Fragmentos, Opiniões e Miscelânea

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Folha de Rosto

Créditos
© Editora Globo, 2010
© Monteiro Lobato
sob licença da Monteiro Lobato Licenciamentos, 2008

Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo
similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc. sem a permissão dos
detentores dos copyrights.

Edição: Cecília Bassarani (coordenação), Camila Lacreta Saraiva e Luciane Ortiz de Castro
Edição de arte: Adriana Bertolla Silveira
Edição Digital: Erick Santos Cardoso
Diagramação: Fernando Kataoka e Gisele Baptista de Oliveira

Consultoria e pesquisa: Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta


Preparação de texto: Página Ímpar
Revisão: Cláudia Cantarin, Margô Negro e Márcio Guimarães de Araújo
Produção editorial: 2 Estúdio Gráfico
Direção de arte: Adriana Lins e Guto Lins / Manifesto Design
Projeto gráfico: Manifesto Design
Designer assistente: Nando Arruda
Editoração eletrônica: Susan Johnson
Diagramação para ebook: Xeriph

e-ISBN 978-85-250-5008-3

Créditos das imagens: Arquivo Família Monteiro Lobato (páginas 12 e 16), Acervo Iconographia
(página 19), Biblioteca Guita e José Mindlin (página 21), Reprodução (página 20).

Editora Globo S.A.


Av. Jaguaré, 1.485 – Jaguaré
São Paulo – SP – 05346-902 – Brasil
www.globolivros.com.br
Capa

Folha de Rosto

Créditos

Monteiro Lobato

Obra Adulta

Reflexões para curar os males do Brasil

FRAGMENTOS

O farmacêutico

O tom oriental

Conhecimentos novos

Grandiloquência

O carro de boi

O grande palco

O individualismo criador
A arte

Aparências

Deus brasileiro

O subsolo

A embuia

Função suavizante do peru

Colonialismo

Rápido croquis

Espingarda, sim. Mas... e a pólvora?

Degradação

Saber ler e escrever

O que deve ser o governo

O tumultuário das florestas

O mapa escolar
Subtécnica

Melting pot

Quem molda a Pauliceia?

O medo de voar

Enfin Malherbe vint...

A palavrosidade

No país das invenções

O “coronel”

A influência americana

A escultura e o cemitério

A mais cara das artes

A química moderna

O literalismo

Conhecer-se...
A laranja

Do português degenerado

OPINIÕES

Psicologia do jornal

Audiências públicas

O padrão

A moeda de borracha

Gânglios pensantes

A cegueira naval

Loucura

Guerra ao livro

Artur Neiva

Resignação

A morte do livro
A “desencostada”

Assessores

Vacas magras e gordas

A maravilha do Calabouço

O quarto poder

Honni soit

MISCELÂNEA

Traduções

Processos americanos

Primeiro amor

A doutorice

Alice in Wonderland

O segredo de bem escrever

Fim do esoterismo científico


Pearl Harbor

Pelo Triângulo Mineiro

Paulo Setúbal

Moeda regressiva

La moneda rescindible

Planalto

De São Paulo a Cuiabá

A cidade dos pobres

Júlio César da Silva

Apelo aos nossos operários

A geada

Mais estradas...

Jesting Pilate

Quem é esse Kipling?


Machado de Assis

Bibliografia selecionada sobre Monteiro Lobato


Monteiro Lobato

Monteiro Lobato, por J.U. Campos.


Homem de múltiplas facetas, José Bento
Monteiro Lobato passou a vida engajado em
campanhas para colocar o país no caminho da
modernidade. Nascido em Taubaté, interior paulista,
no ano de 1882, celebrizou-se como o criador do
Sítio do Picapau Amarelo, mas sua atuação
extrapola o universo da literatura infantojuvenil,
gênero em que foi pioneiro.
Apesar da sua inclinação para as artes plásticas,
cursou a Faculdade do Largo São Francisco, em São
Paulo, por imposição do avô, o Visconde de
Tremembé, mas seguiu carreira por pouco tempo.
Logo trocaria o Direito pelo mundo das letras, sem
deixar de lado a pintura nem a fotografia, outra de
suas paixões.
Colaborador da imprensa paulista e carioca,
Lobato não demoraria a suscitar polêmica com o
artigo “Velha praga”, publicado em 1914 em O
Estado de S. Paulo. Um protesto contra as queimadas
no Vale do Paraíba, o texto seria seguido de
“Urupês”, no mesmo jornal, título dado também ao
livro que, trazendo o Jeca Tatu, seu personagem
símbolo, esgotou 30 mil exemplares entre 1918 e
1925. Seria, porém, na Revista do Brasil, adquirida
em 1918, que ele lançaria as bases da indústria
editorial no país. Aliando qualidade gráfica a uma
agressiva rede de distribuição, com vendedores
autônomos e consignatários, ele revoluciona o
mercado livreiro. E não para por aí. Lança, em 1920,
A menina do narizinho arrebitado, a primeira da
série de histórias que formariam gerações sucessivas
de leitores. A infância ganha um sabor tropical,
temperado com pitadas de folclore, cultura popular
e, principalmente, muita fantasia.
Em 1926, meses antes de partir para uma estada
como adido comercial junto ao consulado brasileiro
em Nova York, Lobato escreve O presidente negro.
Neste seu único romance prevê, através das lentes do
“porviroscópio”, um futuro interligado pela rede de
computadores.
De regresso dos Estados Unidos após a
Revolução de 30, investe no ferro e no petróleo.
Funda empresas de prospecção, mas contraria
poderosos interesses multinacionais que culminam
na sua prisão, em 1941. Indultado por Vargas,
continuou perseguido pela ditadura do Estado Novo,
que mandou apreender e queimar seus livros infantis.
Depois de um período residindo em Buenos
Aires, onde chegou a fundar duas editoras, Monteiro
Lobato morreu em 4 de julho de 1948, na cidade de
São Paulo, aos 66 anos de idade. Deixou, como
legado, o exemplo de independência intelectual e
criatividade na obra que continua presente no
imaginário de crianças, jovens e adultos.
Obra Adulta[1]
CONTOS
• URUPÊS
• CIDADES MORTAS
• NEGRINHA
• O MACACO QUE SE FEZ HOMEM

ROMANCE
• O PRESIDENTE NEGRO

JORNALISMO E CRÍTICA
• O SACI-PERERÊ: RESULTADO DE UM INQUÉRITO
• IDEIAS DE JECA TATU
• A ONDA VERDE
• MISTER SLANG E O BRASIL
• NA ANTEVÉSPERA
• CRÍTICAS E OUTRAS NOTAS

ESCRITOS DA JUVENTUDE
• LITERATURA DO MINARETE
• MUNDO DA LUA

CRUZADAS E CAMPANHAS
• PROBLEMA VITAL, JECA TATU E OUTROS TEXTOS
• FERRO E O VOTO SECRETO
• O ESCÂNDALO DO PETRÓLEO e GEORGISMO E COMUNISMO

ESPARSOS
• FRAGMENTOS, OPINIÕES E MISCELÂNEA
• PREFÁCIOS E ENTREVISTAS
• CONFERÊNCIAS, ARTIGOS E CRÔNICAS

IMPRESSÕES DE VIAGEM
• AMÉRICA

CORRESPONDÊNCIA
• A BARCA DE GLEYRE
• CARTAS ESCOLHIDAS
• CARTAS DE AMOR
Reflexões para curar os males do
Brasil

Monteiro Lobato (2º da esq. para a dir.) em Mato Grosso durante a campanha do petróleo.

Aqui temos uma visão abrangente de como Monteiro


Lobato era capaz de discutir diferentes assuntos com profundidade sem
perder a verve satírica que sempre o caracterizou. Parte das colaborações
destinadas à pequena e grande imprensa da capital e do interior de São
Paulo, bem como para periódicos do Rio de Janeiro foi, aos poucos,
recolhida para compor por Lobato alguns dos volumes das suas Obras
Completas.
Este divide-se em três partes. A primeira traz fragmentos do cotidiano
que o próprio autor pinçou de um velho caderno dos tempos de juventude
prestes a ser destruído. A coletânea de sensações e ideias recheava um
livrinho que saiu em 1923. Intitulado Mundo da lua, seria relançado na
década de 1940, acrescido de escritos posteriores. São 37 textos curtos nos
quais ele vai alinhavando seus pensamentos sobre literatura, conquistas
tecnológicas e geração de riqueza por meio da exploração do subsolo. Para
variar, não se abstém de fornecer a infalível receita para a cura de todos os
males. De acordo com Lobato, a criação de escolas técnicas transformaria o
trabalhador em “unidade de produção eficiente”, habilitando-o a contribuir
para o desenvolvimento do país. Ao mesmo tempo, critica o ensino público,
que deixava de fora das escolas dois terços da população infantil do estado.
Defensor do uso de uma linguagem clara e direta, tecida para atingir
um público diversificado, ele ataca a grandiloquência que contagiava o
estilo de alguns jornalistas, enquanto ainda abordava o ofício do tradutor,
que ele mesmo desempenhou em diversas ocasiões. O segredo, diz, consiste
em abrir mão da fidelidade absoluta e reproduzir a essência do autor para
que não se torne uma mera transliteração quase ininteligível. Eterno
opositor ao costume de plágio e da cópia, em um dos trechos denuncia a
mentalidade dos colonizados que requer a aprovação do exterior para
legitimar as experiências artísticas. “Mal surge entre nós uma criação
original, olhamo-nos desconfiados uns para os outros, incapacitados de
formular juízo até que das metrópoles venha o placet.” E enfim, transpondo
os limites da utopia como fizera no seu romance O presidente negro, no
qual seu personagem enxergava o futuro através das lentes do
“porviroscópio”, aqui há menção a invenções inusitadas, a exemplo do
avião individual: “Cada criatura terá o seu, enrolado debaixo do braço. E
haverá diálogos deste naipe: – Que calor! Vamos tomar sorvete ali no
polo?”.

Washington Luís

O segundo conjunto, Opiniões, engloba 17 artigos datados, em sua


maioria, de 1926. Com o sarcasmo fino que não esconde um desejo sincero
de colocar sua terra entre as nações mais prósperas, lamenta que, nas salas
de aula, os professores continuavam a ensinar que éramos o lugar mais
abastado do planeta. “Rico de resignação e cegueira, sim”, alega. Cegueira
que ele encontrava na Marinha, incapaz de lidar com o poderio militar da
Argentina. Na opinião de estudiosos da vida e obra de Lobato, tais críticas,
que se estendiam ao Exército, tido como inútil e dispendioso, resultariam na
sua nomeação para adido comercial em Nova York. Isso porque Alarico
Silveira, chefe de gabinete do recém-eleito presidente Washington Luís e
seu amigo de longa data, teria atuado no sentido de poupar o escritor no
contexto de animosidade gerado por seus ataques às Forças Armadas.

Artur Neves, colaborador de Monteiro Lobato na edição de suas obras em meados dos anos 1940

Nada, porém, parecia intimidar quem batia de frente com as medidas


econômicas do governo que, entre várias coisas, levou sua editora à
falência. Por isso Lobato denuncia a pesada tributação sobre o papel em
branco simultânea à isenção ao material impresso no exterior, tornando
impossível a concorrência para o livro brasileiro. A imprensa surge em dois
escritos, nos quais expõe a face corrupta e subserviente do chamado “quarto
poder”.

Machado de Assis

Já Miscelânea retoma questões tratadas nos blocos anteriores e inclui


novos temas como suas palestras sobre petróleo no Triângulo Mineiro e em
Cuiabá, na sua tenaz cruzada em prol da prospecção do óleo combustível
em solo pátrio. Dentre os artigos, vale a pena ressaltar um de 1939, feito no
centenário de nascimento de Machado de Assis, a pedido do jornal
argentino La Prensa e reproduzido em Urupês, outros contos e coisas.
Conhecida como Edição Ônibus e lançada pela Companhia Editora
Nacional em 1943, foi organizada e prefaciada por Artur Neves para
comemorar o 25o aniversário de Urupês. “Machado de Assis” seria mais
tarde incorporado por Monteiro Lobato a Mundo da lua e Miscelânea,
volume 10 das suas Obras Completas. Nele, faz o elogio ao escritor e se
penitencia por ter ousado duvidar do talento de quem, para ele, merecia só
reverência humilde: “Machado de Assis expulsou do estilo todas as
falsidades. Expulsou até o patriotismo e a grotesca brasilidade – essa
intromissão da política de terroir na arte”.
FRAGMENTOS
O farmacêutico

O papel do farmacêutico no mundo é muito especial. O


farmacêutico representa o órgão de ligação entre a medicina e a humanidade
sofredora. É o guardião do arsenal de armas com que o médico dá combate
às doenças. É quem atende às requisições a qualquer hora do dia ou da
noite. O lema do farmacêutico é o mesmo do soldado: servir. Um serve à
pátria, outro serve à humanidade sem nenhuma discriminação de cor ou
raça. O farmacêutico é um verdadeiro cidadão do mundo. Porque por maior
que sejam a vaidade e o orgulho dos homens, a doença os abate – e é então
que o farmacêutico os vê. O orgulho humano pode enganar todas as
criaturas; não engana ao farmacêutico. O farmacêutico sorri filosoficamente
no fundo do seu laboratório, ao aviar uma receita, porque diante das drogas
que manipula não há distinção nenhuma entre o fígado de um Rothschild e
o do pobre negro da roça que vem comprar 500 réis de maná e sene.
O tom oriental

Em minha frente, no vagão, viajava um casal de


turcos. A turca deu-me impressão dum epítome completo do tipo oriental.
Morena, do moreno turco que é diferente em valor e tom do nosso, cabelos
negros, olhos negros, sobrancelhas fortes e bem arqueadas. No braço um
feixe de pulseiras de ouro. No pescoço, mais ouro. Ouro na orelha. Estava
ali o segredo do Oriente explicado na tonalidade capitosa do ouro a
rebrilhar sobre um fundo de carne. Resulta uma cambiante de opulência –
opulência oriental. O perfume típico, o encanto, a sedução, o prestígio, a
alma do Oriente é essa associação de ouro e carne.
Conhecimentos novos

O encanto de um conhecimento novo nos primeiros


dias em estações de água, em viagem etc. está em que se permutam as
ideias mais da alma. Prolongado o convívio, esgotam-se esses recursos
íntimos – e os novos amigos oscilam entre a trivialidade sem interesse e a
repetição cansativa. E o encanto dos primeiros tempos foge... Conclusão
prática: usar, mas não abusar, tanto em matéria de vinhos como de amigos
novos.
Grandiloquência

Existe pelo interior um sem-número de aptidões


jornalísticas capazes do Grande Estilo. Uma delas escreveu isto: “Há já
mais de oito meses que a fatal, destruidora e cruel Parca, com a misteriosa
pena do Destino, colocou o ponto-final em uma preciosa existência. Há já
mais de oito meses que o lúgubre manto do luto abriu suas negras dobras e
envolveu-nos em tétricas trevas. Há já mais de oito meses que deixou de
existir o doutor F., meritíssimo juiz desta comarca. O que foi ele como
homem social, como amigo, como juiz, não preciso repeti-lo aqui: outros
mais competentes já o fizeram!”.
É o patético! É a modéstia na grandiloquência.
Como retrogradamos, nós outros que reduzimos todas essas belezas
grandiosas à pequice de um período seco: – Faz oito meses que morreu o
doutor F.!
O carro de boi

A conversa na botica versava ontem sobre os Estados


Unidos, suas grandezas, seus milhões, seus arranha-céus, seu Teodoro
Roosevelt, sua Alice Roosevelt que se casou espalhafatosamente com um
figurão. E degenerava num hino de sofreguidão ao progresso yankee
quando a chiada rechinante dum carro de bois que passava o interrompeu. E
todos, apontando o carro, tiveram a mesma frase: Nós!
– Nós... afora a graxa – completou um.
É isso mesmo. O Brasil é um carro de boi.
Mas um carro que vexado de o ser traz ensebados os eixos para não
rechinar. Falta-lhe a bela coragem de ser carro de cabeça erguida, e chiar à
moda velha, indiferente ao motejo de Paris – a grande obsessão brasileira. O
mal não está em ser carro de boi. Está em o esconder. Seríamos alguém na
assembleia dos povos se o país falasse assim:
– É verdade, sou carro de boi e não o escondo; sou carro como tu,
França, és uma velha maquerelle; e tu, Albion, uma hiena com farda do
Salvation Army; e tu, Germânia, um apetite criminoso; e tu, Itália, uma gaita
de fole; e tu, Portugal, uma zorra...
O grande palco

O palco dos grandes dramas é a mentalidade. A grande arte


é a que reproduzindo a mímica dum personagem deixa entrever o drama
desenrolado em seu cérebro. Hamlet parecerá ilógico ao observador
superficial que procure o sentido de suas palavras relacionando-o ao que
segue e ao que antecede. Porque as palavras do príncipe não respondem ao
que lhe pergunta Polônio ou a Rainha ou Horácio – respondem a si próprio,
respondem às ideias que lhe sugere um estímulo externo, donde a vaga
relação imediata entre o que ele diz e o que lhe dizem. Daí a consequente
beleza profunda do drama. Ponham um homem comum a refazer o Hamlet
e sairá um primor de lógica, o diálogo liso e claro como no catecismo;
mas...
O individualismo criador

Os artistas deixam a estrada real por onde segue toda


gente e caminham por veredas laterais. Os grandes abrem picadas, os
miúdos repisam-nas.
A arte

A arte nasce quando o homem domina o meio adverso;


como um luxo, como floração da planta após a vitória desta sobre todos os
óbices opostos à sua desenvoltura. Na Grécia, a amenidade ambiente, não
opondo resistências ao homem, permitiu que, em vez de dispersar suas
forças na luta contra a natureza agressiva, ele as convergisse para a
inflorescência.
Nós no Brasil ainda estamos a crescer, a enfolhar, a radicar. Por isso o
que chamamos arte não passa de simples reflexos de artes alheias. Arte
como a grega – em bloco, conglomerada, todas reunidas em torno dum
mesmo tronco (um ideal racial) como vergônteas de igual pujança – tê-la-
emos um dia, no ano 2000 ou 2500, quem o sabe? E tê-la-emos porque não
há planta que não venha a flor. Se vem a rosas ou a flor de abóbora, já é
outro caso.
Aparências

O Samuel saiu com a Winchester em direitura à


jabuticabeira do quintal, apinhada àquela hora de sanhaços, saíras e sabiás.
Voltou logo depois sem desfechar um tiro.
– Não tive coragem de atirar...
Eu ia dar-lhe parabéns pela sensibilidade do coração, quando ele
completou a frase:
– ... porque só tinha duas balas e não valia a pena desperdiçá-las em
sanhaços.
Deus brasileiro

É sabido que existe uma Providência especial, ou pelo


menos um dedo da Providência comum, escalado para montar guarda à
cabeceira do Brasil. Os namorados e os bêbedos já tinham o seu deus
protetor – o Brasil entra para o farrancho neste recrudescer de politeísmo.
Nas mais graves das nossas crises, a Invasão Holandesa, a Questão Christie,
o Amapá, a ocupação da Trindade, o Convênio de Taubaté, o Marechal
Hermes, sempre se manifestou a intercessão milagreira do deus nacional,
evolução, quem sabe, de Tupã.
O subsolo

Uma rápida vista d’olhos pelo mundo só nos mostra


riqueza e poder nos povos que industrializam o subsolo, dele tirando a
hulha, o ferro, o petróleo e todas as mais riquezas entesouradas. Os que se
limitam a arranhar a superfície por meio da agricultura, esses jamais serão
estrelas de primeira grandeza, jamais serão poderosos, jamais passarão de
satélites inermes.
Até aqui vivemos como os demais bichos da terra, a explorar umas
tantas plantinhas que crescem na superfície – a cana, o cacau, o café, o
fumo, o coco etc. – produtinhos coloniais.
Daí nossa fraqueza econômica, a nossa pobreza intensa, o nosso
encarangamento. Temos de mudar de política. Fazer o que os Estados
Unidos fizeram. Arrancar do seio da terra o ferro e transformá-lo em mil
máquinas que nos aumentem a eficiência dos músculos. Arrancar o petróleo
para o reduzir a essa potente energia mecânica que move as máquinas. Não
mais homens resignados que se repimpam na anca de pobres jegues e
minúsculos cavalicoques – mas he-men que chispem em autos, que risquem
o céu em aviões, que espantem os sururus das lagoas com a velocidade dos
motor-boats.
A embuia

Todas as nossas madeiras de lei, da cabreúva ao pau-


marfim, merecem grandes honrarias; mas é a embuia a que esplende em
galas de verdadeira realeza. Esta canela é um puro dom da natureza. De
talhe macio, duração ilimitada, inatacável pela carcoma, é de todas as
nossas madeiras a mais rica em tons e desenhos. Conforme a direção do
corte, variam seus aspectos. Vemo-la, ora desenhando estrias, feixes de
linhas retas, ora furtando tons ao gorgorão amarelo, ora copiando ao cetim o
seu jogo de luz alternado de brilhos e embaciados. A raiz dá magníficos
efeitos esponjosos, vegetações de muscíneas, que a habilidade do
marceneiro dispõe de modo a compor belíssimos desenhos simétricos.
Função suavizante do peru

Ao trinchar do peru cessam todas as divergências,


estabelece-se um acordo risonho de anjos na presença do Senhor. A Revisão
Constitucional divide novamente o campo. Mas ninguém se tema da
discórdia. Meia dúzia de perus conciliatórios trarão, como recheio, a
Harmonia. Essa ave é uma predestinada. Desde os ex-ominosos tempos do
Império vem pingando o ponto final do seu papo em rodas as nossas
pendengas, brigas, lutas, salvamentos de pátria, conspirações etc. Muito já
nos deu, e dele muito ainda há a esperar. Bênçãos lhe chovam em cima.
Colonialismo

Somos um povo de mentalidade colonial. Nascemos


colônia e até agora só conquistamos a independência política. Econômica,
espiritual, mental e cientificamente, continuamos colônia. Damo-nos pressa
em adotar tudo quanto vem das várias metrópoles que nos seguram pelo
barbicacho – Paris, Berlim, Nova York, Londres. Mal surge entre nós uma
criação original, olhamo-nos desconfiados uns para os outros, incapacitados
de formular juízo até que das metrópoles venha o placet.
Rápido croquis

Um volver d’olhos ao país revela uma estrutura sui


generis. Embaixo, a massa imensa dos Jecas, meros puxadores de enxada;
em cima, na cúspide, um bacharelismo furiosamente apetrechado de
diplomas e anéis com pedras de todas as cores, verde, vermelha, azul – o
arco-da-velha inteirinho. E no meio? Nada. A classe fecunda, a classe
obreira do progresso industrial, o pedreiro, o marceneiro, o entalhador, o
tipógrafo, o negociante, o mecânico, o eletricista, o bombeiro etc., essas
formigas enfim do trabalho técnico, faltam-nos. E como são indispensáveis,
importamo-las. Entre o Jeca de pé no chão, que carpe e roça, e o bacharel
que requer habeas corpus e faz discursos, ambos nacionais, temos de
admitir uma cunha estrangeira, de técnicos imigrados.
O problema é abrir à classe de baixo o caminho à imediata. Temos de
descascar o Jeca na escola primária, ensinando-lhe, depois, na profissional,
a utilizar-se da leitura e da técnica.
Espingarda, sim. Mas... e a pólvora?

Como está a nossa instrução, não há dela colher os frutos


preconizados. Ensina a ler aos meninos e lança-os na vida sem nenhum
aparelhamento técnico, como se a cartilha fosse um miraculoso sésamo
abridor de todas as portas. Isso não basta. É fazer deles parasitas sociais,
incapazes duma função econômica. Vão ser eleitores, vão “cavar”, e passam
a vida em procura de miseráveis empreguinhos públicos de ínfima
categoria, julgando indignas de exercício as profissões manuais. A escola
pública sem o complemento da escola técnica forma nas classes baixas um
estado mental correspondente ao bacharelismo nas altas. É o bacharel de 25
letras apenas, e sem anel, mas tão inútil quanto o seu colega de cima em
matéria de eficiência econômica.
Se ao deixar a primária, entretanto, cursasse uma escola profissional,
apetrechando-se de um ofício, entraria para a vida armado em pé de guerra.
E venceria. E seria para o país uma unidade de produção eficientíssima.
Assim como é um crime atirar ao combate soldados desprovidos de armas,
não é crime menor lançar na vida meninos desprovidos de ensino técnico. O
alfabeto vale como meio, não como fim. É cartucho que para ter valor pede
espingarda do mesmo calibre.
Degradação

Uma casa de fonógrafos anuncia um novo disco, o Ai,


Filomena, com um rápido estudozinho do figurão que lhe deu origem.
Começa assim: “Somos capazes de apostar que os senhores julgam que o
Dudu não serve para coisa nenhuma desta vida. Atirado à sarjeta da troça de
rua, o Dudu transformou-se num trapo que o enxurro das gargalhadas atira
ora para um, ora para outro lado. Lembrem-se, porém, que tudo nesta vida
tem sua utilidade. O Dudu serve para desopilar o fígado etc.”.
E vai por aí além. Um anúncio comercial inserto em todos os jornais de
grande circulação! É duro!
A reação contra o presidente Hermes não podia ser mais feroz. O povo
não pegou em armas para varrê-lo da presidência; fez pior: riu-se e ri-se
dele. Um trapo, diz o anúncio; de fato o Marechal Hermes é hoje um trapo,
um judas atirado à fúria estraçalhadora da populaça.
Saber ler e escrever

São Paulo, com toda a sua prosápia de estado líder,


locomotiva da União, puxa-fila dos vinte caranguejos – estado nec plus
ultra de fama bimbalhada em todos os sinos, chegou após 6 lustros de
regime republicano à maravilha de fornecer pão do espírito à terça parte de
seus meninos, deixando em jejum os dois terços restantes – apenas
quatrocentos mil paulistinhas.
O problema torna-se grave. Prosseguir no regime do pão com manteiga
para uns e de brisas fagueiras para a grande maioria além de inepto é
iníquo. E ainda é o meio de encruar na América do Sul uma eterna e
irredutível costa d’África. Mas há um meio caminho.
Se não posso matar a cobra cortando-lhe a cabeça, contento-me em
deixá-la viva, mas de espinha macetada. É um grande progresso semimatar
a cobra, macetá-la, quebrar-lhe a espinha, e mantê-la assim inofensiva
enquanto não nos caia do céu o porrete que a derrancará de vez.
O que deve ser o governo

Uma nação é o conjunto organizado das criaturas humanas


que habitam um certo território. Para promover a ordem e a justiça essas
criaturas delegam poderes a certos indivíduos para a aplicação de uma coisa
chamada lei, a qual não passa da vontade coletiva aceita por consenso
unânime. Tais homens constituem o governo. O governo é, pois, um
delegado, uma criatura da Nação. Só esta é soberana, porque só esta é a
força e a vontade.
Quando os delegados fogem aos seus deveres e voltam contra a Nação
os aparelhos defensivos que ela lhes entregou para salvaguardar a sua
soberania das agressões externas, esse governo deixa de ser governo. Cessa
de funcionar legalmente e – ou rei como Luís xvi, ou ministro, ou
presidente, ou congresso – deve ser incontinênti varrido por todos os meios,
a guilhotina como na França, ou a processo criminal como nas repúblicas
livres.
O dever mais elementar dos delegados da Nação é aplicar sensatamente
os dinheiros públicos. O povo dá o imposto para receber em troca um certo
número de benefícios de caráter geral. Para fiscalizar esse emprego existe a
imprensa, plenário onde se ventila o abuso, o qual abuso, competentemente
autuado, sobe à Opinião Pública para o julgamento supremo. Se a opinião
pública, por vício incurável, não toma as providências do caso, paciência. A
imprensa não tem culpa disso. O seu papel limita-se a esclarecer o público.
Assim, todo jornalista, ou todo cidadão, tem o dever de agarrar pela
gola os funcionários relapsos, sejam reis ou ministros, e expor os seus
crimes na grande montra.
O tumultuário das florestas

A pecha de tumultuário dada pelos observadores levianos ao


interior das florestas vem de que lhes foge justamente a coisa bela por
excelência nas matas: o regime ingênito de cada espécie vegetal, o seu
modo normal de crescer e engalhar, as modificações a que se submete por
contingências de vizinhança. A adaptação daquele jogo de “ânsias de viver”
é tão bem realizada que a flora inteira – da árvore gigantesca ao arbusto
mesquinho – subsiste íntegra como um todo harmônico, esplendidamente
belo, onde cada vida – orquídea, parasita, liana, musgo ou líquen – tem uma
função de nota musical em sinfonia. A floresta é um concerto sinfônico de
formas, de cores, de apetites e lutas.
O mapa escolar

O mapa da frequência escolar... Um dia entrou-nos em casa


uma cozinheira nova. Era mãe de uma rapariguinha de 7 anos que não
frequentava escola, mas que de vez em quando saía para a rua de cartilha
debaixo do braço.
– Para onde vai ela? – indagamos uma vez.
– Não vê que o inspetor está na cidade e a Beatriz, quando ele chega,
costuma ir “encher” a escola. Ela e uma porção de outras. E ganha seus 500
réis de ficar lá sentadinha. Serve. Dá para o cinema...
Industriazinha nova: fingir de menino de escola, a 500 réis por cabeça,
nos dias de inspeção!...
Subtécnica

O nosso mal é a incapacidade técnica. Ninguém trabalha


porque ninguém aprende a trabalhar. E o remédio é uma coisa só: escolas de
trabalho. Foram estas escolas que fizeram a Alemanha. Foram as criadoras
dos Estados Unidos. A escola primária fornece ao homem a pólvora e o
chumbo. A escola profissional, a escola do trabalho, dá ao homem a
espingarda dentro de cujo cano a pólvora e o chumbo adquirem eficiência
mecânica.
A escola técnica opera como redutor do elemento parasitário do país.
Salva milhares de criaturas da calaçaria sórdida, impede-as de irem
engrossar a nuvem dos faineants que vegetam à custa do conhecimento da
cartilha: a nuvem dos eleitores, dos biscateiros, dos barganhistas, dos
bicheiros, dos capangas, dos fósforos políticos, dos literatos de sarjeta, dos
cafajestes pernósticos, dos poetas caspentos, dos incompreendidos – dos
ratés em suma.
Melting pot

São Paulo é um cadinho. Variados fatores étnicos para ele


confluem e, sob a preponderância do fator italiano, borbulham na fervura da
decantação em que se plasma o futuro. Do mosaico virá a unidade. O
sistema de cristalização, entretanto, é imprevisível. O elemento indígena
bem pequena contribuição dá, porque, acuado na concorrência, ou foge à
luta, abandonando o campo, ou acantoa-se nos palanques da bacharelice e
do funcionalismo. E que frutos dão estas árvores?
Quem molda a Pauliceia?

Quem molda a cidade e a enfibra de caráter próprio é o


operário, é o comerciante, é o industrial, é o artista – é o que confeiçoa a
matéria-prima, o que a mobiliza, o que imprime às coisas a forma estética.
Assim, na vegetação seivosa com que o alienígena cria em nossa casa um
estado sui generis de civilização, nós, os donos da casa, com pouco mais
contribuímos além do doutor – a orquídea; o funcionário público – o cipó; e
o governo – o mata-pau.
O medo de voar

O medo que o nosso público tem da aviação decorre do


barulho que a imprensa faz com qualquer desastre. O telégrafo se apressa
em espalhar pelo mundo inteiro a notícia destes desastres, mas se mantém
silencioso a respeito dos milhares de cavaleiros que todos os dias morrem
de quedas de cavalo, ou de carreiros que morrem espetados nas guampas
dos bois, ou carroceiros que são esmagados pelas respectivas carroças. Se
se noticiassem estes desastres, verificariam que o cavalo, a carroça e o carro
de boi são coisas diabólicas em face do angelicismo da aviação.
Enfin Malherbe vint...

A aviação sempre foi o sonho dos homens. Mas,


mera aplicação mecânica que é, estava condicionada ao progresso
mecânico. Tudo consistia em imprimir um certo número de rotações a uma
hélice. Por meio da força muscular a coisa era impossível – e a aviação
permaneceu sonho enquanto o motor foi o músculo, humano, bovino ou
cavalar.
Papin revelou-nos o vapor. Um mundo inteiro irrompeu da sua chaleira
de água a ferver – e a era ferroviária consequente já atingiu o apogeu. Mas a
máquina a vapor manifestou-se impotente para dar à hélice as rotações
requeridas no voo. Muito pesada. Muito quilo de ferro para cada cavalo de
energia obtida.
Enfin Malherbe vint...
O Malherbe da energia foi o motor de explosão. Veio e revolucionou
tudo, criando o automóvel e por fim a aviação. No começo sofria do mesmo
mal que a máquina a vapor: muito peso por cavalo. Mas foi se aligeirando.
Quando chegou a cinco quilos por cavalo, já permitiu a Santos Dumont o
primeiro voo – voo tatibitate, de borboleta de asas úmidas que acaba de
romper o casulo. Mas continuou a aperfeiçoar-se. Passou a um quilo por
cavalo e hoje está em fração de quilo.
Quando a nova fonte de força que se prenuncia na dissociação atômica
da matéria estiver conquistada, chegaremos talvez a um cavalo por grama,
por decigrama, por miligrama. Em vez da pesada carga de gasolina que os
aviões levam hoje, o piloto trará no bolso do colete o fragmento de matéria
que, dissociado, lhe fornecerá a energia precisa para conduzir o seu
aparelho de polo a polo, veloz como onda hertziana.
Até o Jeca Tatu voará nesse dia. O avião será como o guarda-chuva de
hoje. Cada criatura trará o seu, enrolado debaixo do braço. E haverá
diálogos deste naipe:
– Que calor! Vamos tomar um sorvete ali no polo?
O convidado adere. Ambos abrem os seus aviões-guarda-chuvas e vão
refrescar as tripas entre os ursos-brancos e focas, “ali no polo”, onde um
bisneto de Amundsen terá montado o seu barzinho de sorvetes de... brasas,
únicos aceitáveis na zona hiperbórea.
Quanto leitor não sorrirá disto, murmurando o clássico – “Utopia!”. Se
esse cidadão olhar para trás há de ver na sua prosápia um avô que teve
idêntica exclamação quando lhe contaram do trem de ferro, máquina de
transformar lenha e água em corrida por cima de trilhos. Verá um bisavô
que se riu com superioridade quando lhe contaram de um palito cabeçudo
que friccionado dava fogo. Verá um tataravô que não acreditou na invenção
da pólvora. Verá um milésimo avô que também sorriu quando Jê-Ahah lhe
contou de uma tribo que andava polindo a pedra dos machados.
– Qual, Jê-Ahah, utopias! Pedra, só lascada...
A palavrosidade

O tempo, o papel e a tinta gastos em glosar o melhor modo


de “fazer” patriotismo e salvar esta Pátria, se os aplicássemos no estudo das
coisas prosaicas da vida de que tudo mais deflui, redundaria em uma forma
de patriotismo prático de tremendo alcance. Quanto se disse por aí este ano
sobre o sorteio militar, a crise do caráter e os males vários da alma nacional,
não vale para a vida e futuro do país um caracol bichado; no entanto, a
difusão pela imprensa do combate às saúvas pela batata de arroba, se a
prática vier confirmá-la, far-nos-á caminhar uma passada gigantesca para a
frente.
No país das invenções

O motor da evolução social é um: a invenção. Progredir não


passa de inventar. O carro do progresso foi carro de boi na contemplativa
Idade Média; passou a trem no século XIX; é aeroplano hoje.
Mas não em toda parte. É aeroplano nos Estados Unidos e na
Alemanha, países onde o cérebro do homem dá de si o rendimento máximo,
mantido à pressão de 99 atmosferas, antepenúltimo grau da escala
psicomanométrica. O último grau é cem, ponto de explosão – que no caso é
a loucura.
Entre nós o progresso é ainda carro. Anda sobre rodas nem sempre
redondas. Carro de boi? Não. Nosso progresso é trole. Gozamo-nos das
invenções alheias e não tiramos os olhos das terras donde nos vêm cinemas,
autos, telégrafos, rádios etc.
Muito mais cômodo adotar do que criar.
No entanto o brasileiro é ferozmente inventivo. Raro o jornal que não
anuncia qualquer maravilhosa astúcia mecânica, destinada a revolucionar o
mundo, saída de um cérebro brasileiríssimo. Os funcionários da Central, por
exemplo, vivem inventando motos-contínuos, para-choques, modificações
no aparelho Morse e grelhas de queimar carvão inqueimável. Mas um vício
de morte inquina os nossos inventos. Nascem paralíticos, ou porque são de
inutilidade absoluta, ou porque são de absoluta impraticabilidade.
Os inventos de que realmente precisamos não aparecem. A Central, por
exemplo, reclama um “para-desastre”, aparelho que é de crer já exista em
uso nas vias férreas americanas, dado o coeficiente mínimo de
desastrabilidade que revelam.
O “coronel”

Será possível que cheguem a acordo as nossas damas


quanto à fundação da Academia de Letras e Ciências Femininas? Haverá
temas feminilmente científicos e literariamente feminis capazes de absorver
a atividade de quarenta damas? Se a associação fosse histórica, um
problema surgiria capaz de por si só encanecê-las todas no estudo: qual a
primeira mulher que veio ao Brasil?
Nós homens sabemos, com certeza de pedra e cal, qual o antepassado
branco que primeiro pisou estas plagas. Era um Pero, ou Pedro... a não ser
que fosse um Vicente, o Yáñez Pinzón. Mas nossas gentis contrárias em
sexo ignoram em absoluto qual a vovó inicial que veio diluir a brancura de
pele no pigmento dos Jês e Nu-Aruaques, que é como o senhor Roquette
Pinto, com muito pico etnológico, chama o nosso velho bugre.
Seria portuguesa? Seria francesa?
Jean de Léry conta que em seu navio, além do reforço masculino
mandado por Coligny ao senhor Nicolau de Villegaignon, vinham cinco
francesas. Seriam Rosemonde, Yvette, Colette, Suzanne e Louise as
primeiras arianas que respiraram o ar brasílico?
Léry, Staden... Que sabor delicioso possuem os velhos livros!
E quantos detalhes pequeninos neles encontramos, desses que os
historiadores au grand complet desprezam, apesar de profundamente
sugestivos!
Léry conta-nos das primeiras francesas. Staden, do primeiro coronel.
Foi ele Tomé de Sousa, vindo em 1557.
As cinco francesas vieram em 1556. Nenhum homem de boa-fé poderá
ligar os dois acontecimentos. As gaulesas chegaram num tempo em que
tudo eram araras e papagaios por cima das frondes e apetites canibalescos
por baixo. Nada indiciava o surto da nova fauna cuja semente Tomé de
Sousa fez vir consigo.
Reverenciemos, pois, a memória de tão honestas vovós.
A influência americana

Ponto em que a influência americana se faz sentir por cá é


nas pequenas invenções jornalísticas – paginação, escolha da matéria,
dosagem das ideias, cinematografismo policial etc.
Partimos da convicção de que os nossos jornais não prosperam por não
darem o que o público instintivamente deseja.
Erro. O de que precisamos é melhorar o público. Enquanto for o que é,
o melhor jornal do mundo levará aqui a mesma vida precária que
caracteriza os atuais. Basta frisar o seguinte: ou por pilhagem, ou por
arranjo com as agências, temos em nossos periódicos a flor do jornalismo
mundial, os Lausanne, os Brisbane, os Harden. E o público não o percebe.
Isto de perceber não é para qualquer. Casagrande não percebeu que
para transvoar o Atlântico a frieza de cálculo vale mais que o d’annunziano
eretismo da imaginação. A retórica ensopada em nitroglicerina do Duce terá
forças para arrastar multidões de camisas-pretas ao assalto dos focos
oposicionistas, mas é impotente para corrigir um defeito de lubrificação
num motor. E se o óleo não circula matematicamente bem, não há
Casagrande que chegue ao fim da prova.
A escultura e o cemitério

Um só campo existe aberto, hoje, para as obras


esculturais de algum vulto: o cemitério. Quando um rico morre e no
testamento deixa ordem para que o glorifiquem na necrópole, os herdeiros
arrenegam, mas lá contratam um escultor para um amontoamento de
mármore e bronze sobre a sepultura. E em meio de muita obra de fancaria,
onde há sempre um anjo pendurado na ponta duma trombeta, emergem de
quando em quando lídimos primores de arte pura. Os escultores de real
mérito, por acaso contratados, dão largas às suas faculdades criadoras e,
usando da licença poética, fazem do enterrado (em regra um simples rico)
um herói merecedor de maravilhoso desdobramento alegórico. Mas para a
Arte pouco importa qualquer ligação entre a individualidade do defunto
pagante e a sua apoteose estética. Para a Arte basta que haja ali beleza. A
condenação da vaidade humana é iníqua. Muito do que há de belo na terra,
unicamente à vaidade o devemos.
A mais cara das artes

A desgraça dos escultores está em que raramente podem


executar, com o vulto necessário, as grandes obras concebidas. O poeta,
mais afortunado, põe-se todo num poema, porque um poema, mesmo que
seja a Divina comédia, cabe num livro. O pintor se realiza em grande nas
telas murais. O músico, igualmente, dá ao mundo a sua criação na íntegra.
A Nona sinfonia de Beethoven ocupa bem pouco papel. Mas o escultor?
Trabalha na mais penosa e cara das artes, a que pede mais trabalho
fisico, material mais especializado e de maior vulto e preço. Vem daí que só
em ocasiões excepcionais, quando surgem papas como os da Renascença,
ou, aqui e ali, um Mecenas, ou um louco sublime como Luís da Baviera,
podem os escultores realizar suas obras como as concebem na imaginação.
Mas como esses ensejos são excepcionalíssimos, têm de contentar-se os
escultores com dar em gesso apenas uma reduzida amostra daquilo de que
seriam capazes se o mundo não fosse a mesquinha coisa que é.
A química moderna

A Idade Moderna se chamará um dia a idade da


química, tanto a ciência das agremiaçães moleculares imprime nela, e cada
vez mais, os vincos da sua influência. Tudo se faz pela química. Tudo ela
resolve. Penetrando no âmago da matéria desfá-la nos seus íntimos
componentes e, senhora destes em liberdade atômica, pela síntese a
recompõe em formas novas, ao sabor das proteiformes exigências da
civilização. Valem os povos pelo valor da sua química. Todo o esplendor da
Alemanha tem na química o grande segredo. Um povo que não sabe
química é um povo antecipadamente subjugado nesta perene batalha do
Somme que é a concorrência industrial moderna – tremenda batalha
pacífica de resultados mais extensos que as fulgurantes Marengos e as
formidáveis Tannenbergs. Esse primado da química revelou-o ao mundo a
guerra. Na surpresa do arranque germânico, Inglaterra e França
vislumbraram a falha do arnês que as inferiorizava tanto nas lutas da paz
como nas mais persuasivas da guerra. E lançaram-se, sôfregas, ao
laboratório, como ao antro mágico onde se organizam, na equação e nas
fórmulas, todas as vitórias. Vencerão se conseguirem dotar-se de química
superior à da rival. Em caso negativo suas vitórias serão vitórias de Pirro,
serão ganhos aparentes, domínio de momento, coisa de esvair-se em névoa
quando, volvida a paz, cessar o trom dos obuseiros para recomeçar a guerra
sem pólvora em que os laboratórios é que bombardeiam.
O literalismo

A tradução literal, isto é, de absoluta fidelidade à


forma literária em que, dentro de sua língua, o autor expressou o seu
pensamento, trai e mata a obra traduzida. O bom tradutor deve dizer
exatamente a mesma coisa que o autor diz, mas dentro da sua língua de
tradutor, dentro da sua forma literária de tradutor; só assim estará realmente
traduzindo o que importa: a ideia, o pensamento do autor. Quem procura
traduzir a forma do autor não faz tradução – faz uma horrível coisa
chamada transliteração, e torna-se inintelígivel...
Conhecer-se...

Nosce te ipsum, eterna verdade psicológica, fonte única


do aperfeiçoamento moral, mental, social e físico, tanto nos indivíduos
como nas coletividades. Só quem se conhece progride e vence. A apatia do
nosso viver coletivo, explicada em parte pela rarefação do habitante, exige
o agrumar de núcleos sistematizadores e orientadores. Mil boas vontades
desligadas entre si, trabalhando fora do amplexo fecundo de uma norma
comum, ou não trabalhando de todo (e é este o nosso caso) em virtude do
sentimento de impotência de quem se vê só, valem menos do que meia
dúzia unidas em ação conjunta.
Só no dia em que bem nos conhecermos teremos nas mãos todos os
dados do “nosso problema”. E só quando tivermos nas mãos todos os dados
dos nossos problemas é que se nos depararão as soluções exatas. Soluções
nossas aos nossos problemas –
eis o rumo verdadeiro.

***

Um meu amigo, grande patriota, dizia sempre:


– Meu ideal é a diplomacia. Viver do Brasil, mas longe dele, de modo a
sentir sempre doces saudades da pátria, que delícia!

***

Os trogloditas da pedra lascada, quando entalhavam num osso de urso a


cabeça duma rena, faziam arte mais elevada que neste nosso século XX as
senhoritas que pespegam num vaso a paisagem japonesa tirada... de outro
vaso, ou bordam a seda, numa almofada, um lombricoide pilhado... de outra
almofada. Eles lá criavam; elas aqui furtam.
A laranja

É a mais generosa dádiva com que nos enriqueceu


Pomona. Se o país ainda o não percebeu, culpa não cabe à deusa nem à
fruta. Já o norte-americano a levou daqui para constituir na Califórnia o
paraíso da laranja. Nós...
Nenhuma fruta vai melhor com o nosso irregularíssimo fácies
meteorológico. De sul a norte, na boa e na má terra, na quente e na fria –
variando embora em qualidade consoante a riqueza do solo – em todas as
zonas a laranja prospera e em nenhuma vegeta improdutiva. Zomba das
secas como zomba da geada. Quatro inimigos mortais dão-se mãos para
esmagá-la – a formiga, a erva-de-passarinho, a broca e a incúria do homem.
Premida por essa quádrupla “entente”, ela reage de mil maneiras e,
operando maravilhas de adaptação, vinga subsistir. Nas taperas antigas,
onde é já tudo morto de quanto o homem plantou e construiu, só as velhas
laranjeiras sobrevivem, ocultas na maranha retrançada da “erva”. E à
sombra do maldito dossel da parasita tentacular, que lhe rouba a seiva e
intercepta o sol, ela ocultamente frutifica e redobra de sementes na ânsia de
perpetuar a espécie. Como pela adaptação vence a “erva”, pela paciência
vence a formiga, explodindo a cada tosa em rebentos novos; e pela
tenacidade vence a broca, emitindo da base ou de grossas raízes vergônteas
destinadas a substituir o velho tronco minado pela carcoma. Se neste estado
de miséria vital o homem intervém e a liberta do bloqueio, com que
esplendor reviça a mais sovada laranjeira! Em virtude de tão preciosas
qualidades tornou-se a nossa grande fruta nacional.
Do português degenerado

É assombroso como do português retaco, robustíssimo,


que de sol a sol brita pedra nas pedreiras do Rio, o “meio” extrai em duas
gerações... um candidato a porteiro de grupo escolar!
OPINIÕES
Psicologia do jornal

Antes de iniciar sua colaboração n’O Jornal, M. L. filosofa sobre a


psicologia ou feição dos jornais. Isso em 1926.

Convidado a escrever n’O Jornal, confesso que


vacilo. E enquanto vacilo, ouço o filosofar sensato da pena. Estas humildes
obreiras do pensamento de tanto lidar com ideias aprendem a julgar-lhes o
jogo de xadrez. E quando o cérebro se exalta, explui lava eruptiva ou
desarrazoa, elas emperram e saem-nos com sensatíssimos conselhos.
– Piano, amigo. Olha a feição do jornal...
A pena é mulher, e dotada, portanto, do bom-senso prático das
mulheres – as iletradas, que não fazem versos. E não erra quem segue o
conselho do que é mulher. Este, por exemplo, relembrativo da feição do
jornal, é sábio como a própria sabedoria.
Cada folha tem sua feição personalíssima. É como o tom maior ou
menor das músicas, esta linha mental que afina o órgão inteiro, do artigo
editorial à mais simples notícia. Se fogem do tom, da linha, ai da música!, ai
do jornal! Auditório e público, chocados, torcem o nariz, rezingam e
acabam pondo o chapéu na cabeça.
O jornal é uma casa de pasto, com quitutes de ideias e arranjo de pratos
diários com o tempero ao sabor dum paladar que não muda. Freguês de
jornal é como freguês de restaurante. Adquire hábitos gastronômicos, sérios
e respeitabilíssimos. Se o jornalista, levado pela veneta ou por humores
extravagantes, perde o ponto de bala, dá sal demais ou mete banha de lata
no que requer manteiga, arrisca-se a um “Idiota!” desconcertante e à perda
dum freguês. Isso porque não há público: há públicos, partidos, facções,
gente afim em matéria de exigências mentais, tom, timbre, estilo, temas e
até disposição tipográfica.
Agremiam-se lentamente em torno da folha que melhor lhes vai com o
diapasão, afazem-se à sua mesmice, e a ela identificam-se. Nada evidencia
melhor este fato do que a observação dos leitores dos velhos órgãos.
Chegam a abdicar do pensamento próprio e esperam, para formar opinião,
que lá se manifeste o seu mentor de papel e graxa.
– A peça de ontem? Fui assisti-la, mas não sei se é boa ou má. Inda não
li o “jornal”...
Não dizem os jornais. Singularizam, porque opinião decisiva há uma
só, a do seu jornal. Os outros...
Daí jornais de todas as cores e feitios – amarelos, rubros, cinzentos;
escritos com cordite líquida ou mel rosado; vestidos à última moda ou
capistranescamente; sisudos ou brincalhões; honestos ou canalhas. Diz-me
que jornal lês, dir-te-ei que bisca és.
Na Inglaterra celebrizou-se a feição imutável do Punch. Passassem os
decênios, estraçalhassem-se as nações, criasse novas manchas o Sol – o
Punch não mudava –, e isso dizia muito alto do encoscoramento
conservador da mentalidade inglesa. Pois o Punch um dia mudou! Anda
agora de frontispício novo, e todo gamenho das suas reformas internas.
Sintoma ultrassério do traumatismo mental ocasionado pela Grande
Guerra e sinal, sobre todos grave, de fim de um mundo.
Pois que mudou o Punch, adeus equilíbrio de até aqui! A ordem velha
naufraga. A Rússia de Lenine vencerá. Incapazes de compreender a
significação gravíssima do fato, os punchistas irredutíveis, clã vindo de pais
a filhos com uma reforma de assinatura no orçamento caseiro, andam de
focinho torcido e tristes. É que pressentem a seriedade do caso.
Entre nós um jornal houve especializado em asneiras. Duas ou três,
gordas, cabeludas, e uma dúzia das miudinhas, temperavam-lhe a matéria
diária, à guisa de azeitonas em pastéis. Assim prosperou. E chovesse ou
fizesse sol, fôssemos monarquia de Pedro II ou república hermética, nunca
deixou de servir à gulodice da praxe. Certo dia um secretário novo deu de
reformar o cardápio, suprimindo as azeitonas. Pois o público percebeu, deu-
se como lesado, murmurou, e passando da murmuração à boicotagem
indicou no termômetro da caixa o grau da sua desaprovação. Apavorada
com a queda das rendas, a empresa pôs no olho da rua o tal secretário e fez
voltar o homem das azeitonas. O público serenou e tudo correu daí por
diante como no melhor dos mundos possíveis.
Este fato tem sua explicação psicológica. Mostra a complexidade da
vida, e como até a asneira é elemento da harmonia universal. Fornecendo-a
diariamente, a granel, aquele órgão dava aos seus fregueses um meio prático
de se demonstrarem, pelo contraste, que eram eles uns alhos. Ao topar uma
cabeluda, diziam, gozosos:
– É idiota este jornal! – e riam o saudável e reconfortante riso da
superioridade mental provada.
Para conquistar o seu público jogam os jornais com dois elementos:
tempo e constância de atitude. Confirma-se aqui o adágio: pedra que muito
mexe não cria limo. Sem esta adoção duma cara ou máscara fixa, seja ela
qual for, impossível criar o limo que torna o jornal vivedoiro. Se muda de
cara duas ou três vezes, está irremediavelmente morto. O público – o limo
afasta-se, murmurando: “Ventoinha!”.
Mudar nem para melhor, porque bem ponderado não há melhor nem
pior. A verdade não existe, a vida é uma irisação, e tanto está certo Rui
como Seabra. Tudo varia com o ponto de vista. O Rio é um para quem o vê
da Avenida; é outro olhado da Praia Vermelha; e do alto do Pão,
quatrocentos metros apenas acima do mar, não é mais nem um nem outro, e
sim um quadro da natureza, uma simples paisagem. Afirmar que o
verdadeiro Rio é este ou aquele é de ótima política para o partido em que
formamos – mas nada filosófico. Pelo menos é isso o que nos ensina o
filosofar da pena, fiel companheira por cujo bico escorre toda a sabedoria
humana. E não só a sabedoria como a sandice, o que dá na mesma, polos
que são, sabedoria e sandice, do mesmo mundo, o cérebro. Daí o
prognóstico dos jornais. Afirme cada um o que bem saiba ao seu limo, e
nada de voos planados pelo éter da filosofia pura onde mora a Dúvida –
certeza única, mas de perigosíssimo uso cá embaixo. Jornal assim, só de
filósofos seria entendido, e de mais ninguém. Quer isto dizer que nem um
só leitor teria porque os filósofos ignoram a existência dos jornais. E
quando apanham um é para dar-lhe emprego muito diverso do visado pelas
empresas, chegando até a filosofar sobre o maravilhoso que seria se por
acaso pudessem vir em branco.
Audiências públicas

Quando o presidente Washington restabeleceu as audiências públicas


suprimidas no governo anterior, M. L. pôs em relevo a ação profilática
desse contato do chefe do Estado com o público.

Muito se tem louvado, à boca pequena e na imprensa, o


restabelecimento pelo novo presidente da velha praxe das audiências
públicas, tão respeitadas pelo cada vez mais saudoso Dom Pedro II.
Chamam-lhe “praxe democrática” e por isso louvam – embora seu
verdadeiro mérito não seja esse.
Que é uma audiência pública? Contato semanal do ápice da pirâmide
com a base, do diretor supremo com o humílimo dirigido.
E quais as suas consequências? Aparentemente, solução de uns tantos
casinhos pessoais; na realidade, profilaxia de maravilhosos efeitos.
Todos nós temos na vida uma só coisa que nos interessa: o nosso
problema pessoal. O Brasil, como povo, significa um bloco de trinta
milhões de problemas pessoais que intentam resolver-se – e se resolveriam
muito bem, visto como a criatura humana é engenhosíssima nesta
matemática, se não interviessem dois fatores anômalos – abuso das
autoridades e reflexos inconciliáveis da má organização político-social. Mas
os fatores anômalos intervêm e o problema pessoal encrenca-se, tornando-
se “um caso”. Ora, como no Brasil o arbítrio da autoridade virou regra e a
organização político-social é perto de monstruosa, podemos afirmar sem
medo de erro que os trinta milhões de problemas pessoais que somos
equivalem a trinta milhões de casos pessoais.
A média das pessoas atendidas em cada audiência semanal é de
sessenta; quatro anos de audiências públicas significarão, portanto, 11.520
casos resolvidos.
É pouco. É praticamente igual a zero.
O valor das audiências, todavia, não reside na sua escassa função
terapêutica. Reside na ação profilática. O simples fato das autoridades,
cevadas no arbítrio, saberem que o chefe da nação atende aos queixosos,
como no tempo daqueles imperantes debonnaires, Henriques Quartos e
Pedros Segundos, leva-os ao abandono do mau regime e à volta automática
ao regime da justiça. E milhões e milhões de problemas pessoais entram a
resolver-se por si mesmos, pelo jogo natural dos interesses e das limitações
da lei. Eis como, com a simples instituição ou restauração das audiências
públicas, o senhor Washington Luís passa a contribuir mais para a boa
ordem das coisas do que com mil quilômetros de telegramas morais e
cívicos – dos que os destinatários recebem com piscadelas de olho, a
murmurarem de si para si – Que pirata!
São as audiências o meio prático que a experiência política dos povos
encontrou, seja em monarquias, seja em repúblicas, de fazer o chefe do
Estado agir por catálise, isto é, por ação de presença.
Além desta possui outro efeito de não menor importância: pôr às vistas
do chefe certos aspectos humanos deplorabilíssimos, consequentes à viciosa
organização social. O mendigo que lá aparece diz que há mendicância e fá-
lo refletir nos meios de minorá-la ou saná-la. O opilado que o presidente
recebe o conduz a meditar nas endemias que se alastram nas zonas rurais –
e a dar atenção ao eterno clamor dos apóstolos ao tipo de Belisário Pena.
Mas se o chefe se tranca, ao modo de um Dalai Lama, e só deixa que os
rumores do mundo lhe cheguem aos ouvidos por meio de uma corte celeste
de espíritos santos de orelha?
Dizia-nos há pouco um fiscal da prefeitura:
– O doutor Alaor não é má bisca, mas não sabe do que se passa.
Tranca-se no gabinete, como um Deus, e só conhece dos fatos através dos
santos – da Secretaria. Estes santos fazem o seu joguinho e só o informam
do que lhes convêm.
A audiência pública é, portanto, o meio prático de pôr a divindade em
ligação direta com as criaturas. Suprime a agência dos santos – e faz que
muita gente má se coíba pela simples ação do medo.
O padrão

Tempo houve, no governo Washington, em que M. L. se preocupou com


os problemas financeiros. Neste artigo procura explicar com clareza o que
é padrão monetário.

Os leitores dos jornais hão de andar tontos com o início


dos debates em torno da estabilização da moeda, ponto central do programa
do futuro presidente. Surgem economistas de todos os lados, como durante
a Grande Guerra surgiam estrategistas em todos os cafés. E o público “fica
besta”. Mais discutem, mais debatem, e menos o público se esclarece. Por
quê? Porque em regra os expositores também não possuem ideias claras.
Baralham coisas embaralháveis e dão valores arbitrários às cartas. O
coringa vale tudo para um; para outro só vale dez. Não definem os termos e
discutem. Daí o caos.
Ameaçado de meningite pela leitura desses debates, resolvi socorrer-
me de um velho amigo filósofo, sem níquel no bolso nem conta corrente no
banco, e pois insuspeito para falar de dinheiro. Os que o possuem ajeitam
suas ideias às conveniências do pecúlio. Não merecem fé.
Esse pobre velho há quatro anos que vive como hóspede do Estado,
num medíocre hotel de pedra com grades de ferro nas portas. O Estado
garante sossego em torno da sua pessoa. Não deixa que ninguém vá
incomodá-lo, nem sequer os parentes. Também impede que o meu amigo
saia dos seus aposentos. Podia extraviar-se – como o Costa Leite –,
privando assim o Estado da obra de benemerência que é hospedar as
criaturas de ideias um tanto diversas das dos demais. E esse amigo possui
positivamente ideias novas, ideias meninas, dessas que irritam as ideias
matronas, sacramentadas pelo bispo e oficializadas pelo governo.
Mas fui-me a ele. Obtive uma licença para visitar o precioso hóspede, e
fui.
– Desejava trocar ideias a respeito do problema financeiro – disse-lhe
após as efusões do encontro.
O hospedado sorriu com doce malícia.
– Perdoe-me, mas não troco ideias. Sempre que o fiz fui roubado. Dá-
las-ei, mas não aceito paga na mesma espécie. Pague-mas com um charuto,
pois tenho o vício de fumar – e cá o dono do hotel não inclui charutos no
menu. De que se trata?
– Do padrão. O futuro presidente ameaça quebrá-lo, e vestais já
surgiram, abespinhadíssimas. Dizem que é uma heresia e uma imoralidade.
Será?
– É! É uma heresia de lógica falar em quebra do padrão.
– Por quê?
– Porque não se pode quebrar o que está quebrado. Quando muito eu
admitiria que se dissesse – requebrar o padrão.
– Falo sério e vou levar as suas ideias aos jornais, ajudando assim a
orientar a opinião pública.
– Diga, a opinião que se publica, que dirá certo. Mas venha cá: que é
padrão?
– Padrão é...
– É uma coisa em que todos falam mas sobre que poucos refletem. O
sossego de espírito que o nosso bondoso Estado me proporciona permitiu
que eu meditasse sobre essa palavra, habilitando-me a responder à sua
pergunta como se o próprio padrão falasse pela minha boca. Padrão é
simplesmente o valor de uma coisa em relação a outra.
– E que é valor?
– Também uma relação entre uma coisa e outra.
– Mas valor econômico?
– Relação entre uma coisa chamada oferta e outra coisa chamada
procura.
– Quer dizer que o padrão da nossa moeda é o valor...
– ... que ela tem em relação ao ouro, que é a moeda universal.
– A nossa moeda não é moeda, então?
– Moeda só é o ouro, por consenso universal dos povos. O nosso papel-
dinheiro não passa de vales emitidos pelo governo – vales que o governo
não paga em ouro porque não o tem e em vista disso os portadores os
descontam na praça. A taxa desse desconto indica o padrão dos vales, isto é,
a relação de valor entre o vale e o ouro.
– É móvel, nesse caso, o padrão do nosso dinheiro...
– Está claro. É de borracha. Daí a asneira que é falar-se em quebra de
padrão. Desde que a moeda só é o ouro, e a relação de valor entre o ouro e
os vales emitidos pelo governo varia sempre de acordo com os descontos
que esses vales sofrem na praça, o tal padrão será sempre móvel.
– Mas o padrão de 27, o par?
– Houve um momento na nossa vida econômica em que esse número
27 marcou a relação entre os vales e o ouro. Esse momento passou. Em
seguida os números que descem de 27 a 4 vieram por aí afora marcando o
padrão dos nossos vales, conforme a maior ou menor abundância de vales
na praça.
– Mas a lei marca o número 27 como o padrão fixo.
– A lei marca, mas que tem isso? Que vale a marcação legal? A vida
segue por um lado e a lei fica feito múmia num canto. A vida não dá a
mínima importância às leis escritas, em regra asnáticas e contrárias aos
movimentos da vida. Não há padrão fixo. Isso é asneira da lei. Se padrão é
relação de valor, como pode ser fixo?
– Nesse caso, como fixar o valor da nossa moeda?
– Passando do regime de vales para o regime da moeda-ouro. Enquanto
houver vales de curso forçado, haverá padrão, isto é, relação de valor entre
esses vales e o ouro. Quebrar padrão é asneira de rabo.
– E qual o verdadeiro padrão da nossa moeda?
– Ai, ai, ai! Vejo que perdi todo o meu latim. Verdadeiros são todos,
desde o de 27 até ao de 4. Em cada momento de nossa vida é verdadeiro o
padrão indicado pelas taxas de câmbio do dia. Tão verdadeiro que qualquer
banco troca os vales por ouro a essa taxa de câmbio, ou de desconto. Não há
um mais verdadeiro que outro. Há a verdade do momento.
– E acha que o futuro presidente realiza o seu programa e nos dota de
moeda de verdade?
– É possível. Ele está profundamente imbuído da necessidade de arrolar
o país entre os povos honestos. A convicção é uma grande força e além
disso ele é...
– Empacador!
– Isso mesmo. Só lamento que não complete seu grandioso programa
pondo no Ministério os dois grandes nomes nacionais naturalmente
indicados.
– Na Praia Vermelha o Assis Brasil, não é?
– Isso mesmo. E na pasta da Guerra...
– Ele.[2]
O meu amigo sorriu e rematou:
– Como todo mundo neste país se entende bem em certos pontos!
Passa-me o charuto.
Despedi-me e lá deixei o meu velho amigo Bom-senso no hotel de
pedra onde o Estado o mantém incomunicável. Pelo caminho vim
pensando:
– Será possível que as ideias deste homem sejam realmente tão
perigosas?
A moeda de borracha

Versatilidade da política financeira

Os jornais noticiam mais uma grande falência. Uma


formidável empresa ligada a incontáveis progressos de São Paulo, e
resultado da inteligência e operosidade de dois homens de excepcional
valor, caiu.
Mas a um exame rigoroso do assunto será certo que esses homens
faliram? Não. Pois seus nomes significam inteligência e trabalho, e seria
absurdo admitir que inteligência e trabalho possam falir.
O que faliu foi o nosso governo. O que faliu por excesso de estreiteza
mental, de incompreensão, de ignorância queixuda, de estupidez, foi este
nosso governo central de paranoicos.
Tal governo assumiu dentro do mesmo quatriênio duas orientações
diametralmente opostas e igualmente denunciadoras da mais absoluta
estreiteza mental: inflacionismo e deflacionismo.
Na primeira emitiu papel-moeda e fomentou o redesconto no banco
central, determinando com esta política financeira um artificial estímulo de
vida nos negócios com base no crédito. As possibilidades e as facilidades de
crédito bancário permitiram, muito logicamente, a todos os homens de
iniciativa, largos saques contra o futuro, saques que seriam pagos a tempo,
com grande lucro para o enriquecimento do país, se... se o mesmo governo,
subitamente, sem dizer água-vai, não adotasse nova política financeira,
justamente oposta à seguida até então. Adotou-a com a inconsciência
ingênua e convencida de que a pobreza de miolo dá a certos homens
levados ao poder pelo nosso absurdo regime de seleção às avessas.
As consequências foram as mesmas observáveis num trem a toda a
velocidade em cuja locomotiva um maquinista bêbado desandasse a
manivela do contravapor: parada brusca, choques violentíssimos,
telescopagem, mortes, destruição de material etc. Até que tudo se remende e
o trem possa retomar o movimento, quanta riqueza destruída, quanta
energia inutilizada!

A relação entre finanças e economia

A adoção de uma qualquer política financeira cria um estado de coisas


a que toda a vida econômica do país se adapta. Torna-se um sistema de
equilíbrio. Se esse sistema de equilíbrio se rompe de súbito, mil males se
sucedem até que novo sistema de equilíbrio sobrevenha.
Foi o que se deu. O capricho queixudo do centro rompeu um sistema de
equilíbrio por ele mesmo até ali aceito e fomentado, para criar outro.
Melhor – diz ele na sua santa simplicidade, como se em física, por exemplo,
o fenômeno da endosmose pudesse ser melhor ou pior que o da exosmose...
A vida de um país – seus negócios, seu comércio, sua indústria – só
exige uma coisa para a plena expansão: estabilidade. Dentro de um regime
de câmbio baixo ou de câmbio alto, o país pode igualmente prosperar e
enriquecer se houver estabilidade. A condição da prosperidade não é esta
ou aquela relação da moeda em curso com o valor do ouro, não é esta ou
aquela taxa de câmbio, 27 ou 7, mas simplesmente a estabilidade. Do
contrário não há prosperidade possível, pois prosperar é construir e a base
de qualquer construção é que o terreno não trema.

O mal da moeda elástica


O nosso pobre Brasil vive no rol dos países mais pobres do mundo – e
aqui na América entalado, qual um mendigo de fundings, entre dois
nababos cada vez mais ricos, Estados Unidos e Argentina, unicamente por
força da instabilidade do valor da moeda.
A moeda móvel (medida móvel! metro móvel! litro móvel!), sujeita a
espichar-se ou encolher-se como borracha, cria no domínio econômico um
regime equiparável ao do terremoto periódico em certas regiões vulcânicas
do globo, onde não há construir nenhum edifício de vulto, senão casebres de
palha e bambu.
O câmbio, índice visível do estado de doença da moeda-papel, ora
sobe, ora desce, como termômetro que é. E a descer ou a subir está sempre a
destruir riquezas. Se sobe, destrói as riquezas criadas sob o regime da baixa;
se desce, destrói as criadas sob o regime da alta. De modo que sempre,
sempre, uma metade do país está perdendo o que ganhou.
Vem daí que o pobre Brasil trabalha mas não acumula e vem daí a sua
grotesca situação econômica no mundo.

Um exemplo frisante

Basta um exemplo para mostrar a nossa miséria. O Brasil, com os seus


incontáveis recursos naturais e seus trinta milhões de habitantes, produz
menos que... a fábrica Ford! Henry Ford, à testa de cinquenta mil operários,
transforma matéria-prima em utilidades no valor de 8 milhões de contos por
ano. Nós, um país!, não chegamos lá!...
E como chegarmos, se o regime é criar e ver cair?
Vivemos, em matéria de riqueza, a fazer e ver desfazer-se. O bom povo
trabalha de sol a sol, os homens de iniciativa lançam as bases de grandes
negócios; mas o fatal tremor na moeda sobrevém e tudo rui. Estes tremores
são uma contingência lógica do sistema monetário que nos envenena –
funesto em si e ainda por permitir experiências pessoais de governantes
paranoicos que acaso subam ao poder.
Por uma inaudita felicidade parece que tudo vai mudar no próximo
quatriênio. O sr. Washington Luís está senhor do problema e
empenhadíssimo em resolvê-lo. Se o fizer, se estabilizar a moeda, se puser
fim ao regime crônico do tremor da moeda, realizará uma coisa tão
desconformemente grande que a nada se poderá comparar. Isso será o
verdadeiro início da nossa vida como povo decente; será o fim da jogatina
que tem sido a vida nacional; será o fechamento da era das aparentes
falências da inteligência e do trabalho.
E será também o fim do ódio a São Paulo. Porque é espantoso que a
ininteligência chegue aos extremos a que chega. Há o propósito deliberado
de abater São Paulo já que o resto do país não lhe pode acompanhar o
progresso!
Daí um imposto sobre a renda que só alcançará São Paulo, daí os
contravapores na política financeira, e o bombardeio etc. Tudo isso é
planejado para refrear a marcha de São Paulo!
Para tais mentalidades o Brasil não é um corpo uno. É um corpo
parasitado por outro corpo: – São Paulo, e cumpre atrofiar este para
benefício daquele...
Tais cabeças raciocinam como o louco que queimou a mão direita por
vê-la mais hábil e produtiva do que a esquerda, convencido de que com isso
beneficiaria o corpo...
A seleção às avessas dá resultados assombrosos...
Gânglios pensantes

Curiosa investigação, mas fora do alcance


humano, seria, num dado momento, estudar o cérebro de um povo. Mas se
nada há mais complexo que um cérebro humano, que dizer-se do cérebro de
um povo, composto de milhares de gânglios esparsos pelo país inteiro,
correspondendo cada qual a um cérebro individual autônomo? Os dirigentes
julgam que dirigem, mas não dirigem coisíssima nenhuma. Quem na
realidade dirige ou, melhor, quem elabora as diretrizes sociais são os
pensadores, são os gânglios esparsos do cérebro coletivo. Aqui um medita –
e dele virá uma futura norma financeira. Ali outro pesa e repesa fatos,
conclui, induz – e dele sairá a clara visão sociológica de amanhã. Adiante
outro adivinha – e em suas ideias se alicerçará um melhor código de regras
industriais.
Onde está neste momento o cérebro do Brasil? Quais os gânglios
autônomos cujo pensamento justo e certo nos encaminhará a todos, pela
força de sedução da lógica e da verdade pragmática, para uma justiça e uma
certeza?
Impossível dizê-lo, mas muito possível acertar com a indicação de um
ou outro lóbulo elaborador de pensamento construtivo, realmente orgânico.
Em São Paulo há um, Carlos Inglês de Sousa, de feição intuitivamente
econômica e dotado da grande força persuasiva necessária para fazer
adeptos, formar corrente e atuar com a benéfica eficiência do jato de luz nas
trevas do nosso caos econômico. Apareceu há bem pouco tempo com um
livro olhado de revés pelos sábios em finanças, pelos banqueiros que se
gozam e tiram o máximo partido da nossa anarquia monetária. Essa obra é o
olho-d’água de um rio de amanhã.
Da Anarquia monetária, de Carlos Inglês de Sousa, vai sair o reajuste
da economia nacional à base única da prosperidade: a fixidez da moeda.
Carlos Inglês é pois um gânglio cerebral do país – o gânglio do bom-
senso econômico.
Outro reside em Niterói, ignorado dos grandes do dia, esses medalhões
que remoçam a velha fábula de La Fontaine – “L’âne portant les reliques”.
É Oliveira Viana. Em seu modesto retiro, à rua São Boaventura, esse
gânglio pensante erigiu um laboratório de análise sociológica para onde
conflui o melhor instrumental do mundo. Em suas estantes não falta a mais
recente obra dos penetrantes sociólogos americanos e ingleses, como
nenhum dos clássicos universais da ciência que estuda o jogo das raças, sua
interpenetração recíproca, seu condicionamento pelo meio físico.
Mas o valor de Oliveira Viana está em que desses mestres não toma as
ideias, e sim apenas os métodos de estudo. Por meio deles apenas apura a
sua técnica, apenas aperfeiçoa o seu aparelho mental de análise e
observação. O objeto de estudo é o nosso povo, sua contextura, os
movimentos que nele se operaram e se operam, a dose de eugenismo dos
vários fatores, o modo por que se comportam na reação contra o meio físico
formação e evolução, em suma, do povo brasileiro.
Sua obra de revisão de valores, de exame e refugo de ideias feitas, de
visão e previsão social, dará outro norte ao país, uma vez concluída. Os
dirigentes que hoje atuam às cegas, sem uma diretriz cientificamente
deduzida a lhes guiar os passos, ver-se-ão por fim na posse de bússola e
roteiros. Oliveira Viana está criando “olhos de ver”, que mais tarde lhes
substituam na cara os olhos de olhar apenas.
Os livros que já deu a público impressionaram fundamente, como algo
nuevo em nossas letras. Eram ciência da boa, ciência crioula, cujos
princípios qualquer criatura de mediano bom-senso pode controlar por meio
da observação própria e comezinha. Mas apesar desses livros representarem
muito, nada são diante da obra que Oliveira Viana elabora com paciência de
frade bolandista, no recesso do seu laboratório de ideias. Em duas partes ele
a divide. A primeira, “O problema étnico brasileiro”, virá esclarecer para
sempre a nossa constituição racial, com a minúcia e clareza com que Fabre
esclarece a biologia de um inseto.
O nosce te ipsum é conselho de verdade eterna. Não há construção
possível sem o conhecimento exato do material que entra na construção. E o
nosce te ipsum até hoje nos faltou. A extensão territorial e a variedade de
fatores componentes do nosso povo têm desnorteado a nossa visão ligeira, o
nosso concluir apressado, a nossa meia ciência livresca e mais de
reportagem do que construtiva.
Grandes homens tivemos, como Rui, cuja ignorância do povo foi
grande. Nossos presidentes da República em regra imaginam um Brasil
teórico que em nada se ajusta ao de carne e osso.
Quando veio a República e os constituintes se meteram à tarefa de
coser para o país um novo terno constitucional, nenhum se lembrou de
tomar medidas ao corpo do gigante nu, recém-despido do casacão
monárquico. Importaram dos Estados Unidos uma roupa feita – muito bem
cosida, de muito bom pano, lindo corte, mas com o grave defeito de não
servir para o gigante. Vem daí que para que as coisas funcionem é mister
um periódico despi-lo e enfiá-lo na camisola de força do estado de sítio.
Não contente com essa obra que vai ser a pedra mestra das nossas
construções futuras, Oliveira Viana elabora outra, deduzida da primeira e de
consequências práticas evidentíssimas. A primeira é a lei. A segunda será o
regulamento da lei: “A educação das classes dirigentes”.
Até aqui vem acontecendo entre nós o mais curioso dos contrassensos.
Exige-se habilitação para tudo, menos para dirigir o país. Ninguém toma
uma cozinheira que não saiba cozinhar, nem um pedreiro que não saiba
assentar tijolos, nem uma datilógrafa que não saiba dar ao teclado. Mas se
se trata de presidir a uma municipalidade, a um estado ou à União, qualquer
indivíduo serve. Não é preciso que entenda de coisa nenhuma, como o
marechal Hermes; nem que tenha ideias sãs e operativas. Daí a nossa
permanência numa eterna “insolução de problemas”.
Ora, no dia em que um homem de governo possua um guia, uma
verdadeira obra de ciência que lhe dê ideias claras e justas, fará como os
bacharéis recém-formados, que dão a ilusão de saber alguma coisa à custa
dos “vade-mécuns” e “assessores forenses”. Estarão dispensados de pensar
com suas próprias cabeças e nos vitimar com as lamentáveis ideias que elas
partejam. Uma luz os guiará – e como essa luz se terá difundido pela elite
orientadoramente, a elite se achará habilitada a impor ao chefe diretrizes sãs
nos casos em que a cegueira suprema se mostre cega além do coeficiente
tolerável.
Para a treva só há um remédio, a luz. A treva em matéria de
inteligência tem o nome de estupidez. Ideias claras, ciência: eis a única luz
que bate a treva da estupidez. Quem elabora ideias claras como as de
Oliveira Viana, ciência de verdade como a sua, não pode deixar de ser um
dos gânglios pensantes do cérebro da nação. Os homens de hoje não
percebem isso. Mas os do futuro far-lhe-ão justiça.
A cegueira naval

Neste artigo, de 1925, M. L. prevê o que a aviação vai representar para


as marinhas de guerra como vedetas em altitude.

Uma lição de marinha

– É muito maior por dentro do que por fora! – disse,


resumindo a sua visita a um dos nossos dreadnoughts, certo... finlandês.
Esta ingênua observação é recordada por todos os oficiais da Marinha
sempre que um paisano penetra no São Paulo e assombra-se com as
dimensões imprevistas dessa cidade flutuante. Quem o vê de fora só apanha
a massa correspondente a dois andares, e o arranha-céu às avessas (arranha-
fundo) tem onze. O que se vê à tona das águas corresponde ao telhado; a
massa maior do monstro de ferro só se visibiliza para os peixes – que muito
se hão de admirar do engenho dos seus netos. Sim. O Homo sapiens, pelo
transformismo, procede dos peixes. No amphioxus está um dos nossos avós
– donde não passar de puro canibalismo retrospectivo o comermos uma
simples pescada de escabeche...
Uma visita ao São Paulo, puxada pelo comandante Vilar,
proporcionou-nos a “lição de Marinha” que todo brasileiro devia receber.
Lição, sim. Porque a Marinha brasileira, por absurdo que o pareça,
existe – no seu espírito, na sua tradição, no seu sacrifício, na sua tristeza, na
sua renúncia. Espírito que a longa continuidade de trabalho num certo rumo
formou. Tradição que Tamandaré, Amazonas e Saldanha paragonaram.
Sacrifício que é ver-se à margem de um coração que a mal compreende.
Esforço que é dar mais do que pode. Tristeza de saber-se descolocada no
continente. Renúncia que é a certeza da derrota no momento decisivo...

O segredo de dirigir nossa gente

O primor de asseio e apuro técnico com que o velho São Paulo se


mantém chega a enternecer. Brummel fazendo prodígios para substituir pela
arte a mocidade que já lá se foi... Aquilo reluz como automóvel novo. O
visitante percorre-o inteiro, d’alto aos fundos, toca em todas as máquinas,
esbarra em todos os metais e ressurte na coberta sem a menor mancha na
alvura dos seus brins. E espanta-se ao saber que esse prodígio é obtido com
o terço da guarnição normal – toda ela formada de jecas da roça, a gente de
maior rendimento útil quando se cura e o acaso põe a competência a dirigi-
la.
Uma leva de homens do Norte chegou, coletada para o serviço da
Marinha. Caboclos, jagunços, jecas – a rija e surrada carne sertaneja, o rude
coração que a iniquidade transforma em cangaceiros e o espírito de justiça
transfaz em heróis. Vinham dos fundos do sertão, ingênuos, ambientados
ainda pela aura humilde da querência.
O comandante foi-lhes dando os respectivos destinos, até que chegou a
vez dos dois últimos.
– Você, para o Belmonte, e você, para o Minas.
Os dois sertanejos entreolharam-se, aflitos e incertos. Por fim um falou:
– Não vê que nós queria ficar perto. Nossa malinha vem junto desde o
Catolé...
O comandante olha para a humílima trouxinha em comum, comove-se
e junta-os de novo. Não se sentiu com ânimo de separar o que aquela
trouxinha unira...
Mas a visita prosseguiu e, ao cabo, por voz unânime, nossa impressão
se sintetizou numa frase:
– É o máximo que se poderia exigir.
Todos a dissemos – e mais que isso todos o sentimos.

A maior força de uma marinha

Adiante, de surpresa, uma nova peça mestra da nossa Marinha nos


surpreende: o almirante Sousa e Silva. Meia dúzia de palavras e um retrato
se desenha. O retrato do equilíbrio sereno, do homem finamente policiado
em suas ideias e sentimentos, senhor de si em todas as emergências, amplo
de cultura bem personalizada, chefe nato sob o chefe que o estudo
conforma. A aura de respeito que o envolve não procede apenas das suas
insígnias de almirante. Não é almirante só porque as tem. Sê-lo-ia sem elas.
O que faz o almirante, o general, o chefe nunca são os galões, senão as
qualidades superiores de comando e descortino. O capitão Prestes, nu, é
general. Quantos generais permanecem cabos, por mais galões que se
pendurem neles?
E, instruídos pela lição daqueles oficiais superiores e pelas manobras
que outros tiveram a gentileza de executar, varremo-nos das noções falsas
que tínhamos na cabeça. Verificamos que no descalabro das nossas coisas a
Marinha existe; e como um quadrado que se fecha na defesa silenciosa de
um pendão, subsiste, insiste, resiste, persiste.
A Marinha teima heroicamente em ser. Olha para Saldanha, faz que a
maruja olhe para Marcílio Dias e em silêncio se obstina em não renegar
suas tradições.
Este verso de medalha revê heroísmo. Já o reverso só revê melancolia,
porque a Marinha sabe do seu mau aparelhamento, reconhece a sua
inferioridade material e pende a cabeça sobre o peito.
A maior força de uma Marinha, a força eletrizante capaz de impelir
seus homens aos maiores heroísmos, é a convicção da eficiência bélica.
Quando uma esquadra inglesa, japonesa ou americana parte para a luta, em
todos os corações freme a certeza da vitória. Todos sabem que durante a paz
nada foi descurado para consegui-la. Sabem que a arma que vão manobrar
consagra a aplicação do que há de última palavra na matéria. E essa
segurança da vitória corresponde a meia vitória.
Em caso idêntico a nossa esquadra partiria com o coração a estalar na
certeza absoluta da derrota. Partiria desarmada da grande arma do
entusiasmo, deseletrizada como pilhas vazias...
Por quê?
Porque nosso programa naval não visa coisa nenhuma. Temos navios
por ter, porque é uso dos países terem navios – e isto jamais constituiu
programa. Um programa visa fins definidos, objetivos próximos, inimigos
prováveis. A Inglaterra visa à supremacia sobre as duas maiores esquadras
do continente europeu reunidas.
Os Estados Unidos visam à supremacia sobre o Japão. A Argentina
visa-nos. Nós visamos... à Lua.
Mais pragmática, a Argentina, com muita lógica, visa o vizinho de
sentimentos pouco afins em virtude de certas fatalidades históricas. Tudo
nos une, sim, diz ela... Ituzaingo, Cáceres... mas armemo-nos contra esse
vizinho amigo. E seu programa naval corresponde na Sul América ao do
two powers standard da Inglaterra. Pragmática, sensata, pouco ideóloga, seu
programa naval estatui uma superioridade constante sobre a Marinha
brasileira. Cada passo que o Brasil dá no mar é seguido de passo e meio da
Argentina – e hoje, como ontem, como há dez anos, como há vinte anos, a
nossa arma de mar se conserva em relação à da Argentina em atraso de um
quarto de hora...
Mas quem não sabe que nos recontros vence aquele que chega um
quarto de hora antes?
Combatente que conheça o atraso do seu relógio parte na certeza
matemática do desastre. Sabe que no choque uma só coisa o espera: o
mergulho sinistro da destruição antes que um só projétil seu alcance o
adversário...

Os olhos das esquadras modernas

Uma nova arma veio revolucionar o mundo. São os aviões os olhos das
esquadras modernas. Águias de visão agudíssima, que das alturas norteiam
o movimento técnico das unidades navais – e talvez amanhã o elemento
novo que as vai varrer dos mares. Foi um filho destas terras quem criou
esses olhos que faltavam à Marinha – olhos de que hoje se estão provendo
todas as Marinhas do mundo. A Argentina possui mais de trezentos pilotos
e talvez outros tantos aviões. Trezentos olhos já!
O Brasil, na sua inconsciência de “gigante bobo”, de país que espera
não se sabe o quê, conserva a sua Marinha tão sem olhos como nos bons
tempos do almirante Tamandaré. Força-a a dirigir-se ainda pelo tato, a
caminhar apalpando, como Noé na sua arca. Forçá-la-á no momento do
perigo a fazer o papel de cabra-cega sob um revoo vertiginoso de águias.
O Brasil possui uns trinta pilotos e uns três ou quatro aviões que
voam... Só.
Os patriotas de palavras chamam derrotistas aos que clamam a tempo
de se evitarem derrotas. Mas o verdadeiro derrotista é quem esconde a
verdade ou apoteosa o regime do cabra-ceguismo, quando nas fronteiras o
vizinho previdente vai formando o seu viveiro de olhos.
– Mas o vizinho é amigo. Tudo nos une...
– Sim, e os anjos digam amém a essa amizade e à eternidade dessa
união. Mas fique o trabuco bem escorvado ali no canto.
Povo que em relação aos seus vizinhos ardorosos e fortes não admite o
“mas” da velha prudência inglesa, copiado pela jovem prudência argentina,
acaba um dia de luto, murmurando entre lágrimas a dolorosa interjeição dos
franceses – Hélas!...
Loucura

Um autor americano acoima de madness o que nós aqui chamamos


governo.

Acaba de aparecer nos Estados Unidos um livro


sobre o Brasil, dum turista que anda pelo mundo derramando seus dólares
em troca de impressões.
Como sempre acontece, esse impressionista viu tudo a seu modo e no
livro estampa coisas justas ao lado de outras injustíssimas.
Entre as injustas há uma que não sei como ainda não arrepiou as
escamas da nossa tão escamável imprensa. Imagine-se que o homenzinho
diz que somos um povo de mulatos e loucos!
Vá que dissesse de loucos; mas de mulatos, é demais! Calúnia pura.
Mulato só existe no Brasil o de Aluísio de Azevedo. E a melhor prova disso
está na indignação da imprensa todas as vezes que em livro estrangeiro
aparece repetido tão monstruoso aleive.
Que estranho daltonismo assalta os turistas que pisam terras brasileiras!
Todos veem errado, ou veem coisas que não existem...
Savage Landor viu no sertão um povo doente, que ele acoimou de fim
de raça. Afonso Arinos, de Paris, rebateu-o vitoriosamente e deslumbrou o
mundo com o quadro de saúde e beleza física do nosso jeca.
É preciso que surja agora um novo campeão e prove ao turista de trator
que não há mulatos aqui, e muito menos loucos.
Mas transcrevamos as palavras de Mister Cooper, o tal turista.
“Não me posso explicar de outra maneira”, diz ele no capítulo
“Madness”, “a leviandade com que se legisla no Brasil. Por mais que eu
procure desviar o espírito, a palavra madness (loucura) me obsessiona.
Imagine-se que dentro de um mesmo período governamental (que é dos
mais curtos, quatro anos) adotam-se duas políticas financeiras
diametralmente contrárias: a política emissionista e logo em seguida a
deflacionista, consistente na restrição do papel-moeda circulante. De acordo
com a política número um, o banco central, armado de faculdade emissora,
operou em escala amplíssima. Fabricou dinheiro à larga para com ele
redescontar os efeitos comerciais recebidos pelos bancos-satélites. Isso deu
origem a uma forte expansão dos negócios (boom), com base na facilidade
do crédito bancário. E São Paulo, que é a parte viva e produtora do país,
aproveitou-se das ensanchas para um verdadeiro e vertiginoso elance (rush)
industrial.
Repetiu-se ali o fenômeno que observamos cá durante a guerra. Os
negócios cresceram como cogumelos, sem outra base além das facilidades
do crédito.
Subitamente o governo central muda de orientação. Passa à política
número dois, deflacionista. Cessa de emitir, suprime o redesconto no banco
central e, não contente, passa a queimar o papel já integrado no movimento
dos negócios e, pois, indispensável.
Sobrevém o pânico. As praças comerciais veem-se descavalgadas e
sem meios de prosseguir nos negócios. O crédito desaparece, ao mesmo
tempo que as reservas em espécie minguam.
Os negócios, colhidos de surpresa em meio da corrida, tropeçam e
caem. Começam as falências. Só em São Paulo chegam a 30 milhões de
dólares, soma altíssima para um país pobre como o Brasil.
O fenômeno torna-se perfeitamente equiparável a uma temperatura que
cai às bruscas de 25 graus a 5. Não há organismo que tenha tempo de
adaptar-se. Todos se resfriam e grande número de organismos rola por terra
vítima do choque traumático.
Quando me lembro que na Inglaterra o Parlamento leva anos e anos a
debater a menor lei passível de reflexos econômicos, quando me lembro do
que vem sendo há um século a luta entre o protecionismo e o livre-câmbio –
quando vejo a prudência com que a poor France, na angústia em que se
debate, evita mutações repentinas, não posso deixar de acoimar de loucura
esta inconsciência do brasileiro.
Ao lado da loucura dos dirigentes outro fato que me impressionou foi a
resignação do povo.
Entre nós, ou na Inglaterra, um semelhante ato de loucura levaria o
governo ao chão e seus membros seriam internados em manicômios.
No Brasil, nada disso. O povo abaixou a cabeça; quem faliu ficou
falido; quem morreu, morreu; quem ganhou, ganhou.
Conversei com vários homens de negócios e em todos vi o mesmo
gesto de resignação muçulmana, acompanhado da mesma palavra: Que
fazer? O governo quer...
O governo no Brasil não é o órgão coordenador que temos aqui (a sort
of central distribution point where all our efforts are coordinated for the
general good). É uma espécie de dono, de senhor das coisas, como na Idade
Média europeia. Age de acordo com os caprichos do momento (lunacy) sem
consulta aos interesses mais vitais da nação. É em suma o que pode ser num
país de mulatos tarados e loucos.”
São estas as duras palavras de Mister Cooper – que até parece um leitor
assíduo da “certa imprensa”.[3]1
Como se vê, palavras injustíssimas. Calúnias. Nada do que ele refere se
deu por cá, nem há mulatos no Brasil. Somos todos louríssimos, de olhos
azuis; e quanto a bom-senso, temo-lo para dar e vender a esses miseráveis
yankees, tão degenerados que já nem álcool bebem.
Guerra ao livro

Vão reformar-se as tarifas da Alfândega e entre as


novidades introduzidas no projeto há uma equivalente a profundo golpe em
nossa débil, incipiente cultura. Parece até que a mira do legislador foi
quebrar-lhe as pernas raquíticas, para divertir-se, à maneira de Nero, com o
trambolhão da aleijadinha.
A cultura se faz por meio do livro. O livro se faz com papel. Carregar
de taxas o papel é asfixiar o livro. Asfixiar o livro é matar a cultura. Pois no
seu projeto de reforma o legislador parece que não visou a outra coisa.
Começa onerando proibitivamente a entrada do papel próprio para
livros, em taxas que vão até 800 réis o quilo, um puro absurdo. Depois abre
a porta ao livro estrangeiro, ou impresso fora. Resume-se assim o seu
critério: papel em branco para ser impresso aqui: proibido; papel impresso
fora, sob forma de livros e outras: isenção completa.
Torna-se impossível a concorrência. Que editor fará livros em oficinas
nacionais se fazendo-os em oficinas estrangeiras ganha só no papel até 800
réis em quilo! Morre a indústria do livro nacional, positivamente, e morre
por mãos dos homens a quem o povo confiou implicitamente a missão de
fomentá-la.
A guerra ao livro vai além. Não contente de desferir contra ele esse
golpe tremendo, o reformador de tarifas subgolpeia-o à direita e à esquerda,
por cima e por baixo. Como? Onerando com ferocidade a importação de
máquinas gráficas. Cento e cinquenta réis por quilo é quanto terá de pagar o
imbecil que se proponha a importar prelos, linotipos etc. Esse ônus, somado
ao ônus imposto ao papel, equivale àquela famosa medida adotada pelo
governo português contra os prelos do Brasil Colônia, mandando-os destruir
a marreta. Os extremos tocam-se. A mentalidade metropolitana d’antanho
irmana-se agora com a mentalidade dos nossos republicaníssimos fazedores
de leis. Ambas querem a mesma coisa: trevas mentais. Ambas guerreiam o
mesmo dragão: o livro. São manas. O mesmo útero as gestou. A diferença é
apenas de época de nascimento. Uma nasceu a tempo. Outra fora de tempo.
A mentalidade de hoje, bibliófoba, explui como um feto teratológico, filho
de Pina Manique, com gestação emperrada de um século.
Como explicar numa época como a nossa sobrevivências assim?
Parturições de mostrengos peludos, enormíssimos de orelhas, com quatro
patas cascudas?
Todos os povos civilizados procuram aplainar por todos os meios o
caminho da cultura. Nós atravancamo-lo de empeços. Na Alemanha o povo
atingiu o mais alto grau de cultura porque o Estado asfaltou o caminho que
a ela conduzia. Vimo-la, assim, editando em 1913 35 mil obras, enquanto a
Inglaterra dava 12 mil e a França 10 mil. Nós, em vez de asfaltar a estrada,
barramo-la de arame farpado!...
Um único regime é possível aqui: entrada franca para o livro
estrangeiro e para a matéria-prima do livro nacional. Tudo o que sair disso
vai de encontro às nossas necessidades vitais. Vítimas da incultura, pobres
por incultura, doentes por incultura, mal governados por incultura, sem bom
conceito por incultura, o meio único de nos arrancarmos ao atoleiro é a
cultura. Como, pois, cerceá-la, torcendo o pescoço ao instrumento de
cultura que é o livro?
Já era caro e capenga o livro nacional. Apesar disso abria o seu
caminho e lá ia desempenhando a sua missão. Começava. Experimentava os
primeiros passos. Veio a alta do papel, a maior de quantas registrou a
indústria, mas ele a ia vencendo, com a boa vontade do público e uma
restrição de lucros para o editor. Venceria a crise. Aguentaria o mau passo.
Súbito, intervém o governo. A favor? Não! Contra. Para fomentá-lo,
ampará-lo? Não! Para matá-lo. Matá-lo com carinho ao menos,
disfarçadamente, aos poucos, sem sofrimento para a vítima? Nada disso.
Matá-lo por estrangulação imediata – garrote velho!...
Sob o novo regime tarifário por que preço vai sair um livro impresso
entre nós? Certamente que por preço inacessível ao público. E este o
dispensará, está claro. Já anda o livro por 4 mil-réis, o que é muito, o que é
mesmo o limite máximo que o público tolera. A nova tarifa pô-lo-á a 5, e o
público o deixará às moscas. Eis a bela perspectiva que se nos abre ante os
olhos...
O Congresso anda escarafunchando meios de comemorar o Centenário
da Independência. Há um em absoluta coerência com este e outros atos
legislativos: decretar que a cultura é um mal e a incultura um bem; e
organizar na praça onde se ergue a estátua de Pedro I um soleníssimo auto
da fé do livro. Depois, todo mundo de quatro, a zurrar evoés ao cavalo de
bronze do imperador.
Artur Neiva

Quando o grande cientista de Manguinhos pôs em prática suas ideias


na chefia sanitária de São Paulo, M. L. exaltou-o com calor.

Certo dia, na Universidade de Leipzig, um estudante


japonês abordou o eminente Ostwald com esta pergunta estranha:
– Haverá meios de distinguirmos cedo os homens que um dia se
notabilizarão nas ciências?
Esta pergunta, encomendada pelo governo nipônico, embaraçou
deveras o grande professor alemão e ficou a verrumar-lhe os miolos por
muitos dias. Mas ao cabo de longo matutar ele apreendeu finalmente o traço
característico dos futuros grandes homens, o primeiro a revelar-se em anos
verdes: horror à escola! Os alunos mais bem-dotados nunca se mostram
satisfeitos com o que lhes oferece o ensino secundário, conformado sob
medida para a mentalidade e o caráter do maior número, isto é, dos
medíocres. As criaturas de exceção, essas sofrem a asfixia do ambiente
estreito e revoltam-se. Passam a constituir a classe dos maus alunos, dos
vadios, dos indisciplinados, e acabam, não raro, expulsos da escola.
A pergunta do japonesinho deu lugar a que Ostwald escrevesse o mais
interessante dos seus livros, Os grandes homens – no qual estuda o
problema com o rigorismo analítico dos métodos germânicos. Seus
numerosos anos de vida letiva na universidade, onde pôde observar a
evolução de milhares de alunos, mais o escabichamento da vida duns tantos
grandes homens verdadeiramente criadores, como Davy, Liebig, Robert
Mayer, Faraday e Helmholtz, confirmaram-no naquela intuição.
O sinal característico do grande homem na vida escolar é sempre a
rebeldia ao ensino clássico, tendente, como diz Nietzsche, a arruinar a
exceção em favor da regra.
Eis por que as academias de ciências nunca dão de si os frutos
esperados. A formação fecunda faz-se fora delas, em torno de professores
apaixonados pelo ensino e bastante compreensivos para sofrear em si a
tendência, inata no homem, de impor tiranicamente a personalidade própria,
em vez de permitir o livre surto da personalidade dos discípulos. É clássico
o exemplo da ação formadora de Justus Liebig. Ao mundo deu esse químico
mais sábios do que uma universidade inteira; vários países disputavam os
seus alunos, vindo ele a exercer, dessarte, uma influência enorme no
movimento científico da época.
Acodem-nos à memória estes fatos diante de Artur Neiva, mais um a
confirmar as teorias de Ostwald. Enquanto aluno de academias, vadiou –
forma usual da revolta contra os métodos de ensino. Seus contemporâneos
são contestes neste depoimento. Vadiou, e vadiando assinalou-se como um
predestinado a brilhar na plêiade dos nossos maiores cientistas. O acaso,
depois, fê-lo discípulo de Osvaldo Cruz – e aí começa a sua verdadeira
formação. Osvaldo era o tipo do mestre criador, à maneira de Liebig.
Catalítico, agia pela presença. Fecundava os cérebros com o pólen da sua
bondade e do seu fervor pela ciência. Favorecia no mais alto grau a
evolução personalíssima dos alunos. Criava grandes homens. A ele deve o
Brasil o mais fulgurante núcleo de cientistas jamais formado em nossas
plagas. Um deles foi Artur Neiva. Ao influxo da alma ardente de Osvaldo
Cruz, Neiva revelou-se a si próprio, compreendeu a ciência, amou-a e
entregou-se-lhe de corpo e alma, como outrora os místicos se entregavam à
religião.
Ele próprio o reconhece, dando-se como criação osvaldina; e não perde
ensejo de proclamar a força de radiação do grande mestre.
De natureza contemplativa, com singular vocação estética, à força de
treino conseguiu no jogo das suas faculdades dar hegemonia ao pendor
científico, subordinando-lhe todos os mais. E é hoje um exemplar acabado
do sábio moderno, com visão das mais amplas, sensação ecológica da
interdependência dos fenômenos humanos, naturais e sociais, seguro de si,
confiante, rijo no trabalho, todo olhos para o futuro, frio às injunções
mesquinhas do presente, norteado sempre por um calmo determinismo
científico, criador, ampliador e catalítico à maneira do seu mestre – tipo, em
suma, dessa classe de obreiros através dos quais se realiza hoje o progresso
do mundo.
Uma anedota documental. Em excursão a Iguape, a ver com seus olhos
como iam os trabalhos de combate à opilação e à malária lá iniciados,
convidou-nos para companheiros de viagem. Fomos. Viagem longa, de um
dia inteiro, começada em trem e concluída em lancha pela Ribeira abaixo.
Chegamos ao escurecer. Depois do jantar, enquanto os outros se ajeitavam
para o descanso ou no bilhar batiam bola para desentorpecimento dos
músculos, vi parar à porta um camarada com três matungos arreados. Neiva
convidou-me a acompanhá-lo e lá fui, nove da noite, sem saber ao quê.
Penetramos na mata, alguns quilômetros fora da cidade. Vi-o apear-se e
acender a lanterna elétrica, e correr a luz pelo couro do cavalo em procura
das anofelinas que incontinênti acudiram àquele inesperado banquete. Uma
hora passou ele assim, caçando mosquitos e dissertando sobre as
particularidades de cada espécie. O caso era este: havia daquelas bandas um
foco malárico resistente a todos os trabalhos da profilaxia – drenos, roçados
etc. Vindo Neiva a saber disso durante o jantar, não resistiu à comichão
duma pesquisa direta, e a ela se fora enquanto os mais descansavam da
viajada no hotel. E resolveu o problema. Encontrou as anofelinas da espécie
perigosa. Tinham o ninho na água depositada pelas chuvas nas bromélias
parasitas. Estava liquidado o caso. Regressamos – e no outro dia ordens
precisas eram dadas para matar de vez a malária de Iguape em seu
derradeiro reduto.
Nessa noite compreendi o homem e alcancei a força tremenda que se
potencializa nos apaixonados da ciência. Pela primeira vez em São Paulo
um diretor do Serviço Sanitário esquecia as suas funções burocráticas e
fazia ciência pessoalmente à moda de Osvaldo.
Este fato ilustra a “maneira” de Artur Neiva. Não se limita nunca a
organizar um serviço; vai ver, cheirar, apalpar; identifica-se com ele,
apaixona-se, e com o exemplo transmite aos seus auxiliares aquele
fervoroso interesse sem o qual todo serviço encrua em caquetismo
burocrático. Foi assim que remodelou, inteira, a organização sanitária de
São Paulo.
Esta sua obra não pode ser bem compreendida no momento. Neiva
criou demais, inovou demais: o quadro saiu de dimensões muito arrojadas
para que possamos vê-lo no conjunto sem o recuo do tempo. As telas
pequenas enxergam-se a um metro de distância; nas grandes, um espaço tão
pequeno só permite a visão de detalhes. É o que se dá com a obra de Artur
Neiva em São Paulo. É cedo para apreciá-la devidamente. A de Osvaldo, no
Rio, não foi compreendida pelos contemporâneos, chegando até a provocar
uma revolução. Mas haverá hoje imbecil, um que seja, que não perceba a
harmonia da tela?
Não se limitou Neiva à função cômoda de chefe dum departamento
público, com rapapés lisonjeiros aos jornais, tendentes a criar uma irisação
adjetivosa em torno de sua pessoa. Criou. Plantou. Semeou. Remodelou
serviços velhos e perros. Iniciou serviços novos. Restringiu a burocracia ao
mínimo. Venceu a resistência tremenda do espírito de inércia, de rotina e de
apercepção.
Gastou quatro anos de sua vida nas funções de mecânico, montando um
aparelhamento de primeira ordem, por meio do qual, em matéria de higiene,
São Paulo pudesse conquistar no mundo um lugar de honra. Pô-lo em
funcionamento, corrigiu-lhe os defeitos iniciais e legou aos seus substitutos
a tarefa infinitamente mais simples de não deixar que parem as máquinas.
De Butantã fez um instituto científico superiormente aparelhado para o
fabrico de numerosos soros, muitos deles concentrados, novidade no Brasil,
e lançou os alicerces da sua transformação numa das primeiras casas de
ciência da América do Sul – rival do Instituto de Higiene de Buenos Aires e
de Manguinhos. Se o novo governo compreender a importância deste fato e
levar a cabo a conclusão do projeto nos termos em que o eminente Rocha
Lima o propôs, fará uma obra de incalculável alcance para o progresso
deste país, vítima sempre do descaso, ou da nenhuma importância dada à
ciência, como se não fosse ela a fada mágica de cujas mãos tudo hoje sai.
As bases do grandioso instituto estão lançadas; bastará dotá-lo com um
quinto da verba anual gasta pelo governo passado em “gavar” vilíssimos
piratas da imprensa para que São Paulo alcance uma hegemonia a mais, a
científica.
Bastaria Butantã para notabilizar a passagem de Artur Neiva por São
Paulo. Ele foi muito além, entretanto. Iniciou batalha tremenda contra as
endemias assoladoras. Várias zonas já se acham libertas das verminoses e
da malária. Trabalho silencioso, sem toque de caixa, sem manobra
apoteótica de imprensa, não diz dele uma procissão de adjetivos comprados
pela verba secreta a tanto por cabeça. Mas abençoam-no os milhares de
doentes opilados ou maláricos, libertos do flagelo graças à sua energia.
Atacou, ainda, a sífilis, criando cinco postos de assistência gratuita, por
onde já passaram milheiros de doentes.
Estes serviços, se valem, e muito, como realização, valem imenso
como prova de possibilidades. É a máquina do saneamento que partiu. É a
ideia transformada em ação. É o repúdio definitivo da parolagem
bacharelesca de até aqui e o início da arrancada para a civilização. É o
lançamento da primeira pedra do Brasil de amanhã – curado, ressurgido,
capaz de pôr-se de pé e caminhar.
Foi tudo? Não. Artur Neiva completou sua obra dotando São Paulo
dum Código Sanitário Rural que é novidade não só para o Brasil como para
toda a América do Sul. Visa estender à população do campo, largada até
aqui na maior miséria física e moral, os benefícios que a higiene já deu às
cidades, estabelecendo medidas profiláticas contra as endemias, contra a
invasão dos indesejáveis e contra a má habitação que as fazendas
proporcionam aos trabalhadores. Novidade absoluta, foi o código no
começo recebido com desagrado e até revolta. Hoje, melhor compreendido,
está aceito e vai sendo aplicado em escala cada vez maior. Muitas fazendas
já se remodelaram e instigam as outras a fazerem o mesmo.
Uma palavra resume a ação de Artur Neiva em São Paulo: semeadura.
E a seara virá, farta e consoladora.
Resignação

O desalento de M. L. em face da nossa pobreza, decorrente de erros da


nossa organização social e política, aparece mais uma vez aqui.

A todos espanta o fato de não existir entre nós um


jornal, um pelo menos, ao molde e das proporções de La Nación e La
Prensa, poderosíssimas folhas argentinas, de tiragens acima de duzentos
milheiros. E ainda há pouco um eminente jornalista carioca, estudando o
fato, frisou como causa – uma delas – a fraca porcentagem de anúncios que
revelam nossas folhas em comparação com as platinas.
O comércio pouco anuncia, é fato, mas cabe culpa ao comércio? Não.
O anúncio entre nós raro corresponde – e sempre que corresponde é feito
em larga escala. Os fabricantes de tônicos, por exemplo, elixires
maravilhosos, panaceias etc., esses anunciam em quanto jornal e jornaleco
existe. E mais anunciam, mais vendem. Os vendedores de automóvel, idem.
O cinema, idem. E pode-se dizer que é só. O mais com que o comércio
mercadeja não paga uma alta e intensa publicidade. Por quê?
Pobreza do país. Quem desembarca no Rio, vindo do Prata ou da
América do Norte, confessa logo a sensação de pobreza que a nossa capital
lhe dá. E quem sai das capitais e penetra no interior, mais que de pobreza
tem a sensação da miséria. Pouco importa que o Brasil possua inúmeras
possibilidades naturais. Não é com possibilidades que se compram melões.
E como dorme um sono de mendigo sobre o montão das suas
possibilidades, o nosso pobre país vive de facadas, empenha e reempenha a
capitalistas de fora tudo quando possui, tendo chegado à triste posição de
por duas vezes interromper o pagamento de juros e amortização desses
débitos levianamente contraídos.
Os jornais do governo, por exemplo, andam agora a entoar louvores ao
patrão porque... porque o patrão hipotecou em segunda ou terceira hipoteca
uns arqui-hipotecados tarecos. Hipotecar os bens de família, em condições
onerosíssimas, é ser estadista entre nós! É fazer jus a louvores pagos com o
dinheiro tomado de empréstimo!...
Sobre a causa desta miséria crônica ninguém diverge hoje... hoje que
mestre Washington Luís erigiu em pivô do seu futuro governo a
estabilização da moeda.
Mas qual a causa última da instabilidade da moeda, causa próxima da
nossa miséria?
A desonestidade dos nossos governos, a inconsciente desonestidade dos
nossos estadistas, tão louvados por si próprios através da imprensa paga. Os
crimes que eles vêm cometendo acumularam-se e a situação de beco sem
saída em que nos achamos é uma resultante lógica.
O regime criado pela moeda móvel impede o país de enriquecer. Todo
negócio se torna jogo e a riqueza acumulada pelo trabalho periodicamente
se destrói ao choque das convulsões rítmicas das crises, isto é, das rupturas
do equilíbrio financeiro.
O que está se dando em São Paulo é impressionante. Terra de imensa
vitalidade, terra que não para de criar, a indústria lá toma grande incremento
cada vez que se beneficia com um periodozinho de equilíbrio. Quando o
câmbio caiu a 5 e nesse nível permaneceu alguns anos, a indústria paulista
aproveitou-se do equilíbrio e ergueu suas formidáveis construções.
Subitamente o câmbio entra a subir – o equilíbrio rompe-se e a indústria
desaba como sacudida de um terremoto.
E é bem isso. No terreno econômico uma variação de 40% no valor da
moeda equivale a um tremor de terra – violenta ruptura no equilíbrio dos
valores; e até que novo sistema de equilíbrio se forme e a ele possa adaptar-
se a indústria, quanto desastre, quanta riqueza destruída!
Desse modo vai vivendo o país, a trabalhar sem acumular, a criar
riquezas e a vê-las submergirem-se nos vortilhões das rupturas de equilíbrio
– vasto Ceará onde a seca periódica mata todo o gado que os anos chuvosos
permitem produzir.
O comércio pouco anuncia porque a força aquisitiva do público é fraca
demais para responder à sugestão do anúncio. “O anúncio não paga” – é
como o comércio traduz em breve síntese o fenômeno. Não há anúncios e,
portanto, não há jornais. Fora um ou outro a nossa imprensa opera prodígios
para viver, e vive com extrema dificuldade, embora procure por todos os
meios promover o surto do anúncio.
A pequena parte do comércio que anuncia pede tiragem; a grande
tiragem exige público pagante; o público não pode pagar porque é pobre; o
público é pobre porque trabalha mas não enriquece, eternamente vitimado
pelos terremotos da moeda; a moeda sofre essas crises periódicas porque os
governos são bem-falantes mas ineptos, visto como descuram dum dos
problemas fundamentais de todos os países: a fixidez da moeda, a fixidez
dos alicerces sobre os quais tudo se constrói.
E assim vamos vivendo, vergonhosamente entalados entre dois países
cada vez mais prósperos e poderosos: Estados Unidos e Argentina, este dez
vezes, aquele cem vezes mais rico do que nós. E os nossos estadistas
continuam a ser grandes estadistas – enquanto transportam no lombo as
relíquias da fábula. E continuam a hipotecar os móveis de família e as
magras rendas dos impostos. E nas escolas os professores continuam a
ensinar aos meninos que somos o país mais rico do mundo.
Rico de resignação e cegueira, sim...
A morte do livro

Os livros nacionais são caros e malfeitos. Nosso


aparelhamento gráfico, além de atrasado e deficiente, não tem a manobrá-lo
o operário técnico à moda europeia, treinado no ofício de pais a filhos,
especializadíssimo, capaz do apuro de linha e tom que é mister. Nada sai
das nossas oficinas que possa ombrear com os produtos gráficos dos prelos
ingleses, alemães, espanhóis ou norte-americanos, líderes nessa matéria. Em
confronto com os estrangeiros nossos livros fazem sempre a triste figura de
jecas de papel e graxa em face de elzevirismos d’alto coturno. Ainda
quando pretendem alçar-se à categoria de obras de luxo, nunca deixa de
cantar o galo, a páginas tantas, na capa, na escolha do tipo, num cabeçalho:
a impressão digital da “indústria nacional” nalgum lugar tem de apor a sua
conhecida marca.
Ora, tal capenguice do livro nacional, em vez de comiserar nossos
legisladores, provocou-lhes a ira, com este consequente raciocínio:
– Se não vingaste até aqui, é que sofres de debilidade congênita. Em
vez de acudir-te com paliativos e mezinhas, vou fazer obra mais limpa:
torcer-te o pescoço.
O Congresso Nacional raciocina muito bem. A vida é de quem pode.
Quem com ela não pode o melhor que tem a fazer é desocupar o beco.
Provada a vantagem de nos alimentarmos com pão argentino, bacalhau da
Terra Nova, sardinhas de Portugal, ervilhas de Nantes, vinhos da
Champagne, é lógico, em matéria mental, que nos alimentemos de livros
exóticos. Mais baratos, mais benfeitos, veículos de literaturas mais ricas,
não há razão para prejudicar o livro estrangeiro com a concorrência dos
nossos livrinhos capengas, dentro de cujas páginas chora de fome e frio a
literatura em cueiros que uns tantos idealistas se empenham em aleitar.
Matá-los, a ela e ao livro que a abriga, é medida não só de boa higiene e
ótima estética, como de alta misericórdia.
Além disso, para que livros na terra do “não preparo”? Não é o
“despreparo” a forma mental que conduz a tudo? Valeu algum dia a Rui
Barbosa ser o prodígio de cultura que é? E impediu a ignorância, uma só
vez que fosse, que aos postos supremos chegasse o ignorante?
Pensando assim, a mesma corporação que no prélio entre o “preparo” e
o “não preparo” deu a palma da vitória a este,[4]1 vai desfechar no livro
nacional o abençoado tiro de misericórdia. O coitadinho está a padecer de
fome, frio e feiura? Bala nos miolos! É limpo, expedito e eugênico. E é
duma coerência inatacável. O Senegal não edita livros. Não obstante, a
pretalhada vive luzidia, contente da vida, felicíssima com o cérebro em
edênico repouso.
Olhemos para o Senegal.
Letras nunca deram felicidade a ninguém, e o ideal de um povo não
pode ser outro senão a felicidade do músculo e do cérebro.
À Alemanha – valeu-lhe ser o maior centro produtor de livros do
mundo inteiro? E ter, só em 1913, publicado mais de 35 mil obras novas?
Não está vencida, derrotada, espoliada, saqueada pelos que produziam
menos, inclusive nós, que publicamos naquele ano duzentas?
O livro é um mal. Envenena o escol e azeda o povo. Inocula os
germens da revolução. Junto com ovos de caruncho traz larvas de Lenines,
Rousseaus e Luteros, agitadores perigosíssimos. É ele que desvia de
honestas carreiras comerciais tantas aptidões preciosas. O pobre Casimiro
de Abreu... Estragaram-no os livros, maus conselheiros, induzindo-o a
poetar. Podendo morrer negociante forte, como o queria o seu sensato e
honrado progenitor, estourou em verdes anos, fora de tempo, criança ainda,
legando, em vez de suculentas apólices, chorosos versos. Também o
desvairado Álvares de Azevedo acabou vítima dos livros que traziam Byron
dentro. Se os não conhecera, teria acabado velho, morto de pigarro senil,
rodeado de numerosa prole, juiz aposentado dum tribunal superior ou coisa
assim.
O Congresso sabe disto e, zeloso que é da felicidade de todos nós, vai
dar mais um passo a ela conducente matando o livro nacional. Para isso, no
projeto de reforma das tarifas alfandegárias, resolve:
1º) – Isentar de direitos a entrada de livros estrangeiros e de trabalhos
gráficos feitos no estrangeiro.
2º) – Taxar proibitivamente a entrada das matérias-primas de que se
alimentam nossas artes gráficas e a nossa rudimentaríssima indústria
editora.
3º) – Proibir por meio de taxas ferozes a importação de máquinas
manipuladoras do livro.
É engenhoso o plano e muito honra a habilidade dos congressistas em
matéria de tiros de misericórdia.
Feito fora o livro, nada pagará na Alfândega; feito aqui, terá pago na
Alfândega, sub especie, papel, máquinas e tinta, um imposto de escachar.
Vindo o papel já impresso: entre, a casa é sua! Vindo o papel em
branco para imprimir-se aqui: pague de 10 a 800 réis o quilo.
Paga 10 réis o papel de jornal: por muito favor concede-se vida ao
jornal. Paga 400, 500, 600, 800 réis o papel próprio para livros: mata-se o
livro.
Há mais mortes.
O papel já estampado com gravuras não paga coisa nenhuma. Se,
porém, surge em branco, para imprimir-se a gravura aqui, paga uma
exorbitância. Mata-se assim a gravura indígena.
Cartazes, catálogos, prospectos e cartões feitos fora pagam apenas 150
réis por quilo. Papel para cartazes, catálogos, prospectos e cartões feitos
aqui pagarão até cinco vezes mais. Morte, pois, à indústria nacional dos
cartazes, catálogos, prospectos e cartões.
O plano de campanha contra as artes gráficas nacionais parece
elaborado pelas casas estrangeiras, empenhadas em suprimir os
concorrentes medrados na Terra de Santa Cruz.
Cifra-se – insistimos – em isenção ou taxas mínimas para o papel
impresso lá, livro, gravura, o que seja; e taxação leonina para o mesmo
papel quando em branco e destinado a ser impresso aqui. Nada mais
simples, nem mais prático, nem mais inteligente. Nada mais denunciativo
de que olhamos para o Senegal e lhe copiamos o regime intensificador da
felicidade estomáquica.
O nosso pobre livro nem seis meses resistirá ao golpe. Dará o mais
angustioso dos berros e, batendo com o rabo na cerca, irá para a cova
chorando saudades daquele bom velho, tão seu amigo, Pedro II, banido,
talvez, por excesso de amor aos cartapácios.
Livres do livro nacional, comemoraremos o Centenário da
Independência com indigestões de livros portugueses e franceses, senhores
absolutos do mercado.
Apesar da sua arquicomprovada boa pontaria, o Congresso teve receio
de errar o tiro e precaveu-se contra a hipótese adotando medidas indiretas,
auxiliares. Assim, taxará as máquinas gráficas – está no referido projeto –
com verdadeiro furor. Cento e cinquenta réis por quilo é a taxa estabelecida
para prelos, linotipos, monotipos etc. Estas máquinas são mostrengos de
ferro, pesadíssimos, e por mais peças que possuam, possuem sempre mais
quilos do que peças. Cobrar por cada um deles 150 réis é pô-los aqui quase
pelo dobro do valor que têm lá fora. Equivale, portanto, a restaurar a lei
portuguesa da destruição dos prelos. Destruí-los, proibir-lhes a entrada, é
tudo um.
A reforma das tarifas resolve assim, de maneira indireta, o nosso eterno
problema do braço. Matando o livro retira das letras legiões de poetas,
cronistas, contistas, romancistas, ensaístas. Forçados a não se publicarem,
esses homens do mundo da lua ou plantam papiro para à moda egípcia nele
vazar as comichões beletreantes, ou vão plantar batatas, arroz ou café.
Como o papiro pode não dar bem aqui, é provável que predomine a
realização da segunda hipótese, e teremos um aumento sensível das safras
agrícolas. Menos “ouvir estrelas” e mais batatas de arroba, mais porcos de
ceva, mais pés de café no limpo. É o que serve. Letras, só de câmbio. As
outras não enchem a barriga.
Olhemos para o Senegal – com a mesma atenção com que outrora
olhávamos para o México. Já que em tudo é forçoso imitar, imitemos o país
da felicidade pura, onde não há nenhum dos males decorrentes do papel
impresso. Pretos por fora e por dentro, toda gente lá come e digere na
perfeição, sem nunca sentir necessidades mentais. É um Éden, aquilo. Ora,
está em nossas mãos ter um Éden em segunda via por cá, gordo e feliz.
Tenhamo-lo.
A estrangulação da indústria editora é o primeiro passo; o segundo virá
com a supressão das escolas. Depois... depois é regressarmos à tanga, ao içá
torrado, ao bicho-de-pau-podre, à rede, ao anzol de osso, à zarabatana.
Araras e tucanos pelo ar, um pajé no Catete, vinte feiticeiros no Monroe – e
todo mundo a mascar milho para fornecer cauim ao Alvear. Que felicidade!
A “desencostada”

Depois do ato de Dona Maria I mandando destruir os


prelos do Brasil Colônia, nenhum maior golpe inda sofreu a cultura neste
país do que a elevação de taxas sobre o papel ocorrida em 1918. A
agravação foi, justamente para o tipo de papel de uso mais corrente, de
3.000%, a maior agravação ainda sofrida, em qualquer país do mundo, de
qualquer continente, por qualquer artigo de importação!
Imposto sobre o papel significa imposto sobre a cultura, visto como é o
papel a matéria básica do livro, do jornal e da revista, os três grandes
instrumentos modernos da cultura. A nossa incipiente cultura sofreu, pois, o
mais rude dos golpes com o advento dessa taxa brutalíssima. E tão grande
foi ele que o governo logo o reconheceu e a tempo acudiu com um remédio,
outorgando absoluta isenção de direitos de entrada para o papel destinado
aos jornais e revistas. Reconhecia, assim, tacitamente, que esses
instrumentos de cultura não poderiam viver sob o regime da taxação
absurda.
Mas ficou de fora o livro, justamente o que mais merecia proteção, já
que como instrumento de cultura o livro prima sobre o jornal e a revista.
Ficou de fora como um excomungado e passou a definhar na mais dolorosa
das decadências. A indústria do livro deixou de constituir negócio dos que
tentam os homens detentores do capital. Dos poucos editores existentes, uns
se restringiram ao livro escolar, de consumo forçado; outros cortaram fundo
na publicação de obras novas, agindo com grandes cautelas e só dando a
público o que lhes parecia de absoluta segurança. Deixou de viver essa
indústria, passou a vivotar apenas, como essas plantinhas às quais roubam o
sol e dia e dia mais se raquitizam na desclorofilização.
Uma circunstância toda eventual, entretanto, é que permitia esse
modesto vivotamento: o contrabando do papel, o abençoado, o benemérito
contrabando feito pelos jornais e revistas. Importavam quantidades acima
de suas necessidades e vendiam aos editores o excedente. A cartilha das
nossas crianças passou a ser feita em papel de contrabando – único meio
que possibilitava a indústria de um artigo por essência infimamente barato.
De 1918 para cá, pois, as nossas crianças aprenderam a ler por
contrabando...
Não ficou aí a calamidade. A carta régia de Dona Maria I
ressurgiu logo disfarçada em convênio literário com Portugal, maromba que
estabeleceu entrada franca de direitos para os livros impressos naquele país.
Quer isso dizer que o nosso governo instituiu uma monstruosidade inédita
no mundo: um protecionismo às avessas, protecionismo à indústria de lá
contra a sua concorrente de cá... Livro já vem impresso de lá, entrada livre
de qualquer taxação. Se vem em branco para ser transformado em livro
aqui, a tal taxa de 1918, que correspondeu a um aumento de 3.000%!
É ou não é a ressurreição da carta régia de Dona Maria I,
que o demo tenha no seu ardente garfo? Tanto faz destruir os prelos como
impedi-los de funcionar, pondo-os em situação insustentável perante os de
uma nação europeia cuja língua é a mesma que a nossa.
Ferido de morte pela taxa de 1918, proibido de existir graças ao
convênio criminoso, mesmo assim o pobre perseguido teimava em viver,
humílimo, modestíssimo, ressabiado, sempre na dependência de um
contrabando que era a sua única tábua de salvação. Mas, ai!... A reação
mineira não tardava. O quatriênio de chumbo, no seu ódio à luz, percebeu a
pia fraude e, de dentes arreganhados, desferiu golpe mortal na indústria que
teimava em impedir que nos afogássemos de vez no estado de alma ledo e
cego duma viçosa escuridão. E zás – matou-o.
A supressão do contrabando foi o tiro de misericórdia no livro nacional
– e, pois, na nossa cultura. Os editores entraram a falir, um por um.
Cinquenta por cento desses abencerragens se viram estatelados no chão,
como o sapo que foi à festa no céu e de lá caiu.
Hoje a situação chega a ser cômica, de tão dolorosamente trágica.
Autor que surja de originais debaixo do braço às portas de um dos
raríssimos editores sobreviventes, só falta ser recebido a tiro. Propor a um
editor a publicação de um livro significa propor negócio que cheira a facada
– e o editor apita, como é natural. As escassas edições que ainda saem, em
regra por conta dos autores, além de extremamente exíguas de tiragem são
postas à venda por preços de espantar freguês – e ficam às moscas, como
tudo quanto não confere com a força aquisitiva do público. Equiparou-se o
livro à fruta. Breve só o veremos nas montras dos joalheiros, ao lado da
maçã e do abacaxi, competindo em preço com as pulseiras e os pendentifs
de brilhantes.
E estruge o clamor: o povo não lê, o brasileiro tem horror ao livro.
Está errado. O povo não lê porque não pode ler, porque está impedido,
proibido de ler. A viçosa reação,[5]1 assim como o impediu de espernear
sob as torturas, também lhe vedou o acesso ao livro. Para que livro? Não
viviam os nossos avós tupinambás tão bem sem ele? Acaso souberam
jamais os pretos do Congo o que isso é? Povo que ainda apanha bolos lá
tem direito de pensar em livro? Cultura... Isso é bolchevismo. A felicidade
dos povos reside no culto da santa Estupidez.
Todos os países decentes demonstram o mais entranhado amor à cultura
do povo; e seus governos tudo fazem para desenvolver a indústria do
instrumento fundamental da cultura, que é o livro. E os que a têm incipiente
chegam a conceder ao livro favores excepcionais. Entre nós, o contrário.
País onde se protegem de maneira escandalosa todos os artigos industriais,
por meio de tarifas embaraçadoras da livre entrada dos similares
estrangeiros, o Brasil abre exceção para a indústria básica da cultura. Para
todas as outras, protecionismo escandaloso. Para a do livro, protecionismo
ainda, sim, porém às avessas, a favor da de fora, contra a de dentro...
Seria isso caso de assombrar, se alguma coisa assombrasse num país
onde ainda impera a palmatória.
Por felicidade, com a entrada do novo governo bruxuleiam esperanças
de melhoria. Um deputado por Pernambuco, moço que além de finamente
culto sabe auscultar as necessidades superiores da nação, promete
apresentar à Câmara um projeto de lei que ponha fim a tamanha
monstruosidade. Vencerá ele o espírito de Dona Maria I, funesto espírito
santo de orelha que até aqui tem inspirado os nossos legisladores em tal
assunto?
Esperemos. Se essa tentativa for bem-sucedida, o Brasil estará salvo. A
Estupidez terá de fazer as malas e sumir-se, cedendo o passo à pobre
“desencostada”. A desencostada é a Cultura.
Até ontem era uma encostada... ao contrabando. Hoje, nem isso.
Apenas uma desencostada posta no olho da rua, sem albergue onde acolher-
se, trêmula pária a retransir-se de fome pelos desvãos escusos.
Quem a viu tão amimada por Pedro II e quem a vê nos trapos em que a
deixou a República não pode deixar de redizer levemente modificado o
verso célebre de Catulo Cearense:
– Meu Deus, por que não fizeste os brasileiros irracionais?
Assessores

Apareceram, finalmente, depois de tantos labores, um no


Senado, outro na Câmara, dois projetos de lei animados do mesmo objetivo:
salvar o livro nacional do despenhadeiro em que rola. Barbosa Lima
justifica o primeiro em poucas palavras – poucas mas fortíssimas e
vibrantes. O ilustre senador não esconde a indignação que o atentado lhe
acendeu na alma.
Já o projeto da Câmara põe de lado o tom fulminatório do grande
tribuno e procura a eloquência da demonstração. Solano da Cunha, seu
autor, justifica-o à força de dados insofismáveis. Mostra que o papel para
livros nos fica hoje 500% mais caro do que antes da guerra e que o imposto
de entrada corresponde a 170% sobre o preço de custo! Mostra ainda que o
papel para livros está pagando uma taxa quase dupla da... da seda!
Taxada como artigo de luxo, a seda paga, em média, 80%, e só nalguns
tipos 100% sobre o custo. O papel para livros, 170%!
O brasileiro já perdeu o hábito de abrir a boca diante de disparates
fiscais, tantos são. Mesmo assim muita gente abriu a boca. Sobretudo no
Congresso.
Logo depois que Solano da Cunha leu sua exposição de motivos, um
congressista ao seu lado murmurou:
– Incrível! Então há oito longos anos que o papel para livros está
taxado assim ferozmente? Confesso que em absoluto ignorava semelhante
infâmia. Taxar o livro! Asfixiar a cultura num país que está definhando por
falta de cultura! Reclama-se contra o analfabetismo e proíbe-se o livro!
Aproximou-se um congressista, a pedir esclarecimentos ao autor do
projeto.
– Mas é sério isso, Solano? Mais que a seda, artigo de luxo?
– As sedas pagam em média 80% e só nalguns casos 100%. Logo, o
papel para livros paga o dobro da seda, se a aritmética não falha.
– Realmente é escachante! Se isso me tivesse chegado ao
conhecimento, eu já teria apresentado um projeto salvador. Mas nunca o
soube, ninguém me disse nada.
Ia passando um terceiro pai da pátria.
– E tu, X, sabias?
– Esse negócio do livro? Não. Aliás nunca me interessei por livros,
nem acho que sejam coisa de alto interesse para a nação. Em todo caso,
concordo com os amigos que a taxa é pesadinha e votarei a favor... se o
governo mandar.
Disse e afastou-se, sob o olhar comiserado de Solano da Cunha.
Um novo deputado surgiu.
– Ali vem F. – disse Solano. – Consultemo-lo. Cumula as funções de
legislador com as de beletrista; já publicou várias obras...
– ... que não lemos...
– ... e deve estar ao par disso. Que achas, F., do caso do papel?
– Horroroso! Pura infâmia! Como há de este pobre país arrancar-se do
atoleiro da incultura, se lhe proíbem o livro? Esse índice de 170% sobre o
custo é simplesmente fantástico!
– O fantástico – aparteou um novo deputado – não é que seja assim. O
fantástico é que nenhum de nós soubesse disso, apesar de temo-lo votado!...
Entreolharam-se todos.
– E que tenhamos passado oito anos sob este regime, na mais absoluta
insciência do que estava acontecendo com a indústria do livro, a mais
merecedora, talvez a única merecedora de todos os carinhos do Estado. Só
me admiro que ela haja resistido por tanto tempo.
– Engano. Essa indústria não resistiu e em grande parte naufragou. As
casas de São Paulo na maioria desapareceram; outras se fecharam aqui, e
neste momento venho de saber da queda de uma das maiores e mais antigas
do Rio Grande do Sul.
O nosso povo não é dos mais amigos da leitura. Herança. O luso,
sabemos, é de muito pouco ler. O tupinambá não consta que lesse. O negro,
idem. Já assim hereditariamente avesso ao livro, muito lógico que o nosso
povo haja deixado perecer a sua indústria quando os produtos dela se lhe
tornaram inacessíveis à bolsa.
Vejam-se os preços dos últimos publicados. Terra desumana, duzentas
e tantas páginas, 8 mil-réis; A planície amazônica, 6 mil-réis; Raça de
gigantes, do Ellis Filho... 10 mil-réis. Livros de 250 páginas, em papel de
jornal, brochados!...
– Preços proibitivos. Fica o livro ao alcance apenas da gente de
dinheiro, isto é, dos que têm mais que fazer do que dedicar-se ao estudo.
– E fomos nós que votamos essa taxa mortífera! E passamos oito anos a
ignorar que a tínhamos votado! Decididamente, falta ao Congresso
brasileiro um aparelho complementar.
– Qual?
– Um grupo de funcionários incumbidos de prestar atenção no que
fazemos e advertir-nos quando as asneiras forem muito grossas. Homens
esclarecidos sobre todos os problemas nacionais e que saibam deduzir as
consequências dos nossos projetos.
A nossa intenção é sempre boa, mas saem tantos tiros pela culatra que
um corpo assessor se impõe. Eu, por exemplo, ando em comichões por
apresentar um projeto sobre açambarcamento de gêneros. Tenho medo,
porém, que em vez de acertar o tiro no açambarcador, acerte no
açambarcado. Já errei tantas vezes que estou com sérias dúvidas a respeito
da minha pontaria. Ora, se tivéssemos um corpo consultivo, de absoluta
confiança, era só chegar e perguntar:
– Que é que vocês acham? Se eu der este tiro, bem apontado, naquele
alvo, onde é provável que acerte?
Vacas magras e gordas

Paz traduz-se em mecânica por equilíbrio, e guerra por


interrupção, ruptura desse equilíbrio. Dada a interdependência de todas as
coisas físicas ou humanas, cada ruptura de equilíbrio determina uma série
infinita de repercussões que só cessam quando as coisas convulsionadas
encontram um novo sistema de equilíbrio. A ruptura de 1914, sendo a maior
de quantas nos registra a história, suas repercussões alçaram-se a um grau
de intensidade e extensão nunca vistos. E sua duração será... Quem pode
medir até quando irão os seus círculos concêntricos, se ainda hoje
percebemos os círculos concêntricos determinados pela pedra do bárbaro
caída no espelho d’água da paz romana?
Um destes efeitos patenteia-se no mundo inteiro com idênticas
características: a inflação das cidades e o consequente agravamento dos
males do urbanismo.
As cidades encheram-se fora de conta e medida, e todas sofrem hoje a
“afrontação” da pletora.
Por que essa congestão? Donde veio o fluxo humano?
Dos campos.
A guerra determina um consumo intensificado de gêneros alimentícios.
A produção dos beligerantes diminui com a mobilização militar dos braços
ocupados no labor agrícola, e os governos, sacando sobre o futuro,
empenham tudo para manter stocks abastecedores do tonel das Danaides.
Isso acarreta a imediata valorização dos gêneros sem os quais não há vida.
O produtor agrícola, eternamente explorado na paz pelo parasitismo
intermediário do comércio, vê chegar, enfim, a sua vez. É a desforra. É a
alta. É o royal-flush que no poker da vida vem afinal ter às suas mãos. As
cidades, os governos, os exércitos, os estômagos em suma, ficam numa
terrível dependência do campo. O eterno explorado esfrega as mãos. Virou
fiel da balança. Está a salvo de blefes. “Vê” todos os jogos, na certeza de
ganhar. E ganha sempre. E ganha cada vez mais. E ganha de enriquecer. E
enriquece.
Foi assim na última guerra. Milhões e milhões de homens retirados ao
labor da produção ocupavam-se em consumir e destruir. Cinco anos nessa
loucura. Cinco anos de sorte para o produtor – sorte reiterada, insistente. E
ele não perdeu a vasa. Dobrou, triplicou as semeaduras; dobrou, triplicou,
quintuplicou os preços. Enriqueceu com furor. Fez às rápidas o que
normalmente não faria a vida inteira pelo sistema de juntar aos vinténs um
mealheiro doloroso. Não houve um só ramo da classe agrícola que se não
beneficiasse com a alta.
O ouro vinha de toda parte bater-lhe à porta, oferecendo-se humilde em
troca do pão, da carne, do couro, do açúcar, de cereais de qualquer espécie.
E ele trocava, dando sempre menos mercadoria em troca de mais ouro.
A consequência desse afluxo metálico às suas mãos foi um imediato
reflexo na mentalidade. Surgiu a tentação urbana. A atração das cidades
empolgou-o. Viu o seu sonho – o sonho de todo agricultor: morar na cidade
– transfeito de sonho vago em possibilidade ao alcance da mão. E como
havia sobras permissoras da mudança de estado, o agricultor mudou de
estado. Trocou o campo pela cidade. Urbanizou-se.
Cada qual, conforme as posses realizadas, deu o seu passo à frente. O
mais fraco mudou-se para a freguesia próxima; outro mais forte comprou
casa na vila; outro, na cidade; os mais empenados, na capital. Este
deslocamento, tão perceptível entre nós, reproduziu-se no mundo inteiro
sem exceção, tanto nos países beligerantes como nos neutros. Na Argentina
e na Espanha, como na Alemanha ou na França. E as cidades pletorizaram-
se, literalmente entupidas. Não houve e não há casas nem hotéis que
bastem. Todas transbordam, derramam. Daí a alta dos aluguéis.
Consequência lógica do afluxo, a alta aparece como elemento equilibrador.
Há de ir numa ascensão até desanimar os invasores, forçando-os a
permanecerem no campo ou voltarem para o campo.
Em 1913 deu-se entre nós, muito visível em São Paulo, o fenômeno
contrário. A crise agrícola, agravada com o terremoto balcânico, esvaziou
as cidades. Quem pôde saiu. Milhares de pessoas passaram das capitais às
cidades, das cidades às vilas, das vilas às freguesias, das freguesias à roça.
Os senhorios, tão gordos hoje, emagreceram. Os aluguéis caíram a
níveis irrisórios. O inquilino fazia favor “morando”. Não havia rua onde
dezenas de casas fechadas não pedissem, com o papel do “aluga-se”, a
esmola de um morador. O inverso de hoje, exatamente.
Pergunta-se agora: quanto tempo durará a alta?
Desde a época dos Ramsés que as enchentes e vazantes humanas se
calculam por períodos de sete anos. O povo consagrou esse número em
redor do qual realmente se ciclam os fluxos e refluxos. Quer isto dizer que
estamos no fim da alta e que vamos comemorar a Independência com maré
baixa.
Entrementes, discute-se. Discutem-se mil expedientes de soluções
artificiais para a crise – como se a “crise” não fosse uma permanente, um ir
ou vir de pêndulo. E adotam-se as mais cômicas medidas: comissariado,
restrição de exportação etc., esquecidos todos de que o equilíbrio vem por
si, pelo próprio efeito da alta e da baixa. Uma determina a outra. Uma sai da
outra. Uma é a um tempo mãe e filha da outra. Na crise de casas, por
exemplo: a alta determina o surto das construções. O surto das construções
por sua vez determina a baixa. Do ponto de vista das cidades – dado que
crescer lhes seja um bem – a alta dos aluguéis é um fator precioso. Só ela
tem forças para cogumelar do solo os milheiros de prédios novos que virão
solver o problema. Assim, os que moramos em cidades, em vez de lamuriar
da alta dos aluguéis, devíamos abençoá-la. E achá-la pequena ainda. E pedir
ao senhorio que não tenha dó, que enterre a faca até ao cabo. Porque tanto
mais forte é a febre, tanto mais rápida é a cura. Salvo quando o doente
morre. O que aliás também é uma solução – e a melhor, na opinião de
muitos...
A maravilha do Calabouço

Quando, mais forte que a explosão da Ponta do Caju,


reboou pelo país o estranho caso da “Revista do Supremo”, foi de assombro
a impressão geral, seguida de uma lógica sensação de aniquilamento. É o
fim de tudo, ouvia-se dizer. Já que tais monstruosidades se geram no seio do
nosso tribunal supremo, o país precipita-se vertiginosamente no abismo.
De fato, apresentado o negócio como o fez a imprensa, com a
virulência dos adjetivos exacerbada pela força comprobante do número dos
milhares de contos, outra não podia ser a impressão, resumida logo numa
síntese fulminatória: “A maior cavação do século”.
Pois para uma simples revista milhares de barricas de cimento
importadas? Vidro importado a granel? Aparelhos sanitários em grandes
lotes? Arame farpado, ferro, azulejos, mil coisas em proporções
desnorteadoras, além de dinheiro a rodo e todos os favores possíveis e
imagináveis?
Confesso, encampei a síntese fulminatória e lamuriei entristecido sobre
o descalabro do caráter nacional. Convenci-me de que, sob o pretexto da
montagem de uma oficina gráfica destinada à impressão de uma revista,
homens espertos haviam, em proveito próprio, com a mira exclusiva no
dinheiro, sangrado a blanc o Tesouro. Foi, pois, com açodamento que
aceitei o convite de um amigo para uma visita ao Calabouço. Ardia por
medir com meus olhos a extensão da inominável patota.
Fui, corri o palácio inteiro e dele saí com as ideias mudadas. A síntese
popular é evidentemente errônea. Não se trata da maior cavação dos
tempos, mas de um belíssimo caso de delírio estético.
Tudo são nuanças na vida; daí o perigo dos julgamentos simplistamente
crus: – é preto, é branco. Nada é preto, nada é branco, porque nada é
simples.
O caso da revista escapará aos anais da cavação porque tem seu lugar
nos da psicopatia. Transcende os âmbitos de uma negociata de alto calibre
com mira exclusiva no dinheiro para incluir-se nos domínios da
psiconevrose megalomaníaca. Os seus hoje caluniadíssimos autores serão
de futuro estudados no capítulo que Luís II da Baviera encabeça como
singularíssimos casos de megalões. Poucos exemplares do tipo mental
desses homens apresenta a nossa história: de pronto acodem-nos dois, um
grosseiro, o famoso contratador de diamantes do Tejuco; outro mais nobre,
o impressionante nababo paulista que se chamou Guilherme Pompeu do
Amaral.
Para a compreensão nítida do caso da revista é indispensável o estudo
dos homens que idealizaram a obra, e ainda uma retrovisão indagadora
sobre os seus ancestrais.
De um deles conta-se que, morador numa pequena cidade mineira,
fazia chegar até lá as grandes celebridades que no tempo aportavam à Corte;
ouvia assim Tamagno, Borghi-Mamo, Viana da Mota, em serenatas
domésticas de absoluta intimidade.
Para criaturas deste tipo mental o valor mais alto do dinheiro é
exatamente esse de permitir a realização das mais delirantes fantasias. Luís
II da Baviera, cujo sangue talvez corra nas veias dos nossos sonhadores,
apresenta o exemplo clássico desta maravilhosa tara, graças à qual o mundo
se vem enriquecendo de obras d’arte inconcebíveis e irrealizáveis pelo
homem normal. Para este chatíssimo bípede, todo vísceras de tranquilo
funcionamento como as do carneiro, a função do ouro é produzir mais ouro,
quando não “utilidades”. A pintura lhes presta apenas como utilidade:
encher o vazio das paredes. A música, como meio de matar o tempo. A
poesia serve para compor suas estantes com volumes bem encadernados.
Inteiramente outro é o conceito do dinheiro para os tarados de eleição.
Os rajás indianos, os monarcas eslavos e orientais, alguns césares romanos
– entre os déspotas, em suma, é vulgar este desdobramento do ímpeto
criador que age sem pedir meças ao prosaico utilitarismo. E vêm daí as
coisas belas que enfeitaram o mundo, os Kremlins, o famosíssimo Taj
Mahal, os jardins suspensos de Semíramis.
Força de fácil expansão nas monarquias ao molde aristocrático, esta
nevrose do grande não encontra campo propício nas democracias,
medíocres e sórdidas por natureza; daí vem que as criaturas nascidas com o
selo da predestinação ou recalcam a tara, engalhando-a pelos rumos que
Freud deslinda, ou acostam-se ao Estado para ao menos em parte dar-lhe
asas.
O Estado democrático é um tirano de chinelas incapaz de conceber algo
de grandioso; mesmo assim, só por intermédio dele, iludindo-o as mais das
vezes, os megaloestetas conseguem criar alguma coisa.
Foi o que fizeram os ideadores das oficinas gráficas da Revista do
Supremo. Sonharam uma obra única e com espantosa habilidade
realizaram-na à custa do Estado, em honra e homenagem ao poder que no
Estado prima sobre os demais – em teoria pelo menos. E tudo o fizeram
sem que o tirano de chinelas o percebesse, pois de outra forma não se
explica a violência com que hoje o Estado arremete contra uma obra de arte
que ele autorizou e pagou.
Erro clamoroso, pois, acoimar de cavação uma obra destas. O
característico da cavação está em tirar do Estado nada dando em troca. No
caso vertente os nossos geniais realizadores esqueceram-se de si e tudo
quanto tomaram ao Tesouro carinhosamente empregaram na ciclópica obra
d’arte concebida.
Obra d’arte, sim, e ciclópica, sim, a empresa ideada por Humboldt e
Murilo Fontainha (a predestinação dos nomes!...). Sem ver com os próprios
olhos ninguém ajuizará ao certo do que vai pelo Calabouço – e quem o
imaginar errará para menos. Tomaram eles desse palácio, a mais bela coisa
que apresentou a Exposição Nacional em matéria arquitetônica, casa
imensa, com panoramas deslumbrantes descortinados das janelas (e estou
que isto influiu na escolha) e adaptaram-no ao fim em vista. Como?
Estirando galpões de zinco? Erguendo tabiques de pano? Nada disso.
Multiplicaram-no por três, com absoluto respeito ao estilo e clara intuição
artística de como é possível multiplicar as dimensões de um palácio sem o
mínimo prejuízo da sua unidade estrutural. As obras novas espantavam os
visitantes tanto pelo vulto como pelo primor do acabamento, do qual jamais
se afasta a preocupação estética. E dentro do palácio assim afeiçoado
instalaram eles a maior e a mais perfeita oficina gráfica que seria dado a um
Luís da Baviera conceber. Não a oficina ao tipo Ford, onde a preocupação
única é a da eficiência e da higiene. Mas algo nuevo, pura criação de
berrante ineditismo. Sonho de ópio realizado...
Em todas as seções ressalta a procura de um luxo britânico, com base
na elegância e na beleza sóbria. Nada de aproveitamentos ou arranjos. No
centro do Calabouço havia, implantado desde que o mundo é mundo, um
formidável bloco de granito que os construtores do palácio não se animaram
a atacar. Eles o fizeram; a ponta de pique desbastaram a monstruosa pedra,
em seu lugar erigiram uma sala de impressão e sobre esta um jardim
suspenso, ladeado de galerias de cristal. Necessidade nenhuma havia de
conquistar à rocha uns tantos metros quadrados de área, num país que tem
tantos quilômetros quadrados para dar e vender. Mas a estética o exigia...
Cavadores esses homens, que só no desbaste desse pedrouço gastaram soma
suficiente para se enriquecerem?
Adequado assim o prédio, em cujas obras novas se vê aplicado o
copioso material recebido com isenção de direitos alfandegários e que tanta
celeuma causou, era mister enchê-lo – e surgem as máquinas. Vem de
França um técnico de alta competência para orquestrar a espantosa soma de
maquinismos moderníssimos que o bojo do Calabouço devia comportar.
Esse homem, apesar de filho de um país líder, certo que se assombrou com
a empresa, pois tudo leva a crer que nunca, no mundo, jamais um técnico
teve de avir-se com tamanho e tão complexo bloco de material gráfico.
As grandes oficinas em toda parte ressurtem de pequenas sementes e
crescem com o tempo, tal qual as árvores, entroncando e engalhando ao
sabor das necessidades.
Aqui, não.
A árvore – baobá adulto – havia de armar-se de chofre, da raiz às
folhas, ao arrepio das leis naturais por um puro golpe de mágica.
Imagine-se a dor de cabeça que torturou o francês! Entrosar tudo
aquilo, harmonizar todos os conjuntos, equilibrá-los no sentido da
produção, afinar todas as peças ao diapasão de uma chave única que,
voltada, tudo fizesse trabalhar qual um relógio – isto, mais que mecânica,
era música, e o francês, apesar dos ódios de raça, teve momentos, sem
dúvida, em que lamentou não possuir a envergadura orquestral de um
Wagner.
Mas tudo se coordenou, por fim, da melhor maneira e, embora ainda
incompleta, a montagem a meio já permite ao espectador apreender a beleza
do total e fazer ideia da maravilha que será tal organismo em pleno
funcionamento.
É mais do que oficina o que se vê no Calabouço. Aquela grande ópera
mecânica aberra de todos os estalões conhecidos e pede para a nomear
palavras novas, inventadas ad hoc. A criarem equivalentes, os seus autores
teriam feito, na música, os Mestres Cantores; na poesia, a Divina comédia;
na arquitetura, o Taj Mahal. O destino embicou para as artes gráficas a
vertigem criadora que lhes tumescia o cérebro – e saiu esse prodígio, a mais
curiosa e grandiosa coisa que depois do Pão de Açúcar apresenta o Rio.
Todas as artes concorrem ali. A pintura, pelo pincel de C. Osvaldo,
enriquece de alegorias um imenso salão destinado a conferências
internacionais; o entalhe, pelos mais hábeis entalhadores do Rio, trabalha
finamente a embuia para boiseries luxuosas; a arquitetura chama a postos o
colonial e, dos azulejos desenhados especialmente aos telhões de beirais
feitos na própria casa, tudo estiliza com sutis preocupações de síntese. Há a
sala de Rui Barbosa, em cujo teto uma série de alegorias de Osvaldo mostra
a evolução do nosso direito subsidiado pelo romano e culminado pelo
Código Civil. Há a sala dos ministros do Supremo, verdadeiro templo onde
tudo é ouro verdadeiro.
– Mas para que tudo isto? – pergunta a democracia.
A obra d’arte tem a sua finalidade em si mesma; num principado
indiano o rajá faria coisa assim para seu gozo exclusivo. Aqui, democracia,
exige-se fim utilitário. Premidos por essa tola exigência, os nossos criadores
consagraram-na ao Supremo Tribunal, como poderiam tê-lo feito a Shiva ou
a Osíris. Fizeram o Vaticano industrial da nossa justiça, o aposento dos
velhinhos supremos, a máquina que lhes veicula a rabulice interpretativa
para uso de todos os cérebros julgadores do país.
Saiu coisa desproporcionada aos fins. Apesar de supremos e apesar da
importância que a voz desses velhinhos tem para a vida social e econômica
da nação, tamanho aparato certamente que os aterrorizará. À deusa Têmis,
sim, caberia um tal templo – uma Têmis moderna que não se contenta com
julgar mas quer ver suas decisões escoarem-se através dos linotipos,
estamparem-se em papel e circularem pelo país inteiro como os leucócitos
da harmonia jurídica.
A função dos realizadores desta maravilha está quase terminada. Nada
lhes há a imputar. O destino os predestinou a enriquecer o país com uma
ciclópica obra d’arte industrial e eles superiormente o fizeram.
Resta a segunda parte. Tal obra pertence ao Estado. Este a autorizou, a
custeou e a viu erigir-se como o veículo suntuário do seu ramo supremo.
Mas subitamente esse mesmo Estado se rebela, nega seus atos anteriores e
procura uma forma para destruir a obra d’arte, levado apenas de um motivo:
tê-la achado bela demais, grandiosa demais para uma rabona. E o povo
embaraçado abre a boca sem saber o que pensar dos seus homens. Se,
entretanto, permitissem ao povo, que tudo pagou, um desfile através da
oficina-palácio, com um livro à porta de saída para nele ser lançada a
sentença final, estou que o veredicto seria unânime.
– “Não me bulam nesta obra! A vida não é só comer, beber e construir
vilas. O senso estético de um povo e o seu orgulho também possuem
exigências. Quero que fique de pé esta maravilha para regalo dos meus
olhos e da minha vaidade. Faltava-me ao Pão de Açúcar, dom de Deus, um
companheiro, obra do gênio humano. Tenho-o cá. Que fique.”
E estou ainda que, saindo dali, esse povo iria infalivelmente votar em
massa num dos autores da obra-prima para prefeito vitalício do Rio de
Janeiro – meio único de transformar a cidade na oitava maravilha do
mundo.
O quarto poder

Neste artigo e no seguinte M. L. descreve o começo da submissão dos


jornais ao controle do Estado – pelo suborno inicialmente e por fim à
força, por meio do DIP no governo Getúlio Vargas.

A imprensa evoluiu num sentido imprevisível aos


seus ingênuos criadores – aqueles velhos sacerdotes que manejavam a
“alavanca do progresso”. Fez-se a picareta do progresso, e cresceu como
força social a ponto de penetrar no Estado como um quarto poder. Na futura
reforma da nossa Constituição os legisladores serão forçados a aceitar a
coisa, legalizando assim uma situação de fato.
É a imprensa o poder que completa os outros e lhes manipula os atos
para uma conveniente apresentação ao público. Os governos dependem da
harmonia dos poderes. Sem esta sobreviria o caos, a guerra intestina – e o
governo se devoraria a si próprio.
A lúcida inteligência de Campos Sales, depois da sua violência
empasteladora contra jornais paulistas, foi a primeira a compreender a nova
ordem de coisas.
Verificando o erro da resistência às brutas contra a maré montante,
aplicou, quando na Presidência da República, um sistema novo, bastante
racional; o qual sistema, aceito e desenvolvido pelos governos posteriores,
caminha de forma a legalizar-se no futuro em artigo expresso da Carta
Magna.
É lógico. Não há razão para remunerar os agentes do Poder Judiciário,
do Executivo, do Legislativo, e exigir dos agentes do quarto poder
gratuidade de serviços.
Este lance genial de Campos Sales muito honra o espírito prático dos
paulistas, os quais, pioneiros sempre, persistiram na senda do iniciador e
alargaram-lhe a obra com a amplitude com que se fazem as coisas em São
Paulo.
Ao atual governo paulista cabe no movimento um grande passo. Não
achou razoável considerar a imprensa sob o aspecto estreito do
regionalismo e só admitir em seu posto de quarto poder, regiamente paga, a
imprensa paulista. Dados a hegemonia do grande Estado e os seus interesses
cada vez maiores na política geral, era imprescindível fortificar o quarto
poder com a oficialização da imprensa carioca.
A realização da bela reforma dependia apenas duma coisa: dinheiro – e
havia-o em quantidade mais que suficiente. Montou-se pois o quarto poder
definitivamente, com dotação apreciável. Calcula-se em 300 contos mensais
o orçamento da Secretaria da Publicidade, ainda incorporada às outras por
motivos óbvios. É bastante para um serviço novo, ainda em período de
clandestinidade, mas concordemos que é pouco, dada a importância do
quarto poder.
É forçoso, pois, prosseguir no movimento, alargar ainda a dotação e
regulamentá-la para que cesse o odioso vexame imposto aos agentes do
quarto poder, de receberem seus honorários pela verba secreta.
É tempo de os sacerdotes de Gutenberg erguerem a cabeça e exigirem o
pagamento à plena luz, como se faz com os deputados e os juízes. Nada
mais odioso do que esta vexatória exceção.
Como também nada mais odioso do que a atitude de certos jornais
paulistanos e cariocas, birrentos em não admitirem o fato consumado. Não
fosse a funesta posição guerrilheira desses órgãos amarelos, irredutíveis
num pirronismo grotesco, teimoso em combater uma evolução muito
natural e lógica, e estaríamos já com o Departamento da Publicidade
definitivamente instalado.[6]1
As vantagens para o público seriam imensas. Cessariam as chamadas
“campanhas contra o governo” e esses horríveis ataques contra as pessoas
dos governantes, os quais ataques dão ao povo a impressão de sermos
governados por uma quadrilha. O governo, por sua vez, teria o campo livre
para uma “atuação” serena, sem empeços, sem o mínimo aborrecimento. O
róseo seria a cor nacional por excelência, porque tudo correria girando
sobre mancais de bolinhas S. K. F.
Desgraçadamente subsistem por aí uns Catões incompreensivos, gente
de fígados maus, incapazes de atinar com as imensas vantagens da
unanimidade. Que lhes preste.
Ao atual governo de São Paulo cabe ainda a honra de ter reduzido ao
mínimo a odiosa facção dos não conformistas. Soube captar para o rebanho
não só grandes órgãos de publicidade, como ainda a miuçalha lambareira
das revistas. Não tem conta o número dos que se ligaram neste quadriênio à
verba secreta por meio do seu cordãozinho umbilical. Resultado: vivem
felizes, sem mais a espada de Dâmocles da falência a lhes ameaçar o sono, e
fazem felizes aos seus leitores com o dar-lhes uma impressão sempre rósea
dos nossos homens e das nossas coisas.
O governo de São Paulo deixa no passivo muita coisa má, indigna dum
governo decente. Mas para compensação deixa no ativo um gordo saldo que
resgata longe tais mazelas. Basta, por exemplo, este simples fato da criação
do quarto poder para guindá-lo à primeira plana dos grandes governos da
República. É inegável a sua benemerência. No entanto, por uma estranha
ironia, não há um só jornal que o gabe sob este aspecto! Elogiam-lhe todos
os atos, sua ação financeira, sua atuação agrícola, sua equidade na justiça.
Mas a coisa que mais de perto interessa à imprensa não merece dela o mais
leve toque...
Por quê? Talvez por injunção de velhos resíduos morais, persistentes no
caráter moderno como uma espécie de gafeira.
Mas a moral, como tudo, evolui. O que é crime hoje pode ser virtude
amanhã. O gatuno na Grécia era honrado como um hábil prestidigitador;
perdeu o prestígio depois, chegou a ser considerado como o mais infame
dos homens; hoje reabilita-se, e terá ainda honras como nunca lhas
concedeu o grego.
Nas escolas futuras muitas disciplinas inúteis, ensinadas hoje, serão
substituídas por outras de alto utilitarismo. Em vez de o mestre interpelar
meninos sobre ângulos, triângulos, senos e cossenos, farão perguntas assim:
– Quando, ao abrir uma burra, se verifica que a resistência do aço do
instrumento perfurante é dois pontos menor que a resistência do aço
perfurado, qual a fórmula a adotar-se: a equação de Rocca ou o binômio de
Carletto?
É tolice, pois, ficarmos toda a vida no Marquês de Maricá, convencidos
da imutabilidade dos princípios morais. Le monde marche... e lá vai de
roldão Marco Aurélio, Epicteto, o Decálogo, Maricá e quanto fóssil procura
entravar as rodas do ex-carro, hoje aeronave do progresso.
Já foi, in illo tempore, ato de suborno remunerar a imprensa pelos seus
serviços em prol desta ou daquela causa. Hoje a imprensa “advoga” a bela
causa governamental, e como esta causa não tem fim, a imprensa, em vez
de atacar o serviço parceladamente, com soluções, de continuidade nocivas
ao Estado, fá-lo incorporada nele, às definitivas, como uma procuradoria sui
generis. Nada mais honesto, mais limpo nem mais inteligente. Nada mais
“evolução”. Governar foi sempre uma arte difícil; o surto moderno da
imprensa veio agravar essa dificuldade com o pôr-se a imprensa em
frequente antagonismo com o governo. O povo, sabendo da ação do
governo unicamente por intermédio da imprensa, sofre com a apresentação
desairosa que esta lhe faz dos atos.
De modo que se tornou impossível governar sem auxílio da imprensa.
Mas era imoral suborná-la.
Como sair do dilema?
Suprimi-la? Impossível. Amordaçá-la? Pior ainda. A solução única é
portanto a paulista, experimentada no último quadriênio com tamanhos
resultados: subvencioná-la.
Realizada já esta grande conquista, que faz fremir de entusiasmo os
ossos de Gutenberg, resta ainda escoimá-la da bioquice hipócrita; e
sobretudo poupar ao Quarto Poder a frequência malsã da Verba Secreta.
Tenhamos a coragem dos nossos atos.
Afirmemos de cabeça erguida a nossa evolução, em que pese aos
rançosos moralistas e a esses remanescentes grotescos duma moral morta:
os jornais de oposição. Opor-se à prosperidade, à comodidade, às delícias
do oficialismo, à aposentadoria, à fecunda irrigação com as águas do
Pactolo, somente por amor do povo, ralé ignóbil indigna do menor
sacrifício, é coisa que depõe contra a sanidade mental dos díscolos.
Hospício com eles! E, orgulhosa, eliminado o amarelo da gama das suas
cores, penetre a imprensa, com desassombro, na fase áurea de sua
existência, legalmente transfeita em o Quarto Poder do Estado – com
rubrica nos livros do Tesouro e libertada para sempre da aviltante
focinhação na gamela suja da odiosa Verba Secreta. Amém.
Honni soit

Uma folha carioca, notável pelo criterioso da


informação e pelo tom elevado com que aborda nossos problemas, insinua,
em artigo de fundo, como fato gravíssimo, o singular “emagrecimento” do
stock de café adquirido pelo governo paulista. Dá assim o curso da letra de
forma ao murmúrio da praça de Santos, em face da quebra de 4% verificada
nesse café por ocasião do reensaque.
Uma ninharia, esses 4%: apenas cento e vinte mil sacas, valendo 9 mil
contos no bloco dos três milhões de sacas adquiridas.
Citamos esta insinuação da folha carioca simplesmente para robustecer
nossa tese relativa à oficialização da imprensa, exposta nesta coluna há uma
semana.
Estivesse já totalmente realizada a grande reforma da incorporação da
imprensa ao Estado como o seu quarto poder, e o espírito público não
passaria neste momento pelo desgosto de sentir pelas ventas o bafo duma
nova maroteira.
Mas não está realizada a reforma. Subsistem fora do aprisco vários
órgãos pirrônicos, e tanto basta para que se perturbem a paz de consciência
dos governantes e a doce beatitude dos governados.
Em plena apoteose a fogos de bengala do governo paulista, quando
toda a imprensa rósea se abre em louvores, atribuindo aos seus gestores o
grande surto econômico do estado nestes últimos quatro anos, desde a safra
de algodão até a geada valorizadora, a nota do jornal amarelo cai como
pingo d’água no azeite em fervura. O público, opiado pela palavra maviosa
das sereias, acorda e arrepia-se; sofre na bossa do comodismo um
desagradável choque e entra-se de dúvidas quanto à onzemilvirginal pureza
dos apoteosados.
Ora, a felicidade do povo deve ser o fim supremo do governo, e lesam
o estado de felicidade dos súditos todos os conceitos desairosos que corram
à conta dos magnatas. Deve, pois, o governo impedir por todos os meios
essa lesão da felicidade pública, causada pela apresentação aleivosa que de
seus atos faz a imprensa rebelde.
Sob o regime da oficialização criado por São Paulo, e que defendemos
com o máximo calor, fica livre a opinião pública desses desagradáveis
traumatismos.
Porque tudo vai da apresentação dos fatos, pouca importância tendo os
fatos em si. Neste caso, por exemplo. Apresentado como foi o fato pelo
jornal carioca, dá a impressão dum formidável “avança” no café
armazenado, ligeireza que só poderia ser praticada com a conivência dos
próprios membros do governo; do contrário procuraria este apurar
responsabilidades, o que não fez.
Ora, tal apresentação é aleivosa. O stock emagreceu, é verdade, mas em
virtude de causas naturais de que têm culpa as leis da física e não os
homens. Explica-se, pois, cientificamente o fenômeno, sem que se cubram
de lama os nossos pró-homens.
Cento e vinte mil sacas correspondem em peso a sete milhões e
duzentos mil quilos. Parte dessa massa é composta de água, cujo
evaporamento, num clima quente como o de Santos, é fácil de explicar.
Outra parte é composta de óleos essenciais, muito voláteis, cujo
desaparecimento não tresnoita o cérebro de ninguém numa terra onde o sol
evapora até o asfalto das ruas. Água e óleos lá estão pelo espaço integrados
no turbilhão atômico.
Resta o resto: a parte sólida desses sete milhões de quilos. Aqui a
explicação científica é mais complicada, e seria mesmo impossível anos
atrás; mas depois da descoberta do radium pelo casal Curie, não apresenta a
mínima dificuldade.
Impressionado com as propriedades do radium, Gustavo Le Bon
publicou um livro – Evolução da matéria – onde formula as novas hipóteses
científicas desse corpo. Le Bon argumenta com muita lógica que o princípio
de Lavoisier – nada se cria, nada se destrói –, pedra fundamental que foi da
química, está errado e deve ser substituído por um outro que concilie a
ciência com as propriedades do radium. Nada se cria, tudo se destrói: eis o
novo alicerce da química. A matéria perde-se, esvai-se, extingue-se. A
radiação não é uma propriedade exclusiva do radium, e sim de todos os
corpos; apenas se manifesta com maior intensidade no radium.
E a radiação é a forma, o modo de extinguir-se da matéria.
Os átomos dissociam-se, turbilhonam, e perdem-se nos intermúndios
siderais. Os três estados clássicos da matéria, sólido, líquido e gasoso,
passaram a quatro, com a entrada em cena do estado radiante. Mas este
estado radiante não é propriamente um quarto estado da matéria, e sim uma
propriedade que a abrange toda. Líquida, sólida ou gasosa, a matéria é
sempre radiante, isto é, subsiste num permanente estado de dissociação
atômica que lhe dá cabo do canastro.
Apesar da infinita lentidão com que se opera o fenômeno dissociativo,
tempo virá em que a matéria estará totalmente extinta, dispersada, difundida
pelo espaço como discreto perfume.
Ora, com o auxílio desta nova teoria nada mais fácil do que explicar
com rigorismo científico o emagrecimento do stock de Santos, sem inculpar
os nossos governantes. Que culpa têm eles, afinal, de que a dissociação
atômica seja um fato? E que se tenha manifestado no café com intensidade
imprevista, em virtude duma anafilaxia qualquer? O café evaporou-se nas
partes líquidas e dissociou-se nas partes sólidas. Transferidos em átomos, os
sete milhões de quilos que faltam andam a fazer propaganda da terra roxa
pelos confins etéreos. Nada mais claro, nem mais rigorosamente científico.
Vê-se, pois, deste exemplo, como tudo varia com a apresentação do
fato, e como há vantagens para a felicidade do povo na apresentação
oficializada. Todos ficamos satisfeitos, e ainda o povo se instrui com a lição
científica chamada a esclarecer o mistério, lição esta muito adequada à
compreensão de muito desfalque até aqui injustamente atribuído aos
homens. Porque está provado que o dinheiro também se irradia, chegando
mesmo, quando público, a possuir um dos mais altos coeficientes
dissociativos.
Nesta hipótese, sob o novo regime dos jornais, não se negaria a
evidência do fato; o fato viria à tona banhado de luz, mas da boa, da santa,
da fecunda luz rósea de que depende a felicidade dos cavalgantes e
cavalgados.
Outro caso, agora. Suponhamos, por exemplo, que um senador da
República, de alto destaque na política e velho amigo do jogo, sai da capital
do país e vai à capital dum estado vizinho fazer sua fé na mesa de poker
dum clube elegante, ponto de reunião da plutocracia provinciana. E lá é
pilhado roubando no jogo. E que a diretoria desse clube se reúne e propõe a
expulsão do “indelicado”. E que esta se realiza. E que o suposto senador,
grande magnata alguns furos apenas abaixo do presidente da República, se
vê proibido de jogar naquele círculo por indelicatesse.[7]1
Um fato desta ordem, no caso da imprensa oficializada, não seria
apresentado ao público por forma nenhuma, em respeito à posição oficial do
cleptômano. Se o fosse, provocaria um abalo formidável no país e fora,
enxovalhando coisas que valem mais que o homem. E o mal ficaria por aí,
sem repercussão maior.
Já sob o regime atual da imprensa, o regime misto, composto de órgãos
oficializados e órgãos rebeldes, subsiste o perigo de um destes,
antipatriótico, amigo do escândalo e sempre movido por paixões más, trazer
a público a gravíssima denúncia, com funestas consequências para a nação.
Não há, pois, negar. Por mil e um motivos a oficialização integral da
imprensa impõe-se cada dia mais. Todos a reclamam: o povo, cansado da
pintura negra que diariamente lhe dão os órgãos amarelos; os governantes,
sempre apavorados ante a possível má apresentação dos seus feitos; e a
própria imprensa, assoberbada pela tremenda crise do papel. É o meio
prático de entrarmos todos de chofre num período áureo como jamais o
gozou país nenhum do mundo.
E maldito seja quem malicia isto!
MISCELÂNEA
Traduções

Foi M. L. quem rompeu com o preconceito de que “não ficava bem” a


um escritor traduzir. Traduziu muito, deu o exemplo – e depois dele os
escritores tomaram a si uma tarefa até então confiada a anônimos.

Entre os aspectos novos que o movimento editorial


criou nestes últimos tempos cumpre assinalar a fúria tradutora. Começou-se
em São Paulo a traduzir intensamente e o movimento estendeu-se a outros
estados onde também se editam livros, como o Rio Grande.
Começou-se... Sim, começamos agora. Até bem pouco tempo o Brasil
só conhecia em traduções Escrich, Ponson du Terrail e Alexandre Dumas.
Positivamente só. Jornais gravíssimos davam e redavam em rodapé os
romances populares desses autores – e alguns mais avançados inovavam
com Heitor Malot e Zamacóis e mais coisas. Mas só traduzíamos do francês
e do espanhol.
A literatura inglesa, tão rica de monumentos, era como se não existisse.
A alemã, a russa, a escandinava, idem. A americana, idem. Um dia um
editor inteligente teve a ideia de arejar o cérebro dos nossos eternos ledores
de escrichadas e ponsonadas. Aventurou-se a lançar no mercado Wren,
Wallace, Bourroughs, Stevenson, e que tais. E foi além. Lançou alguns dos
sumos: Kipling, Jack London – e já pensa em Joseph Conrad e Bernard
Shaw.
A surpresa do indígena foi enorme. Sério? Seria possível que houvesse
no mundo escritores maiores do que Escrich e Dumas? Que fora da França
e da Espanha houvesse salvação?
Era sim. Havia salvação e o mundo mental revelado pelos novos livros
fez abrir a boca à nossa gente. Foi com verdadeira avidez que o público se
atirou às traduções, fazendo que as tiragens se sucedessem num elance
imprevisto. Basta dizer que o Rosário de Florence Barclay alcançou uma
saída de cinquenta milheiros, suponho.
A novidade era absoluta. Livros arejados, cinematográficos, de cenário
amplíssimo – não mais a alcova de Paris. Almas novas e almas fortes,
violentíssimas, caracteres shakespearianos, kiplinguianos, jacklondrinos –
novos, fortes, sadios. E deliciado com tanto novo, o público passou a pedir
mais, mais, mais, até que se saturou, ou antes, que os editores saturaram o
mercado.
Só então os leitores começaram a dar tento ao mérito das traduções. Foi
verificando que com a pressa de apresentar novidades os editores
descuravam da qualidade, dando inúmeras traduções perfeitamente infames.
E o público reclamou, ao mesmo tempo que vários autores indígenas
bradavam contra o fato de se traduzirem autores de fora enquanto eles
permaneciam inéditos.
Realmente era um desaforo. Dar Kipling, Jack London, Dickens,
Tolstoi, Chekov e outros quando poderíamos dar Almeidas, Sousas, Silvas
etc. Dar o Lobo do mar, de Jack London, em vez da Mulatinha do caroço
no pescoço, do senhor Coisada Pereira, que é o grande gênio literário do
Pilão Arcado, onde vive pálido como cera e todo caspas. E eles apelaram
para o governo. Em Pilão Arcado governo ainda é palavra mágica.
Quanto à reclamação do público, os editores estudaram o caso e
verificaram que havia razão na queixa. Traduzir é a tarefa mais delicada e
difícil que existe, embora realizável quando se trata da passagem de obra
em língua da mesma origem que a nossa, como a francesa ou a espanhola.
Mas traduzir do inglês, do alemão ou do russo equivale de fato a quase
absurdo. Ocorrerá fatalmente uma desnaturação.
Se a tradução é literal, o sentido chega a desaparecer; a obra torna-se
ininteligível e asnática, sem pé nem cabeça, o que não se dá com uma
tradução literal do francês ou do espanhol.
A tradução tem de ser um transplante. O tradutor necessita
compreender a fundo a obra e o autor, e reescrevê-la em português como
quem ouve uma história e depois a conta com palavras suas.
Ora, isto exige que o tradutor seja também escritor – e escritor decente.
Mas os escritores decentes, que realmente são escritores, isto é, que
possuem o senso inato das proporções, esses preferem e têm mais vantagens
em escrever obras originais de que transplantar para o português obras
alheias. Os editores pagam menos e o público não lhes reconhece o mérito.
Daí um impasse.
Mas o caminho é esse. Os editores têm de resignar-se a sacrificar a
quantidade das traduções pela qualidade; e têm de procurar por todos os
meios descobrir bons tradutores. Nos países mais civilizados a função do
tradutor está equiparada à do escritor. Vemos Baudelaire receber em França
tantos aplausos pelas suas traduções de Edgard Poe como pelos seus versos.
E ainda agora no Mercure de France há várias páginas de necrológio sobre
o recém-falecido Luiz Fabulet, cuja atividade literária se resumiu em
transplantar para o francês a obra inteira de Rudyard Kipling.
Os tradutores são os maiores beneméritos que existem, quando bons; e
os maiores infames, quando maus. Os bons servem à cultura humana,
dilatando o raio de alcance das grandes obras. Baudelaire e Fabulet, por
exemplo, dilataram o raio de alcance da obra de Poe e Kipling, tornando-a
acessível ao mundo latino ou pelo menos à parte do mundo latino que joga
com a língua francesa. Sem eles ou sem outros que fizessem o mesmo, Poe
e Kipling ficariam limitados ao mundo inglês.
A literatura dos povos constitui o maior tesouro da humanidade, e povo
rico em tradutores faz-se realmente opulento, porque acresce a riqueza de
origem local com a riqueza importada. Povo que não possui tradutores
torna-se povo fechado, pobre indigente, visto como só pode contar com a
produção literária local.
Quatro línguas já merecem o nome de universais – a inglesa, a
espanhola, a francesa e a alemã, porque nelas já se acha vertido tudo quanto
todos os outros povos produziram de primacial. Dentro delas um homem
tem ao alcance pelo menos a nata do grande tesouro. Já a nossa língua,
língua de pobre, só teve até bem pouco tempo o que o homem de Portugal e
do Brasil produziu – bem pouco. O grande tesouro comum da humanidade
nos era inacessível na nossa língua – e daí a necessidade para os cultos de
estudarem outros idiomas.
Toda a Antiguidade greco-romana ainda nos está fechada. Não temos a
nossa tradução de Homero, de Sófocles, de Heródoto, de Plutarco, de
Ésquilo. Como não temos Shakespeare, nem Goethe, nem Schiller, nem
Molière, nem Rabelais, nem Ibsen. Falta-nos quase tudo, e isso por causa da
vida indigente que ainda é a nossa. Sem enriquecimento material, sem
desenvolvimento econômico, um povo não pode enriquecer-se
espiritualmente.
Bem consideradas as coisas, um homem que apenas conheça o
português fica com o seu horizonte espiritual deveras trancado. Ao norte
limita-se ele com Herculano, Camilo, Castilho e a récua dos freis
quinhentistas absolutamente vazios de ideia; ao sul limita-se com Eça,
Ramalho, Antonio Nobre, Fialho etc.; ao leste limita-se com Machado de
Assis, Nabuco, Euclides da Cunha, José de Alencar; ao oeste limita-se com
imortais da Academia de Letras e alguns iconoclastas do futurismo. Com
tantos limites o pobre-diabo acaba sentindo-se numa verdadeira prisão
mental.
Daí a avidez com que a nossa gente unilinguística se atirou às
traduções dos romances ingleses e russos dados pelos editores atuais. É
avidez de ar, de luz, de amplidão, de horizontes. Recebe essas obras como
outras tantas janelas abertas numa prisão escura. E, pois, benditos sejam os
editores inteligentes que descobrem bons tradutores e malditos sejam os que
entregam obras-primas da humanidade ao massacre dos infames tradittores.
Processos americanos

Em 1886 um tal Thomas Adams viu em Nova York, numa


roda, um general mexicano de nome Santanna, a mascar constantemente
uma certa coisa. O general mascava e remascava.
Aquilo intrigou Adams e fê-lo aproximar-se do grupo.
– Que é que o general masca, poderá informar-me?
– Chicle.
– E que é chicle?
O consultado explicou que era a goma duma árvore existente no
México, e que o hábito de mascar semelhante goma era lá antiquíssimo
entre os índios.
Adams pôs-se a refletir. Se os índios do México mascam essa goma e já
até os generais mexicanos fazem o mesmo, então temos aí um negócio. Se
eu conseguir introduzir esse hábito entre os americanos prestarei um grande
serviço à humanidade com a criação dum vício novo (na realidade os vícios
são escassíssimos, muito mais que as virtudes) e ainda por cima poderei
ganhar muito dinheiro.
A ideia tomou vulto em seu cérebro e tempos depois Adams estava no
México, metido entre os descendentes dos velhos astecas, a estudar a
fisiologia e a psicologia da mascação do chicle. E voltou para Nova York
com vários quilos dessa goma para mais estudos, já com um grande plano
na cabeça.
O resultado foi o aparecimento duma novidade nas casas de bombons:
– o chewing gum, ou chiclet, que não passa de pequenas doses de chicle
envoltas em açúcar e saborizadas com essência de frutas.
O público não deu atenção ao novo produto. Não comprou. Adams
insistiu. Obteve que as casas de bombons distribuíssem de graça um
pacotinho de chicle a cada criança que viesse em busca de balas ou doces.
Conseguiu assim viciar as crianças, e estas depois viciaram os adultos.
A consequência foi que dentro de alguns anos a América estava
contaminada pelo vício mexicano e com mais um grande negócio criado.
Formaram-se várias companhias, das quais duas alcançaram grande
desenvolvimento. A Wrigley, uma delas, elevou suas vendas a 40 milhões
de dólares anuais – hoje 800 mil contos.
Numa das vezes em que o Príncipe de Gales esteve na América os
chewingumistas conseguiram que ele aparecesse numa reunião boêmia a
mascar o chiclet. Os graves ingleses, que pautam todos os seus atos pelos
do futuro rei, fizeram caretas e também se puseram a mascar o chewing gum
– e o negócio das companhias vendedoras de chicle açucarado estendeu-se à
Grã-Bretanha.
Quando sobreveio a Grande Guerra, as tropas americanas receberam
toneladas de chiclet – e serviram de veículo para que o hábito penetrasse na
França e outros países envolvidos na luta. De tal arte foi o negócio
conduzido que o vício já está disseminado pelo mundo inteiro.
Agora nos vem notícia dum fato semelhante. Não se trata de novo vício
e sim de novo alimento – ou melhor, de nova gulodice – ou delicatessen,
como dizem os alemães.
Um fazendeiro da Flórida teve a ideia de experimentar o gosto do
lombo da cobra cascavel, muito abundante em sua propriedade. Preparou-o,
comeu e gostou. Imediatamente seu cérebro pôs-se a raciocinar à
americana. Se eu gostei, outros podem gostar; se muita gente gostar, terei
nas mãos um negócio: – reduzir a dólares todas estas cascavéis que me
infestam a fazenda.
Preparou mais lombo de cobra e convidou vários amigos para um jantar
onde haveria uma surpresa. A surpresa foi um petisco novo de linda cor
rósea e gostosíssimo. Que é? Que é?, indagaram os amigos depois do
saboreamento da misteriosa
delicatessen.
– Lombo de cascavel!
Espanto geral. Seria possível que a cascavel fosse um manjar assim tão
fino? Era. E tanto que aqueles amigos só saíram dali com a promessa de
novo jantar com mais cobra.
O fazendeiro esfregou as mãos. Estava feita a experiência. Como ele
próprio gostara, e como seus amigos gostaram, todo o povo americano iria
gostar e consumir lombos de cascavel – se a gulodice aparecesse no
mercado com boa apresentação.
Tempos depois vinha numa revista que alcança milhões de leitores um
anúncio de página, psicologicamente muito benfeito, lançando à curiosidade
gastronômica do país a nova maravilha – lombo de cascavel em lata. Os
termos do anúncio, com a sabedoria com que lá fazem reclames, era de
fazer vir água à boca do leitor.
No dia seguinte afluíram ao escritório do fazendeiro pedidos de lombo
de cascavel em quantidade que o tonteou. Pedidos por telegrama, por carta e
ordens telefônicas de grandes mercearias. O stock já preparado esgotou-se
como por encanto e a caça às pobres cascavéis das redondezas assumiu
proporções impressionantes. Não havia cobra que chegasse. O fazendeiro
teve de dar passos imediatos para a organização dum imenso campo de
cobricultura – e pensou logo em incubadeiras elétricas e outros engenhos
que pudessem intensificar a vinda de cobras ao mundo.
O lombo de cascavel enlatado passou logo a moda elegante. Nas
reuniões chiques tornou-se o suprassumo oferecer aos hóspedes sandwiches
de cascavel – e todo mundo sabe que quando uma moda é lançada de cima
para baixo espalha-se de maneira vertiginosa.
O preço do petisco alcançou logo o do caviar, que é uma das coisas
caras com que os gourmets gratificam o estômago. Mas até isso ajudou a
firmar o negócio. O que é caro seduz muito mais do que o que tem a
desgraça de ser barato. E estão hoje os Estados Unidos com uma nova
indústria alimentar em vias de rápido desenvolvimento.
O homem é um bicho onívoro. Mais onívoro que o homem só o porco,
que de longa data também come cobras.
E por ser onívoro o homem não conseguiu até hoje resolver com
sabedoria o seu problema alimentar com uma solução matemática como a
têm as abelhas, por exemplo. Fabricam elas o mel, no qual coexistem todos
os elementos indispensáveis à nutrição ápica, nem mais, nem menos. Daí a
ideia de Henry Ford – ideia em estudos nos seus laboratórios – de inventar
ou criar o mel dos homens, isto é, um alimento absolutamente perfeito, que
nos liberte do atual caos alimentar – afastando-nos do porco e
aproximando-nos das abelhas.
Para a consecução desse ideal imagina Ford um estudo de laboratório
dos mais complexos, com base numa série imensa de provas in anima
nobile e consequente troca da multiplicidade infinita de alimentos que
temos hoje por um único, perfeitamente estandardizado. O mel humano, em
suma.
Mas o raio do fazendeiro da Flórida, em vez de contribuir para o
trabalho de Henry Ford vem complicá-lo com a adição de mais um prato de
luxo ao menu sem-fim das nossas comedorias. E a aceitação que teve o seu
petisco revela que os homens não mostram sintomas de querer abandonar o
onivorismo – isto é, de se afastarem do porco para se aproximarem das
abelhas...
Primeiro amor

A luta de Sandino contra os americanos entusiasmou muita gente. M.


L. viu o caso dum ângulo sadiamente humorístico.

Nicarágua é a terra dos selos comoventes. Quando nos


sobrevém no colégio a febre filatélica, mal a que nenhum menino escapa
depois do sarampo e da catapora, a República de Nicarágua assume para
nós proporções de seriíssimo vulto. Porque a filatelia nos leva, mui
logicamente, a dividir os povos em duas classes: a dos que têm selos
bonitos e a dos que os têm feios.
Entusiasmamo-nos com as repúblicas da América Central, com os
países de turbante e com certas colônias inglesas e belgas. É fatal o béguin
por Guatemala, Nicarágua, Venezuela, Afeganistão, Pérsia, Jamaica, Ilhas
Salomão, Tasmânia, Congo, Bornéu, Labuan, Gwalior.
Inglaterra, Alemanha, França – os grandes países não nos falam aos
olhos. Selos muito repetidos e de desenhos nada românticos...
Mas Nicarágua, que amor! Seus selos chegam a comover. Existe uma
série de cores vivíssimas, na qual o mesmo desenho se repete: cinco picos
de montanha, postos um atrás do outro como pirâmides decrescentes. O
primeiro pico esconde um sol que nasce – esse imaginoso símbolo que
vemos repetido em quase todo o armorial américo-latino e num dos sabões
das Indústrias Reunidas F. Matarazzo. Sabão ou óleo, não tenho certeza.
No terceiro pico há um pau espetado com um barrete frígio na ponta –
outro imaginoso símbolo (o barrete, não o pau) de que até nós não
escapamos. Vários dos nossos selos e moedas ostentam a Théroigne de
Mirecourt casquée à frígia – o que está muito conforme.
O barrete frígio fica muito bem numa cabeça de mulher bonita. Que é
que não fica bem numa cabeça de mulher bonita? Asas de pombo, colibris
secos, fitas de veludo, palha d’Itália, flores de pano, tudo... exceto ideias,
dirá algum marmanjo despeitado. Mas barrete sem cabeça dentro, posto
como espanta-passarinho num espeque, que quererá dizer?
E o jovem filatelista cisma... Não haverá em Nicarágua cabeças? Estará
o dono do barrete atrás do morro?
Mistério. Cosas de Nicarágua...
Outro selo dessa República que também muito nos fala à imaginação
dos 10 anos é um de 2 centavos, no qual, em moldura de arabescos da
American Bank Note Co., se enquadra uma linda locomotiva,
evidentemente da Baldwin Works Co. Depois dos soldadinhos de chumbo,
o trem de ferro sempre foi o brinquedo que mais seduziu as crianças, de
modo que Nicarágua nos conquista, assim de arrancada, o coração.
Passamos a ver nela a república dos nossos sonhos, toda brinquedos –
trenzinho, pauzinho, morros para trepar e escorregar de costas, como as
montanhas-russas.
Mas os anos sobrevêm frios e desiludentes. Crescemos, mudamos de
fala, a primeira mulher nos faz esquecer a primeira mania e adeus
Nicarágua! Aos 30 anos já essa palavra maia só nos evoca remotíssimo
sonho, embora encantador. E surge-nos uma dúvida:
– Existirá realmente Nicarágua? Existirá fora dos selos? Estará lá ainda
o pauzinho? Não será uma capetagem devida ao gênio comercial de
Gerbruder Senf, a grande casa alemã de selos?
Muito natural essa dúvida. Depois do buço e consequente abandono do
álbum de selos nunca mais ouvimos falar em Nicarágua. Nicarágua não
existe nos telegramas da United Press. Nicarágua não tuge na Liga das
Nações. Nicarágua não estabiliza moeda. E fixamo-nos de vez nesta ideia:
– Nicarágua é aquilo só. Cinco picos perfilados, um espeque, um
barrete sem cabeça dentro e o trenzinho.
Mas eis que de inopino, com assombro geral, Nicarágua explode. Os
picos viram generais e se engalfinham. O trem apita socorro. E o mundo
entrepara, atônito, de olho sarapantado:
– E não é que o raio da Nicarágua existe mesmo?
E gemem os prelos. E vibra o telégrafo e a retórica se abespinha com o
ouriço dos adjetivos, e a meninada filatélica freme de cóleras impúberes:
– Não pode! Não pode!...
A criançada não quer que Tio Sam desembarque lá sob pretexto de
garantir interesses americanos, mas na realidade para ir ajeitando a
construção de um novo canal.
Tio Sam é um cavouqueiro prático. Já dotou o mundo com a obra
ciclópica do canal do Panamá. Aperfeiçoou assim o regime dos transportes.
Suprimiu a rota penosa e onerosíssima pelo cabo Horn – o chifre patagão
com que a América do Sul marra o polo. Encurtou as distâncias, fez o
mundo dar larguíssimo passo à frente.
Tão útil se demonstrou essa obra, filha do ultradinâmico binômio
Roosevelt-Goethals, que já não basta para o tráfego dos navios. Faz-se
mister abrir outro canal, que não pode ser senão pela base dos cinco picos
nicaraguenses.
Tio Sam é expedito. Sabe como se lida com aqueles desordeiros do
istmo. Arma uma facção política contra outra, bombardeia-os com uns
sacos de dólares, improvisa governos e, a sorrir como Gulliver em Liliput,
realiza a coisa dentro de rigorosas fórmulas constitucionais.
Mas o berreiro internacional irrompe. O “não pode” filatélico estruge.
Nuvens de adjetivos tonitruantes pairam como nuvens de mosquitos por
sobre a cabeça da águia construtora.
A águia faz um muxoxo e continua. Realiza a obra que o progresso do
mundo impõe e permite mais tarde que passem pelo canal os gritadores do
“não pode”, proporcionando-lhes a economia de maçada e dinheiro que a
volta pelo cabo Horn exigiria.
Tio Sam é uma criatura alegre. Trabalha divertindo-se. Possui um alto-
falante que atroa os ares em coro com a meninada dos selos: o senador
Borah. Havia outro que também gritava muito, Lodge, mas já estourou. E
cosi va il mondo.
Nosso país é um dos em que mais se colecionam selos. Isso explica a
vivacidade dos nossos protestos sempre que Tio Sam desembarca no istmo,
de picareta ao ombro, para abrir esgoto entre os mares. Apesar da
consequência biológica que somos de um desembarque semelhante (Cabral
desembarcou em Porto Seguro no ano de 1500), os desembarques de Tio
Sam nos irritam singularmente.
– Desaforo! Imperialismo! Vá fazer canal em sua casa! – berramos em
meeting ao pé do resignado José Bonifácio da estátua.
Mas ninguém creia que fazemos isso por ódio aos canais. Apesar de em
matéria de canais só termos aqui o do Mangue, nada em nossa formação
étnica nos arrasta a uma hostilidade ingênita contra a ruptura dos istmos.
Não somos anticanalíferos em absoluto! Admiramos Lesseps, o rasgador de
Suez, e se tivéssemos dinheiro abriríamos um canal ligando o Atlântico a
Mar de Espanha, em Minas.
O que acontece é que temos a filatelia romântica. Os selos de cores
vivas nos comovem de modo incoercível... Jamais protestaremos contra um
desembarque em país de maus selos. Não protestamos contra o bombardeio
de São Paulo porque São Paulo não possuía selos. Não protestaremos contra
o bombardeio ou desembarque em qualquer colônia lusa, porque os selos
lusitanos são horrendos.
Mas ninguém ponha o pé em Guatemala, Venezuela, Bornéu, Gwalior.
E sobretudo ninguém mexa com a Nicarágua. Isso não! Dói-nos. Equivale a
cuspir em folhinha seca de malva, doce recuerdo dum primeiro amor.
Nicarágua é o nosso primeiro amor filatélico...
– Para trás, Tio Sam!
A doutorice

Um dos primeiros artigos de M. L., quando ainda estudante. O quadro


da bacharelice e do afastamento em que os moços se mantinham das
atividades econômicas assusta-o.

Gil Vidal, da sua tribuna do Correio da Manhã, pôs o dedo


na mais grave chaga dourada da nossa vida social: a superabundância de
“diplomados”.
Como tantas e tantas, é mais uma decorrente da escravidão, aquele
horroroso lúpus que, extirpado em sua morfologia externa, deixou no
organismo nacional uma diátese propícia ao vicejar de numerosos males.
Com o tirar ao trabalho a sua nobreza, e o desmerecê-lo como coisa de
escravo e, portanto, degradante, ela deu origem a essa linha divisória, que
ainda se não apagou, entre os que trabalham e os que ou promovem o
trabalho alheio ou dele vivem, aparasitados.
Arredou, assim, o brasileiro, das profissões manuais, da indústria e do
comércio, entregues ao elemento alienígena, e marcou-lhe a giz, como
campo único para o exercício de suas energias e o só compatível com a sua
dignidade, o funcionalismo público, as profissões liberais, a política e o
feitorismo, sob qualquer forma que seja, da massa que lavra a terra. Tudo
mais desprezou, como coisas que degradam ou são “impróprias”. Indústria:
coisa de ingleses; comércio: coisa de português e italiano; trabalho manual:
coisa de negro. E assim a ideia se cristalizou. A permanência embaixo da
sociedade, como um soco formidável, de milhões de máquinas de trabalho
que o “bacalhau” movimentava, permitia tão absurda concepção. Um dia,
porém, foi bruscamente suprimido esse plinto secular, e nossa sociedade,
nascida sobre ele, feita para viver sobre ele, viu-se às súbitas na situação de
um homem a quem decepassem os pés. Uma modificação de mentalidade
correlativa àquela modificação do regime social não era coisa factível com
outra Lei Áurea, e deixamos que o processo lento da evolução natural
corrigisse o desequilíbrio criado.
Esse desequilíbrio tem sido a causa indireta de todos os males morais,
sociais, econômicos e financeiros que nos afligem. Até que aprenda a andar
com o coto da tíbia, quem sempre caminhou pelo amplo, sólido e achatado
pé africano...
Para o estado mental coletivo que se formou e apurou durante o
período anterrepublicano, o “decente”, o “bonito”, o “próprio” a uma
família rica era doutorificar os filhos, para metê-los na política; a uma
família remediada, o alistá-los na coorte do funcionalismo; à gente pobre, o
ensinar-lhes a arte de fazer trabalhar aos pretos. Consequência: abarrotou-se
de doutores a sociedade alta; de estafermos orçamentívoros a média; de
vagabundos indisciplinados a baixa.
Levada pela concorrência excessiva, a política despiu o seu caráter
elevado de arte de bem governar a nação para cair no desapoderado
“avança” atual; e os cursos científicos deixaram empoeirar a ciência a um
canto, transformando-se em árvores de diplomas – que o matriculado a estes
vai, não àquela. E vai aos diplomas como ao sésamo de todas as portas e
coraçõezinhos femininos que possuem dote. Que vai, minto; que ia, porque
a situação já não é a mesma. O país tem sofrido abalos profundos. Houve
mudanças radicais. O negro, fator secular da movimentação agrícola,
empolgou-o a cachaça e a calaçaria; e reduzido ficou a uma quantidade
negativa depois que viu suprimido pela lei da abolição o chicote espevitador
dos seus brios.
A monarquia com os seus 60 anos de lenta estratificação desfez-se em
república – encurtada assim para um dia a evolução que reclamava um
século. Monstruosas anomalias se
seguiram a essa infração das leis naturais: ditaduras, guerra civil, Floriano,
câmbio arrasado, encilhamento, café alto, invasão imigrantista etc. A
ossatura da sociedade, contorcida, estalou nas juntas, muitos órgãos se lhe
deslocaram, outros sofreram lesões profundas, outros foram ganhos de
rápida atrofia. De alto a baixo nada ficou incólume diante daquela série
ininterrupta de tremores de terra.
Figure-se um homem quarentão, pacato e prudentíssimo, que nunca se
meteu em aventuras de qualquer espécie; preguiçozão, amigo da rede e das
chinelas, com umas apólices e uns escravos que lhe dão calma ao sono: o
tipo médio do brasileiro ronceiro. Um dia, depois de 40 anos de sossego e
paz, este homem é agarrado de surpresa em plena rua e sangrado à força: 13
de Maio; dá dois passos, cambaleante, e um grito estridente azoa-lhe o
ouvido: 15 de Novembro; e logo após se vê metido numa roda de pau:
Floriano; sente uma mão revolver-lhe as algibeiras: o “encilhamento”;
percebe um tumulto desconhecido remoinhando-lhe em derredor: o
estrangeiro invasor; olha para a frente: o buraco da crise econômica; volve
os olhos para a direita: o precipício da crise do crédito, da sua moral, das
suas velhas ideias, dos seus velhos hábitos e costumes; levanta-os para o
alto e nas regiões governamentais, onde se habituara a enxergar um velho
bonachão e amigo, topa uma legião de esqualos, políticos voracíssimos.
Sangrando, depredado, sovado, estonteado, o mísero apalerma-se e deixa
rodar água abaixo a sua fazenda. Implora depois socorro, pede ao
onipotente governo que o salve – e sorri; o governo bondosamente lhe
acena com a salvação do Convênio de Taubaté; o mísero chora de prazer e,
como lhe pedem a alma em troca daquela prosperidade entremostrada, ele a
hipoteca prazerosamente. O Convênio desce afim do Olimpo; mas à medida
que desce transforma-se, muda de cor e de jeito, alonga-se deformado; e
quando lhe chega às mãos, ó triste, tem o aspecto de uma “boa corda de
canave de quatro ramais”. O pobre homem sente uma tonteira, uma zoada
nos ouvidos, um obscurecimento na vista e cai em profundo marasmo. Se
não enlouquece é porque tem a sorte de ser já meio bobo de nascença.
Tal o nosso país ante os terremotos sucessivos que de 1888 para cá o
têm derreado.
Não houve tempo para que o estado mental da população
acompanhasse as largas passadas da Revolução que entre nós se substituiu à
Evolução. E ficamos reduzidos a um curioso fenômeno de desequilíbrio
orgânico.
Somos um anacronismo vestido pelo derradeiro figurino. Na
mentalidade: pouco mais de 1888; nos costumes: quase 1909. Continuamos
a abarrotar as academias; o ideal da classe média continua a ser o
funcionalismo; a tal dignidade das classes baixas, tão cômica, continua a
subsistir.
Enquanto isso o estrangeiro toma todas as posições e assedia-nos
economicamente.
O português, que menoscabamos, é o dono do Rio de Janeiro; o
italiano, que tratamos d’alto, monopoliza as indústrias e o comércio de São
Paulo; ingleses e americanos, aos quais criticamos os sapatões de sola
grossa, senhoreiam-nos o alto comércio.
Fortunas enormes amontoam-se-lhes nas mãos, laboriosamente
acumuladas umas, outras conquistadas de pronto por meio de inteligentes
rasgos de audácia.
E nós os nacionais? Nós ficamos com a carrapatosa vaca do Estado e a
legião dos doutores de 20 anos. E o país orgulha-se disso: desse platonismo
científico! Temos doutores em leis, doutores em comércio, doutores em
farmácia, doutores em dentaduras, doutores em engenharias, doutores em
medicina. E academias sobre academias se fundam cá e lá, de Comércio, de
Letras, de Poucas Letras, de Nenhumas Letras, de Costura.
Cada ano que se passa são novos enxames de diplomados que delas
revoam. E como não há demandas, nem doentes, nem cárie, nem coisa
nenhuma que dê ganha-pão suficiente a tal exército, ficam eles de boca
aberta e olhos fixos no Estado, única senda que lhes resta.
E tão parasitado já anda este que lembra boi coberto de carrapatos
sanguessugas. Em redor do Estado inumeráveis carrapatinhos novos
esperam que os velhos caiam no choco da aposentadoria para que por sua
vez eles se acarrapatem.
É triste e cômico o espetáculo que dá ao país essa mocidade – os
pretendentes à colocação e os novos diplomados.
Vagueiam à toa pelas ruas, de anelão no dedo e níqueis cantando nas
algibeiras do colete; comentam a política interna, discorrem sobre a Borelli
e a Nina Sanzi, que conheceram do alto das torrinhas por 15 tostões filados
à mamãe; destroem nomes feitos na arte e na ciência e ditirambizam-se uns
aos outros. E quando passa um inglês rijo, pisando forte, ou um italiano
lépido e ativo, ressumando energia, o doutoriço acotovela o companheiro,
anunciando-lhe ao ouvido: É Gamba, é Carbone, é Matarazzo.
E, enlevados, param, voltam o rosto; ficam a olhar o argentário que
passa, o imigrante de ontem enriquecido pela tenacidade do trabalho
inteligente, o aventureiro audaz que veio e venceu, o estrangeiro de raça
mais apta que soube aproveitar as trilhas que levam à fortuna pelo comércio
e pela indústria desprezados pelos nacionais. E continuam o passeio
nostálgicos, vagamente tristes, beliscando o buço com a mão adamada em
cujo indicador reluz o rubi de vidro de um formidável Montana...
Alice in Wonderland

Inglaterra e Estados Unidos disputam os originais da obra-prima de


Lewis Carroll. M. L. historia e comenta o caso.

No distrito de New Forest, a oitenta milhas de Londres,


na aldeia de Lyndhurst, mora uma velhinha octogenária esquecida do
mundo – Missis Alice Pleasance Hargreaves. A curiosidade jornalística
descobriu ser ela a menina Alice do livro que todas as crianças do mundo
hoje conhecem – Alice in wonderland, ou Alice no país das maravilhas,
como diz a tradução em nossa língua.
Entrevistada, Missis Hargreaves contou a origem da obra-prima.
Chamava-se em menina Alice Liddel, filha do deão do Christ Church
College, doutor Liddel, autor dum léxico muito considerado em todas as
universidades. Um professor de matemática desse colégio, Mister Dodgson,
era grande amigo de seu pai e frequentador da casa. Um dia levou-a, e mais
duas irmãzinhas, a um passeio de bote pelo Tâmisa.
Estavam em pleno verão. Incomodado pelo revérbero do sol na água,
Dodgson acostou o bote e foi refugiar-se com as meninas na única sombra
que havia – atrás dum monte de feno. Imediatamente Alice pediu o que
todas as crianças pedem – uma história.
– Conte uma história bem bonita, Mister Dodgson.
O professor de matemática era desses homens que não se conhecem,
que passam a vida sem se conhecer. Puro gênio literário, criador do mais
alto tipo, dos destinados a gozar renome mundial, nem de longe
entressonhava isso. Intimado a contar uma história, contou-a. Foi
inventando, atento apenas ao interesse que via nos olhos das meninas. Em
certo ponto, já cansado, fez ponto, declarando que o resto ficava para outro
dia.
– Não, não! Conte tudo já – elas insistiram – e ele prosseguiu.
Depois, como o sol descambasse, tornou ao bote, e mesmo lá teve de
continuar a história. “Às vezes Mister Dodgson fingia cair de sono, mas nós
o sacudíamos para que não parasse”, recordou Missis Hargreaves ao
jornalista que a entrevistava.
Nasceu assim Alice in Wonderland.
No fim do ano, pelo Natal, Dodgson deu de presente à sua amiguinha
toda a história escrita de seu próprio punho, num volume de 92 páginas em
caprichada caligrafia e com ingênuos desenhos de sua lavra – desenhos que
mais tarde serviram de base para as clássicas ilustrações de John Tenniel.
Na última página colou um retratinho de Alice aos 10 anos, e na primeira
escreveu: A Christmas gift to a dear child in memory of a Summer day –
Um presente de Natal para uma querida menina em memória dum dia de
verão.
Os anos passaram-se, como passam as águas do Tâmisa.
Um dia a obra foi publicada e teve aceitação imensa. Julgaram-na os
críticos uma obra-prima, e as crianças inglesas por ela se apaixonaram com
o mesmo ardor das três meninas que a ouviram ao nascedouro atrás do
monte de feno. Com a intuição misteriosa do gênio, Dodgson – já então
transformado em Lewis Carroll – realizara o milagre de fixar com palavras
um movimentadíssimo sonho de criança. Um sonho com a rigorosa lógica
dos sonhos, que é um ilogismo incompreensível.
Do mundo inglês emigrou o livro para os demais mundos étnicos deste
nosso mundinho terreal. Foi passado para todas as línguas, inclusive a que
falamos no Brasil. E acaba agora de entrar para o cinema num maravilhoso
filme da Paramount. Charlote Henry, estrelinha de 10 anos, com rara
felicidade escolhida num concurso de sete mil candidatas, faz com
incomparável naturalidade e encanto o papel de Alice.
Mas a Alice verdadeira lá seguiu o seu destino pela vida em fora.
Casou-se. Passou a chamar-se Missis Alice Hargreaves. Teve dois filhos,
que em 1915 foram devorados pelo Moloch da guerra. No cemitério de
Lyndhurst duas lápides atraem a atenção dos visitantes: Captain A. K.
Hargreaves, D. S. O., Rifle Brigade e Captain L. R. Hargreaves, M. C.,
Irish Guard. São os filhos de Alice.
Perdida a mocidade, perdidos o marido e os filhos, a velhinha que em
criança lidara em sonhos com o Coelho Branco, a Tartaruga Falsa,
Twidledum e Twidledee, a Lagarta Malcriada e tantos outros seres do
Mundo das Maravilhas, passou a viver de saudosas recordações.
Um dia o seu velho solar em estilo georgiano amanheceu com letreiros:
“Mansão histórica: aluga-se com mobília”.
Mas Missis Hargreaves não se mostrava aos pretendentes.
– Ela já não recebe visitas – explicava o mordomo. – Está muito
velhinha e doente, já no fim.
Depois do cortejo de desgraças, sobreviera a necessidade. Missis
Hargreaves vira-se forçada a vender preciosas relíquias do bom tempo – e
entre elas o manuscrito de Dodgson, que conservara consigo durante 65
anos.
A notícia de que o manuscrito de Alice in Wonderland estava no giro
agitou a roda internacional dos negociantes de preciosidades, e mais ainda
quando se soube que ia ser posto em leilão. Trocaram-se telegramas entre
Londres e a América. Fizeram-se cálculos. Os mais entendidos prejulgaram
que os lances poderiam subir a 25 mil dólares. Soube-se que o Museu
Britânico estava interessado, o que significava um duelo entre dois países –
Inglaterra e Estados Unidos. Os dois colossos iriam disputar a posse do
presentinho de Natal que o modesto professor do Christ Church College
dera à filha do deão.
Chegou o dia. A Casa Sotheby, em plena Bond Street, no coração de
Londres, começa a encher-se. Mais de trezentos curiosos aglomeram-se na
sala para assistir ao duelo entre o dólar e a libra. De Filadélfia tinha vindo
expressamente o doutor Rosenbach, da Rosenbach Company, disposto a
demonstrar ao inglês que a América é a América. Outro negociante de Nova
York, Gabriel Wells, mostrava grande empenho pelo manuscrito e
telegrafara ao seu agente em Londres dando ordem para que lançasse até 15
mil e 200 libras.
Vai começar o leilão. O doutor Rosenbach toma assento à direita do
leiloeiro. Vinha depois Mister Dring, da Quaritch, célebre firma londrina no
negócio de raridades e naquele momento representando o Museu Britânico.
Depois vinha Mister Maggs, agente de Gabriel Wells.
Lá no fundo da sala, escondida de todos, uma velhinha olhava para
aquilo filosoficamente. Missis Hargreaves viera de Lyndhurst especialmente
para assistir à luta pela posse do manuscrito que estivera 65 anos numa
gaveta da sua escrivaninha. Se ela soubesse... Se tivesse adivinhado...
– Lote número 319! – anuncia afinal o leiloeiro.
Um sussurro percorre a assistência. Era o manuscrito de Alice in
Wonderland. Faz-se o silêncio – o silêncio dos grandes momentos.
– Cinco mil! – murmura um pretendente. É o primeiro lance.
Os assistentes entreolham-se – 5 mil libras, hein?
– Seis mil! – lança outro. E os lances se sucedem precipitados – 7 mil,
8 mil, 9 mil, 10 mil – a marcha ascensional é de mil em mil libras.
O lance de 10 mil libras, ou seja, 50 mil dólares, trouxe um
afrouxamento na intrepidez dos pretendentes. Reconcentravam-se. Faziam
cálculos mentais. Pesavam o negócio.
– Dez mil e 100 libras! – rompeu o agente do Museu Britânico.
– Mais 100! – gritou Mister Maggs.
– Mais 100! – murmurou o doutor Rosenbach.
Houve uma parada. O leiloeiro correu os olhos pelos candidatos, com o
martelo erguido.
– Mais 100 – lançou o Museu Britânico – e a luta prosseguiu.
Em certa altura o doutor Rosenbach murmurou firme:
– Quinze mil e quatrocentas libras! – e esperou.
Os demais pretendentes abandonaram a luta. O martelo do leiloeiro
sentiu que era o fim e bateu a pancada que põe termo a tudo.
Ganhara a América. O poder aquisitivo da antiga colônia inglesa
afirmava-se mais uma vez naquele duelo com a orgulhosa metrópole. Por
exatamente 75.259 dólares o manuscrito de Lewis Carroll ia mudar de
continente. Foi o preço mais alto ainda pago por um manuscrito. Agredido
pelos repórteres, o doutor Rosenbach, chefe da Rosenbach Company,
declarou que antes daquele o manuscrito pago por mais alto preço fora um
original de Shakespeare – 75 mil dólares. Outros livros hão alcançado mais
– mas não manuscritos. Sua companhia, por exemplo, pagara 106 mil
dólares por um exemplar da Bíblia de Gutenberg, e J. P. Morgan dera 200
mil por um livro de horas com iluminuras do século XV. Mas no ramo
manuscrito Lewis Carroll passava para o primeiro lugar.
A reunião dissolveu-se. Os repórteres correram a lançar ao mundo a
notícia do notável prélio – Missis Hargreaves, pensativa, foi para a estação
tomar o trem de Lyndhurst...
O segredo de bem escrever

M. L. não filosofa aqui com ideias suas, apenas expõe as de uma


escritora americana a propósito do assunto.

Há tempos recebi carta dum rapaz da Bahia,


perguntando qual era o “jeito de escrever bem”. A resposta só poderia ser
que se eu soubesse esse jeito muito provavelmente o guardaria para mim,
num natural impulso de egoísmo – a não ser que em troca do segredo ele
me mandasse uns cocos. Outra carta, doutro rapaz de não sei onde, conta
que perdeu a inspiração poética e pede remédio.
Esta última missiva fez-me lembrar uma escritora americana morta
afogada em Coney Island, em 1928 – Marguerite Wilkinson, poetisa e
crítica de arte. Também ela perdera a inspiração após um primeiro livro de
valor, e estudando-se a fundo concluiu que o mal lhe vinha da depressão da
coragem física. Para reagir ou curar-se adotou um feroz regime fortificante
da coragem. Ia nadar em pleno oceano nos dias mais rigorosos do inverno; e
nas outras estações voava, sem esquecer de operar com o seu avião os mais
perigosos volteios. Criar perigos e arrostá-los era a sua fórmula. E desse
modo de fato restaurou a coragem física e viu renascer a inspiração. Prova
disso foi a “Oração dos aviadores” que logo depois escreveu e ficou o
padre-nosso dos aviadores da sua terra. Não contente, porém, Miss
Wilkinson exagerou a dose dos fortificantes – excedeu-se em perigos e
morreu afogada.
A propósito de “aprender a escrever” lembro-me duns conselhos que
outra escritora americana dá às suas colegas – e talvez sirvam ao meu
baiano. Diz Kathleen Norris, afamada autora, que não há escrever sem
primeiro viver. Escrever é contar a vida, e quem não vive não pode escrever.
Não há maiores livros, diz ela, do que os que refletem a vida de verdade, a
vida como a vida é – e cita Le Pere Goriot, Adam Bede, as angustiantes
histórias dos mujiques russos, os romances em que Dickens põe em cena
vulgaríssimos devedores que vão para a cadeia e os contos de Maupassant
onde “vivem” os mais emperrados campônios franceses. O próprio
Shakespeare, diz ela ainda, para dar vida aos inúmeros reis e rainhas das
suas peças teve de humanizá-los ao nível da gente comuníssima existente
em redor dele – e só desse modo os tornou sensíveis a todos nós. Perto dos
reis shakespearianos, os reis e rainhas das tragédias clássicas – das de
Racine, por exemplo – não passam de bonecos de engonço.
Missis Kathleen escreve para moças que desejam seguir a profissão
literária, uma profissão que realmente existe na América como existe aqui a
de professora ou datilógrafa; e faz ver que não bastam dons naturais. Sem
trabalho rijo ninguém pode sair vitorioso nesta ou naquela profissão. O caso
de escrever um trololó e cair em êxtase diante da obra, e nada mais fazer
antes de “colocar” a maravilha, não conduz a nada.
E dá uma receita prática. Manda que a candidata às letras sente-se e
comece. Comece pensando no que pretende escrever. Um conto? Muito
bem. Mas... de que jeito abri-lo? Vá aos clássicos – Kipling, Cobb ou
Tarkington; folheie-os, veja como começam. Mas não copie – receba
sugestões, certa de que a primeira palavra dum conto, bem como a última,
são importantíssimas e decisivas.
Depois olhe para a folhinha. Suponha que está no dia 2 de maio de
1928 e admita que se a 2 de maio de 1930 estiver gozando o primeiro
sucessozinho literário, será isso grandemente promissor. Escreva um pouco
todos os dias – umas linhas apenas durante esses 730 dias que vão de um 2
de maio a outro. Setecentas e trinta horas em que o cérebro estará
moldando, afeiçoando, escolhendo, conformando, em suma, os tipos e o
ambiente do conto.
Os resultados serão maravilhosos. A diferença entre as primeiras horas,
nas quais a candidata derrubará a testa sobre a mesa, envergonhada do ousio
de haver posto ombros à empresa, e as últimas, em que o cérebro já
trabalhará como máquina bem ajustada e azeitada, se mostrará enorme. Terá
nascido na candidata, como da semente nasce a planta, a workmanlike
consciousness.
Essa hora de trabalho diário, embora aparentemente a mais inútil do
dia, acabará tornando-se a grande hora do dia – a hora sempre esperada com
ânsia. Porque será a hora da autocriação – e momento chegará em que a
candidata sentirá dentro de si, em todo o vigor da sua plenitude, a força
donde promanam as criações literárias. E um dos produtos dessa força – o
vigésimo conto escrito, ou talvez o quadragésimo – já não surgirá aleijado
como os anteriores e saberá manter-se de pé sobre as próprias pernas, em
perfeito equilíbrio, como um ser vivo.
Enquanto isso a candidata deve ir experimentando colocar a sua
produção nos jornais e magazines de menor vulto. Pouco valerão para eles,
mas menos ainda para a gaveta em que ficariam encerrados. O filão donde
saíram está apenas escavado na superfície, e quanto mais a mineração
avance, tanto mais puro virá o minério.
O “instinto das palavras”, próprio da candidata, e o instinto dos
entrechos deverão ser o pivô da sua personalidade literária. Mas que o
aperfeiçoe com leituras, muita reflexão e trabalho sistemático. Ambiente
não importa. A vida que a candidata vive não importa. Uma das mais
aclamadas novelistas de hoje começou a vida 20 anos atrás como esposa
dum fazendeirinho de trigo do Oeste, tendo de cozinhar para o marido,
cuidar de três filhotes e aguentar com a mais trabalheira da casa. Outra, que
está aparecendo com muito destaque, é ainda professora duma escola de
Chicago, com dezoito anos de classes; outra, que fez impressionante estreia
no conto, é enfermeira dum hospital de tuberculosos na Califórnia.
Isto mostra que não há necessidade de um certo ambiente para que
surjam escritoras; todos os ambientes servem – a casa da fazenda, com a sua
trabalheira rústica; a escola, com a inferneira dos meninos; o hospital, com
toda a miséria dos doentes.
Estes conselhos práticos Kathleen Norris os dá às suas colegas de sexo,
porque na América a profissão literária está por 80% monopolizada pelas
mulheres. Inúmeros cursos ensinam como escrever coisas vendáveis. Há
sempre a preocupação da vendabilidade do produto literário. Isso de
escrever por esporte, sem fito de lucro, é absolutamente incompreensível
para o americano – e mais ainda para a americana, bípede que se por fora
ainda usa saias, por dentro é toda calças masculiníssimas.
Em país como o nosso não pode haver profissão literária por falta de
desenvolvimento econômico. Fazem literatura uns tantos pobres-diabos,
malvistos da sociedade porque os produtos literários não dão dinheiro – e a
sociedade de todos os países despreza quem não possui ou não ganha
bastante dinheiro. O respeito que na terra de Tio Sam gozam os escritores
procede da renda que eles tiram dos miolos.
Uma Miss Eleanor Porter, por exemplo, escreve a novela duma
encantadora menina simplória, chamada Pollyanna, e vende novecentos mil
exemplares a 2 dólares. O sucesso fá-la espichar a história de Pollyanna por
mais cinco romances – e até o ano passado havia ela vendido 1.500.000
exemplares, no valor de 3 milhões de dólares, dos quais lhe couberam, de
direitos de autora, 15%, ou seja, 450 mil dólares, o que em nossa moeda
representa, no câmbio negro, 4.500 contos. Está claro que o vendeiro da
esquina, que é um dos baluartes da sociedade, não se ri dessa “literata”, pois
que com as simples ingenuidades da menina Pollyanna a diaba ganha mais
que ele a vender ovos e presunto o ano inteiro.
Entre nós não é assim. Que respeito o Manoel da Venda, lá na rua
Cosme Velho, onde morava Machado de Assis, poderia ter por aquele seu
vizinho – “O raio do mulato de óculos que vive a escrevinhar” – se tudo
quanto Machado de Assis obteve pela propriedade da sua obra literária –
dezesseis livros – foram os 8 contos que recebeu do editor Garnier? Oito
contos líquidos ganha o Manoel por ano só no que furta no peso da
manteiga e da banha. E talvez que já tivesse ganho 8 contos só no que
furtou no peso da manteiga que vendeu ao pobre Machado de Assis – se é
que o romancista máximo da nossa língua pôde em vida dar-se ao luxo de
comer pão com manteiga...
Fim do esoterismo científico

Há hoje uma tendência para abrir ao público as cortinas da


ciência. A tendência de sempre foi cerrá-las. De epistemologia entendesse o
epistemólogo. Ao público só deviam chegar as conclusões, sob forma de
decretos da mais alta infalibilidade. O porquê, a justificação dos decretos,
não era da conta dos leigos.
Os recintos científicos se fechavam com as cercas de arame farpado da
terminologia técnica – e lá dentro ficavam os sábios falando um volapuque
só deles entendido. Mas, afinal, cansados da clausura, eles mesmos abriram
as portas – e começou o movimento de humanização da ciência. Will
Durant chegou a realizar o impossível: traduzir em língua de toda gente a
filosofia, essa hispidez que aterrorizava o mundo. Resultado: tornou
inteligível até o próprio rei da ininteligibilidade – Immanuel Kant.
Não escaparam ao movimento as ciências biológicas. Alexis Carrel, o
grande fisiologista que opera milagres por conta do Instituto Rockefeller,
anda com o seu Man the unknown traduzido até em português – e em todas
as livrarias. Nessa obra nos mostra que o que o homem sabe sobre si mesmo
é pouco mais que zero, diante do que resta a saber. E a humanidade abriu a
boca, porque vivera até agora na crença de que a fisiologia e a psicologia já
sabiam o homem de A a Z. Carrel prova que estamos ainda no A.
Li, como toda gente, a obra de Carrel, com maior atenção para o
capítulo sobre as “Funções adaptativas”, porque é ali que está o segredo das
doenças, coisa que muito nos interessa. Sim, as doenças são os salteadores
da estrada da vida. Ocultas nas margens, espreitam os passantes para cair-
lhes em cima a golpes de micróbios e vírus. Se esses pequeninos agentes
conseguem atravessar as fronteiras do nosso organismo e invadir os tecidos,
a doença expulsa de lá a saúde e instala-se como em casa própria.
A ação da doença invasora do nosso organismo depende do
comportamento dos tecidos que o compõem. Esses tecidos (tudo é tecido,
até o sangue) reagem ou adaptam-se – ou deixam que o organismo pereça,
se a reação ou a adaptação se faz em grau insuficiente. Temos pois dois
modos de nos comportarmos diante do ataque dos invasores. Um é impedir-
lhes a entrada; outro, é ir reparando os estragos que eles fazem depois de
entrados e instalados. Sistema da formiga-ruiva, que reconstrói o seu
formigueiro à proporção que um pé malvado os vai desmanchando.
A doença é isso, diz Carrel; é o desenvolvimento desses dois processos.
Quando, por exemplo, sobrevém febre, temos o primeiro caso; a febre é o
calor da batalha dos nossos soldadinhos interiores contra o inimigo invasor.
E temos o segundo caso quando os soldadinhos são derrotados e o inimigo
instala-se, ficando dentro de nós a fazer requisições. A vida do organismo
passa a ser um penoso esforço de formiga para constantemente refazer ou
restaurar o que as requisições da doença desfalcam – e a coisa segue até a
vitória final do organismo ou do invasor.
Logo, o bom é não permitirmos que o inimigo entre; e o mau é deixá-lo
instalar-se e forçar os tecidos ao trabalho da adaptação.
Temos pois no organismo uma organização de defesa. Quando a
organização está perfeita, o inimigo não entra; mas se se revela inadequada,
ai de nós! Cada organismo possui o seu exército interno, de tremenda
eficiência quando está em forma.
Mas em que parte do corpo está localizada a defesa – onde são os
quartéis das forças armadas? No sangue, esse líquido vital ainda tão
desconhecido do homem. O sangue é um dos grandes mistérios da natureza.
Há nele mundos para os quais ainda não foi achado o microscópio e o
telescópio.
Metchnikoff percebeu alguma coisa: que os leucócitos, os glóbulos
brancos do sangue, constituem a “polícia especial” que ataca e devora as
bactérias invasoras. Outros sábios estão percebendo mais coisas. Já sabem
que os glóbulos vermelhos não são células vivas e sim saquinhos de
carregar oxigênio. Em giro perpétuo na corrente sanguínea, eles enchem-se
de oxigênio nos pulmões e levam a todas as células esse elemento, do qual
são gulosíssimas. Meros carregadores e distribuidores de oxigênio, como os
nossos leiteiros são distribuidores de leite.
Que maravilha o sangue! Assim que uma colônia de micróbios ataca
um ponto do organismo, o sangue manda para lá um exército de leucócitos
com ordem de envolver e expulsar o inimigo. Expulsar devorando-o, isso é
que é o interessante. Se, por outro lado, cortamos o dedo, o sangue acode
com um material de socorro, um coagulante com o qual obtura aquela
portinha aberta e acaba tapando-a com o remendo de uma cicatriz.
A medicina, a velha arte de curar, era uma cega. Vinha tateando desde
os tempos mais remotos, presa a uma técnica única: enfiar dentro do
organismo, por todas as vias possíveis, quanta coisa há sobre a terra – até o
chamado “jasmim-de-cachorro”. O seu objetivo sempre foi curar, mas o
certo é que talvez matou dez vezes mais do que curou. Em regra o pobre
organismo tinha de lutar com a doença e mais o remédio.
Um dia a fisiologia ensinou à medicina uma grande coisa: que o que
cura é a própria reação defensiva do organismo – e a partir desse momento
a cegueira da velha matrona começou a melhorar. Compreendeu que só
podia fazer uma coisa: não atrapalhar o processo curativo natural, e em
certos casos também auxiliá-lo cá de fora. Porque em matéria de cura o que
se dá é a autocura do próprio organismo.
E sobreveio a pergunta: se pudéssemos reforçar a defesa natural dos
tecidos? Os investigadores de gênio entraram por aí – e nisso está o grande
futuro da medicina.
Pearl Harbor

7 de dezembro, 1941

Ontem à noite aparece a Marta por aqui com a notícia do


rompimento da guerra entre o Japão e os Estados Unidos. “O rádio está
falando. O Japão atacou o Havaí. A Alemanha e a Itália também declararam
guerra. Vou voltar para ouvir o resto” – e saiu.
Levei um choque no coração. Senti-me no ar, com uma dor de
pressentimentos. Para consolo pus os óculos e fui reler um telegrama de
dois meses atrás, de Londres, que recortei e preguei na parede. Aquilo me
aliviou. Mas a impressão do choque continuou a fazer mal à minha cabeça.
Por quê? A incerteza. Os Estados Unidos são tudo quanto nos resta; e vê-los
agora ameaçados pelo turbilhão das forças loucas da demência totalitária
me deu calafrios no plexo. Por mais que creia na força desse país e em sua
vitória final, tenho medo. É a dúvida da fé. É o medo da fé. É o desespero
da fé. Tenho a certeza da vitória final, quando raciocino e meço as reservas
dos dois grupos – mas a sensação de peso no sentimento continua.
Pensei naquilo, na cama (eram nove horas) por algum tempo. Havaí,
aquele paraíso terreal, bombardeado, atacado, estraçalhado. Aquela
felicidade de saiote de palha e grinalda de flores ao pescoço, atormentada,
despedaçada pela infinita brutalidade cega dos estilhaços que ferem ao
acaso, e tanto furam os olhos duma criança como derrubam uma biblioteca.
E se os amarelos atacaram, terá sido de surpresa, com todas as vantagens da
surpresa. O americano não tem na alma a infâmia totalitária, feita de
traição, de assalto longamente estudado e sempre desfechado com
tremendas vantagens desarticuladoras. Até que os americanos se preparem e
neutralizem os ganhos do ímpeto atacante...

11 horas

A depressão passou. Saí em busca de notícias. De caminho para pegar


o ônibus cruzei-me com um sujeito que vinha com o Diário. Pude apenas
entrever os enormes títulos da primeira página. Que diriam eles? Pus-me a
imaginar títulos sensacionais. O Japão declara guerra aos Estados Unidos!
Honolulu destruída! Cento e cinquenta mil mortos. Passei por três negras,
essas criaturas tão baixas, produtos da velha escravidão. Vi um molecote de
dez anos, descalço, brincando. Um carrinho de criança com uma de meses
puxada por uma de sete anos. Perto, a ama.
Parei no ponto de espera, triste, mãos para trás, olhos no chão. No
ônibus, tudo normal. Como se ninguém se desse conta do desastre imenso.
Ninguém lia jornal, pois os jornais só aparecem nos carros que voltam da
cidade. Só na Praça da Sé percebi ser hoje feriado. Estado Novo... Estaria a
Editora fechada? Nos momentos graves vou à Editora – essa filha que se
casou com o Otales e está tão rica.
Compro o Diário da Noite. Leio-o ansiosamente. Dois couraçados
americanos a pique, o North Caroline e o Oklahoma. Respirei quando vi
que o North era de 1923, construção já antiquada. Tive medo fosse um dos
lançados este ano. O Oklahoma me parece moderno, mas tive medo de o
verificar. Antes a dúvida.
Fui à UJB[8]1. Estava o Geraldo e o Mario Benini. Telefonei para a
Editora. Fechada. Estado Novo... Li todo o jornal e a depressão foi
passando. Nada dos 150 mil mortos, nem de declaração de guerra da
Alemanha e da Itália. Melhor assim. E li o telegrama abaixo, que recortei.
[9]1 2 Quero guardar essas palavras de Hull, naquele momento o
representante da dignidade humana. Nobre indignação! Palavras que só um
diplomata americano tem coragem de dizer. O Nomura e o Kuruzu saíram
em silêncio, como cachorros batidos.
Mas que pena a civilização americana impeça reação à moda antiga!
Ali é que cabia o Tar & Feather. Deviam ser pixados e “empenados” e
soltos na rua para que o povo os linchasse. O japonês é a saúva humana, só
com formicida. Ah, que vontade ser eu o povo americano para tratá-los a
formicida!...
Mas os telegramas de Washington me animaram. Mobilização, reação,
indignação – ódio. Uma guerra não se faz sem a tremenda força do ódio – e
as grotescas saúvas nipônicas o que conseguiram com a traição foi acogular
mais ainda os reservatórios de ódio que hão de acabar destruindo esta porca,
suja humanidade. Dá nojo o Homo. Mas há entre eles elementos dignos. O
inglês salva-se. Salva-se o americano. Mas na luta de traição que Hitler
desencadeou, as vitórias cabem sempre ao mais sem escrúpulos, ao mais
torpe. Timeo... Se o reverso se houvesse dado, os japoneses teriam
empalado vivos o Nomura e Kuruzu yankees que lá estivessem a
engambelar Tojo enquanto a aviação americana despejasse o ataque a
Tóquio.
O mal das democracias é serem mais civilizadas que os totalitários.
Não conseguem ser totalitariamente infames – e pois jogam com menos
armas. Mas a luta há de asselvajá-las e fazê-las recorrer também a essas
armas – à infâmia, à traição, aos gases contra inocentes, a todos os horrores
que temos tido e que temos de esperar dos fascismos e nazismos e
niponismos.
Quando Carlos XII derrotava os exércitos de Pedro, o Grande, esse tzar
ria-se. “O rei da Suécia é um grande militar que está ensinando meus
soldados a combater. Tantas serão as sovas, que meus russos acabarão
aprendendo e ganharemos a guerra.” E assim foi. À força de derrotas o
totalitário está instruindo as forças da Democracia – e elas acabarão
aprendendo e ganhando a guerra.
Por que sarei da depressão? Por força do ódio. Curioso.
São as forças polares do homem – Ódio e Amor. A força que cria e a
que destrói. Odiemo-nos uns aos outros. É preciso que nos destruamos.
Cristo estava errado. É preciso que acabe sobre a Terra o domínio do
macaco glabro. Quando houver a coragem de ser publicada a verdadeira, a
sincera história do homem na Terra, o homem baixará a cabeça vencido pela
vergonha. Damiens. Há anos e anos li a narração do suplício de Damiens
ordenado pelo pustulento Luís XV, o Bien Aimé. Nunca mais os gritos
daquele pobre louco me saíram da cabeça. Foi o maior suplício jamais
inflingido a uma dolorosa carne humana. E enquanto o horror se processava
na praça pública, assistido e gozado pela multidão, o rei, levissimamente
ferido, jogava uma partida de gamão. Numa janela alugada por alto preço
Casanova e as Lambertinis, sobrinhas do papa, assistiam à tortura. Os gritos
lancinantes do mártir excitaram a Lambertini mãe e fizeram que Casanova
perpetrasse o seu inconcebível (para os cavalos, para as feras, para o tigre,
não para o homem) feito de amor.
O homem me repugna. Começo a ter medo desse monstro. Olho com
pavor para cada cara que vejo na rua. São monstros de estupidez e
crueldade. Quero morrer. Quero ver-me em outro mundo, ou em outra
condição. Já vivi muito neste circo romano e não suporto mais.
Vem-me à ideia Jesus. Jesus foi bom. Jesus foi a coisa mais alta, e
acabou no alto duma cruz. Quem sofreria mais, ele ou Damiens? Mas que
adiantou a bondade de Jesus? Praticam-na só os fracos. O homem é o eterno
vilão. Deem-lhe a vara e Hitler se revela. E os Hitlers recebem a veneração
íntima, a admiração absoluta, até dos que se têm como bons.
Chega de Terra. Venham os intermúndios. Morrer... Gaseificar-se...
Tudo escuro, escuro – e tão doloroso...
A informação dos jornais é deficientíssima, porque sempre
tendenciosa. Não sabemos a verdadeira realidade europeia. A Rússia ainda
resiste. Timochenko é o herói do dia – mas a marcha contra Moscou, apesar
do inverno, prossegue inexorável. O rolo esmagador esmaga. O que Hitler
lança contra a Rússia é toda a massa infinita do armamento europeu – todas
as armas da Alemanha, todas as da França, todas as que a Inglaterra deixou
na retirada, todas as da Polônia, da Tcheco, da Bélgica, Holanda, Yugo,
Romênia; Finlândia... E isso dirigido por um cérebro horrendamente
especializado em destruir e por essa crudelíssima alma nazista. A aritmética
diz que a Rússia não pode vencer mas a esperança lá no fundo do nosso imo
não morre.
E se tudo for perdido, se a Rússia, o inglês e os americanos caírem,
ainda nos resta uma coisa, uma solução – a morte. O suicídio. Ah, só a
morte então nos libertará da brutalidade alemã.
Acendo a lâmpada. Pego um livro. Verissimo, seu romance dos três
meses na América. Encanto-me com sua maneira e estilo, e serenidade de
pensamento, e inventiva, e tantas qualidades daquele menino moreno. Sim,
penso comigo; é valor dos mais altos hoje. Ele diz aqui coisas que eu queria
ter dito. Também tenho uma AMÉRICA. Ponho-me a pensar no meu livro
sobre a América e comparo. Vou escrever ao Verissimo agradecendo a
remessa e dizendo coisas. E ponho-me a pensar no que lhe direi. E vou
lendo. Li cinquenta páginas, sempre deleitado e concordando.
Estou cansado e com algum sono. Purezinha suspira e geme. Cada vez
que o Edgard, tão mal, lá em seu quarto, tosse, ela arranca gemidos da alma.
Que horror ser mãe! O pai não sofre, comparado com a mãe. O pai, como
homem, tem o coração na cabeça. Em vez de sentir, pensa, raciocina,
filosofa. Adapta-se. A mulher, a mãe, só sabe sentir. E Purezinha geme. É
toda ela uma dor constante, sem tréguas, de supliciado medieval num potro
da Inquisição.
Durmo. Sonho. Acordo. Procuro lembrar-me do sonho mas só consigo
farrapos. Desisto – e gosto tanto de conhecer meus sonhos – e os dos
outros... Madrugada. Passa o leiteiro e deixa o litro diário. Quatro horas,
portanto. É o seu horário. “Que saúde!”, digo a Purezinha acordada. “Que
diferença do Edgard...”
Acendo a luz e retomo o Verissimo. Leio o diálogo final do autor com o
leitor. Tenho de escrever-lhe. Verissimo merece todos os aplausos. É
honesto.
Levanto-me às seis. Sento-me à máquina e retomo a tradução do
Engines of democracy, que comecei no dia 1º. Vinte páginas por dia. É
puxado. Mas eu traduzo como o bêbedo bebe: para esquecer. Burlingame é
um autor difícil. Embrulha o pensamento, como se seu objetivo fosse evitar
a clareza. Tenho de ir tirando aquelas faixas e pondo nuas as ideias.
Café. Não há pão fresco. Segunda-feira. O Estado Novo com suas
reformas...
Volto à máquina. Retomo o capítulo “Central”, sobre o telefone na
América. Que estilo, meu Deus! Que homem difícil! Que caça arisca este
Burlingame! Só tenho três cigarros no maço. Pouco para quem largou de
fumar...
Vou indo, vou indo.
Purezinha entra no quarto com uma notícia: “150 mil americanos
mortos”. Paro. Não posso continuar. Penso no Havaí e digo para consolo:
“Pobre gente. Não serão americanos esses mortos, mas havaianos – aquela
gente feliz...”.
Impossível continuar na tradução. Tenho de sair e ver os jornais. Mas
hoje, segunda-feira, não há jornais da manhã. O Estado Novo...
E o programa de vinte páginas por dia? Paciência. O mundo está nos
stakes e eu também. Sou parte do mundo. Por quem os sinos dobram? Por
mim também. Fui morto nalguma coisa com a morte daqueles 150 mil.
Uma ideia. Lançar daqui por diante minhas sensações no papel. Tenho
a impressão de que entrei em nova fase da minha vida. A fase do DRAMA
– o começo do fim. Edgard tão mal, coitadinho. Purezinha naquela ânsia de
desespero de mãe. Pearl Harbor massacrado. São horrendos esses ataques
totalitários de surpresa, longamente estudados enquanto os diplomatas
mentem e dão “dopes” aos ingênuos democráticos. Aquele Kuruzu... Vi-o
num newsreel. Cara cínica. Ah, se os americanos o pegassem e linchassem!
Foi lá para enganar, ganhar tempo, possibilizar o ataque. Morte, morte,
bendita sejas. Não tenho mais gosto em viver. Guilherme acertou, morrendo
aos 25 anos. Edgard acertará, morrendo já. Viva a morte! É linda. Mister
Ceifas. Não me esqueço da elegância daquela morte americana, nas
HORAS ROUBADAS.
Creio na imortalidade do átomo e de tudo. Lavoisier está certo.
Nascimento e morte, começo e fim: ilusões da nossa relatividade. Tudo é,
sempre foi e sempre será. Apenas mudamos de condição. O Eterno Retorno
de Nietzsche. A Roda da Vida do lama vermelho do Tibete. A
metempsicose do hindu. Lavoisier e Buda. O que reconhece a eterna volta
das coisas e o que quer o fim. Madame Curie desferiu um golpe na ideia de
Lavoisier. O rádio se esvai. Logo, tudo se perde. Que dirá a verdade de
amanhã?
Que importa? Antes esvairmos no nirvana do que assistirmos ao
desmoronamento do mundo. Galeão Coutinho teve uma frase profunda no
que escreveu hoje no inquérito do Edgard Cavalheiro. O aprendiz do
Mágico da FANTASIA aprendeu com o mestre os grandes segredos e
depois se atormentou, não sabendo como deter as forças liberadas pelo
chapéu. O chapéu da humanidade é a ciência aplicada – as invenções.
Ampliaram-se desmesuradamente. Precipitaram-se. O homem pôs na
cabeça o chapéu do mágico Ciência e a tempestade se desencadeou – veio a
inundação – e ele não sabe a receita para deter o Robot... A Democracia
boia no mar de ruínas e sangue e percorre aflita o livro da ciência, a ver se
encontra a receita para salvar-se.
Vou começar a pôr aqui as minhas impressões diárias. Quem sou eu?
Kim, Kim, Kim. Quem é Kim? Eu sou Kim. Quem sou eu? Uma árvore da
floresta. Menos: uma folha. O vendaval tudo devasta. Vou ser apisoado,
arrancado e jogado. E vão comigo as minhas folhas companheiras –
Purezinha, o coitadinho do Edgard. Fica o Rodrigo, nos seus 3 anos. Linda
cabeça tem ele. Mas fraco. A fraqueza da família. Fim de raça? Estamos no
Rodrigo todos nós, folhas que caem. Assistirá ele à aurora do pesadelo que
começou em 1914 e abriu o segundo ato em 1939?
Coitados de todos nós – do Hitler, do Tojo, do Roosevelt, do
Rodriguinho...
Lá está ele brincando, vivendo a prodigiosa vida da criança, ativo,
incapaz de repouso, todo movimento e queros. “Eu quero.” Passa o dia a
querer e em embate com o querer social dos grandes. Um instintozinho nu
na ratoeira da sociedade. Educar é socializar, é artificializar uma coisa
natural, espontânea, linda – bichinho selvagem.
Não terá sido esse o erro do Homo? Sua socialização permitiu-lhe
tomar conta da Terra, com prejuízo de todas as coisas naturais, sobretudo da
vida das outras espécies. E agora começa a destruir-se. O Destino do Homo
sapiens. Wells é capaz de ter razão nesse mais sinistro de todos os livros.
Parece-me realmente um profeta, o novo Nostradamus. Bom. Basta. Vestir-
me e sair. Dia perdido para o Burlingame.
Pelo Triângulo Mineiro

Em sua companha pelo petróleo M. L. viajou muito, pelo Norte, Centro


e Sul do país. Sua passagem pelo Triângulo Mineiro foi fecunda em
observações.

Bernardim Ribeiro, o maior chorão de Portugal, começa o seu livro


Saudades dum modo que todos sabemos de cor: “Menina e moça levou-me
para longes terras...”.
A nós, ferro e petróleo levaram-nos para longes terras, para os
maravilhosos chapadões do Triângulo, esse bico de terra mineira na carne
de São Paulo fincado, como imensa cunha de pradarias sobre as quais
pendem as longas orelhas dos zebus nostálgicos do gir indiano.
Para o paulista antigo, Uberaba era um fim de mundo. Dispunham
nossos avós de apenas um meio de locomoção, o cavalo; e tinham de
martirizar o cóccix e os cavalos durante dias para alcançar o agrupamento
uberabense. Mas veio o carvão de pedra e a viagem passou a fazer-se de
trem em dois dias. Veio depois o petróleo e já a fazemos em três horas.
Estamos a imaginar as homéricas risadas dos bandeirantes, se alguém
lhes profetizasse que a viagem de São Paulo a Uberaba ainda seria feita em
três horas – risada irmã da que damos hoje quando alguém nos profetiza
uma futura redução dessas horas para três minutos. Ou três segundos.
Loucura? Sonho?
Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no
mundo teve início de outra maneira, mas já tantos sonhos se realizaram que
não temos o direito de duvidar de nenhum.
Voando de automóvel por aquelas serpentinas de pó vermelho que se
estiram pelo escampo dos chapadões do Araxá, íamos ouvindo a lição de
francês da preciosa escola de Nhô Totico, esse gênio mímico da nossa raça.
Château – cavalo; petit – cachorro. Cala a boca, criançada!” Ouvindo-o...
“vendo” diante de nós a pasmosa burrice do Chicote, o pernosticismo
cafajéstico do Chicória, a comovente santidade do Chiquinho, a delicadeza
nipônica do Soko – extasiamo-nos ante o verismo de tantos alunos duma
escola que não existe, que é um homem sozinho elevado a alta potência,
que é sempre Nhô Totico, o qual por sua vez também não existe, porque o
que existe é um moço que na rua ninguém distingue dos demais. A
genialidade só se denuncia quando em ação.
Como duvidar da possibilidade de realização de todos os sonhos, se já
temos até essa do transporte instantâneo da palavra humana em todos os
rumos e captável em todos os pontos da Terra? Para bem figurarmos o que
isso é, havemos de figurar a hipótese de milhões de receptores espalhados
pelo mundo inteiro, de polo a polo, pela China imensa, por toda a Europa,
pela África, por todos os países da América, por todas as ilhas e dentro de
todos os navios que sulcam os mares. Um simples movimento de comutador
numa dada hora e todos esses rádios, em todos os pontos da Terra,
transmitirão aos seus ouvintes uma aula da escola de Nhô Totico, dada aqui
em São Paulo...
Ora, havendo já o homem realizado tão assombrosos prodígios, nem
chega a ser sonho esta campanha do petróleo em que vivemos empenhados
– tão fácil, tão rasteira é a tarefa de dar ao Brasil o combustível mágico,
alma da civilização moderna, já que solve todos os problemas materiais da
vida, na sua aliança com o ferro sob forma de máquina.
Apesar disso, apesar da força da evidência lógica, somos nós no Brasil
tão errados de cabeça que os que se empenham em tirar petróleo têm de
promover verdadeiras catequeses. Têm de deixar uma metrópole como São
Paulo, onde se concentra uma grande parte da riqueza nacional, para ir
pregar petróleo, ensinar petróleo, levantar dinheiro para petróleo, lá longe,
entre agrupamentos humanos ainda bem reduzidos, como esses do
Triângulo Mineiro.
Razão? Talvez porque todos os problemas do transporte numa cidade
como São Paulo já se acham solvidos, fato que impede aos seus habitantes a
visão do país em conjunto. Quem está com a barriga cheia ri-se da palavra
“fome”. Mas no interior, a premência, a urgência, a exigência da solução do
problema do transporte sobreleva a todos os demais – e não há nenhuma
pessoa consciente de que, abordada e falada, não perceba, com a maior
clareza, que o problema máximo é esse, só esse, pois todos os nossos outros
problemas se ligam ao do transporte, como a corda à caçamba.
Nas campanhas de caça aos eleitores nossos estadistas fazem longa
discurseira com variações sonoras sobre a democracia. O povo ouve e coça
a cabeça. Não consegue compreender de que modo uma dose maior ou
menor dessa panaceia que cura tudo possa praticamente influir-lhe na vida.
Mas se um candidato a estatismo formulasse o seu programa de governo em
quatro palavras: “Gasolina a 200 réis!”, esse candidato apanharia todos os
votos de todos os habitantes do país, porque seria instantaneamente
compreendido.
Uma frase do senador Charles Dawes ficou célebre no Senado
americano. Em meio de acalorado debate sobre as grandes coisas de que os
Estados Unidos precisavam (entre elas mais democracia), Dawes lançou um
aparte imortal: “O de que o país realmente precisa é dum bom charuto de 5
centavos!”.
De fato, o que naquele apogeu de prosperidade do povo americano,
sufocado pela pletora de tudo, realmente fazia falta era um bom charuto de
5 centavos, porque os charutos só começavam a ser bons de 10 centavos
para cima.
Ainda é cedo para reclamarmos um bom charuto de 200 réis como a
única coisa de que nossa terra precisa. Atrasados em nosso
desenvolvimento, temos de querer muitas coisas antes desse charuto; mas o
que há a querer, já, já, já, não é a tal democracia que cura tudo, sim uma boa
gasolina a 200 réis o litro – e nossa, de produção caseira, para que os 200
réis não saiam do nosso bolso.
A gente do Triângulo Mineiro compreende isto com a maior clareza,
sobretudo quando para seu carro diante duma bomba da Anglo-Mexican e
despende 1.700 réis para obter um litro daquilo que podemos ter a 200 réis.
Daí o interesse enorme que os triangulinos mostraram pela novidade
anunciada: conferências sobre o petróleo.
Até ontem as conferências públicas só versavam sobre temas políticos
ou literários. Um sujeito que ia dizer mal do partido A e maravilhas do
partido B, para uma assistência absolutamente convencida de que se há uma
coisa no mundo igual ao partido A é justamente o partido B. Ou, então,
conferências sobre os velhos assuntos clássicos. O amor na Idade Média –
A dança na Espanha – A pena ou a espada? – Qual o maior guerreiro,
Aníbal, César ou Napoleão? O orador sonorizava o ar com as flores da sua
retórica e concluía indefectivelmente com um rapapé ao elemento feminino
da sala. Palmas, bocejos, abraços no conferencista, elogios – e lá ia a
assistência para a cama, a resmungar contra a seca.
Mas conferências sobre o petróleo constituem novidade absoluta.
Conferências de negócio! Para promover a venda de ações duma
companhia! Para levantar dinheiro! Tudo isso francamente confessado e
explicado por “a” mais “b”, com todas as cartas na mesa. A novidade
seduziu os mineiros; daí uma acolhida que jamais ousamos esperar.
Por que assim? É que o mineiro de elite, dotado de fina inteligência
natural, sabe distinguir entre negócios. Há negócio e negócio. Há os
negócios que só beneficiam aos que estão neles e há os que vão além, os
que se erguem à categoria dum verdadeiro serviço público. Nesta classe está
o do petróleo. É negócio e é serviço público, tal a infinidade de
repercussões para a vida do país inteiro que esse negócio trará, quando
vitorioso. Sendo exatamente assim, claro que não podia escapar à percepção
dos mineiros a diferença entre o negócio de promover a exploração do
petróleo e o de promover uma nova fábrica de sabão ou uma nova usina de
açúcar.
Mais sabão ou mais açúcar não influencia em nada a vida do país;
enriquecerá uns tantos homens apenas. Mas petróleo, petróleo a jorrar de
mil poços, gasolina a 200 réis, óleo combustível a 100 réis, influencia e
tremendamente, pois equivale à maior das revoluções econômicas e ao
começo do Brasil de amanhã – sadio, forte, poderoso. Eis explicada a razão
do entusiasmo dos mineiros pela nossa iniciativa.
Não conhecíamos Minas senão duns rápidos três dias passados em Belo
Horizonte. Fomos conhecê-la agora – e ficamos a pensar, a pensar... O
paulista é um tanto presunçoso. Quando sai da sua terra vai de sorriso nos
lábios, certo de só encontrar inferioridades. Mas o paulista também sabe
reconhecer a verdade e proclamá-la. Sabe, por exemplo, dar a Minas uma
acentuada superioridade de cristalização mental e social, devida talvez à
lentidão do processo formativo e à ausência das contínuas intrusões dos
fortes elementos alienígenas que em São Paulo perturbam o processo
cristalizante. Daí a finura de inteligência, o equilíbrio, o senso de
proporções e de matizes que o opulento bárbaro paulista reconhece no
mineiro tão modesto.
A elite de Minas é algo mais apurado que a elite de São Paulo. Forma
uma verdadeira quinta-essência. O paulista enriqueceu muito depressa e
ainda cheira a dinheiro – e não é cheirar bem isso de cheirar a dinheiro. O
maior encanto de Minas está justamente na completa ausência desse cheiro.
O homem rico de lá esconde o leite; o homem rico de cá, mesmo quando só
é rico de dívidas, faz praça de mais do que tem. Se deve mil contos, arrota
uma dívida de 5 mil.
Numa fazenda mineira, naquela simplicidade tão serena, nada há, nem
nas palavras do dono da casa, nem nos móveis, nem nos quadros das
paredes, nem nas benfeitorias que circundam a vivenda, nada há que
denuncie o peso em contos de réis do proprietário. Talvez venha daí o
ditado popular: o homem e o porco só depois de morto, querendo dizer que
só depois de morto podemos saber ao certo o peso do porco e o valor
monetário do homem.
Lembro-me duma viagem que fiz pela Paulista até Barretos, na qual fui
prestando atenção às conversas. Até hoje tenho nos ouvidos o som dessas
conversas: “100 contos, 200 contos, 300 contos, mil contos, 5 mil contos.”
No meu passeio pelo Triângulo não ouvi a palavra “contos” senão aplicada
aos que em tempos eu publiquei. Quem por lá falou em contos dinheiro
fomos nós, os paulistas itinerantes.
Há doenças vergonhosas, de que ninguém fala em público; há palavras
vergonhosas, que só se dizem com a mão na boca. O mineiro, na sua finura
de cristalização, vai empurrando a palavra “conto de réis” para a lista das
que não se devem pronunciar numa roda de gente fina.
Que esplêndidos tipos lá encontramos, sobretudo entre os prefeitos. No
de Araxá vimos um filósofo de infinita serenidade, de altíssima
superioridade mental e moral, dotado da eficiência e capacidade realizadora
dum engenheiro americano. Mas realiza suas obras às ocultas, porque o
emperrado oficialismo do Brasil ainda segue aquela forma clássica do “não
fazer nem deixar fazer”.
Em outro vimos um curioso casamento de capacidade administrativa
com um alto humorismo. Mas humorismo de verdade, à Mark Twain. Nas
aperturas dum orçamento municipal que não dá nem para metade das
realizações reclamadas pelo povo, ele faz com dinheiro a metade que pode
– e a segunda metade faz com a moeda do humorismo. A população o
adora. Pay and smile.
O Triângulo Mineiro importou da Índia os grandes zebus que serviram
de base à prosperidade de hoje, tão sólida. Excelente ideia, se São Paulo
importasse prefeitos de Minas...

II
A coisa que mais me surpreendeu em Uberaba foi ler o nome de Henry
Ford no frontal dum bloco de construções.
– Henry Ford por aqui?
– É uma escola profissional que não chegou a ser aberta porque a
revolução a transformou em quartel. Obra de Fidelis dos Reis, um amigo de
Henry Ford, com o qual se corresponde. Nesse pavilhão ia ser instalada uma
das seções da escola, montada de acordo com as ideias de Henry Ford e
dirigida por um técnico que ele mandaria de Detroit.
– E virou quartel...
– Temporariamente, enquanto não concluem o quartel novo, já quase
no fim. Logo que isso se dê, será instalada aqui a grande escola.
Fiquei a pensar na significação desse pequeno fato, suscetível de
grandes consequências futuras. A palavra Ford significa eficiência elevada
ao grau máximo. Se em Minas já há quem ponha a eficiência acima de tudo,
Minas está salva e com o caminho aberto a todas as grandezas. Porque só o
que falta a Minas é uma grande base de progresso material. A cristalização
moral e mental já foi atingida, numa forma toda sua, caracteristicamente
mineira. E para orientar a construção material eles apelam para o mestre dos
mestres Henry Ford, o mágico da eficiência.
Assim também fez a Rússia comunista. Os extremos tocam-se. Minas e
a Rússia de Stalin reconhecem que na eficiência está o segredo de tudo e
apelam para o homem de gênio que a definiu com estas palavras
simplicíssimas: “Eficiência é fazer ponta num lápis com lâmina bem afiada,
em vez de com faca sem corte”.
Na sua segregação de estado central, Minas considera-se muita coisa,
mas diante do que pode vir a ser é ainda nada. No dia em que puder
mobilizar as tremendas reservas minerais do seu subsolo, sobretudo o ferro,
que possui em quantidades suficientes para ferrar o Brasil e boa parte do
mundo, Minas transformará o seu bucolismo de hoje num grande
metropolismo industrial. Mas tudo ainda está, por nove décimos, em estado
de casulo.
Houve no começo a exploração do ouro, e há hoje a morosa
transformação das pastagens em carne e leite. O ouro é o único metal cuja
exploração não enriquece um país, em virtude do seu emigracionismo
congênito. Emigra sistematicamente para as zonas produtoras e
manipuladoras do ferro, isto é, para os países industriais. O ferro tem a
propriedade de atrair o ouro – quando transfeito em máquinas aumentadoras
da eficiência do homem.
Onde está hoje o ouro de Minas, de Cuiabá, de todos os distritos de
mineração do Brasil colonial? Em Londres, em Nova York, em Paris – nas
metrópoles dos países produtores e manipuladores do ferro.
Na indústria do perfume há certas substâncias, como o âmbar-gris,
usadas como “fixadores” dos cheiros. O ferro é o âmbar-gris do ouro – ou,
melhor, da riqueza dum povo. O ouro que o Brasil colonial tirou do fundo
dos córregos não está conosco. Estivesse – e o nosso ministro da Fazenda
não se plantaria em Washington, fazendo prodígios para obter, não a
propriedade, mas o uso apenas, de algumas toneladas desse metal
monetário, ou seja, 60 milhões de dólares.
Tais toneladas de ouro correspondem a bem pequena parte do que foi
extraído só de Minas, e se agora, que tanto necessitamos desse metal,
havemos de tomá-lo por empréstimo, foi porque nossos avós não souberam,
antes de extraí-lo, desenvolver entre nós o fixador do ouro. Como os
Estados Unidos tiveram a sorte de só descobrir o ouro depois de
desenvolvido o ferro, o ouro não emigrou – lá ficou, fixado pelo ferro.
Em Minas o ouro foi, mas ficou o ferro – e com ele um dia Minas
construirá o arcabouço metálico do país. Em suas montanhas de minério e
em seu subsolo jaz adormecido o Brasil de amanhã – o Brasil grande, do
mesmo modo que num rude pedaço de mármore jaz a maravilhosa estátua
que o gênio do escultor extrai.
Com a máquina que o ferro de Minas nos dará e com o nosso futuro
petróleo, motorizar-nos-emos intensamente – e cada um de nós valerá um
dia vinte, trinta vezes mais do que valemos hoje, medidos pelo estalão da
eficiência.
Foi para advertir disso o mineiro que fizemos palestras de didática
comercial pelo Triângulo – e o Triângulo nos compreendeu. Compreendeu
que no coração de Minas está a domir o sono dos séculos o nosso tremendo
potencial em máquinas, como em tantos pontos do nosso território dorme a
energia mecânica que vai mover essas máquinas. Pela mobilização e
conjunção de ambos teremos o milagre. O fato de haver Minas alcançado o
sentido dessa equação explica o apoio que vem dando à campanha do
petróleo.
– O senhor é um sonhador – disse-me um homem de Uberaba.
– Haverá alguma coisa no mundo que não se gestasse por esse
processo, primeiro o sonho, depois a realização?
– É verdade – disse ele, com os olhos pensativos.
Minas sonha hoje o nosso grande sonho. Nós, paulistas, estamos
atrasados nesse ponto. Sonhamos menos, talvez pela convicção, inoculada
pela propaganda oficial, de que já somos uma grande realização.
Engano ledo e cego. Somos um comecinho. A estrada do progresso é
intérmina. O paulista partiu para a viagem sem-fim com o café às costas –
um começo brilhante que a inépcia administrativa federal matou. Daí
sermos hoje riquíssimos sobretudo de uma coisa: dívidas. E talvez seja o
peso das dívidas que nos estraga a capacidade sonhadora. Interferência do
mais infame dos espectros – o credor.
Havemos de sonhar porque o sonho é o primeiro passo de todas as
realizações. Ferro, petróleo, carvão e trigo: havemos de sonhar com a nossa
libertação econômica assentada nessas quatro colunas, que até aqui fomos
proibidos de levantar porque a isso se opunham os grupos de interesses que
põem a juros a nossa miséria.
Fizemos no Brasil uma experiência das mais curiosas: a mentira como
o material de construção duma nacionalidade. A letra do hino nacional é a
mentira número um – e essa mentira foi insinuada nas escolas para que o
brasileiro, apanhado ainda bem criança, fizesse da mentira uma segunda
natureza. .
“Nossos campos têm mais flores, nosso céu tem mais estrelas.” Aqui
está a mentira mãe, oficializada no hino da nação cantado em todas as
escolas apesar dos protestos mudos da botânica e da geografia. E essa
inoculação inicial da mentira poética deu de si tais rebentos que permitiu a
Rui Barbosa a sua página de maior revolta e eloquência, quando na
campanha civilista nos revelou a nós mesmos como o povo da mentiralha.
Hoje percebemos que a mentira não constrói coisa nenhuma e já
começamos a arrepiar caminho. Já queremos a verdade, por amarga,
dolorosa e humilhante que seja. Já duvidamos da inteligência do “povo mais
inteligente do mundo”, diante dos resultados funestos que tal inteligência
produziu na vida pública. Já admitimos a penúria chinesa do “país mais rico
do mundo”. E como a confessamos, ipso facto entramos no caminho da
riqueza. O nosce te ipsum sempre será o alicerce de todas as construções,
tanto nos indivíduos como nos povos.
O último arranco da nossa torpe fase da mentira foi quando, a pretexto
de reprimir um comunismo que não passava do protesto da miséria em
eretismo de desespero, nos reduzimos a uma coisa só: polícia. E o Brasil
está hoje metido na cadeia.
Em poucos lugares como no Triângulo uma pessoa apalpa o Brasil nas
suas qualidades e defeitos – mais qualidades que defeitos, e em poucos
lugares como lá sentimos como o Brasil é uno em ideia e coração.
Grandes verdades enunciou Afonso Arinos em sua conferência em São
Paulo. O regionalismo é criador porque estabelece competição e estímulo, e
é da competição e do estímulo que sai o progresso. A ideia de Minas, como
a ideia de Pernambuco, como a ideia de São Paulo, como a ideia do Rio
Grande, como a ideia da Bahia não são ideias que separem, porque o que
chamamos Brasil não passa da soma dessas ideias.
Não conheço todos os estados do Brasil, mas em todos que conheço me
senti tão em casa como na minha cidade natal. Senti-me nacionalizado. Daí
minha ideia enunciada em América: “A primeira significação do ferro é
transporte em todas as suas modalidades. Só o transporte suprime o
regionalismo e, portanto, só o transporte nacionaliza”. A virtude está no
meio. O regionalismo levado ao excesso acarreta diferenciação de
mentalidade e antagonismos invencíveis, fomentando a ideia separatista.
Sem excesso, apenas significará estímulo construtor.
Ferro e petróleo sub espécie avião levaram-me para longes terras – para
a Minas do Triângulo; e o que pudesse haver em mim de hostilidade, por
desconhecimento da “ideia de Minas”, desapareceu. Senti-me em casa e
absolutamente irmão. No dia em que com a produção intensa do ferro e do
petróleo tivermos o problema do transporte integralmente resolvido,
conhecer-nos-emos no Brasil de Norte a Sul e de Leste a Oeste – e a
unidade pátria estará assegurada com a morte do extremismo regionalista.
Reconheceremos todos, inclusive o meu generoso amigo Alfredo Ellis, que
somos, de Norte a Sul, feitos da mesmíssima carne e tremendamente
irmãos.
Ferro e petróleo deram aos Estados Unidos a sua incomparável
homogeneidade. Por que há de falhar o remédio no Brasil?
Paulo Setúbal

O dia de hoje amanheceu tétrico. Nada mais triste que em


vez do sol da manhã o dia comece morto, empapado de chuvisqueiro, sem
luz no céu e só lama peganhenta nas ruas. E as folhas vieram agravar aquela
tristeza com uma notícia profundamente dolorosa – a morte de Gaspar
Ricardo. As folhas da manhã. E como se não fosse bastante, as da tarde
informaram-nos de outra coisa profundamente estúpida: a morte de Paulo
Setúbal. Seriam a chuva e o tom plúmbeo do céu a lágrima e o crepe da
natureza diante de dois irreparáveis desastres?
Setúbal era o encanto feito homem. Impossível maior exuberância,
maior otimismo, maior entusiasmo – mais fogo. Dava-me a impressão duma
sarça ardente – e talvez por isso se fosse tão cedo; queimou-se demais,
ardeu numa vitoriosa chama contínua. Os homens prudentes regulam com
avareza esse processo de combustão que é a vida. Ardem, mas como a brasa
sob as cinzas – no mínimo – para ganhar em extensão o que perdem em
intensidade. Mas Setúbal não se continha: era uma perpétua labareda de
entusiasmo, de amor, de dedicação, de projetos, de serviço, de cooperação,
de boa vontade. Não havia nele uma só qualidade negativa.
Lembro-me de quando me apareceu pela primeira vez na rua Boa Vista,
escritório da antiga Revista do Brasil. Entrou aos berros, com um pacote de
versos em punho – Alma cabocla. Era a primeira vez que nos víamos, mas
Setúbal tratou-me como a um conhecido de mil anos. Entrou explodindo e
permaneceu a explodir durante toda a hora que lá passou. O serviço do
escritório interrompeu-se. Alarico Caiuby, o correspondente, largou da
máquina e veio “assistir”. Antonio, o menino filósofo, abandonou a
trancinha de barbante que costumava fazer – e veio “assistir”. E se os outros
empregados não fizeram o mesmo foi porque o pessoal da Revista do Brasil
naquele tempo se reduzia a esses dois.
Ficamos todos num enlevo, a assistir àquele faiscamento recém-
chegado do interior, cheirando a natureza, numa euforia sem intermitência –
e não houve discutir sobre a edição dos versos, nem sequer examiná-los
para “ver se eram bons” (tarefa a cargo de Joaquim Corrêa, o nosso
especialista em distinguir versos bons dos maus, pelo cheiro, como fazem
os classificadores de café em Santos). O ímpeto de Setúbal, a tremenda
força da sua simpatia irradiante, inundante e avassalante, fez que sem
nenhum exame os originais voassem daquele escritório para a tipografia. O
editor contentou-se com os que, sem a menor sombra de falsa modéstia, ele
recitou com a maior vida, precedendo-os de um santo e lealíssimo “Veja,
Lobato, como isto é bom!”.
E o público confirmou-o nesse juízo. Alma cabocla teve enorme
procura. Setúbal era tão bom que tudo quanto dele saía era bom – bastava
sair dele para ser bom.
Um dia amanheceu romancista histórico, e fui ainda eu o seu editor. Os
originais da Marquesa de Santos só tiveram do meu lado uma objeção.
Havia ali pontos de admiração demais, pontos que davam para cem
romances do mesmo tamanho. Sempre foi, em cartas e na literatura, uma
das inevitáveis exteriorizações de Setúbal, esse gasto nababesco de pontos
de admiração. Por ele, todos os mais pontos da língua desapareceriam da
escrita, proscritos pelo crime de secura, frieza, calculismo, falta de
entusiasmo...
Objetei contra aquele excesso e consegui licença para uma poda a
fundo. Cortei quinhentos pontos de admiração! Setúbal concordou com a
minha crueldade – mas suspirando; e na primeira revisão de provas não
resistiu – ressuscitou duzentos.
A Marquesa de Santos teve um sucesso inaudito, sobretudo entre as
mulheres de idade. Podemos sem medo de erro afirmar que foi o romance
de maior sucesso que tivemos na República. Subiu rapidamente ao número,
para nós fantástico, de cinquenta mil exemplares – e ainda hoje, anos e anos
passados, tem procura firme. É livro permanente.
Ninguém será capaz de descrever a reação de Setúbal diante da vitória
tremenda da sua Marquesa, e duvido que a literatura, no mundo inteiro, haja
proporcionado a um autor maior regalo. A perpétua exaltação do
entusiasmo de Paulo Setúbal vinha disso: desse integrar-se na obra, desse
absoluto identificar-se com ela. Em regra, o escritor é um pai desnaturado;
só sente prazer no ato da criação. Nascido o filho, joga-o às feras e esquece-
o. Setúbal não. Setúbal sabia ser pai. O mesmo prazer que sentia em criar,
sentia em acompanhar carinhosamente a vida pública do filho impresso. Se
eu fora representá-lo num desenho, pintá-lo-ia levando pela mão, qual pai
baboso, todos os filhos que publicou.
E muitos filhos teve ele no gênero histórico em que armou tenda. Mas
nenhum lhe encheu tanto a vida como o primeiro. Duvido que Pedro I
haurisse tanto prazer da Domitila quanta hauriu Setúbal da Marquesa de
Santos literária. Se há um a invejar, não é Dom Pedro.
E está morto Setúbal!... A morte sabe escolher; pega de preferência o
que é bom – as pestes ficam por aqui até o finzinho. Morreu Setúbal e com
isso nossa terra está podada de algo insubstituível. Onde, em quem, aquele
fogo olímpico, aquela bondade gritante e extravasante como o champanha,
aquele dar-se loucamente a todas as ideias nobres, ricas de beleza? Onde,
em quem, a coisa maravilhosamente linda, e boa, e saudável, e
reconfortante, que foi a breve passagem de Setúbal pela Terra? Desse Paulo
tão generoso, nobre e despreocupado no dar-se, que em quatro décadas
queimou uma reserva de vida que para outro, mais calculista, daria para 80
anos?
Sim, o céu ontem fez muito bem em chover. Setúbal mereceu
grandemente essa homenagem – esse misturar das lágrimas do tempo com
as dos seus amigos...
Moeda regressiva

A civilização humana está minada por um mal cuja


verdadeira causa ainda não foi apreendida. De modo direto ou indireto
todos lhe sofrem as consequências, mas não há acordo no diagnóstico.
Surgem ideologias salvadoras: esses extremismos sintomáticos do estado de
desespero a que a humanidade chegou. As causas que os extremismos
apontam, entretanto, não passam de efeitos com aparências de causa. A
causa real do sofrimento moderno, da persistência da miséria ainda nos
países de maior desenvolvimento econômico, da periodicidade das crises ou
“depressões” comerciais e industriais, permanece teimosamente oculta.
Os extremistas tudo atribuem ao “capitalismo”, e para a salvação da
humanidade querem destruí-lo ou condicioná-lo. O marxismo ataca o
capital de frente, dando-o como fonte de todos os males; o totalitarismo
ataca-o de flanco, procurando condicioná-lo por meio da “economia
dirigida”. Isto quer dizer que as duas grandes correntes ideológicas
reconhecem nele o inimigo comum.
Mas para um pensamento claro o capitalismo é simples efeito da
moeda, e portanto não há destruir o capitalismo sem destruir a moeda – o
que é um absurdo, porque destruir a moeda equivale a destruir a própria
civilização. O que chamamos civilização humana não passa do
“desenvolvimento do poder do homem” em consequência da maravilhosa
invenção da moeda.
Uma hipótese talvez nos dê a solução do problema: não haverá na
essência da moeda um vício orgânico causador dos males apontados? E
descoberto esse vício não haverá meios de saná-lo mecânica e
automaticamente?

Que é a moeda?
Para bem compreendê-la temos de estudar a situação das coisas
anteriores ao seu aparecimento – e o nosso raciocínio tem de ser o que
segue.
“Não pode haver sociedade sem troca de produtos do trabalho humano.
O fenômeno da troca iniciou-se de modo direto. X permuta com Z as sobras
do que o seu trabalho lhe produziu acima das necessidades pessoais – e
desse modo aumenta-se economicamente. Aumentar é enriquecer. O
enriquecimento das unidades determina o enriquecimento do grupo. Logo, a
troca dos produtos do trabalho do homem foi o fator mecânico da
civilização.”

A troca direta, porém, tinha o inconveniente do limitadíssimo raio de


ação. Esse inconveniente sugeriu a invenção da moeda, isto é, de um “vale
produtos do trabalho”, permutável a qualquer tempo com qualquer produto,
de acordo com o valor do momento. O valor, portanto, não constituía nada
fixo; não passava de “relação momentânea” entre o que era procurado e o
que era oferecido. Surgiu a lei da oferta e da procura, com a noção de valor
reduzida a simples relação momentânea entre a oferta e a procura, isto é,
ponto de acordo entre duas vontades convergentes para a realização de uma
troca.

Com o advento dos vales-moeda cessou o regime da troca pelo sistema


primitivo – e as consequências da inovação foram imensíssimas. A troca
direta, só possível entre “vizinhos conhecidos entre si”, tornou-se “anônima,
liberta da contingência do espaço e da premência do tempo”.
Desmaterializou-se, ficou em estado de latência no seio da moeda.
Deduz-se, portanto, daqui, a definição da moeda. “Moeda é uma
potencialidade de troca liberta da contingência do espaço e da premência do
tempo.”

Todo o progresso material do mundo, ou a civilização, saiu disso. O


fato de a moeda ser “troca potencial liberta da contingência do espaço”
possibilitou o intercâmbio entre as nações com a amplitude que sabemos. O
chá da Índia, o caviar da Rússia, a pele siberiana ou o carvão inglês
tornaram-se permutáveis com a lã da Argentina, com a cera de carnaúba do
Brasil, com o petróleo venezuelano ou com o sabão de Marselha, porque
essas trocas ficaram em latência na moeda; impossível concebê-las no
regime da troca direta. O fato, pois, de a moeda liberar a troca da
contingência do espaço constituiu o maior dos bens. Poderemos dizer a
mesma coisa da segunda qualidade da moeda, ou da sua liberação da
premência do tempo?
Não. E não, porque foi justamente esta qualidade da moeda que gerou o
capitalismo que as ideologias atacam. “O” capitalismo, sim, já que há dois
capitalismos – um que decorre naturalmente da existência da moeda e outro
que decorre da manipulação da moeda. O primeiro é um bem;
humaníssimo, natural, irredutível, mera consequência da desigualdade
produtora dos homens; o segundo “parece que é o grande mal”, já que o
vemos no fundo do armamentismo, da guerra preconizada como o grande
remédio, da usura, dos “imperialismos”, da subordinação das indústrias à
finança, do prodigioso endividamento dos países que hipotecam até a alma
das gerações que só virão daqui a séculos etc.
Ora, é este o capitalismo que as ideologias atacam; o comunismo, para
destruí-lo; e o totalitarismo, para condicioná-lo, ou, melhor, monopolizá-lo.
Mas atacando o capitalismo maléfico, atacam também o benéfico. Podemos
denominar a este “capitalismo proprietarial”, e ao outro, “capitalismo
financeiro”. O primeiro se resume em ter coisas, e surgiu como natural
consequência de um homem produzir mais que outro. Se X normalmente
produz mais trigo que o necessário ao seu consumo, claro que tem de
acumular, de ir-se tornando proprietário de coisas – das coisas que vai
trocando pelos seus excessos de trigo. Esse capitalismo é bom, humano,
benéfico à comunidade, estimulador do trabalho, criador de todos os
aspectos grandiosos da civilização – e indestrutível. Já não há dizer o
mesmo do capitalismo financeiro, que não é bom para o mundo, pois nasceu
do mal compreendido egoísmo do primeiro homem que ponderou sobre as
vantagens da retenção da moeda. Os tremendos males da vida moderna, tão
agudos hoje, decorrem exclusivamente deste capitalismo manipulador da
moeda e, portanto, desnaturador das suas verdadeiras funções.

A experiência da moeda está feita; foi de fato a invenção precipitadora


do progresso humano; mas também está verificado que, como todas as
invenções, necessita de aperfeiçoamento – ou de corretivo. A sua liberação
absoluta da premência do tempo constitui um vício essencial, já que permite
ao detentor da moeda retirá-la da circulação e desse modo afastá-la da sua
verdadeira função. Se moeda é troca em estado latente, retê-la é retardar
trocas; entesourá-la ao modo dos avarentos é suprimir trocas; alugá-la ao
modo dos “manipuladores do capital” é tirar proveito de operações ainda
não realizadas e, portanto, onerar com sobrecargas as trocas futuras.
E por que motivo a ideia de retirar moeda da circulação, entesourá-la
ou alugá-la, ocorreu ao homem? Claro que em virtude da absoluta
independência do tempo em que ficam as trocas em estado potencial
contidas na moeda. O egoísmo humano teria fatalmente de tirar partido da
situação.

X produz trigo e Z produz vinho. Necessitado de vinho, X permuta


com Z um saco de trigo por um barril de vinho. Mas como no momento Z
não necessita de trigo, aceita de X a moeda, isto é, um “vale um saco de
trigo”, que guardará até o momento em que precise de trigo, ou que trocará
por qualquer outra coisa equivalente em valor a um saco de trigo – isto é,
negociará o vale. Mas assim que Z entrou na posse do vale de X, ocorreu-
lhe o pensamento diabólico de onde saiu o maligno “capitalismo
financeiro”.
O seu raciocínio foi este:
“As coisas que podem ser trocadas por este vale estragam-se com o
tempo. Ou são trocadas sem demora ou perdem-se. Mas este vale não se
estraga, ‘está liberto da premência do tempo’. Posso, portanto, guardá-lo
para aproveitar-me da má posição em que muitas vezes ficam os
possuidores de coisas deterioráveis, trocando-o em tempo oportuno por
muito mais coisas do que ele realmente vale – porque realmente só vale um
saco de trigo. Se eu o conservar, posso, conforme seja a situação, obter com
ele não um, mas dois ou três sacos de trigo – e tudo mais nessa proporção.
O negócio depende da minha esperteza em espiar a vida dos produtores de
coisas perecíveis, a fim de tirar partido dos seus apuros. Com suas
mercadorias deterioráveis eles estão sob a premência do tempo; mas com o
meu vale indeteriorável eu estou liberto dessa premência. Posso guardá-lo
por um ano, dois, três, para só trocá-lo quando a situação me for vantajosa”.

Este raciocínio criou o capitalismo financeiro, manipulador da moeda e


causador de todas as perturbações modernas.
O mundo está completamente dominado por ele. Os governos agem
movidos por forças ocultas; fazem guerras, movidos por forças ocultas;
erigem o armamentismo em ideal supremo, movidos pelas manobras das
forças ocultas. Que forças ocultas são essas? As do capitalismo financeiro.

A humanidade “sente” isso e revolta-se. O proletariado, que constitui a


grande massa humana, investe cegamente contra tal ordem de coisas e cai
no desespero das ideologias. E fixa os olhos no homem que disse: “O
capital – eis o inimigo”.

Mas atacar o capitalismo em geral é ideia malformada, porque o


capitalismo não passa de simples efeito. Para destruí-lo seria necessário
destruir a sua causa, a moeda, e destruir a moeda será ipso facto destruir a
civilização, regredindo ao regime primitivo das trocas diretas – o que é
absurdo.
As duas soluções extremistas, portanto, não resolvem, porque atacam
efeitos, deixando intacta a causa. Daí a falência de todas as medidas
compulsórias, leis e decretos, por mais drásticos que sejam. Dirigindo-se a
efeitos da moeda só conseguem afetar a moeda no seu princípio vital, que é
a liberdade de circulação. Cercear, condicionar, embaraçar o livre uso da
moeda equivale a afetar as trocas latentes em seu seio, fundamentais para
que a civilização continue a desenvolver-se, já que civilização nada mais é
que a extrema amplificação do fenomeno da troca.

Ora, este regime do duplo capitalismo está evidentemente no fim.


Falhou. O desespero em que se encontra o mundo, a ponto de não enxergar
diante de si outro caminho senão o “salto no escuro” da guerra, é a prova.
Falhou, porque só trouxe como solução universalmente aceita o
armamentismo extremo, isto é, a admissão de que é destruindo-se uns aos
outros que os povos consertam a vida – uma pura bestialidade de raciocínio.
O armamentismo de hoje, do qual nenhuma nação escapa, significa
“desespero cego”, incapacidade de encontrar solução racional para um
estado de coisas que chegou ao limite da tensão. Mas poucos enxergam a
causa secreta dos males oculta no fundo de tudo.

Essa causa é a “fixidez da moeda”, isto é, a sua absoluta independência


da premência do tempo.
Se lhe tirássemos essa qualidade, se tornássemos a moeda tão sujeita à
premência do tempo como tudo o mais na vida, mecânica e
automaticamente eliminaríamos o morbus que ameaça a civilização de ruína
completa.

E como destruiríamos a fixidez da moeda? De um modo muito simples:


adotando a Moeda Regressiva. A moeda deixaria de ter, como tem, um
valor fixo; passaria a ter um valor regressivo. Em vez de constituir a grande
exceção, isto é, de estar liberada da premência do tempo num mundo onde
tudo se condiciona ao tempo, também se tornaria deteriorável.
A moeda regressiva não será mais o ouro, porque no regime regressivo
o ouro volta ao seu papel de simples metal, de mercadoria como qualquer
outra, carvão, trigo ou sapatos; volta a ser um simples produto do trabalho
humano – trabalho extrativo. A moeda regressiva será um papel de curso
forçado que vai perdendo dia a dia o seu valor até chegar a zero.

Para facilidade de compreensão admitamos um caso concreto – um país


com um meio circulante composto de moeda regressiva que perca
totalmente o valor ao cabo de cinco anos. Denominemo-la Dólar
Regressivo. No giro dessa moeda haverá um contínuo cálculo de câmbio,
porque o valor do dólar emitido em 1939, por exemplo, só valerá 100
centavos no momento da emissão: cada dia valerá menos; um ano depois
valerá exatamente 80 centavos; dois anos depois, 60; três anos depois, 40;
quatro anos depois, 20 – e ao fim do quinto ano valerá zero.
O Estado emitirá cada ano a quantidade de moeda necessaria à
substituição da que desapareceu com a decadência anual dos 20%; isto é,
emitirá cada ano 20% do total do meio circulante estabelecido.

Só isso: o nosso sistema de moeda regressiva não passa disso. A ação


do Estado fica resumida em manter o nível do meio circulante por meio de
emissões periódicas.

Vejamos as principais consequências do novo regime na economia e na


administração de um país.
Em primeiro lugar, o Estado resolve de vez o eterno problema da
taxação e livra o povo desse aparelho arrecadador chamado Fisco, com suas
alfândegas embaraçantes, coletorias infernais, selos incomodíssimos etc.
Que é o Fisco senão um “sistema de embaraços” opostos à livre atividade
do homem, que deles só se livra por meio da entrega ao Estado de uma certa
quantidade de dinheiro? Nada mais injusto do que qualquer sistema fiscal,
de todos os existentes; e por mais que a tributação seja estudada, “nunca
será resolvida de modo favorável ao pagante de impostos”. O choque de
interesses é eterno. De um lado, os governos necessitando arrecadar o
máximo; de outro, os governados insistentes em pagar o mínimo. Daí as
iniquidades tributárias, os impostos extorsivos, os impostos antieconômicos,
como o do selo, os alfandegários que anulam as vantagens do livre-câmbio
de produtos entre as nações, os impostos sobre a renda sempre fraudados.
Daí essa iniquidade suprema que é o imposto sobre a produção – ou castigo
ao trabalho!
Há ainda o preço absurdo por que fica a arrecadação – e há um aspecto
moral de suma importância: a crescente corrupção da burocracia
arrecadadora – crescente por ser crescente em todos os países do mundo a
imposição de taxas. Cada vez mais tributado, o homem defende-se
subornando cada vez mais a burocracia arrecadadora. A história da
civilização cabe dentro da história do Fisco. Grandes convulsões sociais,
como a Revolução Francesa, tiveram como verdadeira causa as iniquidades
do Fisco.
No regime da moeda regressiva desaparece completamente esse
monstro, uma vez que cessa para os governos a necessidade da arrecadação
de dinheiro. Não haverá imposto de espécie alguma. Em vez de arrecadar
dinheiro do povo pelo sistema iníquo, brutal e antiquadíssimo da taxação, o
Estado faz que o dinheiro necessário às suas despesas surja pela simples
regressão do valor do meio circulante.
Num país em que o meio circulante seja de 100 milhões de dólares o
povo pagará anualmente 20 milhões, no caso da regressão ser de 20% por
ano; ou 50 milhões se for de 50% por ano. A velocidade da circulação da
moeda ficará na dependência do índice regressivo da moeda – índice que a
experiência estabelecerá. Em vez de uma inútil campanha de persuasão,
como a do Buy now, que os Estados Unidos fizeram durante a crise de 1930,
basta que o Estado aumente a porcentagem de desvalorização da moeda
regressiva para que a velocidade maior da moeda corrija uma depressão
econômica.
O Estado emitirá anualmente na proporção do meio circulante que
regrediu – e com esse dinheiro fará suas despesas, sem necessidade de
alfândegas, sem coletorias, sem selos, sem sombra de aparelhamento fiscal,
sem qualquer escrita. Tudo funcionará mecânica e automaticamente. Ora,
resolvido o problema de o Estado ter cada ano a quantidade de moeda
necessária às suas despesas, sem o mínimo incômodo para os governados,
sem vexame de ninguém, sem a menor injustiça, cessa o governo de ser o
“mal necessário” que é para tornar-se um “bem comum”.
As despesas públicas reduzem-se enormemente com a supressão da
máquina arrecadadora e dos mais aparelhos necessários à compulsão; mas o
aspecto mais curioso do sistema se revelará na absoluta equidade tributária.
Só pagará imposto quem estiver retendo a moeda. No momento em que o
seu detentor a troque por qualquer coisa, cessa de pagar imposto. A moeda
fica assim plenamente restaurada na sua função essencial de instrumento de
troca em giro ininterrupto. Ninguém a deterá mais que o tempo necessário
para resolver sobre a troca. O interesse do detentor deixa de ser, como no
caso da moeda fixa, “guardá-la”; passa a ser “usá-la” o mais rapidamente
possível. Mas o detentor não é de forma nenhuma compelido a devolver a
moeda à circulação; tem absoluta liberdade de retê-la, de entesourá-la, de
fazer com a moeda regressiva tudo o que os atuais manipuladores fazem
com a moeda fixa; apenas incorrerá numa sanção mecânica: quanto mais a
retiver em seu poder, mais imposto pagará, e se insistir nisso, pagará uma
soma de imposto equivalente ao valor total da moeda açambarcada. Guardar
moeda equivalerá a guardar sorvete no forno. Quem quiser que o faça.

No regime da moeda fixa é lógica a tentação de economizá-la, guardá-


la, isto é, retirá-la da circulação, com grave dano público; daí o tremendo
fenômeno das crises que assolam as nações. Quando por qualquer
circunstância sobrevém o pânico, os eventuais detentores da moeda
encolhem-se e retiram-na da circulação, deixando o povo a sofrer todos os
horrores da súbita escassez de um instrumento indispensavel à vida
econômica.
Os bondes e autos de uma cidade são os veículos que asseguram a
movimentação dos seus habitantes. Mas se em dado momento, por este ou
aquele motivo, esses veículos fossem açambarcados e retirados da
circulação, o maior dos transtornos sobreviria. Ninguém mais alcançaria o
escritório a tempo; os operários perderiam a hora nas fábricas; a vida
econômica da cidade sofreria um abalo de terremoto, com falências e
desastres de toda ordem. E essa perturbação só cessaria quando os bondes e
autos fossem restabelecidos em sua função normal, que é a de circular.
O mesmo acontece com a moeda nos tempos de crise. O pânico dos
seus detentores fá-los retraírem-se e retirarem da circulação uma coisa que
só lhes pertence a título momentâneo, porque a moeda é uma utilidade
pública. Eles esquecem-se de que a possuem como um passageiro de bonde
possui o lugar que ocupa. Se esse passageiro insiste em não largar o banco,
claro que prejudica inúmeras pessoas igualmente necessitadas daquele
banco.

Mas o meio de impedir que o detentor da moeda a retire da circulação


só pode ser mecânico – jamais compulsório. E esse meio mecânico só pode
ser a destruição da fixidez da moeda. Se ao passageiro teimoso em não sair
do bonde o banco se derretesse sob suas nádegas, claro que o deixaria, sem
que sequer fosse intimado a isso. A moeda regressiva também se derrete nas
arcas de quem a retém – e portanto jamais será retida.

Pagar impostos é coisa desagradável porque significa dar moeda em


troca de coisas que não nos aproveitam diretamente. Em todos os tempos o
homem sempre fugiu de pagar impostos. Paga-os compulsoriamente. No
regime da moeda regressiva tudo continuará na mesma; persistirá a repulsa
pelo pagamento do imposto, mas como só o paga quem estiver detendo a
moeda, a preocupação de todos será desfazer-se da moeda para desse modo
escapar ao imposto – e aqui temos a primeira grande revolução que a
moeda regressiva determinará.
A humaníssima repulsa pelo pagamento de imposto fará que quem
receba a moeda imediatamente a troque por um produto qualquer do
trabalho humano. Assim que se efetuar essa troca, cessará automaticamente
o pagamento do imposto por parte do comprador, o qual, com a passagem
da moeda para outras mãos, transmite a outrem a obrigação do imposto; o
novo detentor da moeda procurará também, imediatamente, ver-se livre
dela, trocando-a por coisas – e assim por diante. Teremos então a
Consequência Máxima da moeda regressiva: a tremenda valorização do
trabalho humano, justamente o reverso do que vemos hoje.
Que vemos hoje? Apenas esta coisa dolorosa: excesso de oferta do
trabalho humano e procura mínima. Daí milhões e milhões de
desempregados; daí as fábricas a meia produção; daí a queima de estoques
de coisas já produzidas, como o café e o trigo. Por quê? Porque, como a
moeda é fixa, os seus eventuais detentores têm todo o interesse em
açambarcá-la, em retirá-la da circulação. Se só ela é fixa num mundo infixo,
senhoreá-la equivale a ser dono do mundo.
Na moeda regressiva, o contrário. O trabalho humano passa para a
primeira plana. A procura suplanta a oferta, em vez de, como hoje, a oferta
suplantar ou ser muito maior que a procura. Não haverá trabalho humano
que chegue para satisfazer as urgências da procura. Não haverá artista,
poeta, homem que possa produzir qualquer coisa, que não encontre imediata
colocação para os seus produtos, porque entraremos num regime de
verdadeira caça aos produtos humanos. Os detentores da moeda regressiva
ou a reduzem a objetos que não pagam imposto, ou ficam com ela na mão a
pagar o imposto da desvalorização regressiva.
Ora, nada mais lógico que do momento em que o trabalho humano
passe da condição miserável de hoje e de sempre, isto é, de artigo que se
oferece de todos os lados nas condições mais humilhantes, para artigo de
tremenda procura, cesse a grande perturbação do mundo. Que é a
perturbação do mundo senão consequência do excesso de oferta de trabalho
e da escassez da procura?
E não se diga que isso venha ser a morte do capitalismo. O bom
capitalismo subsistirá. Desaparecerá apenas o capitalismo que
“comercializa a moeda” – esse bem público, esse oxigênio indispensável à
respiração dos homens, mas que, em consequência da fixidez, se tornou
suscetível de ser monopolizado, açambarcado, retirado da circulação.

O oxigênio do ar é a moeda da nossa circulação sanguínea. Se milhões


e milhões de homens vivem, é porque o oxigênio está fora do
açambarcamento capitalístico. Se os capitalistas financeiros fizessem com o
oxigênio o mesmo que fazem com a moeda, como seria possível no homem
a circulação do sangue?

O capitalismo subsistirá. Mas só o capitalismo de coisas – não o de


moeda. Ter é humano. Juntar posses é humaníssimo – e eterno – e ótimo.
Mas juntar posses, juntar coisas – não moeda. O financista que hoje detém 1
milhão de dólares em moeda é um mal porque está açambarcando oxigênio;
mas se ele reduz esse milhão de dólares a propriedades, torna-se um bem.
Para o governo do milhão de dólares-moeda ele não empregará ninguém,
não dará trabalho a ninguém; mas para o governo, para a conservação das
propriedades adquiridas com esse milhão de dólares, terá de dar trabalho a
muita gente – pedreiros, carpinteiros, zeladores etc.
A moeda regressiva tornar-se-á brasa nas mãos de quem a recebe. O
seu detentor pensará unicamente em passá-la a outras mãos, adquirindo
qualquer coisa. Só sossegará quando se vir livre dela. Mas ao desembaraçar-
se da brasa sossegará. Não estará perdendo coisa nenhuma. Não estará a
assistir ao seu gradual deperecimento.

Qual a moeda hoje que presta maiores serviços? A de mínimo valor: o


níquel. A soma de negócios diários em que um mesmo níquel intervém é
enorme. Por quê? Porque ninguém açambarca níqueis, porque são deixados
permanentemente na sua função de moeda, de instrumento de troca – a
circular. Isso dá ao níquel uma velocidade, digamos, de 100. Já é muito
menor a velocidade de circulação da moeda de 1 dólar. E muitíssimo menor
a da moeda de 100 dólares. Se ninguém se lembra de reter 1 níquel, não há
quem não “defenda” uma nota de 100 dólares. No regime da moeda
regressiva a velocidade da circulação da moeda de todos os valores seria a
mesma da do níquel atual. Ora, o que o mundo está precisando é justa e
simplesmente isto: que o meio circulante adquira a benéfica velocidade
demonstrada pelo níquel. No dia em que as moedas de todos os valores
atingirem a velocidade de 100, do níquel, estarão resolvidos todos os
problemas que hoje aturdem os nossos pobres estadistas. E qual o meio de o
conseguir automaticamente, sem compulsão de espécie nenhuma? Um só:
destruir a calamidade que é a fixidez da moeda, por meio da adoção do
sistema regressivo.
Inúmeros outros aspectos ainda nos ocorrem neste sistema, mas bastam
os apresentados para esclarecer a ideia. O leitor de imaginação que se
divirta em prever-lhe todas as consequências nos inúmeros setores da
atividade humana. Caminhará de surpresa em surpresa – mas a surpresa
maior será a verificação de que todas as consequências da moeda regressiva
são tremendamente benéficas, tanto para as minorias até aqui dominantes
como para as maiorias eternamente chafurdadas na miséria.
E acabará convencendo-se de que sob o regime da moeda regressiva o
capitalismo, salvo da destruição vermelha e da calamitosa “economia
dirigida” dos totalitários – e finalmente liberto dos efeitos que o tornam
odioso –, poderá florescer com um esplendor jamais previsto.

NOTA

– E qual nesse regime a situação da terra? – sussurra-me cá um


objecionista.
E eu respondo:
– Terra, ar e água, esses elementos da natureza, não são produtos do
trabalho humano, e pois não poderiam ser adquiridos no regime da moeda
regressiva. Cessaria a absurda propriedade pessoal da terra, como não há,
nem nunca houve, a propriedade pessoal do ar. O homem que hoje compra
terras passaria a adquirir do Estado o direito ao uso da terra.
La moneda rescindible

Sobre o mesmo assunto M. L. publicou no El Economista, do México, a


seguinte sugestão.

La civilización humana, evidentemente, sufre de un mal


secreto cuya causa todavía no ha sido precisada. Surgen guerras,
revoluciones e ideologías salvadoras, mas los problemas no se resuelven. La
conflagración general del mundo, la mutua destrucción en que los más
adelantados países de hoy están empeñados, muestra el completo fracaso de
los remedios directos hasta aquí empleados. En los cuentos orientales,
cuando las celebridades médicas del reino no conseguían descubrir la
dolencia de la joven princesa, el rey abría las puertas del palacio a todo el
mundo, y todos daban su diagnóstico. El caso del oculto mal de la
humanidad está abierto a los Don Nadies, ya que, positivamente, los
estadistas no atinan con él.
¿A qué atribuye usted ese mal de la humanidad, Don Nadie? – pregunta
el rey – y un Juan Don Nadie responde: – “A un defecto existente en la
moneda”.
En los comienzos de la sociedad humana había el trueque directo de
producto contra producto. Los trueques eram locales, entre vecinos, y
momentáneos, esto es, sólo de productos que existieran en el momento.
Sistema muy rudimentario y de muy reducido radio de acción.
En Brasil decimos que la necesidad pone la liebre en el camino, o sea
que las invenciones humanas surgen por presión de la necesidad. Las
deficiencias del trueque directo impusieron la invención de la moneda.
“A” producía trigo y “B” producía higos. Necesitado de higos, “A”
cambiaba un saco de trigo por unas cuantas docenas de higos; mas como
por el momento no precisase de trigo, “B” aceptó de “A” un “vale”. La
operación se repitió con otras cosas y los “vales” comenzaron a circular. Así
surgió la moneda, que es un “vale” impersonal e indiscriminado,
permutable en cualquier época por servicios o productos, de acuerdo con el
valor convencional del momento.
La moneda pública emitida por el Estado nació de los “vales”
personales, como la mariposa nace de la crisálida; y la moneda pública es
para el “vale” personal lo que la mariposa es para la crisálida.
Con el advenimiento de la moneda, cesó el régimen del trueque directo.
Las consecuencias de la innovación fueron tremendas. El trueque, hasta
entonces sólo posible entre vecinos y en el momento de la existencia de los
productos, se hizo anónimo e independiente de la contingencia de espacio y
tiempo. Puede decirse que se desmaterializó, quedando latente en el seno
del “vale”. Y se deduce de aquí la definición de moneda como una
potencialidad de truque en el espacio y en el tiempo. Esto es, liberada de la
contingencia de espacio y de la premura del tiempo.
Era una cosa de utilidad pública, la más maravillosa de las invenciones,
pues permitía el progreso indefinido del mundo. Eso, sin embargo, en el
caso que permaneciese como de utilidad pública, una especie de aire que
todos respiran y a ninguno le hace daño.
Mas no fué eso lo que sucedió. El destino de la moneda para trueque
potencial, liberada de la contingencia del espacio, hizo posible la maravilla
del comercio nacional e internacional, fenómeno supresor de todas las
barreras de longitud y latitud. Fué un gran bien para la unidad de la especie
humana.
El hecho de que la moneda fuera también un elemento de trueque
potencial liberada del tiempo, hizo que fuese desviada de su función de
utilidad pública y se transformara en cosa “apropiable”. ¡Y adiós para el
mundo la belleza de un instrumento de trueque que era como el aire: de
todos y de nadie!
En consecuencia, la posibilidad de apropiación de la moneda hizo
surgir el tipo actual de capitalismo, hoy tan atacado y condenado por las
ideologías. Mas a Juan Don Nadie le parece que atacar a ese capitalismó es
atacar el efecto, y que nada podrá modificar el actual capitalismo si la causa
nos es descubierta y suprimida. ¿Qué causa podrá ser esa, si no la fijeza y la
perdurabilidad de la moneda, esto es, aquella liberación de la premura del
tiempo que ya subrayamos arriba? Aquí está el punto crucial de la cuestión.
Si la moneda es una cosa absolutamente buena, no puede determinar efectos
malos, como los atribuídos al actual capitalismo; y nadie niega que los
tremendos males de la humanidad de hoy no seam el reductio ad absurdum
del actual capitalismo. Luego, todo viene de alguna cosa equivocada en la
existencia de la moneda.
La experiencia de la moneda está hecha: fué la maravillosa invención
impulsora del progreso hacia la unidad humana. Mas también está hecha la
prueba de que la segunda cualidad de la moneda (fijeza y durabilidad) es lo
que indujo al hombre a desviarla de su función de utilidad pública, o de aire
que todos respiraran y ninguno acaparara.
El mal secreto que roe al mundo está en esa faculdad que tiene el
hombre de apropiarse de la moneda, en vez de usarla solamente. ¿Y por
qué, esa tendencia humana para apropiarse de la moneda, en vez de sólo
valerse de ella? Porque la moneda es una, fija e indeteriorable, en un
mundo carente de fijeza, mundo de cosas deteriorables. Mientras la moneda
sea fija, el hombre la considerará como una cosa buena por excelencia y la
preferirá a todo, porque quien sea dueño de la moneda será dueño del
mundo.
Esa idea de la moneda como la propiedad por excelencia, surgió muy
pronto, en tiempo de los “vales individuales”. En uno de los negocios de
aquel “A” del trigo, con aquel “B” de los higos, “B”, que era más experto,
hizo el seguinte raciocinio: las cosas que pueden ser trocadas por este
“vale” son cosas que se destruyen con el tiempo; mas este “vale” no pierde
valor; puedo por lo tanto guardalo y aprovecharme de la situación de aprieto
en que frecuentemente se encuentran los poseedores de cosas deteriorables,
y entonces lo trocaré por muchas más cosas de las que realmente este “vale”
representa, porque lo que realmente vale es un saco de trigo, ya que lo
recibí como el equivalente exacto de un saco de trigo. Con sus productos
deteriorables, ellos están bajo la presión del tiempo; mas como mi vale es
indeteriorable, estoy libre de esa premura. Puedo retenerlo por un año, dos,
o tres, para usarlo en el momento oportuno.
De este raciocinio salió el capitalismo detentador y manipulador de la
moneda, contra el cual la humanidad se rebela hoy.
Mas atacar al capitalismo es atacar un mero efecto de la moneda. Para
destruir al capitalismo sería necesario destruir la moneda, y destruir la
moneda sería, ipso facto, destruir la civilización y volver al sistema
primitivo del trueque directo, lo que es absurdo.
Las soluciones extremistas con las que se intenta combatir el
capitalismo sólo consiguen una cosa: obstruir, condicionar, embarazar el
libre curso de la moneda. Esto equivale a afectar los trueques latentes en el
seno de la moneda, trueques fundamentales para que la ciyilización se
desenvuelva, ya que la civilización no es sino la extrema amplificación del
fenómeno del trueque.
Las soluciones eclécticas, amigas del capitalismo, no consiguen sino
mudar la forma de los males o transferirlos a otro sector. ¿Será, entonces, un
caso sin solución? Es posible que sí. Es posible que no haya solución
directa; y en esse caso tendremos que recurrir a las indirectas. Y entre las
soluciones indirectas, una se impone a primera vista: eliminar de la moneda
su fijeza y su absoluta liberación del tiempo.
Para eliminar la fijeza de la moneda, el medio sería la adopción de un
sistema de moneda rescindible, em que el valor fuese constantemente
cayendo hasta extinguirse del todo. En vez de permanecer como es, una
cosa fija e imperecedera en un mundo sin fijeza, de cosas perecederas, la
moneda también se subordinaría al tiempo, haciéndose perecible.
La nueva moneda, por lo mismo, sería un papel de curso forzoso,
fechada, y que iría perdiendo continuamente su valor, de 100 a 0.
Para facilitar la comprensión, figurémonos un país cuyo medio
circulante decaiga cada año un 20% de su valor. En el giro de ese medio
circulante, habrá un continuo cálculo de cambio, porque la moneda fechada
sólo valdrá 100 en el momento de su emisión: a partir de ahí irá haciéndose
rescindible, día a día, hasta que al cabo del primer año valdrá 80; al del
segundo año 60, y así en adelante hasta llegar a 0 al fin del quinto año.
El Estado emitirá anualmente la cantidad de moneda necesaria en
substitución de la rescindida, de modo de conservar el valor del medio
circulante siempre al mismo nivel. El sistema de moneda rescindible se
reduce exclusivamente a eso. La acción del Estado se restringe a mantener
el nivel del medio circulante por medio de las emisiones periódicas. El
Estado no impone nada. No obliga a nadie a cosa alguna. Deja que la
destrucción de la fijeza de la moneda cause sus efectos de manera natural y
mansamente.
¿Y cuáles son esos efectos? Tenemos que imaginárnoslos con nuestra
fuerza de lógica.
Una de las consecuencias más interesantes sería la maravillosa solución
del eterno problema de los impuestos. Y – ¡caso curioso! – la perfecta
solución del problema fiscal vendría con la absoluta supresión del Fisco. Se
acabarían todos los impuestos. No más aduanas, colecturías, timbres,
multas, todas las miserias e iniquidades del Fisco. ¿Qué es el Fisco, sino un
complejo y estúpido sistema de embarazos opuestos a la libre actividad del
hombre, de los cuales éste se libera pagando los rescates que impone el
Estado?
La historia de la civilización cabe dentro de la historia del Fisco.
Convulsiones sociales tremendas, como la Revolución Francesa, nacieron
directamente de las iniquidades fiscales.
Y los impuestos desaparecen porque cesa para los Gobiernos la
necesidad de arrancar dinero al pueblo. El dinero para los gastos del Estado
vendría de la simple depreciación del medio circulante. Si el medio
circulante pierde, supongamos, un 20% de su valor por año, la emisión
anual de ese otro 20% para mantener el importe total de la circulación al
mismo nível constituirá el presupuesto del Estado.
El segundo efecto de la moneda rescindible sería la imposibilidad de
que fuese retirada de la circulación, acaparada, manipulada, etc. y eso sin
ninguna vigilancia. El eventual detentador de la moneda tiene la más
completa libertad de retenerla hasta el final de 5 años solamente (en el caso
considerado arriba), porque al fin del quinto año la moneda que guardó
estaría completamente sin valor. La sanción en que incurriría el detentador
de la moneda seria esa: ver que su valor fuese desapereciendo. Una sanción
mecánica, automática.
La constante depreciación de la moneda haría que el impuesto sólo
fuese pagado por quien estuviere detentándola, en la proporción en que lo
hiciere y sólo cuando la detentara. El tenedor que la trocara por qualquier
cosa, cesaría inmediatamente de pagar el impuesto invisible; ese pago se
transferiría para el nuevo tenedor, y así sucesivamente. Guardar moneda
rescindible sería lo mismo que guardar un helado en el bolsillo. Quien
quisiera hacerlo, que lo haga; con eso no perjudicaría a la sociedad ni a
nadie: sólo se perjudicaría a sí mismo.
En el régimen de la moneda fija, lo lógico, lo natural, lo humano, es
conservala lo más posible, es retirarla de la circulación, con los graves
daños públicos que sabemos. El fenómeno de las crisis o depresiones
periódicas se caracteriza justamente por la desaparición de la moneda en
circulación, con inenarrables sufrimientos para el pueblo. ¿Y qué sanción
existe para quien retira de la circulación el instrumento básico de cambio?
Ninguna. Quien lo hace sólo recoge ventajas, así el mundo perezca, Es el
régimen de los “robber barons”, “The public be damned” (que el público
sufra), dicen ellos.
Los tranvías y autos de una metrópoli son los vehículos de la
circulación de sus habitantes; si en un momento dado fueren acaparados,
ocultos y retirados de la circulación, los mayores transtornos sobrevendrían
a la metrópoli – y la llevarían hasta la parálisis. La pertubación sólo cesaría
cuando los vehículos fueran nuevamente puestos en circulación.
Es lo que sucede con la moneda en los tiempos de pánico. Sus
eventuales detentadores la retiran de la circulación, la esconden: a ella, que
es para la circulación económica lo mismo que los tranvías y los autos son
para la circulación de las gentes.
Todos los medios han sido empleados ya, en las crisis pasadas, para
hacer que la moneda vuelva a la circulación. Hasta la campaña persuasiva
del “buy now” en 1930; pero todos han fallado.
En el régimen de la moneda rescindible, la sanción es inherente a la
moneda. La moneda castiga al tenedor con el propio hecho de la
depreciación. En el régimen de la moneda fija es el natural egoísmo del
hombre el que lo lleva a retener la moneda. En el régimen rescindible, ese
mismo egoísmo lo llevará a no retenerla.
En el régimen de la moneda fija, las crisis hacen que de tal modo la
moneda desaparezca de la circulación que en muchos lugares los hombres
se ven obligados a volver al sistema primitivo del trueque directo; todo
porque la fijeza de la moneda pone al que la retiene en una posición de
absoluta superioridad sobre el resto de la humanidad. En el régimen
rescindible sucede lo contrario – es el detentador el que queda en posición
de inferioridad.
Una de las consecuencias lógicas de la moneda rescindible será
subrayar el tremendo valor del trabajo humano; justamente lo contrario de
lo que tenemos hoy.
Qué vemos hoy? Una cosa dolorosa: exceso de oferta de servicios o de
productos de trabajo humano y un mínimo de demanda. De ahí millones de
desempleados, fábricas a media producción, quema de productos agrícolas,
etc. ¿Por qué? Por causa de la retracción de la demanda. Como sólo la
moneda es fija en un mundo sin fijeza, adueñarse de la moneda, retener la
moneda, guardar la moneda “para los dias de lluvia” equivale a ser el dueño
del mundo. Ese raciocinio reduce la demanda al mínimo.
En el régimen de la moneda rescindible todo se invierte. El despotismo
que la demanda ejerció siempre en el mundo, cederá el cetro a la oferta. El
dictador pasará a ser el Trabajo Humano.
Por otra parte, nada más lógico que a parte del momento en que el
trabajo humano pase de la miserable condición en que siempre vivió (esto
es, de un artículo que se ofrece por todas partes en las condiciones más
humillantes para ser un artículo de tremenda y constante demanda)
desaparezca el mal secreto referido arriba.
El capitalismo subsistirá, mas sólo el “capitalismo de las cosas”, si es
posible llamarlo así, no el de la moneda. Tener es humano y bueno. Juntar
bienes es humanísimo y óptimo; mas juntar bienes será juntar cosas y no
monedas. Este precioso instrumento de cambio no podrá ser por más tiempo
manipulado, acumulado, guardado, prestado, puesto a rendir rédito.
El símil entre la moneda y los vehículos de una ciudad es perfecto.
Ambos son rigurosamente instrumentos de circulación, a condición de que
sólo existieran mientras estén circulando.
No valen por sí, sino por la función que ejercen y mientras la realizan.
Un tranvía o un ómnibus retenido en el depósito prácticamente deja de
existir para los efectos de tráfico de la ciudad. Cierta cantidad de moneda
retenida en una gaveta o en un banco de depósito deja de existir para los
efectos de los fenómenos del cambio. Mas si hay sanciones policiales contra
las empresas de ómnibus que dejan sus carros en depósito, pertubando de
ese modo el tránsito de la ciudad, no hay sanción ninguna para quien retira
la moneda de la circulación y perturba de esa manera la vida económica. Y
no la hay, porque no puede haberla. El hombre sólo dejará de retener la
moneda cuando la moneda sea rescindible.
Estas ideas chocan con nuestros principios aceptados en materia
monetaria vistos desde el régimen de moneda fija en que vivimos. Pero no
importa. Una civilización que está llegando al absurdo de destruirse a sí
misma por intermedio de sus pueblos de mayor desenvolvimento, no tiene
nada que alegar contra cualquier idea nueva por el simple hecho de ser
nueva; esto es, nunca experimentada en el mundo.
La actitud verdadeiramente cientifica es una sola: la del trial and error.
Sería, pues, curioso que en algún lugar del mundo se hiciese la experiencia
de la moneda rescindible: único medio de verificar si las objeciones contra
ella levantadas son las “objeciones de los hechos” o meras racionalizaciones
de nuestra predilección personal.

NOTA DEL DIRECTOR:

Como se podrá apreciar por la biografia del señor Monteiro Lobato,


que se publica en las páginas de esta revista, el autor del artículo “La
moneda rescindible” es uno de los escritores más conocidos y populares de
la República del Brasil; y para nosotros es un honor que él figure como
miembro del Instituto de Estudios Económicos y Sociales.
El ensayo que nos ha enviado relativo a un nuevo tipo de moneda es
verdaderamente una novedad y muestra la viva imaginación del autor. Sin
embargo, deseo hacer algunas observaciones a su articulo para advertir
desde luego a los lectores algunos de los serios inconvenientes que
resultarían de poner en practica el método indicado.
Como observación inicial puede decirse que el capitalismo no surgió
del hecho de que la moneda se transformara en cosa “apropiable”. La
característica essencial del capitalismo es la de que los medios de
producción y distribuición de la riqueza estén en manos de los particulares,
en vez de que el Estado sea el patrón único, como en los regimens
comunistas, nazistas y facistas.
Deseo también observar que el valor de la moneda está muy lejos de
ser fijo: varía de acuerdo con su poder adquisitivo, y precisamente uno de
los diversos factores que afectan su valor es la abundancia de los medios de
pago.
Si bien es cierto que a los billetes de banco podría ponérseles una fecha
con el objeto de que, en relación con ella, perdieran parte de su valor, desde
cien a cero, el límite del valor de las monedas de plata (el oro desde luego
quedaría eliminado), de cobre, de níquel, etc., sería su valor intrinseco.
¿Y cómo podrían “fecharse” los depósitos de los bancos, cuando e
monto de los saldos individuales varia constantemente?
Es evidente que si se pusiera en práctica la sugestión del señor
Monteiro Lobato, se introduciria una gran diversidad de valores de papel
moneda; y habría tantas complicaciones por lo que respecta al valor de los
depósitos que la supuesta ventaja de hacer la moneda “inapropiable”
quedaría destruída como resultado de mayores inconvenientes; y por lo que
respecta a las monedas metálicas, hasta un cierto límite éstas no podrían
circular de otro modo que de acuerdo con su valor intrínseco, pues no
podrían llegar a tener un valor menor que el precio del metal que contienen.
Asi unas monedas (los billetes de banco) serían rescindibles, y otras (las
monedas metálicas) no podrian serlo.
Por otra parte, creer que por medio de la emisión anual de billetes se
acabarían todos los impuestos, es ilusorio. Actualmente el producto anual
de los impuestos, en naciones como los Estados Unidos de Norteamérica, es
superior al monto total de la circulación monetario.
Y por lo que respecta al símil de las monedas con los vehículos no son,
ni pueden serlo, medios de cambio; y aunque las monedas “circulan”, lo
hacen de muy diferente manera que los automóviles o los tranvías
eléctricos.
En síntesis, aunque la sugestión del señor Monteiro Lobato es novedosa
y no por “nueva” debe descartarse, al ponerse en práctica tal vez
introduciría inconvenientes de mayor consideración que la ventaja que
desea obtenerse. Sin embargo, el plan del señor Monteiro Lobato es muy
interesante, y podrá sugerir nuevas ideas sobre la cuestión que él tan
hábilmente trata.

OBSERVAÇÃO
Esta ideia de moeda, que me parece original, está apresentada nestes
dois artigos apenas como sugestão. É uma ideia a ser longamente “pensada”
e depois disso “experimentada”. Só depois da experiência poderá ser
julgada, pois só a experiência revelará todas as reações de que uma tão
fundamental mudança na essência da moeda seria capaz. Uma coisa me
parece: sob o regime de tal moeda a terra teria de sair do regime de
propriedade individual. Teria de ficar como o ar – que todos respiramos mas
ninguém apropria.
As objeções do diretor do El Economista não atingem a ideia em sua
essência; apenas tocam em consequências que com pouca meditação previ e
apressadamente escrevi num simples artigo sem responsabilidades. Repito
que não apresentei nenhum estudo da Moeda Regressiva, ou Rescindível, e
sim uma sugestão. Estudem-na os homens de boa cabeça. Façam a
experiência numa zona qualquer. Quem sabe se em vez duma fantasia
lógica não está aí uma solução automática de grandes problemas da
economia humana?
Sobre o assunto o engenheiro J. B. Meiller, de Marília, tem um ensaio
interessantíssimo e muito merecedor de divulgação e atenção.
Planalto

Um romance que prenuncia outro

A grande revelação mental do mês findo foi um


livro de capa roxa, com o título Planalto em letras brancas, da autoria de
Flávio de Campos, um rebento da velha cepa dos Campos de São Paulo. Há
um desenho em negro nessa capa, figurando um moço afundado numa
poltrona, de costas para o público, braço pendente, cabeça caída sobre os
joelhos. A apresentação mais afugentadora possível dos leitores que,
aborrecidos com as cruezas da vida real, procuram no romance tabloides de
heroína.
E na realidade há ali dentro muita tristeza – a pior de todas, a social,
essa tristeza hoje espalhada pelo mundo inteiro em consequência da
sensação de fim de fase que a humanidade atravessa. Declínio e queda do
Império Romano, foi como Gibbon denominou o seu grandioso panorama
da desintegração do mundo romano. Um futuro Gibbon talvez escolha o
mesmo título para o quadro da desintegração do mundo de hoje – essa
civilização que teve o seu planalto de repouso estendido de meados do
século XIX até 1914, e aí rolou na barrocada da Grande Guerra, e desce, e
vai caindo ao modo das avalanches, com um esbrugamento de tudo quanto
parecia conquista social definitivamente cristalizada.
Os romancistas são os modernos fixadores dos aspectos transitórios da
vida. Desenham as almas e os ambientes do caminho. Fazem a verdadeira
história da aventura humana no planeta. Preparam os cortes anatômicos
necessários aos estudos dos sociólogos a virem. Romance nenhum deixa de
ser um documento; na pior hipótese, documento da incapacidade estética do
autor. Um gomo inteiro da vida ecológica da França está fixado na Comédia
humana de Balzac. Huxley está hoje fixando o drama da inteligência
científica em choque com os encrostamentos da tradição. Wells vai além:
transforma-se numa universidade viva e consegue alçar-se à profecia. The
Shape of Things to Come realiza o milagre da introdução da matemática na
história. Wells soma os algarismos do passado com os do presente e dá os
números – o bicho, a dezena, a centena e o milhar do futuro próximo.
Neste nosso pedaço do continente americano, que apesar das suas
resistências faz parte do todo Humanidade, existe um trecho de território
que geograficamente é planalto – e mentalmente se vem demonstrando
planaltíssimo. Clima favorável, povoamento imigratório e terras bem
nitrogenadas permitiram que, ao acaso, ao léu, ao deus-dará, um esboço de
civilização bastante complexa na mentalidade compósita, e com o duplo
alicerce da agricultura e da indústria, nascesse – como varredura de
sementes lançada na terra negra de um quintal. Nasceu de tudo em São
Paulo – ou no Planalto – e a competição frenética de tanta semente
heterogênea faz dele uma “mancha de civilização” incompreensível para si
própria e para o país que a rodeia.
O paulista mental, ou o planaltino, estuda-se, tenta abarcar a totalidade
do fenômeno, metê-lo dentro de um quadro compreensível, com um
bandeirante no fundo, um fazendeiro de café no meio e um caos de raças no
primeiro plano. Mas o fenômeno, por excessivamente complexo, não cabe
em quadro nenhum. Tudo muito interferido. Muito provisório, instável,
depois da liquefação que nos veio de uma pacatíssima cristalização de
quatro séculos. Ninguém sabe o que se está formando no Planalto, nem
sequer se realmente se estará formando alguma coisa.
Outros têm feito livros ao molde dos instantâneos tomados com
explosão do magnésio. Apanham num quadro geral todo o visível; mas não
é esse quadro visível o mais interessante do Planalto, sim o que fermenta,
ou a futura recristalização. E para o desenho antecipado, ou a previsão desse
futuro, ainda não apareceu o nosso artista-profeta, à Wells.
Flávio de Campos entra em cena – e surpreende-nos. Primeiro,
revelando uma capacidade perceptiva que amiúde nos faz pensar em Aldous
Huxley; segundo, revelando-se um escritor orgânico, coisa rara. Há os que
aprendem a escrever, como os papagaios aprendem a falar; e há os que
escrevem por destino, tão organicamente como respiram, suam e o mais. A
arte de escrever de Flávio de Campos é puramente orgânica: ele não
constrói períodos, deixa que os períodos borbotem feitos de dentro do seu
subconsciente. Escreve como fala. Quase, todo mundo fala organicamente,
sem pensar, sem self-consciousness: mas ao pegar da pena raríssimos
conseguem “falar graficamente” – como Machado de Assis.
A arte de Euclides da Cunha, por exemplo, era uma esplêndida
demonstração da engenharia e do cienticismo feita com palavras literárias.
Alberto Rangel levou ao apogeu a arte de construir pirâmides de acrobacia,
com ideias que se agarram umas às outras, pelas mãos ou com os dentes, e
com encantadora perícia tenteiam no nariz vocábulos raros ou técnicos –
tudo perfeitamente matemático, e a tal ponto que se retirarmos um toda a
pirâmide desaba em escombros. Os assuntos, os temas, as paisagens, os
tipos e o enredo só entram ali como pretexto para a demonstração da perícia
malabar do autor.
– Quer ver que maravilhoso arranjo melo-estético-científico eu faço
com caboclo maleiteiro do Amazonas?
E faz. Faz uma perfeita maravilha melo-lítero-científica, com todas as
dificuldades brilhantemente vencidas, para encanto dos cultos apreciadores
do “raro”. Mas a coisa descrita não tem importância. Mera talagarça. Mero
pretexto para a “performance”, como diria Guilherme de Almeida.
O estilo de Flávio de Campos é o reverso disso. Apaga-se da maneira
mais humilde para que só fiquem em cena o personagem, o estado d’alma
ou a paisagem que descreve. Sobretudo o estado d’alma, porque é a alma
dos personagens o que mais o interessa. Tamanha humildade de estilo –
estilo servo, que dá o seu recado e afasta-se, admitindo que ele, estilo-servo,
não tem importância nenhuma diante do recado – faz de Flávio de Campos
o que ele não procura ser – um estilista. Seu estilo dá ao instrumento-língua
empregado na obra a ductilidade das folhas de estanho – ou uma
adaptabilidade de gás. Rigidez nenhuma: amaneirado nenhum; fuga
sistemática a tudo que seja regra constritora; absoluta ausência de respeito
humano na escolha da palavra exata, por crua que seja. Ele quer tons. Toma
as palavras como o pintor toma as tintas e mistura-as sem atenção a outra
coisa que não seja o efeito que “precisa” obter. E consegue assim tornar
absolutamente vivos os seus personagens e o ambiente em que pererecam.
E como pererecam! Nenhum deles se conhece, nem sabe o que quer.
Refletem maravilhosamente o mal do mundo – esse estado d’alma de
“declínio e queda” da Coisa Estabelecida e de entressonho de um novo
sistema de equilíbrio menos desagradável. E na falta de melhor, atordoam-
se com o álcool e o sexo. Exigem demais do pobre sexo e do pobre álcool.
Fazem do primeiro um violino de que querem extrair sinfonias
debussynianas; e como para tal música a prosaica natureza impõe a
colaboração feminina, eles procuram a Mulher e só encontram mulheres
com emezinho minúsculo – pobres mulheres elementares, como aquela
prodigiosa Irene do Fernando.
E, assim, de bar em bar e de mulher em mulher, vão empurrando a vida
não sabem para onde; e debatendo ideias do dia dentro da técnica freudiana,
e afinal se convencendo de que a vida não passa de um pau de sebo com
uma nota falsa na ponta.
O mais bem-dotado do grupo, Lauro, o moço de todas as sensibilidades
morais, não consegue o equilíbrio de adaptação e suicida-se – e esse drama
tira ao livro de Flávio de Campos o caráter de crônica para dar-lhe o de
romance. Planalto resume-se no romance dessa alma do futuro (caso o
futuro do mundo seja o que Wells prediz), nascida muito antes do tempo
próprio. O pobre cérebro de Lauro referve num incessante devaneio
autoanalítico, sempre desfechado na mesma conclusão: a sua
inadaptabilidade a um meio ainda muito canibalesco para uma alma inimiga
de comer carne humana.
Fora daí, Planalto não é um romance, no sentido comum de conto com
trezentas páginas de desenvolvimento, isto é, uma história em que há um
pedestal preparatório, um crescendo de ação convergente e um desfecho
dramático. Madame Bovary, por exemplo. Planalto não é assim. Dá ideia
de um livro feito por partes, com um começo que não previa o fim. O autor
começa pintando tipos familiares; faz uma crônica fragmentária de moços
paulistanos que alternam as mulheres com os drinks da moda – Canadians,
White Labels etc. Nenhum toca em álcool indígena – esses cauins feitos de
cana-bambu. E conversam, perguntam-se uns pelos outros, comentam com
enfaro as mulheres próprias e alheias, céticos de si e do mundo, todos eles
planaltíssimos. Nenhum alça voo rumo a um pico – nem há picos no
planalto.
Todas as correntes ideológicas encontram ali simpatizantes e até
mártires. Como sempre acontece, o martírio cabe aos extremo-esquerdistas.
Mas a divergência de ideias não os separa. A confraternização é linda.
Riem-se das ideias dos outros; humanamente acham que a sua é certa – e às
vezes nem isso.
Em dado momento uma crise emocional na vida do planalto os sacode.
Surge a guerra intestina. Um equívoco qualquer na política faz esses moços
fardarem-se e marchar – e em poucas páginas Flávio de Campos dá a
melhor pintura que conheço da Revolução Paulista. Um tríptico. O
arrastamento do entusiasmo inicial, o mês de tiros às tontas e o inenarrável
desapontamento final. O Planalto batido pela Baixada...
A decepção bélica reconduz os rapazes ao bar, ao Canadian, às
mulheres de entre cá e lá. Todos se sentem sem asas. O pântano é enorme, e
todo ele rãs coaxantes, mexeriqueiras e aquisitivas. Há um azul em cima
que tenta a muitas delas. Mas rã não voa. No máximo, salta.
Lauro, afinal, desiste de uma vida assim, chocha em excesso. Estuda
num livro de medicina os efeitos do gás de iluminação no organismo, fecha-
se na sala, senta-se na poltrona desenhada na capa do livro, abre o gás, põe
na vitrola a “Morte de Isolda” e espera. “Olhou o céu, olhou as estrelas,
olhou lá longe a infinita paz do infinito. Depois fixou a vista no porta-
retrato (um retrato de moça) e ficou a olhá-lo de longe, de muito longe,
através da nuvem que veio vindo, veio vindo, veio vindo...”
Assim termina o romance, com a fuga de Lauro para longe do pântano
de rãs mexeriqueiras e aquisitivas.
Antes disso havia devaneado pela última vez. “Mas... para que perder
tempo com essas divagações? Ele precisava de dinheiro. Não hoje, mas daí
a dois, três dias. A necessidade de dinheiro reapareceria imperiosa, sem
devaneios, e é preciso comer, é preciso andar, mexer-se, viver – é preciso
dinheiro. E o dinheiro não vem. Os homens de estudo não são homens do
dinheiro. Os filósofos, os poetas, os santos, os guerreiros, os artistas e os
cientistas, todos eles são desfavorecidos da fortuna. Ganhar dinheiro é um
instinto. O instintivo do dinheiro só vê beleza, elevação e alegria no ganhar
dinheiro, no acumular dinheiro; falta-lhe o outro lado humano. E o dinheiro
só vem para os que vivem para ele...” e por aí além. Lauro não se sente
aquisitivo num mundo de criaturas visceralmente aquisitivas – e desiste de
permanecer espectador da luta.
Está justificada a cor roxa da capa. José Olympio desmente o seu róseo
otimismo com a frequência das capas roxas de suas edições – roxo de flor
da Paixão.
Ignoro como a crítica vai receber o romance de Flávio de Campos, mas
admito que fará criminosa injustiça se não o tratar como a exuberante
revelação de um peregrino valor mental. Tudo ali indica um novo sol que se
ergue. Talvez esteja nele o romancista de São Paulo – do Drama Paulista.
No livro de agora temos apenas uma aproximação do tema. O próprio autor
o reconhece. Falta ali a terra. Faltam os rios andando, falta o sertão, a
fazenda, as “entradas”. Falta a visão dos fundadores das Baurus, das
Marílias e Garças, falta o plantador de café que chorou com a geada de
1918 e a seguir viu toda a sua imensa obra desagregar-se ao assalto da broca
e da valorização – o parasita natural e o artificial. Falta o paulista velho
batido de cem raças novas, misto de peão e chauffeur, que em menino
cavalgava pangarés, em moço pinoteava num fordinho de bigode e hoje
debate-se para a contínua adaptação ao caleidoscopismo do momento
nacional, ora verde, ora vermelho, ora azul, e sempre furta-cor. O paulista
surrado, humilhado, com todos os calos pisados, mas sempre confiante na
vitória final do clima, da altitude e do roxo-terra.
Será Flávio de Campos o esperado fixador do grande drama? Terá
ânimo e vida para depois deste trabalho de “aproximação” arregaçar as
mangas e intrepidamente amassar no barro magicamente vivo do seu estilo
o monumento que todos reclamam e ninguém tem coragem de atacar – o
Drama do Planalto de Asas Cortadas?
Esperemos.
De São Paulo a Cuiabá

Até Santos Dumont o homem viveu vida de verme,


isto é, de animalzinho que se arrasta sobre a superfície da terra. Para tais
seres o grande óbice é sempre a distância, que nós dividimos em pedacinhos
denominados passos, metros, quilômetros, léguas ou milhas. O progredir
humano tornou-se sinônimo de vencer a distância, como a própria palavra
em seu sentido original latino o indica – progredior, ir para diante.
Nossa engenhosidade fez que fôssemos aperfeiçoando os nossos meios
de combate à distância – e surgiu a canoa, o cavalo, o carro, o trenó, o trem
e por fim o automóvel, esse besourinho de ferro que “bebe a distância”.
A medida mais elementar da distância foi naturalmente o passo, porque
era a passos que o homem vencia a distância. A milha dos romanos: mil
passos, simples múltiplo do passo, como o quilômetro o é do metro. Com as
invenções que trocaram o andar a passo pelo deslizar da canoa ou do trenó
pelo trotar do cavalo, pelo rodar do carro ou do trem, pelo chispar do
automóvel, fomos insensivelmente mudando o termo de medida da
distância: em vez do termo-espaço já usamos hoje o termo-tempo. Ninguém
mais pergunta quantas léguas há de São Paulo ao Rio, e sim em quantas
horas se vai.
Se tomarmos ao acaso cem pessoas, noventa saberão que a distância
entre Rio e São Paulo é de doze horas, e talvez nem todas as dez restantes
saibam a distância em léguas ou quilômetros. Eu, por exemplo, não sei –
nem quero saber. A hora como medida de distância subentende-se como
aplicada ao veículo mais empregado no vencer o percurso. Como entre o
Rio e São Paulo é o trem, a distância marcada em horas se relaciona ao
trem. No dia em que o transporte por automóveis suplantar o transporte por
trem, a medida-hora se relacionará ao automóvel.
O que mais impressiona a quem chega a Cuiabá é ouvir constantemente
falar em léguas, uma medida que em São Paulo já está entrando em desuso.
E como há léguas por lá! Aqueles homens falam em cem léguas, em
duzentas léguas sem a menor consideração para com os visitantes,
esquecidos de que quem procede de zona onde a medida de distância é a
hora, falar em légua é dar facadas no coração. A légua sugere
imediatamente um cavalo magro e lerdo, uma estrada buraquenta ou
lamacenta, um sol de rachar, um deserto em torno, mutucas,
vascolejamentos de todas as vísceras, sede e fome, medo às chuvaradas –
todas essas coisas lá dos bandeirantes, não do homem moderno que mede a
distância em termos de tempo. E o problema do imenso estado de Mato
Grosso se torna imediatamente claro: matar todas aquelas léguas, destruir as
serpentes-léguas que se enroscam na perna dos homens.
De uma cidade a outra, por exemplo, há cem léguas; quer dizer que há
cem serpentes que o viajante tem de ir matando uma a uma até á derradeira.
Ora, o trabalho é imenso. O viajante chega derreado, com o coranchim a
arder, reclamando a berros semicúpios de salmoura. E o trágico é que as
serpentes-léguas que ele matou renascem todas, logo que trata de voltar.
Nova trabalheira de Hércules, nova matança das cem léguas. E, pois, como
há de progredir uma terra onde o homem se vê forçado a consumir o melhor
das suas energias físicas na matança de serpentes que perpetuamente
renascem?
O problema de Mato Grosso se torna claríssimo: petróleo. Só o
petróleo vence a légua. Que é uma légua para um automóvel em boa
estrada? Três minutos. Que é uma légua para o avião? Um segundo.
Aqueles heroicos patrícios de Cuiabá apenas montam guarda ao território,
sitiados que se acham por milhões e milhões de léguas. Há dois séculos
resistem nos redutos brotados dos acampamentos de garimpagem
estabelecidos pelos bandeirantes, à espera de um milagre qualquer. Esse
milagre só poderá vir sob forma de petróleo – o Flit que mata as léguas.
O homem deixou de temer a légua a partir do momento em que deixou
de arrastar-se sobre a superfície, à moda dos vermes. Santos Dumont deu-
lhe asas, ensinando-o a voar como já o faziam as aves e os insetos. E sua
mentalidade, até então subordinada à condição de verme rastejante, dilatou-
se furiosamente. Seu raio visual, grande quando olhava para cima, pois
chegava até às remotíssimas estrelas, era dos mais curtos quando dirigido
horizontalmente ou para baixo. Um simples grupo de árvores bastava para
limitá-la; e para ver alguma coisa de cima para baixo tinha de trepar ao pico
de uma montanha.
A aviação veio mudar tudo. Podemos ver para baixo num raio de
alcance só limitado pela esfericidade da Terra. E desse modo nos
equiparamos ao condor dos Andes – oticamente...
Quem voa no bojo dum condor de alumínio movido a petróleo vê
aspectos muito diferentes dos que apreendemos na leitura de livros ou por
informação verbal da gente que se arrasta lá embaixo. Vale a pena, portanto,
passar em revista as reações mentais dum estreante do percurso aéreo São
Paulo-Cuiabá.
Em primeiro lugar, vemos tudo miniaturescamente. Não há montanhas,
nem rios, nem cidades, nem rodovias como as conhecemos na nossa
habitual visualização de vermes reptantes. O que há é um tapete sem-fim de
verdura, tecido de pequeninas malhas redondas: a copa das árvores; com
intervalos de tela nua: os campos; com delgadíssimas tênias torcicolantes:
os rios; com um emaranhado de minúsculos riscos vermelhos: estradas,
caminhos ou trilhas. A espaços, em meio da verdura tapetante, uns
quadradinhos de “estrago”, como nos velhos tapetes de sala o esfiapamento
que entremostra a tela básica: as fazendas ou sítios, com suas colônias e
roças.
A natureza criou o tapete sem-fim que recobre a superfície da terra.
Dentro da pelagem desse tapete vivem todos os animais, respeitosamente.
Nenhum o estraga, nenhum o rói, exceto o homem. Ah, que terrível
estragador do tapete é o homem! Que traça daninha!
Agora, uma cidade. Só aquilo? Que coisinhas de presepe são as nossas
cidades do interior! Aglomerados de minúsculos retângulos de cor suja (os
telhados) apensos aos retângulos dos quintais, divididos entre si
geometricamente pelas estreitísimas faixas das ruas. Lá está um retângulo
maior: a praça da matriz, ex-praça João Pessoa, com certeza. E outro de
verde uniforme: o campo de futebol. Só isso – e mais as cobrinhas-corais
das estradas que de todos os pontos do quadrante vão absorver-se nela.
Gente, nenhuma. O micróbio-homem não é perceptível de mil metros
de altura. E ficamos a pensar que sob aqueles pequeníssimos retângulos
vivem famílias desses micróbios, machos e fêmeas, uns capitalistas, outros
comunistas. E que se amam, e que brigam, e que se reproduzem, e que
discutem política e se odeiam, porque um que é PC se julga muito menos
micróbio que outro que é PRP. Coitadinho do homem!
Mas a cidade passa. Continua o tapete verde, sempre com os estragos
microbianos. Agora, dois pauzinhos, como filamentos de capim, sobre uma
faixa sinuosa cor café com leite: a ponte do Jupiá, no rio Paraná, que liga o
pedaço de tapete pertencente a São Paulo ao pedaço pertencente a Mato
Grosso.
Entre os riscos vermelhos há um mais insistente que os outros. Não
acaba nas cidades. Passa por elas e continua. Que risco é esse tão uniforme
e mais calcadinho? A Noroeste!... Uma estrada de ferro de penetração.
Súbito, nossos olhos divisam a custo uma lesminha comprida, um
mandrovazinho sobre o risco vermelho: é um trem, um comboio em
marcha. Em marcha? Será acaso marcha aquele se arrastar imperceptível?
Lá embaixo é...
São Paulo já ficou atrás. Na zona de Araçatuba, a última do estado
líder, o estrago do tapete verde é intensíssimo – e estrago novo, em
progresso rápido. Quer isto dizer, na linguagem dos micróbios, que há ali
culturas novas, que a zona é rica e está próspera. A prosperidade do homem
se resume em estragar o tapete natural, fazendo a terra produzir umas tantas
coisas que os governos “protegem”.
E que é o governo visto lá de cima? Visualmente nada, uma coisa que
não existe. Só pela imaginação o sentimos. Uma entidade triforme –
municipal, estadual e federal, que rói um pedacinho de cada estrago que o
bípede faz no tapete verde: rói o café, rói o algodão, rói o milho – rói, rói,
rói... Rói até uns caixõezinhos de tábuas, montados sobre duas rodas,
chamados carroças, aos quais o bípede atrela um animal de nome burro,
para transportar coisas dum ponto para outro. Cada um daqueles
microscópicos caixõezinhos sobre rodas traz sobre si uma plaquinha de
esmalte com um número – sinal de aferimento, isto é, de que chega até ali o
rói-rói do governo.
Mato Grosso, enfim! Cessam os estragos na verdura do tapete. O
tapetamento está como a natureza o fez – dum verde contínuo, plano, sem
riscos fora o da Noroeste. O tapete verde parece não ter fim. Súbito, um
estraguinho: a cidade de Três Lagoas – e de fato surgem as três lagoas que
deram nome à localidade, as primeiras das inúmeras que iremos ver adiante.
O condor de alumínio desce para a sua refeição de escala. Não come
nada, porém; apenas bebe. Bebe umas tantas latas dum líquido que
Rockefeller nos vende. Enchido o papo-tanque, a hélice regira. O condor
novamente levanta voo.
O tapete mudou de aspecto. A urdidura é outra. Padrão novo.
Começam a aparecer os rios-verdes. Que é isso? Refranzimos a testa – sinal
de esforço para compreender. Perguntá-lo a algum companheiro de viagem,
inútil. Quem voa não fala, porque não é ouvido. Só fala nos aviões o motor
azoante. Temos que recorrer à indução, à dedução, à ilação, a toda a tralha
da mecânica cerebral – e por fim a inteligência nos explica o fenômeno.
Aqueles rios-verdes são águas mortas, paradas, ou então que correm com
velocidade imperceptível até para as plantas aquáticas que lhes revestem a
superfície dum forro contínuo, dum tom verde mais claro e fosco do que o
tom geral do tapete infinito. Esses rios-verdes seguem em manso colear
pelo tapetamento afora, muito mais largos que os rios de água corrente, e
com um cordão verde escuro a marcar o eixo do thalweg.
Curioso o fenômeno desses cordões. A região é de campo com
vestimenta muito rasteira. As árvores só se desenvolvem no eixo dos rios-
verdes, em linha contínua prolongada em coleios por grandes extensões.
Não há viajante que não sinta vontade de descer para verificar como é
aquilo realmente.
Mas o condor que voava a mil metros começa a descer. Nossos
tímpanos avisam-nos disso. A natureza não previu os condores de alumínio,
de modo que nossos pobres tímpanos se veem seriamente atrapalhados com
as mudanças bruscas da pressão atmosférica. Mas lá se arranjam, com as
engulidelas em seco que o instinto nos sugere. Adaptam-se.
Desce o condor. Parece que vai roçar a copa das árvores. O campo de
aterrissagem está à vista. A ave pousa. Cessa de roncar.
Campo Grande. A futura São Paulo de Mato Grosso fica a dois minutos
dali – minutos-auto. Todos descem. Novas engulidelas em seco. Olhares
agradecidos ao Lins, o piloto seguro que nos depôs em terra intactos, apenas
um tanto azoados.
O condor dormirá ali para a continuação do voo no dia seguinte. E
vamos ver Campo Grande.

II

Em Três Lagoas o condor de alumínio pousa apenas para tomar o seu


mata-bicho de gasolina, de modo que Campo Grande é a primeira cidade
mato-grossense que vamos ver com algum vagar. Ponto de pouso. O avião
entra no seu galinheiro e os viajantes seguem para o hotel.
Começam as surpresas. Naquela distância de São Paulo, e depois de
atravessada uma zona extensíssima de campos e florestas sem quase
nenhum vestígio humano, a gente imagina o que será o tal Campo Grande:
casebres de palha, igrejinha duma torre só, rua João Pessoa, tabaréus de
chapelão e faca à cinta, caras lampionescas, rastos de onça-pintada pelas
ruas barrentas. Como chefe político ou prefeito, um tremendo coronel
barbudo, tataraneto dum não menos, tremendo bandeirante, desses que
andam com as caras nos selos e bônus.
Todas essas expectativas falham, com exceção de uma: a clássica,
inevitável, a idiotíssima rua João Pessoa. É esse o único rasto de onça que
há lá – a onça do Sul que subiu dos seus pagos para outubrizar o Brasil,
criando a beleza que sabemos. Em tudo o mais só transparece o pau-rodado.
O estrangeiro, o novato que vem de outras zonas, em Mato Grosso é pau-
rodado.
O maior elemento de progresso num país como o nosso é exatamente o
pau-rodado, pois traz consigo uma mentalidade nova e um saco de
ambições. São Paulo é o que é por ser um atracadouro do pau-rodado
universal. Nova York é o maior centro de pau-rodado do mundo inteiro.
Campo Grande é também toda ela pau-rodado.
Não há raça, não há gente deste ou daquele país, deste ou daquele
estado, que não seja vista por lá. Italianos, sírios, japoneses, russos,
cearenses, cuiabanos. E o parigato é do bom. Vale quem pode mais, quem
sabe agir, vencer. Nada embaraça a seleção da competência, ou do mais
apto, como quer Spencer. Campo Grande surpreende e força a ejeção de
adjetivos sinceríssimos. Porque aquilo não é cidade de fim de civilização,
de beira-sertão, como o viajante logicamente é levado a supor. É cidade de
começo de civilização, é a coisa mais reconfortadora que em tais alturas
alguém possa esperar.
Um município de área enorme – 35.500 quilômetros quadrados. Um
pouco menos que o estado do Sergipe, um pouco mais que a Holanda. Mas
a Holanda tem oito milhões de habitantes, o município de Campo Grande só
tem 54 mil. A cidade, 24 mil.
Mas o melhor de Campo Grande não é o que Campo Grande já é e sim
o que promete ser. Reúnem-se nela todas as condições favoráveis para uma
das grandes futuras cidades do Brasil. Subirá a cinquenta mil, a cem mil, a
duzentos mil habitantes – e parece que o urbanista que lhe traçou as ruas e
praças teve perfeita consciência disso. Tudo em Campo Grande é grande,
espaçoso, arejado.
As ruas da mor parte das cidades brasileiras pecam por demasiado
estreitas. Parece que os seus fundadores não tinham a menor noção da área
territorial do país, e com medo que o espaço tomado pelas ruas viesse fazer
falta aos campos, traçaram-nas extremamente estreitas. Em muitas ruas de
Campinas o ator Chaby teria de andar de lado, como os caranguejos. Nas
primeiras ruas abertas no Rio de Janeiro, como a Dom Manuel, um boi
gordo não passa.
Campo Grande discrepa. Tem todas as ruas larguíssimas. Todas! Tão
largas que os chauffeurs estão esquecendo as manobras da marcha a ré.
Como para darem volta ao carro basta uma graciosa curva em qualquer
ponto da cidade em que estejam, não existe lá marcha a ré, o tal vai para a
frente, desterça, vem para trás, desterça, essa coisa incomodíssima, com
frequentes trombadas e encrencas.
O viajante nota aquilo e pergunta:
– Quem foi a abençoada criatura que traçou esta cidade?
Ao informarem-me disso, deram-me um nome, que infelizmente minha
má memória não guardou. Um engenheiro militar, suponho. Traçou tudo
com visão bem ampla do futuro. Praças magníficas, ruas ultralargas,
passeios de três metros; e ainda ergueu alguns monumentos.
O órgão local chama-se Folha da Serra. Por que Folha da Serra? Ahn!
Trata-se da Serra do Maracaju, a única existente na zona, para lá de
Aquidauana. No dia seguinte bem cedo o condor de alumínio nos engoliu
de novo e de novo nos ergueu nos ares. Pudemos então ver a Serra do
Maracaju, em grande parte apenas ruínas de serra, com o seu muramento,
ou o seu pregueamento original já intensamente corroído pela erosão.
Meu Deus! Como o condor insignificantiza tudo! Até a pobre Serra do
Maracaju, que devia ser uma barreira terrível para o bandeirante, lá de cima
nos aparece um zero, um nada, uma dunazinha insignificante.
Transpomo-la em segundos – e recomeça a infinita planura rasa, de
campo com entremeios de capões arbóreos. Na zona do rio Negro o aspecto
muda. Surgem lagoas. Lagoas de não acabar mais – lagoas, baías e coxipós.
Vistas de cima as lagoas lembram aqueles olhos da ágata polida, com
orladuras equidistantes em torno. São orladas de praias branquinhas; outras
não mostram o menor sinal de praia.
– Por que isso? – indagamos.
Vem a explicação. As lagoas com praias são as de água salgada; as sem
praia, as de água doce. A intensa impregnação salina das margens impede
nas primeiras o surto de qualquer vegetação – e formam-se praias como a
beira-mar. Rondon contou na zona 170 lagoas grandes, 95 das quais
salgadas. Essa região é uma das mais indiciosas de petróleo. Em seu livro
sobre radiestesia, o padre francês Bourdoux, que foi durante anos
missionário em Mato Grosso, diz o seguinte.
“Atravessando o Brasil em toda a sua largura, do Rio às fronteiras da
Bolívia, notei manchas estéreis no meio de ricas pastagens. Tirei do bolso
meu pêndulo e às ocultas dos companheiros procurei investigar a causa
daquelas manchas de esterilidade. A resposta foi: petróleo.” A viagem aérea
por sobre a zona das lagoas é inesquecível. Lembra um jardim imenso, de
canteiros arbóreos alternando com peluses e todo agatizado de lagoas, umas
bem redondas, outras ao comprido. Por sobre elas pairam garças alvíssimas,
aos bandos de centenas, e em certos pontos, de milhares.
A visibilidade das garças é enorme. São perfeitamente vistas até de três
mil metros, distância em que um boi só se torna perceptível para os
viajantes de olho de lince, e uma figurinha humana, nem para os do próprio
lince.
O estranho avejão de alumínio que passa a roncar no céu as assusta.
Revoam, lindas, dando a impressão de fragmentos de mica em rebrilho
sobre a imprimadura lisa das lagoas.
Pantanal! Pantanal! Pantanal! Será que não tem fim aquele pantanal?
De tudo quanto vemos de cima, a coisa única que a distância não apequena
é o pantanal. Serras e rios, cidades e fazendas ficam insignificâncias – mas
o pantanal impõe-se como terrivelmente grande.
O pantanal não chega ao fim por mais que o condor devore
quilômentros a 270 por hora. E se o viajante corre os olhos pelo mapa da
América do Sul, verá, assustado, que o pantanal se prolonga
indefinidamente, embora mudando de nome, até às serras do sistema
Parima, nas fronteiras venezuelanas. Que é toda a Amazônia senão um
pantanal?
Faltou o Humboldt que estudasse essa curiosíssima região do globo.
Não temos nenhuma visão do conjunto, nenhuma filosofia do centro da
América do Sul. Os sábios que por lá andaram perderam-se em detalhes. A
teoria do extinto mar do Xaraés está a pedir formulador de gênio. Euclides
da Cunha seria capaz de nos visualizar aquilo, mas o próprio Euclides se
deteve na beiradinha norte.
Hoje a região imensa é um deserto que ainda desafia a fraqueza do
homem. Mas tudo parece mostrar que aquele deserto verde está sobre um
mar de petróleo. O ouro aluvial existente por cima da terra atraiu os
primeiros povoadores. A extração da borracha, em seguida, prosseguiu na
obra de devassamento e povoamento. Coisinhas mínimas. Insignificâncias.
Para vencer aquele mundo, só uma força ingente, só a maior de todas – o
petróleo.
Mas petróleo tirado de lá – não comprado fora.

III

De Aquidauana a Corumbá são 270 quilômetros em linha reta. Uma


minhoca fará esse percurso em anos, se se mover sem parar e não for
engolida em caminho por alguma garça. Um homem a pé, se tiver sangue
de bugre e nada de calos, o fará em quinze dias. A cavalo esse mesmo
homem fará o percurso em uma semana; e em automóvel numas seis horas.
Tudo isso, porém, teoricamente. Na prática a façanha varia muito, pois
depende da veneta das estações. Será uma coisa na estação da seca e coisa
muito diversa na das águas. Hoje o percurso regular se faz de trem até Porto
Esperança, e daí a Corumbá em lancha ou gaiolas que sobem o rio. A pobre
da Noroeste perdeu o fôlego em Porto Esperança, dois terços do caminho a
Corumbá.
Dadas as peculiaridades do terreno, esses 270 quilômetros constituem
um pedaço. Mas para o condor de alumínio não passa de isca. Estirão para
uma hora de voo apenas. Uma hora!
Milagres do petróleo. Graças a ele a ave metálica deixa as asperezas do
chão e sobe à magnífica estrada gasosa da atmosfera. Nessa estrada, feita de
azoto e oxigênio, com pitadinhas de dióxido de carbono, hélio, néon,
crípton, xênon e outros ingredientes que respiramos mas só conhecemos de
nome, não há pó nem lama. Tudo muito diferente das estradinhas dos
vermes lá embaixo, feitas de sólidos, líquidos e semilíquidos – chão seco,
lameirões e atoleiros, com pitadas de pontilhões esburacados, porteiras e
mais inventos dos seres que se arrastam.
Pobres vermes! Como se condoem deles os que viajam em papo de
condor... e como os invejam quando sobrevêm o enjoo e a incoercível ânsia
de vômito!
Nossos olhos se repastam no mapa da terra visto de dois mil metros de
altura. Uma das sensações do voar é que a terra deixa de ser o que é – passa
a mapa – um mapa da natureza, não do Castiglioni. E sempre o mesmo
desenho pantanalesco, naquele pedaço entre Aquidauana e Corumbá:
capões de arvoredo intervalados de campos e alagadiços.
Vai pelo pantanal uma luta silenciosa de milhares ou milhões de anos,
entre a água e a terra firme. Tudo aquilo já foi água contínua e permanente,
com a só interrupção das espacejadas serras, que figurariam como ilhas. A
erosão foi desmontando as serras e com o aterro elevando o nível da planura
inundada. Ilhas pequenas e rasas foram emergindo – ilhas periódicas, que na
estação das chuvas ficavam cobertas de água. Entrementes os leves declives
deram formação aos rios e riachos, de leitos cada vez mais profundos e de
maior capacidade de vazão.
A obra de drenagem está em andamento. Mas os drenos dos rios só
atendem ao escoamento das águas nas estações de seca. Nas chuvosas ainda
se mostram insuficientes – e tudo se inunda. A tendência da natureza,
porém, é transformar aquilo que foi água contínua, e hoje é pantanal, em
terra firme e seca.
Completará o homem, algum dia, esse trabalho da natureza? Fará no
pantanal obra semelhante à que os dinamarqueses e holandeses fizeram nos
brejos que hoje constituem os territórios sólidos desses extraordinários
países? Talvez o petróleo, a riqueza do petróleo, em futuro ainda bem
distante, quando Mato Grosso se tornar o abastecedor dos Estados Unidos já
esgotados, venha a realizar a obra gigantesca da drenagem do pantanal – o
maior feito da engenharia humana. A drenagem do pantanal! A
transformação do fundo do Xaraés numa pradaria holandesa!
Se quanto a essa drenagem o petróleo apenas nos permite que
sonhemos, uma coisa já ele nos permite realizar: ver o pantanal em toda a
sua desmesurada extensão, reduzido a um mapa vivo que não cessa de
desdobrar-se verticalmente aos nossos olhos. Antes dos condores ninguém
tinha visto o pantanal senão de escorço e num raio extremamente curto.
Visão de verme.
É sempre uma terra negra, com bordadura verde-cana nos campos,
verde mais branquicento nos alagadiços, e verde carregado nas partes já
revestidas de vegetação arbórea. De longe em longe, uns punhadinhos de
quirera – as boiadas. Os bois gostam de ruminar juntos, em rebanhos de
centenas, nos pontos de terra mais firme. Quedam-se imóveis, filosofando.
Sobre quê? Evidentemente sobre a cotação da carne frigorificada, do
charque, dos couros crus.
Mas uma hora no ar passa mais depressa do que uma hora na superfície
da crosta, tanto nos leva aos olhos maravilhados o mapa natural.
Súbito, uma mudança topográfica nos chama a atenção. Coisa lá longe.
Um longe que em segundos fica perto. Uma cidade. Corumbá! A terra passa
de preta a branca. A zona ali é calcária.
O avião aterrissa. Vai haver mudança de aparelho. Do condor terrestre
que nos trouxe temos de passar para um anfíbio, que vemos quietamente
pousado sobre as águas espelhantes do rio Paraguai. Um jacaré voador.
A demora é de quarenta minutos, mas a brasilidade nos vai impedir de
conhecer a praça. Avisam-nos de que é necessário tirar um passaporte,
salvo-conduto ou coisa assim.
– Por quê?
– Porque é fronteira – responde um soldado.
Quem desce das alturas vem zaranza e incapacitado de compreender de
pronto o modo de raciocinar dos bichos terrestres. Fronteira? Mas há então
fronteiras entre os municípios de Corumbá e Cuiabá?
Com os ouvidos ainda azoados pomo-nos a refletir enquanto o auto nos
leva ao quartel dos passaportes. Um refletir tonto, aéreo. “Estado de
Guerra...” Quem sabe se a guerra que determina esse estado da dita é
alguma luta com a Bolívia, que graças à censura o resto do país ignora? E
quem sabe se a Bolívia conquistou o município de Cuiabá e traçou as tais
fronteiras referidas pelo soldado?
Tudo é possível em nosso abençoado país, de modo que sem mais
indagações nos submetemos – e ainda porque sem passaporte seria
impossível prosseguir viagem.
Após um vai e vem de meia hora, conseguido o salvo-conduto, tocamos
na volada para o porto. O condor anfíbio já roncava. Por esse motivo só
vimos da cidade de Corumbá a rua calcária que leva do porto ao quartel.
Impossibilitados de colher informações, tornamo-nos terrivelmente
apreensivos. Pobre Corumbá! Nas mãos dos bolivianos! Conquistada! Com
fronteiras novas estabelecidas pelo invasor cruel! Obrigada a essa exigência
de passaportes que tanto amofina quem passa dum país para outro! Mas
como uma coisa dessas, gravíssima, se passava em tamanho silêncio, sem
que o resto do país o soubesse?
Seja o que Deus quiser, suspiramos – e surdos pelo barulho do motor
fomos erguidos para a estrada gasosa. Recomeça o pantanal. A mesma terra
negra e chata, as mesmas manchas de verdura de vários tons. De quando em
longe, a mesma quirerinha de bois filosofantes.
– Para onde vamos agora? – surge a pergunta.
E vem uma resposta assustadora:
– Para Porto Jofre.
Jofre, Foch, passaporte tirado no quartel, estado de guerra... Nossa
suspeita de que o vizinho município de Cuiabá estava em poder dos
bolivianos se acentua. Por sugestão sentimos no ar um cheiro de pólvora.
Após menos de hora de voo o condor começa a descer. Pousa na água
serenamente. Porto Jofre, sim, mas nada de canhões ou guarnições
militares. É apenas um posto de gasolina perdido no imenso deserto. Sobre
a barranca do rio, uma bela casa de fazenda, rodeada de pomares com
velhas mangueiras. Enquanto o anfíbio bebe latas e mais latas de gasolina
saltamos todos para o desentorpecimento dos músculos. – Há muito jacaré e
piranha por aqui – diz um malvado.
Ui! Nossos olhos ávidos esmiuçam os guapés sobrenadantes naquelas
águas, em procura duma cabeça de jacaré ou duma dentuça de piranha.
Infelizmente não vemos nada. Essas brasilidades são arredias e medrosas.
Fogem ao ronco do condor de alumínio. Em vez de cabeça de sáurio
aparece-nos uma bandeja de café. Que maravilha, um café fumegante
naquele fim de mundo, à beira de guapés com jacarés! E surge o dono da
fazenda, Otávio da Costa Marques, que nos leva para dentro da casa linda
porque o sol está tirânico.
Não há delícia maior que esses imprevistos encontros de gente amiga
na solidão dos desertos. Aquele homem ali, com sua fazenda, era um
contato com a civilização – com o mundo paulista que deixamos lá atrás, lá
longe, lá terrivelmente longe. A vontade nossa é de que o anfíbio adira à
brasilidade do desamor ao tempo e não tenha pressa, e se deixe ficar
dormitando nos guapés por duas, três horas, até que a conversa encetada
com Costa Marques chegue ao fim. Tanta coisa interessante começara ele a
dizer...
Mas na cabeça do condor há um cérebro chamado Lins, que é
implacável. O relógio que tem no pulso, de vidro grosso, não se brasiliza.
Lins manda:
– Embarcar!
E lá atropelamos as palavras com que nos despedimos do fazendeiro de
ilustre cepa, homem de cultura fina que em Porto Jofre mantém sua fazenda
como um posto da civilização no deserto.
O motor ronca. Os jacarés no fundo d’água enfiam as cabeças no lodo.
O condor desliza, ganha impulso, ergue o voo novamente...
O rio embaixo vai se apequenando à medida que subimos. É uma
serpente sem-fim, de cor café com leite. Lado a lado, o pantanal de sempre,
o eterno pantanal de Mato Grosso, a eterna terra preta, as eternas manchas
arbóreas. E tudo reduzido a mapa – miudinho visto lá das nuvens para onde
nos leva o Lins.
Maravilhoso homem, este Lins! A gente se enternece ante a sua
bondade infinita. Uma criatura que pode despejar-nos no rio das piranhas e
não o faz! Nunca lhe vem essa veneta...
Pantanal, pantanal, pantanal. Súbito, após uma hora de voo, as margens
daquele afluente do Paraguai começam a mudar. Surgem casebres de
pescadores. Pequeninas roças.
– Cuiabá?
– Sim.
Olhamos ansiosos para o aglomerado de casas já à vista. Nenhuma
bandeira boliviana desfraldada ao vento. Suspiro geral de alívio. A capital
de Mato Grosso ainda é nossa.
Que susto!...

IV
Que é Cuiabá? Um abscesso que se fixou. Um garimpo do século XVII
que se cristalizou em cidade. Um galho da civilização litorânea que há 200
anos os paulistas fincaram a quinhentas léguas de São Paulo. Um marco já
bicentenário do nosso gold-rush.
Pegar o que tem valor comercial e está in natura na superfície da terra
constitui o primeiro impulso duma civilização – e esse pega-pega traz em
seus inícios uma febre aguda. Quando a goma da seringueira começou a ter
crescente aplicação industrial nos países civilizados, vimos aqui a febre da
borracha. Os homens de espírito aventureiro corriam em massa para a
Amazônia, na ânsia de ordenhar as vacas vegetais produtoras do látex
coagulável.
O mesmo fenômeno se deu quando foram descobertos os sertões ricos
de ouro aluvial ou diamantes. O sonho de todos os aventureiros tornou-se
batear cascalho, garimpar. Peneirada a terra do ouro e do diamante fáceis, a
febre arrefeceu. Com a desvalorização da nossa moeda-papel, a caça ao
ouro está agora renascendo.
A moda feminina trouxe por certo tempo a febre da aigrett e, uma certa
pena que as garças trazem displicentemente na cauda e as mulheres
elegantes queriam em suas cabeças de vento. A aigrette era vendida aos
gramas, como o ouro – e nunca houve tamanha hecatombe de garças. Com
a mudança da moda, a febre da aigrette passou.
No trecho do rio entre Corumbá e Cuiabá anda hoje uma febre de
capivara. Há bom preço nos Estados Unidos para o couro da capivara, de
modo que as margens desse rio, que sempre foram um viveiro de capivaras,
estão sendo limpas desses pobres mamíferos. São mortos aos milheiros.
Nossos avós notabilizaram-se em duas febres desse tipo: a caça aos
negros africanos, feita pelos negreiros, e a caça aos índios dos sertões, feita
pelos bandeirantes. Dois negócios de grande vulto, dos maiores da época.
Quando Sancho Pança teve a promessa dum reino na África, sua
primeira ideia foi vender os súditos – e esfregou as mãos no antegozo dos
lucros maravilhosos. Os sertões do Brasil andavam cheios de índios. Caçá-
los para vendê-los no litoral iria tornar-se o grande sonho dos aventureiros –
e surgiu o bandeirantismo.
O bandeirantismo era negócio e esporte a um tempo; o esporte da caça
com todas as suas emoções primitivistas e o negócio de enriquecer
depressa. Animal de presa que é o homem, nada o seduz tanto quanto a caça
seja de veados ou de gente. Perseguir uma criatura viva, matá-la, que
delícia! Pegá-la viva no sertão para vendê-la no litoral, que negócio!
Nossos pobres avós bandeirantes viram-se privados do maior prazer do
esporte cinegético, que é matar. Muito a contragosto tinham de limitar-se a
aprisionar os índios. O espírito comercial impunha-lhes esse grande
sacrifício.
Como já estivesse intensa a caça ao ouro, a qual exigia músculos
escravos em doses crescentes, fornecer aos mineradores tais músculos
passou a ser tão bom negócio como juntar ouro. De modo que enquanto uns
ficavam fossando a terra, outros afundavam pelos sertões atrás dos índios.
Pires de Campos sai de São Paulo com sua gente, disposto a varar
quantas léguas de sertão fossem necessárias para dar com uma boa aldeia de
índios desprevenidos. Entra por água, a única estrada daqueles tempos.
Entra pelo rio Cuiabá, sobe-o, e afinal encontra uma presa fácil: os
coxiponés, tribo selvagem que nem as demais.
Os bandeirantes eram a Civilização. Os coxiponés, a barbárie. Por entre
estrondos de trabucos a Civilização assalta a aldeia da barbárie e vai
trucidando o que não pode capturar. E Pires de Campos volta gloriosamente
com uma grande ponta de gado bípede manietado e já sob o regime do
chicote. A Civilização de hoje faz isso na África com meios ainda mais
civilizados – gases asfixiantes e aviões de bombardeio. E o caso é que
civiliza. O selvagem ou resiste e morre, ou à força de chicote se adapta à
sífilis, ao álcool, ao alfabeto e mais mimos da civilização.
Em caminho Pires de Campos cruza com outro bandeirante, Pascoal
Moreira, também saído à caça de índio. Conversam. Pires conta de como
lhe ocorreu a expedição e traça o roteiro. Há ainda lá os coxiponés que ele
não conseguiu matar nem capturar. Com um pouco de habilidade Pascoal
pode conseguir outra redada.
Separam-se. Pascoal segue o rumo indicado. Alcança o rio Coxipó, que
sobe, margeando. Cruza outro rio a que dá o nome de do Peixe, em virtude
da grande quantidade de peixe seco encontrada na margem. Como o peixe
não sai da água de moto-próprio para secar-se em varais, o bandeirante
conclui que chegara à zona dos índios visados.
Prossegue cauteloso no avanço. Mais um rio, o Motuca – e esbarra
numa defesa. Avisados da presença da Civilização, os índios haviam
erguido uma forte paliçada, detrás da qual rechaçam os assaltantes.
Mas enquanto os trabucos troam e as flechas assobiam, um homem da
bandeira lembra-se de examinar o cascalho do Coxipó. Bateia-o em seu
prato de ferro estanhado – e arregala o olho. Granetes amarelos! Ouro!
Naquele momento a cidade de Cuiabá nascia. A descoberta do ouro
mudou imediatamente os objetivos da bandeira. Pascoal desiste de caçar
índios para catar ouro. O índio estava duro de roer e o ouro, facílimo.
Ninguém mais pensou noutra coisa.
A nova da descoberta corre mundo. Chega a São Paulo, a Minas, ao
Rio. E como fosse notícia de polpa, toda gente começa a sonhar com a sorte
grande. Ir a Cuiabá era voltar magnata. Cuiabá! Cuiabá! Cuiabá! Essa
palavra nova encheu o orbe.
Quem duvidar que a fama de Cuiabá tenha enchido o orbe, consulte as
Crônicas de Barbosa de Sá. Diz ele: “Foi uma trombeta que chegou ao fim
do orbe, soando a fama de Cuiabá por todo o brasílico hemisfério até
Portugal, e ainda pelos reinos estranhos, tanto que chegaram a dizer que no
Cuiabá se serviam de granetes de ouro em vez de chumbo nas espingardas
de caçar veado, e que eram de ouro as pedras em que nos fogões se punham
a cozer as panelas”.
Esboça-se no Coxipó o arraial de São Gonçalo. Plantam-se roças por
ali. Organiza-se a defesa contra os coxiponés. Nisto corre a notícia da mina
de Miguel Sutil, um sorocabano – a maior ninhada de pepitas de ouro ainda
descoberta no Brasil. Ouro de juntar aos punhados. No primeiro dia esse
homem de sorte recolheu meia arroba.
O primitivo arraial é abandonado. Todos correm para a zona do Sutil. A
cidade de Cuiabá começa a germinar. Acode gente de longe. Improvisam-se
acomodações toscas. Ranchos de palha são vendidos a 400, 500 oitavas de
ouro; se possuem mais alguns cômodos, alcançam o preço de 700 oitavas.
Tendo a oitava quatro gramas, há aqui dois quilos e oitocentos gramas de
ouro por um rancho de palha, ou seja, 50 contos em nossa moeda outubrista.
Esses abscessos formados pela febre do ouro têm um curso fatal. Em
todos acontecem as mesmas coisas. Há notáveis pontos de encontro entre as
tragédias do Klondike e as de Cuiabá. Jack London e Barbosa de Sá
encontram-se.
O atropelo do povoamento se faz cada vez mais intenso. Sobrevêm
calamidades. Doenças, comboios de víveres que se atrasam, com a
mercadoria apodrecida pelo caminho. Carestia. Escassez de tudo. Milho
pela hora da morte. Por quatro alqueires de milho dava-se um negro.
Maleita. Opilação. O sal por preço fantástico. Um frasco de sal chegou a
valer meia libra de ouro – ou 9 contos de hoje. Crianças ficavam sem
batismo. Onde o sal?
As primeiras plantações foram um desastre. O milho das roças, logo
que semeado os ratos o comiam, diz Barbosa de Sá; e as sementes que
escapavam dos ratos e germinavam não escapavam aos gafanhotos; e o que
escapava do gafanhoto vinha com espigas falhas, só sabugo – e algum grão
que aparecesse, a passarinhada o levava.
Sobrevieram ratos às legiões. Nada, nem as roupas lhes escapavam ao
rói-rói. E aquela gente em desespero entrou a parodiar Ricardo III da
Inglaterra: “Meu reino por um gato!”.
Surgiu por fim um casal de gatos, instantaneamente vendido por 1 libra
de ouro – ou seja, 18 contos de agora. Que excelente negócio fez quem os
comprou! A criação de gatinhos virou mina. Quantos vinham ao mundo
eram vendidos a 2 contos por cabeça. Por fim foi tanto gato que já ninguém
os queria nem de graça. A eterna lei da oferta e da procura.
Por mal de pecados desabou sobre a incipiente Cuiabá o inferno, sob
forma do Fisco português. Surge Dom Rodrigo Cesar de Meneses, com 308
canoas e três mil homens, entre negros escravos e brancos. Era o fim de
tudo. Portugal vinha reabilitar os ratos, a maleita, os gafanhotos, a opilação.
O Fisco! E a pobre Cuiabá entrou a morrer.
Os ranchos caíram do valor de 500 oitavas para 50; roças de milho que
valiam 4 mil oitavas, ou 300 contos, passaram a valer 7 contos – e por fim
foram abandonadas. Dom Rodrigo abrira a boceta de Pandora.
“Tudo era morrer, gemer e chorar”, diz Barbosa de Sá. Mas um dia as
águas que trouxeram a calamidade levaram-na de novo – e Cuiabá respira.
“Tudo melhorou”, diz Barbosa; “cessaram as excomunhões, execuções,
lágrimas e gemidos, pragas, fome, enredos e mecelanias, apareceu logo o
ouro, produziram os mantimentos, melhoraram os enfermos.”
Este depoimento mostra que se a civilização inventou os gases
asfixiantes, os lança-chamas e a metralha, o Fisco português se antecipou
com a câmara de horrores do Fisco. Era coisa que, como diz o cronista,
fazia piorarem os doentes, não produzirem as roças, esconder-se o ouro,
espirrarem dos olhos lágrimas, virem gemidos das gargantas, amiudarem-se
execuções, pulularem excomunhões – e, por cima de tudo, semearem-se
enredos e “mecelanias” – que não sei o que é.
Paulo Setúbal já contou a história do ouro de Cuiabá. Havia de fato
muito metal amarelo aflorante, e o que foi feito de peneiramento naqueles
cascalhos assombra o homem de hoje. Graças ao negro escravo, a
cascalheira foi lavada e catada numa área enorme. O que lá ficou foi apenas
o ouro difícil, incrustado nos blocos de quartzo. O fácil saiu todo.
Por toda parte, ainda hoje, vê-se o solo revolvido, com amontoamentos
de cascalho e regos abertos, lembrando as zonas de França logo depois dos
tremendos bombardeios da Grande Guerra. E ficou a aridez, o deserto. Que
triste o destino das terras que têm a desgraça de revelar ouro!
E para onde foram os milhares de arrobas do ouro cuiabano?
Desenterrou-se de lá para enterrar-se em outros pontos muito longe de nós.
Está no fundo das caixas-fortes dos bancos da Inglaterra e da Wall Street. A
vida do ouro é essa: desenterrar-se com imenso esforço humano em um
ponto para enterrar-se sem esforço nenhum em outro. Salva-se desse enterro
só a pequena parte que sob forma de joias vai enfeitar o pulso, o dedo e o
colo das mulheres, e também barrear de amarelo os dentes das pessoas de
má calcificação orgânica.
As indústrias filhas do carbono e do ferro têm sobre o ouro a mesma
atuação do ímã sobre a limalha. Os países produtores do ferro donde sai a
máquina, e do carbono donde sai a energia que move a máquina, veem
correr para si todo o ouro do mundo. Os milhares de arrobas extraídas de
Cuiabá dormem nos cofres dos manipuladores do ferro e do carbono. Está
na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos, na Holanda – essa grande
acionista da Royal Dutch.
O Brasil, produtor do ouro, reteve para si os buracos abertos no chão
cascalhento. E lá naqueles fundões mato-grossenses ainda vegeta, como
memória do feito, uma cidade pensativa, toda saudades e resignação – a
veneranda Cuiabá.
A bateagem da zona aurífera exigiu o trabalho sem descanso, o suor, o
sangue, a vida de dezesseis mil escravos negros. Graças ao sacrifício dessa
pobre carne dolorosa, os depósitos da Wall Street regurgitam com uma boa
contribuição nossa – e bem guardada. Se queremos tirar de lá um grama do
ouro cuiabano, temos de dar em troca uma arroba de café, quase.
O bom-bocado não é para quem o faz, sim para quem o come. O
mundo é dos que manejam o ferro e o carbono. Se em vez de ouro Cuiabá
houvesse explorado suas jazidas de petróleo e ferro, o ouro de lá extraído
estava lá mesmo, e ainda muito ouro de outras terras; e aquela imensa
região estaria transformada num intensíssimo e povoadíssimo centro de
civilização. Portugal jamais percebeu isso, e nós, seus digníssimos filhos,
vamos pelo mesmo caminho.
O ouro esteriliza. Só o ferro e o carbono fecundam.
Quem reflete sobre a tremenda quantidade de ouro, milhares e milhares
de arrobas, tiradas de Cuiabá, espanta-se do pouco dessa riqueza que ficou
no local. Toda ela emigrou. Não havia a ideia de permanência. Tudo eram
acampamentos provisórios, coisa de juntar a nata de ouro fácil que as
chuvas agrumam à superfície da terra e abalar.
Não houve povoamento sistemático em Mato Grosso, à moda de São
Paulo. Houve correria atrás do ouro, apenas. Rush. Saque da terra.
Consequência: o despovoamento. Um estado de milhão e meio de
quilômetros quadrados com uma população que cabe toda no bairro do Brás
positivamente não está povoado.
Ao saqueador só interessa o ouro aluvial: daí o nomadismo da
mineração. Nessa corrida iam ficando para trás pequenos núcleos humanos.
Desses núcleos nasceram as pequenas cidades contemplativas do norte
mato-grossense – arraiais que não tiveram ânimo de levantar acampamento
e por lá se deixaram ficar.
O maior desses núcleos virou a cidade de Cuiabá, um posto da
civilização perdida no deserto imenso. Ficou parada, a crescer
vegetativamente e à espera... De quê? Até bem pouco tempo nenhum
cuiabano o saberia dizer. À espera de qualquer coisa. Dum imprevisto. Dum
milagre. Por que esse milagre esperado há dois séculos não há de ser o
petróleo?
A distância faz de Cuiabá uma ilha de urbanismo no pantanal sem-fim.
De todos os lados, a mesma barragem implacável das léguas. Léguas e mais
léguas. Só léguas. Sempre léguas. Tudo léguas. Léguas às centenas.
Na realidade só existe um problema em Cuiabá: a Légua, essa inimiga
do homem que só pode ser vencida pela Velocidade. Não obstante, em
matéria de velocidade, o homem em Mato Grosso permaneceu até anos
atrás na mesma situação de inferioridade dos primitivos povoadores.
Contavam só com os mais rudimentares meios de vencer a distância – as
pernas, o cavalo e o rio. Ora, não foi com as pernas, nem com o cavalo, nem
com os rios que o homem moderno matou a légua como quem mata uma
cobra. Foi com a máquina a vapor e é hoje com o motor de explosão.
A tentativa de ligar Cuiabá ao mundo por meio da velocidade que a
máquina a vapor desenvolve falhou. A Noroeste não teve fôlego para lançar
seus trilhos além de Porto Esperança. E Cuiabá ficaria condenada a outros
dois séculos de isolamento, se não entrasse em cena a maravilha que é o
motor de explosão.
A elite de Cuiabá é muito fina. Cuida bastante da educação. Abundam
homens de linda cultura, até filosófica. Seria interessante fixar as reações
mentais dum homem como Estevam de Mendonça, precioso diamante
Cullinan perdido por lá, quando o primeiro veículo acionado por um motor
de explosão surgiu na cidade.
– “Fim dum ciclo”, devia ter ele pensado; “começo de era nova.
Máquina supressora da distância. Solução dum problema de transporte que
parecia insolúvel. Multiplicação da eficiência do homem...”
De fato. O automóvel é o homem tremendamente multiplicado em sua
eficiência pela máquina. É sua força muscular, sua resistência, aumentada
mil vezes.
O mesmo indivíduo que com seus músculos não transporta aos ombros
mais de trinta quilos de carga a uma distância de mais de uma légua em
todo um dia de esforço, ao plantar-se num caminhão está ipso facto com a
sua eficiência tremendamente aumentada. Ele que não carregava mais de
trinta quilos, pode levar agora três mil; e em vez de uma légua que andava,
pode vencer num dia quarenta ou sessenta, conforme as estradas, e sem
derrear-se. Que aconteceu? Apenas aumento da eficiência desse homem
graças à máquina que a si ele agregou.
Infelizmente, quando esse homem se articula com a máquina fica mais
na dependência das estradas do que quando ia a pé ou a cavalo – e em
matéria de estradas o Brasil continua perfeitamente coxiponé. Chamamos
estradas a meros leitos para estrada, visto como esta, para o ser, exige
pavimentação. Propriamente não temos estradas e sim leitos para futuras
estradas.
Idênticas considerações deveria ter feito Estevam de Mendonça quando
pousou lá o primeiro avião. Era a eficiência do homem mais aumentada
ainda por um novo tipo de máquina movida pela energia mecânica. Era o
esmagamento definitivo da distância, o fim do bissecular isolamento
cuiabano. E como a generalização é rápida no cérebro dos homens de
espírito filosófico, ele devia ter concluído que se pousava lá uma daquelas
aves pousariam no futuro milhares. Porque o tudo é começar.
Infelizmente todas as soluções humanas são parciais. O automóvel
exige estradas de rodagem com pavimentação, coisa ainda fora de alcance
da nossa penúria brasileira. Nessas fitas de terra solta a que chamamos
estradas, mal niveladas, mal conservadas, esburacadas pelo trânsito,
acamadas de terrível pó durante a estação seca, ou toda ela atoleiros e lamas
na estação das chuvas, o automóvel é quase um peixe fora d’água. Sua
capacidade de vencer a distância fica reduzida ao mínimo, e ainda assim
restrita aos meses do inverno.
Mais feliz, o avião não está na dependência das estradas de rodagem,
visto que dispõe da maravilhosa volovia da camada atmosférica. O suave
conde de Afonso Celso esqueceu-se de ufanar-se da nossa camada de ar
atmosférico ser tão boa como a da Alemanha, da Inglaterra ou dos Estados
Unidos. Mas a solução do avião também não é integral; muito restrita
quanto ao transporte de cargas e muito cara por não produzirmos ainda o
maravilhoso líquido que se transforma em energia mecânica.
O de que necessita Mato Grosso, e com ele o Brasil inteiro, ressalta
imediatamente: estradas de rodagem pavimentadas e petróleo nosso. Com
isso venceremos todos os obstáculos da distância em terra e do custo muito
elevado das viagens pela aerovia universal.
Em estado nenhum, como em Mato Grosso, uma cabeça que pensa vê
mais claro as linhas gerais do problema brasileiro – que não é outubrismo,
nem dezembrismo, nem marxismo, nem estadodessitismo, nem reforma
eleitoral ou de instrução, nem octologogias e sim algo charramente
rastejante: estradas de rodagem de verdade, ferro e petróleo.
Meu Deus! Como uma noção elementar como esta não entra na cabeça
do indígena! Parece tão simples mas deve ser terrivelmente obscura, já que
pouquíssimos a percebem.
Ferro: matéria-prima da máquina, essa coisa aumentadora da eficiência
do homem. Petróleo: matéria-prima da energia mecânica que move a
máquina. Estrada de rodagem pavimentada: pista por onde corre a máquina
número um, a que suprime a distância, a que vence a légua, esse terrível
inimigo dos países de território imenso.
Resolvam-se esses problemas parciais e teremos tudo, tudo, tudo.
Fiquem sem solução e não teremos nada, nada, nada.
Ninguém ainda mediu os serviços tremendos que o automóvel já
prestou ao Brasil, apesar da deficiência das estradas. Esses serviços,
entretanto, foram reduzidos ao mínimo pelo eterno matador da galinha dos
ovos de ouro chamado Governo. Com os bárbaros impostos que lançou
contra o automóvel, ficaram encarecidos em extremo o custo e o custeio da
máquina número um; com os impostos canibalescos lançados sobre o
combustível líquido, o “dá para trás” impediu o esmagamento da distância.
Basta acentuar um ponto: a gasolina americana chega a Santos a 300
réis o litro: se o consumidor paga por ela de 1.200 a 1.800 réis, a culpa não
cabe aos americanos, sim ao fato de não sermos governados pela
inteligência.
O progresso do Brasil está diretamente condicionado à facilidade,
rapidez e baixo custo do transporte. Se houvesse inteligência, ainda que
rudimentar, no que chamamos Governo, taxava-se tudo, menos o transporte,
porque taxar o transporte é positivamente matar a galinha dos ovos de ouro.
O que se dá é justamente o contrário. Para pegar um imposto imediato
sobre a gasolina, o governo mata impostos cem vezes mais avultados, que
fatalmente adviriam da riqueza criada pelo barateamento do transporte
graças ao combustível entrado livre de taxas.
Essa entrada livre de taxas, entretanto, seria apenas uma solução de
passagem, porque a perfeita só a teremos quando o combustível líquido for
produzido aqui. Nada mais básico, nada mais fundamental para o
desenvolvimento duma nação do que produzir em casa o combustível
necessário à sua economia. A grandeza e a riqueza dos países que o fazem
atestam o axioma – e para contraprova temos a miserável situação de
dependência e penúria dos países que consomem combustível alheio.
Um país pode importar tudo, menos combustível, seja sob a forma de
pão para alimento dos organismos humanos, seja sob a forma de petróleo
para alimento das máquinas – e o Brasil importa pão e petróleo. Quem corre
os olhos pelas nossas estatísticas assombra-se ante a persistência da inépcia.
Metade do que vendemos no estrangeiro esvai-se na compra de
combustível: pão para os estômagos e petróleo para as máquinas.
Economicamente, que é isso senão um lento e doloroso suicídio?
Está claro que o homem se adapta a tudo. O chinês está tão adaptado à
sua miséria milenária que a tem como irredutível contingência humana. O
pária da Índia acha natural que ele seja pária e não se rebela. Nós brasileiros
vamos de tal modo nos afazendo à nossa miséria crônica que nem sequer a
enxergamos. Não vemos uma população rural de milhões de criaturas
descalças, vestidas de farrapos, roídas de todas as doenças. Não vemos a
decadência fisiológica desse triste gado humano, que os da cidade olham
comiseradamente como seres de outra espécie, novo tipo de pária da
América. E são milhões! É toda uma multidão imensa de homens
verminados, gemebundos, que se esfalfam no trabalho da terra para
benefício e gozo duma elite urbana parasitária. Não vemos e não queremos
ver. A avestruz nos ensinou a moda de esconder a cabeça sob a asa no
momento do perigo.
Numa arguta opinião de Carvalho de Brito, publicada domingo último
neste jornal pelo insigne Mathias Ayres, vem estas palavras: “Precisamos
quanto antes melhorar o padrão de vida das nossas populações do interior,
verdadeiros zeros econômicos no cômputo da riqueza do país. O caboclo
que planta o seu algodão, fia e tece o seu vestuário rudimentar e come a
roça que planta, é uma força econômica perdida para a coletividade”.
Estude-se a fundo o porquê da coisa e ver-se-á que reside na deficiência
e no preço excessivamente alto do transporte. Só nisso. E como o governo
ataca o problema? Encarecendo ainda mais o transporte com as taxas
ferozes sobre o combustível líquido e as máquinas de transportar. A ciência,
a inventiva dos homens, deu à humanidade a maravilhosa máquina de
solver todos os problemas do transporte terrestre, marítimo, fluvial ou
aéreo: o motor de explosão acionado a gasolina. E que faz o governo do
país que mais necessita de transporte? Taxa ferozmente, tranca, proíbe que
aqui funcione ao alcance de todos a máquina maravilhosa...
A libertação, o fim do seu isolamento de dois séculos que Cuiabá
entreviu quando por lá roncaram o primeiro automóvel e o primeiro avião,
foi ilusório. Estevam de Mendonça esqueceu de levar em conta a
contribuição que o governo iria dar às duas maravilhosas máquinas de
suprimir a distância: o extremo encarecimento de ambas por meio de
impostos que nem aos zulus ocorreria. E Cuiabá continua isolada,
esperando, esperando.
A convicção dos que raciocinam com clareza é uma só: unicamente o
petróleo arrancará Mato Grosso do seu entrevamento de 200 anos. O
gigantesco Laocoonte, enrolado pelas serpentes das léguas sem-fim, só será
libertado pelo sangue negro da terra – não vindo de fora, de longe,
caríssimo, agravado pelas taxas ferozes da coisa federal, mas tirado dali
mesmo e fornecido ao consumidor por preço mínimo.
Por preço mínimo, sim, porque, por mais incrível que o pareça, a nova
Constituição criou a semente donde vai sair a ressurreição econômica do
Brasil. Há lá um artigo áureo, o 17, que diz: “É vedado ao município, ao
Estado e à União, a tributação sob qualquer forma do combustível
produzido no país para os motores de explosão”.
Nesse artigo a Constituição assegura o arranque de Mato Grosso. Por
isso os que têm olhos de ver longe já estão a olhar para a frente. Estão a ver
no pantanal o surto de torres de sondagem aos milheiros. Estão a ver a terra
sangrando de mil poços o líquido redentor.
Sim. Só o petróleo vence a distância. Só ele é o Flit destruidor das
léguas que trazem manietado o nosso Laocoonte. Só ele permitirá que o
homem domine a vastidão mato-grossense e integre no mundo econômico
tão desmesurado e rico território.
A cidade dos pobres

No rosário de surpresas que me foi Belo Horizonte, tive


as contas graúdas, as médias, as pequeninas – e duas delas luminosas. Entre
as graúdas, ver a cidade inteiramente asfaltada, toda nesse “tom de lisura”
que só o asfalto dá. Não se trata do asfalto acidental, aqui e ali, que vemos
em São Paulo e Rio. Mas em toda ela. Foi conta de surpresa graúda, e a
número um.
Entre as contas luminosas, acentuo uma unidade de direção estética
visivelmente provinda dum espírito único. Em todos os melhoramentos
novos, e nos em construção, sempre o mesmo vinco.
– Quem é? Que é? Há um dedo em tudo isto...
A explicação veio logo. Há três anos que o desenvolvimento da cidade
é presidido por um desses homens excepcionais que os americanos
classificam de aggressive man, mas que além de aggressive (no alto
sentido) possui também uma funda sensibilidade artística. Sente-se nos mil
nadas que formam o impressionante todo a preocupação desse homem em
fazer da sua administração uma obra-prima. Otacílio Negrão é o nome
amorosamente sussurrado por todas as novidades urbanas de Belo
Horizonte, e com tanta insistência, que no cérebro do observador duas
palavras se juntam para a classificação da raridade: o “prefeito perfeito”.
Aliás, Belo Horizonte impõe hoje esse tipo altíssimo de diretor urbano.
Quem pode conceber a “Cidade Certa”, dirigida por um prefeito incerto?
Não somente a noblesse oblige. A Beleza também.
A política, essa velha arte de errar na escolha dos homens, às vezes
cochila e acerta. Acertou maravilhosamente com o prefeito Negrão, criando
assim uma contingência das mais sérias: Belo Horizonte nunca mais
tolerará prefeitos medíocres. O padrão do homem adequado foi estabelecido
duma vez para sempre. E tal é o valor de quem o estabeleceu que diante
dele o facciosismo político desaparece. O juízo a seu respeito é o mesmo até
nos oposicionistas por sistema.
O encontro de tal prefeito foi a primeira conta luminosa do meu rosário
de surpresas. Outra foi Ozanam, a cidadezinha dos pobres, obra ainda em
via de realização.
Todas as cidades dão de si resíduos. Dão o lixo comum, resíduo das
casas, e dão a mendicalha, resíduo demográfico. Note-se que a pobreza não
constitui um mal. Simples contingência da desigualdade econômica. Mas a
mendicalha é um mal que envenena, suja, afeia os agrupamentos humanos.
Ora, uma cidade tão linda e certa como Belo Horizonte não podia ser
afeiada por esse doloroso lúpus facial. Não podendo admitir o afeiamento,
os mineiros procuraram e acharam talvez a única solução: a cidade Ozanam.
O mendigo é um produto residual das cidades. Assim como na
indústria do algodão sobeja o línter, resto último da matéria-prima
trabalhada, assim os agrupamentos humanos produzem a mendicalha –
línter demográfico. Mas por que motivo não proceder com a mendicalha do
modo inteligente com que os industriais procedem com o línter? Se as
fábricas “industrializam” o línter, por que não hão as cidades de
“humanizar” a mendicalha? Esse raciocínio certo trouxe a solução certa.
Tudo vai certo na Cidade Certa.
O línter humano será retirado da cidade e localizado na verdadeira
usina de transformar mendigos em gente, que é a cidadezinha Ozanam. Lá
será lavado, desinfetado, descaroçado, purgado, desverminado, higienizado,
mercerizado, melhorado no possível e por fim humanizado. Humanizar o
mendigo! Transformar o mendigo em gente! Positivamente a ideia é nova.
Como isso está longe da solução comum que ao problema dão todas as
cidades do Brasil, consistente em deixar que a mendicalha siga o seu
destino residual, se arrume como possa, coexista disseminada no corpo da
população sadia, a encher o ar dos sábados com o cantochão da “esmolinha
pelo amor de Deus” e a apodrecer em “casas de cachorro” que ela mesma
ergue à beira das cidades, com barro, palha e lataria velha?
E quando não é esse deixar que a pobreza defectiva se arrume e se
organize para a dolorosa caça aos vinténs dos sábados, temos a solução
número dois: o asilamento. Os mendigos encarcerados em casarões odiosos,
que os apavoram ainda mais que as célebres “misericórdias” onde os
doentes sem recursos vão servir de material para experiências in anima vile
dos estudantes de medicina.
A mendicalha solta determina a zoada típica, o tom, o som da mor parte
das nossas cidades do interior – a música mendicante, o “esmolinha pelo
amor de Deus” gemido em todos os tons da humildade rastejante, sobretudo
nos pontos de maior aglomeramento humano – portas de hotel, cinema ou
igreja, e mais ainda nas estações de estrada de ferro. Quando o trem para e o
viajante enfia a cabeça na janelinha para uma espiadela, o que
inevitavelmente vê é um chapéu roto estendido diante da cara clássica do
“pobre” que geme no tom mais apiedante possível o “esmolinha pelo amor
de Deus”. O contato habitual do viajante com a maioria dos nossos
agrupamentos urbanos, na curta parada dos trens, não pode ser mais feio,
mais doloroso nem mais deprimente.
E se acaso não é assim, então temos a certeza de que os mendigos estão
asilados, isto é, presos nas cadeias denominadas asilos pelo crime de terem
nascido residuais.
(Noutras cidades, como São Paulo e o Rio, a toada das ruas não é
mendicante – é zoológica. “Cabra com 24”, “Hoje é o touro”, “Elefante
com 45”, “Urso”, “Vaca”, “Borboleta”, “Águia”, “Burro”...).
Mas os mineiros de Belo Horizonte, metrópole filha da inteligência e
da previsão, de nenhum modo podiam admitir qualquer dessas soluções que
não solucionam – e ei-los a criar a cidade Ozanam, a solução que soluciona.
Ao lado da cidade dos normais estão a erguer a cidadezinha dos anormais,
dos defectivos, dos mendigos por contingência mental ou fisiológica. Mas
nada que lembre o odioso asilamento; tudo, assistência
inteligentissimamente organizada. Em que consiste?
A cidade Ozanam comporta uma série de órgãos a serviço dum corpo
sui generis. Há as casas dos pobres – casinhas singelas, mas elegantes e
confortáveis, com instalações sanitárias e banheiro de chuva, distribuídas
em ruas asfaltadas – asfaltadas, sim. O mineiro acredita no asfalto, sabe da
influência melhorante e civilizante desse resíduo do petróleo.
Um mendigo a quem foi mostrada uma das primeiras casinhas
construídas deslumbrou-se, mas franziu o nariz diante do chuveiro.
– Chuva dentro de casa? Para que isso?
– Para banho, meu caro. Para lavar o corpo, porque a lavagem do corpo
vai ser obrigatória.
– Então não venho morar aqui – disse ele. – Nunca tomei banho em
toda a minha vida e não é agora, que estou velho, que hei de me molhar...
Quer dizer que até limpos serão os corpos dos moradores de Ozanam.
Limpos e curados. A assistência física disporá dum Isolamento, duma
Farmácia e dum Lactário.
E haverá ainda todo o aparelhamento para a mais assistência
necessária: a espiritual, na capela da cidadezinha; a educativa infantil
(porque os mendigos também se dão ao luxo de procriar), no Grupo
Escolar, no Pavilhão de Recreio e na Biblioteca. O línter passará por uma
série de máquinas até que se humanize, e para o seu aproveitamento final
existirão oficinas de trabalho ajeitadas de modo a tirar o melhor partido da
operosidade ainda subsistente nesses cacos humanos.
A ideia central da cidade de Ozanam consiste em elevar o nível físico,
mental e moral da mendicalha até o ponto da recovery, isto é, até que ela
possa produzir trabalho. Mas trabalho consentido, livre, diferente do
trabalho forçado dos asilos. O mendigo deixará de ser mendigo e ingressará
na classificação normal de “gente” – embora gente que em vista da sua
condição defectiva não dispensa a ajuda guiadora do cérebro que lhe falta.
Na cidade Ozanam viverão em liberdade; curados, se curáveis;
ensinados, se ensináveis; afeitos ao uso da água e do sabão; com escola para
os filhos; com biblioteca; com capelinha para rezar; com cinema onde
possam deslumbrar-se com a Shirley Temple; com ruas asfaltadas por onde
circulem – com esse conjunto de coisas catalíticas da civilização, que agem
educativamente pelo simples fato de nos rodearem.
Talvez quem isto leia tenha a impressão de algo excessivo, puramente
ideológico e pois suscetível de fracasso. É que esse quem não leva em conta
certas qualidades especialíssimas da mentalidade e da “civilização mineira”:
o senso da justa medida, o pragmatismo, o instinto da economia e do
realizar o máximo com o mínimo de recursos – e sobretudo o senso da mise
au point.
Inimigos da ostentação, os mineiros não fazem aquilo para espantar os
povos, nem para inglês ver. O fim é um único: resolver de modo definitivo,
e da maneira mais inteligente, o problema da mendicância numa cidade
certa, cuja beleza não poderia, de maneira nenhuma, ser afeiada pela
miséria às soltas, e cuja consciência não toleraria o remorso de sabê-la
encarcerada num simples casarão de asilo.
As consequências próximas e remotas ressaltam à primeira vista.
Arrancado ao pântano e colocado na terra firme da dignidade humana, parte
do línter será recobrado e reintegrado no grupo humano normal. A parte
insanável, irremediável, incurável, essa permanecerá improdutiva e como
peso morto – mas sem a liberdade de ir macular a cidade linda. E se está
certo Henry Ford no dizer, com base na sua experiência de aproveitamento
dos defectivos, que só o idiota é caso perdido, Belo Horizonte conseguirá
resolver de maneira radical um problema até aqui insolúvel.
E como está sendo feito isso? Com recursos do povo, assegurados por
meio de donativos, renda de festas, subvenções etc. Iniciativa mista,
particular e pública a um tempo e que provoca na população um entusiasmo
comovedor. O “prefeito perfeito”, diretor da obra, sente mais orgulho em
mostrar aquilo do que a enorme área que asfaltou, porque de fato aquilo diz
mais da superioridade do povo de Belo Horizonte do que todos os outros
melhoramentos, comuns a tantas outras cidades. Aquilo é só de lá.
No dia em que a lição mineira for meditada e todas as nossas cidades
tiverem como apêndice a cidadezinha dos pobres, humaníssimo disfarce da
“usina recuperadora dos resíduos demográficos”, a terrível e dolorosa chaga
da mendicância estará curada.
Minas docet.
Júlio César da Silva

Há mais de um ano uma notícia estúpida correu: morrera


Júlio César. Notícias de morte há que nos alegram; outras nos entristecem;
outras nos revoltam. A notícia da morte de Júlio César eu a recebi com
profunda revolta. Era uma estupidez da Morte levar uma criatura tão boa,
tão fina, dessas que tanto enriquecem o mundo. Se numa galeria figura por
muitos anos um quadro de Corot e de súbito o retiram, o lugar ficará vago,
por mais telas novas que ali entrem.
Fui um profundo amigo de Júlio César. Sua morte valeu por me
arrancarem à galeria da alma um Corot que já se me fizera orgânico.
Revoltado, insultei os depredadores – a Vida, a Morte, o Destino.
Frequentemente, depois do serviço na repartição, vinha ele ao meu
escritório, à tarde, antes de pegar o ônibus para o Belém, onde ficava a sua
velha casinha. Estou a vê-lo surgir, sempre alinhado, como saído do alfaiate
naquele momento. Também muito aprumado de físico. Os anos não tiveram
força para perturbá-lo na indumentária nem no sereno brilho da inteligência.
Sereno, sim. Há inteligências de brilho fulgurante, faiscante,
atordoante, como a desse esplêndido Martins Fontes que também nos
deixou. Júlio era o dono da serenidade inalterável.
Nunca o vi exaltado. A maior ofensa que lhe fizessem, a maior
injustiça, não o tirava daquele tom de Sócrates quando Xantipa, depois
duma torrente de injúrias, lhe lançou ao rosto uma bacia d’água: “Depois da
trovoada, o aguaceiro”.
Júlio César havia alcançado esse cume da compreensão equidistante de
todos os extremos – que é a filosofia. Estava na zona mais alta a que pode
chegar uma criatura obrigada a viver num mundo de criaturas “certas de que
estão certas” – e agressivas no demonstrar que é assim. Todos os conflitos
da humanidade vêm da intolerância da certeza.
Homem que era, entretanto, Júlio também tinha suas certezas – mas
com que suavidade! Nunca insistia em impô-las pela violência, nem sequer
pela argumentação – que é a violência da lógica. Admitia a relatividade de
tudo. Se um aguaceiro repentino o pegava na rua, mudava temporariamente
de ideias sobre o grotesco dos guarda-chuvas. Uma agulhada nos rins
afrouxava-lhe o ceticismo quanto aos médicos.
Tentei um dia convencê-lo de qualquer coisa. “Quanta razão eu te
daria, Lobato, se não fosse esta dor que me está torturando!” Isso me fez
lembrar duma passagem de Camilo. Certa vez Guerra Junqueiro, em plena
crise mística, fez uma viagem a São Miguel de Seide para converter o
grande torturado. Boa parte da noite passou o poeta a amontoar argumentos
esmagadores do ceticismo – e ia acompanhando no rosto de Camilo a
marcha da conversão. Vencera a campanha! Trouxera ao redil da fé aquela
alma desgarrada. E certíssimo do triunfo, perguntou, no fim: “E então?”.
Camilo respondeu: “Dar-me-ia por vencido, se não fossem três bolinhos de
bacalhau que me estão a espernear cá no estômago como três Voltaires”.
Ter certezas é bom – mas admitir que até a má digestão as altera é
sábio.
O prazer do meu convívio com Júlio César vinha da amplidão da sua
tolerância por tudo quanto não fosse atentado contra a língua. Ah, nesse
ponto era um sanguinário. Exigia correção gramatical até nas
descomposturas. Sartorial, e gloticamente, Júlio lembrava um manequim.
Por idiota que fosse a ideia, ele a perdoava se vinha bem-vestida.
O mundo o considerava pobre, porque para a ingenuidade do mundo
pobre é não ter dinheiro. A mim, entretanto, Júlio sempre me deu a
sensação dum dos homens mais opulentos de São Paulo – tanta era a
riqueza que a cultura, a observação da vida, a experiência dos anos nele
acumularam. Riquíssimo e pródigo: Júlio dava nababescamente. Um mão-
aberta.
Sua memória ficara com o tempo um precioso museu de ideias,
imagens, pontos de vista, finuras, pensamentos engenhosos, observações
agudas, filosofias, graciosas galanterias – tudo que é flor espiritual. A
quinta-essência dos grandes mestres da humanidade, de Luciano a Anatole
France e Machado de Assis, ele a trazia consigo, bem digerida, para a
educação estética dos que o rodeavam. Júlio, mais que poeta, foi um grande
educador.
Muito espírito anda pelo mundo que lhe deve a lapidação. Muito
primor humano, em sentimento e ideia, foi orientado e plasmado por ele.
Sua força criatriz exercitava-se sobretudo num mister – formar criaturas
femininas. Deixou poemas vivos de maior valor que seus poemas em verso.
Dar. Enriquecer os outros. Júlio era isso. Dos nossos numerosos
encontros sempre saí aumentado – sem que ele, com o dar-me, se
empobrecesse. Júlio veio ao mundo com o destino de cornucópia.
Raro na vida o que não cansa. Tout lasse... Júlio não cansava. Não era
desse tipo de amigos de meia hora, uma hora ou duas – dos que passado
esse tempo nos forçam ao “Até logo”. Todos temos o nosso ponto de
saturação – na amizade como no amor. Mas amigo nenhum se saturava de
Júlio César. Horas, dias que com ele conversássemos era tempo encantado
no começo, no meio e no fim do encontro. Eu, de mim, nunca o larguei por
outra causa que não as contingências do horário da vida.
Os que o viam pela primeira vez implicavam-se com o seu apuro
externo e interno, vendo nisso uma atitude. Não era, Júlio jamais teve
atitudes. Seu apuro não passava da sua naturalidade. Quando muito,
podemos dizer que Júlio César foi uma atitude da Vida.
Sua bondade filosófica chegava a ponto de não ver a maldade humana.
“Deixe, deixe.” Tão longe foi nisso que me dava a ideia do Perdão feito
homem. Consequência social: a Mesquinhez Humana jamais o perdoou...
Júlio!... Posso dizer que sei o tesouro que essa palavra me diz.
Apelo aos nossos operários

Programa proposto por M. L. aos operários da empresa editora que


trazia o seu nome.

Toda empresa industrial que se respeita e pretende


desenvolver-se cada vez mais deve basear-se nos seguintes princípios:
1o) O verdadeiro objetivo de uma indústria não é ganhar dinheiro, e
sim bem servir ao público, produzindo artigos de fabricação conscienciosa e
vendendo-os pelos preços mais moderados possíveis. A indústria que se
norteia por estes princípios nunca para de crescer, nem de desdobrar-se em
benefícios para todos quantos nela cooperam. Torna-se uma obra de
paciência, consciência e boa vontade – três elementos sem os quais nada se
consegue no mundo.
2o) Uma empresa industrial depende da cooperação de três elementos:
os diretores, os operários e o consumidor. Sem o concurso destes três
fatores a indústria não pode subsistir. Assim, os diretores, os operários e o
consumidor funcionam como sócios da empresa, e nessa qualidade têm
direito à participação nos lucros.
O sócio-consumidor participa nos lucros recebendo artigos cada vez
mais caprichados e por preços cada vez mais baixos. A indústria que
procura lesar esse sócio, impingindo artigos malfeitos e caros, não é
indústria, é pirataria.
O sócio-operário participa nos lucros sob forma de constantes
aumentos de salários. A indústria que não sabe ou não pode proporcionar
este lucro ao sócio-operário não cumpre a sua alta missão.
O sócio-capitalista participa dos lucros sob forma de dividendos
razoáveis. Ele forneceu o capital necessário à montagem da indústria e tem
direito a uma remuneração proporcional.
3o) Os diretores da empresa fazem parte do seu operariado, com a
única diferença que lhes cabe o trabalho mental da organização e da
coordenação. A eles incumbe promover com inteligência e segurança a
venda dos produtos de modo que nunca falte trabalho na fábrica e que, pela
boa direção dos negócios, os três sócios aufiram os lucros a que têm direito.
Mas a todo direito corresponde um dever. O dever do sócio-capitalista
é não desprezar os outros sócios, querendo tudo para si; é contentar-se com
uma quota justa, que não sacrifique o sócio-consumidor nem o sócio-
operário.
O dever do sócio-operário é dar à empresa a soma de trabalho que ao
nela ser admitido se comprometeu a dar. Tanto lesa a indústria e a aniquila o
mau patrão como o mau operário. Por mau operário entende-se todo aquele
que trabalha de má vontade, procurando nas horas de oficina “encher o
tempo”, em vez de produzir. O operário que assim procede prejudica a si
próprio, à sua família e à sociedade em que vive. Se todos fizessem o
mesmo, que sucederia? A empresa cessaria de dar lucros, teria de baixar os
salários e por fim de fechar as portas, privando de trabalho inúmeras
criaturas humanas.
Precisamos não nos esquecer nunca de que o trabalho é a lei da vida.
Sem trabalho não se vive. Tudo que na terra existe a mais da natureza é
produto do trabalho humano. Só o trabalho pode melhorar as condições de
vida dos homens. Se assim é, nada mais inteligente do que trabalhar com
alegria, consciência e boa vontade.
Nas empresas industriais de alto tipo o salário é uma forma prática de
dar ao sócio-operário a sua parte nos lucros da produção. Mas como há de
uma empresa auferir lucros suficientes para isso, se o operário produz
pouco e de má vontade? Quem paga o salário não é o capital. Este apenas
fornece as máquinas. Quem paga o salário é a produção, o que vale dizer
que o operário se paga a si próprio. Ora, se assim é, quanto maior, mais
eficiente, mais econômica e rápida for a produção, mais os
lucros avultam e maiores serão os salários. Como pode pretender melhoria
de salário o operário que produz mal, se o salário é uma consequência da
sua produção?
A economia de tempo e material representa lucro e aumento de salário.
Quem pode fazer um serviço em uma hora e o faz em duas; quem mata o
tempo em vez de produzir; quem dá dez passos em vez dos oito necessários;
quem espicha a sua tarefa; quem se esconde atrás de uma porta; quem
maltrata uma máquina; quem estraga uma folha de papel; quem perde um
minuto que seja de trabalho, lesa a empresa, e lesa, portanto, a si próprio.
No fim do ano a soma desses pequenos desperdícios representa muito. A
empresa que consegue evitá-los habilita-se a beneficiar o público com
melhoria de preços e o operário com melhoria de paga.
Trabalhemos, pois, com amor e boa vontade, conscientes de que somos
um organismo capaz de ir ao infinito, se todas as células cooperarem em
harmonia para o fim comum. Podemos nos transformar numa empresa que
nos orgulhe a todos – e a todos beneficie cada vez mais. Para isto o meio é a
preocupação constante de produzir com o mais alto rendimento em
perfeição e presteza.
Quem não pensar assim prestará um verdadeiro serviço à empresa, ao
público e aos seus colegas, retirando-se. Nossa empresa saiu do nada, é
filha de um modesto livrinho e, tendo vencido mil obstáculos, já faz honra a
São Paulo. Mas devemos considerá-la apenas como um início do que
poderá vir a ser. Está em nossas mãos torná-la um jequitibá majestoso à cuja
sombra todos nós possamos nos abrigar – nós e mais tarde nossos filhos.
Mas se não trabalharmos com boa vontade e consciência do que estamos
fazendo, o jequitibá não assumirá nunca a majestade que tem na floresta e
não dará a sombra de que todos precisamos.
A geada

A grande geada de 1918 foi a maior jamais observada na terra


paulista. M. L. percorreu durante dez dias as linhas da Paulista, da
Mogiana e da Sorocabana “vendo a geada” e de volta publicou suas
impressões.

Em linhas gerais a situação determinada pelos grandes


frios de junho desenha-se com bastante relevo. A lavoura principal do país,
a parte sólida por excelência do patrimônio nacional, foi destruída por
metade e está rudemente combalida no restante. Daí a premência de
restaurá-la. Para isso: necessidade absoluta de adotar uma cultura de
transição, cujo produto valha ouro como vale o café; e adotá-la em
proporções tais que permitam um relativo equilíbrio. Só há um produto
capaz disso: o algodão. Mas muito algodão!
Uma safra que baste apenas para o consumo interno seria em tempos
normais uma grande coisa. Agora é nada. São Paulo precisa produzir,
dentro de poucos meses, fibra que baste para o seu consumo, e que saia
exportada em fortíssima escala. Do contrário é a bancarrota.
As futuras colheitas de café, por quatro ou cinco anos pelo menos,
serão insignificantes. A de 1919 não irá além de três milhões, se lá chegar.
Produzirá 120 mil contos. Que valem 120 mil contos? Que valem 120 mil
contos para quem só ao Estado precisa dar metade, e para o seu giro interno
necessitou sempre de 400 mil?
Vê-se daqui como é séria a situação das nossas finanças públicas.
Como se comportarão elas com tão súbita embolia na entrada anual de
ouro?
O sistema político de São Paulo, e em grande parte o do Brasil, repousa
na exportação do café. Café e borracha foram os bois de coice que na
República sempre arcaram com todo o peso da carreta financeira,
arrancando-a dos maus passos lamacentos. Fiados na rijeza dos seus
músculos, os nossos estadistas cometeram os maiores crimes
administrativos e econômicos, sacando desapoderadamente sobre o futuro
para cobrir lacunas do presente.
Um belo dia, porém, graças à esperteza do inglês congregada à nossa
proverbial inépcia, o boi da borracha se viu retirado do serviço. Ficou
sozinho na canga o pobre boi do café – e obrigado a puxar carga dupla.
Lá ia indo, mordido da berneira dos impostos, taxas e sobretaxas,
escorvado com as alfafas das valorizações e outras mezinhas de curandeiro.
Mas vem a geada, desaba sobre o café o Polo – e ei-lo descadeirado de vez.
Como agora, assim perrengue de três quartos, pode ele operar com o quarto
restante um serviço de tiro anteriormente distribuído por oito valentes
pernas?
A situação agravou-se seriamente; e ou os nossos governantes colocam
na canga um heroico auxiliar capaz de façanhas, enquanto o boi “Rubídio”
sara e restaura as forças, ou desta feita o carro afunda até aos fueiros na
lama da derrocada.
Está visto que este auxiliar não pode ser outro se não a preciosa fibra
do ouro branco.
Basta, porém, indicá-lo? O lavrador está farto de saber melhor do que
ninguém que o bom esparadrapo é de algodão. Mas, derrancado, tonto ainda
com a pancada que levou na cabeça, tem direito de esperar que
pressurosamente o ajudem a atrelar no carro, bem arreado e sadio, o novo
boi. E como é assim, nunca foi imposta à ação governamental uma tarefa
mais séria e urgente.
Vai nisso a salvação de ambos, lavoura e governo. Para salvar-se, o
governo há de botar espeques na lavoura. Do contrário, desabamento a dois.
Até aqui o café despejava no Tesouro, todos os anos, com regularidade de
ampulheta, a carrada de ouro que constituía a base, o núcleo central, o peão
da nossa vida financeira. Apesar disso o país ia escorregando pela rampa da
falência, como por um pau de sebo abaixo.
O regime do déficit normalizou-se. Não há ingênuo que admita a
hipótese de vê-lo expungido dos orçamentos. O déficit persiste, insiste;
estufa, engorda, prolifera – e dá até crias municipais.
Já se alteou, na República, a mais de 2 milhões de contos. Já forçou o
ilustre financista Bulhões a inventar uma teoria explicativa sui generis: o
déficit cresce porque enriquecemos. A riqueza pública aumenta: logo, é
natural que o déficit aumente.
A orgia republicana alterou até as velhas regras da lógica e da
aritmética. Outrora “mais” dava “mais”. Hoje dá “menos”. Mais riqueza
pública significava menos recurso ao crédito, mais abundância, mais saldos.
Hoje mais riqueza significa mais déficit, pior câmbio, moratórias maiores.
Uma charada. A ciência das finanças do velho Adam Smith está
positivamente revogada e substituída por uma espécie de ciência esotérica.
Só os grandes iniciados possuem a chave dos mistérios. Breve veremos
como este ocultismo financeiro malabariza o problema.
Mas, malabarize-o como malabarizar, venham as teorias cabalísticas
que vierem, um ponto do problema não admite “histórias”: – ou o Estado
acode à lavoura e salva as suas finanças, ou despenha-se com ela no abismo
– como aconteceu na terra da borracha.
A lavoura está nesta posição: necessitada de crédito mais do que nunca
e mais do que nunca sem crédito. Do capital particular não pode socorrer-
se. Além de escasso, esse capital é arisco e caro: a lavoura não suporta juros
de 1%.
O mecanismo comissário de Santos não tem forças para ampará-la.
Opera adiantamentos por um ano: não tem elasticidade para dilatá-los a
quatro ou cinco. Também não adiantará dinheiro com a garantia de algodão:
não é seu negócio o algodão.
Fechadas essas duas portas, só resta uma: o Estado. Ele, só ele, pode e há de
remediar o aperto.
Forças conjugadas, nascida uma da outra, lavoura e Estado vivem em
simbiose – e são sócias forçadas na prosperidade e na desgraça.
Um fazendeiro da Noroeste formulou assim o seu caso, que é o caso de
metade da lavoura paulista: “Perdi quinhentos mil pés. Estou reduzido a
benfeitorias e terra nua. Quero recomeçar. Quero lançar-me no algodão.
Tenho as energias precisas, mas falta-me o dinheiro para a empreitada.
Recorri a um capitalista amigo e tomei com o previsto não. Recebi outro
não do meu comissário em Santos. Ora, por mais boa vontade e fibra que eu
tenha, por melhor que sejam as minhas terras, posso tudo, menos inventar
dinheiro. Sem dinheiro esta máquina não anda. Negam-mo de todos os
lados? Paciência. Vou vegetar à moda do caboclo, e a fazenda que leve a
breca. Resta-me uma esperança, o Estado. Se ele for inteligente, virá ajudar-
me. O proveito será recíproco”.
Outro fazendeiro torrado pela geada dizia: “Eu tenho um sócio fidalgo
que mora na capital. Sempre viveu à custa do meu trabalho. Come-me todos
os anos uma boa parte dos lucros, e em troca me dá, principalmente, a honra
de ser meu sócio. É poderoso, influente, acatado, e vive com estadão num
palácio. Se paro de trabalhar e produzir, quero ver como ele se aguenta!
Fio-me nisso. Todos andam inquietos; eu, não. O meu sócio desta vez há de
pular, há de fazer das tripas coração, inventar, falsificar dinheiro se preciso
for, para me socorrer nesta apertura. E vai fazê-lo, fingindo que o faz pelos
meus belos olhos, porém na realidade movido pelo interesse próprio, pelo
instinto de conservação”. – Quem é esse sócio?
– O governo.
É isso mesmo. Lavoura de café e governo são entidades xifópagas,
interdependentes, sócias. O lavrador sabe muito bem disso, e por essa razão
está calado, esperando. Em crises infinitamente menos graves gritou muito
mais. Hoje não grita, espera. Sabe por intuição que pela primeira vez a
geada alcançou o sócio rico; e que este não poderá limitar-se a belas
palavras e promessas, como tantas vezes. As boas cartas desta feita vieram
parar às mãos do parceiro que sempre “ficava burro”.
Em relação ao comércio do café sucede o mesmo. Os ases passaram
para as mãos da lavoura. Quem ditará os preços será, por um lustro no
mínimo, o escalavrado produtor, mormente se o algodão lhe correr a
contento. Poderá resistir. Senhor de duas culturas contíguas, tocadas pelo
mesmo braço, na mesma terra, escorar-se-á numa quando lhe procurarem
arrebatar, a preço de custo, a outra. Resistirá – e pela primeira vez, porque
na monocultura toda resistência era impossível. O café vai entrar em alta
longa. Coliguem-se contra ela todas as forças baixistas: a alta existirá,
resistirá, persistirá. Com uma série de safras de café pequenas, e muito
algodão nas tulhas, os lavradores de São Paulo serrarão de cima durante
longos anos. E quem sabe se um dia não hão de abençoar esta grande geada
e cognominá-la de Geada de Ouro? Que não é possível neste mundo?

II

Um lavrador geado em cem mil pés definiu ornitologicamente a


situação:
– “Antes do dia de São João éramos um periquito verde; veio o pealo e
viramos tico-tico arrepiado. E vai ver que ainda acabamos em vira, depois
das queimas de agosto...”
A imagem não é das piores. Até no que tem de jocosa é típica. Quando
a desgraça é “por demais”, dá mesmo vontade de rir sem gosto e fazer
pilhérias macabras.
Quem se der o trabalho de gastar uma semana em excursão pelo ex-
oceano do café – a coisa de que mais nos orgulhávamos, nós paulistas, pela
sensação de riqueza vitoriosa que todos ali sentíamos – voltará murcho,
cabisbaixo, e geado por dentro nas esperanças – tamanho foi o desastre.
Quase tudo destruído. Tudo torrado. Tudo pardacento. Verde, coisa
nenhuma...
Pelas colinas onde exuberavam as ondas verde-escuras dos cafezais
sem-fim, e as manchas esmeraldinas da cana, e a poliverdura das copeiras,
matas e pastos, impera hoje a gama grisalha das sépias, dos ocres secos e
dos vermelhos queimados, numa moxinifada de tons sujos e mortos.
Não é a paisagem clássica do outono – folhas amarelas a soltarem-se ao
vento, e na desnudez incipiente das árvores a certeza de que elas se
precaveem contra as insídias do frio, para um despertar mais belo após a
estagnação do letargo hibernal. A vegetação não hibernou: morreu. As
folhas estorricadas não se destacam dos ramos, porque estes, mortos, não
têm mais força para alijá-las de si. Morreram ambos, dum mesmo
traumatismo celular: – a seiva congelou-se-lhe nos vasos e pela dilatação
rompeu a rede de canalículos por onde circulava. E assim permanecerão
unidos até que venham separá-los as chuvas.
As árvores mortas lembram aqueles cadáveres descritos por Euclides
da Cunha em Os sertões – “higrômetros singulares...”. Conservam-se
intactas, guardando a atitude que tinham em vida, cheias, repolhudas. Às
primeiras chuvas, porém, esboroar-se-ão e transformar-se-ão em lenha
arreganhada.
Cafezais belíssimos, a flor da lavoura cafeeira de São Paulo e, portanto,
do mundo, em linhas como tiradas a régua, uniformes, a mesma altura, o
mesmo bojo – granadeiros da riqueza perfilados aos milhões... Mas mortos,
imóveis, como asfixiados por um gás de guerra –, em forma ainda, com
todas as folhas a postos...
A impressão é dolorosíssima. E se dum cafezal erguemos os olhos para
pousá-los na mata que surge adiante, a impressão persiste. Foram-se as
matas. O aspecto atual é de um fim de tudo.
Submetidas à congelação, cada planta comporta-se a seu modo. Há as
que enegrecem a fronde, e semelham árvores emersas dum banho de
nanquim. Ostentam outras colorações terrosas, que sobem, em escala, da
terra de Siena ao amarelo claro da palha de arroz. As pastagens de
catingueiro batidas de geada confundem-se com o roxo-terra do chão. E
nesses plainos escampos, léguas e léguas, em todas as direções, outra nota
de verdura não nos reconforta os olhos além do pontilhado verde-veronês
da vassourinha. Só ela, as laranjeiras, a alfafa, o eucalipto e uma ou outra
praga de campo, resistiram à torra. Dos capins, só a infame barba-de-bode,
nos cerrados de terra seca.
O gado, nas invernadas de catingueiro onde engordava ou criava,
dispersa-se faminto, de focinho sempre rente ao chão. Não ergue a cabeça
sequer para ver passar o trem, tão sério se tornou para ele o problema
alimentar. Se acode às capoeiras de “encosto”, encontra lá a mesma penúria:
a torra foi uniforme e geral.
Em torno às casas, os alegres retângulos sempre verdejantes das hortas
e pomares são hoje um amontoado informe de galhaça ressecada. Foram-se
as belas mangueiras copadas. Das bananeiras viçosas não se salvou uma. Os
mamoeiros, a cana, a mandioca, a mamona: torrados.
Nunca se fez maior dispêndio deste adjetivo e do verbo correspondente.
Tais palavras dão o tom em todas as palestras. Nos trens, nas estações, nas
ruas, nos clubes, nos hotéis, nos cafés, o assunto é sempre o mesmo,
obsedante, e sempre escandido pelos lúgubres vocábulos.
– A fazenda tal?
– Torrada.
– São Manuel? Jaú?
– Torradinhos.
– Tem notícias da Noroeste?
– Torrada inteira.
– E do Paraná? A Araraquarense? A Douradense?
– Tudo torrado.
E não há nisso, o que é o pior, nenhum exagero. A maioria das mais
belas fazendas de São Paulo ficou numa noite reduzida a chão apenas. Tudo
quanto nelas representava o labor do homem, anos e anos de trabalho
paciente, o melhor do esforço e da inteligência dos nossos fazendeiros, tudo
desapareceu, completamente destruído. Ficaram a terra e as benfeitorias.
Volta, brota de novo, dizem os otimistas.
Perfeitamente. Mas, brotado ou replantado, não representará isso uma
nova formação de cafezais? Essa volta não exigirá uma soma de trabalho e
um espaço de tempo iguais aos despendidos com a primeira formação?
Logo, a geada de junho se traduz numa fantástica destruição de capital, feita
em escala de que não há notícia de outra em nenhum país do mundo. Faça o
que fizer, pule o que pular: quem perdeu, digamos, cem mil cafeeiros
perdeu, destruído, queimado, incinerado, um capital de 100 contos.
É, portanto, necessário, no ativo das nossas magras riquezas, dar baixa
às centenas de mil contos representadas pelas centenas de milhões de
cafeeiros torrados.
Essa é a dura verdade. Por enquanto, iludidos pelas aparências,
ninguém dá a devida importância ao prodigioso desastre.
Fiam-se em que há exagero, e não percebem como o café é ainda o
supedâneo sobre o qual toda a economia de São Paulo repousa.
Mas dentro de poucos meses, à medida que se escoar a safra deste ano,
todos sentiremos, direta ou indiretamente, os reflexos da nevada. Que há
exagero, isso há. Mas para menos. Pela primeira vez em nossa terra
acontece semelhante anormalidade: exagero às avessas...
No meio deste quadro apavorante, como se comporta o homem?
Percebe-se que ele ainda está sob uma impressão de estupor. A pancada
foi demasiado forte e insidiosa. Há uma tonteira geral. As ideias andam
embaralhadas.
Uns sacodem os ombros: Que fazer? Outros riem-se – riem um riso sui
generis – um riso de geada. A maioria queda-se num langor fatalista. “O
que tem de ser tem muita força” – é um princípio corrente, de alta
sabedoria, repetido amiúde pelos que, por força do bom-senso, exercem
entre os demais a função de pajés. “Deus tira, Deus dá” – é outra ficha de
consolação.
Apela-se para o governo, sem grande fé no governo. Apela-se para o
algodão, sem muita fé no algodão. Apela-se para a Providência – Deus é
brasileiro, mas sem grande fé nesse brasileirismo. “Vê-se que Deus é
brasileiro”, dizem os céticos, apontando a balbúrdia em que isto vai. E
todos aguardam o mês de setembro, a ver como se comportam na primavera
as plantas queimadas.
Até agora nenhum movimento sério se denunciou entre os fazendeiros
– as vítimas, para uma associação, um congregamento de esforços, uma
ação conjunta. A grande geada não foi suficiente para movê-los a isso.
Esperam, talvez, uma chuva de formicida no rabo...
Num clube de formosa cidade oestina, centro de intensa produção de
café, os grandes fazendeiros da zona comentavam calmamente a situação.
– “Precisamos nos reunir, formar o centro da lavoura, organizar partido,
congregar energias”, declamava um deles.
– “Impossível”, interveio outro; “nós descendemos na maioria de
negociantes de animais. Se nos reunimos, logo um procura jeito de embaçar
o outro. À toa, sem fito de lucro muitas vezes, só para poder depois piscar o
olho e considerar-se o mais esperto”.
Há bastante psicologia nessa charge. O vício do barganhismo
aciganado estragou a nossa gente. E tanto, que ainda hoje, quando se
negocia uma fazenda, as partes interessadas não se referem à transação em
termos honestamente lisos. É sempre de jeito a permitir a clássica piscadela
d’olho.
– “Impingi a minha fazenda a Fulano”, diz o vendedor.
E o comprador vai nas mesmas águas:
– “Passei a perna em Sicrano: ele não sabe o que me vendeu”.
Ambos, entretanto, estão convencidos de que nenhum foi logrado: o
negócio se fez pelo valor real.
Ora, com este vício no sangue, como hão de associar-se os lavradores,
se a base da associação é a confiança recíproca? Isso faz morrer em germe
todas as tentativas de agremiação, e impede, ainda num momento grave
como este, que parta da lavoura o grande movimento coesivo que lhe daria
uma força gigantesca. E no entanto todos sabem de que prodígios é capaz a
união.
Sabem, mas inconscientemente sacrificam tudo pelo prazerzinho
atávico de piscar o olho...

III

Os estragos da geada não ficarão apenas – apenas! – no que hoje se vê.


Irão além. O fogo não tardará a completar a obra do gelo. Já começaram as
queimas, detidas, felizmente, pelas últimas chuvinhas. Inda assim enormes
extensões de matas, capoeiras e campos já estão reduzidos a cinzas. Logo
que agosto, o mês clássico do fogo, entre com as suas longas estiagens, São
Paulo assistirá ao maior incêndio que jamais assolou as suas terras.
Com a frouxidão das nossas posturas municipais relativas ao caso, com
os nossos costumes, com a escassez da população rural, não há aceiro, nem
ação prática protetora da vestimenta do solo.
É incalculável a soma de males que faz ao nosso país o regime do fogo
anual. Os sertões do Centro são já um deserto, árido e nu, carrasquento e
inútil, por obra da queima sistemática. Inúmeras outras regiões caminham
para esse mesmo fim. Aqui em São Paulo, nos campos marginais da
Sorocabana, observa-se a fatura do deserto artificial. Há até o caso típico da
palmeirinha indaiá, que num prodígio de adaptação meteu terra adentro o
caule, de modo que as palmas brotam à flor do solo. Só assim consegue
subsistir, conformada ao regime periódico do fogo.
Os males da queimada, os prejuízos que ela acarreta ao solo, ninguém
os poderá calcular. São infinitos. Todos os sais extraídos da terra pelas
plantas durante um período vegetativo se veem de um momento para outro
em estado de cinzas, depositados à superficie, de onde as águas os arrastam
para os córregos, para os rios, para o mar, anemiando assim o solo.
Ninguém dá ao fenômeno o devido valor, porque tais prejuízos não se
fazem sentir no momento e em moeda. Mas representam ônus tremendos, e
dificuldades sem conta, que amontoamos para o futuro.
Quem ateia o fogo? Ninguém. Ninguém e todo mundo. Os malvados de
alma neroniana, amigos do belo espetáculo anual. Os descuidados. O acaso.
As estradas de ferro. E até – diz o caboclo manhoso, inventando álibis para
isentar-se de uma culpa velha – o sol. “Fogo de agosto gera por si.” Mas a
grande incendiária, não resta dúvida, é a locomotiva das nossas estradas de
ferro que usam lenha. Basta uma delas, a Sorocabana, por exemplo, para
atear fogo no mundo. Esta estrada, hoje inglesada em “Railway”, parece até
que, para divertir os seus passageiros, ou aliviá-los da infinita lombeira
causada pela velocidade de 20 SP (entenda-se Snail Powder) que imprime
aos seus trens maravilhosamente bem organizados em matéria de atraso,
transforma a chaminé das locomotivas em pistolões pirotécnicos. É de ver,
por entre rolos de fumo, o lindo efeito daqueles borbotões de faíscas que o
vento espalha em todo o percurso pelos campos marginais.
Por estas e outras razões a opinião sensata pende a crer no incêndio
geral em agosto. E assim, aos prejuízos já verificados da geada, teríamos de
acrescentar ainda os iminentes, em ser, mas inevitáveis, do fogo. Só em
setembro, pois, com a entrada das chuvas, é que se tornará possível um
cálculo completo do desfalque determinado pela grande geada na economia
de São Paulo.
Quanto aos estragos só da geada, não há ainda base segura para um
cálculo sério. Entretanto, medido a olhômetro, único instrumento de
emprego possível no momento, não haverá exagero em computar em
quatrocentos milhões o número de cafeeiros perdidos. Ao preço de mil-réis
o pé, só aqui temos uma destruição de capital equivalente a 400 mil contos.
Porque – insistimos – brotados após uma poda geral, ou replantados de
novo, em qualquer das hipóteses o fato significará uma “reconstituição”
exigidora de novos capitais, muito trabalho e muito tempo.
Em seguida aos do café vêm os prejuízos da cana. Esta cultura,
generalizada como está no Estado inteiro, em grande escala nos centros
açucareiros, em pequena escala por todos os recantos onde se produzem
rapadura e pinga para o consumo local, avulta fortemente no ativo da
riqueza paulista. E como o açúcar, a rapadura e o álcool são gêneros de
primeira necessidade, a nossa população haverá que importá-los,
caríssimos, desfalcando assim as suas reservas monetárias. Depois da cana
virá, talvez, a mamona, cultura nova que assumiu em consequência da
guerra uma amplitude imprevista.
Quase completa como foi a queima dos mamonais, um milhão de sacas,
pelo menos, da colheita em perspectiva, deixará de entrar em movimento.
Há ainda a mandioca, atrasada de um ano; há as frutas. Destas, a
banana exerce uma importante função alimentar. Cultivada em toda parte,
em todos os quintais, em todas as sitiocas, entra na alimentação popular
numa quota que só agora será devidamente avaliada. A sua ausência forçará
o consumidor à substituição – e milhões de criaturas vão pagar a preços da
hora da morte as tantas calorias que a preciosa fruta lhes proporcionava de
graça.
Também as mangas, o abacaxi, o mamão e mais miuçalha, representam,
pela abundância, um valor econômico muito mais alto do que parece, e sua
falta determinará a necessidade de carregar a mão nos sucedâneos.
Inúmeras outras coisas, de pequeno valor econômico nas unidades, mas
avultado no total, entram ainda em jogo. Tudo somado alçará a meio milhão
de contos os prejuízos da inexorável onda de frio com que nos mimoseou o
Polo.
Quer isto dizer que São Paulo vai, durante um lustro pelo menos,
trabalhar com redobrado esforço a fim de restaurar-se na situação em que se
achava no dia do flagelante meteoro.
E para isso ainda é mister recorrer a uma cultura intermediária –
transitória – de espera. Uma cultura que se faça no próprio terreno ocupado
pelo café; que lhe não prejudique a brotação; que se dê bem nas terras e no
clima cafeeiro; que tenha nos mercados uma cotação; que seja mercadoria
exportável; que não desequilibre o funcionamento normal das fazendas;
uma cultura providencial, em suma, espécie de dom do céu para consolo e
arranjo das vítimas que esse mesmo céu, em momento de inclemência,
arruinou. Essa cultura – o estado de São Paulo inteiro, numa estupenda
unanimidade de vistas já a elegeu – é o algodão.
Mais estradas...

Depois de sua volta dos Estados Unidos M. L. manteve-se em silêncio.


Só o rompeu quando, após a revolução paulista, o interventor Valdomiro
Lima lançou um planejamento de construção de quinze mil quilômetros de
estradas de rodagem. Na onda de condenação do projeto pelos paulistas
ressentidos, a nota discordante foi este artigo de M. L., o qual punha as
estradas acima até do amargor da derrota.

São Paulo fala novamente em estradas. O governo traçou


um plano de quinze mil quilômetros, ao custo de 500 mil contos,
distribuídos por uma série de anos. A “opinião pública” imediatamente se
assanhou e os catões de sobrecasaca murmuraram que era muito, que o
momento não comportava obra de tal vulto, que não estávamos em
condições etc. Consequência: o governo fez como o caramujo – encolheu-
se, e parece que São Paulo vai continuar como até aqui – ridiculamente
descalço, isto é, sem rodovias pavimentadas.
Porque São Paulo, apesar de supor que tem estradas, não tem estradas;
ou as tem em tão miserável mínimo que é como se as não tivesse. Vejamos
isso.
Diz a estatística oficial que há em São Paulo três mil quilômetros de
estradas estaduais; vinte e cinco mil de municipais, e mil e tantos de
particulares.
Seria alguma coisa tal quilometragem, se merecesse o nome de estrada
a infâmia de poeira, buracos, pontilhões furados e lameiros que esses vinte e
cinco mil quilômetros de vias municipais na realidade representam. Se
chove uns dias, o tráfego intermunicipal para. Só a nado pode alguém
passar duma cidade a outra – e natação em lama. Os Fords viram anfíbios,
viram jacarés e operam os maiores prodígios de malabarismo nas
derrapagens e atolamentos mais inconcebíveis. Apesar disso a serpente de
lama de vinte e cinco mil quilômetros continua a receber o nome de
estrada!...
Se não chove, a serpente de lama transforma-se em serpente de pó
infernal. Os Fords – sempre eles! – trafegam dentro dum rolo móvel de
horrendo pó vermelho. O audacioso viajante, ao chegar em casa, sacode-se
e “dá aterro”. E a coisa continua a receber o nome de estrada...
Além dessas estradas municipais, existem três mil quilômetros de vias
apedregulhadas que devemos ao “presidente estradeiro”. Quando
Washington Luís, mostrando-se com mais visão do que todos os governos
anteriores, iniciou a abertura dessas estradas, foi um brado de alarma! A
“opinião pública” protestou – que ele estava pondo fora o dinheiro do povo,
que era aquilo um crime contra a economia paulista, que a ocasião não era
oportuna etc. Os mesmos argumentos que agora se erguem contra o projeto
Valdomiro Lima. E Washington Luís foi depreciativamente cognominado
“estradeiro”. Hoje isso constitui o seu maior título de glória.
São essas estradas do “estradeiro” as únicas que merecem o nome de
estradas. E que o merecem em parte, porque estão ainda muito longe de ser
o que precisam ser. O simples fato de estarem na categoria das estradas de
pedregulho mostra que são de terceira classe. Há acima delas as de
macadame, as de asfalto e as de concreto.
Deste último tipo, que constitui a primeira classe, só nos consta que
haja o trecho que vai de São Paulo a Santo Amaro – uma miséria.
Quer dizer que São Paulo, o orgulhoso São Paulo que até guerras já faz,
continua tão rudimentar em matéria de estradas como os mais capengas
países do mundo – China, Paraguai...
Tomemos, para comparar, três estados americanos de população
equivalente à de São Paulo – Illinois, Ohio e Texas, dos quais temos uma
estatística de 1926 – já bem atrasada. Apesar disso seus números nos
envergonham: de estradas de 4a classe tinham esses estados,
respectivamente, 7.942, 2.254 e 15.150 quilômetros.
De estradas de 3a classe (correspondentes às nossas famosas rodovias
washingtonianas) tinham: o Ohio, 5 mil, e o Texas, 9.555 quilômetros. O
Illinois, nenhuma – nem sequer as usa.
Estradas de 2a classe, ou de macadame: Illinois, 7.200; Ohio, 2.800, e
Texas, 3.400 quilômetros.
Estradas de la classe, de asfalto ou concreto: Illinois, 7.300; Ohio,
5.200, e Texas, 1.180 quilômetros.
Essas estradas acarretavam em 1926 uma despesa de 66.200.000
dólares para o Illinois; de 45.500.000 dólares para o Ohio, e de 44 milhões
de dólares para o Texas.
As taxas sobre automóveis arrecadadas em 1927 produziram para o
Illinois, 14.797.000 dólares; para o Ohio, 10.379.000; e para o Texas,
15.028.000.
Os números relativos à construção e conservação das estradas desses
três estados em 1926 correspondem em nossa moeda (13 mil-réis o dólar) a
860 mil contos para o Illinois, 590 mil contos para o Ohio e 572 mil contos
para o Texas.
Isso num ano. Aqui toda gente arrepia os cabelos com um
minguadíssimo dispêndio de menos que isso repartido numa longa série de
anos! O defeito do projeto Valdomiro Lima está apenas em ser pequeno
demais para São Paulo, isso sim. Por estreito, por mesquinho, por muito
pequeno para São Paulo, sim, devia ser criticado. Os recursos de São Paulo,
já desenvolvidos ou latentes, estão a exigir, a clamar em altos brados pela
extensão desse projeto.
Porque é supremamente ridículo o que sucede entre nós. Quem viaja
pelo interior entusiasma-se com o que vê produzido pela iniciativa
particular. Fez ela por toda parte o máximo que lhe estava nas forças; mas
esse trabalho formidável de criação se vê peado, paralisado, sabotado,
anquilosado pela inépcia ou miopia duma série de governos que jamais
estiveram na altura do povo paulista. Este faz sempre o máximo; seus
governos dão-lhe sempre o mínimo. É soberanamente grotesco esse mínimo
de estradas que até hoje os governos de São Paulo deram ao heroico povo
paulista – heroico no trabalho.
O mal vem dos governos serem compostos de homens que vivem muito
a cômodo na capital. Desconhecem as necessidades do interior. Não
amassam a lama das estradas municipais. Não se empoam de vermelho dos
pés à cabeça. Não veem os seus carros derraparem horrorosamente nos dias
de chuva. Não sabem o que vai de atolamentos por aí afora.
Nós precisávamos botar tropeiros, carreiros e chauffeurs no governo.
Então, sim, teríamos lá em cima gente na altura de compreender o que a
estrada de rodagem significa e precisa ser.
Mas o dinheiro?
Ora, o dinheiro! Já faltou alguma vez dinheiro para uma patota? Para
ser gasto em coisas improdutivas acaso faltou? Se o povo pacientemente o
dá para a infinidade de coisas inúteis em que o gastamos, com que prazer
não o daria para um serviço que vem tão enormemente beneficiá-lo de
modo direto e indireto!
O triste deste incidente das estradas de rodagem de São Paulo é a
verificação de que elas têm ainda de ser “pregadas”, apesar de toda a vida
da humanidade, sobretudo depois da conquista romana, não fazer outra
coisa senão provar e reprovar, demonstrar e redemonstrar até ao infinito da
exaustão, que o transporte é tudo, absolutamente tudo num país; e que,
portanto, não há vida, nem civilização, nem riqueza, nem nada, sem
caminhos facilmente trafegáveis, por onde as gentes e as mercadorias
escoem.
Dias atrás o diretor do serviço de estradas de rodagem de São Paulo fez
uma longa conferência sobre o assunto. Dá tristeza isso. O fato de aparecer
um conferencista procurando demonstrar a necessidade de estradas quer
dizer que estamos ainda em fase de catequese...
Se num país realmente civilizado aparecesse alguém a demonstrar em
público a necessidade de estradas, seria recolhido ao hospício mais
próximo, ou a um museu, como curiosidade teratológica. Aqui, não. Aqui
ainda é preciso demonstrar (e a quem? a paulistas!) que a estrada é isto e
aquilo, e que sem estradas não é possível transporte, e que sem transporte
não é possível riqueza nem coisa nenhuma...
Também cremos que é aqui o único país no mundo em que se faz
necessário demonstrar com argumentos de Anchieta para os índios que é
necessário ter petróleo e ferro, porque sem a máquina que sai do ferro e sem
a energia que move a máquina não existe civilização, nem riqueza possível.
No entanto constitui axioma indiscutido no mundo inteiro – ou nas
partes do mundo onde o homem raciocina com a cabeça e não com o rabo –
que o problema supremo da humanidade é o TRANSPORTE; que tudo,
tudo, tudo na vida se resume a uma questão de transporte. E que para o
transporte são indispensáveis três elementos: ferro, para a construção do
veículo que recebe a carga; energia (carvão ou petróleo), para mover esse
veículo; e uma superfície plana, lisa, rígida, convenientemente
pavimentada, sobre a qual o veículo possa deslizar. Matéria-prima do
progresso, portanto: ferro, carvão ou petróleo e estradas – conjugados.
Esta noção rudimentaríssima, que até os negros d’África já
assimilaram, ainda não entrou na cabeça da nossa gente. Ainda necessita ser
pregada nos jornais, na tribuna e nas palestras de esquina. E o argutíssimo
Homo brasiliensis ainda pisca o olho finório, dizendo: “Marosca. Neste pau
tem mé!” e outras observações chimpanzeicas.
E ainda a opinião pública se levanta, formalizada, como se houvesse
ingerido todo um conselheiro Acácio, com sobrecasaca e tudo, para
murmurar: “O momento não é oportuno para pensarmos em obra de tal
fôlego. Prudência, amigos, prudência...”
E o pobre país continua sem transporte, a cair em buracos, a derrapar, a
atolar-se, sem estradas decentes, sem ferro, sem carvão, sem petróleo,
pobre, encalacrado, perebento, analfabeto, eusebíssimo...[10]
Jesting Pilate

Sob este curioso título, que é tirado de uma frase de


Bacon e significa a ironia indiferente de Pilatos quando perguntou a Cristo
o que era a verdade, um escritor inglês, já de nome no mundo das letras
com um romance, publicou um livro de viagens que está fazendo carreira.
Aldous Huxley é um filósofo de grande penetração; em vez, porém, de
escrever um tratado de sistemática, meteu-se a viajar em redor do mundo e
vai produzindo filosofia à medida que a paisagem humana a sugere.
Foi sobretudo na Índia que Huxley filosofou, porque não há ambiente
mais próprio para ideias gerais do que aquele inconcebível viveiro humano.
Não pretendo falar desse livro, que já anda transplantado em todas as
línguas e bem merece passar também para a nossa. Apenas quero citar as
observações que lhe ocorreram em Benares e me parecem de invulgar
penetração.
Huxley chegou a Benares num dia de eclipse do sol e pôde observar
como o animal humano da Índia reage diante desse velho fenômeno da
interposição de um astro entre dois outros.
Foi um espetáculo extraordinário. Pelo menos um milhão de hindus se
reuniram no ghaut dessa cidade – isto é, na escadaria imensa, para fins de
banho, que vai ter ao Ganges. Todos os arredores de Benares estavam
agitados. As estradas, cheias de peregrinos em silenciosa procissão rumo ao
rio sagrado. Nas cabeças vinham trouxas e utensílios caseiros, e provisões, e
as roupas novas que os hindus piedosos entrajam depois do banho ritual. Os
velhos apoiavam-se em bastões. As mulheres traziam os filhotes
enganchados nas ancas. Uma procissão de cansaço e fatalismo.
O eclipse gerou a crença de que uma grande serpente ia devorar o sol.
E para salvar o sol dava-se aquela gigantesca mobilização de indianos rumo
ao rio sagrado.
O ghaut grande de Benares (porque existem outros menores) compõe-
se de uma série de degraus de duzentos metros cada um. De bordo de uma
lancha Huxley viu a imensa escadaria literalmente cheia de gente às
camadas; uma verdadeira escada de cabeças.
Toda aquela inumerável multidão tinha os olhos no céu. A serpente já
começava a cravar a dentuça no astro-rei. Chegara o momento de interferir
– de salvar o sol, e então todos os que se achavam no primeiro degrau, o
que é banhado pela suja água do rio, nela se atiram. E foi um lavar-se, um
esfregar-se, um gargarizar, um escarrar, um murmurar orações que não tinha
fim. Numerosos agentes policiais apressavam os banhistas, para que novas
levas humanas viessem cumprir o velhíssimo ritual. Dada a massa imensa
de um milhão de seres ali reunidos, o banho, mesmo apressado pela polícia,
iria durar o dia inteiro.
O tempo corria e a serpente continuava a roer o sol. Isso impunha
muita unção no desfiar dos rosários, no murmurar palavras de rezas, no
gargarejar o mais convictamente possível e no esfregar-se com vontade – e
depressa, como gritavam os guardas da lei.
Depois de contemplar durante duas horas aquele espetáculo, Huxley
sentiu-se refarto e desembarcou. As ruelas estreitas que ligam o ghaut à
cidade estavam formigantes de mendigos, que nesse abençoado país são
criaturas sagradas (como o foram durante certo tempo em São Paulo).
Acocoram-se ao sol, diante das escudelas onde os passantes caridosos
jogam alguns grãos de arroz. No fim do dia a escudela está com a
quantidade de arroz necessária para que o mundo não se prive da vida de
um pitoresco mendigo.
Huxley ia rompendo caminho pelas ruelas cheias de peregrinos de
rumo ao ghaut quando em dado momento viu sair de sob uma abóbada um
touro. Um touro sagrado, porque na Índia não são somente os pobres que
gozam desse privilégio. O mendigo mais próximo cochilava de cabeça
sobre os joelhos porque os “que comem pouco dormem muito”, para
poupança das energias. O touro viu a escudela já pelo meio de arroz e
aproximou-se muito naturalmente. Sacou fora a língua e em duas lambidas
trasfegou aquele cereal para outro depósito. O mendigo prosseguiu na sua
soneca, sem perceber que a renda de todo um dia de pedinchamento
escapara de suas mãos. O touro correu os olhos indiferentes sobre a massa
humana e voltou a abrigar-se sob a sua abóbada.
Até aqui um quadro da pitoresca paisagem humana, que é na Índia mais
interessante que em qualquer outra parte do mundo. Agora a reação que o
fato provocou em Huxley, e o modo singularmente lógico e penetrante
como filosofou.
Diz ele que, sendo estúpidos e desprovidos de imaginação, os animais
se conduzem muito mais sabiamente que os homens. Levados pelo instinto
fazem em dado momento o que é necessário fazer. Comem quando sentem
fome, procuram a água quando sentem sede, fazem amor na estação
propícia, repousam ou movem-se quando têm tempo para isso.
Já os homens, como possuem inteligência e imaginação, olham para
trás e para a frente; para o ontem e para o amanhã; observam os fenômenos
e inventam para eles engenhosas explicações; depois concebem jeitos
complicados e indiretos de atingir fins remotos. A inteligência que os
tornou senhores do mundo força-os a agir como perfeitos cretinos.
Nenhum animal, por exemplo, admite que o eclipse seja obra de uma
serpente a devorar o sol, isso porque não possui inteligência nem
imaginação. Essa teoria só pode ocorrer a um ser dotado de inteligência. E
só um animal inteligente como o homem pode conceber que uma série de
micagens ou gestos rituais – gestos e sons – tenha força para influir nos
fenômenos da natureza. Enquanto o animal, fiel ao seu instinto, deixa que o
eclipse transcorra naturalmente, em nada alterando o seu viver normal, o
homem, o ser inteligente, larga de tudo, empreende uma peregrinação
penosa e consome as suas energias em fazer coisas absolutamente idiotas.
Com o tempo, é verdade, o homem vai aprendendo que fórmulas
mágicas, gestos rituais, sons chamados rezas etc. de nenhum modo lhe dão
o que ele quer ou pede. Mas até que a experiência lhe ensine isso (e o
homem leva séculos para aprender uma coisinha mínima) conduz-se de um
modo infinitamente mais estúpido que o animal irracional.
“Foi o que pensei ao ver o touro sagrado lamber dum golpe o arroz do
mendigo adormecido”, diz Huxley. Enquanto milhares e milhares de
homens, isto é, seres racionais e inteligentes, empreendiam uma
peregrinação longa, por caminhos poeirentos, padecendo toda sorte de
incômodos, com o fim de praticar num certo trecho de certo rio de água
imundíssima uma série de gestos tendentes a beneficiar uma estrela distante
de nós noventa milhões de quilômetros, o touro tratava de seu estômago e
apanhava o alimento onde o via mais fácil. Não é claro que o cérebro vazio
do touro o fez agir com muito mais “inteligência” que os seus senhores?
Para salvar o sol, aquele milhão de hindus se reuniu na margem do
Ganges, observa Huxley, mas para salvar a Índia quantos deixariam suas
casas? Uma soma imensa de energia que, canalizada numa orientação
prática de boi sagrado, poderia libertar e transformar o país, é despendida na
prática de superstições imbecilíssimas.
E o filósofo inglês, que é um produto requintado dos séculos e séculos
de experiência inglesa, conclui com a lógica habitual: “A religião é um luxo
que no seu estado presente a Índia não pode cultivar. A Índia nunca será
livre enquanto seus filhos não tiverem pela religião o mesmo entusiasmo
frio e cético que nós temos pela Igreja anglicana. Se eu fosse um milionário
hindustânico, legaria minha fortuna para a instituição da propaganda
ateísta”.
Essas dúvidas que sobre a inteligência do homem o viajante inglês teve
na Índia são as mesmas que todos os cérebros bovinamente racionantes têm
em qualquer campo da atividade humana. A ação da inteligência no Estado,
por exemplo. Não há boi que faça o que os grandes estadistas fazem,
visando o bem da humanidade e só conseguindo a nossa desgraça.
O último artigo de Francisco Nitti mostra bem claro os desastres para
os quais a inteligência dos estadistas vai arrastando o mundo. O homem,
porém, continua a crer no Estado; continua a apelar para o Estado; continua
a delegar para o Estado a função de providência. Serão precisos séculos e
séculos de misérias para que compreendamos que isso a que chamamos
Estado não passa de um cancro que deu na humanidade, um cancro talvez
inexplicável e com o qual temos de viver em simbiose. Nada de bom pode
vir de um cancro para o organismo que ele parasita – e o homem – tão longe
ainda de raciocinar como o boi sagrado de Huxley – continua a esperar do
seu monstruoso cancro toda sorte de salvações...
Quem é esse Kipling?

Nós no Brasil sempre vivemos de tal maneira no mundo


da lua que só agora a nossa gente está a conhecer Rudyard Kipling, um dos
três ou quatro escritores realmente grandes da atualidade. E a conhecê-lo
por uma pontinha, porque o único livro de Kipling aqui traduzido e
publicado – Mowgli, o menino lobo – constitui metade da matéria de uma
das suas obras – The Jungle Book, O livro da floresta. E, no entanto, já está
ele velho em anos vividos, e mais velho ainda dentro da sua notoriedade
universal de glória indisputada.
Há bem pouco tempo só quem conhecia alguma outra língua podia
entre nós pôr-se em contato com a universalidade – e para isso veio a fúria
de absorver francês na classe que chamamos alta, ou que se chama a si
própria alta. Essa gente escapou de um mal: muramento em vida dentro de
uma língua paupérrima em literatura e para a qual, de tudo quanto a
humanidade produziu, desde Lucrécio até Henry Mencken, só foram
vertidos uns trabucos lacrimogêneos de Escrich e aquela galopada sem-fim,
para ganhar dinheiro, de Dumas. Escapou de um muramento para cair
noutro: murou-se no francês. O fascínio da França foi tão forte nessas almas
simples que não conseguiram ir além. Pararam em Paris e, a fim de
justificar a parada, encamparam a sério, botocudamente, a altíssima ideia
que o francês faz de si próprio, do seu esprit, da sua comida, das suas
francesinhas de bem fazer a quem lhas paga, da sua civilização faisandée,
da sua grivoiserie eterna etc. etc. E tivemos por cá essa geração, ou essas
compridas gerações de basbaques mais realistas do que o rei – mais
franceses que o francês, negadores do resto do mundo por puro amor à
França.
O mundo continuou seu caminho, malgrado a nossa negação – e se em
represália não fomos também negados é que o mundo desconhece a nossa
existência. Surgiram enormes vultos nas várias literaturas que pelo mundo
vicejam – como esse Kipling na Inglaterra, como Eugene O’Neill e
Mencken na América, como Joseph Conrad... no mar, como toda uma
plêiade na Rússia – e nós a deles só termos notícias unicamente através das
diluídas traduções francesas, sempre muito orgulhosos do nosso bras dessus
bras dessous com a gente gálica! Engalicamo-nos assim até à medula.
Mantivemo-nos com o máximo heroísmo na atitude do cachorrinho que,
orgulhosamente, sacudindo a cauda, segue um viandante, certo de que é
esse quem move o mundo.
A Editora Nacional rompeu com o mito. Começou a dar livros de
autores outros que não os franceses, e nessa literatura o povo, com certo
espanto, começou a ver que o mundo não é apenas bordel ou alcova, com
uma eterna historinha de lui, elle et l’autre. Que há descampados e florestas
imensas, montanhas, planuras de neve, tigres e panteras e elefantes. Que há
perspectivas, em suma, e ar livre. E que há almas pânicas (de Pan, o deus
das pastagens, das florestas, dos pastores, de todos que lutam ao ar livre).
Pânico. Detenhamo-nos um momento nesta palavra, hoje com algum
uso por aqui. O suavíssimo Cândido de Figueiredo, pobre homem que nos
envenena as origens, insinuando-lhes definições idiotas através de seu
dicionário, diz que pânico é “o que assusta sem motivo: terror infundado”.
Mentira, asneira. Asneira, como tudo quanto esse dicionário diz.
Primacialmente, pânico significa, como define Webster, emoção contagiosa
como a que era suposta produzir-se à aproximação do deus Pan.
Em face do desconhecido, do inexplicável da natureza, das ameaças
ocultas no sombrio da floresta, do escachoo das grandes quedas-d’água, do
rugir das feras, o homem sente essa emoção contagiosa chamada pânico. É
Pan que se aproxima, é alguma montaria de Pan, é um elemento, uma força
qualquer das com que Pan brinca – e a emoção pânica surge, sempre com a
sua caraterística de contagiosa.
Diante dos mistérios da natureza, Kipling sente essa emoção pânica,
fixa-a com os recursos artísticos do seu estilo e faz que ela contagie o leitor.
Reside nisso o seu gênio.
O cenário de Kipling é quase sempre a Índia, como o de Jack London,
outra alma pânica, é quase sempre a fria terra do Alasca. Seus personagens
nunca são os personagens franceses – um macho que caça uma fêmea
pertencente a um terceiro e num hotel exercita uma função fisiológica que o
deixa desapontado e de crista caída. É o tigre crudelíssimo e covarde –
Shere Khan; é a pantera negra de movimentos elásticos – Bagheera; é a
tribo dos Bandar-logs, que nas ruínas de uma cidade morta, engolida pela
jangal, brinca de cidade, como nós aqui, bandarloguissimamente,
brincamos de país; é a serpente das rochas, Kaa, magnífica de velhice e
arte; é Jacala o Mugger do Mugger-Ghaut, velho crocodilo comedor de
coolies; é Purun Bhagat, o primeiro-ministro de um principado indiano que
se fez santo e gastou meia vida num píncaro do Himalaia, meditando sobre
o grande milagre da vida; é Quiquern, o cachorrinho do esquimó Kotuko; é
Dick Heldar, gênio artístico vitimado pela inferioridade egoística de uma tal
Maisie – a Mulher; é Kim, o menino que cavalgava canhões...
Kipling é a vida, a Natureza, o Ar Livre, a Fera, a Índia inteira, como
Joseph Conrad é o Mar com todos os peixes e tempestades. Pan, em suas
infinitas modalidades, o surpreende e assusta, e Kipling anota esses sustos e
os põe em composição artística para que também os leitores o sintam e se
assustem panicamente.
Cândido de Figueiredo diz candidamente que pânico é medo sem
motivo. Eu queria metê-lo no caminho dos Dholes, os Cães Vermelhos do
Dekkan em razia depredatória pelos domínios de Mowgli – para ver se os
figos do figueiral desse homem não se arrebentavam todos e se ele não
rasgaria imediatamente aquela página do seu dicionário. O medo causado
por um avanço de Dholes é para ele medo sem motivo...
Cada conto de Kipling é uma obra-prima que vale toda a clorótica
literatura francesa atual. Tomemos “The Undertakers”, que poderíamos
traduzir como “Os necrófagos”. Três personagens só – Jacala o velho
mugger (crocodilo da Índia), o Chacal e o Adjudantcrane. Este Adjudant é
uma espécie de Grou, coisa parecida com o nosso Jaburu de bicanca
tucanal, mas reta.
Encontram-se ao pé de uma ponte e conversam. O Chacal,
miserabilíssimo e sempre faminto, lamuria e bajula o mugger, de cujos
restos vive. Chama-lhe Protetor dos Pobres, Orgulho do Rio e outras coisas
que os nossos chacais de dois pés costumam dizer dos muggers que viram
governo.
Toda a psicologia do lambujeiro, do fraco, do covarde, do miserável,
estampa-se nos gestos e palavras desse animalzinho no qual Kipling, talvez
sem intenção, pinta o bajulador humano. Nas atitudes e palavras do Grou
estampa-se a esperteza do “aproveitador”. Dá ideia de um tabelião da roça
que faz política e rói verbas da Câmara. Já o mugger, cônscio da sua força,
reproduz exatamente a psique dos nossos grandes homens, isto é, dos
homens que galgam posições, e pelo simples fato de se verem lá em cima,
com a faca e o queijo na mão, julgam-se não só onipotentes como
oniscientes. “Eu penso assim. É assim. Eu, eu, eu...”
O Mugger do Mugger-Ghaut era, do focinho à cauda, todo eus – todo
ele – e o Chacal batia no peito, concordando até com o que o crocodilo não
dizia.
Nessa conversa dos três necrófagos, o mugger rememora ou, melhor,
conta a história de um dos mais terríveis dramas da dominação britânica na
Índia, o Indian Mutiny, no qual se ergueram para o massacre em massa dos
ingleses todas as tropas de sipaios.
Como a conta? Conta como podia contá-la. Um crocodilo dos rios só
pode ter conhecimento de uma guerra pelos cadáveres que boiam nas águas
e ao sabor da corrente vão derivando rumo ao mar. Jacala teve notícia, pelo
seu primo, o Gavial, comedor só de peixe, de que as águas do Gunga – o
Ganges – “estavam muito ricas” – e rumou para lá. De fato, encontrou-as
riquíssimas, tantos eram os cadáveres de ingleses que passavam boiantes.
Jacala engordou como nunca em sua vida e muito apreciou o fato dos
“caras-brancas” não usarem as pesadas joias que usam os nativos. Joias
pesadas fazem mal até a estômagos de crocodilo. Fartou-se e refartou-se do
sólido beef britânico.
Depois houve um arrefecimento na procissão de cadáveres. As águas
começaram a empobrecer-se. Por pouco tempo, aliás. Novas ondadas de
corpos recomeçaram a derivar – mas desta vez cadáveres de nativos. Era a
revanche, era o inglês já a dominar o motim e a massacrar a carne indiana a
tiros de canhão.
É preciso parar. Quem se mete a falar de Kipling esquece-se de que o
mundo tem mais o que fazer e espicha-se como se estivesse a escrever livro.
Kipling é a vida, é a Natureza – e a Natureza sempre foi muito comprida.
Forneçamos Kipling, e autores que tais, ao nosso pobre povo, até aqui
envenenado pelos romancistas da alcova francesa e por dicionaristas como
o tal do medo sem motivo. Demos-lhe escritores pânicos – porque só eles
sabem a Vida e só suas obras contagiam os leitores com a mais alta das
emoções – a Emoção Pânica.
Machado de Assis

Por ocasião do centenário de Machado de Assis, La Prensa


encomendou a Lobato um artigo a respeito. Lobato escreveu-o
comovidamente.

A 21 de junho do ano da graça de 1839, reinando no


Brasil a jovem majestade de Dom Pedro II, nascia no Rio de Janeiro, de
pais pobres, uma criança de sangue misturado. Três quilos de carne
humílima, pigmentada, nevrótica – mas que misteriosamente evoluiriam
presididos por musas e filósofos, na predestinação de dar ao mundo
Alguém.

Les petites marionettes


Font, font, font,
Trois petits tours
Et puis s’en vont.

Emergem do oceano do “Unde”, dão três voltinhas e submergem-se no


oceano do “Inde”. Emergem as marionetes aos milhões, e aos milhões se
submergem. Folhas da árvore da vida. As folhas passam, leva-as o vento –
só a árvore parece eterna. Marionetes, marionetes – brancas, pretas,
amarelas, cor de cobre, de olhos azuis ou negros, de cabelos encaracolados
ou lisos. Surgem carne sensível apenas, rãzinhas nuas e inermes, que
choram e mamam, e exigem das mães prodígios de amor para lhes
assegurar uma sobrevivência que qualquer filhote de inseto alcança sem o
ajutório de ninguém. Crescem, font trois petits tours et puis s’en vont –
desintegram-se na crise da morte, desaparecendo do plano físico.
Nem todas se somem, entretanto. Nalgumas de exceção, por influxo de
causas misteriosas, uma coisa imponderável e inanalisável se desenvolve, a
que chamamos inteligência criadora, esse algo que aumenta a natureza por
meio de contribuições não previstas pela Mater Suprema: que a aumenta
com as obras do pensamento artístico. Do pensamento. Todas as marionetes
pensam. Sua função última é pensar, mas pouquíssimas – uma em milhares
– pensam construtivamente e de modo a darem ao mundo flores novas.
Muitas dessas flores vieram da Grécia antiga – e nenhuma da moderna.
Outras nasceram em Roma. No marasmo medieval o clarão das fogueiras
iluminou uma orquídea preciosa – Erasmo. A liberdade moderna fez que
desabrochassem muitas. Essas flores, filhas do pensamento, penetram na
história simbolizadas pelas poucas letras de um nome. Dizemos Homero,
dizemos Horácio, dizemos François Villon – iremos dizer Machado de
Assis. Nomes. Nomes das orquídeas raras que floriram no caudal sem-fim
das marionettes qui font, font, font; trois petits tours et puis s’en vont.
Ninguém as adivinha ao nascedouro. Todas nascem a mesma coisa –
três quilos de carne que mama e chora. As que vingam sobreviver
transformam-se em seres astuciosos ou tontos – os adultos – cheios de
defeitos ou tortuosidades adaptativas, deformados pela terrível premência
de serem forçados a viver na multidão sob o regime darwínico da luta, a
parasitarem-se uns aos outros ou às ideologias que se vão formando –
religiões, Estados, morais. E morrem de mil maneiras, de mil moléstias,
apagando-se da memória coletiva da maneira mais absoluta.
Que ideia, que lembrança, temos hoje dos milhões de criaturas que
deram suas três voltinhas durante o grande século de Péricles?
No dia acima citado, de junho de 1839, nasceu no Rio de Janeiro a
humílima criança que ia dar ao pedaço de mundo chamado Brasil o maior
nome da sua literatura, isto é, a mais bela orquídea de pensamento jamais
desabrochada nesse setor das Américas.
Joaquim Maria Machado de Assis. Um “pardinho”. Era com este nome
que as orgulhosas marionetes de tez branca denominavam pejorativamente
os filhotes das marionetes de pele pigmentada. A pele pigmentada estava
em desfavor, por ser característica dos homens primitivos que os brancos
caçavam nos kraals africanos, para metê-los no trabalho duríssimo da cana-
de-açúcar ou do café. Negros. O negro misturado com o branco dava o
pardo.
Joaquim Maria veio ao mundo misturado. E pobre, paupérrimo,
humílimo. Um zero. O mais absoluto dos zeros. Perfeito nada social.
Mas recebera a marca divina. Iria subir sempre. Talvez que o Destino o
fizesse nascer no degrau último justamente para que a sua ascensão fosse
completa e ele pudesse ter a intuição perfeita de tudo. Quem nasce em
degrau do meio só adquire experiência daí para cima – e jamais será um
completo.
E o moleque Machadinho foi crescendo na rua, e foi subindo o morro
social. E foi estudando como e onde podia, ao acaso dos encontros e dos
livros, sem mestres, sem protetores, apenas guiado pelas forças internas. E
vendeu balas em tabuleiros, e ajudou missas como coroinha, e fez-se
tipógrafo – meio de ainda no trabalho manual ir aperfeiçoando a sua cultura
nascente. Aproxima-se dos letrados, ouve-os com respeito, assimila o que
pode, observa-os, classifica-os. Aprender, foi a sua primeira paixão, e vai
aprendendo sobretudo a observar o jogo das marionettes entre si, na eterna
luta miudinha da vida – a enganarem-se mutuamente, a pensar uma coisa e
dizer outra, a fingir, a mentir em benefício próprio, a enfeitar os trois petits
tours de todas as engenhosas truanices que a luta impõe.
Machado sobe sempre. Começa a escrever, isto é, a lançar no papel as
suas ainda informes reações mentais. Mostra-se desde o começo
extremamente cauteloso. Não inova. Não destrói. O senso da justa medida
será sempre o eixo perfeitamente calibrado de sua existência e da sua
estética.
Sobe. Firma o lado econômico da vida acarrapatando-se ao Estado.
Compreende bem cedo que no Brasil só como funcionário público teria o
sossego da ausência de cuidados materiais, propício à realização do seu
sonho instintivo – perpetuar-se sob a forma de um nome. Mas admitiria ele,
em seus devaneios de moço, que o seu nome iria no Brasil ser o maior de
todos, o único inacessível à lima do tempo?
E no entanto o Destino marcara-o para isso. Machado de Assis é o
grande nome do Brasil, tão grande que ficou em situação de absoluto
destaque, acima até da meteórica rutilância de Rui Barbosa. Imenso gênio
que este era, faltou-lhe o dom da criatividade artística para ascender ao
degrau supremo da escada, lá onde Machado de Assis se assentou sozinho.
Talvez o mais luminoso espírito da crítica no Brasil, uma mulher, Lucia
Miguel-Pereira, publicou sobre ele, há três anos, um livro. Trezentas e
quarenta páginas espelhantes. A mais alta realização indígena em matéria
de análise literária – uma lição da mulher aos homens. Não há estudo
biográfico menos enriquecido de anedotas, menos policial, menos
sensacionalista – nem mais empolgante.
Para abordar o perigoso tema, Lucia Miguel-Pereira deixa-se ficar no
estado d’alma de Thoreau diante da placidez de Walden Pond. Situa-se
diante da misteriosa lagoa humana que foi Machado de Assis e com
extrema simplicidade conta as reações que a contemplação do plácido
mistério lhe causa. E o leitor sai do livro com a sensação física do
biografado.
Entre as obras de Machado de Assis cumpre acrescentar mais esta: a
biografia que ele determinou.
Machado de Assis, na sua ascensão ao Perfeito, parte do quase
enfadonho. O medo de inovar, de exceder-se, de dizer demais, tira qualquer
interesse aos seus primeiros romances – mas o leitor enfadado sente que há
ali uma inapreensível superioridade. Talvez a da língua, que começa a
produzir efeitos novos. De uma plasticina pobre, como é a língua
portuguesa, começam a brotar surpreendentes finuras – e ficamos sabendo
que a riqueza de uma língua não vem da sua opulência vocabular. Pobre
também é a argila, que dá toscas panelas nas mãos do oleiro ou dá o Perseu
nas de Benvenuto Cellini. Por fim a grande revelação veio: não há língua
pobre, não há argila pobre, para um grande artista. Há artistas pobres. Há
artistas tão miseravelmente pobres que só sabem escrever jogando com toda
a riqueza vocabular da língua. “Fizeste-la rica porque não pudeste fazê-la
bela”, disse Zêuxis ao discípulo que pintara uma Vênus excessivamente
enfeitada.
Machado de Assis ensinou o Brasil a escrever com limpeza, tato,
finura, limpidez. Criou o estilo lavado de todas as douradas pulgas do
gongorismo, do exagero, da adjetivação tropical, do derramado, da
enxúndia, da folharada intensa que esconde o tronco e o engalhamento da
árvore.
Antes dele havia grandes mestres que começavam contos assim: “O
pegureiro tangia o armento para o aprisco”. Era o lindo, o extasiante, a
beleza de espernear. Machado de Assis provou que isso é o idiotamente
feio. Como o provou? Fazendo o contrário. Escrevendo. “O negro tocava o
gado para o curral.”
Machado de Assis expulsou do estilo todas as falsidades. Expulsou até
o patriotismo e a grotesca brasilidade – essa intromissão da política de
terroir na arte. Foi contemporâneo de casos de superidiotia, em que poetas
de nome falavam em “céu brasileiramente azul”. Para Machado de Assis
um céu azul é simplesmente, e sempre, um céu azul – só.
Ensinou-nos a escrever tão bem, dando-nos uma série de obras tão
perfeitas de equilíbrio e justa medida, que “abafou a banca”, como diria um
meu amigo analfabeto, impenitente jogador de roleta. E não só a abafou no
Brasil, como ainda em Portugal. Nem o próprio Eça de Queirós, o talento
mais rico em arte que Portugal produziu, chega à perfeição de Machado.
Em Eça há “elegâncias”, maneirismos, atitudes – deliciosas atitudes, mas
que o impediram de planar nas regiões sereníssimas do estilo de Machado
de Assis.
Os contos de Machado de Assis! Onde mais perfeitos de forma e mais
requintados de ideia e mais largos de filosofia? Onde mais gerais, mais
humanos dentro do local, do individual? Temos de correr à França para em
Anatole France encontrarmos um seu irmão. Este, entretanto, desabrolhou
no mais propício dos canteiros – amimado por uma alta civilização,
estimulado por todos os prêmios, rodeado de todos os requintes do conforto
e da arte. Já o pobre Machado de Assis só teve como ambiente um sórdido
Rio colonial, e prêmio nenhum afora a sua aprovação íntima, e parquíssima
renda mensal para a subsistência; e como leitores, nada do mundo inteiro,
que era o leitor de Anatole – mas apenas meia dúzia de amigos. O preço
pelo qual vendeu ao editor Garnier a propriedade literária de toda a sua obra
– 8 contos de réis, 500 mil-réis cada livro – mostra bem claro a extrema
redução do seu círculo de leitores.
Mesmo assim, cercado por todas as limitações, foi de sua pena que saiu
a primeira obra-prima da literatura brasileira, essas Memórias póstumas de
Brás Cubas, livro que um dia o mundo lerá com surpresa. “Será possível
que isto surgisse num país in fieri, lá pelos fundões das Américas”, dirão
todos.
E deu-nos depois Dom Casmurro, o romance perfeito; e Esaú e Jacó e
Quincas Borba e finalmente Memorial de Aires, obra em que estiliza e
romanceia o nada – o nada de uma velhice – da sua velhice de quase 70
anos.
Entremeio aos romances foi produzindo contos – e que contos! Que
maravilhosos contos, diferentes de tudo quanto se fez no Brasil ou na
América! Contos sem truques, sem machine, sem paisagem de enchimento,
tudo só desenho do mais cuidado, como os de Ingres. Tipos e mais tipos,
almas e mais almas – uma procissão imensa de figuras mais vivas do que os
próprios modelos. E em que estilo, com que pureza de língua!
A literatura brasileira é pobre de altos valores. Muita gente na canoa,
muito livro, muito papel impresso, muita vaidade e, modernamente, muito
cabotinismo. Mas está redimida de todos esses defeitos pela apresentação
de uma obra de solidez eterna, tão duradoura quanto a língua em que foi
vazada.
“Missa do Galo”, “Uns braços”, “Conto alexandrino”, “Capítulo dos
chapéus”, “Anedota pecuniária” – é difícil escolher entre os contos
machadianos, porque são todos água da mesma fonte. Ah, se a língua
portuguesa não fosse um idioma clandestino...
Antes de escrever estas linhas reli várias obras de Machado de Assis –
e só por já me haver comprometido com La Prensa é que me animei a dizer
sobre ele, tão pequenino, tão insignificante, tão miserável me senti.
Envergonhei-me de juízos anteriores em que, por esnobismo ou bobagem,
me atrevi a fazer restrições irônicas sobre tamanha obra. E se não desisti da
incumbência foi por me proporcionar ensejo de penitenciação em público.
Porque, francamente, acho grotesco que na atualidade brasileira alguém
ouse falar de Machado de Assis conservando o chapéu na cabeça. Nossa
atitude tem de ser a da mais absoluta e reverente humildade. Quem duvidar,
releia o “Conto alexandrino” ou a “Missa do Galo”.
Somos todos uns bobinhos diante de você, Machado...
A cautela desconfiada com que o Machado de Assis social viveu no
meio carioca permitiu-lhe o máximo de felicidade possível no seu caso –
um caso difícil, de extrema superioridade mental aliada a extrema
sensibilidade de um orgulho sem licença de manifestar-se em vista do tom
da pele e do cargo incolor que ocupava na administração. Quantos ministros
orgulhosos e ocos não foram seus superiores legais e sociais – a ele que, por
natureza, era o mais alto do Brasil? A vassoura do esquecimento já varreu
para a lata do lixo o nome de todos esses magnatas, de todos esses seus
“superiores”; mas o nome de Machado de Assis continua em ascensão.
Havia nele um curioso gregarismo. Sempre gostou de grêmios,
sociedades literárias; chegou até a fundar uma academia de “imortais” da
qual foi o presidente e se tornou o único imortal sem aspas. A explicação
disso talvez fosse a sua ingênita necessidade de observar o “jogo das
marionetes”: agremiando-as em torno de qualquer tolice humana, tinha-as
comodamente à mão para o estudo, como o anatomista tem em seu
laboratório reservas de coelhos, cães e macacos em gaiolas, para uso
experimental.
A filosofia de Machado foi mansamente triste. Estudou demais as
cobaias, conheceu demais a alma humana. Filosofia sem revolta,
calmamente resignada. A conclusão última aparece em Brás Cubas, o herói
da vulgaridade satisfeita que termina as memórias póstumas com um
balanço em sua vida terrena. Balanço com saldo. Que saldo? “Não tive
filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
Saldo equivalente apresentou a vida de Machado de Assis. Não teve
filhos. Não legou a criatura alguma os seus pigmentos, a sua gagueira, a sua
tara epiléptica, o seu desencantamento das marionetes – já que não poderia
legar-lhe também o seu gênio. E não houve em sua vida ato de maior
generosidade. Que coisa terrível para uma criatura qualquer, ainda que de
mediana sensibilidade, conduzir pela vida afora a carga tremenda de ser
filho de Machado de Assis!
– Sabe quem é aquele corvo triste que vai saindo daquela repartição?
– Aquele corcovado, moreno, careteante?
– Sim. Pois é o filho de Machado de Assis...
Estamos a ver o ar de apiedada compunção que se estamparia no rosto
do informado.
A natureza só permite aos gênios uma filha: sua obra. Machado de
Assis compreendeu-o como ninguém, e depois de dar ao mundo a mais bela
das filhas afastou-se do tumulto sozinho, cabisbaixo, na tranquilidade dos
que cumprem uma alta missão e não deixam atrás de si nenhuma sombra
dolorosa.
Bibliografia selecionada
sobre Monteiro Lobato

De Jeca a Macunaíma: Monteiro Lobato e o modernismo, de Vasda


Bonafini Landers. Editora Civilização Brasileira, 1988.

Juca e Joyce: memórias da neta de Monteiro Lobato, de Marcia Camargos.


Editora Moderna, 2007.

Monteiro Lobato: intelectual, empresário, editor, de Alice M. Koshiyama.


Edusp, 2006.

Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia, de Carmen Lucia de Azevedo,


Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta. Editora Senac São Paulo, 1997.

Monteiro Lobato: vida e obra, de Edgard Cavalheiro. Companhia Editora


Nacional, 1956.

Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida, de Marisa Lajolo. Editora


Moderna, 2000.

Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no


Brasil, de Enio Passiani. Editora da Universidade do Sagrado
Coração/Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
2003.

Novos estudos sobre Monteiro Lobato, de Cassiano Nunes. Editora


Universidade de Brasília, 1998.
Revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação, de Tania Regina de Luca.
Editora da Unesp, 1999.

Um Jeca nas vernissages, de Tadeu Chiarelli. Edusp, 1995.

Vozes do tempo de Lobato, de Paulo Dantas (org.). Traço Editora, 1982.

Sítio eletrônico na internet: www.lobato.com.br


(mantido pelos herdeiros do escritor)
[1]Plano de obra da edição de 2007. A edição dos livros Literatura do Minarete, Conferências,
artigos e crônicas e Cartas escolhidas teve como base a primeira edição, de 1959. Críticas e outras
notas, a primeira edição, de 1965, e Cartas de amor, a primeira edição, de 1969. A barca de Gleyre
teve como base a primeira edição de 1944 da Companhia Editora Nacional, a primeira, a segunda e
a 11ª edições dos anos de 1946, 1948 e 1964, respectivamente, da Editora Brasiliense. Os demais
títulos tiveram como base as Obras completas de Monteiro Lobato da Editora Brasiliense, de
1945/46.
[2]1 Prestes. Nota da edição de 1946.
[3]1 Nos tempos anteriores à Revolução, a imprensa oposicionista era chamada pelos jornais do
governo de “certa imprensa”... Nota da edição de 1946.
[4]1 No quadriênio Hermes foi muito debatida na imprensa a tese do “não preparo versus preparo”.
Como Hermes derrotasse Rui nas eleições, ficou oficialmente estabelecida a superioridade do “não
preparo” sobre o “preparo” – isto é, da ignorância sobre a ciência. Nota da edição de 1946.
[5]1 Reação de Viçosa, a cidade natal do presidente Bernardes. Nota da edição de 1946.
[6]1 Ironicamente o autor previa em 1923 o que veio a ser a imprensa na ditadura Vargas. Nota da
edição de 1946.
[7]1 O artigo refere-se a um famoso senador federal que foi pilhado no Automóvel Club de São
Paulo a roubar no jogo, sendo convidado a nunca mais aparecer por lá. Nota da edição de 1946.
[8]1 União Jornalística Brasileira, agência de intercâmbio cultural e propaganda da qual Monteiro
Lobato era sócio. Nota da edição de 2010.
[9]2 WASHINGTON, 8 (AP) – Urgente – O embaixador Nomura, enviado especial do Japão, e o
senhor Kuruzu, achavam-se no Departamento de Estado na ocasião em que a Casa Branca noticiou
os ataques japoneses contra Honolulu. Os dois enviados haviam ido avistar-se com o senhor Hull e
ali permaneceram vinte minutos. Depois de terem saído do Departamento de Estado, o senhor
Cordell Hull anunciou aos jornalistas que havia declarado aos representantes japoneses que o
documento era um “amontoado de infames falsidades”. Segundo informações obtidas pelo próprio
Departamento, Hull voltou-se para ambos, dizendo-lhes com o máximo de indignação: “Devo dizer-
vos que em todas as minhas conversações jamais pronunciei uma palavra que não representasse a
verdade. Tudo isso está rigorosamente registrado. Em todos os meus cinquenta anos de serviços
públicos nunca vi um documento que contivesse tamanho amontoado de infames falsidades e
distorções da verdade em tão alto grau e jamais pude imaginar, até o momento, que houvesse no
planeta um governo capaz de emiti-las”. As palavras enérgicas do senhor Cordell Hull não tiveram
qualquer reação dos dois enviados japoneses. Não havia nem sombra de sorriso nas suas faces ao
deixarem o gabinete do senhor Hull. Os repórteres que ali se achavam ainda ignoravam a nota da
Casa Branca sobre os ataques japoneses, e um deles, tentando interrogar o embaixador Nomura se
era a sua última conferência que realizava em Washington, não obteve resposta. “A embaixada
fornecerá alguma nota mais tarde?”, perguntaram os repórteres. “Nada sei”, responde secamente o
embaixador. E dirigiu-se com Kuruzu para o elevador.
[10]1 Monteiro Lobato estava em luta contra o Departamento Mineral, cujo diretor era Eusébio de
Oliveira... Nota da edição de 1946.

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