Desigrejados

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2.

MUDANÇAS E MUDANÇAS EXPONENCIAIS

Jesus comparou o Reino de Deus a um grão de mostarda e ao fermento (Mt 13.31-33),


afirmando assim que o seu início seria pequeno, mas teria um crescimento rápido e grande, seria
uma verdadeira revolução na humanidade. Comparou também o Reino com odres velhos que
recebem vinho novo e não suportam a mudança, e afirmou que o ideal seriam odres novos para o
vinho novo (Mt 9.17). Mudanças às vezes podem ser necessárias e algumas podem começar de
forma muito pequena, mas terem consequências imprevisíveis.
É comum, para fins didáticos, pensar-se em três grandes revoluções que afetaram a
humanidade ao longo da história: a Agrícola, uma das principais razões para a criação das cidades;
a Industrial, que marcou um período de grande desenvolvimento tecnológico e consolidou o
processo de formação do capitalismo, e a Digital, com o desenvolvimento da eletrônica digital e de
sistemas de automação industrial e também de sistemas de telecomunicação. O destaque dessa
última é que, diferentemente das primeiras, esta consolidou uma abertura para uma
exponencialidade jamais vista, não apenas em termos tecnológicos, mas em termos
comportamentais também, principalmente após uma parte dessa revolução: a criação da internet.
Exemplo dessa evolução é o aceso a mensagens bíblicas. Lembro-me bem de como era
comum a compra ou mesmo aluguel de fitas VHS ou DVDs com pregações de pastores que
percebiam, na década de 2000, a oportunidade de vender conteúdo e de como isso foi alterado com
a popularização do YouTube a partir de 2005 e de streamings de áudio como Spotify em 2006,
popularizados mais recentemente. Com redes sociais como Tik Tok (popularizado a partir de 2017),
e poderosos algoritmos, qualquer um pode criar conteúdo e ser visto por uma infinidade de pessoas
em pouco tempo, monetizando essas visualizações. Antes havia uma maior dependência do púlpito;
hoje, não mais. Vivemos não apenas numa época de mudanças, mas de mudanças exponenciais, ou
de mudanças que podem até não serem percebidas de início, mas que, de repente, são inevitáveis e
descomunais (“devagar e de repente”).
Na década de 90, 1994 para ser exato, iniciei um ministério como palhaço para alcançar
crianças para Jesus, junto com um amigo muito próximo, Arinaldo. Começamos por diversão de
juventude numa EBF (Escola Bíblica de Férias) na igreja onde congregávamos, após participarmos
da Tenda da Esperança, ministério de Missões Nacionais que usava um circo para evangelizar em
grandes ajuntamentos, como romarias, ou para plantar igrejas, principalmente no Nordeste. Depois
da experiência, demos sequência ao ministério e passamos a evangelizar em escolas, hospitais e até
praças. Mas me sentia mal, considerava a roupa, os truques de mágica que usava para aplicar os
conceitos do Plano de Salvação, os esquetes engraçados… como uma forma menos sacra de pregar
o evangelho. Falando desse incômodo a uma missionária que me aconselhava, extremamente
habilidosa na arte de contar histórias, ela me disse: “Você viu o nível de atenção das crianças
enquanto eu contava a história bíblica? E viu como a atenção subiu quando você entrou como
palhaço”? Foi assim que me dei conta de que estávamos em um novo tempo e de que flanelógrafos
e cartazes monocromáticos, encadernados em espirais, não tinham a menor condição de competir
com os desenhos animados da TV. E, na atualidade muito menos, com os streamings, canais por
assinatura, YouTube e grupos no Discord, em que as crianças não precisam sequer digitar o nome de
um programa numa barra de buscas, já que Alexa, Siri ou Google Assistant podem fazer isso por
elas.
Essa velocidade de mudanças, entre outras consequências, trouxe uma grande separação
entre as gerações contemporâneas. É difícil para os boomers (nascidos entre 1945 e 1960)
compreenderem que o maior show de rock da atualidade não aconteceu num estádio na Inglaterra
ou Estados Unidos, mas dentro de um jogo virtual, estilo battle royale: o Fortnite, que reuniu 10
milhões de jogadores no Marshmello Concert Event, em 2019. O próprio estilo do jogo (dezenas de
jogadores em uma ilha ou mundo com limites, on-line, em que todos lutam entre si até somente um
sobreviver, é praticamente inadmissível para as gerações mais antigas, mas para as novas gerações a
discussão se jogos violentos ajudam a criar pessoas violentas já foi vencida, e dizem ser fácil a
separação entre ficção e realidade. O fato é que a experiência virtual é facilmente aceita como uma
experiência real para as gerações Y (nascidos entre 1980 e 2000) e Z (nascidos após o ano 2000). E
o grande problema é que a maior parte das lideranças pastorais e de igrejas ainda é formada por
boomers, que não conseguem se conectar, e falo em termos relacionais, com as gerações mais
jovens.
As mudanças comportamentais vão além da facilidade de comunicação e conexões com
novas pessoas. A criação de negócios como Uber ou Aplicativos de carona são um exemplo: antes, o
pensamento comum era: não pegue carona com estranhos e não vá sozinho a um encontro com
pessoas que conheceu na internet. Esses aplicativos são baseados no pensamento contrário: pegue
carona com um estranho, e faça uma viagem sozinho, com uma pessoa que você encontra na
internet1. Os comportamentos sociais estão mudando velozmente, e a igreja não está
acompanhando. É como se o mundo dentro de uma igreja fosse um, e o de fora, outro totalmente
diferente. Em muitas das minhas conversas, as pessoas afirmam sentir isso em seus empregos,
negócios, escolas e momentos de lazer, embora nem todos na igreja admitam.
Como as mudanças são rápidas, mesmo que haja um abismo entre as gerações, a pandemia
de Covid-19 levou os idosos a comprarem smartphones, a instalarem o WhatsApp e a aprenderem a
acessar o YouTube e seu chat ao vivo. Enviar e receber áudios, fazer videochamadas, é hoje uma
realidade comum a todas as gerações. Todos passaram a viver o virtual. Pastores foram forçados a
dizer: a celebração virtual é tão real quanto a presencial.
O problema é que, finda a pandemia, a necessidade do congregar tem sido relegada por
muitos. O fenômeno do “devagar e de repente”, das transformações digitais, aconteceu aqui, mais
uma vez. Diversos analistas têm apontado para o que se esperar nos próximos anos: a igreja
formada por boomers será cada vez menor, a separação entre digital e presencial continuará
diminuindo, com queda no compromisso de voluntariado, e conteúdo será cada vez menos
exclusividade do púlpito ou EBD (Escola Bíblica Dominical), sem falar na falta de limites
doutrinários claros entre as denominações.
Ao citar esses fatos, como disse na introdução, não faço um chamado à acomodação. Há
soluções, que discutiremos mais adiante em detalhes. Por enquanto, vale citar, que se trata de um
fenômeno de nossa época. As mudanças vieram para ficar, e se tornarão ainda mais aceleradas. Mas
há solução. Marshal e Payne, no clássico A Treliça e a Videira, cinco anos antes da pandemia de
Covid-19, tinham previsto tempos como os pandêmicos (a expectativa era de pandemia provocada
pela gripe suína, na época), e apontavam para o discipulado como a solução: contatos telefônicos e
virtuais, mas também visitas, visando não apenas acompanhar a membresia, mas também levá-la a
crescer com a evangelização de novos membros (pp. 180-182). Marshal e Payne convidaram a um
exercício de imaginação: uma igreja que não congrega, mas que mantém muito contato pessoal,
ainda que um a um, mantendo uma distância segura, que continuaria assim, relacional e
discipuladora, mesmo quando fosse possível retornar à prática do congregar. Finda a pandemia de
Covid-19, é notório que falhamos ao manter apenas a celebração on-line, sem o devido

1 Ideias de Harold Neto, @haroldsneto, usadas com permissão.


“acolhimento” e comunhão entre os membros como partes essenciais da vida eclesiástica, o que
independe dos templos.
Na percepção das mudanças, falhamos mais ainda em não ter atentado para as crianças e
adolescentes. Quase todas as igrejas levaram seus cultos para o ambiente on-line, na pandemia,
fosse em aprimoradas transmissões, fosse em aplicativos gratuitos como Google Meet ou mesmo
chamadas de vídeo do WhatsApp, mas, creio que por despreparo, no geral, não fizemos o mesmo
com os ministérios infantis e de adolescentes. O resultado é que, nas diversas conversas que tive
com pastores em São Paulo, Rio de Janeiro e Piauí, essas faixas etárias foram as que menos
voltaram ao presencial no pós-pandemia, o que aponta para a possibilidade de que, nas próximas
gerações, o fenômeno do desigrejamento poderá ser ainda maior.
Há um outro fator de mudança que precisa ser analisado. Seja pelas transformações
tecnológicas, seja pelo sentimento de desânimo em relação ao futuro, a partir dos milennials
(nascidos em 1981 em diante) há um comportamento generalizado de indiferença. Se, por exemplo,
para conseguir uma vaga de emprego, um jovem tem que cortar o cabelo, é muito provável que esse
jovem procure outra oportunidade, e não abra mão de sua individualidade. E o emprego? E as
contas a pagar? “Tanto faz”. Essa indiferença, quando dirigida à igreja, provoca o comportamento
de mudança até de denominação, a fim de se estar em um lugar em que sua individualidade seja
respeitada.
Essa apatia é muito canalizada em um sentimento de desinstitucionalização. Diferentemente
das propostas da “igreja orgânica”, nesse caso não há um ataque contra as instituições, só
indiferença mesmo.
“Não congregar” pode ser uma característica de nossos dias, pode ser parte das mudanças
desse tempo, mas não pode ser encarado como um comportamento normal. Excluir a igreja das
prioridades dos indivíduos, abrir mão do cuidado mútuo, da prática dos mandamentos de
reciprocidade, da atuação missionária em sua comunidade e no mundo não pode ser aceito como
comportamento cristão. Em vez de ficarmos acomodados, somos desafiados a adaptar métodos, mas
jamais o objetivo para o qual a igreja foi fundada por Jesus, evitando um tradicionalismo ineficaz,
mas respeitando os princípios de nossas tradições.

3. TRADIÇÃO E TRADICIONALISMO

Em Mateus 23 Jesus faz seu discurso mais duro. Mesmo que a expressão grega para o “ai de
vós” possa ter uma conotação de misericórdia, de apelo emocional até, as palavras de alerta são
muito duras. E todas dirigidas aos fariseus e saduceus, partidos religiosos mais rigorosos e
dedicados a examinar e cumprir as leis de Deus. Nesse sermão, Jesus os condena veementemente
pelo fato de praticarem ações desprovidas de verdade, de sentimento, meramente ações religiosas e
tradicionalistas.
Das análises sobre os dados do Censo de 2010, já mencionei a feita pelo jornalista Ricardo
Alexandre, que classificou o aumento dos “sem religião” como uma segunda reforma protestante,
destacando as seguintes diferenças no novo comportamento2.

Visão Dominante “Novos Reformadores”


Sobre o Templo
A Igreja é “Casa de Deus”. As Preferem reuniões em casas, em pequenos
2 Revista Época, edição de 9 de agosto de 2010
denominações investem milhões em grandes grupos, em cafés ou auditórios ou em
e luxuosas catedrais. qualquer lugar de fácil acesso. A “Casa de
Deus” é o próprio cristão.
Sobre os Pastores
São considerados “ungidos pelo Senhor”, São líderes com preparo para
com acesso preferencial a Deus e a suas aconselhamento e ensino, mas as relações
revelações. As relações são verticais. são de igual para igual com os leigos.
Sobre Abordagem
É a guerra da “verdade” dos cristãos contra São relacionamentos que conduzem ao
a “mentira” dos ateus. A Bíblia é a arma de interesse pelo cristianismo. A Bíblia é a
convencimento. ferramenta que norteia essas relações.
Sobre o Dízimo
O fiel contribui, na expectativa de que sua A oferta é apresentada como um gesto de
fidelidade possa constranger Deus a resolver gratidão, altruísmo e solidariedade. Algumas
seus problemas pessoais. igrejas aboliram a entrega do dízimo de suas
liturgias.
Sobre Sociedade
O “mundo” é mau, e a Igreja é o único local A Igreja é uma espécie de “central de
onde os crentes podem se proteger de sua treinamentos” para que o fiel exercite seu
influência. cristianismo na vida cotidiana.

A percepção de Alexandre sobre os contrastes é um convite a também nos posicionarmos


ainda hoje, mais de dez anos depois. Fica evidente que ele usou mais o neopentecostalismo como
representante da Visão Dominante, mas temos que admitir que há traços desses comportamentos
presentes nas igrejas históricas e de missão, bem como que as convicções dos Novos Reformadores,
da forma como apresentadas, são as mais próximas dos princípios do Novo Testamento.
A reportagem cita ícones que “aproveitaram” o espírito da época das décadas de 1990 e
2000, como Bill Hybels e a Willow Creek, uma “igreja para quem não gosta de igreja”, ou Ed
René Kivitz e a Igreja Batista de Água Branca, “uma igreja para pessoas de quem a igreja não
costuma gostar”. Kivitz, inclusive, escreveu o seu livro “Quebrando Paradigmas”, abordando
quatro perguntas sobre o culto e serviço a Deus, e mostrando como a igreja contemporânea poderia
estar se apegando mais ao tradicionalismo que às tradições, resumidas na tabela a seguir.

Época O quê? Quando? Quem? Onde?


Velho Cultos e Sábados Sacerdote Templo
Testamento Sacrifícios
Novo Tudo Todos os dias Todos os crentes Todos os lugares
Testamento
Igreja Cultos e Eventos Domingo Pastor e Equipe Templo
Tradicional

Mais recentemente, surgiram outras interpretações das necessidades, principalmente as de


pertencimento, com exemplos como o de Francis Chan, que em 2017, deixa a liderança da
Cornestone Church, de cerca de 5 mil membros, para iniciar um movimento de igrejas familiares,
compostas geralmente por até 30 membros e que, intencionalmente, trabalha para que essa atitude
se torne em movimento e não somente numa experiência dele.
Há discussões em redes sociais, acaloradas até, a respeito do seguinte questionamento:
“Essas igrejas estão levando a um crescimento do Reino de Deus, ou lhe prestando um desserviço”?
Não é o propósito aqui discutir profundamente a teologia envolvida, mas destacar a falta de
percepção das mudanças contemporâneas como a atitude mais comum nas igrejas tradicionais.
Talvez o mais notório exemplo dessa falta de percepção seja o não aproveitamento das
oportunidades de comunicação, como o Tik Tok, rede social mais recente, visto que a nova geração
é muito mais rápida em experimentar novas formas de comportamento que aqueles que lideram a
igreja de hoje.
De modo geral, as mudanças deveriam no tradicionalismo. Por exemplo, um renomado
seminário manteve, até recentemente, a proibição a seus alunos de frequentarem cinemas, sob pena
de expulsão dos que infringissem a regra; na época de criação da regra, frequentar um cinema era
uma atitude comumente aceita como mundana, mas hoje não mais, e os argumentos em prol da
regra se tornaram frágeis para essa geração. O alvo das mudanças devem ser comportamentos que
não mais servem a uma geração e que não conseguem ser fundamentados com argumentos
contemporâneos, como o proibir ir ao cinema. A questão é que a luta de cada geração deveria ser
contra o tradicionalismo (apego irracional às tradições), não contra as tradições em si (seus valores
e princípios). Mudar formas e métodos é necessário sempre, mas não os princípios bíblicos
envolvidos.
Exemplo de ataque às tradições e seus princípios foi o mau aproveitamento de modelos
eclesiásticos, que levou igrejas a facilmente serem confundidas com empresas, ou provocou
divisões Brasil a fora, no final da década de 1990 e início dos anos 2000. Essa presença da visão
empresarial é muito frequente nos argumentos em prol da desinstitucionalização da igreja pelos
adeptos da “igreja orgânica”, ou como queixa dos que se afastaram. Refiro-me a bons modelos,
como Igreja Com Propósitos e Rede Ministerial, geralmente mal implementados nas igrejas locais.
Por décadas, principalmente nas igrejas batistas, o modelo eclesiástico era simples: Culto de
Oração e Doutrina no meio da semana, Escola Bíblica Dominical com Culto de Edificação nas
manhãs de domingo, Culto Dominical Evangelístico e Organizações Missionárias (União de
Treinamento) num ajuntamento similar à EBD, nos domingos à noite. Esses novos modelos, bons
até, trouxeram grandes mudanças, mas mudava-se mais a nomenclatura que o modo de ser,
resultando nos prejuízos acima. O que não dava certo, por exemplo, nos Embaixadores e
Mensageiras do Rei (organizações para juniores dos batistas brasileiros) também não iria dar certo
no Geração Futuro, da Rede Ministerial, por exemplo, pois o problema era (e é) a falta de
discipulado e o crescente descompromisso dessa geração, não o modelo em si.
Temos então, por um lado as respostas que desprezam as tradições, e, portanto, princípios
que deveriam ser inegociáveis; e, por outro, temos respostas que se apegam tanto às mesmas
tradições, que as tornam superiores aos próprios princípios que elas representam. Noutro extremo, o
mais perigoso de todos, temos uma igreja que se adequa ao mundo com o argumento de que assim
irá mudá-lo.
Não se percebeu, e talvez ainda não se esteja percebendo, que as inquietações atualmente em
curso não são um clamor por mudanças doutrinárias, de estruturas eclesiásticas, ou por relaxamento
moral, embora esses temas estejam muito presentes. O que mais a revolução digital tem explorado é
a facilidade de conexões interpessoais, encurtando distâncias. O clamor atual é mais por
pertencimento e propósito que por qualquer outro motivo. Isso parece estar acima das questões
doutrinárias, mas destaco que é perfeitamente possível ter uma igreja firme na doutrina, relevante na
comunidade, que faça parte desse tempo, dessa geração e que também esteja atenta às mudanças em
curso.
E que geração é essa? Vou chamá-la de “líquida” no próximo tópico.
4. UMA GERAÇÃO LÍQUIDA

Cerca de 350 anos depois de se tornarem uma nação, liderados por Moisés e Josué, o povo
de Deus experimentou sua primeira grande mudança ao deixar de ter um governo teocrático para
adotar a monarquia (1 Sm 8).
Passaram-se mais 50 anos e Davi propõe outra grande mudança: a construção de um templo
(1 Cr 17). A ideia parecia tão boa, tão comum ou necessária à época, que o profeta Natan concorda
de imediato (1 Cr 7.2). Faltou a Natan discernimento sobre as consequências desse projeto a longo
prazo e ele teve que retroceder no mesmo dia. Como aconteceu com a monarquia, Deus consente
com a ideia de mudança mais tarde, nos dias de Salomão, alertando que aquele templo poderia ser
destruído entre as nações, caso houvesse pecado em Israel.
Ter um rei faria com que Israel deixasse de confiar no Senhor e confiasse em exércitos (por
isso, o maior pecado cometido por Davi é o censo de 1 Crônicas 21). Ter um templo faria com que
Israel passasse a imaginar que Deus era semelhante a qualquer ídolo, que tinha uma “casa” em vez
de habitar entre seu povo. Eram pequenas transformações, aparentemente boas até, mas de
consequências muito ruins a longo prazo.
Assim como Natan, não percebemos as modificações que estavam acontecendo diante de
nós. Só agora estamos nos apercebendo delas, quando já se tornaram comportamentos ou crenças
bem enraizadas. Não nos apercebemos que fomos nos tornando numa sociedade muito humanista,
com o ser humano no centro e sem espaço para um Deus que é adorado com nossa submissão ao
seu senhorio. Nos últimos anos a igreja tem entrado em batalhas políticas, literalmente, e em causas
muito sérias, como a questão de “identidade de gênero”, mas não se apercebeu de que a maior
batalha deveria ser contra o humanismo secular entrando em nossas congregações.
O humanismo abrange todos os aspectos da vida humana. É uma cosmovisão que atua nas
questões de princípios e valores, assim como na identidade, ao aceitar somente a razão humana, a
ética, a justiça social e o naturalismo filosófico, rejeitando dogmas religiosos e tudo o que possa ser
sobrenatural como base para a moralidade e tomadas de decisão pelo ser humano. Para os
humanistas, os seres humanos são capazes de ser éticos e morais sem religião ou sem Deus,
simplesmente pelo respeito ao ser humano.
Não é um tipo de ateísmo. Semelhante à liberdade religiosa do Império Romano, em que
praticamente todos os credos eram permitidos, desde que também se prestasse culto aos deuses
romanos, o humanismo secular permite a crença em um deus, desde que ele não seja exclusivista.
Permite-se uma religião, desde que ela não seja “fundamentalista”. O cristianismo evangélico pode
ser tolerado em qualquer meio, desde que não exija um alto grau de compromisso e não condene
práticas que firam o direito do ser humano de ser feliz e realizado. Essa é a nossa cultura hoje e
nossos jovens em suas comunidades e ambientes acadêmicos experimentam isso de forma muito
mais acentuada, sendo que muitos não resistem aos argumentos (nãos os preparamos!) e abandonam
não apenas a igreja, mas a fé.
A origem do humanismo está ligada a nomes como Giordano Bruno, Thomas Paine e David
Hume e, como o conhecemos hoje, nasceu na Renascença, sendo inclusive um dos fatores para o
sucesso da Reforma Protestante (sim, a insatisfação com os dogmas católicos, a ideia um de
império romano sobre as Nações Estado, como Inglaterra, era grande não apenas nos meios
teológicos). São mais de 500 anos de esforço dos expoentes das ideias humanistas e finalmente (e
infelizmente) colhem-se agora seus resultados: somos a mais individualista das gerações, sem
sombra de dúvidas, e esse comportamento tem sido levado para todas as esferas da vida: família,
trabalho, lazer e religião.
Coincide com o avanço da cosmovisão humanista, um tipo de ataque ao cristianismo em
específico, com um alarde além do comum com “descobertas” que fizeram do cristianismo uma
religião como qualquer outra. Quem não lembra dos arroubos de exposição em cima do “Código Da
Vinci” (de Dan Brown), que muitos sequer atentaram para o fato de que era apenas um romance
policial, levando-o a ganhar tanta notoriedade como se fosse científico? O livro vendeu oitenta
milhões de cópias e virou filme em 2006. Apesar das imprecisões históricas e cientificas (é um
romance, afinal!), o livro popularizou a ideia de um relacionamento romântico entre Jesus e Maria
Madalena. De modo geral, esses ataques apresentam um Jesus maldoso ou impuro, igual a um
homem qualquer, que sequer desejava fundar uma religião.
Já citei autores como Richard Dawkins que, na sua cruzada pela divulgação científica, ataca
frontal e abertamente a fé cristã. Longe de querer uma reedição do Index Librorum Prohibitorum
(lista de livros proibidos, de 1559, parte da Contra Reforma Católica), apenas chamo a atenção para
o fato de que há mais desses ataques contra o cristianismo que contra qualquer outro credo,
incluindo o islamismo, que é facilmente separado do radicalismo de terroristas nos meios de
comunicação atuais. Desmerecer o cristianismo parece ser parte inerente do pensamento humanista
secular em todas as suas esferas.
Também não nos apercebemos que, ao popularizar “cultos sensíveis ao não crente”, nas
palavras de Bill Hybels e Rick Warren, principalmente, estávamos enviando uma mensagem aos
membros de nossas igrejas, de que o culto e a vida eclesiástica precisam agradar ao indivíduo: se
não estou satisfeito com a doutrina, com a liturgia ou com as programações oferecidas na igreja
onde estou, tenho plenos direitos e liberdade de procurar outra, como faria na condição de cliente
que estivesse comprando qualquer outro produto. Na quinta parte desse livro, discutiremos que,
sim, a igreja precisa ser “agradável”, e não simplesmente “dogmática”, mas aqui é preciso ressaltar
que o fenômeno do desigrejamento é, principalmente, o fruto de uma geração individualista, que
sente que precisa ser atendida em todas as suas demandas, pois vê isso como um direito seu.
Uma boa verificação dessa afirmativa está nas músicas evangélicas da atualidade, que, em
sua maioria, são antropocêntricas, mais voltadas para autoajuda que para louvar a Deus. Talvez por
isso deixamos de cantar músicas que falam sobre a segunda vinda de Cristo. A mensagem que
estamos vendo é: não precisamos pensar em céu e na volta de Jesus, se a vida aqui, agora, é tão
prazerosa e tão cheia de oportunidades.
Outra observação é a notória diminuição de pregações em que o inferno é mencionado;
temas como esse parecem não ser mais “politicamente corretos” na atual cosmovisão, influenciada
pelo humanismo secular. Coincidentemente, é em nossos dias que temos visto o crescimento do
Universalismo Cristão, em livros como O Amor Vence, de Rob Bell, sobre o qual o The New York
Times se manifestou: “Ao desafiar a visão tradicional da Igreja sobre céu, inferno e maldição
eterna, um dos pastores mais influentes do século vem provocando polêmica entre os líderes
religiosos”3. Universalismo Cristão é a visão sobre a Salvação Universal, que remove o inferno ao
final. Interessante que, em linhas gerais, são os mesmos argumentos de Richard Dawkins, de que
um “Deus de Amor” é incompatível com a ideia de condenação eterna. Dawkins sugere um
exercício mental de punição a um cachorro que tenha matado uma criança: “Se você tivesse o poder
de condenar este cão a queimar com tochas de fogo, mas sem morrer, por quanto tempo permitiria
esse sofrimento?” É numa linha assim, que Rob Bell introduz seu argumento:

3 Citado em www.amazon.com.br.
mas o consumidor. O que estou argumentando é que levamos esse comportamento para a igreja
também, afinal, respiramos essas ideias em tudo à nossa volta.
De modo geral, a igreja não se apercebeu que entrou na mesma “guerra de mercado”, com
púlpitos cada vez mais voltados para um tipo de “cliente”, seja o que busca coaching e autoajuda,
seja o que busca conhecimento teológico, independentemente de o praticá-lo ou não no decorrer da
semana.
Mais uma vez, o mundo secular pode ter interpretado a si mesmo de forma mais rápida e
acertada que a igreja. Fez isso, por exemplo, ao escolher o termo “pós verdade” como palavra do
ano em 2016. O significado de pós verdade é “relativo a ou que denota circunstâncias nas quais
fatos objetivos são menos influenciadores na formação da opinião pública do que apelos à emoção
ou à crença pessoal”. Não interessa a essa geração, de modo geral, a verdade; interessa a satisfação
pessoal.
Outro exemplo de acerto fora da igreja é a excelente análise de nossos dias, feita pelo
sociólogo Zygmunt Bauman. Ele classificou a atual geração como uma “modernidade líquida”, um
mundo confuso, que pode mudar com rapidez e de forma imprevisível, trazendo mais fragilidade
nas relações humanas que em outras épocas, o que ele denominou de “amor líquido”. Sim, é isso
que estamos vivenciando, e não é apenas nas relações interpessoais que percebemos claramente essa
imprevisibilidade, mas em quase todos os aspectos da vida humana: somos uma geração de
compromisso mínimo, somos uma “geração líquida”.
Novamente chegamos ao ponto: uma das principais necessidades atuais é a de vínculos, de
relacionamentos, desde que relevantes. A igreja tem falhado em não perceber, e em não responder a
essas necessidades, fortalecendo o fenômeno do desigrejamento, aceitando-o como normal. Por
isso, discutiremos, na Parte 2, sobre o “igrejado”. Acomodação, temor em ser fundamentalista, não
apenas levou a mudarmos os termos de “desviado” para “desigrejado”, como está produzindo
membros de igreja que são, em linhas gerais, iguais aos que não tem compromisso com o congregar
regularmente. Tanto faz, tanto “nós” como “eles”.

5. DO “NÓS E ELES” AO “TANTO NÓS, COMO ELES”

Na época dos “desviados” (até o final da década de 90), havia mais nitidez no processo de
disciplina: o “afastado” era, geralmente, um excluído do rol de membros da igreja, após processo
disciplinar. Acreditando que esse processo tivesse sido bíblico e correto, as tentativas de restauração
via visitas pelos diáconos ou comissão para isso estabelecida já haviam sido feitas, e repeti-las não
parecia muito eficaz. Se não haviam sido excluídos em assembleia da igreja, eram pessoas que de
algum modo se auto excluíram ao, repetidamente, praticarem pecados considerados graves, ou se
afastaram dos cultos (os estatutos de igreja geralmente têm cláusulas que permitem a exclusão de
um membro por abandono). Nessa linha de pensamento, a posição da igreja era mais do “nós e
eles”, uma diferenciação: na igreja, congregando os membros, os “salvos”; eles, os desviados,
estavam abandonando não somente o congregar, mas a fé também.
Em igrejas pentecostais, com evangelismo mais ousado ou de massa, o discipulado era
entendido como resultado natural da conversão. Quem não se firmava, era por ser fraco demais para
negar ao mundo e seguir a Cristo. Agia-se como se não fosse possível “re-conquistar” essas pessoas.
Nas pesquisas de Christian Schwarz, por exemplo, os pensamentos mais comuns em todos os
arraiais eram que evangelistas bem-sucedidos usam métodos que valorizam a insistência, e que,
quando uma decisão a favor de Jesus é séria, essa pessoa automaticamente encontra o caminho para
a participação na igreja
Nesse contexto, movimentos que trabalhavam a reconquista de membros excluídos, como o
de Sinfrônio Jardim, eram considerados ousados em alguns momentos e desnecessários em outros.
Lembro-me bem da estatística, tida como certa na época: para cada membro de igreja, existiriam
dois outros excluídos ou afastados. Expressões do tipo: “se saíram do nosso meio, é porque não
eram dos nossos”, e “perdemos 1, mas ganhamos 10”, eram comumente ouvidas, confirmando a
máxima, em palavras comuns da época, de que a igreja é “o único exército que abandona seus
feridos”.
A estatística era tida como pertinente principalmente pelos relatos de plantadores de igrejas.
Em um dos pastorados, liderei a plantação de seis novas igrejas em 15 anos. Mais tarde, como
Diretor Executivo de Convenção Batisa Estadual, em parceria com Missões Nacionais, iniciamos
um programa de formação que resultou no início da plantação de quase 20 novas igrejas em 3 anos,
todas em bairros ou pequenas cidades sem a presença de uma igreja batista. Sempre foi comum
ouvir dos plantadores sobre a elevada quantidade de “desviados”, principalmente como resultado de
campanhas de evangelização sem discipulado, ou de processos de disciplina malfeitos em outras
denominações.
Esse mesmo sentimento, de “nós e eles”, parece-me que existiu em relação aos “sem
religião” do censo de 2010, mas é muito mais ameno em relação aos “desigrejados” da atualidade.
Essa visão está em falta em nossos dias: há um certo comodismo com o pensamento presente, de
tratar o desigrejado como tendo um comportamento inadequado, mas aceitável. Percebo que esse
entendimento impedirá um melhor enfrentamento da situação. Na prática, o que vejo, é que o
comportamento agora é mais para o “tanto nós, como eles”.
Assim como na década de 2000 focamos apenas na boa notícia do crescimento dos
evangélicos, sem nos atentarmos para o fato de que estava faltando alcançar a geração de jovens e
adolescentes da época, agora, não estamos percebendo a queda na qualidade de compromisso com a
igreja. Por isso, dedicarei a segunda parte do argumento para tratar do “igrejado”, para mim, o
maior problema da atualidade.

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