Gestao Politica Economia e Etica Na Educacao 1
Gestao Politica Economia e Etica Na Educacao 1
Gestao Politica Economia e Etica Na Educacao 1
GALATEA
2022
Conselho Editorial:
Alberto Filipe Araújo, Universidade do Minho, Portugal
Alessandra Carbonero Lima, USP, Brasil
Ana Guedes Ferreira, Universidade do Porto, Portugal
Ana Mae Barbosa, USP, Brasil
Anderson Zalewski Vargas, UFRGS, Brasil
Antonio Joaquim Severino, USP, Brasil
Aquiles Yañez, Universidad del Maule, Chile
Belmiro Pereira, Universidade do Porto, Portugal
Breno Battistin Sebastiani, USP, Brasil
Carlos Bernardo Skliar, FLASCO Buenos Aires, Argentina
Cláudia Sperb, Atelier Caminho das Serpentes, Morro Reuter/RS, Brasil
Cristiane Negreiros Abbud Ayoub, UFABC, Brasil
Daniele Loro, Università degli Studi di Verona, Itália
Elaine Sartorelli, USP, Brasil
Danielle Perin Rocha Pitta, Associação Ylê Seti do Imaginário, Brasil
Edesmin Wilfrido P. Palacios, Un. Politecnica Salesiana, Ecuador
Gabriele Cornelli, Universidade de Brasília, Brasil
Gerardo Ramírez Vidal, Universidad Nacional Autónoma de México
Jorge Larossa Bondía, Universidade de Barcelona, Espanha
Ikunori Sumida, Universidade de Kyoto, Japão
Ionel Buse, C. E. Mircea Eliade, Unicersidade de Craiova, Romênia
Isabella Tardin Cardoso, UNICAMP, Brasil
Jean-Jacques Wunnenberger, Université Jean Moulin de Lyon 3, França
João de Jesus Paes Loureiro, UFPA, Belém, Brasil
João Franscisco Duarte Junior, UNICAMP, Campinas/SP, Brasil
Linda Napolitano, Università degli Studi di Verona, Itália
Luiz Jean Lauand, USP, Brasil
Marcos Antonio Lorieri, UNINOVE, Brasil
Marcos Ferreira-Santos, USP, Brasil
Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio, USP, Brasil
Marian Cao, Universidad Complutense de Madrid, España
Mario Miranda, USP, Brasil
Patrícia P. Morales, Universidad Pedagógica Nacional, Ecuador
Pilar Peres Camarero, Universidad Autónoma de Madrid, España
Rainer Guggenberger, UFRJ, Brasil
Regina Machado, USP, Brasil
Roberto Bolzani Júnior, USP, Brasil
Rogério de Almeida, USP, Brasil
Soraia Chung Saura, USP, Brasil
Walter Kohan, UERJ, Brasil
V I T OR HE NRIQUE PA RO
DOI: 10.11606/9786587047485
SÃO PAULO, SP
2023
© 2023 by Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde
que citada a fonte e a autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada.
Catalogação na Publicação
Biblioteca Celso de Rui Beisiegel
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Faculdade de Educação
Diretora: Profa. Dra. Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto
Vice-Diretor: Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto
Avenida da Universidade, 308 - Cidade Universitária - 05508-040 – São Paulo – Brasil
E-mail: spdfe@usp.br / http://www4.fe.usp.br/
FEUSP
SUMÁRIO
Políticas educacionais: 88
considerações sobre o discurso genérico e a abstração da realidade
Carlota Boto
9
Vitor Paro: política, pedagogia e vontade democrática Carlota Boto
10
Vitor Paro: política, pedagogia e vontade democrática Carlota Boto
Referências:
PARO, Vitor Henrique. Professor: artesão ou operário? São Paulo: Cortez, 2018.
Carlota Boto
Diretora da FEUSP
11
Homenagem a Vitor Henrique Paro
Rogério de Almeida
12
homenagem a Vitor Henrique Paro Rogério de Almeida
O segundo encontro, este pessoal, se deu mais recentemente, por conta das
minhas atribuições de chefe de departamento. Tive, então, o prazer de conviver, não
mais com as obras, mas com seu autor, que em nada ficou devendo a elas. Vitor é dono
de uma visão crítica muito lúcida e bem fundamentada, raciocina rápido e argumenta
com talento e desenvoltura, está sempre com um livro nas mãos e é apaixonado por eles,
a tal ponto que não hesita em comprar uma boa briga com os editores se for para fazer
um livro mais bonito e gostoso de ler. Metódico e organizado, cumpre suas tarefas bem
antes dos prazos. Ao menos, foi essa minha experiência com ele durante o processo de
edição deste livro que, publicado pelo Portal de Livros Abertos da USP, o homenageia.
Em 2020, tive o privilégio de brindar a inesquecível e saudosa Professora
Lisete Arelaro contribuindo na organização do livro que a saudou na cerimônia de
entrega do título de Professora Emérita (https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/
portaldelivrosUSP/catalog/book/622). Agora, com esta coletânea de textos de Vitor
Henrique Paro – Gestão, política, economia e ética na educação –, renovo minha alegria de
contribuir para a circulação de suas ideias, pensamentos, estudos e palavras. É o seu
vigésimo livro, o primeiro inteiramente em formato digital, uma antologia de onze
textos publicados a partir de 1994 e dispersos em periódicos acadêmicos, coletânea de
capítulos, eventos acadêmicos e jornais de grande circulação. Tenho certeza de que será
mais uma obra de referência para muitas educadoras e educadores, perpetuando o júbilo
que Vitor Paro concede ao Departamento de Administração Escolar e Economia da
Educação, à Faculdade de Educação e à Universidade de São Paulo.
Rogério de Almeida
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Um homem das ciências da educação
Daniel Cara
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um homem das ciências da educação Daniel Cara
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um homem das ciências da educação Daniel Cara
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um homem das ciências da educação Daniel Cara
uma Comissão Especial amplamente favorável à matéria, presidida na época pelo então
deputado, e hoje Senador, Marcos Rogério.
Basicamente, o segredo foi elevar o debate, e devemos isso ao trabalho do nosso
homenageado. Obviamente, não abdicamos de mobilização social, pressão sobre as
autoridades, uso estratégico do regimento interno das Casas Legislativas, mas até hoje o
conceito de educação de Vitor Henrique Paro circula – nem sempre sendo corretamente
citado – em todos os processos que resultaram em derrotas para o “Escola sem Partido”,
especialmente no Supremo Tribunal Federal, em uma demonstração clara de boa
utilização da Ciência contra o obscurantismo.
Pessoalmente, conheci Vitor Henrique Paro em 05 de junho de 2014, era uma
quinta-feira fria em São Paulo. Dias antes, em 03 de junho, tinha liderado a incidência
da sociedade civil na aprovação terminativa do Plano Nacional de Educação 2014-
2024 na Câmara dos Deputados. Por isso, estava confiante. A ocasião do encontro era
peculiar: a entrevista do processo seletivo para o curso de Doutorado no programa de
pós-graduação desta Casa. Os examinadores titulares eram Lisete Arelaro, Romualdo
Portela de Oliveira, e Sandra Maria Zakia Lian Sousa. Como indiquei Vitor Paro como
minha primeira opção para orientação – por sugestão de Iracema Santos do Nascimento
–, ele fez questão de me entrevistar – ou sabatinar, como ele avisou antes de o tempo
começar a contar.
Tudo transcorria tranquilamente, até chegar a vez de ele me arguir. Foi uma
afirmação, seguida de duas perguntas. Lembro tudo de cor:
– Você escreveu corretamente o projeto, está claro, mas cheio de erros de
padronização. Precisa aprender a utilizar a ABNT, ela é ruim, mas precisa usar.
Agora, duas perguntas. Primeiro: por que você quer fazer Doutorado? Segundo e mais
importante, li tudo o que você escreveu e pesquisei sobre você, seu projeto está claro,
como eu disse. Mas percebi um problema: você entende muito de política de educação,
mas não entende nada de Pedagogia. Você vai sentar a sua bunda na cadeira, enfiar o
queixo no peito e estudar? Só isso que eu quero saber.
Lisete riu copiosamente, Sandra ficou preocupada e Romualdo apenas disse
“Daniel, o Vitor é o nosso Serginho Chulapa, responda ele”, em referência ao intrépido
centroavante são-paulino da década de 1980.
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um homem das ciências da educação Daniel Cara
Hoje estou aqui e tenho certeza que não teria perseverado na academia se não
fosse essa entrevista. Vitor tinha razão: eu era um estranho à área. Já tinha trabalhado
em escolas públicas nas regiões Sul, Leste e Norte de São Paulo, já tinha uma atuação
nacional e internacional reconhecida na área, mas não era um estudioso das Ciências da
Educação, em especial da Pedagogia. Esse depoimento é para dizer que Vitor foi essencial
na minha formação, como é para todas suas orientandas e todos seus orientandos. Como
diz nosso colega Petter Maahs da Silva, o último orientando de Paro, Vitor orienta como
um pai italiano: é exigente com os filhos, mas jamais deixa eles desamparados.
Dito tudo isso, chegou a hora de dizer que ninguém se torna professor emérito
apenas por ser um excelente pesquisador. Para alcançar a honra de professor emérito
é preciso tocar e mobilizar as pessoas, desafiá-las e ampará-las, além de dar uma
contribuição única ao mundo. E Vitor Henrique Paro realiza tudo isso com primazia.
Mais uma prova da envergadura do Vitor, em um pequeno detalhe de prática
pedagógica: todo semestre digo para meus alunos e para minhas alunas que precisei
chegar ao Doutorado, com quase 40 anos na época, para ser examinado e descobrir
a função pedagógica de uma das mais antigas formas de avaliação: a prova escrita. E
tudo isso ocorreu quando fui aluno em uma disciplina que cursei, ministrada pelo nosso
homenageado, no âmbito do nosso programa de pós-graduação – quando além de
estudante era também orientando.
Outro caso: tive aulas de graduação e pós-graduação na aqui na Universidade de
São Paulo em que estudei “O Capital” com grandes professores. Contudo, nem os grandes
Paul Singer e Francisco de Oliveira – dois gigantes – conseguiram ser tão didáticos
quanto Vitor, dirimindo minhas dúvidas mais persistentes. E há aqui uma vantagem:
o penúltimo livro publicado pelo nosso homenageado, “O Capital para educadores:
para aprender e ensinar com gosto a teoria científica do valor” reúne tudo o que ele
acumulou em toda sua trajetória de pesquisa e ensino sobre a obra de Karl Marx, com o
ineditismo de publicar o primeiro livro híbrido, complementado por vídeos explicativos
disponíveis na Internet.
Por ser o propositor no âmbito do Departamento de Administração Escolar e
Economia da Educação dessa homenagem, junto com meus colegas Prof. Dr. Rubens
Barbosa de Camargo e Profa. Dra. Iracema Santos do Nascimento, orientandos do Vitor
como eu e coautores desta iniciativa e com o apoio dos chefes Profa. Dra. Carmen Sylvia
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um homem das ciências da educação Daniel Cara
Vidigal Moraes e do Prof. Dr. Rogério de Almeida, além da diretora desta Faculdade
de Educação, a Profa. Dra. Carlota Boto, tenho pensado muito na trajetória do nosso
homenageado.
Para além da excelência acadêmica – e como explicação dela –, não tenho dúvida
que a infância e adolescência em Colina, as dores as delícias das experiências na escola, o
contato precoce com a obra do Millôr Fernandes, a capacidade comunicativa desenvolvida
na época em que foi vendedor da Cerâmica Weiss, a vivência no movimento estudantil
e na representação discente quando era aluno de graduação nesta Casa, o Doutorado na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (sob orientação de Demerval Saviani),
o trabalho na Fundação Carlos Chagas, as reuniões do Grupo de Estudo e Pesquisas
em Administração Escolar (Gepae), a prática docente na PUC-SP e nesta FEUSP e –
certamente – a vida em família com sua companheira Thaís Cossoy Paro, as filhas Laura
e Iana, e as netas Helena e Thereza deram a sustentação para esse laureamento, do
qual tive a honra de ser propositor junto ao meu departamento e parecerista junto à
Congregação desta Faculdade de Educação.
E se tivesse que sintetizar em uma frase a trajetória acadêmica e a própria ética
do nosso homenageado, tomaria emprestado o lema da nossa Universidade São Paulo:
“Scientia vinces”, “Vencerás pela Ciência”.
Vencer pela Ciência é a obsessão do meu grande amigo, eterno orientador e
agora Professor Emérito da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo: Vitor
Henrique Paro.
Viva Vitor Henrique Paro!
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Homenagem ao Mestre Vitor Henrique Paro
uma observação inteligente, um exemplo prático, uma análise teórica relevante a ser
apresentada em conversas, exposições e comentários de forma séria e contundente.
Sua experiência de vida, aliada a um comportamento de pesquisador rigoroso
tanto no estudo e no tratamento teórico como empírico das questões educacionais,
econômicas, religiosas, de pesquisas neurológicas que lhe permitem apresentar uma
visão ampla sobre inúmeros assuntos com uma percepção aguda, crítica e relevante.
Em função disso, tornou-se um “publicador e divulgador contumaz” de todos
resultados que encontrou em estudos e pesquisas de sua profícua produção acadêmica,
redundando em quase 20 títulos de livros (não contadas suas muitas reedições, o que
mais que dobraria este registro), dezenas de capítulos de livros e artigos acadêmico-
científicos e várias centenas de palestras, conferências, cursos, participante em mesas
redondas, seminários, colóquios, encontros etc.
Seu exemplo de dedicação séria à pesquisa e como intelectual engajado
nas questões da gestão educacional e nas políticas educacionais propiciou enorme
contribuição como orientador de pós-graduação (de discípulos, como gosta de dizer)
de Iniciação Científica (mais de 30), de Assistentes de Pesquisa atuando na graduação
dos Cursos de Pedagogia na PUC/SP, na Fundação Carlos Chagas (FCC) e na Feusp,
bem como Mestrados (17) e Doutorados (25) na PUC/SP e na Feusp, formando
quadros de pesquisadores sempre dedicados à discussão aprofundada e em defesa da
escola pública. Nesta condição também participou de centenas de bancas de avaliação
de mestrado, de doutorado (seja na qualificação ou na defesa) e de diferentes processos
de processos seletivos em concursos de ingressos em cargos públicos e em cursos de
mestrado e doutorado, de titulação, além de contribuir com a expedição de centenas de
pareceres sobre projetos de pesquisa e de bolsas para agências de fomento (em especial,
CNPq e Fapesp) e de Comissões Editoriais com a avaliação de artigos para publicações
especializadas, capítulos e livros para editoras da área de educação.
De suas muitas publicações, sem pretender desmerecer nenhuma delas e com
brevíssimas observações, destaco a Crítica da estrutura da escola (Cortez, 2011) onde
apresenta a estrutura escolar bem como mecanismos institucionais em diversos aspectos
que resultam (ou não) no aluno “querer aprender” ao fim e ao cabo, função principal da
escola; a obra Eleição de diretores: a escola pública experimenta a democracia (Papirus,1996)
em que apresenta os fundamentos da eleição de dirigentes diante das demais formas de
22
homenagem ao mestre Vitor Henrique Paro Rubens Barbosa de Camargo
últimos anos introduziu um romance para “aquecer” o início dos trabalhos do Gepae) e
algumas das últimas produções de seus orientandos que enriquece a todos com debates
acalorados, profundos, com forte argumentação e muita riqueza de visões diferentes.
Aliás, creio que muitos gostariam de expressar aqui toda a gratidão e reconhecimento
ao Vitor pela oportunidade de ter participado ou estar participando do Gepae.
Mas o que é também delicioso, agradável, prazeroso e afetuoso na relação pessoal
com o Vitor Paro?
De início, destaco seu humor ferino e suas expressões peculiares como
os célebres troca letras “não confundir ´Pires de Oliveira` com ´pratinho de
azeitona`” ou o famoso “Pé em Deus e Fé na Tábua” (mas que bem poderia ser Taba,
aliás, sempre pensei que fosse) reiterando de forma divertida e direta de sua crença
na ação dos homens em processo civilizatório, significando “tocando em frente” e seu
repúdio a visões que têm no “além” sua explicação e razão de vida... Além de muitas
dessas, criou expressões inéditas e precisas para utilização em sala de aula e até em
publicações (que aliás em seu último livro O Capital para educadores: aprender e ensinar
com gosto a teoria científica do valor onde ela virou o “mote” de apresentação e discussão
de importantes conceitos marxistas de O CAPITAL), como o “NEBA – Não é Bem
Assim” (devo admitir que passei também a utilizá-la, com enorme sucesso, em minhas
aulas e orientações) ...
Mas devo contar que, para mim, são impagáveis os momentos de “conversas
soltas” após eventos acadêmicos ou reuniões de estudos acompanhados com uma
cachacinha, uma caipirinha (sem açúcar, para ele) e uma cervejinha gelada, com que
brindamos os papos, em geral acompanhadas com um bom churrasco (ao menos ao
final do ano antes da pandemia) ou as diferentes comidas de boteco que nos animam
ainda mais para lhe ouvir, ao mesmo tempo que rimos e falamos...
Tal como o grande contador de “causos” Rolandro Boldrin (o eterno Sr. Brasil),
os “causos” contados por ele de sua infância no sítio em Colina/SP e seus respectivos
“personagens” familiares ou não: o pai, a mãe os irmãos, as professoras e professores
do primário e do ginásio, o padre local (e as confissões e piadas subsequentes) entre
muitos outros, nos permitem “entrar na história” e participar delas tal o detalhamento
das situações, os finais inesperados e a condução envolvente dos contextos e desenlaces.
24
homenagem ao mestre Vitor Henrique Paro Rubens Barbosa de Camargo
Outra “fase” que costuma também acrescentar aos seus causos (de vez em quando)
foi sua “chegada” a São Paulo, onde veio fazer o (atual) Ensino Médio, com a moradia em
casa de familiares, os quartos em pensões, os primeiros apartamentos, as festas, os amigos
e amigas que conviveu, detalhando suas personalidades físicas, suas características, suas
idiossincrasias e as diferentes situações. Algumas das histórias remontam seu trabalho
como auxiliar de escritório e de vendedor (depois gerente de vendas) de cerâmicas (ele
que diz que foi ali que “aprendeu” concretamente o conteúdo do Capital de Karl Marx).
Suas histórias também sobre o tempo em que trabalhava em diferentes lugares
e os “atores” (creio que ele detesta essa formulação!) que passaram a fazer parte de sua
trajetória acadêmica “ganham vida” ao se referir ao Curso de Pedagogia na USP onde
fez o curso superior. A descrição de seus professores, professoras, amigos e amigas,
onde quase todos entram com traços próprios e passagens intensas nos faz sentir em
“sala de aula”, ou em outros momentos mais “conturbados” como no caso em que esteve
sob cuidados por longos meses de amigas e amigos impossibilitado que estava após
acidente automobilístico. Em conversas sobre seus percursos acadêmicos e de pesquisas
educacionais Vitor destaca a importância de alguns de seus formadores na Feusp e
na PUC de São Paulo em seu período de doutorado, por exemplo José Augusto Dias,
Demerval Saviani, Celso de Rui Beisiegel, Bernardete Gatti entre muitos outros. Além
de uma geração de colegas de doutorado na PUC (que se tornaram referências nacionais
posteriormente de diferentes matizes políticos) com os quais estabeleceu leituras
e discussões teóricas e práticas sobre diferentes aspectos das políticas educacionais
vigentes à época.
Nos “causos” sobre a Feusp, há sempre a lembrança de sua presença marcada
desde o curso de Pedagogia (onde também foi representante discente na Congregação)
mas há o tratamento severo contra as injustiças que ocorreram (na “repartição” como
alguns a tratam), bem como há o reconhecimento de inúmeras contribuições pessoais
e institucionais em diferentes momentos, lugares e pessoas. Cito a presença e o
reconhecimento da Lisete (a quem é dedicado seu último livro, lançado recentemente)
em nome de todos aqueles para com os quais Vitor tem grande apreço.
Enfim, foram vários anos de convivência com Vitor Paro. Desde 1991, quando
o conheci e conversei pela primeira vez por meio da indicação de minha querida amiga
Theresa Adrião (hoje também professora aposentada da Unicamp) para começar a fazer
25
homenagem ao mestre Vitor Henrique Paro Rubens Barbosa de Camargo
o doutorado no ano seguinte na Feusp. Ele não reconhece, mas “fiz” duas disciplinas
com ele, sem matrícula, pois ele detestava atrasos às suas aulas e eu estava dando aulas
e iniciando a carreira acadêmica na Universidade Federal de São Carlos em 1993. Fui
seu orientando até outubro de 1997, quando defendi minha tese, recebendo muitas
broncas, elogios, atendimentos e “afetuosos amplexos” com a sua característica
“Serginho Chulapa”, como são paulino roxo que é (ninguém é perfeito...). Ao final de
1998 prestei o concurso para ingresso no EDA da Feusp, no qual fui aprovado e iniciei
o trabalho. Convivemos no mesmo departamento até 2003 quando ele se aposentou e
ainda continuamos vinculados ao Programa de Pós-graduação em Educação da Feusp
até hoje (2023). De lá para cá a minha admiração e estima só cresceram.
Para finalizar, Vitor, espero que continue sendo esta pessoa autêntica, confiante,
amiga, engajada, preocupada com o Brasil e o mundo, como sempre te conheci.
Muito obrigado pelo prazer de sua existência e convivência, ao menos uma vez
por mês no admirável grupo do Gepae!
Salve o mais novo Professor Emérito da Faculdade de Educação da USP!!!
Com toda a justiça e todo reconhecimento por tudo que contribuiu para
a educação!!!
Estamos juntos!
Pé em Deus e Fé na Tábua!
Maio de 2023
26
Para o meu Emérito Predileto
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para o meu emérito predileto Iracema Santos do Nascimento
ação, podemos tentar imitá-lo de alguma maneira no afã de capturar um pouco dessa
didaticidade. Tome aí, professor, esse neologismo (e agradeça por eu não ter escrito
“tomaí”)...
Em uma das duas disciplinas de pós-graduação que fiz com você no curso de meu
doutorado, a temida “Economia Política da Educação (A Teoria do Valor em Marx e a
Educação)”, aprendi como se formula, aplica e corrige uma prova. Obviamente, isso não
era conteúdo específico da disciplina, mas veio de lambuja dentre os ensinamentos que
você nos ofertou. Foi lindo quando em fevereiro do ano seguinte, meses após a conclusão
da disciplina, a maioria de nós compareceu para a reunião de coavaliação. Você já havia
devolvido a correção, como também a oportunidade de refazermos a prova, já tinha
atribuído notas, mas mesmo assim nós fomos ao seu encontro, no melhor indicador de
que uma verdadeira relação mestre-discípulos havia se estabelecido. Queríamos estar
com você e aprender um bocado mais. Ali na sala, você entregou uma folha em branco
para cada um de nós e quatro perguntas, pedindo para que respondêssemos por escrito,
anonimamente, se desejássemos. Depois que todos entregamos as respostas, você as
leu atentamente e deu alguns retornos, demonstrando surpresa com alguns pontos que
levantamos, a maioria sobre você ser “muito bravo”... Algumas de nós manifestamos
oralmente nossos questionamentos, em um intenso e franco diálogo, do qual todos
saímos mais sabidos, como só acontece na educação verdadeiramente democrática.
Obrigada, professor!
Também posso afirmar que você é um exímio orientador. E tenho certeza de que
as e os 42 demais orientandos assim o atestam sem titubear. Nunca vou esquecer de seu
comparecimento à arguição no processo seletivo de ingresso ao doutorado, em 2012. Eu
o havia indicado como possível orientador. A culpa disso foi da minha / nossa querida
Bianca Cristina Correa. Ela havia sido sua orientanda e sugeriu que eu te indicasse.
Resolvi arriscar e deu certo. No dia da minha entrevista, inesperadamente para mim, lá
estava você. No corredor, ouvi sussurros temerosos de outros candidatos anunciando
que “o professor Vitor Paro estava na banca”. Um filete de suor frio correu na espinha
de cada um de nós, tenha certeza, acompanhado de “tamo ferrado” espiralando em
nossas cabeças. Você me fez umas tantas perguntas, entre elas se eu teria tempo para
me dedicar ao doutorado, se eu tinha ideia do que era “aquilo”, o tal doutorado, se eu
estava preparada para estudar muito, para jogar fora o que escreveria, para reescrever
28
para o meu emérito predileto Iracema Santos do Nascimento
do zero e perseverar. Também disse que era condição frequentar o Gepae, como se isso
fosse algum castigo. Tentei não ser monossilábica nem óbvia nas respostas e acho que
fui capaz de convencer você e a banca, pois fui aprovada. Depois eu soube que você
sabia que a maioria de nós mentia na entrevista, pois não tínhamos ideia do que nos
esperava...
Voltando à orientação, da primeira bronca a gente nunca esquece. A minha se
deveu ao fato de que eu demorei para entregar o texto de meu projeto de pesquisa à
leitura das e dos colegas de Gepae. Você me ligou para cobrar, eu respondi que supus
que poderia enviar numa data “x”. “Você não tem que supor nada, você tem de me ligar
para perguntar e para agendar reunião de orientação. Eu sou seu orientador, é minha
obrigação te orientar”.
Vitor, outro aspecto valiosíssimo de sua orientação é nos desafiar a pensar e a
pesquisar políticas e gestão educacional a partir da escola, sobretudo a escola pública.
Relacionar políticas e gestão no âmbito sistêmico com o que se faz na escola e contribuir
para que professoras e professores reconheçam essas relações era minha ambição
primeira quando decidi ingressar no doutorado. Ninguém melhor do que você, o sujeito
que escreveu o clássico Por dentro da escola pública, para me guiar nessa busca.
Professor, tenho imensa gratidão por sua leitura meticulosa de cada versão de
minha tese e pelas reuniões de orientação que eram verdadeiras aulas. Tenho duas
reclamações, entretanto. A primeira diz respeito à falta de intervalo no trabalho de
doutoramento. Lembro de ter lhe entregue uma encadernação com dois capítulos em
31/12/2015, na esperança de que só no final de janeiro voltaríamos a conversar e que eu
finalmente poderia aproveitar o verão e sintetizar alguma vitamina D depois de meses
de reclusão. Mas em três dias você me deu retorno e já agendamos nova reunião de
orientação naquela primeira semana do mês... “Ninguém aqui tá de férias, não, minha
filha. Doutorando não tem férias”. A segunda queixa é por seus garranchos ao longo de
meus textos. “É pra isso que a gente faz reunião, pra eu te explicar o que anotei aí”.
Queridíssimo Vitor, sou muito grata por não ter ingressado na primeira vez
em que prestei o processo seletivo do doutorado na FEUSP, em 2011, em outra área de
concentração. Fui chamada para a entrevista, mas naquele momento tive certeza de que
não seria aprovada. Os professores da banca examinadora não pareciam interessados
em meu projeto. Sou grata por essa reprovação, pois da segunda vez que tentei tive a
29
para o meu emérito predileto Iracema Santos do Nascimento
sorte de “cair” sob sua orientação. Meu destino acadêmico não poderia ter sido melhor.
Das circunstâncias que vão constituindo o caminhar de qualquer pessoa, em meu caso
sei que esse foi um presente. Ter sido sua orientanda foi um ponto de inflexão ímpar em
minha Vida. Sim, faço questão de dizer Vida, não apenas carreira acadêmica. Isso pela
oportunidade de estar perto de você, de aprender (sempre) com você e também pela
abertura e carinho com que trata todos nós, seus orientandos, nos levando para dentro
de sua casa, para perto de sua adorável família. Por isso quero aproveitar também para
estender meus agradecimentos às mulheres de sua vida, às queridíssimas Thais, Laura,
Iana, Helena e Tereza.
Por fim, e na circularidade que me faz retomar a epígrafe desta missiva, agradeço
por participar de meu crescimento intelectual e espiritual. Espiritual, aqui, nada tem de
metafísico (“graças a deus”, diria você, um ateu proselitista), mas do espírito que nos
irmana à medida que construímos de modo solidário a humanidade em todos e em cada
um de nós.
Receba meu abraço com imenso carinho e gratidão,
Iracema.
São Paulo, 24 de abril de 2023.
30
para o meu emérito predileto Iracema Santos do Nascimento
31
Administração escolar e qualidade do ensino:
o que os pais ou responsáveis têm a ver com isso? 1
2 A pesquisa conta com financiamento do CNPq e visa “estudar o papel da família no desempenho escolar
de alunos do ensino público fundamental bem como as atribuições da escola na promoção da participação
da família na melhoria desse desempenho”. Nota desta edição: A pesquisa, já concluída, consta em Paro,
2018.
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administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro
fazia a escola pública “de qualidade” de algumas décadas atrás3 ou a escola particular de
hoje que atende as camadas privilegiadas4, estaremos promovendo a melhoria no nível
de bem-estar geral da sociedade?
Embora não se deva minimizar a importância desses dois elementos, parece-me
que as discussões que restringem a eles os objetivos da escola pública têm omitido o
essencial. A escola, como locus da educação sistematizada, não pode passar ao largo do
próprio conceito de educação em sua inteireza, enquanto apropriação da cultura. E esta
tem a ver com a própria concepção de homem que constrói sua especificidade e se
constrói enquanto ser histórico à medida que transcende o mundo natural pelo trabalho.
Ao transcender a mera natureza (tudo aquilo que não depende de sua vontade e de sua
ação), o homem ultrapassa o nível da necessidade e transita no âmbito da liberdade. A
liberdade é, pois, o oposto do espontaneísmo, da necessidade natural; é algo construído
pelo homem à medida que constrói sua própria humanidade. (Paro, 1997, p. 107-114)
Na produção material de sua existência, na construção social de sua história,
o homem produz conhecimentos, técnicas, valores, comportamentos, atitudes,
tudo enfim que configura o saber historicamente produzido. Para que isso não se
perca, para que a humanidade não tenha que reinventar tudo a cada nova geração,
fato que a condenaria a permanecer na mais primitiva situação, é preciso que o
saber esteja permanentemente sendo passado para as gerações subsequentes. Essa
mediação é realizada pela educação, entendida como a apropriação do saber produzido
historicamente. Disso decorre a centralidade da educação enquanto condição
imprescindível da própria realização histórica do homem. É, pois, pela educação, que
3 É certo que a escola pública existente até três ou quatro décadas atrás não tinha a homogeneidade que
se pretende quando se fala de suas virtudes. Entretanto, na representação da maioria dos saudosistas da
escola pública de antigamente, o que aparece é uma escola de alta qualidade que tinha êxito em passar
um conteúdo preparatório para a universidade. Esta era precisamente a escola que servia a uma ínfima
minoria de alunos procedentes prioritariamente das camadas privilegiadas da população e que, embora
considerada paradigmaticamente, por muitos, como “de qualidade”, utilizava métodos tão ou mais retró-
grados que os da escola pública de hoje. De qualquer modo, toda vez que mencionar a escola pública de
antigamente é a este estereótipo de escola que estarei me referindo.
4 Também a escola particular não possui a homogeneidade que se pretende quando se lhe atribui uma
qualidade superior à da escola pública atual. Mas o estereótipo é sempre a escola que abriga os filhos das
camadas mais ricas. Embora uma visão crítica consiga identificar a grande semelhança entre a didática
utilizada aí e a que vige na escola pública atual, para o senso comum ela é considerada de ótima qualidade.
É a este estereótipo que estarei me referindo quando falar da atual escola particular.
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administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro
ser aprovados. A culpa, na grande maioria das vezes, cai sobre o “produtor final”, o
professor, acusado de incompetência e de pouco empenho profissional. Este reclama do
salário, mas, no íntimo, massacrado pela evidência dos fracos resultados de seus serviços,
se considera mesmo um profissional pouco qualificado, responsável pela má qualidade
do ensino. Quando sua baixa consciência política não lhe permite perceber as condições
de que é refém, prefere, em defesa de sua autoestima, pôr a culpa no aluno, acusando-o
de não querer aprender.
Mas a alegação da falta de interesse do aluno como justificativa para o mau
desempenho escolar precisa ser combatida de forma radical porque ela implica a própria
renúncia da escola a uma de suas funções mais essenciais. Os equívocos a esse respeito
geralmente advêm da atitude errônea de considerar a “aula” como o produto do trabalho
escolar. Nessa concepção, desde que o professor deu uma boa aula, a escola cumpriu
sua obrigação, apresentou o seu produto, tudo o mais sendo responsabilidade do aluno.
Mas, se consideramos o conceito de trabalho humano enquanto “atividade adequada
a um fim” (Marx, [19--], p. 202), a aula ou a “situação de ensino” constitui o próprio
trabalho, não seu produto. Se a escola tem que responder por produtos, estes só podem
ser o resultado da apropriação do saber pelos alunos. Se estes não aprenderam, a escola
não foi produtiva. Dizer que a escola é produtiva porque deu boa aula, mas o aluno não
aprendeu é o mesmo que dizer que a cirurgia foi um sucesso, mas o paciente morreu.
5 Observe-se que, como me referi anteriormente, estou tomando o conceito de saber de modo bastante
amplo, referindo-se, tanto a conhecimentos e técnicas, quanto a comportamentos, valores, atitudes,
enfim, tudo o que configura a cultura humana, passível de ser apropriada na educação.
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administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro
6 “O movimento no sentido de querer aprender é [...] condição sine qua non para que a aprendizagem
ocorra.” (Moysés, 1994, p. 23-24)
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administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro
de que a escola pouco ou nada tem feito para tornar o ensino prazeroso, condição mais
que necessária para despertar o interesse do educando. Mas é verdade também que
há muito a fazer que não depende exclusivamente da escola. E aqui é preciso voltar
à complexidade do objeto de trabalho com o qual ela lida. Enquanto sujeito humano,
o aluno não vive apenas na escola e não forma apenas aí seus valores. A escola tem
falhado não só por estar mal aparelhada, com métodos inadequados e professores mal
formados, embora não se possa menosprezar o enorme peso desses fatores. A escola tem
falhado também porque não tem dado a devida importância ao que acontece fora e antes
dela, com seus educandos. Uma postura positiva com relação ao aprender e ao estudar
não acontece de uma hora para outra nem de uma vez por todas: é um valor cultural
que precisa ser permanentemente cultivado. Começa a formar-se desde os primeiros
anos de vida, precisa de ambiente favorável para desenvolver-se e carece de estímulos
permanentes durante a infância e a adolescência. Como a escola só tem acesso direto
ao educando durante as poucas horas que este frequenta suas atividades, ela precisa
começar a voltar sua atenção para os períodos em que ele está fora de seu abrigo.
Assim, a escola que toma como objeto de preocupação levar o aluno a querer aprender
precisa ter presente a continuidade entre a educação familiar e a escolar, buscando formas
de conseguir a adesão da família para sua tarefa de desenvolver nos educandos atitudes
positivas e duradouras com relação ao aprender e ao estudar. Grande parte do trabalho do
professor é facilitado quando o estudante já vem para a escola predisposto para o estudo
e quando, em casa, ele dispõe da companhia de quem, convencido da importância da
escolaridade, o estimule a esforçar-se ao máximo para aprender.
É aqui que entra a questão da participação da população na escola, pois dificilmente
será conseguida alguma mudança se não se partir de uma postura positiva da instituição
com relação aos usuários, em especial com os pais e responsáveis pelos estudantes,
oferecendo ocasiões de diálogo, de convivência verdadeiramente humana, em suma,
de participação na vida da escola. Levar o aluno a querer aprender implica um acordo
tanto com educandos, fazendo-os sujeitos, quando com seus pais, trazendo-os para o
convívio da escola, mostrando-lhes quão importante é sua participação e fazendo uma
escola pública de acordo com seus interesses de cidadãos. (Paro, 1995a)
É isso que justifica investigar, no âmbito da escola pública fundamental, as
dimensões de uma possível participação da família na promoção, junto a seus filhos
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administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro
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administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro
na melhoria de sua própria qualidade de vida, na medida em que esses adultos estarão
mais capazes, intelectualmente, de usufruir melhor de bens culturais a que têm direito
e que antes não estavam a seu alcance.
Com isso, a escola não estará, na verdade, passando parte de suas tarefas aos
pais, mas aumentando seu próprio trabalho e responsabilidades, na expectativa, é bem
verdade, de facilitar seu trabalho educativo com os estudantes. Mas isto apenas denota
uma preocupação com a qualidade de seus serviços que, em última análise, reverter-se-á
em benefício dos próprios usuários.
No que concerne à administração das unidades escolares, as implicações de
medidas visando à adequação desse problema dizem respeito tanto às questões
propriamente organizacionais quanto aos assuntos relativos à gestão do pessoal escolar.
Com relação ao primeiro ponto, e tendo em vista o fim específico de promover a adesão
(e a colaboração) dos pais aos propósitos educativos da instituição escolar, trata-se de
refletir acerca de como se configurará a participação dos pais na escola e qual o papel
reservado a eles em colegiados como o conselho de escola e os conselhos de classe e de
série. Quanto à gestão do pessoal escolar, supõe-se que novos elementos precisarão ser
incluídos na definição do papel desses servidores frente às famílias usuárias da escola, a
partir da exigência de um contato qualitativamente novo e provavelmente muito mais
frequente do que o atual. Especialmente com relação aos professores, supõe-se que isso
poderá exigir mecanismos permanentes de assessoria, orientação e treinamento com o
propósito de mantê-los capacitados a desenvolver um trabalho com novas atribuições.
na família. Quanto à natureza dessa ajuda, embora muitos reclamem a própria assessoria
dos mais velhos no estudo e na realização de lições de casa, o que todos consideram mais
importante é a atenção e o estímulo que devem ser propiciados aos estudantes.
Isto tem a ver, já, com o segundo aspecto relevante a se observar: embora
considere difícil que os pais, em sua maioria, pela própria condição de semiletrados, não
sejam capazes de ensinar os conteúdos escolares ou de auxiliar eficazmente na solução
dos problemas de aprendizagem apresentados pelos alunos, a maioria dos professores
enfatizam que todos os pais podem muito bem estimular seus filhos, interessando-se por
seus estudos, verificando seus cadernos, reforçando sua autoestima, enfim, levando-os
a perceber a importância do aprender e a sentir-se bem estudando. Uma professora
de 3o. ano dá o exemplo de sua mãe, que mesmo sendo analfabeta sabia estimulá-la a
estudar enquanto criança.
Minha mãe era analfabeta, mas ela olhava meu caderninho. Eu nem percebia
que ela não sabia nada. Até os dez anos, pra mim, ela sabia tudo. Ela olhava,
discutia se tava bonito [ou] se não tava bonito. [...] Então, a ajuda dos pais
é nesse sentido: “ô, meu filho, que cê tá fazendo, deixa eu ver o que que é
que tem”, né.
Apesar de muitos professores acharem que os pais não cumprem essa função
porque não têm tempo diante da vida de trabalho duro que levam, a maioria concorda
que o que falta é um bom esclarecimento a eles a respeito da forma de desempenhar
seu papel e da importância de fazê-lo. Concordam que esse esclarecimento deve caber à
escola, mas consideram que a maior dificuldade é trazer os pais para participarem. Não
acreditam que essa orientação possa ser proporcionada aos pais, contando apenas com
as vias institucionais existentes: reuniões de pais, conselho de escola e associação de
pais e mestres. E aqui aparece outro elemento praticamente consensual na concepção
do pessoal da escola entrevistado: sempre que são instados a apresentar uma solução
para a situação, os professores indicam como alternativa a instituição de algo como uma
“escola de pais” em que se procuraria ensinar aos pais a melhor forma de lidar com seus
filhos para que estes tenham um melhor desempenho escolar.
Entre as inúmeras implicações de uma tal iniciativa, pode-se destacar, por um
lado, o perigo de se adotar uma posição “catequética” com relação aos pais que se
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administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro
suporiam passíveis de serem educados pelos professores, por outro, a dúvida a respeito
da possibilidade de os mesmos educadores conseguirem, com os pais, aquilo que
reclamam não conseguir com os filhos, ou seja, o interesse e empenho no estudo por
parte destes últimos.
Em que pesem estas e outras questões, a escola em exame na pesquisa de campo
apresenta-se como local privilegiado para o estudo do assunto pelo especial motivo
de estar começando a implementar, no momento, uma experiência a respeito. Trata-
se de um projeto de formação para pais, autorizado pela delegacia de ensino e com
previsão de recursos para sua execução. Mas o mais auspicioso para a experiência é
que ela foi concebida e terá a liderança de uma direção escolar vivamente interessada
na participação de pais e mães na escola, no duplo aspecto de direito dos usuários e de
necessidade da escola para o bom desempenho de suas funções.
A pesquisa encontra-se em andamento e, para se chegar a conclusões mais seguras,
há ainda muito a se investigar, inclusive em que medida se confirma a suposição de que
os pais de fato não estejam já envidando todos os esforços para convencerem seus filhos
a estudar. A sequência do trabalho de campo inclui, além da realização das observações e
entrevistas com alunos e pais, o acompanhamento da execução do projeto de formação
de pais. Espera-se que a conclusão do estudo possa fornecer subsídios importantes
para a discussão da relação entre o processo de produção pedagógico escolar e o saber
apreendido na família, bem como para a tomada de decisões a respeito de formas de
participação dos pais na escola, visando a essa relação.
Não se trata de esquecer o enorme caminho a ser percorrido no interior da própria
escola, em termos da adequação de seus objetivos e de seu aparelhamento material,
humano e metodológico. Não se pode, em absoluto, estar alheio a isto. Mas, trata-se,
também, de reconhecer algo a que a teoria educacional tem prestado pouca atenção. Por
pequena que seja, em comparação com tudo o que há por fazer na escola, a contribuição
que os pais podem dar para o processo pedagógico escolar precisa ser levada em conta
para evitar o risco de se ignorar algo que é imprescindível para o bom desempenho dos
alunos.
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Referências
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A utopia da gestão escolar democrática 1
1 Comunicação apresentada no painel “A gestão democrática da Educação: reflexões com vistas à Cons-
tituinte”, realizado em João Pessoa - PB, no XIII Simpósio Brasileiro de Administração da Educação,
promovido pela Anpae - Associação Nacional de Profissionais de Administração da Educação, de 3 a 7
de novembro de 1986.
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a utopia da gestão escolar democrática Vitor Henrique Paro
sua força de trabalho física ou mental (Green, 1982, p. 134). Também quando falamos
classe dominante, isto implica uma generalização dos grupos dominantes, na medida
em que estes não são homogêneos sob todos os pontos de vista. Mas, têm interesses
coincidentes quando contrapostos aos interesses dos trabalhadores.
Pois bem, ao falar do ponto de vista dos trabalhadores, assumo como premissa
o fato de que, da classe dominante, não se pode esperar nenhuma iniciativa de
transformação em favor das camadas dominadas, (e, no nosso caso, no que se refere à
escola), sem pressão por parte dos interessados.
Além dessa premissa, coloco como horizonte a transformação do esquema de
autoridade no interior da escola. Vejam que a utopia escolar que pretendo delinear se
coloca como um resultado, que pressupõe obviamente um processo. E é esse processo
que é importante aqui explicitar. À medida que o horizonte se articular com os interesses
dominados, o processo de transformação da autoridade deve constituir-se no próprio
processo de conquista da escola pela classe trabalhadora.
Esta constatação deriva de uma visão não muito otimista a respeito da função
desempenhada pela escola na sociedade hoje. Não há dúvida de que podemos pensar
na escola como instituição que pode contribuir para a transformação social. Mas, uma
coisa é falar de suas potencialidades; uma coisa é falar “em tese”, falar daquilo que escola
poderia ser; uma coisa é expressar a crença de que, na medida em que a escola consiga,
na forma e no conteúdo, levar as classes trabalhadoras a se apropriarem de um saber
historicamente acumulado e desenvolver a consciência crítica, ela pode concorrer para
a transformação social; outra coisa bem diferente é considerar que a escola que aí está
já esteja cumprindo essa função. Infelizmente a escola que aí está é, sim, reprodutora de
certa ideologia dominante; é, sim, negadora dos valores dominados e mera chanceladora
da injustiça social, na medida em que recoloca as pessoas nos lugares reservados pelas
relações que se dão no nível da estrutura econômica.
Se queremos uma escola transformadora, precisamos transformar a escola que
temos aí. E a transformação dessa escola passa necessariamente por sua apropriação
por parte das camadas trabalhadoras. É neste sentido que precisa ser transformado o
sistema de autoridade e a distribuição do próprio trabalho no interior da escola.
O que nós temos hoje é um sistema hierárquico que pretensamente coloca todo
o poder nas mãos do diretor. Não é possível falar das estratégias de se transformar o
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a utopia da gestão escolar democrática Vitor Henrique Paro
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a utopia da gestão escolar democrática Vitor Henrique Paro
educativas mais amplas e com outras entidades da sociedade civil. O seu próprio caráter de
reivindicação de direitos que são comuns a amplas camadas da população deve conferir-
lhe uma tendência a relacionar-se e a agir em sintonia com um elenco cada vez maior de
entidades reivindicativas. Mas, de qualquer forma, mesmo pensando apenas em termos
de cada uma dessas entidades, acredito ser procedente uma sugestão a respeito de medida
a ser tomada em nível de Congresso Nacional Constituinte. Seria a de contemplar um
princípio que garantisse às instituições da sociedade civil defender seus interesses diante
do Estado, colocando-se em nível de igualdade para arguir seus atos autoritários. Não
se esquecendo que o autoritarismo assume variadas formas. O autoritarismo não se dá
apenas quando o Estado se utiliza de sua máquina burocrática para exercer seu poder e o
abuso da autoridade administrativa de modo direto, o autoritarismo se dá também, e em
especial, quando o Estado deixa de prover a escola de recursos necessários à realização
de seus objetivos.
Assim, uma medida constitucional de caráter geral poderia concorrer para que
a escola, enquanto instituição articulada com os interesses dominados, tivesse facilitada
sua atividade de pressão junto ao Estado, na medida em que, por meio de uma associação
de pais ou entidade semelhante, pudesse defender mais efetivamente seus direitos com
relação ao ensino.
Outro aspecto importantíssimo do problema da participação da comunidade na
escola e que requer medidas corajosas a respeito refere-se ao provimento de condições
para que os membros das camadas exploradas participem da vida escolar. Não basta
permitir formalmente que os pais de alunos participem da administração da escola; é
preciso que haja condições materiais propiciadoras dessa participação. A este respeito,
uma medida que acredito deva ser tomada em nível de Congresso Constituinte é a
instituição de um dispositivo constitucional que facilite a participação dos pais na vida da
escola, através da progressiva isenção de horas de trabalho nas empresas. Tal dispositivo
poderia ser imaginado, em princípio, na forma de liberação do trabalhador com filho
em idade escolar, de um determinado número de horas de trabalho, sem prejuízo de
seus vencimentos, nos dias em que ele tivesse que comparecer à escola para participar de
assembleias ou tratar de problemas relacionados à escolarização de seu filho. Estabelecido
o princípio, a matéria seria depois regulamentada através de lei complementar.
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a utopia da gestão escolar democrática Vitor Henrique Paro
Referência
50
Eleição de diretores de escolas públicas:
avanços e limites da prática 1
1 Trabalho apresentado na 19ª Reunião Anual da ANPEd, realizada em Caxambu, MG, de 22 a 26/9/1996.
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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro
Obviamente, as pessoas que pensavam que, com as eleições, o diretor mudaria seu
comportamento, de forma radical e imediata, frustraram-se ao perceber que muito das
características do chefe monocrático que detém a autoridade máxima na escola persistiu
mesmo com a eleição. Mas, o que isso reafirma é que as causas do autoritarismo existente
nas unidades escolares não advêm exclusivamente do provimento do diretor pela via
da nomeação política. Antes, é preciso considerar que tal autoritarismo é resultado da
conjunção de uma série de determinantes internos e externos à unidade escolar que se
sintetizam na forma como se estrutura a própria escola e no tipo de relações que aí têm
lugar. Por isso, mais uma vez é preciso ter presente que, também neste caso, não se trata
em absoluto de culpar a eleição, mas de reconhecer que ela tem limites que só podem
ser superados quando se conjuguem, ao processo eletivo, outras medidas que toquem na
própria organização do trabalho e na distribuição da autoridade e do poder na escola.
Outra circunstância que evidencia os limites da eleição de diretores é que ela
não está imune ao corporativismo por parte dos grupos que interagem na escola. A
esse respeito, o maior número de reclamações contidas em relatos de autoridades das
secretarias de educação e de pessoas envolvidas nas mudanças refere-se à atitude de
professores que, pouco afeitos às regras da democracia que supõem que o eleito, embora
escolhido pela maioria, deve governar visando o bem de todos, procuram tirar proveito
da situação, buscando favorecimento ao grupo dos docentes em troca de seu apoio a
determinado candidato.
Finalmente, uma importante característica das eleições é que, como todo
processo de democracia, a participação e o envolvimento das pessoas enquanto sujeitos
na condução das ações é apenas uma possibilidade, não uma garantia. Especialmente
em sociedades com fortes marcas tradicionalistas, sem uma cultura desenvolvida de
participação social, é muito difícil conseguir-se que os indivíduos não deleguem a outros
aquilo que faz parte de sua obrigação enquanto sujeito partícipe da ação coletiva. No caso
da escola pública, as reclamações, especialmente de diretores, dão conta de que a eleição
do dirigente acaba, em grande medida, significando não a escolha de um líder para a
coordenação do esforço humano coletivo na escola, mas muito mais uma oportunidade
de jogar sobre os ombros do diretor toda a responsabilidade que envolve a prática
escolar. Dourado (1990, p. 139) refere-se a esse tipo de situação como a uma redução do
processo democrático a “mera delegação de poderes” e Holmesland et al. (1989, p. 138)
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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro
consideram que “o diretor de escola pública, mesmo eleito, é um indivíduo que tende a
sentir-se desacompanhado, desprotegido, solitário”.
Não há dúvida de que, se o problema é a falta de tradição democrática, é com
a insistência em mecanismos de participação e de exercício da democracia que se
conseguirá maior envolvimento de todos em suas responsabilidades. Mas, diante da
associação que muitos fazem entre o direito de votar e a omissão em coparticipar das
responsabilidades do eleito, nunca é demais meditar sobre as palavras de Agnes Heller
sobre a questão da relação entre liberdade e dever:
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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro
O sentimento de não cooptação por parte dos diretores parece ser bastante
forte e se tornou mais evidente por ocasião das greves gerais de magistério.
No Rio Grande do Sul os diretores tomaram o partido dos professores e
foram juntos à praça pública. Por essas razões a hierarquia do sistema de
ensino tenha, talvez, se sentido ameaçada, percebendo a eleição como um
fator desestruturante de sua posição de poder. (Holmesland et al., 1989,
p. 164)
Antes, era praxe o diretor nomeado encaminhar listas com os nomes dos
professores em greve sempre que solicitado pelas autoridades superiores. Com a eleição
do dirigente escolar, essa prática passou a ser questionada e negada pelo diretor, que
passou a reivindicar melhor tratamento dos governos aos movimentos grevistas. Um
exemplo típico dessa nova postura é relatado por Calaça, referindo-se à greve no sistema
municipal de ensino de Goiânia no início do segundo semestre de 1983:
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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro
Todavia, parece que a nova situação ainda não teve a qualidade de dotar o diretor
e a escola de um novo poder de barganha diante do próprio Estado que, habituado
a agir clientelisticamente no atendimento às unidades escolares, com a ausência do
clientelismo, se acomoda em simplesmente não dar ouvidos às solicitações do diretor.
De qualquer forma, o ter conseguido nova postura, pelo menos do diretor, parece
ser uma conquista do processo eletivo que não se deve menosprezar. Além disso, há
indícios de que os próprios diretores consideram a nova situação mais positiva para a
administração da escola.
É interessante observar que a eleição de diretores não apenas traz novas
determinações ao papel do diretor, mas, em muitos casos, possibilita o acesso ao cargo
a um novo contingente de professores que, pelo critério da nomeação clientelista,
dificilmente viriam a se tornar dirigentes escolares. Ao mesmo tempo, deve-se observar
também que o antigo diretor era mais identificado com as obrigações burocráticas e não
tinha um passado de escolha livre por seus comandados como estímulo para defender
mecanismos democráticos como passa a ter o diretor eleito.
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3. Democracia na escola
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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro
nas entrevistas que fiz quanto nos estudos a respeito das eleições em vários sistemas
em que elas se deram, a maioria das pessoas tem uma opinião bastante positiva sobre
os benefícios trazidos pela adoção do novo critério de escolha. Segundo um ex-assessor
da Secretaria da Educação do Estado do Paraná, uma das provas de que a eleição era um
processo acertado é que, nesse Estado, praticamente todas as prefeituras adotaram o
processo eletivo como critério para escolha do diretor.
Sobre o fato de a participação dos vários setores nas decisões da escola ficarem
aquém do desejado, é importante atentar para as observações feitas por Calaça a propósito
das eleições em Goiânia. Após considerar que, “embora esteja a escola elegendo seu
diretor, já há oito anos, não se instituiu uma prática efetiva de participação dos vários
segmentos em suas decisões com a consequente criação de canais que facilitassem esse
processo”, a autora pondera, entretanto, que
político partidário. Tanto nos depoimentos dos vários sujeitos envolvidos, quanto em
estudos sobre o assunto (Calaça, 1993; Heemann; Pucci, 1986) é notável a preferência
das pessoas pela eleição como critério de escolha dos diretores, sequer cogitando elas de
outra alternativa.
Com relação aos professores, esses dados contrastam enormemente com os que
foram obtidos na cidade de São Paulo, em 1991, em consulta feita entre os professores e
especialistas da rede municipal, em que cerca de 81% dos docentes preferiram a escolha
pela via do concurso. A hipótese que se pode levantar - sujeita, obviamente, a estudos
mais aprofundados que lhe possam verificar a validade - é a de que, em ambientes onde
se faz presente a discussão política da democracia e sua efetivação pela via do voto, os
sujeitos estão mais propensos a concordar com essa medida do que nos locais onde
a existência do sistema de concursos com aparência de justiça social tem eclipsado a
discussão a respeito de sua própria inadequação para atender as necessidades políticas
de democracia na escola.
Tudo isso remete à própria situação atual da escola pública básica. Sendo esta
uma questão de natureza eminentemente política, visto que quem detém o poder de
decidir, o Estado, nega-se a atender os interesses dos usuários que são os que financiam
a escola estatal por meio de seus impostos, nem sempre ela é assim percebida pelos
que trabalham na unidade escolar. Nos sistemas em que o diretor é nomeado, seu
compromisso político é com quem está no poder, porque foi quem o nomeou; nos
sistemas em que ele é concursado, seu compromisso é também com quem está no poder,
pois o concurso isolado não estabelece nenhum vínculo do diretor com os usuários, mas
sim com o Estado que é quem o legitima pela Lei. Mas há uma diferença importante:
quando há a nomeação pura e simples, o aspecto político fica à mostra, provocando,
especialmente em períodos de democratização da sociedade, descontentamento e
mobilização dos prejudicados no sentido de superar a situação; mas, nos casos em que
há a ocorrência do concurso como critério exclusivo de escolha, há o agravante de que
o aspecto político fica escamoteado, com maior tendência de acomodação e de crença
na justificativa meramente técnica para os problemas da escola.
Uma consciência política mais desenvolvida e voltada para os interesses de
todos na escola, sem restringir-se ao corporativismo estreito ou às imposições muitas
vezes antieducativas do Estado, só poderá desenvolver-se num ambiente escolar em
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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro
que todos possam conviver como sujeitos, com direitos e deveres percebidos a partir
da discussão aberta de todas as questões que afetam a vida de todos na escola. Embora
a simples existência da eleição de diretores não tenha a possibilidade de instituir, por si
só, esse ambiente na escola, parece certo que ela é uma prática que tem concorrido, de
alguma forma, para isso. Segundo Dourado (1990, p. 128), a partir da implementação
das eleições, em Goiânia, “professores, funcionários, pais e alunos começaram a discutir
a escola que tinham e, em alguns casos, a esboçar, ainda que preliminarmente, a escola
que queriam”. O citado diretor do Fórum Paranaense em Defesa da Escola Pública,
Gratuita e Universal considera que o que houve de positivo com a eleição foi “a abertura
no debate sobre as questões educativas na escola, envolvendo tanto a comunidade de
dentro como a comunidade de fora”.
Essa maior discussão e maior participação, especialmente de pais e alunos, acaba
contribuindo para que se dê, na escola, o desejado controle democrático do Estado por
parte dos usuários de seus serviços. No estado de Mato Grosso do Sul, onde a eleição de
diretores associou-se à instalação dos colegiados escolares, Paixão constata que
contar com um recurso que lhe possibilite exercer alguma pressão sobre o Estado
para que ele atue na direção desejada. Em síntese, a razão determinante da opção pela
eleição como mecanismo de seleção de diretores é a crença de que, por um lado, pode-
se escolher um profissional que se articule com os interesses da escola, e por outro, o
próprio método de escolha condiciona, em certa medida, seu compromisso, não com
o Estado, como fazem as opções do concurso e da nomeação, mas com os servidores e
usuários da escola. Mas, por mais importante que seja esse comprometimento - porque
deixa aberta a possibilidade de o diretor, articulando-se com usuários e servidores,
pressionar o Estado - ele é apenas um recurso para melhorar a escola, não uma certeza.
Tudo dependerá do jogo de forças envolvidas, que não é função, obviamente, apenas da
eleição do diretor.
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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro
Referências
MELLO, Guiomar Namo de; SILVA, Rose Neubauer da. Seleção competitiva de
diretores: estudo de caso de uma inovação educacional no Brasil. Estudos em Avaliação
Educacional, São Paulo, FCC, n. 10 p. 7-45, 1994.
PAIXÃO, Regina da. O colegiado escolar como instrumento de gestão participativa:
a vivência de Mato Grosso do Sul. In: XAVIER, Antonio Carlos da R.; AMARAL
SOBRINHO, José; MARRA, Fátima (Org.). Gestão escolar: desafios e tendências.
Brasília: Ipea. (Série Ipea, 145). p. 107-122, 1994.
PARO, Vitor Henrique. A utopia da gestão escolar democrática. Cadernos de Pesquisa,
São Paulo, n. 60, p. 51-53, 1987
PARO, Vitor Henrique. Administração escolar: introdução crítica. São Paulo: Cortez;
Autores Associados. 1986.
PARO, Vitor Henrique. Eleição de diretores: a escola pública experimenta a democracia.
Campinas: Papirus. 1996.
SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Filosofia da práxis. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
1977.
ZABOT, Nircélio. Eleições para Diretores Escolares; uma importante conquista
democrática. Revista Brasileira de Administração da Educação, Porto Alegre, v. 2, n. 1, p.
88-91, 1984.
ZABOT, Nircélio. O regimento escolar como instrumento de organização
administrativa e pedagógica da comunidade escolar. Revista Brasileira de Administração
da Educação, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 63-66, 1986.
67
Parem de preparar para o trabalho!!!
Reflexões acerca dos efeitos do neoliberalismo
sobre a gestão e o papel da escola básica 1
Introdução
fins dizem respeito à constituição de sujeitos, como é o caso da escola. Isto porque
os objetivos que se buscam na empresa capitalista não são apenas diferentes, mas
antagônicos aos buscados na escola.
Nos últimos anos, a crítica da aplicação da “qualidade total” nas escolas tem sido
feita com competência por diversos autores (v. Fidalgo; Machado, 1994; Gentili; Silva,
1995; Gentili, 1997; Oliveira, 1997). Um dos principais objetos de análise dessa crítica é
a aplicação da lógica do mercado aos assuntos educacionais que a nova onda, chamada
de neoliberal, vem adotando. Todavia, um importante aspecto da adoção de parâmetros
neoliberais à gestão escolar que parece não ter merecido ainda a necessária atenção
dos especialistas são os efeitos diretos das novas práticas de gestão sobre a formação
dos estudantes. Ou seja, trata-se de se perguntar em que medida as práticas adotadas
ou preconizadas pelos adeptos da “qualidade total”, com sustentação na ideologia2 do
liberalismo econômico, carregam consigo um currículo oculto capaz de agir sobre as
condutas dos próprios educandos que comungam dos tempos e espaços em que essas
práticas se introduzem.
O presente ensaio pretende ser uma contribuição a essa reflexão, procurando
examinar as implicações de uma gestão escolar pautada em valores liberais para o papel
desempenhado pela escola pública fundamental bem como apontar perspectivas de
reação à ausência de saber crítico dominante nessas escolas.
70
parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro
em sua autocriação histórica. Nessa autocriação, o homem não se contenta com satisfazer
as necessidades naturais, porque para ele “somente o supérfluo é necessário” (Ortega y
Gasset, 1963). As necessidades naturais independem de sua vontade e a satisfação destas
permite a ele apenas estar no mundo como os seres naturais. Mas o homem não almeja
apenas estar no mundo; o homem almeja estar bem. Para ele, não importa apenas viver,
mas viver bem. Isto é tão dramático que o homem que perde as esperanças de viver bem
prefere suicidar-se a apenas viver (Ortega y Gasset, 1963): “navegar é preciso, viver não
é preciso”. Além disso, essa autocriação nunca se dá de forma individual, já que nenhum
homem ou mulher sozinho consegue produzir diretamente sua própria existência. Ou
seja, o homem se faz pelo trabalho, mas, apenas pela divisão social do trabalho, que o
põe em contacto com os demais componentes da sociedade, é que ele consegue fazê-lo.
Isto coloca para o ser humano uma das maiores questões da filosofia: a construção de sua
liberdade em convivência com os demais seres humanos.
A questão comporta duas dimensões que se complementam. Em primeiro lugar,
ao se admitir que a construção do homem histórico se dá a partir de uma relação de
verticalidade homem—natureza, na qual o primeiro entra como sujeito e o segundo
como objeto de sua ação, só se pode admitir que a relação homem—homem seja de
horizontalidade, na qual ambos sejam sujeitos. Se me suponho humano por minha
posição de sujeito diante da natureza, ao submeter um semelhante, com minha
dominação, à condição de objeto, nego nele, (portanto, nego em mim) a condição de
sujeito, reduzindo-o (e reduzindo a mim, seu semelhante) à condição natural. Conclui-
se, com isso, que qualquer tipo de dominação é desumana, pois concorre para negar a
própria especificidade histórica do homem.
A segunda dimensão da inevitabilidade da relação dos homens entre si na
construção de sua especificidade histórico-humana diz respeito aos problemas que
se apresentam nessa relação para que a liberdade de cada um seja, não simplesmente
respeitada, mas construída coletivamente. Isto coloca a necessidade de uma mediação,
sem a qual não é possível preservar os direitos de todos e construir a liberdade. Essa
mediação podemos chamá-la democracia se, para além de sua conotação etimológica
de “governo do povo” ou sua versão formal de “governo da maioria”, alargarmos o
significado do termo para incluir nele todos os meios e esforços que se utilizam para
concretizar o entendimento entre grupos e pessoas, a partir de valores construídos
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historicamente. Esse caráter mediador da democracia revela mais uma vez a diferença
que há entre a condição natural de liberdade e sua conotação histórica. O pássaro não
precisa de mediação para ser “livre” porque ele não é autor de sua “liberdade”. Mas, para
os homens, a liberdade que os constitui historicamente não se apresenta naturalmente,
mas é construída em colaboração com outros. Por isso, também quando se diz “libertar-
se”, significando ficar solto ou livrar-se de grilhões, não se está expressando todo o
conteúdo da liberdade, mas apenas uma das condições (talvez o ponto de partida) para o
ser livre, ou seja, para o exercício da liberdade. Esse exercício é que se constitui na própria
democracia como mediação para a liberdade. Por isso é que se diz que a democracia é ao
mesmo tempo meio e fim, visto que sua realização (uma mediação) se consubstancia na
própria realização da liberdade, não como apenas uma palavra, mas como algo concreto
que é a própria realização do homem em sua especificidade histórica.
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Para que isso não se perca, para que a humanidade não tenha que
reinventar tudo a cada nova geração, fato que a condenaria a permanecer
na mais primitiva situação, é preciso que o saber esteja permanentemente
sendo passado para as gerações subsequentes. Essa mediação é realizada pela
educação, entendida como a apropriação do saber historicamente produzido.
Disso decorre a centralidade da educação enquanto condição imprescindível
da própria realização histórica do homem. (Paro, 1997b, p. 108)
Em primeiro lugar, há, entre boa parte dos educadores, a crença de que a
escola só ganha status de preocupação nacional se ela contribuir com algum retorno
para o sistema econômico. Parece que a escola tem sempre que buscar na economia as
razões para sua importância. Contudo, se pensamos no grave dever social de atualizar
culturalmente as novas gerações, a escola deve ser importante, antes e acima de tudo,
como consumo, como realização de um direito de usufruir do patrimônio construído
pela humanidade, construção que se deu, diga-se de passagem, às custas sempre dos
trabalhadores de todas as gerações passadas e da presente. É claro que a razão de ser
da escola não se esgota na satisfação do consumo cultural, visto que a simples presença
desse consumo já implica outras importantes funções da escola, inclusive a econômica. O
que não se pode é derivar sua importância, exclusiva ou principalmente, do econômico,
como muitas vezes se pretende fazer.
Outro equívoco que se comete acerca da importância da escola enquanto
agência de preparação para o trabalho diz respeito a sua utilização como álibi para a
falta de ascensão social. Alega-se, nesse particular, que os egressos da escola não estão
preparados para conseguir emprego. A grande falácia de que as pessoas iletradas ou
com poucos anos de escolaridade não conseguem se empregar por causa de sua pouca
formação, embora tenha ainda grande aceitação entre as pessoas simples (precisamente
por seu baixo nível de informação) bem como na mídia (pela mesma escassez de
conhecimento, mas não com a mesma inocência), não resiste à menor análise, porque
supõe que a escola possa criar os empregos que o sistema produtivo, por conta da crise
do capitalismo, não consegue criar. A não ser como discurso ideológico para que as
pessoas continuem acreditando que sua posição social se deve à falta de escolaridade e
não às injustiças intrínsecas à própria sociedade capitalista, esse argumento deveria ter
sua importância bastante relativizada nas discussões sobre o papel da escola.
Um terceiro argumento que se tem arrolado em favor de uma preparação
para o trabalho na escola diz respeito à dependência que o sistema produtivo teria de
um grande contingente de profissionais com formação acadêmica cada vez maior e
mais atualizada. Na verdade, sob o capitalismo, a necessidade de uma boa formação
acadêmica sempre se restringiu a um número relativamente pequeno de pessoas, em
comparação com a grande maioria que não necessita dessa formação, tendência que
só tem feito se radicalizar, com o desenvolvimento tecnológico. Mesmo com relação à
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o prepara para viver “de acordo” com a ordem vigente e para exercer uma ocupação no
mercado (de preferência o mais rendosa que se puder). Mas é um problema bastante
sério se visto a partir de uma perspectiva educacional que não sonha apenas que os
muitos milhões de alunos de nossas escolas se saiam bem nas provas realizadas para
medir aquisição de conteúdos (Saresp, Saeb, provões e quejandos); mas esteja vivamente
comprometida com uma escola que, acima de tudo, concorra para a apropriação de
valores de cidadania e o desenvolvimento de comportamentos compatíveis com a
colaboração recíproca entre os homens, para além das leis naturais do mercado.
Então, essa perspectiva de educação deve preocupar-se sim em neutralizar
a ideologia que acompanha a introdução, na escola, do ideário neoliberal, via
gerência da qualidade total. Adotar determinada concepção de mundo implica certas
responsabilidades com respeito à difusão de tal concepção. Uma escola comprometida
com valores como os de democracia, liberdade e homem histórico, nos moldes em que
vimos anteriormente, não pode deixar passivamente encharcar-se por uma ideologia
antagônica, nada fazendo para que seus alunos, pela mediação da educação, se apropriem
de uma visão de mundo consentânea com esses valores. Como vimos anteriormente, a
democracia, como valor que é, não constitui herança genética, mas histórica; por isso,
é preciso, de forma intencional, ser passada permanentemente às novas gerações. A
via para isso é a educação; a agência que pode alcançar sistematicamente multidões de
jovens e crianças é a escola. Por isso, a democracia, como também o trabalho, devem
ser propositadamente incluídos como objeto de estudo, por parte de todo educador
comprometido com a superação da injustiça social. Para se aquilatar o atraso de nossa
realidade escolar a esse respeito, basta verificar o quanto conceitos como “democracia”,
“liberdade”, “trabalho”, a partir de uma visão progressista como a que vimos aqui,
estão pouco presentes explicitamente nos conteúdos curriculares de nossas escolas.
Entretanto, seria difícil nomear algo que mereça precedência a isso em termos de
importância para a vida consciente numa sociedade.
O desenvolvimento de uma concepção de mundo que se contraponha ao
neoliberalismo, na escola, põe-se com maior importância ainda quando se sabe que
os jovens estão diuturnamente se alimentando dessa ideologia nos demais espaços que
eles frequentam. Mas, também na escola, a influência sobre ele não se restringe à sala
de aula, e, mesmo aí, não se limita ao que o professor diz. Isso leva à consideração da
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segunda forma pela qual a ideologia de mercado, que perpassa a gestão da qualidade
total, envolve os alunos, ou seja, pela força material das práticas escolares em geral.
A esse respeito, é de particular importância atentar para a organização de todo
o trabalho na escola, a distribuição da autoridade e do poder, bem como para os padrões
de relacionamento interpessoal. Esses elementos, com os quais a gerência de qualidade
total não deixa de se ocupar, são de relevância vital porque são a própria organização das
possibilidades de contato entre as pessoas a interferirem na conduta e na consciência dos
jovens. Aqui, para neutralizar os efeitos deletérios da qualidade total, a melhor solução
não é pôr-se simplesmente contra ela e suas disposições, mas, em vez disso, pautar-se
por uma alternativa democrática de relações de cooperação, de trabalho e dedicação
aos objetivos maiores da educação enquanto instrumento de aquisição cultural para
a realização plena de sujeitos. Isso porque o conceito de democracia não se apreende
apenas no discurso, mas constrói-se na prática, com o constante exercício enquanto
opção de vida, não como uma medida tópica que se aplica numa ou noutra ocasião.
A evidência da influência positiva da organização escolar sobre o
comportamento das pessoas pode ser percebida quando se comparam escolas, em que
foram introduzidas inovações que provocaram maior democratização dos contatos
humanos, com situações anteriores, em que as relações eram de mando e submissão.
Em duas pesquisas de campo (Paro, 1996 e Paro, 1997a) – deu para perceber os efeitos
de medidas visando à democratização do ambiente escolar, com a introdução de
eleições de diretores, no primeiro caso, e com a ocorrência de uma direção de escola
mais democrática, comprometida com os interesses dos usuários, no segundo. Em
ambos os casos, a partir de entrevistas e de observações em campo pôde-se constatar
a melhoria no relacionamento humano entre direção e pessoal escolar, entre a escola
e os usuários e, principalmente, o relacionamento geral dos alunos entre si e com os
vários profissionais da escola, quer dentro quer fora da sala de aula. As pessoas, que
antes eram tratadas apenas como objetos de decisão de outras localizadas em níveis
hierárquicos superiores, sentiram a introdução de mudanças elevá-las à condição de
sujeitos desse processo, e isto não é pouco em termos de avanço no relacionamento
pessoal. Tudo isso propiciou a apropriação de valores de cidadania e o desenvolvimento
de comportamentos compatíveis com a colaboração recíproca entre os homens. Assim,
“na medida em que, em educação, não se pode separar método de conteúdo, os padrões
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Referências
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Políticas educacionais:
considerações sobre o discurso genérico
e a abstração da realidade 1
1 Texto apresentado, como trabalho encomendado, no Grupo de Trabalho “Estado e Política Educa-
cional”, durante a 22ª Reunião da ANPEd, realizada de 26 a 30/9/1999, em Caxambu – MG.
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro
de aula. O mesmo acontece com relação ao Banco Mundial, cuja presença nos projetos
e reformas do ensino nacional é vista, por uns educadores escolares, como deletéria
porque ouviram alguém dizer, mas não sabem a razão; por outros, até como algo
positivo por viabilizar o investimento no ensino básico. Sobre a privatização, ouvem
falar e a maioria a vê como negativa pois exime o Estado de seu dever de oferecer
educação, mas alguns não veem outra saída para a chamada crise do ensino público, e
poucos conseguem perceber o avanço dessa privatização por detrás da municipalização,
ou da chamada “autonomia” da escola. Quanto a essa “autonomia”, é frequente ver-
se até professores, coordenadores e diretores escolares mais esclarecidos inseguros em
se porem contra algo pelo qual julgam que os educadores mais progressistas sempre
lutaram e que agora é oferecido pelos que estão no poder. Não percebem, assim, que de
nada adianta descentralizar tarefas e permitir a livre utilização de recursos, se a condição
essencial para a real autonomia, que é a disponibilidade de recursos, não for oferecida,
sendo jogada, como está, para a responsabilidade da “comunidade”.
Por outro lado, talvez falte aos conteúdos dos estudos acadêmicos sobre política
educacional um apelo mais sugestivo ao envolvimento dos que fazem a educação no
“chão da escola”. Parece não haver dúvidas de que essa situação de alheamento dos
educadores escolares se deve a uma multiplicidade de fatores, entre os quais se destacam
sua inadequada formação bem como as precárias condições em que exercem seu ofício,
as quais não lhes proporcionam oportunidades mais sistemáticas de reflexão; sem
esquecer o próprio meio social, permeado pela ideologia dominante, que reforça a
postura acrítica diante dos problemas. Nada disso, entretanto, minimiza a importância
de uma maior preocupação dos intelectuais, que refletem sobre políticas públicas, com
a escassa penetração de suas ideias e contribuições teóricas junto aos profissionais
educadores. Essa preocupação é que talvez possa levar esses intelectuais a pensar em
formas mais atraentes de envolver em seus debates aqueles que fazem a educação no
cotidiano escolar. Uma medida nessa direção certamente teria de ser a atenção maior
para com a concretude das relações que se dão no interior da escola e para com o papel
dos atores aí envolvidos, procurando-se desenvolver pesquisas e reflexões cujos objetos
de estudo incluam o desvelamento de problemas mais relevantes em termos estratégicos,
para municiar, não só educadores escolares, mas também usuários do ensino, na luta
por mais e melhores escolas públicas. Isso porque, sem a confiança e o empenho dos que
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro
fazem o ensino, não é razoável esperar qualquer êxito das soluções e propostas que são
apresentadas pelos que elaboram e estudam as políticas educacionais.
Esse descompasso entre trabalhos teóricos sobre políticas públicas relativas à
escola básica e a prática pedagógica escolar expressa-se também na falta de consideração,
por parte da teoria, da mútua determinação existente entre os condicionantes
econômicos, sociais, políticos e culturais globais e os fatos e relações que se dão no
âmbito das unidades escolares. Parece aplicar-se, aqui, a afirmação de Miguel G. Arroyo
com relação ao pensamento crítico em educação. Diz ele:
2 Não muito adequada precisamente porque tende a separar os dois momentos em instâncias estanques
e independentes.
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro
concretude do chamado “micro”, até porque, sem a apreensão dessa concretude, não é
possível esclarecer aquela determinação.
A atenção para com essa concretude precisa contemplar dois conjuntos de
práticas com suas múltiplas implicações: um, concernente à atividade propriamente
pedagógica que deve ter lugar na escola, e outro, referente aos fatos e relações mais
nitidamente políticos e sociais, relacionados ao poder e à convivência social dos
atores aí presentes. Para facilitar a comunicação, chamemos esses dois conjuntos,
respectivamente, de prática pedagógica e de relações sociais escolares, embora saibamos que
a prática pedagógica está eivada de relações sociais e que estas podem estar carregadas
de atributos pedagógicos.
Com relação ao primeiro caso, parece ser necessário nos interrogarmos até que
ponto os trabalhos teóricos sobre políticas educacionais têm levado na devida conta a
prática pedagógica escolar e em que medida as propostas decorrentes desses trabalhos,
ou subliminares a eles, têm tido como preocupação básica a melhor realização dessa
prática, com vistas a uma mais efetiva apropriação do saber por parte das amplas
camadas populares. É mais uma vez Arroyo quem chama a atenção para essa questão,
quando afirma:
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro
lhe basta apenas deixar-se viver, mas almeja algo que precisa ser inventado e construído.
Ao buscar esse supérfluo, ele constrói sua própria humanidade que, por isso, já não
é mais meramente natural, mas histórica. Ou seja, o conceito de homem não inclui
apenas suas características naturais, mas também aquilo que ele constrói, em seu
desenvolvimento histórico. Essa construção, como sabemos, não se realiza pelo homem
isolado, mas exige sua relação com os outros seres humanos e é realizada por meio do
trabalho visto como “atividade adequada a um fim” (Marx, [19--]., p. 102), ou seja,
como atividade especificamente humana. Nessa construção social de sua existência os
homens produzem conhecimentos, valores, técnicas, ciência, arte, crenças, tudo enfim
que constitui o saber historicamente produzido. É esse saber (ou cultura) que permite
aos homens abordarem a natureza e conviverem com seus semelhantes. Assim, o
prosseguimento do desenvolvimento histórico só é possível porque cada nova geração
pode apropriar-se do saber produzido por todas as gerações precedentes. Mas, como
todo esse saber não se transmite por nenhum processo hereditário natural, é preciso
que, a partir do nascimento, cada ser humano se ponha à altura do desenvolvimento
cultural vigente, apropriando-se da cultura criada até aquele momento, por meio da
educação.
Esse processo de atualização histórico-cultural, ainda que mais intenso
em determinados momentos ou fases da biografia de cada um, envolve toda a
vida do indivíduo e, embora mais presente em determinadas situações e a partir de
determinados meios, impregna todas as atividades da vida humana, não se restringindo
a uma ou outra de suas dimensões. No caso específico da escola, o processo educativo
é uma experiência extremamente complexa que não se circunscreve à sala de aula e,
mesmo nesta, não se restringe àquilo que o professor fala e o aluno ouve. Há todo
um conjunto complexo de relações, rotinas, fatos, situações, interesses, concepções de
mundo, enfim, toda a vida na escola que interfere no tipo de educação que está sendo
propiciada a cada aluno, que determinará em graus variados a própria qualidade de sua
formação. Considerar a educação escolar limitada apenas à sala de aula ou unicamente
aos conteúdos convencionais das matérias e disciplinas é laborar em erro que pode
comprometer irreparavelmente a compreensão desse conjunto de relações sociais.
A compreensão do complexo conjunto de relações que têm lugar na escola
pública básica bem como de suas mútuas determinações pode ser decisiva para evitar
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro
ano ou para ter um diploma) e punitiva da escola, pode ser articulado com objetivos
mais pedagógicos e educativos relacionados ao valor em si do saber e do aprendizado,
ou seja, pode-se passar da ênfase no “estudar para passar de ano” para a ênfase no
“estudar para aprender”. Contudo, implementar mudanças mesmo dessa importância e
potencialidade, ignorando os determinantes imediatos da prática escolar, pode significar
o comprometimento da iniciativa no sistema como um todo, por não se considerarem
os possíveis efeitos desses determinantes sobre a medida em foco. Preocupado com essa
questão, estou desenvolvendo pesquisa etnográfica3 que procura, entre outras coisas,
investigar como reagem os professores diante da progressão continuada integrante da
proposta dos ciclos. Os resultados preliminares da pesquisa indicam haver motivações
profundas da parte dos docentes contra a medida. Parte de tais motivações parecem ter
suas origens, quer em suas próprias histórias de vida escolar, em que a reprovação e a
punição constituíam exercício corrente e legitimado por todos, e que os docentes de
hoje reproduzem em sua prática, quer nas condições de trabalho docente atual, em que
a inculpação do aluno, reprovando-o, constitui a última tábua de salvação do professor
que, impotente para superar suas adversas condições de trabalho, procura jogar sobre
os estudantes a culpa pelo fracasso escolar, que, em parte considerável da mídia, do
senso comum e do discurso oficial, costuma ser atribuída à incompetência dele,
professor. A pergunta a ser feita diante desse quadro, e diante da cultura da reprovação
que tem raízes seculares na escola, é se medidas de reorganização do currículo escolar
em ciclos, sem providências adicionais que levem em conta essa resistência à progressão
continuada por parte dos professores — para não falar de outros determinantes também
importantes, como a resistência dos próprios alunos e pais — poderão efetivar-se de
forma a alcançar os objetivos de inovação do ensino a que se propõem. No entanto,
salvo raras e significativas exceções, os ciclos têm sido introduzidos, nos vários sistemas
de ensino, como medidas isoladas, sem qualquer consideração pelo que acontece no dia
a dia da escola.
3 A Pesquisa, intitulada “O Pedagógico Como Questão Administrativa: os efeitos da resistência à pro-
moção de estudantes sobre a produtividade da escola fundamental”, desenvolve-se no Departamento de
Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação da USP, contando com finan-
ciamento parcial do CNPq e tem por finalidade “estudar a resistência docente à promoção de estudantes
no ensino fundamental, procurando captar suas dimensões, distinguir suas peculiaridades e identificar
seus determinantes, considerando seus efeitos na produtividade da escola pública e buscando alternativas
de solução para os problemas detectados”.
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro
da escola. Nesse processo, abstraem-se os baixos salários dos professores bem como
sua autoestima, aviltada demais para quem tem a missão de elevar o autoconceito de
outros e fazê-los engrandecer-se pela apropriação da cultura; abstraem-se também
as salas com número absurdo de alunos (cerca de quarenta, nas primeiras séries do
ensino fundamental, quando um mínimo de bom senso pedagógico indicaria no
máximo 25 para um professor); assim como se abstraem todas as outras insuficiências
nas condições de trabalho, da falta de assessoramento didático à precariedade do
material escolar e ausência de recursos pedagógicos. Além disso, as análises que se
fazem pecam, às vezes, pela falta de conhecimento qualificado sobre educação, o que
leva a que esta seja também abstraída e não colocada no centro da função da escola. O
baixo salário e as condições impróprias de trabalho do professor, por exemplo, não são
confrontados com as exigências que se deve fazer para esse tipo de função. Por isso, não
se percebe que a gravidade, para o ensino público, dos baixos salários docentes, não
está, fundamentalmente, apenas no fato de os professores estarem passando fome, ou
em condições subumanas de sobrevivência – embora não se duvide de que muitos até
estejam –; a gravidade está na defasagem de suas condições de trabalho (onde se inclui
seu salário) quando comparadas com o mínimo necessário para um ensino de qualidade
para a formação de cidadãos. Quando todas essas determinações são esquecidas ou
abstraídas, fica difícil contrapor-se às autoridades governamentais que, de forma
enganosa, insistem em propalar aos quatro ventos que o problema da educação pública
está na incompetência do professor ou na inadequação administrativa da direção escolar.
Um segundo tema sobre o qual parece urgente uma maior explicitação por parte
dos teóricos que analisam as políticas públicas em educação é o da qualidade do ensino
oferecido pela escola pública básica. Todos concordam – à direita e à esquerda – que a
qualidade de nossa escola é deficiente e que, por isso, é preciso cuidar para melhorá-la.
Muitos afirmam, até, que já alcançamos a quantidade em educação, já que a “quase”
totalidade da população em idade escolar está sendo atendida; o que falta agora é a
qualidade. O que, aliás, é um absurdo lógico do qual esses intelectuais parecem não
se dar conta. No dizer de Antonio Gramsci, “dado que não pode existir quantidade
sem qualidade e qualidade sem quantidade [...], toda contraposição dos dois termos
é, racionalmente, um contrassenso” (Gramsci, 1978a, p. 50). Por isso, em primeiro
lugar, é preciso denunciar a falácia do atendimento “quantitativo”, quando se sabe que
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro
esse atendimento a “quase” todos “deixa, a cada ano, sem qualquer tipo de contacto
com o ensino escolarizado, milhões de crianças, filhas de cidadãos (?) brasileiros
completamente à margem dos benefícios da civilização que eles ajudam a construir”
(Paro, 1998, p. 300), sem falar daqueles inúmeros (cada vez mais abandonados pela atual
política governamental) jovens e adultos, que passaram da idade escolar e continuam
sem os benefícios da educação formal. Além disso, “é preciso questionar seriamente
se a precariedade das condições de funcionamento a que o Estado relegou os serviços
públicos de ensino permite chamar de escola isso que se diz oferecer à ‘quase’ totalidade
de crianças e jovens escolarizáveis” (Paro, 1998, p. 300). Mas, acima de tudo, trata-se de
deixar muito claro sobre o que estamos falando quando denunciamos a baixa qualidade
do ensino público. É neste ponto que não se pode prescindir de uma aproximação efetiva
da concretude da escola básica, que nos permita apreender toda a extensão de suas
potencialidades e misérias e, a partir daí, traçar o tipo de escola que queremos. Se não,
corremos o risco de nos contentarmos com a afirmação conservadora implicitamente
presente no discurso dos intelectuais encastelados no Estado hoje, de que a qualidade da
escola pública é insuficiente porque ela não consegue fazer o que faz a escola particular
ou o que fazia a “boa” escola de antigamente. Em vez disso, uma apreensão crítica da
realidade pode nos permitir perceber que a escola pública tem baixa qualidade, antes
de tudo e principalmente, porque, em seus métodos e conteúdos, não favorece a
atualização histórico-cultural da criança e do adolescente de modo a se construírem
como sujeitos históricos e em condições de exercitarem uma cidadania efetiva (Paro,
1999b). Esta constatação reveste-se de importância principalmente diante de discursos
que propugnam por mais e melhores escolas, mas não enfatizam com precisão o tipo
de educação que se quer. Talvez porque não esteja presente, de forma suficientemente
viva, a concretude de nossas escolas, em que milhões de crianças diariamente veem
violada e negada sua condição de sujeito, por uma educação (?) que, em sua forma,
deveria precisamente reforçar nelas essa condição e, em seu conteúdo, fornecer-
lhes novos elementos culturais para exercê-la. Ao lutar apenas por “mais e melhores
escolas”, desconsiderando essa realidade, não corremos o risco de nos orientarmos
pelo padrão conservador dominante, contentando-nos com a generalização do ensino
tradicional, autoritário e retrógrado, negador da individualidade humana, que, na “boa”
escola tradicional, era endereçado às elites? Se não deve ser assim, quais os projetos e as
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alternativas que os que analisam e os que concebem políticas públicas para a educação
estão oferecendo?
Com relação ao terceiro tema, ou ao tratamento que a escola dispensa aos pais
ou responsáveis pelos estudantes e à visão que professores e pessoal escolar em geral
têm deles, pode-se dizer que este é um dos assuntos mais relevantes para uma concepção
ao mesmo tempo democrática e transformadora da função da escola. Se a educação é um
direito constitucional do cidadão e se, pelo menos no que se refere ao ensino fundamental,
o Estado tem o dever de prover a população com esse direito, então, do ponto de vista
de uma democracia social, que ultrapassa o conceito de democracia política (Bobbio,
1989), é direito dos cidadãos controlarem democraticamente o Estado, participando
das decisões nas instâncias onde esses serviços são oferecidos, por exemplo, na escola.
Por outro lado, se a escola tem por finalidade a educação do indivíduo, visando a sua
constituição como ser histórico, portanto social, ela não pode ignorar a perspectiva de
que essa formação não se restringe à escola, recebendo influência de toda a sociedade,
em particular dos pais ou responsáveis, com quem a escola precisa dialogar e de quem
ela precisa receber apoio em sua função pedagógica. Além disso, visto que a maioria dos
pais das camadas trabalhadoras foi privada de uma escolaridade básica, não há nada de
extraordinário em que a escola se esforce para também fornecer a esses pais subsídios
culturais que os beneficiem como cidadãos e que os auxiliem na educação familiar de
seus filhos. Mas a realidade escolar, em geral, nega a oportunidade de realizar os direitos
dos usuários e de aproveitar suas potencialidades na melhoria do desempenho educativo
da escola, fechando-lhes as portas e dando-lhes um tratamento indigno, que vai desde
o mau atendimento na secretaria até a humilhação constante nas “reuniões de pais”
que, em grande parte, prestam-se ao exclusivo propósito de mostrar aos pais e mães o
quanto estes e seus filhos são culpados pelo fracasso escolar. No entanto, poucos estudos
têm tomado esse tema como objeto de investigação, verificando, no dia a dia da escola,
a forma e as dimensões das relações entre pessoal escolar e usuários, aprofundando-se
no exame dessas relações, com o propósito de desvendar seus condicionantes imediatos
e apresentar alternativas de solução que mudem o desenho institucional da escola e a
transformem num objeto desejado pela população a que serve e se identifique com seus
interesses e necessidades culturais.
As considerações que vimos fazendo sobre o descompasso entre trabalhos
teóricos em políticas públicas em educação e a prática vigente nas escolas públicas
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro
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escola, numa perspectiva crítica e transformadora. Não que a escola irá transformar a
sociedade, mas que ela tem também seu papel como contribuição a essa transformação,
na medida em que se faz crítica e propicia avançar para além de sua função meramente
conteudista; até porque o desinteresse dos que detêm o poder político e econômico já
demonstrou que mesmo essa função de um bem de consumo não se fará enquanto as
camadas trabalhadoras não se fizerem ouvir, a partir da adoção de uma postura crítica
de seus direitos.
De todo o legado de Gramsci à compreensão da sociedade e da cultura,
uma das contribuições mais significativas talvez seja a demonstração de que não é
possível transformar estruturalmente a sociedade, sem que esse processo se articule
a uma “reforma intelectual e moral” (Gramsci, 1978 b, p. 8-9) adequada aos fins da
transformação. Isto significa que, na escola, a consciência crítica e transformadora dos
educandos só pode dar-se a partir da apropriação de uma visão de mundo elaborada
que esteja comprometida com a construção de uma nova ordem social, ou seja, a partir
da apropriação de uma nova ideologia, no sentido em que esta é dada pelo próprio
Gramsci, como “uma concepção do mundo que se manifesta implicitamente na arte,
no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e
coletivas” (Gramsci, 1978a, p. 16).
Sendo uma ideologia comprometida com a superação da atual sociedade de
exploração e dominação, a caminho de uma ordem social em que se generalizem e
prevaleçam relações de respeito mútuo, pautadas na afirmação dos sujeitos individuais
e coletivos, ela não pode ser apropriada do modo autoritário como é organizado hoje
o aprendizado escolar. Porque não se trata de um dogma, mas de uma concepção de
mundo e de homem que se constrói e da qual se apodera de forma consciente e livre, essa
ideologia não é suscetível de ser transmitida do modo “bancário” do ensino tradicional
denunciado por Paulo Freire (1975), porque supõe o envolvimento do educando como
coautor de seu aprendizado.
Em vista disso, numa perspectiva de transformação social, quando se concebem
políticas educacionais, é preciso ponderar em que medida os projetos supõem a
construção de uma consciência crítica dos educandos como uma função imprescindível
da escola. Além disso, é preciso convencer-se de que essa função só se realiza a partir
de uma atividade prática específica que requer a relação entre sujeitos. Por isso, embora
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro
essa apropriação de uma consciência crítica suponha também a aquisição dos conteúdos
veiculados por meio das disciplinas convencionais, – função que, com o desenvolvimento
extraordinário dos meios de difusão de informações, pode até ser desenvolvida por
outras agências –, existe algo de único que só um tipo de relação presencial e ativa como
a que se pode viabilizar na escola, entre educador e educando, pode oferecer.
Salvo no caso de algumas experiências inovadoras recentes realizadas por
governos populares, especialmente alguns ligados ao Partido dos Trabalhadores, o
pesquisador que se aproxima da realidade da escola básica, para tomar conhecimento da
prática pedagógica e dos conteúdos que aí são apresentados, depara-se com um quadro
desolador pela quase completa ausência dessa função crítica da escola. Em geral, não há
componentes curriculares que questionem a injustiça social inerente ao sistema político
e econômico vigente, assim como não se desenvolvem comportamentos e posturas
articulados com uma nova ética, que deveria perpassar os métodos didáticos e as
relações humanas na escola. Perpassando tudo isso, encontra-se uma atividade docente
alheia a fins que poderiam estar norteando uma educação relacionada à emancipação
cultural das camadas trabalhadoras. Para os professores, em geral, parece que a única
função concebível para a escola pública seria aquela levada a efeito décadas atrás,
quando a escola preparava os filhos das camadas médias e altas para ingressar no ensino
superior. Hoje, diante da descrença com relação à possibilidade desse objetivo — quer
pela precariedade da escola, quer pela “carência” que enxergam nos alunos que atendem
— os educadores escolares parecem perdidos em suas práticas, sem um objetivo que
valha a pena perseguir. Diante desse quadro, nada mais oportuno do que se pensar em
uma função para a escola que justifique sua própria razão de ser do ponto de vista da
transformação social, ou seja, sua ação como construtora de uma consciência crítica em
seus alunos.
A relevância dessa função de emancipação crítica que a escola precisa realizar
remete mais uma vez para a importância de, ao se formularem políticas educacionais, não
se abstrair a concretude da prática escolar, pois é nas relações que aí se desenvolvem que
podem ser praticados e absorvidos valores importantíssimos de uma nova concepção
de mundo. É na prática quotidiana que a democracia, por exemplo, adotada em sua
radicalidade, confirma-se como componente de uma nova visão de mundo, porque não
pode ser contida numa sociedade, como a capitalista, pautada na dominação humana e
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro
a concretude da escola pública e buscar nos problemas que sua prática apresenta os
objetos dos estudos e análises que se fazem, bem como das propostas de solução que se
formulam. Dessa perspectiva, o critério da relevância dos estudos e das propostas de
políticas educacionais deve ser diretamente proporcional à capacidade de explicitar os
problemas e os determinantes da prática escolar, no caso dos estudos, e de encaminhar
soluções para esses problemas, no caso das propostas.
No primeiro caso, a pergunta a orientar a investigação deve ser sempre: “Em
que medida esse estudo (sua metodologia, seu objeto, a questão que pretende abordar)
contribuirá com seus resultados para esclarecer a realidade prática da escola, de modo a
subsidiar propostas visando ao alcance efetivo de objetivos educativos comprometidos
com a transformação social?” Não se pode esquecer nunca que os estudos devem ser
mediações que servem à mudança nas práticas. Por isso, estas devem estar sempre na
mira da investigação. Restringindo-se às categorias macrossociais, sem levar em conta
a concretude da prática escolar e seus determinantes imediatos, corre-se o risco de se
proceder a uma espécie de alquimia teórica em que o discurso genérico e a manipulação
de fórmulas prontas, importadas de outras disciplinas ou campos do saber, servem à
abstração da realidade educativa e ao encobrimento de suas relações mais importantes.
No tocante às propostas, a pergunta a guiar sua confecção deve ser: “Em
que medida determinada proposta interferirá na prática escolar, levando a que
mais educandos (e em que proporção deles), se apropriem, com maior eficácia, de
componentes culturais (conhecimentos, valores, posturas, hábitos, etc.) que, além de
promoverem sua necessária atualização histórico-cultural como cidadãos, os capacitem
a ter uma consciência crítica da sociedade em que vivem, pela apropriação de uma visão
de mundo transformadora?” Significa isso que as propostas precisam levar em conta não
apenas a relevância das medidas a serem implementadas, mas também sua viabilidade
prática tendo em vista a maneira como se desenvolve o trabalho e a vida quotidiana
no interior da escola, em especial os interesses e as vontades dos atores envolvidos na
prática escolar.
Aspecto da mais alta importância para o êxito de medidas inovadoras no interior
da escola é a disposição dos educadores escolares em se envolverem num projeto desse
tipo. Quanto a isso, pouco adianta lamentar-se da resistência à mudança que porventura
aí se verifique. Trata-se, em vez disso, de pôr essa resistência como objeto de estudo e
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro
Referências
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Educação para a democracia:
o elemento que falta na discussão da qualidade do ensino 1
dimensões, parecendo às vezes pautar-se por fins antagônicos a elas. No que concerne
à dimensão individual, a escola parece renunciar tanto a educar para o viver bem
quanto a proporcionar esse viver bem em suas atividades do dia a dia, fazendo com
que o tempo de aprendizado se apresente penoso para seus educandos, desarticulado de
qualquer ligação com o prazer. Ao paradigma do “credencialismo”, pelo qual educadores
e educandos preocupam-se mais com exames e aprovações do que com a apreensão
2 O conceito de saber é tomado aqui de modo bastante amplo, referindo-se, tanto a conhecimentos e
técnicas, quanto a comportamentos, valores, atitudes, enfim, tudo o que configura a cultura humana,
passível de ser apropriada por meio da educação.
3 Ao destacar a escola pública, não estou querendo dizer que a particular seja melhor ou pior; estou apenas
atendo-me a meu objeto de estudo que é a escola pública estatal. Além disso, ao falar da escola pública em
geral, estou consciente de certo “erro da generalização” que se comete ao não se considerarem as exceções
– que infelizmente são raras – tanto em termos de unidades escolares, quanto em termos de sistemas de
ensino, especialmente municipais, que, em experiências recentes, procuram desenvolver uma política
educativa que rompe com o tipo de escola que aqui criticamos.
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educação para a democracia Vitor Henrique Paro
do saber e com o gosto pelo conhecimento, alia-se a meta essencial de preparar para o
mercado de trabalho ou para o vestibular universitário (Paro, 1999). Isso numa época
em que o desenvolvimento da tecnologia e as transformações econômicas e sociais
apontam, senão para a supressão, pelo menos para a minimização do tempo de trabalho
e para a drástica redução do emprego (Rifkin, 1995; Harvey, 1996; Kurz, 1997; Greider,
1997). Por outro lado, como se o trabalho, enquanto constituinte do homem histórico,
fosse fim em si mesmo e não mediação para o usufruto do bem estar material e espiritual
proporcionado pelo desenvolvimento histórico, a escola ignora os valores relacionados
à utilização prazerosa do tempo livre e do ócio (Levy, 1992; Kurz, 1998; O dilema...,
1998; Grupo Krisis, 1999).
Com relação à dimensão social, a atuação da escola parece tanto mais ausente
quanto mais necessária, diante dos inúmeros e graves problemas sociais da atualidade.
Prendendo-se a um currículo essencialmente informativo, ignora a necessidade de
formação ética de seus usuários, como se isso fosse atribuição apenas da família, ao
mesmo tempo em que deixa de levar em conta o marcante desenvolvimento da mídia,
e a consequente concorrência de outros mecanismos de informação que passam a
desenvolver com vantagens funções anteriormente atribuídas à escola. Mas, sem dúvida
nenhuma, a principal falha hoje da escola com relação a sua dimensão social parece
ser sua omissão na função de educar para a democracia. Sabendo-se da gravidade dos
problemas e contradições sociais presentes na sociedade brasileira — injustiça social,
violência, criminalidade, corrupção, desemprego, falta de consciência ecológica, violação
de direitos, deterioração de serviços públicos, dilapidação do patrimônio social, etc. —,
que só se fazem agravar com o decorrer do tempo, e considerando que uma sociedade
democrática só se desenvolve e se fortalece politicamente de modo a solucionar seus
problemas se pode contar com a ação consciente e conjunta de seus cidadãos, não deixa
de ser paradoxal que a escola pública, lugar supostamente privilegiado do diálogo e
do desenvolvimento crítico das consciências, ainda resista tão fortemente a propiciar,
no ensino fundamental, uma formação democrática que, ao proporcionar valores e
conhecimentos, capacite e encoraje seus alunos a exercerem ativamente sua cidadania
na construção de uma sociedade melhor.
Associada a essa incapacidade de realizar uma educação comprometida com
o efetivo bem viver dos educandos e com sua contribuição para uma sociedade mais
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educação para a democracia Vitor Henrique Paro
humana, pode-se notar certa apatia por parte de educadores escolares, autoridades
estatais e público de modo geral. Tudo acontece como se não se gastassem grandes
quantidades de recursos, não estivessem envolvidos os esforços de enormes contingentes
de professores e outros funcionários e não se desperdiçassem horas preciosas da vida
de milhões de crianças e jovens, com um ensino desinteressante que, não raro, dilapida
sua paciência e lhes tira o prazer e o gosto de viver o presente — tudo isso em troca de
resultados pífios, representados por um aprendizado que, para expressivas proporções
da população que passa pelo ensino fundamental, fica muito aquém até mesmo das
rudimentares capacidades do ler, escrever e fazer contas a que se propõem as mais
tímidas e despretensiosas políticas públicas para a escola elementar.
Certamente o quadro geral da escola pública fundamental é muito mais
complexo do que essa breve síntese pode sugerir, abrindo ao cientista da educação um
amplo campo de questões a serem investigadas com vistas a esclarecer as razões da não
correspondência entre discursos e práticas e elucidar os determinantes da inoperância
da escola em educar para a democracia e para o viver bem. Não obstante, o exposto
parece sugerir um conjunto de questões que se relacionam mutuamente, e que, grosso
modo, poderiam sintetizar-se em quatro pontos que ouso propor à reflexão daqueles
cujo objeto são as políticas públicas voltadas para a escola fundamental: a) a necessidade
de um rigoroso dimensionamento do conceito de qualidade do ensino fundamental;
b) a relevância social da educação para a democracia como função da escola pública; c)
a importância de se levar em conta a concretude da escola e a ação de seus atores na
formulação de políticas educacionais; e d) o papel estratégico da estrutura didática e
administrativa na realização das funções da escola.
O primeiro ponto refere-se à necessidade de empreender uma reflexão em
profundidade do conceito de qualidade da educação escolar. A multiplicidade de
pontos de vista, nem sempre explícitos, e a imprecisão e mesmo superficialidade de
muitas produções sobre o tema têm concorrido para a falta de rigor nos discursos e nos
propósitos sobre o real papel da escola que em nada contribui para uma visão realista do
que se pretende e se deve defender como uma educação de acordo com os interesses do
cidadão e da sociedade, servindo apenas àqueles interessados em protelar soluções ou
em impor o ponto de vista dos donos do poder político e econômico. Nesse particular,
é preciso não apenas fazer a revisão crítica das concepções existentes, em especial o
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educação para a democracia Vitor Henrique Paro
paradigma neoliberal que associa o papel da escola ao atendimento das leis de mercado,
mas principalmente contribuir para a elaboração de um conceito de qualidade que valha
a pena ser posto como horizonte e que sirva de parâmetro para a proposição de políticas
públicas consistentes e realistas para o ensino fundamental.
Na falta de um conceito mais fundamentado de qualidade do ensino, o que
acaba prevalecendo é aquele que reforça uma concepção tradicional e conservadora da
educação, cuja qualidade é considerada passível de ser medida a partir da quantidade
de informações exibida pelos sujeitos presumivelmente educados. Esta concepção não
apenas predomina nas estatísticas apresentadas pelos organismos governamentais que
se propagam por toda a mídia e acabam pautando os assuntos educacionais da imprensa
— quase sempre acrítica a esse respeito — mas se faz presente também em muitos estudos
acadêmicos sobre políticas públicas em educação. Para essa concepção parece pacífico
que a função da escola é apenas levar os educandos a se apropriarem dos conhecimentos
incluídos nas tradicionais disciplinas curriculares: matemática, geografia, história,
língua portuguesa, biologia, etc. Assim, a qualidade da educação seria tanto mais efetiva
quanto maior fosse a quantidade desses “conteúdos” apropriados por seus alunos, sendo
a escola tanto mais produtiva quanto maior o número desses alunos aprovados (e quanto
maiores os escores obtidos) em provas e exames que medem a posse dessas informações.
Todavia, educação não é apenas informação. Alfred North Whitehead (1969, p.
13) já disse com propriedade que “um homem meramente bem informado é o maçante
mais inútil na face da terra”. Se educação é atualização histórico-cultural, supõe-se que
os componentes de formação que ela propicia ao ser humano são algo muito mais rico
e mais complexo do que simples transmissão de informações. Como mediação para a
apropriação histórica da herança cultural a que supostamente têm direito os cidadãos, o
fim último da educação é favorecer uma vida com maior satisfação individual e melhor
convivência social. A educação, como parte da vida, é principalmente aprender a viver
com a maior plenitude que a história possibilita. Por ela se toma contato com o belo, com
o justo e com o verdadeiro, aprende-se a compreendê-los, a admirá-los, a valorizá-los e
a concorrer para sua construção histórica, ou seja, é pela educação que se prepara para
o usufruto (e novas produções) dos bens espirituais e materiais. E tudo isso não se dá
como simples aquisição de informação, mas como parte da vida, que forma e transforma
a personalidade viva de cada um, nunca esquecendo que “cada um” não vive sozinho,
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educação para a democracia Vitor Henrique Paro
sendo então preciso pensar o viver de forma social, em companhia e em relação com
pessoas, grupos e instituições. A educação se faz, assim, também, com a assimilação de
valores, gostos e preferências, a incorporação de comportamentos, hábitos e posturas,
o desenvolvimento de habilidades e aptidões e a adoção de crenças, convicções e
expectativas. Esses elementos nem sempre são passíveis de medição pelos tipos de
testes e provas disponíveis, aferidores de conhecimentos e informações: uma coisa, por
exemplo, é responder positivamente a uma questão sobre a importância da participação
política, ou dos aspectos deletérios da corrupção ou do preconceito racial; outra bastante
diferente e muito mais complexa é desenvolver, na vida real, as convicções, as posturas
e os comportamentos adequados a essas verdades. A peculiaridade da educação, em
sua ligação orgânica com a personalidade e a vida de cada um, não permite a mesma
abordagem avaliativa da maioria dos bens e serviços normalmente produzidos na
sociedade. O produto da educação — o ser humano educado — não se deixa captar por
mecanismos convencionais de aferição de qualidade. O muito que se pode fazer é uma
aproximação, sendo a mais adequada aquela que procura garantir o bom produto pelo
provimento de um bom processo (Paro, 1998). Assim, embora não se possa colocar o
ser humano em “situação de laboratório” para verificar se ele foi ou não bem educado,
para saber se a escola foi produtiva (se teve ou não êxito em sua intenção de educá-lo
convenientemente), é possível planejar e dispor os processos pelos quais se produz essa
educação de uma forma na qual se possa apostar, com certa segurança, que se conseguirão
os resultados desejados. Mas, para isso, é imprescindível a maior clareza possível sobre
aquilo que se quer e sobre aquilo que se considera individual e socialmente válido.
Daí a constante atualidade da discussão a respeito do mais rigoroso dimensionamento
possível da qualidade da educação escolar, pela via do exame e discussão dos objetivos
necessários à configuração dessa qualidade.
Em segundo lugar, intrinsecamente ligada à questão da qualidade do ensino
e dos objetivos da escola fundamental está a necessidade de pôr num primeiro plano
de discussão o necessário caráter ético-político dessa qualidade, ou seja, trata-se
de enfatizar, com respeito à escola pública fundamental, a dimensão social de seus
objetivos. Muito se tem falado, mesmo em meios escolares, sobre a incompetência
política de nossa população, indo desde os estereótipos de que o brasileiro “não sabe
votar”, pois escolhe mal seus governantes e representantes, passando pela atribuição
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educação para a democracia Vitor Henrique Paro
oficial. Como enfatiza Maria Vitória Benevides, ao falar sobre democracia e ética,
lembrando Hannah Arendt, “o que permanece inarredável, como pressuposto básico,
como direito essencial, é o direito a ter direitos” (Benevides, 1998, p. 168; grifos no
original.). Isto implica a necessidade da efetiva participação na vida pública que, para
a mesma Benevides, representa a “expressão maior da cidadania ativa”. Acrescenta ela
que isso
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educação para a democracia Vitor Henrique Paro
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educação para a democracia Vitor Henrique Paro
uma das razões que justificam investigações que objetivem captar os determinantes
imediatos dos fatos e relações que se dão no dia a dia da escola bem como aquilatar as
potencialidades dessa realidade e as perspectivas de sua transformação.
Finalmente, o quarto ponto refere-se ao papel da estrutura didática e
administrativa no desempenho escolar. Trata de um dos aspectos pouco pesquisados
no que tange aos determinantes da qualidade do ensino4. Não obstante, tomada essa
qualidade numa perspectiva ético-política que privilegia a formação do cidadão atuante
numa sociedade democrática, e considerando a imprescindível coerência entre atos
e palavras para a concretização dessa formação, o estudo das dimensões em que a
organização didático-pedagógica e a estrutura administrativa da escola condicionam
a prática escolar e a efetiva realização dos objetivos mostra-se altamente relevante,
tendo em conta que aquela coerência depende, em grande medida, da ação desses
condicionantes.
Na realidade de nossas escolas públicas básicas em que se evidencia o divórcio
entre a prática escolar cotidiana e as perspectivas de uma consistente emancipação
intelectual e cultural dos educandos, o que se verifica é que a estrutura da escola mostra-
se inteiramente consoante com esse divórcio, dando-lhe sustentação material, na
medida em que não é concebida de modo a favorecer a condição de sujeito dos agentes
envolvidos. O próprio conselho de escola, instituído presumivelmente para esse fim,
mostra-se, na maioria das vezes, totalmente inoperante, mergulhado numa estrutura
avessa à participação e ao exercício da cidadania.
A hipótese aqui subjacente é a de que essa estrutura não é neutra com relação
aos fins educacionais porquanto suas forças não atuam apenas sobre a eficiência do
ensino, mas também sobre a natureza dos resultados, isto é, dos objetivos efetivamente
alcançados. Sendo mediações para o alcance dos fins que se propõem, tanto a estrutura
didática (currículos, programas, métodos e organização horizontal e vertical do ensino)
quanto a estrutura administrativa (organização do trabalho e distribuição do poder e
da autoridade) precisam ser dispostas de modo coerente com esses fins. Esta parece ser
uma das maiores fontes de resistência à realização de propósitos democráticos numa
4 No momento, inicio o desenvolvimento de pesquisa sobre o tema, intitulada “Estrutura da Escola e
Qualidade do Ensino: a organização didático-administrativa e a realização de fins ético-políticos pelo
ensino público fundamental”. Nota desta edição: Pesquisa concluída e publicada em Paro, 2016.
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educação para a democracia Vitor Henrique Paro
Referências
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educação para a democracia Vitor Henrique Paro
PARO, Vitor Henrique. Crítica da estrutura da escola. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2016.
PARO, Vitor Henrique. Parem de preparar para o trabalho!!! Reflexões acerca dos
efeitos do neoliberalismo sobre a gestão e o papel da escola básica. In: FERRETTI,
Celso João et alii (Org.). Trabalho, formação e currículo: para onde vai a escola. São
Paulo: Xamã, 1999. p. 101-120.
PEPE, Theresa M. de Freitas Adrião. A gestão democrática nas escolas da rede municipal
de São Paulo: 1989-1992. 1995. Dissertação (Mestrado em Educação) - Feusp, São
Paulo, 1995.
RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: o declínio inevitável dos empregos e a redução
da força global de trabalho. São Paulo: Makron, 1995.
WHITEHEAD, Alfred North (1929). Fins da educação e outros ensaios. São Paulo:
Nacional, 1969.
122
Reprovação escolar? Não, obrigado.
Pouca coisa é tão cercada por equívocos, em nossa escola básica, quanto a
questão da reprovação escolar, que se perpetua como um traço cultural autoritário e
antieducativo. Começa pela abordagem errônea de avaliação na qual se sustenta. Em
toda prática humana, individual ou coletiva, a avaliação é um processo que acompanha
o desenrolar de uma atividade, corrigindo-lhe os rumos e adequando os meios aos fins.
Na escola brasileira isso não é considerado. Espera-se um ano inteiro para se perceber
que tudo estava errado. Qualquer empresário que assim procedesse estaria falido
no primeiro ano de atividade. E mais: em lugar de corrigir os erros, repete-se tudo
novamente: a mesma escola, o mesmo aluno, o mesmo professor, os mesmos métodos,
o mesmo conteúdo... É por isso que a realidade de nossa escola não é de repetentes, mas
de multirrepetentes.
Absurdo semelhante ocorre quando se trata de identificar a origem do fracasso.
A atividade pedagógica que se dá na escola supõe um quase infindável conjunto de
atividades, de recursos, de decisões, de pessoas, de grupos e de instituições, que vão desde
as políticas públicas, as medidas ministeriais, passando pelas secretarias de educação e
órgãos intermediários, chegando à própria unidade escolar em que se supõem envolvidos
o diretor, seus auxiliares, a secretaria, os professores, seu salário, suas condições de
trabalho, o aluno, sua família, os demais funcionários, os coordenadores pedagógicos,
o material didático disponível, etc., etc. Mas, no momento de identificar a razão do não
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reprovação escolar? não, obrigado. Vitor Henrique Paro
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Implicações do caráter político da educação
para a administração da escola pública 1
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implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro
visão identificada com o que poderíamos chamar de concepção restrita2 de política. Tal
concepção não é exclusiva (visto que se nota, em muitos ambientes, e até mesmo entre
os que a empregam, a coexistência de uma concepção mais ampla de política), mas ela
tem, sem dúvida nenhuma, uma presença muito importante na escola básica, guiando
a ação de muitos educadores e analistas da educação. Na prática escolar, em várias
pesquisas de campo que realizamos, essa visão de política aparece com certa insistência,
entre os vários sujeitos escolares, particularmente entre aqueles mais envolvidos em
reivindicações ou em participação na escola (representantes em conselhos, associações,
sindicatos, etc.). No discurso dos depoentes, o termo política parece estar ligado
a um ou mais dos três significados seguintes: a) como luta política: é a ação que se
empreende visando à conquista (ou preservação) do poder. É político tudo o que se
refere ao comando e controle de grupos sociais, de instituições e da própria sociedade;
b) como sagacidade, perspicácia, “diplomacia”, astúcia: é o uso das diferentes maneiras
ou artifícios para agir e para influenciar grupos e pessoas a agirem de acordo com seus
interesses. A política aqui diz respeito, enfim, às formas mais adequadas para o acesso ao
poder, seja ele representado pelo controle de um Estado ou pelo simples atendimento
de uma reivindicação trabalhista; c) como consciência política: é a posse de saberes
que propiciem a compreensão da realidade social, como condição para identificar o
sentido da luta política. Entre os grupos progressistas, trata-se essencialmente de tomar
consciência do estado de injustiça social para empreender a luta contra os opressores.
Como se percebe, os vários significados remetem ao sentido restrito de política,
como luta que se deve travar entre contendores na disputa pela posse ou manutenção
do poder. Numa sociedade dividida em classes, com o domínio de uns grupos sociais
sobre outros ou sobre o conjunto da sociedade, é de se esperar que isso aconteça, sendo
a luta entre interesses antagônicos o modo dominante de fazer política. Ao mesmo
tempo, onde predomina essa forma de exercer a política, a educação se apresenta como
um terreno em disputa, desempenhando o papel de instrumento nas mãos do grupo
social ou dos grupos sociais que lograrem mantê-la sob seu controle. Acrescente-se que
a visão de educação e a percepção do papel da escola são condicionadas pela visão de
mundo e de política que orientam a ação dos grupos contendores.
2 Falar em concepção restrita não tem o propósito de diminuí-la em sua riqueza teórica, mas apenas o
de indicar que ela pode estar contida numa concepção mais ampla.
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implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro
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implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro
seja, a produção de sua existência não se dá diretamente, mas mediada pela divisão social
do trabalho. Disso resulta a condição de pluralidade do próprio conceito de homem
histórico, que não pode ser pensado isolado, mas relacionando-se com outros sujeitos
que, como ele, são portadores de vontade, característica intrínseca à condição de sujeito.
Dessa situação contraditória do homem como sujeito (detentor de vontades, aspirações,
anseios, interesses, expectativas) que precisa, para realizar-se historicamente, relacionar-
se com outros homens também portadores dessa condição de sujeito, é que deriva a
necessidade do conceito geral de política. Este refere-se à atividade humano-social com
o propósito de tornar possível a convivência entre grupos e pessoas, na produção da
própria existência em sociedade.
Como se sabe, essa convivência tanto pode dar-se de forma pacífica e
cooperativa quanto de maneira conflituosa e dominadora. Esta última forma é a que
vigora na sociedade capitalista em que vivemos. Quando isso acontece, a força da
estrutura econômica, fundada na opressão e no domínio de uns sobre os outros, leva
a crer que esta seja a única forma de conceber a política, absolutizando seu caráter
restrito e ocultando outras alternativas, como a de convivência cooperativa e pacífica,
capaz de propiciar o desenvolver pleno das subjetividades. Por isso, na perspectiva da
transformação social, visando a uma sociedade que supere a dominação humana, faz-
se necessária a consideração de um conceito de política que dê conta da nova situação
posta no horizonte. Dentro das amplas possibilidades abertas por uma noção ampla de
política, destaca-se, no caso, já não mais o conceito de política como luta política, mas
o de política como prática democrática. A democracia, todavia, precisa ser entendida
para além de seu sentido etimológico de governo do povo ou governo da maioria, para
incluir todos os mecanismos, procedimentos, esforços e recursos que se utilizam, em
termos individuais e coletivos, para promover o entendimento e a convivência social
pacífica e cooperativa entre sujeitos históricos.
Quando se pensa a política como prática democrática, a pergunta que se apresenta,
ao considerar a relação entre política e educação, é sobre as limitações de se tomar a
educação escolar, especialmente a básica, apenas como instrumento de luta política, e
sobre as potencialidades que se abrem para uma concepção de educação, pensada à luz de
um conceito amplo de política e, ao mesmo tempo, entendida como prática democrática
com atributos intrinsecamente políticos de realização humana.
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implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro
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implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro
3 Na acepção de Freire (1975), em que o educando se reduz a uma conta bancária na qual se “depositam”
conhecimentos.
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implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro
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implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro
diversos. Todavia, não se pode confundir a busca de objetivos na escola com a luta
política numa sociedade de dominação. As diferenças de interesses, por exemplo, entre
pais e professores, ou entre grupos que disputam a eleição de diretor ou a presidência do
conselho de escola, não possuem a radicalidade da diferença de interesses entre classes
antagônicas, a ponto de se colocarem em posições opostas, digladiando-se no interior
da escola. Se o interesse das partes envolvidas é o ensino de qualidade, a única forma de
relação que soma para a democratização da escola é a de aceitação mútua, característica
da relação pedagógica.
Preocupados com as dificuldades em estabelecer um clima de colaboração e de
igualdade de oportunidades no acesso às tomadas de decisão na escola, educadores e
demais elementos da escola, vivamente comprometidos com a democratização da gestão,
têm procurado estabelecer regras e criar mecanismos legais e jurídicos os mais adequados
possíveis à garantia do direito de todos e ao exercício efetivo da democracia. Essas regras
são, sem dúvida nenhuma, necessárias, e é preciso aperfeiçoá-las constantemente; mas
elas não são suficientes para caracterizar a democracia na escola. Sem a aceitação mútua
como forma de relação e como ideal a ser constantemente perseguido — isto é, como
meio e como fim da ação política — não pode haver verdadeira ação democrática. Por
isso, além das regras formais (e mesmo para garantir a criação de regras adequadas) é
preciso uma concepção democrática (de aceitação do outro como legítimo sujeito) a
orientar todas as condutas e a impregnar todos os espíritos na escola. A consequência
disso poderá ser um maior aproveitamento das ricas potencialidades democráticas da
relação pedagógica com o fim de tornar mais democrática a administração escolar. Assim
como é preciso “administrar” o pedagógico, para coerir meios e fins e para propiciar
eficácia na realização dos objetivos, é preciso “pedagogizar” a administração escolar,
para que ela se faça mais dialógica e mais democrática.
Finalmente, quanto à contribuição que a consideração da dimensão política
da educação pode trazer para a teoria da administração escolar, o aspecto de maior
destaque é a possibilidade de aprofundar a reflexão sobre o tratamento específico que
deve ser dado à administração da escola, por contraposição à administração de empresas
em geral. Se administração é, em seu conceito mais geral e abstrato, mediação para a
realização de fins, e se isso, como já foi mencionado, implica a necessidade de coerência
entre meios e objetivos, segue-se que o que condicionará as diferenças entre as várias
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implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro
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implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro
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implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro
Referências
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Educação integral em tempo integral:
uma concepção de educação para a Modernidade 1
1 Palestra proferida no I Seminário Nacional Educação em Tempo Integral, realizado no Rio de Janeiro,
RJ, de 29 a 30/11/2007, e promovido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - Unirio.
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educação integral em tempo integral Vitor Henrique Paro
Começo por fazer uma recordação muito rápida daquilo que, no senso comum,
se entende por educação. Lembremos que o senso comum está presente em toda a
sociedade, perpassa todas as camadas sociais e se faz presente também na escola. Esse
senso comum possui, inclusive, um ideal de educação, que está presente nos alunos,
nos pais, nos professores; está presente em todas as classes sociais, na imprensa; está
presente inclusive na universidade, na academia, em livros sobre educação, em palestras
e conferências sobre educação.
Esse conceito, no meu entender restrito, pobre, de educação, é mais ou menos
o seguinte: Quando se pensa em uma educação ideal, se pensa na concepção de que
existe alguém que sabe — alguém que detém conhecimentos e informações — e alguém
que não sabe; e esse alguém que sabe passa essas informações para esse alguém que não
sabe. Pronto, isto é educação. O que é a boa educação? Bastante conhecimento, bastante
informação, bem passada, transmitida para aqueles que não sabem...
Essa concepção pobre de educação orienta a nossa política educacional,
orienta o MEC, as secretarias de educação, enfim, orienta a educação no Brasil. Para
essa concepção de educação, a metodologia é muito simples: basta você ir do mais
simples para o mais complexo, organizando os conhecimentos e explicando para quem
aprende. Para essa concepção, o que importa são conhecimentos e informações, que
inclusive costumam chamar de “conteúdo”. O problema desses conteudistas não é a
falta de conteúdo, mas a pobreza desse “conteúdo”. O conteúdo é o que importa, e esse
conteúdo se restringe a conhecimentos e informações. Como o que importa é isso,
fica inteiramente minimizada a preocupação com quem ensina e, principalmente, com
quem aprende. Organizar o conhecimento, fazendo-o o mais palatável possível — é
assim que se entende o método.
Isso é tanto o ideal de todos, que, quando alguém fala em educação, quer saber
de que forma está sendo trabalhado o conteúdo. O explicador aparece como alguém que
simplesmente passa o conhecimento para o outro. Essa concepção pobre, defeituosa,
limitada faz com que a escola tenha uma tarefa muito simples, quer funcione em tempo
reduzido quer funcione em tempo mais alongado. A escola simplesmente seleciona e
fiscaliza. É mais ou menos o que fazia a chamada “boa” escola de antigamente, que de
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educação integral em tempo integral Vitor Henrique Paro
boa não tinha nada, mas só que ela podia dar-se ao luxo de ser ruim, porque abrigava
apenas aqueles alunos da elite, que já tinham os pais letrados, que possuíam revistas em
suas casas, faziam leituras, tinham o professor de música, de balé, etc. A criança ia para
a escola e o professor não precisava saber ensinar; bastava saber a matéria, o conteúdo, e
depositá-lo no aluno para que ele pudesse apreender. Nisso que se constituía a chamada
“educação bancária” tão criticada por Paulo Freire (Freire, 1975).
Pois bem, essa escola selecionava apenas aqueles que aprendiam apesar da
escola; e fiscalizava, dando conhecimentos para serem aprendidos, dando tarefas para
casa. Fiscalizava também com os exames, por meio de um mecanismo criminoso que
existe até hoje, que é a reprovação, uma forma de transferir para o aluno o fracasso de
uma instituição inteira. A “boa” escola pública de antigamente era tão elitista quanto a
escola particular de hoje. Se formos levantar os dados, iremos perceber que uma parcela
majoritária daquela escola não conseguia concluir os estudos. Isso representa, de certa
forma, o que a escola privada, hoje, faz com aqueles que possuem dinheiro para pagar
o ensino. E ela não seleciona apenas pelo pagamento de matrículas e mensalidades.
Mesmo que você pague muito bem o ensino, se você não tiver condições de aprender
e ser aprovado apesar da escola, você é convidado a se desligar. Ou seja, é uma escola
que pode dar-se ao luxo de ser ruim, porque só abriga alunos que aprendem apesar dela.
O que nós vamos fazer com essa escola ruim? Ela precisa de mais tempo? Não,
ela já possui todo o tempo do mundo, ela não precisa ser estendida, não precisa de
tempo integral. Se é para fazer essa coisinha ruim que está fazendo, deixa continuar
assim. Esta é uma concepção de educação que não nos interessa. Afinal, se for para
pensar uma educação de tempo integral, (mesmo sem colocarmos ainda a importância
da educação integral) não há necessidade disso — multiplicar a ruindade que está aí não
ajuda em nada.
necessário educação. O animal você treina até com um pouquinho de afeto, pode pegar
a pedagogia do afeto, ou o “quem ama educa”, essas coisas que existem por aí, que você
consegue ensinar um cachorrinho, por exemplo, a fazer um monte de coisinhas. Dá para
treinar. Mas se pensar o homem como espécie humana, a coisa é diferente: precisamos
de um conceito mais abrangente de educação. Para isso é preciso pensar o ser humano
não como simples animal racional, mas como ser histórico.
inclui aquilo que o homem faz, aquilo que ele produz, e é assim que ele faz história,
que ele produz a sua vida. É assim que nós nos fazemos humano-históricos: sendo
sujeitos. E sendo sujeitos, nós produzimos várias coisas, nós produzimos não apenas
conhecimentos e informações, mas produzimos também valores, filosofia, ciência, arte,
direito... Em outras palavras, o homem, para fazer-se histórico, produz cultura.
Cultura, aqui, vai ser entendida não em seu sentido restrito. Vamos entender
cultura enquanto a produção humana, como tudo aquilo que o homem produz para
além da natureza, portanto, no domínio da liberdade, e não da necessidade. Pois bem,
nós sabemos que, a cada nova geração, não precisamos ficar produzindo tudo de novo. O
homem se apropria de toda cultura produzida em outros momentos históricos, e assim
ele se faz histórico. Enfim, a essa apropriação da cultura, nós chamamos de educação,
agora em um sentido mais amplo, muito mais rigoroso, muito mais complexo. Agora
sim, podemos falar educação integral.
Acontece que quando nascemos não temos um átomo de cultura. Nascemos
absolutamente “zero”, porque a apropriação da cultura não se faz pelo sangue, não se
transmite pelos genes: o filho do filósofo não nasce filósofo, o filho do engenheiro não
nasce engenheiro... Cada um de nós nasce natureza pura, nada de humano no sentido
histórico. Nascemos animaizinhos e nos fazemos humano-históricos por meio da
apropriação e da transformação da cultura. Então, esse é o sentido da produção humana
da educação. É a partir da apropriação de valores, de conhecimentos, de filosofia, de
artes, de ciências, de crenças, que nós nos tornamos cidadãos dessa coisa chamada
humanidade. Isto é educação. Se isto é educação, só existe uma forma de realizá-la, e esta
forma tem que ser coerente com o que ela é.
A razão de ser da educação não pode ser “passar no vestibular”, preparar para o
mercado de trabalho ou responder os testes dos Saebs. Se a educação visa à formação do
humano-histórico, visa de fato à formação do cidadão. Como, em todo empreendimento
147
educação integral em tempo integral Vitor Henrique Paro
humano bem sucedido, os meios não podem contrariar os fins, os meios e a maneira
de produzir a educação não podem contrariar esse fim, que é a produção do humano-
histórico. Se o humano-histórico significa sujeito, ou seja, autor, condutor de sua
própria humanidade, então, a educação só se dá na forma da relação entre sujeitos. Nessa
relação, não acontece propriamente que o educador educa o educando: antes disso, o
educador é alguém que propicia condições para que o educando se eduque. O verbo
educar é um verbo reflexivo, significando que o educando, como ser humano-histórico
(sujeito) em formação, produz sua própria educação pela mediação do educador.
Se o educando só se educa se for sujeito, significa que ele só aprende se quiser.
Mas frequentemente nos esquecemos dessa verdade mais óbvia, mais básica, e deixamos
de propiciar na escola as condições para que o aluno queira aprender. Depois de todo o
desenvolvimento da Pedagogia, especialmente no Século XX, ainda confinamos crianças
em salas de aula por quatro ou cinco horas diárias, ignorando aquilo que a Psicologia da
Educação já nos ensinou há mais de setenta anos, ou seja, que a forma individualizante
do professor explicador é o pior dos métodos para desenvolver a aprendizagem da
criança desde o momento que nasce até por volta de dez ou onze anos de idade.
Educação integral
148
educação integral em tempo integral Vitor Henrique Paro
para aprender a dançar, a cantar, a brincar, a amar, a discutir política, a conviver com o
outro, a ser companheiro, etc. E não me venham com a conversa dos temas transversais
porque esses outros elementos da cultura são tão centrais quanto os conhecimentos e
informações para a emancipação pessoal e a constituição da cidadania integral.
Não precisa tirar um milímetro do currículo que aí está, mas, por favor, não
minimizem aquilo que é nossa própria vida, o nosso próprio exercício na condição
de humano. Nós precisamos pensar em métodos que não sejam tão retrógrados como
os que estão por aí. Se a criança só aprende se quiser, então precisamos saber o que
é preciso para levá-la a querer. Para isso é preciso saber mais sobre Psicologia, sobre
Antropologia, sobre Sociologia, sobre História, sobre a Pedagogia de um modo geral,
sobre todas as ciências que dão subsídios à Educação e nos deixam mais didaticamente
preparados para lidar com a criança, ou com o ser humano em desenvolvimento.
Em síntese, a nossa análise teve o objetivo de mostrar o quanto a escola que aí
está, salvo honrosas e raras exceções, é ruim e não ensina. Falamos sobre coisas óbvias
como o fato de que o aluno só aprende se quiser, coisas que não são vistas porque se
adota uma concepção vulgar e falsa de educação que a reduz a simples passagem de
conhecimentos e informações. É por isso que a escola fracassa, porque conhecimentos
sozinhos, sem a integralidade da relação pedagógica, não se conseguem passar. Eles se
passam mais facilmente quando estão mergulhados na cultura a que eles se referem, e
isso exige o conceito integral de educação.
Para ficar no tema central deste Seminário, educação ou é integral ou não é.
Passar só conhecimento é muito chato, não constrói o interesse da criança. É preciso
levá-la a essa construção, trabalhar com valores (sem moralismo), trabalhar crenças,
trabalhar a arte, a ciência, trabalhar a filosofia em todas as suas dimensões. A escola
que está aí se propõe a passar apenas conhecimento e, por isso, nem isso consegue. Não
basta se propor a ensinar a ler e a escrever: é preciso levar as pessoas a terem necessidade
da leitura e da escrita. A escola que aí está fracassa, portanto, porque é parcial. É por isso
que precisamos pensar sobre a educação integral.
149
educação integral em tempo integral Vitor Henrique Paro
Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [19--]. livro 1.
150
Interferências privadas na escola básica:
sequestro do público e degradação do pedagógico 1
1 Trabalho apresentado no Simpósio “O público e o privado nas escolas públicas: parceria colaborativa
ou malversação do dinheiro público?”, durante o XVI Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino
(Endipe), realizado em Campinas, SP, de 23 a 26/07/2012.
151
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro
O público e o privado
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interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro
na história tem sido tão marcante a ponto de levar o senso comum (e muitos estudos
acadêmicos) a identificá-lo com o próprio conceito de política. Isto é, a política como
luta contra o outro se faz tão presente que produz a falsa consciência de que a atividade
política se resume na luta pelo poder de uns sobre os outros, descartando a possibilidade
de que a política se faça também como convivência com os outros (Holloway, 2003), que
consiste precisamente na segunda forma de fazer política, ou seja, aquela que se realiza
no diálogo entre sujeitos. Trata-se, neste segundo caso, da democracia em seu sentido
mais universal (Coutinho, 1980), como “convivência pacífica e livre entre pessoas e
grupos que se afirmam como sujeitos” (Paro, 2010, p. 27; grifos no original).
Mesmo que nunca encontremos cada uma dessas modalidades em sua forma
pura na organização da sociedade, é a elas que temos de recorrer quando procuramos
analisar a realidade. E se, como afirmamos, o conceito de público está relacionado à
universalidade de direitos e deveres de cidadãos numa sociedade organizada pelo Estado
democrático, é à prática política como democracia que devemos nos referir sempre que
nos reportamos ao caráter público dos direitos e deveres. Assim, podemos dizer que o
Estado será tanto mais público quanto mais democrático ele for, da mesma forma que a
democracia não pode nunca perder de vista sua articulação necessária ao bem comum
(público, universal).
Além disso, o Estado democrático (sua própria existência) supõe a concordância
de todos com suas determinações. É por isso que ele não apenas estabelece direitos, mas
também impõe deveres. Direitos e deveres existem, supostamente, para o bem de todos
os integrantes da sociedade. Numa democracia, a razão de ser do Estado, em princípio, é
a garantia do bem público. Todavia, isso não significa que, na prática, o público sempre
coincida com o estatal. Como entidade histórica, o Estado está permeado pelas múltiplas
contradições que caracterizam os empreendimentos humanos. Assim, mesmo o Estado
constituído a partir de parâmetros democráticos não está imune a medidas e práticas
que violam os interesses públicos da sociedade. Por isso não se deve tomar por pública
determinada instituição pelo simples fato de pertencer ao Estado ou ser por ele mantida.
A esse respeito, a pergunta que se faz é se é mesmo apropriado chamar de pública nossa
escola básica mantida pelo Estado – quando sabemos de sua precariedade em atender
os interesses da população tanto em termos qualitativos quanto em termos de sua
abrangência e universalidade – ou se a expressão “escola pública básica” anuncia apenas
153
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro
um desejo e uma intenção ainda longe de se realizar. Em acréscimo, e para efeito do tema
que examinamos aqui, a questão é saber em que medida as interferências de interesses
privados em sua organização e funcionamento concorrem para descaracterizá-la como
instituição que visa ao bem público.
O privado, por sua vez, é o âmbito da particularidade de indivíduos e grupos
com seus interesses e idiossincrasias, e também supõe direitos e deveres protegidos
pelo Estado. Todo cidadão precisa ter a garantia de uma vida privada, com ideias,
crenças, atos e decisões que não são públicas, nem passíveis de monitoramento por
parte do Estado, fazendo parte apenas de seu círculo privado de relações. Pode-se dizer
então que, no domínio privado, prevalecem as relações “pessoais”, aquelas que dizem
respeito às características particulares, idiossincráticas, de cada pessoa ou grupo. Em
sua condição de “pessoa”, o cidadão atua num âmbito demarcado pelas características
e potencialidades de seu círculo de conhecimentos e amizades. São relações diretas,
que se dão no círculo privado, sem a mediação estatal. Ou seja, seu poder deriva de
circunstâncias que, a rigor, nada têm a ver com o controle do Estado. Fulano pode, por
exemplo, receber um presente de um amigo, pelo privilégio de tê-lo como amigo, e isso
escapa completamente à regulação estatal. Ele pode também, pela circunstância de ter
sido criado numa família cristã (ou de outra religião qualquer), professar essa crença,
sem que isso em nada diminua ou acrescente a sua condição de cidadão.
A essa característica privada da condição de “pessoa”, contrapõe-se o conceito
de “indivíduo”, como síntese dos atributos que os sujeitos sociais têm em comum com
todos os demais (DaMatta, 1991). Ou seja, cada indivíduo, nesse sentido, aparece como
exemplaridade do conjunto de cidadãos, devido à universalidade de seus direitos e
deveres. Aqui seu poder social deriva não de uma sua característica pessoal ou de uma
circunstância particular, mas de algo geral, universal, comum a todos os componentes
da sociedade. Já não há privilégios (pessoais), mas direitos (de cidadania). Fulano pode, por
exemplo, matricular seu filho numa escola gratuita de ensino fundamental porque esse
é um direito de todos, garantido pelo Estado. Neste caso estamos no âmbito do público,
daquilo que é universal, não particular (privado). Podemos dizer, então, que os cidadãos
se igualam como indivíduos (público) e se diferenciam como pessoas (privado).
Público e privado existem em estreita relação e não é incomum a confusão
entre os dois conceitos. Por isso, é preciso estar bastante atento a respeito das fronteiras
154
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro
que delimitam essas instâncias, para evitar interferências ilegítimas de uma sobre a
outra. Ou seja, numa democracia, o público e o privado, como instâncias mutuamente
determinantes, devem coexistir de modo que um não cerceie a liberdade do outro.
Sempre que o poder público sobrepõe-se aos direitos do privado, limitando-os, assim
como toda vez que o privado agride o domínio do público, utilizando-o para interesses
particulares, a democracia é violada.
Um bom exemplo para ilustrar a interferência ilegítima de uma instância sobre
a outra é a confusão de papéis que se costuma verificar na relação entre ciência e crenças
religiosas. A ciência é necessariamente o domínio do público, pois deve ser fundada
em conteúdos que tenham validade universal. A “verdade” científica só se sustenta
quando se demonstra publicamente, por meio de fatos e argumentos, aquilo que se está
afirmando. A crença religiosa, por sua vez, é necessariamente privada, e como tal deve
ser respeitada. Se alguém diz acreditar na existência de deus (ou de duendes), isto não
precisa ser publicamente provado. Esse indivíduo tem o direito de professar livremente
sua fé, sem que se possa exigir dele que forneça evidências científicas (públicas) disso. Tal
exigência corresponderia a proibir-lhe de exercer sua crença, já que ninguém consegue
provar ou fornecer evidências científicas (públicas) que justifiquem determinada fé
religiosa. Mas, em igual medida, o direito privado a uma crença não pode de modo
nenhum servir de pretexto para violar qualquer direito público. Não se pode, a pretexto
de princípios religiosos (privados), advogar a transgressão de princípios públicos que
lhes precedem. Assim, se determinado credo religioso estabelece, por exemplo, que a
transfusão de sangue é pecado, ou contraria a vontade de deus, esse “preceito” deve,
sim, ser preterido quando interfere no direito à vida das pessoas, não podendo o Estado
permitir que um pai proíba a transfusão de sangue em seu filho só porque sua religião
assim o estabelece. Assim como um cidadão não pode ter direito de espancar ou de
violentar seu filho só porque é seu filho (contexto privado) ele também não pode ter o
direito de, com pretextos religiosos (privados), usurpar-lhe a chance de viver, já que esse
é um direito público que deve ser protegido pelo Estado.
Também o público não pode, com medidas totalitárias, invadir o âmbito
do privado para transgredir os direitos dos indivíduos. A liberdade de crença, como
vimos, é um direito privado e deve ser exercido plenamente desde que não interfira no
direito de outros (público). O Estado não pode (não deve), portanto, violar esse direito,
155
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro
introduzindo ou favorecendo o ensino religioso nas escolas, por exemplo, sob pena de
violar a liberdade de crença dos cidadãos, além de pôr uma instituição pública a serviço
de interesses não públicos. E não tem validade aqui o argumento viciado de que o
ensino religioso abre possibilidades para todas as religiões, fazendo-se, assim, universal.
Primeiro, porque não é a soma de privados que compõe o público; este advém de um
princípio que é universal, não do ajuntamento de pedaços particulares. Além disso, a
soma de “todas as religiões” não inclui a não religião, ou o ateísmo, que deve também
ser um direito de todos.
O pedagógico
o ser humano, para realizar-se como tal, para sentir-se bem, liberto
dos grilhões da necessidade, não precisa apenas de conhecimentos e
informações. A cultura, na forma de todo desenvolvimento científico,
filosófico, ético, artístico, tecnológico, etc., é o próprio substrato da
liberdade do homem, para além da necessidade natural. Nesse sentido, cada
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interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro
deixar de ser (continua sendo) do educador. Não há, pois, transmissão deste para aquele,
como creem o senso comum e os formuladores de políticas educacionais. A cognição
é construída no processo ensino-aprendizado e o educando incorpora a cultura em sua
personalidade viva, educando-se.
Sequestro e degradação
158
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro
com relação a seu objeto de trabalho, o professor como trabalhador precisa envolver-
se (politicamente) com o educando, seu objeto de trabalho por excelência. O fazer do
educador não realiza apenas uma ação que resulta num produto. Seu fazer, em vez disso,
deve produzir outro fazer (do educando) que realiza a ação que dá origem ao produto
desejado, isto é, sua personalidade modificada pela cultura por ele incorporada.
A ação da escola e de seus educadores reveste-se assim de uma complexidade
ímpar que exige condições de trabalho adequadas tanto aos aspectos políticos quanto
aos técnicos. Os primeiros dizem respeito, acima de tudo, à liberdade e à autonomia
de professores e demais educadores escolares para planejarem e organizarem suas
atividades de acordo com as peculiaridades de seus alunos, do currículo envolvido e
da especificidade do trabalho pedagógico. Os aspectos técnicos, por sua vez, têm a ver
com todas as condições materiais e institucionais necessárias ao desenvolvimento da
ação pedagógica, indo desde recursos didáticos, material escolar, mobiliário, salas e
ambientes disponíveis, passando por remuneração satisfatória e formação permanente,
até os espaços e tempos reservados para a troca de experiências com colegas de trabalho
e compartilhamento de experiências com a comunidade.
Quando essas condições políticas e técnicas não se encontram presentes, verifica-
se o sequestro do caráter público da instituição escola e a degradação de seu desempenho
pedagógico. Essas consequências não estão dissociadas uma da outra. Assim, o sequestro
do público ocorre duplamente: por um lado, em virtude das dificuldades de exercício da
ação política dentro de parâmetros democráticos e de liberdade de atuação por parte de
educadores e educandos; por outro, por causa do empobrecimento da ação pedagógica
que, assim, não consegue desenvolver-se de modo a propiciar a apropriação da cultura
por parte dos educandos, seu direito público fundamental. Por sua vez, a degradação
do pedagógico já está presente no próprio sequestro do público, na medida em que
as condições técnicas omitem sua conotação inerentemente política, impossibilitando
também uma prática pedagógica consistente.
Certamente há mais de uma forma de sequestrar o caráter público da escola e de
patrocinar a degradação de sua prática pedagógica, e o modo descuidado e antipedagógico
como o Estado vem tratando das políticas educacionais relacionadas à escola básica não
é das menos plenas de consequências deletérias. Uma das maneiras atualmente em voga
por parte dos vários sistemas de ensino para desonerar-se de seu dever de proporcionar
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interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro
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interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro
Referências
COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. São Paulo: Ciências
Humanas, 1980.
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 4.
ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991.
HOLLOWAY, John. Mudar o mundo sem tomar o poder: o significado da revolução
hoje. São Paulo: Viramundo, 2003.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983. v.
l.
ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da técnica. Rio de Janeiro: Livro Ibero-
Americano, 1963.
PARO, Vitor Henrique. Educação como exercício do poder: crítica ao senso comum em
educação. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
PARO, Vitor Henrique. Crítica da estrutura da escola. São Paulo: Cortez, 2011.
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O professor como trabalhador:
implicações para a política educacional
e para a gestão escolar 1
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o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro
***
Além dessa visão pedagógica, a ação educativa precisa ser considerada também
como processo de trabalho. O trabalho pode ser concebido, inicialmente, em seu sentido
geral, “independentemente de qualquer forma social determinada” (Marx, 1983, v. 1, t.
1, p. 149), ou seja, como “atividade orientada a um fim” (p. 150).2
2 Como se poderá perceber, toda a argumentação a seguir sobre o trabalho humano está fundamen-
tada em Karl Marx (1977, 1978, 1983). Uma explanação menos sumária pode ser encontrada em Paro
(2012a).
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o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro
boas aulas, mas aquela que forma bons cidadãos. Assim, não há nada de errado em se
exigir que a escola seja produtiva, desde que a medida de sua produtividade se refira
ao produto que lhe cumpre oferecer: o aluno educado, ou melhor, a porção de cultura
incorporada à personalidade do aluno pela ação da escola (Paro, 2012a, p. 188-192). Há
que se agarrar, pois, à realidade desse produto e desse objetivo, tanto em sua realização
quanto na avaliação de sua consecução. Estes são processos muito mais complexos do
que produzir certificados que nada certificam ou realizar “avaliações” em larga escala
para produzir ranques que nenhum benefício trazem ao ensino.
Em segundo lugar, é preciso estabelecer rigorosamente quais são os elementos do
processo de trabalho pedagógico. Parece não haver nenhuma dificuldade com relação aos
instrumentos de trabalho (material escolar em geral, mobiliário, laboratórios, recursos
audiovisuais, salas de leitura, prédio escolar, etc.) e a necessidade de sua adequação aos
objetivos do ensino. Com relação à força de trabalho, como tanto educador quanto
educando são trabalhadores, parece também fácil de estabelecer que ela consiste na
energia humana, física e mental, despendida tanto por um quanto por outro. São,
todavia, forças de trabalho diversas, a do educador empregada nas atividades que levam
o educando a aprender, e a deste utilizada em seu empenho em educar-se.
Já, com referência ao objeto de trabalho, costuma haver resistências em sua
identificação, sob a alegação de que não se pode aplicar na escola o conceito de trabalho
da fábrica ou da produção material em geral. Todavia, o conceito marxiano de trabalho
como “atividade orientada a um fim”, que acabamos de ver, é um conceito de trabalho
em geral, que faz abstração de toda particularidade, e que, por isso, se aplica a todo tipo
de trabalho, seja na produção material ou imaterial, seja produtor de mercadorias ou
não. Assim, uma análise criteriosa da educação como processo de trabalho deve nos
levar a concluir que, além da própria cultura – que é processada e se incorpora na
personalidade do educando – o objeto de trabalho por excelência é o educando, pois é
este que se transforma (em sua personalidade viva) para dar origem ao produto. Mais
uma vez, é de extrema importância atentar para a natureza pedagógica da educação,
para constatar que não se está diante de um objeto de trabalho qualquer, ou seja, não
se trata de mero objeto, como acontece na produção material, por exemplo, mas de um
sujeito. Isso é decisivo quando se trata de tomadas de decisões competentes no âmbito
das políticas educacionais.
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o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro
produção, representados pelo capital, o que interessa acima de tudo é o que produz
lucro, ou seja, o trabalho abstrato, do qual decorre a mais-valia; o trabalho concreto só
lhes interessa como “encarnação” de trabalho abstrato.
Esse conceito de trabalho abstrato (historicamente determinado sob o
capitalismo) possibilita compreender a forma peculiar de vigência da razão mercantil
nesse modo de produção. O interesse do capitalista, o lucro, se apresenta sob a forma
de mais-valia; o interesse do trabalhador sob a forma de salário. Para o primeiro, pouco
importa a forma concreta dos bens ou serviços resultantes do emprego de força de
trabalho e meios de produção; o importante é que ele possa vendê-los por um valor
ampliado. Por isso, seu entendimento de produtividade está intrinsecamente relacionado
à produção de mais-valia. Assim, do ponto de vista da produção capitalista, “só é
produtivo aquele trabalho — e só é trabalhador produtivo aquele que emprega a força de
trabalho — que diretamente produza mais-valia” (Marx, 1978, p. 70, grifos no original).
O trabalhador, por sua vez, também não precisa ter nenhum interesse direto no tipo
de trabalho que exerce, nem no produto daí decorrente, porque o motivo que o leva
a vender sua força de trabalho e submeter-se ao capital, é o salário que garante sua
sobrevivência. Em outras palavras, o trabalho na produção capitalista tem todas as
características de um trabalho forçado.
Em princípio, também essas considerações sobre o trabalho socialmente
determinado podem favorecer uma reflexão mais rigorosa a respeito da ação educativa,
ensejando uma maior aproximação do problema teórico que envolve o professor como
trabalhador. Mas, se a aplicação do conceito de trabalho em geral possibilitou-nos ver
com maior clareza o processo ensino-aprendizado, o conceito de trabalho abstrato da
produção capitalista só pode fazê-lo por contraste, ou mesmo por franca oposição.
Em primeiro lugar, há um antagonismo insuperável com relação ao produto do
trabalho útil (concreto) como objetivo da produção. No caso da produção capitalista,
o produto do trabalho concreto (uma mercadoria) é apenas uma mediação para a
realização do objetivo último do proprietário dos meios de produção, que é a mais-
valia. Para a produção pedagógica, entretanto, a razão de ser é o próprio valor de uso
produzido pelo trabalho concreto, ou seja, a formação de uma personalidade humano-
histórica, como objetivo último da ação educativa. No primeiro caso, não há nenhum
compromisso social ou afetivo com a mercadoria resultante da produção. Ela é apenas
172
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro
um objeto a ser convertido em lucro em favor dos que comandam a produção. Já, no
caso do processo educativo, o resultado é um produto imediatamente útil, relevante
individual e socialmente. Os que comandam a produção (cujo poder se consubstancia
no Estado) têm um compromisso com o próprio cidadão, cuja vontade e interesse é
componente do próprio Estado.
Em segundo lugar, há uma diferença radical entre os interesses dos trabalhadores
em cada uma dessas situações. Na produção capitalista, como vimos, o trabalho é forçado.
O trabalhador só se submete a ele porque é sua única opção de acesso aos meios de
produção e, portanto, à produção da própria subsistência. Seu interesse é o recebimento
de um salário, e tudo o que faz está condicionado a esse interesse. É bem verdade que
também ele tem de preocupar-se com a qualidade do valor de uso que produz, mas essa
preocupação circunscreve-se aos limites de seu contrato com o patrão. O interesse e
a responsabilidade pelos destinos da mercadoria são do capital, nada precisando (ou
podendo) fazer o trabalhador. Seu “desinteresse” pelo bem ou serviço que produz é tal
que, em favor de seu interesse específico por melhor salário, ele pode utilizar (e, em
geral, utiliza) sua produtividade como moeda de troca na luta contra o empregador
de sua força de trabalho, produzindo mais e melhor, dependendo do salário que lhe é
proporcionado.
A coisa é bastante diferente quando se trata do professor, especialmente na escola
pública fundamental. Embora ele também tenha o interesse no salário, porque não pode
sobreviver sem ele, sua motivação não pode esgotar-se aí, sob pena de sua produtividade
ficar seriamente comprometida. O fato de que o aluno só aprende se quiser e de que,
portanto, o professor precisa levá-lo a querer aprender exige que este, desde o início,
se envolva pessoal e politicamente com seu objeto de trabalho, não podendo consistir
num mero executor de tarefas, apenas para conseguir seu salário. Neste sentido, seu
trabalho não discrepa apenas do trabalho capitalista, mas de todo trabalho que permite
a seu executor uma relação de exterioridade com o objeto de trabalho.3
3 Evidentemente, não se trata de ignorar os casos em que, mesmo considerando a exterioridade do objeto
de trabalho, o trabalhador pode ter uma relação de intenso envolvimento e interesse no trabalho que
desenvolve – o que é muito comum, por exemplo, no campo das artes e das chamadas profissões liberais.
Apenas que aqui estou interessado em elucidar a circunstância de que, no caso do professor, esse envol-
vimento com o objeto de trabalho não constitui mera possibilidade, mas uma necessidade da produção em
pauta.
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o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro
Mas, na educação escolar, não parece possível seguir essa lógica sem comprometer
seriamente o alcance dos objetivos pois o educador não pode ensinar, de fato, apenas
orientado por seu interesse no salário. Daí o caráter extremamente problemático de
alcançar maior produtividade por meio de estímulos pecuniários como a chamada
“remuneração por mérito”. Em vez disso, parece muito mais razoável concluir que se,
como vimos, o salário não pode ser a razão de ser da atividade do mestre educador –
porque a complexidade de sua função lhe exige um envolvimento sui generis com o
educando e sua formação, motivo último de seu ofício – então seu salário precisa ser tão
justo e compensador, de tal modo que isso sequer seja motivo de preocupação, estando
ele livre e tranquilo para realizar seu trabalho voltando-se para os interesses que de fato
contribuem para a boa realização de seu produto.
Sobre esse tema, tanto na academia, quanto nas entidades sindicais de
professores, parece haver uma lacuna nos discursos críticos acerca do modo como se
dá o trabalho docente no ensino público fundamental, que consiste precisamente na
não consideração dessa singularidade do trabalho educativo. As análises, em geral, se
ocupam longamente da crítica ao modo capitalista de produção, à alienação do trabalho
inerente a esse modo de produzir, e, diretamente ou por analogia, à opressão sofrida
pelo trabalhador da educação quando subsumido à lógica mercantil capitalista. Sem
dúvida, a adoção de mecanismos de mercado no recrutamento, contratação e gestão do
trabalho de professores e demais educadores escolares é um dos aspectos mais insólitos
das atuais políticas educacionais baseadas na gestão empresarial. Para a crítica dessa
tendência, o estudo da habituação (forçada) do trabalhador ao modo de produção
capitalista é essencial para identificar importantes forças que atuam no desempenho
e no moral dos professores da escola básica. Não é, contudo, suficiente para elucidar a
complexidade do trabalho docente. É preciso, além disso, ter presente a singularidade
da ação educativa, que só se faz com o exercício da condição de sujeito dos envolvidos.
É preciso, portanto, evitar certo tipo de crítica que, não conseguindo se desapegar
de jargões contra o neoliberalismo, acabam restringindo sua análise aos fatos do mercado,
deixando de ultrapassar os limites estabelecidos pela própria razão mercantil. Ignora-
se, com isso, que a adoção de padrões capitalistas de gestão traz consequências funestas
não só para os interesses do trabalhador mas também para a efetivação do ensino. É
dupla, pois, a violência da aplicação da gerência capitalista na escola. Ou seja, mesmo
depois de plenamente estabelecido o caráter deletério da utilização da “fúria gestionária”
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no trabalho de modo geral, com seu contributo degradante para o trabalhador, ainda
restará analisar a singularidade do trabalho docente e os entraves que a desconsideração
dessa singularidade opõe à efetivação da educação.
A formação docente, por sua vez, é um dos assuntos mais complexos, quando
se contempla essa singularidade do trabalho pedagógico. Usualmente, se acredita que
bastam a frequência a um curso superior e a obtenção de um diploma de licenciatura para
exercer com qualidade as atribuições docentes. Nessa perspectiva, as referências a uma
melhor qualificação se resumem, em grande medida, na apropriação dos conhecimentos
relativos aos conteúdos curriculares, às teorias pedagógicas e às metodologias de ensino.
Quando, todavia, a partir de uma concepção crítica de educação, se considera seu caráter
intrinsecamente político, aparecem questões que não costumam estar presentes nos
debates sobre formação docente. Uma das mais relevantes é o fato de que a formação
política necessária para se estabelecer um diálogo democrático na relação pedagógica
inicia-se na infância. É desde a mais tenra idade, iniciando-se pela socialização primária
(Berger; Luckmann, 1973), mas prolongando-se por toda a fase de desenvolvimento
biopsíquico-social da criança e do adolescente, que se assimilam valores e condutas que
formarão personalidades mais, ou menos, democráticas. O que fazer, portanto, quando
se sabe que o primeiro contato formal com “preparação” docente do professor se dá na
educação infantil e no ensino fundamental? Parece que essa é uma boa indagação para se
refletir mais intensamente sobre qualidade do ensino nesses níveis, em que se dá parte
importante da própria formação pedagógica de seus futuros professores (Paro, 2003).
Além disso, há que se envidar esforços para introduzir, já, na formação docente (regular
e em serviço) medidas que concorram para neutralizar os vícios autoritários trazidos
para o ensino superior ou para a prática docente dos que exercem a profissão, e ao
mesmo tempo desenvolver virtudes democráticas condizentes com o ofício de educar.
Finalmente, no caso da administração escolar, em sintonia com igual movimento
nas políticas educacionais, constata-se uma verdadeira “fúria gestionária” que procura
aplicar na escola e em sua gestão, cada vez mais estritamente, os métodos e técnicas da
empresa tipicamente capitalista. Mais e mais indivíduos, vindos do mundo dos negócios
e desprovidos de qualquer familiaridade com a educação e com a escola, se põem a dar
ideias e a oferecer soluções para os problemas da gestão escolar. Em geral, buscam se
fundamentar no discurso empresarial e, em virtude do amadorismo pedagógico antes
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Referências
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o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro
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Fonte dos textos
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Este livro utilizou as fontes tipográficas
Crimson Text e DIN Next LT Pro,
e foi terminado em abril de 2023,
em São Paulo.
Com esta coletânea de textos de Vitor Henrique Paro – Gestão,
política, economia e ética na educação –, publicada por ocasião
da outorga do título de Professor Emérito da Universidade
de São Paulo, o leitor entrará em contato com suas ideias,
pensamentos, estudos e palavras. É o seu vigésimo livro, o
primeiro inteiramente em formato digital, uma antologia
de onze textos publicados em revistas acadêmicas, livros,
eventos acadêmicos e jornais de grande circulação.