Fragmentos, Opiniões e Miscelânea
Fragmentos, Opiniões e Miscelânea
Fragmentos, Opiniões e Miscelânea
Créditos
© Editora Globo, 2010
© Monteiro Lobato
sob licença da Monteiro Lobato Licenciamentos, 2008
Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo
similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc. sem a permissão dos
detentores dos copyrights.
Edição: Cecília Bassarani (coordenação), Camila Lacreta Saraiva e Luciane Ortiz de Castro
Edição de arte: Adriana Bertolla Silveira
Edição Digital: Erick Santos Cardoso
Diagramação: Fernando Kataoka e Gisele Baptista de Oliveira
e-ISBN 978-85-250-5008-3
Créditos das imagens: Arquivo Família Monteiro Lobato (páginas 12 e 16), Acervo Iconographia
(página 19), Biblioteca Guita e José Mindlin (página 21), Reprodução (página 20).
Folha de Rosto
Créditos
Monteiro Lobato
Obra Adulta
FRAGMENTOS
O farmacêutico
O tom oriental
Conhecimentos novos
Grandiloquência
O carro de boi
O grande palco
O individualismo criador
A arte
Aparências
Deus brasileiro
O subsolo
A embuia
Colonialismo
Rápido croquis
Degradação
O mapa escolar
Subtécnica
Melting pot
O medo de voar
A palavrosidade
O “coronel”
A influência americana
A escultura e o cemitério
A química moderna
O literalismo
Conhecer-se...
A laranja
Do português degenerado
OPINIÕES
Psicologia do jornal
Audiências públicas
O padrão
A moeda de borracha
Gânglios pensantes
A cegueira naval
Loucura
Guerra ao livro
Artur Neiva
Resignação
A morte do livro
A “desencostada”
Assessores
A maravilha do Calabouço
O quarto poder
Honni soit
MISCELÂNEA
Traduções
Processos americanos
Primeiro amor
A doutorice
Alice in Wonderland
Paulo Setúbal
Moeda regressiva
La moneda rescindible
Planalto
A geada
Mais estradas...
Jesting Pilate
ROMANCE
• O PRESIDENTE NEGRO
JORNALISMO E CRÍTICA
• O SACI-PERERÊ: RESULTADO DE UM INQUÉRITO
• IDEIAS DE JECA TATU
• A ONDA VERDE
• MISTER SLANG E O BRASIL
• NA ANTEVÉSPERA
• CRÍTICAS E OUTRAS NOTAS
ESCRITOS DA JUVENTUDE
• LITERATURA DO MINARETE
• MUNDO DA LUA
CRUZADAS E CAMPANHAS
• PROBLEMA VITAL, JECA TATU E OUTROS TEXTOS
• FERRO E O VOTO SECRETO
• O ESCÂNDALO DO PETRÓLEO e GEORGISMO E COMUNISMO
ESPARSOS
• FRAGMENTOS, OPINIÕES E MISCELÂNEA
• PREFÁCIOS E ENTREVISTAS
• CONFERÊNCIAS, ARTIGOS E CRÔNICAS
IMPRESSÕES DE VIAGEM
• AMÉRICA
CORRESPONDÊNCIA
• A BARCA DE GLEYRE
• CARTAS ESCOLHIDAS
• CARTAS DE AMOR
Reflexões para curar os males do
Brasil
Monteiro Lobato (2º da esq. para a dir.) em Mato Grosso durante a campanha do petróleo.
Washington Luís
Artur Neves, colaborador de Monteiro Lobato na edição de suas obras em meados dos anos 1940
Machado de Assis
***
***
Um exemplo frisante
Uma nova arma veio revolucionar o mundo. São os aviões os olhos das
esquadras modernas. Águias de visão agudíssima, que das alturas norteiam
o movimento técnico das unidades navais – e talvez amanhã o elemento
novo que as vai varrer dos mares. Foi um filho destas terras quem criou
esses olhos que faltavam à Marinha – olhos de que hoje se estão provendo
todas as Marinhas do mundo. A Argentina possui mais de trezentos pilotos
e talvez outros tantos aviões. Trezentos olhos já!
O Brasil, na sua inconsciência de “gigante bobo”, de país que espera
não se sabe o quê, conserva a sua Marinha tão sem olhos como nos bons
tempos do almirante Tamandaré. Força-a a dirigir-se ainda pelo tato, a
caminhar apalpando, como Noé na sua arca. Forçá-la-á no momento do
perigo a fazer o papel de cabra-cega sob um revoo vertiginoso de águias.
O Brasil possui uns trinta pilotos e uns três ou quatro aviões que
voam... Só.
Os patriotas de palavras chamam derrotistas aos que clamam a tempo
de se evitarem derrotas. Mas o verdadeiro derrotista é quem esconde a
verdade ou apoteosa o regime do cabra-ceguismo, quando nas fronteiras o
vizinho previdente vai formando o seu viveiro de olhos.
– Mas o vizinho é amigo. Tudo nos une...
– Sim, e os anjos digam amém a essa amizade e à eternidade dessa
união. Mas fique o trabuco bem escorvado ali no canto.
Povo que em relação aos seus vizinhos ardorosos e fortes não admite o
“mas” da velha prudência inglesa, copiado pela jovem prudência argentina,
acaba um dia de luto, murmurando entre lágrimas a dolorosa interjeição dos
franceses – Hélas!...
Loucura
7 de dezembro, 1941
11 horas
II
A coisa que mais me surpreendeu em Uberaba foi ler o nome de Henry
Ford no frontal dum bloco de construções.
– Henry Ford por aqui?
– É uma escola profissional que não chegou a ser aberta porque a
revolução a transformou em quartel. Obra de Fidelis dos Reis, um amigo de
Henry Ford, com o qual se corresponde. Nesse pavilhão ia ser instalada uma
das seções da escola, montada de acordo com as ideias de Henry Ford e
dirigida por um técnico que ele mandaria de Detroit.
– E virou quartel...
– Temporariamente, enquanto não concluem o quartel novo, já quase
no fim. Logo que isso se dê, será instalada aqui a grande escola.
Fiquei a pensar na significação desse pequeno fato, suscetível de
grandes consequências futuras. A palavra Ford significa eficiência elevada
ao grau máximo. Se em Minas já há quem ponha a eficiência acima de tudo,
Minas está salva e com o caminho aberto a todas as grandezas. Porque só o
que falta a Minas é uma grande base de progresso material. A cristalização
moral e mental já foi atingida, numa forma toda sua, caracteristicamente
mineira. E para orientar a construção material eles apelam para o mestre dos
mestres Henry Ford, o mágico da eficiência.
Assim também fez a Rússia comunista. Os extremos tocam-se. Minas e
a Rússia de Stalin reconhecem que na eficiência está o segredo de tudo e
apelam para o homem de gênio que a definiu com estas palavras
simplicíssimas: “Eficiência é fazer ponta num lápis com lâmina bem afiada,
em vez de com faca sem corte”.
Na sua segregação de estado central, Minas considera-se muita coisa,
mas diante do que pode vir a ser é ainda nada. No dia em que puder
mobilizar as tremendas reservas minerais do seu subsolo, sobretudo o ferro,
que possui em quantidades suficientes para ferrar o Brasil e boa parte do
mundo, Minas transformará o seu bucolismo de hoje num grande
metropolismo industrial. Mas tudo ainda está, por nove décimos, em estado
de casulo.
Houve no começo a exploração do ouro, e há hoje a morosa
transformação das pastagens em carne e leite. O ouro é o único metal cuja
exploração não enriquece um país, em virtude do seu emigracionismo
congênito. Emigra sistematicamente para as zonas produtoras e
manipuladoras do ferro, isto é, para os países industriais. O ferro tem a
propriedade de atrair o ouro – quando transfeito em máquinas aumentadoras
da eficiência do homem.
Onde está hoje o ouro de Minas, de Cuiabá, de todos os distritos de
mineração do Brasil colonial? Em Londres, em Nova York, em Paris – nas
metrópoles dos países produtores e manipuladores do ferro.
Na indústria do perfume há certas substâncias, como o âmbar-gris,
usadas como “fixadores” dos cheiros. O ferro é o âmbar-gris do ouro – ou,
melhor, da riqueza dum povo. O ouro que o Brasil colonial tirou do fundo
dos córregos não está conosco. Estivesse – e o nosso ministro da Fazenda
não se plantaria em Washington, fazendo prodígios para obter, não a
propriedade, mas o uso apenas, de algumas toneladas desse metal
monetário, ou seja, 60 milhões de dólares.
Tais toneladas de ouro correspondem a bem pequena parte do que foi
extraído só de Minas, e se agora, que tanto necessitamos desse metal,
havemos de tomá-lo por empréstimo, foi porque nossos avós não souberam,
antes de extraí-lo, desenvolver entre nós o fixador do ouro. Como os
Estados Unidos tiveram a sorte de só descobrir o ouro depois de
desenvolvido o ferro, o ouro não emigrou – lá ficou, fixado pelo ferro.
Em Minas o ouro foi, mas ficou o ferro – e com ele um dia Minas
construirá o arcabouço metálico do país. Em suas montanhas de minério e
em seu subsolo jaz adormecido o Brasil de amanhã – o Brasil grande, do
mesmo modo que num rude pedaço de mármore jaz a maravilhosa estátua
que o gênio do escultor extrai.
Com a máquina que o ferro de Minas nos dará e com o nosso futuro
petróleo, motorizar-nos-emos intensamente – e cada um de nós valerá um
dia vinte, trinta vezes mais do que valemos hoje, medidos pelo estalão da
eficiência.
Foi para advertir disso o mineiro que fizemos palestras de didática
comercial pelo Triângulo – e o Triângulo nos compreendeu. Compreendeu
que no coração de Minas está a domir o sono dos séculos o nosso tremendo
potencial em máquinas, como em tantos pontos do nosso território dorme a
energia mecânica que vai mover essas máquinas. Pela mobilização e
conjunção de ambos teremos o milagre. O fato de haver Minas alcançado o
sentido dessa equação explica o apoio que vem dando à campanha do
petróleo.
– O senhor é um sonhador – disse-me um homem de Uberaba.
– Haverá alguma coisa no mundo que não se gestasse por esse
processo, primeiro o sonho, depois a realização?
– É verdade – disse ele, com os olhos pensativos.
Minas sonha hoje o nosso grande sonho. Nós, paulistas, estamos
atrasados nesse ponto. Sonhamos menos, talvez pela convicção, inoculada
pela propaganda oficial, de que já somos uma grande realização.
Engano ledo e cego. Somos um comecinho. A estrada do progresso é
intérmina. O paulista partiu para a viagem sem-fim com o café às costas –
um começo brilhante que a inépcia administrativa federal matou. Daí
sermos hoje riquíssimos sobretudo de uma coisa: dívidas. E talvez seja o
peso das dívidas que nos estraga a capacidade sonhadora. Interferência do
mais infame dos espectros – o credor.
Havemos de sonhar porque o sonho é o primeiro passo de todas as
realizações. Ferro, petróleo, carvão e trigo: havemos de sonhar com a nossa
libertação econômica assentada nessas quatro colunas, que até aqui fomos
proibidos de levantar porque a isso se opunham os grupos de interesses que
põem a juros a nossa miséria.
Fizemos no Brasil uma experiência das mais curiosas: a mentira como
o material de construção duma nacionalidade. A letra do hino nacional é a
mentira número um – e essa mentira foi insinuada nas escolas para que o
brasileiro, apanhado ainda bem criança, fizesse da mentira uma segunda
natureza. .
“Nossos campos têm mais flores, nosso céu tem mais estrelas.” Aqui
está a mentira mãe, oficializada no hino da nação cantado em todas as
escolas apesar dos protestos mudos da botânica e da geografia. E essa
inoculação inicial da mentira poética deu de si tais rebentos que permitiu a
Rui Barbosa a sua página de maior revolta e eloquência, quando na
campanha civilista nos revelou a nós mesmos como o povo da mentiralha.
Hoje percebemos que a mentira não constrói coisa nenhuma e já
começamos a arrepiar caminho. Já queremos a verdade, por amarga,
dolorosa e humilhante que seja. Já duvidamos da inteligência do “povo mais
inteligente do mundo”, diante dos resultados funestos que tal inteligência
produziu na vida pública. Já admitimos a penúria chinesa do “país mais rico
do mundo”. E como a confessamos, ipso facto entramos no caminho da
riqueza. O nosce te ipsum sempre será o alicerce de todas as construções,
tanto nos indivíduos como nos povos.
O último arranco da nossa torpe fase da mentira foi quando, a pretexto
de reprimir um comunismo que não passava do protesto da miséria em
eretismo de desespero, nos reduzimos a uma coisa só: polícia. E o Brasil
está hoje metido na cadeia.
Em poucos lugares como no Triângulo uma pessoa apalpa o Brasil nas
suas qualidades e defeitos – mais qualidades que defeitos, e em poucos
lugares como lá sentimos como o Brasil é uno em ideia e coração.
Grandes verdades enunciou Afonso Arinos em sua conferência em São
Paulo. O regionalismo é criador porque estabelece competição e estímulo, e
é da competição e do estímulo que sai o progresso. A ideia de Minas, como
a ideia de Pernambuco, como a ideia de São Paulo, como a ideia do Rio
Grande, como a ideia da Bahia não são ideias que separem, porque o que
chamamos Brasil não passa da soma dessas ideias.
Não conheço todos os estados do Brasil, mas em todos que conheço me
senti tão em casa como na minha cidade natal. Senti-me nacionalizado. Daí
minha ideia enunciada em América: “A primeira significação do ferro é
transporte em todas as suas modalidades. Só o transporte suprime o
regionalismo e, portanto, só o transporte nacionaliza”. A virtude está no
meio. O regionalismo levado ao excesso acarreta diferenciação de
mentalidade e antagonismos invencíveis, fomentando a ideia separatista.
Sem excesso, apenas significará estímulo construtor.
Ferro e petróleo sub espécie avião levaram-me para longes terras – para
a Minas do Triângulo; e o que pudesse haver em mim de hostilidade, por
desconhecimento da “ideia de Minas”, desapareceu. Senti-me em casa e
absolutamente irmão. No dia em que com a produção intensa do ferro e do
petróleo tivermos o problema do transporte integralmente resolvido,
conhecer-nos-emos no Brasil de Norte a Sul e de Leste a Oeste – e a
unidade pátria estará assegurada com a morte do extremismo regionalista.
Reconheceremos todos, inclusive o meu generoso amigo Alfredo Ellis, que
somos, de Norte a Sul, feitos da mesmíssima carne e tremendamente
irmãos.
Ferro e petróleo deram aos Estados Unidos a sua incomparável
homogeneidade. Por que há de falhar o remédio no Brasil?
Paulo Setúbal
Que é a moeda?
Para bem compreendê-la temos de estudar a situação das coisas
anteriores ao seu aparecimento – e o nosso raciocínio tem de ser o que
segue.
“Não pode haver sociedade sem troca de produtos do trabalho humano.
O fenômeno da troca iniciou-se de modo direto. X permuta com Z as sobras
do que o seu trabalho lhe produziu acima das necessidades pessoais – e
desse modo aumenta-se economicamente. Aumentar é enriquecer. O
enriquecimento das unidades determina o enriquecimento do grupo. Logo, a
troca dos produtos do trabalho do homem foi o fator mecânico da
civilização.”
NOTA
OBSERVAÇÃO
Esta ideia de moeda, que me parece original, está apresentada nestes
dois artigos apenas como sugestão. É uma ideia a ser longamente “pensada”
e depois disso “experimentada”. Só depois da experiência poderá ser
julgada, pois só a experiência revelará todas as reações de que uma tão
fundamental mudança na essência da moeda seria capaz. Uma coisa me
parece: sob o regime de tal moeda a terra teria de sair do regime de
propriedade individual. Teria de ficar como o ar – que todos respiramos mas
ninguém apropria.
As objeções do diretor do El Economista não atingem a ideia em sua
essência; apenas tocam em consequências que com pouca meditação previ e
apressadamente escrevi num simples artigo sem responsabilidades. Repito
que não apresentei nenhum estudo da Moeda Regressiva, ou Rescindível, e
sim uma sugestão. Estudem-na os homens de boa cabeça. Façam a
experiência numa zona qualquer. Quem sabe se em vez duma fantasia
lógica não está aí uma solução automática de grandes problemas da
economia humana?
Sobre o assunto o engenheiro J. B. Meiller, de Marília, tem um ensaio
interessantíssimo e muito merecedor de divulgação e atenção.
Planalto
II
III
IV
Que é Cuiabá? Um abscesso que se fixou. Um garimpo do século XVII
que se cristalizou em cidade. Um galho da civilização litorânea que há 200
anos os paulistas fincaram a quinhentas léguas de São Paulo. Um marco já
bicentenário do nosso gold-rush.
Pegar o que tem valor comercial e está in natura na superfície da terra
constitui o primeiro impulso duma civilização – e esse pega-pega traz em
seus inícios uma febre aguda. Quando a goma da seringueira começou a ter
crescente aplicação industrial nos países civilizados, vimos aqui a febre da
borracha. Os homens de espírito aventureiro corriam em massa para a
Amazônia, na ânsia de ordenhar as vacas vegetais produtoras do látex
coagulável.
O mesmo fenômeno se deu quando foram descobertos os sertões ricos
de ouro aluvial ou diamantes. O sonho de todos os aventureiros tornou-se
batear cascalho, garimpar. Peneirada a terra do ouro e do diamante fáceis, a
febre arrefeceu. Com a desvalorização da nossa moeda-papel, a caça ao
ouro está agora renascendo.
A moda feminina trouxe por certo tempo a febre da aigrett e, uma certa
pena que as garças trazem displicentemente na cauda e as mulheres
elegantes queriam em suas cabeças de vento. A aigrette era vendida aos
gramas, como o ouro – e nunca houve tamanha hecatombe de garças. Com
a mudança da moda, a febre da aigrette passou.
No trecho do rio entre Corumbá e Cuiabá anda hoje uma febre de
capivara. Há bom preço nos Estados Unidos para o couro da capivara, de
modo que as margens desse rio, que sempre foram um viveiro de capivaras,
estão sendo limpas desses pobres mamíferos. São mortos aos milheiros.
Nossos avós notabilizaram-se em duas febres desse tipo: a caça aos
negros africanos, feita pelos negreiros, e a caça aos índios dos sertões, feita
pelos bandeirantes. Dois negócios de grande vulto, dos maiores da época.
Quando Sancho Pança teve a promessa dum reino na África, sua
primeira ideia foi vender os súditos – e esfregou as mãos no antegozo dos
lucros maravilhosos. Os sertões do Brasil andavam cheios de índios. Caçá-
los para vendê-los no litoral iria tornar-se o grande sonho dos aventureiros –
e surgiu o bandeirantismo.
O bandeirantismo era negócio e esporte a um tempo; o esporte da caça
com todas as suas emoções primitivistas e o negócio de enriquecer
depressa. Animal de presa que é o homem, nada o seduz tanto quanto a caça
seja de veados ou de gente. Perseguir uma criatura viva, matá-la, que
delícia! Pegá-la viva no sertão para vendê-la no litoral, que negócio!
Nossos pobres avós bandeirantes viram-se privados do maior prazer do
esporte cinegético, que é matar. Muito a contragosto tinham de limitar-se a
aprisionar os índios. O espírito comercial impunha-lhes esse grande
sacrifício.
Como já estivesse intensa a caça ao ouro, a qual exigia músculos
escravos em doses crescentes, fornecer aos mineradores tais músculos
passou a ser tão bom negócio como juntar ouro. De modo que enquanto uns
ficavam fossando a terra, outros afundavam pelos sertões atrás dos índios.
Pires de Campos sai de São Paulo com sua gente, disposto a varar
quantas léguas de sertão fossem necessárias para dar com uma boa aldeia de
índios desprevenidos. Entra por água, a única estrada daqueles tempos.
Entra pelo rio Cuiabá, sobe-o, e afinal encontra uma presa fácil: os
coxiponés, tribo selvagem que nem as demais.
Os bandeirantes eram a Civilização. Os coxiponés, a barbárie. Por entre
estrondos de trabucos a Civilização assalta a aldeia da barbárie e vai
trucidando o que não pode capturar. E Pires de Campos volta gloriosamente
com uma grande ponta de gado bípede manietado e já sob o regime do
chicote. A Civilização de hoje faz isso na África com meios ainda mais
civilizados – gases asfixiantes e aviões de bombardeio. E o caso é que
civiliza. O selvagem ou resiste e morre, ou à força de chicote se adapta à
sífilis, ao álcool, ao alfabeto e mais mimos da civilização.
Em caminho Pires de Campos cruza com outro bandeirante, Pascoal
Moreira, também saído à caça de índio. Conversam. Pires conta de como
lhe ocorreu a expedição e traça o roteiro. Há ainda lá os coxiponés que ele
não conseguiu matar nem capturar. Com um pouco de habilidade Pascoal
pode conseguir outra redada.
Separam-se. Pascoal segue o rumo indicado. Alcança o rio Coxipó, que
sobe, margeando. Cruza outro rio a que dá o nome de do Peixe, em virtude
da grande quantidade de peixe seco encontrada na margem. Como o peixe
não sai da água de moto-próprio para secar-se em varais, o bandeirante
conclui que chegara à zona dos índios visados.
Prossegue cauteloso no avanço. Mais um rio, o Motuca – e esbarra
numa defesa. Avisados da presença da Civilização, os índios haviam
erguido uma forte paliçada, detrás da qual rechaçam os assaltantes.
Mas enquanto os trabucos troam e as flechas assobiam, um homem da
bandeira lembra-se de examinar o cascalho do Coxipó. Bateia-o em seu
prato de ferro estanhado – e arregala o olho. Granetes amarelos! Ouro!
Naquele momento a cidade de Cuiabá nascia. A descoberta do ouro
mudou imediatamente os objetivos da bandeira. Pascoal desiste de caçar
índios para catar ouro. O índio estava duro de roer e o ouro, facílimo.
Ninguém mais pensou noutra coisa.
A nova da descoberta corre mundo. Chega a São Paulo, a Minas, ao
Rio. E como fosse notícia de polpa, toda gente começa a sonhar com a sorte
grande. Ir a Cuiabá era voltar magnata. Cuiabá! Cuiabá! Cuiabá! Essa
palavra nova encheu o orbe.
Quem duvidar que a fama de Cuiabá tenha enchido o orbe, consulte as
Crônicas de Barbosa de Sá. Diz ele: “Foi uma trombeta que chegou ao fim
do orbe, soando a fama de Cuiabá por todo o brasílico hemisfério até
Portugal, e ainda pelos reinos estranhos, tanto que chegaram a dizer que no
Cuiabá se serviam de granetes de ouro em vez de chumbo nas espingardas
de caçar veado, e que eram de ouro as pedras em que nos fogões se punham
a cozer as panelas”.
Esboça-se no Coxipó o arraial de São Gonçalo. Plantam-se roças por
ali. Organiza-se a defesa contra os coxiponés. Nisto corre a notícia da mina
de Miguel Sutil, um sorocabano – a maior ninhada de pepitas de ouro ainda
descoberta no Brasil. Ouro de juntar aos punhados. No primeiro dia esse
homem de sorte recolheu meia arroba.
O primitivo arraial é abandonado. Todos correm para a zona do Sutil. A
cidade de Cuiabá começa a germinar. Acode gente de longe. Improvisam-se
acomodações toscas. Ranchos de palha são vendidos a 400, 500 oitavas de
ouro; se possuem mais alguns cômodos, alcançam o preço de 700 oitavas.
Tendo a oitava quatro gramas, há aqui dois quilos e oitocentos gramas de
ouro por um rancho de palha, ou seja, 50 contos em nossa moeda outubrista.
Esses abscessos formados pela febre do ouro têm um curso fatal. Em
todos acontecem as mesmas coisas. Há notáveis pontos de encontro entre as
tragédias do Klondike e as de Cuiabá. Jack London e Barbosa de Sá
encontram-se.
O atropelo do povoamento se faz cada vez mais intenso. Sobrevêm
calamidades. Doenças, comboios de víveres que se atrasam, com a
mercadoria apodrecida pelo caminho. Carestia. Escassez de tudo. Milho
pela hora da morte. Por quatro alqueires de milho dava-se um negro.
Maleita. Opilação. O sal por preço fantástico. Um frasco de sal chegou a
valer meia libra de ouro – ou 9 contos de hoje. Crianças ficavam sem
batismo. Onde o sal?
As primeiras plantações foram um desastre. O milho das roças, logo
que semeado os ratos o comiam, diz Barbosa de Sá; e as sementes que
escapavam dos ratos e germinavam não escapavam aos gafanhotos; e o que
escapava do gafanhoto vinha com espigas falhas, só sabugo – e algum grão
que aparecesse, a passarinhada o levava.
Sobrevieram ratos às legiões. Nada, nem as roupas lhes escapavam ao
rói-rói. E aquela gente em desespero entrou a parodiar Ricardo III da
Inglaterra: “Meu reino por um gato!”.
Surgiu por fim um casal de gatos, instantaneamente vendido por 1 libra
de ouro – ou seja, 18 contos de agora. Que excelente negócio fez quem os
comprou! A criação de gatinhos virou mina. Quantos vinham ao mundo
eram vendidos a 2 contos por cabeça. Por fim foi tanto gato que já ninguém
os queria nem de graça. A eterna lei da oferta e da procura.
Por mal de pecados desabou sobre a incipiente Cuiabá o inferno, sob
forma do Fisco português. Surge Dom Rodrigo Cesar de Meneses, com 308
canoas e três mil homens, entre negros escravos e brancos. Era o fim de
tudo. Portugal vinha reabilitar os ratos, a maleita, os gafanhotos, a opilação.
O Fisco! E a pobre Cuiabá entrou a morrer.
Os ranchos caíram do valor de 500 oitavas para 50; roças de milho que
valiam 4 mil oitavas, ou 300 contos, passaram a valer 7 contos – e por fim
foram abandonadas. Dom Rodrigo abrira a boceta de Pandora.
“Tudo era morrer, gemer e chorar”, diz Barbosa de Sá. Mas um dia as
águas que trouxeram a calamidade levaram-na de novo – e Cuiabá respira.
“Tudo melhorou”, diz Barbosa; “cessaram as excomunhões, execuções,
lágrimas e gemidos, pragas, fome, enredos e mecelanias, apareceu logo o
ouro, produziram os mantimentos, melhoraram os enfermos.”
Este depoimento mostra que se a civilização inventou os gases
asfixiantes, os lança-chamas e a metralha, o Fisco português se antecipou
com a câmara de horrores do Fisco. Era coisa que, como diz o cronista,
fazia piorarem os doentes, não produzirem as roças, esconder-se o ouro,
espirrarem dos olhos lágrimas, virem gemidos das gargantas, amiudarem-se
execuções, pulularem excomunhões – e, por cima de tudo, semearem-se
enredos e “mecelanias” – que não sei o que é.
Paulo Setúbal já contou a história do ouro de Cuiabá. Havia de fato
muito metal amarelo aflorante, e o que foi feito de peneiramento naqueles
cascalhos assombra o homem de hoje. Graças ao negro escravo, a
cascalheira foi lavada e catada numa área enorme. O que lá ficou foi apenas
o ouro difícil, incrustado nos blocos de quartzo. O fácil saiu todo.
Por toda parte, ainda hoje, vê-se o solo revolvido, com amontoamentos
de cascalho e regos abertos, lembrando as zonas de França logo depois dos
tremendos bombardeios da Grande Guerra. E ficou a aridez, o deserto. Que
triste o destino das terras que têm a desgraça de revelar ouro!
E para onde foram os milhares de arrobas do ouro cuiabano?
Desenterrou-se de lá para enterrar-se em outros pontos muito longe de nós.
Está no fundo das caixas-fortes dos bancos da Inglaterra e da Wall Street. A
vida do ouro é essa: desenterrar-se com imenso esforço humano em um
ponto para enterrar-se sem esforço nenhum em outro. Salva-se desse enterro
só a pequena parte que sob forma de joias vai enfeitar o pulso, o dedo e o
colo das mulheres, e também barrear de amarelo os dentes das pessoas de
má calcificação orgânica.
As indústrias filhas do carbono e do ferro têm sobre o ouro a mesma
atuação do ímã sobre a limalha. Os países produtores do ferro donde sai a
máquina, e do carbono donde sai a energia que move a máquina, veem
correr para si todo o ouro do mundo. Os milhares de arrobas extraídas de
Cuiabá dormem nos cofres dos manipuladores do ferro e do carbono. Está
na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos, na Holanda – essa grande
acionista da Royal Dutch.
O Brasil, produtor do ouro, reteve para si os buracos abertos no chão
cascalhento. E lá naqueles fundões mato-grossenses ainda vegeta, como
memória do feito, uma cidade pensativa, toda saudades e resignação – a
veneranda Cuiabá.
A bateagem da zona aurífera exigiu o trabalho sem descanso, o suor, o
sangue, a vida de dezesseis mil escravos negros. Graças ao sacrifício dessa
pobre carne dolorosa, os depósitos da Wall Street regurgitam com uma boa
contribuição nossa – e bem guardada. Se queremos tirar de lá um grama do
ouro cuiabano, temos de dar em troca uma arroba de café, quase.
O bom-bocado não é para quem o faz, sim para quem o come. O
mundo é dos que manejam o ferro e o carbono. Se em vez de ouro Cuiabá
houvesse explorado suas jazidas de petróleo e ferro, o ouro de lá extraído
estava lá mesmo, e ainda muito ouro de outras terras; e aquela imensa
região estaria transformada num intensíssimo e povoadíssimo centro de
civilização. Portugal jamais percebeu isso, e nós, seus digníssimos filhos,
vamos pelo mesmo caminho.
O ouro esteriliza. Só o ferro e o carbono fecundam.
Quem reflete sobre a tremenda quantidade de ouro, milhares e milhares
de arrobas, tiradas de Cuiabá, espanta-se do pouco dessa riqueza que ficou
no local. Toda ela emigrou. Não havia a ideia de permanência. Tudo eram
acampamentos provisórios, coisa de juntar a nata de ouro fácil que as
chuvas agrumam à superfície da terra e abalar.
Não houve povoamento sistemático em Mato Grosso, à moda de São
Paulo. Houve correria atrás do ouro, apenas. Rush. Saque da terra.
Consequência: o despovoamento. Um estado de milhão e meio de
quilômetros quadrados com uma população que cabe toda no bairro do Brás
positivamente não está povoado.
Ao saqueador só interessa o ouro aluvial: daí o nomadismo da
mineração. Nessa corrida iam ficando para trás pequenos núcleos humanos.
Desses núcleos nasceram as pequenas cidades contemplativas do norte
mato-grossense – arraiais que não tiveram ânimo de levantar acampamento
e por lá se deixaram ficar.
O maior desses núcleos virou a cidade de Cuiabá, um posto da
civilização perdida no deserto imenso. Ficou parada, a crescer
vegetativamente e à espera... De quê? Até bem pouco tempo nenhum
cuiabano o saberia dizer. À espera de qualquer coisa. Dum imprevisto. Dum
milagre. Por que esse milagre esperado há dois séculos não há de ser o
petróleo?
A distância faz de Cuiabá uma ilha de urbanismo no pantanal sem-fim.
De todos os lados, a mesma barragem implacável das léguas. Léguas e mais
léguas. Só léguas. Sempre léguas. Tudo léguas. Léguas às centenas.
Na realidade só existe um problema em Cuiabá: a Légua, essa inimiga
do homem que só pode ser vencida pela Velocidade. Não obstante, em
matéria de velocidade, o homem em Mato Grosso permaneceu até anos
atrás na mesma situação de inferioridade dos primitivos povoadores.
Contavam só com os mais rudimentares meios de vencer a distância – as
pernas, o cavalo e o rio. Ora, não foi com as pernas, nem com o cavalo, nem
com os rios que o homem moderno matou a légua como quem mata uma
cobra. Foi com a máquina a vapor e é hoje com o motor de explosão.
A tentativa de ligar Cuiabá ao mundo por meio da velocidade que a
máquina a vapor desenvolve falhou. A Noroeste não teve fôlego para lançar
seus trilhos além de Porto Esperança. E Cuiabá ficaria condenada a outros
dois séculos de isolamento, se não entrasse em cena a maravilha que é o
motor de explosão.
A elite de Cuiabá é muito fina. Cuida bastante da educação. Abundam
homens de linda cultura, até filosófica. Seria interessante fixar as reações
mentais dum homem como Estevam de Mendonça, precioso diamante
Cullinan perdido por lá, quando o primeiro veículo acionado por um motor
de explosão surgiu na cidade.
– “Fim dum ciclo”, devia ter ele pensado; “começo de era nova.
Máquina supressora da distância. Solução dum problema de transporte que
parecia insolúvel. Multiplicação da eficiência do homem...”
De fato. O automóvel é o homem tremendamente multiplicado em sua
eficiência pela máquina. É sua força muscular, sua resistência, aumentada
mil vezes.
O mesmo indivíduo que com seus músculos não transporta aos ombros
mais de trinta quilos de carga a uma distância de mais de uma légua em
todo um dia de esforço, ao plantar-se num caminhão está ipso facto com a
sua eficiência tremendamente aumentada. Ele que não carregava mais de
trinta quilos, pode levar agora três mil; e em vez de uma légua que andava,
pode vencer num dia quarenta ou sessenta, conforme as estradas, e sem
derrear-se. Que aconteceu? Apenas aumento da eficiência desse homem
graças à máquina que a si ele agregou.
Infelizmente, quando esse homem se articula com a máquina fica mais
na dependência das estradas do que quando ia a pé ou a cavalo – e em
matéria de estradas o Brasil continua perfeitamente coxiponé. Chamamos
estradas a meros leitos para estrada, visto como esta, para o ser, exige
pavimentação. Propriamente não temos estradas e sim leitos para futuras
estradas.
Idênticas considerações deveria ter feito Estevam de Mendonça quando
pousou lá o primeiro avião. Era a eficiência do homem mais aumentada
ainda por um novo tipo de máquina movida pela energia mecânica. Era o
esmagamento definitivo da distância, o fim do bissecular isolamento
cuiabano. E como a generalização é rápida no cérebro dos homens de
espírito filosófico, ele devia ter concluído que se pousava lá uma daquelas
aves pousariam no futuro milhares. Porque o tudo é começar.
Infelizmente todas as soluções humanas são parciais. O automóvel
exige estradas de rodagem com pavimentação, coisa ainda fora de alcance
da nossa penúria brasileira. Nessas fitas de terra solta a que chamamos
estradas, mal niveladas, mal conservadas, esburacadas pelo trânsito,
acamadas de terrível pó durante a estação seca, ou toda ela atoleiros e lamas
na estação das chuvas, o automóvel é quase um peixe fora d’água. Sua
capacidade de vencer a distância fica reduzida ao mínimo, e ainda assim
restrita aos meses do inverno.
Mais feliz, o avião não está na dependência das estradas de rodagem,
visto que dispõe da maravilhosa volovia da camada atmosférica. O suave
conde de Afonso Celso esqueceu-se de ufanar-se da nossa camada de ar
atmosférico ser tão boa como a da Alemanha, da Inglaterra ou dos Estados
Unidos. Mas a solução do avião também não é integral; muito restrita
quanto ao transporte de cargas e muito cara por não produzirmos ainda o
maravilhoso líquido que se transforma em energia mecânica.
O de que necessita Mato Grosso, e com ele o Brasil inteiro, ressalta
imediatamente: estradas de rodagem pavimentadas e petróleo nosso. Com
isso venceremos todos os obstáculos da distância em terra e do custo muito
elevado das viagens pela aerovia universal.
Em estado nenhum, como em Mato Grosso, uma cabeça que pensa vê
mais claro as linhas gerais do problema brasileiro – que não é outubrismo,
nem dezembrismo, nem marxismo, nem estadodessitismo, nem reforma
eleitoral ou de instrução, nem octologogias e sim algo charramente
rastejante: estradas de rodagem de verdade, ferro e petróleo.
Meu Deus! Como uma noção elementar como esta não entra na cabeça
do indígena! Parece tão simples mas deve ser terrivelmente obscura, já que
pouquíssimos a percebem.
Ferro: matéria-prima da máquina, essa coisa aumentadora da eficiência
do homem. Petróleo: matéria-prima da energia mecânica que move a
máquina. Estrada de rodagem pavimentada: pista por onde corre a máquina
número um, a que suprime a distância, a que vence a légua, esse terrível
inimigo dos países de território imenso.
Resolvam-se esses problemas parciais e teremos tudo, tudo, tudo.
Fiquem sem solução e não teremos nada, nada, nada.
Ninguém ainda mediu os serviços tremendos que o automóvel já
prestou ao Brasil, apesar da deficiência das estradas. Esses serviços,
entretanto, foram reduzidos ao mínimo pelo eterno matador da galinha dos
ovos de ouro chamado Governo. Com os bárbaros impostos que lançou
contra o automóvel, ficaram encarecidos em extremo o custo e o custeio da
máquina número um; com os impostos canibalescos lançados sobre o
combustível líquido, o “dá para trás” impediu o esmagamento da distância.
Basta acentuar um ponto: a gasolina americana chega a Santos a 300
réis o litro: se o consumidor paga por ela de 1.200 a 1.800 réis, a culpa não
cabe aos americanos, sim ao fato de não sermos governados pela
inteligência.
O progresso do Brasil está diretamente condicionado à facilidade,
rapidez e baixo custo do transporte. Se houvesse inteligência, ainda que
rudimentar, no que chamamos Governo, taxava-se tudo, menos o transporte,
porque taxar o transporte é positivamente matar a galinha dos ovos de ouro.
O que se dá é justamente o contrário. Para pegar um imposto imediato
sobre a gasolina, o governo mata impostos cem vezes mais avultados, que
fatalmente adviriam da riqueza criada pelo barateamento do transporte
graças ao combustível entrado livre de taxas.
Essa entrada livre de taxas, entretanto, seria apenas uma solução de
passagem, porque a perfeita só a teremos quando o combustível líquido for
produzido aqui. Nada mais básico, nada mais fundamental para o
desenvolvimento duma nação do que produzir em casa o combustível
necessário à sua economia. A grandeza e a riqueza dos países que o fazem
atestam o axioma – e para contraprova temos a miserável situação de
dependência e penúria dos países que consomem combustível alheio.
Um país pode importar tudo, menos combustível, seja sob a forma de
pão para alimento dos organismos humanos, seja sob a forma de petróleo
para alimento das máquinas – e o Brasil importa pão e petróleo. Quem corre
os olhos pelas nossas estatísticas assombra-se ante a persistência da inépcia.
Metade do que vendemos no estrangeiro esvai-se na compra de
combustível: pão para os estômagos e petróleo para as máquinas.
Economicamente, que é isso senão um lento e doloroso suicídio?
Está claro que o homem se adapta a tudo. O chinês está tão adaptado à
sua miséria milenária que a tem como irredutível contingência humana. O
pária da Índia acha natural que ele seja pária e não se rebela. Nós brasileiros
vamos de tal modo nos afazendo à nossa miséria crônica que nem sequer a
enxergamos. Não vemos uma população rural de milhões de criaturas
descalças, vestidas de farrapos, roídas de todas as doenças. Não vemos a
decadência fisiológica desse triste gado humano, que os da cidade olham
comiseradamente como seres de outra espécie, novo tipo de pária da
América. E são milhões! É toda uma multidão imensa de homens
verminados, gemebundos, que se esfalfam no trabalho da terra para
benefício e gozo duma elite urbana parasitária. Não vemos e não queremos
ver. A avestruz nos ensinou a moda de esconder a cabeça sob a asa no
momento do perigo.
Numa arguta opinião de Carvalho de Brito, publicada domingo último
neste jornal pelo insigne Mathias Ayres, vem estas palavras: “Precisamos
quanto antes melhorar o padrão de vida das nossas populações do interior,
verdadeiros zeros econômicos no cômputo da riqueza do país. O caboclo
que planta o seu algodão, fia e tece o seu vestuário rudimentar e come a
roça que planta, é uma força econômica perdida para a coletividade”.
Estude-se a fundo o porquê da coisa e ver-se-á que reside na deficiência
e no preço excessivamente alto do transporte. Só nisso. E como o governo
ataca o problema? Encarecendo ainda mais o transporte com as taxas
ferozes sobre o combustível líquido e as máquinas de transportar. A ciência,
a inventiva dos homens, deu à humanidade a maravilhosa máquina de
solver todos os problemas do transporte terrestre, marítimo, fluvial ou
aéreo: o motor de explosão acionado a gasolina. E que faz o governo do
país que mais necessita de transporte? Taxa ferozmente, tranca, proíbe que
aqui funcione ao alcance de todos a máquina maravilhosa...
A libertação, o fim do seu isolamento de dois séculos que Cuiabá
entreviu quando por lá roncaram o primeiro automóvel e o primeiro avião,
foi ilusório. Estevam de Mendonça esqueceu de levar em conta a
contribuição que o governo iria dar às duas maravilhosas máquinas de
suprimir a distância: o extremo encarecimento de ambas por meio de
impostos que nem aos zulus ocorreria. E Cuiabá continua isolada,
esperando, esperando.
A convicção dos que raciocinam com clareza é uma só: unicamente o
petróleo arrancará Mato Grosso do seu entrevamento de 200 anos. O
gigantesco Laocoonte, enrolado pelas serpentes das léguas sem-fim, só será
libertado pelo sangue negro da terra – não vindo de fora, de longe,
caríssimo, agravado pelas taxas ferozes da coisa federal, mas tirado dali
mesmo e fornecido ao consumidor por preço mínimo.
Por preço mínimo, sim, porque, por mais incrível que o pareça, a nova
Constituição criou a semente donde vai sair a ressurreição econômica do
Brasil. Há lá um artigo áureo, o 17, que diz: “É vedado ao município, ao
Estado e à União, a tributação sob qualquer forma do combustível
produzido no país para os motores de explosão”.
Nesse artigo a Constituição assegura o arranque de Mato Grosso. Por
isso os que têm olhos de ver longe já estão a olhar para a frente. Estão a ver
no pantanal o surto de torres de sondagem aos milheiros. Estão a ver a terra
sangrando de mil poços o líquido redentor.
Sim. Só o petróleo vence a distância. Só ele é o Flit destruidor das
léguas que trazem manietado o nosso Laocoonte. Só ele permitirá que o
homem domine a vastidão mato-grossense e integre no mundo econômico
tão desmesurado e rico território.
A cidade dos pobres
II
III