Thaisahoskencruz

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 50

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

FACULDADE DE LETRAS
MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS

Thaísa Hosken Cruz

O objeto livro na aula de literatura: letramento literário e ampliação de repertório


de alunos do sexto ano com leituras de adaptações de Dom Quixote

Juiz de Fora
2021
Thaísa Hosken Cruz

O objeto livro na aula de literatura: letramento literário e ampliação de alunos do


sexto ano com leituras de adaptações de Dom Quixote

Dissertação apresentada ao Programa de


Mestrado Profissional em Letras – Profletras,
da Universidade Federal de Juiz de Fora, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Marco Aurélio de Sousa Mendes

Juiz de Fora
2021
AGRADECIMENTOS

Agradeço à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) a oportunidade de


formação continuada, intrinsecamente articulada às práticas em sala de aula, no
Programa de Mestrado Profissional em Letras.
Agradeço toda a dedicação do corpo docente do Profletras da UFJF. E, em
especial, a oportunidade de aprender com o professor Dr. Marco Aurélio de Sousa
Mendes e com as professoras Dra. Elsa de Sá Nogueira, Dra. Érika Kelmer Mathias,
Dra. Luciana Teixeira, Dra. Natália Sathler Sigiliano e Dra. Thais Fernandes
Sampaio.
Agradeço muitíssimo ao meu orientador, professor Dr. Marco Aurélio de
Sousa Mendes, por compartilhar seus conhecimentos e me direcionar no
desenvolvimento deste trabalho. Aproveito este espaço também para exprimir que,
se não fosse pela paciência e pela compreensão dele, este trabalho não teria sido
concluído. Gostaria ainda de dizer que, depois de pronto, fiquei “na sede” de me
aprofundar mais nos temas aqui tratados e poder aplicar esta pesquisa. Obrigada,
professor Marco, por tudo e mais um pouco.
Por fim, tenho que enunciar a minha gratidão de novo pela professora Dra.
Érika Kelmer Mathias, por suas contribuições no projeto de qualificação, assim como
as contribuições da professora Dra. Laura de Assis Souza e Silva.
Letramento não é um gancho
em que se pendura cada som enunciado,
não é treinamento repetitivo
de uma habilidade,
nem um martelo
quebrando blocos de gramática.

Letramento é diversão
é leitura à luz de vela
ou lá fora, à luz do sol.
(Magda Becker Soares, 2006, p. 41)
RESUMO

O objetivo deste trabalho é pensar práticas de letramento literário que possam


aproximar alunos do sexto ano do Ensino Fundamental do objeto livro, por meio da
elaboração de um Caderno Pedagógico. Para tentar alcançar esse objetivo, foram
escolhidas duas adaptações do cânone Dom Quixote. Os conceitos de “Letramento
Literário” (Cosson; Graça, 2009), “Cânone” (Paulino, 2004), “Comunidade de
Leitores” (Cosson, 2014), “Repertório” (Iser, 1996), “Adaptação” (Hutcheon, 2011),
“Categorias da Narrativa” (Abdala Junior, 1995) e “Linguagem Quadrinística”
(Ramos, 2019) constituem as bases teóricas fundamentais deste trabalho. A
metodologia que norteia o desenvolvimento da ação interventiva apresentada no
Caderno Pedagógico é a pesquisa-ação, proposta por Thiollent (2011). O Caderno
Pedagógico está dividido em três momentos: no primeiro momento, enuncia-se o
projeto para os estudantes e contextualiza-se o tempo do escritor e o tempo do
leitor; no segundo momento, realiza-se a leitura protocolada da “HQ Dom Quixote”;
por fim, no terceiro momento, avalia-se os conhecimentos internalizados por eles, a
partir da exibição do cartoon “Don Quixote”.

Palavras-chave: Letramento literário. Adaptação. Cânone. Texto e imagem.


ABSTRACT

The objective of this work is to think about literary literacy practices that can
bring students from the sixth year of Elementary School closer to the book object,
through the elaboration of a Pedagogical Notebook. To try to achieve this goal, two
adaptations of the Don Quixote canon were chosen. The concepts of “Literary
Literacy” (Cosson; Graça, 2009), “Canon” (Paulino, 2004), “Community of Readers”
(Cosson, 2014), “Repertoire” (Iser, 1996), “Adaptation” (Hutcheon, 2011), “Categories
of Narrative” (Abdala Junior, 1995) and “Quadrinistic Language” (Ramos, 2019)
constitute the fundamental theoretical bases of this work. The methodology that
guides the development of interventional action presented in the Caderno
Pedagógico is action research, proposed by Thiollent (2011). The Pedagogical
Notebook is divided into three stages: in the first moment, the project is enunciated
for the students and the writer's time and the reader's time are contextualized; in the
second moment, the protocoled reading of the “HQ Dom Quixote” is carried out;
finally, in the third moment, the knowledge internalized by them is evaluated, based
on the exhibition of the cartoon “Don Quixote”.

Keywords: Literary literacy. Adaptation. Canon. Character. Text and Image.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO......................................................................................... 09
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA............................................................... 18
2.1 O LETRAMENTO LITERÁRIO ENTRE OS LETRAMENTOS.................. 18
2.2 O CÂNONE LITERÁRIO NA FORMAÇÃO DO GOSTO DO ALUNO….. 21
2.3 COMUNIDADE DE LEITORES................................................................ 23
2.4 AMPLIAÇÃO DO REPERTÓRIO LITERÁRIO......................................... 24
2.5 CATEGORIAS DA NARRATIVA NA FICÇÃO.......................................... 26
2.5.1 Categoria da narrativa: o tempo........................................................... 26
2.5.2 Categoria da narrativa: o espaço.......................................................... 27
2.5.3 Categoria da narrativa: o personagem................................................. 28
2.6 A ADAPTAÇÃO E OS LEITORES............................................................ 29
2.7 A LEITURA DOS QUADRINHOS............................................................. 30
2.7.1 A representação da fala, do pensamento e a voz do narrador.......... 31
2.7.2 O valor expressivo da forma das letras............................................... 32
2.7.3 As onomatopeias................................................................................... 32
2.7.4 Ângulos e planos de imagem................................................................ 33
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS................................................ 34
3.1 METODOLOGIA....................................................................................... 34
3.2 O LÓCUS DA PESQUISA........................................................................ 36
3.2 OS PARTICIPANTES DA PESQUISA...................................................... 38
3.2.1 Um breve perfil dos estudantes do sexto ano A................................. 38
3.2.2 Um breve perfil da professora de português do sexto ano A............ 39
3.3 INSTRUMENTO DE COLETA DE DADOS.............................................. 39
3.3.1 Diário de bordo....................................................................................... 40
3.3.2 Diário de leitura...................................................................................... 40
4 PROPOSTA DE INTERVENÇÃO............................................................ 41
4.1 MOTIVAÇÃO............................................................................................ 41
4.2 DESENVOLVIMENTO.............................................................................. 41
4.3 AVALIAÇÃO............................................................................................. 42
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 43
REFERÊNCIAS........................................................................................ 44
APÊNDICE A – Sondagem diagnóstica................................................ 46
9

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho está ligado à linha de pesquisa “Literatura Brasileira: tradição e


ruptura” e se vincula ao macroprojeto “Intervenções pedagógicas no ensino de
literatura: inter-relações entre adaptações literárias”, coordenado pelo professor
doutor Marco Aurélio de Sousa Mendes, no âmbito do Mestrado Profissional em
Letras (Profletras), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). O objetivo do
macroprojeto coordenado por Mendes – que, atualmente, além de compor o corpo
docente do Profletras UFJF, atua como docente no Colégio de Aplicação João XXIII
da UFJF, desde 2010 – é desenvolver estratégias para o ensino de literatura no
Ensino Fundamental Anos Finais, por meio da utilização de adaptações em práticas
de Letramento Literário.
No Brasil, de modo geral, o ensino da leitura, visando o letramento dos
estudantes, ainda tem um caminho longo a ser percorrido para se tornar mais
eficiente. Uma das provas disso é o resultado (publicado no Relatório Brasil no Pisa
2018), da última edição do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes
(Pisa), que não revelou dados animadores em relação ao desenvolvimento das
habilidades básicas de leitura dos estudantes brasileiros com quinze anos de idade.
Esse exame -- que é realizado a cada três anos com o objetivo de mensurar, de
forma amostral, até que ponto os jovens dessa faixa etária adquiriram
conhecimentos e habilidades essenciais para a vida social e econômica -- é aplicado
no Brasil pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep), vinculado ao Ministério da Educação (MEC). No ano de 2018, 597
escolas brasileiras públicas e privadas participaram do exame.
Com os índices inertes desde 2009, mais uma vez, 50% dos estudantes
brasileiros não alcançaram o mínimo da proficiência em leitura esperada ao final da
Educação Básica, para o exercício pleno da cidadania. Ainda que os estudantes da
região Sudeste tenham apresentado um índice um pouco maior que a média
nacional, esse resultado representa um grande desafio, pois a baixa proficiência em
leitura dificulta ou até mesmo pode impedir que os estudantes avancem nos
estudos, tenham melhores oportunidades no mercado de trabalho e participem
plenamente da sociedade.
A questão da leitura no Brasil se torna ainda mais complicada quando se
analisa a difusão da leitura literária como forma de entretenimento entre os jovens
10

brasileiros. De acordo com os resultados da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”,


de 2012, apresentados por Rildo Cosson (2014, pp. 11-12) no livro “Círculo de
Leitura e Letramento Literário”, a leitura literária no Brasil vem perdendo espaço para
outras formas de lazer, como a televisão, que foi apontada entre os entrevistados
como principal meio de entretenimento. Além disso, Cosson (2014, pp. 11-12)
também compara os dados de 2012 aos de uma pesquisa semelhante, de 2007, e
nota a diminuição da leitura literária no território nacional durante esse período de
cinco anos.
Outras pesquisas mais recentes foram consultadas, no entanto, optamos por
citar Rildo Cosson (2014), porque, a partir da análise dos dados dessas duas
pesquisas sobre a difusão da leitura literária no Brasil, ele dá início a reflexões sobre
o espaço que a literatura tem ocupado na vida contemporânea e chega à conclusão
positiva de que a literatura está presente em todos os lugares.
Para chegar a essa conclusão, primeiro o pesquisador busca compreender o
que se entende hoje por literatura, ou seja, nas palavras de Cosson (2014, p. 15) “a
percepção de desaparecimento ou deslocamento da literatura talvez se deva ao
modo como a associamos à escrita e ao livro”. Em outras palavras, Cosson (2014, p.
15) parte da premissa de que “a literatura estaria em nossos dias experimentando
uma nova forma de alargamento ao ser difundida em diferentes formatos e veículos”.
A canção popular, a cinematografia e a história em quadrinhos (HQs) são, de
acordo com o pesquisador, formas de arte distintas, completas em si, mas pelas
quais a literatura perpassa. A canção popular, por exemplo, “é uma manifestação
literária [...] porque emprega a palavra de modo literário, independentemente ou
apesar do evidente parentesco que a letra tem com a poesia” (COSSON, 2014, p.
16).
É de modo semelhante que a literatura também se faz presente nas
produções cinematográficas, sem as sobrepor, ou seja, sem tirar delas a condição
de produto de arte acabado. Isso quer dizer, por exemplo, que o roteiro (inicialmente
associado à literatura) não é o filme. O que há de literário no filme é a interpretação
feita pelo diretor do roteiro do filme (COSSON, 2014, pp. 16-17). As HQs, por sua
vez, também usam a palavra, ou seja, fazem parte do universo literário, porém, a
esse uso da palavra, são associadas imagens, o que caracteriza a produção de uma
obra literária híbrida. “Dizendo de outra maneira, as HQs são literatura porque usam
11

a palavra da mesma maneira que as narrativas dos romances e contos sem imagem
o fazem”. (COSSON, 2014, p. 17).
Toda essa reflexão de Cosson sobre o espaço da literatura na
contemporaneidade implica, portanto, diretamente na escola, onde o ensino de
literatura pode se tornar muito mais amplo, a fim de que ela possa continuar
cumprindo seu papel na formação humana dos jovens.
Quem explica com maestria a importância da literatura na formação humana é
Antonio Candido, no seu ensaio “Direito à Literatura”. Nele, Candido (2004, p. 191)
defende a literatura como um bem inalienável, ou seja, um direito de todos os
indivíduos pelo simples fato de pertencerem à espécie humana, já que ela é capaz
de organizar o interior do ser humano, tanto dos pontos de vista estético e ético,
como cognitivo.
Ainda de acordo com Candido (2004, p. 177), a literatura desempenha uma
função fundamental no ser humano, denominada “função humanizadora”, porque “a
produção literária tira as palavras do nada e as dispõe como um todo articulado” e “a
produção da palavra comunica-se ao nosso espírito e o eleva, primeiro a se
organizar; em seguida, a organizar o mundo”.
Sendo assim, ao defender a literatura como fonte de humanização, Antonio
Candido (2004, p. 176) lhe atribui três funções:

(1) ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e


significado; (2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e
a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de
conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente.

Essas três funções sociais expostas por Candido para explicar o caráter
humanizador da literatura são alguns dos motivos que justificam o ensino efetivo da
literatura na escola. Mas, além dessas funções, o ensaísta também afirma que “a
literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a
possibilidade de vivenciarmos dialeticamente os problemas” (CANDIDO, 2004, p.
175).
Esse último argumento tem um peso imensurável, porém, provavelmente só
pode ser compreendido por aqueles que já perceberam o papel fundamental das
manifestações artísticas para a humanização/humanidade dos indivíduos, entendida
12

aqui em sentido amplo, ou seja, como o conjunto de características específicas à


natureza humana.
Há muitos argumentos que serviriam para defender a importância da literatura
nas aulas de Língua Portuguesa, mas, para uma pesquisa nessa área de
conhecimento, direcionada, sobretudo, para a defesa do uso de práticas de
Letramento Literário como instrumentos para envolver continuamente alunos do
Ensino Fundamental Anos Finais (EF II) no universo literário, o interessante agora é
analisar os documentos oficiais que regem a educação brasileira e compreender
como eles orientam o ensino da Literatura para essa etapa da escolarização.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), produto de discussões sobre a
educação no Brasil ao longo de anos que precederam sua publicação no final do
século XX, foram elaborados com o objetivo de melhorar a qualidade da educação
brasileira. A publicação desse documento possibilitou o início de um processo de
mudança metodológica de ensino no Brasil: ao invés de abordagens “conteudistas”1,
nas quais os alunos não são levados a refletir, os professores, de todas as áreas de
conhecimento, passaram a ser orientados a elaborar metodologias reflexivas de
ensino que os auxiliem na mediação do contato dos alunos com os conteúdos
escolares.
Ao tratar especificamente do estudo/ensino do texto literário, os PCNs
orientam o que Cosson e Paulino definiram, em 2009, como Letramento Literário,
além de antecipar sugestões de práticas de letramento literário, como o Círculo de
Leitura, que Rildo Cosson expôs, em 2014, no livro “Círculos de leitura e letramento
literário”, por exemplo. De acordo com esse documento, o interesse dos alunos pela
literatura, “considerando-a como forma de expressão da cultura de um povo” (PCNs,
1998, p. 64), deve ser incentivado desde o início da escolarização básica e deve
progredir numa direção que permita

a passagem gradual da leitura esporádica de títulos de um determinado


gênero, época, autor para a leitura mais extensiva, de modo que o aluno
possa estabelecer vínculos cada vez mais estreitos entre o texto e outros
textos, construindo referências sobre o funcionamento da literatura e entre
esta e o conjunto cultural; da leitura circunscrita à experiência possível ao
aluno naquele momento, para a leitura mais histórica por meio da
incorporação de outros elementos, que o aluno venha a descobrir ou
perceber com a mediação do professor ou de outro leitor; da leitura mais

1
Sabemos que o termo "conteudismo" talvez seja inadequado ao contexto acadêmico. Mas, para
simplificar a ideia do ensino baseado apenas no acúmulo de conteúdos, julgamos apropriado o uso
desse termo, a fim de deixar claro o que queremos dizer.
13

ingênua que trate o texto como mera transposição do mundo natural para a
leitura mais cultural e estética, que reconheça o caráter ficcional e a
natureza cultural da literatura. (PCNs, 1997, p. 71).

Em 2017, surgiu outro documento norteador da educação no Brasil, a Base


Nacional Comum Curricular (BNCC), que, seguindo a mesma orientação
metodológica que prioriza práticas reflexivas de ensino propostas nos PCNs,
especificou os objetos de ensino de Língua Portuguesa, associando-os às
competências e às habilidade, separadas por áreas de conhecimento. Na área de
Linguagem e suas Tecnologias, a BNCC (2018, p. 67) mantém o texto como objeto
central de estudo nas aulas de Língua Portuguesa e afirma que

o texto ganha centralidade na definição dos conteúdos, habilidades e


objetivos, considerado a partir de seu pertencimento a um gênero discursivo
que circula em diferentes esferas/campos sociais de
atividade/comunica-ção/uso da linguagem.

Nessa divisão das atividades comunicativas em esferas de atuação (Campo


artístico-literário, Campo das práticas de estudo e pesquisa, Campo
jornalístico-midiático e Campo de atuação na vida pública), ensinar literatura,
inserida explicitamente no Campo artístico-literário, implica proporcionar aos alunos
o contato com variadas manifestações artísticas e, de forma específica/particular e
especial, com a literatura (BNCC, 2018, p. 138). Isso quer dizer que os alunos
devem aprender a reconhecer, valorizar e fruir as manifestações artísticas, dando
lugar a dimensão humanizadora que elas proporcionam.
É um desafio, no entanto, pensar em estratégias de ensino de literatura,
sobretudo em escolas públicas, que atendam às propostas desses documentos
norteadores da Educação Brasileira, construídos sob bases teóricas sólidas, que,
inequivocamente, centralizam a essência do ensino de Língua Portuguesa na
formação de alunos leitores de literatura2, capazes de escolher suas leituras, ou
seja, detentores de um gosto pessoal que os levam a consumir as leituras literárias
que lhes aprazem.

2
Ao se referir ao Ensino de Literatura no Ensino Médio, a BNCC esclarece que o ensino da leitura do
texto literário é o principal objetivo do EF II: “Em relação à literatura, a leitura do texto literário, que
ocupa o centro do trabalho no Ensino Fundamental, deve permanecer nuclear também no Ensino
Médio” (BNCC, 2018, p. 499).
14

Esse desafio se intensifica um pouco mais quando o objetivo é mediar o


contato de alunos do EF II com a literatura. De acordo com os PCNs (1998, p. 70),
os quatro anos dessa etapa da escolarização básica

têm papel decisivo na formação de leitores, pois é no interior destes que


muitos alunos ou desistem de ler por não conseguirem responder às
demandas de leitura colocadas pela escola, ou passam a utilizar os
procedimentos construídos nos ciclos anteriores para lidar com os desafios
postos pela leitura, com autonomia cada vez maior.

O documento ressalta ainda que, durante essa etapa de ensino, deve haver
projetos pedagógicos comprometidos com a

intermediação da passagem do leitor de textos facilitados (infantis ou


infanto-juvenis) para o leitor de textos de complexidade real, tal como
circulam socialmente na literatura e nos jornais; do leitor de adaptações ou
de fragmentos para o leitor de textos originais e integrais. (PCNs, 1998, p.
70).

Mas o que se pode observar, de modo mais geral, é uma certa carência de
materiais didáticos voltados especificamente para o tratamento da literatura, o que
pode dificultar o trabalho do professor em alguns aspectos, como, por exemplo,
quando se trabalha em um a escola de comunidade em que nem todos os alunos
dispõem de renda para adquirir livros.
Por outro lado, as especificações da BNCC de como a literatura deve ser
trabalhada no EF II podem ter motivado, de certa forma, a expansão, em 2018, do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para o Programa Nacional do Livro e
do Material Didático, o qual passou também a distribuir para as escolas públicas
livros literários.
A expansão do programa do livro didático ameniza um dos obstáculos
apontados para o ensino de literatura em escolas públicas, já que as bibliotecas das
escolas passam a ter acervos dos quais o professor de Língua Portuguesa pode se
dispor para planejar práticas de letramento literário, para essa e outras etapas da
escolarização básica.
No que diz respeito, porém, especificamente ao Ensino Fundamental Anos
Finais, ainda faltam, de certa forma, materiais didáticos especializados que possam
auxiliar o professor na mediação entre o aluno e a obra literária e mais quantidade
de exemplares de livros de mesmo título, para que todos os alunos possam ter
15

contato com a literatura no formato de livro impresso, ou seja, manusear o objeto


livro.
Então, a fim de contribuir para a disseminação de práticas de letramento
literário nas escolas públicas, propomos uma intervenção pedagógica para
estudantes do sexto ano do EF II, utilizando uma das obras distribuídas pelo
Programa Nacional do Livro e do Material Didático. Trata-se da HQ intitulada “Dom
Quixote”, uma adaptação da obra-prima de Miguel de Cervantes, “O engenhoso
fidalgo Dom Quixote de la Mancha”, com adaptação/roteiro de Philippe Chanoinat e
Djian; desenho/cores de David Pellet; e tradução de Alexandre Boid.
Um dos principais critérios para a escolha dessa obra foi a quantidade de
exemplares recebidos pela escola onde ocorreria essa intervenção. Isso permitiria
que todos os estudantes participantes do projeto tivessem acesso ao livro no
formato físico. Além disso, ainda que essa obra faça parte do acervo destinado ao
Ensino Médio (EM), as peripécias vividas pelo ilustre fidalgo Da Mancha contam com
elementos que costumam despertar bastante interesse de jovens adolescentes,
como aventura, romance, e uma boa dose de comédia.
Há de se esclarecer também que a escolha por essa obra não é uma tentativa
vã de simplificação de um cânone da literatura universal. Ainda que se trate de uma
adaptação, ela é um produto de arte acabado e, por isso, pode ser explorada em
toda sua totalidade, o que compreende abordar algumas especificidades da
linguagem das HQs, como, por exemplo, a leitura de imagem relacionada à palavra,
destacando aspectos como planos e ângulos de visão.
No mais, como exemplo clássico de arte de entretenimento por causa de seu
caráter híbrido e próximo da linguagem cinematográfica, as HQs podem atrair e
motivar jovens leitores. Isso torna esse tipo de obra uma boa escolha como
instrumento pedagógico, porque além de permitir a sistematização de objetos de
ensino específicos, como, por exemplo, das categorias da narrativa, também
contribui no processo de construção de sentido do texto, já que, de modo geral, esse
tipo de obra concretiza a abstração das palavras. Sendo assim, as HQs podem ser
usadas como recurso para aproximar os estudantes de objetos de ensino de forma
atraente e motivadora.
Além dessa adaptação em HQ, também foi selecionado para compor a
proposta de intervenção o desenho animado “Don Quixote”, produzido pela
16

ComicColor Cartoons, em 1934, disponível no YouTube. Essa obra se diferencia da


HQ sobretudo por manter a comicidade ao longo de toda a história.
Como professora, desde 2017, de uma escola estadual, localizada numa
comunidade carente de Juiz de Fora, notei o pouco envolvimento dos nossos
estudantes com livros3. A biblioteca da escola tem um bom acervo e está sempre
disponível para os alunos, mas, como o contato com o livro não é uma constante
nessa comunidade, não são muitos os alunos que vão à biblioteca pegá-los.
Para analisar, com maior precisão, a relação dos estudantes do sexto ano A
com os livros, seria aplicada uma sondagem diagnóstica (apêndice A) como
instrumento de coleta de dados, mas devido à situação pandêmica de 2020, essa
aplicação não pôde se realizar.
Mesmo assim, ainda que não demonstrem uma relação íntima com a literatura
impressa, os alunos manifestam durante as aulas muito interesse por ficção. Daí nos
perguntamos: como promover o letramento literário numa comunidade carente e
com pouco contato com a literatura? Uma das hipóteses levantadas neste projeto é
se, ao possibilitar a todos os alunos o manuseio do livro físico, haverá algum tipo de
mudança na relação deles com esse objeto. Portanto, temos como objetivo geral,
promover o letramento literário e a aproximação dos discentes com a literatura e o
livro físico.
Para tentar alcançar o objetivo principal que é promover o letramento literário
e ampliar o repertório dos alunos, propõe-se:

a) Mediar a leitura de imagens, destacando, sobretudo, aspectos do plano/ângulo de


imagem.
b) Evidenciar três categorias da narrativa: tempo, espaço e personagem.
c) Apresentar o conceito de adaptação.
d) Destacar características psicológicas de personagem.
e) Estimular a escrita literária.
f) Promover a familiaridade dos alunos com o objeto livro.

3
No segundo semestre de 2017, iniciei na escola um projeto denominado “Oficina de Leitura”. A
proposta desse projeto é praticar a leitura literária com os estudantes, no contraturno, em encontros
semanais na biblioteca, com duração aproximada de 1 hora e 30 minutos. Ainda não há uma
participação efetiva/sigficativa de estudantes, mas o grupo, que antes ficava restrito a 3/4 estudantes,
mais do que dobrou (nove estudantes) em 2020.
17

A proposta de intervenção está dividida em três momentos: 1°) motivação; 2°)


desenvolvimento; e 3°) avaliação. No primeiro momento, o professor apresenta a
proposta de leitura e o personagem Dom Quixote aos estudantes, por meio de uma
breve exposição oral, seguida pela leitura de um pequeno trecho do capítulo 1, da
obra traduzida para Língua Portuguesa. No segundo momento, o professor discute o
conceito de adaptação, entrega a HQ aos estudantes e desenvolve, juntamente com
eles, a leitura protocolada da obra. No terceiro momento, os estudantes colocam em
prática os novos conhecimentos sobre a linguagem quadrinística, comparando-a
com a linguagem do desenho animado e transformando cenas do desenho animado
em cenas de história em quadrinho.
Na próxima seção, são apresentados e discutidos alguns conceitos relativos à
Literatura e ao Ensino de Literatura, a fim de expor o quadro teórico no qual esta
proposta se fundamenta. Em seguida, passa-se para a seção destinada à
apresentação dos procedimentos metodológicos. Por fim, a seção que se segue é
destinada a uma breve apresentação da proposta de intervenção.
18

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O desígnio desta seção é apresentar alguns conceitos pertinentes à Literatura


e ao Ensino de Literatura que se articulam com os objetivos desta pesquisa, na qual
a maior pretensão, como mencionado na seção anterior, é concretizar práticas de
letramento literário, a fim de contribuir na formação de alunos leitores de literatura.

2.1. O LETRAMENTO LITERÁRIO ENTRE OS LETRAMENTOS

Ao propor práticas que auxiliem efetivamente o professor a concretizar de


maneira adequada o estudo da literatura na escola, Rildo Cosson e Graça Paulino
(2009) defendem o “Letramento Literário” como o meio mais eficiente para os alunos
se apropriarem da literatura enquanto construção literária de sentido.
De acordo com Begma Tavares Barbosa (2011, p. 148), o “Letramento
Literário” pode ser pensando

como a condição daquele que não apenas é capaz de ler e compreender


gêneros literários, mas aprendeu a gostar de ler literatura e o faz por
escolha, pela descoberta de uma experiência de leitura distinta, associada
ao prazer estético.

As práticas de letramento literário, porém, fazem parte de um conjunto amplo


de ações voltadas para o mesmo fim: “letrar” os alunos. Então, antes de discutir
“letramento”, do ponto de vista específico da literatura, é relevante e oportuno
lembrar por que essa palavra chegou ao vocabulário de pesquisadores e
educadores brasileiros. Isso aconteceu, de acordo com os estudos de Magda
Soares (1998; 2006, p. 15), no final dos anos 80, ou seja, há um pouco mais de três
décadas, por causa da falta de uma palavra específica para distinguir duas
condições distintas: a condição de alfabetizado e a de “letrado”.
Soares (2006, p. 82) explica que, por um lado, “definir letramento é uma tarefa
altamente controversa”, quiçá a condição de “letrado”, por outro, compreende-se que
letramento envolve especificamente duas capacidades: ler e escrever. Soares (1998;
2006, pp. 48-49) define a leitura e a escrita como “um conjunto de habilidades,
comportamentos, conhecimentos que compõem um longo e complexo continuum”.
19

Essa relação entre letramento e as competências de ler e de escrever, porém, não é


suficiente para se chegar a uma concepção clara e precisa de letramento.
Com o passar do tempo, muitas pesquisas foram sendo realizadas em busca
de uma concepção mais unívoca de letramento, mas, de acordo com Cosson e
Paulino (2009), no campo teórico, ainda persiste basicamente a mesma dicotomia
que fez emergir, no vocabulário brasileiro, o termo “letramento”, porque o que
diferencia os dois eixos de definição é a concepção de letramento como a condição
de alfabetizado, ou seja, restrita ao desenvolvimento da habilidade de escrever
(denominada também como “modelo autônomo de letramento”) e a concepção mais
ampla de letramento como prática social (denominado “modelo ideológico de
letramento”). Em outras palavras, isso quer dizer que, no “modelo autônomo de
letramento”, permanece o objetivo de apenas alfabetizar o aluno, ensinando-lhe o
código verbal escrito, sem a preocupação de lhe ensinar também e sobretudo a usar
esse código em situações de comunicação escrita. Por outro lado, “no modelo
ideológico de letramento”, o objetivo é tornar o aluno proficiente para interagir nas
mais variadas situações de comunicação escrita (COSSON; PAULINO, 2009, pp.
64-65).
Com essa ampliação do conceito de letramento, que passa a ser apreendido
como prática social, o termo pluraliza-se e, dentro desse conjunto amplo de
letramentos, está inserido o letramento literário. Hoje, os teóricos da literatura
entendem letramento literário como um processo, um contínuo formador de
repertórios culturais (COSSON; PAULINO, 2009, p. 67). De modo geral, o letramento
literário consiste em práticas que envolvam tanto o contato intenso com a leitura e a
escrita do texto literário, como também a experiência literária individual do leitor, ou
seja, experiências que o levam a (re)conhecer o outro e a construir/reconstruir o
mundo (COSSON; PAULINO, 2009, pp. 68-69).
Compreender letramento literário como um processo, nas palavras de Cosson
e Paulino (2009, p. 67),

significa tomá-lo como um estado permanente de transformação, uma ação


continuada, e não uma habilidade que se adquire como aprender a andar de
bicicleta ou um conhecimento facilmente mensurável como a tabuada de
cinco.

Essa concepção de ensino de literatura por meio de práticas de letramento


literário está na contramão do que Becker Soares (1999; 2011) denominou como
20

“tradicional escolarização da literatura”. De modo geral, as práticas tradicionais de


ensino de literatura, como alertam os teóricos, ao invés de progressivamente
contribuírem para a construção do repertório cultural dos alunos, visam mais a
reprodução e o acúmulo do conhecimento tradicional. Além disso, essas práticas de
ensino tradicional, de certa forma, também negligenciam ofertar ao aluno a escrita
literária, ou seja, a possibilidade de ele também poder experimentar o papel de
produtor, criador, e não apenas o de receptor de literatura. É por tudo isso que,
provavelmente, o ensino tradicional de literatura nem sempre é suficiente para a
formação de leitores literários (COSSON; PAULINO, 2009, pp. 70-71).
De certa forma, essa tradição escolar “conteudista” pouco contribui para a
formação plena de leitores de literatura, capazes, sobretudo, de escolher suas
leituras literárias preferidas entre um universo de possibilidades. E é nessa
perspectiva que entram as práticas de letramento literário, com as quais se torna
possível a formação de leitores que saiam da escola com interesses estéticos e
culturais autônomos.
Como o contato constante com o texto de literatura está intrínseco na
concepção de letramento literário, a plena realização do letramento literário de
acordo com Cosson e Paulino (2009) pode se concretizar por meio de quatro
práticas, elencadas a seguir, que permitem a escolarização da literatura, sem usar o
texto de modo inadequado.

a) Construir círculos de leitura: essa prática consiste na vinculação dos textos entre
os leitores com a criação de grupos de estudos e clubes de leitura, por exemplo
(COSSON; PAULINO, pp. 74-75).

b) Ampliar e consolidar a compreensão do aluno sobre o que é literatura e como ela


se apresenta no cotidiano: essa prática consiste em consolidar a relação do aluno
com a literatura, mostrando-lhe a relação dela com eventos do cotidiano, por
exemplo, dentre outras manifestações artísticas, as festas regionais (COSSON;
PAULINO, p. 75).

c) Ensinar a cultura literária reconhecida como patrimônio cultural: essa prática


consiste em apresentar ao aluno os cânones literários para que ele possa fazer
21

escolhas, de acordo com seu gosto, ou seja, o gosto individual (COSSON;


PAULINO, p. 75).

d) Oferecer ao aluno a possibilidade do exercício da escrita: essa prática consiste


numa tentativa de achar um equilíbrio entre a liberdade e o engessamento, já que o
autor do texto literário dispõe de certa licença em relação às normas da língua
escrita. Essa é uma prática que pode ser usada para explorar um campo múltiplo de
possibilidades, levando o aluno a pensar de forma mais objetiva e consciente sobre
a escrita literária (COSSON; PAULINO, pp. 75-76).

Dessas quatro práticas de letramento literário, duas delas estabelecem uma


relação muito direta com o que se propõe nesta pesquisa: ampliar o repertório
cultural dos alunos do sexto ano, por meio da leitura protocolada de uma adaptação
para HQ da história de Dom Quixote. Por causa disso, tanto a primeira prática -- que
é o contato com obras canônicas --, como a segunda -- que é a formação de círculos
de leitura -- serão abordadas com um pouco mais de detalhes nas duas seções
secundárias a seguir.

2.2. O CÂNONE LITERÁRIO NA FORMAÇÃO DO GOSTO DO ALUNO

Ensinar a cultura literária reconhecida como patrimônio cultural é uma das


práticas de letramento literário, sugeridas por Cosson e Paulino (2009, p. 75), que
contribui mais especificamente para a formação do gosto literário. Para compreender
a proposta dessa prática, esbarra-se, porém, na necessidade de entender o que é
essa cultura literária reconhecida como patrimônio cultural. Um dos teóricos que
discute esse assunto é Italo Calvino (2007). Ele apresenta e explica, sucintamente,
algumas definições de “clássico”, entre as quais, diz que

os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as
marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que
deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais
simplesmente na linguagem ou nos costumes) (CALVINO, 2007, p. 11).

O personagem Dom Quixote ilustra bem essa definição. Há inúmeras


adaptações da obra-prima de Cervantes, tanto para a literatura, como para o cinema
22

e, ainda, para outras formas de arte, como por exemplo, a pintura, o que faz o
personagem Quixote renascer, ou melhor, reencarnar até os dias atuais. Um fato
bastante interessante é que essa apropriação do personagem por outros escritores
pode ter ocorrido ainda no século XVII, depois da publicação da primeira parte da
história, e, por causa disso, Cervantes resolveu escrever a segunda parte da
história. Ou também pode ser que não, esse fato pode ter sido apenas mais uma
estratégia (peripécia) literária.
Voltando ao conceito de “cânone”, outra discussão relevante parte do
desdobramento da definição dessa definição, conforme sugerido por Paulino (2004),
o que possibilita pensar mais amplamente sobre esse conceito a partir de dois
aspectos centrais: um relacionado à construção e o outro à significação. O cânone
de construção diz respeito ao modo de contar, ou seja, ao estilo do escritor e às
suas preferências no trato com a linguagem, enquanto o cânone de significação
abrange os componentes de uma narrativa socialmente aceita, ou seja, os textos
modelares, carregados de valores, princípios, ideias e juízos compartilhados em
sociedade (PAULINO, 2004, p. 50).
Para exemplificar esse desdobramento do conceito de cânone literário,
pode-se pensar de novo no escritor espanhol Miguel de Cervantes e na sua
obra-prima: O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Ao contar as
peripécias vividas por Dom Quixote, leitor exímio de novelas de cavalaria, sobretudo
as escritas por Amadis de Gaula, Cervantes inaugura um novo modo de escrever
romances, porque reúne na mesma narrativa elementos diferentes, como, por
exemplo, da comédia e da tragédia, o que torna Dom Quixote uma sátira das
novelas de cavalaria da Idade Média. Além disso, ao criar o personagem Alonso
Quijano, Cervantes desenha a imagem do ser um pouco desajustado para o papel e
“herói”, que, em muitos momentos, nas palavras de Ferreira Gullar, “é o retrato fiel
de cada um de nós, divididos entre os voos da fantasia e os impedimentos da
realidade” (GULLAR, 2002, p.08).
A apresentação da história de personagens clássicos, como, por exemplo,
Dom Quixote, a jovens leitores é um dos deveres da escola. Quanto a isso, Calvino
(p. 13, 2007) explica que “a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal
um certo número de clássicos dentre os quais (ou com relação aos quais) você
poderá reconhecer os ‘seus’ clássicos”. Ao atuar nesse sentido, a escola demonstra
preocupação com a formação do gosto literário do aluno, apresentando-lhe a cultura
23

literária reconhecida como patrimônio cultural, sem obrigá-lo a gostar ou concordar


com ela, mas tornando-o capaz de opinar e defender seu ponto de visto, como
esclarece, Paulino (2004, p. 56), ao dizer que

a formação de um leitor literário significa a formação de um leitor que saiba


escolher suas leituras, que aprecie construções e significações verbais de
cunho artístico, que faça disso parte de seus afazeres e prazeres.

Não se tem a expectativa de que os estudantes desenvolvam um gosto


imediato pelas adaptações selecionadas. Espera-se, contudo, que eles consigam
diferenciar a prevalência de traços mais trágicos na HQ de traços mais cômicos no
desenho animado, além de terem uma compreensão mais densa dos textos e uma
postura crítica, baseada tanto na reflexão sobre o que foi lido, como nos conceitos e
técnicas estudadas.

2.3. COMUNIDADE DE LEITORES

Enquanto a apresentação adequada do cânone contribui para a formação do


gosto do aluno, a formação, dentro da comunidade de leitores, de círculo de leitura
permite vincular textos aos seus leitores, o que é indispensável para que o texto
possa fazer sentido. Ao abordar esse tema, Cosson (2014; 2019, p. 137) esclare que
a noção de comunidade de leitores está presente em diversos estudos sobre
literatura e, no ponto de vista dele, a definição mais precisa, no campo literário,
partiu de Stanley Fish, teórico que defende o texto literário como uma construção do
leitor.
O conceito de comunidade de leitores, entendido como grupo de indivíduos
que compartilham conhecimentos, convenções e valores responsáveis por nortear a
forma como o leitor compreende um texto, deixa evidente que a leitura é ao mesmo
tempo uma atividade individual e coletiva.
De acordo com Cosson (2014, pp. 138-139),

uma comunidade de leitores é formada pelos leitores enquanto indivíduos


que, reunidos em um conjunto, interagem entre si e se identificam com seus
interesses e objetivos em torno da leitura, assim como por um repertório que
24

permite a esses indivíduos compartilharem objetos, tradições culturais


regras e modos de ler.

Em outras palavras, toda interpretação é resultado das convenções de valores


de uma comunidade, e, por isso, o leitor se constitui enquanto leitor, participando
dessa comunidade (COSSON, 2014, p. 138). Como consequência disso, nas
palavras de Cosson (2014, p, 139), “a interpretação que fazemos de um texto, por
mais pessoal que nos pareça, está ligada a uma ‘infraestrutura social da leitura’”,
que envolve tanto as instituições de ensino, como também o próprio mercado
editorial.
Ao propor para a turma do sexto ano A a leitura de duas adaptações
atravessadas pela literatura que estão mais próximas do cotidiano deles (quadrinhos
e desenho animado), forma-se, dentro de uma comunidade leitora, um círculo de
leitura, a fim de tornar a convivência deles com a literatura cada vez mais consciente
e constante.

2.4. A AMPLIAÇÃO DO REPERTÓRIO LITERÁRIO

A aproximação mais consciente e constante dos alunos com o universo


literário é também um meio de ampliação de repertório, nesse caso, mais
especificamente do repertório literário dos alunos, porque eles irão se deparar ao
longo dos processos de leitura com as convenções que se constituem e se
apresentam no texto literário e são responsáveis, por exemplo, pelo pacto ficcional.
O termo “repertório” foi teorizado pelo alemão Wolfgang Iser (1996), que o
interpreta dentro da Teoria da Recepção como sinônimo de convenções não
estabilizadas. Iser (1996, p. 129) entende por “convenções” “todos os elementos que
permitem a constituição de uma situação entre texto e leitor”.
De acordo com os estudos do teórico alemão sobre o texto ficcional, se, por
um lado, os mesmos postulados de Austin para o êxito da ação verbal (convenções,
procedimentos e participação) estão presentes no texto ficcional; por outro, no texto,
eles se realizam de modo diferente. No caso das situações de interação imediata,
dois desses três elementos necessários ao êxito da interação se dão na própria
situação de comunicação, por meio de “convenções estabilizadas” e “procedimentos
usuais”. Por outro lado, o texto literário traz em si esses dois elementos, é por isso
que, de certa forma, ele produz a situação de comunicação com o leitor. Nas
25

palavras de Iser, traduzidas por Johannes Kretschmer (1996, p. 129) “se o texto não
é idêntico nem ao mundo físico, nem aos hábitos do leitor, o sentido deve ser
constituído pelos elementos que traz consigo”.
Os elementos do repertório literário nem sempre são evidentes para os
leitores iniciantes, daí a necessidade do estudo sistematizado, baseado em decisões
de seleção desses elementos, que podem ser apreciados em dois níveis,
denominados por Massaud Moisés (1973, p. 85) de “análise microscópica ou
microanálise” e de "análise macroscópica ou macroanálise”. Nas palavras do
professor Moisés (1973, p. 85),

a microanálise, ou análise microscopia, tem por escopo sondar o texto


palavra a palavra, expressão a expressão, minúcia a minúcia, e pode
fazer-se em dois planos: 1) em que a análise se contenta com o pormenor,
quase olvidando por completo o conjunto da obra, e 2) em que a análise
“sobe” para a consideração particularizada dos integrantes da prosa de
ficção, ou seja, as personagens, o tempo, o lugar, ação, o ponto de vista do
narrador e a dissertação, os expedientes de linguagem (o diálogo, a
descrição, a narração e a dissertação). Estes últimos, que constituem as
categorias fundamentais da prosa de ficção, denominam-se microestruturas.

Esses dois planos analíticos definidos por Moisés (1973, p. 85) possibilitam
uma percepção horizontal e linear das categorias da narrativa. Ao se aprofundar na
análise, ou seja, perceber o que não se pode ver, inicia-se a “macroanálise”, que é
definida por Moisés (1975, 86) como

a sondagem dinâmica e totalizante do que está “dentro” das, ou implícito


nas, microestruturas, a macroanálise identifica-se antes de tudo pela sua
verticalidade, pois anela investigar as esferas dos conceitos sentimentos e
emoções que subjaz ao plano da microestrutura.

Com base nessas duas análises, amplia-se não só o repertório literário, como
também o repertório cultural dos estudantes, por meio de um trabalho sistematizado
com as categorias da narrativa (tempo, espaço e personagem) e alguns traços de
representação imagética dessas categorias, como a expressão dos sentimentos e
emoções dos personagens na trama cavaleiresca. Por isso, em seguida, são
expostos aspectos essenciais ao desenvolvimento desta proposta de intervenção
das categorias da narrativa (tempo, espaço e personagem).
26

2.5. CATEGORIAS DA NARRATIVA NA FICÇÃO

De modo geral, narrativa é “todo discurso que nos apresenta uma história
imaginada como se fosse real, constituída por uma pluralidade de personagens,
cujos episódios da vida se entrelaçam num tempo e num espaço determinados” (D’
ONOFRIO, 1995, p. 53). Entendido nesses termos, o conceito de narrativa não se
aplica apenas ao romance e ao conto, por exemplo, mas a qualquer forma de arte
que conte uma história, seja por meio de palavras orais ou escritas; imagens, fixas
ou móveis; entre outras (D’ ONOFRIO, 1995, p. 53). Sendo assim, essa definição
ampla de narrativa possibilita analisar seus elementos estruturais que se encontram
tanto na arte literária, como também no cinema, na televisão e na pintura, por
exemplo (D’ ONOFRIO, 1995, p. 105).
De acordo com Benjamin Abdala Junior (1995, p. 8),

a análise da narrativa envolve o conhecimento de seus elementos


estruturais, ou seja, o domínio de determinadas categorias (conceitos) da
narrativa [...]. O domínio desses conceitos básicos possibilita ao aluno uma
análise mais rigorosa; com observações críticas mais bem fundamentadas.
A descrição desses elementos estruturais da narrativa deve fornecer
matéria para uma argumentação, uma linha de raciocínio em que o aluno
principiante na análise literária fundamente a defesa de um ponto de vista.

É com esse objetivo de fornecer aos estudantes fundamentos para a análise


literária das obras a serem lidas que se faz necessária uma breve exposição das
categorias da narrativa de tempo, espaço e personagem.

2.5.1. Categoria da narrativa: o tempo

O tempo, de acordo com Massaud Moisés (1973, p. 101),

constitui um dos aspectos mais importantes – se não o mais importante – da


prosa de ficção. Na verdade, é para ele que confluem todos os integrantes
da massa ficcional, desde o enredo até a linguagem: dir-se-ia que o fim
último, consciente ou não, de qualquer narrador consiste em criar o tempo.
A explicação, que demandaria uma série de considerações de ordem
literária e filosófica, pode ser sumariada no seguinte: criando o tempo, o
homem nutre a sensação de superar a brevidade da existência, e de
identificar-se demiurgicamente, com o tempo cósmico, que permanece para
sempre, indiferente à finitude da vida humana; gerando o tempo, o
ficcionista alimenta a ilusão de imobilizá-lo ou transcendê-lo.
27

Moisés (1973, p. 102) considera ainda que, para analisar essa categoria da
narrativa, não há necessidade de uma exposição teórica sobre o conceito de tempo.
Basta recortar a existência de dois tipos de tempo: o cronológico ou histórico e o
psicológico ou metafísico. Essa distinção também está muito além do que se
pretende que os alunos do sexto ano alcancem em relação a essa categoria.
Do ponto de vista teórico, cabe destacar, portanto, apenas a noção de tempo
cronológico. Abdala Junior (1995, p. 54) desdobra a noção de tempo cronológico
(entendido como o tempo externo à narrativa) em: “tempo do escritor”, “tempo do
leitor” e “tempo histórico”. E explica que eles podem ser percebidos pelo leitor por
inferência ou dedução, já que não se fazem presentes nos textos.
O “tempo do escritor” é o tempo histórico em que o escritor viveu. Ele
“interfere na organização da sua narrativa, pela presença de valores de sua época e
pela mudança desses valores ao curso de sua vida” (ABDALA JUNIOR, 1995, p.
54). Já o “tempo do leitor”, segundo Abdala Jr (p. 54), também influencia na
narrativa, porque o leitor lê um texto conforme os valores da sua época. Por fim, o
“tempo histórico” é o tempo em que a história acontece, que pode ou não coincidir
com o tempo do escritor (ABDALA JUNIOR, 1995, p. 54).
Miguel de Cervantes viveu a virada do século XVI para o século XVII. Pode-se
considerar também que a história de Dom Quixote se passa nessa época, ou seja, o
tempo do escritor coincide com o tempo da obra. Historicamente, portanto, ele e sua
obra estão afastados a mais de 400 anos dos estudantes do sexto ano. Há muitos
elementos concretos na HQ que permitem marcar esse afastamento histórico, como,
por exemplo, as roupas dos personagens e o meio de transporte e boa parte do
léxico.

2.5.2. Categoria da narrativa: o espaço

O espaço é, em geral, onde se desenvolvem as ações da narrativa. De acordo


com Abdala Junior (1995, p. 48), “o espaço articula-se com as demais categorias da
narrativa ao nível da história. No espaço, elas aparecem interligadas com o lugar
físico, por onde circulam as personagens e se desenvolve a ação”. Há, como na
categoria de tempo, desdobramentos da categoria de espaço, mas não é o objetivo
deste trabalho expor esses desdobramentos.
28

Para a leitura tanto da HQ quanto do desenho animado, basta ressaltar que o


espaço físico, nos dois casos, aparece de forma concreta e funciona como o cenário
de ação dos personagens. Além disso, outro aspecto a ser abordado com os
estudantes é a presença do nome do espaço físico (no caso, da região) no nome de
alguns personagens, como é o caso de Dom Quixote e Dulcineia.

2.5.3. Categoria da narrativa: o personagem

Ao apresentar o conceito da categoria personagem, Abdala Junior (1995, p.


40) define que
personagem é um ser fictício, que se refere a uma pessoa. Na arte
dramática (teatro, cinema, televisão) e na literatura essa pessoa é
construída de acordo com as formas específicas de cada uma dessas
modalidades de representação.

Sendo assim, “a personagem da narrativa não é, pois, a pessoa. É um ser


fictício que representa uma pessoa” (ABDALA JUNIOR, 1995, p. 40).
Como as leituras propostas concretizam a imagem dos personagens da
história, não são necessários trechos descritivos (predicativos) para a construção
dos personagens no aspecto físico. Há, no entendo, características sociais e
psicológicas que devem ser explicitadas.
As características sociais podem ser interpretadas a partir da relação que o
personagem estabelece com o grupo em que convive, por exemplo, fidalgo e nobre
são predicativos que podem ser atribuídos a Dom Quixote, a primeira relacionada à
sua posição na sociedade e a segunda ao modo de se relacionar com outros
personagens.
As características psicológicas, por outro lado, constroem a personalidade do
personagem. Dom Quixote, por exemplo, ainda que insano, é corajoso e honrado.
As ações dele, portanto, serão sempre mediadas por esses aspectos da sua
personalidade, o que acaba gerando comicidade em boa parte das aventuras que
vive o nobre fidalgo.
Por fim, assim como as categorias de tempo e espaço, não há necessidade
de exposição teórica de desdobramentos da categoria personagem (como, por
exemplo, explicar a distinção entre personagens planos e redondos), já que a
conceituação dessa categoria também não será abordada com os estudantes.
29

2.6. A ADAPTAÇÃO E OS LEITORES

Ao selecionar duas adaptações para ler com os alunos do sexto ano, é


oportuno abordar o conceito de adaptação, para que eles possam se familiarizar
com a ideia de que uma adaptação estabelece uma relação declarada com outra
obra, sem que isso signifique que ela a copie.
Linda Hutcheon (2011, p. 28) aborda essa questão do ponto de vista teórico e
diz que “adaptação é repetição, porém repetição sem replicação”. Por meio dessa
reflexão, entende-se que o papel do adaptador não se reduz a copiar ou ser fiel a
obra adaptada. Quando um filme é a adaptação de um romance, por exemplo, o
roteiro não vai ser a reprodução fiel do enredo, ou seja, a adaptação fílmica, assim
como o romance, é um produto de arte acabado e deve ser compreendido na sua
totalidade, ainda que mantenha uma relação declarada com outra obra.
Além dessa perspectiva que define adaptação como um produto, Hutcheon
(2011, pp. 29-30) explica que essa mesma palavra também pode ser usada para se
referir ao processo, já que o termo adaptação também é usado para definir tanto o
processo de criação, como o processo de recepção. De acordo com Hutcheon
(2011, p. 30),

em resumo, a adaptação pode ser descrita do seguinte modo: uma


transposição declarada de uma ou mais obras; um ato criativo e
interpretativo de apropriação/recuperação; um engajamento intertextual
extensivo com a obra adaptada.

Sendo assim, para Hutcheon (2011, pp. 27-28) “interpretar uma adaptação
como adaptação significa de certo modo tratá-la de acordo com Roland Barthes
chamou não de ‘obra’, mas de ‘texto’”. Ela esclarece que, para Barthes, a adaptação
não é uma obra, mas um texto, entendido como uma “estereofonia plural de ecos,
citações e referências” (HUTCHEON, 2011, apud BARTHES, 1997). Por isso, para
que os estudantes comecem a se apropriar do conceito de adaptação tanto como
produto, como também como processo, optou-se por apresentar mais de uma
adaptação de uma mesma história, além de um breve trecho do capítulo 1 do livro
traduzido para o português. É esse, de acordo com Hutcheon (2011, p. 27) o motivo
de estudo da adaptação, ou seja, ser frequentemente comparada. Mas isso não
implica em desconsiderar a autonomia da adaptação. Pelo contrário, para que haja
30

comparação, tem que se partir do pressuposto da autonomia das adaptações


comparadas.
Faz tempo que a literatura dialoga com a cultura visual. Houve, nas palavras
de Tânia Pellegrini (2003, p. 16),

profundas transformações efetivadas nos modos de produção e reprodução


cultural, desde a invenção da fotografia e do cinema – que alteraram, antes
de tudo, as maneiras pelas quais se olha e se percebe o mundo –, estão
impressas no texto literário.

Para entender um pouco melhor o impacto dessas modificações cabe,


portanto, a observação das noções de tempo, espaço, personagem e narrador, que
são os estruturantes básicos da matéria narrativa (PELLEGRINI, 2003, p. 16). Nas
palavras de Tânia Pellegrini (2003, p. 17),

o desenvolvimento da série literária se faz no interior da história, dialogando


com todas as suas coordenadas, e nesse sentido, ela não está imune às
influências das formas de produção tecnológicas disponíveis para a cultura
em cada momento.

Por todos esses argumentos expostos e muitos outros que poderiam ter sido
citados, o conceito de adaptação é muito produtivo e funcional. Espera-se que os
estudantes comecem a se apropriar dessa concepção, tornando-se mais atentos
para os diálogos que se estabelecem entre as diferentes formas de arte.

2.7. A LEITURA DOS QUADRINHOS

Ler história em quadrinhos significa ler a sua linguagem, ou seja, ler tanto o
seu aspecto verbal, quanto o não verbal (visual). As histórias em quadrinhos,
portanto, são construídas com uma linguagem autônoma, “que usa mecanismos
próprios para representar os elementos narrativos” (RAMOS, 2019, p. 17). Isso quer
dizer que o tempo da narrativa transcorre por meio da comparação entre o
quadrinho anterior e o seguinte, enquanto o espaço da ação é representado no
interior de um quadrinho e, por fim, ao personagem é atribuída uma imagem e o que
ele fala é lido em balões, os quais simulam o discurso direto ou o pensamento
(RAMOS, 2019, p. 18).
Nas palavras de Paulo Ramos (2019, p. 18),
31

as histórias em quadrinhos representam aspectos da oralidade e reúnem os


principais elementos narrativos, apresentados com o auxílio de convenções
que formam o que estamos chamando de linguagem dos quadrinhos.

Ainda nas palavras de Ramos (2019, p. 30), “ler quadrinhos é ler sua
linguagem”, portanto, dominar a linguagem dos quadrinhos, mesmo que em seus
conceitos mais elementares, é a condição determinante para a compreensão da
história.

2.7.1. A representação da fala, do pensamento e a voz do narrador

A linguagem quadrinística usa recursos variados para representar a fala e,


ainda que haja diferentes definições para o termo “balão”, Ramos (2019, p. 32) as
apresenta para mostrar que, do ponto de vista do conteúdo, todas convergem para a
mesma direção. A seguir, são citadas quatro das definições de “balão” apresentadas
por Ramos (2019, p. 32).

● Eisner (1989): “recipiente do texto-diálogo proferido pelo emissor”.


● Acevedo (1990): “é uma convenção própria da história em quadrinhos que
serve para integrar à vinheta o discurso ou o pensamento dos personagens”.
● Cagnin (1975): “é o elemento que indica o diálogo entre as personagens e
introduz o discurso direto na sequência narrativa”.
● Vergueiro (2006) “é uma forma de indicar ao leitor a mensagem ‘eu estou
falando’”.

Ramos (2019, p. 33) considera, no entanto, que as definições de balão “se


atêm muito à fala no discurso direto” e pondera que os balões também são usados
para indicar o pensamento dos personagens. Sendo assim, Ramos define (2019, p.
33) balão como “uma forma de representação da fala ou do pensamento, geralmente
indicado por um signo de contorno (linha que envolve o balão)”.
De modo geral, o balão possui dois elementos: “o continente (corpo e
rabicho/apêndice) e o conteúdo (linguagem escrita ou imagem)” (RAMOS, 2019, p.
36). O continente pode assumir diferentes formas e cada uma delas representar uma
32

carga semântica e expressiva diferente. A HQ selecionada para leitura, porém,


mantém o mesmo padrão de linha e forma de contorno nos balões de fala e de
pensamento. Há variação apenas no apêndice – “extensão do balão que se projeta
na direção do personagem” (RAMOS, 2019, p. 43) –, que ora mantém o contorno
reto, direcionado para o personagem; ora, é formado por bolhas, para indicar o
pensamento do personagem.
Por fim, outro recurso das histórias em quadrinhos é a legenda. Geralmente,
ela aparece no extremo superior do quadrinho e representa a voz do narrador
onisciente. Há situações, porém, em que a legenda também pode ser usada para
representar a voz do narrador-personagem ou a voz do personagem num discurso
indireto livre (RAMOS, 2019, pp. 50-51).
Esse recurso de usar a legenda para representar a voz do personagem
aparece na HQ. No final da história. Depois que Dom Quixote morre, o narrador lê o
testamento dele. Então, nesse caso, a legenda é usada para representar o discurso
indireto livre.

2.7.2. O valor expressivo da forma das letras

De acordo com Ramos (2019, p. 56), a letra de forma tradicional é a mais


utilizada nos quadrinhos. Em geral, a escrita que se desenvolve em letra de forma,
sem negrito em cor preta, indica uma expressividade mais neutra e, dessa espécie
de grau zero, derivam os mais diversificados usos das letras (RAMOS, 2019, p. 56).
Na HQ, não há variação de letra nos balões. É usada a letra de forma
tradicional e o que varia um pouco é o tamanho e a espessura das letras. Essa
variação é usada para indicar um tom de voz mais elevado.

2.7.3. As onomatopeias

De acordo com o Dicionário Oxford (virtual), onomatopeia significa a


“formação de uma palavra a partir da reprodução aproximada, com os recursos de
que a língua dispõe, de um som natural a ela associado”. Esse recurso de
representação de sons é amplamente utilizado em histórias em quadrinhos. Ramos
(2019, p. 78) assegura que “não há uma regra para o uso e a criação das
onomatopeias. O limite é a criatividade de cada artista”.
33

As onomatopeias, nos quadrinhos, são responsáveis por tornar os ruídos,


além de sonoros, visuais. Porém, elas se associam muito à língua do país onde
foram criadas e o uso recorrente faz com que elas acabem sendo incorporadas à
linguagem.
Na HQ, há alguns exemplos de onomatopeias, usadas para representar o
som de risadas, de batidas na porta, de impacto entre outros. Ao analisar as
onomatopeias, portanto, é preciso se atentar para a forma, o tamanho e a cor das
letras, pois esses elementos são utilizados como recursos expressivos.

2.7.4. Ângulos e planos de imagem

De acordo com Ramos (2019, p. 136), há, de certa forma, um consenso entre
os teóricos dos quadrinhos quanto aos tipos de plano ou ângulo de imagem. Eles
usam o corpo humano, ainda que caricato, como ponto e referência e a metáfora do
botão de zoom para explicar a maior ou menor aproximação ou o maior ou menor
distanciamento da imagem.
Entre os planos possíveis expostos por Ramos (2019, pp. 137-144), cabe
destacar:

● Plano geral ou panorâmico: “vê-se a figura humana por completo. Na prática,


é amplo o bastante para englobar todo o cenário e os personagens
representados” (RAMOS, 2019, p. 137).
● Primeiro plano: “do ombro para cima. Neste caso, o foco está nas expressões
faciais” (RAMOS, 2019, p. 140).
● Plano de detalhe ou close-up: “a atenção é para detalhes do rosto ou de
objetos” (RAMOS, 2019, p. 140).

Na HQ, esses são os planos mais recorrentes. Os quadros em primeiro plano


e em plano de detalhes revelam, por meio da expressão dos personagens,
sentimentos como estar pensativo, com raiva, feliz. Para observar com mais
precisão esses aspectos, considera-se que as formas de representação das
sobrancelhas, das pálpebras, dos olhos, das pupilas e da boca contribuem muito
para compreensão do sentimento dos personagens nas cenas.
34

3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Nesta seção, apresenta-se a metodologia desta pesquisa, o lócus da


pesquisa, os participantes e o corpus literário. Por fim, descreve-se brevemente os
instrumentos utilizados para a coleta de dados.

3.1. METODOLOGIA

Esta pesquisa é de ordem qualitativa e de caráter intervencionista. Ela está


centrada na área de Ensino de Literatura, na esfera do Mestrado Profissional em
Letras, o qual dialoga em diversos aspectos com a pesquisa-ação, ou seja, uma das
estratégias associadas às formas de ação coletiva, no campo da pesquisa social, já
que associa teoria à prática.
Esse tipo de pesquisa contribui tanto para o aprimoramento de estratégias de
ensino dos professores, quanto o aprendizado dos alunos, pois, além de supor uma
ação planejada de caráter social, os métodos da pesquisa-ação buscam
compreender a interação entre pesquisadores e membros das situações
investigadas, a fim de possibilitar a condução mais efetiva da pesquisa, levando em
conta as exigências específicas de situações concretas de investigação. Ou seja,

a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é


concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a
resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os
participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos
de modo cooperativo ou participativo (THIOLLENT, 2011, p. 20).

Ao pormenorizar a definição de pesquisa-ação, Michel Thiollent (2011, p. 21)


esclarece que “toda pesquisa-ação é do tipo participativo: a participação das
pessoas implicadas nos problemas investigados é absolutamente necessária”.
Sendo assim, uma pesquisa cujo objetivo é planejar, desenvolver e avaliar a
pertinência de estratégias de leitura que contribuam para o letramento literário e
para a ampliação do repertório literário de alunos do sexto ano do Ensino
Fundamental II dialoga diretamente com os métodos da pesquisa-ação, que
consistem em planejar, agir, observar, refletir, aprender e registar.
35

Em geral, a ideia de pesquisa-ação é favorável a pesquisadores cujo objetivo


da pesquisa não se limita a investigações de aspectos acadêmicos e burocráticos,
como ocorre na maioria das pesquisas convencionais. Então, para esclarecer a ideia
de pesquisa-ação, Thiollent (2011) elenca resumidamente os principais aspectos da
pesquisa-ação. De acordo com ele,

a) há uma plena e explícita interação entre pesquisadores e pessoas


implicadas na situação investigada; b) desta interação resulta a ordem de
prioridade dos problemas a serem pesquisados e das soluções a serem
encaminhadas sob forma de ação concreta; c) o objeto de investigação não
é constituído pelas pessoas e sim pela situação social e pelos problemas de
diferentes naturezas encontrados nestas situações; d) o objetivo da
pesquisa ação consiste em resolver ou, pelo menos, em esclarecer os
problemas da situação observada; e) há, durante o processo, um
acompanhamento das decisões, das ações e de toda a atividade intencional
dos atores da situação; f) a pesquisa não se limita a uma forma de ação
(risco de ativismo): pretende-se aumentar o conhecimento dos
pesquisadores e o conhecimento ou o “nível de consciência” das pessoas e
grupos considerados (TIOLLENT, 2011, pp. 22-23).

Diferentemente da pesquisa convencional quantitativa, na qual não pode


haver participação dos pesquisadores junto com as pessoas ou situações
observadas na pesquisa, Thiollent (2001) explica que

a pesquisa-ação pode ser vista como modo de conceber e de organizar uma


pesquisa social de finalidade prática e que esteja de acordo com as
exigências próprias da ação e da participação dos atores da situação
observada (THIOLLENT, 2011, p. 32).

O método de pesquisa-ação é baseado em raciocínios argumentativos com


base em hipóteses e em inferências que levam ao conhecimento e a ações. Para
conceber uma pesquisa nesses moldes, algumas etapas desse método precisam ser
elucidadas. Na primeira etapa, denominada “fase exploratória”, o pesquisador deve
observar e interagir com os participantes em situações concretas para investigar e
levantar hipóteses que levem a identificação do tema da pesquisa. Isso quer dizer
que

em pesquisa social aplicada, e em particular no caso da pesquisa-ação, os


problemas colocados são inicialmente de ordem prática. Trata-se de
procurar soluções para se chegar a alcançar um objetivo ou realizar uma
possível transformação dentro da situação observada (THIOLLENT, 2011, p.
62).
36

Ainda na fase exploratória, juntamente com a definição do tema e dos


objetivos da pesquisa, deve-se também definir uma problemática na qual o tema
escolhido adquira sentido.

Em termos gerais, uma problemática pode ser considerada como a


colocação dos problemas que se pretende resolver dentro de um certo
campo teórico e prático. Um mesmo tema (ou assunto) pode ser
enquadrado em problemáticas diferentes. Por exemplo, problemas de saúde
podem ser inseridos numa problemática de medicina ou numa problemática
social ou política. A colocação dos problemas é feita em universos
diferentes. A problemática é o modo de colocação do problema de acordo
com o marco teórico-conceitual adotado (THIOLLENT, 2011, pp. 61-62).

Depois de identificar a problemática e os problemas, segue-se para a próxima


etapa, que consiste no levantamento de hipóteses. “Uma hipótese é simplesmente
definida como suposição formulada pelo pesquisador a respeito de possíveis
soluções a um problema colocada na pesquisa, principalmente ao nível
observacional” (THIOLLENT, 2011, p. 65). De acordo com Thiollent, a formulação de
hipóteses desempenha um papel fundamental na organização da pesquisa, porque
é durante o processo de formulação de hipóteses que o pesquisador “identifica as
informações necessárias, evita dispersão, focaliza determinados segmentos de
campo de observação, seleciona dados etc.” (THIOLLENT, 2011, p. 65).
Outras etapas se seguem a essas na organização da pesquisa, a fim de
culminar num plano de ação, ou seja, se concretizar sob a forma de alguma ação
planejada. Thiollent (2011, p. 73) explica que “a ação corresponde ao que precisa
ser feito (ou transformado) para realizar a solução de um determinado problema”.
É por tudo isso que as orientações metodológicas da pesquisa-ação podem
contribuir para pesquisas em Educação, porque permitem a produção de
informações e construção de conhecimentos de uso mais efetivo no nível
microestrutural do sistema escolar, principalmente.

3.2. O LÓCUS DA PESQUISA

A escola onde esta pesquisa se realiza está situada num bairro periférico,
localizado na região sudeste do município de Juiz de Fora. De acordo com o QEdu,
site no qual se encontram os dados do Censo Escolar 2020, a escola atende a 573
estudantes, matriculados desde os Anos Inicias do Ensino Fundamental (110), os
37

Anos Finais do Ensino Fundamental (229), até o Ensino Médio, regular (234) e EJA
(128), além da Educação Especial (15).
A infraestrutura da escola, com três andares e um prédio anexo, conta com
acessibilidade, alimentação, biblioteca, laboratório de informática, laboratório de
ciências, quadra de esportes e sala de atendimento especial. A alimentação dos
estudantes é fornecida no térreo, no refeitório, que têm mesas e bancos compridos e
se localiza em frente à cozinha da escola e antes dos banheiros. Além disso,
também estão localizadas no térreo, a sala dos professores, a sala da direção,
quadra de esportes. No térreo do prédio anexo, estão localizadas a secretaria, os
laboratórios de informática e ciências e mais duas salas de aula, utilizadas para
turmas que tenham algum estudante que precise de acessibilidade.
No segundo andar, a escola tem mais cinco salas de aula, com capacidade
para aproximadamente 30 alunos, a biblioteca e um banheiro (não utilizado) e, no
prédio anexo, mais duas salas de aula, com capacidade para aproximadamente 15
estudantes. No terceiro andar, a escola tem mais seis salas de aula, também com
capacidade para aproximadamente 30 estudantes.
O funcionamento da escola ocorre nos três turnos. No período da manhã, são
atendidos os estudantes do Ensino Médio, do Ensino Fundamental Anos Finais e as
turmas de tempo integral do Ensino Fundamental Anos Iniciais. No turno da tarde,
são atendidos os estudantes do Ensino Fundamental Anos Iniciais e a turma de
sexto ano de tempo integral do Ensino Fundamental Anos Finais. No turno da noite,
são atendidos alunos do Ensino Médio regular e EJA.
No que diz respeito às características mais gerais da comunidade onde se
localiza a escola são percebidos alguns problemas, sobretudo, em dois níveis:
socioeconômico e cultural. Uma das causas para esses problemas pode estar
relacionada ao baixo nível de instrução das famílias, que geralmente não chegam a
concluir o ensino fundamental. Como consequência disso, o índice de desemprego e
subemprego nessa comunidade é alto, o que acarreta uma renda insuficiente para
suprir as necessidades básicas de subsistência digna das famílias. A falta desses
recursos mínimos de subsistência, de certa forma, contribui para a disseminação da
criminalidade dentro dessa comunidade.
Esse contexto, bastante comum entre as comunidades periféricas do Brasil,
implica a participação limitada das famílias na vida escolar e a falta de interesse dos
alunos pelo conhecimento. Por isso, muitos chegam ao sexto ano do EF sem ter
38

consolidado as habilidades mínimas para codificação e decodificação do texto


escrito. Esse é um dos assuntos da próxima seção secundária.

3.3. OS PARTICIPANTES DA PESQUISA

Como foi elucidado, a definição clara dos participantes da pesquisa é


fundamental para empreender uma pesquisa qualitativa, de caráter interventivo.
Esse é o objetivo desta seção secundária.

3.3.1. Um breve perfil dos estudantes do sexto ano A

A turma do sexto ano A é a primeira turma do Ensino Fundamental Anos


Finais de tempo integral na escola. Nela estão matriculados 22 estudantes, sendo 12
meninas e 10 meninos. A maior parte desses estudantes já faziam parte do
programa de educação em tempo integral desde o quarto ano do Ensino
Fundamental Anos Iniciais.
Durante o ano de 2019, a turma do quinto ano foi muito elogiada na escola.
Fazia algum tempo que a instituição não tinha alunos o suficiente para formar turmas
para essa etapa. Tentei aplicar uma proposta do mestrado em conjunto com a
professora desse grupo, mas não tive sucesso. Ainda assim, supus que ao menos
todos eles chegariam alfabetizados no sexto ano em 2020, já que fazem parte do
programa de estudo integral e passavam bastante tempo na escola. No entanto,
parece que não foi bem assim. Dos 22 alunos matriculados, dois se recusam a
escrever, inclusive a escrever o próprio nome em avaliação. Apesar disso, os elogios
recebidos pela turma, no ano anterior, faziam sentido.
Uma breve comparação com o comportamento dos alunos do sexto ano dos
dois anos anteriores ilustra o que estou querendo dizer. De modo geral, a maior
parte dos alunos dos sextos anos de 2018 e 2019 era dispersa, falante, inquieta e
muito agressiva. Mas muitos alunos pareciam que ainda carregavam traços de certa
“inocência infantil”. O comportamento deles talvez possa ser interpretado como um
reflexo da percepção equivocada de que a escola seja apenas mais um espaço
social de convivência cotidiana. Em outras palavras, pode ser que eles talvez não
conseguissem perceber a escola como um espaço social para compartilhar
39

conhecimento e, por causa desse equívoco, eles também poderiam ter uma
compreensão limitada da existência de diferentes espaços sociais.
Os alunos do sexto ano A de 2020, por outro lado, são mais participativos e
parece que compreendem melhor o papel do espaço escolar na comunidade. Não
tive muita convivência com eles ainda, durante esse breve espaço de tempo, pude
perceber menos agressividade, mais atenção e, sobretudo, mais protagonismo,
porque eles participam muito de atividades de leitura e correção oral, o que nos anos
anteriores dificilmente acontecia. Outro aspecto é o comportamento deles em sala,
que realmente, quando comparado com o das turmas anteriores, faz jus aos elogios.

3.2.1. Um breve perfil da professora de português do sexto ano A

Em 2011, me graduei em Letras pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de


Fora e, em 2013, concluí a Especialização em Ensino de Língua Portuguesa, da
Universidade Federal de Juiz de Fora. Em 2016, fui chamada para atuar como
professora da Educação Básica de Minas Gerais em Piraúba, MG, cidade para a
qual me inscrevi no concurso de Professor da Educação Básica em 2014. Pedi
remoção para Juiz de Fora e visitei algumas escolas. Pude escolher trabalhar, em
2017, em uma realidade um pouco diferente, com a qual já havia entrado em contato
no final da graduação: lidar com alunos de comunidades periféricas.
No início do ano letivo de 2017, escolhi minhas turmas, privilegiando o Ensino
Médio por costume. Percebi, porém, que um dos grandes desafios da escola são as
turmas de sextos anos do Ensino Fundamental, o que me instigou. No ano seguinte,
2018, escolhi as turmas de sextos anos e me deparei com dois problemas: o
desinteresse quase total dos alunos pela escola e minhas dificuldades de pensar em
estratégias para tentar contornar essa situação. Enfim, foi com o propósito de
buscar estratégias para contornar esses problemas que me inscrevi, no ano
seguinte, no programa de Mestrado Profissional em Letras.

3.3. OS INSTRUMENTOS DE COLETA DE DADOS

Para conhecer mais especificamente a relação dos alunos do sexto ano A


com a Literatura, antes de começar a pesquisa, seria aplicada a sondagem
diagnóstica, só que diante de todos os acontecimentos de 2020, essa aplicação não
40

pôde acontecer em sala de aula. Para tentar contornar essa situação, foi feita uma
tentativa de deixar a sondagem na escola para os alunos buscarem e devolverem,
mas não deu certo. Então, serão utilizados apenas dois instrumentos para coleta de
dados: o diário de bordo e o caderno de leitura.

3.3.1. Diário de bordo

O diário de bordo consiste em um instrumento de coleta de dados, no qual o


pesquisador que o escreve registra suas experiências e impressões durante toda a
pesquisa, ou seja, as anotações incluem interpretações, opiniões, sentimentos e
pensamentos do pesquisador.
Ainda que o texto resultante desse processo tenha um caráter subjetivo, por
meio dele, o professor, enquanto pesquisador, pode refletir sobre as suas práticas
diárias em sala de aula, ao identificar e se conscientizar dos seus padrões de
trabalho. Daí a importância do diário de bordo para a coleta de dados desta
pesquisa cujo objetivo é uma intervenção pedagógica.

3.3.2. Caderno de leitura

Assim como o professor utiliza o diário de bordo, durante esta pesquisa, será
adotado para os alunos o caderno de leitura, no qual eles irão registar as atividades
desenvolvidas. O caderno de leitura é um instrumento didático que contribui para o
letramento literário, porque, durante o registro das leituras, os alunos desenvolvem
as capacidades de sintetizar, avaliar e relacionar os textos lidos tanto com suas
experiências pessoais, como com outros textos.
41

4. PROPOSTA DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA

Nesta seção, são descritos brevemente os três momentos pensados para a


proposta de intervenção pedagógica: motivação, desenvolvimento e avaliação.

4.1. MOTIVAÇÃO

A motivação é o primeiro momento desta proposta e se dará em


aproximadamente três aulas. Na primeira aula, o professor apresenta o projeto e o
autor Miguel de Cervantes aos estudantes, fazendo uma breve contextualização do
século XVI. Na segunda aula, apresenta o personagem Dom Quixote e um trecho do
Capítulo 1, retirado de uma tradução para a Língua Portuguesa. Na terceira aula,
busca despertar a curiosidade dos estudantes sobre os aspectos físicos de Dom
Quixote, por meio de uma atividade de desenho.

4.2. DESENVOLVIMENTO

O desenvolvimento é o segundo momento desta proposta. O objetivo dele é


discutir o conceito de “adaptação” e praticar a leitura protocolada da HQ “Dom
Quixote”, além de abordar aspectos específicos, relacionados a linguagem dos
quadrinhos, como, balões de fala e pensamento, legenda, onomatopeias, ângulo e
plano de imagem.
Este momento está dividido em duas etapas. Na primeira etapa, dividida em
aproximadamente 12 aulas, o professor problematiza o conceito de adaptação e faz
a leitura oral protocolada da primeira parte da história de Dom Quixote,
considerando a obra original.
Para que haja a mudança de estratégia de leitura proposta para a segunda
etapa, os estudantes precisam demonstrar que estão conseguindo fazer a leitura
silenciosa da HQ. Cumprida essa condição, propõem-se aproximadamente mais
nove aulas, durante as quais os estudantes fazem a leitura silenciosa da segunda
parte da história e discutem oralmente com o professor e os colegas partes
específicas da história destacadas pelo professor.
42

4.3. AVALIAÇÃO

A avaliação é o último momento desta proposta de intervenção. O objetivo


dele é verificar a assimilação dos estudantes em relação aos aspectos literários
trabalhados.
Este momento está dividido em duas etapas. Na primeira etapa, com
aproximadamente 2 aulas, os estudantes colocam em prática os conhecimentos
sobre onomatopeias, balões de fala, pensamento e legenda, transformado, com a
mediação do professor, cenas do desenho animado que irão assistir em cenas de
história em quadrinhos.
Na segunda etapa, com aproximadamente mais duas aulas, os estudantes
assistem ao desenho animado e transforam, em grupos, sem a intervenção do
professor, mais algumas cenas do desenho em história em quadrinhos.
43

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa, que seria de ordem qualitativa e de caráter interventivo, não se


realizou nesses termos. Ela seria aplicada no ano de 2020, mas, por causa da
pandemia, não pôde ser realizada, já que deveria ter sido aplicada em sala de aula,
a fim de, não só coletar os dados dos procedimentos aplicados, como também, fazer
ajustes e correções de rota, de acordo com os resultados alcançados em cada um
dos momentos da intervenção.
As expectativas de aplicação desta proposta de intervenção eram positivas,
pois os estudantes do sexto ano A demonstraram, em conversas em sala de aula,
interesse na leitura da HQ. Esse interesse dos estudantes poderia ter favorecido o
desenvolvimento do trabalho e, talvez, gerar uma resposta positiva na relação deles
com o objeto livro.
Diante, então, dessa impossibilidade de aplicação da intervenção, a pesquisa
tornou-se apenas uma proposta, com a finalidade de elaboração de um caderno
pedagógico, no qual buscamos contemplar, em adaptações da mesma história,
aspectos relacionados às categorias da narrativa e à leitura de imagens.
Durante a elaboração do caderno pedagógico, porém, foram levados em
consideração os recursos da escola e as características mais recorrentes dos
estudantes. Buscamos desenvolver atividades mais fluidas, por meio das quais
pretendíamos que os estudantes começassem a se apropriar de uma linguagem
técnica, que lhes fornecesse as bases para organizar uma linha de raciocínio
analítico das adaptações lidas.
Por fim, continuamos acreditando que a aplicação desta proposta poderia,
sobretudo, mudar, de certa forma, a relação dos estudantes com o objeto livro.
Então, este projeto não está acabado. Assim que possível, pretendemos colocá-lo
em prática, a fim de confirmar ou refutar nossa questão de pesquisa e proceder com
os ajustes e correções que surgirão durante a aplicação da proposta.
44

REFERÊNCIAS

ABDALA JUNIOR, Benjamin. Introdução à análise da narrativa. São Paulo:


Scipione, 1995.

BARBOSA, Begma Tavares. Letramento literário: sobre a formação escolar do


jovem leitor. Educ. foco, Juiz de Fora, v. 6, n. 1, pp. 145-167, mar./ago., 2011.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília:


MEC/CONSED/UNDIME, 2017.

______. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.


Relatório Brasil no Pisa 2018. Brasília: 2020.
Disponível em:
https://download.inep.gov.br/publicacoes/institucionais/avaliacoes_e_exames_da_ed
ucacao_basica/relatorio_brasil_no_pisa_2018.pdf

______. Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Língua Portuguesa. Ensino


Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CANDIDO, Antônio. Vários escritos. 4. ed. São Paulo/ Rio de Janeiro. Duas
Cidades/ Ouro sobre Azul, 2004.

CERVANTES, Miguel de; tradução de José Luis Sánchez e Carlos Nougué. O


engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha. v. 1. São Paulo: Abril, 2010.

______, Miguel de; tradução de José Luis Sánchez e Carlos Nougué. O engenhoso
fidalgo Dom Quixote de la Mancha. v. 2. São Paulo: Abril, 2010.

______, Miguel de; tradução de José Luis Sánchez e Carlos Nougué. O engenhoso
fidalgo Dom Quixote de la Mancha. v. 1. São Paulo: Abril, 2010.

______, Miguel de; tradução de Francisco Alves de Azevedo et alii. O engenhoso


fidalgo Dom Quixote de la Mancha (segunda parte).
Disponível em:
https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/4/o/quixote2.pdf

CLÁSSICOS ANTIGOS, Desenhos animados. Don Quixote. Youtube. set., 2017.


Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=YaUp6XqN2j4

CHANOINAT, Philippe; PELLET, David. Dom Quixote. 3. ed. Porto Alegre: L&PM
Editores, 2018.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto,


2014.
45

COSSON, Rildo e PAULINO, Graça. Letramento literário: para viver a literatura


dentro e fora da escola. In: ZILBERMAN, Regina e RÖSING, Tânia M. K. (org.).
Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009.

D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. São


Paulo: Ática, 1995.

GULLAR, Ferreira; DORÉ, Gustave. Dom Quixote de la mancha de Miguel de


Cervantes. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

HUTCHEON, Linda. Uma Teoria da Adaptação. Florianópolis: Editora UFSC, 2011.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura. São Paulo: Editora 34, 1996.

MOISÉS, Massaud. Guia prático de análise literária. 2. ed. São Paulo: Cultrix,
1973.

PAULINO, Graça. Formação de leitores: a questão dos cânones literários. Revista


Portuguesa de Educação, Universidade do Minho Braga, Portugal, vol. 17, n. 1, pp.
47-62, 2004.

PELLEGRINI, Tânia. Narrativa verbal e narrativa visual: possíveis


aproximações. In: PELLEGRINI, Tânia et alii. Literatura, cinema e televisão. São
Paulo: Editora Senac São Paulo (Instituto Itaú Cultural), 2003.

RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2019.

SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In:


EVANGELISTA, Aracy Alves Martins; BRANDÃO, Heliana Maria Brina; MACHADO,
Maria Zélia Versiani (organizadoras). Escolarização da leitura literária. 2. ed., Belo
Horizonte: Autêntica, 2011.

_____. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica


Editora, 2006.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2011.


46

APÊNDICE A – Sondagem diagnóstica

SONDAGEM DIAGNÓSTICA

Aluno(a): ______________________________________ Turma: 6°A - EFII

1. Qual é a sua idade?

2. Em relação à leitura, você:

a) gosta muito de ler.


b) gostaria de ler mais.
c) lê quando é necessário.
d) não gosta de ler.

3. Você tem interesse por literatura?


a) Tem muito interesse.
b) Tem interesse.
c) Tem pouco interesse.
d) Não tem interesse.

4. Quando você lê?

5. O que você lê?

6. Há livros na sua casa? Se sim, você se lembra do título de algum deles?


47

7. Você compra livros? Se sim, de qual livro você mais gostou?

8. Seus pais/responsáveis compram livros? Se sim, eles compram livros específicos


para você?

9. Você sabe o que é literatura?

10. Você gosta de histórias?


a) Gosta muito.
b) Às vezes.
c) Gosta pouco.
d) Não gosta.

11. Você gosta de assistir a filmes, séries ou desenhos?


a) Gosta muito.
b) Às vezes.
c) Gosta pouco.
d) Não gosta.

12. O que mais lhe chama atenção quando você assiste a filmes, séries ou
desenhos? Nesse caso, você pode marcar mais de um aspecto.
a) A história.
b) Os personagens.
c) O lugar em que a história acontece.
d) O momento do tempo em que a história se passa.
48

13. Com que frequência você assiste a filmes, séries ou desenhos?


a) Pelo menos uma vez por dia.
b) Em média uma vez por semana.
c) Às vezes, em raras situações.
d) Nunca.

Você também pode gostar