosofia, ampli-


ando as veredas de acesso a esta nova racionalidade em seu solo mul-
tidiscipiinar, irá, pois, facilitar o entendimento das ciências empírico-
analíticas com as outras modalidades de conhecimento. Entretanto,
não é de somenos importância recuperar alguns pontos importan-
tes desta perquirição habermasiana indagando acerca das seguintes
questões: é possível encontrar traços de fundamentalismo nesta pro-
posta de Habermas? Em que sentido a filosofia pode dialogar com as
ciências lógico-formais mantendo isenção e imparcialidade diante dos
desdobramentos e do alcance do seu aparato técnico-instrumental? A
resolução deste impasse segue a direção de uma pragmática lingüística
que, segundo Habermas, conferiria à filosofia uma nova posição em
face da ratio cognoscendi que rege as estruturas do mundo sistêmico.
Contudo, esta passagem não se fez de modo tão direto e natural.
Em razão de sua constituição eminentemente semântica, esta gui-
nada lingüística, comenta Habermas, ignorou, ao surgir, a tessitura
intersubjetiva reinante no universo das interações dialógicas. Haber-
mas encontra desde Frege, passando por Freud, Piaget e Saussure
indicações que demonstram o interesse de tais pensadores pelo tema
da linguagem. Esta mudança superou até mesmo aquilo que ele deno-
mina de abstrações estruturalistas que conduziam as formas anônimas
da linguagem a uma categoria transcendente8. Porém, esta tentativa,
diz ele, não conseguiu revelar nada além do seu esforço analítico, quer
dizer, não foi capaz de oferecer uma compreensão pertinente para os
procedimentos lingüísticos que regem o Erlebnis, isto é, o espaço vi-
tal das interações cotidianas. A despeito da falta de tangência das
tentativas de recuperação da linguagem que o antecederam, Haber-
mas pretende, ao constituir a nova morada da filosofia, mostrar que
internamente teria as mesmas condições de se livrar de sua fremente
pulsão metafísica tornando-se apta a realizar a função de mediatriz
dos pontos eqüidlstantes do conhecimento científico. Além do que,
isto poderia justificar a dereliçâo do primado clássico da teoria frente
à práxis, possibilitando, na mesma medida, ordenar as esferas de
revelação da racionalidade do juízo e da experiência, da ação e do
s
Seguindo a trilha do positivismo, vemos que a linguagem se reduz a um sis-
tema de enunciados estruturados logicamente. Esta tendência se manifesta, por
exemploj em Carnap que enfatiza as propriedades semânticas e sintáticas das
formações lingüísticas (cf. CARNAP, 1967).
Coleção CLE V.11
Marconi Pequeno 281

entendimento lingüístico. Não mais podendo entrar em cena como


uma figura-cliave {Schulüsselatituden), já que deixou de ser solução
para os enigmas do mundo, a filosofia seria levada a manter um outro
tipo de convivência com as ciências particulares, qual seja: aquela
norteada pela cooperação mútua. 0 novo liame interposto pela sim-
biose entre filosofia e ciências permitiria que, por este novo caminho,
a razão se manifestasse em suas múltiplas tonalidades. Mas uma
razão pluralizada em inúmeros contextos poderia ainda preservar de
alguma forma sua unidade?
Convém ressaltar que esta teoria visa, dentro de uma perspectiva
crítica, conferir organicidade e coesão ao logos, compreendendo-o não
como uma matéria inerte, mas como um equilíbrio em movimento.
Portanto, para Habermas, a razão, versatilizada pela práxis comuni-
cativa, não só prescinde de um a transcendental, como, ade-
mais, se firma como resultante de um sem-número de determinações,
onde seu mais elevado papel é o de intérprete hermenêutico interes-
sado em recuperar os vínculos entre a unidade e a universalidade
constatáveis nos diversos fragmentos a que foi reduzido o mito da
consciência objetiva.
Ao resguardar os espaços de manifestação da racionalidade
através da cooperação multidisciplinar, a filosofia cria, pois, um ante-
paro contra o avanço colonizador das formas de atuação dos sistemas
não comunicativos. Com isso, ela rejeita um posicionamento pura-
mente crítico, dialético-negativo, reacendendo, ao mesmo instante,
a centelha de mediação entre as culturas insulares dos especialistas
de plantão e a diversidade de vivências que habita q universo comu-
nitário.
A cooperação entre a filosofia e as demais ciências é concernente
a dois planos. Primeiramente há aquele no qual se situa o conheci-
mento empírico-analítico e, em seguida, há o plano que representa as
ciências histórico-hermenêuticas. Se, pois, a filosofia não organiza o
mundo das ciências e sim orienta o entendimento multidisciplinar en-
tre elas, disso se pode inferir que sua função é confrontar os conteúdos
utópicos, normativos e emancipatórios que movem cada uma das esfe-
ras do conhecimento científico. Talvez seja esta a única via exeqüível
de reconduzir a filosofia à rota do Aufklãrung, esclarecimento este que
nada mais significa do que uma racionalidade alicerçada no procedi-
Coleção CLE V.11
282 J. Habermas

mento argumentativo. Numa entrevista concedida a Bárbara Frei-


tag (1989b, p. 5-21), Habermas assevera que a filosofia não deveria
esquivar-se de uma certa divisão de trabalho no campo que lhe é
próprio, ou seja, no estudo das condições gerais do conhecimento, da
linguagem e da ação, com certas ciências empíricas que se ocupam,
de um outro ângulo, da mesma problemática da racionalidade. Desse
modo, a filosofia cumpriria melhor sua índole se estabelecesse com as
ciências interessadas nas questões de formação de juízo, de aquisição
de linguagem e de competência para ação, uma nova via de entendi-
mento, a fim de reconstruir os pressupostos gerais e necessários tanto
do discurso argumentativo como da experiência vivida e do pensa-
mento objetivante.

Lista Bibliográfica

Adorno, T. & Horkheimer, M. Dialetik der Aufklãrung. Frank-


furt : Verlag, 1969.

CARNAP, R. The Logical Structure of the World. [S.I.] : Routledge


& Kegan Paul, 1967.

GabÁS, C. J. Habermas: domínio técnico y comunidad lingüística.


Barcelona: Ariel, 1980.

Habermas, J. A nova intransparência: a crise do estado de bem-


estar social e o esgotamento das energias utópicas. Trad. por
C. A. M. Novaes. Novos Estudos CEBRAP, v. 18, p. 103,
1987.

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Gallimard, 1976c, (Título original: Erkenntnis und Interesse).

. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. por G. A. de


Almeida. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1989a, (Título
original: Moralbewusstsein und Kommunikatives Handeln).

. Entrevista ò B. Freitag. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, n.


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. Motivos de pensamento pós-metafísico. Trad. por F. B.


Siebeneichler. Rev. Fil. Brasileira, n. 4, p. 28, 1989c. (Título
original: Motiv Nachxnetaphysisches Denken).

INNERARITY, D. Praxis e intersubjetividad: la teoria critica de J.


Habermas. Pamplona : EUNSA, 1985.

LADRIÈRE, J. Filosofia epráxis cientifica. Rio de Janeiro : Francisco


Alves, 1978.

RoUANET, S.P. As razões do iluminismo. São Paulo : Companhia


das Letras, 1987.
Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
ParteVIII

* O Nascimento da Mecânica

Quântica e da Cristalografia

* Evolução da Análise
Dimensional
Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
19

Planck e o Nascimento da Mecânica Quântica:


Sugestões para Estudo de Condicionantes
Históricos Recentes

Roberto Cintra Martins

1. Introdução
Os fundamentos histórico-filosóficos da chamada Física Moderna
têm sido primordialmente referenciados à Filosofia Natural da An-
tigüidade Clássica e à chamada Revolução Científica dos séculos XVI
e XVII1.
1
Para um detalliamento, ver HEISENBERG, 1979; VON WEIZSÃCKER, 1979
e BURTT, 1983,
Os termos "Revolução Científlca5,, "Física Clássica" e "Física Moderna" serão
aqui utilizados em seu significado corrente, abstendo-se portanto o autor de proble-
matizar se, a rigor, não mereceriam reparo por induzirem a incorreções históricas.
No entanto, reconhece-se como no mínimo questionável a denominação "Revolução
Científica" para um amplo movimento que trouxe em seu bojo transformações
radicais não só a nível científico, como também econômico, político, ético e reli-
gioso. Por outro lado, os termos "Clássica" e "Moderna", na História da Física,
são normalmente referenciados a paradigmas que emergem em movimentos que
se caracterizam por uma ruptura, respectivamente, com as concepções de mundo
prevalecentes na Antigüidade Clássica e na Modernidade do Renascimento e do
Barroco. Denominaremos portanto, na forma corrente, como "Física Clássica" ao
paradigma newtoniano, que preferiríamos chamar "Física Moderna" e denomina-,
remos "Física Moderna" ao paradigma quãntico e relativístico, que preferiríamos
chamar "Física Pós-Moderna".
Coleção CLE V.11
288 Planck e o Nascimento da Mecânica Quântica

Assim, as origens da chamada Física Moderna são remetidas, com


freqüência, ao período conhecido como da progressiva superação do
paradigma da Mecânica Newtoniana, legado final da referida "Re-
volução Científica".
Entre os novos "fatos da experiência" do final do século XIX,
indicativos do esgotamento do paradigma newtoniano, estão experi-
mentos ligados à geração, transferência e absorção da radiação ele-
tromagnética. Aqui, é na interface da Mecânica Newtoniana com o
Eletromagnetismo e a Termodinâmica do século XIX que se irão lo-
calizar as "cunhas" nas rachaduras do edifício da chamada "Física
Clássica", como por exemplo no estudo da relação entre energia e
freqüência de radiação.
Assim é que um experimento, uma data e uma pessoa ficaram
historicamente registrados como indicadores da "hora de nascimento"
da Mecânica Quântica.
Entretanto, décadas antes da última virada do século, as
evidências experimentais conhecidas a respeito da radiação de cor-
pos aquecidos já não podiam mais ser inteiramente explicadas pela
"Física Clássica", chegando-se a contradições cada vez mais graves
entre a teoria e tais evidências. Levantavam-se assim obstáculos de
difícil senão impossível superação para o impulso da "Física Clássica"
em abranger em seu território de explicação aspectos cada vez mais
gerais e abrangentes do conhecimento sobre a Natureza e o Homem.
A inclusão de "tudo" no "mundo explicado" do mecânico encontrava
aqui portanto os primeiros sinais de seus limites.
No ano de 1900 Max Planck obtém uma fórmula de excepcio-
nal aderência aos resultados experimentais nesse campo, sob a su-
posição de que a matéria somente pode emitir ou absorver energia
em quantidades discretas, múltiplas de uma quantidade elementar,
proporcional à freqüência de radiação: postulava-se aqui a existência
dos "quanta" de energia. A constante universal de proporcionalidade
aqui implicada virá a ser conhecida pelo nome de Planck, devido
ao significado radicalmente novo que ele lhe atribui. A importância
histórica desta atribuição de significado "planckiano" à constante
de proporcionalidade entre "quantum" de energia e freqüência de ra-
Coleção CLE V.11
Roberto Cintra Martins 289

diação será decisiva: o ano de 1900, no qual Planck publica suas novas
concepções, é hoje considerado a "hora de nascimento" da Mecânica
Quântica.
O estudo dos antecedentes imediatos desta descoberta, que re-
montam a meados do século XIX, podem nos revelar alguns de seus
condicionantes, bem como nos "falar" da postura de Planck enquanto
pesquisador reverente à tradição de seus mestres, que se viu con-
tingenciado a superá-los em seus esforços de busca de explicações
"clássicas" para fatos da experiência.

2. A polêmica em torno do espectro de radiação do corpo


negro no final do século XIX

Já em 1859, ano seguinte ao do nascimento de Planck, G. R.


Kirchhoff formula a lei de radiação conhecida por seu nome: "A
relação entre capacidade de absorção e de emissão da radiação ele-
tromagnética é independente do material e é somente função da tem-
peratura e da freqüência de radiação"2.
G.R. Kirchhoff mostrou que em uma cavidade com paredes
metálicas refletoras, mantida a temperatura homogênea, isto é, em
um chamado "corpo negro", a distribuição da intensidade de radiação
eletromagnética por freqüência, volume e tempo (espectro de ra-
diação) pode ser definida exatamente por uma única função analítica
9{f,T) que depende somente da freqüência f e da temperatura T. A
função g{f, T) independe da natureza físico-química dos corpos en-
volvidos e tem portanto caráter universal, podendo ser medida por
uma abertura bem pequena na parede da cavidade. G.R. Kirchhoff
não explicita, entretanto, a forma analítica de g{f,T).
No final do século XIX, com o avanço das técnicas de espec-
trografia, surgem numerosas proposições para a forma analítica de
g{f,T), todas ainda insuficientes e "aderentes" apenas a partes limi-
tadas das curvas espectrais levantadas empiricamente. Assim, a par-
tir de 1895, O. Lummer e W. Wien realizam experimentos com corpos
negros no Instituto Físico-Técnico Imperial ("Physikalisch-Technisch
2
Paia a descrição "internalista" dos fatos da experiência e da teoria, baseamo-
nos aqui em BRACHNER, HARTL ti HLADKY, 1987, em SEGRÈ, 1980 e em
TIPLER, 1981. Para fatos da vida de Planck, principalmente em HEILBRON,
1988 e em SEGRÈ, 1980.
Coleção CLE V.11
290 Piancic e o Nascimento da Mecânica Quántica

Reichsanstalt") em Berlim, obtendo medidas para g{f,T). Com base


nessas observações, W. Wien propõe em 1896 uma forma analítica
para a função g{f, T), aplicando aqui proposições sugeridas por A.
A. Michelson.

g{f,T) = a/3e-WT

onde
/ = freqüência de radiação
T = temperatura absoluta
a, 6 são constantes a determinar experimentalmente.

Esta proposição de Wien teve grande aceitação ao final do século


XIX, inclusive por parte de Max Planck, mas revelou-se incoerente
com os dados experimentais para radiações de baixa freqüência, fato
este conhecido como a "catástrofe do infravermelho".
Entre as alternativas à fórmula de Wien cabe mencionar a de
J. W. S. Rayleigh (1900) e J. H. Jeans (1905), obtidas mediante a
rigorosa aplicação de conceitos da "Física Clássica":

SnkT f 2
Í7(/,T) =
c3
onde
k = constante de Bolzmann
c = velocidade da luz no vácuo.

Ao contrário da fórmula de Wien, a de Rayleigh-Jeans mostrou-se


bastante aderente aos dados experimentais na faixa do infravermelho,
mas fracassou na região de altas freqüências. Além disso, ela admite
que a energia irradiada pelo corpo negro cresce ilimitadamente com
a temperatura, o que entra em contradição com a previsão de Wien.
O esforço em compatibilizar as diferentes formulações da época
e construir uma solução intermediária, através da proposta de uma
fórmula de interpolação, é uma componente importante da contri-
buição imediatamente posterior de Planck, e nos mostra algo de sua
personalidade conservadora e avessa a conflitos. Como em muitas
ocasiões, Planck irá procurar aqui preservar as interpretações dé seus
antecessores, acatando sua legitimidade, esclarecendo seus limites de
Coleção CLE V.11
Roberto Cintra Martins 291

validade e propondo uma fórmula mais geral e abrangente, em um


gesto de reverência à tradição e à memória de seus mestres. Se através
desse esforço e desta ordem de motivações Planck irá chegar a uma
das descobertas mais radicais e decisivas da História da Física, isto
servirá para caracterizar seu estilo, sua personalidade e sobretudo seu
destino como os de um "revolucionário contra a vontade", nas pala-
vras de H. Segre3.

3. A contribuição de Planck e o nascimento da Mecânica


Quántica
É a partir da polêmica em torno do espectro de radiação do corpo
negro que Planck irá chegar até à concepção do "quantum" de energia
e assim fundar a Mecânica Quántica. A forma peculiar, quase invo-
luntária, com que o conservador Planck ousa este passo revolucionário
para a Física e para a visão de mundo da cultura ocidental pode ser
melhor entendida se atentarmos antes para as palavras iniciais de sua
autobiografia:
O que me entusiasmou para minha Ciência é o fato não evidente
de que leis do nosso pensamento coincidem com as regularidades no
3
Cl. SEGRÈ, 1980, em especial o capítulo IV.
O "estado da arte" logo antes da contribuição "unificadora" de Planck pode ser
expresso por diferentes proposições para a forma analítica de y(A,T), dadas pela
expressão:
g(X,T) = aTs-mx-m

onde as proposições mais aceitas no final do século XIX podem ser resumidas na
tabela a seguir:

m n
Wien 5 1
Rayleigh 4 0
Thiesen 4,5 1
Lummer, Jahnke 5 0,9
Lummer, Pringsheim 4,0 1,2 ou 1,3

Trata-se aqui de diferentes tentativas de expressar curvas empíricas analítica-


mente. No entanto, tais formulaçõe8vcontendo expoentes "quebrados", não eram
aceitas como expressão de uma lei natural fundamental: Kirchhoff estava con-
vencido de que a função procurada "é sem dúvida de forma simples, como são
todas as funções que independem das propriedades particulares de cada corpo"
(Cf. KIRCHHOFF, 1860, p. 275-301; citado em SCHÓPF, 1978).
Coleção CLE V.11
292 Planck e o Nascimento da Mecânica Quântica

desenrolar das impressões que nós recebemos do mundo exterior, e


que portanto é possível ao Homem alcançar conclusões sobre tais
regularidades através de puro pensamento. Aqui é de significado
essencial que o mundo exterior nos apresente algo independente de
nós, absoluto, diante do qual nos situamos, e a busca das leis válidas
para esse absoluto pareciam-me a mais bela tarefa científica na vida.4

No mesmo texto, Planck refere-se mais adiante explicitamente à


motivação que o levou a estudar o espectro de radiação do corpo
negro:
... eu tive minha atenção voltada para a lei de Kirchhdff... a ra-
diação. .. independente da constituição dos corpos mas somente da
temperatura. O chamado espectro normal de energia apresenta por-
tanto algo absoluto, e como a busca do absoluto sempre me pareceu
a tarefa mais bela da pesquisa, eu me dediquei entusiasticamente a
esse trabalho5.

Com base na lei geral proposta por Kirchhoíf e na concepção


de Maxwell e Hertz da radiação eletromagnética, Planck propõe um
modelo para o estudo do espectro de radiação do corpo negro: um sis-
tema composto de N osciladores elétricos idênticos de autofreqüência
f. As características físico-químicas dos osciladores não são conside-
radas relevantes, dado o caráter universal da lei de Kirchhoíf.
Planck parte das diferentes fórmulas empíricas então conhecidas
(cf. nota 3) e é plausível que a aparente incompatibilidade entre elas
e a insuficiência de cada uma em particular tenha incentivado a sua
busca de uma fórmula geral.
No entanto, em seu método Planck irá divergir da maioria de seus
contemporâneos. Ele não vai buscar diretamente corrigir as fórmulas
empíricas, mas irá tratar o problema através de uma perspectiva mais
fundamental e abstrata, ou seja, considerando as equações diferenciais
que, em seu modelo, relacionam energia média (TI) e entropia média
(S) de cada oscilador, e que "estão por trás" das fórmulas empíricas6.
4
Cf. PLANCK, 1988, p. 225.
5
Cf. PLANCK, 1988, p. 240-1.
6
A busca de uma solução através da consideração das grandezas "energia^ e
"entropia'' é típica do "caminho teórico solitário" de Planck, no cenário científico
alemão.
Já em sua tese de doutorado em Munique, sob a orientação de Kirchhoíf, Planck
prioriza o conceito de entropia e a Segunda Lei da Termodinâmica. Porém,
repercussão deste trabalho na comunidade física de então foi nula" (Cf. PLANCK,
Coleção CLE V.11
Roberto Cintra Martins 293

Assim, ele parte da equação diferencial cuja solução dá origem à já


conhecida fórmula de Wien:
d2S = 1_
ôtf2 ~ afU
onde:
S = entropia média por oscilador
U = energia média por oscilador
/ = autofreqüência de cada oscilador
o = constante

Admitindo esta equação diferencial válida para altas freqüências


e baixas temperaturas (baixa energia média U por oscilador), Planck
buscará uma generalização, compatibilizando-a com os novos re-
sultados experimentais, especialmente aqueles válidos para baixas
freqüências e altas temperaturas (alta energia média por oscilador).
Assim é que, dias antes da histórica reunião da Sociedade Física
Alemã em Berlim em 19 de outubro de 1900, Planck recebe de Ru-
bens e Kurlbaum evidências empíricas indicando uma relação de pro-
porcionalidade entre U e T, válida para baixas freqüências e altas
temperaturas:

onde C é constante.
Planck reconhece a "aderência" destas duas diferentes proposições
aos dados empíricos, em diferentes faixas de freqüência e tempera-
tura, e vai buscar compatibilizá-las, tendo em vista apresentar uma
"resposta abrangente" na mencionada reunião de 19 de outubro.
Derivando novamente, Planck obtém:
d2S C 1
du2 ~ u2~ u2/c
1943, p. 154). O fato de sei o único físico a optai poi este caminho na pesquisa do
espectro de ladiação do coipo negio significa entretanto para Planck o privilégio
de podei trabalhai o tema em profundidade, sem risco de ser perturbado ou
ultrapassado por ninguém. (Cf. PLANCK, 1988, p. 7).
A descrição do processo dedutivo da fórmula geral para o espectro de radiação
do corpo negro e do valor do "quantum" de energia baseia-se em Planck, 1943, p.
153-9).
Coleção CLE V.11
294 Planck e o Nascimento da Mecânica Quântica

Aqui, Planck concebe uma passagem simples e decisiva, cons-


truindo por simples adição uma equação diferencial mais geral, que
recai na fórmula de Wien para baixas energias e na fórmula de Rubens
e Kurlbaum para altas energias:
d2S 1
dU2~ afU +
A resolução desta equação diferencial fundamental leva Planck
tanto à fórmula geral para o espectro de radiação do corpo negro
como à concepção do "quantum" de energia.
Por integração, obtém-se:
1 dS 1, aCf\
T ~ OU ~ af 09 \ +
U ) '
Apenas para reduzir o número de constantes na equação, Planck
denomina o produto aC como /i, sem no entanto atribuir a h (ou a
hf) qualquer significado físico especial.
A equação acima permite, por nova integração, dois tipos de
solução.
A primeira solução, que parte do primeiro e terceiro termos, per-
mite explicitar U em função de / e T e chegar à fórmula geral para
o espectro de radiação do corpo negro. Esta solução será apresen-
tada por Planck na reunião de 19 de outubro de 1900, sem qualquer
referência ao significado teórico da constante h,
A segunda solução parte do segundo e terceiro termos da equação
diferencial anterior e permite explicitar S em função áe U e f. Esta
segunda solução será buscada por Planck "durante os dias de traba-
lho mais intensivo de toda sua vida", entre 19 de outubro e 14 de
dezembro de 1900, culminando com a descoberta "involuntária" do
"quantum" de energia e o surgimento da Mecânica Quântica.
Inicialmente, Planck prepara uma solução "do primeiro tipo"7:

7
Cf, PLANCK, 1958a, p. 689. Neste trabalho, apresentado à Sociedade
Física Alemã (Deutsche Physikalische Geseilschaft) em 19 de outubro de 1900,
Planck expõe pela primeira vez a fórmula para o espectro de radiação do corpo
negro. Entretanto, uma fundamentação teórica ainda não é aqui apresentada.
Cf. PLANCK, 1987, v. 2, p. 202ss., 1900; citado em BRACHNER, HARTL &
HLADKY, 1987, p. 89-90.
Coleção CLE V.11
Roberto Cintra Martins 295

U
- eaSIT_l

ou:

5U,
T)-—
j
~ C3{e1

onde:
h = constante de Planck (sem qualquer atributo de significado
teórico).
Até este momento, a constante h pode ter parecido para Planck
pouco mais que um instrumento auxiliar de cálculo, carente de qual-
quer interpretação teórica. 0 objetivo de conciliar as formulações
clássicas (de Rayleigh-Jeans) e a não-clássica (de Wien) fôra também
já alcançado, pois estas são casos limites da fórmula de Planck para
af « T e af >> T, respectivamente. Já no dia seguinte à apre-
sentação da fórmula, 20 de dezembro, Rubens irá atestar a Planck a
aderência a seus resultados experimentais, o mesmo fazendo Lummer
e Pringsheim8.
Porém, esta ainda não seria a contribuição maior de Planck, pois
é a partir deste ponto que começa para ele a "busca decisiva" de
uma fundamentação teórica para a nova fórmula encontrada. Assim,
em que pese o sucesso desta nova formulação, e sua "aderência" aos
dados experimentais, Planck não considera sua tarefa concluída. Ao
contrário, para ele inicia-se então a "batalha final" para salvaguar-
dar a coerência interna do edifício da Física em face do "fato novo":
sua nova fórmula para o espectro de radiação do corpo negro. A
existência de uma lei geral até então desconhecida e sua suposta vali-
dade em todo tempo e lugar, independente da natureza físico-química
do objeto tratado, bem como o "surgimento" de uma nova constante
universal, requeriam de Planck um último esforço explicativo: por
que o espectro de radiação do corpo negro se comportava da forma
descrita?
Para Planck, a explicação somente poderia vir das grandezas fun-
damentais de sua visão física do mundo: a energia e a entropia.
Planck parte de seu modelo do corpo negro composto de N oscila-
dores elétricos idênticos com autofreqüência /, buscando agora uma
8
Cf. PLANCK, 1943, p. 157.
Coleção CLE V.11
296 Planck e o Nascimento da Mecânica Quántica

equação de segundo tipo, relacionando S,U e f:

Para poder atribuir um significado físico a esta expressão, Planck


recorre à concepção de entropia de Boltzmann:

5 = A; logW

onde W é a probabilidade de um sistema físico assumir um estado


qualquer e 5 é a entropia do sistema nesse estado.
Para o cálculo de W, Planck considera necessário trabalhar com
espaços amostrais discretos, isto é, trabalhar com um processo de con-
tagem de "casos possíveis" e "casos favoráveis"9, o que hoje pode ser
considerado um exemplo feliz de insuficiência teórica, tendo em vista
o sucesso final a que Planck foi levado por esta concepção limitada
do cálculo de probabilidades.
Desta forma, para poder basear o cálculo da probabilidade W em
um processo de contagem, Planck vai postular a hipótese decisiva da
discretização da energia total dos N osciladores:

Utotal =NU = Pe

onde:
e = "quantum" de energia, supostamente muito pequeno
P = número inteiro, supostamente muito grande.

Como uma medida da probabilidade W de que o sistema se encon-


tre em um estado específico, Planck propõe o número de maneiras em
que P "quanta" de energia podem se distribuir entre N osciladores.

w_(if + p-D<
P<. (N - 1)! '

Para N suficientemente grande, tem-se:

~ P\N\ '
9
Cf. PLANCK, 1943, p. 157.
Coleção CLE V.11
Roberto Cintra Martins 297

Para a entropia total dos N osciladores, tem-se:

5total = NS = k logW

NS*U^

Pela aplicação da fórmula de Stirling:

NS ^ k{{P + N)log{P + N)- PlogP - NlogN)

5 ^ A: f N + iVoff
) 'KN + lV
) ItMT;
N *N
Por comparação com a expressão anterior para S em função de JJ
e /, tem-se:
k = C

e ~ hf .

Desta forma, Planck chega finalmente à determinação do Uquan-


tum" de energia de radiação como proporcional à freqüência, inau-
gurando assim a era da Mecânica Quântica10.
Ao mesmo tempo, estes resultados lhe permitem calcular nume-
ricamente o valor da constante de Boltzmann k (constante dos gases
a nível de molécula), até então desconhecido, e, através do cálculo
de k/R, onde i2 é a já então conhecida constante dos gases (a nível
10
"Agora deve-se determinar a distribuição da energia pelos osciladores, em cada
classe, inicialmente a distribuição da energia pelos N osciladores com freqüência
de ressonância /. Se a energia é vista como grandeza contínua, então a distri-
buição será possível em infinitas classes. Porém, nós tratamos - e este é o ponto
essencial de todo o cálculo (grifos nossos) - a energia como constituída por um
número determinado de partes finitas e iguais e fazemos uso, além disso, da cons-
tante natural h = 6.55.10""27 ergs/s. Esta constante, multiplicada pela freqüência
/ comum, nos dá a energia elementar c, e através da divisão de U totad por e
obtemos a quantidade P de elementos de energias, que deve ser distribuída entre
os N o8ciladores,, (Cf. PLANCK, 1958b, p. TOO-1). Este trabalho, apresentado
diante da Sociedade Física Alemã ("Deutsche Physikalische Geseilschaft,,) em 14
de dezembro de 1900, contém a fundamentação teórica do espectro de radiação
do corpo negro através da atribuição de um novo significado ã constante h. Este
novo significado é explicitamente vinculado ao caráter discreto da energia de ra-
diação. Por esta razão, o artigo é considerado o marco do nascimento da Mecânica
Quântica. Cf. PLANCK, 1987, v. 2, p. 237ss; citado em BRACHNER, HARTL,
^ HLADKY, 1987, p. 89.
Coleção CLE V.11
298 Planck e o Nascimento da Mecânica Quântica

de mol), determinar o valor do "quantum" de carga elétrica q. Após


as semanas de trabalho mais intenso de sua vida, pôde Planck apre-
sentar tais resultados na reunião da Sociedade Física Alemã de 14 de
dezembro de 1900.
Em seu esforço em preservar as interpretações que lhe antece-
dem, e em sua busca para alcançar soluções invariantes e universais,
válidas em todo tempo e lugar, elabora Planck a primeira ruptura
radical com a "Física Clássica": átomos não absorvem ou emitem
qualquer quantidade de energia, mas somente determinados "paco-
tes" ("quanta"). Esta lei e a constante associada h virão a constituir
para Planck uma satisfação para sua busca por invariantes eternas e
universais, um prenchimento de um "vazio" no edifício da Física, al-
cançado no entanto ao preço, que para Planck não deveria ser pouco,
da ruptura com a tradição científica de sua época11.
O descobrimento de uma nova constante universal, fruto da busca
de Planck pelo absoluto, irá assim provocar o abalo definitivo do
edifício da Física do século XIX, onde Planck tem suas raízes e seus
mestres, projetando uma nova visão de mundo distante das certezas
básicas do paradigma newtoniano. A partir deste momento Planck
terá que conviver com esta sua condição de "revolucionário contra a
vontade".
Como se posiciona Planck diante desta condição que o destino
lhe reservou? O próprio Planck nos responde, qualificando sua pro-
posição da lei de radiação como "um ato de desespero":
Em resumo eu posso qualificar todo o feito como um ato de de-
sespero. Pois por natureza eu sou pacífico e avesso a aventuras.
Mas ... uma interpretação teórica tinha que ser encontrada a qual-
quer preço, mesmo que tão alto ... As duas primeiras leis da Termo-
dinâmica mè parecem a única coisa que em todas as circunstâncias
tinha que ser mantida. De resto eu estava pronto para qualquer
sacrifício em minhas convicções físicas anteriores (grifos nossos)12.
11
Planck soube expressar mais de uma vez, de forma inequívoca, sua atração
pela busca de grandezas eternas na Natureza: "... não deve ser desprovido de inte-
resse notar que (com o auxilio das constantes universais /> e fc) é possível conceber
unidades de comprimento, massa, tempo e temperatura que, sendo independen-
tes doe corpos ou substâncias específicos, conservam seu significado para todos os
tempos e para todas as culturas, inclusive as extra-terrestres e extrahumanas, e
portanto podem ser qualificadas como 'unidades de medida naturais' " (PLANGK,
1958, p. 599-600; citado em HEILBRON, 1988, p. 15-6).
12
Cf. Planck, em resposta ao físico norte-americano R.W. Wood, em entrevista
Coleção CLE V.11
Roberto Cintra Martins 299

Com estas palavras, o conservador e revolucionário Pianck an-


tevê o destino da pesquisa na Física Moderna, pois tanto a Mecânica
Quântica quanto a Teoria da Relatividade irão corresponder à cons-
trução de uma visão de mundo radicalmente nova no território da
Física - e exigirão do pesquisador a necessária disposição para o sa-
crifício de antigas convicções e idéias. Entretanto, para o físico de
hoje, formado no âmbito da Mecânica Quântica, a dimensão do gesto
de despojamento de Pianck, pesquisador enraizado nas convicções ci-
entíficas do século XIX, pode não parecer tão significativa ou mesmo
passar despercebida.
Em 1918, Pianck recebe o prêmio Nobel pela descoberta do sig-
nificado da constante universal h.

4. Sobre história de vida e as dificuldades de trazer Pianck


para o presente
Ainda muito jovem conheceu Pianck o vigor e a hegemonia do
paradigma newtoniano e sua aceitação plena pela intelectualidade
européia no final do século XIX. Educado nos cânones da hierar-
quia, da disciplina, do senso do dever e do respeito aos superiores e à
tradição, típicos do protestantismo e do ideário pedagógico alemão,
Pianck teve que se defrontar com um primeiro grande desafio à sua
vocação de pesquisador, já aos 16 anos de idade, quando do término
de seus estudos no Maximilians-Gymnasium em Munique. Seu orien-
tador vocacional, o físico P. von Jolly, pôde então lhe asseverar que
a carreira de físico, que Pianck almejava, tinha poucas perspectivas,
pois em essência "tudo" já teria sido pesquisado e haveria portanto
apenas alguns "vazios" a prencher. Desta forma, Pianck teve que di-
vergir de uma orientação superior, para iniciar seus estudos de Física
em Munique, concluídos em Berlim em 1879, com uma tese de dou-
toramento que nenhuma atenção despertou na comunidade científica,
nem mesmo em seus professores (cf. nota 6).
Em que pese este segundo desestímuio, inicia Pianck sua car-
reira de pesquisador, tratando em seus primeiros trabalhos da Ter-
modinâmica, em especial do conceito de entropia. Isto levou-o à pes-

em 7 de oTitubro de 1931. In: HERMANN, 1971, p. 23; citado em SEGRÈ, 1980,


P- 78 e em BRACHNER, HARTL & HLADKY, 1987, p. 89-90. Cf. também
HERMANN, 1969, p. 31; citado em HEILBRON, 1988, p. 13.
Coleção CLE V.11
300 Planck e o Nascimento da Mecânica Quântica

quisa da radiação térmica e posteriomente à famosa lei da radiação,


já referida, e assim à inauguração da era da Mecância Quântica.
Uma interpretação freqüente das personalidades de M. Planck e
A. Einstein tem caracterizado poiarmente Planck como "conserva-
dor" e Einstein como "rebelde", tanto em Ciência como em Política
ou até mesmo na vida particular. Bastante conhecidas são eis di-
vergências nas suas posições científicas, expressas por ambos, entre
outras ocasiões, na Conferência do Conselho Solvay em 1911.
Planck permaneceu muito tempo cético quanto à sua própria de-
rivação teórica do significado da constante h e quanto à-hipótese de A.
Einstein, de que o campo eletromagnético também fosse quantizado,
resistindo portanto a reconhecer que o comportamento discretizado,
que vislumbrara no caso da energia de radiação do corpo negro, pu-
desse ser aceito enquanto característica invariante da Natureza, válida
também para outras grandezas e fenômenos.
Einstein busca o exílio na América, Planck permanece na Alema-
nha antes, durante e depois da queda do III Reich. Einstein torna-se
pacifista militante no Pós:Guerra, Planck não chega a assistir o er-
guimentò do movimento pacifista no início dos anos 50.
Desde os bancos escolares até ao relacionamento familiar, suas
vidas são não raro apontadas como exemplos contrastantes de estilo
pessoal.
Planck foi secretário permanente da Academia das Ciências da
Prússia ("Preussische Akademie der Wissenchaften"), membro da
direção da Sociedade Física Alemã ("Deutsche Physikalische Gesell-
schaft"), da Comunidade Alemã de Emergência para a Ciência
("Notgemeinschaft der Deutschen Wissenschaft", atual "Deutsche
Forschungsgesellschaft"), diretor da Sociedade Imperador Wilhelm
para apoio da Ciência ("Kaiser-Wilhelm-Gesellschaft zur Fõrderung
der Wissenschaíten") e co-diretor dos Anais de Física ("Annalen der
Physik"). Durante várias décadas Planck atuou como estrela de pri-
meira grandeza na comunidade científica a nível alemão e internacio-
nal, tendo tomado parte na direção de instâncias decisórias no campo
da pesquisa e da Política Científica em seu país.
Planck participou do poder em regimes autoritários e ditatoriais
(República de Weimar e Nacionalsocialismo). No entanto, sua vida
como pesquisador, professor, organizador e líder atuante, conserva-
Coleção CLE V.11
Roberto Cintra. Martins 301

dor e respeitado no "establishment" da Ciência alemã contrasta com


sua experiência de vida individual como cidadão e pessoa humana.
Os revezes sofridos, vinculados não raro de forma direta à conjuntura
política de seu tempo, podem surpreender uma interpretação de sua
vida como caracterizada apenas por um "convívio com o poder", e
nos levam a reconhecer que, se Planck foi na Ciência um "revolun-
cionário contra a vontade", ele foi na Política, em especial na Política
Institucional Alemã, um opositor consciente e obstinado.
E sabido o papel desempenhado por Planck em defesa dos cientis-
tas judeus alemães durante a ditadura nazista. Bastaria aqui menci-
onar seu papel na solução encontrada para que a judia austríaca Lise
Meitner, a maior física de língua alemã da época, sua ex-assistente e
colaboradora de O. Hahn, pudesse encontrar exílio junto ao governo
sueco, meses antes do início da Segunda Guerra Mundial.
Talvez menos conhecida seja a audiência de Planck com Hitler,
numa última tentativa de argumentar junto ao "Führer" a favor dos
cientistas judeus alemães e sobre a importância de sua contribuição
para o avanço da Ciência na Alemanha. Planck, já octagenário, sai
do encontro de mãos vazias, literalmente escurraçado pela fúria do
"Führer" diante de seus argumentos. Nesta tentativa desesperada
de busca das condições de convivência entre dois pontos extremos
do espectro da sociedade alemã, o conservador Planck, em atitude
de solidariedade diante de seus colegas de profissão buscou o acesso
ao "Führer", o que mais tarde não mais lhe seria possível. Nem
mesmo quando, quase ao final da Guerra, a tentativa frustrada de
um novo encontro com o "Führer" foi para a família Planck uma
questão decisiva, uma questão de vida ou morte13.
Planck sofreu em sua vida revezes duríssimos, com freqüência di-
retamente vinculados à conjuntura política de seu tempo. Em 1909
morre sua primeira esposa, em 1916 um filho na Primeira Guerra
Mundial, pouco tempo depois suas duas filhas gêmeas e, em 1944,
em função do atentado frustrado contra Hitler, seu outro filho é con-
denado à morte e executado, apesar dos esforços de Planck para co-
mutar a pena para prisão perpétua.

13
Esta entrevista entre Planck e Hitler encontra-se relatada pelo próprio Planck.
(Cf. PLANCK, 1947, p. 143; citado em HEILBRON, 1988, p. 253).
Coleção CLE V.11
302 Planck e o Nascimento da Mecânica Quântica

Logo depois, Planck vive a derrocada final de seu país, quando sua
casa é bombardeada, sendo ele obrigado, aos 87 anos e sofrendo de
dores intensas na coluna e no nervo ciático, a refugiar-se em cabanas
rústicas afastadas do cenário urbano destruído, acuado entre as tropas
alemãs em, retirada e o avanço da ofensiva aliada.
Planck vive seus últimos anos em Gõttingen. Após a capitulação
da Alemanha, a principal instituição de pesquisa do país, que Planck
dirigira, a "Kaiser-Wilhelm-Gesellschaft" é rebatizada como "Max-
Planck-Gesellschaft", uma vez que seu nome tinha sido aprovado pe-
las potências aliadas para substituir o do Imperador alemão derrotado
na Primeira Guerra Mundial. A "Max-Planck-Gesellschaft" é hoje a
mais importante instituição de pesquisa científica alemã.
A medida que procuramos nos aproximar da figura humana de
Max Planck, nos deparamos com traços de sua personalidade e fatos
de sua vida que desafiam qualquer pretensão de julgamento baseado
em critérios simplistas de avaliação.
Em situações como essas, é no mínimo muito problemático co-
locar questões de certa ordem, não raras no âmbito da perspectiva
histórica dita externalista, como, por exemplo, se Planck (eventual-
mente em contraposição a Einstein) teria sido um físico conservador
ou revolucionário, um colaborador ou um opositor da ditadura na-
zista.
Quanto à primeira questão, o exemplo da descoberta da lei de
radiação, e em especial o significado universal atribuído à contante
h, servem para ilustrar como Planck pôde oferecer uma contribuição
revolucionária à Ciência não por querer ser um revolucionário, o que
teria ido de encontro a seu imperativo de honestidade diante de si
mesmo, mas justamente por ter sido honestamente conservador. Em
outras palavras, por não estar disposto a abrir mão facilmente de
convicções vinculadas ao passado da Ciência e a seus mestres, Planck
sofreu, possivelmente como poucos em seu tempo, o conflito entre
o então estabelecido na Ciência e as novas evidências experimen-
tais. Este seu sofrimento foi a sua forma de intuir e antever as
transformações revolucionárias no modo de pensar da Ciência que
se aproximavam no horizonte epistemológico do Ocidente na virada
do século. Um conflito "desesperador" iria assim incomodar e impul-
sionar ninguém menos que um dos físicos mais conservadores e ho-
Coleção CLE V.11
Roberto Cintra Martins 303

nestos desse contexto histórico-cultural a romper radicalmente com


a tradição científica predominante.
Quanto à segunda questão, a atuação de Planck em favor dos
cientistas judeus alemães cabe aqui como indicativa de resposta, em
especial se considerarmos que o regime nazista constituiu a ditadura
mais perfeita da História, não existindo em todo o contexto social
alemão nenhum espaço não vigiado pelo olho onipresente do estado
policial. E o espaço da pesquisa não constitui exceção.

5. Antecedentes históricos recentes da Física Moderna: Su-


gestões para uma abordagem externalista.

Referenciando-nos à figura humana de Max Planck e ao ano de


1900 como elementos centrais de nossas indagações a respeito da "vi-
rada" para a Física Moderna, importa aqui considerar que esta se
afirmou no horizonte epistemológicò do Ocidente no século XX, de
tal forma a atuar decisiva e diretamente sobre as formas legitima-
doras e legitimadas de conhecimento de nosso tempo, a saber, sobre
as modernas Ciências da Natureza e do Homem. Assim, de forma
indireta, atua também a Física Moderna hoje sobre as condições de
vida e a cosmovisão do mundo técnico-científico de nossos dias 14.
A referência freqüente e necessária à chamada Revolução Ci-
entífica dos séculos XVI e XVII nos dá conta em parte dos pres-
supostos histórico-filosóficos da Física Moderna, muito embora esta
apresente uma dinâmica e identidade próprias, que lhe facultam re-
futar com relativa facilidade e agilidade as críticas freqüentemente
colocadas, com maior êxito, a um "vazio ético" da visão de mundo
mecanicista e do pragmatismo baconiano15.
A Física Moderna, gerada em um movimento de radical ruptura
de paradigma científico, pode hoje não somente encampar estas mes-
mas críticas, afirmando sua dinâmica e identidade próprias, não re-
dutíveis ao mecanicismo empiricista, como também aproximar-se das
vias de conhecimento alternativas ao racionalismo ocidental, em par-
ticular do misticismo oriental16.
14
Para um aprofundamento, ver VON WEIZSÃCKER, 1981.
15
Pata um detalhamento, ver BARTHOLO JR., 1986, em especial o Capítulo
5.
18
Para uma abordagem difundida desta aproximação, ver CAPRA, 1975.
Coleção CLE V.11
304 Planck e o Nascimento da Mecânica Quântica

Precisamente esta dinâmica cognitiva e ético-valorativa da Física


Moderna sugere-nos a conveniência de pesquisar outros contextos,
historicamente mais recentes, antecedentes e condicionántes imedia-
tos da "virada" que se deu nas Ciências da Natureza em torno de
1900.
Como uma primeira hipótese pertinente a um estudo desta or-
dem, sugere-se a questão: em que medida as formações embasado-
ras da Física Moderna, em especial a Mecânica Quântica e a Teoria
da Relatividade, podem ser consideradas - em termos de genealo-
gia histórico-cultural - como "filhas" de territórios culturais anco-
rados na Europa do século XIX. Assim, sugere-se, como grávido de
sentidos e indicações para o tema, o estudo detalhado do contexto
histórico-cultural intraeuropeu do século XIX e início do século XX,
referenciado ao desenvolvimento da pesquisa em Ciência Natural.
Aqui, a história de vida e obra do cientista e o contexto insti-
tucional da pesquisa e do ensino no século passado e início deste
século, em especial na Europa Central e Norte-Ocidental, mereceriam
a atenção do estudioso, bem como os principais ideários de formação
pedagógica, científica e ética aí propostos ou vigentes. O papel destes
diferentes fatores deveria ser avaliado, tendo em vista o desenvolvi-
mento dos potenciais individuais de abstração e experimentação então
emergentes. Aqui, seria de se mencionar o modelo de ensino e pes-
quisa alemão, tanto a nível ideal-abstrato quanto a nível institucional
e pessoal, baseado em primeira linha na relação professor-aluno, tal
como se evidencia, entre outras, na linha genealógico-intelectual A.
Sommerfeld - W. Heisenberg - C.F. von Weizsácker, que deita raízes
no século XIX e encontra-se ainda atuante em nossos dias.
A História da vida e obra de Max Planck, centrada sobre nove
décadas em torno da última virada de século, serve aqui como re-
ferência para nossa sugestão: que os estudiosos interessados em com-
prender melhor os pressupostos históriço-filosóficos da Física Mo-
derna se debrucem sobre o contexto histórico-cultural imediatamente
antecedente e imediatamente posterior à sua "hora de nascimento"
na última virada de século.
Com relação particularmente ao território cultural de língua
alemã, importa aqui observar que não foram poucos os casos de
pesquisadores e filósofos que, assim como Planck, foram educados
Coleção CLE V.11
Roberto Cintra Martins 305

no contexto familiar, pedagógico e institucional do protestantismo


alemão17. A obra radicalmente revolucionária destes físicos pode ser
entendida, tal como a de Planck, como obra de "revolucionários con-
tra a vontade"18. Assim, diante de um modo de argumentação di-
cotômico e reducionista, cabe ainda indagar se, sendo a Revolução
da Física Moderna impensável sem a rebeldia de um Einstein, seria
ela possível sem o conservadorismo de um Planck.
17
Os pais de Immanuel Kant, simples artesãos, eram pietistas convictos. O
jovem Kant foi formado nos cânones da devoção e rigor pietistas: aO pai exigia
trabalho e honestidade, acima de tudo evitar qualquer mentira, a mãe, além disso,
pureza e santidade.7'
Ainda em idade avançada Kant relembra seus pais com gratidão, reconhecendo
que eles lhe deram uma formação que tfdo ponto de vista moral não podia ser
melhor" e pela qual ele Kem cada lembrança" se sentia "tocado pelo sentimento
da maior gratidão". A atmosfera pietista da casa paterna atuou de forma decisiva
no modo de vida e na obra do filósofo (Cf. SCHMIDT, 1975, p. 6-7).
O idoso Kant reflete com carinho a influência materna: "eu jamais esquecerei
minha mãe, pois ela plantou e alimentou a primeira semente do bem em mim,
ela abriu meu coração às impressões da Natureza, despertou e ampliou minhas
idéias, e seus ensinamentos tiveram uma influência saudável e duradoura em minha
vida." (Cf. carta de 13 de agosto de 1797 ao bispo Jacob Lindbonn; citado em
SCHMIDT, 1975, p. 7).
18
A relutância em se "desacoplar" de uma visão do mundo físico até então aceita
como paradigmática é clara e exemplar nas palavras dos descobridores da flssão
nuclear.
Aqui, é exemplar a troca de correspondência entre Otto Hahn, então diretor do
Instituto Imperador Wilhelm de Química ("Kaiser Wilhelm Institut fur Chcmie"),
de Berlim, e Lise Meitner, sua "mão direita" em Física, já então vivendo no exílio
na Suécia (cf. item 4).
Em carta datada de 19 de dezembro de 1938, logo após ter obtido evidências
experimentais que somente poderiam ser explicadas pela [até então desconhecida]
fissão do átomo de urânio em átomos de elementos mais leves, O. Hahn reluta em
refutar a hipótese conservadora de mera transmutação do urânio em outro ele-
mento pesado (no caso, o Rádio): "... É que há algo tão notável [ocorrendo] com
os "isótopos de rádio", que nós por enquanto só vamos contar a você .. .Nossos
isótopos de rádio comportam-se como bário ... Talvez você possa nos propor al-
guma explicação fantástica. Nós mesmos sabemos que [o Urânio] não pode se
partir em bário".
E apenas dois dias depois, O. Hahn expressa sua perplexidade em um pedido
explícito de ajuda: "... como químicos nós temos que concluir que os isótopos ...
uão são de rádio, mas de bário. Nós não podemos calar nossos resultados, mesmo
que eles sejam absurdos sob o enfoque da Física. Você vê que pode fazer uma boa
^.ção se você conseguir achar uma saída". (Cf. troca de correspondência entre
Otto Hahn e Lise Meitner; citado em MELCHER, 1979, p. 5.)
Coleção CLE V.11
306 Planck e o Nascimento da Mecânica Quântica

Ainda com referência à cultura alemã, um melhor entendimento


do Estado Prussiano e do protestantismo ao tempo de Bismarck19,
bem como do ideal universitário humanista-iluminista de W. von
Humboldt20 parecem ser componentes essenciais para o entendimento
das origens da Física Moderna, sem os quais a referência à Revolução
Científica dos séculos XVI e XVII ainda deixará a pesquisa histórica
diante de um "elo perdido" em torno da última virada de século.
Este "elo" talvez possa ser buscado através da indagação do
como, do quando e de em que medida os pensadores europeus dos
séculos XVIII e XIX foram "portadores" do paradigma newtoni-
ano e como, quando e em que medida estes dois séculos afirma-
ram sua dinâmica própria e autônoma nas Ciências da natureza e
na Filosofia21, construindo para a última virada de século um legado
epistemológico, ético e pedagógico fundamental para o entendimento
das transformações que, tendo còmo marco o "gesto de desespero" de
um físico profundamente ancorado nas convicções científicas do século
XIX, terminaram por abalar o firme edifício da Mecânica Newtoni-
ana, onde "tudo" já havia sido pesquisado.

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. Os labirintos do silêncio, cosmovisão e tecnologia na moderni-


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19
Para um detalhamento, ver CRAIG, s.d.
20
Para um detalhamento, ver SCHELSKY, 1963.
21
Aqui, o entendimento kantiano das leis da Física como proposições últimas
sobre as condições de possibilidade da experiência objetivável soam como ante-
visões da conceituação da relação sujeito-objeto e dos limites do conhecimento
sobre a Natureza, essenciais à Mecânica Quântica. Já em 1781 coloca Kant o en-
tendimento humano como fonte e delimitador último de nosso conhecimento sobre
a Natureza, pois "...a ordem e regularidade nos fenômenos, que nós chamamos
Natureza, nós mesmos as introduzimos, e não as poderíamos encontrar aí, se nós
não tivéssemos introduzindo aí tal ordem e regularidade, ou a natureza de nosso
gosto" (cf; KANT, 1976, p. 179; citado em BARTHOLO JR., 1982, p. 196). É
notável a conexão entre as palavras de Planck em sua autobiografia (cf. citação
referenciada à nota 4) e esta proposição de Kant.
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Coleção CLE V.11
20

Conceitos sobre Estrutura Cristalina no


Século XIX

Mabel de M. Rodrigues

1. Uma revisão histórico-bibliográfica


Considera-se que a Cristalografia Moderna teve início no século
XX, com os trabalhos sobre difração de raios-X de Max Laue e dos
Bragg, pai e filho.
Entretanto, foi durante o século XIX que foram estabelecidos
os conceitos básicos de simetria que permitiriam a aplicação do
fenômeno recém-descoberto às substâncias cristalinas.
Na realidade, desde o século XVI, o estudo de" conjuntos de pon-
tos discretos começa a ser relacionado com propriedades geométricas
de cristais através dos trabalhos de Georgino Agrícola (1494-1555),
Conrad Gessner (1516-1565), Johann Kepler (1571-1630) e Christian
Huygens (1629-1695)1.
Observações empíricas sobre cristais de quartzo feitas por Niels
Stenson (1636-1686), conduziram-no a formular, em 1669, a da
Constância dos Ângulos Interfaciais. Segundo suas próprias palavras:
1
Descrições detalhadas dos primórdios da Cristalografia podem ser encontradas
aos livros de Lenz [22], Marx [23] e no de Burke [5].
Coleção CLE V.11
310 Estrutura Cristalina no Século XIX

ad evincendum, in plano axis laterum et numerum et longitudinem


varie mutari, non mutatis angulis, [isto é], mesmo que mudem os
eixos dos planos, em numero e comprimento, os ângulos não mudam
[34].
Estalei, que ficou conhecida como Lei de Stenson, foi generalizada
e considerada válida para qualquer substância cristalina, depois de
confirmada por inúmeras medidas efetuadas por Jean Baptiste Louis
Romé de l'Isle (1736-1790) [27].
A invenção por Carangeot, em 1780, de um goniômetro de contato
permitiu a medida correta, embora grosseira, dos ângulos entre as fa-
ces de um cristal, sendo a precisão dessas medidas grandemente au-
mentada pela construção por Wollaston, em 1809, de um goniômetro
ótico.
Tais medidas goniométricas conduziram à comprovação sis-
temática de que:

a) os cristais crescem naturalmente com faces planas;

b) independentemente do tamanho do cristal, e de seu "hábito" de


crescimento, os ângulos entre suas faces são característicos de
cada composição química.

Esta segunda generalização deve-se, sobretudo, aos trabalhos do


mineraiogista francês René Just Haüy (1743-1822), justamente con-
siderado o fundador da Cristalografia. Menciona-se que Haüy, ao
deixar cair um bloco de calcita, teve sua atenção voltada para os
fragmentos regulares daí resultantes. Pelo seu estudo e de outros mi-
nerais, pôde estabelecer a Lei Geométrica da Cristalização, ou Lei da
Simetria, como conseqüência do que chamou Teoria dos Decréscimos.
Isto é, observando a ciivagem de minerais, Haüy concluiu que através
de fraturas sucessivas de uma peça cristalina obtém-se sempre a
mesma forma geométrica, que é representativa da estrutura interna
do cristal. Em outras palavras, os planos de ciivagem, sejam ou não
primários com relação ao crescimento usual de um cristal, devem exis-
tir na sua estrutura interna à semelhança de juntas em uma parede
de tijolos.
Assim, qualquer cristal deve ser construído a partir de
"partículas" ou "moléculas", apresentando a mesma forma que a ob-
tida por ciivagem. A ocorrência eventual de faces diferentes das de
Coleção CLE V.11
Mabel de M. Rodrigues 311

clivagem, Haüy justificava como sendo o resultado de um crescimento


gradual em escala submicroscópica, semelhante à inclinação média de
escadas formadas pelo deslocamento de tijolos iguais. Daí resultou a
lei dos Decréscimos, de acordo com a qual as faces secundárias de
um cristal se relacionam com uma forma primitiva, ou núcleo de cli-
vagem, através de relações de números inteiros e pequenos, podendo
os ângulos entre tais faces, serem determinados através de simples
cálculos aritméticos.
De acordo com esse ponto de vista, a propriedade característica
do estado cristalino é a sua periodicidade interna, e em 1822 Haüy
("Essai d'une théorie sur la structure des cristaux"), sugere que os
ângulos interfaciais dos cristais poderiam se justificar, ao se consi-
derar um cristal como composto pela justaposição de unidades re-
petidas, empilhadas de forma contínua, formando, assim, o edifício
cristalino. Haüy, entretanto, não chegou a concluir sobre a natureza
de tais unidades, que ele propunha apenas serem de forma definida e
regular.
Assim, uma unidade não poderia ser menor que uma molécula,
porém poderia se constituir em "cluster" de moléculas, isto é, de
múltiplos da fórmula química. Aos blocos da construção, ele chamou
de "molécules soustratives" compostas por "molécules integrantes".
A teoria de Haüy foi de grande interesse para os mineralogistas
que anteriormente haviam procurado em vão algum método pelo qual
fosse possível delinear uma ordem sistemática no reino mineral, à
semelhança do que é encontrado nas espécies dos reinos vegetal e
animal [20].
Apesar de sua clareza, entretanto, a Teoria de Haüy não foi aceita
sem reservas pelos cristalógrafos estrangeiros, sobretudo aqueles da
Escola Alemã que, baseando-se unicamente na morfologia externa dos
cristais, procuravam justificar a simetria existente através da Lei das
Zonas de Weiss.
Samuel Weiss (1780-1856), em 1804, distinguia as diferentes clas-
ses de cristais apenas pela simetria externa, que ele agrupou em 7 sis-
temas, caracterizados pelas diferenças nos eixos de referência. Numa
tal concepção, as faces cristalinas eram designadas por índices, cal-
culados a partir de relações entre os segmentos interceptados pelas
faces sobre os eixos de referência [41].
Coleção CLE V.11
312 Estrutura Cristalina no Século XIX

Na realidade, a Lei das Zonas de Weiss exprime a concepção ex-


terna da Lei de Haüy, porém de uma forma menos evidente. A Lei
dos Decréscimos de Haüy foi renomeada de Lei dos índices Racionais,
nome pelo qual ficaria conhecida a partir de então.
Tem-se assim, na época, duas escolas formadas: a de Haüy,
de inspiração física, interpretada dentro da recém fundada hipótese
atomística, e a outra, de tendência puramente geométrica. Caberá a
esta última, através de Weiss, o mérito de chamar a atenção, pela pri-
meira vez, sobre a importância das direções como características do
estado cristalino, noções revividas hoje em dia através da verificação
das propriedades vetoriais anisotrópicas de um meio cristalino.
Conseqüentemente a Haüy, uma teoria atomista foi introduzida
em 1824 pelo físico Ludwig August Seeber (1793-1855), que postulou
um cristal como formado por pequenos "átomos" esféricos, perma-
necendo em um equilíbrio estável pelo balanço de forças atrativas e
repulsivas. Seeber assumia que tais "átomos" ficavam situados nos
nós de três conjuntos intersectantes de planos paralelos eqüidistantes,
ou seja, nos nós de um rettculo espacial [29].
Seeber chegou a essas conclusões trabalhando matematicamente
sobre as formas binária e quaternária quadráticas deis inequalidades
de Lagrange, embora de uma forma que Gauss (1777-1855) chamaria
de longa e deselegante [15]. Seeber, entretanto, ficou com o grande
mérito de estabelecer condições auxiliares em termos de um retículo
conseqüente que hoje recebe o nome de rettculo recíproco [28]. Uma
formulação mais adequada dessas condições auxiliares foi desenvol-
vida por Gotthold Eisenstein (1823-1852) [11], Peter Gustav Lejeune
Dirichlet (1805-1859) [10], e muito posteriormente por N. Georges
Voronoí (1868-1908) [40].
Com condições de redução, Seeber. foi capaz de classificar os tipos
possíveis de retículos, de acordo com suas formas reduzidas Z e es-
perava que sua classificação permitisse descrever todas as estruturas
cristalinas. Lamentavelmente, seu trabalho foi praticamente ignorado
pelos cristalógrafos de seu tempo.
Independentemente, em 1843, Gabriel Delafosse (1796-1878) con-
siderando no modelo de Haüy apenas os centros de gravidade das
moléculas, argumentou que tais centros devem formar um retículo
pontual. Retomando o raciocínio de Haüy sobre a clivagem, Dela-
Coleção CLE V.11
Màbel de M. Rodrigues 313

fosse, em "De la structure des cristaux" estabeleceu que:


... dant 1'interieur du cristal les molécules sont symétriquement es-
pacées, de manière àprésenter dans leur ensemble
configuration en quinconce, ou plus exatement, l'image d'un réseau
continu àmailles parallélipipèdiques, [mostrando também] que la
molécule integrantede Haüy n'est rien outre que le p
tit des parallélipipèdes que forment entre elles les molécules voisines
et dont elles marquent les sommets; ou si l'on veut, elle n'est que la
représentation des petits espaces intermoléculaires, ou des mailles du
réseau cristailin. Elle est donc parfaitement dislincte de la molécule
physique, qui peut avoir, et qui a souvent en effet, une tout autre
forme. Cette demièreest le véritable élément atomique du corps,
à part toute considération d'etat cristailin; la particule integrante
n'est que Vilement de sa structure géometrique, quand il s'offre sous
cet état particulier ... [35],

E em "Recherches sur la cristallisation considerée sous les rap-


ports physiques et mathematiques", ele diz:
Les molécules son fixe es aux points dont nous parlons (les noeuds
du réseau), non d'une manière inébranlable, mais dans un état
d'équilibre plus au moins stable... [9].

Assim, as idéias de Seeber e de Delafosse abriram uma área nova


em Cristalografia, ou seja, a investigação de conjuntos de pontos dis-
cretos. Eles substituíram o conceito de continuidade da matéria cris-
talina pelo da descontinuidade.
Assumia-se, então, que os átomos ou moléculas em um cristal
deveriam se arranjar de forma paralela no espaço e que os centros de
massa deveriam formar um retículo pontual.
Delafosse propôs que as diversas formas que as moléculas podem
apresentar influem sobre o resultado final da cristalização. Desta
forma, tentou explicar algumas exceções à Lei da Simetria, que ocor-
rem com algumas espécies de minerais como a pirita, a boracita, a
turmalina, o quartzo, etc, procurando mostrar como dois sistemas
cristalinos diferentes apresentam formas comuns, uma vez que a sua
verdadeira distinção repousa sobre suas diferenças de estrutura na
escala molecular.
Uma extensão dessas idéias foi sugerida por Christian Wiener
(1826-1896) [43] em 1863, propondo que um sistema de pontos dis-
cretos infinito é aquele que mostra uma mesma distribuição de pontos
em torno de cada um deles.
Coleção CLE V.11
314 Estrutura. Cristalina no Século XIX

Mais tarde, em 1874, Leonhard Sohncke (1842-1897) elabora essa


definição de forma mais precisa, afirmando:
Um siatema de pontos discretos é regalar, se de dois pontos quais-
quer do sistema, linhas retas podem ser traçadas para todos os outros
pontos do sistema e esses sistemas de linhas resultantes são congru-
entes ou especulares entre si [32].
Aqui se vê que Sohncke explicita e considera a possibilidade de sis-
temas lineares congruentes e especulares. Entretanto, embora apre-
sentasse esse fato como sendo geometricamente verdadeiro, arbitrar
riamente assumiu que na natureza ele só ocorreria em sistemas con-
gruentes.
Tal problema só seria resolvido satisfatoriamente após terem sido
estudados diversos cristais cuja forma só é justificável pela utilização
de operações de simetria imprópria. Assim, em 1885, Pierre Curie
(1859-1906) se refere a um exemplo de uma forma cristalina encon-
trada e que só poderia ser gerada por uma operação de ordem 4 in-
versa, embora não mencione em sua comunicação a natureza química
do cristal [8].
Sohncke estudou os sistemas pontuais regularés no plano usando
apenas argumentos geométricos. Pela primeira vez foram então men-
cionados os 13 tipos diferentes de construção de sistemas pontuais
reguiares planares e que hoje são chamados os 13 tipos de grupos de
eigen simetria no plano.
As 32 classes cristalinas em E3, dos grupos pontuais, foram deter-
minadas pela primeira vez em 1826 pelo mineralogista Moritz Ludwig
Frankenheim (1801-1872) [12], segundo descoberta recente de J.J.
Burchardt [4], e foram redeterminados em 1830 pelo mineralogista
Johann Friedrich Christian Hessel (1796-1872) [16]. Frankenheim e
Hessel derivaram, igualmente, as 32 possíveis simetrias dos poliedros,
cujas faces satisfazem a Lei dos índices Racionais. No mesmo ano, o
matemático Evariste Galois (1811-1832) publicou o tratado "Sur la
théorie des nombres" [14], onde foi introduzido o conceito de grupo
matemático, que viria a se tornar muito importante em Cristalografia-
Os trabalhos de Delafosse, assim como os de Frankenheim e Hes-
sel, tiveram pouca divulgação e ficaram obscurecidos pelo desenvolvi-
mento brilhante feito por Auguste Bravais (1811-1863), que em 1849
redeterminou as classes cristalinas, não tendo, no entanto, menci-
onado as operações de roto-reflexão [2]. Uma lista completa dessas
Coleção CLE V.11
Mabei de M. Rodrigues 315

classes foi publicada mais uma vez, em 1867, por Axel Gadolin (1828-
1892) [13].
Bravais é conhecido como o responsável pelo fortalecimento dos
conceitos matemáticos que embasaram a teoria dos arranjos reticula-
res, aos quais ficou ligado de forma inabalável, uma vez que assumi-
ram o seu nome.
Assim, em seu primeiro trabalho, em 1849, Bravais estuda, inici-
almente de um ponto de vista puramente geométrico, a estrutura e
a simetria dos corpos cristalizados considerando cada molécula redu-
zida a seu centro de gravidade, e o cristal a um conjunto de pontos.
Estabelecendo as leis que regulam as relações entre a simetria
da molécula cristalina e aquela do retículo por ela escolhido, Bra-
vais distingue 32 classes de simetria cristalina, repartidas em 7 tipos
de arranjos reticulares que correspondem exatamente aos 7 sistemas
cristalinos de Haüy e de Weiss e aos 32 tipos de poliedros de Hessel.
E afirma que "o fenômeno da clivagem, e aquele da aparição mais ou
menos freqüente de algumas faces, estão intimamente ligados com a
densidade do tecido reticular das faces".
Um pouco mais tarde, em 1850, Bravais passou a estudar os
fenômenos gerais que dependem das moléculas, afirmando que uma
molécula é um sistema de pontos, realmente um poliedro, dotado,
à semelhança do próprio cristal, de planos e eixos de simetria, de
sorte que a uma simetria molecular determinada corresponde uma
estrutura cristalina igualmente determinada [3]. Assim, a simetria
pré-existente no poliedro molecular é a causa da simetria que se ob-
serva no arranjo cristalino correspondente, e isto explica o fenômeno
de "hemiedria", previamente mencionado por Delafosse.
A contribuição fundamental de Bravais à teoria da estrutura cris-
talina consiste na comprovação de que partículas iguais podem ser ar-
ranjadas em 14 tipos de retículos, diferentes em simetria e geometria,
de tal forma que cada partícula é equivalente a qualquer outra através
de uma operação de translaçâo. Assim, todos pontos de um retículo
são lugares geométricos iguais entre si e com vizinhanças iguais. Ele
considerava o meio cristalino como rigorosamente homogêneo, onde
todas as moléculas constituintes deveriam estar orientadas da mesma
maneira. Entretanto, tal teoria não estava de acordo com certos fa-
tos experimentais, como por exemplo, a polarização rotatória, e a
Coleção CLE V.11
316 Estrutura Cristalina no Século XIX

existência, em muitas substâncias, de cristais destrógiros e levógiros.


Parecia então necessário admitir a presença na estrutura crista-
lina, além dos poliedros moleculares de orientações diversas e super-
poníveis, de outros poliedros não congruentes através da aplicação
das operações de simetria habitualmente aceitas.
Foi o matemático Camille Jordan (1838-1922) [17], quem inicial-
mente estudou grupos espaciais com posições de mesma quiralidade.
Utilizando os resultados de Jordan, Sohncke conseguiu uma solução
do problema geométrico com uma generalidade maior que a ante-
vista por Bravais, já que a condição de equivalência translacional não
justificava uma mudança de orientação após uma simples translação.
Partindo do princípio de que o ponto de vista de um sistema deve-
ria ser o mesmo para cada partícula, porém não necessariamente em
posições paralelas, Sohncke derivou 65 (54 + 11) diferentes arranjos
espaciais com apenas operações próprias, ou diretas (a notação 54
+ 11, indica a presença de 11 pares enantiomorfos que são imagens
especulares entre si) [33].
Entretanto, tornou-se evidente a necessidade de se admitir a
existência de operações impróprias ou inversas, tais que a sua
aplicação mudasse a quiralidade de uma molécula dentro de um cris-
tal. Tais operações seriam os planos de reflexão, os planos de desli-
zamento,, as roto-inversões e os eixos helicoidaís. Pierre Curie [8] e
Leonhard Wulff [44] chamaram a atenção para este fato, de maneira
a fazer Sohncke poder aplicar sua teoria em estruturas cristalinas.
Aí vê-se que uma translação que contenha uma simetria inversa não
s observável se o sistema de partículas for isolado. Por outro lado,
qualquer arranjo onde uma posição é a imagem especular de outra,
e não congruente, da mesma forma que não se pode jamais superpor
uma luva direita com uma esquerda, como já observara Kant [18].
Na seqüência cronológica e de forma independente, Artur Schoen-
ílies e E.V. Fedorov se propuseram a procurar todas as combinações
de objetos regularmente distribmdos em um espaço infinito, desde
que compatíveis com as exigências de homogeneidade cristalina.
Fedorov (1853-1919), o mais proeminente cristalógrafo russo, de-
rivou de forma completa os 230 grupos espaciais, isto é, os diferentes
arranjos periódicos de elementos de simetria no espaço e que hoje em
dia servem como base matemática para a análise estrutural cristalina.
Coleção CLE V.11
Mabel de M. Rodrigues 317

Em "Introdução ao estudo das configurações" [36], iniciado em


1879, ele já delineava suas idéias sobre os grupos em três dimensões.
Este estudo foi desenvolvido em "Simetria dos sistemas reais de con-
figurações", publicado em 1891 [37]. Entretanto, já em 1890, Fedorov
dispunha dos "pre-prints" de seu artigo completo, e os enviou a di-
versos estudiosos de renome, entre os quais, Artur Schoenflies. E é
Fedorov quem fala sobre este trabalho:

Nele é dada uma derivação completa dos sistemas de pontos reais,


assim como está delineada uma derivação completa de todas formas
possíveis de estruturas cristalinas. Os sistemas de Sohncke estão
incluídos entre os demais, apenas como um caso especial, sendo cha-
mados de sistemas simples. Cada um dos grupos está determinado
rigorosamente através de uma equação algébrica [38].

E fato extensamente conhecido que a derivação de Fedorov


foi acompanhada, quase que simultaneamente, pela do matemático
alemão Schoenflies.
Arthur Schoenflies (1853-1928), um professor de Matemática
Aplicada em Gõttingen, se interessou inicialmente por problemas de
movimento de um corpo rígido, e em seguida por "configurações pla-
nas" ,
Entretanto, tais estudos não o prepararam para tratar adequa-
damente com grupos periódicos discretos de movimento, isto é, com
operações de grupos espaciais. Porém, observando os trabalhos de
Sohncke, encontrou-os incompletos, devido a não consideração dos
elementos de simetria do segundo tipo, isto é, eixos de roto-reflexão
e roto-inversão.
Os trabalhos de Schoenflies sobre teoria de estruturas começam
com o artigo publicado em 1887 na Matematische Annalen [31] e com
o livro "Kristallsysteme und Kristallstrucktur" publicado em 1891
[30], onde são derivados matematicamente os 230 grupos espaciais.
Já vimos que, ao mesmo tempo, Fedorov havia chegado, indepen-
dentemente, aos mesmos resultados.
O trabalho de Fedorov consta da derivação dos únicos 230 tipos
de diagramas básicos para estruturas de todos os cristais naturais;
a parte mais importante de seu livro contém os 230 diagramas com-
pilados em quadros compactos. Em 1894, esses diagramas revisa-
dos foram republicados na Zeitschrift für Kristallographie, e em 1900
Coleção CLE V.11
318 Estrutura Cristalina no Século XIX

apresentados por Hilton, na publicação inglesa Mathematical Crys-


tallography, com os créditos totais dados a seu autor.
Ao derivar os grupos espaciais, Fedorov mostrava que seu interesse
básico na morfologia cristalina e seu estudo sobre grupos espaciais,
correspondia ao seu desejo em estudar sistemas reais de configuração
cristalina.
Já o interesse de Schoenflies revelava-se puramente matemático,
ligado à Teoria dos Conjuntos, um assunto bastante controvertido
naquela ocasião. Particularmente, este estudo correspondia a um caso
particular de representação na Teoria dos Grupos, especialmente dos
grupos infinitos.
Enquanto Sohncke e Fedorov consideravam que os grupos espa-
ciais, do ponto de vista físico, apresentariam limitações devidas a
certos conceitos físicos estabelecidos, sendo "não-reais" nos outros
casos, Schoenflies exigia apenas que o grupo envolvendo operações de
simetria fosse possível geometricamente. A força da sua teoria re-
side exatamente nessa separação que fez entre geometria pura e fatos
físicos, insistindo sobretudo em "não limitar o domínio fundamental
(unidade assimétrica) a condições geométricas, aí o cristalógrafo tem
liberdade completa, e não é do escopo da estrutura geométrica lhe
impor restrições" {Encycl. d. Math. Wtss., v. 1, p. 468), como ele
se refere.
Tal duplicidade de trabalho entre Fedorov e Schoenflies nunca
assumiu uma posição de confronto ou dúvida de honestidade por
parte de qualquer um dos dois. São palavras de Fedorov ao tomar
conhecimento dos trabalhos de Schoenflies:
Os artigos de Schoenflies, publicados em Gottingishe Gelerhrte An-
zeigen, chamaram recentemente minha atenção. Vejo com sa-
tisfação, a repetição de muitos componentes importantes de minha
teoria sobre estruturas cristalinas, embora sob forma menos desen-
volvida [39].
E mais adiante, referindo-se à similaridade entre ambos os traba-
lhos:
Entretanto, uma tal concordância é acidental e é dependente da cir-
cunstância de que Schoenflies negligenciou muitos grupos enquanto
repetia outros [39].
Com o mesmo respeito, Schoenflies repetidamente e em seu livro
já citado Kristallsysteme und Kristallstrucktur, se refere a Fedorov
Coleção CLE V.11
Mabel de M. Rodrigues 319

indicando sua prioridade em muitos dos problemas tratados dizendo


textualmente:
A necessidade de expandir a teoria de Sohncke, no sentido de uma
aplicação a estruturas putas, foi enfatizada inicialmente por Fedorov
[30].

E mais adiante:
Já foi publicado um livro em 1890, escrito por Fedorov, onde consta
a derivação completa de todos os grupos espaciais e sua relação
com a simetria cristalina, terminando por fornecer uma bibliografia
completa [30].

A partir daí, uma extensa correspondência é iniciada entre ambos,


envolvendo o profícuo trabalho que desenvolviam2.
Resta, finalmente, mencionar uma outra teoria essencialmente di-
versa para a estrutura cristalina e que foi proposta por William Bar-
low (1845-1934). Esse cientista inglês que apresentara também uma
descrição sistemática dos 230 grupos espaciais (embora mais tardi-
amente e de forma incompleta) [42]3, propõe como alternativa para
representação das estruturas cristalinas, uma teoria simplificada, cor-
respondendo ao empacotamento compacto de átomos, referidos como
corpos esféricos regulares. E a retomada dos trabalhos pioneiros dè
Kepler, Hook e Huygens.
A primeira menção de empacotamento de esferas deve-se a Johann
Kepler em 1611, quando se referiu às formas apresentadas por flocos
de neve. Nessa ocasião, Kleper chegou a discutir b empacotamento
simples cúbico, o de face e corpo centrado cúbicos e o hexagonal
simples [19].
Robert Hook (1635-1703), entretanto, parece ter sido o primeiro a
considerar átomos como partículas esféricas. Ele propôs que todas as
formas cristalinas poderiam ser explicadas com base em arranjos sim-
ples de esferas. Semelhantemente, Christiaan Huygens (1629-1695),
postulou átomos ovóides para explicar a clivagem da calcita.
2
Uma discussão completa e detalhada do relacionamento científico entre Fedo-
rov e Schoenflies consta do Livro Fi/ty Vears of X-Ray Diffraction, editado por
P.P. Ewald, International Union oí Cristallography. Utrecht : The Netherlands,
1962.
3
Uma comparação entre os resultados de Fedorov, Schoenflies e Barlow
encontra-se em Phil. Mag., Feb. 1902.
Coleção CLE V.11
320 Estrutura Cristalina no Século XIX

A teoria matemática do empacotamento, entretanto, somente foi


levantada no século XIX por Ludwig Seeber e por Carl Friedrich
Gauss, já mencionados.
Metalurgistas em Gottingen, como Gustav Tamman (1861-1938),
e químicos em Cambridge, como Barlow, consideraram o empacota-
mento como uma expressão menos sistemática, porém mais elemen-
tar, para estruturas cristalinas, podendo se aplicar a compostos muito
simples. O empacotamento compacto visualizava os átomos como es-
feras de diâmetro característico e que se empacotam proximamente
de maneira a se tocarem.
Tal teoria, embora não ofereça uma sistemática geométrica lógica
para estruturai cristalinas, apresenta certas características de reali-
dade física que a Teoria dos Grupos Espaciais não permite, e é utili-
zada até hojè para representar estruturas de halogenetos alcalinos e
substâncias elementares [42].

2. Discussão

Apesar das teorias mencionadas terem sido laboriosamente desen-


volvidas, o seu significado físico permaneceu obscuro durante todo o
século XIX.
Qual seria, na realidade, a natureza da "partícula" inserida e
formadora do esqueleto de um edifício estrutural comandado por ele-
mentos de simetria?
A partir da época em que o estudo das formas regulares de mi-
nerais e de cristais preparados artificialmente assumiu a situação de
uma ciência exata através dos trabalhos de Haüy, e que átomo e
molécula foram sendo aceitos como os constituintes básicos da natu-
reza, o estado cristalino tornou-se objeto de pesquisas por duas razões
distintas. Por um lado, ele possibilitava o uso de meios práticos para
obtenção de substâncias em estado de pureza; por outro lado, os cris-
tais de formas regulares e geometricamente recorrentes pareciam for-
necer meios para que se pudesse aprender a conhecer a forma e o tipo
de agrupamento das partículas primárias iniciais, e que, de acordo
com o ponto de vista da teoria atômica, formavam as substâncias
moleculares.
Ora, se as partículas de qualquer substância, quando liberadas
e com movimentos livres através de processos de solução, fusão ou
Coleção CLE V.11
Mafaei de M, Rodrigues 321

volatilização, se reúnem novamente durante um processo posterior de


solidificação, fazem-no produzindo cristais de formas recorrentes, fica
óbvia a conclusão de que tais partículas primárias individuais pos-
suem características definidas nas diferentes direções do espaço. E a
inferência que se segue é decididamente lógica, no sentido de reco-
nhecer que tais formas primitivas deveriam se desenvolver ao longo
das malhas de uma rede tridimensional.
De acordo com esse ponto de vista, a propriedade essencial do
estado cristalino é a sua periodicidade interna.
Entretanto, chamando a partícula unitária de "molécula inte-
grante", Haüy não conseguira decidir sobre qual seria a sua natureza.
A questão foi então levantada: até que ponto a Cristalografia
seria obrigada a assumir uma estrutura molecular, ou atômica, para
a matéria?
Sobre isto, veja-se o ponto de vista de Willelm Ostwald (1853-
1932) em "Allgemeine Chemie":
As formas geométricas dos cristais. podem ou derivar-se de polie-
dros elementares, como queria Haüy cora suas moléculas integrantes
e sua teoria dos decréscimos, e onde o espaço seria ocupado con-
tinuamente; ou pode-se considerar as partículas elementares como
constituindo-se de malhas de pontos, arranjados geometricamente
nos vértices de uma figura primitiva tridimensional; ou ainda, de
esferas ou elipsòides elementares, que se supõe empilhados uns sobre
os outros à maneira de balas de canhão. Esses dois últimos sistemas
consideram a existência de espaços vazios; já a primeira hipótese
relaciona a.forma cristalina a algum cristal primitivo e portanto não
o explica [25].

E podemos agora citar Otto Lehmaxm (1855-1912) em "Molecular


Physik":
Tem-se dito que a estrutura dos cristais é um dos suportes princi-
pais da teoria molecular, porém se se considerar a matéria contínua
sem pelo menos pontos que sejam geométrica ou simetricamente dis-
tintos, uma estrutura anisotrópica dos cristais se torna certamente
impensável [21].

Com esse ponto de vista não concorda Ostwald:


A estrutura dos cristais não fornece provas para uma constituição
molecular da matéria, na medida em que os dados de elasticidade não
exigem necessariamente que ocorra um arranjo molecular, porém for-
malmente podem se aplicar da mesma maneira à matéria contínua.
Coleção CLE V.11
322 Estrutura Cristalina no Século XIX

Entretanto, o ponto de vista molecular apresenta a vantagem de


uma maior coincidência e conduz aos mesmos resultados com uma
simplicidade muito maior, sendo assim mais convincente [25].

Na realidade, a suposição de uma estrutura interna periódica para


os cristais foi objeto de discussões prolongadas e profundas entre
os estudiosos da Teoria da Elasticidade, especificamente Henry Na-
vier (1785-1836), Augustin-Louis Cauchy (1789-1857) e Siméon-Denis
Poisson (1781-1840), a partir de 1821.
Nesse ano, Navier apresentou uma comunicação (publicada em
1827) à Academia de Paris, onde procurava fornecer uma resposta
a um dos principais problemas da época, ou seja, ele estabelecia
equações que descreviam o movimento de uma deformação elástica
em um corpo sólido. A fim de derivar tais equações, Navier assumia
que o corpo em questão consistia de moléculas arrumadas ao acaso e
que exerceriam forças centrais, repulsivas e atrativas, umas sobre as
outras. Se o corpo se deforma, então as distâncias e as forças entre
as moléculas se alteram, constituindo tensões associadas com a de-
formarão produzida [24]. Equações semelhantes foram derivadas por
Poisson em 1829 [26].
Navier foi o primeiro a estudar as equações gerais do equilíbrio e
vibrações de sólidos elásticos. Considerava o material como isotrópico
e suas equações continham uma única constante representando a
natureza do sólido considerado. Não levavam em consideração as
funções de variáveis de Lagrange, características da deformação, e só
se aplicam quando se aceita a hipótese molecular newtoniana.
Por esses motivos, muitas objeções foram feitas ao método de
Navier, que também substitma as somas das forças que partiam das
moléculas individuais em posições randômicas, por integrais.
Cauchy, um dos "referees" da comunicação de Navier, interessou-
se pelo assunto, e assumiu uma posição independente e mais formal,
substituindo o uso de um modelo físico de sólido por um modelo
matemático considerando que as deformações e as forças eram mutu-
amente proporcionais, isto é, generalizando a lei de Hooke. Para um
meio isotrópico, Cauchy chegou a equações semelhantes às de Navier,
exceto pelo fato de que elas continham duas constantes elásticas como
fatores de proporcionalidade, diferentemente das equações de Navier
que continham apenas uma [6].
Coleção CLE V.11
Mabel de M. Rodrigues 323

Cauchy se perguntava então se tal discrepância seria uma con-


seqüência de suposições físicas diferentes, ou apenas resultado das
aproximações feitas, particularmente a substituição que Navier fizera
de somas por integrais.
A fim de resolver tal dúvida, Cauchy adotou o modelo de Navier
de centros de forças moleculares, e tornou-o completamente determi-
nado assumindo que as moléculas ficavam sobre os pontos nodais de
um retículo. Tal suposição permitiu-lhe considerar também o caso de
um meio anisotrópico, assumindo um retículo de simetria baixa. Com
tais considerações, Cauchy publica um segundo artigo com um sis-
tema de equações de movimento para os componentes da deformação
onde, para o caso geral de um sistema triclínico, aparecem 15 cons-
tantes elásticas expressando as relações entre os 6 componentes de
esforço e tensão [6].
A suposição de proporcionalidade mais geral entre dois conjuntos
de 6 quantidades, requer 6x6 coeficientes; no caso de forças cen-
trais (ou de uma forma geral, devido à conservação da energia), esse
número fica reduzido de 36 para 21 no caso triclínico, e para 2 se o
meio for isotrópico, cúbico. Cauchy obteve mais seis relações para o
caso triclínico e uma para o isotrópico, exprimindo a condição de que
o estado não-deformado do meio não sofre tensão.
Com tais considerações, as equações para o meio isotrópico ficam
iguais às de Navier.
Do ponto de vista físico parecia que as suposições de Cauchy
eram corretas. Porém, a redução do número de coeficientes elásticos
independentes, não recebia confirmação através de nenhuma medida
experimental.
Como conseqüência, os trabalhos matemáticos de Navier, Poisson
e Cauchy sobre a Teoria da Elasticidade, suscitaram motivos para
discussões e sua validade foi muito questionada, não encontrando
também apoio em medidas experimentais da época.
A partir daí, o modelo cristalino de Cauchy, qual seja, de que em
estado natural um cristal tem suas moléculas arrumadas segundo um
motivo tridimensional, foi desacreditado.
Entretanto, Cauchy tinha tido a intuição correta e seus conceitos
de regularidade interna e periodicidade características para a matéria
cristalina viriam a ser provados experimentalmente quase setenta
Coleção CLE V.11
324 Estrutura Cristalina no Século XIX

anos depois. Assim, a descoberta por Max von Lane (1879-1960)


da difração de raios-X (em comunicação apresentada à Academia de
Ciências da Bavária em 8 de junho de 1912), trouxe a prova irre-
futável da periodicidade interna cristalina.
Quanto à falha que teria derrubado a teoria construída por Cau-
chy, foi detectada por Max Bom em 1913. Na realidade, Cauchy
assumira que as moléculas, isto é, os centros de força, formam um
retículo simples. Com isto, cada molécula se constitui em um centro
de simetria de todo o sistema ilimitado e assim permanece no caso
de uma deformação homogênea do corpo de que faz parte. As forças
exercidas sobre uma molécula particular por todas as outras entram
em equilíbrio, seja qual for a deformação ocorrida.
Corrigindo, Bom considerou o caso mais geral, onde cada cela
contém mais de uma molécula. Uma deformação homogênea consiste
então em uma mudança na forma da cela o que conduz ao efeito
microscópico observável de esforço e a um rearranjo das moléculas
dentro da cela, um "deslocamento interno", que não é observável.
Apenas em alguns casos, como nos de cristais piezoelétricos, tal
fenômeno é perceptível porque, aí, ele conduz a uma mudança no
momento elétrico de cada cela. A maior liberdade ganha por um
cristal capaz de deslocamentos internos, elimina a interdependência
de constantes elásticas que é expressa pelas relações de Cauchy.
Uma das conseqüências da demonstração de não-validade dos re-
sultados de Cauchy a cristais de estrutura suficientemente geral, per-
mitiu a Bom desenvolver sua teoria sobre dinâmica cristalina clássica
[1].
De qualquer maneira, até o fim do século XIX, apenas conjecturas
foram levantadas com respeito ao tamanho das celas dos retículos
cristalinos, qual o tipo e quantidade de seu conteúdo, e que forças
mantém um cristal coeso.
Também não era possível correlacionar um dado cristal com qual-
quer grupo espacial, embora suas características externas fornecessem
dados sobre seu sistema cristalino e eventualmente sobre sua simetria
pontual.
Foi somente após os trabalhos de Laue e dos Bragg, William H.
Bragg (1862-1942) e seu filho W. Lawrence Bragg (1890-1971) em
comunicação à Cambridge Philosophical Society em março de 1913)
Coleção CLE V.11
Mabel de M. Rodrigues 325

sobre difração de raios-X, no começo do século seguinte, que se iniciou


a longa jornada de elucidação das estruturas cristalinas.

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Coleção CLE V.11
21

A Evolução da Análise Dimensional


de Vaschy (1890)a Buckingham (1914):
O "Teorema de PI"

Fernando L. Carneiro

1. Introdução geral: O "Teorema de PI" segundo Vaschy e


Buckingham
A história da análise dimensional iniciou-se em uma etapa em que
o "princípio da homogeneidade", utilizado em Geometria Analítica
desde Descartes (1637) [10], abordado analiticamente por Euler
(1748) e aplicado à Mecânica por Foncenex (1760) e Legendre (1823)
[18], foi explicado e ampliado graças à introdução do conceito de "di-
mensões" das grandezas físicas. Estão ligados a esta fase os nomes
de Fourier, Comte e Maxwell [5, 6, 7, 8, 12, 13, 19, 20, 21]. Junta-
mente com o conceito de dimensões deis grandezas físicas foi introdu-
zido por Fourier [5, 13] o de "constantes físicas específicas", fatores
de proporcionalidade dimensionais de leis físicas, como a condutivi-
dade térmica e a capacidade calorífica específica. À distinção entre
unidades "fundamentais" (independentes entre si) e "derivadas" (su-
bordinadas às primeiras) parece ter sido claramente formulada, pela
primeira vez, por Comte [5, 6, 7, 8]). As "fórmulas dimensionais"
Coleção CLE V.11
330 A Evolução da Análise Dimensional

- fórmulas simbólicas que exprimem a subordinação dais unidades


derivadas às fundamentais - foram finalmente propostas por Maxwell
[19, 20, 21].
Nessa etapa, anterior ao "teorema de PI", a análise dimensional
consistia quase que exclusivamente na verificação da correção ou con-
sistência das equações pela aplicação do "princípio da homogeneidade
dimensional", segundo o qual toda equação que exprima matema-
ticamente uma lei física ou processo físico deve ser homogênea em
relação a cada uma das grandezas fundamentais do sistema coerente
de medidas adotado. A referida explicação desse princípio decorre da
condição de invariância das leis físicas relativamente a quaisquer mu-
danças das magnitudes das unidades fundamentais, e conseqüentes
alterações das unidades derivadas [6, 7, 8, 12, 13].
A partir de 1890, com as contribuições pioneiras de Vaschy [25,
26, 27, 28, 29] iniciou-se uma nova etapa, que se estendeu até às
vésperas da 1° Guerra Mundial, na qual a análise dimensional passou
a ser aplicada de modo sistemático à formulação matemática das leis
e processos físicos, à interpretação analítica, ou simplesmente gráfica,
dos resultados de pesquisas experimentais, e ao estabelecimento das
condições de semelhança física.
A principal ferramenta utilizada nessa etapa, extremamente fe-
cunda, foi o chamado "teorema de PI". Estão ligados a essa nova fase
da história da análise dimensional os nomes de Vaschy [25, 26, 27,
28, 29], Lord Rayleigh [4, 15, 16,17, 23], Einstein [11] e Buckinghaxn
[3], entre outros. Neste trabalho serão comentadas especialmente as
contribuições desses quatro cientistas.
Nos anos mais recentes, a partir da década de 20, em que surgiram
vários tratados sobre a sistematização da análise dimensional, como
por exemplo os de Palacios [22], Langhaar [14] e Sedov [24], e artigos
como o de Louis Brand [2], foi ela aplicada, com êxito espetacular
por vezes, à experimentação com modelos físicos - principalmente
com modelos reduzidos. O "teorema de PI" continuou e continua
sendo a ferramenta principal, o que salienta a importância da etapa
1890-1914, de Vaschy a Buckingham, em que foi estabelecido.
Graças ao "teorema de PI" o número de variáveis de um problema
físico pode ser reduzido com a substituição das variáveis originais
por um número menor de combinações dessas variáveis em "produtos
Coleção CLE V.11
Fernando L. Carneiro 331

de potências" adimensionais, hoje em dia designados como "número


pi" (PI maiúsculo, letra grega correspondente à latina P, inicial de
"produto").
0 teorema, embora geralmente atribuído a Buckingham em 1914,
foi clarissimamente formulado por Vaschy em 1892 [26, 28] e em 1896
[25].
Para comprovar essa afirmação é transcrita a seguir a for-
mulação de Vaschy em seu "Exposé des Phénomènes Electriques et
Magnétiques" (1896, p. 13-14) [25], com as notações de [28] e [26]:
Toda relação homogênea entre n grandezas cujos valo-
res numéricos dependem da escolha das unidades, é redutível a uma
relação entre (n — p) parâmetros, que são combinações monômias de
ai, 02,..., an e têm dimensões nulas, desde que entre as n unidades
das grandezas ai,a2,...,an se possam escolher p arbitrariamente.
Esse número p não pode evidentemente ser superior ao número de
unidades fundamentais1.

Essa formulação de Vaschy pode ser considerada perfeita, e sa-


tisfaz as mais severas exigências de rigor apresentadas pelos autores
modernos que escreveram tratados sistematizando a análise dimen-
sional. E até mesmo superior à de Buckingham em 1914 [15] pois
considera o caso mais geral em que o "posto" ("rank") da matriz di-
mensional, que é o número p de Vaschy, seja inferior ao número de
unidades fundamentais do sistema de unidades de medida adotado2.
Buckingham tem sido criticado por autores modernos, como Palá-
cios ([22], p. vii e 40-1), como não tendo considerado expressamente
esse caso mais geral. Essa crítica é baseada no seguinte texto ([23],
p. 350-1):3
1 "Donc toute reiation homogène entre n qnantités ai, aj,..., dont les va-
leuis numériques dépendent du choix des unites, est reductible à une reiation
entre (n — p) paramétres qui sont des combinaisons monómes de ai, as,..., an et
ont des dimensions nulies (L0M0T0... = 1), pourvu que, parmi les n unités des
grande urs ai, as,..., am on en puisse dioisir p arbitrairment. Le nombre p ne
peut évidemment étre supérieur au nombre des unités íondamentales.15
2 ^Matriz dimensional55 é uma matriz cujas colunas correspondem aos diver-
sos parâmetros do problema, cujas linhas correspondem às grandezas de base do
sistema de unidades de medida adotado, e cujos elementos são os "expoentes da
dimensão55 das grandezas correspondentes aos parâmetros do problema,
" "The general conciusion from the principie of dimensionai homogeneity may
therefore by stated as foliows: If a reiation subsists among any number of physical
^uantities of n diiferent kinds, and if the symbois Qi,Q2,...,Qn represent one
Coleção CLE V.11
332 A Evolução da Análise Dimensional

A conclusio geral do princípio da homogeneidade dimensionai pode


ser formulada da seguinte maneira: Se existe uma relação entre um
número qualquer de grandezas físicas de n tipos diferentes, e se os
símbolos Qi, Q2,.. •, Qn representam uma grandeza de cada tipo,
enquanto as restantes grandezas de cada tipo são especificadas por
suas relações r5, r", ..., etc., com a grandeza desse tipo particular-
mente selecionada, então qualquer equação que descreva de modo
completo essa relação é redutível à forma
...jD,-,!1,r", ...) = 0.
Se ib é o número de unidades fundamentais requerido em um sistema
absoluto para a medida dos n tipos de grandezas, o número de pro-
dutos adimensionais 11 é

tsn—& .

No entanto, confrontando esse texto com outros do mesmo artigo,


verifica-se que a crítica é exagerada. Embora com menos clareza
que Vaschy, Buckingham refere-se a k unidades de medida de k das
grandezas Q, "que são independentes e portanto poderiam ser usadas
como unidades fundamentais" ([3], p. 351)4.

quantity of each kind, while the remaining quantities of each kind are speciíied by
their ratios r', r", ..., etc., to the particular quantity of that kind selected, then:
any equation which describes this relation completely is reducible to the form
^(IIi,n2)...,n<, r', r», ...) = 0
If k is the number of fundamental uiíits xequired in an absolute system for meas-
uring the n kinds of quantity, the number of dimensionless products II is
j = n — F.

4
Aliás Palacios também critica Vaschy ([22], p. viii) sem fundamento, ao afir-
mar que "o teorema em quéstão já teria sido enunciado por Vaschy em 1892, sem
no entanto se referir expressamente a monômios de dimensão nula". Na realidade,
no texto da pg. 25 do artigo de 1892, publicado nos "Annales Télégraphiques"
[28], Vaschy se refere aos parâmetros Ai, A2,...,Xn-p como "funções monomi-
ais" das grandezas ai,«2,..., an, sem especificar que têm dimensões nulas; no
entanto, na página seguinte (p. 26), esclarece que é possível encontrar expoentes
das grandezas fundamentais 01,02,..., ap tais que os valores numéricos de Xi,X2,
..., "sejam independentes dos valores arbitrários das unidades fundamentais". E
o texto de 1896 ([25], p. 13-4), já citado, não deixa qualquer dúvida: refere-se a
"parâmetros que são combinações monòmias" com "dimensões nulas".
Fernando L. Carneiro 333

Coleção CLE V.11


2. Vaschy e as teorias de Maxwell. Necessidade de novas
grandezas fundamentais. Demonstração do "Teorema
de PI" e suas aplicações ao eletromagnetismo
Aimé Vaschy, da "École Supérieure de Télégraphie" e examina-
dor de admissão à "École Polytéchnique", além de suas obras "Traité
d'Électricité et Magnétisme", de 1890 [29] e "Exposé des Phénomènes
Électriques et Magnétiques fondé uniquement sur 1'expérience et le
raisonnement", de 1896 [25], publicou em 1892 dois artigos de im-
portância fundamental para a análise dimensional, no periódico "An-
nales Télégraphiques": "Sur les lois de similitude en Physique" [28].
"Sur les lois de similitude en Electricité" [27], e apresentou à Aca-
demia de Ciências da França a comunicação "Sur les considérations
d'homogénéité en Physique" [26].
Na tese de doutorado de Paulo Abrantes "La recéption en France
des theories de Maxwell concernant électricité et le magnétisme"
[1], encontram-se as seguintes observações; "Seria necessário, por
exemplo, determinar o papel que tenha tido a "École Supérieure de
Télégraphie" na recepção das teorias de Maxwell na França. Quere-
mos assinalar aqui os trabalhos de A. Vaschy, que era docente nessa
escola, sobre as teorias de Maxwell. Desde 1886 em seu artigo "Sobre
a natureza das ações elétricas em um meio isolante", vêmo-lo discutir
as idéias de Maxwell. Em seu "Traité électricité et de Magnétisme"
(1890), emprega muitos conceitos desse sábio. Com o fim de respei-
tar certos limites neste trabalho, eliminamos uma análise, prevista
inicialmente, da obra de Vaschy, que certamente teve um papel im-
portante na recepção, na França, das teorias de Maxwell sobre a
eletricidade e o magnetismo" ([1], p, 385). "Não exploramos, neste
trabalho, esse "filão técnico" na recepção das teorias do sábio escocês,
mas ele nos parece muito promissor" ([1], p. 25).
Embora criticando certas contradições existentes na metodologia
de Maxwell, Vaschy em seus dois tratados, o de 1890 e de 1896,
manifesta sua admiração por esse cientista. No prefácio do "Traité
d'électricité et de magnétisme" ([29], p. 11), apresenta a seguinte
descrição sintética do desenvolvimento da teoria eletromagnética:
Duas leis experimentais formuladas por Coulomb permitiram fa-
zer um estudo matemático completo da eletrostática e do magne-
tismo. A teoria das correntes em regime permanente decorre da lei
de Ohm. A do eletromagnetismo, da eletrodinâmica e da indução
Coleção CLE V.11
334 A Evolução da Análise Dimensional

eletromagnética tem como base a lei elementar de Laplace relativa


à ação de um ímã sobre a corrente. Enfim, na falta de uma lei
ainda não demonstrada experimentalmente, uma hipótese devida ao
gênio de Maxwell, segundo a qual "a variação do fluxo de indução
de um tubo de força em um dielétrico dá lugar aos mesmos efeitos
magnéticos de uma corrente,^ permitiu completar de algum modo
o edifício e estabelecer uma terapia geral dos fenômenos elétricos
e magnéticos compreendendo os fatos já conhecidos e pondo em
evidência, por outro lado, a velocidade finita de propagação das
ondas eletromagnéticas. A importância capital das conseqüências
disso decorrentes torna vivamente desejável uma verificação experi-
mental da hipótese de Maxwell; as verificações tentadas até agora
não parecem conclusivas. Seja como for, a idéia da transmissão das
ações de próximo, emitida há muito, notadamente por Faraday, pa-
rece impor-se hoje com um caráter de evidência ([29], p. 11).

A verificação experimental tão desejada por Vaschy acabara de


ser feita por Hertz, quando foi publicado o aTraité". Iniciadas em
1888, com a demonstração da emissão e da propagação das ondas
eletromagnéticas produzidas por osciladores, as experiências de Hertz
abordaram os mais diversos aspectos do fenômeno, com a utilização
de espelhos metálicos, de grades de fios paralelos, e de um prisma de
asfalto, permitindo o estudo de sua reflexão e refraçâo. Até mesmo
um valor aproximado de velocidade de propagação foi determinado,
por meio da medição da distância entre nós e ventres de uma onda
estacionaria.
Em 1896 Vaschy volta ao assunto, na Introdução do "Exposé des
phénomènes électriques et magnétiques":
Por fim, Maxwell introduziu um novo elemento, que lhe permitiu ser
o primeiro a elaborar uma teoria matematicamente exata da Eletrici-
dade e do Magnetismo. Esse elemento é o deslocamento elétrico, que
ele não define com precisão, mas ao qual atribui, por uma notável in-
tuição, uma propriedade (incompressibilidade da eletricidade) equi-
valente a uma lei física cuja exatidão pode ser demonstrada experi-
mentalmente ([25], p. xi).

Vaschy demonstrou extraordinária clarividência ao antecipar-se


ao sistema S.L, insistindo na necessidade de mais duas grandezas
de base, uma térmica e outra elétrica, além das três grandezas
geométrico-mecânicas tradicionais, LMT.
No seu "Traité d^électricité et de magnétisme" [29] encontra-se o
seguinte texto, de um certo modo "profético":
Coleção CLE V.11
Fernando L. Carneiro 335

O estudo do calor introduz novas grandezas; quantidade de calor


(C^)} temperatura (c), calor específico e condutividade térmica.
Pela própria definição de calor específico e de condutividade, suas
unidades se ligam às unidades C^, e e às da mecânica: são portanto
unidades derivadas. Resta a considerar Ch e c*.
Em virtude de um princípio demonstrado de modo constante pela
experiência, uma quantidade de calor Ch é equivalente a um certo
trabalho w. £ o que exprime a relação:
w = J.ch
na qual J é um coeficiente puramente numérico igual a 425 se a
unidade w = 1 kilogrametro e Ch = 1 grande caloria. Pode-se, se
assim se prefere, tomar Ch = tü, e então J = 1; é o que faremos
freqüentemente nas aplicações elétricas. De qualquer modo, Ch é
uma unidade derivada, fazendo par com t/;, como o faria uma uni-
dade especial de força viva ou de momento mecânico.
Quanto à unidade de temperatura, ela não pode ser amarrada ao sis-
tema L,M e T, e constitui, no estado atual de nossos conhecimentos,
uma quarta unidade fundamental ([29], p. 6, 7).

Gom o advento da teoria cinético-molecular iniciou-se entre a mai-


oria dos aplicadores da análise dimensional uma grande confusão, que
só foi definitivamente removida com a inclusão da temperatura como
unidade fundamental no sistema S.I.. Essa confusão culminou com
a famosa polêmica entre Lord Rayleigh e Riabouchinsky, na qual
também interveio, em apoio a Lord Rayleigh, Buckingham [4, 16,
17, 23]. Ao aplicar a análise dimensional ao problema da convecção
forçada (transferência de calor de um corpo sólido bom condutor a
uma corrente líquida), Lord Rayleigh, seguindo o exemplo de Fourier,
considerou a temperatura como grandeza de base, independente da
quantidade de calor. Riabouchinsky, apoiando-se na teoria cinética,
criticou a solução de Lord Rayleigh, afirmando que a temperatura
e a quantidade de calor eram grandezas com a mesma dimensão,
pois ambas teriam as dimensões da energia mecânica. No èntanto a
solução de Lord Rayleigh, apresentando dois "números PI" no caso
de ser desprezado o efeito da viscosidade do líquido, e três caso seja
considerada, concordava com os resultados experimentais, ao passo
que a de Riabouchinsky fazia surgir mais um "número PI", falso.
A razão da confusão decorre de dois erros. Em primeiro lugar,
quando uma mesma grandeza física é ligada a duas ou mais outras por
outras tantas leis físicas universais, somente o fator de proporcionali-
Coleção CLE V.11
336 A Evolução da Análise Dimensional

dade de uma delas pode ser feito igual a 1, e adimensional. Os fatores


de proporcionalidade das demais leis têm de ser mantidos, como cons-
tantes físicas universais, dimensionais. O exemplo clássico do que foi
afirmado é o das leis "2* Princípio da Mecânica" e "Lei da Gravitação
Universal", ambas de Newton. Fazendo igual a 1, e adimensional, o
fator de proporcionalidade do "2° Princípio da Mecânica", de New-
ton, que deveria ser a "constante dinâmica", a força passa a ser uma
grandeza derivada, com as dimensões de uma massa multiplicada por
uma aceleração. Nesse caso, a constante de gravitação, dimensional,
tem que ser mantida na lei da gravitação universal. Nõ caso do calor,
se faz igual a 1, e adimensional, o "equivalente mecânico de calor",
não seria lícito fazer também iguais a 1, e adimensionais, a constante
dos gases ideais, R, ou a constante de Boltzmann, K. Além disso, o
primeiro membro da equação dos gases ideais,

PVmol=

tem as dimensões de uma energia por mol, ou densidade molar de


energia (o "mol" foi recentemente incluído entre as unidades fun-
damentais do sistema S.I.). Assim como a massa específica, que é a
massa por unidade de volume, não tem a dimensão M de uma massa,
e sim a dimensão M/L3, também a temperatura e, mesmo fazendo-se
R = 1, adimensional, teria a dimensão E/mol (energia por mol) e não
E (energia). 0 mesmo raciocínio é aplicável à lei da teoria cinética

5 = iüre

na qual £ não é simplesmente uma energia, mas sim uma energia


(média) por grau de liberdade por molécula, isto é, também uma
densidade de energia e não uma energia.
Além de pugnar pela manutenção da temperatura como grandeza
fundamental, Vaschy, já no seu "Traité" de 1890 [29], opõe-se à du-
plicidade dos sistemas de unidades então utilizadas em Eletricidade
e Magnetismo: o sistema eletrostático e o eletromagnético. Maxwell,
sob a influência de uma teoria puramente mecânica da Eletricidade, so
admitiu como grandezas de base as grandezas geométrico-mecânicas
tradicionais, L, M e T. Decorreram daí os dois sistemas, em que
eram respectivamente supostas iguais à unidade, e adimensionais, os
Coleção CLE V.11
Fernando L. Carneiro 337

fatores de proporcionalidade da 1" lei de Coulomb (o inverso da per-


nxissividade elétrica do vácuo) e a lei de Ampère relativa à interação
de correntes paralelas (a permeabilidade magnética do vácuo). Na re-
alidade, como essas leis ligam a força mecânica a grandezas elétricas,
um desses fatores deveria ser mantido como constante física univer-
sal, já que o fator de proporcionalidade de outra lei ligando a força a
outras grandezas, o 2- Princípio de Newton, já havia sido feito igual
à unidade e adimensional (os fatores da 1° Lei de Coulomb e da de
Ampère reduzem-se a um, pois são ligados pela conhecida relação de
seu produto com a velocidade da luz).
Vaschy propõe então, que além de L, M, T e 0, seja ainda ado-
tada como uma quinta grandeza de base um dos referidos fatores de
proporcionalidade ou uma outra grandeza elétrica, como por exemplo
a quantidade de eletricidade ([29], p. 9, 10). O sistema S.I. adotou
como quinta grandeza a intensidade de corrente elétrica. Mais uma
vez Vaschy foi "profético".
E muito sugestivo e interessante examinar-se como Vaschy chegou
a essa conclusão: foi precisamente pela aplicação da análise dimensio-
nal ao problema da linha telegráíica ou problema de Lord Kelvin (W.
Thowson). Quando do projeto do primeiro cabo telegráfico subma-
rino, o "cabo Atlântico", em 1855, Lord Kelvin resolveu o problema
da integração da "equação do telégrafo", fazendo a simplificação de
desprezar a auto-indutância, e considerar apenas a resistência elétrica
R e a capacitância C da linha. Chegou a uma expressão em que a
intensidade da corrente I no ponto de chegada, após o tempo t, além
de proporcional ao quociente E/R da força eletromotriz aplicada na
origem pela resistência do cabo R, é função do parâmetro adimen-
sional t/{CR) (tempo dividido pelo produto da capacitância pela
resistência).
Vaschy, para ilustrar sua demonstração do "teorema de PI", chega
à mesma conclusão de Lord Kelvin pela simples aplicação da análise
dimensional, sem no entanto determinar a forma da referida função.
Sendo seis os parâmetros do problema (tempo, comprimento da linha,
sua capacitância C sua resistência R, força eletromotriz E aplicada
na origem, e intensidade da corrente I no ponto de chegada após o
referido tempo), dois serão os "números PI", se o número de grande-
zas fundamentais for quatro (as três grandezas geométrico-mecânicas
338 A Evolução da Análise Dimensional

Coleção CLE V.11


LMT e mais uma grandeza eletromagnética, por exemplo a capa-
citância). 0 primeiro "número PI", I.R/E, é portanto função do
segundo, t/{CR).
No entanto, se não fosse incluída uma grandeza eletromagnética
entre as grandezas de base, três seriam os "números PI", sendo um de-
les falso, sem sentido físico. Essa a principal justificativa apresentada
por Vaschy para a necessidade da nova grandeza base eletromagnética
[11].
Posteriormente ([26, 27]), Vaschy aperfeiçoou a solução de Lord
Kelvin, introduzindo, entre os parâmetros do problema, a auto-
indutância da linha.
Na solução de Lord Kelvin, como tanto a resistência R como a
capacitância C são proporcionais ao comprimento da linha, conclui-se
que o tempo necessário para que um sinal emitido na origem alcance
o ponto de chegada é proporcional ao quadrado desse comprimento.
Vejamos finalmente como Vaschy demonstra o "teorema de PI",
em [27]:
A lei de semelhança mais geral em mecânica é a seguinte:
Sejam ai, a?, 03,..., an grandezas físicas cujas p primeiras são re-
feridas a unidades fundamentais distintas, e as {n — p) últimas a
unidades derivadas das p unidades fundamentais.
Se entre essas grandezas existe uma relação
■ffoi, «2,..., On) = 0 (1)
que subsista sejam quais forem as magnitudes arbitrárias das uni-
dades fundamentais, essa relação pode reduzir-se a uma outra entre
no máximo (n — p) parâmetros, seja:
/(iijXa,..., jn-.p) = 0 (2)
sendo os parâmetros xi, X2,..., x„-p funções monômios de
ai, aa,por exemplo:
xi .
Para demonstrar o teorema que acabamos de enunciar, observamos
que as grandezas ap^i, ap4.2,..., an, sendo referidas a unidades de-
rivadas, podem-se encontrar expoentes a, ar', tais que
os valores numéricos das relações
Xl 1
â \ ^

sejam independentes dos valores arbitrários das unidades fundamen-


tais.
Coleção CLE V.11
Fernando L. Carneiro 339

Como se vê, os expoentes a, A de Vaschy são as "di-


mensões" da grandeza dp-n na base constituída pelas p primeiras
grandezas, que têm unidades independentes entre si e podem por-
tanto ser adotadas como base; a', /F, ..., A' são as "dimensões" da
grandeza ap-f2? etc...
Continua Vaschy:
Ora, a relação dada, (1), pode ser escrita
F(ai,02,... ,ap, ACI,X2, ...,Xn-p) = 0 (3)
Mas, fazendo variar as grandezas das unidades fundamentais,
é possível fazer variar arbitrariamente os valores numéricos das
grandezas ai,«2,..., an, enquanto que os valores numéricos de
<*1, <12,, On-p não se alterarão. Como a solução deve subsistir, se-
jam quais forem os valores arbitrários de ai, «2,..., api ela deve ser
independente desses parâmetros, assume assim a forma mais simples
/(xi,X2,...,x„-.p) = 0(4) (4)

Os parâmetros adimensionais xi, X2,..., xn-p são precisamente os


que Buckingham denominou, cerca de 20 anos mais tarde, "números
PI". E p (que em [25] Vaschy designa como K), é o "posto" da matriz
dimensional.
A demonstração de Vaschy é simples, clara e plenamente satis-
fatória, superior mesmo às de Buckingham e de vários autores mo-
dernos.
Freqüentemente tem sido apresentada uma modificação [2, 24] da
demonstração de Vaschy: se as p unidades adotadas como base tive-
rem suas magnitudes, que são arbitrárias, divididas pelos fatores ar-
bitrários fci, A;2,..., fep, seus valores numéricos serão multiplicados por
fci, A:2,..., Ãp e os valores numéricos das grandezas ap+i, etc. serão
multiplicados por k*.k^ . . etc. . . Fazendo ki = l/ai,^ = 1/^2?
etc. a relação (1) se transforma em

/(l, 1, . . . , 1, Xf, X2, . . • , Xn~p) — O

que eqüivale à relação (3).

Essa modificação já havia sido indicado por Vaschy, em [25], p.


13.
Coleção CLE V.11
340 A Evolução da Análise Dimensional

3. Lord Rayleigh (John W. Strutt): "O Método das Dimen-


sões e suas Aplicações"

A aplicação da análise dimensional a problemas de física, por meio


da redução do número de variáveis propiciada pelos parâmetros adi-
mensionais hoje designados como "números PI", tornou-se freqüente
na segunda metade do século XIX e início do século XX, mesmo sem
uma clara formulação do "teorema de PI". Surgiram então "números
PI" designados pelos nomes de destacados pesquisadores, como, na
mecânica dos fluídos, os "números" de Froude, de Reynolds e de
Strouhal.
A análise dimensional é incapaz de, por si só, descobrir a for-
mulação completa de uma lei física, por assim dizer aprioristicamente;
mas abre caminho, por vezes de modo surpreendente, como comenta
Vaschy, para a formulação matemática da solução de um problema
físico. Tanto Lord Rayleigh [16] como Einstein [11] e Buckingham [3]
insistem num ponto muito importante: todos os parâmetros físicos
dos quais pode depender essa solução, inclusive constantes físicas uni-
versais ou específicas, devem ser considerados, o que exige um conhe-
cimento preliminar, ainda que puramente qualitativo, da natureza do
problema. A omissão de um parâmetro significativo, ou a inclusão
de algum que não tenha influência no fenômeno considerado, podem
conduzir a erro. As dimensões das constantes físicas incluídas en-
tre os parâmetros do problema decorrem de leis físicas universais ou
de leis específicas fundamentais, ou "constitutivas", que descrevem o
comportamento das substâncias. Essas leis ficam assim "embutidas"
na matriz dimensional, mas não são descobertas pela aplicação da
análise dimensional.
Em geral as soluções dadas pela análise dimensional envolvem
coeficientes numéricos a determinar, e funções de "números PI" cuja
forma também deve ser determinada, experimentalmente ou mediante
desenvolvimentos.
Um dos cientistas que mais contribuíram para o desenvolvimento
da análise dimensional foi Lord Rayleigh [15, 16], principalmente a
partir de seu artigo de 1900. "On the Viscosity of Argon as Affected
by Temperature" [15], no qual, partindo de alguns conceitos da teoria
cinética dos gases, chega à conclusão de que a viscosidade dos gases é
proporcional a uma certa potência da temperatura absoluta, graças
Coleção CLE V.11
Fernando L. Carneiro 341

à simples aplicação do "método das dimensões" [15, p. 69].


Lord Rayleigh não possuía um conhecimento claro do "teorema
de PI", tal como Vaschy o formulará no artigo de 1892, que ele certa-
mente desconhecia, ou como Buckingham veio a formulá-lo, em 1914.
Com seu "método das dimensões" chegou no entanto muito perto
dessas formulações, A marcha adotada, com base no "teorema de
PI", para obter um conjunto completo de "números PI", consiste em
exprimir genericamente um "número PI" por um produto de poten-
ciais dos parâmetros do problema; a condição de que as dimensões
do "número PI" relativamente a cada uma das grandezas fundamen-
tais sejam nulas fornece tantas equações quantas forem essas grande-
zas fundamentais. 0 sistema de equações lineares é indeterminado,
admitindo infinitas soluções, mas o número de soluções linearmente
independentes é igual à diferença entre o número de incógnitas, isto
é, o número de parâmetros, e o número de grandezas fundamen-
tais. Cada solução correspondente a um "número PI" pode ser obtida
atribuindo-se a cada incógnita excedente, sucessivamente, um valor
numérico arbitrário, por exemplo a unidade, e considerando nulas as
demais. Obtém-se assim um conjunto completo de "números PI".
Lord Rayleigh, no entanto, formula uma expressão geral que é um
produto de "potências indeterminadas" dos diversos "números PI",
e de um coeficiente numérico, e raciocina que "qualquer número de
termos assim obtidos pode ser combinado", substituindo assim "pro-
duto" por "função". Tem-se a impressão de que Lord Rayleigh alude
a uma série infinita, obtida pela soma de termos obtidos com a atri-
buição sucessiva de valores arbitrários aos coeficientes numéricos e
aos expoentes indeterminados.
Observa-se que Lord Rayleigh, nas aplicações da análise dimen-
sional, sempre admitiu a temperatura absoluta como nova grandeza
de base, além das grandezas geométrico-mecânicas LMT, apesar da
atitude geralmente adotada por seus contemporâneos, que não acei-
tavam isso por considerarem, erradamente, que a temperatura tem
as dimensões de uma energia.
Em seu artigo de 1915, "The Principie of Similitude" [16], Lord
Rayleigh apresenta como que uma retrospectiva de seus êxitos na
aplicação da análise dimensional a problemas físicos, mencionando os
seguintes:
Coleção CLE V.11
342 A Evolução da Análise Dimensional

1) resistência de estruturas geometricamente semelhantes subme-


tidas à ação da gravidade (problema de Galileo);

2) velocidade de propagação de ondas na superfície de águas pro-


fundas;

3) período de vibração de um líquido, sob a ação da gravidade, em


um recipiente cilíndrico profundo;

4) período de vibração de um diapasão ou de um ressonador de


Hertz;

5) intensidade da luz difratada por uma pequena partícula;

6) poder de resolução de uma lente objetiva;

7) freqüência de vibração de um globo líquido sob a ação de sua


própria gravitação;

8) freqüência de vibração de uma gota de líquido sob a ação da


força capilar;

9) constante de tempo de um circuito elétrico linear;

10) constante de tempo de correntes elétricas circunferenciais em


um cilindro infinito;

11) influência da temperatura sobre a viscosidade de um gás;

12) velocidade crítica de mudança de regime da resistência oposta


pelo ar ao movimento de um corpo sólido (problema de Eifel);

13) desprendimento de gotas de um líquido (problema de Tate);

14) freqüência de vibração da harpa eólica (problema de Strouhal);

15) transferência de calor de um corpo sólido bem condutor a uma


corrente líquida (problema de Boussinesq).

Foi este último que deu lugar à polêmica entre Lord Rayleigh e
Riabouchinsky, já descrita.
Coleção CLE V.11
Fernando L. Carneiro 343

4, Einstein: Aplicações do "Método das Considerações Di-


mensionais" a problemas de física do estado sólido
Como é sabido, Einstein, paralelamente ao desenvolvimento da
Teoria da Relatividade, produziu muitos trabalhos, de grande im-
portância, sobre diversos problemas de Física. Em seu artigo "Consi-
derações elementares sobre o movimento molecular térmico em corpos
sólidos", publicado em 1911 [11] nos "Annalen der Physic", aplicou
a análise dimensional a três problemas de Física do Estado Sólido:
cálculo da freqüência natural de vibração dos átomos de um corpo
sólido (cristalino) em função do "coeficiente de compressibilidade"
(fórmula de Einstein), ou da "temperatura de fusão" (fórmula de
Lindeman), e cálculo da condutividade térmica de corpos isolantes
cristalinos em função da referida freqüência natural e da tempera-
tura absoluta (teoria de Eucken). Embora as concepções relacio-
nadas com a Física do Estado Sólido, vigentes na primeira década
deste século, tenham experimentado evoluções, como por exemplo o
aperfeiçoamento, introduzido por Debye em 1912, da teoria de Eins-
tein, de 1907, sobre a capacidade térmica específica de corpos sólidos
cristalinos, continuam válidos, pelo menos em caráter aproximado,
os resultados obtidos pela aplicação da análise dimensional aos três
problemas citados.
"Por meio de considerações dimensionais", diz Einstein, "podem-
se encontrar de modo aproximado relações funcionais gerais entre
grandezas físicas, sempre que se conheçam todas as grandezas que
participam da relação considerada" ([11], p. 686)5.

No primeiro problema Einstein considerou quatro parâmetros: a


massa de um átomo, a distância entre dois átomos vizinhos, o co-
eficiente de compressibilidade da substância (do qual dependem as
forças com que átomos vizinhos se opõem a uma variação de sua
distância), e a variável dependente, isto é, a incógnita do problema -
a freqüência natural dos átomos. Com a base LMT, suficiente para
esse tipo de problema, Einstein obteve um único "número PI", que,

5
"Aus Dimensionalbetrachtungen kann man bekanntlich zunàchst algemeine
funktionelle Zusammenhinge zwischen physikalischen Grôssen íinden, wenn man
alie physikalischen Grõssen kennt, welchen in dem betreffenden Zusammenhang
vorkommen".
Coleção CLE V.11
344 A Evolução da Análise Dimensional

igualado a um coeficiente numérico, adimensional, a ser determinado


experimentalmente, fornece a solução do problema.
No segundo problema Einstein considerou inicialmente os
parâmetros massa do átomo, distância entre dois átomos vizinhos,
temperatura de fusão da substância e freqüência natural. Neste pro-
blema Einstein esbarrou com uma dificuldade: a não inclusão da
temperatura como quarta unidade fundamental. "Essa grandeza" (a
temperatura de fusão) "não é naturalmente utilizável, sem mais, em
considerações dimensionais, já que ela não pode ser medida direta-
mente no sistema CGS".
Einstein no entanto não cometeu o erro de Riabouchinsky, dando
à temperatura as dimensões de uma energia. Usou de um artifício:
tomou como "medida da temperatura" seu produto pela constante
de Boltzmann, produto este que teria as dimensões de uma energia.
0 artifício de Einstein é semelhante ao que se adota em problemas
estáticos de mecânica dos sólidos deformáveis, ao usar o peso es-
pecífico, produto da massa específica pela constante física intensidade
da gravidade; com esse artifício pode-se usar o sistema de medidas
de base dupla LF (comprimento, força), em lugar do sistema LMT.
Nesse segundo problema, Einstein chegou, portanto, novamente a
um único "número PI", que fornece a solução de problema a menos de
um coeficiente numérico a ser determinado. A aplicação das fórmulas
obtidas por Einstein para os dois problemas citados conduz a resul-
tados praticamente coincidentes para metais puros como o cobre, o
alumínio e o ferro.
Já no terceiro problema o artifício de Einstein não foi suficiente
para superar a não-consideração da temperatura como unidade fun-
damental. Os parâmetros do problema passaram a ser cinco: massa
do átomo, distância entre dois átomos vizinhos, freqüência natural,
temperatura, e a incógnita, a condutividade térmica. Einstein chegou
assim a dois "números PI", quando teria obtido apenas um, se tivesse
incluído a temperatura entre as grandezas fundamentais. Percebendo
que a solução não correspondia a uma conclusão experimental de Euc-
ken, Einstein reuniu os dois "números PI" em um único, admitindo
que a "função" do segundo número, não definida pela análise dimen-
sional, fosse uma relação de proporcionalidade.
Coleção CLE V.11
Fernando L. Carneiro 345

5. Buckingham: O artigo de 1914 e sua repercussão interna-


cional

E. Buckingham, eminente cientista do "Bureau of Standards"


norte-americano teve, como já foi dito, a sorte de ser o grande divul-
gador do "teorema de PI", com seu artigo de 1914 [3], publicado na
"The Physical Review". Sua demonstrarão do referido teorema não é
tão satisfatória como a de Vaschy, e utiliza o mesmo raciocínio de Lord
Rayleigh, de substituir uma soma de produtos de potências indeter-
minadas de "números PI" por uma função da qual esses "números"
são as variáveis: "para satisfazer ao princípio da homogeneidade di-
mensional", afirma Buckingham, "não existem restrições quanto ao
número de termos, aos valores dos coeficientes numéricos de cada
termo, e aos valores dos expoentes", e sendo assim "o somatório re-
presenta simplesmente alguma função desconhecida dos argumentos
independentes", que são os "números PI".
0 artigo de Buckingham é muito didático, e mostra com clareza a
marcha a seguir para obter-se um conjunto completo de "números
PI", tomando como exemplo o propulsor de navios. Sete são os
parâmetros (força propulsora, massa específica do líquido, dimensão
linear representativa, velocidade de translaçâo, revoluções por uni-
dade de tempo, viscosidade do líquido, intensidade da gravidade);
em conseqüência, quatro são os "números PI", já que a base LMT é
suficiente.
Buckingham aborda também com grande clareza, como já foi dito,
o conceito da semelhança física e mais uma vez toma o exemplo do
propulsor de navios para aplicar esse conceito à experimentação com
modelos reduzidos.
Finalmente, Buckingham mostra-se claramente partidário da in-
clusão da temperatura absoluta e de uma grandeza eletromagnética
entre as grandezas de base, além das grandezas de base tradicionais
LMT.
A repercussão internacional do artigo de Buckingham teve a con-
seqüência de ser-lhe atribuída, pela maioria dos autores modernos,
a paternidade exclusiva do "teorema de PI", o que constitui grave
injustiça para com Vaschy. 0 correto é portanto designar-se o "teo-
rema de PI" como "teorema de Vaschy-Buckingham".
Coleção CLE V.11
346 A Evolução da Análise Dimensional

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[25 ] Vaschy, A. Exposé des phénomènes eléctriques et magnéti-


ques. Paris : Bandry & Co., 1896.

[28 ] ——. Sur les considérations d'homogénéité en Physique. Comp-


tes - rendus hébdomadaires de 1'Académie des Sciences, tomo
CX14, n. 24, p. 1416-19, Juin 1892.

[27 ] ——. Sur les lois de similitude en électricité. Annales


Télégraphiques, p, 189-211, Mai/Juin 1892.

[28 ] ——. Sur les lois de similitude en Physique. Annales


Télégraphiques, p. 25-8, Jan./Fév. 1892.

[29 ] . Traité d'électricité e magnétisme. Paris ; [s.n.], 1890.


Coleção CLE V.11
Parte IX

* Surgimento da Teoria

Eletromagnética

* Termodinâmica

* As Origens da Mecânica
Estatística
Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
22

A Filosofia da Ciência de

H. Hertz (1857-94)

Paulo Abrantes

Hertz reuniu qualidades extraordinárias como físico experimen-


tal, teórico e também como filósofo da ciência. Embora amplamente
reconhecido como um dos mais importantes cientistas do século pas-
sado, a dimensão filosófica do seu trabalho ainda não recebeu a devida
atenção por parte de historiadores da ciência e da filosofia.
A importância da reflexão metodológica de Hertz pode ser aquila-
tada pela influência que exerceu sobre cientistas e filósofos do final do
século XIX e também contemporâneos. 0 caso mais significativo é,
sem dúvida, o de Boltzmann, que reconhece explicitamente sua dívida
para com Hertz-filósofo. Wittgenstein, que não é nada pródigo em
referências, cita explicitamente Hertz duas vezes no Tractatus: nas
proposições 4.04 (onde menciona a obra Princípios da Mecânica) e
6.361. Em escritos posteriores (e.g. no Nachlass), Wittgenstein cita
Hertz, ao lado de Boltzmann, e de alguns (poucos) autores que tive-
ram influência sobre suas idéias1 Braithwaite refere-se a Hertz como

1
Há várias convergências entre a filosofia da ciência de Hertz e as de Poincarê
e Duhem. No caso de Duhem, uma influência filosófica direta ê improvável, já que
seus primeiros trabalhos filosóficos datam do período 1892-94. No entanto, não
Coleção CLE V.11
352 A Filosofia, da Ciência de H. Hertz

"o mais filosofícamente profundo dos grandes físicos do século XIX


que escreveram sobre íilosoiia da ciência" (1953, p. 90).
A atualidade de muitas de suas idéias filosóficas pode ser res-
saltada tendo-se como pano de fundo a discussão contemporânea a
respeito da estrutura e valor cognitivo das teorias científicas.
Na "Introdução" à coletânea The Structure of Scientific Theories
(1974), Suppe reconstrói o desenvolvimento da filosofia da ciência do
empirismo lógico, ressaltando a importância que passa a ser atribuída,
na versão final da chamada "received view", aos modelos como um
dos componentes essenciais da estrutura das teorias físicas. Hertz é,
significativamente, um dos autores mais citados por filósofos como
Braithwaite e Nagel, que analisaram o papel central dos modelos na
estrutura das teorias científicas.
Para Nagel "... Hertz tornou central o papel da teoria como um
instrumento para possibilitar a inferência de eventos observados a
partir de outros eventos observados". No contexto desta menção a
Hertz, Nagel enfatiza a função heurística das teorias, o que pressupõe
que nem todos os termos teóricos estejam explicitamente associados à
observação (como era exigido na versão ortodoxa inicial da "received
view"):
... o papel primário de muitos símbolos ocorrendo em teorias é o
de facilitar a formulação da teoria com grande generalidade, pos-
sibilitando transformações lógicas e matemáticas de maneira rela-
tivamente simples, ou de servir como recursos heurísticos para a
aplicação estendida da teoria (NAGEL, 1961, p. 103).

Além disso, os modelos possibilitam, segundo Nagel, o emprego do


instrumental matemático que seria, de outro modo, inaplicável a con-
ceitos diretamente vinculados à experiência. Hertz teria também cla-

devemos descartar completamente a possibilidade de alguma influência indireta,


já que os olhos da comunidade científica estavam voltados para os resultados
das experiências de Hertz, e qúe muitas de suas idéias filosóficas, antes de serem
formuladas explicitamente, já se encontravam "atuantes" em sua prática científica
(por exemplo, uma determinada concepção da relação entre teoria e experiência;
a este respeito, ver DAGOSTINO, 1989).
A respeito da influência de Hertz sobre Wittgenstein, consultar JANIK &
TOULMIN, 1991, esp. cap. 4; HACKER, 1972; HALLER, 1990, p. 10, 74, 86 e
98; WILSON, 1989, esp. p. 258.
Coleção CLE V.11
Paulo Abrantes 353

ramente reconhecido a subdeterminação das teorias pela observação,


ao considerar inevitável a presença de "relações supérfluas ou vazias"
no arcabouço teórico.
Para Braithwaite, Hertz defende fundamentalmente, .. contra
aqueles que exigiriam que a realidade deva assemelhar-se às nossas
imagens (pictures) dela, [que] a única semelhança exigida é a de es-
trutura formal" (1953, p. 91).
Algumas das análises de Hertz sobre diferentes "representações"
teóricas possuindo uma mesma "significação interna", parecem an-
tecipar a chamada abordagem semântica da estrutura das teorias
científicas (cf. Suppe, 1974, p. 221).
Historiadores como Alexander (1983) e Cohen (1956) enfati-
zam, por sua vez, a contribuição de Hertz em mostrar a im-
portância filosófica de reconstruções axiomáticas de teorias nas
ciências empíricas.
Cassirer considera que a epistemologia de Hertz constituiu uma
inflexão importante nas imagens de conhecimento ligadas ao desen-
volvimento da física matemática no século XIX. Hertz é visto como
defensor de um método hipotético-dedútivo que pressupõe a liber-
dade da atividade teórica, que não estaria atrelada aos dados dos
sentidos como na "física fenomenista" de um Kirchhoff ou de um
Mach (Cassirer, 1979, p. 128).
Neste trabalho não pretendemos ir além dessas breves indicações
sobre a influência de Hertz enquanto filósofo da ciência. Nosso in-
tuito é o de explorar a articulação entre seu trabalho científico e suas
análises metacientíficas.
Procuraremos mostrar que em Waves (1° ed., 1893) já se
definem as posições metodológicas que Hertz generalizará e sistema-
tizará na sua última obra (publicada postumamente), The Principies
of Mechanics (1° ed., 1894)2.
Nas introduções a estas duas obras, Hertz desenvolve um conjunto
de concepções a respeito da teoria física; seu objetivo, sua estrutura,
a participação da experiência e do pensamento em sua elaboração,
critérios metodológicos para a sua avaliação, etc.
Há um tema metacientífico central que permeia as duas obras;
2
Utilizaremos ao longo do trabalho as abreviações EW e PM para designar as
obras de Hertz de 1893 e 1894 (1* ed.), respectivamente.
Coleção CLE V.11
354 A Filosofia da Ciência de H. Hertz

o confronto entre diferentes "representações", "imagens" ou "mode-


los" dos fenômenos físicos (eletromagnéticos, em EW', mecânicos, em
PM). Hertz investiga a origem desta pluralidade de imagens e se ela
é inevitável (tema da subdeterminação das teorias pela experiência).
Diante da evidência da subdeterminação, e dada a necessidade de
se optar por uma das representações, estabelece critérios de seleção
e tenta justificá-los. Estes são os problemas filosóficos centrais que
Hertz discute nas duas introduções.
Como tais problemas surgiram na prática científica de Hertz, e de
que modo esta condicionou as soluções que propôs para eles?

1. A teoria de Maxwell e a "Descoberta" de 1888

As reflexões filosóficas de Hertz enraizam-se em seu trabalho


teórico e experimental no domínio do eletromagnetismo, que culmi-
nou com a descoberta da propagação das ondas eletromagnéticas.
O referencial teórico inicial da série de experiências de Hertz não
foi a teoria de Maxwell (ou seja, Hertz não tinha como objetivo inicial
testar a principal conseqüência, aos nossos olhos, desta teoria), mas
sim a teoria rival de Helmholtz. Esta última era uma típica teoria
inserida no programa continental que pressupunha a ação à distância.
Tal fato não é surpreendente, já que os físicos continentais con-
sideravam a teoria de Maxwell bastante obscura. Um dos pontos de
"obscuridade" era exatamente a idéia de "eletricidade" (ou de carga)
que ela pressupunha. Poincaré, na "Introdução" às suas lições de
1888 sobre a teoria de Maxwell, cita o comentário irônico de um
físico francês da época: "Eu compreendo tudo, na teoria de Maxwell,
exceto o que é um corpo carregado" (POINCARÉ, 1890, p. xvii).
Hertz, desde 1884, trabalhava na comparação dos formalismos de
ambas as teorias, na tentativa de distingui-las quanto às suas con-
seqüências empíricas. Helmholtz mostrara que a teoria de Maxwell
podia ser obtida a partir da sua teoria eletrodinâmica (baseada na
hipótese de uma ação eletrodinâmica à distância), levando-se ao limite
determinados parâmetros da mesma. Exercícios formais desta natu-
reza caracterizavam, à época, grande parte dos esforços no domínio do
eletromagnetismo, Esta abordagem formalista era particularmente
comum entre os físicos alemães da época, influenciados pelo fenome-
nismo matemático defendido por Kirchhoíf e pelo próprio Helmholtz.
Coleção CLE V.11
Paulo Abrantes 355

Segundo esta concepção, as teorias matemáticas objetivam articu-


lar a experiência através de equações diferenciais, sem fazer uso de
lúpóteses (por exemplo, no caso da eletrodinãmica, hipóteses a res-
peito da natureza da eletricidade). Tal postura contrastava com a
necessidade que sentiam os físicos britânicos de visualizarem fisica-
mente o formalismo, por exemplo, imaginando modelos mecânicos
(ideal de uma embodied mathematics).
Hertz convence-se, entretanto, ao longo da realização de suas ex-
periências, que a diferença de significação física das teorias rivais era
relevante: a teoria de Maxwell previa de forma direta e simples a
propagação de ondas eletromagnéticas (conseqüência que só podia
ser obtida da teoria rival através de artifícios matemáticos). Hertz
adota, então, a partir da espetacular comprovação experimental de
1888, a abordagem de Maxwell, que pressupunha que as ações eletro-
magnéticas transmitem-se de forma contígua e mediatizada.

Reconstrução da teoria de Maxwell

Este é o contexto científico em que se inserem as reflexões fi-


losóficas ainda embrionárias da "Introdução" (parte B) a Electric
Waves. Neste livro, Hertz propõe uma reconstrução axiomática da
teoria de Maxwell, por considerá-la inaceitável (na formulação do
físico escocês), dadas suas inconsistências.
Hertz considera ser impossível dar uma significação única ao
termo "eletricidade", do modo como ele é empregado por Maxwell
no seu Treatise, publicado em 1873. Convivera, lado a lado na te-
oria, duas concepções incompatíveis da relação entre "eletricidade"
e "polarização", resultando na permanência de "idéias supérfluas e
rudimentares" - termos de Hertz - tanto de natureza física quanto
matemática. No Treatisè, Maxwell oscila, segundo Hertz, entre di-
ferentes "modos de representação" de sua teoria, o que explicaria as
inconsistências apontadas. Sobre a relação entre teoria e seus "mo-
dos de representação" - um tema central em Hertz - voltaremos mais
adiante.
Hertz coloca como um dos objetivos da reconstrução que empre-
ende da teoria de Maxwell, reduzir ao máximo as "concepções que
são arbitrariamente introduzidas por nós" (1962, p. 28).
Na reconstrução que propõe, Hertz pretende adotar consistente-
Coleção CLE V.11
356 A Filosofia, da Ciência de H. Hertz

mente o "modo de representação" em que todos os fenômenos ele-


trostáticos e eletromagnéticos são efeitos de processos (que considera
serem mecânicos) ocorrendo no "espaço".
Hertz resume, então, as equações de Maxwell a somente qua-
tro, adotando-as como equações fundamentais em um sistema dedu-
tivo, equações que são apresentadas como "relações entre magnitudes
físicas que são efetivamente observadas, e não entre magnitudes que
servem somente ao cálculo" (1962, p. 196).
Resulta uma teoria que, admite, aparenta ser "muito abstrata e
sem colorido". E acrescenta:

Não é puticulumente agradável ver equações apresentadas como re-


sultados diretos da observação e experimento, onde estávamos a ver
longas deduções matemáticas como provas aparentes delas (1962).

E o preço a se pagar por não confundir "a figura simples e familiar


que nos é apresentada pela natureza, com os trajes vistosos com que
nos habituamos a vesti-la" (1962, p. 28; cf. Van Fraassen, 1980,
p. 6).
Em EWjá se definem, portanto, algumas posições metodológicas
de Hertz, e uma concepção da tarefa da filosofia da ciência:
1. A tese de que nossas "idéias físicas e matemáticas" constituem
"modos de representação" dos fenômenos (que subdeterminam tais
modos de representação); 2. Importância do critério lógico (con-
sistência) na aceitabilidade da teoria científica; 3. A exigência meto-
dológica de parcimônia no emprego de hipóteses nas teorias científicas
(cf. Hertz, 1962, p. 242). Devemos reduzir a um mínimo as con-
cepções "arbitrariamente" introduzidas por nós na teoria científica,
garantindo sua "simplicidade". A reconstrução axiomática é consi-
derada o método para alcançar tal objetivo, bem como o de garantir
a consistência de nossas representações.

2. Princípios da Mec&nica

Hertz faleceu em janeiro de 1894, ano de publicação da obra


Principio» da Mecânica, à qual dedicara os últimos três anos de sua
vida. Hertz discute longamente, na "Introdução" a este seu último
livro, as teses metodológicas que destacamos e acena para uma fun-
damentação epistemológica das mesmas.
Coleção CLE V.11
Paulo Abrantes 357

Para darmos maior sistematicidade à nossa apresentação, orga-


nizamos as reflexões da "Introdução" em um conjunto de temas, a
saber: 1. Objeto (fim) da teoria científica; 2. Estrutura da teo-
ria científica; 3. Papel da hipótese; 4. Explicação; 5. Metafísica;
6. Componente a priori de nossas representações; 7. Teoria e Ex-
periência; 8. Mecanismo.

1. 0 objeto (fim) da teoria científica


A principal função do nosso conhecimento da natureza é, para
Hertz, a previsão ("antecipação de eventos futuros"), que nos per-
mite organizar o presente em vista do futuro. Com este objetivo,
"fazemos para nós imagens internas ou símbolos (innere Scheinbilder
oder Symbole) dos objetos externos, e o fazemos de tal modo que
as conseqüências necessárias das imagens no pensamento são sempre
as imagens das conseqüências necessárias, na natureza, das coisas
representadas"3.
Com base em nossa experiência acumulada e em "modelos" que
elaboramos, podemos "em curto espaço de tempo [chegar] às con-
seqüências que no mundo externo só surgiriam em um espaço de
tempo muito mais longo, ou como resultado de nossa própria in-
tervenção" (Hertz, 1956, p. 1).
Por experiência, segundo Hertz, sabemos que este isomorfismo
pode realizar-se, evidenciando haver alguma "conformidade" entre
pensamento e natureza.
Hertz não avança qualquer explicação para esta conformidade,
um problema que não é considerado por ele como passível de solução
"científica". Sua referência às formas kantianas da intuição sensível
pode ser vista como um aceno nesta direção (cf. ibid., p. 45).
Nada podemos afirmar, além dessa "conformidade empírica"
(Hertz emprega o termo "correção"), que possibilita a previsão de
fatos novos:
3
Usamos a tradução de Braítàwaite (1953), e não a da edição inglesa de 1956.
Em nosso texto, usamos a palavra "imagens" ou "representações" para traduzir
"pictures" na tradução inglesa. No original alemão, Hertz usa o termo "Bil-
det" e, por vezes, "Darstellungen" (cf. Braithwaite, 1953, p. 91, nota). Sobre
a importância da distinção entre "Darstellung" e "Vbrstellung", ver JANIK ir
TOULMIN, 1991. Estes autores consideram mais apropriado traduzir "Bild" por
"modelo" (1991, p. 156).
Coleção CLE V.11
358 A Filosofia, da Ciência de H. Hertz

Na veidade nós não sabemos, nem temos nenhum meio de sabei,


se nossas concepções das coisas estão em conformidade com elas em
quaisquer outros aspectos, além deste tínico e fundamental (HERTZ,
1956, p. 2).

Hertz parece adotar aqui um ceticismo de corte claramente empi-


rista (cf. Van Fraassen, 1980; ou fenomenista, cf. Elkana, 1974,
p. 267, nota 50), em contraposição ao realismo (que, no século XIX,
tinha os atomistas como principais representantes). Afirmar a pre-
visão (e não a explicação) como o objeto das nossas teorias é também
típico de uma concepção instrumentalista. Mary Hésse não hesita,
portanto, em afirmar que "Hertz (...) retorna à visão positivista do
início do século XIX... [ao defender que]... o significado essencial de
uma teoria científica esgota-se em seu conteúdo testável" (1970, p.
214-5).
Contudo, tentaremos mostrar que é incorreto alinhar Hertz seja
com o positivismo comteano ou machiano, seja com um fenomenismo
matemático como o defendido por Kirchhoff, ou um fenomenismo
energetista como o de Ostwald. O neokantismo de Hertz o faz, efe-
tivamente, acreditar num isomorfismo entre a seqüência de nossos
pensamentos e a seqüência de eventos no mundo. A importância
que atribui às dimensões da teoria científica que não se reduzem à
experiência, mas correspondem à atividade de uma autêntica 'ima-
ginação científica', ú dificilmente compatível comi formas ingênuas de
empirismo (cf. Janick & Toülmin, 1991, p. 155-63; Cohen, 1956).
Veremos, além disso, que Hertz considera essencial a introdução de
hipóteses sobre entidades inobserváveis nas teorias físicas.

Subdeterminação

A conformidade empírica não garante, contudo, univocidade às


nossas imagens: "Várias imagens dos mesmos objetos são possíveis,
e estas imagens podem diferir em vários aspectos" (Hertz, 1956, p.
2).
A experiência subdetermina, portanto, as teorias. Para Hertz
esta subdeterminação é a contrapartida necessária do fato de que há
uma participação nossa, do pensamento, nà construção teórica. Ele
afirma, por exemplo, que imagens (ou representações) sendo produ-
tos de nossas mentes, não podemos evitar, de todo, a introdução de
Coleção CLE V.11
Paulo Abrantes 359

"relações vazias". As "relações vazias" são introduzidas por questão


de conveniência, e não estão, portanto, diretamente vinculadas à ex-
periência (ver seção 2, abaixo).

Critérios Metodológicos
Para que possamos escolher uma, dentre as várias imagens que
fazemos dos fenômenos, Hertz estabelece um conjunto de critérios:
permissibilidade (Zulaessigkeit) lógica: as imagens não podem
contrariar as "leis do nosso pensamento". Utilizando expressões mais
comuns hoje em dia, diríamos que as imagens não devem ser (logica-
mente) contraditórias;
2^ correção (Richtigkeit): as imagens devem satisfazer à exigência de
conformidade com os fatos (no sentido de que as suas conseqüências
devem ser compatíveis com a experiência);
adequação {Zwegmaessigkeit, appropriatness): devemos dar pre-
ferência à imagem que melhor representa (piciure) as "relações essen-
ciais do objeto". Este terceiro critério relaciona-se com a noção de
"simplicidade", como veremos abaixo.
Hertz distingue, em nossas imagens, o que surge como "necessi-
dade do pensamento, da experiência e da escolha arbitrária" (Ibid.
p. 8). Os três critérios acima respondem por esta composição hete-
rogênea de nossas representações.
Enquanto Hertz considera que, em dado momento histórico, não
há ambigüidade quanto à aplicação do 2- critério (já que sua aplicação
depende exclusivamente do "estado presente de nossa experiência";
1970, p. 3), nem tampouco do primeiro (que depende da "natureza
da nossa mente"), há margem para se ter diferentes "opiniões" quanto
ao critério de "adequação":
Uma imagem pode ser mais adequada (suitaÜe) para um propósito,
outra para outro; somente testando gradualmente várias imagens po-
demos ünalmente ter sucesso em obter a mais apropriada (HERTZ,
1956, p. 3).
Um aspecto distintivo da metodologia de Hertz (se a comparar-
mos, por exemplo, com a defendida por Boltzmann (ver seção 6,
abaixo), é a hierarquia que estabelece entre os três critérios, a "per-
missividade lógica" tendo uma clara precedência sobre os demais:
O conhecimento maduro vê a clareza lógica como de importância
primordial; somente imagens claras logicamente são testadas
Coleção CLE V.11
360 A Filosofia da Ciência de H. Hertz

quanto à correção; somente imagens corretas são testadas quanto


à sua adequação. Pela pressão das circunstâncias o processo é,
freqüentemente, invertido (HERTZ, 1956, p. 10).

Historicamente - e este é o caso, segundo Hertz, da representação


newtoniana da mecânica, bem como da representação maxweliana do
eletromagnetismo - esta hierarquia é desobedecida e convive-se com
problemas lógicos. Hertz admite que esta atitude pode ser "sábia"
(wise; 1956, p. 9) nos "primórdios" de uma ciência, mas não pode
ser admitida em sua "maturidade", impondo-se uma depuração lógica
das inconsistências e indefinições.

2. A estrutura da teoria científica


Para Hertz, a teoria científica pode ser reconstruída como um sis-
tema dedutivo que possui em sua base um conjunto de relações - as
leis fundamentais - das quais podemos deduzir conseqüências que de-
vem ser confrontadas com a experiência. Os termos das relações que
compõem a teoria são "idéias", que podem ser físicas ou matemáticas.
A uma determinada representação dos fenômenos corresponde um
conjunto particular de relações fundamentais, a partir das quais eles
podem ser deduzidos.
Assim, Hertz denomina "princípios da mecânica" aquelas pro-
posições:

.. . que satisfazem à exigência de que o conjunto da mecânica pode


ser desenvolvido a partir delas através de raciocínio puramente de-
dutivo, sem qualquer apelo adicional à experiência (HERTZ, 1956,
P- 4).

Através da escolha de diferentes conjuntos de proposições, obtém-


se diferentes "representações" dos princípios da mecânica e, con-
seqüentemente, diferentes imagens das coisas. Os três critérios acima
permitem, então, selecionar uma dentre as diversas representações
disponíveis.
Na representação newtoniana da mecânica, a idéia de força está
presente nas relações fundamentais (leis de Newton e princípio de
d'Alembert), enquanto que nas representações energetista e hertzi-
ana esta idéia é derivada, não sendo necessária a determinação e
confirmação das propriedades da força pela experiência. Nas duas
Coleção CLE V.11
Paulo Abrantes 361

últimas representações, a idéia de força não está envolvida na ava-


liação da "correção" desta imagem, mas somente de sua "adequação"
(cf. Hertz, 1956, p. 15 e 18).
Na representação energetista da mecânica, as idéias de massa e
de energia (mas não a de "força") correspondem a entidades físicas,
necessitando que "experiências concretas (...) estabeleçam sua pre-
sença" (1956, p. 15). Tempo e espaço seriam "idéias matemáticas".
A relação fundamental é o princípio de Hamilton;
Na representação bertziana da Mecânica, as idéias fundamentais
são as de tempo, espaço e massa enquanto "objetos de experiência"
e determinados por "experiências sensíveis". A relação fundamental
é análoga à lei de inércia:
Todo movimento natural de um sistema material independente con-
siste em que o sistema segue com velocidade uniforme um de seus
caminhos mais retilmeos (HERTZ, 1956, p. 27).

No eletromagnetismo, de modo análogo, a cada uma das três re-


presentações correspondem "idéias" que são articuladas através de
relações fundamentais características. Na teoria eletromagnética de
Maxwell, por exemplo, a idéia de "deslocamento elétrico" está pre-
sente em uma das equações fundamentais. Tal idéia não está presente
nas 4 equações fundamentais (que imprecisamente chamamos hoje de
"equações de Maxwell" ) da representação que Hertz propõe. Neste 3-
modo de representação da teoria eletromagnética "... as expressões
eletricidades, magnetismo, etc. não possuem qualquer valor adicional
para nós além de serem abreviações" (1956, p. 25; grifo nosso).
Analisaremos mais adiante a exigência de Hertz de que as idéias
presentes nas leis fundamentais sejam "símbolos" de propriedades de-
termináveis experimentalmente. Uma idéia matemática, ao contrário,
é introduzida exclusivamente por conveniência de nosso pensamento,
não simbolizando nada na experiência.

Relações vazias
Vimos que, para Hertz, a conformidade empírica subdetermina as
nossas imagens ou representações: não podemos eliminar completa-
mente da estrutura das teorias científicas relações que são introduzi-
das arbitrariamente por nós, sem base na experiência.
Algumas dessas relações são elimináveis, por envolverem o que
Coleção CLE V.11
362 A Filosofia da Ciência de H. Hertz

Hertz chama em EW de "idéias rudimentares e supérfluas" (como


a de "deslocamento elétrico" na representação de Maxwell), que se
encontram freqüentemente na origem de inconsistências lógicas.
A eliminação das relações vazias constitui uma das tarefas fun-
damentais da reconstrução lógica das teorias, em fases maduras
das ciências, evitando que continuemos a nos colocar "questões
ilegítimas" (cf. Wittgenstein), por exemplo, a respeito da natureza
da força ou da eletricidade.
Por que - perguntarse Hertz - as naturezas da força e da eletrici-
dade mantêm-se envolvidas em mistério?

.. .por que as pessoas nunca [...] se perguntam qual é a natureza


do ouro, ou a natureza da velocidade? A natureza do ouro é melhor
conhecida por nós do que a da eletricidade, ou a natureza da veloci-
dade melhor do que a natureza da força? Podemos através de nossas
concepções, através de nossas palavras, representar completamente a
natureza de uma coisa qualquer? Certamente não. Eu imagino que a
diferença está no seguinte. Com os termos "velocidade" e "ouro" nós
conectamos um grande número de relações a outros termos; e entre
todas estas relações nós não encontramos quaisquer contradições que
nos ofendam. Nós estamos, portanto, satisfeitos e não nos coloca-
mos questões adicionais. Mas nós acumulamos em torno dos termos
"força" e "eletricidade" mais relações do que podem ser completa-
mente reconciliadas entre si. Nós temos um sentimento obscuro disto
e queremos ter as coisas aclaradas. Nosso desejo confuso encontra
expressão na questão confusa a respeito da natureza da força e da
eletricidade. Mas a resposta que nós queremos não é realmente uma
resposta a esta questão. Não é descobrindo outras e novas relações
e conexões que ela pode ser respondida; mas removendo as con-
tradições existentes entre aquelas já conhecidas e, portanto, talvez
reduzindo seu número. Quando essas incômodas contradições são
removidas, a questão a respeito da natureza da força não terá que
ser respondida; mas nossas mentes, não mais perturbadas, cessarão
de se colocar questões ilegítimas (HERTZ, 1956, p. 7).

A eliminação das relações vazias atenderia também à exigência de


adequação de nossas representações, vinculada a um critério de sim-
plicidade.

Regras de correspondência

A concepção que Hertz possui da estrutura das teorias ci-


entíficas aproxima-se bastante de concepções contemporâneas, que
Coleção CLE V.11
Paulo Abrantes 363

reconstróem as teorias como cálculos interpretados através de regras


de correspondência.
O cálculo corresponderia ao que Hertz considera ser a componente
a priori de nossas teorias (ver seção 6, abaixo).
0 conteúdo empírico das teorias é estabelecido por procedimentos
análogos às "regras de correspondência" da received view da estrutura
das teorias científicas (cf. SUPPE, 1974).
Com o objetivo de dar conteúdo empírico a idéias, relações e de-
finições introduzidas o priori, é necessário indicar:
... leis de transformação através das quais nós traduzimos a ex-
periência externa, i.e. sensações concretas e percepções, na lingua-
gem simbólica das imagens que delas formamos, e pelas quais, inver-
samente, as conseqüências necessárias desta imagem são novamente
referidas ao domínio de possíveis percepções sensíveis (HERTZ, 1956,
p. 141).

0 procedimento de fornecer conteúdo semântico a uma cálculo é,


portanto, realizado conscientemente por Hertz.
Continuando esta comparação com concepções conteporâneas da
estrutura das teorias científicas, poderíamos nos perguntar se Hertz
admite definições implícitas de termos teóricos. Aparentemente, o
papel que as "hipóteses" desempenham nas teorias científicas é exata-
mente a de definir implicitamente termos teóricos, como a "massa" de
objetos não observáveis (representação hertziana da mecânica). Por
outro lado, Hertz defende em diversas passagens que todos os termos
presentes nas relações fundamentais das teorias devem ser símbolos
de propriedades observáveis (as "leis de transformação" funcionando
como definições explícitas dos termos teóricos; cf. Hertz, 1956, p.
141). Para avançarmos nesta discussão devemos analisar mais deti-
damente as concepções de Hertz a respeito das relações entre teoria
e experiência.
Na exposição da sua Mecânica, Hertz se coloca a questão da vali-
dade de tais "leis de transformação", se elas "fornecem medidas ver-
dadeiras de tempo, espaço e massa". Sua posição é que "com toda
probabilidade [esta questão] deve ser respondida negativamente, na
medida em que as nossas regras são, obviamente, em parte fortuitás
e arbitrárias". Estranhamente, Hertz não considera que a resposta
definitiva a esta questão seja relevante para o objetivo de previsão,
que nos colocamos ao elaborar teorias. 0 que importa é que as regras
Coleção CLE V.11
364 A Filosofia da Ciência de H. Hertz

"exprimam sem ambigüidade os resultados de experiências passadas


e futuras" (Hertz, 1956, p. 142).
Esta posição é, mais uma vez, claramente instrumentalista (exn
oposição à realista) - a questão da "veracidade" de nossas teorias
não é relevante para os objetivos perseguidos pela ciência. Vere-
mos, porém, que as posições de Hertz não são sem ambigüidade neste
ponto, tanto pela reconhecida influência kantiana em sua fllosofla da
ciência, quanto pelo seu compromisso com o programa do éter.

"Significação interna" comum a diferentes representações


Em EW, Hertz afirma que as três representações no domínio do
eletromagnetismo têm a mesma "significação interna" , que constitui
para Hertz a parte "imperecível do trabalho de Maxwell": as quatro
equações do eletromagnetismo.
Nesta passagem surge a frase freqüentemente citada de Hertz:

À questão, "o que é a teoria de Maxwell", eu não conheço uma


resposta mais curta e definida do que a seguinte: a teoria de Maxwell
é o sistema de equações de Maxwell.

E continua:
Toda teoria que conduz ao mesmo sistema de equações, e portanto
abrange os mesmos fenômenos, eu consideraria como sendo uma
forma ou caso especial da teoria de Maxwell; toda teoria que conduz
a diferentes equações, e portanto a diferentes fenômenos possíveis, é
uma teoria diferente (HERTZ, 1962, p. 21).

Esta identidade de formulação matemática, porém, não implica


que as mesmas idéias estejam envolvidas nas três representações:
"Idéias e concepções que são assemelhadas, porém diferentes, po-
dem ser simbolizadas da mesma maneira nos diferentes modos de
representação" (1962, p. 21). As teorias de Helmholtz e de Maxwell,
embora matematicamente equivalentes, "diferem fundamentalmente"
do ponto de vista físico (1962, p. 25).
Supondo-se que haja uma identidade de forma matemática nas
três representações do eletromagnetismo, Hertz atribuiu, mesmo as-
sim, importância às diferenças de significação física entre elas? Vimos
que ele deu preferência ao ponto de vista de Faraday-Maxweli de ação
contínua (mais especificamente o ponto de vista de que os fenômenos
Coleção CLE V.11
Paulo Abrantes 365

eletromagnéticos, como a eletrização, são efeitos de processos ocor-


rendo no meio etéreo). Sua posição não nos parece, portanto, for-
xnalista (como a de Helmholtz), e sua pesquisa experimental deve ter
sido determinante neste ponto.
Em PM, Hertz afirma que "o conteúdo físico é bastante inde-
pendente da forma matemática" de uma imagem (Hertz, 1956, p.
29). Em nenhum momento ele afirma uma identidade de "significação
interna" das três representações da mecânica. Pelo contrário, ele as-
sinala em diversos momentos que elas prevêem diferentes fenômenos
e que, portanto, o critério de "correção" poderá distingui-las. Mas
Hertz está, então, pensando nas conseqüências, para o domínio do
eletromagnetismo, de cada uma das imagens da mecânica. Isto ex-
plicaria porque Hertz distanciou-se de algumas de suas posições em
EW, que podem ser interpretadas como formalistas (tese que defen-
deremos abaixo).

S. O papel da hipótese
Contrariamente ao fenomenismo, que se opunha terminantemente
ao uso de hipóteses em ciências - que introduzem em nossas teo-
rias termos relativos a entidades inobserváveis - Hertz defende que
somente por meio de hipóteses podemos submeter os fenômenos à
legalidade.
A 3" "organização dos princípios da mecânica" que propõe, parte
de somente três "concepções" fundamentais - tempo, espaço e massa
- complementadas por uma "hipótese" que introduz corpos em mo-
vimento, inacessíveis aos nossos sentidos.
Esta hipótese responde pela insuficiência, para Hertz, de se consi-
derar exclusivamente o que é "diretamente observado", se pretende-
mos "compreender os movimentos dos corpos", e submetê-los a uma
legalidade universal:
Nós nos convencemos de que a multiplicidade do universo real deve
ser maior do que a multiplicidade do universo que nos é diretamente
revelado através dos sentidos. Se nós desejarmos obter uma imagem
do universo que seja bem acabada, completa, e conforme à lei, nós
temos que pressupor, por trás das coisas que nós vemos, outras coisas
invisíveis - imaginar vínculos escondidos, além dos limites de nossos
sentidos (HERTZ, 1956, p. 25).
Nesta passagem, a posição de Hertz aproxima-se bastante do re-
Coleção CLE V.11
366 A Filosofia, da Ciência de H. Hertz

alismo, embora, em nenhum momento afirme que as entidades postu-


ladas "existem realmente" no mundo.
Hertz assinala que as idéias de força e de energia, nas imagens al-
ternativas, respondiam exatamente por essa necessidade de submeter
os fenômenos à legalidade, sendo substituídas, em sua representação,
pela hipótese da existência de massas ocultas em movimento.
Ele insiste, contudo, que nesta última representação, o que esta
escondido não constitui uma categoria especial de coisa, mas reduz-se
prosaicamente a massa e movimento. A hipótese é, de fato, formulada
do seguinte modo:
Nós pressupomos que é possível associar às massas visíveis do uni-
verso outras massas obedecendo às mesmas leis, e de tal maneira
que o conjunto torna-se inteligível e conforme à lei [... ] O que nós
estamos acostumados a denotar como força e como energia agora
torna-se nada mais do que uma ação de massa e movimento, mas
não necessariamente de massa e movimento reconhecíveis através de
nossos toscos sentidos (HERTZ, 1956, p. 26).

A "lei fundamental" da formulação hertziana da mecânica pos-


sui, ela mesma, o estatuto de uma hipótese, no sentido de que mesmo
não contradizendo nenhuma experiência conhecida (à época), segu-
ramente afirma mais do que "pode ser provado" com base nela. Em
sistemas que não obedecem a esta lei, introduz-se hipóteses relativas a
determinados "movimentos escondidos" de modo a que se submetam
à legalidade.
A "lei fundamental" possui, na verdade, o caráter de uma regra,
como o princípio de conservação da energia, em que hipóteses ad hoc
são imaginadas cada vez que os fenômenos parecem infringi-la (cf.
Hertz, 1956, p. 271).
Entre EW e PM, Hertz parece tornar-se mais liberal no uso da
hipótese (Poincaré também é desta opinião; cf. PoiNCARÉ, 1897, p.
743). Em EW, Hertz recusa-se a fazer hipóteses sobre o éter (so-
bre sua interação com a matéria dos corpos em movimento), prefe-
rindo o risco de elaborar uma teoria menos "correta" (Hertz, 1962,
p. 268) - em termos de correspondência com os fatos reais - mas
com a vantagem de introduzir menos hipóteses "arbitrárias"4. Nos

^Maxwell, em seu utigo de 1855 ("Ou Faraday's lines of force"), adota uma
estratégia semelhante ao defender o "método de analogia", em lugar do "método
de hipóteses" (associado aos físicos laplacianos), ou do "método fenomenológico"
Coleção CLE V.11
Paulo A brantes 367

princípios, Hertz passa a admitir hipóteses acerca de um meio univer-


sal, mecânico e contínuo, como condição para submeter os fenônemos
à legalidade.
Por outro lado, uma das críticas de Hertz à Mecânica newtoni-
ana é que, nesta representação, a centralidade do conceito de força,
"obriga-nos a dirigir continuamente nossa atenção para átomos e
moléculas. [... ] é verdade que nós estamos agora convencidos que a
matéria ponderável consiste de átomos; e nós temos noções definidas
da magnitude desses átomos e de seus movimentos em certos casos.
Mas a forma dos átomos, sua conexão, seu movimento na maior parte
dos casos - tudo isso está inteiramente escondido de nós..." (Hertz,
1956, p. 18). Conclui, então (referindo-se significativamente a Kir-
chhoff), que a hipótese atômica não deve figurar no fundamento de
nossas "teorias matemáticas".
A vantagem que Hertz percebe no energetismo relativamente à
representação newtoniana é, justamente, "de que nas hipóteses (...)
entram somente características que são diretamente acessíveis à ex-
periência. .(1956, p. 18), evitando-se "hipóteses arbitrárias".

4- Explicação
Embora a previsão seja considerada por Hertz a finalidade básica
da construção teórica, ele utiliza freqüentemente o termo "explicação"
na exposição que faz de diversas representações dos fenômenos físicos.
Assim, Hertz ressalta que na segunda "imagem de processos
mecânicos" (o energetismo) deixa-se de lado o tipo básico de "ex-
plicação" adotada pela imagem anterior (newtoniana) - envolvendo
a redução dos fenômenos a ações-à-distãncia entre átomos de matéria.
0 energetismo substitui tal hipótese por um "modo de pensamento"
que se inspira no recém-descoberto princípio de conservação da ener-
gia: os fenômenos são explicados com base nas transformações de
energia envolvidas. Por sua vez, a mecânica de Hertz adota a ação
contínua (de massas insensíveis) como tipo básico de explicação.
(que ele associa a Fourier). As discussões metodológicas de Maxwell, espalhadas
em seus diversos artigos científicos, são, a nosso ver, uma referência central para os
diversos físicos-iilósofos da 2* metade do século XIX, incluindo Hertz e Boltzmann,
mas também Poincaré e Duhem (ver Abrantes, 1988). Elkana (1974, p. 261)
considera que Maxwell foi um precursor da concepção de teoria como Bild, em
oposição a uma concepção realista (representada pelos atomistas).
Coleção CLE V.11
368 A Filosofia, da Ciência de H. Hertz

Em uma passagem de PM, Hertz esclarece o uso que faz desta


noção, adotando claramente o que chamaríamos hoje um conceito
nomológico-dedutivo de explicação:
NÓ6 conmider&mos um fenômeno do mundo material como mecanica-
mente, e portanto, fisicamente explicado, quando nós provamos ser
. ele uma conseqüência necessária da lei fundamental e daquelas pro-
priedades dos sistemas mateirais que são independentes do tempo
(HERTZ, 1956, p. 145).
A "lei fundamental'' a que se refere neste contexto é a enunciada
na representação hertziana da mecânica: "todo sistema livre persiste
em seu estado de repouso ou de movimento uniforme na trajetória
a mais retilínea" (1956, p. 144). Esta idéia de explicação é geral,
aplicando-se, evidentemente, a qualquer outra representação caracte-
rizada por um conjunto de "princípios" ou "leis" fundamentais.
Esta noção restrita de explicação é complementada por uma noção
mais geral:
A explicação completa dos fenômenos do mundo material abrangeria
portanto: (1) sua explicação mecânica ou física; (2) uma explicação
da lei fundamental; (3) a explicação daquelas propriedades do mundo
material que são independentes do tempo. A segunda e terceira
dessas explicações nós consideramos estar, contudo, além do domínio
da física (1956, p. 145).
Encontramos nesta passagem uma tentativa de delimitação en-
tre física e metafísica, embora bastante fluida, pois depende de uma
decisão, necessariamente arbitrária, com respeito ao ponto em que
devemos parar na busca de princípios fundamentais (a partir dos
quais um conjunto de relações pode ser deduzido). Hertz defende
que o físico deve parar, nesta busca de fundamentos, quando con-
seguir submeter à legalidade o conjunto de fatos conhecidos em um
domínio particular.

5. Metafísica
A principal crítica de Hertz à representação energetista da
mecânica introduz novos elementos na delimitação do fronteira en-
tre física e metafísica.
Segundo Hertz, há um pressuposto metafísico subentendido pelo
princípio de Hamilton (que constitui a lei fundamental desta imagem
da mecânica): a teleologia dos processos naturais.
Coleção CLE V.11
Paulo Abraníes 369

Esta objeção envolve uma importante extensão do critério de


"permissidade lógica", que introduz um elemento "holístico" na acei-
tabilidade de uma dada representação;
Para. que uma imagem de certas coisas externas possa, em nosso en-
tendimento, ser permissível, não basta que suas características sejam
consistentes entre si, mas [além disso] elas não devem contradizer as
características de outras imagens já estabelecidas em nosso conheci-
mento (HERTZ, 1956, p. 23).
Esta passagem não deixa claro se tais "imagens estabelecidas" são
imagens de natureza ou imagens de conhecimento (ou de ciência). A
argumentação de Hertz envolverá, pôr um lado, a aplicação do critério
de simplicidade para a aceitabilidade de uma dada representação e,
por outro, a defesa de uma autonomia da física com respeito à me-
tafísica.
Hertz considera o princípio de Hamilton de uma "complexidade
extrema" (não admitindo um "significado físico" simples), justamente
por envolver o pressuposto metafísico da teologia nos processos na-
turais:
Não somente ele faz o movimento presente depender das con-
seqüências que somente podem se exibir no futuro, atribuindo por
conseguinte intenções à natureza inanimada; mas, o que é pior, ele
atribui à natureza intenções que são destituídas de sentido [como
a de tornar zero o valor de uma expressão matemática] (HERTZ,
1956, p. 23).
Hertz acrescenta então que "a física (...) não mais reconhece
como seu dever ir ao encontro das exigências da metafísica". Não é,
portanto, admissível usar, a favor de determinados princípios físicos,
o argumento de que há "desígnio na natureza".
Mas, ao apelar para o critério de simplicidade, Hertz também não
estaria se comprometendo com um pressuposto metafísico? Hertz,
coerentemente, admite que "...objeções com um caráter metafísico
[como o de simplicidade] contra princípios [como o de Hamilton]",
são igualmente ilegítimas.
Ele passa, então, a distinguir teses ontdógicas - inaceitáveis - de
exigências metodológicas - absolutamente legítimas {sound and just
sources of our needs):
É verdade que uós não podemos o prior» exigir simplicidade da uar
tureza, nem podemos julgar o que é simples na opinião da natureza.
Coleção CLE V.11
370 A Filosofia da Ciência de H. Hertz

Maa com respeito a imagens de nossa própria criação, nós podemos


estabelecer exigências. Nós estamos justificados em decidir que, se
nossas imagens são bem adaptadas às coisas, as relações reais das
coisas devem ser representadas por relações simples entre as imagens
(HERTZ, 1956, p. 23).
E conclui:
Portanto, nossa exigência de simplicidade não se aplica à natureza,
maa às imagens dela que nós talhamos; e nossa repugnância com
respeito a uma proposição complicada como uma lei fundamental
somente expressa a convicção de que, se os conteúdos da proposição
são corretos e abrangentes (compreheníive), ela pode ser formulada
de forma mais simples por uma escolha mais conveniente das con-
cepções fundamentais (HERTZ, 1956, p. 24).
Em outras palavras, Hertz não autoriza que hipostasiemos, como
teses ontológicas, nossas exigências metodológicas. Ele subestima,
contudo, a subjetividade inerente a critérios como o de "simplici-
dade"; para um aristotélico a tese de que há "desígnio na natureza"
seria considerada, sem dúvida, mais simples do que a tese mecanicista
de que só atuam causas eficientes nos processos naturais (ver, porém,
a discussão, na seção 1, do critério de "adequação").

6, A componente "a priori" de nossas representações


Hertz expõe sua Mecânica em dois livros, que abordam, respec-
tivamente, as componentes, numa Teoria Científica, que dependem
exclusivamente do nosso pensamento, ou também da experiência:
O assunto do primeiro livro [Geometria e Cinemática dos sistemas
materiais] ê completamente independente da experiência. Todas as
asserções são julgamentos a priori no sentido de Kant. Elas estão
baseadas nas leis da intuição interna e nas formas lógicas seguidas
pela pessoa que faz as asserções; com sua experiência externa elas
não têm qualquer outra conexão além das que essas intuições e for-
mas podem ter (HERTZ, 1956, p. 45).
Na abertura do capítulo 1 (Time, Space, and Mass) Hertz enfa-
tiza: "O tempo do livro primeiro é o tempo de nossa intuição interna
[... ] O espaço do primeiro livro é o espaço tal como nós o concebemos
[., . ] a massa do primeiro livro será introduzida por uma definição"
(1956, p. 45).
Nesta 1" parte, Hertz introduz também "uma série de proposições
arbitrárias" (1956, p. 135).
Coleção CLE V.11
Paulo Abrantes 371

A crença de Hertz na imutabilidade da componente o priori


expressa-se na conclusão do livro I: .. a correção ou incorreção des-
sas investigações não podem ser nem confirmadas nem infirmadas por
quaisquer possíveis experiências futureis" (1956, p. 135).
Poincaré defende uma tese análoga com respeito aos princípios
da mecânica (Poincare, 1938, cap. 6). Boltzmann divergirá de
Hertz exatamente neste ponto, afirmando que a adequação empírica
deve permanecer, em qualquer caso, o critério fundamental de jul-
gamento das nossas teorias (Boltzmann, 1974; cf. D'Agostino,
1990). Além disso, Boltzmann, em sua última fase, abraçou uma
epistemologia de tipo evolucionária (influenciado por Darwin), admi-
tindo que mesmo as nossas formas de pensamento sofrem modificação
ao longo da história humana (Boltzmann, 1974, p. 105; Elkana,
1974; D'Agostino, 1990).
O livro II (Mecânica dos Sistemas Materiais) trata da componente
que deriva da experiência, na representação hertziana. Nesta fase de
elaboração teórica, u... tempos, espaços, e massas são símbolos para
objetos da experiência externa.... [As relações entre tais símbolos
devem, portanto] "satisfazer não somente as leis de nossa intuição e
pensamento, mas também a experiência" (Hertz, 1956, p. 139).

7. Teoria e Experiência

Parece-nos difícil dar consistência às concepções de Hertz da


relação entre Teoria e Experiência. Em certas passagens, Hertz afirma
que as relações fundamentais ("leis") das diversas representações po-
dem ser confrontadas diretamente à experiência. Ele afirma, por
exemplo, que toda a contribuição da experiência está contida na "lei
fundamental": "a questão da correção de nossas proposições coincide,
portanto, com a questão da correção ou validade geral daquela única
proposição" (1956, p. 139).
Do mesmo modo, em EW, as 4 equações fundamentais da sua
representação do eletromagnetismo são apresentadas como "relações
entre magnitudes físicas que são efetivamente observadas, e não en-
tre magnitudes que servem somente ao cálculo" (Hertz, 1962, p.
196). Como já assinalamos anteriormente, para Hertz o conjunto de
leis fundamentais de uma dada representação resume (em sua forma
reconstruída) todo o conteúdo empírico da mesma.
Coleção CLE V.11
372 A Filosofia da Ciência de H. Hertz

Em outras passagens, contudo - como a que se segue a esta última


- ele parece adotar uma posição hoUstica semelhante à defendida
por P. Duhem: "cada fórmula separada não pode ser especialmente
testada pela experiência, mas somente o sistema como um todo"
(Hertz, 1962, p. 197; cf. D'Agostino, 1990, p. 391; Cohen,
1956).
D'Ago8tino considera que este holismo, antes de ser explicitado,
já estava sendo praticado por Hertz na série de suas experiências
em eletromagnetismo, inaugurando uma nova concepção da relação
teoria-experiência (D'Agostino, 1989, p. 69 e 73).

8. Mecanismo
Afirmamos acima que as posições metodológicas de Hertz não
podem ser classificadas como antirealistas (instrumentalistas ou fe-
nomenistas), embora algumas de suas teses, tomadas isoladamente,
tenham este caráter. Acreditamos que o mecanismo de Hertz, eviden-
ciado pelo seu comprometimento com o programa do éter, denuncia
traços (moderadamente) realistas èm sua filosofia da ciência.
Em PM, o vemos inicialmente defender, de forma cautelosa, o
mecanismo enquanto diretriz metodológica, associado ao critério de
simplicidade:
... as idéias fundamentais da mecânica, juntamente com os
princípios que as conectam, representam a imagem mais simples que
a física pode produzir das coisas do mundo sensível e dos processos
ocorrendo nele (HERTZ, 1956, p. 4).

Em outra passagem, Hertz mostra-se, contudo, crítico quanto a


tentativas reducionistas. Ele insiste que o seü sistema de Mecânica
aplica-se, restritamente, à "natureza inanimada" (1956, p. 38), suas
leis sendo "simples e estreitas demais para responder mesmo pelos
processos os mais elementares da vida". Além disso, seu sistema não
pretende ter qualquer aparência de "necessidade": "ele nos permite
reconhecer que tudo poderia ser bastante diferente" (1956, p. 38). A
representação tradicional da mecânica, ao contrário, daria margem,
segundo Hertz, a veleidades reducionistas (1956, p. 39).
Acreditamos, porém, que as convicções mecanistas de Hertz
fortaleceram-se com sua adesão final ao "ponto de vista de Maxwell"
em eletromagnetismo, afastando-o da abordagem continental baseada
Coleção CLE V.11
Paulo Abrantes 373

na ação à distância (e portanto de um pressuposto fundamental da


representação newtoniana da mecânica), representada por seu mestre
Helmholtz.
Um historiador contemporâneo da ciência sugeriu que a eleiro-
dinâmica de Hertz, ao eliminar os andaimes que possibilitaram a
Maxwell construir a sua teoria, teria sido um importante passo em
direção à des-mecanizaçâo do eletromagnetismo (Hirosige, 1976).
Os Princípios da Mecânica, porém, não constituem, a nosso ver,
um mero exercício de "reconstrução lógica" ou "racional" (Cohen,
1956), no sentido da filosofia da ciência do empirismo lógico, mas uma
contribuição científica ao programa do éter. Se esta interpretação é
correta, a tese supra-dtada de Hirosige, embora possa traduzir a
recepção do trabalho de Hertz pela comunidade científica do final do
século XIX, não traduz as verdadeiras intenções deste último.
Para Hertz, as diversas imagens da Mecânica não podem ser si-
multaneamente corretas, mesmo admitindo-se as vantagens e des-
vantagens de cada uma quanto ao critério de permissibilidade e de
adequação. Ele acredita que a sua representação é a mais correta no
contexto de uma teoria unificada do éter, que englobaria também o
eletromagnetismo.
Para Hertz, a batalha decisiva dar-se-ia numa teoria geral do éter,
remetendo (tracing back) as "supostas ações à distância [...] a movi-
mentos em um meio que permeia tudo e cujas partes menores estão
submetidas a conexões rígidas; um caso que parece estar próximo de
ser realizado na esfera [das forças elétricas e magnéticas]" (Hertz,
1956, p, 41).
Fica claro, portanto, que os Princípios da Mecânica inserem-se
numa tradição mecanista que remonta a Maxwell, compromissada
com a hipótese de que a ação física se transmite de forma contígua e
mediatizada, e com o objetivo de desenvolver uma teoria "completa"
dos fenômenos eletromagnéticos (cf. Abrantes, 1988).
Defendemos tal tese mesmo diante de afirmações do próprio hertz,
que espera que sua contribuição seja avaliada exclusivamente ao nível
do "arranjo e colocação do conjunto - o aspecto lógico ou filosófico
do assunto" (Hertz, 1956, p. xxiv). Em outras passagens, Hertz
sugere também que tanto a sua representação do eletromagnetismo
quanto a da mecânica não são (heuristicamente) úteis ao trabalho
Coleção CLE V.11
374 A Filosofia da Ciência de H. Hertz

científico. Tais afirmações devem ser, contudo, qualificadas, quando


percebemos existir uma unidade fundamental entre sua "pesquisa de
fundamentos" e seu trabalho teórico e experimental como físico5.

Lista Bibliográfica

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ternatives. In: Elkana, Y. (ed.), The Interaction between
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5
Gostaria de legistiar os meus agradecimentos ao Prof. Ildeu de Castro Mo-
reira, do Instituto de Física da UFRJ, que se dispôs a criticar e discutir em diver-
sas oportunidades este trabalho; mas que seguramente continuará divergindo, em
vários pontos, da leitura de Hertz aqui apresentada.
Coleção CLE V.11
Paulo Abrantes 375

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Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
23

Helmholtz e a Conservação da Energia

Osvaldo Melo Souza Filho

1. Introdução
Na avaliação histórica do princípio ou lei de conservação da ener-
gia, o trabalho de Helmholtz de 1847 ("Sobre a Conservação da
Força") é visto pela maioria dos autores como um dos que apre-
sentaram este princípio em uma formulação geral, mostrando a sua
aplicação para os diferentes aspectos da natureza. Um outro autor
(Elkana, 1970b, p. 263) vai mais além, afirmando que Helmholtz
realizou "a primeira formulação matemática do princípio em toda a
sua generalidade". Este é um tópico a se esclarecer.
Acredito que as intenções de Helmholtz foram, de certa forma,
obscurecidas e distorcidas na tentativa de aproximar os seus resulta-
dos dos de outros pioneiros da conservação da energia, como Mayer
e Joule (ver Heimann, 1974a, p. 205). Essa distorção se deve, de
acordo com Heimann (1974a), à idéia de descoberta simultânea, de-
fendida por Thomas Kuhn em seu conhecido artigo de 1959. Essa
questão da simultaneidade da descoberta me parece bastante rele-
vante e deixarei para abordá-la um pouco mais à frente.
Um outro ponto, a meu ver digno de menção, é a pouca ênfase
dada aos erros e limitações contidas na formulação matemática do
Coleção CLE V.11
378 Helmholtz e a Conservação da Energia

"Sobre a Conservação da Força" de Helmholtz1. Parece-me surpre-


endente a freqüência com que a formulação de Helmholtz é citada
como "a primeira formulação matemática do princípio em toda a sua
generalidade", conforme o faz Elkana (1970b), ou como aquela que
apresentou matematicamente as mais profundas implicações gerais
da lei de conservação da energia, conforme o faz Crombie (1958, p.
96) em detrimento da abordagem de Clausius, em seus trabalhos ter-
modinâmicos, realizados a partir de 1850. Clausius apresenta pela
primeira vez, efetivamente, a formulação diferencial da conservação
da energia em uma linguagem termodinâmica próxima da utilizada
hoje. A formulação de Helmholtz é puramente mecânica.
Não quero com essa observação diminuir a importância da con-
tribuição de Helmholtz em comparação com a de Clausius. Pelo
contrário, meu objetivo é apreciar devidamente a contribuição de
Helmholtz em um aspecto que julgo essencial ao seu trabalho e
próximo a uma de suas intenções: estabelecer uma orientação ou
um programa para o que seria, no seu entender, toda a pesquisa fun-
damental em física teórica.
Lord Kelvin, no prefácio à segunda edição em inglês da biografia
de Helmholtz feita por Leo Koenigsberger, diz o seguinte sobre o
artigo de Helmholtz:
O seu Erhaltung der Kraft publicado em 1847, foi um guia paia os
seus próprios conterrâneos, e para o resto do mundo, na doutrina da
energia através do amplo escopo da ação dinâmica na matéria viva
e morta, na ocasião desprezada e rejeitada por quase todas as altas
figuras da ciência; e agora, festejada por todos como o mais fértil
resultado da pesquisa moderna (KOENIGSBERGER, 1965).
No presente trabalho, vou-me restringir à análise, ainda que par-
cial, do artigo de Helmholtz "Sobre a Conservação da Força" (Über
die Erhaltung der Kraft) apresentado perante a Sociedade Física de
Berlim em 23 de julho de 1847 e publicado no mesmo ano, de forma
independente, por G.A. Reimer em Berlim2.
Antes de proceder a uma análise mais detalhada do "Sobre a Con-
servação da Força", creio ser conveniente fornecer um breve resumo
1
Uma exceção é Peter Clark em sua excelente resenha do livro de Elkana
The Ditcovery of The Contervation of Energy, London : Hutchinson, 1974 (ver
CLARK, 1976).
^Utilizei para esta análise a tradução de John Tyndall publicada em 1853 no
conhecido Taylor'» Scientific Aíemoin (ver HELMHOLTZ, 1853).
Coleção CLE V.11
Osvaldo Melo Souza Filho 379

da biografia de Helmholtz, descrevendo principalmente sua formação,


trajetória acadêmica e a extensão e diversidade de seus interesses
e produção intelectual. Não pretendo, com esse escorço biográfico,
fazer uma avaliação, ainda que superficial, da carreira científica de
Helmboltz. Pretendo apenas ampliar a contextualização do artigo de
1847, iniciando-o com uma análise do clima científico e filosófico, en-
tre os anos de 1830 e 1850, particularmente propício à emergência do
conceito de conservação da energia. Completarei a contextualização
com o sumário biográfico e, depois, com uma discussão dos estudos
sobre o calor animal, feitos por Helmholtz, que antecederam o seu
artigo de 1847.

2. A emergência do princípio de conservação da energia:


enfoques de Kuhn, Elkana e Heimann

Sabe-se que a emergência dó princípio de conservação da energia


entre os anos de 1830 e 1850 e a sua consolidação nos anos poste-
riores, foi realizada por um número muito grande de pesquisadores
tanto na área teórica como na experimental. A sua história é extre-
mamente rica e complexa, envolvendo antecedentes muito diversifica-
dos como, por exemplo, o conceito de vis viva, o conceito de traba-
lho mecânico, as experiências de conversão envolvendo os fenômenos
elétricos, magnéticos, químicos e o calor, as experiências e estudos
ligados às máquinas mecânicas e térmicas, o estudo dos gases, a Na-
turphilosophie e a metafísica da continuidade na diversidade, por meio
de forças de atração e repulsão.
Não pretendo, com essa listagem, esgotar b número de possíveis
antecedentes, tampouco analisá-los isoladamente, pois isto não ca-
beria no âmbito deste trabalho. Pretendo, contudo, comentar as
idéias de Kuhn sobre a gênese do princípio de conservação da ener-
gia que avalia muito bem estes antecedentes, situando o trabalho de
Helmholtz nesse contexto.
Thomas Kuhn, em um importante trabalho (ver Kuhn, 1959) so-
bre a gênese do princípio de conservação da energia, situou muito bem
o contexto científico e filosófico que possibilitou a emergência deste
princípio. Kuhn neste artigo defendeu a tese da simultaneidade da
descoberta^ relacionando o nome de doze cientistas que, segundo ele,
foram os responsáveis diretos pela idéia de conservação da energia.
Coleção CLE V.11
380 Helmholtz e a Conservação da Energia

Para Kuhn existiram três fatores decisivos para a descoberta si-


multânea entre os anos de 1830 e 1850, a saber: os processos de
conversão, a teoria e a prática das máquinas e a Naturphilosophie.
Entre esses fatores, os processos de conversão foram os principais,
pois agiram, segundo Kuhn, como um estopim que desencadeou o
processo de estabelecimento do princípio de conservação da energia.
Ligado a esses três fatores, Kuhn vincula os doze cientistas em
três modos de apreensão da idéia de conservação da energia: 1) a
apreensão como um todo sem apresentar relações numéricas; 2) a
apreensão por meio da equivalência quantitativa entre calor e traba-
lho; 3) a apreensão completa, que envolve a formulação geral mais
as aplicações quantitativas. Para Kuhn, Carl Friedrich Mohr (1839),
Michael Faraday (1831-40), William Robert Grove (1842) e Justus
Liebig (1842) preocuparam-se mais com o todo, não fornecendo va-
lores numéricos para os equivalentes. Sadi Carnot (1824-32), Marc
Séguin (1839), Karl Holtzmann (1845) e G.A. Hirn (1854) forneceram
valores numéricos para o equivalente mecânico do calor, porém não se
importaram com o todo. Julius Robert Mayer (1842-45), Ludwig Au-
gust Colding (1843), James Prescott Joule (1843-44-47) e Hermann
von Helmholtz (1847) apresentaram cálculos do equivalente calor-
trabalho e fizeram considerações acerca da generalidade do princípio
de conservação da energia.
Do ponto de vista de Kuhn, não houve um único descobridor
do Princípio de conservação da energia; tampouco, para ele, desco-
berta simultânea significa que tais pioneiros tenham chegado a uma
mesma conclusão e falado uma mesma linguagem. Kuhn admite, in-
clusive, que tinham diferentes objetivos; porém, olhando para os seus
trabalhos à luz do conceito de energia, como é apreendido hoje, é
plenamente lícito, segundo Kuhn, considerá-los como portadores de
diferentes aspectos do princípio de conservação da energia.
Kuhn esclarece, ainda, que todos os processos de conversão co-
nhecidos no século XVIH, com exceção das máquinas térmicas, jun-
tamente com os do imcio do século XIX, não eram considerados como
tal até 1830. Assim, antes de 1830, as experiências de conversão eram
encaradas, segundo ele, como fenômenos isolados; no entanto, a par-
tir dessa data, os processos de conversão desencadearam, conforme
Kuhn, a emergência do princípio de conservação da energia. Ele não
Coleção CLE V.11
Osvaldo Melo Souza Filho 381

explica porque os processos de conservação nã,o agiram, antes de 1830,


como estopim do processo de estabelecimento da idéia de conservação
da energia.
A interpretação dada por Kuhn à gênese do princípio de con-
servação da energia é um grande avanço em face de outra versão onde
esta idéia é apresentada como resultado dos trabalhos de um ou ou-
tro pesquisador (Joule (1843) e Mayer (1842), principalmente). Esta
outra versão possui antecedentes históricos que repousam na disputa
a respeito de conceder a Mayer ou a Joule os méritos da descoberta
da conservação da energia3.
Uma outra versão da gênese da conservação da energia é apresen-
tada por Ernst Mach em 1872 (ver Mach, 1911). Mach considera
a idéia de exclusão do moto perpétuo uma idéia chave que conduz
à gênese do conceito de conservação da energia. Nesse sentido, faz
referência ao trabalho de Helmholtz (1847) como uma importante ge-
neralização das tentativas anteriores de Carnot, Mayer e Neumann
para a aplicação do princípio de exclusão do moto perpétuo para
outros domínios além dos da Mecânica (Mach, 1911, p. 39).
A interpretação de Kuhn rompe com a noção do descobridor
único. No entanto, a sua posição é contestada por Yehuda Elkana
e P.M. Heimann em alguns pontos.
Elkana (1970a) afirma que o modelo de descoberta simultânea
não é correto, pois, no período de 1820 a 1860, os problemas que
preocupavam diferentes grupos em diferentes lugares eram, na rea-
lidade, também distintos, e as suas respostas a esses problemas
também foram distintas. Somente depois da formulação generali-
zada do princípio de conservação da energia é que esses resultados
vieram a ser, segundo Elkana, "mais do que relacionados, vieram a
ser logicamente derivados um do outro" (Elkana, 1970a, p. 32).
Assim, a maior dificuldade que Elkana aponta para o modelo de des-
coberta simultânea é a falta de um critério único de descoberta4.
3
Na Inglaterra, é famosa a controvérsia entre os físicos Tyndall, que defendia
o pioneirismo de Mayer, e Tait, que defendia o de Joule.
* Elkana aponta algumas contradições de Kuhn a esse respeito, especialmente
ao avaliar os trabalhos de Hirn e Holtzmann onde, para o primeiro, Kuhn estabe-
lece ura critério no qual é fundamental o conceito de energia como é atualmente
concebido, e para o segundo Kuhn utiliza um critério no qual o julgamento dos
contemporâneos é o mais importante (Elkana, 1970a, p. 38).
Coleção CLE V.11
382 Helmholtz e a Conservação da Energia

Elkana diz ainda qne os fatores que possibilitaram a formulação geral


do conceito de energia se encontraram combinados na personalidade
de Helmholtz e expressos em seus trabalhos (Elkana, 1970a, p. 35
e 54)5.
Heimann (1974b) concorda com a tese de Kuhn sobre a desco-
berta simultânea, porém faz restrições com relação ao fato de as ex-
periências de conversão terem servido como estopim ou catalisador
do processo de descoberta do princípio de conservação da energia, no
período de 1830 a 1850. Heimann discorda de Kuhn, quando este
considera que a ênfase, na correlação entre as forças da natureza,
conforme foi observada nos trabalhos de Faraday, Grove e Joule, te-
nha como origem as experiências de conversão do começo do século
XIX. Para Heimann "a crença na interconversão das potências na-
turais e na unidade da natureza, baseada em uma consciência das
relações e conexões entre os fenômenos do calor, luz, eletricidade e
química, era comum na filosofia natural britânica do final do século
XVIIF (Heimann, 1974b, p. 148). Heimann cita os trabalhos de
James Hutton (1792), Humphry Davy (1799) e Adam Walker (1799),
apresentando-os como fontes onde, seguramente, Faraday, Grove e
Joule tiveram algum contato, especialmente Faraday que, além de
ter sido assistente de Davy, mostrava claramente, em suas pesquisas,
um programa onde a correlação de forças e a sua indestrutibilidade
eram um grande objetivo a ser verificado (ver Heimann, 1974, p.
155).
Acredito que tanto as ponderações de Elkana como as de Heimann
são muito importantes para o esclarecimento de questões que, a meu
ver, se encontram ainda em aberto. Uma delas foi colocada por Kuhn,
que pergunta:
Por que, entre os anos de 1830 e 1850, muitos dos experimentos e
conceitos exigidos para uma formulação completa da conservação da
energia estiveram tão perto da superfície da consciência científica?
(1959, p. 341)
5
De acordo com Elkana esses fatores são: 1) uma crença a priori em um
princípio geral de conservação na natureza; 2) uma convicção de que a formulação
vetorial da mecânica de Newton-Euier e a formulação escalar de Lagrange são, não
só matematicamente, como conceitualmente equivalentes; 3) um conhecimento do
problema do calor animai e das forças vitais, e a crença de que eles são redutíveis
às leis da matéria inorgânica; 4) a convicção de que qualquer que seja a entidade
conservada na natureza ela deve ser expressa em termos matemáticos.
Coleção CLE V.11
Osvaldo Melo Souza Filho 383

M
3. Dados biográficos e antecedentes do Sobre a Conserva-
ção da Força"

Hermann Ludwig Ferdinand vou Helmholtz nasceu em Potsdam


em 1821. Foi educado no Potsdam Gymnasium, entre os anos 1832
e 1838. 0 pai, August Ferdinand Julius Helmholtz, foi professor de
Filosofia e Literatura clássica do mesmo Potsdam Gymnasium, exer-
cendo uma forte influência na formação do filho. August Helmholtz
foi amigo de muitos anos de Lnanuel Hermann Fichte (Koenigsber-
ger, 1965, p. 5), professor de Filosofia e filho do "Naturphilosoph"
Gottlieb Fichte. Em sua autobiografia (ver Helmholtz, 1895, p.
285), Helmholtz comenta que o seu interesse desde jovem por questões
da teoria da cognição foi despertado, por presenciar, inúmeras vezes,
as disputas filosóficas entre o pai, influenciado pelo idealismo de Fi-
chte, e os colegas dele (pai) que defendiam os pontos de vistas de
Kant ou Hegel. Pode-se depreender da natureza de tais discussões
filosóficas, permeadas do espírito especulativo da Naturphilosophie
(ver Gower, 1973), que Helmholtz tenha adquirido delas um certo
gosto em buscar grandes generalizações6.
De sua autobiografia podemos ver como Helmholtz foi estimulado
pelo pai na leitura dos clássicos da literatura, porém já demonstrava
desde cedo um forte interesse pela física e muita facilidade ao lidar
com a geometria (Helmholtz, 1895, p. 271-2). No entanto, tendo a
sua família limitados recursos, foi levado a ingressar no Instituto de
Medicina e Cirurgia Friedrich-Wilhelm de Berlim, em 1838.
Durante o período de graduação neste Instituto, Helmholtz
tornou-se, por meio de seu professor Johannes Peter Müller, extre-
mamente interessado em Fisiologia e na busca da explicação físico-
química para os processos biológicos. Esta relação entre a Fisiologia,
a Física e a Química e, como decorrência desta, a quantificação dos
processos biológicos, mantiveram Helmholtz em permanente estudo
da Física e da Matemática. Assim, os princípios da Mecânica foram
estudados por Helmholtz nos trabalhos de Euler, Daniel Bernouilli,

6
Cabe-nos salientai, todavia, que a influência fllosófica fundamental recebida
por Helmholtz durante a sua formação universitária, que irá nortear a sua car-
reira científica, foi proveniente do pensamento de Kant e do empirismo inglês.
Essas influências imprimiram em Helmholtz uma atitude extremamente crítica às
especulações metafísicas e mais voltada à consideração rigorosa dos fatos.
Coleção CLE V.11
384 Helmholtz e a Conservação da Energia

D'Alembert e Lagrange, conforme é apontado pelo seu biógrafo (ver


Koenigsberger, 1965, p. 25-6) e por sua autobiografia de 1891 (ver
Helmholtz, 1895, p. 276).
Em 1842, Helmholtz se forma em Medicina, obtendo, em novem-
bro do mesmo ano, com a dissertação "De fabrica systematis nervosi
evertebratorum", trabalho dedicado a Johannes P. Müller, o título
de doutor.
Depois de formado, Helmholtz inicia uma brilhante, e não muito
convencional, carreira de médico, professor e pesquisador, com con-
tribuições decisivas em campos completamente distintos do conheci-
mento. Maxwell (1877) em um artigo sobre Helmholtz, publicado na
revista "Nature", comenta de forma elogiosa que ele não foi somente
"o mais ilustre exemplo de conhecimento extensivo da ciência, com-
binado com perfeição, mas de uma perfeição na qual ela mesma exige
o domínio de muitas ciências e, ao fazê-lo, imprimiu sua marca em
cada uma delas" (Maxwell, 1965, p. 593).
Na sua carreira científica Helmholtz deu contribuições imensas à
Fisiologia, área onde realizou trabalhos seminais relacionados com
a visão e com a audição, como o monumental Handbuck der Phy-
siologischem Optik (Manual de Ótica Fisiológica, 1856-66) em três
volumes e o Die Lehre von dem Tonempfindung (A Ciência da Des-
coberta da Tonalidade) de 1863. Foi o primeiro a medir a velocidade
dos impulsos nervosos e inventou o oftalmoscópio. Deu contribuições
importantes à Termodinâmica, aó Eletromagnetismo, à Mecânica, à
Geometria e à Matemática aplicada. Também escreveu sobre Filo-
sofia da Ciência e Epistemologia, firmando suas análises nos últimos
resultados das investigações científicas e no pensamento de Kant.
Helmholtz iniciou sua carreira profissional como cirurgião militar
do exército prussiano, aí permanecendo durante cinco anos, de 1843
a 1848 (uma obrigação que Helmholtz teve que cumprir em virtude
do auxílio que recebeu do Estado para os seus estudos universitários);
foi professor de Fisiologia em Kõnigsberg (1849 a 1855), professor de
Anatomia e Fisiologia em Bonn (1855 a 1858), professor de Fisiologia
em Heidelberg (1858 a 1871), professor de Física em Berlim (1871 a
1888), quando foi indicado como primeiro presidente e diretor do
novo Physikalish- Technische Reichsanstalt (Instituto Federal Físico-
Técnico) de Berlim onde permaneceu até sua morte em 1894.
Coleção CLE V.11
Osvaldo Melo Souza Filho 385

Durante o período em que atuava como cirurgião militar em Pots-


dam, Helmholtz preparou o seu famoso trabalho Uber die Erhaltung
der Kraft ("Sobre a Conservação da Força"), apresentado e publicado
em 1847.
Segundo Koenigsberger (p. 37), em fevereiro de 1847, Helmholtz
enviou a Emil du Bois-Reymond, seu amigo, o esboço da sua in-
trodução a "Sobre a Conservação da Força" , sendo recebida por esse
com grande entusiasmo, a ponto de considerá-la um "documento
histórico e de grande interesse científico para todos os tempos" (pala-
vras de du Bois-Reymond conforme transcrição de Koenigsberger, p.
37). Essa receptividade de du Bois-Reymond foi compartilhada por
outros colegas de Helmholtz, que tornaram o "Sobre a Conservação da
Força" bem aceito entre os jovens fisiologistas e físicos da Sociedade
Física de Berlim (ver Koenigsberger, 1965, p. 38 e Helmholtz,
1895, p. 277). Também o matemático Gustav Jacob Jacobi fez re-
ferências elogiosas ao trabalho de Helmholtz, prontamente reconhe-
cendo nele uma íntima conexão com a linha de pensamento dos ma-
temáticos franceses do século XVIII (Helmholtz, 1895, p. 276 e
Koenigsberger, 1965, p. 43). Contudo, entre as autoridades mai-
ores em física, houve mais reservas do que entusiasmo. Tão logo
Helmholtz terminou a apresentação de seu trabalho, levou o manus-
crito para Gustav Magnus, a fim de que este o referendasse para
uma publicação futura no Annalen Der Physik de Christiaan Pog-
gendoríF. Magnus, porém, apesar de reconhecer os méritos do ensaio
de Helmholtz, foi bastante cauteloso na recomendação que enviou
a Poggendorff (Koenigsberger, 1965, p. 38). Segundo Koenigs-
berger (p. 38), Magnus advertiu Helmholtz repetidamente contra o
uso indevido da Matemática, na sua tentativa de interligar diferentes
campos da Física.
Poggendorff recusou a publicação do "Sobre a Conservação da
Força" no Annalen, com a justificativa de que este trabalho não era
suficientemente experimental, apesar de reconhecer sua importância
como um tratado teórico (Koenigsberger, 1965, p, 38).
Essa indisposição contra o princípio de conservação da força pelas
autoridades físicas é atribuída por Helmholtz em sua autobiografia à
aguda contestação da filosofia natural de Hegel por esses e que os
predispunha a considerar qualquer resultado mais abrangente como
Coleção CLE V.11
386 Helmholtz e a Conservação da Energia

uma "especulação fantástica" (Helmholtz, 1895, p. 276).


Não há dúvidas de que a principal intenção de Helmholtz, ao
elaborar o seu ensaio, era a de dar uma contribuição básica à Física
Teórica. Já no início da introdução ao "Sobre a Conservação da
Força", Helmholtz afirma explicitamente o seu objetivo ao chamar a
atenção dos físicos para o conteúdo principal do seu trabalho. Diz
Helmholtz na Introdução:
Os assuntos principais do presente artigo mostram-se endereçados
especialmente aos físicos e, por esta razão, julguei criterioso para es-
tabelecer seus princípios fundamentais puramente na forma de uma
premissa física, e independente de considerações metafísicas, - para
desenvolver as conseqüências desses princípios e submetê-los a uma
comparação com que a experiência tem estabelecido nos vários ra-
mos da Física (HELMHOLTZ, 1853, p. 114).

Sendo assim, parece-me estranho que Helmholtz tenha declarado


em sua autobiografia que o objetivo no ensaio de 1847 "foi mera-
mente fornecer uma investigação crítica e um arranjo dos fatos para
o benefício dos fisiologistas" (Helmholtz, 1895, p. 276). É uma de-
claração, a meu ver, muito modesta que não condiz com a abrangência
dos pressupostos firmados por Helmholtz na Introdução deste ensaio.
No entanto, acredito que com esta declaração, Helmholtz, de certa
forma, aponta para um dos antecedentes do seu trabalho de 1847. De
acordo com Heimann (1974a, p. 209), as origens do "Sobre a Con-
servação da Força" encontram-se "em parte na formação em Medicina
de Helmholtz e no seu interesse em Fisiologia, e na sua específica pre-
ocupação com o problema do calor animal por volta de 1845".
Certamente a sua formação em Medicina e os seus estudos em
Fisiologia orientados por Johannes Miiller foram fundamentais para
conduzir Helmholtz aos problemas da conservação de diferentes for-
mas de energia em calor e vice-versa. Neste sentido, podemos di-
zer que os estudos fisiológicos abriram as portas para Helmholtz às
indagações que o tornará um dos formuladores do princípio de con-
servação da energia. Cabe lembrar que os estudos fisiológicos con-
duziram outros alemães, como Mayer e Liebig, a questionamentos
semelhantes. No entanto, se verificarmos no artigo de Helmholtz a
parte dedicada à questão do calor animal e sua transformação em ou-
tras formas de "força" ou, colocando de um modo mais abrangente,
da "conversão e conservação das forças" no mundo orgânico, veremos
Coleção CLE V.11
Osvaldo Melo Souza Filho 387

que é ínfima se comparada com a análise que Helmholtz faz da "inter-


relação de forças" no mundo inorgânico. De fato, Helmholtz dedica
menos do que uma página, de um artigo de 49 páginas, ao assunto.
Porém, se é verdade que no "Sobre a Conservação da Força" as in-
terações fisico-químicas, no mundo orgânico, mereceram apenas uma
breve menção, isto não significa considerar esses estudos menos rele-
vantes, pois forneceram uma parte substancial da problemática vin-
culada ao estabelecimento do princípio de conservação da energia7.
Helmholtz, em seus estudos fisiológicos, esteve em contato com
a questão da existência e da natureza de uma força vital, isto é, a
questão de se o funcionamento de um organismo vivo é meramente o
resultado da soma das forças inorgânicas ou se é necessário supor a
presença de uma força auto-suficiente especial. Esta questão foi le-
vantada freqüentemente por Müller e por Liebig. Liebig, que segundo
Kuhn, foi um dos descobridores da lei de conservação da energia, em
um trabalho de 1842 intitulado Tier-Chemie, odChemi
rer Anwendung auf Physiologie und ("Química animal, ou
a química em sua utilização na Fisiologia e Patologia"), postulou a
existência de uma força vital que seria responsável pelos fenômenos
ligados aos organismos, tais como crescimento, a reprodução e a re-
sistência às doenças. Tais fenômenos, segundo Liebig, não poderiam
ser explicados exclusivamente por forças de natureza física e química,
sendo necessários, por esta razão, uma força peculiar que seria, no
caso, a força vital. Liebig argumentava que esta força vital agia jun-
tamente com outras forças, de natureza física e química e que, na sua
operação conjunta, mantinha o corpo vivo e em movimento (ver Lip-
man, 1967). Segundo Heimann (1974a, p. 211), a natureza da força
vital, na concepção de Liebig, mantinha características semelhantes
às forças físicas e químicas, ou seja, ela não poderia ser gerada a partir
de nada, podendo acarretar, por sua vez, uma quantidade equivalente
de outra força. Também nesse trabalho de 1842, Liebig desenvolveu
a sua teoria, na qual a "força química", fornecida pela respiração, é a
única fonte do calor animal. A respiração é vista por Liebig como um
processo químico comparável à combustão do carbono8. Helmholtz
r
Sobie a relação da Fisica, Química e aos conceitos fisiológicos consultai: CU-
LOTTA, 1974; MENDELSOHN, 1965; e LIPMAN, 1967.
8
Cabe aqui salientai que esta tese de Liebig encontra sustentação experimen-
tal nos tiabalhos de Lavoisiei, cuja teoria da combustão também eia conhecida
Coleção CLE V.11
388 Helmholtz e a Conservação da Energia,

irá realizar vários trabalhos diretamente relacionados com estes estu-


dos de Liebig.
Em 1845, Helmholtz publica no Miiller's Archiv o artigo Uber den
Stoffverbrauch bei der Muskelaction ("Sobre o metabolismo durante
a atividade muscular"). Neste artigo, de acordo com Koenigsber-
ger (p. 32), Helmholtz procurou investigar as modificações produzi-
das na constituição química dos músculos pela sua própria atividade.
Helmholtz, para isso, realizou experimentos com sapos, usando uma
garrafa de Leyden e um pequeno aparelho èlétrico, construído por ele
para esse fim.
No mesmo ano, escreve um artigo intitulado Wãrme, Physiolo-
gisch("Calor fisiológico") para a Enciclopédia Médica promovida por
alguns membros da Faculdade de Medicina de Berlim. Neste artigo
ele investiga a origem do calor animal, concluindo que o ar e os ali-
mentos metabolizados, na respiração e na digestão, são responsáveis
pela soma total do calor que o corpo pode produzir (KOENIGSBER-
ger, 1965, p. 33). Ainda neste artigo, Helmholtz demonstra a sua
preferência pela teoria ondulatória do calor, em detrimento da teoria
do calor como substância material (ver Brush, 1970, p. 162). Se-
gundo Helmholtz, o calor pode, de fato, ser criado por outras forças
naturais, tais como as forças mecânicas, no atrito e na equalização
das tensões elétricas. Afirma ainda que a concepção do calor, como
movimento, implica a determinação de uma quantidade equivalente
de calor produzida por uma quantidade definida de força mecânica
ou elétrica.
Em 1846, Helmholtz publicou o artigo Bericht über die Theorie
der Physiologiscken Wãrmeerscheinungen für 1845 ("Informe sobre a
teoria da produção fisiológica do calor de 1845") no Der
Physik da Sociedade Física de Berlim. Segundo Koenigsberger (1965,
p. 34), esse informe de Helmholtz é apenas um resumo do artigo
escrito para a Enciclopédia Médica já mencionada, porém, antecipa
mais claramente as teses do "Sobre a Conservação da Força" de 1847.
Nesse informe, segundo Heimann (1974a, p. 210), Helmholtz, comen-
s estudos de Liebig, afirma que o princípio da criação do calor

ji Mayer, quando estendeu o seu princípio de "transformação e indestrutíbili-


dade das forças" ao mundo orgânico (ver MARTINS, 1984; HEIMANN, 1976 e
HUTCHINSON, 1976).
Coleção CLE V.11
Osvaldo Melo Souza Filho 389

animal, a partir de outras forças e não do nada, supõe a validade do


"princípio de constância das forças". De acordo com Helmholtz, essa
teoria de que as forças podem ser transformadas umas nas outras,
mas não aniquiladas, ainda não havia sido completamente compre-
endida ou resolvida e nem estava empiricamente sustentada, sendo
necessária uma justificação.
Nesses trabalhos que antecederam o "Sobre a Conservação da
Força" de 1847, Helmholtz, segundo Heimann (1974à, p. 210), pro-
curou subordinar as forças que regulavam a fisiologia dos organismos
sob a estrutura das leis que determinavam as forças não-orgânicas.
Por esta razão, Helmholtz enfatizou que a força vital não poderia ser
um princípio que se autoperpetuasse, pois assim não se submeteria à
constância das forças. Uma força que se autoperpetuasse seria ainda
contrária a um princípio da mecânica que Helmholtz toma como ab-
solutamente seguro, que é a impossibilidade do moto-perpétuo. As-
sim, de acordo com Heimann (1974a, p. 211), o problema do moto-
perpétuo conduziu Helmholtz dos estudos fisiológicos até a elaboração
do "Sobre a Conservação da Força".
Um outro antecedente do seu artigo de 1847 é o interesse de
Helmholtz pelas ciências físicas e químicas que é anterior ao seu in-
teresse pela Fisiologia. Assim, antes de obter o seu treino profissio-
nal em Medicina e antes de embrenhar-se nos estudos fisiológicos,
Helmholtz procurava estudar todos os livros de Física e Química
que encontrava na biblioteca do pai (Helmholtz, 1895, p. 273).
Esses livros, segundo o que Helmholtz relata em sua autobiogra-
fia, eram antiquados pois ainda falavam do flogístico e considera-
vam a pilha voltaica ainda como uma das últimas novidades. Apesar
disso, Helmholtz desenvolveu nesse período uma grande fascinação
pelo domínio intelectual sobre a natureza, por meio de uma ajustada
estrutura teórica, ou, usando as suas próprias palavras, "pela força
lógica da lei" (Helmholtz, 1895, p. 272).
É nesse período, enquanto estudante do Gymnasium de Potsdam,
que Helmholtz toma conhecimento da questão da impossibilidade do
moto-perpétuo que vai ser um dos pontos básicos do ensaio de 1847.
O estudo de Euler, Daniel Bernouilli, D'Alembert e Lagrange, que
sedimentará a sua visão mecanicista dos fenômenos físicos, vai ser
feito no período universitário. Essa visão mecanicista de Helmholtz
Coleção CLE V.11
390 Helmholtz e a Conservação da Energia

considerava a natureza regulada por leis causais, que podiam ser ex-
pressas por forças centrais newtonianas. Para Helmholtz todos os
fenômenos da natureza podiam ser reduzidos a processos mecânicos
que nada mais eram que o movimento de pontos materiais submetidos
às forças centrais de atração e repulsão. Esse é um ponto fundamen-
tal do "Sobre a Conservação da Força", que mais adiante comentarei.

u
4. Comentários ao Sobre a Conservação da Força" (1847)
de Helmholtz
O artigo de Helmholtz consta de uma introdução-e seis partes9.
Minha análise concentrar-se-á na introdução e nas duas primeiras par-
tes, onde estão localizadas as idéias mais fundamentais de Helmholtz
sobre a conservação da energia, ou, conforme a terminologia usada
por ele na época, conservação da força10.
A introdução de Helmholtz é, a meu ver, um verdadeiro programa
geral sobre os objetivos da pesquisa teórica em Física, no qual são
firmados pressupostos acerca dos fundamentos da realidade natural
e das limitações do entendimento, Esses pressupostos são enunciados
em teses de natureza ontológica e epistemológica, que constituem a
9
On the Conservation of Force; a Physical Memoir. By Dr. H. Helmholtz;
(Read bcfore the Physical Society of Berlim on the 23rd of July, 1847. Berlim, G.
Reimeir.)
Contents
Introduction
I. The principie of the Conservation of vis viva,
II. The principie of the Conservation of Force.
III. The application of the principie in Mechanical Theorems.
IV. The Force-equivalent of Heat.
V. The Force-equivalent of the Electric Processes.
VI. The Force-equivalent of Magnetism and Electro-magnetism. (John Tynndall
and W. Francis.): Scientihc Memoirs, Natural Philosophy, Vol. I, Part II, London:
Taylor and Francis, 1853.)
10
Na parte III, que nao analisarei, Helmholtz menciona um conjunto de
aplicações do princípio de conservação da força na mecânica, onde sua aplicação
não era questionada, e o estende à luz e ao calor radiante através de considerações
sobre o movimento ondulatório. Não comentarei a parte IV onde é discutida mais
amplamente a teoria do calor e do trabalho mecânico. Também não farei co-
mentários sobre as partes V e VI nas quais Helmholtz analisa a conservação da
força nos processos elétricos e magnéticos. Esta é uma parte bastante extensa (23
das 49 páginas do artigo) e complexa que exige uma maior pesquisa - desconheço
trabalhos que analisam com detalhes essa parte do artigo de Helmholtz.
Coleção CLE V.11
Osvaldo Melo Souza Filho 391

base do seu argumento filosófico.


No Início da introdução, Helmholtz (1853, p. 114) dedica o seu
trabalho principalmente aos físicos e estabelece os seus princípios
fundamentais "puramente na forma de uma premissa física, e inde-
pendente de considerações metafísicas". Apesar dessa declaração,
Helmholtz desenvolve considerações metafísicas que fundamentam
sua concepção mecanicista da natureza, semelhante à de Kant no
Metaphysische Anfangsgrunde der Naturwissenschaft (1786) e à de
Laplace no Exposition duSystème du Monde (1796). E
da natureza, em bases newtonianas e atomísticas, tinha suficiente
aceitação no meio científico da época para Helmholtz não considerá-
la como um pressuposto metafísico, ou mesmo como uma hipótese.
No entanto, toda a sua introdução vai consistir de considerações fi-
losóficas que procuram justificar uma das duas máximas, tidas como
dois princípios fundamentais. Essas máximas encontram-se logo no
início do seu trabalho e ele procurará, nas partes I e II, justificá-las
de forma científica. Porém, na introdução, o seu argumento é inequi-
vocamente metafísico.
A primeira máxima afirma que "não é possível, por qualquer com-
binação que seja dos corpos naturais, produzir uma quantidade ili-
mitada de força mecânica", ou seja, é impossível o moto-perpétuo; a
segunda afirma que "todas as ações na natureza podem ser referidas,
em última instância, a forças atrativas e repulsivas, cuja intensidade
depende unicamente das distâncias entre os pontos sobre os quais
as forças são exercidas". As duas máximas são, segundo Helmholtz,
proposições idênticas. Todavia, a segunda é o seu alvo principal, por
três motivos, que considero básicos na avaliação de seu trabalho:
1) a justificação filosófica é voltada inteiramente à segunda
máxima;
2) a validade do teorema das forças vivas e sua generalização como
um princípio de conservação das forças, depende das forças serem
centrais;
3) a primeira máxima é um pressuposto de caráter empírico que
será usado para justificar a segunda máxima.
Inicialmente vou discutir a justificação filosófica contida na in-
trodução. Depois, discutirei a parte I e II que trata do teorema das
forças vivas e sua generalização como um princípio de conservação
Coleção CLE V.11
392 Helmholtz e a Conservação da Energia.

da força. Finalizarei, procurando mostrar a concepção da natureza


de Helmholtz como um pressuposto do princípio de conservação da
força.

4.1. Os pressupostos metafísicos da Introdução

Podemos agrupar as considerações metafísicas de Helmholtz, con-


tidas na introdução, em dois grupos de teses (ontológicas e episte-
mológicas), em conseqüência das quais Helmholtz apresenta uma con-
cepção geral da natureza que traz como um dos seus elementos, a se-
gunda máxima. Essa máxima está também contida no que Helmholtz
estabelece como objetivo da física teórica.
Procurarei mostrar que os objetivos da física teórica e a concepção
da natureza de Helmholtz decorrem de sueis teses ontológicas e epis-
temológicas.
Na introdução ao "Sobre a Conservação da Força", Helmholtz faz
duas perguntas básicas, intimamente associadas:
1) qual o objetivo da ciência?
2) qual a tarefa a que deve se dedicar o físico teórico?
Para respondê-las, Helmholtz distingue dois setores na ciência: o
experimental e o teórico.
0 objetivo da ciência experimental é, para Helmholtz, a busca de
leis ou regras gerais que descrevem os processos particulares da na-
tureza, ou, a busca de idéias gerais que conectam vários fenômenos.
Cita como exemplos a lei de reflexão e refração da luz e a lei de Ma-
riotte e Gay-Lusscic, considerando os volumes dos gases. Helmholtz
(1853, p. 115) parece sugerir - não entra em maiores detalhes -
que as leis ou regras gerais são generalizações empíricas. Ele não dá
indicações de como deve ser o procedimento experimental, exigindo
apenas que "os processos particulares da natureza possam ser referi-
dos a, e deduzidos de regras gerais".
Com relação à ciência teórica, Helmholtz (1853, p. 115) afirma
que o seu objetivo é "desenvolver eis causas desconhecidas dos pro-
cessos a partir das ações visíveis que eles apresentam". Essas causas
desconhecidEis são especificadas por Helmholtz (1853, p. 117) como
"forças invariáveis atrativas e repulsivas, cuja intensidade depende
somente da distância".
Uma vez determinado o objetivo da ciência, torna-se clara a tarefa
Coleção CLE V.11
Osvaldo Melo Souza Filho 393

a que deve se dedicar o físico. Essa tarefa pode ser expressa por meio
de duas afirmações:
1) o objetivo da ciência experimental é buscar leis ou regras gerais
que descrevem os processos particulares da natureza;
2) o objetivo da ciência teórica é procurar descobrir as causas
fundamentais, desconhecidas e invariáveis, dos fenômenos naturais
a partir das ações visíveis. Essas causas fundamentais são forças
invariáveis atrativas e repulsivas, cuja intensidade depende somente
da distância.
O interesse principal de Helmholtz está associado à segunda
afirmação. Por esse motivo, ele estabelece pressupostos metafísicos
para justificar o objetivo da ciência teórica. Esses pressupostos, cons-
tituídos por teses ontológicas e epistemológicas, fundamentam a con-
cepção da natureza de Helmholtz, cujos elementos são coerentes com
a sua interpretação mecanicista do princípio de conservação da força.
Agrupei as teses ontológicas em um conjunto de oito pressupostos
e tis epistemológicas em um conjunto de cinco. Farei uma exposição
bem esquemática delas e depois um breve comentário, procurando
sintetizar as principais idéias contidas nessas teses. As ontológicas
são as seguintes:

T01) cada mudança na natureza deve ter uma causa suficiente;

T02) causas variáveis são explicadas por novas causas e assim suces-
sivamente até chegar às causas fundamentais11 invariáveis;

T03) existem os fenômenos naturais visíveis e as causas fundamentais


e invariáveis dos fenômenos;

T04) matéria é simples existência desprovida de ação;

T05) na matéria distinguimos relações de espaço e de quantidade


(massa) supostas eternamente invariáveis. A matéria assim
11
Na tradução de Tyndall encontramos a expressão "final causes" (causas finais)
em um sentido ontológico de causalidade. Portanto, é mais adequado usar a
expressão "causas fundamentais" para evitar o sentido de finalismo aristotélico
que a expressão "causas finais" acarreta. Infelizmente não disponho da versão
original em alemão para verificar qual termo Helmholtz utilizou.
Coleção CLE V.11
394 Helmholtz e a Conservação da Energia

considerada náo deve ser atribuída diferenças qualitativas. Mu-


danças na matéria signifícam somente mudanças espaciais, ou
seja, movimento;

T06) força é a capacidade de produzir efeitos;

T07) diferenças qualitativas na matéria, ou diferentes tipos de


matéria, referem-se às diferenças nas forças da matéria;

TOS) matéria e força são inseparáveis nos fenômenos do mundo exte-


rior.

As teses epistemológicas são as seguintes:

TE1) os fenômenos do mundo exterior são considerados pela ciência


através de dois modos de abstração: matéria e força;

TE2) na aplicação da idéia de matéria e força à natureza elas jamais


devem estar separadas;

TE3) a ciência cujo objetivo é compreender a natureza deve proceder


da suposição de que ela seja compreensível, devendo para isso
referir os processos naturais a causas fundamentais invariáveis;

TE4) a solubilidade do problema da redução dos fenômenos naturais a


forças invariáveis atrativas e repulsivas é condição da completa
inteligibilidade da natureza;

TE5) força, da qual se origina o movimento, somente pode ser con-


cebida como se referindo a uma relação de, pelo menos, dois
corpos materiais em direção um ao outro; deve, portanto, ser de-
finida como o esforço de duas massas para alterar a sua posição
relativa.

Essas teses são fundamentais, pois, a partir delas, Helmholtz


constrói sua concepção da natureza, assim como determina o objetivo
da física teórica. Assim, para melhor compreender os seus pressupos-
tos filosóficos agrupei as oito teses ontológicas em duas partes. A
primeira compreende as três primeiras teses, cujas afirmações se ba-
seiam no princípio da causalidade. A segunda parte compreende as
cinco teses restantes, cujas declarações acerca da matéria e da força
constituem uma ontologia matéria-força.
Coleção CLE V.11
Osvaldo Melo Souza Filho 395

Com o mesmo objetivo, dividi também em duas partes as teses


epistemológicas. A primeira compreende as duas primeiras teses que
fazem afirmações sobre matéria-força como um modo de abstração.
A segunda parte compreende as três teses restantes que estabelecem
condições da completa inteligibilidade da natureza.
Acredito que as teses epistemológicas possuem uma precedência
sobre as ontológicas por duas razões: a primeira, porque o princípio
da causalidade encontra sustentação como condição de inteligibili-
dade da natureza conforme é declarado em TE3; a segunda, porque a
matéria e a força são explicadas como modos de abstração conforme
é declarado em TE1. Esta precedência das teses epistemológicas so-
bre as ontológicas indicam a influência da filosofia kantiana sobre as
concepções filosóficas de Helmholtz12.
Resta-nos comentar a concepção geral da natureza de Helmboltz,
uma extensão de suas teses ontológicas e epistemológicas, com o
acréscimo de hipóteses mecanicistas, que vai especificar o seu pro-
grama de pesquisa. A concepção da natureza de Helmholtz fazia
parte de uma visão, compartilhada pela maioria dos filósofos e cien-
tistas da época, que aceitavam a redução dos fenômenos em partículas
submetidas às forças newtonianas. A sua concepção da natureza pode^
ser agrupada em sete postulados e um corolário, que são os seguintes:
PI) as causas fundamentais e invariáveis dos fenômenos naturais
são as forças invariáveis;

P2) o universo pode ser decomposto em elementos;

P3) cada elemento possui uma força invariável;

P4) a única alteração possível de um sistema de elementos é a al-


teração de posição;
12
Sobre a influência de Kant é interessante verificar o artigo de P. M. Heimann
(1974a). Nesse artigo ele compara os pressupostos metafísicos de Helmholtz fir-
mados na introdução do "Sobre a Conservação da Força" com os de Kant contidos
no Metaphysischc Anfangsgründe der Naturwissenschaft (1786) e com os de Jakob
Friedrich Fries (filósofo kantiano) contidos em seu escrito Die Mathematische Na-
turphilosophie Nach Philosophischer Methode Bearheitet (1822). Heimann conclui
que os fundamentos metafísicos da mecânica foram elaborados por Helmholtz, que
se utilizou dos princípios kantianos de forma modificada, a fim de justificar "que
a representação dos fenômenos por leis newtonianas era necessária e completa"
(HEIMANN, 1974a, p. 232).
Coleção CLE V.11
396 Helmholtz e a Conservação da Energia

Corolário: as forças só podem ser forças motrizes, dependentes,


na sua ação de condições de espaço somente;

P5) "a força que duas massas exercem uma sobre a outra deve ser
resolvida naquelas forças exercidas por todas as suas partículas
entre si; por isso, em mecânica, volta-se às forças exercidas pelos
pontos materiais" (Helmholtz, 1853, p. 117);

P6) "a relaçãJo de um ponto material com outro, no que se refere a


espaço, tem referência somente à distância que os separa";

P7) uma força motriz entre os pontos materiais só pode agir de


forma a alterar a sua distância: ela deve ser ou atrativa ou
repulsiva.

Uma importante conseqüência dos pressupostos metafísicos de


Helmholtz é que as forças devem ser centrais. Ele não menciona em
seus argumentos filosóficos essa condição para as forças. No entanto,
o caráter central das forças está implícito nas teses epistemológicas
4 e 5 e nos postulados 5, 6 e 7 da concepção da natureza. A cen-
tralidade das forças será essencial à validade do princípio de con-
servação da força e ele procurará justificá-la cientificamente. Porém,
Helmholtz não é muito explícito na vinculação das forças centrais à
argumentação metafísica. Ele, aparentemente, não quer comprome-
ter o caráter central das forças com pressupostos filosóficos, e por essa
razão, procurará justificá-las: primeiro, por via matemática, e depois,
invocando o princípio de exclusão do moto-perpétuo. Helmholtz dis-
cute as forças centrais nas partes I e II do seu artigo que irei analisar
em seguida.

4.2. Conservação da vis viva, conservação da força e forças


centrais
Na parte I do artigo, Helmholtz apresenta o princípio de exclusão
do moto-perpétuo, vinculando-o à conhecida lei de conservação da
vis viva, hoje chamada de teorema da energia cinética ou ainda de
teorema do trabalho-energia.
0 princípio de exclusão do moto-perpétuo afirma que é impossível
produzir força continuamente, qualquer que seja a combinação de
Coleção CLE V.11
Osvaldo Melo Souza Filho 397

corpos naturais. Helmholtz (1853, p. 118) pretende estendê-lo a


todos os ramos da Física, mostrando, inicialmente, a sua aplicabili-
dade aos casos em que aas leis dos fenômenos foram suficientemente
investigados", e depois até certo grau, por analogia, aos ainda "im-
perfeitamente conhecidos, e então indicar o caminho que o experi-
mentador deve seguir". Em apoio ao uso do princípio de exclusão
do moto-perpétuo, Helmholtz menciona Carnot e Clayperon, porém,
em nenhum momento do artigo ele o utiliza na forma como Carnot
o utilizou no seu trabalho de 1824 {Réflexions sur la puissance mo-
trice du /eu). Carnot, baseado na hipótese da conservação do calórico,
aplica o princípio de exclusão do moto-perpétuo às máquinas térmicas
em um contexto termodinâmico no qual são fundamentais os impor-
tantes conceitos de reversibilidade e de transformação adiabática e
isotérmica. Helmholtz (1853, p. 118) representa esse princípio em
um contexto mecanicista, da seguinte forma:
Imaginemos um sistema de corpos naturais ocupando certas posições
relativas em direção um ao outro, dirigidos por forças exercidas mu-
tuamente entre si, e impelidos a se moverem até que uma outra
posição definida for atingida; podemos considerar as velocidades as-
sim adquiridas, como um certo trabalho mecânico, e explicá-las como
tal. Se, agora, queremos que as mesmas forças ajam uma segunda
vez, de forma a produzir de novo a mesma quantidade de trabalho,
devemos, de alguma maneira, por meio de outras forças colocadas
à nossa disposição, trazer de volta os corpos à sua posição original,
e assim efetuando, uma certa quantidade das últimas forças será
consumida. Nesse caso, nosso principio exige que a quantidade de
trabalho ganha pela passagem do sistema da primeira posição à se-
gunda, e a quantidade perdida pela passagem do sistema da segunda
posição dè volta novamente à primeira, é sempre igual, não importa
de que modo e a que velocidade a mudança foi efetuada. Pois, fosse
a quantidade de trabalho maior do primeiro modo do que do se-
gundo, deveríamos usar o primeiro para a produção de trabalho e o
segundo para carregar os corpos de volta à sua posição primitiva, e,
dessa maneira, obter uma quantidade indefinida de força mecânica
(HELMHOLTZ, 1853, p, 118).
Helmholtz vai trabalhar sobre esta descrição, de corpos em in-
teração, ao longo das partes I e H do seu artigo e formular, em bases
inteiramente mecânicas, o princípio de conservação da força.
Essa descrição de Helmholtz pode hoje ser entendida, se consi-
derarmos um sistema isolado de partículas interagindo mutuamente
por meio de forças conservativas.
Coleção CLE V.11
398 Helmholtz e a Conservação da Energia

O trabalho efetuado sobre uma partícula por uma força conser-


vativa não depende da trajetória dessa partícula de um ponto para
outro, ou seja, se o trabalho efetuado por uma força conservativa ao
longo de uma trajetória A, de um ponto 1 até um ponto 2, é W, então
o trabalho deve ser —W na volta, ao longo de uma trajetória B qual-
quer, do ponto 2 até o ponto 1. Essa é uma importante propriedade
das forças conservativas que pode ser estendida para um sistema de
partículas ocupando uma posição relativa no espaço e formando, con-
sequentemente, uma determinada configuração Cl. Sob a ação das
forças conservativas de interação, as partículas vão ocupar uma outra
posição relativa no espaço, formando uma configuração C2, Para ir
de Cl até C2 as forças conservativas realizam sobre as partículas um
trabalho total W. Se levarmos as partículas de volta da configuração
C2 até Cl, o trabalho total realizado pelas forças conservativas sobre
as partículas é —W. Aplicando o teorema da energia cinética para
esse sistema de partículas, temos que a variação da energia potencial
total do sistema (Ut) é igual à variação da energia cinética total (Kt),
ou ainda, que a soma, em qualquer instante, da energia cinética e da
energia potencial do sistema é sempre constante:

Kt + Ut = constante.

Este é o princípio de conservação da energia mecânica, aplicado a


um sistema isolado e conservativo de partículas, tal como hoje o co-
nhecemos. Helmholtz (1853, p. 124), vai desenvolver do mesmo modo
o princípio de conservação da força "na forma mais geral", como ele
mesmo o diz. No entanto, à condição das forças serem conservativas
como hoje é exigido, Helmholtz pressupõe que as forças sejam cen-
trais como uma condição necessária para a validade do princípio de
conservação da força.
0 teorema da energia cinética ou, como então era chamado, o te-
orema das forças vivas, era um conhecido resultado da mecânica que
foi aplicado ao estudo da potência das máquinas pelos engenheiros
franceses, a começar por Lazare Carnot que em 1782 publica um im-
portante trabalho a esse respeito. 0 conceito de trabalho mecânico,
como o produto escalar da força pelo deslocamento, era bem compre-
endido pelos engenheiros que a ele se referiam com diferentes nomes
como, potência mecânica (Smeaton), momento de atividade (Lazare
Coleção CLE V.11
Osvaldo Melo Souza Filho 399

Carnot), efeito dinâmico (Hachette), quantidade de ação (Navier) e


trabalho (Poncelet) (ver Scott, 1970 e Kuhn, 1959).
Segundo Kuhn (1959, p. 350), Helmholtz não estava consciente da
tradição teórica dos engenheiros franceses, o que é bastante provável,
pois ao propor a redefinição da vis viva como \MV2, para torná-la
ajustável à maneira dita usual de se medir intensidade de forças, não
menciona qualquer precedente.
Para Helmholtz (1853, p. 119) o princípio de conservação da vis
viva afirma que "quando qualquer número de pontos materiais são
colocados em movimento, somente por forças de interação mútua, ou
que são direcionados contra centros fixos, a soma total das vires vivae,
em qualquer tempo, quando os pontos ocuparem as mesmas posições
relativas, é a mesma, qualquer que tenha sido as suas trajetórias ou
velocidades durante o tempo decorrido".
Segundo Helmholtz (1853, p. 119) o princípio de conservação da
vis viva é derivado do princípio das velocidades virtuais e esse "só
pode ser provado no caso de pontos materiais dotados com forças
atrativas ou repulsivas". Sabe-se que o princípio das velocidades (ou
trabalhos) virtuais é válido para um sistema ideal de corpos rígidos,
no qual as forças interagem de acordo com a terceira lei de Newton
(ação e reação). Essa lei é um tipo de força central. Assim, segundo
Helmholtz, o princípio de conservação da vis viva só é aplicável para
um tipo de força: as centrais.
Por força central Helmholtz (1853, p. 120) entende aquela força
cuja ação entre os pontos materiais age na direção que os une, e cuja
intensidade depende somente da distância.
Os postulados 5, 6 e 7 da concepção da natureza e as teses episte-
mológicas 4 e 5 contêm todos os elementos que definem força central,
embora Helmholtz a ela não se refira diretamente. Sem dúvida, ele
buscava uma prova não metafísica para a aceitabilidade do caráter
central das forças. Assim, Helmholtz vai tentar essa demonstração
por via matemática.
O seu resultado não chega a ser satisfatório. Ele demonstra que a
força deve depender da distância, porém, não consegue mostrar que
ela está dirigida segundo a linha que une um ponto material situado
no ponto P a um centro de forças situado em um ponto fixo O.
Na sua demonstração, Helmholtz (1853, p. 120-1) considera o
Coleção CLE V.11
400 Helmholtz e a Conservação da Energia

movimento de um ponto material de massa m submetido a forças


centradas em um sistema fixo A. A posição de m é dada pelas co-
ordenadas x,y e z e o módulo da velocidade por q, com as seguintes
componentes:
dx dy dz
U
~'dt,v~diew~di'
As componentes das forças atuantes em m são:

mdu ,, mdv mdw


x = Y = z =
-JT' -JT ^ -dT-

Corretamente, Helmholtz utilizando a relação matemática


dtf) = 2udu + 2vdv + 2wdw, estabelece a expressão diferencial do
teorema da energia cinética:

, 2)Xdx + Ydy + Zdz.


lrmd{q
s*

Helmholtz utiliza depois a relação

para estabelecer que

d(g2) _ ^ d{f)
dx m ' dy m ' dz m

Como q é função de x,y e z, ele conclui que X,Y e Z são também


funções de x, y e 2. Helmholtz vai prosseguir, na sua tentativa de de-
monstrar matematicamente a centralidade das forças, tomando agora
para interagir com o ponto material m, o ponto material a no lugar
do sistema fixo A. O seu procedimento matemático é confuso nessa
parte, de forma que ele não consegue demonstrar que a força está
dirigida segundo a linha que une os dois pontos materiais. Helmholtz
aparentemente não se apercebe das dificuldades matemáticas, pros-
seguindo no seu artigo como se a demonstração tivesse sido perfeita
e sem margem de dúvidas, restando apenas aplicar o princípio a um
sistema de partículas. E isso o que ele vai fazer na parte II do seu
artigo.
Coleção CLE V.11
Osvaldo Melo Souza Filho 401

Para dar uma expressão mais geral ao princípio de conservação


da vis viva, ele define 4> como a intensidade da força central que atua
na direção r13. Suas componentes são assim representadas:
—x —1/ —z
X = —4>\ Y = —4>; Z —<t>.
T T T
Aplicando a expressão diferencial do princípio de conservação da
vis viva, para o caso das forças centrais, e integrando entre as veloci-
dades q e Q, e entre as distâncias r e R correspondentes, Helmholtz
obtém:

\mQ2 - |mQ2 = - J <j)dr.

A quantidade 4>dr é chamada por ele de "soma de tensões"


{Summe der Spannkrafte)14, ou, como ele (1853, p. 122) mesmo diz
representa a "soma da intensidade das forças que atuam em toda a
distância entre r e R". Essa expressão corresponde à energia poten-
cial ou ao trabalho de uma força conservativa. O lado esquerdo da
relação acima representa a variação da energia cinética. Helmholtz
não identifica em nenhum momento, a "soma de tensões" com o tra-
balho, muito embora tenha usado esse termo para vincular o teorema
das forças vivas com a impossibilidade do moto perpétuo em um sis-
tema de corpos materiais.
Tomando um sistema com um número qualquer de pontos mate-
riais, Helmholtz (1853, p. 124) obtém o princípio de conservação da
força em toda a sua generalidade:

a
-E / ^ 4>abdrah = E J
- E [|"í
1
9a
JTah
Para Helmholtz (1853, p. 124), essa expressão significa que a
diminuição da "soma de tensões" é sempre igual ao aumento da vis
viva, e, ao contrário, um aumento no primeiro é igual a uma perda
no último; ou ainda, a soma da variação da vis viva com a "soma de
tensões" é sempre constante.
A validade desse resultado apoia-se na condição das forças serem
centrais. Para ele (1853, p. 126), forças que dependem explicitamente
13
<t> (r) é positiva, se a foiça for atiativa e negativa se for repulsiva.
14 ,
' Sum of the tensions" na tradução de Tyndall (HELMHOLTZ, 1853).
Coleção CLE V.11
402 Helmholtz e a Conservação da Energia

da velocidade ou do tempo não ocorrem na natureza, pois violariam o


princípio de exclusão do moto-perpétuo. Com relação a este aspecto,
Helmholtz vai manter uma polêmica com Wilhelm Weber, criticando
sua proposta, na teoria eletromagnética, de força como função da ve-
locidade (ver HEIMANN, 1974a, p. 235). Uma outra polêmica vai ser
travada com Rudolf Clausius que não aceita a redução dos fenômenos
naturais a forças centrais como única condição de inteligibilidade da
natureza (ver HEIMANN, 1974a, p. 234). Helmholtz mantém o seu
ponto de vista inalterável.
Essa insistência de Helmholtz em manter as forças centrais como
fundamento, não só do teorema das forças vivas, como também da
explicação reducionista da natureza pode ser compreendida como de-
corrente da atuação dos seus pressupostos metafísicos.
E importante notar que Helmholtz emprega o termo força (Kraft)
em diferentes contextos: força viva (vis viva) [Lebendige Kraft), força
motriz (Bewegendekrafi), tensão (Spannkraft) e trabalho (Arbeitkraft)
(ver Clark, 1976, p. 169). Seus pressupostos metafísicos referem-
se a força no sentido newtoniano de força motriz e não à "soma
de tensões" (energia potencial ou trabalho) ou à vis viva (energia
cinética). Como a validade do teorema das forças vivas depende da
força motriz ser central, então o princípio de conservação da força
passa a ser um elemento fundamentai da concepção mecanicista da
natureza de Helmholtz.

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Coleção CLE V.11
24

A Obra Termodinâmica de Einstein


(1902-1904) e a Mecânica Estatística de
Gibbs

Borisas Cimbleris

1. Introdução
Em três artigos, publicados sucessivamente em 1902,1903 e 19041
nos Annalen der Physik, Einstein esboça o arcabouço da Física Es-
tatística, preenchendo as lacunas da tradição de Boltzmann-Maxwell
e traçando os contornos da Mecânica Estatística moderna. Gibbs faz
aproximadamente a mesma coisa em seu livro (Gibbs, 1902), que
vem a lume em 1902. Ambos partem da Mecânica Clássica e da
Teoria das Probabilidades. Os resultados, a menos da notação, são
idênticos, mas as abordagens são diferentes. Creio que se trata de
um caso legítimo de descoberta simultânea.
Não me proponho a expor o conteúdo dessas duas obras parale-
las, como tentei fazer numa primeira versão deste trabalho em 1988.
Agora temos, além dos trabalhos de Klein (1982, 1967), a nota edi-
torial de Stachel das obras de Einstein2 (Stachel, 1989, p. 41-55) e o

1
No decurso deste trabalho indicarei estas obras por I, II e III, respectivamente.
2
Remeter-me-ei a esta obra como EP2.
Coleção CLE V.11
406 A Obra Termodinâmica de Einstein

artigo de Gearhart (1990). Para Gibbs, temos o extenso comentário


de Arthur Haas (1936a, 1936b, 1936c), seguido da análise mais pro-
funda de Epstein (1936). Tal como no caso do "Para ler Marx", o
comentário é três vezes mais extenso do que o original.

2. Descoberta simultânea

É virtualmente certo que Einstein não conhecia o livro de Gibbs.


Em Schaffhausen ele não tinha acesso a uma biblioteca científica, e ao
mudar-se para Berna não tinha tempo para ler, ocupado como estava
com a busca de emprego e o casamento. Além disso, não sabia inglês,
que só veio a aprender em 1910; o livro de Gibbs só foi traduzido para
o alemão em 1905 (por Zermelo). O próprio Einstein comentou que
não teria escrito a obra em tela se tivesse conhecido o livro de Gibbs;
isto numa resenha de um trabalho de Paul Hertz, de 1911 (Einstein,
1911). Livro este também avaliado como "obra prima", numa carta
a Michele Besso, de 1911 (Einstein & Besso, 1972).

3. Abordagem e estilo

A proposta de ambos é deduzir as leis da Mecânica Estatística,


e, portanto, da Termodinâmica, a partir das leis da Mecânica e da
Teoria das Probabilidades.
A abordagem, no entanto, é inteiramente diferente. Gibbs, tal
como no restante da sua obra, é lógico-formal, rigoroso e, antes de ti-
rar conclusões, esquadrinha todas as possibilidades matemáticas das
suas postulações. A realidade física está subjacente, mas Gibbs lança
mão de argumentos físicos com extrema prudência. Einstein usa um
raciocínio físico, heurístico, procurando desde o início a máxima ge-
neralidade, descrevendo sistemas físicos gerais, além da pressuposição
de uma Mecâxdca Clássica. De fato, ele lança as bases de uma Física
Estatística. Em contrapartida, detém-se pouco sobre os pressupostos
matemáticos e, às vezes, tira conclusões precipitadas. De fato, exis-
tem erros. Já no livro de Gibbs, embora abundem erros de impressão
na forma de troca de símbolos, não se encontra erros de conteúdo.
A superioridade de Gibbs está na completude da estrutura lógico-
matemática e na construção de conceitos. Cuidadosamente definidos,
aí estão o ensemble, o índice de probabilidade, o "módulo", a extensão
Coleção CLE V.11
BorJsas CimblerJs 407

em fase, a densidade de estados - noções que ficaram definitivamente


no arsenal de ferramentas do físico. Se vai buscar palavras em ou-
tra língua é porque não encontra solução melhor. Não traduzimos
ensemble por conjunto; se ele usa petit e grand não é por pobreza
lingüística; seu inglês é castiço.
Einstein é antes de tudo um Ssico. Importa-lhe principalmente
estabelecer a interconexão entre os fenômenos, ver o mundo como um
todo, uachar as leis elementares gerais das quais se pode obter um
quadro do universo por pura dedução" (Einstein & Besso, 1972).
A sua abordagem característica é heurística: ele enxerga de vez a
solução do problema e, em seguida, descreve as possibilidades de de-
senvolvimento de forma multilateral; rigorosamente se possível, mas
sempre até o resultado. "O que leva às leis não é o caminho lógico, e
sim a intuição, baseada na penetração na essência das coisas" (Eins-
tein & Besso, 1972).
Todo cientista marca as suas próprias fronteiras da investigação.
£ o que Lakatos chama de programa de pesquisa, e Holton de escolha
de tema. O "universo do discurso" é determinado pelo interesse do
pesquisador por um determinado caráter das conexões internas do
sistema pesquisado. Ele toma um extrato do fenômeno e estuda a sua
estrutura fina; debruça-se sobre alguns pontos característicos de cada
classe de fenômenos, sendo que o número destas classes é limitado.
Neste contexto, podemos dizer que Gibbs estudou a Termodinâ-
mica analisando as suas raízes na Mecânica Clássica (os fundamentos
"racionais", como consta no título do seu livro); Einstein alçou as vis-
tas sobre todo o universo dos fenômenos físicos. Não estava interes-
sado tanto na Termodinâmica quanto na possibilidade de transcender
os seus limites dentro da moldura da teoria física.
Einstein dá a impressão de saber exatamente os resultados de que
irá precisar no futuro; o seu programa de pesquisa não está formulado,
mas parece jazer no subconsciente. Não será mera coincidência que a
"obra termodinâmica" antecede imediatamente o annum mirabile de
1905. Senão, vejamos. Em III, onde estabelece a "teoria molecular
geral do calor", é obtida a fórmula das flutuações da energia, usando
os resultados básicos de ü, sugerindo a sua aplicação à radiação. As
flutuações da energia resultam da estrutura atômica dá matéria, e isto
é utilizado diretamente na teoria do movimento browniano, de 1906-
Coleção CLE V.11
408 A Obra Termodinâmica de Einstein

1908. As flutuações da energia são fundamentais para a quantização


da radiação, de 1905 (trabalho que lhe dará o Prêmio Nobel). E a
contagem dos estados, traçada em II e III, servirá para a estatística
quântica (Besso-Einstein), de 1924. Nos três trabalhos em questão,
Einstein lembra um campeão de salto triplo em distância: galga as
etapas, pousando apenas o suficiente para tomar um novo impulso.
A sucessão de saltos é uma seqüência lógica necessária, um processo
epistemológico contínuo.

4. Aspectos externalistas e internalistas

As circunstâncias pessoais dos dois autores são dramaticamente


diferentes. Em 1902 Einstein não tem emprego, está às voltas com
um casamento problemático e não possui uma posição acadêmica e
tão pouco uma obra científica creditável (os seus dois trabalhos publi-
cados, basicamente sobre forças moleculares, não contêm resultados
novos e não deixam impressão sobre a comunidade científica). Gibbs
é um cientista universalmente consagrado, criador da Termodinâmica
Química; num pedestal distante (New Haven fica longe dos centros
científicos mundiais), um trabalhador solitário, emite as suas obras
oraculares numa publicação virtualmente inacessível (Aias da Aca-
demia de Ciências de Connecticut, de distribuição local em poucos
exemplares); pessoalmente inacessível e de pouca interação epistolar
(Maxwell é uma exceção).
Entretanto, o assunto parece ter chegado à maturidade exata-
mente naquele momento da história da ciência; o corpo do conheci-
mento científico tinha de ser completado com aquela sistematização
da Mecânica Estatística de Boltzmann, desenvolvida de forma um
tanto assistemática desde cerca de 1870, na qual os resultados mais
importantes estão escondidos em meio a raciocínios e cálculos difíceis
e prolixos. Chegamos a pensar na continuidade do inconsciente cole-
tivo da ciência. Haja vista as constantes polêmicas sobre a prioridade
das descobertas: na maioria dos casos, não se trata de plágio, como
parece aos autores, e sim de acontecimentos inevitáveis, como que
conclusões de sentenças gramaticais que já começaram a ser enunci-
adas.
No caso de Gibbs, trata-se de obra quase póstuma (ele morreu em
1903) e a única que trata do assunto; assim encerra a sua produção
Coleção CLE V.11
Borisas Cimblerís 409

científica. Para Einstein, é o começo de um programa de pesquisa.


Cabe notar que a sua obra "termodinâmica" não se encerra com
os três trabalhos. Existem cerca de 40, estendendo-se até 19253.
Mas a maioria já padece da "contaminação" quântica (calor específico
dos sólidos, radiação do corpo negro, teoria quântica da radiação,
estatística quântica). Há também correções e comentários da obra de
1902-4, como uma dedução melhorada do Segundo Princípio.

5. A bibliografia de Einstein e Gibbs


E significativa a ausência quase total de citações em ambos. Na
verdade, nos três trabalhos de Einstein não existe uma única citação;
Boltzmann é mencionado no texto, cn passant. Gibbs cita Boltzmann
corretamente umas poucas vezes. Nenhuma referência para a teoria
hamiltoniana da Mecânica, nem para a teoria das probabilidades,
nem para a matemática utilizada.
Mas nos trabalhos de Einstein, às vezes aparecem os sinais das
costuras. Vejamos um exemplo em I. A p. 421, a segunda fórmula
introduz um coeficiente A:

dN = A í...
Jg

e na linha 17 ele se transforma em A.e~2hE, "por escolha", escolha


essencial mas jamais justificada. O fato significativo aí é que Boltz-
mann faz exatamente o mesmo nas suas Vorlesungen (também sem
justificar). Ora, a constante h é essencial para a definição do conjunto
canônico; a sua igualdade para os dois sistemas aventados é condição
necessária e suficiente para o equilíbrio térmico: é o análogo da tem-
peratura absoluta.
Em II, à p. 184, aparece a desigualdade

- J e'logs'dpn>-J eloge dpi dpn

referente à distribuição dos estados de N sistemas em dois instantes


consecutivos. E, diz, que para um sistema arbitrariamente escolhido
Ins e Ine' não diferem sensivelmente entre si. Mas isto é correto
apenas para pequenas variações, o que deveria ser justificado. A
3
PAIS, 1982, p. 75-7, apresenta uma lista.
Coleção CLE V.11
410 A Obra Termodinâmica de Einstein

conclusão do raciocínio, não constante do trabalho, é s' > £, e isto é


nada menos do que uma expressão do Segundo Princípio.
Mas um salto lógico semelhante no tratamento da transição ao
equilíbrio aparece também em Gibbs. No fundo, ambos recorrem
à sua experiência interior, ao conhecimento intuitivo das leis es-
tatísticas.

6. Os resultados de Einstein e de Gibbs

A intenção declarada de ambos é consolidar os fundamentos me-


cânicos da Termodinâmica, deduzindo as leis do equilíbrio térmico e o
Segundo Princípio, a partir de pressuposições as mais gerais possíveis
da Mecânica e da Teoria das Probabilidades (para Gibbs, "funda-
mentos racionais").
Obtiveram: a demonstração do teorema da equipartição para os
ensembles canônicos, a expressão estatística da entropia, a definição
das probabilidades como médias no tempo e a sua equivalência às
médias sobre ensembles, e a dedução da expressão das flutuações da
energia ("anomalias" para Gibbs).
Esta farta me^sc de resultados foi plenamente aproveitada na
Física Quântica, na Física do estado sólido, na teoria da radiação
espontânea e induzida, que gerou a optoeletrônica, e muito mais.
Não é minha intenção recapitular a historia da Física contemporânea
como seria necessário para avaliar devidamente o papel da obra em
questão.
Deste estudo comparativo, uma das conclusões não é muito ori-
ginal: o caminho para se chegar a um resultado físico a partir de
um conjunto de premissas não é único e as abordagens possíveis são
passíveis de escolha. Nesta escolha, que é parte do complexo pro-
blema da criatividade científica, importa, entre outras premissas, a
formação intelectual. Ora, neste particular não havia muita diferença.
Gibbs estudou Física na Alemanha e Einstein na Suíça, com pouca
defasagem. Não houve também influência forte de um único mestre,
ou participação em uma escola bem definida. Sobra, com alguma
simplificação, o temperamento como fator de estilo.
Nunca saberemos que uso Gibbs teria feito da sua Mecânica Es-
tatística, nem como teria interagido com Einstein. Mas pelo me-
nos sabemos o que este achou do livro de Gibbs: "Seu livro é uma
Coleção CLE V.11
Borisas Cimbleris 411

obra prima... embora difícil de ler, e os pontos principais estão nas


entrelinhas"4".

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Coleção CLE V.11
25

O Nascimento da Ciência Cognitiva e suas


Raízes na Física do Século XIX

Maria Eunice Quilici Gonzales

A Ciência Cognitiva é uma área de investigarão interdisciplinar,


cujo objeto de estudos é o processo cognitivo de sistemas que ma-
nipulam informação inteligentemente. 0 seu reconhecimento oficial
enquanto área de investigação ocorreu, segundo Gardner (1986), no
ano de 1956 quando alguns filósofos, lingüistas, físicos, matemáticos,
neurofisiólogos e psicólogos se reuniram no MIT para discutir a ade-
quação do uso da Teoria Matemática da Comunicação, MTC (Mathe-
matical Theory of Communication), no estudo dos processos e estados
cognitivos humanos.
A MTC foi originalmente formulada por engenheiros, sendo o tra-
balho de Shannon e Weaver (1949) um dos seus principais represen-
tantes. Ainda que Shannon tenha, explicitamente, declarado que sua
teoria de processamento e transmissão de informação era puramente
quantitativa, sem qualquer preocupação com noções semânticas liga-
das à concepção ordinária de informação, Weaver, na mesma obra,
afirma que a MTC tal como formalizada por Shannon, fornece uma
chave para o entendimento da noção de 'significado' presente na co-
municação humana.
Coleção CLE V.11
414 Ciência Cognitiva e suas Raízes na Física do Século XIX

Como veremos no final deste trabalho, a obra de Shannon e Wea-


ver se distancia do senso comum ao propor uma análise do conceito de
informação que não está, em princípio, associada à atividade humana
interpretativa, consciente. Contudo, essa mesma obra tem motivado
a elaboração de teorias naturalistas do significado e intencionalidade
presentes na comunicação humana (veja-se, por exemplo, os traba-
lhos de Dretske (1984), Sayre (1986) e grande parte dos modelos
elaborados na Ciência Cognitiva),
0 conceito de informação, tal como desenvolvido na teoria de
Shannon e Weaver, foi inspirado nas idéias de Boltzmann. Em parti-
cular, a sua abordagem da segunda lei da termodinâmica serviu como
uma fonte de inferência analógica para a equação de Shannon, que
determina a quantidade média de informação gerada por uma fonte
de informação.
No que se segue indicaremos, em três etapas, alguns aspectos
metodológicos da Física no século XIX que, acreditamos, desempe-
nharam um papel fundamental no nascimento da moderna Ciência
Cognitiva, os quais estão ligados ao desenvolvimento de métodos ex-
perimentais e matemáticos para explicar o desempenho do sistema
cognitivo humano.
Na Seção 1, faremos uma breve introdução à Ciência Cognitiva,
enfatizando as duas áreas centrais que a constituem, as quais são co-
nhecidas por "Inteligência Artificial" e "Redes Neurais". Na Seção 2,
apresentaremos uma igualmente breve introdução às principais idéias
concernentes ao estudo das Redes Neurais Artificiais. Finalmente, na
Seção 3, ilustraremos algumas aplicações dais hipóteses de Shannon e
Weaver concernentes ao conceito de informação nos modelos de redes
neurais.

1. Introdução à Ciência Cognitiva

A Ciência Cognitiva pode ser caracterizada como "...um es-


forço contemporâneo, empiricamente baseado, para responder anti-
gas questões epistemológicas - particularmente aquelas concernentes
à natureza do conhecimento humano, seus componentes, fontes, de-
senvolvimento, etc..." (Gardner, p. 6).
0 caráter empírico da Ciência Cognitiva baseia-se na suposição
de que os computadores constituem instrumentos úteis para se ana-
Coleção CLE V.11
Maria Euaice Quilici Gonzales 415

lisar o comportamento inteligente. Eles são usados como modelos


para simular aspectos da atividade humana inteligente e para testar
as hipóteses e teorias acerca do funcionamento da mente. Esta su-
posição reflete uma crença, comum na Ciência Cognitiva, de que se for
possível descrever com precisão o comportamento, ou o processo de
pensamento, de um organismo, então pode-se programar um compu-
tador que operará de forma semelhante a esse organismo (Gardner,
p. 18). O sucesso de um modelo computacional, que simula o com-
portamento de um organismo, é considerado, como boa evidência para
a plausibilidade das hipóteses e teorias que este modelo descreve.,
Ainda que seja bastante controversa esta suposição de que os
computadores constituem instrumentos adequados para se analisar
a atividade humana inteligente, o que mais interessa aos cognitivis-
tas é que a prática de elaboração dos modelos computacionais sugere
um critério científico para testar as teorias psicológicas. Além disso,
pode-se fazer previsões acerca do comportamento do sistema mode-
lado através de sua simulação computacional.
Uma vez que é possível enumerar várias diferenças relevantes en-
tre organismos inteligentes e computadores, não é difícil apresentar
críticas à hipótese da adequação dos modelos computacionais para
o estudo do comportamento inteligente. Contudo, interessa-nos dis-
cutir aqui a tese funcionalista, subjacente a esta suposição. Uma
versão informal do funcionalismo nos diz que, apesar das máquinas
e seres humanos serem fisicamente diferentes, ambos possuem me-
canismos de processamento de informações, cujas operações men-
tais/computacionais podem ser entendidas em termos de suas orga-
nizações funcionais (Gonzales, 1989; 1991). Funcionalistas como
Putnam (1967), Fodor (1988), entre outros, sustentam que o com-
portamento dos organismos pode ser propriamente caracterizado em
função dos seus input/output e das interações entre os estados inter-
nos deste organismo.
Atualmente, existem dois ramos principais do funcionalismo na
Ciência Cognitiva, os quais denominamos: (i) funcionalismo lógico-
computacional (FLC) e: (ii) funcionalismo neuro-computacional
(FNC) (Gonzales, 1989, p. 11-20). O primeiro, FLC estuda os
processos mentais como se eles fossem apenas computações abstra-
tas, independentemente de suas características físicas e do seu meio
Coleção CLE V.11
416 Ciência Cognitiva e suas Raízes na Física do Século XIX

ambiente (cf. Fodor, 1988, Putnam, 1967, Pylyshyn, 1984. O


foco de análise aqui é o conjunto de regras abstratas possivelmente
responsável pela estrutura funcional dos estados cognitivos, que são
concebidos como elementos de um sistema de símbolos, semelhante
àquele da linguagem.
Os fundonalistas neuro-computacionais, FNC, por outro lado, en-
fatizam a relevância de considerações acerca dos substratos neurofi-
siológicos e ambientais do sistema para o estudo e compreensão da
estrutura funcional dos seus processos cognitivos. 0 foco de análise
aqui não e em sistemas de símbolos ou regras abstratas, mas, sim,
nas leis físicas que, possivelmente, estruturam o comportamento in-
teligente.
Correspondentemente às versões (i) e (ii) do funcionalismo, os cog-
nitivistas se dividem em duas subáreas principais denominadas Inte-
ligência Artificial e Redes Neurais ou Conexionismo. Os pesquisado-
res da Inteligência Artificial (AI, do inglês, Artificial Intelligence) (cf.
Newell, Shaw íc Simon, 1972) são, em geral, fundonalistas lógico-
computadonais. Eles julgam que os estados mentais são entidades
abstratas que não apenas podem, mas devem ser estudadas indepen-
dentemente dos elementos físicos que as instanciàm. Segundo esta
perspectiva, a capaddade de manipular e codificar constitui
a essência da atividade computadonal e representacional da mente
(Bickhard & Richard, 1983, p. 12). Sem a codificação de símbolos
não há computação; sem as regras abstratas para ordenar os estados
internos não há como estruturá-los.
Os Conexiõnistas, por sua vez, podem ser classificados como fun-
cionalistas neuro-computacionais, no sentido que eles consideram as
informações sobre os estados físicos/cerebrais do organismo, e a sua
interação com o meio ambiente, como sendo de extrema importância
para o estudo do sistema congnitiVo. Ao invés de investigar os pro-
cedimentos heurísticos de manipulação de regras e símbolos, como
fazem os pesquisadores da AI (veja-se, por exemplo, Newell, Shaw e
Simon, 1972), a maior parte dos conexionistas situam seus estudos
num nível mais básico de descrição. Este é conhecido como nível sub-
simbólico (SMOLENSKY, 1986) porque ele descreve estados físicos do
sistema cognitivo, os quais consituem, por hipótese, o substrato de
níveis de abstração hierarquicamente superiores deste sistema. Suas
Coleção CLE V.11
Maria Euaice Quilici GonzaJes 417

unidades primitivas de análise são aquelas denominadas "neurònio-


símile", que possuem propriedades semelhantes às do cérebro (reto-
maremos adiante esta introdução aos modelos conexionistas).
Apesar das diferenças teóricas e metodológicas existentes entre
AI e Conexionistas, ambos se utilizam de recursos matemáticos para
analisar o sistema cognitivo, enfatizando as relações funcionais entre
input e outputde máquinas ideais ou reais. 0 sistema cognitivo é con-
cebido, nestes dois ramos da Ciência Cognitiva, como um autômato
cujos estados podem ser descritos por regras abstratas (no caso da
AI) e/ou leis matemáticas, semelhantes àquelas que descrevem as leis
da natureza (no caso do Conexionismo).
Através da prática de elaboração de modelos computacionais para
simular o comportamento inteligente, os cognitivistas incorporam o
ideal de cientiíicidade que já triunfava no inicio do século XIX, quando
o programa newtoniano imperava no universo científico. No nosso
século, a reunião de técnica computacional, teoria matemática e ex-
perimentação prolonga este ideal de cientiíicidade, situando o projeto
cognitivista no âmbito da ciência moderna. O preço a se pagar por
uma tal posição no domínio científico é a extrema simplificação da
natureza do mental, em função das hipóteses que a experimentação,
através dos modelos computacionais, permite.
Conforme veremos, os conexionistas levaram adiante os ideais da
Física do século XIX ao transportarem algumas das hipóteses da ter-
modinâmica e da mecânica estatística para os seus modelos das redes
neurais artificiais. No que se segue faremos uma introdução ao co-
nexionismo (uma versão mais elaborada, da qual a Seção 2 é apenas
um resumo, pode ser encontrada em Gonzales, 1989 E 1991).

2. Introdução ao Conexionismo

0 Conexionismo, também conhecido como PDP (Pamllel Dis-


tributed Processing) Processamento em Paralelo de Informação Dis-
tribuída, ou Redes Neurais (Neural Networks), é aquele ramo da
Ciência Cognitiva que acabamos de associar ao funcionalismo neuro-
computacional. Os modelos elaborados nesta área, para simular a ati-
vidade do sistema cognitivo, são inspirados no funcionamento de sis-
temas dinâmicos, com características semelhantes àquelas do cérebro
humano. Dadas as simplificações que tais modelos computacionais
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418 Ciência Cognitiva e suas Raízes na Física do Século XIX

incorporam, apenas uma vaga semelhança permanece entre os seus


mecanismos e aqueles que supostamente atuam no cérebro e são res-
ponsáveis pela organização do sistema congnitivo humano.
Conforme mencionamos na Seção 1, as unidades neurônio-símile
(neuron-like units) constituem os elementos primitivos de análise dos
modelos conexionistas. Eles possuem um nível de ativação que varia
em função de influências externas e das suas conexões (sinápticas)
com outras unidades neurônio-símiles. A Figura 1 (extraída de Gon-
zales, 1991, p, 99) ilustra o funcionamento de uma tal unidade.

Sb
E- .> wcsí

S]_ ' cr '-s.


S2

Figura 1: Esquema simplificado de uma unidade neurônio-símile

Si = intensidade do input
Wi = peso da sinápse
So = intensidade do output
E = input total

Estas unidades, ao serem ativadas, enviam sinais às outras uni-


dades que, por sua vez, dependendo da intensidade do sinal recebido,
transmitem um outro sinal a outras unidades, e assim sucessivamente.
Populações de unidades neurônio-símiles formam redes de camadas
estruturadas, contendo unidades de entrada ou input units] unida-
des de resposta, ou output units e, finalmente, zero ou mais camadas
intermediárias entre input e output, ou hidden units. A Figura 2
(extraída de Gonzales, 1991, p. 100) ilustra um segmento de rede
Coleção CLE V.11
Maria Eunice Quilicl Gonzales 419

neural com suas várias camadas.


unidades de saída
output
units

cooexâo smáptica

unidades

hidden
umts

conexão sináptica
c3

input
units
unidades de entrada

Figura 2: Ilustração das camadas de uma rede neural artificial.

0 estado informacional de cada unidade é descrito por uma função


output, que soma todas as cargas das ativações das unidades inter-
mediárias e de entrada do sistema, as quais são amplificadas ou ini-
bidas em função dos pesos das conexões entre estas unidades e de
alguma função limite (threshold) que possa existir na rede.
0 meio ambiente de uma rede artificial é constituído de padrões
recorrentes de informação, os quais chamaremos de padrões informa-
cionais. Estes padrões reúnem conjuntos de relações relativamente
fixas entre elementos que caracterizam objetos, eventos ou situações
específicas. Eles incluem, por exemplo, as freqüências e intensida-
des específicas dos raios luminosos que são refletidos dos objetos no
campo visual do sistema modelado. Esses padrões informacionais
são apresentados às redes na forma de vetores, que representam a
ordenação, posição, etc. dos seus elementos.
Ao entrarem em contato com tais padrões de input, as unidades
de entrada da rede geram níveis de ativação, os quais são propagados
Coleção CLE V.11
420 Ciência Cognitiva e suas Raízes na Física do Século XIX

quando ultrapassam um valor limite fthreshold). Conforme indicado


acima, essa ativação será amplificada ou inibida em função dos pesos
das conexões das unidades da rede.
A sua propagação será estendida através do sistema, até que níveis
específicos e estáveis de ativação sejam produzidos nas suas unidades
de saída. Os valores destes níveis de ativação serão descritos pelos va-
lores que, idealmente, representarão os dados estruturais dos padrões
informacionais que lhes deram origem.
Sendo o meio ambiente constituído, por hipótese, de padrões re-
correntes de informação, o trabalho das redes neurais consiste em
representar tais regularidades através dos pesos das conexões sinápti-
cas entre suas unidades neurônio-símile. As representações internas
de uma rede são identificadas aos padrões de conectividade que emer-
gem da interação entre suas unidades e os padrões informacionais no
meio ambiente. Esta interação é controlada por "regras de apren-
dizagem" que modulam os pesos das conexões entre as unidades na
rede, contribuindo para que ela "aprenda" a encontrar o padrão de
conectividade apropriado.
Para uma rede que ainda não recebeu treinamento, o peso de suas
conexões poderá ter um valor inicial arbitrário, estabelecendo-se, con-
seqüentemente, correlações arbitrárias entre os padrões de conexões
aleatórios que se formam na rede e os padrões informacionais no meio
ambiente. Nesta situação, dado que não existe uma dependência en-
tre os padrões informacionais e os padrões de conectividade, a rede
não terá como evitar erros na identificação de padrões informacionais
específicos. Contudo, através de treino, onde se empregam "regras"
de aprendizagem, é possível ajustar gradativamente os pesos das co-
nexões até que eles convirjam a um padrão estável que representará
as regularidades no meio ambiente, idealmente sem ambigüidades.
A medida que elas funcionam como um indicador de padrões in-
formacionais específicos, tais estruturas estáveis - emergentes da in-
teração entre os padrões de atividade das unidades neurônio-símile e
dos padrões de informação no meio ambiente - adquirem o estatuto
de representações internas do sistema modelado. Uma vez forma-
das, elas possibilitam a identificação dos padrões informacionais que
lhes deram origem. Além disso, o sistema em questão adquire a ca-
pacidade de realizar generalizações, no sentido que ele pode fazer
Coleção CLE V.11
Maria Eunice Quilid Gonzales 421

antecipações e reconhecer objetos no meio ambiente, ainda que estes


apresentem pequenas variações em relação ao objeto original, para
cujo reconhecimento ele foi treinado.
Um ponto relevante para o presente trabalho é que os padrões
estáveis de conectividade, que representam padrões informacionais es-
pecíficos, se comportam como se estivessem minimizando uma quanti-
dade que desempenha o papel de energia física na rede, sendo que seu
outputé o estado do sistema em equilíbrio. Esta situação assemelha-se
àquela das máquinas térmicas concebidas no século XIX nos estudos
de termodinâmica. A analogia utilizada pelos conexionistas entre si-
tuações/eventos no domínio da termodinâmica e mecânica estatística
caracteriza e distingue as teorias conexionistas das demais teorias
psicológicas e filosóficas tradicionais do sistema cognitivo.
Para concluir, vamos investigar algumas extensões do emprego
desta analogia entre os domínios da termodinâmica e do conexionismo
através do estudo da noção de informação, tal como sugerida por
Shannon e Weaver, sendo posteriormente desenvolvida por Drestske
e outros.

3. Aplicações de hipóteses da termodinâmica nos modelos


conexionistas

Grandes inovações foram introduzidas por Boltzmann na Física


do século XIX, através do uso do contei to de probabilidade na sua
interpretação da segunda lei da termodinâmica, proposta por Rudolf
Clausius.
Resumidamente, podemos expressar o bem conhecido problema
enfrentado por Boltzmann da seguinte forma:
0 comportamento da energia de um sistema fechado foi descrito
por Clausius em duas leis. A primeira, conhecida copao "primeira
lei da termodinâmica", nos diz que a energia sempre se conserva,
isto é, ela não pode ser criada ou destruída. A segunda lei nos diz
que ainda que a energia se conserve sempre em quantidade, ela pode
perder qualidade. A medida desta perda de qualidade Clausius deno-
minou Entropia, palavra de origem grega significando transformação
(Campbell, 1983).
Além disso, pelos postulados de Clausius pode-se concluir que a
entropia do Universo tende irreversivelmente para um valor máximo.
Coleção CLE V.11
422 Ciência Cognitiva e suas Raízes na Física do Século XIX

Se interpretarmos a entropia como um aumento na desordem entre as


partículas de um sistema, podemos dizer que a tendência dos sistemas
físicos é de se tornarem cada vez mais desorganizados. Existe um
estado de equilíbrio irreversível em relação ao qual todos eles tendem.
0 problema que intrigou Boltzmann consistia em saber por que
a energia obedece a esse percurso irreversível de perda de qualidade.
Seguindo os passos de Maxwell, ele procurou explicar a segunda lei
utilizando-se da Teoria da Probabilidade. A entropia foi caracteri-
zada por Boltzmann como uma propriedade estatística de um grande
número de partículas no microcosmo da matéria. Em particular, ele
interpretou o crescimento irreversível de entropia em sistemas fecha-
dos como uma .. expressão do crescimento da desordem molecu-
lar, do esquecimento progressivo de toda dissimetria inicial, porque
toda dissimetria é improvável em relação ao estado correspondente do
número máximo de complexões" (Prigogine k Stengers, 1984,
p. 99-100).
Assim, o progresso irreversível na direção do aumento de entropia
é apenas provável. Seria possível, em princípio, que as partículas
invertessem essa direção, de modo a diminuir, ao invés de aumentar,
a desordem do sistema. Contudo, a probabilidade de ocorrência de
um tal evento é tão pequena que, na prática, ela se torna desprezível.
Pode-se prever, com alta probabilidade, que o sistema tenderá para
um estado irreversível onde a entropia é máxima.
A fórmula da Segunda Lei da Termodinâmica na interpretação
dada por Boltzmann é:
S = AMogP
onde 5 é a entropia do sistema, K é uma constante conhecida como
constante de Boltzmann e P — l/W, onde W é o número total de
microestados equiprováveis do sistema.
A entropia S terá um valor máximo quando a desorganização do
sistema é tal que todos os arranjos dos seus microestados tornam-se
tão misturados que não temos qualquer evidência para esperar que
um estado particular, e não outro, ocorra.
Boltzmann observou que quanto maior for a entropia de um sis-
tema, menos informação teremos sobre as suas partes constituintes
(Campbell, 1983). No limite não teremos como saber qual é o
estado atual das mesmas.
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Maria Eunice Quilici Gonzales 423

O processo realizado por Boltzmann para propor esta interpretação


da segunda lei é bastante conhecido pelos cientistas e filósofos da
Ciência. A principal razão para retomar essa descrição aqui consiste
na possibilidade de se investigar o uso recente das idéias de Boltz-
mann nos modelos conexionistas.
0 elo inicial da corrente que conecta a termodinâmica às redes
neurais parece residir na formulação de Shannon e Weaver da Te-
oria Matemática da Comunicação (MTC), à qual nos referimos na
Introdução.
Inspirando-se, inicialmente, nas idéias de Boltzmann, Shannon
formulou sua teoria matemática da informação em termos de proba-
bilidade. Conforme mencionamos na introdução, esta teoria difere
daquelas do senso comum ao tratar a informação como uma entidade
objetiva, cuja existência independe de qualquer intérprete consciente.
Ainda que Shannon e Weaver não definam explicitamente o con-
ceito de informação, eles afirmam que esta denomina a... uma medida
da liberdade que se dispõe na seleção de uma mensagem" (Shannon
Sz Weaver, 1949, p. 9). Uma mensagem, por sua vez, é uma
seqüência de eventos (pontos, sinais, letras, etc.) transmissíveis ao
longo do tempo. Quando certos eventos, entre outros possíveis, ocor-
rem num meio qualquer, M, dando origem à ocorrência de mensagens,
M pode ser considerado como uma fonte geradora de informações.
Um ponto importante a ser ressaltado aqui é que, de acordo com
a concepção de Shannon e Weaver, não faz sentido falar de uma
única mensagem, ou item de informação, isoladamente. Devido ao
seu caráter probabilístico (não necessariamente causai), ela não pode
ser entendida senão em relação ao conjunto de mensagens possíveis,
ao qual a mensagem atual pertence.
Assim, dado um conjunto de mensagens possíveis, a MTC fornece
uma forma de se medir, em bits, a quantidade média de informação
associada à ocorrência atual de uma dessas mensagens, através da
seguinte fórmula, conhecida como principie of maximal missing in-
formation:
I{s) = — SP(s).logP(s)

onde P{s) é a probabilidade associada à ocorrência do evento S, q a


função log, na base 2, possibilita medir I{s) em bits.
Esta equação permite calcular o número de decisões binárias en-
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424 Ciência Cognitiva e suas Raízes na Física do Século XIX

volvidas no processo de redução de ra estados possíveis de um sistema


para um único estado s. Neste sentido, a informação indica uma
quantidade que representa o número de decisões realizadas para re-
duzir a incerteza na escolha de um evento/mensagem. Quanto maior
o número de estados possíveis, maior a incerteza e, conseqüentemente,
maior a quantidade de missing information associada àquele sistema.
Para ilustrar este ponto, consideremos, por exemplo, uma situação
onde existem oito presos em uma cela, sendo que apenas um deles
conseguirá escapar em uma situação de fuga. Dadas as condições em
que se encontram, eles concordam em escolher o possível candidato à
fuga através do emprego de uma moeda. Adotando-se o procedimento
de cara/coroa, o grupo é inicialmente dividido em dois subgrupos
de quatro elementos. A moeda é novamente atirada de forma a se
determinar o próximo subgrupo, agora de 2 elementos, no qual a
última decisão recairá. Finalmente a moeda é jogada pela terceira vez
no subgrupo de dois elementos, e um indivíduo específico, digamos
Marcos, é escolhido.
De acordo com a equação de Shannon, a quantidade de informação
associada ao fato de que Marcos foi escolhido é 3 bits, isto é,

I{s)= —[l/8.1og(l/8).8] = 3bits

0 resultado expressa o número de decisões binárias tomadas para


se reduzir a incerteza de 8 para 1. A incerteza acerca de quem seria
o candidato à fuga foi reduzida de 8 possibilidades para uma única,
e a quantidade de informação associada a esta redução é 3 bits.
Contudo, se inicialmente não houvesse qualquer incerteza sobre
uma tal situação, se tivesse sido determinado de antemão que Marcos
seria o tal candidato, então a quantidade de informação associada a
este evento seria I{s) = 0.
A equação de Shannon para medir a quantidade média de in-
formação associada à ocorrência de um certo evento possui uma óbvia
semelhança com a equação de Boltzmann, apresentada anteriormente.
Tanto Shannon como Weaver fazem referência a Boltzmann nos seus
trabalhos de 1949. Em particular, Weaver afirma, nesta obra, que
a quantidade que satisfaz as condições por eles impostas à noção de
informação é exatamente aquela conhecida na termodinâmica como
entropia.
Maria Eunice Quilici Gonzales 425

Coleção CLE V.11


Existe na literatura uma ampla controvérsia sobre a exata (ine-
xata) correlação entre as noções de entropia e informação. A opinião
mais corrente é que existe apenas uma correlação formal entre as
equações de Boltzmann e Shannon. Contudo, há quem acredite que
o estudo desta correlação entre entropia e informação poderá condu-
zir a descobertas signiíicantes. Weaver, na seguinte passagem, parece
compartilhar desta suspeita ao afirmar que:
... quando se encontra o conceito de entropia na teoria da comu-
nicação tem-se ... o direito de suspeitar que se encontrou algo que
pode vir a manifestar-se básico e importante. Que a informação seja
medida pela entropia é, afinal de contas, natural quando lembramos
que, na teoria da comunicação, ela está associada à quantidade de
liberdade de escolha na construção de mensagens. Assim, pode-se
dizer de uma fonte de informação exatamente o que se diria de um
aparato termodinâmico. "Esta situação é altamente organizada, ela
não é caracterizada por alto grau de aleatoriedade ou de escolha - o
que eqüivale a dizer que a informação (entropia) é baixa" (SHAN-
NON k WEAVER, 1949, p. 13).

Para aumentar o grau de "entropia" a respeito da possível cor-


relação entre entropia e informação, vale a pena lembrar a observação
de Campbell, mencionada anteriormente, de que Boltzmann teria
enfatizado que quanto maior a entropia de um sistema, menos in-
formação teremos sobre as suas partes constituintes. De acordo com
esta perspectiva, a alta entropia significaria falta de informação, ao
contrário do que sugerem as palavras de Weaver.
Esta aparente contradição parece residir em um problema essenci-
almente lingüístico. Pode-se argumentar que o termo "informação",
tal como possivelmente utilizado por Boltzmann, situa-se ao nível do
senso comum, enquanto que na concepção de Shannon e Weaver ela
está associada à liberdade de escolha na construção de mensagens.
Uma vez estabelecidos corretamente os termos do vocabulário utili-
zado por ambos, a contradição provavelmente desapareceria. Existem
outras complicações mais sérias do que esta na tentativa de se estabe-
lecer paralelos entre as noções de informação e entropia. Não entrare-
mos em detalhes sobre elas aqui (para uma discussão enfática sobre
este tópico ver Campbell, 1982 e Stonier, 1990, entre outros).
No que se segue, investigaremos algumas aplicações das hipóteses da
MTC e da termodinâmica nos modelos conexionistas.
Antes de investigarmos tais aplicações convém comentar uma di-
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426 Ciência Cognitiva e suas Raízes na Física do Século XIX

iiculdade concernente ao emprego da MTC no estudo do sistema


cognitivo. A dificuldade reside no fato que a MTC é puramente
quantitativa; ela fornece apenas meios de se medir a quantidade
de informação associada à ocorrência de eventos interrelacionados.
Contudo, quando estudamos a informação no contexto do sistema
cognitivo estamos principalmente preocupados com os seus aspectos
semânticos, que não se reduzem a fatores puramente quantitativos.
Esta dificuldade é discutida por Dretske (1981) que, partindo das
idéias de Sliannon, desenvolve uma teoria naturalista do significado,
envolvendo a noção de conteúdo semântico de um estado informacio-
nal (uma análise das idéias de Dretske sobre este tópico foi desenvol-
vida em Gonzales, 1989).
Se por um lado a análise quantitativa de Shannon apresenta uma
dificuldade para o seu emprego no estudo do sistema cognitivo, por
outro lado a sua hipótese de que a informação é uma entidade ob-
jetiva, que pode ser analisada independentemente do conteúdo es-
pecífico das mensagens, tem sido amplamente utilizada pelos cogniti-
vistas. Os modelos elaborados na Inteligência Artificial, por exemplo,
que manipulam estruturas de símbolos, não envolvem especificações
do conteúdo informacional/semântico dos mesmos. Entretanto, é
óbvio que uma análise menos simplificada dos estados cognitivos não
pode ser realizada sem a consideração do seu conteúdo informacional.
Retomaremos esta discussão mais adiante. Agora vamos investigar,
finalmente, como se aplicam nas redes neurais os princípios da MTC
e da termodinâmica que acabamos de apresentar.
Uma ponte entre as hipóteses da MTC e da termodinâmica foi
sugerida por Smolensky (1986) para o estudo do sistema cognitivo.
Ele esboçou uma teoria conexionista das representações mentais, no
domínio do conhecimento perceptual, conhecida como Teoria Harmô-
nica (Harmony Theory). Uma hipótese geral desta teoria, presente
nas demais abordagens de redes neurais, é que os pesos das conexões
entre as unidades neurônio-símile de uma rede neural artificial co-
dificam a freqüência com que os padrões informacionais invariantes
ocorrem no meio ambiente. Quanto mais freqüentemente um invari-
ante for detectado mais alto será o valor dos pesos das conexões dos
padrões que o registram.
Uma função central do treino nas redes neurais, através do qual
Coleção CLE V.11
Maria Eunice Quilid Gonzales 427

mecanismos de aprendizagem são utilizados para ajustar os pesos


de suas conexões sinápticas, é justamente reduzir o valor correspon-
dente ao grau de entropia na rede. Nos modelos sugeridos pela Teoria
Harmônica esta redução é feita através de um procedimento conhe-
cido como simulated annealing onde a temperatura computacional,
T, da rede é inicialmente fixada em um valor bastante alto, sendo
gradulmente diminuído à medida em que a rede vai sendo treinada.
Quando o valor de T atinge um mínimo, estruturas estáveis são for-
madas entre os seus padrões de conectividade. Estas estruturas cons-
tituem as representações internas da rede. Conforme mencionamos
na Seção 2, elas se comportam como se estivessem minimizando uma
certa quantidade que desempenha o papel de energia física da rede.
Os padrões de conectividade que registram regularidades no meio
ambiente são denominados, na Teoria Harmônica, "átomos de conhe-
cimento". Conjuntos de átomos de conhecimento que possuem um
certo grau de coerência formam os esquemas. Este grau de coerência,
por sua vez, é medido através de uma função, H(r,a), denominada
função harmonia, que estima o número de concordâncias entre os
elementos do vetor de input r e os elementos do vetor do átomo de
conhecimento "a". Quanto maior for este número de concordância,
maior será o valor da sua função harmonia. Os átomos de conhe-
cimento cujos valores da função harmonia são máximos constituem
os principais candidatos aos esquemas. A sua existência reduz a en-
tropia da rede uma vez que o estabelecimento de um esquema inibe,
ou desativa, vários outros possíveis padrões de conectividade que po-
dem ter sido inicialmente ativados quando um padrão informacional
é apresentado às suas unidades de input.
Uma vez estabelecidos os esquemas, as redes podem efetuar in-
ferências, no sentido que elas identificam e completam padrões infor-
macionais. Este reconhecimento é feito através de mecanismos que
comparam os padrões informacionais de input com os esquemas cria-
dos naqueles padrões de conectividade que incorporam as estruturas
gerais, das quais o caso em questão é apenas uma instância particular.
A tese fundamental de Smolensky na Teoria Harmônica afirma
que o sistema cognitivo (modelado através de redes neurais com ape-
nas duas camadas) tende a selecionar aquelas freqüências de ocorrên-
cias dos invariantes ambientais que se harmonizam com as freqüências
Coleção CLE V.11
428 Ciência Cognitiva e suas Raízes na Física do Século XIX

aprendidas através do treino e registradas nos esquemas. Em outras


palavras, quando novos estímulos chegam ao sistema cognitivo ele
tende a detectar aqueles elementos que concordam ou se harmoni-
zam com os esquemas que se encontram nos seus padrões de conec-
tividade. Estímulos não compatíveis com tais esquemas aumentam
o grau de entropia do sistema, diminuindo o valor correspondente à
medida da função harmonia, H(r,a). Em tais circunstâncias, a Te-
oria Harmônica estabelece que novos conjuntos de estímulos sejam
examinados e que elementos mais compatíveis com os esquemas já
adquiridos sejam selecionados.
A relação entre a Teoria Harmônica e a Termodinâmica dispensa,
acreditamos, maiores comentários no momento. Resta agora saber
qual é a sua correlação com a MTC.
Como vimos, a teoria proposta por Smolensky sugere uma des-
crição da dinâmica do processo cognitivo, na esfera do conhecimento
perceptual, especialmente no que se refere à representação de even-
tos que ocorrem no meio ambiente. De acordo com esta teoria, os
atos perceptuais podem ser caracterizados em termos da aquisição de
esquemas perceptuais consistentes.
A hipótese subjacente a esta concepção da dinâmica do sistema
perceptual pode ser expressa através de um princípio que denomina-
mos "princípio de relevância" (Gonzales, 1991). De acordo com
este princípio, sistemas de processamento de informação semelhantes
ao cérebro humano maximizam a eficiência de seu comportamento
através da seleção coerente de informação disponível no meio am-
biente, sendo que tal seleção deve envolver um mínimo de energia
útil por parte do sistema. Este princípio é chamado 'princípio de
relevância" porque, dado um conjunto de padrões informacionais al-
ternativos, ele indica um critério de seleção dos padrões cuja repre-
sentação se ajusta, consistentemente, ao conjunto das representações
existentes no sistema.
Colocado em termos procedurais, este princípio nos diz que para
um sistema selecionar o padrão de input mais apropriado, dados os
seus esquemas disponíveis e a observação da freqüência com que tais
padrões se repetem no meio ambiente, ele deve:

(a) Escolher o padrão de input que seja mais consistente com a


informação já disponível;
Coleção CLE V.11
Maria Eunice Quilici Gonzales 429

(b) Não superestimar o grau de ordem existente no meio ambiente.

A condição (a) pode ser realizada utilizando-se a função harmo-


nia, H{r,a), para determinar o grau de consistência dos padrões dis-
poníveis. Para a realização da condição (b) Smolensky sugere que se
utilize o princípio maximal missing information de Shannon. Esta
correlação entre a Teoria Harmônica e o Princípio de Informação de
Shannon pode ser ilustrada através do seguinte exemplo oferecido por
Smolensky:
Considera-se um meio ambiente muito simples que comporta ape-
nas quatro eventos El, E2, E3 e E4, sendo que os dois primeiros even-
tos ocorrem com probabilidades iguais de 0.4. Os eventos E3 e E4
ocorrem com probabilidades 0.7 e 0.1, respectivamente. De acordo
com o princípio de maximal missing information, a quantidade de
informação gerada pela ocorrência do primeiro conjunto de eventos
(mais homogêneo que o segundo conjunto de eventos) é:

I{E1,E2)= (0.4.1n(0.4) + 0.4./n(0.4)) = 0.73 .

A ocorrência do segundo conjunto de eventos (menos homogêneo


que o primeiro) é:

I{E3,E4) = (0.7./n(0.7) + 0.1./n(0.1)) = 0.48 .

Admitindo-se que em um determinado momento o sistema mode-


lado possui apenas a informação de que o evento El ocorre com uma
freqüência de 40%, como ele estimaria a probabilidade de ocorrência
dos outros eventos? Smolensky sugere que o sistema estime uma
tal probabilidade sem superestimar o grau de ordem do meio am-
biente. Assim, ele deverá escolher a distribuição de probabilidades
mais homogênea, à qual está associado um maior grau de incerteza.
Ao escolher a distribuição mais homogênea o sistema estaxá me-
nos comprometido com qualquer particular estimativa da freqüência
de ocorrência de eventos desconhecidos. Dado algum conhecimento
prévio, este pressuposto diminui a possibilidade de inconsistências na
representação da freqüência dos eventos desconhecidos, contribuindo
para a satisfação da condição (a).
O trabalho de Smolensky deixa claro que existe uma relação ex-
ponencial entre a função harmonia, H{r, a), e a probabilidade que
Coleção CLE V.11
430 Ciência Cognitiva e suas Raízes na Física do Século XIX

um certo padrão de input seja selecionado no meio ambiente, dado


um conjunto de átomos de conhecimento. Esta correlação é expressa
pelo seu Teorema da Competência (Competence Theorem)
p{r,a) a eH^T'a\
onde r é o vetor correspondente ao padrão de input e a é o vetor do
átomo de conhecimento pré-existente na rede.
Smolensky demonstra que a correlação acima pode ser derivada
do princípio de umaximal missing information" de Shannon, estabe-
lecendo assim uma conexão entre os princípios da Termodinâmica,
que estão presentes na sua teoria, e aqueles da MTC.
Como os modelos da Teoria Harmônica não são determimsticos,
o teorema da competência se aplica apenas de forma probabilística.
Algumas vezes, padrões informacionais, ou aspectos destes padrões,
são representados tornando-se inconsistentes em relação aos esque-
mas pré-existentes. Em tal situação, a tendência da rede será aquela
de reorganizar os seus átomos de conhecimento ou "ignorar" a nova
representação.
Este esboço de teoria (como a caracteriza o seu autor) reconhe-
cidamente necessita de um maior desenvolvimento. Obviamente, a
complexidade do sistema cognitivo é muito maior que esta breve in-
vestigação pode sugerir. Em particular, o sistema cognitivo humano
se desenvolve em um meio informacional extremamente complexo,
o qual inclui, entre outras coisas, informações a respeito de outras
mentes.
A esperança dos estudiosos desta área repousa na expectativa de
que a Ciência Cognitiva, que está ainda engatinhando, consiga ultra-
passar o presente estágio, em que grandes simplificações se impõem
às suas análises. Da nossa perspectiva, esperamos que as raízes da
Física do século XIX, que procuramos situar no interior da Ciência
Cognitiva, possam desenvolver-se num solo fértil, senão para explicar,
mas para fornecer alguns subsídios à pesquisa do sistema cognitivo
humano.

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Coleção CLE V.11
Maria Euaice Quillci Gonzales 433

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Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11
VII COLÓQUIO DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA
(57° ENCONTRO CLE)

SÉCULO XIX:
O NASCIMENTO DA CIÊNCIACONTEMPORÂNEA

12 a 15 de outubro de 1991

TEMAS

I - A relação entre história e filosofia da ciência; II - Frege e a lógica


moderna; III - A ciência e a filosofia de Poincaré; IV - 0 nascimento
das lógicas não-clássicas e as geometrias não-euclidianas; V - Ciência
e método em Mach e Duhem; VI - 0 positivismo científico e o empi-
rismo no século XIX; VII - Questões epistemológicas da ciência con-
temporânea no século XX; VIII - 0 nascimento da mecânica quântica
e da cristalografia, e a evolução da análise dimensional; IX - 0 surgi-
mento da teoria eletromagnética, da termodinâmica e as origens da
mecânica estatística.

PROGRAMA

SÁBADO, 12/10/91

15:00 - Inscrições
16:00 - Abertura
16:30 - Mesa Redonda - A distinção entre ciência e filosofia no século
XIX
Prof. José Novaes Chiappin (FFLCH/USP)
Prof. Michel Debrun (CLE/TJNICAMP)
Prof. Michel Ghins (coord.) (IFCH/UNICAMP)
Prof. Zeljko Loparic (IFCH/UNICAMP)
18:30 - Encerramento
19:30 - Coquetel
20:30 - Jantar
Coleção CLE V.11
436 yií Colóquio de História da Ciência

DOMINGO, 13/10/91
Frege e a Lógica Moderna
O Nascimento das Lógicas Não-Clássicas
As Geometrias Não-Euclidianas

SESSÃO DE COMUNICAÇÃO I
8:15 - Uma lógica para teorias mecânicas
Edelcio Gonçalves de Souza (FFLCH/USP)
9:00 - Le príncipe de raison suffisante et la logique dans la philosophie
de Schopenhauer
Jean Yves Bézian (Université de Paris 1 - Panthéon - Sorbonne)
9:45 - A construção dos cálculos Cn, de Newton C.A. da Costa
Prof. Elias H. Alves e Giovani da Silva de Queirós (Departa-
mento de Filosofia/UFPb)

SESSÃO DE COMUNICAÇÃO II
8:15 - A metodologia de Claude Bernard (1813-1878) como ante-
cipação da metodologia popperiana
Luiz Henrique A. Dutra (IFCH/UNICAMP)
9:00 - Sobre Lázaro e Sadi Carnot e suas contribuições à termo-
dinâmica
Délcio Basso (Instituto de Física PUC-RS)
9:45 - Planck e o nascimento da mecânica quântica: Sugestões para
estudo de condicionantes históricos recentes
Prof. Cintra Martins (COPPE/UFRJ)
10:30 - Intervalo
10:45 - Mesa Redonda - O nascimento das lógicas não-clássicas
Profa. Andréa Loparic (Coord.) (FFLCH/USP)
Prof. Cláudio Pizzi (Universidade de Siena/Itália)
Profa. ítala M.L. D'Ottaviano (IMECC/UNICAMP)
Prof. Newton C.A. da Costa (FFLCH/USP)
Prof. Walter Carnielli (IMECC/UNICAMP)
12:15 - Almoço
14:00 - A Filosofia da Matemática de Poincaré
Prof. Jairo José da Silva (Depto. de Matemática UNESP-Rio
Claro)
Coleção CLE V.11
Programa 437

14:45 - Frege 's conception of Logic


Prof. Michael Wrigley (IFCH/UNICAMP)
15:30 - Frege e Boole: a lógica e o paradigma algébrico
Prof. Luiz Henrique Lopes dos Santos (FFLCH/USP)
16:40 - Intervalo
17:00 - Algumas questões conceituais ligadas ao advento das geome-
trias não-euclidianas
Arno A. Viero (PUC/RJ)
17:40 - "Modelos" de geometrias não-euclidianas
Profa. Sueli Rodrigues (IMECC/UNICAMP)
19:00 - Encerramento
19:30 - Jantar
21:00 - Concerto

SEGUNDA, 14/10/91
Comte e o Positivismo Científico
Ciência e Método em Mach e Duhem

SESSÃO DE COMUNICAÇÃO I
8:15 - As tentativas de Stuart MUI e John Keynes de resolver o pro-
blema da indução de Hume
Prof. Mário A.L. Guerreiro (Depto. de Filosofia/UFRJ)
9:00 - Durkheim e a tradição positivista na Sociologia: uma revisão
Washington L.S. Bonfim (UFPi)
9:45 - O caráter intransparente da filosofia em face da objetividade
científica: Processos e paradigmas segundo a teoria crítica de
J. Habermas
Prof. Marconi Pequeno (Depto. de Filosofia/UFPb)

SESSÃO DE COMUNICAÇÃO II
8:15 - O aparelho de Morin revisitado: um aparato experimental
didático para o estudo da queda dos corpos desde o "The Sci-
ence of Mechanics" de Ernest Mach
Marcos C. Danhoni Neves (Depto. de Física/Univ. Estadual de
Maringá)
Coleção CLE V.11
438 VII Colóquio de História da Ciência

9:00 - Razão e descontinuidade na ciência contemporânea: duas in-


terpretações diferentes
Profa. Marly Bulcão (Depto. de Filosofia/UFRJ)
10:30 - Intervalo
10:45 - Debate - Uma reavaliação da leitura duhemiana de Galileo
Expositor - Prof. Pablo Rubem Mariconda (FFLCH/USP)
Debatedora - Profa. Fátima R.R. Évora (CLE/UNICAMP)
12:15 - Almoço
14:00 - A evolução da análise dimensional de Vaschy (1890) a Buc-
kingham (1914), o "Teorema de
Prof. Fernando Lobo Carneiro (COPPE/UFRJ)
14:45 - E a epistemologia de Comte fatualista?
Prof. Alberto Oliva (Depto. de Filosoíia/UFRJ)
15:30 - O nascimento da ciência cognitiva e suas raízes no século
XIX
Profa. Maria E.Q. Gonzales (Depto. Filosoíia/UNESP-Maxília)
16:40 - Intervalo
17:00 - Em que medida foi Mach um precursor da teoria geral da
relatividade.
Prof. Michel Ghins (IFCH/UNICAMP)
19:00 - Encerramento
19:30 - Jantar

TERÇA, 15/10/91
O Surgimento da Teoria Eletromagnética
Termodinâmica e as Origens da Mecânica Estatística
Ciência e Filosofia de Poincaré

SESSÃO DE COMUNICAÇÃO I
8:15 - Concepções sobre estrutura de cristais
Profa. Mabel de M. Rodrigues (IFQSC/USP-São Carlos)
9:00 - Magnetismo Solar
Profa. Silvia Helena Becker Livi (Depto. Astronomia/UFRS)
9:45 - Helmholtz e a conservação da energia
Oswaldo Melo e Souza Filho (FFLCH/USP)
Coleção CLE V.11
Programa 439

10:30 - Intervalo
10:45 - Debate - O trabalho científico de Hertz e sua filosofia da
ciência
Expositor - Prof. Paulo C.C. Abrantes (Depto. Filosofia/UnB)
Debatedor - Prof. Hdeu de Castro Moreira (Inst. Física/UFEJ)
Coordenador - Osvaldo Pessoa Jr.
12:45 - Almoço
14:00 - A obra termodinâmica de Einstein (1902-1904) e a mecânica
estatística de Gibbs
Prof. Borisas Cimbleris (Escola de Engenharia UFMG)
14:45 - A introdução de idéias probabilísticas na concepção mecânica
da natureza: as contribuições de Clausius e Maxwell
Profa. Penha M. Cardoso Dias (Inst. Física/UFEJ)
15:30 - Duhem e Poincaré: a questão da racionalidade científica
Prof. José Novaes Chiappin (FFLCH/USP)
16:40 - Encerramento
Coleção CLE V.11
Coleção CLE V.11

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