Amor Além Da Guerra - L.C. Freitas - Nodrm

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Copyright © 2024 L. C.

Freitas

Todos os direitos reservados. Este ebook ou qualquer parte dele não pode ser reproduzido ou usado
de forma alguma sem autorização expressa, por escrito, do autor, exceto pelo uso de citações breves
em resenhas literárias, sob pena criminais e civis. A violação de direitos autoras é crime estabelecido
na lei nº 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.

Amor Além da Guerra — Livro 4


Série Amores de Princesas
1ª edição, 2024

Ficha catalográfica:
Revisão: Amanda Marques (@gramaticaperfeita) e Poliana Muffato (@poli.autora).
Betagem: Amanda Marques (@autoramarx), Poliana Muffato (@poli.autora), Myo Afeal
(@autora.myo), Dani Daud (@avidaeaescrita), Luciele Freitas (@autoralcfreitas), Luh Abraham
(@luhabra), Samara Viana (@autorasamaraviana), Pauline Cavalcante (@multianaverso)
Ícones: Flaticon
Ilustrações: Myo (@ilustra_myo)
Capa: Myo (@ilustra_myo) e Pauline Cavalcante (@ppwlneilustra)
Diagramação: Pauline Cavalcante (@ppwlneilustra)

Copyright © 2024 L. C. Freitas


Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real
é mera coincidência.
SINOPSE

SOBRE A SÉRIE

EPÍGRAFE

PRÓLOGO - TRAUMAS DO PASSADO

MING

CAPÍTULO 1 - A VOLTA PARA CASA

MING

CAPÍTULO 2 - A NOVA INSPETORA

LIAM

CAPÍTULO 3 - SAUDADES DO LAR

MING

CAPÍTULO 4 - CONHECENDO O TERRITÓRIO

LIAM

CAPÍTULO 5 - JANTAR COM GOSTO DE MENTIRA

MING
CAPÍTULO 6 - ATRAÇÃO AO PRIMEIRO SOCO

LIAM

CAPÍTULO 7 - NA GUERRA, A VINGANÇA É COMBUSTIVEL

MING

CAPÍTULO 8 - ESPADA COM SANGUE

LIAM

CAPÍTULO 9 - INÍCIO DA BUSCA PELO CULPADO

MING

CAPÍTULO 10 - GAMADÃO NA NOVATA

LIAM

CAPÍTULO 11 - DESEJO E PERSEGUIÇÃO

MING

CAPÍTULO 12 - A ASSASSINA É UMA MULHER?

LIAM

CAPÍTULO 13 - DESCOBERTAS CHOCANTES E FAÍSCAS

MING

CAPÍTULO 14 - TREVO DE QUATRO FOLHAS DÁ SORTE OU É O CHAMADO PARA


OUTRA MORTE?

LIAM

CAPÍTULO 15 - PEGUENA GUERREIRA

MING

CAPÍTULO 16 - POSSO DORMIR NA SUA CASA?

LIAM

CAPÍTULO 17 - FILME DE TERROR

MING

CAPÍTULO 18 - PROVA CONTAMINADA E UMA PORÇÃO DE CIÚMES

LIAM

CAPÍTULO 19 - MEIO ATRAPALHADA, MENINA MALUQUINHA


MING

CAPÍTULO 20 - CÃO ADESTRADO

LIAM

CAPÍTULO 21 - E SE ELE SE APAIXONASSE POR MIM?

MING

CAPÍTULO 22 - PORQUE EU SOU OBCECADO POR VOCÊ

MING

CAPÍTULO 23 - ENTÃO TIRE A ARMADURA POR ESSA NOITE

LIAM
MING

CAPÍTULO 24 - AMOR DE MENTIRAS

LIAM
MING
LIAM

CAPÍTULO 25 - MULHER PERVERSA

MING

CAPÍTULO 26 - DAMA DE VERMELHO

LIAM

CAPÍTULO 27 - DESCONFIANÇA AMARGA

MING

CAPÍTULO 28 - ELA É MINHA PAIXÃO MAIS LOUCA E A DOR MAIS DILACERANTE

LIAM
MING

CAPÍTULO 29 - CORAÇÃO EM CHAMAS

MING
LIAM

CAPÍTULO 30 - HOMEM ENCAPUZADO

MING

CAPÍTULO 31 - PASSADO DE LÁGRIMAS

LIAM
CAPÍTULO 32 - RESTOS MORTAIS

MING
LIAM

CAPÍTULO 33 - O ÚLTIMO TRAÇO

MING

CAPÍTULO 34 - ENTÃO ESSE É O FIM?

MING

CAPÍTULO 35 - REDENÇÃO NA DESPEDIDA

MING

EPÍLOGO - NOSSO FELIZES PARA SEMPRE

LIAM
MING

AGRADECIMENTOS
Com sede de vingança, Ming ingressa na força policial como
inspetora na pequena cidade sulista do Brasil, sua mente afiada e desastrosa
atraindo rapidamente a atenção dos seus colegas, que, para o seu desespero,
são todos homens.
Todavia, o caminho da verdade é repleto de obstáculos e perigos, e o
que ninguém esperava, era que o retorno da Ming também traria de volta
um assassino em série que não matava ninguém há oito anos.
Enquanto investiga o caso que pode levá-la até o culpado pela morte
da irmã, ela se vê envolvida em uma trama intrincada, onde nada é o que
parece. Tudo se torna ainda mais complexo ao ver-se constantemente
confrontada pelo maior de todos os obstáculos: seu desejo repentino pelo
charmoso e sedutor Inspetor Liam Machado.
A presença do homem ameaça desestabilizar as defesas
cuidadosamente construídas de Ming, levando-a a questionar suas próprias
convicções.
Atenção, esse livro contém os seguintes gatilhos: violência,
assassinato, menção a espancamento e carnificina, traumas psicológicos,
violência doméstica, traços sutis de psicopatia/sociopatia.
Para todas as princesas do mundo real que já sonharam em viver seu conto de fadas. Lembrem-se que
nem sempre vai existir uma fada madrinha, e que às vezes uma princesa precisa desembainhar sua
espada e ir atrás do seu “felizes para sempre”.
Quando perguntam às garotinhas o que elas mais amam em contos de
fadas, algumas dizem que são os vestidos brilhantes, ou a ideia de o amor
sempre vencer no final. Se perguntarem a uma adulta o que a marcou em
um conto de fadas, ela certamente responderá milhares de motivos, dos
mais diversos, os mais óbvios ou talvez os mais surpreendentes, os quais
não esperamos ouvir, pois a magia pode manifestar-se de formas infinitas.
Pensando no quanto as princesas foram especiais na infância de todos
nós, brasileiros, enquanto éramos somente crianças, nós, Hobbytches, oito
autoras espalhadas em cada cantinho de nosso país, juntamo-nos em um
único objetivo e sonho: em cada um dos oito primeiros meses do ano de
2024, uma princesa escolhida pessoalmente por cada uma de nós renascerá
em uma releitura contemporânea e inédita, explorando ares de nosso país
gigante, trazendo protagonistas fortes e incríveis que buscam por seus finais
felizes com a garra e determinação presente em nosso sangue brasileiro.
E como nós, Hobbytches, somos incrivelmente matadoras e geniais
em nossas particularidades, cada uma teve a sua missão em transformar
todas as referências que nos inspiraram ao longo da vida em uma comédia
romântica de sua própria autoria, mesclando seu talento e suas ideias em
uma jornada esplendorosa, que fará você, leitor(a), mergulhar em uma
viagem magnífica nos mundinhos de nossas princesas.
Agora, você embarcará na releitura da princesa Mulan, a guerreira
que fará de tudo para trazer honra à sua família e vingar a irmã assassinada,
só que dessa vez ela é uma policial durona e uma desastrada em todos os
outros quesitos da sua vida, principalmente no amor. Ming está disposta a
tudo e com ela vamos descobrir que a determinação pode abrir milhares de
portas, mas o desejo de vingança pode fechar muitas mais. Essa princesa
nos ensina a ter coragem e enfrentar tudo de frente, não importa o tamanho
do desafio, mesmo quando se trata da paixão que sente por um certo
inspetor charmoso de quase 1,90 de altura.
Eu imagino meu medo como uma pessoa, então eu grito com ele: eu não tenho medo de você!
— Mulan, Walt Disney Animation, 1998.
MING
Caminho pela estrada de cascalho, continuando com a mesma ideia de
trilhar todos os caminhos aos quais Fang costuma percorrer.
Já faz dois dias que refaço seus passos. Ela sempre utilizava as
mesmas ruas quando ia e voltava da escola, nunca cortou caminho quando
queria ir ao parque ou a cachoeira.
Talvez ela tenha tentado uma coisa diferente e se perdido.
Paro de andar ao escutar o som da cascata de água. Fang ama se
sentar nas rochas perto da cachoeira, talvez tenha passado por aqui.
E esquecido de ir para casa?
Ignoro os pensamentos obscuros ao adentrar a pequena trilha que dá
direto na fonte do som, desviando de alguns galhos de árvores antes de
afundar os chinelos na água.
Subo pelo caminho escorregadio, é impossível não me molhar. Estou
quase saindo das águas cristalinas quando tropeço em algo e caio de bunda
em uma rocha.
Meu olhar se desvia para o causador do meu tombo enquanto escolho
a forma criativa que matarei a Fang quando a encontrar. Agora, estou
encharcada e irritada.
Assim que presto atenção na única coisa que poderia ter me
derrubado, só consigo focar nas unhas arroxeadas e no anel em formato de
coração no dedo anelar.
Meu grito ecoa pela cachoeira, até se transformar no som
inconfundível de um toque irritante. Minhas pálpebras tentam se abrir
conforme busco cegamente pelo meu celular.
— Alô?
— Filha, desculpa se te acordei. — A voz da minha mãe soa chiada
do outro lado da linha e afasto o celular para ver o visor. Acabam de
completar 6h, o horário exato em que ela abre o restaurante chinês.
— Já estava acordada — minto em um bocejo ao me sentar,
esfregando os olhos antes de encarar minha mala no canto do quarto.
— Claro que estava. Você me ligou ontem à noite? Só vi agora.
Meus olhos se fecham e respiro fundo.
— Sim.
Ela espera e quando não digo mais nada, um suspiro chiado soa pela
linha.
— O que aconteceu, Ming? Está me preocupando.
Sei que talvez minhas próximas palavras não sejam exatamente uma
coisa boa para minha família, afinal, é por causa delas que vim para São
Paulo, e por minha mãe ser a única que ainda me liga.
— Eles finalmente me chamaram — faço uma pausa, esperando-a
compreender o que isso significa.
É hora de voltar para casa. É hora de colocar tudo que estudei em
prática e trazer honra à Fang, paz para minha família.
O silêncio se estende por longos segundos.
— Quer dizer que...
— Vou pegar o próximo voo para casa, mamãe.
MING

É normal sentir um frio na barriga ao retornar para seu lar?


Para mim não deveria ser, nunca fico nervosa com nada, porém,
quando se trata desse lugar, eu simplesmente me perco. Estou amortecida
desde que aquilo aconteceu, a única coisa que ainda pareço ter capacidade
de sentir é uma raiva amarga que me persegue dia e noite.
Quando tinha quinze anos, jurei que jamais seria fraca, que jamais me
deixaria ser vencida por nada nem ninguém. Era apenas uma adolescente e
ainda me surpreendo por ter seguido esse juramento à risca.
Seja corajosa. Seja leal. Seja verdadeira. Não se distraia. Nunca, em
hipótese nenhuma, confie em qualquer pessoa.
Viver assim foi solitário, mas seguro. Não perdi o foco, consegui me
concentrar no que importa, no que realmente faz sentido para mim e, aos
vinte e três anos, continuo a mesma.
Quantas vezes pensei em desistir do meu plano? Quantas vezes
desejei não voltar?
Encaro a placa dourada que parece zombar de mim em cada uma de
suas encantadoras letras cursivas: Bem-vindo a Monte Azul.
Houve um tempo em que amei viver aqui, em que ficar sentada no
parque alimentando os patos era uma ideia fantástica, e dar uns amassos em
frente ao lago parecia romântico e excitante.
Por que esse lugar teve que me destruir tão profundamente?
— Seja corajosa, Ming — digo a mim mesma enquanto massageio as
têmporas.
Por algum motivo, meu pai não pôde me buscar, então apoio as mãos
no volante do carro que aluguei do aeroporto de Porto Alegre até aqui,
pronta para dar o último passo para chegar ao meu destino.
Não consegui voltar para Monte Azul desde que me formei no colégio
e fui para a faculdade, só de pensar na ideia, sentia claustrofobia e, bom,
minha família também não quis sair daqui, então faz um longo tempo que
não nos vemos.
Nunca entendi como eles conseguiram se recuperar estando no
mesmo lugar onde tudo aconteceu, e eles nunca compreenderam como eu
poderia querer virar policial civil e lidar todos os dias com casos parecidos
com aquele que tirou o sorriso de nossos rostos anos atrás.
Acho que pessoas superam dores profundas de maneiras diferentes.
Essa é a cidade em que nada nunca acontece, ao menos na opinião
dos turistas. Lembro que as pessoas costumavam dizer no cursinho
preparatório que Monte Azul era a cidade para a qual um policial atrás de
renda fácil iria, mas nenhum deles sabe do que sei, nenhum turista estava
por aqui na época em que alguma coisa aconteceu.
Minhas mãos tremem ao pisar no acelerador e passar pela placa,
flashbacks me transportando para uma época ruim, onde desejei que meus
pais nunca tivessem saído da China.
O vidro da janela está abaixado e meus cabelos negros voam à minha
volta. Ajeito os óculos escuros, mantendo a pose de durona, mesmo que
ninguém possa me ver, isso ajuda a fingir que não estou apavorada.
A cidade é movimentada e algumas pessoas param para observar o
carro, afinal, nenhum turista costuma passar por aqui nessa época do ano.
Teoricamente estamos no inverno, mas apesar de frio, o sol ainda está
presente no céu.
É a estação perfeita para um Serial Killer aparecer.
Meu olhar percorre as ruas conforme passo, os sobrados elegantes, os
prédios e lojas de comércio, é um lugar legal e geralmente calmo de se
viver. Turistas amam tirar fotos nos pontos mais bonitos como o lago, onde
pérolas são achadas diariamente e a cachoeira, a qual minha irmã foi
encontrada assassinada oito anos atrás é um atrativo de tirar o fôlego, a
água aparentemente azul que supostamente deu nome à nossa cidade.
Solto um suspiro sôfrego no exato instante em que uma mulher sai
correndo de uma casa, tropeçando e caindo bem diante do meu carro.
Meu pé pisa no freio, meu corpo é impulsionado para frente e aperto a
buzina com força por puro reflexo.
Levo alguns instantes para me dar conta do que aconteceu, não sei se
cheguei a atropelá-la, e quando estou quase saindo do carro para descobrir,
um homem careca atravessa a rua após sair da mesma casa e puxa a mulher
com violência para cima.
O rosto pálido dela está cheio de hematomas e meu instinto alerta que
não foi por culpa da queda, nem de um possível atropelamento.
— Estou cansado de você dar chilique toda vez, Pamela! — O
homem grita e solto o cinto de segurança.
— Por favor, Vitor... — Ela choraminga. — Aqui não.
Ao descer do carro, reparo que os olhos cor de avelã da mulher
parecem implorar para ele não a tratar dessa forma no meio da rua, mas
conheço o tipo dele e sei que só deve ser assim com quem pensa que não
pode se defender.
— Ei! — grito quando ele ergue a mão. — Solta o braço dela.
— Vitor... — A garota tenta se soltar, olhando para mim com óbvia
vergonha.
Também conheço o tipo dela. Está cansada de apanhar, cansada de
sofrer, mas algo a impede de ir embora, talvez um filho, talvez amor... Ela
vai passar por tudo isso, ele a humilhará no meio da rua, pessoas como eu
tentarão ajudar e amanhã ela estará de volta naquela casa, mais uma vez
perdendo a coragem. É um ciclo ininterrupto, onde o motivo que a mantém
ao lado de um homem como o Vitor sempre ganhará, mesmo ela sabendo
que poderia ter muito mais.
— Mandei soltar a moça — repito, parando de frente para ele, onde
não poderia simplesmente me ignorar.
— Vá cuidar da sua vida!
Seu olhar ferve de raiva ao olhar para mim, é impossível não notar
que provavelmente fez uso de alguma substância ilícita.
— Eu quero muito fazer isso e terei o prazer de seguir meu caminho
assim que largá-la.
O braço dele que estava erguido se abaixa para me empurrar antes de
se erguer de novo.
Meu choque dura apenas tempo o suficiente para que a mulher se
encolha à espera do golpe, então meus pés se movem por conta própria e
agarro o pulso do tal de Vitor.
Ele é muito maior que eu e muito mais forte, porém não está são. É
por pouco, mas consigo impedir que Pamela ganhe mais um hematoma.
A escuto gemer de dor logo que Vitor a solta e ela cai no chão. Seu
corpo se volta completamente para mim e quando me dou conta, seus dedos
estão em volta do meu pescoço enquanto me empurra contra o capô do
carro.
Minha respiração se torna inexistente e bato o cotovelo com força no
rosto dele, fazendo-o andar alguns passos para trás e me soltar.
Estou mesmo tentando não me irritar, tentando não partir para a
violência, mas como minha vovó Mei sempre diz: não sou graciosa, nem
calma, sou como pólvora, e se provocada por tempo o suficiente, posso
estourar e causar estragos.
Tiro os óculos escuros do rosto e respiro fundo.
— Escuta, não quero mesmo bri... — desvio do soco que vem em
minha direção e automaticamente agarro o braço e o torço, empurrando a
cabeça careca do Vitor contra o capô escuro do carro alugado.
Espero mesmo que isso não tenha causado nenhum amassado.
— Me solta, vadia!
— Como eu ia dizendo, não quero mesmo brigar, mas você não pode
simplesmente bater nela no meio da rua e esperar que nada aconteça.
— Ela me traiu!
— Ela poderia ter feito isso na sua frente e você ainda não teria o
direito de machucá-la, não é uma troca, não existe justificativa plausível.
Na lei, o que você fez é crime. Não conhece a lei Maria da Penha, não?
Escuto o som da sirene de polícia e ao olhar naquela direção, meu
aperto se afrouxa, dando tempo para que o brutamontes se solte com um
xingamento nada educado. Sinto o soco no rosto antes de o ver se
aproximando e esse é o limite o qual eu não queria ultrapassar.
Meus punhos se fecham e devolvo o soco com toda minha força,
fazendo sua cabeça ser jogada para trás. Limpo o sangue que escorre do
meu nariz antes de proteger meu rosto de outro soco, o impacto é tão forte
que quase caio de bunda no chão.
— Você não quer mesmo me ver fora de controle — alerto ao me
aproximar. — Estou perdendo a paciência com você.
Ele infla o peito e ergue a mão pelo que parece ser a milésima vez,
mas o impeço de fazer qualquer outra coisa com um chute no estômago, o
ponto exato para deixá-lo sem fôlego. Assim que se curva, buscando pelo
ar, meu punho atinge seu maxilar. O último golpe não era tão necessário,
mas ele me deixou puta da vida e é assim que reajo com pessoas que fazem
isso.
Um sorriso satisfeito permanece no meu rosto mesmo quando o carro
da Polícia Civil para atrás do meu. Não é nenhuma surpresa quando Vitor
fica quietinho, encarando a mulher dele como se suplicasse para que ela
dissesse que nada ocorreu aqui, mas ele se esquece que caso ela não fale, eu
ainda estou presente.
— Se abrir a boca e eu for preso, saiba que seu filhinho é quem vai
sofrer as consequências.
Escuto a voz sussurrada do babaca para a moça e minha vontade é
continuar batendo nele, até teria feito isso se não fosse pelo som de passos
se aproximando.
— O que está acontecendo?
Olho para trás, pronta para dizer ao policial exatamente o que está
acontecendo e... estanco. Meu corpo inteiro trava e fico boquiaberta ao
encarar o homem.
— Na minha época não tinha essas coisinhas por aqui — sussurro e o
policial apoia as mãos na cintura, esperando por uma resposta. É tão bonito
que poderia estar posando para um calendário sensual, como aqueles de
bombeiros que os estadunidenses fazem.
Ele tem ombros largos, a pele bronzeada e é muito alto. A
combinação perfeita para me deixar sem reação por tempo o bastante para
Pamela começar a chorar alto e Vitor soltar um resmungo de desaprovação.
Assisto os olhos escuros focarem na mulher histérica, uma mão
alisando a barba bem-feita antes de esfregar os cabelos curtos.
Quanto tempo uma mulher leva para ficar molhada? Comigo nunca
aconteceu em segundos.
Balanço a cabeça, a pele arrepiando quando ele finalmente foca a
atenção em mim, me medindo de cima a baixo antes de franzir a testa.
— Alguém vai responder?
— Não é óbvio? — É a primeira coisa que pergunto e isso me faz
lembrar do motivo por ser virgem aos vinte e três anos, sempre fico na
defensiva quando acho um homem atraente.
Ele estreita os olhos, mas não diz nada ao encarar o sócio do Gru[1] e
causador de toda essa confusão.
— Acho que já entendi, sim. Então serei breve — diz em um timbre
forte, se voltando para a Pamela. — Você quer dar queixa?
A mulher fica muito tempo em silêncio antes de negar com a cabeça,
como eu previa, abdicando da chance de denunciar o desgraçado que fez
isso em seu rosto, só que agora compreendo o motivo.
Ela tem um filho e está sendo ameaçada, o que posso fazer nessa
situação?
— Tem certeza? — O policial insiste e ela nega novamente.
Minha cabeça parece que vai explodir com a enxaqueca repentina e
me arrependo de ter me metido nessa por nada.
Levei um soco na cara, caramba!
— Já que não tem queixa, não tem motivo para eu estar aqui. Podem
ir para suas casas.
Bonito, mas claramente preguiçoso.
Meu corpo retesa com a sentença dele, não sei por qual motivo fico
tão furiosa, devia estar entrando no meu carro e saindo, no entanto, me
mantenho estagnada, encarando as costas do policial conforme ele se afasta.
— Policial frouxo — xingo em mandarim e o homem para de andar.
Ele se vira lentamente para mim, os olhos parecem flamejar com
algum sentimento que sou incapaz de reconhecer, enquanto o restante do
rosto carrega uma expressão pesada de confusão.
— Como é?
Abro um sorriso doce, sabendo que ele não está entendendo nada do
que digo.
— As pessoas tinham razão quando me diziam que Monte Azul era
lugar para policiais incompetentes. — Minha voz soa como veludo, de tão
meiga. — Deveria ter escolhido uma profissão mais cômoda se pretendia
dar as costas para situações como essa.
Ele solta uma risada sem graça, olha para o chão e coça a nuca,
quando ergue os olhos novamente para o meu rosto, ainda está sorrindo. Ele
tem o tipo de risada galanteadora, daquelas que funcionariam como um tiro
certeiro para atrair qualquer pessoa, menos eu, claro.
Esquisito demais gostar disso.
— Esse tipo de atitude tem nome, sabia? Se chama negligência. — O
idioma soa como se tivesse parado de falar ontem, não há oito anos.
Costumava falar muito em mandarim com a minha irmã. Depois que
ela foi levada de mim, não consegui falar mais, exceto em ocasiões em que
havia passado do extremo da raiva, como agora, ou quando preciso falar em
particular com minha família e não quero que ninguém entenda.
Ainda me pergunto o motivo por estar tão brava, talvez pelas as
marcas no rosto da Pamela terem me lembrado as manchas encontradas em
outros corpos anos atrás, ou por ainda esperar uma atitude quando todos os
policiais deram as costas para minha família em prantos.
Ele arqueia uma sobrancelha.
— Sabe o que poucas pessoas sabem de mim, moça?
Não respondo e ele continua:
— Eu fiz intercâmbio na China.
Não tenho tempo nem de ficar chocada antes de ele tirar algemas não
sei de onde e balançar diante do meu rosto.
— A senhora está presa por desacato à autoridade. — Segura meus
braços e mal consigo reparar no arrepio que me percorre, ou nos calos das
suas palmas antes de me ver algemada. — Isso só porque me irritou hoje.
— Não pode fazer isso!
— Agora sabe falar português? Que oportuno.
Ele está debochando de mim. Olho por sobre o ombro, vendo Vitor
levar a mulher para dentro de casa mais uma vez.
Como eu acabei presa quando aquele homem é quem deveria estar
algemado?
LIAM

Estico as pernas e relaxo contra a cadeira, o corpo esparramado


enquanto observo a garota atrás das grades de uma das celas.
Ela está escorada na parede e encara as unhas como se estivesse
entediada, mas é notória sua raiva contida. Aproveito o momento para
observar o contorno do rosto fino, os olhos sedutores, porém sérios, em um
tom de castanho hipnótico, são olhos que emanam dominância.
— Vai se arrepender de me deixar aqui — declara sem olhar para
cima. Sua voz é doce e feminina, apesar de parecer estar tentando ser rude.
Eu gosto.
— Não me importo se você quiser falar em mandarim.
Abro um sorriso provocante quando ela, por fim, me encara, sua
expressão feroz quase me faz desejar ter ficado quieto.
— Sério mesmo que você está feliz em me prender? — Ela se
aproxima das grades e apesar do corpo ser pequeno e delicado, consigo
enxergar a força em cada movimento, ela parece uma tigresa espreitando
sua presa. Linda, porém, perigosa. — Viu o rosto daquela mulher?
Meu sorriso se desvanece.
— Ela não quis tomar nenhuma atitude quanto a isso, eu não poderia
fazer nada.
— Ainda assim está rindo por ter prendido alguém que só tentou
ajudar?
Me levanto e caminho até as grades, apoiando as mãos no ferro acima
da sua cabeça. Em todos esses anos trabalhando como inspetor nessa
cidade, ninguém nunca me olhou com o desprezo que ela olha, tampouco
me acusou das coisas que ela o fez. Sempre tive orgulho do meu trabalho e
o fiz com perfeição, as pessoas por aqui sabem reconhecer isso,
principalmente em situações em que a própria vítima não possui qualquer
pretensão de denunciar o agressor.
Se a vítima não quer se defender, como eu poderia o fazer sem um
pingo da ajuda dela?
— Você me ofendeu.
Ela solta um resmungo inaudível e vira as costas para mim, os cabelos
escuros como a noite acariciam sua cintura estreita, tão lisos que minhas
mãos formigam para descobrir se são tão macios quanto aparentam.
Um aroma doce e inebriante me alcança a cada movimento dela, o
perfume de mulher tornando a delegacia um lugar bem menos frio e bem
mais excitante.
Franzo a testa, indignado com o tipo de pensamento que perpassa
minha mente desde que vi essa mulher socar um homem com quase o dobro
do seu tamanho.
— Você vai se arrepender. — Ela repete, muito confiante do que diz.
Se não estivesse achando isso engraçado, poderia estar com medo, pois
quase soa como se ela soubesse de algo que eu não sei.
Continuo olhando para suas costas, suas roupas pretas realçam a pele
clara e são soltas o suficiente para não deixar ver muito, tudo que sei é que
sua cintura é bem fina e só notei isso porque em um momento ela cruzou os
braços, fazendo a camisa larga se erguer um pouco e revelar um pedacinho
de sua pele. Ainda me pergunto se caso a tocasse ali, minhas mãos se
encontrariam.
— Que ressaca desgraçada! — Pedro Souza passa pela porta da
recepção, soltando a jaqueta de couro em uma cadeira antes de me encarar
com os olhos cor de mel avermelhados pela óbvia falta de sono. — Foi mal
o atraso, Machado.
Paro de calcular o tamanho das minhas mãos perante a cintura da
mulher e observo meu amigo. Ele só me chama pelo sobrenome quando
estamos no trabalho ou ele está de mau-humor, na verdade, ele raramente se
lembra do meu sobrenome, só tenta se lembrar quando o delegado está por
perto e precisamos ser mais respeitosos, mas uma olhada para o seu visual
já me dá a resposta de toda essa estranheza. Pedro está horrível, isso porque
é considerado um dos homens mais boa pinta de Monte Azul; depois de
mim, óbvio.
— Tranquilo, não aconteceu muita coisa por aqui.
Volto a me sentar, girando a cadeira.
Não gosto de trabalhar durante o dia, nada acontece nesse horário, por
isso escolhi o turno noturno, se bem que nada acontece nessa cidade durante
a noite também.
Ser policial em Monte Azul é quase uma perda de tempo.
Pedro me pediu para cobri-lo depois de ter bebido todas ontem e
acordado de ressaca. Ele vai mudar para o turno da noite, mas isso só vai
acontecer na semana que vem, então, enquanto isso, sou eu quem fica se
desdobrando para não o deixar se dar mal.
A delegacia não é tão grande quanto eu gostaria, nem possui grandes
recursos, contudo, é o suficiente para uma cidade pequena, ao menos é o
que o governo sempre alega quando pedimos mais equipamentos. Gosto da
arquitetura do lugar, as celas são suficientes e a tinta branca das paredes
está em perfeito estado, as mesas são de qualidade e alguns dos
computadores também, apesar de não serem modernos o suficiente para nos
livrarmos de todas as caixas com fichas infinitas do depósito. Tudo seria
muito mais rápido e fácil por aqui se tivéssemos um banco de dados
decente.
— E quem é essa? — Pedro olha fixamente para a cela e sei o que
ele está pensando.
Eu sei, amigo... ela é gata demais.
— Turista — chuto, observando-a pelo canto do olho para ver se me
corrige, quando não o faz, imagino que tenha acertado. — Se meteu em
confusão e se alterou comigo.
— Você prendeu uma turista, cara? — Pedro solta uma risada alta,
fazendo as covinhas fundas ficarem visíveis e a garota emburrada
aprofunda a carranca.
— Estou cercada por crianças.
Pedro demonstra surpresa ao escutar o idioma diferente e tento
segurar o riso ao fingir que não ouvi as palavras venenosas, rir só me faz
parecer mais criança no ponto de vista dela e não quero demonstrar a quão
hilária essa situação soa.
— Que porra essa mulher disse? — Pedro questiona ao se aproximar
de mim. — Você me xingou, senhora?
Ela arqueia uma sobrancelha e cruza os braços.
Quem parece criança agora?
— Ela disse que está cercada por crianças — traduzo e ele me olha
por muito tempo antes de recordar que fiz intercâmbio na China.
— Crianças não possuem esses músculos.
Reviro os olhos quando ele dá tapinhas nos bíceps, tentando se exibir
para a garota, mesmo gostando da mesma fruta que ela.
Um celular começa a tocar e levo um instante para perceber que é o
iPhone que confisquei da chinesa raivosa.
“Mamãe”
A palavra pisca várias vezes na tela, junto com um emoji de coração e
uma música irritante.
— Tenho direito a um telefonema! — A garota grita como se só
tivesse recordado disso nesse momento.
Pego o celular e levo até ela, afinal, não pretendo mesmo mantê-la
aqui a noite inteira, isso foi por pura provocação. Talvez eu seja mesmo uma
criança como ela alegou.
— Oi, mãe. — Ela abaixa o tom de voz ao atender e se vira de costas
para mim e Pedro. — Eu estou indo, só tive um pequeno imprevisto...
Não... Está tudo bem, mãe...
Uma pausa longa.
— Como a vovó está?
O mandarim dela é perfeito, fazia anos que não ouvia ninguém falar
tão bem o idioma.
— E o papai?
Não sei o motivo por estar tão atento na conversa, geralmente acho
isso uma puta invasão de privacidade, mas confesso ter um pouquinho de
curiosidade a respeito dela.
— Tudo bem. — Ela soa triste por um instante. — Tchau, mãe.
Ao desligar, seu olhar se fixa na tela do aparelho por um momento
longo e deduzo não ter um bom relacionamento familiar e me compadeço,
afinal, eu entendo bem sobre família desunida.
Penso no meu pai automaticamente, ele sempre exigiu muito de mim
e eu estive por muitos anos seguindo seus passos.
— Souza, quero um relatório na minha mesa até o fim do dia sobre o
caso que esteve trabalhando.
Por falar em família, aí chega o baba ovo do meu pai. Sério, ainda
bem que as pessoas nem desconfiam o que se passa na minha mente sobre
esse cara.
O velho entra na delegacia como se fosse o dono do lugar, alisando a
barba longa demais para ser higiênico, o olhar duro e expressão rígida
alertando que não está de bom-humor. Os cabelos grisalhos estão espetados
para todos os lados, um sinal de que passou as mãos muitas vezes por eles.
Sua atenção recai na mulher e ele encara algo nos papéis que traz nas
mãos antes de estudar as feições da garota novamente, não sou bobo por
acreditar que ele faz isso por achá-la bonita.
— Por que a nova inspetora está presa? — A voz do homem soa
impassível e sinto meu coração bater acelerado ao escutar suas palavras.
Nova inspetora? O que foi que eu perdi?
Olho para a cela e assisto a carranca se transformar em um sorriso
travesso.
— O quê? — Pedro e eu perguntamos em uníssono e o delegado
estreita os olhos cor de chocolate amargo, as rugas se aprofundando ainda
mais quando passa a mão pelo cavanhaque longo.
— Eu não quero mesmo saber, só a tirem daí.
Não consigo me mover enquanto o homem vai embora, é Pedro quem
pega as chaves e abre a cela para que a miss simpatia saia.
— Eu disse que ia se arrepender. — Ela resmunga ao passar por mim.
Esfrego minha testa com uma mão, processando o que isso significa.
Não estava ciente de que uma mulher havia passado no concurso deste ano,
tampouco sido transferida para cá, não estamos precisando de pessoal,
estamos precisando de equipamentos.
Eu devia pedir desculpas? Se bem que ela me ofendeu, sabendo que
em algum momento trabalharíamos no mesmo ambiente, então, por qual
motivo eu teria de me desculpar? Ela ser inspetora significa que não é
realmente chinesa, já que somente brasileiros podem ser policiais no
Brasil. Claro, ela se parece com uma e fala como uma, mas tem sangue
brasileiro correndo naquelas veias.
Ela caminha pela delegacia, encarando as cinco mesas cheias de
papéis e os quadros com informações gerais. Esse é o setor onde pessoas
vêm fazer suas queixas e onde prendemos bandidinhos considerados
inofensivos, aqueles que só passam uma noite para aprender uma lição.
Não é o departamento dela, se o que o carrancudo — mais conhecido
como melhor amigo do meu pai e delegado — disse for verídico, ela
trabalhará diretamente comigo, no setor de homicídios, onde contamos com
mais quatro inspetores, um escrivão e quadros com informações bem mais
sigilosas do que os dessa sala, não que eles estejam muito cheios
ultimamente, e é isso que não entendo. Não temos muitos casos em Monte
Azul, não precisamos de mais uma pessoa.
A menos que alguém tenha saído e a vaga já tenha sido preenchida, o
que acredito não ser o caso. Esse tipo de boato já teria circulado e todos
nós teríamos conhecimento de uma nova inspetora.
A cidade é tão quieta que fiquei chocado quando meu pai abandonou
a vida agitada de São Paulo para aceitar o cargo de delegado aqui anos
atrás, eu ainda era novo, mas já rezava para que quando me formasse
conseguisse trabalhar em uma cidade grande, onde casos fodas me
aguardavam. Obviamente acabei mudando de ideia, e tentei a sorte por aqui
após ele ter se aposentado.
Não guardo rancor do Liam que decidiu continuar aqui anos atrás, na
verdade, amo esse lugar como se tivesse nascido aqui.
Só eu sei o quanto algumas pessoas daqui podem ser mais família do
que meu próprio pai.
As pessoas são dóceis e gentis em Monte Azul, deduzi que a garota
fosse turista justamente por ser o oposto.
Observo-a passar perto de uma mesa com um arranjo de flores que a
Sra. Rodrigues trouxe da sua floricultura essa semana, o vaso balança e a
garota nem percebe ao prosseguir por seu caminho. É o Pedro quem
equilibra o vaso, mais uma vez o ajeitando no lugar.
Os olhos monólitos dela percorrem as palavras escritas em um quadro
antes de seguir para outro, parece estar buscando por uma informação. Seu
dedo acaricia uma das folhas presas e quando se afasta a tarraxa se solta,
derrubando a folha no chão.
Pedro coloca a folha no lugar e franzo a testa, acompanhando o corpo
esbelto se mover pela sala pequena iluminada com a pouca luz que perpassa
as janelas com insulfilm escuro, desordenando coisas sem nem se dar conta.
Ela parece um garoto desastrado com essas roupas. Um desastre que
sabe dar um soco e um chute certeiros.
— O que está fazendo? — Finalmente pergunto e ela para de
caminhar, fazendo o Pedro bater em suas costas.
Meus lábios se contorcem ao tentar segurar a risada enquanto a garota
se desequilibra, agarra o braço do meu amigo e os dois acabam no chão.
Como ela fez isso? Conseguiu cair e ainda levar um cara de quase
noventa quilos de músculos junto.
Ela tira os cabelos do rosto e olha para mim com uma expressão
descontente.
— Estou conhecendo o lugar em que vou trabalhar — informa como
se fosse óbvio, mas tudo que ela fez foi andar por aí e quase arruinar coisas.
Ela se levanta e estende a mão para o Pedro, que olha com
desconfiança para os dedos pequenos.
— Se eu te tocar, vou explodir? — questiona e ela parece confusa
com a pergunta.
— Não?
Passo a mão pela barba, tentando me conter. Se rir agora, perderei
toda minha pose de policial malvado.
— Não sei, não. Prefiro me levantar sozinho, obrigado.
O homem negro se ergue do chão e olha para mim como se não
entendesse como uma garota tão desastrada se tornou policial.
Pedro e eu somos amigos desde que me mudei para cá, foi na mesma
época que conheci o Fernandes. Nos tornamos inseparáveis quase que
instantaneamente, éramos como os três mosqueteiros, restando agora
somente dois membros.
Escondo a boca com uma mão, me virando parcialmente para que ela
não veja que estou tentando a todo custo me manter impassível.
Por que mesmo escolhi ser policial quando não consigo levar nada a
sério?
— Liam, venha à minha sala. — Eu sou o único inspetor cujo o
fodido do Patrick trata pelo primeiro nome, apesar de sempre ficar me
cobrando respeito no trabalho.
Minha postura muda radicalmente, a vontade de rir desaparece e
posso notar a curiosidade no olhar da garota conforme me dirijo à sala do
homem que monitora cada passo meu, tal qual uma maldita coruja.
Se tem uma coisa que tira toda a graça do meu dia, é ter que ter uma
conversa com o senhor carrancudo/delegado. Ele é meio que o cagueta que
sempre me ferra para o meu pai, e odeio que tudo que eu faça esteja sendo
analisado como se eu fosse a porra de um adolescente.
Mesmo que na maior parte das ocasiões minha mente funcione como
a de um adolescente.
Meu pai já me trata como se fosse um moleque irresponsável, mas
quando se trata de trabalho, é mil vezes pior. É onde nenhum tipo de
parentesco existe, onde somos pedaços opostos de um quebra-cabeça
tentando se encaixar. Soa como se fôssemos seres de países diferentes tendo
uma conversa em que nenhum dos dois consegue se entender.
Ele não aceita que já é aposentado e não deve se meter na minha
vida.
Bato na porta antes de entrar.
— Se vai me perguntar o motivo de termos mais uma inspetora na
equipe, já aviso que o número de funcionários continua o mesmo. — Ele
começa a falar assim que passo pelo batente. — O Marques me informou
que vai se mudar para o Rio de Janeiro na semana que vem e como ela já
estava no cadastro de reserva, será a próxima a assumir o cargo. Não posso
fazer nada para impedir, mesmo não gostando de ter uma mulher na equipe.
Patrick se parece com o meu pai, nenhum dos dois aceita bem a
modernidade em que uma mulher pode segurar uma arma e trabalhar lado a
lado com um homem, para eles, lugar de mulher é em casa, cozinhando e
cuidando dos filhos. Desde que moro aqui, reparei que o preconceito do
meu pai piorou, em parte por culpa do homem sentado diante de mim, mas
também por não possuir muitas mulheres nessa cidade querendo seguir
carreira na Polícia Civil; as que mostraram interesse, ou não passaram no
concurso, ou foram para São Paulo tentar a sorte por lá.
Patrick deve estar tendo um ataque interno agora. Por que estou
gostando dessa ideia?
Já até imagino-o ligando para o meu pai e os dois surtando por uma
garota estar prestes a se envolver nos casos que eles querem controlar com
pulso de ferro.
— Estou com a cabeça cheia essa semana por causa disso e já pensei
em tudo. — Patrick enfia os papéis com a foto da garota chinesa em uma
gaveta e não consigo ler nem o seu nome antes dele a fechar com força. Por
que mesmo não pedi a identidade dela? Ah, sim, estava ocupado demais
olhando sua cintura de Barbie. — Ela não vai sair dessa delegacia, vai
trabalhar no seu turno, então está encarregado de mantê-la na linha.
Agora pronto! Vou ter que bancar o machista.
— Qualquer casinho insignificante pode ser mandado para ela, nada
que a faça levantar a bunda da cadeira e ir investigar lá fora.
— Patrick, nada tem acontecido em Monte Azul.
Seu olhar se torna duro e me repreendo por ter o chamado pelo nome.
Na delegacia, ele é o delegado e eu um simples inspetor, não existe
favoritismo nem moleza. Não que fora da delegacia seja muito diferente.
— Ela é uma mulher no nosso território, Liam! — Ele bate na mesa e
franzo a testa, odiando o tipo de pensamento que passa por sua cabeça,
quase não dá para acreditar que meu pai valoriza tanto a amizade desse
babaca. — Se ela está entediada e quer brincar, não é problema nosso. Já
está ciente do que eu penso, mantenha essa mulher bem longe de casos
sigilosos.
Tudo bem, existem alguns casos sigilosos, a maioria envolve o
número crescente de crianças se envolvendo com drogas e de onde toda
essa porcaria está vindo, além do abuso infantil, raramente acontece algo
interessante no meu setor, só que quando algo é jogado no meu colo para
resolver, sempre é pesado e complexo. E também não estamos em uma
cidade grande, o governo está cagando para nós, então fico feliz em cuidar
das coisas que acontecem.
— Sim, senhor.
Ele me dispensa e assim que volto para onde deixei o Pedro e a
garota. Ela já não está mais na delegacia.
MING

Estaciono o carro em frente à minha casa de infância, um sobrado


moderno com uma garagem para dois carros, um jardim e um canteiro de
rosas na sacada do segundo andar, onde lembro que Vovó Mei costumava
passar a maior parte do tempo com a Fang.
Minha irmã amava rosas, ela dizia terem uma fragrância que eu nunca
consegui sentir. Alguns anos atrás, minha mãe disse que desde que Fang
morreu, Vovó Mei mal cuidava do canteiro, eu não quis acreditar, mas agora
posso notar que as rosas não estão mais tão bem cuidadas como
antigamente.
Saio do carro, mais uma vez vestindo minha armadura, agindo como
se estar aqui não estivesse me arrastando para memórias que corroem meu
coração.
— Seja corajosa, Ming. — É o que sempre digo antes de enfrentar
uma situação difícil.
Meus pés me levam até a porta de madeira da entrada, ela é muito
grande e pesada, lembro que Fang e eu mal conseguíamos abrir quando
éramos mais novas. Ela zombava que um gigante poderia viver aqui.
Meus dedos acariciam a madeira e não é novidade quando a raiva
substitui a dor, ela é tão potente que desejo gritar para aliviar o furacão que
cresce em meu peito.
A porta se abre e todas as emoções são silenciadas e enfiadas em um
porta-joias, onde eu abriria quando estivesse sozinha e assistiria a bailarina
rodopiar com meus demônios internos.
Encaro meu pai de perto, ele carrega muitas rugas de preocupação,
está grisalho e com a pele mais amarelada do que me lembrava. Ele não
olha para mim, está observando a bengala velha de oito anos atrás, mesmo
eu tendo mandado uma importada da China no ano passado. Foi muito
difícil encontrar na internet, mas é claro que eu deveria saber que ele jamais
usaria, esse foi o último presente que Fang lhe deu antes de partir.
— Oi, pai.
Espero por uma resposta, contudo, ele passa por mim sem dizer nada,
como se nunca tivesse me visto em sua vida. Agora eu sou uma estranha, e
me pergunto se vale a pena continuar com isso.
Eu perdi meu pai para a vingança, ele claramente ainda guarda rancor
da minha decisão, nem sequer conseguiu me encarar nos olhos e sinto que
estou tirando mais uma filha dele ao seguir nesse caminho.
— Filha! — Sinto os braços carinhosos da minha mãe ao meu redor e
fecho os olhos. — Eu senti tanto a sua falta!
O perfume de flores que ela usa se espalha e a sensação é de retornar
ao lar, nunca mais pensei em Monte Azul como minha casa, mas é isso que
é, e uma parte de mim almejava estar de volta.
Os cabelos curtos e com mechas grisalhas da minha mãe fazem
cócegas no meu nariz, ainda assim, continuo abraçada ao seu corpo magro
em roupas elegantes. Abro um sorriso ao perceber que isso não mudou,
minha mãe sempre se veste de maneira sofisticada quando não está no
restaurante, e desde que Fang e eu éramos pequenas, nossa mãe dizia que só
fazia isso para não perder sua feminilidade e se lembrar sempre de que é
uma mulher bonita e vaidosa.
— Eu também senti sua falta, mãe.
Ela me abraça mais apertado e retribuo, adorando poder estar em
contato com outra pessoa que eu amo. Desde os dezessete anos que não
dava um abraço tão reconfortante em outra pessoa e quase desmorono de
alívio e saudade.
— É tão bom ouvir sua voz pessoalmente, aqueles chiados das
ligações me deixavam inquieta. — Minha mãe afasta os cabelos do meu
rosto, apertando minhas bochechas com um sorriso que aos poucos se
transforma em uma carranca. — Você por acaso brigou com alguém?
Instantaneamente passo a mão pelo nariz, onde levei um soco e ainda
sinto dor, porém, ela está atenta ao meu pescoço e sei que deve ter marcas
de dedos.
— A senhora ainda usa aquele produto para a pele que me enviou
fotos ano passado? — mudo de assunto e funciona, ela se distrai.
— Por quê? Minha Ming está pensando em beleza agora? — Ela bate
palmas, quase saltitando de felicidade.
— Minha pele está meio ressecada esses dias.
— Você está linda, meu amor.
— E magra. — O timbre envelhecido soa de trás da minha mãe e
preciso olhar para baixo para ver a senhora chinesa. — Está passando fome,
menina?
— Vovó Mei! — Minha voz é um sussurro sofrido ao correr para a
mulher pequena e rechonchuda.
— Ai, não me aperta assim, até parece que estou morrendo. — Ela
me afasta enquanto sorri, os olhos se tornando diminutos. — Por que
demorou tanto? Sua mãe disse que chegaria horas atrás.
Estudo suas bochechas coradas e postura firme, ela não parece fraca.
Apesar de saber que herdei minha habilidade de esconder emoções e dores
dela, é notório que vovó Mei continua do mesmo jeitinho de quando eu
ainda era uma adolescente barraqueira.
— A senhora parece muito bem.
Ela franze a testa, como se fosse uma ofensa considerar qualquer
outra coisa.
— Óbvio que estou, alguma vez já viu sua avó doente?
Nunca vi mesmo, mas faz um tempo que mamãe vem confidenciando
comigo que a senhora espirituosa à minha frente não anda muito saudável.
Se bem que ela nunca chegou a me dizer exatamente o que a vovó
Mei tinha.
As engrenagens começam a rodar e observo minha mãe com as
sobrancelhas arqueadas. Ela está observando as nuvens no céu, as
bochechas coradas. Meu peito se enche de amor, pois sei que ela só estava
tentando me trazer para casa.
Quase me fez desistir no meio do cursinho preparatório.
— Mãe?
— Ei! Pare de fugir da minha pergunta. — Vovó Mei atinge meu
braço com um tapinha, chamando minha atenção para seu rosto. — Por que
demorou?
— Eu fui presa — explico e as duas me observam sem dizer nada,
obviamente chocadas, já que sabem que não sou de fazer piadas.
Meu pai bate a bengala no chão e arranha a garganta, ainda não diz
nada, porém, noto a curiosidade em sua expressão antes de voltar a olhar
para frente.
— Como uma policial foi presa? Que idiotice é essa que está dizendo
agora? — Minha avó pergunta e dou de ombros.
— Um policial muito babaca me prendeu só porque o xinguei, mas
como eu adivinharia que ele entende mandarim?
Minha mãe pisca os olhos para mim por um longo tempo, antes de
abrir um sorriso esperançoso.
— Ah, que maravilha! Minha Ming conheceu o Liam! — Ela se vira
para o meu pai. — Querido, nossa Ming conheceu o Liam!
Vovó Mei bate seu quadril contra o meu.
— Vou rezar para que ele ignore seus dois pés esquerdos e a grosseria
— diz, com um brilho genuíno nos olhos. — Minha neta tirou a sorte
grande.
Como é? Desde quando minha família torce para um policial
brasileiro?
— Ah, e eu vou rezar para ele não notar que ela fala dormindo.
— E que parece uma tábua! — Vovó completa e olho para o meu
corpo.
Sou tão magra assim? Pelo menos tenho algumas curvas, isso não
importa?
— Parem com isso! — Meu pai bate a bengala no chão de novo. —
Minha filha está ótima e o homem que ela escolher deverá reconhecer sua
beleza.
Olho para o homem que tentou me ignorar a todo custo e agora parece
zangado por estarem expondo meus defeitos. Eu senti falta dele, da sua voz,
desse olhar protetor, dos seus abraços e conselhos.
— Pai... — Ele volta a encarar o chão, caminhando para longe.
Está tão perto, e ao mesmo tempo tão longe...
— Ele vai aceitar em algum momento, Ming. — Minha mãe abraça
meus ombros e sinto as mãos pequenas da minha avó em meu quadril.
— Ele só tem medo, querida.
Mordo o lábio inferior, tentando conter lágrimas que não quero
derramar.
É fácil para mim entender o motivo do meu pai ficar tão na defensiva
quando se trata da profissão que escolhi, ele serviu o exército chinês e
quase perdeu a perna na guerra Sino-vietnamita de 1979. Quando voltou
para casa, trouxe consigo honra e traumas.
Não era nascida nessa época, mas ele contava sempre suas histórias
do tempo de guerra para minha irmã e eu. Ele sempre protegeu os cidadãos,
mesmo quando se aposentou e veio com a minha mãe e avó para o Brasil,
estava sempre resolvendo os problemas dos outros e era exatamente isso
que fazia enquanto sua filha era sequestrada e assassinada em algum lugar.
Quando Fang apareceu morta na cachoeira da cidade, com
hematomas de espancamento e claro sofrimento, ela levou uma parte de
todos nós consigo, mas acredito que o peso maior recaiu sobre os ombros
do meu pai. Ele ficou desolado, principalmente por ter vivido a maior parte
da vida salvando pessoas, e quando enfim se aposentou para apreciar a
família, as autoridades não se esforçaram para salvar sua filha. Ninguém
jamais o culparia por sua revolta contra a polícia brasileira.
Um guerreiro que abandonou sua armadura, que soltou a espada e
simplesmente decidiu viver o resto da vida em paz, sendo apunhalado com
uma dor tão profunda. Quem poderia julgá-lo por sentir rancor? Tragédias
transformam pessoas. No entanto, ele nunca aceitou passar sua armadura
para mim.
— Eu odeio fazer isso com ele.
As mulheres da minha família me abraçam e me dão apoio, mesmo
que, no fundo, eu saiba que elas também não entendem, tampouco apoiam.
Elas desejam outra vida para mim, uma com mais amor e leveza, sem tantos
traumas e deveres, e as amo por isso, mas não posso renunciar aos meus
planos, jamais poderia viver em paz se o fizesse. Seria como dar as costas à
Fang.
Eu preciso achar o assassino da minha irmã, preciso fazê-lo pagar
pelo que fez com aquelas pessoas. Não vou descansar enquanto não fizer
justiça.

Entro na delegacia, corpo e mente prontos para executar tudo que


aprendi. Foram anos de artes marciais, inúmeras madrugadas estudando,
distanciamento da família e noites as quais abri mão de me divertir, somente
por um propósito.
Estou feliz, mesmo carregando uma expressão séria, poderia sair
dando várias estrelinhas por aí, mas me contento em olhar para os outros
policiais de cabeça erguida, só então me dando conta de que não há uma
única mulher além de mim aqui.
— Posso ajudá-la? — Um policial pergunta e me encara como se não
visse a hora de ir para casa.
Ele está uniformizado e é a primeira vez que vejo um policial vestido
de acordo desde que cheguei aqui, ou melhor, desde que aquele idiota me
prendeu.
— Creio que sim. Me chamo Ming Yang, sou a nova...
— Você está atrasada. — A voz me interrompe e olho para o homem
em questão, franzindo a testa para o seu porte autoritário.
Ele não está fardado, o que deve significar que é um inspetor como
eu. Sua camisa preta destaca seus músculos e a calça igualmente escura
melhora ainda mais a visão máscula, mas o que realmente me cativa é o
distintivo pendurado em um cordão no seu pescoço. Vi homens assim no
cursinho preparatório de São Paulo e não me lembro se em alguma vez senti
que meu coração sairia pela boca.
Estou atraída por ele? Um homem que nunca vi e que me prendeu?
Tenho fetiche nessas coisas?
— Perdão?
Meu olhar confuso desvia da beleza do Liam para encarar o relógio
pendurado na parede, estou atrasada há dois minutos e fico surpresa, é a
primeira vez que me atraso.
— Te perdoo dessa vez. — Ele bate uma palma na outra e se vira para
os homens na delegacia. — Pessoal, essa é a substituta do Marques. Espero
que a tratem bem.
Antes que qualquer um deles responda, ele se volta para mim
novamente.
— Vamos, temos muito trabalho.
— Sério?
A empolgação quase me faz sorrir, até perceber que seu olhar é
irônico e que isso não passou de uma piada, visto que os homens dão risada.
— Isso me lembra de quando eu era o novato, todo iludido achando
que ia prender uns bandidos. — Um policial confessa, balançando a cabeça
cheia de fios loiros antes de se levantar da beirada da mesa e mexer em
alguma coisa no computador.
Ok, isso está estranho... eles estão agindo como se nada estivesse
acontecendo, então, o que houve com o desgraçado que matou três pessoas
anos atrás? Não tem mais assassinatos?
Não tive coragem de perguntar para minha mãe se mais alguém havia
desaparecido, nem queria que ela desconfiasse dos meus motivos por ter
escolhido essa profissão.
— Não vou me desculpar. — Liam diz quando passamos por uma
porta e ficamos sozinhos em um corredor, me olhando de soslaio.
— Não espero por isso.
— Ótimo.
Olho para minhas unhas.
— Ok, desculpa. — Ele pede dois segundos após dizer que não
pediria.
— Você é bipolar?
— Só aceita as desculpas. — Se vira de frente para mim e paro de
andar. — Não sou do tipo que gosta de começar um relacionamento
negativo com ninguém.
— Oi? — Minha voz soa esganiçada e ele demora um pouco para
entender o motivo.
— Quis dizer relacionamento amigável, também não me atraio pelo
tipo estressadinha, então, nem precisa fazer essa cara.
— Que cara?
— Essa de que está à beira de um surto.
— Não estou surtando, escuto declarações de homens quase todos os
dias.
Ele dá risada.
— Jura? Eu duvido.
— Está insinuando que sou feia?
— Estou insinuando que você é difícil.
— O que te faz pensar isso?
Seus olhos percorrem meu corpo, não é uma encarada vulgar, muito
pelo contrário, consigo ver o esforço que ele faz para desviar o olhar.
Obviamente ele não deve conseguir distinguir uma única curva, outro dos
inúmeros motivos por talvez ainda ser virgem possivelmente está
relacionado ao meu estilo meio masculino.
Roupas largas são confortáveis, sei que pareço um garoto
desengonçado nelas, mas não estou atrás de agradar ninguém, tampouco de
sedução.
Então, por qual motivo estou arrependida das calças que escolhi?
Com certeza eu devia ter deixado o boné em casa.
— Um palpite.
Como viemos parar nesse assunto? E como ele acertou na mosca?
— Ming? É você mesmo?
Olho para frente e dessa vez é impossível conter o sorriso. Solto um
gritinho e meus pés se movem por conta própria.
— Edu! — exclamo ao envolver meus braços no pescoço do meu
melhor amigo de infância.
Ele me abraça pela cintura e sou rodopiada como sempre acontecia na
nossa adolescência. Não lembrava a última vez de ter soltado uma
gargalhada tão verdadeira ou me sentido tão feliz por ver alguém, Eduardo
foi uma das poucas pessoas por quem sofri por abandonar.
Uma garganta se arranha e sou colocada no chão com cuidado.
Não consigo desviar os olhos do garoto que não é mais um garoto.
Edu cresceu uns bons quinze centímetros desde a última vez em que a gente
se viu, e não foi apenas na altura. Ele adquiriu músculos pelo corpo todo, é
quase tão forte quanto o homem emburrado que acaba de entrar no meio de
nós dois.
— Mudei de ideia, acho que você só é ranzinza comigo.
— Edu, pode me rodar um pouco mais perto do Liam? Queria fazer
uma coisa rapidinho.
O moreno alto me encara como se soubesse que quero chutar seu
rostinho bonito e fico surpresa por ele não tentar conter um sorriso, tal
como fazia desde que nos conhecemos. Toda vez que olhava para ele, uma
pequena covinha se fazia presente em sua bochecha, agora não há nem sinal
dela.
— Meu Deus, você está ainda mais bonita do que a última vez.
O comentário faz meu sorriso diminuir, pois me lembra de todas as
brigas que tive com a Fang, e mesmo que ela não esteja mais aqui, sinto
como se fosse uma traição dar abertura para esse tipo de elogio.
— Acho que deveríamos ir trabalhar. — Liam diz, encarando os olhos
verdes do meu amigo.
— Trabalhar no quê, Machado? Você esconde os casos só pra você.
— Edu acusa, sorrindo, mas consigo notar uma certa tensão no ar.
— Eu quero conhecer tudo. — Me apresso em declarar para quebrar o
gelo e Liam me observa antes de assentir.
— Vem comigo.
— Eu mostro tudo pra ela. — Edu segura meu pulso e meu corpo
inteiro tensiona.
Não gosto muito de ser tocada sem aviso prévio, não gosto de muita
aproximação, exceto quando sou eu quem inicia o ato, seja um abraço, um
beijo, ou um aperto de mão.
— Não acho que seja necessário, Camargo. — Liam se aproxima de
onde estamos. — Eu sou o responsável por essa equipe e é meu trabalho
explicar como tudo funciona.
Edu reluta em obedecer ao timbre de comando que o Liam utiliza,
consigo notar isso em seu maxilar tensionado e no tempo que ele leva para
soltar meu braço.
— Vamos jantar hoje? — Edu se vira para mim, o olhar doce
finalmente ali. Senti falta desses olhos inocentes.
Perceber que senti falta de muitas coisas dessa cidade é meio
perturbador, havia esquecido de tudo que me fazia feliz nesse lugar depois
que minha irmã morreu. No entanto, só essa tarde fiquei com saudades do
sorvete que vendem na sorveteria perto do parque, minha boca salivou ao
ver a churrascaria na esquina da delegacia e meu coração apertou quando
passei em frente à árvore que costumava subir desde que era uma garotinha
para me esconder dos adultos e ver tudo do alto.
— Claro — respondo no automático e ele assente, se despedindo
antes de passar pela mesma porta a qual Liam e eu adentramos minutos
antes.
— Vou te mostrar onde você vai trabalhar. — Liam começa a andar
na minha frente e o sigo em silêncio, ainda pensando em todas as coisas e
pessoas que verei antes de encontrar o que estou procurando.
Se é que ainda existe um modo de encontrá-lo.
LIAM
— Por que você é o responsável da equipe? — Ela pergunta enquanto
estou de costas, abrindo a porta. — Achei que fosse inspetor.
— E sou. — Saio do caminho para ela entrar primeiro. — Mas sou o
mais velho daqui, então sou eu quem tomo conta de tudo relacionado ao
nosso setor. Como já deve ter percebido, a cidade é pequena e a delegacia
também, nem tudo funciona como na capital.
Começo mostrando as coisas simples para ela: cozinha, sala de
interrogatório, celas e sala de arquivos, onde inúmeras papeladas de casos
antigos estão em caixas saturadas. Depois sigo para a parte mais secreta e
legal, a começar pela sala de arquivos confidenciais e onde mantemos as
evidências de crimes violentos.
— Posso ter acesso a qualquer informação dessas salas? — Ela muda
de assunto, deve ter ficado empolgada ao ver tudo e esquecido do que
estávamos falando.
Observo seus passos com atenção, curioso pelo motivo da pergunta.
Ela se vira para mim quando não respondo e o distintivo em seu pescoço
me faz sentir culpado. Patrick me encarregou de lhe entregar o distintivo e a
arma, mesmo que seja ele a fazer isso sempre quando temos alguém novo.
— Não a todos. Terá acesso ao que o seu cargo e tempo de trabalho te
permitem ter, e a tudo que esteja relacionado aos casos que eu te deixar
encarregada. Se precisar de alguma informação que não tenha acesso, deve
recorrer a mim e pedir autorização.
Pode ter um distintivo e uma arma, mas não terá muito acesso por
ser mulher e o delegado ser um puta de um machista.
Nesses momentos me sinto mal pelas atitudes do homem, pois ele não
reagiu nenhum pouco diferente de como meu pai reagiria. Toda vez que
olho para o Patrick vejo meu pai, e não sei como posso ser uma boa pessoa
tendo sido criado por um homem tão... difícil.
Ela fica pensativa por um tempo, o olhar distante. Seu semblante
parece um enigma e finjo que é isso que me cativa, não sua beleza. O mal
de ser policial é querer desvendar cada pessoa enigmática que surja pelo
caminho, aprendi a controlar esse desejo anos atrás, mas por algum motivo,
não quero nem tentar controlar a vontade dessa vez.
— O que te motiva?
Seus olhos encontram os meus.
— Não preciso de uma motivação.
— Todo mundo precisa disso.
Dou um passo à frente, agora mais desesperado por uma resposta. Em
nenhum momento seus olhos desviam dos meus e quero manter essa
conexão até poder ler tudo que ela não quer dizer.
Sei que está procurando algo, sua postura é diferente da de outros
policiais iniciantes, é como se ela já soubesse exatamente qual caminho
percorrer. No começo estava tão perdido que cometi inúmeros erros e vi
isso acontecer com cada novato, porém, não consigo esperar um erro dela,
pois não demonstra estar perdida ou assustada.
— Qual é a sua motivação? — Ela rebate ao se aproximar, é a
primeira pessoa que me pergunta isso e por um momento, não sei o que
responder.
A pressão do meu pai, talvez.
A vontade de ser bondoso.
Inúmeras respostas passam pela minha cabeça, nenhuma ficando
tempo o bastante para proferi-las.
— Viu como é difícil achar uma resposta? — Ela passa ao meu lado e
o mesmo perfume que senti quando ela estava naquela cela inunda os meus
sentidos.
A mulher se veste como um homem, mas carrega o aroma de uma
deusa, sem sombra de dúvidas.
— Eu quero servir bem o meu país, viver uma vida feliz e honrada —
cruzo os braços. — Proteger pessoas que não conseguem fazer isso
sozinhas. Ser corajoso, leal e verdadeiro. Agora, sua vez.
— Eu quero o mesmo. — Suas mãos passeiam pelas letras de uma
caixa e me aproximo só para o caso de a caixa cair em cima dela, ao menos
é o que digo a mim mesmo.
— Sei.
— Ser leal aos meus objetivos e sonhos, e a quem mereça minha
lealdade. Ser corajosa para enfrentar caminhos turbulentos e momentos de
medo. Ser verdadeira com quem sou e com o mundo.
Estava prestes a fazer uma provocação, mas ela me fez esquecer qual
era as palavras que ia dizer. Ela disse isso olhando para uma caixa e com
clara indiferença, apesar disso, pude sentir a sua sinceridade.
— Nossa...
Ela me olha e quando penso que vou desvendar um pequenino pedaço
do enigma, o Felipe aparece na porta.
— Machado? Desculpa interromper, mas tem uma mulher aqui e ela
disse que só vai falar com você.
Já imagino quem seja, estava mesmo esperando ela aparecer, só não
pensei que seria tão rápido.
— Você é a Ming Yang, não é? Eu me chamo Felipe Ribeiro, é bem
legal ter uma mulher trabalhando aqui. — Felipe se apresenta quando a
chinesa irritadinha passa pela porta, ele é uns bons dez centímetros mais
alto que ela, mas não possui um terço da postura da mulher.
Uma pena que ela tenha essa postura, mas seja completamente
estabanada.
Mordo o lábio inferior quando ela tropeça e resmunga baixinho antes
de apertar a mão do homem pálido e meio corcunda.
Dou um tapinha nas costas dele e sua postura volta a ficar decente, de
vez em quando preciso lembrá-lo de não andar por aí curvado.
— É um prazer, Ribeiro. — A voz dela se torna mais doce ao falar
com o homem, como se admirasse a humildade e a educação dele.
Quanto tempo levaria para ela usar esse tom comigo?
Sua expressão endurece ao me fitar e sinto que poderia ter escutado
meus pensamentos. Isso responde bem à pergunta, acho que ela nunca vai
me tratar desse jeito.
Quem manda sair prendendo as pessoas por puro deboche? Agora se
vire com essa atração não correspondida.
— Dá pra parar de olhar pra mim com essa cara? — Ela pede de
repente e percebo que estou encarando demais.
— Não é permitido boné em horário de serviço.
Felipe me encara com desconfiança e sinto meu rosto esquentar pela
desculpa estúpida que inventei. Isso até pode existir em outras delegacias,
mas não em Monte Azul, nesse ambiente de trabalho tudo é permitido
depois que o senhor Patrick Gonçalves, mais conhecido como dedo-duro,
vira as costas.
O policial parece entender meu constrangimento ao abrir um sorriso
zombeteiro e sei que serei zoado na próxima vez em que nos encontrarmos
com os outros caras da delegacia, claro que fora do trabalho, ele não ousaria
rir de mim em um lugar onde eu poderia facilmente dificultar sua vida.
Estreito os olhos e ele entende o recado.
“Não ouse dar um pio” — É o que meu olhar diz.
“Claro, chefe” — É o que o dele parece responder, mas sei que
assim que voltar para a sua mesa, levará dois minutos para os outros
descobrirem do meu possível interesse na novata.
Me apresso em direção à tal mulher que quer falar comigo e quando a
encontro sentada diante da mesa de um dos policiais, minha respiração fica
suspensa por um instante.
Se seu rosto estava machucado antes, agora está quase irreconhecível.
A pele pálida está marcada por hematomas roxos, os lábios estão cortados.
Quase não consigo ver seus olhos de avelã por trás de todo o inchaço, ela
mal consegue mantê-los abertos.
Depois que a Ming foi embora da delegacia, me senti péssimo pelas
coisas que me disse, até porque havia muita verdade nelas. Então voltei
naquela residência e entreguei meu contato e meu nome para a mulher,
assegurei sua segurança e disse que poderia sair dessa situação a qualquer
instante, bastava vir até mim. Já pretendia fazer isso de qualquer forma
quando ela estivesse longe do marido, em um ambiente que fosse seguro
para ela se abrir sem correr o risco de ser espancada depois.
Agora entendo o motivo por ter vindo tão rápido.
Meu olhar recai sobre o garotinho sentado ao lado de Pamela, ele
segura a mão dela com força enquanto chora e sinto como se tivesse sido
ele a trazê-la até a delegacia, não o contrário.
— Boa noite, senhora — cumprimento ao me sentar e apoiar os
cotovelos na mesa.
Tento me manter neutro, apesar de sentir compaixão por ela e raiva
pelo desgraçado que fez isso em seu rosto. Ela não diz nada por muito
tempo e percebo que as mãos estão tremendo, provavelmente de medo.
Escuto o ranger de uma cadeira, então o aroma do maldito perfume
feminino está ao meu redor mais uma vez. Ming se senta ao meu lado,
olhando para a mulher em silêncio.
— Pamela. — Ela olha para mim ao escutar seu nome. — Não precisa
ter medo, estamos aqui para garantir sua segurança.
— Ele viu você... — Ela chora baixinho. — Ele ameaçou machucar
meu filho.
— Isso não vai acontecer. — Ming rosna e esse é o primeiro erro dela
como policial, e eu pensando que ela não cometeria nenhum.
Sei como é ter senso de justiça, sei como é querer deixar a raiva
dominar, mas ela nunca deve fazer isso à frente de uma vítima de abuso,
piorou insinuar uma promessa que talvez não possa cumprir. Não podemos
garantir a segurança da mulher caso ela volte para aquela casa, muito menos
agir como se pudéssemos evitar que isso aconteça de novo sem antes saber
qual tipo de babaca é o marido dela, pois, se for do tipo perseguidor,
complicará muito nosso trabalho, ou melhor, o trabalho dos policiais que
tomam conta de ocorrências desse nível.
Inspetores não cuidam desse tipo de caso a menos que esteja
relacionado diretamente com alguma investigação ou homicídio, eu mesmo
só estive presente na hora da briga porque era o único policial disponível na
ocasião e o telefone da delegacia não parava de tocar, com vizinhos da
Pamela alegando ter uma briga na rua que estava perturbando a paz de
todos eles.
Balanço a cabeça em negativa para Ming, alertando que me deixe
guiar a conversa.
— Podemos tomar as medidas necessárias para impedir que isso
aconteça, Pamela. — Mantenho meu tom de voz baixo e calmo. — A lei
está do lado da mulher nessas situações, a senhora não está desamparada.
Os olhos dela abaixam para o colo, porém, os do garotinho estão
focados em mim, escutando cada palavra com atenção.
— Podemos prender o meu pai, tio? — Ele pergunta, me
surpreendendo com sua dicção perfeita.
— Podemos fazer com que um juiz garanta um limite mínimo de
distância que o seu pai deverá manter da sua mãe, além de suspender visitas
a você. — Ming se precipita mais uma vez e espero pelo choro do menino,
mas ele assente, claramente satisfeito pela sinceridade da garota.
— Minha mãe quer abrir uma queixa. — Ele toma a frente da
conversa e não consigo dizer nada ao observar seu rosto infantil.
Não existe leveza em sua expressão, seus olhos avelã como os da mãe
já carregam uma maturidade elevada. O abuso gera esse tipo de
transformação em uma criança, ou elas passam a ver a agressividade como
um ponto natural da vida e começam a praticá-la no dia a dia, ou acabam
por crescer rápido demais pelo desejo de mudar a situação dentro de casa,
acreditam que somente deixando de ser crianças podem encerrar a violência
sofrida.
— Eu... eu vou fazer isso. — Pamela assente, olha para o filho e só
então foca em Ming. — Eu quero me livrar do Vitor, quero ele longe do
meu filho.
— A senhora tem onde ficar? — Ming pergunta e essa é uma questão
inteligente.
Nesses casos existem procedimentos e eles não são tão rápidos quanto
gostaria. Agora vamos lavrar o boletim de ocorrência, colher todas as
provas e remeter, no prazo de quarenta e oito horas, pedindo ao juiz para
tomar as medidas protetivas de urgência. Até lá, ela precisa ficar longe do
marido, pois ainda pode correr riscos caso ele seja do tipo perseguidor que
não teme a prisão.
Alguns podem considerar quarenta e oito horas um tempo curto, mas
não é o caso para mulheres que passam por esse tipo de situação. Pamela
está ferida a ponto de que devia estar sendo levada a um hospital, não
sentada em uma delegacia prestando queixa contra o marido.
Que tipo de homem faz isso com a própria mulher? Verme!
— Estou com um dinheiro guardado e faz um tempo que venho
negociando o aluguel de outra casa, posso ficar lá, mas tenho medo de que
ele me encontre. — Sua voz soa muito assustada e sei que ela teme a morte
caso o marido a ache. — Essa foi a primeira vez que ele foi tão longe, de…
depois da briga que vocês tiveram... — Ela olha para a Ming por um tempo
e não termina a fala, nem precisa, seus machucados já dizem tudo.
Quando passei por lá ela ainda estava bem, provavelmente o marido
chapado se cansou, mas se usou mais drogas depois que fui embora, então
ficou agressivo outra vez, o que nunca justificará sua atitude agressiva.
— Sinto muito se piorei sua situação. — Ming respira fundo. — Eu
queria mesmo te ajudar.
Quando encontrar esse cara, eu vou...
Fecho as mãos em punhos com força.
Não vou fazer nada, vou interrogá-lo e garantir que pague por seus
atos, mas não partirei para a violência.
— Ele também te machucou? — Pamela questiona e encaro o rosto
da Ming, procurando por qualquer arranhão.
Meu olhar para no pescoço dela, onde marcas de dedos já
desaparecem. O nariz também está machucado e não sei como não notei
antes, de tanto que olhei para esse rosto, já devia ter prestado atenção nisso.
Esquece, vou matar o infeliz.
— Não se preocupe, eu sei me defender.
Penso no soco e no chute que a vi dar no homem antes de intervir, ele
teve sorte que não testemunhei a agressão da parte dele, caso contrário, não
tenho certeza de que teria a mesma atitude.
— Vocês vão me ajudar?
— Mais que isso, eu vou garantir sua segurança por tempo suficiente
para conseguir as medidas protetivas. — Ming estende a mão para a mulher
e ela apoia a dela, trêmula, sobre os dedos delicados da chinesa.
Meu coração acelera quando ela abre um sorriso lindo para o
garotinho, fazendo os ombros dele relaxarem automaticamente.
Porra, estou atraído por uma mulher que acabei de conhecer, tem
como esse dia piorar?
MING

Consigo contar nos dedos a quantidade de vezes em que jantei com


um homem e todas as ocasiões foram esquisitas pra caramba. Lembro que
me senti desconfortável em uma e na outra fiquei tão nervosa que joguei
uma taça de vinho tinto no rosto do rapaz, não consegui sequer beijar algum
deles. Após esses encontros desastrosos, ganhei a fama de "desastre
ambulante" e ninguém tentou sair comigo mais.
Mesmo que o Edu seja um amigo de infância, é inevitável sentir uma
barreira se erguer ao meu redor assim que me sento na cadeira estofada do
restaurante luxuoso.
É um lugar meio romântico para quem só quer relembrar os velhos
tempos e matar a saudade.
Observo à minha volta, apenas casais estão espalhados pelas mesas.
Arranjos de flores estão posicionados em cada canto do restaurante e velas
no centro das mesas intensificam o clima de amor, assim como a luz mais
suave. As janelas do chão ao teto dão vista para o parque e recordo as vezes
que ouvi Fang divagar sobre o dia em que um garoto a convidaria para esse
lugar.
Meu coração aperta ao perceber que era ela quem devia estar aqui
neste momento, era Fang quem tinha de estar sentada em uma mesa cheia
de flores e velas, esperando pelo Eduardo. Minha irmã sempre foi
apaixonada pelo homem que se aproxima com um olhar apaixonante e um
sorriso tímido.
— Desculpa a demora, está me esperando há muito tempo?
Nego com a cabeça, engolindo o caroço alojado em minha garganta.
Sei o motivo por ele ter se atrasado, o delegado passou um caso para
ele e o Liam foi o mensageiro. Teve uma apresentação rápida onde eu
conheci os colegas do meu setor, que para surpresa de zero pessoas, eram
todos homens e depois cada um saiu para fazer sei lá o que a maior parte da
noite, exceto por mim, pois o Liam me deu a senha do meu novo
computador e me mandou aguardar por novos comandos antes de também ir
embora.
Fiquei o meu primeiro dia de trabalho jogando Campo Minado[2] e
quase dormindo sobre a mesa, visto que não quis arriscar a sorte na sala de
arquivos e dar muito na cara sobre o que estou pesquisando, ou pior, acabar
ficando ainda mais restringida.
Ele se senta diante de mim e noto que trocou de roupa, antes usava
roupas escuras como as do Liam e as minhas, e agora sua camisa social não
poderia ser mais branca. Está vestido como se de fato estivesse em um
encontro, enquanto eu ainda estou com o meu boné cinza escondendo meus
olhos e as mesmas calças e moletom largos os quais saí do trabalho.
Ele só escolheu esse restaurante porque fica aberto a noite toda,
Ming. E provavelmente estava doido para se livrar daquelas roupas, não
tem nada a ver com você.
Pensar nisso me deixa aliviada, apesar de uma parte de mim sussurrar
que estou sendo ingênua por inventar essas mentiras a mim mesma.
— Você ainda parece a mesma de sempre. — Ele comenta e me
pergunto se isso pode ser considerado um elogio.
Não, Edu. Eu não sou a mesma de sempre, essa cidade pulverizou a
Ming de quinze anos e a transformou em um ser que só se alimenta do
desejo de justiça.
— Você mudou, está mais bonito.
Seu rosto fica vermelho e preciso me lembrar de conter a sinceridade
perto dele. Sempre fui franca e sem filtro, isso me meteu em muitos
problemas no passado, principalmente em relação ao Eduardo. Ele ainda
parece o mesmo emocionado de anos atrás e sei que minhas palavras podem
facilmente fazê-lo acreditar em algo que nunca vai existir.
Homens precisam perder a esperança quando sou doce com eles e
isso é algo que o Edu nunca captou.
— Obrigado, Ming. — Seu olhar desce para minha boca e odeio isso,
me faz sentir cruel. — Eu nem consigo colocar em palavras o quanto você
está incrível.
Solto uma risada sem querer e seu rosto fica ainda mais vermelho.
Edu é um eterno romântico, do tipo poeta mesmo. Isso nunca foi
minha vibe, quer dizer, não com ele. Não importa quantas palavras
ensaiadas ele me diga, não consigo sentir nem sequer um frio na barriga.
Será que sou assexual?
A ideia me faz rir mais ainda.
Se esse fosse o caso, não teria ficado molhada só de olhar para o Liam
quando nos conhecemos, nem quando ele ficou todo sério e intelectual ao
explicar para a Pamela os procedimentos que seriam feitos, muito menos
em todas as vezes que ele tentou conter um sorriso e a covinha apareceu na
bochecha sem que ele percebesse.
Ok, muitas coisas no moreno irritante chamam sua atenção, Ming.
Cruzo as pernas quando o formigamento que não sinto pelo Edu
lentamente se espalha pelo meu corpo ao pensar no homem que me
algemou enquanto sorria, como se aquilo fosse muito divertido.
— Está tudo bem?
Paro de divagar ao escutar a voz do meu amigo, meu lábio inferior
está doendo e percebo que estou mordendo a boca e olhando com cara de
tarada para um casal do outro lado do restaurante.
— Aham — arranho a garganta, desviando a atenção da expressão
cobiçosa do homem e irritada da mulher, que parece pronta para se levantar
e vir tirar satisfações comigo.
Ótimo, é tudo que preciso para encerrar essa madrugada, brigar com
mais um maluco, quer dizer, não que ela esteja errada, acho que eu sou a
maluca dessa vez.
— Ming, eu queria muito ter procurado você antes, mas você estava
em São Paulo e eu não sabia se queria ter contato com as pessoas com quem
convivia antes... — Ele faz uma pausa e respira fundo. — Você sabe.
Não sei onde ele quer chegar com essa conversa, mas, a cada palavra,
as barreiras à minha volta se tornam mais espessas e minhas emoções
submersas no fundo do meu coração. Fico cada vez mais fria, à medida que
ele continua mencionando nossa adolescência sem parar, sempre andando
em círculos em torno do tema principal: a morte da minha irmã.
— Nós dois estávamos em momentos difíceis, o afastamento era
inevitável.
Ele respira fundo, os olhos se enchendo de uma tristeza que conheço
bem.
— Não queria que pensasse que te abandonei por nunca ter
telefonado, é só que eu não sabia o que pensar, o que dizer. Estava perdido.
Meu corpo retesa contra a cadeira no instante em que o garçom se
aproxima e anota nossos pedidos.
— Edu, acredite em mim quando digo que a última coisa com a qual
me preocupei foi em não receber um telefonema seu — digo, assim que o
garçom se afasta, mas percebo que, mais uma vez, não filtrei o que saiu pela
minha boca. — Quer dizer, minha irmã morreu — sussurro, para consertar
minhas palavras duras.
Seu maxilar tensiona uma vez, ele olha pela janela bem ao nosso lado.
Está chateado e talvez eu tenha pegado pesado como sempre, porém, eu não
sou do tipo que consegue controlar a própria boca.
— Desculpa.
— Você não precisa se desculpar. — Me inclino sobre a mesa, até que
esteja olhando para mim novamente. — Eu não fui a única que sofreu e
sinto muito se te magoei por nunca ter entrado em contato.
Estendo a mão para ele e quando entrelaça seus dedos aos meus, sou
arremessada para oito anos atrás, quando vivíamos grudados como
melhores amigos e nos protegíamos como irmãos. Talvez em algum
momento tenha sido diferente para ele, ao menos é o que as pessoas sempre
diziam, mas entre nós nunca existiu nada, nem mesmo uma fagulha.
— Ainda não acredito que não encontraram. — Ele balança a cabeça
e a culpa me corrói, porque fui egoísta e virei as costas para ele quando
precisou de mim.
Ele jamais teria te abandonado, Ming.
— Eu sinto muito, Edu.
— A cidade não é tão grande assim, é? — Uma lágrima escorre pelo
seu rosto e eu desejei ter essa facilidade para chorar, para deixar a dor sair.
— Encontrar o corpo dele era tão difícil?
Fico em silêncio, escutando sua dor e sua raiva.
— Eu tive esperança por muito tempo, às vezes ainda penso no que
disse pra ele antes de... — Ele aperta meus dedos, a mão tremendo de leve.
— Antes de ele sumir.
Quero dizer que entendo, que faço exatamente a mesma coisa, só que
não sei como me expressar quando se trata de sentimentos, não tenho nem o
que filtrar antes de dizer, pois minha boca perde a capacidade de proferir
palavras. Eu nem consigo me lembrar como chegamos tão rápido nesse
assunto.
— Se eu tivesse a oportunidade, procuraria agora por ele.
Minha atenção desfoca das nossas mãos unidas, para estudar suas
feições cheias de uma fúria gélida. Conheço bem esse olhar, já o vi
inúmeras vezes diante do espelho.
— O que está dizendo, Edu?
— Sabe o que eu sempre quis fazer, Ming? — Nego com a cabeça e
ele se inclina para perto de mim. — Dar um enterro decente ao meu irmão.
— Vocês deviam ter falado antes que são namorados. — A voz
levemente rouca me tira do transe que as palavras do Eduardo me
colocaram.
Apoio minhas costas na minha cadeira tão lentamente que sinto como
se o mundo estivesse se movendo diferente, levo um instante para notar que
Liam está em pé ao lado da nossa mesa, observando nossas mãos unidas
com uma sobrancelha arqueada. Ele não está sozinho.
É nesse momento que eu deveria me envergonhar?
Balanço a cabeça para o rosto avermelhado do meu amigo, ele é
tímido, mas não se esforça para soltar minha mão, quase como se quisesse
que o nosso setor inteiro da delegacia pensasse que somos, sim, namorados.
— Vamos nos ver até fora do trabalho? — questiono ao soltar a mão
do Edu.
— Acho que sim.
— Que droga.
A risadinha do Felipe perpassa a dos outros rapazes, ele solta sons
esquisitos no meio do riso, como um porquinho.
— A gente pode se sentar com o casal feliz? — Liam pergunta com
um sorriso forçado e franzo a testa.
— Não?
— Obrigado, Ming. Você é muito gentil. — Pisca os olhos castanhos,
já puxando uma cadeira e fazendo sinal para o garçom, como se perguntasse
se podemos juntar as mesas.
— Por que vieram em um restaurante desses? Tem uma churrascaria
no final da rua da delegacia! — exclamo, irritada. Eles estão arruinando a
conversa que começava a se tornar interessante.
— Às vezes, o Liam tem esses surtos de carência e acaba levando
todo mundo pra jantar em um lugar legal. Ele até paga! Me sinto como a
namorada mimada dele. — Pedro aparece atrás do Liam e sorri. — Amor,
seja cavalheiro e puxa uma cadeira pra mim.
Assisto chocada quando o Liam de fato puxa a cadeira para o Pedro
se sentar. Só então me dou conta de que esses caras são mais do que colegas
de trabalho, devia ter percebido logo depois que eles pararam de se chamar
pelo sobrenome assim que o Liam me apresentou para todo mundo, e disse
para não ter formalidades longe das vistas do delegado. Achei que ele
estivesse me testando, mas agora já não tenho tanta certeza.
— Confortável? — Ele pergunta e reviro os olhos.
— Muito, querido. — Pedro balança as sobrancelhas para mim. — A
propósito, é um prazer te reencontrar, garota furacão.
— Queria poder dizer o mesmo — murmuro para que somente eu
escute e me viro para a janela alta.
— Estamos atrapalhando vocês? — Liam pergunta e seu braço roça o
meu ao se sentar ao meu lado.
Devia ter perguntado antes, idiota!
Contemplo o rosto do Edu, ele parece extremamente desconfortável
agora que outras pessoas chegaram e me pergunto se por acaso se
arrependeu do que me disse. Seria uma pena, pois ter um aliado em uma
busca será de grande ajuda, principalmente um que já está na delegacia
tempo suficiente para mexer nos arquivos sem ser considerado estranho.
— Se quiserem, podemos deixar vocês a sós. — Pedro me tira do
devaneio, não consigo ver seu rosto por causa do corpo grande do Liam que
praticamente me oculta dos olhares do restante das pessoas, mas o timbre
do homem é de preocupação, até parece que foi forçado a estar aqui.
— Se tivesse sugerido isso antes de todos se sentarem, eu até que
concordaria — resmungo. — Mas agora já é tarde.
— Você é tão doce, deve ter milhares de amigos. — Liam provoca e
bufo alto.
— Pode trocar de lugar comigo?
Ele me observa e não sei se compreendo bem a sensação que me
percorre, me faz perder a concentração e distrair não é uma boa nesse
momento.
— Por quê?
— Estou me sentindo encurralada — respondo baixinho.
Estou entre a janela ao meu lado e o corpo dele, a sensação é a mesma
de estar presa em uma jaula. Gosto de ter espaço para respirar e no
momento nem sei se lembro como se respira.
— Eu gosto de encurralar pessoas, acho que você já se deu conta
disso. — Ele estica a mão e arranca o boné da minha cabeça. — Bem
melhor, agora consigo ver seus olhos.
Tento pegar o boné de volta, mas seus dedos no meu rosto me
paralisam.
Que merda ele está fazendo?
Minha cabeça grita para afastar o toque, eu devia repudiar isso, é o
que sempre acontece quando sou tocada sem consentimento. No entanto,
fico quietinha enquanto ele afasta os fios pretos do meu rosto.
— Que merda, Liam! Você está na frente do namorado dela, cara. —
O policial loiro que conheci mais cedo como sendo o escrivão do nosso
setor, reprova as atitudes do homem ao meu lado e fico tão tensa que meu
corpo poderia ter se transformado em uma rocha.
— Eu estou de boa, Paulo, não se preocupa. — Edu sorri sem mostrar
os dentes e não entendo o motivo por ele não ter dito que não sou sua
namorada.
— Eduardo e eu somos só...
— Discretos. — Edu completa e meus olhos poderiam ter saído das
órbitas.
Eu vou esquecer que ele é meu amigo e vou torcer o pescoço dele
igual fazem com as galinhas antes de cozinhar.
— Nem vem, vocês namoram de verdade? — Liam questiona. —
Pensei que não se viam fazia tempo.
— Por que você pensaria isso? — Edu apoia os braços na mesa,
encontrando os olhos do Liam.
Os dois parecem travar uma luta interna antes do Liam rir. Percebo
que quero muito saber o lance que rola entre eles para que gere tanta tensão
negativa.
— Talvez o abraço que vocês deram como se não se vissem há anos?
— Pessoas apaixonadas tendem a se abraçar muito, Liam, você nunca
esteve apaixonado?
— Não, acho que não a esse ponto.
Engulo em seco, esse papo está cada vez mais bizarro. Minha pele
está coçando e me remexo na cadeira como se tivesse algo nela me furando,
o clima parece se tornar cada vez mais espesso e suspiro de alívio quando o
garçom se aproxima com o jantar do Edu e o meu.
— Ainda quer trocar de lugar? — Liam me pergunta, mas já não
tenho mais certeza, não quero ser encarada por todos esses homens.
— Não — resmungo.
Meu prato é servido e lamento muito não estar em uma mesa do
restaurante da minha mãe, ela faz o melhor rolinho primavera do mundo.
Uma taça de vinho aparece na minha frente e não olho para ver quem
serviu, apenas me viro para a janela, não gostando nada de estar nesse
ambiente na minha primeira noite em casa.
Afasto a cadeira de repente.
— Desculpem, mas eu tenho que ir.
— Ming, sua comida acabou de chegar. — Edu diz o óbvio e solto um
suspiro cansado.
— A gente conversa amanhã, ok?
Ele entende o que quero dizer com isso, não é idiota. Assim que ver
ele no dia seguinte, irei descobrir o motivo por todo esse showzinho.
O celular do Liam toca e ele atende no instante em que me despeço e
me dirijo ao caixa. Pergunto à moça qual o valor contando com tudo que
eles pediram e mesmo sabendo que isso vai fazer um arrombo na minha
conta bancária, faço o pagamento e me retiro do restaurante.
Minha mente está frenética, correndo para todos os lados, tentando
entender se algo produtivo saiu de hoje ou se devo deletar e reiniciar
amanhã.
Eu sabia que essa busca não seria fácil, só não pensei que no meu
primeiro dia teria de lidar com tanto peso emocional.
Começo a caminhar, a casa da minha família não é muito longe da
delegacia e do restaurante, então não saí de carro, uma coisa que me
arrependo agora.
Me espreguiço, sentindo o corpo inteiro tenso depois de ter ficado na
mesma posição à noite inteira.
Escuto passos atrás de mim, são pesados e rápidos. Masculinos.
Ando mais depressa, sabendo que escutar alguém vindo logo atrás a
uma hora dessas, só pode significar uma coisa: tentativa de assalto.
Uma mão pesada é apoiada no meu ombro, minha mão se fecha e
quando me viro para a pessoa, trago comigo toda a rapidez e força de um
punho fechado.
O soco atinge o maxilar do Liam e ele cambaleia para trás tão rápido
que preciso segurar seu braço antes que ele caia no chão.
— Caralho! Filha da puta! — Ele xinga, massageando a área atingida.
— Que porra, Ming!
— Quem mandou aparecer atrás de mim igual a um assaltante?
— Quem mandou aparecer... — Ele imita minha voz e revira os
olhos. — É isso que dá querer ser prestativo, eu devia ter deixado você aqui
sozinha.
Sua boca já está começando a inchar, o lábio inferior sangra muito.
Puxo um pouco mais a manga do meu moletom, sabendo que essa não
é a maneira certa de limpar um corte, mas me sinto culpada demais para
pensar melhor no que estou fazendo. Meu corpo se aproxima do dele e
apoio uma mão na sua nuca, ficando na ponta dos pés e pressiono a manga
no corte.
Seus olhos estão arregalados, me encarando como se não acreditasse
que eu realmente cheguei tão perto.
— Fica quieto — reclamo quando ele se mexe e olho em volta,
sabendo que em algum lugar por aqui possui uma farmácia.
Ele segura meu pulso, afastando-o da sua boca.
— Eu estou bem — sussurra em um timbre muito rouco.
Franzo a testa, meu soco não poderia ter afetado suas cordas vocais, a
não ser que ele esteja querendo chorar.
— Vai chorar? — pergunto, fitando os olhos que não parecem prestes
a derramar lágrimas. — Me desculpa, tá? O soco nem foi tão forte assim,
então não chora.
Ele tenta sorrir, mas deve doer, pois faz uma careta de dor.
— Por que acha que vou chorar?
— Sua voz está estranha.
— Posso garantir que não é por vontade de chorar.
Ele continua olhando em meus olhos e por algum motivo sinto meu
coração acelerar e algo pulsar entre minhas pernas, não entendo o que ele
quis dizer, mas meu corpo reage ao olhar quente.
É clichê, mas ele me faz sentir coisas inesperadas, as quais nunca
senti antes. Como um homem conseguiu fazer isso em pouquíssimo tempo
quando nenhum outro foi capaz?
— Eu tenho que ir — murmuro, me afastando tão depressa que mais
parece que estou fugindo.
— Espera! Eu te dou uma carona.
— Não aceito carona de estranhos.
— Qual é, Ming. — Ele balança a cabeça, segurando meu pulso antes
que eu continue andando. — Nós dois sabemos que você pode se defender,
e a chance de encontrar um assaltante de verdade em algum momento nessa
sua caminhada é muito maior do que aceitando minha ajuda.
Pondero, não estou realmente preocupada com a possibilidade de ele
ser um bandido ou pior, um assassino, embora devesse estar, se considerar o
histórico dessa cidade. Minha preocupação está diretamente relacionada à
fagulha que ele desperta em mim toda vez que está por perto.
Fagulha? Não seja modesta, Ming. Isso está mais para um incêndio.
— Então? — Ele insiste e penso no rolinho primavera da minha mãe,
ela não deve estar acordada agora e percebo que foi tolice sair do
restaurante, mas sei que ela guardou algo para mim, toda vida foi assim.
Minha barriga ronca e automaticamente concordo com a cabeça.
— Tudo bem, mas se tentar me matar, lembre-se de que meu soco é
potente.
— Vou lembrar.
Ele sorri vitorioso e eu o sigo até seu carro, torcendo para que
nenhuma fagulha me atinja no caminho para casa.
LIAM
Se aprendi uma coisa hoje, é que sentir desejo por uma mulher que
sabe dar um bom soco só é legal até você ser o alvo, depois só fica estranho
mesmo.
Meu maxilar ainda dói quando estaciono o carro em frente à
residência da família dela e Ming continua linda. O cabelo está atrás da
orelha e posso ver os traços delicados de uma mulher que não é nada
delicada.
Reconheço a casa dela, é a casa dos Yang, a família chinesa que odeia
policiais.
Como será que isso funciona para ela?
Assim que a vi pela primeira vez, percebi que ela parecia familiar e
agora entendo o motivo. Os Yang não tiveram uma única filha, apesar de
nunca terem falado para mim sobre outra filha que não a Fang. Não que eles
falassem muito sobre família, mas acho que toda a cidade sabe sobre o que
aconteceu oito anos atrás.
Minha curiosidade parece crescer a cada segundo que passo ao lado
dessa mulher, mas preciso me lembrar de que é comprometida e não sou do
tipo que cobiça a mulher de outro homem.
Amizade não é cobiça. É?
Não seria caso eu não soubesse onde quero chegar com minhas
perguntas.
— Está doendo? — Sua voz é suave, exatamente o mesmo tom que
usou para ser gentil antes com o Felipe e o Eduardo.
Pensei que ela nunca falaria comigo assim depois do nosso primeiro
encontro peculiar, porém, aqui está ela, me olhando com uma doçura
cativante.
Não cobice uma mulher comprometida, Liam! O que ela perguntou
mesmo?
— Hmm... — grunhi, olhando para a casa bonita.
É uma das coisas que gosto nessa cidade, a arquitetura é
impressionante.
Dedos tocam meu maxilar e estremeço, não pela dor e dói pra
caralho, mas, sim, por sentir uma corrente elétrica me percorrer. É algo que
nunca senti por ninguém antes, é intenso e me deixa confuso.
— Não acho que vá ficar roxo — dá o diagnóstico, está tão inclinada
em minha direção que sinto o aroma bom que emana dos seus cabelos. —
Está doendo muito?
— Vou sobreviver.
Ou não, quem sabe o que pode acontecer com ela tão perto assim?
Talvez meu coração pare.
Me ajeito no banco, apoiando a mão em cima da ereção que não
quero que ela note.
Por Deus, eu não sou assim! Que merda está acontecendo aqui?
Estou começando a achar que meu pai tem razão quando me compara com
um adolescente, esses hormônios são normais na minha idade? Agora soei
como um broxa.
— Se ficar roxo, a culpa vai ser sua por não ter me deixado comprar
nada na farmácia. — Ela se afasta.
Dou risada e isso também dói. A garota é diferente, se fosse qualquer
outra mulher da cidade dentro do meu carro, aposto que não estaria me
olhando como se quisesse sair correndo.
— Não se preocupe, ainda vou estar inteiro amanhã.
— Quem disse que estou preocupada?
Sua expressão de choque quase me faz rir novamente, é difícil me
conter.
— Ninguém, é só uma frase educada. — Apoio a cabeça no banco e a
observo com olhos semicerrados. — Não leve tudo tão ao pé da letra. —
Minha voz soa rouca e lambo os lábios, achando fofo o jeito que ela roda o
anel um tanto infantil no seu dedo.
— Eu acho melhor entrar.
Quero negar, o único problema é que não tenho um motivo para que
ela permaneça no meu carro, então concordo com a cabeça.
— Boa noite, Ming.
— Desculpa pelo soco. — Ela praticamente sussurra antes de ir
embora, enquanto isso tento me convencer de que nada vai rolar aqui, algo
que nem sabia estar cogitando até descobrir que o Eduardo é seu namorado.

Minha casa não fica muito longe de onde deixei a Ming, mas antes de
ir para lá, dirijo até o outro lado da cidade. Paro o carro em frente à casa
que passamos a viver depois que minha mãe faleceu.
Lembro que ela sonhava em morar em uma casa como essa,
aconchegante, fofa e com espaço apenas o suficiente para que cada um
tivesse privacidade sem se tornarem completos estranhos.
Não gosto de pensar nela, não gosto de ser triste e é exatamente assim
que fico quando o sorriso bonito da minha mãe aparece em minha mente.
Ela tinha olhos expressivos, grandes e azuis que minha irmã Cass herdou,
ela vivia para suplicar ao meu pai por mais tempo, mais tempo para ela,
para os filhos, para o lar. Ele nunca deu isso a ela, até que foi tarde demais.
Um ano depois que minha mãe se foi, ele simplesmente arrumou as
malas e abandonou o cargo em São Paulo para vir morar em uma cidade
pequena com quase nenhum crime. Eu já tinha dezesseis, mas Cassandra
ainda era uma menininha que precisava da mãe, não que eu não precisasse,
só sinto que tive mais tempo e memórias boas do que a Cass teve.
Saio do carro com as chaves da casa na mão, me preparando
psicologicamente para aguentar a conversa estressante que, com toda
certeza, estava para acontecer.
A porta range quando a abro e isso já é o bastante para pesar em meus
ombros. Se qualquer um pudesse me ver agora, jamais reconheceriam o
homem cansado e mal-humorado.
— Pai? — chamo. A casa está silenciosa, mas iluminada.
Meu pai nunca deixa nenhuma luz apagada.
Fecho a porta atrás de mim no momento em que ele surge na sala de
estar, está carrancudo como sempre. Assim que o vejo, meus dedos coçam
para pegar o celular e mandar uma mensagem para a Cassandra, ele é como
um lembrete constante de que não estive aqui quando a Cass precisou de
mim.
Não sinta raiva do seu pai, Liam. Você sempre tenta agradá-lo,
lembra?
— Você está atrasado.
Quero revirar os olhos, mas não faço isso. Estou meio farto de ele
ligar e eu ter que sair correndo igual um cachorrinho. O que os filhos não
fazem pelos pais, mesmo os que não merecem?
— O senhor está bem, pai? — pergunto, pois sei que não deve ser
fácil para ele viver nessa casa sozinho, e sempre que me liga é um sinal de
que está sentindo saudades e é orgulhoso demais para admitir.
— Fiquei sabendo que uma mulher está fazendo parte do
departamento de homicídios agora. — Ele faz uma careta e começa a voltar
para o escritório, então o sigo, soltando um suspiro.
Hoje ele está indo direto ao ponto, tem dias em que o homem leva
horas para finalmente dizer o que quer, deve estar realmente chateado com
isso, não que qualquer um pudesse evitar, não é como se o delegado
decidisse quem trabalha na delegacia.
— É, hoje foi o primeiro dia dela.
— Espero que não esteja pensando em passar casos para ela. — Ele
se senta na poltrona e pega um charuto na sua caixinha dourada.
Apesar dos seus quase setenta anos, ele está em boa forma, o corpo
ainda carrega músculos de quando trabalhava na delegacia de São Paulo. Os
cabelos estão quase completamente grisalhos e o rosto carrega as rugas que
o fazem parecer estar eternamente mal-humorado. Esse é um dos motivos
por sempre querer ser feliz, pois quando envelhecer, quero parecer um
velhinho fofo, não um velhinho carrancudo.
— Pai, nosso setor é o mais parado. — Me sento ao seu lado. —
Estamos resolvendo casos que não são do nosso departamento só para não
mofarmos em nossas cadeiras, não tem nada para ela fazer e a garota é
inofensiva.
Passo a mão pelo maxilar, sentindo a dor do soco assim que as
palavras saem da minha boca. Não que meu pai precise saber que levei um
soco de uma mulher muito menor que eu.
Pensar nela melhora o meu humor e me pego tentando conter um
sorriso.
— Está com dor de barriga?
— O quê?
— Por que está fazendo essa cara de tapado? — Ele leva o charuto
aos lábios, olhando diretamente para mim.
Às vezes me esqueço de como esse velho é astuto.
— O que estou tentando dizer é que a maioria do meu pessoal passa
as noites encarando o telefone, esperando alguém ligar com algum
homicídio e nós dois sabemos que nessa cidade isso é bem raro de
acontecer. Aposto que ela passou o primeiro dia dela jogando algum jogo
inútil no computador.
— Espero que continue assim.
— Qual o problema de uma mulher estar na delegacia?
— Lugar de mulher é em casa, Liam. — Estou prestes a retrucar
quando ele acrescenta: — Em segurança.
Automaticamente penso na mamãe, me lembro do único dia em que
vi meu pai chorar. Ele estava sozinho no quarto de hospital com a minha
mãe, o homem não sabia que eu estava os olhando pela janela.
Recordo que ele deitou a cabeça no colo dela e soluçou como uma
criança apavorada, acho que a ficha estava caindo de que ela não resistiria
por muito tempo. Assistir meu pai se despedir da minha mãe fez o mundo
se tornar escuro para mim, pois se o homem grande e durão estava rendido
ao pranto, como um adolescente poderia não se render?
— O mundo está avançando, as mulheres estão prontas para lutar suas
batalhas.
Ele solta uma risada sem humor nenhum.
— Um dia você vai entender o que quero dizer, quando encontrar a
pessoa certa.
Ele nunca fala disso comigo, então é uma surpresa quando ele se
recosta em sua cadeira e solta um suspiro cansado.
— Pai, você saiu dessa casa hoje?
— Não continue pensando que essa cidade é inofensiva. — Ele muda
de assunto e estreito os olhos, isso é sinal de que ele não quer dizer que
ficou isolado aqui o dia todo. — Quando você menos esperar, aquele
telefone não parará de tocar.
MING
— Se fosse na minha época, já estaria levando o homem ao altar. —
Vovó Mei me entrega o bule com água quente para servir e se senta. —
Agora as garotas socam os homens para demonstrar interesse?
Perco o equilíbrio do bule quando a xícara do meu pai já está quase
completa, mas ele é ágil e consegue se afastar antes da água quente o
atingir, ou será que ele já estava longe da mesa?
Olho em volta, tanto minha mãe quanto a vovó Mei estão afastadas da
mesa, esperando em segurança até que eu tenha servido todas as xícaras, só
então arrastam suas cadeiras para mais perto.
Estranho demais.
— Eu já disse que não tenho interesse naquele idio... homem.
Naquele homem.
Vovó Mei estreita os olhos.
— Tenho problemas para entender o que te atrai, Ming.
Meu pai arranha a garganta.
— Esse não parece um assunto para o café da manhã.
— Gosto de homens que não me prendem, vovó Mei — respondo ao
pegar a xícara, mas devo ter me mexido demais, já que acabo queimando a
mão. — Droga!
— Ming! — Minha mãe repreende.
— Desculpa.
Meu pai segura minha mão e assopra onde a água caiu.
— Você precisa ser mais cuidadosa, Ming.
Quando olha nos meus olhos, sinto que não está se referindo apenas à
água. É como se meu pai tentasse me dizer para ficar segura, mas talvez eu
esteja imaginando coisas.
Assim que me solta, não dirige mais a palavra diretamente a mim e
mesmo que considere isso um avanço, ainda o sinto longe demais.
— Ele só estava fazendo o trabalho dele. — Vovó Mei defende o
Liam, retornando ao assunto que nem mesmo eu gostaria de falar no café da
manhã.
Apesar de não ter muita empatia pelo homem, ainda me sinto culpada
pelo soco, principalmente por ter me sentido vingada. Quando cheguei em
casa e encontrei os bolinhos primavera em um potinho com o meu nome,
me sentei à mesa sozinha e comi enquanto ria desenfreadamente. Acho que
há anos não acho nada tão engraçado.
Vovó Mei ouviu minha risada e acabei contando a ela sobre o soco.
Na hora que aconteceu, não achei nada engraçado, porém depois só
conseguia me lembrar da expressão de horror no semblante atraente dele,
como se nunca pudesse imaginar que um dia levaria um soco de uma
garota.
— Ele só estava querendo ser um cretino, vó.
— Ming! — Minha mãe repreende novamente, ela detesta esse tipo
de palavreado nas refeições.
Solto um bocejo, não consegui dormir depois que cheguei e esse é um
dos motivos para estar tomando café da manhã com eles agora.
— Devia descansar. — Vovó Mei acarinha meu braço, um sorriso
meigo nos lábios. — Teremos tempo para comer todos juntos mais tarde,
antes de você sair para trabalhar.
Estou mesmo cansada, minhas noites de sono não andam sendo muito
satisfatórias, na verdade, venho tendo insônia desde que recebi a notícia de
que entrei para o departamento de homicídios da Polícia Civil. Pensei que
fosse a empolgação para o trabalho novo que me mantinha acordada, até me
dar conta de que o motivo é o assassinato da minha irmã.
— Está tudo bem, vovó, não estou cansada.
— Você não dormiu desde que chegou, a viagem deve ter te deixado
exausta. — Minha mãe se inclina e segura minha mão. — Também estamos
com saudades, querida, mas pense nas olheiras horríveis que vão marcar seu
rostinho. Como vai encontrar um bom marido assim?
— Liam vai se assustar antes de fisgar o rapaz. — Vovó complementa
e não consigo acreditar no que estou ouvindo.
Realmente estou na família certa? Porque não poderíamos ser mais
diferentes.
Eu não me importo com marido, nem beleza. Enquanto elas acreditam
que é isso que trará honra e orgulho para a família, eu tenho certeza de que
minha vingança é o que fará todos terem paz.
Fang deve estar feliz por eu não esquecer do que lhe fizeram, não que
eles tenham esquecido, sei que estão tentando camuflar a preocupação.
Ao invés de discutir sobre como Liam é a água e eu o óleo, apenas
tomo minha água e escuto minha família falar sobre o homem perfeito para
mim antes de ir me deitar e tentar recuperar o sono perdido.
Sonho com dedos arroxeados, um anel em formato de coração e a
polícia enfiando o corpo sem vida da minha irmã em um saco preto.
Acordo suando frio e arrependida por ter me deitado para dormir.

O setor de homicídios está silencioso. Felipe dorme sobre alguns


papéis, Paulo está encarando o telefone sem piscar, Eduardo está andando
de um lado para o outro, Liam está digitando no computador, mas tenho
certeza de que é só fingimento para não dar na cara que está entediado, e os
outros dois inspetores conversam baixinho enquanto tomam cafés.
Deixo meu corpo cair na cadeira que foi designada como minha,
invejando o Felipe por conseguir dormir em qualquer lugar sem ter
pesadelos.
Eduardo e Liam me olham ao mesmo tempo, então trocam um olhar
que me lembra de cães prestes a se atacarem.
Não entendo o que aconteceu com essa cidade, não entendo como
tudo está tão em paz depois daqueles episódios de anos atrás. Estou
esperando silenciosamente pelo momento em que algo vai acontecer, pois
não posso acreditar que fiz tudo o que fiz para não encontrar nada.
Não nadei tanto para morrer na praia.
Fico clicando uma caneta freneticamente, sentindo o olhar dos dois
homens sobre mim. Liam está com o rosto arroxeado pelo soco que lhe dei,
o Edu parece ansioso para me abordar e não estou diferente, quero entender
o que aconteceu ontem, além de descobrir se posso ou não o envolver nos
meus planos.
A cada novo sonho, sinto mais e mais sede por vingança, é como um
combustível que não me deixa esquecer dos meus objetivos.
O telefone na mesa do Felipe toca e o Paulo parece decepcionado por
não ser o dele. Felipe se assusta ao erguer a cabeça, limpando a baba que
escorre antes de atender.
Ninguém está prestando atenção, exceto pelo Paulo e eu, ambos na
expectativa para ser mais do que um trote.
— Delegacia de Monte Azul, aqui é o Inspetor Felipe Ribeiro do
departamento de Homicídios, como posso ajudar?
Felipe se levanta, o corpo muito magro e corcunda. Ele está sorrindo
ao anotar algo em um papel, quando desliga, ele solta um grito de
comemoração que faz todo mundo olhar para ele como se fosse um maluco,
exceto por Paulo e eu, que ainda estamos aguardando, ansiosos.
— Alguém foi assassinado! — Felipe faz uma dancinha no meio da
sala. — Alguém matou um homem! — cantarola, ainda na dancinha que
tenho certeza de ele vai se arrepender mais tarde.
Todos nos levantamos das cadeiras, Paulo se junta a Felipe na
comemoração, os dois inspetores que eu não decorei os nomes soltam seus
cafés e se abraçam como se alguém tivesse acabado de nascer, não morrer.
Eduardo olha para mim, Liam franze a testa e eu rezo mentalmente
para que seja um trabalho do cara que estou procurando.
— Hoje é um dia feliz! — Felipe continua cantando, agora está
movendo os braços igual uma galinha. — Eu sou um homem feliz!
Liam se aproxima dele, sério, e dá um tapa fraco na cabeça dos dois
policiais dançarinos.
— Alguém morreu, seus idiotas.
Os dois homens param de dançar instantaneamente, os corpos se
tornando imóveis enquanto levam os dedos à testa, em posição de sentido.
Reviro os olhos, sem acreditar que estou mesmo vendo uma baboseira
dessas.
— Quais as informações? — pergunto e o Liam arranca o papel da
mão do Felipe.
— O corpo foi achado perto da cachoeira pela Sra. Rodrigues. — Ele
enfia o papel no bolso. — Daniel, Felipe e Eduardo, vocês vêm comigo.
Paulo e Gustavo, vocês dois podem reportar o ocorrido para o delegado,
vou mantê-los informados, e... — Ele se vira para mim e sinto um frio na
barriga, já sabendo o que vai acontecer. — Ming, você pode continuar
fazendo o que está fazendo.
Estreito os olhos para ele e sei que consegue entender o que estou
sentindo. Se ele acha mesmo que dessa vez vou ficar quieta, está muito
enganado, essa é minha chance de descobrir se o assassino atacou
novamente, ou se isso é apenas um caso isolado.
Volto para minha mesa e me sento, assistindo todos eles se moverem.
Liam me dirige um último olhar, como se estivesse triste pela sua ordem,
mas dessa vez não haverá desculpas que me fará perdoá-lo.
Qualquer remorso por ter batido nele se desvanece ao me dar conta de
que ele é um cretino.
Quando o setor se torna vazio, pego as chaves do meu carro coloco o
boné na cabeça e saio da delegacia. Pego um moletom largo demais no
porta-malas, ele já estava aqui quando o aluguei e não acho certo usar roupa
dos outros, mas isso é ainda mais masculino e grande do que minhas roupas
e vai servir perfeitamente para o meu propósito.
Removo minha jaqueta e enfio a cabeça pelo moletom preto que
quase alcança meus joelhos, prendo os cabelos e ajeito o boné direito antes
de puxar o capuz por cima de tudo e cobrir bem o meu rosto. Só então entro
no banco do motorista e dirijo até a cachoeira, o único lugar que pensei não
ter que visitar tão cedo.
Se for a mesma pessoa, está começando exatamente da mesma forma
de anos atrás.
Fang foi a primeira a aparecer morta, e foi na cachoeira também.
Meu corpo está gelado e as mãos trêmulas quando estaciono um
pouco mais longe da cena do crime e me escondo atrás de uma árvore. Liam
já está aqui, juntamente com o Felipe e o Eduardo.
A cena já foi isolada com a fita de polietileno e homens trabalham,
tirando fotos e se movendo ao redor de um corpo que eu não consigo ver
direito, mas sei estar apoiado em uma árvore.
Liam está falando alguma coisa para o Felipe enquanto passa pela
fita.
Quando os três homens da minha equipe dão uma boa olhada no
corpo, Eduardo se afasta, vomitando em um arbusto. Felipe fica branco
feito papel e desvia o olhar. Liam é o único que estuda o corpo com
atenção, desde que o conheci, ele não pareceu tão frio quanto agora.
Me aproximo um pouco mais e sinto a boca secar ao ver as marcas,
são exatamente iguais às encontradas no corpo da minha irmã, como se o
assassino tivesse usado algum objeto para atingir repetidamente o rosto e o
corpo da vítima, porém, há algo novo, uma mensagem que não consigo ler
tatuada no peito da vítima.
Meu próprio estômago embrulha, mas me mantenho em pé. Meu
olhar desvia para o Eduardo, ele está chorando e respirando de forma
errática, como se suas memórias também estivessem sendo acionadas.
Piso em falso e me escondo quando isso provoca um som que atrai o
olhar do Liam.
Ainda não consegui ver o rosto da vítima, o que vi, estava com
marcas o suficiente para não reconhecer caso já conhecesse a pessoa. Não
queria ter que ir embora, mas não posso me arriscar mais aqui, então abaixo
ainda mais o capuz sobre a cabeça e vou embora, mas não antes de ver um
vulto preto se afastando ao longe, distante demais para que eu possa
perseguir sem chamar a atenção de todo mundo.
Meu sangue ferve ao voltar para o carro e meus olhos se enchem de
lágrimas, a raiva tem um gosto amargo na minha boca e almejo pelo
momento em que vou colocar minhas mãos no desgraçado que fez isso.
Só Deus sabe se minha vingança terá piedade do culpado.
LIAM
Ela está comportadamente sentada à sua mesa quando retornamos à
delegacia e estreito os olhos, descartando o que pensei ter visto na floresta,
afinal, ela não desobedeceria às minhas ordens no segundo dia de trabalho,
não estou tão sem moral assim.
Me senti um merda por ter a feito ficar aqui, mas agora agradeço, meu
estômago ainda está revirado após ver o corpo. Não fiz o que fiz pela ordem
do delegado, pelo que sei das pessoas da cidade e dos casos de oito anos
atrás encaixotados, Ming perdeu a irmã não por uma morte qualquer, foi um
assassinato, e mesmo que ela tenha escolhido ser policial de homicídios,
ainda sinto no meu coração que preciso poupá-la do máximo de violência
possível.
Quase consigo entender o que meu pai quis dizer na noite anterior.
A vítima já estava morta há, pelo menos, dezenove horas, o que
significa que foi assassinada quando o dia estava prestes a clarear, antes que
as pessoas de Monte Azul sequer pensassem em se levantar de suas camas,
e nós, policiais do turno da noite, estávamos indo nos deitar.
E nem é essa a parte chocante.
— Ming? — Ela ignora a minha voz. — Pode preparar um relatório
para mim?
— Pensei que o escrivão fosse o Paulo — responde sem me encarar,
mexendo em alguma coisa do computador.
Me aproximo e solto um grunhido ao ver que está jogando Campo
Minado.
— Vejo que está ocupada.
— Muito.
— Uma pena não querer saber sobre a investigação.
Ela faz uma pausa e acaba clicando em um número que a leva a
perder o jogo, então gira a cadeira até estar de frente para mim, me
encarando com raiva contida.
— Quer um cafezinho, senhor? Me dei conta de que estou aqui para
ser sua secretária, já que não faço nada por dois dias seguidos.
Solto um suspiro, mereço suas alfinetadas, mas ainda sou o inspetor
responsável pela equipe e ela não devia me tratar assim na frente de outras
pessoas, é só a novata.
Devo ter parecido muito frouxo quando ela me conheceu para agir
dessa forma, e mesmo que tenha errado, não consigo evitar a raiva dentro
de mim.
— Policial, sem brincadeirinhas por favor — acuso, estreitando os
olhos quando ela fica de pé.
— Talvez seja você quem me vê como criança. Ou será que é por eu
ser uma mulher?
Dou um passo à frente.
— Não teste minha paciência.
— Não me trate como seu cachorro, não vou te obedecer só porque
está falando grosso comigo.
Ela, definitivamente, é a mulher mais insuportável que eu já conheci,
e com toda certeza a mais linda também. Me tira do sério e me desafia, mas
quero descontar a frustração na boca dela.
Deixo meus ombros cederem, aceitando a derrota.
— Me desculpa.
— Se você não fosse tão escroto, não precisaria pedir tantas
desculpas.
Ela passa por mim, batendo seu ombro com força contra o meu e
percebo que essa coisa de a manter longe das cenas de crime não dará certo,
não que eu estivesse mesmo planejando fazer isso por muito tempo, foi
mais instinto do que qualquer outra coisa.
Vou para a minha mesa, o corpo tão retesado que sinto como se
estivesse me transformando em concreto.
Agora ela está na mesa do Eduardo, cochichando alguma coisa que
faz uma pontada percorrer meu corpo.
Eles são namorados, pare de encarar dessa forma!
— Yang? — Ela olha para mim e sua expressão é pura frieza.
— O quê?
— Vem aqui, por favor.
Ela arqueia uma sobrancelha, mas se aproxima.
— Não vou anotar nada para você, não é o meu trabalho.
— Também não é o seu trabalho namorar em pleno expediente.
— O quê?
— Não quero ver esse tipo de atitude aqui dentro.
— Você não é o delegado.
— Ah, então você quer que eu fale sobre isso com o delegado?
Ela cruza os braços e me sinto ainda mais canalha, mas às vezes tem
coisas que simplesmente fogem do meu controle e ser um babaca é uma
delas, quando dou por mim, já está acontecendo.
— Tudo bem, Machado. Já entendi quem é o puxa saco do delegado,
obrigada por isso.
Dou risada, ela não pode mesmo estar falando sério. Se tem alguém
que detesta o delegado, esse alguém sou eu.
Então por que está fazendo isso?
— Não me provoca, mulher.
— Eu vim de São Paulo para trabalhar, e não vou aceitar que não me
deixe fazer isso.
— Eu ia te incluir, mas você deve gostar muito de jogar Campo
Minado e ficar com esse seu namoradinho.
— Gosto mais do que ter que te aguentar por cinco minutos.
Meu maxilar tensiona, meu sangue ferve, e ao invés de querer esganá-
la, sinto uma louca vontade de empurrar seu corpo contra essa mesa e
mostrar o quanto ela gostaria da minha presença por bem mais de cinco
minutos, na verdade, ela imploraria por minha presença pelo tempo que eu
a fodesse.
— Isso é esclarecedor — zombo com a voz rouca, me recostando na
cadeira. — Agora entendo o porquê de você ter me dado um soco.
— Aquilo foi um acidente, mas quer saber? Estou grata por ter
deixado um hematoma.
— Você é sempre impertinente assim?
— Só com quem merece.
Quero retrucar, mas ela tem o poder de me deixar sem palavras com
sua sinceridade brutal. Tudo bem, não tem justificativa para o que eu fiz,
mas ela queria mesmo ver aquele corpo? Eu não posso simplesmente
explicar o que aconteceu agora? Isso não é o bastante?
Ela é teimosa feito uma mula e não faz ideia de que a poupei de uma
coisa horrível de se ver.
— Eu poderia ter ficado na minha casa se soubesse que minha
presença seria inútil. — Ela resmunga e solto um suspiro cansado.
— Tudo bem, Ming. Eu errei, ok? Satisfeita? Agora pode, por favor,
se afastar do Eduardo e trazer uma cadeira para minha mesa? Vamos
trabalhar no caso.
Ela abre um sorriso radiante e isso faz valer a pena qualquer bronca
que eu venha a receber mais tarde. Seu corpo saltita até sua mesa onde
arrasta sua cadeira de rodinhas para o lado da minha.
Eduardo nos assiste de longe e reconheço o ciúme no seu semblante.
Ele está me olhando do mesmo jeito que o fez quando tirei o boné dela no
restaurante.
Faço a mesma coisa agora, enfiando o boné na minha gaveta
enquanto ela reclama.
— Não gosto quando as pessoas escondem os olhos — minto, a
verdade é que adoro os olhos dela e esse boné idiota fica fazendo sombra
sobre seu rosto bonito.
— O que a gente vai fazer primeiro? — Ela pergunta, parece uma
criança feliz que está prestes a brincar com o que mais gosta.
— Sabe o Boletim da Pamela?
Ela franze a testa.
— Sei, mas o que isso tem a ver com o caso? Ah, não! Quer me
manter fora do caso?
— Não, acontece que a vítima da cachoeira era o marido da Pamela.
— O quê?
— O caso dela acabou de sair de agressão contra a mulher para
assassinato. Precisamos de um depoimento dela.
— Merda, ela se tornou uma suspeita, não é?
— Não até termos um laudo da perícia e do legista, não sabemos
ainda se uma mulher poderia ter causado aqueles ferimentos. Só estamos
descartando suspeitos por enquanto.
— Bom, só pelo tipo de pessoa que ele era, deve ter muita gente que
gostaria de matá-lo.
Ela não está errada e sinto um frio na barriga, fazia muito tempo que
eu não lembrava o que era realmente curtir o meu trabalho. Essa cidade
finalmente está se tornando interessante, não que um assassinato seja
motivo para alegria, mas não sinto um pingo de pena daquele bastardo.
Felipe entra na sala, chorando.
— Gente, estou tão emocionado. — Ele assoa o nariz em um papel e
faço uma careta. — Hoje foi a primeira vez que vi um corpo.
Ming solta um som de desdém e olho para ela de relance. Ela está
amarrando os cabelos longos em um rabo de cavalo e sinto meu coração
acelerando ao contemplar os traços do seu rosto, pousando o olhar nos
lábios bem desenhados.
— Linda.
Ela me olha, franzindo a testa.
— O que disse?
Esbarro no meu porta-canetas, fazendo-as se esparramarem pelo chão.
— Droga, eu não disse nada — digo, desesperado ao me levantar e
pegar as canetas.
— Hoje foi um dia marcante na minha vida. — Felipe continua
falando, como se fizesse um discurso para um público muito grande. —
Ano que vem vou fazer um bolo nessa data em homenagem ao dia especial
que me fez ser um policial de verdade.
— Ah, antes você só estava brincando? — Ming pergunta, apoiando o
queixo fino na mão, mais uma vez atraindo meu olhar para a sua beleza.
Estou desnorteado e fico ainda mais quando ela dá um sorriso sutil,
apenas erguendo os cantos dos lábios.
Tento devolver o porta-canetas para o lugar sem desviar os olhos dela
e dessa vez derrubo um punhado de papéis.
Caralho, qual é o seu problema, Liam?
— Eu pensei que fosse um homem forte. — Felipe ergue os braços
que parecem mais dois gravetos. — Mas hoje, sim, eu me tornei um homem
forte.
Coitado, nem parece que a pressão caiu e precisou ser carregado
para o carro enquanto chorava e berrava que nunca mais queria ver um
corpo na vida.
— Toda nossa jornada começou a fazer sentido. — Felipe olha de
modo sonhador para o quadro que logo estaria cheio com nossas anotações
do caso. — Esperei tanto por essa morte que acho que vou desmaiar. Me
sinto um ser humano horrível? Sim. Estou meio traumatizado? Com
certeza. Quero mudar de profissão? Obviamente. Mas que dia lindo, meus
amigos! Que dia fabuloso!
— Ele é sempre assim? — Ming me pergunta quando volto a me
sentar, está tão perto que sua respiração toca minha orelha, me fazendo
esquecer da pergunta.
Aaaaah! Não consigo me concentrar! Pode ser menos linda, por
favor?
Patrick tem razão e meu pai também, trabalhar com mulher nunca
daria certo, piorou com essa mulher. Ela nem se esforça para tirar meu
sossego e a gente se conheceu ontem.
Felipe finalmente se senta no seu lugar e pega o telefone, discando
um número.
— Boa noite, Dona Creuza. — Ele faz uma pausa. — Eu sei que está
tarde, desculpa... Eu só queria saber se a senhora poderia marcar minha
terapia para amanhã, às 14h00. Perfeito, é urgente mesmo. Eu vi um corpo
hoje.
A equipe inteira está olhando para ele e o bobão nem se dá conta,
acho que ainda está em estado de choque.
— Só tem amadores aqui?
— Se você não percebeu ainda, Monte Azul não é exatamente uma
cidade cheia de assassinatos — devolvo e ela fica em silêncio.
Quando Felipe termina, dou uma boa olhada em seu semblante e
decido que ele está, sim, em choque.
Mais um dia no trabalho. Quem disse que ser policial seria heroico?
Se bem que, uma semana com esses caras, e já me senti o homem mais
herói do Brasil.
Ming pega o telefone da minha mesa e começa a discar um número,
mais uma vez atraindo meu olhar, meus olhos sempre parecem ser ímãs
para ela, e nem precisa de muito esforço dela para isso, estar respirando já
basta.
— Pamela? É a inspetora Ming Yang da delegacia, nos falamos
ontem... — Ela faz uma pausa. — Entendo, e é sobre isso mesmo que
queria falar com você. Poderia vir à delegacia? O mais urgente possível.
Perfeito, obrigada.
Ela desliga e solta um suspiro.
— O quê?
— Pamela disse que voltou para casa depois que saiu daqui e o
marido estava destruindo tudo, depois ele saiu e não voltou mais.
— Ela despejou isso sem você perguntar?
— Acho que está assustada.
— Pode ser. Ele bateu nela?
— Pelo tom de voz, deduzi que sim.
Olho para frente, se uma mulher fosse capaz de fazer aquilo, eu não
culparia Pamela por fazê-lo. Seria justo um agressor morrer por legítima
defesa da vítima.
— Acha que ela seria capaz de matar?
— Uma mãe em desespero é capaz de qualquer coisa, Ming.
Minha mente traidora me leva para a cena do crime outra vez, para o
peito desnudo da vítima e a mensagem que o assassino deixou:
“COM MINHA ESPADA, FAÇO VERMES COVARDES
SANGRAREM”
A pergunta é: Pamela teria coragem e estômago o suficiente para
tatuar isso com uma lâmina no peito do marido? Matar eu até posso
suspeitar, mas torturar?
Uma pessoa com raiva pode fazer qualquer coisa, Liam.
— Ela disse que está vindo para cá.
— Certo. Você vai falar com ela.
Ela assente.
— Você não me perguntou — digo de repente e ela fica tensa.
— Perguntei o quê?
— Sobre a cena do crime — explico, sondando suas reações. —
Quase como se tivesse visto por si mesma.
Ela arregala os olhos e se levanta.
— Vou esperar a Pamela na minha mesa.
Abro um sorriso vencedor, mas a deixo voltar para a própria mesa,
mesmo que isso signifique não sentir mais o perfume dela. É melhor assim,
não preciso de distrações agora, preciso de respostas.
MING
Pamela está retraída na cadeira, cheia de marcas e chorando como se
tivesse acabado de perder a mãe, não um marido que só a feriu.
Não posso dizer que entendo, porque jamais entenderia esse tipo de
coisa, porém, não é o meu trabalho julgar, além do que ela tem um filho
com o dito homem, não vai ser nada fácil contar ao menino o que houve.
Assim que ela chegou e eu lhe disse que Vitor foi encontrado morto, a
descartei como possível assassina. Ou ela é uma atriz tão boa que a Globo[3]
está perdendo, ou então ela não fazia a mínima ideia de que Vitor não
estava mais vivo.
— Pode me contar mais uma vez o que aconteceu? — peço, ela já fez
isso uma vez e sei que pode ser tortura pedir que ela repita, mas essa é
minha forma de saber se está mentindo, mesmo que meus instintos digam
que não está.
— Eu saí daqui e liguei para o proprietário da casa que eu mencionei
poder ficar. — Ela soluça e a voz soa trêmula. — Ficamos no telefone por
meia hora e eu expliquei a situação. Ele quis tanto me ajudar que concordou
em me encontrar no mesmo dia para acertarmos os detalhes, se quiser,
posso passar o número dele para a confirmação.
— Claro, será de grande ajuda para confirmar sua história. O que
mais aconteceu?
— Eu carrego o dinheiro na bolsa para o Vitor não me roubar e
comprar drogas, então dei o dinheiro para o Sr. João e peguei a chave da
casa. Quando voltei com o Guilherme para casa, ele estava revirando tudo
atrás de dinheiro, graças a Deus que eu paguei o Sr. João, senão o Vitor
teria levado tudo e eu nunca conseguiria sair de lá.
Ela faz uma pausa para chorar muito e fico calada, respeitando seu
tempo mesmo que eu acredite que lágrimas devam ser desperdiçadas com
quem merece. O coração humano é cheio dessas fragilidades e deve ser
normal ainda amar um agressor, ou talvez esse choro todo seja de alívio.
— Ele me bateu muito quando viu que eu não tinha nada, depois saiu
com raiva e não voltou mais.
— Você continuou na casa?
— Eu tive medo de ele voltar e ver que estávamos prestes a fugir,
então só arrumei uma mala com algumas coisas e escondi, o plano era sair
de lá de manhã quando fosse levar o Gui para a escola e ir trabalhar na
lanchonete da Dona Lurdes, às vezes, ela me chama para trabalhar
freelancer e isso me ajuda muito.
— E você fez isso?
— Sim, levei o Gui na escola, deixei a mala na casa nova e fui
trabalhar, não vi mais o Vitor. Eu nem acredito que alguém o m-matou. —
Ela soluça ainda mais ao falar a palavra e respiro fundo.
Sofrimento de luto é algo sensível para mim e não gosto de me
envolver, mas se eu já sofri na vida, acredito que Pamela sofreu ainda mais.
É só por isso que cubro sua mão com a minha.
— Às vezes, a morte vem para o bem, Pamela.
Ela limpa o rosto machucado, mesmo que mais lágrimas continuem
descendo.
— Eu não sei o que estou sentindo agora.
— Vitor ajudava em algo em casa?
Ela nega com a cabeça.
— Você ainda o amava? Ou ele era um bom pai?
Ela nega de novo e eu dou um sorriso encorajador.
— Então ele só servia para causar dor, não sofra por alguém que não
teria sofrido por você.
Ela assente, soltando aquele último soluço que sempre vem junto a
um tremor, logo no fim do choro, quando sentimos que nosso corpo não
tem mais lágrimas para derramar e nossa alma não aguenta mais a dor.
— Eu sou suspeita? Pode ser sincera comigo, eu preciso me preparar
para o caso de o Guilherme precisar de amparo.
— Por que diz isso?
— Sei como a justiça brasileira funciona e não estou dizendo que
você não fará seu trabalho bem, mas a corda sempre quebra para o lado
mais fraco.
Recosto na minha cadeira.
— Não se preocupe, se você não fez nada, não deve temer a prisão.
Jamais prenderia um inocente.
Ela agradece e eu a libero, olhando para o que escrevi enquanto ela
esteve aqui, mesmo que Paulo tenha redigido a conversa inteira.
— Acha que foi ela? — Ele pergunta, passando as mãos nos cabelos
loiros, os olhos azuis se erguendo da tela do computador, esteve tão quieto
que quase esqueci da sua presença durante a conversa.
— Acho que devemos refazer os passos do Vitor, confirmar o álibi
dela e só então olhar o caso de forma ampla, mas minha opinião pessoal é
que não, não acho que tenha sido ela.
— Eu também não, mas sabe o que dizem, assassinos são aqueles que
menos esperamos.
Ele tem razão, entender a mente de um assassino não é tarefa fácil, sei
por experiência própria. Por anos tentei entender os motivos que levaram
uma pessoa a assassinar três pessoas; uma quarta, já que o corpo do irmão
do Edu nunca apareceu.
Olho para meu amigo do outro lado da sala enquanto Felipe não para
de falar, Edu quase não diz uma palavra. Tentei conversar com ele depois
que chegou, mas ele murmurava coisas desconexas e não parecia me ver de
verdade.
Sei que a mente dele está no irmão, pois a minha está na minha irmã.
Não é fácil lidar com esse tipo de coisa de perto e acho que é a isso que
meu pai se refere toda vez que diz que nem todo mundo nasceu para ser
policial.
— O que ela disse? — Liam questiona ao se sentar onde Pamela
estava minutos atrás, ocultando minha visão do Edu.
Meus olhos focam no hematoma em seu rosto, o lábio está inchado,
mas nem por isso ele ficou menos bonito. Os traços do seu rosto continuam
marcantes.
Paulo começa a falar, explicando a versão da Pamela.
— Acha que foi ela? — Liam pergunta diretamente a mim.
— Acho que não, só que isso não importa agora. Vamos falar com
todo mundo e esperar a análise da perícia.
Ele assente.
— Temos que falar com a Sra. Rodrigues, já que foi ela quem
encontrou o corpo. Pamela comentou se ele tinha amigos ou lugares que ia
com frequência?
— Ela falou que ele só andava com viciados e não saía do prostíbulo
da cidade.
Ele suspira.
— A chance de um viciado nos ajudar é inútil.
— Depende do nível de vício, mas se for metade do vício do Vitor,
acho que nossa única esperança será a Sra. Rodrigues por enquanto,
precisamos do depoimento dela. — Minhas palavras não condizem com
meus pensamentos, na verdade, minha mente está no depósito cheio de
casos antigos. Lá deve ter mais pistas do que uma conversa com a Sra.
Rodrigues.
O delegado entra no nosso setor, tem uma barba tão longa que mal
consigo ver seu rosto magricelo, é meio nojenta. Sua expressão severa está
voltada para mim quando para no centro da sala, como se estivesse
desgostoso por me ter na equipe.
Cruzo os braços sobre o peito e vejo Liam se retesar, os olhos se
tornando frios ao observar o outro homem.
— É a primeira vez que temos um assassinato em anos, então vou
estar acompanhando o caso de perto.
Liam solta um suspiro do que parece ser irritação e não desvio o olhar
do delegado.
— Já interrogaram a esposa?
— Sim. — Sou eu quem respondo e ele parece prestes a ter um ataque
do coração, teria sorrido se isso não me deixasse tão puta.
— Ela tem um álibi?
— Ainda não temos a data exata do assassinato, nem conferimos se
ela tem um álibi, mas foi muito convincente em sua...
— Não importa se foi convincente ou não, senhorita Yang, se ela não
tem um álibi, é a suspeita número um.
— Exceto que ainda não sabemos se uma mulher poderia causar os
tipos de ferimentos encontrados no corpo, e nem a hora exata em que o
Vitor morreu — rebato, não gostando nada de ter sido interrompida.
Ele se vira para Liam, me ignorando completamente.
— Quero um relatório completo, e espero que não esteja deixando
seus novatos sozinhos no caso, isso é muito importante, e se der alguma
coisa errada, você será o responsável.
Cerro os dentes e a mão do Liam cobre a minha, como se sentisse
minha raiva mesmo que esteja olhando para o delegado. Ninguém percebe
seu toque, ou o movimento que seu polegar faz na minha pele, mas eu sinto
o toque no corpo inteiro.
Puxo minha mão para longe enquanto ele assente, se
responsabilizando por qualquer erro que venhamos a cometer.
Minha pele está arrepiada e o coração acelerado, não sei mais se é
pela raiva ou pela excitação que me tomou ao sentir o calor daqueles dedos
calejados.
— Sei que precisam do depoimento da pessoa que encontrou o corpo,
então Liam e Ribeiro cuidarão disso. — O delegado resmunga, encarando o
Liam e o Felipe antes de se virar para o Eduardo. — Camargo, Xavier, Silva
e Costa, vocês virão comigo, tenho um caso de outro setor que vocês podem
ajudar. A mocinha pode continuar aqui para atender o telefone.
Ele é um filho da puta? É, sim. Quero socar a cara dele? Pode crer
que sim. Teria surtado em qualquer outra ocasião? Provavelmente está no
meu sangue ser surtada. Entretanto, o velho acabou de me dar o que eu
queria.
Liam me estuda e seu olhar parece me pedir para manter a calma.
Dou de ombros, confusa por já entender o que um olhar dele quer
dizer se nos conhecemos por tão pouco tempo, achei que levasse anos para
compreender um olhar e aqui estou eu, decifrando seus olhares como se
convivêssemos há anos.
Assisto cada um deles passarem pela porta, me lançando olhares
esquisitos.
— Peço desculpas pelo Patrick. — Liam para ao lado da minha mesa,
uma jaqueta preta em uma mão enquanto esconde a arma com a outra.
Meu olhar acompanha sua postura, ele parece perigoso quando está
armado, não sabia que gostava disso, mas, ao que parece, gosto de qualquer
coisa que envolva esse homem.
— Tranquilo.
— Você está de boa com isso?
— Uhum. — Mexo em alguns papéis inúteis na minha mesa e ele
continua parado, me encarando. — O quê?
— O que está aprontando?
— Nada.
— Por que não acredito em você?
— Me mandaram ficar aqui, é o que vou fazer.
— Tem certeza de que você é do tipo que obedece?
Sua pergunta me faz pensar em como o desobedeci hoje e sinto que
ele também sabe disso.
— Sim, sou muito obediente.
Seus olhos escurecem e descem para minha boca, a umedeço,
sentindo o calor se espalhando por minhas terminações nervosas.
Por que tenho essa reação toda vez que ele me olha assim? Deve ser
porque ele parece um tarado e você se atrai por esse tipo.
— O quê? — pergunto e ele apoia as duas mãos na minha mesa, se
inclinando até estar a um palmo da minha boca.
— Não faça nada imprudente, ou eu vou te castigar.
Quando ele se afasta, sinto o ímpeto de cruzar as pernas. Liam
acompanha o movimento antes de sorrir e sair pela porta.
O idiota ou é sensual até dizendo algo inofensivo, ou gosta de
provocar com frases de duplo sentido. Agora só consigo pensar no que ele
faria para me castigar e minha boceta pisca com as possibilidades.
LIAM

O meu maior talento como inspetor é saber identificar um mentiroso,


mesmo o melhor dos mentirosos, e a Sra. Rodrigues não é nem um pouco
boa mentindo.
Ela gaguejou quando Felipe e eu aparecemos em sua floricultura, o
primeiro sinal de nervosismo. Ela sempre nos recebe com sorrisos, e, dessa
vez, ficou branca feito papel.
O segundo erro dela foi insinuar que não se lembrava direito de como
tudo aconteceu e talvez se confundisse algumas vezes, isso foi um alerta
para a mentira que a mulher estava prestes a contar.
A terceira gafe dela foi narrar versões diferentes por três vezes.
Foram erros pequenos, que talvez passassem despercebidos para alguém
menos atento. Como as horas em que ela saiu para sua caminhada matinal,
ou o caminho que percorreu até a cachoeira, sem mencionar que a cidade
inteira sabe que uma senhora de setenta anos com sérias dores nas pernas
não aguentaria fazer uma caminhada de mais de quarenta minutos, piorou
no escuro.
Monte Azul é uma cidade pequena, as pessoas se conhecem e até eu
próprio já vi a Sra. Rodrigues fazer sua caminhada às sete da manhã, ela
sempre foi pontual e só ia até o mercado e voltava. O que significa que ela
está inventando para encobrir alguém.
O último e pior erro dela foi dizer que paralisou quando viu o corpo
do Vitor esparramado no meio da estrada. Vitor não foi encontrado no meio
da estrada, ele estava sentado, apoiado em uma árvore e longe da rua, como
se o assassino não quisesse que ele fosse notado imediatamente.
Não é nada disso que me incomoda, é o fato de que ela está dizendo
que encontrou o corpo de manhã, mas só veio telefonar para a delegacia à
noite. A senhora não notou esse deslize.
A mulher está tremendo, mexendo nas unhas e olhando para os lados.
Ela acha mesmo que está conseguindo nos enganar?
— Sra. Rodrigues? Tem certeza de que foi a senhora quem encontrou
o corpo? De manhã?
Ela arregala os olhos e assente desesperadamente, olhando para o
Felipe várias vezes, apesar de ser eu quem estou falando com ela.
Olho para o policial, ele está com um bloco de notas, fazendo uma
expressão de seriedade. Está tentando amedrontar a pobre mulher e está
conseguindo.
Dou um cutucão nele e o vejo desviar o olhar dela depressa.
— Desculpa, chefe. — Ele murmura sem que eu precise dizer
qualquer coisa.
— Então a senhora saiu de casa às quatro da manhã e decidiu
caminhar até a cachoeira? — pergunto e ela vai até a porta da frente,
arrumando a placa de fechado como se tentasse nos dizer que isso não são
horas para interrogar ninguém.
A senhora mora nos fundos da loja e, sim, está mesmo tarde, mas
alguém morreu e não vou deixar de fazer meu trabalho.
— Exatamente, garoto.
Abro um sorriso doce, eu gosto muito dela e sei que está querendo
proteger alguém. Seria legal da sua parte se não complicasse tanto meu
trabalho.
— Uma caminhada de quarente e cinco minutos? — Ela assente e o
Felipe anota alguma coisa, ou finge anotar, da última vez que olhei, ele
estava desenhando um pato com o vestido florido da Sra. Rodrigues. — A
senhora não era rígida com rotinas? O que aconteceu para querer mudar o
curso da caminhada dessa vez?
Ela me olha e parece impaciente, os cabelos brancos na altura dos
ombros balançando quando ela volta para perto de nós.
— Acredito que tenha sido um chamado de Deus para que alguém
encontrasse a pobre alma inquieta.
Pobre alma? Aquele cara era um verme covarde.
— Como andam suas pernas? — pergunto com doçura e ela
empalidece, se apoiando na bancada onde faz os arranjos de flores com uma
das netas antes de se sentar.
— Acho que minha pressão está caindo.
Olho para Felipe e ele corre para pegar um copo de água no filtro
perto das tulipas.
— Tudo bem, Sra. Rodrigues, eu só acho estranho que a senhora
tenha encontrado o corpo na hora que encontrou e só tenha reportado à
noite.
Ela não responde, porém, sua reação apavorada fala por ela.
— Acho que podemos parar por aqui por enquanto — digo quando
Felipe lhe entrega o copo com água. — Mas espere por outra visita em
breve.
Ela não para de olhar para nós enquanto saímos. Antes de entrar no
carro, a vejo cobrir o rosto com a mão, logo antes da neta aparecer e
começar a andar de um lado para o outro.
A garota loira me pega observando e leva a avó para os fundos da
loja, não posso deixar de reparar que a Sra. Rodrigues manca o suficiente
para que seja impossível sequer considerar fazer uma caminhada de mais de
meia hora até a cachoeira.
Entro na sala do departamento de homicídios, Ming está sozinha na
sala e não nota minha chegada, os olhos percorrem papéis freneticamente.
Pauso um momento para admirar sua beleza, ela fica ainda mais fofa
toda concentrada. Lembro dos seus dedos no meu rosto dentro do meu
carro, pensei em fazer coisas muito indecentes com ela naquele carro e
alimento essa fantasia, tendo uma ingênua esperança de que vou realizar
esses desejos.
Me aproximo em silêncio, arregalando os olhos ao notar o amarelado
das páginas antigas. Meu coração acelera ao puxar as folhas das mãos dela,
fazendo com que se assuste.
— O que é isso? Eu disse para você que precisava da minha
autorização para mexer nesses casos! — esbravejo, passando as fotos das
duas vítimas que ela esteve estudando, felizmente nenhuma delas era da sua
irmã.
Ming está mexendo em casos de oito anos atrás e tenho certeza de que
essa caixa estava com um “ARQUIVO CONFIDENCIAL” bem grande da
última vez que chequei o depósito, o que deveria manter uma novata longe.
Foi a época em que um assassino em série matou três pessoas em Monte
azul, o único surto de mortes seguidas em muitos anos. Eu me lembro dessa
época e odeio a sensação que me invade.
Odeio que ela esteja fuçando nisso.
A raiva me deixa cego, eu falei para ela não ser imprudente.
— Por que caralho não me obedeceu? — grito e ela estreita os olhos.
— Não grita comigo!
Esfrego a barba e ando de um lado para o outro.
— Por que está fazendo isso? Eu disse claramente...
— Liam, você precisa ver isso, são os mesmos hematomas desses
casos...
— Para! Não é pra você mexer nisso!
Ela continua sentada em sua cadeira, tão posturada e calma que me
sinto meio idiota por estar bancando o maluco.
— Por que você está tão irritado? Eu só...
— Está me desobedecendo! — concluo por ela, recolhendo o restante
das folhas da sua mesa e levando para a minha, onde tranco na última
gaveta.
— Eu pensei que talvez pudesse achar alguma seme...
— Está pensando o quê, Ming? Que isso não é um caso isolado?
Ela pressiona os lábios com força.
— Você acha que tem um assassino em série em Monte Azul? Por
que pensaria isso? Você nem viu o corpo! Ou será que viu?
Ela nega com a cabeça e olha para a porta, se recusando a me encarar.
— Acho que você precisa mesmo ficar fora desse caso.
— Por qual motivo? Por que está querendo esconder isso de mim? —
Sua voz é áspera, está contendo a raiva e por algum motivo só quero levá-la
ao limite, mesmo sentindo que não vou gostar da Ming explosiva, ou talvez
gostar demais.
É, se explica agora, Liam.
Em parte, o motivo é por saber que ela pode estar tentando relacionar
isso ao caso não resolvido da sua irmã, talvez queira justiça ou algo do tipo,
e sei que se o delegado souber que ela está fuçando no passado,
provavelmente dará um jeito de tirá-la da delegacia. Os outros motivos
estão relacionados a algo que não quero admitir nem a mim mesmo.
— Só peça minha autorização da próxima vez.
— Você acredita que isso é um caso isolado? — Ela questiona após
um tempo. — Não acho que deva descartar a ideia de um assassino em
série, não seria a primeira vez.
A observo se levantar da cadeira e ir até a porta, não antes de quase
derrubar o telefone da própria mesa.
Me arrependo pela minha grosseria assim que ela passa pelo batente,
está óbvio que ainda não superei o que fiz anos atrás e descontei nela
quando só esteve tentando fazer seu trabalho, claro, se é que ela não esteja
querendo algum tipo de vingança.
Isso é um caso isolado, não haverá mais nenhum corpo.
Apoio a cabeça nas mãos, uma dor já pulsando nas têmporas.
Se o Patrick tivesse a visto com esses casos, eu teria escutado
absurdos que não estou a fim de ouvir hoje. Não sei o que se passou na
cabeça dela para ligar esses casos ao do Vitor.
Fang, estou começando a achar que Fang é o motivo de tudo,
principalmente de ela estar nessa delegacia, de volta a uma cidade
praticamente sem crimes.
Abro a última gaveta, pegando os papéis amarelados mais uma vez.
As mãos estão tremendo quando abro as fotos dos dois corpos sobre a mesa,
os hematomas são idênticos aos do corpo do Vitor, exceto que nestes não
tem nenhuma mensagem, mas eu já sabia dessa semelhança, só esperava
que ninguém mais percebesse até que eu controlasse a situação e minha
fúria.
Está faltando o caso da Fang nos arquivos que Ming estava olhando, é
compreensível, também não gostaria de ver os ferimentos no corpo da
minha irmã assassinada. Foram as três garotas mortas e um garoto
desaparecido naquela época. Todos muito jovens, todos muito conhecidos.
A imagem do rosto do Isaac surge na minha cabeça e fecho os olhos,
odiando as malditas memórias.
Não vai ter mais corpos, esse foi um caso isolado.
Repito para mim mesmo, torcendo para que seja verdade. Encaro
meus dedos, sentindo o impacto do ocorrido com força total.
— Ei, cara, o que aconteceu? — Pedro entra na sala e se joga na
cadeira em frente à minha mesa. — O Patrick me ligou e disse que o
Gustavo irá pro turno da manhã e que vou começar no turno noturno
imediatamente.
Olho para ele, parece não ter ideia do que aconteceu. Enfio os casos
de volta na gaveta.
— Um corpo foi encontrado hoje.
Ele se senta ereto na cadeira.
— Tá zoando com a minha cara, né? — Ele está sorrindo, mas não
sinto vontade de sorrir agora, o que é bem raro.
Estava empolgado antes de alguém vir e ferrar com tudo mexendo
nesses casos antigos. Maldita Ming e sua inteligência, me forçando a olhar
para o passado.
— Não. Um homem, parece ter sido espancamento.
— Porra! Que notícia boa! — Ele se levanta, parecendo revigorado,
até perceber o que falou. — Quer dizer, é uma droga pra quem morreu.
— Foi um viciado que batia na mulher.
— Foda-se o maldito, já foi tarde. Ainda bem que me chamaram pra
diversão.
Estou surpreso por ele conseguir me fazer rir agora, me sinto péssimo
por ter gritado com a Ming e me sinto ainda pior por estar relembrando meu
maldito erro do passado.
Caralho! Esquece essa porra! Não é como se você pudesse voltar no
tempo e impedir a si mesmo.
Eduardo entra na sala, Ming está ao seu lado e a fisgada de ciúmes me
faz franzir a testa.
Eles estão sorrindo e relembrando alguma coisa que fizeram na
adolescência, até aí tudo bem, o que me corrói de inveja e raiva é quando o
maldito limpa o sorvete do canto dos lábios dela, como se tivesse o direito
de tocá-la.
Sei que tem alguma coisa errada nesses dois, não é normal sua
namorada se retesar toda vez que você a toca, nem olhar para outro homem
da maneira que ela me olha. A atração entre nós é óbvia, não pode ser coisa
da minha cabeça. Ou será que é?
Ela não dirige sua atenção para o Pedro ou para mim nenhuma vez
enquanto enfia a colher com sorvete na boca, então não vê meu olhar
acompanhando o movimento da sua língua no lábio inferior, nem escuta o
grunhido que escapa do fundo da minha garganta e nem percebe minha mão
tentando esconder a ereção.
O certo a se fazer seria deixar a mulher de lado e tentar superar essa
excitação que me percorre toda vez que meus olhos pousam nela, ao invés
disso, tiro o celular do bolso e procuro o contato da única pessoa que
poderia me ajudar, ignorando por completo as piadinhas do Pedro.
CASS? ESTÁ AÍ?
Demora um tempo para ela visualizar a mensagem.
O QUE VOCÊ QUER?
Minha irmã responde e abro um sorriso.
COMO ROUBO A NAMORADA DE ALGUÉM?
COMO VOU SABER
DISSO?
VOCÊ É A MAIS REBELDE, ACHEI QUE JÁ
TIVESSE FEITO ISSO ANTES.
E FIZ, MAS NÃO DUROU QUASE NADA.
COMO VOCÊ FEZ?
TIVE MAIS PEGADA QUE O NAMORADO DELA.
Reviro os olhos, isso é bem típico da Cassandra, mas ela ainda não
me respondeu o que quero saber e agora Eduardo está inclinado sobre a
Ming, sussurrando alguma coisa que eu espero muito não ser safadeza.
Quero ser o único com o direito de falar sacanagem no ouvido dela.
TÁ, MAS COMO CONSEGUIU CHEGAR
NA PARTE DA PEGADA? QUER DIZER, TEM UM
PROCESSO ANTES, NÉ?
ESTÁ ME PERGUNTANDO COMO SE FLERTA?
SIM!
Balanço a cabeça para minha resposta, envergonhado, então digito
outra.
ESPERA, NÃO!
Ela não responde, então digito mais uma.
ACHO QUE SÓ PRECISO DE UMAS DICAS.
ESTOU OCUPADA, MAS SÓ FAÇA UMA
COISA: EVITE CONTAR SUAS PIADAS RUINS!
POR QUE INFERNO VOCÊ ME AVISA
ISSO SÓ AGORA?
Ela não me responde mais e não é surpresa, a distância às vezes faz
isso com a gente. É difícil manter contato diariamente, sinto que
poderíamos saber mais da vida um do outro se tivéssemos aquela ligação
por semana que sugeri um tempo atrás, e ela me respondeu com um emoji
de dedo do meio.
Quem disse que ter irmã mulher é fácil? Uns têm sorte de ter irmãs
mais novas fofas, e outros como eu ganham uma motoqueira que, se
bobear, rouba até suas namoradas.
Solto o celular sobre a mesa e engulo seco ao ver Ming abrir um
sorriso amplo para o namorado dela. O que ela diria se eu contasse que ele
vomitou só de ver um corpo?
— Cara, não queria te falar, não, mas acho que você tá gamadão na
novata.
Jura, Pedro? Se você não falasse, eu nem adivinharia.
— Cara, faz um favor?
— O quê?
Faço um movimento com os dedos para ele se aproximar e quando
está perto o bastante, sussurro:
— Cala a boca.
MING

Encontro o Eduardo na porta da delegacia quando saio, estou furiosa,


mais do que furiosa, sou uma bomba prestes a explodir. Liam causa isso em
mim toda vez que grita comigo ou age feito um idiota, é como se ele fosse
um garoto cutucando um vespeiro com vara curta, uma hora não vou poder
controlar o estrago que farei com seu rostinho bonito.
Não sei por qual motivo ele tentou esconder os casos de mim, não
entendo a razão para ficar tão bravo, o que sei é que não estou gostando
nada de tê-lo no meu caminho.
Gostoso, mas um puta de um cuzão.
Me sento ao lado do meu amigo, essa é a chance que estive
procurando para falar com ele, mesmo que minha mente não saia do babaca
lá dentro.
— Essa noite está sendo uma merda — reclamo e percebo que ele
demora para responder.
— Está mesmo — diz, por fim.
Seu rosto está apagado com uma tristeza contagiante, sinto a dor dele
passando para mim, ou melhor, me lembrando da minha própria dor.
A rua está quieta, ninguém por perto para incomodar uma conversa
que deveria ocorrer agora, mas não consigo dizer nada quando ele parece
tão mal.
— Quer conversar?
Seus olhos verdes encontram os meus, as lágrimas não caídas me
recordam de quando éramos adolescentes e ele chorava por qualquer
motivo.
— Eu pensei que havia acabado. — Ele sussurra e seu sofrimento é
nítido. — Pensei que ninguém mais morreria.
Eu sabia que aconteceria, ao menos esperei que ocorresse, posso ser
uma pessoa ruim por isso, na verdade, me considero um monstro sempre
que paro para pensar no quanto desejei que o assassino da minha irmã
fizesse alguma coisa que me colocasse em seu encalço.
— Essa cidade é toda fodida, Edu.
Ele fica em silêncio e isso me incomoda, então busco freneticamente
por coisas que o animariam em uma situação como essa. Um sorriso brota
nos meus lábios ao me lembrar que sorvete sempre era a solução para tudo.
— Quer ir à sorveteria rapidinho?
Seu rosto se ilumina e bagunço os cachos fofos do seu cabelo.
— Você ainda se lembra?
Assinto, ficando de pé.
— Ainda é menta com chocolate? — pergunto, enfiando as mãos nos
bolsos da calça pantalona preta.
— É, acho que sou meio previsível.
Dou de ombros, minha mente não está completamente nessa
conversa, estou tentando descobrir como vou abordar o assunto, quer dizer,
geralmente sou bem direta, exceto quando acho que isso vai piorar a tristeza
de alguém e eu não sei lidar com pessoas tristes.
— Edu, você acha que esse caso tem alguma relação com... — Não
consigo terminar, um flashback do corpo da minha irmã sobre as rochas da
cachoeira me faz engolir seco.
— Ming, foi um caso isolado.
— Como pode ter certeza?
— Eu só tenho.
— Ele começou do mesmo jeito.
— Por favor, um assassino não pode voltar pra essa cidade, meu
irmão tem que ter sido o último. — Ele diz friamente e é a primeira vez que
ele realmente fala em voz alta. — Essa vez foi... algo que não vai se repetir.
A população sempre teve dúvidas de que o irmão do Edu foi morto,
as pessoas insinuavam que talvez o Isaac tenha se cansado de Monte Azul e
fugido. Acho que era uma forma de aliviar o fardo de mais um assassinato,
Edu mesmo se iludiu com essa ideia por muito tempo, devia ser mais fácil
do que admitir que o próprio irmão foi morto.
— Você não quer encontrar o assassino? No jantar, você disse...
— Que queria encontrar o meu irmão, Ming. — Ele me interrompe e
a decepção me deixa quieta por um tempo.
— Eu vou continuar procurando — aviso, antes de entrar na
sorveteria e ele parar com a mão na porta, um pouco mais à frente, de costas
para mim. — Não posso desistir de encontrar a pessoa que fez aquilo com a
minha irmã.
Ele se vira lentamente para mim.
— Foi por isso que voltou? Sabe que as pessoas no trabalho não vão
demorar para descobrir, não é?
Franzo a testa, sem entender a relação que isso teria com as pessoas
do trabalho.
— O delegado é um puta de um machista, Ming. Se ele sonhar que
você está investigando isso, dará um jeito de te afastar do cargo de inspetora
— explica quando nota que eu não liguei os pontos.
Reviro os olhos, claro que notei o machismo presente no idiota do
delegado, mas isso não significa que serei impedida.
— Fang merece ter paz, Edu, e ela só vai ter isso quando eu descobrir
quem foi.
— Ela, ou você?
Desvio o olhar e ele solta um suspiro.
— Desculpa, Ming. — Seus braços tocam minha pele e meu corpo
inteiro retesa. Quando ele vai perceber que detesto toques inesperados? —
Eu vou ajudar você, se esse não for um caso isolado. Vamos investigar
juntos.
Abro um sorriso e paro de divagar sobre odiar ser tocada, não posso
nem pensar isso se quando o Liam me toca, tudo que sinto são borboletas na
barriga. Se bem que isso pode ser outro tipo de náusea, não é?
— Você é o melhor, Edu.
Seus olhos ganham um ar sonhador e me arrependo das minhas
palavras.
Se lembre de não ser tão doce com ele, Ming.
Nós entramos na sorveteria e compro um sorvete de morango com
calda de caramelo, enquanto ele pede o de menta e chocolate com calda de
morango.
Nós voltamos para a delegacia em silêncio, ao menos até me lembrar
do que ele fez no restaurante. Aquilo me deixou com uma pulga atrás da
orelha e só não o desmenti ainda porque queria saber seus motivos
primeiro, mesmo que minha mente já sussurre a resposta para mim.
— Por que não disse que somos só amigos? — pergunto e ele tosse
algumas vezes.
— Eu já havia me esquecido disso.
— Mesmo?
Ele fica tenso e enfia uma colherada de sorvete na boca antes de me
olhar.
— Pensei que isso pudesse despistar as pessoas quando estivéssemos
investigando.
É uma desculpa esfarrapada e ele também sabe disso.
— Eu ainda não havia falado pra você sobre investigar.
— Eu tinha minhas suspeitas, Ming. — Ele balança a cabeça e os
cachos também seguem o movimento. — Você ficou longe por muito
tempo, pensei que fosse ficar por São Paulo, mas de repente você volta? Por
que não tentou vaga nas delegacias de São Paulo? Lá deve ter muito mais
casos.
Talvez fosse mesmo óbvio os meus motivos, será que meus pais
também pensam assim?
— Entendi, então...
— Daqui uns dias podemos falar que terminamos, isso é só para
conseguirmos ficar juntos sem ninguém suspeitar.
Acredite nele, Ming. Ignore completamente seus instintos dessa vez.
Concordo com a cabeça, porque não tem mais o que eu possa fazer.
Se gosto dessa ideia? Não, mas não é totalmente inútil, isso nos dará um
pouco mais de liberdade para pesquisar coisas juntos, principalmente por
ele ter mais acesso que eu.
Entramos no departamento de homicídios e me esforço para não olhar
para o homem do outro lado da sala, mesmo sentindo um frio na espinha,
aquela famosa sensação de que estou sendo observada.
Eduardo se aproxima de mim e me assusto quando seus dedos tocam
meu rosto, limpando algo.
Fingir namorar significa que ele vai me tocar?
Essa ideia é horrível.
Olho para o Liam de relance, ele está sorrindo para o celular e não
gosto da sensação ruim que faz meu corpo reagir negativamente àquele
sorriso.
Continua aí, rindo para alguma garota azarada, com a mente bem
tranquila depois de ter me tratado tão mal. Babaca!
Ele para de rir para o celular bem rápido e depois fala sobre o caso
com uma seriedade que faz meu corpo reagir de um jeito bem impróprio.
Quem sente tesão em um cara quando ele está falando de hematomas
e assassinatos? Minha mente é mais bizarra do que eu pensei ser possível.
Perto do fim do turno, a carranca do policial era tão grande que a
equipe inteira passou a perguntar se ele estava bem, pelo jeito, não é
comum vê-lo sem sorrir por mais de dez minutos, palavras do Felipe, não
minhas.
Edu fica ao meu lado o tempo inteiro e se oferece para me levar para
casa no fim do expediente, mas graças a Deus vim de carro e não preciso
mais estender essa noite. Acho que minha carranca pode se unir à do Liam.
Minha mente continua voltando para o surto que ele deu mais cedo,
mesmo quando chego em casa e me delicio com o Yakisoba que só a minha
mãe conseguiria deixar com esse sabor. Amo o gosto doce, salgado e
picante do Yakisoba, e amo saber que a maioria das comidas típicas da
China são fantásticas.
A casa está silenciosa e rezo para que não tenha chegado aos ouvidos
de ninguém da minha família que um homem foi morto no mesmo lugar da
Fang, mesmo que ela tenha sido encontrada na cachoeira e o Vitor na
estrada próxima a ela, considero perto o suficiente para gravar esse ponto
em um dos mapas da cidade que meu pai guarda no escritório.
— Você não acha que isso é um aviso?
Levo um susto e ergo o olhar, meu pai está sentado no escuro, como
se soubesse que a filha passaria no escritório antes de deitar, ou só queria
pensar longe da minha mãe, ela sempre sente quando algo o incomoda e,
pelo seu olhar, concluo que está terrivelmente incomodado.
— Boa noite, pai.
Ele não me responde, está esperando.
— Um aviso do quê? — Vou direto ao assunto, decidindo que não
vou me fazer de sonsa por muito tempo.
— Uma pessoa morreu hoje, você não acha isso estranho? Você vem
para a cidade, uma pessoa morre em seguida. — Ele se levanta e se
aproxima de mim, olhando para o mapa que seguro com força. — Eu sei
que você teve uma briga com aquele homem, o que morreu.
Engulo em seco, essa é uma péssima hora para ele voltar a falar
comigo, pois sei que tudo o que está fazendo é me dar uma bronca.
— Não pode ser um aviso, pai, por que um assassino iria querer me
dar um aviso?
Ele estreita os olhos e os lábios fazem aquela coisa assustadora que
ele sempre faz quando está furioso.
— Acha que sou tolo? Acha que não conheço minha própria filha?
Que não sei o que está tramando?
— Pai...
Escuto passos e sei que seus gritos acordaram a vovó e minha mãe,
ambas entram no escritório com olhares de preocupação.
— O que está acontecendo, querido? — Minha mãe pergunta.
Estou tentando segurar as lágrimas, pois, se tem algo que me destrói,
é ver o olhar de decepção do meu pai.
— Pergunte à sua filha teimosa.
— Ming?
— Não é nada, mãe — minto e ele parece se zangar ainda mais.
— Nada? Não é nada? — esbraveja e então tudo se desfaz, a carranca,
a raiva, e o homem diante de mim se transforma em uma expressão de dor.
— Eu não vou perder outra filha.
Minha avó se aproxima, tocando meu ombro.
— Vamos, meu bem. Deixe seu pai se acalmar.
— Pai, não vai acontecer nada comigo. — Tento segurar suas mãos,
mas ele se esquiva de mim.
— Vá, Ming. — Minha mãe pede e saio correndo do escritório,
chorando de soluçar enquanto abraço o mapa que vai arruinar minha
família.
Esse é o momento que devo abandonar tudo, porém, quando me jogo
na cama da Fang e sinto o perfume dela que minha mãe ainda borrifa em
seu travesseiro, sei que nunca vou deixar de lutar por justiça, mesmo que,
no fim, reste apenas destroços de um lar e uma mulher.

ME ENCONTRE NA FLORICULTURA DA SRA. RODRIGUES EM MEIA HORA.


Como esse idiota conseguiu meu número?
Salvo o contato como “babaca” e tiro o avental do restaurante. Não
consegui dormir de novo, mas dessa vez foi por causa do meu pai, e vim
ajudar minha mãe e avó.
Tentei sondá-las, mas nenhuma quis falar sobre ele, quando iniciava o
assunto, elas o desviavam para o Liam. As conversas com elas se resumem
ao babaca agora.
Se ao menos soubessem como ele é um imbecil...
Já passou das 13 horas e não vi nem sinal do meu pai. Ele ainda deve
estar magoado, mas coisas assim acontecem, não é? Às vezes, filhos tomam
decisões e fazem escolhas que divergem do que os pais querem.
Duvido que qualquer pai apoie o filho a arriscar a própria vida.
Me despeço da vovó e da minha mãe e entro no carro alugado,
lembrando que tenho que devolver até o fim da semana. Pego o distintivo
no porta-luvas e penduro no pescoço.
— Ele acha que me dá ordens — resmungo ao sair com o carro.
Se não dá, então por que está obedecendo?
É possível silenciar os próprios pensamentos? Faço isso ligando o
rádio e aumentando o som. Está tocando uma música da Anavitória e do
Vitor Kley e cantarolo junto, batucando os dedos no volante.
Sabe, depois que eu te conheci
Ficou difícil de viver
Eu fico aqui imaginando coisas, com você
Minha mente vai para o moreno provocante que me tira do sério, mal
o conheço, no entanto, é burrice negar a reação que tenho sempre que o
vejo. Sinto meu coração acelerar só de pensar no homem.
Como que eu vou dizer pra ele?
Que eu quero aquele beijo
Que eu sei guardar segredo
Ninguém precisa nem desconfiar

Eu quero dizer pra ela


Que eu amo o seu jeito
Que seus óculos é maneiro
Que ela faz minha pupila dilatar
Vejo meu reflexo no retrovisor e balanço a cabeça, desfazendo o
sorriso idiota que se estende pelos meus lábios como se ainda fosse uma
adolescente.
— Não seja idiota, Ming — digo a mim mesma e estaciono o carro.
Liam já está encostado em um poste perto da floricultura e me
aproximo dele.
— Está atrasada.
— Ao contrário de você, eu tenho o que fazer.
— Tem um macarrão no seu cabelo.
O quê?
Passo as mãos pelos fios e ele abre um sorriso, desencostando do
poste e chegando mais perto de mim.
Prendo a respiração quando seu perfume é o bastante para me deixar
molhada, ninguém merece aguentar a descoberta de que o homem que você
se esforça para ignorar é cheiroso pra caralho a essa hora do dia, é
informação demais para suportar.
Sua mão toca uma mecha do meu cabelo e ele tira o macarrão que
provavelmente ficou preso depois que eu caí com o segundo prato no
restaurante. Minha mãe deve estar agradecendo por eu ter ido embora.
— Estou curioso.
— Nem pergunte.
Ele solta o macarrão, mas não se afasta. Seus olhos encontram os
meus e estamos tão perto que consigo ver os pontinhos mais claros das suas
írises.
Engulo em seco, ele encara minha boca, meu corpo parece se inclinar
em sua direção. Seus dedos tocam minha bochecha, se movendo até
envolverem os cabelos da minha nuca.
Minha respiração está frenética e não consigo decidir se o que está
acontecendo é bom ou ruim, nem se eu quero que ocorra, porém, não tenho
forças para parar.
— Ming... — Sua voz soa em um sussurro e então a porta da
floricultura se abre, me fazendo saltar para longe dele, ou tentar, já que
tropeço e me seguro na sua jaqueta preta, o puxando comigo.
Sua mão protege minha cabeça quando caímos no chão, seu corpo por
cima do meu. Ele me encara com os olhos arregalados e decido que essa é
uma ótima posição.
Quem precisa mesmo se levantar? Está tão confortável aqui embaixo.
Meus olhos estão em sua boca de novo e seu perfume já não pode ser
evitado, é perfeito e me faz pensar em homens nus e sarados.
Como eu ainda sou virgem tendo uma mente dessas?
— Liam? — A senhora de corte chanel chama e o homem se levanta
mais rápido do que um foguete.
Ele cumprimenta a mulher, o rosto vermelho e um sorriso nervoso. Eu
continuo no chão, me perguntando o que aconteceu aqui.
— Podemos falar com sua neta? — Liam pergunta após me
apresentar e eu dar um tchauzinho, ainda do chão. — Ming, você não vai se
levantar?
— Está confortável aqui.
Ele me encara como se eu tivesse algum problema e solto um suspiro,
ficando de pé.
— Boa tarde, senhora.
Ela não me responde, acho que tem medo de ser contagiada com a
minha estranhice. Essa palavra sequer existe?
— Ana Luiza saiu. — A senhora diz com aspereza, mas está
mentindo, pois consigo ver o vulto da garota escondida dentro da loja.
Franzo a testa, desconfiada.
— Mesmo? A sua neta não é aquela ali? — aponto para a garota e ela
parece notar, já que se abaixa perto do balcão. — Ela deve ter voltado e a
senhora não viu.
A mulher fica pálida quando passo por ela e empurro a porta de vidro.
— Boa tarde, Ana Luiza? — pergunto e a garota não responde, ao
invés disso, ela sai correndo pela porta dos fundos.
Meu instinto é correr atrás dela, mesmo que Liam esteja gritando para
eu parar.
A garota ainda não é suspeita e eu não devia persegui-la pelos becos
de Monte Azul, mas quando a polícia se aproxima de uma pessoa e ela sai
correndo, é porque ela está temendo alguma coisa, e eu quero muito saber o
que é.
Meu corpo bate contra o dela perto de uma fábrica abandonada onde
Fang e eu costumávamos brincar de esconde-esconde na infância.
Nós duas rolamos pelo chão acimentado e, de alguma forma, acabo
por baixo.
— Me deixe em paz! — A garota loira grita em cima de mim, logo
antes de eu inverter nossas posições.
— Só queremos te fazer algumas perguntas.
— Sai de cima de mim!
Ela me empurra e tenta se levantar, mas só consegue se arrastar um
pouco antes de eu estar em cima dela de novo.
— Por que está com medo?
— Talvez por vocês estarem me perseguindo! — Ela esbraveja e não
vejo seu braço se movendo a tempo.
Uma pancada na cabeça faz meu corpo balançar, consigo escutar um
apito infinito no meu ouvido direito e minha visão nubla.
Ela me empurra e caio para o lado sem esforço, sentindo algo
molhado em minha pele.
A essa altura, Ana Luiza já está longe e consigo escutar alguém
gritando quando levo os dedos ao local molhado.
Vermelho...
Minha mão está coberta de sangue, meu sangue.
Olho para cima, vendo dois Liam correndo em minha direção antes de
tudo ficar escuro.
LIAM
— Você não precisa trabalhar hoje — falo, me sentindo culpado por
ter a chamado, devia ter imaginado que algo assim aconteceria.
— Estou bem.
— Ela bateu na sua cabeça com um ferro.
— Eu nem precisei de pontos, foi só um cortezinho que causou muito
sangue.
— Você desmaiou, Ming!
— Não gosto de ver sangue.
Por que eu não acredito nisso?
Tudo bem, o médico disse que ela deve ter um crânio muito duro, já
que não teve nada além de um corte minúsculo. Entretanto, toda vez que
olho para ela, a vejo caída no chão com o rosto banhado em sangue.
— Você precisa começar a me escutar ao invés de sair fazendo o que
quer — repreendo e ela tenta abrir a porta, mas está travada.
— Me deixa sair.
— Você é impulsiva, imprudente e parece gostar de me contrariar.
— Minha cabeça dói só de ouvir sua voz.
Fico em silêncio, o corpo enrijecido. Isso não deve ser verdade se ela
quase me beijou e não pode fingir que isso não aconteceu, se a Sra.
Rodrigues não interrompesse, essa mulher linda e teimosa teria me beijado.
E traído o namorado.
Quando foi que me tornei o tipo de cara que esquece que uma garota
tem namorado?
— Me deixa te levar em casa — peço, ainda tenho tempo, nosso
expediente só começa daqui meia hora. — Descanse hoje.
— Não posso ir pra casa assim. — Ela resmunga e tenta abrir a porta
de novo. — Me deixa sair.
Respiro fundo, inalando o aroma do perfume feminino que parece ter
se espalhado pelo carro inteiro.
— Pode não ser teimosa por um minuto? Seja sensata.
— Quero trabalhar e depois pegar meu carro naquela floricultura e ir
para minha casa no fim do expediente.
— Por Deus, mulher! Não tem nada aqui para você fazer, acredite,
sua presença nem vai fazer falta!
Sua cabeça se vira rápido em minha direção e deve doer, já que leva a
mão ao machucado enfaixado e faz uma careta.
— Está tudo bem?
Me inclino para perto dela, mas ela se esquiva.
— Abre a porta — pede em um tom de voz trêmulo e só então
percebo o que eu disse e como isso deve ter soado.
Sou um idiota! Porra!
— Não quis dizer que você é incompetente, nem nada disso, Ming.
Eu só estou dizendo que não vai acontecer na...
— Você já disse o que pensa, agora abre a porra da porta e me deixa
cuidar da minha vida.
Sua frieza me cala e odeio que isso me machuque mais do que se ela
estivesse gritando comigo, não gosto nem um pouco de quando essa
indiferença se apossa das atitudes dela, como se eu não significasse nada.
A conheço há pouco tempo, mas já quero fazer com que não consiga
falar comigo assim, quero que ela não me trate com indiferença.
Destravo as portas e ela sai do carro.
— Porra, Liam! — rosno, antes de a seguir.
Seu corpo ainda está meio cambaleante e se normalmente ela já é um
desastre, fico imaginando o que aconteceria se a deixasse sozinha, é só por
isso que seguro seu braço, a acompanhando de perto.
— Desculpa — peço e ela revira os olhos, como se já estivesse
acostumada com essa palavra vinda de mim.
— Não me importo com suas atitudes escrotas, então pare de ficar se
desculpando como se eu me importasse.
Nossa, ela consegue ser cruel.
Arranho a garganta, me aproximando quando ela tenta se afastar.
— Eu fiquei orgulhoso.
— O quê?
— Quando te vi correndo atrás daquela mulher, eu fiquei orgulhoso
pra caralho por você não pensar duas vezes antes de agir.
Ela fica quieta e percebo que talvez devesse ter começado por aí ao
invés da bronca, nunca precisei aprender a lidar com uma mulher como a
Ming, geralmente não deixo uma mulher decepcionada, já que meus
relacionamentos com elas se baseiam em uma cama e algumas horas de
prazer, e nesse quesito eu sei que mando muito bem.
— Você pareceu uma pequena guerreira correndo para o campo de
batalha.
Ela franze a testa e nesse momento escutamos uma risada esquisita
pra caralho e sei de quem é, ninguém mais imitaria um porco tão bem
enquanto ri.
Felipe passa por nós, cobrindo a boca para se conter.
— Não escutei nada, eu juro.
Eduardo passa em seguida, olhando para Ming com desgosto antes de
entrar na delegacia.
Ming fica tensa e acho que acabei de provocar uma briga no casal
feliz.
Meu sorriso não poderia ser maior.

Levou somente dez minutos para que a equipe inteira estivesse


sabendo da “pequena guerreira”, e eu só queria enfiar minha cabeça na lata
de lixo mais próxima.
Eduardo está me olhando como se quisesse me fuzilar, e toda vez que
a Ming se aproxima dele, acho que o encaro da mesma maneira. Sei que
estou errado e que isso precisa parar, mas é mais forte do que eu.
— Liam? Recebemos o laudo da perícia. — Pedro se senta ao meu
lado, entregando os papéis. — Estava com o Patrick.
— Eles foram rápidos.
Começo a ler o que está escrito e percebo que é o relatório do médico
legista do IML.
As letras gravadas no peito do Vitor não foram fundas o suficiente
para matar, mas a perda de sangue poderia ter feito o trabalho se o assassino
não tivesse espancado a vítima, porém, pelo que estou lendo, a causa da
morte foi estrangulamento, o que faz com que Ming esteja completamente
errada.
Os casos de anos atrás não mencionavam estrangulamento, e mesmo
que os golpes sejam parecidos, não se trata do mesmo assassino.
Respiro fundo ao ver que a arma do crime poderia ter sido um soco
inglês e que uma mulher poderia ter cometido o assassinato, visto que a
vítima possuía marcas profundas nos pulsos e tornozelos, além do pescoço.
Enforca gatos, é a suspeita do objeto de estrangulamento e amarras.
A perícia relatou que provavelmente o assassinato ocorreu em outro
local e que o assassino levou o corpo até a cachoeira, havia marcas de pneus
na cena do crime, mas não eram visíveis o suficiente para darem uma
certeza sobre o tipo de veículo usado.
Ou seja, uma mulher poderia tê-lo prendido em casa, por exemplo,
cometido o ato e então levado o corpo para o local onde alguém poderia
encontrá-lo horas mais tarde.
Uma mulher poderia ter arrastado um homem daquele tamanho,
colocado no carro e então o largado perto da cachoeira?
Tenho minhas dúvidas de que isso fosse mesmo possível, porém, se
está nesses papéis, não tem como contrariar.
Olho para a Ming, ela precisará chamar a Pamela outra vez, mesmo
que seja outra mulher que esteja em minha mente.
Não entendo o motivo da neta da Sra. Rodrigues ter fugido e ainda
por cima agredido uma policial, se ela tivesse permanecido no local, teria a
trazido para a delegacia sem pensar duas vezes.
Me levanto e chamo a equipe para a frente do quadro, pendurando
uma foto do Vitor ainda vivo com uma tarraxa, uma foto da Pamela e outra
da neta da Sra. Rodrigues.
— Recebemos uma resposta do legista e da perícia — informo, meus
olhos atentos à mulher sentada na beirada da mesa. Ela está tomando café e
não parece mais tonta, então continuo: — Temos três observações.
Primeira, o assassino provavelmente matou a vítima em outro local.
Segunda, uma mulher pode ter o assassinado, já que o espancamento não
ocorreu somente com a força física, foi feito o uso do que acreditam ter sido
um soco inglês. Terceira, dentre as duas mulheres com quem conversamos,
uma fugiu após agredir uma policial.
Indico a Ana Luiza no quadro e depois aponto para a Ming.
— Ela é a nossa principal suspeita a partir de agora, mas vamos voltar
à estaca zero. Quero saber de tudo que o Vitor fez antes de morrer, vamos
refazer cada um dos passos dele. Procurem por família, amigos e vão a
lugares que ele frequentava.
— Prostíbulo e viciados? — Ming se levanta, descartando o copo de
café vazio, claro que ela bate o pé na quina da mesa do Felipe e quase
derruba o porta-canetas dele.
— Sei que esses lugares e pessoas não possuem muita credibilidade
— argumento, lhe lançando um olhar para saber se está tudo bem quando
ela massageia o tornozelo. — Mas é a nossa melhor opção por enquanto.
— Devo encontrar a Pamela de novo?
— Sim. A Ana Luiza também, quero saber o que as duas estavam
fazendo às 4h30min da madrugada em que o Vitor morreu.
— Vou fazer isso fora da delegacia.
Franzo a testa.
— Por quê?
— Acha mesmo que elas vão dizer qualquer coisa aqui dentro? Vou
tentar sondar, talvez elas se compliquem sozinhas na própria história se
pensarem estar falando com uma amiga. Isso se a Ana Luiza não me agredir
de novo.
Abro um sorriso doce, eu realmente gosto de mulheres inteligentes.
Alguém tosse em algum lugar e o som de um porco me faz encarar o
Felipe, meus olhos devem lhe dizer algo já que fica pálido e desaparece
atrás do Pedro.
— Certo, vamos trabalhar.
Volto para minha mesa e o Cabral, um policial negro do departamento
direcionado ao atendimento da mulher, aparece na porta com uma expressão
confusa.
— Liam?
— Pode entrar, Cabral.
Ele entra, arranhando a garganta ao olhar para o quadro, Pedro
percebe e rapidamente vira o quadro para o lado limpo.
— A Sra. Rodrigues está aqui, está desesperada querendo falar com
você.
Ming e eu ficamos de pé ao mesmo tempo, e não me passa
despercebido que ela leva a mão à gaze na cabeça.
Será mesmo que ela não corre risco de concussão?
— Pode direcioná-la a esse setor?
O homem assente e enquanto sai, olho em volta para garantir que não
tem nada sigiloso à mostra, Deus me livre se a senhora visse algo que não
devia.
Ming arrasta uma cadeira para o meu lado sem pedir permissão e não
reclamo, não poderia quando sinto esse instinto de sempre estar por perto.
Eu sou mesmo emocionado? Ou isso só é com essa chinesa linda?
— De que lugar da China sua família veio?
Ela me olha surpresa antes de responder:
— São de Xangai.
Concordo com a cabeça.
— Eu fiz intercâmbio em Pequim. — Pego meu celular, abrindo uma
foto do Instagram. — Essa é a muralha da China.
— Ai, meu Deus! — Ela toma o celular da minha mão e não paro de
sorrir igual a um idiota. — Você realmente esteve lá, eu não acredito! Que
inveja!
— Você nunca foi?
Ela nega com a cabeça, parecendo envergonhada ao me devolver o
celular. É a mulher mais fofa que já conheci, não tenho dúvidas quanto a
isso.
Me inclino em sua direção.
— Eu te levo lá um dia.
Seus olhos se arregalam, mas antes que possa responder, a Sra.
Rodrigues está entrando na sala.
— A minha neta sumiu! — Ela exclama antes de se sentar à nossa
frente, fazendo com que Ming e eu troquemos um olhar.
— O que quer dizer com isso? Ela levou algum dinheiro? Roupas,
talvez? — pergunto e a senhora me olha como se estivesse prestes a me dar
uma chinelada, Ming está com a mesma expressão, então fico em silêncio.
— Desde que vocês foram nos importunar novamente, ela não voltou
para casa.
— Sua neta quase me matou, Sra. Rodrigues, então não vamos falar
de quem importunou quem. E, se eu fosse a senhora, tomaria cuidado com o
tipo de palavras que usa com um policial, pode ser considerado desacato.
Ming não parece melhor do que eu em direcionar a conversa para um
âmbito profissional, então me inclino na mesa, atraindo o olhar da Sra.
Rodrigues.
— Isso não tem muitas horas, não é? Talvez ela esteja assustada por
algum motivo e volte mais tarde para casa, a senhora não gostaria de nos
falar qual motivo poderia ser esse?
O lábio inferior da mulher começa a tremer e ela nega o copo de água
que Ming lhe oferece.
— Não tem motivo nenhum! É culpa de vocês que ela esteja assim.
— Por que seria culpa nossa? — Ming pergunta e a mulher se
levanta.
— Vocês agiram como se ela fosse culpada de alguma coisa, agora é
trabalho de vocês encontrá-la.
— Se acharmos sua neta, ela será educadamente conduzida à
delegacia. — Ming responde. — Ela agrediu uma policial.
A Sra. Rodrigues a olha com rancor.
— Você é uma bruxa, igualzinha à sua irmã!
Ming estremece e decido que eu não gosto mais da Sra. Rodrigues.
Toda a equipe do departamento está encarando o escândalo que a
mulher está fazendo, então faço um sinal para que o Pedro a convença de
resolver o assunto lá fora, e ele o faz, levando a mulher para outro lugar.
Me volto para a Ming, ela parece ter perdido a voz e quando faço
menção de tocá-la, ela se levanta e sai da sala correndo, sendo seguida pelo
idiota do Eduardo.
Levo muito tempo para me recuperar do transe que foi ver a
expressão de dor no olhar dela.
Eu seria capaz de matar qualquer um que ameaçasse fazê-la sentir
isso de novo.
MING
Quando alguém te dá uma pancada na cabeça, é até fácil de se
recuperar, mas, e quando lhe dão um golpe tão profundo no coração?
Digamos que me sinto rancorosa.
Jogo uma pedrinha no lago, o galo na cabeça doendo com o
movimento abrupto. Claro que removi a gaze antes de voltar para casa e
estou cobrindo o machucado com o cabelo quando minha família está por
perto, não quero causar outra briga em casa, já basta meu pai mal falar
comigo.
As palavras da Sra. Rodrigues ainda rondam minha mente e queria
entender o que ela quis dizer com aquilo, minha irmã era um doce de
menina, tudo bem que as garotas da escola não gostavam dela e sempre
queriam arrumar briga, mas isso era só porque a Fang atraía a atenção dos
meninos sem esforço.
Já tive que separar muitas brigas e defender minha irmã muitas vezes,
ao contrário de mim, ela não sabia e nem queria brigar.
Quem aquela velha pensa que é para falar daquela forma de uma
pessoa que nem está mais aqui para se defender?
Se eu não tivesse ficado tão chocada, teria voado no pescoço dela e
esquecido que é uma idosa. Se arrependimento matasse...
— Tia Ming!
Olho em direção à voz animada, e estranho o garotinho que corre até
mim. Ele tem cabelos tigelinha e lindos olhos de avelã.
Pamela está vindo logo atrás dele e percebo o motivo por não o ter
reconhecido, é a primeira vez que vejo o filho da Pamela sorrir como uma
criança.
— Oi, Gui. — O cumprimento, achando fofo ele me chamar de tia,
mesmo tendo me visto apenas uma vez. — Como você está?
Ele se senta no banco ao meu lado e balança as perninhas.
— Bem. A mamãe comprou chocolate e sorvete. Ah, e agora eu tenho
um peixinho azul e moro em uma casa bonita. Você quer conhecer minha
casa e o meu peixinho?
Olho para a Pamela, os olhos dela estão rasos de lágrimas, como se
estivesse emocionada por finalmente ver o filho empolgado.
Recordo do garotinho pequeno, sentado com a mãe na delegacia. Ele
parecia um adulto, não uma criança.
— E como seu peixinho se chama?
Ele franze a testa, confuso.
— Eu não dei um nome para ele.
— Mesmo? Mas ele precisa de um nome.
Seus olhos se arregalam ao se virar para a mãe.
— E agora, mamãe? Ele vai pensar que eu não gosto dele!
— Vamos escolher um nome, meu amor. — Pamela diz suavemente,
acariciando o rosto do filho.
Seu rosto não está tão ruim agora, mas ainda continua sendo um
lembrete do que a mulher deve ter sofrido. Acho que me compadeço por
perceber que ela não deve ter muito mais que minha própria idade.
— Tia, Ming, você me ajuda a escolher o nome do meu peixinho?
Abro um sorriso, nunca fui muito boa lidando com crianças, elas
simplesmente não vão com a minha cara, porém, Guilherme parece
diferente, talvez pense que eu salvei a mãe dele e me veja como uma pessoa
boa.
Ele não deve saber do que aconteceu com o pai.
Encaro a Pamela e seus olhos parecem me confirmar a resposta.
— Posso, claro.
— Mas você precisa vê-lo para escolhermos um nome bom.
Ele pula do banco e começa a puxar meu braço, Pamela coloca as
mãos nos ombros do filho e sorri para mim.
Meu instinto é dizer que estou ocupada, só que vejo uma
oportunidade para abordar a Pamela sem parecer que a estou acusando, já
que não estou mesmo. Sei que essa mulher não é a culpada, confio nos
meus instintos.
— Se sua mãe não se importar...
— Ela não se importa, não é, mamãe?
A mulher nega e me levanto, deixando de lado minha irmã, minha dor
e a senhora de setenta anos que me olhou como se eu fosse o pior ser
humano do mundo.
Passamos pela praça movimentada e entramos no meu carro alugado,
já que a Pamela não tem um.
A casa dela fica perto da minha, poucos minutos de distância e é em
um bairro bonito e aparentemente seguro. As casas são modernas e
estilosas, algumas são sobrados, outras são menores, todas separadas por
um pequeno jardim.
A dela é um sobrado e ela me conta que teve que barganhar muito
com o proprietário.
— Acho que ele ficou com pena da nossa situação. — Ela abraça o
filho antes de abrir a porta da frente.
A casa inteira é em um tom bonito de pastel, ela faz questão de me
mostrar cada cômodo, como se eu tivesse sido parte na decisão dela de se
mudar, sua empolgação é quase tão grande quanto a do filho.
No térreo são apenas quatro cômodos, a lavanderia, cozinha, sala de
jantar e sala de visitas. No andar de cima, são três quartos e um banheiro.
Guilherme me guia até o quarto onde ele diz que o peixinho está.
Pamela disse que a casa já estava mobiliada, então fico feliz ao ver a
cama grande onde o Guilherme deve dormir seguro e livre do pai. O
aquário pequeno está na cômoda ao lado da cama e um peixinho azul nada
sem parar.
Guilherme abre o aquário para jogar comida e assistimos a boca do
peixinho engolir os pequenos grãos.
— Ele tem cara de quê?
De peixe?
— Não sei — respondo, fingindo ponderar. — Bernadete?
Ele faz uma careta, rindo em seguida.
— Que nome horrível!
— O que você sugere?
Ele olha para o aquário pelo que parecem horas antes de sorrir para
mim.
— Acho que eu gosto de Azulão.
Isso é nome para pássaro, mas não digo isso.
— Que nome perfeito, combina com ele.
De repente, o garoto está me abraçando pela cintura, os ombros
tremendo ao chorar e me pergunto que merda eu fiz de errado.
— Gui? Tudo bem?
Ele não responde e olho para a porta, pronta para chamar a mãe dele.
— Obrigado, tia Ming.
Meu coração aquece com as palavras doces, ele é um bom menino e
me preocupo com o estrago que aquele homem deve ter causado a essa
criança inocente.
— Está tudo bem, querido. — Acaricio seus cabelos. — Foi você
quem escolheu o nome.
— Não. — Ele ergue a cabeça, mesmo que eu já soubesse não ser do
peixinho que ele estava falando. — Obrigado por mandar o papai para
longe da cidade, mamãe me disse que você fez ele ir embora depois de
machucar a gente.
A gente... então o Vitor também batia no menino.
— Não se preocupe, ele não vai voltar mais.
— Agora eu não preciso mais ser o homem da casa, não é?
Parece que um caroço se alojou na minha garganta.
— Não, pequeno. Agora você pode ser só o garotinho da casa, sua
mãe vai cuidar de você até que cresça e vire um homem forte e feliz.
— Você vai vir mais vezes, não vai?
Não é a intenção, não que eu diga isso para ele. Pamela aparece na
porta, me salvando de responder.
— Querido, você já pode assistir televisão, uma hora antes de ir fazer
o dever de casa.
O garoto sai correndo e admiro a organização e cuidado da Pamela
para com ele, geralmente, mulheres nesse tipo de situação não se
preocupam tanto com os horários e educação dos filhos, estão mais
preocupadas em manter todos vivos.
Vamos para a cozinha e ela me oferece um café antes de dizer:
— Preferi não contar tudo para ele.
— Entendo.
— Vitor era um monstro, mas era o pai do Gui.
— Claro.
Dou um gole no café, pelejando para iniciar a conversa tão aguardada.
Da última vez que nos vimos, ela me perguntou se era uma suspeita e que
precisava se preparar, agora não sei o que falar para não soar que a estou
tratando como suspeita, principalmente depois de ver a felicidade dessa
família.
— Vocês já possuem alguma pista de quem pode ter feito aquilo?
Olho para ela e sei que ainda está triste com o que aconteceu, mesmo
que se esforce muito para não demonstrar.
— Só que pode ter sido uma mulher. — Solto no ar, dando mais um
gole no café enquanto observo sua reação.
Pamela fica tensa e seu olhar se torna duro, ela parece saber de algo
que não me disse antes.
— Acham que fui eu?
— Pamela, se souber de mais alguma coisa, essa é a hora para me
contar. — Ela vira de costas, fingindo mexer no café que já está pronto. —
Eu posso te tirar dessa confusão se for sincera comigo.
— Por que você iria querer me ajudar?
— Porque eu me importo, e não quero tirar o sorriso daquele
garotinho. — Aponto para a sala quando ela se vira para mim novamente,
onde Guilherme está esparramado no chão, assistindo a algum desenho.
Ela se apoia no balcão, anda de um lado para o outro, estuda minha
expressão e leva muito tempo para se sentar diante de mim, resignada.
— Eu disse que o Vitor frequentava o prostíbulo. — Ela sussurra e
me inclino para ouvir melhor. — Só não disse quem ele ia ver.
— Você sabe quem ele ia ver?
Ela assente.
— Quando ainda era apaixonada e estava arrasada por ser traída, o
segui.
— E então? Quem ele ia ver?
— A Ana Luiza, não sei se você conhece. Ela é a neta da dona da
floricultura.
Coloco a xícara de café na mesa lentamente, estudando o rosto da
mulher diante de mim.
Pamela está mentindo? A raiva poderia fazê-la acusar a amante do
marido?
— O que está insinuando?
— A Ana Luiza é garota de programa no tempo livre, ou era até
conhecer o Vitor e ele decidir que poderia roubar meu dinheiro para bancá-
la.
— Pamela, essa acusação é muito grave. Como você sabe disso?
Ela se levanta de novo, mais uma vez andando de um lado para o
outro.
— Nós erámos amigas e um dia ela me contou desse trabalho, disse
que recebia bem e perguntou se eu não gostaria de ir trabalhar lá também
sem o Vitor saber. Vitor e eu ainda erámos felizes, dinheiro não era
problema, e mesmo que fosse, eu jamais faria isso. Então neguei.
Isso está parecendo coisa de novela, daquelas com muito drama e
agora estou mais curiosa como pessoa do que policial.
Que amiga cretina!
— E então?
— Quando a vi com o Vitor, tive certeza de que ele estava
frequentando o prostíbulo, só não sei se foi lá que o relacionamento
começou.
— Está acusando a Ana Luiza de ter matado o Vitor?
Ela olha para a sala, garantindo que o Guilherme ainda está distraído
com o desenho e longe demais para escutar a conversa.
— Ming, o Vitor só ficava violento e louco atrás de dinheiro quando
ia ver a Ana Luiza.
Minha mente inteligente funciona rápido e ligo todos os pontos. Isso
explica muito bem a Sra. Rodrigues ter mentido e a neta dela fugindo após
me deixar inconsciente e desaparecer.
Agora tenho certeza de que ela está com medo de ser pega.
Faço uma análise rápida, me perguntando se Ana Luiza poderia ser a
assassina de anos atrás também. Ela tem a minha idade, o que significa que
também estava no ensino médio.
Uma adolescente poderia matar três pessoas a sangue frio? Quatro,
se contarmos o irmão do Eduardo.
— Vitor a viu no dia em que foi morto.
— Acredito que sim.
— Se não foi a Ana Luiza quem o matou, talvez ela tenha visto quem
foi.
Pamela assente e agora sou eu a ficar de pé.
Preciso encontrar essa garota e falar com o Liam.
— Eu não teria feito isso, Ming. Nem mesmo com o Vitor.
Eu acredito nela, mesmo nunca tendo lidado com casos, os estudei
por tempo o bastante para confiar que Pamela não é a culpada.
Me aproximo da janela, distraída conforme minha mente continua
freneticamente atrás de uma hipótese.
Apoio o corpo na parede e observo a casa da frente, encarar coisas me
ajudam a pensar com mais clareza, porém, as engrenagens da minha cabeça
paralisam ao ver o monumento passando sem camisa pela janela da casa à
frente.
Minha boca fica seca e não consigo desviar o olhar dos gominhos
esculpidos daquela barriga.
— Fiquei mais tranquila sabendo que o policial mora tão perto.
— Ele sabe disso?
Essa é mesmo minha voz? Por que está tão rouca?
Limpo a garganta e tento ordenar que minha boceta pare de piscar,
mas nada acontece, a excitação continua se aglomerando, principalmente
quando ele ergue um braço e passa pelos cabelos curtos, atraindo meu olhar
para os músculos dos bíceps.
Pamela ri baixinho.
— Acho que não sabe, mas ele fica andando o dia todo sem camisa. É
lindo de ver, não é?
— Mamãe, você gosta do vizinho? — Guilherme pergunta de repente
e a Pamela fica vermelha igual a um pimentão.
— Não, querido. Quem gosta dele é a tia Ming.
Arregalo os olhos para a mentira da mulher e o garoto me lança um
olhar que brilha com travessura, é o tipo de olhar que eu já lancei muito
quando tinha a idade dele, logo antes de aprontar.
Pamela o leva de novo para a sala e aproveito para dar outra espiada
pela janela, Liam está parado em frente à janela da própria casa, ostentando
todos aqueles músculos bem definidos. Uma calça de moletom, uma xícara
e uma mão acenando um tchauzinho enquanto sorri para mim.
Meu corpo se abaixa por instinto e choramingo, agachada como se
tivesse sido pega fazendo algo errado.
Merda, como foi que ele me viu?
Dou mais uma espiada e agora ele está franzindo a testa.
Fico em pé, me sentindo idiota e ele sorri outra vez. Sua mão aponta
para mim, depois para ele, então para a rua.
Ele quer que eu saia?
Me perco nos seus gominhos outra vez, é difícil me concentrar
quando um homem tão gostoso sorri para mim sem camisa.
Ele acena sem parar, como se quisesse atrair minha atenção para seu
rosto, então pisca um olho e sai da janela.
O maldito sabe que é gostoso.

— Você não sabia que estava morando tão perto da Pamela? Ela me
convidou e você não sabe. — Começo a falar assim que atravesso a rua, ele
está com as mãos nos bolsos da calça e não se preocupou em colocar uma
camisa. — Descobri que...
— Aham. — Ele me interrompe, sorrindo. — Falamos de trabalho no
trabalho.
Minha empolgação morre no mesmo instante e paro de me aproximar.
— O quê?
— Você já comeu?
— Se eu já comi? O que...
— Ótimo, vem.
Ele me puxa para dentro da sua casa. Diferentemente da casa da
Pamela, a do Liam não tem nenhum tom de pastel, a maior parte das
paredes é em um tom de azul fofo, o resto é branco e os móveis são todos
escuros e de couro. É típico de um homem solteiro de bom gosto, eu gosto.
Me aproximo da parede cheia de quadros, a maioria das fotos é dele
mais novo com uma garotinha linda. Algumas são com amigos, Pedro,
Felipe e um outro garoto que não me parece estranho, como se já o tivesse
visto, mas nessa cidade tudo é possível.
Encaro uma foto, uma mulher linda sorri para a câmera, abraçada ao
que imagino ser o pai do Liam, a mesma garotinha das outras fotos também
sorri, abraçada a um Liam adolescente com aparência de nerd. É uma bela
foto de família.
— Essa é minha mãe. — Ele diz baixinho, tocando o rosto da mulher.
— Foi no ano que o câncer a levou de nós.
— Sinto muito.
Meu coração se parte ao reconhecer o olhar de dor no semblante dele,
rapidamente percebo que não gosto nem um pouco de ver esse homem
triste.
— Tudo bem, faz muito tempo.
— Quantos anos você tinha?
— Dezesseis, Cassandra só tinha onze, então quando me sinto triste,
penso que vivi mais tempo com nossa mãe do que ela.
— Desculpa te fazer tocar nesse assunto.
Ele força um sorriso e coloca uma mecha do meu cabelo atrás da
minha orelha.
— Não é culpa sua, eu quero que me conheça.
Suas palavras me fazem sentir mal, pois, ao contrário dele, eu não
quero que alguém me conheça tão inteiramente, tampouco pouco a minha
dor.
— Nós morávamos em São Paulo, mas depois que minha mãe se foi,
ficou difícil viver lá, principalmente para o meu pai. — Ele balança a
cabeça. — Então viemos para cá um ano depois de a enterrarmos.
— Você não precisa me contar se não quiser.
Quando as pessoas falam comigo sobre esse tipo de assunto, sinto
como se quisessem que eu também conte algo relacionado. Não quero
trocar esse tipo de história triste com o Liam, não agora.
Por que ele simplesmente não quis falar do caso?
— Não tem muito mais além disso, vivemos do outro lado da cidade
até eu fazer dezoito. Fiquei alguns anos fora no intercâmbio e foi uma
oportunidade para ficar longe do meu pai controlador e ainda conhecer uma
cultura nova.
— Agora você tem quantos anos? — pergunto, passeando pela sala.
Ele tem uma televisão imensa e mais quadros com fotos por toda
parte. Conheço o Liam bebê, o adolescente com espinhas e óculos
redondos, o Liam do intercâmbio cheio de sorrisos bonitos, e o adulto sem
espinhas e óculos.
— Vinte e nove.
Ele disse que tinha dezoito quando foi embora, eu devia ter só doze,
mas se passou alguns anos fora e ainda não me abordou sobre minha irmã
morta, nem deu os pêsames, é sinal de que ainda estava na China quando a
onda de assassinatos aconteceu.
Então por que ele surtou com aqueles casos?
— Você é velho.
Ele leva uma mão ao peito, fingindo decepção. Seus olhos são os
mais puros e gentis que já vi, se ele tivesse qualquer relação com aqueles
assassinatos, eu saberia.
— Você tem quantos? Doze?
— Vinte e três. — Seguro uma foto dele sorrindo com seu hashi[4] em
um restaurante chinês. — Ainda não acredito que esteve na China.
— Lá é lindo e as comidas são fantásticas.
Coloco o quadro de volta no lugar e me viro para ele. Liam se sentou
no sofá, então o sigo.
— Liam, sobre...
— Você sabia que a China inventou o sorvete? Eles embalaram uma
mistura de leite e arroz na neve e resultou em sorvete.
Estreito os olhos para ele.
— Tudo bem, mas...
— E que existe uma tendência lá de tingir os pelos dos cachorros para
que eles se pareçam com outros animais? Não me pergunte o sentido disso,
ainda não descobri.
Ele está falando sério? Ou só tentando me enrolar?
— Sério isso? Bem legal. Então sobre o caso...
— E o Facebook é proibido lá, mas muitos chineses usam a rede
social.
— Liam, o que isso...
— Ah, e lá em Pequim, um milhão de pessoas vivem no subsolo, em
porões ou abrigos antiaéreos. Você sabia disso?
— Não, mas é claro que você me contou.
Recosto no sofá e ele finalmente faz uma pausa para respirar.
— Só relaxa um pouco, Ming. A gente vai falar do caso no trabalho,
faltam poucas horas pra isso. — Reviro os olhos e ele se aproxima, fazendo
com que eu consiga sentir seu perfume. — Você não consegue tirar a cabeça
do trabalho, não é?
— Não.
— Aposto que eu conseguiria fazer você esquecer do trabalho por um
tempo.
Minha respiração se torna irregular ao me virar para ele, esperando
encontrar malícia em seus olhos, mas ou ele finge inocência muito bem, ou
minha mente precisa ser limpa com urgência.
— Você havia mencionado comida?
Mudo de assunto depressa ao perceber que estou encarando seu
tanquinho outra vez.
— Ah, sim. — Ele se levanta e estende as mãos para mim. — Você
gosta de costelinha de porco?
— Está brincando? — Me encara, parecendo receoso. — Eu amo
costelinha de porco, Liam.
Seu semblante se ilumina com alívio e o sigo até a cozinha muito
organizada. Ele deve ter TOC, ou alguma coisa assim.
Ele realmente já cozinhou nessa cozinha? Difícil acreditar nisso.
— Me conta um pouco sobre sua vida em São Paulo — pede
enquanto traz as comidas para a bancada.
Roubo uma das costelinhas de porco quando ele vira de costas.
— Não tem muito o que contar. Eu estudei Direito e fiz o cursinho
preparatório para a Polícia.
— Você gostava do curso de Direito?
Mordo a costelinha de porco e acho que devo ter feito algum som, já
que ele me encara com olhos arregalados.
— Meu Deus, você realmente gosta disso, não é?
— Está uma delícia. — Lambo um dedo e seus olhos seguem o
movimento antes de engolir em seco.
— Estou vendo — sussurra, paralisado enquanto me assiste como se
estivesse vendo um filme pornô ou algo do tipo.
— O que foi?
— Nada.
Ele desvia o olhar, agarrando uma panela de cima do fogão. Deve
estar pesada, já que ele a põe na frente das calças.
— Precisa de ajuda?
Ele olha para minha boca, para a costelinha na minha mão e nega com
a cabeça.
— Não, continua... o que está fazendo.
Franzo a testa, ele está muito esquisito, não que seja da minha conta,
então volto a morder a costelinha, mais uma vez soltando um som de
apreciação.
— Você devia ser Chef, não um policial.
— Acho que nós dois estamos na profissão errada então.
Olho para ele, que agora nem disfarça que está fitando minha boca.
— Você já experimentou isso?
— Já, só não achei tão incrível assim quanto você achou.
Lambo mais um dedo e tenho certeza de que ele grunhiu, visto que o
som viaja pela minha pele, fazendo o corpo inteiro formigar com uma
sensação quente. Finalmente começo a entender que talvez ele esteja com
tesão, mas quando tento dar uma espiada, ele encosta na bancada, me
impedindo de ver se está com uma ereção.
— Acho que é porque ainda não almocei — explico, ainda presa à sua
calça de moletom.
— Vou continuar pensando que é minha comida, isso faz bem para o
meu ego.
— Ele já não é grande o suficiente?
Seu olhar baixa para onde estou olhando e ele solta uma risadinha.
— Ninguém nunca reclamou.
Meu olhar se desvia das suas calças no mesmo instante, desistindo de
ver o que ele tanto quer esconder.
— Do seu ego?
— É... disso aí. — Sua voz soa provocante e observo seus lábios bem
desenhados antes de me levantar.
— Quer saber, eu acho melhor comer em casa, eu tenho que tomar
banho para o trabalho mesmo.
— Pelo amor de Deus, não coloca banho no meio dessa conversa. —
Ele resmunga e reparo que seus braços estão apertando a bancada, como se
isso pudesse aliviar qualquer coisa que esteja sentindo.
— Você é estranho assim sempre?
— Só perto de você.
Concordo com a cabeça, faz sentido.
— Estou indo.
— Espera!
Acontece muito rápido, ele sai de trás da bancada, meus olhos baixam
para a ereção que ele estava tentando esconder e acho que o choque me faz
tropeçar, já que, de alguma forma, acabo ajoelhada no chão com a mão na
calça dele, bem onde seu pau está extremamente duro.
— Puta que pariu! — Ele exclama e respira fundo, mas não me afasta
e parece que eu perdi as funções de me mover.
Minha mão continua sobre a calça, os lábios entreabertos e os olhos
arregalados. A mente ordena que eu me mova, só que o corpo não obedece.
Liam olha para baixo, ele também parece em choque.
— Eu sabia que você era desastrada, mas não nesse nível, Ming.
Meu nome em sua boca parece reativar meus sentidos e me levanto
num pulo, me perguntando como foi que eu caí dessa vez. A mão que o
tocou está formigando e a fecho em punho.
— Desculpa.
— Porra, não por isso.
— Aí, meu Deus! — As palavras em mandarim escapam pela minha
boca e viro de costas, cobrindo o rosto com as mãos, pelo menos até
recordar que uma delas esteve em cima do pau do Liam, então as abaixo ao
lado do corpo. — Você não poderia ser mais estúpida, Ming?
— Está tudo bem. — Ele diz atrás de mim e sinto seus dedos tocarem
meus braços, o que só piora a situação, já que não sinto nenhuma vontade
de me afastar como sempre acontece quando as pessoas me tocam. — Essas
coisas acontecem.
— Não acontecem, não.
Escuto sua risada e o som é fofo, do tipo que desacelera meu coração
e faz o constrangimento sair correndo pela janela mais próxima.
— Tá, não acontecem mesmo, mas deve ser um sinal divino.
Me viro para ele, estreitando os olhos ao entender a expressão em seu
rosto. Ele está mordendo o lábio inferior, me olhando como se fosse gravar
aquela imagem para sempre na mente.
— Você não pode estar falando sério.
— O quê? Está dizendo que não causo nem uma faisquinha em você?
Minha mente vai para o Eduardo, e mesmo que não estejamos
namorando de verdade, o Liam não sabe disso.
Ele é babaca a esse nível?
— Estou indo embora, Liam.
— Desculpa. — Ele ergue as mãos em sinal de paz. — Não vou mais
brincar com isso, não precisa ir embora.
— Por que quer que eu fique?
— Porque — ele chega mais perto e prendo a respiração — você
gosta de costelinha de porco e tem um montão ali.
Então se afasta e tenho certeza de que não é por isso que ele me quer
na casa dele, mas nem por isso deixo de olhar para as costelinhas de porco
com água na boca.
Ele tem razão, eu adoro costelinha de porco. Isso, e talvez seja
verdade, talvez ele cause uma faisquinha em mim.
LIAM
Quais as chances de uma mulher realmente cair de joelhos e agarrar
meu pau sem ter tido a pretensão?
Isso foi tipo aquele meme que a mulher engravida e diz “escorreguei
e caí no pau”, não dá pra acreditar que foi sem querer, exceto que eu não
duvidaria de nada vindo da Ming, ela é tipo o ser humano mais desastrado
que já conheci na vida, tenho até medo do que ela faria com uma arma.
Solto uma risada ao lembrar da cena e enfio minha cabeça debaixo da
ducha, tirando o shampoo dos cabelos, ignorando a ereção que segue
invicta, apesar do banho gelado.
A mulher foi embora quase que instantaneamente depois de comer
duas costelinhas de porco, faz mais de meia hora e não consigo tirar da
cabeça aquela mão no meu pau, foi como se ela estivesse se preparando
para pagar um boquete, e se antes era fácil fantasiar, agora a imagem está
tatuada na minha mente pervertida.
Olho para baixo, não existe a menor possibilidade de eu ir trabalhar
assim, e mesmo que para mim seja muito idiota alimentar esse tipo de
situação podendo ter qualquer mulher da cidade, levo minha mão direita ao
meu pau e aperto.
Meus olhos se fecham quando o calor se espalha e a primeira coisa
que vejo é o rosto da Ming, ela nem precisa estar de joelhos para me fazer
entrar em combustão.
Por que a mulher teve que ter uma queda dessas e me meter nessa
situação constrangedora?
Minha respiração se torna acelerada, assim como minha pulsação. A
mão se move, subindo e descendo, e apoio a outra mão na parede de
azulejos do meu banheiro, o tempo inteiro imaginando que a chinesa
atrevida está me observando.
Solto um grunhido, o prazer me tornando desesperado. De repente,
não são minhas mãos que me tocam, são as dela e minha mão não se segura
em uma parede, ela envolve os cabelos negros da Ming.
Na minha cabeça, ela está ajoelhada como na cozinha, sua boca
entreaberta exatamente como meia hora atrás, porém, não é de choque. Seus
lábios se preparam para envolverem a cabeça do meu pau e só de pensar
nela assim, gozo gostoso, fazendo minha porra se espalhar pela parede
enquanto finjo que é o rosto perfeito da garota que não me deixa em paz.
Meu corpo fica tenso por um tempo, então relaxa tanto que demoro
para me dar conta de que o boquete nunca existiu e ainda estou sozinho
debaixo da ducha, só então meu sorriso se desfaz.
Pelo menos não estou mais com uma ereção.

Minha mesa está uma bagunça de papéis, o corpo debruçado sobre


eles e um bloco de notas aberto para acrescentar alguma pista que passou
despercebida. Parece que tem areia nos meus olhos e sei que devia ter
dormido mais, mas meu pai ainda acha que é policial, e antes de encontrar a
Ming na casa da Pamela, passei duas longas horas na casa dele, ouvindo o
homem divagar sobre possíveis suspeitos.
Preciso ter uma conversa séria com o Patrick sobre ele ficar deixando
meu pai a par de casos confidenciais, o velho não é mais da polícia e só
quero que ele descanse, arrume um hobby, sei lá.
Jogo um petisco no chão e volto a encarar os papéis. Se a vítima foi
morta às 4h30min, depois arrastada para a trilha da cachoeira, significa que
o assassino quis que o corpo fosse achado, o que significa que talvez ele
tenha um padrão, ou seja, um desses psicopatas que gostam de viver
perigosamente.
Por que não se livrar do corpo? Por que ser desleixado?
Quer dizer, não diria que ele é desleixado, já que não possuía nem
uma impressão digital do desgraçado na cena do crime, nem mesmo uma
pegada, como se ele tivesse limpado tudo minuciosamente.
Esse não parece um daqueles casos em que o assassino age por
impulso, no calor do momento. É quase como se ele fosse experiente e já
soubesse como matar sem deixar vestígios.
Escuto um latido e olho para o Trevo, ele está abanando o rabo
caramelo e mexendo uma patinha no ar, como se me pedisse para lhe dar
mais petisco.
— Você está muito guloso hoje.
Ele late novamente e jogo mais petisco no chão.
— Descobriu alguma coisa? — pergunto para ele, encarando os
papéis diante das suas patinhas. A única coisa que ele fez foi deixar uma
trilha de farelo em cima dos papéis, mas até isso irei analisar depois.
Você não está bem da cabeça, Liam.
Ming entra pela porta e eu devia ter previsto que bater aquela punheta
mais cedo não resolveria nada, assim que meu pau reconhece a presença da
mulher, ele se torna duro como pedra. É constrangedor.
Ela olha para mim, completamente séria, então os olhos baixam para
a bola de pelos aos meus pés.
— O que é isso? — Ela pergunta, estreitando os olhos ao encarar a
papelada no chão.
— Um cachorro, nunca viu?
— Por que trouxe um cachorro para o trabalho?
— Ele dá sorte.
Me espreguiço e recosto o corpo na cadeira. Ela para de olhar para o
cachorro e torna a me observar, meu pau pulsa dentro das calças e me
remexo, é desconfortável pra caralho ter uma ereção e não poder fazer nada
a respeito com a pessoa responsável por ela.
— Como é?
— Ele dá sorte — repito, sorrindo e a sobrancelha dela arqueia. —
Vai te ajudar a ter uma ideia brilhante. — A sobrancelha dela sobe ainda
mais e coço a nuca, agora achando minha ideia meio boba. — Qual é?
Estou desesperado aqui por pistas.
— Foi você quem não quis saber o que eu descobri.
— Estávamos fora do trabalho.
— E daí?
Como explico que só queria passar tempo com ela sem parecer um
fura olho de merda? Porra, estou sendo um babaca com o Eduardo, mas o
problema não é meu se o idiota não enfiou uma aliança no dedo dessa
mulher.
— Esse cachorro dá sorte mesmo ou você não tinha com quem deixá-
lo?
Desvio o olhar.
— Ele dá sorte mesmo. JURO! — Acaricio a cabeça do filhote de
Golden mais fofo e sortudo do mundo. — O nome dele é Trevo.
— Trevo? — O cachorro a encara e o semblante de deboche dela
desaparece ao perceber que estou falando sério. — Por que esse nome? É
horrível!
— Tipo trevo de quatro folhas, realmente dá sorte.
Trevo se levanta e corre desajeitado até a mão dela, dando uma
lambida antes de se esfregar em suas pernas.
O malandrinho sabe o que é bom.
— Sabia que a personalidade do cachorro puxa a do dono? — Ela
questiona e eu abro um sorriso doce, contente por ela estar falando comigo
por qualquer motivo, acho que essa é a primeira vez que realmente puxa
assunto.
— Sério? Então eu devo ser muito fofo e bonitão. — Acaricio a
barba. — Eu pareço irresistível?
— Parece carente e irritante, exatamente como o seu cachorro.
Meu sorriso desaparece e me sento ereto na cadeira.
— Como é?
— E como não vi esse cachorro na sua casa mais cedo?
Percebo os olhares que recebemos dos outros policiais e meu sorriso
retorna, ela nem se dá conta da malícia que suas palavras transmitem. O que
esses homens vão pensar ao saber que ela esteve na minha casa?
Que você é um maldito talarico!
— Ele estava no banho.
Trevo não para de abanar o rabo, agora está sentado na frente da
Ming, a olhando com expectativa.
— Você já conheceu o Trevo? — Felipe entra na sala e se aproxima
ao ver meu cachorro. — O Liam traz ele quando não tem com quem deixar
e sabe que o Patrick não vai vir pra delegacia. Ele fica dizendo que o Trevo
dá sorte.
Estou fazendo sinal para o homem calar a boca, mas ele não ergue o
olhar para mim e quando a Ming me encara, paro de me mover igual um
imbecil.
— Ele está mentindo — digo e ela balança a cabeça, se sentando na
cadeira da sua própria mesa.
Trevo para de ligar para o carinho do Felipe e corre atrás da sua nova
obsessão, se esparramando aos pés da mesa dela.
Eu te entendo, amiguinho.
Recolho os papéis do chão e tento ver se o filhote marcou alguma
coisa sem querer, mas dessa vez não aconteceu nada.
Eu juro que o Trevo dá sorte! Uma vez, uma senhorinha foi inventar
de atravessar a rua com o farol aberto e quando o Trevo entrou na rua
também, nenhum carro atingiu os dois. Quando eu o levo para passear,
sempre encontro dinheiro no chão e recebo olhares sedutores de mulheres
bonitas. E quando preciso encontrar alguma coisa que perdi, sempre
encontro na caminha dele como um passe de mágica, tipo as minhas meias.
Tudo bem que elas sempre estão furadas por causa dos dentes dele, mas já é
uma sorte tremenda achar pares iguais de meias.
Quando o adotei, pensei que não saberia lidar com o animal, já que
minha irmã e eu nunca tivemos muito contato com animais, Cass tinha
pavor dos coitadinhos. Me sinto culpado por não ter feito com que ela
sentisse o que sinto toda vez que o Trevo abana o rabo para mim. Tentei
falar com ela sobre adotar um bichinho, mas ela quase me deu uma porrada
virtual, então não toquei mais no assunto.
O telefone do Felipe toca no momento em que o Eduardo passa pela
porta e se aproxima da Ming. Minha atenção diverge entre os dois e o
Felipe ao telefone.
Não gosto nada da expressão pálida do Felipe quando me dirige um
olhar chocado. Ele anota alguma coisa e um mau-pressentimento me faz
levantar.
— Mais um corpo apareceu. — Ele diz ao desligar, ganhando a
atenção de todos. — Um carro preto sem placa jogou o corpo de uma
mulher no parque mais ou menos meia hora atrás.
Ming também fica de pé, mas se essa mulher estiver com a mesma
aparência do Vitor, irei deixá-la o mais longe possível dessa visão.
— Pedro e Felipe, vocês vão comigo — ordeno, já pegando as chaves
do carro e a minha jaqueta.
Ming me lança um olhar de traição e devolvo com um que diz: “sinto
muito, querida. Mas não.”
— Você vai levar o Felipe?! Mas ele não parecia ansioso para ver
outro corpo da última vez em que viu um.
— Felipe, você quer ir? — pergunto. Ming e eu observamos enquanto
ele fica pálido e ajeita a postura.
— Nem fodendo.
Minha expressão se fecha e perco toda esperança pelo idiota na minha
frente.
— Viu! — Ming exclama e juro que vou esganar o Felipe na primeira
oportunidade que tiver.
— Você é um policial ou um medroso? — questiono, tentando me
recuperar.
— Um medroso.
Felipe parece notar minha reprimenda, porque franze a testa e engole
seco, já não tão certo da resposta.
— Resposta errada? — indaga e estreito ainda mais as sobrancelhas.
— Am... na verdade, sou um policial. Corajoso e tudo mais.
Abro um sorriso amplo, desfazendo a carranca.
— Então você quer ir?
— Claro! Nunca disse que não. Ming, você me ouviu dizer que não
queria ir?
Ming revira os olhos.
— Você disse agorinha...
— Bobagem! — Felipe refuta, dando de ombros, apesar da expressão
ainda pálida.
— Viu só? Ele vai — digo para ela e percebo como está furiosa.
Sem aviso prévio, ela ergue os dois dedos do meio, apontando para
mim.
É estranho, mas gosto muito de causar esse tipo de reação nela, então
só sorrio ainda mais amplamente.
— Ah, e Ming? Pode cuidar do Trevo até eu voltar? Ele te adorou.
— Eu não sou a porra de uma babá, Liam! — Ela exclama e eu sei
que acabei de armar meu próprio sepultamento.
Uma briga me espera quando voltar e, por alguma razão, estou
ansioso pra esse momento chegar logo.
MING
Estou mais uma vez com o moletom velho e masculino cujo dono eu
nunca vi na vida, me esgueirando pelos becos de Monte Azul para que
ninguém me veja. Deixei meu carro em frente ao restaurante que Eduardo e
eu fomos, eu disse que compraria comida para a gente, foi a desculpa que
inventei para que ele ficasse com o Trevo na delegacia.
Desconfio que o Edu sabe que não fui comprar comida, mas ainda
não sei se posso contar todos os meus passos nesse plano para ele, como se
a qualquer instante ele fosse me dedurar.
Paro na sombra do beco dos fundos da sorveteria, as fitas de
polietileno já estão cercando o local e alguns policiais que não conheço se
esforçam para afastar as pessoas curiosas que olham e filmam.
Liam está claramente discutindo com um policial, o homem loiro
apenas o encara com os braços cruzados, como se não estivesse interessado
no que o Liam tem a dizer. Por dentro, minha raiva se sente vingada.
Tento olhar para o corpo e, como da primeira vez, não consigo ver
nitidamente, na verdade, o que vejo é o Felipe se esgueirando para perto do
corpo sem ninguém perceber. Ele está com luvas e olha em volta para ter
certeza de que ninguém está por perto antes de pegar algo e enfiar no bolso
da calça.
Minha pele arrepia com a desconfiança, ele não parecia o mesmo cara
que costuma ser ao pegar o que quer que tenha pegado, as feições sérias e
concentradas.
Liam segura o braço do homem com quem discute e parece dizer algo
que chama a atenção do Felipe, o observo se levantar antes dos outros se
juntarem a ele.
Eles estudam o corpo e tenho o vislumbre de fios loiros, o corpo foi
coberto para que as pessoas não filmassem, especialistas fazem seu trabalho
rapidamente e os policiais perdem a paciência com os civis, ameaçando
levar todos para a delegacia.
Aos poucos, vejo as pessoas dispersando e condeno o Liam por não
permitir que eu estivesse ali com eles.
Abaixo o capuz mais firmemente na cabeça, Liam está olhando algo
no braço da vítima, Pedro está com a testa franzida, também observando, e
o Felipe parece nervoso.
Olho em volta, procurando por um lugar mais perto da cena do crime
para me esconder, é quando vejo a mesma sombra encapuzada da cachoeira.
A sombra está parada atrás de uma árvore do parque, provavelmente
observando os policiais.
O assassino voltaria para se divertir com seu trabalho? Quem ele
matou dessa vez? Qual a ligação?
Eu estudei os casos de anos atrás, sei que seu modus operandi foi
assassinar pessoas jovens, geralmente adolescentes. Ele sequestrava por no
mínimo dois dias, então a pessoa aparecia com sinais de espancamento em
locais diferentes, formando um triângulo.
Eu não sabia que ele voltava a cena do crime. Agora seu modus
operandi está diferente. Se for o mesmo assassino, ele se tornou mais
sedento por perigo, gosta de deixar mensagens, o espancamento continua,
só que ele mata asfixiando. Ele ainda parece sequestrar, visto que a morte
parece ocorrer bem antes do corpo ser encontrado, e os assassinatos ainda
são cometidos em um local e levados a outro.
Nunca encontraram o local exato dos assassinatos anos atrás e farei
minha missão de vida encontrá-lo agora, pois o assassino é o mesmo, tem
que ser.
Duas mortes em um período curto de dias, exatamente como antes.
Puxo o capuz mais baixo na cabeça e dou a volta no beco, sabendo
que posso atravessar a distância sem que ninguém me note e encurralar a
sombra escura.
Confirmo se minha arma está carregada e me movo sorrateiramente,
quando consigo atravessar para o parque, entro em meio às sombras, me
mantendo longe da luz. O vulto da pessoa encapuzada se move.
— Droga, eu vou ser o próximo... — A voz parecia sussurrar e
percebo que seus movimentos certamente são de ansiedade ou medo.
É um homem, já sabia que seria, deve ter mais que 1,80 de altura, os
ombros também são muito largos.
Piso em um graveto sem querer e me xingo mentalmente pelo deslize,
controlando a respiração para não denunciar minha presença, mas o homem
está com medo e provavelmente atento a qualquer movimento, assim que o
graveto se quebra, ele sai correndo para o meio da rua, atraindo a atenção
dos policiais.
Faço menção de correr atrás dele, mas me contenho ao ver outros
policiais o seguindo, incluindo o Pedro, o Liam e o homem com quem
estavam falando. Felipe continua parado ao lado da vítima, os olhos
estreitos.
O estudo atentamente, ele espera os policiais se afastarem e aproveita
a chance para fazer sua própria varredura, como se estivesse procurando
pistas.
Para coletar, ou livrar alguém?
Minha mente se move depressa e mordo o lábio inferior, as mãos
tremendo quando um pensamento que ainda não me ocorreu se infiltra em
minha armadura.
E se o assassino tem o apoio de alguém de dentro da polícia? Pior, e
se o assassino for da polícia?
— Seja corajosa, Ming.
Repito as palavras até as mãos pararem de tremer e os policiais
lentamente retornarem, porém, sem conduzir o encapuzado. Eles perderam
o cara.

Todos já estão na delegacia quando eu chego carregando algumas


embalagens de comida, Liam está me encarando com desconfiança e o
Felipe sorri como o velho Felipe, alheio de que o vi fazendo algo errado, ou
não, depende do que ele estava tentando fazer com o que pegou da cena do
crime.
Coloco uma embalagem na mesa de cada um, menos na do Liam, que
franze a testa para mim.
— Por que não trouxe nada para mim? Estou morrendo de fome.
Só um louco teria fome depois de ver um corpo. Não respondo. É
infantil, mas faço o voto do silêncio, ignorando completamente o Liam e a
raiva que sinto no momento.
Se ele tivesse me permitido estar lá, eu não teria deixado aquele cara
escapar, teria atirado nas duas pernas do cretino e o arrastado aos berros
para a delegacia, nem que ele morresse no meio do interrogatório, pelo
menos ainda teríamos uma pista plausível.
— Vai me ignorar agora?
Silêncio.
— Achei que eu fosse a criança.
Abro minha embalagem de comida japonesa, é a única diferente do
resto da equipe, passei no restaurante de japa que fica na rua do restaurante
da minha mãe, eles abrem só à noite, então é uma maravilha para mim.
Tiro o hashi da embalagem, Trevo está batendo a pata na minha
perna, então também abro o petisco que peguei para ele.
— Trouxe comida até pro Trevo?
Meu olhar nem se desvia para o homem enquanto alimento o filhote
de Golden, ele é fofinho e tenho certeza de que não me irritaria como o
dono o faz.
— Posso provar seu hot roll?
Enfio um na boca e solto um som de apreciação só para provocar, de
repente, Liam está arrastando sua cadeira até minha mesa, me encarando
com o mesmo olhar que o Trevo me deu quando parecia querer petisco.
— Por favor? Só unzinho.
— Vaza.
Ele pisca os olhos e quando enfio outro hot roll na boca, ele segue o
movimento quase babando. Não sou de fazer esse tipo de coisa com
comida, então empurro a embalagem na direção dele.
— Só um.
Seus olhos brilham e ele abre a boca.
— O quê? — pergunto e ele me olha como se eu estivesse sem um
parafuso na cabeça.
— Não vou pegar com a mão.
— Você não quer que eu te dê na boca, não é?
— Sim!
— Não!
— Por quê?
Estreito os olhos para ele.
— Não me irrita.
— Eu vi um corpo, acho que não vou tocar em comida com as minhas
próprias mãos por um tempo.
— Não foi o primeiro corpo que você viu.
— Mas foi o mais recente.
— Eu poderia ter ido no seu lugar se foi tão traumático assim.
Ele fica tenso, a expressão se torna triste e sei o que está tentando
fazer. Ele quer amolecer meu coração, mas não sabe que está lidando com
uma rocha.
Eu deveria mandá-lo sumir da minha frente, mas, por alguma razão,
pego um hot roll com meu hashi e enfio na boca dele.
— Que porra é essa? — Eduardo entra na sala e se aproxima da
minha mesa. — Qual é a sua, idiota?
Liam fica de pé, olhando para o Edu fixamente.
Como mais um hot roll, me perguntando o porquê do showzinho, não
é como se eu tivesse algo real com o Edu, ou quisesse ter com o Liam.
Avisa isso pra sua perseguida, porque ela não entendeu.
— Ela é minha namorada! — Edu exclama, eu engasgo e o Liam
cruza os braços.
— E daí?
— Você não vai respeitar isso?
Continuo comendo, ignorando os dois, embora o resto do
departamento se aproxima para assistir ou separar, não sei, nem quero saber.
— Não estamos fazendo nada demais, Eduardo. — A calma do Liam
me surpreende, mas continuo jogando petiscos para o Trevo e abrindo
sachês de molho tarê.
— Ah, não? Então foram meus olhos que imaginaram ver ela te
dando comida na boca?
Liam fica vermelho e o Eduardo agarra o colarinho da camisa do
homem. Olho para cima quando o corpo de algum deles bate na mesa, a
balançando.
— Ei! Cuidado aí!
Liam também se prepara para a briga e isso já está me irritando, então
também me levanto.
— Edu, acho que já é hora de a gente desmentir essa brincadeira.
Liam olha para mim tão rápido que perde o momento em que Edu
fecha a mão para lhe dar um soco.
— Que brincadeira? — Liam pergunta, os olhos brilhando com um
sentimento que não reconheço.
— Nós não estamos namorando.
Volto a me sentar e o Liam agarra a mão do Eduardo, a afastando com
força do seu colarinho.
— Se voltar a me tocar de novo, vou arrebentar você.
Edu cambaleia para trás, e quando me lança um olhar, parece se sentir
traído, como se eu tivesse feito mal em desfazer a mentira que ele inventou.
Em primeiro lugar, eu nem queria estar no meio dessa discussão, é
exatamente por situações como essa que as mulheres são taxadas como o
gênero que deve cuidar da casa. Em segundo lugar, eu nunca disse que
apoiaria essa idiotice, só permiti que se estendesse por pura burrice, já que
não me foi útil para nada.
Eduardo não podia mesmo acreditar que eu manteria isso assim, com
ele arrumando briga com outros homens como se eu lhe devesse algum
respeito. Até entendo que já tenha tido algum sentimento por mim na
adolescência e talvez ainda tenha um pouco, mas ele que sinta essas coisas
sem me envolver nesse tipo de constrangimento, não que eu me importe, é
só que estou meio irritada com a dor de cabeça que homens geram.
Ninguém aqui é criança, então por que sinto que estou lidando com
crianças da quinta série?
— Podemos voltar a trabalhar? — questiono e o Edu vai para sua
mesa sem olhar fixamente para ninguém, está furioso e só lembro de ter
visto essa expressão quando ele descobriu que a Fang gostava dele e que me
pediu para ficar longe dele.
Liam se senta na cadeira novamente e abre a boca para mim, sorrindo
tanto que suas bochechas devem estar doendo, ainda não entendo como
uma pessoa pode sorrir tanto assim.
— Você está de zoação?
— Mais um. — Ele pede e reviro os olhos.
— Você é tão debochado e provocante, não é?
— Dispenso o debochado, mas posso ser muito provocante, você
ainda vai conhecer esse meu lado.
Ele pisca um olho para mim antes de indicar a comida com a cabeça e
abrir a boca de novo.
Continuo olhando para ele, chocada demais para reagir.
— Quer saber? Pode ficar. — Empurro a embalagem de hot roll em
sua direção e ele franze a testa.
Liam toma o hashi de mim e pega mais um hot roll, depois me
devolve a embalagem e o hashi.
— Pode comer. — Ele se levanta e vai até o quadro giratório em que
fez anotações do caso, girando para a parte com as fotos da Pamela e Ana
Luiza. — Estamos com falta de uma suspeita, já que o corpo encontrado foi
o da Ana Luiza, neta da Sra. Rodrigues.
Paro de mover o hashi em direção à minha boca, o hot roll cai na
embalagem e meu corpo se ergue sem que eu possa controlar. Sinto meus
olhos arregalados em direção ao Liam, e o “x” que ele faz sobre a foto da
Ana Luiza é como se o mundo estivesse ficando em câmera lenta para
minha mente poder trabalhar.
— O quê? — Escuto minha voz, vejo o Liam se virar para mim e
tenho consciência de que a decepção está tomando o controle da situação.
Odeio deixar emoções me dominarem, mas eu tinha certeza de que
estava perto de alguma coisa e agora parece que voltei à estaca zero.
— O corpo é da Ana Luiza, Ming. — Liam explica calmamente,
como se estivesse notando meus sentimentos.
— Não pode ser.
Ela tinha as respostas, o assassino sabia disso, então ele a matou antes
que eu pudesse tirar qualquer coisa dela. Mais uma vez ele está um passo à
frente.
Olho em volta, a raiva faz minhas unhas arranharem a mesa. Sinto
olhares de todas as direções e tudo que penso é em como meus instintos
gritam para não confiar em ninguém.
— Isso não é tudo. — Felipe diz, está recostado em sua cadeira,
olhando para uma caneta. — O assassino deixou outra mensagem.
Mensagem? Ah, sim. Vi as fotos tiradas de perto do corpo do Vitor,
havia uma mensagem em seu peito.
Como era mesmo?
“COM MINHA ESPADA, FAÇO VERMES COVARDES
SANGRAREM”
Engulo seco no instante em que o Liam respira descompassado,
olhando diretamente em meus olhos. Sua testa está franzida em
preocupação.
— Qual mensagem? — questiono e o homem demora para responder,
me estudando como se tentasse ligar pontos.
— Ele...
— Fala logo! — exclamo, a boca seca.
— Tente me encontrar, pequena guerreira. — Liam diz e meu corpo
tomba de novo na cadeira, o coração tão acelerado que parece prestes a
explodir. O desgraçado está brincando e faz isso comigo, sua mensagem foi
diretamente para mim. — Foi isso que o assassino deixou no braço
esquerdo da Ana Luiza.
— O que isso significa? — Eduardo pergunta, os olhos estreitos.
— Que ele está fazendo isso ou para atrair a Ming, ou para a Ming. —
Pedro deduz o mesmo que eu, provavelmente o mesmo que todos aqui estão
pensando.
— Ming, você... — Liam começa a falar, mas é interrompido quando
o Patrick aparece na porta, lhe lançando um olhar antes de indicar sua sala
com a cabeça e sair.
Olho em volta, vendo o Felipe esconder o Trevo com o pé, o
empurrando suavemente para debaixo da sua mesa. Pelo jeito, o delegado
está de mau-humor, e se souber do que acabamos de falar, a carranca faz
sentido.
Ele vai me tirar do caso.
Mordo uma unha, nervosa demais para manter o corpo parado. Não
sei o que tudo isso significa, só consigo pensar que briguei com as duas
vítimas antes de elas aparecerem mortas e que só o Liam me chamou de
“pequena guerreira”.
Isso é um truque? Um aviso? A porra de um jogo? Que merda está
acontecendo agora?
Meu celular começa a tocar, ao mesmo tempo em que uma dor de
cabeça se inicia. Hoje não está sendo um dia fácil, não que eu achasse que
fosse ter algum dia de paz nessa cidade, sabia que isso não existiria
enquanto o assassino da Fang estivesse à solta.
É a minha mãe quem está ligando e não posso me impedir de ficar
preocupada, ela nunca me ligaria sabendo que estou no trabalho, a menos
que seja urgente.
— Oi, mãe — sussurro, cobrindo a boca e me virando de costas para
ter privacidade.
— Ming? Você pode voltar pra casa?
— Por quê? O que aconteceu?
— Podemos falar pessoalmente?
Minha preocupação cresce ainda mais e não penso na bronca que vou
receber por sair no meio do expediente, apenas saio.
Novatos precisam provar seu valor e sei que não vai pegar bem ir
embora assim, principalmente com o caos que a delegacia se encontra,
porém, só consigo pensar em todas as vezes que minha mãe disse que a
vovó Mei não estava bem.
Será que ela estava mesmo doente e eu não reparei?
Aviso ao Pedro e ao Edu que aconteceu algo, e claro que Edu faz mil
perguntas, as quais não perco tempo respondendo. Enfio o boné preto na
cabeça e vou para o meu carro.
Quando abro a porta do motorista e olho para a rua quase vazia, não
consigo deixar de me perguntar se estou sendo observada agora. De repente,
a paranoia de que talvez o assassino esteja me vigiando faz arrepios se
espalharem pela minha espinha.
Se isso for um jogo de gato e rato, vou garantir que eu seja o gato.

Meu pai, minha mãe e a vovó Mei estão sentados na sala quando
entro. Minha mãe com os dedos entrelaçados no colo, vovó Mei com uma
xícara de chá e meu pai com uma mão sobre a bengala.
Ele é o primeiro a se levantar, a expressão carregada de cansaço e
medo, é quase como se tivesse voltado oito anos atrás, quando todos nós
não sabíamos onde a Fang havia se metido.
— Está tudo bem? — pergunto, me aproximando cautelosamente.
Os três me observam com atenção, as duas mulheres estão quietas e
sei que houve uma conversa longa antes de eu chegar, sei também que será
meu pai a tomar a frente da conversa dessa vez, talvez por ser ele a ter algo
a dizer.
Rezo para que seja uma reconciliação, mesmo que sua expressão me
faça enxergar a palavra “briga” em letras vermelhas na sua testa.
— Você não tem nada a dizer? — A voz monótona não combina com
o semblante cheio de emoções e fico incomodada.
— Pai, eu não sei o que está acontecendo.
— Duas mortes, é isso que está acontecendo. — Ele se aproxima de
mim, a bengala fazendo um som agonizante no piso. — Foram duas
vítimas, exatamente nos mesmos lugares de oito anos atrás.
Odeio brigar com meu pai, odeio que tudo isso seja culpa minha.
— Eu sei.
Ele tem razão e recordo o que me disse no seu escritório, a morte do
Vitor pareceu um aviso, mas eu relevei, podia ser apenas uma coincidência
eu ter brigado com o homem e ele aparecido morto, mas agora, depois dessa
nova morte e da mensagem, acredito que há mais nisso do que consigo
enxergar no momento.
— Está brincando com fogo, Ming. Não acha que está gostando
demais do perigo?
— Pai... — Ele espera por uma resposta. Eu não tenho uma.
— Quero que saia da polícia enquanto esse assassino estiver por aí
com esse jogo de avisos.
— Não posso fazer isso.
Ele bate a bengala com força no chão, assustando a Vovó Mei, que
quase derruba seu chá, e minha mãe, que se levanta e vem para perto dele.
Eu apenas o assisto com olhos arregalados e uma vontade incontrolável de
chorar.
— Não vou perder outra filha!
— Querido...
— Se não devolver esse distintivo, não precisa pisar mais nessa casa!
— Ele exclama.
Minha mãe cobre a boca com as mãos, eu dou um passo para trás e a
vovó Mei desiste do chá, se juntando a nós.
— A Ming não sairá dessa casa! — Vovó Mei entrelaça seu braço ao
meu. — Se insistir nisso, botarei você para fora.
Meu pai parece surpreso com suas próprias palavras, mas as aceita
como se não fosse voltar atrás. Lentamente, sinto meu coração se partir.
Sim, comecei essa carreira por causa da Fang e, sim, não vou
descansar até trazer justiça à minha irmã, porém, isso não significa que eu
não ame o meu trabalho, porque amo. Me encantei por esse mundo no
instante em que entrei no cursinho preparatório, nas noites que passei
estudando e assistindo vídeos de casos envolvendo seriais killers no
Youtube, e todas as vezes as quais me debrucei sobre livros do tema.
Meu pai não aceitar minha profissão também me machuca e talvez eu
esteja um pouco magoada com ele também.
— Ela pode fazer a escolha dela! — Meu pai me olha torto. — Se
escolher a polícia, se esqueça que já teve um pai, eu esquecerei que tive
uma filha que não a Fang.
Engulo o caroço na minha garganta, seguro as lágrimas e me afasto da
vovó Mei, a mente buscando uma solução para amenizar o problema.
Quando não encontro, apenas seguro a chave do carro com força e corro
para longe, exatamente como fiz da última vez.
Escuto minha mãe tentando acalmar meu pai enquanto vovó Mei o
chama de idiota em mandarim, o que me deixa mais chateada, estou
causando transtornos na minha família.
Entro no carro mais uma vez e quando o ligo, já não sei para onde ir.
LIAM
— Ela tem ligação com dois assassinatos, já parou para pensar que ela
pode ser a assassina? A mulher chega na cidade e, de repente, dois corpos
aparecem.
Ergo o olhar, abrindo um sorriso debochado, apesar de estar sendo
corroído pela preocupação.
— Não é ela.
— O quê? — Patrick para de andar de um lado para o outro e me
encara, é a primeira vez que refuto um argumento dele e o homem não
parece feliz com isso, tampouco entender o motivo da minha rebeldia
repentina.
Está furioso.
Eu também estou furioso, essa situação está me deixando inquieto,
sinto como se estivesse correndo em círculos, principalmente agora que
meteram minha garota no meio disso.
Ela não é sua.
Mas vai ser. Em breve.
— Ela não é a assassina — respondo calmamente, estudando os
papéis na mesa do delegado. Ele está trabalhando no caso e me pergunto do
motivo por estar se metendo assim quando ele ama ficar sem fazer nada.
— Por que acha isso? Tudo está apontando para ela.
— Você não sabia, Patrick? O culpado é a única pessoa que a gente
jamais suspeita.
Seu rosto empalidece e ele balança a cabeça.
— O que está dizendo?
Dou de ombros.
— Acho que nada por enquanto.
— Volte ao trabalho, se tiver alguma informação útil é só me dizer,
quero estar a par de tudo do caso. — Ele faz a mesma expressão que sempre
me tira do sério.
Meu sorriso é o mais falso do mundo e sei que ele sabe. Patrick sente
raiva quando faço isso e é por esse motivo que toda vez que ele me irrita, eu
dou um jeito de irritá-lo de volta, me faz sentir que estamos quites.
— Acho que aquela garota já está te influenciando. — Ele continua
falando em um tom reprovador.
Meu corpo fica tenso e estreito os olhos.
— Boa noite, delegado.
Ele não responde e saio da sua sala com vontade de esmurrar alguém.
Meu olhar recai sobre o mentiroso do Eduardo e essa vontade só
aumenta, claro que junto com ela vem a satisfação de saber que não estava
enganado, Ming sente mesmo algo por mim, e por mais que tente esconder,
tudo aponta que vamos progredir rápido, vou garantir isso.
Olho sorrindo para a mesa dela e o sorriso desvanece, sua cadeira está
vazia e não há sinal dos itens pessoais.
Franzo a testa e olho para o Pedro, ele está fazendo mímica, tentando
dizer alguma coisa, mas eu sempre fui péssimo nisso, pra mim seus gestos
parecem dizer que ele está com uma puta diarreia.
Me aproximo e indico a mesa da Ming, ele parece decepcionado por
eu não o ter entendido.
— Você sabia que existem amigos que se entendem só com uma troca
de olhares?
— O quê? — Fico ainda mais confuso quando ele cruza os braços.
— Isso acontece em séries. Os amigos se olham e conseguem se
comunicar sem falar nada.
— Agora tenho que ser fluente em ler mentes?
Ele assente.
— Claro!
— Onde está a Ming?
— Se você se esforçasse, teria entendido o que aconteceu com ela.
— Você é péssimo em mímica.
— Não, você que é um péssimo amigo!
Reviro os olhos e eles decaem na cadeira vazia, a preocupação
crescente.
Não vou perdê-la de vista até resolver todas as pontas soltas, ela não
pode me gerar mais problemas.
— Ela disse que precisava ir embora, acho que aconteceu alguma
coisa em casa. — Ele explica quando nota meu olhar para a cadeira.
— Entendi — murmuro, fingindo indiferença ao voltar para minha
mesa.
Me debruço sobre papéis, mas minha mente está no relógio acima da
porta, esperando o turno acabar ou a Ming retornar do que quer que tenha
acontecido.
Ela não volta e as horas passam arrastadas, mesmo que tenhamos
muito serviço para fazer pela primeira vez em anos.
ESTÁ TUDO BEM?
Envio a mensagem para ela e não recebo resposta. Quando o turno
acaba às três da madrugada, saio da delegacia sem me despedir de ninguém.
TÁ ACORDADA? ACONTECEU ALGUMA COISA?
Nenhuma resposta.
Entro no meu carro após abrir a porta do banco de trás para o Trevo
entrar e sei que pode parecer invasão de privacidade, mas depois do que vi
hoje, não penso duas vezes antes de apertar no nome dela.
A ligação inicia e a cada som da chamada me sinto mais e mais
ansioso, ela não atende na primeira e nem na segunda vez. Começo a me
preocupar de algo realmente sério ter acontecido e o medo faz minhas mãos
tremerem.
Odeio o sentimento de impotência e é por isso que faço uma última
tentativa, a qual ela atende no segundo toque.
— Oi, Ming. Está tudo bem?
— Não, acho que ela não está muito bem. — A voz masculina faz
com que eu aperte o volante com força.
— Quem é você? Cadê a Ming?
— Está falando da garota japonesa?
— Chinesa — corrijo e a ligação faz um chiado.
Se o desgraçado tiver tocado em um fio de cabelo dela...
— Tanto faz. — Ele responde, soltando um grunhido. — Ela está
caindo de bêbada, acho que devia vir buscá-la.
Suas palavras me deixam em choque, Ming não parece o tipo de
pessoa que beberia a esse ponto.
— Você a deixou bêbada?
— Eu só sou o barman, não o fiscal da bebida.
Ligo o carro, decidindo que vou dar um soco nesse idiota só pela
insolência.
— Onde ela está?
— No bar do Grilo.
Paro por um instante.
Bar do quê? Que droga de lugar é esse? E o que a Ming faria em um
bar com esse nome?
— Você disse Grilo?
— Sim, por quê?
— Nada, não. Só queria ter certeza.
— Eu sei que o nome é ruim, ainda estamos pensando em um melhor.
— Sem julgamentos da minha parte.
— Sei...
Alguém pede alguma coisa, a ligação fica chiada e o barman do bar
do Grilo desliga.
Sem julgamentos, Liam...

O lugar é um pulgueiro, está lotado e caindo aos pedaços. Só pelas


pessoas que vejo entrando e saindo, me preocupo de algum bandidinho ter
arrastado a Ming à força para cá.
— Com um soco daqueles ela teria desmontado o cretino antes de
passar pela porta — resmungo, me apressando para dentro do lugar.
O cheiro é de suor e álcool, o lugar é todo de madeira e está tão sujo
que me surpreende por estar cheio de gente.
Olho em volta, procurando por uma garota pequena e linda, vestindo
roupas grandes demais. Se o barman atendeu seu celular, significa que está
perto do bar, então vou até lá, torcendo para que Ming ainda esteja aqui,
sem nenhum cretino estar mexendo com ela.
Não vou me segurar se alguém tocar nela.
Meus punhos estão cerrados, meus olhos se movem pelo lugar
horrível, o som alto de forró me fazendo questionar se o cantor é mesmo
cantor ou se isso é uma espécie de karaokê.
Ming está lá, sentada no banco próximo ao bar e a cabeça sobre a
mesa de madeira. Parece estar dormindo e sinto meu coração apertar por vê-
la assim.
Ela nunca parece frágil ou vulnerável, mas agora está exatamente
assim, os cabelos sobre o rosto, em um lugar onde claramente não se
encaixa. Ela é como uma boneca de porcelana no meio de elefantes
desastrados, sinto que a qualquer segundo alguém vai tentar machucá-la.
Me aproximo e afasto o cabelo do seu rosto, as bochechas dela estão
vermelhas, os lábios entreabertos e os olhos fechados.
— Ming?
Ela se remexe, lambe o lábio inferior e solta um resmungo.
— Acorda, querida.
Ela afasta minha mão, franzindo a testa de um jeito tão fofo que
acabo sorrindo. Pego meu celular e tiro uma foto do seu rosto bêbado, ela
não vai acreditar quando ver essa foto.
— Como pode ficar linda até babando?
Toco a ponta do seu nariz arrebitado e ela faz uma careta, abrindo os
olhos vagarosamente. Meu rosto está perigosamente perto do dela e perco o
fôlego quando ela sorri.
É uma risada completamente bêbada e se tinha dúvidas antes, agora
sei que ela está mesmo caindo de bêbada.
— O que aconteceu, docinho?
— O quê? Tem doce aí? — Sua voz está arrastada e quando ergue a
cabeça quase cai do banquinho.
Seguro seu quadril, evitando a queda, e ela solta uma gargalhada que
faz meu coração acelerar. Ela nunca ri assim e gosto dessa versão relaxada
dela.
— Ming, querida...
— Quero mais cerveja.
— Você ficou assim depois de quantas cervejas?
Ela franze a testa, então apoia a cabeça no meu peito, fazendo as
contas nos dedos.
É fofo demais e não sei se consigo parar de sorrir.
— Acho que isso. — Ela faz um sete com as mãos e isso me diverte
ainda mais.
— Você fica uma gracinha bêbada.
— Você está... — Ela faz uma pausa para pensar e olho para seu rosto
atentamente enquanto tenta formular a pergunta. — Zombando de mim?
— Jamais.
— Eu zombaria de você.
— Vou te perdoar por isso.
Acaricio seus cabelos e ela solta um suspiro de encontro à minha
camisa, está quase dormindo outra vez, então pago pelas três cervejas que o
barman disse que ela tomou.
Haja cerveja no mundo para derrubar a pequena Ming, ela já é
quase uma alcoólatra de tanto álcool que aguenta beber.
— Sete, hm? Tem certeza de que não foram três?
Ela nega com a cabeça, ainda apoiada em mim.
— Sete.
Dou risada e ela ri junto comigo, é lindo e sinto que poderia beijá-la
agora se não estivesse tão bêbada.
— Vou te levar em casa.
Tento ajudá-la a se levantar, mas ela resiste.
— NÃO! — Ela exclama. — Minha casa, não.
— Onde então?
Ela fica em silêncio e eu franzo a testa, parando de sorrir.
— Aconteceu alguma coisa?
Seu rosto está escondido em meu peito, então ergo seu queixo,
fazendo os olhos dela encontrarem os meus.
— Posso dormir na sua casa?
Sua pergunta é doce e me pega tão de surpresa que dessa vez sou eu
quem quase perde o equilíbrio.
— Minha... casa?
Ela pisca os olhos para mim, a cabeça levemente de lado e me
pergunto se está tentando me seduzir, como se eu já não estivesse
completamente seduzido, mas tenho a sensação de que ela não faz ideia da
própria beleza, sinto que é algo indiferente para ela, o que só a torna ainda
mais linda.
— É. Se não puder, tudo bem, tem sempre o banco da praça...
Estreito os olhos para ela.
— Você é tão engraçadinha.
Ela sorri.
— Então posso?
— Só se me contar o porquê não pode dormir na sua própria casa.
— Meu pai não aceita bem que eu seja da polícia. — Ela diz de uma
vez e muito rápido, os olhos se enchem de lágrimas e a abraço por instinto.
— Tudo bem, vamos pra casa então.
Não quero pressioná-la a falar sobre uma coisa que a deixa à beira das
lágrimas, piorou quando está bêbada e claramente chateada, então só a levo
para o meu carro, a segurando quando cambaleia ou tropeça.
Deixei o Trevo no carro e ele late quando vê a gente se aproximando.
Ming dorme no caminho até minha casa, recostada no vidro, o corpo
encolhido.
Eu imaginei que a família dela talvez pesasse sobre a profissão dela,
quando os conheci, eles me olharam como se eu fosse a escória e custou
muito para que passassem a me olhar com menos desdém, isso só porque eu
amo comida chinesa e a mãe da Ming é a melhor, é como estar de volta na
China.
Eles falaram muito sobre como a polícia é negligente, principalmente
com imigrantes, acho que pelo que passaram oito anos atrás. Talvez tenham
medo pela filha, talvez achem perigoso, principalmente nos últimos dias,
até que é compreensível. Todavia, não acho bacana quando a preocupação
dos pais começa a oprimir a própria filha a ponto de ela beber horrores,
quer dizer, beber horrores para quem não bebe nada, visto que tomar três
cervejas e ficar desse jeito é o mesmo de nunca ter bebido na vida.
Dou uma risada e o Trevo coloca a cabeça por entre os bancos,
lambendo meu braço.
Ela é mesmo brasileira?
Estaciono na minha garagem e saio do carro, abrindo a porta do Trevo
antes de ir para o lado do passageiro e tirar o cinto dela. O céu já está
clareando lá fora e o sono finalmente começa a me fazer bocejar.
A pego no colo, tomando cuidado para não a acordar. Ela é tipo peso
pena, então a levo para o segundo andar sem esforço.
Ela segura o colarinho da minha camisa enquanto dorme e escuto os
passos do Trevo atrás de nós quando entro no meu quarto.
Poderia deixá-la em um dos quartos de hóspedes caso não tivesse
feito um escritório em um deles e o outro não estivesse completamente
vazio, exceto pela cama do Trevo, a qual ele nem usa, já que dorme comigo.
— Liam? — Sua voz rouca me atrai para si, os olhos estão cerrados e
as bochechas ainda vermelhas.
— Oi, meu bem.
— Acho que estou passando mal.
Entendo o que quer dizer, então a levo para o banheiro e seguro seus
cabelos todo o tempo em que vomita toda a cerveja que ingeriu.
Ela começa a chorar assim que dá descarga e acaricio seus cabelos.
— Está tudo bem, Ming. Isso acontece.
Eu não conhecia seu lado frágil e me sinto péssimo. Queria que ela
não tivesse motivos para chorar.
— Eu não sou assim.
— Eu sei.
— Me sinto um ser humano horrível.
— Você não é, não pense desse jeito.
Ela limpa as lágrimas.
— Você tem uma escova de dentes reserva?
Assinto, abrindo uma gaveta com três escovas de dente fechadas,
comprei para o caso de trazer alguma garota para casa, mas rapidamente
percebi como mulheres no meu habitat natural pode ser problemático e
renunciei a essa ideia.
Estremeço ao lembrar de uma maluca que aparecia na minha porta
sem avisar depois que a gente transou, a Ming é exceção e está aqui só
porque está muito mal. Deus me livre ter outra surtada invadindo meu
espaço, se bem que não me importaria se essa mulher quisesse se infiltrar
totalmente na minha vida.
A observo escovar os dentes e lhe entrego uma toalha quando
menciona um banho, não pensei que a veria vulnerável tão cedo, quando
falei sobre minha mãe foi como se ela se transformasse em uma rocha.
Sequer mencionou a própria vida.
Agora está tomando banho no meu banheiro, bêbada e magoada.
Me recosto na parede de frente à porta do banheiro e cruzo os braços,
Trevo se senta ao meu lado e ficamos os dois olhando para a frente,
escutando o barulho do chuveiro ligado.
— Acha que ela está melhor?
Trevo late e eu concordo com a cabeça.
— É, um banho quente sempre me anima também.
O som do chuveiro cessa e o Trevo começa a correr em frente à porta,
as patas deslizando no piso, o rabo abanando e os latidos reverberando.
Quando era ainda menor, ele costumava mijar quando ficava empolgado,
graças a Deus ele não faz mais isso.
Ming abre a porta depois de um tempo, os cabelos molhados e uma
blusa minha cobrindo tudo o que eu estou louco para ver.
A camisa quase chega nos joelhos dela e quando coloca uma mecha
do cabelo molhado atrás da orelha, reparo que é exatamente isso que gosto
nela. A mulher consegue ser linda sem esforço, não precisa de maquiagem,
nem roupas coladas para chamar atenção, ela só precisa olhar assim, com
esses olhos escuros e brilhantes.
Caralho, eu me derreto inteiro.
Estremeço e desencosto da parede, não tem nada que eu possa usar
para encobrir a ereção que surge sempre que ela aparece, desde que caiu de
joelhos na minha frente.
Não é hora de pensar nisso, Liam!
Ela ainda parece meio tonta, então a acompanho até o quarto.
— Desculpa todo o incômodo.
— Não precisa se desculpar.
Ela se senta na beirada da cama e aperta as pontas dos cabelos, está
muito molhado, então pego o secador na gaveta do banheiro.
— Obrigada, eu não queria mesmo molhar sua cama.
Ligo o secador na tomada, sorrindo para ela.
— Posso secar pra você?
Ming parece surpresa com a minha pergunta, ela não faz ideia do
quanto desejo tocar seu cabelo desde que nos conhecemos, passaria horas
os envolvendo em meus dedos, são lindos.
— Não quero atrapalhar, você deve estar cansado.
Me sento atrás dela, tomando isso como um “sim”.
— Não estou cansado, você é quem parece abatida. Quer conversar
sobre isso?
Ela fica calada e espero alguns segundos antes de ligar o secador,
mesmo assim, ela fica quieta.
— Sei como é ter problemas em casa — digo mais alto do que o som
do secador, finalmente tocando os fios molhados dela. — Meu pai é meio
difícil, sempre me faz pensar que tenho que ser perfeito em tudo,
principalmente no trabalho. Ele é machista e nunca aceitou a sexualidade da
Cass. Minha família é meio disfuncional quando se trata de demonstrar
amor e carinho, minha mãe era a única boa nisso, como uma cola, era ela
quem sempre tentava manter a família unida. Mas, depois que ela morreu,
não consegui ser essa cola, então pode conversar comigo se sentir que
precisa desabafar.
— A sua irmã gosta de mulher?
— Sim, ela sempre foi decidida e nunca tentou ser perfeita aos olhos
do meu pai, como eu sempre faço. Às vezes, invejo a coragem dela.
— Acha que gostar de mulher é ser imperfeita?
Nego com a cabeça.
Por Deus, claro que não. Se ela soubesse...
— Não tenho nada contra, mas o meu pai tem muita coisa contra. Ele
não gosta de nada que fuja da caixa em que sua cabeça foi enfiada quando
nasceu — faço uma pausa. — Ele pensa que garotas devem ficar em casa e
em hipótese nenhuma chegar perto de uma arma, que um homem nunca
deveria sentir atração por outro homem e que mulheres não devem olhar pra
outras mulheres com desejo.
— Por que você não enfrenta seu pai?
Gosto que ela me faça perguntas e não tenho medo ou receio de
respondê-las, quero que ela se sinta da mesma forma quando se abrir
comigo, quero que fique confortável para falar, não tensa como está agora.
— Depois que perdeu minha mãe, sinto que ele se fechou para o
mundo e tenho medo que acabe sozinho naquela casa velha. Não quero ser
uma decepção na vida dele e acho que o contrariando, eu faria exatamente
isso.
— Sabia que fazer tudo o que ele quer mesmo quando não concorda é
uma forma de ser manipulado, não é?
— Você está sensata demais para uma garota que fica bêbada com
três cervejas.
Escuto sua risada, então o silêncio recai no quarto de novo, a essa
altura, ela está sentada no meio das minhas pernas e me esforço para não
encostar minha ereção sem querer nela.
Seus cabelos balançam onde o vendo bate e gosto de sentir a maciez
dos fios entre os dedos.
Aos poucos, percebo seu corpo se encostando mais ao meu, seus
cabelos já estão quase secos, poderia parar, mas a sensação de tê-la por
perto é boa, me traz paz e acho que nunca senti isso com outra mulher.
Sua cabeça finalmente repousa no meu peito e desligo o secador,
colocando-o sobre a mesinha ao lado da minha cama antes de deitar a Ming
suavemente sobre o travesseiro.
Começo a me levantar quando ela rola para perto de mim, envolvendo
meu corpo com os braços.
Fico paralisado, olhando para o rosto dela e sentindo cada pedaço do
corpo ter arrepios pelo toque inocente.
— Estou com frio. — Ela sussurra, sonolenta. — Fica comigo até
meu corpo ficar quente.
— Vou pegar uma coberta.
— Não, eu quero você.
Eu quero você...
Não, o que você quer é me matar, isso, sim!
Ela cai no sono quase que instantaneamente e tento me levantar outra
vez, sabendo que ela só disse essas coisas por estar bêbada, amanhã vai me
matar se me vir aqui.
— Não vai embora. — Ela murmura em meio ao sonho, agarrando
minha blusa. — Não me deixa sozinha.
— Você não está sozinha, só vou ficar longe o suficiente para não me
espancar quando acordar.
— Fica aqui.
— Você meio que me detesta, Ming. Quando acordar vai querer me
matar.
— Quando você se afasta, eu sinto frio.
Por que meu coração está acelerado? Por que não consigo
responder?
Ela está embriagada, provavelmente não vai se lembrar disso amanhã,
ainda assim, não consigo dizer nada por um longo tempo, tampouco me
mover. Minha mente se rende devagar ao cansaço e me vejo abraçando o
corpo dela até ela soltar um suspiro suave no meu peito.
— Durma, vou te aquecer essa noite — murmuro.
Ela me obedece, caindo em um sono profundo. Eu nem me preocupo
com a possibilidade de esse ser meu último dia de vida, morreria feliz só de
sentir o corpo dela coladinho no meu.
Essa garota ainda vai ser minha.
É meu último pensamento antes de também ser embalado pelo mundo
dos sonhos.
MING
Acordo sentindo algo molhado na minha perna, minha cabeça está
doendo um pouco e sinto um aroma gostoso que me faz pensar no Liam
automaticamente.
É o mesmo perfume dele.
Levo alguns instantes para perceber que tem um braço em volta da
minha cintura e, ao abrir os olhos, me deparo com o rosto adormecido do
Liam.
As lembranças do bar, do homem me levando para a casa dele e
secando meus cabelos invadem minha mente e apoio uma mão na testa,
mais uma vez sentindo minha perna molhada.
Não acredito realmente que dormi aqui, na mesma casa que o Liam,
no mesmo quarto! Onde eu estava com a cabeça para pedir que ele ficasse
aqui comigo?
Olho para baixo, Trevo está com o focinho encostado em minha coxa
e a bunda erguida no alto como se estivesse prestes a pular, o rabo está
abanando e dedico um instante para admirar sua fofura. Sempre quis ter um
cachorrinho, mas a Fang era alérgica.
Ele solta um latido alto e começa a correr na cama, pisando na barriga
do Liam várias vezes.
Me sento e, por instinto, ergo a mão e pego o celular na mesinha, é do
Liam, mas confiro as horas, já passam de duas da tarde, dormi nessa noite
mais do que em qualquer dia dos últimos meses. Já posso acrescentar isso a
uma das inúmeras surpresas do dia.
Liam está roncando baixinho e, dessa vez, perco um minuto inteiro
admirando sua fofura, não a do Trevo, que ainda corre à minha volta
querendo atenção. Não sei nem como o dono dele não acordou com toda
essa algazarra.
O braço do homem ainda está ao meu redor e não me esforço para
removê-lo, gosto do calor que emana e de como me faz sentir uma
adolescente. Estou tentando conter um sorriso quando sei que preciso
manter o foco na investigação, sinto borboletas no estômago só de observá-
lo, mesmo tendo conhecimento de que essas emoções vão me atrapalhar.
Trevo pula no rosto do Liam quando percebe que é para onde estou
olhando e faço uma careta quando Liam se senta rápido na cama, fazendo o
pequeno Trevo rolar por sua barriga e cair de cara nos lençóis.
Cubro a boca para não rir e o homem ao meu lado olha para mim.
— Ming? Eu... — Ele coça a nuca, parecendo desconfortável. —
Desculpa ainda estar aqui, acho que caí no sono.
— Tudo bem, fui eu que pedi para você ficar.
— Graças a Deus você lembra disso. — Ele se joga na cama de novo,
soltando um suspiro. — Achei que ia me matar.
— Não sou tão agressiva assim.
— Não. — Seus olhos observam meu rosto. — Você é mais fofa do
que agressiva.
— Ei! Eu não tenho nada de fofa!
— Está sendo fofa agora.
Estreito os olhos.
— Volte a dormir, antes que eu decida que não gosto mais de você.
Liam abre um sorriso amplo, revelando a covinha e me deixando na
defensiva, afinal, é só um sorriso e eu já sinto como se tivesse ganhado na
loteria. Que bizarro.
— Então você gosta de mim?
— Ai, você é insuportável — resmungo e saiu da cama, fazendo o
bendito carinho que o Trevo ainda parece pedir em latidos finos. — Bom
dia, Trevo.
O cachorro vira de barriga para cima e afago seu pelo mais um pouco.
— Ming? — Liam se senta mais uma vez na cama, sua expressão está
séria dessa vez. — Não gosto da ideia de você sozinha em um bar daqueles
no meio da noite.
— O que está insinuando?
— Se não tiver ninguém pra beber com você, liga pra mim. Juro que
não sou uma companhia tão ruim.
— Eu sei me defender sozinha, Liam.
— Não gosto de concordar com o Patrick, mas ele tem razão em uma
coisa, é muita coincidência você ter brigado com as duas vítimas antes de
elas aparecerem mortas.
Cruzo os braços, uma sensação ruim me invadindo.
— Acha que tenho alguma coisa...
— Acho que o assassino sabe muito bem quem você é. — Ele me
corta. — Não quero mesmo que se meta em problemas, Ming. Pode ser
cuidadosa de hoje em diante?
— Eu sempre sou.
— Ontem não pareceu isso. Você estava vulnerável em um bar cheio
de gente estranha, qualquer um poderia ter te levado dali sem esforço.
Sinto como se estivesse sendo repreendida pelo meu pai novamente e
não gosto da sensação, mesmo sabendo que ele tem razão. Foi idiotice da
minha parte beber em um momento que eu sabia não poder.
Evitei o álcool na faculdade para estudar, e resolvo que é uma boa
beber no meio de um caso em que duas das vítimas tiveram uma discussão
comigo antes de morrer. Isso já parece perigoso sem eu mencionar as
mensagens que o assassino deixou.
— Liam, eu sei que isso é meio maluco, mas preciso te perguntar
antes que minha mente paranoica crie mais teorias.
Ele apoia os braços nos joelhos e me olha atentamente, então me
sento ao seu lado na cama. O observo respirar fundo, a atenção se dividindo
entre minha boca e os meus olhos.
Quase me esqueço da pergunta com ele me encarando assim, até
parece que está esperando por algo de mim.
— Pode perguntar.
Arranho a garganta e desvio o olhar para seu colo, não ajuda muito a
me concentrar, já que ele está com ereção de novo. Ele deve ter colocado
uma dessas bermudas de pano mole que os homens usam geralmente na
praia para dormir quando eu estava no banho, agora consigo ver
nitidamente o formato do seu pênis e não tem nada modesto ali.
Isso realmente cabe em uma mulher?
Que droga de pensamento é esse, Ming? Se concentra!
— É... — Franzo a testa e mudo o foco da minha atenção para o seu
rosto de novo, ele está sorrindo. — Existe alguma possibilidade de alguém
de dentro da delegacia ser o culpado?
Isso faz seu sorriso desaparecer e seu semblante se tornar sombrio. Os
olhos escurecem e a mandíbula fica tensa, ele quase não parece o mesmo
homem.
— Eu não conheço muito bem ninguém ali, é por isso que estou
perguntando pra você. — Continuo falando, sentindo que o clima está se
tornando cada vez mais pesado. — Eu não quero ofender, é só que tudo isso
está me deixando desconfiada de todos à minha volta.
— Não confie em ninguém, Ming. — Ele diz de repente. — Eu não
quero envolver você muito mais nesse caso depois de saber que talvez o
assassino esteja tentando algo contra você, mas sei que vai continuar
investigando, já que é teimosa feito uma mula.
— Ei!
— Então não confie em ninguém. Se descobrir qualquer coisa, só diga
a mim, pode fazer isso?
Arqueio as sobrancelhas.
— E se você for o assassino?
Ele solta uma risada claramente ofendida.
— Acha que sou o culpado daquelas mortes?
— “Pequena guerreira”. — Faço aspas no ar para enfatizar o apelido.
— Isso veio de você!
— É, mas todo mundo na delegacia ficou sabendo disso meio que
dois minutos depois.
— Mais um motivo para eu estar suspeitando de alguém de lá dentro!
A lista só cresce.
— Se você confiou em mim pra fazer essa pergunta, então acho que
não pensa que sou o assassino.
— Eu não quero que você seja, é diferente.
Ele está sorrindo outra vez e meu coração está acelerado, tanto pelo
sorriso quanto pelas minhas palavras. Isso soou bem maior do que deveria
ser e não tenho certeza de que foi inteligente dizer em voz alta.
— Por que, Ming? Já me considera tanto assim?
— Não seja idiota!
Ele coloca uma mecha do meu cabelo atrás da orelha e percebo que
ele gosta muito disso, de tocar nos meus cabelos.
— Quando falou de fazer uma pergunta, pensei que ia me chamar
para sair.
— Por que eu faria isso?
Ele se aproxima até seu rosto pairar sobre o meu.
— Porque quando estamos juntos, tudo parece entrar em ebulição. —
Minha boca está seca enquanto o vejo chegar cada vez mais perto. — Não
pode dizer que não sente isso, não é possível que eu esteja sentindo isso
sozinho.
Engulo em seco, agora seus dedos estão na minha bochecha e sinto
meu corpo se inclinar para frente.
— Eu...
— Você?
— Não sinto isso! — exclamo ao ficar de pé, rompendo qualquer
química prestes a se formar e já posso sentir o arrependimento se
misturando ao nervosismo.
Ele solta um suspiro.
— Tudo bem, linda. Estou sem pressa e posso ser muito paciente
quando quero.
Suas palavras soam como uma promessa, do que, eu ainda não estou
pronta para saber, mas meu olhar desce para a ereção proeminente que ele
ostenta com orgulho.
— Somos colegas de trabalho, Liam. Não vai passar disso.
— Então por que está dizendo essas coisas para o meu pau?
Sinto meu rosto queimar e solto um grunhido antes de sair do quarto.
Esse homem ainda vai me matar!
Após escovar os dentes, confiro meu celular. Minha mãe me mandou
uma mensagem dizendo que meu pai ainda não se acalmou, que, na
verdade, ficou pior por eu ter dormido fora.
Respondo avisando que dormi na casa de um conhecido, mas que já
estou voltando. Estou nervosa, andando de um lado para o outro. Assim que
meu celular apita com sua resposta, olho para o visor.
Fica aí por enquanto, vou tentar acalmar seu pai. Não quero que briguem de novo.
Me viro em direção ao quarto para perguntar ao Liam se teria
problema eu ficar mais um pouco, porém, ele já está atrás de mim, olhando
por cima do meu ombro.
Esbarro nele e meu celular quase cai no chão.
— A briga foi tão feia assim?
— Sabia que é falta de educação ler mensagem pessoal de alguém?
— Desculpa.
Ele parece realmente envergonhado, então suspiro, digitando uma
mensagem para minha mãe antes de olhar para ele.
— Tem problema se eu ficar? É só mais um pouco.
— Não se preocupe. — Ele sorri, agora com empolgação. — Pode
ficar quanto tempo quiser, a casa é sua.
— Não é, não.
Seus olhos se reviram.
— É uma frase de hospitalidade, linda.
— Não me chama assim.
— Por quê?
Abro a boca, mas não tenho uma resposta.
— Quer ver um filme? — pergunta quando não falo mais nada, já
segurando minha mão e me puxando em direção à sala.
Liam fecha as cortinas cinzas, fazendo um escuro confortável se
acomodar no ambiente.
— Vamos fazer pipoca antes.
O sigo em silêncio até a cozinha, ele é meio organizado demais.
Minha mãe piraria se visse esse homem perto do fogão, mesmo para fazer
uma simples pipoca, ele separa cada ingrediente em potinhos antes de
começar.
Minha mãe ficaria orgulhosa, e se já quer me jogar pra cima dele,
depois disso ficaria obcecada.
Me aproximo do homem, ele está concentrado e nem me nota tentar
olhar por cima dos seus ombros largos.
— Você é certinho demais.
Ele se assusta e acaba batendo o dedo na panela quente.
— Porra! — Ele enfia o dedo na boca, mas seguro sua mão, pegando
uma mecha do meu cabelo e esfregando na queimadura.
— O que está fazendo?
— É uma superstição. Dizem que quando fazemos isso, a queimadura
alivia.
Ele sorri.
— Não sabia que você era supersticiosa.
Estou prestes a responder, mas ele esqueceu de colocar tampa na
panela e agora os milhos estão estourando pela cozinha inteira.
— Meu Deus, você está me contagiando com o seu desastre! — Ele
sussurra enquanto tampa a panela.
— Eu não sou tão desastrada.
— Você é um perigo.
Começo a recolher a pipoca que caiu, mas ele segura meu braço
suavemente.
— Deixa isso aí, não precisa pegar.
— Minha mãe iria gostar da sua organização.
Seus olhos se iluminam.
— Amo o restaurante da sua mãe.
— E ela ama você — murmuro para que somente eu escute e ele
franze a testa.
— O que você disse?
— Nada!
Liam fica me olhando e eu aponto para a panela que já parou de
estourar a pipoca.
— Acho que tá queimando — aviso e ele corre para desligar o fogo.
— Meu Deus! Sai da minha cozinha, por favor? Você me distrai
demais.
Coloco uma mão no peito, fingindo estar ofendida enquanto me retiro
de mansinho. Assim que passo pela porta, abro um sorriso.
Não deveria estar permitindo esse tipo de interação, mas é
surpreendente como estou gostando da reação que causo nele. Nunca deixei
um homem nervoso com a minha presença, nunca fiz um cara organizado se
atrapalhar e causar um caos. É bom perceber que tenho poder para deixar
Liam assim.
Me sento no sofá e Trevo pula no meu colo.
— Você dá mesmo sorte?
Ele fica me olhando, o rabinho abanando. Ele é empolgado, tem
muita energia e é carente.
Acaricio seu focinho e ele lambe minha mão.
— Acho que você precisa de uma namorada — digo para ele e o cão
late como se concordasse comigo. — Você é meio fofo, mas não conta para
o seu dono que eu disse isso.
Ele rola do meu colo para o sofá e fica se remexendo de barriga para
cima.
— Se você não der sorte, pelo menos compensa em fofura, não é?
— Ele dá sorte. — Liam responde, entrando na sala com a pipoca. —
Tive que fazer mais pipoca, aquelas queimaram.
— E eu achando que você era um bom cozinheiro.
— Eu sou, a culpa foi sua.
— Eu nem fiz nada!
— Fez, sim. Ficou aí sendo linda demais e me distraindo.
Minha voz desaparece quando ele se senta ao meu lado, um sorriso
repuxando os lábios e fazendo a covinha dar sinal de que vai aparecer.
Ele está mais ousado depois de saber que o Edu e eu não namoramos,
parece até que estava se segurando antes.
Liam consegue me deixar sem palavras e não gosto muito de não ter
uma resposta na ponta da língua. O que eu falaria depois disso?
Mordo o lábio inferior e me concentro no Trevo.
Sinto que o dono dos meus pensamentos atuais está olhando para mim
e isso me dá a sensação de que borboletas estão dançando no meu
estômago.
Ele solta uma risadinha e olho para ele de soslaio, está mesmo me
observando e é um dos poucos momentos em que me sinto tímida.
— O que foi? — pergunto e ele coloca meu cabelo atrás da orelha,
uma coisa que ele faz sempre, não sei se gosta de ver meu rosto ou só tocar
meu cabelo, ou então me provocar, só sei que estou gostando que ele faça
isso, o que é uma novidade.
— Eu gosto de te deixar tímida, você fica ainda mais linda afetada
desse jeito.
Reviro os olhos, o corpo tenso.
— Não estou afetada.
— Você nem consegue me encarar.
Ergo o olhar, o desafiando. Ele tem írises bonitas, castanhas, quase
em um tom suave de mel. Sobrancelhas bem desenhadas que sempre estão
arqueadas quando tenta provar um ponto e cílios espessos.
Meu coração palpita vigorosamente, e talvez eu esteja mesmo afetada.
— Você não vai colocar o filme?
Ele assente.
— Você gosta do quê?
— Não sou muito de assistir filme. E você?
— Geralmente, terror.
Não sou muito fã desse gênero, principalmente depois de encontrar o
corpo da minha própria irmã, mas não acho que vou prestar muita atenção
no filme com essa tensão toda no ar, então dou de ombros.
— Pode ser.
— Então você escolhe o filme, já que eu escolhi o gênero.
Concordo e ele me entrega o controle.
Me recosto no sofá e começo a rolar pelos filmes de terror da Netflix.
— Eu achava que você me lembrava alguém. — Ele diz de repente.
— Acho que já sei.
Fico tensa, esperando que ele diga o nome da minha irmã, já que, sim,
éramos muito parecidas.
— Quem?
— Mulan.
— O quê? — Sinto alívio e surpresa ao mesmo tempo, ele sempre me
faz sentir coisas inesperadas.
O encaro, está com a cabeça apoiada no punho fechado, virado de
lado para mim.
— Aquele filme da Disney.
— Você gosta de filmes de princesas?
— Sim, eu fingia que era a Cassandra que gostava só para assistir.
É estranho um homem admitir isso, geralmente eles tendem a
esconder tudo que diminuiria sua masculinidade diante das mulheres, mas
Liam não é assim, não tem a masculinidade frágil.
— Qual era sua preferida? — pergunto, curiosa.
— Com certeza a Mulan.
E lá estão as borboletas dançando de novo. Ele parece estar jogando
comigo.
— Sério?
— Qual é a sua?
Fico pensativa, ainda descendo os filmes sem de fato olhar para
algum.
— Gosto muito de Ariel, mas acho que a Mulan também é minha
preferida.
— Por que se parece com ela?
— Porque ela salvou a dinastia e fez um império inteiro se ajoelhar
em respeito a ela.
Ele sorri.
— Você gosta disso? Das pessoas se ajoelhando por uma mulher?
— Gosto que ela tenha lutado mesmo quando lhe disseram que não
podia, e ainda ter salvado todo mundo.
Ele toca minha mão e estou encarando sua boca.
— Diz isso pelo seu pai?
— Não só por ele. — Dou de ombros. — Sei que o delegado não
gosta de eu ser uma mulher.
— Ele não pode impedir você de trabalhar, mesmo que tente.
— Você me mantém fora de tudo!
— Só porque não quero que você também precise ver um corpo.
— E se eu quiser ver?
— Acredite, linda. Você não quer. — Ele faz uma pausa, como se
estivesse recordando dos corpos que viu. — Não é fácil lidar com esse tipo
de coisa, principalmente para você.
Perco o fôlego e minha pele fica gelada, ele está tentando arrancar
alguma informação de mim, ou talvez já saiba. Liam tem conhecimento
sobre minha irmã? Ou sobre o fato de eu ter encontrado o corpo dela?
— O que quer dizer, Liam?
— Para pessoas que nunca viram um corpo, é preciso certa
preparação antes.
Solto a respiração, aliviada.
Ele não faz ideia de que eu encontrei minha própria irmã morta, não
sabe que aguento qualquer baque que a vida me der.
Não sei quando nos aproximamos, mas nossos rostos estão tão pertos
que sinto sua respiração contra minha pele.
Me viro para a televisão e clico no primeiro filme de terror que
aparece na tela.
— Quer beber alguma coisa? Vou buscar pra você.
Ele faz menção de se levantar e eu agarro o seu braço, dessa vez estou
tensa pelo filme, não por ele.
— Fica aqui, eu não quero nada. Você quer?
Liam nega e se recosta no sofá de novo. Continuo com a mão no
braço dele e a cada sinal de susto, meus dedos se apertam ao redor do seu
pulso.
No momento em que a primeira pessoa morre, solto um gritinho um
tanto feminino e afundo o rosto no ombro dele, me sentindo uma ridícula.
Ele ri, se divertindo com minha reação e acaricia meus cabelos.
— Por que não disse que tinha medo? Quer assistir outra coisa?
Nego com a cabeça, mas quando olho para o Trevo, percebo que
poderia ter usado ele de desculpa. O filhote está com as duas patas da frente
cobrindo o focinho, o rabo não está mais abanando.
— Esse filme é ruim — resmungo e o Liam coloca o pote sobre a
mesinha de centro antes de se espreguiçar.
— Vem se deitar comigo.
Ele abre os braços e me chama, não sei o que dá em mim, no entanto,
acabo deitando na sua frente.
Falo a mim mesma que isso não tem nada demais, mesmo que sinta
que estamos agindo como namorados. Minha cabeça está apoiada no braço
dele e sua respiração atinge minha orelha, o que faz meu corpo inteiro
arrepiar.
É um sentimento perigoso, uma distração.
Estou quebrando minhas próprias regras ao permitir que meu corpo
reaja assim a um homem.
Liam acaricia minha cintura e prendo a respiração.
— Seu namorado ficaria furioso se soubesse que você está assim
comigo.
— Eduardo não é meu namorado e você sabe.
— Por que fez isso? Por que mentiram desse jeito pra todo mundo?
— Na verdade, foi o Edu quem mentiu e eu não tento entender suas
motivações.
— Eu as entendo bem.
Dou de ombros.
— De qualquer forma, nós só estamos vendo um filme — mudo de
assunto, tensa com a possibilidade de ele dizer que o Edu gosta de mim,
prefiro ter só suspeitas a alguém me dizer diretamente. É mais fácil fingir
que isso não existe.
Ele solta um suspiro, deve estar frustrado por eu não ser tão fácil, os
homens sempre se estressam comigo.
— Já te disse que não tenho pressa.
Ainda estou vestindo sua blusa e quando seus dedos brincam com a
barra, sinto um calor se espalhar, indo direto para a minha boceta. É
estranho e novo sentir tanta excitação por um homem que não fez nada
além de roçar os dedos na minha coxa sem querer.
— Onde quer chegar com isso?
Ele solta um som rouco e sensual que só faz minha excitação
aumentar.
— Eu te conto mais tarde.
No momento que vou responder, cometo o erro de olhar para a tela da
televisão. Uma mulher endemoniada aparece bem na hora e tomo um susto
que faz minha voz desaparecer.
Liam me abraça forte por um instante, e assim que minha bunda
encosta na sua ereção, ele se afasta, ficando de barriga para cima, como se
soubesse que ainda não estou pronta para esse tipo de contato.
Achei fofo, mas me surpreende que ele pareça sempre estar com uma
ereção, não sei no que o homem tanto pensa para ficar nesse estado em
ocasiões como essa, quer dizer, o filme é de terror, quem sente tesão com
tanto medo correndo nas veias?
Pergunte isso à sua boceta encharcada, Ming!
Solto um resmungo e fecho os olhos, preferindo não encarar o que
possivelmente me fará tomar outro susto.
Aos poucos, meus olhos começam a pesar e quando dou por mim,
estou sonhando com a cachoeira da cidade e fitas de polietileno por toda
parte.

Acordo com o rosto colado ao peito do Liam, de alguma forma,


acabei em cima dele. Minhas mãos estão agarradas à sua camisa e ele
acaricia meus cabelos enquanto ainda assiste ao filme, o que me faz ter
noção de que não dormi por muito tempo.
Minhas pernas estão entre as suas e sinto calor por toda parte,
daqueles que fazem a gente almejar alguma... coisa.
Não sei bem qual seria a sensação de fazer sexo, sei na teoria o que
acontece e nunca antes tive interesse profundo no assunto, mas agora não
sinto só interesse, sinto necessidade de experimentar e descobrir por conta
própria o que acontece quando um homem faz uma mulher gozar.
Afasto os cabelos do rosto e Liam para de fazer cafuné.
Olho para cima, seus olhos estão atentos aos meus movimentos e é
um olhar tão quente que parece até saber o que estou sentindo.
— Ming? — Sua voz é rouca e sedutora.
— Hmm?
— Vem cá.
Obedeço no automático, como se puxada por uma linha invisível.
Engatinho pelo seu corpo até estar com o rosto sobre o seu, meus cabelos
fazendo uma cortina ao nosso redor.
— Quando eu digo essas coisas, é sua tarefa impedir. — Ele
murmura. — Se você não fizer isso, eu vou acabar te beijando.
— E se eu quiser ser beijada?
Ele não está sorrindo agora e eu entendo a seriedade do momento, a
tensão é grande demais para fazer qualquer coisa além de olhar nos olhos
um do outro.
— Se quer um beijo, então pegue.
Olho para sua boca, suas palavras sendo combustível para uma libido
que eu nem sabia poder ser instigada.
Meu rosto se move de encontro à sua boca, mas antes que o beijo
aconteça, Trevo surge do nada no meio de nós dois e é ele quem lambe
minha boca ao invés do Liam.
Me sento no sofá, fazendo uma careta. Liam solta um gemido e olha
feio para o Trevo.
— Mudei de ideia, você não dá sorte, você é um empata foda.
Limpo a boca, resmungando alguma coisa sobre germes conforme
corro para o banheiro. Liam continua falando com o filhote como se ele
pudesse entender.
Eu quase cedi e nem sei bem o motivo por estar relutando, só sei que
preciso focar no assassino agora.
Minha irmã é a prioridade, não minha vida sexual.
LIAM
A mãe dela não conseguiu acalmar o Sr. Yang. Ming ficou a tarde
inteira na minha casa e depois do quase beijo, fugiu para o outro canto do
sofá e não parou de olhar o visor do celular, obviamente me evitando.
Passei um filme de terror inteiro de pau duro, na verdade, acho que
nem sei mais como é não estar de pau duro, por exemplo, nesse exato
momento minha ereção poderia ganhar um prêmio por persistência.
Estou tentando dirigir até a delegacia, sem que ela pense que sou um
tarado, mesmo que eu seja.
Ela colocou de volta as roupas de ontem e um boné preto que esconde
seu rosto. Não sei o porquê de ela usar tanto essas coisas, já confisquei um e
acho que vou ter que continuar confiscando até ela entender que não vai
conseguir ficar com nenhum perto de mim.
— Eu acho muito estranho a Ana Luiza ter sido morta, estranho não,
acho muito suspeito. — Ela está dizendo e só consigo pensar em como foi
bom ter sentido seu corpo inteiro tocando o meu. Será que ela não está
pensando nem um pouquinho nisso? Será que só eu fui nocauteado? — A
Pamela me contou que ela era amante do Vitor, foi isso que eu tentei te falar
e você me interrompeu naquela hora.
Ela fala como se tivesse acontecido há um século, mas não digo isso a
ela, tenho medo de abrir a boca e o que sair dela não ter nada a ver com a
conversa.
— Você não acha estranho? A Pamela disse que o Vitor só procurava
dinheiro quando ia ver a Ana Luiza, a mulher era a nossa única pista válida
e agora está morta.
— O assassino sabia que ela era uma ponta solta. — A instigo a falar
mais e, pelo canto do olho, percebo que está se mexendo, empolgada.
— Foi o que pensei! Por isso acho que alguém da delegacia esteja
envolvido. Talvez.
Estaciono o carro na minha vaga de sempre e viro o corpo para ela,
dessa vez completamente focado na conversa, ignorando a quão
incrivelmente linda ela fica quando está sendo toda inteligente e
profissional.
— Ming, você não pode falar disso por aí, ok? Se for mesmo verdade,
não é bom atrair ainda mais atenção, esses casos já estão se voltando
demais contra você.
— Ainda acho que devemos analisar os casos de oito anos atrás. —
Ela me ignora e respiro fundo.
— Não acho que seja o mesmo assassino.
— Está mesmo falando sério?
— O assassino de oito anos atrás não usava enforca-gatos para
asfixiar.
— Mas os hematomas são os mesmos, e as cenas do crime também
batem. Além do tempo entre cada assassinato.
Meu corpo fica tenso. A mulher está jogando um jogo perigoso e não
gosto nada disso, me faz pensar que preciso ficar ainda mais de olho nela.
— Talvez o assassino seja um homem, vimos um suspeito fugindo da
cena do crime, infelizmente, não conseguimos pegá-lo.
— Não anota isso naquele quadro. — Ming orienta. — Se for alguém
de dentro da delegacia, é melhor manter o máximo de sigilo.
— Impossível, o Felipe estava na cena e ele é o maior fofoqueiro da
delegacia.
Percebo seu corpo retesar ainda mais ao ouvir o nome do Felipe e
odeio não ver direito sua expressão, então arranco o boné da sua cabeça,
jogando no banco de trás.
— Pode parar de usar essas coisas? — pergunto e ela nega.
— Por que eu faria isso? Gosto de boné.
— Eu odeio não ver seu rosto.
— Você não precisa ver meu rosto, só escutar o que estou dizendo.
— Ah, você não faz ideia. Ver seu rosto se tornou o anseio dos meus
dias.
Percebo o que acabei de falar e congelo.
— O quê?
Sua expressão é de espanto, e quase pego o boné e coloco no seu
rosto de novo.
Parabéns, Liam. Muito bem. Continua assustando a garota e você vai
conseguir tudo o que quer.
— Você é a única mulher na delegacia, eu gosto de apreciar mulheres
— tento consertar meu erro e acabo me afundando ainda mais na confusão,
fazendo parecer que ficaria feliz ao ver qualquer mulher, quando não é nada
disso, e agora ela me olha como se eu fosse um cafajeste.
— Ok. Voltando ao caso, preciso confessar uma coisa. — Ela
resmunga e faz uma pausa, olhando para o painel do carro atentamente. —
Talvez eu tenha estado nas cenas dos crimes.
— Eu sabia! — exclamo, cerrando os dentes ao perceber que ela está
confessando ter me desobedecido. — Você é... meu Deus, Ming! Eu nem
consigo expressar o quanto estou irritado agora.
— Tá, tá, eu sei. Fique irritado depois, na verdade, a culpa é toda sua
por não me dar um voto de confiança.
— Ah, você tá de sacanagem, não é?
Ela é impossível!
— É você quem sempre me deixa de fora!
— Esquece, você não vai jogar isso pra cima de mim!
Ela bufa e cruza os braços, agindo como uma criança e acabo
suspirando, como sempre, cedendo primeiro.
— Ok, você não chegou a ver os corpos de perto, chegou?
— Não.
— Mas ficou tudo bem? Em ver de longe?
Ela me olha desconfiada e só quero dizer que sei sobre sua irmã e
sobre como deve ter sido difícil para ela ter passado por uma situação onde
a irmã foi assassinada, mas quero que ela se abra comigo sem precisar
disso. Não é um assunto que se força alguém a falar.
— Eu ser mulher não significa que sou frágil.
— Eu sei, linda.
Ela revira os olhos.
— Esquece, só estou tentando dizer que vi o Felipe pegando algo na
cena de crime onde a Ana Luiza foi achada.
Franzo a testa, então a compreensão me atinge. Ela pensa que é o
Felipe? Bom, se for mesmo alguém da delegacia, não é do Felipe que eu
desconfiaria, muito pelo contrário.
— Eu sei, Ming. — Ela me encara com surpresa e me ajeito no banco.
— O pessoal de Porto Alegre estava querendo tomar a frente do caso e
fiquei com medo de pegarem alguma coisa sem que a gente percebesse,
então, distraí o policial responsável enquanto o Felipe e o Pedro
procuravam provas para mandarmos para nossa perícia. Fiquei sabendo que
temos noventa dias para avançar no caso, senão teremos que pedir
permissão para continuar investigando.
O semblante dela relaxa, como se no fundo não quisesse desconfiar
de alguém de dentro da delegacia, então sua expressão enrijece de novo, o
olhar sagaz me analisando.
— Ok.
— Era só isso?
— Acho que sim.
— Não é legal você ficar desobedecendo às minhas ordens.
— Vou desobedecer quando achar necessário.
Como ela consegue ser descarada e petulante a esse nível?
— Ming...
— E você não vai dizer nada ao delegado, senão vai acabar tendo que
encontrar outra mulher pra apreciar no horário de serviço. — Sua voz é
áspera e sinto o arrependimento das minhas palavras voltar.
— Eu só quis dizer que...
— Eu entendi. — Ela me interrompe e sinto um caroço na garganta.
— Não entendeu, eu só gosto de admirar você.
Coloco uma mecha do seu cabelo atrás da orelha e percebo que já se
tornou uma mania fazer isso, mas ela parece desconfortável dessa vez.
— Só você — completo e sei que soou meio intenso, mas a verdade é
que não sinto que poderia olhar para qualquer outra mulher tendo ela por
perto, Ming é linda demais e mesmo quando está longe, ainda posso
desenhar seus traços na minha mente.
É bizarro perceber que essa garota cravou as garras de gatinha raivosa
em meus pensamentos e criou morada, o pior é que não sinto que vai se
mudar tão cedo, nem sei se quero que o faça.
Ela está fria desde o quase beijo, não sei explicar, ela não me olha do
mesmo jeito de quando estava em cima de mim. Para ser honesto, até
parece que aquele momento foi apagado da mente dela.
— Hm... a gente devia entrar. — Ela murmura. — Podemos falar
sobre o caso depois.
— Está tentando me evitar?
— O quê? — Ela franze a testa, olhando para qualquer coisa, menos
para mim. — Claro que não!
— Evitar o que quase aconteceu, então?
Ela fica em silêncio.
— Ming, somos adultos. — Continuo falando, erguendo seu queixo
para que se concentre no meu rosto. — Não é como se você nunca tivesse
beijado antes, é uma coisa normal.
— A gente não se beijou.
— Mas quase aconteceu.
— Podemos não falar nisso?
— É só que você está agindo como uma puritana.
— Talvez eu seja. — Ela resmunga e meu corpo congela. Seu
semblante se torna emburrado e ela abre a porta. — Te vejo lá dentro.
Assim que ela sai do carro, vejo o Felipe e o Eduardo parando em
frente à delegacia. Eles acabaram de vê-la sair do meu carro e a expressão
do Eduardo não é muito boa.
Não me dou conta de nada disso, estou assistindo aos passos
apressados dela, me perguntando que desgraça de mulher eu arrumei para
minha vida, quer dizer, ela caiu de paraquedas e já está mexendo mais com
a minha cabeça do que qualquer outra tenha mexido.
Meu corpo está formigando em curiosidade e quero muito descobrir
mais sobre ela, mais sobre o que quis dizer antes de sair do carro.
Ming poderia ser virgem?
Nego com a cabeça, claro que não. Não há muitas mulheres que
preservam a virgindade na idade dela, e ela era de São Paulo, com toda
certeza deve ter namorado por lá, ou então conhecido alguém.
Meu corpo começa a dar sinais de ciúmes ao pensar em outro homem
a tocando, e tento me convencer de que não sou um homem das cavernas.
Ela é uma mulher independente, decidida e pode dormir com quem quiser,
eu só preciso garantir que ela queira fazer isso comigo e só comigo.
Vejo o Eduardo colocar um braço em volta dos ombros dela e meus
dentes rangem.
Beleza, talvez eu seja um pouquinho possessivo.

Não consigo trabalhar. Não é nada fácil manter a concentração


quando tem uma formiga querendo morder o meu docinho.
Ergo o olhar das folhas na minha mão, Eduardo não descola de Ming
e isso está tirando minha paz. Os dois não param de cochichar e estou
realmente interessado no assunto, não estava até ele se inclinar em direção a
ela. Agora sei que o babão também pode sentir o aroma do perfume
enlouquecedor dessa mulher.
Levanto-me da minha cadeira, eles estão na mesa do Eduardo, então
me aproximo dos quadros, chegando o mais perto possível para conseguir
ouvir a conversa sem ser descoberto.
— Você está saindo com ele agora? — Eduardo está perguntando.
— Do que está falando?
— Você continua usando a mesma roupa de ontem. — Ele explica e
reviro meus olhos. — Acha que não percebi? E você chegou no carro dele.
Ming rabisca alguma coisa em um papel, parece mais concentrada nos
desenhos do que em Eduardo, mas, ainda assim, responde:
— Liam e eu não temos nada. — Meu corpo fica tenso. Ela está
mesmo dizendo isso depois de dormir a tarde toda nos meus braços e quase
me beijar? — E nem vamos ter.
Esbarro no quadro sem querer e preciso segurar para que ele não caia,
agora os dois me encaram.
— E eu achando que a Ming era o desastre da delegacia. — Pedro
zomba, aparecendo ao meu lado. — O que tá fazendo, tapado?
— Ele gosta de você. — Eduardo continua falando e estreito os olhos
para tentar ouvir melhor, mesmo que os olhos não tenham nenhuma relação
com os ouvidos. — Está dando falsas esperanças a ele?
— O Liam sabe que não vai rolar nada, relaxa.
Eu sei? Ela fala com convicção, mas eu estava crente que iríamos
transar em algum momento.
— Liam? — Pedro continua me importunando e me viro para ele, o
puxando pela nuca e abaixando seu rosto para perto do meu. — Vai me
beijar, caralho? Eu sou um homem comprometido!
— Shh — rosno, estamos inclinados, virados para o quadro. —
Chama a Ming pra sair.
— Eu sou gay, porra.
— Não seja idiota! — exclamo. — Inventa alguma coisa, finge que
quer que ela conheça seu noivo. Sei lá. Tem que ser hoje.
— Que merda você tá aprontando?
— Ela não irá se você disser só isso — divago, então abro um sorriso
ao pensar em uma coisa melhor e que é a cara da Ming. — Diz que
podemos usar a saída de pretexto para ver o que as pessoas estão falando
por aí sobre os assassinatos e talvez conseguir pistas, assim, ela vai topar.
Só eu, ela, você e o Leo.
Ele balança a cabeça.
— Liam, você sabe que essa família é rígida com lance de
compromisso, né? Ming não é só mais uma brasileira de Monte Azul que
gosta da ideia de sexo sem compromisso, ela vem da família Yang, eles
devem ter tradições chinesa. Já ouvi aquela senhora dizendo a uma garota
na rua que a coisa certa a se fazer é se casar.
Casamento? Pedro às vezes viaja demais.
— E daí?
— Você não vai poder comer ela e sair fora, sem falar que ela trabalha
com a gente, vai ficar mó climão, cara.
Aperto a nuca dele, nervoso com suas palavras.
— Eu não vou fazer nada, juro.
— Certeza?
— Eu só quero conhecê-la melhor. Gosto dela de verdade, Pedro.
Isso, e estou meio preocupado com a maneira que ela fala de mim por
aí, com desinteresse.
— Você tá querendo macetar a garota, Liam, seu pervertido! — Ele
sussurra a acusação e abro a boca para dizer que não é isso, mas não posso
mentir para o meu melhor amigo.
— Macetar é uma palavra muito rude, eu prefiro fazer um amorzinho.
— Quero ver se você vai continuar rindo e falando isso quando o pai
dela descobrir suas gracinhas.
— Ela já é uma mulher, Pedro. E ninguém sabe o dia de amanhã —
faço uma pausa, olhando para a chinesa irritadinha por sobre o ombro. —
Eu posso me apaixonar perdidamente por ela.
Pedro solta uma gargalhada que atrai olhares.
— Você? Se apaixonar? Está tirando onda com a mulher errada,
parceiro.
— Por onde você está andando pra vir cheio de gíria pra cima de
mim? — questiono e ele dá de ombros.
— Pelas quebradas da vida.
— Você foi em mais um churrasco na casa do tio do Leo, não foi?
Ele assente, fazendo uma expressão triste.
— Aquele velho fica me obrigando a chamá-lo de mano o dia inteiro.
— Coitadinho de você.
— Não é?
— Não. Agora vá fazer o que te pedi.
Ele respira fundo como se soubesse que isso vai dar merda, mas
concorda com a cabeça.
— Tá bom. Vou falar com ela e com o Leo.
Ele volta para a mesa dele e o conheço bem o suficiente para saber
que quer esperar o momento em que ela esteja sozinha, até eu prefiro assim,
se é que o idiota do Eduardo vai se afastar dela.
Felipe se levanta de seu assento após desligar o telefone, e confesso
que estou começando a sentir medo dessas ligações. Ele se aproxima de
mim e, pela primeira vez, diz baixinho:
— Chegou o resultado da perícia daquela evidência.
— Era mesmo a digital do assassino?
— Sim.
Meu coração acelera com a adrenalina que corre pelas minhas veias.
— O que descobriram?
— A digital estava contaminada, não sei o que aconteceu, mas não foi
possível descobrir a quem pertencia. Só descobriram que não era da Ana
Luiza.
— Droga! — rosno, socando o quadro e fazendo-o girar sem parar.
— Foi por pouco, mas o maldito escapou. — Felipe resmunga e solta
um suspiro. — E agora?
Me viro para o restante da equipe.
— Chegou mais uma análise da perícia. — Todos me encaram. —
Infelizmente, a prova que conseguimos foi contaminada.
Vejo a Ming franzir a testa e fechar as mãos em punhos, não é de
agora que percebo como ela leva isso a sério demais. Eduardo estreita os
olhos ao seu lado.
— Vocês tinham uma prova?
— Sim.
— Por que não contou antes? — Ele se levanta do seu lugar, está
nervoso e não gosto disso.
— Estou contando agora. — Ele bufa, e é minha vez de ficar nervoso.
— Algum problema?
— Só não entendo o motivo por você ocultar informações relevantes
da gente, você não é o único trabalhando aqui.
— Sugiro que tome cuidado com as palavras.
Ele solta uma risada sem humor e a Ming segura o seu braço, o que
me deixa ainda mais puto.
Ela precisa parar de causar essas coisas em mim. Ciúmes não é legal
e eu nunca fui de sentir isso.
— Fica calmo. — Ela diz para ele naquele tom de voz doce, mas ele
não sabe apreciar isso, já que afasta a mão dela e sai da sala, emburrado.
Agradeço mentalmente por isso, caso contrário, não sei se aguentaria
muito mais da Ming sendo gentil com outro homem.
Essa merda está me enlouquecendo.
MING
Não sou do tipo que concordaria com uma saída no fim do
expediente, mas o Pedro me convenceu na parte em que talvez as pessoas
de fora nos dê alguma pista, não sei como não pensei nisso antes.
O barzinho é bonito e tem música sertaneja ao vivo. As mesas são de
madeira, mas a maioria das pessoas estão em pé, dançando. É quase uma
balada, eu acho, já que nunca fui em uma.
Pedro não chegou ainda, ele disse que ia buscar o noivo no trabalho, o
que significa que Liam e eu estamos sozinhos. Estou me sentindo estranha
enquanto tento não olhar para ele tomando essa maldita cerveja e finjo não
estar desejando ser a maldita cerveja, mesmo que eu própria não consiga
sequer fitar o álcool agora.
Tomo um gole do suco de laranja com acerola que pedi, mas nem isso
refresca minha garganta seca por muito tempo.
Minha perna está inquieta, tremendo debaixo da mesa, não dá para
ouvir muita coisa além de risadas, e não sei mais como eles puderam achar
que teríamos pistas em um lugar desses. Liam está sentado do meu lado e
olha em volta, de um jeito que me faz ter certeza de que é acostumado com
esse tipo de ambiente, está tão relaxado que me pergunto quantas vezes ele
já frequentou bares assim para paquerar.
A ideia me deixa emburrada e paro de analisar as possibilidades,
ciúmes é uma coisa completamente inédita para mim, nunca senti ciúmes de
um cara antes, e, não, ter ciúmes do meu pai com a Fang na adolescência
não conta.
Seus dedos tocam minha coxa de repente e paro com o tique, e então
não sei direito como se respira. Um arrepio percorre minha espinha quando
ele dá um aperto em minha carne.
— Está nervosa?
— Não. — Me remexo na cadeira até ele afastar a mão.
— É o lugar?
Olho para o seu rosto, agora ele está me observando e me pergunto
como alguém que acabou de me conhecer pode saber tanto de mim, até
mesmo quando estou desconfortável.
Talvez seja o tique na perna, mas isso nem é um indício, não é?
— Só estou estressada.
Ele sorri de lado.
— Ia dizer que conheço um jeito de te desestressar, mas o Pedro e o
Leo estão chegando.
Palpitações, ele causa esse tipo de coisa em mim. Esse é o momento e
o local errado para ficar excitada, mesmo assim, sinto o sangue correndo
quente pelo meu corpo.
Fico de pé quando o Pedro se aproxima com um homem loiro tão
forte quanto ele. Olhos azuis e um sorriso de covinhas são o charme do
noivo do Pedro, além de um braço fechado com tatuagens.
— Boa noite. — Ele cumprimenta e percebo que também tem a voz
grossa. O combo completo — Eae, Liam. — Eles trocam um aperto de mão
antes do noivo do Pedro se virar para mim. — Você deve ser a Ming. Eu
sou o Leonardo.
Ele se inclina e me beija no rosto.
— Muito prazer — cumprimento e todos voltamos a nos sentar.
Eu ainda estou pensando no que o Liam disse e no que ele faria para
me desestressar.
É normal uma virgem ter a mente tão poluída? Porque tudo o que
penso envolve nós dois, preferencialmente sem roupas.
— É a primeira vez que o Pedro me fala que uma mulher está
trabalhando na delegacia. — Leo inicia a conversa e abro um sorriso
forçado.
— Na verdade, eu também não entendo o porquê de ser a única
mulher lá.
— É porque poucas mulheres daqui querem ser policiais. — Liam
responde.
E é verdade, a maioria das garotas do ensino médio dizia que queriam
ser médicas, veterinárias, empresárias, ou se casarem com homens ricos e
ser donas de casa. Naquela época, eu não sabia o que queria ser, então
também respondia a resposta padrão quando me perguntavam.
Fang queria assumir o restaurante da nossa família, e era o que se
esperava de mim também, até que a sede de vingança me fez ir por outro
caminho.
— Você também trabalha à noite? — mudo de assunto e todo mundo
parece mais à vontade com a mudança, principalmente o Liam.
— Sim, o Pedro decidiu mudar o turno por minha causa. A gente
estava tendo crises de casal, principalmente quanto ao sexo, quando eu
queria, ele sempre estava cansado, e quando ele queria, era eu quem estava
cansado.
— Ah, sexo. Sei.
Mais uma coisa estranha dessa noite: é muito bizarro conhecer
alguém tão aberto quando sou um cadeado enferrujado.
O Leo sorri, parecendo entender meus pensamentos.
— É. Por isso que eu falo que relacionamentos são incríveis e difíceis
ao mesmo tempo, quando a gente gosta de alguém, tem que tentar de tudo
para não deixar o relacionamento esfriar.
— Entendi.
— Acho que isso não seria uma coisa com a qual eu precisaria me
preocupar. — Liam sorri, excessivamente convencido ao balançar as
sobrancelhas para mim. Tenho vontade de avisar que ele está parecendo um
idiota, mas às vezes, as pessoas precisam passar por esse tipo de vergonha.
— Não, seu problema é em conseguir uma namorada — Pedro zomba
e isso me deixa interessada na conversa, não sabia que Liam tinha esse tipo
de dificuldade.
— Eu faço o tipo de todo mundo — Liam se gaba, refutando as
palavras do amigo, que me lança um olhar conhecedor.
— Você não faz o meu tipo. — Pedro responde e percebo que o Liam
arruma a postura instantaneamente, como se estivesse ofendido.
— Como assim? Por que eu não faço o seu tipo?
— Sei lá, você é estranho.
— Isso nem é um motivo válido!
Pedro ri e olho à nossa volta como se pudesse encontrar alguém
suspeito, claro que não encontro ninguém além de um monte de mulheres
encarando os homens da minha mesa.
— Ming? Você me acha estranho? — Liam pergunta e tenho certeza
de que está olhando para mim, só por isso finjo desinteresse.
— E irritante — acrescento sem lhe dirigir o olhar e posso escutar o
som de indignação que escapa do fundo da sua garganta, é quase um
grunhido sexy.
— E eu achando que a gente ia se casar e adotar três filhos. — Liam
diz para o Pedro e vejo o homem revirar os olhos.
Estou tentando não reparar na conversa, tampouco na loira corpulenta
que se virou de frente para o Liam, encarando-o abertamente enquanto
ergue um pouco a saia já curta.
— Eu estou noivo, Liam. — O Pedro o informa e me pergunto se eles
são capazes de reparar na atenção que estão chamando.
— Sem ofensas, Leo. — Liam se inclina em direção ao noivo do
Pedro. — Mas eu jurava que ele ia te abandonar no dia do casamento e
fugir comigo.
Pedro e Leo começam a rir e o Liam me encara quando não
acompanho as risadas, está franzindo a testa e me sinto desconfortável, não
só pela sua encarada, mas como a mulher agora rebola ao som da música,
tentando atrair a atenção do homem que não tira os olhos de mim.
Estou em estado de alerta, e sei que o Liam está fazendo essas piadas
idiotas na tentativa de me deixar relaxada.
— Por que você não está rindo? — Ele indaga e finalmente olho para
o seu rosto.
— Suas piadas são ruins — respondo, cerrando os dentes quando a
loira chama uma garçonete e diz alguma coisa apontando para o Liam.
— Ou talvez você que seja ranzinza.
Fico na defensiva ao ouvir suas palavras e não acho que consegui
disfarçar antes de eles notarem.
— Pode ser, não era eu a engraçada da família.
Ele parece arrependido das próprias palavras e odeio ser uma estraga-
prazeres, então mais uma vez olho em volta, pensativa e ainda mais distante
da conversa, não antes de perceber que Pedro e ele trocam um olhar
enigmático.
A garçonete aparece com uma bebida e deposita na frente do Liam.
— Desculpa, mas eu não pedi isso. — Ele diz e a garçonete sorri.
— Cortesia da moça de prata. — Ela informa, apontando para a loira
que abre um sorriso e morde o lábio inferior, fitando Liam de cima a baixo.
Fecho meus punhos, ainda fingindo estar olhando para outro lugar,
mas é claro que estou atenta à mesa, o suficiente para reparar na risada sem
vergonha que o Liam dá antes de acenar para a mulher de forma
provocante.
Quero quebrar o copo na cabeça dele.
Desgraçado! Ele está agindo como se eu não estivesse bem aqui, ou
como se não tivesse jogado charme para mim em momento nenhum.
— Você gosta de alguém, Ming? — Leo pergunta de repente,
chamando minha atenção e decido que é o momento de me vingar.
— Eu? — Arregalo os olhos exageradamente. — Não, eu não.
Liam arranha a garganta e se mexe na cadeira, eu engulo seco e acho
que todo mundo percebe que alguma coisa aconteceu entre nós, pois,
querendo ou não, é impossível esquecer que quase beijei esse homem, pior,
se tivéssemos mesmo nos beijado, acho que não pararia por aí.
E agora ele está aqui, bebendo algo que outra mulher lhe ofereceu
bem na minha frente. Parece estar querendo esfregar na minha cara que
tem mais opções.
— Como não? Você é tão linda, tem que ter alguém. — Leo me
elogia e acabo sorrindo em meio à raiva e ao nervosismo.
— Ah, obrigada. É só que… não. Não tem ninguém.
Os dois homens sentados à minha frente encaram Liam com a testa
franzida, é desconcertante, como se eu estivesse tentando negar algo que já
foi escancarado.
Será que o Liam contou? O que isso importa? Ele é um safado.
— Sei. Mas tem algum motivo em particular?
— Eu não tenho tempo pra essas coisas.
Leo ri alto.
— Meu Deus, quem não tem tempo para o amor? É a coisa mais
incrível na vida de uma pessoa. Minha vida mudou radicalmente depois que
conheci o Pedro, é muito bom estar apaixonado, mesmo que você queira
matar a outra pessoa de vez em quando.
— Você é tão romântico. — Pedro brinca e os dois trocam um
selinho.
— Hmm, eu também não tenho jeito com homens — confesso, dando
uma risada sem graça que chama a atenção do Liam, já que ele me encara
como se eu fosse uma tremenda mentirosa.
Mais uma vez me pego pensando naquele quase beijo e na maneira
como nunca me sinto realmente nervosa com ele, não de um jeito que me
impossibilite de ser eu mesma.
— Ah, mas quanto a isso podemos te ajudar. Você está com três
homens agora. — Leo se empolga e parece que somos velhos amigos, não
me lembro de alguma vez ter falado essas coisas com alguém. — Liam,
vamos fingir que vocês estão em um primeiro encontro. Ming, você tem
que flertar com o Liam.
— O quê? Não, eu não sou boa nisso. Esquece.
É um péssimo momento, principalmente com aquela mulher se
requebrando inteira para o cara ao meu lado.
— Vai, uma tentativa. — Leo insiste.
Não sei se gosto ou se odeio o noivo do Pedro, mas solto um suspiro e
me viro para o Liam, que parece estar balbuciando a palavra “obrigado”
para o Leo, mas eu devo estar enganada.
— Oi — digo e ele se ajeita na cadeira, virando quase que
completamente para mim, está sorrindo, só que continua com o maldito
copo na mão.
— Oi, linda.
Estreito os olhos.
— Isso está bom?
— Uma delícia.
Ele sabe que estou puta.
— Você vem muito aqui? — mudo de assunto, tentando não
demonstrar emoções demais, tipo a vontade que estou de me levantar e
dizer para aquela mulher que ela não tem a menor chance de ficar com o
que é meu.
Vejo Leo fazer uma careta enquanto o Pedro parece segurar a risada.
— Às vezes. — Liam responde, o sorriso se tornando cada vez maior.
Ele está com essa expressão descarada de flerte e odeio que meu
subconsciente fica se perguntando quantas mulheres já a viram antes.
— Legal.
Ele solta uma risada mal disfarçada e fico tensa.
— Eu disse que sou péssima — falo, me virando para o Leo e ele faz
sinal para continuarmos.
— Finjam que não estamos aqui.
— O que você curte fazer? — Liam pergunta, mordendo uma
batatinha frita. — Me conta mais de você.
— Gosto de ver casos criminais e praticar artes marciais no tempo
livre.
Ele me olha, surpreso.
— Quais tipos de casos criminais?
— Hmm... — Fico pensativa. — Casos de seriais killers, daqueles
bem macabros.
— Um tema pesado pro primeiro encontro. — Leo sussurra para o
noivo e o Pedro concorda.
— Eu também curto, uma vez assisti um que cortou a mulher em
pedaços.
— Sério?
Também pego uma batatinha, agora mais relaxada na cadeira.
— Aham, ele a enterrou no quintal depois de montar seu corpo como
um quebra-cabeça.
— E como foi pego?
— Ele tinha um cachorro e o cachorro cavou e tirou a mão da mulher.
Fico surpresa pela idiotice do assassino.
— É isso que não entendo, como o cara consegue matar alguém e
ainda criar um cachorrinho?
Liam dá de ombros.
— Pessoas bizarras existem em todo lugar.
— Acabei de perceber que você tem um cachorrinho fofo, por acaso é
um assassino?
Ele me olha e come outra batatinha, é o tipo de encarada que não
deveria ser dada em público.
Estou quase esquecendo da garota loira a alguns metros de distância,
mas espero realmente que ela note a maneira que ele me encara, é quase
como se estivesse faminto.
— Talvez.
Balanço a cabeça.
— Uma vez assisti a um que a filha matou os pais a sangue frio só pra
ficar com a herança — comento, tomando mais um gole do suco. De fato,
agora está sendo fácil ignorar a presença do Leo e do Pedro, exceto quando
eles fazem expressões chocadas, como agora.
— Como você pode ter medo de filme de terror e assistir a essas
coisas? — Liam me pergunta e paro de prestar atenção nos dois rapazes do
outro lado da mesa.
— Casos criminais são só fatos, não assustam a gente.
— Agora entendi o porquê de ele gostar dela, os dois são estranhos.
— Escuto o Leo dizer e me viro para ele.
— Eu avisei que não daria certo.
— Mas deu, vocês se entenderam.
— É fácil conversar com alguém que já conheço e que é do trabalho,
não é tão simples quando é um cara que não conheço bem.
— Você conheceu o Liam, tipo, ontem. — Pedro recorda e dou de
ombros.
— É diferente, o Liam é o Liam.
— O que quer dizer com isso? — O Liam pergunta, franzindo a testa.
— Nada — resmungo.
Agora a mulher está dizendo algo para a amiga e tenho a impressão
de que está prestes a se aproximar, se ela fizer isso e ele der moral, não
respondo por mim.
— É porque você está querendo vê-lo como amigo. Isso te joga pra
zona de conforto. Agora, tente vê-lo como homem. — Leo aconselha e me
viro para o Liam.
Ele parece meio ofendido, agora completamente em silêncio. Observo
os traços masculinos do seu rosto e cruzo as pernas ao sentir uma fisgada lá
embaixo, e é por isso que não gosto de me lembrar do quanto ele é atraente,
mas como eu diria em uma mesa com três homens que fico com tesão
sempre que admiro a beleza desse cara?
Meu coração acelera ao ficar de frente para ele assim, tão perto. Me
faz voltar para o sofá da sua casa e àquele quase beijo.
Abro a boca para dizer alguma coisa, porém, as palavras me fogem e
entro em desespero, mais uma vez jogada naqueles encontros que não
deram certo.
Fico de pé e ele me acompanha, ambos surpresos com minhas ações.
— Não dá, esquece isso. — Começo a andar para trás, a essa altura
Pedro e o Leo também estão de pé.
Liam se aproxima de mim.
— Está tudo bem, Ming. Sou só eu.
Esse é o problema, será que ele não vê?
— Eu vou pra casa, não vamos encontrar nada aqui.
Meu corpo bate em alguém que não vi atrás de mim e de repente a
garçonete deixa cair as bebidas em cima de mim e do Liam. Em um
segundo, estamos encharcados.
Vejo a garota loira rir e me olhar com uma expressão irritante de
superioridade.
— Ela não estava brincando quando disse que não era boa fazendo
isso. — Leo comenta e Pedro começa a rir.
— Eu falei pra você que ela era um furacão.
— Eu não imaginei que fosse tanto assim.
Me viro para os dois, irritada e desconfortável com a situação,
principalmente por uma mulher que esteja interessada no Liam zombar da
minha cara.
— Isso é culpa de vocês.
Eles fazem expressões inocentes e me sinto mais frustrada com o
quanto eu me importei com essa idiotice toda, eu nem devia ter topado fazer
esse joguinho, estava na cara que não daria certo.
Peço desculpas à garçonete e ela diz que está tudo bem, que vai
limpar a bagunça.
Me sinto péssima por aumentar o trabalho dela.
— Tudo bem? — pergunto ao Liam, que tenta tirar bebida do próprio
rosto.
— Aham.
Ele se aproxima mais de mim e posso adicionar mais um momento
constrangedor à minha lista interminável. Tudo que tem a palavra
"encontro" no meio, tem potencial para virar uma catástrofe na minha vida,
mesmo que de brincadeirinha.
— Sabe o que gosto em você? — Ele pergunta, limpando meu rosto
com um guardanapo de papel. Seus dedos estão segurando meu queixo e
sou obrigada a olhar em seus olhos.
— O quê?
— Eu nunca sei o que esperar. Você é a pessoa mais desastrada e
divertida que já conheci na vida.
— Isso não tem graça.
— Eu sei. — Ele fica sério. — Ming, eu só quero que você me veja
como eu te vejo, não quero que fique nervosa perto de mim, pensando nas
mil coisas que poderiam dar errado, porque é isso que anseio toda vez que
te vejo. Esses momentos desastrosos é o que fazem você ser a Ming, e eu
adoro essa Ming.
— Eu não fico nervosa perto de você, isso nem foi de verdade. É a
palavra encontro que me apavora.
— Tudo bem.
— Eu não gosto de você assim — minto e odeio que isso deixe seu
corpo tenso.
É isso que quero dizer quando falo que não sei lidar com um homem
que me atrai. Ou sou grossa, ou sou mentirosa, ou sou qualquer coisa que
faça o cara se afastar de vez.
Mesmo que nós dois saibamos que minhas palavras foram uma
mentira, eu só espero pelo momento em que ele também vá se afastar,
porque eu sempre estrago tudo quando o assunto envolve homens.
Nesse momento, o cantor cover solta o refrão da música Menina
Maluquinha do Jorge e Matheus, olhando diretamente para o Liam e eu:
Te ver chegar, me faz voar
até a Lua e voltar
Te ver chegar sozinha
Hoje você vai ser minha

Minha namorada,
Minha princesinha,
Meio atrapalhada,
Menina maluquinha
O homem na minha frente ainda segurando meu rosto sorri e termina
de limpar a bebida da minha pele.
— Meio atrapalhada... — cantarola para que só eu escute em uma voz
sensual quase absurda. — Minha menina maluquinha.
Mais uma vez sinto o coração acelerar e é muito difícil conter o
sorriso.
Esse homem me deixa maluca.
Quero dizer isso a ele, mas aquela loira escolhe esse momento para
esbarrar em nós dois.
Minha expressão se fecha novamente e o Liam olha para a mulher
que daria duas de mim fácil, o que ela tem de perna e bunda eu não teria
nem com ajuda de silicone, não que isso me torne insegura, mas ela é linda
e o Liam tem olhos, ele sabe que ela é gostosa.
— Oi. — Ele cumprimenta a garota quando ela continua parada ao
nosso lado, olhando para ele.
Cruzo os braços quando ela lhe estende um papel com o número do
seu celular.
— Para quando você se cansar de brincar. — Ela diz em meio a um
sorriso sensual e assim que o Liam segura o papel, solto um som esquisito.
Estou furiosa, mais que furiosa, sinto que vou explodir a qualquer
segundo.
Ela sacode os cabelos, pisca um olho para ele e se afasta.
— Está falando sério?
Ele me encara e quando faço questão de ir mostrar para aquela vaca
quem é a criança, ele segura minha cintura.
— Calma, linda.
— Não encosta em mim! — exclamo e ele ergue as mãos, ainda
segurando aquele papel.
Ele é mais imbecil que ela.
Percebo que não vale a pena perder meu tempo com ele, então dou
um tchauzinho para Pedro e Leo e me dirijo à saída.
— Ming!
— Ainda não cansou de brincar? — pergunto, já quase lá fora e ele
estreita os olhos, parece irritado, como se tivesse algum motivo para isso.
— Qual a minha culpa nisso?
— Você podia ter recusado o papel! — exclamo e ele se aproxima,
invadindo meu espaço pessoal.
— Por que eu faria isso? Não foi você quem disse que não está
interessada?
Dou um passo para trás, ele tem razão, mas também sabe que eu
estava mentindo. Ele aceitou esse número porque não quer nada além de
satisfazer seus desejos, e mesmo que não esteja interessada em romance,
acho que mereço mais do que um homem que aceita bebidas de outras
mulheres estando bem do meu lado.
— Estou indo embora, você devia voltar para lá e pegar mais do que
esse papel idiota.
— Eu vou te levar em casa. — Ele responde, ignorando a outra parte.
— Não precisa.
— Precisa. — Ele segura meu cotovelo e apesar das palavras duras,
seu toque é excessivamente gentil. — Enquanto não descobrir quem é o
assassino que deixa bilhetes para a minha garota, eu a levo pra casa tarde da
noite.
— Não sou sua garota!
— Perdão, linda. Esqueci que você é do tipo que quer me agarrar na
minha casa, mas me dispensa em público.
— E você é do tipo que só quer agarrar qualquer uma.
Ele para de andar e amassa o papel que loira o deu, jogando-o para
longe antes de voltar a me encarar.
— Só para você saber, minha intenção nunca foi brincar.
LIAM
Não era assim que eu esperava que essa noite terminaria, a gente
brigou no meio do barzinho, na frente de um monte de desconhecidos e a
culpa, aparentemente, foi minha.
Antes de sair com uma mulher, eu sempre analiso se ela será mais
uma surtada da vida, porque, se for, o sexo não vale por causa da dor de
cabeça. Cometi o erro de sair com uma maluca só uma vez e foi um porre
me livrar dela, mas não é apenas sexo com a Ming, não quando eu fico
encantado com os ciúmes dela, ou me desconfiguro só de ver o biquinho
que ela faz quando está emburrada. Na verdade, quero a cutucar só para ver
seu lado louca se aflorar.
Pedro comentou sobre compromisso e eu não fiquei apavorado de me
imaginar namorando com essa mulher, apesar de que estou confuso e não é
para menos. Primeiro, ela quase me beija, depois ela diz que não gosta de
mim assim. Eu tento descontrair, e então ela volta a ser a garota ranzinza do
primeiro dia em que nós nos vimos.
Tudo bem, já aceitei que ela não é de sorrir muito. Ela é séria,
raramente perde tempo com trivialidades. Acho sexy e tudo mais, só que ela
precisa mesmo agir como se eu fosse um vírus?
O carro está tão carregado de tensão que nem sei como estou
conseguindo dirigir, nenhum de nós diz nada, e às vezes acho que já quebrei
gelo demais, sem mencionar que agora estou começando a pensar que estou
indo longe demais com isso.
Nunca recebo um “não” de uma mulher, e a Ming está fazendo isso
comigo agora. Será que imaginei aqueles sinais? Será que estou assediando-
a? Persistir depois de um “não” é qualificado como assédio, mas ela não me
disse exatamente um “não” assim, disse?
Ela só disse que não gosta de você assim.
É, e depois ferveu de ciúmes e agiu como uma namorada possessiva.
Entro na rua da sua casa e não sei se posso dormir com todas essas
perguntas na minha cabeça, então começo com a mais fácil de todas:
— Está brava comigo?
— Por que acha que me importo o suficiente com você para ficar
brava?
Meu Deus, que bicho picou essa mulher após sairmos daquele bar?
Eu mereci? Claro que sim, quis atiçar a onça mesmo sabendo que não
aguentaria depois, mas não acho que tudo foi culpa minha, ela também
ficou me cutucando com vara curta.
— Definitivamente está brava.
Não a vi trocando a ferradura para estar tão ansiosa para dar coices
assim.
Engulo em seco, juro que não é minha intenção comparar a mulher
com um animal, mas acho que um coice deve doer tanto quanto as palavras
dela.
Na minha mente, condeno minha decisão de ter aceitado aquele
maldito papel e aquela maldita bebida. Nunca tive pretensão de ficar com o
número de telefone, eu nem sequer reparei na mulher, estava mais
interessado em fazer essa chinesa teimosa perceber que não é indiferente a
mim. Acho que me dei mal.
— Não estou. — Ela insiste em dizer, mas só isso justifica suas
atitudes. Ela não estava assim na minha casa, não mesmo.
— Então por que está sendo grossa desse jeito?
— Eu só não sei lidar com homens! — exclama e então olha pela
janela. — Satisfeito?
Ela alega não saber lidar com homens, faz insinuações de que é
inexperiente, e estou começando a acreditar de verdade que talvez ela
seja... Não! Para de supor, Liam!
— Não, não estou entendendo nada.
— Deixa pra lá. — Ela abre a porta do carro assim que estaciono. —
Obrigada pela carona.
Ela é uma fujona e eu já sou velho demais para ficar com esses
rodeios, eu pensei que ela fosse corajosa, mas talvez tenha sido uma
primeira impressão enganosa.
— Ming, espera.
Ela olha para mim, ainda com a mão na maçaneta.
— O quê?
— Desculpa se te desrespeitei, ou vi algo onde não existia nada. Foi
meu erro. — Apesar de você ter dado inúmeros sinais controversos. — Não
precisa ficar brava desse jeito.
Sei que ela ficou com ciúmes, sei que sente atração por mim e sei que
não foi só culpa minha, porém, não acho que vale a pena ficar ressaltando
isso, se ela me quer, precisa me dizer sem que eu me jogue toda hora para
cima dela.
Ela suspira e morde o lábio inferior, um erro a se fazer na frente de
um cara que sente tesão só de olhar para ela.
— Eu sou grossa quando gosto de alguém — solta em um tom de voz
baixo, parece quase envergonhada e minha mente leva um momento para
entender.
— Ufa. Pensei que não fosse admitir nunca.
— Eu não sei como ser carinhosa, fiquei com ciúmes e isso me
deixou nervosa e acabei dando patadas sem parar. — Continua como se eu
não tivesse dito nada e minha respiração se torna irregular. Não consigo
acreditar que ela está admitindo. — É o meu jeitinho, não leve pro lado
pessoal.
Sinto o sorriso nos meus lábios e ele fica cada vez maior ao constatar
a quão fofa ela realmente pode ser.
— Você gosta mesmo de mim, não é? Eu entendo, é difícil resistir a
todo meu charme.
— Ah, supera, Liam!
Ela me encara como se eu fosse um imbecil que não consegue levar
nada a sério e teria razão se eu não estivesse apavorado por levar isso a
sério demais. Ela pode não perceber, mas, por dentro, estou tendo um surto
de felicidade.
— Não consigo. — Seguro seus dedos e percebo como ela está
levemente trêmula, não me engano pensando que é só por reação ao meu
charme, ela também passou raiva e odeio ser esse tipo de cretino. — Eu não
fiquei interessado naquela mulher.
Ela desvia o olhar e prendo uma mecha do seu cabelo atrás da orelha.
— Não me importo se ficou.
— Juro — insisto baixinho. — Eu nem lembro do rosto dela.
— Talvez por ter observado mais os peitos?
Gosto de saber que ela se sente incomodada, isso prova que ela está
interessada por mim, mas não gosto tanto dessa insinuação.
— O seu corpo é lindo — elogio, contemplando-a sem pudor. — E eu
não poderia olhar para ela se não conseguia tirar os olhos de você. — Ela
faz um biquinho fofo e seguro seu queixo, a fazendo me fitar. — Eu nunca
prestaria atenção em outra mulher tendo você.
— Você gosta de me provocar. — Ela supõe, balançando a cabeça.
— Você se vingou bem.
— Eu não gosto de ser tratada assim.
— Me desculpa.
— Você é do tipo que sempre pede desculpas e nunca muda?
— Você é do tipo que quase beija um homem e depois foge?
— Não estou fugindo, eu disse que gosto de você.
Lambo os lábios, sentindo o coração acelerar de um jeito esquisito pra
caralho. Levo uma mão ao peito, me perguntando se meu coração está com
algum problema.
— É, você disse — murmuro, olhando para a boca dela.
— Boa noite, Liam. — Ela sai do carro, ignorando o quanto fiquei
tocado com suas palavras.
Ela é um doce... meio amargo, confesso. Mas ainda um docinho.
Percebo que ela já está quase chegando na porta da sua casa, então
também saio do carro.
Nem fodendo que perderei essa oportunidade.
— Ming?
— Oi?
Ela se vira para mim e deve perceber que talvez estejamos chamando
a atenção da vizinhança pelo horário, já que olha para os lados e se
aproxima de mim outra vez.
— Primeira lição — ergo um dedo e pisco um olho para ela. — Você
não pode dizer que gosta de mim e depois sair do meu carro sem tomar
nenhuma atitude.
Também me coloco em movimento, um friozinho desconhecido se
espalhando pela minha barriga com a loucura que estou prestes a fazer.
— O que quer que eu faça? — Ela questiona, franzindo a testa ao
parar de andar.
— Algo como isso.
Minhas mãos envolvem seus cabelos, a boca encontrando a sua.
Assim que a beijo, o choque paralisa seu corpo por um instante. Minha boca
se move sobre a dela e um arrepio me percorre enquanto espero que
corresponda.
Filha da puta! Ela precisava mesmo ter uma boca tão deliciosa?
Sinto seu gosto me envolvendo, e de repente ela está correspondendo
ao beijo com ardor. Seus dentes puxam meu lábio inferior, minhas mãos
descem por suas curvas, e assim que interrompo o beijo, seu corpo segue o
meu, buscando por mais.
Ela está sedenta, eu estou faminto. Somos dois loucos encontrando a
sanidade um no outro, ou perdendo o restinho que ainda possuímos.
Meu polegar passa pelo lábio inferior avermelhado dela, Ming está
ofegante, me encarando com olhos penetrantes.
— Se continuar me olhando assim, vou te levar pra minha casa de
novo.
Ela fica nas pontas dos pés e me beija novamente, se impulsionando e
envolvendo meus quadris com as pernas.
Inexperiente o caralho, ela é puro fogo! Em pensar que ela quase me
enganou...
Agarro sua bunda com uma mão e me viro com ela nos braços, a
pressionando na porta do meu carro enquanto apoio a outra mão no vidro.
Dessa vez, ao invés de me afastar para que ela não sinta minha ereção,
esfrego meu pau na sua boceta, pressionando o quadril no dela até que sinta
o quanto me deixa fodidamente duro.
Sons baixinhos escapam da sua boca ao mesmo tempo em que passo a
mão pelo seu corpo inteiro. Ela é pequena e amo que seus peitos caibam
perfeitamente nas palmas das minhas mãos.
— Porra, Ming — murmuro, a apertando.
Nossas respirações se misturam e não sei como acabamos assim, ou
como ela consegue me fazer perder o juízo desse jeito. Eu só pretendia
deixá-la em casa, conformado que não teríamos nada além do que, talvez,
uma amizade, mas aqui estamos nós.
Sei que a estou deixando molhada na frente da sua casa, correndo o
risco de que seu pai veja e queira me matar, porém, se essa mulher perfeita
me perguntasse se quero fazer uma loucura nesse carro com ela agora, eu
diria que sim.
Foda-se, eu diria sim mil vezes.
Mesmo que acabasse morto, principalmente se acabasse com um anel
no dedo!
— Eu preciso entrar. — Ela sussurra e a abraço com mais força.
— Eu preciso te beijar de novo.
Ela abre os olhos e poderia ter me posto de joelhos com esse olhar,
ela me pega observando seu rosto e abre um sorriso como o que me deu por
trás das grades de uma cela no primeiro dia em que nos conhecemos. Minha
mão ainda está na sua bunda, ainda assim, é como se ela estivesse muito à
vontade, diferentemente da maneira em que reagiu no bar.
— Eu queria entender como deixo você fazer essas coisas com meu
corpo — confessa, acariciando minha nuca com as unhas.
Ela está me arrepiando inteiro e nem parece saber disso.
— Eu ainda não fiz nada com seu corpo, linda.
Não mesmo, assim que eu te pegar de jeito, você vai saber que isso
não foi nada.
Ela olha por sobre o meu ombro e parece ver alguma coisa, já que
seus olhos se arregalam e um suspiro alto escapa dos seus lábios inchados.
— Preciso entrar.
— Janta comigo?
Ela franze a testa, meu semblante deve parecer esperançoso em
demasia, visto que ela não consegue formular a palavra "não", tampouco
“sim”.
— Por favor — peço, o coração crepitando.
Não existe pessoa no mundo que me faria implorar desse jeito, Ming,
definitivamente, é a mulher que, ou vai me enlouquecer, ou vai me colocar
na coleira.
Seria possível uma pessoa adestrar um cão vadio em dias?
Tá, talvez eu não seja tão difícil assim de adestrar, mas, antes mesmo
de um encontro? Eu nem sei como é estar dentro dela.
Lambo os lábios.
— Deve ser o paraíso.
— O quê? — ela vira a cabeça levemente de lado e percebo que disse
isso em voz alta.
Roubo um selinho dela, uma tentativa de distrair nossas mentes, já
que agora só penso em rasgar suas roupas e lamber cada pedacinho do seu
corpo. Acho que beijá-la não ajudou muito.
— Um encontro — sussurro ainda na sua boca. — Sai comigo em um
encontro.
— Não usa essa palavra.
— Sai comigo para... — Transar? — Fazer alguma coisa.
Mente maliciosa do caralho! É por isso que o Pedro ficou todo
desconfiado.
— Vou pensar.
Ela se desvencilha de mim e já sinto falta do seu corpo colado ao
meu, a mulher se encaixa tão bem em mim que deveria ser considerado um
crime ela ficar longe.
— Pensa com carinho — peço, segurando suas mãos e a olhando com
o que espero ser meu melhor olhar sedutor. — Prometo que não vai se
arrepender, esse vai ser o melhor encontro da sua vida.
— Não usa essa palavra.
— Vai ser a melhor saída da sua vida. — Me corrijo, sorrindo e ela
balança a cabeça.
— Te respondo assim que não estiver influenciada pelos hormônios.
— Deixe-os falarem por você — incentivo, sabendo que nesse
momento sua resposta seria sim para tudo que eu propusesse. — Por que
não assume logo que não dá para controlar essa atração?
Ela dá de ombros.
— Eu não sou uma garota fácil.
— Nunca pensei que fosse.
— E eu também tenho planos que não envolvem distrações.
— Eu sou uma distração?
Não sei bem se gosto disso, mas já é alguma coisa, ser uma distração
é melhor do que ela ser indiferente à minha presença.
Estou surpreso e tentando tirar o melhor da situação, assumo.
— Boa noite, Liam.
Percebo que ela diz isso quando quer escapar, mas, dessa vez, decido
que vou deixá-la ir.
Minhas mãos sobem por suas costas até se infiltrarem nos cabelos
negros e longos, a pressionando no carro enquanto obrigo sua cabeça a ficar
parada.
Ela solta um gemido que é abafado pela minha boca, não antes de
imaginá-la gemendo assim na minha cama, quando estiver enfiando meu
pau bem fundo na sua boceta.
Minhas mãos apertam seus cabelos e beijo sua boca com a mesma
lentidão que usaria para explorar todo o seu corpo. Sei que ela sabe o que
quero mostrar com isso, é apenas uma prévia do que ela vai ter se aceitar
sair comigo, já que, apesar de vagaroso, o beijo é quase devasso.
Suas unhas agarram minha camisa e sinto que seria capaz de gozar
nas calças igual um adolescente só com esse beijo.
— Nossa — sussurro, afastando minha boca da dela antes que isso me
faça delirar. — Se não estivéssemos na frente da sua casa, nem sei o que
poderia fazer com você agora.
Ela está arrepiada, tão entregue e excitada quanto eu estou.
— Qual a possibilidade de ir embora comigo? — pergunto em um
sussurro, fazendo a minha melhor expressão de cachorrinho sem dono.
— Nenhuma. — Ela responde, ficando nas pontas dos pés para beijar
minha bochecha. — Eu vou entrar, dessa vez é sério.
— Você faz ideia de como está me deixando?
Ela solta uma risada que é muito difícil de se escutar, então me delicio
com o som ao soltar seus cabelos, tentando ajeitar os fios que despenteei.
Gosto de ter conseguido fazê-la relaxar no fim das contas, acho que ainda
estava me sentindo mal por ter a alfinetado no bar sobre ser ranzinza, nunca
foi minha intenção ofendê-la, já que eu amo sua carinha emburrada.
— Até amanhã.
Ela passa por mim e me viro para assisti-la se afastar.
— Se lembre disso quando for pensar na sua resposta — peço, antes
que ela entre em casa e ela me lança um sorriso de lado.
Me apoio no meu carro assim que some dentro da casa dos Yang,
levando uma mão ao peito enquanto sinto o coração batendo de maneira
errática. Só então percebo que uma das cortinas está balançando, como se
alguém estivesse espionando a gente lá de dentro.
Foi por isso que ela quis entrar.
Solto uma risada sozinho, só parando de rir ao perceber que para
alguém que sorri o tempo inteiro, esse foi, sem sombra de dúvidas, o riso
mais feliz e verdadeiro que dei em anos.
Puta que pariu, que beijo foi esse? Que mulher é essa? Ela está
realmente me colocando na coleira.

A delegacia voltou a ficar extremamente calma após os dois


assassinatos, exceto pelas intrigas que o Eduardo tenta criar ao dizer que eu
estou me sentindo especial em pensar que posso esconder informações.
Todos estamos entediados outra vez. Felipe está dormindo sobre a
mesa, Paulo fica girando uma caneta sem parar, Pedro ri para o celular
enquanto conversa com alguém que imagino ser o Leo, eu estou observando
Ming e ela... bom, vou dizer apenas que ela está sendo sexy pra caralho.
Pego meu celular e tiro uma foto da minha garota sem que ela
perceba, não que seja difícil, agora ela está concentrada enquanto troca as
balas de uma arma que não vai usar com frequência. A estou assistindo
atentamente desde o momento que começou a desmontar o revólver para
limpar, e continuo observando enquanto recarrega a arma com cuidado de
novo.
Envio a foto para a Cass, rindo para o celular, e é claro que ela faz
insinuações de que eu não poderia conquistar a Ming, mal sabe ela que já
rolou até um beijo.
Estou suspirando e mordendo o lábio inferior ao pensar naquelas
pernas ao redor do meu quadril e nas minhas mãos segurando aquela bunda.
Ela rouba meu fôlego.
Mulher provocante, me enfeitiça sem nem se esforçar.
Estou paralisado na cadeira, tentando fingir que não estou com um
puta tesão nela.
Quero uma resposta sobre o encontro que ela não quer que eu chame
de encontro, ou melhor, preciso de uma resposta! Estou louco para levar
essa mulher para sair e passar horas ouvindo qualquer coisa que ela esteja
disposta a me contar a seu respeito, necessito de mais beijos como aquele.
Não imaginei que beijos fossem como uma droga, até ter a boquinha
sensual dela na minha. Juro que sonhei com aquele beijo, com os sons
baixinhos que ela soltava e com a fricção deliciosa que...
NÃO PENSE NISSO NO TRABALHO!
Engulo seco quando sinto meu pau pulsar dentro das calças.
Ela ergue o olhar diretamente para mim enquanto coloca a última bala
na arma, sinto como se ela soubesse exatamente para onde minha mente
está indo.
Desço o olhar pelo seu corpo e abro um sorriso sacana, uma tentativa
de fazê-la corar, mas a desgraçada continua com aquela expressão
impassível, apesar dos olhos parecerem embebidos em desejo.
Quero ter o poder de provocá-la sem esforço, exatamente como ela
faz comigo, mas antes que tente fazer outra coisa, a Sra. Rodrigues aparece
na porta, acompanhada pelo Pedro, que me encara como se não pudesse ter
evitado a velha.
Arranho a garganta, envergonhado com o quão fácil é esquecer onde
estou quando se trata dessa mulher. Olho para o lado ao me ajeitar na
cadeira, e levo um susto ao ver os olhos de um Felipe boquiaberto, me
encarando com claro julgamento. Tem baba escorrendo da sua boca aberta,
mas ele não para de encarar a Ming e eu como se tivéssemos feito sexo na
frente de todo mundo, não trocado um olharzinho inocente.
Minhas orelhas queimam quando ele balbucia a palavra “tarado” e
volta a deitar a cabeça na mesa. Esse cara precisa parar de me ver babando
na novata.
Indico uma cadeira para a Sra. Rodrigues e ela se senta, não
parecendo muito feliz.
Confesso que a última pessoa que pensei que veria aqui hoje era ela,
mas estou curioso com o motivo que a trouxe.
— Como posso ajudar a senhora? — pergunto, me inclinando sobre a
mesa, posso sentir o olhar da Ming, só que não acho uma boa ideia olhar
para ela agora, então me concentro na velhinha diante de mim.
— Minha neta morreu, não acho que possam fazer mais nada por
mim.
Sua resposta me deixa tenso, a última coisa que quero hoje é discutir
com uma idosa.
— Sinto muito Sra. Rodrigues, mas temos um caso grande para
resolver aqui. Se a senhora tem alguma informação importante que queira
compartilhar, será muito bem-vinda.
Seguro o bloquinho de notas e uma caneta, mesmo que Paulo já esteja
se aproximando com seu notebook para redigir a conversa.
— Isso vai ser sigiloso? — Ela pergunta por fim, fazendo uma
expressão infeliz, como se a última coisa que quisesse estar fazendo era
estar sentada aqui.
Suas roupas são pretas pelo luto e dedico um momento a sentir a
tristeza do pranto da mulher, ela perdeu a filha há alguns anos, e as netas
eram a única família próxima que ainda possuía, deve estar sendo muito
difícil aceitar o baque de que uma das garotas foi assassinada brutalmente.
Não a culpo por sentir rancor da polícia.
— Totalmente — respondo, olhando para o Paulo, que assente uma
vez. Ele sabe que isso se torna confidencial a partir do momento que uma
testemunha pede por isso.
A senhora alisa os cabelos, tenho a impressão de que está quase
desistindo, mas então apoia as mãos na mesa, se inclinando para perto de
mim.
— Minha neta, que Deus a tenha, começou a trabalhar em um lugar
vulgar, fazendo coisas que eu disse para ela que era pecado fazer. — A
senhora fica vermelha e entendo que está se referindo ao prostíbulo da
cidade.
Então a Pamela não mentiu sobre isso para a Ming.
— Foi lá que ela começou a se envolver com aquele homem, o que
morreu. — Os olhos dela se enchem de lágrimas enquanto o Paulo digita
furiosamente no seu computador. — Eu disse a ela que era errado se
envolver com alguém casado quando descobri, mas a Ana Luiza me
garantiu que isso era só um boato e eu acreditei.
— Como a senhora descobriu do trabalho e do envolvimento que a
sua neta tinha com o Vitor?
— A mulher dele me contou, a Pamela. As duas eram amigas e, pelo
jeito, minha neta tentou atrair a outra mulher para o trabalho da... noite. —
Ela se recusa a me olhar ao falar a última palavra, provavelmente
envergonhada por estar revelando um segredo da neta. — Pamela me disse
na época que seguiu o marido e o viu com a Ana Luiza, mas quando minha
neta jurou para mim que era mentira, eu acreditei e ignorei a Pamela das
outras vezes que veio me implorar para afastar a Ana Luiza do seu marido,
mesmo quando ela disse que Ana Luiza estava destruindo seu casamento, e
que o tal do Vitor ia ser uma má influência para a minha menininha.
— A senhora acha que a Pamela poderia ter assassinado o marido e a
sua neta?
Ela hesita e faço anotações breves enquanto o Paulo relata até a
maneira em que a Sra. Rodrigues respira.
— Não sei. — Ela balança a cabeça e os cabelos curtos seguem o
movimento.
— A senhora quer contar algo a mais? Sobre os assassinatos? — faço
uma pausa e quando ela não parece entender ao que me refiro, continuo: —
Foi mesmo a senhora quem achou o corpo do Vitor?
Ela abaixa a cabeça e mexe nos dedos.
— Isso vai ficar mesmo em sigilo?
Assinto e ela respira com tremor.
— Que Deus me perdoe por mentir, mas eu precisava proteger a Ana
Luiza. — Uma lágrima escorre pelo seu rosto. — Ela viu o assassinato, mas
não disse nada sobre o assassino. Só falou que não poderia falar com a
polícia e que precisava fugir e fingir que não viu nada. Mas o homem estava
apodrecendo e eu não pude deixar isso continuar.
— A senhora a convenceu de que poderiam falar com a gente?
Ela concorda e agora está chorando de soluçar.
— Foi um erro, ela me disse que acabaria morta, mas eu não lhe dei
ouvidos. — Ela pega um lenço da sua bolsa e limpa o rosto. — Quando
você apareceu na minha loja com aquela garota Yang, minha neta decidiu
que não poderíamos consertar meu erro e fugiu. Eu disse para vocês a
encontrarem, mas não o fizeram e ela mo-mo... — Ela não consegue
terminar e Paulo e eu trocamos um olhar.
Isso está sendo estranho. A Sra. Rodrigues está dizendo como se um
policial fosse o assassino, e se está mesmo insinuando isso, então tenho um
problema ainda maior para resolver.
Um copo de água surge ao lado da senhora e ela olha para cima, sua
expressão se torna dura ao encarar a Ming.
— Você! Você e sua maldita família trouxeram desgraça para essa
cidade! Tudo começou com vocês! — A idosa se levanta e sinto meu
sangue ferver ao ver a expressão de dor da Ming antes de ela camuflar com
indiferença, a garota não tenta se defender enquanto a idosa aponta um dedo
em sua direção. — Você jamais deveria ter voltado para cá!
Dou a volta na mesa, puxando a Ming para trás de mim enquanto ela
insiste em ficar em silêncio, sendo atacada verbalmente sem motivo
nenhum.
Não gosto nada de como as palavras da Sra. Rodrigues soam, é
injusto ela querer colocar a Ming como culpada pelo assassino matar sua
neta, seria o mesmo de culpar um cego por não poder enxergar.
— A senhora precisa parar! — grito quando ela continua se
aproximando, tentando alcançar a Ming.
Pego uma algema na mesa mais próxima enquanto procuro o Pedro na
sala com o olhar, o encontrando já correndo em nossa direção.
— A senhora deve me acompanhar. — Ele segura o braço dela, mas
ela se esquiva.
— Você nunca conseguirá trazer honra para sua família enquanto só
estiver envolta por trevas e sede de vingança. — A Sra. Rodrigues exclama.
— Acha mesmo que as pessoas daqui não sabem o motivo de você ter
voltado depois do que aconteceu? Foi você quem trouxe aquele assassino!
TERÁ QUE CARREGAR A MORTE DE DUAS PESSOAS NOS SEUS
OMBROS!
— Chega! — berro com tanta fúria que a mulher se cala, voltando seu
olhar raivoso para mim. — Eu vou prender a senhora se não parar agora.
— Não fique perto dela, menino — sugere e juro que não sabia que
poderia ter o desejo de estrangular uma idosa algum dia, mas, nesse
momento, é o que sinto. — Ou vai se perder também.
Faço menção de me aproximar com as algemas, mas os dedos da
Ming envolvem meu pulso, me mantendo no lugar. Olho para ela, não
entendendo nada quando ela nega com a cabeça. A Sra. Rodrigues acabou
de cometer desacato e a Ming não quer deter a mulher?
— Mas... — começo e ela aperta meu braço antes de soltar.
— Não — diz baixinho.
Sua resposta só me faz sentir mais puto da vida, porque ela é um anjo
e a Sra. Rodrigues a olha como se ela fosse um verme.
— Você nunca devia ter voltado. — A idosa repete o que disse antes,
dessa vez com um timbre cansado, atraindo meu olhar novamente para o
seu rosto.
A assisto franzir a testa enrugada, se virar para a porta e ir embora
sem dizer mais nada, meu maxilar dói de tanto que cerro os dentes, o
sangue correndo quente nas veias. Quando me volto para a Ming, ela está
com os punhos fechados com tanta força que vejo as gotas de sangue se
formando em suas palmas.
Seguro suas mãos, forçando-as abertas.
— Para com isso — peço docemente, com raiva por ela estar se
ferindo e nem perceber isso. Beijo cada um dos seus pulsos.
Sua expressão é de dor e fúria. Mais uma vez não entendo nada do
motivo por ela deixar a senhora ir embora sem tomar qualquer providência,
e isso é apenas outra prova de que essa mulher é um mistério para mim.
— Quer conversar? — pergunto baixinho ao ver as lágrimas que ela
se esforça para não derramar. Minhas palavras parecem fazê-la se lembrar
de onde está, porque puxa as mãos e se afasta de mim. — Ming! — grito,
no entanto, ela já está saindo da sala, acompanhada pelo cuzão do Eduardo.
Sempre é o Eduardo. Ela sempre me afasta, mas nunca esconde sua
dor dele.
MING
É uma surpresa positiva encontrar a Pamela na rua do restaurante da
minha mãe, não sabia que ela gostava de culinária chinesa e é tudo que se
encontra por aqui. Esse quarteirão é como ter um pedacinho da terra natal
da minha família no Brasil, só se encontra coisas do extremo oriente, tanto
comidas quanto mercados, lembrancinhas e lojas de antiguidade.
“TERÁ QUE CARREGAR A MORTE DE DUAS PESSOAS NOS
SEUS OMBROS!”
Penso nos gritos da Sra. Rodrigues quando olho para a Pamela. Faz
três dias que aquilo aconteceu, ainda assim, não consigo esquecer ou tirar
da cabeça.
Talvez a mulher tivesse razão, talvez eu tenha condenado aquelas
pessoas quando vim para a cidade. Talvez a culpa seja minha. Foi somente
por esse sentimento que não permiti que o Liam a mantivesse mais tempo
na delegacia, seria muito pior ter que ver o rosto dela lá por mais tempo.
Olho para o pequeno Guilherme, ele começa a pular e sorrir ao me
ver, apontando o dedo para mim enquanto tenta chamar a atenção da mãe.
Você quer mesmo se aproximar dessa família e correr o risco de tirar
a mãe de um menininho?
Se Pamela tiver alguma pista, não tenho dúvidas de que o assassino
virá até ela.
Quem é você, Ming? Desde quando seu coração escureceu tanto a
ponto de não se importar mais com as pessoas?
Me viro de costas, pronta para voltar ao restaurante da minha mãe,
mas agora ela está gritando meu nome.
Volto a olhar para os dois e devolvo o aceno que ela me dá. Seu rosto
já está muito melhor e consigo ver sua beleza mais claramente agora.
Guilherme abraça minha cintura assim que me alcança.
— Tia Ming!
— Oi, Gui. É impressão minha, ou você está mais alto?
Ele abre um sorrisão e vejo que está banguelo de um dente.
— Agora eu sou um homem, nem chorei quando a mamãe arrancou
meu dente de leite.
— Uau! E eu pensando que você queria ser só um menininho levado.
Ele pondera sobre o assunto, então saltita.
— Tia Ming, você também é dona de restaurante? — Ele se vira para
a Pamela. — Mamãe, quando eu crescer, quero ser um faz-tudo igual a tia
Ming.
Pamela solta uma gargalhada ao ver minha expressão indignada.
— Esse é o restaurante da minha família, Gui. Eu só ajudo de vez em
quando.
— Ah! — Ele para de pular. — Tia Ming, você quer ir ver meu
peixinho de novo? Ele me disse que está com saudades.
Pamela me lança um olhar que sei estar querendo dizer que é o
menino quem está com saudades.
— Acho que podemos alegrar o azulão um pouquinho então —
respondo, me abaixando até ficar na altura do Gui. — Você acha que devo
levar um presente quando for?
Ele faz uma expressão triste.
— Não pode ser agora? — pergunta timidamente.
— Agora?
Olho para a Pamela com surpresa e ela apoia a mão no ombro do
menino.
— Filho, a tia Ming está ocupada.
— Mas, e se ela não for depois? O papai sempre dizia que ia na
reunião de pais da escola, mas nunca ia de verdade.
Meu coração se aperta por um momento e desamarro o avental do
restaurante.
— Tudo bem, Gui. Eu vou agora com vocês, tá bom?
Ele volta a saltitar.
— Eba!
Olho para a Pamela e ela está rindo da empolgação do filho.
— Volto rapidinho — aviso e entro no restaurante.
Vovó Mei está sentada atrás do balcão, mais comendo do que
realmente ajudando.
— Se importa se eu sair agora? — pergunto para minha mãe quando
ela aparece com duas bandejas cheias de comida e bebidas.
Faço menção de ajudar, mas ela nega com a cabeça.
— Vá, não tem problema.
Ela passa por mim e olho para a vovó Mei.
— É impressão minha, ou ela ficou aliviada?
Vovó Mei me lança um olhar de “está falando sério?” que não
compreendo bem.
— É impressão, querida.
Seu sorriso é falso e ela quer que eu note isso.
— Mesmo?
— Claro, por qual motivo ela iria querer se livrar de uma funcionária
que só quebrou quatro pratos, derrubou bebida em um cliente e passou o
açúcar quando ela pediu sal?
Estreito os olhos para a expressão excessivamente doce da senhorinha
mais ardilosa que conheço.
— Foi acidente!
— Uhum, sempre é. — Ela enfia mais um Mochi[5] na boca. — A
gente sabe.
Coloco o avental no balcão.
— Isso não é muito doce para a senhora estar comendo sozinha?
— Já faz um tempo que não vejo você se agarrando com aquele
bonitão na porta de casa. O que aconteceu? — Ela muda de assunto e sabe
que tocou no meu ponto fraco.
Meus olhos ficam arregalados, ela prometeu nunca mais tocar nesse
assunto. Se minha mãe ou meu pai escutar isso, vou ter que ser espectadora
de uma palestra sobre decência e casamentos.
— Vovó!
— O quê? Não era você quem dizia que não tinha nada com o
bonitão? — Ela me encara. — Quando vai segurar aquele partidão, querida?
Já faz três dias.
Desvio o olhar, ainda não dei uma resposta a ele e sei que é injusto,
mas estou confusa e desleixada. Quando fico perto dele, quase esqueço dos
meus objetivos e foi bom a Sra. Rodrigues me lembrar deles.
— Estou indo, mas vê se para de falar disso.
— Se você não disser que sim, eu o procurarei e direi no seu lugar! —
Ela grita quando já estou quase saindo e lhe lanço um olhar assustado, pois
sei que ela é bem capaz disso.
Por que fiz dessa velhinha traiçoeira minha maior confidente?
— Nem pense nisso!
— EU SEI ONDE ELE TRABALHA! — Ela ameaça quando passo
pela porta, então percebo que tinha mencionado um presente ao Gui e volto
correndo para o restaurante.
Minha mãe já está no balcão de novo, comendo um docinho com a
vovó, quando me vê, ela abre um sorriso.
— Espero que esteja correndo assim para ver o Liam, fiquei sabendo
que vocês estavam trocando beijos na porta de casa.
Vovó Mei dá um cutucão nela, mas já estou encarando a senhora
como se ela fosse uma traíra.
— Vovó!
— Desculpa, mas o que eu posso fazer se minha boca gosta de falar?
Eu nem sempre tenho controle do que sai dela.
Estreito os olhos e pego o prato com os Mochi que elas estavam
comendo, são bolinhos de arroz recheados, uma versão doce do baozi[6].
Também pego alguns Mooncake[7], e preparo uma caixinha para o Gui e a
Pamela.
— Vocês precisam parar de criar expectativas, Liam e eu não temos...
— Fico pensativa por um instante. — Não temos nada que vá resultar em
casamento.
Minha mãe faz uma expressão de decepção, mas vovó abre um
sorriso amplo.
— Eu tenho uma sensação... — Ela começa e solto um suspiro bem
audível antes de beijar a bochecha de ambas.
— Por favor, parem com isso.
Saio do restaurante mais uma vez e mostro a caixinha com uma fita
azul para o Gui, que parece muito feliz ao ver que ainda vai ter presente.

— Você acredita em reencarnação? — Pamela pergunta, encarando o


Liam sem camisa do outro lado da rua, lavando o carro com o Trevo. Finjo
que também não estou olhando para lá.
Ele saiu de casa só com aquela bermuda um pouco depois que a
Pamela, eu e o Gui decidimos nos sentar na calçada. Fazia anos que eu não
me sentava perto do portão de casa com alguém só para bater papo. Isso me
fez sentir saudades da Fang.
— Se eu acreditasse, diria que o seu filho é a reencarnação da minha
irmã que morreu anos atrás — respondo baixinho e só depois que as
palavras saem da minha boca que percebo o que acabei de dizer.
Estou pensando nisso desde o momento que o Gui abriu a caixinha de
doces que lhe dei, ele me olhou exatamente como minha irmã me olhava
quando a surpreendia, ela também amava doces e ele disse exatamente a
mesma coisa que ela me falou uma vez.
"Mooncake é meu doce chinês preferido, porque eu amo tudo que tem
a ver com a Lua!"
Não era intenção contar isso para alguém, mas tem dias que a falta
que a minha irmã faz é sufocante.
Pamela olha para mim e fica em silêncio por um longo tempo.
— Mas por que a pergunta? — puxo assunto, sem graça por ser tão
direta, não converso com muitas pessoas, então às vezes sou um pouco
estranha.
Eu achando que o namorado do Pedro era aberto demais por falar da
vida sexual deles, e olha para mim agora, falando da Fang com uma
mulher que conversei poucas vezes e que é possível suspeita de um caso.
— Eu ia dizer que na próxima vida quero ser o cachorro de um
homem tão gostoso quanto o Liam, mas você foi mais profunda do que eu.
Meus olhos são atraídos para o homem, ele está com a testa franzida,
encarando o carro enquanto esfrega o capô. Apesar de ter ignorado nossa
presença, tenho a sensação de que ele queria chamar a atenção.
Ainda não o respondi sobre o encontro e tenho reparado que ele anda
mais irritadiço, não se esforça mais para sorrir e ser gentil com todo mundo.
Estou sendo imatura, Fang estaria decepcionada comigo se estivesse
viva. Isso se não tivesse se apaixonado pelo Liam primeiro e agora tentasse
me manter longe dele.
— Desculpa te falar assim sobre minha irmã — murmuro para a
Pamela. — Metade da cidade sabe o que aconteceu com ela, a outra metade
simplesmente decidiu esquecer.
— Eu sei quem foi sua irmã. — Pamela confessa. — Sinto muito por
ter a perdido, apesar de que ela não era uma garota muito legal.
Isso faz um sentimento estranho percorrer meu corpo e só quero
defender a Fang, apesar de a Pamela não ter sido a primeira pessoa a falar
isso dela.
Na adolescência, Fang sempre era intimidada por outras garotas e eu
sempre me meti em brigas por ela, mas não posso simplesmente esquecer
de que ela era um pouco mimada e arrogante. Achava que a cidade era dela
e que seus desejos eram os únicos que importavam.
Claro que não era isso que a resumia, porém, é assim que as outras
pessoas sempre vão se lembrar dela. Para mim, ela era a menina frágil que
cantava para rosas e sonhava em crescer e cuidar do restaurante da família
para que não fôssemos completamente apagados da história. Para os outros,
ela era a menina de nariz empinado que nunca queria sujar as roupas e
chamava a atenção de todos os garotos bonitos, menos a do que ela
realmente queria.
— Fico feliz por algumas pessoas não terem a apagado da história,
Fang odiava ser esquecida.
Pamela sorri.
— Você deve sentir muita falta dela.
Mais do que é possível dizer.
Observo o homem do outro lado da rua e finalmente entendo o
motivo real por não ter aceitado sair com ele, no fundo, sei que só estou
com medo de abrir meu coração e perder outra pessoa como perdi a Fang.
— É, mas é preciso aprender a ser corajosa para aguentar a dor —
explico baixinho, tentando dizer que ela também precisa ser forte. —
Ninguém é eterno, apesar de que muitas vezes eu desejo que fossem.
Liam olha em nossa direção disfarçadamente e me pega o encarando,
mas não desvio o olhar. Ele desliga a mangueira quando termina de tirar o
sabão do carro e passa a próxima meia hora fazendo mais mil coisas.
— Eu sinto falta da última vez que alguém me olhou da maneira que
você olha para ele. — Pamela diz de repente e tomo um susto, me
levantando do chão.
— Que maneira?
Ela só sorri, também ficando de pé.
— Uma pena eu ter escolhido o Vitor ao invés dele, não cometa o
mesmo erro que eu, Ming. — Ela se vira para o Gui, que já está comendo o
último doce da caixinha mais afastado da gente. — Vem se despedir da tia
Ming, Gui. Ela tem uma coisa urgente pra fazer agora.
O menino se levanta e vem correndo me abraçar, quando os dois
entram para dentro da casa, me dou conta de que não falei do caso nenhuma
vez, tampouco pensei no assunto.
Atravesso a rua no momento em que Liam está guardando as coisas
na garagem.
— Oi — cumprimento, ele está de costas para mim, e consigo ver os
músculos dos seus ombros enquanto enrola a mangueira.
— Hmm. — Ele resmunga. — Você está aí.
— Você não notou?
— Não, acho que não.
Arranho a garganta, tentando conter um sorriso. Sei que ele me notou,
sei que ficou me olhando quando pensou que eu não estava vendo e sei que
ele não vai admitir isso enquanto pensar que eu o rejeitei.
— Liam, a gente pode conversar?
— Sobre o quê? Você pode me contar o que a Pamela te contou
quando estivermos no trabalho.
Ele se afasta para guardar o balde que estava usando para ensaboar o
carro e agora estou levemente apreensiva. Me viro para a rua, procurando
acalmar minha mente, mas é muito difícil.
E se for ele quem vai me rejeitar agora? E se ele tiver recuperado o
número daquela loira e for para ela os sorrisos que ele dá no trabalho toda
vez que está digitando mensagens no celular?
Coloco os cabelos atrás da orelha, um tique que peguei dele de tanto
que o homem faz isso em mim.
— Ainda não disse sobre o que quer falar. — Ele diz baixinho atrás
de mim e não sei qual foi o momento em que voltou, só sei que o susto me
faz escorregar no sabão que continua na entrada da sua casa.
Suas mãos grandes e calejadas seguram minha cintura, me firmando
quando meus pés deslizam. Sinto seu peito colado nas minhas costas e seu
perfume inunda meus sentidos.
— Droga — resmungo e olho para trás.
Ele está segurando o riso, sei disso pela covinha que aparece na sua
bochecha conforme ele pressiona os lábios.
— Não tem graça — balbucio, encarando o queixo bem desenhado e
a barba rente ao rosto.
Por que tão bonito, Deus?
Ele solta minha cintura e me viro de frente para ele.
— Não estou rindo.
— Está, sim.
Ele ajeita meu cabelo atrás da minha orelha, mesmo que eu já tenha
feito isso, os dedos se demorando no lóbulo.
— Não gosto quando coloca os cabelos atrás da orelha — diz de
repente, os olhos brilhando suavemente. — Esse é o meu trabalho.
Meu coração acelera e sinto borboletas no estômago. Estou sem
fôlego, tentando lembrar como se fala.
Quero dizer que aceito sair com ele, mas como faço isso quando ele
insiste em me deixar sem reação?
— Para com isso — peço, dando um passo para trás.
No mesmo instante, ele fica tenso e também se afasta, chamando o
Trevo com um assobio quando o cachorro começa a ir longe demais.
— Então... É alguma coisa de trabalho?
— O quê? — Olho para o seu rosto e ele franze a testa.
— Você não queria falar comigo, Ming?
Concordo com a cabeça, lambendo os lábios.
— Quero, ainda quero falar com você.
— Estou ouvindo.
Ele cruza os braços, ficando ainda mais gostoso e meus olhos são
atraídos para seus músculos fortes, só de pensar que já os tive encostando
em mim...
Desço o olhar para o tanquinho e agora a boca está seca e já esqueci
de novo o que ia dizer.
— Ming? Você ainda quer falar mesmo? Porque se tiver desistido,
tudo bem.
Desvio o olhar para o Trevo, que abana o rabo enquanto olha para
mim.
— Oi, Trevo — cumprimento, me abaixando para acariciar as orelhas
fofas dele.
O cachorro late duas vezes, antes de me dar a patinha.
— Você viu isso? — pergunto para o Liam enquanto dou risada e
quando olho para cima, ele está com uma expressão de bravo.
— Faz meses que peço a patinha pra esse traíra.
— Não o chame assim! — exclamo, acariciando ainda mais a cabeça
do pequeno. — Você é um bom garoto, não é, Trevo?
Ele late de novo e fico de pé, ainda sorrindo.
— Pense pelo lado positivo, pelo menos ele deu a pata para alguém
— incentivo ao ver que o homem ainda parece emburrado. — Não gosto
quando fica emburrado, esse é o meu trabalho. — Uso das suas próprias
palavras e ele finalmente sorri.
— Quer entrar, Ming?
Olho para a porta da sua casa e recordo do que quase aconteceu da
última vez que estive nela.
— Podemos conversar melhor lá dentro. — Ele continua e assinto,
percebendo que não me importo se terminarmos nos agarrando no sofá, na
verdade, espero que a gente termine exatamente assim.
Trevo entra primeiro, correndo para o andar de cima.
Sua casa continua igual, exceto pelo vaso de flores em cima da
mesinha de centro da sala. São rosas amarelas e vermelhas.
— Não sabia que você gostava de flores.
Ele passa por mim, se jogando no sofá.
— Já sabe como me presentear se der alguma mancada comigo.
Isso foi uma indireta? Porque sinto que foi.
— Quem deu mancada com você dessa vez?
Indico as flores com a cabeça ao me sentar ao seu lado e ele encara as
flores, evitando meus olhos.
— Você queria falar sobre o quê?
Por que ele está mudando de assunto?
Franzo a testa, engolindo seco ao pensar que talvez ele tenha estado
nesse sofá com outra garota. Me lembro de todas as escovas de dentes
reservas que ele guarda no banheiro, todas em cores femininas, como se
tivesse comprado para aquele intuito.
Minhas mãos apertam a calça preta, irritada com o jeito dele se provar
um cafajeste. Eu devia saber que os sorridentes de olhar provocante são os
que mais têm lábia.
— Eu não gosto de flores — conto de repente. — Elas acabam
murchas em uma semana. Qual o sentido de dar isso a uma pessoa?
— É um gesto de carinho.
— E você recebe muitos gestos de carinho? — questiono antes que
possa me conter, só então percebendo como soei possessiva.
Ele está sorrindo mais uma vez, ainda de olho nas flores que alguém
lhe deu por um “gesto de carinho”.
Que merda, Ming. Não foi para esse tipo de mistério que você voltou
para a cidade. Não era a intenção perder tempo tentando entender um
homem.
Respiro fundo e dou de ombros.
— Desculpa, não é da minha conta.
— Você é do tipo bem ciumenta, não é?
Eu achava que não, já que nunca me importei com nenhum homem de
verdade, mas você está me provando que posso ser meio surtada, sim.
— Por que você queria sair comigo? — pergunto, ao invés de
responder e ele arruma a postura, se virando levemente para mim.
Seus olhos me escrutinam, descendo e subindo por cada traço do meu
corpo, se demorando no meu rosto como se tivesse buscando pelo motivo
do seu interesse.
— Acho que começou com a sua língua afiada, acho que gosto de ser
chamado de frouxo e preguiçoso em mandarim por uma mulher. — Seu
sorriso de lado me tira o foco, então fico encarando seu pescoço se
movendo enquanto fala. — Depois foram seus cabelos e os olhos sagazes,
você me olhava de um jeito quase cruel, parecia me desprezar e só de
lembrar disso. — Ele estremece e indica o próprio braço. — Nossa, eu me
arrepio inteiro.
É oficial, ele está zombando de mim.
Não sei se minha expressão diz alguma coisa quando me levanto, mas
ele para de sorrir.
— O que foi? — pergunta, a testa franzida.
— Você não leva nada a sério?
— Por que a pergunta? Estou falando sério.
Apoio as mãos na cintura em uma postura cética.
— Está dizendo que você gostou de ser xingado e desprezado? —
Reviro os olhos e ele também fica em pé. — E eu pensando que você diria
algo como a minha inteligência e...
— Beleza? — Ele me ajuda e refuto a ideia.
— Eu me visto como um homem, Liam.
— Essa é a melhor parte. — Ele se aproxima e agora não sei mais se
isso é zoação ou se ele só está sendo cruel para se vingar. — Porque eu sei
que quando tirar suas roupas, serei o único da cidade a conhecer suas
curvas.
— Talvez eu não tenha nenhuma.
— Ming, você esqueceu que eu já tive você nos meus braços? —
Agora suas mãos tocam meus quadris. — Minhas mãos desenharam cada
curva e agora tenho uma imagem bem nítida na minha cabeça.
— Talvez se decepcione.
Ele segura meu queixo com dois dedos, colocando meus cabelos para
trás com a outra mão.
— Talvez você só esteja com medo de que eu me apaixone
perdidamente por você.
— Isso não vai acontecer, acha que não conheço um homem com
lábia quando vejo um?
Sua boca paira sobre a minha.
— Minha pequena guerreira, não faz ideia do poder que tem sobre
mim.
Minha respiração está errática e as mãos se espalmam no seu torso nu.
Sua pele está quente sob minhas palmas e consigo sentir seu coração
batendo acelerado.
Sigo a trilha de pelos que desce até o cós da bermuda com um dedo e
ele parece respirar com dificuldade, soltando um som baixinho de
apreciação.
— Sei que tenho poder sobre o seu corpo — murmuro e nossas bocas
estão a um fio de se tocarem. — Queria saber até onde estou na sua mente.
— Em toda parte. — Ele confessa, agora segurando meu rosto com as
duas mãos. — Você está em cada pedacinho da porra da minha mente,
Ming.
Sua boca se cola à minha e como da primeira vez que me beijou, sinto
meu corpo inteiro reagindo ao ato. A pele arrepiada, o calor e o frio na
barriga, tudo me bombardeia com força a cada toque das suas mãos e da sua
boca.
Seus lábios estão com gosto de chocolate, e quando sua língua
encontra a minha é impossível controlar o som de prazer que sobe pela
minha garganta.
Suas mãos agarram meus cabelos, soltam. Percorrem meu corpo e
então voltam para eles. Ele parece querer realmente me desenhar como um
mapa na sua cabeça e eu amo que esse homem grande e claramente
experiente não saiba por onde começar a me tocar.
Arranho sua barriga com gominhos e suas costas delineadas com
músculos bem trabalhados.
Estou fervendo de excitação e desejo que ele sinta o mesmo. Sua
ereção me pressiona e todo esse toque não parece o suficiente; ele estar sem
camisa, não é o suficiente. Quero sentir mais da sua pele, mais do seu
corpo.
Interrompo o beijo para recuperar o fôlego e seus lábios descem pelo
meu pescoço, fazendo uma trilha pelo que consegue alcançar de pele nua,
indo até a clavícula e voltando. De repente, minha camisa não está mais no
meu corpo e ele beija o topo dos meus seios, logo acima do sutiã preto
básico.
O homem encara a tatuagem de dragão que começa no meu ombro,
passa pelo lado do meu seio e desce até o cotovelo. Acho que é a primeira
vez que vê, já que nunca uso regatas ou blusas de manga curta por conta do
clima mais frio.
Seus olhos estão brilhando enquanto encaram os traços com um olhar
vidrado. Queria estar usando algo mais sexy, mas ele me contempla como
se estivesse com a lingerie mais linda de todas.
— Você é como um presente inesperado, sabia? — pergunta em uma
voz suave, passando os dedos pelos traços da tatuagem. — E quanto mais
eu desembrulho, mais encantado e surpreso eu fico.
— É só uma tatuagem.
— É uma tatuagem linda em uma mulher linda. — Ele beija os traços
que passam perto do seio, no topo do sutiã. — Eu adoro descobrir mais de
você, por favor, me diz que tem mais dessas escondidas.
— Não tem — sussurro e ele faz uma expressão de decepção antes de
sorrir.
— Tudo bem, uma já é excitante o suficiente.
Sua boca volta a encontrar a minha e me arrepio ainda mais quando
seus dedos agarram os cabelos da parte de trás da minha cabeça, me
segurando com uma pegada que me deixa mole em seus braços.
Estou entregue e desejando cada vez mais. Meus mamilos me
incomodam, o pulsar na minha boceta me tira dos eixos e não sei o que está
acontecendo, mas quero que ele alivie a sensação. É como ter uma pressão
crescente que precisa ser liberada e que está sendo impedida de irromper
por uma barreira.
— Liam — balbucio assim que ele me pega no colo, deitando meu
corpo sobre o sofá.
Sua boca desce por entre meus seios até a barriga plana, as mãos
estão mantendo meus quadris parados enquanto esfrega a ereção onde mais
anseio por ele.
Sinto como se fogo estivesse correndo por minhas veias, não sangue.
Meu corpo parece cada vez mais sensível ao arranhar da sua barba e aos
dedos que me pressionam no sofá.
Ele continua descendo pelo meu corpo, espalhando carícias que me
fazem suspirar.
— Viu, só? Curvas. — Ele murmura, mordiscando a pele abaixo das
minhas costelas.
Sua língua acaricia minha barriga toda vez que ele chupa a pele e
estou estremecendo e imaginando coisas que nunca pensei que algum dia
imaginaria.
Se antes me considerava pervertida, agora me considero muito mais.
Minhas mãos seguram seus cabelos, arranhando o couro cabeludo
toda vez que sinto a necessidade de mostrar a ele o quanto estou gostando
disso.
Seus dedos trabalham no zíper da minha calça e assim que ela sai do
meu corpo, um nervosismo diferente toma conta de mim. É a primeira vez
que um homem me vê com tão poucas roupas e não sei como reagir a isso.
Minhas mãos param de apertar seus cabelos e ergo os braços quando
ele desce aquela boca ainda mais. Estava desejando isso, mas agora que ele
beija e mordisca minhas coxas, não sei se estou segura o suficiente.
— O que foi? — Ele olha para cima e ver seu rosto tão perto da
minha boceta faz o calor aumentar.
Ele está gostoso demais descabelado desse jeito, os lábios vermelhos
e inchados ostentando um meio sorriso, acho que nunca vi seus olhos
brilharem tanto.
— Eu...
Ele beija o ossinho acima da minha calcinha verde horrorosa.
Por que inferno eu ainda uso isso? Não poderia ter adivinhado que
terminaria assim e colocado uma coisinha mais bonita?
— Eu...
— Você? — Rle instiga, soprando as palavras bem no centro da
minha calcinha.
Estou molhada e insegura ao mesmo tempo. Não quero parar, mas
não me lembro se me depilei essa semana.
— Liam, você está... — Eu não consigo dizer mais nada, porque
agora ele beijou minha calcinha e um gemido rasgou o caminho da minha
garganta para os lábios.
Estou ofegando e ansiosa para o que vem a seguir, meu corpo tenso
pede por mais e minha mente só tenta se lembrar se eu realmente me
depilei. Estou em choque pelo beijo inesperado e confusa com os sinais
controversos que meu corpo me dá.
Ele puxa minha calcinha de lado e prendo a respiração, sua boca
chega bem perto antes de parar e ele erguer o olhar, quase me
enlouquecendo.
— Você ia dizer alguma coisa? — pergunta com uma expressão
inocente e sei que isso foi pensado só para me deixar sem estruturas, não
que eu ainda tivesse alguma.
— Eu... não lembro.
Ele assente, agora bem sério.
— Compreensível, eu mesmo nem sei como estou conseguindo falar
agora.
— É?
— Aham. — Ele olha para a minha boceta e sigo seu olhar, soltando
um suspiro aliviado ao perceber que sim, eu me depilei. Acho que o terror
de toda virgem é ter pelos na primeira vez que um homem a deixar nua. —
Quero sentir seu gosto, Ming. Você não se importa, não é?
— A-acho que não.
Que porra de gagueira é essa agora?
Ele sorri e coloca um dedo bem perto da minha entrada, posso sentir a
pontinha do seu dedo me acariciando e, puta merda, isso é gostoso. O jeito
que ele me provoca é gostoso.
— Então por que está tão tensa?
Ele é observador e doce. Sinto meu coração aquecer pelo seu jeito
suave de me conduzir e ele ainda nem sabe que eu sou virgem!
Droga, eu devia falar que sou virgem, não é?
Minhas mãos voltam a tocar nos seus cabelos ao pensar em
virgindade, isso sempre teve duas reações: ou fez os caras caírem matando
em cima de mim, lutando para ver quem teria minha virgindade, ou eles
correram para bem longe, pois, segundo alguns, mulheres que se mantém
virgens é porque querem muito mais do que a maioria está disposto a
oferecer. Quase ninguém pensa que talvez não tenha surgido a
oportunidade, ou que a garota estivesse focada em outros objetivos para se
dar um pouco de diversão.
— Eu não sei — respondo sua pergunta.
— Quer que eu continue?
— Sim. — Minha voz é um sopro baixinho, mas é o suficiente para
ele puxar mais minha calcinha e abaixar a cabeça.
A primeira lambida me faz fechar as pernas por instinto e ele olha
para cima mais uma vez, parecendo confuso.
— Tudo bem mesmo?
Estou me sentindo idiota, como vou dizer que é a primeira vez que
um homem me chupa?
Arranho a garganta e concordo com a cabeça.
Ele abre um sorriso.
— Você tem o melhor gosto do mundo, Ming — diz em uma voz
rouca e que causa uma reação muito positiva nas minhas terminações. —
Posso continuar?
É quase como se soubesse que sou virgem.
Concordo com a cabeça de novo, não encontrando minha voz.
A segunda lambida faz minha cabeça tombar no sofá e a perna
esquerda estremecer. Sua risada é suave e sexy ao mesmo tempo.
— Eu amo que você seja tão sensível — diz baixinho e então sua
boca se fecha em um ponto que faz meu quadril se mover e um som alto
escapar de mim.
— Liam — ofego.
— Oi, linda. — Ele responde, os olhos acesos com luxúria.
Ouvi dizer antes que homens se transformam na hora do sexo, foi
uma reportagem que apareceu no Google de repente na adolescência,
quando estava pesquisando sobre vibradores para virgens.
Sim, virgens também precisam se aliviar, mesmo que eu nunca tenha
comprado nada com medo da Vovó Mei interceptar a encomenda e abrir,
porque ela sempre abre tudo, mesmo quando não é o nome dela na caixa.
Nem consigo imaginar a reação dela ao ver um vibrador chegando em
casa no nome de uma adolescente.
Enfim, na reportagem, dizia que os homens tendiam a se tornarem
quase primitivos, e que alguns adquiriam expressões muito marcantes.
Nunca entendi isso, até ver o Liam agora.
Ele sempre parece um menino no dia a dia, sorriso fácil, uma
expressão fofa e piadas ruins. Todavia, quando sente prazer, ele se torna um
homem quase obscuro em suas características. Os olhos escureceram, o
semblante se transformou como o de um predador e apesar de estar sendo
gentil, tenho a impressão de que no fundo ele está jogando comigo, para
quando, finalmente, me mostrar do que é capaz, eu não estar nem um pouco
preparada.
Sua boca volta a me chupar quando não digo nada e um gemido
escapa de mim, a sensação de calor está fugindo do meu controle e não sei
o que está acontecendo, mas sinto que aquela sensação crescente que quer
muito explodir, está se forçando contra a barreira.
Ondas de sensações vibrantes passam por mim, me fazendo arrepiar e
estremecer. O homem entre minhas pernas agora segura minhas coxas, um
dedo mantendo a calcinha afastada enquanto me devora. Ele não para mais,
nem mesmo quando o chamo inúmeras vezes em uma voz manhosa, mesmo
quando imploro por algo que eu nem sei o que é.
Meu quadril tenta se mover, porém, ele me mantém parada, a língua
fazendo coisas que eu nem imaginava que um homem sabia fazer.
A barreira está quase cedendo quando ele ergue a cabeça, sua
respiração está irregular e as mãos estão levemente trêmulas ao tirar a
bermuda.
— Desculpa, linda, mas eu não estou aguentando — diz em uma voz
rouca.
Ele sobe em cima de mim e quase não consigo ver quando afasta a
cueca, todavia, consigo sentir seu pau tocando minha boceta.
Liam solta um gemido rouco antes de me beijar com vontade, uma
mão manuseando o pau, o esfregando por toda a extensão em mim.
Também estou tremendo, e só paro quando ele começa a fazer pressão
na minha entrada.
A dor transforma o prazer em desespero e espalmo as mãos no seu
peito no mesmo instante, recordando que ainda sou virgem e que ele nem
sabe disso.
— Para — imploro em uma voz chorosa e ele paralisa imediatamente.
— Desculpa, esqueci a camisinha.
Ele afasta o pau só para erguer a cueca de novo. Quando se levanta
para ir atrás da camisinha, o detenho, segurando sua mão.
— Não é isso, Liam.
Seu corpo fica ainda mais tenso e ele me olha como se tivesse feito
alguma coisa errada.
— Eu te machuquei? — Seus olhos brilham com desespero ao
observar todo o meu corpo. — Desculpa, linda. Eu... Eu... nunca aconteceu
isso antes.
Seu rosto fica vermelho e me sento, arrumando a calcinha no lugar, é
uma das poucas vezes em que sinto a vergonha me consumir a ponto de
deixar minha pele vermelha.
— Liam...
— Você pareceu sentir dor e eu nem havia colocado nada ainda. O
que eu fiz?
Agora entendo o que as pessoas querem dizer quando falam que
temos que ter confiança com o parceiro o qual perderemos a virgindade,
que o diálogo é importante para não atrapalhar e deixar nenhum dos lados
desconfortáveis.
Eu devia ter falado antes... agora estamos ambos desconfortáveis.
Chega um momento na vida da mulher que ela sente vergonha por ser
virgem na sua idade, quer dizer, algumas sentem privilégio, mas, no meu
caso, só quero enterrar a cabeça em um buraco quando preciso dizer a uma
pessoa que ainda sou virgem aos vinte e três anos.
— Ming?
— Quando eu disse que não sabia lidar com homens… — Faço uma
pausa, engolindo seco. — Eu...
— Você o quê, amor?
Não consigo olhar para ele.
— Eu sou virgem, Liam.
O silencio envolve a sala e parece durar uma eternidade.
Olho para cima por curiosidade. Sua expressão é confusa, como se
milhares de pensamentos estivessem passando pela sua cabeça.
— Liam?
Ele fica de pé e começa a andar de um lado para o outro.
— Por que não me disse antes? — Agora ele parece zangado e isso
me surpreende.
— O quê?
Também fico de pé e ele apoia as mãos no quadril. É engraçado vê-lo
desse jeito, com a ereção ainda marcando a cueca.
— Eu poderia ter te machucado! — Ele exclama. — Como você... —
Ele passa uma mão no rosto, alisando a barba curta. — Devia ter me falado,
Ming!
Cruzo os braços.
— Eu sei.
— Faz ideia de quantas maneiras isso poderia ter dado errado? —
Seus olhos estão arregalados. — E se eu fosse o tipo de cara que não
parasse quando você pedisse?
— Seria estupro.
Ele volta a andar de um lado para o outro.
— E se eu fosse do tipo...
— Você não é, Liam! Você parou. — O interrompo e ele para de se
mover.
— Porra!
Ele está com raiva, talvez seja do tipo que foge para longe ao saber
que uma mulher de vinte e três anos sequer transou na vida.
— Eu vim dizer que se ainda estivesse de pé, eu aceitaria sair com
você — falo, triste com o rumo dessa conversa. — Mas tudo bem se isso
mudar. Só pra você saber, nunca esperaria uma atitude dessa de você.
Começo a colocar minhas roupas e, quando termino, ele ainda está
parado, me observando sem desviar o olhar.
— Tchau, Liam.
Vou em direção à porta, confusa e envergonhada com toda essa
situação. Se continuar com essa sorte, talvez eu morra virgem.
— Pode ser amanhã à noite? — Ele pergunta e me viro para ele,
surpresa.
— Amanhã?
— É. — Ele se aproxima. — Eu e você em um jantar.
Ele anda em minha direção.
— Quer jantar comigo? — questiono, um pouco irritada com o
quanto ele me deixa atordoada.
— Não fiquei bravo por você ser virgem, Ming. Não mesmo. — Seus
olhos estão suaves e brilhantes mais uma vez. — Janta comigo?
— Onde vai ser?
— Surpresa.
Cruzo os braços.
— Não fico muito à vontade em lugares chiques.
— Não se preocupe, você vai ficar muito à vontade.
— O que devo usar?
— O que quiser. — Ele coloca uma mecha de cabelo atrás da minha
orelha. — O que te deixar confortável.
Concordo com a cabeça.
— Tá bom.
Ele abre um sorriso e me beija suavemente.
— Desculpa por hoje — sussurro, ainda de olhos fechados e ele
acaricia minha bochecha.
— Não tem problema, linda. — Fito seus olhos e ele abre um sorriso
de lado. — Só quero que confie em mim.
Ele me beija de novo, abraçando minha cintura, e quando me deixa ir,
me pergunto se ele aceitaria pular o jantar se eu pedisse.
Escolho manter a ideia só para mim ao me despedir e abrir a porta da
sua casa.
— Ming? — Me viro e ele está mordendo o lábio inferior.
— Oi?
Tento ignorar o quão tentador ele fica assim.
— Se prepare para passar a noite.
MING
Não consegui dormir e quando enfim me levantei, percebi que
precisaria dos cremes da minha mãe para essa noite. Não gostei nada das
olheiras que estavam abaixo dos meus olhos ao me olhar no espelho, nem
dos sinais da ansiedade que me manteve acordada pensando em tudo que
daria errado.
Agora, enquanto coloco água quente para o chá em cada xícara,
continuo distraída e nervosa. Minha avó está dizendo algo, minha mãe a
responde e meu pai bate a bengala suavemente no chão, ele ainda está
agindo como se eu não fosse mais sua filha, mas não escuto exatamente
sobre o que se trata a conversa, nem penso em como meu pai anda me
magoando.
Hoje terei um encontro! Quer dizer... um encontro, não, uma saída.
Isso! Saída é bem melhor do que aquela outra palavra.
Quando todos se aproximam da mesa e eu finalmente me sento, mal
escuto o meu celular tocar, é a vovó Mei quem toca meu braço
carinhosamente, indicando a chamada que cai na caixa postal.
— Filha, você está bem? — Minha mãe pergunta. — Está doente?
— Essa doença tem ombros largos e sorri como um garoto arteiro.
— Vovó Mei! — exclamo, finalmente voltando a mim.
Olho para o meu pai, ele está com olhos estreitos.
— Não é nada disso... — Tento explicar, mas o homem ergue uma
mão.
— Não sou eu quem tenho que me preocupar com sua reputação e
honra.
— Xiang! — Minha mãe repreende meu pai, mas tudo que consigo
fazer é ficar olhando para o homem que está agindo como um tolo.
— O senhor diz que não vai perder outra filha, mas está agindo como
se já tivesse me perdido — digo em uma voz triste. — Perdemos a Fang de
um jeito horrível, pai, eu sei! Mas não pode esquecer que a vida é
imprevisível e que eu posso morrer amanhã de uma maneira que nem passe
perto do meu trabalho.
Seus olhos se voltam para mim, surpresos e indignados enquanto me
levanto da mesa, atendendo o celular que começou a tocar outra vez.
— Alô?
Me retiro e vou para o quarto que passei toda minha adolescência.
— Ming? — É o Edu e acabo suspirando.
A última vez que nos falamos direito, foi no dia que a Sra. Rodrigues
gritou comigo na delegacia. Foi estranho porque ele ficou me perguntando
se ela havia encostado em mim, mas isso é uma coisa que nós, policiais, nos
preocupamos diariamente.
O motivo por ter evitado ficar muito na presença dele, foi por ele me
ver à beira das lágrimas quando eu não queria que ele ou qualquer um visse.
Entendo que seja um cara doce e prestativo, que gosta de ajudar tudo
mundo, porém, quando preciso de espaço e uma pessoa não me dá isso, me
sinto encurralada.
— Oi, Edu — respondo, me jogando na cama.
— Vai fazer alguma coisa hoje? — Ele indaga e acho estranho.
Não trabalho nas noites de domingo para segunda, e o Liam me disse
por mensagem que são suas noites de folga também, mas eu não sabia que o
Eduardo, por coincidência, também não trabalhava hoje.
— Você não vai para a delegacia hoje?
— Fiquei sabendo que era sua folga e troquei com o Felipe.
— Por quê?
Ele fica em silêncio por um tempo.
— É só que achei que podíamos dar uma volta, reviver os velhos
tempos. Aquele dia no restaurante a gente meio que foi interrompido.
Ok, ele está começando a confundir muito as coisas.
Primeiro ficou me questionando sobre ter passado a noite na casa do
Liam como se fosse meu namorado, e agora fica mudando suas folgas para
fazer coisas comigo sem nem me comunicar antes?
— Sinto muito, Edu. Mas eu tenho planos. — Sou direta e talvez um
pouco grossa no tom de voz da minha resposta.
— Vai sair? Com quem?
— Liam — conto, um leve sorriso tomando meus lábios ao
mencionar o moreno.
— Hmm, tudo bem. — Seu timbre se torna seco. — Você anda saindo
muito com ele ultimamente.
— É, até que ele não é tão ruim — murmuro, segurando o riso ao
imaginar a cara que o Liam faria ao me ouvir falando isso dele.
— E vocês estão saindo como amigos, ou...
Respiro fundo, ele não termina a pergunta e sei que estou o
magoando, mas a essa altura ele já devia ter entendido que isso que ele
espera acontecer entre nós dois, não vai rolar.
— Eu gosto dele — acabo dizendo, aliviada por contar isso a alguém,
e mesmo que o Edu esteja agindo meio estranho quando se trata do Liam,
ele é meu amigo desde que ainda erámos muito novos e sempre senti que
podia contar qualquer coisa para ele. — E espero mesmo que essa noite
signifique algo mais que amizade, mas eu nunca tenho sorte com homens,
então acho que tudo pode acontecer.
Escuto batidas à porta e me sento na cama, a linha continua muda e
cogito a possibilidade de ele ter desligado.
— Edu, não consigo conversar agora, tem alguém na porta.
— Tudo bem, Ming. — Ele sussurra em uma voz excessivamente
triste e meu peito se aperta por ele. Agora estou arrependida de ter contado.
— Sinto muito. — Não digo isso só por ter que desligar a ligação e
acho que ele sabe. — Depois a gente conversa?
— Claro.
Encerro a chamada, encarando o celular quando mais batidas na porta
me fazem olhar para ela.
— Entra.
Quase caiu para trás na cama ao ver que é o meu pai quem está na
porta, o homem que até pouco tempo nem olhava no meu rosto, como uma
criancinha birrenta.
Ele entra no quarto, arrastando sua bengala para perto de mim. Abro
espaço para ele se sentar ao meu lado, curiosa com o motivo dele ter vindo
até aqui.
— Tenho sido duro com você, não é?
Olho para minhas mãos, o corpo tenso.
— Você se lembra do que me disse no enterro da sua irmã? — Ele me
pergunta quando continuo em silêncio, tocando em um assunto que nunca
imaginei que viria à tona.
A verdade é que eu não me lembrava, aquela época foi uma nuvem
negra sobre minha cabeça, não me lembro de quase nada do luto, meus dias
passavam como se eu fosse um zumbi raivoso.
— Não — balbucio, erguendo o olhar para os seus olhos tão
parecidos com os meus.
Ele encara o teto do meu quarto antes de dar um sorriso de lado meio
triste.
— Você disse que nunca descansaria, que desperdiçaria essa vida
inteira e que não faria mais nada além de lutar para trazer a honra da família
Yang de volta. — Ele me olha com tristeza. — Você parecia tão certa
quando me disse que faria justiça, já que a polícia não queria o fazer e eu
não levei a sério na hora, mas me preocupei quando quis ir para São Paulo
fazer direito.
— Pai...
— Eu sei, você era uma adolescente. É isso que vai me dizer, não é?
É o que me digo sempre que penso nisso. — Ele faz uma pausa. — Só que
você não era uma adolescente comum, Ming. Enquanto sua irmã brigava
pelo garoto que gostava, você brigava fazendo greves para que o intervalo
da escola fosse mais longo.
Lembrar disso faz nós dois rirmos.
— E você conseguiu. — Ele continua.
— Foram só três minutos.
— Mas as crianças te idolatraram por isso.
Dou de ombros.
— Você gostava de subir em árvores, se sujar e fazer coisas que te
colocava em constante perigo. — Ele segura minha mão. — Eu sabia que
você era ótima em se defender naquela época, mas o que está fazendo agora
é muito mais perigoso do que subir no telhado de casa para ajudar um gato
que não parava de miar.
— Eu não vou me colocar em risco.
Aperto sua mão e ele balança a cabeça.
— Pensei que morreria quando tive que reconhecer o corpo da sua
irmã e depois vê-la em um caixão. — Seus olhos ficam marejados. —
Nunca mais quero passar por aquilo, Ming. Eu não suportaria.
— Pai, eu amo o meu trabalho. Apesar de tudo, eu quero ser a pessoa
corajosa que salva as pessoas.
Ele fica calado e não sei se essa conversa foi uma bandeira branca,
mas sinto que as coisas estão menos pesadas entre nós, como se agora
tivéssemos chance de superar e recomeçar.
Observo minha roupa diante do espelho, vesti a calça menos larga que
tinha no guarda-roupa e a blusa com mais decote, o que significa que agora
é possível ver a curva dos meus seios, mas ainda é difícil definir se esse
corpo é de uma mulher.
Enfio as mãos entre os cabelos, frustrada.
Devia ter passado no shopping, comprado um vestido colado, que
gritasse o que eu pretendia para essa noite.
Sento-me na cama do meu quarto e solto um suspiro. Pelo menos sei
fazer uma maquiagem até que decente e agradeço à Fang por ter me
ensinado na adolescência.
Acabo sorrindo, porque só consigo imaginar como nossas vidas
seriam diferentes se ela ainda estivesse aqui. Quase consigo vê-la andando
pelo quarto, procurando algo para eu vestir, sorrindo por sua irmãzinha
finalmente ter dado uma chance ao amor.
Pensar nisso me deixa ainda mais arrasada, porque agora estou com a
maquiagem borrada pelas lágrimas.
Uma batida à porta me faz secar o choro e ficar de pé, não contei a
ninguém que iria sair hoje, exceto pela vovó Mei, que continuava
ameaçando procurar o Liam. É justamente ela quem abre a porta.
A senhora entra no quarto e fecha a porta antes de analisar minha
roupa.
— Achei que tinha um encontro, por que está se preparando para
dormir?
Solto um suspiro e me jogo na cama de novo.
— Estou pronta para sair, vovó.
Ela me observa, acho que está se perguntando se estou brincando.
— Nunca vi uma pessoa vestir um saco de batatas para um encontro,
é a primeira vez.
— Você precisa ser cruel assim ou só se diverte sendo?
— As duas coisas.
Ela se aproxima de mim e coloca uma caixa branca ao meu lado.
— Agradeça agora por ter me contado desse encontro. — Ela
continua falando quando solto a fita dourada que envolve a caixa e a abro.
Tem um vestido preto dentro e quando o estendo na cama, solto um
som de puro alívio. Ele é rodado e ombro a ombro, mas duas alças
garantem que o vestido vai ficar no lugar.
Vovó Mei também se preocupou com joias e sapatos. Na caixa, tem
um colar em formato de espada e, nessa espada, pequenas pedrinhas
vermelhas tornam a correntinha bem delicada.
Abro um sorriso para o colar, mas uma careta para o salto preto.
— Isso é...
— De nada. — Ela me interrompe. — Só para você saber, os seus
pais estão se preparando para dormir e eu vou deixar a porta dos fundos
aberta para o caso de decidir voltar para casa.
Não sei como dizer que esse não é o plano, mas, pelo sorriso de lado
dela, ela tem conhecimento disso.
— Liam é um bom homem, Ming. — Ela acaricia meu braço. — Mas
tenha certeza de que está segura do que está fazendo antes de se entregar a
alguém.
Concordo com a cabeça e ela se levanta.
— Espero que essa noite seja tudo que você espera, minha menina.
— Obrigada, Vovó.
A assisto sair do quarto antes de tirar as roupas, dessa vez coloco a
lingerie mais bonita que tenho, a comprei quando ainda morava em São
Paulo e estava planejando ir para o meu primeiro encontro com um garoto
que eu gostava.
É vermelha, toda de renda. Ninguém nunca chegou a ver o conjunto e
estou grata por estar usando essa noite.
Coloco o vestido preto e escondo a alça do sutiã por baixo da do
vestido. Agora o contorno dos meus seios está muito melhor e o colar de
espada descansa sobre a clavícula, brilhando toda vez que me movo. O
vestido é acinturado e marca minha cintura fina antes de se tornar rodado.
Estou sentindo que vou impressionar aquele homem, mas a única
coisa que me incomoda é o salto e decido que só vou colocar quando já
estiver na porta, para não fazer barulho.
Ajeito a maquiagem e quando estou passando perfume, recebo uma
mensagem do Liam dizendo que está em frente à minha casa.
Meu coração bate acelerado enquanto desço as escadas em silêncio,
me sinto como uma adolescente fugindo para encontrar um namorado sem
os pais saberem. É emocionante.
Coloco o salto antes de abrir a porta e faço uma careta quando perco o
equilíbrio por um instante. Não tive tempo nem para treinar ficar em cima
dessa coisa.
Fecho a porta com cuidado atrás de mim e ao me virar para o homem
na calçada, minha vontade é rir da sua expressão, mas sinto que estou
igualzinha a ele, então só engulo seco.
Sua boca está entreaberta, os olhos focados no meu vestido e nos
meus peitos. O sutiã fez um ótimo trabalho em deixar meus seios ainda
mais empinados e seus olhos não conseguem desviar dos montes.
Ele está usando uma camisa social preta que tem um caimento
perfeito no seu corpo atlético, a calça jeans é igualmente escura e preciso
dizer que esse homem fica gostoso demais em roupas pretas.
Desço os degraus até a calçada, tentando não me desequilibrar, mas
tenho certeza de que não estou soando nada sexy. Minhas pernas tremem e
sei que sou um desastre ambulante; decido que os saltos foram o único erro
da vovó.
Piso em falso e meu pé vira, sinto que estou prestes a reviver a queda
que tive aquele dia na sua casa e acabar de joelhos na sua frente, mas agora
ele impede meu tombo, segurando minha cintura com força.
— Acho que não preciso de mais fantasias de você de joelhos, linda.
— Ele sussurra perto do meu rosto. — Já fico duro o suficiente em lugares
públicos sem mais uma cena dessas.
As borboletas estão dançando no meu estômago novamente e apoio
uma mão sobre a barriga enquanto ele aproxima os lábios da minha orelha.
Só consigo me lembrar de onde essa boca esteve na última vez que
estivemos juntos, e é impossível não reagir à imagem mental do seu rosto
entre minhas coxas.
— Você é a mulher mais sensual que eu já vi, mesmo tendo dois pés
esquerdos — sussurra e sinto minhas pernas amolecerem com suas
palavras.
Quero fingir que ele não me afeta tanto, mas quando me olha assim,
como se mal visse a hora de me devorar, sinto meu corpo inteiro reagir de
maneira exagerada.
— Isso foi um elogio?
Ele segura minha mão e a leva até sua calça, onde posso sentir sua
ereção.
— Acho que isso responde sua pergunta.
Estou chocada com sua ousadia, mas não posso deixar de gostar
disso.
Minha mão continua onde ele a colocou e quando o vejo abrir um
sorriso sacana, a movo sobre a ereção. Não tive uma visão clara do seu pau
no dia anterior, ele estava eufórico demais para me deixar ver direito e eu
estava tão afetada quanto ele, mas agora tento imaginar o tamanho e
começo a me preocupar com a possibilidade de ser grande demais.
Ele chega ainda mais perto e segura meu braço, impedindo meus
movimentos.
— Prometo deixar você fazer sua pesquisa mais tarde. Se continuar
com isso agora, vou acabar passando vergonha.
— Como assim?
Sua resposta é um sorriso doce antes de ele se ajoelhar na minha
frente.
— Achei que tinha dito pra você usar o que te deixa confortável.
— Estou confortável — minto e ele sabe disso.
O assisto desamarrar a fita de um salto, depois do outro, e quando
liberta meus pés, percebo o quanto acho excitante vê-lo removendo meus
sapatos.
Ele está ajoelhado e só quero poder ter sua língua em mim de novo,
aquilo foi a coisa mais prazerosa que já vivenciei na vida.
— Você não vai precisar disso. — Ele murmura, beijando um dos
meus tornozelos antes de se levantar.
Liam estende uma mão para mim e a seguro, sentindo um friozinho se
espalhar pelo meu corpo quando ele entrelaça nossos dedos e me guia para
o carro, segurando meus saltos com a outra mão.
Gosto da sensação de estar com os pés no chão, parece diminuir o
meu nervosismo.
— Não vai mesmo me contar aonde nós vamos?
— Não.
— Me dá uma dica.
— Você é inspetora, Ming. Se te der uma dica, antes de chegarmos lá,
você já vai ter adivinhado.
Ele abre a porta do carro para mim, só que não entro, apenas olho
para o seu rosto.
Os cabelos estão mais curtos, o que prova que ele cortou e fez a barba
também, ela está mais desenhada e rente ao rosto. Seu perfume está mais
marcante e é difícil me conter ao saber que ele se arrumou para mim, mal
vejo a hora de bagunçá-lo inteiro.
Meus dedos acariciam sua barba e ele fecha os olhos.
Fico na ponta dos pés e beijo seus lábios com calma, apreciando cada
segundo. Suas mãos apertam minha cintura e ele corresponde o beijo, me
puxando de encontro ao seu peitoral.
Sua ereção me pressiona e quero mesmo pular esse jantar, porém,
parece estranhamente prazeroso prolongar nossa tortura, principalmente
quando minha mente também está preocupada.
Apesar de tudo, essa é minha primeira vez, e mesmo que ele me deixe
super à vontade, é impossível não me sentir um pouco nervosa.
Quando me afasto, ele balbucia alguma coisa.
— O que está dizendo? — pergunto baixinho e ele abre os olhos.
— Estou quase gozando nas calças com um beijo.
Meus olhos se arregalam com sua sinceridade e ele continua com uma
expressão torturada.
— Desculpa, eu não diria isso se você não estivesse acabando com
meu psicológico. — Ele continua falando, a voz rouca arrepiando minha
pele.
— Eu...
— Você vai entrar no carro e ficar quietinha, antes que eu estrague
tudo e pule várias etapas dessa noite. — Ele me interrompe, os olhos
brilhando com desejo. — Por favor.
— Como você é educado — ironizo e ele consegue sorrir.
— Obrigado por notar.
Aliso seu braço e entro no carro, decidindo que quero ter a parte do
jantar e ver o que ele planejou para nós dois.
Descartei a ideia de um restaurante, ele é mais criativo que isso.
Também não acho que me levaria para um jantar na sua casa, ele sabe que
acabaríamos não jantando.
Olho para o seu perfil assim que ele senta no banco do motorista e
começa a dirigir, desconfiando do seu sorriso enigmático.
— Para de tratar isso como uma investigação, linda. — Ele procura
minha mão, sem olhar para o meu rosto e me pergunto como ele sabe o que
estou fazendo. — Só relaxa, hoje eu estou no controle.
Abro a boca para responder, mas ele continua falando:
— E eu sei que você odeia isso, só que vai ter que aprender a ceder de
vez em quando. Até você precisa que alguém te mime às vezes.
— Eu só sou curiosa.
Ele me olha de relance e seu olhar parece me dizer que ele sabe não
ser somente isso.
Observo sua mão na minha, quente e grande... acolhedora.
— Talvez eu esteja um pouco nervosa, só um pouco.
Seus dedos apertam os meus.
— Sou só eu, Ming. — Ele solta uma risada doce. — A gente já fez
coisas mais chocantes do que um jantar, não precisa ficar assim.
É, mas é exatamente o que vem depois do jantar que está me
deixando agitada.
Não digo isso a ele, apenas recosto minha cabeça no banco e o assisto
me levar para o lugar ultrassecreto que escolheu para essa noite.
Enquanto isso, penso em como as coisas estão quietas por aqui. Não é
porque estou distraída com essa atração que não reparei na estranheza
daquele caso, quer dizer, duas mortes seguidas e depois o assassino tirou
férias. Que tipo de mente é a desse serial killer?
— Para de pensar em trabalho.
— Você lê mentes? — questiono, dessa vez completamente chocada
com suas palavras.
— Talvez a sua.
— Fala sério, isso é bizarro.
Ele olha para mim de relance antes de se voltar para a estrada.
— É que você faz uma cara muito específica quando sua mente está
trabalhando no caso.
— Por que você sabe disso?
— Porque eu sou obcecado por você. — Ele brinca e eu estreito os
olhos. — É só que eu reparo. — Continua, dessa vez com o semblante
sério.
— Você é estranho.
— Não tenho culpa se você é linda.
Tento conter o sorriso, gosto de manter minha pose de durona, só que
ele torna essa tarefa quase impossível ao falar esse tipo de coisa.
— Obrigada.
— Não por isso.
— Pelo que então?
Ele para em um farol vermelho e se vira para mim, segurando meu
rosto antes de roubar um beijo que me tira o fôlego.
Sua língua está na minha boca e o seguro perto até que um gemido
baixinho soa do fundo da minha garganta sem autorização.
Um carro buzina atrás de nós e Liam se afasta, relutante.
— Eu preciso parar de te beijar.
— Por quê?
— Eu não estava brincando sobre o lance de gozar nas calças, Ming.
Estou a um passo de me tornar um adolescente emocionado.
— Podemos pular o jantar — sugiro de repente, contrariando minha
própria ideia de estender a tortura. Acho que eu também estou ansiosa.
Ele me lança um olhar de puro desespero antes de balançar a cabeça.
— E negar uma noite romântica para meu docinho amargo? Nunca!
— Você acabou de me chamar de docinho amargo?
— Não.
— Chamou, sim.
— Eu não lembro, então não disse.
— Me acha amarga?
— Um potinho de mel, princesa.
— Eu consigo entender sua ironia daqui.
Ele entra na rua do parque, assobiando como se estivesse muito feliz,
mas isso nem é novidade, Liam sempre está muito feliz.
— Eu não sou amarga. — Ainda resmungo antes de cruzar os braços
e me afundar no banco.
— Eu gosto que você seja assim, poucos homens teriam coragem de
tentar algo com uma mulher capaz de te morder a qualquer instante. Quero
ser o único.
— Mas você não é — provoco, virando o rosto para a janela. — Já
perdi as contas de quantos caras se aproximaram de mim desde que
cheguei.
— É? Muitos?
Seu interesse repentino me faz querer continuar me gabando.
— Aham.
— Que bom que eu tenho uma arma então.
Me viro para ele, encarando seu semblante agora irritado.
— Você é policial.
— Um policial louco o suficiente para ir parar na cadeia.
Solto um suspiro.
— Não está falando sério.
— Eu sei que tenho cara de anjo, mas não pense que sou um.
Por que você achou isso excitante?
Ele estaciona o carro perto do lago e, de onde estou já consigo ver
luzes, não sei identificar o que são, já que não lembro de ter postes de luz
nessa região.
A lua é cheia nessa noite, o céu está repleto de estrelas. Demoro um
pouco para me dar conta de que esse é o destino final, Liam já está saindo
do carro e eu não faço ideia do que o homem tramou.
Tento desligar minha mente enquanto o sigo para fora. Uma sensação
de euforia e medo dança em meu peito.
Esse é só o Liam — digo a mim mesma.
Ele é só um cara legal do trabalho.
Mas acontece que ele não é só mais um cara, em algum momento
aprendi a lidar com o fato de que não sirvo para encontros, só que esse é o
homem por quem estou atraída desde que ele me algemou e me manteve
presa.
Sim, eu sei que soou meio esquisito.
Lembro do seu olhar vencedor naquele dia, como se me ver algemada
lhe proporcionasse prazer, como se tivesse executado alguma espécie de
vingança.
Liam me guia para mais perto do lago com uma mão apoiada nas
minhas costas, e, aos poucos, consigo identificar o que são as pequenas
luzes que piscam como vagalumes.
— Pisca-piscas?
— Eu sei que não é natal, mas queria fazer algo diferente, já que você
só teve encontros ruins.
E conseguiu.
A beira do lago está cercada com pisca-piscas, eles rodeiam algumas
árvores, fazendo uma espécie de barreira, como as fitas de polietileno
fariam para cercar uma cena de crime.
No meio, ele forrou a grama com mantas e almofadas. Tem uma cesta
também e um balde de gelo, onde ele colocou um vinho para gelar. Não
faço ideia de como ninguém roubou essas coisas.
— Vim rezando para nenhum delinquente roubar o vinho e a comida,
era um plano cheio de falhas, reconheço. — Ele murmura, parecendo ler
meus pensamentos pela milésima vez em uma noite.
Olho em volta, só então vendo as palavras escritas em duas árvores.
“PERTENCES DE UM POLICIAL. NÃO TOQUE”
— Acho que temos sorte — digo, tentando conter a risada.
— Acho que eu tenho sorte. — Ele sussurra, colocando uma mecha
de cabelo atrás da minha orelha e rapidamente me fazendo esquecer da
vontade de rir. — Eu já falei que você é deslumbrante?
Mexo na barra do vestido rodado, de repente tímida como não
costumo ser. Não sei se gosto do jeito que ele me faz sentir, não costumo
agir igual a uma garotinha.
— Eu pretendia usar outra roupa, mas...
— Não disse que você está deslumbrante. — Ele morde o lábio
inferior. — Não é o vestido, acredite em mim. Você poderia estar vestindo
um saco e ainda me faria perder o fôlego.
Eu não havia percebido que em algum momento me contentei com a
ideia de ficar sozinha, mas, agora, noto que não passava pela minha cabeça
que algum dia encontraria alguém como o Liam e que ele me diria coisas
desse tipo, tampouco que eu fosse gostar.
Olho para tudo que ele preparou para mim.
Nunca fui romântica ou sonhei com um príncipe encantado e
casamento, mas agora me pergunto o motivo disso, pois é muito boa a
sensação de ser desejada e paparicada por alguém.
Eu poderia facilmente me apaixonar pela primeira vez.
LIAM
Minhas mãos estão suando e acho que nunca estive tão nervoso.
Ming está linda. Não... ela é linda, apesar de o vestido realçar isso.
Meus olhos insistem em descerem para o decote generoso e agradeço
a divindade que colocou essa mulher no meu caminho.
Quero desfazer o laço do vestido que fica logo acima da sua bunda,
quero descer aquele zíper e poder ver esse corpo mais uma vez. Quero
beijar cada centímetro da tatuagem detalhada no seu braço. Quero descobrir
seus pontos sensíveis, mesmo já tendo percebido que ela é muito sensível a
toques. Quero desvendar suas curvas e conhecer onde ela sente cócegas.
Quero...
— Liam?
Meu olhar se ergue do seu decote e sinto minhas mãos suarem mais
ainda, é a primeira vez que me sinto assim em um encontro, quase inseguro,
apreensivo.
E eu dizendo para ela relaxar.
— Desculpa, eu me distraí.
Ela olha o próprio decote antes de respirar fundo.
Seu peito sobe e desce, isso é o bastante para me fazer olhar de novo.
Ainda me lembro do gosto da sua pele na minha boca, da sua boceta. Ainda
me lembro vividamente de como me senti ao fazer suas pernas tremerem.
— ... O que acha?
Pisco os olhos, ela está dizendo alguma coisa.
— Acho ótimo.
— Sério? — Ela parece surpresa e me pergunto com o que estou
concordando.
— Sim?
Ela franze a testa.
— Isso foi uma pergunta? — rebate e coço a barba, me sentindo um
idiota por estar distraído.
Ela está longe demais.
Nos sentamos na grama há um tempo, servi uma taça de vinho bem
pequena para ela, já que sei como é fraca para bebida.
Quero conhecê-la melhor.
— Não sei — respondo e ela olha para sua taça.
— Você não estava ouvindo, né?
— Claro que... — Paro no meio da frase, não quero mentir. —
Desculpa.
— Tudo bem, pelo menos eu ainda não derrubei vinho na sua camisa
cara.
Olho para minha camisa.
— Você pode derrubar vinho na minha camisa, se quiser. — Tento a
tranquilizar. — Eu não me importo mesmo se estamos usando roupas nesse
encontro.
Péssimas palavras, porque agora a imagino degustando esse vinho
sem uma única peça de roupa.
Ela está me olhando com olhos escuros, e a comparo com uma tigresa
analisando sua presa. Está lambendo o lábio inferior, o olhar descendo para
minha camisa.
Será que sabe que seu desejo por mim me deixa em brasa?
— Ming?
— Hmm...
Dou batinhas no espaço bem ao meu lado.
— Vem cá.
— Por quê? — Agora está olhando fixamente para minha boca.
Porque eu não estava mentindo quando disse que sou obcecado por
você e quero muito te ter mais perto.
— Não consigo te ouvir direito, está muito longe.
Ela franze a testa.
— Não sabia que você tinha setenta anos, nem a vovó Mei tem
dificuldade em escutar de uma distância tão curta.
Minha cabeça vira levemente de lado enquanto ela zomba de mim,
mas estou satisfeito por vê-la se arrastando para mais perto.
— Melhor assim? — pergunta e passo a mão por sua pele frágil,
jogando os cabelos longos para trás antes de afundar o rosto na curva entre
seu ombro e seu pescoço. Inalo profundamente.
Ela tem o melhor cheiro do mundo.
— Muito melhor — respondo baixinho, notando como seu corpo fica
arrepiado em me ter perto.
— Vocêdeviaparardefungarnomeupescoço.
Ela diz tudo tão rápido que preciso de um tempo para entender que
está ficando nervosa.
— Eu gosto do seu pescoço e do seu cheiro.
Sua respiração está levemente alterada, algo que ela tenta ao máximo
controlar, porém, quanto mais tenta impedir, mais reações eu lhe causo,
como, por exemplo, os dedos trêmulos que seguram a taça de vinho.
— Eu queria te perguntar uma coisa desde que dormiu na minha casa.
— Ela fica tensa e finalmente afasto meu rosto do seu pescoço, colocando
uma mecha do seu cabelo atrás da orelha pequena e delicada. — Você
conseguiu se resolver com o seu pai?
— Nossa, você muda de assunto drasticamente.
— Quer que eu continue atiçando pensamentos impróprios nessa
cabecinha?
— Não estava tendo pensamentos impróprios.
— Certeza?
— Tivemos uma conversa até que positiva hoje. — Ela desvia o olhar.
— Eu e meu pai.
Rapidamente esqueço da provocação, apesar de saber que ela fugiu de
me responder. Por ora, estou realmente interessado no que ela tem a dizer
sobre o pai, o que prova que não estou interessado só em sexo, não que isso
estivesse em questionamento.
— Isso significa que se resolveu com ele?
Ela me observa, então um pequeno sorriso surge em seus lábios, o
que também me faz sorrir.
— Acho que avançamos alguns passos.
Acaricio seu rosto.
— Eu fico feliz, linda. — Respiro fundo e me deito na manta,
olhando para as estrelas e as luzes piscando. — Queria avançar alguns
passos com o meu pai também.
— A relação de vocês é muito ruim?
Ela também se deita e seus cabelos fazem cócegas no meu rosto, eu
amo a sensação, principalmente por estar sentindo o perfume dela.
— Acho que meu pai teve filhos um pouco diferentes do que ele
gostaria. — Falar disso deixa um clima pesado e é um dos motivos por
nunca ser muito profundo e sincero em uma conversa, não gosto de sentir o
peito apertar, mas Ming me faz querer contar, mesmo que não esteja me
olhando como se fosse me pressionar a isso. — Acho que a Cass e eu
puxamos muito mais a minha mãe do que qualquer um de nós esperava. Ela
era a melhor mulher do mundo, Ming. Queria que pudesse ter conhecido
ela.
— Eu também gostaria.
Ming segura minha mão e entrelaço nossos dedos, grato pelo gesto de
carinho, até porque, ela não é muito carinhosa.
— Mas eu amo meu pai, entende? Não tem como não amar, ele é meu
pai. — Minha respiração entrecorta. — Eu só tenho medo do que o
isolamento pode fazer com ele, às vezes, sinto que ele queria ter morrido no
lugar da minha mãe, como se ela fosse nos criar melhor do que ele o fez.
Uma vez, ele me disse isso com essas mesmas palavras.
— Isso é horrível, Liam.
— Não estou dizendo que ele foi um bom pai, não foi. — Não estou
mentindo, ele foi péssimo em muitos sentidos. — Só que não desejo que ele
definhe sozinho, já me sinto culpado o suficiente por não ter estado aqui
quando a minha irmã precisou de mim, não quero que aconteça o mesmo
com meu pai.
— Você é um bom filho, não duvido disso.
Me viro em sua direção e ela faz o mesmo, acariciando minha barba.
— Às vezes não queria ser, me sinto farto quando preciso fingir que
sou perfeito, tem dias em que não quero fazer tudo, pensando se meu pai
aprovaria minhas ações.
E isso se aplica no fato de me envolver com uma mulher cuja ele
nunca aprovaria.
— Eu sinto muito por se sentir assim, mas se lembre que essa é sua
vida, não do seu pai.
— Eu estraguei o clima, não foi?
Ela nega com a cabeça.
— Estragar o clima é meu trabalho, Liam.
Acabo rindo disso.
— Desde que eu te conheço, você não estragou nada... — Ela arqueia
uma sobrancelha. — Em relação a nós dois — completo e isso a faz
suspirar.
— É tão estranho, porque eu tenho um equilíbrio ótimo quando estou
praticando alguma arte marcial, também sou muito boa em atirar, vou ao
estande frequentemente, mas quando se trata de coisas simples, como servir
uma mesa, andar sem parecer um elefante em uma loja de cristais, ou
colocar água quente em uma xícara, as coisas estranhamente acabam mal.
Ela restaurou o clima, porque agora meu peito não está pesado, na
verdade, estou curvado de tanto rir.
Ela, definitivamente, é a mulher mais fofa e atraente que conheci.
Passamos horas falando das vergonhas que ela passou na adolescência
e sobre como eu era um nerd esquisitão no ensino médio. É claro que ela
não faz nada que coloca tudo a perder do jeito que alega sempre fazer em
encontros, muito pelo contrário, só consigo ficar ainda mais interessado,
porque não me lembro se alguma mulher ou homem algum dia conseguiu
me fazer sorrir tanto.
Ela me fascina de uma maneira que nunca aconteceu com mais
ninguém. Estou hipnotizado pela maneira que move os braços enquanto fala
e na fofura que é ver seus olhos ficarem pequenininhos quando sorri
amplamente, e, Deus... esse sorriso é a coisa mais linda que já vi!
Quando finalmente a levo para minha casa, sou eu quem está com
medo de estragar tudo, não ela.

MING

Ele me vendou.
E sim, eu sei que vamos para sua casa. Não, ele não explicou o
motivo da venda.
Tudo que sei é que isso está fazendo um friozinho se espalhar por
minha barriga, uma sensação meio boba ao pensar que ele preparou outra
surpresa para mim, como se aquele jantar não fosse o suficiente.
Assim que o carro finalmente para e escuto o som da garagem se
fechando, já estou quase tirando a venda e correndo para descobrir logo o
que é, só que fazer isso provaria que estou ansiosa e não quero parecer
totalmente leiga em surpresas na frente dele, ser virgem já é o bastante.
— Ming? Você dormiu?
Ele tira o meu cinto de segurança e respiro fundo.
— Estou acordada.
Mesmo sem ver, sei que ele está sorrindo.
— Boa garota.
Meu coração acelera quando ele me ajuda a sair do carro e, assim, o
escuto destrancar a porta.
— Escuta... não sou muito bom nessas coisas e talvez você ache bem
cafona. — Ele faz uma pausa. — Quer saber? Você vai odiar. Fica com a
venda enquanto eu guardo tudo e...
Tarde demais, já estou puxando o pano para baixo e encarando o
homem diante de mim. Ele parece apreensivo, o que é novidade, então o
empurro levemente para o lado.
— A surpresa é minha, eu digo se gostei ou não.
Ele morde o lábio inferior e entro na sala.
Instantaneamente, todo o ar parece fugir dos meus pulmões, não
consigo respirar enquanto contemplo cada detalhe.
Ele acendeu velas aromáticas por toda parte e nem sei se é seguro ter
tanto fogo assim perto de mim, mas, de qualquer forma, estou sorrindo
como uma menina que foi pedida em namoro pela primeira vez, o que não
está muito longe da realidade. Essa é a primeira vez que um cara faz isso
por mim.
Ele também fez uma trilha de velas e pétalas de rosas vermelhas pela
escada, como se quisesse que eu seguisse naquela direção, então é isso que
eu faço.
No primeiro degrau, encontro a palavras “TODA” desenhada pelas
pétalas. No terceiro degrau, a palavra “GUERREIRA”. No quinto, a palavra
“MERECE”.
Ele segue escrevendo palavras e quando chego no topo, me viro para
ler a frase inteira.
“TODA GUERREIRA MERECE SER AMADA COMO UMA
PRINCESA”.
Estou emocionada, mesmo que nunca vá admitir isso para ele, que
ainda me observa perto da porta.
Ao se dar conta de que já subi o lance de escadas, Liam corre em
minha direção, tomando cuidado para não pisar nas pétalas.
Contenho uma risada ao me virar para o corredor e ver mais velas e
pétalas, essas formam corações até a porta do seu quarto.
Sou guiada por essas flores, me perguntando como ele teve coragem
de fazer isso depois de me ouvir reclamar de pessoas que dão flores para
outras, pior, estou adorando essa cafonice.
Empurro a porta do seu quarto e dessa vez estanco de verdade, meu
coração parece um cavalo em uma corrida, galopando como se não
houvesse amanhã.
Velas estão espalhadas pelo quarto e mais pétalas estão no chão e na
cama, formando mais palavras. Então, me demoro ao lê-las.
“ENTÃO, TIRE A ARMADURA POR ESSA NOITE, LINDA”.
A frase está complementando a da escada.
“TODA GUERREIRA MERECE SER AMADA COMO UMA
PRINCESA, ENTÃO TIRE A ARMADURA POR ESSA NOITE,
LINDA”.
Me viro para a porta, Liam está parado no batente. Seus olhos me
estudam como se procurasse por um único sinal de que eu odiei.
— Desculpa, você não gosta de flores, é só que... — Ele não sabe
como continuar. — Foi uma ideia ruim.
— Por que fez tudo isso?
— Eu não permitiria que a sua primeira vez fosse em um sofá, se
soubesse antes, teria adiado o que aconteceu ontem.
— Não estou acreditando que fez tudo isso, Liam.
E não estou mesmo, nem sei como reagir ao seu romantismo.
— Eu teria feito mais, só que o Pedro disse que serenata era brega,
que poemas estavam fora de moda e que eu sou um péssimo escritor. E que
eu não poderia, de forma nenhuma, simular uma invasão pra te deixar
excitada.
— Hmm, o último seria bem sexy.
— Foi o que eu disse!
Acabo rindo e percebo que era essa a intenção dele, suas palavras são
só para disfarçar o quanto nós dois estamos nervosos.
— Tudo bem? — pergunto, dando um passo em sua direção.
— Nunca fiz isso pra ninguém.
— Que bom.
Minha resposta arranca um sorriso dele, que também dá um passo à
frente.
— Eu sei que você talvez não seja romântica, nem goste disso. Mas
queria que você nunca esquecesse dessa noite.
— Eu não poderia esquecer, nem mesmo se você não tivesse feito
nada disso. Você preparou tudo sozinho?
— Sim.
— Rosas — murmuro, observando as pétalas.
— Eu queria te mostrar que rosas não têm a ver com o objeto, com o
ganhar em si. — Ele segura minhas mãos, os polegares acariciando meus
pulsos. — Queria que sentisse como é ter um presente cheio de flores.
Pensando bem, acho que não analisei tanto assim o plano.
Dou risada.
— Liam.
— Ming? — A simples palavra parece ocultar mil segredos.
Ele tem razão, nunca fui do tipo romântica e que gostasse de flores,
inclusive disse isso para ele ontem. Todavia, sinto que essas flores nunca
poderiam murchar, não na minha memória, e pela primeira vez, entendo o
que ele quis dizer com “gesto de carinho”. Não importa se essas pétalas vão
apodrecer daqui uns dias, ou se ele removerá amanhã, o que importa é que
ele provavelmente ficou o dia inteiro preparando tudo isso para mim e eu
jamais poderia não amar isso.
Balanço a cabeça e ele continua me encarando como um menino
esperando a repreensão, mas tudo que faço é jogar meus braços em volta do
seu pescoço e beijar sua boca carnuda.
Ele corresponde o beijo, agarrando minha cintura e me puxando para
perto. Suas mãos são grandes e me abraçam com vontade, o tipo de pegada
que rouba meu juízo.
— Obrigada — murmuro em meio aos beijos. — Isso é... — Ele não
me deixa prosseguir, quando dou por mim, estou com as pernas envolvidas
no seu quadril, prensada contra a parede mais próxima.
Eu amo a maneira como ele beija.
Sinto exatamente o que é ser cobiçada, desejada com toda força e
coração de um homem.
Ele me faz suspirar e entrar em erupção, estou gemendo na sua boca,
arranhando sua camisa, agarrando seus cabelos. Nossas bocas se movendo
em sincronia de um jeito que me faz pensar que existem somente para isso.
Para beijar.
Quando liberta minha boca, seus olhos parecem ensandecidos.
— Então você gostou? — sussurra a pergunta, os dedos apertando
minhas coxas.
— Eu amei.
— A mulher que não vê sentido em ganhar flores porque vão
murchar?
— Para — murmuro, apoiando o rosto no seu pescoço.
Balanço os quadris, na tentativa de chegar mais perto e ele aperta
minha bunda com uma mão, ajudando na proximidade. Deixo escapar um
leve resfolegar ao sentir sua ereção.
Seus lábios estão na minha mandíbula, mordiscando.
— Eu queria que essa noite fosse a mais lenta possível — balbucia,
me colocando no chão, minhas pernas estão meio bambas. — Mas você me
deixa desesperado.
Ele me vira de frente para a parede, a mão na curva do meu quadril,
bem perto de onde mais pulso por ele. Sua ereção se esfrega na minha
bunda.
— Me diz assim que eu começar a te assustar — pede, afastando
meus cabelos com a outra mão.
Agora meu pescoço e nuca estão expostos e ele mordisca o lóbulo da
minha orelha, descendo beijos e chupadas pelo meu pescoço até finalmente
desfazer o laço do meu vestido.
Ao mesmo tempo que é frenético, Liam também é cuidadoso, como
se nunca deixasse de lembrar a si mesmo de que essa é minha primeira vez.
Já fiquei nua na sua frente, ou mais nua do que fiquei com qualquer
outra pessoa, ainda assim, quando seus dedos descem o zíper das minhas
costas e empurram meu vestido, deixando que a roupa deslize até os meus
pés descalços, sinto o corpo estremecer.
Ainda estou de calcinha e sutiã, o que serve de barreira, mas não sei
se estou mais nervosa pela falta de roupas, ou ansiosa pela necessidade que
se espalha por minha pele.
Sua barba faz arrepios e suspiros soarem de mim, empino minha
bunda em sua direção enquanto suas mãos se movem por minhas curvas.
Ele está grunhindo e mordendo minha pele, brincando com a alça do meu
sutiã.
— Ming?
Abro os olhos que não lembro o momento exato em que fechei, ele
está olhando para o meu rosto apoiado em seu ombro, e continua
completamente vestido.
— Oi?
Ele sorri discretamente.
— Você está gostosa — diz baixinho e percebo que essa voz poderia
ser motivo de delírios, eu poderia escutar esse timbre sensual e rouco pelo
resto da minha vida sem reclamar.
Me viro de frente para ele e assisto seus olhos baixarem para os meus
seios.
Ele não diz mais nada, ao invés de palavras, ele demonstra o quanto
gostou da minha lingerie. Em poucos segundos, estou sendo carregada para
a cama cheia de pétalas.
Liam me beija assim que meu corpo toca o colchão e sinto a maciez
das flores abaixo de mim, seu corpo pesa sobre o meu e envolvo minhas
pernas nas suas, desejando sentir a mesma sensação de quando estávamos
no seu sofá.
Sua boca encaixa devastadoramente bem na minha e tudo que penso é
no quanto esse homem me faz sentir coisas que nunca senti antes.
Minhas mãos exploram seu corpo e não gosto que ele ainda esteja
vestido, então começo a desfazer os botões da sua camisa, indo para o da
calça logo em seguida.
Encontro muitos músculos e pele quente por baixo da sua camisa e
arranho suas costas, fazendo com que ele solte um ronronar na minha boca.
Não sei bem o que estou fazendo, ou se está certo, só sei que quero tocar
em toda pele que minhas mãos alcançarem, rezando para que ele goste
disso.
Liam se afasta para arrancar a camisa e a calça, só para voltar a me
pressionar no colchão.
Seu corpo é sensacional, com direito a abdômen trincado e ombros
largos. Ele está em cima de mim e quase não consigo ver mais nada à minha
volta, o homem cobre literalmente toda a minha visão.
— Nossa, eu amo seu corpo. — Ele confessa, apertando minhas
coxas.
Arqueio as costas quando ele pressiona o quadril no meu. Aquele
mesmo calor que senti antes no sofá, está consumindo minha pele
lentamente.
Desejo... excitação...
Pensava que podia viver sem isso, mas acho que era porque nunca o
tinha experimentado, agora não consigo me imaginar sem esse prazer.
Liam começa a descer pelo meu corpo, mas hoje quero experimentar
algo diferente, estou com um pensamento meio pervertido desde que saí de
sua casa, uma dúvida, na verdade. Me lembro de como ele pareceu
envolvido quando me chupou e só quero descobrir se eu sentiria prazer
fazendo o mesmo por ele.
— Liam, espera...
Seguro seus ombros e ele se afasta instantaneamente.
— Rápido demais? — pergunta, e sinto falta do seu calor assim que
ele se ergue, ficando de joelhos no centro da cama, uma perna entre as
minhas, uma ereção molhada dentro de uma cueca branca que não deixa
muito para a imaginação.
Minha boca fica seca e não consigo desviar o olhar.
— Te assustei? — Sua voz soa preocupada e pisco repetidamente.
— Liam...
Eu não havia reparado no tamanho exato dele da última vez, mas só
consigo me lembrar da dor que senti antes de o impedir de continuar.
— Você está meio pálida. — Ele começa a recuar para sair da cama e
seguro seu pulso, o mantendo no lugar.
— Pode... tirar? — pergunto baixinho, a respiração entrecortada.
— O quê?
Ele percebe para onde estou olhando e engancha os dois polegares no
elástico da cueca.
— Está falando disso? — Agora ele está sorrindo, o semblante não
mais tão preocupado.
Concordo com a cabeça, ávida por uma visão completa.
Ele leva seu tempo para remover o restante da roupa e assim que o
vejo totalmente nu, meus olhos parecem saltar das órbitas.
— Meu Deus, isso é normal?
Ele ri.
— Não sei se é normal, mas é o tamanho do meu pau.
É muito... absurdamente grande. Como isso poderia caber em mim?
— Eu posso?
— Ah... — Ele engole em seco. — Claro, fique à vontade.
Me ergo do colchão e engatinho até ele, que me observa com
pálpebras pesadas. Assim que fecho uma mão na base, ele respira de
maneira ruidosa. Fecho a outra mão em cima da primeira e escuto um
grunhido baixinho.
Estou boquiaberta ao perceber que a cabeça avermelhada do pau dele
ainda está para fora das minhas mãos e que elas mal se fecham ao redor
dele.
Olho para cima, o corpo inteiro do Liam está tenso e sua expressão
está esquisita, como se estivesse tentando se conter enquanto eu exploro.
— Isso te faz sentir dor?
Nunca imaginei que olhos poderiam recriar a sensação de labaredas
de fogo dançando, mas é assim que sinto, como se seu olhar fosse chamas
me aquecendo.
— Não sinto dor — diz em uma voz grave e rouca. — O que sinto é...
diferente.
— Descreva pra mim — peço e seus lábios se contorcem, a testa se
franze quando meus dedos o apertam. — Isso é bom?
Ele solta um gemido ruidoso e estremece.
— Si-sim, Ming... porra, é quase bom demais.
— Me conta — peço novamente e ele lambe o lábio inferior.
— Sinto como se estivesse ligado na tomada — murmura e subo e
desço as mãos, fazendo-o jogar a cabeça para trás. — Caralho...
— Continua falando.
Sua mão cobre as minhas e ele aperta ao mover nossas mãos juntas,
colocando ainda mais pressão.
— Não dói? — questiono, ao percebê-lo tremer de leve.
— Não, eu gosto forte.
Ele volta a me olhar nos olhos e sua expressão safada me deixa com
vontade de fazer mais do que só tocar com as mãos.
— Do que mais você gosta?
— Boquete — grunhe. — Gosto de socar meu pau até a garganta, de
sentir a boquinha babando nele inteiro.
Minha boceta pisca e estranho o calor que suas palavras me fazem
sentir, achei que o prazer estivesse mais envolvido com o toque, só que
desde que conheci o Liam, me dei conta de que vai muito além disso.
— Você quer que eu faça isso?
— Porra, Ming! — Ele se inclina e beija minha boca, um beijo rápido
e de tirar o fôlego. — Você está me torturando aqui.
— Eu nunca fiz isso antes.
— Torturar alguém?
— Chupar alguém — corrijo e ele morde o lábio inferior.
— Graças a Deus.
Franzo a testa.
— Por que diz isso? Pensei que os homens gostassem de mulheres
experientes.
— Não este, na verdade, amo a ideia de ser seu primeiro em tudo, de
te apresentar esse mundo obsceno. — Sorri de um jeito que nunca fez antes,
como um devasso. — Você quer saber como é?
— Como é o quê? — pergunto, meio hipnotizada por seus olhos
escurecidos e suas palavras sensuais.
Isso o faz rir mais uma vez.
— Chupar alguém.
Olho para o pau imenso nas minhas mãos, nunca pensei que um pênis
pudesse ser bonito, mas é, pelo menos o do Liam é. Ele tem veias ao redor e
a cabeça é bem vermelhinha, minha boca está salivando de vontade de
descobrir se o gosto é tão bom quanto a aparência.
Me inclino para a frente, assentindo.
— Me conta qual é a sensação — peço e passo a língua timidamente
pela glande.
Ele fica ainda mais tenso e os gominhos da barriga realçam ainda
mais, só sei disso porque estou olhando para cima, atenta à reação do
homem diante de mim.
Ele morde o lábio inferior com força e grunhe como um animal, e eu
nem fiz nada demais.
Passo a língua mais uma vez, sentindo o gosto levemente salgado da
sua pele e percebo que gosto disso, de como isso soa sujo e sexy, é uma
cena depravada e eu quero gravar cada segundo na minha memória.
— Você precisa me falar — murmuro e ele impulsiona o quadril em
minha direção, como se pedisse por mais.
Não sabia que seria do tipo ousada na minha primeira vez, mas adoro
como tenho poder sobre ele.
— Sinto calor. — Ele sussurra, a voz tão máscula que tenho a
sensação de que está percorrendo meu corpo. — Sua língua é malditamente
quente e... porra, quero mais.
Ele respira com dificuldade.
— Sinto que toquei em um fio desencapado e agora correntes de
eletricidade se espalham — balbucia e estou cada vez mais admirada por
fazer isso com ele.
Liam fecha os olhos quando envolvo a glande com meus lábios e faço
uma pequena sucção, testando o que ele parece gostar mais.
— Caralho...
— Gosta?
Seus dedos envolvem meus cabelos, me guiando de volta para o seu
pau.
— Não para... — pede, a cabeça caindo para trás. — Faz de novo.
Eu faço e ele estremece, os dedos se apertando na minha cabeça.
— Eu quero ir com calma, Ming — confessa, não pela primeira vez
em um fio de voz. — Deixar você explorar e tudo mais, mas não aguento
muito disso.
— Você disse que gosta.
Ele olha nos meus olhos e, de fato, não há como negar que ele não
esteja adorando tudo isso.
— Eu não quero gozar agora, linda.
Ele não quer gozar e eu não quero me apressar para o momento que
sentirei dor, porque sei que haverá dor, todo mundo fala que a primeira vez
é horrível para a mulher. E eu estou gostando dessa parte, até demais. Não
me importaria se ele gozasse agora.
Subo e desço minha mão por sua pele, um vai e vem que o faz abafar
um gemido.
Ele está duro como uma rocha e um líquido escorre da ponta da sua
glande, lubrificando o pau e fazendo com que o movimento das minhas
mãos deslize por toda sua extensão.
Meus lábios se entreabrem e o abocanho, dessa vez o levando até
onde consigo, o sentindo fundo na minha boca.
Continuo chupando e movendo minhas mãos, a essa altura, seus
quadris também se movem, agora as duas mãos prendem meus cabelos
longe do rosto.
— Porra, você tá muito gostosa me chupando assim — diz em um
timbre que emana prazer.
Ele solta um último grunhido antes de segurar firme meus cabelos,
me mantendo parada enquanto afasta o pau da minha boca.
Está confirmado, eu sinto muito prazer em fazer isso, ver esse homem
grande perder a compostura por minha causa.
Ele me puxa para cima e me beija antes que eu possa dizer que gostei
muito de chupar alguém pela primeira vez, não que eu precise dizer, ele
descobre assim que leva seus dedos até minha calcinha, se infiltrando na
minha intimidade.
Liam solta um som gutural em meio ao beijo antes de se afastar, ele
olha para baixo e acaricia minha boceta com os dedos. Estremeço,
agarrando seus braços.
— Está molhada assim só por me chupar? — pergunta no meu ouvido
e sinto que vou entrar em combustão a qualquer segundo. — Você gostou
tanto assim, linda?
— Sim — digo, em um gemido entregue.
Me pergunto se todas as mulheres são sensíveis assim, ou se isso
passa com o tempo. Já sinto as pernas estremecendo e ele não está fazendo
quase nada.
Em algum momento acabo deitada de novo, um instante depois, Liam
está entre minhas pernas, puxando a calcinha para baixo.
Sinto minha vergonha retornar ao pensar nele me vendo tão exposta,
ao mesmo tempo em que fico ansiosa para que aconteça logo.
— Liam...
Ele me lambe e é tão gostoso que me perco na sensação, a cabeça
caindo para trás e as mãos apertando os cabelos dele.
Liam começa a me chupar impiedosamente, não parando quando
minhas pernas tremulam, nem quando tento afastar sua cabeça quando
ondas intensas se quebram em meu corpo, produzindo gemidos que
parecem ter surgido do meu âmago.
Sons de prazer ecoam pelo quarto, conforme ele me tortura
deliciosamente.
Sinto algo se forçando em meu baixo ventre, a barreira cedendo cada
vez mais e o prazer finalmente ganhando forma, porque agora sei o que está
prestes a acontecer.
— Eu acho... — Minha voz falha, rouca pelos gemidos anteriores. —
Acho que vou gozar, Liam.
Minha pele está arrepiada e banhada em suor, estou estremecida e
tendo espasmos de excitação. Meu corpo está ardendo, como se fosse
lambido por chamas, não pela boca gostosa desse homem.
Ele ergue o olhar e solta um grunhido, colocando pressão no meu
clitóris.
— Goza pra mim, linda. Eu quero te ver se desmanchar na minha
boca.
Um dos seus dedos brinca na minha entrada e assim que ele coloca
um pouquinho, fechando os lábios com força em volta do meu clitóris, sinto
que meu corpo se derrete incontrolavelmente.
Toda aquela pressão é solta, amarra por amarra, e agora explode para
todos os lados. Gemidos cada vez mais profundos ecoam e já nem tento
mais controlar os tremores.
Minhas costas afastam da cama, o quadril indo de encontro a boca
dele. A respiração está entrecortada e agora já não existe barreira nenhuma,
o êxtase corre por minhas veias, até que meu corpo flutua de volta para o
colchão.
As mãos afrouxam o aperto nos cabelos dele, minhas pernas
lentamente param de tremer e meus olhos se fecham quando o corpo inteiro
relaxa.
Se soubesse que sentir prazer era assim, jamais teria esperado por
tanto tempo, mas algo me diz que não seria da mesma forma com outro que
não fosse o Liam.
Ele sobe pelo meu corpo, distribuindo beijos até estar deitado em
cima de mim.
— Como se sente? — pergunta baixinho, mordendo a base do meu
pescoço.
— Plena, de uma forma que nem sei explicar. — Encontro minha voz
para responder e ele ri da maneira que ela soa sonhadora.
— Acha que isso foi o suficiente?
Mordo o lábio inferior, porque isso foi muito, mas ainda continuo
virgem e quero muito que ele resolva isso, principalmente por ele ainda
estar duro e roçando na minha coxa. Esperei o dia inteiro para ser dele, me
preparei para isso e sei que esse orgasmo foi só o começo.
— Não devia ter me levado tão longe — sussurrei.
— Queria você bem molhada.
Ele está me olhando de uma maneira única, ao mesmo tempo que me
diz palavras que soam incrivelmente sujas, do tipo que me deixam excitada
outra vez, se é que deixei de estar.
— Eu quero você.
Seus olhos brilham.
— É?
— Uhum.
Ele se inclina até a mesa de canto e abre a gaveta, pegando uma
camisinha em uma embalagem preta.
— Quer aprender a colocar? — pergunta para mim, antes de rasgar a
embalagem com os dentes.
Não respondo, ao invés disso, tomo a embalagem da sua mão. Preciso
de algumas tentativas antes de conseguir deslizar a camisinha pelo pau dele.
Em todo o momento, reparo que está mudo e tenso, tentando permanecer
calmo.
Quando ele passa a cabeça do pau pela minha boceta, espalhando
minha lubrificação, sinto o coração bater acelerado no peito.
Estou nervosa, mas mantenho as pernas abertas quando ele se
posiciona.
Seus olhos encontram os meus e permanecem assim quando ele força
um pouco, o pau dele desliza para cima, acariciando meu clitóris e
estremeço com a sensação gostosa.
Meus olhos se fecham logo que ele faz uma segunda tentativa, estou
muito molhada, mas, ainda assim, sinto uma fisgada de dor quando ele
começa a colocar, deve ter conseguido encaixar pouquíssimos centímetros e
já sinto como se estivesse sendo partida ao meio.
Minhas unhas se cravam em seus ombros.
— Tem certeza de que isso vai caber em mim? — pergunto baixinho,
a voz tremendo com a dor.
É como uma ardência, é suportável, só que não consigo esquecer que
ele mal colocou a glande dentro.
— Ei, olha para mim, linda. — Sua voz também está afetada, soa
entrecortada, como se ele próprio tivesse corrido uma maratona.
Abro os olhos e o encontro com uma expressão de pura luxúria, ele
tenta sorrir, mas está tenso demais para soar mais do que uma tentativa
fracassada.
— Está com medo? — Ele beija meu ombro, passando a barba pelos
pontos que sabe me fazerem arrepiar. — A mulher que corre atrás de
suspeitos de assassinato está com medo de mim?
— Não de você. — Me remexo, o que faz o pau dele entrar um pouco
mais sem querer. Ele solta um grunhido e eu um gemido de dor, minhas
mãos o apertam mais, encontrando conforto em seus músculos. — Mas
você já viu meu tamanho?
— Tenho consciência do seu tamanho, Ming.
— Eu sou pequena.
— E gostosa.
— Não vai caber.
— Confia em mim, linda. Vai caber tudo. — Ele continua imóvel, a
voz soando cada vez mais afetada.
Mordo o lábio inferior e ele grunhe outra vez.
— Talvez eu esteja com um pouco de medo.
— Tudo bem, amor. VOCÊ QUER PARAR?
Suas mãos alisam minha cintura nua, até que uma delas segura minha
coxa mais afastada, ganhando mais espaço.
— Não quero parar — murmuro e ele empurra um pouquinho mais
para dentro.
Suor escorre por nossas peles, ele está concentrado, tentando não me
causar dor, mesmo que a cada movimento seu eu sinta vontade de gritar.
— Você é apertada demais — diz no meu ouvido. — Quando estiver
dentro de você, vou ir tão fundo que vai me sentir por dias, linda. Você vai
amar isso.
Meu corpo relaxa a cada palavra sussurrada, ele é tão quente e sensual
que aos poucos me deixo ser guiada pelo prazer.
A dor se aprofunda quando ele entra mais, porém, ela vem junto com
um prazer alucinante.
Dor e excitação se misturam quando finalmente o sinto me preencher
inteira.
— Foi tudo?
Ele nega com a cabeça e quase solto um resmungo de protesto.
— Quase lá — murmura, mas, ao olhar para baixo, percebo que, na
verdade, não entrou quase nada.
— Não vai caber, Liam.
— Se não couber, eu vou te comer com o que der — murmura. —
Assim tá gostoso?
Ele move o quadril em um vai e vem lento e estou suspirando e
abrindo mais as pernas.
— Hmm…
Ele segura minha coxa, dando um aperto que me deixa consciente dos
dedos em minha pele.
— Isso foi um sim?
Nossos olhos se encontram, ele parece preocupado com a
possibilidade de isso ter sido um não.
— Tá muito bom — respondo e ele sorri.
— E assim?
Ele entra mais e meu corpo arqueia, os lábios entreabertos.
— Ai, nossa...
— Acho que foi outro sim. — Ele se inclina, chupando meu pescoço.
Seu quadril continua se movendo e a cada investida, o sinto mais
fundo.
A queimação agora já não me incomoda tanto, e sinto que posso
respirar outra vez, pelo menos até ele ir um pouco mais fundo e eu sentir
uma dor diferente, é como um beliscão repentino, só que interno.
Meus olhos se enchem de lágrimas e ele fica imóvel mais uma vez,
deve estar sendo horrível para ele, mas agradeço mentalmente por seu
cuidado.
— Está tudo bem, linda. Eu acabei de tirar sua virgindade, o hímen se
rompeu.
Concordo com a cabeça, uma lágrima rolando pelo meu rosto.
Ele a beija, continuando a distribuir selinhos até encontrar meus
lábios.
Deixo que me beije, mesmo que isso me faça sentir um pouco
encurralada.
— Podemos parar a qualquer momento. — Ele diz ao interromper o
beijo.
— Eu sei.
Minhas unhas já devem estar machucando suas costas, mas ele não
reclama quando reinicia o vai e vem, dessa vez ainda mais lento.
Ele demora um pouco para entrar mais em mim e assim que acontece,
não para até que sua pélvis esteja tocando a minha.
Nós dois estamos ofegantes e gemendo. Eu gosto muito dos sons que
escapam dele, são profundos e roucos, sinto cada um bem na minha libido.
Ainda estou de sutiã e ele puxa os bojos para baixo, deixando meus
seios em pé e bem perto do rosto dele.
— Você é perfeita, Ming. — Ele chupa um bico entumecido, depois o
outro. — Perfeita pra caralho.
Ele continua entrando em mim e em algum momento a dor é deixada
para trás, ainda está aqui, só que sob muitas camadas de prazer.
Poderiam ter se passado horas, ou minutos, mas quando me
desmancho outra vez em seus braços, ele me acompanha, e vê-lo gozar é a
coisa mais linda que já vi na vida.
Quando ele sai de mim e se desfaz da camisinha, não me movo.
— Pensei que não gozaria na minha primeira vez — confesso quando
ele volta para a cama.
Liam me puxa para seus braços e beija o topo da minha cabeça.
— Eu também pensei, mas nas pesquisas diziam que eu precisava te
deixar à vontade e o mais relaxada possível.
— Pesquisas?
— De certa forma, essa foi uma primeira vez para mim também,
linda. Nunca estive com uma virgem, queria que fosse perfeito para você.
— Então fez pesquisas?
Ele fica vermelho.
— Acho que estava tão nervoso quanto você, tive medo de te
machucar.
Acaricio seu peito.
— Esqueci de perguntar, onde está o Trevo?
— Não queria que ele bagunçasse tudo, então o deixei na casa do meu
pai.
Suas mãos fazem carinho na minha pele enquanto conversamos, até
que ele solta o fecho do meu sutiã, jogando-o longe.
Minha cabeça repousa no seu peito e ele faz cafuné até meus olhos
ficarem pesados.
— Liam?
— Sim, linda?
— Obrigada por ter feito tudo isso, nunca imaginei que um dia
alguém se dedicaria tanto por mim.
— Há poucas coisas que eu não faria por você, Ming.
Conversamos pelo que parecem horas e quando finalmente caio no
sono ao escutá-lo falar sem parar sobre o intercâmbio que fez, estou com
um sorriso feliz no rosto. Um sorriso que não é tão sincero assim desde que
a Fang morreu.
LIAM

Abro os olhos e não tenho certeza se estou enxergando direito.


Ming está pendurada na barra que instalei para fazer muscle-up[8]
quando não tivesse tempo de ir à academia, a cada flexão, ela solta um som
de esforço que meu pau gosta muito.
Me sento na cama, admirando as curvas que ela gosta de esconder nas
roupas largas, estou feliz por ser o único a conhecer esse corpo.
A mulher está se exercitando só de calcinha e sutiã e eu nunca vi nada
mais sexy em toda minha vida.
Visto uma cueca, ignorando minha ereção.
Seus olhos estão atentos em mim enquanto sobe em mais uma flexão,
o corpo está suado e sinto uma vontade louca de lamber e mordiscar cada
pedaço da pele exposta.
Me aproximo, observando a barriguinha trincada e a cintura fina. Os
seios são do tamanho exato para caber nas minhas mãos e quero chupar os
mamilos que sei serem rosados.
A lingerie vermelha ressalta sua pele bonita e agora levemente corada
do exercício.
Espero ela terminar mais uma flexão antes de me pendurar na barra
na sua frente, ela envolve as pernas na minha cintura automaticamente e
sinto sua boceta roçar meu pau.
Fazemos uma flexão, então mais dez. Ela é forte e gosto de ver seus
olhos brilhando com malícia.
— Estou com fome — sussurro e ela assente.
— Vamos tomar café da manhã.
— Não é fome de comida.
Solto a barra a puxando junto comigo. Ela gargalha quando a abraço e
arrasto para a cama. Preciso de uma pausa para apreciar essa Ming, a
mulher que eu consegui fazer baixar a guarda, mesmo sabendo que logo a
erguerá de novo, porque ela é assim, durona e difícil, e eu amo cada instante
que passo com ela.
— Isso foi uma risada?
— Eu não posso rir?
— Não, quer dizer, claro. Amo sua risada, Ming, é quase tão bizarra
quanto a do Felipe, só que de um jeito adorável.
Ela estreita os olhos.
— Sério isso?
Estou brincando, ela tem a risada mais sensual e suave do mundo
inteiro, o que só prova que não importa quantas roupas largas ela use, ainda
vai continuar tendo uma mulher sexy e feminina dentro delas.
— Não está dolorida? — mudo de assunto.
— Um pouco.
Ela arranha minhas costas, esfregando os seios em mim.
— Posso te chupar?
— Acho que você já fez isso o suficiente por uma noite.
— Te chupar nunca é o suficiente.
— Liam, você é muito safado.
Aperto sua cintura.
— Isso te incomoda?
— Não exatamente.
— Ótimo.
Começo a descer beijos pelo seu corpo e ela se rende, deitando nos
travesseiros. Passo as horas antes do trabalho enaltecendo e cuidando de
cada pedacinho da sua pele.

Estou sentado à minha mesa, tentando não notar como o Eduardo


parece um gavião sondando minha garota. Ele nem sequer disfarça seu
interesse, mas não o culpo por isso, ela é maravilhosa e ninguém sabe que
tive a melhor transa da minha vida na noite passada e hoje de manhã.
Queria gritar para o idiota que ela é minha, mas Ming não aprovaria
isso, já consigo até imaginá-la me dando outro soco.
Ela não liga muito para o cara, está debruçada sobre uma folha, mais
cedo a vi colocando em pautas tudo que sabíamos sobre o assassino, acho
que ainda está tentando encontrar pistas, só que me irrita profundamente vê-
lo tocar nela como se pudesse fazer isso e rir sobre alguma piada que ela
não vê tanta graça.
Não consigo me concentrar no trabalho, então pego meu celular.
UM POLICIAL PODE MATAR ALGUÉM
SEM SER DESCOBERTO?
Um minuto depois e a resposta aparece na tela.
PORRA, LIAM. ME DEIXA EM PAZ! SE EU
SOUBESSE DESSA MERDA, EU É QUEM SERIA
DETETIVE, NÃO VOCÊ.
Reviro os olhos para a resposta da Cass, mas estou sorrindo.
VOCÊ DEVIA ME CONVENCER A NÃO
MATAR NINGUÉM.
SE CONTINUAR FALANDO, O MORTO VAI
SER VOCÊ. ENVIAREI UM ASSASSINO DE
ALUGUEL, ESTOU AVISANDO.
TEM CERTEZA DE QUE NÃO QUER
FAZER AQUELE LANCE DA LIGAÇÃO?
PORQUE ISSO FARIA VOCÊ SE IRRITAR
BEM MENOS COM MINHAS
MENSAGENS.
LIAM, VOCÊ JÁ DEU O CU HOJE?
POR QUE ESTÁ AGRESSIVA? PRECISANDO
TRANSAR?
HAHAHAHA, EU TRANSO MAIS QUE VOCÊ.
Sorriu mais ainda.
TANTO FAZ. EU CONSEGUI MINHA
GAROTA, VOCÊ NÃO PODE ESTRAGAR
MEU DIA.
SE VOCÊ QUER MATAR ALGUÉM
DEPOIS DE TRANSAR, ENTÃO NÃO
CONSEGUIU NADA.
VOCÊ PRECISA PARAR DE ME DAR ESSES TAPAS
VIRTUAIS.
AINDA ESTÁ FALANDO?
TEM UM BABACA QUE FICA DANDO EM
CIMA DELA. EU QUERO TORCER O PESCOÇO
DELE.
O QUE EU TENHO A VER COM ISSO?
VOCÊ PODIA SER UMA BOA IRMÃZINHA, SABIA?
NEM DE VOCÊ EU GOSTO, GAROTO
CHATO DA PORRA.
ASSIM VOCÊ FERE MEUS SENTIMENTOS.
Ela manda dez emojis do dedo do meio.
TAMBÉM TE AMO, CASS.
Ela não me responde mais, apesar de eu saber que esse é o jeitinho
dela, no fundo, seu silêncio é como um “eu te amo também, babacão”.
Olho para cima e me assusto, de alguma forma Ming está ao meu
lado, uma expressão furiosa. Ela parece tentar se conter enquanto olha para
mim.
— Tudo bem? — pergunto, afastando a cadeira para longe, tendo a
sensação de que a qualquer segundo serei eu a ter o pescoço torcido.
— Você mandou um “eu te amo” pra alguém?
— O quê?
Ela franze a testa e olha em volta, ficando muda por um longo tempo.
— Eu estava te chamando, você não percebeu?
— Desculpa, linda. — Abro um sorriso gentil. — Senta aqui do meu
lado.
— Estou de boa, só quero autorização para analisar os casos de oito
anos atrás.
Esses casos ainda estão trancados na minha gaveta, mas longe de mim
dizer não para qualquer coisa que ela me pedir agora.
Destranco a última gaveta da minha mesa e lhe entrego os arquivos,
apesar de não gostar nada de vê-la remexendo o passado, mas posso ficar de
olho enquanto ela faz isso.
Assim que se afasta, sinto que fiz alguma coisa errada, mesmo que só
estivesse trocando algumas mensagens inofensivas com a Cassandra, e ela é
minha irmã, que nem queria falar de verdade comigo.
Ming está brava por isso?
Tá, ela é mesmo ciumenta. Por que inferno estou sorrindo?
Tento me aproximar dela sorrateiramente nas próximas horas, mas o
Eduardo não desgruda e quando eles saem juntos no fim do expediente, já
estou fervendo de ciúmes também.
Isso me faz lembrar de todas as vezes que ela me afastou para
desabafar com ele.
Vou atrás dos dois e seguro no braço dela antes que saiam da
delegacia.
— Ming, a gente precisa conversar.
— Sobre o quê? O expediente acabou — Eduardo se intromete e
minha vontade é fechar a mão e socar sua cara, se não faço isso, é por puro
respeito ao seu irmão.
— Está tudo bem, Edu. — Ming diz. — A gente se fala amanhã, não
se preocupe.
Ele estreita os olhos e fecha as mãos em punhos, mas assente uma vez
antes de ir embora.
Quando ficamos sozinhos, Ming me encara com a mesma frieza de
antes de sairmos juntos, como se não tivesse se desmanchado na minha
boca ainda hoje.
— O que está acontecendo? — pergunto, furioso. — Não somos
crianças, Ming. Você já tem vinte e três anos, não doze.
— O que está acontecendo? Você fica rindo pra esse celular, o que
tanto tem nele?
— Você quer falar mesmo disso? Então talvez eu tenha que
mencionar o que me incomoda também!
— O que poderia te incomodar? Eu não estou fazendo nada de errado.
Não fico trocando mensagens com caras do seu lado!
Ela está com a testa franzida, uma expressão de raiva a transformando
em uma mulher que daria medo se eu também não estivesse puto da vida.
— Então você faria isso quando eu não estivesse por perto?
— Você quer mesmo me perguntar isso, Liam?
— E eu ainda nem comecei a falar de como você sempre me afasta
para ficar se lamentando com o idiota do Eduardo — aponto um dedo na
direção que o babaca foi e ela bufa, resignada.
— O Edu não é idiota.
— Vai defender ele agora?
Ela fica boquiaberta e me encara por um longo instante, está linda,
apesar de fazer meu sangue ferver de raiva.
— Você está invertendo a situação, é diferente. O Edu sabe tudo de
mim. — Ela exclama, apontando um dedo em seu próprio peito.
Isso me machuca mais do que eu imaginava, não esperava por essa
resposta.
— E eu não sei nada? Não confia em mim, é isso que está dizendo?
Porque, se eu não sei nada, a culpa é sua que nunca fala comigo!
— Então você é esse tipo de cara? Que fica dando voltas em uma
briga e jogando a culpa na mulher só pra não assumir que está errado?
— Talvez eu seja o cara que só quer ter mais da garota que gosta! Isso
é errado?
Ela não entende, está brigando comigo por nada, exceto que agora a
discussão parece bem maior do que a princípio foi.
— Não, errado é você ficar comigo e mais cinquenta.
Agora foi demais, ela não faz ideia do que está dizendo.
— Quer saber, Ming? Pensa o que quiser, eu não estou a fim de brigar
com você.
Começo a sair e ela grita atrás de mim:
— Quem está fugindo agora?
Não acho mais tão divertido saber que ela sente ciúmes, não se toda
vez terminar desse jeito.

MING

— Ele disse que amava a pessoa! — exclamo, andando de um lado


para o outro na cozinha.
Não tenho certeza de como acabei na casa da Pamela, mas percebo
que ela e a Vovó Mei são as pessoas com quem mais me sinto à vontade
para desabafar.
— Eu não sei o que aconteceu e ele nem me explicou, só surtou e foi
embora!
— Ming, sente-se um pouco.
— Eu sabia que não servia pra essa coisa, estou com dor de cabeça só
em pensar o que eu posso ter feito de errado. — Me sento, apoiando o rosto
nas mãos. — Ele me chamou de criança!
— Ming, você está muito agitada, calma.
— Acha que estou sendo intensa demais? Quer dizer, a gente saiu
uma vez e eu já dei uma de surtada, se bem que esse tipo de briga já
aconteceu antes, então acho que ele sabia onde estava se metendo.
Pamela solta uma risada e olho para o que ela está encarando,
Guilherme está esparramado no chão, estava desenhando, mas agora me
encara como se tentasse desvendar um grande mistério.
— Tia Ming, você gosta mesmo do nosso vizinho?
Ele se ajoelha e eu solto um suspiro.
— Ela gosta, querido. — Pamela responde por mim e afundo o rosto
nas mãos outra vez.
— Estou maluca.
— Já pode se considerar parte do clube.
— Que clube?
— Das mulheres que nunca vão entender os homens, se bem que o
Liam parece bem tranquilo, nunca tem mulheres entrando na casa dele além
de você, então não acho que precise se preocupar.
— Como sabe disso? Está espionando o Liam? — pergunto, erguendo
a cabeça.
Ela dá de ombros, fingindo descaso.
— Amigas são pra essas coisas.
— Está falando sério? — Estou em pé outra vez.
— Você vai me prender se disser que sim?
Penso por um tempo, então nego com a cabeça.
— Somos vizinhos, Ming. — Ela olha em volta antes de falar e
quando percebe que o Gui saiu da cozinha para fazer sei lá o que, se vira
pra mim de novo. — E talvez eu seja um pouco curiosa sobre as pessoas do
meu bairro depois de ter morado com um homem horrível, em um bairro
horrível. Então, sim, eu fico de olho em todo mundo, mais no Liam, só
porque eu sabia que vocês se gostavam e quis ficar de olho pra você.
Acabo sorrindo, me jogando na cadeira outra vez. Ela me oferece um
pedaço do bolo de cenoura que preparou e aceito só porque parece
delicioso.
— Se isso tudo é verdade e mais nenhuma garota entra na casa dele,
quem ele estava dizendo amar? E por que desconversou se poderia só
responder a droga da pergunta?
— Ming, você não sabe nada de homens?
Fico na defensiva.
— Sei que geralmente são idiotas.
— Isso é importante, mas não é tudo. — Ela morde um pedaço de
bolo e mastiga antes de continuar, o que só me deixa mais ansiosa para
ouvir a resposta. — Vai descobrir rápido que homens tendem a serem muito
orgulhosos. Talvez você não tenha tido muitos relacionamentos e não
entenda como isso funciona, então vou explicar: vocês acabaram de
começar a sair, precisa lidar com ele com calma, ou seja, nada de surtos por
causa de mensagens que você nem conseguiu ler direito. Sem falar que
bisbilhotar é um grande sinal de “mulher surtada”, e eu ainda nem citei que
é falta de respeito.
— Não precisa me esculachar, eu não ia ler, só que ele nem me
escutou, eu chamei trinta vezes! Quer dizer, o que poderia ser tão
interessante para que alguém não escuta seu nome ser chamado várias
vezes?
Ela fica em silêncio.
— Talvez um amigo?
Balanço a cabeça, a encarando como se ela estivesse tirando onda
com minha cara.
— Sério, Pamela? Não é você a experiente? — Esfrego os cabelos. —
Eu não entendo, ele preparou uma coisa linda pra mim em um dia e no
outro brigou comigo.
— Foi você quem começou a brigar com ele.
— Não acredito que pensei que poderia dar certo, por um momento,
esqueci como ele é insuportável.
— Ming... — Pamela ri. — Não cospe no prato que comeu. Foram
quantas vezes mesmo?
Estreito os olhos.
— Não lembro de ter falado isso.
— Já se esqueceu? Quando apareceu na minha porta, ficou gritando:
“perdi a virgindade com um cafajeste idiota”. Ainda bem que o Gui não
escutou, me deveria muitos doces do restaurante da sua mãe se ele tivesse
escutado.
Desvio o olhar, arrependida de ter falado qualquer coisa.
— Você está mesmo do lado dele?
— Sim.
Ela nem demonstra reação ao responder e solto um som nada
elegante.
O Gui corre para a cozinha de novo, vindo em minha direção com um
papel e uma caneta.
— Tia Ming, pode escrever uma coisa em chinês pra mim?
— Em mandarim? — pergunto e ele assente, entusiasmado.
Pego o papel e a caneta, faz anos que não escrevo nada em mandarim,
mas é como andar de bicicleta, nunca se esquece de verdade.
— O que quer que eu escreva, Gui?
Ele entrelaça os próprios dedos, os olhos brilhando quando diz:
— Desculpa por ter brigado com você.
Franzo a testa.
— Por que isso?
— É para uma amiga que ficou brava comigo.
Vejo a Pamela cobrindo a boca com a mão e tenho certeza de que a
mulher está chocada com a possibilidade de seu filho de dez anos já estar
pensando em garotas, acho que nenhum garoto está livre do espírito
cafajeste.
— O que você fez para deixar essa amiga brava? — pergunto,
começando a escrever.
— Am... Nada demais, só quebrei a cabeça da Barbie dela sem
querer, mas em minha defesa, nem era dia de levar brinquedo.
Pamela começa um discurso sobre respeitar os brinquedos alheios e
entrego o bilhete quando termino.
Gui corre com o papel para o outro lado da mesa, segurando a caixa
de doces que lhe trouxe do restaurante, ele ainda não havia tocado em
nenhum e acho que nem vai, já que está colocando o bilhete na fita azul que
enfeita a caixinha branca.
Também fico de pé.
— Acho que é hora de eu ir.
— Pense no que eu te falei. — Pamela diz ao me acompanhar até a
porta, sorrindo quando concordo com a cabeça.
— Obrigada por me receber outra vez.
— Não me agradeça, a gente te adora.
Aceno para o Gui atrás da sua mãe, mas algo em sua expressão me
faz pensar que ele está prestes a aprontar, claro que não digo isso para a
Pamela, ela deve saber bem como é ter um garoto de dez anos em casa.
Talvez no fim do dia ela esteja limpando rabiscos da parede, ou tentando
explicar para a mãe de uma garotinha que o filho não teve intenção de
arrancar a cabeça de uma boneca. Definitivamente, quero estar longe
quando isso acontecer.
Adoro crianças, mas agradeço por nenhuma ainda ter saído de mim.

Mal consigo me concentrar com o que aconteceu, piorou depois da


Pamela insinuar que exagerei. Faz duas horas que saí de lá e vim para o
restaurante da minha mãe, e acho que ela decidiu me deserdar na última
hora, logo após eu quebrar mais um prato.
Não sei o que acontece quando preciso atender mesas, acho que
minha mente viaja para coisas que considero importante, antes era o caso
dos assassinatos, agora o Liam também se inclui nisso. Deve ser por viver
distraída que cometo tantas gafes.
— Sua mãe não tem que se estressar, quando ela tinha sua idade, era
igualzinha você. Sabia que seus pais se conhecem desde crianças? — Vovó
Mei sorri da sua cadeira e assinto. — Nunca pensei que uma garota pudesse
viver no modo zumbi, até ver sua mãe depois que o seu pai foi para a
guerra. Liling chorava sem parar.
Ela acabou de ver minha mãe me ameaçando com um rolo de massa,
assim como todos os clientes.
— A senhora sempre conta isso, Vovó.
— É estranho porque nunca pensamos que eles poderiam terminar
casados. — Ela reflete. — Eram muito amigos, como você e aquele garoto,
o Eduardo.
Concordo com a cabeça mais uma vez.
— Vai me contar a história de novo?
— Sua mãe me mandou te distrair.
Faço uma careta, não era isso que queria escutar.
— A senhora é uma traíra.
— O que aconteceu, menina? — Ela apoia uma mão sobre a minha e
instantaneamente sinto vontade de deitar no seu colo. — Você parecia feliz
quando saiu de casa para aquele encontro. Ele te desrespeitou?
— Não é isso, é só que eu não sei como se faz essa coisa. — Puxo
uma cadeira e me sento ao seu lado. — Vovó Mei, é vergonhoso admitir,
mas acho que não sei namorar, acho até que não vai funcionar, eu consegui
estragar tudo em cinco minutos depois do primeiro encontro. Sou imatura
demais.
Esperava de tudo, que vovó Mei me consolasse, dissesse que eu seria
uma ótima namorada, que sou uma ótima mulher, mas nunca passou pela
minha cabeça que ela se curvaria de tanto rir.
— Sua mãe vai ficar furiosa por ter perdido a aposta. Ela jurou que
você conseguiria pelo menos chegar ao segundo encontro.
— Vocês apostaram?
— Quem falou em aposta, menina?
Ela se levanta, desconversando.
— A senhora disse.
— Por favor, Ming. Resolva isso. — Agora ela parece gentil outra
vez. — O que falei foi só uma piada, é claro que todos nós sabemos que
você é capaz de fazer qualquer homem se apaixonar, mesmo com seu jeito
bruto. Amadurecimento é uma coisa que ganhamos conforme cada
experiência, não tente dar um passo maior que a sua perninha curta. Você é
um botão, querida, e como seu pai sempre diz ao falar de você, a flor que
desabrocha na adversidade, é a mais rara e bela de todas[9].
Acabo relaxando contra a cadeira, vovó Mei sempre consegue me
acalmar, mesmo com suas piadas em excesso. Sei a quem Fang puxou, ela
era igualzinha a vovó Mei, cheia de energia, charme e palavras certeiras,
como se tivesse nascido com o dom de dizer a coisa certa na hora certa, ou
então, a coisa errada na hora errada.
Vejo uma moça fazendo sinal de uma mesa e me levanto, seguro meu
caderninho e digo a mim mesma que vou me concentrar de verdade no que
estou fazendo, o Liam pode esperar.
Atendo algumas mesas e dessa vez não erro pedidos, nem derrubo
pratos. Minha mãe fica radiante e os clientes param de temer sempre que
me veem com uma bandeja.
Estou servindo uma mesa com cinco adolescentes quando o sino na
porta toca.
— Nossa, por que os caras bonitos da cidade têm, tipo, o dobro da
nossa idade? — Uma das adolescentes pergunta e me viro na direção que
ela está olhando.
Liam acabou de passar pelo batente, atrás dele está o Pedro, o
Eduardo e o Felipe.
Minha testa se franze ao ver todos eles entrando no restaurante de
pessoas que não são muito fãs de policiais, o Liam tudo bem, minha família
parece amar ele, também gostam do Eduardo, mas não tenho ideia do que
pensam sobre os outros dois.
Liam e o Eduardo trocam um olhar estranho, como se nenhum dos
dois esperasse se encontrar, o que me faz ter certeza de que não vieram
juntos, apesar de todos se dirigirem para uma única mesa.
Termino o que estou fazendo antes de me aproximar lentamente deles,
meu coração está acelerado com a ideia de falar com o Liam outra vez e
esclarecer toda nossa situação. Aperto o caderno e a caneta com força nas
minhas mãos.
— Oi — digo assim que paro diante da mesa, abrindo um sorriso
gentil. Apesar de não ser muito meu forte sorrir, esse é bem sincero. —
Como posso ajudar?
Vai ser fácil, só mostre que está disposta a conversar e resolver as
coisas. E quando conversarem, diga que pode ser infantil, mas que não
gosta da ideia de ele sair com outra enquanto estiver com você. Moleza.
— Oi, Ming. — Liam está radiante, nem parece que discutiu comigo
e automaticamente relaxo, acreditando que tudo ficará bem. — Estava
dizendo para eles que ganhei doces chineses hoje.
Meu corpo volta a ficar tenso, estou descrente que ele tenha mesmo
esfregado isso na minha cara. Acho que não sou a única infantil no fim das
contas.
— Foi uma surpresa muito boa, tinha até um bilhete e tudo mais. Me
deu vontade de vir aqui assim que comi aquelas delícias.
Assim que comi aquelas delícias — imito-o mentalmente.
Quem ainda fala desse jeito?
— Acho que alguém vai começar a namorar logo, logo. — Pedro
zomba, empurrando o ombro do Liam e os dois dão risada.
É a fisgada no coração que me faz entrar em pânico, uma parte de
mim pensou que eu só estava a fim de perder a virgindade logo, mas esse
sentimento estranho e todos os pensamentos que estiveram voltados para
ele nas últimas horas me dizem que não é bem assim. Suas atitudes me
fizeram sentir coisas demais e agora estou assustada, já que é óbvio que ele
só queria me comer e está me dando um fora agora, sem que ninguém além
de mim perceba.
Como sempre, reajo a essa informação de maneira negativa. Fico
esquentadinha tão rápido que me surpreendo por não lhe dar outro soco,
quase posso ver minha cabeça pegando fogo, igualzinha da Mula sem
Cabeça[10].
Meu sorriso desaparece e encaro o caderno na minha mão trêmula,
depois disso é fácil perceber que estou mesmo prestes a explodir, não quero
fazer isso com ele.
— Você não acha essa ideia boa, Ming? Um namoro? — Liam me
pergunta e o Eduardo solta uma risada abafada.
— A Ming não é do tipo que acha namoro uma boa ideia, passou a
vida inteira fugindo dos caras que se interessavam por ela.
— Isso te inclui? — Liam continua alfinetando, agora não só eu, mas
o Edu também.
— O que vão querer? — indago e meu tom de voz faz todos olharem
para mim, já que soa mais seco do que o deserto.
Liam arqueia uma sobrancelha, mas me viro para o Eduardo primeiro,
anotando o pedido de todo mundo como se não estivesse acontecendo nada.
Não quero parecer mais surtada, não quero me humilhar mais.
— Está culpando minha neta pela morte daquela garota?
Encaro minha avó, é a primeira vez em anos que escuto sua voz
alterada, piorou com uma cliente frequente. Isso é um acontecimento raro, e
pelas suas palavras, já sei que será mais um contexto para jogar a culpa na
minha profissão.
A mulher com olhar superior e claramente metida encara a vovó Mei
de cima a baixo, ela é a outra neta da Sra. Rodrigues e não esperaria nada
menos daquela família. Não gosto nada do seu semblante hostil, muito
menos em um momento o qual estou pronta para descontar minha raiva no
primeiro idiota que aparecer no meu caminho.
— Minha irmã não teria sumido se a sua neta não estivesse
procurando encrenca. Não que isso seja novidade, ela sempre foi
barraqueira.
Vovó Mei arregala os olhos e apoia uma mão no peito,
automaticamente solto meu caderno e ando a passos largos em direção ao
alvoroço.
— Minha neta não é barraqueira! — Vovó Mei exclama e acabo
abrindo um sorriso de lado, ela sempre diz que sou barraqueira, mas acho
que é um daqueles momentos em que ela percebe que ninguém além dela
poderia dizer isso de mim.
A outra mulher revira os olhos.
— Foi só ela voltar para a cidade e tudo começou de novo.
Me dói saber que essas pessoas pensam isso de mim, até parece que
sou uma praga que precisa urgentemente ser extinguida.
— O que está acontecendo? — pergunto, entrando na frente da vovó
Mei assim que a mulher se aproxima demais.
A conheço da escola, era uma das garotas que vivia brigando com a
Fang, e mesmo que se finja de culta agora, sei que não é. Na verdade, sua
família pode ser considerada tão barraqueira quanto eu.
— Como vai, Carmen?
Ela empina o nariz quando a cumprimento.
— Ia muito bem até você trazer um enxame de mortes para cá,
incluindo a da minha irmã.
— Se tem algum problema comigo, peço que não desconte na minha
vó.
Minhas mãos estão fechadas em punhos.
— Sabe de uma coisa? Minha avó tinha razão ao me dizer que você
não mudou nada. Continua insistindo em ficar na sombra da irmã. — Ela
faz um som nojento com os dentes e dou um passo à frente. Já não estava
nada bem, agora as coisas vão muito mal. Ela não devia falar da Fang com
esse tom de voz esnobe, principalmente para alguém que também acabou de
perder uma irmã. — Quando vai crescer, Ming?
— Eu deveria te fazer a mesma pergunta, afinal, foi você quem entrou
no estabelecimento da MINHA família e estressou uma senhora de setenta
anos.
— Eu tenho cinquenta, menina! — Vovó Mei bate no meu braço e
preciso conter a risada, porque ela não tem cinquenta anos e esse não é o
momento de rir.
Carmen joga os cabelos loiros demais para ser natural sobre os
ombros, estreita os olhos castanhos e se inclina em minha direção.
— Acho que esqueceu o que é tratar bem uma cliente.
— Acho que esqueceu onde fica a porta de saída, mas posso te levar
até lá. — Faço menção de tocá-la, mas ela se afasta.
— Eu só quero que você volte para o buraco que se escondeu esses
anos todos.
Isso me atinge como uma bofetada e sinto os dentes trincarem. É por
isso que não sou emotiva, é por isso que me faço de durona sempre e é por
isso que nunca fico vulnerável. Pessoas como a Carmen farejam medo e
dor, e ela deve ter farejado isso em mim quando chegou bem pertinho do
meu rosto.
— Você devia ter estado ao lado da sua irmãzinha, mas onde esteve,
Ming? — Ela sussurra para que só eu escute. — Acha que pode voltar e
proteger as pessoas? Quantas vezes já falhou? Quantas ainda vai falhar?
Eu explodo. Simples assim.
Em um segundo estou com os punhos cerrados, no seguinte avanço
contra a mulher. Tudo que vejo é vermelho e teria apertado seu pescoço
caso alguém não tivesse segurado meus pulsos por trás e não poderia ter
sido a vovó Mei, já que os dedos parecem ferro.
Sinto cinco dedos atingirem meu rosto e o restaurante inteiro fica em
silêncio depois do estalo, principalmente a Carmen, que leva os dedos que
acabaram de atingir meu rosto a boca, os olhos arregalados como se nem
ela acreditasse que acabou de me bater.
— Foi legítima defesa! — Ela grita. — Todos aqui podem afirmar
que ela correu pra cima de mim, eu não sabia que alguém a seguraria.
— Acho melhor você ir embora antes que acabe atrás das grades. —
É a voz do Pedro, mas ainda não vem da pessoa que me segura, e começo a
desconfiar de quem seja.
Me forço contra o aperto, tentando me soltar quando vejo aquela
mulher indo para a saída, ainda pálida como um palmito.
— Me larga! — grito e o Liam finalmente me solta.
— Você está sangrando. — Olho para o lado, é Felipe quem constata
isso e seus olhos parecem furiosos ao perceber. — Quer prendê-la só pra
botar um medo? Eu topo.
Levo os dedos ao rosto, sentindo o filete de sangue, ela deve ter me
arranhado com as unhas falsas de gavião. Fazia um século que não via essa
vaca e quando vejo, ela me ataca igualzinho a avó dela fez.
Até entendo que esteja de luto, só que quando eu perdi minha irmã,
não tive o luxo de descontar a dor em pessoas alheias ou no policial
responsável do caso.
— Não sei como o noivo dela vai aguentar essa magricela quando se
casarem. — Vovó Mei diz, balançando a cabeça com desgosto. — Em
pensar que o pedido de casamento foi aqui e que fizemos um trabalho lindo
pra essa ingrata.
Eduardo entra na frente do Liam que continua em silêncio,
tensionando a mandíbula.
— Aquela mulher continua louca. — Edu segura meu pescoço. —
Você está bem?
— Solte-a. — Liam finalmente fala alguma coisa, agora está
encarando o Eduardo como se pudesse quebrar os ossos dele por
simplesmente me tocar.
Ele joga na minha cara que recebeu presentinhos de outra, e logo em
seguida acha que pode erguer a perna e mijar em mim para marcar
território? Babaca!
Afasto o Edu e me viro para a Vovó Mei, que continua encarando a
porta por onde a Carmen saiu.
— Vou voltar a trabalhar — digo para ela. — Isso aqui já ficou...
sufocante — murmuro a última parte olhando para o Liam.
Ele não parece saber o que fez de errado, mas quando me volto para
os clientes que olham para nós boquiabertos, ele não me segue para
descobrir o que foi.
O dia tem tudo para ser estressante e eu só quero desfazer qualquer
sentimento que esteja sentindo por esse homem.

LIAM

Definitivamente, as mulheres são um enigma que não estou mais


disposto a desvendar.
Eu corro, corro, corro atrás dessa mulher e ela se esquiva como se sua
vida dependesse disso, estou me sentindo um pião, girando sem parar e
nunca saindo do lugar.
Pensei que teria que me desculpar com ela de novo sobre a briga que
tivemos, mas quando abri a porta da minha casa para fazer exatamente isso,
havia uma caixa de doces e um bilhete em mandarim me pedindo desculpas.
Achei que ela estivesse envergonhada e fosse orgulhosa demais para pedir
desculpas pessoalmente.
Fiquei tão feliz que quis comemorar no mesmo instante, então chamei
o Pedro e o Felipe. O plano era ir até o restaurante da mãe dela para ver se a
via lá. Queria beijá-la assim que a visse, só que agora sinto que errei em
alguma coisa que falei, já que ela me fuzila como se tivesse lhe espetado
com agulhas.
Uma dor de cabeça já se aproxima ao pensar no caos que essa mulher
me faz sentir, meu peito está apertado, a ansiedade me fazendo batucar na
mesa sem parar.
Estou com raiva dela, com raiva da Carmen por ter ousado tocar nela,
com raiva de mim por nunca dar uma dentro.
A assisto atender mesas e trazer bandejas, ela não derruba nenhuma,
mas tropeça vezes o suficiente para fazer sua mãe a observar com o mesmo
nervosismo que sinto.
— Oi, querido. A Ming já te atendeu? — Liling se aproxima da
minha mesa, parando de encarar a filha com um olhar preocupado.
Felipe ergue o olhar do seu prato, o rosto está cheio de molho tarê e
nem perco meu tempo pensando em como um adulto pode se sujar tanto,
parece mais uma criança.
Abro um sorriso para a mãe da Ming, me inclinando na mesa.
— Acho que ela se distraiu com a Carmen. — Ela faz uma careta e
me apresso em tentar amenizar a bronca que a Ming vai levar, ela já está
com raiva de mim o suficiente. — Está tudo bem, eu ainda nem havia me
decidido mesmo.
— Mas você sempre pede a mesma coisa. Yakisoba, uma porção de
Dumplings[11] com recheio de carne e três docinhos.
Meu sorriso fica maior.
— Acho que vou querer isso, só que sem os docinhos, comi bastante
hoje.
Ela franze a testa.
— Está comprando doces em outro lugar?
— Não, eram daqui. Foram um presente.
Ela sorri.
— Não me diga que foi da Ming? Ela saiu daqui mais cedo com uma
caixinha de doces.
Isso só me deixa mais confuso, será que ela ficou envergonhada por
eu dizer na frente do Felipe, do Pedro e do Eduardo?
Se ela me deu os doces, por que está me olhando como se tivesse me
visto chutar uma criancinha?
— Não sei dizer — respondo sinceramente. — Não deixaram um
nome no bilhete.
Eduardo faz um som de protesto e me volto para ele, está comendo
yakisoba e parece bem confortável com a possibilidade de a Ming não ser a
responsável pelos doces na minha porta.
— Espero que tenha sido, estamos torcendo por vocês dois. — Ela faz
um gesto animador com as mãos e toca meu ombro. — Vou trazer seu
pedido.
Eduardo revira os olhos quando ela se afasta, agora parecendo
desconfortável por eu ter apoio da mãe dela. Abro um sorriso vitorioso e me
sinto meio bobo por estar nessa briguinha territorial com ele. Não somos
mais crianças, ainda assim, agimos como tal.
Ming, Eduardo e eu podemos nos considerar três imaturos.
Solto um suspiro e me recosto na cadeira, Ming está sorrindo para
uma garotinha enquanto a ensina a usar o hashi. Me perco nessa visão, me
perguntando se ela quer ter filhos um dia, e, se sim, quantos?
Consigo imaginá-la nitidamente como uma mãe perfeita, ela é doce
com crianças, já a vi outras vezes com o filho da Pamela e sinto que poderia
ter dez filhos com ela. Amo como seu corpo relaxa perto de uma criança,
amo como todos os problemas parecem sair dos seus olhos, é exatamente
assim que ela fica quando está nos meus braços, só por isso que sei que
terei o coração dessa mulher para sempre se conseguir descobrir o que há de
errado.
Escuto uma cadeira ser arrastada e só então volto a mim. Fico
surpreso ao ver o pai da Ming puxar uma cadeira para nossa mesa,
sentando-se na cabeceira.
Ele olha para todos nós com uma expressão séria, então franze a testa.
— Vocês fedem a policiais.
— Obrigado, senhor. — Felipe agradece com a boca cheia e dou um
tapa na sua cabeça.
— Isso não foi um elogio. — Pedro sussurra para ele e o Felipe fica
vermelho, voltando a comer.
— Como tem passado, Xiang? — Eduardo pergunta e o homem
recosta na cadeira, uma mão ainda na bengala ao seu lado.
— Preocupado. As coisas não têm sido tranquilas nessa cidade
ultimamente, principalmente para minha filha.
— Não se preocupe, estou tomando conta dela.
Fuzilo o Eduardo, não acreditando que ele ousou dizer isso. Uma
porra que ele vai tomar conta da minha mulher.
— Sério? Você? — Estreito os olhos. — O cara que chora só em ver
um corpo?
Ele fica tenso e me viro para o meu futuro sogro.
— A Ming é ótima, muito talentosa. Sabe se virar sozinha e se
porventura não conseguir, todos nós estaremos na retaguarda dela,
garantindo sua segurança.
Xiang finalmente abre um sorriso e dá três batidinhas no meu ombro
que mais parecem tapas. O homem tem uma mão pesada.
— Era isso que queria ouvir, Liam. Obrigado. — Ele suspira, ficando
sério. — Mas se não cumprir isso, saiba que vou caçar vocês.
Felipe engasga e o Pedro o ajuda, enquanto o Eduardo e eu trocamos
farpas pelos olhos.
— Ah, minha garotinha cresceu tão rápido... — Xiang olha de mim
para o Eduardo, até me encarar de novo. — Sempre pensamos que ela
ficaria com o Eduardo, os dois sempre viviam grudados, como a mãe dela e
eu antes de assumirmos um compromisso sério — diz de repente, dando
batidinhas nas costas do Eduardo dessa vez, o que me faz trincar os dentes
de raiva. — Ele é de boa família, educado...
— Eu também sou de boa família e educado, além disso, ainda sou
bonito — digo emburrado e o Xiang me lança um olhar perspicaz, como se
estivesse jogando para saber com quem sua filha estava saindo.
— Mas você é o namorado da Ming?
Engulo seco, abro a boca para responder, então sinto uma presença
atrás de mim.
— Não, pai. O Liam não é meu namorado.
Ela deposita um prato diante de mim, se abaixando tão perto que
tenho o prazer de sentir seu perfume antes de me deparar com seu olhar
venenoso.
Suas palavras me deixam triste e o olhar debochado do Eduardo me
faz querer estrangulá-lo.
— Hmm... — O pai dela não parece acreditar ao ficar de pé. — Tudo
bem então.
Assim que a Ming se afasta o pai dela volta a se inclinar, dessa vez na
minha direção.
— Eu gosto muito de você, garoto, mas se continuar fazendo minha
filha voltar para casa com essa expressão deprimida, eu vou quebrar seu
pescoço e jogar seu corpo no oceano.
Meus olhos se arregalam enquanto ele diz cada palavra com um
sorriso no rosto, assim que vai embora, finalmente solto a respiração que
nem notei ter prendido.
— É, vou procurar uma namorada órfã de pai. — O Felipe diz
baixinho e o fito com meu maxilar extremamente tenso.
— Isso é uma ótima ideia, Felipe — resmungo e ele volta a comer.
Queria ter pensado nessa ideia brilhante antes.
MING
Entro na delegacia com a mente a mil por hora, estive ligando
algumas coisas antes do meu turno e a inquietação está me deixando à flor
da pele.
Quero contar minhas suspeitas, mesmo não sabendo em quem confiar.
Sei que não preciso mais desconfiar do Felipe, o Liam explicou tudo e
agora entendo que ele só estava querendo ajudar, mas ainda me recordo do
que a Sra. Rodrigues disse para o Liam, estava escutando tudo e sei que ela
insinuou ser alguém da delegacia.
Estive analisando os casos antigos e percebi que talvez o assassino
esteja se tornando descuidado. Antes não existiam mensagens, tampouco
uma possível prova, coisa que quase conseguimos, apesar de no fim ter sido
contaminada. E simplesmente não consigo esquecer do homem encapuzado.
O que ele estava fazendo em duas cenas de crimes? Quando cheguei
perto dele, o ouvi dizer que seria o próximo e isso o exclui como suspeito.
Se for o mesmo assassino de oito anos atrás e ele estiver mesmo
repetindo os lugares da última série de assassinatos, o que eu creio ser,
então a próxima vítima será encontrada perto da rua onde fica o restaurante
da minha mãe. Lembro que há oito anos, a garota morta estava na esquina
da rua, formando exatamente um triângulo nos casos, claro, isso porque
nunca acharam o corpo do Isaac, irmão do Eduardo. Se achássemos o corpo
dele, teríamos certeza de onde o assassino iria atacar, só precisaríamos
desvendar quando ele o faria.
Tudo bem, ele não matou exatamente nos mesmos lugares, mas os
locais batem, foram poucos metros de distância, e se estivermos certos
sobre eu ser uma chave desse caso, então sei exatamente quais pessoas
precisam ser protegidas vinte e quatro horas.
Me sento à minha mesa, rabiscando dois nomes em um papel,
também anoto o endereço do possível local onde o assassinato vai ocorrer e
a proximidade das duas pessoas do local.
Sei que todos estão pensando que talvez os assassinatos tenham
acabado por conta do silêncio prolongado do assassino, no entanto, sinto
que não acabou e que talvez o próximo caos esteja bem próximo.
Olho para a mesa do Liam e apesar de estar zangada, preciso admitir
que ele é o único em quem confio por enquanto, nele e no Edu, mas
infelizmente o Eduardo não está aqui agora.
Liam se inclina na sua mesa e o assisto escrever alguma coisa em um
papel. Ele fica lindo quando está concentrado, não que eu esteja reparando
na sua beleza, estou só tentando descobrir se é um bom momento para fazer
uma pausa na nossa greve de silêncio um tanto imatura.
Solto um resfolegar e me levanto da minha cadeira. Caminho até sua
mesa, depositando o meu papel sobre a folha que ele continua escrevendo
freneticamente. Seus dedos largam a caneta e o observo piscar os olhos
algumas vezes, como se lentamente voltasse à realidade.
Ele sobe o olhar para o meu rosto e se recosta na cadeira.
— Boa noite, Ming.
— Acho que sei quem vai ser a próxima vítima.
Ele assente, cruzando os braços. Está sério e é um daqueles raros
momentos em que está totalmente focado no trabalho, sem gracinhas, sem
sorrisos e sem cantadas.
Meu sangue corre quente nas veias ao vê-lo assim, a pulsação
acelerando em um claro sinal de desejo. Ele fica irresistível quando se torna
o policial durão, deixando o Liam engraçadinho de lado por um tempo.
— Eu também sei.
Nós dois nos encaramos por um instante, até ele olhar para o meu
papel e assentir.
— Já entendemos que o assassino age de acordo com pessoas que
entram em conflito com você. O motivo ainda é desconhecido, mas isso
coloca duas pessoas no nosso radar. — Ele diz e segura o papel.
— Temos que proteger a Sra. Rodrigues e a neta.
Ele solta um suspiro.
— Já conversei com o delegado sobre isso e sei que você está
tentando ligar esses assassinatos ao caso de oito anos atrás. — Seus olhos
encontram os meus. — O quanto isso é pessoal para você, Ming?
Sinto o choque me atingir com força total ao perceber que talvez ele
saiba da Fang, talvez sempre soube.
— Não sei do que está falando.
— O delegado não deve ter averiguado seu histórico, ainda não. —
Sua mão segura a minha quando dou um passo para trás. — E não posso
garantir que não o fará em breve. Está disposta a arriscar seu cargo?
— Você não entende.
— Você não faz ideia do motivo por não querer ligar esse assassino
ao de oito anos atrás, Ming, não me meteria nisso se fosse você. — Seus
olhos se tornam escuros, quase sombrios. — Eu não vou contar nada, por
enquanto.
— Está me ameaçando?
A raiva toma conta de mim e quero esmurrá-lo, mas sei que isso não
fará minha fúria desaparecer, tampouco pouco resolverá o problema. Quase
posso ver a vovó Mei sorrindo, orgulhosa por eu não ter explodido como
sempre acontece.
— Nunca faria isso, estou te alertando. — Ele continua me
segurando, como se temesse que eu fugisse na primeira oportunidade. —
Assim que sentir que está comprometendo sua segurança, eu vou deixar de
ser seu aliado.
Meus dentes trincam quando tensiono a mandíbula.
— Você é um cretino.
— Um cretino que gosta mais de você do que deveria.
Puxo minha mão do seu aperto.
— Quer saber, Liam? Você não faz ideia de quem eu sou, não pode
dizer realmente gostar de mim.
— Me ataque à vontade, isso não vai mudar o fato de que vou te
proteger, mesmo que de si mesma.
Bato o pé como uma criança birrenta, arranco o papel da sua mão e
volto para a minha mesa, fungando de raiva e dor.
Ele pode até acreditar saber o que aconteceu com a minha família,
pode pensar que sabe quem eu sou, mas ele não faz ideia. E o odiarei se
tentar se meter no meu caminho. Nada nem ninguém vai me impedir de
fazer o certo pela minha irmã.
Eu prometi para ela. Prometi que faria o culpado pagar.
Ele espera que todos cheguem para se levantar e anotar no quadro do
caso a mesma coisa que eu fiz naquele papel, os nomes da Sra. Rodrigues e
da neta viva agora estão destacados e olho desconfiada para meus parceiros
de equipe.
Estou me sentindo paranoica por todas as dúvidas, mas não posso
evitar, isso sempre foi pessoal para mim e não estou dizendo que é saudável
viver com a mente e o coração em busca de vingança, só que é assim que
vou seguir vivendo até achar o assassino.
— A inspetora Yang teve desavenças com duas pessoas nos últimos
dias, e como ambos os assassinatos ocorreram após as vítimas discutirem
com ela, acho que devemos considerar isso uma chave importante. — Liam
se torna inexpressivo, é uma das raras vezes que me chama pelo sobrenome,
acho que faz isso quando está puto comigo, não que tenha motivo para isso,
foi ele quem me ameaçou com o meu passado.
— Isso é tão bizarro. — Paulo resmunga e esfrega os olhos com as
mãos, acho que todos estamos meio fartos disso.
— Não sabemos se isso realmente faz sentido ou se é só um fato
aleatório, mas não quero descartar a possibilidade. — Liam me observa por
um instante antes de desviar o olhar. — Nós vamos nos revezar em turnos
para proteger a Sra. Rodrigues e a neta dela até termos uma nova pista, já
que o assassino não tem exatamente um padrão de dias que ataca.
— Como isso vai funcionar? — Felipe pergunta vagarosamente, os
olhos piscando tanto que tenho a impressão de que vai cair sobre a mesa e
não levantar nunca mais.
— Duplas. — Liam explicou. — Felipe e Eduardo, Paulo e Pedro,
Ming e eu.
Edu e eu fazemos uma careta ao mesmo tempo, mas nenhum dos dois
questiona. Acho que o Edu sente que não tem mais motivo para brigar por
mim, deve ter aceitado que perdeu. Já eu, apesar de tudo, não consigo
dispensar a chance de passar mais tempo com ele.
— A Sra. Rodrigues possui uma floricultura há alguns quarteirões da
loja de antiguidades da neta. Suspeitamos que talvez esse caso tenha relação
com o de oito anos atrás, se estivermos certos, é possível que o assassinato
ocorra mais perto da loja de antiguidades da Carmen do que na floricultura
da Sra. Rodrigues.
Estudo a expressão de cada um, Edu está com os punhos cerrados e
um olhar mortal, provavelmente pelo ciúme de mim que ele ainda precisa
superar. Pedro está atento nas palavras do Liam com um semblante de
concentração. Felipe está com as sobrancelhas arqueadas enquanto desenha
uma loja de antiguidades no bloquinho de notas. Paulo digita
freneticamente no computador.
Ninguém parece realmente culpado e solto um suspiro.
— Preciso que vocês descubram a rotina das duas, ao menos o que
não sabemos.
Felipe ergue a mão como se ainda estivesse na escola e o Liam revira
os olhos antes de ordenar que ele fale.
— A Carmen não vai se casar no fim de semana?
— Ela não adiou isso? — O Edu pergunta, a expressão de raiva dando
lugar à de choque. — Caramba, a irmã dela morreu. Tudo bem que as duas
não se bicavam, mas... sei lá.
Felipe dá de ombros, voltando para o seu desenho.
— Acho que elas queriam ter uma coisa pela qual comemorar. E, pelo
que soube, o casamento vai ser no salão da Glamour.
Solto um assovio de apreciação, todos sabem que isso significa muito
luxo, música e comida ruins. Já fui em um casamento feito pela equipe da
Glamour na adolescência, a Fang me arrastou dizendo que era o casamento
dos sonhos, a única coisa boa era os drinks que eu surrupiei das mesas dos
adultos ricos. Foi a primeira e única vez que senti o poder do álcool, sempre
finjo que o deslize nunca ocorreu e que a Fang não desapareceu no dia
seguinte.
— Todos concordamos que, apesar de ser caro, manter um casamento
após a morte da irmã é bem escroto. — Pedro dá voz ao pensamento de
todos, fazendo uma careta. — Quem se importa com o dinheiro numa hora
dessas?
— Eu ser convidado é útil? — Paulo pergunta, fazendo uma pausa na
tortura contra o teclado.
Liam abre um sorriso e me dirige um olhar cúmplice.
— Tem um vestido de gala? — Me pergunta, lambendo o lábio
inferior. Isso me desorienta. — Temos um casamento para irmos de penetra.
Eu não tenho, mas uma pesquisa rápida no Instagram me faz
encontrar uma garota chamada Rory, gosto porque ela não mente sobre ser
costureira iniciante, o nome da loja que ela está montando se chama Dreams
e os vídeos que ela posta sobre os vestidos que costura me faz correr para o
direct dela.
Nunca realmente usei um vestido como o que peço para ela fazer, mas
eu sou vingativa e pela primeira vez quero a atenção de todos os homens
possíveis sobre mim, só para o Liam perceber que não preciso dele e que
posso conseguir outra pessoa rapidinho.
Sei que devia superar, mas ainda não consigo esquecer o fora mais
escroto que ele me deu, mencionar o presente de outra mulher e ainda
zombar sobre um possível compromisso com ela no futuro foi o fim para
mim.
Rory me manda foto de um modelo parecido com o que pedi, segundo
o que ela conta, parece ter sido coisa do destino. Ela simplesmente acordou
um dia com uma vontade louca de costurar um vestido de gala perfeito,
acreditando que ninguém teria interesse nele por enquanto e logo quando
ela terminou o vestido, eu apareci querendo algo na mesma vibe.
Respiro fundo, aliviada quando ela diz que consegue me enviar o
vestido antes do fim de semana.
À minha volta, os homens ainda conversam e estou chocada por estar
agindo como uma garota pela primeira vez na vida, digo isso por nunca ter
me empolgado para comprar nada feminino. Deixei uma conversa de lado
para isso, não uma conversa normal, mas uma relacionada a um caso que
estou obcecada desde que era uma adolescente.
— ... com a Ming. — Liam estava dizendo e ergo a cabeça ao ouvir
meu nome.
— O quê?
Ele franze a testa ao me dirigir um olhar, então nota o celular na
minha mão.
— Sugiro que mexa no celular depois do expediente.
— Isso é meio hipócrita — sussurro, mas ele deve ter escutado, já que
seu semblante se transforma em uma carranca emburrada.
— Nós dois vamos à loja de antiguidade da Carmen, agora. — Seu
tom de voz é áspero e pisco os olhos inocentemente, abrindo meu melhor
sorriso debochado.
— Claro, Liam.
Ele sai da frente do quadro, bufando ao caminhar para perto da sua
mesa. Ele pega um bloco de notas e o posiciona em frente à ereção que eu
já havia notado, o idiota não faz ideia que ao fazer isso, só atrai mais
olhares para sua calça.
Coloco meu boné branco na cabeça, visto a jaqueta de couro preta e
também me levanto, agradecendo por já ter resolvido a questão do vestido,
seria uma tortura ter que ir ao shopping comprar um, a vovó Mei ia fazer
questão de ir junto e dar sua opinião incrivelmente sincera sobre cada um.
Assim que saímos da delegacia e entramos no seu carro, percebo que
devia ter resistido pelo menos um pouco antes de aceitar ir à loja da Carmen
com ele.
O clima no carro se tornou tão denso que parece difícil até respirar,
sinto um caroço na garganta e um aperto no peito ao me dar conta de que
tudo que construímos em uma relação parece ter desmoronado de repente.
Finalmente entendo o significado de ser iludida. Eu, uma inspetora,
caindo no flerte de um cara. Podia ser mais irônico?
Será que ele sempre teve outra pessoa? Como não percebi isso antes?
O observo disfarçadamente. Ele ainda nem ligou o carro, está
segurando o volante com as duas mãos e parece nervoso.
— Te chateou que eu saiba sobre o seu passado? — Ele pergunta de
repente e acho que era isso que temia ao ficar sozinha com ele novamente,
já que o caroço na minha garganta só parece crescer.
— O que pretende dizer à Carmen? — mudo de assunto e ele respira
fundo.
— Entende agora sobre o que eu quis dizer com confiança? Estou
desde o começo pedindo para confiar em mim, mas você não pode fazer
isso, não é?
— Dirija, Liam.
— Não te forcei a me contar nada, Ming. Eu esperei você se abrir,
não pode mesmo estar brava por isso.
— Não estou. É só... — Faço uma pausa para encontrar a palavra
certa para descrever. — Desconfortável lidar com isso agora.
Ele não discute, acho que a resposta o convenceu por enquanto.
Olho pela janela quando ele liga o carro e começa a dirigir. Estou
arrasada, mas já estou acostumada com o sentimento. Nunca estive
realmente completa após Fang falecer, Liam foi o mais perto de sentimentos
realmente vibrantes que cheguei em oito anos.
— Não acho que devemos simplesmente chegar e dizer que ela pode
ser um alvo, isso meio que pode apavorar as pessoas.
Ele voltou o foco para o trabalho e isso alivia o peso no meu coração.
— O que falamos então?
— Pensei em dizer que estamos protegendo a família das vítimas do
assassino.
— Isso é estranho, mas melhor que nada.
O carro fica silencioso novamente.
— Ming, sobre nós dois...
— Eu já sei. — O corto, uma sensação ruim se apossando do meu
estômago. — Vamos fazer nosso trabalho.
Ele me lança um olhar e finjo não reparar em como ele parece
insatisfeito com minha resposta.
Estou tensa quando ele para em frente à loja de antiguidades da
Carmen, o coração batendo rápido pela sua presença e minhas incertezas.
Nós dois somos muito inconstantes juntos e estou farta de gostar de alguém.
É estranho não saber decifrar minhas próprias emoções, sinto
vergonha ao sentir que ficaria com ele de novo se chegasse perto demais,
mesmo depois de ver aquela mensagem e o ouvir dizer que recebeu
presentes de outra na minha frente.
Mulheres podem ser bobas ao se apaixonar, mas não vou deixar isso
me dominar. Tenho objetivos maiores do que uma paixonite.
Saio do carro e olho para cima, a loja é rustica e tem um nome acima
da entrada: Relíquias e Antiguidades.
A loja fica próxima ao restaurante da minha mãe, ainda assim, nunca
realmente entrei nela, até agora.
Um sino toca acima da porta, não tem ninguém por perto. Carmen
deve estar nos fundos.
Contemplo todos os objetos lindos que ela tem aqui e quando meu
olhar pousa nas espadas, um sorriso radiante se espalha pelo meu rosto.
Vou nessa direção, os olhos brilhando ao me recordar da infância,
quando aprendi a manusear uma arma dessas.
Retiro uma da parede, ela é de bronze e tem um dragão entalhado na
lâmina. Não possui corte, mas é tão pesada que me surpreendo com o
material.
Faço um movimento e o Liam para de andar. Ele não move um
milímetro sequer, apenas me observa com atenção.
— Toma cuidado.
Me movo com graça e destreza pela loja, ainda sorrindo ao recordar
os movimentos que meu pai me ensinou.
— Meu pai me ensinou a manejar uma espada só porque fiquei
curiosa sobre o peso e como devia ser difícil. Minha irmã não se interessava
por isso, mas eu amava. Então não se preocupe, eu sei o que estou fazendo.
Giro com a espada em punho e paro a centímetros do pescoço dele.
Seus olhos estão arregalados e as mãos erguidas para cima.
— Agora entendi o que quis dizer com não saber ser carinhosa.
Abaixo a espada e ele se aproxima, colocando uma mecha do meu
cabelo atrás da orelha.
— Mas confesso que isso foi bem sexy.
Ele beija minha bochecha e estanco, ficando sem reação. Minha pele
formiga onde seus lábios tocaram e a saudade me atinge com força total.
Tive tão pouco tempo para aproveitar esse tipo de carinho, mas dessa
vez não foi culpa minha, foi ele quem me decepcionou.
Dou um passo para trás, odiando meu corpo traidor e esse homem por
jogar comigo mesmo amando outra.
Carmen volta para a frente da loja e devolvo a espada para seu lugar,
Liam se aproxima da mulher, calmo, como se não tivesse sido afetado
pelo que aconteceu aqui. Preciso de uma vacina anti homem babaca, e
rápido.
— O que vocês querem aqui? Já disse que aquele tapa foi legítima
defesa.
Isso me faz querer gargalhar escandalosamente na cara dela.
Vaca desprezível.
— Que peninha que ninguém gosta de você para confirmar isso, estou
te levando presa — debocho e o Liam me dá um cutucão.
Carmen está soltando fogo pelas ventas, se é que dragões feios como
ela realmente soltam fogo.
— Eu preciso dizer que sempre te odiei. — Ela resmunga e abro um
sorriso que não sei se ela pode ver, já que o idiota do Liam entra na minha
frente.
— Na verdade, estamos aqui por outro motivo.
— Tudo que eu faço é dentro da lei, não tenho nenhuma vida dupla
como minha irmã, nem sei de nada sobre o caso. Já podem ir embora.
— Querer nos expulsar só te torna suspeita — comento e o Liam se
vira para mim.
— Estou sinceramente arrependido de ter trazido você.
Cruzo os braços.
— Ela começou! — sussurro e ele balança a cabeça.
— Não começou, não. Agora chega.
Reviro os olhos.
— Acha que manda em mim? É meu direito humilhá-la na sua loja, já
que ela fez isso comigo na minha.
Ele respira fundo.
— Acho melhor me esperar no carro.
— Vai mesmo me tratar como uma criança?
Ele me entrega a chave do seu carro.
— Destrava e fica quietinha lá dentro, eu já vou, neném.
Estreito os olhos para o apelido em tom de deboche, mas pego a
chave, bufando de raiva.
Lanço um último olhar mortal para a Carmen antes de sair, não que eu
vá obedecer ao Liam, ele vai descobrir rapidinho que não é assim que as
coisas funcionam comigo.
Saio pela porta e destravo o carro, mas ao invés de entrar no banco do
passageiro, vou para o lado do motorista e abro a porta. Arrumo o banco e o
espelho retrovisor, ajeito o cabelo e o boné na cabeça.
Assim que o Liam sai da loja e olha em direção ao carro, me vendo
no banco do motorista pela janela aberta, seus olhos se arregalam.
— Ming, nem pense nisso! — Ele exclama e abro um sorriso
malvado.
Ergo meus dois dedos do meio para ele e piso no acelerador, voltando
para a delegacia e o deixando plantado na calçada.
Ele vai querer me matar, mas foda-se.
LIAM
Tudo bem, já entendi que me apaixonei por uma demoninha
disfarçada em um rostinho de anjo, mas ela precisava mesmo me infernizar
a semana inteira?
A garota me provocou, me tirou a paz e me fez questionar os motivos
por gostar tanto dela mil vezes. Ela é a maior tortura que já tive em anos.
Primeiro ela me deixou na loja da Carmen e eu tive que ir embora
andando, pois não atendia a porra do celular. Depois me apareceu na
delegacia com uma regata que deixava seus peitos espetaculares, até o
imbecil do Felipe não conseguiu desviar o olhar. Em outro dia, ela me fez
ficar de pau duro quando fez uma piada de duplo sentido e quase me beijou,
só para depois ir embora como se nada tivesse acontecido. Fiquei quase
meia hora preso na sala de arquivos e considerei milhares de vezes bater
uma punheta ali mesmo e me livrar da ereção.
Todos os dias volto para casa com dor de cabeça, todos os dias vou
trabalhar com um novo plano de torná-la minha novamente e sempre acabo
de um jeito constrangedor.
Termino de dar o nó na gravata, resmungando sobre como sou um
imbecil.
Apesar de que não está sendo tão ruim, eu até gosto dessa coisa de
empurra e puxa, esse joguinho de sedução funciona bem para mim. Mesmo
quando me estresso, acabo rindo sozinho da maluquice daquela mulher.
Coloco a cabeça para fora do quarto, a vendo entrar no quarto de
hóspedes só de toalha. Eu já estou pronto e ela ainda nem começou a se
arrumar.
Trevo corre pelo corredor, se enfiando no quarto dela.
Foi muito difícil a convencer de vir se arrumar na minha casa, ainda
nem sei o que a fez ceder, e por esse motivo, tenho a impressão de que ela
preparou mais alguma coisa para me desestabilizar.
Trevo está latindo no quarto de hóspedes e a curiosidade me faz sair
do meu quarto e ir em direção à outra porta.
Talvez ela precise de ajuda para fechar o vestido ou outra coisa.
Enfio as mãos no bolso da calça e dou uma espiada sem pretensão,
mas já pretendendo.
— Eu odeio esse tipo de roupa, Trevo. — Ela está resmungando e
minha boca seca. — Nem sei mais o motivo por ter comprado isso.
Trevo está sentado aos seus pés, abanando o rabo. Eu o entendo,
também estou quase de joelhos nesse momento.
Ela está de costas para mim, usando nada além de uma cinta liga, uma
calcinha e um sutiã. É tudo renda vermelha em uma pele perfeita e clara.
A bunda dela está deliciosamente empinada e entro no quarto antes
que possa controlar meus pés. Sinto saudades de acariciar essa pele gostosa
e minhas mãos formigam quando seus dedos vão para o fecho do sutiã.
— Isso é tão idiota e esse vestido ficou tão apertado que acho que
nem vou conseguir respirar. — Ela abre o fecho e perco o compasso,
parando de andar no mesmo instante.
Daqui consigo sentir o aroma do seu perfume e nem preciso dizer o
quanto estou excitado com essa visão do paraíso.
— Eu odeio roupas que me apertam, Trevo. — Ela continua
murmurando para o meu cachorro quando tira o sutiã e o joga para trás.
Fico paralisado, encarando a lingerie que caiu sobre o meu ombro.
Me pergunto se seria considerado um perseguidor caso levasse o sutiã ao
nariz e respirasse o aroma da pele dela. Não toco no sutiã.
Ela se vira para a cama, onde um lindo vestido vermelho está aberto
sobre o colchão. Claro que ela me nota parado no meio do quarto.
O certo seria me virar e fingir decência, mas a observo com cobiça
enquanto alcança o roupão e começa a gritar alguma coisa em mandarim.
Não presto atenção no que ela está falando ao me aproximar, só estou
fascinado por ter tido um rápido vislumbre dos seus seios deliciosos antes
de ela se cobrir.
— Fica longe de mim! — Ela está berrando em mandarim e isso só
faz meu pau ficar mais duro.
Quando chego perto o suficiente, ela tenta me chutar, mas eu desvio e
seguro sua coxa contra o meu quadril, me satisfazendo na sensação de
finalmente sentir essa mulher perto. Puxo ela para mais perto e olho para o
decote do roupão.
Seus dedos atingem meu rosto e a queimação me deixa ainda mais
ligado.
— Me solta, idiota! — Ela grita em português e abro um sorriso.
Seus dedos fecham o decote do roupão e lambo o lábio inferior.
— Eu só vim te ajudar a fechar o vestido — sussurro em um timbre
excitado. Estou meio maluco agora.
— Você me viu pelada!
— Isso foi um bônus. E não foi a primeira vez.
Ela soca meu peito.
— Seu canalha! Por que não fechou o olho? Que droga, Liam!
— Você jogou seu sutiã na minha cara e queria que eu fechasse os
olhos? Eu nem tentei piscar.
Ela me empurra e acabo sentado na cama com ela no meu colo.
Trevo late, ela fica ainda mais chocada e eu solto um gemido de
prazer ao sentir sua bunda me pressionando desse jeito só com essa calcinha
sensual. Tudo bem que ela vestiu o roupão, mas na minha mente ela não
está usando nada disso.
— Pra quem você pretendia mostrar isso? — pergunto contra o seu
pescoço, sentindo sua pele arrepiar ao enfiar minha mão por dentro do seu
roupão e passar um dedo pela cinta liga.
Ela está com um coldre logo abaixo da cinta liga, onde uma pistola já
está posicionada.
Puta merda, ela é gostosa demais.
Tenho a impressão de que seu corpo está relaxando sobre o meu e até
chego a pensar que vou conseguir tê-la de volta, mas ela só estava
encontrando a posição adequada para dar uma cotovelada nas minhas
costelas e ficar de pé outra vez.
— Não foi pra você, imbecil.
Ela é áspera, arisca e quase insuportável, ainda assim, me derreto ao
vê-la furiosa desse jeito.
— Você diz isso, mas por algum motivo, eu não acredito.
— Seu maluco, sai daqui! — Ela aponta para a porta, segurando o
decote do roupão outra vez quando meus olhos baixam para lá.
— Não quer ajuda pra fechar o vestido?
— Vou procurar a ajuda do diabo antes de recorrer a você.
Suas palavras me pegam tão desprevenido que acabo rindo.
— Tudo bem, linda. — Ergo as mãos em sinal de paz. — Estou me
retirando.
O sutiã dela caiu na cama quando acabei sentado, mas o seguro por
um instante só para provocá-la, o que a faz soltar um grito e procurar a
primeira coisa para jogar em mim, o que, para infelicidade de todo mundo,
é o Trevo.
Ela o segura e arregalo os olhos, porém, ela percebe o que pegou e
não faz qualquer movimento brusco.
Ele late e abana o rabo, nem suspeitando de que, na cabeça dela,
houve a possibilidade de arremessá-lo em mim.
É por isso que digo que os homens só gostam de mulheres perigosas.
Meu Deus do céu.
Queria saber o que fiz na vida passada para ter que me apaixonar
por uma mulher dessas nessa vida. Não que eu esteja reclamando, gosto
muito de viver perigosamente.
— Se precisar de ajuda, só me avisar.
— SOME, LIAM!
Saio do quarto, literalmente correndo.
— Me dá a chave. — Ming pede, estendendo a mão. Ela deve estar
com muita raiva para querer me torturar com um vestido desse.
Eu sabia que ela estava aprontando mais um dos seus joguinhos e
mesmo vendo o vestido na cama, nada me preparou.
Quando a vi descendo as escadas naquele vestido vermelho sangue, a
perna exposta em uma fenda que chegava até o seu quadril quase revelando
a calcinha, quase caí para trás. Foi como assistir a uma deusa em carne e
osso.
Ela está pura tentação, o significado da palavra luxúria deveria ter
uma imagem da Ming nesse vestido. Ela é minha perdição e estou pronto
para me arrastar atrás dela, acho que se me pedisse, compraria uma coleira
com meu nome e a deixaria me levar pra passear.
Odeio que ainda esteja brava, porque, se não estivesse, a teria
prensado ali mesmo, no corrimão da minha escada e feito com que nunca
mais esquecesse ou duvidasse de que só tenho olhos para ela.
É agonizante vê-la caminhar para o carro, os quadris balançando e o
vestido marcando sua bunda, de tão colado. Ele não tem alças e deixam
seus seios lindos no decote mirabolante, a fenda da perna é interrompida na
cintura e reaberta na parte de cima, deixando pouquíssimo para a
imaginação. Além de ter pedrarias na beirada do decote até a coxa.
É algo que nunca imaginei que a minha garota usaria, não por ser
sexy demais para ela, mas simplesmente por não ser o tipo de roupa que ela
demonstra se sentir confortável usando. Ela sempre gostou de coisas soltas,
nada que marcasse cada uma de suas curvas.
Estou curioso para saber o motivo de ela ter escolhido esse e se está
desconfortável nele.
Entrego a chave do carro, ainda sem encontrar minha voz. Não disse
nada desde que ela vestiu essa roupa linda e deliciosamente perversa.
Seu olhar é venenoso quando dirigido para mim, acho que o lance do
quarto não foi a melhor das ideias. É só que eu sou um homem, todo mundo
sabe que um homem pensa com a cabeça de baixo noventa e nove por cento
do tempo.
Ela destrava o alarme e entro no carro, assim que ela faz o mesmo,
meus olhos baixam para as pernas expostas pela fenda que eu preciso dizer,
eu amei e odiei na mesma medida.
Pensar em outros homens vendo-a vestida assim e tendo os mesmos
tipos de pensamentos que eu, me traz uma repentina necessidade de
afrouxar a gravata.
— Para de me olhar.
— Isso é impossível, você é como um ímã — respondo sem pensar.
— Eu devia ter previsto que você era desses.
Isso me deixa ofendido, não que eu entenda bem o que quer dizer,
minha cabeça está nublada por imagens dela de quatro.
— Como é? O que está insinuando?
Ela estala os dedos diante dos meus olhos, acho que por eu ainda estar
falando para suas coxas ao invés do seu rosto.
— Você só pensa em sexo.
— Nesse momento, não vou discordar — resmungo, cobrindo a
ereção com uma mão.
Ela não diz mais nada, só liga o carro e começa a dirigir.
A assisto extasiado, tentando descobrir a melhor maneira para abordar
o tema que envolve nós dois, cujo ela se recusa a falar desde aquela briga
bizarra.
Ela me pediu desculpas, mesmo que indiretamente, depois pareceu
furiosa quando mencionei isso no restaurante da sua mãe.
Ming é complicada demais e se não estivesse tão louco por ela, já
teria desistido e escolhido minha saúde emocional.
Ela se tornou ainda mais fria do que no dia em que nos conhecemos e
só quero compreender essa mulher maluca.
Tudo bem, eu fui orgulhoso, poderia ter dito que estava falando com a
Cassandra, não com outra mulher, e até entendo que ela não tenha
experiência com relacionamentos e ainda tenha muito para amadurecer.
Além do mais, Ming só tem vinte e três anos e eu já tenho vinte e nove.
Acho que eu deveria ser o maduro.
Ok, eu fui um otário em ter ido embora ao invés de conversar, sem
mencionar que eu surto de ciúmes o tempo inteiro, mesmo que
internamente.
— Ming… — Começo a falar, mas ela já está estacionando.
Devo ter pensado muito, já que chegamos tão rápido em frente ao
salão onde será a festa de casamento. Mal vi o carro se mover.
— Acha mesmo que esse é o melhor plano? — Ela questiona e
assinto.
Saímos do carro, ambos tensos por motivos distintos. Ela sempre fica
assim quando está no trabalho. Eu sempre fico assim quando perco a
oportunidade de me resolver com ela.
Não podemos dar nossos nomes na entrada, não fomos convidados e
quando visitamos amigavelmente a loja da Carmen e eu expulsei a Ming
delicadamente, Carmen me disse que não dava tempo de acrescentar mais
ninguém na sua lista. Poderíamos mostrar nossos distintivos e dizer que era
caso de vida ou morte, mas só causaríamos alvoroço, então só restou
entrarmos de penetra com a noiva sabendo.
Carmen é uma mulher inteligente e entendeu muito bem o que quis
dizer com proteger, por isso, disse que não questionaria qualquer plano que
tivéssemos, e é por isso que o Felipe e o Eduardo estão nos fundos do salão,
na porta traseira, vestidos de garçom.
Paulo já está dentro do salão, analisando o terreno enquanto não
chegamos, isso porque, por um milagre, ele foi convidado para um evento
social e eu não. Eu não poderia estar mais chocado.
— Acho que exagerei no look.
Olho para a Ming, isso vindo de qualquer outra mulher, pensaria que
está atrás de um elogio, mas, na minha mulher, reconheço os sinais de
apreensão. Não é para menos, já que o Felipe e o idiota do Eduardo estão a
secando.
Faço uma careta para os dois, mais uma vez olhando para ela.
— Você está sensacional, linda. Sério, super gostosa.
— Cala a boca, Liam. Isso não ajuda, nunca é bom chamar a atenção,
principalmente quando se é uma inspetora em horário de serviço.
— Ei. — A faço parar de andar. — Eu te elogiaria com palavras
chiques e difíceis se lembrasse de alguma, mas você me deixou sem
palavras.
— Isso quer dizer que exagerei.
— Não, isso quer dizer que vou machucar muito qualquer um que te
faça sentir que exagerou. Inclusive, aqueles dois idiotas. — Ela olha para
baixo e ergo seu queixo. — Que se dane o horário de serviço, o plano era
justamente agir como convidados, você não poderia estar mais perfeita.
Seus olhos brilham, suaves. Tenho a impressão de que ela está
cedendo, mas, em um segundo, essa impressão desaparece e ela se afasta
novamente.
Viramo-nos para a porta dos fundos e o Felipe está fazendo sinais
estranhos como um maluco. Quando nos aproximamos, seu rosto não
poderia estar mais vermelho.
Ele olha a Ming da cabeça aos pés e dou um tapa na sua cabeça,
detestando que outro homem a olhe dessa forma, mesmo sendo o panaca do
Felipe.
— Nossa, Ming. Por um segundo pensei que você fosse a Fang. —
Todos nós estancamos e quero estrangular esse sem noção do caralho. —
Sério, nunca reparei em como vocês eram parecidas.
— Você conheceu minha irmã?
Ele franze a testa, então fica ainda mais vermelho.
— Sim, eu era xonadão por ela na escola. Foi graças a ela que
conheci a Dona Creuza, minha psicóloga.
Ming parece confusa e desconfortável com a conversa, ainda assim, é
vencida pela curiosidade.
— Como assim?
— Ah, nada demais. É só que sua irmã nunca valorizou o meu amor
por ela. Uma vez dei o coração do sapo que abri na aula de laboratório para
ela, e acredita que ela berrou e me chamou de esquisitão?
Para surpresa de zero pessoas, é claro que Felipe soltaria uma idiotice
dessas, mas, para surpresa geral, Ming solta uma risada sincera. Quase
abraço o Felipe por isso.
— Meu Deus, foi você? Ela chegou em casa surtando. — Ming
continua rindo e nunca imaginei que fosse falar da irmã assim, acho que
isso é um dom do Felipe, ele nunca leva nenhum assunto a sério, então as
pessoas também não o fazem quando estão na sua presença, mesmo quando
a lembrança dói.
Os olhos dela estão rasos de água, provavelmente de tristeza por saber
que esse riso não é de algo que aconteceu no presente e que não terá mais
momentos assim com a irmã, no entanto, há leveza ali também, como se
pela primeira vez não quisesse deixar de falar sobre coisas que a Fang fez
por medo de sofrer.
É estranho entender tão bem seus pensamentos, mas acho que o faço
por entender bem sobre esse sentimento.
— Ela odiava você. — Ming continua falando e o Felipe abre um
sorriso triste.
— Eu a amava profundamente. A dona Creuza dizia para eu
demonstrar meu amor, mas a Fang não gostava das minhas técnicas de
sedução. Ela partiu meu coração e me humilhou tanto, eu era quase o
cachorrinho dela.
— Sinto muito, Fe. — Ming para de sorrir. — Entendo se você
também achar que ela foi uma pessoa ruim.
Meu coração se parte ao ouvir a dor em sua voz e detesto que alguém
fale esse tipo de crueldade para ela.
— Claro que não, a Fang era perfeita. — Felipe abre um sorrisão e a
Ming relaxa ao meu lado.
— Eu também acho.
— A gente tem que ir. — Eduardo se intromete. — Ouvi a Carmen
dizendo para alguém que eles adiaram a lua de mel, acho que por medo de
alguma coisa acontecer com a avó dela, ou com ela.
Todos nós voltamos o foco para o trabalho.
— Vocês dois voltem a fingir que são garçons e fiquem de olho em
qualquer possível suspeito — ordeno. — Ming e eu vamos fingir ser
convidados.
— Tá, a gente criou um código. — Felipe diz, entregando escutas que
eu não faço ideia de onde ele conseguiu, já que nosso equipamento não vai
tão longe assim. — São de brinquedo, era só pra gente parecer mais
profissionais. — Ele responde ao notar nossas expressões.
— Achei que a gente não quisesse parecer inspetores. — Ming diz e
eu lanço um olhar para ela confirmando.
— Voltando para os códigos secretos — Felipe bate uma palma na
outra, sorrindo igual um menino —, Paulo é o tigre, Eduardo o burro, a
Ming a coelhinha, o Liam o boi e eu sou o leão, o rei da selva.
Estreito os olhos, agradecendo pelo Pedro estar de folga e não se
juntar com esse panaca para fazer esse tipo de palhaçada.
— Por que eu sou o boi?
Ming me encara, parecendo indignada por eu sequer estar
questionando isso.
— O boi tem chifre. — Felipe diz, dando passos para trás como se
estivesse fugindo.
— O que que tem? — pergunto, o seguindo em seus passos.
— Nada não, chefe. Foi só uma brincadeirinha, vamos mudar o seu.
— Acho que ele te chamou de corno. — Eduardo alfineta e solto um
rosnado.
— Já chega! — Ming exclama, passando por nós dois.
A seguimos e, em um certo momento, Felipe e Eduardo dispersam,
ambos pegando bandejas e se misturando na festa lotada.
O salão está decorado como se fosse o casamento de uma princesa,
não de uma pessoa normal. Os lustres são grandes demais, a pista de dança
só possui os recém-casados dançando. Champanhe e comida são servidos e
sinto como se tivesse saído da rua para entrar em um castelo.
— Isso é tão...
— Exagerado. — Ming completa por mim.
Me viro para ela, curioso sobre o tipo de casamento que ela vai
querer, eu preferiria algo mais intimista, mas se ela gostar desse estilo,
podemos arranjar.
Ei, pega leve.
— Qual tipo de casamento você deseja ter? — pergunto, ignorando
completamente minha mente racional.
Ela parece surpresa ao aceitar uma taça de champanhe de um garçom.
A observo tomar um gole da bebida, já registrando essa taça para não
me esquecer de contê-la caso aceite mais.
— Eu nunca pensei nisso, mas com certeza não seria algo tão chique.
E você?
— Algo mais intimista — respondo, me aproximando um pouco dela
para parecer que somos um casal. Daqui já consigo ver os olhares
masculinos voltados para ela e me sinto como um cão de guarda, pronto
para destruir o primeiro que ousar se aproximar demais.
Apoio uma mão nas suas costas ao ver casais finalmente indo para a
pista de dança, Ming fica tensa com o meu toque, ainda assim, não me
afasto.
— Quer dançar? — inquiro, me inclinando o suficiente para sentir seu
perfume e ver seu corpo arrepiar em resposta ao meu.
Ela pode negar o quanto quiser, eu jamais vou acreditar enquanto sua
pele responder assim ao simples som da minha voz.
Sua cabeça se move em concordância, ela abandona a taça pela
metade e olha em volta conforme a guio para a pista.
Somente quando estamos na pista de dança que percebo ser uma
música realmente de princesa tocando. Ming está aérea, ao menos finge não
estar ligando para mim, no fundo, sei que está com o coração acelerado e
com sentimentos à flor da pele.
Viramo-nos de frente um para o outro e a envolvo nos meus braços.
— Eu não sei dançar. — Ela diz de repente, os olhos arregalados. —
Nem sei o motivo por ter aceitado dançar.
— Tudo bem, eu te guio — sussurro, a puxando para mais perto.
Sinto o aroma do seu perfume, sinto o calor da sua pele e sinto cada
pequena reação que meu corpo tem ao entrar em contato com o dela. Penso
nos nossos momentos juntos, no sexo e em como tudo parecia certo.
— Ming, o que está acontecendo? — Finalmente pergunto, sem poder
me conter. — O que aconteceu com a gente?
Ela fica tensa pela milésima vez na noite e me sinto péssimo, mas
ainda quero saber, ou melhor, eu preciso entender o que ela espera de mim.
— A gente estava tão bem e uma briguinha parece ter destruído tudo.
— Liam, estamos trabalhando. — Ela sussurra, se recusando a olhar
nos meus olhos.
— Desculpa, mas eu quero que tudo se dane. Estou enlouquecendo,
Ming.
Nós não estamos dançando, na verdade, mal movemos nossos corpos,
porém, se alguém tentar me tirar daqui, lutarei como se minha vida
dependesse disso.
— É você quem me confunde. — Ela diz, por fim, soltando um
suspiro.
— Se for por aquela mensagem, preciso que entenda que eu mandei
aquilo para a Cassandra.
Ela olha para o meu rosto pela primeira vez desde que estamos
dançando e perco o fôlego com a quão linda ela é.
— Você não quis conversar.
— Eu sei e fui um idiota.
— Isso não importa realmente. — Ela observa as pessoas à nossa
volta discretamente.
— O que importa, então?
— Você me deu um fora.
Perco o equilíbrio e estanco no lugar, levando uns segundos para
voltar a me mover roboticamente no ritmo da música.
— Do que está falando, Ming?
— De você esfregar na minha cara sobre ter ganhado doces de outra
pessoa e insinuar um possível namoro. — Ela faz uma careta e eu abro um
sorriso, aliviado por ser só isso, ao mesmo tempo em que me estresso por
termos ficado separados por uma coisa tão fácil de resolver.
— Eu pensei que tivesse sido você quem me deu, linda.
Agora é ela quem parece chocada.
— O quê? Por que acharia isso?
— Estavam em frente à porta da minha casa com um bilhete em
mandarim pedindo desculpas, eu só tinha brigado com você e não conheço
muitas pessoas na cidade que falam mandarim.
Ela fecha os olhos com entendimento e apoia o rosto no meu ombro,
soltando um som de decepção.
— O que foi? Escuta, se for algo comigo... tudo bem, você não é
obrigada a ficar comigo.
— Foi o Gui, filho da Pamela. Ele me fez escrever um bilhete para
uma amiga da escola e colocou junto com os doces que levei para ele.
A puxo para mais perto de mim, e apesar de estarmos entretidos em
uma conversa importante, minha atenção se divide entre o salão e ela,
garantindo que tudo está certo.
— Em pensar que ficamos tanto tempo afastados...
— Eu jurava que você era um cafajeste e que tinha namorada.
— Eu nunca faria isso com você, linda.
Ela continua com o rosto em meu ombro, ainda a guio pela pista de
dança e tudo parece infinitamente mais leve enquanto aproveitamos uma
festa a qual não fomos convidados, e usufruímos de uma reconciliação que
ainda não tirou o peso do meu peito, já que não sei se ela ainda vai querer
ser beijada no fim da noite.

Ela estaciona o carro abaixo de uma árvore e observamos a Sra.


Rodrigues entrar em sua floricultura, ela parece cansada por ter ficado tanto
tempo em uma festa, além de triste, pelo que imagino ser o fato de que uma
das netas não está mais aqui. Enquanto Ming e eu paramos aqui, Felipe e
Eduardo continuam seguindo o carro da Carmen e do marido, ambos
encarregados de fazer a proteção dos dois.
A festa pareceu ter durado uma eternidade e afrouxo a gravata,
respirando fundo. O clima está infinitamente mais ameno e sinto meu
coração bater sem tanta pressão. Antes parecia que ia morrer a cada batida,
e agora é como se estivesse livre de amarras.
Viro a cabeça levemente para o banco do motorista. Ming está com as
mãos no volante, o penteado na lateral do seu cabelo me permitindo ver
melhor o seu rosto, o vestido revelador deixa exposta a sua perna inteira e
não consigo resistir, minha mão vai de encontro à sua pele clara, os dedos
apertando a coxa que já envolveu meus quadris enquanto a comia, a mesma
que ficou me tentando a noite inteira.
Meus dedos sentem a cinta-liga e sei que isso é um coldre escondido,
eu vi com meus próprios olhos, e a ideia de perigo, de mulher perigosa, faz
meu pau pulsar na calça.
Ela me observa, e o calor que encontro em seus olhos me faz perder o
fôlego, por um tempo, cheguei a pensar que ela nunca mais me olharia
desse jeito.
A maneira como ela faz meu corpo reagir me deixa deslumbrado,
tanto que quase esqueço de onde estamos. Não tem muito movimento na
casa da Sra. Rodrigues, umas duas luzes se acenderam, ficaram assim por
um tempo e depois se apagaram. Ela está dormindo e não há ninguém
suspeito rondando a casa, sem falar que antes de ela chegar, fizemos o
Paulo vir mais cedo e averiguar a casa, já que a Carmen me pediu para não
mencionar nada disso para a avó. Segundo ela, a Sra. Rodrigues já está
abalada o suficiente pela morte da Ana Luíza.
Ming e eu não falamos sobre a conversa que tivemos enquanto
achávamos que estávamos dançando, Felipe disse que parecíamos dois
retardados na pista, ele não faz ideia de que naquele momento
conversávamos sobre algo que precisava ser esclarecido.
As coisas estão andando rumo a algo que eu gosto, a sensação é boa.
Ela não soa mais furiosa ou fria, eu não me sinto injustiçado e magoado.
Esse é o poder de uma boa conversa.
Ela não afasta minha mão, na verdade, me observa com o mesmo
desejo que eu sinto por ela agora.
Nunca imaginei que ela usaria um vestido assim e ainda me sinto
desnorteado. Vê-la em uma roupa tão sexy foi o mesmo de ser nocauteado.
— Você está me distraindo. — Ela diz baixinho e sua voz é como
mel.
— Desculpa.
Meus dedos sobem um pouco mais pela fenda aberta demais.
— Liam. — É um aviso e sinto meu pau aprovar o timbre levemente
rouco, levemente rendido.
— Estava com saudades, linda.
Sinto o corpo dela ceder ao meu toque, derretendo no banco, suas
mãos soltam o volante e ela se vira parcialmente em minha direção.
— A culpa foi sua.
Faço um biquinho, minha mão subindo ainda mais.
O vestido dela é praticamente todo aberto e sei que se subir só mais
um centímetro, vou sentir a calcinha vermelha que a vi vestindo mais cedo.
— Você escolheu esse vestido pra me enlouquecer?
— Eu te deixo louco sem precisar de um vestido de gala, Liam.
Abro um sorriso e meus dedos finalmente alcançam a calcinha
rendada que está gravada na minha mente.
— Eu sinto que tenho o mesmo poder sobre você.
Seus olhos se fecham, os lábios entreabrem, a cabeça cai para trás e as
pernas se abrem ligeiramente. Vê-la assim é a coisa mais deliciosa e
prazerosa do mundo, passaria mil anos tocando essa mulher, principalmente
se a reação dela fosse essa com um simples roçar de dedos.
Eu ainda nem fiz nada e ela já está entregue, consigo sentir a umidade
pelo tecido e fico maluco ao saber que ela aprecia tanto assim o meu toque.
Olho para baixo, parando um momento para apreciar seus seios
subindo e descendo com a respiração rápida, então meu olhar recai sobre a
cinta-liga, agora o vestido dela cobre somente uma perna e encaro a arma
presa no coldre da perna exposta.
— Eu adoro te ver toda sexy e perigosa.
— A Sra. Rodrigues...
— Está dormindo. — A interrompo, me inclinando para beijar seu
pescoço. — Aproveita, eu estou de olho em tudo.
Pressiono seu clitóris por cima da calcinha e ela solta um resmungo,
uma perna tremendo e se abrindo ainda mais.
O vestido dela a impede de ficar ainda mais exposta para mim, então
o subo até a cintura dela, o tecido é leve e macio, então não tenho
dificuldades em deixar suas duas pernas à mostra.
Lambo os lábios ao ver a cinta-liga vermelha subindo até a calcinha
da mesma cor, envolvendo sua pele clara e a tornando a mulher mais
perfeita do mundo inteiro.
Caralho, eu gosto demais dela. Gosto tanto que não consigo mais me
imaginar passando um dia sequer longe.
— Me promete que nunca mais vai me deixar, Ming — peço baixinho
em seu ouvido e ela ergue uma mão, envolvendo as unhas nos meus
cabelos.
Solto um grunhido só porque sei que ela fica ainda mais excitada com
sons. Seu corpo se arrepia e a escuto sussurrar meu nome.
— Promete pra mim, linda.
Meus dedos se movem pela bocetinha, acariciando os pontos que a
deixam fervendo por mim.
— Eu prometo. — Ela murmura em meio a um gemido e chupo um
ponto em seu pescoço, a fazendo arquear em minha direção.
— Diz que também sentiu minha falta.
Seus dedos apertam mais meus cabelos, a ponto de me deixar com
uma dor gostosa.
— Eu senti. — Ela praticamente choraminga.
— Diz que daria essa bocetinha para mim aqui e agora.
Ela geme.
— Diz, Ming — ordeno, me sentindo eufórico com esse joguinho.
— Eu daria. — Ela suspira. — O que você quiser, Liam.
Afasto minha mão e volto a me recostar no meu banco,
instantaneamente ela abre os olhos.
— Por que parou?
Solto uma risada enquanto afrouxo a gravata e removo o paletó do
terno preto.
— Não quero te fazer gozar.
— O quê? — Ela parece chateada e estico uma mão, desenhando seu
queixo com um dedo.
— Se quiser gozar, vai ter que fazer sozinha.
Ela começa a levar os dedos em direção à calcinha, toda abusada e a
impeço, negando com a cabeça.
— Mas você disse...
— Sem usar as mãos — murmuro e reclino meu banco até ter certeza
de que vamos ficar confortáveis. — Se quer gozar, vai ter que fazer isso se
esfregando no meu pau.
Seus olhos baixam para minha ereção e arqueio uma sobrancelha para
ela, a desafiando a vir.
Ela morde o lábio inferior antes de desafivelar o cinto que ainda a
mantinha presa em seu banco.
Termino de abrir minha gravata e é o tempo para ela apoiar uma mão
no meu peito e passar uma perna pelas minhas, me montando.
Solto um grunhido assim que ela pressiona meu pau com a boceta
melada. Uma das suas pernas mais uma vez está coberta pelo vestido e o
puxo para cima, dando um tapa na sua coxa.
— Rebola — ordeno e ela começa a se mover em busca do próprio
prazer.
A assisto jogar a cabeça para trás, apertar as unhas na minha camisa e
rebolar cada vez mais depressa no meu pau.
— Tá gostoso, safada? — pergunto, dando outro tapa na sua bunda.
Ela geme baixinho, quase como se tentasse se conter, como se sua
mente mesmo inundada de prazer, ainda recordasse de onde estamos. Não é
isso que quero, meu desejo é que ela se esqueça da porra das pessoas que
poderiam a ouvir.
Envolvo uma mão na sua garganta, a puxando para perto da minha
boca.
— Quero que gema alto — ordeno, impulsionando meu quadril em
sua direção. — Não consigo te ouvir assim.
— As pessoas...
— Foda-se! — Não a deixo terminar. — Geme para mim como a
minha putinha.
Sinto mais do que vejo sua perna tremer, ela gosta disso, gosta que eu
domine a situação. Mordisco seu queixo, satisfeito por ela topar tudo que eu
lhe proponho.
— Você gosta de ser tratada como uma putinha?
Ela assente, seu olhar se prendendo ao meu.
Seus quadris fazem um movimento, pressionando com força e solto
um rosnado.
— Porra, que delícia.
— Liam. — Ela geme meu nome.
— Hmm?
— Eu não consigo... — Seus olhos se fecham, o suor se acumulando
em sua pele. — Não consigo gozar assim.
Lambo os lábios.
— Quer mais?
Ela concorda e seus dedos começam a desfazer os botões da minha
camisa, quando termina, ela arranha meu peitoral, deixando minha pele toda
arrepiada.
Estou contemplando seus movimentos, admirando seu corpo entregue
e todo sensual perdendo o controle.
Pressiono seu clitóris com um dedo, olhando para baixo. Ela já
molhou minha calça com sua umidade e meu pau tá quase explodindo lá
dentro.
Controlo a respiração, agarrando seu quadril e a mantenho parada por
um instante.
— Porra, Ming — murmuro, ofegante. — Estou quase gozando.
Vejo uma algema do lado da minha porta e abro um sorriso devasso.
Deixo-a voltar a rebolar em mim, e estico a mão, pegando a algema.
Ela percebe o que estou segurando e franze a testa, parando de se
mexer.
— Liam...
— Coloca as mãos para trás.
Ela parece chocada, e por um instante penso que esse é o seu limite,
mas ela me obedece, levando as mãos atrás das costas.
Prendo as algemas nos seus pulsos.
— Agora você tem o direito de permanecer calada.
Ela se inclina em minha direção, quase me beijando.
— Eu senti falta desse sorriso — murmura e meu coração acelera
ferozmente.
— Ming.
— Senti falta de como seu rosto se transforma de fofo para tarado
quando estamos assim.
Ela está querendo me desestabilizar e se for isso mesmo, está
conseguindo.
Meu corpo relaxa no banco e ela lentamente volta a se mover.
— Senti falta do seu corpo e da sua boca, principalmente da sua boca.
Solto uma risada ao entender seu olhar malicioso.
— Eu acho que criei um monstro.
Ela sorri e me dá um selinho, me fazendo buscar por mais.
— Liam... — Ela suspira e franze a testa. — Eu preciso de mais.
Abro o botão da minha calça e desço o zíper.
Ela me assiste tirar o pau para fora e lambe os lábios como se também
tivesse sentido falta de me chupar.
Caralho, eu morreria para ganhar outra chupada dela,
principalmente se ficasse me perguntando qual a sensação de ter sua boca
em mim, como se não fizesse ideia de que é o paraíso.
Abro a carteira e tiro a camisinha que coloquei nela depois do dia em
que me deixou de pau duro na sala de evidências. Desde aquele dia estou
paranoico sobre comê-la em qualquer lugar, sempre que ela quisesse.
Coloco a camisinha e ela morde o lábio inferior.
— Eu tinha esquecido de como você é grande.
— Vou cuidar para nunca mais esquecer — sussurro, segurando sua
bunda e a puxando para perto.
Ela roça a boceta na cabeça do meu pau e o seguro, mantendo-o
parado para ela se esfregar o quanto quiser. A calcinha atrapalha um pouco,
mesmo assim, é delicioso sentir seu calor.
Ela perde o compasso da respiração e quando sinto que está molhada
o suficiente, afasto a calcinha dela com um dedo e posiciono meu pau na
sua entrada escorregadia.
Ming está fodidamente molhada e quando começo a penetrar, a sinto
estupidamente quente.
Entreabro a boca em um gemido mudo e ela solta um resfolegar,
franzindo a testa.
Nunca estive com uma mulher tão apertada assim, tão gostosa assim.
É quase demais para suportar.
— Ai! — Ela geme quando a abaixo, a penetrando até o talo.
— Dói? — Beijo seu pescoço, lambendo a pele macia.
— Um pouco. — Ela sussurra e sua boceta se contrai quase me
fazendo gozar.
— Caralho, linda — grunhi, apertando suas coxas. — Consegue
rebolar?
Ela se move e faz uma expressão de dor.
Enquanto estou me contorcendo de prazer, ela parece levemente
desconfortável, quase como se essa fosse sua primeira vez.
— Quer parar? — pergunto baixinho, mesmo que isso vá me matar.
Ela nega, subindo e descendo uma vez.
Arfo, ela geme e iniciamos um ritmo lento. Acaricio toda sua pele, a
beijo e a forço a acelerar os movimentos, segurando sua bunda e a ajudando
a me cavalgar.
Ela está barulhenta, não mais temendo que alguém nos veja e eu amo
isso. Os vidros do carro estão embaçados, e o som de pele contra pele me
faz quase ter um colapso.
Estou rangendo os dentes para não gozar, cada músculo tensionado.
Ming se inclina e lambe uma gota de suor que escorre pelo meu
pescoço, aproveitando para morder com força.
A dor se mescla ao prazer e solto um gemido longo, a apertando
contra mim.
— Gostosa demais — balbucio. — Isso, porra. Que delícia, linda.
Seu quadril continua subindo e descendo, a pele toda suada e o cabelo
todo bagunçado. Eu desmanchei toda sua produção e isso me deixa feliz pra
caralho. Sei que ela se vestiu para mim, mesmo que não admita.
Agarro seus cabelos, beijando sua boca por tanto tempo que perdemos
o fôlego.
— Acho que vou gozar. — Ela murmura, rebolando tanto que não
consigo mais me segurar.
Começo a estimular seu clitóris, desesperado para ela gozar junto
comigo.
Meu corpo tensiona, o pau pulsa, e assim que ela senta com força,
parando de se mover, nós dois gozamos, ela soltando um gemido alto e eu
um grunhido rouco.
Porra, ela é a mulher da minha vida.
MING
Acordo com o som da campainha tocando, mas o corpo está tão
relaxado que nem me movo.
— Liam, atende a porta — balbucio, não tendo resposta.
Demoro um momento para me dar conta de que não estou sentindo o
corpo do Liam, ele sempre me segue quando me movo no colchão, nunca
deixando nosso abraço se desfazer mesmo em sonho.
Pisco os olhos.
— Liam? A porta.
Me viro quando não tem resposta, a cama está vazia e ao colocar a
mão no colchão, percebo que está gelada também. Ele saiu faz um tempo.
Pego o celular, são 4h30min, quem em sã consciência bate à porta de
alguém nesse horário? A menos que a pessoa saiba que um policial mora
aqui.
Saio de debaixo das cobertas, vestindo minhas roupas que deixei aqui
antes da festa. Faz poucas horas que voltamos para a casa dele e o Pedro
tomou o nosso posto, já que foi o único que não passou a noite acordado.
Eduardo e Felipe continuaram no turno por mais um tempo, para que
o Paulo tivesse tempo para descansar antes de voltar ao trabalho. Liam e eu
não descansamos muito, uma hora no máximo, quer dizer, eu devo ter
dormido esse tempo, ele, já não sei.
Desço as escadas correndo e abro a porta da frente, dando de cara
com um Pedro um tanto preocupado.
— O que você está fazendo aqui? — Ele me pergunta e esfrego os
olhos. — Quer saber, esquece. Cadê o Liam?
— Não sei.
— O quê?
Ele me encara de um jeito estranho e fico tensa.
— Não sei onde ele está, estava dormindo e ele não parece estar aqui,
senão teria vindo te receber antes.
Ele esfrega o rosto com as mãos.
— Fico feliz que tenham feito as pazes.
— Obrigada.
— Já estava mesmo imaginando o clima estranho que ficaria quando
fôssemos te acordar.
— Entendi.
Ele continua se movendo de maneira frenética e falando coisas sem
sentido, nunca chegando ao ponto em que explica o motivo de ter saído do
seu turno e vindo até aqui quatro horas da madrugada.
— Pedro. — Ele me encara. — O que aconteceu?
Seus olhos se arregalam e ele me puxa pela mão.
— Temos que ir. — Consigo fechar a porta antes de sair. — A casa da
Sra. Rodrigues estava muito quieta, então decidi ver como o Felipe e o
Eduardo estavam, mas nenhum atendeu.
Estanco no lugar, agora assustada com o que ele vai dizer.
— Pedro.
Ele se vira para mim.
— Eu fui até lá e encontrei Felipe e Eduardo inconscientes, ambos
muito machucados.
Meu coração acelera, porque já imagino o que ele vai dizer.
— Eram 3h30min. — Ele continua dizendo. — Ainda estava
cuidando deles quando a Carmen apareceu morta em frente à sua loja,
4h20min.
— Droga!
— Não consigo resolver tudo sozinho e... onde caralhos o Liam se
enfiou?
— Você precisa ir para a cena do crime, vou pegar meu celular e
escovar os dentes, te encontro lá em dez minutos.
Ele assente, parecendo aliviado por alguém estar tomando a frente e
lhe dizendo o que fazer, como se só conseguisse executar algo bem se a
ideia não viesse da sua mente.
— O Felipe e o Eduardo estão bem?
— Eduardo quebrou um braço. O Felipe só parece ter levado muitos
murros. Ambos estão no hospital, mas sem ferimentos realmente graves.
— Ok, precisa reportar o assassinato, precisamos da perícia.
Ele assente mais uma vez.
— Não demora, Ming. E dê um jeito de achar seu namorado.
Não questiono, apenas seguimos para lados diferentes, prontos para
cada um fazer sua parte.
Eu não quero deixar a desconfiança me dominar, mas não consigo
parar de pensar no quão estranho é o Liam ter desaparecido justo agora.

O Liam não atendeu o telefone, então eu quem fui até a cena do


crime. Pela primeira vez desde que entrei nessa delegacia, vi um corpo.
Carmen estava exatamente como as fotos das outras vítimas e, por um
momento, entendi o motivo do Liam ter relutado por me deixar ver um de
perto. Fede muito e todo esse sangue me faz pensar na Fang.
Ela ainda está com um enforca-gato no pescoço e dessa vez a
mensagem foi cortada em sua testa com a palavra: TIC-TAC.
As cenas parecem tão limpas quanto as anteriores e, pelo olhar dos
peritos, mais uma vez não teremos evidências.
Minha cabeça está doendo e a raiva me faz querer gritar.
O marido da Carmen também está no hospital por uma pancada na
cabeça que precisou de pontos, e eu não consigo entender como uma única
pessoa conseguiu derrubar três homens e levar uma mulher. Ele teve quanto
tempo para matá-la? Dez, vinte minutos?
Ele a levou com vida ou a matou ali mesmo? Pela quantidade de
sangue encontrado na casa dos recém-casados, tudo é possível.
O dia clareia e escurece tão rápido que não sei o que fiz por tantas
horas, fui para a delegacia depois que levaram o corpo da Carmen e encarei
o quadro com os dados do caso pelo que pareceram séculos.
O turno da manhã entrou e saiu sem que eu me movesse, não comi
nem bebi nada, só encarei aquele maldito quadro.
Não entendo onde estou errando, e ver o corpo da Carmen me fez
reavivar o dia em que encontrei o da minha irmã. Eu cheguei a ver as outras
vítimas de longe, mas não era a mesma coisa, dessa vez pude sentir até o
cheiro fétido, e era exatamente o mesmo do corpo da Fang.
Não mexi no celular, não vi se o Pedro estava comigo na cena do
crime ou na delegacia, tenho a impressão de ter ouvido a voz dele em algum
momento, dizendo o nome do Liam, porém, não posso confirmar com
certeza.
— Ming?
Olho para o Eduardo, ele está com um braço engessado e com cortes
no rosto.
— O que está fazendo aqui? — pergunto, a voz vazia de emoção.
— Fiquei preocupado, o Pedro disse que você não quis nem comer e
que está aqui desde madrugada.
— Eu não entendo o que está errado.
Ele se senta ao meu lado quando cubro a cabeça com as mãos.
— Onde está o seu namorado? — O rancor em sua voz me faz
estremecer e ele modera o timbre ao continuar: — Ming, eu sei que você
confia nele, mas ele foi o único a não estar presente dessa vez.
— Não pode o culpar por estar ausente um dia.
— Ele desapareceu! Não atende o telefone, ninguém sabe para onde
ele foi, nem mesmo a namorada que dormia ao lado dele.
— Edu...
— Pensa comigo, quando foi que ele saiu?
— Não sei, mas devia ter um tempo.
— Vocês chegaram à casa dele às 3h da madrugada, suponhamos que
tenham dormido, você acordou 4h e...
— 30min — respondo cansada quando ele espera pela resposta.
— Tempo o bastante para ele desaparecer, eu e o Felipe sermos
nocauteados e uma pessoa ser morta.
Solto uma risada histérica. Ele está vendo o quanto estou cansada?
Esse é mesmo o momento para ele querer me jogar contra o Liam só porque
não conseguiu o que deseja?
Quero gritar que estou me fodendo, mas nem isso o cansaço me
permite.
— Acho que o Liam é o nosso cara.
— Não.
— Sim, ele é suspeito! Nunca deixa a gente tocar em nada que possa
nos levar mais perto do assassino.
Isso até podia ser verdade no começo, mas ele me deixou ter acesso
depois.
— Quem fez isso também cometeu os assassinatos de anos atrás,
Liam não morava aqui, ele fazia intercâmbio na China — justifico, só para
ele parar de encher o saco.
Edu fica me encarando por um bom tempo, parece estar processando
minhas palavras.
— Ming, você não sabe mesmo? — Ele nega com a cabeça. — O
Liam morava aqui quando estávamos no ensino médio, eles moravam do
outro lado da cidade.
— Mas ele estava no intercâmbio.
— Não, não estava. Ele... ele era um esquisitão que mal saía de casa.
— O quê? Como sabe disso?
O choque está estampado em minha voz, sinto meu peito amortecer
com a notícia.
Não pode ser, ele não pode... não!
— Meu irmão conhecia o Liam, ele vivia indo para o outro lado da
cidade ficar com o amigo. Teve uma época que pensei que os dois estavam
namorando.
Ele dá uma risada amarga e parece prestes a continuar, porém, o alvo
das suas acusações finalmente entra no nosso setor.
Liam está com um olhar diferente, preocupado eu diria. Nunca o vi
com essa expressão de cansaço e dor ao mesmo tempo, quase como se
tivesse feito algo terrível.
Balanço a cabeça, tentando não deixar as palavras do Eduardo
contaminarem a confiança que tenho nesse homem. Ele está errado, tenho
certeza. Liam nunca mataria uma pessoa, piorou sete.
— Pensa no que te falei, Ming. E se não acreditar em mim, apenas
tome cuidado.
Eduardo se levanta no instante em que o olhar do Liam se volta para
nós, ele franze a testa e a expressão de dor se aprofunda.
Ele vem em minha direção, se sentando na cadeira que o Eduardo
estava antes.
— Linda. — Seus dedos seguram meu rosto. — Me desculpa por não
ter estado aqui, você está bem?
Concordo com a cabeça, mas sinto a bile se alojar na minha garganta
e os olhos se encherem de lágrimas.
— Eu devia ter estado aqui. — Ele sussurra, afastando meu cabelo. —
Você não devia ter visto aquilo.
— Eu queria. — Consigo murmurar, mesmo não tendo mais tanta
certeza das minhas palavras.
— Ninguém quer ver esse tipo de coisa, amor.
Minha mente recria a cena do corpo da Fang na cachoeira sem aviso
prévio e me encolho, odiando estar sendo fraca sobre isso, eu sabia que
precisaria ser forte.
Seja corajosa, Ming.
— Onde você estava, Liam?
Ele abaixa os olhos e respiro de maneira difícil quando ele não me
responde.
— Eu sei que falhei com você.
— Não falhou, você não faz ideia. Isso não foi nada. — Minha voz se
torna defensiva. — Eu já vi coisas piores.
— É por isso que não fez mais nada além de encarar aquele quadro
por horas?
— Como você...
— O Pedro conseguiu falar comigo.
Meu lábio inferior treme, sinto minhas mãos instáveis e minha pele
fria. É loucura ter um gatilho com isso depois de ter preparado tanto a
minha mente. Como posso ser uma inspetora se não aguento ver um corpo?
— Quero que se abra comigo, linda.
— Acho que estou no meu limite. — Abaixo a cabeça nas mãos
quando a sinto pesada demais.
Ele ergue meu queixo.
— Talvez conversar alivie. — Seus dedos são gentis e não consigo
imaginar essas mãos ferindo alguém. — Divide esse peso comigo, me deixa
estar com você. Só confie em mim.
Até parece que ele sabe sobre o que o Eduardo estava tentando
colocar na minha cabeça.
Ele não é assim, o Liam não é um serial killer, ninguém teria uma
mente tão doentia.
— A minha irmã morreu — balbucio e ele assente.
— Eu sei, linda.
— Eu ainda tenho pesadelos com isso, de vez em quando.
Ele fica em silêncio, os dedos acariciando minha pele.
— As pessoas sabem que ela morreu e dizem que a culpa é dela por
ser horrível. — Meus olhos piscam com as lágrimas querendo surgir. — As
pessoas me atacam por defendê-la, mas ela era minha irmã.
— Eu sei, princesa. Você fez o que tinha que ser feito pela família.
— Ninguém faz ideia, eles acham que sabem, mas não fazem ideia de
como ela estava...
As lágrimas escorrem e tento controlar, mas a represa já foi aberta e
não é mais possível fazer nada para impedir, ele me abraça com força e
meus ombros tremem.
— Estou aqui, deixa a dor sair, eu vou continuar aqui com você.
— Foi eu quem a encontrou, Liam — soluço, agradecendo por Pedro
e Eduardo não estarem mais por perto para me ver assim. — E às vezes eu
não consigo me lembrar de como minha irmã era antes da pele arroxeada e
dos hematomas. Essa imagem não sai da minha cabeça.
Seus braços me apertam ainda mais e me conforto com o calor da sua
pele.
— Queria ter o poder de mudar o passado e impedir que isso
acontecesse com você.
Inalo seu perfume, apoiando o rosto no seu peito.
Por favor, que o Eduardo esteja errado.
A culpa me corrói quando uma voz no meu subconsciente continua se
perguntando o motivo de ele não ter me respondido para onde foi durante o
assassinato da Carmen.
Não consegui ignorar a desconfiança, e sei que o Liam vai me odiar
se descobrir, eu já me odeio. É um sentimento amargo e doloroso, porque
meu coração é desse homem e se ele for o assassino, então, o que vai restar
de mim depois desse caso?
Fang levou metade do meu coração e estou com o pressentimento de
que Liam levará a outra metade.
Ele não justificou seu sumiço repentino, mas seus olhos estão
abalados, tristes. Eu quero descobrir o motivo, quero entender em qual
momento deixei isso passar por mim.
Você se encantou por ele desde o começo.
Isso é uma espécie de brincadeira do destino? Se for verdade, eu serei
capaz de continuar com a minha sede de vingança?
Abaixo o boné ainda mais na cabeça, subo a toca do moletom que eu
não devolvi junto com o carro alugado.
Faz dois dias que estou o seguindo, sem descobrir nada. Ele não faz
nada estranho, quando não está comigo, está planejando como vai passar
seu tempo comigo. Só sei disso porque o segui até o mercado, o vi fazer
compras, depois ir à floricultura e comprar flores, algumas horas depois, eu
estava jantando a comida que ele comprou e ganhando flores.
Me sinto cada vez mais cretina, mas hoje foi diferente, acordei no
momento em que ele vestia uma roupa. Era exatamente o mesmo horário
em que o assassinato da Carmen aconteceu e agora estou com o coração
acelerado enquanto o sigo por ruas escuras.
Dessa vez ele está a pé e tenho a impressão de que não queria me
acordar quando estivesse tirando o carro da garagem.
Já estou cansada enquanto ele percorre a cidade, as mãos nos bolsos e
passos calmos. Em certo momento, ele para de andar e me escondo atrás de
uma árvore. Sua cabeça vira levemente de lado e tenho a impressão de que
está sorrindo quando volta a andar mais uma vez.
— Seja corajosa, Ming — murmuro quando a desconfiança me faz
querer parar de segui-lo e viver nessa fantasia para sempre.
Não quero descobrir que ele é, na verdade, um homem ruim. Meu
coração se partiria.
Espero ele virar a esquina do beco para sair do meu esconderijo e
voltar a andar, porém, assim que também faço a curva, esbarro nele, que
está apoiado na parede com os pés cruzados em frente ao corpo.
Levo um susto e abaixo a cabeça para ele não ver meu rosto, finjo que
vou passar por ele, mas sua mão segura minha toca, puxando para baixo.
— Não entendi. Fiquei curioso nos últimos dias, mas agora só estou
chateado. — Ele diz e meu corpo tensiona.
Se ele sabia que eu estava atrás dele, então é lógico que não faria nada
suspeito.
Liam me puxa para trás e acabo com as costas apoiada na parede que
ele estava segundos atrás. Seus olhos estão mais escuros ao parar diante de
mim, me prendendo contra o concreto gelado.
Continuo com a cabeça baixa, ainda tendo esperança de que ele não
me reconheça.
— Me perguntei: será que isso é algum jogo dela? Será que ela está
tentando descobrir se eu saio com outras mulheres? Estranho, mas não
duvidaria vindo de você. — Quero socá-lo por essas palavras, mas me
contenho. — Então pensei que não seria isso, se fosse o caso de ciúmes por
alguma coisa, você surtaria de novo.
Abro a boca para dizer que não sou surtada, porém, não falo nada.
— Então o que é? — Ele questiona, a voz levemente irritada.
O silêncio recai na rua muito suspeita e ele espera por um tempo antes
de se inclinar em minha direção e bater o dedo no meu boné, o fazendo
subir o suficiente para quase cair da minha cabeça.
— Você ainda acha que não sei quem você é? — Ele se inclina mais,
agora olhando no fundo dos meus olhos. — Achou mesmo que não
reconheceria a minha garota?
— Me acha surtada? — Fico surpresa por ser isso que sai da minha
boca quando finalmente decido falar.
— Totalmente surtada. — Dou um soco no seu braço e ele sorri. —
Mas relaxa, eu gosto.
As reações exageradas começam a se apossar do meu corpo, são os
mesmos sintomas que ele sempre me faz sentir e que são os responsáveis
por minha mente não querer aceitar a possibilidade de ele ser um serial
killer, mas agora, ele só está parecendo mais suspeito.
— Por que não me avisou que ia sair? Por que esse horário?
Ele fica tenso, mas continua sorrindo, apesar de parecer forçado.
— Já que está aqui, se interessa em conhecer o parceiro mais próximo
do diabo?
— O quê?
— Brincadeira, é só o meu pai.
Ele segura minha mão e começa a me arrastar, mas é claro que
resisto.
— Liam, não!
— Tarde demais, quem mandou me perseguir? É seu castigo.
— Liam!
Ele continua me puxando para fora do beco e meus olhos estão
arregalados. Ele fugiu mais uma vez das minhas perguntas, não que isso
importe mais, agora estou desesperada.
Quem conhece o pai do cara que gosta de madrugada? Pior, vestida
de homem?
LIAM
Abro a porta da casa do meu pai, está tudo escuro, mas sei que ele
está acordado, já que foi ele quem me ligou. Ultimamente sinto que as
coisas estão mais difíceis, sei disso porque sempre que o vejo, tenho
vontade de chorar.
Ele não se parece em nada com o homem forte de quando eu era
criança e ultimamente penso muito que talvez isso seja por saudades da
Cassandra. Ele não admite nunca, mas às vezes tenho a sensação de que o
arrependimento o corrói, principalmente quando chegamos perto da data
que minha mãe morreu, quase como se a mamãe viesse e puxasse sua
orelha por ser um velho cabeça-dura.
Ming está escondida atrás de mim, sendo um lembrete do sentimento
ruim que está no meu peito desde o momento que começou a me seguir
para todo lado.
Meu pai aparece na porta da sala, apenas uma sombra no escuro.
Trevo vem atrás dele, latindo como se estivesse me xingando por tê-lo
deixado esse tempo todo nessa escuridão. Já não sei se foi uma boa ideia
trazer a Ming aqui.
— Boa noite, pai. Como foi seu dia com o Trevo?
— Nunca mais quero esse cachorro pulguento aqui, ele quebrou todas
as minhas coisas! — Meu pai exclama, ainda sem fazer esforço para
acender a luz.
Fico desconfortável, mas me esforço para sorrir.
— Você o levou para passear?
— Por que eu faria isso?
— Pai, o senhor saiu de casa?
A luz se acende de repente e meu pai olha para trás de mim, onde a
Ming ainda está com a mão no interruptor.
— Quem é essa?
Meu sorriso se torna sincero ao ver o desespero no rosto dela, é uma
das raras vezes em que vejo suas bochechas ganharem uma tonalidade
vermelha sem ser de prazer. Nem mesmo quando estava perdendo a
virgindade ela ficou tímida.
— Essa é a Ming.
Ela dá um passo à frente e estende a mão ao escutar seu nome.
Meu pai olha para o rosto dela, até que seus olhos se arregalam.
— Essa é... por que trouxe ela aqui?
— Porque ela é minha namorada — respondo com toda calma do
mundo e tanto a Ming quanto meu pai me olham com os olhos arregalados.
— O quê? — perguntam em uníssono, estão trocando olhares de
novo.
— Você não sabia? — Meu pai pergunta para ela e cruzo os braços,
esperando pela resposta engraçadinha que ela vai dar.
— Estou descobrindo agora.
Estreito os olhos.
Quando a gente chegar em casa...
— Isso são modos, Liam? É assim que se pede uma mulher em
namoro?
Trinco o maxilar, pensando nas maneiras deliciosas em que vou
castigar essa danadinha.
— É brincadeira, pai. Ela é uma amiga — provoco, vendo o brilho
dela desaparecer no mesmo instante.
Não é divertido, princesa? Continua, estou achando hilário.
— Ela é a inspetora. — Meu pai aponta um dedo para ela.
— Sim.
— Não foi uma pergunta, moleque.
O velho ranzinza dá as costas para nós e vai para o sofá, Trevo saltita
para o lado da Ming.
— Não sabia que somos namorados? — questiono, imitando a voz
dela.
— E esse papo de amiga? — Ela devolve e eu bufo, revirando os
olhos.
Seguimos meu pai e acendo a luz da sala, mais uma vez voltando a
me preocupar.
— Pai, você esqueceu como ser hospitaleiro?
— Por que quer namorar com ela? — Ele questiona. — Ela parece
um garoto, não gostei dela.
— Só para o senhor saber, eu também não fui com sua cara. — Ming
cruza os braços e se senta no sofá de frente para o meu pai, não mais
nervosa com a apresentação. Agora ela parece puta da vida. — E o sujo não
pode falar do mal lavado.
Tampo a boca para meu pai não escutar minha risada, porque ela foi
certeira ao usar a palavra “sujo”, meu pai parece um mendigo com essas
roupas de casa largadas.
— E é mal-educada! — Meu pai exclama, mais uma vez apontando
para ela.
— O senhor também, e eu não estou apontando seus defeitos. — Ela
encara meu pai nos olhos e é a primeira pessoa a desafiá-lo depois da
Cassandra. Meu coração acelera. — Quem não oferece um café para as
visitas?
— Quem visita alguém de madrugada? — Meu pai rebate.
— Eu tenho culpa se seu filho é esquisitão?
— Ei! — reclamo, estava tudo certo até me meterem na confusão.
— Quieto! — Os dois ordenam, se virando para mim ao mesmo
tempo e engulo seco.
Foi uma péssima ideia, dois esquentadinhos em um debate só poderia
resultar em incêndio.
Caminho para perto da Ming e me sento ao lado dela.
— Essa garota é abusada, volte sem ela.
— O senhor é irritante, mesmo assim estou aceitando que vem de
brinde com o Liam. — Ela resmunga e cruza as pernas.
Nunca vi alguém ser tão petulante com meu pai e estou amando isso,
o homem está quase tendo um ataque cardíaco.
— Ming — repreendo e ela vira o rosto para o outro lado, a pele
ficando vermelha pela segunda vez na noite.
— Acha mesmo que vai conseguir controlar essa garota? — Meu pai
pergunta e dessa vez sou eu a ficar irritado.
— Pai!
— Eu não sou um cachorro, Sr... — Ela espera que meu pai diga seu
nome e ele olha para a estante.
— Vinicius. — Ele responde.
— Vinicius. — Ela testa o nome, então abre um sorriso que conheço
bem, é o mesmo que me lançou no primeiro dia em que nos conhecemos.
— Um nome bonito para alguém tão ranzinza.
Ela tem mesmo moral pra usar essa palavra?
Fica na sua, Liam. Vai sobrar pra você.
— Leva essa menina daqui, Liam! — Meu pai fica de pé e a Ming
nem se mexe.
— Nossa, você definitivamente não puxou o seu pai. — Ela diz e
meus olhos estão esbugalhados.
Eu fiz muito mal em trazê-la aqui, será que é uma vingança dela?
— Que mulherzinha insuportável. — Meu pai resmunga.
Fico estático enquanto os dois discutem fervorosamente até o
momento que vamos embora, por algum motivo, não consegui me
intrometer.
Os dois parecem ter se odiado profundamente e isso não é uma
surpresa, sabia que nunca me apaixonaria por alguém que gostasse do meu
pai. Mesmo assim, sinto que meu pai está mais leve quando passamos pela
porta, como se a discussão o tivesse ajudado a tirar a mente do lugar escuro
em que estava, já que precisou me ligar.

— Me desculpa ter agido daquela forma com seu pai, é só que ele...
A beijo antes que consiga continuar, minha língua invadindo sua boca
enquanto o desejo flui por minhas veias. Estava com vontade de fazer isso
desde o momento em que enfrentou meu velho.
— Aquilo foi foda, Ming — murmuro, afundando os dedos nos seus
cabelos. — Meu pai mereceu.
Suas mãos estão no meu peito, apertando a camisa. Ela está nas
pontas dos pés e quando se impulsiona para o meu colo, subo as escadas de
casa segurando sua bunda.
Amo que ela tenha a mesma fome que eu com apenas um beijo.
Agora sua boquinha está no meu pescoço e quando começo a tirar as
roupas de homem do seu corpo, faço uma nota mental para perguntar sobre
isso para ela depois.
Deixamos uma trilha de roupas até o banheiro, o Trevo correndo atrás
de nós até fecharmos a porta antes que ele entre. Ming está me abraçando
enquanto me beija e ligo o chuveiro, ao mesmo tempo que rasgo sua
calcinha com a outra mão.
Ela solta um som surpreso e parece fascinada, como se gostasse muito
desse tipo de coisa.
— Liam.
Olho em seus olhos e a sensação desses dedos em minha pele são
instigantes e fazem meu corpo responder de maneira muito empolgada.
— Está excitada? — pergunto baixinho, lambendo uma gota de água
que desce pelos seus seios.
Ela apoia as costas na parede, as pernas ainda em volta do meu
quadril. A água escorre por nossas peles, tornando a cena sensual demais.
— Estou. — Ela responde em um sopro.
— Eu vou te comer — aviso, abocanhando um mamilo e chupando
com força.
Ela arqueia as costas e se esfrega em mim, os cabelos estão molhados
e assim que solta as pernas do meu quadril e fica sobre os joelhos, recordo o
dia em que gozei fantasiando com essa mesma cena.
Dessa vez ela começa a me chupar sem aviso prévio, sua boca é
gulosa e macia, do jeitinho que eu pedi aos céus. Minhas pálpebras se
tornam pesadas, mas me recuso a fechar os olhos, ela está gostosa demais
para não ser admirada.
Meu pau entra na sua boca e só essa visão me faz querer gozar.
— Porra, linda! — Solto um grunhido e agarro seus cabelos, a
ajudando nos movimentos. — Vem cá, me deixa te comer.
Assim que ela fica de pé, a viro de costas para mim e a inclino contra
a parede.
— Empina essa bunda pra mim.
Ela obedece e, caralho, eu poderia viver para sempre a comendo
assim.
Estou sem camisinha, porém, a essa altura não considero isso
importante o suficiente para parar agora.
Meu corpo inteiro está retesado de desejo e quando finalmente a
penetro, escuto o gemido suave e feminino que ela solta.
Me inclino para frente e mordo seu ombro antes de murmurar em seu
ouvido:
— Hoje eu vou te foder com força, linda.
Ela rebola em minha direção e deixo que meus olhos se fechem por
um único instante antes de observar o movimento da sua bunda em mim.
Dou um tapa e observo a pele ficando vermelhinha, ela se inclina
ainda mais em minha direção exatamente como aconteceu no carro quando
bati assim. Ela gosta da sensação e é só por isso que dou outro tapa, a
ouvindo gemer mais alto.
— Quero que rebole até merecer gozar depois da sua piadinha —
aviso baixinho e ela solta uma risada debochada, parando de se mover.
— E se eu não quiser?
Seguro seus cabelos e a penetro com força, a fazendo soltar um
gritinho.
— Você sabe que não sou cruel a ponto de deixar minha garota sem
gozar.
Mordo sua pele de novo, a segurando com força enquanto fodo sua
boceta com vontade, a sentindo cada vez mais molhada e ofegante. Estamos
frenéticos em busca do êxtase, ambos alucinados com a sensação do prazer
mais doce e safado que senti na vida.
Quando ela finalmente se desmancha em meus braços, a seguro com
cuidado, saindo de dentro dela e gozando na sua bunda.
Preciso morder o lábio inferior antes de deixar um “eu te amo”
escapar.

MING

Saio do banheiro primeiro, vestindo um roupão. Meu corpo está


dolorido, mas isso me faz lembrar do que fizemos e eu gosto,
principalmente por nunca ter experimentado aquilo antes.
Liam é o homem que me ensina coisas deliciosas.
Sexo é como aprender a comer comida chinesa, depois que pega
gosto, não é possível parar de comer. Ficamos viciados e nos deliciamos em
cada segundo. Vejo o Liam dessa forma também, é muito mais do que o
sexo que a gente faz, cada instante com ele me deixa mais ligada, mais
apaixonada.
Entro no seu quarto e abro o guarda-roupa para pegar uma das suas
camisas, não costumo fazer isso e acho que o Liam não esperava que o
fizesse, porque o que vejo me desestabiliza.
Tropeço para trás, a sensação dilacerante me deixando atordoada.
— Amor, vamos pedir comida? — Liam grita do corredor e meus
olhos se arregalam.
Os batimentos do meu coração parecem ecoar nos ouvidos e me movo
no automático, pegando a arma na cabeceira da cama. A arma é dele, mas
não me importo.
Meus olhos estão cheios de lágrimas a cada respiração, minha mente
continua sussurrando que fui traída pela pessoa que menos esperei.
Eu chorei nos braços dele sobre a minha irmã e enquanto isso...
A dor me atinge com força e estou ofegante. Tudo me volta e parece
fazer sentido, ele dizendo coisas estranhas, se recusando a mostrar os casos
antigos, tentando me tirar do rastro dos assassinatos de anos atrás. Quando
ele me disse que queria voltar no passado e impedir que eu passasse pelo
sofrimento de ver a Fang, quase como se desejasse que ela não tivesse
morrido.
Tudo isso tem uma justificativa, eu criei justificativas para todas as
coisinhas estranhas que ele fez, mas nada pode justificar o que está no seu
guarda-roupa, nada.
Liam aparece na porta e assim que me vê com a arma, franze a testa.
— Ming, o que...
Eu atiro.
Miro no seu coração e disparo com toda raiva que sinto no peito.
Pensei que seria difícil tomar uma decisão caso fosse ele, mas, no fim, a dor
e o coração partido me impulsionaram em direção à vingança ao invés do
contrário, ao menos foi o que pensei.
Ele tenta desviar, mas não consegue fugir completamente e eu vejo o
sangue.
A raiva desaparece, o sofrimento parece se amortecer e tudo dá lugar
ao desespero de saber que acabei de atirar no amor da minha vida, foda-se
que ele é um assassino.
As lágrimas escorrem e ele geme de agonia, caindo contra uma
parede e escorregando até o chão, deixando um rastro vermelho na parede
antes imaculada.
— Sua maluca! — Ele berra e se está falando é porque está tudo bem.
O alívio me domina. — Atirou em mim!
O sangue continua se espalhando e seu rosto pálido me faz
estremecer.
— Me desculpa! — Corro em direção a ele e assim que vê a arma
ainda na minha mão, ele se encolhe. — Ai, meu Deus! — grito, procurando
alguma coisa para estancar o sangramento.
— Por que fez isso? — Ele questiona, a voz mais fraca.
Mesmo baleado, ele ainda tenta me compreender.
Ele é um assassino!
Meu coração se divide em dois e sinto como se estivesse traindo a
Fang, afinal, é uma maluquice amar o assassino dela.
— Seu guarda-roupa — sussurro. — Eu vi as coisas que estão no seu
guarda-roupa.
— Roupas? Atirou em mim por causa de roupas? Não me diga que é
mais uma crise de ciúmes. — Ele começa a tossir e olho para o seu braço,
me perguntando se alguém pode morrer por um ferimento nesse local.
Por que eu não sei disso?
— Acha que sou maluca a esse nível?
— Eu não entendo você. Caralho! Eu estou sangrando! — Agora ele
parece assustado com todo o sangramento, o que só me faz ficar mais
assustada também.
— Eu vi o sapato com sangue! — Grito e ele paralisa. — Vi os
enforca-gatos e vi o soco inglês. Por que você tem essas coisas?
Ele estreita os olhos e seu rosto se torna sombrio.
— O que está insinuando, Ming?
— Onde você estava quando a Carmen morreu? Por que não quis me
dizer?
Ele tensiona o maxilar e vejo a dor nos seus olhos, não é por causa do
ferimento, sinto que minhas palavras parecem machucá-lo mais do que
qualquer tiro. Isso me rasga quase tanto quanto essa desconfiança.
— Acha... — Ele faz uma pausa para respirar de maneira lenta, lenta
demais. — Acha que sou o assassino?
— Você...
— Acha que se fosse a porra do assassino, deixaria as coisas no meu
guarda-roupa? — Ele grita. — Onde a minha namorada inspetora poderia
mexer e encontrar?
Pisco os olhos.
— Liam, você...
— Vá se foder, Ming Yang! — Ele berra, me interrompendo. — Eu
não sou a porra do seu assassino, mesmo que você quisesse que eu fosse!
— Mas as coisas...
— Não são minhas, caralho! — Uma lágrima escorre dos seus olhos.
— Agora entendi o porquê de você ter me seguido.
— Você não me respondeu sobre onde estava na noite que a Carmen
morreu.
Ele fecha os olhos e apoia a cabeça na parede, parece prestes a perder
a consciência e seguro seu rosto, ainda preocupada demais para me lembrar
de que talvez ele tenha matado pessoas.
— Meu pai. — Sua voz soa baixa demais, magoada demais. — Não
quis te contar antes para não te meter na minha família fodida, mas tudo
anda uma merda, Ming. Eu não vejo a minha irmã há muito tempo, meu pai
não quer sair de casa e você o viu hoje, o estado dele.
Mordo o lábio inferior, começando a sentir que cometi um erro.
— Ele me liga de madrugada, quando começou, eu perguntei para ele
o motivo de querer me ver no meio da noite e ele disse que isso o ajudava a
acalmar a solidão.
Meu lábio inferior treme.
— Liam… — Minha voz é quase um pedido de desculpas e ele solta
um suspiro.
— Não que eu vá compartilhar qualquer coisa com você agora.
— Como eu ia saber? O que isso estaria fazendo aqui?
Ele me encara e a fúria volta com força total.
— Tira as mãos de mim, porque nem depois de ser baleado eu
consigo te afastar de mim. — Ele rosna, parece sentir raiva de si mesmo.
Fico de pé, por algum motivo ainda segurando a arma.
Estou confusa e minha mão formiga com o que acabei de fazer.
Volto para o guarda-roupa, as coisas ainda estão lá, mas agora penso
no que ele falou sobre deixar às vistas, é quase como se alguém tivesse
plantado isso aqui para me fazer duvidar dele.
Estreito os olhos ao ver algo dentro do par de tênis ensanguentado e
masculino. Retiro o papel de lá e desdobro, os dedos tremendo ao
compreender o que aconteceu.
“ATÉ QUANDO VAI DESCONFIAR DE QUEM GOSTA DE VOCÊ
ANTES DE CHEGAR EM MIM? APOSTO QUE CONSIGO DESTRUIR
TODOS QUE AMA ANTES DE ME ALCANÇAR. ACHO BOM CORRER,
PEQUENA GUERREIRA.”
Tem o desenho de um coelho espetado por uma espada enquanto sorri
e isso me faz amassar o papel e olhar para o Liam com arrependimento.
Volto para o lado dele, seu rosto está cada vez mais pálido e lhe
entrego uma camisa.
— Pressione isso — murmuro.
Eu mesma o faria, mas ele parece prestes a me estrangular, então
mantenho a distância, é quando escuto um choramingo do Trevo e passos
pesados descendo as escadas. As perguntas de como as coisas foram parar
no guarda-roupa do Liam são respondidas.
Liam deve ver algo no meu rosto, já que seus olhos se arregalam e ele
nega com a cabeça de maneira lenta.
— Não. — Sua voz é um sopro de dor e desespero. — Não, Ming.
— Não se mexe e continua pressionando. — Entrego meu celular na
mão dele. — Liga pra ambulância.
— Ming, não!
Ele segura minha mão e solta um urro de dor, porque foi o braço
machucado, não que a dor o faça me soltar.
— Por favor, linda. — Ele está agonizando. — Não sozinha.
Afasto seus dedos.
— Faça a ligação.
— Porra, Ming! — Ele grita, furioso comigo, mas devia saber eu não
o obedeceria.
Passo pela porta e corro em direção à escada, Trevo está mancando e
sei que o machucaram, o que só faz minha raiva aumentar ao descer os
degraus. A porta está escancarada e quando passo por ela, vejo um Jeep
preto e com insulfilm virando a esquina.
Fui lenta demais.
— Porra! — grito para a rua e apoio a mão que não está segurando a
arma na testa. — Perdi o desgraçado de novo.
Escuto passos atrás de mim e me viro para a escada, Liam está se
arrastando e pingando sangue, provavelmente nem ligou para a ambulância
como pedi.
A culpa é minha.
Corro em sua direção e ele desmorona no instante em que o alcanço,
desmaiando nos meus braços e derrubando nós dois no chão com o seu
peso.
MING
— Minha mulher atirou em mim.
O médico encara o Liam, que está sorrindo de um jeito bem
assustador enquanto me observa.
— O que disse? — O doutor pergunta, tentando esconder a
indignação.
— Aquela mulher linda ali atirou em mim.
Ele aponta em minha direção com o braço bom, ainda estou usando
apenas um roupão ensanguentado, e tentando não soar constrangida com
isso enquanto me apoio na parede.
— Vocês são malucos? — O médico pergunta e é corajoso da parte
dele fazer esse tipo de pergunta quando já tem um homem baleado no
recinto.
— Lá estava eu, prestes a dizer que havia me apaixonado loucamente,
quando ela atirou em mim.
— Meu Deus.
— Isso logo depois que tivemos um momento ardente no meu
chuveiro. — Ele continua contando para o médico e rapidamente me
esqueço do arrependimento, às vezes Liam diz coisas que o fazem merecer
um tiro.
Cara sem noção.
O doutor está vermelho igual um pimentão, em parte surpreso com a
conversa, em parte curioso, ao menos é o que imagino, já que lança olhares
para o meu roupão de segundo em segundo.
— Sim, ela está pelada por baixo daquilo. — Liam conta e trinco o
maxilar.
Meus braços se cruzam e arqueio uma sobrancelha.
— Está tentando me deixar constrangida? — Finalmente pergunto e
ele me lança um olhar de desprezo.
— Funcionou?
— Não — minto e ele abre outro de seus milhares sorrisos, esse é
quase sincero.
— Que pena.
— Está tudo certo, o ferimento não atingiu nada vital, nem um
ligamento do sistema nervoso, e a remoção do projétil foi um sucesso, então
você está liberado. — O médico parece com pressa para se livrar da gente.
Fico carrancuda ao pensar nas quatro horas que fiquei na sala de
espera, ansiosa para essa cirurgia interminável acabar. Não desejo aquele
medo a ninguém.
O médico entrega um atestado e uma receita com remédios, Liam fica
em pé e quando apoio uma mão no seu braço bom para o caso de precisar
de ajuda, ele se afasta, o que me causa uma dor dilacerante.
Sei que errei, sei que minha mente está se tornando perigosa e que ele
tem toda razão em me querer longe, mas precisava doer tanto?
Saímos do hospital e ele se recusa a me olhar, está carrancudo e
irritadiço, não é para menos, não posso culpá-lo por um erro que eu cometi.
Eu o perdi.
Meus olhos estão rasos de lágrimas, dessa vez não é por temer pela
sua vida e, sim, pelo que construímos e que parece estar por um fio.
Quando entra no carro, bate a porta com tanta força que eu estremeço.
Cometi o maior erro de todos e agora não tenho ideia se é possível
consertar.
Me sento atrás do volante do seu carro e quando começo a dirigir, o
silêncio não poderia ser mais torturante.
— Me desculpa.
— Não, não dá pra te perdoar.
Meu peito queima com o peso das suas palavras.
— Amor... — É a primeira vez que o chamo assim e ele sente essa
diferença, sei disso pela maneira como parece balançado.
Não estou realmente olhando para ele, mas sinto o clima se tornar
mais ameno ao nosso redor.
— Você é uma cretina por fazer essas coisas comigo. — A frieza no
seu tom de voz me faz acreditar que me enganei sobre ele ter ficado
balançado.
— Eu errei, me perdoa.
— Você não confiou em mim! — Ele me olha como se eu tivesse lhe
atacado pelas costas, não pela frente. — Sabe o que é pior? O delegado me
mandou desconfiar de você, já que sempre está relacionada com as vítimas
ou tem alguma discussão com elas antes de acontecer os assassinatos, mas
eu me recusei a te investigar e, na primeira oportunidade, você me deu um
tiro!
— Pelo menos te levei no hospi...
— Foi a porra de um tiro, Ming! — Me interrompe.
— Você está bravo de verdade? — Olho para ele, é difícil ter uma
discussão enquanto se dirige.
— Eu tenho o direito de ficar bravo quando a mulher que eu amo não
confia em mim!
Meu pé pisa no freio com força e nossos corpos vão para frente com o
impacto, sendo detidos pelo cinto de segurança.
— Você quer me matar mesmo, não é? Me dar um tiro não foi o
suficiente, agora quer ferrar com o meu rostinho bonito.
Estaciono na beira da estrada, me virando para ele sem realmente
ouvir suas palavras raivosas.
— O que você disse?
Ele sabe ao que me refiro, acho que por isso desvia o olhar e cruza os
braços, como a porra de um menino mimado. Acho que mereço esse
tratamento hostil.
— Estou chateado demais para falar com você agora, me leva pra
casa.
— Liam. — Minha voz é quase uma suplica e ele se recusa a me
encarar. — Por favor.
— Agora, Ming! — Ele exclama, encarando a janela. — Me leva para
casa agora.
Ligo o carro e volto para a rua, pisando um pouco fundo demais no
acelerador.
Tento não chorar, não quero sofrer na frente dele por minha própria
idiotice, estou exausta de fazer besteira e o desespero está me fazendo
tomar decisões que nunca tomaria se estivesse calma.
Acho que outra pessoa ter morrido, me fez pensar nas palavras da Sra.
Rodrigues sobre ser minha culpa. Acho que não estou aguentando o peso de
talvez ser responsável por essas mortes, mesmo que indiretamente.
Minhas mãos estão trêmulas sobre o volante e quando finalmente
paro em frente à casa do Liam, ele abre a porta, parecendo com pressa para
se afastar.
— Pode ir com o meu carro pra casa.
— É assim que pretende terminar comigo? Me emprestando seu
carro? — questiono e ele para de se mover, metade do corpo para fora. —
Achei que fosse querer acabar com qualquer vínculo.
Seu silêncio me mata aos poucos e removo a chave da ignição.
Abro minha porta e saio.
— O que está fazendo? — Ele continua carrancudo, não combina
nada com ele.
— Posso pegar minhas coisas?
— Você nunca namorou mesmo, não é? — Ele resmunga, indo em
direção
à porta.
Não respondo, não preciso, ele sabe que nunca aconteceu.
O observo destrancar a porta e se virar para mim com um olhar
irritado.
— Não vai me responder?
— Está querendo zombar de mim? — pergunto, cruzando os braços
em um tipo de defesa do que vem a seguir. — Me machucar vai te fazer
sentir melhor?
— É você quem está enxergando uma briga como término.
Isso me pega de surpresa e dou um passo à frente, mas quando ele se
vira de costas e entra na casa, não sei de que modo reagir.
Isso quer dizer que não terminamos? Isso quer dizer que ele está
fazendo drama? Isso quer dizer que temos chance?
Nada parece possível quando entro atrás dele e vejo seu rosto pálido
ao encarar o sangue que o meu tiro resultou. Está tudo uma bagunça.
— Eu vou limpar isso antes de ir — murmuro e ele segura meu braço,
impedindo que eu vá. É a primeira vez que me toca depois que saímos do
hospital.
— Não precisa, quero que vá o mais rápido possível.
É, acho que não temos volta.
Me solto e subo as escadas correndo, evitando encarar o sangue ou o
Trevo, que fica correndo atrás de mim em cada cômodo que entro. Pego
meu celular e as roupas que deixei aqui em algum momento nesse nosso
romance curto, enfio tudo em uma mochila que encontrei no guarda-roupa
dele e volto para o andar de baixo.
Ele não está em lugar nenhum, então deixo as chaves do carro na
mesinha da sala e saio da sua casa.
Minha respiração está pesada e tento segurar as lágrimas, mas quando
escuto os latidos do Trevo e o arranhar das suas patinhas na porta, sinto
meu mundo desabando aos poucos.
Enquanto caminho, choro pela morte da minha irmã, por não estar
sendo inteligente o suficiente e estar deixando um assassino brincar comigo
como se fosse sua bonequinha. Choro pelo homem e pelo cachorro que
estão naquela casa e não mereciam conhecer uma mulher tão problemática.
Desmorono por mim, por nunca conseguir ser feliz, por sempre sentir
que preciso da minha irmã e por, às vezes, fingir que ela só está fazendo
uma longa viagem para a China, como sonhávamos em fazer juntas.
O dia já clareou e seco as lágrimas com medo de alguém me ver desse
jeito, queria que fosse um horário adequado e eu pudesse tocar a campainha
da Pamela e chorar para uma amiga. Queria correr para os braços da minha
avó e permitir que me abraçasse até toda a dor desaparecer. Não faço nada
disso, na verdade, quando finalmente chego em casa, estou com um sorriso
forçado no rosto e fingindo que o nariz vermelho e olhos inchados são por
um possível resfriado e noites mal dormidas.
Ninguém parece suspeitar de que meu coração está em chamas.

O delegado ficou sabendo que minha irmã foi uma das assassinadas
de oito anos atrás, claro que isso era uma informação pública, mas, o que o
deixou furioso, foi descobrir que eu estava ligando o assassino dela com o
de agora.
Policiais que têm algum tipo de parentesco com vítimas não podem
investigar o caso, mesmo quando o seu parente morreu anos atrás e o
assassino tenha ressurgido tempos depois. Patrick odiou não ter sido
informado disso antes.
Ele também ficou sabendo do tiro que dei no Liam e considerou isso
um distúrbio da minha parte, sim, foi essa palavra que ele usou. Segundo
ele, deixei minhas emoções passarem à frente do caso, e, por Liam ser o
único na sala enquanto recebo um esporro do delegado, já sei quem foi o
dedo duro.
— Você será afastada por tempo indeterminado. — Patrick finalmente
diz e abaixo a cabeça, sem ter o que responder. — Deixe seu distintivo e
arma na mesa antes de sair.
Meus olhos pinicam e quando olho para o Liam, entendo que esse não
era o plano dele, ele só devia querer que eu fosse afastada do caso, não da
delegacia, mas tudo bem, eu mereço se essa tiver sido sua intenção, afinal,
foi eu quem o traiu primeiro.
Ele está balançando a cabeça, os olhos parecendo tristes.
— Sim, senhor — murmuro em um tom de voz rouco.
— Já pode ir.
Meu corpo está amortecido desde aquela crise de choro e vou para o
setor de homicídios.
Começo a juntar meus itens pessoais da minha mesa sem olhar para
ninguém, estou envergonhada e chocada ao perceber que falhei com a Fang,
falhei terrivelmente com ela.
Sei que o que está acontecendo vai me atingir mais tarde, quando
estiver sozinha e com tempo para pensar nos meus erros.
Fui estúpida por ter apontado aquela arma para a pessoa que mais me
fez sentir humana nos últimos tempos, mas também errei ao confiar meus
sentimentos a ele. Se estivéssemos em papéis invertidos, eu jamais teria o
dedurado.
Escuto passos se aproximando, então braços me rodeiam. Felipe
começa a fazer um escândalo, soluçando e fungando, suas lágrimas
melando minha camisa.
Reviro os olhos e fico imóvel enquanto o homem se desmancha em
mim, causando um puta desconforto.
— Isso é tão injusto. — Ele esperneia, até parece com uma
criancinha. — Quem é afastado por causa de um errinho?
Meu rosto ferve e vejo o Liam entrar no nosso setor, seu braço está
imobilizado e sua expressão está quase arrependida.
— Foi só um tirinho. — Felipe continua chorando. — Liam devia ter
levado na esportiva.
Já estou ficando irritada com esses toques exagerados, odeio esse tipo
de coisa. Tento afastá-lo, mas apesar de magricelo, ele é bem forte e gruda
em mim igual um carrapato.
— Já chega, Felipe — resmungo inutilmente. Ele segura minha
camisa e assoa o nariz, o que embrulha meu estômago.
Que nojo! Nunca mais uso essa camisa!
— Vou fazer greve de silêncio, greve de fome e vou me recusar a
trabalhar até você voltar! — Ele exclama, o rosto vermelho.
Solto um suspiro e dou uma batidinha na sua cabeça.
— Quer ser afastado também?
Ele hesita e finalmente consigo empurrar seus braços, ele nunca
pareceu tão corcunda assim.
— Mas é injusto!
— É isso que acontece quando se comete erros — murmuro. — E eu
cometi muitos.
Seu rosto é como o de uma criança que está vendo a mãe ir embora.
Liam arranha a garganta.
— Podemos conversar? — pergunta para mim e sinto que nos
encaramos com um mar de arrependimentos.
Sinto como se uma espada estivesse enterrada em minha garganta.
Concordo com a cabeça e o sigo para fora da sala.
Ele me leva até o depósito de evidências e fecha a porta, o espaço
parece pequeno demais para nós dois.
— Como está o seu braço? — Pergunto ao me afastar o máximo
possível.
— Com um buraco. — Ele responde e o amargor em sua voz me faz
pensar que tudo que ele quer é me magoar da maneira que fiz com ele.
— Acho que estamos quites, já que você também me apunhalou.
Seu olhar poderia ser comparado a um cubo de gelo.
— É isso que pensa?
— Você reportou — acuso, mesmo não tendo esse direito. — Foi
você!
— Sim. — Ele nem se esforça para negar e apesar de ter me dado a
impressão de estar arrependido antes, agora não demonstra nada.
— Está me odiando tanto assim? — Meus olhos lacrimejam e encaro
o teto para impedir que caiam. — Eu pensei que você, acima de qualquer
um, fosse entender.
— Eu avisei que quando ameaçasse sua segurança, eu iria deixar de
ser seu aliado.
Continuo olhando para o teto e ele segura meu queixo, me forçando a
olhá-lo. Ele não afasta os dedos e o toque é quente, nem parece que estamos
nessa frieza toda.
— Eu te mostrei minha dor e você não se importou com ela.
— Eu te dei meu coração e você abriu um buraco nele.
Fecho os olhos, cansada das nossas palavras cheias de veneno. Estou
em uma guerra interna, tentando descobrir qual lado vai vencer.
Estou tentando entendê-lo, mas a Fang está na minha cabeça, me
lembrando de que seu assassino ainda está à solta e que graças ao homem à
minha frente, a chance de encontrá-lo está tão distante quanto o Alasca.
— Estou falhando com todo mundo. — Me pego dizendo e o
desespero em minha voz me surpreende.
Viro de costas para ele, tentando recuperar o juízo, mas, em um
segundo, ele está diante de mim novamente.
— Eu prometo te amar, Ming, mesmo quando você atirar em mim por
pensar que sou um serial killer, e isso significa te proteger, mesmo que
acabe te perdendo no processo.
— Não preciso de um príncipe.
— Eu sei.
— Então pare de me atrapalhar.
— Quanto mais vejo esse fogo nos seus olhos, mais tenho certeza de
que tomei a decisão certa.
Tento empurrá-lo, mas ele segura minhas mãos.
— Me solta!
— Vingança não é o caminho, Ming.
— Você não sabe de nada, nunca encontrou o corpo da sua irmã
boiando em uma cachoeira! — grito e o silêncio recai sobre nós. — O que
você acha que faria se encontrasse a Cassandra assim? Machucada, com
uma eterna expressão de medo?
Ele fica tenso e a dor no meu peito me faz desviar o olhar.
— Ming...
— Estamos nos magoando — sussurro. — Eu te magoei. Acho que
não sei amar.
— Foi só um tiro, Ming. Precisaria de muito mais para me fazer
desistir de nós.
— Não sei se consigo dizer o mesmo. — Sinto que as lágrimas estão
prestes a voltar. — Estamos falando da Fang.
— Linda...
Me afasto do seu toque.
— Não pense que eu vou parar, Liam.
Retiro o distintivo e a arma do coldre, colocando tudo sobre suas
mãos quando as estende como se quisesse me segurar outra vez. Olho em
seus olhos ao continuar falando:
— Não será a falta de uma arma e de um distintivo que me deterá,
Liam. Eu vou até o inferno se for preciso, mas vou achar esse desgraçado.
Espero que você não fique no meu caminho.
Saio da sala antes que ele me responda.

LIAM
Eu a vejo ir embora da delegacia com o coração partido em mil
pedaços, sua dor se reflete em mim.
Estou apaixonado e mal pude aproveitar o sentimento antes dele ser
arrancado de mim, talvez tenha feito algo bem ruim na minha vida para
merecer esse sofrimento.
Ela atirou em você.
Lembrar disso não me faz querê-la menos, muito pelo contrário, me
faz querer acalmar seus medos e provar que pode confiar em mim. Sou
completamente louco por amar uma maluca, não que eu me importe com
isso.
Estou começando a sair da sala quando paro de repente, recordando
de algo que não acredito ter esquecido, meu corpo está tenso e a esperança
faz meu coração acelerar.
Talvez não possa realmente impedi-la de correr perigo, exceto que
encontre esse assassino antes dela.
Faço algumas ligações e quando volto para minha mesa, encontro as
filmagens das últimas vinte e quatro horas no meu e-mail. Assim que abro,
vejo a minha rua inteira na tela.
Dou zoom até ver minha casa com nitidez e acelero o vídeo, vendo o
dia passar para a noite.
Em pouco tempo, o vídeo me mostra saindo de casa, sendo seguido
pela Ming, sei que a invasão aconteceu depois disso, então desacelero o
vídeo, atento ao desenrolar. Estou curioso para saber como o invasor não
deixou nenhuma marca.
Não havia sinais de invasão, foi por isso que Ming e eu não notamos
nada. Acho que não ajudou muito nós estarmos um tanto distraídos.
Pensando nisso agora, sinto meus dentes trincarem ao perceber que o
desgraçado estava dentro da minha casa enquanto eu comia minha mulher,
provavelmente escutando todos os sons que somente eu deveria escutar sair
daquela boquinha.
É coisa de meia hora e um Jeep preto entra na minha rua, até aí tudo
bem, o problema começa quando o motorista do carro sai mascarado e se
agacha em frente à minha porta. Não consigo ver o que ele está usando pelo
ângulo da câmera, mas quando a porta se abre e ele fica em pé, não tenho
dúvidas se tratar de um homem.
Os peritos podem até dizer que uma mulher poderia ter cometido os
assassinatos, só que nunca saiu da minha cabeça que uma mulher não
conseguiria matar alguém do tamanho do Vitor e depois o colocar dentro de
um carro qualquer e ainda o remover do carro, tudo isso sem ninguém notar.
Espero para ver se o desgraçado sai da casa, mas ele continua lá
dentro quando Ming e eu chegamos. Quase duas horas depois, o homem
encapuzado está correndo para fora da minha casa e se enfiando no Jeep,
mais um minuto e a Ming está saindo pela porta só de roupão e com uma
arma na mão.
Nós dois assistimos o Jeep virar a esquina, mas enquanto ela se
lamenta por ter perdido sua chance, eu estou sorrindo por ter o poder de
pausar o vídeo e pegar nitidamente os dígitos da placa do Jeep.
O idiota nem sequer removeu a placa, quase como se quisesse ser
achado.
Chamo o Eduardo na minha mesa e lhe entrego o papel com a placa,
ele estreita os olhos para os dígitos e engole seco.
— O que é isso?
— Descubra onde esse carro está — peço, sabendo que ele é o melhor
nesse tipo de serviço.
Ele assente e volta para sua mesa, um olhar determinado no
semblante um tanto abalado, percebo que toda nossa equipe está abalada.
Ninguém esperava que a Ming fosse ser afastada, nem mesmo eu e assim
como todo mundo, também estou me odiando agora, mas prometo trazê-la
de volta, tanto para minha vida quanto para o trabalho.
Me recosto na minha cadeira e me permito abrir um sorriso de triunfo.
— Te peguei, imbecil.
MING
Já não sei quem é a Ming sem um caso para resolver, prometi
continuar investigando, mas é mais fácil falar do que fazer. Se fosse simples
assim, não teria estudado tanto para entrar na polícia.
Não tenho mais acesso às informações. Não sei se possuem pistas,
evidências, hipóteses, nada. Se alguém morrer, serei a última a saber,
exatamente como o restante da cidade.
Ainda suspeito de pessoas dentro da polícia, mas, na verdade, nem
isso faz sentido mais, já que quase todo mundo se machucou no último
assassinato.
Eduardo quebrou um braço, Felipe foi espancado, Liam nem se fala,
eu mesma atirei nele por falsas suspeitas e ainda tive que ver o assassino
sair da sua casa como um covarde. Virei o verdadeiro emoji de palhaço.
Os únicos que sobraram foram o Pedro e o Paulo, se considerarmos
que o culpado seja do nosso setor, o que soa cada vez mais louco.
Me familiarizei com as pessoas do meu setor, virei amiga deles e
agora é quase impossível ver algum deles como o assassino, o único que
ainda acusaria sem receio seria o delegado, já que o considero um ser
humano desnecessário para o planeta.
Concentrei toda minha mente nisso somente para ignorar a tristeza
que apodrece meu coração aos pouquinhos, sinto como se meu corpo fosse
entrar em falência a qualquer instante, tamanha a dor que sinto.
Nunca imaginei que sofrer de amor poderia resultar em uma dor
física, mas aconteceu, estou doendo inteira, tanto que nem sei onde o
sentimento começa e onde termina. Sou uma extensão da minha própria
agonia.
— Liam, meu bem! — Vovó Ming está gritando e recordo que ela
está aqui, na verdade, volto à realidade e percebo que não estou no meu
quarto, afundada em milhares de papéis. Vovó Mei me tirou de lá antes que
morresse sufocada em folhas de caderno e jornais.
Pisco os olhos repetidamente e olho na direção em que a Vovó Mei
está virada, sacudindo os braços e sorrindo como uma adolescente, só então
raciocino o nome que ela está chamando sem parar, infelizmente, já é tarde
demais para fazê-la parar.
Liam olha na direção da senhora e abre um sorriso galanteador, com
direito a covinhas fofas. Sinto uma coisa estranha ao perceber que ele
parece ótimo, não que não queira que ele seja feliz, mas faz só três dias e eu
estou um bagaço por culpa dele.
Isso é justo?
Seu corpo continua forte e torneado com músculos, nem um único
quilinho mais magro. Suas roupas escuras não têm manchas nem estão
amassadas. Abaixo dos olhos cor de mel, não há qualquer vestígio de
olheiras. E quando se aproxima de nós duas, não parece nervoso por eu
estar aqui, bem na sua frente.
Ele está lindo ao parar diante de nós com uma mão no bolso da calça
jeans e o outro braço ainda imobilizado.
— Boa tarde, vovó Mei.
Ele a chama exatamente como eu o faço.
Olho para baixo e fico envergonhada ao ver minha calça larga, quero
morrer ao perceber que estou vestindo uma camisa dele. Por que a vovó
Mei me deixou sair assim?
Estou amarrotada, desgrenhada e pálida como um defunto, nunca
estive tão horrível, mas quando esse homem se volta para mim, seus olhos
parecem brilhar com carinho e o sorriso se torna muito mais íntimo.
— Foi atropelada enquanto vinha pra cá? — Ele me pergunta e todo o
encantamento desaparece rápido. Agora quero socá-lo ao invés de beijá-lo.
— Como você é doce — murmuro e parece que não usava minha voz
há dias.
Ele encara a sua camisa no meu corpo, o reconhecimento
transformando seu semblante em algo que me faz ter a sensação de que não
importa se nunca mais ficarmos juntos, ainda vai existir alguma espécie de
faísca toda vez que nos olharmos, mesmo quando um de nós estiver
péssimo.
— Como você está? — Ele pergunta, agora tão sério que até o sorriso
da vovó Mei se desfaz um pouco.
Todo mundo reparou na quão mal eu estou, acho que começaram a
perceber quando parei de comer direito.
Abro a boca para responder que estou ótima, mas, nesse instante, vejo
um homem de capuz parar alguns metros atrás do Liam. Meus olhos se
estreitam quando o reconhecimento me atinge, e assim que o homem tira
uma mão do bolso e aponta uma arma na nossa direção, pulo em cima do
Liam e da vovó Mei, jogando os dois no chão um segundo antes de escutar
o som do tiro.
Olho para baixo, encontrando os olhos arregalados do Liam. As
pessoas gritam e correm à nossa volta, desesperadas para fugir de um
possível tiroteio.
— Em quem estavam mirando? — Ele pergunta, mas já estou ficando
de pé e correndo atrás do homem.
Ele fugiu assim que errou o tiro e estou sentindo a adrenalina abrir
passagem pelo meu corpo conforme o persigo pelas ruas de Monte Azul.
Minha respiração está levemente alterada pelos dias em que não me
exercitei. Pelo jeito, o homem encapuzado é do tipo atlético, ele está muito
à frente de mim e apesar de sentir o Liam correndo atrás de nós, deve ser
difícil para ele correr com um braço machucado.
— Ming, espera! — Ele está gritando. — Ele está armado!
Me impulsiono ainda mais para frente, motivada pela raiva do idiota
ter ousado usar uma arma tão perto da minha vozinha.
Ele segue reto por um beco e eu faço uma curva, entrando em outra
rua, sei que se for um pouco mais rápida, vou conseguir alcançá-lo, já que,
pelo visto, conheço esse bairro melhor do que ele.
— Bingo — murmuro, assim que o vejo bem na minha frente, ele está
perto da parede e sinto que não vou aguentar correr atrás dele por muito
mais tempo.
Analiso rapidamente a distância da parede e em um movimento não
tão pensado, bato um pé nela para ganhar impulso e pulo, colocando toda
força do meu corpo na perna que uso para chutar.
Meu pé atinge a cabeça do sujeito e assim que ele cai no chão,
acontece o mesmo comigo e rolo por um instante.
Fico de pé o mais rápido possível, pronta para uma luta, porém, o
capuz do atirador cai e ele está paralisado. A minha postura se desfaz com o
choque e encaro o homem no chão sem acreditar.
Primeiro penso que talvez tenha perdido o rastro do cara certo e
acertado o errado, depois me dou conta de que isso não seria possível.
Liam aparece no fim da rua vazia e nossos rostos devem ser espelhos,
refletindo a mesma coisa.
Paulo está sentado no chão com sangue escorrendo do nariz, seus
olhos repletos de terror por ter sido pego. Ninguém se move.
— O que é isso? — Liam pergunta e sua voz parece querer uma
explicação que diga que seu raciocínio está errado e é apenas um engano.
Liam não sabe, mas aquela arma não estava apontada para mim ou
para minha avó, agora que parei de correr, consigo lembrar nitidamente, e o
cano da arma estava virado para a nuca do Liam.
Por que ele quis atirar logo no Liam?
Minha mente não entende isso até perceber que eu também briguei
com ele. Depois da Carmen e de ter sido afastada do meu cargo, analisei os
casos e descobri que a Sra. Rodrigues não foi uma vítima, pois ela nunca
encostou em mim. Porém, isso se torna falho se tratando do Liam, já que ele
também não me agrediu.
Tanto o Vitor, quanto a Ana Luiza e a Carmen tiraram sangue de mim
em algum momento. Liam não fez isso, mas o assassino já havia o marcado
assim que colocou aquelas coisas no seu guarda-roupa, e, depois disso, ele
ainda foi a causa do meu afastamento da delegacia. Talvez o assassino já
quisesse se livrar dele.
Por que eu?
Se o Paulo é o assassino, o que teria em mim para fazê-lo querer ser
uma espécie de justiceiro para minha pessoa?
Quero fazer todas as perguntas não respondidas que rondam minha
cabeça, mas o homem está ficando de pé de novo e não posso me esquecer
de que está armado.
Corro mais uma vez e me agacho, dando uma rasteira que o derruba
novamente.
Ele solta um grunhido e o Liam sai do torpor, jogando uma algema
para mim. Não sei o que ele está fazendo com uma, já que não está em
horário de trabalho, mas não questiono o tipo de coisa estranha que ele leva
quando sai pra rua, apenas algemo o Paulo em silêncio, odiando ter estado
certa o tempo inteiro.

Deixei que o Liam tomasse a frente e entrasse na delegacia com o


Paulo enquanto eu me esgueiro atrás dele, temendo que o delegado apareça
e me expulse antes de eu conseguir algumas respostas.
As pessoas olham e cochicham ao verem um policial sendo levado
algemado para a sala de interrogatório.
— Vou te dar vinte minutos. — Liam diz assim que entramos na sala
isolada. — É o tempo que falo com o pessoal do turno matutino e deixo
todos a par do que aconteceu, vou desligar a câmera e o microfone e falar
para ninguém entrar aqui, já que quero ser o primeiro a interrogar.
Concordo com a cabeça e ele me estuda com um olhar penetrante.
— É a última vez que vai se envolver nisso enquanto está afastada,
entendeu? — Não dou uma resposta, então ele bloqueia meu caminho. —
Essa é a última vez, Ming.
— Eu te disse que não vou parar — sussurro e ele segura meu queixo
carinhosamente, o que faz meu coração acelerar. Pensei que ele nunca mais
fosse me tocar assim.
— Nós vamos ter uma conversa longa depois disso, principalmente
sobre você nunca me escutar e sempre correr para o perigo.
— O que eu posso fazer? Está no meu sangue.
Ele não sorri, na verdade, se inclina e beija minha bochecha, é tão
repentino que paraliso e sinto o corpo inteiro arrepiar.
— O revistamos, mas quero que tome cuidado — sussurra perto da
minha orelha. — Eu volto o mais rápido possível.
Assinto e ele finalmente se afasta, lançando um olhar mortal para o
Paulo antes de sair. O idiota nem sequer percebe o que fez com o meu
coração quando chegou tão perto, coisa que até o Paulo nota, já que está me
encarando como se entendesse minha mente muito bem.
— Deve ser difícil perceber que ele nem fica afetado enquanto você
se derrete inteira com um toquezinho.
— Acha que está no direito de fazer esse tipo de comentário?
Ele está terrivelmente certo, mas isso só faz minha raiva crescer.
Seu sorrisinho desaparece e quando me aproximo do homem, percebo
que seu olhar se enquadra bem mais com o de alguém excessivamente
assustado do que com o de um serial killer, mas não desfaço minha melhor
expressão de policial mal, lembrando que assassinos podem usar de muitas
faces para enganar.
Ninguém suspeitou dele, não o considerei uma vez sequer. Seu olhar
sempre foi calmo, como o de um garoto bonzinho e ele nunca falava muito,
mas demonstrava ser dedicado ao trabalho.
— Você matou aquelas pessoas? — É a primeira pergunta sobre o
caso que faço e ele não reage à minha voz. — Por quê?
Silêncio.
Apoio as mãos na mesa de metal e me inclino, o fuzilando com um
olhar mortal.
— Não me faça perder tempo.
— Acha que se eu fosse o seu cara, teria sido pego tão rápido?
Não, não acho. E é isso que está me deixando inquieta.
— Foi você quem matou aquelas pessoas? — repito, tentando fazer
pressão e usar meu tom de voz para encurralá-lo.
Se conseguir uma confissão, tudo será mais fácil, mesmo que não
tenha nada filmado para comprovar, eu vou ter certeza e darei um jeito de
fazê-lo apodrecer na prisão.
— Não.
— Foi você quem matou aquelas três garotas oito anos atrás?
Ele nega com a cabeça, os olhos arregalados.
— Não.
— Foi você quem invadiu a casa do Liam?
— Não.
— Era você nas cenas dos crimes?
Ele fica em silêncio e vejo uma gota de suor escorrendo da sua
têmpora.
— Responde! — Dou um soco na mesa e ele estremece.
— Acha que isso importa? — Ele grita. — Eu serei o próximo!
Recordo a cena do crime onde a Ana Luiza foi encontrada, estive
muito perto daquele homem encapuzado e ele dizia exatamente a mesma
coisa que o Paulo agora, o que me faz entender que era ele nas cenas dos
crimes, o que não o torna o assassino.
— Se não foi você quem matou essas pessoas, quem foi?
Ele morde o lábio inferior e fica vermelho igual um pimentão, mas
não responde.
— O que você faz para o assassino? — questiono. — O que ele
manda você fazer? E se você não matou ninguém, por que tentou matar o
Liam hoje?
Nada, ele continua mudo.
— Me responde ou, juro por Deus, não vou hesitar em te matar. —
Não sei se estou blefando. — Eu não tenho mais nada a perder, Paulo.
Ele congela, porém, nenhuma palavra sai da sua boca.
Seguro sua cabeça e a bato com força sobre a mesa. Escuto seu
gemido, vejo o sangue e sei que isso é errado pra caralho, mas não vou
parar até conseguir respostas, mesmo que me torne uma assassina.
Perceber que eu iria tão longe assim por respostas me assusta, não
tinha certeza de até onde minha sede por vingança iria e mesmo que tivesse
uma noção básica, acho que minha mente não estava realmente preparada
para o ódio no meu coração. Irei pegar pesado se for preciso.
— Ele... ele me mandou. — Paulo cospe sangue antes de me olhar
nos olhos. — Ele disse para atirar no Liam, ou iria me matar. Era eu ou o
seu namorado.
— Quem é esse homem? E por que quer matar o Liam?
— Ainda não descobriu isso? — Paulo solta uma risada sem humor,
sua expressão é a mesma de alguém que foi condenado à forca. — Ele sente
fetiche em você, acha que você é dele e merece ser protegida, e que a
melhor forma de fazer isso é matando qualquer um que te machuque
fisicamente. Isso mudou no Liam, acho que ele percebeu que dores
emocionais também merecem ser vingadas. Na verdade, acho que ele gosta
de matar e usa você de desculpa, acho que ele perdeu a porra do controle.
— Quem é ele? E por que me escolheu para isso? Eu cheguei na
cidade e pouco tempo depois a primeira morte aconteceu.
Ele cospe mais sangue e tosse uma vez.
— Ele só diz que você lembra alguém.
— Paulo, quem é ele?
Ele balança a cabeça, desesperado.
— Isso eu não posso dizer.
— Foi ele quem matou aquelas pessoas oito anos atrás?
Ele assente e lágrimas começam a rolar pelo seu rosto.
— Eu juro que não sabia na época, eu não fiz parte de nada no
passado.
— E o que você faz agora? — Estou atenta às suas respostas,
tentando ligar pontos invisíveis na minha cabeça.
— Ele me manda limpar. — Ele sussurra e o lábio inferior está
tremendo. — Ele pedia para eu limpar qualquer rastro dele que ficasse nas
cenas de crimes.
— É por isso que você estava em todas elas?
Ele assente.
— Como isso começou?
As algemas fazem um barulho quando ele se remexe na cadeira,
desconfortável. Sinto como se ele quisesse voltar no tempo e se impedir de
tomar aquela decisão.
— Eu estava precisando de dinheiro, ele me achou estúpido o
suficiente para conseguir controlar e eu não sei como, mas acabei enrolado
até o pescoço nisso. Achei que ele queria que eu limpasse outro tipo de
coisa, pensei que fosse algo da polícia. Quando percebi o que ele fazia, quis
sair e era tarde demais, ele começou a me ameaçar e eu jamais pensaria que
a ameaça de um assassino é blefe, então continuei.
— Ele passou anos sem matar, por que voltar agora?
— Porque ele começou a sentir raiva de novo.
Estreito os olhos, uma pessoa mataria apenas por sentir raiva? Isso é
loucura, mas pelo que o Paulo está dizendo, esse assassino é o ser humano
mais doente que vou conhecer na minha vida.
— Explique isso.
— Não sei dos detalhes, mas em algum momento, ele descobriu que
poderia descontar a raiva em alguma coisa, descarregar seu ódio e ele fazia
isso nas pessoas. — Paulo solta um som de horror, parece sentir agonia só
em tentar explicar a mente de um assassino. — Acho que ele teve alguém
que fez esse gatilho ser acionado na cabeça dele e depois de um tempo e
algumas mortes, isso foi amortecido. Pelo menos até você voltar para a
cidade.
— Preciso que me diga quem é, se fizer isso, podemos diminuir sua
pena, podemos conseguir aliviar para o seu lado.
Ele começa a negar com a cabeça desesperadamente, os olhos quase
saltam das órbitas.
— Não...
— Paulo, essa é sua chance.
— Não! Eu vou morrer!
— Só me responde uma coisa, é alguém de dentro da delegacia?
Liam entra na sala antes que o Paulo possa responder, e sei que
acabou meu tempo, pelo menos por ora.
— O delegado não está. — Ele diz e abro um sorriso, pensando que
isso me deu mais tempo. — Mas o meu pai apareceu aqui com o Trevo, ele
finalmente me escutou e saiu de casa.
— Droga! — resmungo, me perguntando como vou descobrir quem é
o assassino desse jeito.
— Consegui fazê-lo ir embora, mas preciso te mostrar uma coisa
curiosa. — Ele diz e faz sinal para segui-lo.
Quando saímos, um inspetor do turno matutino entra na sala de
interrogatório após falar com o Liam por um instante.
— Que coisa curiosa é essa para querer me interromper quando estou
no meio de um interrogatório? — pergunto e ele me lança um olhar antes de
me puxar para o setor de homicídios, onde vejo o Trevo diante de um mapa
da cidade.
Liam fecha a porta e reviro os olhos ao perceber que ele virá
novamente com esse papo de que o Trevo dá sorte e de que devemos
esperar algum milagre dele.
— Liam...
— Escuta. — Ele me interrompe, segurando minha mão e me
puxando para perto do mapa. Não pela primeira vez, meu coração dispara e
o Liam nem parece perceber, é irritante. — Estava convencendo meu pai a
ir passear com o Trevo e quando voltei para levar o cachorro até ele, me
deparei com isso.
É bizarro, mas tem três marcas no mapa que foram nós quem fizemos,
porém, a quarta marca é de uma pata de cachorro.
Olho mais de perto, me perguntando quais as chances de isso
acontecer. As primeiras três marcas, são de onde os corpos foram
encontrados, só que a quarta marca não faz sentido nenhum.
— Tem uma quarta marca — sussurro e o Liam assente. Estou prestes
a dizer que é só um cachorro fazendo coisas de cachorro, mas o Liam
parece acreditar mesmo que se trata de um sinal.
— Eu sei que esse lance de sorte pode ser neura minha, mas sabe o
que é mais estranho?
— O quê?
Me viro para ele e só então percebo seu olhar abalado.
— O Isaac, irmão do Eduardo — ele faz uma pausa para engolir seco
—, ele amava ir para o quarto ponto marcado pela pata do Trevo.
O mundo parece escurecer por um segundo e sinto a mão boa do
Liam envolver minha cintura para me firmar.
— O que isso significa? — pergunto, mesmo já sabendo a resposta.
— Está mesmo sugerindo...
— O corpo dele nunca foi encontrado, linda.
Dessa vez meu coração bate forte, não pelo apelido ou pelo seu toque,
e, sim, pela possibilidade de o Trevo ter feito alguma coisa que realmente
fosse sinal de sorte.
— Você acha mesmo?
— É um palpite desesperado.
Pisco os olhos repetidamente.
— Se isso for mesmo verdade, então esse lugar vai ser onde o
próximo corpo será encontrado.
— Os outros assassinatos ocorreram em poucos metros de distância
dos assassinatos de oito anos atrás, então é provável que aconteça nas
proximidades.
Eu tive esse mesmo pensamento quando começamos a proteger a
Carmen e a Sra. Rodrigues, apesar disso, ainda conseguimos falhar na
missão, o que significa que dessa vez é preciso estar um passo à frente do
assassino e não contar sobre isso para ninguém.
— Temos permissão para cavar? — questiono, indo até o mapa e o
enrolando antes de enfiar na última gaveta da mesa dele e trancar.
Ele dá de ombros, mas o que realmente quero saber é se ele vai tentar
me impedir.
— É uma casa abandonada, acho que não teria problema caso alguém
cavasse, o que é claro, não significa que alguém vai...
— Sabe que vou fazer, não é? — O interrompo, sentindo que ele está
prestes a iniciar uma palestra sobre invadir casas abandonadas.
— Eu disse que era a última vez, Ming.
— Liam... — Tento barganhar, porém, não sei se tenho muitos
argumentos.
Seria justo pedir para ele arriscar o emprego e me deixar continuar
investigando?
Ele parece notar algo na minha expressão, já que solta um suspiro
derrotado.
— Acho que já não temos opções, não é? — Ele murmura, quase
como se doesse nele dizer essas coisas.
— Não quero que se arrisque por mim.
— Como se eu pudesse ficar de braços cruzados vendo você fazer
merda.
— Você não pode ficar de braços cruzados agora. — Aponto para o
seu braço machucado e ele estreita os olhos.
— Não me faça mudar de ideia, Ming.
Graças a Deus, ele não vai me impedir.
— Obrigada, Liam. — Abro um sorriso triste. — Isso é muito
importante para mim.
Ele desvia o olhar e decido que se o perdi de verdade, pelo menos vou
terminar o que comecei e dar um jeito de parar o culpado por todas essas
mortes.
— Vou encontrar material para cavar, você dê um jeito de sair daqui
sem ninguém te ver, se o Patrick sonhar que você esteve aqui e investigou
um suspeito, nem quero imaginar o que vai fazer. — Ele orienta, voltando a
tomar o controle da situação. — Eu te ligo assim que conseguir as coisas.
— E o Trevo?
Nós dois encaramos o cachorro e o Liam suspira ao perceber que seu
pai abandonou o douradinho aqui.
— Ele vem comigo, acho que é mais fácil para você sair sem ter um
cachorro fofo à sua cola, atraindo atenção.
Ele está impassível e não gosto disso, me fere profundamente. Está
me tratando como uma colega de trabalho e nem isso eu sou mais.
Sem pensar no que estou fazendo, dou um passo à frente, atraindo seu
olhar.
— Não acha que sou fofa o suficiente? — Pisco os olhos
inocentemente e ele parece surpreso, mas não me responde. — Acha que
sou incapaz de chamar a atenção? — Acaricio seu queixo com o polegar e
seus olhos brilham.
— O que está fazendo, Ming?
Ele estava prestes a ceder, ou talvez tenha sido fruto da minha
imaginação. Talvez o tenha magoado além da reparação e jamais posso
culpá-lo por isso. Retrocedo, recolhendo toda a dignidade que deixei cair
por terra quando tentei ser ousada.
— Nada — murmuro. — Vou indo, antes que seja pega aqui pelo
delegado, ele não ia gostar nem um pouco de me ver.
— Acho que te devo um pedido de desculpas por isso.
— Era sobre isso que queria conversar quando mencionou aquela
conversa longa?
— Por que agora está evitando me olhar? — Ele pergunta um
segundo antes de tocar meu rosto com uma mão e erguer minha cabeça. —
Bem melhor.
Não devíamos estar perdendo tempo, eu sei disso, ele sabe disso e, no
entanto, meus pés estão presos no lugar e só quero esperá-lo decidir o que
vai ser de nós.
Franzo as sobrancelhas, percebendo que não gosto de como isso soa,
quer dizer, eu posso ter errado e tudo mais, porém, quantas vezes ele já não
me pediu desculpas por uma burrada que fez e eu perdoei? Tudo bem, um
tiro não se compara com nada que ele tenha feito antes, só que ele também
me dedurou para o delegado sobre isso, não deveríamos estar quites?
— Está querendo jogar comigo, não é? Me provocar, me humilhar e
então decidir se mereço outra chance.
— Não foi isso que você fez comigo? — Meu sangue ferve ao ouvir
sua resposta, porque apesar de o ter provocado, só o fiz por pensar que ele
também estava brincando comigo. — Mas não esquenta, eu não sou como
você.
Olho para suas roupas perfeitas, para seu sorriso lindo e para a falta
de olheiras que eu sei estarem abaixo dos meus olhos agora.
— Tem razão, eu não estaria tão indiferente — sussurro e sua
expressão convencida se desfaz no mesmo instante. — Não tenho tempo
para isso. — Começo a me afastar, mas ele segura meu braço.
— Só para você saber, eu te acho fofa demais para o próprio bem, não
precisa de ajuda.
Balanço a cabeça, me soltando do seu aperto.
— O quê?
— Eu acho que você é bem capaz de chamar a atenção sem o Trevo.
— Ele responde, parecendo notar minha confusão. — Essa é a resposta que
eu queria ter dado quando você se aproximou e me perguntou se não era
incapaz de chamar a atenção.
— Eu tenho noção da minha aparência nesse momento, Liam —
respondo, fazendo uma careta para sua clara mentira.
— Que bom, então não preciso dizer que fica muito gostosa vestindo
minhas camisas.
O choque me paralisa e tento entender se esse é outro tipo de jogo.
— Nós ainda vamos ter nossa conversa, só que, antes disso, espero
que não duvide dos meus sentimentos. Apesar de parecer bem, meu coração
esteve em pedaços desde que me deu um tiro.
Ele passa por mim, dando um tapa na minha bunda que,
definitivamente, me pega de surpresa.
— Liam!
— O quê? — Ele se finge de inocente.
— Você... — Começo a dizer alguma coisa, mas seu sorriso me faz
esquecer rapidamente, então só solto um suspiro. — Obrigada, de verdade.
Ele fica sério mais uma vez, agora com um olhar carregado de
sentimentos conflitantes.
— Não se coloque em risco, Ming, se fizer isso, vou ser obrigado a te
magoar de novo e você não tem ideia de como fazer isso me machuca. —
Sua expressão é sincera e perco o fôlego, sentindo todo meu corpo
responder as suas palavras. — Preferiria cravar uma faca no meu próprio
peito.
— Nós vamos ficar bem, não vamos? — pergunto e não sei se
conseguiria ser vulnerável assim com qualquer outro homem.
— É você quem dita se estamos bem ou não, linda. Se esqueceu de
que é você quem manda nessa relação?
Abro um sorriso.
— Vou pensar nisso depois de superar que você está bem demais para
quem está sofrendo de amor.
— Eu? Sofrendo? — Ele solta uma risada e arqueio uma sobrancelha.
— Não sentiu minha falta?
— A cada segundo que não esteve ao meu lado. — Ele responde,
parando de brincar e me puxando pela cintura. — Eu senti muito sua falta,
linda.
— É mesmo? — balbucio a pergunta e ele olha para minha boca
demoradamente.
— Uhum...
— Acho bom me contar isso em detalhes mais tarde.
Ele concorda e aperta minha cintura antes de me soltar.
— Vou fazer isso.
O vejo começar a ir embora, então ele para de andar e volta mais uma
vez para perto de mim.
— Que se dane, me dá um beijo de verdade agora — pede, agarrando
minha cintura com o braço bom e me colocando sentada na primeira mesa
que encontra.
Preciso dizer para ele mais tarde como amo a sua força e essa voz
rouca, e o jeito que ele me olha e... Ele. Eu preciso dizer que o amo muito
mais tarde.
Sua boca encontra a minha em um beijo brusco e repleto de saudade.
É carnal, sexy e tudo que eu precisava antes de enfrentar o que quer que
esteja para acontecer.
O som é molhado e nossas respirações estão ofegantes enquanto
tentamos incessantemente recuperar o tempo perdido em um único beijo.
Nos deliciamos nos braços um do outro por alguns minutos, nossas
bocas dizendo sem palavras o quanto se pertencem. Ele morde meu lábio
inferior, eu me esfrego nele e nenhum de nós se importa com a
possibilidade de alguém entrar.
Não demora muito para acabarmos fervendo de necessidade e só
então me dou conta de que iniciar uma sessão de beijos foi o mesmo de
jogar gasolina em uma fogueira.
— Acho melhor... — sussurro e solto um gemido quando ele
mordisca o ponto atrás da minha orelha que sempre me faz arrepiar. — Ai,
Liam.
— Estava morrendo de vontade de te beijar. — Ele murmura e jogo a
cabeça para trás, deixando que ele mordisque e beije meu pescoço, a mão
afundando em meus cabelos e percorrendo minhas poucas curvas.
— Eu também — digo e não sei se ele entende, tudo parece
desconexo aos meus ouvidos.
Ele começa a abrir os botões da minha camisa, mas nesse momento
escutamos passos no corredor. Ele solta um grunhido de frustração e eu
apoio a testa no seu peito. Seus dedos voltam a fechar minha camisa.
— Mais tarde. — Ele promete e minha boceta gosta muito disso.
Desço da mesa e ajeito os cabelos.
— É melhor eu ir?
— Por favor, antes que eu decida que dar um showzinho para os
inspetores do turno da manhã não é tão ruim assim.
— Sabe, eu até acho a ideia intere...
— Ming. — Ele me encara com um olhar de aviso e solto uma risada
ao vê-lo ajeitar a ereção na calça. — Não brinque com um homem louco.
Mordo o lábio inferior e vou em direção à porta, olhando para trás
uma única vez antes de sair. Ele realmente parece prestes a correr atrás de
mim e me puxar para a sala de novo.
Dou um tchauzinho e ele olha para o teto, como se pedisse paciência
para aguentar minhas provocações, sua expressão de desejo reprimido
quase me faz retroceder.
Assim que a porta se fecha atrás de mim e já não consigo me distrair
com sua aparência excitante, volto a me tornar uma policial má.
Quero dar mais uma passada na sala de interrogatório antes de irmos
cavar uns buracos, ver se o Paulo me diz algo sobre o irmão do Eduardo,
por exemplo, onde está o seu corpo. Sei que ele disse não fazer parte dos
assassinatos de anos atrás, mas talvez ele tenha descoberto, ou tenha
mentido, sei lá.
As vozes no corredor me fazem acelerar o passo, me esgueirando no
corredor oposto de onde as pessoas estão vindo, me sinto meio quente por
quase ter feito algo impróprio naquela sala.
Coloco as mãos nas bochechas, me perguntando se estou com algum
problema, não é normal ficar corada, não é como se Liam e eu nunca
tivéssemos feito nada. Ainda tenho as memórias daquele carro bem vivas na
minha mente, e ainda posso escutar e sentir o tom da sua voz no meu
pescoço toda vez que me disse palavras sujas, nenhuma dessas vezes eu
corei por vergonha, sempre foi por prazer.
Volto para a sala de interrogatório, estancando ao ver o Edu
adentrando a sala e fechando a porta. Não está nem perto do turno dele e
não teria vontade de bisbilhotar se não fosse sua expressão sombria.
Hoje parece um daqueles raros dias em que o Edu se torna inacessível
e mal-humorado. Abro a porta que dá acesso à sala de interrogatório e fico
aliviada por estar vazia, mas é aí que entra a parte mais estranha, assim
como eu, o Edu parecia estar se esgueirando para dentro da sala onde o
Paulo ainda está algemado e sentado. Não posso deixar de notar que ele
também desligou as câmeras e o microfone que manteria tudo gravado.
Olho pelo espelho, sabendo que nesse momento eu posso vê-los, mas
nenhum dos dois consegue me ver por detrás do vidro, o insulfilm garante
meu anonimato e me inclino para frente, tentando fazer leitura labial, já que
se ligar qualquer coisa aqui dentro, é bem possível que ele note de lá.
Eduardo está furioso enquanto grita, não parece com um policial,
parece com alguém que está prestes a enlouquecer. Em certo momento, ele
agarra o colarinho da camisa do Paulo e vejo o homem se tremer inteiro,
depois ele o solta e tira uma arma da cintura.
A desconfiança volta a ressurgir das cinzas, porém, dessa vez não
quero tomar a decisão errada. Não me movo ao assisti-lo encostar o cano da
arma na testa do Paulo, que parece prestes a ter um ataque do coração.
Edu deve ter dito algo realmente maluco para o Paulo pensar que ele
atiraria em uma delegacia cheia de policiais. A menos que minha
desconfiança não seja infundada, seria óbvio que o Eduardo não atiraria.
Ele se vira para o vidro e nossos olhares se encontram, meu corpo
estremece com a sensação de que ele pode me ver. Esse não se parece com
meu melhor amigo de infância, ele está desleixado e com uma expressão
insana.
Paulo finalmente desata a falar, é rápido demais e não consigo
acompanhar, mas depois disso, o Edu guarda a arma na cintura.
Assim que se volta para a porta, reparo na tatuagem de espada no seu
ombro direito, abaixo dela possui uma data que não consigo identificar com
clareza. Ele está dizendo alguma coisa, mas percebi que sou péssima com
esse lance de leitura labial.
Seus dedos tocam a maçaneta e eu corro para fora da sala adjacente,
não querendo correr o risco de ele vir religar as câmeras e me encontrar
aqui.
Me escondo no banheiro feminino e fico espiando, quando o Eduardo
finalmente passa pela porta, indo embora, saio do meu esconderijo,
escutando uma mulher resmungar como existem pessoas estranhas na
cidade enquanto me encara pelo espelho.
Sinto meu celular vibrando no meu bolso e o pego, vendo que é o
Liam. É estranho, mas meu peito vibra com felicidade, é a primeira vez que
ele me liga em três longos dias.
Franzo a testa e balanço a cabeça antes de atender, estamos no meio
de uma coisa séria aqui e eu agindo igual uma adolescente.
— Onde você tá? — Ele pergunta e solto um suspiro.
— Indo para a saída.
— Estou no fim da rua.
— Tá bom.
— Por que demorou tanto? — Ele puxa assunto e acabo sorrindo,
mesmo que o motivo do meu atraso merecesse tudo, menos sorrisos.
— Vi uma coisa meio desagradável.
— Precisa de mim aí?
— Você tem noção de que posso me defender sozinha, não é? —
zombo ao escutar a preocupação em sua voz.
— Tenho, mas acho que já disse que você não precisa fazer nada
sozinha.
Como esse homem consegue me tratar assim depois de eu quase ter o
matado?
— Ainda me pergunto de onde você surgiu — murmuro, saindo da
delegacia. — Às vezes acho que você não passa de uma alucinação minha.
— É, você é maluca o suficiente para isso.
— Liam!
— Mas se eu fosse uma alucinação, não teria sangrado quando me
deu um tiro e se não me falha a memória, acho que sangrei muito mais do
que o recomendado.
— Não é cedo demais para relembrar isso?
O avisto de longe, está apoiado no seu carro com o Trevo sentado aos
seus pés.
— Você se importa?
— Ainda me sinto mal por aquilo — confesso e ele ri, o som é quase
tão lindo quanto a visão de vê-lo rindo sem que saiba que o estou
apreciando.
— Ming. — Ele morde o lábio inferior. — Você nunca vai deixar de
ser fofa?
Seu olhar encontra o meu, então ergue um dedo, me chamando. Só
então percebo que parei de andar assim que o vi.
Volto a me aproximar e nós encerramos a ligação assim que paro
diante dele.
— Só pra você saber, eu não sou fofa, sou implacável.
— Você pode ser implacável e fofa.
— Não sei se gosto muito de ser fofa. — Faço uma careta e ele coloca
uma mecha de cabelo atrás da minha orelha.
— Devia gostar, toda vez que é fofa, meu coração dispara.
Ele segura minha mão e apoia no seu peito para que eu sinta os
batimentos rápidos do seu coração, mal sabe ele que estou do mesmo jeito
com poucas palavras.
— Liam.
— Hmm?
— Você pode parar de me distrair?
— Mas esse é o meu trabalho.
Soco seu peito de brincadeira e ele sorri, me puxando para perto e
roubando um selinho antes de me deixar ir.
— Acho que é hora de ir. — Ele declara e percebo que talvez ele
estivesse tentando se distrair, não me provocar.
A princípio não entendo o motivo, mas assim que entramos no carro e
noto seu nervosismo, lembro do que o Eduardo falou sobre o seu irmão e o
Liam.
Será que ele estava falando sério? Liam realmente teve algum tipo de
relacionamento com o Isaac?
LIAM

Estou com a mente meio fodida agora. Isaac era meu melhor amigo e
esse foi o motivo por ter levado tanto tempo para aceitar que o assassino é o
mesmo de oito anos atrás.
Me sinto culpado pelo que aconteceu com o Isaac e quando ele
desapareceu, fingi que havia se cansado dessa cidade e ido embora como
ameaçou fazer muitas vezes, mas ameaças em momentos de tristeza é
normal para adolescentes e jovens adultos, perdi as contas de quantas vezes
também disse que ia fugir de casa e tentar a sorte em outro lugar, longe do
meu pai.
Eu não procurei pelo meu melhor amigo, o deixei de lado por medo
de encontrar o que eu não estava preparado para ver. Não posso fazer isso
de novo.
Ming está do meu lado e sinto sua força me encorajando, mesmo que
ela não diga nada para me motivar. Essa mulher tem esse tipo de poder
sobre mim.
— Por que não me conta o que está te atormentando? — Ela pergunta
de repente e fico surpreso por ela notar, estive soltando piadas e frases de
duplo sentido o tempo inteiro desde que começou a dirigir.
Ninguém nunca percebeu isso, mas quando estou chateado ou triste,
sempre me cuido mais e me esforço para sorrir e ser agradável. É minha
maneira de fingir que estou bem e tentar enganar minha própria mente.
Nem mesmo o Pedro percebeu que nos últimos dias estive destruído.
— Por que acha que algo está me atormentando?
— Você fica mais idiota que o normal quando quer esconder que está
incomodado com alguma coisa.
— Nossa, obrigado pelas palavras de carinho.
— Você entendeu.
Engulo seco e seus dedos buscam os meus, a mão macia e quente me
fazendo pensar se algum dia vou ser capaz de respirar normalmente quando
ela me tocar assim. Nesse momento, parece que acabei de correr uma
maratona.
Olho para sua mão sobre a minha, encarando o anel infantil que ela
nunca tira do dedo, brinco com ele com o polegar.
— Você nunca me contou o lance com esse anel — mudo de assunto
e ela sabe, mas não parece incomodada ao encarar o objeto antes de focar
na estrada.
— Era da Fang. — Ela diz e a voz soa firme, como se soubesse que é
preciso compartilhar uma informação pessoal para gerar confiança o
suficiente para talvez receber uma informação em troca. Eu fiz isso com ela
e não surtiu muito efeito. — Ela estava usando quando a encontrei.
— Desculpa por perguntar.
Idiota.
— Está tudo bem. — Ela acaricia minha mão. — Falar sobre ela com
você não é sufocante.
Isso me faz sentir sortudo pra caralho e assim que ela para em um
semáforo, me inclino e beijo sua bochecha.
— Obrigado por confiar em mim.
Ela olha nos meus olhos e é um olhar penetrante, ela sempre me
vislumbra assim, como se pudesse ler minha alma. É desconcertante e me
deixa com um puta tesão.
— Você está bem, Liam?
— Você só me chamou de amor uma vez — mudo de assunto
novamente, agora não é por mal, é só por ter gostado muito da palavra na
sua voz doce. Quero que me chame assim sempre.
— Você está bem, amor? — Ela corrige e meu coração quase sai do
peito.
Um carro buzina atrás de nós, a forçando a se concentrar na direção,
ficando em silêncio por um tempo. Ela fica gostosa demais no modo piloto,
mas não digo isso, estou com a mente em outro lugar, apesar de meus olhos
não saírem dela.
Como posso dizer que fui um imbecil com uma pessoa que esteve
comigo nos momentos bons e ruins? Por que pedi confiança da parte dela
sabendo que não sou confiável?
Ela para o carro em frente à casa do meu pai e desço com o Trevo, já
que não podemos levá-lo pra cavar.
Quando meu pai abre a porta, nem parece lembrar que estava com o
Trevo ao sair de casa, é uma ofensa que o meu cachorro goste tanto desse
velho.
— Eu volto mais tarde pra buscar ele — aviso e o meu pai faz uma
careta.
— Vem buscar amanhã. — Ele ordena e fecha a porta na minha cara.
— Eu mereço — resmungo, voltando para o carro.
Ming está com o rosto apoiado no volante, tentando espiar a conversa
rápida que tive com meu pai.
— Então... seu pai finalmente saiu. — Ela tenta sorrir e solto um som
que deveria ser uma concordância. — O que foi isso?
— Eu dizendo pra você não criar esperanças, ele continua um mala.
A observo ligar o carro e voltar para a rua, sua testa está franzida em
concentração.
— Às vezes ele faz isso para ter mais momentos com você e só é
orgulhoso demais para admitir.
Fico em silêncio, é difícil decifrar o meu pai e não estou muito a fim
de tentar hoje. Olho pela janela, sem realmente acreditar que estou indo
cavar o que, provavelmente, é a cova do Isaac.
— Eu sei que pode ser difícil, então, se quiser desistir...
— Você pararia se eu pedisse? — A interrompo, me virando para ela,
mas é claro que entendi errado.
— Eu te deixaria em casa.
Continuo a encarando, sem acreditar que passou pela cabeça dela que
eu toparia uma idiotice dessas. Se concordei com isso, foi somente por
saber que ela iria sem mim caso não topasse.
— Isaac e eu éramos melhores amigos — confesso quando o silêncio
se torna espesso demais.
— Quer conversar sobre isso? — Ela busca minha mão e eu entrelaço
nossos dedos.
Sinceramente, eu não sei dizer se me sentirei melhor ao falar, mas
acho que amo essa mulher a ponto de acreditar que vai acontecer, então
continuo falando:
— Fomos juntos para o intercâmbio, e quando voltamos tudo parecia,
sei lá, diferente.
Meu coração aperta ao recordar as coisas que aconteceram, foi uma
época difícil, principalmente por não saber bem o que fazer com os
sentimentos que o Isaac confessou sentir por mim, tampouco saber se eu
sentia alguma coisa diferente por ele.
— Voltamos no ano em que os assassinatos estavam acontecendo. —
Não paro de contar, não querendo dar tempo de repensar sobre abrir a porta
com essas lembranças para outro alguém entrar. — As pessoas estavam
assustadas, víamos famílias chorando diariamente e isso gerou uma espécie
de desespero por temer ser o próximo. Acho que isso afetou o Isaac
primeiro.
— Eu o conheci, mas era muito nova, foi bem antes de ele ir para o
intercâmbio. Pensando agora, não sei o porquê de nunca ter associado a
viagem dele com a sua.
Concordo com a cabeça, a assistindo virar em uma rua e parar em
outro semáforo. Ming continua com a mão sobre a minha, mesmo quando
precisa mudar a marcha, seus dedos sempre voltam a encontrar os meus.
— Ele começou com conversas estranhas sobre sentimentos e eu
achei que fosse apenas receio, até o dia que se declarou para mim. — Ming
não parece surpresa com minhas palavras e me pergunto se o Eduardo disse
alguma coisa para ela, isso justificaria sua desconfiança repentina e aquele
tiro. — Eu não reagi muito bem, meu pai era uma grande corrente à minha
volta naquela época, e pensar em fazer algo que fosse motivo de chateação
para ele me deixava aflito.
— Você o rejeitou?
Assinto e ela volta a dirigir quando o farol fica verde. Ainda me
lembro bem da expressão arrasada do Isaac.
— Eu o magoei, disse que não gostava dele assim e que devia ir
embora.
Estávamos no meu quarto, não conto todos os detalhes para a Ming,
mas antes de se declarar e eu surtar, o Isaac havia me beijado em um ato de
coragem e, por um momento, eu correspondi.
— Você gostava dele? — Ela questiona e não há qualquer resquício
de preconceito, apenas curiosidade.
— Eu nunca descobri. Quer dizer, não sei se entendo bem, mas era
um sentimento bom. — Penso um pouco a respeito, procurando no meu
coração se alguma vez senti o mesmo calor e faíscas que sinto com a Ming.
— Não era parecido com o que sinto por você, era bem menos intenso, acho
que é diferente quando é com sua alma gêmea.
Abro um sorriso para ela e noto suas sobrancelhas estreitas.
— Alma gêmea? — Ela soa confusa e até assim fica fofa. — Acredita
nessas coisas?
— Acredito no amor que sinto por você — respondo. — Nunca foi
assim com mais ninguém.
Coloco uma mecha de cabelo atrás da sua orelha e ela me olha de
relance. Mesmo que não diga com todas as letras, sinto pelo seu olhar que
ela corresponde meus sentimentos. Percebi no dia em que disse que a
amava pela primeira vez, Ming estava com os olhos marejados e pedindo
para que a perdoasse como se não pudesse viver sem o meu perdão. É por
isso que não tenho medo de dizer que a amo.
Quem diria, Liam Machado... apaixonado. Bem que a Cassandra
sempre dizia que eu seria pau mandado.
— Não sei reagir a esse tipo de conversa.
— Sua reação é perfeita, não pense muito em como agir. — Queria
poder beijá-la agora e ter noção disso me faz perceber que não estou mais
tão triste, tampouco bravo pelo tiro.
— O que aconteceu depois que pediu pra ele ir embora? — Ela volta
para a conversa e respiro fundo, me concentrando no assunto.
— Ele me obedeceu, e nunca mais foi visto.
Ela estaciona o carro no local marcado no mapa pela pata do Trevo,
está com os olhos arregalados, parece chocada com a informação.
É mesmo uma história triste, eu queria que minhas últimas palavras
para o meu melhor amigo tivessem sido diferentes, queria poder ter tido
coragem para explorar os sentimentos que ele despertava em mim, mesmo
que não se comparassem ao que sinto pela Ming. Não que eu possa fazer
qualquer coisa agora.
É por isso que não gosto de voltar ao passado, nem mexer naqueles
casos, ou mencionar que conhecia o Isaac. Pensar nele sempre me fez
perceber que poderia ter feito mais.
— Liam, eu... nem sei como expressar o quão lamento. — Ela me
olha com carinho. — Você deve ter se sentido horrível.
— O Eduardo me culpou por ter convidado o irmão dele à noite para
minha casa e ter o deixado ir embora de madrugada sozinho. É por isso que
não nos damos tão bem, a fúria do seu melhor amigo recaiu sobre mim e
acho que ele nunca vai deixar de pensar que eu tive parte nisso.
— Eu não fazia ideia. — Ela acaricia meu rosto. — Não foi culpa sua.
— Mas eu sempre me senti culpado.
— Se não fosse naquela noite, seria em outra.
— Como sabe disso? Talvez se eu tivesse mantido ele na minha
casa...
— O assassino escolhe suas vítimas a dedo, Liam. Isaac não foi uma
escolha aleatória.
Olhamos para o portão de ferro da casa abandonada, a rua é estreita e
sem muitas construções além dessa casa e um prédio na esquina. Não
saberíamos em qual local exato dessa rua procurar, isso se o Jeep do invasor
da minha casa não estivesse estacionado bem em frente à residência
abandonada.
Nos últimos dias, estive focado em descobrir quem era o assassino e
invasor da minha casa, quando achei a placa do carro, pensei que seria
muito mais fácil e deveria mesmo, porém, não foi e só fiquei mais frustrado
ao dar de cara com uma parede e ter que voltar à estaca zero.
Ver esse Jeep agora é uma surpresa um tanto inesperada.
Inclino a cabeça, analisando as possibilidades de ser outro carro, mas
eu sou muito bom em decorar informações e decorei a placa do veículo para
o caso de o encontrar na rua. É até bizarro ele estar parado em frente a uma
casa dessas.
A construção é horrível, mas possui muitos pés de amora e olhar para
as frutinhas saborosas que o Isaac amava me faz recordar do motivo pelo
qual ele sempre vinha aqui. Ele poderia viver dessa fruta, então, por que
não ser enterrado perto delas?
Balanço a cabeça, uma tentativa de expulsar a tristeza que começava
a se espalhar pelo meu coração outra vez e focar no plano.
Removo o cinto de segurança e a observo por um instante.
— Está pronta?
— Eu que deveria te perguntar isso.
Solto um suspiro.
— Eu nasci pronto, linda.
Saímos do carro e eu abro o porta-malas, o tempo inteiro me
perguntando o porquê do Eduardo me dizer que o carro não estava mais na
cidade se ele continua aqui. Não quero comentar com a Ming,
principalmente pelos dois serem amigos, talvez ela não encare muito bem.
Antes de pegar o material para cavar, entrego um boné e uma máscara
preta para ela.
— Coloca isso, não quero que nos reconheçam caso alguém apareça.
— Achei que tivéssemos permissão.
— Somos policiais, linda. — Faço uma pausa. — Não sei se devemos
arriscar, nem sequer checamos se alguém está vivendo na casa antes de
decidir invadir.
Ela prende os cabelos em um rabo de cavalo e obedece, escondendo o
rosto das vistas de qualquer um que passasse por aqui. Faço o mesmo e
pego a mochila grande de academia que arrumei com o Pedro, pendurando
no ombro que não dói.
Ming fecha o porta-malas e nos aproximamos das grades do portão
enferrujado, parece que ninguém vem aqui faz tempo, porém, quando olho
para o quintal grande, vejo mais dois carros na garagem, uma Kombi com a
pintura descascada e um Fiat Uno preto sem a placa. Automaticamente,
recordo o que estava anotado em todos os relatórios dos legistas sobre as
marcas de pneus encontradas nas cenas dos crimes, eram carros diferentes,
pneus diferentes.
Por que alguém guardaria três carros em uma propriedade
abandonada? A menos que alguém esteja morando aqui, ou usando o lugar
para matar pessoas e depois arrastá-las para um local público, onde possam
ser encontradas.
— Acho que encontramos o lugar onde o assassino mata. — Ming
sussurra e vejo em seus olhos a determinação.
— Você quer entrar na casa — deduzo, não tendo certeza se isso é
legal, já que não recebemos denúncia e estamos seguindo a marca de pata
de um cachorro, poderíamos facilmente ter problemas por isso,
principalmente se considerar que ela está afastada do seu cargo.
Vendo por esse lado, somos dois malucos.
— Isso é um problema? — Ela pergunta. — E se tivermos mesmo
encontrado o local dos assassinatos? Precisamos averiguar.
Ela é como um diabinho no meu ombro esquerdo, me conduzindo ao
erro e soando nada convincente.
— Você só me mete em confusão.
— Vai dizer que não quer?
Porra, eu quero muito! Isso é quase tão tentador quanto sexo.
— Não sei, Ming. — Me faço de difícil, tentando ser o anjinho que
vai tirar a gente de futuros problemas.
Ela solta um resmungo inaudível e a encaro.
— Para de resmungar, eu nem deveria estar permitindo que isso esteja
acontecendo.
— Você poderia ter esperado no carro, ou nem vindo. Foi escolha sua,
não te obriguei a nada.
— Acha que te deixaria sozinha nisso?
— Eu não te culparia se deixasse. — Ela sussurra e volta a encarar o
portão.
— Olha para mim.
Ela leva um tempo para obedecer, porém, quando obedece, seguro sua
nuca.
— Eu nunca vou te deixar sozinha em uma situação de perigo.
— Eu sei.
— Que bom, agora para de resmungar coisas que eu não consigo
escutar.
Jogo a mochila por cima do portão e quando faço menção de começar
a escalar, Ming me afasta das grades.
— Não devia forçar o braço.
— Eu vou cavar, está mesmo preocupada com a força que coloco no
machucado?
Ela me lança um olhar mortal antes de colocar os pés nas grades. É
questão de um piscar de olhos e ela já está do outro lado, chutando o
cadeado enferrujado até ele se abrir.
— Não era mais fácil ter chutado o portão logo ao invés de fazer toda
essa cena? — pergunto e ela revira os olhos.
— Para de ser chato.
— É você que tá achando que está em um filme de ação.
— Eu vou chutar a sua cara.
Abro um sorriso.
— Estava querendo se exibir para mim, né?
— Claro que não! Eu teria feito muito melhor se fosse para me exibir.
Solto um assovio e a observo empurrar o portão para eu passar
enquanto penso em uma velhinha banguela, sabendo que esse é um ótimo
jeito de não ficar com uma puta de uma ereção.
— Obrigado.
— Disponha, amor.
A palavra soa natural e acabo rindo, me perguntando como
conseguimos discutir em um segundo e no seguinte estarmos nos tratando
com carinho. Ela me irrita e me deixa sem fôlego na mesma intensidade, e
eu odeio e amo isso.
Abro a mochila no chão, ela está olhando em volta, as mãos na
cintura conforme anda pelo quintal inteiro.
— Por onde acha que devemos começar? — pergunto de cabeça
baixa, no instante em que ela solta um resmungo que não consigo entender.
— O que disse?
Ela se vira para mim, a expressão revelando sua tensão.
— Acho que por aqui.
Quando olho na direção em que está apontando, reparo na placa de
madeira com letras feias escritas em uma tinta vermelha: “Aqui jaz um
cachorro leal”.
Eu já mencionei que o senso de humor ácido desse assassino está me
dando nos nervos?
— Filho da puta — sussurro e ela parece tão irritada quanto eu.
— Eu vou olhar lá dentro.
— Ming, espera. — A chamo quando ela começa a subir os degraus
que dão para a porta quebrada da casa.
Ela se vira para mim e fico de pé, indo atrás dela.
— Eu vou com você.
Saco minha arma e entro na casa primeiro, estou com outra arma, mas
não vou entregar a ela, a menos que seja estritamente necessário, já que ela
gosta de atirar e fazer perguntas depois.
A casa fede a mofo e madeira queimada, pela estrutura, parece que a
casa já sofreu um incêndio. Os poucos móveis que estão espalhados pelo
lugar estão chamuscados e a madeira está escurecida.
Não vemos nada de tão anormal, pelo menos não até entrar no que
deveria ser uma cozinha. O lugar está cheio de sangue, e em cima da
bancada vemos ferramentas, alguns alicates, canivetes e um bastão estilo
aqueles de beisebol.
Uma cadeira com enfoca-gatos pendurados prova que isso aqui
deveria ser usado para alguma espécie de tortura. Vislumbro os corpos na
minha cabeça, lembrando de todas as marcas que os legistas alegaram
poderem ter sido causados por ferramentas e, por isso, uma mulher as
poderia ter causado.
— O filho da puta é um psicopata. — Ming diz atrás de mim e
concordo com a cabeça.
— Vamos ter certeza de que não tem ninguém aqui e voltar lá pra
fora.
Ela assente e me segue em cada cômodo, ficando atrás de mim como
se fosse seu escudo, já que estou armado.
Gosto da ideia de a proteger de tudo e todos, faz meu coração acelerar
e minha pele arrepiar. Estou disposto a atirar em qualquer um que ousar
tentar tocar nela.
Quando voltamos para o quintal, ela vai até a mochila e retira as
coisas que vamos usar antes de jogar uma pá para mim e falar:
— É hora de cavar.
Cavamos por horas, meu braço e ombro machucados estão
queimando e sinto que posso abrir os pontos se levantar essa pá mais uma
única vez, não que seja necessário.
Caio sentado no chão, arrancando o boné da cabeça ao passar a mão
pelo rosto. A Ming corre para o meu lado, os olhos brilhando com
entendimento.
Não sei mais se um homem deveria mostrar fragilidade, meu pai não
aprovaria isso, mesmo ele próprio tendo chorado nos braços da minha mãe
naquele hospital. Todavia, eu não poderia ser indiferente a isso, estamos
falando de um amigo que esteve em momentos marcantes da minha vida.
Mesmo sabendo disso, tento conter as lágrimas, tento agir como se
estivesse tudo bem.
— Desde que te conheci, eu nunca entendi como uma pessoa poderia
ter tantos tipos de sorrisos. — Ming murmura, acariciando meus cabelos. —
Mas agora entendo. — Ela segura meu rosto, me olhando nos olhos. —
Você tem um sorriso até para quando está triste, tudo para não chorar. Você
quer sempre ser o Liam feliz.
— Ming... — Minha voz soa rouca e arranha minha garganta, preciso
me segurar, mas ela me olha com carinho e a dor está forte demais.
— Você pode chorar comigo. — Ela continua prendendo seu olhar no
meu. — Estamos juntos nessa dor, Liam. Eu entendo.
Fecho os olhos para não ver o quanto ela está disposta a me segurar se
eu cair, só que isso não me ajuda a não ver, seu rosto está cravejado em
minha mente e as lágrimas finalmente me vencem.
Apoio o rosto no peito dela e deixo meus ombros tremerem com os
soluços. Me entrego ao choro como não faço há muito tempo, me permito
sentir a tristeza que me corrói de dentro para fora, pois sei que preciso
passar por isso.
Paramos de cavar quando já conseguíamos ver os ossos, não era de
um cachorro, e apesar das roupas velhas e desgastadas pelo tempo, eu
nunca me esqueci de como o Isaac estava vestido quando saiu da minha
casa naquela noite.
Agora era oficial, Isaac Camargo havia sido assassinado oito anos
atrás, ele não estava vivendo uma vida feliz em outo lugar e a partir desse
momento, preciso aceitar que ele nunca vai retornar.
MING

Ele está agarrado a mim como uma criança mesmo depois de já ter
parado de chorar, os soluços que escapavam da sua boca ainda parecem
ecoar nos meus ouvidos e cortam meu coração em pedacinhos, nunca soube
como consolar alguém, mas foi eu quem pedi para ele se abrir.
Meus dedos acariciam seus cabelos enquanto minha raiva só cresce.
A pessoa que fez isso merece apodrecer atrás das grades, não, merece
queimar no inferno.
Não quero pensar que o Eduardo possa ser essa pessoa, ele vomitou
quando viu o corpo do Vitor, ele chorou e ficou chateado com a
possibilidade de o assassino ter retornado. Isso não o transforma na vítima
perfeita?
Liam afasta o seu rosto do meu peito e ergue o olhar, suas bochechas
estão vermelhas e os lábios avermelhados tremem por um instante.
— Desculpa.
— Nunca se desculpe por sentir sua dor.
— Eu não sou assim.
Seguro seu rosto quando ele desvia o olhar.
— Liam, todo mundo precisa de um momento.
— Mas essa não é uma hora boa para deixar isso acontecer. — Ele
resmunga, a expressão cansada pode se comparar à minha.
Estudo o buraco que acabamos de cavar e ele segue meu olhar,
quando chegamos até o corpo, não tive dúvidas de que era do Isaac, Liam
ficou paralisado, encarando os ossos como se não pudesse acreditar no que
estava vendo, o que foi a prova da qual eu precisava para ter certeza.
O céu está escurecendo e quase não consigo ver mais os ossos lá
dentro, o que significa que o tempo está passando e já não sei se é seguro
continuar por aqui. A maneira como vamos prosseguir também parece um
mistério por enquanto, eu nem devia estar realizando uma operação de
investigação sem estar na polícia, o delegado vai ficar uma fera quando
descobrir e se chamarmos a perícia, ele vai descobrir rapidinho pela
quantidade de digitais minhas nesse lugar.
— ... uma cruz. — Liam está dizendo alguma coisa, o que me tira dos
pensamentos nebulosos. Eu o observo.
— O quê?
— Os assassinatos formam uma cruz. — Ele repete, acho que está
tentando voltar a focar no trabalho que temos pela frente, talvez ache que
essa é a única maneira de se recompor, não poderia julgá-lo se pensasse
assim, eu fiz o mesmo. — Será que ele pensa que está fazendo o bem? Sei
lá, tem pessoas com a mente ferrada a esse nível?
— Acho que tem — murmuro, meio aérea.
Sinto a corrente com o pingente de espada que a Vovó Mei me deu
abaixo dos meus dedos, só então me dando conta de que a estou segurando
com força, já que as pedrinhas furam a pele.
Minha cabeça começa a doer quando tento encaixar a peça que falta
no quebra-cabeça. Finjo estar diante do quadro da delegacia, ligando uma
fitinha vermelha em cada fato do caso.
Vitor morreu primeiro, depois veio a Ana Luíza e então a Carmen.
Ana Luiza era amante do Vitor e irmã da Carmen, os três estavam ligados
por laços parentescos e de traição, além de todos terem me agredido antes
de serem mortos.
Qual seria a minha ligação nisso tudo? Paulo tinha razão ao dizer
que o assassino sentia fetiche por mim, por talvez eu me lembrar de alguém
que lhe causou muita raiva?
Penso um pouco mais e me pergunto se a Fang foi a causadora dessa
fúria, já que ela foi a primeira a morrer e era minha irmã, além de se parecer
comigo fisicamente.
Nada disso me faz entender o lance da cruz, o assassino é religioso?
O que o Liam disse faz sentido pelo posicionamento das mortes de
oito anos atrás e agora, na verdade, é como se os assassinatos anteriores
formassem uma cruz menor e as recentes formassem uma cruz maior, se
encaixando perfeitamente no meu mapa mental.
Seguro a corrente com mais força e o Liam toca minha mão.
— Não faz isso. — Ele balbucia, me obrigando a soltar a corrente. —
Está se machucando.
Uma gota de sangue escorre do corte pequeno e o tempo parece parar
enquanto observo essa gota cair no chão.
Minha mente é bombardeada com informações e solto um suspiro
quando a tatuagem no ombro do Eduardo invade minha cabeça, tão nítida
que se torna difícil refutar a ideia.
— Formam uma espada — digo com firmeza. — O assassino quer
fazer justiça para mim, porque sente fetiche, foi o que o Paulo disse. Talvez
eu me pareça com a pessoa que lhe causou muita raiva e por esse motivo ele
voltou a matar, isso explica o porquê de todo mundo que briga comigo
terminar morto.
Eduardo sentiu muita raiva da Fang antes dela desaparecer, foi
quando ele descobriu que ela era apaixonada por ele e pedia para que eu
ficasse longe. Ele também teria um motivo para fazer justiça por mim, já
que gosta de mim mais do que um bom amigo gostaria.
Liam se senta direito e franze a testa.
— O que te faz pensar que é uma espada?
— O próprio assassino — explico e ele parece confuso, então
continuo: — Foi o que ele escreveu naquele primeiro bilhete, lembra? Ele
disse que faria vermes como o Vitor sangrarem em sua espada.
Liam fica em silêncio enquanto eu passo a ver tudo em vermelho
sangue, a fúria me fazendo rir de maneira quase maníaca. Não acredito que
fui enganada dessa maneira.
— Ele usou a palavra espada e ficou me provocando — digo mais
para mim mesma do que para o Liam. — O Eduardo tem uma tatuagem de
espada no ombro.
Liam continua muito quieto, quase como se já soubesse disso.
— Ele te detesta e me fez duvidar de você por ciúmes do que nós
temos, e então eu atirei em você e quase destruí isso.
— E ele me disse que o Jeep estava fora da cidade, mas está bem ali.
— Liam termina por mim, apontando para algo lá fora e sigo seu dedo.
Observo o portão de ferro, vendo o Jeep preto que estava estacionado
lá quando chegamos e que não me parece estranho.
— Aquele...
— Sim. — Liam me interrompe. — É o carro do invasor que deixou
aquelas coisas no meu guarda-roupa. A propósito, eu mandei analisarem
aquele sangue, mas era de rato e não havia nenhuma digital naquelas coisas,
elas não foram usadas nos assassinatos.
Cubro o rosto com as mãos, o coração se partindo ao pensar no garoto
que segurava minha mão quando voltávamos da escola por medo de eu cair
e me machucar, sendo o mesmo que estrangula pessoas e as espanca.
— Eu não consigo acreditar que minha inteligência foi passada para
trás — sussurro. — Não acredito que as emoções me cegaram para o que
estava bem diante dos meus olhos.
— Ming, esse é o irmão do Eduardo. — Ele segura minhas mãos e
limpa as lágrimas que não notei terem caído. — Se foi mesmo ele quem
matou o próprio irmão, então nenhum de nós poderia ser mais frio do que
ele.
— É por isso que ele sempre esteve um passo à frente — digo, a raiva
e a dor da traição tornando a fala difícil. — Eu fui tão burra, suspeitei de
todos, menos dele. Suspeitei até mesmo de você, Liam!
— Não se culpe tanto.
— O assassino esteve bem debaixo dos nossos narizes, escutando
todas as informações que tínhamos e jogando com a gente. Foi por isso que
ele ficou furioso quando pensou que você havia ocultado evidências do
restante da equipe, foi o único momento em que ele poderia ter sido
descoberto.
Liam acaricia meu rosto e afasto suas mãos, fitando a placa que ele
deixou sobre o túmulo do próprio irmão.
— Ele chamou o próprio irmão de cachorro.
Minhas mãos estão tremendo e quando fico de pé, parece que até
mesmo minhas pernas tremem. O coração martela tão forte que sinto os
batimentos pulsarem nas orelhas, poderia atirar na cara do Eduardo agora
mesmo e nem hesitaria.
Liam fica de pé e percebo a careta que ele faz ao segurar o braço que
eu atirei.
— Você está bem? — pergunto, me aproximando dele. — Droga, eu
não devia ter deixado você se esforçar.
— Eu estou bem. — Ele diz com firmeza, pegando o boné que caiu
da sua cabeça em algum momento.
— Liam, você está ferido.
— Não se preocupe comigo, Ming. — Ele olha para o céu. — Está
com seu celular?
Assinto e o puxo do bolso, desbloqueando a tela. Falta uma hora para
o turno da noite começar na delegacia, o que significa que o assassino ainda
pode voltar aqui.
— Acho que devemos ir.
— E o corpo? — Ele pergunta e respiro fundo.
— Podemos fazer uma denúncia anônima, isso vai livrar a gente por
um tempo, até pensarmos em uma coisa para dizer ao delegado.
— Eu não sei, é possível que esse corpo desapareça até alguém
responder a denúncia?
Olho para além do portão, ainda estou pronta para uma briga, então
decido tomar uma decisão imprudente.
Abro nas conversas com o Eduardo e começo a digitar.
ONDE VOCÊ ESTÁ?
Demora quase dez minutos, mas ele finalmente me responde.
NÃO POSSO FALAR AGORA, MING. DESCULPA
A frieza da sua mensagem me faz pensar que talvez ele esteja
desconfiado.
— Quer saber? — Liam diz enquanto lê as mensagens por cima do
meu ombro. — Vamos sair daqui e fazer a denúncia, se o corpo desaparecer,
pensamos no que fazer depois.
Concordo com a cabeça e juntamos tudo antes de sair, não nos
preocupando em fechar o portão, o buraco no meio do quintal vai alertar
que alguém esteve aqui, e pela quantidade de coisas que o Eduardo sabe, é
óbvio que ele terá noção de quem invadiu. Assim que vier atrás de nós,
estarei pronta para acabar com ele.
Abro a porta do carro do Liam, mas a fecho de novo ao reconhecer o
carro do Eduardo virando a esquina da rua. Meu coração acelera com a
possibilidade de ele estar vindo para cá e ver a gente, só que isso não
acontece.
Liam e eu nos agachamos e vemos meu ex-melhor amigo estacionar o
carro, ele não olha em nossa direção quando trava as portas e caminha em
direção ao prédio abandonado. Sua expressão não é nada amigável e me
pergunto se esse é o verdadeiro Eduardo, aquele que eu não quis enxergar.
Vejo nisso minha chance de encurralá-lo e me viro para o Liam.
— Faz a denúncia anônima e tira o seu carro daqui. Eu vou...
— Um caralho que vai! — Ele exclama em um sussurro, estreitando
as sobrancelhas ao segurar meu braço. — Não vou te deixar entrar lá
sozinha.
— É a nossa chance.
— Então eu vou com você.
— Está com o braço machucado.
— Foda-se, Ming. Poderia estar sem as pernas e ainda iria com você.
Suas palavras me fazem perder o fôlego, mas o local e a situação não
me permitem deixar a excitação se ampliar.
— Ok. — Me deixo ser vencida, sabendo que não há chances de
convencê-lo a mudar de ideia.
— Vamos fazer a denúncia e colocar o carro em outra rua, aí sim
entramos. — Ele diz baixinho. — Se ele sair nesse meio tempo, nós o
seguimos, ou entramos depois que ele for embora. Estou com a sensação de
que a próxima vítima será encontrada naquele prédio.
— Isso se a intenção dele não for esconder a última vítima.
— Se é que ele vai parar dessa vez. — Liam complementa.
Seguimos passo a passo do plano dele, claro, comigo resmungando o
tempo inteiro de impaciência. Quando por fim paramos em frente ao prédio,
o carro do Eduardo ainda está aqui.
— Como será que ele quebrou o próprio braço para parecer inocente?
— pergunto, lembrando que ele ainda está com o gesso em um braço.
— Quer mesmo entender uma mente insana? — Liam pergunta. —
Sem falar que ele teve um cúmplice, não é? O Paulo pode muito bem ter
dado um jeito nisso.
Ele tem razão.
— Tem alguma ideia de em qual andar ele está?
— Não.
— Cuida dos dois primeiros — sussurro, pegando a arma que ele me
entrega. — Eu cuido dos dois últimos.
Ele assente e carregamos as armas ao mesmo tempo.
Assim que entramos, ele vai para um corredor e eu subo as escadas, a
arma o tempo inteiro posicionada para atirar. O prédio também é
abandonado, então não corro o risco de esbarrar em alguma criança ou ser
denunciada por invasão quando abro as portas dos micros apartamentos.
São sete portas em cada andar e quando não encontro nada no
primeiro, me pergunto se o Liam encontrou alguma coisa.
Subo para o último andar e também não encontro nada nos sete
apartamentos, estou quase voltando para dar reforço ao Liam, temendo que
ele tenha encontrado o Eduardo, quando vejo mais uma escada,
provavelmente levando para o terraço.
Não espero encontrar nada, o plano é somente dar uma olhadinha
antes de descer para ver como o Liam está, porém, o que vejo me deixa em
estado de choque.
O que está acontecendo aqui?

LIAM

Eduardo não está nos dois primeiros andares e me arrependo de ter


concordado em ver esses, era óbvio que ele estaria mais para cima.
Subo mais um lance de escadas, preocupado com a Ming. Não quero
chamar por ela e deixar o assassino ciente de que ela não está sozinha, mas
também não quero perder tempo olhando todos os apartamentos.
As portas estão abertas, então suspeito de que ela passou por aqui e
não encontrou nada. Arrisco subir para o quarto andar, o braço doendo de
tanto tempo que o forcei para cima, mantendo a arma firme.
Novamente todas as portas estão abertas, não há sinal de movimentos.
Franzo a testa, me perguntando onde essa mulher se enfiou. Estou
quase entrando em cada um dos apartamentos quando escuto um estrondo
acima de mim.
Olho em volta, o coração acelerado com a possibilidade daquele
desgraçado ter encostado nela, vejo uma escada escondida e subo sem
pensar duas vezes, encontrando uma porta fechada. Está meio emperrada
quando tento abrir, então coloco o peso do meu corpo sobre ela e forço,
fazendo a porta abrir de uma vez.
A primeira coisa que vejo é a Ming sentada no chão com sangue
escorrendo do nariz. Minha respiração se torna errática e o sangue corre
quente pelas minhas veias, a raiva me faz sentir que não vou hesitar quando
apontar essa arma para o filho da puta que a fez sangrar.
Dou um passo à frente, ela olha para mim e arregala os olhos.
— Liam... — Ela murmura e nega com a cabeça. Olho em volta,
tentando entender o motivo do seu desespero silencioso.
É quando vejo o Eduardo e o Felipe rolando no chão, ambos estão
machucados, mas eu diria que o Eduardo está bem mais e abro um sorriso
para isso.
Vou me lembrar de dar os parabéns para o Felipe quando esse
inferno acabar.
Eduardo consegue derrubar o Felipe e aponto a arma para sua cabeça.
— Parado! — exclamo e os dois homens ficam imóveis por um
segundo.
— Liam, não!
Volto a olhar para a Ming, ela está de pé outra vez.
Não entendo o que ela está dizendo, nem chego a entender, pois,
nesse momento, o som de um tiro ecoa no terraço.
MING
Escuto o gemido de dor, vejo a agonia nos olhos do Eduardo e sei
quem foi baleado. Felipe estava armado e ninguém esperava por isso.
Liam arregala os olhos e corre para o lado dos dois.
— Não o deixe morrer! — Liam grita. — Ele é o assassino!
Só que não é, e ele ainda não percebeu isso.
— Liam, não! — exclamo mais uma vez, porém, é tarde demais, o
Felipe já acertou seu rosto com a arma.
Assisto o Liam cambalear por um instante, deixando a arma cair antes
de firmar o corpo e encarar o Felipe com confusão no olhar.
— O que está fazendo? — Ele pergunta, mas o Felipe não responde,
na verdade, ele parece transtornado.
Seus olhos e sorriso são cruéis e não entendo como me enganei tanto.
Olho para a arma que ele jogou longe assim que me acertou um soco,
talvez se eu correr rápido o suficiente possa levar... um tiro na cabeça.
Respiro fundo, uma tentativa de manter a calma. Agora não é hora de
entrar em pânico, nem de deixar a raiva me cegar, preciso pensar em algo e
rápido.
— Vocês estragaram tudo, mas não estou surpreso. — Felipe
finalmente diz em uma voz áspera e o Liam parece se dar conta do erro que
cometemos.
— Como...? Não, não pode ser você.
O Felipe arqueia uma sobrancelha, não está mais andando curvado
nem agindo como um pateta, quase como se o homem que conhecemos não
passasse de um personagem para nos enganar.
— Faz ideia de como fingir ser um idiota foi cansativo? — Felipe
pergunta. — Eu queria arrancar seus dedos toda vez que repreendia a minha
postura.
Estremeço, olhando para o sangue que escorre do estômago do meu
melhor amigo. Estou falhando de novo, vou perder mais uma pessoa que
amo por idiotice minha.
Entrei nesse prédio, apontando minha arma e pronta para dar aquele
tiro em Eduardo, eu nem sequer pensaria duas vezes e me pergunto se nasci
para ser policial, visto que seria a segunda pessoa inocente que eu balearia.
Quando abri aquela porta e vi o Felipe estrangulando meu amigo com
um enforca-gato, levei muito tempo para reagir, quase não acreditei no que
meus olhos me mostravam. Só que em vez de atirar como vim pronta para
fazer, o choque me fez correr e acertar um chute no rosto do verdadeiro
culpado.
Em questão de instantes, ele conseguiu me derrubar, empurrar minha
arma longe e entrar em uma luta corporal com o Edu.
Estou me sentindo uma fracassada enquanto vejo, impotente, o Liam
tentar lutar contra uma arma e com um braço machucado.
Não sei bem de que modo prosseguir, é a primeira vez que não reajo
antes de pensar, é a primeira vez que me pego completamente imobilizada,
até parece que minhas pernas não pertencem mais a mim.
— Por quê? — Liam pergunta para ele e não sei se está tentando
ganhar tempo, já que não é muito útil querer entender a mente de alguém
tão... instável, é isso que seus olhos me lembram, de uma pessoa
completamente descompensada.
Felipe dá de ombros, limpando o sangue do Eduardo na camisa antes
de fazer uma expressão de pesar.
— Não queria mesmo matar ele, sério. Não o teria feito caso ele
tivesse ficado quietinho, mas o idiota chegou muito perto de mim, foi muito
mais rápido do que a sua guerreirinha. Isso me deixou um pouco irritado, já
que eu ainda sinto raiva e queria jogar mais um pouquinho.
Quero me aproximar do Edu e tentar estancar seu ferimento,
infelizmente, agora o Felipe está me encarando com um sorriso bem menos
cruel dessa vez.
Seus olhos baixam para o meu corpo, subindo lentamente.
— O plano não era ter você, eu sempre quis a Fang, mas ela foi uma
vadia, então não seja uma puta, Ming, ou vai terminar exatamente como ela.
Liam solta um som de desaprovação e quero esganá-lo por sentir
raiva de uma coisa tão pequena agora, principalmente quando tem uma
arma apontada para ele.
— Nervosinho? — Felipe pergunta para ele.
— Se falar com ela assim de novo, eu vou...
— Vai o quê? — Felipe encosta a arma na cabeça do Liam e para a
minha surpresa, o imbecil do meu namorado, o desafia com o olhar.
— Eu vou matar você. — Liam avisa e o ódio na sua voz me faz
acreditar por um momento que ele tem um plano, pelo menos até perceber
que ele só está agindo por impulso como eu geralmente faço. Parece que
invertemos os papéis e agora ele quer ser o imprudente. — Vou te fazer
sofrer e vou gostar disso.
Felipe solta uma gargalhada e não há sinais do som de porco que ele
sempre fazia, até nisso o infeliz nos enganou.
— Eu adoraria ver você tentar, mas duvido que conseguiria, você é
fraco demais para matar alguém.
— Olha pra ela assim de novo, e eu vou te mostrar que está errado.
— Liam — repreendo e o Felipe me encara.
— O que aconteceu, gatinha? Arrancaram suas garras? — Ele ri do
próprio trocadilho. — Ele é o seu ponto fraco, não é? Está morrendo de
medo de eu dar um tiro na cabeça desse otário.
— Por que está fazendo isso, Felipe? — questiono, o pavor quase me
vencendo. — O que aquelas pessoas fizeram para você?
Ele se afasta do Liam e o alívio me domina, mesmo que ele continue
segurando a arma.
— Quer mesmo saber?
Liam e eu o observamos quando ele se senta em um tambor
enferrujado, o tempo inteiro esperando uma brecha para avançar.
Dessa vez eu realmente quero ganhar tempo, apesar de que o Edu não
possui muito disso.
— Quero — respondo e em parte é verdade, afinal, ele deve ter tido
pelo menos um motivo forte no começo, quer dizer, antes de matar a
primeira pessoa. Com certeza ele não estava só entediado.
— Eu estava entediado.
O desprezo deve ser nítido no meu olhar, estou tentando manter a
calma, mas sua resposta me irrita a ponto de precisar fechar as mãos em
punhos e fantasiar que eles acertam seu rosto de maluco.
— Brincadeira. — Ele ri. — Você fez uma expressão bem sexy agora.
Liam rosna como um cachorro e lanço um olhar de aviso na sua
direção, o fazendo se calar.
— Isso não é meio chato? — Felipe questiona, apontando a arma de
mim para o Liam. — A mulher mandar na relação não é meio broxante? —
Ele não para de sorrir e quero quebrar todos os seus dentes. — Apesar de
que ouvi o que vocês estavam fazendo aquele dia e não tinha nada de
broxante naqueles gemidos.
Liam avança na direção dele e, em um instante, a arma está virada na
sua direção, não que o Liam pareça disposto a parar.
— Se der mais um passo, eu vou estourar seus miolos. — Felipe
alerta, a expressão determinada me destruindo.
Estou quase me ajoelhando e implorando por piedade e o Liam deve
sentir isso, visto que para de andar e me lança um olhar preocupado. Só
então me dou conta de que soltei um choramingo.
— Eu não entendo — sussurro, encarando o homem que mais parece
um garoto. — Não tinha nada suspeito em você.
— Por que eu era um cara desengonçado? Medroso? Alguém infantil?
— Felipe suspira. — Era exatamente assim que queria que vocês me
vissem. Queria que me subestimassem.
— O Paulo disse que você é obcecado por mim — jogo a informação
no ar e ele solta um grunhido.
— Aquele verme fala demais, faz ideia de quanto me custou tirar ele
da cadeia antes de terminar de contar que foi eu quem matou aquelas
pessoas?
— Você o matou? — pergunto, tentando permanecer fria e
impassível.
— Ah, ainda não. — Ele ri alto e volta a abaixar a arma. — Mas
pretendo, assim que terminar com você.
O vejo encarar o Liam e sinto meu lábio inferior tremer. Felipe tem
razão ao dizer que Liam é o meu ponto fraco, eu estou morrendo de medo
de algo irreversível acontecer nesse terraço.
— Por que? — pergunto e ele volta a me olhar.
— Decidi que já cansei de deixá-lo brincar com o meu brinquedinho.
Liam ameaça avançar de novo e me viro para ele.
— Chega!
Felipe gargalha, se curvando no tambor de tanto rir, como se nossas
vidas fosse uma eterna piada para ele.
— Sabe que se me deixar viva eu vou te caçar, não sabe?
Liam me observa como se eu fosse idiota por estar dizendo isso, já
que praticamente coloquei a arma na minha cabeça, já o Felipe dá de
ombros como se isso não significasse muito.
— Não me importo, até acho sexy. — Ele pisca um olho para mim,
parecendo querer irritar o Liam. — Na verdade, eu nem pretendia fazer
nada com vocês agora, estava divertido ver os dois juntos e fantasiei com o
dia que estragaria isso, mas ele te magoou e esse dia chegou mais cedo do
que eu previa.
— Por que eu? — questiono, dando um passo à frente, ele não se
importa com o meu avanço.
Vejo o olhar sacana que ele me lança e tenho vontade de vomitar, mas
apenas o encaro com firmeza.
— Fang.
A palavra quase me derruba e apesar de sentir as lágrimas começarem
a inundar meus olhos, tento agir como se nada pudesse me derrotar.
Lentamente construo uma muralha à minha volta.
Esse é o momento que esperei por oito anos, não vou estragar agora.
— Tudo começou com ela. — Ele continua falando. — Fang me
rejeitou, me humilhou e negou o que eu sentia por ela. Culpe sua irmã pelas
mortes que se seguiram.
— Está falando sério? — Perco a paciência. — Matou pessoas por um
fora que levou de uma garota no ensino médio?
— É isso aí. — Ele dá de ombros e me desafia com o olhar, sabendo
que eu não posso fazer nada, já que é ele quem possui uma arma. — Eu era
um garoto normal até sua irmã envenenar meu coração com ódio. Minha
psicóloga dizia para eu descontar a raiva em um hobby, então arrumei um.
— Matar? — Liam solta um som de nojo. — Você é ridículo.
— Não esqueça de quem está armado, Liam. Quer acabar como
aquele idiota?
Olho para o chão e é estranho, porque a primeira coisa que reparo, é
que o sangramento do Eduardo parou, a segunda é que seus olhos estão
levemente abertos e a terceira que sua mão segura um canivete e que é dela
que vem o sangue, não de um corte no estômago.
Ninguém mais se dá conta do que o meu amigo está fazendo e respiro
fundo, aliviada por ele não estar realmente morrendo, mas sabendo que sua
farsa não durará muito mais. Ele deve estar com um colete à prova de balas,
o que significa que veio preparado para essa briga.
Liam franze a testa ao seguir meu olhar e sei que ele vai sacar, é
inteligente o suficiente para isso.
Não percebi que o Edu queria tanta vingança quanto eu, deve ter sido
por isso que ele mentiu para o Liam sobre o carro. Talvez ele sentisse que
precisava resolver isso sozinho para poder seguir em frente.
— Bom, a Fang eu matei por rancor, confesso. — Felipe diz e é como
se estivesse cravando uma faca no meu peito, quero fazê-lo se arrepender de
cada palavra. — Ela era uma vadia e mereceu a morte, não me arrependo.
Ele está tentando acender a pólvora que vive dentro de mim e,
enquanto não conseguir, vai ficar tudo bem, mas se continuar falando da
Fang assim, eu explodirei e não faço ideia do desastre que vai resultar disso.
Estou machucando minhas palmas com as unhas na tentativa de me
segurar.
— A segunda garota que eu matei foi por acidente, ela me irritou e
quando dei por mim, a coitadinha já estava quase morta. Terminei o serviço
por pena. — Ele balança as pernas e parece que está contando uma
historinha para uma criança, não o motivo por ter se tornado um assassino
em série. — A terceira, foi meio que por diversão. Era bom demais saber
que ninguém nunca me descobriria e ver a expressão das pessoas quando
encontravam os corpos era excitante pra caralho.
— Por que o Isaac foi o único que você não deixou o corpo para ser
encontrado?
— Aaah, o Isaac... — Felipe faz uma expressão sonhadora. — Vocês
descobriram onde ele estava se escondendo? — Sua risada é como milhares
de víboras se enroscando em minha pele; simplesmente repugnante. — Ele
foi por conveniência, quer dizer, não exatamente. Ele estava quase me
descobrindo, é verdade, mas o meu plano era matar o Eduardo, já que ele
era o maior motivo da Fang não querer estar comigo, só que o Isaac estava
lá no dia, sozinho e parecendo arrasado, então, fiz o que tinha que ser feito.
Eu não o deixei à mostra porque o pobrezinho já havia sido humilhado o
suficiente pelo seu namoradinho.
O Liam solta outro som que soa como o de um animal e nem posso
culpá-lo por isso, Felipe é um filho da puta, nem acredito que o deixei
chegar tão perto de mim e passei a considerá-lo um amigo.
— Depois dele, a raiva desapareceu. Acho que me senti vingado e a
minha psicóloga me ajudou a perceber que existiam mais garotas, então
procurei por uma que se parecesse com a Fang. Você, Ming.
Ele faz um gesto como se dissesse: TCHARAM!
— Te vi se formar e ir embora da cidade, mas sabia que retornaria por
mim, podia sentir a escuridão nos seus olhos, ela se parecia muito com a
que via em mim mesmo.
Meu estômago se revira com a possibilidade de ser parecida com esse
verme, dou mais um passo à frente, percebendo que posso usar sua loucura
a meu favor.
— O que aconteceu depois? — pergunto em uma voz doce e o Liam
vira a cabeça em minha direção, parecendo prestes a gritar.
Felipe sente a diferença e sorri para mim.
— Eu esperei e preparei o terreno para o nosso jogo. Entrei para a
polícia e tracei meu plano. — Ele pisca um olho para mim. — Só que eu
não esperava que quando você voltasse, traria consigo toda a raiva que eu
pensei ter sido esquecida. Te vi antes mesmo de sair daquele carro para
brigar com o verme do Vitor.
— Você estava lá? — Tento soar sedutora ao me aproximar mais e
escuto o resmungo que o Liam solta, ele não é idiota, sabe o que estou
fazendo aqui, acho que por isso não disse nada.
— Sim, e eu odiei quando aquele idiota tocou no que era meu para
machucar. — Ele pula do tambor, me encarando com desejo e fazendo
minhas entranhas se contorcerem. — Eu comecei a matar um por um de
novo, a diferença dessa vez é que minha raiva já foi embora desde a morte
do Vitor, mas a diversão tem crescido a cada pessoa que estrangulo.
Ele puxa meu braço e encosta a arma na minha testa, surpreendendo
todos nós.
— Acha mesmo que não entendi seu plano, gatinha? — Ele balança a
cabeça para mim. — Te perdoei quando interrompeu minha diversão com
aquele ali, mas não posso fazer isso duas vezes.
É hora de explodir.
Em um movimento rápido, bato uma mão na sua arma, a fazendo ir
parar longe antes que ele apertasse o gatilho e jogo minha cabeça para
frente com toda minha força, atingindo seu nariz.
Liam começa a correr em direção à uma arma, mas, nesse momento,
Paulo passa pela porta com o rosto banhado em lágrimas.
— Sinto muito, Liam. — Ele diz e um segundo depois pula no meu
namorado, iniciando uma luta corporal.
Não sei em qual momento o Felipe o chamou, ou se ele estava aqui o
tempo inteiro para o caso de algo dar errado, só sei que isso já está me
aborrecendo.
Felipe atinge meu estômago com um soco e me curvo com a falta de
ar, um segundo depois sinto o seu joelho atingir o meu nariz.
— Se lembra disso? — Felipe sussurra perto do meu ouvido enquanto
o sangue pinga no chão. — Foi o jeito que você atingiu o Vitor, estive
treinando. Acha que ficou igual?
Trinco os dentes, tentando suportar a dor. Pelo canto do olho, vejo o
Eduardo se levantando sem que o Felipe perceba.
Ele puxa meus cabelos, me obrigando a olhar no seu rosto, só para
socar meu estômago outra vez.
Caio no chão sem conseguir respirar, consigo escutar o som de briga à
minha volta, mas não consigo lembrar como expulsar o pânico. Estou
assustada e isso está interferindo nos golpes que desfiro.
Meus movimentos são muito lentos e fracos, a mente e o coração não
estão em sincronia. Todo o meu corpo está doendo e odeio admitir, mas
preciso de ajuda.
Liam está ocupado demais com o Paulo, Eduardo apesar de não ter
sido mesmo baleado, está levando muito tempo para reagir, quase como se
estivesse sem ar.
Assim que recupero o fôlego, volto a ficar de pé, mantendo a posição
de luta. Eu só preciso continuar firme e não deixar que ele encontre
aberturas para atacar.
Seus olhos estão com resquícios de insanidade, consigo notar a
diferença, ele não vai parar mais, quase como se estivesse desconectado de
uma alma com capacidade de sentir compaixão. Felipe é uma casca vazia e
me surpreende que no dia a dia consiga fingir emoções.
Não era ele quem chorava e fazia ligações para psicólogas tarde da
noite no trabalho? Por falar nisso, como essa psicóloga não percebeu a
fragilidade da sanidade desse homem? Ele não vai até ela desde a
adolescência?
Quando ele se aproxima de novo, o Eduardo surge ao meu lado,
fazendo uma faísca de surpresa aparecer na expressão do Felipe.
— Eu devia imaginar que vocês dois iriam se juntar para vingar os
irmãos. — Ele finge encarar as unhas. — Mas eu não matei você?
Edu solta um som de descrença e corre na direção do Felipe, eu o sigo
e assim que ele atinge um soco no rosto do desgraçado, me agacho e dou
uma rasteira.
— Vocês são como carrapatos. — Felipe grunhe, limpando o sangue
do nariz.
Olho para trás, Liam está terminando de algemar o Paulo.
— Acabou, Felipe — digo, indicando o seu comparsa algemado.
Ele solta uma gargalhada histérica e pula em direção a alguma coisa,
só então percebo que o derrubamos perto demais de uma arma.
Me viro para o Edu, pronta para empurrá-lo para longe da mira do
Felipe, porém, é tarde demais, ele já apertou o gatilho.
Dessa vez, a bala atinge a perna do Edu e ele cai de joelhos, gemendo
de dor. Quando vejo o cano da arma apontada para a cabeça do meu amigo,
solto um grito.
— Ming! — Escuto o Liam rosnar meu nome, mas isso não me
impede de correr para a frente do Edu e o abraçar, deixando minhas costas
expostas ao perigo. — Não! — Liam exclama e escuto seus passos.
Tudo fica em silêncio pelo que parecem séculos, quando finalmente
crio coragem para olhar, Felipe está apertando o gatilho freneticamente,
mas, pelo jeito, nossa sorte é grande o bastante para ter feito a munição
acabar justo quando mais precisávamos.
Liam está com uma expressão de desespero e dor congelada no
semblante, Edu parece chocado por eu ter me jogado na frente de uma arma
por ele e eu estou aliviada pelo perigo parecer distante.
Tudo isso dura pouco tempo e logo estamos encarando o Felipe com o
mesmo olhar de ódio.
Fico de pé e vou na direção dele, o vendo se rastejar para a beirada do
terraço, a expressão lentamente percebendo que não tem muito o que fazer,
somos em três e ele é apenas um.
— Você matou sete pessoas — digo e agarro seu colarinho, dando um
soco pela Fang, um pelo Isaac e outros cinco pelas pessoas que foram
assassinadas por ele. Quando o solto, meu punho está manchado com o seu
sangue e minha raiva não diminuiu nem um pouquinho. — E vai apodrecer
atrás das grades por isso.
Ele abre um sorriso ensanguentado.
— Acha mesmo?
Estreito os olhos.
— Tenho certeza.
Ele solta um assovio e olho por sobre o ombro, esperando que isso
seja mais um sinal de que essa briga não terminou. Nada parece diferente,
ninguém entrou pela porta com outra arma.
Volto a encará-lo, mas ele já está de pé, correndo para o peitoril.
Meus olhos se arregalam ao me dar conta do que ele está fazendo.
— Felipe! — grito e corro atrás dele.
— Eu nunca deixo um desenho incompleto, e prometi uma espada a
essa cidade. — Ele me lança um olhar que pela primeira vez está repleto
com emoção. Ele me olha com sofrimento. — A sua conta está errada,
Ming. Eu matei oito pessoas.
Então ele pula.
MING
Não sei exatamente como as coisas se desenrolaram, fiquei um pouco
mais aérea do que esperava.
Então é assim que acaba? O que eu esperava exatamente que fosse
acontecer?
Essas perguntas ficaram rondando minha mente.
Passei oito anos me dedicando a achar o culpado e, sinceramente, não
sinto que isso mudou muita coisa dentro de mim. Sinto que minha irmã
pode descansar em paz agora, porém, a dor que em algum momento pensei
que desapareceria, continua aqui.
A raiva amenizou, o rancor apaziguou, mas o luto ainda me rasga por
dentro.
Acreditei mesmo que essa busca incessante faria o fato de ter perdido
minha irmã desaparecer?
Observei removerem o corpo do Felipe da rua e continuei olhando
para o seu sangue no chão, isso não me fez sentir melhor.
Sei que o Eduardo foi levado para o hospital, algo sobre o corte que
ele causou a si mesmo ter o feito perder mais sangue do que ele esperava e
ser muito profundo, ao menos acho que foi isso que escutei. Liam também
deveria ter ido, já que o seu braço estava sangrando, o que significa que os
pontos podem ter estourado, mas ele se manteve ao meu lado e eu não tive
forças para dizer a ele que fosse.
Uma parte de mim odeia se sentir triste pelo cara desengonçado e
com risada de porquinho, mesmo que ele nunca tenha existido de verdade.
Outra parte se sente aliviada por saber que ninguém mais vai precisar sofrer
nas mãos dele.
— Eu sei que você esperava um fim diferente. — Liam diz quando
me guia até o carro. — E não precisa se sentir culpada por lamentar a perda
dele, apesar de tudo, conhecemos uma versão do Felipe que vai fazer falta,
mesmo que agora esteja manchada com as atrocidades que ele cometeu.
— Não é só isso.
Não sei como dizer que quando me deitar na minha cama, ainda vou
sonhar com o corpo da minha irmã, ainda vou chorar por ter perdido
alguém tão incrível e por jamais poder abraçá-la novamente nessa vida.
Em oito anos, me concentrei em uma vingança tola somente para não
sentir o luto, mas agora não existe mais nada em que me agarrar para fugir
do quanto sinto falta dela.
— Ela sempre vai fazer falta, linda. — Ele murmura, como se
estivesse lendo minha mente.
Liam abre a porta do passageiro para mim e quando me sento no
banco, ele se ajoelha no chão.
— Você devia estar no médico — digo, tentando não chorar.
Ele segura minha mão e toca minha bochecha com a outra.
— Você precisa de mim e eu sempre vou estar aqui.
— Quer me amolecer, não é? — pergunto em um choramingo,
fechando os olhos para conter a tristeza de saber que minha irmã foi morta
por capricho de um adolescente.
— Quero te fazer sentir paz, linda. Quero ser a sua paz. — Ele afasta
o cabelo do meu rosto e se aproxima, beijando minha têmpora. — Sempre
que sua mente se tornar um lugar escuro demais, quero ser a luz que vai te
trazer conforto. E se seu coração ameaçar partir, espero que saiba que pode
me usar o quanto quiser para impedir que ele se parta.
— Eu não sei se te mereço — sussurro, abrindo meus olhos. Acaricio
sua bochecha. — Mas não vou te deixar ir embora.
Ele beija a palma da minha mão.
— Sei que aquilo foi cruel de se ouvir. — Sua expressão está séria. —
Sei que você esperava mais desse dia, sei que queria poder prender o
culpado e seguir em frente. Mas é compreensível ainda sofrer, mesmo que
não fosse isso que você esperava.
— Só estou confusa — confesso. — Esse é o fim? Ainda sinto como
se alguém pudesse aparecer morto a qualquer instante e o assassino deixar
um bilhete, dizendo que tudo isso foi uma grande pegadinha. Como se essa
busca fosse eterna.
— Acabou, amor. — Ele me puxa para um abraço e me aconchego no
seu cheiro e no seu calor. — Não vou deixar mais ninguém te machucar,
nunca. Isso é uma promessa.
— Eu te amo, Liam.
Sinto sua respiração profunda e escuto os batimentos acelerados do
seu coração. Ele solta uma risada suave e se queria ser minha paz, nesse
momento ele consegue ser.
— Eu sei, linda.
Também sorrio do quanto ele é convencido.
— Como é modesto — ironizo e ele faz cafuné nos meus cabelos.
— Eu odeio quebrar esse momento maravilhoso, porque sinto que
esse seria o momento do filme em que os protagonistas teriam um momento
épico de sexo doce no carro, mas o Patrick vai foder com a minha cabeça se
ninguém aparecer naquela delegacia agora e o Leo vai odiar muito saber
que outro homem está me deixando louco.
Pedro aparece atrás do Liam e solto um suspiro enquanto o homem
que amo afunda o rosto no meu ombro, grunhindo de frustração.
— Droga, o Patrick. — Ele resmunga nos meus cabelos e faço uma
careta.
— Ouvir aquele idiota estava me dando vontade de colocar a playlist
do Leo no celular e usar fones de ouvido. Vocês não fazem ideia de como a
playlist do meu noivo é horrível. Sério, meus ouvidos sangram toda vez que
ele coloca aquela porcaria no rádio do carro.
— Você falando assim só vai fazer a gente querer fugir — falo,
sabendo que terei que fazer parte dessa conversa de qualquer forma, mesmo
estando afastada.
O que vou fazer da minha vida agora? Nem trabalho vou ter mais
depois dessa noite.
Serei forçada a servir mesas pelo resto da vida, não que trabalhar no
restaurante da minha família seja ruim, não é. Só que tenho um coração
selvagem e gosto muito de adrenalina e encontrar pistas e... eu amo de
verdade ser inspetora.
— Nem vem, estou puto pra caralho por não ter feito parte desse
showzinho.
— O Felipe se matou, Pedro. — Liam grunhe e o Pedro solta uma
risada amarga.
— O desgraçado enganou todo mundo. — Ele cruza os braços. — O
pior é que eu me sinto um merda por lamentar a perda dele. Um assassino...
que cuzão.
Liam me olha como se dissesse que não sou a única com a mente
travada nessa questão e dou de ombros, aceitando que não será hoje que irei
resolver isso.
— Acho que vou precisar de uma psicóloga — murmuro, me
apoiando no banco.
— Vou providenciar e garantir que não seja a mesma do Felipe. —
Liam diz e quando lhe lanço um olhar mortal, ele ergue as mãos com uma
expressão inocente. — O quê? Nunca se sabe, você já atirou em mim por
muito menos.
— Engraçadinho.
Ele se levanta e vira para o Pedro.
— Qual o nível de paciência que vamos precisar para ter essa
conversa com o Patrick?
— Não existe essa coisa de paciência. — Pedro manda a real e olha
para mim, ainda sentada no banco do carro. — E, se prepare, porque o
esporro que você vai tomar...
Mordo o lábio inferior quando ele balança a cabeça e não termina a
frase.
— Calma, eu vou resolver. — Liam tenta me tranquilizar e dá a volta
no carro, pegando seu celular no painel. — Só preciso fazer uma ligação.
Ele se afasta e o Pedro solta um suspiro.
— O idiota já está sentado na merda e agora quer se lambuzar nela.
Não entendo o que ele quer dizer com isso, estou ocupada demais
preparando minha mente para lidar com tudo que vier depois.
Liam demora um século para voltar e ao olhar na sua direção, percebo
que parece estar no meio de uma discussão.
Pedro se sentou na calçada, de frente para mim, e agora está me
encarando sem nem piscar, quero que o Liam volte logo.
— Uma perguntinha para pesquisa pessoal, atirar no homem que ama
quando está com raiva alivia o estresse?
— Que tipo de pergunta é essa? — questiono, chocada por ele
conseguir falar de qualquer outro assunto que não seja o inferno que
passamos aqui hoje.
— É só que depois daquele tiro, acho que o Liam perdeu o resto de
juízo que tinha. — Ele pondera por um momento. — É... ele realmente
ficou ainda mais xonadinho, e eu achei que fosse impossível, então estou
pensando seriamente em atirar no Leo, só de raspão, sabe? Ele tem me
estressado muito nos últimos dias.
— Pedro, não atire no seu noivo.
Nem acredito que realmente disse isso. Quais as chances de alguém
considerar uma coisa dessas?
Estava achando que ele queria amenizar o clima com uma piada, mas
a expressão decepcionada que ele faz sugere o oposto.
— Liam! — chamo, preocupada em ficar sozinha com o Pedro, nada
de bom pode sair de dois doidos.
— Relaxa, estou deixando a arma no carro quando volto para casa, só
pra não cair na tentação.
— Fala sério, Pedro. — Liam volta para perto de nós. — Para de ser
estranho com a minha mulher, ela já é maluca o suficiente sem a sua ajuda.
— Eu vou atirar nele de novo — rosno e o Pedro tira a arma do
coldre, me entregando.
— Não passa vontade.
— E eu achando que éramos amigos. — Liam resmunga, saindo do
meu campo de visão. — Pega essa arma dela, Pedro! Ela não tem senso de
humor, isso não foi uma piada.
Pedro solta uma risada, mas pega a arma de mim e fica de pé.
— Acho que a gente precisa marcar outra saideira. A propósito, faz
tempo que não te vejo caindo, Ming.
— Você tem sorte que pegou essa arma de mim antes de dizer isso,
senão ia escorregar meu dedo no gatilho.
Ele solta outra risada, mas quando esse momento de distração passa, a
tristeza volta para o rosto de cada um de nós.
— Isso foi uma merda — sussurro e apoio o rosto nas mãos.
— É... foi mesmo. — Pedro concorda.
Liam respira fundo e entra no banco do motorista.
— Nos vemos na delegacia. — Pedro se despede e concordo com a
cabeça.
— Tchau.
Liam faz um sinal com a mão e fechamos nossas portas.
— Vamos resolver logo isso e ir pra casa. — Ele murmura e só agora
me dou conta de que não falei com a minha família o dia todo, eles devem
estar morrendo de preocupação.
— Com quem estava falando? — pergunto, procurando pelo meu
celular.
— Com meu pai.
Fico imóvel, então me viro para ele.
— O que disse? Acho que não escutei direito.
— Com meu pai. — Ele repete, ligando o carro.
— Por quê?
— Ele pode resolver essa situação com o Patrick.
— Seu pai me odeia.
Liam sabe disso, sabe que seu pai não me aprova e provavelmente
nunca me ajudaria.
O assisto dirigir, esperando que ele me contradiga, que ele fale que
seu pai gosta de mim, mas é teimoso para admitir, ou que ele odeia todo
mundo, qualquer coisa que me faça sentir melhor, mas o seu silêncio é
cortante. Ele está admitindo que estou certa e isso quer dizer que não posso
ter esperança.
— Ele se recusou a fazer qualquer coisa, não é?
Ele solta um suspiro.
— Sim.
— Está tudo bem, eu...
— Não está. — Liam me interrompe, franzindo a testa. — Eu odeio
quando ele quer agir como um chantageador de merda.
Isso me surpreende, eu não notei que ele estava com tanta raiva, mas
está e ouvi-lo falar assim do pai cujo sempre quis agradar, me deixa
receosa.
— O que aconteceu?
— Nada.
Liam se recusa a falar e estreito os olhos.
— O que ele disse, Liam?
Ele solta um suspiro e parece arrasado quando me lança um olhar
antes de parar em um semáforo.
O vejo apoiar o rosto no volante e estremecer.
— O quanto você me ama, Ming?
— Que tipo de pergunta é essa?
Ele está parecendo o Pedro.
Seu rosto se vira parcialmente na minha direção e não consigo
entender o motivo de tanto suspense.
— Liam, fala logo.
— Ele disse que ajuda, mas só se nós dois terminarmos.
Fico paralisada, estudando o rosto do homem que tem o meu coração.
Isso é sério? Fui mesmo colocada nesse tipo de teste?
— O que você disse?
— Eu... não importa. — Ele desvia o olhar, encarando o farol que
acabou de abrir. — Se você quiser, posso ligar para ele de novo e dizer que
aceitamos.
A risada indignada escapa antes que eu possa detê-la e ele me lança
um olhar amedrontado.
— Vá se foder, Liam.
— O que eu fiz de errado?
— O que você não faz de errado?
Ele estaciona o carro e se vira para mim.
— Eu não quero ser o motivo pelo qual você não vai poder fazer o
que ama. Foi eu quem fez você ser afastada, sou eu que estou impedindo
sua passagem de volta. Seria justo que você quisesse me tirar do caminho.
— Não seja idiota.
— Ming...
— Se continuar falando, não vou controlar a vontade de te dar um
soco. — O interrompo, fervendo de raiva. — Foda-se se o Patrick não
quiser me deixar voltar, isso não é mais importante do que nós dois ficando
juntos.
Seus lábios se curvam em um sorriso.
— Então fiz certo em cortar relações com o meu pai?
Meus olhos se arregalam.
— Não, isso foi péssimo, Liam. Ele é seu pai!
— Um pai que me chantageia.
— Um pai que te criou, apesar de tudo.
Ele recosta no banco.
— Eu só estou cansado, linda.
Estico o braço e seguro sua mão. Entendo o que ele está sentindo, isso
é um saco mesmo, mas não acho que ele precise ser tão radical.
— E aquele papo sobre ele precisar de você e não querer falhar com
ele?
— Acha que ele merece meu esforço?
— Acho que você é bom demais para não se arrepender dessa decisão
em algum momento.
— Nunca vou me arrepender de cortar laços com alguém que não vê
o quanto amo você. — Ele se aproxima e beija meu pescoço. — E eu te
amo demais.
— Pedro acha que foi o tiro — sussurro e ele solta uma risada sensual
no meu cangote, mordiscando minha pele.
— Eu tenho certeza de que foi quando você caiu e segurou meu pau.
Sinto meu corpo aquecer.
— Aquilo não foi intencional.
— Mas eu desejei que fosse.
Ele me dá mais um beijo e se afasta, ligando o carro e voltando para a
estrada.
— Você gosta de me provocar e logo em seguida fingir que não fez
nada — resmungo.
Seu sorriso é travesso e tento fingir indiferença.
Quando chegamos na delegacia, meu peito está apertado e já estou
pronta para escutar tudo que o Patrick tem para dizer. Sei que boa parte do
que vem a seguir é culpa minha, só espero que ele não faça nada ao Liam.
A delegacia está um caos, todo mundo correndo de um lado para o
outro, fofocas sobre como o Paulo foi preso circulando por todo lado.
Ninguém esperava que dois policiais estariam envolvidos em um caso de
serial killer, ninguém parece acreditar que o Felipe era o serial killer.
Pensar nele no passado me deixa em conflito, ele fugiu de tudo isso,
fugiu da lei se suicidando, preferiu a morte a cumprir pena pelos seus
crimes.
Patrick está nos esperando na porta da sua sala, os braços cruzados e
olhos estreitos. Quando nos aproximamos, ele coça sua barba nojenta e faz
um sinal para o Liam.
— Você não, é só ela. — Ele se volta para mim. — Vamos ter uma
conversinha bem longa.
— Eu também errei. — Liam tenta falar, mas o Patrick não dá muita
atenção.
— Converso com você depois, Liam.
Ele abre espaço para eu passar e entro, me sentando na cadeira diante
da sua mesa, ele está com a minha ficha sobre ela, assim como o caso da
minha irmã. Felizmente, todas as fotos estão lá dentro e não vejo nenhum
dos hematomas que já estão gravados na minha memória.
— O que acontece com um policial quando é afastado, Ming Yang?
— Patrick pergunta, se sentando na sua cadeira.
— É privado de exercer qualquer função policial até a solução final
do processo ou das providências legais que couberem no caso — respondo
o mais firme que consigo, sabendo aonde ele quer chegar com isso. —
Olha, eu sei que devia ter me mantido afastada, mas...
— Investigou um caso onde tinha ligação emocional, atirou em um
policial por supor que ele era o assassino e ignorou um afastamento
totalmente justificado. — Ele enumera meus erros e abre um sorriso
debochado. — Se acha uma boa inspetora, Yang?
Isso é como uma porrada no meu peito e fico em silêncio. Não sei se
sou realmente boa, cometi erros demais para ser.
— É por isso que digo, mulheres não servem para isso.
Fecho as mãos em punhos. Já esperava esse tipo de conversa, mas
isso não significa que ele esteja certo, ou que eu vá conseguir realmente me
controlar.
— Sabe que eu estava naquele terraço, não é? Eu ia prender o
assassino.
— Mas não prendeu, ao invés disso, o deixou se matar.
— O Paulo foi preso e ele pode comprovar...
— Não quero ouvir essa conversinha. — Ele me interrompe e estou
quase me levantando para agredi-lo, pelo menos assim vou sair por um
motivo válido e não passarei essa vontade. — Esse caso já não era
problema seu, mesmo assim, quis intervir. Se sente mais mulher agora?
Que cara babaca.
— Eu terei que reportar isso. — Ele diz com um sorriso, parece
satisfeito em fazer de tudo para me manter longe da delegacia.
Eu odeio tanto esse homem.
Alguém bate à porta e agradeço mentalmente por alguém ter me
impedido. Se essa batida demorasse três segundos, eu estaria pendurada no
pescoço desse idiota, o sufocando até a morte. Talvez o Felipe tivesse razão
e uma parte de mim seja meio maníaca, me vejo nitidamente estrangulando
o Patrick.
— Estou ocupado! — Ele grita para a pessoa do outro lado, ainda
sorrindo diabolicamente para mim. — Onde estávamos?
Mais uma batida me impede de responder.
A pessoa é insistente e não para por aí, quando a porta se abre, tenho
certeza de que verei o Liam do outro lado, só que não é ele.
— Vinicius? — O delegado soa surpreso por ver o pai do Liam
parado no batente.
Meu coração dispara com a possibilidade de o Liam ter prometido se
afastar de mim para o pai, se fez isso, eu vou acabar com ele.
— Estou aqui para conversarmos sobre a melhor forma de a Senhorita
Yang continuar na delegacia.
— O quê? — Patrick e eu dizemos em uníssono.
Vou matar o Liam por ter feito isso.
— Quero que revogue esse afastamento, sei que ainda não tornou
oficial, dá tempo de empurrar tudo para debaixo do tapete.
— Você está defendendo uma mulher? — O delegado está chocado e
eu também.
O pai do Liam fica vermelho e me olha com desgosto antes de
assentir.
— Sim, eu estou.
— Quer que ela fique aqui?
— Foi o que eu disse, não foi?
— O Liam te pediu isso?
Vinicius faz uma expressão de quem está sentindo dor física e mental
só de dizer o que está prestes a dizer:
— Ele até pediu, mas decidi vir por conta própria. — Ele respira
fundo. — Ela se provou ser uma boa inspetora e não temeu se colocar em
risco. Isso é o que um bom policial faria.
Meu sorriso é amplo e pela primeira vez sinto que poderia gostar do
meu futuro sogro, mesmo que agora ele esteja com cara de quem chupou
limão.
— Ela é uma mulher! — Patrick exclama, descrente. — Você está
vindo aqui por uma mulher, depois de eu finalmente arrumar uma maneira
de afastá-la?
— Patrick, o mundo está avançando, as mulheres já estão prontas para
lutar suas batalhas e se querem ser policiais, que deixemos segurarem
armas. Quem somos nós para impedir?
Isso soou muito com algo que o Liam diria e ver o sorriso de lado do
homem mais velho me faz perceber que os dois são até que parecidos,
principalmente as covinhas.
— Isso é bobagem.
— Ela não quase prendeu o assassino?
— O quase que torna isso engraçado.
Congelo o sorriso no rosto para me impedir de fazer uma careta para
o Patrick, ele é insuportável.
— Isso não muda o fato de que o caso foi resolvido.
— Ela o matou! — Patrick exclama e eu fico de pé, apoiando uma
mão na cintura e fazendo que não com um dedo.
— Ele se matou, é diferente.
— Essa camisa é do Liam? — Vinicius pergunta e olho para o pai do
meu namorado, sentindo minhas bochechas aquecerem. Esqueci que estava
vestida desse jeito.
— Do meu pai — minto e ele estreita os olhos.
— Tem certeza? Porque eu poderia...
— Eu não matei ninguém! — grito, interrompendo sua fala e
cruzando os braços para que pare de encarar a camisa.
Queria me enfiar em um buraco agora.
Ele arqueia as sobrancelhas, surpreso com o meu grito.
— Não vou aceitá-la de volta! — Patrick grita do outro lado e sinto
meu sangue esquentar, ele já está me irritando.
— Aah, você vai. — Vinicius diz em uma voz áspera e rígida. — Se
não fizer isso, vou te denunciar para a Corregedoria da Polícia Civil, você
escolhe.
Os olhos do Patrick se arregalam e ele se apoia na mesa.
— Não acredito que o meu melhor amigo está me denunciando.
— Eu estive pensando bem e decidi que você mais se aproveitou de
mim do que foi meu amigo, tudo que você queria era meu cargo quando me
aposentasse e conseguiu. Você é uma má influência para mim.
Isso mesmo, sogro! Fala mais!
Cubro a boca para conter a risada que quer sair, nunca imaginei que o
pai do Liam agiria assim, piorou depois da discussão que tivemos no dia em
que nos conhecemos. Era óbvio que ele me odiou, mas acho que a
possibilidade de perder o filho foi mais forte do que a animosidade que ele
sente por mim.
— Que seja! — Patrick dá um soco já mesa. — Ela pode ficar, mas
saiam da minha sala agora!
Me viro para o Patrick, sem acreditar que foi tão fácil. Eu só
precisava fazer essa ameaça? Então o pai do Liam nem era necessário?
Droga, devia ter pensado nisso antes.
— Vai logo! — Ele berra e me sobressalto.
— E meu distintivo?
Ele me fulmina com os olhos, mas abre a gaveta e pega o distintivo e
minha arma, batendo sobre a mesa.
— Cuidado para não atirar em si mesmo, ninguém ia gostar se isso
acontecesse — digo, por dentro rezando que ele acerte o gatilho sem querer
e sofra muito com um tiro no coração.
Velho nojento.
Vou até a mesa e pego minhas coisas, sorrindo excessivamente.
Quando me viro para o Vinicius, ele revira os olhos.
— Já estou arrependido.
Assim que saímos da sala, me jogo nos braços do pai do Liam,
surpreendendo a nós dois com o gesto. Acho que passar tempo demais com
o Liam já está causando sintomas.
Vinicius olha por sobre meu ombro, parecendo pedir socorro com os
olhos a alguém.
— Obrigada, sogro! — Me pego dizendo, um pouco com deboche por
saber que ele odiará me ter como nora, um pouco realmente agradecida pela
ajuda. — Prometo nunca mais atirar no seu filho!
— Ele me disse que foi o assassino.
— Então prometo nunca mais deixar ninguém atirar nele — corrijo e
para a surpresa de todo mundo, ele solta uma gargalhada e corresponde o
abraço.
— Pai? — Liam, foi para ele que o Vinicius lançou olhares de súplica
segundos atrás.
Interrompo o abraço, me virando para o homem que faz meu coração
palpitar, tudo parece meio certo agora, ou quase isso.
— Eu fiz. — Vinicius diz, se tornando rígido e ranzinza outra vez.
Agora entendo que é só uma forma de se proteger, eu fazia o mesmo antes
de conhecer o Liam. — Falei com o Patrick.
— Então você... — Liam olha para mim e a dor nos seus olhos me faz
ir até ele e segurar suas mãos.
— Não escolhi o trabalho. — Abro um sorriso suave. — Você sempre
vai ser minha escolha.
Ele pisca os olhos castanhos que tanto amo e, por um momento, me
sinto plena.
— Não se acostuma com isso, não vou ser melosa sempre — continuo
falando quando o silêncio se prolonga demais.
— Me escolheu?
— Sempre, lindo.
Ele começa a sorrir lentamente, então se vira para o pai.
— Não entendo... — Ele balbucia. — Você disse que não viria.
— Eu também escolho você, Liam. — Seu pai resmunga. — Você é a
droga do meu filho e não quero errar com outro filho meu. Já basta a culpa
que sinto por ter falhado com a Cassandra.
Isso era para ser uma prova de amor paterno? Porque pareceu muito,
mas Liam e eu estamos paralisados, encarando o homem mais velho até ele
começar a ficar sem graça.
— Parem com isso! — Ele rosna e passa por nós. — Da próxima vez
que tiverem problemas, não lembrem que eu existo. Vamos, Trevo! — Ele
chama o filhote de Golden, que sai correndo do lado do Pedro para seguir o
pai do Liam.
— Pai. — Liam o chama de repente e o homem para, mas não se vira
para nós. — Não é tarde demais para consertar erros do passado.
Ele não diz nada, apenas volta a caminhar.
— Seu pai sabe que o Trevo é nosso, não é?
— O Trevo é meu, Ming.
Continuo encarando meu cachorrinho indo embora com o ranzinza do
Vinicius.
— Quando vamos buscar o nosso cachorro?
Ele solta um suspiro derrotado.
— Amanhã, linda.
— Ótimo, agora acho que tenho que avisar à minha família que estou
viva.
Ele coloca um braço sobre os meus ombros e beija meus cabelos.
— Então vamos.
— E, só para constar, eu vejo progresso nessa família em um futuro
bem próximo.
Sinto seu sorriso no topo da minha cabeça.
— Eu espero que esteja certa.
MING
QUATRO MESES DEPOIS

Hoje é o meu aniversário.


Acordei com um buquê de margaridas, café na cama e um homem
extremamente gostoso me beijando. É um sonho realizado, e eu nem sabia
que tinha esse tipo de desejo dentro de mim.
O dia está bonito e minha família foi péssima em fingir que não
estavam planejando nada, só por isso saí para que tivessem um tempo para
executar o que quer que estivessem planejando.
— Como você está? — pergunto, colocando um buquê de rosas
vermelhas sobre o túmulo.
Hoje é o meu aniversário, e mesmo ganhando sorrisos, beijos, flores e
café na cama, acordei com uma imensa vontade de visitar minha irmã, algo
que evitei fazer por muito tempo.
Sinto falta de ouvir sua voz me respondendo que está bem, mas agora
sei que essa dor vai sempre estar comigo, porque Fang levou uma parte de
mim quando se foi, o que não significa que não serei feliz. A psicóloga que
o Liam arrumou, me ajudou a perceber que podemos lembrar de um ente
querido com carinho, sentir a sua perda e ainda não guardar culpa por viver
a vida feliz enquanto essa pessoa não pode mais.
— Tenho certeza de que está jogando confetes em mim aí do céu —
sussurro, acariciando a foto com o rosto sorridente de uma Fang de
dezessete anos. — Você sempre fazia isso, e eu adorava, mesmo dizendo
que odiava.
Abro meu sorriso mais sincero, os olhos cheios de lágrimas.
— Eu sinto sua falta, irmã — continuo falando, sentindo em meu
coração que, de algum lugar, ela está me ouvindo. — Mas não precisa se
preocupar, eu estou bem e feliz. Encontrei um namorado, você ia gostar
dele, é um homem doce, de sorriso fácil e um eterno menino.
O sopro de uma brisa acaricia minha pele, balançando meus cabelos.
— O papai me perdoou, agora aceita bem o meu trabalho e nem olha
feio para os meus colegas. Ele também sente muito a sua falta.
Olho para o céu, soltando um suspiro quando uma lágrima escorre.
— A mamãe e a Vovó Mei continuam do mesmo jeitinho, torcendo
pelo dia que vou me casar. Acredite, elas estão obcecadas, acho que já
escolheram a decoração e o meu vestido. — Rio disso, as duas estão
malucas mesmo com esse lance de casamento e o Liam nem fez o pedido
nem nada, tampouco eu penso em fazer, ao menos não agora. — Todos
lamentamos que você não esteja mais aqui, tudo seria bem mais doce se
estivesse.
Quando erámos pequenas, Fang dizia que casaríamos juntas e
teríamos filhos de idades aproximadas para que pudessem crescer unidos
como nós duas. Ela era dois anos mais velha do que eu e bem mais
sonhadora também.
— Seu assassino se foi, e apesar de no começo não ter sentido
diferença, agora parece que um peso saiu das minhas costas, como se
tivesse cumprido meu dever com você, mesmo que ele tenha se matado sem
pagar por tudo o que fez. No meu coração, sinto que ele está pagando, onde
quer que esteja.
O tempo tem passado suave e eu tenho aprendido muito comigo
mesma.
— Sei que vamos nos encontrar de novo, irmã, e, por agora, vou fazer
o que você gostaria que eu fizesse, viverei a vida com intensidade, então
guarde um lugarzinho para mim e me assista aí de cima. Prometo te dar
orgulho e ter filhos de idades aproximadas. Prometo contar de você para
eles. Eu prometo ser feliz até o dia em que nos encontraremos outra vez.
Mais uma brisa passa por mim, levando com ela minhas promessas e
minha dor. Não sei ao certo se é minha imaginação, mas tenho a impressão
de que senti o perfume da Fang nessa brisa, como se minha irmã tivesse
vindo me dar um último abraço de adeus.
Encontrei redenção nessa despedida.

— Tia Ming! Não pode entrar aí! — O Gui grita, correndo atrás de
mim.
— A gente devia ter ficado mais um pouco no parque. — Pamela
concorda com o filho, tentando puxar meu braço. — O palhaço pode
aparecer.
— Foi cancelado — respondo, parando de andar. — Vocês ouviram o
que falaram.
Depois de levar flores para minha irmã, fui cumprir o que prometi ao
Gui na semana passada, sobre levá-lo ao circo para ver um palhaço, ele
disse que nunca tinha visto, mas o espetáculo foi cancelado e agora eles não
querem me deixar entrar no restaurante da minha própria família.
— Talvez esteja fechado! — O Gui berra de novo, agarrando meu
outro braço.
Encaro a placa escrito aberto e solto um suspiro ao ver a
movimentação lá dentro. Será que esses dois pensam mesmo que não estou
vendo através do vidro?
— Está tudo bem, eu fico lisonjeada que tenham tentado fazer uma
surpresa para mim, mas eu consigo ver o Eduardo enrolado naquela fita
brilhante.
Pamela e o Gui se entreolham, me soltando ao mesmo tempo.
— Mamãe, seu futuro namorado é meio bobo.
— Guilherme! — Pamela exclama, o rosto ficando vermelho como
um tomate.
Solto uma risada, porque eu também percebi o clima entre os dois e
fico muito feliz por eles, de verdade, são duas pessoas que merecem muito
encontrar a felicidade.
Volto a caminhar, abrindo a porta do restaurante.
Eduardo estanca no lugar, a bexiga que está na sua boca já está tão
cheia de ar que estoura no seu rosto quando ele suspira de surpresa ao me
ver na porta.
Pedro se desequilibra da escada e quase cai no chão, mas o Leo é
rápido em fazer o noivo recuperar o equilíbrio.
— O que está fazendo aqui? — Os três perguntam ao mesmo tempo e
lançam um olhar para a Pamela e o Gui, que estão fazendo expressões
idênticas a um pedido de desculpas silencioso.
— Ela é esperta demais para nós. — É a desculpa do Gui.
— É mesmo. — Pamela concorda e assisto o Eduardo suavizar a
expressão, os olhos se tornando suaves ao observar a mulher e o menino.
— Está tudo bem, em algum momento ela ia descobrir, então,
surpresa, Ming! — Ele sorri e faz um gesto com as mãos, indicando a
bagunça.
— De qualquer forma, vocês não terminariam isso hoje — respondo,
encarando as fitas no chão e todas as bexigas cheias.
Gui sai correndo entre elas e abraça a cintura do Edu.
— A gente não viu o palhaço.
Os dois engatam em uma conversa no momento em que a Vovó Mei e
o meu pai surge dos fundos do restaurante, meu pai com um bolo cor de
rosa na mão e a Vovó Mei mastigando o que imagino ser um doce, ambos
também congelam ao me ver.
— Isso não é bom. — Meu pai resmunga e a vovó Mei concorda.
— Podemos partir o bolo então? — Ela pergunta e escuto vozes na
cozinha.
— Eles...
— Não entraria lá se fosse você. — Vovó Mei me interrompe, indo se
sentar em uma cadeira. — Os dois se adoram, mas não servem para
trabalhar em equipe.
Vou em direção à cozinha com as suas palavras, ouvindo minha mãe
reclamar em mandarim, ao mesmo tempo Liam a responde com o mesmo
idioma, e os dois iniciam uma discussão acalorada onde minha mãe diz que
ele está fazendo errado e ele tenta não esquecer que ela é sogra dele.
Seguro o riso quando coloco minha cabeça para dentro da cozinha,
vendo a bagunça que dois perfeccionistas fizeram. Nunca vi essa cozinha
desse jeito e nenhum dos dois parecem felizes com o caos.
— Eu falei para você que era farinha demais. — Minha mãe segue
falando e Liam respira fundo.
— Eu coloquei duas xícaras, igualzinho a senhora mandou. — Ele
responde.
A conversa em mandarim parece prestes a criar uma rixa, então entro
no ambiente deles, encarando o ovo que caiu no chão em algum momento e
a farinha espalhada no balcão.
— Oi?
Liam para de mexer na panela que esteve mexendo enquanto brigava
com a minha mãe, já ela congela e para de modelar a massa na parte limpa
do balcão.
— O que está fazendo aqui? — Liam pergunta, ao mesmo tempo que
minha mãe se vira para ele.
— Não para de mexer, senão vai...
Ela não termina, algo pipoca na panela e o meu namorado dá um salto
para trás, quase queimando o rosto com o creme que borbulha para fora.
— Esse garoto é terrível, olha a bagunça que fez no meu fogão! —
Minha mãe exclama, pegando um pano de prato e atingindo o braço do
Liam. — Sai já daqui!
Liam corre para o meu lado e segura minhas mãos.
— Era para ser surpresa.
— E está sendo, pensei que minha mãe fosse adorar te ter na cozinha
dela, mas me enganei.
— Eu sou ótimo na cozinha.
— Aham.
— Sou mesmo, você sabe disso. — Ele está na defensiva, franzindo a
testa enquanto me observa.
Fico na ponta dos pés e lhe dou um selinho.
— Eu sei, amor. Obrigada por ser tão incrível.
— Ainda estão aqui? — Minha mãe grita, fazendo o Liam ficar
pálido.
— Ela fica assustadora cozinhando.
Abro um sorriso e o puxo para fora da cozinha, vendo o meu sogro
entrar no restaurante com o Trevo a tiracolo. O cachorro corre pelo
restaurante ao ver a quantidade de bexigas, atraindo o Gui, que também
corre atrás dele, os dois iniciando uma brincadeira.
— Oi, pai. Que bom que saiu de casa.
Vinicius se aproxima do filho, ranzinza como sempre.
— Trouxe isso. — Ele estende uma caixinha em minha direção. —
Mas eu ainda não gosto de você.
— Ah, obrigada, sogrinho. — Pisco os olhos inocentemente. — Eu
também te acho um mala.
Ele revira os olhos, porém, tenho quase certeza de que vejo seus
lábios se erguerem em um quase sorriso.
Abro a caixinha, encontrando uma pulseira da Pandora, está cheia de
berloques, todas com coisas que em algum momento eu mencionei gostar
ou querer conhecer, como, por exemplo, a China. Vinicius diz não gostar de
mim, mas me comprou um presente com tudo que gosto, e eu pensava que
ele nem prestava atenção no que eu dizia, já que sempre tenta me ignorar.
Meus olhos ficam marejados e percebo que me tornei uma garota
emotiva nos últimos tempos, acho que no fundo sempre fui assim, mas as
barreiras à minha volta me impediam de sentir o amor das pessoas e, por
isso, não tinha como ser sentimental.
— Você ajudou seu pai? — pergunto ao Liam, e ele nega com a
cabeça.
— Acredite, também estou surpreso com esse presente.
Fico na ponta dos pés para beijar o meu namorado, só que dessa vez
sou interrompida. Trevo passa correndo por minhas pernas e perco o
equilíbrio.
Tento me segurar no Liam, mas o cachorro acabou de passar atrás
dele também. Minha mão estica para um lado e quando dou por mim, estou
caída no chão em cima de um Liam de olhos arregalados e tem bolo
espalhado por toda parte, inclusive no meu cabelo.
Meu pai está me encarando enquanto ainda segura a bandeja vazia,
pelo jeito, quando tentei encontrar apoio, acabei acertando minha mão no
bolo.
Ninguém reage por um segundo inteiro, então o Trevo volta e lambe o
chantili do meu rosto, fazendo todo mundo cair na gargalhada.
Contemplo o rosto do homem que eu amo e ele me puxa para um
beijo de roubar o fôlego.
— Hmmm, que gostinho doce. — Ele sussurra na minha boca,
fazendo minha mente fantasiar com a possibilidade de me lambuzar com
doce quando estivermos sozinhos vê-lo me lambendo inteira. — Eu sei para
onde sua mente está indo. — Ele murmura com a voz rouca e abro um
sorriso.
Acho que é isso que significa a felicidade.
LIAM
UM ANO E MEIO DEPOIS

Estou nervoso e um pouco agitado, todo mundo que conheço está


aqui agora, olhando para mim com sorrisos encorajadores, exceto pelo
Pedro, que ainda está indignado por eu estar me casando primeiro que ele.
Meu pai está na primeira fileira e olho naquela direção, sentindo o
peito aquecer ao ver a Cassandra ao lado dele. Os dois tiveram uma
conversa sincera quando a Cass chegou na cidade na noite passada para a
cerimônia, e mesmo que minha irmã seja desconfiada e durona, sinto que
em algum momento podemos ser uma família novamente.
Estamos todos juntos de novo, mamãe, e eu pretendo ser a cola que
nos manterá unidos, não importa quanto tempo levará para ficarmos à
vontade na presença uns dos outros de novo. Afinal, somos uma família.
Seco o suor na calça creme do terno, contando os segundos para vê-
la.
A marcha nupcial começa e quero paralisar o tempo ou fazê-lo andar
mais depressa, só para poder tê-la nos meus braços logo e eternizar esse
momento.
As portas se abrem, minha boca fica seca e quando a minha mulher
surge em um lindo vestido branco, a bile se forma em minha garganta e
lágrimas escorrem sem parar pelo meu rosto.
Ela está incrível, a mulher mais linda do mundo.
A igreja está iluminada, porém, quando ela começa a caminhar, tenho
a sensação de que ela é a única luz do lugar, como se ela reluzisse.
Ming sorri para mim já no meio do corredor, faltam dez, talvez quinze
passos para me alcançar e só penso em como quero pular para a parte do
beijo. Ela é como um anjo se aproximando de mim, mas um anjo
desastrado, confesso.
Acho que ela tropeça em alguma coisa, provavelmente na barra do
vestido, porque de repente está caída no chão, arrancando uma risada de
mim.
Isso é típico da minha mulher, exceto que nessa queda ela não está
indiferente. Já ouvi dizer que isso passa na cabeça de toda noiva e é, tipo, a
pior coisa que poderia acontecer no casamento.
Ela está vermelha, uma gracinha, mas quando o pai dela a ajuda a se
levantar e a vejo ir de mansinho para as portas, meu sorriso desaparece.
— Ei! Pra onde está indo?
Desço os degraus do altar, indo atrás dela.
— Sogro, você se importa?
— De maneira nenhuma.
Aperto sua mão ainda no meio do corredor e ele me puxa para um
abraço de homem, com tapinha nas costas. Ming está com o semblante de
quem quer enfiar a cabeça em um buraco e quando a jogo sobre meu
ombro, esse sentimento parece piorar.
— Liam! O que está fazendo? Me coloca no chão.
Faço isso só ao chegar no altar.
— É tarde demais pra fugir — digo, pegando minhas algemas e
prendendo uma mão dela no patamar onde o cerimonialista se encontra de
queixo caído.
As pessoas estão rindo, a Ming parece chocada com seus lindos olhos
arregalados e faço um sinal para que o pobre homem comece a cerimônia.
— Você é maluco.
— Não me deixa esquecer as algemas, vamos precisar delas mais
tarde.
Agora ela está sorrindo para mim de novo e respiro fundo, me
perguntando se algum dia estarei acostumado a amar essa mulher.
Ela é como minha luz no fim do túnel e sei que não poderia ter
encontrado um final feliz melhor.

MING

Ele me carrega para o quarto em que ficamos hospedados em Pequim,


ele realmente cumpriu o que prometeu e me trouxe para a China. Fiquei
emocionada, mesmo que não tenha olhado muito à minha volta desde que
chegamos, estou mais concentrada em como iremos aproveitar esse quarto.
Ele me faz vestir meu vestido de noiva outra vez, já que está com
fetiche de desfazer os laços e botões e remover a roupa com suas próprias
mãos.
Vesti uma lingerie branca por baixo do vestido, cinta-liga, meias-
calças, tudo branco e rendado.
— Muito sensual. — Ele murmura e o empurro na cama, pegando as
algemas que ele me pediu para não o deixar esquecer.
Engatinho sobre o seu corpo, apoiando o joelho no controle da
televisão sem querer e a fazendo ligar em um canal que transmite
informações do Brasil.
Beijo o pescoço do Liam, lambendo sua pele enquanto levo suas
mãos para suas costas. Sento no seu colo e rebolo.
— Hoje é minha vez de dominar você — sussurro em seu ouvido,
sentindo sua respiração acelerada no meu pescoço.
— Porra, eu amo ter criado uma monstrinha do sexo. — Ele está com
a voz rouca e sensual. — Vai cavalgar no meu pau até gritar, quero te ouvir
gemendo pra mim.
Ele se torna tão safado quando estamos a sós, que às vezes me
surpreendo que seja o mesmo homem de sorriso fácil e que parece um
menino no dia a dia.
O algemo, e assim que começo a abrir sua camisa, percebo que ele
não tem paciência para ficar preso, na verdade, ele parece louco para me
tocar. Isso só piora quando abro o botão da sua calça e puxo o pau dele para
fora.
— Eu já disse como gosto de te chupar? — pergunto e ele se
contorce.
— Ming... — sussurra em uma voz ofegante. — Caralho!
Começo a chupar, amando torturá-lo. Meu joelho pressiona o controle
mais uma vez, fazendo o volume da televisão aumentar.
— TRF debate sobre privatização das terras indígenas em Brasília e
protestos contra essa pauta preocupa a Polícia Legislativa, apesar dos
representantes da comunidade indígena do DF garantirem que será um
protesto pacífico.
Alguém está dizendo na televisão e parece realmente importante, mas
estou ocupada demais com a determinação de, pelo restante da noite, fazer
esse homem ficar ainda mais louco por mim, então não presto muita
atenção no que estão falando.
Se esse fosse um conto de fadas, esse seria nosso felizes para sempre.
Esse foi um caminho novo para mim, já que no começo, tudo que
tinha era um amor louco pela princesa Mulan e zero conhecimento sobre a
polícia e investigação. Sempre foi um sonho me aventurar em um romance
policial, mas sempre me faltou coragem, então agradeço a essa princesa
pela oportunidade de aprender com ela e embarcar nessa aventura
desconhecida.
Sou eternamente grata a todas as princesas Hobbytches que fazem
parte desse projeto e me ajudaram a manter o foco, sem a ajuda de vocês,
talvez eu não teria terminado esse livro. Obrigada por terem feito minha
betagem e me escutado surtar sobre os diversos bloqueios que tive ao longo
desse livro.
Obrigada à Luiza por ter feito toda a assessoria desse romance e
programado tudo com perfeição. Um agradecimento sincero à Myo, que fez
a capa e as ilustrações. Obrigada à Pauline por ter feito a diagramação e
ajudado na conclusão da capa. Obrigada à Amanda e Poliana, por terem
feito a revisão mais incrível, como sempre.
Claro que dedico um agradecimento à minha força de vontade e
persistência, já que em muitos momentos pensei em desistir, e insistir em
tentar me fez sentir um pouco como Mulan.
E o último agradecimento vai para você, caro leitor, por ter ficado até
aqui e feito mais um sonho se realizar para mim. Sem você, nada seria
possível.

[1]
Gru é uma referência ao personagem principal do filme: Meu malvado favorito
[2]
É um jogo disponível em todos os computadores Windows.
[3]
Programa de televisão brasileiro.
[4]
São “pauzinhos” utilizados como talheres em partes dos países do Extremo Oriente.
[5]
É o nome dado ao bolinho de arroz glutinoso, uma das iguarias do Japão
[6]
É um pão cozido no vapor, recheado com carne e tem o aspecto de um coque. Está presente em
várias cozinhas orientais
[7]
Mooncake ou bolo da lua, é um pequeno bolo chinês, tradicionalmente comido durante o Festival
de Meio de Outono.
[8]
É um exercício que exige grande força da parte superior do corpo. É a capacidade de levantar o
peso corporal usando apenas as forças dos braços
[9]
Frase retirada diretamente do filme: Mulan, Walt Disney Animation, 1998
[10]
Personagem do folclore brasileiro. Mulheres que se transformam em uma mula cuja a cabeça são
labaredas de fogo e saí agredindo homens e outros animais por onde passa, criando alvoroço.
[11]
Conhecidos também como gyoza, são bolinhos de massa em um formato que lembram o nosso
pastel

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