A Espera de Um Milagre - Nicholas Sparks
A Espera de Um Milagre - Nicholas Sparks
A Espera de Um Milagre - Nicholas Sparks
Capa
Ficha Técnica
CAPÍTULO UM
I
II
III
CAPÍTULO DOIS
I
II
III
CAPÍTULO TRÊS
I
II
III
IV
V
VI
VII
CAPÍTULO QUATRO
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
CAPÍTULO CINCO
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
CAPÍTULO SEIS
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
CAPÍTULO SETE
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
CAPÍTULO OITO
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
CAPÍTULO NOVE
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
CAPÍTULO DEZ
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
CAPÍTULO ONZE
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
CAPÍTULO DOZE
I
II
III
IV
CAPÍTULO TREZE
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
EPÍLOGO
I
II
III
AGRADECIMENTOS
NICHOLAS SPARKS
À ESPERA DE UM MILAGRE
Ficha Técnica
Título: À Espera de um Milagre
Título original: Counting Miracles
Autor: Nicholas Sparks
Tradução: Raquel Dutra Lopes
Revisão: Maria da Graça Samagaio
Design da capa: Flamur Tonuzi
Imagens da capa: Getty Images (homem, cão, céu)
Adaptação de capa: Maria Manuel Lacerda
Fotografia do autor: Brad Poirier Photography
ISBN: 9789892362885
Março de 2023
II
O teu pai
Dave Johson
Ashboro NC
Lamento
III
D epois de tentar ligar à filha mais uma vez, Kaitlyn Cooper tinha
pousado o telemóvel na bancada e ficado a olhar pela janela por cima
do lava-loiça. Entre as nuvens, via-se uma meia-lua a lançar um brilho
prateado sobre o relvado da frente, e ela perguntou-se distraidamente se a
tempestade teria passado ou se estaria simplesmente a ganhar alento.
Não que fizesse grande diferença, concluiu. Sem o carro,
independentemente do tempo, só lhe restava ficar em casa. Observando a
cozinha, sentiu a angústia habitual da obrigação de limpar tudo depois do
jantar. Em vez de lançar mãos à obra, pegou no seu copo de vinho. Ainda
lhe restava um pouco, que bebericou.
Ocorreu-lhe que poderia pedir ajuda a Mitch – com nove anos, já tinha
idade para lavar a loiça. Mas via-o na sala de estar, a montar a nave espacial
X-Wing Starfighter da Lego que lhe tinha comprado horas antes no
Walmart, e decidiu não o interromper. Fora uma compra impulsiva – a
última coisa de que ele precisava era de mais legos, mas, dado que comprar
coisas para os filhos parecia resultar com o ex-marido, calculara que
também poderia ganhar alguns pontos em vez de ser sempre a má da fita.
Para além disso, Mitch merecia uma boa surpresa de vez em quando. Tinha
boas notas na escola e estava sempre animado em casa; sabia Deus o quanto
ela precisava disso, mais que não fosse porque duvidava que fosse durar.
Quando era mais nova, a irmã mais velha, Casey, também era encantadora –
ainda que obstinada. E embora continuasse a ser boa miúda, a adolescência
tinha transformado a menina alegre e agradável numa jovem que Kaitlyn
por vezes achava insuportável. Ainda que, obviamente, a amasse.
Mas aquelas variações de humor… aqueles tons de voz…
Kaitlyn sabia que não era a única a ter de enfrentar os desafios de educar
uma adolescente, mas isso não tornava a vida com Casey mais fácil. Nos
últimos dois anos, quanto mais ela tentava ser uma mãe compreensiva, mais
Casey parecia desafiá-la. Como naquela noite, por exemplo.
Seria assim tão difícil jantar com a família uma vez por semana? Entre a
escola, os trabalhos de casa, os treinos de cheerleading de Casey e as longas
horas de trabalho de Kaitlyn, sentarem-se juntos para desfrutarem de uma
refeição durante a semana era praticamente impossível. Como Kaitlyn
também atendia pacientes ao domingo ao final do dia, o sábado era a única
opção que restava. Kaitlyn compreendia que isso nem sempre era
conveniente, mas também não se dava o caso de esperar que Casey ficasse
por casa depois disso. Tudo o que queria era uma hora, das seis às sete, ou
até das cinco às seis, e depois Casey podia fazer o que bem quisesse.
Mas o que fizera a filha?
Levara o velho Suburban sem pedir permissão e depois passara as horas
seguintes a ignorar os telefonemas e as mensagens de texto da mãe. O mais
provável era que estivesse com a amiga Camille, mas havia sempre a
possibilidade de se ter esgueirado com Josh Littleton, um rapaz que tinha
deixado Kaitlyn de pé atrás. Quando ele fora lá a casa buscar Casey umas
semanas antes, Kaitlyn pressentira algo estranho nele, à falta de melhor
palavra, e expirara secretamente de alívio quando Casey depois insistira que
não estava interessada nele. Na última semana, porém, Kaitlyn percebera
que Josh continuava a enviar-lhe mensagens e, ciente de que a filha poderia
reagir à sua reprovação provocando-a mais, tivera o cuidado de não fazer
comentários.
Ver Mitch a estudar as instruções da Lego, com as lentes dos óculos bem
perto da folha de papel, apertou-lhe um pouco o coração. Sabia que ele
tinha ficado incomodado com a ausência da irmã. O filho tinha tido um dia
bom, passara parte da tarde com Jasper – um velhote simpático que andava
a ensiná-lo a talhar madeira – e estava entusiasmado por ir ao Jardim
Zoológico da Carolina do Norte no dia seguinte. Mas adorava a irmã mais
velha e perguntara mais do que uma vez se deviam atrasar o jantar até
Casey chegar. Quando se dera conta de que ela não apareceria de todo,
praticamente não falara mais. Kaitlyn tinha tentado suavizar-lhe o
desapontamento dizendo que, quando era adolescente, também não gostava
de passar tempo com a sua própria mãe, mas, ao vê-lo encolher os ombros,
percebeu que ele se sentia rejeitado.
Por vezes perguntava-se se a atitude de Casey teria sido afetada pelo
divórcio. A filha tinha doze anos quando eles se separaram e os anos
seguintes não haviam sido fáceis para nenhum deles. Casey sentia a falta do
pai; e Mitch via George como uma espécie de super-herói. Em tempos,
também Kaitlyn se julgara afortunada na sua escolha de cônjuge. George
era inteligente e trabalhador e, sendo cardiologista de intervenção, tinha a
capacidade de manter a calma nas situações mais voláteis. Salvava vidas
todos os dias e era suficientemente bem-sucedido para que Kaitlyn tivesse
podido trabalhar em part-time quando os filhos eram pequenos, algo que ela
agradeceria sempre.
Para além disso, encaixara-se na perfeição no plano de vida de Kaitlyn,
delineado ainda antes de ela ter entrado para a escola secundária e que
agora lhe parecia dolorosamente ingénuo: Ter boas notas, ir para a
faculdade e estudar medicina. Namorar, mas nada muito sério até ter pelo
menos vinte e cinco anos; depois disso, conhecer um homem inteligente e
estável, apaixonar-me e estar casada aos trinta. Ter dois filhos, comprar
uma boa casa, manter um consultório compensador e ao mesmo tempo
atender comunidades com falta de serviços médicos, e viver feliz para
sempre.
De muito lhe valera o plano, sobretudo em relação à última parte.
Embora se sentisse grata por as emoções fortes e muitas vezes
assoberbantes associadas ao divórcio se terem dissipado – e não havia
dúvida de que já não amava George –, em certos momentos sentia a falta da
intimidade e dos momentos tranquilos associados a serem um casal.
Atualmente, a sua vida girava em torno do trabalho e dos filhos, sem tempo
para nada mais – sendo aquela noite um exemplo perfeito disso. Pegou de
novo no telemóvel. Tentou ligar a Casey e ouviu a chamada ir diretamente
para o gravador de chamadas. Frustrada, desligou. Bebeu um último gole de
vinho e despejou o resto no lava-loiça antes de começar a limpar a cozinha.
Assim que acabou, reparou num clarão de faróis pela janela; pouco depois,
estavam a entrar no acesso. Ouviu o barulho familiar do motor do Suburban
e inspirou profundamente, a pensar: Finalmente!
Ao sair da cozinha, ia a pensar como haveria de lidar com a infração de
Casey. A filha era a rainha das desculpas, mas ela sabia que gritar, ou até
mesmo erguer a voz, costumava levá-la a responder na mesma moeda, o
que depois escalaria até ao ponto em que a jovem gritava detesto estar
aqui!, e se enfiava no quarto. Ao mesmo tempo, as regras eram para ser
seguidas e, no entender de Kaitlyn, a filha tinha muito que explicar.
– A Casey chegou! – avisou Mitch. Estava diante da janela da frente, a
espreitar pelas cortinas. – Mas não é ela que vem a conduzir. Está com
alguém.
– Como? – Casey não tinha autorização para deixar que outra pessoa
conduzisse o Suburban. Essa talvez fosse a única regra que nunca tinha
infringido; a miúda adorava conduzir e nunca entregaria as chaves a
ninguém, a menos que…
Kaitlyn sentiu a raiva a apoderar-se de si.
A menos, claro, que tivesse estado a beber.
Kaitlyn ia lançada na direção da porta da rua quando esta se abriu
subitamente. Casey entrou e ela só precisou de um relance para a cara
manchada e os olhos arregalados da filha para perceber que estava mesmo
perturbada.
Antes que pudesse proferir uma palavra que fosse, Casey fechou a porta
e desatou a chorar convulsivamente. Kaitlyn envolveu-a num abraço,
sentindo a fúria a desaparecer à medida que a jovem ia soluçando, com todo
o corpo a tremer. Algures no meio daquela nuvem caótica de emoções,
Kaitlyn reparou que, na verdade, a filha não cheirava a álcool. Isso era bom,
considerou, apesar de ser óbvio que havia qualquer coisa que estava muito,
muito mal.
II
Casey demorou uns minutos a parar de chorar e começar a balbuciar um
resumo básico do que tinha acontecido: que batera no carro de um homem
no parque de estacionamento e que estava arrependida e que não sabia
como tinha acontecido. A mãe levou-a até ao sofá e obrigou-a a fazer umas
quantas respirações profundas. Com os olhos raiados de sangue e rímel a
escorrer-lhe pelas faces, estava com um ar terrível. Kaitlyn obrigou-se a
conter a irritação que sentia.
– Vamos ver se percebi bem – disse-lhe finalmente. – Foste ao Coach’s
com a Camille e quando estavas a fazer marcha-atrás no parque de
estacionamento, bateste no carro de alguém.
Casey assentiu com a cabeça.
– Não o vi atrás de mim. Não sei porquê.
– Magoaste-te? Consegues acenar com a cabeça?
– Já fiz isto tudo com ele.
– Isto o quê?
– Estas coisas médicas. Ele observou-me.
– Observou-te?
– Sabes o que quero dizer. – Casey fez um gesto impaciente com uma
mão. – Por amor de Deus. Não me tocou nem nada. E eu estou bem. Ele
disse que o Suburban nem sequer tinha estragos.
– Tens a certeza disso?
– Eu vi, mãe. Mas tu também podes ir ver, se não acreditas em mim.
– Não é que não acredite em ti. Ainda estou a tentar perceber o que
aconteceu, está bem?
– Já te disse. – Casey fungou. – Não estavas a ouvir?
Era um bocadinho difícil entender o que dizias, querida, e ainda não
tenho a história toda. Mas não disse isso. Perguntou antes:
– Quem é que veio contigo? É a Camille?
– Não, é o outro condutor. O tipo em que bati. O das tatuagens. Ele
disse-me como se chama, mas já me esqueci.
Tatuagens? Kaitlyn pestanejou.
– Deixaste que um tipo tatuado que não conheces te trouxesse a casa?
– Não aconteceu nada.
Casey passou uma mão pelo cabelo e depois remexeu nos bolsos, em
busca de um elástico para o prender.
– Porque é que ele está aqui?
– Achou que era melhor eu não conduzir por estar tão nervosa.
Enquanto prendia o cabelo num rabo de cavalo lasso, fitou a mãe de
olhos semicerrados.
– Tens noção de que não devias ter feito isso? Meteres-te no carro com
ele, quero dizer.
– Qual é o problema?
De te meteres num veículo com um desconhecido? Oh, caramba,
realmente, o que poderia correr mal?
– É perigoso. Não o conheces.
Ela encolheu os ombros.
– Ele pareceu-me simpático.
Simpático?
– Acho que é melhor ir falar com ele, então.
Enquanto Kaitlyn se levantava e avançava para a porta da rua, Mitch
atalhou:
– Eu também quero ir.
– Fica só aqui com a tua irmã por agora, está bem?
– Ah, não – replicou Casey com firmeza. – Eu vou contigo.
– Porquê?
– Para garantir que não te passas.
Que Deus me ajude, pensou Kaitlyn, e só a custo conseguiu impedir-se
de revirar os olhos.
Acendeu a luz do alpendre e depois as que iluminavam a garagem, antes
de sair com Casey atrás de si. Hesitou, demorando uns segundos a
recompor-se antes de reparar num homem encostado ao Suburban, com os
braços cobertos por coloridas tatuagens. Devia tê-las ouvido, pois virou-se
para ela e, quando o fez, os seus olhos encontraram os dela. Durante aquilo
que pareceu ser um momento muito demorado, ficou simplesmente a fitá-la,
como se tentasse decifrá-la. Mas, quando lhe dirigiu um sorriso breve, ela
sentiu algo dentro de si a sobressaltar-se. Não sabia ao certo o que esperava,
mas a aparência dele surpreendera-a.
Era um pouco mais alto do que a média e estava claramente em forma,
com os ombros largos evidentes debaixo de uma simples T-shirt preta.
Mesmo sob a luz desagradável das lâmpadas da garagem, ela reparou na cor
invulgar dos olhos dele. Uns malares altos e um maxilar definido criavam
sombras carregadas. As ondas densas do cabelo escuro tinham um corte
muito curto, quase militar, e ela reparou num toque grisalho no cabelo junto
às orelhas. As calças de ganga desbotadas e os sapatos pareciam caros, e o
sorriso dele irradiava uma confiança natural. Apesar das tatuagens, Kaitlyn
não se surpreenderia se ele trabalhasse em tecnologia ou consultoria,
podendo até ser médico, como ela. Apesar disso…
Ela teve a certeza de que ele não seria nenhuma dessas coisas. Havia
uma prontidão na sua postura, uma intensidade quase comprimida. Não,
não se tratava de um homem que passasse o dia a uma secretária, que
fizesse orçamentos ou preparasse apresentações de PowerPoint; a sua mera
presença física contava uma história diferente.
– Mãe! – sibilou Casey. – Porque estás aqui especada?
O som da voz da filha quebrou o feitiço e Kaitlyn finalmente desceu do
alpendre. À medida que se ia aproximando, o olhar dele mantinha-se fixo
no dela.
– Boa noite – disse ele, estendendo a mão. – Chamo-me Tanner Hughes.
Ela fitou a mão por um instante, antes de concluir que mais valia ser
cordial.
– Kaitlyn Cooper – respondeu, mantendo um tom descontraído. – A
Casey contou-me que vocês tiveram um acidente?
– Ela fez marcha-atrás num parque de estacionamento e abalroou o meu
carro.
– E você achou que era boa ideia trazê-la a casa? Sozinhos? Apesar de
ela ser menor?
– Mãe! – gemeu Casey, e Kaitlyn viu o olhar dele desviar-se para a filha
antes de tornar a fitá-la.
– Eu entendo – disse ele, num tom compreensivo, ainda que nada
arrependido. – E, se estivesse no seu lugar, isso provavelmente também me
preocuparia. Mas não o fiz por mal. Não me pareceu que fosse seguro
deixá-la conduzir e a amiga dela já se tinha ido embora. Viemos
diretamente para aqui.
– Eu já te disse isto tudo! – exclamou Casey, num tom que revelava a sua
vergonha.
– Nesse caso, suponho que deva agradecer-lhe – disse Kaitlyn.
– Não tem de quê. E a boa notícia para si, para além do facto de a Casey
não se ter magoado, é que praticamente não houve danos. Venha ver.
Avançou para a parte de trás do Suburban e, quando ela chegou à
bagageira, ele já estava a usar a lanterna do telemóvel para iluminar o para-
choques.
– Para além de uns quantos riscos, está ótimo. Também não dei por
qualquer problema pelo caminho.
Ela teve de se aproximar para conseguir ver os riscos, embora calculasse
que poderia haver danos que não se notassem. Tomou nota mental de o
deixar na oficina caso reparasse em algo fora do normal.
– E o seu carro? – perguntou ela.
– Isso já é outra história – reconheceu ele. Abriu a aplicação das
fotografias e passou-lhe o telemóvel. – Tirei umas quantas, esteja à vontade
para as ir passando.
Kaitlyn sentiu os dedos dele rasarem nos seus quando aceitou o
telemóvel. Passou as fotografias na direção errada e deu por si a ver uma de
Tanner sentado com um casal bem-vestido aproximadamente da mesma
idade, no que parecia ser o alpendre das traseiras de uma casa, com vista
para a água. Ficou a pensar: Tem amigos bem-apessoados com sorrisos
amáveis, deve ser uma pessoa normal.
Censurando-se por ser intrometida, fez avançar as fotografias na direção
contrária e, de súbito, arregalou os olhos. O automóvel parecia ser um carro
de corridas muito dispendioso dos anos 1960 e a reparação certamente seria
uma pequena fortuna. Quando lhe devolveu o telemóvel, teve a estranha
sensação de que ele tinha passado todo aquele tempo a observá-la com
interesse.
– Vou informar a minha seguradora. Obteve toda a informação de que
precisava?
– Sim – confirmou ele. – A sua filha foi muito prestável.
– Ah… bem… bom – disse ela, surpreendida por Casey ter sabido o que
fazer. – Lamento o estado em que ficou o seu carro. E sei que a Casey
também lamenta.
Ele guardou o telemóvel no bolso de trás das calças.
– Agradeço. – Mais uma vez, os olhares deles cruzaram-se durante um
longo momento antes de ela desviar o olhar e interromper a ligação. –
Suponho que seja tudo, então – continuou ele. – Muito gosto em conhecê-
la. E a ti também, Casey.
– Obrigada por me ter trazido a casa – agradeceu a jovem, a acenar com
a mão.
– De nada. – E virou-se, começando a dirigir-se para o passeio.
– Espere! – chamou-o Kaitlyn, apanhada desprevenida pelo fim súbito
da conversa. – Para onde vai?
Ele virou-se para ela, mas continuou a andar para trás.
– Vou voltar para o meu hotel. Chamo um Uber. Se não houver nenhum,
vou simplesmente a pé.
De repente, Casey espetou-lhe um dedo nas costas. Ao virar-se, Kaitlyn
viu a filha a lançar-lhe um olhar zangado, como que a perguntar: Vais
mesmo obrigá-lo a ficar ali à espera sabe-se lá durante quanto tempo? Ou
deixar que vá a pé? Kaitlyn demorou um segundo a entender, mas, quando
isso aconteceu, percebeu que Casey tinha razão.
– Onde é que está instalado? – perguntou-lhe.
– No Hampton Inn.
– Posso dar-lhe boleia até lá? – Falou mais alto, para garantir que ele a
ouvia.
Ele fez uma pausa antes de responder.
– Tem a certeza de que não é demasiado incómodo? – perguntou ele.
– É o mínimo que posso fazer. – Embora estivesse a ser sincera,
apercebeu-se de que a ideia de ficar sozinha com ele a deixava um pouco
nervosa. – Dê-me só um minuto para me calçar e ir buscar as chaves.
– A chave do carro continua no porta-copos – disse Tanner.
Claro, pensou ela, isso faz sentido.
– Casey, querida, traz-me as sandálias que estão na entrada, sim? –
Enquanto a filha voltava à casa, Kaitlyn observou Tanner a regressar,
dirigindo-se para o lado do passageiro do todo-o-terreno.
Quando Casey voltou, Kaitlyn enfiou as sandálias e murmurou.
– Volto num instante. Podes tomar conta do Mitch?
– Ele fica bem – respondeu Casey.
Kaitlyn resistiu ao impulso de repetir o seu pedido. Em vez disso, deu
por si a perguntar-se quando teria sido a última vez que se vira num carro
com um tipo bem-parecido que mal conhecia. Na faculdade, talvez? Na
secundária? Nunca?
Tentou espairecer a cabeça ao sentar-se ao volante. Rodou a chave e
ficou à escuta de quaisquer ruídos martelados ou rangidos enquanto fazia
marcha-atrás, mas não ouviu nada. Tanner ia a olhar pela janela do lado do
passageiro.
– Está cá em trabalho? – acabou ela por perguntar.
– Por motivos pessoais – disse ele, com um olhar de relance. Quando
sorriu, ela reparou que tinha dentes brancos e regulares. – Por acaso não
conhece alguém chamado Dave Johnson, não? Suponho que terá uns
cinquenta e muitos, sessenta e poucos anos?
Ela pensou um pouco.
– Não me parece – disse-lhe. – Lamento.
– Não faz mal. Não julguei que encontrá-lo fosse assim tão fácil.
– Não sabe onde é que ele está?
– Ainda não.
Ela deitou-lhe uma olhadela rápida.
– Ele está em apuros? Quero dizer, você é caçador de recompensas ou
algo do género? Ou será que ele lhe deve dinheiro?
Ele riu-se.
– Não, não é nada disso. Não sou caçador de recompensas, não trabalho
para a polícia e ele não me deve nada. Se conseguir encontrá-lo, só quero
falar com ele acerca de uma coisa que aconteceu há muito tempo e que
envolveu a minha família. É só isso.
O mistério da resposta dele era intrigante, mas ela sabia que aquilo não
era da sua conta.
– Boa sorte para o encontrar, então.
– Obrigado. – Ele virou-se um pouco no assento. – A Casey mencionou
que é médica.
– Sou internista aqui em Asheboro.
– E gosta?
– De quê? De ser médica? – Quando ele assentiu com a cabeça, ela
inclinou a sua por um instante, como se considerasse sinceramente a
pergunta. – Gosto – confirmou. – Desde pequena que sempre quis ser
médica. – Arqueou uma sobrancelha. – E o Tanner? O que faz?
– Ultimamente, não muito. De certo modo virei costas a tudo há uns três
anos.
– OK – disse ela, sem saber como responder a uma declaração daquelas.
– E o que fazia antes disso?
– Passei catorze anos no exército, a última década com a Delta Force.
Depois, quando deixei o serviço militar, trabalhei mais seis anos para a
USAID.
– Ah – disse ela, com a linha temporal da vida dele a começar
rapidamente a fazer sentido. A parte militar explicava as tatuagens e a forma
como se apresentava, mas ela desconfiava que ele não revelaria mais
pormenores acerca do tempo que passara no exército. Não a uma
desconhecida, pelo menos ainda não, por isso optou por fazer a pergunta
óbvia. – O que é a USAID?
– É a agência do governo federal que proporciona assistência
humanitária e de desenvolvimento a países estrangeiros. Oferece apoios à
agricultura, educação, infraestruturas, saúde pública e a uma data de outras
coisas.
– Então trabalhou em Washington?
– Não. Aí fica a sede, mas a agência tem missões por todo o mundo.
Trabalhei fora do país, para o Gabinete de Segurança.
Ela digeriu a informação.
– Posso perguntar onde, ou é confidencial?
– Não é confidencial. Há gabinetes locais numa centena de países, mas
eu estive destacado nos Camarões, na Costa do Marfim e, por fim, no Haiti.
– Como é que uma pessoa consegue sequer um trabalho assim? Estudou
relações internacionais ou…
– Não, nada disso – atalhou ele. – Depois de passar à reserva, colaborei
com o meu conselheiro da PAT para perceber o que queria fazer em
seguida. Não queria seguir pela via da segurança privada, pelo que ele
sugeriu que fosse antes para a USAID.
– O que é um conselheiro da PAT?
– Desculpe. É a sigla do Programa de Assistência na Transição. Para
veteranos que regressam à vida civil. O exército gosta de acrónimos.
Ela assentiu com a cabeça, ainda a pensar no que ele lhe tinha dito antes.
– Não é um bocado novo para parar de trabalhar durante três anos?
– Talvez – reconheceu ele. – Na altura, pareceu-me a coisa certa a fazer.
– E agora?
– É tempo de mudar. Parto para os Camarões de novo em junho.
– Com a USAID?
– Não. Desta vez é com o CIR. – Então, como se previsse a pergunta
dela, acrescentou: – Comité Internacional de Resgate.
Ela considerou que isso fazia sentido; ele ainda era novo e as despesas
não tinham fim, o que significava que todas as pausas acabariam por
terminar.
– Posso perguntar quanto tempo tenciona ficar em Asheboro?
– A ideia era ficar até encontrar o tipo de que ando à procura, ou concluir
que não consigo encontrá-lo. Agora, com o carro a precisar de ser arranjado,
os planos ficaram um bocado no ar.
Kaitlyn fez um ar consternado.
– Lamento realmente o que aconteceu ao seu carro. A julgar pelas
fotografias, parece de museu. Ou parecia até esta noite, quero dizer.
– Não é um clássico – assegurou-lhe ele. – É uma reprodução, só tem um
par de meses. – E falou-lhe da Revology Cars.
– Não sei o que será pior. Que a minha filha tivesse abalroado um carro
clássico ou que tenha abalroado um carro novo.
– Posso garantir que a última hipótese não é lá muito divertida.
A forma descontraída como ele o disse fê-la sorrir e dar por si a relaxar
pela primeira vez.
– Então, é casado? – perguntou-lhe.
– Não. Nunca dei o nó.
– Filhos?
– Que eu saiba, não.
Ela riu-se, sem saber por que se sentia um pouco estonteada.
– Então e de onde é? Originalmente, quero dizer.
– Da Europa, suponho.
Ela fitou-o, curiosa.
– Miúdo do exército – disse ele, antes de lhe fazer um breve resumo da
sua juventude.
– E agora onde é o seu lar?
Ele encolheu os ombros, quase como que a pedir desculpa.
– Não sei realmente como responder a essa pergunta.
– Não tem um apartamento algures? Ou uma casa?
– Nunca tive – respondeu. – No exército, ou vivia na caserna, ou
destacado fora do país; com a USAID, vivia numa residência oficial, mas
temporária. Os meus amigos provavelmente dir-lhe-iam que não fui feito
para assentar.
Ela sorriu, com a mente a recordar a fotografia do casal que tinha visto
no telemóvel dele, o que lhe provocou outro pensamento.
– Antes de o deixar no hotel, acha que pode mostrar-me o seu carro para
eu lhe tirar mais fotografias? Para o caso de a minha seguradora precisar?
– Claro – respondeu ele de imediato. – Estávamos no Coach’s. Sabe
onde é?
– Sei – disse ela, virando o carro na direção do bar.
Uns minutos depois, estavam a procurar um lugar no parque de
estacionamento cheio, com Kaitlyn a perguntar-se porque seria que toda a
gente de Asheboro parecia ter ido para ali.
– É por causa do torneio de basquetebol – explicou Tanner, como se lhe
adivinhasse os pensamentos.
Chegaram ao Shelby, mas, depois de verificar os danos, de súbito
Kaitlyn deu-se conta do que tinha esquecido.
– Não vai acreditar nisto, mas acabei de me dar conta de que não trouxe
o telemóvel – disse, envergonhada.
Os olhos de Tanner iluminaram-se, divertidos.
– Ficou na sua mala, o que deve querer dizer que também se esqueceu da
carta de condução.
A boca dela formou um pequeno «oh» de surpresa quando ela se deu
conta de que ele tinha razão.
– Hum… não costumo ser tão despistada.
– Não tenho a mínima dúvida disso.
A certeza do tom dele – e a forma direta como a fitou enquanto o dizia –
fê-la corar e ela virou-se na direção do carro, esperando que ele não tivesse
reparado.
– Parece pior ao vivo do que nas fotografias.
– Foi uma bela pancada, isso é certo.
Ela viu-o tirar o telemóvel do bolso; ele fez uma série de fotografias a
partir de um ângulo e depois de outro. Pouco depois, Kaitlyn ouviu o
zunido familiar que indicava que as fotografias tinham sido enviadas.
– Para onde é que as enviou?
– Para si, acho eu – respondeu ele, mostrando-lhe o telemóvel. – Este
número é o seu, certo? – Ela assentiu com a cabeça, surpreendida. – A
Casey tinha-mo dado. Já devem estar no seu telemóvel. Também lhe enviei
as que tinha tirado antes.
– Obrigada – disse ela. – Estou um pouco surpreendida com a Casey…
costuma ser uma condutora muito cautelosa.
– Acho que ela estava irritada quando entrou no carro.
– O que quer dizer?
– Eu vi-a discutir com um rapaz, que a agarrou com força por um braço.
Não fixei o nome dele, mas tinha cabelo castanho e era assim para o alto.
Os lábios de Kaitlyn comprimiram-se quando ela percebeu de imediato
que devia ter sido Josh.
– Obrigada por me contar isso – agradeceu, antes de se livrar do
pensamento. Não era altura nem lugar para se debruçar sobre isso, pelo que
se obrigou a sorrir. – Acho que é melhor levá-lo então ao hotel.
Fizeram a maior parte do percurso em silêncio, mas, quando se
aproximavam do hotel, ela tornou a ouvir a voz dele.
– Na verdade, será que pode deixar-me aqui? – perguntou ele, apontando
com um polegar para a janela do lado do passageiro. O olhar dela desviou-
se para o espelho retrovisor enquanto ele continuava. – Acho que vi um pub
e já tomava uma cerveja, depois disto tudo.
Ela assentiu com a cabeça e encostou o carro.
Ele levou a mão ao manípulo da porta e abriu-a antes de se virar de novo
para ela.
– Sei que pode parecer estranho, tendo em conta como os nossos
caminhos se cruzaram esta noite, mas não haverá qualquer hipótese de
querer vir comigo?
Ela abriu a boca, surpreendida, sem saber o que dizer.
– Oh – acabou por responder. – Não estou propriamente vestida…
– Está linda – disse ele –, e é por isso que não me perdoaria se não a
convidasse.
Ela fitou-o, espantada por ele a achar linda.
– Os miúdos devem estar em casa à minha espera… – hesitou ela.
– Compreendo – disse ele. – Obrigado pela boleia, Kaitlyn. Foi um
prazer conhecê-la.
Quando ele saltou para fora do Suburban, ela tornou a pensar no que ele
lhe tinha dito e as palavras seguintes saíram-lhe antes de ela ter consciência
sequer de que tinha mudado de ideias.
– Espere – disse ela. – Acho que uma cerveja não faz mal.
Estacionou o Suburban na rua antes de caminhar ao lado dele,
estranhamente consciente de quão próximo ele se encontrava. Lá dentro, o
pub estava apenas meio cheio e eles foram até ao balcão pedir as suas
cervejas. Enquanto se dirigiam para uma mesa livre e se sentavam, Kaitlyn
nem acreditava que estivesse a fazer aquilo. Fitou-o por cima da mesa,
bebeu um gole e pensou em algo que ele tinha dito antes.
– Mencionou que virou costas a tudo há três anos, mas não sei ao certo a
que se referia.
– Ah – exclamou ele, recostando-se. – A covid deixou-me detido no
Havai durante algum tempo e, depois disso, acho que se pode dizer que
tenho andado a fazer uma espécie de viagem de carro pelo país. –
Continuou ele, falando-lhe do tempo na estrada.
– E veio até Asheboro em busca de uma pessoa? – perguntou ela.
– Sim.
Como ele não acrescentou mais nada, ela tornou a conter a curiosidade,
optando por algo a que fosse mais fácil dar resposta.
– E de onde é que veio?
– Saí de Pine Knoll Shores hoje de manhã. Passei uns dias com um
amigo que vive lá. Antes disso, estive uns meses em Pensacola.
– O que é que há em Pensacola?
– A minha avó. Estava doente.
– E como é que ela está agora?
– Faleceu há cinco semanas.
– Oh, meu Deus – exclamou ela. – Lamento imenso…
– Eu também – disse ele. – Era uma senhora notável. A minha mãe
morreu quando eu nasci, por isso foram os meus avós que me criaram.
– E o seu avô? Esteve consigo enquanto cuidava da sua avó?
– Morreu há oito anos. Ataque cardíaco.
Ela assimilou a informação, observando-o a empilhar as bases para
copos em cima da mesa antes de as espalhar como um baralho de cartas. Ele
olhou para ela e continuou:
– Já falámos muito sobre mim, por isso agora é a sua vez. Cresceu aqui,
em Asheboro?
– Não – respondeu ela. – Mudei-me para cá depois dos trinta. Nasci e
cresci em Lexington, no Kentucky. Foi lá que estudei medicina, na
Universidade do Kentucky. Força Wildcats.
Ele sorriu.
– O que é que a trouxe para cá?
– O George – disse ela –, o meu ex-marido. É cardiologista de
intervenção e mudámo-nos para aqui depois de ele ter terminado os
internatos. Trabalha em Greenboro.
– Quanto tempo estiveram casados?
– Treze anos – explicou ela. – Divorciámo-nos já há quatro anos.
Enquanto ia respondendo, Kaitlyn esperava que ele não fizesse mais
perguntas – a última coisa que queria era falar sobre George –, e Tanner
pareceu dar por isso.
– A sua família continua em Lexington?
– Os meus pais, sim. Mas o meu irmão mais velho agora vive perto de
Chicago e a minha irmã mais nova mudou-se para Louisville há uns seis
anos. Continuamos a tentar juntar a família toda lá em casa umas duas
vezes por ano, mas vai-se tornando mais difícil agora que os miúdos estão
mais crescidos. Bem, mais difícil para a Casey, pelo menos. O Mitch ainda
gosta de ir.
– O Mitch?
Ela assentiu com a cabeça.
– O meu filho. Tem nove anos.
– Têm uma grande diferença de idades – comentou ele.
– A Casey foi uma surpresa – concedeu ela. – Quanto ao Mitch, quando
nos sentimos preparados para ter outro filho, eu demorei algum tempo a
engravidar. Talvez fosse do stresse, mas na verdade não sei. Andava muito
ocupada nessa altura.
– Suponho que continue muito ocupada – disse ele.
Ela agradeceu que ele percebesse como era difícil ser mãe solteira e
trabalhadora.
– Então, não tem filhos, hã? Arrepende-se?
– Às vezes – admitiu ele. – Como é que são os seus filhos? Fale-me
deles.
Kaitlyn ficou um pouco comovida pelo interesse dele, mais que não
fosse por parecer genuíno.
– Já conheceu a Casey, por isso provavelmente percebeu que tem
dezassete anos que mais parecem vinte e cinco. Sempre foi obstinada e
esperta como tudo, mas a adolescência tem sido um desafio. O Mitch ainda
está na fase fácil.
– E?
Ela bebeu um trago da sua cerveja antes de partilhar mais informação
acerca de cada um deles. Contou-lhe que Casey era uma excelente aluna,
que esperava vir a frequentar a Universidade de Duke ou Wake Forest, que
tinha muitos amigos e que adorava o irmão mais novo. Falou-lhe da paixão
de Mitch por futebol, apesar de não ser lá muito bom, e contou-lhe que
andava a aprender a talhar madeira. Descreveu-lhe a sua obsessão com os
legos e animais de todos os géneros, mas sobretudo com os que podiam
encontrar-se no jardim zoológico.
Tanner inclinou o copo na direção dela, mostrando-lhe que compreendia.
– Parecem ser miúdos espetaculares – comentou. – E a Kaitlyn parece
ser uma mãe espetacular.
– Tenho tido sorte – replicou. Depois, de repente, lembrou-se de algo que
ele tinha dito antes. – Há bocado disse que viu um tipo a agarrar a Casey
pelo braço?
Tanner relatou-lhe o que vira com mais pormenores.
– Não admira que ela não estivesse a prestar atenção quando começou a
fazer marcha-atrás – refletiu Kaitlyn.
– Sabe quem era o tipo?
– Acho que sim – disse ela, de cenho franzido. – Devia ser o Josh. Não o
tenho em grande conta.
– Deu para perceber.
Ela riu-se antes de abanar a cabeça.
– Às vezes só queria poder agarrar em tudo o que aprendi, em todo o
meu conhecimento acumulado, e despejá-lo dentro da cabeça da Casey. Em
vez disso, ela passa a vida a ter de aprender com os seus próprios erros, e,
quando se tem filhos, ver isso custa muito.
Ele sorriu, compassivo.
– Suponho que, entre o trabalho e os miúdos, não deve ter muito tempo
para simplesmente relaxar e beber uma cerveja. Mas nem consigo explicar
como fico contente por o ter feito.
Kaitlyn sentiu o início de um rubor a subir-lhe de novo pelo pescoço. Ele
está a flirtar comigo, apercebeu-se. Nem sequer se tinha penteado antes de
sair de casa, pensou, assombrada. Mas enquanto ele lhe fazia perguntas
sobre a sua educação e formação médica, sobre os seus hobbies e interesses,
ela deu por si a responder com à-vontade, partilhando histórias em que não
pensava há anos. A sensação era reconfortante e calorosa, como se estivesse
a aproveitar o sol sentada num alpendre.
Um pouco depois, porém, com o copo ainda meio cheio, percebeu que
estava na altura de ir embora. Casey e Mitch estariam sem dúvida a
perguntar-se onde estaria ela, mas mentiria se dissesse que não queria ficar
pelo menos um pouco mais.
Talvez fosse imaginação sua, mas também ele parecia relutante quanto a
dar a noite por terminada, mesmo quando se levantaram da mesa e
regressaram ao Suburban. No curto caminho até ao Hampton Inn, ele
manteve-se estranhamente calado e, quando ela parou em frente ao hotel,
ele hesitou antes de sair.
– Gostei muito – disse ele, num tom que parecia sincero. – Obrigado por
me ter feito companhia.
– Diverti-me – concordou ela.
Tanner parecia estar a debater-se com algo antes de perguntar:
– Será que posso voltar a vê-la? Já que tenho de ficar em Asheboro pelo
menos até arranjar o carro?
Kaitlyn hesitou. Era o momento de pôr fim àquilo – fosse o que fosse – e
o seu lado racional sabia que essa seria a coisa certa a fazer. Já tinha uma
vida muito ocupada e sabia que ele partiria em breve, por isso, para quê
correr o risco de se apegar? Logicamente, sabia bem o que fazer, mas não
era capaz de lhe dizer que não.
– Claro. Porque não?
Se ele tinha pressentido a hesitação dela, não o demonstrou.
– O que faz amanhã? Se não estiver ocupada, talvez pudéssemos
almoçar.
– Oh, bem, prometi que levava o Mitch ao jardim zoológico – disse ela,
hesitante. – E amanhã à noite tenho consultas ao domicílio…
Ele arqueou uma sobrancelha.
– Faz consultas ao domicílio? Não sabia que os médicos ainda faziam
isso.
– Não é comum, mas é importante para mim e ajuda a prevenir
hospitalizações. Algumas pessoas simplesmente não vão ao médico. Ou
porque estão ilegalmente no país, ou porque não têm meio de transporte, ou
porque são agorafóbicas, ou porque têm medo do custo, ou por qualquer
outra razão. Então, vou eu vê-las.
– Quantas são?
– Trinta ou quarenta? Não as vejo a todas todos os domingos, claro. Vou
revezando os pacientes, mas ainda me leva umas duas a três horas.
– Estou impressionado. Mais do que já estava, o que não era pouco. E
percebo que amanhã à noite não possa ser, mas e se almoçássemos os três
no jardim zoológico?
– Quer ir ao jardim zoológico?
– Porque não? Há de ser melhor do que passar o dia enfiado no hotel.
Mais uma vez, ela recordou a si mesma que havia inúmeras razões para
recusar e, não obstante, ao regressar ao calor curioso do olhar dele,
apercebeu-se de algo dentro de si – a parte que tinha tanta relutância quanto
a correr riscos – mudara durante a última hora.
– Está bem – anuiu. – E se eu fosse buscá-lo às onze e meia?
III
II
III
IV
VII
Jasper continuou a procurar durante mais duas horas, até finalmente ter
sorte perto de um ulmeiro caído. Por essa altura, o sol já ia alto o suficiente
para iluminar grande parte da floresta, e ele tinha enchido um quarto do
balde, o que era mais do que suficiente. Estava na altura de voltar para casa,
mas, primeiro, tinha de descansar. Encontrava-se numa área de colinas
suaves e, ao ver uma rocha de bom tamanho perto de uma das cristas,
avançou nessa direção.
Sentou-se, ciente de que a tensão nas costas estava prestes a causar-lhe
espasmos, cheio de dores nas ancas e nos joelhos. Esforçou-se por ignorar a
dor e concentrou-se na visão de um falcão às voltas no céu. Arlo
aproximou-se e deitou-se a seus pés, a ofegar. Jasper tirou a tigela da
mochila e encheu-a de água. Enquanto o cão começava a beber, ele serviu-
se de café do termo e encontrou a sanduíche que tinha guardado ali.
Desembrulhou-a e enfiou o celofane na mochila. Ia dar a primeira
dentada quando Arlo se afastou da tigela e começou a fitar-lhe o bolso.
Atirou um Milk-Bone ao cão e retomou o almoço.
Tal como era habitual, não tinha fome e perguntou-se para onde teria ido
essa sensação. Lembrava-se de que, em jovem, estava sempre faminto;
quando Audrey fazia o jantar, era comum devorar dois pratos cheios. Mas,
depois de meia sanduíche, com a sensação de que não conseguiria obrigar-
se a comer mais, atirou o resto a Arlo.
Na brisa suave, detetou um cheiro estranho, algo metálico, industrial.
Demorou uns segundos a identificar o cheiro a lubrificante para armas e,
então, ouviu vozes e uma sonora gargalhada, até que três figuras finalmente
se tornaram visíveis.
Eram adolescentes já grandotes, calculou, de casacos e calças de
camuflado. Em vez de botas calçavam ténis, e tampouco se tinham dado ao
trabalho de usar equipamento refletor. O mais baixo, que também parecia
ser o mais novo, tinha uma covinha no queixo e acne, e o rapaz ao lado dele
tinha uma T-shirt que dizia equipa de luta livre da secundária de
asheboro debaixo do casaco. O mais alto, que caminhava à frente, era
obviamente o líder, e Jasper reparou que levava uma espingarda ao ombro,
para além de uma mochila grande.
Suficientemente grande para esconder um holofote?
Sem dúvida.
Arlo levantou a cabeça enquanto Jasper continuava a observá-los.
Mesmo ao longe, via que eram miúdos bem-parecidos, com cabelo curto e
bem cortado, e dentes direitos e brancos, como se todos tivessem passado
muito tempo no consultório do dentista. Jasper desconfiava que cada par
daqueles ténis sofisticados que calçavam custaria centenas de dólares.
Quando finalmente deram por ele, Jasper percebeu que tinham ficado
intrigados com a sua presença naquela parte tão isolada da floresta, mas isso
depressa deu lugar a uma postura de bravata à medida que se aproximavam,
quase como se pressentissem uma criatura mais fraca do que eles.
Arlo emitiu um rosnido grave, o que sobressaltou Jasper. Há anos que
não o ouvia rosnar; o cão parecia adorar incondicionalmente toda a gente
que encontrava. Jasper baixou a mão para o afagar e sentiu a tensão nos
músculos do cão, o rosnido a tornar-se ainda mais grave, como um ronco.
Os adolescentes pararam a uns metros dele.
– Raios! – exclamou o mais novo de repente. – Você está bem? Que raio
é que lhe aconteceu?
Jasper percebeu que a sua aparência finalmente tinha sido notada.
– Oh, espere, eu conheço-o – atalhou o rapaz com a T-shirt de luta livre.
– Já ouvi falar deste tipo.
– Sim. Esteve num incêndio – disse o mais alto. – Cresçam.
Dirigiu-lhe um sorriso à laia de desculpa, mas Jasper pressentiu que era
falso. Arlo deveria ter pressentido o mesmo; embora tivesse parado de
rosnar, os seus músculos permaneciam retesados, com o pelo do cachaço
eriçado.
– O que está aqui a fazer? – continuou o mais alto? – Perdeu-se?
– Sei onde estou – respondeu Jasper.
– Saiu para dar uma caminhada? Anda a observar pássaros?
Jasper não respondeu e o olhar do mais alto desviou-se para os amigos
antes de tornar a concentrar-se nele.
– O que é que tem no balde?
– Cogumelos – respondeu Jasper.
– Da floresta? É melhor ter cuidado com isso. Os cogumelos matam, se
não se souber escolhê-los.
– Eu sei.
– Importa-se que eu dê uma olhadela?
– Esteja à vontade – disse Jasper.
O mais alto aproximou-se e Arlo recomeçou a rosnar, desta feita tão alto
que todos ouviram. Arrepanhou os lábios expondo os dentes, e o
adolescente estacou.
– Que se passa com o seu cão?
– Nada, está tudo bem.
Mas o adolescente manteve-se receoso e não se aproximou mais. Em vez
disso, limitou-se a inclinar-se para a frente, para espreitar os míscaros.
– Tem aí uma data de cogumelos. Há quanto tempo é que anda por aqui?
– Há umas horas.
– Por acaso não viu aquele veado branco de que se tem falado, não?
Não, mas encontrei o que mataste.
– Não. Também não vi perus.
– Havemos de encontrar desses quando a época abrir. – O rapaz alto
voltou a esboçar o seu sorriso falso, tão perturbador quanto pouco
convincente.
– Espero que não vão tentar caçá-los com essa espingarda que aí trazes.
O que é? Uma .30-30?
– Por acaso é uma .30-06 – respondeu ele. – Acabei de a receber, na
verdade.
– É capaz de ser boa ideia limpares o cano – comentou Jasper. – Para te
livrares de quaisquer solventes ou conservantes que tenha. Cheira-me a
lubrificante de armas.
– Eu sei cuidar de uma espingarda – disse o adolescente com irritação,
semicerrando os olhos. – Tenho armas desde que era miúdo.
Talvez, mas continuas a ter uma pontaria terrível.
– Por acaso vocês não andam à procura do tal veado branco, pois não?
Com essa espingarda? – Jasper indicou a arma com um aceno da cabeça.
– Claro que não. Isso seria ilegal – respondeu o miúdo. – Mas nunca se
sabe quando vamos cruzar-nos com um urso zangado. Mais vale ser
precavido.
Ursos na Uwharrie seriam poucos ou nenhuns, e o tom do adolescente
deixava claro que sabia isso. Estava a mentir-lhe com quantos dentes tinha,
com evidente insolência. À volta deles, a floresta parecia ter-se silenciado
repentinamente.
– Vamos embora – disse o mais novo, a tentar dissipar a tensão. Jasper
deu pelo tom nasalado e choroso. – Estou a ficar com fome.
– Eu também disse o da T-shirt de luta livre. – Estou esfomeado.
Quando eles se viraram para se ir embora, Jasper pigarreou.
– Ouvi um disparo de manhã cedo – disse ele. – Por volta das seis, talvez
uns minutos depois. Soou como se fosse de uma espingarda como a que tu
trazes.
Eles estacaram. O que tinha a T-shirt de luta livre olhou para o que tinha
choramingado. O mais alto fitou os olhos de Jasper.
– Não fomos nós – disse ele. – Acabámos de chegar.
Jasper correspondeu ao seu olhar.
– Também encontrei um veado morto, por ali. Pequenote. Não era muito
mais do que um bebé. Com um tiro na barriga.
Isso fez com que todos ficassem calados. Quando o mais alto se
aproximou, Arlo recomeçou a rosnar, com o corpo a vibrar com o som.
– Está a acusar-nos de alguma coisa, velho?
– A eles, não – rouquejou ele. – Só a ti.
Os olhos do mais alto faiscaram e ele deu outro passo em frente. Embora
Jasper talvez tivesse sido capaz de travar Arlo quando era mais novo, esse
tempo já passara há muito. Antes que conseguisse reagir, o cão rosnou e
atirou-se, movendo-se mais depressa do que havia feito nos últimos anos
para lhe atacar a perna. O rapaz mal teve tempo de reagir enquanto Arlo lhe
abocanhava as calças e o fazia cambalear para trás até cair com estrondo no
chão. Pontapeou furiosamente com as duas pernas e, ao mesmo tempo,
conseguiu libertar a espingarda, que agarrou pelo cano para acertar com a
coronha no cão. Depois de dois golpes fortes, Arlo ganiu e recuou, fugindo
para um arbusto ali próximo.
Ainda bem, pensou Jasper de súbito. Não sabia ao certo o que o miúdo
teria feito se o cão tivesse corrido para o seu lado. A zanga e as armas
formavam uma mistura explosiva e, quando o rapaz alto se levantou, Jasper
observou-o, horrorizado, a apressar-se a segurar na espingarda para a
apontar à figura do cão em fuga. Jasper lançou-se para a frente e foi por
pouco que conseguiu desviar o cano para cima enquanto um tiro era
disparado.
O som retumbante deixou os ouvidos de Jasper a zoar, exacerbando-lhe
o tinido; de súbito, o miúdo voltou o cano da arma na direção dele. Jasper
sentiu um aperto no estômago.
Abrir a boca, pensou, foi uma ideia muito, mas mesmo muito má.
Ergueu as mãos e deu imediatamente um passo atrás.
– O seu cão atacou-me! – gritou o adolescente, com cuspo a saltar para a
cara de Jasper.
Este recuou lentamente de novo, ciente de que dizer o que quer que fosse
poderia deixá-lo numa situação ainda mais problemática.
– Que raio é que se passa com o seu cão? – gritou o adolescente de novo.
Jasper nada disse, expectante, esperando que a torrente repentina de
adrenalina que o rapaz estava a sentir cedesse igualmente depressa. A
questão era se isso aconteceria a tempo.
– Não vai dizer nada?
Jasper permaneceu em silêncio e o mais alto continuou a fitá-lo com um
ar irado. Não estava ferido, provavelmente nem se magoara com a queda,
mas os seus olhos faiscavam de raiva. Tinha o ego ferido e, com os amigos
a observá-lo, precisava de mostrar a Jasper quem mandava.
Jasper ergueu mais as mãos. O cano da arma continuava apontado na sua
direção. Tal visão tornava difícil ver qualquer outra coisa.
– Tem de mandar abater esse cão.
Jasper continuou calado, recuando impercetivelmente para trás.
– Vá lá! Deixa-te disso! Para de lhe apontar a arma!
Era o mais baixo. Talvez tivesse sido o pânico na sua voz a surtir efeito,
mas, fosse o que fosse, o mais alto finalmente baixou o cano da arma.
Jasper desviou o olhar para o mais pequeno, reparando pela primeira vez
que eram parecidos. Perguntou-se se seriam irmãos.
– Vamos! – suplicou o outro, parecendo igualmente em pânico.
Mas o mais alto continuava a fitar Jasper com um ar zangado. Então,
com um passo rápido, pontapeou o balde e virou-o. Começou a pisar os
míscaros com os ténis, esmagando-os contra a terra. Quando acabou, cuspiu
no que restava.
– Para a próxima, talvez seja boa ideia guardar as suas acusações só para
si. E veja lá se mantém esse cão tarado de trela. – Falava num tom
estranhamente plácido, mas Jasper pressentia a fúria debaixo das palavras. –
Se volto a vê-lo, sabe-se lá se não entro em pânico e se ele não acaba morto.
– Por favor – choramingou o mais pequeno de novo. – Temos de ir
embora!
– Tem dinheiro? Para me pagar as calças que o seu cão rasgou?
– Não.
– Então como é que vai compensar-me?
– Jesus! – exclamou o da T-shirt de luta livre. – Para com isso! Deixa-o
em paz, sim? Quem é que quer saber das tuas calças! A sério! Vamos.
Passado um pouco, o mais alto esboçou um sorriso trocista, pressentindo
o receio de Jasper. Por fim, deu um passo atrás e virou-se, antes de fazer
sinal aos outros.
– Bora daqui.
Jasper ficou a vê-los afastarem-se, com o coração a bater
descompassado. Quando deixou de os ver, virou-se e cambaleou de volta
para a rocha. Pegou num comprimido de nitroglicerina e meteu-o debaixo
da língua para que se dissolvesse. Tinha as mãos e as pernas a tremer.
Preocupado com Arlo, ficou atento ao som de mais algum disparo. Sabia
que o adolescente lhe mataria o cão, se pudesse – não tinha a mínima
dúvida disso. Para seu alívio, nada ouviu. Só quando a pulsação recuperou
alguma normalidade e quando se assegurou de que os rapazes teriam
deixado a área é que se levantou. Sentia-se frágil e vazio, com a pele
retesada como a de um tambor. Com o auxílio dos dedos, assobiou. Como
Arlo não aparecia, assobiou outra vez, e outra ainda. O cão finalmente
apareceu, a espreitar por entre uns arbustos. Enquanto se aproximava a
coxear, com um ar tão exausto quanto Jasper se sentia, este deu pelo golpe
que ele tinha no focinho e outro no cimo da cabeça. O sangue já tinha
começado a coagular, pelo que não deviam ser muito profundos. Ainda
assim, limparia as duas feridas quando chegasse a casa.
Tirou do bolso dois Milk-Bones e ficou a ver Arlo a devorá-los. Pegou
no balde vazio e mirou os restos dos míscaros espalhados. Tinha a certeza
de que Audrey teria ficado desolada.
CAPÍTULO QUATRO
D
fala.
e manhã, pouco depois de ter aberto os olhos, Kaitlyn deu por si a
pensar: Não me esqueci de como ser feliz. A Casey não sabe do que
Sim, a sua vida era azafamada e sim, criar uma filha adolescente podia
ser cansativo, mas ela adorava tanto os filhos como o trabalho. Fazia
voluntariado na comunidade – algo que sempre fora importante para si – e
consultas domiciliárias. Juntando-se o facto de ter poupanças significativas,
boa saúde e uma relação próxima tanto com os pais como com os irmãos,
no geral não havia motivos para queixas. Casey tinha estado simplesmente
a tentar irritar a mãe. Certo?
Certo.
Olhando para o relógio, ficou surpreendida ao dar-se conta de que
dormira até mais tarde do que o habitual e, depois de enfiar um robe, saiu
para o corredor. Espreitou para os quartos dos filhos e viu que tanto Mitch
como Casey continuavam a dormir. No piso de baixo, desfrutou da
tranquilidade enquanto bebericava um café e comia um pouco de fruta.
Mitch apareceu na sala estava ela a terminar. Ainda estava de pijama e
sentou-se em frente à sua criação em legos.
– Bom dia, querido. Queres cereais? – perguntou-lhe ela.
– Já vou buscar daqui a bocadinho.
Kaitlyn caminhou na direção dele e deu-lhe um beijo no cabelo
despenteado.
– Podes avisar-me quando a Casey se levantar? E provavelmente saímos
por volta das onze e quinze.
Ao subir as escadas, sentiu um remoinho de nervos na barriga, por saber
que não faltava muito para tornar a ver Tanner.
II
III
Meia hora depois, com Mitch sentado atrás de si e entretido com a sua
Nintendo Switch, Kaitlyn estacionou em frente ao Hampton Inn e viu
Tanner ao lado da entrada. Quando ele levantou uma mão e avançou na
direção do carro com a mesma confiança descontraída que demonstrara na
noite anterior, ela ficou impressionada pela anomalia que ele era numa
cidade daquelas. Ali, a maioria dos corpos masculinos era testemunha do
quanto gostavam de mais molho de salsicha nos seus pãezinhos ao
pequeno-almoço.
– Bom dia – disse ele, entrando para o lugar do passageiro.
– Olá – respondeu ela. Ele fitou-a por um momento antes de se virar para
o filho. – E tu deves ser o Mitch. Eu chamo-me Tanner. Obrigado por me
deixares ir convosco hoje.
Kaitlyn observou Mitch pelo retrovisor.
– Não tem de quê – disse Mitch, a mirá-lo com atenção. – Alguma vez
foi ao jardim zoológico?
– Não – respondeu Tanner. – Mas já fui a outros. Que animais é que
gostas de ver?
– Gosto dos leões. E das girafas.
– Eu também gosto de girafas.
– Sabia que têm o mesmo número de ossos no pescoço que as pessoas?
– Não sabia – disse Tanner, num tom intrigado. – Isso é fixe. Que jogo é
que tens aí?
– Mario Kart Tour.
– Eu adoro o Super Mario. Passava a vida a jogar.
– Quer tentar?
– Mais tarde, se calhar – respondeu Tanner, a assentir com a cabeça.
Tanner começou a pôr o cinto e Kaitlyn sorriu, gostando de como ele
parecia à vontade com Mitch. Soltando o travão, avançou para a estrada.
– Não sei porquê, não me tinha parecido que fosse do género de gostar
de jogos de vídeo.
– Passei meses destacado tanto no Afeganistão como no Iraque. Há
limites ao exercício que se pode fazer, e assistir aos mesmos filmes vezes
sem conta torna-se aborrecido. Toda a gente joga videojogos.
– E tinha jeito?
– Depende do jogo – disse ele. – Era bom a jogar Super Mario, melhor
do que a média no Madden e no FIFA, mas, se me perguntar sobre o Call of
Duty, teria de dizer que sou especialista.
– É bom saber.
Ele baixou o tom de voz:
– Como é que está a Casey hoje? – Olhou de relance para Mitch, sentado
atrás deles. – Tenho estado a pensar…
Mitch decidiu atalhar, sentado no banco traseiro.
– Elas ontem à noite discutiram no quarto da Casey.
Os olhos de Kaitlyn dispararam para o espelho retrovisor.
– Não foi uma discussão, querido. Foi uma conversa.
– A mim pareceu-me uma discussão. E depois a Casey esgueirou-se hoje
de manhã.
Kaitlyn lançou um olhar muito sofrido a Tanner.
– A Camille foi buscá-la antes de eu saber sequer que ela tinha acordado.
Tenho praticamente a certeza de que o fez para evitar voltar a falar comigo.
– Esperta – disse ele. – Quando os meus avós estavam zangados comigo,
eu passava o dia todo em casa de um amigo.
– Mudando de assunto, como foi a sua manhã?
– Foi ótima. Fui correr, explorei um pouco a cidade, e agora vou ao
jardim zoológico.
– Tenho de admitir que estou impressionada com a sua energia e
entusiasmo.
– Porquê? Gosto de animais.
– Não sei. Acho que, tendo em conta todos os sítios exóticos do mundo
em que já esteve, o nosso pequeno jardim zoológico não terá grande
interesse para si.
– Esquece-se de que não cresci nos EUA, portanto praticamente todos os
sítios que visito são novos para mim – contrapôs ele. – Já planeava ir ao
jardim zoológico enquanto cá estivesse, pelo que isto acabou por funcionar
na perfeição.
– A sério? – Kaitlyn parecia cética.
– Segundo o Tripadvisor, é a primeira recomendação do que fazer em
Asheboro. Tornei-me grande fã do Tripadvisor nos últimos anos.
Ela riu-se, a abanar a cabeça.
IV
Assim que chegaram ao jardim zoológico, Mitch saltou do carro,
saltitando à frente deles até à entrada.
Tanner acenou com a cabeça na direção dele.
– Parece que sabe onde vai.
– É o lugar preferido dele – explicou ela. – Bem, este e a secção da Lego
do Walmart. E o Chick-fil-A. E o gazebo, onde o nosso vizinho Jasper anda
a ensinar-lhe a talhar madeira.
Ela deu pelo sorriso fugaz de Tanner enquanto seguia o progresso de
Mitch para a entrada.
– E se eu tratasse dos bilhetes e do almoço? – sugeriu Tanner. – Fica por
minha conta.
– Só tem de pagar o seu – disse ela. – Temos um cartão de família, por
isso nós entramos de graça.
Enquanto Tanner pagava, Kaitlyn passou uma mão pelo cabelo de Mitch.
– Já tens fome? – perguntou-lhe. – Queres comer?
– Ainda não – disse ele. Empurrou os óculos para cima. – Primeiro quero
ir ver os animais.
Depois de entrarem, ele virou para a esquerda, em direção a uma área do
jardim zoológico chamada Pântano de Ciprestes. Tanner e Kaitlyn
seguiram-no a um ritmo tranquilo, mas o suficiente para não o perderem de
vista. Enquanto caminhava ao lado dele, Kaitlyn maravilhava-se com o
quão normal aquele passeio parecia.
– Fale-me mais dos Camarões – arriscou pedir. – Sei que é um país
africano, mas o meu conhecimento fica por aí.
– É uma nação extraordinária – respondeu ele. – Fica na costa ocidental
e perto do equador, pelo que costuma ter calor o ano inteiro, mas a
paisagem varia imenso: deserto, floresta tropical e montanhas.
– Onde é que o Tanner esteve destacado?
– Em Yaoundé.
– Isso é uma aldeia ou uma cidade?
– É a capital. Tem quase três milhões de pessoas.
– Oh – exclamou ela, a sentir-se tola.
– Não se sinta mal – disse ele, dando pela reação dela. – Até ter sabido
que ia ser destacado para lá, também nunca tinha ouvido falar.
– Do que é que se lembra mais?
– Das pessoas – disse ele. – Embora seja um país pobre, comparado com
os Estados Unidos ou com a Europa, há muito riso lá. As pessoas parecem
ter um talento inato para encontrar prazer nas coisas simples, apesar das
dificuldades. O país tem uma crise de refugiados por causa das guerras em
países vizinhos, e não há dúvida de que há pobreza e sofrimento, mas, no
geral, eu sempre fiquei impressionado com o quão mais resilientes e até
felizes pareciam ser as pessoas lá comparadas com quem vive na América.
– Depois esboçou um grande sorriso. – Ah, e lembro-me de jogar futebol.
Joguei muito futebol lá.
– Sim?
– Logo no dia em que cheguei, conheci um tipo chamado Vince Thomas.
Ele já estava há uns bons anos com a USAID nos Camarões. Ajudou-me a
instalar-me e acabámos por nos tornar muito bons amigos. Ele convenceu-
me a ir à procura de jogos de futebol amigáveis depois do trabalho. Tinha
uma capacidade incrível de localizar um jogo a que pudéssemos juntar-nos,
fosse quando fosse… jogos em descampados, até nas ruas. Algumas das
minhas melhores memórias são de andar a correr atrás da bola, a suar que
nem um louco e a divertir-me como nunca.
– Jogava bem?
– Acho que poderia ser categorizado como… um jogador ligeiramente
menos bom do que a média. Mas, em minha defesa, nos Camarões as
pessoas são absolutamente obcecadas por futebol. Têm uma das melhores
equipas nacionais do continente e toda a gente joga quando é nova.
– Desculpas…
Ele riu-se.
– A Kaitlyn é que perguntou.
– O que fazia lá? Em termos profissionais? Ontem mencionou qualquer
coisa sobre o Gabinete de Segurança?
Ele assentiu com a cabeça.
– A USAID tinha montes de projetos diferentes, com pessoas a trabalhar
por todo o país. A mim competia-me ajudar a mantê-las em segurança, bem
como aos locais com quem trabalhávamos, por vezes estabelecendo
procedimentos como viajar em caravanas com os mantimentos de
emergência certos; outras vezes, era necessário vigiar o perímetro dos
nossos acampamentos. Nas zonas mais longínquas do Norte e do Sudoeste
há violência contínua devido a revoltas e instabilidade política, como
consequência das ações do Boko Haram. Raparigas e mulheres correm um
risco maior, pelo que ter uma presença armada era crucial, ainda que só
estivéssemos a fazer vacinações.
Ela olhou de relance para ele.
– Parece que conseguiam mudar a vida das pessoas para melhor.
– Espero que sim – disse ele com um aceno de cabeça –, e, quanto mais
tempo eu lá passava, mais me ia apaixonando pelos Camarões. Mal posso
esperar por visitar alguns dos sítios onde não pude ir da última vez.
– Quais?
– O Parque Nacional Nki, para começar. É um dos poucos lugares em
África onde é possível ver grupos enormes de elefantes e chimpanzés no
seu habitat natural. Por norma, não partilham o mesmo espaço.
– E vai voltar a jogar futebol.
– Conhecendo o Vince, isso será uma grande parte do que farei.
Entretanto, tinham chegado ao Pântano dos Ciprestes. Mais adiante,
Mitch espreitava para um dos recintos, em busca do puma.
– Se gostava tanto dos Camarões, porque é que se foi embora?
– A culpa foi do Vince. Promoveu-me e depois recomendou-me para o
que era basicamente a posição dele na Costa do Marfim.
Ela sorriu.
– E o Tanner fez o mesmo na Costa do Marfim?
– Mais ou menos. Como tinha sido promovido, tinha pessoas a trabalhar
sob a minha alçada, o que implicava mais tempo no gabinete e menos
tempo no campo. E, ao contrário dos Camarões, o país cresce depressa, em
termos económicos. A Costa do Marfim detém uma grande parcela do cacau
do mundo, pelo que boa parte do nosso trabalho lá consistia em ajudar a
gerir isso ou a tratar de outras iniciativas empresariais. Como… ajudar a
cooperativa do caju a conseguir financiamento comercial, coisas assim.
Chegaram ao pé de Mitch. Ela pousou-lhe uma mão no ombro e baixou-
se para lhe falar ao ouvido.
– Estás a ver o puma?
– Está ali deitado nas rochas – disse ele, a apontar. – Na sombra. Dá para
ver parte da cabeça, mas acho que está a fazer uma sesta. Ainda não se
mexeu de todo.
– Não dormem durante o dia? – perguntou Tanner.
– Dormem – respondeu Mitch num tom assertivo. – Vamos. Vamos ver
os aligátores. – Virou-se e tornou a afastar-se, deixando-os para trás.
Ela assentiu com a cabeça na direção do filho.
– É assim o dia todo. Ele vai à frente e chega lá primeiro. Então, assim
que eu chego, vai ver o seguinte. Costumamos dar a volta ao zoo inteiro em
cerca de hora e meia.
Enquanto partiam para o recinto seguinte, Kaitlyn disse:
– E a seguir a isso foi para o Haiti?
Ele arqueou uma sobrancelha.
– Fico impressionado por se lembrar. Sim, acabou por ser o último sítio
em que trabalhei.
– Como é que foi?
– Mais uma vez, uma população local incrível. Mas o gabinete de campo
lá é enorme, por isso era muito mais burocrático. E depois há o trabalho
propriamente dito. Parece que o país é devastado por furacões e tremores de
terra ano sim, ano não. Quando finalmente julgamos que estamos a fazer
progressos nas infraestruturas ou na luta contra a cólera ou a estabelecer
mesas de voto ou seja o que for, vem outro desastre e volta-se à estaca zero.
Sentia-me constantemente assoberbado, nunca havia tempo nem dinheiro
suficiente para fazer alguma diferença.
– O que imagino que fizesse com que os vossos esforços fossem ainda
mais críticos, não?
– Acho que sim – respondeu ele. – Mas no final sentia-me mentalmente
exausto.
– Então decidiu fazer uma pausa?
– Entre isso e a covid tornar impossível voltar, sim.
– Olha, mãe!
Kaitlyn viu Mitch entre uma família e uma mulher que estava a tirar
fotografias.
– Estou a ir!
– Tem a boca aberta!
Enquanto se apressavam para se juntarem a Mitch, Kaitlyn refletiu no
facto de se terem passado anos desde que tivera uma conversa tão
interessante, se era que alguma vez a tivera. No seu mundo, as pessoas não
falavam de jogos de futebol nos Camarões, nem de cooperativas de caju na
Costa do Marfim.
Realmente, um dos aligátores estava de boca aberta, deitado ao sol.
– É assim que regula a temperatura – explicou Mitch. – Será que
conseguia engolir-me inteiro?
– Hum… – fez Kaitlyn. – Tem uma boca grande, mas tu cresceste desde
a última vez que viemos.
– Agarram-nos e arrastam-nos para dentro de água, onde nos dão voltas
até que nos afogamos. Chama-se espiral da morte.
– É bom saber.
– Venham. Vamos ver os ursos polares.
Um momento depois, estavam a voltar para trás.
– Desculpe – disse ela a Tanner. – Eu avisei.
– Não tem nada de que pedir desculpa. Estou a divertir-me imenso, mas
tenho a sensação de que só eu é que falo.
– A minha vida não é assim tão interessante.
– Duvido disso. É médica, faz consultas ao domicílio e, para além disso,
é mãe e está a criar dois filhos incríveis.
Ela fitou-o de olhos semicerrados, com uma expressão cética.
– Isso não está exatamente ao mesmo nível que vacinar crianças numa
zona de guerra.
Tanner pegou num copo de papel que tinha sido largado no chão e
meteu-o num contentor próximo antes de voltar para o lado dela.
– Não era eu quem vacinava os miúdos. Nem quem estabeleceu o
programa ou o pagou.
– Continuo a achar que é incrível que tenha decidido fazer esse tipo de
trabalho comunitário. Eu também tento fazer isso, mas obviamente a uma
escala muito mais pequena. – A expressão dele encorajou-a a prosseguir. –
Para além das consultas ao domicílio, faço voluntariado uma vez por
semana num sítio que oferece refeições grátis a quem precisa.
– Isso é ótimo – comentou ele. – É uma igreja, ou…
– Não, é uma organização sem fins lucrativos chamada O Pão Nosso de
Cada Dia – disse ela. – Só abrem à hora de almoço, mas eu faço
voluntariado lá desde que me mudei para Asheboro. Estão em
funcionamento há muito tempo e acho que servem cerca de vinte mil
refeições por ano.
– O que é que a levou a decidir fazer uma coisa assim?
– O meu pai – respondeu ela com simplicidade. – Sempre teve uma
fixação pelas segundas-feiras. Quando éramos pequenos, sentávamo-nos à
mesa do pequeno-almoço e ele entrava para se servir de uma chávena de
café e dizia: Estava mesmo aqui a pensar que a segunda-feira é o dia
perfeito para começarmos a ser a melhor versão de nós mesmos, pois temos
mais seis dias para praticar. Ou: Todas as semanas deviam começar com
generosidade, não acham? O mundo não seria melhor? Eu, a minha irmã e
o meu irmão entreolhávamo-nos e revirávamos os olhos. Mas, com o passar
do tempo, acho que a atitude dele acabou por ser contagiosa, pelo menos
comigo. Ele sempre fez o que dizia. É dentista e a primeira coisa que fez
quando estabeleceu o seu próprio consultório foi reservar as manhãs de
segunda-feira para pacientes que não pudessem pagar. A culpa é dele.
– Isso é bom.
– Eu sei que é, e adoro-o por isso – disse ela. – E acho que faz sentido,
porque, mais do que a maioria das pessoas, ele compreende o que é precisar
de ajuda. Nasceu nas montanhas do Kentucky, numa zona muito rural e
muito pobre, e a mãe dele era solteira, adolescente e só tinha o sexto ano.
Cresceu numa autocaravana decrépita. Viviam daquilo que a mãe
conseguisse apanhar ou caçar, e também de donativos de comida da igreja
e, no inverno, por vezes não tinham aquecimento nenhum. Não que o meu
pai alguma vez fale assim da sua juventude. É o tipo de pessoa que só
partilha as histórias boas da vida, como o quanto se divertia a apanhar
lagartos, a nadar no lago ou algo assim. Foi a minha mãe que me falou
disso. Ela é um pouco mais objetiva no que diz respeito ao passado do meu
pai.
– Porque acha que assim é?
– O meu pai é um otimista por natureza, mas também acho que era
importante para ele que os filhos amassem e respeitassem a sua própria mãe
tanto quanto ele. E isso aconteceu. Quero dizer, a minha avó era uma
personagem, disso não há dúvida. Mascava tabaco e era viciada em
telenovelas, e passar tempo com ela era como visitar um planeta diferente.
Lembro-me de que uma vez, quando era pequena, chegámos a casa dela e
encontrámo-la no pátio das traseiras a caçar esquilos com uma pistola de
pressão de ar. É claro que eu e a minha irmã desatámos a chorar quando
vimos os cadáveres minúsculos espalhados em cima da mesa de piquenique,
mas ela estava muito entusiasmada com o guisado de esquilo que ia
preparar para nós. Acho que tanto eu como a minha irmã ficámos logo com
vómitos.
Tanner sorriu.
– E que tal o guisado?
– Graças a Deus, a minha mãe chegou a tempo de nos salvar e não
tivemos de o comer. Mas, por mais louca que nos parecesse, a nossa avó
tinha um coração cheio de amor. Quero dizer, basta ver o homem em que o
meu pai se tornou. Era muito trabalhador e teve o apoio de alguns
professores, mas claramente a sua vida em casa era suficientemente segura
para que tivesse conseguido uma bolsa completa na Universidade do
Kentucky Oriental. E, assim que pôde (ainda antes de ter comprado uma
casa para si e para a minha mãe) mudou a mãe para uma pequena casa nos
subúrbios de Lexington. Ela dizia que era o primeiro sítio onde alguma vez
tinha vivido em que não tinha de ser ela a aquecer a água se a quisesse
quente.
– Mas que forma de crescer.
– É mesmo. O meu pai ainda exerce, já agora, se bem que finalmente, só
este ano, tenha começado a reduzir o horário. Ele adora o que faz. Seja
como for, sempre nos fez sentir que éramos nós a verdadeira paixão da sua
vida. Assistia a todos os nossos jogos e recitais de dança, e nunca faltava às
reuniões de pais.
– E a sua mãe?
– Provavelmente é ainda mais inteligente do que o meu pai.
– Ai, sim?
– Frequentou escolas privadas de elite e a família dela fazia parte do
country club. Estudou matemática e filosofia na faculdade e foi a melhor
aluna do seu ano tanto na escola secundária como na Universidade do
Kentucky. Começou a dar aulas, mas, depois de se casar com o meu pai e
de ter filhos, optou por ficar em casa. Estava sempre disponível quando um
dos filhos precisava dela, mesmo depois de termos saído de casa. Quando
engravidei do Mitch e tive de ficar em repouso total, ela largou tudo e
passou meses comigo.
– Parecem um casal fantástico.
– São – confirmou Kaitlyn.
Por essa altura, tinham chegado aos ursos polares. Como um deles estava
a chapinhar na água, Mitch deixara-se ficar mais tempo do que era habitual.
Por perto estavam focas e leões marinhos, bem como raposas-do-ártico, que
também lhe cativavam a atenção. Quando Kaitlyn tornou a perguntar-lhe se
tinha fome, ele abanou a cabeça e anunciou que estava na hora de irem ver
os animais africanos e, mais uma vez, foi à frente.
– O que é que faz nas consultas ao domicílio? – perguntou Tanner.
– O mesmo que faço no consultório. Verifico os sinais vitais, recolho
amostras de sangue para análises e garanto que as pessoas têm as receitas de
que precisam. Se houver crianças na casa, trato das vacinações. Ou limpo
feridas e dou pontos. Vai depender daquilo com que me depare.
Oficialmente, são pacientes do consultório, embora nunca tenham lá posto
um pé.
– E se precisarem de um raio-x ou algo do género?
– Nesse caso, tento convencê-los a ir ao hospital.
– Parece que isso deve fazer com que as suas semanas de trabalho sejam
bem compridas, já que também deve ter de estar de plantão, não?
– Nem por isso. A disponibilidade para urgências é diferente agora, em
comparação com quando comecei. Atualmente o hospital contrata os seus
próprios médicos, por isso não esperam que vamos. Em vez disso, podemos
atender uma chamada de um paciente que não recebeu uma receita ou que
precisa de mais medicamentos. Se tiverem problemas, dizemos-lhes que
vão ao consultório de manhã, ou mandamo-los para as urgências. Com um
telemóvel, nem é preciso sair de casa.
Quando chegaram à área do jardim zoológico dedicada aos elefantes, às
girafas, aos leões, aos rinocerontes e aos chimpanzés, a conversa regressou
ao tempo que Tanner passara fora do país. Ele descreveu-lhe um prato
chamado puff-puff and beans, que comia sempre que ia ao mercado, e falou
do ndolé, um saboroso guisado de espinafres que Vince lhe dera a conhecer
na sua primeira noite nos Camarões. Contou-lhe como fora assistir ao
Campeonato das Nações Africanas em 2016 num bar tão apinhado que a
multidão transvazava para as ruas; os Camarões tinham vencido a
República Democrática do Congo por 3–1, e o júbilo durara quase até ao
raiar do dia. Falou-lhe dos macacos e outros símios que tinha visto no
Parque Nacional de Mefou e, algures enquanto o ouvia, ela deu por si a
pensar: Um dia, também gostaria de lá ir.
No caminho de regresso – a verem os animais exóticos pela segunda vez
–, Mitch perguntou a Tanner se tinha ouvido falar do veado branco que fora
avistado na floresta.
– Não – disse ele. – Nem sequer sabia que existiam veados brancos.
– Existem – disse Mitch num tom solene. – Tem aparecido nas notícias.
Quando Tanner lançou um olhar de soslaio a Kaitlyn, esta assentiu com a
cabeça.
– É verdade.
– Talvez o apanhem e o ponham no jardim zoológico – especulou Mitch.
– Espero que não – atalhou Kaitlyn. – Quero que continue livre, no seu
habitat.
– Eu quero vê-lo – disse Mitch, antes de voltar a avançar mais depressa.
Durante o almoço, no Junction Springs Cafe, Mitch ficou fascinado com
a descrição que Tanner fez da vida selvagem nos Camarões. Quanto a si,
partilhou uma torrente de factos sobre animais que aprendera num livro –
que um elefante tem quarenta mil músculos na tromba, ou que os leões
podem obter a hidratação de que precisam a partir de plantas. Ao longo da
refeição, Kaitlyn dava pelo seu olhar a incidir ora em Mitch, ora em Tanner,
aliviada por o filho parecer perfeitamente à vontade. Quando se iam
embora, por alguma razão começaram a falar de jogar ao disco. No fim da
conversa, Mitch convenceu-a a passar pelo Walmart ali próximo, onde
Tanner saiu do carro e desapareceu no interior da loja, regressando com um
disco uns minutos depois.
Foram de carro até ao Bicentennial Park e, durante meia hora, Kaitlyn,
Tanner e Mitch passaram o disco entre si. Começaram por ficar perto uns
dos outros, mas, à medida que se iam afastando mais e mais, Tanner e
Kaitlyn esforçavam-se por intercetar lançamentos desviados um a seguir ao
outro, enquanto Mitch se ria e gritava: «Desculpem!» Ao fim de vinte
minutos, uma camada fina e brilhante de suor cobria-lhes as testas.
Kaitlyn tentou lembrar-se da última vez que George fizera algo assim
com o filho, mas nada lhe ocorria. Apesar de o momento lhe ter aquecido a
alma, começava a fazer-se tarde.
Tanner lançou-se uma última vez para apanhar o disco atirado numa
direção completamente errada por Mitch. Ao aproximar-se dela, de disco na
mão, sorriu.
– Eu sei que trabalha logo à noite – disse ele, ainda a recuperar o fôlego
–, mas não consegui resistir ao disco depois de o Mitch ter dito que queria
experimentar.
Mitch correu para se juntar a eles.
– Temos de ir? – perguntou ele.
– Está na hora. Mas divertiste-te, não foi?
– Foi espetacular! – Depois, a pensar já noutra coisa, franziu o sobrolho.
– A Casey vai estar em casa logo?
– Deve estar. Já sabe a rotina.
– OK – disse ele. – Podemos comer cachorros-quentes ao jantar?
– Estava a pensar fazer guisado de atum.
– Com batatas fritas por cima?
– Claro – respondeu ela. Satisfeito, Mitch começou a avançar para o
Suburban. Atrás do filho, Kaitlyn lançou um olhar de relance a Tanner. –
Presumo que queira que o deixe no hotel?
– Se não se importa – disse ele. – Depois de tanta correria, acho que
preciso de um duche e de algum tempo na horizontal antes do jantar.
O trajeto até ao hotel só demorou uns minutos. Ao sair, Tanner manteve
a porta aberta e espreitou para dentro do carro.
– Diverti-me muito, Mitch – disse-lhe com uma continência a brincar. –
E obrigado por me teres ensinado tanta coisa sobre os animais.
– Não tem de quê – replicou Mitch, parecendo distraído; um som de
motor do Mario Kart Tour ouvia-se a partir do banco traseiro.
– Mais uma vez, obrigado por este dia, Kaitlyn – disse Tanner. – Adorei.
E, para que saiba, vou ficar a pensar no seu pai e nas ideias dele acerca das
segundas-feiras. Acho que é um bom objetivo a adotar.
– Obrigada por ter vindo connosco.
E, sem mais, ele começou a avançar para a entrada do hotel. Em parte,
ela esperava que ele se virasse para olhar para ela, mas Tanner não o fez.
Em vez disso, empurrou a porta de vidro e entrou, desaparecendo
rapidamente.
Soltando o travão, Kaitlyn tentou não se sentir dececionada por ele não
ter sugerido que voltassem a encontrar-se; ao mesmo tempo, provavelmente
seria melhor assim. Não seria suficiente apreciar simplesmente o dia que
tinham tido?
Claro que sim, concluiu. Há séculos que não passava um dia assim – não
se lembrava de quando se sentira simplesmente como uma mulher (não
apenas uma mãe ou uma médica) e Tanner levara-a a dar-se conta do quanto
sentira a falta dessa sensação.
– Onde é que vocês estiveram? – perguntou Casey, assim que ela entrou.
Mitch já tinha entrado a correr, direito à cozinha.
– Fomos ao jardim zoológico – disse ela. – Tu sabias. – Vendo o filho a
levar a mão à caixa das bolachas, avisou-o: – Mitch! O que achas que estás
a fazer?
– Vou tirar umas bolachas.
– Tira só uma…
– Mãe – interrompeu Casey. – Estou a tentar falar contigo. Porque não
respondeste às minhas mensagens?
– Desculpa. Não vi o telemóvel.
– Ela estava a falar com Mr. Tanner – explicou Mitch. – Ele é fixe.
– Quem é Mr. Tanner? – perguntou Casey.
– Tanner Hughes – disse Kaitlyn. – O tipo em quem bateste ontem à
noite?
– Porque foste ao jardim zoológico com ele?
– Quando ele soube que íamos, perguntou-me se podia acompanhar-nos
– disse ela, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Depois,
apressou-se a mudar de tema. – Porque me mandaste mensagens?
Casey fitou-a, mas, milagrosamente, deixou a coisa passar.
– Queria saber a que horas chegavas porque preciso do Suburban para ir
buscar materiais. Vamos decorar os cacifos logo à noite, lembras-te? Antes
do jogo de beisebol? Tinha-te dito na semana passada.
Kaitlyn lembrava-se vagamente de Casey o ter mencionado, mas não se
apercebera de que seria num domingo.
– Não podes ir à escola hoje à noite. Eu trabalho e tens de tomar conta
do Mitch.
– Vai ser só uma hora ou duas. Ele fica bem sozinho. Também podemos
pedir a Mrs. Simpson que tome conta dele.
– Casey…
– Está bem – disse ela, interrompendo-a. – E se eu o levar comigo?
– Para a escola secundária? Com os teus amigos?
– Porque não? Ele ia divertir-se.
– E se ele não quiser ir?
Casey virou-se para a cozinha.
– Olha, Mitch! Queres ir comigo e com os meus amigos à minha escola,
depois do jantar? Para decorarmos uns cacifos com fitas e outras coisas?
– Sim! – exclamou ele. – Parece espetacular! Posso ajudar?
– Claro. – Casey dirigiu um olhar triunfante à mãe. – Vês? Não há
problema. Ele quer ir.
Kaitlyn sentiu-se encurralada.
– Está bem. Mas têm de voltar antes das oito.
– Se a Camille nos der boleia depois, posso usar o carro para ir buscar os
materiais agora?
– Não sei se isso é boa ideia – disse Kaitlyn.
– Por causa do acidente?
– Da maneira como falas, parece que não foi nada de grave.
– Eu sei que foi grave! Mas, para que tu saibas, a culpa disto tudo em
parte também é tua. Eu nem devia ter tido de andar a conduzir o Suburban
ontem à noite.
Kaitlyn demorou um pouco a perceber o que ela quereria dizer com
aquilo.
– Estás a falar de teres o teu próprio carro? Já tínhamos falado disto e
decidido que, quando acabares a escola secundária…
– Não, tu decidiste isso. E, se eu vivesse com o pai, já teria carro.
– Tens a certeza disso?
– Acabei de falar com ele, mãe. Mesmo antes de teres chegado. – Atirou
a cabeça para trás, com uma expressão desafiante. – Ele disse… – fez uma
pausa deliberada – … que, se eu fosse viver com ele, teria todo o gosto em
arranjar-me um carro.
Kaitlyn sentiu um calafrio a percorrê-la. Claro que ele havia de dizer
isso.
– Não vais querer mudar-te antes do último ano. Deixavas todos os teus
amigos aqui.
– De qualquer maneira vou deixá-los assim que for para a faculdade, por
isso, qual é o problema? E, até lá, teria o meu carro.
Kaitlyn fitou-a. Pelo canto do olho, via Mitch na cozinha e percebia que
ele também tinha ouvido a irmã.
– E estás a ponderar fazer isso?
Casey levou as mãos às ancas, com uma luz desafiante no olhar.
– Porque não haveria de o fazer?
VI
VII
Esperou por um momento, atenta aos pontinhos que indicariam que ele
estaria a responder, mas nada apareceu. Enfiando o telemóvel de volta na
mala, guardou as coisas no Suburban e fez-se à estrada, trocando Asheboro
pelo campo em redor. A primeira paragem seria num parque de
autocaravanas a cerca de dez quilómetros para lá da cidade.
Durante a hora e meia seguinte, atendeu um paciente a seguir ao outro.
Deu uma injeção no cotovelo de um e outra no joelho de outro. Mediu a
tensão e a temperatura uma dúzia de vezes; examinou ouvidos, narizes e
gargantas; auscultou corações e pulmões; e vacinou uma criança de cinco
anos. Havia dois pacientes novos, ambos com cortes que tinham infetado.
Limpou as feridas, deu-lhes antibióticos e, embora soubesse que isso os
deixava nervosos, criou registos médicos com as informações deles.
Também deixou três receitas.
Depois de terminar a ronda no parque de autocaravanas, visitou mais três
casas. Esses pacientes eram idosos, pelo que todos fizeram
eletrocardiogramas, para além dos testes mais rotineiros. Também lhes tirou
sangue para enviar para o laboratório.
Em seguida, fez outras duas visitas para deixar medicamentos sujeitos a
receita, e chegou a casa às oito e meia.
Quando entrou na sala, Mitch e Casey estavam de novo sentados no sofá,
desta feita a partilharem uma tigela de pipocas.
– Como foi na escola? – perguntou.
– Foi o máximo! – respondeu Mitch. – Enfeitámos com balões e tudo!
– Fico contente por se terem divertido – disse ela. – Mas não devias estar
a preparar-te para ires para a cama?
Com relutância, ele levantou-se do sofá.
– Boa noite, seu percevejo – disse Casey, atirando-lhe uma pipoca.
– Boa noite, sua rabuda – retorquiu Mitch, e Casey riu-se.
Por um instante, Kaitlyn perguntou-se se deveria tentar voltar a falar
com Casey, mas decidiu que talvez fosse melhor deixar as coisas assentar
por ora.
A última coisa que queria era outra discussão, mais que não fosse porque
isso poderia deixar a filha ainda mais determinada a ir embora.
VIII
Mais tarde, depois de Mitch ter tomado banho e vestido o pijama, ela
leu-lhe um capítulo do romance Wonder – Encantador, de R. J. Palacio.
Embora Mitch já tivesse idade suficiente para ser ele a ler, isso era algo que
ela fazia desde que ele era bebé e de que não estava disposta a desistir já.
Calculava que esse dia não tardaria; Mitch poria fim à tradição, tal como
Casey acabara por fazer.
Depois de lhe dar um beijo de boas-noites, ia apagar a luz quando Mitch
falou.
– Mãe?
– Sim, querido?
– A Casey não vai mesmo viver com o pai, pois não?
– Ela às vezes diz coisas só por dizer – respondeu Kaitlyn, esperando ter
razão. – Sabes como ela é.
– Não quero que ela se vá embora.
Kaitlyn ouvia o medo na voz dele.
– Eu sei, querido.
Deu-lhe mais um beijo e apagou a luz antes de encostar a porta.
Espreitando Casey, viu-a a estudar na cama e decidiu não a interromper.
Tinha sido um dia longo – um fim de semana longo, na verdade – e estava
cansada.
Não obstante…
Passou os braços à volta do corpo, a pensar de novo que, ainda que a
ameaça de Casey definitivamente a tivesse deixado abalada, há muito
tempo que não tinha um dia tão bom como aquele.
IX
XI
III
Tinha havido uma altura em que não sabia se alguma vez voltaria a
sentir-se normal. A morte do pai – tão absolutamente inesperada – deixara
uma lacuna que nem a presença de Audrey era capaz de preencher. Na
pequena casa da cidade em que sempre vivera, estava rodeado do que
restava da vida que partilhara com o pai: fotografias de ambos no lintel da
lareira, equipamento de pesca que tinham usado em tardes ociosas, figuras
entalhadas a encher os parapeitos das janelas e todas as outras superfícies. A
Bíblia do pai encontrava-se na mesa de apoio junto à cadeira de baloiço
estofada da sala de estar.
Nas semanas que se seguiram à morte do pai, Jasper vagueava sozinho
pela casa silenciosa, esvaziada pela tristeza. Nesses momentos, recorria à
Bíblia, tentando encontrar consolo nas palavras que o pai citava tantas
vezes ou nas que rabiscara nas margens.
Salmos 34:18 dizia: Os justos clamaram e o Senhor atendeu-os e livrou-
os das suas angústias. Mateus 5:4 dizia: Felizes os que choram, porque
serão consolados. Ele ajoelhava-se e rezava não só pela alma do pai, mas
também pela sua. De vez em quando, Audrey visitava-o depois das aulas,
levando-lhe um guisado ou uma tarte acabada de fazer. Comiam juntos e
falavam em voz baixa. Ela perguntava-lhe como estava e cada uma das suas
palavras e gestos irradiava uma profunda compaixão e, à medida que
aquelas semanas e meses terríveis foram passando, Jasper passou a amá-la
com uma devoção que não julgava possível. O amor é, mais do que tudo,
paciente e prestável (I Coríntios 13:4), e, realmente, ela parecia perceber
que Jasper precisava de fazer o luto seguindo o seu próprio tempo, antes de
tornar a entrar na corrente da vida.
Sem o pai para o sustentar, Jasper deixou a secundária e começou a
trabalhar a tempo inteiro no pomar. Embora isso implicasse não ver Audrey
na escola, não havia alternativa. Pagava as contas da casa, levava o almoço
na marmita do pai e trabalhava de sol a sol. Um homem chamado Richard
Stope tinha ocupado o antigo lugar do pai. Stope era genro do proprietário,
e havia muito que tinha inveja da confiança que o sogro depositava no pai
de Jasper. Era um homem difícil que culpava os outros sempre que algo
corria mal. Mais do que uma vez, Jasper vira-o agredir um dos
trabalhadores sazonais. Anos antes, quando lhe perguntara porque era que
Stope se comportava assim, o pai respondera dizendo: «Provérbios 24:2.»
Nessa noite, Jasper lera na caligrafia rabiscada do pai: Porque o seu
coração só pensa em violência e os seus lábios só falam em crimes. Como
sabia que ele tinha tentado despedir o seu pai por uma ou outra infração,
Jasper mantinha-se a uma boa distância e concentrava-se no seu trabalho.
Contudo, a inveja do capataz encontrou um novo bode expiatório em
Jasper. Se este trabalhasse cinquenta horas, Stope arranjava alguma
desculpa para lhe pagar apenas quarenta; se um dos tratores se avariasse,
Stope culpava Jasper. Com o passar do tempo, outros trabalhadores
começaram a distanciar-se de Jasper, cientes de que Stope também lhes
infernizaria as vidas caso privassem com ele. Em vez de almoçar com a
equipa, Jasper comia sozinho. Se tivesse de consertar um motor ou arranjar
as bombas de irrigação, já não havia quem o ajudasse. E quando o arranjo
ficava feito, culpavam-no por ter demorado demasiado tempo.
Por fim, quando já trabalhava ali a tempo inteiro havia mais de um ano,
dois pessegueiros ao fundo da propriedade foram atacados por monília. O
fungo tinha-se espalhado de uma moita vizinha, onde toda uma secção da
colheita de pêssegos havia sido afetada. Não obstante, Stope atribuiu a
responsabilidade apenas a Jasper. Enquanto outros trabalhadores assistiam
pelo canto do olho, despediu-o. Por essa altura, Jasper já o esperava, pelo
que se limitou a assentir com a cabeça.
Estavam em 1958. Tinha dezoito anos e o pai morrera havia pouco mais
de um ano. Não faltava muito para que Audrey terminasse a escola
secundária. Jasper tinha uma pequena maquia poupada, pelo que ficaria
bem. Estava a virar-se para se ir embora quando Stope lhe gritou:
– És um campónio branco que não serve para nada, tal como o teu pai.
Jasper estacou, com os ombros subitamente contraídos. Na sua mente,
ouviu o pai sussurrar, «Provérbios 29:11».
O insensato desafoga toda a sua ira, mas o sábio acaba por dominá-la.
Descontraiu os ombros e deu outro passo na direção do armazém onde
mantinha a marmita do pai. Stope avançou e agarrou-o por um braço.
– Vais sair da propriedade e já – sibilou ele.
Jasper sentia os olhares dos outros trabalhadores fixos neles. Livrou-se
deliberadamente da mão de Stope e deu mais um passo para ir buscar a
marmita. Stope tornou a encurtar a distância entre eles, de rosto corado e
olhos a faiscar.
– Não me ignores, moço!
Fazendo-o virar-se, Stope cerrou o punho; quando o golpe o atingiu,
Jasper sentiu a periferia da visão a ficar escura e caiu no chão. Sabendo o
que o pai quereria que ele fizesse, levantou-se. Olhou diretamente para o
capataz e depois, devagar, virou a cabeça. Apontou para a outra face, tal
como Jesus instara, para o caso de Stope querer bater-lhe uma segunda vez.
O rosto do capataz ficou púrpura. Ele cerrou o punho de novo. Mas uma
sensação de espanto e até de admiração parecia ter-se abatido sobre os
outros trabalhadores, como uma inspiração súbita. Stope também devia ter
dado por isso, pois, em vez de o atingir de novo, acabou por baixar o olhar.
Jasper continuou caminho até ao armazém e tirou de lá a marmita.
Deixou o pomar e caminhou para a carrinha que fora do pai, ciente de que
nunca regressaria.
IV
VI
Talvez tivesse sido por causa da sua conversa com Mitch, mas, quando
voltou para a cabana, Jasper decidiu ir visitar a família.
Podia encontrá-la aos pés de um velho carvalho vivo, de ramos grossos e
descaídos, alguns cobertos de musgo. Era a árvore perfeita para trepar, e
Jasper lembrava-se dos filhos a porem o equilíbrio e a coragem à prova
enquanto corriam e esgaravatavam pela árvore acima e à volta dela.
Durante uns anos, até tinham tido um baloiço; Jasper lembrava-se do dia em
que o pendurara e de como cada um dos filhos lhe implorara que o
empurrasse mais e mais.
Agora o baloiço já se fora e a árvore não era trepada há décadas. Tinha
sido ali, porém, que Jasper enterrara a mulher e os quatro filhos, no
pequeno terreno rodeado por um muro baixo de tijolo. Os amores-perfeitos
que plantara em novembro do ano anterior ainda estavam em flor, mas, no
mês seguinte, as flores primaveris emergiriam por entre as folhas velhas –
trílios, floxs, íris, sempre-noivas e lírios. Audrey sempre adorara flores.
As lápides estavam dispostas em semicírculo, com Audrey no centro. Ele
sabia que ela teria desejado assim, pois sempre fora o centro das vidas de
todos eles. Era o sol, enquanto os filhos eram os planetas. Tinha sido o
próprio Jasper a cinzelar os nomes e as datas nas lápides, juntamente com
um versículo para cada um.
Agachou-se cuidadosamente e começou a arrancar ervas daninhas que
tinham germinado entre os amores-perfeitos, com a memória a regressar a
1958, não muito depois de ter sido despedido do pomar. Embora Audrey o
visitasse tanto em casa como na cabana com alguma frequência havia mais
de um ano, Jasper ainda não a beijara, se bem que já soubesse que queria
passar o resto da vida com ela. Sempre que falavam, ele tinha a sensação de
que poderia ficar a ouvi-la para sempre. Ela contou-lhe que queria ser
professora numa escola nos arredores, para poder trabalhar com alunos
rurais. Disse-lhe que queria ter pelo menos quatro filhos e viver numa casa
de dois pisos com um alpendre e uma cozinha suficientemente grande para
que todos se reunissem lá. Queria passar a lua de mel em Sullivan’s Island,
perto de Charleston, onde poderiam ver golfinhos a saltar na rebentação. O
facto de ela ser tão clara em relação a coisas específicas da sua vida era algo
que o estonteava. À semelhança do pai, Jasper nunca fora grande sonhador,
mas prometeu a si mesmo que haveria de arranjar forma de concretizar
todos os sonhos dela, mesmo sem ter a menor ideia de como poderia fazer
isso.
Mas o que mais o cativava nela eram os olhos, não os sonhos. Sempre
que ele os fitava, era incapaz de desviar o olhar, como se ela o tivesse
enfeitiçado. Umas semanas antes de ela terminar a escola secundária, Jasper
levou-lhe um ramo de margaridas acabadas de apanhar. Os pais não o
consideravam grande partido para a filha e, quando a mãe o viu no
alpendre, com as flores na mão, contraiu o rosto numa expressão
contrariada. Audrey, no entanto, tinha descido as escadas a saltar e afastado
a mãe dali, para ficarem os dois sentados no alpendre. Com relutância, a
mãe fechara a porta, e Audrey encostara o ramo à cara.
– São maravilhosas – disse ela, inspirando.
Por fim, Jasper sussurrou as palavras que guardava dentro de si desde
que ela tinha entrado para a sua carrinha pela primeira vez.
– Tu também és maravilhosa.
Conversaram durante uma hora e partilharam uma fatia de tarte. Os
grilos estridulavam e Jasper ouviu o chirriar de uma coruja na floresta. As
estrelas começavam a pontilhar o céu noturno, pelo que soube que estava na
altura de ir embora. Contudo, mesmo antes de descer do alpendre, virou-se
para ela. Pousou-lhe uma mão delicada na cintura e aproximou-se mais; um
momento depois, os lábios dela tocaram nos dele pela primeira vez. Sentiu
o sabor a maçã e canela no hálito dela e, a caminho de casa, as pernas
tremiam-lhe tanto que só por sorte a carrinha não foi contra uma árvore.
Ao longo do verão, a relação foi desabrochando rapidamente, como
flores silvestres num prado. Davam passeios à tardinha, depois de o calor
do dia ter amainado, e por vezes paravam na baixa para tomarem um
refresco. Faziam piqueniques e de vez em quando iam ao cinema, sobretudo
porque ela adorava. Na livraria, ela indicava-lhe romances que a tinham
comovido mais profundamente – apesar da desconfiança generalizada que
tinha dos soviéticos, ela preferia escritores russos, como Tolstoi e
Dostoievski. E, no Dia da Independência, enquanto fogos de artifício
explodiam no céu noturno, ele finalmente sussurrou-lhe que a amava.
– Oh, Jasper – disse ela com um sorriso enorme. – Eu também te amo.
Em agosto, ela partiu para a faculdade. Fazia um calor abrasador e
passaram a última manhã juntos em casa, sob os olhares reprovadores dos
pais dela.
Ele pediu para falar a sós com o pai de Audrey. Tinha no bolso a aliança
de casamento da mãe, e solicitou formalmente a sua autorização para pedir
a mão da filha.
Num tom controlado, o pai explicou-lhe que tal não era possível. Eram
demasiado jovens, esclareceu, sem ser necessário referir que Jasper não
terminara os estudos secundários e não tinha emprego, já para não falar da
ausência de perspetiva de qualquer tipo de carreira.
Jasper saiu com a aliança no bolso e depois, quando Audrey entrou para
a parte de trás do Cadillac da família, onde faria a viagem até à Sweet Briar
College, na Virgínia, obrigou-se a sorrir. Acenou-lhe em despedida apesar
da náusea que sentia e, ao voltar para casa, perguntava-se se ela o
esqueceria. Mas não; em vez disso, a distância parecia uni-los ainda mais.
Ele escrevia-lhe duas vezes por semana e relia as cartas que ela lhe enviava
vezes sem conta. De vez em quando, ele enviava-lhe pequenos presentes
pelo correio – por norma algo que tivesse talhado, mas também lhe ofereceu
um lenço e um pequeno medalhão. E, durante as férias do Dia de Ação de
Graças e do Natal, passava todos os momentos possíveis com ela. E, quer
estivessem juntos, quer Audrey se encontrasse na faculdade, ele continuava
sempre a pensar na forma de concretizar todos os sonhos dela.
Agora, toda uma vida passada, passou a mão pelo granito, sentindo o
nome dela gravado sob o dedo. Fez o mesmo com cada um dos filhos e,
apesar da dor no peito, contou-lhes tudo o que tinha acontecido nos últimos
dias. Mais para o fim, deu por si a especular de novo se o veado branco
teria aparecido por Deus saber que ele ansiava por assistir a um milagre.
Uma voz racional dentro de si descartava a ideia, considerando-a ridícula,
mas, como já tinha vivido o suficiente para saber que a esperança e a dúvida
podiam coexistir, ergueu a vista para perscrutar a floresta. Olhou para a
esquerda e para a direita e depois concentrou-se nos sons mais distantes,
mas continuava a não haver mais do que o canto de pássaros e o veado
branco não apareceu. A abanar a cabeça, censurou-se pela sua tolice.
Passado um pouco, levantou-se, com fortes guinadas nos joelhos, nas
ancas e na zona lombar. A sua pele esticava-se dolorosamente a cada
movimento e, enquanto fitava as lápides por mais um momento, sentiu o
peso escuro da solidão a instalar-se, a sufocá-lo.
– Amo-vos e sinto tanto a vossa falta… – disse ele em voz baixa, antes
de voltar para casa.
VII
Sabendo que ainda tinha tempo antes de Charlie dar o dia por acabado,
telefonou para o gabinete do xerife. Disse-lhe que já tinha identificado os
rapazes que vira na floresta.
– Não vou perguntar como ficaste a par das identidades deles, mas tens a
certeza?
– Tenho – respondeu Jasper, antes de recitar os nomes dos rapazes.
Ouviu Charlie soltar uma longa expiração e fazer uma pausa antes de
responder.
– Estás à vontade para vir cá apresentar queixa, mas, mesmo pondo de
parte as questões de jurisdição, não te vai servir de nada.
– Porquê?
O silêncio de Charlie foi significativo. Por fim:
– Sabes tão bem quanto eu.
Realmente, Jasper sabia. Depois de desligar, considerou a situação
enquanto jantava uma sopa de tomate. Como Arlo não era apreciador,
deitou-lhe umas colheradas de Alpo na tigela antes de finalmente levar a
mão às chaves. O cão levantou a cabeça da tigela e lambeu os lábios, como
que a perguntar-se para onde iriam em seguida.
– Desta vez, sou só eu. Tens de ficar.
Deu-lhe uma palmadinha na cabeça e saiu para fazer o breve trajeto de
regresso à cidade. Acabou por virar para uma rua com grandes casarões de
um lado e do outro, ocupadas por famílias cuja fortuna fora passando de
geração em geração. Nos acessos das casas, reparou em Mercedes e BMW,
e até viu um ou outro Bentley. Abrandou ao aproximar-se de uma grande
casa colonial de tijolo, parcialmente ocultada por vegetação luxuriante.
Jasper sabia que era naquela casa que Josh e Eric Littleton viviam; também
tinha sido ali que o pai deles, Clyde, nascera e tinha sido criado, juntamente
com os irmãos, Roger e Vernon.
Sua Excelência, o juiz Roger Littleton.
E Vernon Littleton, advogado do Ministério Público.
Os Littleton tinham uma longa história na área, que remontava a tempos
anteriores à Guerra Civil, tendo feito fortuna com a construção de estradas e
a especulação imobiliária antes de se voltarem para o direito. Continuavam
a ser uma das famílias mais ricas do estado; tanto tempo passado, possuíam
dezenas de milhares de hectares, a maior parte arrendada a agricultores.
Durante toda a sua vida – e bem antes também, Jasper não duvidava –,
sempre houvera um juiz Littleton em Asheboro. O pai e o avô de Roger,
Vernon e Clyde tinham sido juízes; Vernon, por seu lado, era advogado do
Ministério Público há quase três décadas. Com os seus generosos donativos
para as campanhas políticas e os amigos que tinham em cargos importantes,
nem era preciso dizer que os Littleton tinham sido – e continuavam a ser – a
lei do condado.
Contudo, se Roger e Vernon Littleton suscitavam o respeito da
comunidade – ou talvez, por vezes, o medo –, Clyde era meramente
tolerado. Na sua adolescência, um amigo seu morrera de overdose quando
estava na casa dos Littleton, e corriam rumores de que fora Clyde a
fornecer-lhe as drogas. Quando tinha vinte e poucos anos, dizia-se pela
cidade que batera na namorada. Embora nunca tivesse sido oficialmente
acusado de nenhuma dessas coisas, os zunzuns da comunidade tinham sido
suficientes para o levar a deixar a cidade, pelo menos durante algum tempo.
Constava que, em Raleigh, endireitara a vida. Tinha-se tornado empreiteiro
e conhecera uma mulher chamada Anne, com quem acabara por casar.
Tiveram dois filhos e, há catorze anos, quando a memória das suas
transgressões já estava mais dissipada, Clyde e a família tinham voltado
para Asheboro, instalando-se na casa original da família. Um dos seus
primeiros projetos na área fora o empreendimento de casas que Jasper
tentara, em vão, deter.
Clyde também gostava de caçar; ou, melhor dito, desfrutava de um tipo
particular de caça. Para ele, quanto mais exótico o animal, melhor; e Jasper
ouvira dizer que muitas das suas presas tinham sido empalhadas e estavam
expostas pela casa. Matara um leão, um jaguar e uma pantera. Alvejara e
matara um rinoceronte na Namíbia, e viajara até aos Himalaias para matar
um bharal, ou carneiro-azul. Ainda que nem todos os animais que caçara
fossem espécies em risco de extinção, algumas eram, e Clyde era famoso
em certas áreas do mundo da caça graças à sua queda por publicar as suas
façanhas nas redes sociais. Argumentava que fazia as coisas legalmente e
com toda a aprovação dos governos locais, mas Jasper – tal como muitas
outras pessoas – não duvidava que ele por vezes contornava as regras,
subornando os representantes governamentais para que fizessem vista
grossa.
Uns anos antes, uma publicação das redes sociais de Clyde tinha sido
denunciada pelo canal local de notícias. A primeira fotografia mostrava-o a
segurar a cabeça de uma girafa que alvejara na África do Sul; noutra, tinha
nas mãos o coração do animal, e sorria de orelha a orelha. Quando
justificara as suas ações – que a atividade era legal, que a carne era doada
aos habitantes locais, que o macho já era velho –, ativistas pelos direitos dos
animais vindos até da Florida tinham protestado em frente ao escritório
dele, na baixa de Asheboro, com cartazes e gente a entoar palavras de
ordem através de megafones. Contudo, a polícia dispersara discretamente os
manifestantes.
E agora os filhos andavam a bater a floresta onde um veado branco,
outro animal exótico, tinha sido avistado praticamente à porta da sua casa.
Filhos em busca de aprovação paterna? A Jasper, tal parecia óbvio.
À entrada do acesso havia um elaborado portão de ferro forjado. Jasper
carregou na campainha do teclado. Quem respondeu foi uma mulher, que
anunciou tratar-se da residência da família Littleton.
– Gostaria de falar com Anne ou Clyde Littleton.
– Tem uma reunião marcada?
– Não. Mas estou aqui por causa dos filhos deles, o Eric e o Josh. É
importante.
– E quem é o senhor?
Jasper indicou o seu nome e a pessoa do outro lado calou-se. Ficou à
espera de a ouvir de novo, dizendo que nenhum dos Littleton estava em
casa, ou outra desculpa do género. Em vez disso, os portões abriram-se.
Jasper avançou lentamente pelo longo acesso, estacionando atrás de uma
carrinha preta de caixa aberta. Saiu e foi até à porta, lembrando-se quando
estava a chegar de tirar a bandana do bolso e envolver o rosto. Bateu à porta
e depois afastou-se da entrada.
Foi Anne quem abriu a porta. Era uma mulher pequena, de aspeto frágil,
que usava o cabelo preso num carrapito repuxado; ele reconheceu-a das
fotografias que tinha visto nos jornais. Os Littleton eram frequentemente
alvo de notícias pelas suas obras de solidariedade, e a nova ala do hospital
recebera o nome da família.
– Boa noite, Mrs. Littleton – cumprimentou-a Jasper. – Obrigado por
aceder a ver-me.
Os olhos de Anne desviaram-se do rosto dele.
– Disseram-me que tinha algo que ver com os meus filhos?
– Sim, minha senhora.
Atrás dela, Jasper viu Clyde a descer a escadaria imponente até chegar
ao vestíbulo com ladrilhos de mármore. Ao aproximar-se, arqueou as
sobrancelhas, reconhecendo-o.
– Eu lembro-me de si. Espero que não tenha vindo para se queixar do
empreendimento de Neely Ridge.
Jasper abanou a cabeça.
– Não, senhor. Vim por causa dos seus filhos.
Indicaram-lhe que os seguisse para uma biblioteca ao lado do vestíbulo,
com paredes cobertas por estantes que chegavam ao teto. Numa das paredes
estava pendurada a cabeça de uma pantera negra; em frente, encontrava-se
o bharal. Ao lado da lareira estava um urso pardo empalhado, que teria
cerca de três metros de altura. Clyde apontou para uma cadeira que parecia
ser uma antiguidade e Jasper sentou-se. Anne empoleirou-se na beira do
sofá, enquanto o marido se mantinha de pé.
– O que queria dizer-me acerca dos meus filhos? – perguntou Clyde.
Jasper narrou o sucedido no dia anterior e, quando terminou, Anne tinha
as mãos apertadas sobre o colo. Clyde, contudo, estava de mãos na cintura e
perdera a expressão amistosa.
– Vamos lá ver se entendi. Está a dizer que o Josh e o Eric são caçadores
furtivos, acusa o Josh de ter disparado contra o seu cão e ainda afirma que
ele lhe apontou a espingarda?
– Sim, senhor. E exigiu-me dinheiro. E espezinhou-me os míscaros. Foi
exatamente isso que aconteceu.
– Os meus filhos não fariam nenhuma dessas coisas – ripostou Clyde. –
Têm contacto com armas desde que nasceram. Sabem que não se aponta
uma arma a ninguém, nem se dispara contra o animal de estimação de quem
quer que seja. E por que raio haveriam de matar um veado jovem, que nada
vale?
– Segundo creio, andavam à procura do veado branco.
– Isso não justifica que alvejassem outro veado, pois não?
– Eu desconfio que o seu filho estivesse a testar a mira da espingarda –
respondeu Jasper. O que não acrescentou foi que talvez Josh tivesse querido
matar o animal, simplesmente por poder fazê-lo.
– Bom, nesse caso, vamos perguntar-lhes, sim?
Clyde saiu da divisão e chamou os filhos. Quando eles entraram,
trocaram um olhar nervoso antes de fitarem o pai.
– Aqui o Jasper tem estado a contar-nos uma história e tanto – começou
Clyde. – Rapazes, estiveram na Uwharrie ontem de manhã?
– Sim, senhor – disse Josh.
– E posso saber porquê?
– Andámos a bater o terreno – respondeu Josh, com palavras que lhe
saíam com facilidade.
– E viram este homem lá?
– Sim, senhor – disse Josh. – Cruzámo-nos com ele mesmo quando
estávamos a vir embora. Estivemos a falar e, quando tentei ver os
cogumelos que ele tinha estado a recolher, o cão dele atacou-me.
– Este homem – disse Clyde, apontando para Jasper –, também diz que
vocês mataram um veado jovem.
Josh abanou a cabeça.
– Não, senhor. Ele acusou-nos disso, mas nós dissemos-lhe que não
sabíamos nada sobre isso.
– E o cão dele atacou-te?
– Sim, senhor. Do nada. Eu tropecei quando estava a tentar livrar-me do
cão, e foi então que a arma se disparou. Foi um acidente.
– E depois apontaste-lhe a arma? E exigiste que te desse dinheiro? E
destruíste-lhe os míscaros?
– Não, senhor. Quero dizer, acho que não. Como eu disse, tropecei, e o
balde deve ter-se virado quando caí. Estava no chão a tentar soltar-me do
cão, e deve ter sido por isso que os cogumelos ficaram esmagados. E,
quando tentava levantar-me, talvez o cano se tenha virado na direção dele,
mas, se assim foi, foi sem querer. E não, não disparei contra o cão dele, nem
lhe perguntei se tinha dinheiro.
Jasper ouvia-o, espantado com a facilidade com que o rapaz mentia.
Clyde voltou o olhar para Eric.
– Foi assim, filho? Foi isto o que aconteceu?
Eric passou o peso de um pé para o outro, com um ar assustado.
– Sim, senhor.
Clyde assentiu com a cabeça antes de se virar de novo para Jasper.
– Tem alguma coisa a dizer acerca da versão deles?
Jasper correspondeu ao olhar de Clyde. Provérbios 14:5 sempre fora um
dos versículos preferidos do seu pai: A testemunha fiel não mente, a
testemunha falsa profere mentiras.
– Os seus filhos não estão a ser honestos – respondeu.
Anne estremeceu, ao passo que a expressão de Clyde endureceu.
– Os meus filhos não são mentirosos – atirou-lhe. – O que me leva a
perguntar: o que é que você quer, afinal? Veio cá a ver se conseguia
dinheiro?
– Vim porque achei que, como pais, quereriam saber o que os vossos
filhos fizeram, para poderem responsabilizá-los.
Durante algum tempo, ninguém disse nada, até que Clyde levou uma
mão ao queixo, a fingir que procurava alguma memória.
– Tem graça que venha dar-nos conselhos sobre como educarmos os
nossos filhos… parece-me que me lembro de ter ouvido qualquer coisa
acerca de um filho seu. Ele não acabou preso? Algo que ver com um fogo
posto, não foi?
Jasper nada disse, mas Clyde sabia que tinha acertado no alvo.
– Para a próxima, olhe-se ao espelho antes de começar a pôr em causa a
forma como eu educo os meus filhos – acrescentou Clyde. – Quanto às suas
alegações, tenho a certeza de que os meus filhos não fizeram nada de
errado. Mas gostava de saber se quer pedir-lhes desculpa pelo que o seu cão
fez ao meu filho mais velho.
Jasper continuou calado. Passado um pouco, Clyde deu um passo atrás e
indicou o vestíbulo.
– Nesse caso, parece-me melhor que se vá embora. A minha paciência
está por um fio e você não é bem-vindo na minha casa.
E, sem mais, Jasper foi levado à porta.
VIII
D epois de acabar o seu turno n’O Pão Nosso de Cada Dia, Tanner foi à
Oficina de Reparações do Bill. Como só ficava a uns dois quilómetros
e meio, decidiu ir a pé, apesar de uma voluntária, Trudy, se ter oferecido
para o levar. Um pouco de ar fresco haveria de lhe fazer bem, e o dia estava
ameno, o que lhe trazia boas memórias. Uma das coisas de que mais gostara
do tempo que passara em Fort Bragg, na Carolina do Norte, fora o clima –
meses de céu azul e temperaturas perfeitas durante a primavera e o outono.
Devolvendo o telemóvel ao bolso traseiro das calças, fez-se ao caminho,
a um passo que não era nem apressado, nem lento. Horas antes, passara
meia hora ao telefone com uma mulher que trabalhava na Revology. Como
já esperava, ela recomendara vivamente que a empresa fornecesse as peças
necessárias, em vez de a oficina as procurar no mercado. Infelizmente, não
podia fazer promessas quanto ao tempo que isso levaria. Era possível que
houvesse algumas em armazém, enquanto outras teriam de ser
encomendadas. Tanner não ficou encantado por a reparação poder demorar
semanas, mas recordou a si mesmo que ainda era dono do seu tempo, pelo
menos por ora.
Fosse como fosse, Asheboro estava a revelar-se mais interessante do que
o esperado. Ou, melhor, Kaitlyn interessava-lhe de uma forma que poucas
outras mulheres lhe haviam interessado. Na noite anterior, passara quase
uma hora às voltas na cama porque não conseguia parar de pensar nela. De
manhã, assim que abrira os olhos, imagens dela vieram-lhe à mente, e ele
teve a certeza de que queria voltar a vê-la.
Não obstante, a sua decisão de fazer voluntariado no Pão Nosso de Cada
Dia tinha sido complicada. Perguntara-se como o julgaria Kaitlyn ao vê-lo
sem aviso – presunçoso; ou até um pouco sinistro? Ainda assim, decidira
arriscar. Não tinha mentido quando lhe dissera que a filosofia do pai dela o
inspirara e já antes tinha dito a si mesmo que, se intuísse que ela ficava nem
que fosse um pouco incomodada pela sua presença, simplesmente guardaria
distância durante o turno de voluntariado e, depois, deixá-la-ia por
completo.
Porém, era mais fácil dizê-lo do que fazê-lo, mais que não fosse porque a
equipa de voluntários habituais – Trudy, Lisa, Margaret e Linda, entre
outros –, o bombardeou com perguntas assim que chegou. Se ao início as
questões não traíam mais do que uma curiosidade geral, o interesse tornou-
se mais pronunciado ao saberem que fora Kaitlyn quem lhe falara da
organização. Um por um, era como se pequenas lâmpadas se tivessem
acendido por cima das cabeças deles, e começaram a entreolhar-se. Ele
tinha a certeza de que Kaitlyn reparara naqueles olhares assim que chegara.
Tanner tinha-se esquecido de como as cidades pequenas podiam ser
propensas aos mexericos.
Para seu alívio, ela não lhe parecera nem zangada, nem irritada, quando
dera por ele na cozinha. Tinha um ar de ter sido apanhada desprevenida,
isso sim, e, nesse momento, ele apercebeu-se de que devia – no mínimo –
tê-la avisado a tempo, por mensagem de texto. Porque não o teria feito?,
perguntou-se depois.
Porque não queria correr o risco de que ela lhe dissesse para não ir.
Abanou a cabeça, perguntando-se o que lhe teria dado.
Enquanto percorria as ruas tranquilas de Asheboro, recordou a resposta
que ela lhe dera ao convite para jantar. Não fora exatamente um «não», mas
tampouco fora um «sim». Ele compreendia a relutância, mas, apesar disso,
não conseguia parar de pensar em Kaitlyn, de recordar a sua beleza
impressionante ou a profunda amabilidade que ela irradiava. Ou que tinha
um sorriso tão genuíno e luminoso que se tornava difícil imaginar que
alguma vez derramasse uma lágrima. Era evidente que era uma mãe
espetacular – observar as suas interações com Mitch deixava isso bem claro
– e Tanner regressou à primeira impressão que tivera dela, no alpendre da
casa na noite do acidente. Ela tem uma história para contar, lembrava-se de
ter pensado, e reconheceu que os últimos dias só lhe tinham aguçado a
vontade de ficar a saber ainda mais sobre isso.
II
IV
Na manhã seguinte, Tanner foi fazer a sua corrida e parou no lóbi do
hotel para tomar o pequeno-almoço antes de voltar ao quarto, tomar um
duche e mudar de roupa. Chegou à biblioteca pouco depois de esta abrir, e a
bibliotecária que se encontrava na receção tornou a recuperar a velha lista
telefónica. Tal como tinha feito antes, Tanner cruzou os nomes com as
páginas brancas mais recentes que ia vendo no seu telemóvel. Depois,
anotou as moradas e marcou-as no seu mapa. Ocorrendo-lhe que alguém
poderia ter vivido em Asheboro, deixado o lugar durante algum tempo e
voltado mais tarde – ou conhecido algum membro da família que o tivesse
feito –, decidiu acrescentar todos os Johnson das páginas brancas mais
recentes à sua lista e, mais uma vez, marcou as moradas no mapa. Quando
terminou, tinha mais de noventa paragens na sua lista, e antes do meio-dia
já estava de saída.
Decidiu começar pelo lado ocidental da cidade. Havia muitos Johnson
nessa área e, tendo chegado à primeira casa, aproximou-se da porta e bateu.
Apesar de não estar ninguém em casa, uma vizinha aparecera pouco depois
de o seu carro parar no acesso. Era uma senhora de idade, vestida para
jardinar. Tanner disse-lhe quem procurava, mas a mulher abanou a cabeça.
– O Henry e a Ethel têm filhas, não filhos – disse-lhe. – Foram daqui
para Fayetteville em 1990.
Isso teria sido onze ou doze anos mais tarde do que o que ele procurava.
– Tem a certeza em relação à data?
– Tenho – disse ela –, porque nós tínhamos acabado de nos mudar para
cá, um mês antes. Lembro-me de lhe levar a minha famosa tarte de pêssego.
Ficou em terceiro lugar na Feira Estadual da Carolina do Norte.
Embora ele estivesse desejoso de passar para a casa seguinte, a vizinha
continuava a falar. Depois de lhe descrever a tarte de pêssego e de revelar o
seu segredo – uma pitada de noz-moscada –, começou a fazer perguntas
acerca dele, para poder dizer a Henry e a Ethel quem tinha passado por ali.
Ele deu-lhe a entender que o homem que procurava fora um amigo que
conhecera no exército, o que a levou a nova ronda de perguntas, já que
Henry também havia sido do exército. Tal como Tanner, tinha estado
destacado em Fort Bragg.
Foram precisos quase vinte minutos para Tanner conseguir escapulir-se,
mas, na segunda casa, teve mais sorte. Ou mais azar. Os Johnson tinham-se
mudado dali três meses antes, e os novos proprietários não tinham qualquer
informação que pudessem partilhar.
Tanner foi a outras três casas, sem ter sorte alguma, antes de parar para
uma merenda tardia no Kickback Jack’s. Pediu uma salada e estava a
espetar o garfo na alface quando o seu telemóvel vibrou com uma
mensagem de texto. Kaitlyn. No ecrã, viu apenas a primeira parte:
Ele hesitou, a pensar: Pronto, então acho que ficamos por aqui. Depois
abriu o resto da mensagem:
… tomasse conta do Mitch. Mas ela sugeriu que o Tanner viesse jantar
connosco na quarta à noite. Disse que queria voltar a agradecer-lhe por a
ter trazido a casa depois do acidente. Por si pode ser? Digamos, por volta
das seis e meia?
Tanner arqueou uma sobrancelha, ciente de que Casey não fizera tal
sugestão por querer voltar a agradecer-lhe. O que queria era fazer de pau de
cabeleira, para poder formar a sua própria opinião acerca da mãe e do
desconhecido que não tardaria a deixar a cidade de novo. Digitou uma
mensagem rápida.
VI
VII
VIII
J asper viu o veado branco, ainda que não da forma que desejava. Foi no
noticiário da manhã, algo a que era raro assistir. Há muito que se fartara
da televisão, mas, fosse por que motivo fosse, sentira uma vontade inegável
de ligar o aparelho pouco depois de ter acordado na terça de manhã.
Viu a fotografia desfocada tirada na Estrada Panorâmica antes de o
segmento passar para um vídeo que um caminheiro supostamente filmara
no dia anterior. Com cerca de dez segundos de duração, mostrava o veado
branco perto de um afloramento rochoso e parecendo estar a olhar para a
câmara, com a cabeça bem erguida. Por causa da vegetação em redor – e
porque o vídeo estava tremido – era difícil distinguir-lhe a armação, ou
sequer o tamanho, e pouco depois o animal virava-se e começava a afastar-
se, até desaparecer na floresta. Os apresentadores, praticamente a vibrar de
emoção no programa matinal, comentaram que o vídeo já se tinha tornado
viral.
Jasper não sabia ao certo o que queria dizer viral, apenas que não devia
ser coisa boa. Calculou que implicasse que mais gente iria inteirar-se da
existência do veado branco, o que poderia atrair ainda mais caçadores
furtivos para a área.
Desligou o televisor e ponderou o que fazer em seguida. Tentar salvar o
veado implicava encontrá-lo primeiro e, felizmente, o animal fora avistado
em dois sítios. O mais importante era que ele tinha reconhecido a área onde
o filme fora gravado. Havia um afloramento rochoso único ao fundo;
décadas antes, os seus filhos costumavam trepar por aqueles rochedos nas
suas caminhadas de fim de semana. Até tinham feito alguns piqueniques ali
perto.
Indo até à cozinha, Jasper abriu uma das gavetas, onde guardava os
mapas. A maioria estava velha e desatualizada, mas, perto do fundo,
encontrou o que queria. Era um mapa do condado, que representava a
cidade de Asheboro e partes da Floresta Nacional Uwharrie.
À mesa, usou uma caneta para marcar o sítio onde fora tirada a
fotografia da Estrada Panorâmica; outra marca, perto dos rochedos,
indicava o vídeo. Calculou que entre os dois locais haveria uma distância de
cerca de três quilómetros e desenhou uma oval a delimitar o espaço. Seria
aquele, presumia ele, o território que o veado branco percorria, o que lhe
parecia fazer sentido. Sabia que havia comida e água naquela área e, como
Charlie dissera, o mais provável era que o veado continuasse ali até as
reservas de comida se acabarem, ou até se sentir ameaçado.
Desconfiava que caçadores furtivos astutos também seriam capazes de
estimar o território por onde o veado andaria. Qualquer um poderia marcar
locais e desenhar uma oval num mapa, mesmo que não conhecesse a
localização dos rochedos. Os veados tendiam a não se afastar muito do local
onde se sentiam seguros, pelo que bastaria desenhar um círculo a partir da
fotografia da Estrada Panorâmica. Por outro lado, uma coisa era encontrar e
matar o veado; outra, completamente diferente, seria transportar uma
carcaça pesada desde a floresta sem se ser descoberto, para o que seria
preciso terem acesso aos seus veículos. Quem o fizesse teria de conhecer as
estradas que permitiam entrar e sair da floresta e prever quão movimentadas
poderiam estar em vários momentos do dia; também teria de encontrar ou
criar os seus próprios trilhos para chegar mais perto do local por onde o
veado andaria. Precisaria de saber as localizações de acampamentos e dos
postos dos guarda-florestais, mais que não fosse para os evitar, já para não
falar de se manter fora da vista de caminheiros e outra malta que aparecesse
nos seus jipes, fugindo à rota das estradas. Há anos que Jasper não conduzia
pela floresta e, como suspeitava de que haveria mais estradas e caminhos do
que antigamente, o seu primeiro passo foi calcular como poderia um
caçador furtivo aproximar-se do território do veado e depois sair da floresta
sem ser apanhado.
Antes de se debruçar sobre isso, Jasper preparou uma cafeteira e fez uma
sanduíche de ovo para o pequeno-almoço. O ovo ficou um pouco queimado,
mas na verdade ele nunca tinha sido muito bom a cozinhar. Essa sempre
fora a paixão de Audrey, coisa que demonstrava nos pratos que costumava
levar-lhe antes de ter ido para a faculdade.
Quando ela partira para Sweet Briar, as poupanças de Jasper estavam
quase esgotadas. Tinha dezoito anos e, a precisar de um emprego, arranjou
trabalho com um empreiteiro chamado Ned Taylor, que era diferente de
Stope em praticamente todos os sentidos. Idoso e obeso, com uma melena
indómita de cabelo branco, nunca parava de fumar o seu cachimbo de
espiga de milho quando se encontrava no estaleiro das obras. O mais
gratificante era que, logo desde o início, não se coibia de elogiar a
qualidade do trabalho de Jasper.
Contudo, mal se tinha instalado no novo emprego quando a sua vida
tornou a virar-se de pernas para o ar. Em setembro, apenas um mês depois
de Audrey ter partido, o furacão Helene provocou chuvas torrenciais e o
nível das águas de um ribeiro próximo em Asheboro subiu perigosamente.
Felizmente – ou infelizmente, consoante a perspetiva –, Jasper estava na sua
casa na cidade e não na cabana, quando a inundação começou. Avançou por
água que não tardou a chegar-lhe à cintura, recolhendo fotografias do lintel
da lareira, a Bíblia do pai e o máximo das figuras de madeira que tinham
talhado juntos que conseguia carregar, levando tudo para a carrinha, que
deixara estacionada num ponto mais alto, por segurança. Enquanto a
tempestade continuava, um pinheiro taeda no quintal partiu-se e tombou
sobre o telhado. Dias depois, quando as águas finalmente recuaram e o
tempo quente voltou, começaram a crescer fungos nas paredes e nos
pavimentos, destruindo praticamente tudo o que a tempestade não arrasara
na casa.
À semelhança dos vizinhos e de outros na cidade, Jasper contactou a
companhia de seguros. Não estava preocupado. Tal como fizera com as
outras contas, tinha continuado a pagar as apólices depois de o pai falecer,
mas, quando finalmente se reuniu com o gestor da seguradora, ficou a saber
que essa apólice tinha uma cláusula escondida que excluía danos causados
por inundações. O gestor indicou-lhe a secção e leu as palavras em voz alta,
enfatizando a questão. Contudo, a companhia pagaria o arranjo do telhado.
O gestor fez deslizar um cheque pelo tampo da mesa. Não era grande
coisa e de forma alguma chegaria para reparar a casa. No silêncio que se
seguiu, Jasper ouviu a voz do pai: «Tiago 1:12.» Feliz o homem que resiste
à tentação.
Depositou o cheque, mudou-se para a cabana e continuou a trabalhar
para Ned. Ao final do dia e aos fins de semana, ia retirando móveis
encharcados e bolorentos da casa de Asheboro. Desmanchou o telhado,
arrancou o pavimento, desfez as paredes de gesso cartonado e tirou toda a
cablagem elétrica. Carregou o entulho para a lixeira. No final, só restavam o
esqueleto da construção e a canalização, e ele vendeu a propriedade a outro
empreiteiro, alguém que Ned conhecia há anos. Esse cheque também foi
para as poupanças.
Em novembro, Ned pediu-lhe que fosse a Charlotte buscar uma banheira
cuja entrega estava atrasada. Nos arredores da cidade, ele reparou em dois
novos empreendimentos, um ao lado do outro, com dúzias de casas já
construídas e outras ainda em andamento. Os empreiteiros independentes
como Ned iam dando lentamente lugar a companhias que construíam
centenas de casas de cada vez, e, sem o ter planeado, Jasper decidiu dar
uma volta por um desses bairros. Deu por si pasmado pela proeza
organizacional requerida por tais empreendimentos, embora tivesse a
certeza de que nunca quereria viver num sítio assim. Havia uma sensação
de quase desolação, mesmo nas ruas que tinham casas já acabadas. A fitar
as filas de casas sem vida, todas iguais, apercebeu-se de súbito de que o que
tornaria o bairro mais convidativo seriam árvores. Não os rebentos
esqueléticos que tinham sido plantados ao acaso pelos novos proprietários,
mas árvores belas e folhosas que crescessem rapidamente.
A ideia não o largava e, à medida que mais empreendimentos foram
sendo construídos ao longo do ano seguinte, ele continuou a percorrê-los,
cada vez mais convencido de que tinha razão. No início de 1960, foi à
biblioteca local em busca da árvore ideal, mas nada encontrou; na biblioteca
de Raleigh também não, embora a senhora da receção lhe tivesse
recomendado que visitasse a faculdade de agricultura da Universidade
Estadual da Carolina do Norte. Foi preciso tempo e persistência para
conseguir uma reunião, mas o professor de lá – o mesmo que mais tarde lhe
explicaria como cultivar míscaros – falou-lhe de uma árvore que o
Departamento de Agricultura dos EUA estava a pensar introduzir
formalmente no país.
O professor partilhou fotografias e informação com ele, e Jasper
assimilou tudo o que ele lhe disse. Originalmente da Coreia e da China, a
árvore crescia rapidamente, dava flores brancas na primavera, tinha uma
encantadora forma piramidal e exibia cores garridas no outono. O nome
científico era Pyrus calleryana; o Departamento de Agricultura dos EUA
planeava chamar-lhe pereira de Bradford, embora não fosse dar quaisquer
frutos comestíveis. O professor acrescentou que poucas pessoas – para além
das universidades de pesquisa agrícola e do Departamento de Agricultura –
pareciam interessadas na árvore naquele momento, mas que previa que o
mercado acabaria por ser substancial.
Jasper colaborou com o Horto Garner para obter as sementes
desconhecidas da Coreia; Mack Garner combatera na Guerra da Coreia e a
sua mulher era de Seul. Com o dinheiro do seguro e o lucro da venda da
casa, arrendou um terreno barato a uns trinta quilómetros da cidade e
comprou fertilizante. Tirou uma semana do trabalho, lavrou e fertilizou o
terreno e plantou sementes suficientes para cinco mil árvores. Regava-as à
mão ao final do dia, depois do trabalho, bem como ao fim de semana, e,
para grande surpresa de todos, sobretudo de Jasper, as sementes
germinaram e os rebentos apareceram quase de imediato.
Mostrou a Audrey o que andava a fazer quando ela foi passar o verão a
casa. Nos últimos anos, a seus olhos ela tornara-se ainda mais bonita, e
continuavam a ver-se sempre que ela estava em casa. Davam longos
passeios e partilhavam refrescos de chocolate, e ela entretinha-o com
histórias sobre as suas aulas, os professores ou os amigos que tinha feito.
Por vezes, quando ele se perguntava em voz alta se ela quereria deixar a sua
antiga vida – e deixá-lo a ele –, ela ria-se e dizia que isso era um disparate.
Ele dizia-lhe com frequência que a amava e ela dizia-lhe o mesmo; contudo,
quando se despediu dela em agosto pela terceira vez, os pais miravam-no
com as mesmas expressões austeras a que ele se habituara havia muito.
Entretanto, ele tinha continuado a trabalhar para Ned, para além de
arrendar ainda mais terra. Plantou dezenas de milhares de árvores. Mostrou
aos pais de Audrey o que andava a fazer. Isso não mudou a opinião que
tinham dele – ainda não havia vendas, nem sequer um mercado para
comercializar as árvores –, mas gostava de pensar que a expressão da mãe
dela parecia menos crispada depois disso, ainda que a sua reprovação
continuasse evidente.
Quando Audrey terminou o curso, em maio de 1962, não estava
preparada para começar a ensinar. A seu ver, passara muito tempo na escola
e precisava de fazer uma pausa, pelo que foi trabalhar para a loja de roupa
da mãe. Jasper ficou encantado pelo seu regresso a Asheboro, e o casal
retomou a relação como se nunca tivesse estado separado. Então, na
primavera de 1963, o Departamento de Agricultura dos EUA apresentou
formalmente a pereira de Bradford ao mercado norte-americano. Por essa
altura, com as árvores a prosperar, o plantio do primeiro ano já tinha
crescido o suficiente para ser vendido. Jasper deixou de trabalhar para Ned,
dedicando-se às árvores a tempo inteiro. Desenterrou-as – embrulhando a
terra à volta das raízes em serapilheira –, deitou-as na sua carrinha e
começou a encontrar-se com construtoras em Charlotte, Greensboro e
Winston-Salem. O seu argumento de venda era simples; mostrava-lhes a
informação do Departamento de Agricultura, mantinha os preços razoáveis
e oferecia-se para colocar as árvores nos jardins da frente e das traseiras dos
empreendimentos, para que pudessem ver o valor estético que lhes
confeririam. Também visitava viveiros e – dado que tinha basicamente o
monopólio da árvore –, não tardou a começar a receber muitas encomendas.
Não só vendeu tudo o que plantara no primeiro ano, mas também grande
parte do ano seguinte.
A nadar em dinheiro pela primeira vez na vida, foi até casa de Audrey.
Mais uma vez, pediu para falar com o pai dela; mais uma vez, tinha a
aliança da mãe no bolso. Desta feita, o pai acedeu, e ele pediu a jovem em
casamento dois dias depois.
Casaram em outubro de 1963 e passaram a lua de mel em Sullivan’s
Island, tal como ela sempre quisera. Ela mudou-se para a cabana e, embora
tivesse engravidado ao fim de um mês, fazia questão de que a casa fosse
deles, não apenas dele. Comprou mobília nova, costurou cortinas e colocou
tapetes na sala e nos quartos. Comprou tachos, panelas e pratos e utensílios
a combinar. Preparou o quarto do bebé na divisão que em tempos fora o
quarto de Jasper e, sempre que cozinhava, a cabana enchia-se de aromas
deliciosos. Faziam amor quase todas as noites e, para o Natal daquele ano, o
presente que ele lhe ofereceu foi construir e instalar as prateleiras que ela
queria, pois sabia que isso a deixaria feliz. Também lhe mostrou um esboço
da planta de uma linda casa branca com alpendre e uma cozinha
suficientemente grande para que toda a família se reunisse ali. Como sabia
que ela queria ter pelo menos quatro filhos, enchera o primeiro andar de
quartos e casas de banho. Ao inspecionar a planta, os olhos dela marejaram-
se com lágrimas de felicidade.
Ele deu início à construção no ano seguinte, depois de Audrey ter dado à
luz o primeiro filho do casal e depois de mais uma colheita fantástica de
pereiras de Bradford.
II
III
IV
VI
VII
Arlo gemeu, trazendo Jasper de volta ao presente. Este fez uma série de
inspirações profundas, preparando-se, e, devagar, virou-se de lado. As suas
costas contraíram-se, mas, felizmente, não tiveram espasmo algum; o
joelho, contudo, provocou-lhe um esgar. Não sabia quanto tempo se teria
passado, nem quanto lhe restava – apenas que não seria muito. A alvorada
não tardaria e os Littleton, com ou sem Melton, estariam quase a chegar.
Não tinha a certeza de ser capaz de se levantar, quanto mais de chegar à
carrinha. Mas sabia que não podia ficar perto da árvore caída. Olhando em
redor, em busca de um lugar onde pudesse esconder-se, lembrou-se da crista
e dos rochedos do lado oriental da clareira. Isso ia ter de servir.
Levanta-te, disse a si mesmo.
Só que não conseguia. O esforço para se levantar contraiu-lhe as costas
de novo e ele concluiu que precisava de apoio, algo a que se agarrar.
Ou, melhor ainda, uma maca, com três ou quatro homens fortes que a
carregassem.
Sorriu com a sua própria piada, até que o joelho começou de novo a
latejar, o que lhe causou um esgar. Observando o espaço em redor, acabou
por encontrar uma árvore pequena. Avançou nessa direção, arrastando a
perna magoada. Na sua visão periférica, viu Arlo a fitá-lo de cabeça
inclinada, como que a perguntar-se que tipo de jogo seria aquele.
Rangeu os dentes e avançou mais um pouco. Recordou a si mesmo que,
em tempos, se movimentara por uma casa inundada; que, em tempos,
correra para um inferno. Conteve a respiração, percorreu mais uns quantos
centímetros e repousou, tentando manter os músculos das costas
descontraídos. Depois, repetiu tudo outra vez. E outra. E outra.
Por fim, chegou à pequena árvore e começou lentamente a endireitar-se.
As costas e o joelho pareciam gritar-lhe, mas permitiram-lhe levantar-se.
Nesse instante, viu um pontinho de luz ao longe e ouviu um motor.
Estão quase aqui.
O que fariam se o encontrassem? Se soubessem que os denunciaria como
caçadores furtivos? Se soubessem que tinha recolhido o milho e despejado
repelente de veado na área, e que usara aqueles aparelhos ultrassónicos para
afugentar o veado branco?
Visualizou o arroubo de raiva de Josh ao levantar a espingarda para
matar Arlo… recordou a facilidade com que o rapaz apontara a arma na sua
direção. Tornou a ver o sorriso falso, que pretendia disfarçar o facto de as
emoções humanas lhe serem alheias…
Josh não o mataria, pois não?
Claro que não.
Pela primeira vez, apercebeu-se de que estava assustado. Fora uma
insensatez ter feito tudo aquilo, uma estupidez ter acreditado que lhe
competia manter o macho branco a salvo. Não queria pôr a ira de Josh à
prova. Rangendo os dentes, coxeou uma vez, e outra, indo lenta e
dolorosamente até ao ancinho, à lanterna e ao saco de milho. Perguntava-se
se conseguiria baixar-se o suficiente para os recuperar sem que as suas
costas tornassem a contrair-se num espasmo.
Lançando um olhar para o lado norte da floresta, viu mais um pontinho
de luz, sem dúvida uma lanterna a percorrer a escuridão.
Já estavam mais perto.
E ele sabia que, dali a nada, Josh iria ficar muito, muito zangado.
CAPÍTULO OITO
– U auum–beijo
anunciou Casey assim que Kaitlyn saiu do quarto. – Aquilo foi
e tanto. Acho que nunca me beijaram assim.
Kaitlyn estacou no corredor.
– Estavas a ver-nos?
– Da janela do meu quarto…
Ela sentiu o pescoço a aquecer.
– Não deves pôr-te a espiar, Casey. E quanto ao que viste, talvez seja
melhor explicar…
A filha acenou com uma mão, interrompendo-a.
– Não tem importância, mãe. Eu gosto dele.
Kaitlyn abriu a boca para dizer algo, mas não lhe ocorria o que quer que
fosse.
– Só tens de me dizer – acrescentou Casey.
– Dizer-te o quê?
– Quando é que precisas que tome conta do Mitch – respondeu ela, de
súbito a parecer que a mãe era ela. – Desde que não seja na sexta, estou
livre.
II
Depois de tomar banho, Kaitlyn colocou-se em frente ao espelho, nua, e
observou o seu reflexo. Tinha algumas rugas ténues na testa e pés de
galinha nos cantos dos olhos; também reparou nuns quantos cabelos
grisalhos onde a cor se fora desvanecendo desde a última vez que arranjara
o cabelo.
E o resto…
A gravidez e a amamentação não tinham sido benévolas com o seu
corpo. O mesmo se podia dizer da gravidade. Os seios, outrora firmes,
pareciam descaídos agora, e os quilos a mais que tinha na cintura eram
demasiado evidentes. As ancas também estavam mais largas e, embora lhe
agradasse pensar que as pernas ainda tinham bom aspeto, sabia que não era
a jovem que fora em tempos.
Não obstante, Tanner dissera que a achava linda.
Embrulhou-se numa toalha, secou o cabelo e espalhou creme na cara
antes de apagar a luz da casa de banho. Recordando as sensações do beijo,
sentiu uma pontada de excitação só de pensar que tornariam a encontrar-se
no dia seguinte. Dependendo de como contasse as vezes em que estiveram
juntos, este seria uma espécie de terceiro encontro e, como toda a gente
sabia, o terceiro encontro muitas vezes era… significativo. Ou seja, poderia
haver intimidade física.
Não era ingénua, nem moralista no que dizia respeito a sexo. Ao mesmo
tempo, já se tinham passado cinco anos desde que fora para a cama com
alguém e, nos catorze anos anteriores, esse alguém fora George e apenas
George. Em resumo, tinham-se passado quase duas décadas desde que
tivera relações com alguém novo, e saber isso deixava-a estranhamente
nervosa. Para mais, sabia que as possibilidades de ter um futuro com Tanner
eram mínimas, por isso, como ficaria a sentir-se depois?
Assoberbada pela expectativa e pela incerteza, deu por si a meter-se nua
na cama de novo.
III
De manhã, Kaitlyn disse à filha que ia sair com Tanner naquela noite.
Mal tinha proferido as palavras quando Casey respondeu: «Sim, sem
problema», como se fosse habitual aceitar de bom grado os pedidos que a
mãe lhe fazia para tomar conta do irmão. Para alívio de Kaitlyn, a filha não
a interrogou mais, limitando-se a declarar em seguida que ia a casa de
Camille por volta das dez, para poderem ir ao centro comercial de
Greensboro.
– Mas estou em casa quando o Mitch sair do autocarro escolar –
acrescentou.
No consultório, Kaitlyn sentiu-se agradecida pela sua rotina estável e
pelo fluxo regular de pacientes. Enquanto discutia um diagnóstico ou
opções de tratamento, podia evitar pensar em Tanner, mas às dez e meia
recebeu uma mensagem de texto dele, a perguntar se podia ir buscá-la às
seis. Como não sabia se isso lhe daria tempo suficiente para se preparar,
sugeriu seis e meia e, enquanto esperava que ele respondesse, perguntou-se
se ele estaria a pensar naquela coisa do terceiro encontro, ou se só as
mulheres fariam isso. Um momento depois, ele concordou com as seis e
meia com um alegre Até logo!, e ela tornou a sentir uma agitação já familiar
no estômago.
As consultas da tarde foram-se atrasando e já tinha começado a chover
quando Kaitlyn saiu do consultório, o que tornou o regresso a casa mais
demorado do que era habitual. Ao entrar no acesso da casa, reparou que lhe
restava menos de uma hora para se arranjar.
Lá dentro, Casey e Mitch estavam no sofá, a assistir de novo a um dos
filmes do Parque Jurássico.
– Podemos jantar piza? – perguntou Mitch, sem desviar o olhar.
– Então, nada de, «Olá, mãe! Como foi o teu dia?».
– Olá, mãe! Como foi o teu dia? Podemos jantar piza?
– Sim, está bem. – Ela assentiu com a cabeça e descalçou os sapatos
molhados. – Tenho quase a certeza de que tenho dinheiro na carteira.
Casey lançou-lhe um olhar de relance.
– Porque não pedes pelo DoorDash?
Porque, pensou Kaitlyn, ainda penso primeiro em fazer as coisas à
moda antiga.
– Podemos fazer isso – respondeu. – Lembrem-me só antes de eu sair.
Levantando-se do sofá, Casey aproximou-se e arqueou uma sobrancelha
com uma expressão sugestiva.
– Então… – disse ela, arrastando a palavra –, como é que te sentes em
relação ao grande encontro, mãe?
Kaitlyn replicou numa voz descomprometida:
– É só um jantar.
– Não estás nervosa?
Estou.
– De todo.
– Posso perguntar a que horas estás a pensar chegar?
– Não sei ao certo, mas não há de ser muito tarde – respondeu, tentando
parecer descontraída.
– Bem – disse Casey –, só não te esqueças de me avisar se alguma coisa
mudar, OK?
Kaitlyn inspirou profundamente, a pensar: Realmente não estou em
condições de lidar com isto agora.
IV
O que vestir.
Era sempre essa a questão quando se saía com alguém, não era?
Sobretudo porque não sabia onde ele a levaria. Não queria ir demasiado
bem-vestida, para o caso de ele estar a planear algo descontraído, mas
tampouco queria ir demasiado informal, não fosse ele aparecer de blazer. Já
tinha usado calças de ganga das vezes anteriores, o que fazia com que um
vestido parecesse a escolha lógica, mas os vestidos que tinha eram quase
todos demasiado formais ou demasiado estivais. Acabou por se decidir por
um vestido verde-água que lhe dava pelo joelho e tinha manga japonesa,
algo que Casey descreveria certamente como um «vestido de mãe». Mas
que importava isso? Kaitlyn era mãe e não tinha muitas outras opções.
Comprara-o oito anos antes para um casamento, quando Mitch era ainda
bebé, e lembrava-se de que várias pessoas lho tinham elogiado. A questão
que se punha era se ainda lhe serviria. Depois de se despir, meteu-se no
vestido e puxou-o para cima, mas, como não conseguia chegar ao fecho, foi
até às escadas e chamou a filha.
– Precisas de alguma coisa? – perguntou Casey, aparecendo no patamar
do primeiro andar.
– Podes fechar-me isto?
– É isso que vais usar?
Kaitlyn sentiu o olhar de Casey a percorrê-la de cima a baixo enquanto
continuava a subir as escadas.
– Desde que me sirva – respondeu, fazendo questão de não olhar para o
nariz da filha, que provavelmente estaria torcido com desdém.
Um momento depois, sentiu o fecho a subir e, ato contínuo, tentou
encolher a barriga.
– É capaz de estar um pouco apertado – murmurou.
– Para de te remexer – ralhou Casey.
Kaitlyn tinha a impressão de estar a ser enfiada no seu próprio casulo até
que – milagrosamente – o vestido se fechou por completo.
Uau, pensou ela. Serve-me.
Pôs-se em frente ao espelho de corpo inteiro, atrás da porta do quarto, a
pensar que lhe ficava um pouco justo nas ancas, mas…
Até gostava de como lhe ficava. Mostrava apenas um pouco as pernas e,
para seu alívio, parecia favorecê-la, enfatizando-lhe a figura em forma de
ampulheta.
– Não me lembro de te ver com esse vestido, é novo? – perguntou Casey.
– Não, querida. Já o tenho há bastante tempo.
– É bonito – comentou a filha. – Mas, já que estou aqui, tenho uma
sugestão.
– O que é?
– E se me deixasses ajudar-te com o cabelo e a maquilhagem?
– Qual é o problema da forma como costumo arranjar-me? – Kaitlyn fez
uma careta em frente ao espelho.
Casey levou uma mão à cintura.
– É um bocadinho à Melrose Place, não achas?
– Estás a falar daquela série antiga? Tipo, de há trinta anos?
– Essa mesmo.
– Espanta-me que tenhas sequer ouvido falar.
– Procurei na internet séries antigas de TV e achei que empregar uma
referência da cultura popular que tu entendesses seria uma boa forma de
sugerir que atualizasses o teu aspeto.
– Ainda não tinhas nascido e eu já tratava do meu cabelo e da minha
maquilhagem.
– É o que estou a dizer – replicou Casey.
– Não tenho a menor vontade de parecer uma adolescente.
– Não vais parecer – assegurou-lhe a filha. – Assisti a montes de tutoriais
no YouTube. Confia em mim.
Kaitlyn não sabia ao certo se deveria sentir-se ofendida, mas, por uma
vez, as intenções de Casey pareciam genuínas.
– Está bem – concordou. – Vamos lá ver do que és capaz. Mas, primeiro,
ajuda-me a escolher um bom par de sapatos.
VI
VII
VIII
A última vez que Kaitlyn tinha estado numa limusina fora quando
andava na escola secundária. O pai alugara uma para o seu baile de
finalistas, mas ela deu-se conta de que já não se lembrava do nome do rapaz
com quem tinha ido. Apesar de ainda conseguir ver o cabelo ondulado e
castanho e as covinhas que ele tinha e de se lembrar de que era alto e jogava
basquetebol, tinha uma branca completa em relação ao nome dele.
– Em que estás a pensar?
Na luz ténue do habitáculo, o rosto dele parecia cheio de sombras e
mistério.
– Nada de importante.
Ele levantou a garrafa de champanhe do balde de gelo.
– Queres um copo?
– Adorava.
Observou-o a retirar o papel de alumínio e a soltar os arames antes de se
ouvir o estalido familiar. Ele serviu um copo e, quando lho passou, ela
sentiu o odor terroso da água-de-colónia dele. A chuva deslizava de lado
pelos vidros, o que tornava aquele momento ainda mais surreal.
– Posso perguntar onde vamos jantar?
– É surpresa – esquivou-se ele. – Fica um pouco fora da cidade.
– Temos bons restaurantes aqui.
– Eu sei, mas depois de ver o que aconteceu no Pão Nosso de Cada Dia,
tive dúvidas de que jantar em Asheboro fosse boa ideia. Para o caso de
quereres manter a privacidade.
– Obrigada – disse ela, apreciando a descrição dele.
Ele pegou numa lata que estava no assento.
– Queres algo doce para acompanhar o champanhe?
– Morangos cobertos de chocolate, talvez?
– Melhor ainda.
Ele levantou a tampa da lata e ela demorou um segundo a perceber o que
estava a ver.
– M&M’s?
– M&M’s de amendoim – corrigiu ele.
– Hum – fez ela, intrigada. – Acho que nunca me tinham dado doces de
Halloween num encontro.
– São os meus favoritos.
– E pareceu-te que ficariam bem com champanhe?
– Porque não haveriam de ficar? Há chocolate e amendoim em cada
dentada.
Como que para provar o que dizia, ele levou um à boca. Ela sorriu,
inexplicavelmente encantada.
– Como correu a busca hoje?
– Não correu. Depois daquilo que me disseste, concluí que preciso de
mais algum tempo para considerar as possíveis implicações. E o teu dia,
como foi? Algum caso novo de lepra?
– Não, só o costume. – Reparou que estavam a encaminhar-se para norte,
pela baixa de Asheboro. Pegou num M&M de amendoim e engoliu-o com
um trago de champanhe.
– Isto realmente não é uma má combinação – reconheceu.
– O meu avô mandava-me caixas quando eu estava destacado. Aquela
cena toda do derrete-se na boca, não nas mãos era conveniente no calor do
Médio Oriente, como podes imaginar, mas também era um pequeno toque
de normalidade num lugar onde o normal muitas vezes estava em falta.
Acho que ele, mais ainda do que a minha avó, sabia que eu precisaria de
algo assim.
– Parece ter sido uma pessoa muito compreensiva.
– Era – reconheceu Tanner. Rodopiou o pé do copo. – Mas a sua
compreensão, infelizmente, foi conseguida a pulso.
– O que queres dizer?
– Ele era do Alabama e… mais ou menos como eu, imagino… nunca
conheceu o pai. Vivia com a mãe e umas tias num barracão em ruínas nos
arredores da cidade. A mãe costumava levá-lo para a fábrica de produtos
têxteis em que trabalhava, passados poucos dias depois de ele ter nascido.
– Uma mulher forte. – Kaitlyn abanou a cabeça, impressionada.
– E o filho também era forte – disse ele. – A mãe do meu avô era negra e,
embora ele nunca tenha conhecido o pai, parece que este era branco. E, no
Alabama, no final dos anos quarenta, início dos cinquenta, isso dava direito
a uma infância difícil. Na cidade, não lhe era permitido nadar na piscina da
comunidade, ou comer em certos sítios, tinha de se afastar de algum branco
que quisesse passar no passeio. Também teve de frequentar escolas
segregadas, claro… a dessegregação no Alabama só aconteceu depois de ele
acabar os estudos… mas também não era completamente aceite nessas
escolas. Meteu-se em muitas lutas enquanto crescia e acho que essa foi uma
das razões para ter acabado por se alistar. Queria sair do Alabama. Depois,
algures na década de sessenta, conheceu a minha avó, e nem é preciso dizer
que a família e os amigos dela praticamente cortaram relações com ela
quando eles se apaixonaram e casaram. Passaram-se anos até voltarem a
comunicar com ela. Entretanto, ele foi enviado para o Vietname, cumpriu o
seu dever e depois voltou para os EUA, mas, mesmo nos anos setenta,
montes de pessoas não queriam ser vizinhas de um casal inter-racial. Acho
que foi por isso que eles acabaram por aceitar a transferência para Itália e
por ficar décadas na Europa. E, como se isso não fosse suficiente, a única
filha que tiveram morreu e acabaram a ter de me criar.
– Uau – disse ela, espantada. – Isso é duro, aquilo por que ele passou. –
Hesitou um pouco. – Isso deixou-o…
– Rancoroso? – terminou Tanner por ela. Pareceu pensar um pouco. –
Tenho a certeza de que sentiria algum rancor, no fundo, mas nunca mo
transmitiu. E ainda que possa ser difícil concebê-lo, ele adorava fazer parte
do exército. Contava-me que, depois de ter deixado o Alabama, o exército
se tinha tornado a sua família. Era um patriota e acreditava na promessa do
que a América poderia ser. Mas não disfarçava as dificuldades da sua
infância, lembrando-me com frequência que eu tinha muita sorte por ter
nascido naquela altura, coisa a que eu só dei valor mais tarde. E tinha as
suas regras, claro… no mundo do meu avô, havia o bem e o mal, o certo e o
errado, e não havia nada que eu receasse mais do que desapontá-lo, apesar
de ele nunca me ter batido. – Tanner fitou o copo, pensativo. Kaitlyn ficou
em silêncio, à espera de que ele continuasse. – Eu tive tudo o que precisava
enquanto crescia, nunca senti inveja dos meus amigos ou de outros miúdos
da escola. E ele tratava a minha avó com respeito e carinho, mas era de
poucas palavras. Parecia que a única altura em que se sentia confortável a
falar comigo era quando arranjávamos motores juntos. Só quando me tornei
adulto é que comecei a perguntar-me se ter perdido a filha poderia ter algo
que ver com a distância entre nós. Talvez ele visse a filha… e os erros que
ela tinha cometido… sempre que olhava para mim. Na verdade, não sei.
– Isso alguma vez mudou?
– Um pouco, mais para o final. Ambos se tornaram mais conversadores,
menos reservados em relação ao passado. Mas, por essa altura, já se tinham
reformado e ido morar para Pensacola, e eu só os via umas duas ou três
vezes por ano. À semelhança da minha avó, o meu avô preocupava-se
comigo, sobretudo por eu partir tantas vezes em missões.
– E a tua avó? Como é que ela era?
Tanner esboçou um sorriso melancólico.
– Calorosa, mas tão firme nas suas crenças como o meu avô. E teimosa,
também, como se pode imaginar, dado que desafiou a família e até ameaças
de violência para casar com o meu avô. Tal como ele, ela tinha ideias claras
acerca do certo e do errado, do justo e do injusto. – A expressão dele
animou-se. – Também era algo excêntrica, sobretudo à medida que foi
envelhecendo. Era louca por canários. Deve ter tido uns seis ou sete ao
longo dos anos e, sempre que um dos pássaros começava a cantar, ela
mandava-me calar. «Ouve-o só a cantar o que lhe vai na alma»,
maravilhava-se ela, e, se eu estivesse sentado ao pé dela, dava-me a mão e
obrigava-me a ficar ali a ouvir. Com o passar do tempo, passei a adorar
aqueles momentos.
Kaitlyn lançou um olhar de relance à janela salpicada de chuva, tentando
imaginar um Tanner jovem feito cativo pela avó obstinada. Árvores
escurecidas ladeavam a autoestrada, ocasionalmente contornadas pelas
luzes de alguma quinta isolada. Os relâmpagos iam faiscando como luzes
estroboscópicas. Já se encontravam a norte de Asheboro e, com mais um
gole de champanhe, ela tentou imaginar o horror que os avós dele deveriam
ter sentido ao perderem a única filha. Kaitlyn sabia que nunca voltaria a ser
a mesma se algo acontecesse a Casey ou a Mitch. Tampouco conseguia
imaginar as emoções contraditórias dos avós de Tanner ao terem nos braços
o recém-nascido depois da morte da filha.
Contudo, a história pessoal complicada e fascinante de Tanner parecia
fazer sentido, pensou ela. Também nesse aspeto, ele era diferente de
qualquer homem que ela tivesse conhecido até então.
– Já estás preparado para me dizer onde vamos? – perguntou ela, a
observá-lo por cima do rebordo da flute de champanhe.
– Vamos para Sophia.
Ela inclinou a cabeça, intrigada. Sophia era uma vila pequena, teria umas
cinco ou seis mil pessoas.
– Há algum restaurante em Sophia, sequer?
– Vais ver. Mas, para que saibas, também tenho um plano alternativo.
Para o caso de decidires que queres fazer outra coisa.
– Tens noção de que não faço ideia do que estás a falar, não tens?
Ele esboçou um sorriso conspiratório sem responder e ela olhou de novo
pela janela. A bebericar o champanhe, de certa forma sentia-se mais leve.
Passado algum tempo, a limusina começou a abrandar, antes de sair da
autoestrada. No entanto, em vez de se dirigir para o centro da cidade, o
motorista virou de novo, para uma serpenteante estrada rural, com uma
elevação que ia aumentando a pouco e pouco pelas montanhas baixas da
Uwharrie. Parecia que chovia ainda com mais intensidade e, ao ver outro
relâmpago ao longe, Kaitlyn teve a impressão de que o tempo conspirava
com Tanner para tornar a noite o mais excitante possível.
Havia algo agridoce na natureza necessariamente reduzida do tempo que
passariam juntos, pensou ela. Tanner não tardaria a estar a meio mundo de
distância, mas, se os últimos dias lhe haviam mostrado algo, era que a sua
vida estava incompleta, e que isso já era assim há bastante tempo.
Apercebeu-se de que lhe faltava uma vida com uma ligação – não apenas
romântica ou física, mas com o tipo de espontaneidade e expectativa
partilhada que brotava de uma rede mais alargada de relações. Quanto
tempo se teria passado desde que se esquecera de que a vida era tanto para
ser aproveitada como para cumprir obrigações? Ou, como Casey o dissera,
há quanto tempo se esquecera de como poderia permitir-se ser feliz?
Demasiado tempo, concluiu, custando-lhe lembrar-se sequer da última
vez que se encontrara com amigos. Dado que estes, na maioria, eram casais,
ela dissera a si mesma que não queria fazer de pau de cabeleira. Mas, por
recusar os convites dos outros, aos poucos os convites foram deixando de
chegar. E o resultado era que – para além de um ou outro encontro ranhoso
– as amizades tinham definhado, bem como quaisquer interesses para além
do trabalho e das funções de mãe.
A observar discretamente o perfil impressionante e as pernas compridas
de Tanner, ficou satisfeita por ter decidido juntar-se a ele naquela noite. Pela
primeira vez desde sempre, estava a lançar a cautela às urtigas, e não podia
negar a emoção erótica que sentia ao imaginar o que poderia vir a acontecer
entre eles. Talvez fosse o facto de ele ir partir o que dava àquele encontro
um aliciante tom proibido. Nunca se teria imaginado a embarcar em algo
assim, mas dava por si invulgarmente despreocupada. Porque não?,
perguntava a si mesma.
Tanner parecia adivinhar-lhe os pensamentos, correspondendo-lhe ao
olhar e erguendo o copo. Pouco depois, a limusina começou a abrandar
antes de virar para um acesso estreito entre duas colunas baixas de pedra.
Não havia ali sinal algum de um restaurante, e Kaitlyn semicerrou os olhos
para tentar ver pelo para-brisas. Para além dos limpa-para-brisas em
movimento constante, o acesso ia-se tornando mais íngreme à medida que
curvava. Por fim, o carro alugado de Tanner apareceu, estacionado em
frente a uma enorme casa de montanha. Tratava-se de uma estrutura
imponente de madeira e pedra, com dois grandes alpendres que
contornavam a casa e davam para o que ela calculava que seria um
desfiladeiro. As luzes do interior espelhavam-se por grandes janelas e uma
larga escadaria de laje levava ao que parecia ser a porta principal.
– Uma casa? – perguntou ela, confusa.
– A vista é linda – comentou ele –, mas, infelizmente, estando tão escuro,
não sei quanto conseguiremos ver. E, ao mesmo tempo, se preferires não
passar a noite aqui, fiz uma reserva oficial noutro sítio. Em Greensboro,
num restaurante chamado Undercurrent.
Ela franziu o sobrolho.
– Que motivo teria para ir embora daqui?
– Eu não quis parecer presunçoso – disse ele. – Não me conheces assim
há tanto tempo, e lá dentro seremos só nós os dois.
Ela pensou um pouco.
– O motorista vai ficar aqui, certo?
– Vai ficar aqui à frente o tempo todo.
Ela sorriu, impressionada com o cuidado dele.
– Por mim, tudo bem.
Tanner indicou ao motorista que se apeariam ali e, pouco depois, este
saiu, aproximando-se da porta de trás com um chapéu de chuva. Enquanto
ela saía, Tanner deslizou pelo assento, com o seu próprio chapéu de chuva
na mão.
– Vá andando com a Kaitlyn – disse ele ao motorista. – Eu sigo-vos.
Protegida pelo chapéu de chuva largo, Kaitlyn subiu os degraus até à
entrada, com Tanner poucos passos atrás de si. Então, ele trocou de lugar
com o motorista e, quando ficaram sozinhos, destrancou a porta.
– Faz favor – disse ele, seguindo-a para o vestíbulo.
Kaitlyn pousou a mala na pequena consola mesmo ao lado da porta e
começou a observar lentamente a casa, que era ainda mais imponente do
que parecia vista de fora. O teto abobadado tinha vigas expostas e um lustre
majestoso feito com armações de veado. Outra parede era composta por
janelas que iam do chão ao teto, ao passo que a parede voltada para a porta
era dominada por uma enorme lareira de pedra. O pavimento era de ripas
largas de pinho, com a cor de velhas pipas de vinho, e estava parcialmente
coberto por um tapete branco felpudo; decorados com almofadas coloridas,
sofás e cadeiras de aspeto confortável emolduravam a sala espaçosa. Uns
candeeiros de mesa art déco com campânulas de vidro trabalhado emitiam
uma luz quente.
– Isto é incrível – arquejou ela. – Mas como foi que o conseguiste?
– Entrei em contacto com um agente imobiliário local que conhecia a
dona desta propriedade. Por norma, o prazo mínimo de arrendamento é de
um mês, mas acho que, quando soube que eu estava a planear um encontro
especial, abriu uma exceção – explicou ele. – Depois de eu vir ver a casa,
não consegui resistir, e chegámos a acordo. – Encolheu os olhos. – Não te
importas que cancele a outra reserva para jantar e acenda a lareira?
– Parece-me uma boa ideia.
Distraidamente, ouviu-o fazer o telefonema antes de o ver atravessar a
sala até à lareira. A lenha já estava empilhada lá dentro, com papel e
acendalhas por baixo, e Kaitlyn deambulou até uma cozinha aberta com o
dobro do tamanho da sua e eletrodomésticos reluzentes embutidos nos
armários. Ao lado ficava a sala de jantar formal, com individuais para duas
pessoas e candelabros de cristal. Para lá das janelas da sala de jantar, os
relâmpagos continuavam a surgir, congelando os pormenores arquitetónicos
à sua volta em clarões periódicos. Do outro lado da sala, viu Tanner a atear
o fogo.
– Vais cozinhar para mim? – perguntou.
Ele abanou a cabeça e levantou-se.
– Não. Como não sou grande cozinheiro, encomendei a comida a um
chef do restaurante onde tinha feito a reserva alternativa. Está tudo no
frigorífico, só tenho de o aquecer.
– E posso perguntar o que vamos comer?
– Cogumelos recheados com caranguejo como entrada, salada e bife
Wellington ou frango com mostarda de Dijon. Não sabia qual dos pratos ias
preferir, pelo que lhe pedi que preparasse os dois.
– E não há uma opção de peixe?
Ao ver a expressão desanimada dele, ela riu-se.
– Estou a brincar. Soa tudo maravilhoso. Há algum sítio onde eu possa
pendurar o casaco?
– Eu ajudo-te.
Passando para trás dela, tirou-lhe o casaco, e a sua mão rasou ao de leve
na pele do braço de Kaitlyn provocando-lhe uma sensação elétrica.
Enquanto pendurava o casaco no armário perto da porta principal,
perguntou-lhe:
– Queres um copo de vinho antes do jantar? Tenho tinto e branco.
Porque não?, tornou ela a pensar, a sentir uma excitação oculta.
– Experimentemos o tinto.
Kaitlyn avançou para as janelas da sala de estar. O céu continuava a
relampejar, revelando por instantes as montanhas cobertas de árvores para
lá do desfiladeiro escurecido, como que em alto contraste. Ela não via
outras casas, nem quaisquer outras luzes, o que a fazia sentir como se eles
os dois fossem as últimas pessoas à face da Terra. Atrás de si, ouviu Tanner
a aproximar-se.
– Foi o chef que escolheu o vinho – disse ele, oferecendo-lhe um copo.
Ele ficou ao lado dela, perto, mas não tanto que se tocassem. Ela ouviu
um estalido e, pelo canto do olho, viu fagulhas a saltar da lareira. Ao provar
o vinho, este deixou-lhe notas de cereja e violeta na boca.
– Hum. Delicioso.
– Queres que comece a aquecer o jantar? Ou preferes esperar um pouco?
– Pode esperar uns minutos, não achas? Vamos desfrutar da lareira e da
tempestade durante algum tempo.
Sentaram-se no sofá, voltados para a lareira, e Tanner tirou o iPhone do
bolso, para programar descontraidamente algo numa aplicação. Pouco
depois, ela ouviu música a sair das colunas.
Durante algum tempo, nenhum deles disse o que quer que fosse. Em vez
disso, saborearam o vinho e observaram absortamente as chamas na lareira.
Lá fora, a tempestade começou a intensificar-se, com a chuva a formar
pequenos veios nas vidraças. Depois de um clarão de luz, Kaitlyn ouviu um
trovão bem forte. Sentia Tanner a observá-la sub-repticiamente, o que a fez
sorrir.
– Isto é quase como estar de férias – murmurou ela. – A minha vida real
não me deixa ter noites assim.
– Mas aprovas?
– É um sonho – disse ela, num tom quase reverente. Olhando para ele,
via o fogo refletido nas brasas douradas dos olhos dele.
Fascinada, sentiu Tanner a levar a mão à sua.
No outro lado da sala, ouviu o toque distante de um telemóvel. Tanner
franziu o sobrolho por causa da distração e só quando tornou a tocar é que
Kaitlyn se apercebeu de que o som vinha de perto da porta, onde ela tinha
deixado a mala.
Casey.
– Acho que é o teu telemóvel – disse Tanner.
Ela fingiu-se confusa e pousou o copo de vinho na mesa de centro antes
de se levantar do sofá. Foi rapidamente até ao vestíbulo e pegou no
telemóvel, tentando recuperar a compostura enquanto atendia a chamada.
– Entããão… Como é que isso vai? – A voz de Casey soava cúmplice do
outro lado. Estava claramente a desfrutar da tarefa de que fora incumbida.
– Ah, olá, Casey – disse Kaitlyn, obrigando-se a soar o mais
descontraída possível. – Que se passa?
Lançou um olhar a Tanner, como que a pedir-lhe desculpa, certa de que
ele ouvira o nome da filha.
– Queres que te diga que o Mitch está doente?
Kaitlyn hesitou, sabendo que era a sua última oportunidade para travar a
coisa antes que esta ganhasse ímpeto próprio; nesse mesmo instante, tornou
a dar-se conta de que estava preparada. Queria correr mais riscos; queria
sentir-se atraente e desejada. Vendo Tanner diante da lareira, soube que o
queria, e que ele a queria a si.
– Estou bem – respondeu.
– Tens a certeza? – insistiu Casey. – Porque pela tua voz parece que estás
a ficar sem pé.
– Sim, tenho a certeza.
Casey nada disse por um instante.
– Bem, então está bem. Confio em ti, mas tens de me dar uma razão para
ter ligado. Finge que estou a fazer bolachas e que preciso de saber onde está
o açúcar mascavado.
Kaitlyn sorriu… era mesmo típico de Casey ter tudo planeado.
– Deve haver um pacote de açúcar mascavado na dispensa – anunciou. –
Está na prateleira de cima, ao pé do arroz.
– Pois, pois – disse Casey, claramente divertida. – Ele estava muito giro
assim todo bem-vestido, não estava? Mas vá, diz-me lá onde é que encontro
a receita.
Kaitlyn fechou os olhos, a tentar concentrar-se.
– A receita deve estar na gaveta ao lado do lava-loiça. E dá um beijo de
boa noite ao Mitch por mim, sim?
– Por falar em beijos… – começou Casey, mas Kaitlyn desligou a
chamada. Virando-se, viu Tanner levantar-se do sofá e esticar-se, com
movimentos felinos e deliberados.
– Desculpa lá – balbuciou ela. – Miúdos.
Iluminado pela lareira, ele tinha um ar enigmático enquanto ela se
aproximava. Quando ficou suficientemente perto, estendeu a mão para a
dela e puxou-a suavemente para si. Ela sentiu o calor do corpo dele
enquanto se entreolhavam. Depois, como que em câmara lenta, ele inclinou
a cabeça e passou os dedos pelos dela, com as respirações de ambos a
misturarem-se numa exploração fascinante. Quando as bocas finalmente se
uniram, uma torrente de calor percorreu-a, com todas as terminações
nervosas a despertar. Ao separarem-se, o sorriso lento dele permitiu-lhe
sentir o seu desejo.
– Desculpa, mas não consegui resistir – disse ele, ainda a dar-lhe a mão,
acariciando-a com um langor provocante. – Estás tão encantadora que não
consegui esperar mais.
Ela sorriu, tentada a beijá-lo de novo, enquanto outra parte de si queria
prolongar a expectativa do que aí viria.
– Vais odiar-me se sugerir que nos sentemos um pouco mais? –
perguntou ela, com a voz a soar-lhe estranhamente rouca. – Talvez
pudéssemos acabar o nosso vinho?
– Claro que não – respondeu ele, levando-a de volta para o sofá, onde ela
estendeu a mão para o seu copo de vinho e ele fez o mesmo.
A fitar a fogueira, Kaitlyn tomou um trago e deixou que o sabor subtil
lhe perdurasse na boca. Por fim, lançou-lhe um olhar de esguelha.
– Alguma vez estiveste apaixonado? – perguntou-lhe.
Tanner não respondeu logo.
– Acho que sim – disse por fim.
– Não tens a certeza?
– Já foi há muito tempo – explicou. – Só tinha vinte anos e, na altura,
parecia-me ser isso mesmo. Mas agora, quando penso nisso, não tenho a
certeza de que soubesse o que era o verdadeiro amor. Tenho praticamente a
certeza de que, a longo prazo, não teríamos sido a pessoa certa um para o
outro.
– Porque dizes isso?
– Acho que nem sabia quem era na altura. Ainda um ano antes era
adolescente, e era a primeira vez que vivia nos EUA. Acho que é possível
que tivéssemos envelhecido juntos, mas o mais provável é que nos
tivéssemos separado. Agora, vejo que não tínhamos muito em comum, para
além da atração mútua.
– E não te apaixonaste desde então?
– Também não tenho bem a certeza. Quando tinha vinte e muitos anos,
conheci a Janice. Apesar de só termos namorado uns meses, achei que
talvez ela fosse a tal. Até comecei a ver anéis de noivado. Mas nessa altura
eu tinha missões todos os anos e, quando ela soube que me preparava para
embarcar de novo, acho que reconheceu que a vida da mulher de um militar
não era o que queria. Concordámos que era melhor fazermos uma pausa na
relação e, quando voltei, ela já andava com outra pessoa. E, para o caso de
quereres saber, a resposta é negativa.
– Como?
– Para o caso de estares a perguntar-te se mantive o contacto com
qualquer uma delas.
Kaitlyn fez uma careta.
– Eu não ia perguntar-te isso.
– Está bem. – Tanner riu-se. – Mas às vezes as pessoas querem saber.
Ela observou-o a terminar o vinho.
– E foi só isso?
– Depois da Janice, saí com algumas pessoas, mas nada de muito sério.
Depois fui para os Camarões, para a Costa do Marfim e para o Haiti, e
nenhum desses lugares era propício a relações a longo prazo. Não conheci
ninguém por quem me interessasse realmente até estar no Havai. Aí conheci
uma pessoa, e saímos durante uns meses, mas não me apaixonei. A bem da
verdade, ela também não me amava. Foi mais uma coisa da covid, algo que
aconteceu sobretudo porque o mundo estava encerrado e ela vivia
convenientemente mesmo ao fundo da rua.
– Espero que nunca lhe tenhas dito isso.
– Foi ela que mo disse, na verdade – contrapôs ele.
Ela fez um esgar.
– Au.
– Na altura magoou-me, mas, depois de nos separarmos, apercebi-me de
que ela tinha razão.
Kaitlyn procurou sinais de arrependimento, mas não viu nenhuns. Em
vez disso, Tanner aproximou-se mais e tornou a pegar-lhe na mão. Levou-a
aos lábios e beijou-a, e depois baixou-a, com o polegar a descrever
pequenos círculos na pele dela. Instou-a a fitar-lhe os olhos.
– Sabes o que estou a pensar agora?
– Não faço ideia.
– Estava a pensar que estou mesmo contente por nenhuma dessas
relações ter funcionado. Se tivessem, eu não estaria aqui contigo.
O tom franco da voz dele fê-la conter a respiração e ela observou Tanner
pousar o copo de vinho vazio na mesa de centro. Erguendo a mão, ele
percorreu-lhe o rosto com um dedo antes de se aproximar mais.
Começou por beijá-la suavemente, quase como que a pedir permissão, e
depois com uma paixão crescente que correspondia à dela. Com os lábios
dele nos seus, Kaitlyn deu por si a ceder ao seu próprio desejo e, quando as
suas línguas finalmente se tocaram, ela gemeu, entregando-se ao momento.
A mão dele estava na face dela e logo se emaranhou no cabelo; e, à medida
que a beijava ainda mais profundamente, ela sentiu toda a tensão do seu
corpo a desfazer-se, uma descontração sensual que quase tinha esquecido
que existia.
Ele mordiscou-lhe os lábios e a língua antes de descer a boca até ao
pescoço dela. Inclinando a cabeça para trás com um suspiro, Kaitlyn
desfrutou da sensação maravilhosa.
Deixou que ele a puxasse lentamente para se levantar; como num transe,
sentiu-o tirar-lhe o copo de vinho e pousá-lo na mesa de centro ao lado do
dele. Tanner acercou-se mais então, passou os braços à volta dela. Quando
as suas bocas tornaram a unir-se, ela sentiu a ânsia crescente dele; as mãos
dele passaram das costas para os flancos dela e deslizaram pelo tecido do
vestido. Os seios dela comprimiam-se contra o peito dele, com um calor
que se espraiava pelo seu corpo como uma onda, enquanto os seus próprios
braços envolviam o pescoço dele. Ele beijou-lhe a comissura dos lábios e
depois a face, enlouquecendo-a com a sensação alternada da barba a crescer
a arranhar-lhe o rosto e da língua húmida enquanto ele passava de um lado
para o outro.
Kaitlyn fechou os olhos quando os dedos dele lhe procuraram o fecho-
éclair do vestido; ela sentia a impaciência de ambos quando o fecho
começou a descer lentamente. De súbito, o vestido soltou-se e a boca dele
regressou à dela, com uma intensidade e uma excitação que alimentavam as
dela.
Tanner despiu-lhe uma manga e depois a outra antes de lhe baixar
lentamente o vestido, fazendo-o descer pela cintura e pelas ancas, até que a
peça caiu amarrotada no chão. Era a vez dela, e Kaitlyn sentia a pele a arder
enquanto lhe afastava o casaco dos ombros. Continuaram a beijar-se à
medida que ela lhe desabotoava a camisa, e então ficaram juntos, pele
contra pele, com os corpos aquecidos a inflamar-se um ao outro. Ouviu-o
gemer de prazer enquanto se acariciavam, os seios dela já livres do sutiã
enquanto ela passava os dedos pelo peito e pelo ventre dele. Tanner ajudou-
a a desafivelar o cinto e ela levou a mão ao botão das calças, para lhas tirar.
Então, finalmente, sentiu-o a pegar-lhe na mão e a puxá-la delicadamente
para a levar para o quarto.
Embora ela visse a carência urgente no olhar dele, Tanner não se
apressou. Em vez disso, quando entraram, abraçou-a e enterrou a cara na
curva do pescoço dela, o que lhe provocou ondas de prazer que se
espalharam por todo o seu corpo. Ao abrir os olhos por um instante, ela teve
a sensação de se ver a partir do outro lado da sala, e registou a cena: a
grande cama de colunas, o lustre, a parede de janelas fustigadas pela chuva
e iluminadas por um céu trovejante; o abrigo do abraço arrebatado dele.
Perdeu qualquer noção do tempo enquanto se beijavam e abraçavam,
mas, quando um trovão ecoou, Tanner começou a tirar-lhe as cuecas. Pouco
depois, completamente nus, ele levou-a para a cama.
IX
XI
II
III
IV
Jasper esperou mais uma hora, só para jogar pelo seguro. Arlo
continuava a dormitar. Ele ia passando pedrinhas entre os dedos e
observava uns esquilos a saltitar pelo ramo de uma árvore. Por cima dele,
um falcão descrevia círculos cada vez mais largos no céu, e Jasper,
fascinado, seguia-lhe o padrão de voo, tal como costumava fazer com Mary.
Aquela menina sempre adorara animais, de todos os tipos. Quando era
pequena, a sua cama abarrotava de animais de peluche – um pinguim, um
elefante e um cavalo cor-de-rosa –, mas o seu favorito era uma raposa do
ártico de peluche com que dormira durante anos e até levara para a
faculdade. Era uma das razões para Jasper ter começado a talhar figuras de
animais em madeira – do mesmo género que fazia agora com o rapaz. Mary
adorava-as, e dava nomes a todas – Pica-pau Paulo, Esquilo Estêvão ou
Cavalo Carlos –, e brincava constantemente com as figuras, para quem
inventava aventuras elaboradas.
Também tinha sido por causa de Mary que tinham tido dois cães (Egas, a
que se seguira Becas), dois gatos, chamados Bolachas e Natas; um hamster;
um gerbilo; e até uma salamandra, até que esta se escapara pela janela do
quarto. Tal como Mitch, Mary adorava ir ao Jardim Zoológico da Carolina
do Norte e, ao fim de semana, de vez em quando Jasper levava-a a uma
quinta próxima que tinha vacas, cavalos e ainda cabras do Tennessee que
desmaiavam – quando se assustavam, os seus músculos contraíam-se e
faziam-nas cair. Em pequena, Mary batia palmas e via-as tombar no chão,
rindo-se, encantada; ao crescer, porém, passara a ter pena das cabras e
tentava fazer o mínimo barulho possível. «Fazê-las cair é uma maldade,
papá», censurava. «Vê só como são queridas.» Por vezes, tomava de
empréstimo a câmara do pai e usava rolos inteiros para fotografar os
animais.
Na maior parte do tempo, Mary era uma maria-rapaz de totós, mais feliz
quando passava tempo no exterior do que confinada ao seu quarto. Não se
importava de se sujar e trepava árvores e jogava à bola melhor do que os
irmãos. Mas tinha um lado terno, e não era apenas para os animais. No
sétimo ano, convidou um rapaz chamado Michael a ir a um baile Sadie
Hawkins1 com ela; quando ele confessou que queria que fosse outra
rapariga a convidá-lo, ela passara o resto da tarde e da noite a chorar no seu
quarto. Também chorava por causa dos estudos, pois tinha de se esforçar
mais do que a maioria para dominar a matéria. Por vezes, a frustração e a
ansiedade levavam a melhor.
Também nem sempre se dava bem com a irmã mais nova, apesar de
Deborah ser a sua melhor amiga. Ela sempre achara que Deborah era mais
bonita do que ela. Quando o confessava ao pai, este assegurava-lhe que
ambas eram bonitas, cada uma à sua maneira, mas as palavras dele só lhe
provocavam um esgar.
– Ela é mais alta do que eu, tem o cabelo liso em vez de encaracolado e
todas as noites há rapazes a telefonar-lhe, nunca a mim.
Jasper não soubera como responder e, mais tarde, viria a perguntar-se se
a sua falha nesse momento teria sido a razão para nunca tornarem a falar do
assunto. Fingia não reparar que ela raramente tinha encontros quando
andava na escola secundária; fingiu não reparar quando ela anunciou que ia
ao baile do início do ano com um grupo de amigas, em vez do rapaz por
quem tinha uma paixoneta. Intrigava-o genuinamente que os rapazes da
escola não se sentissem atraídos pela sua beleza natural e pela sua
vitalidade; isso era, e continuava a ser, um mistério.
A seguir aos animais, e tal como para Audrey, os livros eram a paixão de
Mary. Adorava policiais e livros de aventuras e, com frequência, Jasper via
mãe e filha sentadas lado a lado no sofá, cada uma transportada para outro
mundo nas páginas do seu livro, ambas a enrolarem distraidamente
madeixas grossas de cabelo.
De todos os filhos, Mary era a mais diligente na escola, esforçando-se
incessantemente para obter as notas que tanto lhe custavam. Os seus hábitos
estudiosos foram-lhe muito úteis na faculdade; em Chapel Hill, na
Universidade da Carolina do Norte, tinha excelentes notas todos os
semestres e mantinha-se concentrada no objetivo de ser veterinária.
Também conheceu um jovem quando estava no segundo ano, chegando a
confidenciar a Audrey que ele é capaz de ser o tal. Continuaram a
encontrar-se depois de terminarem o bacharelato e ambos se inscreveram no
programa de medicina veterinária da Universidade Estadual da Carolina do
Norte. Ela até o convidou a ir a sua casa pelo Natal e, ao jantar, Jasper
reparou que ele a observava com o mesmo anseio secreto que Jasper sentira
por Audrey na sua juventude.
Era difícil acreditar que, meio ano depois, tudo o que restaria de Mary
seria uma memória.
VI
VII
A dada altura naquela manhã, Jasper perdeu a conta às árvores em que
tinha descansado. O dia ia aquecendo cada vez mais e Jasper encostou-se,
exausto, ao tronco grosso de uma magnólia. Das copas das árvores, ouviu o
trinado de uma toutinegra – como uma roda que rangesse a dar voltas e
mais voltas –, misturado com a melodia aflautada de um tordo-dos-bosques.
O coro levou-o a pensar em Deborah, cuja voz quando cantava talvez fosse
o som mais divino que ele alguma vez escutara. Ele sempre lhe chamara
Minha Pequenina. Nascera quatro semanas antes do esperado, pesando
pouco mais de um quilo e oitocentos gramas. Cabia-lhe na palma da mão e,
no hospital, ele perguntava-se como algo tão minúsculo poderia alguma vez
transformar-se num ser humano de tamanho normal. Felizmente, não tinha
quaisquer problemas de saúde, mas, durante os primeiros meses de vida,
Audrey passava a maior parte do dia com ela ao colo e preparava-se para
acorrer ao pediatra ao mínimo sinal de que algo não estivesse bem.
Contudo, Deborah ia crescendo, tal como David e Mary tinham crescido,
ainda que a um ritmo mais lento. Durante anos, manteve-se no percentil
mais baixo para a sua idade, quer em altura, quer em peso; e, até aos doze
anos, foi sempre a mais pequena da turma, uma menina delicada que se
encontrava sempre no extremo esquerdo da fila da frente de qualquer
fotografia da turma.
Ao contrário de Mary, Deborah não tinha a mínima tendência para
brincadeiras mais intrépidas. Brincava com Barbies e adorava que Jasper a
penteasse antes de se meter na cama. Passava a vida a cantar músicas da
rádio e, sempre que cantava no coro da igreja, Jasper distinguia-lhe a voz,
maravilhando-se com o timbre e com a invulgar abrangência vocal da filha.
Por vezes, quando Jasper estava a talhar figuras de madeira no alpendre,
Deborah saía e pedia-lhe que ouvisse uma canção que ela acabava de
aprender. Ele pousava o canivete e escutava a voz da filha, assombrado com
o dom que Deus lhe dera, e que nem ele nem Audrey partilhavam.
De todos os seus filhos, Deborah era a mais faladora, tagarelando sem
cessar durante o jantar, a ponto de Audrey por vezes lhe pedir que parasse
um pouco, para que os irmãos pudessem falar. Tinha sempre uma história
para contar e adorava fazer perguntas, o que provavelmente explicaria a sua
popularidade na escola. Na infância, era convidada para todas as festas de
aniversário dos colegas e, quando andava na escola preparatória, quase
todos os fins de semana incluíam festas de pijama. Jasper lembrava-se de
fazer pipocas para ela comer com as amigas enquanto assistiam a filmes na
televisão e de finalmente ter de as obrigar a apagar a luz e parar de rir.
O seu crescimento repentino tinha acontecido no primeiro ano da escola
secundária. À noite, depois de acabar os trabalhos de casa, folheava revistas
para adolescentes, nas quais estudava as técnicas mais recentes de aplicar
sombra nos olhos ou batom. Os rapazes começaram a reparar nela. Teve
vários namorados, a maioria durante alguns meses, e alguns – como Allen
–, durante mais tempo. Ia ao cinema, a bailes e a gelatarias, e o namorado
do momento ligava lá para casa quase todas as noites. Nessa altura, o
telefone estava na cozinha, mas o fio era suficientemente comprido para
chegar ao alpendre das traseiras; Deborah passava horas lá fora, a falar e a
rir enquanto enxotava as traças atraídas pelas luzes. Tudo aquilo parecia
muito misterioso a Jasper – alguns dos telefonemas duravam muito tempo
–, de que poderiam estar a falar?
Deborah era particularmente chegada a Audrey e fazia sentido que
quisesse tornar-se professora, tal como a mãe. Jasper sabia que se tornaria o
tipo de professora adorada tanto pelas crianças como pelos pais.
Porém, nunca tivera essa oportunidade, pois, numa só noite, também ela
desaparecera para sempre.
VIII
IX
XI
II
III
IV
V
No consultório, Kaitlyn mantinha-se o mais atarefada possível. Para
além dos pacientes com consulta marcada, chegaram vários sem marcação,
e ela conseguiu atender quase todos. Reduziu a hora de almoço e começou a
ver os pacientes da tarde. Quando a tarde ia a meio – à hora que Mitch
chegaria a casa da escola –, o seu despertador mental disparou e ela ligou o
som do telemóvel. Como sempre, avisou de antemão o paciente que estava
a atender quanto ao facto de o filho ir telefonar-lhe; os pacientes nunca se
importavam. Mitch ligou à hora do costume e, depois de pedir licença,
Kaitlyn saiu para o corredor.
– Estou em casa e a escola foi uma seca – disse ele, antecipando-se às
perguntas dela. – Mas, mãe, sabes uma coisa? O Arlo está aqui.
Ela demorou um segundo a lembrar-se de quem era Arlo.
– Estás a falar do cão do Jasper?
– Pois. Está deitado no nosso pátio, ao pé da árvore. Queres que vá vê-
lo?
– Não – disse ela. – Fica em casa, por agora. Se é o Arlo, de certeza que
vai voltar para o Jasper quando estiver pronto.
– E se não se for embora? – Mitch parecia preocupado.
– Nesse caso, levamo-lo para dentro quando eu chegar do trabalho.
– OK – disse ele, sem disfarçar a desilusão.
– E lembra-te que daqui a pouco Mrs. Simpson vai ver como estás, mas,
tirando isso, deixa a porta trancada.
– Eu sei. Dizes-me sempre isso.
Depois de se terem despedido, Kaitlyn voltou para o gabinete. Continuou
a ver pacientes à medida que o dia ia avançando, mas, em momentos mais
calmos – enquanto se esforçava resolutamente por não pensar em Tanner –,
dava por si a perguntar-se o que levara Arlo a ir para sua casa. Era esquisito.
Tanto quanto sabia, nunca tinha feito aquilo, e ela perguntou-se se Jasper
teria dado pela ausência do cão. Mais para o fim do dia, sabendo que Jasper
não tinha telemóvel, ligou-lhe para o número fixo.
Tocou sem que ninguém atendesse.
VI
Uma brisa do entardecer agitava os ramos das árvores e Jasper
observava-os, com o olhar turvo. Embora o frio não tivesse deixado que as
roupas secassem, o seu próprio calor aquecera-o e os tremores tinham
finalmente parado, o que lhe possibilitara ir dormitando ao longo do dia.
Quando acordava, tentava fazer um inventário de como estava, concluindo:
Nada bem mesmo. O estômago vazio tinha começado a ter cãibras e,
ironicamente – depois da tempestade noturna –, sentia tanta sede que era
como se tivesse a garganta cheia de gravilha. O inchaço do tornozelo fazia-
o parecer um balão de água e o mínimo movimento da perna era uma
tortura. Pior ainda, as roupas húmidas tinham-lhe irritado a psoríase das
costas, do peito, dos braços e das pernas, deixando-lhe a pele a arder como
se estivesse deitado num ninho de formigas-de-fogo.
De alguma maneira, sobrevivera ao dia. Mas onde estaria Arlo?
O cão não tinha voltado. Havia de ter fome, calculava Jasper,
consolando-se com a ideia de que se teria afastado em busca de algo para
comer. Não queria acreditar que o tivesse abandonado, e esperava que
voltasse em breve, mais que não fosse para partilhar o seu calor. A noite –
com as temperaturas mais frias – estava quase a cair e ele só rezava por que
não houvesse outra tempestade. No entanto, não seria a primeira vez que tal
acontecia. Afinal, os elementos tinham definido quase tudo na sua vida.
Havia a história do seu avô e da chuva de peixes, que acabara por levar à
criação de uma igreja em Asheboro, onde Jasper nascera e crescera. Pensou
na enxurrada que tinha bloqueado as estradas em redor e permitira ao pai
comprar o terreno da cabana. Lembrou-se do furacão e da chuva que fizera
o rio galgar as margens e destruir-lhe a casa, e do tornado que lhe arrasara o
negócio. Ainda via as rajadas súbitas de vento que tinham levado as achas
flamejantes para o telhado da casa deles naquela noite horrível, em que
perdera todos os que amava.
Naquele momento, porém, no estado enfraquecido em que se encontrava,
deu por si a recordar a tempestade a que assistira em criança, e o que o pai
lhe dissera depois.
Teria uns oito ou nove anos e o pai tinha-o levado a pescar num lago
perto da Floresta Wake. Quando afastaram a canoa da margem, o céu estava
azul e limpo, com o ar tão imóvel que parecia que a Terra tinha parado de
girar. Havia enxames de moscas e mosquitos, pelo que tanto ele como o pai
tinham vestido manga comprida, mas, assim que avançaram pela água, o
ambiente espaireceu, dando lugar a um dia perfeito de verão. Durante as
horas seguintes, pescaram percas com isco de vairão, enquanto pequenos
flutuadores oscilavam na superfície do lago. Nenhum deles sentia
necessidade de falar e, apesar da beleza do dia, Jasper não via outros barcos
na água. Lembrava-se de ter pensado que quase parecia que estavam os dois
sozinhos no mundo.
Tinham tido sorte. Ele pescara dois peixes que valia a pena guardar, ao
passo que o pai puxara a linha com outros três, prometendo que comeriam
bem naquela semana. Quando estavam a guardar os iscos, uma rajada de
vento surgiu subitamente e sem o menor aviso, tão forte que Jasper quase se
desequilibrou. No horizonte, reparou num enorme banco de nuvens de um
cinzento carregadíssimo, a avançar na direção deles.
O vento soprou mais, a temperatura desceu e, numa questão de minutos,
a agitação do lago começou a fazer lembrar as ondas que rebentavam nas
praias da costa. O pai de Jasper agarrou os remos com uma expressão
preocupada e a chuva começou a cair. Jasper tentava remar ao mesmo
tempo que o pai, mas não tinha força suficiente para o acompanhar. Via o
esforço e a tensão nos ombros e nos braços do pai através do tecido da
camisa à medida que as ondas começavam a subir pelas laterais da canoa. O
pai remava como louco, parecendo nunca se cansar, nem quando a água
chegou a meio das canelas de Jasper. De qualquer maneira, lá chegaram à
margem.
Quando puxaram o barco para a margem, fustigados pela carga de água,
o pai inclinou-se para a frente, a ofegar, até finalmente recuperar. Juntos,
arrastaram a canoa de volta para a carrinha e prenderam-na. Na segurança
do habitáculo da carrinha, o pai de Jasper soprou nas mãos para as aquecer
antes de finalmente falar.
– Salmos 148:8 – sussurrou.
De volta a casa, Jasper abriu a Bíblia e leu: Fogo e granizo, neve e
neblina; vento tempestuoso, que obedece à Sua palavra.
O versículo não falava de chuva, mas, não obstante, Jasper julgou ter
compreendido o que o pai tentava dizer-lhe. Tudo o que acontecia no
mundo, o bom e o mau, oferecia aos crentes uma oportunidade de louvar a
Deus.
Mas agora, magoado e impotente na Uwharrie, Jasper sabia que há muito
deixara de acreditar em tais coisas.
VII
Assim que Kaitlyn avançou com o carro pelo acesso da casa, viu Arlo
deitado de lado no relvado. Saltou do Suburban e aproximou-se do cão, ao
mesmo tempo que Mitch saía esbaforido de casa.
– Estás a ver! Eu disse-te que era o Arlo.
– Tens razão – disse a mãe. Agachando-se, acariciou a cabeça do cão,
reparando que parecia que tinha andado a rebolar na lama. – O que estás
aqui a fazer, velhote? Liguei ao Jasper há bocadinho, mas ele não atendeu.
Fugiste enquanto andavam a fazer uma caminhada?
Ao ouvir a voz dela, Arlo começou a abanar a cauda e tentou levantar-se,
com as pernas traseiras a tremer com o esforço.
– Posso trazer-lhe água antes de o levarmos para casa? – perguntou
Mitch. – Acho que é capaz de ter sede. Há um bocado, andava a farejar à
volta da mangueira do alpendre.
– Claro – disse ela. – Traz um tupperware do…
– Eu sei onde está! – gritou ele já a correr de volta para casa; um minuto
depois, estava a caminhar na direção dela com a tigela que a família
costumava usar para comer pipocas. Um dia, pensou ela, espero que os
meus filhos ouçam realmente o que lhes digo.
Mitch pousou a água e Arlo começou logo a bebê-la.
– Também posso trazer-lhe um cachorro-quente? – pediu Mitch. – Para o
caso de ele ter fome?
– Não sei se isso lhe fará lá muito bem.
– Porquê? Eu como cachorros-quentes.
E também não te fazem muito bem, pensou ela.
– Pois. Está bem, pode ser.
Mitch voltou a correr para dentro de casa, regressando pouco depois não
com um, mas dois cachorros-quentes. Partiu um ao meio e ofereceu-o a
Arlo, que o tragou. Enquanto o filho dava a outra metade ao cão, Kaitlyn
viu Camille entrar no acesso da casa e estacionar atrás do Suburban. Casey
saiu do carro da amiga enquanto o irmão dava o segundo cachorro-quente
ao cão.
– Olá, mãe, olá Mitch – cumprimentou-os, a atravessar o relvado. – Que
se passa?
– O Arlo veio até cá – disse Mitch. Por essa altura, Arlo já se tinha
aproximado mais dele e estava a farejar-lhe os bolsos como que a procurar
mais comida. – Já cá estava quando cheguei da escola.
– Porquê? – Casey parecia intrigada.
– Não sei. – Kaitlyn encolheu os ombros, tornando a pensar que aquilo
era muito estranho.
A sua ideia inicial era levar Arlo a pé até casa, mas, tendo em conta o
quanto lhe tinham tremido as pernas ao tentar levantar-se, reconsiderou. Ele
ainda parecia capaz de cair para o lado a qualquer momento.
– Acho que é melhor pô-lo na bagageira do Suburban e levá-lo a casa,
mas não me parece que seja capaz de saltar tanto.
– Podemos pegar nele ao colo – sugeriu Mitch.
O que queria dizer, claro, que teria de ser Kaitlyn a pegar nele. Lançando
um olhar ao corpo arredondado do cão, calculou que pesaria uns trinta,
trinta e cinco quilos.
– Primeiro precisam de uma toalha – comentou Casey. – Ele está
imundo.
– OK! – Mitch correu para dentro de casa pela terceira vez. Kaitlyn mal
teve tempo de gritar, antes de ele entrar: – Mas não tragas das toalhas boas!
Traz uma das velhas, que estão no armário.
– Continuo sem perceber o que é que ele está aqui a fazer – disse Casey,
a afagar a cabeça do cão, que, encantado, tinha os olhos quase fechados.
Arlo aproximou-se lentamente da tigela de água. Bebeu durante muito
tempo, aparentemente tão sequioso como quando Mitch a colocara diante
dele. Entretanto, Mitch tornou a sair e correu na direção deles, com as
toalhas brancas e limpas da sua casa de banho. Uns segundos depois, estava
a esfregar Arlo com uma delas, que logo ficou manchada de terra e lama.
Fantástico, pensou Kaitlyn.
– Pronto, mãe – disse ele. – Acho que já está suficientemente limpo para
o pormos na parte de trás do carro.
Kaitlyn sabia que isso não se aproximava sequer da realidade, mas,
apesar disso, foi até à traseira do Suburban e abriu a porta da bagageira.
Chamou Arlo, que avançou lentamente. Mexia-se, pensou ela, como se
estivesse dorido.
Na traseira do Suburban, Kaitlyn estava a tentar decidir qual seria a
melhor maneira de fazer o cão subir para a bagageira quando Casey
avançou e se limitou a agarrá-lo à volta às pernas e a colocá-lo suavemente
na bagageira. Arlo pareceu ficar desorientado por um instante, antes de
abanar a cauda. Kaitlyn fitou a filha.
– Cheerleading, mãe – explicou Casey com um encolher de ombros. –
Levanto outras pessoas em todos os treinos, estás recordada? A coisa não se
resume a ficar gira de uniforme.
– Claro – concedeu Kaitlyn.
Mitch sentou-se no banco de trás e Casey pôs-se ao volante.
– Eu posso levar o carro – disse. – E posso ajudar a tirar o Arlo lá de trás.
Fizeram o pequeno trajeto até à cabana de Jasper, mas bastou um olhar
de relance para Kaitlyn saber que ele não estava, o que explicava a chamada
não atendida. Não havia sinal da carrinha e a casa estava às escuras, mas,
por essa altura, Casey já tinha saído, aberto a porta de trás e pousado Arlo
no chão. Em vez de avançar para o alpendre, o cão ficou onde estava, a
abanar a cauda.
– Não parece que ele esteja em casa – disse Mitch, a semicerrar os olhos
atrás das lentes.
– Vou lá verificar – avisou Kaitlyn.
Subiu as escadas e bateu à porta, sem esperar resposta e a perguntar-se
onde poderia Jasper ter ido. Tanto quanto sabia, ele levava Arlo para onde
quer que fosse. Ainda pensou verificar se a porta estaria trancada, mas
decidiu que isso seria demasiado intrusivo, pelo que voltou para o
Suburban.
– Não está em casa? – perguntou Casey.
– Acho que não – respondeu Kaitlyn. – Mas tenho a certeza de que não
há de demorar.
– Então e o Arlo? – quis saber Mitch. – Vamos deixá-lo aqui?
– Não podemos mantê-lo em nossa casa, querido. É o cão de Mr. Jasper.
– E se ele voltar a ficar com sede?
– Ele vai ficar bem – garantiu-lhe Kaitlyn. – Anda. Vamos para casa.
Enquanto se afastavam de carro, Arlo ficou no pátio, a vê-los.
Na curta viagem de regresso, nenhum deles disse o que quer que fosse.
Atordoada, Kaitlyn decidiu que iria procurar saber de Jasper logo de
manhãzinha.
Só para ficar descansada.
VIII
Tanner estava sentado ao balcão com uma IPA cheia de espuma à sua
frente. Era sexta-feira à noite e havia bastante gente já a celebrar o início do
fim de semana. Apesar do barulho, ele ia apanhando pormenores de
conversas em redor, nenhuma das quais parecia muito interessante. Havia
um grupo de mulheres no final da casa dos trinta, todas vestidas para uma
noite na cidade, sentadas nuns bancos mais ao lado. De vez em quando,
apanhava uma ou outra a lançar-lhe um olhar de relance, por vezes
oferecendo um sorriso antes de desviar o rosto, outras vezes tentando
prolongar o olhar. Apesar de não poder saber ao certo, achou que pareciam
mulheres solteiras à procura de diversão, descontraídas e dispostas a acolher
uma abordagem simples. Numa vida anterior, provavelmente teria ido ao
encontro delas, dando início a uma conversa até se concentrar na sua
favorita. Falariam e trocariam expressões sedutoras; um pouco mais tarde,
ele sugeriria que procurassem algum sítio mais calmo, para poderem
conhecer-se melhor. E depois? O resto da noite seguiria o seu curso natural.
Mas ele não estava com disposição para isso. Fora um erro ir ali. Por
todo o lado havia coisas que lhe lembravam Kaitlyn. Parecia inconcebível
que só se tivessem passado seis dias desde que tinham sido apresentados;
tinha a impressão de que se conheciam há muito mais tempo. Ainda via
como lhe brilhavam os olhos quando falava de Casey e Mitch e, mesmo na
primeira noite, ele tinha pressentido nela uma amabilidade e uma resiliência
que o atraíram de uma forma que raramente sentira.
Essa sensação só fora aumentando à medida que se conheciam melhor, e
ele não podia deixar de pensar que, comparada com a vida independente
dela, a sua existência nómada, povoada pelos fantasmas de tantos amigos e
relações perdidas, parecia insubstancial. A fitar o copo, perguntou-se – de
uma forma inconsciente – se em parte se teria sentido atraído por Kaitlyn
por ela representar uma oportunidade de evoluir, mas, caso isso fosse
verdade, também significava que havia uma parte de si terminantemente
decidida a autossabotar-se.
Bebeu mais um pouco e, pelo canto do olho, viu que uma das três
mulheres estava de novo a observá-lo. Desviou o olhar e tentou conjurar
imagens da sua última estada nos Camarões, para se recordar dos motivos
que o tinham feito aceitar voltar. Porque não? Da última vez gostei,
parecera-lhe uma resposta suficientemente boa, mas desconfiava que tanto
Kaitlyn como Glen tinham razão ao categorizar a decisão como mais um
passo na deambulação interminável, não algo que ele tivesse procurado por
alguma razão ou propósito em particular.
Mas, se não fosse, então que faria?
Não sabia. Apesar do seu desejo de levar uma vida com sentido, as
decisões que tomava pareciam refletir sempre a convicção de que a sua vida
real estaria nalgum outro lugar, a seguir ao próximo horizonte.
Tinha noção de que Kaitlyn seguia uma filosofia diferente. Tanto em
palavras como em ação, subscrevia a noção de que a vida tem menos que
ver com o quê e o onde do que com o quem. Ela tinha afirmado que esse
propósito podia ser encontrado cuidando intimamente daqueles que amava,
bem como de outros que precisassem, num sítio acolhedor. Ela tinha dado
sentido à sua vida de uma forma que Tanner nunca dera, e ele tinha a
sensação de que havia algo que ele ainda poderia aprender com ela.
Mas isso já não aconteceria. Como se ele fosse areia a escapar-lhe por
entre os dedos, ela libertara-o e, no fundo, ele sabia que a sua resposta seria
instintiva. Deixaria Asheboro e tornaria a fazer-se à estrada.
IX
XI
XII
XIII
Ainda com as pernas doridas do dia anterior, Tanner correu devagar até
ao parque antes de fazer alongamentos e flexões, elevações e abdominais
até os músculos não aguentarem mais. Depois, no restaurante, comeu ovos
e panquecas enquanto ia vendo as notícias no seu iPad. Demorou algum
tempo a terminar o café, mas, apesar disso, acabou por deixar o restaurante
antes das onze sem fazer ideia do que haveria de fazer durante o resto do
dia.
Decidiu passear pelas ruas da baixa. Quando encontrou um banco, parou
e pegou no telemóvel para voltar a telefonar a Glen.
Quando o amigo atendeu, disse-lhe:
– Tenho andado a pensar muito na nossa conversa. Queria fazer-te uma
pergunta.
– Força.
– Como é que soubeste que a Molly era a tal? Quero dizer, não a
conhecias assim há tanto tempo quando vocês fugiram para casar, pois não?
– Sete semanas – confirmou Glen. – Mas acho que no segundo encontro
eu já sabia que ia casar com ela.
– O que é que ela tinha para te dar essa certeza?
– Tu conhece-la. É esperta e fazia-me rir, e eu achava-a linda, mas já
tinha conhecido mulheres assim. Só que com a Molly havia qualquer coisa
diferente na forma como eu me sentia quando estava com ela, o que
simplesmente me fez saber. Percebo que andas à procura de uma explicação
racional, mas, às vezes, não há. Às vezes, é só um palpite. Mas, para ser
sincero, também acho que tive sorte.
– Porque dizes isso?
– Porque o amor não é só uma emoção. É partilhar uma vida, e só depois
de nos termos casado é que me dei conta do quanto tínhamos em comum.
Temos os mesmos valores, a mesma moral, somos os dois católicos.
Estamos de acordo quanto a como educar os filhos, quanto a gastar agora
ou poupar para a reforma, que pais visitamos nas férias, e até quanto ao que
gostamos de fazer ao fim de semana. Cheguei à conclusão de que, quanto
mais um casal está de acordo em relação a este tipo de coisas, mais se sente
como uma equipa, como sendo um par. E, apesar de tudo isto, é claro que
nunca é fácil. As relações dão muito trabalho.
– A tua e a da Molly não.
– Estás a gozar? – retorquiu Glen com uma risada. – Dá uma trabalheira,
aos dois. Já discutimos. Já gritámos um com o outro. Batemos com portas,
dormimos em quartos separados. Houve alturas em que até quase nos
separámos.
– A sério? – Tanner abanou a cabeça, incrédulo.
– Claro. Nunca chegou ao ponto de um de nós sair de casa, mas isso não
quer dizer que eu não tivesse pensado nisso. E sei que ela também pensou.
Todas as relações têm altos e baixos, mas, feitas as contas, ambos
estávamos decididos a fazer com que as coisas funcionassem, pelo que foi o
que fizemos.
Tanner desligou o telefone depois de mais alguns minutos, com a mente
a mil. Virando costas ao seu hotel, deu por si a aplicar aquelas ideias a
Kaitlyn – ou, pelo menos, ao que tinha ficado a saber dela no curto espaço
de tempo desde que se conheciam. Mas, mais do que isso, pensava na forma
como se sentia sempre que estava com ela. Pensava no facto de ela lhe
parecer… bem.
XIV
XV
XVI
XVII
III
IV
Tanner ora andava, ora corria, tentando manter uma distância consistente
atrás do cão. Não queria assoberbá-lo, pois esperava que o guiasse, mas
tampouco tinha a certeza de que Arlo soubesse para onde ia. O velho
labrador ia mudando de direção, virava para a direita e depois para a
esquerda. Por duas vezes, até voltara para trás, antes de finalmente se
corrigir.
Apesar de a manhã ir clareando aos poucos, uma névoa envolvia o chão
da floresta e Tanner sentia-se agradecido por se ter lembrado de pôr um
colete de alta visibilidade no cão. Este destacava-se na paisagem cinza
como um sinal de néon a brilhar. Embora a floresta parecesse estar deserta,
Tanner tinha os sentidos em alerta máximo e ia perscrutando o solo em
busca de marcas. Espreitava para todos os lados, à procura de uma carrinha
velha ou de sinais de que alguém tivesse estado por ali, e ia parando a
intervalos regulares para se pôr à escuta, atento a qualquer coisa fora do
normal.
O terreno ondulava e alternava entre floresta densa e áreas rochosas.
Mais adiante, Arlo desapareceu atrás de uma pequena crista. Tanner
verificou a aplicação do telemóvel e ajustou as alças da mochila antes de
recomeçar a correr. Ao chegar ao cume, divisou Arlo entre as árvores. O cão
corria em frente, até que abrandou, de focinho colado ao chão.
Tanner seguiu-o.
V
Jasper pairava no crepúsculo entre a consciência e a inconsciência, com
a mente transformada num carrossel de memórias estáticas.
O pai sentado com a Bíblia aberta em cima do colo.
Audrey a pendurar lençóis num estendal.
Os filhos reunidos à mesa de jantar.
Mas a figura obscura lançava uma sombra sobre todos eles.
VI
VII
VIII
IX
XI
Tanner sentiu o coração a parar ao ver o nome de Kaitlyn no ecrã do seu
telemóvel, uns minutos depois de ter enviado a mensagem.
– Tanner? – disse ela, assim que ele atendeu. – Estás em alta voz, tenho
aqui os miúdos. Encontraste o Jasper?
– Estou com ele agora, à espera dos paramédicos e de uma ambulância.
Em seguida, tornou a resumir o estado de Jasper, antes de a pôr a par do
que ia fazendo por ele no ínterim.
– Não lhe dês muita água demasiado depressa – avisou Kaitlyn. – Mas
ele vai precisar de soro assim que possível.
– Eu disse-lhes isso – respondeu ele –, só que não sei onde ficará a
estrada mais próxima, nem faço ideia de quanto tempo vão demorar a
chegar.
– Ele está consciente?
– Está a murmurar, mas não diria que esteja consciente. Abriu os olhos
por um segundo e tornou a fechá-los logo.
– Se calhar é melhor ir para aí com a minha maleta. Onde é que vocês
estão?
– Envio-te o pin da minha localização – disse Tanner, já a afastar o
telemóvel da orelha. – Espera…
– Já recebi – disse Kaitlyn, muito despachada, antes de desligar a
chamada.
XII
II
Kaitlyn foi buscar o filho para ver Jasper, embora o avisasse que este
precisava de descansar, pelo que não poderiam demorar-se. Casey
acompanhou-os e Mitch sentou-se ao lado de Jasper, bombardeando-o com
perguntas.
As respostas surgiam aos poucos. Sim, tinha ido para a floresta por causa
do veado branco. Sim, tinha escorregado e partira o tornozelo. Estava na
floresta desde quinta-feira de manhã. Kaitlyn percebeu que a história devia
estar incompleta, mas concluiu que os pormenores haveriam de surgir a seu
tempo.
Jasper perguntou quem o tinha encontrado e nesse momento Casey
interveio, explicando quem era Tanner. A ouvi-la, Kaitlyn debatia-se com o
seu próprio desconforto. Depois, apercebendo-se da exaustão de Jasper, saiu
com os filhos. Betters prometeu que a manteria ao corrente, embora ela já
tivesse decidido que passaria de novo pelo hospital depois de terminar as
consultas ao domicílio do costume.
A caminho de casa, passou pelo Bojangles com os filhos para
comprarem algo para almoçar, pois já era tarde.
Quando entrou no acesso da sua casa, viu Tanner e Arlo à espera deles.
III
Casey e Mitch correram para o alpendre para falarem com Tanner e,
depois de o informarem acerca do estado de Jasper, azucrinaram-no para
que lhes revelasse todos os pormenores acerca de como encontrara o
velhote. Ele pôs-se de pé e fez um pequeno resumo da busca que realizara
com Arlo, explicando que não quisera deixar o cão sozinho.
– Não sabia que mais havia de fazer – disse ele, fitando Kaitlyn pela
primeira vez. – Espero que não te importes.
– Não tem problema. – Kaitlyn acenou com a cabeça antes de entregar o
saco de comida a Casey. – Não te importas de levar isto para dentro e
começar a comer com o teu irmão?
Casey, a brincar, passou um braço à volta do pescoço de Mitch.
– Anda lá, pestinha – disse-lhe. – Vamos deixar os crescidos falar.
Arlo, cujo nariz seguia o saco de comida, foi atrás dos miúdos para
dentro de casa. Quando a porta se fechou, Kaitlyn cruzou os braços,
recordando a si mesma que tinha de controlar as emoções.
– Todos te devemos um agradecimento tremendo – começou. – Não sei
quanto tempo mais o Jasper teria aguentado se não o tivesses encontrado
naquele momento.
– Ainda bem que pude ajudar – disse Tanner. – Ele vai ficar bem?
Ela explicou-lhe a condição em que Jasper se encontrava, num tom
profissional, antes de acrescentar:
– E vai andar uns tempos engessado. Se isso significa que precisará de
muletas ou de uma cadeira de rodas, ainda não sei. Consegui que um
ortopedista excelente o visse.
Tanner ficou calado durante algum tempo.
– As mãos dele estavam tão frias…
Kaitlyn assentiu com a cabeça.
– Acho que isso é capaz de ter que ver com os efeitos do incêndio a que
sobreviveu. Presumo que tenhas visto os enxertos?
– Vi – disse Tanner. – E também tem psoríase.
Perante o olhar espantado dela, Tanner explicou:
– Enquanto estava aqui à espera, passei algum tempo a investigar na
internet a razão de a pele dele ter aquele aspeto. – Balançou-se para a frente
e para trás, como que a ponderar a pergunta seguinte. – O que sabes acerca
do Jasper? – perguntou por fim, lançando-lhe um olhar de relance. – Em
termos pessoais, quero dizer.
– Porque perguntas?
Tanner uniu as mãos em frente ao corpo.
– Vi a carta de condução e o livrete dele na carrinha – explicou. – O
apelido dele é Johnson.
Dado que a expressão dela se mantinha inalterada, ele continuou:
– Acontece que eu já tinha ido à cabana do Jasper no início da semana,
esperando poder falar com ele, só que não o apanhei em casa. O nome dele
era um dos que encontrei tanto na lista telefónica antiga como na nova.
De repente, ela lembrou-se de que Tanner mencionara o nome do pai
biológico e os seus olhos arregalaram-se ao dar-se conta da implicação.
– Achas que pode ser o teu pai?
– Não – disse Tanner. – A idade não bate certo, e a pessoa que procuro
chama-se Dave, ou David.
– Mas?
– Mas ele vive em Asheboro há muito tempo. E é capaz de ter familiares.
Desconcertada pela direção inesperada da conversa, Kaitlyn sentou-se
lentamente numa das cadeiras de baloiço.
– Não sei porque não liguei o apelido dele à tua busca. Acho que é
porque, para mim, ele é só Jasper. Lamento.
– Não faz mal – disse ele. – Conheces alguém da família dele? Ou sabes
se teve filhos rapazes?
– Tenho praticamente a certeza de que foi casado e teve filhos, mas ele
não fala disso. Não sei se eram rapazes. E não sei se tem outros familiares.
– Sabes de alguém que possa saber? Amigos ou vizinhos, por exemplo?
Kaitlyn abanou a cabeça.
– Tenho a impressão de que ele passa a maior parte do tempo sozinho. –
Semicerrou os olhos. – Já tentaste procurar online?
Tanner assentiu com a cabeça.
– Passei a última hora a procurar, mas não encontrei nada. O próximo
passo seria tentar os registos do condado, mas só amanhã, quando abrirem.
– Hesitou. – Achas que o Mitch pode saber alguma coisa que ajude?
– Não sei bem do que eles costumam falar. Mas podes perguntar-lhe.
Levantando-se da cadeira, ela entrou em casa e tornou a sair com Mitch
passado um instante. Quando Tanner lhe perguntou se Jasper tinha
familiares ou filhos, Mitch acenou com a cabeça.
– Teve dois filhos, mas não sei como se chamavam.
– Sabes se tem amigos na cidade?
Mitch franziu o nariz, a pensar.
– O xerife, se calhar. Acho que falou dele uma ou duas vezes.
Quando Mitch já não tinha mais nada a acrescentar, Kaitlyn disse-lhe
para voltar para dentro. Sub-repticiamente, observou Tanner, que parecia
perdido nos seus pensamentos até esboçar um sorriso rápido que
desencadeou uma torrente de memórias que ela preferia não revisitar. Como
que a pressentir o desconforto dela, Tanner desceu um degrau do alpendre.
– Quando ele começar a ficar melhor, achas que posso ir visitá-lo ao
hospital? – perguntou, virando-se para olhar para ela, com um pé no degrau.
– Tenho a certeza de que ele vai querer conhecer o homem que o salvou,
mas, por agora, precisa de repouso. Talvez daqui a um dia ou dois.
Ele assentiu com a cabeça.
– Obrigado pela ajuda.
– Nós é que agradecemos. Por o teres encontrado.
Tanner deu uns quantos passos na direção do carro antes de se virar de
novo.
– Olha – disse. – Há outra coisa que queria dizer-te, se não te importas.
Kaitlyn retesou-se.
– Sim?
– Quero pedir desculpa – disse simplesmente. – Por não ter sido claro
contigo desde o início. Em relação a ir para os Camarões. E tu tinhas razão.
Não tinha pensado realmente bem a coisa, por isso, para além de um pedido
de desculpa, também queria agradecer-te. Se não tivesses dito o que
disseste… – Deixou a frase no ar, como que em busca das palavras certas. –
Tenho passado os últimos dias a fazer alguma introspeção, a tentar perceber
quem sou e quem quero ser. Só queria que soubesses que me ajudaste a
reconhecer que são perguntas muito importantes.
Kaitlyn fitou-o, sem saber o que dizer. Um segundo depois, ele virou-se
e foi-se embora, afastando-se da casa no seu carro alugado enquanto ela
ficava a vê-lo.
IV
Casey não tardou a encurralar a mãe na cozinha.
– O que é que ele disse? – atacou ela, antes de Kaitlyn ter tido sequer
oportunidade de se recompor.
– Queria saber mais acerca do Jasper – respondeu, fingindo atarefar-se a
limpar os restos do almoço dos filhos.
– Isso eu sei, mas porquê?
Ciente de que não lhe cabia a si contar uma história que não era sua,
Kaitlyn foi vaga na resposta:
– Acabou de lhe salvar a vida – realçou, enquanto guardava os restos de
frango. – Acho que qualquer um ficaria curioso.
Casey fitou-a com um ar crítico.
– O que tens? Estás um bocado esquisita.
– Estou bem – esquivou-se Kaitlyn. – Foi só um dia de loucos.
– Vais voltar a vê-lo?
Kaitlyn hesitou.
– Sinceramente, não sei.
CAPÍTULO TREZE
III
IV
VI
VII
VIII
Por mais que soubesse que tinha de ficar internado, Jasper detestava
estar no hospital. Já tinha passado demasiado tempo da sua vida em
hospitais. Fora o que dissera ao Dr. Betters quando ele o fora ver, e repetira-
o ao cirurgião ortopédico, não fora dar-se o caso de o Dr. Betters não ter
ouvido. Este não lhe fazia promessas. Em vez disso, dado que Jasper ia
melhorando, o cirurgião ortopédico tomara a decisão de o operar na manhã
seguinte, o que, provavelmente, implicaria que Jasper ficasse ali durante
ainda mais tempo.
Os enfermeiros tentavam deixá-lo confortável, claro. Ajustaram-lhe a
cama para que pudesse sentar-se e ligar o televisor, mas o volume era
demasiado baixo para que ele ouvisse o que era dito. Não que lhe
interessasse, de qualquer maneira; estava ligado no canal Discovery e,
segundo lhe parecia, o programa era sobre vulcões. Como não havia
vulcões num raio de mais de mil quilómetros de Asheboro, não percebia
bem por que razão aquilo deveria interessar-lhe. O que ele queria realmente
saber era se o veado branco estava vivo. Perguntava-se se os Littleton
teriam continuado a caçar na floresta, depois de o terem deixado ali caído;
perguntava-se se teriam voltado na sexta-feira para uma última tentativa
antes de as hordas de caçadores de perus se lançarem à Uwharrie.
Perguntara aos enfermeiros, mas parecia que ninguém sabia nada. Charlie
tampouco; o xerife tinha passado pelo hospital umas horas antes para o
repreender por ter sido tão tolo.
Apesar de tudo, estava satisfeito por a Dra. Cooper estar a cuidar de
Arlo, como ela lhe dissera na visita matinal. Era uma grande amabilidade da
parte dela, ainda que ele devesse tê-la avisado para que não caísse em
nenhum dos truques do cão. Este nem sempre tinha fome, mesmo que se
comportasse como se estivesse prestes a desmaiar de inanição. Não se podia
confiar em Arlo no que dizia respeito à comida.
Mas era um bom cão. Tinha ido em busca de ajuda, que acabara por
chegar. Se lho tivessem perguntado antes, Jasper teria dito que o cão não era
capaz de algo assim. Oh, talvez deambulasse facilmente para fora da
floresta, que era basicamente o seu quintal das traseiras; mas Jasper não
esperava que tivesse a astúcia suficiente para chegar a casa da Dra. Cooper.
Não se dava o caso de ter passado muito tempo lá e, depois de o rapaz lhe
oferecer cachorros-quentes, seria de esperar que, reconhecendo uma boa
situação, Arlo se tivesse simplesmente deixado ficar e aproveitar. Porque
hei de procurar o velho, se aqui tenho cachorros-quentes? Mas não. O cão
cumprira o seu dever.
Os milagres nunca param, pensou Jasper, mas o pessoal do hospital não
reconhecia bem Arlo como o herói que era. Quando lhes perguntara se o cão
podia ficar com ele, tinham-lhe dito que não eram permitidos animais de
estimação. Não sabia se isso também se aplicaria a animais de serviço.
Perdido nos seus pensamentos, demorou um pouco a dar-se conta de que a
Dra. Cooper se encontrava à entrada do quarto.
– Olá, Jasper – disse ela. – Importa-se que eu entre?
Jasper remexeu o lençol, assegurando-se de que tinha as partes privadas
tapadas. Ela podia ser sua médica, mas isso não queria dizer que precisasse
de ver algo indesejado. Fez-lhe sinal para que entrasse e ela aproximou-se
com um sorriso antes de puxar uma cadeira.
– Está com muito melhor aspeto do que hoje de manhã, devo dizer –
comentou ela –, e as análises também parecem bem. Vi que tem a cirurgia
marcada para amanhã, não é?
– O médico disse que vou precisar de parafusos para segurar o tornozelo.
– Isso é comum numa fratura como esta – garantiu-lhe ela. – Como se
sente?
– A pele está a dar-me mais comichão do que o habitual, mas estou a
tentar ignorá-la.
– Está a resultar?
– Nem por isso.
– Tem comido o suficiente?
– Eu disse aos enfermeiros que não como muito, mas parece que eles não
querem saber. Houve uma que me fez cara feia até eu acabar tudo o que
tinha no tabuleiro.
Kaitlyn sorriu.
– Com razão. O Jasper tem de recuperar as forças. Como está a cabeça?
– O Dr. Betters diz que está bem. Já não me dói.
– Isso é ótimo – disse ela. – Ah, já agora, o Mitch pediu-me que lhe
mandasse um beijinho. Disse-me que está desejoso de voltar a talhar figuras
de madeira consigo, quando o Jasper sentir que pode ser.
Jasper assentiu com a cabeça.
– Ando a pensar talhar-lhe um veado e pô-lo a pintá-lo de branco. Ouviu
dizer se voltaram a avistar o tal veado?
– Não ouvi nada, mas, se ouvir, digo-lhe. Independentemente disso, não
me parece que deva voltar a aventurar-se na floresta durante uns tempos.
– O Charlie disse-me o mesmo. – Jasper fez uma careta.
– O Charlie?
– O xerife. Passou por cá há bocado.
– Ele vai fazer alguma coisa em relação aos Littleton?
– Não há muito que possa fazer. A floresta é jurisdição federal. E não se
dá o caso de os rapazes me terem feito alguma coisa. Eu simplesmente caí.
Observou Kaitlyn a franzir as sobrancelhas.
– Podiam tê-lo ajudado, ou telefonado a alguém que o ajudasse… –
barafustou. – Sinceramente…
– Não é crime não fazer essas coisas – disse Jasper, encolhendo os
ombros. – Duvido que tivessem noção do quanto eu estava ferido.
– Está a ser demasiado cordato em relação a tudo isto – protestou
Kaitlyn.
– Já ando por cá há mais tempo do que a doutora. Há batalhas que
simplesmente não podem ser vencidas.
– Bem, só para que saiba, a Casey disse-me que confrontou o Josh por
tê-lo deixado ferido na floresta e ele teve a imbecilidade de o admitir.
Digamos que a popularidade dele começou a diminuir, pelo menos na
escola secundária.
Jasper sorriu, a pensar que, ainda que não fosse muito, já era qualquer
coisa. Observou Kaitlyn a aproximar mais a cadeira da sua cama.
– Jasper, posso fazer-lhe umas perguntas?
– É o que tem estado a fazer desde que chegou.
Ela sorriu.
– Eu sei, mas estas perguntas são diferentes. E não sei bem por onde
começar. Por exemplo, isto não é nada da minha conta. Mas é capaz de ser
da sua.
– Pergunte lá o que quer saber.
– Está bem, mas, antes de o fazer, quero que saiba que estou do seu lado
e que farei o que quiser que faça. – Quando Jasper assentiu com a cabeça,
ela pareceu ganhar coragem. – Recentemente, fiquei a par das
circunstâncias do incêndio em que o Jasper ficou ferido e do que aconteceu
à sua família. Não sou capaz de imaginar quão terrível isso deve ter sido
para si, e compreendo por que razão nunca quis falar disso. Eu também não
quereria. E lamento muito aquilo por que passou.
Jasper nada disse. Sentiu-a procurar-lhe a mão antes de prosseguir.
– Mas vim cá para lhe perguntar uma coisa acerca do seu filho David. Se
não quiser responder, é claro que não há problema.
Jasper assentiu com a cabeça, com a curiosidade a aumentar.
– Lembra-se de alguma coisa da adolescência do David?
Ele fechou os olhos por um instante.
– Lembro-me de tudo – sussurrou, engolindo em seco. – É tudo o que me
resta.
– Sabe se ele alguma vez teve uma namorada ou alguma jovem de quem
gostasse?
– Sim.
– Ela chamava-se Monica Hughes?
Ao ouvir o nome, Jasper sentiu como que uma descarga elétrica.
– Como é que sabe isso? – perguntou.
– Pode dizer-me alguma coisa acerca dela?
– O David amava-a, mas ela mudou-se – disse ele, numa voz trémula. –
O pai era do exército e foi destacado para algum sítio na Europa, acho eu. O
David nunca mais a viu, nem voltou a ter notícias dela. Isso partiu-lhe o
coração.
Kaitlyn parecia fitá-lo com uma ternura infinita.
– Se o David se parecia minimamente consigo, não duvido que a Monica
o amasse profundamente. A razão para ele nunca mais ter tido notícias dela
foi que ela faleceu pouco depois de a família se ter mudado.
– Morreu?
A voz de Kaitlyn era hesitante, mas delicada.
– Sabia que ela estava grávida quando se foi embora?
– Não – disse Jasper.
– Estava. Não estou a par dos pormenores, mas algo correu mal durante
o parto – explicou Kaitlyn.
Jasper demorou um momento a entender o que ela lhe dizia.
– Estava grávida e depois morreu?
– Sim. Deu à luz um menino.
– E o David era o pai?
– Sim. – Kaitlyn assentiu com a cabeça.
– Tem a certeza?
– Um teste de ADN poderá confirmá-lo, mas eu não lho diria se não
tivesse um bom grau de certeza.
Os olhos de Jasper começaram a encher-se de lágrimas à medida que ia
compreendendo lentamente.
– O menino sobreviveu? Tenho um neto?
– Tem – disse ela, a limpar as suas próprias lágrimas. Ele ouviu a
inspiração tremida dela antes de continuar. – Chama-se Tanner Hughes. Foi
quem o encontrou na floresta.
Aquilo era quase demasiado para Jasper assimilar e levou-o a agarrar a
guarda da cama, como se pudesse ancorar-se assim.
– Tanner Hughes – repetiu.
– O que me leva a outra pergunta – disse Kaitlyn, apertando-lhe a mão. –
O Tanner pediu-me para averiguar se o Jasper quereria conhecê-lo. Caso
não queira, ele pediu-me que lhe dissesse que compreende e que nunca
voltará a tentar contactá-lo.
Jasper fitou-a, com as lágrimas a começarem a cair. Ficou calado durante
pelo menos um minuto, enquanto as lágrimas lhe desciam pelo rosto.
– Sim – disse finalmente, a tentar recompor-se, mas a sentir um
arrebatamento súbito. – Gostaria muito de conhecer a minha família.
EPÍLOGO
II
III
Landmarks
1. Cover
2. Title-Page
3. Table of Contents