Desigrejados
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3. TRADIÇÃO E TRADICIONALISMO
Em Mateus 23 Jesus faz seu discurso mais duro. Mesmo que a expressão grega para o “ai de
vós” possa ter uma conotação de misericórdia, de apelo emocional até, as palavras de alerta são
muito duras. E todas dirigidas aos fariseus e saduceus, partidos religiosos mais rigorosos e
dedicados a examinar e cumprir as leis de Deus. Nesse sermão, Jesus os condena veementemente
pelo fato de praticarem ações desprovidas de verdade, de sentimento, meramente ações religiosas e
tradicionalistas.
Das análises sobre os dados do Censo de 2010, já mencionei a feita pelo jornalista Ricardo
Alexandre, que classificou o aumento dos “sem religião” como uma segunda reforma protestante,
destacando as seguintes diferenças no novo comportamento2.
Cerca de 350 anos depois de se tornarem uma nação, liderados por Moisés e Josué, o povo
de Deus experimentou sua primeira grande mudança ao deixar de ter um governo teocrático para
adotar a monarquia (1 Sm 8).
Passaram-se mais 50 anos e Davi propõe outra grande mudança: a construção de um templo
(1 Cr 17). A ideia parecia tão boa, tão comum ou necessária à época, que o profeta Natan concorda
de imediato (1 Cr 7.2). Faltou a Natan discernimento sobre as consequências desse projeto a longo
prazo e ele teve que retroceder no mesmo dia. Como aconteceu com a monarquia, Deus consente
com a ideia de mudança mais tarde, nos dias de Salomão, alertando que aquele templo poderia ser
destruído entre as nações, caso houvesse pecado em Israel.
Ter um rei faria com que Israel deixasse de confiar no Senhor e confiasse em exércitos (por
isso, o maior pecado cometido por Davi é o censo de 1 Crônicas 21). Ter um templo faria com que
Israel passasse a imaginar que Deus era semelhante a qualquer ídolo, que tinha uma “casa” em vez
de habitar entre seu povo. Eram pequenas transformações, aparentemente boas até, mas de
consequências muito ruins a longo prazo.
Assim como Natan, não percebemos as modificações que estavam acontecendo diante de
nós. Só agora estamos nos apercebendo delas, quando já se tornaram comportamentos ou crenças
bem enraizadas. Não nos apercebemos que fomos nos tornando numa sociedade muito humanista,
com o ser humano no centro e sem espaço para um Deus que é adorado com nossa submissão ao
seu senhorio. Nos últimos anos a igreja tem entrado em batalhas políticas, literalmente, e em causas
muito sérias, como a questão de “identidade de gênero”, mas não se apercebeu de que a maior
batalha deveria ser contra o humanismo secular entrando em nossas congregações.
O humanismo abrange todos os aspectos da vida humana. É uma cosmovisão que atua nas
questões de princípios e valores, assim como na identidade, ao aceitar somente a razão humana, a
ética, a justiça social e o naturalismo filosófico, rejeitando dogmas religiosos e tudo o que possa ser
sobrenatural como base para a moralidade e tomadas de decisão pelo ser humano. Para os
humanistas, os seres humanos são capazes de ser éticos e morais sem religião ou sem Deus,
simplesmente pelo respeito ao ser humano.
Não é um tipo de ateísmo. Semelhante à liberdade religiosa do Império Romano, em que
praticamente todos os credos eram permitidos, desde que também se prestasse culto aos deuses
romanos, o humanismo secular permite a crença em um deus, desde que ele não seja exclusivista.
Permite-se uma religião, desde que ela não seja “fundamentalista”. O cristianismo evangélico pode
ser tolerado em qualquer meio, desde que não exija um alto grau de compromisso e não condene
práticas que firam o direito do ser humano de ser feliz e realizado. Essa é a nossa cultura hoje e
nossos jovens em suas comunidades e ambientes acadêmicos experimentam isso de forma muito
mais acentuada, sendo que muitos não resistem aos argumentos (nãos os preparamos!) e abandonam
não apenas a igreja, mas a fé.
A origem do humanismo está ligada a nomes como Giordano Bruno, Thomas Paine e David
Hume e, como o conhecemos hoje, nasceu na Renascença, sendo inclusive um dos fatores para o
sucesso da Reforma Protestante (sim, a insatisfação com os dogmas católicos, a ideia um de
império romano sobre as Nações Estado, como Inglaterra, era grande não apenas nos meios
teológicos). São mais de 500 anos de esforço dos expoentes das ideias humanistas e finalmente (e
infelizmente) colhem-se agora seus resultados: somos a mais individualista das gerações, sem
sombra de dúvidas, e esse comportamento tem sido levado para todas as esferas da vida: família,
trabalho, lazer e religião.
Coincide com o avanço da cosmovisão humanista, um tipo de ataque ao cristianismo em
específico, com um alarde além do comum com “descobertas” que fizeram do cristianismo uma
religião como qualquer outra. Quem não lembra dos arroubos de exposição em cima do “Código Da
Vinci” (de Dan Brown), que muitos sequer atentaram para o fato de que era apenas um romance
policial, levando-o a ganhar tanta notoriedade como se fosse científico? O livro vendeu oitenta
milhões de cópias e virou filme em 2006. Apesar das imprecisões históricas e cientificas (é um
romance, afinal!), o livro popularizou a ideia de um relacionamento romântico entre Jesus e Maria
Madalena. De modo geral, esses ataques apresentam um Jesus maldoso ou impuro, igual a um
homem qualquer, que sequer desejava fundar uma religião.
Já citei autores como Richard Dawkins que, na sua cruzada pela divulgação científica, ataca
frontal e abertamente a fé cristã. Longe de querer uma reedição do Index Librorum Prohibitorum
(lista de livros proibidos, de 1559, parte da Contra Reforma Católica), apenas chamo a atenção para
o fato de que há mais desses ataques contra o cristianismo que contra qualquer outro credo,
incluindo o islamismo, que é facilmente separado do radicalismo de terroristas nos meios de
comunicação atuais. Desmerecer o cristianismo parece ser parte inerente do pensamento humanista
secular em todas as suas esferas.
Também não nos apercebemos que, ao popularizar “cultos sensíveis ao não crente”, nas
palavras de Bill Hybels e Rick Warren, principalmente, estávamos enviando uma mensagem aos
membros de nossas igrejas, de que o culto e a vida eclesiástica precisam agradar ao indivíduo: se
não estou satisfeito com a doutrina, com a liturgia ou com as programações oferecidas na igreja
onde estou, tenho plenos direitos e liberdade de procurar outra, como faria na condição de cliente
que estivesse comprando qualquer outro produto. Na quinta parte desse livro, discutiremos que,
sim, a igreja precisa ser “agradável”, e não simplesmente “dogmática”, mas aqui é preciso ressaltar
que o fenômeno do desigrejamento é, principalmente, o fruto de uma geração individualista, que
sente que precisa ser atendida em todas as suas demandas, pois vê isso como um direito seu.
Uma boa verificação dessa afirmativa está nas músicas evangélicas da atualidade, que, em
sua maioria, são antropocêntricas, mais voltadas para autoajuda que para louvar a Deus. Talvez por
isso deixamos de cantar músicas que falam sobre a segunda vinda de Cristo. A mensagem que
estamos vendo é: não precisamos pensar em céu e na volta de Jesus, se a vida aqui, agora, é tão
prazerosa e tão cheia de oportunidades.
Outra observação é a notória diminuição de pregações em que o inferno é mencionado;
temas como esse parecem não ser mais “politicamente corretos” na atual cosmovisão, influenciada
pelo humanismo secular. Coincidentemente, é em nossos dias que temos visto o crescimento do
Universalismo Cristão, em livros como O Amor Vence, de Rob Bell, sobre o qual o The New York
Times se manifestou: “Ao desafiar a visão tradicional da Igreja sobre céu, inferno e maldição
eterna, um dos pastores mais influentes do século vem provocando polêmica entre os líderes
religiosos”3. Universalismo Cristão é a visão sobre a Salvação Universal, que remove o inferno ao
final. Interessante que, em linhas gerais, são os mesmos argumentos de Richard Dawkins, de que
um “Deus de Amor” é incompatível com a ideia de condenação eterna. Dawkins sugere um
exercício mental de punição a um cachorro que tenha matado uma criança: “Se você tivesse o poder
de condenar este cão a queimar com tochas de fogo, mas sem morrer, por quanto tempo permitiria
esse sofrimento?” É numa linha assim, que Rob Bell introduz seu argumento:
3 Citado em www.amazon.com.br.
mas o consumidor. O que estou argumentando é que levamos esse comportamento para a igreja
também, afinal, respiramos essas ideias em tudo à nossa volta.
De modo geral, a igreja não se apercebeu que entrou na mesma “guerra de mercado”, com
púlpitos cada vez mais voltados para um tipo de “cliente”, seja o que busca coaching e autoajuda,
seja o que busca conhecimento teológico, independentemente de o praticá-lo ou não no decorrer da
semana.
Mais uma vez, o mundo secular pode ter interpretado a si mesmo de forma mais rápida e
acertada que a igreja. Fez isso, por exemplo, ao escolher o termo “pós verdade” como palavra do
ano em 2016. O significado de pós verdade é “relativo a ou que denota circunstâncias nas quais
fatos objetivos são menos influenciadores na formação da opinião pública do que apelos à emoção
ou à crença pessoal”. Não interessa a essa geração, de modo geral, a verdade; interessa a satisfação
pessoal.
Outro exemplo de acerto fora da igreja é a excelente análise de nossos dias, feita pelo
sociólogo Zygmunt Bauman. Ele classificou a atual geração como uma “modernidade líquida”, um
mundo confuso, que pode mudar com rapidez e de forma imprevisível, trazendo mais fragilidade
nas relações humanas que em outras épocas, o que ele denominou de “amor líquido”. Sim, é isso
que estamos vivenciando, e não é apenas nas relações interpessoais que percebemos claramente essa
imprevisibilidade, mas em quase todos os aspectos da vida humana: somos uma geração de
compromisso mínimo, somos uma “geração líquida”.
Novamente chegamos ao ponto: uma das principais necessidades atuais é a de vínculos, de
relacionamentos, desde que relevantes. A igreja tem falhado em não perceber, e em não responder a
essas necessidades, fortalecendo o fenômeno do desigrejamento, aceitando-o como normal. Por
isso, discutiremos, na Parte 2, sobre o “igrejado”. Acomodação, temor em ser fundamentalista, não
apenas levou a mudarmos os termos de “desviado” para “desigrejado”, como está produzindo
membros de igreja que são, em linhas gerais, iguais aos que não tem compromisso com o congregar
regularmente. Tanto faz, tanto “nós” como “eles”.
Na época dos “desviados” (até o final da década de 90), havia mais nitidez no processo de
disciplina: o “afastado” era, geralmente, um excluído do rol de membros da igreja, após processo
disciplinar. Acreditando que esse processo tivesse sido bíblico e correto, as tentativas de restauração
via visitas pelos diáconos ou comissão para isso estabelecida já haviam sido feitas, e repeti-las não
parecia muito eficaz. Se não haviam sido excluídos em assembleia da igreja, eram pessoas que de
algum modo se auto excluíram ao, repetidamente, praticarem pecados considerados graves, ou se
afastaram dos cultos (os estatutos de igreja geralmente têm cláusulas que permitem a exclusão de
um membro por abandono). Nessa linha de pensamento, a posição da igreja era mais do “nós e
eles”, uma diferenciação: na igreja, congregando os membros, os “salvos”; eles, os desviados,
estavam abandonando não somente o congregar, mas a fé também.
Em igrejas pentecostais, com evangelismo mais ousado ou de massa, o discipulado era
entendido como resultado natural da conversão. Quem não se firmava, era por ser fraco demais para
negar ao mundo e seguir a Cristo. Agia-se como se não fosse possível “re-conquistar” essas pessoas.
Nas pesquisas de Christian Schwarz, por exemplo, os pensamentos mais comuns em todos os
arraiais eram que evangelistas bem-sucedidos usam métodos que valorizam a insistência, e que,
quando uma decisão a favor de Jesus é séria, essa pessoa automaticamente encontra o caminho para
a participação na igreja
Nesse contexto, movimentos que trabalhavam a reconquista de membros excluídos, como o
de Sinfrônio Jardim, eram considerados ousados em alguns momentos e desnecessários em outros.
Lembro-me bem da estatística, tida como certa na época: para cada membro de igreja, existiriam
dois outros excluídos ou afastados. Expressões do tipo: “se saíram do nosso meio, é porque não
eram dos nossos”, e “perdemos 1, mas ganhamos 10”, eram comumente ouvidas, confirmando a
máxima, em palavras comuns da época, de que a igreja é “o único exército que abandona seus
feridos”.
A estatística era tida como pertinente principalmente pelos relatos de plantadores de igrejas.
Em um dos pastorados, liderei a plantação de seis novas igrejas em 15 anos. Mais tarde, como
Diretor Executivo de Convenção Batisa Estadual, em parceria com Missões Nacionais, iniciamos
um programa de formação que resultou no início da plantação de quase 20 novas igrejas em 3 anos,
todas em bairros ou pequenas cidades sem a presença de uma igreja batista. Sempre foi comum
ouvir dos plantadores sobre a elevada quantidade de “desviados”, principalmente como resultado de
campanhas de evangelização sem discipulado, ou de processos de disciplina malfeitos em outras
denominações.
Esse mesmo sentimento, de “nós e eles”, parece-me que existiu em relação aos “sem
religião” do censo de 2010, mas é muito mais ameno em relação aos “desigrejados” da atualidade.
Essa visão está em falta em nossos dias: há um certo comodismo com o pensamento presente, de
tratar o desigrejado como tendo um comportamento inadequado, mas aceitável. Percebo que esse
entendimento impedirá um melhor enfrentamento da situação. Na prática, o que vejo, é que o
comportamento agora é mais para o “tanto nós, como eles”.
Assim como na década de 2000 focamos apenas na boa notícia do crescimento dos
evangélicos, sem nos atentarmos para o fato de que estava faltando alcançar a geração de jovens e
adolescentes da época, agora, não estamos percebendo a queda na qualidade de compromisso com a
igreja. Por isso, dedicarei a segunda parte do argumento para tratar do “igrejado”, para mim, o
maior problema da atualidade.