A Espera de Um Milagre - Nicholas Sparks

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Índice

Capa
Ficha Técnica
CAPÍTULO UM
I
II
III

CAPÍTULO DOIS
I
II
III

CAPÍTULO TRÊS
I
II
III
IV
V
VI
VII

CAPÍTULO QUATRO
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI

CAPÍTULO CINCO
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII

CAPÍTULO SEIS
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII

CAPÍTULO SETE
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII

CAPÍTULO OITO
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI

CAPÍTULO NOVE
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI

CAPÍTULO DEZ
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII

CAPÍTULO ONZE
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII

CAPÍTULO DOZE
I
II
III
IV

CAPÍTULO TREZE
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII

EPÍLOGO
I
II
III

AGRADECIMENTOS
NICHOLAS SPARKS

À ESPERA DE UM MILAGRE
Ficha Técnica
Título: À Espera de um Milagre
Título original: Counting Miracles
Autor: Nicholas Sparks
Tradução: Raquel Dutra Lopes
Revisão: Maria da Graça Samagaio
Design da capa: Flamur Tonuzi
Imagens da capa: Getty Images (homem, cão, céu)
Adaptação de capa: Maria Manuel Lacerda
Fotografia do autor: Brad Poirier Photography
ISBN: 9789892362885

Edições ASA II, S.A.


Uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01

© 2024, Willow Holdings, Inc.


© 2024, Edições ASA II S. A.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor.
Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
www.leya.com
Para o Dr. Eric Collins.
Ele sabe porquê.
Nota à edição portuguesa: todas as referências da Bíblia seguem a edição da Bíblia
Sagrada da Difusora Bíblica, disponível e atualizada em https://paroquias.org/biblia.
Ele faz grandes e insondáveis maravilhas, prodígios incalculáveis.
Job 9:10
CAPÍTULO UM

Março de 2023

T anner Hughes saiu para o alpendre da pequena casa que tinha


pertencido aos avós e trancou a porta. Levava numa mão um saco de
ginástica; na outra, um porta-fatos a proteger o fato que usara no funeral da
avó, cinco semanas antes.
Olhou para o céu e reparou numa única nuvem branca a refletir o
reluzente sol matinal. Previa-se mais um dia perfeito, daqueles que
pareciam ser um postal da Florida, o que o levou a pensar de novo que os
avós tinham escolhido um belo sítio para assentarem de vez. Pensacola
sempre tinha sido uma cidade militar e muitos veteranos mudavam-se para
aquela área aquando da reforma; ele calculava que os avós – especialmente
o avô, um antigo mecânico do exército – se teriam integrado na perfeição.
Deixou a chave debaixo de um vaso, conforme combinado com o agente
imobiliário, o qual planeava ir lá mais tarde. Já tinham levado os móveis e
contratado pintores, e o agente dera a entender que a propriedade se
venderia rapidamente. Tanner tinha passado grande parte do mês anterior a
passar em revista as coisas dos avós, enquanto processava os últimos meses
com a avó.
Olhou para trás uma última vez, sentindo a falta da avó, bem como a do
avô. Eram os únicos pais que alguma vez conhecera, já que a mãe, solteira,
morrera poucos minutos depois de o dar à luz. Era uma sensação estranha
saber que eles já não existiam – a palavra órfão parecia-lhe adequada.
Afinal, a mãe nunca fora mais do que fotografias e, até pouco tempo antes,
não sabia o que quer que fosse a respeito do pai biológico. Taciturnos, como
era seu apanágio, os avós tinham dado a entender que não conheciam a
identidade do pai, e Tanner convencera-se havia muito de que isso não tinha
grande importância. Claro que por vezes desejava ter conhecido os pais,
mas fora criado num lar afetuoso, e isso era o que realmente importava.
Pôs de parte esses pensamentos e começou a dirigir-se para o carro,
ocorrendo-lhe que o automóvel parecia veloz mesmo quando estava
estacionado no acesso da casa. Uma reprodução do Shelby GT500KR de
1968, da Revology Cars, era de um vermelho de maçã caramelizada com
faixas brancas de corrida; era novo em folha, mas parecia idêntico aos que
disparavam da linha de partida mais de meio século antes. Tratava-se da
coisa mais extravagante que alguma vez comprara para si, e, quando o
automóvel chegara, Tanner tinha desejado que o avô ainda fosse vivo para
poder vê-lo. Ambos adoravam os muscle cars norte-americanos da década
de 1960 e, embora aquele não fosse um modelo original, fora feito para ser
conduzido e não para ficar guardado na garagem de um colecionador, o que
era o ideal para si.
Não obstante, assim que chegasse o verão, acabaria numa garagem.
Tanner enfiou os sacos na bagageira ao lado de uma caixa de
recordações da casa. Já tinha a mochila no banco da frente no lugar do
passageiro. O motor ganhou vida com um rugido gutural e ele avançou pela
cidade, em direção à autoestrada, passando por filiais de lojas e restaurantes
de fast food, e a pensar que, para além da praia, Pensacola não lhe parecia
tão diferente de outros lugares dos Estados Unidos que tinha visitado
recentemente. Ainda estava a habituar-se à homogenia de grande parte dos
EUA e perguntava-se se alguma vez deixaria de se sentir como um estranho
naquele país.
À medida que ia conduzindo, deu pela mente a vaguear pelos destaques
da sua vida: uma juventude passada numa dúzia de bases militares na
Alemanha e em Itália, a recruta em Fort Benning, na Georgia, quase uma
década e meia no exército. As várias comissões no Médio Oriente e, depois
de ter deixado a vida militar, o trabalho de segurança que realizara para a
USAID – a sigla inglesa da Agência dos Estados Unidos para o
Desenvolvimento Internacional – sempre no estrangeiro.
E desde então?
Basicamente, tinha-se mantido em movimento, mais que não fosse
porque não sabia fazer outra coisa. Grande parte dos últimos dois anos fora
passada na estrada, em viagens que o tinham levado de um lado do país ao
outro. Enchera o telemóvel com fotografias de parques nacionais e vários
monumentos à medida que tornava a estabelecer o contacto com amigos e,
o que era mais importante, visitava as famílias de outros amigos que
conhecera ao serviço do exército e que tinham falecido. No total, conseguia
indicar vinte e três amigos que tinham sido abatidos ou que se haviam
suicidado depois de passarem à reserva. Falar com as viúvas ou com os pais
deles parecia-lhe a coisa correta a fazer, como se isso pudesse fazê-lo
aproximar-se de uma resposta de que precisava, mesmo que não soubesse
ainda qual seria a pergunta.
Apesar de ainda ter mais umas quantas famílias na sua lista de visitas a
fazer, a viagem fora interrompida em outubro, quando ficara a saber que o
tempo da avó estava a acabar-se. Fosse porque fosse, apesar de se
telefonarem e enviarem mensagens com frequência, ela nunca mencionara
que, uns meses antes, lhe tinha sido diagnosticada uma doença pulmonar
terminal. Tanner acorrera a Pensacola, onde se deparara com a avó acamada
e a receber os cuidados de uma enfermeira. A primeira coisa que lhe
ocorreu foi que parecia mais pequena do que se lembrava e que tinha
dificuldades respiratórias mesmo com a máscara de oxigénio que lhe
tornava o discurso lento e abreviado. A realidade visível da condição da avó
provocou-lhe um aperto no estômago e, nos meses seguintes, praticamente
não saiu do lado dela. Encarregou-se de grande parte da alimentação e dos
cuidados da avó e era frequente dormir num catre que tinha instalado no
quarto dela. Preparava-lhe batidos calóricos e triturava-lhe a comida até
ficar tão passada quanto a que um bebé comeria; escovava-lhe o cabelo ralo
com ternura e aplicava-lhe bálsamo nos lábios gretados. À tarde, quando ela
não estava a dormir, era habitual ler-lhe algo de uma coletânea de poesia de
Emily Dickinson enquanto ela se concentrava na vista da janela.
Dado que falar se ia tornando cada vez mais difícil para ela à medida que
as semanas passavam, era ele quem fazia a maior parte da conversa. Falou-
lhe do Grand Canyon, de Graceland, de um hotel de gelo no Norte do
Wisconsin, bem como de uma dúzia de outros lugares, esperando que se
entusiasmasse consigo; em vez disso, a preocupação estampada no rosto da
avó era palpável. Estou preocupada por ir deixar-te, parecia dizer, tens uma
vida instável. Quando ele tentou explicar-lhe que as viagens recentes
tinham sido uma forma de prestar homenagem aos amigos que perdera, a
avó abanou a cabeça.
– Precisas de um… lar – rouquejou, antes de sucumbir a um ataque de
tosse prolongado. Quando recuperou, fez-lhe sinal para que lhe desse o
bloco de notas e a caneta que tinha na mesa de cabeceira. Encontra o lugar
a que pertences e torna-o teu, rabiscou.
Ciente de que ela ficaria desapontada por ele não parecer estar a caminho
de assentar, Tanner não lhe contou que, em janeiro, Vince Thomas, um
antigo amigo seu da USAID, o tinha contactado. Vince estava a preparar-se
para um novo trabalho em África. Já tinham trabalhado juntos nos
Camarões e ele dissera-lhe que precisava de um vice-diretor de segurança
que conhecesse o país e os seus meandros políticos. Tanner lembrava-se de
ter aceitado a proposta, considerando, na altura, que lhe parecia um passo
seguinte tão bom como qualquer outro.
Agora, de volta à autoestrada interestadual pela primeira vez em meses,
a paisagem campestre e plana do norte da Florida ia passando num borrão
ocioso. Depois de uma visita rápida ao melhor amigo, Glen Edwards, e à
família deste, Tanner tencionava viajar até Asheboro, na Carolina do Norte,
sem saber o que encontraria por lá.
Asheboro.
Não muito antes de ter entrado em coma, a avó escrevera o nome da
pequena cidade num bloco de notas.

II

Tal como Pensacola, o lado oriental da Carolina do Norte era um destino


favorito para a reforma de veteranos militares e, depois de deixar a unidade
especial Delta Force, Glen tinha aterrado bem ali. Geria um espaço tático
que treinava equipas da polícia e de forças especiais de todo o país, tinha
uma casa em Pine Knoll Shores com vista para a lagoa Bogue Sound, onde
vivia com a mulher, Molly, e criava dois filhos já quase adolescentes.
Tanner não ficou surpreendido quando Glen surgiu no alpendre da casa com
uma garrafa de cerveja na mão assim que ele saiu do carro; tinham passado
por tanto no serviço militar que era quase como se conseguissem adivinhar
os pensamentos um do outro.
A casa tinha tetos altos e vistas lindíssimas, com o ar desarrumado e
vivido que indicava a presença de uma família – mochilas amontoadas aos
cantos e equipamento desportivo junto à porta. Quando os miúdos não
exigiam a atenção de Glen, queriam a de Tanner, mostrando-lhe videojogos
ou perguntando-lhe se assistia a um filme com eles. Ele adorava – sempre
quisera ter filhos – e Molly, com o seu sorriso fácil e ar paciente, era do
género de mulher que trazia ao de cima o melhor de Glen.
Ficou três dias com eles, partilhando refeições e passando tempo com a
família. Foram à praia e ao Aquário da Carolina do Norte; à noite,
conversavam no alpendre das traseiras, sob um teto de estrelas. Molly
costumava ser a primeira a ir deitar-se, após o que Tanner e Glen tinham
longas conversas.
Na primeira noite, Tanner pôs o amigo a par das suas viagens e das
paisagens que tinha visto antes de descrever as visitas às famílias de amigos
que perdera. Glen manteve-se em silêncio durante essa parte – também
conhecera muitos deles – até admitir que não teria sido capaz de fazer
aquilo.
– Não sei ao certo o que haveria sequer de lhes dizer.
Tanner percebia-o bem – nem sempre fora fácil para si, sobretudo
quando a morte se devia a suicídio – e a conversa acabou por passar para
temas mais fáceis. Contou-lhe do trabalho que o esperava nos Camarões e,
no final, falou-lhe dos últimos meses em Pensacola, incluindo a revelação
surpreendente que a avó fizera no final, a qual explicava a viagem que ia
fazer até Asheboro.
– Espera – disse Glen, depois de parecer ter processado a informação por
completo. – Ela só partilhou essa informação contigo agora?
– Ao início, achei que estaria confusa, mas quando o escreveu percebi
que estava a falar a sério.
– E como é que isso te fez sentir?
– Chocado, acho. Talvez até um pouco zangado. Por outro lado, percebi
que ela achava que tinha feito a coisa certa por mim ao guardar segredo.
Tipo, talvez achasse que, de alguma maneira, estava a proteger-me. E…
continuo a amá-la. Eles foram uns pais para mim.
Glen cerrou os lábios e nada disse; porém, na última noite que passaram
juntos, retomou o tema.
– Tenho andado a pensar no que me disseste na outra noite e tenho de
reconhecer que estou um bocado preocupado contigo, Tan.
– Achas que é errado ir a Asheboro?
– Não – respondeu Glen. – Que tenhas curiosidade em relação ao teu
passado faz todo o sentido. Raios, se alguém me largasse uma bomba dessas
em cima, eu provavelmente faria o mesmo. Mas preocupa-me a forma como
tens vivido desde que deixaste o último emprego. Quero dizer, compreendo
que tires algum tempo para viajar, visitar amigos ou o que seja, e também
entendo que tivesses de cuidar da tua avó enquanto ela estava doente. Mas
voltares para os Camarões? Essa parte não percebo. Parece-me que estás a
adiar a tua vida, em vez de a viveres realmente. Ou de sequer dares um
passo atrás. Quero dizer, nunca tiveste uma casa, pois não? Não te fartas de
viver em constante movimento?
Pareces a minha avó, pensou Tanner, mas guardou o comentário só para
si. Em vez disso, encolheu os ombros.
– Gostei de estar lá.
– Entendo – suspirou Glen. – Só não te esqueças de que, se alguma vez
decidires assentar, tens um emprego à tua espera na minha empresa. Podes
viver onde quiseres, fazer os teus próprios horários e ter a oportunidade de
voltar a trabalhar com alguma da malta da Delta. A Molly até tem uma irmã
solteira. – E moveu as sobrancelhas, o que provocou uma risada a Tanner.
– Obrigado – disse ele, dando um trago na cerveja.
– E quanto à tua busca…
– Então não acabaste de dizer que compreendes a minha curiosidade?
– Compreendo. Só estava aqui a pensar se tentaste usar o 23andMe ou
outro daqueles websites que testam o ADN.
– Tentei todos, mas, para além de uns quantos parentes muito distantes
no Ohio e na Califórnia (tipo primos em terceiro ou quarto grau), não
apareceu ninguém. Devia ser uma família pequena. Mas, se tiveres ideias
que possam poupar-me a viagem, estou aberto a sugestões.
– Não tenho – admitiu Glen. – E não há dúvida que o teu plano é à moda
antiga, mas sabe-se lá! Era assim que as pessoas costumavam procurar, não
era? Pode ser que tenhas sorte.
Tanner assentiu com a cabeça, mas tornou a perguntar-se qual seria a
probabilidade de localizar alguém quarenta anos depois da última
informação que se tinha sobre ela, sobretudo tratando-se de uma pessoa
com um nome e um apelido tão comuns que se tornavam quase irrelevantes.
Só nos Estados Unidos, havia quase dois milhões de pessoas com aquele
apelido – ele tinha feito uma busca no Google – e mais de cem viviam em
Asheboro.
Isso, claro, partindo do princípio de que ainda se pudesse confiar na
memória da avó. Na sua letra trémula e quase ilegível, tudo o que
conseguira fora

O teu pai
Dave Johson
Ashboro NC
Lamento

III

De Pine Knoll Shores, a viagem de carro até Asheboro demorou quatro


horas. Ao chegar à cidade, Tanner passou por um Walmart para comprar um
mapa, um caderno e canetas, antes de se dirigir à biblioteca. Com a ajuda da
senhora simpática que se encontrava no balcão dos empréstimos, ficou a
saber que a biblioteca não guardava listas telefónicas que remontassem às
décadas de 1970 e 1980; ainda assim, ela arranjou-lhe uma de 1992. Teria
de servir.
O passo seguinte era encontrar o pai, um homem que nunca vira.
Sentou-se a uma das mesas da biblioteca e desdobrou o mapa para
dividir a cidade em quatro quadrantes. Depois, usando a velha lista
telefónica, tomou nota do nome e da morada de todos os que se apelidassem
Johnson e apontou aproximadamente os locais no mapa; serviu-se do
iPhone para fazer uma lista de correspondências com os Johnson que
encontrou nas páginas brancas em linha com os mais antigos das páginas
amarelas e assinalou no mapa os que coincidiam. Parecia-lhe que, para
começar a bater a portas, mais valia tentar fazê-lo da forma mais eficiente
possível.
Não tinha conseguido terminar antes da hora de fecho da biblioteca, o
que queria dizer que precisaria de regressar na segunda-feira. Ocorreu-lhe
visitar também os cartórios municipais; registos de propriedade talvez
ajudassem a sua busca, mas isso teria de ser igualmente depois do fim de
semana.
Deixou as suas coisas num Hampton Inn e, como estava a precisar de
esticar as pernas, foi explorar a baixa. Passou por uma loja de antiguidades,
uma florista e uma mancheia de butiques que ocupavam os pisos térreos de
edifícios construídos no início do século anterior. Havia um belo parque no
centro da cidade e, apesar das nuvens que se adensavam no céu, os passeios
estavam cheios de gente a passear os cães e a empurrar carrinhos de bebé. A
cena pareceu-lhe saída de outra era e levou-o a tentar imaginar como teria
sido crescer ali. Teria o pai conhecido a sua mãe ali? Tanto quanto sabia, os
avós nunca tinham vivido naquele lugar, portanto, como poderiam os seus
pais ter-se cruzado? Mais perguntas a que a avó nunca poderia responder,
sabia ele, desejando ter tido um pouco mais de tempo com ela.
Voltou para o hotel não muito antes de os primeiros pingos de chuva
começarem a cair. Leu até à hora de jantar, concentrando-se num livro sobre
a zona de operações do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial e
pensando nas formas como a guerra moderna tinha evoluído desde então,
ainda que alguns dos efeitos devastadores continuassem a ser os mesmos
para os combatentes.
Quando o seu estômago começou a dar horas, procurou no telemóvel um
bar desportivo onde lhe pareceu que poderia jantar. Quando chegou ao
Coach’s, ficou surpreendido ao ver que o parque de estacionamento estava
cheio. Teve de dar duas voltas pela área para encontrar um lugar. Caminhou
para a entrada e, depois de empurrar a porta, foi inundado pelo som de
vários televisores a transmitir um jogo de basquetebol universitário em alto
som e de uma casa cheia de adeptos ruidosos. Tinha uma vaga memória de
Glen mencionar algo acerca da Loucura de Março, o torneio de basquetebol
masculino da AAUN, Associação Atlética Universitária Nacional.
Tanner abriu caminho por entre a multidão, a perscrutar
automaticamente os rostos e a linguagem corporal à sua volta, atento a
quem estivesse bêbedo ou pudesse estar à procura de uma briga. Não muito
longe do bar, à volta de uma mesa alta, reparou em três homens que
provavelmente estariam armados. Todos tinham um volume revelador ao
fundo das costas, mas, pelos cortes de cabelo e pela postura, calculou que
fossem polícias ou delegados do xerife fora de serviço, a descomprimir
depois de um dia de trabalho. Não obstante, escolheu um lugar ao balcão a
partir do qual poderia mantê-los debaixo de olho, bem como à maioria dos
outros clientes. Era difícil desfazer-se dos velhos hábitos.
Quando o empregado do bar finalmente reparou na sua presença, Tanner
pediu-lhe um hambúrguer e uma cerveja artesanal, da produção local, e
desfrutou das duas coisas. Depois de o empregado ter levantado o seu prato
vazio, observou distraidamente o jogo enquanto acabava a cerveja. Estava a
bebê-la quando a multidão à sua volta bradou subitamente, o que o fez
estacar instintivamente. Os televisores repetiram a jogada em que um base
marcava um cesto triplo. Expirou, mas ao mesmo tempo ouviu outro som
que não parecia enquadrar-se nos restantes.
Uma voz. Uma voz feminina.
– Já disse para me soltares!
Virou-se e viu uma jovem de cabelo castanho-escuro. Estava ao lado de
uma mesa, a esforçar-se por libertar o braço de um rapaz com o boné virado
para trás. Tanner contou o que lhe pareceram ser cinco adolescentes – três
rapazes e duas raparigas, incluindo a morena – e viu-a a conseguir
finalmente soltar o braço. Embora não tivesse vontade de se meter, não lhe
agradava ver homens a usar força física para intimidar mulheres. Decidiu
que, se o tipo voltasse a agarrá-la, teria de fazer algo.
Por sorte, a rapariga saiu disparada pela porta do bar. A amiga loura
apressou-se a deslizar do banco para a seguir, enquanto os rapazes à mesa
começavam a rir e a gritar-lhes coisas.
Idiotas.
Tanner devolveu a atenção à televisão e, quando já só lhe restavam um
ou dois tragos de cerveja, pô-la de parte, pronto para ir embora. Ao deitar a
mão ao casaco, lançou um olhar na direção da mesa que tinha estado a
observar e apercebeu-se de que o tipo de boné virado ao contrário – o que
tinha agarrado a miúda – já não estava ali sentado, embora os dois amigos
tivessem ficado.
Raios.
Apressou-se a passar pela multidão para chegar à porta. Ao sair, passou o
parque de estacionamento em revista e distinguiu o «Boné» e as duas
raparigas perto de um todo-o-terreno preto. Mesmo ao longe, era evidente
que estavam a discutir de novo. O Boné tinha voltado a agarrar a rapariga
pelo braço, mas, desta feita, os esforços que ela fazia para se soltar eram em
vão. Tanner começou a avançar na direção deles.
– Passa-se algum coisa? – gritou.
Todos voltaram o olhar na direção dele.
– E você quem é, porra? – resmungou o Boné, sem soltar a rapariga.
Tanner encurtou a distância que o separava do grupo até se encontrar a
poucos metros deles.
– Solta-a.
Quando o Boné não reagiu, Tanner aproximou-se ainda mais. Sentia o
treino da Delta Force a entrar em ação, todas as terminações nervosas em
alerta.
– Não estou a pedir – afirmou, mantendo a voz baixa e calma.
O jovem hesitou por um segundo antes de finalmente soltar o braço da
rapariga.
– Estava só a tentar conversar com a minha namorada.
– Eu não sou tua namorada! – guinchou a morena de repente. – Saímos
uma vez! Nem sequer sei porque estás aqui!
Tanner virou-se para ela, reparando que estava a esfregar o braço como
se ainda lhe doesse.
– Queres falar com ele?
Ela soltou o braço.
– Não – respondeu em voz baixa. – Só quero ir para casa.
Tanner voltou a fitar o jovem.
– Parece-me bastante claro – disse. – E se voltasses lá para dentro antes
que te metas em sarilhos?
O Boné abriu a boca para dizer algo antes de pensar que talvez fosse
melhor calar-se. Deu um passo atrás e depois, finalmente, virou-se para se ir
embora. Tanner ficou a vê-lo afastar-se. Depois de ele ter entrado no bar,
Tanner devolveu a atenção à jovem.
– Estás bem?
– Acho que sim – murmurou ela, sem o olhar nos olhos.
– Ela vai ficar bem – disse a amiga. – Mas não precisava de o assustar.
Talvez precisasse, pensou Tanner, talvez não. Tinha aprendido que
magoar um ego muitas vezes era preferível à alternativa. Mas não valia a
pena ficar a pensar no assunto.
– Tenham uma boa noite, então. – Assentiu com a cabeça. – Conduzam
com cuidado.
Encaminhando-se para o outro lado do parque de estacionamento,
encontrou o seu carro. Sentou-se ao volante e avançou por um corredor do
parque de estacionamento para chegar à saída. Quando passou por onde se
tinha deparado com os adolescentes, já não estava ali ninguém.
Lembrou-se de que precisava do telemóvel para ver o caminho, pelo que
parou o automóvel para se inclinar para o lado e tirá-lo do bolso de trás das
calças. Nesse momento, o grande todo-o-terreno preto que estava do lado
do passageiro do seu carro galgou o corredor em marcha-atrás, a toda a
velocidade. Antes de ter oportunidade de reagir, Tanner sentiu a traseira do
carro a guinar de lado; virou a cabeça de supetão e deu pelo som de metal a
ranger. E depois, de repente, acabou.
Recuperando toda a sua formação, fez uma vistoria automática em busca
de lesões; mexia os braços e as pernas, não estava a sangrar e, ainda que de
manhã talvez sentisse o pescoço e as costas doridas, não se magoara muito.
Já o carro…
Inspirou profundamente enquanto abria a porta, a esperar que não fosse
tão grave quanto parecera ou soara, mas já a suspeitar do pior. Primeiro deu
a volta pela frente e depois foi até à parte de trás, vendo que o painel
traseiro do Shelby tinha sido danificado a ponto de se cravar no pneu. O
farolim estava estilhaçado e o impacto também abrira a bagageira. Quando
tentou fechá-la, o trinco não prendia.
O meu carro, lamentou-se. O meu carro novo…
Apanhado numa nuvem de fúria crescente, Tanner demorou um pouco a
perceber que o outro condutor ainda não tinha saído do todo-o-terreno. Era
um dos maiores – um Suburban – e ele tentou recuperar a calma com umas
quantas respirações prolongadas. Quando finalmente se sentiu confiante
quanto a ser capaz de lidar com o tipo sem perder a cabeça, começou a
avançar na direção do lado do condutor, que não parecia ter sofrido danos.
Preparava-se para levar a mão à porta, quando esta se abriu e um par de
pernas finas e trémulas surgiu. Tanner estacou, dando conta de que estava a
deparar-se de novo com a morena. Esta estava pálida, de olhos arregalados,
e soltou um som engasgado antes de levar as mãos à cara e desatar a chorar.
Valha-me Deus, resmungou Tanner entre dentes. É o que recebo por
tentar ser prestável.
Deu-lhe um minuto e outro em seguida. A idade dela, e a reação que
estava a ter, levavam-no a desconfiar que seria o seu primeiro acidente, o
que é sempre uma experiência traumática. Por fim, quando as lágrimas
começaram a acalmar, ela limpou o nariz à manga. Tanner comprimiu os
lábios. Calculava que erguer a voz pudesse desencadear nova crise de
choro, e isso era a última coisa que ele queria.
– Olha, presta atenção – disse-lhe, no mesmo tom pragmático que tinha
usado com o Boné. – Antes de mais, podes dizer-me como te chamas?
As suas palavras pareceram demorar um pouco a ser entendidas. Ela
olhou para cima, como se tentasse concentrar-se.
– A minha mãe vai matar-me – confessou ela.
Deus me ajude, pensou Tanner. Embora não tivesse respondido à sua
pergunta, ele interpretou a frase dela como sinal de que estava a pensar
bem.
– Preciso de me assegurar de que não te magoaste. Podes virar a cabeça
de um lado para o outro, assim? E depois vê se consegues assentir com a
cabeça, OK?
Tanner demonstrou-lhe o que fazer e, depois de uma breve demora, a
rapariga imitou-o lentamente.
– Dói-te a cabeça ou o pescoço? – perguntou Tanner. – Nem que seja só
um pouco?
– Não – respondeu ela, a fungar.
– E os braços e as pernas, ou as costas? Sentes algum formigueiro,
picadas, dores ou dormência de algum género? Consegues virar-te?
Ela franziu ligeiramente o cenho antes de rolar os ombros e girar a
cintura.
– Tudo parece estar bem.
– Tenho alguma experiência de primeiros socorros, mas não sou médico.
Pareces-me ilesa, mas talvez seja melhor que alguém te veja, só para termos
a certeza.
– A minha mãe é médica – disse ela, parecendo distraída.
Reparando que as mãos dela ainda estavam a tremer, ele esforçou-se por
manter um tom razoável.
– O parque de estacionamento é propriedade privada, por isso duvido
que precisemos de chamar a polícia, mas será que podes mostrar-me a tua
carta de condução, o livrete do carro e o cartão do seguro?
– A polícia? – perguntou ela, com a voz mais aguda a denotar o pânico.
– Eu acabei de dizer que não temos de chamar a…
– Agora, a minha mãe nunca me vai deixar ter um carro – interrompeu
ela.
Tanner dirigiu o olhar ao céu antes de tornar a tentar.
– Será que podes encontrar as coisas de que precisamos, por favor?
Livrete, carta de condução, informação sobre o seguro.
Ela piscou os olhos.
– O carro é da minha mãe – disse ela, quase num sussurro. – Não sei
onde está o livrete. Nem as coisas do seguro.
– Podes ver se estão no porta-luvas. Ou na consola entre os bancos da
frente.
A rapariga virou-se, com um ar desequilibrado, e voltou a entrar
lentamente para o todo-o-terreno. Entretanto, Tanner usou o telemóvel para
tirar fotografias do acidente a partir de vários ângulos. Quando ela
finalmente tornou a sair, passou-lhe o livrete e a sua carta de condução.
– Não encontro o cartão do seguro, mas a minha mãe deve saber onde
está.
Tanner virou o livrete; no verso tinha o nome da companhia de seguros e
o número da apólice.
– Está aqui mesmo.
Tirou fotografias antes de lhe devolver a carta de condução e o livrete do
automóvel. Como ela obviamente não fazia ideia do que fazer, Tanner sacou
dos seus próprios documentos.
– Tens um telemóvel?
Ela estava a fitar os danos dos veículos.
– O quê?
– Com o teu telemóvel, tira fotografias da minha carta de condução, do
meu livrete e do meu cartão do seguro.
– Fiquei sem bateria no telemóvel.
Claro que ficaste. Servindo-se do seu próprio telemóvel, tirou fotografias
aos documentos.
– Disseste que o todo-o-terreno é da tua mãe, não foi? Posso enviar as
fotografias com a minha informação para ela e para ti. – Selecionou o
teclado numérico do seu telemóvel. – Dás-me os vossos números?
– Não pode mandar só para mim? Para eu poder explicar-lhe o que
aconteceu antes de ela começar a receber fotografias de um número que não
reconhece?
Ele considerou o pedido.
– Está bem – concordou. – Envio para ti, mas dás-me o número dela
também? Só pelo seguro?
Ela deu-lhe o seu número primeiro e depois o da mãe. Ele guardou os
dois e enviou-lhe as fotografias; quando tornou a lançar-lhe um olhar de
relance, viu que estava a morder o lábio.
– O melhor era ligares à tua mãe para que ela te venha buscar – sugeriu,
oferecendo-lhe o seu telemóvel. – Tens as mãos a tremer, estás em choque,
não te encontras em condições de conduzir.
Ela fitou o telemóvel, mas não o aceitou.
– Só temos este carro.
– E a tua amiga? Ela ainda está cá?
– Já se foi embora.
– Então e mais alguém? Há outro amigo a quem possas ligar?
– Não sei o número de ninguém.
– Como é possível que não saibas o número de ninguém?
Ela fitou-o como se ele fosse imbecil.
– Os números estão todos no meu telemóvel e acabei de lhe dizer que
fiquei sem bateria.
Tanner fechou os olhos e tentou visualizar-se como um Buda.
– Está bem… Moras muito longe? Talvez eu pudesse levar-te a casa no
teu todo-o-terreno?
Ela mirou-o, desta feita como se tentasse avaliar se ele seria de
confiança.
– Acho que podia ser – acabou por concordar. – Não é assim tão longe.
– Consegues voltar a pôr o carro no lugar onde estava? Para separarmos
os automóveis?
– Eu?
– Melhor ainda, eu trato disso – disse ele. – As chaves continuam lá
dentro?
A fungar, ela acenou com uma mão na direção do veículo, o que Tanner
interpretou como sendo um sim. Por sorte, o motor pegou logo e ele
avançou lentamente para o espaço livre. Em seguida, verificou o para-
choques do Suburban, o qual, para além de uns arranhões, parecia estar
bem.
– A boa notícia é que o teu praticamente não tem estragos – comentou
ele, a apontar. – Espera aqui, OK? Vou estacionar o meu e volto já.
Tanner meteu-se no carro e encontrou um lugar livre no corredor
seguinte, conduzindo devagar e fazendo caretas ao ouvir o som do metal a
raspar no pneu. Pelo espelho retrovisor, a bagageira empenada bloqueava-
lhe parcialmente a visão.
Ia a perguntar-se se teria de enviar o carro de volta para a Florida ou se
as reparações poderiam ser feitas por ali, mas concluiu que em breve o
descobriria. Por ora, levaria a miúda a casa e esperava arranjar uma forma
de a irritação não o impedir de dormir nessa noite.
Quando voltou ao todo-o-terreno, a rapariga estava encostada ao veículo,
com um ar triste, mas já de olhos secos. Ela deu a volta para entrar pelo
lado do passageiro, deixando que Tanner fosse ao volante. Depois, ele
espreitou a fotografia da carta de condução dela que tinha guardado no
telemóvel.
– Ainda moras em Dogwood Lane?
Ela assentiu com a cabeça.
– Com os teus pais?
– É só a minha mãe – balbuciou ela. – Eles divorciaram-se.
Tanner inseriu a morada no telemóvel, que lhe indicou que a casa ficava
a apenas oito minutos dali.
– Não te esqueças de pôr o cinto – disse-lhe antes de virar o Suburban
para a saída. Quando chegaram à estrada principal, lançou-lhe um olhar de
relance. Tinha a postura de uma prisioneira a ser levada para a sua
execução.
– Chamas-te Casey, certo? Casey Cooper? – perguntou-lhe ele. – Vi na
tua carta de condução. – Quando ela assentiu com a cabeça, Tanner
continuou. – Eu chamo-me Tanner Hughes.
– Olá – conseguiu ela responder, voltando os olhos por um instante na
direção dos dele. – Lamento que tenha de me levar a casa.
– Não faz mal.
– E lamento mesmo, mesmo, mesmo muito ter batido no seu carro.
Já somos dois. Tentou usar o tom de voz da avó.
– Foi um acidente.
– Porque está a ser tão bonzinho em relação a isto tudo?
Ele pensou antes de responder.
– Acho só que me lembro de que também já fui jovem.
Ela ficou em silêncio durante algum tempo, antes de tornar a olhar para
ele.
– A minha amiga disse que você tem uns olhos fixes. A Camille, quero
dizer. A rapariga que estava comigo.
Já lhe tinham dito que tinham uma cor invulgar – castanho-claro que
parecia verde ou dourado, dependendo da luz.
– Obrigado.
– Também disse que as suas tatuagens eram fixes.
Isso provocou-lhe apenas um sorriso.
Ela calou-se, a fitar a noite. Depois, abanando a cabeça, falou em voz
baixa.
– A minha mãe vai ficar tão zangada. Tipo, possessa.
– Pode demorar algum tempo, mas há de passar-lhe – disse Tanner. – Vai
ficar contente por não te teres magoado.
Ela pareceu ficar a pensar nisso enquanto viravam para um bairro com
mais vegetação, por onde ela lhe foi indicando onde devia virar. A maioria
das casas tinha dois pisos, com fachadas de tijolo, laterais de vinil e sebes
cuidadas à frente.
– É aquela – disse Casey por fim, a apontar para uma das casas muito
iluminadas. Tinha um pequeno alpendre à frente a que não faltava um par
de cadeiras de baloiço e, ao avançar pelo acesso, Tanner viu movimento
pela janela da cozinha.
Ele desligou o motor, mas Casey não parecia ter pressa de sair.
– Queres que eu espere aqui? Enquanto contas à tua mãe o que
aconteceu?
– Fazia isso? – perguntou ela. – Para o caso de ela precisar de falar
consigo?
– Claro.
Isso pareceu ajudá-la a ganhar coragem. Enquanto Casey entrava na
casa, Tanner saiu do todo-o-terreno e encostou-se à porta para ficar à
espera.
Cinco minutos depois, uma mulher saiu da casa, com Casey atrás. A
mãe, pensou Tanner; contudo, quando ela hesitou por um instante sob o
brilho do candeeiro do alpendre, ele deu por si a observá-la com mais
atenção.
Estava a usar umas calças de ganga desbotadas e uma blusa branca e
simples à camponesa, com o cabelo castanho comprido apanhado num rabo
de cavalo descuidado; à primeira vista, parecia demasiado jovem para ser
mãe de Casey. As roupas largas não lhe disfarçavam as curvas generosas do
corpo, mas, quando levantou uma mão para prender uma madeixa solta do
cabelo escuro, ele teve a impressão de ver ali uma certa incerteza, uma
hesitação que indicava uma desilusão passada, ou talvez arrependimento.
Arrependida do quê, perguntou-se ele.
Era apenas uma impressão, um vislumbre instintivo. Contudo, enquanto
a observava a recompor-se e descer do alpendre, com os pés descalços a
mostrarem umas unhas pintadas de vermelho sob as dobras das calças,
Tanner deu por si a pensar: Esta mulher tem uma história e eu quero
conhecê-la.
CAPÍTULO DOIS

D epois de tentar ligar à filha mais uma vez, Kaitlyn Cooper tinha
pousado o telemóvel na bancada e ficado a olhar pela janela por cima
do lava-loiça. Entre as nuvens, via-se uma meia-lua a lançar um brilho
prateado sobre o relvado da frente, e ela perguntou-se distraidamente se a
tempestade teria passado ou se estaria simplesmente a ganhar alento.
Não que fizesse grande diferença, concluiu. Sem o carro,
independentemente do tempo, só lhe restava ficar em casa. Observando a
cozinha, sentiu a angústia habitual da obrigação de limpar tudo depois do
jantar. Em vez de lançar mãos à obra, pegou no seu copo de vinho. Ainda
lhe restava um pouco, que bebericou.
Ocorreu-lhe que poderia pedir ajuda a Mitch – com nove anos, já tinha
idade para lavar a loiça. Mas via-o na sala de estar, a montar a nave espacial
X-Wing Starfighter da Lego que lhe tinha comprado horas antes no
Walmart, e decidiu não o interromper. Fora uma compra impulsiva – a
última coisa de que ele precisava era de mais legos, mas, dado que comprar
coisas para os filhos parecia resultar com o ex-marido, calculara que
também poderia ganhar alguns pontos em vez de ser sempre a má da fita.
Para além disso, Mitch merecia uma boa surpresa de vez em quando. Tinha
boas notas na escola e estava sempre animado em casa; sabia Deus o quanto
ela precisava disso, mais que não fosse porque duvidava que fosse durar.
Quando era mais nova, a irmã mais velha, Casey, também era encantadora –
ainda que obstinada. E embora continuasse a ser boa miúda, a adolescência
tinha transformado a menina alegre e agradável numa jovem que Kaitlyn
por vezes achava insuportável. Ainda que, obviamente, a amasse.
Mas aquelas variações de humor… aqueles tons de voz…
Kaitlyn sabia que não era a única a ter de enfrentar os desafios de educar
uma adolescente, mas isso não tornava a vida com Casey mais fácil. Nos
últimos dois anos, quanto mais ela tentava ser uma mãe compreensiva, mais
Casey parecia desafiá-la. Como naquela noite, por exemplo.
Seria assim tão difícil jantar com a família uma vez por semana? Entre a
escola, os trabalhos de casa, os treinos de cheerleading de Casey e as longas
horas de trabalho de Kaitlyn, sentarem-se juntos para desfrutarem de uma
refeição durante a semana era praticamente impossível. Como Kaitlyn
também atendia pacientes ao domingo ao final do dia, o sábado era a única
opção que restava. Kaitlyn compreendia que isso nem sempre era
conveniente, mas também não se dava o caso de esperar que Casey ficasse
por casa depois disso. Tudo o que queria era uma hora, das seis às sete, ou
até das cinco às seis, e depois Casey podia fazer o que bem quisesse.
Mas o que fizera a filha?
Levara o velho Suburban sem pedir permissão e depois passara as horas
seguintes a ignorar os telefonemas e as mensagens de texto da mãe. O mais
provável era que estivesse com a amiga Camille, mas havia sempre a
possibilidade de se ter esgueirado com Josh Littleton, um rapaz que tinha
deixado Kaitlyn de pé atrás. Quando ele fora lá a casa buscar Casey umas
semanas antes, Kaitlyn pressentira algo estranho nele, à falta de melhor
palavra, e expirara secretamente de alívio quando Casey depois insistira que
não estava interessada nele. Na última semana, porém, Kaitlyn percebera
que Josh continuava a enviar-lhe mensagens e, ciente de que a filha poderia
reagir à sua reprovação provocando-a mais, tivera o cuidado de não fazer
comentários.
Ver Mitch a estudar as instruções da Lego, com as lentes dos óculos bem
perto da folha de papel, apertou-lhe um pouco o coração. Sabia que ele
tinha ficado incomodado com a ausência da irmã. O filho tinha tido um dia
bom, passara parte da tarde com Jasper – um velhote simpático que andava
a ensiná-lo a talhar madeira – e estava entusiasmado por ir ao Jardim
Zoológico da Carolina do Norte no dia seguinte. Mas adorava a irmã mais
velha e perguntara mais do que uma vez se deviam atrasar o jantar até
Casey chegar. Quando se dera conta de que ela não apareceria de todo,
praticamente não falara mais. Kaitlyn tinha tentado suavizar-lhe o
desapontamento dizendo que, quando era adolescente, também não gostava
de passar tempo com a sua própria mãe, mas, ao vê-lo encolher os ombros,
percebeu que ele se sentia rejeitado.
Por vezes perguntava-se se a atitude de Casey teria sido afetada pelo
divórcio. A filha tinha doze anos quando eles se separaram e os anos
seguintes não haviam sido fáceis para nenhum deles. Casey sentia a falta do
pai; e Mitch via George como uma espécie de super-herói. Em tempos,
também Kaitlyn se julgara afortunada na sua escolha de cônjuge. George
era inteligente e trabalhador e, sendo cardiologista de intervenção, tinha a
capacidade de manter a calma nas situações mais voláteis. Salvava vidas
todos os dias e era suficientemente bem-sucedido para que Kaitlyn tivesse
podido trabalhar em part-time quando os filhos eram pequenos, algo que ela
agradeceria sempre.
Para além disso, encaixara-se na perfeição no plano de vida de Kaitlyn,
delineado ainda antes de ela ter entrado para a escola secundária e que
agora lhe parecia dolorosamente ingénuo: Ter boas notas, ir para a
faculdade e estudar medicina. Namorar, mas nada muito sério até ter pelo
menos vinte e cinco anos; depois disso, conhecer um homem inteligente e
estável, apaixonar-me e estar casada aos trinta. Ter dois filhos, comprar
uma boa casa, manter um consultório compensador e ao mesmo tempo
atender comunidades com falta de serviços médicos, e viver feliz para
sempre.
De muito lhe valera o plano, sobretudo em relação à última parte.
Embora se sentisse grata por as emoções fortes e muitas vezes
assoberbantes associadas ao divórcio se terem dissipado – e não havia
dúvida de que já não amava George –, em certos momentos sentia a falta da
intimidade e dos momentos tranquilos associados a serem um casal.
Atualmente, a sua vida girava em torno do trabalho e dos filhos, sem tempo
para nada mais – sendo aquela noite um exemplo perfeito disso. Pegou de
novo no telemóvel. Tentou ligar a Casey e ouviu a chamada ir diretamente
para o gravador de chamadas. Frustrada, desligou. Bebeu um último gole de
vinho e despejou o resto no lava-loiça antes de começar a limpar a cozinha.
Assim que acabou, reparou num clarão de faróis pela janela; pouco depois,
estavam a entrar no acesso. Ouviu o barulho familiar do motor do Suburban
e inspirou profundamente, a pensar: Finalmente!
Ao sair da cozinha, ia a pensar como haveria de lidar com a infração de
Casey. A filha era a rainha das desculpas, mas ela sabia que gritar, ou até
mesmo erguer a voz, costumava levá-la a responder na mesma moeda, o
que depois escalaria até ao ponto em que a jovem gritava detesto estar
aqui!, e se enfiava no quarto. Ao mesmo tempo, as regras eram para ser
seguidas e, no entender de Kaitlyn, a filha tinha muito que explicar.
– A Casey chegou! – avisou Mitch. Estava diante da janela da frente, a
espreitar pelas cortinas. – Mas não é ela que vem a conduzir. Está com
alguém.
– Como? – Casey não tinha autorização para deixar que outra pessoa
conduzisse o Suburban. Essa talvez fosse a única regra que nunca tinha
infringido; a miúda adorava conduzir e nunca entregaria as chaves a
ninguém, a menos que…
Kaitlyn sentiu a raiva a apoderar-se de si.
A menos, claro, que tivesse estado a beber.
Kaitlyn ia lançada na direção da porta da rua quando esta se abriu
subitamente. Casey entrou e ela só precisou de um relance para a cara
manchada e os olhos arregalados da filha para perceber que estava mesmo
perturbada.
Antes que pudesse proferir uma palavra que fosse, Casey fechou a porta
e desatou a chorar convulsivamente. Kaitlyn envolveu-a num abraço,
sentindo a fúria a desaparecer à medida que a jovem ia soluçando, com todo
o corpo a tremer. Algures no meio daquela nuvem caótica de emoções,
Kaitlyn reparou que, na verdade, a filha não cheirava a álcool. Isso era bom,
considerou, apesar de ser óbvio que havia qualquer coisa que estava muito,
muito mal.

II
Casey demorou uns minutos a parar de chorar e começar a balbuciar um
resumo básico do que tinha acontecido: que batera no carro de um homem
no parque de estacionamento e que estava arrependida e que não sabia
como tinha acontecido. A mãe levou-a até ao sofá e obrigou-a a fazer umas
quantas respirações profundas. Com os olhos raiados de sangue e rímel a
escorrer-lhe pelas faces, estava com um ar terrível. Kaitlyn obrigou-se a
conter a irritação que sentia.
– Vamos ver se percebi bem – disse-lhe finalmente. – Foste ao Coach’s
com a Camille e quando estavas a fazer marcha-atrás no parque de
estacionamento, bateste no carro de alguém.
Casey assentiu com a cabeça.
– Não o vi atrás de mim. Não sei porquê.
– Magoaste-te? Consegues acenar com a cabeça?
– Já fiz isto tudo com ele.
– Isto o quê?
– Estas coisas médicas. Ele observou-me.
– Observou-te?
– Sabes o que quero dizer. – Casey fez um gesto impaciente com uma
mão. – Por amor de Deus. Não me tocou nem nada. E eu estou bem. Ele
disse que o Suburban nem sequer tinha estragos.
– Tens a certeza disso?
– Eu vi, mãe. Mas tu também podes ir ver, se não acreditas em mim.
– Não é que não acredite em ti. Ainda estou a tentar perceber o que
aconteceu, está bem?
– Já te disse. – Casey fungou. – Não estavas a ouvir?
Era um bocadinho difícil entender o que dizias, querida, e ainda não
tenho a história toda. Mas não disse isso. Perguntou antes:
– Quem é que veio contigo? É a Camille?
– Não, é o outro condutor. O tipo em que bati. O das tatuagens. Ele
disse-me como se chama, mas já me esqueci.
Tatuagens? Kaitlyn pestanejou.
– Deixaste que um tipo tatuado que não conheces te trouxesse a casa?
– Não aconteceu nada.
Casey passou uma mão pelo cabelo e depois remexeu nos bolsos, em
busca de um elástico para o prender.
– Porque é que ele está aqui?
– Achou que era melhor eu não conduzir por estar tão nervosa.
Enquanto prendia o cabelo num rabo de cavalo lasso, fitou a mãe de
olhos semicerrados.
– Tens noção de que não devias ter feito isso? Meteres-te no carro com
ele, quero dizer.
– Qual é o problema?
De te meteres num veículo com um desconhecido? Oh, caramba,
realmente, o que poderia correr mal?
– É perigoso. Não o conheces.
Ela encolheu os ombros.
– Ele pareceu-me simpático.
Simpático?
– Acho que é melhor ir falar com ele, então.
Enquanto Kaitlyn se levantava e avançava para a porta da rua, Mitch
atalhou:
– Eu também quero ir.
– Fica só aqui com a tua irmã por agora, está bem?
– Ah, não – replicou Casey com firmeza. – Eu vou contigo.
– Porquê?
– Para garantir que não te passas.
Que Deus me ajude, pensou Kaitlyn, e só a custo conseguiu impedir-se
de revirar os olhos.
Acendeu a luz do alpendre e depois as que iluminavam a garagem, antes
de sair com Casey atrás de si. Hesitou, demorando uns segundos a
recompor-se antes de reparar num homem encostado ao Suburban, com os
braços cobertos por coloridas tatuagens. Devia tê-las ouvido, pois virou-se
para ela e, quando o fez, os seus olhos encontraram os dela. Durante aquilo
que pareceu ser um momento muito demorado, ficou simplesmente a fitá-la,
como se tentasse decifrá-la. Mas, quando lhe dirigiu um sorriso breve, ela
sentiu algo dentro de si a sobressaltar-se. Não sabia ao certo o que esperava,
mas a aparência dele surpreendera-a.
Era um pouco mais alto do que a média e estava claramente em forma,
com os ombros largos evidentes debaixo de uma simples T-shirt preta.
Mesmo sob a luz desagradável das lâmpadas da garagem, ela reparou na cor
invulgar dos olhos dele. Uns malares altos e um maxilar definido criavam
sombras carregadas. As ondas densas do cabelo escuro tinham um corte
muito curto, quase militar, e ela reparou num toque grisalho no cabelo junto
às orelhas. As calças de ganga desbotadas e os sapatos pareciam caros, e o
sorriso dele irradiava uma confiança natural. Apesar das tatuagens, Kaitlyn
não se surpreenderia se ele trabalhasse em tecnologia ou consultoria,
podendo até ser médico, como ela. Apesar disso…
Ela teve a certeza de que ele não seria nenhuma dessas coisas. Havia
uma prontidão na sua postura, uma intensidade quase comprimida. Não,
não se tratava de um homem que passasse o dia a uma secretária, que
fizesse orçamentos ou preparasse apresentações de PowerPoint; a sua mera
presença física contava uma história diferente.
– Mãe! – sibilou Casey. – Porque estás aqui especada?
O som da voz da filha quebrou o feitiço e Kaitlyn finalmente desceu do
alpendre. À medida que se ia aproximando, o olhar dele mantinha-se fixo
no dela.
– Boa noite – disse ele, estendendo a mão. – Chamo-me Tanner Hughes.
Ela fitou a mão por um instante, antes de concluir que mais valia ser
cordial.
– Kaitlyn Cooper – respondeu, mantendo um tom descontraído. – A
Casey contou-me que vocês tiveram um acidente?
– Ela fez marcha-atrás num parque de estacionamento e abalroou o meu
carro.
– E você achou que era boa ideia trazê-la a casa? Sozinhos? Apesar de
ela ser menor?
– Mãe! – gemeu Casey, e Kaitlyn viu o olhar dele desviar-se para a filha
antes de tornar a fitá-la.
– Eu entendo – disse ele, num tom compreensivo, ainda que nada
arrependido. – E, se estivesse no seu lugar, isso provavelmente também me
preocuparia. Mas não o fiz por mal. Não me pareceu que fosse seguro
deixá-la conduzir e a amiga dela já se tinha ido embora. Viemos
diretamente para aqui.
– Eu já te disse isto tudo! – exclamou Casey, num tom que revelava a sua
vergonha.
– Nesse caso, suponho que deva agradecer-lhe – disse Kaitlyn.
– Não tem de quê. E a boa notícia para si, para além do facto de a Casey
não se ter magoado, é que praticamente não houve danos. Venha ver.
Avançou para a parte de trás do Suburban e, quando ela chegou à
bagageira, ele já estava a usar a lanterna do telemóvel para iluminar o para-
choques.
– Para além de uns quantos riscos, está ótimo. Também não dei por
qualquer problema pelo caminho.
Ela teve de se aproximar para conseguir ver os riscos, embora calculasse
que poderia haver danos que não se notassem. Tomou nota mental de o
deixar na oficina caso reparasse em algo fora do normal.
– E o seu carro? – perguntou ela.
– Isso já é outra história – reconheceu ele. Abriu a aplicação das
fotografias e passou-lhe o telemóvel. – Tirei umas quantas, esteja à vontade
para as ir passando.
Kaitlyn sentiu os dedos dele rasarem nos seus quando aceitou o
telemóvel. Passou as fotografias na direção errada e deu por si a ver uma de
Tanner sentado com um casal bem-vestido aproximadamente da mesma
idade, no que parecia ser o alpendre das traseiras de uma casa, com vista
para a água. Ficou a pensar: Tem amigos bem-apessoados com sorrisos
amáveis, deve ser uma pessoa normal.
Censurando-se por ser intrometida, fez avançar as fotografias na direção
contrária e, de súbito, arregalou os olhos. O automóvel parecia ser um carro
de corridas muito dispendioso dos anos 1960 e a reparação certamente seria
uma pequena fortuna. Quando lhe devolveu o telemóvel, teve a estranha
sensação de que ele tinha passado todo aquele tempo a observá-la com
interesse.
– Vou informar a minha seguradora. Obteve toda a informação de que
precisava?
– Sim – confirmou ele. – A sua filha foi muito prestável.
– Ah… bem… bom – disse ela, surpreendida por Casey ter sabido o que
fazer. – Lamento o estado em que ficou o seu carro. E sei que a Casey
também lamenta.
Ele guardou o telemóvel no bolso de trás das calças.
– Agradeço. – Mais uma vez, os olhares deles cruzaram-se durante um
longo momento antes de ela desviar o olhar e interromper a ligação. –
Suponho que seja tudo, então – continuou ele. – Muito gosto em conhecê-
la. E a ti também, Casey.
– Obrigada por me ter trazido a casa – agradeceu a jovem, a acenar com
a mão.
– De nada. – E virou-se, começando a dirigir-se para o passeio.
– Espere! – chamou-o Kaitlyn, apanhada desprevenida pelo fim súbito
da conversa. – Para onde vai?
Ele virou-se para ela, mas continuou a andar para trás.
– Vou voltar para o meu hotel. Chamo um Uber. Se não houver nenhum,
vou simplesmente a pé.
De repente, Casey espetou-lhe um dedo nas costas. Ao virar-se, Kaitlyn
viu a filha a lançar-lhe um olhar zangado, como que a perguntar: Vais
mesmo obrigá-lo a ficar ali à espera sabe-se lá durante quanto tempo? Ou
deixar que vá a pé? Kaitlyn demorou um segundo a entender, mas, quando
isso aconteceu, percebeu que Casey tinha razão.
– Onde é que está instalado? – perguntou-lhe.
– No Hampton Inn.
– Posso dar-lhe boleia até lá? – Falou mais alto, para garantir que ele a
ouvia.
Ele fez uma pausa antes de responder.
– Tem a certeza de que não é demasiado incómodo? – perguntou ele.
– É o mínimo que posso fazer. – Embora estivesse a ser sincera,
apercebeu-se de que a ideia de ficar sozinha com ele a deixava um pouco
nervosa. – Dê-me só um minuto para me calçar e ir buscar as chaves.
– A chave do carro continua no porta-copos – disse Tanner.
Claro, pensou ela, isso faz sentido.
– Casey, querida, traz-me as sandálias que estão na entrada, sim? –
Enquanto a filha voltava à casa, Kaitlyn observou Tanner a regressar,
dirigindo-se para o lado do passageiro do todo-o-terreno.
Quando Casey voltou, Kaitlyn enfiou as sandálias e murmurou.
– Volto num instante. Podes tomar conta do Mitch?
– Ele fica bem – respondeu Casey.
Kaitlyn resistiu ao impulso de repetir o seu pedido. Em vez disso, deu
por si a perguntar-se quando teria sido a última vez que se vira num carro
com um tipo bem-parecido que mal conhecia. Na faculdade, talvez? Na
secundária? Nunca?
Tentou espairecer a cabeça ao sentar-se ao volante. Rodou a chave e
ficou à escuta de quaisquer ruídos martelados ou rangidos enquanto fazia
marcha-atrás, mas não ouviu nada. Tanner ia a olhar pela janela do lado do
passageiro.
– Está cá em trabalho? – acabou ela por perguntar.
– Por motivos pessoais – disse ele, com um olhar de relance. Quando
sorriu, ela reparou que tinha dentes brancos e regulares. – Por acaso não
conhece alguém chamado Dave Johnson, não? Suponho que terá uns
cinquenta e muitos, sessenta e poucos anos?
Ela pensou um pouco.
– Não me parece – disse-lhe. – Lamento.
– Não faz mal. Não julguei que encontrá-lo fosse assim tão fácil.
– Não sabe onde é que ele está?
– Ainda não.
Ela deitou-lhe uma olhadela rápida.
– Ele está em apuros? Quero dizer, você é caçador de recompensas ou
algo do género? Ou será que ele lhe deve dinheiro?
Ele riu-se.
– Não, não é nada disso. Não sou caçador de recompensas, não trabalho
para a polícia e ele não me deve nada. Se conseguir encontrá-lo, só quero
falar com ele acerca de uma coisa que aconteceu há muito tempo e que
envolveu a minha família. É só isso.
O mistério da resposta dele era intrigante, mas ela sabia que aquilo não
era da sua conta.
– Boa sorte para o encontrar, então.
– Obrigado. – Ele virou-se um pouco no assento. – A Casey mencionou
que é médica.
– Sou internista aqui em Asheboro.
– E gosta?
– De quê? De ser médica? – Quando ele assentiu com a cabeça, ela
inclinou a sua por um instante, como se considerasse sinceramente a
pergunta. – Gosto – confirmou. – Desde pequena que sempre quis ser
médica. – Arqueou uma sobrancelha. – E o Tanner? O que faz?
– Ultimamente, não muito. De certo modo virei costas a tudo há uns três
anos.
– OK – disse ela, sem saber como responder a uma declaração daquelas.
– E o que fazia antes disso?
– Passei catorze anos no exército, a última década com a Delta Force.
Depois, quando deixei o serviço militar, trabalhei mais seis anos para a
USAID.
– Ah – disse ela, com a linha temporal da vida dele a começar
rapidamente a fazer sentido. A parte militar explicava as tatuagens e a forma
como se apresentava, mas ela desconfiava que ele não revelaria mais
pormenores acerca do tempo que passara no exército. Não a uma
desconhecida, pelo menos ainda não, por isso optou por fazer a pergunta
óbvia. – O que é a USAID?
– É a agência do governo federal que proporciona assistência
humanitária e de desenvolvimento a países estrangeiros. Oferece apoios à
agricultura, educação, infraestruturas, saúde pública e a uma data de outras
coisas.
– Então trabalhou em Washington?
– Não. Aí fica a sede, mas a agência tem missões por todo o mundo.
Trabalhei fora do país, para o Gabinete de Segurança.
Ela digeriu a informação.
– Posso perguntar onde, ou é confidencial?
– Não é confidencial. Há gabinetes locais numa centena de países, mas
eu estive destacado nos Camarões, na Costa do Marfim e, por fim, no Haiti.
– Como é que uma pessoa consegue sequer um trabalho assim? Estudou
relações internacionais ou…
– Não, nada disso – atalhou ele. – Depois de passar à reserva, colaborei
com o meu conselheiro da PAT para perceber o que queria fazer em
seguida. Não queria seguir pela via da segurança privada, pelo que ele
sugeriu que fosse antes para a USAID.
– O que é um conselheiro da PAT?
– Desculpe. É a sigla do Programa de Assistência na Transição. Para
veteranos que regressam à vida civil. O exército gosta de acrónimos.
Ela assentiu com a cabeça, ainda a pensar no que ele lhe tinha dito antes.
– Não é um bocado novo para parar de trabalhar durante três anos?
– Talvez – reconheceu ele. – Na altura, pareceu-me a coisa certa a fazer.
– E agora?
– É tempo de mudar. Parto para os Camarões de novo em junho.
– Com a USAID?
– Não. Desta vez é com o CIR. – Então, como se previsse a pergunta
dela, acrescentou: – Comité Internacional de Resgate.
Ela considerou que isso fazia sentido; ele ainda era novo e as despesas
não tinham fim, o que significava que todas as pausas acabariam por
terminar.
– Posso perguntar quanto tempo tenciona ficar em Asheboro?
– A ideia era ficar até encontrar o tipo de que ando à procura, ou concluir
que não consigo encontrá-lo. Agora, com o carro a precisar de ser arranjado,
os planos ficaram um bocado no ar.
Kaitlyn fez um ar consternado.
– Lamento realmente o que aconteceu ao seu carro. A julgar pelas
fotografias, parece de museu. Ou parecia até esta noite, quero dizer.
– Não é um clássico – assegurou-lhe ele. – É uma reprodução, só tem um
par de meses. – E falou-lhe da Revology Cars.
– Não sei o que será pior. Que a minha filha tivesse abalroado um carro
clássico ou que tenha abalroado um carro novo.
– Posso garantir que a última hipótese não é lá muito divertida.
A forma descontraída como ele o disse fê-la sorrir e dar por si a relaxar
pela primeira vez.
– Então, é casado? – perguntou-lhe.
– Não. Nunca dei o nó.
– Filhos?
– Que eu saiba, não.
Ela riu-se, sem saber por que se sentia um pouco estonteada.
– Então e de onde é? Originalmente, quero dizer.
– Da Europa, suponho.
Ela fitou-o, curiosa.
– Miúdo do exército – disse ele, antes de lhe fazer um breve resumo da
sua juventude.
– E agora onde é o seu lar?
Ele encolheu os ombros, quase como que a pedir desculpa.
– Não sei realmente como responder a essa pergunta.
– Não tem um apartamento algures? Ou uma casa?
– Nunca tive – respondeu. – No exército, ou vivia na caserna, ou
destacado fora do país; com a USAID, vivia numa residência oficial, mas
temporária. Os meus amigos provavelmente dir-lhe-iam que não fui feito
para assentar.
Ela sorriu, com a mente a recordar a fotografia do casal que tinha visto
no telemóvel dele, o que lhe provocou outro pensamento.
– Antes de o deixar no hotel, acha que pode mostrar-me o seu carro para
eu lhe tirar mais fotografias? Para o caso de a minha seguradora precisar?
– Claro – respondeu ele de imediato. – Estávamos no Coach’s. Sabe
onde é?
– Sei – disse ela, virando o carro na direção do bar.
Uns minutos depois, estavam a procurar um lugar no parque de
estacionamento cheio, com Kaitlyn a perguntar-se porque seria que toda a
gente de Asheboro parecia ter ido para ali.
– É por causa do torneio de basquetebol – explicou Tanner, como se lhe
adivinhasse os pensamentos.
Chegaram ao Shelby, mas, depois de verificar os danos, de súbito
Kaitlyn deu-se conta do que tinha esquecido.
– Não vai acreditar nisto, mas acabei de me dar conta de que não trouxe
o telemóvel – disse, envergonhada.
Os olhos de Tanner iluminaram-se, divertidos.
– Ficou na sua mala, o que deve querer dizer que também se esqueceu da
carta de condução.
A boca dela formou um pequeno «oh» de surpresa quando ela se deu
conta de que ele tinha razão.
– Hum… não costumo ser tão despistada.
– Não tenho a mínima dúvida disso.
A certeza do tom dele – e a forma direta como a fitou enquanto o dizia –
fê-la corar e ela virou-se na direção do carro, esperando que ele não tivesse
reparado.
– Parece pior ao vivo do que nas fotografias.
– Foi uma bela pancada, isso é certo.
Ela viu-o tirar o telemóvel do bolso; ele fez uma série de fotografias a
partir de um ângulo e depois de outro. Pouco depois, Kaitlyn ouviu o
zunido familiar que indicava que as fotografias tinham sido enviadas.
– Para onde é que as enviou?
– Para si, acho eu – respondeu ele, mostrando-lhe o telemóvel. – Este
número é o seu, certo? – Ela assentiu com a cabeça, surpreendida. – A
Casey tinha-mo dado. Já devem estar no seu telemóvel. Também lhe enviei
as que tinha tirado antes.
– Obrigada – disse ela. – Estou um pouco surpreendida com a Casey…
costuma ser uma condutora muito cautelosa.
– Acho que ela estava irritada quando entrou no carro.
– O que quer dizer?
– Eu vi-a discutir com um rapaz, que a agarrou com força por um braço.
Não fixei o nome dele, mas tinha cabelo castanho e era assim para o alto.
Os lábios de Kaitlyn comprimiram-se quando ela percebeu de imediato
que devia ter sido Josh.
– Obrigada por me contar isso – agradeceu, antes de se livrar do
pensamento. Não era altura nem lugar para se debruçar sobre isso, pelo que
se obrigou a sorrir. – Acho que é melhor levá-lo então ao hotel.
Fizeram a maior parte do percurso em silêncio, mas, quando se
aproximavam do hotel, ela tornou a ouvir a voz dele.
– Na verdade, será que pode deixar-me aqui? – perguntou ele, apontando
com um polegar para a janela do lado do passageiro. O olhar dela desviou-
se para o espelho retrovisor enquanto ele continuava. – Acho que vi um pub
e já tomava uma cerveja, depois disto tudo.
Ela assentiu com a cabeça e encostou o carro.
Ele levou a mão ao manípulo da porta e abriu-a antes de se virar de novo
para ela.
– Sei que pode parecer estranho, tendo em conta como os nossos
caminhos se cruzaram esta noite, mas não haverá qualquer hipótese de
querer vir comigo?
Ela abriu a boca, surpreendida, sem saber o que dizer.
– Oh – acabou por responder. – Não estou propriamente vestida…
– Está linda – disse ele –, e é por isso que não me perdoaria se não a
convidasse.
Ela fitou-o, espantada por ele a achar linda.
– Os miúdos devem estar em casa à minha espera… – hesitou ela.
– Compreendo – disse ele. – Obrigado pela boleia, Kaitlyn. Foi um
prazer conhecê-la.
Quando ele saltou para fora do Suburban, ela tornou a pensar no que ele
lhe tinha dito e as palavras seguintes saíram-lhe antes de ela ter consciência
sequer de que tinha mudado de ideias.
– Espere – disse ela. – Acho que uma cerveja não faz mal.
Estacionou o Suburban na rua antes de caminhar ao lado dele,
estranhamente consciente de quão próximo ele se encontrava. Lá dentro, o
pub estava apenas meio cheio e eles foram até ao balcão pedir as suas
cervejas. Enquanto se dirigiam para uma mesa livre e se sentavam, Kaitlyn
nem acreditava que estivesse a fazer aquilo. Fitou-o por cima da mesa,
bebeu um gole e pensou em algo que ele tinha dito antes.
– Mencionou que virou costas a tudo há três anos, mas não sei ao certo a
que se referia.
– Ah – exclamou ele, recostando-se. – A covid deixou-me detido no
Havai durante algum tempo e, depois disso, acho que se pode dizer que
tenho andado a fazer uma espécie de viagem de carro pelo país. –
Continuou ele, falando-lhe do tempo na estrada.
– E veio até Asheboro em busca de uma pessoa? – perguntou ela.
– Sim.
Como ele não acrescentou mais nada, ela tornou a conter a curiosidade,
optando por algo a que fosse mais fácil dar resposta.
– E de onde é que veio?
– Saí de Pine Knoll Shores hoje de manhã. Passei uns dias com um
amigo que vive lá. Antes disso, estive uns meses em Pensacola.
– O que é que há em Pensacola?
– A minha avó. Estava doente.
– E como é que ela está agora?
– Faleceu há cinco semanas.
– Oh, meu Deus – exclamou ela. – Lamento imenso…
– Eu também – disse ele. – Era uma senhora notável. A minha mãe
morreu quando eu nasci, por isso foram os meus avós que me criaram.
– E o seu avô? Esteve consigo enquanto cuidava da sua avó?
– Morreu há oito anos. Ataque cardíaco.
Ela assimilou a informação, observando-o a empilhar as bases para
copos em cima da mesa antes de as espalhar como um baralho de cartas. Ele
olhou para ela e continuou:
– Já falámos muito sobre mim, por isso agora é a sua vez. Cresceu aqui,
em Asheboro?
– Não – respondeu ela. – Mudei-me para cá depois dos trinta. Nasci e
cresci em Lexington, no Kentucky. Foi lá que estudei medicina, na
Universidade do Kentucky. Força Wildcats.
Ele sorriu.
– O que é que a trouxe para cá?
– O George – disse ela –, o meu ex-marido. É cardiologista de
intervenção e mudámo-nos para aqui depois de ele ter terminado os
internatos. Trabalha em Greenboro.
– Quanto tempo estiveram casados?
– Treze anos – explicou ela. – Divorciámo-nos já há quatro anos.
Enquanto ia respondendo, Kaitlyn esperava que ele não fizesse mais
perguntas – a última coisa que queria era falar sobre George –, e Tanner
pareceu dar por isso.
– A sua família continua em Lexington?
– Os meus pais, sim. Mas o meu irmão mais velho agora vive perto de
Chicago e a minha irmã mais nova mudou-se para Louisville há uns seis
anos. Continuamos a tentar juntar a família toda lá em casa umas duas
vezes por ano, mas vai-se tornando mais difícil agora que os miúdos estão
mais crescidos. Bem, mais difícil para a Casey, pelo menos. O Mitch ainda
gosta de ir.
– O Mitch?
Ela assentiu com a cabeça.
– O meu filho. Tem nove anos.
– Têm uma grande diferença de idades – comentou ele.
– A Casey foi uma surpresa – concedeu ela. – Quanto ao Mitch, quando
nos sentimos preparados para ter outro filho, eu demorei algum tempo a
engravidar. Talvez fosse do stresse, mas na verdade não sei. Andava muito
ocupada nessa altura.
– Suponho que continue muito ocupada – disse ele.
Ela agradeceu que ele percebesse como era difícil ser mãe solteira e
trabalhadora.
– Então, não tem filhos, hã? Arrepende-se?
– Às vezes – admitiu ele. – Como é que são os seus filhos? Fale-me
deles.
Kaitlyn ficou um pouco comovida pelo interesse dele, mais que não
fosse por parecer genuíno.
– Já conheceu a Casey, por isso provavelmente percebeu que tem
dezassete anos que mais parecem vinte e cinco. Sempre foi obstinada e
esperta como tudo, mas a adolescência tem sido um desafio. O Mitch ainda
está na fase fácil.
– E?
Ela bebeu um trago da sua cerveja antes de partilhar mais informação
acerca de cada um deles. Contou-lhe que Casey era uma excelente aluna,
que esperava vir a frequentar a Universidade de Duke ou Wake Forest, que
tinha muitos amigos e que adorava o irmão mais novo. Falou-lhe da paixão
de Mitch por futebol, apesar de não ser lá muito bom, e contou-lhe que
andava a aprender a talhar madeira. Descreveu-lhe a sua obsessão com os
legos e animais de todos os géneros, mas sobretudo com os que podiam
encontrar-se no jardim zoológico.
Tanner inclinou o copo na direção dela, mostrando-lhe que compreendia.
– Parecem ser miúdos espetaculares – comentou. – E a Kaitlyn parece
ser uma mãe espetacular.
– Tenho tido sorte – replicou. Depois, de repente, lembrou-se de algo que
ele tinha dito antes. – Há bocado disse que viu um tipo a agarrar a Casey
pelo braço?
Tanner relatou-lhe o que vira com mais pormenores.
– Não admira que ela não estivesse a prestar atenção quando começou a
fazer marcha-atrás – refletiu Kaitlyn.
– Sabe quem era o tipo?
– Acho que sim – disse ela, de cenho franzido. – Devia ser o Josh. Não o
tenho em grande conta.
– Deu para perceber.
Ela riu-se antes de abanar a cabeça.
– Às vezes só queria poder agarrar em tudo o que aprendi, em todo o
meu conhecimento acumulado, e despejá-lo dentro da cabeça da Casey. Em
vez disso, ela passa a vida a ter de aprender com os seus próprios erros, e,
quando se tem filhos, ver isso custa muito.
Ele sorriu, compassivo.
– Suponho que, entre o trabalho e os miúdos, não deve ter muito tempo
para simplesmente relaxar e beber uma cerveja. Mas nem consigo explicar
como fico contente por o ter feito.
Kaitlyn sentiu o início de um rubor a subir-lhe de novo pelo pescoço. Ele
está a flirtar comigo, apercebeu-se. Nem sequer se tinha penteado antes de
sair de casa, pensou, assombrada. Mas enquanto ele lhe fazia perguntas
sobre a sua educação e formação médica, sobre os seus hobbies e interesses,
ela deu por si a responder com à-vontade, partilhando histórias em que não
pensava há anos. A sensação era reconfortante e calorosa, como se estivesse
a aproveitar o sol sentada num alpendre.
Um pouco depois, porém, com o copo ainda meio cheio, percebeu que
estava na altura de ir embora. Casey e Mitch estariam sem dúvida a
perguntar-se onde estaria ela, mas mentiria se dissesse que não queria ficar
pelo menos um pouco mais.
Talvez fosse imaginação sua, mas também ele parecia relutante quanto a
dar a noite por terminada, mesmo quando se levantaram da mesa e
regressaram ao Suburban. No curto caminho até ao Hampton Inn, ele
manteve-se estranhamente calado e, quando ela parou em frente ao hotel,
ele hesitou antes de sair.
– Gostei muito – disse ele, num tom que parecia sincero. – Obrigado por
me ter feito companhia.
– Diverti-me – concordou ela.
Tanner parecia estar a debater-se com algo antes de perguntar:
– Será que posso voltar a vê-la? Já que tenho de ficar em Asheboro pelo
menos até arranjar o carro?
Kaitlyn hesitou. Era o momento de pôr fim àquilo – fosse o que fosse – e
o seu lado racional sabia que essa seria a coisa certa a fazer. Já tinha uma
vida muito ocupada e sabia que ele partiria em breve, por isso, para quê
correr o risco de se apegar? Logicamente, sabia bem o que fazer, mas não
era capaz de lhe dizer que não.
– Claro. Porque não?
Se ele tinha pressentido a hesitação dela, não o demonstrou.
– O que faz amanhã? Se não estiver ocupada, talvez pudéssemos
almoçar.
– Oh, bem, prometi que levava o Mitch ao jardim zoológico – disse ela,
hesitante. – E amanhã à noite tenho consultas ao domicílio…
Ele arqueou uma sobrancelha.
– Faz consultas ao domicílio? Não sabia que os médicos ainda faziam
isso.
– Não é comum, mas é importante para mim e ajuda a prevenir
hospitalizações. Algumas pessoas simplesmente não vão ao médico. Ou
porque estão ilegalmente no país, ou porque não têm meio de transporte, ou
porque são agorafóbicas, ou porque têm medo do custo, ou por qualquer
outra razão. Então, vou eu vê-las.
– Quantas são?
– Trinta ou quarenta? Não as vejo a todas todos os domingos, claro. Vou
revezando os pacientes, mas ainda me leva umas duas a três horas.
– Estou impressionado. Mais do que já estava, o que não era pouco. E
percebo que amanhã à noite não possa ser, mas e se almoçássemos os três
no jardim zoológico?
– Quer ir ao jardim zoológico?
– Porque não? Há de ser melhor do que passar o dia enfiado no hotel.
Mais uma vez, ela recordou a si mesma que havia inúmeras razões para
recusar e, não obstante, ao regressar ao calor curioso do olhar dele,
apercebeu-se de algo dentro de si – a parte que tinha tanta relutância quanto
a correr riscos – mudara durante a última hora.
– Está bem – anuiu. – E se eu fosse buscá-lo às onze e meia?

III

De regresso a casa, Kaitlyn ia a pensar em Tanner e a tentar compreender


as últimas horas. Se nessa manhã alguém lhe tivesse dito como iria passar a
noite de sábado, ela ter-se-ia rido e garantido que tal ideia era simplesmente
ridícula. Tomar um copo com um tipo que acabava de conhecer por acaso?
Flirtar? Concordar que tornaria a vê-lo no dia seguinte? Na vida real, coisas
assim simplesmente não aconteciam, pelo que inspirou profundamente,
sentindo-se um pouco estonteada.
Foi para casa em piloto automático. Quando virou para a sua rua,
demorou um pouco a perceber que uma carrinha preta de aspeto recente
estava a sair lentamente em marcha-atrás do acesso da sua casa. Confusa,
abrandou o Suburban e viu a carrinha recuar até parar em frente à casa,
avançando em seguida, com os faróis a fazerem com que o asfalto em frente
parecesse estar a brilhar.
Confusa, franziu o sobrolho, dando-se conta de que alguém tinha ido a
sua casa. Quando a carrinha começou a acelerar, passou por si e ela
reconheceu tanto o veículo como o condutor.
Josh, percebeu ela e, de súbito, os pensamentos acerca de Tanner
tornaram-se muito longínquos.
A tentar conter a irritação, estacionou no acesso e empurrou a porta da
rua, ficando surpreendida ao ver que a sala de estar se encontrava vazia e
que o televisor já fora desligado. Também a cozinha parecia deserta e,
subindo as escadas, espreitou para dentro do quarto do filho. Este já tomara
banho e estava a vestir a parte de cima do pijama, com o cabelo ainda
molhado e espetado para todos os lados.
– Olá, mãe – disse ele, a enfiar os braços nas mangas.
Ela sorriu.
– Fico surpreendida por já estares a preparar-te para ir para a cama.
– Amanhã vamos ao jardim zoológico e não quero estar cansado.
– Quanto a isso – atalhou ela –, importas-te se for outra pessoa
connosco?
– Quem?
Por um momento, não soube como haveria de descrever Tanner. Um
homem que acabo de conhecer? Um desconhecido? O tipo do carro que a
Casey abalroou?
– Um amigo – acabou por explicar, sabendo que, embora não fosse
propriamente verdade, era melhor do que as alternativas.
– Por mim, não há problema – disse ele, encolhendo os ombros. Depois,
passado um momento, olhou para a mãe. – Agora vais gritar com a Casey?
Por ela ter destruído o carro daquele tipo?
– Não vou gritar com a Casey – disse ela. – Só preciso de conversar com
ela.
– Vocês acabam sempre a gritar quando dizes que vão conversar.
Sem querer discutir com ele, deu-lhe um beijo rápido na cabeça.
– Vemo-nos de manhã, sim? Adoro-te.
Depois de apagar a luz do teto, deixou a porta entreaberta – Mitch
gostava de que ficasse assim – e foi até ao quarto de Casey. Bateu umas
quantas vezes à porta sem ouvir resposta. Por fim, espreitou e viu a filha
deitada de barriga para baixo, com um manual aberto à sua frente. Da
entrada, ouvia ligeiros acordes de música a sair dos auscultadores de Casey,
o que explicava porque não respondera. A jovem fitou a mãe nos olhos
enquanto tirava os auscultadores.
– Ainda demoraste bastante a voltar – comentou, com uma expressão já
desconfiada.
Kaitlyn ficava impressionada com o talento que a filha tinha para a
deixar imediatamente à defesa.
– Eu e o Tanner parámos para tomar uma cerveja antes de eu o deixar no
hotel e acabámos a falar durante mais tempo do que eu julguei que fosse
demorar.
– Foram para os copos juntos?
– Uma cerveja, que nem sequer acabei – disse Kaitlyn, e depois mudou
de assunto. – Vim aqui para te perguntar se tens uns minutos para podermos
conversar.
– Acho que sim – acabou Casey por responder, fechando o manual com
um gesto teatral.
Kaitlyn atravessou o quarto e sentou-se na cama. Calculando que seria
melhor ir direita ao assunto, perguntou:
– O Josh veio cá? Pareceu-me vê-lo a sair do acesso da casa.
– Veio pedir desculpa – disse Casey.
– Casey…
A jovem revirou os olhos.
– Já sei o que estás a pensar, mãe. Não, não o convidei. Não, não sabia
que ele vinha. Não, não o queria aqui e não, não o deixei entrar. Já sei que
não gostas dele, está bem? E já te disse que eu também não.
– Mas estiveste com ele no Coach’s, não foi?
Os olhos de Casey faiscaram.
– Não foi intencional! Fui lá ter com a Camille, OK? Ela queria falar
comigo sobre o Steven, porque tinham tido uma discussão tremenda, e
depois o Josh e o irmão e o Carl apareceram de repente e sentaram-se à
nossa mesa. O que havia eu de fazer?
Steven ora era, ora não era namorado de Camille; a relação, tanto quanto
Kaitlyn conseguia deduzir, incluía drama sem fim e uma crise a seguir à
outra. O que devia explicar por que razão Casey levara o Suburban sem
pedir permissão.
– Também não vieste jantar e, quando tentei ligar-te…
– Lamento ter faltado ao jantar, mas a Camille estava em prantos e
também já te expliquei que fiquei sem bateria no telemóvel – disparou
Casey. – Assim que cheguei a casa, lembras-te?
Kaitlyn não tinha a certeza de recordar essa parte, mas, na verdade na
altura tinha sido bastante difícil perceber o que a filha dizia.
– Quanto ao acidente…
Casey revirou os olhos.
– Pela milionésima vez, lamento muito, muito, muito ter tido o acidente.
Foi um erro estúpido, não fiz de propósito, quem me dera que nunca tivesse
acontecido, e não vai voltar a acontecer. Podes pôr-me de castigo ou lá o
que estás a pensar fazer.
Kaitlyn ignorou o tom de mártir e tentou manter uma voz calma.
– Como te disse, queria falar contigo acerca do Josh.
– Já falámos.
– Ele agarrou-te? No parque de estacionamento? E foi por isso que não
estavas a prestar atenção quando fizeste marcha-atrás?
Os olhos da filha semicerraram-se.
– Suponho que aquele tipo te tenha contado que o Josh me agarrou pelo
braço, não foi? Foi disso que estiveram a falar durante este tempo todo?
Enquanto bebiam um copo?
Kaitlyn ignorou tanto as perguntas como o tom acusador.
– Estás ciente de que ninguém tem o direito de te agarrar, certo?
– Achas que não sei isso? – passou-se Casey. – Era por isso que estava
irritada! Não sou tonta, mãe.
– Eu sei que não és tonta…
– Então deixa de te comportares como se eu fosse! – gritou Casey,
interrompendo-a. – Nem sei o que mais queres de mim. Já pedi desculpa
por tudo não sei quantas vezes e, ah, já agora, entretanto, tenho excelentes
notas em todos os testes, tomo conta do Mitch sempre que precisas e chego
sempre a casa antes da hora marcada. É sábado à noite e, em vez de ir a
uma festa, estou a estudar para os exames. Não bebo nem me drogo, mas
quem te ouvir há de pensar que sou uma pessoa horrível…
– Eu não acho que tu sejas horrível – disse Kaitlyn, surpreendida, a
perguntar-se de onde viria tudo aquilo. – Não percebo onde foste buscar
essa ideia…
– Estás sempre a tentar dizer-me o que fazer, como se, de alguma
maneira, eu não estivesse à altura das tuas expectativas. Eu percebo que
nunca hei de ser perfeita, como tu, mas pelo menos não me esqueci de
como ser feliz.
O comentário fez Kaitlyn pestanejar, magoada a ponto de não saber ao
certo como responder. Despediu-se à pressa e então, arrasada, tornou a
descer as escadas.
Sentou-se no sofá, com a mente à roda por tudo o que tinha acontecido
naquela noite, desde o acidente a ter conhecido Tanner e acedido a vê-lo
novamente no dia seguinte. Em qualquer outra situação, sabia que não
estaria a pensar noutra coisa, mas agora…
Seria que Casey achava mesmo que a mãe se esquecera de como ser
feliz?
E, o que era mais importante, seria isso verdade?
CAPÍTULO TRÊS

H oras antes, o velho e o rapaz tinham estado sentados num gazebo.


Começara a chover depois de eles chegarem, a água escorria do
telhado por todos os lados, formando poças debaixo dos baloiços e do
escorrega ali perto. Era uma chuva suave e constante que se seguia a mais
de uma semana de dias primaveris mais quentes do que o habitual, e Jasper
sorrira para com os seus botões, ciente do que isso pressagiava ao certo.
Estavam a talhar tília com os seus canivetes, como faziam todos os
sábados à tarde. O gazebo e o parque infantil relvado ficavam a cerca de
quatrocentos metros da cabana de Jasper, mas ainda à vista da casa de
Mitch. Isso permitia que a mãe do rapaz os mantivesse debaixo de olho, o
que não incomodava minimamente o velhote, que continuava a manobrar o
canivete, dando os toques finais num leão com uma juba exuberante. Ele
sabia que o rapaz gostava muito dos animais do jardim zoológico e que
estava a trabalhar numa coisa que se parecia com uma tartaruga, se bem
que, vendo-a com mais atenção, talvez fosse uma aranha. Um pequeno
monte de raspas ia-se acumulando aos pés deles e as aparas por vezes
aterravam em cima de Arlo.
O cão era um rafeiro arraçado de labrador que, há mais de doze anos,
tinha entrado a toda a velocidade, trémulo e medroso, na cabana do velhote
durante uma tempestade, quando ele abrira a porta para espreitar o céu. Na
altura, não era muito mais do que um cachorro, e Jasper oferecera-lhe uma
sande de ovo e um pouco de água enquanto esperavam que a tempestade
passasse. No dia seguinte, tinha colado panfletos e visitado os veterinários
da zona em busca do dono, mas nunca aparecera quem reclamasse o cão
como seu. Jasper concluiu que Arlo, tomado pelo pânico, saltara da parte de
trás de uma carrinha de caixa aberta, sem que os primeiros donos se
tivessem dado conta até chegarem ao destino distante, fosse ele qual fosse.
Quanto à escolha do nome, o cão recordara-lhe o jovem Arlo Guthrie,
com os seus caracóis desgrenhados e um olhar sério; Jasper tinha sido fã de
Guthrie, em tempos. Agora, com um focinho preto que tinha
embranquecido quase por completo, e bochechas que faziam lembrar o
bigode descaído do cantor, o nome parecia ainda mais apropriado.
Ultimamente, o cão dava-se por satisfeito passando a maior parte do tempo
deitado aos pés do dono a ressonar, ou vagueando ociosamente até à sua
tigela de comida, não fosse dar-se o caso de algo novo ter sido
acrescentado.
Durante mais de uma década, tinham sido só eles os dois; nas décadas
anteriores, Jasper vivera sozinho. Mas o rapaz era boa companhia e Jasper
também gostava da mãe dele. Não dessa maneira, nada disso. Jasper amara
a sua mulher, Audrey, e, embora esta tivesse falecido há mais anos do que
aqueles que tinham estado casados, a sua ausência continuava a deixar-lhe
lacunas que ele sabia que nunca voltaria a preencher. Mas Jasper fora
ganhando uma confiança cega na mãe do rapaz em relação a tudo o que
dizia respeito à sua saúde, o que provavelmente daria para preencher uma
enciclopédia médica – um sistema imunitário que estava sempre a falhar, o
coração com tendência para a fibrilação, a tensão arterial e o colesterol
elevados. Discos salientes na parte inferior da coluna provocavam-lhe
frequentemente espasmos dolorosos e dormência nos pés. Juntando-se a
isso um ligeiro zumbido, um cancro na próstata que ia avançando
lentamente e articulações tão artríticas que estalavam, crepitavam e doíam
sempre que ele se mexia, era evidente que, a pouco e pouco, o seu corpo ia
desistindo. Contudo, o que mais preocupava a médica era a pele de Jasper.
Era um verdadeiro horror e, ainda que Kaitlyn não tivesse conseguido
resolver os problemas, em grande medida impedira que a coisa piorasse, o
que ele já considerava uma bênção.
No entanto, o que ele mais apreciava era o seu caráter. Ela não ralhava
com ele por causa da sua alimentação, composta sobretudo por sopas e
guisados de lata ou sanduíches, nem lhe dava sermões sobre a importância
de comer mesmo que não tivesse fome, dado que nos últimos anos
começara a perder peso. Nunca se queixava por Jasper levar Arlo às
consultas. E, o que era mais impressionante, não desviara o olhar quando
ele se sentara pela primeira vez na marquesa para ser examinado, três anos
antes. Com a reforma do Dr. Jenkins, os pacientes deste tinham sido
atribuídos a outros médicos, e Jasper esperava que aquela médica desviasse
o olhar por instinto. Era o que a maioria das pessoas fazia, afinal, e ele não
as julgava por isso. Cicatrizes de queimaduras e enxertos cobriam-lhe mais
de metade do corpo e tinham-no deixado sem cabelo; outras zonas da pele,
incluindo as partes do pescoço e do rosto que não tinham sido queimadas,
eram atormentadas por psoríase crónica. Nessa primeira consulta, ele
dissera a brincar que no Halloween não precisava de máscara para assustar
a criançada toda. Respondendo-lhe numa voz suave, mas firme, ela tinha
dito que duvidava, porque os olhos dele eram demasiado bondosos. Uma
mentira, obviamente, mas que ele aceitara porque os dela também eram.
Jasper reconhecera o rapaz de uma fotografia na secretária dela. A
conversa de circunstância revelara que não viviam muito longe um do
outro. A casa da médica ficava num bairro perto da propriedade dele. Três
lados do terreno dele davam para a Floresta Nacional de Uwharrie e, a
partir do bairro, a forma mais rápida de se chegar à floresta era atalhando
pela sua propriedade. Jasper tinha colocado tabuletas a dizer proibido
passar e pintado uma dúzia de troncos de árvore de roxo; apesar disso,
havia quem não se fizesse rogado a passar pelo seu terreno. Incluindo o
rapaz.
Tinha-o visto pela primeira vez no verão anterior; estava sentado no
alpendre e o rapaz, sozinho, atravessara o seu terreno. Era esguio e usava
uns óculos grossos de armação preta e umas jardineiras; levava uma fisga e
uma mancheia de alvos de papel. Fizera-o recordar os seus próprios filhos
quanto partiam em aventuras de rapazinhos, pelo que se manteve calado e
continuou simplesmente a talhar a madeira.
Uns dias depois, ele tornou a passar pela sua cabana e Jasper reconheceu
o rapaz que vira na fotografia da secretária da médica. Ele tinha alinhado no
corrimão do alpendre alguns dos animais que fora talhando ao longo dos
anos e, quando o rapaz passou a caminho da floresta, abrandou e até parou
para os ver melhor. Perguntou-lhe o que estava a fazer.
– Estou a talhar uma coruja – respondeu Jasper, de cabeça baixa. Sabia
por experiência própria como podia ser a reação do rapaz assim que lhe
visse o rosto.
– Talhar é o mesmo que esculpir?
– É – disse Jasper, antes de finalmente levantar a cabeça. O rapaz deu
um passo involuntário atrás. As lentes dos seus óculos eram grossas como o
fundo de uma garrafa, o que lhe aumentava o tamanho dos olhos.
– É você – gaguejou o pequeno. – O homem da cabana.
– Suponho que sim – resmungou Jasper, já a prever o que se seguiria.
O rapaz engoliu em seco.
– É verdade que come criancinhas?
Jasper já tinha ouvido o rumor, mas não sabia de onde teriam vindo tais
ideias. Adolescentes, provavelmente, a querer assustar os irmãos mais
novos, ou talvez gente com mau coração.
– Não – respondeu. – Prefiro sopa de tomate ou um guisado.
– Também não me parecia. A minha mãe disse-me que era mentira e que
acha que o senhor é boa pessoa.
– É uma senhora simpática, a tua mãe. E boa médica, também.
– O que é que lhe aconteceu à cara? – arriscou o rapaz.
– A vida – respondeu Jasper da mesma forma de sempre. Então, como
tinha acabado a figura que estava a talhar, atirou-a na direção do rapaz. Este
apanhou-a do chão e deu-lhe voltas e mais voltas, inspecionando-a com
atenção.
– Foi o senhor que fez isto? A partir de um pedaço de madeira?
– Fui.
– Fez todos esses? – perguntou Mitch a seguir, a apontar para o
corrimão.
– Sim.
Por fim, o rapaz aproximou-se para os ver melhor.
– Parecem saídos de uma loja!
Jasper sabia que aquilo era para ser um elogio e sorriu, mas, como era
frequente os seus sorrisos parecerem esgares assustadores, apressou-se a
baixar novamente a cabeça. Pigarreou.
– Podes ficar com essa coruja, se quiseres. Não me faltam animais, como
vês.
Mais tarde, no mesmo dia, o rapaz voltou com a mãe, a médica. Ela
trazia um prato com tampa e, como de costume, correspondeu-lhe
diretamente ao olhar. Para além de dizer que tinha posto o filho de castigo
por ter entrado na floresta sem autorização (Porque a irmã lhe disse que
podia, apesar de dever estar a tomar conta dele, e por isso ela também está
de castigo!), obrigou-o a pedir desculpa por ter invadido propriedade
privada. E pelas perguntas indevidas que tinha feito.
Jasper aceitou os pedidos de desculpa e disse que o rapaz podia entrar na
sua propriedade sempre que quisesse. Então, a médica disse ao filho que
devolvesse a figura talhada, mas Jasper insistiu que tinha sido um presente e
tornou a dizer que o rapaz podia ficar com ela. Foi então que ela destapou o
prato e lho ofereceu, revelando uma montanha de bolachas caseiras. Depois
de dar uma dentada numa, espantou-se ao ouvir o rapazinho perguntar,
numa voz tímida, se ele poderia ensinar-lhe a talhar. Mastigou em silêncio
enquanto considerava a ideia. Estava destreinado quanto a falar com
pessoas, e há décadas que não passava tempo com crianças, mas no final,
talvez por gostar da médica, concordou. E tinha passado a encontrar-se com
o rapaz no gazebo desde então.
Isso era bom, concluíra. Gostava de ver a forma como o rapaz inchava
de orgulho sempre que ele lhe passava um canivete. Gostava que lhe
chamasse Mr. Jasper – usando o seu nome próprio e não o apelido –, como
muitos sulistas faziam. O melhor era que o rapaz já não se recusava a fitá-lo
olhos nos olhos nem parecia perturbado com a sua aparência, o que fazia
com que não fosse nada importante que o rapaz ainda não soubesse talhar
nada de jeito.

II

– Uau! – exclamara o rapaz nesse dia. – Isso é um leão?


– É, pois – assentiu Jasper, a fazer pequenas curvas para realçar a juba,
dando os retoques finais. Continuava a gostar de pensar nele como o rapaz,
em vez de Mitch.
– Que tal está este? – perguntou o rapaz, mostrando-lhe a tartaruga, a
aranha ou lá o que era suposto ser.
– Hum… – Jasper não sabia o que dizer.
– Vai ser o Arlo, quando eu acabar.
– Hum… – repetiu Jasper.
– Eu fiz tal como o senhor disse – explicou o rapaz. – Primeiro imaginei-
o, mas acho que sou capaz de ter estragado as patas. Acha que consegue
arranjar?
Jasper pôs o leão de parte e aceitou a figura entalhada.
– Deixa cá ver o que consigo fazer. – Espreitou com mais atenção antes
de perguntar: – Como é que vão as coisas na escola?
– Bem. – O rapaz encolheu os ombros. – Mas é um bocado chato.
– E a tua mãe?
– Está bem. Trabalha muito.
– E a tua irmã?
A irmã do rapaz era oito anos mais velha e o rapaz adorava-a.
– Acho que também está bem. Fez pipocas e viu um filme comigo
quando a minha mãe teve de trabalhar, mas normalmente sai com os
amigos. A minha mãe diz que é porque é adolescente.
– Hum.
– Que mais talhou esta semana?
– Nada. Doíam-me demasiado as mãos.
– Tomou um analgésico?
Era o que perguntava sempre que Jasper mencionava ter dores.
– Podes crer.
– Ótimo – disse o rapaz num tom autoritário, como a mãe. Até se parecia
com ela, pensando bem, algo na delicadeza da boca, na forma como o
sorriso lento se espalhava pelo seu rosto. Eram semelhantes, aqueles dois.
Almas sensíveis.
Durante um longo momento, nenhum deles disse o que quer que fosse,
mas isso não era invulgar. Jasper começou a trabalhar com o canivete e
passados uns minutos as pernas de Arlo desapareceram, com o corpo do cão
a acabar por se arredondar num novelo de sono. Foi o máximo que Jasper
conseguiu fazer para impedir que Arlo parecesse ter sido aplanado por um
cilindro, esmagado como uma estrela-do-mar contra o pavimento.
– Ouviu falar do veado branco? – perguntou o rapaz.
– Veado branco? – Jasper parou de talhar.
– Deu nas notícias. A minha mãe mostrou-me. Há um grande veado
branco na floresta de Uwharrie. Até havia uma imagem turva. O senhor
viu?
– Não – disse Jasper, enquanto lhe ocorria uma memória da infância,
como o fantasma de algo de outra vida. A sua mão recomeçou a mexer-se,
continuando a esculpir a madeira. – Já vi muitos veados, mas nunca vi um
branco.
– Acho que não deve ser verdade. Quero dizer, há veados brancos,
sequer?
– Há – respondeu Jasper. – São albinos, o que quer dizer que não têm o
pigmento habitual no pelo ou no nariz. Mas são raros. A maior parte morre
ainda jovem.
– Porquê? Nascem doentes?
– Não se confundem na vegetação como os outros veados, por isso não
conseguem esconder-se tão bem. Tendem a ser apanhados.
– Por ursos?
Por caçadores, pensou Jasper. O tipo de caçadores que queria matar algo
raro e belo, apenas por ser raro e belo.
– Por ursos, pode ser.
– Uau! – exclamou o rapaz de repente, saltando para outro tema, como
era seu costume. – Parece que o Arlo está a dormir!
Referia-se à figura talhada, mas poderia perfeitamente estar a falar do
cão, que tinha começado a ressonar aos pés deles. A pata traseira de Arlo
estava com tremores, ainda que lentos; sem dúvida andaria perdido em
sonhos em que corria por campos ou fugia ao som da trovoada.
– Mesmo que não haja um veado branco – confidenciou Jasper –, há
outro segredo na floresta.
Os miúdos adoravam segredos; os seus filhos também eram assim
quando eram pequenos.
– Que segredo?
– Míscaros – anunciou Jasper. – É uma espécie de cogumelo. O tempo
tem andado a cooperar e hão de estar bons para serem apanhados amanhã.
O rapaz franziu o nariz e olhou para o velhote como se este lhe
propusesse que comessem minhocas.
– Cogumelos?
– Não é um cogumelo qualquer. É um míscaro. Motivo pelo qual é
importante guardar segredo.
– Porque é segredo?
– Porque, como os veados brancos, são especiais; são os cogumelos mais
saborosos do mundo. Se a notícia se espalha, há de vir gente de todo o
estado à procura deles.
– Como é que o senhor sabe onde eles estão?
– Isso também é segredo. Mas vou assegurar-me de que trago suficientes
para a tua mãe. Até os limpo para ela, tiro-lhes toda a terra e os bichinhos
que possam ter.
O rapaz fez um ar ainda mais cético.
– Bichos?
– Como te disse, primeiro há que limpá-los. E, depois, cozinham-se em
manteiga com um bocadinho de sal, e não há nada melhor no mundo
inteiro.
O rapaz pensou um pouco.
– Eu acho que piza deve ser melhor – acabou por declarar.
– Hum.
Quando Jasper finalmente acabou, devolveu a figura talhada ao rapaz,
que olhou ora para Arlo, ora para a figura.
– Uau! – exclamou. – Vou juntá-lo aos outros que tenho no quarto.
Jasper assentiu com a cabeça, impressionado com o quanto continuava a
sentir a falta dos filhos. Se ao menos pudesse fazer tudo de novo. Corrigir
tudo, fosse de que maneira fosse.
– Vamos apanhar as aparas e levar-te a casa, sim? – Suspirou e entregou
o casaco ao rapaz. – A tua mãe já deve estar a preparar o jantar.

III

Depois de agarrar no chapéu de chuva, Jasper tirou a bandana do bolso


de trás das calças e pô-la à volta da cara, como uma máscara. Usava-a mais
para proteger os outros, sobretudo os mais pequenos. Durante uns anos,
quando o mundo andava louco com medo da covid e toda a gente usava
máscara, ele até conseguia ir às compras e sentir-se quase normal. Embora
nunca fosse admiti-lo, por vezes sentia falta desses tempos.
Começaram a caminhar na direção da casa do rapaz, acompanhados por
Arlo. Anos antes, recordava Jasper, tinha tentado impedir o empreiteiro de
construir no terreno em que a família do rapaz vivia. A cidade de Asheboro
vinha a crescer para sul, aproximando-se cada vez mais da sua cabana, e ele
queixara-se das novas regras de ordenamento ao comissário do condado
numa reunião pública. Mas já havia acordos feitos e bolsos recheados, pelo
que onde antes só havia floresta virgem e campos, passara a haver filas de
casas idênticas.
Quando era jovem, havia árvores para trepar, cavernas para explorar,
fortes para construir e riachos para pescar ao longo de quilómetros em todas
as direções para lá dos limites da cidade. Ele sentia-se grato pela Floresta
Nacional de Uwharrie, mas até isso fora mudando ao longo dos anos. Ele
sabia que, atualmente, a floresta era organizada, desde parques de
estacionamento e áreas de campismo até caminhos pré-estabelecidos que
indicavam às pessoas exatamente onde podiam andar e trilhos específicos
onde jipes podiam galgar rochas. Como se as pessoas não fossem capazes
de perceber o que fazer, onde caminhar ou montar uma tenda por si
mesmas. Isso era só mais um exemplo do mundo a deixá-lo para trás.
Ultimamente, só havia computadores, telemóveis que tiravam fotografias e
ecrãs que hipnotizavam tanto adultos como crianças. Na semana anterior,
passara por um restaurante e vira quatro pessoas a almoçar juntas, sem
falarem umas com as outras, todas absortas nos seus telemóveis.
Jasper sabia que a médica receava que levar o rapaz a casa pudesse ser
demasiado esforço para ele, devido à artrite e tudo o mais, mas caminhar
era basicamente o único exercício que ainda era capaz de fazer. No inverno
passado, nem sequer conseguira cortar lenha para a salamandra da cozinha;
tivera de a encomendar já cortada, o que fora um grande desalento. De
qualquer forma, o rapaz parecia perceber que Jasper não podia andar muito
depressa.
Na casa do rapaz, a luz do alpendre já estava acesa. Jasper fechou o
chapéu de chuva, esperando no alpendre enquanto o rapaz avançava pela
porta da rua. Tirou a bandana da cara – a médica fazia sempre questão de
que ele a tirasse –, mas tomou nota mental de voltar a pô-la assim que
saísse.
– Mãe! Já cheguei! – avisou Mitch. – Olha o que eu fiz!
Um momento depois, a médica aproximava-se dele, a limpar as mãos a
um pano de cozinha.
– Olá, Jasper – cumprimentou-o.
– Olá, Dra. Cooper.
Aquele sorriso lento surgiu no rosto dela.
– Quantas vezes tenho de lhe dizer que me trate por Kaitlyn? Quer
entrar? Posso fazer café, se lhe apetecer.
– Não, obrigado, mas agradeço o convite – disse ele.
– Posso convencê-lo a ficar para jantar? – perguntou ela. – É mais do que
bem-vindo.
– Mais uma vez, é muita gentileza sua, mas tenho de recusar.
Ela já o convidara muitas vezes e ele sempre declinara. Por aquela altura,
ele já tinha praticamente a certeza de que ambos só o faziam por hábito. Na
maior parte das noites ele não conseguia comer muito sem que o seu
estômago protestasse.
– Mas tenho uma pergunta, se não se importa – continuou ele.
A expressão dela ganhou um ar profissional e ele percebeu que ela
partira do princípio de que seria algo clínico.
– Sim?
– O Mitch mencionou que houve notícias acerca de um veado branco? E
de uma espécie de fotografia?
Ela pestanejou, parecendo momentaneamente confusa.
– Ah… sim. Apareceu anteontem no noticiário da noite. E ontem um dos
meus pacientes falou disso. Acho que há muito tempo que não havia um
avistamento por aqui.
Então é verdade, pensou o velhote, a sentir uma pontada de espanto.
– Sabe em que sítio da floresta? Quero dizer, será que a fotografia foi
tirada aqui perto, ou mais para os lados de Candor ou Mount Gilead…
A Uwharrie, afinal, abarcava mais de vinte mil hectares.
– Foi mesmo ao pé da Estrada Panorâmica, para ali – disse ela, a apontar
vagamente nessa direção. – Uma mulher tirou-a quando estava no carro, e
foi por isso que saiu tão desfocada.
– Ora, macacos me mordam – balbuciou ele, a dar-se conta de que isso
não era nada longe da sua cabana. Não era longe, na verdade, do sítio de
onde tencionava dar início à sua busca por míscaros.

IV

Na manhã seguinte, antes de o sol nascer, Jasper estava sentado à mesa


de madeira na pequena cozinha da sua cabana, a acabar a segunda chávena
de café. Como esperava, a chuva tinha amainado depois da meia-noite e o
céu estava desanuviado. Com a temperatura já a subir, sabia que o sol
matinal faria a sua magia.
Estava a pousar a chávena vazia no lava-loiça quando ouviu o tiro
ressoar, um som distante, mas inconfundível. Saiu para o alpendre, mas
ainda estava demasiado escuro para conseguir ver o que quer que fosse.
Sabia que a Uwharrie tinha caça com fartura; caçadores afluíam à floresta
de outubro até ao final de dezembro, em busca de veados, e depois
regressavam no início de abril, para apanharem perus selvagens. Os jovens
podiam caçar com os pais durante uma semana antes do início da época
oficial, mas ele tinha essas datas marcadas no calendário há meses e tinha a
certeza de que a época jovem só começaria daí a seis dias.
E porque teriam usado uma espingarda e não uma caçadeira? Apesar do
tinido, continuava a distinguir a diferença. Os sons eram tão diferentes
como o inverno diferia da primavera, e uma espingarda não fazia sentido.
Se alguém estivesse a dar início precoce e ilegal à época da caça ao peru,
ele deveria ter ouvido uma caçadeira.
As espingardas, por outro lado, eram perfeitas para caçar veados.
No seu alpendre, tornou a pensar no veado branco e sentiu o estômago a
contrair-se. Num passado distante, provavelmente teria rezado pela
segurança do veado, mas já não era esse homem. Ainda assim, ponderou se
deveria ir para a floresta conforme planeado. Não tinha a mínima vontade
de se deparar com caçadores furtivos.
Optando por jogar pelo seguro, sentou-se na cadeira de baloiço. Ficou
atento a luzes na floresta – era comum os caçadores furtivos usarem
holofotes para assustarem os veados – e à escuta de um segundo disparo.
Todavia, nada ouviu à medida que o céu começava lentamente a clarear,
dando detalhe às sombras. Ouviu um pica-pau-de-ventre-vermelho a bicar
numa árvore e viu um coelho-da-Florida a um canto do barracão. Uma
camada de neblina pairava sobre o solo e começou a cintilar sob a luz
matinal que descia obliquamente por entre as árvores.
Os caçadores furtivos costumavam evitar a luz do dia, mas não havia
razão para correr riscos desnecessários. Jasper levantou-se e entrou na
cabana, tendo o cuidado de não deixar que a porta de rede batesse.
Atravessou a sala de estar, com um televisor antigo, tábuas de madeira nas
paredes e um sofá desbotado, e passou para o alpendre das traseiras, onde
guardava o material. Depois de deitar a mão a um colete cor de laranja
fluorescente para usar por cima do casaco, pegou num para Arlo também.
Chamou o cão e apertou-lhe o colete à volta do tronco envelhecido e
arredondado.
De volta à cozinha, guardou na mochila um termo com mais café e duas
garrafas de água, uma sanduíche de manteiga de amendoim e mel e uma
tigela para Arlo. Agarrou numa bandana e, por fim, enfiou no bolso uns
quantos biscoitos Milk-Bone para o cão, que adorava aquelas coisas.
Também se assegurou de que levava os comprimidos de nitroglicerina, não
fosse o coração começar a fazer das suas. Então, com um balde de plástico
de vinte litros numa mão, atravessou a casa e saiu, acompanhado por Arlo.
Procurar míscaros dava-lhe prazer, algo que Audrey lhe ensinara a fazer
da primeira vez que a levara ali. Nessa altura, ela descrevera-o como uma
caça ao tesouro, mas havia outra razão para Jasper nunca mais esquecer
aquele dia, já que lhe mudara a vida para sempre. Tinha sido uns dias
depois do funeral do pai e ele estava tão perdido na sua dor que mal
conseguia pensar como devia ser. Tinha dezassete anos e andava de carro
pela baixa de Asheboro quando parara diante de um semáforo vermelho
perto da loja de roupas da mãe dela. Audrey, que estava a pôr uma tabuleta
a assinalar venda de rua, vira-o ao volante. À semelhança de muita gente,
tinha ouvido dizer o que acontecera ao pai dele e, num rompante, decidira
saltar para a carrinha com ele, para grande consternação da mãe dela e
espanto de Jasper.
Ele conduzira até à cabana com Audrey a seu lado e os olhos por vezes a
ficarem turvos pelas lágrimas. A dor da morte do pai era ainda demasiado
intensa para que falasse disso, algo que ela parecia intuir. Em vez de o
pressionar para que falasse, dera-lhe a mão e limitara-se a percorrer-lhe o
contorno do polegar com o dela. A delicadeza inesperada do seu toque foi
como um bálsamo para a alma destroçada de Jasper.
Ele mostrou-lhe a cabana que tinha construído com o pai, antes de
deambularem lentamente pelo resto da propriedade. Perto do limite norte, a
uns passos da Uwharrie, na base de um ulmeiro partido e caído, ela
descobriu os míscaros. Havia outro pedaço com míscaros a menos de trinta
metros e, levando-os para a cabana na bainha do vestido, ela limpara-os
cuidadosamente e cozinhara-os na salamandra, com manteiga e uma pitada
de sal. Foi a primeira refeição que partilharam e, depois disso, Jasper
conseguiu finalmente falar do homem que o tinha criado.
Quanto aos míscaros, não se pareciam com nada que tivesse provado
antes, e ele demorou algum tempo a apreciar por completo aquele sabor
terroso, quase a frutos secos. Mas adorou-os e, quando casaram, prometeu
que haveria de os procurar sempre para lhos oferecer. Contudo, a tarefa não
era tão simples quanto parecia – tudo levava a crer que os míscaros tinham
desaparecido –, pelo que se determinara a aprender tudo o que pudesse
acerca deles. Chegara a ir de carro até Raleigh para se encontrar com um
professor da Universidade Estadual da Carolina do Norte, regressando com
um método que se dizia ajudar a cultivar os esporos. Envolvia água
destilada, melaço e sal, juntamente com míscaros, tudo isso coado ao fim de
uns dias através de gaze. Jasper espalhou a mistura nos sítios onde tinham
encontrado os primeiros míscaros, e depois espalhou mais à volta de outras
árvores mortas e em decomposição. Ao fim de uns anos, os míscaros tinham
regressado, desta feita com abundância. Desde então – até cerca de uma
década antes –, ele passara a espalhar a mistura todos os anos.
Ao início, não havia árvores suficientes em decomposição na sua
propriedade. Os míscaros só cresciam onde uma árvore em decomposição
acrescentasse nutrientes ao solo, pelo que acabou por se aventurar mais e
mais para dentro da Uwharrie, onde qualquer pessoa que se deparasse com
os míscaros poderia colhê-los. Com a graça de Deus – e porque a secção da
Uwharrie mais próxima da sua cabana não era de fácil acesso –, o segredo
mantivera-se e, durante anos, ele e Audrey tinham-se banqueteado
regularmente na primavera. Mesmo depois de ela morrer, ele mantivera as
tradições, para honrar aquele primeiro jantar na cabana, mas também todos
os outros jantares deles. Era uma forma de recordar os tempos bons que
tinha havido antes dos maus.
Mas tanto mudara desde então… ele já não era o homem que fora em
tempos. Décadas antes, era jovem e forte, e costumava olhar-se ao espelho,
preocupado com pentear o cabelo da maneira certa. Costumava caminhar
sem ter receio de tropeçar de súbito. Tinha uma casa a sério, a cabana e um
negócio bem-sucedido. Fora vizinho, amigo, pai e marido. Todas as manhãs
e todas as noites lia uma passagem da Bíblia, ia à igreja aos domingos e por
vezes orava durante mais de uma hora seguida.
Agora estava velho e tudo era diferente. E as suas orações – quando as
fazia – assumiam sempre a forma de uma única pergunta.
Porquê?

Na Uwharrie, Jasper e Arlo andavam à caça. Ou melhor, Jasper andava à


procura de míscaros e Arlo ia-se detendo aqui e ali, marcando o território
para em seguida voltar para o lado do dono, onde ficava a fitar-lhe o bolso.
Como seria que conseguia cheirar os biscoitos no meio de todos os outros
odores da floresta e da mochila era algo que ultrapassava o entendimento do
dono.
Jasper levou uma mão ao bolso e partiu um pedaço de um Milk-Bone,
atirando-o na direção de Arlo, que nem sequer tentou apanhá-lo no ar. Em
vez disso, comeu-o do chão e depois olhou para o dono como que a dizer:
Só isto? Sei que tens aí mais.
– Depois – prometeu-lhe Jasper.
Por essa altura, já estavam na floresta há umas horas e, embora tivessem
tido alguma sorte – uns quantos pés que ele cortara com cuidado –, havia
menos míscaros do que esperava. Anos antes, chegara a perguntar-se se
Arlo poderia ser treinado para procurar míscaros, como aqueles cães das
trufas em Itália. Quando era pequeno, o pai dissera-lhe que, se algo tivesse
cheiro, era possível treinar um cão para o localizar. Tendo isso em mente,
espalhara míscaros e fizera Arlo cheirá-los; até desfizera uns quantos
míscaros moídos num lenço limpo, que lhe dera a cheirar também. Em casa,
escondera o lenço vezes sem conta e recompensara o cão com um Milk-
Bone sempre que o encontrava. Depois disso, foram para a Uwharrie, onde
Arlo esqueceu de imediato tudo o que tinha aprendido, parecendo dar-se por
satisfeito a mirar o bolso do dono. E Jasper tinha a certeza de que agora o
cão já era demasiado velho para se dar ao trabalho de tentar aprender o que
quer que fosse.
Por isso, tinha de se servir dos olhos, os quais, à exceção de precisarem
de óculos para ver ao perto, eram das poucas partes do seu corpo que se
tinham aguentado ao longo do tempo. Ia caminhando, reparando nas
árvores, em busca de ulmeiros, carvalhos e choupos, atento a árvores em
decomposição e a zonas de luz entre a penumbra. Perscrutava perto das
raízes, debruçando-se por vezes para afastar os detritos. Era uma tarefa
lenta e que fazia doer as costas – os míscaros conseguiam esconder-se – e
ele tinha cuidado; nunca cortava míscaros falsos, que eram tóxicos. À
medida que procurava, dava pelos seus pensamentos a regressar a Audrey.
A maioria das pessoas, incluindo ele, tinha ficado intrigada com o
interesse súbito que Audrey demonstrara por Jasper, o qual persistira depois
daquela primeira ida à cabana. O que ele sentia por Audrey, por outro lado,
ganhara raízes bem antes daquele dia, quando a vira a entrar praticamente
aos saltinhos para a sala de aula no primeiro dia do jardim-infantil. Com
cabelo louro arruivado e umas quantas sardas espalhadas pelas faces,
parecia um anjo de olhos azuis e ele tinha-a fitado com assombro enquanto
ela se sentava na secretária a seu lado. Ela tinha dito olá, mas ele não
conseguira fazer mais do que acenar com a cabeça, desencadeando um
padrão que fora definindo a relação deles de um ano para o seguinte. Apesar
de continuarem na mesma turma ano após ano, Jasper permanecera
demasiado tímido para entabular conversa. Em vez disso, contentava-se
com um ou outro olhar roubado no recreio ou a maravilhar-se, de longe,
com a elegância dos pulsos e das mãos dela. Os dedos dela, ao contrário dos
seus, eram compridos. Ela segurava o lápis com tamanha delicadeza que
Jasper não conseguia perceber como é que nunca o deixava cair. Quando
virava a página do livro que estivesse a ler, levava um dedo à língua, um
hábito que ele achava irresistivelmente sedutor. Praticamente todos os
rapazes da escola se tinham apaixonado por ela em dada altura, embora
Jasper fizesse os possíveis por disfarçar completamente o que sentia.
Não tinham nada que ver um com o outro, afinal. Ao contrário dele, ela
era uma excelente aluna; ao contrário dele, ela era popular, com um riso que
atraía os outros para a sua órbita. Também era rica, sobretudo quando
comparada com Jasper. O seu pai trabalhava no banco e a mãe tinha uma
loja de roupas que era um sucesso; viviam numa casa de dois pisos, com
colunas brancas no alpendre da frente. Ao longo dos anos, fora vista a
chegar às aulas de mãos dadas com vários rapazes, mas todos partiam do
princípio de que acabaria por casar com Spencer, cujo pai era dono do
banco e fora um dos fundadores do country club. Mas, uns dias depois de
Jasper ter enterrado o pai, ela entrara inexplicavelmente para a carrinha dele
e, nesse momento, alterara o curso esperado das vidas de ambos.
Depois de terem casado, Jasper vivia a desejar nada mais do que fazê-la
feliz. Como ela gostava de ler, ele cobrira as paredes de estantes; como ela
queria que a cabana fosse como uma casa para eles, Jasper ajudara-a a
redecorá-la, passando móveis de um lado para o outro e colocando tapetes
coloridos e almofadas até ela ficar satisfeita. À noite, ela sentava-se ao lado
dele no sofá, com um livro no colo, e Jasper tornava a perguntar-se o que a
teria levado a escolhê-lo a si, quando poderia ter escolhido alguém como
Spencer e passado as tardes de sábado a jogar ténis em vez de viver numa
cabana velha nos arredores da cidade.
– Não sejas tonto – respondia ela, revirando os olhos, sempre que ele lhe
dizia isso. – Eu sabia exatamente com que tipo de homem ia casar.
Ele não sabia como poderia ela parecer tão confiante, já que, nessa
altura, ele nem sempre tinha a certeza de quem realmente era. Possuía
poucas memórias da infância, ou da mãe, que morrera era ele ainda uma
criança de colo. Quando lhe perguntavam, dizia que tivera uma educação
normal; não fora nem especialmente bom, nem especialmente mau na
escola, ou nalgum desporto, ou no que quer que fosse, na verdade. Vivia
numa pequena casa em Asheboro, tão parecida com as dos vizinhos que não
era invulgar que os proprietários se equivocassem e entrassem na casa
errada depois de passarem umas quantas horas no bar. Andava com amigos,
mas, como muitos miúdos do final da década de 1940 e início da de 1950,
esperava-se que ajudasse a família, o que implicava trabalhar depois da
escola e no verão no pomar de pêssegos, onde o pai era capataz.
Por vezes, pensava que só havia cinco coisas na vida de que o pai
gostava: a nação, pêssegos, o filho único, talhar madeira e Nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo. Tinham uma bandeira norte-americana no alpendre, a
qual o pai içava todas as manhãs e recolhia ao final do dia. Mesmo antes de
Jasper ter começado a frequentar a escola, passava dias a caminhar com o
pai por entre as fileiras de árvores, absorvendo tudo o que ele lhe dizia. No
Sul do país, pouca gente sabia mais em relação a pêssegos. Jasper ficou a
saber que havia aproximadamente cento e cinquenta pessegueiros por cada
quatro mil metros quadrados, dado que cada um precisava de um espaço de
cerca de quatro metros por sete. Aprendeu que os pêssegos cresciam melhor
quando o solo drenava bem. Aprendeu a importância da irrigação e da
aplicação regular de pesticidas e ficou a conhecer os efeitos da temperatura
nas colheitas. Escutava atentamente as exposições do pai sobre como tratar
infestações e doenças. Aos dez anos, já trabalhava a sério no pomar:
mondava e desbastava, ou colhia pêssegos, enchendo cesto após cesto.
Estes seguiam em camiões para serem enlatados.
Em casa, o pai lia-lhe muitas vezes passagens da Bíblia. No inverno, iam
caçar e enchiam o frigorífico de carne de caça; por vezes, iam pescar. O pai
ensinou-o a talhar madeira e os esforços de ambos acabaram por povoar
todas as superfícies tanto da casa como da cabana.
O pai nunca praguejava, nem bebia, e Jasper não se lembrava de alguma
vez o ter visto zangado. Era comum esclarecer passagens da Bíblia,
rabiscando nas margens o que significavam usando as suas próprias
palavras e, quando Jasper tinha perguntas ou partilhava algo acerca da sua
vida, muitas vezes o pai fitava-o por cima dos óculos de ver ao perto e dizia
algo como: «Talvez queiras examinar Lucas 16:10». Jasper abria então a
Bíblia e lia. Quem é fiel no pouco também é fiel no muito; e quem é infiel
no pouco também é infiel no muito. Mesmo com as explicações ocasionais
nas margens, metade das vezes ele não percebia bem a ligação entre os
versículos que o pai lhe indicava e as suas perguntas.
Com o passar do tempo, passou a decifrar mais facilmente as referências
paternas. As escrituras faziam parte do seu legado; afinal de contas, o avô
de Jasper fora um dos pastores mais proeminentes da Carolina do Norte, e
constava que, durante pouco tempo, até tinha sido mentor de Billy Graham.
Jasper desconfiava que, por mais que o pai desejasse que ele encontrasse
sentido na vida, em última instância queria que ele se mantivesse focado na
eternidade. Jasper poderia mencionar que um teste na escola não lhe correra
muito bem, ao que o pai diria: «Coríntios II, 4:18» (Não olhamos para as
coisas visíveis, mas para as invisíveis, porque as visíveis são passageiras,
ao passo que as invisíveis são eternas.) Ou, se Jasper se vangloriasse de ter
feito um home run para ganhar um jogo de beisebol, o pai responderia:
«Romanos 11:36» (Porque é dele, por Ele e para Ele que tudo existe.
Glória a Ele pelos séculos!)
Aos domingos, iam à igreja que o avô de Jasper fundara. Rezavam juntos
de manhã, antes das refeições e de novo antes de se deitarem. Rezavam por
vizinhos e amigos que estivessem em dificuldades e, quando caçavam, o pai
dizia uma oração pelo veado ou pelo peru que tivesse matado. Orai sem
cessar (Tessalonicenses I 5:17). Era frequente o pai entregar então parte da
carne, juntamente com pêssegos, a gente que precisasse mais do que eles.
Quem dá ao pobre empresta ao Senhor, e Ele lhe retribuirá o benefício
(Provérbios 19:17). Era amável com todos os que conhecia. Sede, antes,
bondosos uns para com os outros, compassivos (Efésios 4:32). Embora
estivesse longe de ser rico, a sua fé era radiante e Jasper pressentia que ele
tinha o respeito de praticamente toda a gente na cidade. Jasper adorava-o,
não só pela sua sabedoria, mas também pelo seu comportamento e
paciência. Ao contrário de muitos dos outros rapazes da escola, Jasper
nunca aparecia com nódoas negras ou vergões infligidos por um pai depois
de uma noite de bebedeira.
Se o pai tinha um sonho – para além de cuidar da alma do filho – era o
de um dia construir uma cabana na floresta, onde os dois pudessem passar
os fins de semana rodeados pela beleza da natureza, em vez de presos na
cidade. Quando Jasper fez catorze anos, o pai começou a perscrutar o
jornal, em busca de anúncios de terrenos. Jasper perguntou-lhe o que se
passava enquanto carregavam caixotes de pêssegos para a parte de trás de
uma carrinha de caixa aberta.
– Mas nunca terias dinheiro para o comprar…
– Mateus 19:26.
A Deus tudo é possível.
– Mas…
– Marcos 9:23.
Tudo é possível a quem crê.
– Eu não acho que os milagres aconteçam a gente como nós – replicou
Jasper por fim, com um toque de desafio adolescente. – Milagres a sério,
pelo menos.
O pai pousou o caixote que tinha na mão e fez-lhe sinal para que fizesse
o mesmo.
– Alguma vez te contei a história de como o teu avô se tornou pastor?
Jasper abanou a cabeça enquanto pousava o caixote.
– Para que saibas, o meu pai nem sempre foi um homem religioso ou
pio. Na juventude, nem sequer era um homem lá muito bom. Antes de ter
conhecido a tua avó, era jogador e até passou algum tempo preso. – O pai
fez uma pausa, perscrutando o céu como se procurasse as palavras certas. –
Durante muito tempo, não aprendeu as lições certas, acho que se pode dizer
assim. Em vez disso, porfiava nas coisas más que fazia e, embora fosse
bastante bom a jogar póquer, ficou a dever dinheiro a pessoas com quem
nunca devia ter-se metido. Isto foi no Texas, já agora. – Tirou o chapéu e
limpou a testa antes de fitar o filho com um olhar sério. – Atacaram-no com
uma faca e deixaram-no caído por terra, julgando que morreria.
Jasper lembrava-se de ter ficado calado enquanto esperava que o pai
continuasse.
– Seja como for, não morreu. Em vez disso, conheceu uma enfermeira no
hospital. Ela lia-lhe histórias do Novo Testamento que descreviam os
milagres de Jesus. O meu pai não estava minimamente interessado nas
histórias de Jesus, mas ficou muito interessado na enfermeira que as lia.
Apaixonou-se, mas ela não deixava de ver os seus defeitos. Depois de ter
tido alta, ele deu por si a pôr em causa, pela primeira vez na vida, as
escolhas que tinha feito. Começou a rezar a Deus, apesar de não ser crente,
e pediu para assistir a um milagre. Queria um sinal do Céu e, se Deus lhe
desse um, ele prometeria mudar de vida.
O seu pai fez uma pausa, mas Jasper sabia que haveria mais.
– Certa manhã, não muito tempo depois, o meu pai tentava dar
elasticidade ao tecido cicatrizado onde o tinham esfaqueado. Ele jurava que
o tempo estava perfeito, com céu limpo até onde a vista alcançava, e
contava que, quando chegou ao cimo de uma colina com vista para a
cidade, decidiu descansar. Estava sentado numa rocha quando uma enorme
nuvem negra surgiu de súbito, empurrada de leste pelo vento; era a maior
que ele alguma vez tinha visto. Num instante o céu estava azul; no seguinte,
era como se uma cortina tivesse caído sobre o mundo. E, de repente,
desatou a chover, mas não era chuva o que caía daquelas nuvens. Eram
peixes.
Jasper não tinha a certeza de ter ouvido bem.
– Peixes?
– Peixes – enfatizou o pai. – A maioria ainda estava viva e aterrou no
chão, a contorcer-se e remexer-se. Centenas, talvez milhares. E, de súbito,
ele deu por si a pensar numa daquelas histórias da Bíblia que a enfermeira
lhe tinha lido, aquela em que Jesus alimentou a multidão toda com pão e
peixe, apesar de não haver muito ao início. E, nesse momento, com peixes
ainda a caírem do céu, ele deu graças a Deus por lhe permitir assistir a um
milagre e jurou mudar de vida. Tornou-se pregador itinerante, e depois
pastor, e acabou por convencer a enfermeira a tornar-se sua mulher. No
final, mudou-se para Asheboro e fundou a igreja onde ainda vamos aos
domingos.
– Achas que isso é verdade? – Jasper mirou-o com um ar cético. – Isso
dos peixes?
O pai assentiu com a cabeça e Jasper não voltou a fazer perguntas sobre
milagres. Mas, não muito depois, o pai encontrou um anúncio de um terreno
perto da Uwharrie, cuja hipoteca fora executada pelo banco e que seria
leiloado. O leilão público teria lugar no próprio terreno e quis o destino que
o dia marcado tivesse amanhecido com uma tempestade suficientemente
forte para alagar algumas das estradas que levavam à propriedade. O pai de
Jasper acabou por ser o único licitante presente no leilão e por conseguir
comprar o terreno por um preço chocantemente baixo, o que significava que
ainda lhe restava dinheiro para construir. Certo, o milagre poderia não ter
sido tão impressionante como o do peixe a cair do céu, mas, para o pai, era
prova de que o Senhor escutara as suas preces. E, pouco depois, quando
Jasper tinha quinze anos, ele e o pai construíram a cabana que Jasper agora
considerava ser a sua casa.
VI

Foi Arlo quem encontrou o veado morto.


Jasper andava à procura de míscaros numa moita quando ouviu o cão a
ladrar. Não era algo que costumasse fazer, pelo menos nos últimos anos,
provavelmente porque isso requeria um pouco mais de esforço do que
comer ou dormir. Curioso, Jasper virou-se e viu Arlo a trotar na sua direção
e, de súbito, a voltar para trás.
Jasper seguiu-o enquanto ele continuava a andar para trás e para a frente,
agastado pela ideia de ir deparar-se com a carcaça do veado branco. Em vez
disso, acabou por dar por si a fitar um jovem veado, que não teria muito
mais de um ano, de cor normal. Era pequeno, devia pesar menos de vinte
quilos; bastou a Jasper um olhar de relance para perceber que o disparo fora
fraco. Em vez de ter alvejado a criatura imediatamente atrás da omoplata
dianteira, o ferimento encontrava-se uns quinze centímetros mais atrás,
mais perto do ventre. Um trilho de sangue levava ao veado, o que provocou
um esgar a Jasper. A criatura ficara ferida e em sofrimento, tendo corrido e
rastejado até acabar por colapsar ali.
O animal estava frio, o que queria dizer que teria morrido já há umas
horas. O tiro que ouvi hoje de manhã, concluiu. O mais provável, dado que
o sol ainda não tinha nascido, era que o caçador furtivo tivesse usado um
holofote para encandear o veado.
Jasper retesou-se, com a raiva a aumentar. Independentemente do que
uma pessoa achasse da caça, havia regras: o uso de holofotes era ilegal,
caçar na escuridão era ilegal, caçar na Uwharrie fora das épocas definidas
era ilegal. Mas, para além de tudo isso, quem quer que tivesse disparado
deveria ter feito os possíveis por localizar o veado em seguida e pôr-lhe fim
ao sofrimento. O animal – subnutrido e a perder sangue – não poderia ter
percorrido mais do que umas centenas de metros depois de ter sido atingido.
Teria sido fácil encontrá-lo. Aquilo não era mera caça furtiva, era tiro ao
alvo. Matar apenas por matar e, embora se tivessem passado anos desde que
Jasper abrira uma Bíblia, ocorreu-lhe de imediato Provérbios 12:10:
O justo cuida das necessidades do seu gado, mas as entranhas dos
ímpios são cruéis.
A sua mente focou-se nas palavras ímpios e cruéis, e, continuando a fitar
o animal, a zanga deu lugar a uma fadiga súbita. Há muito que desistira de
tentar perceber por que motivo um Deus misericordioso permitiria tanto
sofrimento no mundo, e aquilo recordava-lhe o que ele próprio tinha
sofrido.
Arlo estava a farejar o veado, pelo que Jasper o fez recuar. Teria de
denunciar o ato de caça furtiva. Para marcar o local, tirou a bandana do
bolso de trás das calças e atou-o a um ramo da árvore mais próxima.
Sem mais que pudesse fazer, deixou o veado onde estava.
Embora a vontade de encontrar míscaros se tivesse dissipado, prometera
a Mitch que levaria alguns à mãe dele, pelo que era isso que ia fazer.

VII

Jasper continuou a procurar durante mais duas horas, até finalmente ter
sorte perto de um ulmeiro caído. Por essa altura, o sol já ia alto o suficiente
para iluminar grande parte da floresta, e ele tinha enchido um quarto do
balde, o que era mais do que suficiente. Estava na altura de voltar para casa,
mas, primeiro, tinha de descansar. Encontrava-se numa área de colinas
suaves e, ao ver uma rocha de bom tamanho perto de uma das cristas,
avançou nessa direção.
Sentou-se, ciente de que a tensão nas costas estava prestes a causar-lhe
espasmos, cheio de dores nas ancas e nos joelhos. Esforçou-se por ignorar a
dor e concentrou-se na visão de um falcão às voltas no céu. Arlo
aproximou-se e deitou-se a seus pés, a ofegar. Jasper tirou a tigela da
mochila e encheu-a de água. Enquanto o cão começava a beber, ele serviu-
se de café do termo e encontrou a sanduíche que tinha guardado ali.
Desembrulhou-a e enfiou o celofane na mochila. Ia dar a primeira
dentada quando Arlo se afastou da tigela e começou a fitar-lhe o bolso.
Atirou um Milk-Bone ao cão e retomou o almoço.
Tal como era habitual, não tinha fome e perguntou-se para onde teria ido
essa sensação. Lembrava-se de que, em jovem, estava sempre faminto;
quando Audrey fazia o jantar, era comum devorar dois pratos cheios. Mas,
depois de meia sanduíche, com a sensação de que não conseguiria obrigar-
se a comer mais, atirou o resto a Arlo.
Na brisa suave, detetou um cheiro estranho, algo metálico, industrial.
Demorou uns segundos a identificar o cheiro a lubrificante para armas e,
então, ouviu vozes e uma sonora gargalhada, até que três figuras finalmente
se tornaram visíveis.
Eram adolescentes já grandotes, calculou, de casacos e calças de
camuflado. Em vez de botas calçavam ténis, e tampouco se tinham dado ao
trabalho de usar equipamento refletor. O mais baixo, que também parecia
ser o mais novo, tinha uma covinha no queixo e acne, e o rapaz ao lado dele
tinha uma T-shirt que dizia equipa de luta livre da secundária de
asheboro debaixo do casaco. O mais alto, que caminhava à frente, era
obviamente o líder, e Jasper reparou que levava uma espingarda ao ombro,
para além de uma mochila grande.
Suficientemente grande para esconder um holofote?
Sem dúvida.
Arlo levantou a cabeça enquanto Jasper continuava a observá-los.
Mesmo ao longe, via que eram miúdos bem-parecidos, com cabelo curto e
bem cortado, e dentes direitos e brancos, como se todos tivessem passado
muito tempo no consultório do dentista. Jasper desconfiava que cada par
daqueles ténis sofisticados que calçavam custaria centenas de dólares.
Quando finalmente deram por ele, Jasper percebeu que tinham ficado
intrigados com a sua presença naquela parte tão isolada da floresta, mas isso
depressa deu lugar a uma postura de bravata à medida que se aproximavam,
quase como se pressentissem uma criatura mais fraca do que eles.
Arlo emitiu um rosnido grave, o que sobressaltou Jasper. Há anos que
não o ouvia rosnar; o cão parecia adorar incondicionalmente toda a gente
que encontrava. Jasper baixou a mão para o afagar e sentiu a tensão nos
músculos do cão, o rosnido a tornar-se ainda mais grave, como um ronco.
Os adolescentes pararam a uns metros dele.
– Raios! – exclamou o mais novo de repente. – Você está bem? Que raio
é que lhe aconteceu?
Jasper percebeu que a sua aparência finalmente tinha sido notada.
– Oh, espere, eu conheço-o – atalhou o rapaz com a T-shirt de luta livre.
– Já ouvi falar deste tipo.
– Sim. Esteve num incêndio – disse o mais alto. – Cresçam.
Dirigiu-lhe um sorriso à laia de desculpa, mas Jasper pressentiu que era
falso. Arlo deveria ter pressentido o mesmo; embora tivesse parado de
rosnar, os seus músculos permaneciam retesados, com o pelo do cachaço
eriçado.
– O que está aqui a fazer? – continuou o mais alto? – Perdeu-se?
– Sei onde estou – respondeu Jasper.
– Saiu para dar uma caminhada? Anda a observar pássaros?
Jasper não respondeu e o olhar do mais alto desviou-se para os amigos
antes de tornar a concentrar-se nele.
– O que é que tem no balde?
– Cogumelos – respondeu Jasper.
– Da floresta? É melhor ter cuidado com isso. Os cogumelos matam, se
não se souber escolhê-los.
– Eu sei.
– Importa-se que eu dê uma olhadela?
– Esteja à vontade – disse Jasper.
O mais alto aproximou-se e Arlo recomeçou a rosnar, desta feita tão alto
que todos ouviram. Arrepanhou os lábios expondo os dentes, e o
adolescente estacou.
– Que se passa com o seu cão?
– Nada, está tudo bem.
Mas o adolescente manteve-se receoso e não se aproximou mais. Em vez
disso, limitou-se a inclinar-se para a frente, para espreitar os míscaros.
– Tem aí uma data de cogumelos. Há quanto tempo é que anda por aqui?
– Há umas horas.
– Por acaso não viu aquele veado branco de que se tem falado, não?
Não, mas encontrei o que mataste.
– Não. Também não vi perus.
– Havemos de encontrar desses quando a época abrir. – O rapaz alto
voltou a esboçar o seu sorriso falso, tão perturbador quanto pouco
convincente.
– Espero que não vão tentar caçá-los com essa espingarda que aí trazes.
O que é? Uma .30-30?
– Por acaso é uma .30-06 – respondeu ele. – Acabei de a receber, na
verdade.
– É capaz de ser boa ideia limpares o cano – comentou Jasper. – Para te
livrares de quaisquer solventes ou conservantes que tenha. Cheira-me a
lubrificante de armas.
– Eu sei cuidar de uma espingarda – disse o adolescente com irritação,
semicerrando os olhos. – Tenho armas desde que era miúdo.
Talvez, mas continuas a ter uma pontaria terrível.
– Por acaso vocês não andam à procura do tal veado branco, pois não?
Com essa espingarda? – Jasper indicou a arma com um aceno da cabeça.
– Claro que não. Isso seria ilegal – respondeu o miúdo. – Mas nunca se
sabe quando vamos cruzar-nos com um urso zangado. Mais vale ser
precavido.
Ursos na Uwharrie seriam poucos ou nenhuns, e o tom do adolescente
deixava claro que sabia isso. Estava a mentir-lhe com quantos dentes tinha,
com evidente insolência. À volta deles, a floresta parecia ter-se silenciado
repentinamente.
– Vamos embora – disse o mais novo, a tentar dissipar a tensão. Jasper
deu pelo tom nasalado e choroso. – Estou a ficar com fome.
– Eu também disse o da T-shirt de luta livre. – Estou esfomeado.
Quando eles se viraram para se ir embora, Jasper pigarreou.
– Ouvi um disparo de manhã cedo – disse ele. – Por volta das seis, talvez
uns minutos depois. Soou como se fosse de uma espingarda como a que tu
trazes.
Eles estacaram. O que tinha a T-shirt de luta livre olhou para o que tinha
choramingado. O mais alto fitou os olhos de Jasper.
– Não fomos nós – disse ele. – Acabámos de chegar.
Jasper correspondeu ao seu olhar.
– Também encontrei um veado morto, por ali. Pequenote. Não era muito
mais do que um bebé. Com um tiro na barriga.
Isso fez com que todos ficassem calados. Quando o mais alto se
aproximou, Arlo recomeçou a rosnar, com o corpo a vibrar com o som.
– Está a acusar-nos de alguma coisa, velho?
– A eles, não – rouquejou ele. – Só a ti.
Os olhos do mais alto faiscaram e ele deu outro passo em frente. Embora
Jasper talvez tivesse sido capaz de travar Arlo quando era mais novo, esse
tempo já passara há muito. Antes que conseguisse reagir, o cão rosnou e
atirou-se, movendo-se mais depressa do que havia feito nos últimos anos
para lhe atacar a perna. O rapaz mal teve tempo de reagir enquanto Arlo lhe
abocanhava as calças e o fazia cambalear para trás até cair com estrondo no
chão. Pontapeou furiosamente com as duas pernas e, ao mesmo tempo,
conseguiu libertar a espingarda, que agarrou pelo cano para acertar com a
coronha no cão. Depois de dois golpes fortes, Arlo ganiu e recuou, fugindo
para um arbusto ali próximo.
Ainda bem, pensou Jasper de súbito. Não sabia ao certo o que o miúdo
teria feito se o cão tivesse corrido para o seu lado. A zanga e as armas
formavam uma mistura explosiva e, quando o rapaz alto se levantou, Jasper
observou-o, horrorizado, a apressar-se a segurar na espingarda para a
apontar à figura do cão em fuga. Jasper lançou-se para a frente e foi por
pouco que conseguiu desviar o cano para cima enquanto um tiro era
disparado.
O som retumbante deixou os ouvidos de Jasper a zoar, exacerbando-lhe
o tinido; de súbito, o miúdo voltou o cano da arma na direção dele. Jasper
sentiu um aperto no estômago.
Abrir a boca, pensou, foi uma ideia muito, mas mesmo muito má.
Ergueu as mãos e deu imediatamente um passo atrás.
– O seu cão atacou-me! – gritou o adolescente, com cuspo a saltar para a
cara de Jasper.
Este recuou lentamente de novo, ciente de que dizer o que quer que fosse
poderia deixá-lo numa situação ainda mais problemática.
– Que raio é que se passa com o seu cão? – gritou o adolescente de novo.
Jasper nada disse, expectante, esperando que a torrente repentina de
adrenalina que o rapaz estava a sentir cedesse igualmente depressa. A
questão era se isso aconteceria a tempo.
– Não vai dizer nada?
Jasper permaneceu em silêncio e o mais alto continuou a fitá-lo com um
ar irado. Não estava ferido, provavelmente nem se magoara com a queda,
mas os seus olhos faiscavam de raiva. Tinha o ego ferido e, com os amigos
a observá-lo, precisava de mostrar a Jasper quem mandava.
Jasper ergueu mais as mãos. O cano da arma continuava apontado na sua
direção. Tal visão tornava difícil ver qualquer outra coisa.
– Tem de mandar abater esse cão.
Jasper continuou calado, recuando impercetivelmente para trás.
– Vá lá! Deixa-te disso! Para de lhe apontar a arma!
Era o mais baixo. Talvez tivesse sido o pânico na sua voz a surtir efeito,
mas, fosse o que fosse, o mais alto finalmente baixou o cano da arma.
Jasper desviou o olhar para o mais pequeno, reparando pela primeira vez
que eram parecidos. Perguntou-se se seriam irmãos.
– Vamos! – suplicou o outro, parecendo igualmente em pânico.
Mas o mais alto continuava a fitar Jasper com um ar zangado. Então,
com um passo rápido, pontapeou o balde e virou-o. Começou a pisar os
míscaros com os ténis, esmagando-os contra a terra. Quando acabou, cuspiu
no que restava.
– Para a próxima, talvez seja boa ideia guardar as suas acusações só para
si. E veja lá se mantém esse cão tarado de trela. – Falava num tom
estranhamente plácido, mas Jasper pressentia a fúria debaixo das palavras. –
Se volto a vê-lo, sabe-se lá se não entro em pânico e se ele não acaba morto.
– Por favor – choramingou o mais pequeno de novo. – Temos de ir
embora!
– Tem dinheiro? Para me pagar as calças que o seu cão rasgou?
– Não.
– Então como é que vai compensar-me?
– Jesus! – exclamou o da T-shirt de luta livre. – Para com isso! Deixa-o
em paz, sim? Quem é que quer saber das tuas calças! A sério! Vamos.
Passado um pouco, o mais alto esboçou um sorriso trocista, pressentindo
o receio de Jasper. Por fim, deu um passo atrás e virou-se, antes de fazer
sinal aos outros.
– Bora daqui.
Jasper ficou a vê-los afastarem-se, com o coração a bater
descompassado. Quando deixou de os ver, virou-se e cambaleou de volta
para a rocha. Pegou num comprimido de nitroglicerina e meteu-o debaixo
da língua para que se dissolvesse. Tinha as mãos e as pernas a tremer.
Preocupado com Arlo, ficou atento ao som de mais algum disparo. Sabia
que o adolescente lhe mataria o cão, se pudesse – não tinha a mínima
dúvida disso. Para seu alívio, nada ouviu. Só quando a pulsação recuperou
alguma normalidade e quando se assegurou de que os rapazes teriam
deixado a área é que se levantou. Sentia-se frágil e vazio, com a pele
retesada como a de um tambor. Com o auxílio dos dedos, assobiou. Como
Arlo não aparecia, assobiou outra vez, e outra ainda. O cão finalmente
apareceu, a espreitar por entre uns arbustos. Enquanto se aproximava a
coxear, com um ar tão exausto quanto Jasper se sentia, este deu pelo golpe
que ele tinha no focinho e outro no cimo da cabeça. O sangue já tinha
começado a coagular, pelo que não deviam ser muito profundos. Ainda
assim, limparia as duas feridas quando chegasse a casa.
Tirou do bolso dois Milk-Bones e ficou a ver Arlo a devorá-los. Pegou
no balde vazio e mirou os restos dos míscaros espalhados. Tinha a certeza
de que Audrey teria ficado desolada.
CAPÍTULO QUATRO

D
fala.
e manhã, pouco depois de ter aberto os olhos, Kaitlyn deu por si a
pensar: Não me esqueci de como ser feliz. A Casey não sabe do que

Sim, a sua vida era azafamada e sim, criar uma filha adolescente podia
ser cansativo, mas ela adorava tanto os filhos como o trabalho. Fazia
voluntariado na comunidade – algo que sempre fora importante para si – e
consultas domiciliárias. Juntando-se o facto de ter poupanças significativas,
boa saúde e uma relação próxima tanto com os pais como com os irmãos,
no geral não havia motivos para queixas. Casey tinha estado simplesmente
a tentar irritar a mãe. Certo?
Certo.
Olhando para o relógio, ficou surpreendida ao dar-se conta de que
dormira até mais tarde do que o habitual e, depois de enfiar um robe, saiu
para o corredor. Espreitou para os quartos dos filhos e viu que tanto Mitch
como Casey continuavam a dormir. No piso de baixo, desfrutou da
tranquilidade enquanto bebericava um café e comia um pouco de fruta.
Mitch apareceu na sala estava ela a terminar. Ainda estava de pijama e
sentou-se em frente à sua criação em legos.
– Bom dia, querido. Queres cereais? – perguntou-lhe ela.
– Já vou buscar daqui a bocadinho.
Kaitlyn caminhou na direção dele e deu-lhe um beijo no cabelo
despenteado.
– Podes avisar-me quando a Casey se levantar? E provavelmente saímos
por volta das onze e quinze.
Ao subir as escadas, sentiu um remoinho de nervos na barriga, por saber
que não faltava muito para tornar a ver Tanner.

II

Depois do duche, Kaitlyn postou-se em frente ao espelho na casa de


banho principal, a tentar convencer-se de que, tecnicamente, não ia sair para
um encontro amoroso. Um verdadeiro encontro amoroso implicaria deixar
Mitch em casa. O que ia acontecer naquele dia, disse a si mesma, era mais
uma saída. E, certamente, prosseguiram os seus pensamentos, Tanner
tampouco o veria como um encontro amoroso. O que dissera ele? Que
sempre seria melhor do que passar o dia enfiado no hotel?
Estava decidido, então. Definitivamente não era um encontro amoroso,
mas, nesse caso, porque demorara ela vinte minutos a decidir o que usar?
Por fim, optara por um par de calças de ganga mais ou menos novas e por
um top que a irmã lhe oferecera no Natal e que ela ainda não tinha usado.
– Mãe?
Kaitlyn demorou um pouco a perceber que Mitch a chamava. Estava à
porta da casa de banho, com o cabelo por pentear e a T-shirt toda enrugada.
– Sim, querido?
– A que horas é que disseste que saíamos?
Ela olhou de relance para o relógio.
– Ainda temos meia hora – disse-lhe ela. – Anda cá. Deixa-me dar-te um
jeito ao cabelo para não estar tão desgrenhado.
Abrindo a torneira, molhou-lhe o cabelo.
– Também devias trocar de T-shirt.
– Gosto desta.
– Eu sei, mas usaste-a ontem. Devias pôr uma limpa.
– Porquê?
– Fazes-me esse favor? – pediu-lhe, debruçando-se para lhe dar um beijo
na testa. – E sabes se a Casey já acordou?
– Hã-hã – respondeu ele. – Mas já saiu. A Camille acabou de vir buscá-
la.
– E tu não me disseste? Então eu não te pedi que me avisasses quando
ela se levantasse?
– Sim. Foi por isso que vim cá acima à tua procura.
Casey tinha jeito para antecipar as jogadas da mãe. Kaitlyn acabou de
pentear o cabelo do filho com os dedos e mostrou-lhe o seu reflexo no
espelho.
– Está melhor assim, não achas?
Mitch encolheu os ombros.
– Acho que sim.
– Olha, ouve-me – começou ela, baixando-se para ficar à altura do olhar
dele. – Eu sei que te perguntei ontem, mas queria ter a certeza de que não te
importas que Mr. Hughes vá ter connosco ao jardim zoológico.
– Quem é Mr. Hughes?
– É o senhor que trouxe a Casey a casa ontem à noite. Depois de ela ter
batido no carro dele.
– Pensei que tinhas dito que era um amigo que ia connosco.
– É um amigo novo – disse ela, pensando que Mitch ainda era
suficientemente pequeno para ser provável que aceitasse tal resposta. –
Agora faz-me um favor e troca de T-shirt, está bem?
– Está – disse ele. Olhando para a mãe, semicerrou os olhos. – Porque
estás tão aperaltada?
– Não estou aperaltada. Visto-me sempre assim.
– Aos fins de semana não.
– Bem – contrapôs ela –, nem sempre vamos ao jardim zoológico, pois
não? Porque é que não há de ser uma coisa especial?

III

Meia hora depois, com Mitch sentado atrás de si e entretido com a sua
Nintendo Switch, Kaitlyn estacionou em frente ao Hampton Inn e viu
Tanner ao lado da entrada. Quando ele levantou uma mão e avançou na
direção do carro com a mesma confiança descontraída que demonstrara na
noite anterior, ela ficou impressionada pela anomalia que ele era numa
cidade daquelas. Ali, a maioria dos corpos masculinos era testemunha do
quanto gostavam de mais molho de salsicha nos seus pãezinhos ao
pequeno-almoço.
– Bom dia – disse ele, entrando para o lugar do passageiro.
– Olá – respondeu ela. Ele fitou-a por um momento antes de se virar para
o filho. – E tu deves ser o Mitch. Eu chamo-me Tanner. Obrigado por me
deixares ir convosco hoje.
Kaitlyn observou Mitch pelo retrovisor.
– Não tem de quê – disse Mitch, a mirá-lo com atenção. – Alguma vez
foi ao jardim zoológico?
– Não – respondeu Tanner. – Mas já fui a outros. Que animais é que
gostas de ver?
– Gosto dos leões. E das girafas.
– Eu também gosto de girafas.
– Sabia que têm o mesmo número de ossos no pescoço que as pessoas?
– Não sabia – disse Tanner, num tom intrigado. – Isso é fixe. Que jogo é
que tens aí?
– Mario Kart Tour.
– Eu adoro o Super Mario. Passava a vida a jogar.
– Quer tentar?
– Mais tarde, se calhar – respondeu Tanner, a assentir com a cabeça.
Tanner começou a pôr o cinto e Kaitlyn sorriu, gostando de como ele
parecia à vontade com Mitch. Soltando o travão, avançou para a estrada.
– Não sei porquê, não me tinha parecido que fosse do género de gostar
de jogos de vídeo.
– Passei meses destacado tanto no Afeganistão como no Iraque. Há
limites ao exercício que se pode fazer, e assistir aos mesmos filmes vezes
sem conta torna-se aborrecido. Toda a gente joga videojogos.
– E tinha jeito?
– Depende do jogo – disse ele. – Era bom a jogar Super Mario, melhor
do que a média no Madden e no FIFA, mas, se me perguntar sobre o Call of
Duty, teria de dizer que sou especialista.
– É bom saber.
Ele baixou o tom de voz:
– Como é que está a Casey hoje? – Olhou de relance para Mitch, sentado
atrás deles. – Tenho estado a pensar…
Mitch decidiu atalhar, sentado no banco traseiro.
– Elas ontem à noite discutiram no quarto da Casey.
Os olhos de Kaitlyn dispararam para o espelho retrovisor.
– Não foi uma discussão, querido. Foi uma conversa.
– A mim pareceu-me uma discussão. E depois a Casey esgueirou-se hoje
de manhã.
Kaitlyn lançou um olhar muito sofrido a Tanner.
– A Camille foi buscá-la antes de eu saber sequer que ela tinha acordado.
Tenho praticamente a certeza de que o fez para evitar voltar a falar comigo.
– Esperta – disse ele. – Quando os meus avós estavam zangados comigo,
eu passava o dia todo em casa de um amigo.
– Mudando de assunto, como foi a sua manhã?
– Foi ótima. Fui correr, explorei um pouco a cidade, e agora vou ao
jardim zoológico.
– Tenho de admitir que estou impressionada com a sua energia e
entusiasmo.
– Porquê? Gosto de animais.
– Não sei. Acho que, tendo em conta todos os sítios exóticos do mundo
em que já esteve, o nosso pequeno jardim zoológico não terá grande
interesse para si.
– Esquece-se de que não cresci nos EUA, portanto praticamente todos os
sítios que visito são novos para mim – contrapôs ele. – Já planeava ir ao
jardim zoológico enquanto cá estivesse, pelo que isto acabou por funcionar
na perfeição.
– A sério? – Kaitlyn parecia cética.
– Segundo o Tripadvisor, é a primeira recomendação do que fazer em
Asheboro. Tornei-me grande fã do Tripadvisor nos últimos anos.
Ela riu-se, a abanar a cabeça.

IV
Assim que chegaram ao jardim zoológico, Mitch saltou do carro,
saltitando à frente deles até à entrada.
Tanner acenou com a cabeça na direção dele.
– Parece que sabe onde vai.
– É o lugar preferido dele – explicou ela. – Bem, este e a secção da Lego
do Walmart. E o Chick-fil-A. E o gazebo, onde o nosso vizinho Jasper anda
a ensinar-lhe a talhar madeira.
Ela deu pelo sorriso fugaz de Tanner enquanto seguia o progresso de
Mitch para a entrada.
– E se eu tratasse dos bilhetes e do almoço? – sugeriu Tanner. – Fica por
minha conta.
– Só tem de pagar o seu – disse ela. – Temos um cartão de família, por
isso nós entramos de graça.
Enquanto Tanner pagava, Kaitlyn passou uma mão pelo cabelo de Mitch.
– Já tens fome? – perguntou-lhe. – Queres comer?
– Ainda não – disse ele. Empurrou os óculos para cima. – Primeiro quero
ir ver os animais.
Depois de entrarem, ele virou para a esquerda, em direção a uma área do
jardim zoológico chamada Pântano de Ciprestes. Tanner e Kaitlyn
seguiram-no a um ritmo tranquilo, mas o suficiente para não o perderem de
vista. Enquanto caminhava ao lado dele, Kaitlyn maravilhava-se com o
quão normal aquele passeio parecia.
– Fale-me mais dos Camarões – arriscou pedir. – Sei que é um país
africano, mas o meu conhecimento fica por aí.
– É uma nação extraordinária – respondeu ele. – Fica na costa ocidental
e perto do equador, pelo que costuma ter calor o ano inteiro, mas a
paisagem varia imenso: deserto, floresta tropical e montanhas.
– Onde é que o Tanner esteve destacado?
– Em Yaoundé.
– Isso é uma aldeia ou uma cidade?
– É a capital. Tem quase três milhões de pessoas.
– Oh – exclamou ela, a sentir-se tola.
– Não se sinta mal – disse ele, dando pela reação dela. – Até ter sabido
que ia ser destacado para lá, também nunca tinha ouvido falar.
– Do que é que se lembra mais?
– Das pessoas – disse ele. – Embora seja um país pobre, comparado com
os Estados Unidos ou com a Europa, há muito riso lá. As pessoas parecem
ter um talento inato para encontrar prazer nas coisas simples, apesar das
dificuldades. O país tem uma crise de refugiados por causa das guerras em
países vizinhos, e não há dúvida de que há pobreza e sofrimento, mas, no
geral, eu sempre fiquei impressionado com o quão mais resilientes e até
felizes pareciam ser as pessoas lá comparadas com quem vive na América.
– Depois esboçou um grande sorriso. – Ah, e lembro-me de jogar futebol.
Joguei muito futebol lá.
– Sim?
– Logo no dia em que cheguei, conheci um tipo chamado Vince Thomas.
Ele já estava há uns bons anos com a USAID nos Camarões. Ajudou-me a
instalar-me e acabámos por nos tornar muito bons amigos. Ele convenceu-
me a ir à procura de jogos de futebol amigáveis depois do trabalho. Tinha
uma capacidade incrível de localizar um jogo a que pudéssemos juntar-nos,
fosse quando fosse… jogos em descampados, até nas ruas. Algumas das
minhas melhores memórias são de andar a correr atrás da bola, a suar que
nem um louco e a divertir-me como nunca.
– Jogava bem?
– Acho que poderia ser categorizado como… um jogador ligeiramente
menos bom do que a média. Mas, em minha defesa, nos Camarões as
pessoas são absolutamente obcecadas por futebol. Têm uma das melhores
equipas nacionais do continente e toda a gente joga quando é nova.
– Desculpas…
Ele riu-se.
– A Kaitlyn é que perguntou.
– O que fazia lá? Em termos profissionais? Ontem mencionou qualquer
coisa sobre o Gabinete de Segurança?
Ele assentiu com a cabeça.
– A USAID tinha montes de projetos diferentes, com pessoas a trabalhar
por todo o país. A mim competia-me ajudar a mantê-las em segurança, bem
como aos locais com quem trabalhávamos, por vezes estabelecendo
procedimentos como viajar em caravanas com os mantimentos de
emergência certos; outras vezes, era necessário vigiar o perímetro dos
nossos acampamentos. Nas zonas mais longínquas do Norte e do Sudoeste
há violência contínua devido a revoltas e instabilidade política, como
consequência das ações do Boko Haram. Raparigas e mulheres correm um
risco maior, pelo que ter uma presença armada era crucial, ainda que só
estivéssemos a fazer vacinações.
Ela olhou de relance para ele.
– Parece que conseguiam mudar a vida das pessoas para melhor.
– Espero que sim – disse ele com um aceno de cabeça –, e, quanto mais
tempo eu lá passava, mais me ia apaixonando pelos Camarões. Mal posso
esperar por visitar alguns dos sítios onde não pude ir da última vez.
– Quais?
– O Parque Nacional Nki, para começar. É um dos poucos lugares em
África onde é possível ver grupos enormes de elefantes e chimpanzés no
seu habitat natural. Por norma, não partilham o mesmo espaço.
– E vai voltar a jogar futebol.
– Conhecendo o Vince, isso será uma grande parte do que farei.
Entretanto, tinham chegado ao Pântano dos Ciprestes. Mais adiante,
Mitch espreitava para um dos recintos, em busca do puma.
– Se gostava tanto dos Camarões, porque é que se foi embora?
– A culpa foi do Vince. Promoveu-me e depois recomendou-me para o
que era basicamente a posição dele na Costa do Marfim.
Ela sorriu.
– E o Tanner fez o mesmo na Costa do Marfim?
– Mais ou menos. Como tinha sido promovido, tinha pessoas a trabalhar
sob a minha alçada, o que implicava mais tempo no gabinete e menos
tempo no campo. E, ao contrário dos Camarões, o país cresce depressa, em
termos económicos. A Costa do Marfim detém uma grande parcela do cacau
do mundo, pelo que boa parte do nosso trabalho lá consistia em ajudar a
gerir isso ou a tratar de outras iniciativas empresariais. Como… ajudar a
cooperativa do caju a conseguir financiamento comercial, coisas assim.
Chegaram ao pé de Mitch. Ela pousou-lhe uma mão no ombro e baixou-
se para lhe falar ao ouvido.
– Estás a ver o puma?
– Está ali deitado nas rochas – disse ele, a apontar. – Na sombra. Dá para
ver parte da cabeça, mas acho que está a fazer uma sesta. Ainda não se
mexeu de todo.
– Não dormem durante o dia? – perguntou Tanner.
– Dormem – respondeu Mitch num tom assertivo. – Vamos. Vamos ver
os aligátores. – Virou-se e tornou a afastar-se, deixando-os para trás.
Ela assentiu com a cabeça na direção do filho.
– É assim o dia todo. Ele vai à frente e chega lá primeiro. Então, assim
que eu chego, vai ver o seguinte. Costumamos dar a volta ao zoo inteiro em
cerca de hora e meia.
Enquanto partiam para o recinto seguinte, Kaitlyn disse:
– E a seguir a isso foi para o Haiti?
Ele arqueou uma sobrancelha.
– Fico impressionado por se lembrar. Sim, acabou por ser o último sítio
em que trabalhei.
– Como é que foi?
– Mais uma vez, uma população local incrível. Mas o gabinete de campo
lá é enorme, por isso era muito mais burocrático. E depois há o trabalho
propriamente dito. Parece que o país é devastado por furacões e tremores de
terra ano sim, ano não. Quando finalmente julgamos que estamos a fazer
progressos nas infraestruturas ou na luta contra a cólera ou a estabelecer
mesas de voto ou seja o que for, vem outro desastre e volta-se à estaca zero.
Sentia-me constantemente assoberbado, nunca havia tempo nem dinheiro
suficiente para fazer alguma diferença.
– O que imagino que fizesse com que os vossos esforços fossem ainda
mais críticos, não?
– Acho que sim – respondeu ele. – Mas no final sentia-me mentalmente
exausto.
– Então decidiu fazer uma pausa?
– Entre isso e a covid tornar impossível voltar, sim.
– Olha, mãe!
Kaitlyn viu Mitch entre uma família e uma mulher que estava a tirar
fotografias.
– Estou a ir!
– Tem a boca aberta!
Enquanto se apressavam para se juntarem a Mitch, Kaitlyn refletiu no
facto de se terem passado anos desde que tivera uma conversa tão
interessante, se era que alguma vez a tivera. No seu mundo, as pessoas não
falavam de jogos de futebol nos Camarões, nem de cooperativas de caju na
Costa do Marfim.
Realmente, um dos aligátores estava de boca aberta, deitado ao sol.
– É assim que regula a temperatura – explicou Mitch. – Será que
conseguia engolir-me inteiro?
– Hum… – fez Kaitlyn. – Tem uma boca grande, mas tu cresceste desde
a última vez que viemos.
– Agarram-nos e arrastam-nos para dentro de água, onde nos dão voltas
até que nos afogamos. Chama-se espiral da morte.
– É bom saber.
– Venham. Vamos ver os ursos polares.
Um momento depois, estavam a voltar para trás.
– Desculpe – disse ela a Tanner. – Eu avisei.
– Não tem nada de que pedir desculpa. Estou a divertir-me imenso, mas
tenho a sensação de que só eu é que falo.
– A minha vida não é assim tão interessante.
– Duvido disso. É médica, faz consultas ao domicílio e, para além disso,
é mãe e está a criar dois filhos incríveis.
Ela fitou-o de olhos semicerrados, com uma expressão cética.
– Isso não está exatamente ao mesmo nível que vacinar crianças numa
zona de guerra.
Tanner pegou num copo de papel que tinha sido largado no chão e
meteu-o num contentor próximo antes de voltar para o lado dela.
– Não era eu quem vacinava os miúdos. Nem quem estabeleceu o
programa ou o pagou.
– Continuo a achar que é incrível que tenha decidido fazer esse tipo de
trabalho comunitário. Eu também tento fazer isso, mas obviamente a uma
escala muito mais pequena. – A expressão dele encorajou-a a prosseguir. –
Para além das consultas ao domicílio, faço voluntariado uma vez por
semana num sítio que oferece refeições grátis a quem precisa.
– Isso é ótimo – comentou ele. – É uma igreja, ou…
– Não, é uma organização sem fins lucrativos chamada O Pão Nosso de
Cada Dia – disse ela. – Só abrem à hora de almoço, mas eu faço
voluntariado lá desde que me mudei para Asheboro. Estão em
funcionamento há muito tempo e acho que servem cerca de vinte mil
refeições por ano.
– O que é que a levou a decidir fazer uma coisa assim?
– O meu pai – respondeu ela com simplicidade. – Sempre teve uma
fixação pelas segundas-feiras. Quando éramos pequenos, sentávamo-nos à
mesa do pequeno-almoço e ele entrava para se servir de uma chávena de
café e dizia: Estava mesmo aqui a pensar que a segunda-feira é o dia
perfeito para começarmos a ser a melhor versão de nós mesmos, pois temos
mais seis dias para praticar. Ou: Todas as semanas deviam começar com
generosidade, não acham? O mundo não seria melhor? Eu, a minha irmã e
o meu irmão entreolhávamo-nos e revirávamos os olhos. Mas, com o passar
do tempo, acho que a atitude dele acabou por ser contagiosa, pelo menos
comigo. Ele sempre fez o que dizia. É dentista e a primeira coisa que fez
quando estabeleceu o seu próprio consultório foi reservar as manhãs de
segunda-feira para pacientes que não pudessem pagar. A culpa é dele.
– Isso é bom.
– Eu sei que é, e adoro-o por isso – disse ela. – E acho que faz sentido,
porque, mais do que a maioria das pessoas, ele compreende o que é precisar
de ajuda. Nasceu nas montanhas do Kentucky, numa zona muito rural e
muito pobre, e a mãe dele era solteira, adolescente e só tinha o sexto ano.
Cresceu numa autocaravana decrépita. Viviam daquilo que a mãe
conseguisse apanhar ou caçar, e também de donativos de comida da igreja
e, no inverno, por vezes não tinham aquecimento nenhum. Não que o meu
pai alguma vez fale assim da sua juventude. É o tipo de pessoa que só
partilha as histórias boas da vida, como o quanto se divertia a apanhar
lagartos, a nadar no lago ou algo assim. Foi a minha mãe que me falou
disso. Ela é um pouco mais objetiva no que diz respeito ao passado do meu
pai.
– Porque acha que assim é?
– O meu pai é um otimista por natureza, mas também acho que era
importante para ele que os filhos amassem e respeitassem a sua própria mãe
tanto quanto ele. E isso aconteceu. Quero dizer, a minha avó era uma
personagem, disso não há dúvida. Mascava tabaco e era viciada em
telenovelas, e passar tempo com ela era como visitar um planeta diferente.
Lembro-me de que uma vez, quando era pequena, chegámos a casa dela e
encontrámo-la no pátio das traseiras a caçar esquilos com uma pistola de
pressão de ar. É claro que eu e a minha irmã desatámos a chorar quando
vimos os cadáveres minúsculos espalhados em cima da mesa de piquenique,
mas ela estava muito entusiasmada com o guisado de esquilo que ia
preparar para nós. Acho que tanto eu como a minha irmã ficámos logo com
vómitos.
Tanner sorriu.
– E que tal o guisado?
– Graças a Deus, a minha mãe chegou a tempo de nos salvar e não
tivemos de o comer. Mas, por mais louca que nos parecesse, a nossa avó
tinha um coração cheio de amor. Quero dizer, basta ver o homem em que o
meu pai se tornou. Era muito trabalhador e teve o apoio de alguns
professores, mas claramente a sua vida em casa era suficientemente segura
para que tivesse conseguido uma bolsa completa na Universidade do
Kentucky Oriental. E, assim que pôde (ainda antes de ter comprado uma
casa para si e para a minha mãe) mudou a mãe para uma pequena casa nos
subúrbios de Lexington. Ela dizia que era o primeiro sítio onde alguma vez
tinha vivido em que não tinha de ser ela a aquecer a água se a quisesse
quente.
– Mas que forma de crescer.
– É mesmo. O meu pai ainda exerce, já agora, se bem que finalmente, só
este ano, tenha começado a reduzir o horário. Ele adora o que faz. Seja
como for, sempre nos fez sentir que éramos nós a verdadeira paixão da sua
vida. Assistia a todos os nossos jogos e recitais de dança, e nunca faltava às
reuniões de pais.
– E a sua mãe?
– Provavelmente é ainda mais inteligente do que o meu pai.
– Ai, sim?
– Frequentou escolas privadas de elite e a família dela fazia parte do
country club. Estudou matemática e filosofia na faculdade e foi a melhor
aluna do seu ano tanto na escola secundária como na Universidade do
Kentucky. Começou a dar aulas, mas, depois de se casar com o meu pai e
de ter filhos, optou por ficar em casa. Estava sempre disponível quando um
dos filhos precisava dela, mesmo depois de termos saído de casa. Quando
engravidei do Mitch e tive de ficar em repouso total, ela largou tudo e
passou meses comigo.
– Parecem um casal fantástico.
– São – confirmou Kaitlyn.
Por essa altura, tinham chegado aos ursos polares. Como um deles estava
a chapinhar na água, Mitch deixara-se ficar mais tempo do que era habitual.
Por perto estavam focas e leões marinhos, bem como raposas-do-ártico, que
também lhe cativavam a atenção. Quando Kaitlyn tornou a perguntar-lhe se
tinha fome, ele abanou a cabeça e anunciou que estava na hora de irem ver
os animais africanos e, mais uma vez, foi à frente.
– O que é que faz nas consultas ao domicílio? – perguntou Tanner.
– O mesmo que faço no consultório. Verifico os sinais vitais, recolho
amostras de sangue para análises e garanto que as pessoas têm as receitas de
que precisam. Se houver crianças na casa, trato das vacinações. Ou limpo
feridas e dou pontos. Vai depender daquilo com que me depare.
Oficialmente, são pacientes do consultório, embora nunca tenham lá posto
um pé.
– E se precisarem de um raio-x ou algo do género?
– Nesse caso, tento convencê-los a ir ao hospital.
– Parece que isso deve fazer com que as suas semanas de trabalho sejam
bem compridas, já que também deve ter de estar de plantão, não?
– Nem por isso. A disponibilidade para urgências é diferente agora, em
comparação com quando comecei. Atualmente o hospital contrata os seus
próprios médicos, por isso não esperam que vamos. Em vez disso, podemos
atender uma chamada de um paciente que não recebeu uma receita ou que
precisa de mais medicamentos. Se tiverem problemas, dizemos-lhes que
vão ao consultório de manhã, ou mandamo-los para as urgências. Com um
telemóvel, nem é preciso sair de casa.
Quando chegaram à área do jardim zoológico dedicada aos elefantes, às
girafas, aos leões, aos rinocerontes e aos chimpanzés, a conversa regressou
ao tempo que Tanner passara fora do país. Ele descreveu-lhe um prato
chamado puff-puff and beans, que comia sempre que ia ao mercado, e falou
do ndolé, um saboroso guisado de espinafres que Vince lhe dera a conhecer
na sua primeira noite nos Camarões. Contou-lhe como fora assistir ao
Campeonato das Nações Africanas em 2016 num bar tão apinhado que a
multidão transvazava para as ruas; os Camarões tinham vencido a
República Democrática do Congo por 3–1, e o júbilo durara quase até ao
raiar do dia. Falou-lhe dos macacos e outros símios que tinha visto no
Parque Nacional de Mefou e, algures enquanto o ouvia, ela deu por si a
pensar: Um dia, também gostaria de lá ir.
No caminho de regresso – a verem os animais exóticos pela segunda vez
–, Mitch perguntou a Tanner se tinha ouvido falar do veado branco que fora
avistado na floresta.
– Não – disse ele. – Nem sequer sabia que existiam veados brancos.
– Existem – disse Mitch num tom solene. – Tem aparecido nas notícias.
Quando Tanner lançou um olhar de soslaio a Kaitlyn, esta assentiu com a
cabeça.
– É verdade.
– Talvez o apanhem e o ponham no jardim zoológico – especulou Mitch.
– Espero que não – atalhou Kaitlyn. – Quero que continue livre, no seu
habitat.
– Eu quero vê-lo – disse Mitch, antes de voltar a avançar mais depressa.
Durante o almoço, no Junction Springs Cafe, Mitch ficou fascinado com
a descrição que Tanner fez da vida selvagem nos Camarões. Quanto a si,
partilhou uma torrente de factos sobre animais que aprendera num livro –
que um elefante tem quarenta mil músculos na tromba, ou que os leões
podem obter a hidratação de que precisam a partir de plantas. Ao longo da
refeição, Kaitlyn dava pelo seu olhar a incidir ora em Mitch, ora em Tanner,
aliviada por o filho parecer perfeitamente à vontade. Quando se iam
embora, por alguma razão começaram a falar de jogar ao disco. No fim da
conversa, Mitch convenceu-a a passar pelo Walmart ali próximo, onde
Tanner saiu do carro e desapareceu no interior da loja, regressando com um
disco uns minutos depois.
Foram de carro até ao Bicentennial Park e, durante meia hora, Kaitlyn,
Tanner e Mitch passaram o disco entre si. Começaram por ficar perto uns
dos outros, mas, à medida que se iam afastando mais e mais, Tanner e
Kaitlyn esforçavam-se por intercetar lançamentos desviados um a seguir ao
outro, enquanto Mitch se ria e gritava: «Desculpem!» Ao fim de vinte
minutos, uma camada fina e brilhante de suor cobria-lhes as testas.
Kaitlyn tentou lembrar-se da última vez que George fizera algo assim
com o filho, mas nada lhe ocorria. Apesar de o momento lhe ter aquecido a
alma, começava a fazer-se tarde.
Tanner lançou-se uma última vez para apanhar o disco atirado numa
direção completamente errada por Mitch. Ao aproximar-se dela, de disco na
mão, sorriu.
– Eu sei que trabalha logo à noite – disse ele, ainda a recuperar o fôlego
–, mas não consegui resistir ao disco depois de o Mitch ter dito que queria
experimentar.
Mitch correu para se juntar a eles.
– Temos de ir? – perguntou ele.
– Está na hora. Mas divertiste-te, não foi?
– Foi espetacular! – Depois, a pensar já noutra coisa, franziu o sobrolho.
– A Casey vai estar em casa logo?
– Deve estar. Já sabe a rotina.
– OK – disse ele. – Podemos comer cachorros-quentes ao jantar?
– Estava a pensar fazer guisado de atum.
– Com batatas fritas por cima?
– Claro – respondeu ela. Satisfeito, Mitch começou a avançar para o
Suburban. Atrás do filho, Kaitlyn lançou um olhar de relance a Tanner. –
Presumo que queira que o deixe no hotel?
– Se não se importa – disse ele. – Depois de tanta correria, acho que
preciso de um duche e de algum tempo na horizontal antes do jantar.
O trajeto até ao hotel só demorou uns minutos. Ao sair, Tanner manteve
a porta aberta e espreitou para dentro do carro.
– Diverti-me muito, Mitch – disse-lhe com uma continência a brincar. –
E obrigado por me teres ensinado tanta coisa sobre os animais.
– Não tem de quê – replicou Mitch, parecendo distraído; um som de
motor do Mario Kart Tour ouvia-se a partir do banco traseiro.
– Mais uma vez, obrigado por este dia, Kaitlyn – disse Tanner. – Adorei.
E, para que saiba, vou ficar a pensar no seu pai e nas ideias dele acerca das
segundas-feiras. Acho que é um bom objetivo a adotar.
– Obrigada por ter vindo connosco.
E, sem mais, ele começou a avançar para a entrada do hotel. Em parte,
ela esperava que ele se virasse para olhar para ela, mas Tanner não o fez.
Em vez disso, empurrou a porta de vidro e entrou, desaparecendo
rapidamente.
Soltando o travão, Kaitlyn tentou não se sentir dececionada por ele não
ter sugerido que voltassem a encontrar-se; ao mesmo tempo, provavelmente
seria melhor assim. Não seria suficiente apreciar simplesmente o dia que
tinham tido?
Claro que sim, concluiu. Há séculos que não passava um dia assim – não
se lembrava de quando se sentira simplesmente como uma mulher (não
apenas uma mãe ou uma médica) e Tanner levara-a a dar-se conta do quanto
sentira a falta dessa sensação.

– Onde é que vocês estiveram? – perguntou Casey, assim que ela entrou.
Mitch já tinha entrado a correr, direito à cozinha.
– Fomos ao jardim zoológico – disse ela. – Tu sabias. – Vendo o filho a
levar a mão à caixa das bolachas, avisou-o: – Mitch! O que achas que estás
a fazer?
– Vou tirar umas bolachas.
– Tira só uma…
– Mãe – interrompeu Casey. – Estou a tentar falar contigo. Porque não
respondeste às minhas mensagens?
– Desculpa. Não vi o telemóvel.
– Ela estava a falar com Mr. Tanner – explicou Mitch. – Ele é fixe.
– Quem é Mr. Tanner? – perguntou Casey.
– Tanner Hughes – disse Kaitlyn. – O tipo em quem bateste ontem à
noite?
– Porque foste ao jardim zoológico com ele?
– Quando ele soube que íamos, perguntou-me se podia acompanhar-nos
– disse ela, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Depois,
apressou-se a mudar de tema. – Porque me mandaste mensagens?
Casey fitou-a, mas, milagrosamente, deixou a coisa passar.
– Queria saber a que horas chegavas porque preciso do Suburban para ir
buscar materiais. Vamos decorar os cacifos logo à noite, lembras-te? Antes
do jogo de beisebol? Tinha-te dito na semana passada.
Kaitlyn lembrava-se vagamente de Casey o ter mencionado, mas não se
apercebera de que seria num domingo.
– Não podes ir à escola hoje à noite. Eu trabalho e tens de tomar conta
do Mitch.
– Vai ser só uma hora ou duas. Ele fica bem sozinho. Também podemos
pedir a Mrs. Simpson que tome conta dele.
– Casey…
– Está bem – disse ela, interrompendo-a. – E se eu o levar comigo?
– Para a escola secundária? Com os teus amigos?
– Porque não? Ele ia divertir-se.
– E se ele não quiser ir?
Casey virou-se para a cozinha.
– Olha, Mitch! Queres ir comigo e com os meus amigos à minha escola,
depois do jantar? Para decorarmos uns cacifos com fitas e outras coisas?
– Sim! – exclamou ele. – Parece espetacular! Posso ajudar?
– Claro. – Casey dirigiu um olhar triunfante à mãe. – Vês? Não há
problema. Ele quer ir.
Kaitlyn sentiu-se encurralada.
– Está bem. Mas têm de voltar antes das oito.
– Se a Camille nos der boleia depois, posso usar o carro para ir buscar os
materiais agora?
– Não sei se isso é boa ideia – disse Kaitlyn.
– Por causa do acidente?
– Da maneira como falas, parece que não foi nada de grave.
– Eu sei que foi grave! Mas, para que tu saibas, a culpa disto tudo em
parte também é tua. Eu nem devia ter tido de andar a conduzir o Suburban
ontem à noite.
Kaitlyn demorou um pouco a perceber o que ela quereria dizer com
aquilo.
– Estás a falar de teres o teu próprio carro? Já tínhamos falado disto e
decidido que, quando acabares a escola secundária…
– Não, tu decidiste isso. E, se eu vivesse com o pai, já teria carro.
– Tens a certeza disso?
– Acabei de falar com ele, mãe. Mesmo antes de teres chegado. – Atirou
a cabeça para trás, com uma expressão desafiante. – Ele disse… – fez uma
pausa deliberada – … que, se eu fosse viver com ele, teria todo o gosto em
arranjar-me um carro.
Kaitlyn sentiu um calafrio a percorrê-la. Claro que ele havia de dizer
isso.
– Não vais querer mudar-te antes do último ano. Deixavas todos os teus
amigos aqui.
– De qualquer maneira vou deixá-los assim que for para a faculdade, por
isso, qual é o problema? E, até lá, teria o meu carro.
Kaitlyn fitou-a. Pelo canto do olho, via Mitch na cozinha e percebia que
ele também tinha ouvido a irmã.
– E estás a ponderar fazer isso?
Casey levou as mãos às ancas, com uma luz desafiante no olhar.
– Porque não haveria de o fazer?

VI

Enquanto Casey saía para ir comprar materiais, Kaitlyn preparou o


jantar. Não queria pensar na filha e no que ela tinha ameaçado, mas não
podia evitá-lo. Algo no seu tom a fazia perguntar-se se, desta feita, não seria
a sério.
A ideia de Casey ir viver com o pai deixava-a a sentir-se maldisposta;
não imaginava não a ter por perto. A verdade era que Casey era boa miúda –
que outra adolescente convidaria o irmão de nove anos a ir fazer uma coisa
com os seus amigos? Ela tentava realmente arranjar tempo para o irmão na
sua vida ocupada. Tinha-o levado à praia no verão anterior, era habitual
assistir a filmes com ele e, em novembro, quando ele ficara doente, tinha-o
deixado dormir no seu quarto. Kaitlyn sabia que Mitch ficaria desolado se
Casey se fosse embora.
Tentando ignorar a preocupação, foi ao seu escritório e abriu o portátil.
Descarregou as fotografias do acidente que tinha no telemóvel e enviou um
email a Dan Hendrix, o seu corretor de seguros, que já conhecia há anos,
explicando-lhe o que tinha acontecido.
Depois, organizou a maleta de médico que usava para as suas consultas
ao domicílio, verificando as pilhas do oxímetro e que o medidor de tensão,
o termómetro e a máquina portátil de eletrocardiogramas estavam a
funcionar. Reviu a lista de pacientes a visitar e as suas fichas clínicas no
iPad, para preparar uma lista de materiais a ir buscar ao consultório. Como
um dos pacientes tinha uma infeção articular, teria de levar uma seringa pré-
carregada com lidocaína e triamcinolona; uma das famílias tinha crianças
no jardim-infantil, pelo que levaria vacinas combinadas contra a difteria, a
tosse convulsa, o tétano, o sarampo, a papeira, a rubéola e a poliomielite.
Havia ainda outra paciente que talvez precisasse de uma injeção de
cortisona no joelho. Tomou nota mental de ir levantar os medicamentos que
a farmácia tinha aviado, alguns dos quais pagos por si mesma, nos casos em
que sabia que os pacientes não tinham dinheiro para o fazer.
Finalmente pronta, saiu do escritório. Casey tinha regressado e estava
sentada com Mitch a assistir a um dos filmes dos Transformers.
– Vou saindo – anunciou. – O guisado está pronto para ir para o forno
quando quiserem jantar. Precisam de mais alguma coisa antes de eu ir?
– Que tal um milhão de dólares e um Ferrari vermelho? – respondeu
Casey sem desviar o olhar.
– E gostava de ter um Bumblebee – acrescentou Mitch.
Kaitlyn sentiu-se orgulhosa por se lembrar de que Bumblebee era uma
das personagens dos Transformers.
– Seja como for, pelas oito estarão de volta, certo?
– Sim, mãe – respondeu Casey num tom arrastado.
– Eu também não devo chegar muito mais tarde, mas aviso se acontecer
algum imprevisto. Até logo.
Absortos no filme, nenhum deles respondeu e, pouco depois, Kaitlyn
tinha saído.

VII

Kaitlyn foi de carro até ao consultório e recolheu tudo o que tinha na


lista. Enquanto saía, o seu telemóvel tocou. Ficou surpreendida ao ver que
era Dan, o corretor de seguros, quem lhe ligava.
– Não estava à espera de ter já notícias tuas – disse ela. – É domingo.
Porque é que estás a trabalhar?
– A Lori foi passar o fim de semana com a mãe e levou os miúdos –
explicou Dan –, por isso estava só a adiantar o trabalho. Podes explicar-me
o que aconteceu ao certo?
Kaitlyn contou-lhe o que sabia, incluindo que o Suburban parecia estar
bem e que nem Casey nem Tanner se tinham magoado.
– OK – disse ele, antes de lhe explicar que o avaliador contactaria Tanner
de manhã e tudo ficaria resolvido. Por uns minutos, falaram acerca das
famílias.
Depois de terem desligado, Kaitlyn ia guardar o telemóvel na mala. Mas,
em vez disso, abriu a troca de mensagens com Tanner e enviou-lhe uma.

Falei com a minha seguradora. Deve ter notícias do avaliador amanhã


de manhã. Também me disseram que não me preocupasse – que o seu
carro ficará como novo quando acabarem de o arranjar.

Os dedos pairaram sobre as teclas enquanto ela debatia o que fazer em


seguida. Depois, contendo a respiração, acrescentou:

Diverti-me muito hoje. Desejo-lhe uma ótima noite.

Esperou por um momento, atenta aos pontinhos que indicariam que ele
estaria a responder, mas nada apareceu. Enfiando o telemóvel de volta na
mala, guardou as coisas no Suburban e fez-se à estrada, trocando Asheboro
pelo campo em redor. A primeira paragem seria num parque de
autocaravanas a cerca de dez quilómetros para lá da cidade.
Durante a hora e meia seguinte, atendeu um paciente a seguir ao outro.
Deu uma injeção no cotovelo de um e outra no joelho de outro. Mediu a
tensão e a temperatura uma dúzia de vezes; examinou ouvidos, narizes e
gargantas; auscultou corações e pulmões; e vacinou uma criança de cinco
anos. Havia dois pacientes novos, ambos com cortes que tinham infetado.
Limpou as feridas, deu-lhes antibióticos e, embora soubesse que isso os
deixava nervosos, criou registos médicos com as informações deles.
Também deixou três receitas.
Depois de terminar a ronda no parque de autocaravanas, visitou mais três
casas. Esses pacientes eram idosos, pelo que todos fizeram
eletrocardiogramas, para além dos testes mais rotineiros. Também lhes tirou
sangue para enviar para o laboratório.
Em seguida, fez outras duas visitas para deixar medicamentos sujeitos a
receita, e chegou a casa às oito e meia.
Quando entrou na sala, Mitch e Casey estavam de novo sentados no sofá,
desta feita a partilharem uma tigela de pipocas.
– Como foi na escola? – perguntou.
– Foi o máximo! – respondeu Mitch. – Enfeitámos com balões e tudo!
– Fico contente por se terem divertido – disse ela. – Mas não devias estar
a preparar-te para ires para a cama?
Com relutância, ele levantou-se do sofá.
– Boa noite, seu percevejo – disse Casey, atirando-lhe uma pipoca.
– Boa noite, sua rabuda – retorquiu Mitch, e Casey riu-se.
Por um instante, Kaitlyn perguntou-se se deveria tentar voltar a falar
com Casey, mas decidiu que talvez fosse melhor deixar as coisas assentar
por ora.
A última coisa que queria era outra discussão, mais que não fosse porque
isso poderia deixar a filha ainda mais determinada a ir embora.

VIII

Mais tarde, depois de Mitch ter tomado banho e vestido o pijama, ela
leu-lhe um capítulo do romance Wonder – Encantador, de R. J. Palacio.
Embora Mitch já tivesse idade suficiente para ser ele a ler, isso era algo que
ela fazia desde que ele era bebé e de que não estava disposta a desistir já.
Calculava que esse dia não tardaria; Mitch poria fim à tradição, tal como
Casey acabara por fazer.
Depois de lhe dar um beijo de boas-noites, ia apagar a luz quando Mitch
falou.
– Mãe?
– Sim, querido?
– A Casey não vai mesmo viver com o pai, pois não?
– Ela às vezes diz coisas só por dizer – respondeu Kaitlyn, esperando ter
razão. – Sabes como ela é.
– Não quero que ela se vá embora.
Kaitlyn ouvia o medo na voz dele.
– Eu sei, querido.
Deu-lhe mais um beijo e apagou a luz antes de encostar a porta.
Espreitando Casey, viu-a a estudar na cama e decidiu não a interromper.
Tinha sido um dia longo – um fim de semana longo, na verdade – e estava
cansada.
Não obstante…
Passou os braços à volta do corpo, a pensar de novo que, ainda que a
ameaça de Casey definitivamente a tivesse deixado abalada, há muito
tempo que não tinha um dia tão bom como aquele.

IX

Kaitlyn arrumou a sala de estar e a cozinha no piso térreo antes de subir


cautelosamente os degraus até à casa de banho principal e pôr o duche a
correr. Quando o vapor começou a encher a divisão, ela deu por si a refletir
sobre o tempo que passara no jardim zoológico com Tanner.
Era estranho como se sentia à vontade perto dele, quase como se fossem
amigos há anos. A conversa descontraída só viera sublinhar o quanto ela
sentia a falta da sua vida social. Sentia falta de conversas adultas. Em suma,
servira para a recordar de que era mais do que mãe e médica e, mais que
não fosse, a tarde no jardim zoológico tinha tornado a despertar essa
consciência de si mesma.
No duche, lavou e massajou a cabeça antes de enxaguar o cabelo. Depois
de se secar, pôs uma toalha à volta do corpo e apercebeu-se de que tinha
deixado o telemóvel na mala, no escritório. Assegurando-se de que a toalha
estava bem presa, foi do quarto ao escritório e recuperou o aparelho.
Quando carregou na tecla lateral, o seu coração bateu mais depressa ao ver
que Tanner respondera à sua mensagem.

Agradeço que já tenha entrado em contacto com a seguradora. E


também queria voltar a agradecer por me ter deixado ir convosco hoje. Foi
ótimo conhecê-la um pouco melhor e conhecer o Mitch. Talvez nos
voltemos a ver?

Ela sorriu e ponderou o que responder. Eu gostava soava demasiado


ávido, talvez até desesperado; Logo se vê, demasiado desprendido. Sem
conseguir chegar a uma decisão, achou que o melhor seria dormir sobre o
assunto.

Talvez nos voltemos a ver?

Ele gosta de mim, pensou ela, a sentir-se ligeiramente ofegante. E eu


gosto dele. Mas, mais uma vez, o problema não era esse. Ele vai-se embora,
recordou a si mesma.
Por impulso, meteu-se na cama nua pela primeira vez em anos. A
desfrutar da sensação dos lençóis contra a sua pele, esperou que a mente
abrandasse. Mas, em vez disso, continuava a visualizar Tanner a caminhar a
seu lado.
Ele gosta de mim, pensou de novo, e demorou muito a conseguir
finalmente adormecer.

A segunda-feira começou com a correria típica de um dia de semana.


Kaitlyn levou os filhos à escola e foi para o consultório, onde trabalhou sem
parar até às onze. Então voltou a encher a sua maleta de médico e
encaminhou-se para O Pão Nosso de Cada Dia.
Assim que entrou no edifício inconspícuo, agarrou num avental
pendurado num gancho da parede. Cumprimentou outros dos voluntários
habituais. Ao entrar na movimentada cozinha, teve de olhar duas vezes ao
aperceber-se de um homem que ia cortando tomate para um enorme
recipiente de salada.
– Tanner?
– Olá, Kaitlyn – respondeu ele com um aceno amigável. – Feliz segunda-
feira.
Uns quantos dos outros voluntários entreolharam-se, mas ninguém disse
o que quer que fosse.
– O que está aqui a fazer?
– Voluntariado – disse ele. – Telefonei para saber se precisavam de ajuda
e, acontece que a Evelyn não pôde vir hoje. Por isso, cá estou.
– Mas porquê?
– Porque tinha algum tempo livre e é uma coisa boa de se fazer –
explicou ele num tom factual. – Para além disso, queria voltar a vê-la.
Os olhos dos outros voluntários arregalaram-se, parecendo encantados.
Quanto a Kaitlyn, não estava exatamente irritada pela presença dele, mas
não sabia bem o que pensar. Só tinha a certeza de que não queria ter público
enquanto tentava perceber.
– Ah, bem… fez muito bem – respondeu. Engoliu em seco. – Eu vou lá
para a frente, porque as portas estão quase a abrir.
– Faça o que tem a fazer – disse ele com um aceno descontraído, antes
de tornar a concentrar-se no tomate.
Kaitlyn foi para a linha de servir e tentou ignorar o fascínio óbvio de
todos à sua volta.
– Está tudo bem? – perguntou-lhe Linda. Esta fazia voluntariado ali há
ainda mais tempo do que Kaitlyn, que era sua amiga há anos.
– Estou bem – disse Kaitlyn.
– Fico contente – comentou Linda. – É que, sabes, a Margaret já lhe deu
a alcunha de Desconhecido Jeitoso.
Tudo o que Kaitlyn conseguiu fazer foi fechar os olhos e pensar: Nem
acredito que ele esteja aqui.

XI

Serviram mais de setenta refeições ao longo da hora e meia seguinte e,


mais para o fim, um senhor com uma certa idade e uma tosse aflitiva
perguntou-lhe se teria uns minutos para o ver. Ela examinou-o no pequeno
gabinete administrativo e diagnosticou-lhe uma bronquite bacteriana. Deu-
lhe umas amostras de antibiótico, que eram oferta do delegado de
propaganda médica que lhe levara dónutes nessa manhã.
Depois, Kaitlyn voltou para a cozinha, onde as limpezas iam a todo o
gás. Enquanto a maioria dos outros voluntários se encontrava à frente a
limpar as mesas, Kaitlyn foi para o lado de Tanner, que estava ao lava-loiça,
a esfregar a tábua de cortar.
– Como correu com o paciente? – perguntou ele. Embora tivesse noção
de que os poucos voluntários que restavam ali os observavam pelo canto do
olho, ela conseguiu manter a compostura.
– Tudo bem.
– Não tinha dito que também tratava de pacientes aqui.
– Isso não acontece muito. – Pigarreou. – Mas… devo dizer que a sua
presença aqui foi um pouco inesperada.
– Eu disse-lhe que ia ficar a pensar no seu pai – disse ele –, e hoje é
segunda. – Sorriu, com aqueles olhos verde-dourados que a fascinavam. – É
bom voltar a vê-la.
Ela sentiu o rubor familiar a subir-lhe pelo pescoço.
– E a si também. Mas tenho de voltar para o consultório.
– Tem tempo para comer, sequer?
– Não, mas de qualquer forma não costumo almoçar.
– Isso não lhe faz bem à saúde, sabe. Vou ter de falar com o seu médico
acerca disso.
Em vão, ela tentou suprimir um risinho.
– Posso acompanhá-la à saída? Calculo que ainda vou ficar aqui cerca de
mais uma hora.
– Claro – respondeu ela, antes de começar a andar ao lado dele. – Ah,
antes que me esqueça – prosseguiu – já teve notícias do avaliador do
seguro?
Tanner assentiu com a cabeça.
– Falei com ele hoje de manhã. Já rebocou o carro e vou encontrar-me
com ele na Oficina de Reparações do Bill às três da tarde para revermos
tudo. E também me arranjou um carro de substituição.
Quando chegaram ao Suburban, ele disse:
– Ainda bem que vim cá hoje.
– Se eu tivesse sabido, tinha-o avisado de que não teríamos tempo para
conversar.
– Não faz mal – respondeu ele com um encolher de ombros ocioso. –
Mas estava aqui a pensar se gostaria de jantar comigo amanhã à noite?
Ela sentiu o coração a começar a acelerar-lhe no peito. Não é boa ideia,
ralhou uma voz sensata dentro da sua cabeça.
– Tenho de ver o que vão fazer os miúdos – respondeu ela, depois de
hesitar por um instante. – Posso mandar-lhe uma mensagem mais logo?
Depois de ter falado com eles?
– Claro – disse ele. – E, se não puder ser amanhã, talvez noutra noite?
Ela deixou escapar um suspiro.
– Parece-me bem.
CAPÍTULO CINCO

N o domingo ao final do dia, depois de limpar as feridas de Arlo, Jasper


ficou a talhar madeira no alpendre até escurecer, altura em que voltou
para dentro da cabana. Abriu uma lata de guisado para jantar e dividiu-a
com o cão, mas tinha a mente ainda a mil e o estômago demasiado
contraído para conseguir comer. Não parava de pensar em como fora estar a
fitar o cano da espingarda, nem no sorriso falso do jovem que a empunhava.
Depois de se obrigar a comer umas quantas colheradas, deu o resto a Arlo.
Enquanto passava a tigela por água, a sua mente voltou ao veado morto
que tinha encontrado, perguntando-se quanto tempo sobreviveria o veado
branco num mundo onde havia quem prezasse a matança de coisas belas.
Recordou que, muito tempo antes – noutra vida –, outro veado branco
tinha sido avistado na Uwharrie. Ele tinha dezassete anos e a novidade fora
tão excitante então quanto era agora, pelo que o pai o levara até à floresta,
na esperança de um avistamento. Essa fora a última vez que tinham passado
um fim de semana juntos na cabana, antes de o coração do pai deixar de
bater.
Tinham sido horas na floresta, a tentar encontrá-lo. O pai era um caçador
exímio; bastava-lhe um olhar de relance para saber quão recente seria um
rasto, sabia como os excrementos podiam indicar o estado de saúde de um
animal e tinha uma aptidão natural para saber onde os veados poderiam ter
pernoitado. Já ia a tarde avançada, quando finalmente pararam para comer e
o pai começou a falar. Foi uma conversa estranha, pois não incluiu
pêssegos, nem sequer um só versículo da Bíblia. Em vez disso, o pai
contou-lhe alguns dos mitos e histórias associados ao veado branco. Disse-
lhe que o rei Artur tinha tentado apanhar um, sem sucesso, e que os reis e
rainhas de Narnia haviam perseguido um, acabando apenas por cair do
armário. Mencionou que os Ojibway – uma tribo da zona norte do centro-
oeste norte-americano – encaravam o veado branco como um recordatório
da nossa própria espiritualidade, antes de partilhar com o filho uma lenda
dos Chickasaw.
Nessa lenda, um jovem guerreiro chamado Gaio Azul apaixonou-se por
Lua Brilhante, a filha do chefe. O chefe, que achava que Gaio Azul não era
merecedor da sua filha, decretou que o jovem casal só poderia unir-se se
Gaio Azul lhe levasse a pele de um veado branco. Gaio Azul passou
semanas solitárias na floresta, em busca de um. Por fim, encontrou um
veado assim e disparou uma flecha. Contudo, apesar de lhe ter acertado,
estranhamente o veado não morreu. Em vez disso, fugiu, levando Gaio Azul
a embrenhar-se mais e mais na floresta, até se perder. Lua Brilhante,
destroçada, nunca viria a amar outro homem. No fumo das fogueiras que
ateavam à noite no acampamento, era frequente ela ver o veado branco a
fugir pela floresta, perseguido pelo seu Gaio Azul; dizia a lenda que Lua
Brilhante passara o resto da vida a rezar pela morte do veado, para que Gaio
Azul pudesse finalmente voltar para junto de si.
Enquanto escutava, Jasper perguntava-se se o pai também estaria a falar
de si mesmo. Parecia-lhe que queria que ele tivesse noção da profundidade
do seu anseio pela esposa que perdera, uma mulher que Jasper nunca tinha
conhecido. Queria que o filho compreendesse por que razão nunca tornara a
casar, nem sequer a namorar. Talvez, refletiu Jasper, o pai se revisse tanto
em Lua Brilhante como em Gaio Azul.
Impressionado por tais ideias, manteve-se em silêncio. O pai passou para
outro mito, desta feita europeu, antes de retomarem de novo a busca.
Mas nunca chegaram a vislumbrar o veado branco, para grande
desapontamento do seu pai. Umas semanas depois, quando Jasper se
debruçava sobre a campa do pai, deu por si a perguntar-se se ele teria
pressentido que o seu tempo na Terra estava a acabar; perguntou-se se teria
visto no veado uma última oportunidade de entrever a mulher que amara e
perdera.
Segundo a mitologia céltica, afinal, os veados brancos seriam
mensageiros do além.
II

Depois do pequeno-almoço na manhã seguinte, Jasper pegou na chave


da carrinha e noutra bandana. Arlo seguiu-o pela porta da frente e Jasper
desceu cuidadosamente os degraus até ao chão de terra batida e gravilha.
A carrinha tinha mais de um século, a pintura a perder a cor e os estofos
rasgados. Quando o motor estava frio, por vezes era preciso rodar a chave
duas ou três vezes para que ele tossicasse e ganhasse vida. Era frequente
Jasper perguntar-se quem desistiria primeiro – ele ou a carrinha.
A porta rebatível gemeu quando ele a baixou. Arlo agitou a cauda, mas
não fez qualquer movimento para saltar. Em vez disso, Jasper pegou num
escadote de plástico e o cão subiu os degraus como se fosse da realeza.
– Não tens de quê – disse-lhe o dono.
Fechando a porta rebatível, entrou para o lugar do condutor e partiu para
a cidade. Ao chegar ao estacionamento da delegacia do xerife, cobriu a cara
com a bandana. Junto à parte de trás da carrinha, tornou a preparar o
escadote, que Arlo desceu com dignidade.
Lá dentro, a delegada ao balcão pareceu ficar desconcertada, com a boca
a abrir-se num O antes de se apressar a desviar o olhar. Jasper sabia que a
bandana não disfarçava tudo.
– Bom dia – disse ela, a desviar uns papéis para o lado. – Posso ajudá-
lo?
– O Charlie está? – perguntou ele, referindo-se ao xerife Donley.
– Ele agora está ao telefone – respondeu ela, parecendo totalmente
fascinada com a resma de papéis que tinha na secretária. – Posso perguntar
qual é o assunto?
– Caça furtiva – disse ele. – E não só.
– Ah – disse ela, com o olhar a desviar-se para Arlo. – Sabe que o cão
deve andar de trela, não sabe?
– Não trouxe trela. Mas ele obedece-me.
– Hã, hã. – Ela assentiu com a cabeça, a mirar os pelos grisalhos do
focinho de Arlo e o velho cheio de cicatrizes que se encontrava à sua frente.
– Suponho que não faça mal. Quer prestar um depoimento?
– Eu preferia falar com o Charlie em privado, se não der muito trabalho.
– E quem é o senhor?
– Chamo-me Jasper. Eu e o Charlie já nos conhecemos há muito.
Uns minutos depois, ele e Arlo foram acompanhados ao gabinete do
xerife, onde Charlie se encontrava sentado à secretária. O xerife levantou-se
e estendeu-lhe a mão enquanto Jasper retirava a bandana.
– Jasper, velho amigo – disse ele. Sendo político (os xerifes eram
eleitos), tinha mais facilidade do que a maioria das pessoas para estabelecer
contacto visual com Jasper; por outro lado, conheciam-se há mais de três
décadas, pelo que a aparência de Jasper já não o chocava. Ainda assim,
sorria sempre de uma forma um pouco agressiva, como se exagerasse. –
Ultimamente não te tenho visto muito. Continuas a esconder-te lá na tua
cabana?
– É a minha casa. – Jasper encolheu os ombros.
Charlie indicou a cadeira em frente à secretária.
– Sabes que devias mesmo manter esse cão com trela.
– A senhora da receção disse-me o mesmo.
Jasper sentou-se enquanto Arlo se esparramava no chão, apressando-se a
fechar os olhos.
– O que posso fazer por ti?
Jasper narrou-lhe o sucedido no dia anterior. Enquanto ele ia falando,
Charlie tomava notas num bloco amarelo, até que finalmente levantou a
cabeça.
– E dizes que encontraste o veado ontem? Domingo?
– Sim.
– Violações de caça furtiva devem ser comunicadas à Comissão da Vida
Selvagem da Carolina do Norte. Entraste em contacto com eles?
– Em vez disso, vim aqui.
– Eu posso tratar disso por ti – disse Charlie, que depois quis confirmar
que tinha a localização certa.
– Isso mesmo. – Jasper assentiu com a cabeça. – Diz-lhes que procurem
também uma bandana vermelha.
– Eu digo-lhes. – Charlie bateu com o lápis no bloco de notas. – E não
sabes quem eram os adolescentes?
– Não.
– Nem tens a certeza de que tenham sido eles a matar o veado?
– Não, mas quem mais haveria de ter sido?
Charlie recostou-se na sua cadeira.
– Não estou a dizer que não acredito em ti, mas é uma situação
complicada, porque não assististe ao crime. Tenho praticamente a certeza de
que o agente da vida selvagem vai dizer o mesmo. Seja como for, como não
sabes quem eram os adolescentes, não há nada que possam fazer.
– Ouviste dizer que é capaz de andar um veado branco por aí?
– Quem é que não ouviu falar disso? Nos últimos dias não se fala de
outra coisa ao jantar.
– Eu acho que aqueles rapazes andavam à procura dele.
– E talvez não sejam os únicos. A notícia do avistamento tem-se
espalhado e já deve estar escarrapachada pela internet toda. Acho que
aparece um veado albino em cada trinta mil, pelo que não admira que haja
tanta comoção.
– Podes fazer alguma coisa?
– Não tenho jurisdição sobre isso – justificou-se ele. – É uma floresta
nacional, o que quer dizer que é federal, e ambos sabemos que não há
agentes suficientes da preservação da vida selvagem para manter a floresta
completamente a salvo de caçadores furtivos. Isso sempre foi um problema,
não é de agora.
– Talvez devesses falar com os adolescentes, seja como for. Como te
disse, um deles usava uma T-shirt da equipa de luta livre da Secundária de
Asheboro. Pode dar para começar por aí.
Charlie coçou o queixo, parecendo o político que era.
– A secundária fica na cidade, não no condado, por isso teria de ser a
polícia de Asheboro a ver isso.
– O rapaz tentou alvejar o meu cão.
– Eu sei que isso é perturbador, mas, em termos criminais, aquilo que
descreves é uma descarga ilegal de uma arma, o que não passa de uma
pequena infração. E, francamente, é uma questão um bocado dúbia, já que o
cão o atacou primeiro.
– E que me tivesse apontado a arma a mim?
– Isso também é só uma infração. E, mais uma vez, havia circunstâncias
atenuantes, por causa do cão, pelo que duvido que desse nalguma coisa.
Fico simplesmente satisfeito por estares bem. Ambos sabemos que podia ter
sido bem pior.
Como foi para o pequeno veado, pensou Jasper. E para o veado branco,
que é capaz de ser o próximo.
– Então como é que podemos manter aquele veado a salvo?
– Olha, Jasper… tu ainda caças?
– Não, há já muito tempo.
– Ainda assim, tal como eu, provavelmente já deves ter concluído que o
veado branco não é destas bandas. O mais provável é que tenha vagueado
até esta área temporariamente, em busca de comida, água ou qualquer coisa
do género. Deve ser esperto, para já ter sobrevivido a tantas épocas de caça
e chegado à idade adulta. O que quero dizer é que, no fim de semana,
quando abrir a época da caça ao peru, vai haver muito alvoroço. Armas
disparadas, caçadores a andar por aí… o que significa que o veado
provavelmente vai correr de volta para o local de onde quer que tenha
vindo.
Jasper olhou pela janela, ciente de que o xerife tinha razão. Ainda assim,
até lá, o veado correria perigo.
– E, se eu fosse a ti – acrescentou Charlie –, tentaria esquecer o assunto.
E teria cuidado na Uwharrie nos próximos dias. Lembra-te do que te disse
acerca da internet. Nunca se sabe com quem nos deparamos por lá.
A reunião terminou e, de volta à carrinha, Jasper ficou a remoer as
palavras de Charlie. Talvez devesse tentar esquecer o assunto, mas concluiu
que não era capaz. Os adolescentes com que se tinha cruzado tinham de ser
responsabilizados. Eram culpados de caça furtiva e, se tivessem
oportunidade, voltariam a fazê-lo. Tampouco era aceitável que disparassem
contra um cão, ou que o ameaçassem com uma arma.
A um nível mais profundo, não conseguia livrar-se da sensação de que
algo o unia ao veado branco. Não sabia se seria um augúrio ou uma
mensagem, mas, ali sentado na carrinha, foi-se convencendo mais e mais de
que a aparição do veado lhe era especificamente dirigida.
Afinal, tal como o pai e o avô, Jasper também sempre quisera assistir a
um milagre.

III
Tinha havido uma altura em que não sabia se alguma vez voltaria a
sentir-se normal. A morte do pai – tão absolutamente inesperada – deixara
uma lacuna que nem a presença de Audrey era capaz de preencher. Na
pequena casa da cidade em que sempre vivera, estava rodeado do que
restava da vida que partilhara com o pai: fotografias de ambos no lintel da
lareira, equipamento de pesca que tinham usado em tardes ociosas, figuras
entalhadas a encher os parapeitos das janelas e todas as outras superfícies. A
Bíblia do pai encontrava-se na mesa de apoio junto à cadeira de baloiço
estofada da sala de estar.
Nas semanas que se seguiram à morte do pai, Jasper vagueava sozinho
pela casa silenciosa, esvaziada pela tristeza. Nesses momentos, recorria à
Bíblia, tentando encontrar consolo nas palavras que o pai citava tantas
vezes ou nas que rabiscara nas margens.
Salmos 34:18 dizia: Os justos clamaram e o Senhor atendeu-os e livrou-
os das suas angústias. Mateus 5:4 dizia: Felizes os que choram, porque
serão consolados. Ele ajoelhava-se e rezava não só pela alma do pai, mas
também pela sua. De vez em quando, Audrey visitava-o depois das aulas,
levando-lhe um guisado ou uma tarte acabada de fazer. Comiam juntos e
falavam em voz baixa. Ela perguntava-lhe como estava e cada uma das suas
palavras e gestos irradiava uma profunda compaixão e, à medida que
aquelas semanas e meses terríveis foram passando, Jasper passou a amá-la
com uma devoção que não julgava possível. O amor é, mais do que tudo,
paciente e prestável (I Coríntios 13:4), e, realmente, ela parecia perceber
que Jasper precisava de fazer o luto seguindo o seu próprio tempo, antes de
tornar a entrar na corrente da vida.
Sem o pai para o sustentar, Jasper deixou a secundária e começou a
trabalhar a tempo inteiro no pomar. Embora isso implicasse não ver Audrey
na escola, não havia alternativa. Pagava as contas da casa, levava o almoço
na marmita do pai e trabalhava de sol a sol. Um homem chamado Richard
Stope tinha ocupado o antigo lugar do pai. Stope era genro do proprietário,
e havia muito que tinha inveja da confiança que o sogro depositava no pai
de Jasper. Era um homem difícil que culpava os outros sempre que algo
corria mal. Mais do que uma vez, Jasper vira-o agredir um dos
trabalhadores sazonais. Anos antes, quando lhe perguntara porque era que
Stope se comportava assim, o pai respondera dizendo: «Provérbios 24:2.»
Nessa noite, Jasper lera na caligrafia rabiscada do pai: Porque o seu
coração só pensa em violência e os seus lábios só falam em crimes. Como
sabia que ele tinha tentado despedir o seu pai por uma ou outra infração,
Jasper mantinha-se a uma boa distância e concentrava-se no seu trabalho.
Contudo, a inveja do capataz encontrou um novo bode expiatório em
Jasper. Se este trabalhasse cinquenta horas, Stope arranjava alguma
desculpa para lhe pagar apenas quarenta; se um dos tratores se avariasse,
Stope culpava Jasper. Com o passar do tempo, outros trabalhadores
começaram a distanciar-se de Jasper, cientes de que Stope também lhes
infernizaria as vidas caso privassem com ele. Em vez de almoçar com a
equipa, Jasper comia sozinho. Se tivesse de consertar um motor ou arranjar
as bombas de irrigação, já não havia quem o ajudasse. E quando o arranjo
ficava feito, culpavam-no por ter demorado demasiado tempo.
Por fim, quando já trabalhava ali a tempo inteiro havia mais de um ano,
dois pessegueiros ao fundo da propriedade foram atacados por monília. O
fungo tinha-se espalhado de uma moita vizinha, onde toda uma secção da
colheita de pêssegos havia sido afetada. Não obstante, Stope atribuiu a
responsabilidade apenas a Jasper. Enquanto outros trabalhadores assistiam
pelo canto do olho, despediu-o. Por essa altura, Jasper já o esperava, pelo
que se limitou a assentir com a cabeça.
Estavam em 1958. Tinha dezoito anos e o pai morrera havia pouco mais
de um ano. Não faltava muito para que Audrey terminasse a escola
secundária. Jasper tinha uma pequena maquia poupada, pelo que ficaria
bem. Estava a virar-se para se ir embora quando Stope lhe gritou:
– És um campónio branco que não serve para nada, tal como o teu pai.
Jasper estacou, com os ombros subitamente contraídos. Na sua mente,
ouviu o pai sussurrar, «Provérbios 29:11».
O insensato desafoga toda a sua ira, mas o sábio acaba por dominá-la.
Descontraiu os ombros e deu outro passo na direção do armazém onde
mantinha a marmita do pai. Stope avançou e agarrou-o por um braço.
– Vais sair da propriedade e já – sibilou ele.
Jasper sentia os olhares dos outros trabalhadores fixos neles. Livrou-se
deliberadamente da mão de Stope e deu mais um passo para ir buscar a
marmita. Stope tornou a encurtar a distância entre eles, de rosto corado e
olhos a faiscar.
– Não me ignores, moço!
Fazendo-o virar-se, Stope cerrou o punho; quando o golpe o atingiu,
Jasper sentiu a periferia da visão a ficar escura e caiu no chão. Sabendo o
que o pai quereria que ele fizesse, levantou-se. Olhou diretamente para o
capataz e depois, devagar, virou a cabeça. Apontou para a outra face, tal
como Jesus instara, para o caso de Stope querer bater-lhe uma segunda vez.
O rosto do capataz ficou púrpura. Ele cerrou o punho de novo. Mas uma
sensação de espanto e até de admiração parecia ter-se abatido sobre os
outros trabalhadores, como uma inspiração súbita. Stope também devia ter
dado por isso, pois, em vez de o atingir de novo, acabou por baixar o olhar.
Jasper continuou caminho até ao armazém e tirou de lá a marmita.
Deixou o pomar e caminhou para a carrinha que fora do pai, ciente de que
nunca regressaria.

IV

Depois de sair do gabinete do xerife, Jasper foi de carro até à Escola


Secundária de Asheboro e entrou no parque de estacionamento. Fez uma
pausa para afagar a cabeça de Arlo.
– Desta vez tens de ficar – disse-lhe. – Não posso levar-te para a escola
comigo.
Ao aproximar-se da entrada, maravilhou-se com quão maior era aquela
escola comparada com a que ele tinha frequentado, e com a quantidade de
carros que ocupava o parque de estacionamento. Quando era jovem, não
conhecia ninguém que tivesse o seu próprio automóvel, mas, nos tempos
que corriam, parecia que praticamente todos os miúdos tinham carro.
Tentou entrar no edifício, dando-se então conta de que a porta principal
estava trancada. Tentou outra vez antes de ouvir uma voz a estalejar pelo
intercomunicador.
– Posso ser-lhe útil?
Ele não fazia ideia de com quem estaria a falar; não via para lá do vidro
espelhado.
– Gostava de saber se têm anuários.
Depois de uma pausa, a voz respondeu:
– Os anuários só vão estar prontos em maio. Veio fazer algum pedido?
Tem um aluno inscrito aqui na escola?
– Não. Queria ver o anuário do ano passado.
– Desculpe… quem é que o senhor disse que era?
Jasper indicou-lhe o seu nome.
– E tem um filho aqui na escola? Ou um neto?
– Não. Só quero ver um anuário. A escola não guarda exemplares dos
seus próprios anuários?
– Não sei. Teria de verificar. Mas se não é pai ou encarregado de
educação e não tem um motivo oficial para visitar a escola, receio bem que
não possa deixá-lo entrar.
– Mas é uma escola…
– Exatamente – disse a mulher, interrompendo-o. – Há questões de
segurança. Tenho a certeza de que compreenderá.
– Tudo o que quero é olhar para um anuário do ano passado…
– Meu senhor – interrompeu ela de novo. – A menos que seja pai de um
aluno, ou que tenha uma reunião marcada, não posso deixá-lo entrar.
Jasper abanou a cabeça e foi-se embora.

De volta a casa, Jasper ia talhando madeira no seu alpendre, enquanto


pensava. Quando a tarde ia a meio, meteu-se no carro para ir a casa da
médica, onde bateu à porta.
Passou cerca de um minuto até o rapaz destrancar e abrir a porta.
– Olá, Mr. Jasper – disse Mitch, animando-se. – O que está aqui a fazer?
– Passei por cá para vos visitar.
O rapaz remexeu os pés.
– A minha mãe diz que não devo deixar entrar ninguém em casa a menos
que ela esteja.
– E eu não quero contrariar a tua mãe, portanto não me importo nada de
ficar no alpendre. Estava só aqui a pensar se a Casey terá o anuário da
escola do ano passado.
– Acho que sim – disse o rapaz. – Mas ela agora não está. Porque quer o
anuário dela?
– Estou à procura de uma pessoa que é capaz de andar na escola dela.
– Porquê?
– Eu preferia não entrar em pormenores, se não te importas.
– Porque é segredo?
– Pode-se dizer que sim – respondeu Jasper num tom vago. – Não
preciso de o levar… só preciso de o ver.
O rapaz voltou à sala de estar, onde pegou num telemóvel que estava em
cima da mesa.
– Não posso entrar no quarto da Casey sem pedir, mas vou mandar-lhe
uma mensagem, está bem?
Jasper assentiu com a cabeça.
Passados uns minutos o rapaz levantou a cabeça e sorriu.
– Espere – disse ele, desaparecendo escadas acima e tornando a aparecer
com um livro debaixo do braço. – Eu disse-lhe que o senhor tinha dito que
era super importante – explicou Mitch, entregando-lho. – E tenho de voltar
a pô-lo no sítio assim que acabe. E ela não quer que leia nada do que os
amigos dela escreveram.
– Não vou ler.
Jasper sentou-se no baloiço do alpendre e o rapaz juntou-se-lhe, com
uma curiosidade óbvia. Ao abrir o volume encadernado a couro, Jasper foi
até ao índice e encontrou a página que procurava. Tal como esperava, havia
uma fotografia de grupo da equipa de luta livre.
Identificou rapidamente o adolescente da T-shirt de luta livre com que se
tinha cruzado – Carl Melton. Continuando a escrutinar a fotografia da
equipa, reconheceu outro rosto. Um dos rapazes da fila de trás era o mais
alto – o que empunhara a arma.
Josh Littleton.
Jasper levantou a cabeça, piscou os olhos e inspirou profundamente.
Santo Deus, pensou.
Os Littleton.
Seguindo o seu palpite, voltou a verificar o índice. Mesmo por cima do
nome de Josh havia outra entrada e Jasper virou as páginas até o encontrar.
Eric Littleton, o irmão mais novo de Josh, era o último membro do trio.
Jasper fechou o livro e devolveu-o a Mitch.
– Já está? – perguntou o rapaz.
– Só precisava disso. Obrigado. E não te esqueças de agradecer à tua
irmã por mim.
– Não esqueço.
Jasper ficou ali um pouco, perdido em pensamentos sobre a família
Littleton, e Mitch remexeu-se diante dele. Voltando à conversa, Jasper
perguntou-lhe:
– Como é que anda a tua irmã?
Mitch desviou o olhar e arrastou os pés no chão.
– Ela disse que queria ir viver com o meu pai. A começar já neste verão.
– Ele não vive em Greensboro?
– Eu ia detestar se ela se fosse embora.
Sabendo o quanto Casey significava para o rapaz, Jasper pousou uma
mão no seu ombro.
– Se calhar foi só da boca para fora.
– O que é que isso quer dizer?
– Esperemos só que ela decida ficar, sim?
Mitch assentiu com a cabeça.

VI

Talvez tivesse sido por causa da sua conversa com Mitch, mas, quando
voltou para a cabana, Jasper decidiu ir visitar a família.
Podia encontrá-la aos pés de um velho carvalho vivo, de ramos grossos e
descaídos, alguns cobertos de musgo. Era a árvore perfeita para trepar, e
Jasper lembrava-se dos filhos a porem o equilíbrio e a coragem à prova
enquanto corriam e esgaravatavam pela árvore acima e à volta dela.
Durante uns anos, até tinham tido um baloiço; Jasper lembrava-se do dia em
que o pendurara e de como cada um dos filhos lhe implorara que o
empurrasse mais e mais.
Agora o baloiço já se fora e a árvore não era trepada há décadas. Tinha
sido ali, porém, que Jasper enterrara a mulher e os quatro filhos, no
pequeno terreno rodeado por um muro baixo de tijolo. Os amores-perfeitos
que plantara em novembro do ano anterior ainda estavam em flor, mas, no
mês seguinte, as flores primaveris emergiriam por entre as folhas velhas –
trílios, floxs, íris, sempre-noivas e lírios. Audrey sempre adorara flores.
As lápides estavam dispostas em semicírculo, com Audrey no centro. Ele
sabia que ela teria desejado assim, pois sempre fora o centro das vidas de
todos eles. Era o sol, enquanto os filhos eram os planetas. Tinha sido o
próprio Jasper a cinzelar os nomes e as datas nas lápides, juntamente com
um versículo para cada um.
Agachou-se cuidadosamente e começou a arrancar ervas daninhas que
tinham germinado entre os amores-perfeitos, com a memória a regressar a
1958, não muito depois de ter sido despedido do pomar. Embora Audrey o
visitasse tanto em casa como na cabana com alguma frequência havia mais
de um ano, Jasper ainda não a beijara, se bem que já soubesse que queria
passar o resto da vida com ela. Sempre que falavam, ele tinha a sensação de
que poderia ficar a ouvi-la para sempre. Ela contou-lhe que queria ser
professora numa escola nos arredores, para poder trabalhar com alunos
rurais. Disse-lhe que queria ter pelo menos quatro filhos e viver numa casa
de dois pisos com um alpendre e uma cozinha suficientemente grande para
que todos se reunissem lá. Queria passar a lua de mel em Sullivan’s Island,
perto de Charleston, onde poderiam ver golfinhos a saltar na rebentação. O
facto de ela ser tão clara em relação a coisas específicas da sua vida era algo
que o estonteava. À semelhança do pai, Jasper nunca fora grande sonhador,
mas prometeu a si mesmo que haveria de arranjar forma de concretizar
todos os sonhos dela, mesmo sem ter a menor ideia de como poderia fazer
isso.
Mas o que mais o cativava nela eram os olhos, não os sonhos. Sempre
que ele os fitava, era incapaz de desviar o olhar, como se ela o tivesse
enfeitiçado. Umas semanas antes de ela terminar a escola secundária, Jasper
levou-lhe um ramo de margaridas acabadas de apanhar. Os pais não o
consideravam grande partido para a filha e, quando a mãe o viu no
alpendre, com as flores na mão, contraiu o rosto numa expressão
contrariada. Audrey, no entanto, tinha descido as escadas a saltar e afastado
a mãe dali, para ficarem os dois sentados no alpendre. Com relutância, a
mãe fechara a porta, e Audrey encostara o ramo à cara.
– São maravilhosas – disse ela, inspirando.
Por fim, Jasper sussurrou as palavras que guardava dentro de si desde
que ela tinha entrado para a sua carrinha pela primeira vez.
– Tu também és maravilhosa.
Conversaram durante uma hora e partilharam uma fatia de tarte. Os
grilos estridulavam e Jasper ouviu o chirriar de uma coruja na floresta. As
estrelas começavam a pontilhar o céu noturno, pelo que soube que estava na
altura de ir embora. Contudo, mesmo antes de descer do alpendre, virou-se
para ela. Pousou-lhe uma mão delicada na cintura e aproximou-se mais; um
momento depois, os lábios dela tocaram nos dele pela primeira vez. Sentiu
o sabor a maçã e canela no hálito dela e, a caminho de casa, as pernas
tremiam-lhe tanto que só por sorte a carrinha não foi contra uma árvore.
Ao longo do verão, a relação foi desabrochando rapidamente, como
flores silvestres num prado. Davam passeios à tardinha, depois de o calor
do dia ter amainado, e por vezes paravam na baixa para tomarem um
refresco. Faziam piqueniques e de vez em quando iam ao cinema, sobretudo
porque ela adorava. Na livraria, ela indicava-lhe romances que a tinham
comovido mais profundamente – apesar da desconfiança generalizada que
tinha dos soviéticos, ela preferia escritores russos, como Tolstoi e
Dostoievski. E, no Dia da Independência, enquanto fogos de artifício
explodiam no céu noturno, ele finalmente sussurrou-lhe que a amava.
– Oh, Jasper – disse ela com um sorriso enorme. – Eu também te amo.
Em agosto, ela partiu para a faculdade. Fazia um calor abrasador e
passaram a última manhã juntos em casa, sob os olhares reprovadores dos
pais dela.
Ele pediu para falar a sós com o pai de Audrey. Tinha no bolso a aliança
de casamento da mãe, e solicitou formalmente a sua autorização para pedir
a mão da filha.
Num tom controlado, o pai explicou-lhe que tal não era possível. Eram
demasiado jovens, esclareceu, sem ser necessário referir que Jasper não
terminara os estudos secundários e não tinha emprego, já para não falar da
ausência de perspetiva de qualquer tipo de carreira.
Jasper saiu com a aliança no bolso e depois, quando Audrey entrou para
a parte de trás do Cadillac da família, onde faria a viagem até à Sweet Briar
College, na Virgínia, obrigou-se a sorrir. Acenou-lhe em despedida apesar
da náusea que sentia e, ao voltar para casa, perguntava-se se ela o
esqueceria. Mas não; em vez disso, a distância parecia uni-los ainda mais.
Ele escrevia-lhe duas vezes por semana e relia as cartas que ela lhe enviava
vezes sem conta. De vez em quando, ele enviava-lhe pequenos presentes
pelo correio – por norma algo que tivesse talhado, mas também lhe ofereceu
um lenço e um pequeno medalhão. E, durante as férias do Dia de Ação de
Graças e do Natal, passava todos os momentos possíveis com ela. E, quer
estivessem juntos, quer Audrey se encontrasse na faculdade, ele continuava
sempre a pensar na forma de concretizar todos os sonhos dela.
Agora, toda uma vida passada, passou a mão pelo granito, sentindo o
nome dela gravado sob o dedo. Fez o mesmo com cada um dos filhos e,
apesar da dor no peito, contou-lhes tudo o que tinha acontecido nos últimos
dias. Mais para o fim, deu por si a especular de novo se o veado branco
teria aparecido por Deus saber que ele ansiava por assistir a um milagre.
Uma voz racional dentro de si descartava a ideia, considerando-a ridícula,
mas, como já tinha vivido o suficiente para saber que a esperança e a dúvida
podiam coexistir, ergueu a vista para perscrutar a floresta. Olhou para a
esquerda e para a direita e depois concentrou-se nos sons mais distantes,
mas continuava a não haver mais do que o canto de pássaros e o veado
branco não apareceu. A abanar a cabeça, censurou-se pela sua tolice.
Passado um pouco, levantou-se, com fortes guinadas nos joelhos, nas
ancas e na zona lombar. A sua pele esticava-se dolorosamente a cada
movimento e, enquanto fitava as lápides por mais um momento, sentiu o
peso escuro da solidão a instalar-se, a sufocá-lo.
– Amo-vos e sinto tanto a vossa falta… – disse ele em voz baixa, antes
de voltar para casa.

VII

Sabendo que ainda tinha tempo antes de Charlie dar o dia por acabado,
telefonou para o gabinete do xerife. Disse-lhe que já tinha identificado os
rapazes que vira na floresta.
– Não vou perguntar como ficaste a par das identidades deles, mas tens a
certeza?
– Tenho – respondeu Jasper, antes de recitar os nomes dos rapazes.
Ouviu Charlie soltar uma longa expiração e fazer uma pausa antes de
responder.
– Estás à vontade para vir cá apresentar queixa, mas, mesmo pondo de
parte as questões de jurisdição, não te vai servir de nada.
– Porquê?
O silêncio de Charlie foi significativo. Por fim:
– Sabes tão bem quanto eu.
Realmente, Jasper sabia. Depois de desligar, considerou a situação
enquanto jantava uma sopa de tomate. Como Arlo não era apreciador,
deitou-lhe umas colheradas de Alpo na tigela antes de finalmente levar a
mão às chaves. O cão levantou a cabeça da tigela e lambeu os lábios, como
que a perguntar-se para onde iriam em seguida.
– Desta vez, sou só eu. Tens de ficar.
Deu-lhe uma palmadinha na cabeça e saiu para fazer o breve trajeto de
regresso à cidade. Acabou por virar para uma rua com grandes casarões de
um lado e do outro, ocupadas por famílias cuja fortuna fora passando de
geração em geração. Nos acessos das casas, reparou em Mercedes e BMW,
e até viu um ou outro Bentley. Abrandou ao aproximar-se de uma grande
casa colonial de tijolo, parcialmente ocultada por vegetação luxuriante.
Jasper sabia que era naquela casa que Josh e Eric Littleton viviam; também
tinha sido ali que o pai deles, Clyde, nascera e tinha sido criado, juntamente
com os irmãos, Roger e Vernon.
Sua Excelência, o juiz Roger Littleton.
E Vernon Littleton, advogado do Ministério Público.
Os Littleton tinham uma longa história na área, que remontava a tempos
anteriores à Guerra Civil, tendo feito fortuna com a construção de estradas e
a especulação imobiliária antes de se voltarem para o direito. Continuavam
a ser uma das famílias mais ricas do estado; tanto tempo passado, possuíam
dezenas de milhares de hectares, a maior parte arrendada a agricultores.
Durante toda a sua vida – e bem antes também, Jasper não duvidava –,
sempre houvera um juiz Littleton em Asheboro. O pai e o avô de Roger,
Vernon e Clyde tinham sido juízes; Vernon, por seu lado, era advogado do
Ministério Público há quase três décadas. Com os seus generosos donativos
para as campanhas políticas e os amigos que tinham em cargos importantes,
nem era preciso dizer que os Littleton tinham sido – e continuavam a ser – a
lei do condado.
Contudo, se Roger e Vernon Littleton suscitavam o respeito da
comunidade – ou talvez, por vezes, o medo –, Clyde era meramente
tolerado. Na sua adolescência, um amigo seu morrera de overdose quando
estava na casa dos Littleton, e corriam rumores de que fora Clyde a
fornecer-lhe as drogas. Quando tinha vinte e poucos anos, dizia-se pela
cidade que batera na namorada. Embora nunca tivesse sido oficialmente
acusado de nenhuma dessas coisas, os zunzuns da comunidade tinham sido
suficientes para o levar a deixar a cidade, pelo menos durante algum tempo.
Constava que, em Raleigh, endireitara a vida. Tinha-se tornado empreiteiro
e conhecera uma mulher chamada Anne, com quem acabara por casar.
Tiveram dois filhos e, há catorze anos, quando a memória das suas
transgressões já estava mais dissipada, Clyde e a família tinham voltado
para Asheboro, instalando-se na casa original da família. Um dos seus
primeiros projetos na área fora o empreendimento de casas que Jasper
tentara, em vão, deter.
Clyde também gostava de caçar; ou, melhor dito, desfrutava de um tipo
particular de caça. Para ele, quanto mais exótico o animal, melhor; e Jasper
ouvira dizer que muitas das suas presas tinham sido empalhadas e estavam
expostas pela casa. Matara um leão, um jaguar e uma pantera. Alvejara e
matara um rinoceronte na Namíbia, e viajara até aos Himalaias para matar
um bharal, ou carneiro-azul. Ainda que nem todos os animais que caçara
fossem espécies em risco de extinção, algumas eram, e Clyde era famoso
em certas áreas do mundo da caça graças à sua queda por publicar as suas
façanhas nas redes sociais. Argumentava que fazia as coisas legalmente e
com toda a aprovação dos governos locais, mas Jasper – tal como muitas
outras pessoas – não duvidava que ele por vezes contornava as regras,
subornando os representantes governamentais para que fizessem vista
grossa.
Uns anos antes, uma publicação das redes sociais de Clyde tinha sido
denunciada pelo canal local de notícias. A primeira fotografia mostrava-o a
segurar a cabeça de uma girafa que alvejara na África do Sul; noutra, tinha
nas mãos o coração do animal, e sorria de orelha a orelha. Quando
justificara as suas ações – que a atividade era legal, que a carne era doada
aos habitantes locais, que o macho já era velho –, ativistas pelos direitos dos
animais vindos até da Florida tinham protestado em frente ao escritório
dele, na baixa de Asheboro, com cartazes e gente a entoar palavras de
ordem através de megafones. Contudo, a polícia dispersara discretamente os
manifestantes.
E agora os filhos andavam a bater a floresta onde um veado branco,
outro animal exótico, tinha sido avistado praticamente à porta da sua casa.
Filhos em busca de aprovação paterna? A Jasper, tal parecia óbvio.
À entrada do acesso havia um elaborado portão de ferro forjado. Jasper
carregou na campainha do teclado. Quem respondeu foi uma mulher, que
anunciou tratar-se da residência da família Littleton.
– Gostaria de falar com Anne ou Clyde Littleton.
– Tem uma reunião marcada?
– Não. Mas estou aqui por causa dos filhos deles, o Eric e o Josh. É
importante.
– E quem é o senhor?
Jasper indicou o seu nome e a pessoa do outro lado calou-se. Ficou à
espera de a ouvir de novo, dizendo que nenhum dos Littleton estava em
casa, ou outra desculpa do género. Em vez disso, os portões abriram-se.
Jasper avançou lentamente pelo longo acesso, estacionando atrás de uma
carrinha preta de caixa aberta. Saiu e foi até à porta, lembrando-se quando
estava a chegar de tirar a bandana do bolso e envolver o rosto. Bateu à porta
e depois afastou-se da entrada.
Foi Anne quem abriu a porta. Era uma mulher pequena, de aspeto frágil,
que usava o cabelo preso num carrapito repuxado; ele reconheceu-a das
fotografias que tinha visto nos jornais. Os Littleton eram frequentemente
alvo de notícias pelas suas obras de solidariedade, e a nova ala do hospital
recebera o nome da família.
– Boa noite, Mrs. Littleton – cumprimentou-a Jasper. – Obrigado por
aceder a ver-me.
Os olhos de Anne desviaram-se do rosto dele.
– Disseram-me que tinha algo que ver com os meus filhos?
– Sim, minha senhora.
Atrás dela, Jasper viu Clyde a descer a escadaria imponente até chegar
ao vestíbulo com ladrilhos de mármore. Ao aproximar-se, arqueou as
sobrancelhas, reconhecendo-o.
– Eu lembro-me de si. Espero que não tenha vindo para se queixar do
empreendimento de Neely Ridge.
Jasper abanou a cabeça.
– Não, senhor. Vim por causa dos seus filhos.
Indicaram-lhe que os seguisse para uma biblioteca ao lado do vestíbulo,
com paredes cobertas por estantes que chegavam ao teto. Numa das paredes
estava pendurada a cabeça de uma pantera negra; em frente, encontrava-se
o bharal. Ao lado da lareira estava um urso pardo empalhado, que teria
cerca de três metros de altura. Clyde apontou para uma cadeira que parecia
ser uma antiguidade e Jasper sentou-se. Anne empoleirou-se na beira do
sofá, enquanto o marido se mantinha de pé.
– O que queria dizer-me acerca dos meus filhos? – perguntou Clyde.
Jasper narrou o sucedido no dia anterior e, quando terminou, Anne tinha
as mãos apertadas sobre o colo. Clyde, contudo, estava de mãos na cintura e
perdera a expressão amistosa.
– Vamos lá ver se entendi. Está a dizer que o Josh e o Eric são caçadores
furtivos, acusa o Josh de ter disparado contra o seu cão e ainda afirma que
ele lhe apontou a espingarda?
– Sim, senhor. E exigiu-me dinheiro. E espezinhou-me os míscaros. Foi
exatamente isso que aconteceu.
– Os meus filhos não fariam nenhuma dessas coisas – ripostou Clyde. –
Têm contacto com armas desde que nasceram. Sabem que não se aponta
uma arma a ninguém, nem se dispara contra o animal de estimação de quem
quer que seja. E por que raio haveriam de matar um veado jovem, que nada
vale?
– Segundo creio, andavam à procura do veado branco.
– Isso não justifica que alvejassem outro veado, pois não?
– Eu desconfio que o seu filho estivesse a testar a mira da espingarda –
respondeu Jasper. O que não acrescentou foi que talvez Josh tivesse querido
matar o animal, simplesmente por poder fazê-lo.
– Bom, nesse caso, vamos perguntar-lhes, sim?
Clyde saiu da divisão e chamou os filhos. Quando eles entraram,
trocaram um olhar nervoso antes de fitarem o pai.
– Aqui o Jasper tem estado a contar-nos uma história e tanto – começou
Clyde. – Rapazes, estiveram na Uwharrie ontem de manhã?
– Sim, senhor – disse Josh.
– E posso saber porquê?
– Andámos a bater o terreno – respondeu Josh, com palavras que lhe
saíam com facilidade.
– E viram este homem lá?
– Sim, senhor – disse Josh. – Cruzámo-nos com ele mesmo quando
estávamos a vir embora. Estivemos a falar e, quando tentei ver os
cogumelos que ele tinha estado a recolher, o cão dele atacou-me.
– Este homem – disse Clyde, apontando para Jasper –, também diz que
vocês mataram um veado jovem.
Josh abanou a cabeça.
– Não, senhor. Ele acusou-nos disso, mas nós dissemos-lhe que não
sabíamos nada sobre isso.
– E o cão dele atacou-te?
– Sim, senhor. Do nada. Eu tropecei quando estava a tentar livrar-me do
cão, e foi então que a arma se disparou. Foi um acidente.
– E depois apontaste-lhe a arma? E exigiste que te desse dinheiro? E
destruíste-lhe os míscaros?
– Não, senhor. Quero dizer, acho que não. Como eu disse, tropecei, e o
balde deve ter-se virado quando caí. Estava no chão a tentar soltar-me do
cão, e deve ter sido por isso que os cogumelos ficaram esmagados. E,
quando tentava levantar-me, talvez o cano se tenha virado na direção dele,
mas, se assim foi, foi sem querer. E não, não disparei contra o cão dele, nem
lhe perguntei se tinha dinheiro.
Jasper ouvia-o, espantado com a facilidade com que o rapaz mentia.
Clyde voltou o olhar para Eric.
– Foi assim, filho? Foi isto o que aconteceu?
Eric passou o peso de um pé para o outro, com um ar assustado.
– Sim, senhor.
Clyde assentiu com a cabeça antes de se virar de novo para Jasper.
– Tem alguma coisa a dizer acerca da versão deles?
Jasper correspondeu ao olhar de Clyde. Provérbios 14:5 sempre fora um
dos versículos preferidos do seu pai: A testemunha fiel não mente, a
testemunha falsa profere mentiras.
– Os seus filhos não estão a ser honestos – respondeu.
Anne estremeceu, ao passo que a expressão de Clyde endureceu.
– Os meus filhos não são mentirosos – atirou-lhe. – O que me leva a
perguntar: o que é que você quer, afinal? Veio cá a ver se conseguia
dinheiro?
– Vim porque achei que, como pais, quereriam saber o que os vossos
filhos fizeram, para poderem responsabilizá-los.
Durante algum tempo, ninguém disse nada, até que Clyde levou uma
mão ao queixo, a fingir que procurava alguma memória.
– Tem graça que venha dar-nos conselhos sobre como educarmos os
nossos filhos… parece-me que me lembro de ter ouvido qualquer coisa
acerca de um filho seu. Ele não acabou preso? Algo que ver com um fogo
posto, não foi?
Jasper nada disse, mas Clyde sabia que tinha acertado no alvo.
– Para a próxima, olhe-se ao espelho antes de começar a pôr em causa a
forma como eu educo os meus filhos – acrescentou Clyde. – Quanto às suas
alegações, tenho a certeza de que os meus filhos não fizeram nada de
errado. Mas gostava de saber se quer pedir-lhes desculpa pelo que o seu cão
fez ao meu filho mais velho.
Jasper continuou calado. Passado um pouco, Clyde deu um passo atrás e
indicou o vestíbulo.
– Nesse caso, parece-me melhor que se vá embora. A minha paciência
está por um fio e você não é bem-vindo na minha casa.
E, sem mais, Jasper foi levado à porta.

VIII

Jasper não estava na cabana há mais de uns minutos quando o telefone


tocou. Atendeu e era Charlie, cujo tom não era nada satisfeito. Os Littleton
não só estavam irritados, como sentiam que tinham sido ameaçados.
– Eu não os ameacei – contrapôs Jasper. – Só lhes contei o que os filhos
fizeram.
– Chamaste-lhes mentirosos?
– Disse que os filhos deles não estavam a ser honestos.
Charlie suspirou e Jasper ouviu a sua frustração.
– Olha, Jasper. Esquece. Ambos sabemos que não são uma família que
alguém queira ter contra si. Mantém-te longe deles e pronto, OK? Nada de
voltar a visitar a casa dos Littleton.
Depois de desligar, Jasper ficou na cozinha. Para lá das janelas, o mundo
estava escuro, e ele perguntou-se por onde andaria o veado branco. Seria
que ainda estava por ali? Haveria caçadores na floresta naquele preciso
momento, a tentar matá-lo? Perguntou-se quanto tempo demorariam os
filhos dos Littleton a tentar de novo a sua sorte, e se o veado acabaria
empalhado e pendurado como um troféu, por causa da vontade que os
rapazes tinham de emular o pai.
Na escuridão, não houve resposta alguma. Tudo o que sabia era que lhe
cabia a si salvá-lo.
CAPÍTULO SEIS

D epois de acabar o seu turno n’O Pão Nosso de Cada Dia, Tanner foi à
Oficina de Reparações do Bill. Como só ficava a uns dois quilómetros
e meio, decidiu ir a pé, apesar de uma voluntária, Trudy, se ter oferecido
para o levar. Um pouco de ar fresco haveria de lhe fazer bem, e o dia estava
ameno, o que lhe trazia boas memórias. Uma das coisas de que mais gostara
do tempo que passara em Fort Bragg, na Carolina do Norte, fora o clima –
meses de céu azul e temperaturas perfeitas durante a primavera e o outono.
Devolvendo o telemóvel ao bolso traseiro das calças, fez-se ao caminho,
a um passo que não era nem apressado, nem lento. Horas antes, passara
meia hora ao telefone com uma mulher que trabalhava na Revology. Como
já esperava, ela recomendara vivamente que a empresa fornecesse as peças
necessárias, em vez de a oficina as procurar no mercado. Infelizmente, não
podia fazer promessas quanto ao tempo que isso levaria. Era possível que
houvesse algumas em armazém, enquanto outras teriam de ser
encomendadas. Tanner não ficou encantado por a reparação poder demorar
semanas, mas recordou a si mesmo que ainda era dono do seu tempo, pelo
menos por ora.
Fosse como fosse, Asheboro estava a revelar-se mais interessante do que
o esperado. Ou, melhor, Kaitlyn interessava-lhe de uma forma que poucas
outras mulheres lhe haviam interessado. Na noite anterior, passara quase
uma hora às voltas na cama porque não conseguia parar de pensar nela. De
manhã, assim que abrira os olhos, imagens dela vieram-lhe à mente, e ele
teve a certeza de que queria voltar a vê-la.
Não obstante, a sua decisão de fazer voluntariado no Pão Nosso de Cada
Dia tinha sido complicada. Perguntara-se como o julgaria Kaitlyn ao vê-lo
sem aviso – presunçoso; ou até um pouco sinistro? Ainda assim, decidira
arriscar. Não tinha mentido quando lhe dissera que a filosofia do pai dela o
inspirara e já antes tinha dito a si mesmo que, se intuísse que ela ficava nem
que fosse um pouco incomodada pela sua presença, simplesmente guardaria
distância durante o turno de voluntariado e, depois, deixá-la-ia por
completo.
Porém, era mais fácil dizê-lo do que fazê-lo, mais que não fosse porque a
equipa de voluntários habituais – Trudy, Lisa, Margaret e Linda, entre
outros –, o bombardeou com perguntas assim que chegou. Se ao início as
questões não traíam mais do que uma curiosidade geral, o interesse tornou-
se mais pronunciado ao saberem que fora Kaitlyn quem lhe falara da
organização. Um por um, era como se pequenas lâmpadas se tivessem
acendido por cima das cabeças deles, e começaram a entreolhar-se. Ele
tinha a certeza de que Kaitlyn reparara naqueles olhares assim que chegara.
Tanner tinha-se esquecido de como as cidades pequenas podiam ser
propensas aos mexericos.
Para seu alívio, ela não lhe parecera nem zangada, nem irritada, quando
dera por ele na cozinha. Tinha um ar de ter sido apanhada desprevenida,
isso sim, e, nesse momento, ele apercebeu-se de que devia – no mínimo –
tê-la avisado a tempo, por mensagem de texto. Porque não o teria feito?,
perguntou-se depois.
Porque não queria correr o risco de que ela lhe dissesse para não ir.
Abanou a cabeça, perguntando-se o que lhe teria dado.
Enquanto percorria as ruas tranquilas de Asheboro, recordou a resposta
que ela lhe dera ao convite para jantar. Não fora exatamente um «não», mas
tampouco fora um «sim». Ele compreendia a relutância, mas, apesar disso,
não conseguia parar de pensar em Kaitlyn, de recordar a sua beleza
impressionante ou a profunda amabilidade que ela irradiava. Ou que tinha
um sorriso tão genuíno e luminoso que se tornava difícil imaginar que
alguma vez derramasse uma lágrima. Era evidente que era uma mãe
espetacular – observar as suas interações com Mitch deixava isso bem claro
– e Tanner regressou à primeira impressão que tivera dela, no alpendre da
casa na noite do acidente. Ela tem uma história para contar, lembrava-se de
ter pensado, e reconheceu que os últimos dias só lhe tinham aguçado a
vontade de ficar a saber ainda mais sobre isso.

II

Quando Tanner chegou à oficina, o avaliador da seguradora já estava a


tirar mais fotografias do carro enquanto o proprietário e outros funcionários
da oficina se reuniam à volta, murmurando comentários como, «É uma
pena, disso não há dúvida».
Tanner apresentou-se e, ao longo dos vinte minutos seguintes, o
avaliador e o proprietário da oficina reviram a documentação e discutiram o
que era necessário fazer. Tanner partilhou os contactos que tinha na
Revology; o proprietário, por seu turno, prometeu que arranjaria as peças de
que precisaria de encomendar num dia ou dois. A parte positiva, disse ele,
era que a carroçaria não estava retorcida, o que facilitaria muito as
reparações.
Mais para o fim, o avaliador da seguradora retirou um conjunto de
chaves que tinha pendurado na prancha do bloco de notas e indicou-lhe um
Chevrolet Impala prateado, relativamente novo, que se encontrava
estacionado à frente.
– Eu sei que não é aquilo a que está habituado – disse ele –, mas já vai
dar-lhe liberdade de movimentos.
Tanner preencheu os formulários do aluguer e assinou na linha
pontilhada. Rodar a chave pareceu-lhe dececionante, comparado com a
sensação que tinha ao ligar o seu carro, mas o Impala comportava-se
relativamente bem. A pensar que já precisava de comer qualquer coisa,
estacionou o carro perto da entrada de um café que vendia sanduíches.
Depois de levar a sanduíche e a garrafa de água para uma mesa perto da
montra, verificou o telemóvel. Ainda não recebera uma mensagem de
Kaitlyn. Não fazia mal. Desembrulhou a sanduíche e tinha dado um par de
dentadas quando a porta do café se abriu. Três adolescentes entraram e
aproximaram-se do balcão a conversar ruidosamente. Um momento depois,
Tanner reconheceu uma delas.
Era Casey.
Tinha um ar diferente de quando a conhecera, na noite do acidente. Sem
rímel a escorrer-lhe pelo rosto, parecia mais velha e a semelhança com
Kaitlyn era notória. Tinha o mesmo cabelo e os mesmos olhos escuros, e ele
estava disposto a apostar que praticamente todos os rapazes da escola
secundária a achariam linda.
Observou-a a virar-se para uma das amigas e sussurrar qualquer coisa;
quando a jovem se virou na sua direção, com os olhos a arregalar-se, Tanner
também a reconheceu da noite do acidente. A amiga loura, pensou, a que o
tinha censurado por assustar Josh. Viu Casey a boquejar as palavras,
Deem-me uns minutos.
Casey avançou na direção dele; Tanner observou-a com curiosidade
enquanto ela puxava uma cadeira à frente dele e se sentava, apoiando os
cotovelos na mesa. Ele baixou lentamente a sanduíche, sorriu e disse-lhe:
– Olá.
– Então decidiu sair com a minha mãe, foi?
A desenvoltura dela divertiu-o.
– Fomos ao jardim zoológico, se é isso que queres saber. – E recostou-se
na cadeira, enquanto limpava as mãos a um guardanapo de papel.
– E qual é a ideia?
Ele devolveu-lhe um olhar intrigado.
– Não estou bem a entender o que estás a perguntar-me.
– Estou a perguntar porque é que convidou a minha mãe.
Ele levou a mão à garrafa de água e girou a tampa para a abrir.
– Tecnicamente, eu não a convidei. Ela foi buscar-me ao hotel. Quanto
ao porquê, umas horas no jardim zoológico pareceram-me uma forma
agradável de passar o tempo numa tarde de domingo.
– Então a ideia era só ir ao jardim zoológico? É isso que está a dizer-me?
Ele arqueou uma sobrancelha, compreendendo de repente porque era tão
frequente Kaitlyn não ter mãos a medir com a filha.
– Ir ao jardim zoológico era uma coisa que eu já planeava fazer ainda
antes de ter chegado aqui. E quando soube que a tua mãe e o Mitch iam,
perguntei se podia ir também.
Os olhos semicerrados dela mantiveram-se concentrados nele.
– Vai voltar a sair com ela?
Ele admirou o instinto de proteção que ela demonstrava em relação à
mãe.
– Não sei. Convidei-a para jantarmos, mas ela ainda não me respondeu.
– Eu sabia – disse ela. Ele observou-a a exalar. – Eu percebi, pela forma
como você estava a olhar para ela depois do acidente, que a tinha achado
bonita.
Ele bebeu mais um trago da garrafa de água.
– Posso ser eu a fazer uma pergunta agora?
– Suponho que sim.
– Isso incomoda-te? Porque parece-me que não aprovas.
– Não o conheço o suficiente para aprovar ou deixar de aprovar – disse
ela. – Portanto, comecemos por aí. Qual é a sua história?
Ele arqueou uma sobrancelha, dando-se conta de que gostava dela. Fez-
lhe um resumo rápido, parecido com o que partilhara com Kaitlyn. Quando
ele terminou, ela pegou no seu refrigerante.
– Você é um desses, hã?
– O que é que isso quer dizer?
– Nunca casou. Mas já namorou, certo?
– Sim.
– Qual foi a relação mais longa que já teve?
Oh, caramba, pensou ele. Mas, mais uma vez, como ela tinha tido a
coragem de perguntar, respondeu-lhe.
– Cerca de um ano.
– Era o que eu achava – disse ela.
– Dizes isso como se fosse um problema.
– E não é? Se você estivesse no meu lugar e a mãe fosse sua? E se um
tipo qualquer, que nunca teve uma relação duradoura e não planeasse ficar,
de repente aparecesse no cenário?
Pela primeira vez, ele não soube ao certo o que dizer.
– Não tenho a menor intenção de magoar a tua mãe, seja de que maneira
for – disse ele. – E gostei de ter a oportunidade de a conhecer um pouco
melhor.
Casey assentiu com a cabeça, olhando lá para fora por um instante, antes
de tornar a fitá-lo.
– Eu sei que nada disto é da minha conta, na verdade. Mas trata-se da
minha mãe. E não se dá o caso de ela sair muito. Acho que saiu com três
tipos desde o divórcio, e nenhum passou do primeiro encontro.
– Eu percebo. E acho que é fantástico que estejas a tentar cuidar dela.
Ela ficou calada por um instante.
– Alguma vez foi destacado quando estava no exército? Para o Iraque?
– Sim.
– Conhece um tipo chamado Marshall Cullen?
Ele passou em revista a memória.
– Esse nome não me é familiar.
– É o pai de um dos meus amigos. Também era do exército e foi para
onde o mandaram.
– Foi muita gente.
– O meu amigo diz que ele tem pesadelos. Mesmo maus.
– É o que acontece com muitos veteranos.
Ela parecia prestes a perguntar-lhe se ele também tinha pesadelos, mas,
em vez disso, mudou de assunto.
– O Mitch disse-me que o ensinou a lançar o disco. Disse-me que você
era fixe.
– Gosto dele. É um miúdo à maneira.
– É o meu amiguinho – disse ela. – Adoro-o.
Tanner sorriu, mas nada disse. Passado um instante, ela continuou.
– Quando encontrar esse tipo de quem anda à procura… o que acontece?
– Suponho que isso dependa de como corra a coisa.
– Mas, de qualquer maneira, vai-se embora, não é? Volta para África?
Como Tanner não respondia, ela lançou um olhar de relance para as
amigas. Depois, levantando-se da mesa, avisou:
– É melhor ir andando. Estão à minha espera.
– Eu entendo – disse ele. – Mas não chegaste a responder à pergunta que
te tinha feito.
– Que pergunta?
– Incomoda-te se eu levar a tua mãe a jantar fora?
Ela fitou-o.
– Ainda não decidi.
III

Depois de comer a sanduíche, Tanner regressou ao hotel.


Kaitlyn ainda não tinha respondido à sua mensagem e ele deu por si a
perguntar-se o que lhe diria Casey. Acreditava que tinha sido honesta
quanto a estar indecisa em relação a si, o que lhe importava mais do que
quereria admitir. Ao mesmo tempo, ele também não mentira quando dissera
que não queria magoar Kaitlyn. E onde é que isso o deixava, ao certo?
Ele não sabia, para além de aceitar que o próximo passo seria de Kaitlyn.
Não voltaria a aparecer sem aviso em sítios como O Pão Nosso de Cada
Dia, por exemplo, nem lhe telefonaria ou enviaria mais mensagens de texto.
Ela haveria de responder em breve.
Fosse como fosse, provavelmente o melhor seria concentrar-se naquilo
que o levara a Asheboro. Reuniu a informação que tinha recolhido na
biblioteca no sábado e começou a fazer uma lista dos telefonemas que podia
fazer aos Johnson que viviam em Asheboro em 1992 e que ainda
continuavam ali. Tomou nota dos números no caderno, demorou um pouco
a pensar no que diria e depois marcou o primeiro. Tocou, sem que ninguém
atendesse; e passou para o seguinte da lista. Mais uma vez, tocou sem obter
resposta.
Dos primeiros dez telefonemas, nove não atenderam. Da única vez que
conseguiu falar com alguém, responderam-lhe que o nome não lhes dizia
nada, pelo que riscou esse número da lista.
A sua falta de sucesso não o surpreendia. Nos tempos que corriam, a
maior parte das pessoas tinha telemóvel, e as únicas pessoas que ainda
ligavam para números fixos a partir de números desconhecidos eram
vendedores, entrevistadores de sondagens, ou alguém a ligar para o número
errado. Ele também nunca atenderia esse tipo de chamadas.
Sem querer desperdiçar tempo, pôs o telemóvel a carregar e deitou-se na
cama, com as mãos unidas atrás da cabeça, a fazer planos para o dia
seguinte. Precisava de voltar à biblioteca, para poder completar a sua lista.
Depois, delinearia uma rota eficiente e começaria a bater a portas.
Calculava que bastantes dessas incursões resultassem também em ausência
de resposta, tal como acontecera com os telefonemas. A meio do dia, muita
gente estaria fora, a trabalhar. Para essas pessoas, talvez fosse melhor uma
visita ao final do dia, mesmo que isso implicasse interromper-lhes o jantar.
Agarrou no iPad e leu o seu livro sobre a Segunda Guerra Mundial
durante umas horas, antes de ficar a vegetar em frente ao canal desportivo
ESPN até escurecer. Quando acendeu a luz, deu pelos seus pensamentos a
regressarem à conversa que tivera com Casey. A confiança dela
impressionara-o. Custava acreditar que só tivesse dezassete anos; era muito
mais madura do que ele fora quando tinha aquela idade. Não se lembrava de
pensar muito acerca dos avós quando era adolescente, quanto mais de sentir
que tinha de cuidar deles.
E Mitch…
Também era incrível, com um entusiasmo contagioso. Vamos ao jardim
zoológico? Fantástico! O urso polar está a armar confusão? Isto é ótimo!
Queres experimentar lançar o disco? Podemos? Por favor? Fora impossível
não sorrir enquanto ele tagarelava durante o almoço e, mais uma vez,
Tanner recordou que tinha sido bem menos encantador quando tinha a idade
dele. Mudar de uma base para outra implicava deixar amigos; implicava ter
dificuldades para se enquadrar em ambientes em constante mudança.
Implicava demorar a confiar e demorar ainda mais a abrir-se com os outros,
e meter-se em demasiadas lutas para conseguir lembrar-se de todas. Mitch,
por outro lado, era basicamente um livro aberto e feliz; Tanner não o
imaginava a lutar com quem quer que fosse.
De certa forma, Casey e Mitch traziam-lhe à memória os filhos do seu
amigo Glen. Ele lembrava-se de que o mais velho era astuto e até um pouco
insistente, ao passo que o mais novo era bonacheirão e sempre a fim do que
quer que fosse. Kaitlyn também lhe recordava Molly, concluiu. E apesar de
isso ser algo que não revelava aos outros, Molly sempre fora a sua preferida
entre as mulheres dos seus amigos. Achava-a um exemplo de estilo em
todos os sentidos.
Tal como Kaitlyn.

IV
Na manhã seguinte, Tanner foi fazer a sua corrida e parou no lóbi do
hotel para tomar o pequeno-almoço antes de voltar ao quarto, tomar um
duche e mudar de roupa. Chegou à biblioteca pouco depois de esta abrir, e a
bibliotecária que se encontrava na receção tornou a recuperar a velha lista
telefónica. Tal como tinha feito antes, Tanner cruzou os nomes com as
páginas brancas mais recentes que ia vendo no seu telemóvel. Depois,
anotou as moradas e marcou-as no seu mapa. Ocorrendo-lhe que alguém
poderia ter vivido em Asheboro, deixado o lugar durante algum tempo e
voltado mais tarde – ou conhecido algum membro da família que o tivesse
feito –, decidiu acrescentar todos os Johnson das páginas brancas mais
recentes à sua lista e, mais uma vez, marcou as moradas no mapa. Quando
terminou, tinha mais de noventa paragens na sua lista, e antes do meio-dia
já estava de saída.
Decidiu começar pelo lado ocidental da cidade. Havia muitos Johnson
nessa área e, tendo chegado à primeira casa, aproximou-se da porta e bateu.
Apesar de não estar ninguém em casa, uma vizinha aparecera pouco depois
de o seu carro parar no acesso. Era uma senhora de idade, vestida para
jardinar. Tanner disse-lhe quem procurava, mas a mulher abanou a cabeça.
– O Henry e a Ethel têm filhas, não filhos – disse-lhe. – Foram daqui
para Fayetteville em 1990.
Isso teria sido onze ou doze anos mais tarde do que o que ele procurava.
– Tem a certeza em relação à data?
– Tenho – disse ela –, porque nós tínhamos acabado de nos mudar para
cá, um mês antes. Lembro-me de lhe levar a minha famosa tarte de pêssego.
Ficou em terceiro lugar na Feira Estadual da Carolina do Norte.
Embora ele estivesse desejoso de passar para a casa seguinte, a vizinha
continuava a falar. Depois de lhe descrever a tarte de pêssego e de revelar o
seu segredo – uma pitada de noz-moscada –, começou a fazer perguntas
acerca dele, para poder dizer a Henry e a Ethel quem tinha passado por ali.
Ele deu-lhe a entender que o homem que procurava fora um amigo que
conhecera no exército, o que a levou a nova ronda de perguntas, já que
Henry também havia sido do exército. Tal como Tanner, tinha estado
destacado em Fort Bragg.
Foram precisos quase vinte minutos para Tanner conseguir escapulir-se,
mas, na segunda casa, teve mais sorte. Ou mais azar. Os Johnson tinham-se
mudado dali três meses antes, e os novos proprietários não tinham qualquer
informação que pudessem partilhar.
Tanner foi a outras três casas, sem ter sorte alguma, antes de parar para
uma merenda tardia no Kickback Jack’s. Pediu uma salada e estava a
espetar o garfo na alface quando o seu telemóvel vibrou com uma
mensagem de texto. Kaitlyn. No ecrã, viu apenas a primeira parte:

Falei com os miúdos. A Casey lembrou-me que tem exames no início


desta semana, por isso não quis estar a pedir-lhe que…

Ele hesitou, a pensar: Pronto, então acho que ficamos por aqui. Depois
abriu o resto da mensagem:

… tomasse conta do Mitch. Mas ela sugeriu que o Tanner viesse jantar
connosco na quarta à noite. Disse que queria voltar a agradecer-lhe por a
ter trazido a casa depois do acidente. Por si pode ser? Digamos, por volta
das seis e meia?

Tanner arqueou uma sobrancelha, ciente de que Casey não fizera tal
sugestão por querer voltar a agradecer-lhe. O que queria era fazer de pau de
cabeleira, para poder formar a sua própria opinião acerca da mãe e do
desconhecido que não tardaria a deixar a cidade de novo. Digitou uma
mensagem rápida.

6h30 na quarta parece-me ótimo. Até lá.

Pousando o telemóvel, sorriu. Embora preferisse ver Kaitlyn antes,


recordou a si mesmo que tinha muito que fazer até então.

Passou o resto da tarde a ir de casa em casa e a riscar mais nomes da sua


lista. Quanto aos que não estavam, tentaria de novo dali a umas horas.
Tendo terminado, por enquanto, a parte ocidental da cidade, concentrou-
se na parte norte, visitando outras sete casas, em vão. Uma vez, julgou ter
acertado; era o nome certo, mas bastou-lhe um olhar de relance para
perceber que não era possível que aquele homem fosse o seu pai biológico.
Era apenas uns anos mais velho do que ele.
Por fim, com o crepúsculo a começar a reduzir as cores vivas do dia
primaveril, regressou às casas a que fora antes sem que lhe tivessem aberto
a porta. Um pouco mais de metade já tinha gente e, numa das ocasiões, de
súbito começou a sentir o coração acelerado. O nome era o correto, e o
homem também parecia ter a idade certa. Mas depois contou-lhe que se
tinha mudado da Pensilvânia para Asheboro em 2001, pelo que, mais uma
vez, as datas não batiam certo.
Já escurecera quando voltou para o hotel. No total, o dia fora
relativamente produtivo. Àquele ritmo, conseguiria chegar ao fim no início
da semana seguinte, ou até antes, caso tivesse sorte.
Foi jantar a um restaurante italiano em que reparara uns dias antes;
enquanto comia, deu por si a perguntar-se de novo como seria o seu pai
biológico, ainda que também aceitasse a ideia de ser mais do que possível
estar a perder tempo, pois o homem poderia ter desaparecido há muito.
Quarenta anos era muito tempo para alguém ficar numa cidade pequena,
mas, com o carro na oficina durante os próximos tempos, não tinha nada
melhor para fazer. Fosse como fosse, mais importante era que sabia que
qualquer incerteza que perdurasse acerca da ligação de Asheboro ao seu pai
o atormentaria até ficar a saber a verdade.
Por volta das oito da noite, Tanner recomeçou a fazer telefonemas. Três
pessoas atenderam, o que lhe permitiu riscar mais nomes da lista.

VI

Na quarta de manhã, Tanner voltou ao telefone e quatro pessoas


atenderam. Mais uma vez, sentiu as esperanças aumentarem num desses
telefonemas, mas, mais uma vez, as perguntas subsequentes revelaram que
muito do seu dia seria passado a bater a portas.
Como de costume, foi correr antes de beber duas chávenas de café, e
retomou a busca onde a tinha parado no dia anterior. Parou em
autocaravanas e moradias em banda, quintas e numa cabana tão velha que
parecia que iria abaixo na próxima grande tempestade.
Ao final do dia, tinha avançado mais do que previra, embora ainda não
tivesse encontrado o homem que procurava. Os seus pensamentos passavam
o tempo todo a desviar-se para Kaitlyn e para o jantar em casa dela. Estava
desejoso de voltar a vê-la.

VII

Passou pela oficina a caminho do hotel; o proprietário informou-o de que


as peças necessárias tinham sido encomendadas. A má notícia era que
demorariam duas semanas – talvez três, até – a chegar. Isso deixou-o a
pensar no que faria se a sua busca em Asheboro não desse em nada.
Calculava que poderia usar o carro alugado para visitar algumas das
viúvas e das famílias que ainda não fora ver. Uma vivia na Virgínia e outra
na Pensilvânia, dois lugares suficientemente próximos para que a viagem
fosse relativamente fácil. Mas decidiu que resolveria isso depois. Por ora,
tinha coisas mais importantes em que pensar.
Depois de tomar duche no hotel, passou por um supermercado para
comprar vinho e depois foi ao Walmart buscar outra coisa. Chegou a casa
de Kaitlyn uns minutos antes da hora marcada, mas Mitch abriu a porta sem
que ele tivesse sequer subido para o alpendre.
– Olá, Mr. Tanner! – Mitch tinha uma mantinha à volta dos ombros e
uma maçã parcialmente comida na mão. – A minha mãe disse-me para ficar
atento e abrir a porta quando o senhor chegasse. Mas sabe que mais?
– O quê?
– Levei o disco para a escola. Para o intervalo.
– Que fixe – respondeu Tanner. – Divertiste-te?
– Ainda se desvia quando o atiro. De uma das vezes, quase aterrou no
telhado.
– É preciso treinar, mas vais aprender.
Mitch deixou-o entrar e um olhar rápido revelou uma sala de estar
decorada com bom gosto e pensada para uma família, com uma poltrona
reclinável de pele suave e um sofá de vários lugares de tecido cinzento,
suficientemente grande para todos se esparramarem. Numa parede, num
televisor de ecrã plano passava um filme do Parque Jurássico; um armário
decorado com livros e fotografias das crianças, para além de peças
intrincadas de vidro trabalhado, dominava outra. Por cima da lareira estava
pendurada uma fotografia impressionante de um conjunto de bétulas no
inverno, uma cena austera capturada em tons de preto, branco e cinzento
que dava uma aura de tranquilidade à divisão. Em frente, a subir do átrio de
entrada, havia umas escadas e, à direita, Tanner presumiu que ficariam a
cozinha e a sala de jantar. Não havia sinal de Casey.
– A minha mãe está ali na cozinha – disse Mitch, a apontar. – Eu estou a
ver um filme.
– Parece ser bom.
– Já o vi. Os velocirraptores são muito fixes. Alguma vez viu?
– Acho que sim – disse ele. – Também gosto dos velocirraptores. Caçam
em grupo e colaboram uns com os outros.
– Exatamente! – exclamou Mitch. – Pode ver o filme comigo, se quiser.
Tanner sorriu.
– Primeiro deixa-me só ir cumprimentar a tua mãe, está bem?
Pousou o saco do Walmart na mesa perto da porta, agarrou nas garrafas
de vinho e foi até à cozinha. Ao contornar o balcão dos pequenos-almoços,
reparou que a mesa na sala de jantar já estava posta, incluindo dois copos de
vinho. Do outro lado da ilha, Kaitlyn encontrava-se ao fogão, em frente a
um tabuleiro de forno, de costas para ele. Estava a pincelar um frango
aninhado numa cama de cenouras e cebolas, e um cheiro apetitoso
espalhava-se pelo ar. O cabelo escuro, solto e despenteado naquele dia,
caía-lhe pelos ombros.
– Olá – disse ela, com uma olhadela para trás. – Conseguiu chegar. Não
tinha a certeza de que se lembrasse de onde moro. Ia enviar-lhe a morada
por mensagem.
– Lembrava-me – garantiu ele, convencido de que ela estava ainda mais
bonita do que há apenas dois dias. Pousou as garrafas na bancada. – Como
foi o seu dia?
– Típico – disse ela, tornando a concentrar-se no frango. – E o seu? Já
deu início à busca?
– Sim.
– Teve alguma sorte?
– Ainda não – respondeu ele. – A parte boa é que sinto que estou mesmo
a começar a orientar-me por Asheboro.
– E?
– Percebo porque é que gosta de viver aqui. É um lugar muito bonito…
mas, enquanto percorria a cidade, não pude deixar de me perguntar o que
farão as pessoas aqui para ganhar a vida.
– Há escolas, repartições públicas e o hospital, claro, mas, a menos que
se seja médico, advogado, contabilista ou alguém com um negócio por
conta própria, o mais provável é que se trabalhe em Greensboro. Ainda é
um trajeto longo, mas pode valer a pena. A vida aqui corre um bocadinho
mais devagar, o que é raro neste nosso mundo caótico.
– Eu percebo – disse ele. – Também gosto de cidades pequenas.
– A sério? Sendo um viajante cosmopolita, nascido e criado na Europa?
– Sou menos cosmopolita do que julga. E, depois da vida que tenho
levado, acredite que um pouco de paz e sossego é capaz de ser mesmo o
que preciso que me receitem.
– Quer? Que lhe passe essa receita, quero dizer?
Ele riu-se.
– Se calhar, devia. Sempre que voltava das minhas missões, visitava os
meus avós por uns dias e depois arrendava um chalé algures na costa.
Passava umas horas a caminhar na praia e só a ouvir o som das ondas. À
tardinha, grelhava qualquer coisa no pátio das traseiras e, por norma, metia-
me na cama assim que o sol se punha. E fazia isso dia após dia até ter
finalmente de voltar para Fort Bragg. Asheboro faz-me lembrar esse tipo de
lugares.
– Sabe que aqui não há praia, não sabe?
– Sei, mas têm a floresta nacional. Se eu vivesse aqui, de certeza que
corria nos trilhos todos os dias. Tenho feito muito disso nos últimos anos,
em vários parques nacionais, e cheguei à conclusão de que uma boa saúde
mental requer mesmo passar algum tempo na natureza com regularidade.
– No entanto, não tarda vai voltar para uma cidade com três milhões de
habitantes – comentou ela, antes de se apressar a abanar a cabeça. –
Desculpe lá. Compreendo que, por causa do trabalho, nem sempre podemos
escolher onde vivemos. – Concentrou-se de novo no tabuleiro e recomeçou
a pincelar o frango. – Espero que goste de frango assado. Encontrei uma
receita online aqui há uns tempos e queria experimentá-la.
– Cheira mesmo bem.
– Ainda precisa de cozinhar um pouco mais, pelo que espero que não
esteja faminto. Cheguei tarde a casa.
– Não tenho pressa nenhuma. – Levou a mão às garrafas de vinho. – Não
sabia o que ia preparar, por isso comprei um Sauvignon Blanc e um Pinot.
Se é que lhe apetece vinho.
– Apetece-me sempre vinho – disse ela com um sorriso divertido. –
Começamos por abrir o branco?
– Parece-me uma ótima ideia. Tem um saca-rolhas?
– Deve estar na gaveta perto do lava-loiça. Ali mesmo.
Tanner pegou nos copos da mesa e serviu o vinho. Levou-lhe um quando
ela devolvia o tabuleiro ao forno.
– Infelizmente, não está gelado.
– Importa-se que eu lhe junte um ou dois cubos de gelo?
– Porque haveria de me importar?
– Não sei. Podia ser escanção nas horas vagas e ficar ofendido.
Ele riu-se.
– Na verdade, acho que também agradecia uns cubos de gelo.
Do congelador, ela tirou uma mancheia de cubos de gelo e deitou-os nos
copos. Ele observou-a a provar o vinho.
– Ah, é bom – disse ela, mais animada.
– Vou confiar na sua opinião. Não costumo beber vinho.
– Porque é um sofisticado apreciador de cerveja, certo? – perguntou ela,
com uma piscadela de olho. – A propósito, acho que não chegou a dizer-me
porque anda à procura dessa pessoa aqui em Asheboro…
Tanner deixou o comentário sem resposta durante algum tempo, até que
abanou a cabeça.
– Não disse, não. É complicado.
– Se prefere não falar disso, não tem problema. Não é da minha conta.
– Não, não me importo – disse ele, vindo-lhe à memória a sua avó no
hospital. – Acho que já tinha mencionado que a minha mãe morreu quando
me teve – começou, pondo-a a par do resto.
Durante toda a história, Kaitlyn manteve-se calada, até que finalmente
arqueou uma sobrancelha.
– Porque acha que a sua avó esperou tanto tempo para partilhar essa
informação consigo? E porque a terá revelado então?
Tanner encolheu os ombros.
– Tenho-me feito a mesma pergunta todos os dias desde que ela morreu –
disse. – A melhor explicação pareceu-me ser ou que não sabiam muito sobre
ele, ou que seria demasiado doloroso falar do assunto. Outra opção menos
generosa será que não queriam que ninguém, incluindo eu, soubesse o que
quer que fosse acerca do meu pai biológico, para serem eles a criar-me. E
eu também compreendo isso. Eu era tudo o que lhes restava da filha, depois
de ela ter morrido. – Passou uma mão pelo cabelo. – Quanto ao momento
da revelação, tenho praticamente a certeza de que foi uma daquelas coisas
que se fazem no leito da morte. Acho que a incomodava saber que eu nunca
tinha assentado e encontrado um sítio que considerasse ser o meu lar.
Talvez tenha pensado que encontrá-lo me daria um vínculo familiar ou, pelo
menos, a sensação de ter vindo de algum lugar.
Ele sentiu o olhar dela a incidir em si.
– Acha que vai dar?
Tanner virou-se de novo para ela e apoiou as mãos na ilha da cozinha.
– Não sei. Custa-me imaginar que encontrar um homem que nunca
conheci possa mudar quem sou ou como vivo a minha vida. Mas sabe-se lá!
Kaitlyn foi a primeira a desviar o olhar.
– Imagino que a ideia de criar raízes onde quer que seja lhe pareça
bastante estranha.
– Nunca me senti compelido a ficar num sítio para sempre – admitiu ele.
– Mas, por outro lado, talvez nunca tenha tido uma razão suficientemente
boa para o fazer.
Kaitlyn parecia estar a assimilar toda aquela informação.
– Bem, duvido que consiga dar resposta a isso esta noite – disse ela. –
Mas já pensou em como reagirá se conseguir encontrar o seu pai e não for o
que quer?
– O que quer dizer?
Ele observou-a a fazer rodopiar o vinho no copo.
– Já ando por cá há tempo suficiente para saber que as pessoas nem
sempre querem a verdade, sobretudo se se tratar de uma novidade com que
não contem. E uma coisa assim…
Quando ela se calou, Tanner franziu o sobrolho.
– Está a dizer que não devo procurá-lo?
– Nada disso – contrapôs ela. – Só me pergunto se já terá considerado
todas as possibilidades.
– Como o quê?
– E se ele nem sequer se lembrar da sua mãe e não tiver o mínimo
interesse em conhecê-lo? Ou se tiver uma família nova? – Dado que Tanner
não respondia, Kaitlyn continuou: – Também há a possibilidade de ele não
ser alguém que você queira sequer conhecer. Por exemplo… e se a sua mãe
e os seus avós tiverem cortado relações com ele por não se tratar de uma
boa pessoa… pode ter estado preso ou algo assim.
Tanner fitava-a, sabendo que, embora tivesse considerado algumas
daquelas possibilidades, ouvi-las ditas em voz alta as fazia parecer mais
sérias.
– Ouça – acrescentou ela por fim –, isto não é nada da minha conta, mas
é algo em que pensar, não é?
– Tem razão – admitiu Tanner.
– Lamento… se calhar estou só a ser pessimista.
– Não lamente. – Ele sorriu, grato não só pela sensatez, mas também
pela honestidade. – Eu sabia que vir cá seria uma boa ideia.
– Sim, bem, e que tal se eu o pusesse a trabalhar, levando o jantar para a
mesa? – perguntou ela, dando-lhe um ligeiro toque com o cotovelo.
– Com todo o gosto. – Tanner enrolou as mangas com gestos exagerados
e levantou as mãos. – Estou pronto para ser subchefe de cozinha.
– Por acaso, na segunda-feira reparei que tinha muito jeito para cortar
tomate. E se preparasse a salada? Há pepino e tomate na ilha ao lado da
tigela das uvas, e já está tudo lavado. A faca e a tábua de madeira também
estão aí.
Tanner lavou as mãos no lava-loiça. Depois de as secar com um pano de
cozinha, levou a tábua de cortar para a bancada ao lado do fogão, onde ela
estava a começar a derreter manteiga numa frigideira. Ao lado de Kaitlyn,
começando a cortar os legumes, detetou um laivo do perfume de alfazema
dela.
– Conte-me lá como é esta receita de frango que queria experimentar.
– É bastante simples, na verdade. Manteiga, funcho, sal, pimenta, mais
umas metades de limão a recheá-lo.
– Não parece assim tão simples.
– Não requer grande preparação e, se fosse demasiado elaborada, duvido
que o Mitch gostasse. É esquisito com a comida.
– Como a maior parte dos miúdos – observou ele.
– Por falar nisso, o arroz é pré-cozinhado – disse ela, a indicar um pacote
de arroz na bancada. – Não vou fazer um arroz pilau do zero.
– Eu não sabia que era possível fazer arroz pilau do zero – brincou ele,
vendo-a rir. – Mais uma vez, obrigado por me ter convidado.
– A ideia foi da Casey, mas ainda bem que pôde vir.
– Não a vi quando entrei.
– Está lá em cima no quarto dela – disse Kaitlyn. – Acabou agora os
exames, por isso deve estar a ouvir música ou a ver vídeos do TikTok para
descomprimir. Disse-me que estava a pensar ir à praia amanhã.
– Não tem escola?
– É dia de trabalho administrativo dos professores. Têm de registar as
notas.
– E por causa disso não há aulas?
– Hoje em dia, tudo é motivo para não haver aulas.
– Eu teria adorado isso, quando andava na escola.
– Eu também, mas dificulta a vida aos pais que trabalham, já que é
preciso arranjar quem tome conta dos miúdos.
– Como é que resolve o problema?
– Quando não há escola, a minha vizinha do lado toma conta do Mitch.
Mrs. Simpson é uma professora reformada, simpatiquíssima. Tem uma
dúzia de netos.
– Parece de confiança.
– Também lhe peço que dê uma olhadela ao Mitch depois das aulas
quando tenho de trabalhar e a Casey não está. Não quero que ele sinta que
está completamente à solta.
– Se a faz sentir-se melhor, quando eu era da idade dele, os meus avós
trabalhavam e não faziam ideia do que eu fazia depois de sair da escola e
até eles chegarem a casa. E, aos fins de semana, às vezes eu saía com os
meus amigos e passava o dia inteiro fora, sem que eles soubessem por onde
eu andava.
– Os tempos mudaram. – Enquanto ele começava a cortar o pepino, ela
perguntou: – Como foi crescer em Itália e na Alemanha? Teve de aprender
as línguas?
Tanner abanou a cabeça.
– Frequentava escolas norte-americanas geridas pelo Departamento de
Defesa, pelo que as aulas eram todas em inglês. Mas fui apanhando o
suficiente para conseguir entender-me com as pessoas de lá.
– Ainda fala italiano e alemão?
– Só um bocadinho. Quando não usamos uma língua, é impressionante a
rapidez com que a perdemos.
Detetando movimento pelo canto do olho, Tanner viu Casey a entrar na
sala de estar. Quando passou por Mitch, baixou-se para lhe fazer cócegas.
Ele guinchou, rindo e contorcendo-se até ela parar igualmente depressa.
Quando se aproximou da cozinha, fitou-o, arqueando uma sobrancelha de
uma maneira contundente, como se estivesse a recordar-lhe de que estaria a
observá-lo. Levou uma mão à tigela das uvas e meteu uma na boca antes de
se encostar à bancada da cozinha ao lado de Tanner.
– Olá – trinou num tom inocente. – Espero não estar a interromper.
– De todo – disse Kaitlyn. Agarrou na panela, pôs um pouco de manteiga
e acrescentou a mistura de arroz pré-cozinhado.
– Há vinho?
– O Tanner trouxe.
– Posso beber um copo?
– Não me parece.
Casey sorriu.
– Cheira bem. O que é o jantar?
– Frango assado com legumes, arroz pilau e salada.
– Uau. Que elegante.
– Oh, deixa-te disso. Passamos a vida a comer frango.
– Frango assado da churrascaria, queres dizer.
– A menos que tenciones começar a cozinhar, não estás autorizada a
queixar-te das minhas refeições, lembras-te?
– Precisas de ajuda?
– Acho que temos a coisa controlada. Deve estar pronto daqui a meia
hora.
Casey voltou então, inesperadamente, a sua atenção para Tanner.
– Ainda bem que pôde vir. Queria agradecer-lhe outra vez pelo que fez
na outra noite.
– Não tens de quê – disse ele, alinhando com ela.
– Como está o seu carro?
– Vai estar como novo daqui a nada.
– Fico contente – disse ela. – Gosto do seu carro. É uma máquina do
caraças.
– Tento na língua – atalhou Kaitlyn, a mexer o arroz.
Tanner viu Casey a revirar os olhos.
– Desculpem. Devia ter dito que é um automóvel cheio de estilo.
– Eu gosto.
– Posso conduzi-lo? Quando estiver arranjado?
– Casey! – repreendeu Kaitlyn numa voz austera. – Mas que pergunta!
– Estou só a perguntar – brincou Casey. – Ele pode recusar, tal como tu
fizeste quando te perguntei se podia beber um copo de vinho.
Tanner pressentia que ela gostava de o deixar encavacado.
– Deixa-me pensar no assunto.
– O Tanner pode pensar tanto quanto quiser, mas eu digo já que não –
anunciou Kaitlyn. Tapou a panela. – E se voltas a espatifá-lo?
– Não vou espatifá-lo – protestou Casey. – Já cometi esse erro uma vez.
Mas, mudando de assunto, de que estavam a falar agora mesmo?
– Ora, de ti, claro – brincou Kaitlyn.
– A sério.
Kaitlyn encolheu os ombros.
– De nada, na verdade. Da escola, dos desafios de ser uma mãe que
trabalha. Coisas de adultos. Ainda estás a pensar ir à praia amanhã?
– Não – respondeu a filha. – Isso foi cancelado. Parece que vai fazer frio
e vento na costa. Provavelmente vou só ficar com a Camille.
– Podes tomar conta do Mitch depois de ele chegar da escola?
– Ele não precisa de que eu tome conta dele, mãe. Mrs. Simpson está
mesmo aqui ao lado.
– Eu sei, mas ele ia adorar.
– Está bem. – Fungou. – Antes que me esqueça, estou a pensar dormir
em casa da Camille na sexta.
– Os pais dela vão estar em casa?
– Claro – respondeu Casey.
– E não vão a uma festa?
– Vamos assistir a filmes de terror.
– Sabes que tenho de falar com os pais da Camille antes, só para que
fique tudo esclarecido.
Casey suspirou.
– Está bem. Primeiro vamos a uma festa em casa do Mark e depois
vamos para casa da Camille assistir a filmes de terror.
– Os pais dele vão estar em casa?
– Sim, mãe. Prometo.
– OK. Mas vê lá não fiquem até tarde.
– Eu nunca fico – cantarolou ela. – Seja como for, avisa quando o jantar
estiver pronto. Até lá, vou chatear o Mitch. Para vocês poderem discutir
coisas de adultos.
Afastou-se da bancada e foi-se embora. Entretanto, Tanner tinha acabado
de cortar os dois pepinos e o tomate e Kaitlyn lançou-lhe um olhar de
sofrimento.
– Bem-vindo ao meu mundo.
– É ótima com ela.
– Aprendi a escolher as batalhas com muito cuidado.

VIII

Quando a comida estava na mesa, Kaitlyn chamou os filhos e lembrou-


lhes que desligassem o televisor; a caminho da sala de jantar, Mitch deu
uma cotovelada a Casey e desatou a correr quando ela gritou. Perseguiram-
se um ao outro à volta da mesa antes de finalmente se sentarem, ofegantes e
perdidos de riso.
Kaitlyn ficou de pé para ser mais fácil cortar o frango em pedaços. Tanto
ela como Mitch preferiam pernas e coxas, ao passo que Casey e Tanner
queriam a carne branca. Também serviu arroz e salada enquanto Mitch
atezanava Tanner para que lhe revelasse o conteúdo do saco que tinha
deixado perto da porta.
– Trouxe o Jenga – respondeu-lhe. – Para o caso de quererem jogar
depois do jantar.
Casey lançou-lhe um olhar cético.
– O Jenga?
– Conheces o jogo?
– Sei jogar – disse Casey. – Mas, da última vez que joguei devia andar
no terceiro ano.
– Não é só para miúdos. Eu e os meus companheiros jogávamos quando
estávamos em missões no estrangeiro.
– Boa! – exclamou Mitch.
Casey franziu o nariz.
– Não deixa de ser um jogo para crianças.
– Então não deves ter dificuldade em ganhar-me, pois não?
Os olhos de Casey animaram-se e, à medida que começavam a comer, a
conversa foi fluindo descontraidamente. Kaitlyn pediu novidades da escola;
Casey anunciou que os exames tinham sido tão fáceis que pareciam uma
piada, enquanto Mitch contou que tinha começado a ler Where The Red
Fern Grows. Perguntou a Tanner se podiam voltar a lançar o disco depois
do jantar, antes de acrescentar que também queria mostrar-lhe todas as
figuras que tinha talhado. Casey contou uma história engraçada acerca de
Camille – esta estivera como louca à procura do seu telemóvel na mochila e
já estava a chorar, em histeria, quando o aparelho desatou a tocar e ela se
deu conta de que o tinha no bolso do casaco. Quando Tanner pediu a
Kaitlyn que lhes dissesse qual fora o diagnóstico mais disparatado que
alguma vez tivera de fazer, ela pensou por um instante antes de lhes contar a
história de uma paciente cujos sintomas iniciais eram hematomas leves na
barriga e uma alucinação vívida na qual imaginava que tinha aranhas a
andar por cima da pele. Ao examiná-la, Kaitlyn ficara a saber que fazia
viagens frequentes ao México; também tinha notado que a paciente parecia
uns vinte anos mais nova do que realmente era, com uma pele luminosa e
praticamente sem rugas.
– Na altura, eu estava a fazer o meu internato – continuou Kaitlyn. –
Primeiro, pensámos que podia ser uma deficiência de vitamina B12, mas,
quando ela começou a sangrar do nariz e dos ouvidos, percebemos que
havia de ser outra a causa. Testámo-la para tudo, desde doença de
Huntingron até esclerose múltipla. No fim, o médico responsável acabou
por lhe diagnosticar lepra.
Tanner pestanejou.
– Lepra, como a lepra de que fala a Bíblia?
– Lepra difusa de lúcio, também conhecida como lepra bonita.
Casey franziu o nariz.
– Como é que a lepra pode ser bonita? Isso não faz cair partes do corpo?
– Esperem! – atalhou Mitch. – Caem partes do corpo?
– Só em casos graves, se não for tratada. Mas a lepra bonita, nos
primeiros estágios, alisa a pele e elimina as rugas.
– Talvez as pessoas devessem usar isso em vez de botox – brincou
Casey.
– Ah, ah – riu-se Kaitlyn. – Seja como for, o diagnóstico causou um
grande alvoroço na altura. Não é comum os médicos dos Estados Unidos
verem lepra com frequência. Mas acabámos por tratar a paciente e ela ficou
bem.
– Com todas as partes do corpo? – quis Mitch confirmar.
– Todas – garantiu-lhe Kaitlyn. – Por outro lado, também ganhou rugas.
Essa parte não lhe agradou tanto.
Depois do jantar, Tanner foi lançar o disco com Mitch enquanto Kaitlyn
arrumava a cozinha. Casey seguiu-os lá para fora e juntou-se ao jogo.
Kaitlyn também acabou por ir para o alpendre, onde ficou a observá-los,
declinando quando a convidaram a juntar-se.
– Eu fico só aqui a bebericar o meu vinho e a ver-vos a divertirem-se.
Por fim, Tanner pediu-lhes que o dispensassem e todos voltaram para
dentro de casa. Casey agarrou no saco do Walmart junto à porta e já tinha
aberto a caixa antes de se sentar à mesa da cozinha. Reviu as regras
rapidamente para refrescar a memória e depois formou uma torre com os
blocos.
– Só com uma mão, tira qualquer bloco que não esteja na fila de cima e
põe-no no cimo da torre – disse ao irmão. – Se a torre cair, perdes.
Era evidente para Tanner que Casey estava decidida a ganhar. Sempre
que era a sua vez, demorava-se a tocar ao de leve em vários blocos antes de
tomar uma decisão. Mitch era menos seletivo e, no primeiro jogo, foi ele
que fez a torre tombar. No segundo, foi Kaitlyn. Mitch perdeu o terceiro
jogo e, para descontentamento de Tanner, foi ele quem perdeu o quarto.
Poderia culpar o vinho por isso – já tinha acabado quase dois copos, por
essa altura –, mas Kaitlyn bebera a mesma quantidade e as suas mãos
pareciam estar a ficar mais firmes ainda, provavelmente por ser médica. Ou,
pelo menos, essa foi a justificação que Tanner encontrou.
Ao longo de todo aquele tempo, foram-se metendo uns com os outros e
rindo e, quando Tanner finalmente guardou os blocos na caixa, Kaitlyn
olhou para o relógio e recordou Mitch de que tinha de ir tomar banho e
começar a preparar-se para dormir.
– Então e as figuras de madeira? Ainda não as mostrei a Mr. Tanner.
– Vai lá buscar umas quantas, OK? Já está a fazer-se tarde.
Mitch desapareceu da mesa e menos de um minuto depois já estava de
novo a descer as escadas, com os braços cheios. Pousou as figuras na mesa
da cozinha: um puma, um cão, um burro, um pato, um elefante e uma
girafa, entre outros.
– Uau – exclamou Tanner, impressionado. – Tens o teu próprio jardim
zoológico.
– É, não é?
– Este és tu? – perguntou Casey, a apontar para um deles.
– Não – protestou Mitch. – É um cão!
– Até que é parecido contigo…
– Mãe!
– Casey – avisou Kaitlyn.
– Só disse isso porque o achei giro – justificou-se Casey. – O Mitch
talvez ainda não seja giro, mas é capaz de vir a ser.
– Tu também não és gira. Eu acho que tu és este – disse ele, pegando
numa das figuras.
– Hum. Isso faz sentido. Já me têm dito que sou uma espécie de
unicórnio.
– Isto é um burro, não é um unicórnio! – gritou Mitch. – Estás a ver?
Não tem corno e tem umas orelhas grandes, como tu!
– Acho que por agora já chega – disse Kaitlyn. – Vai lá tomar banho.
Mitch assentiu com a cabeça antes de recolher os animais.
– Boa noite, rabuda – cantarolou ele enquanto desaparecia escadas
acima.
– Eu também vou para o meu quarto – disse Casey. – Quero dizer, gosto
de fingir que estamos nos anos 1950, assim como qualquer adolescente
moderna, mas já devo ter o telemóvel cheio de mensagens.
Um minuto depois, Tanner e Kaitlyn estavam sozinhos à mesa.
– Gostei desta noite – disse ele no silêncio repentino.
– Foi divertida – concordou ela. – É mais fácil quando a Casey está de
bom humor.
– Quer sentar-se lá fora, no alpendre? – perguntou ele. – Está uma bela
noite.
– Ainda há vinho na garrafa?
Ele levou a mão à garrafa e encheu novamente os copos antes de
passarem para o exterior. Das cadeiras de baloiço do alpendre, viam as
casas dos vizinhos iluminadas no interior, o luar a banhar os jardins com um
brilho prateado. De uma das casas, ouvia-se o som ligeiro de música a tocar.
– É costume sentar-se aqui fora?
– Quase nunca – admitiu ela. – Os meus pais é que faziam isso.
Costumavam sentar-se no alpendre da frente depois do jantar e ao fim de
semana. Na verdade, estas cadeiras de baloiço foram presente de casamento
deles. Mas sentar-se no alpendre não era algo que o George gostasse de
fazer, mesmo nos raros momentos em que estava por casa.
– Mas convenhamos que até é agradável.
– É. – Ela encostou a cabeça ao espaldar e mirou-o, com as pálpebras
entreabertas. – Estou mesmo contente por ter vindo hoje – disse-lhe em voz
baixa.
– Eu também.
– Os miúdos gostam de si. Até a Casey, o que não deixa de ser
impressionante.
– Porquê?
– Ela não gostou de ninguém com quem eu tenha saído depois do
divórcio. Não que tenha sido assim tanta gente.
– Isso é normal, não é? Muitos miúdos sonham que os pais voltam a
juntar-se, pelo que faz sentido que não gostem de alguém novo.
– Acho que sim. – Bebericou o seu vinho. – Quero fazer-lhe uma
pergunta, mas também quero que saiba que vou compreender se não quiser
falar disso.
– Pergunte o que quiser.
– É sobre o tempo que passou no exército – começou ela.
Ele assentiu com a cabeça.
– O que quer saber?
– Não sei. Porque é que se alistou, como era. Porque se veio embora.
– E se me deixou com sequelas emocionais, não é?
– Não acho que o tenha deixado com sequelas – protestou. Mas depois: –
Deixou?
Ele esboçou um sorriso irónico.
– Acho que não, mas, como já sabe, as minhas escolhas de vida não têm
sido propriamente típicas. – Fitou o céu, a dar ordem aos pensamentos. –
Quando tinha treze ou catorze anos, já sabia que a universidade não era para
mim e, por causa do meu avô, o exército parecia-me uma saída natural. Era
jovem e cheio de confiança, achava que era à prova de bala, por isso,
alistei-me. E não tardei a perceber que o exército, nalguns sentidos, é tal e
qual como qualquer outro sistema burocrático. Alguns dos que têm uma
patente superior à nossa são ótimos, outros são uns idiotas, mas, feitas as
contas, não passamos de uma peça na máquina. Depois deu-se o 11 de
Setembro. Não sei se se lembra como foram aqueles primeiros anos depois
da queda das torres, mas houve uma onda tremenda de patriotismo,
sobretudo entre os militares, e pareceu-me que, de repente, compreendia
qual era o meu propósito. E, durante algum tempo, assim foi. E foi por isso
que acabei por seguir para a Delta, depois do meu tempo nos comandos. Os
EUA tinham sido atacados e cabia-me eliminar a infraestrutura e as pessoas
que tinham tornado possível esse ataque. E era isso que eu fazia, noite após
noite. E parecia-me que tinha o trabalho mais importante do mundo.
Quando ele se calou, ela parou de se baloiçar e virou-se para ele.
– Mas?
– A missão foi evoluindo – disse ele, encolhendo os ombros. – Ao fim de
uns anos, já não era só uma questão de atacar os talibãs, a Al-Qaeda ou Bin
Laden, de repente era o Iraque. Enviaram-nos à procura de armas de
destruição maciça, mas não havia. Depois supostamente queriam que
ajudássemos o Iraque no caminho para a democracia, e isso também não
correu assim tão bem. Em seguida, a ideia era estabelecer um governo
estável no Afeganistão, o que implicava conviver com líderes tribais e
aldeões que se calhar tinham disparado contra o nosso acampamento na
mesma manhã. A coisa tornou-se… confusa. As balizas não estavam só a
mexer-se; passavam a vida a ser mudadas para estádios completamente
diferentes. A cada novo destacamento, havia ideias novas e, com o passar
do tempo, tudo deixou de ser atrativo. Muitos dos meus amigos começaram
a sair e, por fim, eu fiz o mesmo.
– Arrepende-se de ter deixado o exército?
Ele encostou a cabeça ao espaldar, em busca da melhor forma de o
explicar.
– Quando saí, sabia que estava a tomar a decisão certa. Sabia que para
mim chegava. Mas a passagem do tempo altera as coisas. Agora, não
consigo deixar de pensar que aqueles foram alguns dos melhores anos da
minha vida. Não os trocaria por nada.
– A sério? – A expressão de Kaitlyn mostrava a sua dúvida.
– A menos que se tenha estado lá, não sei se será possível entender. Mas
a verdade é que nos sentimos muito mais vivos quando desempenhamos
missões com pessoas em quem confiamos. Há uma camaradagem profunda,
uma união absoluta de propósito e uma intensidade avassaladora, estando
vidas humanas realmente em risco. Juntem-se as descargas tremendas de
adrenalina e… a guerra transforma-se numa verdadeira droga aditiva. Eu sei
que não sou o primeiro a descrevê-la assim, mas é verdade, mesmo que não
queiramos admiti-lo. Acho que isso contribui para que muitos veteranos
tenham dificuldade em ajustar-se à vida no mundo civil. Não há nada que se
compare.
Parou para beber um gole de vinho, sentindo o olhar dela fixo em si.
– Não estou a tentar fazer com que pareça romântico, porque não era.
Era sujo, stressante e muitas vezes enfadonho, e, quando estamos metidos
naquilo, tudo o que queremos é sair dali. Sonhamos com passar tempo com
os nossos avós, ou desfrutar das coisas simples da vida. Atividades como
cortar a relva ou recostarmo-nos para assistir a um jogo na TV com amigos
ganham uma importância quase espiritual. Mas depois, quando realmente
voltamos do destacamento, apercebemo-nos de que essas coisas não
chegam para encher o vazio criado pelo que deixámos.
– Eu acho que percebo – disse Kaitlyn passado algum tempo. – E faz
sentido que parte de si sinta a falta disso. O que presumo que também
explique porque foi que decidiu trabalhar para a USAID. Porque a vida na
América suburbana não era para si?
– Em parte foi isso, sem dúvida, mas a outra parte tinha que ver com a
culpa. Perdi muitos amigos, como já lhe contei, mas, no final, dei-me conta
de que nada do que tínhamos feito no Afeganistão importara realmente, a
longo prazo. A maioria dos clãs e das tribos continuou a considerar-nos
invasores e infiéis, por mais que tentássemos ajudá-los. Para eles, nós
éramos os maus da fita, e acho que em parte eu quis compensar isso
fazendo algum bem no mundo.
– E agora?
– E agora o quê?
– O que é que lhe parece a vida na América suburbana?
– Não sei dizer. Eu estava de férias em Lahaina quando a covid
apareceu, por isso fiquei lá uns meses, mas nunca me senti realmente em
casa. Depois, quando estive em Pensacola com a minha avó, era numa
situação necessariamente triste, e também nunca me senti em casa.
– Fico satisfeita por não se sentir atormentado por aquilo por que passou,
como alguns dos seus amigos se sentiam.
– Talvez – disse ele –, mas não tenho a certeza de que me considere
normal, também. E a Kaitlyn? Tem marcas de guerra de que queira falar-
me?
– Está a referir-se ao meu divórcio?
– Quer contar-me o que aconteceu?
Ela ficou calada por um momento.
– Foi uma daquelas coisas que funciona até deixar de funcionar – acabou
por dizer. – É o que costumo dizer, e tem uma boa dose de verdade (éramos
mais como sócios, para o final, em vez de um casal)… mas a forma como
aconteceu deixou-me a sentir que eu era imprestável durante muito tempo.
– Fechou os olhos e suspirou antes de lhe lançar um olhar de relance. – Ele
deixou-me por uma professora de pilates uns dias antes de eu fazer quarenta
anos.
– Está a gozar.
– Não. Lembro-me de ter mais ou menos entrado em desassociação
quando ele me disse isso. Quero dizer, aquilo era um chavão pegado. Até o
nome dela. Amber. Ele saiu de casa nessa noite.
– Foi com ela que ele tornou a casar?
– Foi – disse ela. – Dou-lhes uns dez anos, no máximo, mas isso sou só
eu a ser uma ex-mulher ocasionalmente vingativa.
Ele sorriu antes de ela continuar.
– Mas isso foi só o início. O processo do divórcio também foi horrível.
Ele insistia em que tivéssemos guarda conjunta, com os miúdos a passarem
da minha casa para a dele semana sim, semana não, mas, a meu ver, estava
só a usá-los para não ter de abrir mão de tanto na divisão de bens. Não é
que eu não queira que os miúdos o vejam ou passem tempo com ele, mas o
trabalho dele fazia-o sair de casa todos os dias às seis e meia da manhã, e
ele nunca voltava antes das sete e meia da noite. Ao contrário de mim, ele
faz banco no hospital e até trabalha dois ou três sábados por mês. O que
implicava que os miúdos ficavam com uma ama, não com ele, e eles
estavam a sofrer, pelo que, no final, cedi. Ele ficou com quase tudo,
enquanto eu fiquei com a guarda principal dos nossos filhos. Se alguma
coisa positiva saiu disso é que perdi o respeito que tinha por ele, o que fez
com que fosse mais fácil acabar por seguir em frente.
– Parece ter sido duro – disse ele. – Já não gosto dele, só pelo que acabo
de ouvir.
– Obrigada – disse ela. Ficou calada durante algum tempo. – Quanto a
outras marcas, acho que serão as mesmas que todas as mães que trabalham
desenvolvem. A sensação de que falho, faça o que fizer. Quando estou a
trabalhar, desejo poder acompanhar mais os meus filhos; quando estou com
eles, sinto que desperdiço a minha formação. E isso é complicado pelo facto
de o trabalho satisfazer uma necessidade que eu tenho, uma necessidade
diferente da minha vida como mãe, e isso por vezes também me faz sentir
culpada.
– Então, não faltam estragos no seu passado.
Ela riu-se.
– Pelo menos não estou a viver no Motel Sixes.
– Desculpe lá – corrigiu ele –, mas eu hospedei-me no Hampton Inn.
– Que erro o meu – disse ela, num tom divertido.
– E os miúdos? Como é que eles lidam com tudo isso agora?
– Eu acho que já se habituaram. Para ser justa, ele mantém o contacto.
Telefona-lhes com frequência, manda-lhes dinheiro e presentes, e eles
passam férias alternadas e um mês do verão com ele. Mas…
Ele arqueou uma sobrancelha e ela continuou:
– A Casey acabou de ameaçar ir viver com ele no próximo ano letivo.
Ele disse-lhe que lhe arranjava um carro se ela fosse.
– Acha que ela vai mesmo?
– Não sei. Mas tem idade suficiente para tomar essa decisão, pelo que, se
quiser ir, não vou tentar impedi-la.
– Ela vai ficar – tranquilizou-a Tanner, mas pressentia o quão impotente
Kaitlyn se sentia. Ela acabou por abanar a cabeça.
– Seja como for, esta é a minha história.
– Obrigado por me ter contado – disse ele, procurando-lhe o olhar.
Kaitlyn foi a primeira a desviar os olhos.
– É melhor ir ver se o Mitch já está deitado – disse.
Tanner assentiu com a cabeça e os dois levantaram-se das cadeiras e
tornaram a entrar. Enquanto Kaitlyn ia ao piso de cima verificar como
estaria Mitch, Tanner lavou os copos de vinho. Quando ele os tinha secado,
ela desceu.
– Está tudo bem – informou ela ao entrar na cozinha. – Será que quer um
café antes de ir embora?
– Um descafeinado seria ótimo, mas só se for tomar também.
Kaitlyn preparou a máquina do café e depois tirou duas chávenas do
armário. Não foi preciso esperar muito para que levasse as chávenas para a
mesa.
– O que faz amanhã à noite? – perguntou ele.
– Não faço ideia – respondeu ela, com as mãos à volta da chávena. –
Porquê?
– Porque gostava de que voltássemos a jantar. Teria sugerido sexta, mas
ouvi a Casey dizer que tem uma festa nesse dia.
Kaitlyn esperou um pouco antes de erguer o olhar.
– Não sei se seria boa ideia – disse ela, numa voz suave.
Tanner tinha a sensação de que sabia o que ela ia dizer.
– Gosto de si. Ao falar consigo esta noite, dei-me conta do quanto gosto
de passar tempo consigo e, se tornarmos a sair, provavelmente ainda vou
gostar mais. E isso assusta-me. Porque o Tanner não tarda vai-se embora
daqui. E, depois, vai sair do país. Não sei se é disso que preciso na minha
vida agora.
Ele reconhecia o quão verdadeiras eram as palavras dela, mesmo que não
fosse o que queria ouvir.
– Compreendo.
– Mas fique sabendo que, sim, se as coisas fossem diferentes, teria
adorado voltar a vê-lo.
– Não posso dizer que isso me faça sentir melhor – replicou ele.
– Eu sei – disse ela. – E lamento.
Ele fitou a sua chávena e acabou o café.
– Está a fazer-se tarde e a Kaitlyn amanhã trabalha. Portanto, o melhor é
ir andando.
Ela parecia aliviada, ainda que ele reparasse num laivo de pena nos seus
olhos.
– Acompanho-o à porta.
Tanner levou a chávena ao lava-loiça e passou-a por água; ela pousou a
dela na bancada. A caminho da porta, ela deteve-se.
– Não se esqueça do seu jogo – lembrou-lhe.
– Oh, isso é para os miúdos – disse ele.
– Obrigada.
Desceram os degraus do alpendre, em direção ao carro alugado dele. Ao
caminhar ao lado dela, Tanner teve noção de que aqueles talvez fossem os
últimos momentos que passavam juntos, uma realidade que lhe parecia
estranhamente pesada. No entanto, quando finalmente chegaram ao carro,
deu por si a virar-se para ela. Quando Kaitlyn lhe correspondeu ao olhar, ele
deu um pequeno passo em frente, com a mão a procurar automaticamente a
anca dela.
Esperava que ela o parasse, que recuasse, mas, à medida que ele se
aproximava mais, ela continuou a corresponder-lhe ao olhar. Tanner puxou-
a delicadamente, sentindo como ela reagia inclinando-se para ele, até os
corpos de ambos se unirem lentamente.
Os lábios dela eram suaves e quentes e, quando a língua dele tocou na
dela, Tanner sentiu uma descarga elétrica a percorrê-lo. Sucumbiu à
sensação, à pressão urgente do corpo dela contra o seu. Deslizou a mão para
o fundo das costas dela, apertando-a mais contra si e, durante muito tempo,
continuaram a beijar-se, com Tanner a perder-se por completo na glória do
cheiro e da pele dela, nas curvas do seu pescoço e no som arquejado da sua
respiração.
Quando finalmente se separaram, ele sentiu tanto o desejo como a
tristeza dela.
– Tanner… – sussurrou ela e, embora ele soubesse que ela pretendia que
fosse uma despedida, não conseguia deixar aquilo ficar por ali. Em vez
disso, sussurrou as palavras que tinha dentro de si desde o momento em que
a vira pela primeira vez.
– És linda, Kaitlyn.
Ela fechou os olhos e, por um momento, o seu rosto pareceu brilhar na
meia-luz leitosa da lua. Quando os olhos dela se abriram, as suas pupilas
pareciam enormes, hipnóticas, a lançar um feitiço a que ele não era capaz
de resistir.
– Está bem – disse ela, numa voz que parecia a de um sonho. – Vamos
jantar amanhã.
CAPÍTULO SETE

J asper viu o veado branco, ainda que não da forma que desejava. Foi no
noticiário da manhã, algo a que era raro assistir. Há muito que se fartara
da televisão, mas, fosse por que motivo fosse, sentira uma vontade inegável
de ligar o aparelho pouco depois de ter acordado na terça de manhã.
Viu a fotografia desfocada tirada na Estrada Panorâmica antes de o
segmento passar para um vídeo que um caminheiro supostamente filmara
no dia anterior. Com cerca de dez segundos de duração, mostrava o veado
branco perto de um afloramento rochoso e parecendo estar a olhar para a
câmara, com a cabeça bem erguida. Por causa da vegetação em redor – e
porque o vídeo estava tremido – era difícil distinguir-lhe a armação, ou
sequer o tamanho, e pouco depois o animal virava-se e começava a afastar-
se, até desaparecer na floresta. Os apresentadores, praticamente a vibrar de
emoção no programa matinal, comentaram que o vídeo já se tinha tornado
viral.
Jasper não sabia ao certo o que queria dizer viral, apenas que não devia
ser coisa boa. Calculou que implicasse que mais gente iria inteirar-se da
existência do veado branco, o que poderia atrair ainda mais caçadores
furtivos para a área.
Desligou o televisor e ponderou o que fazer em seguida. Tentar salvar o
veado implicava encontrá-lo primeiro e, felizmente, o animal fora avistado
em dois sítios. O mais importante era que ele tinha reconhecido a área onde
o filme fora gravado. Havia um afloramento rochoso único ao fundo;
décadas antes, os seus filhos costumavam trepar por aqueles rochedos nas
suas caminhadas de fim de semana. Até tinham feito alguns piqueniques ali
perto.
Indo até à cozinha, Jasper abriu uma das gavetas, onde guardava os
mapas. A maioria estava velha e desatualizada, mas, perto do fundo,
encontrou o que queria. Era um mapa do condado, que representava a
cidade de Asheboro e partes da Floresta Nacional Uwharrie.
À mesa, usou uma caneta para marcar o sítio onde fora tirada a
fotografia da Estrada Panorâmica; outra marca, perto dos rochedos,
indicava o vídeo. Calculou que entre os dois locais haveria uma distância de
cerca de três quilómetros e desenhou uma oval a delimitar o espaço. Seria
aquele, presumia ele, o território que o veado branco percorria, o que lhe
parecia fazer sentido. Sabia que havia comida e água naquela área e, como
Charlie dissera, o mais provável era que o veado continuasse ali até as
reservas de comida se acabarem, ou até se sentir ameaçado.
Desconfiava que caçadores furtivos astutos também seriam capazes de
estimar o território por onde o veado andaria. Qualquer um poderia marcar
locais e desenhar uma oval num mapa, mesmo que não conhecesse a
localização dos rochedos. Os veados tendiam a não se afastar muito do local
onde se sentiam seguros, pelo que bastaria desenhar um círculo a partir da
fotografia da Estrada Panorâmica. Por outro lado, uma coisa era encontrar e
matar o veado; outra, completamente diferente, seria transportar uma
carcaça pesada desde a floresta sem se ser descoberto, para o que seria
preciso terem acesso aos seus veículos. Quem o fizesse teria de conhecer as
estradas que permitiam entrar e sair da floresta e prever quão movimentadas
poderiam estar em vários momentos do dia; também teria de encontrar ou
criar os seus próprios trilhos para chegar mais perto do local por onde o
veado andaria. Precisaria de saber as localizações de acampamentos e dos
postos dos guarda-florestais, mais que não fosse para os evitar, já para não
falar de se manter fora da vista de caminheiros e outra malta que aparecesse
nos seus jipes, fugindo à rota das estradas. Há anos que Jasper não conduzia
pela floresta e, como suspeitava de que haveria mais estradas e caminhos do
que antigamente, o seu primeiro passo foi calcular como poderia um
caçador furtivo aproximar-se do território do veado e depois sair da floresta
sem ser apanhado.
Antes de se debruçar sobre isso, Jasper preparou uma cafeteira e fez uma
sanduíche de ovo para o pequeno-almoço. O ovo ficou um pouco queimado,
mas na verdade ele nunca tinha sido muito bom a cozinhar. Essa sempre
fora a paixão de Audrey, coisa que demonstrava nos pratos que costumava
levar-lhe antes de ter ido para a faculdade.
Quando ela partira para Sweet Briar, as poupanças de Jasper estavam
quase esgotadas. Tinha dezoito anos e, a precisar de um emprego, arranjou
trabalho com um empreiteiro chamado Ned Taylor, que era diferente de
Stope em praticamente todos os sentidos. Idoso e obeso, com uma melena
indómita de cabelo branco, nunca parava de fumar o seu cachimbo de
espiga de milho quando se encontrava no estaleiro das obras. O mais
gratificante era que, logo desde o início, não se coibia de elogiar a
qualidade do trabalho de Jasper.
Contudo, mal se tinha instalado no novo emprego quando a sua vida
tornou a virar-se de pernas para o ar. Em setembro, apenas um mês depois
de Audrey ter partido, o furacão Helene provocou chuvas torrenciais e o
nível das águas de um ribeiro próximo em Asheboro subiu perigosamente.
Felizmente – ou infelizmente, consoante a perspetiva –, Jasper estava na sua
casa na cidade e não na cabana, quando a inundação começou. Avançou por
água que não tardou a chegar-lhe à cintura, recolhendo fotografias do lintel
da lareira, a Bíblia do pai e o máximo das figuras de madeira que tinham
talhado juntos que conseguia carregar, levando tudo para a carrinha, que
deixara estacionada num ponto mais alto, por segurança. Enquanto a
tempestade continuava, um pinheiro taeda no quintal partiu-se e tombou
sobre o telhado. Dias depois, quando as águas finalmente recuaram e o
tempo quente voltou, começaram a crescer fungos nas paredes e nos
pavimentos, destruindo praticamente tudo o que a tempestade não arrasara
na casa.
À semelhança dos vizinhos e de outros na cidade, Jasper contactou a
companhia de seguros. Não estava preocupado. Tal como fizera com as
outras contas, tinha continuado a pagar as apólices depois de o pai falecer,
mas, quando finalmente se reuniu com o gestor da seguradora, ficou a saber
que essa apólice tinha uma cláusula escondida que excluía danos causados
por inundações. O gestor indicou-lhe a secção e leu as palavras em voz alta,
enfatizando a questão. Contudo, a companhia pagaria o arranjo do telhado.
O gestor fez deslizar um cheque pelo tampo da mesa. Não era grande
coisa e de forma alguma chegaria para reparar a casa. No silêncio que se
seguiu, Jasper ouviu a voz do pai: «Tiago 1:12.» Feliz o homem que resiste
à tentação.
Depositou o cheque, mudou-se para a cabana e continuou a trabalhar
para Ned. Ao final do dia e aos fins de semana, ia retirando móveis
encharcados e bolorentos da casa de Asheboro. Desmanchou o telhado,
arrancou o pavimento, desfez as paredes de gesso cartonado e tirou toda a
cablagem elétrica. Carregou o entulho para a lixeira. No final, só restavam o
esqueleto da construção e a canalização, e ele vendeu a propriedade a outro
empreiteiro, alguém que Ned conhecia há anos. Esse cheque também foi
para as poupanças.
Em novembro, Ned pediu-lhe que fosse a Charlotte buscar uma banheira
cuja entrega estava atrasada. Nos arredores da cidade, ele reparou em dois
novos empreendimentos, um ao lado do outro, com dúzias de casas já
construídas e outras ainda em andamento. Os empreiteiros independentes
como Ned iam dando lentamente lugar a companhias que construíam
centenas de casas de cada vez, e, sem o ter planeado, Jasper decidiu dar
uma volta por um desses bairros. Deu por si pasmado pela proeza
organizacional requerida por tais empreendimentos, embora tivesse a
certeza de que nunca quereria viver num sítio assim. Havia uma sensação
de quase desolação, mesmo nas ruas que tinham casas já acabadas. A fitar
as filas de casas sem vida, todas iguais, apercebeu-se de súbito de que o que
tornaria o bairro mais convidativo seriam árvores. Não os rebentos
esqueléticos que tinham sido plantados ao acaso pelos novos proprietários,
mas árvores belas e folhosas que crescessem rapidamente.
A ideia não o largava e, à medida que mais empreendimentos foram
sendo construídos ao longo do ano seguinte, ele continuou a percorrê-los,
cada vez mais convencido de que tinha razão. No início de 1960, foi à
biblioteca local em busca da árvore ideal, mas nada encontrou; na biblioteca
de Raleigh também não, embora a senhora da receção lhe tivesse
recomendado que visitasse a faculdade de agricultura da Universidade
Estadual da Carolina do Norte. Foi preciso tempo e persistência para
conseguir uma reunião, mas o professor de lá – o mesmo que mais tarde lhe
explicaria como cultivar míscaros – falou-lhe de uma árvore que o
Departamento de Agricultura dos EUA estava a pensar introduzir
formalmente no país.
O professor partilhou fotografias e informação com ele, e Jasper
assimilou tudo o que ele lhe disse. Originalmente da Coreia e da China, a
árvore crescia rapidamente, dava flores brancas na primavera, tinha uma
encantadora forma piramidal e exibia cores garridas no outono. O nome
científico era Pyrus calleryana; o Departamento de Agricultura dos EUA
planeava chamar-lhe pereira de Bradford, embora não fosse dar quaisquer
frutos comestíveis. O professor acrescentou que poucas pessoas – para além
das universidades de pesquisa agrícola e do Departamento de Agricultura –
pareciam interessadas na árvore naquele momento, mas que previa que o
mercado acabaria por ser substancial.
Jasper colaborou com o Horto Garner para obter as sementes
desconhecidas da Coreia; Mack Garner combatera na Guerra da Coreia e a
sua mulher era de Seul. Com o dinheiro do seguro e o lucro da venda da
casa, arrendou um terreno barato a uns trinta quilómetros da cidade e
comprou fertilizante. Tirou uma semana do trabalho, lavrou e fertilizou o
terreno e plantou sementes suficientes para cinco mil árvores. Regava-as à
mão ao final do dia, depois do trabalho, bem como ao fim de semana, e,
para grande surpresa de todos, sobretudo de Jasper, as sementes
germinaram e os rebentos apareceram quase de imediato.
Mostrou a Audrey o que andava a fazer quando ela foi passar o verão a
casa. Nos últimos anos, a seus olhos ela tornara-se ainda mais bonita, e
continuavam a ver-se sempre que ela estava em casa. Davam longos
passeios e partilhavam refrescos de chocolate, e ela entretinha-o com
histórias sobre as suas aulas, os professores ou os amigos que tinha feito.
Por vezes, quando ele se perguntava em voz alta se ela quereria deixar a sua
antiga vida – e deixá-lo a ele –, ela ria-se e dizia que isso era um disparate.
Ele dizia-lhe com frequência que a amava e ela dizia-lhe o mesmo; contudo,
quando se despediu dela em agosto pela terceira vez, os pais miravam-no
com as mesmas expressões austeras a que ele se habituara havia muito.
Entretanto, ele tinha continuado a trabalhar para Ned, para além de
arrendar ainda mais terra. Plantou dezenas de milhares de árvores. Mostrou
aos pais de Audrey o que andava a fazer. Isso não mudou a opinião que
tinham dele – ainda não havia vendas, nem sequer um mercado para
comercializar as árvores –, mas gostava de pensar que a expressão da mãe
dela parecia menos crispada depois disso, ainda que a sua reprovação
continuasse evidente.
Quando Audrey terminou o curso, em maio de 1962, não estava
preparada para começar a ensinar. A seu ver, passara muito tempo na escola
e precisava de fazer uma pausa, pelo que foi trabalhar para a loja de roupa
da mãe. Jasper ficou encantado pelo seu regresso a Asheboro, e o casal
retomou a relação como se nunca tivesse estado separado. Então, na
primavera de 1963, o Departamento de Agricultura dos EUA apresentou
formalmente a pereira de Bradford ao mercado norte-americano. Por essa
altura, com as árvores a prosperar, o plantio do primeiro ano já tinha
crescido o suficiente para ser vendido. Jasper deixou de trabalhar para Ned,
dedicando-se às árvores a tempo inteiro. Desenterrou-as – embrulhando a
terra à volta das raízes em serapilheira –, deitou-as na sua carrinha e
começou a encontrar-se com construtoras em Charlotte, Greensboro e
Winston-Salem. O seu argumento de venda era simples; mostrava-lhes a
informação do Departamento de Agricultura, mantinha os preços razoáveis
e oferecia-se para colocar as árvores nos jardins da frente e das traseiras dos
empreendimentos, para que pudessem ver o valor estético que lhes
confeririam. Também visitava viveiros e – dado que tinha basicamente o
monopólio da árvore –, não tardou a começar a receber muitas encomendas.
Não só vendeu tudo o que plantara no primeiro ano, mas também grande
parte do ano seguinte.
A nadar em dinheiro pela primeira vez na vida, foi até casa de Audrey.
Mais uma vez, pediu para falar com o pai dela; mais uma vez, tinha a
aliança da mãe no bolso. Desta feita, o pai acedeu, e ele pediu a jovem em
casamento dois dias depois.
Casaram em outubro de 1963 e passaram a lua de mel em Sullivan’s
Island, tal como ela sempre quisera. Ela mudou-se para a cabana e, embora
tivesse engravidado ao fim de um mês, fazia questão de que a casa fosse
deles, não apenas dele. Comprou mobília nova, costurou cortinas e colocou
tapetes na sala e nos quartos. Comprou tachos, panelas e pratos e utensílios
a combinar. Preparou o quarto do bebé na divisão que em tempos fora o
quarto de Jasper e, sempre que cozinhava, a cabana enchia-se de aromas
deliciosos. Faziam amor quase todas as noites e, para o Natal daquele ano, o
presente que ele lhe ofereceu foi construir e instalar as prateleiras que ela
queria, pois sabia que isso a deixaria feliz. Também lhe mostrou um esboço
da planta de uma linda casa branca com alpendre e uma cozinha
suficientemente grande para que toda a família se reunisse ali. Como sabia
que ela queria ter pelo menos quatro filhos, enchera o primeiro andar de
quartos e casas de banho. Ao inspecionar a planta, os olhos dela marejaram-
se com lágrimas de felicidade.
Ele deu início à construção no ano seguinte, depois de Audrey ter dado à
luz o primeiro filho do casal e depois de mais uma colheita fantástica de
pereiras de Bradford.

II

Depois de passar a caneca e o prato por água, Jasper preparou umas


sanduíches de manteiga de amendoim e mel para si e para Arlo e encheu um
termo com o que restava na cafeteira. Deu um pouco mais de comida do
que o habitual a Arlo e enfiou uma mancheia de Milk-Bones no bolso do
casaco. Ia ser um dia longo.
Agarrou nos binóculos a caminho da porta e, pensando que era capaz de
querer companhia, decidiu deixar que Arlo fosse consigo no habitáculo.
Abriu as duas janelas, vendo o cão a levantar o nariz para farejar o vento.
Quando parou numa bomba de gasolina próxima, foi atendido por um
jovem de cabelo comprido e brinco na orelha, com uma tatuagem de uma
aranha no pescoço. Perguntou-lhe se tinham mapas recentes da Floresta
Nacional de Uwharrie, mas o Tatuagem de Aranha abanou a cabeça.
– Não vendemos mapas.
– Como é possível que não vendam mapas?
Ele pareceu ficar espantado com a pergunta.
– Hã… a maioria das pessoas usa os telemóveis e pronto.
Jasper não teve mais sorte na bomba seguinte, nem na terceira que
visitou, provando mais uma vez que o mundo moderno o deixara muito para
trás. Decidindo que se desenvencilharia sozinho, avançou para a entrada
principal da floresta. Ao lado da entrada divisou um sinal que tinha um
mapa geral da floresta, incluindo as estradas principais. Parou a carrinha.
No porta-luvas, encontrou um lápis partido e um envelope com uma conta
de uma reparação antiga. Usou o verso para copiar o mapa o melhor que era
capaz.
Embora a carrinha fosse velha, tinha tração às quatro rodas, o que era
útil, pois seguiu uma estrada na floresta que, depois de uma bifurcação,
dava para o parque de campismo. Passou algum tempo aí em busca de
veículos ou indivíduos suspeitos, até se dar conta de que não sabia ao certo
de como poderiam ser. A seguir ao parque havia uma estrada para combate
a incêndios e ele seguiu-a até chegar a uma intersecção que levava a outra
estrada do mesmo género e depois, por fim, a uma das estradas principais.
De vez em quando, parava a carrinha e rabiscava as novas estradas no seu
mapa improvisado; também se servia dos binóculos para perscrutar a
floresta, apesar de não estar nem sequer perto da área onde o veado fora
avistado. Só para jogar pelo seguro.
A meio da tarde, Jasper já tinha uma boa ideia do terreno. Percorrera
todas as estradas principais e de combate a incêndios, e até alguns dos
trilhos de terra batida. Tinha uma boa noção de como um caçador furtivo
poderia aceder à área do veado e, crucialmente, sair da floresta sem ser
visto.
Jasper parou para lanchar e, tanto quanto lhe era dado a ver, Arlo
desfrutou tanto quanto ele das sanduíches. Depois de duas canecas de café,
Jasper voltou a meter o cão na carrinha. Em seguida viria o que sabia que
seria a incursão mais importante do dia.
Seguiu para sul por uma estrada de combate a incêndios até esta terminar
e depois continuou por um trilho de terra batida que ia ainda mais para sul.
Quem quer que tentasse chegar àquela área da floresta com um veículo
teria de ir pelo mesmo caminho; a sua exploração anterior revelara que o
terreno de cada lado do trilho bloqueava qualquer outro acesso possível. A
carrinha ia gemendo e saltando, com a elevação a aumentar gradualmente.
Jasper parava com mais frequência e perscrutava a área com os binóculos.
Nada via, para além de pássaros e árvores. Por fim, o trilho acabava, mas
ainda estava demasiado longe da área atual do veado para um caçador
furtivo ficar por ali. Carregar uma carcaça pesada até àquele lugar seria
praticamente impossível.
Jasper fez marcha-atrás com a carrinha, retrocedendo uns cinquenta
metros. Olhou em redor, mas não viu qualquer indício de que um veículo
tivesse deixado o trilho de terra batida e avançado floresta adentro. Tornou
a retroceder mais umas quantas vezes, até que finalmente deu por uma
árvore jovem que tinha sido quebrada recentemente, perto da base. Olhando
com mais atenção, viu marcas de pneus de ambos os lados.
Apanhei-te.
Seguiu as marcas, desta vez por floresta virgem. Conduzia devagar,
desviando-se de árvores e rochas e passando por cima do terreno ondulante.
Continuou para sul, na direção geral da sua cabana, e acabou por chegar a
uma área cheia de vegetação. De um lado havia um declive grande. Já só
faltariam umas horas para o pôr do sol, calculou.
Saiu da carrinha. A temperatura começava a descer e ele olhou em redor,
a pensar que sabia exatamente onde se encontrava. Para um lado ficava a
Estrada Panorâmica; para o outro, o sítio onde o veado branco tinha sido
filmado. Calculava que se encontraria a cerca de oitocentos metros do
centro da área por onde o veado branco andaria, mas um caçador furtivo
quereria aproximar o veículo ainda mais. Carrinhas mais recentes, ao
contrário da sua, poderiam suportar a vegetação densa mais adiante e, de
facto, conseguiu encontrar o sítio onde um veículo prosseguira para sul. O
mais provável era que fosse um jipe com pneus enormes, como o que ele
tinha visto no acesso da casa dos Littleton.
Tinha de reconhecer que os adolescentes tinham identificado bem a área
do veado branco no domingo. Afinal, por essa altura só tinham uma
fotografia para se orientarem. Gostaria de saber quão mais para sul teriam
levado o jipe, mas para isso seria preciso seguir a pé. Como já começava a
ficar tarde, regressou ao habitáculo da carrinha. Levou o veículo até ao
talude mais próximo, deixando-o aí atrás e desligando o motor.
Em seguida, voltou ao local onde tinha parado primeiro, ignorando a
tensão nas costas, e assentiu com a cabeça para si mesmo, considerando que
o lugar era bom. Partindo do princípio de que os Littleton e Melton usariam
a mesma rota da vez seguinte, a carrinha ficaria fora de vista. Era o
suficiente.
Quando entrou de novo na carrinha, olhou de relance para Arlo.
– Acho que devíamos passar pelas brasas, não te parece?
O cão bocejou como se concordasse com o dono e Jasper recostou-se
mais, procurando uma posição confortável. Fechando os olhos, calculou
que ainda teria bastante tempo.
Sabia que era mais provável que os caçadores furtivos cometessem os
seus crimes depois de o sol se pôr e nas horas que antecediam o nascer do
sol.

III

Jasper dormitou, mas não dormiu profundamente. Manteve as janelas


abertas, atento a sons de qualquer veículo que se aproximasse.
Chegou o crepúsculo e, por fim, a noite. Embora a sua visão noturna
tivesse piorado ao longo dos anos, Jasper concluiu que não faria diferença.
No meio da floresta, seria impossível não dar por faróis a aproximarem-se,
ou por um holofote.
Serviu o resto do café do termo. Deu outra sanduíche a Arlo. De vez em
quando, saía da carrinha e ia até ao outro lado do talude. Porém, para além
do chirriar de uma ou outra coruja, a floresta parecia deserta.
Ficou ali até às dez e meia, altura em que calculou que o veado branco –
e quaisquer outros veados – já se teria recolhido para passar a noite. Foi
preciso rodar a chave várias vezes para acordar o motor, após o que recuou
lentamente até ao trilho de terra batida, chegando à estrada de combate a
incêndios e, finalmente, à saída. De novo na cabana, programou o
despertador para que tocasse de madrugada bem cedo.
A terça-feira transformou-se em quarta enquanto ele continuava deitado
na cama, mas acordado, talvez por causa do café. Sem conseguir dormir,
fitava o teto, com os pensamentos a regressarem aos primeiros anos do seu
casamento, depois de ele e Audrey se terem tornado pais. Tinham batizado
o primeiro filho em homenagem ao Rei David, um dos autores dos Salmos,
e ele recordou o orgulho no rosto exausto de Audrey ao pegar no filho pela
primeira vez. Quando se inclinou para lhe dar um beijo, ela sussurrou:
«Olha o que o nosso amor fez», e os olhos dele encheram-se de lágrimas.
Lembrou-se de trabalhar com Ned quando começaram as obras da casa
nova, e da forma como Audrey fazia questão de visitar o local todas as
tardes, para poder acompanhar o progresso diário. Lembrou-se da forma
quase casual como Audrey se virara na cama certo dia, para lhe dizer que
estava grávida outra vez. Mary – com o nome da mãe do Salvador –,
nascera em junho de 1965, três dias depois de se terem mudado para a casa
nova. Embora Audrey devesse estar exausta, atirara-se de imediato à tarefa
de decorar o espaço, acrescentando os seus toques e floreados pessoais,
enquanto cuidava de duas crianças ainda de fralda.
Ao mesmo tempo, Jasper continuava a expandir o seu negócio, vendendo
pereiras de Bradford em estados tão distantes como o Tennessee. Arrendou
mais terra e contratou empregados, acabando por empregar mais de uma
dúzia de pessoas. A casa estava paga e tinha dinheiro no banco. Mas como
receava o que lera em Mateus 19:24 – que era mais fácil um camelo passar
pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus –,
doava os fundos necessários para renovar a igreja e apoiava o banco
alimentar local. Em larga medida, só mantinha o necessário para sustentar a
família e, embora a sua generosidade por vezes provocasse um certo
nervosismo a Audrey, ele assegurava-lhe que nunca lhes faltaria nada que
fosse realmente importante.
Grande parte desses primeiros anos, pensou com pesar, já não passava de
uma imagem difusa. Lembrava-se da casa por vezes em desalinho e de
como Audrey era linda quando sorria. Lembrava-se dos nascimentos de
Deborah, batizada em honra da juíza e profetisa, e de Paul, em honra do
apóstolo e mártir. Em 1969, tinham-se tornado uma família de seis, e Jasper
ainda recordava o orgulho que sentia como marido e pai sempre que se
sentavam juntos na igreja ou quando se reuniam à mesa do jantar.
Para Audrey, a maternidade era tão natural como respirar. Desde o início,
sempre soubera intuitivamente se um bebé chorava por ter fome, por
precisar de mudar a fralda ou apenas porque precisava de colo. Sorria e ria-
se mesmo em dias em que pouco dormia, e não se melindrava pelo desafio
de os levar a todos às compras ou de os vestir para irem à igreja, mesmo
quando já iam atrasados. Levava-os ao pediatra com regularidade, mas sem
obsessões, e, sem que se soubesse como, arranjava tempo para ir fazendo
um álbum para cada criança, no qual não só registava o desenvolvimento de
cada filho, mas também tomava notas acerca das suas características e
idiossincrasias encantadoras. Por vezes, admitia a Jasper que gostava de
perder o peso que ganhara – uns nove quilos de que nunca conseguira
livrar-se –, mas, para ele, ela estava ainda mais atraente do que quando
saltara para a sua carrinha pela primeira vez, tanto tempo antes.
E os seus pensamentos continuaram a vaguear, um carrossel de imagens
que lhe ia passando pela mente.
O assombro que sentira ao ter o primogénito nos braços, logo depois de
ele nascer…
Ouvir os risinhos de Mary enquanto aprendia a caminhar…
A pequena Deborah a agachar-se ao lado de uma rã que saltava pela
relva…
A alegria exuberante de Paul ao aprender a andar de bicicleta…
Audrey no seu primeiro dia de trabalho, depois de Paul ir para o jardim
de infância, quando ela começou a dar aulas numa escola do condado…
Quando se concentrava, parecia que era capaz de recordar a maior parte
da vida que tinham partilhado. Lembrava-se da forma como os filhos
faziam uma roda à sua volta no alpendre e, fascinados, o viam a talhar
piratas, bailarinas ou animais dos livros ilustrados de que eles mais
gostavam. Via-lhes os sorrisos a que faltavam dentes, nas poses para as
fotografias da escola. Invocava memórias da família reunida para ler a
Bíblia todas as quartas e domingos à noite, que eram sempre as suas noites
favoritas da semana. Pensou por um instante nos anos de adolescência
deles, nesse período turbulento à beira da idade adulta. Algumas regras
eram infringidas, os quartos estavam quase sempre desarrumados, e os
rapazes comiam tanto que por vezes Jasper abria os armários e via que a
maior parte da comida já se fora. Lembrou os primeiros amores – David,
que se tinha apaixonado por Monica num campo de férias em Pinehurst, e
que acabara de coração partido; Deborah, que no segundo ano era louca por
um rapaz chamado Allen, com quem jurava que viria a casar. Recordou com
ternura as horas que passara a ensinar Mary a guiar, com o carro aos saltos e
solavancos enquanto ela tentava dominar a manete das mudanças. Lembrou
a noite em que tinha apanhado Deborah a beijar Allen no alpendre da frente,
e a forma delicada como Audrey o fizera ver que a filha, tal como os irmãos
mais velhos, estava a crescer. Pensou no entusiasmo e no nervosismo de
Paul quando fora selecionado para representar a escola secundária num
concurso de debates estatal, passando horas a ensaiar em frente ao espelho.
Ainda assim, o que recordava sempre com mais intensidade era o amor
que tinham uns pelos outros. Embora se debatessem com desafios e
desapontamentos, tal como toda a gente, havia sempre alegria e carinho e,
durante mais de duas décadas, Jasper acreditara que a sua família fora
abençoada por Deus Nosso Senhor.
Até, claro, ter deixado de ser.

IV

Jasper conseguiu finalmente dormitar durante um par de horas, até que o


despertador o acordou bem antes de o sol nascer. A noite fora curta e o seu
corpo vibrava de exaustão e dor. A psoríase provocava-lhe comichão e ardor
como se estivesse continuamente a ser picado por vespas, mas obrigou-se a
sair da cama. Quando coxeou até à cozinha, sentiu a tensão nas costas e as
articulações doridas, o que o fez pensar que conduzir tanto, sobretudo a
passar por cima de rochas, o tinha deixado mesmo muito maltratado.
Perguntou-se o que lhe traria o dia. Regressariam os Littleton e Melton
para terminarem o que tinham começado, apesar de ser dia de escola? Não
sabia. E, se aparecessem antes de o sol raiar, o que poderia ele fazer para os
travar? Mais uma vez, não sabia.
Vestiu umas roupas escuras e, ainda que não tivesse fome, obrigou-se a
comer algo. Antes de sair, agarrou numa mochila velha que tinha na
entrada. Um manto de neblina pairava sobre a terra e, apesar de a lua estar
apenas meio cheia, isso bastava para pintar as copas das árvores de
prateado.
Ajudou Arlo a entrar para a carrinha. Do barracão – seguindo um palpite
–, Jasper tirou um ancinho, bem como uns quantos sacos de plástico. Pô-los
na caixa da carrinha e fez-se à estrada sob um céu estrelado, até ao sítio da
Uwharrie onde tinha estacionado de noite. Tornou a esperar, atento a faróis
que se aproximassem e à escuta de outros veículos; mais uma vez, nada
surgiu.
Quando o sol nasceu e evaporou a neblina, Jasper calculou que estava na
hora de ir embora. A carrinha seguiu aos solavancos pela floresta e pelo
trilho, provocando-lhe guinadas de dor pela coluna acima; por fim, chegou
à regularidade relativa da estrada de combate a incêndios e depois ao
asfalto. Daí foi ao Lowe’s em Asheboro para comprar uma embalagem
grande de repelente de veados, juntamente com seis aparelhos ultrassónicos
que prometiam manter os veados longe. Então, tornou a regressar à parte
sul da Uwharrie, onde voltou a estacionar atrás do talude.
Pegando nos binóculos, saiu da carrinha. Arlo acompanhou-o pelo
caminho mais ou menos longo na direção da Estrada Panorâmica. Embora
avançasse a um ritmo comedido – não queria que o coração lhe pregasse
partidas –, as suas costas iam ficando cada vez mais tensas, e as várias
cristas e colinas daquela parte da paisagem faziam-no ir ainda mais devagar.
Quando era jovem, tê-las-ia percorrido facilmente. Agora, contudo, muitas
vezes tinha necessidade de parar para recuperar o fôlego. A ofegar, levava
as mãos às ancas e inclinava-se para trás para alongar os músculos das
costas, e por vezes soltava um gemido. Nesses momentos, Arlo olhava para
ele, como que a perguntar-se o que se passaria.
Por fim, chegou a um ponto de onde se via a Estrada Panorâmica, perto
do local onde fora tirada a fotografia original. Então, orientando-se na
direção do afloramento rochoso, começou a caminhar nessa direção, através
do que calculava que seria o centro da área por onde o veado andava.
Mais uma vez, havia partes onde era difícil avançar. Cristas. Colinas.
Pedras e rochedos. Um riacho. Arbustos que pareciam decididos a prender-
lhe os tornozelos. As ancas e os joelhos juntaram-se às suas costas, num
coro de dor; continuava a sentir a pele a arder. Tentou convencer-se de que
estava numa aventura, ainda que fosse dolorosa e em câmara lenta.
Pensou no veado morto que tinha encontrado no domingo anterior. Os
guarda-florestais já teriam certamente levado a carcaça, e Jasper perguntou-
se se a bandana que tinha amarrado a um ramo para marcar o local
continuaria lá. Não era suficientemente importante para que tentasse
recuperá-la; tinha muitas, e o desvio era a última coisa de que precisava.
Em vez disso, continuou a subir e passou por outra crista, ultrapassando um
pouco o ponto central da área provável ocupada pelo veado, parando ao
chegar a uma pequena clareira. Quando algo invulgar no meio lhe chamou a
atenção, pegou nos binóculos e concentrou-se num ponto mais distante. Só
precisou de um instante para identificar grãos de milho seco espalhados no
chão. Sentiu uma pontada de desapontamento e tristeza, mas não ficou
minimamente surpreendido. Era o que esperava, a confirmação das suas
suspeitas.
Isco para veados.
Todos os caçadores sabiam que os veados adoravam milho e, ao
aproximar-se, Jasper reparou em pegadas de cascos à volta dos montes de
grãos. A julgar pelos tamanhos diferentes das pegadas, não seria apenas um
veado; teriam de ser vários. Isso também significava que o milho não
poderia estar ali há muito tempo, caso contrário já não restaria nada.
Enquanto fitava aquilo, a sua mente recordou o sábado anterior, em que
estivera a talhar madeira com o rapaz. Lembrou-se de que chovia nesse dia.
Juntar essas pistas levava a crer que o milho fora colocado ali e comido nos
últimos dias. Mas quando, ao certo?
Por Melton e os irmãos Littleton, no domingo?
Provavelmente.
Eles deviam ter deixado ali o isco, partindo do princípio de que os
veados demorariam um ou dois dias a localizá-lo. Depois, sabendo que
voltariam em busca de mais, Jasper calculava que os adolescentes
regressariam para espalhar mais milho ali. E, depois…
Jasper virou-se, a inspecionar a área. Quando caçadores furtivos punham
isco, também precisavam de um esconderijo. Do lado sul da clareira, a
floresta era rala; mais adiante, para leste, havia uma pequena crista com
rochedos à frente. Demorou cerca de um minuto, mas acabou por localizar
o que procurava no lado norte da clareira, mais ou menos na direção de
onde tinha estacionado a carrinha. As árvores aí eram mais densas e ele
avançou na direção de uma árvore caída, coberta por um monte de ramos.
Embora tivesse sido construído à pressa, ele reparou numa nítida abertura
para disparar entre os ramos empilhados. Atrás, na terra, encontrou várias
pegadas.
Nem de cascos, nem de botas – eram de ténis.
Mais uma vez, não se tratava de uma prova concreta, mas era um indício
circunstancial bem forte.
Jasper fez o longo e custoso caminho de volta à carrinha, desta feita pela
rota mais direta possível. Da caixa da carrinha, recuperou a pá e o ancinho,
juntamente com um saco do lixo. Guardou a embalagem de repelente de
veado e os aparelhos ultrassónicos na mochila e regressou pelo mesmo
caminho. Quando chegou ao milho, tremiam-lhe as pernas e tinha a
sensação de ter caminhado até ao Canadá, mas ainda havia uma tarefa a
cumprir.
Reuniu o milho que restava com o ancinho e, com as mãos, meteu-o no
saco do lixo. Depois, abriu a embalagem de repelente de veado. O ar ficou
entranhado com o cheiro a ovos podres quando ele despejou o líquido num
círculo à volta da área que tinha tido o isco. Despejou mais pela linha de
árvores em redor da clareira. Em seguida, espalhou os aparelhos
ultrassónicos onde sabia que apanhariam luz do sol, pois funcionavam com
baterias solares. Não sabia quão eficazes seriam, nem quanto tempo duraria
o repelente – talvez as baterias não recebessem luz suficiente para se
carregarem; a próxima chuvada poderia diluir o repelente por completo –,
mas era tudo o que lhe ocorria que poderia fazer por ora. A última coisa que
fez foi varrer com o ancinho os sinais evidentes das suas próprias pegadas.
Exausto, mas satisfeito, coxeou de volta para a carrinha e finalmente
dirigiu-se para casa ao início da tarde. Comeu uma lata de sopa de tomate e
deitou-se para fazer uma sesta; desta feita, adormeceu rapidamente e o
alarme acordou-o mesmo a tempo. Ele e Arlo tornaram a sair bem antes do
crepúsculo. Levou a carrinha até ao talude e estacionou atrás, instalando-se
para mais uma vigia. Sabia que o milho teria de ser reposto.
Baixando as janelas da carrinha para poder ouvir melhor, observou o sol
a descer atrás da linha das árvores e o céu a começar a escurecer. A seu
lado, Arlo já dormia. A caminhada pela floresta ao início do dia também
devia tê-lo cansado, e Jasper esticou a mão para lhe dar umas palmadinhas
delicadas. A orelha do cão mexeu-se, mas nada mais. Jasper lembrou-se de
quando Arlo era jovem e cheio de energia, como dava voltas sobre si
mesmo sempre que se apercebia de que ia andar na carrinha.
– A velhice mudou-te – murmurou. – Tal como a mim.
Uma luz cinza deu lugar ao crepúsculo e depois, finalmente, à escuridão.
A mudança era subtil, quase impercetível, ao início, à semelhança do rumo
da sua própria vida. Pensou no negócio que tinha tido e nas centenas de
hectares de pereiras de Bradford que em tempos vendia todos os anos.
Também isso acabara por mudar. Começara por ter o monopólio, mas, a
cada ano que passava, novos concorrentes iam emergindo. Encontrar novos
clientes e mercados foi-se tornando cada vez mais difícil. As vendas
acabaram por estagnar e depois começaram lentamente a decair, apesar de
ele trabalhar mais do que nunca. Deixou de renovar o arrendamento de
algumas parcelas de terreno, e depois de outras. Quando a inflação
aumentou durante o final dos anos 1970, as taxas de juro subiram a níveis
altíssimos, o que fez com que fossem construídas menos casas. O custo dos
fertilizantes e do gasóleo também atingiu valores máximos. Os viveiros
encomendavam menos produto. Tal como a maioria das pessoas, ele
esperava que a situação se corrigisse por si mesma, mas, entretanto, via-se
forçado a despedir mais e mais trabalhadores, uma situação que o
inquietava tremendamente. O facto de os trabalhadores aceitarem um
acordo de rescisão pouco fazia para minorar a culpa que Jasper sentia.
Quando olhava nos olhos dos que tinha de dispensar, via maridos e
mulheres, filhos e filhas, pais. Via filhos de Deus e rezava por ser perdoado,
embora soubesse que não havia alternativa.
Em meados da década de 1980, Jasper deu por si com uma única parcela
de terreno com pereiras de Bradford a crescer. Tal como mais de vinte anos
antes, trabalhava sozinho nos campos. As palmas das suas mãos ficaram
calejadas e, pela primeira vez desde que tinham casado, sentia-se grato pelo
dinheiro que Audrey ganhava como professora.
Em abril de 1986, Jasper tinha quarenta e seis anos. O filho mais velho
tinha vinte e um e estava prestes a terminar o curso de teologia da
Universidade de Wake Forest, planeando prosseguir os estudos com um
master of divinity. Queria tornar-se pastor. As duas filhas frequentavam a
Universidade da Carolina do Norte, uma a estudar biologia e com o intuito
de ser veterinária, a outra a planear licenciar-se em educação básica. Quanto
a Paul, preparava-se para dar início ao último ano na escola secundária.
Nessa primavera, o tempo andava instável, até que começou a chover,
dia após dia, durante quase duas semanas. A terra estava completamente
saturada quando o ar quente e húmido do Golfo do México começou a
colidir com o ar mais frio e seco do norte. Começaram a formar-se
tempestades na Georgia e na Carolina do Sul e, por fim, na Carolina do
Norte. Perto de Asheboro, numa área felizmente despovoada, uma dessas
tempestades deu origem a um tornado – ou, pelo menos, era isso que se
julgava que tinha acontecido. Como não houvera quaisquer testemunhas, a
única evidência do tornado foi reconstituída depois: dois pequenos edifícios
arrasados e milhares de árvores cujas folhas tinham sido arrancadas dos
ramos, enquanto as próprias árvores haviam sido desenraizadas e lançadas
pelos ares como palha.
Dado que a situação era tão bizarra que raiava o inacreditável, um
fotógrafo do jornal viajara até ao local para a documentar. As fotografias
revelariam que, nas quintas em redor, nem casas nem celeiros tinham sido
afetados. Colheitas vizinhas de milho, algodão e tabaco continuavam a
crescer ao sol, sem quaisquer danos sofridos. A destruição só fora total
numa área relativamente confinada.
Jasper lembrava-se de estar com o fotógrafo a olhar para a ruína do que
fora o seu último pomar de pereiras de Bradford. Embora as árvores
tivessem seguro, ele ainda tinha contratos para cumprir naquele verão, o
que implicaria comprar árvores a outros produtores e vendê-las,
provavelmente com prejuízo. Não havia dúvida de que ficaria praticamente
sem nada.
Estonteado por tal revelação, Jasper tinha continuado a fitar as árvores
tombadas. O nono versículo do quarto capítulo de Job veio-lhe à mente
espontaneamente: A um sopro de Deus, perecem, destruídos pelo furor da
sua indignação.
Por um instante, Jasper perguntou-se o que teria feito para indignar
Deus, antes de se apressar a abanar a cabeça. Recordou a si mesmo que
tinha uma vida abençoada e pensou antes noutra tempestade do seu
passado, no furacão que, apesar de lhe ter destruído a casa, fora o que lhe
permitira dar início àquele negócio. Recordou que os caminhos do Senhor
são misteriosos e pensou em Coríntios I 10:13, que prometia que Deus é fiel
e não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças.
Não obstante as garantias da sua fé, durante meses custou-lhe dormir à
noite. Preocupava-se com como pagar a educação universitária dos filhos e
como suportar o banco alimentar local, pois sabia que outras famílias
enfrentavam dificuldades bem maiores do que as suas. Não se enganara
quanto ao valor segurado; não chegava para cumprir os contratos. Poderia
ter declarado falência, limitando-se a virar costas às suas obrigações, mas
recordava o Salmo 37:21, que dizia que o ímpio pede emprestado e não
paga. Por isso, ele e Audrey foram ao banco.
Hipotecaram a casa, a primeira hipoteca de que alguma vez tinham
precisado. Enquanto assinavam os papéis, Jasper perguntava-se como seria
capaz de reconstruir a vida, mas, quando saíram, Audrey deu-lhe a mão e,
nesse momento, ele teve a certeza de que tudo ficaria bem.

Passava apenas um pouco das nove da noite e o mundo estava negro


como breu quando Jasper reparou nuns pontinhos de luz a norte, a piscar
como pirilampos distantes.
– Parece que vem aí alguém – murmurou ele a Arlo.
A seu lado, o cão bocejou e depois sentou-se, olhando em redor. Passado
cerca de um minuto, levantou as orelhas, com a cabeça inclinada para um
lado. Jasper fechou a janela do seu lado e esticou o braço por cima de Arlo
para fazer o mesmo do lado do passageiro, não fosse dar-se o caso de o cão
decidir ladrar.
Passaram-se mais uns minutos antes de o mundo diante dele ficar
temporariamente iluminado; o som de um motor era inconfundível.
Caçadores furtivos, com holofotes e espingardas no habitáculo, uma saca de
milho na caixa da carrinha.
Os Littleton e Melton?
Só os Littleton?
Outra pessoa?
Jasper estacionara a carrinha ali porque queria ter a certeza.
O mundo voltou a ficar escuro e o som do motor desvaneceu-se. Jasper
esperou mais dez minutos para se assegurar de que se tinham ido embora e
depois rodou a chave.
O motor fez barulho, mas não pegou. Jasper inspirou profundamente e
voltou a tentar, carregando no acelerador. Mais uma vez, a ignição não
funcionou.
Fechou os olhos, a sentir uma tensão súbita no peito. Deixou o motor
descansar por um momento antes de voltar a tentar. Rodou a chave e calcou
o acelerador, ouviu o motor finalmente a pegar, em protesto, e depois a
engasgar-se com o guincho ruidoso associado a uma correia solta da
ventoinha.
Santo Deus, pensou. O som fora tão alto que podia ter acordado os
mortos e ele só esperava que quem quer que tivesse passado já estivesse
suficientemente longe para não o ter ouvido.
Meteu a primeira, mas manteve as luzes apagadas, avançando
lentamente ao longo do talude. Mal via as marcas dos seus pneus para lá do
para-brisas e, mesmo àquela velocidade reduzida, de vez em quando tinha
de guinar o volante para evitar árvores e ravinas. O seu olhar ia-se
desviando para o espelho retrovisor, em busca de outros faróis. Mesmo
depois de chegar à estrada de terra batida, continuou nervoso – homens
armados que não respeitavam a lei podiam ser perigosos. Ainda assim,
conteve o impulso de ir mais depressa. Arlo parecia ter-lhe pressentido a
tensão e deixou escapar um gemido, e outro. Jasper ia a pensar quanto
tempo levariam os outros a chegar à clareira e a voltar para a carrinha.
Não sabia ao certo quanto tempo demorara, mas, por fim, chegou à
estrada de combate a incêndios e soltou a respiração que não sabia que tinha
estado a conter. Sentiu-se suficientemente seguro para acender os faróis e
acelerar, ciente de que dali chegaria à estrada principal. Passado um pouco,
essa estrada levaria a um cruzamento e os caçadores furtivos poderiam virar
para a esquerda ou para a direita para usarem uma de duas saídas que
passavam tanto pelo parque de campismo como pelo posto do guarda-
florestal.
Só ao chegar ao cruzamento se deu conta do seu erro. Não lhe ocorrera
procurar um lugar para esconder a carrinha ali, que lhe permitisse ver em
que direção os caçadores furtivos iam.
Avançou cerca de meio quilómetro numa direção, antes de virar a
carrinha e fazer o mesmo na direção oposta. Escrutinando um lado e outro
da estrada, procurava algo no terreno que fosse suficientemente grande para
ocultar a sua carrinha, mas não conseguia encontrar nada.
O que significava que teria de tomar uma decisão.
Uma direção levava a Asheboro, a outra a estradas rurais e, por fim, a
uma autoestrada.
Seguindo o seu palpite, decidiu-se pela saída que dava para Asheboro e,
dez minutos depois, saíra da floresta. Percorreu mais umas centenas de
metros até virar para uma rua secundária. Inverteu a marcha e desligou o
motor, esperando estar certo.
Esperou meia hora.
E uma hora.
E mais.
A sua mente ia vagueando, à medida que a fadiga se instalava. Arlo
começou a ressonar.
Já com a segunda hora bem entrada, Jasper começava a ter dificuldade
em manter os olhos abertos. Foi então que viu as árvores em frente
começarem a aclarar, como que iluminadas por faróis. Endireitou-se. Fitou
intensamente, até distinguir por fim uma carrinha preta de caixa aberta, que
vinha do lado da floresta. A carrinha passou na rua sem parar e, um
momento depois, ultrapassou-o, continuando a acelerar.
Jasper rodou a chave e, para seu alívio, o motor reagiu logo. Começou a
seguir a carrinha. Ao longe, via os farolins do veículo. Se o destino da
carrinha fosse um certo bairro de Asheboro, como ele desconfiava, a
carrinha iria virar à esquerda depois do stop mais adiante.
Assim foi.
Jasper continuou a conduzir sem luzes até chegar ao sinal de stop.
Mesmo antes de virar, acendeu os faróis. Por essa altura, a carrinha já
estava praticamente fora de vista, e Jasper calcou o acelerador, para reduzir
ligeiramente a distância. A estrada não tinha mais trânsito e ele não queria
levantar suspeitas, pelo que se manteve razoavelmente afastado.
Chegaram a Asheboro e depois à zona da baixa. A carrinha na dianteira
tornou a virar. Jasper abrandou, cada vez mais confiante na sua suspeita;
quando virou também, viu o clarão dos farolins da carrinha a virar para
outra rua, a mesma que Jasper visitara duas noites antes.
Mais adiante, viu a carrinha preta entrar no acesso da casa de Clyde
Littleton. Encostou a sua carrinha à beira da estrada e esperou uns minutos,
antes de sair sem fazer barulho, deixando Arlo dentro do veículo.
Aproximou-se a pé, dirigindo-se à casa e esforçando-se ao máximo por se
manter nas sombras. Sentia-se ridículo; não era espião nem criminoso, e
calculava que, se algum dos vizinhos espreitasse pela janela, ele daria nas
vistas como um sinal de néon. Mas parecia que ninguém estava a ver.
Por fim, mais perto da casa dos Littleton, escondeu-se entre os arbustos
do vizinho. Ainda que a vegetação lhe tapasse grande parte da vista,
conseguiu confirmar que ninguém estava a tirar uma carcaça da caixa da
carrinha. Tampouco ouviu vozes, o que significava que os rapazes já teriam
entrado. Suspirou de alívio, por saber que o veado continuava a salvo. Para
além disso, confirmara aquilo de que sempre suspeitara.
Os adolescentes estavam decididos a apanhar o seu troféu.

VI

De novo em casa, Jasper despiu-se e foi para a cama, ciente de que


também aquela noite seria curta. Adormeceu depressa e acordou com o
toque estridente de um alarme na quinta de manhã. Deu de comer a Arlo e
comeu uma sanduíche de ovo, sentindo-se velho e cansado e com dores em
todo o corpo. Tinha as costas, os joelhos e as ancas tão doridos que lhe
custava mexer-se; a pele parecia estar a receber picadas de mil agulhas, e
fazia-lhe uma comichão dos diabos. Mas tinha trabalho a fazer para manter
o veado a salvo, agora que os Littleton tinham reposto o isco. Essa fora a
razão, certamente, para terem ido à floresta na noite anterior.
Regressou de novo para o interior da Uwharrie, de faróis acesos, aos
saltos e solavancos até chegar de novo ao talude. Desta vez, tinha levado
uma lanterna, para além do ancinho e de mais um saco do lixo. Avançou
lentamente pela floresta, atento ao solo que ia pisando. A última coisa que
queria era torcer um pé. Viu as horas, a sentir a pressão do tempo. Quem lhe
dera conseguir ser mais rápido – perguntou-se se deveria ter começado mais
cedo, ainda que isso provavelmente implicasse não ter dormido de todo.
Até Arlo parecia arrastar-se, satisfeito por ficar ao lado do dono, em vez
de se adiantar a farejar o chão.
Por fim na clareira, Jasper viu mais milho despejado em vários montes.
Avançou tão depressa quanto podia, usando o ancinho e as mãos para
guardar tudo no saco do lixo. Também tinha noção de que a reposição do
milho significava que os Littleton planeavam voltar, fosse naquela manhã
ou no dia seguinte, já que a floresta se encheria de gente quando a época da
caça ao peru abrisse. Se tivesse de adivinhar, diria que provavelmente já
estariam a caminho. Também eles sabiam que os veados não tardariam a
acordar e a começar a procurar alimento.
Depois de recolher o milho, pôs o saco ao ombro com um resmungo e
recuperou o ancinho e a lanterna. Por essa altura, a lua já descera abaixo da
linha do horizonte e as estrelas tinham começado a desaparecer. Incidiu a
luz no seu relógio de pulso, ciente de que estava a ficar sem tempo. Pôs-se a
caminho da carrinha, mas, preocupado por os Littleton poderem estar a
aproximar-se, manteve a lanterna desligada, o que lhe abrandava o
progresso.
No limite norte da clareira – logo a seguir à árvore tombada onde os
adolescentes tinham construído o esconderijo e planeavam instalar-se –,
Jasper tropeçou. Ao tentar reequilibrar-se, porém, as suas costas foram
subitamente acometidas por um espasmo que lhe paralisou o resto dos
músculos. Caiu e bateu com um joelho numa pedra, o que lhe provocou
ondas de dor pela perna acima. No chão, cerrou os olhos, a tentar inspirar
enquanto a dor do espasmo o atingia com toda a força, quase a fazê-lo
desmaiar. Tinha a sensação de ter esmagado o osso com um martelo.
Agora não, pensou. Tenho de sair daqui.
Lá no alto, o céu começava a clarear, ganhando um tom índigo.
Sabia que tinha de voltar para a carrinha, mas os espasmos das costas,
que o assolavam em ondas contínuas, tornavam quase impossível respirar,
quanto mais mexer-se. A dor no joelho expandia-se até à anca, uma agonia
que latejava a cada pulsação. Quando Arlo lhe esfregava o nariz na cara, ele
não conseguia sequer reunir energia para o enxotar.
Concentrou-se, a tentar pensar noutra coisa, mas a dor desencadeou a
memória de mais dor ainda. De repente, teve uma memória vívida de um
fim de semana do 4 de Julho de 1988, pouco mais de dois anos depois de o
seu negócio ter sido arrasado. Estava de novo a trabalhar nas obras, e os
miúdos – embora já todos fossem adultos por essa altura – estavam a passar
o fim de semana prolongado na casa dos pais. Toda a família fora à igreja e,
depois, Audrey servira frango frito, chucrute e salada de batata na mesa de
piquenique que tinham no pátio das traseiras. Era uma refeição que Jasper
nunca esqueceria, por ter sido a última vez que comeram juntos.
No dia seguinte, o Dia da Independência dos EUA, os filhos separaram-
se. Mary e Deborah foram para a costa com amigos, ainda que em grupos
diferentes. David foi a um churrasco que um amigo tinha organizado e Paul
foi andar de barco com um par de amigos. Alguns, mas não todos,
assistiriam ao espetáculo de fogo de artifício em Asheboro nessa noite;
Deborah planeava assistir ao de Wrightsville Beach e não voltaria para casa
antes da meia-noite. Quando o fogo de artifício terminasse, Paul tinha
planeado fazer uma fogueira nas traseiras da casa com uns amigos, como já
fizera umas quantas vezes. Mais tarde, Jasper ficaria a saber que alguns dos
jovens tinham levado bebidas alcoólicas, e que Paul se juntara às
festividades.
Jasper e Audrey ficaram acordados até tarde, à espera de que os filhos
chegassem. Mary chegou primeiro, depois David, e por fim Deborah. Os
cinco conversaram durante algum tempo, sentados à mesa da cozinha. Paul
ainda estava no pátio das traseiras com os amigos, todos sentados à volta da
fogueira, com chamas que se erguiam bem alto. Ao olhar pela janela das
traseiras, Jasper tinha pensado ir recordar ao filho que tivesse cuidado, pois
o vento começara a intensificar-se. Aproximando-se por trás dele e
passando-lhe os braços à volta da cintura, Audrey dera-lhe um beijo na face.
– Deixa-o estar – pediu ela, a adivinhar-lhe o que lhe ia na cabeça. –
Sabes que ele é cuidadoso, e está a divertir-se com os amigos. Vamos para a
cama.
Jasper e Audrey foram para o quarto. Audrey vestiu a camisa de dormir,
Jasper o pijama. Como sempre, viraram-se um para o outro naqueles
últimos momentos antes de adormecerem. No escuro, ele via um ligeiro
sorriso nos lábios de Audrey. Ela adorava ter os filhos todos em casa.
A memória seguinte de Jasper era de ter acordado a tossir tanto que lhe
parecia que tinha as entranhas torcidas. A sua mente demorou menos de um
segundo a processar o que estava a acontecer; viu chamas na parede ao
fundo e no teto, fumo negro por todo o lado. O quarto estava a arder, a casa
estava a arder. Jasper saltou da cama e tentou acordar Audrey, sacudindo-a.
O corpo da mulher não reagia e o pânico apoderou-se dele. Gritou-lhe e
sacudiu-a com mais força, mas ela não se mexia. Com a mulher nos braços,
Jasper começou a avançar para a porta do quarto. Assim que a abriu, uma
explosão de luz e energia atirou-o para trás. Durante longos minutos, não
houve nada para além de inconsciência, até que a dor o acordou.
As chamas expandiam-se e cerravam-se como punhos, línguas de fogo
cor de laranja que dançavam à volta dele. O próprio Jasper estava em
chamas e sentia os dedos infernais a devorar-lhe a carne dos braços, das
pernas e do tronco. Sem ver com clareza, deu-se conta de que também tinha
a cabeça, o rosto e o pescoço a arder. Com um grito, bateu instintivamente
nas chamas para as apagar e começou a rebolar freneticamente pelo chão. O
fumo tornara-se uma névoa enegrecida tão densa que ele mal conseguia ver,
e o cheiro era de algo vagamente similar a carne cozinhada. Assim que as
chamas do seu corpo se extinguiram, pensou em Audrey e nos filhos. As
imagens deles piscavam-lhe na consciência como se um interruptor tivesse
sido ligado. Audrey, pensava ele, David, Mary, Deborah e Paul…
Tenho de salvar a minha família…
Agora tudo parecia estar a arder. As paredes e o pavimento ardiam, os
móveis também. Sem saber como, Jasper encontrou a figura encolhida de
Audrey perto da janela, consumida pelas chamas. Tinha a pele enegrecida
da cabeça aos pés. Ele extinguiu as chamas e levantou-a do chão,
observando num estupor a sua própria pele a cair. Cambaleou pelas escadas
abaixo e saiu pela porta da rua, após o que a pousou no relvado.
De um lado e do outro, as casas dos vizinhos também ardiam. Um carro
dos bombeiros já estava estacionado ali à frente, e Jasper ouvia mais sirenes
ao longe. Pelo canto do olho, viu Paul no relvado, a gritar histericamente
enquanto um polícia o algemava. Viu os vizinhos entre a pequena multidão
que já se formava do outro lado do passeio. Não havia sinal do resto dos
seus filhos e ele perguntou-se onde estariam.
Oh, Deus, por favor… Não…
Dois bombeiros estavam já a começar a desenrolar uma mangueira do
carro. Outro correu na direção dele, mas Jasper virou-se para o alpendre e
tornou a entrar em casa.
O calor era uma coisa viva e o som do fogo parecia o de um motor a
jato; sentiu a pele da cara começar de imediato a rebentar em bolhas. As
chamas devoravam toda a estrutura, como se a engolissem por completo.
Não quis saber. Cambaleou na direção das escadas, que já se tinham
transformado num inferno. Pensou nos filhos e avançou, mas logo sentiu
dois pares de mãos a puxá-lo subitamente para trás. Debateu-se e gritou
pela família, a tentar libertar-se, mas os dois bombeiros eram jovens e
fortes. Pouco depois, estava a ser arrastado pelo alpendre até ao relvado.
Então, o mundo ficou como que em câmara lenta, com imagens que se
formavam e dissipavam numa suspensão onírica.
Chamas a saltar para o céu… vizinhos agrupados do outro lado da
rua… água a jorrar de mangueiras… mais carros-patrulha a aparecer
subitamente, a parar no relvado do vizinho… o corpo enegrecido de Audrey
deitado no relvado, rodeado por paramédicos…
Mas, sobretudo, o que recordaria para sempre eram os gritos – os seus, e
os de Paul. Só quando a sua garganta cedeu, rouca e ferida, é que começou
a sentir a agonia das queimaduras, tão intensa que o mundo em redor se
reduziu a nada. Misericordiosamente, perdeu os sentidos.

VII

Arlo lambeu as lágrimas do rosto do dono.


Jasper tinha revivido aquela noite um milhar de vezes e chorava sempre
que o fazia; mesmo após décadas, a mágoa, a vergonha e a sensação de
fracasso não diminuíam nem se dissipavam. Odiava-se por ter sido incapaz
de salvar a família.
Gemeu quando um novo espasmo lhe contraiu as costas. Tentou recordar
a si mesmo que os Littleton vinham a caminho e que estava a ficar sem
tempo. Num passado distante, teria rezado a Deus, pedindo força; teria
rezado para que Ele lhe aliviasse a dor. Em vez disso, limitou-se a fechar os
olhos e a permitir-se sucumbir às memórias. Aprendera há muito que,
quando começavam, era praticamente impossível pará-las.
Só mais tarde viria a saber o que lhe tinha acontecido; que o tinham
levado de ambulância para o Hospital da Universidade da Carolina do
Norte, em Chapel Hill, onde o haviam colocado num quarto de ambiente
controlado e num coma induzido durante mais de oito semanas. Tinha
queimaduras de segundo e terceiro grau em mais de sessenta por cento do
corpo. As suas feridas foram metodicamente limpas e desbridadas durante
semanas. Ouviu dizer que os médicos até lhe tinham coberto partes do
corpo com vermes para retirar mais tecidos mortos. Trataram-no com
antibióticos intravenosos e enxertos de pele, tanto do seu próprio corpo
como de dadores. Durante mais de um mês, ninguém sabia se sobreviveria.
Tinha arritmia, desidratação e edema; por duas vezes, contraiu pneumonia.
Houve uns dias em que as suas feridas quase ficaram sépticas, o que
poderia resultar na amputação das duas pernas, mas, de todas as vezes, a
infeção foi debelada.
Por fim, abriu os olhos, emergindo num estado de agonia inimaginável.
Corriam-lhe lágrimas sempre que estava consciente. Os enfermeiros não o
deixavam ter um espelho, mas ele imaginava, vendo os braços, as pernas e
o tronco, como estaria o seu rosto. Acabaram por transferi-lo para um outro
quarto de ambiente controlado nos Cuidados Intensivos e, por fim, para
uma cama normal. Foi por volta dessa altura que um psiquiatra começou a
visitá-lo. Finalmente, depois de quatro meses no hospital, transferiram-no
para o Centro de Queimados Jaycee, na Carolina do Norte.
A sua estada aí foi ainda mais prolongada. Como as queimaduras lhe
tinham danificado alguns dos nervos, teve de reaprender a manter-se de pé e
a caminhar. Teve de voltar a aprender a usar talheres. Sentia-se como uma
criança de meia-idade. Por fim, mais de um ano depois do incêndio, deram-
lhe alta do centro de queimados, mas, mesmo então, o tratamento ainda não
acabara. Foi submetido a mais quatro cirurgias de enxerto de pele nos cinco
anos que se seguiram.
Duas semanas depois de ter acordado do coma, ficou a saber o que
acontecera à sua família. O xerife, acompanhado por um delegado mais
jovem chamado Charlie – que viria a ser eleito xerife –, encontrava-se no
seu quarto, bem como um psiquiatra, uma assistente social e o pastor da sua
igreja. Num semicírculo à volta da sua cama, falaram num tom baixo e
soturno. Disseram-lhe que Audrey morrera das queimaduras, ao passo que
David, Mary e Deborah tinham morrido intoxicados pela inalação de fumo.
Jasper não sabia ao certo se assim seria, mas optou por acreditar que os três
filhos mais velhos não tinham sofrido com as chamas, porque a alternativa
era demasiado horrível para ser contemplada. Também lhe disseram que já
tinham realizado uma pequena cerimónia fúnebre e que a família fora
enterrada no cemitério local.
Paul não falecera no incêndio. Ao invés, na sequência da morte de quatro
pessoas da sua família e da destruição de três casas, fora detido e acusado
de vários crimes, incluindo homicídio por negligência. Na prisão, em frente
aos agentes que o tinham detido e aos superiores destes, prescindira do
direito a ter um advogado. Confessou tudo, coisas que tinha feito e talvez
coisas que nem sequer fizera; confessou que bebera pela primeira vez na
vida e que se embriagara, que continuara a alimentar a fogueira mesmo
depois de o vento aumentar, até esta ficar grande de mais; que, mesmo
depois de o telhado ter sido atingido por brasas e começado a arder, não
tinha chamado os bombeiros de imediato, tentando antes apagar ele próprio
o fogo, com a mangueira do jardim. Em pânico, não acorrera à casa para
despertar a família. Para além da gravação do seu depoimento pela polícia,
ele redigiu um relato dos acontecimentos. Chorou durante grande parte,
perguntando várias vezes como estava o pai, ficando apenas a saber que
Jasper fora levado para o hospital e se encontrava em estado crítico. Como
não conseguia parar de chorar, colocaram-no na prisão do condado, sob
vigilância para prevenção de suicídio.
Quando o advogado nomeado pelo tribunal apareceu, esperando reduzir
a acusação para homicídio involuntário, Paul recusou a proposta de
enfrentar menos acusações. Em vez disso, exigiu um julgamento o mais
cedo possível, diante apenas de um juiz, sem júri. Enquanto Jasper pairava
entre a vida e a morte, com o corpo a lutar contra uma crise após a outra, o
pedido de Paul foi deferido. O processo legal avançou rapidamente, sendo
concluído em semanas o que, de outra forma, poderia ter levado meses ou
até anos. Calmo e de olhos secos diante do juiz, Paul declarou-se culpado.
Quando o advogado começou a argumentar a favor de demência na
sentença, despediu-o ali mesmo e exigiu antes que lhe fosse aplicada a pena
máxima que a lei permitisse. O juiz – Sua Excelência, Roger Littleton –
apiedou-se dele. Recusou-se a impor a sentença máxima, que o teria
mantido preso durante vinte anos por cada um dos crimes. Em vez disso,
condenou-o a seis anos de prisão e informou-o que seria elegível para
liberdade condicional ao fim de três.
Na primeira noite na prisão, usando os lençóis da sua cama, Paul
enforcou-se.
Jasper recordava que, nesse dia no hospital, depois de ficar a saber o que
acontecera à sua família, virara costas a todos e pedira que o deixassem em
paz.
Durante semanas, não falou, nem sequer com o psiquiatra. Não havia
absolutamente nada a dizer.
O seu sustento fora destruído, o seu corpo estava desfeito, e toda a sua
família morrera.
Nas semanas que se seguiram, ponderou no seu destino, sentindo que o
padrão tinha algo de familiar. Por fim, apercebeu-se de que conhecia bem a
história; afinal, lera-a vezes sem conta na Bíblia.
De alguma maneira, Jasper tornara-se Job.
VIII

Arlo gemeu, trazendo Jasper de volta ao presente. Este fez uma série de
inspirações profundas, preparando-se, e, devagar, virou-se de lado. As suas
costas contraíram-se, mas, felizmente, não tiveram espasmo algum; o
joelho, contudo, provocou-lhe um esgar. Não sabia quanto tempo se teria
passado, nem quanto lhe restava – apenas que não seria muito. A alvorada
não tardaria e os Littleton, com ou sem Melton, estariam quase a chegar.
Não tinha a certeza de ser capaz de se levantar, quanto mais de chegar à
carrinha. Mas sabia que não podia ficar perto da árvore caída. Olhando em
redor, em busca de um lugar onde pudesse esconder-se, lembrou-se da crista
e dos rochedos do lado oriental da clareira. Isso ia ter de servir.
Levanta-te, disse a si mesmo.
Só que não conseguia. O esforço para se levantar contraiu-lhe as costas
de novo e ele concluiu que precisava de apoio, algo a que se agarrar.
Ou, melhor ainda, uma maca, com três ou quatro homens fortes que a
carregassem.
Sorriu com a sua própria piada, até que o joelho começou de novo a
latejar, o que lhe causou um esgar. Observando o espaço em redor, acabou
por encontrar uma árvore pequena. Avançou nessa direção, arrastando a
perna magoada. Na sua visão periférica, viu Arlo a fitá-lo de cabeça
inclinada, como que a perguntar-se que tipo de jogo seria aquele.
Rangeu os dentes e avançou mais um pouco. Recordou a si mesmo que,
em tempos, se movimentara por uma casa inundada; que, em tempos,
correra para um inferno. Conteve a respiração, percorreu mais uns quantos
centímetros e repousou, tentando manter os músculos das costas
descontraídos. Depois, repetiu tudo outra vez. E outra. E outra.
Por fim, chegou à pequena árvore e começou lentamente a endireitar-se.
As costas e o joelho pareciam gritar-lhe, mas permitiram-lhe levantar-se.
Nesse instante, viu um pontinho de luz ao longe e ouviu um motor.
Estão quase aqui.
O que fariam se o encontrassem? Se soubessem que os denunciaria como
caçadores furtivos? Se soubessem que tinha recolhido o milho e despejado
repelente de veado na área, e que usara aqueles aparelhos ultrassónicos para
afugentar o veado branco?
Visualizou o arroubo de raiva de Josh ao levantar a espingarda para
matar Arlo… recordou a facilidade com que o rapaz apontara a arma na sua
direção. Tornou a ver o sorriso falso, que pretendia disfarçar o facto de as
emoções humanas lhe serem alheias…
Josh não o mataria, pois não?
Claro que não.
Pela primeira vez, apercebeu-se de que estava assustado. Fora uma
insensatez ter feito tudo aquilo, uma estupidez ter acreditado que lhe
competia manter o macho branco a salvo. Não queria pôr a ira de Josh à
prova. Rangendo os dentes, coxeou uma vez, e outra, indo lenta e
dolorosamente até ao ancinho, à lanterna e ao saco de milho. Perguntava-se
se conseguiria baixar-se o suficiente para os recuperar sem que as suas
costas tornassem a contrair-se num espasmo.
Lançando um olhar para o lado norte da floresta, viu mais um pontinho
de luz, sem dúvida uma lanterna a percorrer a escuridão.
Já estavam mais perto.
E ele sabia que, dali a nada, Josh iria ficar muito, muito zangado.
CAPÍTULO OITO

– U auum–beijo
anunciou Casey assim que Kaitlyn saiu do quarto. – Aquilo foi
e tanto. Acho que nunca me beijaram assim.
Kaitlyn estacou no corredor.
– Estavas a ver-nos?
– Da janela do meu quarto…
Ela sentiu o pescoço a aquecer.
– Não deves pôr-te a espiar, Casey. E quanto ao que viste, talvez seja
melhor explicar…
A filha acenou com uma mão, interrompendo-a.
– Não tem importância, mãe. Eu gosto dele.
Kaitlyn abriu a boca para dizer algo, mas não lhe ocorria o que quer que
fosse.
– Só tens de me dizer – acrescentou Casey.
– Dizer-te o quê?
– Quando é que precisas que tome conta do Mitch – respondeu ela, de
súbito a parecer que a mãe era ela. – Desde que não seja na sexta, estou
livre.

II
Depois de tomar banho, Kaitlyn colocou-se em frente ao espelho, nua, e
observou o seu reflexo. Tinha algumas rugas ténues na testa e pés de
galinha nos cantos dos olhos; também reparou nuns quantos cabelos
grisalhos onde a cor se fora desvanecendo desde a última vez que arranjara
o cabelo.
E o resto…
A gravidez e a amamentação não tinham sido benévolas com o seu
corpo. O mesmo se podia dizer da gravidade. Os seios, outrora firmes,
pareciam descaídos agora, e os quilos a mais que tinha na cintura eram
demasiado evidentes. As ancas também estavam mais largas e, embora lhe
agradasse pensar que as pernas ainda tinham bom aspeto, sabia que não era
a jovem que fora em tempos.
Não obstante, Tanner dissera que a achava linda.
Embrulhou-se numa toalha, secou o cabelo e espalhou creme na cara
antes de apagar a luz da casa de banho. Recordando as sensações do beijo,
sentiu uma pontada de excitação só de pensar que tornariam a encontrar-se
no dia seguinte. Dependendo de como contasse as vezes em que estiveram
juntos, este seria uma espécie de terceiro encontro e, como toda a gente
sabia, o terceiro encontro muitas vezes era… significativo. Ou seja, poderia
haver intimidade física.
Não era ingénua, nem moralista no que dizia respeito a sexo. Ao mesmo
tempo, já se tinham passado cinco anos desde que fora para a cama com
alguém e, nos catorze anos anteriores, esse alguém fora George e apenas
George. Em resumo, tinham-se passado quase duas décadas desde que
tivera relações com alguém novo, e saber isso deixava-a estranhamente
nervosa. Para mais, sabia que as possibilidades de ter um futuro com Tanner
eram mínimas, por isso, como ficaria a sentir-se depois?
Assoberbada pela expectativa e pela incerteza, deu por si a meter-se nua
na cama de novo.

III
De manhã, Kaitlyn disse à filha que ia sair com Tanner naquela noite.
Mal tinha proferido as palavras quando Casey respondeu: «Sim, sem
problema», como se fosse habitual aceitar de bom grado os pedidos que a
mãe lhe fazia para tomar conta do irmão. Para alívio de Kaitlyn, a filha não
a interrogou mais, limitando-se a declarar em seguida que ia a casa de
Camille por volta das dez, para poderem ir ao centro comercial de
Greensboro.
– Mas estou em casa quando o Mitch sair do autocarro escolar –
acrescentou.
No consultório, Kaitlyn sentiu-se agradecida pela sua rotina estável e
pelo fluxo regular de pacientes. Enquanto discutia um diagnóstico ou
opções de tratamento, podia evitar pensar em Tanner, mas às dez e meia
recebeu uma mensagem de texto dele, a perguntar se podia ir buscá-la às
seis. Como não sabia se isso lhe daria tempo suficiente para se preparar,
sugeriu seis e meia e, enquanto esperava que ele respondesse, perguntou-se
se ele estaria a pensar naquela coisa do terceiro encontro, ou se só as
mulheres fariam isso. Um momento depois, ele concordou com as seis e
meia com um alegre Até logo!, e ela tornou a sentir uma agitação já familiar
no estômago.
As consultas da tarde foram-se atrasando e já tinha começado a chover
quando Kaitlyn saiu do consultório, o que tornou o regresso a casa mais
demorado do que era habitual. Ao entrar no acesso da casa, reparou que lhe
restava menos de uma hora para se arranjar.
Lá dentro, Casey e Mitch estavam no sofá, a assistir de novo a um dos
filmes do Parque Jurássico.
– Podemos jantar piza? – perguntou Mitch, sem desviar o olhar.
– Então, nada de, «Olá, mãe! Como foi o teu dia?».
– Olá, mãe! Como foi o teu dia? Podemos jantar piza?
– Sim, está bem. – Ela assentiu com a cabeça e descalçou os sapatos
molhados. – Tenho quase a certeza de que tenho dinheiro na carteira.
Casey lançou-lhe um olhar de relance.
– Porque não pedes pelo DoorDash?
Porque, pensou Kaitlyn, ainda penso primeiro em fazer as coisas à
moda antiga.
– Podemos fazer isso – respondeu. – Lembrem-me só antes de eu sair.
Levantando-se do sofá, Casey aproximou-se e arqueou uma sobrancelha
com uma expressão sugestiva.
– Então… – disse ela, arrastando a palavra –, como é que te sentes em
relação ao grande encontro, mãe?
Kaitlyn replicou numa voz descomprometida:
– É só um jantar.
– Não estás nervosa?
Estou.
– De todo.
– Posso perguntar a que horas estás a pensar chegar?
– Não sei ao certo, mas não há de ser muito tarde – respondeu, tentando
parecer descontraída.
– Bem – disse Casey –, só não te esqueças de me avisar se alguma coisa
mudar, OK?
Kaitlyn inspirou profundamente, a pensar: Realmente não estou em
condições de lidar com isto agora.

IV

O que vestir.
Era sempre essa a questão quando se saía com alguém, não era?
Sobretudo porque não sabia onde ele a levaria. Não queria ir demasiado
bem-vestida, para o caso de ele estar a planear algo descontraído, mas
tampouco queria ir demasiado informal, não fosse ele aparecer de blazer. Já
tinha usado calças de ganga das vezes anteriores, o que fazia com que um
vestido parecesse a escolha lógica, mas os vestidos que tinha eram quase
todos demasiado formais ou demasiado estivais. Acabou por se decidir por
um vestido verde-água que lhe dava pelo joelho e tinha manga japonesa,
algo que Casey descreveria certamente como um «vestido de mãe». Mas
que importava isso? Kaitlyn era mãe e não tinha muitas outras opções.
Comprara-o oito anos antes para um casamento, quando Mitch era ainda
bebé, e lembrava-se de que várias pessoas lho tinham elogiado. A questão
que se punha era se ainda lhe serviria. Depois de se despir, meteu-se no
vestido e puxou-o para cima, mas, como não conseguia chegar ao fecho, foi
até às escadas e chamou a filha.
– Precisas de alguma coisa? – perguntou Casey, aparecendo no patamar
do primeiro andar.
– Podes fechar-me isto?
– É isso que vais usar?
Kaitlyn sentiu o olhar de Casey a percorrê-la de cima a baixo enquanto
continuava a subir as escadas.
– Desde que me sirva – respondeu, fazendo questão de não olhar para o
nariz da filha, que provavelmente estaria torcido com desdém.
Um momento depois, sentiu o fecho a subir e, ato contínuo, tentou
encolher a barriga.
– É capaz de estar um pouco apertado – murmurou.
– Para de te remexer – ralhou Casey.
Kaitlyn tinha a impressão de estar a ser enfiada no seu próprio casulo até
que – milagrosamente – o vestido se fechou por completo.
Uau, pensou ela. Serve-me.
Pôs-se em frente ao espelho de corpo inteiro, atrás da porta do quarto, a
pensar que lhe ficava um pouco justo nas ancas, mas…
Até gostava de como lhe ficava. Mostrava apenas um pouco as pernas e,
para seu alívio, parecia favorecê-la, enfatizando-lhe a figura em forma de
ampulheta.
– Não me lembro de te ver com esse vestido, é novo? – perguntou Casey.
– Não, querida. Já o tenho há bastante tempo.
– É bonito – comentou a filha. – Mas, já que estou aqui, tenho uma
sugestão.
– O que é?
– E se me deixasses ajudar-te com o cabelo e a maquilhagem?
– Qual é o problema da forma como costumo arranjar-me? – Kaitlyn fez
uma careta em frente ao espelho.
Casey levou uma mão à cintura.
– É um bocadinho à Melrose Place, não achas?
– Estás a falar daquela série antiga? Tipo, de há trinta anos?
– Essa mesmo.
– Espanta-me que tenhas sequer ouvido falar.
– Procurei na internet séries antigas de TV e achei que empregar uma
referência da cultura popular que tu entendesses seria uma boa forma de
sugerir que atualizasses o teu aspeto.
– Ainda não tinhas nascido e eu já tratava do meu cabelo e da minha
maquilhagem.
– É o que estou a dizer – replicou Casey.
– Não tenho a menor vontade de parecer uma adolescente.
– Não vais parecer – assegurou-lhe a filha. – Assisti a montes de tutoriais
no YouTube. Confia em mim.
Kaitlyn não sabia ao certo se deveria sentir-se ofendida, mas, por uma
vez, as intenções de Casey pareciam genuínas.
– Está bem – concordou. – Vamos lá ver do que és capaz. Mas, primeiro,
ajuda-me a escolher um bom par de sapatos.

A ver-se ao espelho, Kaitlyn concluiu que Casey devia ter assistido a


muitos mais tutoriais do que dera a entender, porque o resultado era
suficientemente subtil para mal se notar, e a sombra nos olhos fora aplicada
com mestria.
– Dá para ver que gostas – vangloriou-se Casey. – Não tens de quê.
– Gosto – disse ela. – É só… inesperado. Obrigada.
– Mais uma coisa.
– O que é?
– Tens de parar de estar nervosa em relação a esta noite.
– Não estou nervosa – mentiu Kaitlyn.
– Oh, deixa-te disso. Vi que estavas assim que chegaste. Mas tens de dar
valor ao que tens para dar. És inteligente e bem-sucedida. Ajudas pessoas
doentes, dás comida aos pobres, e, se a tua filha fabulosa serve de indicador,
é óbvio que és uma mãe fantástica. E és bonita. Se alguém devia estar
nervoso, era ele.
Kaitlyn sentiu um nó na garganta.
– Obrigada – acabou por dizer.
– Não tens de quê. – Casey começou a arrumar a maquilhagem e a
guardá-la na sua bolsa. – E, já agora, se precisares de uma escapatória,
posso ligar-te daqui a uma hora ou assim.
– O que queres dizer?
– Uma escapatória? Para poderes pôr fim ao encontro mais cedo, caso
não esteja a correr bem? É assim, eu ligo-te e digo-te que o Mitch está com
febre ou algo do género e, pronto, tens aí a tua escapatória.
– É isso que agora se faz?
– Dah – respondeu a filha.
– Pronto, está bem. Ligas-me daqui a uma hora, então?
– Combinado – disse Casey. – Mas faz-me um favor, sim?
– O que queiras – respondeu Kaitlyn.
– Era exatamente isso que esperava que dissesses – alegrou-se Casey –,
porque precisamos mesmo de falar sobre arranjares-me um carro o quanto
antes, sobretudo se quiseres que tome mais vezes conta do Mitch. Quero
dizer, é o mínimo.
Kaitlyn sorriu a contragosto. Era tranquilizador saber que, por mais
agradável que andasse ultimamente, a filha não mudara.
– Vou pensar nisso.

VI

Quando Kaitlyn pôs os brincos, já eram quase seis e meia. Ao descer as


escadas, Mitch, sentado no sofá, olhou para cima. Casey estava ao lado
dele, com o braço por cima dos ombros do irmão. A chuva ia batendo
continuamente nas vidraças.
– Já podemos pedir a piza? Tenho fome.
Casey raspou-lhe os nós dos dedos na cabeça, fazendo-o encolher-se e
contorcer-se.
– Devias dizer-lhe que está bonita, não que tens fome.
– Mas tenho fome. E ela está sempre bonita. É a mãe mais bonita do
mundo inteiro.
Kaitlyn sorriu, encantada com a certeza dele.
– Deixem-me ir buscar o telemóvel. É só com queijo, certo?
Mitch assentiu com a cabeça e Kaitlyn fez o pedido enquanto já via um
clarão de faróis pela janela da sala de estar.
Tanner, pensou ela. Mesmo a tempo.
Recordando as palavras da filha, inspirou fundo e tirou o casaco e um
chapéu de chuva do armário. Ao abrir a porta, ficou logo satisfeita por ter
escolhido aquele vestido. Tanner estava a usar umas calças pretas e um
blazer.
Ele pareceu ficar paralisado na entrada, a olhar para ela.
– Estás… incrível – disse por fim.
– Obrigada – murmurou ela, consciente da intensidade ardente do olhar
dele. Como que de longe, ouviu outra voz. Mitch.
– Aquilo que está na entrada é uma limusina?
– A sério? – exclamou Casey. – Isso é espetacular!
Kaitlyn esticou o pescoço para ver a entrada por cima do ombro de
Tanner, ao mesmo tempo que os filhos se levantavam à pressa do sofá.
– Surpresa – sorriu Tanner.

VII

Mitch e Casey pedincharam que os deixassem ir ver a limusina e,


quando Tanner acedeu, Mitch correu a ir buscar o casaco e as botas. Casey
seguiu o irmão para se calçar também. Entretanto, Kaitlyn arqueou uma
sobrancelha.
– Já viste o que fizeste?
– Lamento mesmo muito – respondeu ele.
– Não era preciso arranjares uma limusina – disse ela, num tom de falsa
reprovação.
– O meu carro ainda está na oficina.
– Tens um carro alugado – protestou ela.
– Já viste o meu carro alugado?
Ela riu-se e, depois de Casey e Mitch estarem devidamente vestidos,
todos saíram. Kaitlyn abriu o chapéu de chuva, mas os miúdos limitaram-se
a levantar o capuz dos seus casacos. O motorista saiu do veículo a
empunhar um chapéu de chuva e apressou-se a abrir a porta de trás. Mitch
espreitou lá para dentro antes de se virar para a mãe.
– Posso entrar? – suplicou.
Kaitlyn olhou de relance para Tanner, que encolheu os ombros.
– Por mim, tudo bem.
Kaitlyn viu Casey a meter-se na limusina atrás de Mitch, até que ambos
ficaram fora de vista.
– Tem luzes como uma nave espacial! – anunciou Mitch quando
finalmente emergiu.
– E champanhe num balde de gelo – acrescentou Casey, a segui-lo de
perto. Embora a filha parecesse falar com naturalidade, Kaitlyn percebeu
que tinha ficado impressionada.
– Agora que os dois já viram o carro, podemos ir?
– Claro. – Casey assentiu com a cabeça. Para Mitch, acrescentou: – Anda
lá, Percevejo.
– Está bem, Rabuda – ripostou Mitch, de língua de fora. – Até logo, mãe.
Adoro-te.
– E eu a vocês – disse Kaitlyn, com convicção. Viu-os entrar em casa
antes de devolver a atenção a Tanner. Este indicou o carro com um floreado
do braço.
– Vamos?

VIII

A última vez que Kaitlyn tinha estado numa limusina fora quando
andava na escola secundária. O pai alugara uma para o seu baile de
finalistas, mas ela deu-se conta de que já não se lembrava do nome do rapaz
com quem tinha ido. Apesar de ainda conseguir ver o cabelo ondulado e
castanho e as covinhas que ele tinha e de se lembrar de que era alto e jogava
basquetebol, tinha uma branca completa em relação ao nome dele.
– Em que estás a pensar?
Na luz ténue do habitáculo, o rosto dele parecia cheio de sombras e
mistério.
– Nada de importante.
Ele levantou a garrafa de champanhe do balde de gelo.
– Queres um copo?
– Adorava.
Observou-o a retirar o papel de alumínio e a soltar os arames antes de se
ouvir o estalido familiar. Ele serviu um copo e, quando lho passou, ela
sentiu o odor terroso da água-de-colónia dele. A chuva deslizava de lado
pelos vidros, o que tornava aquele momento ainda mais surreal.
– Posso perguntar onde vamos jantar?
– É surpresa – esquivou-se ele. – Fica um pouco fora da cidade.
– Temos bons restaurantes aqui.
– Eu sei, mas depois de ver o que aconteceu no Pão Nosso de Cada Dia,
tive dúvidas de que jantar em Asheboro fosse boa ideia. Para o caso de
quereres manter a privacidade.
– Obrigada – disse ela, apreciando a descrição dele.
Ele pegou numa lata que estava no assento.
– Queres algo doce para acompanhar o champanhe?
– Morangos cobertos de chocolate, talvez?
– Melhor ainda.
Ele levantou a tampa da lata e ela demorou um segundo a perceber o que
estava a ver.
– M&M’s?
– M&M’s de amendoim – corrigiu ele.
– Hum – fez ela, intrigada. – Acho que nunca me tinham dado doces de
Halloween num encontro.
– São os meus favoritos.
– E pareceu-te que ficariam bem com champanhe?
– Porque não haveriam de ficar? Há chocolate e amendoim em cada
dentada.
Como que para provar o que dizia, ele levou um à boca. Ela sorriu,
inexplicavelmente encantada.
– Como correu a busca hoje?
– Não correu. Depois daquilo que me disseste, concluí que preciso de
mais algum tempo para considerar as possíveis implicações. E o teu dia,
como foi? Algum caso novo de lepra?
– Não, só o costume. – Reparou que estavam a encaminhar-se para norte,
pela baixa de Asheboro. Pegou num M&M de amendoim e engoliu-o com
um trago de champanhe.
– Isto realmente não é uma má combinação – reconheceu.
– O meu avô mandava-me caixas quando eu estava destacado. Aquela
cena toda do derrete-se na boca, não nas mãos era conveniente no calor do
Médio Oriente, como podes imaginar, mas também era um pequeno toque
de normalidade num lugar onde o normal muitas vezes estava em falta.
Acho que ele, mais ainda do que a minha avó, sabia que eu precisaria de
algo assim.
– Parece ter sido uma pessoa muito compreensiva.
– Era – reconheceu Tanner. Rodopiou o pé do copo. – Mas a sua
compreensão, infelizmente, foi conseguida a pulso.
– O que queres dizer?
– Ele era do Alabama e… mais ou menos como eu, imagino… nunca
conheceu o pai. Vivia com a mãe e umas tias num barracão em ruínas nos
arredores da cidade. A mãe costumava levá-lo para a fábrica de produtos
têxteis em que trabalhava, passados poucos dias depois de ele ter nascido.
– Uma mulher forte. – Kaitlyn abanou a cabeça, impressionada.
– E o filho também era forte – disse ele. – A mãe do meu avô era negra e,
embora ele nunca tenha conhecido o pai, parece que este era branco. E, no
Alabama, no final dos anos quarenta, início dos cinquenta, isso dava direito
a uma infância difícil. Na cidade, não lhe era permitido nadar na piscina da
comunidade, ou comer em certos sítios, tinha de se afastar de algum branco
que quisesse passar no passeio. Também teve de frequentar escolas
segregadas, claro… a dessegregação no Alabama só aconteceu depois de ele
acabar os estudos… mas também não era completamente aceite nessas
escolas. Meteu-se em muitas lutas enquanto crescia e acho que essa foi uma
das razões para ter acabado por se alistar. Queria sair do Alabama. Depois,
algures na década de sessenta, conheceu a minha avó, e nem é preciso dizer
que a família e os amigos dela praticamente cortaram relações com ela
quando eles se apaixonaram e casaram. Passaram-se anos até voltarem a
comunicar com ela. Entretanto, ele foi enviado para o Vietname, cumpriu o
seu dever e depois voltou para os EUA, mas, mesmo nos anos setenta,
montes de pessoas não queriam ser vizinhas de um casal inter-racial. Acho
que foi por isso que eles acabaram por aceitar a transferência para Itália e
por ficar décadas na Europa. E, como se isso não fosse suficiente, a única
filha que tiveram morreu e acabaram a ter de me criar.
– Uau – disse ela, espantada. – Isso é duro, aquilo por que ele passou. –
Hesitou um pouco. – Isso deixou-o…
– Rancoroso? – terminou Tanner por ela. Pareceu pensar um pouco. –
Tenho a certeza de que sentiria algum rancor, no fundo, mas nunca mo
transmitiu. E ainda que possa ser difícil concebê-lo, ele adorava fazer parte
do exército. Contava-me que, depois de ter deixado o Alabama, o exército
se tinha tornado a sua família. Era um patriota e acreditava na promessa do
que a América poderia ser. Mas não disfarçava as dificuldades da sua
infância, lembrando-me com frequência que eu tinha muita sorte por ter
nascido naquela altura, coisa a que eu só dei valor mais tarde. E tinha as
suas regras, claro… no mundo do meu avô, havia o bem e o mal, o certo e o
errado, e não havia nada que eu receasse mais do que desapontá-lo, apesar
de ele nunca me ter batido. – Tanner fitou o copo, pensativo. Kaitlyn ficou
em silêncio, à espera de que ele continuasse. – Eu tive tudo o que precisava
enquanto crescia, nunca senti inveja dos meus amigos ou de outros miúdos
da escola. E ele tratava a minha avó com respeito e carinho, mas era de
poucas palavras. Parecia que a única altura em que se sentia confortável a
falar comigo era quando arranjávamos motores juntos. Só quando me tornei
adulto é que comecei a perguntar-me se ter perdido a filha poderia ter algo
que ver com a distância entre nós. Talvez ele visse a filha… e os erros que
ela tinha cometido… sempre que olhava para mim. Na verdade, não sei.
– Isso alguma vez mudou?
– Um pouco, mais para o final. Ambos se tornaram mais conversadores,
menos reservados em relação ao passado. Mas, por essa altura, já se tinham
reformado e ido morar para Pensacola, e eu só os via umas duas ou três
vezes por ano. À semelhança da minha avó, o meu avô preocupava-se
comigo, sobretudo por eu partir tantas vezes em missões.
– E a tua avó? Como é que ela era?
Tanner esboçou um sorriso melancólico.
– Calorosa, mas tão firme nas suas crenças como o meu avô. E teimosa,
também, como se pode imaginar, dado que desafiou a família e até ameaças
de violência para casar com o meu avô. Tal como ele, ela tinha ideias claras
acerca do certo e do errado, do justo e do injusto. – A expressão dele
animou-se. – Também era algo excêntrica, sobretudo à medida que foi
envelhecendo. Era louca por canários. Deve ter tido uns seis ou sete ao
longo dos anos e, sempre que um dos pássaros começava a cantar, ela
mandava-me calar. «Ouve-o só a cantar o que lhe vai na alma»,
maravilhava-se ela, e, se eu estivesse sentado ao pé dela, dava-me a mão e
obrigava-me a ficar ali a ouvir. Com o passar do tempo, passei a adorar
aqueles momentos.
Kaitlyn lançou um olhar de relance à janela salpicada de chuva, tentando
imaginar um Tanner jovem feito cativo pela avó obstinada. Árvores
escurecidas ladeavam a autoestrada, ocasionalmente contornadas pelas
luzes de alguma quinta isolada. Os relâmpagos iam faiscando como luzes
estroboscópicas. Já se encontravam a norte de Asheboro e, com mais um
gole de champanhe, ela tentou imaginar o horror que os avós dele deveriam
ter sentido ao perderem a única filha. Kaitlyn sabia que nunca voltaria a ser
a mesma se algo acontecesse a Casey ou a Mitch. Tampouco conseguia
imaginar as emoções contraditórias dos avós de Tanner ao terem nos braços
o recém-nascido depois da morte da filha.
Contudo, a história pessoal complicada e fascinante de Tanner parecia
fazer sentido, pensou ela. Também nesse aspeto, ele era diferente de
qualquer homem que ela tivesse conhecido até então.
– Já estás preparado para me dizer onde vamos? – perguntou ela, a
observá-lo por cima do rebordo da flute de champanhe.
– Vamos para Sophia.
Ela inclinou a cabeça, intrigada. Sophia era uma vila pequena, teria umas
cinco ou seis mil pessoas.
– Há algum restaurante em Sophia, sequer?
– Vais ver. Mas, para que saibas, também tenho um plano alternativo.
Para o caso de decidires que queres fazer outra coisa.
– Tens noção de que não faço ideia do que estás a falar, não tens?
Ele esboçou um sorriso conspiratório sem responder e ela olhou de novo
pela janela. A bebericar o champanhe, de certa forma sentia-se mais leve.
Passado algum tempo, a limusina começou a abrandar, antes de sair da
autoestrada. No entanto, em vez de se dirigir para o centro da cidade, o
motorista virou de novo, para uma serpenteante estrada rural, com uma
elevação que ia aumentando a pouco e pouco pelas montanhas baixas da
Uwharrie. Parecia que chovia ainda com mais intensidade e, ao ver outro
relâmpago ao longe, Kaitlyn teve a impressão de que o tempo conspirava
com Tanner para tornar a noite o mais excitante possível.
Havia algo agridoce na natureza necessariamente reduzida do tempo que
passariam juntos, pensou ela. Tanner não tardaria a estar a meio mundo de
distância, mas, se os últimos dias lhe haviam mostrado algo, era que a sua
vida estava incompleta, e que isso já era assim há bastante tempo.
Apercebeu-se de que lhe faltava uma vida com uma ligação – não apenas
romântica ou física, mas com o tipo de espontaneidade e expectativa
partilhada que brotava de uma rede mais alargada de relações. Quanto
tempo se teria passado desde que se esquecera de que a vida era tanto para
ser aproveitada como para cumprir obrigações? Ou, como Casey o dissera,
há quanto tempo se esquecera de como poderia permitir-se ser feliz?
Demasiado tempo, concluiu, custando-lhe lembrar-se sequer da última
vez que se encontrara com amigos. Dado que estes, na maioria, eram casais,
ela dissera a si mesma que não queria fazer de pau de cabeleira. Mas, por
recusar os convites dos outros, aos poucos os convites foram deixando de
chegar. E o resultado era que – para além de um ou outro encontro ranhoso
– as amizades tinham definhado, bem como quaisquer interesses para além
do trabalho e das funções de mãe.
A observar discretamente o perfil impressionante e as pernas compridas
de Tanner, ficou satisfeita por ter decidido juntar-se a ele naquela noite. Pela
primeira vez desde sempre, estava a lançar a cautela às urtigas, e não podia
negar a emoção erótica que sentia ao imaginar o que poderia vir a acontecer
entre eles. Talvez fosse o facto de ele ir partir o que dava àquele encontro
um aliciante tom proibido. Nunca se teria imaginado a embarcar em algo
assim, mas dava por si invulgarmente despreocupada. Porque não?,
perguntava a si mesma.
Tanner parecia adivinhar-lhe os pensamentos, correspondendo-lhe ao
olhar e erguendo o copo. Pouco depois, a limusina começou a abrandar
antes de virar para um acesso estreito entre duas colunas baixas de pedra.
Não havia ali sinal algum de um restaurante, e Kaitlyn semicerrou os olhos
para tentar ver pelo para-brisas. Para além dos limpa-para-brisas em
movimento constante, o acesso ia-se tornando mais íngreme à medida que
curvava. Por fim, o carro alugado de Tanner apareceu, estacionado em
frente a uma enorme casa de montanha. Tratava-se de uma estrutura
imponente de madeira e pedra, com dois grandes alpendres que
contornavam a casa e davam para o que ela calculava que seria um
desfiladeiro. As luzes do interior espelhavam-se por grandes janelas e uma
larga escadaria de laje levava ao que parecia ser a porta principal.
– Uma casa? – perguntou ela, confusa.
– A vista é linda – comentou ele –, mas, infelizmente, estando tão escuro,
não sei quanto conseguiremos ver. E, ao mesmo tempo, se preferires não
passar a noite aqui, fiz uma reserva oficial noutro sítio. Em Greensboro,
num restaurante chamado Undercurrent.
Ela franziu o sobrolho.
– Que motivo teria para ir embora daqui?
– Eu não quis parecer presunçoso – disse ele. – Não me conheces assim
há tanto tempo, e lá dentro seremos só nós os dois.
Ela pensou um pouco.
– O motorista vai ficar aqui, certo?
– Vai ficar aqui à frente o tempo todo.
Ela sorriu, impressionada com o cuidado dele.
– Por mim, tudo bem.
Tanner indicou ao motorista que se apeariam ali e, pouco depois, este
saiu, aproximando-se da porta de trás com um chapéu de chuva. Enquanto
ela saía, Tanner deslizou pelo assento, com o seu próprio chapéu de chuva
na mão.
– Vá andando com a Kaitlyn – disse ele ao motorista. – Eu sigo-vos.
Protegida pelo chapéu de chuva largo, Kaitlyn subiu os degraus até à
entrada, com Tanner poucos passos atrás de si. Então, ele trocou de lugar
com o motorista e, quando ficaram sozinhos, destrancou a porta.
– Faz favor – disse ele, seguindo-a para o vestíbulo.
Kaitlyn pousou a mala na pequena consola mesmo ao lado da porta e
começou a observar lentamente a casa, que era ainda mais imponente do
que parecia vista de fora. O teto abobadado tinha vigas expostas e um lustre
majestoso feito com armações de veado. Outra parede era composta por
janelas que iam do chão ao teto, ao passo que a parede voltada para a porta
era dominada por uma enorme lareira de pedra. O pavimento era de ripas
largas de pinho, com a cor de velhas pipas de vinho, e estava parcialmente
coberto por um tapete branco felpudo; decorados com almofadas coloridas,
sofás e cadeiras de aspeto confortável emolduravam a sala espaçosa. Uns
candeeiros de mesa art déco com campânulas de vidro trabalhado emitiam
uma luz quente.
– Isto é incrível – arquejou ela. – Mas como foi que o conseguiste?
– Entrei em contacto com um agente imobiliário local que conhecia a
dona desta propriedade. Por norma, o prazo mínimo de arrendamento é de
um mês, mas acho que, quando soube que eu estava a planear um encontro
especial, abriu uma exceção – explicou ele. – Depois de eu vir ver a casa,
não consegui resistir, e chegámos a acordo. – Encolheu os olhos. – Não te
importas que cancele a outra reserva para jantar e acenda a lareira?
– Parece-me uma boa ideia.
Distraidamente, ouviu-o fazer o telefonema antes de o ver atravessar a
sala até à lareira. A lenha já estava empilhada lá dentro, com papel e
acendalhas por baixo, e Kaitlyn deambulou até uma cozinha aberta com o
dobro do tamanho da sua e eletrodomésticos reluzentes embutidos nos
armários. Ao lado ficava a sala de jantar formal, com individuais para duas
pessoas e candelabros de cristal. Para lá das janelas da sala de jantar, os
relâmpagos continuavam a surgir, congelando os pormenores arquitetónicos
à sua volta em clarões periódicos. Do outro lado da sala, viu Tanner a atear
o fogo.
– Vais cozinhar para mim? – perguntou.
Ele abanou a cabeça e levantou-se.
– Não. Como não sou grande cozinheiro, encomendei a comida a um
chef do restaurante onde tinha feito a reserva alternativa. Está tudo no
frigorífico, só tenho de o aquecer.
– E posso perguntar o que vamos comer?
– Cogumelos recheados com caranguejo como entrada, salada e bife
Wellington ou frango com mostarda de Dijon. Não sabia qual dos pratos ias
preferir, pelo que lhe pedi que preparasse os dois.
– E não há uma opção de peixe?
Ao ver a expressão desanimada dele, ela riu-se.
– Estou a brincar. Soa tudo maravilhoso. Há algum sítio onde eu possa
pendurar o casaco?
– Eu ajudo-te.
Passando para trás dela, tirou-lhe o casaco, e a sua mão rasou ao de leve
na pele do braço de Kaitlyn provocando-lhe uma sensação elétrica.
Enquanto pendurava o casaco no armário perto da porta principal,
perguntou-lhe:
– Queres um copo de vinho antes do jantar? Tenho tinto e branco.
Porque não?, tornou ela a pensar, a sentir uma excitação oculta.
– Experimentemos o tinto.
Kaitlyn avançou para as janelas da sala de estar. O céu continuava a
relampejar, revelando por instantes as montanhas cobertas de árvores para
lá do desfiladeiro escurecido, como que em alto contraste. Ela não via
outras casas, nem quaisquer outras luzes, o que a fazia sentir como se eles
os dois fossem as últimas pessoas à face da Terra. Atrás de si, ouviu Tanner
a aproximar-se.
– Foi o chef que escolheu o vinho – disse ele, oferecendo-lhe um copo.
Ele ficou ao lado dela, perto, mas não tanto que se tocassem. Ela ouviu
um estalido e, pelo canto do olho, viu fagulhas a saltar da lareira. Ao provar
o vinho, este deixou-lhe notas de cereja e violeta na boca.
– Hum. Delicioso.
– Queres que comece a aquecer o jantar? Ou preferes esperar um pouco?
– Pode esperar uns minutos, não achas? Vamos desfrutar da lareira e da
tempestade durante algum tempo.
Sentaram-se no sofá, voltados para a lareira, e Tanner tirou o iPhone do
bolso, para programar descontraidamente algo numa aplicação. Pouco
depois, ela ouviu música a sair das colunas.
Durante algum tempo, nenhum deles disse o que quer que fosse. Em vez
disso, saborearam o vinho e observaram absortamente as chamas na lareira.
Lá fora, a tempestade começou a intensificar-se, com a chuva a formar
pequenos veios nas vidraças. Depois de um clarão de luz, Kaitlyn ouviu um
trovão bem forte. Sentia Tanner a observá-la sub-repticiamente, o que a fez
sorrir.
– Isto é quase como estar de férias – murmurou ela. – A minha vida real
não me deixa ter noites assim.
– Mas aprovas?
– É um sonho – disse ela, num tom quase reverente. Olhando para ele,
via o fogo refletido nas brasas douradas dos olhos dele.
Fascinada, sentiu Tanner a levar a mão à sua.
No outro lado da sala, ouviu o toque distante de um telemóvel. Tanner
franziu o sobrolho por causa da distração e só quando tornou a tocar é que
Kaitlyn se apercebeu de que o som vinha de perto da porta, onde ela tinha
deixado a mala.
Casey.
– Acho que é o teu telemóvel – disse Tanner.
Ela fingiu-se confusa e pousou o copo de vinho na mesa de centro antes
de se levantar do sofá. Foi rapidamente até ao vestíbulo e pegou no
telemóvel, tentando recuperar a compostura enquanto atendia a chamada.
– Entããão… Como é que isso vai? – A voz de Casey soava cúmplice do
outro lado. Estava claramente a desfrutar da tarefa de que fora incumbida.
– Ah, olá, Casey – disse Kaitlyn, obrigando-se a soar o mais
descontraída possível. – Que se passa?
Lançou um olhar a Tanner, como que a pedir-lhe desculpa, certa de que
ele ouvira o nome da filha.
– Queres que te diga que o Mitch está doente?
Kaitlyn hesitou, sabendo que era a sua última oportunidade para travar a
coisa antes que esta ganhasse ímpeto próprio; nesse mesmo instante, tornou
a dar-se conta de que estava preparada. Queria correr mais riscos; queria
sentir-se atraente e desejada. Vendo Tanner diante da lareira, soube que o
queria, e que ele a queria a si.
– Estou bem – respondeu.
– Tens a certeza? – insistiu Casey. – Porque pela tua voz parece que estás
a ficar sem pé.
– Sim, tenho a certeza.
Casey nada disse por um instante.
– Bem, então está bem. Confio em ti, mas tens de me dar uma razão para
ter ligado. Finge que estou a fazer bolachas e que preciso de saber onde está
o açúcar mascavado.
Kaitlyn sorriu… era mesmo típico de Casey ter tudo planeado.
– Deve haver um pacote de açúcar mascavado na dispensa – anunciou. –
Está na prateleira de cima, ao pé do arroz.
– Pois, pois – disse Casey, claramente divertida. – Ele estava muito giro
assim todo bem-vestido, não estava? Mas vá, diz-me lá onde é que encontro
a receita.
Kaitlyn fechou os olhos, a tentar concentrar-se.
– A receita deve estar na gaveta ao lado do lava-loiça. E dá um beijo de
boa noite ao Mitch por mim, sim?
– Por falar em beijos… – começou Casey, mas Kaitlyn desligou a
chamada. Virando-se, viu Tanner levantar-se do sofá e esticar-se, com
movimentos felinos e deliberados.
– Desculpa lá – balbuciou ela. – Miúdos.
Iluminado pela lareira, ele tinha um ar enigmático enquanto ela se
aproximava. Quando ficou suficientemente perto, estendeu a mão para a
dela e puxou-a suavemente para si. Ela sentiu o calor do corpo dele
enquanto se entreolhavam. Depois, como que em câmara lenta, ele inclinou
a cabeça e passou os dedos pelos dela, com as respirações de ambos a
misturarem-se numa exploração fascinante. Quando as bocas finalmente se
uniram, uma torrente de calor percorreu-a, com todas as terminações
nervosas a despertar. Ao separarem-se, o sorriso lento dele permitiu-lhe
sentir o seu desejo.
– Desculpa, mas não consegui resistir – disse ele, ainda a dar-lhe a mão,
acariciando-a com um langor provocante. – Estás tão encantadora que não
consegui esperar mais.
Ela sorriu, tentada a beijá-lo de novo, enquanto outra parte de si queria
prolongar a expectativa do que aí viria.
– Vais odiar-me se sugerir que nos sentemos um pouco mais? –
perguntou ela, com a voz a soar-lhe estranhamente rouca. – Talvez
pudéssemos acabar o nosso vinho?
– Claro que não – respondeu ele, levando-a de volta para o sofá, onde ela
estendeu a mão para o seu copo de vinho e ele fez o mesmo.
A fitar a fogueira, Kaitlyn tomou um trago e deixou que o sabor subtil
lhe perdurasse na boca. Por fim, lançou-lhe um olhar de esguelha.
– Alguma vez estiveste apaixonado? – perguntou-lhe.
Tanner não respondeu logo.
– Acho que sim – disse por fim.
– Não tens a certeza?
– Já foi há muito tempo – explicou. – Só tinha vinte anos e, na altura,
parecia-me ser isso mesmo. Mas agora, quando penso nisso, não tenho a
certeza de que soubesse o que era o verdadeiro amor. Tenho praticamente a
certeza de que, a longo prazo, não teríamos sido a pessoa certa um para o
outro.
– Porque dizes isso?
– Acho que nem sabia quem era na altura. Ainda um ano antes era
adolescente, e era a primeira vez que vivia nos EUA. Acho que é possível
que tivéssemos envelhecido juntos, mas o mais provável é que nos
tivéssemos separado. Agora, vejo que não tínhamos muito em comum, para
além da atração mútua.
– E não te apaixonaste desde então?
– Também não tenho bem a certeza. Quando tinha vinte e muitos anos,
conheci a Janice. Apesar de só termos namorado uns meses, achei que
talvez ela fosse a tal. Até comecei a ver anéis de noivado. Mas nessa altura
eu tinha missões todos os anos e, quando ela soube que me preparava para
embarcar de novo, acho que reconheceu que a vida da mulher de um militar
não era o que queria. Concordámos que era melhor fazermos uma pausa na
relação e, quando voltei, ela já andava com outra pessoa. E, para o caso de
quereres saber, a resposta é negativa.
– Como?
– Para o caso de estares a perguntar-te se mantive o contacto com
qualquer uma delas.
Kaitlyn fez uma careta.
– Eu não ia perguntar-te isso.
– Está bem. – Tanner riu-se. – Mas às vezes as pessoas querem saber.
Ela observou-o a terminar o vinho.
– E foi só isso?
– Depois da Janice, saí com algumas pessoas, mas nada de muito sério.
Depois fui para os Camarões, para a Costa do Marfim e para o Haiti, e
nenhum desses lugares era propício a relações a longo prazo. Não conheci
ninguém por quem me interessasse realmente até estar no Havai. Aí conheci
uma pessoa, e saímos durante uns meses, mas não me apaixonei. A bem da
verdade, ela também não me amava. Foi mais uma coisa da covid, algo que
aconteceu sobretudo porque o mundo estava encerrado e ela vivia
convenientemente mesmo ao fundo da rua.
– Espero que nunca lhe tenhas dito isso.
– Foi ela que mo disse, na verdade – contrapôs ele.
Ela fez um esgar.
– Au.
– Na altura magoou-me, mas, depois de nos separarmos, apercebi-me de
que ela tinha razão.
Kaitlyn procurou sinais de arrependimento, mas não viu nenhuns. Em
vez disso, Tanner aproximou-se mais e tornou a pegar-lhe na mão. Levou-a
aos lábios e beijou-a, e depois baixou-a, com o polegar a descrever
pequenos círculos na pele dela. Instou-a a fitar-lhe os olhos.
– Sabes o que estou a pensar agora?
– Não faço ideia.
– Estava a pensar que estou mesmo contente por nenhuma dessas
relações ter funcionado. Se tivessem, eu não estaria aqui contigo.
O tom franco da voz dele fê-la conter a respiração e ela observou Tanner
pousar o copo de vinho vazio na mesa de centro. Erguendo a mão, ele
percorreu-lhe o rosto com um dedo antes de se aproximar mais.
Começou por beijá-la suavemente, quase como que a pedir permissão, e
depois com uma paixão crescente que correspondia à dela. Com os lábios
dele nos seus, Kaitlyn deu por si a ceder ao seu próprio desejo e, quando as
suas línguas finalmente se tocaram, ela gemeu, entregando-se ao momento.
A mão dele estava na face dela e logo se emaranhou no cabelo; e, à medida
que a beijava ainda mais profundamente, ela sentiu toda a tensão do seu
corpo a desfazer-se, uma descontração sensual que quase tinha esquecido
que existia.
Ele mordiscou-lhe os lábios e a língua antes de descer a boca até ao
pescoço dela. Inclinando a cabeça para trás com um suspiro, Kaitlyn
desfrutou da sensação maravilhosa.
Deixou que ele a puxasse lentamente para se levantar; como num transe,
sentiu-o tirar-lhe o copo de vinho e pousá-lo na mesa de centro ao lado do
dele. Tanner acercou-se mais então, passou os braços à volta dela. Quando
as suas bocas tornaram a unir-se, ela sentiu a ânsia crescente dele; as mãos
dele passaram das costas para os flancos dela e deslizaram pelo tecido do
vestido. Os seios dela comprimiam-se contra o peito dele, com um calor
que se espraiava pelo seu corpo como uma onda, enquanto os seus próprios
braços envolviam o pescoço dele. Ele beijou-lhe a comissura dos lábios e
depois a face, enlouquecendo-a com a sensação alternada da barba a crescer
a arranhar-lhe o rosto e da língua húmida enquanto ele passava de um lado
para o outro.
Kaitlyn fechou os olhos quando os dedos dele lhe procuraram o fecho-
éclair do vestido; ela sentia a impaciência de ambos quando o fecho
começou a descer lentamente. De súbito, o vestido soltou-se e a boca dele
regressou à dela, com uma intensidade e uma excitação que alimentavam as
dela.
Tanner despiu-lhe uma manga e depois a outra antes de lhe baixar
lentamente o vestido, fazendo-o descer pela cintura e pelas ancas, até que a
peça caiu amarrotada no chão. Era a vez dela, e Kaitlyn sentia a pele a arder
enquanto lhe afastava o casaco dos ombros. Continuaram a beijar-se à
medida que ela lhe desabotoava a camisa, e então ficaram juntos, pele
contra pele, com os corpos aquecidos a inflamar-se um ao outro. Ouviu-o
gemer de prazer enquanto se acariciavam, os seios dela já livres do sutiã
enquanto ela passava os dedos pelo peito e pelo ventre dele. Tanner ajudou-
a a desafivelar o cinto e ela levou a mão ao botão das calças, para lhas tirar.
Então, finalmente, sentiu-o a pegar-lhe na mão e a puxá-la delicadamente
para a levar para o quarto.
Embora ela visse a carência urgente no olhar dele, Tanner não se
apressou. Em vez disso, quando entraram, abraçou-a e enterrou a cara na
curva do pescoço dela, o que lhe provocou ondas de prazer que se
espalharam por todo o seu corpo. Ao abrir os olhos por um instante, ela teve
a sensação de se ver a partir do outro lado da sala, e registou a cena: a
grande cama de colunas, o lustre, a parede de janelas fustigadas pela chuva
e iluminadas por um céu trovejante; o abrigo do abraço arrebatado dele.
Perdeu qualquer noção do tempo enquanto se beijavam e abraçavam,
mas, quando um trovão ecoou, Tanner começou a tirar-lhe as cuecas. Pouco
depois, completamente nus, ele levou-a para a cama.

IX

Depois, ficaram deitados um ao lado do outro, e Tanner tinha um braço à


volta dela. Ela percorria-lhe o tronco com os dedos, detendo-se em
cicatrizes que não sabia que existiam. Havia umas pequenas nos dois
ombros, outras maiores no peito e nas costelas, e uma cicatriz irregular na
cintura que fazia lembrar um raio. Quando lhe perguntou, ele descreveu
resumidamente como ficara com cada uma. Um disparo que por sorte não
fez mais estragos, em relação a uma das feridas dos ombros. Um acidente
de helicóptero era o motivo da pior, na cintura. Como era evidente que
preferia não falar daquilo, ela não insistiu, mas isso serviu para a recordar
que, por mais íntimos que se tivessem tornado, grande parte dele continuava
a ser um mistério.
Depois de terem feito amor pela segunda vez, ficaram deitados com os
rostos tão próximos um do outro que as pestanas compridas de Tanner
quase rasavam as dela. Kaitlyn não se lembrava de alguma vez se ter
sentido tão completa com alguém, como se o seu corpo terminasse onde o
dele começava, com os membros enredados e as terminações nervosas a
latejar como se fossem uma única entidade.
– Isto fazia parte do teu plano? – sussurrou ela, a observar-lhe as facetas
verdes e douradas das íris dele. – Foi por isto que alugaste uma casa, em
vez de irmos a um restaurante?
– Bem… – disse ele, num tom sugestivo que a fez rir.
– Sabes o que quero fazer agora? – perguntou ela.
Quando ele arqueou uma sobrancelha, ela revirou os olhos.
– Isso não. Já fizemos isso duas vezes – disse Kaitlyn. – Preciso de
comer qualquer coisa.
– E se eu começasse a aquecer o jantar?
– Esperava que dissesses isso. E vou precisar da tua ajuda para fechar o
vestido.
– Não tens de o pôr de novo.
– Não vou jantar nua! – protestou ela. – Isso seria esquisito.
Depois de se vestir, Kaitlyn foi buscar a sua mala à consola da entrada e
retocou o cabelo e a maquilhagem, não tanto por causa de Tanner, mas mais
por Casey e Mitch. Ou, na verdade, só por Casey. Mitch já estaria a dormir
quando ela chegasse a casa, mas não duvidava que Casey continuaria
acordada, a postos para dar por quaisquer sinais reveladores.
Quando se juntou a Tanner na cozinha, ele estava a servir mais dois
copos de vinho. Passou-lhe um e ela olhou em redor.
– O que posso fazer para ajudar? – perguntou ela.
– Acho que já tratei de tudo – disse ele. – Meti os cogumelos no forno e
as saladas estão prontas para ir para a mesa.
Mantiveram-se em silêncio enquanto ele acendia as velas e baixava a
intensidade das luzes na sala de jantar. Depois, de volta à cozinha, ele pôs
uma luva, tirou do forno a travessa dos cogumelos e pousou-a na bancada.
Tirou os pratos principais do frigorífico, passando-os para o forno. Juntos,
levaram os cogumelos e as saladas para a mesa. Depois de se sentarem,
Tanner serviu os cogumelos. Em seguida, levou a mão ao seu copo.
– Acabei de me aperceber que me esqueci de propor um brinde.
Provavelmente devia tê-lo feito antes, com o champanhe.
– Eu perdoo-te – brincou ela. – Agora só quero comer.
E, cortando um cogumelo, provou a comida.
– Está bom? – perguntou ele, a observar-lhe o rosto.
– Delicioso.
Kaitlyn levou mais comida à boca, subitamente esfomeada.
Ele mexeu a salada e serviu uma dose generosa a cada um.
– Como é que esteve a Casey hoje? – perguntou ele. – Espero que não
tenha destruído mais carros no seu dia de folga?
Kaitlyn riu-se.
– Se o fez, não me contou. Mas ajudou-me a arranjar o cabelo e a
maquilhar-me, na verdade.
– Isso foi simpático.
– Foi – reconheceu ela. Espetou o garfo num tomate da salada. – Acho
que vou ter de lhe arranjar um carro.
– Para que ela não vá viver com o pai?
– Em parte por isso, mas a verdade é que ela precisa. Para quando eu
estou no trabalho ou a fazer as minhas consultas ao domicílio e ela está em
casa com o Mitch. Se houver uma emergência, ela não tem um meio de
transporte.
– Já lhe disseste isso?
– Não. Porque, assim que lhe disser, não vai falar de outra coisa até o
carro aparecer.
– E o Mitch? Como é que ele está?
– Agora está a jantar piza e a ver televisão com a irmã. A vida não podia
correr-lhe melhor, basicamente.
Tanner sorriu e, ao longo da refeição, a conversa continuou descontraída.
Ela contou-lhe os planos que Casey tinha para continuar os estudos e
partilhou mais histórias sobre os seus pais e irmãos. Enquanto iam
comendo, Kaitlyn, fascinada, ouviu-o descrever as suas viagens por terras
remotas e os amigos que fora conhecendo ao longo dos anos.
De vez em quando, Kaitlyn dava por si a imaginar mais noites com
Tanner, tal como aquela. Detendo-se, refreava tais pensamentos dizendo a si
mesma que tinha de controlar os sentimentos. Ter um caso ligeiro era uma
coisa, apaixonar-se por ele já seria outra.
Despedir-se já ia ser suficientemente difícil assim.

Tanner levou as tartes de morango para a mesa e pousou uma à frente


dela. Embora Kaitlyn já tivesse comido mais do que a conta, decidiu que
umas quantas dentadas não haveriam de a matar. Não resolvera que a vida
era para ser vivida?
– Antes que me esqueça – disse ele, a cortar a sua própria tarte –, devia
contar-te a boa notícia.
Ela desviou o olhar do seu prato, intrigada.
– Não estava à espera disso.
– Há bocado estava distraído – disse ele, com uma piscadela de olho. –
As peças do meu carro vão demorar umas duas ou três semanas a chegar.
Na realidade, isso provavelmente quererá dizer três a quatro semanas, pelo
que parece que vou passar mais tempo em Asheboro do que tinha planeado.
– E o que vais fazer?
– Ainda não tenho a certeza, mas sabe-se lá? Sou capaz de conhecer
alguém especial.
– Boa sorte – disse ela, entrando na brincadeira.
– Também há mais umas quantas famílias que quero visitar antes de ir
para os Camarões.
– Vivem aqui perto?
– Estão na Virgínia, na Pensilvânia e no Dakota do Sul.
– Então… vais fazer-te à estrada outra vez?
– Adoraria ver o Mount Rushmore, e talvez dar uma volta pelo Parque
Nacional das Badlands. Sempre quis ver as Black Hills. Ouvi dizer que são
espetaculares – comentou, como se já estivesse a mapear um itinerário.
Kaitlyn ficou em silêncio. A existência de uma alternativa – ele podia,
por exemplo, voltar antes para Asheboro para a ver – surgiu de imediato a
sua mente, mas refreou-se e não a disse.
– Quanto tempo achas que vais ficar fora?
Ele levou o garfo com um morango glaceado à boca.
– Não sei. Umas semanas, talvez mais? Também depende dos
calendários das outras pessoas, não só do meu.
Embora tudo isso fizesse sentido, ela não conseguia evitar sentir-se um
pouco desapontada por o facto de passar três semanas longe dela, das nove
ou dez que lhe restavam nos Estados Unidos, não parecesse afetá-lo. Ainda
assim, recordou a si mesma que o trabalho o levaria para o estrangeiro em
breve, fosse como fosse, pelo que provavelmente até seria melhor não
passarem tanto tempo juntos.
– Tens falado com o teu amigo, nos últimos tempos? O que te arranjou o
trabalho no IRC? – Kaitlyn ia mexendo o garfo, fazendo carreiros na
gelatina da tarte.
– Com o Vince? Não, há semanas que não falo com ele.
– Em que projetos é que o IRC vai trabalhar nos Camarões? Acho que
não me disseste.
– Sei que trabalham muito com refugiados e assistência em situações de
crise, mas não estou a par dos pormenores.
– Como é que podes não estar? – espantou-se Kaitlyn.
– Só sei que vou tratar da segurança – disse ele, enquanto acabava a
sobremesa. Limpou a boca e afastou o prato. – Tenho a certeza de que
aprenderei tudo o que for necessário quando o meu trabalho começar, em
setembro.
Ela franziu o sobrolho e hesitou antes de dizer:
– Julgava que começavas em junho.
– O voo para Yaoundé é em junho, mas o meu emprego só começa em
setembro.
– Demora-se assim tanto tempo a encontrar uma casa? – perguntou ela.
– Não. Vou viver num alojamento temporário. O Vince prometeu que
tratava disso.
– Então não percebo. Porque é que vais tão cedo? – insistiu Kaitlyn, cada
vez mais confusa. – Se só começas a trabalhar no outono?
– Não tenho de ir tão cedo, realmente – respondeu Tanner com uma
expressão desorientada. – Mas acho que te tinha dito que queria visitar uns
quantos parques nacionais, e será mais fácil fazê-lo antes de voltar à labuta
diária. E julgo que também comentei que adorei jogar futebol lá.
Ela esboçou um sorriso frágil, a tentar silenciar a voz mental que lhe
sussurrava: Ele podia ficar em Asheboro até ao final do verão, se quisesse
mesmo.
– Aposto que vai ser estranho – comentou, sem o olhar nos olhos. –
Voltar ao trabalho, quero dizer, depois de teres tirado tanto tempo.
– Provavelmente – admitiu ele. – O Vince queria que eu assinasse um
contrato de dois anos, mas eu disse-lhe que preferia começar com um ano e
ver como a coisa corre.
– E se não te deres bem?
– Não faço ideia – disse ele, recostando-se na cadeira e passando a mão
pelo cabelo. – Tanto quanto sei, até posso acabar a reformar-me outra vez.
Não é por causa do ordenado que volto a trabalhar.
Ela riu-se, mas, quando viu a expressão séria dele, apercebeu-se de que
não estava a brincar.
– O que queres dizer? – perguntou.
– Não preciso de trabalhar – foi a resposta simples. – Podia reformar-me
agora, se quisesse.
Ela fitou-o.
– Como? Os teus avós deixaram-te uma herança surpresa?
– Nada disso – negou ele, com uma risada.
– Então o exército e o trabalho governamental devem pagar melhor do
que eu julgava.
– Quem me dera – respondeu Tanner. – Acho que mencionei que fiz
alguns investimentos?
– Sim. – Ela assentiu com a cabeça. – Mas isso é o suficiente para te
reformares?
– É.
– Queres partilhar os teus segredos de investidor? – brincou ela. – Já que
a Casey precisa de um carro e não tarda vai para a universidade?
– Não há segredo nenhum, a sério. Tive sorte, depois fui preguiçoso e
depois voltei a ter sorte.
Ela fitou-o com um olhar sério.
– Tens noção de que estás a ser um pouco esquivo em relação a tudo isto,
não tens?
– Não falo muito disto – respondeu ele. – Os meus avós sabiam, e um
par de amigos próximos também, mas mais ninguém. – Ela observou-o a
levar a mão ao copo de vinho quase vazio. – Quando terminei a escola
secundária, os meus avós abriram-me uma pequena conta de investimentos
– disse ele. – Sugeriram que, quando me alistasse, parte do meu salário
fosse diretamente para investimentos. Por isso, foi o que fiz.
– Eu também faço isso com o meu plano para a reforma – confirmou
Kaitlyn. – Mas podes crer que não rendeu o suficiente para que pudesse
reformar-me já.
– Isso é porque nunca conheceste o Rodney.
– Quem é o Rodney?
– Um amigo dos comandos – explicou ele. – Em 2001, apareceu na
caserna com um iPod. Eu nunca tinha ouvido falar daquilo, mas ele não se
calava, dizia que era a melhor coisa de sempre, e que eu também devia
comprar um. Não o fiz, mas houve uns quantos dos nossos companheiros
que compraram, o que me chamou a atenção. Os iPods não eram baratos, e
não se dava o caso de algum deles ganhar muito. Comecei a reparar que
montes de outras pessoas, gente normal, também andavam a comprá-los.
Por isso, apesar dos avisos cautelosos dos meus avós, passei
impulsivamente todo o dinheiro que tinha para a Apple e configurei a conta
para que comprasse mais ações da empresa a cada salário que recebesse.
– Compraste ações da Apple nessa altura?
– Como te disse, tive sorte. E depois, por preguiça, nunca me dei ao
trabalho de mudar a estratégia de investimento. Entretanto, passei os dez
anos seguintes ou destacado ou a viver em casernas, sem despesas, pelo que
o capital que tinha disponível para investir foi crescendo e, todos os meses,
ia todo para ações da Apple. Depois, em 2007, voltei a ter sorte. O iPhone
saiu e pouco depois o preço das ações disparou. Juntando tudo o que eu
tinha comprado desde que comecei…
– Ficaste rico – disse ela, acabando a frase por ele.
Ele demorou um pouco a responder.
– Sim – admitiu.
– Tipo… rico, rico? Ou só rico?
– Não sei ao certo o que queres dizer, mas tenho mais do que alguma vez
serei capaz de gastar.
Ela fitou-o, com dificuldade em reconciliar o que ele acabava de lhe
contar com tudo o que ela fora ficando a saber acerca dele. Perguntou-se
ociosamente se a relação teria evoluído de outra maneira caso ela soubesse
aquilo desde o início.
– Então… – disse ela devagar –, poderias fazer qualquer coisa? Já que
não tens de trabalhar? Poderias viver em qualquer lugar?
– Acho que sim.
– Estou a ver. – Ela deu-se conta de que não conseguia dizer mais nada.
Tanner virou-se para a observar.
– Há algum problema?
Devolvendo-lhe o olhar, Kaitlyn tentava dar sentido a tudo o que ele
tinha acabado de lhe contar.
Ele não tinha de trabalhar.
Preferia jogar futebol com o amigo a ver onde as coisas entre eles
poderiam chegar.
Poderia ficar em Asheboro.
Esforçou-se por se livrar daqueles pensamentos indesejados, mas era em
vão.
– Acho só estranho – arriscou ela.
– Que parte? – perguntou Tanner, de sobrolho franzido.
Ela levou a mão ao copo de vinho, mas depois tornou a afastá-lo, pois já
não lhe apetecia mais.
– Tenho partido do princípio de que voltavas ao trabalho por motivos
financeiros. E devido a um compromisso com o trabalho que o IRC
desenvolve nos Camarões. Mas não parece que saibas sequer o que vais
fazer lá.
Ao ouvi-la, ele pareceu ficar tanto espantado como melindrado.
– Estou a ficar com a impressão de que estás zangada comigo.
– Não estou zangada – contrapôs ela. E não estava. Zangada era um
adjetivo demasiado forte para descrever o que estava a sentir. Estava
desapontada, certamente, talvez até irritada. Mas a sensação mais
abrangente era de… rejeição. Talvez até de traição. O que era irracional,
tinha noção disso. Ainda antes de terem ido para a cama, ela recordara a si
mesma que aquilo não seria mais do que um caso passageiro, mas, por mais
que desejasse o contrário, apercebera-se de que a revelação dele mudara
tudo.
Se ele quisesse mesmo, poderia ficar e dar continuidade àquela… ao que
quer que fosse aquela coisa entre eles.
No fundo, sabia que estava a ser egoísta, e a precipitar-se quanto ao
ponto em que se encontravam. Não obstante…
Se ele podia ficar, porque não se sentia tentado a fazê-lo? Para que se
dera a todo aquele trabalho – a limusina e o champanhe, o jantar luxuoso
naquela casa na montanha? Só para ir para a cama com ela? E, o que era
mais premente, porque não estaria interessado em passar mais noites assim
consigo?
– Esquece – disse ela, desviando o olhar. – Podemos só esquecer que
perguntei o que quer que fosse? Não interessa.
Tanner pousou as mãos em cima da mesa, com as palmas viradas para
cima. Quando falou, foi numa voz comedida.
– Estás irritada comigo e eu não sei ao certo o que fiz.
– Está tudo bem – disse ela, ciente de que o seu tom não correspondia às
palavras.
Entretanto, as perguntas continuavam a espicaçá-la e, de repente, tornou-
se difícil manter-se sentada. Levantou-se, apanhou algumas migalhas da
mesa com o guardanapo e levou o seu copo de vinho para a cozinha,
juntamente com o prato de sobremesa. Despejou o resto do vinho no lava-
loiça e, sem saber o que fazer com a tarte que deixara, empurrou o prato
para um canto da bancada antes de deitar a mão ao esfregão, como que em
piloto automático, e começar a limpar as superfícies.
Tanner seguiu-a para a cozinha, preocupado.
– O que estás a fazer? – perguntou-lhe num tom delicado.
– A limpar – respondeu ela com um encolher de ombros.
– Eu trato disso depois – garantiu-lhe ele, encostando uma mão hesitante
à cintura dela. – E se nos sentássemos outra vez à lareira?
– Já começa a fazer-se tarde – balbuciou ela, afastando-se.
Passava pouco das nove, coisa de que ambos tinham noção.
– Fala comigo – pediu ele. – Por favor.
Ela passou o esfregão pela bancada uma última vez antes de finalmente o
atirar para o lava-loiça.
– Porque é que eu estou aqui? – perguntou por fim, ao virar-se para o
encarar.
– O que queres dizer? – Os olhos dele, que tinham então um tom verde-
escuro, perscrutavam-lhe o rosto.
– Porque me convidaste a sair contigo? E porque continuaste a convidar-
me depois da primeira vez?
Kaitlyn tinha as costas contra o rebordo do lava-loiça e as mãos na
bancada de um lado e do outro.
Ele fitou-a, confuso.
– Porque és esperta e generosa e interessante e eu queria conhecer-te
melhor.
– Durante umas semanas, queres dizer. – Ela cruzou os braços.
Tanner deu um pequeno passo atrás. Por um instante, nada disse, e
Kaitlyn teve a sensação de que ele estava a tentar juntar as peças daquele
puzzle.
– É isso? – perguntou devagar. – Estás zangada porque me vou embora?
– Dado que ela não respondia, ele continuou: – Kaitlyn, não te parece um
pouco injusto, isso? Desde o início que tenho sido franco contigo acerca dos
meus planos.
Ela fitou-o, frustrada.
– Porque vais para os Camarões?
Ele franziu o sobrolho, confuso.
– O meu emprego… – começou ele.
– O emprego de que não precisas, queres dizer – interrompeu ela.
Tanner ficou a olhar para ela sem entender.
– Preciso de fazer alguma coisa. Não posso limitar-me a andar a vaguear
por aí. Ainda acabo por enlouquecer.
– Não estou a sugerir que não faças nada. Só me pergunto: Porquê os
Camarões?
– Já falámos disto…
– Sim e não – atalhou ela. – Disseste-me que achas que os Camarões são
um país incrível. Mencionaste um par de parques nacionais que querias
visitar e disseste que gostavas de jogar futebol lá com o teu amigo.
Descreveste como era divertido assistir a um jogo num bar apinhado de
gente. Mas sabes de que é que não me falaste? Nem sequer mencionaste de
passagem? As pessoas que ajudas. Nunca te referiste a um sorriso
agradecido de alguém com fome a quem tenhas dado comida, nem as vidas
que tenhas melhorado ao escavares um novo poço ou qualquer coisa do
género.
– Eu trabalho em segurança, não faço essas coisas… – protestou ele.
– Não estás a entender-me. – Ouviu a frustração patente na sua voz e
inspirou profundamente, a tentar refreá-la. – Eu compreendo que garantir a
segurança é importante. Percebo que manter os trabalhadores humanitários
seguros lhes permite que executem o seu trabalho. O que pergunto é porque
é que tu vais voltar. Para além de te dar algo que fazer, qual é a necessidade
específica que te sacia? Para além do puro desfrute?
Ele abriu a boca para responder, mas voltou a fechá-la. E, por fim:
– Nem todos os trabalhos proporcionam um propósito existencial.
– É isso que estou a dizer! – exclamou ela. – Eu compreenderia que
voltasses se fosses o único tipo no mundo capaz de fazer o que tu fazes, ou
se te sentisses compelido a fazer algo bom pelo mundo. Também
compreenderia se precisasses do trabalho para pagares as contas, ou se
estivesses verdadeiramente motivado para ajudar os outros. Mas, quando
somo tudo o que me contaste, sobretudo o facto de mal saberes em que
consistirá o teu trabalho… não entendo. Mas acho que já percebo porque é
que a tua avó estava tão preocupada contigo.
A boca dele retesou-se.
– Não a metas nisto.
Kaitlyn fixou o olhar no dele.
– Então diz-me porque é que queres voltar para os Camarões.
– Tomei a decisão quando a minha avó estava doente, percebes? –
Tanner cruzou os braços. – Ela receava que eu estivesse a perder-me e eu
cheguei a pensar que ela talvez tivesse razão, por isso, quando a proposta
surgiu, aceitei o emprego.
Nada disseram durante um momento tenso. Quando Kaitlyn finalmente
falou, fê-lo numa voz contida.
– Se não tens de trabalhar de todo, poderias trabalhar em qualquer sítio.
Podias ter ficado em Pensacola.
A expressão de Tanner era de desafio.
– Ou em Asheboro, é o que queres dizer?
– Qual é o problema de Asheboro? – contrapôs ela, à defesa apesar de
não querer estar assim. – Tu próprio disseste que gostas de cidades
pequenas. Tu é que disseste que adorarias poder correr na Uwharrie todos
os dias…
– Estás mesmo zangada – disse ele, a perceber ao mesmo tempo que
abanava a cabeça. – Nunca devia ter-te contado…
Ela ergueu as mãos para o silenciar, antes de finalmente deixar cair a
cabeça.
– Acho que estou só a tentar dizer que não és quem eu pensava que eras
– disse ela, num tom abatido. – E a culpa disso é minha, por não te ter dado
ouvidos.
– O que é suposto isso querer dizer?
Ela levantou lentamente o olhar, a sentir-se tola.
– Tu disseste-me que, se perguntasse aos teus amigos, eles haviam de me
dizer que não estás feito para assentar.
– Isso era para ser uma piada.
– Era? – O seu ceticismo era evidente. – O que queres da vida, Tanner?
Andar de um lado para o outro para sempre? – Como ele não respondia, ela
continuou: – Então e nós? Tu sabias que não tinhas de ir embora, mas será
que alguma vez te passou pela cabeça que pudéssemos ser mais do que um
caso passageiro? Que houvesse sequer a mínima possibilidade de algo
mais?
De novo, Tanner nada disse. Kaitlyn desviou o olhar, a tentar ignorar a
humilhação que sentia.
– Para que saibas, eu aceitava a ideia de um caso passageiro quando vim
para aqui esta noite. Tinha-me reconciliado com o facto de as circunstâncias
serem como eram. Mas agora não sei o que pensar. – Quando Tanner
permaneceu calado, ela deu um passo para o contornar, sem querer
corresponder-lhe ao olhar. – Acho que é melhor pedir ao motorista que me
leve a casa. Amanhã de manhã trabalho.
– Kaitlyn… espera…
Ela apressou-se a recolher o casaco e a mala. À porta, ainda pensou se
deveria levar o chapéu de chuva de Tanner, mas para quê? Manter-se seca já
não lhe parecia propriamente uma prioridade.
Tanner deu um passo na direção dela.
– Posso ao menos acompanhar-te até lá fora?
– Não, deixa estar – disse ela.
– Vou voltar a ver-te?
Um sorriso amargo aflorou-lhe aos lábios. Para quê, se estás só a passar
o tempo até poderes jogar futebol nas ruas dos Camarões?
– Tenho os próximos dias muito ocupados – disse ela, mantendo um tom
compenetrado enquanto abria a porta da rua.
– Kaitlyn…
Ela virou-se.
– Eu sei que não tenho de pôr fim às coisas entre nós – disse ela, com
uma clareza que até a surpreendeu –, mas agora vejo que não há razão para
continuar.
O choque nos olhos dele proporcionou-lhe uma sensação breve de
satisfação, que depressa foi substituída pela ideia de que ela era melhor do
que aquilo. Saiu para o alpendre e deixou a porta fechar-se. Ao descer os
degraus, sentiu gotas de chuva caírem-lhe no rosto, ciente de que já se
misturavam com as suas lágrimas.

XI

– Já estás em casa? – Casey saiu da cozinha quando Kaitlyn estava na


entrada da casa, a sacudir a chuva do casaco. – Só te esperava daqui a uma
hora ou duas.
Kaitlyn tinha passado toda a viagem de carro a recompor-se antes de ter
de enfrentar a filha. A tempestade de emoções contraditórias amainara um
pouco, mas sabia que ainda tinha os sentimentos perigosamente à flor da
pele. Respira, disse a si mesma. Independentemente do que possas ser ou
não, continuas a ser uma mãe.
– Sabia que tinha de me levantar cedo para ir trabalhar amanhã –
respondeu ela, esforçando-se ao máximo por parecer indiferente. – Onde
está o Mitch?
– Começou a adormecer assim que o filme acabou, por isso meti-o na
cama. Como é que correu?
Lá estava, pensou Kaitlyn. Uma pergunta complicada, tendo em conta
tudo o que se passara.
– Bem – foi a sua resposta concisa.
Casey escrutinou-a.
– Oh, oh. O que é que ele fez de mal?
– Não fez nada – disse Kaitlyn, num tom neutro. – Partilhámos um jantar
encantador.
– Mas?
– Mas o quê?
– Mas achas que não vais voltar a vê-lo – depreendeu Casey. – É o que
estás a pensar, mesmo que não estejas disposta a dizê-lo em voz alta.
Acertei?
De repente, Kaitlyn sentia-se demasiado exausta para se espantar com a
capacidade que a filha tinha de a perceber.
– Sim – admitiu.
Casey comprimiu os lábios.
– Deixa-me preparar-te uma caneca de chocolate quente.
– Não estou mesmo com vontade de falar, querida – protestou Kaitlyn.
– Não estou a pedir-te que fales – replicou Casey, já a encaminhar-se
para a cozinha. – Só me ofereci para te fazer um chocolate quente. É a
bebida de eleição quando os homens se comportam como idiotas.
Kaitlyn observou-a a encher um pequeno tacho com leite e a pousá-lo
num dos bicos do fogão antes de tirar o cacau do armário. Quando o leite
ficou quente, ela misturou o cacau, acrescentou-lhe uns quantos
marshmallows em miniatura e levou a caneca à mãe.
– Independentemente do que tenha acontecido, lembra-te só de que estou
do teu lado – disse ela, parecendo-se incrivelmente com a mãe de Kaitlyn. –
Agora vira-te e deixa-me ajudar-te a abrir o fecho do vestido.
Kaitlyn virou-se obedientemente e sentiu a filha a puxar-lhe o fecho,
deixando o vestido mais lasso. Depois, espantando-a, Casey deu-lhe um
beijo no rosto.
– Vais ficar bem, mãe.
E saiu da cozinha, deixando-a a refletir que fora abençoada pelos filhos
que tinha. Bem… pelo menos durante a maior parte do tempo.
Bebericou metade do chocolate quente antes de subir as escadas para o
quarto. Ao fechar a porta, viu-se ao espelho e o reflexo levou-lhe
subitamente à mente os acontecimentos da noite. Arquejou e ficou com
lágrimas nos olhos como se lhe tivessem dado uma pancada a meio do
peito. Apertou a cana do nariz para não chorar.
Sou uma mulher adulta, disse a si mesma.
Obrigou-se a inspirar profundamente. Eu sempre soube que ele se ia
embora.
Endireitou os ombros e virou costas ao espelho. Nada mudou…
Só que tinha mudado.
Reparou que as mãos lhe tremiam enquanto despia o vestido e lavava a
cara. Lentamente, vestiu o pijama e meteu-se na cama. Convencida de que o
sono responderia à sua profunda exaustão assim que apagasse a luz, ela em
vez disso deu por si a fitar o teto e a rever as memórias da noite que lhe
inundavam a mente. A expectativa que sentira na limusina, o sabor do
champanhe, o cheiro da água-de-colónia de Tanner. A excitação e o
encantamento que tinha sentido ao entrar na casa. A força musculada dos
braços e das costas dele enquanto se movia por cima dela na cama, o som
das vozes de ambos ao fazerem amor…
Enterrou a cara na almofada e começou a chorar pelo que tinha acabado
antes de ter tido sequer uma oportunidade de começar.
CAPÍTULO NOVE

– O nde–raio está o milho todo?


Se calhar já o comeram.
– Isso é impossível! Só o pusemos durante a noite!
Do seu refúgio entre os rochedos e a crista, Jasper não ouvia os Littleton,
mas imaginava o que estariam a dizer um ao outro. Melton não estava com
os irmãos, que se encontravam mesmo no lugar onde haviam deixado o
isco.
– Estamos no sítio certo?
– Claro que estamos.
Jasper continuou a observar as silhuetas escuras, mantendo-se o mais
imóvel possível, ciente de que, mesmo com aquela luz ténue, qualquer
movimento poderia ser detetado. Não sabia bem como, mas conseguira
deitar a mão ao milho, ao ancinho e à lanterna; também fora capaz de
coxear até aos rochedos, até se deixar finalmente cair atrás do maior.
Contudo, o esforço fora duro e teve de conter um gemido quando as suas
costas começaram a contrair-se. Quando o espasmo passou, os Littleton já
tinham chegado.
Acima dele, as últimas estrelas desvaneciam-se. O velho adágio que
dizia que a escuridão é sempre maior antes da alvorada era uma treta;
qualquer pessoa que observasse o céu noturno sabia que o auge da
escuridão era a meio da noite, mesmo no ponto médio entre o pôr e o nascer
do sol, mas que importava isso então? O dia estava a raiar, o que queria
dizer que em breve haveria luz suficiente para que o encontrassem, caso
decidissem procurá-lo. Agarrou bem a coleira de Arlo para o impedir de
fugir para a clareira.
Os Litteton continuavam a olhar em redor, com as lanternas a descrever
arcos abrangentes. Jasper tornou a imaginar as palavras que trocariam.
– Talvez alguém o tenha levado.
– Quem?
– Os guarda-florestais, talvez?
– Não foram eles.
– Como é que sabes?
– Espera aí. Quero verificar uma coisa.
Um feixe de luz de uma das lanternas girou na direção de Jasper e este
encolheu-se mais, com um esgar de dor. Como iria sair dali? E o que lhe
aconteceria, se eles o encontrassem?
Não queria pensar nisso.
Certa vez, décadas antes, ele e Audrey tinham levado os filhos a acampar
perto de Asheville e ele despertara ao som de uns grunhidos de urso do lado
de fora da tenda. Os filhos eram pequenos e estavam a dormir todos juntos
noutra tenda; Jasper livrara-se imediatamente do saco-cama e correra para ir
protegê-los. Porém, não havia urso algum; para além do som de grilos, a
floresta estava em silêncio. Não havia também qualquer movimento nas
outras tendas do campo e só depois de ter procurado pegadas no chão e de
nada encontrar é que Jasper concluiu que devia ter sido um sonho. Mais
tarde, tinha-se perguntado o que teria feito se realmente houvesse um urso
por ali; não tinha armas, estava descalço e em tronco nu. Não poderia ter
feito mais do que acenar com os braços e gritar.
Atento aos sons da aproximação dos Littleton, sentia a mesma mescla de
confusão e pânico iniciais. Dado que nada ouvia, arriscou-se a espreitar
rapidamente por cima do rochedo, o que lhe permitiu ver que eles se
encaminhavam para a árvore caída. Jasper inclinou a cabeça, concentrando-
se, e finalmente conseguiu distinguir as palavras dos adolescentes:
– Que estranho. – Era a voz de Josh; Jasper nunca se esqueceria de como
soava.
– O quê?
– Não te cheira a nada? Já me tinha parecido que cheirava ali atrás,
quando despejámos o milho ontem à noite. Seja o que for, fede.
O repelente de veado, pensou Jasper. E Josh não usara o verbo feder;
tinha comentado que «tresandava a m…, f…», sem poupar nos palavrões.
Ao lado de Jasper, Arlo bocejou, com um guinchinho.
– Não me cheira a nada.
– Cala-te – sibilou Josh. – Ouviste alguma coisa?
– Tipo o quê?
– Chiu…
Calaram-se. As orelhas de Arlo espevitaram-se e Jasper conteve a
respiração.
– O que é que estamos a tentar ouvir?
– Podes fechar a matraca, porra?
Jasper cerrou o punho à volta da placa com o nome do cão para que esta
não tilintasse ao bater na coleira. Passaram-se uns segundos, dez. Vinte.
– Acho que também já me cheira – disse Eric. – O que é?
– Não sei.
– Achas que é aquele veado do outro dia? Que tu alvejaste?
– Não sei.
Seguiu-se uma pausa. E depois:
– O que queres fazer?
– Como assim?
– Como não há milho, se calhar o melhor é irmos para casa.
– Não vamos para casa.
No silêncio que se seguiu, Jasper sentiu o medo a continuar a atormentá-
lo, quase como se fosse uma coisa viva.

II

A primeira coisa que Jasper fizera depois de deixar o centro de


queimados fora mandar exumar os restos mortais da família, para os levar
para a propriedade perto da sua cabana. Celebrara um serviço fúnebre
privado e ele próprio cavara as sepulturas, com dores agonizantes em cada
movimento; depois, mudara-se de vez para a cabana. Não tinha dinheiro
para reconstruir a casa, mesmo que quisesse fazê-lo. O dinheiro do seguro
mal chegava para pagar as contas médicas.
Durante meses, tudo o que queria era morrer. Havia momentos em que ia
buscar a sua velha espingarda de caça e a carregava, mas nunca reunia a
coragem para a usar contra si mesmo. Em vez disso, convicto de que Deus
escolhera castigá-lo, punha a espingarda de parte, sabendo que lhe cabia
simplesmente suportar a sua cruz. Jasper, sofrerás dia e noite, imaginava
ele Deus a dizer-lhe e, de uma forma retorcida, sentia que merecia sofrer.
Não fora capaz de proteger a família quando esta mais precisara dele,
quando tudo estava em jogo.
Sofrer, contudo, requeria uma ocupação, mais que não fosse para
sobreviver. Com as lesões que tinha, já não podia trabalhar nas obras, nem
fazer qualquer tipo de labor manual. Passar mais de quinze minutos sentado
a uma secretária também era muitíssimo doloroso, pelo que um emprego
num escritório tampouco era opção. Dado que parte do seu rosto e couro
cabeludo também tinha ardido, ninguém o quereria a interagir com clientes.
Acabou por encontrar um trabalho num armazém e outras tarefas do género
numa loja de artigos domésticos. O emprego não pagava grande coisa, mas
Jasper também não precisava de muito. A proprietária, chamada Nell Baker,
conhecia-o e à família dele havia anos. Ele tinha sido o fornecedor de
pereiras de Bradford da secção de jardinagem da sua loja e ela pertencia à
igreja que ele frequentara em tempos; Jasper presumiu que o tivesse
contratado por pena.
Entre cirurgias, Jasper passava grande parte do seu tempo a regar e
fertilizar flores, ervas aromáticas e arbustos na secção de jardinagem. Varria
e lavava o chão e repunha artigos nas prateleiras. O trabalho não era difícil,
mas, porque muitas das suas glândulas sudoríparas tinham sido destruídas,
ele tinha de ter cuidado quando o verão trazia temperaturas mais altas. O
tecido cicatrizado fazia com que fosse difícil movimentar-se sem dor.
Começou a usar uma bandana a cobrir-lhe o rosto. Tinha o cuidado de se
manter afastado dos clientes; as cicatrizes, os enxertos de pele ainda por
sarar e as incisões faziam-no parecer um projeto do Dr. Frankenstein. Em
casa, livrou-se dos espelhos da casa de banho e guardou-os no barracão das
ferramentas nas traseiras. Sem ser para trabalhar e fazer compras essenciais,
raramente saía da cabana.
Deixou de ler a Bíblia e já não rezava; lentamente, os anos começaram a
passar.
Trabalho. Cirurgia. Recuperação. Repetir. Repetir. Repetir. Fez cinquenta
anos e pouco depois cinquenta e cinco, até que Deus tornou a investir,
acrescentando mais tribulações ainda ao Livro de Jasper, como se tudo o
que tinha acontecido não bastasse já.
Uns anos após a última cirurgia, pouco mais de dez depois do incêndio, a
pele que tinha ficado incólume começou a provocar-lhe comichão, antes de
se cobrir de manchas rosadas e escamosas que pareciam urticária. O
diagnóstico foi de psoríase. Os médicos especulavam que o fogo poderia ter
desencadeado alguma espécie de reação sistémica autoimune, mas ninguém
sabia dar uma resposta definitiva. O que ele sabia era que a psoríase
continuou a espalhar-se, acabando por se instalar em praticamente toda a
pele que não estivesse marcada por cicatrizes. O prurido era enlouquecedor
e os médicos experimentaram vários medicamentos para tentar reverter o
problema, mas sem qualquer sucesso. Por fim, o diagnóstico foi alterado
para psoríase crónica e disseram-lhe que teria de viver com a doença para o
resto da vida. Nesse momento, teve noção de que era um homem mudado.
Ainda tinha a sua fé; para si, Deus e Jesus Cristo continuavam tão reais
como sempre. Mas, na cabana, colocou a Bíblia, as figuras religiosas, as
fotografias e os álbuns em caixas que guardou no barracão das ferramentas
ao lado dos espelhos, certo de que nem Deus, nem Jesus Cristo alguma vez
se tinham importado consigo.

III

Na floresta, o chilrear matinal dos pássaros soava entre as árvores


enquanto a escuridão finalmente dava lugar à luz cinza da aurora. Jasper
permanecia encolhido atrás do rochedo com Arlo; os irmãos Littleton,
entretanto, tinham-se posto de vigia atrás da árvore caída. Passavam a maior
parte do tempo calados. Jasper presumiu que teriam as espingardas a postos,
para o caso de o veado branco decidir aparecer. Não havia dúvida de que
esperavam que regressasse em busca de mais milho, e Jasper ficou satisfeito
por ter aspergido a área com repelente e espalhado aqueles dispositivos
ultrassónicos.
Uma pequena pedra começara a espetar-se-lhe no traseiro, o suficiente
para ser irritante. Perguntou-se se tentar livrar-se da pedra despertaria Arlo,
mas o cão parecia profundamente adormecido. Arriscando, mexeu-se um
pouco, ao mesmo tempo que tentava fazer o mínimo ruído possível. As
orelhas de Arlo remexeram-se, mas os seus olhos continuaram fechados, e
Jasper conseguiu finalmente livrar-se da pedra. Isso ajudou, embora pouco.
As costas pareciam estar a melhorar, ainda que ligeiramente, mas o joelho
estava a piorar. Tinha inchado a ponto de pressionar o tecido das calças e
ele sentia uma pulsação quente de dor.
Essa era uma das muitas coisas que o irritavam quanto a envelhecer – as
lesões doíam mais do que nunca. Pior, demoravam séculos a passar, ou
nunca passavam por completo. Uns anos antes, entalara um dedo a tentar
pegar na frigideira de ferro forjado e ainda tinha esse nó do dedo maior do
que os outros, e doía-lhe quando chovia. Dado o estado do joelho, calculou
que acabaria a coxear para o resto da vida, durasse ela o que durasse.
Por outro lado, que sabia ele? Uns meses antes, a médica usara a
expressão «envelhecer com dignidade», mas, ao sair do gabinete, ele ia a
perguntar-se se tal coisa seria possível e até, francamente, o que quereria
dizer. Como poderia uma pessoa envelhecer com dignidade? Significaria
ter-se orgulho do facto de não se atrever a conduzir mais depressa do que o
limite de velocidade, porque já não se via muito bem a estrada? Significaria
andar de cabeça erguida, mesmo que se precisasse de usar fraldas para a
incontinência? Não que criticasse alguém, claro, ainda que se sentisse
secretamente agradado por pelo menos algumas partes do seu corpo ainda
parecerem funcionar como deviam.
Os seus pensamentos tornaram a ser interrompidos pelo som de vozes.
– Acho que não vamos ver veado nenhum – queixou-se Eric.
– Importas-te de falar baixo, raios?
– Estou só a dizer que já estamos aqui há quase uma hora.
– Podes calar-te?
– Quanto tempo é que vamos ficar aqui?
– Qual é o problema? Hoje não há escola.
E, em seguida, os rapazes tornaram a calar-se. Jasper mudou de posição,
com a esperança de transferir a dor de um membro para o outro. O cão
levantou a cabeça ao sentir o movimento, mas depois voltou a fechar os
olhos. Parecia estranhamente satisfeito e, nesse momento, Jasper lembrou-
se do filho mais velho, que parecia sempre feliz e despreocupado enquanto
dormia, especialmente quando era pequeno.
Dos filhos deles, David sempre fora o mais maduro e confiante. Mesmo
em pequeno, correspondia ao olhar das pessoas quando estas falavam, e era
raro fazer birras. Audrey costumava descrevê-lo dizendo que era uma alma
velha. Ainda antes de ir para o jardim de infância, já ajudava a mãe a cuidar
dos irmãos mais novos. Embalava-os ou dava-lhes de comer e ajudava-os a
vestir-se sempre que Audrey lhe pedia, e levantava a mesa depois do jantar
sem se queixar. De todos os filhos, era o único que fazia a cama e mantinha
o quarto limpo, incluindo quando era adolescente.
Sempre fora alto, com uma poupa que não se deixara domar até à
adolescência. Levava a sua maturidade natural para a escola, onde era um
excelente aluno, apreciado tanto pelos professores como pelos outros
miúdos. A sua dignidade calma e tranquila tornava-o feito à medida para
representante da turma em todos os anos da escola secundária.
Mas não se ria muito. Durante toda a infância, Jasper não ouvira esse
som alegre mais do que uma mancheia de vezes e, depois de ter ido para a
faculdade, David parecera tornar-se ainda mais reticente em relação ao riso.
Também não parecia achar suficiente cuidar da família e da comunidade; de
alguma maneira, os problemas do mundo passaram a ser sua
responsabilidade. Quando estava em casa, durante as férias do Natal e do
verão, falava pouco acerca das aulas ou dos amigos que tinha feito. Em vez
disso, preocupava-se com a União Soviética, inquietava-se com as armas
nucleares, queria limitar a população e alimentar as crianças famintas da
Etiópia. Expressava uma profunda preocupação pelo declínio da
assiduidade dos fiéis na igreja e estudava a Bíblia durante horas, como que
em busca das respostas que lhe escapavam. Mesmo depois de ter decidido
tornar-se pastor, confessava a Jasper que não sabia se seria suficientemente
bom; que, se não compreendia verdadeiramente o propósito que Deus
escolhera para ele, como poderia ajudar os outros a descobrirem o Seu
propósito nas suas vidas?
Jasper lembrava-se de sorrir ao filho, enquanto Tiago 4:10 lhe aflorava à
mente (Humilhai-vos na presença do Senhor, e Ele vos exaltará).
Dissera o mesmo e terminara com «orgulho-me de ti», de braços abertos.
David deixara-se abraçar e agarrara-se ao pai como a criança que fora em
tempos.
– Adoro-te, paizinho – sussurrara –, e todos os dias agradeço por te ter a
ti e à mãe.
As palavras tinham marejado os olhos de Jasper, que abraçara o filho
durante muito tempo.
Não muito depois, David desaparecera para sempre.

IV

– Mas que raio é aquilo? – resmoneou Josh Littleton. Já não estava


sequer a tentar manter a voz baixa e Jasper ouvia-o com facilidade.
– O quê?
– Ali. Ao pé daquela árvore. Olha.
Eric devia ter demorado um pouco a ver o que Josh estava a indicar.
– É um regador automático?
Não, pensou Jasper. É um aparelho ultrassónico alimentado a energia
solar para afugentar os veados.
– Não há regadores automáticos na floresta, seu imbecil. Espera aí.
Quero ir ver de perto.
A clareira ficou silenciosa e, mentalmente, Jasper viu Josh a pôr a alça
da espingarda ao ombro e a caminhar na direção do aparelho. Uns minutos
depois, tornou a ouvir a voz de Josh, com uma irritação patente.
– Acho que isto faz sons que afugentam os veados. A mãe do Martin
costumava pôr coisas destas no jardim dela.
– Quem é o Martin?
– Cala-te mas é e vem cá ver.
– Quem é que pôs isto aqui? Os guarda-florestais?
– Não são os guarda-florestais, seu idiota. Quem quer que tenha levado o
milho e posto estas coisas aqui, veio cá depois de nós irmos embora.
– Então quem foi?
– Vê lá se adivinhas.
Eric não tardou muito.
– O velho queimado que foi lá a casa?
– Tlim, tlim, tlim!
– Mas porquê?
– Porque é um…
Jasper desligou quando Josh começou a insultá-lo, com um palavrão a
seguir ao outro.
– Anda – disse Josh por fim, com a voz embargada pela desilusão e pela
zanga. – Vamos bazar daqui.
Tudo ficou silencioso. Como Jasper receava arriscar espreitar por cima
do rochedo, não podia ter a certeza de que eles se fossem embora de
imediato, pelo que decidiu esperar. Para seu alívio, apesar de o joelho
continuar a inchar, os músculos das suas costas tinham-se descontraído. Ter-
se visto forçado a esconder-se acabara por ser uma bênção, mais que não
fosse pela possibilidade de recuperar. Quando começava a pensar que a
costa era capaz de estar livre, ouviu o grito de Josh a reverberar ao longe,
com uma ferocidade e uma raiva que envenenavam o ar matinal.
– eu sei que ainda andas por aqui!

Jasper esperou mais uma hora, só para jogar pelo seguro. Arlo
continuava a dormitar. Ele ia passando pedrinhas entre os dedos e
observava uns esquilos a saltitar pelo ramo de uma árvore. Por cima dele,
um falcão descrevia círculos cada vez mais largos no céu, e Jasper,
fascinado, seguia-lhe o padrão de voo, tal como costumava fazer com Mary.
Aquela menina sempre adorara animais, de todos os tipos. Quando era
pequena, a sua cama abarrotava de animais de peluche – um pinguim, um
elefante e um cavalo cor-de-rosa –, mas o seu favorito era uma raposa do
ártico de peluche com que dormira durante anos e até levara para a
faculdade. Era uma das razões para Jasper ter começado a talhar figuras de
animais em madeira – do mesmo género que fazia agora com o rapaz. Mary
adorava-as, e dava nomes a todas – Pica-pau Paulo, Esquilo Estêvão ou
Cavalo Carlos –, e brincava constantemente com as figuras, para quem
inventava aventuras elaboradas.
Também tinha sido por causa de Mary que tinham tido dois cães (Egas, a
que se seguira Becas), dois gatos, chamados Bolachas e Natas; um hamster;
um gerbilo; e até uma salamandra, até que esta se escapara pela janela do
quarto. Tal como Mitch, Mary adorava ir ao Jardim Zoológico da Carolina
do Norte e, ao fim de semana, de vez em quando Jasper levava-a a uma
quinta próxima que tinha vacas, cavalos e ainda cabras do Tennessee que
desmaiavam – quando se assustavam, os seus músculos contraíam-se e
faziam-nas cair. Em pequena, Mary batia palmas e via-as tombar no chão,
rindo-se, encantada; ao crescer, porém, passara a ter pena das cabras e
tentava fazer o mínimo barulho possível. «Fazê-las cair é uma maldade,
papá», censurava. «Vê só como são queridas.» Por vezes, tomava de
empréstimo a câmara do pai e usava rolos inteiros para fotografar os
animais.
Na maior parte do tempo, Mary era uma maria-rapaz de totós, mais feliz
quando passava tempo no exterior do que confinada ao seu quarto. Não se
importava de se sujar e trepava árvores e jogava à bola melhor do que os
irmãos. Mas tinha um lado terno, e não era apenas para os animais. No
sétimo ano, convidou um rapaz chamado Michael a ir a um baile Sadie
Hawkins1 com ela; quando ele confessou que queria que fosse outra
rapariga a convidá-lo, ela passara o resto da tarde e da noite a chorar no seu
quarto. Também chorava por causa dos estudos, pois tinha de se esforçar
mais do que a maioria para dominar a matéria. Por vezes, a frustração e a
ansiedade levavam a melhor.
Também nem sempre se dava bem com a irmã mais nova, apesar de
Deborah ser a sua melhor amiga. Ela sempre achara que Deborah era mais
bonita do que ela. Quando o confessava ao pai, este assegurava-lhe que
ambas eram bonitas, cada uma à sua maneira, mas as palavras dele só lhe
provocavam um esgar.
– Ela é mais alta do que eu, tem o cabelo liso em vez de encaracolado e
todas as noites há rapazes a telefonar-lhe, nunca a mim.
Jasper não soubera como responder e, mais tarde, viria a perguntar-se se
a sua falha nesse momento teria sido a razão para nunca tornarem a falar do
assunto. Fingia não reparar que ela raramente tinha encontros quando
andava na escola secundária; fingiu não reparar quando ela anunciou que ia
ao baile do início do ano com um grupo de amigas, em vez do rapaz por
quem tinha uma paixoneta. Intrigava-o genuinamente que os rapazes da
escola não se sentissem atraídos pela sua beleza natural e pela sua
vitalidade; isso era, e continuava a ser, um mistério.
A seguir aos animais, e tal como para Audrey, os livros eram a paixão de
Mary. Adorava policiais e livros de aventuras e, com frequência, Jasper via
mãe e filha sentadas lado a lado no sofá, cada uma transportada para outro
mundo nas páginas do seu livro, ambas a enrolarem distraidamente
madeixas grossas de cabelo.
De todos os filhos, Mary era a mais diligente na escola, esforçando-se
incessantemente para obter as notas que tanto lhe custavam. Os seus hábitos
estudiosos foram-lhe muito úteis na faculdade; em Chapel Hill, na
Universidade da Carolina do Norte, tinha excelentes notas todos os
semestres e mantinha-se concentrada no objetivo de ser veterinária.
Também conheceu um jovem quando estava no segundo ano, chegando a
confidenciar a Audrey que ele é capaz de ser o tal. Continuaram a
encontrar-se depois de terminarem o bacharelato e ambos se inscreveram no
programa de medicina veterinária da Universidade Estadual da Carolina do
Norte. Ela até o convidou a ir a sua casa pelo Natal e, ao jantar, Jasper
reparou que ele a observava com o mesmo anseio secreto que Jasper sentira
por Audrey na sua juventude.
Era difícil acreditar que, meio ano depois, tudo o que restaria de Mary
seria uma memória.

VI

À medida que o sol matinal continuava a subir, Jasper esperou, e depois


esperou mais ainda. A dada altura, até Arlo parecia estar a ficar entediado, e
provavelmente precisaria de água.
Havia muito tempo que não ouvia os rapazes e, quando arriscara uma
espreitadela por cima do rochedo, tampouco os tinha visto. É claro que
podiam estar à sua espera, mas Jasper também não podia ficar muito mais
tempo parado; se o joelho continuasse a inchar, talvez não conseguisse
mexer-se de todo. Já como estava, mal conseguia dobrar a perna.
Decidindo arriscar, deslizou para mais perto do rochedo. Agarrando-a
com as duas mãos, colocou a perna boa a postos e tentou levantar-se.
Tinham-se passado anos – décadas! – desde que tinha tentado pôr-se de pé
usando apenas uma perna, e o esforço deixou-o com a coxa a tremer.
Empenhou-se mais, a tentar aproveitar o impulso, mas com a coxa a vacilar
e as costas a recomeçarem a contrair-se. O esforço deixou-o sem visão
periférica e os pulmões explodiram com um arquejo quando finalmente se
endireitou por completo.
Raios me partam, pensou, a tentar recuperar o fôlego.
Continuou a ofegar e a segurar-se bem ao rochedo, com o coração
descompassado. Tinha os comprimidos de nitroglicerina no bolso e
encostou-se ao rochedo para abrir o frasco. Meteu um comprimido debaixo
da língua.
Depois de a respiração e a pulsação terem estabilizado, estudou o
terreno. Por um momento, pensou se poderia usar o ancinho como muleta
ou bengala, mas era demasiado comprido e não tinha uma pega. Isso, claro,
partindo do princípio de que conseguisse sequer alcançá-lo – ou à lanterna –
sem cair, coisa de que duvidava. Quanto ao saco de milho, no estado em
que se encontrava, era como se pesasse tanto quanto a âncora de um navio.
Teria de deixar essas coisas para trás.
Passando o peso com uma certa hesitação para a perna magoada, pôs o
joelho à prova. Doía, mas a dor não era incapacitante, pelo que voltou a
tentar, fazendo mais força até começar a encolher-se. Perguntou-se se teria
de fazer uma radiografia para verificar se não teria partido nada, e já sabia
que a médica não ficaria nada satisfeita com aquilo. Já estava a imaginá-la a
abanar a cabeça perante a sua insensatez.
Mas tudo isso era para depois. Por ora, tinha de prosseguir caminho. Viu
outro rochedo ligeiramente mais pequeno, a cerca de um metro e meio de
distância. Dirigiu-se para lá, a coxear e saltitar. Tinha a impressão de que os
ossos do joelho raspavam uns nos outros, mas, aos poucos, aproximou-se.
Quando finalmente chegou ao rochedo, encostou-se a ele, à espera de que a
dor abrandasse.
Quando se sentiu preparado, olhou em redor. Não havia mais rochedos,
pelo que, desta feita, escolheu uma árvore próxima, um pinheiro-amarelo
que se erguia na direção do céu. Começou a avançar, rangendo os dentes
por causa da dor; por uma fração de segundo, desequilibrou-se e teve de
agitar os braços para se manter de pé. Foi por pouco, pensou. Sabia que, se
tornasse a cair, talvez não conseguisse levantar-se de novo. Prosseguiu a
coxear e, por fim, alcançou o tronco. Demorou-se mais um pouco para
recuperar o fôlego.
Uma árvore já está, só falta mais uma catrefada delas.
E as cristas.
E se os Littleton encontraram a minha carrinha e estiverem lá à minha
espera?
Obrigou-se a ignorar aquela pergunta, decidindo que enfrentaria essa
situação quando se deparasse com ela. Só que…
Assobiou a Arlo, que voltou a correr para o seu lado.
– Tu não te aventures por aí, estás a ouvir-me? Não quero que voltem a
tentar dar-te um tiro.
Arlo fitava-o com uma expressão desconfiada, mas afetuosa. Jasper
escolheu a árvore seguinte, preparou-se e, lentamente, recomeçou a coxear
em frente. Arlo caminhava a seu lado, observando-o por um momento como
que a tentar perceber se os movimentos inseguros do dono indicariam que
aquilo era algum jogo, antes de perder o interesse. Em vez disso, começou a
farejar uns arbustos ali perto.
Depois de uma dúzia de passos a coxear, Jasper tinha as mãos no tronco
da árvore seguinte. Mais uma vez, descansou, à espera de que a dor
amainasse. Então, depois de se concentrar, avançou para outra árvore ainda.
Uma de cada vez, repetia. Posso demorar horas ou até o dia inteiro, mas
vou conseguir.

VII
A dada altura naquela manhã, Jasper perdeu a conta às árvores em que
tinha descansado. O dia ia aquecendo cada vez mais e Jasper encostou-se,
exausto, ao tronco grosso de uma magnólia. Das copas das árvores, ouviu o
trinado de uma toutinegra – como uma roda que rangesse a dar voltas e
mais voltas –, misturado com a melodia aflautada de um tordo-dos-bosques.
O coro levou-o a pensar em Deborah, cuja voz quando cantava talvez fosse
o som mais divino que ele alguma vez escutara. Ele sempre lhe chamara
Minha Pequenina. Nascera quatro semanas antes do esperado, pesando
pouco mais de um quilo e oitocentos gramas. Cabia-lhe na palma da mão e,
no hospital, ele perguntava-se como algo tão minúsculo poderia alguma vez
transformar-se num ser humano de tamanho normal. Felizmente, não tinha
quaisquer problemas de saúde, mas, durante os primeiros meses de vida,
Audrey passava a maior parte do dia com ela ao colo e preparava-se para
acorrer ao pediatra ao mínimo sinal de que algo não estivesse bem.
Contudo, Deborah ia crescendo, tal como David e Mary tinham crescido,
ainda que a um ritmo mais lento. Durante anos, manteve-se no percentil
mais baixo para a sua idade, quer em altura, quer em peso; e, até aos doze
anos, foi sempre a mais pequena da turma, uma menina delicada que se
encontrava sempre no extremo esquerdo da fila da frente de qualquer
fotografia da turma.
Ao contrário de Mary, Deborah não tinha a mínima tendência para
brincadeiras mais intrépidas. Brincava com Barbies e adorava que Jasper a
penteasse antes de se meter na cama. Passava a vida a cantar músicas da
rádio e, sempre que cantava no coro da igreja, Jasper distinguia-lhe a voz,
maravilhando-se com o timbre e com a invulgar abrangência vocal da filha.
Por vezes, quando Jasper estava a talhar figuras de madeira no alpendre,
Deborah saía e pedia-lhe que ouvisse uma canção que ela acabava de
aprender. Ele pousava o canivete e escutava a voz da filha, assombrado com
o dom que Deus lhe dera, e que nem ele nem Audrey partilhavam.
De todos os seus filhos, Deborah era a mais faladora, tagarelando sem
cessar durante o jantar, a ponto de Audrey por vezes lhe pedir que parasse
um pouco, para que os irmãos pudessem falar. Tinha sempre uma história
para contar e adorava fazer perguntas, o que provavelmente explicaria a sua
popularidade na escola. Na infância, era convidada para todas as festas de
aniversário dos colegas e, quando andava na escola preparatória, quase
todos os fins de semana incluíam festas de pijama. Jasper lembrava-se de
fazer pipocas para ela comer com as amigas enquanto assistiam a filmes na
televisão e de finalmente ter de as obrigar a apagar a luz e parar de rir.
O seu crescimento repentino tinha acontecido no primeiro ano da escola
secundária. À noite, depois de acabar os trabalhos de casa, folheava revistas
para adolescentes, nas quais estudava as técnicas mais recentes de aplicar
sombra nos olhos ou batom. Os rapazes começaram a reparar nela. Teve
vários namorados, a maioria durante alguns meses, e alguns – como Allen
–, durante mais tempo. Ia ao cinema, a bailes e a gelatarias, e o namorado
do momento ligava lá para casa quase todas as noites. Nessa altura, o
telefone estava na cozinha, mas o fio era suficientemente comprido para
chegar ao alpendre das traseiras; Deborah passava horas lá fora, a falar e a
rir enquanto enxotava as traças atraídas pelas luzes. Tudo aquilo parecia
muito misterioso a Jasper – alguns dos telefonemas duravam muito tempo
–, de que poderiam estar a falar?
Deborah era particularmente chegada a Audrey e fazia sentido que
quisesse tornar-se professora, tal como a mãe. Jasper sabia que se tornaria o
tipo de professora adorada tanto pelas crianças como pelos pais.
Porém, nunca tivera essa oportunidade, pois, numa só noite, também ela
desaparecera para sempre.

VIII

O relógio indicava-lhe que estava em andamento há pelo menos duas


horas, talvez um pouco mais, e ele calculava que se encontraria a cerca de
meio caminho da sua carrinha. Sabia que as cristas se tornariam mais
íngremes a partir daquele ponto. Apesar do frio, partes da sua testa
começavam a transpirar, um sinal de que o seu corpo talvez estivesse a
começar a sobreaquecer.
Ciente de que precisava de descansar, divisou uma árvore caída ao longe.
Cambaleou nessa direção, a notar que a anca do lado que não se magoara
tinha começado a doer, sem dúvida devido ao esforço de suportar a maior
parte do seu peso.
Umas costas arruinadas, um joelho arruinado e, em breve, uma anca
arruinada.
Sou uma catástrofe com pernas, pensou ele; mesmo que chegue à
carrinha e consiga voltar à cabana, que será feito de mim?
Tanto quanto sabia, quando chegasse à cabana e se deixasse cair na
cama, talvez não fosse capaz de tornar a levantar-se. Poderia ficar ali
tolhido, sem conseguir chegar sequer ao telefone. Com o passar do tempo,
teria fome e sede, e acabaria por bater a bota. Mas a ideia de morrer não era
o pior. Se Arlo enlouquecesse de inanição, o mais provável era que acabasse
a comer o próprio dono. Por fim, quando o rapaz se desse conta de que
Jasper não aparecia havia uns quantos sábados, agentes da polícia ou
delegados do xerife haveriam de ir a sua casa, onde o encontrariam
despedaçado enquanto Arlo abanava a cauda, com a barriga redonda como a
de um Buda.
Jasper soltou um resmungo ao dar-se conta do rumo melodramático que
o seu raciocínio tomara. Devo estar a ficar xexé, murmurou. Contudo, a
verdade era que deixar a mente divagar tinha feito a dor parecer mais
distante, pelo menos durante um pouco.
Quando chegou à árvore caída e se sentou, tinha a impressão de ter
calcorreado até à Califórnia.
Levou a mão à bandana, enxugou a transpiração e pensou no filho mais
novo. Paul, recordava ele, fora uma gravidez difícil para Audrey, que tinha
tido hemorragias ao longo do primeiro trimestre; nos últimos dois meses, a
sua tensão arterial subira a níveis perigosos, pelo que tivera de ficar
confinada à cama. Durante as consultas bissemanais, tinha havido várias
discussões acerca da necessidade de induzir o parto. Mas, como os sintomas
não pareciam piorar, o médico recomendou que ficassem simplesmente
atentos e esperassem. Não obstante, Jasper levava sempre a mala de
maternidade de Audrey a cada uma dessas consultas, não fosse ela ter de ser
transferida para o hospital.
Para alívio de ambos, a gravidez foi quase de termo e Paul pesava mais
de três quilos quando nasceu. Audrey, contudo, ficara hospitalizada durante
quase uma semana devido a complicações hemorrágicas e, entre visitas ao
hospital, Jasper tinha de cuidar de Paul completamente sozinho. Só quando
levara Paul para casa é que se apercebera de que sabia muito pouco acerca
de cuidar de bebés, apesar de já ter três filhos. Cuidar do recém-nascido
juntamente com tomar conta dos outros filhos, fez Jasper cambalear pela
casa numa névoa de exaustão, e descobrir um profundo e renovado apreço
por tudo o que a mulher fazia. Durante os primeiros seis meses depois de
Audrey ir para casa, ele passava o máximo de tempo possível em casa
também, tentando prever todas as necessidades dela. Embora ao início ela
lho agradecesse, acabou por lhe sugerir que voltasse a trabalhar a tempo
inteiro. Gostava de ter as suas rotinas e, na realidade, como Jasper
entendeu, ele estava a estorvá-la.
Paul tinha sido especial para toda a família desde o início. Para Jasper e
Audrey, era o bebé; para David, o irmão que sempre quisera. Mary mimava-
o como a um animal de estimação, enquanto Deborah o tratava como a um
dos seus bonecos, ainda que vivo. Jasper lembrava-se de que, certa vez,
Deborah pusera maquilhagem de Audrey na cara do irmão, depois de o
enfiar num antigo vestido seu. Na altura, teria uns cinco ou seis anos.
Audrey achara tanta graça que tinha tirado uma fotografia aos dois filhos.
Anos depois, a fotografia desaparecera do álbum de família e Jasper sabia
que Paul era o responsável mais provável.
Talvez por ser o mais novo, Paul era o mais sensível dos quatro filhos.
Quando Bert, o cocker spaniel, tivera de ser abatido depois de ter sido
atropelado, Paul chorara inconsolavelmente durante semanas; quando, no
segundo ano, o melhor amigo chamado Jonah mudara de casa, Paul caíra
numa tristeza tremenda, como se nunca mais fosse voltar a ter um amigo.
Jasper ficou preocupado quando o temperamento do filho começou a
manifestar-se na adolescência como um desejo insaciável de aprovação dos
pares. Parecia adotar identidades diferentes em fases que, não raro, duravam
meses; durante uns tempos, imitou a seriedade de David; noutras alturas,
insistia que queria ser veterinário, tal como Mary. Passou por uma fase de
cowboy, de desportista e de skater. Na escola secundária – talvez com inveja
da popularidade de Deborah –, começou a deixar crescer o cabelo, como se
estivesse desesperado por se integrar no grupo dos miúdos fixes, como ela.
Aos dezasseis anos, começou a usar blusões de ganga e óculos Ray-Ban, e
ameaçava fazer uma tatuagem assim que tivesse idade para tal.
Embora o filho mais novo parecesse ter dificuldades em aceitar-se a si
mesmo, Jasper consolava-se sabendo que continuava a ser uma pessoa
excecionalmente bondosa. Quando Mary chorara por ninguém a convidar
para o baile do início do ano, Paul também tinha chorado, e passara o fim
de semana inteiro a escrever um poema acerca de como ela era especial.
Depois, Mary diria ao pai que aquilo fora a coisa mais amável que alguém
alguma vez fizera por ela. Quando Deborah não conseguira ficar com o solo
no concerto de Natal da escola – algo que ela queria imenso –, Paul tinha
ido de bicicleta à loja só para lhe arranjar o gelado de que ela mais gostava
e pediu-lhe para cantar a canção só para ele.
Talvez como escape para a tempestade de sentimentos com que parecia
debater-se perpetuamente, Paul mantinha um diário. Era frequente ser visto
a rabiscar furiosamente, sentado no alpendre, ou já noite avançada, antes de
se deitar. De todas as lembranças dos filhos que perdera no incêndio, a
perda que Jasper mais lamentava era a daquele diário. Por alguma razão,
imaginava que poderia explicar-lhe porque fora que Paul escolhera morrer
daquela maneira.
Mas, por outro lado, Jasper já sabia porquê.
O seu filho sensível e emocional, o que sentia tudo profundamente e
ansiava pela aprovação dos outros, simplesmente não teria sido capaz de
viver com aquilo que tinha feito.

IX

Jasper levantou-se e recomeçou a avançar, árvore após árvore,


continuando a suar apesar de a temperatura ter começado a descer
rapidamente. Vinha aí uma frente fria e ele coxeava, descansava e tornava a
coxear, tentando manter um ritmo lento, mas constante. De vez em quando,
via-se obrigado a contornar cristas íngremes. Ter de evitar trepar
acrescentava-lhe provavelmente mais uma hora à caminhada. Agora, entre
si e a carrinha encontrava-se uma crista demasiado longa para que pudesse
dar-lhe a volta. Teria uns quatro metros e meio de altura, ou talvez mesmo
seis. Fez uma pausa para se encostar a uma árvore, a tentar perceber qual
seria a melhor forma de subir. Calculava que finalmente conseguiria
distinguir a sua carrinha quando chegasse lá acima, mas tinha o corpo
completamente destroçado. Mesmo estando parado, sentia as pernas a
tremer, e as costas estavam à beira de outro espasmo.
Também Arlo estava exausto. Tinha a cabeça descaída, a língua de fora,
e já não parecia interessado em explorar.
– Achas que conseguimos? – perguntou Jasper. O cão limitou-se a olhar
para ele, abanando a cabeça uma vez.
Jasper tentou preparar-se para o esforço, perguntando-se mais uma vez
se os Littleton estariam por perto. Da primeira vez, não tinham dado pela
sua carrinha estacionada atrás do talude, mas isso fora de noite. Ele não a
trancara, pelo que poderiam remexer-lhe no porta-luvas, onde ele tinha
deixado a carteira, que confirmaria as suspeitas que já tinham de que fora
ele a frustrar-lhes a armadilha para o veado.
– Se encontraram a carrinha, hão de estar à minha espera – murmurou a
Arlo. – Mas só há uma maneira de ter a certeza.
Depois de medir a crista com o olhar uma última vez, Jasper cerrou os
dentes e começou a subir. Dava passos pequenos, cuidadosos, mas, à
medida que a inclinação ia aumentando, deu por si a fraquejar. Pousava um
pé, recuperava o equilíbrio, arrastava o outro pé ligeiramente para a frente,
e tornava a reequilibrar-se.
Chegou a meio.
Depois, passado algum tempo, percorrera três quartos da subida.
Então, só mais um pouco, e já podia ver finalmente o outro lado.
Continuou a andar, com a vista a ficar mais nítida. Quando se preparava
para o último esforço – são só mais uns passos! – ouviu um grito, uma voz
distante, mas inconfundível.
– roubaste-nos o milho, não foi?
Eric.
Jasper sentiu o coração a latejar-lhe no peito e virou a cabeça, a tentar
localizar a origem do som.
– viste-o?
Desta feita, era a voz de Josh, mais próxima, mas vinda de outra direção.
– não!
– então para que raio é que estás a gritar?
– estou farto! não podemos ir para casa e pronto?
Arlo espevitou as orelhas e, antes que Jasper conseguisse impedi-lo,
subiu para o cimo da crista. Sem árvores que o escondessem, estava
totalmente a descoberto. Jasper sibilou-lhe que voltasse, mas Arlo ou não o
ouviu, ou não lhe fez caso.
Quanto tempo demorariam os rapazes a vê-lo?
Com a predestinação lenta de um pesadelo, Arlo deambulou para mais
longe. Sem saber onde estaria Josh, Jasper hesitava quanto a erguer a voz
ou assobiar. Entretanto, o cão continuava a vaguear, tendo o focinho junto
ao chão. Mentalmente, Jasper ia-lhe pedindo que voltasse para a sua beira,
mas era em vão.
Arlo, interessado num cheiro que decerto tinha detetado, começou a
avançar na direção da carrinha. Nesse instante, ao longe, Jasper distinguiu
Josh, a sair de trás de uma árvore. Estava de costas, talvez a uns quarenta
metros de distância, com o cano da espingarda pousado no ombro. Se se
virasse, não teria a mínima dificuldade em vê-los.
Jasper nunca conseguiria chegar à carrinha. A única opção que lhe
restava era bater em retirada na direção de onde acabava de vir, pela encosta
abaixo. Esperava que Arlo se apercebesse de que dera meia-volta e o
seguisse. Caso contrário, poderia arriscar um assobio discreto antes de
encontrar uma moita para se esconder.
Tinha noção de que descer seria mais doloroso do que subir. Duvidava
que o joelho aguentasse o esforço, pelo que, em vez de se virar, decidiu ir às
arrecuas, basicamente refazendo os passos que tinha dado. Deu um passo
cauteloso; no segundo passo para trás – com a perna do joelho magoado –,
o pé começou a resvalar. Tentou manter o equilíbrio; instintivamente, rodou
o tronco e as pernas fizeram o mesmo, com o pé a descer mais pela encosta
e a prender-se momentaneamente entre duas pedras semienterradas na terra.
O peso do corpo e a gravidade fizeram o inevitável. O seu tornozelo
torceu-se e Jasper ouviu um estalo ao mesmo tempo que gritava de dor. Um
momento depois, ia em queda livre pela encosta abaixo.
Depois, recordar-se-ia vagamente de que aterrara sobre o ombro, batendo
com a cabeça com força, o que o fizera ver clarões de luz. A dor disparara-
lhe pelo corpo como uma fenda a alongar-se por um lençol de gelo.
Custava-lhe respirar, debatia-se por manter a visão nítida. Arlo acabou
por aparecer a seu lado. Mais acima, distinguiu a custo uma figura no cimo
da crista.
Josh.
– Caíste, velho? Ouvi-te gritar.
Jasper pestanejou, demasiado desorientado e tonto para ficar assustado.
– É bem feito, pelo que fizeste. Devias ter-te metido na tua vida.
A voz de Jasper saiu num arquejo rouco.
– Ajudem-me.
Não tinha a certeza, mas pareceu-lhe que distinguia um sorriso trocista
no rosto de Josh.
– o que foi aquilo? – gritou Eric, mais longe.
Josh lançou um olhar a Jasper, como que a ponderar as hipóteses.
Depois, respondeu:
– vamos embora daqui! já estou farto de estar à espera!
Um momento depois, tinha desaparecido.
Jasper fechou os olhos, permitindo-se perder os sentidos.

Algures nas profundezas do seu subconsciente, Jasper sentiu uma gota


de água no rosto. Foi o suficiente para que as suas pestanas começassem a
agitar-se e, quando àquela gota se seguiu outra, Jasper abriu lentamente os
olhos.
Com uma grande dor de cabeça, semicerrou os olhos, vendo as sombras
altas a ganharem gradualmente a forma de árvores. A floresta, lembrou-se,
estou na Uwharrie. Tentar sentar-se provocou-lhe uma dor aguda que o fez
gritar, com a memória do que acontecera a acorrer-lhe numa série de
imagens difusas.
O veado branco. Os Littleton. A crista. Escorregar. O estalido do
tornozelo. Cair…
A ranger os dentes e a ofegar, esperou que as vagas de dor abrandassem.
Não precisava de ver a perna para saber que tinha o tornozelo partido, e
pestanejou quando sentiu outra gota de água no rosto.
Chuva.
O céu estava carregado com nuvens de tempestade e ele ouviu um trovão
demorado ao longe. Movendo lentamente a cabeça, procurou Arlo e viu-o
ali deitado por perto, com a cauda a abanar nervosamente. Nunca tinha
gostado de tempestades.
A mera ideia de tentar mexer-se aterrava-o. Não com aquele tornozelo,
não com aquele joelho e aquela anca e umas costas que poderiam ter
espasmos a qualquer momento. Não com a cabeça partida ou, no mínimo,
uma concussão. Mais uma vez, ouviu um trovão, sentiu mais gotas a cair e
percebeu que a tempestade se aproximava.
As gotas acabaram por dar lugar a um chuvisco que se transformou
numa chuva contínua. Engasgou-se quando lhe entrou água na boca e os
nervos do seu corpo faiscaram como uma árvore de Natal. Quando a dor
finalmente abrandou, virou lentamente a cabeça para o lado, receando
afogar-se se não o fizesse. Ficou com metade da cara pousada na lama.
Fechou os olhos, mas pressentia o mundo à sua volta a ficar mais escuro
e frio com a tempestade iminente. Passado algum tempo, sem conseguir
continuar a manter-se consciente, tornou a perder os sentidos.

XI

Quando acordou, o mundo estava negro. Continuava a chover


torrencialmente e a água de vez em quando era iluminada pelo clarão de um
raio.
É quase de noite, notou distraidamente e, quando estremeceu, a dor foi
insuportável. Gemeu e começou a chorar, com as lágrimas a misturarem-se
com a chuva. Sem ver, pressentiu a presença do cão, deitado a seu lado, os
corpos próximos um do outro.
Outro calafrio provocou-lhe outra vaga de dor. Isso foi-se repetindo à
medida que as horas avançavam lentamente rumo à meia-noite.
Então, finalmente, a noite começou a preparar-se para dar lugar à
alvorada.
11 Baile de escola em que são as raparigas a convidar os rapazes. (N. da T.)
CAPÍTULO DEZ

T anner olhava pelas janelas panorâmicas gigantes da casa de montanha,


a bebericar um café e a tentar apreciar o nascer do sol, até que se deu
conta de que não valia a pena. Preocupado como estava, não ligava à vista,
e perguntava-se novamente porque teria a noite acabado daquela maneira.
Não tinha dormido bem, dando voltas e mais voltas e acordando várias
vezes antes de finalmente desistir, cerca de uma hora antes. Desde então,
dava por si a rever a conversa e, mesmo agora, ainda não sabia bem o que
sentia. Não estava zangado, não era bem isso, mas… Kaitlyn tinha partido
de certos pressupostos que não lhe tinham caído bem. O que lhe
perguntara? Se ele alguma vez tinha considerado a possibilidade de ela ser
mais do que um caso passageiro? Nesse momento, ele estava tão
assoberbado a tentar entender o que tinha feito a noite azedar que nem
respondera. Mas agora, se pudesse voltar atrás, tê-la-ia recordado que se
conheciam há menos de uma semana. O que esperava ela? Um anel de
compromisso? Um pedido de casamento? Ao fim de cinco dias?
Acabou o café e assegurou-se novamente de que tinha razão em ter
ficado incomodado. Sabia Deus que era demasiado cedo para qualquer tipo
de compromisso profundo entre eles; francamente, era realmente cedo de
mais para ela fazer sequer uma pergunta daquelas. No entanto…
Ele tinha passado a noite às voltas porque sabia que ela não se enganava
ao suspeitar de que, mesmo que ele ficasse ali até junho, a pergunta
provavelmente não lhe ocorreria.
Abanou a cabeça, farto de remoer o assunto. Ela tinha deixado bem claro
que não queria voltar a vê-lo, portanto essa questão estava resolvida. Virou
costas à janela e foi até à cozinha. Aí, despejou o resto da comida no lixo e
lavou os pratos antes de deixar tudo empilhado na bancada. O assistente do
chef iria buscá-los dali a pouco, pelo que ele teria de ficar na casa até então.
Tomou um duche, recolheu as suas coisas e meteu-as no carro alugado
antes de se instalar à espera. Escolheu um lugar perto das janelas, mas,
como antes, mal reparou na vista. Em vez disso, continuou a rever
mentalmente a noite e, apesar de dizer a si mesmo que não devia, ia
verificando o telemóvel, na esperança de que Kaitlyn lhe tivesse enviado
alguma mensagem.
Não enviara. Quando Tanner finalmente saiu da casa, não conseguiu
evitar a pontada forte de desapontamento que sentia.

II

Enquanto Mitch acabava de comer os cereais na cozinha, Kaitlyn


mordiscou uma torrada, com o estômago ainda contraído depois da noite
anterior.
– A Casey vai estar em casa quando eu voltar da escola?
Kaitlyn demorou um pouco a reconhecer que o filho tinha falado.
– Não sei bem – acabou por responder. – É capaz de ter o que fazer
depois da escola, mas podemos perguntar-lhe.
– Se não estiver, não faz mal – disse Mitch, levantando a tigela para
beber o leite. – Eu sei tomar conta de mim.
Kaitlyn desistiu da torrada e levantou-se da mesa para despejar o resto
no lixo.
– Se já acabaste, leva a tigela para o lava-loiça enquanto eu vou procurar
a tua irmã. Encontramo-nos no Suburban daqui a um minuto.
– Ela vai demorar mais do que um minuto. Demora sempre.
– Pois, está bem, querido, mas faz só o que te peço.
Kaitlyn guardou o almoço que tinha preparado na mochila de Mitch.
Segurou nela enquanto ele passava os braços pelas alças.
– Podemos voltar ao jardim zoológico no domingo? – perguntou ele. – E
depois lançar o disco com Mr. Tanner?
– Acho que vai fazer frio este fim de semana – respondeu ela. – E se
fôssemos antes ao cinema?
– Pode ser – disse Mitch, antes de se arrastar na direção da porta. Kaitlyn
pegou nas suas coisas e ia chamar a filha quando a viu a descer as escadas.
– Estou pronta – anunciou Casey.
– Tens de tomar o pequeno-almoço – disse Kaitlyn. – Levo-te uma maçã
e uma barra de cereais.
– OK. – Casey parou junto à porta. – Como é que estás?
– Estou bem. – Kaitlyn encolheu os ombros, esperando ferverosamente
que a filha não a tivesse ouvido chorar durante a noite.
O olhar de Casey era penetrante.
– Se tu o dizes.

III

Jasper abriu os olhos devagar e semicerrou-os por causa da luz matinal


enevoada, com a cabeça a latejar a cada batimento do coração. Estava
molhado e gelado e tinha passado a maior parte da noite acordado e a tiritar,
com o peso das roupas encharcadas a dificultar-lhe a respiração. E agora,
que o seu corpo recomeçara a tremer, deixou escapar um gemido por causa
da dor que o percorria. Pareceu-lhe ouvir barulhos ao longe, até se
aperceber de que era ele quem emitia aqueles sons.
Passado algum tempo, as vagas esmagadoras de dor começaram a
diminuir, dando-lhe um toque de clareza ao raciocínio. Sem saber bem
como, sobrevivera à noite; sem saber bem como, não se afogara com a
chuva. Reparou que a respiração esforçada lhe saía em pequenas nuvens
que se dissipavam no ar frio e sombrio. Tinha as mãos frígidas como um
peixe tirado de um congelador. Quando tentou mexer-se para conseguir
espaço debaixo do casaco para as aquecer, o movimento foi suficiente para
o fazer sentir que alguém lhe esmagara o tornozelo com um martelo, e por
pouco não desmaiou.
Passada a tontura, virou lentamente – cuidadosamente – a cabeça, em
busca de Arlo. O cão afastara-se e não havia sinal dele. Jasper tentou
assobiar, mas não lhe restava muita força. Custava-lhe concentrar-se e
perguntou-se se alguma vez o encontrariam.

IV

Depois de voltar a Asheboro, Tanner foi correr durante mais tempo do


que o habitual, calcorreando a estrada durante quase uma hora e meia.
Apesar da temperatura fresca, tinha a T-shirt ensopada quando finalmente
regressou ao hotel.
De duche tomado, almoçou rapidamente e em seguida decidiu que
apanhar mais ar fresco lhe faria bem. No parque, cerrou o fecho-éclair e
caminhou sob um céu cheio de nuvens brancas, sem ter a mente mais
espairecida do que naquela manhã. Teve o impulso de telefonar a Glen, que
atendeu ao segundo toque.
– Como vai isso? Já encontraste o teu paizinho?
Tanner riu-se e sentou-se num banco do parque antes de perguntar se
estaria a ligar em boa hora.
– Ligaste na melhor altura possível. A minha mulher e os miúdos estão
com os vizinhos e tenho o alpendre todo para mim. Que se passa?
Então, Tanner começou a falar, pondo-o a par da sua busca pelo pai
biológico e do acidente no parque de estacionamento do Coach’s, antes de
finalmente lhe fazer um relato da sua semana surpreendente com Kaitlyn.
Glen ia fazendo sons de aprovação à medida que Tanner descrevia Kaitlyn e
a família, bem como a ligação imediata e intensa que tinham formado.
– Ela parece impecável, Tan – comentou Glen. – Quando é que posso
conhecê-la?
– Espera, ainda não acabei… – avisou Tanner. Depois descreveu-lhe o
sucedido na noite anterior e o final abrupto da relação. Quando terminou,
Glen pigarreou e depois ficou calado durante tanto tempo que Tanner achou
que a chamada tinha caído. – Glen?
– Continuo aqui e percebo porque é que ligaste, mas, sinceramente, não
sei o que queres que eu diga.
– E que tal concordares comigo e confirmares que tudo o que ela me
disse ontem à noite foi um bocado destrambelhado? – respondeu Tanner,
sem estar completamente a brincar. – Que provavelmente até tive sorte por
ter sido já?
A voz de Glen parecia invulgarmente hesitante.
– Olha, Tan, tenho de ser honesto contigo. Não acho que ela tenha feito
mal ao perguntar-te porque é que vais voltar para os Camarões. Eu disse-te,
quando vieste cá, que me dava a sensação de que estavas a dar um passo
atrás. És uma das poucas pessoas que conheço que pode fazer o que quiser,
e ainda não sei ao certo porque tomas algumas das decisões que tomas.
Tanner fechou os olhos, perguntando-se como podia aquele telefonema,
feito para desabafar acerca de uma mulher, ter-se transformado num
referendo sobre as suas decisões de vida.
– Independentemente de aceitar o trabalho nos Camarões ter sido a
decisão certa ou não, ela sempre soube que eu me ia embora, portanto
porque é que decidiu fazer uma cena de repente?
– Eu percebo-te – respondeu Glen, adotando um tom mais conciliador. –
Mas também entendo a posição dela. Porque não hás de ficar e ver onde
isso vai dar?
Tanner ficou calado. Do outro lado do parque, viu um grupo de crianças
a dar de comer aos patos, à beira do lago.
Glen prosseguiu.
– Acho que a pergunta que tens de te fazer, e responder, é: O que é que tu
queres, Tan? Passar a vida toda de um lado para outro? E o que vai
acontecer quando te fartares dos Camarões, coisa que ambos sabemos que
vai acontecer?
Era a mesma pergunta que Kaitlyn fizera e Tanner deu por si a perguntar-
se como teria perdido o controlo daquela conversa também. Sem esperar
por resposta, Glen suspirou e continuou:
– Olha, eu sei que ligaste para que eu te dissesse que tens razão, e
lamento se estou a desiludir-te. Será que te sentes melhor se eu disser que
acredito que vais resolver a tua vida? Não duvido que acabarás por
encontrar o teu caminho e ficar bem, a longo prazo. Mas…
– Mas o quê? – perguntou Tanner, embora não soubesse se queria ouvir o
resto.
– Tens noção de que a Kaitlyn é a única mulher acerca da qual me
telefonaste, não tens?
– Isso não é verdade.
– É, sim – disse Glen, falando lentamente. – Referiste algumas das
outras de passagem, mas nunca me falaste realmente delas. E a tua voz
parecia diferente enquanto a descrevias. É evidente que ela já tem
importância para ti.
– Pois tem – concedeu Tanner.
– Então porque estás a falar comigo acerca disso, em vez de falares com
ela?
– Já te disse… ela não quer voltar a ver-me.
– E então?
– O que queres dizer?
– Asheboro é uma cidade pequena. – A voz de Glen soava paciente, mas
firme. – Vais passar aí duas ou três semanas, talvez mais. O mais provável é
que, a menos que optes por esconder-te no hotel, acabes por vê-la outra vez.
O que tens de resolver primeiro, porém, é quem és e o que queres
realmente, para saberes o que dizer quando isso acontecer.
Depois de desligar, Tanner sentiu-se cansado. Ainda que não quisesse,
perguntou-se o que estaria Kaitlyn a fazer naquele momento; perguntou-se
se teria planos para o fim de semana com os miúdos. Calculava que Mitch
passaria algum tempo a talhar figuras de madeira com o vizinho, como
sempre, e que depois teriam um jantar em família. Sorriu, a recordar a noite
em que fora a casa deles, e levantou-se do banco. Recomeçou a caminhar e,
uns minutos depois, ao reparar num casal mais velho de mãos dadas, de
súbito apercebeu-se de que, por mais emocionante que tivesse sido fazer
amor com Kaitlyn, havia uma parte de si que desejava que a noite anterior
nunca tivesse acontecido, para que pudessem simplesmente começar de
novo.

V
No consultório, Kaitlyn mantinha-se o mais atarefada possível. Para
além dos pacientes com consulta marcada, chegaram vários sem marcação,
e ela conseguiu atender quase todos. Reduziu a hora de almoço e começou a
ver os pacientes da tarde. Quando a tarde ia a meio – à hora que Mitch
chegaria a casa da escola –, o seu despertador mental disparou e ela ligou o
som do telemóvel. Como sempre, avisou de antemão o paciente que estava
a atender quanto ao facto de o filho ir telefonar-lhe; os pacientes nunca se
importavam. Mitch ligou à hora do costume e, depois de pedir licença,
Kaitlyn saiu para o corredor.
– Estou em casa e a escola foi uma seca – disse ele, antecipando-se às
perguntas dela. – Mas, mãe, sabes uma coisa? O Arlo está aqui.
Ela demorou um segundo a lembrar-se de quem era Arlo.
– Estás a falar do cão do Jasper?
– Pois. Está deitado no nosso pátio, ao pé da árvore. Queres que vá vê-
lo?
– Não – disse ela. – Fica em casa, por agora. Se é o Arlo, de certeza que
vai voltar para o Jasper quando estiver pronto.
– E se não se for embora? – Mitch parecia preocupado.
– Nesse caso, levamo-lo para dentro quando eu chegar do trabalho.
– OK – disse ele, sem disfarçar a desilusão.
– E lembra-te que daqui a pouco Mrs. Simpson vai ver como estás, mas,
tirando isso, deixa a porta trancada.
– Eu sei. Dizes-me sempre isso.
Depois de se terem despedido, Kaitlyn voltou para o gabinete. Continuou
a ver pacientes à medida que o dia ia avançando, mas, em momentos mais
calmos – enquanto se esforçava resolutamente por não pensar em Tanner –,
dava por si a perguntar-se o que levara Arlo a ir para sua casa. Era esquisito.
Tanto quanto sabia, nunca tinha feito aquilo, e ela perguntou-se se Jasper
teria dado pela ausência do cão. Mais para o fim do dia, sabendo que Jasper
não tinha telemóvel, ligou-lhe para o número fixo.
Tocou sem que ninguém atendesse.

VI
Uma brisa do entardecer agitava os ramos das árvores e Jasper
observava-os, com o olhar turvo. Embora o frio não tivesse deixado que as
roupas secassem, o seu próprio calor aquecera-o e os tremores tinham
finalmente parado, o que lhe possibilitara ir dormitando ao longo do dia.
Quando acordava, tentava fazer um inventário de como estava, concluindo:
Nada bem mesmo. O estômago vazio tinha começado a ter cãibras e,
ironicamente – depois da tempestade noturna –, sentia tanta sede que era
como se tivesse a garganta cheia de gravilha. O inchaço do tornozelo fazia-
o parecer um balão de água e o mínimo movimento da perna era uma
tortura. Pior ainda, as roupas húmidas tinham-lhe irritado a psoríase das
costas, do peito, dos braços e das pernas, deixando-lhe a pele a arder como
se estivesse deitado num ninho de formigas-de-fogo.
De alguma maneira, sobrevivera ao dia. Mas onde estaria Arlo?
O cão não tinha voltado. Havia de ter fome, calculava Jasper,
consolando-se com a ideia de que se teria afastado em busca de algo para
comer. Não queria acreditar que o tivesse abandonado, e esperava que
voltasse em breve, mais que não fosse para partilhar o seu calor. A noite –
com as temperaturas mais frias – estava quase a cair e ele só rezava por que
não houvesse outra tempestade. No entanto, não seria a primeira vez que tal
acontecia. Afinal, os elementos tinham definido quase tudo na sua vida.
Havia a história do seu avô e da chuva de peixes, que acabara por levar à
criação de uma igreja em Asheboro, onde Jasper nascera e crescera. Pensou
na enxurrada que tinha bloqueado as estradas em redor e permitira ao pai
comprar o terreno da cabana. Lembrou-se do furacão e da chuva que fizera
o rio galgar as margens e destruir-lhe a casa, e do tornado que lhe arrasara o
negócio. Ainda via as rajadas súbitas de vento que tinham levado as achas
flamejantes para o telhado da casa deles naquela noite horrível, em que
perdera todos os que amava.
Naquele momento, porém, no estado enfraquecido em que se encontrava,
deu por si a recordar a tempestade a que assistira em criança, e o que o pai
lhe dissera depois.
Teria uns oito ou nove anos e o pai tinha-o levado a pescar num lago
perto da Floresta Wake. Quando afastaram a canoa da margem, o céu estava
azul e limpo, com o ar tão imóvel que parecia que a Terra tinha parado de
girar. Havia enxames de moscas e mosquitos, pelo que tanto ele como o pai
tinham vestido manga comprida, mas, assim que avançaram pela água, o
ambiente espaireceu, dando lugar a um dia perfeito de verão. Durante as
horas seguintes, pescaram percas com isco de vairão, enquanto pequenos
flutuadores oscilavam na superfície do lago. Nenhum deles sentia
necessidade de falar e, apesar da beleza do dia, Jasper não via outros barcos
na água. Lembrava-se de ter pensado que quase parecia que estavam os dois
sozinhos no mundo.
Tinham tido sorte. Ele pescara dois peixes que valia a pena guardar, ao
passo que o pai puxara a linha com outros três, prometendo que comeriam
bem naquela semana. Quando estavam a guardar os iscos, uma rajada de
vento surgiu subitamente e sem o menor aviso, tão forte que Jasper quase se
desequilibrou. No horizonte, reparou num enorme banco de nuvens de um
cinzento carregadíssimo, a avançar na direção deles.
O vento soprou mais, a temperatura desceu e, numa questão de minutos,
a agitação do lago começou a fazer lembrar as ondas que rebentavam nas
praias da costa. O pai de Jasper agarrou os remos com uma expressão
preocupada e a chuva começou a cair. Jasper tentava remar ao mesmo
tempo que o pai, mas não tinha força suficiente para o acompanhar. Via o
esforço e a tensão nos ombros e nos braços do pai através do tecido da
camisa à medida que as ondas começavam a subir pelas laterais da canoa. O
pai remava como louco, parecendo nunca se cansar, nem quando a água
chegou a meio das canelas de Jasper. De qualquer maneira, lá chegaram à
margem.
Quando puxaram o barco para a margem, fustigados pela carga de água,
o pai inclinou-se para a frente, a ofegar, até finalmente recuperar. Juntos,
arrastaram a canoa de volta para a carrinha e prenderam-na. Na segurança
do habitáculo da carrinha, o pai de Jasper soprou nas mãos para as aquecer
antes de finalmente falar.
– Salmos 148:8 – sussurrou.
De volta a casa, Jasper abriu a Bíblia e leu: Fogo e granizo, neve e
neblina; vento tempestuoso, que obedece à Sua palavra.
O versículo não falava de chuva, mas, não obstante, Jasper julgou ter
compreendido o que o pai tentava dizer-lhe. Tudo o que acontecia no
mundo, o bom e o mau, oferecia aos crentes uma oportunidade de louvar a
Deus.
Mas agora, magoado e impotente na Uwharrie, Jasper sabia que há muito
deixara de acreditar em tais coisas.
VII

Assim que Kaitlyn avançou com o carro pelo acesso da casa, viu Arlo
deitado de lado no relvado. Saltou do Suburban e aproximou-se do cão, ao
mesmo tempo que Mitch saía esbaforido de casa.
– Estás a ver! Eu disse-te que era o Arlo.
– Tens razão – disse a mãe. Agachando-se, acariciou a cabeça do cão,
reparando que parecia que tinha andado a rebolar na lama. – O que estás
aqui a fazer, velhote? Liguei ao Jasper há bocadinho, mas ele não atendeu.
Fugiste enquanto andavam a fazer uma caminhada?
Ao ouvir a voz dela, Arlo começou a abanar a cauda e tentou levantar-se,
com as pernas traseiras a tremer com o esforço.
– Posso trazer-lhe água antes de o levarmos para casa? – perguntou
Mitch. – Acho que é capaz de ter sede. Há um bocado, andava a farejar à
volta da mangueira do alpendre.
– Claro – disse ela. – Traz um tupperware do…
– Eu sei onde está! – gritou ele já a correr de volta para casa; um minuto
depois, estava a caminhar na direção dela com a tigela que a família
costumava usar para comer pipocas. Um dia, pensou ela, espero que os
meus filhos ouçam realmente o que lhes digo.
Mitch pousou a água e Arlo começou logo a bebê-la.
– Também posso trazer-lhe um cachorro-quente? – pediu Mitch. – Para o
caso de ele ter fome?
– Não sei se isso lhe fará lá muito bem.
– Porquê? Eu como cachorros-quentes.
E também não te fazem muito bem, pensou ela.
– Pois. Está bem, pode ser.
Mitch voltou a correr para dentro de casa, regressando pouco depois não
com um, mas dois cachorros-quentes. Partiu um ao meio e ofereceu-o a
Arlo, que o tragou. Enquanto o filho dava a outra metade ao cão, Kaitlyn
viu Camille entrar no acesso da casa e estacionar atrás do Suburban. Casey
saiu do carro da amiga enquanto o irmão dava o segundo cachorro-quente
ao cão.
– Olá, mãe, olá Mitch – cumprimentou-os, a atravessar o relvado. – Que
se passa?
– O Arlo veio até cá – disse Mitch. Por essa altura, Arlo já se tinha
aproximado mais dele e estava a farejar-lhe os bolsos como que a procurar
mais comida. – Já cá estava quando cheguei da escola.
– Porquê? – Casey parecia intrigada.
– Não sei. – Kaitlyn encolheu os ombros, tornando a pensar que aquilo
era muito estranho.
A sua ideia inicial era levar Arlo a pé até casa, mas, tendo em conta o
quanto lhe tinham tremido as pernas ao tentar levantar-se, reconsiderou. Ele
ainda parecia capaz de cair para o lado a qualquer momento.
– Acho que é melhor pô-lo na bagageira do Suburban e levá-lo a casa,
mas não me parece que seja capaz de saltar tanto.
– Podemos pegar nele ao colo – sugeriu Mitch.
O que queria dizer, claro, que teria de ser Kaitlyn a pegar nele. Lançando
um olhar ao corpo arredondado do cão, calculou que pesaria uns trinta,
trinta e cinco quilos.
– Primeiro precisam de uma toalha – comentou Casey. – Ele está
imundo.
– OK! – Mitch correu para dentro de casa pela terceira vez. Kaitlyn mal
teve tempo de gritar, antes de ele entrar: – Mas não tragas das toalhas boas!
Traz uma das velhas, que estão no armário.
– Continuo sem perceber o que é que ele está aqui a fazer – disse Casey,
a afagar a cabeça do cão, que, encantado, tinha os olhos quase fechados.
Arlo aproximou-se lentamente da tigela de água. Bebeu durante muito
tempo, aparentemente tão sequioso como quando Mitch a colocara diante
dele. Entretanto, Mitch tornou a sair e correu na direção deles, com as
toalhas brancas e limpas da sua casa de banho. Uns segundos depois, estava
a esfregar Arlo com uma delas, que logo ficou manchada de terra e lama.
Fantástico, pensou Kaitlyn.
– Pronto, mãe – disse ele. – Acho que já está suficientemente limpo para
o pormos na parte de trás do carro.
Kaitlyn sabia que isso não se aproximava sequer da realidade, mas,
apesar disso, foi até à traseira do Suburban e abriu a porta da bagageira.
Chamou Arlo, que avançou lentamente. Mexia-se, pensou ela, como se
estivesse dorido.
Na traseira do Suburban, Kaitlyn estava a tentar decidir qual seria a
melhor maneira de fazer o cão subir para a bagageira quando Casey
avançou e se limitou a agarrá-lo à volta às pernas e a colocá-lo suavemente
na bagageira. Arlo pareceu ficar desorientado por um instante, antes de
abanar a cauda. Kaitlyn fitou a filha.
– Cheerleading, mãe – explicou Casey com um encolher de ombros. –
Levanto outras pessoas em todos os treinos, estás recordada? A coisa não se
resume a ficar gira de uniforme.
– Claro – concedeu Kaitlyn.
Mitch sentou-se no banco de trás e Casey pôs-se ao volante.
– Eu posso levar o carro – disse. – E posso ajudar a tirar o Arlo lá de trás.
Fizeram o pequeno trajeto até à cabana de Jasper, mas bastou um olhar
de relance para Kaitlyn saber que ele não estava, o que explicava a chamada
não atendida. Não havia sinal da carrinha e a casa estava às escuras, mas,
por essa altura, Casey já tinha saído, aberto a porta de trás e pousado Arlo
no chão. Em vez de avançar para o alpendre, o cão ficou onde estava, a
abanar a cauda.
– Não parece que ele esteja em casa – disse Mitch, a semicerrar os olhos
atrás das lentes.
– Vou lá verificar – avisou Kaitlyn.
Subiu as escadas e bateu à porta, sem esperar resposta e a perguntar-se
onde poderia Jasper ter ido. Tanto quanto sabia, ele levava Arlo para onde
quer que fosse. Ainda pensou verificar se a porta estaria trancada, mas
decidiu que isso seria demasiado intrusivo, pelo que voltou para o
Suburban.
– Não está em casa? – perguntou Casey.
– Acho que não – respondeu Kaitlyn. – Mas tenho a certeza de que não
há de demorar.
– Então e o Arlo? – quis saber Mitch. – Vamos deixá-lo aqui?
– Não podemos mantê-lo em nossa casa, querido. É o cão de Mr. Jasper.
– E se ele voltar a ficar com sede?
– Ele vai ficar bem – garantiu-lhe Kaitlyn. – Anda. Vamos para casa.
Enquanto se afastavam de carro, Arlo ficou no pátio, a vê-los.
Na curta viagem de regresso, nenhum deles disse o que quer que fosse.
Atordoada, Kaitlyn decidiu que iria procurar saber de Jasper logo de
manhãzinha.
Só para ficar descansada.

VIII

Tanner estava sentado ao balcão com uma IPA cheia de espuma à sua
frente. Era sexta-feira à noite e havia bastante gente já a celebrar o início do
fim de semana. Apesar do barulho, ele ia apanhando pormenores de
conversas em redor, nenhuma das quais parecia muito interessante. Havia
um grupo de mulheres no final da casa dos trinta, todas vestidas para uma
noite na cidade, sentadas nuns bancos mais ao lado. De vez em quando,
apanhava uma ou outra a lançar-lhe um olhar de relance, por vezes
oferecendo um sorriso antes de desviar o rosto, outras vezes tentando
prolongar o olhar. Apesar de não poder saber ao certo, achou que pareciam
mulheres solteiras à procura de diversão, descontraídas e dispostas a acolher
uma abordagem simples. Numa vida anterior, provavelmente teria ido ao
encontro delas, dando início a uma conversa até se concentrar na sua
favorita. Falariam e trocariam expressões sedutoras; um pouco mais tarde,
ele sugeriria que procurassem algum sítio mais calmo, para poderem
conhecer-se melhor. E depois? O resto da noite seguiria o seu curso natural.
Mas ele não estava com disposição para isso. Fora um erro ir ali. Por
todo o lado havia coisas que lhe lembravam Kaitlyn. Parecia inconcebível
que só se tivessem passado seis dias desde que tinham sido apresentados;
tinha a impressão de que se conheciam há muito mais tempo. Ainda via
como lhe brilhavam os olhos quando falava de Casey e Mitch e, mesmo na
primeira noite, ele tinha pressentido nela uma amabilidade e uma resiliência
que o atraíram de uma forma que raramente sentira.
Essa sensação só fora aumentando à medida que se conheciam melhor, e
ele não podia deixar de pensar que, comparada com a vida independente
dela, a sua existência nómada, povoada pelos fantasmas de tantos amigos e
relações perdidas, parecia insubstancial. A fitar o copo, perguntou-se – de
uma forma inconsciente – se em parte se teria sentido atraído por Kaitlyn
por ela representar uma oportunidade de evoluir, mas, caso isso fosse
verdade, também significava que havia uma parte de si terminantemente
decidida a autossabotar-se.
Bebeu mais um pouco e, pelo canto do olho, viu que uma das três
mulheres estava de novo a observá-lo. Desviou o olhar e tentou conjurar
imagens da sua última estada nos Camarões, para se recordar dos motivos
que o tinham feito aceitar voltar. Porque não? Da última vez gostei,
parecera-lhe uma resposta suficientemente boa, mas desconfiava que tanto
Kaitlyn como Glen tinham razão ao categorizar a decisão como mais um
passo na deambulação interminável, não algo que ele tivesse procurado por
alguma razão ou propósito em particular.
Mas, se não fosse, então que faria?
Não sabia. Apesar do seu desejo de levar uma vida com sentido, as
decisões que tomava pareciam refletir sempre a convicção de que a sua vida
real estaria nalgum outro lugar, a seguir ao próximo horizonte.
Tinha noção de que Kaitlyn seguia uma filosofia diferente. Tanto em
palavras como em ação, subscrevia a noção de que a vida tem menos que
ver com o quê e o onde do que com o quem. Ela tinha afirmado que esse
propósito podia ser encontrado cuidando intimamente daqueles que amava,
bem como de outros que precisassem, num sítio acolhedor. Ela tinha dado
sentido à sua vida de uma forma que Tanner nunca dera, e ele tinha a
sensação de que havia algo que ele ainda poderia aprender com ela.
Mas isso já não aconteceria. Como se ele fosse areia a escapar-lhe por
entre os dedos, ela libertara-o e, no fundo, ele sabia que a sua resposta seria
instintiva. Deixaria Asheboro e tornaria a fazer-se à estrada.

IX

A noite tinha caído e Jasper estava a sofrer. Não conseguia parar de


tremer e sentia dores terríveis a cada espasmo. A pele, o tornozelo, o joelho,
as costas e a cabeça, tudo a latejar e a provocar-lhe pontadas sempre que o
corpo tremia. Chorava sem lágrimas, pois estava tão seco como uma
múmia.
Tentava distrair-se fitando o céu. Este irradiava um brilho etéreo à
medida que o luar se dispersava. Certa vez, muito tempo antes, ele e o pai
tinham observado um firmamento similar, e Jasper imaginara que talvez o
Céu fosse assim. Luz divina, dissera o pai, e Jasper lembrava-se de ter
pensado que isso era a prova de que Deus estaria sempre consigo.
Mas Deus virara-lhe as costas e, quando Jasper tornou a tremer, de
súbito a sua visão estreitou-se. A dor era vermelha, ardente, como a ponta
de um tição. Tentou recordar-se que já tinha sentido dores similares, depois
das queimaduras, mas nessa altura era mais jovem e mais forte. Já não era o
homem que tinha sido. Da vez seguinte que estremeceu, revirou os olhos e
desmaiou, com a mente tão negra como a própria noite.

Perdida num sonho, Kaitlyn acordou com a sensação de que alguém a


abanava. Quando abriu os olhos, os resquícios do sonho dissiparam-se e ela
focou o olhar no filho. A luz da madrugada passava pelas janelas.
– Mãe – ouviu-o dizer –, estás acordada?
– Agora estou – balbuciou ela. – Que horas são?
– Não sei – disse Mitch. – Mas tens de te levantar.
Ela esfregou a cara antes de olhar para o relógio. Eram seis e meia e foi a
custo que se sentou.
– O que se passa? Porque estás a pé tão cedo, hoje é sábado!
– Estava preocupado com o Arlo e, quando fui lá fora, ele estava no
nosso alpendre.
– Voltou?
Mitch assentiu com a cabeça.
– Posso levar-lhe água?
Ela saiu da cama e enfiou os pés nos chinelos.
– Vamos lá vê-lo. E podes levar-lhe água, mas primeiro tens de calçar
uns sapatos e vestir um casaco.
Ele afastou-se na direção do seu quarto enquanto ela vestia um robe e
descia as escadas até à porta da rua. Como o céu matinal só então começava
a clarear, acendeu a luz do alpendre antes de abrir a porta. Realmente, ali
estava Arlo, todo enrolado. Quando a viu, levantou-se a custo. Ela fez-lhe
uma festa e sentiu que ele tinha o pelo frio, como se tivesse passado horas
ao relento.
Ou toda a noite?
Por essa altura, Mitch já saíra de casa, com a tigela de água. Ela sentiu
uma pontada de preocupação enquanto ele a pousava. Ficaram a ver o cão a
beber.
– Vai lá buscar-lhe uns cachorros-quentes.
– Dois?
– Traz quatro – disse ela.
Quando Mitch voltou com os cachorros-quentes, partiu-os ao meio e
Arlo devorou-os. Mitch olhou para a mãe.
– Porque achas que ele voltou?
– Não sei.
– Mr. Jasper estará bem?
Ela tornou sentir um aperto no estômago.
– Tenho a certeza de que está, querido.
– Podemos ir lá a casa? – Mitch fitava-a com um olhar ansioso, os olhos
enormes no rosto pequeno.
– Vamos daqui a pouco. Ainda é cedo.
– O que vamos fazer com o Arlo?
– Podes ir procurar as mantas velhas que estão no fundo do armário da
roupa de cama? Fazemos-lhe uma caminha aqui no alpendre.
– OK – respondeu ele, e voltou rapidamente a entrar. Quando regressou
com as mantas, Kaitlyn fez a cama. Arlo enroscou-se, com um ar satisfeito.
– Vou tomar um duche – disse ela. – Se quiseres, podes ficar aqui fora
com ele.
– Está bem.
A caminho do quarto, Kaitlyn reparou que a porta do de Casey estava
fechada. Ao espreitar, ficou surpreendida ao ver a figura adormecida da
filha debaixo das mantas amarrotadas. Ela não tinha dito que ia passar a
noite em casa de Camille?
Estava um dia luminoso e soalheiro quando acabou de se arranjar e,
depois de pegar nas chaves e na carteira, juntou-se ao filho, no alpendre.
– Fica aqui com o Arlo – disse-lhe. – Eu dou um pulo a casa de Mr.
Jasper.
Mitch acenou com a cabeça e Kaitlyn repetiu a viagem que tinha feito na
noite anterior. Mais uma vez, reparou na ausência da carrinha dele e no
interior escurecido da cabana, a qual, desta feita, parecia estranhamente
abandonada.
Saiu do todo-o-terreno e seguiu pelo caminho de terra batida até ao
alpendre. Bateu à porta, esperou e tornou a bater. Não obteve resposta, nem
ouvia som algum a sair da casa. Desta vez, levou a mão à maçaneta da
porta, partindo do princípio de que estaria trancada, mas o puxador girou
facilmente na sua mão. Entreabriu a porta e espreitou lá para dentro.
– Jasper? – chamou. – Olá? Está por casa? Sou eu, a Dra. Cooper!
Ninguém respondeu e, entrando, olhou em volta e observou as paredes
de madeira e os móveis gastos mas confortáveis na pequena sala de estar. O
ar cheirava levemente a bafio, mas não detetava qualquer odor a
decomposição. Apercebeu-se subitamente de que era isso que receava – que
Jasper tivesse falecido –, mas o seu alívio não durou. Nada daquilo lhe
parecia bem. Demorou uns minutos a olhar em volta, espreitando os dois
quartos e a casa de banho antes de se dirigir para a cozinha. No lava-loiça,
viu uns quantos pratos sujos; parecia que tinham sido ali deixados com a
intenção de serem lavados quando Jasper regressasse.
Que estranho.
Ao sair da cabana, sobressaltou-se com um disparo distante. Lembrou-se
de que um dos seus pacientes mencionara que, naquele fim de semana, iria
caçar perus com os filhos. Pouco depois, ouviu outro tiro, que lhe pareceu
mais próximo do que o anterior. Apressou-se a regressar ao todo-o-terreno.
Ao longo dos anos, tratara algumas pessoas envolvidas em acidentes de
caça, e nunca fora fã de armas; assustavam-na. Só dentro do carro soltou a
respiração que não sabia que tinha estado a conter.
Olhou uma última vez para trás, para a porta da cabana. Uma coisa era
que Jasper não estivesse em casa naquela manhã – podia ter ido tomar o
pequeno-almoço a um restaurante, ou algo do género –, mas que Arlo
tivesse aparecido em sua casa de novo deixava-a a pensar que a ausência
talvez já fosse bastante demorada.
E, mais do que isso, começava a perguntar-se o que poderia fazer em
relação àquilo, se é que podia fazer alguma coisa.

XI

Jasper ouviu um estampido ao longe, mas, no seu delírio, só ao ouvir o


segundo é que conseguiu finalmente ordenar os pensamentos. Sentia a
mente lenta e toldada e, quando abriu os olhos, o mundo à sua volta estava
turvo.
Disparos, pensou.
Perguntou-se quão longe estariam os caçadores; perguntou-se se alguém
acabaria por ver a sua carrinha. Perguntou-se se alguém se demoraria por ali
a investigar a área e se o seu corpo seria encontrado. Sabia que a morte o
esperava, pois, apesar de ter a visão turva, já distinguia uma figura
ensombrada.
Vira aquela sombra uma vez, muito tempo antes, quando Mary tinha
cinco anos e acordara certa manhã com febre e a queixar-se de dores de
cabeça e de garganta. Havia uma gripe a circular, e Audrey passara o dia
todo com a filha. Limpava-lhe a testa com um pano fresco; dava-lhe um
analgésico de poucas em poucas horas, mas a febre de Mary não parava de
subir e os seus lençóis ficavam ensopados em suor. Na manhã seguinte,
tinha começado com pieira e, com receio, Jasper pegara nela ao colo e
levara-a para a carrinha enquanto Audrey acorria à casa dos vizinhos.
Pediu-lhes que tomassem conta dos outros filhos enquanto eles levavam
Mary às urgências, em Greensboro.
Como estava com dificuldades respiratórias, a menina foi internada de
imediato. O médico não demorou muito a diagnosticar um caso grave de
epiglotite. Foi com um rosto grave que lhes disse que Mary ia ser
transferida para a unidade de cuidados intensivos, tendo o cuidado de não
fazer promessas.
Jasper abraçou Audrey, chorosa, antes de esta ir para casa para cuidar
dos outros filhos. Ele passou o resto do dia e da noite no hospital, quer na
unidade de cuidados intensivos, quer na sala de espera, dois pisos abaixo da
filha. Algures depois da meia-noite, avassalado com a impotência que
sentia, ajoelhou-se e uniu as mãos para rezar.
Estava a rezar há mais de uma hora quando sentiu como se o seu espírito
se separasse do corpo. De repente, já não estava afastado da filha.
Encontrava-se diante dela, na unidade de cuidados intensivos, a ouvir os
sibilos agoniantes que ela fazia ao esforçar-se por respirar. Via-lhe a cor
pálida da pele, como a de um fantasma, e ouvia o apito constante das
máquinas. Viu uma enfermeira loura com um gancho vermelho no cabelo a
cuidar de um idoso ali perto e foi então que deu por outra presença no
quarto.
A um canto escuro, como que através de uma vidraça suja, estava o
contorno ténue de uma figura. Jasper semicerrou os olhos, a pressentir o
vazio escuro dentro da figura e, quando esta começou a mexer-se,
esticando-se para a sua filha, Jasper abriu os olhos de súbito e pôs-se de pé.
Empurrou umas portas duplas e desatou a correr pelo corredor do hospital,
passando veloz por enfermeiras assarapantadas. Ouviu que o chamavam,
mas ignorou-as. Sabia, no fundo da sua alma, que a filha corria perigo.
De alguma forma, como se Deus o guiasse, encontrou as escadas e
galgou-as, usando os corrimãos para se içar e subir ainda mais depressa.
Chegou ao piso dos cuidados intensivos de pediatria e acelerou pelo
corredor afora. Pouco depois, entrava de supetão na unidade. A enfermeira
loura de gancho vermelho, que ainda estava junto do idoso, virou-se com
um grito assustado.
Jasper fitou a figura enegrecida que já envolvia a filha e apercebeu-se de
que Mary já não conseguia respirar. O corpo dela arqueava-se e, um
momento depois, uma das máquinas começou a emitir um alarme.
Por essa altura, um médico tinha chegado ao quarto, seguindo Jasper, e
acorreu de imediato à menina. Outras enfermeiras fizeram o mesmo e,
enquanto se afastava, Jasper ouviu o barulho indistinto de ordens gritadas.
Viu uma das enfermeiras a começar a fazer manobras cardiorrespiratórias;
outra colocou um balão de ar a cobrir o rosto de Mary e começou a
bombeá-lo. Outra ainda tentava segurar a pequena enquanto o médico
preparava um tubo que, um segundo depois, foi enfiado pela garganta
abaixo de Mary.
Como tinha a garganta tão inchada, demorou uma imensidão agoniante
de tempo a chegar à posição desejada. Mas, quando o médico finalmente se
endireitou e soltou uma longa expiração de alívio, Jasper deu-se conta de
que a sombra sobre a filha começara a desvanecer-se. O negro dissolveu-se
rapidamente, ficando cinzento, antes de desaparecer por completo. Quando
o médico se virou para ele, com uma expressão austera, Jasper baixou a
cabeça, recusando-se a encará-lo. Em vez disso, saiu do quarto sem dizer
palavra e acabou por deixar-se cair novamente numa cadeira da sala de
espera.
Não sabia que a febre de Mary baixaria de manhã. Não sabia que o tubo
de respiração seria retirado pouco depois, nem que, dali a apenas quatro
dias, a filha estaria de novo na escola. Tudo o que sabia era que a filha
correra perigo de morte e que, se o médico e mais enfermeiras não tivessem
acorrido à unidade de cuidados intensivos naquele preciso momento, ela
não teria sobrevivido. A morte, sob a forma de uma figura ensombrada,
tinha ido procurá-la.
E agora, caído por terra na Uwharrie, Jasper fitava aquela escuridão de
sombras familiar, ao longe. Só que, desta vez, sabia que, quando começasse
a avançar na sua direção, nada poderia fazer para a travar.

XII

Ao voltar de casa de Jasper, ainda preocupada e irrequieta, Kaitlyn


passou pelo supermercado e comprou os ingredientes necessários para
preparar uma lasanha, bem como uns rolos de canela acabados de fazer e
umas latas de comida para cão.
Em casa, ela e Mitch comeram os rolos ao pequeno-almoço. Depois
levaram Arlo para dentro, deram-lhe banho e secaram-no. Kaitlyn despejou
a comida para cão numa tigela e viu como ele a devorava. Também já se
mexia melhor e, quando o cão acabou de comer, Mitch perguntou se podia
levá-lo lá para fora para brincar com ele. Ela assentiu com a cabeça, depois
de lhe dizer que tinha de vestir o casaco.
Perguntou-se de novo o que haveria de fazer antes de finalmente pegar
no telemóvel. Como não era uma emergência, ligou para a esquadra da
polícia e descreveu brevemente o que se passava, antes de a chamada ser
transferida para um detetive. Voltou a explicar tudo o que sabia e, embora o
detetive do outro lado se mostrasse compreensivo, admitiu que, para além
de passar por casa de Jasper, pouco poderia fazer.
Kaitlyn deixou escapar um suspiro, ciente de que isso não bastaria.
– Há notícia de algum acidente de viação?
Ouviu o homem a remexer nalguns papéis na secretária.
– Isso vai demorar algum tempo a saber. Teria de contactar a Polícia de
Trânsito e…
– Pode fazê-lo, por favor? Eu sou a médica dele e ele tem alguns
problemas de saúde. Pode estar em perigo.
Por esta altura, era notório que o detetive estava desejoso de desligar.
– Eu volto a ligar-lhe. Quer dar-me o seu número?
Ela assim fez. Quarenta minutos depois, ele telefonou-lhe.
– Nada – informou-a. – Nenhum acidente com a carrinha dele.
Ela esfregou a testa.
– Bem… então e um daqueles alertas para séniores, ou lá como é que se
chamam? – perguntou ela, referindo-se a um sistema similar ao que existia
para crianças raptadas, que disseminaria a informação necessária usando
sinalizações de autoestrada e telemóveis.
– A menos que tenhamos a certeza de que ele desapareceu ou que há
sinal de violência –, explicou o detetive –, não corresponde aos critérios. A
senhora disse que a carrinha dele não está estacionada perto de casa e que
as luzes da casa estão apagadas. O mais provável é que tenha ido visitar
alguém.
– O Jasper não teria deixado o cão – insistiu Kaitlyn. – Vão juntos para
todo o lado.
– Talvez o tenha deixado com um vizinho e o cão tenha decidido fugir.
Eu sei que não é o que queria ouvir, mas, objetivamente, nem sequer é certo
que ele tenha desaparecido. E, até se passarem quarenta e oito horas, não há
muito que se possa fazer.
Kaitlyn deixou escapar um som de frustração.
– Se a polícia não pode fazer nada, o que hei de fazer?
– Se eu estivesse no seu lugar, começaria por contactar vizinhos, amigos,
familiares. Talvez alguém saiba para onde ele foi. E detesto estar a sugerir
que lhe tenha acontecido alguma coisa má, mas talvez queira ligar também
para os hospitais da zona.
– E se eu contactasse o xerife?
– Provavelmente, vai receber a mesma resposta que eu acabo de lhe dar.
Quarenta e oito horas. Mas, se ele amanhã continuar desaparecido, venha à
esquadra que eu redijo um relatório da ocorrência – prometeu. – No
mínimo, emito um alerta para a carrinha dele.
Aquilo não parecia suficiente. Kaitlyn desligou e tentou conter a
irritação. Estava simultaneamente abatida por saber tão pouco acerca de
Jasper. Ainda que fosse capaz de recitar o seu historial clínico – e apesar de
saber que ele perdera a mulher e os filhos há anos –, ocorreu-lhe que não
fazia ideia de como passaria os dias. Nem, tanto quanto conseguia lembrar-
se, ele alguma vez lhe mencionara quaisquer vizinhos, amigos ou
familiares.
Acabou por seguir o conselho do detetive e ligou para todos os hospitais
da área, chegando até Winston-Salem e Durham, mas também não teve
qualquer sorte. Depois, num esforço para se distrair, passou as horas
seguintes a arrumar a casa e a tratar da roupa antes de ir para a cozinha.
Passado algum tempo, Casey desceu, de cabelo desalinhado e olhos
inchados, e meteu um dos rolos de canela no micro-ondas.
– Julgava que ias passar a noite em casa da Camille.
Casey encostou-se à bancada.
– Ela não se sentia muito bem, por isso, depois da festa, pedi-lhe que me
deixasse cá.
– O que é que ela tem?
– Nada. Disse que era uma enxaqueca, mas acho que só queria dar a
noite por terminada. O Stephen estava armado em parvo.
Isso não era surpreendente, pensou Kaitlyn.
– Como foi a festa?
– O costume – disse Casey, encolhendo os ombros. – Drogas, sexo
descomprometido, álcool, strippers, jogo a dinheiro.
– Casey…
– Estava um gelo – disse ela. – Como te disse, os pais dele estavam em
casa, portanto o que fizemos foi basicamente ficar no pátio das traseiras a
bater com os pés e a perguntar-nos se íamos ficar com pingentes de gelo no
nariz, enquanto toda a gente fingia que estava a divertir-se ao máximo. –
Tirou o rolo de canela do micro-ondas e espreitou pela janela. – Espera… o
Arlo voltou?
– Já cá estava quando acordámos.
– Isso é tão estranho – comentou ela. – Achas que aconteceu alguma
coisa a Mr. Jasper?
– Não, sei, querida.
Kaitlyn contou-lhe a conversa que tinha tido com o detetive.
– O que vais fazer?
– O Mitch ia talhar figuras de madeira com ele logo à tarde e, se por essa
altura ele não tiver voltado, acho que vou tentar outra vez ver se a polícia
faz alguma coisa, embora ainda não se tenham passado quarenta e oito
horas.
– Tipo o quê?
Kaitlyn nada disse, mais que não fosse porque não sabia o que poderia
ser feito, para além de se emitir o alerta em relação à carrinha. Mesmo que
ela conseguisse convencê-los a organizar voluntários e dar início a uma
busca, duvidava que a polícia soubesse por onde começar.

XIII

Ainda com as pernas doridas do dia anterior, Tanner correu devagar até
ao parque antes de fazer alongamentos e flexões, elevações e abdominais
até os músculos não aguentarem mais. Depois, no restaurante, comeu ovos
e panquecas enquanto ia vendo as notícias no seu iPad. Demorou algum
tempo a terminar o café, mas, apesar disso, acabou por deixar o restaurante
antes das onze sem fazer ideia do que haveria de fazer durante o resto do
dia.
Decidiu passear pelas ruas da baixa. Quando encontrou um banco, parou
e pegou no telemóvel para voltar a telefonar a Glen.
Quando o amigo atendeu, disse-lhe:
– Tenho andado a pensar muito na nossa conversa. Queria fazer-te uma
pergunta.
– Força.
– Como é que soubeste que a Molly era a tal? Quero dizer, não a
conhecias assim há tanto tempo quando vocês fugiram para casar, pois não?
– Sete semanas – confirmou Glen. – Mas acho que no segundo encontro
eu já sabia que ia casar com ela.
– O que é que ela tinha para te dar essa certeza?
– Tu conhece-la. É esperta e fazia-me rir, e eu achava-a linda, mas já
tinha conhecido mulheres assim. Só que com a Molly havia qualquer coisa
diferente na forma como eu me sentia quando estava com ela, o que
simplesmente me fez saber. Percebo que andas à procura de uma explicação
racional, mas, às vezes, não há. Às vezes, é só um palpite. Mas, para ser
sincero, também acho que tive sorte.
– Porque dizes isso?
– Porque o amor não é só uma emoção. É partilhar uma vida, e só depois
de nos termos casado é que me dei conta do quanto tínhamos em comum.
Temos os mesmos valores, a mesma moral, somos os dois católicos.
Estamos de acordo quanto a como educar os filhos, quanto a gastar agora
ou poupar para a reforma, que pais visitamos nas férias, e até quanto ao que
gostamos de fazer ao fim de semana. Cheguei à conclusão de que, quanto
mais um casal está de acordo em relação a este tipo de coisas, mais se sente
como uma equipa, como sendo um par. E, apesar de tudo isto, é claro que
nunca é fácil. As relações dão muito trabalho.
– A tua e a da Molly não.
– Estás a gozar? – retorquiu Glen com uma risada. – Dá uma trabalheira,
aos dois. Já discutimos. Já gritámos um com o outro. Batemos com portas,
dormimos em quartos separados. Houve alturas em que até quase nos
separámos.
– A sério? – Tanner abanou a cabeça, incrédulo.
– Claro. Nunca chegou ao ponto de um de nós sair de casa, mas isso não
quer dizer que eu não tivesse pensado nisso. E sei que ela também pensou.
Todas as relações têm altos e baixos, mas, feitas as contas, ambos
estávamos decididos a fazer com que as coisas funcionassem, pelo que foi o
que fizemos.
Tanner desligou o telefone depois de mais alguns minutos, com a mente
a mil. Virando costas ao seu hotel, deu por si a aplicar aquelas ideias a
Kaitlyn – ou, pelo menos, ao que tinha ficado a saber dela no curto espaço
de tempo desde que se conheciam. Mas, mais do que isso, pensava na forma
como se sentia sempre que estava com ela. Pensava no facto de ela lhe
parecer… bem.

XIV

Quando chegou a hora de Mitch ir ter com Jasper ao gazebo, Kaitlyn já


sabia que ele não estaria lá. Tinha passado os vinte minutos anteriores a
espreitar pela janela, na esperança de o ver, mas não ficara surpreendida por
isso não acontecer. Quando Mitch lhe perguntou se, mesmo assim,
poderiam ir verificar a cabana, ela assentiu com a cabeça. Arlo seguiu-os.
Mesmo ao longe, era óbvio que Jasper ainda não tinha voltado. Não
havia sinal da carrinha, nem luzes acesas, e, mais uma vez, a cabana parecia
abandonada. Não obstante, ela entrou para dar uma vista de olhos, ficando
com a certeza de que nada se alterara desde a sua visita anterior.
Aproveitando a altura do alpendre, reparou que o cão tinha deambulado
até ao extremo da propriedade e estava a fitar a Uwharrie.
– O que é que o Arlo está a fazer?
– Não sei – respondeu Mitch.
– Vai lá buscá-lo para o levarmos de volta para casa.
Observando o filho a correr na direção do cão, decidiu que iria à
esquadra e exigiria que fosse redigido imediatamente um relatório de
pessoa desaparecida, mesmo que o detetive não estivesse de acordo.
Quando Mitch se aproximou, porém, o cão desatou a correr na direção da
Uwharrie. O rapaz preparou-se para o seguir, mas Kaitlyn – lembrando-se
subitamente dos disparos que ouvira horas antes – apressou-se a descer os
degraus.
– Mitch! Para! – gritou, ligeiramente em pânico.
Mitch estacou e olhou para ela.
– Mas ele está a fugir!
Ela avançou rapidamente na direção dele.
– Não quero que vás para a floresta. É perigoso, querido! Há caçadores
por aí.
– Então e o Arlo? – afligiu-se Mitch.
– Tenho a certeza de que passa a vida a meter-se na floresta – garantiu-
lhe ela, sem saber se isso seria verdade. – Há de ficar bem. E, se quiser
voltar, sabe onde encontrar-nos.
Como Mitch não parecia muito convencido, chamaram o cão durante uns
quantos minutos, mas Arlo ignorou-os. Depois voltaram a casa, onde
Kaitlyn foi buscar a carteira e as chaves. Acabou por passar mais de uma
hora na esquadra da polícia, a preencher uma participação. Teve de ser
persuasiva, mas também convenceu o detetive a emitir imediatamente um
alerta em relação à carrinha de Jasper.
De volta a casa, estava a fazer a lasanha quando Casey apareceu.
– Cheira muito bem – disse ela. – A que horas o jantar vai estar pronto?
– Não deve demorar muito. Talvez uma hora… Vais sair outra vez?
– Claro – respondeu Casey. – Mas só mais tarde. Não te importas que
leve o Suburban, pois não?
– Não, força. Hoje já não preciso dele.
– Como é que correu na polícia?
Kaitlyn pôs a filha ao corrente.
– O Mitch está mesmo preocupado com ele, mãe. E com o Arlo.
Começou a chorar enquanto falávamos do Jasper.
– Eu também estou preocupada – reconheceu Kaitlyn.
– O Mitch também me disse que acha que Mr. Jasper é capaz de estar
perdido na floresta. Acha que foi por isso que o Arlo foi para lá. E isso
explica porque estava tão sujo.
Kaitlyn parou de espalhar as fatias de queijo na travessa.
– Porque haveria o Jasper de ir para a floresta?
– O Mitch disse que ele ia procurar cogumelos. E também que era capaz
de andar a tentar encontrar o veado branco.
Kaitlyn lembrou-se de que Jasper também lhe falara do veado branco.
Mas…
– Como é que isso explica a carrinha desaparecida?
– Podia ter levado a carrinha para a floresta, não podia? – especulou
Casey.
– Talvez.
– A polícia vai procurá-lo lá? Ou os guarda-florestais, ou lá como é que
se chamam?
– A polícia não vai fazer nada até amanhã de manhã, pelo menos, e,
quanto à Uwharrie, suponho que quem quer que seja o responsável diga o
mesmo. Sobretudo porque não temos a certeza de que ele esteja na floresta,
sequer.
– Então devíamos nós ir procurá-lo – disse Casey com convicção,
cruzando os braços.
– Estamos na época de caça – avisou Kaitlyn. – Não te quero nem a ti,
nem ao Mitch na floresta.
Casey observou-a em silêncio, com uma expressão hesitante.

XV

Jasper teve a impressão de sentir algo suave e húmido no rosto. Abriu


um olho e reconheceu o cão.
– Arlo – crocitou. – Onde tens estado?
Na sua mente, as palavras eram nítidas, mas desconfiava que lhe tinham
saído todas entarameladas, antes de voltar a perder os sentidos.
Quando acordou novamente, Arlo tinha desaparecido.

XVI

Tanner foi jantar a um restaurante da zona, cuja especialidade era carne.


Estava rodeado de casais e grupos de amigos, dos risos e murmúrios baixos
de conversas descontraídas. Isso conjurava-lhe imagens de um jantar
familiar a ocorrer do outro lado da cidade, para o qual não fora convidado.
Isso incomodava-o mais do que tinha imaginado, e deu por si a rever a
memória de se escapulir da cama a altas horas da noite e ver o avô e a avó
dançar na sala de estar. Na altura, não passava de um miúdo, mas lembrava-
se de como eles olhavam um para o outro. Havia ali amor, sem dúvida, mas
também uma certa familiaridade, uma confiança inabalável que, de certa
forma, o reconfortava ao voltar para a cama, pé ante pé.
Kaitlyn não olhara para si como os seus avós olhavam um para o outro.
Embora se sentisse atraída por ele, não se entregara por completo, ele sabia.
Continha-se desde o momento em que se tinham conhecido, como se
soubesse de antemão que ele acabaria por magoá-la.
E claro que fora precisamente isso que ele fizera, e ter noção disso
deixou-o a sentir um vazio que nunca tinha experienciado.

XVII

Kaitlyn estava a lavar a loiça do jantar quando ouviu Mitch a dizer-lhe


qualquer coisa da sala de estar.
– O Arlo voltou!
– Desculpa. – Kaitlyn fechou a torneira. – O que é que disseste?
– Ele disse «o Arlo voltou» – repetiu Casey, a avançar para a porta.
Desde que tinham acabado de jantar, ela mudara de roupa, aplicara
maquilhagem e arranjara o cabelo, parecendo mais uma jovem adulta do
que uma adolescente. Kaitlyn secou as mãos enquanto Casey abria a porta,
com o irmão ao lado.
– Podemos deixá-lo entrar? – suplicou Mitch.
– Sim – respondeu Kaitlyn. – Vou dar-lhe água e algo de comer.
Arlo seguiu os miúdos para dentro da casa como se esta fosse sua.
Entretanto, Kaitlyn abriu uma lata de comida para cão e passou-a para uma
tigela. Arlo devia ter sentido o cheiro, pois dirigiu-se à cozinha com uma
velocidade surpreendente. Casey seguiu-o, com uma expressão que
significava, E agora o que vamos fazer, mãe? Ambas sabemos que o Jasper
está em apuros.
Kaitlyn ficou calada, em busca de uma resposta adequada.
XVIII

Tanner tinha acabado de pagar a conta quando o seu telemóvel vibrou.


Franziu o sobrolho ao ler a mensagem de texto, hesitando antes de
responder. Logo a seguir, recebeu outra mensagem. Tanner enfiou o casaco
e dirigiu-se ao carro alugado.
Ao entrar no parque de estacionamento do hotel, deu logo pelo todo-o-
terreno estacionado perto da entrada e pela figura encostada ao veículo, de
braços cruzados. Abrandou o carro e parou-o no lugar ao lado antes de sair,
curioso.
– Olá, Casey – cumprimentou-a com cautela. – Estás bem?
– Estou ótima – disse ela, endireitando-se enquanto ele fechava a porta
do seu carro. – Obrigada por ter concordado ver-me. Já agora, a minha mãe
não sabe que estou aqui, mas eu acho que somos capazes de precisar da sua
ajuda.
As sobrancelhas de Tanner uniram-se.
– O que se passa?
– O nosso vizinho Jasper desapareceu. O velhote que talha figuras de
madeira com o Mitch. – E continuou, explicando tudo. Quando terminou,
Tanner olhou para o fundo do parque de estacionamento, processando o que
ela lhe tinha dito. Passado um pouco, virou-se de novo para ela, com um
olhar inquisitivo.
– E queres que eu vá procurá-lo na Uwharrie?
– Sim – foi a resposta simples da jovem. – Como lhe disse, a minha mãe
não nos deixa ir por causa dos caçadores todos que andam por lá.
Tanner recordou uma ordem de serviço dos seus tempos em Fort Bragg.
– Tenho praticamente a certeza de que não é permitido caçar ao domingo
de manhã – disse ele. – Por isso, se não me engano, amanhã de manhã deve
ser seguro procurá-lo.
– Ah – exclamou Casey. – Eu não sabia isso. Acho que a minha mãe
também não sabe. – Ponderou a nova informação. – Acha que, mesmo
assim, estaria disposto a procurá-lo? O mais provável é que a nossa mãe
não nos deixe ir, e o Tanner há de saber fazer isso melhor, por causa da sua
formação militar e tudo.
Ele considerou o que ela dizia. Depois perguntou:
– O Arlo continua em vossa casa?
– Tanto quanto sei. Porquê?
– Podes acordar cedo amanhã? Por volta das seis e meia? Para eu poder
levá-lo comigo?
– Sim, posso estar acordada a essa hora – respondeu Casey, com um ar
aliviado. – E obrigada. Tenho a certeza de que o Mitch vai ficar muito mais
descansado. – Hesitou. – Mais uma coisa: se realmente conseguir encontrá-
lo, Mr. Jasper tem um aspeto um bocado… assustador. Sobretudo quando o
vemos pela primeira vez. Sobreviveu a um incêndio grave.
Quando Tanner assentiu com a cabeça, Casey voltou para a porta do lado
do condutor do todo-o-terreno e abriu-a antes de o mirar com uma
sobrancelha arqueada.
– É mesmo uma pena.
– O quê?
– Que tenha dado cabo das coisas com a minha mãe. E eu que começava
a gostar de si.
Sem saber o que dizer, Tanner deu um passo atrás e ficou a vê-la fazer
marcha-atrás e seguir para a estrada principal. Depois de ela se ir embora,
ele voltou lentamente para o seu carro alugado. Como ia meter-se no
arvoredo – houvesse ou não caçadores –, precisaria de umas quantas coisas,
pelo que esperava que o Walmart ainda estivesse aberto.
CAPÍTULO ONZE

Q uando Tanner chegou ao acesso da casa na manhã seguinte, viu Casey


no alpendre, de pantufas e um blusão de penas grosso por cima do
pijama. Saltitava de um pé para o outro, com os braços à volta do corpo
enquanto Arlo se mantinha pacientemente sentado a seu lado. Tanner já
tinha vestido o corta-vento cor de laranja fluorescente e também pusera um
boné igualmente cor de laranja que comprara no Walmart. No banco da
frente, ao lado de uma mochila cheia, ia uma pequena placa de identificação
eletrónica e um colete cor de laranja, em que agarrou antes de sair do carro.
A luz começava apenas a infiltrar-se no céu matinal.
Casey riu.
– Está a parecer um cone de sinalização.
– E o Arlo vai ser o meu gémeo – disse ele. – Vale a pena ser cauteloso.
No alpendre, apresentou-se a Arlo antes de passar o colete pela cabeça
do cão e fechá-lo. Em seguida, tirou do bolso a placa de identificação
eletrónica e prendeu-a à coleira de Arlo.
– O que é isso?
– GPS – respondeu Tanner. – Está ligada a uma aplicação no meu
telemóvel.
– Esperto. – Esfregou os braços, a tentar afugentar o frio. – Acha que vai
conseguir encontrar Mr. Jasper? Se ele estiver na floresta, quero dizer.
– É muito terreno para bater – disse ele. – Mas tenho esperança de que o
Arlo me indique o caminho. O que podes dizer-me acerca da carrinha dele?
– É velha como tudo e está a cair aos pedaços – disse ela. – Acho que é
bege, ou branca, mas não tenho a certeza, só a vi uma vez ou isso.
Desculpe.
– Não há de haver muitas na floresta a corresponder a essa descrição.
Ela assentiu com a cabeça.
– Provavelmente precisa de saber onde ele mora, para ter uma ideia de
onde o Mitch viu o Arlo a entrar na floresta. Não sei a morada, mas posso
explicar-lhe como chegar lá. É perto daqui.
Enquanto ela lhe dava as indicações, Tanner prendeu uma trela à coleira
de Arlo e Casey acompanhou-o quando levou o cão até ao carro. Abrindo a
porta de trás, Tanner ajudou-o a subir para o banco traseiro.
– O que é que vais dizer à tua mãe? – perguntou ele. – Quando ela
reparar que o Arlo não está aqui, quero dizer.
– A verdade – respondeu Casey, encolhendo os ombros. Espreitou Arlo
antes de tornar a olhar para Tanner. – Quanto tempo acha que vai demorar?
– O que for preciso.
Tanner abriu a porta do lado do condutor e entrou. Com um aceno rápido
pela janela, despediu-se e fez marcha-atrás. Seguiu as indicações que a
jovem lhe tinha dado e, uns minutos depois, parou em frente a uma cabana
delapidada ao fundo de um pequeno caminho de gravilha.
A olhar pelo para-brisas, foi com uma pontada de surpresa que pensou,
Eu conheço este sítio, antes de descartar o pensamento, ciente de que não
era relevante naquele momento. Saiu com a mala e tirou de lá duas tiras de
fita autocolante cor de laranja fluorescente, que colou ao longo das calças
de corrida; verificou a aplicação para se assegurar de que o GPS estava a
funcionar e acendeu e apagou a lanterna para a testar também. Em seguida,
antes de a pôr às costas, confirmou o que tinha na mochila que preparara
horas antes: um estojo de primeiros socorros, um cantil cheio de água, geles
energéticos e duas mantas isotérmicas. Por fim, abriu a porta de trás, deixou
Arlo sair e tirou-lhe a trela.
Era evidente que o cão sabia onde estava, mas não se dirigiu para a casa.
Em vez disso, correu até um extremo da propriedade, após o que se deteve e
lançou um olhar a Tanner. Logo a seguir, desapareceu na Uwharrie. Mesmo
com o céu a começar a clarear, Tanner acendeu a lanterna e seguiu-o,
primeiro a caminhar, mas depois já a passo de corrida.
II

Jasper, no seu delírio, experienciava o mundo sem pensamentos


conscientes, apenas sensações físicas. Escuridão. Luz. Exaustão. Fome.
Sede. Frio. Dor.
Já não sabia que estava na Uwharrie, não sabia o que tinha acontecido.
Continuava a tremer e o que começara por ser uma agonia já só era
minimamente reconhecido. Sentiu alguém a apertar-lhe a mão e soube que
Audrey finalmente fora buscá-lo.
– Audrey – sussurrou e, por um breve instante, conseguiu visualizá-la.
Mas, logo a seguir, a imagem desvaneceu-se.
No seu lugar encontrava-se a silhueta sombria de uma figura escura, que
se aproximava cada vez mais.

III

Kaitlyn estava sentada à mesa da cozinha, a beber a sua primeira


chávena de café, quando Casey desceu as escadas e foi até à cozinha.
– Bom dia – cumprimentou-a a mãe, a olhar para o relógio. – Acordaste
com as galinhas.
– A quem o dizes – gemeu Casey.
– Se ainda estás cansada, volta para a cama. Está um dia frio e cinzento,
perfeito para se dormir até mais tarde.
– Estou desperta – disse Casey. Sentou-se no banco ao lado da mãe e
explicou-lhe o que tinha feito. Kaitlyn não conseguia fazer mais do que fitá-
la por cima da chávena de café.
– Foste ver o Tanner ontem à noite? – perguntou, estupefacta. – Sem me
pedires primeiro?
– Parti do princípio de que me dirias para não o fazer – respondeu a
filha, encolhendo os ombros.
– Tens razão – ripostou Kaitlyn, sentindo a irritação a aumentar.
– Alguém tinha de ir procurar Mr. Jasper, mãe. – A expressão de Casey
era séria. – Se a polícia não vai e tu não nos deixas ir, porque não há de ir
ele?
Aquilo talvez fosse verdade, mas… Tanner?

IV

Tanner ora andava, ora corria, tentando manter uma distância consistente
atrás do cão. Não queria assoberbá-lo, pois esperava que o guiasse, mas
tampouco tinha a certeza de que Arlo soubesse para onde ia. O velho
labrador ia mudando de direção, virava para a direita e depois para a
esquerda. Por duas vezes, até voltara para trás, antes de finalmente se
corrigir.
Apesar de a manhã ir clareando aos poucos, uma névoa envolvia o chão
da floresta e Tanner sentia-se agradecido por se ter lembrado de pôr um
colete de alta visibilidade no cão. Este destacava-se na paisagem cinza
como um sinal de néon a brilhar. Embora a floresta parecesse estar deserta,
Tanner tinha os sentidos em alerta máximo e ia perscrutando o solo em
busca de marcas. Espreitava para todos os lados, à procura de uma carrinha
velha ou de sinais de que alguém tivesse estado por ali, e ia parando a
intervalos regulares para se pôr à escuta, atento a qualquer coisa fora do
normal.
O terreno ondulava e alternava entre floresta densa e áreas rochosas.
Mais adiante, Arlo desapareceu atrás de uma pequena crista. Tanner
verificou a aplicação do telemóvel e ajustou as alças da mochila antes de
recomeçar a correr. Ao chegar ao cume, divisou Arlo entre as árvores. O cão
corria em frente, até que abrandou, de focinho colado ao chão.
Tanner seguiu-o.

V
Jasper pairava no crepúsculo entre a consciência e a inconsciência, com
a mente transformada num carrossel de memórias estáticas.
O pai sentado com a Bíblia aberta em cima do colo.
Audrey a pendurar lençóis num estendal.
Os filhos reunidos à mesa de jantar.
Mas a figura obscura lançava uma sombra sobre todos eles.

VI

Da cozinha, Kaitlyn ouvia os filhos a falar na sala de estar.


– Achas que ele vai encontrar Mr. Jasper? – perguntou Mitch. A manhã ia
a meio e a ansiedade dele tinha aumentado desde que acordara e se dera
conta de que Arlo não estava com eles.
– Acho.
– Como é que sabes?
Casey ficou calada durante algum tempo. Quando falou, a sua voz soou
com total convicção.
– Porque tenho praticamente a certeza de que ele é do género de homem
que não vai parar de procurar até o encontrar. Para além disso, ele sabe que
isto é muito importante para ti.
Kaitlyn levou uma mão à boca, grata por os filhos não conseguirem ver
as emoções que se guerreavam no seu rosto.

VII

Já estavam na floresta há mais de duas horas e Arlo começava a


abrandar. Tanner mantinha-o na mira, ainda com os sentidos em alerta.
Felizmente, a neblina começava a dissipar-se, mas, até então, ainda não vira
nada que lhe chamasse a atenção.
Apesar das deambulações de Arlo, Tanner sabia exatamente onde se
encontrava. O seu treino militar era valioso, mas ele também fora
abençoado com uma bússola interior que raramente o dececionava. A
cabana, calculava ele, estava a menos de três quilómetros de distância,
ainda que ele e o cão já tivessem provavelmente calcorreado o dobro disso.
Então, porém, reparou que Arlo parecia estar a caminhar em linha reta.
Tanner afastou um ramo, baixou-se para passar por baixo de outros tantos e
saltou por cima de uma árvore caída. Arlo, a farejar o chão, mexia-se como
se tivesse detetado um odor familiar. Mais uma vez, desapareceu atrás de
uma crista e Tanner acelerou.
Foi a ofegar que chegou ao cimo. Viu logo Arlo, mas o seu olhar
desviou-se rapidamente ao reparar em algo que não pertencia àquele lugar.
Concentrou-se no tejadilho enferrujado de uma carrinha velha, de cor
clara, cujo resto estava parcialmente ocultado por uma pequena colina ou
talude na floresta densa.
Tanner correu nessa direção, percorrendo a distância rapidamente.
Quando olhou para trás, Arlo tinha desaparecido outra vez.

VIII

A carrinha parecia suficientemente velha e amolgada para ter sido


abandonada na floresta há décadas, mas, à medida que se aproximava,
Tanner reparou que não estava coberta de folhas em decomposição, nem de
detritos caídos. Provavelmente só se encontraria ali há umas semanas.
Jasper levara-a de facto para a floresta, mas porquê?
Espreitou pelas janelas antes de tornar a perscrutar a floresta. Abriu a
porta do lado do condutor.
No lugar do passageiro, à frente estava um mapa feito à mão, desenhado
no verso de um recibo antigo; calculou que indicasse as estradas que
atravessavam a floresta, embora não tivesse a certeza disso. Entrando para o
lugar do condutor, abriu o porta-luvas. Estava cheio de papéis e recibos
amarelados; por cima encontrava-se uma carteira e Tanner pegou nela. Ao
abri-la, sacou de lá uma carta de condução. Durante um longo momento,
estudou a fotografia de Jasper, o seu nome e a sua idade, impressionado
com o poder das coincidências.
Duvidava que o velhote se tivesse afastado muito. Portanto, onde
estaria? Saindo da carrinha, Tanner perscrutou a floresta, a tentar avistar
Arlo. Como não o via, abriu a aplicação do telemóvel e depressa o
localizou, perguntando-se se o teria levado até ali por causa da carrinha, ou
por Jasper estar por perto. Começou a correr na direção de Arlo, atento ao
ponto que piscava na sua aplicação. Tanto quanto lhe era dado ver, o cão já
não andava a divagar, parecia ter parado.
Tanner desatou a correr, recordando como tinham sido frias as últimas
noites. Com os lábios comprimidos numa linha tensa, deu por si a desejar o
melhor, mas a preparar-se para o pior.

IX

Jasper tentava em vão recuperar a imagem de Audrey. Onde teria ela


ido? Porque não vinha reconfortá-lo?
No seu delírio, em vez disso via a figura sombria dos seus pesadelos. No
entanto, quanto esta parecia estar tão perto que quase poderia tocar-lhe, de
súbito começou a assemelhar-se a Arlo.

Segundo a aplicação, Tanner estava a aproximar-se do cão, mas ainda


não o via. Abrandou e, caminhando, apercebeu-se de que tinha chegado ao
cume de uma pequena crista íngreme que estava camuflada pela topografia
ondulante.
Avistou o cão ao mesmo tempo que distinguia uma figura caída no chão.
Apressando-se a descer a crista, agarrou as alças da mochila, com os
instintos a passarem para primeiro plano. Tinha feito várias formações
médicas e de primeiros socorros e tratara amigos em campo mais vezes do
que conseguia lembrar-se. Num instante, estava ajoelhado ao lado de Jasper.
Afastou Arlo com delicadeza, para ter mais espaço.
– Olá – disse em voz baixa, já a passá-lo em revista, em busca de lesões.
Catalogou o que via: o sangue no crânio indicava uma possível lesão
cerebral; os lábios secos e a língua seca eram sinais de desidratação. Tinha a
pele lívida e macilenta. Um pé estava virado num ângulo errado, o que
sugeria uma fratura exposta na parte inferior da perna, muito provavelmente
no tornozelo. O joelho também parecia horrivelmente inchado.
– Está a ouvir-me, Jasper? – cantarolou-lhe ao ouvido. – Como é que
está, amigo? Estou aqui para o ajudar.
O velhote parecia estar a balbuciar qualquer coisa. Tanner aproximou
mais a cabeça, mas não distinguiu palavras, apenas um gemido sibilado e
rouco. Levou a mão ao pulso de Jasper para lhe sentir a pulsação, mas a
pele do velhote estava assustadoramente fria e os dedos já tinham uma
tonalidade azulada. A pele do pulso tinha marcas de enxertos e cicatrizes e
Tanner nada sentia, pelo que experimentou antes na carótida. Ali, a pele era
rosa e escamosa; concentrando-se, detetou a custo uma vibração ténue e
frágil. Com a lanterna do telemóvel, verificou a dilatação das pupilas; para
seu alívio, ambas reagiram. No ecrã do telemóvel havia apenas uma barra
de sinal, que ele esperava com todas as forças que fosse suficiente para
fazer uma chamada.
Foi. Falou lenta e claramente com a operadora da linha de emergência,
explicando a situação, bem como a extensão e gravidade das lesões. Enviou
a sua localização e avisou que a ambulância ou o carro dos paramédicos
talvez não conseguisse avançar pelo terreno em redor, pelo que precisariam
de levar uma maca de mão. Pediu à operadora que repetisse tudo o que
dissera, para se assegurar de que fora compreendido.
Depois de desligar, tornou a concentrar-se em Jasper. Continuou a falar
com ele numa voz tranquilizadora, garantindo-lhe que já havia ajuda a
caminho e que ele iria ficar bem. À medida que ia falando, mexia na
mochila, tirando aquilo de que precisava. No estojo de primeiros socorros
não tinha nada que pudesse usar para fazer uma tala para o tornozelo; de
qualquer forma, não arriscaria fazê-lo, a menos que fosse uma situação de
vida ou de morte. Isso poderia esperar. Ao invés, tentou discernir a
gravidade do ferimento que Jasper tinha na cabeça. Não queria virar-lhe a
cabeça, receando provocar-lhe mais danos, mas, com a lanterna, ficou
aliviado ao ver que a ferida coagulara e que havia menos sangue do que
começara por imaginar. Era possível que fosse superficial.
Abriu as mantas isotérmicas e envolveu Jasper com cuidado, esperando
conseguir elevar-lhe a temperatura corporal. O que acontecera parecia
evidente – o velhote tropeçara e caíra, fraturando o tornozelo e batendo com
a cabeça. A dor da fratura provavelmente fora demasiado forte para que
tentasse sequer mexer-se, o que o levara a ficar ali caído sabia Deus durante
quantos dias e noites.
Tanner destapou o cantil e verteu um pouco de água na tampa, na qual
mergulhou o dedo. Humedeceu suavemente os lábios de Jasper e deitou-lhe
umas quantas gotas na boca aberta. O velhote devia precisar de receber
fluidos por via intravenosa o mais depressa possível, mas, entretanto,
Tanner esperava que aquilo fosse suficiente. Fê-lo mais umas quantas vezes
e depois parou. Demasiada água de repente poderia provocar-lhe um ataque
de tosse ou levá-lo a engasgar-se. Passado um minuto, Jasper uniu os lábios
e a sua língua emergiu lentamente. Tanner continuou a humedecer-lhe os
lábios enquanto esperava que o auxílio chegasse.
Sacando do telemóvel de novo, decidiu enviar uma mensagem a Casey.
Acabou por enviá-la também a Kaitlyn, dizendo apenas que encontrara
Jasper, que este estava vivo, mas gravemente desidratado, com uma lesão
no crânio e um tornozelo partido. Terminou com a informação de que já
estavam à espera de ajuda.
Deu mais umas gotas de água a Jasper e, pela primeira vez, os olhos
deste abriram-se por um instante, antes de tornarem a fechar-se.
– Audrey – sussurrou. Ou, pelo menos, foi o que Tanner julgou que ele
tinha dito, antes de ciciar mais uma lista de nomes. Mal eram audíveis, mas
Tanner deu por si a estacar, tornando a maravilhar-se com os mistérios que
por vezes revelam uma ordem oculta.

XI
Tanner sentiu o coração a parar ao ver o nome de Kaitlyn no ecrã do seu
telemóvel, uns minutos depois de ter enviado a mensagem.
– Tanner? – disse ela, assim que ele atendeu. – Estás em alta voz, tenho
aqui os miúdos. Encontraste o Jasper?
– Estou com ele agora, à espera dos paramédicos e de uma ambulância.
Em seguida, tornou a resumir o estado de Jasper, antes de a pôr a par do
que ia fazendo por ele no ínterim.
– Não lhe dês muita água demasiado depressa – avisou Kaitlyn. – Mas
ele vai precisar de soro assim que possível.
– Eu disse-lhes isso – respondeu ele –, só que não sei onde ficará a
estrada mais próxima, nem faço ideia de quanto tempo vão demorar a
chegar.
– Ele está consciente?
– Está a murmurar, mas não diria que esteja consciente. Abriu os olhos
por um segundo e tornou a fechá-los logo.
– Se calhar é melhor ir para aí com a minha maleta. Onde é que vocês
estão?
– Envio-te o pin da minha localização – disse Tanner, já a afastar o
telemóvel da orelha. – Espera…
– Já recebi – disse Kaitlyn, muito despachada, antes de desligar a
chamada.

XII

Tanner continuou a dirigir palavras tranquilizadoras a Jasper e a


oferecer-lhe gotas de água à medida que ia esperando. Também lhe revistou
os bolsos e guardou a chave da carrinha na mochila. Com os minutos a
passar, Tanner procurou as mãos de Jasper debaixo das mantas isotérmicas e
tentou aquecê-las; por fim, tornou a ligar para os serviços de emergência, a
pedir uma atualização. Disseram-lhe que ia alguém a caminho.
Ao fim de meia hora da sua vigília ao lado de Jasper, Tanner ouviu uma
sirene distante. Continuou a escutar a sua aproximação gradual, até que esta
cessou por completo. Calculava que estaria a uns mil e duzentos metros de
distância, talvez mais, mas, naquele terreno, era impossível saber ao certo.
Passados outros quinze minutos, Tanner subiu ao cimo da crista.
Começou a gritar por socorro, esperando que os paramédicos o ouvissem.
Ao vê-los, acenou com os braços por cima da cabeça e gritou, ficando
aliviado quando os dois homens o avistaram e começaram a apressar-se na
sua direção. Um deles, reparou, carregava uma maca desdobrável.
Infelizmente, não traziam muito equipamento médico, para além de um
colar cervical e da maca. De perto, ambos pareciam estar na casa dos vinte
anos e, depois de terem colocado o colar cervical com cuidado, Tanner
ajudou-os a passar Jasper para a maca. Embora não se tratasse de um
homem grande, transportá-lo seria difícil para duas pessoas apenas por
aquele terreno, pelo que foi de bom grado que aceitaram quando ele se
ofereceu para os ajudar. A intenção, depois de o meterem na ambulância,
era levá-lo para o hospital de Asheboro, onde seria examinado antes de os
médicos decidirem se deveriam levá-lo para o hospital maior de
Greensboro.
Antes de se fazerem ao caminho, Tanner pôs a mochila às costas e
enviou uma mensagem rápida a Kaitlyn e a Casey, para que soubessem que
já iam sair dali com Jasper e que talvez fosse melhor elas irem ter com a
ambulância ao hospital. Então, quando todos estavam a postos, levantaram
a maca. Tanner chamou por Arlo e partiram, com o cão ao lado.
Tanner deu-se conta de que era uma distância muito maior do que mil e
duzentos metros, feita em terreno difícil, o que os obrigou a parar duas
vezes. Por fim, ele divisou a ambulância na berma de uma estrada estreita
de terra batida, percebendo tratar-se de uma estrada para combate a
incêndios. Colocaram Jasper na parte traseira da ambulância e um dos
paramédicos seguiu com ele, enquanto o outro se sentava no lugar do
condutor. Tanner ficou com Arlo.
Pouco depois, a ambulância afastava-se, de sirene a ulular. Quando
desapareceu de vista, Tanner virou-se e regressou à carrinha de Jasper.
Colocou Arlo na caixa de trás e tentou rodar a chave, mas uma cinta
solta guinchava como um demónio e o motor não pegava. Tanner tentou de
novo, e ainda uma terceira vez, carregando com cuidado no acelerador para
tentar evitar encharcar o motor. Depois de mais umas quantas tentativas, o
motor finalmente pegou e ele deixou-o a trabalhar durante um minuto antes
de meter a primeira mudança.
Conduziu devagar, contornando árvores e ramos caídos, passando por
cima de pedras e vegetação baixa na direção geral da estrada que tinha
acabado de deixar. Quando lá chegou, seguiu na direção que a ambulância
tomara. Parou a carrinha por um momento para tentar perceber o mapa que
Jasper desenhara, mas não o entendia. Nem sequer percebia onde ficaria o
norte e o sul, pelo que o pôs de parte.
Felizmente, a terra batida acabou por dar lugar a uma estrada
pavimentada; seguiu um palpite quanto ao lado para o qual virar que
resultou ser o certo. Depois de deixar a floresta, foi primeiro a casa de
Jasper, deixou a carrinha no acesso e as chaves no porta-luvas, ao lado da
carteira.
Passando Arlo para o seu próprio carro, deu um pulo a um restaurante de
comida rápida, onde comprou uns hambúrgueres e deu dois ao cão antes de
seguir para casa de Kaitlyn. O todo-o-terreno não estava ali e, quando bateu
à porta, não obteve resposta. Sem dúvida estariam no hospital, mas, como
não lhe parecia bem deixar o cão sozinho, deu-lhe água da mangueira e
sentou-se no alpendre. Reclinou-se numa das cadeiras de baloiço enquanto
Arlo se enroscava a seus pés, adormecendo.
Esperava desesperadamente que o velhote sobrevivesse. Estava em
péssimo estado, disso não havia dúvida. Tendo em conta as condições
meteorológicas dos últimos dias, era de espantar que tivesse sobrevivido
tanto.
Tirou o telemóvel do bolso e começou a fazer uma pesquisa na internet.
Em silêncio, ia pensando em Jasper; também dava pela sua mente a
regressar a Kaitlyn, ciente já de que ter ido para Asheboro mudara tudo.
CAPÍTULO DOZE

D epois de telefonar a Tanner, Kaitlyn começou a compor uma lista


mental de material e medicamentos de que Jasper poderia precisar
antes de deitar a mão à sua maleta. Os filhos fizeram questão de ir com ela
e, entrando para o todo-o-terreno, Kaitlyn passou pelo consultório, onde
reuniu tudo rapidamente. Já iam bem adiantados na Uwharrie quando a
mensagem de texto de Tanner chegou, com o aviso de que Jasper estava a
ser transportado para fora da floresta.
Kaitlyn deu meia-volta e dirigiu-se para o hospital, desejando ter pedido
a Tanner mais pormenores acerca da condição em que Jasper se encontrava.
Sempre o considerara uma total contradição, simultaneamente forte e frágil.
O facto de continuar vivo quando Tanner o encontrara era uma espécie de
milagre e, à medida que conduzia, Kaitlyn ia-se perguntando se ele
sobreviveria. Dois ou três dias na floresta, à mercê do frio e da chuva, eram
muito para qualquer pessoa, quanto mais para alguém da idade dele e com
todas as suas maleitas.
Não mencionara as suas preocupações aos filhos, mas punha em causa a
sua decisão de os deixar acompanhá-la. Tarde de mais.
Casey e Mitch seguiram-na para a urgência do hospital, onde Kaitlyn
ficou a saber que a ambulância ainda não chegara. Enquanto esperavam,
falou com Michael Betters, o médico de serviço, que ela conhecia há anos.
Informou-o acerca do que sabia sobre a condição atual de Jasper, bem
como do seu historial clínico, e concordaram que era preocupante que
pudesse ter uma lesão cerebral. Dependendo da gravidade, transfeririam
Jasper para o hospital de Greensboro o mais depressa que fosse possível.
A ambulância chegou quase uma hora depois e Kaitlyn caminhou ao
lado da maca enquanto Jasper era levado para dentro. O pessoal da urgência
entrou em ação – mediram-lhe os sinais vitais e deram início a exames que
revelaram uma temperatura corporal inferior à normal e sinais de
desidratação grave. Colocaram-lhe de imediato um catéter para lhe
administrar lactato de Ringer; ao fim de uns minutos, os seus sinais vitais
começaram a estabilizar. Foi solicitada uma TAC e os resultados revelaram
um ligeiro hematoma subdural. Fizeram-lhe radiografias às vértebras
superiores e ao crânio, as quais, para alívio de Kaitlyn, não revelaram
qualquer sinal de fraturas ou fissuras. Outras incidiram sobre as pernas,
indicando uma fratura grave do maléolo lateral – a base do perónio tinha-se
partido e atravessava a pele – e aquilo que parecia ser uma entorse do
joelho. Seria necessária uma cirurgia ao tornozelo e Kaitlyn contactou um
ortopedista em quem confiava. Com os sinais vitais a continuarem a
mostrar melhoras, ela e o Dr. Betters tomaram a decisão de o manter no
hospital local, pelo menos durante as horas seguintes.
Quando o corrupio de atividade clínica finalmente abrandou, Kaitlyn
expirou e deu a mão a Jasper durante algum tempo, assistindo ao gotejar
constante do soro. Sabia que, em casos de desidratação, era comum que os
fluidos provocassem uma recuperação que poderia parecer milagrosa, mas
Jasper ainda não abrira os olhos.
Foi pôr os filhos a par do que se passava e estes escutaram-na em
silêncio, tendo perguntas idênticas às que ela própria se punha: Vai
recuperar? Quando é que vai acordar? Quanto tempo terá de ficar no
hospital? Quando Mitch perguntou se podia vê-lo, ela abanou a cabeça.
Ainda estava sentada com eles quando o Dr. Betters a surpreendeu,
aparecendo à procura deles.
– Acreditem ou não, acordou há uns minutos e consegue falar – disse. –
É um velhote rijo!
– Agora já podemos ir vê-lo? – perguntou Mitch de novo.
– Primeiro deixem-me verificar como é que ele está – disse-lhe a mãe,
afastando-lhe uma madeixa de cabelo da cara antes de seguir o Dr. Betters
até à cama de Jasper. Realmente, tinha os olhos abertos. Kaitlyn sorriu.
– Olá… doutora – balbuciou ele, numa voz rouca.
– Que grande susto nos pregou – disse ela, enquanto lhe dava a mão e a
apertava com cuidado. – Como se sente?
Ele fechou os olhos.
– Dói… – acabou por rouquejar.
– Onde é que dói?
Ele demorou muito tempo a responder e ela teve de se aproximar para o
ouvir.
– Em todo… o lado – sussurrou ele.

II

Kaitlyn foi buscar o filho para ver Jasper, embora o avisasse que este
precisava de descansar, pelo que não poderiam demorar-se. Casey
acompanhou-os e Mitch sentou-se ao lado de Jasper, bombardeando-o com
perguntas.
As respostas surgiam aos poucos. Sim, tinha ido para a floresta por causa
do veado branco. Sim, tinha escorregado e partira o tornozelo. Estava na
floresta desde quinta-feira de manhã. Kaitlyn percebeu que a história devia
estar incompleta, mas concluiu que os pormenores haveriam de surgir a seu
tempo.
Jasper perguntou quem o tinha encontrado e nesse momento Casey
interveio, explicando quem era Tanner. A ouvi-la, Kaitlyn debatia-se com o
seu próprio desconforto. Depois, apercebendo-se da exaustão de Jasper, saiu
com os filhos. Betters prometeu que a manteria ao corrente, embora ela já
tivesse decidido que passaria de novo pelo hospital depois de terminar as
consultas ao domicílio do costume.
A caminho de casa, passou pelo Bojangles com os filhos para
comprarem algo para almoçar, pois já era tarde.
Quando entrou no acesso da sua casa, viu Tanner e Arlo à espera deles.

III
Casey e Mitch correram para o alpendre para falarem com Tanner e,
depois de o informarem acerca do estado de Jasper, azucrinaram-no para
que lhes revelasse todos os pormenores acerca de como encontrara o
velhote. Ele pôs-se de pé e fez um pequeno resumo da busca que realizara
com Arlo, explicando que não quisera deixar o cão sozinho.
– Não sabia que mais havia de fazer – disse ele, fitando Kaitlyn pela
primeira vez. – Espero que não te importes.
– Não tem problema. – Kaitlyn acenou com a cabeça antes de entregar o
saco de comida a Casey. – Não te importas de levar isto para dentro e
começar a comer com o teu irmão?
Casey, a brincar, passou um braço à volta do pescoço de Mitch.
– Anda lá, pestinha – disse-lhe. – Vamos deixar os crescidos falar.
Arlo, cujo nariz seguia o saco de comida, foi atrás dos miúdos para
dentro de casa. Quando a porta se fechou, Kaitlyn cruzou os braços,
recordando a si mesma que tinha de controlar as emoções.
– Todos te devemos um agradecimento tremendo – começou. – Não sei
quanto tempo mais o Jasper teria aguentado se não o tivesses encontrado
naquele momento.
– Ainda bem que pude ajudar – disse Tanner. – Ele vai ficar bem?
Ela explicou-lhe a condição em que Jasper se encontrava, num tom
profissional, antes de acrescentar:
– E vai andar uns tempos engessado. Se isso significa que precisará de
muletas ou de uma cadeira de rodas, ainda não sei. Consegui que um
ortopedista excelente o visse.
Tanner ficou calado durante algum tempo.
– As mãos dele estavam tão frias…
Kaitlyn assentiu com a cabeça.
– Acho que isso é capaz de ter que ver com os efeitos do incêndio a que
sobreviveu. Presumo que tenhas visto os enxertos?
– Vi – disse Tanner. – E também tem psoríase.
Perante o olhar espantado dela, Tanner explicou:
– Enquanto estava aqui à espera, passei algum tempo a investigar na
internet a razão de a pele dele ter aquele aspeto. – Balançou-se para a frente
e para trás, como que a ponderar a pergunta seguinte. – O que sabes acerca
do Jasper? – perguntou por fim, lançando-lhe um olhar de relance. – Em
termos pessoais, quero dizer.
– Porque perguntas?
Tanner uniu as mãos em frente ao corpo.
– Vi a carta de condução e o livrete dele na carrinha – explicou. – O
apelido dele é Johnson.
Dado que a expressão dela se mantinha inalterada, ele continuou:
– Acontece que eu já tinha ido à cabana do Jasper no início da semana,
esperando poder falar com ele, só que não o apanhei em casa. O nome dele
era um dos que encontrei tanto na lista telefónica antiga como na nova.
De repente, ela lembrou-se de que Tanner mencionara o nome do pai
biológico e os seus olhos arregalaram-se ao dar-se conta da implicação.
– Achas que pode ser o teu pai?
– Não – disse Tanner. – A idade não bate certo, e a pessoa que procuro
chama-se Dave, ou David.
– Mas?
– Mas ele vive em Asheboro há muito tempo. E é capaz de ter familiares.
Desconcertada pela direção inesperada da conversa, Kaitlyn sentou-se
lentamente numa das cadeiras de baloiço.
– Não sei porque não liguei o apelido dele à tua busca. Acho que é
porque, para mim, ele é só Jasper. Lamento.
– Não faz mal – disse ele. – Conheces alguém da família dele? Ou sabes
se teve filhos rapazes?
– Tenho praticamente a certeza de que foi casado e teve filhos, mas ele
não fala disso. Não sei se eram rapazes. E não sei se tem outros familiares.
– Sabes de alguém que possa saber? Amigos ou vizinhos, por exemplo?
Kaitlyn abanou a cabeça.
– Tenho a impressão de que ele passa a maior parte do tempo sozinho. –
Semicerrou os olhos. – Já tentaste procurar online?
Tanner assentiu com a cabeça.
– Passei a última hora a procurar, mas não encontrei nada. O próximo
passo seria tentar os registos do condado, mas só amanhã, quando abrirem.
– Hesitou. – Achas que o Mitch pode saber alguma coisa que ajude?
– Não sei bem do que eles costumam falar. Mas podes perguntar-lhe.
Levantando-se da cadeira, ela entrou em casa e tornou a sair com Mitch
passado um instante. Quando Tanner lhe perguntou se Jasper tinha
familiares ou filhos, Mitch acenou com a cabeça.
– Teve dois filhos, mas não sei como se chamavam.
– Sabes se tem amigos na cidade?
Mitch franziu o nariz, a pensar.
– O xerife, se calhar. Acho que falou dele uma ou duas vezes.
Quando Mitch já não tinha mais nada a acrescentar, Kaitlyn disse-lhe
para voltar para dentro. Sub-repticiamente, observou Tanner, que parecia
perdido nos seus pensamentos até esboçar um sorriso rápido que
desencadeou uma torrente de memórias que ela preferia não revisitar. Como
que a pressentir o desconforto dela, Tanner desceu um degrau do alpendre.
– Quando ele começar a ficar melhor, achas que posso ir visitá-lo ao
hospital? – perguntou, virando-se para olhar para ela, com um pé no degrau.
– Tenho a certeza de que ele vai querer conhecer o homem que o salvou,
mas, por agora, precisa de repouso. Talvez daqui a um dia ou dois.
Ele assentiu com a cabeça.
– Obrigado pela ajuda.
– Nós é que agradecemos. Por o teres encontrado.
Tanner deu uns quantos passos na direção do carro antes de se virar de
novo.
– Olha – disse. – Há outra coisa que queria dizer-te, se não te importas.
Kaitlyn retesou-se.
– Sim?
– Quero pedir desculpa – disse simplesmente. – Por não ter sido claro
contigo desde o início. Em relação a ir para os Camarões. E tu tinhas razão.
Não tinha pensado realmente bem a coisa, por isso, para além de um pedido
de desculpa, também queria agradecer-te. Se não tivesses dito o que
disseste… – Deixou a frase no ar, como que em busca das palavras certas. –
Tenho passado os últimos dias a fazer alguma introspeção, a tentar perceber
quem sou e quem quero ser. Só queria que soubesses que me ajudaste a
reconhecer que são perguntas muito importantes.
Kaitlyn fitou-o, sem saber o que dizer. Um segundo depois, ele virou-se
e foi-se embora, afastando-se da casa no seu carro alugado enquanto ela
ficava a vê-lo.

IV
Casey não tardou a encurralar a mãe na cozinha.
– O que é que ele disse? – atacou ela, antes de Kaitlyn ter tido sequer
oportunidade de se recompor.
– Queria saber mais acerca do Jasper – respondeu, fingindo atarefar-se a
limpar os restos do almoço dos filhos.
– Isso eu sei, mas porquê?
Ciente de que não lhe cabia a si contar uma história que não era sua,
Kaitlyn foi vaga na resposta:
– Acabou de lhe salvar a vida – realçou, enquanto guardava os restos de
frango. – Acho que qualquer um ficaria curioso.
Casey fitou-a com um ar crítico.
– O que tens? Estás um bocado esquisita.
– Estou bem – esquivou-se Kaitlyn. – Foi só um dia de loucos.
– Vais voltar a vê-lo?
Kaitlyn hesitou.
– Sinceramente, não sei.
CAPÍTULO TREZE

T anner regressou ao hotel. Despiu-se e tomou banho e, apesar de não ter


comido muito, apercebeu-se de que não tinha fome. Em vez de comer,
deitou-se na cama, com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça, a perguntar-se
se seria possível que Jasper fosse seu avô, ou tio.
Não queria saltar para conclusões precipitadas, mas, se ele e Jasper
realmente tivessem algum parentesco, as circunstâncias em que se tinham
encontrado raiavam a intervenção divina.
Quanto a Kaitlyn…
Fora mais cordial do que ele tinha esperado. Isso deixara-o aliviado,
mas, enquanto fitava o teto, perguntava-se: seria que lhe importaria de todo
tê-lo inspirado a repensar a sua vida? Acreditaria ela que a reavaliação que
ele estava a fazer era sincera? E, o que era mais importante, estaria disposta
a dar-lhe uma segunda oportunidade? Tudo o que ele sabia era que tê-la
conhecido lhe virara o mundo do avesso.
A incerteza deixava-o a sentir-se quase à deriva. Uma semana antes,
sabia o que o esperava; uma semana antes, era como se fosse inteiramente
responsável pelo caminho que escolhia. Mas era inegável que algo dentro
de si se alterara. Tornou a pensar no que Glen tinha dito… às vezes sabe-se
simplesmente, mas…
Obrigou-se a aceitar que o que quer que acontecesse em seguida seria
por decisão dela, não sua. Era uma situação a que não estava de todo
habituado. Agitado, passou o resto da noite acordado.
II

No domingo à noite, quando Kaitlyn passou pelo hospital a caminho de


casa depois das suas rondas, Jasper estava a dormir, pelo que só na segunda
de manhã puderam conversar. Embora ainda se encontrasse exausto, já
tinha energia suficiente para lhe explicar melhor o que lhe acontecera.
Confessando-se preocupado com o veado branco, descreveu-lhe os
encontros que tivera com os Littleton mais novos. Kaitlyn franziu o
sobrolho ao ouvir os nomes dos rapazes, lembrando-se de que sempre tinha
antipatizado com Josh. De certa forma, não a surpreendia que não só
andassem a caçar ilegalmente como também tivessem abandonado um
idoso na floresta, correndo risco de vida.
Depois de lhe assegurar que estava a cuidar de Arlo, Kaitlyn ia
perguntar-lhe pelos filhos, mas, nesse instante, o Dr. Betters entrou no
quarto, juntamente com o cirurgião ortopédico. Sentindo que seria melhor
guardar a conversa sobre a família de Jasper para um momento mais
privado, Kaitlyn prometeu que voltaria a visitá-lo em breve.

III

Não muito depois de acabar o pequeno-almoço, Tanner foi visitar o


xerife. Na receção, disseram-lhe que o xerife tinha saído em serviço e
perguntaram-lhe se preferiria falar com outra pessoa. Tanner respondeu que
esperaria.
Trinta minutos depois, indicaram-lhe por fim que entrasse para um
gabinete, onde um homem que mais parecia um professor de escola
secundária do que um agente da lei o saudou com um aperto de mão.
Depois de se apresentarem rapidamente, Tanner partilhou um pouco da sua
história e da razão que o levara a Asheboro, incluindo o nome que a avó lhe
dera. Para começar, não mencionou Jasper.
Charlie Donley recostou-se na cadeira.
– Mas que história. E porque é que pediu para falar pessoalmente
comigo?
Tanner assentiu com a cabeça, inclinando-se para a frente.
– Vim cá porque me disseram que conhece um homem chamado Jasper
Johnson – disse-lhe. – Vive numa cabana junto à Uwharrie e tem um cão
chamado Arlo.
– O Jasper? – Charlie parecia espantado. – Sim, conheço-o. O que é que
tem?
Tanner explicou-lhe o que tinha acontecido a Jasper nos últimos dias.
Quando terminou, o xerife suspirou.
– Ele veio cá na semana passada, a falar desse veado albino – confirmou.
– Estava preocupado com caçadores furtivos e eu avisei-o, disse-lhe que
tivesse cuidado. Suponho que não me terá dado ouvidos. – Frustrado,
abanou a cabeça. – Disse que continua hospitalizado?
– É verdade.
– Então acho que tenho de ir visitá-lo.
– É seu amigo, então?
– Pode-se dizer que o conheço tão bem quanto é possível. Ele sempre
viveu nesta área, tal como eu, mas não é muito de socializar.
– Eu gostava de saber se o senhor saberá alguma coisa acerca da família
dele – insistiu Tanner. – Em específico, esperava que pudesse dizer-me se
ele teve um filho ou um irmão mais novo chamado Dave ou David.
O rosto do xerife demorou uns segundos a revelar o seu choque, mas
Tanner viu-o recompor-se rapidamente.
– Santo Deus – ofegou, antes de olhar pela janela. Com uma inspiração
profunda, virou-se de novo para Tanner. – Espero que tenha tempo, porque
a história do Jasper é notável.

IV

Depois de sair do gabinete de Charlie, Tanner foi à conservatória do


registo civil do condado, onde preencheu uma requisição para obter uma
cópia do certificado de nascimento de David Johnson. Disseram-lhe que o
pedido levaria uns dias a ser processado.
Embora o xerife não se lembrasse da idade exata que David tinha quando
morrera – o melhor que conseguiu precisar foi que estaria no início ou a
meio da casa dos vinte anos –, a cronologia parecia ser suficientemente
próxima para Tanner continuar a alimentar a teoria de que talvez Jasper
fosse seu avô. Pelas suas contas, David seria aproximadamente da idade da
sua mãe.
Ainda estava a debater-se quanto a dever ou não conversar com Jasper. O
velhote estava a recuperar de uma experiência traumática e ele não queria
tornar as coisas ainda mais complicadas do que já eram. Também havia a
possibilidade de Jasper não querer vê-lo, e estaria correto insistir? Não
sabia…
Mas talvez Kaitlyn soubesse.
Sem outra ideia quanto ao que fazer, Tanner enviou-lhe uma mensagem.

Estarias disposta a tomar um café comigo depois do trabalho para


falarmos do Jasper? Ele teve um filho chamado David, que acredito que
poderá ter sido o meu pai biológico. Agradeceria qualquer conselho que
pudesses dar-me.

Kaitlyn estava no consultório com um paciente quando sentiu o


telemóvel a vibrar no seu bolso. Receando que pudesse ser uma mensagem
da escola, a respeito de Casey ou de Mitch, lançou um olhar de relance ao
ecrã e viu a pré-visualização de uma mensagem de Tanner que dizia:
«Estarias disposta a tomar um café comigo»; o resto da mensagem não
aparecia.
Devolveu o telemóvel ao bolso sem abrir a mensagem para a ler por
completo. O dia já estava a ser um daqueles em que todas as consultas se
tinham alongado. Para mais, entre a situação de Jasper e a declaração
confusa de Tanner, mais as consultas ao domicílio da noite anterior, Kaitlyn
estava emocional e fisicamente exausta. Não tinha nem tempo, nem energia
para lidar com Tanner naquele momento, e tampouco lhe parecia que
fossem conseguir alguma coisa tomando um café. Para quê?
Recusando-se a ficar a remoer o assunto, passou o resto da manhã a
atender pacientes e só quando foi a casa à hora do almoço para ver como
estava Arlo é que se lembrou de que ele lhe enviara uma mensagem.
Ao lê-la por completo, não soube o que fazer. Por mais que apreciasse o
que ele fizera por Jasper, não queria enredar-se mais. Mas e se Tanner
tivesse razão quanto a Jasper?
Ponderou as hipóteses. Jasper era seu paciente e Tanner um caso
passageiro malogrado. A sua lealdade não estava em causa: faria o que fosse
melhor para Jasper. Depois de ter isso definido, enviou uma mensagem aos
filhos, dizendo-lhes que chegaria um pouco tarde. Em seguida respondeu a
Tanner, informando-o que teria todo o gosto em encontrar-se com ele às
cinco e meia, não para tomarem um café, mas no seu próprio consultório.

VI

À hora marcada, Kaitlyn espreitou para a sala de espera. Tanner era a


única pessoa ali sentada e ela fez-lhe sinal para que entrasse. No
consultório, ela sentou-se à secretária e Tanner ocupou a cadeira em frente.
Estava tão atraente como sempre, mas ela esforçou-se por ignorar isso.
– Põe-me lá a par – começou ela, pousando o queixo nas mãos unidas,
com os cotovelos em cima da secretária.
Tanner contou-lhe o que tinha ficado a saber na sua visita ao xerife e
falou-lhe também das reservas que sentia quanto a falar com Jasper.
– Bem, parece uma forte possibilidade, mas quem sabe? – comentou
Kaitlyn. – Estou de acordo, parece-me que a decisão quanto a encontrarem-
se deve ser do Jasper, sobretudo tendo em conta a fragilidade atual dele.
Fico contente por isso estar claro.
– O que sugeres?
– A melhor prova, claro, seria um teste de ADN. Mas de certeza que ele
vai querer saber a razão para o teste antes de dar o seu consentimento e,
para ser sincera, não faço ideia de como reagirá à notícia.
Enquanto Tanner repensava, o silêncio tornou-se pesado. Por fim, ele
olhou para cima, com os olhos a cintilar com pequenos pontos dourados.
– E se houver outra forma de provar que ele é meu avô? Continuando a
deixar a opção de me conhecer completamente ao critério dele? Sem sequer
o alertar quanto à minha existência.
Kaitlyn lançou-lhe um olhar intrigado.
– Não estou a ver como pode isso ser possível.
– Terias de estar disposta a fazer-lhe uma única pergunta. E, depois,
podes informar-me quanto ao que ele quer fazer.
Ela fitou-o.
– O que tens em mente?

VII

Tanner foi-se embora pouco depois. Kaitlyn, entretanto, permaneceu


sentada, a refletir sobre a conversa. O plano era bom e ela apreciava o facto
de Tanner não ter a menor intenção de acrescentar qualquer stresse à vida
do velhote. Sabia Deus que a vida de Jasper já tinha sido suficientemente
dura. Horrível, até. Até então, ela não tinha estado a par das circunstâncias
do incêndio em que ele ficara tão gravemente ferido e, à medida que Tanner
lhe relatava o que o xerife lhe tinha contado sobre o acidente – e sobre o
que Paul fizera depois –, Kaitlyn fora ficando cada vez mais agoniada. Não
imaginava como Jasper arranjara forças para continuar a viver.
Uns minutos depois, ela saiu do consultório e fez o pequeno trajeto até
ao hospital. Tanner já lá estava, sentado no pequeno átrio. Levantou a
cabeça quando ela passou, mas nada disse, e, depois de rever as notas sobre
Jasper no computador, ela inspirou profundamente e foi à procura dele.

VIII

Por mais que soubesse que tinha de ficar internado, Jasper detestava
estar no hospital. Já tinha passado demasiado tempo da sua vida em
hospitais. Fora o que dissera ao Dr. Betters quando ele o fora ver, e repetira-
o ao cirurgião ortopédico, não fora dar-se o caso de o Dr. Betters não ter
ouvido. Este não lhe fazia promessas. Em vez disso, dado que Jasper ia
melhorando, o cirurgião ortopédico tomara a decisão de o operar na manhã
seguinte, o que, provavelmente, implicaria que Jasper ficasse ali durante
ainda mais tempo.
Os enfermeiros tentavam deixá-lo confortável, claro. Ajustaram-lhe a
cama para que pudesse sentar-se e ligar o televisor, mas o volume era
demasiado baixo para que ele ouvisse o que era dito. Não que lhe
interessasse, de qualquer maneira; estava ligado no canal Discovery e,
segundo lhe parecia, o programa era sobre vulcões. Como não havia
vulcões num raio de mais de mil quilómetros de Asheboro, não percebia
bem por que razão aquilo deveria interessar-lhe. O que ele queria realmente
saber era se o veado branco estava vivo. Perguntava-se se os Littleton
teriam continuado a caçar na floresta, depois de o terem deixado ali caído;
perguntava-se se teriam voltado na sexta-feira para uma última tentativa
antes de as hordas de caçadores de perus se lançarem à Uwharrie.
Perguntara aos enfermeiros, mas parecia que ninguém sabia nada. Charlie
tampouco; o xerife tinha passado pelo hospital umas horas antes para o
repreender por ter sido tão tolo.
Apesar de tudo, estava satisfeito por a Dra. Cooper estar a cuidar de
Arlo, como ela lhe dissera na visita matinal. Era uma grande amabilidade da
parte dela, ainda que ele devesse tê-la avisado para que não caísse em
nenhum dos truques do cão. Este nem sempre tinha fome, mesmo que se
comportasse como se estivesse prestes a desmaiar de inanição. Não se podia
confiar em Arlo no que dizia respeito à comida.
Mas era um bom cão. Tinha ido em busca de ajuda, que acabara por
chegar. Se lho tivessem perguntado antes, Jasper teria dito que o cão não era
capaz de algo assim. Oh, talvez deambulasse facilmente para fora da
floresta, que era basicamente o seu quintal das traseiras; mas Jasper não
esperava que tivesse a astúcia suficiente para chegar a casa da Dra. Cooper.
Não se dava o caso de ter passado muito tempo lá e, depois de o rapaz lhe
oferecer cachorros-quentes, seria de esperar que, reconhecendo uma boa
situação, Arlo se tivesse simplesmente deixado ficar e aproveitar. Porque
hei de procurar o velho, se aqui tenho cachorros-quentes? Mas não. O cão
cumprira o seu dever.
Os milagres nunca param, pensou Jasper, mas o pessoal do hospital não
reconhecia bem Arlo como o herói que era. Quando lhes perguntara se o cão
podia ficar com ele, tinham-lhe dito que não eram permitidos animais de
estimação. Não sabia se isso também se aplicaria a animais de serviço.
Perdido nos seus pensamentos, demorou um pouco a dar-se conta de que a
Dra. Cooper se encontrava à entrada do quarto.
– Olá, Jasper – disse ela. – Importa-se que eu entre?
Jasper remexeu o lençol, assegurando-se de que tinha as partes privadas
tapadas. Ela podia ser sua médica, mas isso não queria dizer que precisasse
de ver algo indesejado. Fez-lhe sinal para que entrasse e ela aproximou-se
com um sorriso antes de puxar uma cadeira.
– Está com muito melhor aspeto do que hoje de manhã, devo dizer –
comentou ela –, e as análises também parecem bem. Vi que tem a cirurgia
marcada para amanhã, não é?
– O médico disse que vou precisar de parafusos para segurar o tornozelo.
– Isso é comum numa fratura como esta – garantiu-lhe ela. – Como se
sente?
– A pele está a dar-me mais comichão do que o habitual, mas estou a
tentar ignorá-la.
– Está a resultar?
– Nem por isso.
– Tem comido o suficiente?
– Eu disse aos enfermeiros que não como muito, mas parece que eles não
querem saber. Houve uma que me fez cara feia até eu acabar tudo o que
tinha no tabuleiro.
Kaitlyn sorriu.
– Com razão. O Jasper tem de recuperar as forças. Como está a cabeça?
– O Dr. Betters diz que está bem. Já não me dói.
– Isso é ótimo – disse ela. – Ah, já agora, o Mitch pediu-me que lhe
mandasse um beijinho. Disse-me que está desejoso de voltar a talhar figuras
de madeira consigo, quando o Jasper sentir que pode ser.
Jasper assentiu com a cabeça.
– Ando a pensar talhar-lhe um veado e pô-lo a pintá-lo de branco. Ouviu
dizer se voltaram a avistar o tal veado?
– Não ouvi nada, mas, se ouvir, digo-lhe. Independentemente disso, não
me parece que deva voltar a aventurar-se na floresta durante uns tempos.
– O Charlie disse-me o mesmo. – Jasper fez uma careta.
– O Charlie?
– O xerife. Passou por cá há bocado.
– Ele vai fazer alguma coisa em relação aos Littleton?
– Não há muito que possa fazer. A floresta é jurisdição federal. E não se
dá o caso de os rapazes me terem feito alguma coisa. Eu simplesmente caí.
Observou Kaitlyn a franzir as sobrancelhas.
– Podiam tê-lo ajudado, ou telefonado a alguém que o ajudasse… –
barafustou. – Sinceramente…
– Não é crime não fazer essas coisas – disse Jasper, encolhendo os
ombros. – Duvido que tivessem noção do quanto eu estava ferido.
– Está a ser demasiado cordato em relação a tudo isto – protestou
Kaitlyn.
– Já ando por cá há mais tempo do que a doutora. Há batalhas que
simplesmente não podem ser vencidas.
– Bem, só para que saiba, a Casey disse-me que confrontou o Josh por
tê-lo deixado ferido na floresta e ele teve a imbecilidade de o admitir.
Digamos que a popularidade dele começou a diminuir, pelo menos na
escola secundária.
Jasper sorriu, a pensar que, ainda que não fosse muito, já era qualquer
coisa. Observou Kaitlyn a aproximar mais a cadeira da sua cama.
– Jasper, posso fazer-lhe umas perguntas?
– É o que tem estado a fazer desde que chegou.
Ela sorriu.
– Eu sei, mas estas perguntas são diferentes. E não sei bem por onde
começar. Por exemplo, isto não é nada da minha conta. Mas é capaz de ser
da sua.
– Pergunte lá o que quer saber.
– Está bem, mas, antes de o fazer, quero que saiba que estou do seu lado
e que farei o que quiser que faça. – Quando Jasper assentiu com a cabeça,
ela pareceu ganhar coragem. – Recentemente, fiquei a par das
circunstâncias do incêndio em que o Jasper ficou ferido e do que aconteceu
à sua família. Não sou capaz de imaginar quão terrível isso deve ter sido
para si, e compreendo por que razão nunca quis falar disso. Eu também não
quereria. E lamento muito aquilo por que passou.
Jasper nada disse. Sentiu-a procurar-lhe a mão antes de prosseguir.
– Mas vim cá para lhe perguntar uma coisa acerca do seu filho David. Se
não quiser responder, é claro que não há problema.
Jasper assentiu com a cabeça, com a curiosidade a aumentar.
– Lembra-se de alguma coisa da adolescência do David?
Ele fechou os olhos por um instante.
– Lembro-me de tudo – sussurrou, engolindo em seco. – É tudo o que me
resta.
– Sabe se ele alguma vez teve uma namorada ou alguma jovem de quem
gostasse?
– Sim.
– Ela chamava-se Monica Hughes?
Ao ouvir o nome, Jasper sentiu como que uma descarga elétrica.
– Como é que sabe isso? – perguntou.
– Pode dizer-me alguma coisa acerca dela?
– O David amava-a, mas ela mudou-se – disse ele, numa voz trémula. –
O pai era do exército e foi destacado para algum sítio na Europa, acho eu. O
David nunca mais a viu, nem voltou a ter notícias dela. Isso partiu-lhe o
coração.
Kaitlyn parecia fitá-lo com uma ternura infinita.
– Se o David se parecia minimamente consigo, não duvido que a Monica
o amasse profundamente. A razão para ele nunca mais ter tido notícias dela
foi que ela faleceu pouco depois de a família se ter mudado.
– Morreu?
A voz de Kaitlyn era hesitante, mas delicada.
– Sabia que ela estava grávida quando se foi embora?
– Não – disse Jasper.
– Estava. Não estou a par dos pormenores, mas algo correu mal durante
o parto – explicou Kaitlyn.
Jasper demorou um momento a entender o que ela lhe dizia.
– Estava grávida e depois morreu?
– Sim. Deu à luz um menino.
– E o David era o pai?
– Sim. – Kaitlyn assentiu com a cabeça.
– Tem a certeza?
– Um teste de ADN poderá confirmá-lo, mas eu não lho diria se não
tivesse um bom grau de certeza.
Os olhos de Jasper começaram a encher-se de lágrimas à medida que ia
compreendendo lentamente.
– O menino sobreviveu? Tenho um neto?
– Tem – disse ela, a limpar as suas próprias lágrimas. Ele ouviu a
inspiração tremida dela antes de continuar. – Chama-se Tanner Hughes. Foi
quem o encontrou na floresta.
Aquilo era quase demasiado para Jasper assimilar e levou-o a agarrar a
guarda da cama, como se pudesse ancorar-se assim.
– Tanner Hughes – repetiu.
– O que me leva a outra pergunta – disse Kaitlyn, apertando-lhe a mão. –
O Tanner pediu-me para averiguar se o Jasper quereria conhecê-lo. Caso
não queira, ele pediu-me que lhe dissesse que compreende e que nunca
voltará a tentar contactá-lo.
Jasper fitou-a, com as lágrimas a começarem a cair. Ficou calado durante
pelo menos um minuto, enquanto as lágrimas lhe desciam pelo rosto.
– Sim – disse finalmente, a tentar recompor-se, mas a sentir um
arrebatamento súbito. – Gostaria muito de conhecer a minha família.
EPÍLOGO

N a sexta-feira de manhã, Tanner parou num drive-through e pediu três


scones com fiambre. Ia a caminho da casa de Jasper, pelo que levava
um para si, um para Jasper e outro para Arlo. Segundo o dono, o cão
merecia uma recompensa pelo que tinha feito, mas Tanner já concluíra que
as sanduíches eram um hábito da alimentação quer de Jasper, quer de Arlo.
Ao chegar à cabana, Tanner entrou sozinho, tal como fizera no dia
anterior. Ajudou Jasper a vestir-se e a passar para a cadeira de rodas antes
de o empurrar até à cozinha e pôr a cafeteira ao lume. Quando o café ficou
pronto, Tanner serviu duas canecas e levou-as para a mesa, juntamente com
os scones com fiambre. Arlo comeu o seu em dois tragos rápidos antes de
farejar o bolso do dono, à procura de mais; Tanner ia comendo o seu a um
ritmo mais sensato. Já Jasper só comeu metade do seu antes de o deixar de
parte. Tanner embrulhou o resto e guardou-o no frigorífico, não fosse Jasper
ter fome mais tarde, ainda que, a julgar pelos últimos dois dias, o mais
provável fosse que não tornasse a comer até Tanner lhe aquecer uma lata de
sopa ou de chili para o jantar.
Depois do pequeno-almoço, levou-o para o alpendre da frente e Arlo
seguiu-os. Porque a manhã ainda estava fresca, tinha convencido Jasper a
usar um casaco e um gorro, e também se assegurara de que lhe tapava as
pernas com uma manta. Kaitlyn e o Dr. Betters tinham-no avisado de que a
exposição prolongada aos elementos e o choque consequente tinham
provavelmente desencadeado uma grave reação do sistema imunitário de
Jasper; seria preciso vigiá-lo atentamente. A psoríase no pescoço, no peito e
nos braços continuava ainda mais inflamada do que era habitual, e os nós
dos dedos da mão direita tinham inchado subitamente, ficando com quase o
dobro do tamanho normal. Nem Kaitlyn nem o Dr. Betters eram capazes de
dizer quando a inflamação e o inchaço melhorariam, nem sequer se isso
aconteceria. Tanner estava espantado por Jasper nunca se queixar de nada
disso.
Sentando-se numa das cadeiras de baloiço, Tanner olhou para Jasper,
maravilhando-se com o prazer que era passar tempo com o velhote. Não
sabia o que esperar – lembrava-se de parar em frente à porta do quarto de
hospital de Jasper, a preparar-se para o caso de a conversa azedar. Mas o
velhote recebera-o com um olhar carregado de bondade e estendera-lhe a
mão sem dizer uma palavra. Tanner segurara-a e percebera logo que Jasper
não queria soltá-lo.
– Encontraste-me – rouquejou Jasper por fim.
– Sim – disse Tanner, com um sorriso a espalhar-se pelo seu rosto. –
Acho que sim. Em mais do que um sentido.
Nessa noite, passou três horas com ele. Kaitlyn tinha tratado de tudo para
que fizessem um teste rápido de ADN, só para terem a certeza, mas tanto
Jasper como Tanner pareciam sentir que sabiam, de alguma maneira, o que
isso revelaria, pondo fim a qualquer dúvida que restasse.
Como Jasper ainda estava a recuperar, tinha sido Tanner quem falara
mais. Percorreu a cronologia da sua vida, desde a sua educação no
estrangeiro ao serviço militar, continuando pelo trabalho de segurança em
vários países e pela longa viagem que fizera pelos EUA depois da
pandemia. Falou-lhe dos últimos meses que passara a cuidar da avó,
incluindo a revelação que ela tinha feito no seu leito de morte, a qual o
levara a Asheboro.
Inesperadamente, Tanner até deu por si a partilhar a ambivalência cada
vez maior que sentia em relação a regressar aos Camarões. Tinha
confessado como se sentia ligado a Casey e Mitch, apesar de os conhecer há
tão pouco tempo. Tentou evitar falar dos seus sentimentos em relação a
Kaitlyn, mas Jasper interrompeu-o.
– Tu amas a doutora – disse Jasper. – Vê-se nos teus olhos. Devias dizer-
lhe o que sentes.
Tanner não soube o que responder e, nessa noite, praticamente não
pregou olho.
Na manhã seguinte, ficou na sala de espera enquanto Jasper era operado,
e passou o resto da tarde no quarto dele, acompanhando-o na recuperação e
deixando-o dormitar. Aproveitou para alugar uma cadeira de rodas.
Encomendou madeira, contraplacado e ferramentas, para que fossem
entregues na cabana no dia seguinte.
Quando Jasper teve alta do hospital, na quarta-feira, Tanner também já
tinha trocado o seu carro alugado por um todo-o-terreno maior; passou
Jasper para o lugar do passageiro antes de guardar a cadeira de rodas no
porta-bagagens. Pelo caminho, foram buscar Arlo a casa de Kaitlyn.
Quando chegaram ao acesso de gravilha da cabana, Tanner viu que os
materiais de construção já tinham sido entregues.
Passou grande parte da tarde e do início da noite a construir uma rampa
provisória do alpendre até à gravilha. Entretanto, Jasper contou-lhe a sua
história.
Sentado na cadeira de rodas enquanto Tanner ia martelando e serrando,
falou-lhe de pêssegos, de figuras talhadas em madeira, de versículos da
Bíblia e de um avô que certa vez vira peixes a cair do céu. Descreveu-lhe a
confiança moderada do pai e a devastação que sentira aquando da sua morte
súbita. O rosto de Jasper iluminou-se com amor e encanto ao contar-lhe
como Audrey saltara para a sua carrinha. Falou-lhe de procurar míscaros, do
primeiro beijo que tinham dado e de quanto lhe tinha custado despedir-se
quando ela fora para a universidade. Tanner escutou com atenção à medida
que Jasper lhe explicava o seu sucesso empresarial inicial com as pereiras
de Bradford. Porém Jasper concentrou-se sobretudo na família que ele e
Audrey tinham criado e foi partilhando histórias acerca de cada um dos
quatro filhos. E, claro, falou-lhe em especial de David – vividamente e com
grande pormenor. Isso levou Tanner a desejar saber mais sobre a mãe, de
uma forma que nunca tinha sentido.
Depois de Tanner ter terminado tudo à exceção dos corrimãos da rampa,
Jasper indicou-lhe o barracão que lhe servia de arrecadação e pediu-lhe que
fosse buscar a caixa com as fotografias da família que estavam na cabana e
não na casa aquando do incêndio. Tanner observou atentamente as de
David, impressionado por ser tão parecido com ele. Tinha o nariz e o queixo
do pai e, ao ver o olhar de Jasper quando estavam debruçados sobre as
fotografias antigas, percebeu que o velhote também reconhecera a
parecença. Que estranho, pensou ele, encontrar conforto numa parte do seu
passado que nunca soubera sequer que estava em falta.
Só no dia anterior, porém, Jasper relatara o resto da história – a
conclusão trágica da sua vida outrora abençoada, da qual o xerife já lhe
tinha referido algumas partes. O tornado a agir como dedo de Deus, que lhe
tinha destruído o negócio. O incêndio. O suicídio de Paul. Os meses que
Jasper passara na ala de queimados e todas as cirurgias subsequentes. A
psoríase crónica, provando que Deus lhe virara as costas de uma vez por
todas.
Mas havia também vislumbres de alegria mais recentes, como ficou a
saber: talhar figuras de madeira com Mitch; o avistamento recente do veado
branco, que ele acreditava ser um sinal dos Céus; e, claro, o súbito
aparecimento de Tanner na sua vida, algo que ele nunca imaginara, nem nos
seus sonhos mais tresloucados.
Ao voltar para o hotel à noite, Tanner deitou-se na cama a pensar no
amor do velhote pela mulher e pela família, o qual transcendia até as suas
perdas incompreensíveis. Isso levou-o a pensar em Kaitlyn e nos filhos
desta, no lar que constituíam. Tinha uma memória visceral de fazer amor
com ela, as sensações estavam codificadas a um nível celular. Mas,
sobretudo, sentia falta da forma como se sentia em relação a si mesmo
sempre que tinham estado juntos – como se estivesse ligado a um sistema
radicular mais profundo, a uns alicerces que nunca conhecera.
Tu amas a doutora. Devias dizer-lhe o que sentes.
As palavras de Jasper repetiam-se na sua mente num ciclo constante. Já
tinha tido uma oportunidade. Kaitlyn passara pela cabana à tardinha no dia
anterior, para verificar os sinais vitais de Jasper e examinar-lhe os nós dos
dedos inchados e a psoríase. Tinha sido cordial com Tanner, mas, para além
de o informar de que o teste de ADN confirmava o parentesco, não lhe
dissera mais nada, pedindo-lhe apenas que lhe telefonasse caso o estado de
Jasper piorasse. Ele tinha ficado a vê-la afastar-se, a sentir uma dor que não
esperava, desapontado consigo mesmo por a ter desapontado. E, claro, não
lhe tinha dito nada.
Agora, sentado no alpendre com Jasper, ouviu o velhote pigarrear.
– Levas-me a ver a minha família? – perguntou-lhe.
Tanner empurrou-o cuidadosamente na cadeira de rodas pela rampa.
Avançar pela terra compactada fazia-se um pouco aos solavancos, mas
foram devagar e, por fim, chegaram ao pequeno cemitério da família. De
perto, Tanner viu os nomes gravados nas lápides e parou para fitar a de
David, com as mãos unidas em frente ao corpo. Quem me dera ter podido
conhecer-te.
Jasper, também de cabeça voltada para baixo a contemplar as lápides,
nada disse durante algum tempo. Naquele silêncio, Tanner pousou uma mão
no ombro do avô, a sentir um certo conforto. Ouviu Jasper a inspirar
profundamente e viu-o a remexer lentamente na manta. Ali perto, Arlo
farejava à volta do tronco de uma árvore.
– Durante muito tempo – confessou Jasper –, desejei ter morrido com
eles.
Sem conseguir responder, Tanner apertou-lhe delicadamente o ombro.
Passado um pouco, o velhote continuou.
– Por vezes, ainda desejo. Venho até aqui sabendo que tudo o que amei
em tempos se foi e está enterrado e, mesmo passado tanto tempo, continuo a
sentir o coração totalmente despedaçado. Mas…
Olhou para Tanner e pousou a sua própria mão cheia de nós e inchada
por cima da do neto.
– Depois lembro a mim mesmo que ter o coração partido também quer
dizer que houve um tempo em que estava completo, leve e cheio. Amar a
Audrey e os meus filhos dava alegria e sentido à minha vida e eu não teria
trocado esse amor por nada deste mundo.

II

Kaitlyn voltou a aparecer no sábado, para examinar Jasper na sala de


estar da sua cabana. Não contava que tivesse havido grandes alterações
desde quinta ao final do dia, mas esperava que a receita mais forte que lhe
deixara da última vez lhe desse algum conforto em breve. Embora ele
disfarçasse o desconforto, ela sabia que só podia estar a sofrer.
Lá fora, Mitch esperava que ela terminasse o exame. Percebia que Jasper
não poderia talhar figuras de madeira com ele tão cedo, mas, mesmo assim,
insistira em ir. O mais surpreendente fora que Casey também tivesse
querido ir com eles, mas a razão depressa se tornou evidente. Assim que
pusera o cinto de segurança, mencionara como se nada fosse que o
concessionário local da Ford tinha acabado de receber quatro Broncos
novos, e perguntara a Kaitlyn se poderiam passar por lá no caminho de
volta.
– Só para ver – apressara-se a prometer e, quando Mitch se juntara ao
entusiasmo, Kaitlyn tinha-se sentido encurralada. Sabia que não ia comprar
um automóvel naquele dia, nem pensar, mas, a custo, acedeu a ir.
– Os miúdos parecem dar-se mesmo bem com ele – comentou Jasper.
Seguindo o olhar dele pela janela, Kaitlyn viu os filhos à volta de
Tanner, que lhes explicava a construção da rampa. Apesar da temperatura
baixa, ele estava a usar apenas uma T-shirt de manga comprida que se lhe
colava ao tronco. Por uma fração de segundo, ela recordou a imagem da
pele dourada e lisa dele ao desabotoar-lhe a camisa, mas, obrigando-se a
pensar noutra coisa, devolveu a atenção a Jasper.
– Sim, passaram algum tempo juntos.
– Ele fala muito deles.
– Quem? O Tanner?
– Ele acha que a doutora tem sido espetacular a educá-los.
– Eu tento – disse ela, desejando que Jasper não tivesse referido aquilo.
Ver Tanner no hospital e em casa de Jasper não era fácil. Depois de voltar a
casa, muitas vezes tinha de resistir à tentação de afogar as mágoas numa
garrafa de vinho. Quando acabara com ele, tinha pensado que seria capaz de
evitar vê-lo até ele se ir embora, mas era evidente que o universo tinha
outros planos.
– Ele também fala imenso de si – persistiu Jasper.
– Saímos umas quantas vezes. – Kaitlyn atarefou-se a arrumar a maleta
de médico. – Mas não resultou.
– Ele também referiu isso.
Embora uma parte de si quisesse saber o que mais teria dito Tanner,
tornou a assumir uma postura profissional.
– Acho que é tudo. Passo por cá amanhã à noite, antes de ir atender o
resto dos pacientes, está bem? Mas sabe que pode ligar se acontecer alguma
coisa, entretanto.
– Assim farei – disse ele. – A doutora trata-me demasiado bem.
– Posso dar-lhe alguma coisa, enquanto aqui estou? Um copo de água,
talvez?
– Não tenho sede. Mas, já que pergunta, não se importa de me trazer a
Bíblia e os meus óculos de ver ao perto? Estão no aparador.
Ela foi buscar o que ele pedia.
– Mais alguma coisa?
– Sim, só mais uma. – A expressão dele era séria.
– O quê?
– Ele ama-a, mesmo que ainda não tenha tido a coragem de lho dizer.
Acho que tem receio de que a doutora não sinta o mesmo. Mas não posso
deixar de pensar que vocês seriam bons um para o outro.
De súbito, Kaitlyn sentiu-se ruborizar.
– Obrigada por me dizer isso. Mas de que é que serve? Não tarda, ele
vai-se embora.
Jasper assentiu com a cabeça, de novo a observar o trio pela janela.
Quando se voltou para ela, tinha um olhar penetrante, mas gentil.
– Será que vai?
As palavras de Jasper fizeram-na olhar de relance pela janela outra vez.
Mitch tinha o berbequim nas mãos, concentrado, enquanto Tanner segurava
uma das barras do corrimão e lhe dava instruções para executar a tarefa. Ela
ouviu o guincho súbito do berbequim a começar a funcionar; quando o som
se desvaneceu, Mitch sorriu de orelha a orelha e tanto Casey como Tanner o
felicitaram.
O comentário de Jasper perdurava no ar, mas, quando ela se virou de
novo para ele, encontrou-o já a folhear a Bíblia. Pondo a mala ao ombro,
saiu para o alpendre.
– Mãe! – chamou Mitch. – Estou a ajudar a construir o corrimão! Mr.
Tanner ensinou-me a usar o berbequim.
– Eu vi – disse ela. – Se vocês os dois querem ir dizer olá ao Jasper, já
podem entrar.
Casey, cujo olhar era dirigido ora para a mãe, ora para Tanner, deu o
braço ao irmão.
– Anda lá, palerma. Quanto mais depressa formos, mais depressa
podemos ir ver o meu carro novo.
– Boa! – gritou Mitch, a subir os degraus.
Kaitlyn ficou a vê-los entrar. Quando olhou para Tanner, reparou que o
à-vontade a que tinha assistido enquanto ele estava com os miúdos parecia
ter desaparecido.
– Olá – acabou ele por dizer. Parecia não saber o que fazer com o
berbequim, acabando por pousá-lo no degrau e enfiar as mãos nos bolsos.
– Olá – respondeu ela.
– Como é que ele está?
– Está a recuperar, mas vai demorar.
– Alguma coisa em particular a que eu deva estar atento?
– O mesmo da outra noite. Febre, falta de ar, e diz-me se a psoríase ou o
edema dos nós dos dedos parecer estar a piorar. E, claro, garantir que ingere
líquidos, que come e que descansa muito.
– Ele nunca come muito.
– Faz só o que puderes – disse ela, começando a descer as escadas. – Ele
gosta de ti.
– Eu também gosto dele. – A expressão dele revelava uma mescla de
espanto e agrado. – Ainda me custa acreditar que seja meu avô. Não tenho a
certeza de já ter assimilado a ideia.
– Durante quanto tempo achas que vais ficar por cá a ajudá-lo? –
perguntou ela. Tentou dizê-lo com o que esperava ter sido um ar
descomprometido.
– O tempo que for preciso, acho.
Ela sentia o olhar dele e virou-se, com uma expressão séria.
– Ele vai andar engessado durante mais oito semanas. E, depois disso,
vai precisar de fisioterapia.
– Eu sei – respondeu ele.
– Então e os Camarões? – Ela inclinou a cabeça, inquisitiva.
Um sorriso lento abriu-se no rosto de Tanner.
– Ele disse-te, não foi? Que escrevi um email ao Vince para lhe dizer que
já não vou?
Ela suprimiu um sorriso. Uma pequena bolha de felicidade emergiu
algures dentro de si, como o gás contido de uma garrafa de refrigerante.
Tanner continuou:
– O Jasper tem estado a falar-me da importância que a família dele tinha
para ele e isso afetou-me muito. E, assim que tomei a decisão de não ir,
soube que tinha sido a coisa certa a fazer.
– Isso quer dizer que vais ficar em Asheboro durante algum tempo?
– O plano é esse.
– Fazes alguma ideia de quanto?
– É difícil prever isso – começou ele. – Está aqui o Jasper, que é o único
familiar que me resta. Detestaria deixá-lo, sobretudo porque só agora
começámos a conhecer-nos. – Fitou-a nos olhos. – E, claro, há sempre a
possibilidade de decidir assentar de vez.
Kaitlyn sentiu um rubor a subir-lhe lentamente pelo pescoço.
– Vais viver na cabana com o Jasper?
– Não. Tenho a sensação de que se habituou a estar sozinho e de que
prefere assim.
– Então onde vais morar?
– Ainda não sei – disse ele. – Estava a pensar ver o que estará disponível
na cidade.
Ela arqueou uma sobrancelha.
– Então e trabalho?
– Eu não te disse? – Ele fingiu-se surpreendido. – Tenho uma pequena
almofada financeira. Mas, se alguma vez achar que preciso ou que quero
fazer alguma coisa, tenho um amigo aqui perto que está disposto a deixar-
me trabalhar outra vez com os meus companheiros da Delta.
– Que interessante – disse ela, deixando a maleta pesada deslizar para o
chão.
– Também acho.
Então, ele aproximou-se e estendeu a mão para a dela. Os olhos,
carregados de promessa, percorreram-lhe o rosto.
– Fizeste-me falta – sussurrou ele.
– E tu a mim – ofegou ela. Encostou a outra mão no peito dele, criando
um pouco de espaço entre os dois. – Mas vou precisar de algum tempo para
processar isto tudo. E não quero precipitar-me. – Olhou para ele com uma
expressão determinada. – Vamos ter de recomeçar do início.
– Eu percebo.
– Estou a falar a sério.
– Eu também. Ficaria encantado se pudéssemos recomeçar do início.
Tens alguma coisa especial em mente? Conheço um pub à maneira na
cidade.
Ela pôs-se em bicos de pés, a tentar conter a vontade súbita de dar uma
pirueta.
– Percebes de automóveis?
– Um bocadinho – disse ele. – Porquê?
– Porque a Casey quer ir ver uns Broncos novos quando sairmos daqui.
– Vais comprar-lhe um?
– Acho que está na hora. Queres vir connosco?
– E o Jasper?
Ela olhou na direção da cabana e depois aproximou-se mais, como que a
conspirar.
– Eu acho que ele fica bem durante uma hora, mais coisa menos coisa,
não achas?
Então, ele inclinou-se para a beijar, com os lábios a prometer muito
mais.
– Tu é que és a médica – sussurrou. – Confio em ti.

III

Jasper observou-os a afastarem-se.


Tanner prometera voltar dali a cerca de uma hora, mas ele insistira para
que demorassem o tempo que precisassem. Podia estar coxo e um pouco
desconjuntado, mas há muito que aprendera a cuidar de si mesmo. E,
francamente, um pouco de privacidade ia saber-lhe bem, depois dos últimos
dias.
Fora bom voltar a ver Mitch. E Casey, embora pressentisse que ela era
capaz de ser complicada, quando assim o decidia. Enquanto Mitch falava
com grande entusiasmo sobre a festa de aniversário de um amigo a que iria
mais tarde (Com lasers! E corridas de carros!), ela tinha ficado a espreitar
pela janela, fingido que não estava a espiar a mãe e Tanner. Quanto a Jasper,
fizera como se não desse por nada, sobretudo porque também não era imune
a um pouco de observação. A forma constrangida como eles tinham
interagido no hospital e na cabana na quinta-feira tornara demasiado óbvio
que eram loucos um pelo outro. Só precisavam de um pequeno empurrão
para finalmente agirem em conformidade. Abanou a cabeça, a pensar: Hoje
em dia, os jovens complicam tanto as coisas…
Finalmente sozinho na cabana, pôs os óculos de ver ao perto e abriu a
velha Bíblia, tal como fizera de manhã. Pedira a Tanner que fosse buscá-la à
caixa do barracão e folheara as páginas, recordando que Job era o primeiro
dos Livros Sapienciais, imediatamente antes dos Salmos.
Tratava-se de uma história que o confundia quando era mais novo; mais
tarde, tornara-se demasiado similar à realidade para que quisesse revisitá-la.
Na versão cristã da história, afinal, Deus gaba a fé de Job enquanto fala
com o Diabo; este contrapõe que Job só é pio porque Deus o abençoou com
riqueza, saúde e uma família maravilhosa. Para provar a integridade da fé
de Job, Deus autoriza o Diabo a tirar-lhe tudo isso. Job perde as colheitas e
os rebanhos, depois a família e, por fim, vê-se afligido por chagas que lhe
cobrem todo o corpo.
No entanto, à medida que relia a história, Jasper deu-se conta de que se
tinha esquecido do final. Olhou pela janela para meditar nisso e depois
espantou-se. Endireitando-se mais, arrancou os óculos de ver ao perto e
espreitou com mais atenção.
– Macacos me mordam – disse em voz alta.
Ali, ao fundo da sua propriedade e no limiar da Uwharrie, estava o veado
branco.
Ao longe, parecia uma criatura do mundo dos espíritos, tão branca que
quase brilhava. Jasper pestanejou uma vez, e outra ainda, para se assegurar
de que não estava a imaginar aquilo. Veio ter comigo, pensou. Está mesmo
aqui. Fascinado, observou o veado a virar calmamente a cabeça, primeiro
para um lado, depois para o outro. Era um espécime majestoso,
maravilhava-se ele, um macho adulto com uma garupa muito musculada e
umas armações grandes e simétricas. Mesmo ao longe, Jasper pressentia-lhe
a inteligência, o que sem dúvida o mantivera vivo num mundo cheio de
gente que não queria outra coisa senão matá-lo, simplesmente por ser belo.
Jasper viu uma das orelhas do veado a agitar-se; pouco depois, o animal
deambulou para a propriedade de Jasper. Movia-se devagar e
graciosamente, parando finalmente ao chegar às campas debaixo da árvore.
Então, virou-se e olhou na direção de Jasper.
Este ficou com a garganta embargada, sentindo o peso da família que
perdera e a alegria da que descobrira recentemente. Se estivesse a contar
milagres, o aparecimento do veado branco seria o segundo da semana; de
súbito, teve a certeza de que o veado tinha pressagiado a chegada de Tanner.
E Deus, compreendeu repentinamente então, nunca o abandonara. Deus
tinha dirigido Tanner para a sua vida, abençoando-o tal como abençoara Job
com uma nova família depois de ter perdido tanto. Enquanto ponderava
essa revelação, o veado resfolegou, virou costas e afastou-se, acabando por
desaparecer na Uwharrie como se nunca tivesse estado ali.
Os olhos de Jasper encheram-se de lágrimas. Deixou-as correr, sentindo
uma paz que lhe escapava há décadas. Quando as lágrimas finalmente
pararam, inclinou a cabeça para proferir a prece mais forte que conhecia.
– Obrigado, Deus – sussurrou. – Obrigado.
AGRADECIMENTOS

Haverá quem considere enfadonho ler a mesma lista de indivíduos nos


meus agradecimentos ano após ano, mas, para mim, escrever esta lista é um
ritual que passei a encarar como uma bênção rara. Parece-me
impressionante que tantas das pessoas essenciais da minha vida profissional
e pessoal não tenham mudado durante quase trinta anos, numa era de
polarização cultural cada vez mais profunda e de relações frequentemente
efémeras. Assim, permitam-me que comece por onde tudo começou, em
1995:
Theresa Park, há décadas minha agente literária, parceira de produção e
amiga, tem estado a meu lado não só na criação de cada livro, mas também
em praticamente todos os marcos da minha vida adulta. Julgo que posso
dizer o mesmo acerca da minha presença na sua vida – Theresa, obrigado
por percorreres comigo o caminho da vida ao longo de todos estes anos e
por seres minha companheira nesta viagem incrível.
À equipa talentosa, competente e consistentemente progressista da Park
& Fine: obrigado por manterem o vosso compromisso com a excelência,
quando teria sido fácil descansarem sobre os louros. Celeste Fine, na
qualidade de nova líder da Park & Fine, os teus instintos fabulosos já estão
a transformar a agência numa nova entidade ambiciosa com horizontes sem
limites; Andrea Mai e Emily Sweet, eu não poderia ter pedido especialistas
mais sofisticadas, criativas e conhecedoras para ajudarem a fazer a minha
obra chegar às mãos dos parceiros certos e alcançar os meus fãs; Abby
Koons e Ben Kaslow-Zieve, vocês continuam a tornar a publicação das
minhas obras no mundo não apenas lucrativa, mas também emocionante e
fascinante – com a colaboração de tantos editores internacionais e
coagentes estrangeiros dedicados, que têm sido parceiros incansáveis e
inspirados. Jen Mecum, tem a minha profunda gratidão e admiração pela
sua perspicácia em tudo o que diz respeito a questões legais (e às suas
capacidades como mentora!). Charlotte Gillies, obrigado por ser o
transmissor através do qual a corrente da minha vida empresarial e criativa
flui, ligando todos os pontos na Park & Fine e não só. A agência redefine a
representação autoral e há muitos anos que eu sou um afortunado
beneficiário do seu impecável e estratégico trabalho de equipa.
Apesar de ser um autor relativamente recente na Random House, já me
sinto como se publicasse lá há décadas. Muito disso deve-se à minha editora
talentosa, sensível e incrivelmente trabalhadora, Jennifer Hershey; não
obstante a posição elevada que ocupa na empresa, não tem o menor pejo em
arregaçar as mangas e encarregar-se do trabalho pesado de reformular um
romance complicado; devo-lhe imenso pelo que fez neste livro em
particular. É claro que a Jennifer não poderia executar os seus inúmeros
deveres de editora e gestora com tamanha eficácia sem a visão e o apoio da
presidente Kara Welsh e da editora associada Kim Hovey; juntas, formam
um triunvirato espetacular de liderança e cuidado com os autores.
Todas as equipas da Random House aportam um grau ímpar de
compromisso, experiência e qualidade aos esforços que desenvolvem em
cada livro. Nestas equipas, incluem-se: Jaci Updike e Cynthia Lasky no
departamento comercial; Quinne Rogers e Taylor Noel no de marketing;
Jennifer Garza, Karen Fink e Katie Horn no de publicidade; Ellen Folan,
Nicole McArdle, Karen Dziekonski, Dan Zitt, e Donna Passannante no
departamento editorial; e a equipa de Kelly Chian, Susan Brown, Maggie
Hart, Caroline Cunningham, Kelly Daisley e David Hammond no
departamento de produção. É claro que a primeira impressão que o meu
livro provoca seja em que loja for é sempre definida pela capa e, quanto a
isso, tenho a sorte de me encontrar nas mãos do lendário diretor artístico
Paolo Pepe, o qual – com uma bela ajuda do meu velho amigo Flag – criou
a imagem inesquecível para este livro.
Tenho tido a ventura extraordinária de ver muitos dos meus romances
transformados em filmes e, agora, até num musical da Broadway (!) – e isso
deve-se completamente aos instintos de mestre de Howie Sanders, da
Anonymous Content, que continua a ser um dos meus amigos e confidentes
mais próximos. O meu advogado para questões relacionadas com a
indústria do entretenimento, Scott Schwimer, tem sido meu anjo da guarda
(ainda que com uma espada flamejante) e protetor, sempre presente quando
preciso dele. Também na Anonymous Content, os produtores David Levine
e Garrett Kemble têm sido colaboradores visionários, e sinto-me
particularmente grato a Zack Hayden, produtor imensamente talentoso e
determinado, que tem guiado os meus projetos cinematográficos mais
recentes com tanto cuidado e concentração. Na Universal Pictures, Peter
Cramer, Donna Langley, Lexi Barta e Jacqueline Garell continuam a
impressionar-me com o seu impressionante profissionalismo, orientação
artística e instintos argutos. Kevin McCollum e Kurt Deutsch, vocês
transformaram um sonho extravagante numa realidade sensacional – um
grande musical da Broadway baseado em O Diário da Nossa Paixão!
Obrigado por este feito artístico e profissional espantoso; sinto-me honrado
e encantado pelo que vocês criaram.
A minha nova agente publicitária, Jill Fritzo, e os seus colegas Michael
Geiser e Stephen Fertelmes fazem a ponte entre os mundos da edição e de
Hollywood com uma facilidade e uma sofisticação impressionantes, e eu
tenho a sorte de me encontrar nas suas mãos capazes. Por esta altura,
LaQuishe Wright («Q») já se tornou um ícone entre gestores de redes
sociais que trabalham na área do entretenimento, mas o que a torna
verdadeiramente incomparável é a sua profunda integridade e amabilidade.
Q, obrigado por teres ficado comigo durante todos estes anos. Mollie Smith
supervisionou todas as iterações da minha presença na internet e,
consequentemente, a evolução da minha base de fãs ao longo de décadas, e
continua a ser absolutamente essencial para mim e para a minha obra. E à
equipa que traduz todos os frutos do meu trabalho em dólares e cêntimos, as
minhas contabilistas Pam Pope e Oscara Stevick, obrigado por manterem o
meu sustento – e o da minha família – seguro e em ordem ao longo das
décadas.
Tia Scott-Shaver, Jeannie Armentrout, Jerrold, Linda e Angie merecem a
minha gratidão por me ajudarem a manter a minha vida a correr sobre
rodas. Andy Sommers e Hannah Mensch cuidam das grandes questões da
minha vida com competência e aprumo, pelo qual lhes estou grato. Muito
carinho para Victoria Vodar.
E, claro, ficaria em falta se não deixasse uma nota de apreço a outros
também. Agradeço muito aos meus filhos – Miles, Ryan, Landon, Lexie e
Savannah –, bem como à minha nova neta, Bristol Marie, por toda a alegria
que me têm dado ao longo dos anos. Sarah, Meadowe e Brad: amo-vos a
todos.
Também sou abençoado por ter um bom número de amigos
maravilhosos, incluindo Bill e Pat Mills; David e Morgan Shara; Mike
Smith; Christie Bonacci; Jeff e Torrie Van Wie; Jim e Karen Tyler; Todd e
Gretchen Lanman; Tony e Shellie Spaedy; Kim e Eric Belcher; Lee e Sandi
Minshull; Jonathan e Stephanie Arnold; Austin e Holly Butler; Bill Silva;
Jeff Brown; Gray Zuerbregg; James Hickman; e Al Peterson, entre outros,
os quais têm trazido mais alegria à minha vida. Ficaria igualmente em falta
se não mencionasse ainda Paul Du Vair; Chris Matteo; Rick Mench; Kirk
Pierce; Pete DeCler; Bob Jacob; Jeannine Kaspar; Joe Westermeyer; Ron
Markezich; Shane O’Flaherty; Darryl Gordon; David Wang; Sandy
Haddock; Ryan Seeger; Missy Blackerby; Ken Gray; Heather Cope; Dave
Simpson; Maureen McDonnell; Joy Lenz; David Geffen; e também Anja
Schmeltzer. A minha vida é abençoada por causa de todos vocês.
E, por fim, o meu amor e gratidão por todos os parentes da minha família
alargada. Incluo-vos a todos nas minhas preces diárias.
Table of Contents
1. Capa
2. Ficha Técnica
3. CAPÍTULO UM
1. I
2. II
3. III
4. CAPÍTULO DOIS
1. I
2. II
3. III
5. CAPÍTULO TRÊS
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
6. CAPÍTULO QUATRO
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
9. IX
10. X
11. XI
7. CAPÍTULO CINCO
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
8. CAPÍTULO SEIS
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
9. CAPÍTULO SETE
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
10. CAPÍTULO OITO
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
9. IX
10. X
11. XI
11. CAPÍTULO NOVE
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
9. IX
10. X
11. XI
12. CAPÍTULO DEZ
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
9. IX
10. X
11. XI
12. XII
13. XIII
14. XIV
15. XV
16. XVI
17. XVII
18. XVIII
13. CAPÍTULO ONZE
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
9. IX
10. X
11. XI
12. XII
14. CAPÍTULO DOZE
1. I
2. II
3. III
4. IV
15. CAPÍTULO TREZE
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
16. EPÍLOGO
1. I
2. II
3. III
17. AGRADECIMENTOS

Landmarks
1. Cover
2. Title-Page
3. Table of Contents

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