Gestao Politica Economia e Etica Na Educacao 1

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V I T OR HE NRIQUE PA RO

gestão, política, economia e ética


na educação
V I T OR HE NRIQUE PA RO

gestão, política, economia e ética


na educação


GALATEA

2022
Conselho Editorial:
Alberto Filipe Araújo, Universidade do Minho, Portugal
Alessandra Carbonero Lima, USP, Brasil
Ana Guedes Ferreira, Universidade do Porto, Portugal
Ana Mae Barbosa, USP, Brasil
Anderson Zalewski Vargas, UFRGS, Brasil
Antonio Joaquim Severino, USP, Brasil
Aquiles Yañez, Universidad del Maule, Chile
Belmiro Pereira, Universidade do Porto, Portugal
Breno Battistin Sebastiani, USP, Brasil
Carlos Bernardo Skliar, FLASCO Buenos Aires, Argentina
Cláudia Sperb, Atelier Caminho das Serpentes, Morro Reuter/RS, Brasil
Cristiane Negreiros Abbud Ayoub, UFABC, Brasil
Daniele Loro, Università degli Studi di Verona, Itália
Elaine Sartorelli, USP, Brasil
Danielle Perin Rocha Pitta, Associação Ylê Seti do Imaginário, Brasil
Edesmin Wilfrido P. Palacios, Un. Politecnica Salesiana, Ecuador
Gabriele Cornelli, Universidade de Brasília, Brasil
Gerardo Ramírez Vidal, Universidad Nacional Autónoma de México
Jorge Larossa Bondía, Universidade de Barcelona, Espanha
Ikunori Sumida, Universidade de Kyoto, Japão
Ionel Buse, C. E. Mircea Eliade, Unicersidade de Craiova, Romênia
Isabella Tardin Cardoso, UNICAMP, Brasil
Jean-Jacques Wunnenberger, Université Jean Moulin de Lyon 3, França
João de Jesus Paes Loureiro, UFPA, Belém, Brasil
João Franscisco Duarte Junior, UNICAMP, Campinas/SP, Brasil
Linda Napolitano, Università degli Studi di Verona, Itália
Luiz Jean Lauand, USP, Brasil
Marcos Antonio Lorieri, UNINOVE, Brasil
Marcos Ferreira-Santos, USP, Brasil
Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio, USP, Brasil
Marian Cao, Universidad Complutense de Madrid, España
Mario Miranda, USP, Brasil
Patrícia P. Morales, Universidad Pedagógica Nacional, Ecuador
Pilar Peres Camarero, Universidad Autónoma de Madrid, España
Rainer Guggenberger, UFRJ, Brasil
Regina Machado, USP, Brasil
Roberto Bolzani Júnior, USP, Brasil
Rogério de Almeida, USP, Brasil
Soraia Chung Saura, USP, Brasil
Walter Kohan, UERJ, Brasil
V I T OR HE NRIQUE PA RO

gestão, política, economia e ética


na educação

DOI: 10.11606/9786587047485

SÃO PAULO, SP
2023
© 2023 by Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

Coordenação editorial: Rogério de Almeida e Daniel Cara


Projeto Gráfico e Editoração: Marcos Beccari e Rogério de Almeida
Revisão do autor

Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde
que citada a fonte e a autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada.

Catalogação na Publicação
Biblioteca Celso de Rui Beisiegel
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

P257g Paro, Vitor Henrique


Gestão, política, economia e ética na educação / Vitor Henrique Paro.
-- São Paulo: FEUSP, 2023.
870 Kb; PDF

ISBN 978-65-87047-48-5 (E-book)


DOI: 10.11606/9786587047485

1. Políticas educacionais 2. Administração de unidades educativas 3. Escola


Pública 4. Gestão democrática 5. Fundamentos econômicos (Educação)
6. Ética I. Título

CDD 22ª ed. 379.5


Ficha elaborada por: Nicolly Leite CRB-8/8204

Universidade de São Paulo


Reitor: Prof. Dr. Carlos Gilberto Carlotti Junior
Vice-Reitora: Profa. Dra. Maria Arminda Nascimento Arruda

Faculdade de Educação
Diretora: Profa. Dra. Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto
Vice-Diretor: Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto
Avenida da Universidade, 308 - Cidade Universitária - 05508-040 – São Paulo – Brasil
E-mail: spdfe@usp.br / http://www4.fe.usp.br/

FEUSP
SUMÁRIO

HOMENAGENS A VITOR HENRIQUE PARO POR OCASIÃO DA OUTORGA DO


TÍTULO DE PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA USP

Vitor Paro: política, pedagogia e vontade democrática, por Carlota Boto 9

Homenagem a Vitor Paro, por Rogério de Almeida 12

Um homem das ciências da educação, por Daniel Cara 15

Homenagem ao Mestre Vitor Henrique Paro, por Rubens Barbosa de Camargo 21

Para o meu Emérito Predileto, por Iracema Santos do Nascimento 27

GESTÃO, POLÍTICA, ECONOMIA E ÉTICA NA EDUCAÇÃO

Administração escolar e qualidade do ensino: 32


o que os pais ou responsáveis têm a ver com isso?

A utopia da gestão escolar democrática 44

Eleição de diretores de escolas públicas: 51


avanços e limites da prática

Parem de preparar para o trabalho!!! 68


Reflexões acerca dos efeitos do neoliberalismo sobre a gestão
e o papel da escola básica

Políticas educacionais: 88
considerações sobre o discurso genérico e a abstração da realidade

Educação para a democracia: 107


o elemento que falta na discussão da qualidade do ensino

Reprovação escolar? Não, obrigado 123


Implicações do caráter político da educação 126
para a administração da escola pública

Educação integral em tempo integral: 143


uma concepção de educação para a Modernidade

Interferências privadas na escola básica: 151


sequestro do público e degradação do pedagógico

O professor como trabalhador: 162


implicações para a política educacional e para a gestão escolar

Fonte dos textos 182


HOMENAGENS A VITOR HENRIQUE PARO POR
OCASIÃO DA OUTORGA DO TÍTULO
DE PROFESSOR EMÉRITO
DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA USP
Vitor Paro: política, pedagogia
e vontade democrática

Carlota Boto

Pedagogo e Mestre em Educação pela FEUSP, sob orientação do professor


José Augusto Dias, Vitor Henrique Paro cursou seu doutorado no Programa de Pós-
Graduação em Educação: História, Política, Sociedade, da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/São Paulo). É Livre-Docente e Professor Titular pela
Faculdade de Educação da USP, onde trabalha desde 1980, atuando agora na condição
de Professor Sênior. Nesta instituição, Vitor Paro tem se dedicado, há mais de
quarenta anos, à pesquisa, à docência e à orientação de estudantes em nível de pós-
graduação. Cabe destacar que, à semelhança do mestre, muitos de seus discípulos são
hoje referências acadêmicas e profissionais no âmbito do debate pedagógico nacional.
Vitor Paro é coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração Escolar
(GEPAE), onde desenvolve um conjunto importante de investigações voltadas para
políticas educacionais e administração de unidades educativas. Seus livros – dentre
eles Administração escolar: introdução crítica, Gestão democrática da escola pública, Por
dentro da escola pública, Reprovação escolar: renúncia à educação, Educação como exercício
do poder, Crítica à estrutura da escola, Diretor escolar: educador ou gerente?, Professor:
artesão ou operário? e O capital para educadores – revelam uma produção coesa e focada
em um objeto de pesquisa tão amplo quanto bem delimitado.

9
Vitor Paro: política, pedagogia e vontade democrática Carlota Boto

Nascido em Colina, um pequeno município do interior paulista, viveu no campo


até seus dezenove anos. Quando se transferiu para a cidade de São Paulo, foi auxiliar
de escritório, bancário e vendedor, antes de se tornar educador. Após a conclusão de
seu curso de Pedagogia, trabalhou por muitos anos na Fundação Carlos Chagas e foi
também, por quinze anos, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Preocupado com a dimensão do que poderíamos qualificar por profissionalização do
diretor de escola, Vitor Henrique Paro critica duas facetas do mesmo fenômeno: os
padrões mercantis de gestão que, tantas vezes, surgem como modismo na literatura
pedagógica e o amadorismo de práticas, frequentemente ancoradas exclusivamente na
experiência passada e no senso comum. Vitor Paro, no conjunto de sua obra, propõe
uma direção colegiada da escola, capaz de dialogar com uma distribuição democrática de
poder, o que implicaria um redimensionamento do currículo e do trabalho pedagógico.
Seus livros enfatizam a autonomia do educando para o aprendizado, mas destacam, ao
mesmo tempo, o empenho do professor em contribuir para despertar nesse aluno a
vontade de aprender. Especialista no estudo das obras de Marx, pode-se dizer que foi
Vitor Paro quem, pela primeira vez, trouxe para os bancos universitários da FEUSP
a leitura d’ O Capital. Focado na relação entre a tríade pedagógica (professor aluno e
conhecimento), a política e a democracia, seus trabalhos demonstram como o processo
educativo pode cristalizar ou romper com relações de poder previamente estipuladas,
dependendo da maneira pela qual ele for direcionado. Considerado provavelmente o
principal autor brasileiro que aborda a gestão democrática da escola, Vitor Paro, em
seus trabalhos, entrelaça a dimensão teórica, calcada do domínio pleno das ciências da
educação, e a perspectiva prática, derivada da escuta acurada do que se convencionou
chamar de “chão da escola”. Para o autor, no processo pedagógico, mais do que construção,
haveria uma apropriação do conhecimento, apropriação esta que é construída. Seria,
portanto,

“(...) um processo de construção da apropriação da cultura (que carrega


em seu bojo o conhecimento). Este conhecimento pode ser acumulado
historicamente, pelas mais variadas formas de registro, como livros, filmes,
computadores, obras de arte, e tantas outras maneiras de perpetuar sua
existência, nunca se esquecendo de uma forma muito especial de registro,

10
Vitor Paro: política, pedagogia e vontade democrática Carlota Boto

que é a mente humana. Mas há uma segunda forma de se entender a


palavra “conhecimento”. É concebê-la como “ato de conhecer”, ou “ato de
tomar conhecimento” de algo. Dessa perspectiva, sim, parece inteiramente
correto falar no “processo de construção do conhecimento”. Aqui, como
antes, estamos falando num processo de aprendizagem que é construído.
Porque, aqui, falar em construção do conhecimento não significa que se está
produzindo conhecimento novo, mas que se está construindo o processo de
apropriação desse “conhecimento produzido e acumulado”, por meio do ato
de conhecer.” (PARO, 2018, p.58-9)

Em sua trajetória, marcada pela integridade, pela coerência e pelo compromisso


público, Vitor Henrique Paro torna-se um exemplo de profissional e de acadêmico,
produzindo, a um só tempo, conhecimento novo e cuidando de transmiti-lo
meticulosamente às gerações jovens, que acorrem aos seus ensinamentos políticos e
pedagógicos. Pela riqueza de sua história de vida profissional e acadêmica, vem em boa
hora a concessão por esta Casa do título de Professor Emérito para Vitor Paro.

Referências:

PARO, Vitor Henrique. Professor: artesão ou operário? São Paulo: Cortez, 2018.

São Paulo, 18 de abril de 2023

Carlota Boto
Diretora da FEUSP

11
Homenagem a Vitor Henrique Paro

Rogério de Almeida

Paulo Freire afirma que a leitura do mundo precede a leitura da palavra,


mas diz também que a leitura da palavra deve agir dinamicamente no mundo. Essa
compreensão do ato de ler, que é também uma lição de como os livros transformam a
realidade ao mudar as pessoas, aplica-se bem à trajetória intelectual do Professor, agora
Emérito, Vitor Henrique Paro, que se dedicou exemplarmente à docência, à pesquisa e
à extensão, tendo escrito numerosos artigos e livros, sobretudo livros.
Seus textos, sempre muito bem urdidos, almejam transformar a realidade por
meio das pessoas – leitores, alunos, professores e gestores, formados e em formação
– e efetivamente tem contribuído para essa transformação há mais de quarenta anos,
desde quando originalmente lançou pela Editora Cultrix Escola e formação profissional:
um estudo sobre o sistema regular de ensino e a formação de recursos humanos no Brasil.
Este é o primeiro de uma sucessão de livros que traçam um caminho, sem desvios, em
defesa da escola pública de qualidade, da gestão democrática da educação, das políticas
educacionais, da economia e, sobretudo, da ética, sem a qual não se pode, efetivamente,
mudar, nem as pessoas, nem o mundo.
Seus estudos nos inserem no universo da escola, comunidade que, para funcionar
adequadamente, deve contar com a participação de todos seus segmentos na definição
das políticas educacionais. É essa a condição para uma gestão democrática, o que

12
homenagem a Vitor Henrique Paro Rogério de Almeida

impacta diretamente na qualidade da educação. Esses fundamentos estão diretamente


relacionados à leitura esmiuçada e criteriosa que faz d’O Capital, de Karl Marx, que
é parte constitutiva de sua visão de mundo, além de objeto de pesquisa, meditação e
trabalho, como se observa em sua mais recente publicação: O capital para educadores ou
aprender e ensinar com gosto a teoria científica do valor, pela Editora Expressão Popular.
Nesta obra – a primeira híbrida, composta de textos e videoaulas –, Vitor
Paro lança mão de uma escrita envolvente, objetiva e muito precisa para explicar
didaticamente os conceitos fulcrais da teoria científica do valor, como rigorosamente
concebida por Marx. E, mais do que isso, desfaz por meio da fórmula NEBA – iniciais
para: não é bem assim! –, expressão que desenvolveu junto a seus alunos, uma série de
interpretações equivocadas, por erro ou má-fé, dos fundamentos econômicos pensados
pelo filósofo alemão, fornecendo a base necessária para que seus leitores – principalmente
os educadores – compreendam o modus operandi capitalista, seus efeitos sobre as pessoas
e a sociedade. É uma semente que Vitor lança, no auge de sua sabedoria, para as novas
gerações, esperançoso de que uma nova ética, mais humana, se construirá.
É difícil dizer qual sua obra mais importante, já que todas contribuem
para iluminar as discussões sobre administração escolar, políticas educacionais,
gestão democrática, formação de sujeitos críticos, combate às desigualdades sociais,
planejamento e avaliação escolar, trabalho e prática social, escola e democracia etc. Se
nos ativermos somente aos clássicos, teremos que, forçosamente, citar Administração
escolar: introdução crítica, publicada pela Cortez e já na décima sétima edição, sem contar
as reimpressões; Gestão democrática da escola pública; Gestão escolar, democracia e qualidade
do ensino e, a minha preferida, Por dentro da escola pública.
Aliás, esse livro – e faço aqui uma breve digressão sobre minha trajetória pessoal
– foi fundamental no concurso de ingresso como professor da FEUSP, tendo servido de
base, entre outros, para discussão do ponto sorteado: “Unidade Escolar: gestão e projeto
pedagógico”. O título desta obra de Paro é, a meu ver, muito claro e preciso, pois o
livro surge de entrevistas com professores, alunos, pais e gestores de escolas públicas
de diferentes regiões do país, ou seja, trata efetivamente da escola, numa perspectiva
empírica – vista por dentro –, para então analisar criticamente o sistema educacional
brasileiro e propor políticas públicas que valorizem a gestão democrática, levando em
conta as reais necessidades da comunidade escolar.
13
homenagem a Vitor Henrique Paro Rogério de Almeida

O segundo encontro, este pessoal, se deu mais recentemente, por conta das
minhas atribuições de chefe de departamento. Tive, então, o prazer de conviver, não
mais com as obras, mas com seu autor, que em nada ficou devendo a elas. Vitor é dono
de uma visão crítica muito lúcida e bem fundamentada, raciocina rápido e argumenta
com talento e desenvoltura, está sempre com um livro nas mãos e é apaixonado por eles,
a tal ponto que não hesita em comprar uma boa briga com os editores se for para fazer
um livro mais bonito e gostoso de ler. Metódico e organizado, cumpre suas tarefas bem
antes dos prazos. Ao menos, foi essa minha experiência com ele durante o processo de
edição deste livro que, publicado pelo Portal de Livros Abertos da USP, o homenageia.
Em 2020, tive o privilégio de brindar a inesquecível e saudosa Professora
Lisete Arelaro contribuindo na organização do livro que a saudou na cerimônia de
entrega do título de Professora Emérita (https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/
portaldelivrosUSP/catalog/book/622). Agora, com esta coletânea de textos de Vitor
Henrique Paro – Gestão, política, economia e ética na educação –, renovo minha alegria de
contribuir para a circulação de suas ideias, pensamentos, estudos e palavras. É o seu
vigésimo livro, o primeiro inteiramente em formato digital, uma antologia de onze
textos publicados a partir de 1994 e dispersos em periódicos acadêmicos, coletânea de
capítulos, eventos acadêmicos e jornais de grande circulação. Tenho certeza de que será
mais uma obra de referência para muitas educadoras e educadores, perpetuando o júbilo
que Vitor Paro concede ao Departamento de Administração Escolar e Economia da
Educação, à Faculdade de Educação e à Universidade de São Paulo.

Rogério de Almeida

Prof. Titular e Chefe do EDA


Faculdade de Educação da USP

14
Um homem das ciências da educação

Daniel Cara

Não há outra forma de começar essa homenagem sem dizer o que é


imprescindível: para quem se dedica à consagração do direito à educação, exerce o
magistério e pesquisa as Ciências da Educação, é um dever homenagear Vitor Henrique
Paro.
Vitor Henrique Paro é um dos autores mais lidos e citados na Educação
Brasileira. Autor de uma vasta obra – com mais de uma centena de trabalhos publicados
entre livros, artigos científicos, textos em jornais de grande circulação, capítulos de
livros e relatórios de pesquisa –, sua melhor característica é o poder de síntese, a
perspicácia argumentativa, o rigor científico e, principalmente, a impressionante
capacidade didática. Como resultado, Paro tem uma característica raríssima entre os
grandes autores: consegue tornar compreensível o que é complexo e, ao fazer isso,
demole tradições e – consequentemente – faz a Ciência prosperar.
Provavelmente, por ser seu primeiro clássico, “Administração escolar:
introdução crítica”, é o melhor exemplo do pensamento de Vitor Henrique Paro, um
verdadeiro escultor de livros. Nessa obra, lapidada em 17 edições, sendo que cada uma
delas conta com cuidadosas atualizações e novas notas explicativas, Vitor Henrique
Paro demonstrou cientificamente o erro de administrar escolas sob a lógica empresarial,
estabelecendo uma revolução copérnica na gestão escolar brasileira.

15
um homem das ciências da educação Daniel Cara

Grosso modo, vale resumir o percurso, pois a elaboração argumentativa é tão


simples quanto poderosa, mas também é ilustrativa.
Em primeiro lugar, Vitor Henrique Paro assume o conceito clássico da
administração: administrar é a utilizar racionalmente os recursos para o atingimento
de determinados fins. Em seguida, nosso homenageado reitera um fato incontestável: a
finalidade da educação é a formação integral de mulheres e homens.
Considerando as duas sentenças como válidas, porque são sob qualquer aspecto
– especialmente científicos –, resta afirmar agora qual é a racionalidade imperativa da
administração escolar; ou seja, aquela que deve reger a “utilização racional dos recursos”
para o alcance dos fins educativos.
Logicamente, é fácil compreender que a formação integral de mulheres e
homens difere da produção empresarial, afinal de contas, pessoas não são produtos.
Portanto, a razão mercantil é equivocada. No entanto, o problema não reside apenas
em uma inadequação, além disso a racionalidade empresarial inviabiliza e afronta a
própria finalidade da educação, pois não apenas se difere dela como também diverge da
formação de sujeitos.
Nesse momento, e durante toda sua obra, Vitor Henrique Paro defende a razão
pedagógica contra a razão mercantil, cujo aliado principal e danoso ao direito à educação
é o tradicionalismo pedagógico. Assim, Paro presta um valioso serviço contra a razão
neoliberal, alcançando aspectos complementares e mais profundos do que outros
grandes autores, como Christian Laval e Pierre Dardot – para citar apenas dois.
Mesmo sob uma exposição rápida, é evidente a força do argumento. E ainda que
a razão pedagógica não seja a condutora das políticas educacionais no país, pois como
ensinou Darcy Ribeiro “a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”
– em que pese os esforços de grandes educadores como Anísio Teixeira, Florestan
Fernandes, Paulo Freire, José Mario Pires Azanha, Celso de Rui Beisiegel, Lisete
Regina Gomes Arelaro, Maria Victória de Mesquita Benevides, Maria Helena de Souza
Patto, Marília Pontes Sposito, Carlota Boto e o próprio Vitor Henrique Paro, entre
tantas e tantos outros – mais cedo ou mais tarde as vitórias científicas se materializam
– como, inclusive, demonstrou a própria experiência de Nicolau Copérnico, citado
anteriormente.

16
um homem das ciências da educação Daniel Cara

Um exemplo prático do poder conceitual de Vitor Henrique Paro me foi dado


quando – emparedado em uma armadilha política – utilizei a obra dele como referência
para contrapor, em audiência pública na Câmara dos Deputados, os defensores do
projeto de lei 7180/2014, elaborado pelo movimento “Escola sem Partido”. Foi um
divisor de águas na tramitação da matéria.
Era 7 de março de 2017, a sala estava tomada por apoiadores do movimento.
Então coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, aluno do
programa de pós-graduação desta Casa (Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo) e opositor do PL como qualquer cidadão e cientista tem o dever de ser,
estava isolado em uma mesa composta por um delegado, um advogado e um prefeito
favoráveis à matéria. Ao todo, entre todos os presentes do plenário 4 da Câmara dos
Deputados, contava apenas com o apoio de dois parlamentares: Glauber Braga e João
Carlos Bacelar.
Diante desse cenário, abdiquei da apresentação que tinha preparado, e organizei
em uma pequena folha de papel sulfite os principais argumentos do meu orientador. A
estratégia foi simples, lembrando das conversas de orientação com o Vitor, defendi que
o debate sobre o PL partisse de uma questão prática: todos deveriam estar na mesma
página sobre o que é Educação. Na sequência, apresentei a síntese do conceito de
Educação formulado por Vitor Henrique Paro. Para ele, Educação é “a apropriação da
cultura. Esta entendida também de forma ampla, envolve conhecimentos, informações,
valores, crenças, ciência, arte, tecnologia, direito, costumes, tudo enfim que o homem
produz em sua transcendência da natureza”. Em seguida, obtida a concordância dos
presentes – pois o conceito é tão simples quanto incontestável – demonstrei que impor
limites à liberdade de cátedra das educadoras e dos educadores é tão inconstitucional –
algo que os parlamentares não se preocupavam na época – quanto contraproducente
em termos pedagógicos, o que chamou a atenção das famílias presentes – afinal de
contas, ninguém quer ter a educação do seu filho prejudicada. Portanto, ao inviabilizar
a “apropriação de cultura”, e limitar o aprendizado dos filhos “à cultura dos pais”, o
“Escola sem Partido” determina uma “Escola sem Educação”, pois se trata de uma escola
empobrecida em termos científicos.
Fizemos o PL morrer na Câmara dos Deputados em novembro de 2018, mesmo
após a vitória presidencial de Jair Messias Bolsonaro – apoiador do projeto – e frente a

17
um homem das ciências da educação Daniel Cara

uma Comissão Especial amplamente favorável à matéria, presidida na época pelo então
deputado, e hoje Senador, Marcos Rogério.
Basicamente, o segredo foi elevar o debate, e devemos isso ao trabalho do nosso
homenageado. Obviamente, não abdicamos de mobilização social, pressão sobre as
autoridades, uso estratégico do regimento interno das Casas Legislativas, mas até hoje o
conceito de educação de Vitor Henrique Paro circula – nem sempre sendo corretamente
citado – em todos os processos que resultaram em derrotas para o “Escola sem Partido”,
especialmente no Supremo Tribunal Federal, em uma demonstração clara de boa
utilização da Ciência contra o obscurantismo.
Pessoalmente, conheci Vitor Henrique Paro em 05 de junho de 2014, era uma
quinta-feira fria em São Paulo. Dias antes, em 03 de junho, tinha liderado a incidência
da sociedade civil na aprovação terminativa do Plano Nacional de Educação 2014-
2024 na Câmara dos Deputados. Por isso, estava confiante. A ocasião do encontro era
peculiar: a entrevista do processo seletivo para o curso de Doutorado no programa de
pós-graduação desta Casa. Os examinadores titulares eram Lisete Arelaro, Romualdo
Portela de Oliveira, e Sandra Maria Zakia Lian Sousa. Como indiquei Vitor Paro como
minha primeira opção para orientação – por sugestão de Iracema Santos do Nascimento
–, ele fez questão de me entrevistar – ou sabatinar, como ele avisou antes de o tempo
começar a contar.
Tudo transcorria tranquilamente, até chegar a vez de ele me arguir. Foi uma
afirmação, seguida de duas perguntas. Lembro tudo de cor:
– Você escreveu corretamente o projeto, está claro, mas cheio de erros de
padronização. Precisa aprender a utilizar a ABNT, ela é ruim, mas precisa usar.
Agora, duas perguntas. Primeiro: por que você quer fazer Doutorado? Segundo e mais
importante, li tudo o que você escreveu e pesquisei sobre você, seu projeto está claro,
como eu disse. Mas percebi um problema: você entende muito de política de educação,
mas não entende nada de Pedagogia. Você vai sentar a sua bunda na cadeira, enfiar o
queixo no peito e estudar? Só isso que eu quero saber.
Lisete riu copiosamente, Sandra ficou preocupada e Romualdo apenas disse
“Daniel, o Vitor é o nosso Serginho Chulapa, responda ele”, em referência ao intrépido
centroavante são-paulino da década de 1980.

18
um homem das ciências da educação Daniel Cara

Hoje estou aqui e tenho certeza que não teria perseverado na academia se não
fosse essa entrevista. Vitor tinha razão: eu era um estranho à área. Já tinha trabalhado
em escolas públicas nas regiões Sul, Leste e Norte de São Paulo, já tinha uma atuação
nacional e internacional reconhecida na área, mas não era um estudioso das Ciências da
Educação, em especial da Pedagogia. Esse depoimento é para dizer que Vitor foi essencial
na minha formação, como é para todas suas orientandas e todos seus orientandos. Como
diz nosso colega Petter Maahs da Silva, o último orientando de Paro, Vitor orienta como
um pai italiano: é exigente com os filhos, mas jamais deixa eles desamparados.
Dito tudo isso, chegou a hora de dizer que ninguém se torna professor emérito
apenas por ser um excelente pesquisador. Para alcançar a honra de professor emérito
é preciso tocar e mobilizar as pessoas, desafiá-las e ampará-las, além de dar uma
contribuição única ao mundo. E Vitor Henrique Paro realiza tudo isso com primazia.
Mais uma prova da envergadura do Vitor, em um pequeno detalhe de prática
pedagógica: todo semestre digo para meus alunos e para minhas alunas que precisei
chegar ao Doutorado, com quase 40 anos na época, para ser examinado e descobrir
a função pedagógica de uma das mais antigas formas de avaliação: a prova escrita. E
tudo isso ocorreu quando fui aluno em uma disciplina que cursei, ministrada pelo nosso
homenageado, no âmbito do nosso programa de pós-graduação – quando além de
estudante era também orientando.
Outro caso: tive aulas de graduação e pós-graduação na aqui na Universidade de
São Paulo em que estudei “O Capital” com grandes professores. Contudo, nem os grandes
Paul Singer e Francisco de Oliveira – dois gigantes – conseguiram ser tão didáticos
quanto Vitor, dirimindo minhas dúvidas mais persistentes. E há aqui uma vantagem:
o penúltimo livro publicado pelo nosso homenageado, “O Capital para educadores:
para aprender e ensinar com gosto a teoria científica do valor” reúne tudo o que ele
acumulou em toda sua trajetória de pesquisa e ensino sobre a obra de Karl Marx, com o
ineditismo de publicar o primeiro livro híbrido, complementado por vídeos explicativos
disponíveis na Internet.
Por ser o propositor no âmbito do Departamento de Administração Escolar e
Economia da Educação dessa homenagem, junto com meus colegas Prof. Dr. Rubens
Barbosa de Camargo e Profa. Dra. Iracema Santos do Nascimento, orientandos do Vitor
como eu e coautores desta iniciativa e com o apoio dos chefes Profa. Dra. Carmen Sylvia

19
um homem das ciências da educação Daniel Cara

Vidigal Moraes e do Prof. Dr. Rogério de Almeida, além da diretora desta Faculdade
de Educação, a Profa. Dra. Carlota Boto, tenho pensado muito na trajetória do nosso
homenageado.
Para além da excelência acadêmica – e como explicação dela –, não tenho dúvida
que a infância e adolescência em Colina, as dores as delícias das experiências na escola, o
contato precoce com a obra do Millôr Fernandes, a capacidade comunicativa desenvolvida
na época em que foi vendedor da Cerâmica Weiss, a vivência no movimento estudantil
e na representação discente quando era aluno de graduação nesta Casa, o Doutorado na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (sob orientação de Demerval Saviani),
o trabalho na Fundação Carlos Chagas, as reuniões do Grupo de Estudo e Pesquisas
em Administração Escolar (Gepae), a prática docente na PUC-SP e nesta FEUSP e –
certamente – a vida em família com sua companheira Thaís Cossoy Paro, as filhas Laura
e Iana, e as netas Helena e Thereza deram a sustentação para esse laureamento, do
qual tive a honra de ser propositor junto ao meu departamento e parecerista junto à
Congregação desta Faculdade de Educação.
E se tivesse que sintetizar em uma frase a trajetória acadêmica e a própria ética
do nosso homenageado, tomaria emprestado o lema da nossa Universidade São Paulo:
“Scientia vinces”, “Vencerás pela Ciência”.
Vencer pela Ciência é a obsessão do meu grande amigo, eterno orientador e
agora Professor Emérito da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo: Vitor
Henrique Paro.
Viva Vitor Henrique Paro!

Prof. Dr. Daniel Cara (EDA/FEUSP)


Propositor da Homenagem

20
Homenagem ao Mestre Vitor Henrique Paro

Rubens Barbosa de Camargo

Saúdo o Professor Vitor Paro, os colegas do EDA e dos outros departamentos,


bem como todos os funcionários técnico-administrativos e os alunos da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo (Feusp), lembrando também das autoridades e
de amigos e familiares que sempre estiveram presentes na jornada acadêmico-científica
e engajada de um intelectual tão singular como o nosso homenageado!
Em primeiro lugar, sinto-me muito honrado pelo convite da Comissão
Organizadora pela Homenagem de Outorga de Título de Professor Emérito ao Prof.
Vitor Henrique Paro que tantos anos trabalhou nessa nossa casa e que em seus anos de
convivência nos encheu de respeito, admiração e de contribuições inéditas, profundas
e profícuas à temática da gestão das escolas (seu grande tema) e às leituras críticas da
relação entre a educação e a economia política de modo geral.
Em segundo lugar, peço desculpas pelo tom pessoal, próximo e irreverente que
irei abordar ao final nesta homenagem, pois como ex-orientando, que nunca perdeu
a admiração pessoal e intelectual, deixarei a outros uma abordagem mais acadêmica.
Gostaria de ressaltar algumas particularidades de suas qualidades. Por isso, é
preciso reconhecer, quase de forma redundante, que o Vitor (assim o reverenciarei
daqui por diante) é um grande educador (de alunos, de pesquisadores, de ouvintes
– presenciais e à distância – de expectadores, de docentes, de filhas, netas...) e que isso
não é muita novidade. Quem convive minimamente com ele, sabe que sempre tem
21
homenagem ao mestre Vitor Henrique Paro Rubens Barbosa de Camargo

uma observação inteligente, um exemplo prático, uma análise teórica relevante a ser
apresentada em conversas, exposições e comentários de forma séria e contundente.
Sua experiência de vida, aliada a um comportamento de pesquisador rigoroso
tanto no estudo e no tratamento teórico como empírico das questões educacionais,
econômicas, religiosas, de pesquisas neurológicas que lhe permitem apresentar uma
visão ampla sobre inúmeros assuntos com uma percepção aguda, crítica e relevante.
Em função disso, tornou-se um “publicador e divulgador contumaz” de todos
resultados que encontrou em estudos e pesquisas de sua profícua produção acadêmica,
redundando em quase 20 títulos de livros (não contadas suas muitas reedições, o que
mais que dobraria este registro), dezenas de capítulos de livros e artigos acadêmico-
científicos e várias centenas de palestras, conferências, cursos, participante em mesas
redondas, seminários, colóquios, encontros etc.
Seu exemplo de dedicação séria à pesquisa e como intelectual engajado
nas questões da gestão educacional e nas políticas educacionais propiciou enorme
contribuição como orientador de pós-graduação (de discípulos, como gosta de dizer)
de Iniciação Científica (mais de 30), de Assistentes de Pesquisa atuando na graduação
dos Cursos de Pedagogia na PUC/SP, na Fundação Carlos Chagas (FCC) e na Feusp,
bem como Mestrados (17) e Doutorados (25) na PUC/SP e na Feusp, formando
quadros de pesquisadores sempre dedicados à discussão aprofundada e em defesa da
escola pública. Nesta condição também participou de centenas de bancas de avaliação
de mestrado, de doutorado (seja na qualificação ou na defesa) e de diferentes processos
de processos seletivos em concursos de ingressos em cargos públicos e em cursos de
mestrado e doutorado, de titulação, além de contribuir com a expedição de centenas de
pareceres sobre projetos de pesquisa e de bolsas para agências de fomento (em especial,
CNPq e Fapesp) e de Comissões Editoriais com a avaliação de artigos para publicações
especializadas, capítulos e livros para editoras da área de educação.
De suas muitas publicações, sem pretender desmerecer nenhuma delas e com
brevíssimas observações, destaco a Crítica da estrutura da escola (Cortez, 2011) onde
apresenta a estrutura escolar bem como mecanismos institucionais em diversos aspectos
que resultam (ou não) no aluno “querer aprender” ao fim e ao cabo, função principal da
escola; a obra Eleição de diretores: a escola pública experimenta a democracia (Papirus,1996)
em que apresenta os fundamentos da eleição de dirigentes diante das demais formas de

22
homenagem ao mestre Vitor Henrique Paro Rubens Barbosa de Camargo

provimento do cargo, bem como as resistências e as decorrências para a gestão escolar


desse processo; no texto Reprovação escolar: renúncia à educação (Cortez, 2021) em
que discute a ineficácia, a nulidade e a falta de conhecimento educacional envolvido
na reprovação escolar como “mecanismo didático-pedagógico” de nossas escolas; em
a Qualidade do ensino: a contribuição dos pais (Editora Xamã, 2000) apresenta, com base
em pesquisa empírica, o valor da participação dos pais, mães e responsáveis no processo
educacional de seus filhos; tenho um xodó pela Por dentro da Escola Pública (Xamã,
1995) que é a publicação de sua tese de Livre docência, e representa uma verdadeira aula
de pesquisa de campo sobre a temática da participação na escola, em especial na forma
de estudo qualitativo de cunho etnográfico; e por fim, o trabalho que muito ajudou em
minha pesquisa sobre custos escolares, Estudo comparativo de custo-aluno nos diversos
graus e modalidades de ensino (ATPCE/SE: Fundação Carlos Chagas, 1981) e que foi
um dos primeiros estudos sobre o assunto no país, e que dele decorreram muitas outras
publicações e estudos.
Mas, destaco principalmente a obra seminal Administração Escolar:
introdução crítica, publicação de sua tese de doutorado na PUC/SP, em que apresenta
elementos da administração escolar diferenciando-a da administração empresarial,
articulou os principais conceitos de Marx (de O Capital) e de Gramsci, que resultaram
numa proposição e síntese inédita do conceito acadêmico educacional e político de
gestão democrática num livro que se tornou ícone na área educacional, sendo muito
utilizado para a discussão nos movimentos de educação e na consolidação desse
princípio constitucional da educação nacional (VI do Art. 206 da CF/88), na formação
inicial e continuada de educadores de todo o país e que até hoje (2023) é utilizada em
concursos públicos na área de gestão educacional.
Creio que uma de suas criações e de coordenação mais longeva foi a constituição
do Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração Escolar – GEPAE, em 1993, que
começou com um processo de leitura e discussão de textos comuns a vários orientandos,
bem como de suas produções. No entanto avançou para a leitura e discussão com muitos
outros participantes com origem em palestras, encontros e outras formas de contato
do Vitor de ao menos 10 obras de referência a cada ano (sugeridas por todos e que
somadas chegam a mais de 2500 páginas), nas áreas de: educação, economia, política,
sociologia, filosofia, neurocientífica, ateísmo e religiosidade entre outros temas (que nos
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homenagem ao mestre Vitor Henrique Paro Rubens Barbosa de Camargo

últimos anos introduziu um romance para “aquecer” o início dos trabalhos do Gepae) e
algumas das últimas produções de seus orientandos que enriquece a todos com debates
acalorados, profundos, com forte argumentação e muita riqueza de visões diferentes.
Aliás, creio que muitos gostariam de expressar aqui toda a gratidão e reconhecimento
ao Vitor pela oportunidade de ter participado ou estar participando do Gepae.
Mas o que é também delicioso, agradável, prazeroso e afetuoso na relação pessoal
com o Vitor Paro?
De início, destaco seu humor ferino e suas expressões peculiares como
os célebres troca letras “não confundir ´Pires de Oliveira` com ´pratinho de
azeitona`” ou o famoso “Pé em Deus e Fé na Tábua” (mas que bem poderia ser Taba,
aliás, sempre pensei que fosse) reiterando de forma divertida e direta de sua crença
na ação dos homens em processo civilizatório, significando “tocando em frente” e seu
repúdio a visões que têm no “além” sua explicação e razão de vida... Além de muitas
dessas, criou expressões inéditas e precisas para utilização em sala de aula e até em
publicações (que aliás em seu último livro O Capital para educadores: aprender e ensinar
com gosto a teoria científica do valor onde ela virou o “mote” de apresentação e discussão
de importantes conceitos marxistas de O CAPITAL), como o “NEBA – Não é Bem
Assim” (devo admitir que passei também a utilizá-la, com enorme sucesso, em minhas
aulas e orientações) ...
Mas devo contar que, para mim, são impagáveis os momentos de “conversas
soltas” após eventos acadêmicos ou reuniões de estudos acompanhados com uma
cachacinha, uma caipirinha (sem açúcar, para ele) e uma cervejinha gelada, com que
brindamos os papos, em geral acompanhadas com um bom churrasco (ao menos ao
final do ano antes da pandemia) ou as diferentes comidas de boteco que nos animam
ainda mais para lhe ouvir, ao mesmo tempo que rimos e falamos...
Tal como o grande contador de “causos” Rolandro Boldrin (o eterno Sr. Brasil),
os “causos” contados por ele de sua infância no sítio em Colina/SP e seus respectivos
“personagens” familiares ou não: o pai, a mãe os irmãos, as professoras e professores
do primário e do ginásio, o padre local (e as confissões e piadas subsequentes) entre
muitos outros, nos permitem “entrar na história” e participar delas tal o detalhamento
das situações, os finais inesperados e a condução envolvente dos contextos e desenlaces.

24
homenagem ao mestre Vitor Henrique Paro Rubens Barbosa de Camargo

Outra “fase” que costuma também acrescentar aos seus causos (de vez em quando)
foi sua “chegada” a São Paulo, onde veio fazer o (atual) Ensino Médio, com a moradia em
casa de familiares, os quartos em pensões, os primeiros apartamentos, as festas, os amigos
e amigas que conviveu, detalhando suas personalidades físicas, suas características, suas
idiossincrasias e as diferentes situações. Algumas das histórias remontam seu trabalho
como auxiliar de escritório e de vendedor (depois gerente de vendas) de cerâmicas (ele
que diz que foi ali que “aprendeu” concretamente o conteúdo do Capital de Karl Marx).
Suas histórias também sobre o tempo em que trabalhava em diferentes lugares
e os “atores” (creio que ele detesta essa formulação!) que passaram a fazer parte de sua
trajetória acadêmica “ganham vida” ao se referir ao Curso de Pedagogia na USP onde
fez o curso superior. A descrição de seus professores, professoras, amigos e amigas,
onde quase todos entram com traços próprios e passagens intensas nos faz sentir em
“sala de aula”, ou em outros momentos mais “conturbados” como no caso em que esteve
sob cuidados por longos meses de amigas e amigos impossibilitado que estava após
acidente automobilístico. Em conversas sobre seus percursos acadêmicos e de pesquisas
educacionais Vitor destaca a importância de alguns de seus formadores na Feusp e
na PUC de São Paulo em seu período de doutorado, por exemplo José Augusto Dias,
Demerval Saviani, Celso de Rui Beisiegel, Bernardete Gatti entre muitos outros. Além
de uma geração de colegas de doutorado na PUC (que se tornaram referências nacionais
posteriormente de diferentes matizes políticos) com os quais estabeleceu leituras
e discussões teóricas e práticas sobre diferentes aspectos das políticas educacionais
vigentes à época.
Nos “causos” sobre a Feusp, há sempre a lembrança de sua presença marcada
desde o curso de Pedagogia (onde também foi representante discente na Congregação)
mas há o tratamento severo contra as injustiças que ocorreram (na “repartição” como
alguns a tratam), bem como há o reconhecimento de inúmeras contribuições pessoais
e institucionais em diferentes momentos, lugares e pessoas. Cito a presença e o
reconhecimento da Lisete (a quem é dedicado seu último livro, lançado recentemente)
em nome de todos aqueles para com os quais Vitor tem grande apreço.
Enfim, foram vários anos de convivência com Vitor Paro. Desde 1991, quando
o conheci e conversei pela primeira vez por meio da indicação de minha querida amiga
Theresa Adrião (hoje também professora aposentada da Unicamp) para começar a fazer

25
homenagem ao mestre Vitor Henrique Paro Rubens Barbosa de Camargo

o doutorado no ano seguinte na Feusp. Ele não reconhece, mas “fiz” duas disciplinas
com ele, sem matrícula, pois ele detestava atrasos às suas aulas e eu estava dando aulas
e iniciando a carreira acadêmica na Universidade Federal de São Carlos em 1993. Fui
seu orientando até outubro de 1997, quando defendi minha tese, recebendo muitas
broncas, elogios, atendimentos e “afetuosos amplexos” com a sua característica
“Serginho Chulapa”, como são paulino roxo que é (ninguém é perfeito...). Ao final de
1998 prestei o concurso para ingresso no EDA da Feusp, no qual fui aprovado e iniciei
o trabalho. Convivemos no mesmo departamento até 2003 quando ele se aposentou e
ainda continuamos vinculados ao Programa de Pós-graduação em Educação da Feusp
até hoje (2023). De lá para cá a minha admiração e estima só cresceram.
Para finalizar, Vitor, espero que continue sendo esta pessoa autêntica, confiante,
amiga, engajada, preocupada com o Brasil e o mundo, como sempre te conheci.
Muito obrigado pelo prazer de sua existência e convivência, ao menos uma vez
por mês no admirável grupo do Gepae!
Salve o mais novo Professor Emérito da Faculdade de Educação da USP!!!
Com toda a justiça e todo reconhecimento por tudo que contribuiu para
a educação!!!
Estamos juntos!
Pé em Deus e Fé na Tábua!

Livre Docente Sênior Rubens Barbosa de Camargo – FEUSP


rubensbc@usp.br

Maio de 2023

26
Para o meu Emérito Predileto

Iracema Santos do Nascimento

Nosso trabalho não é o de simplesmente partilhar


informação, mas sim o de participar do crescimento
intelectual e espiritual dos nossos alunos.
bell hooks

A palavra “emérito”, de acordo com o dicionário Aurélio, advém do latim


“Emeritu” e significa “jubilado”, no sentido de cheio de júbilo, e “muito versado em uma
ciência ou arte”, sábio, insigne, ou seja, muito distinto, notável, célebre. De todas essas
adjetivações, penso que a que melhor descreve meu professor Vitor Paro é “muito
versado em uma ciência ou arte”. Em que ciência ou arte seria você, querido Vitor,
versado?
Do amplo espectro da docência no ensino superior na universidade pública, em
que muitas tarefas são exigidas de um professor, posso afirmar que você é versado na
arte de ensinar gente adulta a sair da caixinha do pensamento limitado. Um verdadeiro
mestre na arte de ensinar a pensar a Educação com rigor científico. Mesmo com
alguma impaciência diante de nossas perguntas por vezes abobadas, você nos ouvia
com atenção, percebendo o ponto exato de nosso desentendimento, e atacava ali,
cirurgicamente, senhor de uma didática impecável. Aliás, ao observar você, mestre, em

27
para o meu emérito predileto Iracema Santos do Nascimento

ação, podemos tentar imitá-lo de alguma maneira no afã de capturar um pouco dessa
didaticidade. Tome aí, professor, esse neologismo (e agradeça por eu não ter escrito
“tomaí”)...
Em uma das duas disciplinas de pós-graduação que fiz com você no curso de meu
doutorado, a temida “Economia Política da Educação (A Teoria do Valor em Marx e a
Educação)”, aprendi como se formula, aplica e corrige uma prova. Obviamente, isso não
era conteúdo específico da disciplina, mas veio de lambuja dentre os ensinamentos que
você nos ofertou. Foi lindo quando em fevereiro do ano seguinte, meses após a conclusão
da disciplina, a maioria de nós compareceu para a reunião de coavaliação. Você já havia
devolvido a correção, como também a oportunidade de refazermos a prova, já tinha
atribuído notas, mas mesmo assim nós fomos ao seu encontro, no melhor indicador de
que uma verdadeira relação mestre-discípulos havia se estabelecido. Queríamos estar
com você e aprender um bocado mais. Ali na sala, você entregou uma folha em branco
para cada um de nós e quatro perguntas, pedindo para que respondêssemos por escrito,
anonimamente, se desejássemos. Depois que todos entregamos as respostas, você as
leu atentamente e deu alguns retornos, demonstrando surpresa com alguns pontos que
levantamos, a maioria sobre você ser “muito bravo”... Algumas de nós manifestamos
oralmente nossos questionamentos, em um intenso e franco diálogo, do qual todos
saímos mais sabidos, como só acontece na educação verdadeiramente democrática.
Obrigada, professor!
Também posso afirmar que você é um exímio orientador. E tenho certeza de que
as e os 42 demais orientandos assim o atestam sem titubear. Nunca vou esquecer de seu
comparecimento à arguição no processo seletivo de ingresso ao doutorado, em 2012. Eu
o havia indicado como possível orientador. A culpa disso foi da minha / nossa querida
Bianca Cristina Correa. Ela havia sido sua orientanda e sugeriu que eu te indicasse.
Resolvi arriscar e deu certo. No dia da minha entrevista, inesperadamente para mim, lá
estava você. No corredor, ouvi sussurros temerosos de outros candidatos anunciando
que “o professor Vitor Paro estava na banca”. Um filete de suor frio correu na espinha
de cada um de nós, tenha certeza, acompanhado de “tamo ferrado” espiralando em
nossas cabeças. Você me fez umas tantas perguntas, entre elas se eu teria tempo para
me dedicar ao doutorado, se eu tinha ideia do que era “aquilo”, o tal doutorado, se eu
estava preparada para estudar muito, para jogar fora o que escreveria, para reescrever

28
para o meu emérito predileto Iracema Santos do Nascimento

do zero e perseverar. Também disse que era condição frequentar o Gepae, como se isso
fosse algum castigo. Tentei não ser monossilábica nem óbvia nas respostas e acho que
fui capaz de convencer você e a banca, pois fui aprovada. Depois eu soube que você
sabia que a maioria de nós mentia na entrevista, pois não tínhamos ideia do que nos
esperava...
Voltando à orientação, da primeira bronca a gente nunca esquece. A minha se
deveu ao fato de que eu demorei para entregar o texto de meu projeto de pesquisa à
leitura das e dos colegas de Gepae. Você me ligou para cobrar, eu respondi que supus
que poderia enviar numa data “x”. “Você não tem que supor nada, você tem de me ligar
para perguntar e para agendar reunião de orientação. Eu sou seu orientador, é minha
obrigação te orientar”.
Vitor, outro aspecto valiosíssimo de sua orientação é nos desafiar a pensar e a
pesquisar políticas e gestão educacional a partir da escola, sobretudo a escola pública.
Relacionar políticas e gestão no âmbito sistêmico com o que se faz na escola e contribuir
para que professoras e professores reconheçam essas relações era minha ambição
primeira quando decidi ingressar no doutorado. Ninguém melhor do que você, o sujeito
que escreveu o clássico Por dentro da escola pública, para me guiar nessa busca.
Professor, tenho imensa gratidão por sua leitura meticulosa de cada versão de
minha tese e pelas reuniões de orientação que eram verdadeiras aulas. Tenho duas
reclamações, entretanto. A primeira diz respeito à falta de intervalo no trabalho de
doutoramento. Lembro de ter lhe entregue uma encadernação com dois capítulos em
31/12/2015, na esperança de que só no final de janeiro voltaríamos a conversar e que eu
finalmente poderia aproveitar o verão e sintetizar alguma vitamina D depois de meses
de reclusão. Mas em três dias você me deu retorno e já agendamos nova reunião de
orientação naquela primeira semana do mês... “Ninguém aqui tá de férias, não, minha
filha. Doutorando não tem férias”. A segunda queixa é por seus garranchos ao longo de
meus textos. “É pra isso que a gente faz reunião, pra eu te explicar o que anotei aí”.
Queridíssimo Vitor, sou muito grata por não ter ingressado na primeira vez
em que prestei o processo seletivo do doutorado na FEUSP, em 2011, em outra área de
concentração. Fui chamada para a entrevista, mas naquele momento tive certeza de que
não seria aprovada. Os professores da banca examinadora não pareciam interessados
em meu projeto. Sou grata por essa reprovação, pois da segunda vez que tentei tive a
29
para o meu emérito predileto Iracema Santos do Nascimento

sorte de “cair” sob sua orientação. Meu destino acadêmico não poderia ter sido melhor.
Das circunstâncias que vão constituindo o caminhar de qualquer pessoa, em meu caso
sei que esse foi um presente. Ter sido sua orientanda foi um ponto de inflexão ímpar em
minha Vida. Sim, faço questão de dizer Vida, não apenas carreira acadêmica. Isso pela
oportunidade de estar perto de você, de aprender (sempre) com você e também pela
abertura e carinho com que trata todos nós, seus orientandos, nos levando para dentro
de sua casa, para perto de sua adorável família. Por isso quero aproveitar também para
estender meus agradecimentos às mulheres de sua vida, às queridíssimas Thais, Laura,
Iana, Helena e Tereza.
Por fim, e na circularidade que me faz retomar a epígrafe desta missiva, agradeço
por participar de meu crescimento intelectual e espiritual. Espiritual, aqui, nada tem de
metafísico (“graças a deus”, diria você, um ateu proselitista), mas do espírito que nos
irmana à medida que construímos de modo solidário a humanidade em todos e em cada
um de nós.
Receba meu abraço com imenso carinho e gratidão,

Iracema.
São Paulo, 24 de abril de 2023.

30
para o meu emérito predileto Iracema Santos do Nascimento

GESTÃO, POLÍTICA, ECONOMIA E ÉTICA NA


EDUCAÇÃO

31
Administração escolar e qualidade do ensino:
o que os pais ou responsáveis têm a ver com isso? 1

A questão da participação da população usuária na gestão da escola básica tem a


ver, em grande medida, com as iniciativas necessárias para a superação da atual situação
de precariedade do ensino público no País, em particular o fundamental. Diante da
insuficiência da ação do Estado no provimento de um ensino público em quantidade e
qualidade compatíveis com as necessidades da população, propugna-se pela iniciativa
desta no sentido de exigir os serviços a que tem direito. É a população usuária que
mantém o Estado com seus impostos e é precisamente a ela que a escola estatal deve
servir, procurando agir de acordo com seus interesses.
Por outro lado, cada vez mais se toma consciência de que o caminho para uma
sociedade verdadeiramente democrática não pode restringir-se ao voto nas eleições
periódicas para ocupantes de cargos parlamentares e executivos do Estado. Uma efetiva
democracia social (Bobbio, 1989) exige o permanente controle democrático do Estado,
de modo a levá-lo a agir sempre em benefício dos interesses dos cidadãos. Esse controle
precisa exercer-se em todas as instâncias, em especial naquelas mais próximas à
população, onde se concretizam os serviços que o Estado tem o dever de prestar, como
é o caso da escola pública. Daí a importância de que esta preveja, em sua estrutura, a

1 Trabalho apresentado no 18º Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educação, realizado


em Porto Alegre, de 24 a 28/11/1997.
32
administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro

instalação de mecanismos institucionais que estimulem a participação em sua gestão


não só de educadores e funcionários mas também dos usuários, a quem ela deve servir.
Ao lado dessa questão, um importante elemento tem sobressaído que, embora
tenha a ver com o conceito de participação enquanto instrumento de controle
democrático do Estado, extrapola-o, em certo sentido: trata-se da percepção de que,
para funcionar a contento, a escola necessita da adesão de seus usuários (não só de
alunos, mas também de seus pais ou responsáveis) aos propósitos educativos a que ela
deve visar, e que essa adesão precisa redundar em ações efetivas que contribuam para o
bom desempenho do estudante.
A seguir apresento discussão teórica sobre o assunto seguida de breves referências
à maneira como uma escola pública fundamental de periferia urbana da cidade de São
Paulo, onde realizo pesquisa sobre o tema2, começa a enfrentar a questão.

A noção de qualidade do ensino

Quando se discute o ensino público no Brasil, hoje, o senso comum costuma


identificar duas características como configuradoras de sua má qualidade: a má
preparação para o mercado de trabalho e a ineficiência em levar o aluno à universidade.
Infelizmente, também entre políticos e administradores da educação, e mesmo em
círculos acadêmicos onde se discutem políticas educacionais, o assunto não costuma
elevar-se muito acima do senso comum, em direção a um tratamento mais rigoroso da
questão.
Entretanto, por mais importantes que sejam a preparação para o mercado de
trabalho e para o ingresso no ensino superior, cumpre indagar se não existiriam outros
valores a informar os fins que se devem buscar com a escola pública fundamental. Será
que, tendo em vista apenas o setor produtivo, como querem os empresários e como
apregoam os apologistas do mercado, estaremos contribuindo para uma sociedade mais
democrática, mais livre e produtora de relações civilizadas entre pessoas e grupos? Será
que, quando nos preocupamos apenas com a preparação para o ensino superior como

2 A pesquisa conta com financiamento do CNPq e visa “estudar o papel da família no desempenho escolar
de alunos do ensino público fundamental bem como as atribuições da escola na promoção da participação
da família na melhoria desse desempenho”. Nota desta edição: A pesquisa, já concluída, consta em Paro,
2018.
33
administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro

fazia a escola pública “de qualidade” de algumas décadas atrás3 ou a escola particular de
hoje que atende as camadas privilegiadas4, estaremos promovendo a melhoria no nível
de bem-estar geral da sociedade?
Embora não se deva minimizar a importância desses dois elementos, parece-me
que as discussões que restringem a eles os objetivos da escola pública têm omitido o
essencial. A escola, como locus da educação sistematizada, não pode passar ao largo do
próprio conceito de educação em sua inteireza, enquanto apropriação da cultura. E esta
tem a ver com a própria concepção de homem que constrói sua especificidade e se
constrói enquanto ser histórico à medida que transcende o mundo natural pelo trabalho.
Ao transcender a mera natureza (tudo aquilo que não depende de sua vontade e de sua
ação), o homem ultrapassa o nível da necessidade e transita no âmbito da liberdade. A
liberdade é, pois, o oposto do espontaneísmo, da necessidade natural; é algo construído
pelo homem à medida que constrói sua própria humanidade. (Paro, 1997, p. 107-114)
Na produção material de sua existência, na construção social de sua história,
o homem produz conhecimentos, técnicas, valores, comportamentos, atitudes,
tudo enfim que configura o saber historicamente produzido. Para que isso não se
perca, para que a humanidade não tenha que reinventar tudo a cada nova geração,
fato que a condenaria a permanecer na mais primitiva situação, é preciso que o
saber esteja permanentemente sendo passado para as gerações subsequentes. Essa
mediação é realizada pela educação, entendida como a apropriação do saber produzido
historicamente. Disso decorre a centralidade da educação enquanto condição
imprescindível da própria realização histórica do homem. É, pois, pela educação, que

3 É certo que a escola pública existente até três ou quatro décadas atrás não tinha a homogeneidade que
se pretende quando se fala de suas virtudes. Entretanto, na representação da maioria dos saudosistas da
escola pública de antigamente, o que aparece é uma escola de alta qualidade que tinha êxito em passar
um conteúdo preparatório para a universidade. Esta era precisamente a escola que servia a uma ínfima
minoria de alunos procedentes prioritariamente das camadas privilegiadas da população e que, embora
considerada paradigmaticamente, por muitos, como “de qualidade”, utilizava métodos tão ou mais retró-
grados que os da escola pública de hoje. De qualquer modo, toda vez que mencionar a escola pública de
antigamente é a este estereótipo de escola que estarei me referindo.
4 Também a escola particular não possui a homogeneidade que se pretende quando se lhe atribui uma
qualidade superior à da escola pública atual. Mas o estereótipo é sempre a escola que abriga os filhos das
camadas mais ricas. Embora uma visão crítica consiga identificar a grande semelhança entre a didática
utilizada aí e a que vige na escola pública atual, para o senso comum ela é considerada de ótima qualidade.
É a este estereótipo que estarei me referindo quando falar da atual escola particular.
34
administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro

o homem tem a possibilidade de construir-se historicamente, diferenciando-se da


mera natureza. (Paro, 1997, p. 107-114.)
A escola, então, ao prover educação, precisa tomá-la em todo seu significado
humano, não em apenas algumas de suas dimensões. Por isso, pode-se dizer que a escola
pública tem baixa qualidade sim, mas não pelas razões que normalmente são levantadas
para isso (porque não consegue fazer o que faz a escola particular ou o que fazia a
“boa” escola de antigamente). A escola pública tem baixa qualidade, antes de tudo e
principalmente, porque não fornece o mínimo necessário para a criança e o adolescente
construírem-se enquanto seres humanos, diferenciados do simples animal. Quando se
fala em educação para a formação do cidadão é esse pressuposto que deve estar por trás:
o de que, como condição para elevar-se a um nível humano de liberdade, diferenciando-
se da mera necessidade natural, o indivíduo precisa “atualizar-se” historicamente pela
apropriação de um mínimo do saber alcançado pela sociedade da qual ele faz parte.
Essas reflexões não se fazem presentes, em geral, na prática cotidiana de nossas
escolas públicas fundamentais, onde os professores, ainda influenciados pela ideologia
liberal burguesa (segundo a qual é possível, igualmente a todos, subir na escala social
por meio do esforço pessoal, via educação escolar), continuam buscando, para as atuais
camadas sociais usuárias da escola pública, a mesma meta de ingressar na universidade,
que era objetivo da escola pública de três ou quatro décadas atrás. Mas a população
escolar mudou, e as crianças e adolescentes que frequentam hoje a escola pública já
não trazem o background dos estudantes da antiga escola pública ou da atual escola
privada. Junte-se a isso a consideração das precárias condições de funcionamento das
escolas mantidas pelo Estado e se terá o quadro de ineficácia das mesmas diante de suas
obrigações sociais. (Paro, 1997, p. 83-105)
O educador escolar, em especial o professor, pouco tem conseguido fazer diante
da falta de material pedagógico, das classes abarrotadas (que desafiam qualquer bom
senso pedagógico), da falta de assistência pedagógica, enfim, das inadequadas condições
de trabalho em geral. Entre estas, seu ínfimo salário, que o obriga a mais de uma jornada
de trabalho, é um dos elementos mais marcantes, condicionante inclusive de sua baixa
competência profissional.
Nessas condições, a escola pública brasileira tem produzido altos índices de
reprovação e de evasão e baixo nível de conhecimento mesmo dos que conseguem
35
administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro

ser aprovados. A culpa, na grande maioria das vezes, cai sobre o “produtor final”, o
professor, acusado de incompetência e de pouco empenho profissional. Este reclama do
salário, mas, no íntimo, massacrado pela evidência dos fracos resultados de seus serviços,
se considera mesmo um profissional pouco qualificado, responsável pela má qualidade
do ensino. Quando sua baixa consciência política não lhe permite perceber as condições
de que é refém, prefere, em defesa de sua autoestima, pôr a culpa no aluno, acusando-o
de não querer aprender.
Mas a alegação da falta de interesse do aluno como justificativa para o mau
desempenho escolar precisa ser combatida de forma radical porque ela implica a própria
renúncia da escola a uma de suas funções mais essenciais. Os equívocos a esse respeito
geralmente advêm da atitude errônea de considerar a “aula” como o produto do trabalho
escolar. Nessa concepção, desde que o professor deu uma boa aula, a escola cumpriu
sua obrigação, apresentou o seu produto, tudo o mais sendo responsabilidade do aluno.
Mas, se consideramos o conceito de trabalho humano enquanto “atividade adequada
a um fim” (Marx, [19--], p. 202), a aula ou a “situação de ensino” constitui o próprio
trabalho, não seu produto. Se a escola tem que responder por produtos, estes só podem
ser o resultado da apropriação do saber pelos alunos. Se estes não aprenderam, a escola
não foi produtiva. Dizer que a escola é produtiva porque deu boa aula, mas o aluno não
aprendeu é o mesmo que dizer que a cirurgia foi um sucesso, mas o paciente morreu.

O querer aprender como preocupação didática

Mas a consideração do processo pedagógico escolar enquanto processo de


trabalho nos ajuda também a compreender melhor a situação especial do próprio objeto
envolvido nesse processo. Não há dúvida de que o aluno é verdadeiramente o objeto de
trabalho pois é ele que é objeto da ação educativa. Como em qualquer outro processo de
trabalho, o educando é quem “sofre” as ações com que se pretende alcançar o objetivo
e é ele, transformado (em sua personalidade viva, pela apreensão do saber54), que se
constituirá no produto desse trabalho, ou seja, o “aluno educado” (ou o aluno com a

5 Observe-se que, como me referi anteriormente, estou tomando o conceito de saber de modo bastante
amplo, referindo-se, tanto a conhecimentos e técnicas, quanto a comportamentos, valores, atitudes,
enfim, tudo o que configura a cultura humana, passível de ser apropriada na educação.
36
administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro

“porção” de educação que se pretendeu oferecer). Todavia, há aqui um elemento que


diferencia radicalmente o objeto de trabalho pedagógico do objeto de trabalho na
produção material. Nesta, o objeto reage a sua transformação apenas enquanto objeto,
opondo resistências meramente passivas. Na produção pedagógica, entretanto, temos
um objeto que é também sujeito, visto que se trata de um ser humano, dotado de vontade.
E eis aí uma das peculiaridades mais importantes desse processo de trabalho: ele não
pode dar-se à revelia do objeto. Seu objeto-sujeito precisa querer para que a produção se
realize. Se o aluno não quiser, o aprendizado não se dará65.
Ora, o “querer aprender” é também um valor cultivado historicamente pelo
homem e, pois, um conteúdo cultural que precisa ser apropriado pelas novas gerações,
por meio do processo educativo. Não cabe, pois, à escola, enquanto agência encarregada
da educação sistematizada, renunciar a essa tarefa. Por isso é que não tem sentido a
alegação de que, se o aluno não quer aprender, não cabe à escola a responsabilidade por
seu fracasso. Cabe sim, e esta é uma de suas mais importantes tarefas. Levar o educando
a “querer aprender” é o desafio primeiro da didática, do qual dependem todas as demais
iniciativas. (Paro, 1995a)
Parece que essa predisposição para aprender que existia no aluno da escola pública
de décadas atrás (v. nota 2) e que está presente em grande medida no aluno da escola
privada de hoje (v. nota 3) é a chave para se explicar, pelo menos em parte, a aparência
de maior competência dessas duas escolas comparadas à atual escola pública. Um
aluno que já quer aprender depende muito pouco da competência da escola. Por isso,
a instituição escolar que pode selecionar seus alunos entre aqueles que já têm os pré-
requisitos culturais adequados para o ensino (Barreto, 1992) pode prescindir de grande
competência, bastando ocupar-se em despejar “conteúdos”, contando com o esforço dos
alunos que, em grande medida, aprendem não por causa da escola, mas apesar dela. Mas
a escola pública, que não pode selecionar seus estudantes - o que seria um absurdo - não
pode dar-se ao luxo de falhar nessa tarefa, porque seus alunos não estão “preparados”
para aprender apesar dela; assim, diferentemente da antiga escola pública (v. nota 2) e da
atual escola privada (v. nota 3), sua incompetência aparece.
Mas, se a escola pública precisa ser competente, ela deve também levar em conta a
necessidade de que seus alunos sejam seduzidos pelo desejo de aprender. Não há dúvida

6 “O movimento no sentido de querer aprender é [...] condição sine qua non para que a aprendizagem
ocorra.” (Moysés, 1994, p. 23-24)
37
administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro

de que a escola pouco ou nada tem feito para tornar o ensino prazeroso, condição mais
que necessária para despertar o interesse do educando. Mas é verdade também que
há muito a fazer que não depende exclusivamente da escola. E aqui é preciso voltar
à complexidade do objeto de trabalho com o qual ela lida. Enquanto sujeito humano,
o aluno não vive apenas na escola e não forma apenas aí seus valores. A escola tem
falhado não só por estar mal aparelhada, com métodos inadequados e professores mal
formados, embora não se possa menosprezar o enorme peso desses fatores. A escola tem
falhado também porque não tem dado a devida importância ao que acontece fora e antes
dela, com seus educandos. Uma postura positiva com relação ao aprender e ao estudar
não acontece de uma hora para outra nem de uma vez por todas: é um valor cultural
que precisa ser permanentemente cultivado. Começa a formar-se desde os primeiros
anos de vida, precisa de ambiente favorável para desenvolver-se e carece de estímulos
permanentes durante a infância e a adolescência. Como a escola só tem acesso direto
ao educando durante as poucas horas que este frequenta suas atividades, ela precisa
começar a voltar sua atenção para os períodos em que ele está fora de seu abrigo.
Assim, a escola que toma como objeto de preocupação levar o aluno a querer aprender
precisa ter presente a continuidade entre a educação familiar e a escolar, buscando formas
de conseguir a adesão da família para sua tarefa de desenvolver nos educandos atitudes
positivas e duradouras com relação ao aprender e ao estudar. Grande parte do trabalho do
professor é facilitado quando o estudante já vem para a escola predisposto para o estudo
e quando, em casa, ele dispõe da companhia de quem, convencido da importância da
escolaridade, o estimule a esforçar-se ao máximo para aprender.
É aqui que entra a questão da participação da população na escola, pois dificilmente
será conseguida alguma mudança se não se partir de uma postura positiva da instituição
com relação aos usuários, em especial com os pais e responsáveis pelos estudantes,
oferecendo ocasiões de diálogo, de convivência verdadeiramente humana, em suma,
de participação na vida da escola. Levar o aluno a querer aprender implica um acordo
tanto com educandos, fazendo-os sujeitos, quando com seus pais, trazendo-os para o
convívio da escola, mostrando-lhes quão importante é sua participação e fazendo uma
escola pública de acordo com seus interesses de cidadãos. (Paro, 1995a)
É isso que justifica investigar, no âmbito da escola pública fundamental, as
dimensões de uma possível participação da família na promoção, junto a seus filhos

38
administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro

estudantes, de valores favoráveis ao estudo e à aquisição do saber, bem como na adoção


de posturas e comportamentos diante deles que contribuam para a melhoria da qualidade
de seu aprendizado.
Em termos de política educacional, a relevância de estudo dessa natureza está
em que, ao pesquisar a colaboração que os pais podem dar, em casa, para o processo
pedagógico, pode fornecer importantes subsídios para tomadas de decisões que
ensejem a inclusão de elementos facilitadores da melhoria da educação escolar, até hoje
desconsiderados no planejamento do ensino público. Qual o sentido de encaminhar
políticas restritas ao sistema de ensino, e em particular à escola, se parte essencial da
solução pode estar nas famílias ou em instituições outras, fora do sistema regular de
ensino? Esse tipo de questão leva à necessidade de dimensionar as potencialidades de
contribuição das famílias dos alunos, procurando conhecer, em especial, o que pensam
eles a respeito do ensino e quais suas predisposições em colaborar com a escola no
desenvolvimento de valores favoráveis à aquisição do saber.
É mister ter bem claro, todavia, que uma tal iniciativa não pode cair no equívoco
de delegar aos pais e à comunidade aquilo que compete ao Estado, por meio da escola,
realizar. A crítica que se ouve com frequência é a de que medidas visando à participação
dos pais na escola acabam redundando em mais um ônus às famílias desprivilegiadas
usuárias do ensino público, já tão sobrecarregadas de trabalho e de necessidades. Mesmo
entre alguns pais se ouve a alegação de que a obrigação de ensinar é da escola e que eles,
pais e mães, não têm tempo nem conhecimento para isso. Um corolário dessa objeção é
a afirmação de que chamar os pais a “ajudarem” o professor e a escola seria uma forma
a mais de explorá-los, eles que já pagam o ensino com seus impostos e que já são tão
explorados em seu trabalho.
Entretanto, não se trata, nem de os pais prestarem uma ajuda unilateral à escola,
nem de a escola repassar parte de seu trabalho para os pais. O que se pretende é uma
extensão da função educativa (mas não doutrinária) da escola para os pais e adultos
responsáveis pelos estudantes. É claro que a realização desse trabalho deverá implicar
a ida dos pais à escola e seu envolvimento em atividades com as quais ele não está
costumeiramente comprometido. Mas, em contrapartida, além de terem melhores
condições de influir nas tomadas de decisão a respeito das ações e objetivos da escola,
eles estarão investindo na melhoria da qualidade da educação de seus filhos bem como

39
administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro

na melhoria de sua própria qualidade de vida, na medida em que esses adultos estarão
mais capazes, intelectualmente, de usufruir melhor de bens culturais a que têm direito
e que antes não estavam a seu alcance.
Com isso, a escola não estará, na verdade, passando parte de suas tarefas aos
pais, mas aumentando seu próprio trabalho e responsabilidades, na expectativa, é bem
verdade, de facilitar seu trabalho educativo com os estudantes. Mas isto apenas denota
uma preocupação com a qualidade de seus serviços que, em última análise, reverter-se-á
em benefício dos próprios usuários.
No que concerne à administração das unidades escolares, as implicações de
medidas visando à adequação desse problema dizem respeito tanto às questões
propriamente organizacionais quanto aos assuntos relativos à gestão do pessoal escolar.
Com relação ao primeiro ponto, e tendo em vista o fim específico de promover a adesão
(e a colaboração) dos pais aos propósitos educativos da instituição escolar, trata-se de
refletir acerca de como se configurará a participação dos pais na escola e qual o papel
reservado a eles em colegiados como o conselho de escola e os conselhos de classe e de
série. Quanto à gestão do pessoal escolar, supõe-se que novos elementos precisarão ser
incluídos na definição do papel desses servidores frente às famílias usuárias da escola, a
partir da exigência de um contato qualitativamente novo e provavelmente muito mais
frequente do que o atual. Especialmente com relação aos professores, supõe-se que isso
poderá exigir mecanismos permanentes de assessoria, orientação e treinamento com o
propósito de mantê-los capacitados a desenvolver um trabalho com novas atribuições.

Alguns elementos preliminares do trabalho de campo

A unidade escolar em que realizo a pesquisa antes referida apresenta aspectos


bastante interessantes para o estudo desse tema. Embora as dimensões deste trabalho
não permitam um tratamento mais extensivo do assunto, é possível mencionar, ainda
que de passagem, alguns pontos que ressaltam do exame da questão no interior da
escola. O primeiro deles refere-se à crença unânime entre professores, coordenadores
pedagógicos, funcionários e direção, na importância da ajuda dos pais para o bom
desempenho dos alunos na escola. É bastante recorrente, especialmente no discurso do
corpo docente, a afirmação da dependência do professor em relação ao que é feito, antes,
40
administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro

na família. Quanto à natureza dessa ajuda, embora muitos reclamem a própria assessoria
dos mais velhos no estudo e na realização de lições de casa, o que todos consideram mais
importante é a atenção e o estímulo que devem ser propiciados aos estudantes.
Isto tem a ver, já, com o segundo aspecto relevante a se observar: embora
considere difícil que os pais, em sua maioria, pela própria condição de semiletrados, não
sejam capazes de ensinar os conteúdos escolares ou de auxiliar eficazmente na solução
dos problemas de aprendizagem apresentados pelos alunos, a maioria dos professores
enfatizam que todos os pais podem muito bem estimular seus filhos, interessando-se por
seus estudos, verificando seus cadernos, reforçando sua autoestima, enfim, levando-os
a perceber a importância do aprender e a sentir-se bem estudando. Uma professora
de 3o. ano dá o exemplo de sua mãe, que mesmo sendo analfabeta sabia estimulá-la a
estudar enquanto criança.

Minha mãe era analfabeta, mas ela olhava meu caderninho. Eu nem percebia
que ela não sabia nada. Até os dez anos, pra mim, ela sabia tudo. Ela olhava,
discutia se tava bonito [ou] se não tava bonito. [...] Então, a ajuda dos pais
é nesse sentido: “ô, meu filho, que cê tá fazendo, deixa eu ver o que que é
que tem”, né.

Apesar de muitos professores acharem que os pais não cumprem essa função
porque não têm tempo diante da vida de trabalho duro que levam, a maioria concorda
que o que falta é um bom esclarecimento a eles a respeito da forma de desempenhar
seu papel e da importância de fazê-lo. Concordam que esse esclarecimento deve caber à
escola, mas consideram que a maior dificuldade é trazer os pais para participarem. Não
acreditam que essa orientação possa ser proporcionada aos pais, contando apenas com
as vias institucionais existentes: reuniões de pais, conselho de escola e associação de
pais e mestres. E aqui aparece outro elemento praticamente consensual na concepção
do pessoal da escola entrevistado: sempre que são instados a apresentar uma solução
para a situação, os professores indicam como alternativa a instituição de algo como uma
“escola de pais” em que se procuraria ensinar aos pais a melhor forma de lidar com seus
filhos para que estes tenham um melhor desempenho escolar.
Entre as inúmeras implicações de uma tal iniciativa, pode-se destacar, por um
lado, o perigo de se adotar uma posição “catequética” com relação aos pais que se
41
administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro

suporiam passíveis de serem educados pelos professores, por outro, a dúvida a respeito
da possibilidade de os mesmos educadores conseguirem, com os pais, aquilo que
reclamam não conseguir com os filhos, ou seja, o interesse e empenho no estudo por
parte destes últimos.
Em que pesem estas e outras questões, a escola em exame na pesquisa de campo
apresenta-se como local privilegiado para o estudo do assunto pelo especial motivo
de estar começando a implementar, no momento, uma experiência a respeito. Trata-
se de um projeto de formação para pais, autorizado pela delegacia de ensino e com
previsão de recursos para sua execução. Mas o mais auspicioso para a experiência é
que ela foi concebida e terá a liderança de uma direção escolar vivamente interessada
na participação de pais e mães na escola, no duplo aspecto de direito dos usuários e de
necessidade da escola para o bom desempenho de suas funções.
A pesquisa encontra-se em andamento e, para se chegar a conclusões mais seguras,
há ainda muito a se investigar, inclusive em que medida se confirma a suposição de que
os pais de fato não estejam já envidando todos os esforços para convencerem seus filhos
a estudar. A sequência do trabalho de campo inclui, além da realização das observações e
entrevistas com alunos e pais, o acompanhamento da execução do projeto de formação
de pais. Espera-se que a conclusão do estudo possa fornecer subsídios importantes
para a discussão da relação entre o processo de produção pedagógico escolar e o saber
apreendido na família, bem como para a tomada de decisões a respeito de formas de
participação dos pais na escola, visando a essa relação.
Não se trata de esquecer o enorme caminho a ser percorrido no interior da própria
escola, em termos da adequação de seus objetivos e de seu aparelhamento material,
humano e metodológico. Não se pode, em absoluto, estar alheio a isto. Mas, trata-se,
também, de reconhecer algo a que a teoria educacional tem prestado pouca atenção. Por
pequena que seja, em comparação com tudo o que há por fazer na escola, a contribuição
que os pais podem dar para o processo pedagógico escolar precisa ser levada em conta
para evitar o risco de se ignorar algo que é imprescindível para o bom desempenho dos
alunos.

42
administração escolar e qualidade do ensino Vitor Henrique Paro

Referências

BARRETO, Elba Siqueira de Sá. O novo diálogo com a privatização na área da


educação. Em Aberto, v. 10 n. 50/51, p. 81-88, abr./set., 1992.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 4.ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1989.
MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [19--], v. 1.
MOYSÉS, Lúcia. O desafio de saber ensinar. Campinas: Papirus; Niterói, EDUFF, 1994.
PARO, Vitor Henrique. Gestão democrática da escola pública. São Paulo: Ática, 1997.
PARO, Vitor Henrique. Gestão democrática: participação da comunidade na escola.
Nosso Fazer, Curitiba, ano 1, n. 9, ago. 1995a, p. 1
PARO, Vitor Henrique. Qualidade do ensino: a contribuição dos pais. 2. ed. rev. São
Paulo: Intermeios, 2018.

43
A utopia da gestão escolar democrática 1

Toda vez que se propõe uma gestão democrática da escola pública de 1º e 2º


graus que tenha uma efetiva participação de pais, educadores, alunos e funcionários
da escola, isso acaba sendo considerado como coisa utópica. Acredito não ser de pouca
importância examinar as implicações decorrentes dessa utopia. A palavra utopia significa
o lugar que não existe. Não quer dizer que não possa vir a existir. Na medida em que
não existe, mas que ao mesmo tempo se coloca como algo de valor, algo desejável do
ponto de vista da solução dos problemas da escola, a tarefa deve consistir, inicialmente,
em tomar consciência das condições concretas, ou das contradições concretas, que
apontam para a viabilidade de um projeto de democratização das relações no interior
da escola.
Pretendo falar do ponto de vista do trabalhador, consciente de que ele tem
interesses (de classe) antagônicos aos da classe dominante. E aqui é preciso, desde
já, precisar alguns termos. A palavra trabalhador não pretende se referir apenas ao
trabalhador braçal, ou aquele envolvido exclusivamente no trabalho industrial, mas a
todo aquele que, nesta sociedade, para sobreviver, tem que vender a um empregador

1 Comunicação apresentada no painel “A gestão democrática da Educação: reflexões com vistas à Cons-
tituinte”, realizado em João Pessoa - PB, no XIII Simpósio Brasileiro de Administração da Educação,
promovido pela Anpae - Associação Nacional de Profissionais de Administração da Educação, de 3 a 7
de novembro de 1986.
44
a utopia da gestão escolar democrática Vitor Henrique Paro

sua força de trabalho física ou mental (Green, 1982, p. 134). Também quando falamos
classe dominante, isto implica uma generalização dos grupos dominantes, na medida
em que estes não são homogêneos sob todos os pontos de vista. Mas, têm interesses
coincidentes quando contrapostos aos interesses dos trabalhadores.
Pois bem, ao falar do ponto de vista dos trabalhadores, assumo como premissa
o fato de que, da classe dominante, não se pode esperar nenhuma iniciativa de
transformação em favor das camadas dominadas, (e, no nosso caso, no que se refere à
escola), sem pressão por parte dos interessados.
Além dessa premissa, coloco como horizonte a transformação do esquema de
autoridade no interior da escola. Vejam que a utopia escolar que pretendo delinear se
coloca como um resultado, que pressupõe obviamente um processo. E é esse processo
que é importante aqui explicitar. À medida que o horizonte se articular com os interesses
dominados, o processo de transformação da autoridade deve constituir-se no próprio
processo de conquista da escola pela classe trabalhadora.
Esta constatação deriva de uma visão não muito otimista a respeito da função
desempenhada pela escola na sociedade hoje. Não há dúvida de que podemos pensar
na escola como instituição que pode contribuir para a transformação social. Mas, uma
coisa é falar de suas potencialidades; uma coisa é falar “em tese”, falar daquilo que escola
poderia ser; uma coisa é expressar a crença de que, na medida em que a escola consiga,
na forma e no conteúdo, levar as classes trabalhadoras a se apropriarem de um saber
historicamente acumulado e desenvolver a consciência crítica, ela pode concorrer para
a transformação social; outra coisa bem diferente é considerar que a escola que aí está
já esteja cumprindo essa função. Infelizmente a escola que aí está é, sim, reprodutora de
certa ideologia dominante; é, sim, negadora dos valores dominados e mera chanceladora
da injustiça social, na medida em que recoloca as pessoas nos lugares reservados pelas
relações que se dão no nível da estrutura econômica.
Se queremos uma escola transformadora, precisamos transformar a escola que
temos aí. E a transformação dessa escola passa necessariamente por sua apropriação
por parte das camadas trabalhadoras. É neste sentido que precisa ser transformado o
sistema de autoridade e a distribuição do próprio trabalho no interior da escola.
O que nós temos hoje é um sistema hierárquico que pretensamente coloca todo
o poder nas mãos do diretor. Não é possível falar das estratégias de se transformar o

45
a utopia da gestão escolar democrática Vitor Henrique Paro

sistema de autoridade no interior da escola, em direção a uma efetiva participação de


seus diversos setores, sem levar em conta a dupla contradição que vive o diretor de
escola hoje. Esse diretor, por um lado, é considerado a autoridade máxima no interior da
escola; e isso, pretensamente, lhe daria um grande poder e autonomia. Mas, por outro
lado, ele acaba se constituindo, de fato, em virtude de sua condição de responsável último
pelo cumprimento da Lei e da Ordem na escola, em mero preposto do Estado. Esta é a
primeira contradição. A segunda advém do fato de que, por um lado, ele deve deter uma
competência técnica e um conhecimento dos princípios e métodos necessários a uma
moderna e adequada administração dos recursos da escola, mas, por outro, sua falta de
autonomia em relação aos escalões superiores e a precariedade das condições concretas
em que se desenvolvem as atividades no interior da escola tornam uma quimera a
utilização dos belos métodos e técnicas adquiridos (pelo menos supostamente) em sua
formação de administrador escolar, já que o problema da escola pública no país não é,
na verdade, o da administração de recursos, mas o da falta de recursos.
Essa impotência e falta de autonomia do diretor sintetiza a impotência e falta de
autonomia da própria escola. E se a escola não tem autonomia, se a escola é impotente, é
a própria classe trabalhadora que fica privada de uma das instâncias através das quais ela
poderia apropriar-se do saber e da consciência crítica. Significa que conferir autonomia
à escola deve consistir em conferir poder, autonomia e condições concretas para
que a escola alcance objetivos educacionais articulados com os interesses das classes
trabalhadoras. E isso não acontecerá jamais, acredito eu, por concessão espontânea dos
grupos no poder. Essa autonomia, esse poder, só se dará como conquista das classes
trabalhadoras. Por isso é preciso, com elas, buscar a reorganização da autoridade no
interior da escola.
A esse respeito, o maior obstáculo que vejo, nos dias de hoje, é precisamente
a função atual do diretor que o coloca como autoridade última no interior da escola.
Esta regra, astutamente mantida pela classe dominante, através do Estado, confere um
caráter autoritário ao diretor, na medida em que estabelece uma hierarquia na qual
ele deve ser o chefe de quem emanam todas as ordens na instituição escolar; leva a
dividir os diversos setores no interior da escola, contribuindo para que se forme uma
imagem negativa da pessoa do diretor, a qual é confundida com o próprio cargo; faz
com que o diretor tendencialmente busque os interesses dos dominantes em oposição

46
a utopia da gestão escolar democrática Vitor Henrique Paro

aos interesses do dominados; e confere uma aparência de poder ao diretor que em


nada corresponde à realidade concreta. É preciso, pois, começar por lutar contra esse
papel do diretor (não, entretanto, contra a pessoa do diretor). A este respeito é preciso
aprofundar as reflexões de modo a que se perceba que, ao se distribuir a autoridade
entre os vários setores da escola, o diretor não estará perdendo poder - já que não se
pode perder o que não se tem - mas dividindo responsabilidade. E, ao acontecer isso,
quem estará ganhando poder é a própria escola.
Na medida em que se conseguir a participação de todos os setores da escola -
educadores, alunos, funcionários e pais - nas decisões a respeito de seus objetivos e de seu
funcionamento, ter-se-ão melhores condições para pressionar os escalões superiores no
sentido de dotar a escola de autonomia e de recursos. A esse respeito, vejo no conselho
de escola, que já existe em São Paulo e que parece ter possibilidade de se implantar
em outros estados também, uma potencialidade a ser explorada. É bem verdade que,
mesmo em São Paulo, ele ainda é um instrumento imperfeito, na medida em que
existem problemas institucionais para sua instalação de modo satisfatório nas escolas.
Mas, de qualquer forma, é um instrumento que existe e que precisa ser aperfeiçoado
com vistas a que ele se torne o embrião de uma verdadeira gestão colegiada que esteja
articulada com os interesses populares na escola. Hoje, quando o diretor reivindica, é
fácil dizer-lhe “não”. Tornar-se-á muito mais difícil dizer “não”, entretanto, quando a
reivindicação não for de uma pessoa, mas de um grupo, que represente outros grupos e
que esteja instrumentalizado pela conscientização que sua própria organização propicia.
É neste sentido, portanto, que vejo a necessidade de a escola organizar-se
democraticamente com vistas ao alcance de objetivos transformadores (quer dizer:
objetivos articulados aos interesses dos trabalhadores). E aqui subjaz, portanto, o
suposto de que a escola só poderá desempenhar um papel transformador se estiver junto
com os interessados, se se organizar para atender aos interesses (embora nem sempre
conscientes) das camadas a quem favorece essa transformação, ou seja, das camadas
trabalhadoras.
Nesse sentido, portanto, cada escola deverá constituir-se em um núcleo de
pressão a exigir o atendimento dos direitos das camadas trabalhadoras e a defender
seus interesses em termos educacionais. Quando falamos em núcleo de pressão não
estamos imaginando núcleos isolados sem ligação com outros núcleos, com associações

47
a utopia da gestão escolar democrática Vitor Henrique Paro

educativas mais amplas e com outras entidades da sociedade civil. O seu próprio caráter de
reivindicação de direitos que são comuns a amplas camadas da população deve conferir-
lhe uma tendência a relacionar-se e a agir em sintonia com um elenco cada vez maior de
entidades reivindicativas. Mas, de qualquer forma, mesmo pensando apenas em termos
de cada uma dessas entidades, acredito ser procedente uma sugestão a respeito de medida
a ser tomada em nível de Congresso Nacional Constituinte. Seria a de contemplar um
princípio que garantisse às instituições da sociedade civil defender seus interesses diante
do Estado, colocando-se em nível de igualdade para arguir seus atos autoritários. Não
se esquecendo que o autoritarismo assume variadas formas. O autoritarismo não se dá
apenas quando o Estado se utiliza de sua máquina burocrática para exercer seu poder e o
abuso da autoridade administrativa de modo direto, o autoritarismo se dá também, e em
especial, quando o Estado deixa de prover a escola de recursos necessários à realização
de seus objetivos.
Assim, uma medida constitucional de caráter geral poderia concorrer para que
a escola, enquanto instituição articulada com os interesses dominados, tivesse facilitada
sua atividade de pressão junto ao Estado, na medida em que, por meio de uma associação
de pais ou entidade semelhante, pudesse defender mais efetivamente seus direitos com
relação ao ensino.
Outro aspecto importantíssimo do problema da participação da comunidade na
escola e que requer medidas corajosas a respeito refere-se ao provimento de condições
para que os membros das camadas exploradas participem da vida escolar. Não basta
permitir formalmente que os pais de alunos participem da administração da escola; é
preciso que haja condições materiais propiciadoras dessa participação. A este respeito,
uma medida que acredito deva ser tomada em nível de Congresso Constituinte é a
instituição de um dispositivo constitucional que facilite a participação dos pais na vida da
escola, através da progressiva isenção de horas de trabalho nas empresas. Tal dispositivo
poderia ser imaginado, em princípio, na forma de liberação do trabalhador com filho
em idade escolar, de um determinado número de horas de trabalho, sem prejuízo de
seus vencimentos, nos dias em que ele tivesse que comparecer à escola para participar de
assembleias ou tratar de problemas relacionados à escolarização de seu filho. Estabelecido
o princípio, a matéria seria depois regulamentada através de lei complementar.

48
a utopia da gestão escolar democrática Vitor Henrique Paro

Considero uma providência dessa natureza de fundamental importância na


medida em que rompe com a ideia de que os problemas escolares podem ser resolvidos
nos estritos limites da escola e procura, ao mesmo tempo, propiciar condições concretas
de participação da classe trabalhadora nos destinos da educação escolar. É neste sentido
que penso a utopia de uma escola participativa. Ou seja, no sentido de que, aceita a
necessidade, ou a imprescindibilidade, da participação efetiva da classe trabalhadora
nas decisões que dizem respeito à educação de seus filhos, se procura identificar as
condições de possibilidade dessa participação e se buscam os mecanismos necessários
à distribuição da autoridade no interior da escola, de modo a adequá-la ao mister
de, ao mesmo tempo em que procura formas democráticas de alcance dos objetivos
educacionais a ela inerentes, se constitua em mecanismo de pressão junto ao Estado
e à classe detentora dos poder, no sentido de serem propiciadas as condições que
possibilitem o seu funcionamento e autonomia.
Mas, se a transformação da autoridade no interior da escola for entendida como
uma quimera, se a participação efetiva da classe trabalhadora nos destinos da educação
escolar for uma utopia no sentido apenas de um sonho irrealizável, e não no sentido que
demos à palavra no início de nossa fala, então de nada adianta continuarmos falando
de escola como algo que possa contribuir par a transformação social e, definitivamente,
devemos deixar caírem as máscaras e as ilusões com relação à escola que aí está e partir
para outras soluções, ou, então, cruzar os braços e esperar passivamente que a classe
dominante, através de sua “reformas” e “acomodações” de interesses, continue fazendo-
nos engolir as soluções paliativas que a mantêm perenemente no poder.

49
a utopia da gestão escolar democrática Vitor Henrique Paro

Referência

GREEN, Gilbert. Anarquismo ou marxismo: uma opção política. Rio de Janeiro:


Achiamé, 1982.

50
Eleição de diretores de escolas públicas:
avanços e limites da prática 1

Em pesquisa recentemente concluída (Paro, 1996), envolvendo trabalho de


campo e exame da bibliografia pertinente ao tema, analisei experiências de eleição
de diretores de escolas de 1º e 2º graus em diversos estados e municípios do Brasil,
com o fim de estudar suas características e os problemas de sua institucionalização e
implementação, bem como captar seus efeitos sobre a democratização da gestão escolar
e sobre a qualidade e quantidade na oferta de ensino. No relatório final da pesquisa (Paro,
1996) encontram-se a metodologia utilizada e a discussão dos resultados alcançados.
Com base nessa investigação, o presente artigo tem o propósito de examinar alguns
limites da experiência eletiva nas escolas, bem como discutir aspectos relacionados
ao impacto das eleições sobre o papel desempenhado pelo diretor e sobre a prática
democrática na gestão da escola pública.

1 Trabalho apresentado na 19ª Reunião Anual da ANPEd, realizada em Caxambu, MG, de 22 a 26/9/1996.
51
eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

1. Os limites do sistema eletivo

Embora algumas experiências localizadas remontem à década de 60, a


reivindicação da escolha de diretores escolares por meio de processo eletivo, em âmbito
nacional, é fenômeno que se inicia nos começos da década de 1980, no contexto da
redemocratização política do país. Em vários estados, iniciam-se processos de eleição
de diretores escolares na primeira metade dessa década, com a ascensão dos primeiros
governadores estaduais eleitos após a ditadura iniciada em 1964. Em 1989, vários
estados inscrevem em suas constituições a obrigatoriedade da eleição como critério de
escolha dos diretores nas escolas públicas. Entretanto, já ao final da década de 1980 e
início da de 90, verifica-se certo refluxo das eleições em alguns estados, produto da
ação de governos pouco comprometidos com a democracia, que entram com Ações
Diretas de Inconstitucionalidade contra as eleições, com a clara intenção de proteger
seus interesses político-partidários identificados com práticas clientelistas.
Apesar disso, porém, a adoção de processo eletivo como critério para escolha
de diretores expande-se em todo o país, fazendo-se realidade em grande número de
municípios e em estados onde antes vigorava a nomeação política. Em alguns sistemas
que já haviam experimentado a escolha democrática dos diretores, como o Estado do
Paraná e o Distrito Federal, os governadores eleitos em 1994 voltam a introduzir a
eleição direta, em cumprimento a suas plataformas de governos ou a promessas feitas
em suas campanhas eleitorais. O fato, aliás, de os políticos passarem a inscrever em suas
plataformas eleitorais o compromisso com a eleição de diretores indica sua sensibilidade
para algo que passou a fazer parte dos desejos de parcelas da população envolvidas com
a gestão da escola pública. Este parece ser mais um resultado positivo do movimento
em torno da eleição de diretores que se verificou a partir de inícios da década de 1980:
o de inscrever-se no imaginário dessas parcelas da população a escolha democrática de
diretores escolares como um valor positivo e como um direito a ser reivindicado.
Mas, como toda inovação, a perspectiva de introdução da via eletiva para escolha
de diretores escolares provoca grande número de expectativas nos sujeitos envolvidos,
muitas delas impossíveis de serem realizadas. Por isso, é importante ter presente
algumas limitações apontadas pela prática. A seguir comentarei como se manifestaram,
nas experiências examinadas, os limites das eleições de diretores com respeito a algumas
expectativas que se tinha a seu respeito.
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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

Um dos principais argumentos para a implantação das eleições de diretores


fundamenta-se na crença na capacidade do sistema eletivo de neutralizar as práticas
tradicionalistas calcadas no clientelismo e no favorecimento pessoal, que inibem as
posturas universalistas reforçadoras da cidadania. A esse respeito, parece que as eleições
tiveram um importante papel na diminuição ou eliminação, nos sistemas em que
foram adotadas, da sistemática influência dos agentes políticos (vereadores, deputados,
prefeitos, cabos eleitorais, etc.) na nomeação do diretor. Mas, isso não significa que
o clientelismo tenha deixado de exercer suas influências na escola. Por um lado, em
alguns sistemas continuaram a existir brechas para a penetração da influência do agente
político na nomeação do diretor; por outro, as práticas clientelistas passaram a fazer
parte também do interior da própria escola, quer no processo de eleição do diretor, quer
durante o exercício de seu mandato.
Certa permanência da influência político-partidária verificou-se especialmente
nos sistemas em que a eleição se deu por lista tríplice, com a escolha definitiva de um
dos três nomes ficando por conta do poder executivo. No Estado do Paraná, nas eleições
de 1983, Zabot (1984, p. 89) refere-se às “inúmeras iniciativas dos grupos de pressão
interessados na nomeação de determinados candidatos”. Também no Município de
Goiânia, Canesin (1993, p. 127-128) reporta as “marcas profundas no clientelismo”
presentes nas primeiras eleições, práticas também referidas em Dourado (1990, p. 123).
Mas não só nos locais em que havia a escolha por lista tríplice esteve presente
a pressão clientelista. Especialmente nas primeiras eleições, os agentes políticos não
desistem de tentar fazer valerem seus interesses clientelistas. É o caso, por exemplo, do
Estado de Minas Gerais onde, apesar da existência de regras bem definidas e divulgadas,
ainda houve assédio de políticos para burlá-las. (Mello; Silva, 1994, p. 32)
Uma peculiar forma de intervir movido por interesses clientelistas é a
praticada por certos agentes políticos que, alijados, pelo sistema eletivo, de sua anterior
oportunidade de influir diretamente na nomeação dos dirigentes escolares, prevalecem-
se de sua experiência política para influenciar no próprio processo de eleição que se dá
na unidade escolar. Calaça, em estudo realizado na rede municipal de ensino de Goiânia,
dá conta de práticas desse tipo na eleição de 1984, nesse município, ao informar que
“alguns candidatos patrocinados por vereadores distribuíram santinhos, calendários e
camisetas e prometeram favores em troca de votos” (Calaça, 1993, p. 88).

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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

Também no interior da própria unidade escolar, segundo reclamações do pessoal


que aí trabalha, podem ser identificadas ocorrências de práticas mais tradicionalistas que
se supunham superadas com a eleição. Um dos professores entrevistados por Castro
et al., no Estado do Rio Grande do Sul, declara que continua a haver as “panelinhas”
existentes antes das eleições. (Castro et al., 1991, p. 98) Por seu turno, Holmesland et
al. (1989, p. 128) também apresentam depoimentos de diretores que evidenciam uma
concepção clientelista do pessoal escolar, que exige uma contrapartida pessoal ao apoio
dado na eleição.
O fato, entretanto, de a incipiente prática política introduzida pelas eleições
de diretores não ter sido capaz de eliminar por completo essas expectativas e
comportamentos clientelistas não pode levar a que se impute às eleições as causas
desses males que nada mais são, na verdade, do que remanescentes de uma cultura
tradicionalista que só a prática da democracia e o exercício autônomo da cidadania
poderá superar.
Outra expectativa que muitas pessoas tinham com relação à eleição era a de que
esta conseguiria eliminar o autoritarismo existente na escola e a falta de participação
de professores, alunos, funcionários e pais nas decisões. A suposição por trás dessa
expectativa era a de que a falta de participação e o autoritarismo existentes na escola
se deviam, em grande parte ou exclusivamente, ao fato de o diretor, não tendo
compromissos com o pessoal escolar ou com os usuários da escola, por não ter sido
escolhido por estes, tendia a articular-se apenas com os interesses do Estado, voltando
as costas para a unidade escolar e sua comunidade. Com a eleição, esperavam que a
escola se encaminhasse rapidamente para uma convivência democrática e para a maior
participação de todos em sua gestão. Todavia, as experiências mostraram que havia
mais otimismo do que realismo nessas previsões. Numa apreciação dessa questão no
Distrito Federal, após as eleições, no período de 1985 a 1988, Couto (1988, p. 145)
constata a falta de avanços na participação dos vários segmentos escolares na escola de
modo a implicar a distribuição do poder. Em Vitória, segundo técnicas da Secretaria de
Educação, apesar dos avanços, ainda há muita reclamação a respeito do diretivismo e
do autoritarismo do diretor. Em Goiânia, Dourado (1990, p. 136) também constata a
resistência de professores e diretores em aceitar as tentativas de se instalarem Grêmios
Estudantis e “outros canais de participação na escola”.
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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

Obviamente, as pessoas que pensavam que, com as eleições, o diretor mudaria seu
comportamento, de forma radical e imediata, frustraram-se ao perceber que muito das
características do chefe monocrático que detém a autoridade máxima na escola persistiu
mesmo com a eleição. Mas, o que isso reafirma é que as causas do autoritarismo existente
nas unidades escolares não advêm exclusivamente do provimento do diretor pela via
da nomeação política. Antes, é preciso considerar que tal autoritarismo é resultado da
conjunção de uma série de determinantes internos e externos à unidade escolar que se
sintetizam na forma como se estrutura a própria escola e no tipo de relações que aí têm
lugar. Por isso, mais uma vez é preciso ter presente que, também neste caso, não se trata
em absoluto de culpar a eleição, mas de reconhecer que ela tem limites que só podem
ser superados quando se conjuguem, ao processo eletivo, outras medidas que toquem na
própria organização do trabalho e na distribuição da autoridade e do poder na escola.
Outra circunstância que evidencia os limites da eleição de diretores é que ela
não está imune ao corporativismo por parte dos grupos que interagem na escola. A
esse respeito, o maior número de reclamações contidas em relatos de autoridades das
secretarias de educação e de pessoas envolvidas nas mudanças refere-se à atitude de
professores que, pouco afeitos às regras da democracia que supõem que o eleito, embora
escolhido pela maioria, deve governar visando o bem de todos, procuram tirar proveito
da situação, buscando favorecimento ao grupo dos docentes em troca de seu apoio a
determinado candidato.
Finalmente, uma importante característica das eleições é que, como todo
processo de democracia, a participação e o envolvimento das pessoas enquanto sujeitos
na condução das ações é apenas uma possibilidade, não uma garantia. Especialmente
em sociedades com fortes marcas tradicionalistas, sem uma cultura desenvolvida de
participação social, é muito difícil conseguir-se que os indivíduos não deleguem a outros
aquilo que faz parte de sua obrigação enquanto sujeito partícipe da ação coletiva. No caso
da escola pública, as reclamações, especialmente de diretores, dão conta de que a eleição
do dirigente acaba, em grande medida, significando não a escolha de um líder para a
coordenação do esforço humano coletivo na escola, mas muito mais uma oportunidade
de jogar sobre os ombros do diretor toda a responsabilidade que envolve a prática
escolar. Dourado (1990, p. 139) refere-se a esse tipo de situação como a uma redução do
processo democrático a “mera delegação de poderes” e Holmesland et al. (1989, p. 138)
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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

consideram que “o diretor de escola pública, mesmo eleito, é um indivíduo que tende a
sentir-se desacompanhado, desprotegido, solitário”.
Não há dúvida de que, se o problema é a falta de tradição democrática, é com
a insistência em mecanismos de participação e de exercício da democracia que se
conseguirá maior envolvimento de todos em suas responsabilidades. Mas, diante da
associação que muitos fazem entre o direito de votar e a omissão em coparticipar das
responsabilidades do eleito, nunca é demais meditar sobre as palavras de Agnes Heller
sobre a questão da relação entre liberdade e dever:

Toda pessoa tem a liberdade de não reconhecer nenhum valor moral.


Mas, como já disse, isso não a ajuda a ser livre. Hegel tinha razão quando
distinguiu entre liberdade e arbítrio. A liberdade é sempre liberdade para
algo, e não apenas liberdade de algo. Se interpretarmos a liberdade apenas
como o fato de sermos livres de alguma coisa, encontramo-nos no estado de
arbítrio, definimo-nos de modo negativo.
A liberdade é uma relação e, como tal, deve ser continuamente ampliada.
O próprio conceito de liberdade contém o conceito de dever, o conceito de
regra, de reconhecimento, de intervenção recíproca. Com efeito, ninguém
pode ser livre se, em volta dele, há outros que não o são. (Heller, 1982, p.
155; grifos no original)

2. A nova situação do diretor

Passar de uma situação clientelista, onde o que vale é o critério político-


partidário, para uma situação de escolha democrática, legitimado pela vontade dos
sujeitos envolvidos na situação escolar, faria supor, para muitos, mudanças significativas
no perfil do diretor da escola pública básica. Entretanto, se assim aconteceu, isto não
foi percebido de modo inequívoco pelos que compartilham de alguma forma o espaço
escolar. O processo de escolha é apenas um dos múltiplos determinantes a influir na
maneira de gerir a escola e, em especial, no modo de agir do próprio diretor. Além
disso, se, por um lado, a eleição pressupõe mudanças de condutas do diretor (movidas,
especialmente, pelo compromisso que a eleição provoca com os eleitores), por outro,
os inúmeros problemas da gestão escolar, que permanecem, contribuem para dificultar
a percepção das mudanças ocorridas. Isto sem falar em problemas novos que surgem
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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

em substituição a antigos. Um desses novos problemas é referido por Castro et al.


quando apresentam as dificuldades do novo diretor para ter acesso aos órgãos centrais
do sistema escolar:

Quando o sistema era clientelístico, o diretor era escolhido com base em


critérios políticos e tinha uma forma de relacionamento baseada nesta
indicação política. Com a eleição de diretores, isto se modifica e o velho
sistema entra em desuso, mas uma nova forma de relacionamento está em
processo de formação e assim o diretor eleito tem muito menos acesso às
fontes de poder - à Secretaria de Obras do Estado e aos contactos políticos
tradicionais. O diretor eleito enfrenta, além de todas as dificuldades inerentes
à função, a de construir uma nova forma de relacionamento com os órgãos
superiores num breve período de mandato. (Castro et al., 1991, p. 101)

Em Holmesland et al. (1989, p. 132 seq.), encontram-se evidências de que,


apesar da eleição, o diretor continua numa situação de dubiedade entre o poder do
Estado e as reivindicações da escola. Sente que tem obrigação para com o Estado, mas,
ao mesmo tempo, recebe pleitos de seus liderados que entram em contradição com as
determinações do sistema superior de autoridade, e se vê em conflito pois não pode
deixar de ouvir aqueles que o elegeram. Sente, por isso, que era mais fácil a situação
anterior em que recebia determinações superiores e as impunha aos seus comandados,
sem maiores dificuldades.
Essa situação não deixa de ser reveladora de uma contradição originária do
próprio processo democrático de escolha do diretor. Mas parece que esta é precisamente
uma qualidade que se busca com a instituição da eleição: que as contradições venham à
tona e, no caso do diretor, que este seja, pelo menos em parte, desarticulado do poder
autoritário do Estado e se articule com os interesses da escola.
Parece que o diretor consegue perceber melhor, agora, sua situação contraditória
pelo fato de ser mais cobrado pelos que o elegeram. Este é um fato novo que não pode
ser menosprezado. À sua condição de responsável último pela escola e de preposto do
Estado no que tange ao cumprimento da lei e da ordem na instituição escolar, soma-se
agora seu novo papel de líder da escola, legitimado democraticamente pelo voto de seus
comandados, que exige dele maior apego aos interesses do pessoal escolar e dos usuários,

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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

em contraposição ao poder do Estado. Isso serviu para introduzir mudanças na conduta


dos diretores eleitos que passaram a ver com maior cuidado as solicitações de professores,
funcionários, alunos e pais. Um membro da diretoria do Fórum Paranaense em Defesa
da Escola Pública, Gratuita e Universal considera que, se a eleição não mudou o papel
do diretor, pelo menos o afetou, servindo para quebrar “a marca autoritária presente
na relação entre a direção da escola e o corpo docente, discente, etc.”. Considera ele
que houve maior proximidade entre diretor e professores bem como com funcionários,
alunos e pais e cita como exemplo a maior facilidade e possibilidade de existência dos
grêmios estudantis, que eram muito dificultados anteriormente e que passaram a ser
vistos com maior simpatia pela direção.
Uma evidência da maior aproximação do diretor com o corpo docente foi sua
mudança de atitude com relação aos movimentos grevistas dos professores. Holmesland
et alii assim se referem à postura dos professores no Estado do Rio Grande do Sul:

O sentimento de não cooptação por parte dos diretores parece ser bastante
forte e se tornou mais evidente por ocasião das greves gerais de magistério.
No Rio Grande do Sul os diretores tomaram o partido dos professores e
foram juntos à praça pública. Por essas razões a hierarquia do sistema de
ensino tenha, talvez, se sentido ameaçada, percebendo a eleição como um
fator desestruturante de sua posição de poder. (Holmesland et al., 1989,
p. 164)

Antes, era praxe o diretor nomeado encaminhar listas com os nomes dos
professores em greve sempre que solicitado pelas autoridades superiores. Com a eleição
do dirigente escolar, essa prática passou a ser questionada e negada pelo diretor, que
passou a reivindicar melhor tratamento dos governos aos movimentos grevistas. Um
exemplo típico dessa nova postura é relatado por Calaça, referindo-se à greve no sistema
municipal de ensino de Goiânia no início do segundo semestre de 1983:

Nesse confronto aberto, o prefeito contava apenas com o apoio de um


bloco pequeno de vereadores que exigia dele a demissão imediata dos
grevistas. Já os 83 diretores, na condição de eleitos pela comunidade escolar
posicionaram-se contra a decisão do prefeito Nion e defendiam o diálogo;

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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

alguns vereadores e a Secretária da Educação cobravam do Prefeito as


promessas de palanque do PMDB e o pressionavam para resolver o impasse
que ele próprio criou. (Calaça, 1993, p. 74)

Em Santa Catarina, em 1987, conforme relatado por Leal e Silva, os diretores


assumem posição semelhante, ao emitirem o chamado “Manifesto dos Diretores das
Escolas Estaduais de Santa Catarina”, resultante de assembleia realizada em 4 de junho,
em Florianópolis:

Outro aspecto que a leitura do Manifesto e da ata da assembleia revela é


a posição de mediadores que os diretores parecem assumir. Colocam-se
numa clara posição de defesa dos professores e de seus direitos, na medida
em que consideram suas reivindicações justas e legítimas e decidem não
encaminhar, às instâncias superiores, as listas com os nomes dos professores
grevistas, solicitadas pelo governo. Ao mesmo tempo, exercem pressão
sobre o governo para que apresse os entendimentos com as associações,
cumpra a legislação em vigor e não puna os professores em greve. (Leal;
Silva, 1987, p. 71-72)

Todavia, parece que a nova situação ainda não teve a qualidade de dotar o diretor
e a escola de um novo poder de barganha diante do próprio Estado que, habituado
a agir clientelisticamente no atendimento às unidades escolares, com a ausência do
clientelismo, se acomoda em simplesmente não dar ouvidos às solicitações do diretor.
De qualquer forma, o ter conseguido nova postura, pelo menos do diretor, parece
ser uma conquista do processo eletivo que não se deve menosprezar. Além disso, há
indícios de que os próprios diretores consideram a nova situação mais positiva para a
administração da escola.
É interessante observar que a eleição de diretores não apenas traz novas
determinações ao papel do diretor, mas, em muitos casos, possibilita o acesso ao cargo
a um novo contingente de professores que, pelo critério da nomeação clientelista,
dificilmente viriam a se tornar dirigentes escolares. Ao mesmo tempo, deve-se observar
também que o antigo diretor era mais identificado com as obrigações burocráticas e não
tinha um passado de escolha livre por seus comandados como estímulo para defender
mecanismos democráticos como passa a ter o diretor eleito.
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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

Finalmente, nota-se que, com a menor preocupação com as questões mais


propriamente burocráticas, ganha espaço na pauta de ocupações do diretor a atenção
ao pedagógico. A função de direção, anteriormente enredada em múltiplas atividades
destinadas a atender solicitações dos órgãos superiores pouco relacionadas com as
atividades-fim da escola, de repente se sente também pressionada a dedicar-se com
maior cuidado ao pedagógico que, afinal de contas, foi objeto de todos os discursos
nas campanhas para a eleição. O processo eletivo, dessa forma, não apenas favorece
o comprometimento com a razão de ser da escola, ou seja, o educativo, por parte dos
candidatos, mas também propicia a colocação em evidência do pedagógico nas discussões
que se fazem, por parte de todos, em torno da questão diretiva. Como consequência,
parece estar ganhando maior relevo, tanto nas preocupações dos diretores eleitos,
quanto nas exigências de seus liderados, a atenção com as atividades pedagógicas da
escola. Na pesquisa de campo, isso transpareceu no depoimento do pessoal escolar bem
como de outras pessoas envolvidas nas experiências.
Essa constatação é muito importante porque acena para uma nova orientação
na prática diretiva escolar que deixa de identificar-se com uma práxis “burocratizada”
no sentido que lhe dá Sánchez Vázquez (1977, p. 260 seq.), de prática reiterativa como
um fim em si mesma, passando a constituir-se em prática mediadora que, em seu caráter
administrativo de “utilização racional de recursos para a realização de fins determinados”
(Paro, 1986, p. 18), instrumentaliza a consecução dos objetivos educativos da instituição
escolar.

3. Democracia na escola

Um ponto positivo a creditar à introdução das eleições como critério de escolha


dos dirigentes escolares é o interesse despertado nos vários sistemas onde o processo
se deu. Os vários depoimentos colhidos junto a pessoas ligadas diretamente à escola ou
a administração do sistema de ensino confirmam aquilo que alguns estudos já haviam
constatado com relação ao grande comparecimento dos vários setores da escola nas
eleições. (Zabot, 1984; Holmesland et al., 1989; Mello; Silva, 1994)
A grande participação das pessoas nas eleições ganha significado especial
quando associada à opinião daqueles que estiveram envolvidos com o processo. Tanto

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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

nas entrevistas que fiz quanto nos estudos a respeito das eleições em vários sistemas
em que elas se deram, a maioria das pessoas tem uma opinião bastante positiva sobre
os benefícios trazidos pela adoção do novo critério de escolha. Segundo um ex-assessor
da Secretaria da Educação do Estado do Paraná, uma das provas de que a eleição era um
processo acertado é que, nesse Estado, praticamente todas as prefeituras adotaram o
processo eletivo como critério para escolha do diretor.
Sobre o fato de a participação dos vários setores nas decisões da escola ficarem
aquém do desejado, é importante atentar para as observações feitas por Calaça a propósito
das eleições em Goiânia. Após considerar que, “embora esteja a escola elegendo seu
diretor, já há oito anos, não se instituiu uma prática efetiva de participação dos vários
segmentos em suas decisões com a consequente criação de canais que facilitassem esse
processo”, a autora pondera, entretanto, que

os vários segmentos, pelo fato mesmo de elegerem o diretor, se sentem


compelidos, e bem à vontade, a fazer interlocução com o diretor.
Comumente, as pessoas em conversa de “pé de ouvido” elogiam ou
criticam a ação do diretor e ainda dão sugestões ou fazem reivindicações.
(Calaça, 1993, p. 210)

Essa maior possibilidade de opinar, característica de um ambiente mais


democrático, acaba levando os sujeitos envolvidos na educação escolar a uma postura
mais participativa. A abertura para um diálogo mais franco certamente possibilita o
surgimento de conflitos de opiniões e interesses. O que não se deve, porém, é tomar isso
como algo negativo, mas considerar o que verdadeiramente se passa, isto é: a eleição
de diretores, ao supor um processo de discussão e de exame crítico da realidade e dos
interesses em jogo, está apenas fazendo vir à tona conflitos que permaneciam latentes e
que só se resolverão de modo positivo pelo exercício do diálogo e da democracia.
O que se observa também é que os conflitos que vêm à tona revelam uma maior
consciência política que começa a se desenvolver entre os participantes do processo.
Essa maior consciência política do pessoal escolar e dos usuários da escola se manifesta
quer em sua politização em termos de exigir mais do diretor eleito e do Estado de
modo geral, quer na preferência por soluções democráticas para a seleção do diretor,
não admitindo um retrocesso para a escolha pela via da simples nomeação por critério
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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

político partidário. Tanto nos depoimentos dos vários sujeitos envolvidos, quanto em
estudos sobre o assunto (Calaça, 1993; Heemann; Pucci, 1986) é notável a preferência
das pessoas pela eleição como critério de escolha dos diretores, sequer cogitando elas de
outra alternativa.
Com relação aos professores, esses dados contrastam enormemente com os que
foram obtidos na cidade de São Paulo, em 1991, em consulta feita entre os professores e
especialistas da rede municipal, em que cerca de 81% dos docentes preferiram a escolha
pela via do concurso. A hipótese que se pode levantar - sujeita, obviamente, a estudos
mais aprofundados que lhe possam verificar a validade - é a de que, em ambientes onde
se faz presente a discussão política da democracia e sua efetivação pela via do voto, os
sujeitos estão mais propensos a concordar com essa medida do que nos locais onde
a existência do sistema de concursos com aparência de justiça social tem eclipsado a
discussão a respeito de sua própria inadequação para atender as necessidades políticas
de democracia na escola.
Tudo isso remete à própria situação atual da escola pública básica. Sendo esta
uma questão de natureza eminentemente política, visto que quem detém o poder de
decidir, o Estado, nega-se a atender os interesses dos usuários que são os que financiam
a escola estatal por meio de seus impostos, nem sempre ela é assim percebida pelos
que trabalham na unidade escolar. Nos sistemas em que o diretor é nomeado, seu
compromisso político é com quem está no poder, porque foi quem o nomeou; nos
sistemas em que ele é concursado, seu compromisso é também com quem está no poder,
pois o concurso isolado não estabelece nenhum vínculo do diretor com os usuários, mas
sim com o Estado que é quem o legitima pela Lei. Mas há uma diferença importante:
quando há a nomeação pura e simples, o aspecto político fica à mostra, provocando,
especialmente em períodos de democratização da sociedade, descontentamento e
mobilização dos prejudicados no sentido de superar a situação; mas, nos casos em que
há a ocorrência do concurso como critério exclusivo de escolha, há o agravante de que
o aspecto político fica escamoteado, com maior tendência de acomodação e de crença
na justificativa meramente técnica para os problemas da escola.
Uma consciência política mais desenvolvida e voltada para os interesses de
todos na escola, sem restringir-se ao corporativismo estreito ou às imposições muitas
vezes antieducativas do Estado, só poderá desenvolver-se num ambiente escolar em

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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

que todos possam conviver como sujeitos, com direitos e deveres percebidos a partir
da discussão aberta de todas as questões que afetam a vida de todos na escola. Embora
a simples existência da eleição de diretores não tenha a possibilidade de instituir, por si
só, esse ambiente na escola, parece certo que ela é uma prática que tem concorrido, de
alguma forma, para isso. Segundo Dourado (1990, p. 128), a partir da implementação
das eleições, em Goiânia, “professores, funcionários, pais e alunos começaram a discutir
a escola que tinham e, em alguns casos, a esboçar, ainda que preliminarmente, a escola
que queriam”. O citado diretor do Fórum Paranaense em Defesa da Escola Pública,
Gratuita e Universal considera que o que houve de positivo com a eleição foi “a abertura
no debate sobre as questões educativas na escola, envolvendo tanto a comunidade de
dentro como a comunidade de fora”.
Essa maior discussão e maior participação, especialmente de pais e alunos, acaba
contribuindo para que se dê, na escola, o desejado controle democrático do Estado por
parte dos usuários de seus serviços. No estado de Mato Grosso do Sul, onde a eleição de
diretores associou-se à instalação dos colegiados escolares, Paixão constata que

algumas decisões tomadas também demonstraram mudanças na postura


tradicional de gestão da escola. As audiências solicitadas à Secretaria de
Educação passaram a ser feitas pelos colegiados e, em algumas ocasiões, em
conjunto com a Associação de Pais e Mestres (APM). Constata-se, também,
fortalecimento da ação colegiada à proporção que certas irregularidades
ocorridas na escola passaram a ser encaradas com maior seriedade, havendo
formalização de denúncias e instalação de sindicâncias para averiguações
e possíveis correções. Desta forma, o poder compartilhado tem inibido a
prática de ações irresponsáveis. (Paixão, 1994, p. 114)

A circunstância de ser um colegiado e não o diretor isoladamente a levar suas


reivindicações aos escalões superiores da Secretaria de Educação significa importante
inversão na forma de pressão da escola sobre as autoridades estatais, sobre cujos
benefícios me referi em trabalho anterior ao relevar a importância da gestão colegiada
na busca de melhor apoio para a escola, afirmando que é mais difícil dizer “não” ao
pedido da escola, “quando a reivindicação não for de uma pessoa, mas de um grupo, que
represente outros grupos e que esteja instrumentalizado pela conscientização que sua
própria organização propicia” (Paro, 1987, p. 53).
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eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

Certamente o impacto das eleições sobre a democracia na escola ficou muito


aquém do esperado pelos mais otimistas que queriam, senão todos, pelo menos um
grande número de pessoas, entre pais, alunos, funcionários e professores, participando
intensamente das decisões da escola pública. O que se deu, na verdade, além da
ocorrência importantíssima de um novo clima de liberdade de expressão e de uma
maior consciência de direitos e deveres, foi que a participação mais ativa ficou por conta
de alguns poucos elementos mais persistentes em suas ações. Mas, a lição importante
a tirar parece ser precisamente a respeito da importância de se contar com pessoas que
se dispõem a participar democraticamente, porque, mesmo contando com reduzido
número de adeptos atuantes, a prática democrática tem conseguido imprimir uma nova
qualidade nos rumos das ações desenvolvidas no interior da escola.
A maneira de o indivíduo fazer prevalecer seus interesses em concordância com
o respeito aos direitos dos demais é, cada vez mais, sua intervenção nos destinos da
sociedade. Isto não se consegue apenas delegando as tomadas de decisão a parlamentares
e executivos distantes que, em grande medida, escapam ao controle daqueles em nome
dos quais o governo deve exercer-se. Por mais incipiente que ainda seja, essa participação
dos indivíduos na vida dos organismos civis da sociedade apresenta pelo menos dois
aspectos de fundamental importância para o desenvolvimento da democracia. Por um
lado, na medida em que se envolve com outros sujeitos (individuais ou coletivos), o
indivíduo exercita sua cidadania “já que ser cidadão, e ser indivíduo, é algo que se aprende,
e é algo demarcado por expectativas de comportamentos singulares” (DaMatta, 1991,
p. 72). Por outro lado, ao intervir com sua opinião e explicitação de seus interesses,
procurando influir nas decisões que se tomam nos órgãos e instâncias onde se realizam
as atividades-fim do aparelho estatal (escolas, atendimento de saúde, transportes, etc.),
os cidadãos contribuem para realizar o controle democrático do Estado, concorrendo para
que este atue de acordo com os interesses da população que o mantém.
Uma análise consistente da realidade escolar brasileira mostra que a atual
situação de precariedade da escola pública só poderá ser superada a partir de forte
vontade política dos governantes, que se concretize na necessária atenção para com o
ensino e no provimento dos recursos imprescindíveis para a realização de uma escola
pública de qualidade. A esse respeito, a eleição de diretores não tem o imediatismo
que muitos desejariam. Seu papel é apenas o de contribuir para que a população possa
64
eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

contar com um recurso que lhe possibilite exercer alguma pressão sobre o Estado
para que ele atue na direção desejada. Em síntese, a razão determinante da opção pela
eleição como mecanismo de seleção de diretores é a crença de que, por um lado, pode-
se escolher um profissional que se articule com os interesses da escola, e por outro, o
próprio método de escolha condiciona, em certa medida, seu compromisso, não com
o Estado, como fazem as opções do concurso e da nomeação, mas com os servidores e
usuários da escola. Mas, por mais importante que seja esse comprometimento - porque
deixa aberta a possibilidade de o diretor, articulando-se com usuários e servidores,
pressionar o Estado - ele é apenas um recurso para melhorar a escola, não uma certeza.
Tudo dependerá do jogo de forças envolvidas, que não é função, obviamente, apenas da
eleição do diretor.

65
eleição de diretores de escolas públicas Vitor Henrique Paro

Referências

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67
Parem de preparar para o trabalho!!!
Reflexões acerca dos efeitos do neoliberalismo
sobre a gestão e o papel da escola básica 1

Introdução

As recentes tentativas de aplicação da “gerência da qualidade total” às escolas


básicas no Brasil constituem caso particular da tendência que existe, sob o capitalismo,
de aplicar a todas as instituições, em particular às educativas, os mesmos princípios e
métodos administrativos vigentes na empresa capitalista. Em trabalho anterior (Paro,
1986), que denunciava essa tendência, pude demonstrar a maneira como ela contradiz
o caráter educativo das práticas e relações que se espera ter lugar na escola. Entendida
em seu sentido mais geral e abstrato, o que toda administração tem de “essencial” é
o fato de constituir-se em “utilização racional de recursos para a realização de fins
determinados” (Paro, 1986, p. 18). Diante desse caráter mediador, são os fins buscados
que dão especificidade a cada administração em particular. No caso da administração
tipicamente capitalista, esta é concebida para dar conta das questões relacionadas
à eficiência interna e ao controle do trabalho alheio na empresa produtora de bens
ou serviços, tendo como escopo servir à apropriação do excedente, pela dominação
do trabalhador. Disso decorre a impropriedade de sua aplicação em instituição cujos

1 Trabalho apresentado no Seminário “Trabalho, Formação e Currículo”, realizado na PUC-SP de 24 a


25/8/1998.
68
parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

fins dizem respeito à constituição de sujeitos, como é o caso da escola. Isto porque
os objetivos que se buscam na empresa capitalista não são apenas diferentes, mas
antagônicos aos buscados na escola.
Nos últimos anos, a crítica da aplicação da “qualidade total” nas escolas tem sido
feita com competência por diversos autores (v. Fidalgo; Machado, 1994; Gentili; Silva,
1995; Gentili, 1997; Oliveira, 1997). Um dos principais objetos de análise dessa crítica é
a aplicação da lógica do mercado aos assuntos educacionais que a nova onda, chamada
de neoliberal, vem adotando. Todavia, um importante aspecto da adoção de parâmetros
neoliberais à gestão escolar que parece não ter merecido ainda a necessária atenção
dos especialistas são os efeitos diretos das novas práticas de gestão sobre a formação
dos estudantes. Ou seja, trata-se de se perguntar em que medida as práticas adotadas
ou preconizadas pelos adeptos da “qualidade total”, com sustentação na ideologia2 do
liberalismo econômico, carregam consigo um currículo oculto capaz de agir sobre as
condutas dos próprios educandos que comungam dos tempos e espaços em que essas
práticas se introduzem.
O presente ensaio pretende ser uma contribuição a essa reflexão, procurando
examinar as implicações de uma gestão escolar pautada em valores liberais para o papel
desempenhado pela escola pública fundamental bem como apontar perspectivas de
reação à ausência de saber crítico dominante nessas escolas.

1. Sobre “qualidade total”, liberalismo e liberdade

Em vez de retomar os múltiplos aspectos da crítica à aplicação do modelo


gerencial da qualidade total na escola, talvez seja mais produtivo começar por examinar
uma das críticas que mais sobressaem nesse debate e que se refere à matriz ideológica de
onde provém esse modelo, ou seja, o liberalismo econômico, cuja principal característica
é a crença nas qualidades do mercado livre para dirigir as relações sociais da forma mais
adequada possível aos cidadãos em geral.
Entendida a educação como constituição cultural de sujeitos livres, é importante,
quando se a relaciona com o liberalismo econômico, perguntar-se a respeito do
2 Estaremos aplicando o termo ideologia no sentido gramsciano de “uma concepção do mundo que se
manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida
individuais e coletivas” (Gramsci, 1978a, p. 16).
69
parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

significado que o componente “liberdade” assume naquele conceito e nesta ideologia.


E aí vamos perceber que, quando o liberalismo fala de liberdade de mercado, ele está
se referindo à necessidade de se deixar que as relações sociais se deem de acordo com
as regras do mercado, sem que se interfira em seu natural desenvolvimento. Liberdade,
nessa acepção, é quase apenas o oposto de prisão: estar livre é estar solto. É um sentido
de liberdade que, no senso comum, é sinônimo de espontaneísmo, de permissão para
se fazer aquilo que se deseja, desde que se obedeçam a certas regras. Só que, neste caso,
trata-se das regras do mercado, que independem da ação dos homens organizados como
sujeitos e representados pelo estado ou outra entidade que seja seu porta-voz enquanto
vontade coletiva. Trata-se, portanto, de uma liberdade natural (apesar do contrassenso
da expressão, como veremos adiante): é a liberdade do pássaro para voar, mas é também
a liberdade do leão para devorar o cordeiro.
Como se pode perceber, essa “liberdade” restrita ao domínio do natural — bem
como o liberalismo que a adota — não basta para dar conta do homem em seu sentido
histórico, como construtor de sua própria humanidade. Isto porque, a partir dessa
concepção de mundo mais abrangente, o homem é natureza (algo que independe de sua
vontade) mas é também transcendência da natureza. É natureza enquanto um corpo
situado no mundo e condicionado por um sem número de necessidades; mas é reação
à natureza na medida em que, reagindo a essas necessidades e a sua situação natural,
supera-as, construindo sua própria história. Neste sentido, o homem é o único ser
ético, porque, diversamente do animal e de tudo mais que há na natureza, assume uma
posição de não indiferença (Ortega y Gasset, 1963) diante do mundo. O homem depara-
se com sua circunstância e diz “Isto é bom; isso não é bom”, demonstrando, portanto, ser
criador de valores. O homem cria valores e, a partir deles, estabelece objetivos (Saviani,
1980). Ao aplicar sua atividade para a busca de objetivos (que são humanos, criados por
ele, não preexistentes a ele), o homem se constrói, construindo um mundo novo ao
seu redor, pelo trabalho (Marx, [19--]). Isso porque o homem não se contenta com sua
“liberdade” natural, considerada mera licença, mas, sobre ela, transcendendo-a, constrói
a verdadeira liberdade.
Disso decorre o contrassenso de se falar em liberdade natural. A natureza é o
domínio da necessidade — daquilo que independe da ação humana, daquilo que acontece
necessariamente, sem que o homem possa interferir —, não da liberdade; esta é construída,

70
parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

não preexiste à ação humana. A necessidade é precisamente o oposto da liberdade.


Em seu domínio vigoram apenas as leis naturais. Leis estas que podem ser conhecidas
pelo homem, por ele dominadas e postas a seu serviço, mas que também podem ser
desconhecidas ou propositadamente ignoradas, podendo constituir empecilhos a seu
pleno desenvolvimento. No primeiro caso, pelo domínio das leis naturais, o homem
afirma-se como sujeito que constrói sua historicidade, enquanto, no segundo, escapa-
lhe essa possibilidade ao deixar as leis agirem fora de seu domínio.
É preciso considerar também que as leis naturais não se referem apenas ao
mundo físico (como a lei de atração dos corpos, por exemplo), mas também ao mundo
animal e às relações interpessoais. A mesma lei da selva pela qual os mais fortes dominam
e devoram os mais fracos pode vigorar entre pessoas ou grupos humanos, quando as
relações não são orientadas a partir da eliminação dessa lei da força, pela mediação
do entendimento em favor de valores histórico-humanos mais elevados. A lei do livre
mercado, na sociedade capitalista, mesmo se referindo a relações entre os homens, não
deixa de ser uma lei natural, pois faz parte de suas condições de funcionamento que ela
aja sem que o homem, enquanto ser histórico, interfira em sua ação e em seus efeitos,
ou seja, tudo acontece como se todos tivessem o direito e a “liberdade” de comprar e
vender a quem e de quem quisessem. Todavia, as pessoas e os grupos o fazem a partir de
situações de poder e de propriedade que não dependem de suas vontades. Enquanto uns
poucos detêm a propriedade de meios de produção e de vida ou mantêm compromissos
com quem os detêm, a imensa maioria está separada das condições objetivas da produção
de suas existências, tendo que se submeter, “livremente” — ou seja, dirigidos pelas leis
naturais do mercado — aos interesses dos primeiros. Percebe-se, pois, que existe tudo,
menos liberdade no sentido histórico que vimos antes. É por isso que o liberalismo
econômico, ideologia dos proprietários e poderosos, vestindo ou não sua roupa nova
neoliberal, não abre mão de usar e abusar da expressão “liberdade natural”, dizendo-se
em favor da liberdade dos povos, quando o que defende é apenas o “livre mercado”, ou
seja: “liberdade” para seus representados e necessidade para os demais. Não deixa, assim,
de ser extremamente paradoxal que a palavra liberdade continue a servir à ideologia que
hoje mais a despreza enquanto emancipação humana.
Como dissemos, a verdadeira liberdade humana, aquela que empresta ao homem
sua especificidade histórica, não existe naturalmente, mas é produto da atividade humana
71
parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

em sua autocriação histórica. Nessa autocriação, o homem não se contenta com satisfazer
as necessidades naturais, porque para ele “somente o supérfluo é necessário” (Ortega y
Gasset, 1963). As necessidades naturais independem de sua vontade e a satisfação destas
permite a ele apenas estar no mundo como os seres naturais. Mas o homem não almeja
apenas estar no mundo; o homem almeja estar bem. Para ele, não importa apenas viver,
mas viver bem. Isto é tão dramático que o homem que perde as esperanças de viver bem
prefere suicidar-se a apenas viver (Ortega y Gasset, 1963): “navegar é preciso, viver não
é preciso”. Além disso, essa autocriação nunca se dá de forma individual, já que nenhum
homem ou mulher sozinho consegue produzir diretamente sua própria existência. Ou
seja, o homem se faz pelo trabalho, mas, apenas pela divisão social do trabalho, que o
põe em contacto com os demais componentes da sociedade, é que ele consegue fazê-lo.
Isto coloca para o ser humano uma das maiores questões da filosofia: a construção de sua
liberdade em convivência com os demais seres humanos.
A questão comporta duas dimensões que se complementam. Em primeiro lugar,
ao se admitir que a construção do homem histórico se dá a partir de uma relação de
verticalidade homem—natureza, na qual o primeiro entra como sujeito e o segundo
como objeto de sua ação, só se pode admitir que a relação homem—homem seja de
horizontalidade, na qual ambos sejam sujeitos. Se me suponho humano por minha
posição de sujeito diante da natureza, ao submeter um semelhante, com minha
dominação, à condição de objeto, nego nele, (portanto, nego em mim) a condição de
sujeito, reduzindo-o (e reduzindo a mim, seu semelhante) à condição natural. Conclui-
se, com isso, que qualquer tipo de dominação é desumana, pois concorre para negar a
própria especificidade histórica do homem.
A segunda dimensão da inevitabilidade da relação dos homens entre si na
construção de sua especificidade histórico-humana diz respeito aos problemas que
se apresentam nessa relação para que a liberdade de cada um seja, não simplesmente
respeitada, mas construída coletivamente. Isto coloca a necessidade de uma mediação,
sem a qual não é possível preservar os direitos de todos e construir a liberdade. Essa
mediação podemos chamá-la democracia se, para além de sua conotação etimológica
de “governo do povo” ou sua versão formal de “governo da maioria”, alargarmos o
significado do termo para incluir nele todos os meios e esforços que se utilizam para
concretizar o entendimento entre grupos e pessoas, a partir de valores construídos

72
parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

historicamente. Esse caráter mediador da democracia revela mais uma vez a diferença
que há entre a condição natural de liberdade e sua conotação histórica. O pássaro não
precisa de mediação para ser “livre” porque ele não é autor de sua “liberdade”. Mas, para
os homens, a liberdade que os constitui historicamente não se apresenta naturalmente,
mas é construída em colaboração com outros. Por isso, também quando se diz “libertar-
se”, significando ficar solto ou livrar-se de grilhões, não se está expressando todo o
conteúdo da liberdade, mas apenas uma das condições (talvez o ponto de partida) para o
ser livre, ou seja, para o exercício da liberdade. Esse exercício é que se constitui na própria
democracia como mediação para a liberdade. Por isso é que se diz que a democracia é ao
mesmo tempo meio e fim, visto que sua realização (uma mediação) se consubstancia na
própria realização da liberdade, não como apenas uma palavra, mas como algo concreto
que é a própria realização do homem em sua especificidade histórica.

2. Centralidade do trabalho: mediação ou fim?

Se o que caracteriza o ser humano e o diferencia dos demais seres da natureza


é sua não indiferença com relação ao mundo, que o leva a criar valores e a fazer deles
objetivos que ele busca alcançar, o que lhe possibilita a concretização dessa diferença
é precisamente a atividade que ele desenvolve para concretizar esse fim, ou seja, o
trabalho humano. O trabalho em sua forma humana é, pois, a mediação que o homem
necessita para construir-se historicamente. A centralidade do trabalho na sociedade está
precisamente em seu poder de explicação dessa sociedade e da história, não podendo,
entretanto, ser confundido com a razão de ser e o objetivo último do homem enquanto
ser histórico. O trabalho possibilita essa historicidade, não é a razão de ser dela. O
trabalho é central porque possibilita a realização do bem viver, que é precisamente o
usufruir de tudo que o trabalho pode propiciar. A não compreensão dessa distinção pode
levar muitos a confundir os momentos, numa posição carrancuda que só vê virtudes
no esforço insano das camadas trabalhadoras em seu papel de carregar o mundo nas
costas, ao mesmo tempo que desenvolve comportamentos preconcebidos com relação
ao tempo de não trabalho ou ao gozo do ócio.
Mas, para que o trabalho seja mediação para o bem viver, numa sociedade de
humanos — ou seja, numa sociedade onde predomine a liberdade, não a necessidade

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parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

— é preciso que estejam presentes as demais características que fundam a humanidade


do homem, em especial a sua condição de sujeito, em relação de colaboração, não de
dominação, com os demais. Ora, como vimos, é precisamente isso que falta nas relações
sociais que se dão sob o capitalismo, onde o trabalho é subordinado às regras do mercado,
leia-se “do capital”. Nunca se enfatizará suficientemente a forma dramática como o
modo de produzir especificamente capitalista violenta as condições de exercício de um
trabalho emancipador do homem histórico. Para ter acesso aos meios de produção e
poder produzir sua própria existência material, o trabalhador tem de submeter-se às
regras do capital, realizando um trabalho forçado, que não serve a ele, trabalhador,
mas ao proprietário do capital. Essa separação entre o trabalhador e o produto de seu
trabalho provoca uma cisão no próprio homem pois, como vimos, o que ele produz
constitui parte de sua humanidade que, neste caso, separa-se dele, sendo expropriada
por aquele que detém a propriedade das condições de vida (representada pelos meios
de produção). Sob esse modo de produção, o trabalho deixa de ser móvel de realização
humana para constituir-se em fonte de aniquilamento do ser humano como sujeito.
As potencialidades do trabalho concreto — criador de utilidades (bens e serviços) que
possibilitam a emancipação humana — são secundarizadas em favor da precedência
absoluta do trabalho abstrato — criador do valor econômico que serve à expansão do
capital.
Diante desse quadro, ou seja, do tipo de trabalho que se apresenta aos nossos
olhos, parece difícil advogar uma centralidade do trabalho enquanto possibilidade de
criação do homem histórico. Além disso, a atual crise do capitalismo real (Frigotto, 1995)
tem propiciado análises que afirmam a crise do trabalho e o fim de sua centralidade.
Na verdade, a crise é do trabalho abstrato, sustentáculo da sociedade capitalista, mas é
preciso estar atento porque “a recusa radical do trabalho abstrato não deve levar à recusa
da possibilidade de conceber o trabalho concreto como dimensão primária, originária,
ponto de partida para a realização das necessidades humanas e sociais” (Antunes, 1995,
p. 80).
O capitalismo só consegue instalar-se plenamente em uma sociedade quando
são eliminadas ou reduzidas à insignificância todas as outras formas alternativas de se
ganhar a vida pelo trabalho não subordinado ao capital. Não foi sem provocar muita
desgraça e miséria às camadas pobres, nem sem muita violência no campo e na cidade,

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parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

perpetrada durante séculos, que se conseguiu instalar-se um mercado de trabalho


capitalista (Polanyi, 1980) e que esse tipo de trabalho que violenta a espécie humana
conseguiu impor-se como modo dominante na sociedade. Por isso, mesmo penoso e
alienado3, o trabalho continua sendo referência para todos em nossa sociedade. Porque
não divisa outra solução, conseguir um emprego e deixar-se explorar é o sonho da
imensa população de despossuídos. Assim, toda a vida dos membros das camadas
trabalhadoras, desde a infância, é preenchida por preocupações a respeito do trabalho
alienado que está desenvolvendo ou vai desenvolver no futuro.
Assim, como o programa de vida das camadas de trabalhadores é quase nada
para o viver bem de que falamos anteriormente e quase tudo para o apenas viver, ou
pior, para o não morrer, também quando se fala em educação e, em especial, em escola,
a primeira preocupação, ou a preocupação que está subentendida nas demais, é com a
preparação para o trabalho. Sempre que se procura saber, em pesquisas de campo, qual
a função da escola, as respostas que se obtêm, tanto por parte de alunos e pais, quanto
de professores e demais educadores escolares, sempre convergem para a questão do
trabalho. Fala-se, muitas vezes, que se estuda “para ter uma vida melhor”, mas, quando
se procura saber o que isso significa, está sempre por trás a convicção de que “ter sucesso”
ou “ser alguém na vida” é algo que se consegue pelo trabalho, ou melhor, pelo emprego.
Uns, por premência, querem o emprego já; outros, com maior expectativa, se preparam
para conseguir passar no vestibular e ter um emprego melhor, depois. Sabendo-se a
que tipo de trabalho, ou de emprego, está-se referindo, não é de menor importância
perguntar qual o real papel da escola nessa questão.

3. Papel da Escola: preparação para que trabalho?

Na história da humanidade, a apropriação da herança cultural anterior sempre


desempenhou papel central e decisivo sem a qual a própria construção do homem
em sua especificidade seria inviabilizada. Nessa construção histórica, ao se propor o
supérfluo e ao buscar realizá-lo, o homem mantém contacto com a natureza e com
seus semelhantes, produzindo conhecimentos, valores, técnicas, comportamentos, arte,
tudo enfim que podemos sintetizar com o nome de saber historicamente produzido.
3 E é alienado não porque, simplesmente, é dividido, mas por conta da cisão mencionada anterior-
mente, em que o produto do trabalho se aliena, separa-se, do trabalhador.
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parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

Para que isso não se perca, para que a humanidade não tenha que
reinventar tudo a cada nova geração, fato que a condenaria a permanecer
na mais primitiva situação, é preciso que o saber esteja permanentemente
sendo passado para as gerações subsequentes. Essa mediação é realizada pela
educação, entendida como a apropriação do saber historicamente produzido.
Disso decorre a centralidade da educação enquanto condição imprescindível
da própria realização histórica do homem. (Paro, 1997b, p. 108)

Porque atingimos um estágio em nosso desenvolvimento histórico em que grande


parte do que apreendemos da herança cultural se dá mais ou menos automaticamente —
no seio da família, pelo contacto com os vários grupos sociais com que nos relacionamos
ou pela mídia, das mais diferentes formas — tem-se a impressão de que a educação
acontece naturalmente, quando na verdade ela é pura criação humana que visa superar,
pelo menos em parte, a diferença entre o que conhecemos ao nascer e tudo aquilo que a
humanidade criou de saber desde que o homem existe na face da terra. A verdade é que
hoje, e sempre, cada novo ser humano nasce tão ignorante quanto nasciam as crianças há
centenas de milhares de anos, porque o saber não é biologicamente hereditário, ou seja,
não se transmite pelos genes, mas constitui herança de que só se apropria pela mediação
da educação. E não nos esqueçamos de que sob o nome de saber estamos incluindo desde
o mais simples conhecimento sobre a realidade física até os mais complexos valores
como aqueles relacionados aos direitos humanos e de cidadania que demoraram muitos
milhares de anos para serem criados e consumiram muitos milhões de vidas humanas
para serem conquistados. Educação é, pois, atualização histórica de cada indivíduo e
o educador é o mediador que serve de guia para esse mundo praticamente infinito da
criação humana.
Sendo o local onde se dá (ou deveria dar-se) a educação sistematizada, a escola
participa da divisão social do trabalho, objetivando prover os indivíduos de elementos
culturais necessários para viver na sociedade a que pertence. A própria Constituição
Federal reconhece a imprescindibilidade de um mínimo de educação formal para o
exercício da cidadania, ao estabelecer o ensino fundamental gratuito e obrigatório.
Isto significa que há um mínimo de conteúdos culturais de que todo cidadão deverá
apropriar-se para não ser prejudicado no usufruto de tudo aquilo a que ele tem direito
por pertencer a esta sociedade.
76
parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

A escola fundamental reveste-se, assim, de uma dupla responsabilidade social:


por um lado, é uma mediação indispensável para a cidadania, ao prover, de modo
sistemático e organizado, a educação que atualiza historicamente as novas gerações; por
outro, porque não pode dar conta de todo o saber produzido historicamente, ela precisa
fazer isso de modo seletivo, priorizando aquilo que é mais relevante para a formação
dos cidadãos. Tudo isso empresta uma extrema seriedade àquilo que a escola se propõe
a fazer e àquilo que ela de fato faz.
Quando se examina a prática e se analisa com frieza o que a escola procura
fazer, na ação de seus professores e no atendimento às aspirações e expectativas de
seus usuários, o que aparece sempre como perspectiva essencial é o mercado de
trabalho (agora, visando o emprego imediato; no futuro, visando a preparação para
a universidade). Não importa que o ensino fundamental, por exemplo, não tenha
conteúdos específicos preparatórios para esta ou aquela profissão, ou que nem mesmo
toque em assuntos gerais sobre o mercado de trabalho e as profissões. Mesmo na mais
elementar tarefa de alfabetizar está presente a perspectiva do mercado de trabalho:
aprende-se para escrever e falar corretamente (e na aspiração de todos está presente
também esse valor de se comunicar melhor para usufruir melhor da vida), mas não
deixa de estar presente, sempre, essa preocupação em como isso (no caso, a melhor
comunicação) vai influir na busca de um emprego melhor. Do lado dos usuários, parece
plausível essa expectativa, diante da já mencionada falta de opções, que não o trabalho
assalariado, para ganhar a própria vida. Mas, do lado da escola, é preciso questionar se
ela deve ater-se com tanta ênfase a essa tarefa.
O exame dos fins da escola só pode ser feito a partir de alguma visão de mundo
e de sociedade que informa uma particular visão da própria educação. A partir da
concepção de homem e de educação que vimos explicitando, à escola fundamental
deve ser reservada a tarefa de contribuir, em sua especificidade, para a atualização
histórico-cultural dos cidadãos. Isso implica uma preparação para o viver bem, para
além do simples viver pelo trabalho e para o trabalho. Parece, portanto, passível de
crítica a centralidade que, pelas mais diferentes razões e por pessoas e instituições dos
mais variados matizes políticos, se pretende dar à preparação para o trabalho em nossa
escola, hoje.
77
parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

Em primeiro lugar, há, entre boa parte dos educadores, a crença de que a
escola só ganha status de preocupação nacional se ela contribuir com algum retorno
para o sistema econômico. Parece que a escola tem sempre que buscar na economia as
razões para sua importância. Contudo, se pensamos no grave dever social de atualizar
culturalmente as novas gerações, a escola deve ser importante, antes e acima de tudo,
como consumo, como realização de um direito de usufruir do patrimônio construído
pela humanidade, construção que se deu, diga-se de passagem, às custas sempre dos
trabalhadores de todas as gerações passadas e da presente. É claro que a razão de ser
da escola não se esgota na satisfação do consumo cultural, visto que a simples presença
desse consumo já implica outras importantes funções da escola, inclusive a econômica. O
que não se pode é derivar sua importância, exclusiva ou principalmente, do econômico,
como muitas vezes se pretende fazer.
Outro equívoco que se comete acerca da importância da escola enquanto
agência de preparação para o trabalho diz respeito a sua utilização como álibi para a
falta de ascensão social. Alega-se, nesse particular, que os egressos da escola não estão
preparados para conseguir emprego. A grande falácia de que as pessoas iletradas ou
com poucos anos de escolaridade não conseguem se empregar por causa de sua pouca
formação, embora tenha ainda grande aceitação entre as pessoas simples (precisamente
por seu baixo nível de informação) bem como na mídia (pela mesma escassez de
conhecimento, mas não com a mesma inocência), não resiste à menor análise, porque
supõe que a escola possa criar os empregos que o sistema produtivo, por conta da crise
do capitalismo, não consegue criar. A não ser como discurso ideológico para que as
pessoas continuem acreditando que sua posição social se deve à falta de escolaridade e
não às injustiças intrínsecas à própria sociedade capitalista, esse argumento deveria ter
sua importância bastante relativizada nas discussões sobre o papel da escola.
Um terceiro argumento que se tem arrolado em favor de uma preparação
para o trabalho na escola diz respeito à dependência que o sistema produtivo teria de
um grande contingente de profissionais com formação acadêmica cada vez maior e
mais atualizada. Na verdade, sob o capitalismo, a necessidade de uma boa formação
acadêmica sempre se restringiu a um número relativamente pequeno de pessoas, em
comparação com a grande maioria que não necessita dessa formação, tendência que
só tem feito se radicalizar, com o desenvolvimento tecnológico. Mesmo com relação à
78
parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

chamada “acumulação flexível” ou com relação à “revolução informacional” (Lojkine,


1995), quando se diz que exigem novos profissionais com perfil acadêmico mais
adiantado, é preciso se considerar que, em comparação com a grande massa dos que
são desempregados, tais profissionais continuam a ser relativamente poucos, o que
não parece ser um problema da escola pública em sua tarefa primordial de preparar
para a cidadania, que envolve enormes contingentes de crianças e jovens das camadas
trabalhadoras. Aos empregadores que, com seus protestos de amor pela educação,
vivem utilizando permanentemente a mídia para reclamar maior eficiência da escola na
preparação para suas empresas, deveria ser dito que esse é problema deles, empresários,
que usufruem dos benefícios de uma maior formação de seus empregados e que a escola
pública, paga com os impostos da população, tem funções mais importantes do que
ficar, mais uma vez, servindo ao capital.
Servir ao capital tem sido, sob esse aspecto, o grande erro da escola básica, cujas
funções têm sido subsumidas pela preocupação de como levar os alunos a um trabalho
futuro. A situação seria diversa, é lógico, se ela o fizesse de uma forma crítica, de tal
sorte que os educandos fossem intrumentalizados intelectualmente para a superação
da atual organização social que favorece o trabalho alienado. Assim, a escola tem
contribuído muito mais para o mercado de trabalho, não quando tenta diretamente
formar profissionais para exercer suas funções no sistema produtivo, mas quando deixa
de lado suas outras funções sociais relacionadas à dotação de um saber crítico a respeito
da sociedade do trabalho alienado, pois não preparar para a crítica do trabalho alienado
é uma forma de preparar para ele. Neste sentido, a escola capitalista, porque sempre
preparou para viver na sociedade do capital sem contestá-la, sempre preparou para o
trabalho. Muito antes de transformar tudo em custo e benefício, como fazem hoje os
apologistas do neoliberalismo, a escola já cumpria esse papel. Talvez agora, quando essa
função mais se explicita, seja o momento mais adequado para um movimento contrário.
Mas é preciso, antes de mais nada, partir da constatação de que preparar para o trabalho
tem sido preparar para o mercado, ou seja, para o trabalho alienado. Como afirma Pablo
Gentili,

Políticos, empresários, intelectuais e sindicalistas conservadores não


hesitam em transformar qualquer debate sobre educação em um problema
de “custos”. [...] A esta altura dos acontecimentos, ninguém duvida que temos
79
parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

de educar “para a cultura do trabalho”; o que, em bom português, quer dizer


“educar para a cultura do mercado”. Os termos “eficiência”, “produtividade”,
“produto educativo”, “rentabilidade”, “custo da educação”, “competição
efetiva”, “excelência”, “soberania do consumidor”, “cliente-aluno”, etc.
não são um produto alucinado de nossa exagerada crítica ao mundo dos
negócios. Trata-se simplesmente do vocabulário que compartilham aqueles
que professam sua fé nesta nova retórica . (Gentili, 1995, p. 158)

Assim, preparação para o trabalho tem significado sempre preparação para o


mercado, com prejuízo de funções mais elevadas da escola. Isso precisa ser combatido de
forma veemente, pois trata-se de arrebatar a escola (seus fins e propósitos) das mãos do
capital, ou pelo menos fazer o máximo nesse sentido. Essa tarefa envolve, antes de tudo,
um repensar global da escola, que ultrapasse visões parciais a respeito do problema.
A esse respeito, é preciso verificar até que ponto, mesmo algumas posições ditas “de
esquerda”, ao eleger o trabalho como “categoria central” do discurso, não estão levando
água ao moinho dos adeptos do livre mercado, pois trabalho nesta sociedade significa
trabalho alienado.
É preciso que se coloque no centro das discussões (e das práticas) a função
educativa global da escola. Assim, se entendemos que educação é atualização histórico-
cultural dos indivíduos e se estamos comprometidos com a superação do estado geral de
injustiça social que, em lugar do bem viver, reserva para a maioria o trabalho alienado,
então é preciso que nossa escola concorra para a formação de cidadãos atualizados,
capazes de participar politicamente, usufruindo daquilo que o homem histórico
produziu, mas ao mesmo tempo dando sua contribuição criadora e transformando a
sociedade. Só assim a escola estará participando de forma efetiva como elemento da
necessária “reforma intelectual e moral”, de que nos fala Gramsci (1978b).

4. Gestão escolar, qualidade do ensino e fins da escola

A chamada GQT (Gerência da Qualidade Total), como todo método eficiente


de administração, não se restringe à sala dos administradores, mas, consonante com o
conceito de administração como “utilização racional de recursos”, se propõe alcançar
todos os tempos e espaços em que esses recursos estejam sendo utilizados. Embora seu
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parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

discurso insista na questão da qualidade, sua característica fundamental é a preocupação


com a gerência. Como sua origem é a administração capitalista, é claro que toma as
características dessa administração e procura servir a seus propósitos, assumindo a
gerência no sentido que lhe dá Braverman (1987), de “controle do trabalho alheio”.
Como afirma Fidalgo,

a GQT não propõe a autogestão, mas sim o autogerenciamento dos


trabalhadores, ou seja, autocontrole restrito ao processo de trabalho, e
mesmo assim, com grandes limitações. Com este argumento comumente
afirma-se que a qualidade total tem um caráter descentralizador, pois cada
trabalhador torna-se o gerente de seu próprio processo. Nesta afirmação,
podemos detectar o caráter encobridor das contradições inerentes ao
modelo de gestão de qualidade total, através de dois pontos: primeiro,
cada trabalhador torna-se gerente de seu próprio trabalho, relacionando-
se diretamente com fornecedores e clientes, responsável, portanto, não
somente pelo seu processo de trabalho como também pela avaliação do
trabalho dos fornecedores e pelo balanceamento da sequência produtiva.
Segundo, a organização sistêmica faz com que cada um fique restrito ao seu
próprio território, perdendo a noção do caráter mais amplo do processo.
(Fidalgo, 1994, p. 69, grifo no original)

Em outras palavras, a gerência, ou controle do trabalho alheio, expande-se dos


órgãos de cúpula para as relações entre os trabalhadores, chamados de “colaboradores”,
promovendo uma gerência interpessoal. O mando, porém, continua vindo de cima,
e o interesse a ser perseguido continua sendo o do capital. Apenas que, agora, cada
“colaborador” é supervisionado (controlado) pelo outro. Como diz ainda Fidalgo, “o que
a GQTE [Gerência da Qualidade Total em Educação] pretende é, de um lado, através da
introdução de métodos e técnicas, buscar a contribuição ‘voluntária’ dos trabalhadores,
impingindo-lhes o autogerenciamento e, de outro, padronizar estes conhecimentos no
sentido de aumentar o controle sobre os processos de trabalho” (Fidalgo, 1994, p. 71).
Em vez do diálogo (relação de troca entre sujeitos), instaura-se o gerenciamento mútuo
(controle interpessoal que faz de todos objetos de vigilância uns dos outros).
Que se pense quanto esse processo é contrário à constituição de sujeitos e se
poderá inferir os efeitos deletérios à educação escolar. No momento em que mais se
81
parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

precisaria introduzir a contradição, a crítica e o questionamento de uma realidade


desfavorável aos que são permanentemente feitos objetos no trabalho e na sociedade,
os novos “qualitatistas” da educação, sob pretexto de entrarem na moda e copiar a
“eficiência” empresarial, aparecem com mais uma fórmula para coibir o desenvolvimento
de personalidades em formação.
Pela sua vocação de expandir-se e perpassar todos os poros da organização onde
ela se implanta, a GQT se reveste de uma grande força ideológica, de convencimento
e conversão a seu credo e discurso. O discurso é, na maioria das vezes, tolo, carregado
de formulações ao modo dos provérbios populares mais surrados, com pretensão
de verdade científica, que constituem “verdadeiros dicionários de lugares comuns,
frases rimbombantes e, em certo sentido, [...] autênticos glossários de messianismo
pedagógico” (Gentili, 1995, p. 154). Mas o credo é o do mercado. Se o risco do discurso é
apenas (?) concorrer para imbecilizar as pessoas envolvidas, já o perigo do credo é muito
mais sério, porque impede a reflexão sobre o real, ao vir embutido numa concepção de
mundo, a ideologia liberal, que procura fazer crer que não há salvação possível fora das
soberanas leis do mercado.
A GQT, ao introduzir-se na escola, embora atinja, inicialmente, apenas os
professores e demais funcionários escolares, não deixa de envolver também os alunos,
por duas vias, distintas, porém complementares entre si: pela influência desse pessoal
escolar, especialmente professores, e pela força material das práticas escolares em geral.
A influência dos professores não deixa de ser contraditória, dependendo
diretamente da adesão dos mesmos aos propósitos da GQT que se implanta. Nos casos
em que o professor não aceita a medida, ele pode servir como propagandista de ideias
contrárias e até se vangloriar diante dos alunos por não ter-se deixado ludibriar pelo
novo canto de sereia. Mas é preciso considerar o caso do professor que aceita a ideologia
transmitida e que, ipso facto, procura passá-la aos alunos, tentando convertê-los ao novo
dogma. Neste caso, sua intenção encontra solo fértil em nossas escolas, de um modo
geral, em que se registra a quase completa ausência de componentes críticos em seus
currículos que propiciem uma visão realista de mundo e de sociedade.
Isso não chega a ser problema para uma concepção conservadora de educação,
para a qual o importante é apenas os alunos apreenderem o máximo de conteúdos das
disciplinas tradicionais (Língua Portuguesa, Matemática, Geografia, História, etc.) que

82
parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

o prepara para viver “de acordo” com a ordem vigente e para exercer uma ocupação no
mercado (de preferência o mais rendosa que se puder). Mas é um problema bastante
sério se visto a partir de uma perspectiva educacional que não sonha apenas que os
muitos milhões de alunos de nossas escolas se saiam bem nas provas realizadas para
medir aquisição de conteúdos (Saresp, Saeb, provões e quejandos); mas esteja vivamente
comprometida com uma escola que, acima de tudo, concorra para a apropriação de
valores de cidadania e o desenvolvimento de comportamentos compatíveis com a
colaboração recíproca entre os homens, para além das leis naturais do mercado.
Então, essa perspectiva de educação deve preocupar-se sim em neutralizar
a ideologia que acompanha a introdução, na escola, do ideário neoliberal, via
gerência da qualidade total. Adotar determinada concepção de mundo implica certas
responsabilidades com respeito à difusão de tal concepção. Uma escola comprometida
com valores como os de democracia, liberdade e homem histórico, nos moldes em que
vimos anteriormente, não pode deixar passivamente encharcar-se por uma ideologia
antagônica, nada fazendo para que seus alunos, pela mediação da educação, se apropriem
de uma visão de mundo consentânea com esses valores. Como vimos anteriormente, a
democracia, como valor que é, não constitui herança genética, mas histórica; por isso,
é preciso, de forma intencional, ser passada permanentemente às novas gerações. A
via para isso é a educação; a agência que pode alcançar sistematicamente multidões de
jovens e crianças é a escola. Por isso, a democracia, como também o trabalho, devem
ser propositadamente incluídos como objeto de estudo, por parte de todo educador
comprometido com a superação da injustiça social. Para se aquilatar o atraso de nossa
realidade escolar a esse respeito, basta verificar o quanto conceitos como “democracia”,
“liberdade”, “trabalho”, a partir de uma visão progressista como a que vimos aqui,
estão pouco presentes explicitamente nos conteúdos curriculares de nossas escolas.
Entretanto, seria difícil nomear algo que mereça precedência a isso em termos de
importância para a vida consciente numa sociedade.
O desenvolvimento de uma concepção de mundo que se contraponha ao
neoliberalismo, na escola, põe-se com maior importância ainda quando se sabe que
os jovens estão diuturnamente se alimentando dessa ideologia nos demais espaços que
eles frequentam. Mas, também na escola, a influência sobre ele não se restringe à sala
de aula, e, mesmo aí, não se limita ao que o professor diz. Isso leva à consideração da
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parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

segunda forma pela qual a ideologia de mercado, que perpassa a gestão da qualidade
total, envolve os alunos, ou seja, pela força material das práticas escolares em geral.
A esse respeito, é de particular importância atentar para a organização de todo
o trabalho na escola, a distribuição da autoridade e do poder, bem como para os padrões
de relacionamento interpessoal. Esses elementos, com os quais a gerência de qualidade
total não deixa de se ocupar, são de relevância vital porque são a própria organização das
possibilidades de contato entre as pessoas a interferirem na conduta e na consciência dos
jovens. Aqui, para neutralizar os efeitos deletérios da qualidade total, a melhor solução
não é pôr-se simplesmente contra ela e suas disposições, mas, em vez disso, pautar-se
por uma alternativa democrática de relações de cooperação, de trabalho e dedicação
aos objetivos maiores da educação enquanto instrumento de aquisição cultural para
a realização plena de sujeitos. Isso porque o conceito de democracia não se apreende
apenas no discurso, mas constrói-se na prática, com o constante exercício enquanto
opção de vida, não como uma medida tópica que se aplica numa ou noutra ocasião.
A evidência da influência positiva da organização escolar sobre o
comportamento das pessoas pode ser percebida quando se comparam escolas, em que
foram introduzidas inovações que provocaram maior democratização dos contatos
humanos, com situações anteriores, em que as relações eram de mando e submissão.
Em duas pesquisas de campo (Paro, 1996 e Paro, 1997a) – deu para perceber os efeitos
de medidas visando à democratização do ambiente escolar, com a introdução de
eleições de diretores, no primeiro caso, e com a ocorrência de uma direção de escola
mais democrática, comprometida com os interesses dos usuários, no segundo. Em
ambos os casos, a partir de entrevistas e de observações em campo pôde-se constatar
a melhoria no relacionamento humano entre direção e pessoal escolar, entre a escola
e os usuários e, principalmente, o relacionamento geral dos alunos entre si e com os
vários profissionais da escola, quer dentro quer fora da sala de aula. As pessoas, que
antes eram tratadas apenas como objetos de decisão de outras localizadas em níveis
hierárquicos superiores, sentiram a introdução de mudanças elevá-las à condição de
sujeitos desse processo, e isto não é pouco em termos de avanço no relacionamento
pessoal. Tudo isso propiciou a apropriação de valores de cidadania e o desenvolvimento
de comportamentos compatíveis com a colaboração recíproca entre os homens. Assim,
“na medida em que, em educação, não se pode separar método de conteúdo, os padrões
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parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

mais avançados de relacionamento e convivência entre os envolvidos passam a fazer


parte integrante do conteúdo educacional que se realiza em um ambiente escolar mais
democrático, mais dialógico, portanto de melhor convivência humana” (Paro, 1996, p.
126).
Se o compromisso é com uma nova visão de mundo, que exige a prática para
ser apreendida, o caminho parece ser precisamente este: ao mesmo tempo em que se
desenvolvem conteúdos de uma concepção mais elaborada de mundo, se propiciam
condições para vivê-la e apreendê-la cada vez mais consistentemente. Só assim se pode
esperar contribuir para desarticular a ideologia do mercado incrustada no dia a dia
da sociedade e, em particular, no sistema de ensino. A superação a ser empreendida
a esse respeito guarda paralelo com a destruição que precisa ser feita do fetichismo da
mercadoria no mundo das relações sociais. A circunstância de que esse fetichismo não
consiste apenas em que as relações se dão como relações entre coisas, mas são, de fato,
movidas por meio de coisas, implica que não basta tomar consciência da situação para
que o fetichismo se desmanche. É preciso uma prática que mude a realidade. Mas aquela
consciência se põe como condição imprescindível dessa práxis.

85
parem de preparar para o trabalho!!! Vitor Henrique Paro

Referências

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86
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87
Políticas educacionais:
considerações sobre o discurso genérico
e a abstração da realidade 1

Quando se entra em contacto com a realidade de nossas escolas públicas básicas,


não é incomum constatar-se certo descompasso entre a prática que aí se desenvolve e os
conteúdos de estudos acadêmicos que versam sobre as políticas públicas em educação.
Pode-se dizer que esse descompasso se expressa, inicialmente, na ausência
de importantes componentes teóricos nas atividades escolares. Embora não se tenha
conhecimento de pesquisas que examinem essa questão (e isso talvez seja evidência da
pouca importância que se dá ao assunto), em conversas com professores, coordenadores
pedagógicos e diretores de escola, pode-se perceber a falta, ou a presença ainda muito
tímida, de posturas críticas sobre temas como o neoliberalismo, os efeitos da ação do
Banco Mundial na política educacional, a privatização do ensino, a municipalização do
ensino fundamental, a “autonomia” escolar, ou a organização da escolaridade em ciclos.
O neoliberalismo, por exemplo, é visto por grande parte dos educadores escolares
muito mais a partir de slogans, não se percebendo, entre outros aspectos, como a defesa
das leis “naturais” do mercado se coloca contra a própria especificidade do trabalho
pedagógico, com consequências determinantes sobre as ações dos educadores em sala

1 Texto apresentado, como trabalho encomendado, no Grupo de Trabalho “Estado e Política Educa-
cional”, durante a 22ª Reunião da ANPEd, realizada de 26 a 30/9/1999, em Caxambu – MG.
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro

de aula. O mesmo acontece com relação ao Banco Mundial, cuja presença nos projetos
e reformas do ensino nacional é vista, por uns educadores escolares, como deletéria
porque ouviram alguém dizer, mas não sabem a razão; por outros, até como algo
positivo por viabilizar o investimento no ensino básico. Sobre a privatização, ouvem
falar e a maioria a vê como negativa pois exime o Estado de seu dever de oferecer
educação, mas alguns não veem outra saída para a chamada crise do ensino público, e
poucos conseguem perceber o avanço dessa privatização por detrás da municipalização,
ou da chamada “autonomia” da escola. Quanto a essa “autonomia”, é frequente ver-
se até professores, coordenadores e diretores escolares mais esclarecidos inseguros em
se porem contra algo pelo qual julgam que os educadores mais progressistas sempre
lutaram e que agora é oferecido pelos que estão no poder. Não percebem, assim, que de
nada adianta descentralizar tarefas e permitir a livre utilização de recursos, se a condição
essencial para a real autonomia, que é a disponibilidade de recursos, não for oferecida,
sendo jogada, como está, para a responsabilidade da “comunidade”.
Por outro lado, talvez falte aos conteúdos dos estudos acadêmicos sobre política
educacional um apelo mais sugestivo ao envolvimento dos que fazem a educação no
“chão da escola”. Parece não haver dúvidas de que essa situação de alheamento dos
educadores escolares se deve a uma multiplicidade de fatores, entre os quais se destacam
sua inadequada formação bem como as precárias condições em que exercem seu ofício,
as quais não lhes proporcionam oportunidades mais sistemáticas de reflexão; sem
esquecer o próprio meio social, permeado pela ideologia dominante, que reforça a
postura acrítica diante dos problemas. Nada disso, entretanto, minimiza a importância
de uma maior preocupação dos intelectuais, que refletem sobre políticas públicas, com
a escassa penetração de suas ideias e contribuições teóricas junto aos profissionais
educadores. Essa preocupação é que talvez possa levar esses intelectuais a pensar em
formas mais atraentes de envolver em seus debates aqueles que fazem a educação no
cotidiano escolar. Uma medida nessa direção certamente teria de ser a atenção maior
para com a concretude das relações que se dão no interior da escola e para com o papel
dos atores aí envolvidos, procurando-se desenvolver pesquisas e reflexões cujos objetos
de estudo incluam o desvelamento de problemas mais relevantes em termos estratégicos,
para municiar, não só educadores escolares, mas também usuários do ensino, na luta
por mais e melhores escolas públicas. Isso porque, sem a confiança e o empenho dos que

89
políticas educacionais Vitor Henrique Paro

fazem o ensino, não é razoável esperar qualquer êxito das soluções e propostas que são
apresentadas pelos que elaboram e estudam as políticas educacionais.
Esse descompasso entre trabalhos teóricos sobre políticas públicas relativas à
escola básica e a prática pedagógica escolar expressa-se também na falta de consideração,
por parte da teoria, da mútua determinação existente entre os condicionantes
econômicos, sociais, políticos e culturais globais e os fatos e relações que se dão no
âmbito das unidades escolares. Parece aplicar-se, aqui, a afirmação de Miguel G. Arroyo
com relação ao pensamento crítico em educação. Diz ele:

O pensamento crítico toma como seu objeto os elementos constantes das


estruturas, das instituições e dos processos globais, sociais, ideológicos e
políticos, o que é legítimo e necessário para a compreensão dos fenômenos
sociais, educacionais e culturais. Porém, essa mesma ênfase pode levar, e
por vezes tem levado, à marginalização da concretude da prática social e
educativa. (Arroyo, 1999, p. 144)

Não há dúvida de que, sem a compreensão de categorias referentes às


determinações mais amplas da vida na sociedade, não é possível entender o que se
passa em qualquer recorte específico da realidade humano-social. Porém, quando se
trata de oferecer suporte teórico para a compreensão de uma realidade específica, no
caso a educação escolar, o que não se pode é permitir que a legítima preocupação com
elementos e generalizações de ordem sociológica, econômica, política e cultural mais
abrangentes, leve a uma negligência precisamente da realidade concreta que se quer
elucidar.
Também não se trata de cometer o outro erro, igualmente condenável, mas
que não será aqui examinado, de se fazer um tratamento meramente fenomênico dessa
realidade mais estrita e localizada, desconsiderando as amplas determinações do real. Em
outras palavras, e para usar uma linguagem não muito adequada2, mas bastante em voga
na literatura educacional, não se trata apenas de evitar a desconsideração do “micro” em
favor do “macro”, mas também de não deixar de levar em conta a mútua determinação
de ambos e, mais importante, não deixar de colocar no mesmo nível de importância a

2 Não muito adequada precisamente porque tende a separar os dois momentos em instâncias estanques
e independentes.
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro

concretude do chamado “micro”, até porque, sem a apreensão dessa concretude, não é
possível esclarecer aquela determinação.
A atenção para com essa concretude precisa contemplar dois conjuntos de
práticas com suas múltiplas implicações: um, concernente à atividade propriamente
pedagógica que deve ter lugar na escola, e outro, referente aos fatos e relações mais
nitidamente políticos e sociais, relacionados ao poder e à convivência social dos
atores aí presentes. Para facilitar a comunicação, chamemos esses dois conjuntos,
respectivamente, de prática pedagógica e de relações sociais escolares, embora saibamos que
a prática pedagógica está eivada de relações sociais e que estas podem estar carregadas
de atributos pedagógicos.
Com relação ao primeiro caso, parece ser necessário nos interrogarmos até que
ponto os trabalhos teóricos sobre políticas educacionais têm levado na devida conta a
prática pedagógica escolar e em que medida as propostas decorrentes desses trabalhos,
ou subliminares a eles, têm tido como preocupação básica a melhor realização dessa
prática, com vistas a uma mais efetiva apropriação do saber por parte das amplas
camadas populares. É mais uma vez Arroyo quem chama a atenção para essa questão,
quando afirma:

Nas últimas décadas, fizemos da educação um dos campos privilegiados


de nossos enfrentamentos teóricos, políticos, ideológicos, programáticos,
ou melhor, fizemos das questões educacionais o campo de nossos
enfrentamentos, nem sempre sobre a educação, mas sobre o poder,
a ideologia, o papel do Estado, o modelo de sociedade e de gestão. A
universidade, as associações e os congressos passaram a ser espaços de
confronto político e ideológico, secundarizando, por vezes, o confronto
entre a teoria e a prática educacional. (Arroyo, 1999, p. 144)

Se, do lado da didática, da metodologia do ensino e da psicologia da educação,


encontram-se muitos teóricos da prática pedagógica que, de forma ingênua e
pretensamente neutra, ignoram as múltiplas determinações sociais, políticas,
econômicas e culturais que condicionam essa prática, do lado dos que investigam as
políticas públicas, é preciso perguntar se, também entre estes, não existem os que, de
forma igualmente ingênua e pretensamente inofensiva, perdem o próprio horizonte

91
políticas educacionais Vitor Henrique Paro

e razão de ser dessas políticas, ao desconsiderarem os avanços da teoria e da prática do


aprendizado escolar, taxando de subjetivista ou psicologizante todo discurso que apenas
ouse falar em sujeito da educação.
Com respeito às relações sociais escolares, ou às características sociais e políticas
que assumem as práticas no interior da escola, é preciso não ignorar, ao se refletir sobre
políticas educacionais, que, embora produtos de determinações sociais mais amplas,
as práticas escolares não deixam de ser configuradas também por condicionantes mais
próximos e imediatos que não podem ser apreendidos sem se considerar a realidade
concreta onde elas se manifestam. Trata-se na verdade de estar atento para as formas
concretas que os determinantes sociais, políticos, econômicos, ideológicos, etc. assumem
na realidade escolar. Sem ter presente uma adequada apreensão dessas manifestações
concretas, os estudos que subsidiam propostas de políticas públicas em educação correm
o risco de não se elevarem acima do senso comum, por lhes faltarem os elementos que
lhes dariam sustentação e validade teórica, visto que abstrair (no sentido negativo de
alhear, de não levar em conta) as determinações essenciais, necessárias, explicativas
do real concreto presente no cotidiano é construir generalizações sem sustentação
empírica, é teorizar no vazio. A boa teoria é uma abstração do real, mas no sentido
positivo de sintetizá-lo, de “pôr entre parêntesis” determinados aspectos circunstanciais
ou particulares, para verificar o que existe de universal, de essencial, que lhe dá sentido
e especificidade; é verificar, acerca de determinado fenômeno, quais são as leis que
explicam seu movimento e constituição.
A preocupação com a compreensão dos fenômenos que se dão na realidade
escolar ganha maior significado quando se atenta para a característica da educação como
atualização histórico-cultural de indivíduos. Ao nascer, cada ser humano se assemelha
às crianças nascidas em qualquer época histórica precedente, visto que todas possuem
apenas potencialidades naturais de se tornarem seres humanos históricos. Mas, desde
o primeiro momento que toma contacto com o mundo, a criança inicia seu processo
de humanização num sentido que não é apenas natural (tudo aquilo que independe da
ação humana), mas histórico ou, ainda, especificamente humano. Só o homem é capaz
de transcender a necessidade natural e ele o faz intencionalmente, como sujeito que cria
valores e, a partir destes, estabelece fins que transcendem o objetivamente dado. Para
ele, somente o supérfluo é necessário (Ortega y Gasset, 1963), na medida em que não
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro

lhe basta apenas deixar-se viver, mas almeja algo que precisa ser inventado e construído.
Ao buscar esse supérfluo, ele constrói sua própria humanidade que, por isso, já não
é mais meramente natural, mas histórica. Ou seja, o conceito de homem não inclui
apenas suas características naturais, mas também aquilo que ele constrói, em seu
desenvolvimento histórico. Essa construção, como sabemos, não se realiza pelo homem
isolado, mas exige sua relação com os outros seres humanos e é realizada por meio do
trabalho visto como “atividade adequada a um fim” (Marx, [19--]., p. 102), ou seja,
como atividade especificamente humana. Nessa construção social de sua existência os
homens produzem conhecimentos, valores, técnicas, ciência, arte, crenças, tudo enfim
que constitui o saber historicamente produzido. É esse saber (ou cultura) que permite
aos homens abordarem a natureza e conviverem com seus semelhantes. Assim, o
prosseguimento do desenvolvimento histórico só é possível porque cada nova geração
pode apropriar-se do saber produzido por todas as gerações precedentes. Mas, como
todo esse saber não se transmite por nenhum processo hereditário natural, é preciso
que, a partir do nascimento, cada ser humano se ponha à altura do desenvolvimento
cultural vigente, apropriando-se da cultura criada até aquele momento, por meio da
educação.
Esse processo de atualização histórico-cultural, ainda que mais intenso
em determinados momentos ou fases da biografia de cada um, envolve toda a
vida do indivíduo e, embora mais presente em determinadas situações e a partir de
determinados meios, impregna todas as atividades da vida humana, não se restringindo
a uma ou outra de suas dimensões. No caso específico da escola, o processo educativo
é uma experiência extremamente complexa que não se circunscreve à sala de aula e,
mesmo nesta, não se restringe àquilo que o professor fala e o aluno ouve. Há todo
um conjunto complexo de relações, rotinas, fatos, situações, interesses, concepções de
mundo, enfim, toda a vida na escola que interfere no tipo de educação que está sendo
propiciada a cada aluno, que determinará em graus variados a própria qualidade de sua
formação. Considerar a educação escolar limitada apenas à sala de aula ou unicamente
aos conteúdos convencionais das matérias e disciplinas é laborar em erro que pode
comprometer irreparavelmente a compreensão desse conjunto de relações sociais.
A compreensão do complexo conjunto de relações que têm lugar na escola
pública básica bem como de suas mútuas determinações pode ser decisiva para evitar
93
políticas educacionais Vitor Henrique Paro

que o projeto de inovação ou a proposta de soluções deixe de atingir o objeto de que


supostamente deveria dar conta. Se a qualidade do ensino é determinada por todas as ações
que o constituem ou lhe servem de mediação, não se pode pretender que componentes
importantíssimos dessa qualidade, como, por exemplo, o desenvolvimento de valores,
posturas e hábitos democráticos, ou do gosto pelas artes e da aptidão para seu usufruto,
sejam feitos apenas pela introdução desses novos conteúdos no currículo — embora isso
também seja imprescindível. Como levar os grandes contingentes de alunos a valorizar
as artes, por exemplo, se a escola em que estudam não dispõe dos mínimos recursos
para esse fim, e se sua convivência se dá com educadores que, também em suas vidas
escolares e em sua formação acadêmica, pouco ou nada aprenderam a esse respeito, e
cujas condições de vida, até pelo baixo salário que ganham, e pelo ínfimo tempo de lazer
de que dispõem, os privam permanentemente do contacto com qualquer manifestação
artística? Como levar os mesmos estudantes a valorizar e a praticar a democracia em
suas vidas quotidianas, quando as atividades rotineiras dentro e fora da sala de aula
estão regidas por relações de mando e submissão? Como se vê, medidas como essas que,
à primeira vista, podem parecer passíveis de tratamento apenas curricular, mostram,
num caso, a necessidade de programas de formação em serviço e melhores condições
de trabalho, no outro, a própria reorganização das atividades escolares, visando ao
favorecimento de relações de reciprocidade e cooperação. Mas, como propor medidas
de melhoria das condições materiais e de aperfeiçoamento de docentes sem ter presente
como isso interfere no currículo no que concerne ao desenvolvimento das crianças e
jovens? E como elaborar políticas consistentes de organização e funcionamento das
unidades escolares, por exemplo, sem ter presente a forma como o poder e a autoridade
se desenvolve no interior das escolas?
Um exemplo atual de como uma importante medida no âmbito dos sistemas
de ensino pode tornar-se pouco efetiva, ou até provocar alguns resultados contrários
aos esperados, por não levar em conta os determinantes imediatos da ação educativa
nas unidades escolares, é a adoção dos ciclos de aprendizagem previstos na nova
LDB. A medida é inegavelmente inovadora, tanto do ponto de vista político
quanto do pedagógico, porque, além de permitir a adequação do ensino às fases de
desenvolvimento da criança, possibilita romper com a seriação escolar, induzindo a
mitigação ou a eliminação das reprovações anuais. Com isso, o enfoque do ensino,
tradicionalmente colocado sobre uma função credencialista (estudar para passar de
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políticas educacionais Vitor Henrique Paro

ano ou para ter um diploma) e punitiva da escola, pode ser articulado com objetivos
mais pedagógicos e educativos relacionados ao valor em si do saber e do aprendizado,
ou seja, pode-se passar da ênfase no “estudar para passar de ano” para a ênfase no
“estudar para aprender”. Contudo, implementar mudanças mesmo dessa importância e
potencialidade, ignorando os determinantes imediatos da prática escolar, pode significar
o comprometimento da iniciativa no sistema como um todo, por não se considerarem
os possíveis efeitos desses determinantes sobre a medida em foco. Preocupado com essa
questão, estou desenvolvendo pesquisa etnográfica3 que procura, entre outras coisas,
investigar como reagem os professores diante da progressão continuada integrante da
proposta dos ciclos. Os resultados preliminares da pesquisa indicam haver motivações
profundas da parte dos docentes contra a medida. Parte de tais motivações parecem ter
suas origens, quer em suas próprias histórias de vida escolar, em que a reprovação e a
punição constituíam exercício corrente e legitimado por todos, e que os docentes de
hoje reproduzem em sua prática, quer nas condições de trabalho docente atual, em que
a inculpação do aluno, reprovando-o, constitui a última tábua de salvação do professor
que, impotente para superar suas adversas condições de trabalho, procura jogar sobre
os estudantes a culpa pelo fracasso escolar, que, em parte considerável da mídia, do
senso comum e do discurso oficial, costuma ser atribuída à incompetência dele,
professor. A pergunta a ser feita diante desse quadro, e diante da cultura da reprovação
que tem raízes seculares na escola, é se medidas de reorganização do currículo escolar
em ciclos, sem providências adicionais que levem em conta essa resistência à progressão
continuada por parte dos professores — para não falar de outros determinantes também
importantes, como a resistência dos próprios alunos e pais — poderão efetivar-se de
forma a alcançar os objetivos de inovação do ensino a que se propõem. No entanto,
salvo raras e significativas exceções, os ciclos têm sido introduzidos, nos vários sistemas
de ensino, como medidas isoladas, sem qualquer consideração pelo que acontece no dia
a dia da escola.
3 A Pesquisa, intitulada “O Pedagógico Como Questão Administrativa: os efeitos da resistência à pro-
moção de estudantes sobre a produtividade da escola fundamental”, desenvolve-se no Departamento de
Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação da USP, contando com finan-
ciamento parcial do CNPq e tem por finalidade “estudar a resistência docente à promoção de estudantes
no ensino fundamental, procurando captar suas dimensões, distinguir suas peculiaridades e identificar
seus determinantes, considerando seus efeitos na produtividade da escola pública e buscando alternativas
de solução para os problemas detectados”.
95
políticas educacionais Vitor Henrique Paro

Como esta questão da progressão continuada, existem inúmeras outras passíveis


de estudo que, em geral, são abordadas de forma superficial, sem se perceber suas reais
implicações para políticas que de fato procurem dar conta competentemente dos reais
problemas da educação básica.
O mais grave é que esse descompasso entre teoria sobre políticas públicas em
educação e realidade das escolas públicas básicas traz prejuízos para a eficácia da educação
escolar em sua desejável contribuição para a transformação social. Isso porque, além de
a teoria, por vezes, não se apropriar de elementos relevantes da prática, abstraindo sua
concretude, a prática dos professores e demais educadores escolares, frequentemente,
deixa de fazer uso de importantes contribuições teóricas presentes nos trabalhos dos
estudiosos e idealizadores de políticas públicas.
Numa época em que os setores mais conservadores, encastelados no Estado,
utilizam palavras de ordem relacionadas à democracia e à construção de uma sociedade
mais justa, para encobrir o real significado de seus projetos e ações, que se encaminham
precisamente no sentido contrário, parece obrigatório que os intelectuais progressistas,
ao apresentarem suas propostas e trabalhos sobre questões do ensino, tenham
presente o tipo de transformações que pretendem, o que exige, necessariamente, a
delimitação precisa da realidade de que partem para propor tais transformações. Uma
ação consistente de intelectuais organizados em associações e universidades, nessa
direção, talvez devesse começar por um inventário dos temas relevantes que não têm
sido suficientemente contemplados pela pesquisa e pela crítica e que mereceriam um
tratamento mais incisivo. À guisa de exemplo e ilustração, cito três temas que, parece,
não têm comparecido com a ênfase que requer sua importância: a) as reais condições
da escola que é objeto de políticas públicas, b) a qualidade do ensino oferecido e c) a
visão que se tem dos pais ou responsáveis pelos alunos e o tratamento que a eles é dado.
À primeira vista parecem temas até banais de tanto que aparecem mencionados em
trabalhos teóricos e na mídia de um modo geral. Entretanto, quando aparecem como
objeto de políticas públicas ou de análise dessas políticas, nem sempre são levados em
conta em suas reais dimensões.
Com relação às reais condições da escola pública, o problema maior parece ser o
de que a ignorância a respeito do quadro dramático em que a situação se apresenta acaba
levando a que se faça juízo errado sobre as verdadeiras causas do mau funcionamento
96
políticas educacionais Vitor Henrique Paro

da escola. Nesse processo, abstraem-se os baixos salários dos professores bem como
sua autoestima, aviltada demais para quem tem a missão de elevar o autoconceito de
outros e fazê-los engrandecer-se pela apropriação da cultura; abstraem-se também
as salas com número absurdo de alunos (cerca de quarenta, nas primeiras séries do
ensino fundamental, quando um mínimo de bom senso pedagógico indicaria no
máximo 25 para um professor); assim como se abstraem todas as outras insuficiências
nas condições de trabalho, da falta de assessoramento didático à precariedade do
material escolar e ausência de recursos pedagógicos. Além disso, as análises que se
fazem pecam, às vezes, pela falta de conhecimento qualificado sobre educação, o que
leva a que esta seja também abstraída e não colocada no centro da função da escola. O
baixo salário e as condições impróprias de trabalho do professor, por exemplo, não são
confrontados com as exigências que se deve fazer para esse tipo de função. Por isso, não
se percebe que a gravidade, para o ensino público, dos baixos salários docentes, não
está, fundamentalmente, apenas no fato de os professores estarem passando fome, ou
em condições subumanas de sobrevivência – embora não se duvide de que muitos até
estejam –; a gravidade está na defasagem de suas condições de trabalho (onde se inclui
seu salário) quando comparadas com o mínimo necessário para um ensino de qualidade
para a formação de cidadãos. Quando todas essas determinações são esquecidas ou
abstraídas, fica difícil contrapor-se às autoridades governamentais que, de forma
enganosa, insistem em propalar aos quatro ventos que o problema da educação pública
está na incompetência do professor ou na inadequação administrativa da direção escolar.
Um segundo tema sobre o qual parece urgente uma maior explicitação por parte
dos teóricos que analisam as políticas públicas em educação é o da qualidade do ensino
oferecido pela escola pública básica. Todos concordam – à direita e à esquerda – que a
qualidade de nossa escola é deficiente e que, por isso, é preciso cuidar para melhorá-la.
Muitos afirmam, até, que já alcançamos a quantidade em educação, já que a “quase”
totalidade da população em idade escolar está sendo atendida; o que falta agora é a
qualidade. O que, aliás, é um absurdo lógico do qual esses intelectuais parecem não
se dar conta. No dizer de Antonio Gramsci, “dado que não pode existir quantidade
sem qualidade e qualidade sem quantidade [...], toda contraposição dos dois termos
é, racionalmente, um contrassenso” (Gramsci, 1978a, p. 50). Por isso, em primeiro
lugar, é preciso denunciar a falácia do atendimento “quantitativo”, quando se sabe que

97
políticas educacionais Vitor Henrique Paro

esse atendimento a “quase” todos “deixa, a cada ano, sem qualquer tipo de contacto
com o ensino escolarizado, milhões de crianças, filhas de cidadãos (?) brasileiros
completamente à margem dos benefícios da civilização que eles ajudam a construir”
(Paro, 1998, p. 300), sem falar daqueles inúmeros (cada vez mais abandonados pela atual
política governamental) jovens e adultos, que passaram da idade escolar e continuam
sem os benefícios da educação formal. Além disso, “é preciso questionar seriamente
se a precariedade das condições de funcionamento a que o Estado relegou os serviços
públicos de ensino permite chamar de escola isso que se diz oferecer à ‘quase’ totalidade
de crianças e jovens escolarizáveis” (Paro, 1998, p. 300). Mas, acima de tudo, trata-se de
deixar muito claro sobre o que estamos falando quando denunciamos a baixa qualidade
do ensino público. É neste ponto que não se pode prescindir de uma aproximação efetiva
da concretude da escola básica, que nos permita apreender toda a extensão de suas
potencialidades e misérias e, a partir daí, traçar o tipo de escola que queremos. Se não,
corremos o risco de nos contentarmos com a afirmação conservadora implicitamente
presente no discurso dos intelectuais encastelados no Estado hoje, de que a qualidade da
escola pública é insuficiente porque ela não consegue fazer o que faz a escola particular
ou o que fazia a “boa” escola de antigamente. Em vez disso, uma apreensão crítica da
realidade pode nos permitir perceber que a escola pública tem baixa qualidade, antes
de tudo e principalmente, porque, em seus métodos e conteúdos, não favorece a
atualização histórico-cultural da criança e do adolescente de modo a se construírem
como sujeitos históricos e em condições de exercitarem uma cidadania efetiva (Paro,
1999b). Esta constatação reveste-se de importância principalmente diante de discursos
que propugnam por mais e melhores escolas, mas não enfatizam com precisão o tipo
de educação que se quer. Talvez porque não esteja presente, de forma suficientemente
viva, a concretude de nossas escolas, em que milhões de crianças diariamente veem
violada e negada sua condição de sujeito, por uma educação (?) que, em sua forma,
deveria precisamente reforçar nelas essa condição e, em seu conteúdo, fornecer-
lhes novos elementos culturais para exercê-la. Ao lutar apenas por “mais e melhores
escolas”, desconsiderando essa realidade, não corremos o risco de nos orientarmos
pelo padrão conservador dominante, contentando-nos com a generalização do ensino
tradicional, autoritário e retrógrado, negador da individualidade humana, que, na “boa”
escola tradicional, era endereçado às elites? Se não deve ser assim, quais os projetos e as

98
políticas educacionais Vitor Henrique Paro

alternativas que os que analisam e os que concebem políticas públicas para a educação
estão oferecendo?
Com relação ao terceiro tema, ou ao tratamento que a escola dispensa aos pais
ou responsáveis pelos estudantes e à visão que professores e pessoal escolar em geral
têm deles, pode-se dizer que este é um dos assuntos mais relevantes para uma concepção
ao mesmo tempo democrática e transformadora da função da escola. Se a educação é um
direito constitucional do cidadão e se, pelo menos no que se refere ao ensino fundamental,
o Estado tem o dever de prover a população com esse direito, então, do ponto de vista
de uma democracia social, que ultrapassa o conceito de democracia política (Bobbio,
1989), é direito dos cidadãos controlarem democraticamente o Estado, participando
das decisões nas instâncias onde esses serviços são oferecidos, por exemplo, na escola.
Por outro lado, se a escola tem por finalidade a educação do indivíduo, visando a sua
constituição como ser histórico, portanto social, ela não pode ignorar a perspectiva de
que essa formação não se restringe à escola, recebendo influência de toda a sociedade,
em particular dos pais ou responsáveis, com quem a escola precisa dialogar e de quem
ela precisa receber apoio em sua função pedagógica. Além disso, visto que a maioria dos
pais das camadas trabalhadoras foi privada de uma escolaridade básica, não há nada de
extraordinário em que a escola se esforce para também fornecer a esses pais subsídios
culturais que os beneficiem como cidadãos e que os auxiliem na educação familiar de
seus filhos. Mas a realidade escolar, em geral, nega a oportunidade de realizar os direitos
dos usuários e de aproveitar suas potencialidades na melhoria do desempenho educativo
da escola, fechando-lhes as portas e dando-lhes um tratamento indigno, que vai desde
o mau atendimento na secretaria até a humilhação constante nas “reuniões de pais”
que, em grande parte, prestam-se ao exclusivo propósito de mostrar aos pais e mães o
quanto estes e seus filhos são culpados pelo fracasso escolar. No entanto, poucos estudos
têm tomado esse tema como objeto de investigação, verificando, no dia a dia da escola,
a forma e as dimensões das relações entre pessoal escolar e usuários, aprofundando-se
no exame dessas relações, com o propósito de desvendar seus condicionantes imediatos
e apresentar alternativas de solução que mudem o desenho institucional da escola e a
transformem num objeto desejado pela população a que serve e se identifique com seus
interesses e necessidades culturais.
As considerações que vimos fazendo sobre o descompasso entre trabalhos
teóricos em políticas públicas em educação e a prática vigente nas escolas públicas
99
políticas educacionais Vitor Henrique Paro

básicas obviamente supõem a insatisfação com o atual ensino escolar e a perspectiva de


sua transformação. Além disso, é preciso considerar se as reformas ou mudanças que se
propõem devem se dar nos limites da ideologia liberal e do sistema capitalista vigente,
sem visarem a sua superação, ou se, diferentemente, as reformas, embora no âmbito da
sociedade capitalista, têm como fim a transformação social e, por isso, precisam estar
formuladas para além da ideologia liberal dominante.
Para o intelectual progressista, a perspectiva deve ser, certamente, a de
transformação, tendo como horizonte a superação histórica da atual ordem social.
Dessa perspectiva, passa a ser altamente incômodo, tanto o papel hoje de fato
desempenhado pela escola básica, quanto o horizonte e a expectativa que grande parcela
dos educadores tem com essa escola. Quanto a este último aspecto, continua-se com a
visão tradicional de preparar para o trabalho ou para o sucesso no vestibular. Na prática,
pelas já mencionadas condições de precariedade do ensino, e pela falta de um objetivo
mais adequado a suas características, a escola acaba não conseguindo fazer bem nem
uma coisa nem outra; mas, ao negar sua função de atualização histórico-cultural, e ao
preocupar-se mais com exames e provas do que com o oferecimento da cultura e com o
desenvolvimento de uma consciência crítica, consegue contribuir para a “formação” de
pessoas adequadas ao trabalho alienado e conformadas com o status quo (Paro, 1999b).
Não há dúvida de que, numa sociedade em que até a apropriação “conteudista”
do saber é negada a imensos contingentes populacionais, já aparece como conquista
importante o acesso aos conteúdos culturais tal como são veiculados pela ideologia
vigente, mesmo tendo presente que tais conteúdos não se passam apenas verbalmente,
por meio das disciplinas convencionais como Matemática, História, Geografia,
Ciências, Comunicação e Expressão, etc., mas impregnam as ações e comportamentos
com valores que são passados às novas gerações e que são também construções
históricas. De qualquer forma, mesmo inscritos nos limites dos direitos da sociedade
burguesa, é preciso reconhecer a importância de se lutar pela apropriação da cultura
produzida historicamente, pois constitui direito do trabalhador ao consumo de algo que
é produzido sempre à custa de seus esforços, nesta e em todas a gerações. Todavia, é
preciso considerar que a cultura elaborada e produzida historicamente não se restringe
àquilo que se ajusta aos limites da ideologia atualmente dominante: também a crítica
a essa ideologia é elaboração histórica. Neste ponto localiza-se o papel decisivo da

100
políticas educacionais Vitor Henrique Paro

escola, numa perspectiva crítica e transformadora. Não que a escola irá transformar a
sociedade, mas que ela tem também seu papel como contribuição a essa transformação,
na medida em que se faz crítica e propicia avançar para além de sua função meramente
conteudista; até porque o desinteresse dos que detêm o poder político e econômico já
demonstrou que mesmo essa função de um bem de consumo não se fará enquanto as
camadas trabalhadoras não se fizerem ouvir, a partir da adoção de uma postura crítica
de seus direitos.
De todo o legado de Gramsci à compreensão da sociedade e da cultura,
uma das contribuições mais significativas talvez seja a demonstração de que não é
possível transformar estruturalmente a sociedade, sem que esse processo se articule
a uma “reforma intelectual e moral” (Gramsci, 1978 b, p. 8-9) adequada aos fins da
transformação. Isto significa que, na escola, a consciência crítica e transformadora dos
educandos só pode dar-se a partir da apropriação de uma visão de mundo elaborada
que esteja comprometida com a construção de uma nova ordem social, ou seja, a partir
da apropriação de uma nova ideologia, no sentido em que esta é dada pelo próprio
Gramsci, como “uma concepção do mundo que se manifesta implicitamente na arte,
no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e
coletivas” (Gramsci, 1978a, p. 16).
Sendo uma ideologia comprometida com a superação da atual sociedade de
exploração e dominação, a caminho de uma ordem social em que se generalizem e
prevaleçam relações de respeito mútuo, pautadas na afirmação dos sujeitos individuais
e coletivos, ela não pode ser apropriada do modo autoritário como é organizado hoje
o aprendizado escolar. Porque não se trata de um dogma, mas de uma concepção de
mundo e de homem que se constrói e da qual se apodera de forma consciente e livre, essa
ideologia não é suscetível de ser transmitida do modo “bancário” do ensino tradicional
denunciado por Paulo Freire (1975), porque supõe o envolvimento do educando como
coautor de seu aprendizado.
Em vista disso, numa perspectiva de transformação social, quando se concebem
políticas educacionais, é preciso ponderar em que medida os projetos supõem a
construção de uma consciência crítica dos educandos como uma função imprescindível
da escola. Além disso, é preciso convencer-se de que essa função só se realiza a partir
de uma atividade prática específica que requer a relação entre sujeitos. Por isso, embora
101
políticas educacionais Vitor Henrique Paro

essa apropriação de uma consciência crítica suponha também a aquisição dos conteúdos
veiculados por meio das disciplinas convencionais, – função que, com o desenvolvimento
extraordinário dos meios de difusão de informações, pode até ser desenvolvida por
outras agências –, existe algo de único que só um tipo de relação presencial e ativa como
a que se pode viabilizar na escola, entre educador e educando, pode oferecer.
Salvo no caso de algumas experiências inovadoras recentes realizadas por
governos populares, especialmente alguns ligados ao Partido dos Trabalhadores, o
pesquisador que se aproxima da realidade da escola básica, para tomar conhecimento da
prática pedagógica e dos conteúdos que aí são apresentados, depara-se com um quadro
desolador pela quase completa ausência dessa função crítica da escola. Em geral, não há
componentes curriculares que questionem a injustiça social inerente ao sistema político
e econômico vigente, assim como não se desenvolvem comportamentos e posturas
articulados com uma nova ética, que deveria perpassar os métodos didáticos e as
relações humanas na escola. Perpassando tudo isso, encontra-se uma atividade docente
alheia a fins que poderiam estar norteando uma educação relacionada à emancipação
cultural das camadas trabalhadoras. Para os professores, em geral, parece que a única
função concebível para a escola pública seria aquela levada a efeito décadas atrás,
quando a escola preparava os filhos das camadas médias e altas para ingressar no ensino
superior. Hoje, diante da descrença com relação à possibilidade desse objetivo — quer
pela precariedade da escola, quer pela “carência” que enxergam nos alunos que atendem
— os educadores escolares parecem perdidos em suas práticas, sem um objetivo que
valha a pena perseguir. Diante desse quadro, nada mais oportuno do que se pensar em
uma função para a escola que justifique sua própria razão de ser do ponto de vista da
transformação social, ou seja, sua ação como construtora de uma consciência crítica em
seus alunos.
A relevância dessa função de emancipação crítica que a escola precisa realizar
remete mais uma vez para a importância de, ao se formularem políticas educacionais, não
se abstrair a concretude da prática escolar, pois é nas relações que aí se desenvolvem que
podem ser praticados e absorvidos valores importantíssimos de uma nova concepção
de mundo. É na prática quotidiana que a democracia, por exemplo, adotada em sua
radicalidade, confirma-se como componente de uma nova visão de mundo, porque não
pode ser contida numa sociedade, como a capitalista, pautada na dominação humana e

102
políticas educacionais Vitor Henrique Paro

na negação da condição de sujeito dos indivíduos. A noção de democracia, entendida


para além de sua conotação etimológica de “governo do povo” ou de sua versão formal de
“governo da maioria”, inclui todos os meios e esforços que se utilizam para concretizar
o entendimento entre grupos e pessoas, a partir de valores construídos historicamente.
Por isso, ainda que

importantíssima no âmbito político, [...] para efetivar-se, de fato, como


mediação de uma vida social norteada por princípios histórico-humanos de
liberdade, ela precisa impregnar toda uma concepção de mundo, permeando
todos as instâncias da vida individual e coletiva. Assim, embora vital, não
basta haver regras que regulem pelo alto, fazendo o ordenamento jurídico-
político da sociedade. É preciso que cada indivíduo pratique a democracia.
Daí a relevância do exercício concreto e cotidiano da cidadania: só há
sociedade democrata com cidadãos democratas. (Paro, 1999a)

E o cidadão democrata não se produz em massa; é preciso formar-se um por


um, concretamente, na relação com outros cidadãos e no exercício de sua subjetividade.
É nesse ponto que, não obstante a presença de um sem número de mecanismos de
divulgação de informações, uma consistente ação pedagógica da escola, enquanto
processo teórico-prático de constituição de cidadãos democratas, pode mostrar-se
insubstituível na generalização da cultura às camadas populares.
Diante da gravidade dos problemas verificáveis na realidade da escola pública,
em contraste com a magnitude das potencialidades que essa mesma escola pode oferecer
para a difusão de uma “reforma intelectual e moral” necessária à transformação social,
é de se perguntar se o discurso genérico que às vezes se verifica em trabalhos sobre
política educacional, mesmo de autores que se consideram comprometidos com os
interesses populares e a transformação da sociedade, não se deve, por um lado, à falta de
uma consciência nítida de um papel relevante para a escola, por outro, à distância que
alguns teóricos e pesquisadores acabam por guardar com relação aos fatos e relações que
se dão na concretude da prática escolar.
Na verdade, as duas questões estão relacionadas e se determinam mutuamente.
Por isso, ao lado de uma reflexão a respeito das potencialidades reais da educação como
relação social capaz de contribuir para a transformação social, é preciso voltar-se para
103
políticas educacionais Vitor Henrique Paro

a concretude da escola pública e buscar nos problemas que sua prática apresenta os
objetos dos estudos e análises que se fazem, bem como das propostas de solução que se
formulam. Dessa perspectiva, o critério da relevância dos estudos e das propostas de
políticas educacionais deve ser diretamente proporcional à capacidade de explicitar os
problemas e os determinantes da prática escolar, no caso dos estudos, e de encaminhar
soluções para esses problemas, no caso das propostas.
No primeiro caso, a pergunta a orientar a investigação deve ser sempre: “Em
que medida esse estudo (sua metodologia, seu objeto, a questão que pretende abordar)
contribuirá com seus resultados para esclarecer a realidade prática da escola, de modo a
subsidiar propostas visando ao alcance efetivo de objetivos educativos comprometidos
com a transformação social?” Não se pode esquecer nunca que os estudos devem ser
mediações que servem à mudança nas práticas. Por isso, estas devem estar sempre na
mira da investigação. Restringindo-se às categorias macrossociais, sem levar em conta
a concretude da prática escolar e seus determinantes imediatos, corre-se o risco de se
proceder a uma espécie de alquimia teórica em que o discurso genérico e a manipulação
de fórmulas prontas, importadas de outras disciplinas ou campos do saber, servem à
abstração da realidade educativa e ao encobrimento de suas relações mais importantes.
No tocante às propostas, a pergunta a guiar sua confecção deve ser: “Em
que medida determinada proposta interferirá na prática escolar, levando a que
mais educandos (e em que proporção deles), se apropriem, com maior eficácia, de
componentes culturais (conhecimentos, valores, posturas, hábitos, etc.) que, além de
promoverem sua necessária atualização histórico-cultural como cidadãos, os capacitem
a ter uma consciência crítica da sociedade em que vivem, pela apropriação de uma visão
de mundo transformadora?” Significa isso que as propostas precisam levar em conta não
apenas a relevância das medidas a serem implementadas, mas também sua viabilidade
prática tendo em vista a maneira como se desenvolve o trabalho e a vida quotidiana
no interior da escola, em especial os interesses e as vontades dos atores envolvidos na
prática escolar.
Aspecto da mais alta importância para o êxito de medidas inovadoras no interior
da escola é a disposição dos educadores escolares em se envolverem num projeto desse
tipo. Quanto a isso, pouco adianta lamentar-se da resistência à mudança que porventura
aí se verifique. Trata-se, em vez disso, de pôr essa resistência como objeto de estudo e

104
políticas educacionais Vitor Henrique Paro

preocupação, procurando formas de superá-la com medidas concretas, que promovam


essa comunicação entre teoria e prática e leve os educadores escolares a apropriarem-
se de uma consciência crítica elevada, que os instrumentalize em sua prática escolar
transformadora.
Na condição de intelectual comprometido com a transformação social, o analista
e idealizador de políticas educacionais tem o dever e a responsabilidade de contribuir
com elementos teóricos que, integrados numa nova concepção de mundo, voltada para
a transformação, concorra para a desejada “reforma intelectual e moral”. Isso não pode
acontecer sem a busca intencional da ligação entre teoria e prática e sem que a atividade
teórica desenvolvida na academia se acerque da concretude da escola.

105
políticas educacionais Vitor Henrique Paro

Referências

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escola. In: MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa (Org.). Currículo: políticas e práticas.
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BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 4. ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1989
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978a.
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o estado moderno. 3. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978 b.
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ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da técnica. Rio de Janeiro: Livro Ibero-
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produtividade da escola pública: In: SILVA, Luiz Heron da (Org.). A escola cidadã no
contexto da globalização. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 300-307.
PARO, Vitor Henrique. Cidadania, democracia e educação. In: CONGRESSO
NACIONAL DE REORIENTAÇÃO CURRICULAR, 1, 1999, Blumenau. Anais.
Prefeitura Municipal de Blumenau; Universidade Regional de Blumenau, 1999a. p.
21-22.
PARO, Vitor Henrique. Parem de preparar para o trabalho!!! Reflexões acerca dos
efeitos do neoliberalismo sobre a gestão e o papel da escola básica. In: FERRETTI,
Celso João et alii (Org.). Trabalho, formação e currículo: para onde vai a escola. São
Paulo: Xamã, 1999b. p. 101-120.

106
Educação para a democracia:
o elemento que falta na discussão da qualidade do ensino 1

Quer no âmbito dos estabelecimentos de ensino e dos sistemas escolares de


modo geral, quer nas produções acadêmicas e nos discursos sobre políticas públicas
em educação, um dos traços que têm apresentado permanência marcante nas últimas
décadas é o generalizado descontentamento com o ensino oferecido pela escola pública
fundamental. O que essa insatisfação traz implícita é a denúncia da não correspondência
entre a teoria e a prática, ou entre o que é proclamado (ou desejado) e o que de fato se
efetiva em termos da qualidade do ensino, muito embora nem sempre haja coincidência
a respeito do conceito de qualidade, conceito este que, ademais, raramente aparece
explicitado de forma rigorosa. Entretanto, quando se atenta para a importância social
da educação e para os enormes contingentes populacionais que as políticas públicas
da área envolvem, mostra-se altamente preocupante essa ausência de um conceito
inequívoco de qualidade. Visto que esta depende intimamente dos objetivos que se
pretende buscar com a educação, quando estes não estão suficientemente explicitados
e justificados pode acontecer de, em acréscimo à não correspondência entre medidas
proclamadas e resultados obtidos, estar-se empenhando na realização dos fins errados
ou não inteiramente de acordo com o que se pretende.

1 Trabalho apresentado na 23ª Reunião Anual da ANPEd, realizada em Caxambu – MG de 24 a


28/9/2000.
107
educação para a democracia Vitor Henrique Paro

Entendida a educação como atualização histórica do homem e condição


imprescindível, embora não suficiente, para que ele, pela apropriação do saber2
produzido historicamente, construa sua própria humanidade histórico-social, parece
justo admitir que a escola fundamental deva pautar-se pela realização de objetivos numa
dupla dimensão: individual e social. A dimensão individual diz respeito ao provimento
do saber necessário ao autodesenvolvimento do educando, dando-lhe condições
de realizar seu bem-estar pessoal e o usufruto dos bens sociais e culturais postos ao
alcance dos cidadãos; em síntese, trata-se de educar para o “viver bem” (Ortega y Gasset,
1963). Por sua vez, a dimensão social liga-se à formação do cidadão tendo em vista sua
contribuição para a sociedade, de modo que sua atuação concorra para a construção de
uma ordem social mais adequada à realização do “viver bem” de todos, ou seja, para a
realização da liberdade enquanto construção social. Se entendermos a democracia nesse
sentido mais elevado de mediação para a construção e exercício da liberdade social,
englobando todos os meios e esforços que se utilizam para concretizar o entendimento
entre grupos e pessoas, a partir de valores construídos historicamente (Paro, 1999, p.
105-106), podemos dizer que essa dimensão social dos objetivos da escola se sintetiza
na educação para a democracia.
Em verdade, para o analista atento, o que a escola pública fundamental em
geral tem conseguido realizar em termos de objetivos está muito distante dessas duas
3

dimensões, parecendo às vezes pautar-se por fins antagônicos a elas. No que concerne
à dimensão individual, a escola parece renunciar tanto a educar para o viver bem
quanto a proporcionar esse viver bem em suas atividades do dia a dia, fazendo com
que o tempo de aprendizado se apresente penoso para seus educandos, desarticulado de
qualquer ligação com o prazer. Ao paradigma do “credencialismo”, pelo qual educadores
e educandos preocupam-se mais com exames e aprovações do que com a apreensão

2 O conceito de saber é tomado aqui de modo bastante amplo, referindo-se, tanto a conhecimentos e
técnicas, quanto a comportamentos, valores, atitudes, enfim, tudo o que configura a cultura humana,
passível de ser apropriada por meio da educação.
3 Ao destacar a escola pública, não estou querendo dizer que a particular seja melhor ou pior; estou apenas
atendo-me a meu objeto de estudo que é a escola pública estatal. Além disso, ao falar da escola pública em
geral, estou consciente de certo “erro da generalização” que se comete ao não se considerarem as exceções
– que infelizmente são raras – tanto em termos de unidades escolares, quanto em termos de sistemas de
ensino, especialmente municipais, que, em experiências recentes, procuram desenvolver uma política
educativa que rompe com o tipo de escola que aqui criticamos.
108
educação para a democracia Vitor Henrique Paro

do saber e com o gosto pelo conhecimento, alia-se a meta essencial de preparar para o
mercado de trabalho ou para o vestibular universitário (Paro, 1999). Isso numa época
em que o desenvolvimento da tecnologia e as transformações econômicas e sociais
apontam, senão para a supressão, pelo menos para a minimização do tempo de trabalho
e para a drástica redução do emprego (Rifkin, 1995; Harvey, 1996; Kurz, 1997; Greider,
1997). Por outro lado, como se o trabalho, enquanto constituinte do homem histórico,
fosse fim em si mesmo e não mediação para o usufruto do bem estar material e espiritual
proporcionado pelo desenvolvimento histórico, a escola ignora os valores relacionados
à utilização prazerosa do tempo livre e do ócio (Levy, 1992; Kurz, 1998; O dilema...,
1998; Grupo Krisis, 1999).
Com relação à dimensão social, a atuação da escola parece tanto mais ausente
quanto mais necessária, diante dos inúmeros e graves problemas sociais da atualidade.
Prendendo-se a um currículo essencialmente informativo, ignora a necessidade de
formação ética de seus usuários, como se isso fosse atribuição apenas da família, ao
mesmo tempo em que deixa de levar em conta o marcante desenvolvimento da mídia,
e a consequente concorrência de outros mecanismos de informação que passam a
desenvolver com vantagens funções anteriormente atribuídas à escola. Mas, sem dúvida
nenhuma, a principal falha hoje da escola com relação a sua dimensão social parece
ser sua omissão na função de educar para a democracia. Sabendo-se da gravidade dos
problemas e contradições sociais presentes na sociedade brasileira — injustiça social,
violência, criminalidade, corrupção, desemprego, falta de consciência ecológica, violação
de direitos, deterioração de serviços públicos, dilapidação do patrimônio social, etc. —,
que só se fazem agravar com o decorrer do tempo, e considerando que uma sociedade
democrática só se desenvolve e se fortalece politicamente de modo a solucionar seus
problemas se pode contar com a ação consciente e conjunta de seus cidadãos, não deixa
de ser paradoxal que a escola pública, lugar supostamente privilegiado do diálogo e
do desenvolvimento crítico das consciências, ainda resista tão fortemente a propiciar,
no ensino fundamental, uma formação democrática que, ao proporcionar valores e
conhecimentos, capacite e encoraje seus alunos a exercerem ativamente sua cidadania
na construção de uma sociedade melhor.
Associada a essa incapacidade de realizar uma educação comprometida com
o efetivo bem viver dos educandos e com sua contribuição para uma sociedade mais
109
educação para a democracia Vitor Henrique Paro

humana, pode-se notar certa apatia por parte de educadores escolares, autoridades
estatais e público de modo geral. Tudo acontece como se não se gastassem grandes
quantidades de recursos, não estivessem envolvidos os esforços de enormes contingentes
de professores e outros funcionários e não se desperdiçassem horas preciosas da vida
de milhões de crianças e jovens, com um ensino desinteressante que, não raro, dilapida
sua paciência e lhes tira o prazer e o gosto de viver o presente — tudo isso em troca de
resultados pífios, representados por um aprendizado que, para expressivas proporções
da população que passa pelo ensino fundamental, fica muito aquém até mesmo das
rudimentares capacidades do ler, escrever e fazer contas a que se propõem as mais
tímidas e despretensiosas políticas públicas para a escola elementar.
Certamente o quadro geral da escola pública fundamental é muito mais
complexo do que essa breve síntese pode sugerir, abrindo ao cientista da educação um
amplo campo de questões a serem investigadas com vistas a esclarecer as razões da não
correspondência entre discursos e práticas e elucidar os determinantes da inoperância
da escola em educar para a democracia e para o viver bem. Não obstante, o exposto
parece sugerir um conjunto de questões que se relacionam mutuamente, e que, grosso
modo, poderiam sintetizar-se em quatro pontos que ouso propor à reflexão daqueles
cujo objeto são as políticas públicas voltadas para a escola fundamental: a) a necessidade
de um rigoroso dimensionamento do conceito de qualidade do ensino fundamental;
b) a relevância social da educação para a democracia como função da escola pública; c)
a importância de se levar em conta a concretude da escola e a ação de seus atores na
formulação de políticas educacionais; e d) o papel estratégico da estrutura didática e
administrativa na realização das funções da escola.
O primeiro ponto refere-se à necessidade de empreender uma reflexão em
profundidade do conceito de qualidade da educação escolar. A multiplicidade de
pontos de vista, nem sempre explícitos, e a imprecisão e mesmo superficialidade de
muitas produções sobre o tema têm concorrido para a falta de rigor nos discursos e nos
propósitos sobre o real papel da escola que em nada contribui para uma visão realista do
que se pretende e se deve defender como uma educação de acordo com os interesses do
cidadão e da sociedade, servindo apenas àqueles interessados em protelar soluções ou
em impor o ponto de vista dos donos do poder político e econômico. Nesse particular,
é preciso não apenas fazer a revisão crítica das concepções existentes, em especial o

110
educação para a democracia Vitor Henrique Paro

paradigma neoliberal que associa o papel da escola ao atendimento das leis de mercado,
mas principalmente contribuir para a elaboração de um conceito de qualidade que valha
a pena ser posto como horizonte e que sirva de parâmetro para a proposição de políticas
públicas consistentes e realistas para o ensino fundamental.
Na falta de um conceito mais fundamentado de qualidade do ensino, o que
acaba prevalecendo é aquele que reforça uma concepção tradicional e conservadora da
educação, cuja qualidade é considerada passível de ser medida a partir da quantidade
de informações exibida pelos sujeitos presumivelmente educados. Esta concepção não
apenas predomina nas estatísticas apresentadas pelos organismos governamentais que
se propagam por toda a mídia e acabam pautando os assuntos educacionais da imprensa
— quase sempre acrítica a esse respeito — mas se faz presente também em muitos estudos
acadêmicos sobre políticas públicas em educação. Para essa concepção parece pacífico
que a função da escola é apenas levar os educandos a se apropriarem dos conhecimentos
incluídos nas tradicionais disciplinas curriculares: matemática, geografia, história,
língua portuguesa, biologia, etc. Assim, a qualidade da educação seria tanto mais efetiva
quanto maior fosse a quantidade desses “conteúdos” apropriados por seus alunos, sendo
a escola tanto mais produtiva quanto maior o número desses alunos aprovados (e quanto
maiores os escores obtidos) em provas e exames que medem a posse dessas informações.
Todavia, educação não é apenas informação. Alfred North Whitehead (1969, p.
13) já disse com propriedade que “um homem meramente bem informado é o maçante
mais inútil na face da terra”. Se educação é atualização histórico-cultural, supõe-se que
os componentes de formação que ela propicia ao ser humano são algo muito mais rico
e mais complexo do que simples transmissão de informações. Como mediação para a
apropriação histórica da herança cultural a que supostamente têm direito os cidadãos, o
fim último da educação é favorecer uma vida com maior satisfação individual e melhor
convivência social. A educação, como parte da vida, é principalmente aprender a viver
com a maior plenitude que a história possibilita. Por ela se toma contato com o belo, com
o justo e com o verdadeiro, aprende-se a compreendê-los, a admirá-los, a valorizá-los e
a concorrer para sua construção histórica, ou seja, é pela educação que se prepara para
o usufruto (e novas produções) dos bens espirituais e materiais. E tudo isso não se dá
como simples aquisição de informação, mas como parte da vida, que forma e transforma
a personalidade viva de cada um, nunca esquecendo que “cada um” não vive sozinho,
111
educação para a democracia Vitor Henrique Paro

sendo então preciso pensar o viver de forma social, em companhia e em relação com
pessoas, grupos e instituições. A educação se faz, assim, também, com a assimilação de
valores, gostos e preferências, a incorporação de comportamentos, hábitos e posturas,
o desenvolvimento de habilidades e aptidões e a adoção de crenças, convicções e
expectativas. Esses elementos nem sempre são passíveis de medição pelos tipos de
testes e provas disponíveis, aferidores de conhecimentos e informações: uma coisa, por
exemplo, é responder positivamente a uma questão sobre a importância da participação
política, ou dos aspectos deletérios da corrupção ou do preconceito racial; outra bastante
diferente e muito mais complexa é desenvolver, na vida real, as convicções, as posturas
e os comportamentos adequados a essas verdades. A peculiaridade da educação, em
sua ligação orgânica com a personalidade e a vida de cada um, não permite a mesma
abordagem avaliativa da maioria dos bens e serviços normalmente produzidos na
sociedade. O produto da educação — o ser humano educado — não se deixa captar por
mecanismos convencionais de aferição de qualidade. O muito que se pode fazer é uma
aproximação, sendo a mais adequada aquela que procura garantir o bom produto pelo
provimento de um bom processo (Paro, 1998). Assim, embora não se possa colocar o
ser humano em “situação de laboratório” para verificar se ele foi ou não bem educado,
para saber se a escola foi produtiva (se teve ou não êxito em sua intenção de educá-lo
convenientemente), é possível planejar e dispor os processos pelos quais se produz essa
educação de uma forma na qual se possa apostar, com certa segurança, que se conseguirão
os resultados desejados. Mas, para isso, é imprescindível a maior clareza possível sobre
aquilo que se quer e sobre aquilo que se considera individual e socialmente válido.
Daí a constante atualidade da discussão a respeito do mais rigoroso dimensionamento
possível da qualidade da educação escolar, pela via do exame e discussão dos objetivos
necessários à configuração dessa qualidade.
Em segundo lugar, intrinsecamente ligada à questão da qualidade do ensino
e dos objetivos da escola fundamental está a necessidade de pôr num primeiro plano
de discussão o necessário caráter ético-político dessa qualidade, ou seja, trata-se
de enfatizar, com respeito à escola pública fundamental, a dimensão social de seus
objetivos. Muito se tem falado, mesmo em meios escolares, sobre a incompetência
política de nossa população, indo desde os estereótipos de que o brasileiro “não sabe
votar”, pois escolhe mal seus governantes e representantes, passando pela atribuição
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educação para a democracia Vitor Henrique Paro

de falta de disposição para defender seus direitos e da negligência no cumprimento de


seus deveres, até a acusação de ojeriza à participação política e de falta de interesse em se
associar a empreendimentos coletivos. Não se vê, todavia, a mesma ênfase na atribuição
à escola — agência supostamente destacada para a educação sistemática dessa população
— de funções formadoras das qualidades políticas e sociais que se reclamam dos
cidadãos. Não se trata, obviamente, de advogar para a escola um poder de determinar a
transformação social, ou mesmo uma absurda exclusividade no oferecimento de valores,
conhecimentos e capacidades com relação à convivência social e política, visto que o
saber sobre a política e a democracia se constrói, em última instância, na própria prática
social; nem se trata tampouco de utilizar a escola para fazer proselitismo político de
qualquer espécie. Em verdade, tomando o fazer político como uma atribuição humano-
social cujo propósito é tornar possível a convivência entre grupos e pessoas, trata-se de
acreditar que a prática social aí envolvida supõe a posse de saberes que são produzidos
historicamente e que também historicamente podem ser apropriados. Como tais
saberes não envolvem apenas meras informações, mas o desenvolvimento livre de
valores, crenças, posturas, comportamentos, hábitos, escolhas, etc., faz-se necessário
um processo educativo, que envolva a interação entre sujeitos livres, como o que pode
(e deve) ser desenvolvido na escola. É preciso, pois, pôr a formação para a democracia
sob exame, para que se possa refletir seriamente a respeito das potencialidades da escola
nesse sentido.
Trata-se, em outras palavras, da necessidade de se ter a educação para a
democracia como componente fundamental da qualidade do ensino. Este aspecto
é tão mais importante quanto mais menosprezado ele seja no contexto das questões
educacionais. A própria população, ao procurar a escola, porque guiada basicamente
por seus interesses imediatos, tem em mira fins individuais. Mas, como os indivíduos
não podem prescindir da vida em sociedade, não é possível conceber uma educação
pública de qualidade sem levar em conta os fins sociais da escola, o que significa, em
última análise, educar para a democracia, tendo presente o sentido em que estamos
empregando este termo.
Mas a educação para a democracia não pode reduzir-se à preocupação com a
mera formação egoística do consumidor que tem direitos, como dá a entender muito
discurso estereotipado sobre a formação do cidadão, especialmente aquele de origem
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educação para a democracia Vitor Henrique Paro

oficial. Como enfatiza Maria Vitória Benevides, ao falar sobre democracia e ética,
lembrando Hannah Arendt, “o que permanece inarredável, como pressuposto básico,
como direito essencial, é o direito a ter direitos” (Benevides, 1998, p. 168; grifos no
original.). Isto implica a necessidade da efetiva participação na vida pública que, para
a mesma Benevides, representa a “expressão maior da cidadania ativa”. Acrescenta ela
que isso

significa organização e participação pela base, como cidadãos que partilham


dos processos decisórios em várias instâncias, rompendo a verticalidade
absoluta dos poderes autoritários. Significa, ainda, o reconhecimento (e a
constante reivindicação) de que os cidadãos ativos são mais do que titulares
de direitos, são criadores de novos direitos e novos espaços para expressão de
tais direitos, fortalecendo-se a convicção sobre a possibilidade, sempre em
aberto, da criação e consolidação de novos sujeitos políticos, cientes de
direitos e deveres na sociedade. (Benevides, 1998, p. 170, grifos meus.)

Se a verdadeira democracia se caracteriza, dentre outras coisas, pela participação


ativa dos cidadãos na vida pública, considerados não apenas como “titulares de direito”,
mas também como “criadores de novos direitos”, é preciso que a educação se preocupe
com dotar-lhes das capacidades culturais exigidas para exercerem essas atribuições,
justificando-se, portanto, a necessidade de a escola pública cuidar, de forma planejada
e não apenas difusa, de uma autêntica formação do democrata. Benevides destaca três
elementos que considera “indispensáveis e interdependentes para a compreensão da
educação para a democracia”, os quais retratam com propriedade o sentido que estamos
dando a esse aspecto. São eles:

1. a formação intelectual e a informação — da antiguidade clássica aos


nossos dias trata-se do desenvolvimento da capacidade de conhecer para
melhor escolher. Para formar o cidadão é preciso começar por informá-
lo e introduzi-lo às diferentes áreas do conhecimento, inclusive através
da literatura e das artes em geral. A falta, ou insuficiência de informações
reforça as desigualdades, fomenta injustiças e pode levar a uma verdadeira
segregação. No Brasil, aqueles que não têm acesso ao ensino, à informação
e às diversas expressões da cultura lato sensu, são, justamente, os mais
marginalizados e “excluídos”.
114
educação para a democracia Vitor Henrique Paro

2. a formação moral, vinculada a uma didática dos valores republicanos e


democráticos, que não se aprendem intelectualmente apenas, mas sobretudo
pela consciência ética, que é formada tanto de sentimentos quanto de razão;
é a conquista de corações e mentes.
3. a educação do comportamento, desde a escola primária, no sentido de
enraizar hábitos de tolerância diante do diferente ou divergente, assim
como o aprendizado da cooperação ativa e da subordinação do interesse
pessoal ou de grupo ao interesse geral, ao bem comum. (Benevides, 1998,
p. 167-168)

Essa concepção que releva a importância da participação na vida pública,


contemplando a necessidade de formação para a democracia, é coerente com o
pensamento democrático de Antonio Gramsci que, ao criticar o ensino profissional por
preocupar-se apenas com a formação técnica do trabalhador, afirmava que

a tendência democrática, intrinsecamente, não pode consistir apenas em


que um operário manual se torne qualificado, mas em que cada “cidadão”
possa se tornar “governante” e que a sociedade o coloque, ainda que
“abstratamente”, nas condições gerais de poder fazê-lo. (Gramsci, 1978,
p. 137)

Certamente, ser governante numa sociedade que leva o conceito de democracia


à radicalidade não implica necessariamente ter um cargo formal de governante.
Mais importante do que isso, ao se pensar nas grandes massas da população, é que
diuturnamente o cidadão comum sinta que sua vida está integrada a um todo social
para o qual ele contribui com suas ações, com suas opiniões e sua participação em
múltiplas instâncias do tecido social, em que seus interesses e sua vontade manifesta
sejam levados em conta. Mas, para que isso aconteça é preciso, dentre outras coisas,
que ele seja formado para assim agir e interagir. Em termos daquilo que a escola pode
oferecer, parece procedente exigir desta que suas práticas sejam orientadas para esse tipo
de formação. Tudo isso, obviamente, empresta grande relevância a toda investigação
que intenta refletir a respeito dessas questões e investigar as perspectivas de a escola
desempenhar essa função e as dimensões que pode assumir esse desempenho.

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educação para a democracia Vitor Henrique Paro

O terceiro ponto diz respeito à necessidade de levar na devida conta a concretude


das práticas escolares, com a clareza de que é dos diversos atores aí envolvidos, e das
ações e relações que aí se desenvolvem, que depende em última instância a realização
de qualquer projeto de escola pública de qualidade. Trata-se de, na busca de objetivos,
não perder de vista as mediações necessárias para concretizá-los, o que constitui uma
autêntica questão administrativa, se por administração entendermos a “utilização
racional de recursos para a realização de fins determinados” (Paro, 1986, p. 18). A esse
respeito, embora não seja incomum tratar-se a administração como uma disciplina
essencialmente formal, ocupada meramente com métodos e técnicas e preocupada
com o controle do trabalho alheio, é preciso dar ênfase a sua intrínseca dimensão
mediadora, para não perder de vista a necessária adequação das ações, recursos e
processos aos fins perseguidos. No caso da administração escolar, tenho insistido em
que, quando consideradas em sua função de buscar a realização dos fins educativos,
tanto as atividades-meio quanto as atividades-fim que se desenrolam na escola — e não
somente as atividades de direção — são objeto de estudo da administração escolar. Daí
a importância de, no subsídio a políticas educacionais, se acercar da concretude dos
fatos e relações que se dão no cotidiano da escola fundamental, se se pretende estudar
formas de melhorar seu desempenho e propor políticas que reorientem suas ações. Isso
exige investigar a anatomia das práticas pedagógicas e das demais relações sociais que
acontecem no dia a dia da escola, de modo a compreender seus problemas, considerar
suas virtudes e avaliar suas potencialidades. Ao mesmo tempo é preciso conhecer a
opinião dos atores (professores, alunos, pais, direção, demais funcionários), seus
interesses e expectativas, sua visão da educação e dos problemas a ela correlatos, bem
como os determinantes de suas posturas e sua disposição para aderir a novas propostas.
Por isso, é preciso estar atento à relativa negligência com que as políticas públicas
educacionais, em geral, têm contemplado essa questão. Conforme já afirmamos, na
medida em que qualquer proposta educativa escolar só se efetiva por meio da prática
que tem lugar nas escolas, parece evidente que não se podem traçar políticas realistas
de provimento de um ensino de qualidade sem que se considerem as dimensões
dessa prática. Na perspectiva de uma proposta de melhoria da qualidade do ensino, a
pesquisa e o conhecimento dessa realidade são necessários, quer para se considerarem
as potencialidades da escola, sabendo-se com que mediações se pode contar para se

116
educação para a democracia Vitor Henrique Paro

conseguir o que se deseja, quer para se identificarem os obstáculos existentes, propondo-


se medidas que modifiquem a própria realidade escolar.
Com relação às pessoas envolvidas no cotidiano escolar, parece que as políticas
educacionais têm passado à margem da opinião, da vontade e da disposição daqueles de
quem o ensino depende inquestionavelmente para ser realizado, quais sejam, os atores
da prática educativa escolar, especialmente professores e estudantes. Mas, convém
assinalar que o empreendimento educacional — entendida a educação não como mera
passagem de informações, mas no sentido em que estamos adotando aqui — não é idêntico
a outros empreendimentos do sistema produtivo convencional, em que é possível
relativo rigor no controle do desempenho dos produtores diretos. Em primeiro lugar,
porque a separação entre concepção e execução do trabalho não é passível de se dar com
a mesma intensidade e dimensão em que é realizada, por exemplo, na típica empresa
produtora de mercadorias. No processo educativo, como já demonstrado em outros
trabalhos (v., p. e., Paro, 1986), a necessária presença do saber “enquanto cultura de
que se apropria”, e não como mero “saber fazer” (este sim ao alcance da divisão técnica
do trabalho), aliada à condição subjetiva dos elementos envolvidos no processo de
trabalho (o próprio objeto de trabalho – o aluno – é, e precisa ser, sujeito), supõe certa
imprevisibilidade das ações e maior dose de autonomia dos agentes envolvidos, não
inteiramente controláveis remotamente, nos moldes da divisão pormenorizada do
trabalho. Em segundo lugar porque, conforme já realçamos, a qualidade da educação
não é passível de verificação imediata e relativamente rigorosa por meio de mecanismos
convencionais de aferição, aplicáveis à maioria dos produtos postos à venda no
mercado. Por esse motivo, no empreendimento educacional, necessita-se, mais do que
em outros setores, uma significativa adesão dos agentes aos objetivos e às formas de
realizá-los. Numa empresa comum podem-se conseguir produtos de boa qualidade com
trabalhadores (produtores) descontentes (embora menos eficientemente); na escola
não: aqui, a não identificação dos agentes com os objetivos compromete a qualidade dos
resultados, fato que pode permanecer oculto, pela dificuldade de avaliação imediata do
produto pelos métodos convencionais.
Parece evidente, portanto, a importância determinante da adesão dos agentes
escolares a quaisquer propósitos que se pretendam atingir por meio da prática escolar.
A escassez de estudos sobre essa realidade visando subsidiar políticas públicas é, assim,
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educação para a democracia Vitor Henrique Paro

uma das razões que justificam investigações que objetivem captar os determinantes
imediatos dos fatos e relações que se dão no dia a dia da escola bem como aquilatar as
potencialidades dessa realidade e as perspectivas de sua transformação.
Finalmente, o quarto ponto refere-se ao papel da estrutura didática e
administrativa no desempenho escolar. Trata de um dos aspectos pouco pesquisados
no que tange aos determinantes da qualidade do ensino4. Não obstante, tomada essa
qualidade numa perspectiva ético-política que privilegia a formação do cidadão atuante
numa sociedade democrática, e considerando a imprescindível coerência entre atos
e palavras para a concretização dessa formação, o estudo das dimensões em que a
organização didático-pedagógica e a estrutura administrativa da escola condicionam
a prática escolar e a efetiva realização dos objetivos mostra-se altamente relevante,
tendo em conta que aquela coerência depende, em grande medida, da ação desses
condicionantes.
Na realidade de nossas escolas públicas básicas em que se evidencia o divórcio
entre a prática escolar cotidiana e as perspectivas de uma consistente emancipação
intelectual e cultural dos educandos, o que se verifica é que a estrutura da escola mostra-
se inteiramente consoante com esse divórcio, dando-lhe sustentação material, na
medida em que não é concebida de modo a favorecer a condição de sujeito dos agentes
envolvidos. O próprio conselho de escola, instituído presumivelmente para esse fim,
mostra-se, na maioria das vezes, totalmente inoperante, mergulhado numa estrutura
avessa à participação e ao exercício da cidadania.
A hipótese aqui subjacente é a de que essa estrutura não é neutra com relação
aos fins educacionais porquanto suas forças não atuam apenas sobre a eficiência do
ensino, mas também sobre a natureza dos resultados, isto é, dos objetivos efetivamente
alcançados. Sendo mediações para o alcance dos fins que se propõem, tanto a estrutura
didática (currículos, programas, métodos e organização horizontal e vertical do ensino)
quanto a estrutura administrativa (organização do trabalho e distribuição do poder e
da autoridade) precisam ser dispostas de modo coerente com esses fins. Esta parece ser
uma das maiores fontes de resistência à realização de propósitos democráticos numa
4 No momento, inicio o desenvolvimento de pesquisa sobre o tema, intitulada “Estrutura da Escola e
Qualidade do Ensino: a organização didático-administrativa e a realização de fins ético-políticos pelo
ensino público fundamental”. Nota desta edição: Pesquisa concluída e publicada em Paro, 2016.

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educação para a democracia Vitor Henrique Paro

escola pública tradicionalmente estruturada e organizada para atender objetivos não


comprometidos com a liberdade e com a formação de autênticos sujeitos históricos. A
desconsideração desse aspecto tem sido também uma das causas do fracasso de mudanças
educacionais ou de tentativas pontuais de introdução de mecanismos democráticos na
escola, visto que “não adianta gerir democraticamente estruturas antidemocráticas,
estruturas excludentes” (Arroyo, 1996, p. 17). Assim, políticas públicas comprometidas
com objetivos democráticos, constituintes de uma nova qualidade do ensino, não
podem ignorar a necessidade de propor os meios adequados para a realização desses
objetivos, dentre os quais se incluem mudanças na própria estrutura escolar, ou mesmo
a instituição de uma estrutura didática e administrativa inteiramente nova. Isto porque,
como a prática tem demonstrado, “é impossível assegurar a democratização da escola
sem facultar às unidades escolares condições político-institucionais favoráveis” (Pepe,
1995, p. 106).

***

Em síntese, o que parece essencial na defesa da escola pública de qualidade é que


esta se refira à educação por inteiro, não apenas a aspectos parciais passíveis de serem
medidos mediante provas e exames convencionais. Como processo de atualização
histórico-cultural, a educação envolve dimensões individuais e sociais, devendo visar
tanto ao viver bem pessoal quanto à convivência social, no desfrute dos bens culturais
enquanto herança histórica que se renova continuamente. A democracia, como meio
para a construção da liberdade em sua dimensão histórica, faz parte dessa herança
cultural. Entendida como processo vivo que perpassa toda a vida dos indivíduos,
laborando na confluência entre o ser humano singular e sua necessária pluralidade
social, ela se mostra imprescindível tanto para o desenvolvimento pessoal e formação da
personalidade individual, quanto para a convivência entre grupos e pessoas e a solução
dos problemas sociais, colocando-se, portanto, como componente incontestável de
uma educação de qualidade.
Para as políticas públicas em educação isso deve significar uma afirmação radical
da função escolar de formação para a democracia, com projetos e medidas que adotem
essa função de forma explícita e planejada. Isso implicará, em termos de sua viabilidade,
119
educação para a democracia Vitor Henrique Paro

a necessidade de se levar em conta a concretude dos fatos e relações que se dão no


cotidiano da escola, tendo em vista a superação dos obstáculos à mudança e o diálogo
com as potencialidades de transformação que aí se verificam. Por outro lado, para que
essa função se realize de fato, a necessária coerência entre discurso e realidade exige que
a organização didático-pedagógica e a estrutura administrativa da escola se façam de
acordo com princípios e procedimentos também democráticos.

120
educação para a democracia Vitor Henrique Paro

Referências

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Nacional, 1969.

122
Reprovação escolar? Não, obrigado.

Pouca coisa é tão cercada por equívocos, em nossa escola básica, quanto a
questão da reprovação escolar, que se perpetua como um traço cultural autoritário e
antieducativo. Começa pela abordagem errônea de avaliação na qual se sustenta. Em
toda prática humana, individual ou coletiva, a avaliação é um processo que acompanha
o desenrolar de uma atividade, corrigindo-lhe os rumos e adequando os meios aos fins.
Na escola brasileira isso não é considerado. Espera-se um ano inteiro para se perceber
que tudo estava errado. Qualquer empresário que assim procedesse estaria falido
no primeiro ano de atividade. E mais: em lugar de corrigir os erros, repete-se tudo
novamente: a mesma escola, o mesmo aluno, o mesmo professor, os mesmos métodos,
o mesmo conteúdo... É por isso que a realidade de nossa escola não é de repetentes, mas
de multirrepetentes.
Absurdo semelhante ocorre quando se trata de identificar a origem do fracasso.
A atividade pedagógica que se dá na escola supõe um quase infindável conjunto de
atividades, de recursos, de decisões, de pessoas, de grupos e de instituições, que vão desde
as políticas públicas, as medidas ministeriais, passando pelas secretarias de educação e
órgãos intermediários, chegando à própria unidade escolar em que se supõem envolvidos
o diretor, seus auxiliares, a secretaria, os professores, seu salário, suas condições de
trabalho, o aluno, sua família, os demais funcionários, os coordenadores pedagógicos,
o material didático disponível, etc., etc. Mas, no momento de identificar a razão do não
123
reprovação escolar? não, obrigado. Vitor Henrique Paro

aprendizado, apenas um elemento é destacado: o aluno. Só ele é considerado culpado,


porque só ele é diretamente punido com a reprovação. Como se tudo, absolutamente
tudo, dependesse apenas dele, de seu esforço, de sua inteligência, de sua vontade. Para
que, então, serve a escola?
Essa pergunta, aliás, vem bem a propósito da forma equivocada e anticientífica
como se concebe o ensino tradicional ainda dominante entre nós. Apesar de a Didática
ter reiteradamente demonstrado a completa ineficiência do prêmio e do castigo como
motivações para o aprendizado significativo, ainda se lança mão generalizadamente da
ameaça da reprovação como recurso pedagógico. Segundo esse hábito, revelador, no
mínimo, da total ignorância dos fundamentos da ação educativa, à escola compete apenas
passar informações, ameaçando o aluno com a reprovação caso ele não estude. Daí a
grita de professores, pais e imprensa de modo geral contra a retirada da reprovação na
adoção dos ciclos, afirmando que, livre da ameaça da reprovação, o aluno não se motiva
para o estudo. Ignoram que a verdadeira motivação deve estar no próprio estudo que
precisa ser prazeroso e desejado pelo aluno. Nisso se resume o papel essencial da escola:
levar o aluno a querer aprender. Este é um valor que não se adquire geneticamente; é
preciso uma consistente relação pedagógica para apreendê-lo. Sem ele, o aluno só estuda
para se ver livre do estudo, respondendo a testes e enganando a si, aos examinadores e
à sociedade.
Mas defender a retirada da reprovação não significa apoiar “reformas”
demagógicas de secretarias de educação com a finalidade de maquiar estatísticas. Essa
prática, embora coíba o vício reprovador, nada mais acrescenta para a superação do
mau ensino. Com isso, o aluno que, após reiteradas reprovações, abandonava a escola,
logo nas primeiras séries, agora consegue chegar às séries finais do ensino, mas continua
quase tão analfabeto quanto antes. A diferença é que agora ele passa a incomodar as
pessoas, levando os mal informados a porem a culpa pelo mau ensino na progressão
continuada. Mas o aluno deixa de aprender, não porque foi aprovado, mas porque o
ensino é ruim, coisa que vem acontecendo desde muito antes de se adotar a progressão
continuada. Apenas que, antes, esse mesmo aluno permanecia na primeira série, ou se
evadia, tão ou mais analfabeto que agora. Mas aí era cômodo, porque ele deixava de
constituir problema para o sistema de ensino. Agora, com a aprovação, percebe-se a
reiterada incompetência da escola.
124
reprovação escolar? não, obrigado. Vitor Henrique Paro

Só a consciência desse fato deveria bastar como motivo para se eliminar de


vez a prática da reprovação no ensino básico: porque ela tem servido de álibi para a
secular incompetência da escola que se exime da culpa que é dela e do sistema que a
mantém. A reversão dessa situação exige que o elemento que estrutura a escola básica
deixe de ser a reprovação para ser o aprendizado. É preciso reprovar, não os alunos,
para encobrir o que há de errado no ensino e isentar o Estado de suas responsabilidades,
mas as condições de trabalho, que provocam o mau ensino e impedem o alcance de um
direito constitucional.

125
Implicações do caráter político da educação
para a administração da escola pública 1

A questão da relação entre política e educação escolar costuma aparecer, no


âmbito do senso comum, associada a duas posições: uma que nega a legitimidade ou
procedência dessa relação e outra que a afirma.
No primeiro caso, assume-se que a escola, por ser o local em que se dá a transmissão
dos conhecimentos e da cultura em geral, atendendo à generalidade da população, é
um campo (neutro) onde não devem entrar interesses políticos (particulares). O saber
escolar, por seu conteúdo universal, estaria assim a serviço de todos, não devendo
submeter-se a interesses de grupos ou pessoas. Esta posição, defendida principalmente
pelos setores dominantes da sociedade e do Estado, dissemina-se amplamente na mídia
e entre as populações desprovidas de uma concepção crítica da realidade social. Aos
detentores do poder político e econômico interessa, obviamente, que a política não
escape a seu domínio, restringindo-se aos políticos profissionais e aos mecanismos
formais de representação (partidos políticos, poder executivo, congresso nacional e
outros órgãos legislativos, etc.). Por seu turno, a mídia e a população em geral nada
mais fazem que assimilar e refletir uma concepção que domina o imaginário social. A
concepção de política por trás desta posição assume, com frequência, certa conotação

1 Trabalho apresentado na 25ª Reunião Anual da ANPEd, realizada em Caxambu – MG de 29/9 a


2/10/2002.
126
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

negativa, associando-a necessariamente a conflitos entre grupos ou partidos ou à busca


de interesses particulares, nem sempre lícitos. Mesmo entre educadores, há os que se
orgulham de não se envolverem em política ou de manterem sua prática pedagógica
longe da política.
A segunda posição afirma a necessidade da relação entre política e
educação escolar, acima de tudo, porque a escola não é considerada neutra, estando
necessariamente articulada com uma concepção particular de mundo e de sociedade.
Não se trata, portanto, de associar ou não a educação escolar com a política: esta já
está implícita na ação da escola, que, longe de ser universal, numa sociedade de classes,
atende aos interesses dos grupos dominantes que, por meio dela, incutem a concepção
de mundo e de homem que lhes é mais favorável. Essa maneira de abordar o papel da
escola com relação à política se restringe, em grande parte, aos grupos que têm acesso
a uma concepção crítica da escola e da sociedade. Pode-se notar sua forte presença,
por exemplo, no meio acadêmico relacionado a pesquisas educacionais e à formação de
educadores, assim como entre os próprios educadores escolares e entre os formuladores
e analistas das políticas públicas em educação. Essa concepção tem-se firmado nos meios
educacionais com maior intensidade nas últimas décadas, resultante, obviamente, de
todo um processo histórico de tomada de consciência por parte dos intelectuais ligados
ao ensino. Um dos marcos importantes desse processo parece ter sido a crítica à escola,
na sociedade contemporânea, levada a efeito, na década de 1970, por teóricos como
Illich (1973), Bourdieu e Passeron (1975), Baudelot e Establet (1978) e Althusser [197-].
Mesmo defendendo ponto de vista contrário ao da primeira posição, não
é incomum encontrar-se, também entre os que defendem a necessária ligação entre
política e educação escolar, uma visão da política que se identifica com luta entre grupos
portadores de interesses divergentes na sociedade. Apenas que aqui já não se trata de uma
atividade que deva estar adstrita aos limites do Estado, do partido político ou do poder
legislativo, nem se constitui em algo menos digno que não possa estar associado com
a prática pedagógica escolar. Pelo contrário, trata-se de usar a própria educação como
instrumento de ação política. Talvez ainda marcada pela crítica ao papel da escola como
reprodutora das relações sociais, feita na década de 1970, ou mesmo influenciada pelo
sentido de política predominante numa sociedade de classes, nitidamente identificado
com luta pelo poder, o que se pode notar na prática escolar é a predominância de uma

127
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

visão identificada com o que poderíamos chamar de concepção restrita2 de política. Tal
concepção não é exclusiva (visto que se nota, em muitos ambientes, e até mesmo entre
os que a empregam, a coexistência de uma concepção mais ampla de política), mas ela
tem, sem dúvida nenhuma, uma presença muito importante na escola básica, guiando
a ação de muitos educadores e analistas da educação. Na prática escolar, em várias
pesquisas de campo que realizamos, essa visão de política aparece com certa insistência,
entre os vários sujeitos escolares, particularmente entre aqueles mais envolvidos em
reivindicações ou em participação na escola (representantes em conselhos, associações,
sindicatos, etc.). No discurso dos depoentes, o termo política parece estar ligado
a um ou mais dos três significados seguintes: a) como luta política: é a ação que se
empreende visando à conquista (ou preservação) do poder. É político tudo o que se
refere ao comando e controle de grupos sociais, de instituições e da própria sociedade;
b) como sagacidade, perspicácia, “diplomacia”, astúcia: é o uso das diferentes maneiras
ou artifícios para agir e para influenciar grupos e pessoas a agirem de acordo com seus
interesses. A política aqui diz respeito, enfim, às formas mais adequadas para o acesso ao
poder, seja ele representado pelo controle de um Estado ou pelo simples atendimento
de uma reivindicação trabalhista; c) como consciência política: é a posse de saberes
que propiciem a compreensão da realidade social, como condição para identificar o
sentido da luta política. Entre os grupos progressistas, trata-se essencialmente de tomar
consciência do estado de injustiça social para empreender a luta contra os opressores.
Como se percebe, os vários significados remetem ao sentido restrito de política,
como luta que se deve travar entre contendores na disputa pela posse ou manutenção
do poder. Numa sociedade dividida em classes, com o domínio de uns grupos sociais
sobre outros ou sobre o conjunto da sociedade, é de se esperar que isso aconteça, sendo
a luta entre interesses antagônicos o modo dominante de fazer política. Ao mesmo
tempo, onde predomina essa forma de exercer a política, a educação se apresenta como
um terreno em disputa, desempenhando o papel de instrumento nas mãos do grupo
social ou dos grupos sociais que lograrem mantê-la sob seu controle. Acrescente-se que
a visão de educação e a percepção do papel da escola são condicionadas pela visão de
mundo e de política que orientam a ação dos grupos contendores.

2 Falar em concepção restrita não tem o propósito de diminuí-la em sua riqueza teórica, mas apenas o
de indicar que ela pode estar contida numa concepção mais ampla.
128
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

Embora, mesmo num contexto de luta política, certa qualidade política


intrínseca à educação esteja sempre subentendida, observa-se que, quando tomada a
política em seu sentido restrito, os atributos políticos da educação são considerados
predominantemente externos a ela, ou seja, é prioritariamente a forma de utilizar a
educação, não ela intrinsecamente, que lhe empresta caráter político. A pergunta que
se pode fazer é quanto às possibilidades de maior explicitação dos atributos políticos
intrínsecos à educação e de maior expressão de suas potencialidades, quando, para além
de sua conotação restrita, se toma a política num sentido mais amplo, não adstrito a uma
sociedade determinada, marcada pela dominação, mas relacionado à própria construção
histórica do ser humano.
Em seu sentido estrito, numa sociedade de dominação, devemos admitir que
“o conceito de Política, entendida como forma de atividade ou de práxis humana, está
estreitamente ligado ao de poder” (Bobbio, in: Bobbio; Matteucci; Pasquino, 1986, p.
954-955). O poder, por sua vez, em sua conotação weberiana, “significa a probabilidade
de impor a própria vontade, dentro de uma relação social, mesmo contra toda
resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade” (Weber, 1979, p. 43).
Esse conceito é adequado para uma situação de dominação humana consubstanciada
pela posse do poder de uns sobre os outros. Todavia, se se supõe um horizonte mais
amplo, em que a própria superação dessa sociedade possa ser aventada, é necessário
um conceito mais abrangente, que possa dar conta do caráter histórico das sociedades
humanas.
Como ser histórico, o homem transcende a realidade meramente natural (tudo
o que existe independentemente de sua vontade e de sua ação) pela produção de sua
própria existência material. Fundado numa postura de não indiferença diante do mundo
(Ortega y Gasset, 1963), o ser humano afirma sua vontade criando valores que dão
origem a objetivos os quais ele procura realizar pelo trabalho (atividade transformadora
adequada a fins [Marx, [197-?]]). Nesse processo ele se faz sujeito (característica
distintiva de sua humanidade), no preciso sentido de autor, de quem atua sobre o objeto
para realizar sua vontade, expressa nos valores por ele criados historicamente. Mas esse
processo jamais pode ser concebido isoladamente, visto que o homem só se realiza, só
pode produzir sua materialidade, a partir do contato com os demais seres humanos, ou

129
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

seja, a produção de sua existência não se dá diretamente, mas mediada pela divisão social
do trabalho. Disso resulta a condição de pluralidade do próprio conceito de homem
histórico, que não pode ser pensado isolado, mas relacionando-se com outros sujeitos
que, como ele, são portadores de vontade, característica intrínseca à condição de sujeito.
Dessa situação contraditória do homem como sujeito (detentor de vontades, aspirações,
anseios, interesses, expectativas) que precisa, para realizar-se historicamente, relacionar-
se com outros homens também portadores dessa condição de sujeito, é que deriva a
necessidade do conceito geral de política. Este refere-se à atividade humano-social com
o propósito de tornar possível a convivência entre grupos e pessoas, na produção da
própria existência em sociedade.
Como se sabe, essa convivência tanto pode dar-se de forma pacífica e
cooperativa quanto de maneira conflituosa e dominadora. Esta última forma é a que
vigora na sociedade capitalista em que vivemos. Quando isso acontece, a força da
estrutura econômica, fundada na opressão e no domínio de uns sobre os outros, leva
a crer que esta seja a única forma de conceber a política, absolutizando seu caráter
restrito e ocultando outras alternativas, como a de convivência cooperativa e pacífica,
capaz de propiciar o desenvolver pleno das subjetividades. Por isso, na perspectiva da
transformação social, visando a uma sociedade que supere a dominação humana, faz-
se necessária a consideração de um conceito de política que dê conta da nova situação
posta no horizonte. Dentro das amplas possibilidades abertas por uma noção ampla de
política, destaca-se, no caso, já não mais o conceito de política como luta política, mas
o de política como prática democrática. A democracia, todavia, precisa ser entendida
para além de seu sentido etimológico de governo do povo ou governo da maioria, para
incluir todos os mecanismos, procedimentos, esforços e recursos que se utilizam, em
termos individuais e coletivos, para promover o entendimento e a convivência social
pacífica e cooperativa entre sujeitos históricos.
Quando se pensa a política como prática democrática, a pergunta que se apresenta,
ao considerar a relação entre política e educação, é sobre as limitações de se tomar a
educação escolar, especialmente a básica, apenas como instrumento de luta política, e
sobre as potencialidades que se abrem para uma concepção de educação, pensada à luz de
um conceito amplo de política e, ao mesmo tempo, entendida como prática democrática
com atributos intrinsecamente políticos de realização humana.
130
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

A consideração do caráter político da educação em seu sentido restrito tem


aparecido com certa insistência, entre os atores escolares, na investigação sobre o papel
da organização didático-administrativa da escola pública fundamental, que desenvolvo
atualmente. Embora não faltem evidências, entre os educadores da escola, de uma
concepção mais ampla de política a orientar a própria prática, há uma significativa
tendência a apontar os atributos políticos da educação em termos de sua contribuição
para a luta política. A esse respeito, o caráter político da educação escolar aparece
associado a uma ou mais das três funções seguintes, que guardam certo paralelismo
com os significados da política em seu sentido restrito, anteriormente apontados: a)
dotar os educandos das camadas populares dos conhecimentos e conteúdos culturais
em geral, para que estes possam se antepor às ações dos inimigos políticos. É preciso,
para disputar com os dominadores em situação de igualdade, dominar os elementos
culturais que estes dominam (Saviani, 1983); b) fornecer subsídios teóricos para o
desenvolvimento da “competência política” dos educandos, de modo que estes possam
neutralizar as manobras políticas dos adversários, conquistando espaços de poder, pela
defesa competente e arguta dos projetos políticos que interessam aos dominados; c)
formar uma “consciência política” nos educandos pela posse de conteúdos doutrinários
que elevem seu saber a um nível capaz de perceber a injustiça social e de contestar o
poder vigente.
Esse modo de considerar a relação entre política e educação parece supor que os
atributos políticos da educação são externos a ela, ou seja, é a forma de utilizá-la, e não
ela, intrinsecamente, que lhe empresta conotação política. O político precisa, portanto,
ser acrescentado à educação para que ela ganhe esse caráter. Esse modo de pensar parece
expressar-se bem na insistência com que os educadores, especialmente aqueles mais
comprometidos com uma educação progressista, fazem questão de chamar de político-
pedagógico (e não simplesmente pedagógico) o plano que orienta as ações na escola.
Procura-se fazer o pedagógico político por uma imputação de algo que estaria exterior
a ele. Estivesse suposto no entendimento de todos que o pedagógico é necessariamente
político, e não se precisaria insistir no qualificativo, dizendo-se apenas “projeto
pedagógico”. Ao fim e ao cabo, não deixa de ser bastante saudável para o desenvolvimento
da educação todo esse empenho na necessidade de vê-la politicamente, porque isso
contribui para tirá-la da posição acrítica de uma neutralidade política que, de fato, não
é positiva para os fins da democracia na escola.
131
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

Todavia, essa forma de encarar o contributo político da educação não esgota


suas potencialidades a esse respeito, visto que deixa na sombra o caráter intrinsecamente
político, — e mais: intrinsecamente democrático — da ação educativa. Mas isso só
pode ser percebido à luz de um conceito também histórico de educação. Esta, em seu
significado mais geral e abstrato, consiste na apropriação da cultura humana, entendida
esta como aquilo que o homem produz em termos de conhecimentos, crenças, valores,
arte, ciência, tecnologia, tudo enfim que constitui o produzir-se histórico do homem.
Em sua autoprodução, o homem constrói sua liberdade, por contraposição ao domínio
da necessidade natural, ou seja, a tudo aquilo que existe necessariamente, independente
de sua vontade e ação. É pela apropriação da cultura que o ser humano, a partir do
nascimento, atualiza-se historicamente, à medida que se apropria do que foi produzido
pelas gerações anteriores. Nessa apropriação — no duplo sentido de apoderar-se de,
mas também de tornar próprio de si, incorporado à sua personalidade, os componentes
culturais disponíveis na sociedade em que vive — ele se constrói como ser humano-
histórico. Mas, fazer-se homem (histórico) é fazer-se um ser político. É político pois o
homem só pode viver politicamente, ou seja, sua existência, como vimos, supõe sempre
o plural, a dependência dos demais. Ele só vive se conviver com outros, e isso caracteriza
o exercício da política no sentido amplo já mencionado. Como esse fazer-se homem
depende necessariamente da educação — é um fazer-se, educando-se — fica patente o
caráter intrinsecamente político da ação educativa.
Da mesma forma, pode-se demonstrar que, além de inerentemente política,
a educação, como atualização histórico-cultural, é uma prática intrinsecamente
democrática. Basta, para isso, que se considerem as características inerentes ao processo
pelo qual ela se realiza, ou seja, o processo pedagógico. Esse processo, do ponto de
vista da constituição de seres históricos, só pode dar-se supondo a concordância do
educando. Tendo por fim a produção de sujeitos, a educação só se realiza afirmando
essa condição de sujeito do educando, como um ser de vontade, que é o que caracteriza
sua subjetividade histórica; senão o processo não pode realizar-se com êxito, porque
fundado em meios que negam o alcance do objetivo. Do mesmo modo que o fenômeno
da autoprodução do homem histórico — cuja marca distintiva é a presença do sujeito,
dotado de vontade (guiado por valores criados historicamente), que com isso funda
sua transcendência da necessidade natural, introduzindo-se no mundo da liberdade
132
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

humano-histórica —, a educação é algo que exige o envolvimento do educando com


sua vontade e ação. Educar-se é, a esse respeito, um verbo reflexivo. O educando, a
rigor, nunca é educado por alguém, mas sim educa-se pela mediação do educador. Aqui
se identifica uma relação em que há sempre o consentimento livre do outro. Sem o
consentimento livre do educando, não há educação.
Mas esse consentimento livre do outro como característica intrínseca,
obrigatória, da verdadeira educação está indissoluvelmente ligado ao conceito de
política no sentido de prática democrática anteriormente mencionado. Na perspectiva
política de uma sociedade de dominação, o poder como componente da política aparece
no sentido weberiano de imposição da “própria vontade”: vontade particular, privada,
do restrito grupo que domina. Na perspectiva de uma sociedade democrática — no
sentido em que a estamos entendendo — só se pode falar em “poder” sem essa conotação
privada; ele continua supondo o consentimento do outro (necessário sempre para a
convivência política), mas já não se trata do consentimento a uma vontade privada,
mas ao interesse do coletivo, que inclui o do próprio sujeito que consente. “Poder”, aqui,
passa a ser sinônimo de força, não no sentido de sua imposição, mas como fortalecimento
da liberdade, que, longe de ser meramente conquistada ao inimigo, como entende o
senso comum, é construída coletivamente como obra humano-histórica.
Em síntese, pode-se considerar a educação como intrinsecamente política numa
dupla dimensão: por um lado, é por meio da educação, entendida como atualização
histórico-cultural, que o homem se constrói em sua historicidade (historicidade esta
que traz inclusa a dimensão política); por outro lado, a educação, fundada na aceitação
do outro como legítimo sujeito, apresenta-se como a realização da convivência pacífica
e cooperativa que nega a dominação e labora em favor da democracia.
Esse modo de ver a educação tem certamente implicações sobre as reflexões que
se possam fazer sobre a administração da escola, especialmente se se tem em mente a
sua democratização. A administração, entendida em seu sentido mais geral e abstrato,
de “utilização racional de recursos para a realização de determinados fins” (Paro,
1986), tem um caráter mediador que não pode restringir-se a seu papel de controle
do trabalho alheio, assumido numa sociedade de dominação. A preocupação com os
fins leva necessariamente ao cuidado na escolha e utilização dos meios adequados a
alcançá-los. Em se tratando de relações sociais, não é possível alcançar fins promotores
133
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

da democracia e da afirmação de sujeitos históricos a partir da utilização de meios


que não sejam democráticos. No caso da escola, se estamos preocupados com fins
educativos, ou seja, de constituição de sujeitos históricos, a forma de atingi-los deve
ser, necessariamente, consonante com esses fins, o que exige uma administração escolar
democrática.
Do ponto de vista das contribuições que a consideração da condição política
da educação pode trazer para a administração da escola pública básica, podem ser
destacados três pontos: a) a relevância para a qualidade do ensino; b) a importância para
a prática da administração escolar; e c) a contribuição para a teoria da administração
escolar.
Quanto à relevância para a qualidade do ensino, é preciso que se parta do
conceito amplo de educação visto anteriormente, que não se basta na aquisição do que
comumente se entende por “conteúdos”, mas diz respeito à apropriação da cultura em
seu sentido pleno da qual fazem parte os valores construídos historicamente. Entre
estes, os valores relacionados à democracia não são alheios à forma de apreendê-los.
Isto porque, ao mesmo tempo em que dizem respeito às relações de convivência pacífica
e livre entre sujeitos, eles só podem ser apreendidos pela mediação dessas relações, ou
seja, pela educação. Esta, portanto, só poderá concorrer para a apreensão de valores
democráticos se for entendida (e realizada) como relação entre legítimos sujeitos, como
apontamos anteriormente, a única forma, aliás, de uma ação genuinamente educativa
(não impositiva). A educação, assim, constitui-se em autêntica relação social, no sentido
preciso e elevado que lhe empresta Humberto Maturana, ao afirmar que “nem todas
as relações humanas são relações sociais. São relações sociais somente aquelas que se
constituem na aceitação mútua, isto é, na aceitação do outro como um legítimo outro
na convivência.” (Maturana, 1998, p. 95)
Conceber a educação sob esse prisma, de uma relação de aceitação mútua,
entendendo-a como a única forma adequada à convivência social democrática, é aceitá-
la como autenticamente dialógica nos termos apresentados por Paulo Freire (1975).
O diálogo supõe a conversa de ambos os sujeitos envolvidos — educador e educando
— bem como a oitiva e a consideração, por cada um deles, do que o outro diz. Por essa
relação se exerce e se aprende a colaboração ao mesmo tempo em que se aprende e se
exerce o político como democracia. A colaboração entre grupos e pessoas é essencial
134
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

à convivência pacífica e ao desenvolvimento histórico da sociedade. “Não é a luta o


modo fundamental de relação humana, mas a colaboração.” (Maturana, 1998, p. 34)
Pela educação como prática democrática se constrói o político e se concorre para uma
sociedade mais cooperativa, mais compartilhada... e mais digna de ser compartilhada.
A importância de considerar a dimensão política da educação e as potencialidades
de sua realização como prática democrática na escola está associada, assim, à própria
importância da relação pedagógica na convivência social. Sua relevância se mostra tanto
mais evidente quanto mais se consideram suas vantagens na obtenção do consentimento
social, se comparada à outra opção, a coerção. A comparação entre essas duas alternativas
corresponde à que faz Gramsci (1978) entre os mecanismos da “sociedade civil” e os da
“sociedade política”. Esta última, tomado o conceito de política em seu sentido restrito de
luta pelo poder, é a instância da superestrutura na qual o consentimento e a obediência
são alcançados pela coerção, enquanto a “sociedade civil” é o plano superestrutural
onde vigora a persuasão. A coerção encerra um alto nível de certeza no acatamento
da vontade imposta, na medida em que não deixa ao outro nenhuma opção senão a
obediência. Mas esse elemento de força representa sua própria debilidade, porque,
ao não contar com a vontade livre de quem consente, exige a constante permanência
do elemento coercivo. Afastado este, a obediência se transforma em não aceitação e
em rebeldia. Grupo social nenhum, nação nenhuma, por mais extraordinariamente
poderoso ou poderosa que seja, conseguirá sentir-se em segurança se contar apenas
com a coerção para manter o acatamento de sua vontade. Daí a imprescindibilidade da
relação dialógica fundada na persuasão. Esta, à primeira vista, parece bastante frágil,
pois não tem o elemento de certeza da coerção, sendo imprevisível o acatamento ou
não, pelo outro, da ideia apresentada. Na relação, aquele que pretende persuadir tem
de correr o risco de não conseguir seu intento. Mais: corre o risco de ser persuadido do
contrário pelo outro. Mas é desse elemento de fragilidade que a relação dialógica tira, na
verdade, todo seu vigor: uma vez realizando-se o ato educativo, não é preciso nenhuma
vigilância para que o consentimento permaneça. Por não ter sido algo imposto de fora,
mas aceito livremente, determinada ideia ou conteúdo cultural incorpora-se a quem
o apreende. E isto se deve à forma como se deu: como conteúdo educativo, não foi o
educador (simples mediação) que o passou, ou o impôs; foi o educando, como sujeito,
que o integrou a sua personalidade, ao educar-se. Esse componente cultural passa a ser
algo seu, que o acompanha, não necessitando de nenhum controle externo para existir.

135
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

Essas considerações alertam para a necessidade de valorização da educação como


instrumento imprescindível para a construção de uma sociedade mais justa. A esse
respeito, não deixa de ser paradoxal e preocupante certa conduta de direita que labora
precisamente no sentido contrário, ao propor soluções punitivas para os problemas
de delinquência, como se esta fosse gerada pela falta de medidas de força. Costuma-se
apelar para maior castigo, maiores punições e maior rigor na aplicação das penas para
diminuir a criminalidade e a delinquência social. Contudo, “não é o medo do castigo que
detém o crime na vida social” (Maturana, 1998, p. 83). Os delinquentes não deixam de
transgredir a lei e cometer violência por receio da punição. Se assim fosse, já não haveria
delinquentes. Talvez se devesse procurar a solução em outra parte, perguntando o que
leva os bilhões de não delinquentes a serem pacíficos. Ver-se-ia que a razão não está no
medo da punição. Os pacíficos e não delinquentes certamente não são assim por medo
da coerção, nem porque nasceram assim, mas fundamentalmente porque constituíram
assim suas personalidades, no decurso de suas vidas: educaram-se assim, aprenderam a
paz e a não delinquência. Obviamente isso não se deu por ação única da escola, visto que
grande parte deles sequer a frequentaram: outras instâncias da sociedade, em especial
a família, se incumbiram de educar essas pessoas, proporcionando-lhes a apreensão
de valores condizentes com a convivência social pacífica. Mas não há dúvida de que
a escola, especialmente a básica, cuja função primordial é a universalização da cultura,
tem um papel determinante a desempenhar, especialmente quando se pretende articular
sua ação com a transformação social.
Quando se atenta para a forma bancária3 em que, salvo raras exceções, se dá a
relação professor-aluno em nossa escola básica, pode-se perceber que será muito difícil
contribuir para uma sociedade democrática quando, no momento mesmo da formação
do cidadão, da constituição de sua personalidade pela mediação da educação, ainda se
aposta numa relação negadora da democracia, na qual o professor tenta ensinar, passando
conteúdos para o aluno que apenas os aceita passivamente, para depois reproduzi-los
em provas e concursos, desprovidos de qualquer preocupação com a formação integral
do sujeito histórico. Como não há democracia sem verdadeiros democratas, e como
estes não nascem prontos, mas são construídos pela apropriação histórica da cultura

3 Na acepção de Freire (1975), em que o educando se reduz a uma conta bancária na qual se “depositam”
conhecimentos.
136
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

proporcionada pela educação, é preciso instaurar um ensino fundado na aceitação


mútua, em que o educando desempenha seu papel de educar-se como verdadeiro sujeito
político, exercitando, na forma e no conteúdo, a relação pedagógica (democrática)
imprescindível para a construção de uma sociedade que não seja fundada na dominação.
Se a transformação social, como defendia Gramsci (1978), exige uma “reforma intelectual
e moral”, a afirmação do caráter democrático da educação é certamente um de seus
componentes mais importantes.
Com relação ao segundo ponto mencionado, isto é, à importância da dimensão
política (democrática) da educação para a prática administrativa escolar, um aspecto
preliminar a destacar é o viés de interpretação presente nos sistemas de ensino, que
consiste em considerar como administrativo apenas o que se refere às atividades-meio
da escola. Segundo essa visão, seriam objeto da ação administrativa apenas as atividades
ligadas à direção escolar, aos serviços da secretaria e outras atividades de manutenção
da unidade e de oferecimento de condições para a realização dos objetivos. Todavia, se
se considera o caráter mediador da administração, sua ação na escola perpassa todos
os momentos do processo de realização do ensino, incluindo as atividades-fim, em
especial aquelas que se dão na relação educador-educando, pois a ação administrativa só
termina com o alcance do fim visado. Neste sentido, carece de fundamento a dicotomia
que às vezes se estabelece entre administrativo e pedagógico, como se o primeiro
pudesse estar em concorrência com o segundo, como quando se diz que o pedagógico
deve preceder, em importância, ao administrativo. Na verdade, se o administrativo é
a boa mediação para a realização do fim e se o fim é o aluno educado, não há nada
mais administrativo do que o próprio pedagógico, ou seja, o processo de educá-lo. No
procedimento de dicotomização entre pedagógico e administrativo, costuma-se às
vezes afirmar que o administrativo atrapalha a realização do pedagógico, numa clara
confusão do administrativo com burocrático, no sentido negativo do termo, ou seja,
de práticas que se tornam fins em si mesmas, desarticuladas dos objetivos para os quais
foram concebidas (Sánchez Vázquez, 1977). Mas o administrativo, entendido como
mediação, é precisamente a negação do burocrático, pois possibilita o alcance do fim,
isto é, no caso da escola, a realização efetiva do pedagógico.
A principal vantagem de uma abordagem administrativa da situação de ensino
é a percepção da necessidade de articulação coerente entre meios e fins, o que deve
137
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

levar à constatação de que só é possível uma formação para a democracia se os meios de


a realizar, ou seja, a relação educador-educando, não contradiga esse fim, realizando-
se, portanto, de forma democrática. Acrescente-se que o principal indício de uma
gestão escolar verdadeiramente democrática é a democracia que se realiza na própria
sala de aula. Não é incomum observarem-se escolas em que, não obstante a existência
de mecanismos democráticos de participação nas decisões, como eleição de diretores,
conselho de escola, grêmio estudantil, associação de pais, e outros, a situação de ensino
permanece autoritária, contrariando o preceito administrativo básico de adequação
entre meios e fins.
Mas, se a situação de ensino se beneficia de uma visão administrativa, o
administrativo beneficia-se também de uma abordagem pedagógica, o que significa não
haver motivo para não se utilizar o caráter intrinsecamente democrático da educação
nas demais instâncias administrativas da escola. A não adoção dessa abordagem tem
levado a que a democracia que se pratica no âmbito administrativo escolar fique contida
nos limites da democracia meramente formal, praticada no restante da sociedade.
Assim, a ação política parece reduzir-se a mecanismos de luta político-partidária, como
a “partidarização” da eleição de diretores ou da escolha de representantes no conselho
de escola, com a formação de grupos e setores antagônicos para disputar parcelas do
poder de decisão na escola. Espelhando-se num modelo restrito de política praticado
na sociedade, o mais comum é verem-se os diversos atores escolares enredados numa
prática política meramente “eleitoral”, com os vícios e problemas semelhantes aos que
se verificam na sociedade mais ampla. São muito frequentes as reclamações sobre a
formação de grupos de influência, a ocorrência de protecionismo por parte da direção,
do aliciamento de pessoas para apoiarem determinadas causas, da prática de clientelismo
e até de corrupção. Quando isso acontece, não é difícil surgirem argumentos contra a
democratização da gestão, com a alegação de que essas medidas só tumultuam a escola
ou de que as pessoas não estão preparadas para agirem democraticamente. A verdade,
porém, é que a essa “democratização” tem faltado o essencial da democracia, ou seja, o
exercício da aceitação mútua, presente na relação pedagógica.
Obviamente não se deve cair no equívoco de acreditar que a escola é um mar de
tranquilidade e que nunca será necessária a disputa de posições ou a defesa de pontos
de vista contrários aos dos companheiros, ou mesmo o confronto entre interesses

138
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

diversos. Todavia, não se pode confundir a busca de objetivos na escola com a luta
política numa sociedade de dominação. As diferenças de interesses, por exemplo, entre
pais e professores, ou entre grupos que disputam a eleição de diretor ou a presidência do
conselho de escola, não possuem a radicalidade da diferença de interesses entre classes
antagônicas, a ponto de se colocarem em posições opostas, digladiando-se no interior
da escola. Se o interesse das partes envolvidas é o ensino de qualidade, a única forma de
relação que soma para a democratização da escola é a de aceitação mútua, característica
da relação pedagógica.
Preocupados com as dificuldades em estabelecer um clima de colaboração e de
igualdade de oportunidades no acesso às tomadas de decisão na escola, educadores e
demais elementos da escola, vivamente comprometidos com a democratização da gestão,
têm procurado estabelecer regras e criar mecanismos legais e jurídicos os mais adequados
possíveis à garantia do direito de todos e ao exercício efetivo da democracia. Essas regras
são, sem dúvida nenhuma, necessárias, e é preciso aperfeiçoá-las constantemente; mas
elas não são suficientes para caracterizar a democracia na escola. Sem a aceitação mútua
como forma de relação e como ideal a ser constantemente perseguido — isto é, como
meio e como fim da ação política — não pode haver verdadeira ação democrática. Por
isso, além das regras formais (e mesmo para garantir a criação de regras adequadas) é
preciso uma concepção democrática (de aceitação do outro como legítimo sujeito) a
orientar todas as condutas e a impregnar todos os espíritos na escola. A consequência
disso poderá ser um maior aproveitamento das ricas potencialidades democráticas da
relação pedagógica com o fim de tornar mais democrática a administração escolar. Assim
como é preciso “administrar” o pedagógico, para coerir meios e fins e para propiciar
eficácia na realização dos objetivos, é preciso “pedagogizar” a administração escolar,
para que ela se faça mais dialógica e mais democrática.
Finalmente, quanto à contribuição que a consideração da dimensão política
da educação pode trazer para a teoria da administração escolar, o aspecto de maior
destaque é a possibilidade de aprofundar a reflexão sobre o tratamento específico que
deve ser dado à administração da escola, por contraposição à administração de empresas
em geral. Se administração é, em seu conceito mais geral e abstrato, mediação para a
realização de fins, e se isso, como já foi mencionado, implica a necessidade de coerência
entre meios e objetivos, segue-se que o que condicionará as diferenças entre as várias
139
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

administrações singulares e que dará especificidade a determinada administração será


precisamente a natureza dos fins perseguidos em cada caso. A crítica que se pode fazer
à concepção conservadora de administração escolar que aceita a aplicação na escola dos
mesmos princípios e métodos da empresa mercantil (porém com as devidas adaptações,
pois se reconhece tratar-se de “empresas” diferentes), é a observação de que os objetivos
da escola não são apenas diferentes, mas antagônicos aos da empresa capitalista. Nesta, é
possível ser administrativamente eficiente, utilizando métodos de dominação, a partir
do controle autoritário do trabalho alheio, sem que isso contrarie seu objetivo que é a
realização do lucro. O próprio lucro capitalista só se dá por uma relação de dominação
sobre o trabalhador, pela apropriação do valor excedente que este produz com seu
trabalho. Na escola, todavia, a utilização de métodos de dominação nega o objetivo
emancipador de sujeitos humanos, negando ipso facto a própria administração. Além
disso, é preciso considerar a própria especificidade do produto escolar que, mais que um
bem ou serviço, como ocorre na empresa capitalista, trata-se do ser humano constituído
pela educação, um sujeito histórico, de cuja vontade depende a própria realização do
produto e, portanto, a eficiência da administração.
Essa questão ganha maior evidência hoje, quando deparamos com a avidez
autoritária dos governos de inspiração neoliberal em transformar a escola à imagem
e semelhança das leis do mercado. Com o propósito de diminuir custos, isentando-se
dos encargos do ensino, procura-se, por um lado, moldar internamente as unidades
escolares ao feitio da empresa mercantil, aplicando aí os princípios e métodos da
chamada administração geral (que nada tem de geral, pois politicamente interessada
em manter a dominação e a desigualdade de posição do trabalho diante do capital),
por outro, estimular a busca de recursos junto aos próprios usuários, ou às empresas
privadas, cujos interesses não são necessariamente educativos. Num caso e no outro,
a ação é movida por uma concepção de educação totalmente desvinculada de sua
condição histórica e emancipadora do ser humano pela apropriação da herança cultural
a que todos teriam direito. Em vez disso, é vista como mera mercadoria, que deve ser
barateada ao máximo, para adequar-se à “clientela” pobre à qual se destina e para não
onerar os custos do Estado que a provê muito a contragosto. Com isso, a escola se vê
tomada cada vez mais pela visão e pelas regras de funcionamento do mercado e da
competição, completamente contrárias ao desenvolvimento educativo identificado com

140
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

a emancipação humano-histórica e com a convivência social pacífica e cooperativa. Por


mais arraigada que esteja nas mentes e nos comportamentos das pessoas, condicionadas
pela forma de se relacionar de nossa sociedade autoritária, “a competição não é nem
pode ser sadia, porque se constitui na negação do outro” (Maturana, 1998, p. 13). Por
outro lado, por mais que se fale em mercado livre, não pode haver liberdade onde as leis
de mercado são fundamentadas na força dos que possuem sobre os que não possuem. A
lei que vige não é a lei humano-histórica, mas a lei da selva, a lei do mais forte. Mercado
nenhum pode ser livre, com igualdade de oportunidades, se é a propriedade (desigual)
que o dirige.
Contra essa maré montante da mercantilização do ensino e, portanto, da negação
da educação escolar, já se verifica, nos últimos anos, um importante movimento de
afirmação do pedagógico no interior das escolas, especialmente em sistemas municipais
dirigidos por governos populares identificados com a valorização da educação. Todavia,
embora haja cada vez mais vozes indignadas a denunciar essa negação em massa do
caráter educativo da escola, é a visão mercantil que ainda predomina nas políticas e
nas ações do poder dirigente do país, justificando a ênfase que se possa dar ao caráter
político da educação e a sua importância na construção da sociedade democrática.
Em 1979, em trabalho que depois seria considerado clássico pelos estudiosos
da administração educacional, Miguel Arroyo (1979) alertava para o caráter político
da administração da educação. Passadas mais de duas décadas, parece ainda imperioso
enfatizar o caráter político da própria educação, como estratégia para afirmar sua
condição eminentemente democrática, e para que sua administração, avessa aos
interesses de dominação, se faça ao mesmo tempo política e democrática, porque
especificamente educativa.

141
implicações do caráter político da educação Vitor Henrique Paro

Referências

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. Lisboa: Presença, [197-].


ARROYO, Miguel Gonzalez. Administração da educação, poder e participação.
Educação e Sociedade, São Paulo, ano 1, n. 2, p. 36-46, jan. 1979.
BAUDELOT, Christian; ESTABLET, Roger. La escuela capitalista. 5. ed. México: Siglo
Veintiuno, 1978.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de
política. 3.ed. Brasília: UnB, 1986.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma
teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. 2.ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978.
ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1973.
MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [197-?]. livro 1.
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo
Horizonte: UFMG, 1998.
ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da técnica. Rio de Janeiro: Livro Ibero-
Americano, 1963.
PARO, Vitor Henrique. Administração escolar: introdução crítica. São Paulo: Cortez;
Autores Associados, 1986.
SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Filosofia da práxis. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1977.
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. São Paulo: Cortez; Autores Associados,
1983.
WEBER, Max. Economía y sociedad: esbozo de sociología comprensiva. 2. ed. México:
Fondo de Cultura Económica, 1979.

142
Educação integral em tempo integral:
uma concepção de educação para a Modernidade 1

O tema Educação Integral em Tempo Integral já evidencia algo relevante, pois


não confunde educação de tempo integral, ou extensão do tempo de escolaridade, com
educação integral. É preciso que este ponto fique muito claro, para separarmos de vez
uma tendência que entende que a extensão do tempo de escolaridade seja apenas isso:
fazer em mais tempo aquilo que já se faz hoje. Isso pode ser extremamente perigoso,
porque nós podemos simplesmente estar aumentando a desgraça, dando mais da mesma
coisa... Então, para evitar esse problema, o tema, como está apresentado, já realiza essa
distinção, ou seja, não se quer pensar somente em educação em tempo integral como uma
bandeira de luta, mas articular essa extensão a uma concepção de educação integral.
Educação integral, em última instância, é um pleonasmo: ou a educação é
integral ou, então, não é educação. Minha contribuição aqui, diante de tudo que tenho
estudando e discutido, é tentar incomodar um pouquinho, falando mais sobre esse
conceito de educação. Que conceito de educação perseguimos? Qual educação nós
queremos estender: será que queremos mesmo estender essa educação que aí está, ou
precisaríamos fazer uma outra educação estendida? É mais ou menos nesse campo que
pretendo transitar.

1 Palestra proferida no I Seminário Nacional Educação em Tempo Integral, realizado no Rio de Janeiro,
RJ, de 29 a 30/11/2007, e promovido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - Unirio.
143
educação integral em tempo integral Vitor Henrique Paro

Contra a concepção “pobre” de educação

Começo por fazer uma recordação muito rápida daquilo que, no senso comum,
se entende por educação. Lembremos que o senso comum está presente em toda a
sociedade, perpassa todas as camadas sociais e se faz presente também na escola. Esse
senso comum possui, inclusive, um ideal de educação, que está presente nos alunos,
nos pais, nos professores; está presente em todas as classes sociais, na imprensa; está
presente inclusive na universidade, na academia, em livros sobre educação, em palestras
e conferências sobre educação.
Esse conceito, no meu entender restrito, pobre, de educação, é mais ou menos
o seguinte: Quando se pensa em uma educação ideal, se pensa na concepção de que
existe alguém que sabe — alguém que detém conhecimentos e informações — e alguém
que não sabe; e esse alguém que sabe passa essas informações para esse alguém que não
sabe. Pronto, isto é educação. O que é a boa educação? Bastante conhecimento, bastante
informação, bem passada, transmitida para aqueles que não sabem...
Essa concepção pobre de educação orienta a nossa política educacional,
orienta o MEC, as secretarias de educação, enfim, orienta a educação no Brasil. Para
essa concepção de educação, a metodologia é muito simples: basta você ir do mais
simples para o mais complexo, organizando os conhecimentos e explicando para quem
aprende. Para essa concepção, o que importa são conhecimentos e informações, que
inclusive costumam chamar de “conteúdo”. O problema desses conteudistas não é a
falta de conteúdo, mas a pobreza desse “conteúdo”. O conteúdo é o que importa, e esse
conteúdo se restringe a conhecimentos e informações. Como o que importa é isso,
fica inteiramente minimizada a preocupação com quem ensina e, principalmente, com
quem aprende. Organizar o conhecimento, fazendo-o o mais palatável possível — é
assim que se entende o método.
Isso é tanto o ideal de todos, que, quando alguém fala em educação, quer saber
de que forma está sendo trabalhado o conteúdo. O explicador aparece como alguém que
simplesmente passa o conhecimento para o outro. Essa concepção pobre, defeituosa,
limitada faz com que a escola tenha uma tarefa muito simples, quer funcione em tempo
reduzido quer funcione em tempo mais alongado. A escola simplesmente seleciona e
fiscaliza. É mais ou menos o que fazia a chamada “boa” escola de antigamente, que de
144
educação integral em tempo integral Vitor Henrique Paro

boa não tinha nada, mas só que ela podia dar-se ao luxo de ser ruim, porque abrigava
apenas aqueles alunos da elite, que já tinham os pais letrados, que possuíam revistas em
suas casas, faziam leituras, tinham o professor de música, de balé, etc. A criança ia para
a escola e o professor não precisava saber ensinar; bastava saber a matéria, o conteúdo, e
depositá-lo no aluno para que ele pudesse apreender. Nisso que se constituía a chamada
“educação bancária” tão criticada por Paulo Freire (Freire, 1975).
Pois bem, essa escola selecionava apenas aqueles que aprendiam apesar da
escola; e fiscalizava, dando conhecimentos para serem aprendidos, dando tarefas para
casa. Fiscalizava também com os exames, por meio de um mecanismo criminoso que
existe até hoje, que é a reprovação, uma forma de transferir para o aluno o fracasso de
uma instituição inteira. A “boa” escola pública de antigamente era tão elitista quanto a
escola particular de hoje. Se formos levantar os dados, iremos perceber que uma parcela
majoritária daquela escola não conseguia concluir os estudos. Isso representa, de certa
forma, o que a escola privada, hoje, faz com aqueles que possuem dinheiro para pagar
o ensino. E ela não seleciona apenas pelo pagamento de matrículas e mensalidades.
Mesmo que você pague muito bem o ensino, se você não tiver condições de aprender
e ser aprovado apesar da escola, você é convidado a se desligar. Ou seja, é uma escola
que pode dar-se ao luxo de ser ruim, porque só abriga alunos que aprendem apesar dela.
O que nós vamos fazer com essa escola ruim? Ela precisa de mais tempo? Não,
ela já possui todo o tempo do mundo, ela não precisa ser estendida, não precisa de
tempo integral. Se é para fazer essa coisinha ruim que está fazendo, deixa continuar
assim. Esta é uma concepção de educação que não nos interessa. Afinal, se for para
pensar uma educação de tempo integral, (mesmo sem colocarmos ainda a importância
da educação integral) não há necessidade disso — multiplicar a ruindade que está aí não
ajuda em nada.

Por um conceito mais rigoroso de educação

Precisamos, portanto, imaginar um conceito mais rigoroso de educação que


não seja pautado na prática que aí está. Para isso, comecemos com algo que todos
estão de acordo: acredito que todos aqui concordem que a educação visa ao homem.
Ora, considerar que a educação visa ao homem já é um grande progresso; significa
que educação é diferente de treinamento. O animal você treina; com o ser humano, é
145
educação integral em tempo integral Vitor Henrique Paro

necessário educação. O animal você treina até com um pouquinho de afeto, pode pegar
a pedagogia do afeto, ou o “quem ama educa”, essas coisas que existem por aí, que você
consegue ensinar um cachorrinho, por exemplo, a fazer um monte de coisinhas. Dá para
treinar. Mas se pensar o homem como espécie humana, a coisa é diferente: precisamos
de um conceito mais abrangente de educação. Para isso é preciso pensar o ser humano
não como simples animal racional, mas como ser histórico.

O homem como sujeito histórico

O que identifica o homem como ser histórico? Em primeiro lugar, o homem é


natureza, como os demais animais também o são. No entanto, o homem não é somente
natureza. Ele se propõe, se pronuncia diante do real, é um ser que é sujeito. Diante da
natureza, diante do que o cerca, o homem se pronuncia, ele cria algo que não existe
naturalmente, ele cria um valor. Em outras palavras, diante da natureza, ele diz: “isso é
bom, isso não é”; “isto serve, isto não”; “isto é útil, isto não é útil”. Ele valora. Ao criar
um valor, ele, em seguida, estabelece um objetivo e busca realizá-lo por meio de uma
atividade. A atividade guiada por um objetivo é o que denominamos de trabalho humano
(Marx, [19--], p. 202). Pelo trabalho, o homem realiza os seus fins, concretizando os
valores que ele criou. É assim que ele se cria, é assim que ele se faz sujeito, ou seja, não
meramente um ator, mas um autor, autor de sua própria humanidade. Ao fazer isto, ele
transcende o domínio da mera natureza, ele propõe, e é assim que ele se faz humano,
é assim que ele se modifica, se transforma como história, e não como mera evolução
natural.
Só para dar um exemplo, o homem poderia continuar sendo mera natureza,
continuando a andar sobre suas pernas, necessariamente. No entanto, ele não se contenta
com isso e, em determinado momento, diz: “É bom chegar depressa e sem fazer força”.
Quando ele diz isso, ele já transcendeu a natureza, porque ele criou algo que não existe
naturalmente. Ele criou um valor, e aí ele estabelece o objetivo — domesticar o cavalo,
por exemplo. E então, exerce uma ação, uma ação ligada a um objetivo, um trabalho,
diferente de uma mera atividade. O importante é saber que é pelo trabalho humano, por
querer coisas, por ter vontades e realizar a sua vontade que o homem se faz humano, ou
melhor, se faz humano-histórico. O conceito de humano não se restringe ao seu corpo,
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educação integral em tempo integral Vitor Henrique Paro

inclui aquilo que o homem faz, aquilo que ele produz, e é assim que ele faz história,
que ele produz a sua vida. É assim que nós nos fazemos humano-históricos: sendo
sujeitos. E sendo sujeitos, nós produzimos várias coisas, nós produzimos não apenas
conhecimentos e informações, mas produzimos também valores, filosofia, ciência, arte,
direito... Em outras palavras, o homem, para fazer-se histórico, produz cultura.

Educação como apropriação da cultura

Cultura, aqui, vai ser entendida não em seu sentido restrito. Vamos entender
cultura enquanto a produção humana, como tudo aquilo que o homem produz para
além da natureza, portanto, no domínio da liberdade, e não da necessidade. Pois bem,
nós sabemos que, a cada nova geração, não precisamos ficar produzindo tudo de novo. O
homem se apropria de toda cultura produzida em outros momentos históricos, e assim
ele se faz histórico. Enfim, a essa apropriação da cultura, nós chamamos de educação,
agora em um sentido mais amplo, muito mais rigoroso, muito mais complexo. Agora
sim, podemos falar educação integral.
Acontece que quando nascemos não temos um átomo de cultura. Nascemos
absolutamente “zero”, porque a apropriação da cultura não se faz pelo sangue, não se
transmite pelos genes: o filho do filósofo não nasce filósofo, o filho do engenheiro não
nasce engenheiro... Cada um de nós nasce natureza pura, nada de humano no sentido
histórico. Nascemos animaizinhos e nos fazemos humano-históricos por meio da
apropriação e da transformação da cultura. Então, esse é o sentido da produção humana
da educação. É a partir da apropriação de valores, de conhecimentos, de filosofia, de
artes, de ciências, de crenças, que nós nos tornamos cidadãos dessa coisa chamada
humanidade. Isto é educação. Se isto é educação, só existe uma forma de realizá-la, e esta
forma tem que ser coerente com o que ela é.

Aprender como ato de vontade

A razão de ser da educação não pode ser “passar no vestibular”, preparar para o
mercado de trabalho ou responder os testes dos Saebs. Se a educação visa à formação do
humano-histórico, visa de fato à formação do cidadão. Como, em todo empreendimento

147
educação integral em tempo integral Vitor Henrique Paro

humano bem sucedido, os meios não podem contrariar os fins, os meios e a maneira
de produzir a educação não podem contrariar esse fim, que é a produção do humano-
histórico. Se o humano-histórico significa sujeito, ou seja, autor, condutor de sua
própria humanidade, então, a educação só se dá na forma da relação entre sujeitos. Nessa
relação, não acontece propriamente que o educador educa o educando: antes disso, o
educador é alguém que propicia condições para que o educando se eduque. O verbo
educar é um verbo reflexivo, significando que o educando, como ser humano-histórico
(sujeito) em formação, produz sua própria educação pela mediação do educador.
Se o educando só se educa se for sujeito, significa que ele só aprende se quiser.
Mas frequentemente nos esquecemos dessa verdade mais óbvia, mais básica, e deixamos
de propiciar na escola as condições para que o aluno queira aprender. Depois de todo o
desenvolvimento da Pedagogia, especialmente no Século XX, ainda confinamos crianças
em salas de aula por quatro ou cinco horas diárias, ignorando aquilo que a Psicologia da
Educação já nos ensinou há mais de setenta anos, ou seja, que a forma individualizante
do professor explicador é o pior dos métodos para desenvolver a aprendizagem da
criança desde o momento que nasce até por volta de dez ou onze anos de idade.

Educação integral

Se quisermos produzir um sujeito, um ser autônomo, não se pode produzir


em processo de produção que não seja autônomo, como é o da escola que temos hoje
em dia. Da perspectiva de uma educação integral, a pergunta que se faz é se vale a
pena ampliarmos o tempo dessa escola que aí está. E a conclusão a que chegamos é que,
antes (e este é um “antes” lógico, não cronológico) é preciso investir num conceito
de educação integral, ou seja, um conceito que supere o senso comum e leve em
conta toda a integralidade do ato de educar. Dessa forma, nem se precisará levantar a
bandeira do tempo integral porque, para fazer-se a educação integral, esse tempo maior
necessariamente terá que ser levado em conta.
Se vai ser uma escola de tempo integral ou uma instituição maior e mais
complexa de tempo integral não sei, mas que certamente nós precisamos pensar num
conceito para negar este que está aí, precisamos. O que está aí é uma escola à qual se vai,
pretensamente, para aprender Matemática, Física, Geografia, etc. mas à qual não se vai

148
educação integral em tempo integral Vitor Henrique Paro

para aprender a dançar, a cantar, a brincar, a amar, a discutir política, a conviver com o
outro, a ser companheiro, etc. E não me venham com a conversa dos temas transversais
porque esses outros elementos da cultura são tão centrais quanto os conhecimentos e
informações para a emancipação pessoal e a constituição da cidadania integral.
Não precisa tirar um milímetro do currículo que aí está, mas, por favor, não
minimizem aquilo que é nossa própria vida, o nosso próprio exercício na condição
de humano. Nós precisamos pensar em métodos que não sejam tão retrógrados como
os que estão por aí. Se a criança só aprende se quiser, então precisamos saber o que
é preciso para levá-la a querer. Para isso é preciso saber mais sobre Psicologia, sobre
Antropologia, sobre Sociologia, sobre História, sobre a Pedagogia de um modo geral,
sobre todas as ciências que dão subsídios à Educação e nos deixam mais didaticamente
preparados para lidar com a criança, ou com o ser humano em desenvolvimento.
Em síntese, a nossa análise teve o objetivo de mostrar o quanto a escola que aí
está, salvo honrosas e raras exceções, é ruim e não ensina. Falamos sobre coisas óbvias
como o fato de que o aluno só aprende se quiser, coisas que não são vistas porque se
adota uma concepção vulgar e falsa de educação que a reduz a simples passagem de
conhecimentos e informações. É por isso que a escola fracassa, porque conhecimentos
sozinhos, sem a integralidade da relação pedagógica, não se conseguem passar. Eles se
passam mais facilmente quando estão mergulhados na cultura a que eles se referem, e
isso exige o conceito integral de educação.
Para ficar no tema central deste Seminário, educação ou é integral ou não é.
Passar só conhecimento é muito chato, não constrói o interesse da criança. É preciso
levá-la a essa construção, trabalhar com valores (sem moralismo), trabalhar crenças,
trabalhar a arte, a ciência, trabalhar a filosofia em todas as suas dimensões. A escola
que está aí se propõe a passar apenas conhecimento e, por isso, nem isso consegue. Não
basta se propor a ensinar a ler e a escrever: é preciso levar as pessoas a terem necessidade
da leitura e da escrita. A escola que aí está fracassa, portanto, porque é parcial. É por isso
que precisamos pensar sobre a educação integral.

149
educação integral em tempo integral Vitor Henrique Paro

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [19--]. livro 1.

150
Interferências privadas na escola básica:
sequestro do público e degradação do pedagógico 1

Quando se examina a interferência da iniciativa privada na escola básica,


nem sempre ficam inteiramente explícitos os conceitos e os princípios envolvidos na
análise. Às vezes apenas se apresentam dados e se descreve a realidade, esperando que
a simples constatação da presença ou ausência da privatização provoque as posturas
de concordância ou discordância do interlocutor diante do fato. Entretanto, numa
sociedade em que a consciência política da população é muito escassa e em que a
própria escola básica não proporciona a adequada reflexão crítica sobre a realidade,
não se pode esperar que a gravidade do avanço do poder privado sobre a escola pública
seja automaticamente aferida pela simples apresentação quantitativa de sua ocorrência.
Conceitos como os de público, privado, processo educativo, e princípios como os de
cidadania, direito à educação e democracia, precisam sempre ser levados na devida
conta para que uma consistente avaliação das políticas educacionais sobre o tema seja
realizada. Diante disso, o propósito deste ensaio é apresentar e discutir esses conceitos
e princípios, de modo a subsidiar o debate e a reflexão a respeito do assunto.

1 Trabalho apresentado no Simpósio “O público e o privado nas escolas públicas: parceria colaborativa
ou malversação do dinheiro público?”, durante o XVI Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino
(Endipe), realizado em Campinas, SP, de 23 a 26/07/2012.
151
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro

O público e o privado

De um modo sintético, pode-se dizer que o público é o domínio da


universalidade de direitos e deveres de cidadãos, responsáveis diante dos demais
cidadãos e da sociedade organizada no Estado democrático.
O Estado é o domínio da política, entendida não restritamente apenas como
luta pelo poder, mas em seu sentido mais amplo, como convivência entre indivíduos
ou grupos que detêm ou reivindicam sua condição de sujeitos, ou seja, detentores de
interesses e atuantes em sua realização. É a condição de sujeito que caracteriza o homem
como humano-histórico, distinguindo-o da mera necessidade natural, na medida em
que, por uma posição de não indiferença (Ortega y Gasset, 1963), ele se manifesta
diante do real, criando um valor, expressão de sua vontade, que lhe oferece condições de
estabelecer um objetivo e procurar alcançá-lo pelo trabalho (Marx, 1983). O conceito
de sujeito, assim, não se limita à condição de agente ou ator, mas se expande para sua
qualidade de autor.
Pelo trabalho, o homem se faz necessariamente social, uma vez que não
consegue produzir sua existência diretamente, de modo isolado, tendo, em vez disso,
que relacionar-se com os demais por meio da divisão social do trabalho. Isso equivale
a dizer que o homem, como ser histórico, não existe no singular, visto que a produção
de sua existência só se dá com a colaboração dos demais elementos da espécie. Mas não
é ainda essa sociabilidade que o diferencia da natureza, porque também na natureza
se encontram inúmeros exemplos de espécies que são “sociais”, ou seja, que produzem
sua existência por meio da colaboração necessária dos indivíduos que a compõem
(abelha, formiga, etc.). O homem não é, portanto, apenas um “animal social”, porque
não lhe basta relacionar-se com o outro, é preciso também conviver com a subjetividade
desse outro, que, como tal, tem ou advoga a condição de sujeito, de autor. Ou seja, os
indivíduos humanos possuem vontades, interesses, valores, desejos, projetos, sonhos,
que não necessariamente coincidem com os de outros indivíduos da mesma espécie. A
convivência diante dessa condição é que caracteriza a ação política em seu sentido amplo.
Há basicamente duas formas de produzir a convivência entre sujeitos. Uma
consiste na dominação de uns sobre outros, reduzindo-se estes à condição de objetos (não
sujeitos). Trata-se do autoritarismo em suas mais variadas formas, cuja predominância

152
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro

na história tem sido tão marcante a ponto de levar o senso comum (e muitos estudos
acadêmicos) a identificá-lo com o próprio conceito de política. Isto é, a política como
luta contra o outro se faz tão presente que produz a falsa consciência de que a atividade
política se resume na luta pelo poder de uns sobre os outros, descartando a possibilidade
de que a política se faça também como convivência com os outros (Holloway, 2003), que
consiste precisamente na segunda forma de fazer política, ou seja, aquela que se realiza
no diálogo entre sujeitos. Trata-se, neste segundo caso, da democracia em seu sentido
mais universal (Coutinho, 1980), como “convivência pacífica e livre entre pessoas e
grupos que se afirmam como sujeitos” (Paro, 2010, p. 27; grifos no original).
Mesmo que nunca encontremos cada uma dessas modalidades em sua forma
pura na organização da sociedade, é a elas que temos de recorrer quando procuramos
analisar a realidade. E se, como afirmamos, o conceito de público está relacionado à
universalidade de direitos e deveres de cidadãos numa sociedade organizada pelo Estado
democrático, é à prática política como democracia que devemos nos referir sempre que
nos reportamos ao caráter público dos direitos e deveres. Assim, podemos dizer que o
Estado será tanto mais público quanto mais democrático ele for, da mesma forma que a
democracia não pode nunca perder de vista sua articulação necessária ao bem comum
(público, universal).
Além disso, o Estado democrático (sua própria existência) supõe a concordância
de todos com suas determinações. É por isso que ele não apenas estabelece direitos, mas
também impõe deveres. Direitos e deveres existem, supostamente, para o bem de todos
os integrantes da sociedade. Numa democracia, a razão de ser do Estado, em princípio, é
a garantia do bem público. Todavia, isso não significa que, na prática, o público sempre
coincida com o estatal. Como entidade histórica, o Estado está permeado pelas múltiplas
contradições que caracterizam os empreendimentos humanos. Assim, mesmo o Estado
constituído a partir de parâmetros democráticos não está imune a medidas e práticas
que violam os interesses públicos da sociedade. Por isso não se deve tomar por pública
determinada instituição pelo simples fato de pertencer ao Estado ou ser por ele mantida.
A esse respeito, a pergunta que se faz é se é mesmo apropriado chamar de pública nossa
escola básica mantida pelo Estado – quando sabemos de sua precariedade em atender
os interesses da população tanto em termos qualitativos quanto em termos de sua
abrangência e universalidade – ou se a expressão “escola pública básica” anuncia apenas
153
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro

um desejo e uma intenção ainda longe de se realizar. Em acréscimo, e para efeito do tema
que examinamos aqui, a questão é saber em que medida as interferências de interesses
privados em sua organização e funcionamento concorrem para descaracterizá-la como
instituição que visa ao bem público.
O privado, por sua vez, é o âmbito da particularidade de indivíduos e grupos
com seus interesses e idiossincrasias, e também supõe direitos e deveres protegidos
pelo Estado. Todo cidadão precisa ter a garantia de uma vida privada, com ideias,
crenças, atos e decisões que não são públicas, nem passíveis de monitoramento por
parte do Estado, fazendo parte apenas de seu círculo privado de relações. Pode-se dizer
então que, no domínio privado, prevalecem as relações “pessoais”, aquelas que dizem
respeito às características particulares, idiossincráticas, de cada pessoa ou grupo. Em
sua condição de “pessoa”, o cidadão atua num âmbito demarcado pelas características
e potencialidades de seu círculo de conhecimentos e amizades. São relações diretas,
que se dão no círculo privado, sem a mediação estatal. Ou seja, seu poder deriva de
circunstâncias que, a rigor, nada têm a ver com o controle do Estado. Fulano pode, por
exemplo, receber um presente de um amigo, pelo privilégio de tê-lo como amigo, e isso
escapa completamente à regulação estatal. Ele pode também, pela circunstância de ter
sido criado numa família cristã (ou de outra religião qualquer), professar essa crença,
sem que isso em nada diminua ou acrescente a sua condição de cidadão.
A essa característica privada da condição de “pessoa”, contrapõe-se o conceito
de “indivíduo”, como síntese dos atributos que os sujeitos sociais têm em comum com
todos os demais (DaMatta, 1991). Ou seja, cada indivíduo, nesse sentido, aparece como
exemplaridade do conjunto de cidadãos, devido à universalidade de seus direitos e
deveres. Aqui seu poder social deriva não de uma sua característica pessoal ou de uma
circunstância particular, mas de algo geral, universal, comum a todos os componentes
da sociedade. Já não há privilégios (pessoais), mas direitos (de cidadania). Fulano pode, por
exemplo, matricular seu filho numa escola gratuita de ensino fundamental porque esse
é um direito de todos, garantido pelo Estado. Neste caso estamos no âmbito do público,
daquilo que é universal, não particular (privado). Podemos dizer, então, que os cidadãos
se igualam como indivíduos (público) e se diferenciam como pessoas (privado).
Público e privado existem em estreita relação e não é incomum a confusão
entre os dois conceitos. Por isso, é preciso estar bastante atento a respeito das fronteiras
154
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro

que delimitam essas instâncias, para evitar interferências ilegítimas de uma sobre a
outra. Ou seja, numa democracia, o público e o privado, como instâncias mutuamente
determinantes, devem coexistir de modo que um não cerceie a liberdade do outro.
Sempre que o poder público sobrepõe-se aos direitos do privado, limitando-os, assim
como toda vez que o privado agride o domínio do público, utilizando-o para interesses
particulares, a democracia é violada.
Um bom exemplo para ilustrar a interferência ilegítima de uma instância sobre
a outra é a confusão de papéis que se costuma verificar na relação entre ciência e crenças
religiosas. A ciência é necessariamente o domínio do público, pois deve ser fundada
em conteúdos que tenham validade universal. A “verdade” científica só se sustenta
quando se demonstra publicamente, por meio de fatos e argumentos, aquilo que se está
afirmando. A crença religiosa, por sua vez, é necessariamente privada, e como tal deve
ser respeitada. Se alguém diz acreditar na existência de deus (ou de duendes), isto não
precisa ser publicamente provado. Esse indivíduo tem o direito de professar livremente
sua fé, sem que se possa exigir dele que forneça evidências científicas (públicas) disso. Tal
exigência corresponderia a proibir-lhe de exercer sua crença, já que ninguém consegue
provar ou fornecer evidências científicas (públicas) que justifiquem determinada fé
religiosa. Mas, em igual medida, o direito privado a uma crença não pode de modo
nenhum servir de pretexto para violar qualquer direito público. Não se pode, a pretexto
de princípios religiosos (privados), advogar a transgressão de princípios públicos que
lhes precedem. Assim, se determinado credo religioso estabelece, por exemplo, que a
transfusão de sangue é pecado, ou contraria a vontade de deus, esse “preceito” deve,
sim, ser preterido quando interfere no direito à vida das pessoas, não podendo o Estado
permitir que um pai proíba a transfusão de sangue em seu filho só porque sua religião
assim o estabelece. Assim como um cidadão não pode ter direito de espancar ou de
violentar seu filho só porque é seu filho (contexto privado) ele também não pode ter o
direito de, com pretextos religiosos (privados), usurpar-lhe a chance de viver, já que esse
é um direito público que deve ser protegido pelo Estado.
Também o público não pode, com medidas totalitárias, invadir o âmbito
do privado para transgredir os direitos dos indivíduos. A liberdade de crença, como
vimos, é um direito privado e deve ser exercido plenamente desde que não interfira no
direito de outros (público). O Estado não pode (não deve), portanto, violar esse direito,
155
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro

introduzindo ou favorecendo o ensino religioso nas escolas, por exemplo, sob pena de
violar a liberdade de crença dos cidadãos, além de pôr uma instituição pública a serviço
de interesses não públicos. E não tem validade aqui o argumento viciado de que o
ensino religioso abre possibilidades para todas as religiões, fazendo-se, assim, universal.
Primeiro, porque não é a soma de privados que compõe o público; este advém de um
princípio que é universal, não do ajuntamento de pedaços particulares. Além disso, a
soma de “todas as religiões” não inclui a não religião, ou o ateísmo, que deve também
ser um direito de todos.

O pedagógico

A educação como apropriação da cultura é direito universal e se apresenta


como necessidade intrínseca ao desenvolvimento da sociedade e ao fortalecimento da
democracia. Como direito público, sua realização na escola básica, lugar por excelência
de seu provimento pelo Estado, deve pautar-se em princípios públicos, ou seja,
universalizantes e democráticos. Além disso, o aprendizado escolar é necessariamente
democrático não apenas por essa universalidade, mas também por razões didáticas
ligadas à natureza mesma do processo pedagógico, que só se faz com a vontade do
educando.
O primeiro ponto a ser considerado quando se fala em direito à educação é
a necessária precisão da natureza desse direito e de sua extensão. No senso comum
costuma-se acreditar que o direito à educação escolar se restringe à “transmissão”
sistematizada de conhecimentos e informações. Tal premissa está equivocada tanto
com relação à forma quanto com relação ao conteúdo da educação.
Com relação ao conteúdo, é uma visão altamente reducionista e discriminatória
porque não serve à formação do humano-histórico em sua plenitude, restringindo o
ensino às tradicionais disciplinas escolares. Todavia,

o ser humano, para realizar-se como tal, para sentir-se bem, liberto
dos grilhões da necessidade, não precisa apenas de conhecimentos e
informações. A cultura, na forma de todo desenvolvimento científico,
filosófico, ético, artístico, tecnológico, etc., é o próprio substrato da
liberdade do homem, para além da necessidade natural. Nesse sentido, cada

156
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro

indivíduo se faz mais livre à medida que se apropria da cultura. Quando


falamos de direito à educação, portanto, isso não pode significar o direito
apenas a pequenos “pedaços” da cultura, na forma das chamadas disciplinas
escolares (Matemática, Geografia, Língua Portuguesa, etc.). Estas são, sem
dúvida, partes importantíssimas da herança cultural, mas não são tudo.
(Paro, 2011, p. 137-138)

Infelizmente, é a visão do senso comum que orienta de modo geral as políticas


públicas em educação, entre nós, com o agravante de que as próprias metas do ensino têm
se reduzido a rudimentos de Matemática e Língua Portuguesa que são pretensamente
aferidos por meios dos duvidosos sistemas de “avaliação” em ampla escala, como o
Saeb, a Prova Brasil, etc., cuja principal função tem sido escamotear ainda mais os reais
problemas de nosso ensino.
Com relação ao método, é espantoso constatar que, apesar de todo o
desenvolvimento das ciências da Educação, especialmente no último século, a
concepção que estrutura a escola básica em todo o território nacional ainda é a visão
ingênua do senso comum, segundo a qual os conhecimentos são “transmitidos” de
forma linear de quem educa para quem é educado. Essa forma de ensinar não funciona.
Primeiro porque, especialmente na escola fundamental e na de educação infantil, os
conhecimentos não se passam sozinhos, exigindo os outros componentes culturais
(arte, filosofia, crenças, valores, direito, esportes, etc.) para se integrarem na formação
plena da personalidade do educando. Por isso, nossa escola, ao pretender “passar” só
conhecimentos, nem mesmo isso consegue fazer. Em segundo lugar, porque cultura
(o verdadeiro conteúdo da educação) não se transmite, como acontece com uma
mercadoria ou um objeto qualquer. As ciências que subsidiam a Pedagogia (Psicologia,
Antropologia, Sociologia, Neurociência, Didática, etc.) têm provado à exaustão que o
educando só aprende quando se faz sujeito (autor), isto é, quando sua ação no processo
pedagógico não é simples atividade, mas expressão de sua vontade. Sendo assim, o
educando não é um ser passivo que recebe a cultura de quem lhe “passa”. O educador não
lhe “transmite” nada, mas tão somente apresenta ao educando um componente cultural
(um conhecimento, um valor, uma habilidade, etc.) e propicia condições para que este se
aproprie desse elemento cultural. É o educando quem processa o aprendizado, educando-
se. Ao apropriar-se de determinado conteúdo cultural, este passa a ser do educando, sem
157
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro

deixar de ser (continua sendo) do educador. Não há, pois, transmissão deste para aquele,
como creem o senso comum e os formuladores de políticas educacionais. A cognição
é construída no processo ensino-aprendizado e o educando incorpora a cultura em sua
personalidade viva, educando-se.

Sequestro e degradação

O processo pedagógico como acabamos de resumir consiste em autêntica ação


política porque se trata de uma relação de convivência entre sujeitos. Mais do que isso,
se o processo pedagógico é efetivamente exitoso, trata-se de uma relação democrática, já
que é uma relação entre sujeitos que se afirmam como tal. O professor é necessariamente
sujeito porque tem um objetivo a realizar e se aplica em sua realização; o educando é
sujeito porque o êxito do aprendizado só se dá se ele aplica sua vontade na atividade de
aprender. Além disso, o educando, como objeto de trabalho – ou seja, o elemento do
processo de trabalho que se transforma (em sua personalidade viva) no produto final
(o indivíduo educado) por meio da apropriação da cultura – precisa ser sujeito porque
o fim da educação é a produção de um sujeito (o ser humano-histórico). Como, numa
ação eficiente, os meios não podem contrariar os fins, o objeto de trabalho pedagógico
não pode ser mero objeto, mas um sujeito, mesma condição esperada do produto que
se propõe realizar.
Diante disso, todo tratamento técnico (didático-metodológico) da relação
pedagógica não pode de modo nenhum ignorar o caráter político dessa relação. O
processo de trabalho pedagógico está perpassado pelo técnico e pelo político em
completa interdependência e simbiose. Toda providência técnica consiste, então, no
provimento e fortalecimento da ação política (democrática), de tal forma que quanto
mais tecnicamente consistente, mais o processo se torna democrático e quanto mais
democrático mais se fortalece tecnicamente.
Esse caráter político (democrático) da relação ensino-aprendizado revela toda
a especificidade do trabalho pedagógico. É essa especificidade que é ignorada pelos
formuladores de políticas educacionais alheios ao campo pedagógico. Diversamente de
outros tipos de produção – que povoam a mente e a preocupação dos administradores de
empresa de um modo geral – em que o trabalhador adota uma posição de exterioridade

158
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro

com relação a seu objeto de trabalho, o professor como trabalhador precisa envolver-
se (politicamente) com o educando, seu objeto de trabalho por excelência. O fazer do
educador não realiza apenas uma ação que resulta num produto. Seu fazer, em vez disso,
deve produzir outro fazer (do educando) que realiza a ação que dá origem ao produto
desejado, isto é, sua personalidade modificada pela cultura por ele incorporada.
A ação da escola e de seus educadores reveste-se assim de uma complexidade
ímpar que exige condições de trabalho adequadas tanto aos aspectos políticos quanto
aos técnicos. Os primeiros dizem respeito, acima de tudo, à liberdade e à autonomia
de professores e demais educadores escolares para planejarem e organizarem suas
atividades de acordo com as peculiaridades de seus alunos, do currículo envolvido e
da especificidade do trabalho pedagógico. Os aspectos técnicos, por sua vez, têm a ver
com todas as condições materiais e institucionais necessárias ao desenvolvimento da
ação pedagógica, indo desde recursos didáticos, material escolar, mobiliário, salas e
ambientes disponíveis, passando por remuneração satisfatória e formação permanente,
até os espaços e tempos reservados para a troca de experiências com colegas de trabalho
e compartilhamento de experiências com a comunidade.
Quando essas condições políticas e técnicas não se encontram presentes, verifica-
se o sequestro do caráter público da instituição escola e a degradação de seu desempenho
pedagógico. Essas consequências não estão dissociadas uma da outra. Assim, o sequestro
do público ocorre duplamente: por um lado, em virtude das dificuldades de exercício da
ação política dentro de parâmetros democráticos e de liberdade de atuação por parte de
educadores e educandos; por outro, por causa do empobrecimento da ação pedagógica
que, assim, não consegue desenvolver-se de modo a propiciar a apropriação da cultura
por parte dos educandos, seu direito público fundamental. Por sua vez, a degradação
do pedagógico já está presente no próprio sequestro do público, na medida em que
as condições técnicas omitem sua conotação inerentemente política, impossibilitando
também uma prática pedagógica consistente.
Certamente há mais de uma forma de sequestrar o caráter público da escola e de
patrocinar a degradação de sua prática pedagógica, e o modo descuidado e antipedagógico
como o Estado vem tratando das políticas educacionais relacionadas à escola básica não
é das menos plenas de consequências deletérias. Uma das maneiras atualmente em voga
por parte dos vários sistemas de ensino para desonerar-se de seu dever de proporcionar

159
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro

ensino de boa qualidade para a imensa população necessitada de educação básica é a


adoção dos inexplicáveis pacotes e “sistemas” de ensino da iniciativa privada, que são
adquiridos com dinheiro público para favorecer interesses particulares e são impingidos
aos educadores escolares, sem a mínima consideração pela especificidade do educativo
e pela liberdade de ensinar dos professores.
É notório que as estratégias adotadas por esses “sistemas” geralmente agridem
os mais comezinhos critérios da boa pedagogia, buscando “taylorizar” o trabalho do
professor, e ultrapassando as raias do tolerável em termos de desqualificação. Todavia,
a análise a ser feita, primariamente, não é se o material pedagógico utilizado por tais
“sistemas” é de boa ou má qualidade, porque o processo pedagógico não se reduz a esse
aspecto, embora isso também não possa deixar de ser considerado. A degradação se
concretiza, fundamentalmente, porque o próprio modo de gerir o pedagógico, alijando
os educadores escolares de sua liberdade de conceber, planejar e executar o ensino de
uma forma orgânica e tecnicamente consistente, impossibilita uma educação eficiente,
pois tira da escola as condições adequadas de realizar o ensino de acordo com suas
peculiaridades políticas e pedagógicas.
Em suma, a interferência do privado na escola básica – especialmente por
meio dos pacotes e “sistemas” de ensino comercializados pela iniciativa privada (mas
com certa frequência também pela compra de “serviços” de ONGs e assemelhados) –
ao atender a grupos particulares com interesses marcadamente mercantis, sonega dos
educadores escolares o direito (e o dever) de planejarem, organizarem e executarem a
aprendizagem em estreita colaboração com seus colegas e educandos. Ao invadir, assim,
o espaço público, o privado não só reduz a universalidade da cidadania, mas também
solapa o terreno em que se constrói o educativo.

160
interferências privadas na escola básica Vitor Henrique Paro

Referências

COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. São Paulo: Ciências
Humanas, 1980.
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 4.
ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991.
HOLLOWAY, John. Mudar o mundo sem tomar o poder: o significado da revolução
hoje. São Paulo: Viramundo, 2003.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983. v.
l.
ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da técnica. Rio de Janeiro: Livro Ibero-
Americano, 1963.
PARO, Vitor Henrique. Educação como exercício do poder: crítica ao senso comum em
educação. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
PARO, Vitor Henrique. Crítica da estrutura da escola. São Paulo: Cortez, 2011.

161
O professor como trabalhador:
implicações para a política educacional
e para a gestão escolar 1

Razão mercantil e amadorismo pedagógico

Em instigante trabalho que analisa os resultados desastrosos das reformas


neoliberais introduzidas no sistema escolar norte-americano no final do século passado
e início deste – reformas que ela mesma ajudara a implementar como secretária-
assistente de educação do governo de George H. W. Bush, no início da década de 1990
– Diane Ravitch (2011) afirma que “a educação é importante demais para entregá-la às
variações do mercado e às boas intenções de amadores” (p. 248).
Dificilmente se encontrará na literatura recente sobre políticas públicas algo que
sintetize de forma tão aguda as duas grandes ameaças que rondam o direito à educação,
ou seja, 1) a razão mercantil que orienta as políticas educacionais e 2) o amadorismo
dos que “cuidam” dos assuntos da educação.
Evidentemente esses fenômenos estão intimamente relacionados e acabam por
ser mutuamente determinantes. A razão mercantil, ao privilegiar a busca de resultados
econômicos, costuma menosprezar os fins educativos, favorecendo encaminhamentos

1 Trabalho apresentado no IV Seminário de Educação Brasileira, promovido pelo Centro de Estudos


Educação & Sociedade – Cedes, realizado na Unicamp, em Campinas, SP, de 20 a 22/02/2013.
162
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

e abordagens que passam ao largo das boas práticas pedagógicas e do conhecimento


técnico-científico sobre educação. Por seu turno, a ausência de familiaridade com a
pedagogia deixa sem norte os agentes de políticas educacionais, que são seduzidos
pelos mecanismos de competição mercantil, na busca de soluções que compensem seu
amadorismo pedagógico.
A razão mercantil, como o nome indica, procura reduzir tudo à imagem e
semelhança do mercado. No campo econômico, é ela que rege a compra e venda de
mercadorias quase sempre visando não apenas a troca de bens e serviços, mas também
a apropriação ampliada de tais produtos. O resultado dessa ampliação é o lucro, ou
seja, a diferença, em termos de valor econômico, entre o que se comprou e o que se
obteve com a venda. O lucro pode ser resultado da mera especulação – quando se vende
algo apenas mais caro do que se comprou, sem nenhuma variação no objeto da troca –
como também pode ser o produto de uma transformação das mercadorias no intervalo
entre sua compra e sua venda. Neste último caso enquadra-se a produção tipicamente
capitalista, em que a compra de mercadorias (força de trabalho e meios de produção),
pelo proprietário do capital, tem como propósito a associação entre elas de modo que
sejam produzidas outras mercadorias que encerrem um valor maior do que o contido
originalmente. O lucro obtido com a venda dessas mercadorias já não é mais o resultado
do simples aumento do preço de venda com relação ao de compra, mas sim do acréscimo
de seu valor real durante o processo de produção.
Esse acréscimo de valor se dá, como se sabe, porque a força de trabalho agrega às
mercadorias que produz um valor maior do que o seu próprio valor, ou seja, aquele que
custou ao capitalista. Embora não se trate de reproduzir aqui a demonstração científica
desenvolvida por Karl Marx (1983) acerca de como se concretiza a produção de valor
sob o capitalismo, é bom ter presente, desde já, que, em nossa sociedade, a razão
mercantil está articulada, em última análise, a essa reprodução ampliada do capital,
que se faz pela realização do lucro, cujo substrato é a apropriação do valor excedente
produzido pelo trabalho. Todavia, a razão mercantil não se configura apenas quando
está imediatamente presente o lucro, mas sempre que se manifestam os mecanismos
relacionados à competição, à concorrência e ao supremo mandamento mercantil de
levar vantagem em qualquer situação.
Nas políticas educacionais, a razão mercantil se faz presente de duas formas
básicas: uma diretamente relacionada à resolução de questões econômicas e outra não
163
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

diretamente relacionada a essas questões, mas que se reporta ao mesmo paradigma no


encaminhamento de soluções.
No primeiro caso, estão, por um lado, as políticas que defendem interesses
econômicos particulares, e se consubstanciam nas mais variadas formas de “privatização”
do ensino, seja por meio do favorecimento direto das escolas particulares, seja pela
“adoção dos inexplicáveis pacotes e “sistemas” de ensino da iniciativa privada, que são
adquiridos com dinheiro público para favorecer interesses particulares” (Paro, 2012b), seja
ainda em medidas que, em detrimento de ações que favoreçam a melhoria das condições
de trabalho dos educadores escolares, dão preferência à compra de bens e serviços
(computadores, consultorias, avaliações externas, etc.) bem como o estabelecimento de
contratos e convênios com empresas, ONGs, fundações, institutos, etc.
Por outro lado, ainda no contexto dessas medidas diretamente econômicas,
a razão mercantil também se faz presente quando, independentemente de interesses
privados, os responsáveis pelas políticas públicas têm em vista um horizonte mais
amplo de crescimento econômico do país, mas – ignorando as razões verdadeiramente
educativas ligadas ao direito à cultura e à formação integral do cidadão – amparam-se
na teoria do Capital Humano (Becker, 1968; Schultz, 1961a, 1961b, 1973; Blaug, 1975),
para proporem e implementarem medidas visando apenas à formação para o mercado
de trabalho, para o consumo ou para avançar nas posições dos ranques econômicos
nacionais e internacionais.
A outra forma básica em que a razão mercantil se faz presente nas políticas
públicas em educação é aquela em que, embora não articulados com os interesses
diretamente econômicos, tanto o discurso quanto a prática seguem o paradigma
empresarial capitalista. Como afirmou Marx há mais de 150 anos, “o capital é a força
econômica da sociedade burguesa que tudo domina” (1977, p. 225), impondo suas regras
não apenas no nível econômico, mas em todas as instâncias da sociedade (Paro, 2012a,
p. 168-169). Dessa forma, as condutas, as maneiras de agir e de resolver problemas
e tomar decisões no âmbito da produção econômica acabam se espalhando por todo
o corpo social, servindo de paradigma para as relações humanas e sociais, sejam elas
econômicas ou não.
Certamente, no campo educacional, essa predisposição haveria de encontrar, no
amadorismo e na ignorância pedagógica, solo fértil para vicejar e expandir-se. Assim, os
164
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

fazedores das políticas educacionais – economistas, políticos, empresários, estatísticos,


matemáticos, engenheiros, professores universitários, e até profissionais titulados em
educação, etc. – na ausência do conhecimento técnico-científico sobre o fato educativo,
não titubeiam em fazer uso, fartamente, dos princípios, métodos e técnicas dominantes
no mundo dos negócios, ignorando por completo a especificidade do trabalho escolar e
a necessidade de levar em conta sua singularidade na tentativa de fazê-lo efetivo.
Seja em obediência à razão mercantil, seja em decorrência do amadorismo dos
envolvidos, o que acaba por ficar à margem das questões e das tentativas de solução é
a própria educação escolar com tudo o que ela tem de riqueza e especificidade. Ao fim
e ao cabo, como procurei demonstrar em outros trabalhos (Paro, 2010, 2011), apesar
de todos parecerem entender de educação, o que acaba orientando tanto as políticas
públicas quanto as práticas pedagógicas em nossas escolas é uma espécie de senso comum
que ignora séculos de história da educação e de progressos científicos na elucidação da
maneira como as pessoas aprendem e na proposição de novas formas de ensinar.
Um dos pontos mais importantes que são obnubilados por essa cegueira
pedagógica é a natureza da ação especificamente educativa (ensino-aprendizado). Em
termos pedagógicos, ela é vista como mera relação de comunicação, por meio da qual
se transmite o conhecimento acumulado historicamente. Em termos econômicos, é vista
como um trabalho como qualquer outro, ao qual podem ser aplicadas todas as categorias
econômicas do ponto de vista tanto do trabalho concreto quanto do trabalho abstrato
na produção tipicamente capitalista. O estranho é que esses equívocos costumam
frequentar até mesmo trabalhos declaradamente críticos que se propõem a reivindicar
para a educação e para o trabalhador em educação um tratamento digno e diferenciado
em termos de justiça e de importância social.
Com relação à educação e seus fins, o enfoque da crítica às vezes se restringe à
preocupação com o chamado “conteúdo”, reduzindo o ensino-aprendizado à passagem
de conhecimentos, os quais, se forem críticos (e em quantidade suficiente) bastam para
tornar crítica a própria educação. Essa concepção minimiza, obviamente, a forma do
ensino (relação entre sujeitos), com seu papel determinante tanto como componente
do conteúdo, quanto como mediação que torna possível sua apropriação. Com relação
aos educadores escolares, muitos trabalhos críticos se comprazem em reivindicar para
os docentes o mesmo status do típico trabalhador da produção capitalista, denunciando

165
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

sua situação de injustiça e exploração e advogando (apenas) os mesmos direitos devidos


ao operariado.
É diante desse quadro que se evidencia a necessidade de considerar a singularidade
do processo de produção pedagógico e os desafios que se apresentam para as políticas
públicas educacionais e para a administração da escola fundamental.

Ação pedagógica e processo de trabalho

Tendo em vista a tomada de decisões competentes no âmbito das políticas


educacionais, uma abordagem cientificamente relevante da atividade educativa que se
realiza na escola fundamental exige considerá-la como ação pedagógica e como processo
de trabalho.
A consideração da educação como ação pedagógica requer uma visão mais
rigorosa do próprio conceito de educação, que ultrapasse o senso comum, segundo
o qual ela é simples transmissão de conhecimento. Isso é falso, em primeiro lugar,
porque o objeto da ação educativa não se restringe ao conhecimento. Se ela tem por
fim a formação de personalidades humano-históricas, seu objeto é a cultura em sua
integralidade: conhecimentos, valores, arte, ciência, filosofia, crenças, tecnologia, direito,
enfim, tudo o que é produzido historicamente. Mesmo que fosse possível a “passagem”
apenas de conhecimentos (e não é, como tem ilustrado a ineficiência de nosso sistema de
ensino), isso não resolveria o problema educativo, pois deixaria a população privada do
inalienável direito à cultura.
A concepção de educação do senso comum é falsa, em segundo lugar, porque
na relação ensino-aprendizado não há, na verdade, nenhuma transmissão, seja de
conhecimentos, seja de qualquer outro elemento cultural, por parte do educador; o que
há é uma apropriação de tal elemento pelo educando (Paro, 2012a, p. 136, comentário
26). Ou seja, como já foi sobejamente provado (Cf., p. ex., Piaget, 1971, 1994; Vygotsky,
1989; Vigotski, 2001; Wallon, 1971, 1988, 2007; Leontiev, 2004), o educador propicia
condições (ensino) para que o educando se aproprie (aprendizado) da cultura. Não
há algo transferido de um lugar para outro ou da posse de uma pessoa à de outra. Ao
apropriar-se do conhecimento (ou de qualquer outro elemento cultural), o educando
entra na “posse” deste (que passa a compor sua personalidade viva), sem que este deixe

166
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

de continuar presente também na personalidade do educador. É assim que se dá, ou que


se “constrói”, a cognição, efetivando-se a tarefa educativa.
Os fundamentos desse processo são de importância decisiva quando se pretende
examinar a educação como trabalho sem obscurecer nem omitir sua característica
pedagógica. Assim, será de muita valia para compreender a educação fundamental
como processo de trabalho reter desde já os papéis que desempenham tanto educando
quanto educador.
O educando não desempenha sua função como alguém que simplesmente
“apanha” o saber das mãos do educador e o guarda para si. Seu papel não é apenas “ativo”,
mas de sujeito. “Sujeito” aqui é entendido como característica distintiva do ser humano-
histórico diante de tudo o mais. Não apenas ator ou agente, mas essencialmente autor,
senhor de vontade, que transforma o mundo, guiado por seus sonhos, seus interesses,
sua vontade autônoma. É praticamente uma tautologia, portanto, afirmar que o
educando só aprende se quiser, porque é isso que o faz originalmente humano-histórico
e é a formação do humano-histórico que se objetiva com a relação pedagógica. Seu
aprendizado, portanto, nunca é uma passividade: nem como uma inatividade – adotada
pelos métodos mais ultrapassados – nem como uma atividade de autômato, irreflexiva
– como defendem os adeptos de um ativismo acrítico.
Em decorrência disso, também o papel do educador é muito mais complexo
do que o que usualmente lhe imputa o senso comum pedagógico. Na visão tradicional,
o bom professor é apenas aquele que tem um domínio pleno do “conteúdo” (leia-se:
conhecimentos) e consegue dosá-lo e organizá-lo de forma a transmiti-lo aos alunos,
com pouca ou nenhuma preocupação a respeito de sua capacidade de promover nestes
a condição de sujeitos. Isso supõe que os estudantes já venham à escola interessados em
aprender, o que está bem longe da realidade, especialmente quando se trata de crianças
e adolescentes, em fase de formação de suas personalidades, e que não tenham ainda
aprendido, por vias educacionais adequadas, a querer aprender.
A omissão da constatação básica da Didática de que o educando só aprende se
quiser tem feito com que a escola, em vez de procurar superar sua incompetência em
ensinar, acabe culpando os alunos por não quererem aprender. Assim, a tarefa que à
escola cumpre realizar passa a ser desculpa para sua não realização. Ignora-se que a função
básica da escola como educadora é precisamente levar os educandos a quererem aprender.

167
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

A superação dessa situação exige o abandono do amadorismo dominante em


nossa prática escolar e o uso dos recursos oferecidos pela ciência na compreensão do
desenvolvimento biológico, psíquico e social do ser humano. Se o educando só aprende
fazendo-se sujeito, se esta é a condição primeira para o aprendizado, então é preciso,
para educar, que se conheça e se leve em conta como esse ser se faz sujeito no decorrer
de seu desenvolvimento. Para isso, é preciso valer-se do contributo das disciplinas e
ciências da educação, apropriando-se do conhecimento técnico-científico necessário
à promoção do aprendizado. A Pedagogia é uma matéria teórico-prática como a
Medicina. Ela não pode contar apenas com o senso comum e com as “boas intenções
de amadores” (Ravitch, 2011, p. 248). Ela precisa apoiar-se nas ciências e campos de
conhecimentos que lhe dão fundamento e sustentação: Psicologia, Sociologia, História,
Didática, Filosofia, Antropologia, Biologia, Neurociência, enfim, todos os esforços que
a inteligência humana faz para compreender e promover o aprendizado da cultura. Sem
isso, o que se tem é a situação que está aí: uma escola que não ensina.
Em síntese, o que a consideração da educação como ação pedagógica possibilita
é o convencimento de que a tomada de decisões competentes no âmbito das políticas
públicas educacionais não pode ignorar a natureza do processo de ensino-aprendizado,
sua especificidade e os conhecimentos técnicos e científicos que o envolvem. Mas esse
conhecimento não pode estar presente apenas nas práticas escolares. Para que estas se
desenvolvam a contento é preciso, antes de tudo, que tais saberes orientem as próprias
políticas das quais dependem essas práticas. Somente a partir de um conhecimento
profundo do fato educativo, os tomadores de decisão poderão conceber e proporcionar
condições adequadas ao bom funcionamento da escola e à atividade de seus trabalhadores.

***

Além dessa visão pedagógica, a ação educativa precisa ser considerada também
como processo de trabalho. O trabalho pode ser concebido, inicialmente, em seu sentido
geral, “independentemente de qualquer forma social determinada” (Marx, 1983, v. 1, t.
1, p. 149), ou seja, como “atividade orientada a um fim” (p. 150).2

2 Como se poderá perceber, toda a argumentação a seguir sobre o trabalho humano está fundamen-
tada em Karl Marx (1977, 1978, 1983). Uma explanação menos sumária pode ser encontrada em Paro
(2012a).
168
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

Esse conceito tem um enorme poder de síntese e expressa a própria condição


histórica do homem. Trata-se do trabalho como criador de valores de uso, trabalho
concreto, produtor de coisas úteis, materiais ou imateriais. Como tal, o trabalho é
“uma condição de existência do homem, independente de todas as formas de sociedade,
eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e Natureza e,
portanto, da vida humana” (Marx, 1983, v. 1, t. 1, p. 50). Nessa acepção, o trabalho é
atividade especificamente humana, pois só o homem é capaz de estabelecer objetivos
a partir dos valores que cria e agir guiado por esses objetivos. O ser humano trabalha,
portanto, quando produz direta ou indiretamente sua existência, mas também quando
usufrui dessa produção, mesmo que o fim em pauta seja o usufruto de algo já produzido
ou em processo simultâneo de produção. O trabalho não se restringe pois, à produção
econômica propriamente, mas se expande mesmo para as atividades de lazer. Como
atividades adequadas a fins, são trabalhos tanto a execução de uma sinfonia por uma
orquestra quanto a oitiva e apreciação dessa execução pelas pessoas presentes na plateia.
Para a reflexão sobre a educação como processo de trabalho, é importante
nomear os elementos que estão presentes em todo trabalho humano, ou seja, os meios de
produção (tudo aquilo de que o homem se serve para, por meio do trabalho, realizar um
produto, seja material seja não material) e a força de trabalho (a energia humana, física
e espiritual, aplicada no processo). Os meios de produção se subdividem em: objeto de
trabalho e instrumento de trabalho. O primeiro consiste em tudo aquilo que se transforma
no processo e que se incorpora no produto final. O segundo é todo elemento que se
interpõe entre o trabalhador e o objeto de trabalho e é utilizado pelo trabalhador para
transformar o objeto de trabalho em produto.
Esse conceito geral de trabalho se aplica sem nenhuma dificuldade teórica ao
processo educativo, desde que não se perca a natureza pedagógica deste.
Em primeiro lugar, há que se ter presente a singularidade do objetivo a que se
visa e que deverá orientar toda a atividade. Trata-se da formação de personalidades
humano-históricas, por meio do ensino-aprendizado. Se a atividade é de ensino e de
aprendizado, tanto o educador quanto o educando são considerados trabalhadores que
despendem sua energia humana (força de trabalho) na realização do produto.
O produto do processo educativo consiste no ser humano educado; por isso,
diferentemente do que acredita a pedagogia tradicional, boa escola não é a que dá
169
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

boas aulas, mas aquela que forma bons cidadãos. Assim, não há nada de errado em se
exigir que a escola seja produtiva, desde que a medida de sua produtividade se refira
ao produto que lhe cumpre oferecer: o aluno educado, ou melhor, a porção de cultura
incorporada à personalidade do aluno pela ação da escola (Paro, 2012a, p. 188-192). Há
que se agarrar, pois, à realidade desse produto e desse objetivo, tanto em sua realização
quanto na avaliação de sua consecução. Estes são processos muito mais complexos do
que produzir certificados que nada certificam ou realizar “avaliações” em larga escala
para produzir ranques que nenhum benefício trazem ao ensino.
Em segundo lugar, é preciso estabelecer rigorosamente quais são os elementos do
processo de trabalho pedagógico. Parece não haver nenhuma dificuldade com relação aos
instrumentos de trabalho (material escolar em geral, mobiliário, laboratórios, recursos
audiovisuais, salas de leitura, prédio escolar, etc.) e a necessidade de sua adequação aos
objetivos do ensino. Com relação à força de trabalho, como tanto educador quanto
educando são trabalhadores, parece também fácil de estabelecer que ela consiste na
energia humana, física e mental, despendida tanto por um quanto por outro. São,
todavia, forças de trabalho diversas, a do educador empregada nas atividades que levam
o educando a aprender, e a deste utilizada em seu empenho em educar-se.
Já, com referência ao objeto de trabalho, costuma haver resistências em sua
identificação, sob a alegação de que não se pode aplicar na escola o conceito de trabalho
da fábrica ou da produção material em geral. Todavia, o conceito marxiano de trabalho
como “atividade orientada a um fim”, que acabamos de ver, é um conceito de trabalho
em geral, que faz abstração de toda particularidade, e que, por isso, se aplica a todo tipo
de trabalho, seja na produção material ou imaterial, seja produtor de mercadorias ou
não. Assim, uma análise criteriosa da educação como processo de trabalho deve nos
levar a concluir que, além da própria cultura – que é processada e se incorpora na
personalidade do educando – o objeto de trabalho por excelência é o educando, pois é
este que se transforma (em sua personalidade viva) para dar origem ao produto. Mais
uma vez, é de extrema importância atentar para a natureza pedagógica da educação,
para constatar que não se está diante de um objeto de trabalho qualquer, ou seja, não
se trata de mero objeto, como acontece na produção material, por exemplo, mas de um
sujeito. Isso é decisivo quando se trata de tomadas de decisões competentes no âmbito
das políticas educacionais.

170
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

Além dessa concepção geral do trabalho humano, “independentemente de


qualquer forma social determinada” (Marx, 1983, v. 1, t. 1, p. 149), é preciso, também,
considerá-lo como se apresenta hoje, na sociedade brasileira, o que implica verificar as
configurações que ele assume no modo de produção especificamente capitalista. Nesse
modo de produção, há uma separação histórica entre meios de produção e força de
trabalho. Os primeiros – objetos de trabalho e instrumentos de produção – constituem
as condições objetivas de vida, já que só tendo acesso a eles, o homem pode, pelo
trabalho, transformá-los em valores de uso que garantam a produção de sua existência
material. Em qualquer sociedade, a classe ou grupo social que detém a propriedade dos
meios de produção é quem detém também o poder dominante. No modo de produção
capitalista, como o próprio nome indica, os meios de produção são propriedade do
capitalista. A força de trabalho, por sua vez, é propriedade dos trabalhadores que, por
não terem acesso aos meios de produção, precisam vender sua força de trabalho, como
condição de sua existência.
O capital é a forma social assumida pelo dinheiro que compra meios de produção
e força de trabalho com o objetivo de expandir-se, pela apropriação do valor excedente,
produzido a partir da associação desses dois tipos de mercadoria. Ao comprar a força
de trabalho, o capital paga seu valor de troca e tem acesso a seu valor de uso. Ocorre
que o valor de uso dessa mercadoria especial é produzir valor e, além disso, no processo
de trabalho tipicamente capitalista, produz, como já anunciamos, um valor maior do
que seu próprio valor. Esse valor excedente, denominado mais-valia, é que permite a
expansão do capital, fazendo o lucro do capitalista, que constitui o objetivo último desse
tipo de produção.
O trabalho que produz mercadorias como valores de uso é o trabalho concreto,
com as propriedades que vimos quando falamos do trabalho em geral. Mas esse mesmo
trabalho, na produção capitalista, assume uma forma social específica, em decorrência
de constituir consumo da mercadoria força de trabalho. O trabalho produtor de
mercadorias, considerado em sua condição de dispêndio da mercadoria força de trabalho, é
denominado trabalho abstrato. É, portanto, esse trabalho que é responsável pela produção
de valor, e, portanto, de valor excedente ou mais-valia. Na verdade, como se percebe,
é o mesmo trabalho, visto ora como produtor de valores de uso (trabalho concreto)
ora como produtor de valor (trabalho abstrato). Para os proprietários dos meios de
171
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

produção, representados pelo capital, o que interessa acima de tudo é o que produz
lucro, ou seja, o trabalho abstrato, do qual decorre a mais-valia; o trabalho concreto só
lhes interessa como “encarnação” de trabalho abstrato.
Esse conceito de trabalho abstrato (historicamente determinado sob o
capitalismo) possibilita compreender a forma peculiar de vigência da razão mercantil
nesse modo de produção. O interesse do capitalista, o lucro, se apresenta sob a forma
de mais-valia; o interesse do trabalhador sob a forma de salário. Para o primeiro, pouco
importa a forma concreta dos bens ou serviços resultantes do emprego de força de
trabalho e meios de produção; o importante é que ele possa vendê-los por um valor
ampliado. Por isso, seu entendimento de produtividade está intrinsecamente relacionado
à produção de mais-valia. Assim, do ponto de vista da produção capitalista, “só é
produtivo aquele trabalho — e só é trabalhador produtivo aquele que emprega a força de
trabalho — que diretamente produza mais-valia” (Marx, 1978, p. 70, grifos no original).
O trabalhador, por sua vez, também não precisa ter nenhum interesse direto no tipo
de trabalho que exerce, nem no produto daí decorrente, porque o motivo que o leva
a vender sua força de trabalho e submeter-se ao capital, é o salário que garante sua
sobrevivência. Em outras palavras, o trabalho na produção capitalista tem todas as
características de um trabalho forçado.
Em princípio, também essas considerações sobre o trabalho socialmente
determinado podem favorecer uma reflexão mais rigorosa a respeito da ação educativa,
ensejando uma maior aproximação do problema teórico que envolve o professor como
trabalhador. Mas, se a aplicação do conceito de trabalho em geral possibilitou-nos ver
com maior clareza o processo ensino-aprendizado, o conceito de trabalho abstrato da
produção capitalista só pode fazê-lo por contraste, ou mesmo por franca oposição.
Em primeiro lugar, há um antagonismo insuperável com relação ao produto do
trabalho útil (concreto) como objetivo da produção. No caso da produção capitalista,
o produto do trabalho concreto (uma mercadoria) é apenas uma mediação para a
realização do objetivo último do proprietário dos meios de produção, que é a mais-
valia. Para a produção pedagógica, entretanto, a razão de ser é o próprio valor de uso
produzido pelo trabalho concreto, ou seja, a formação de uma personalidade humano-
histórica, como objetivo último da ação educativa. No primeiro caso, não há nenhum
compromisso social ou afetivo com a mercadoria resultante da produção. Ela é apenas
172
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

um objeto a ser convertido em lucro em favor dos que comandam a produção. Já, no
caso do processo educativo, o resultado é um produto imediatamente útil, relevante
individual e socialmente. Os que comandam a produção (cujo poder se consubstancia
no Estado) têm um compromisso com o próprio cidadão, cuja vontade e interesse é
componente do próprio Estado.
Em segundo lugar, há uma diferença radical entre os interesses dos trabalhadores
em cada uma dessas situações. Na produção capitalista, como vimos, o trabalho é forçado.
O trabalhador só se submete a ele porque é sua única opção de acesso aos meios de
produção e, portanto, à produção da própria subsistência. Seu interesse é o recebimento
de um salário, e tudo o que faz está condicionado a esse interesse. É bem verdade que
também ele tem de preocupar-se com a qualidade do valor de uso que produz, mas essa
preocupação circunscreve-se aos limites de seu contrato com o patrão. O interesse e
a responsabilidade pelos destinos da mercadoria são do capital, nada precisando (ou
podendo) fazer o trabalhador. Seu “desinteresse” pelo bem ou serviço que produz é tal
que, em favor de seu interesse específico por melhor salário, ele pode utilizar (e, em
geral, utiliza) sua produtividade como moeda de troca na luta contra o empregador
de sua força de trabalho, produzindo mais e melhor, dependendo do salário que lhe é
proporcionado.
A coisa é bastante diferente quando se trata do professor, especialmente na escola
pública fundamental. Embora ele também tenha o interesse no salário, porque não pode
sobreviver sem ele, sua motivação não pode esgotar-se aí, sob pena de sua produtividade
ficar seriamente comprometida. O fato de que o aluno só aprende se quiser e de que,
portanto, o professor precisa levá-lo a querer aprender exige que este, desde o início,
se envolva pessoal e politicamente com seu objeto de trabalho, não podendo consistir
num mero executor de tarefas, apenas para conseguir seu salário. Neste sentido, seu
trabalho não discrepa apenas do trabalho capitalista, mas de todo trabalho que permite
a seu executor uma relação de exterioridade com o objeto de trabalho.3

3 Evidentemente, não se trata de ignorar os casos em que, mesmo considerando a exterioridade do objeto
de trabalho, o trabalhador pode ter uma relação de intenso envolvimento e interesse no trabalho que
desenvolve – o que é muito comum, por exemplo, no campo das artes e das chamadas profissões liberais.
Apenas que aqui estou interessado em elucidar a circunstância de que, no caso do professor, esse envol-
vimento com o objeto de trabalho não constitui mera possibilidade, mas uma necessidade da produção em
pauta.
173
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

Num trabalho qualquer, o trabalhador (individual ou coletivo) imprime sua ação


de transformação no objeto de trabalho, o qual resiste de forma passiva (como objeto)
a essa intervenção, deixando-se plasmar num novo produto. No caso da educação,
não. A ação do educador não se dá de uma forma exterior, como quem transforma o
objeto de trabalho e este se deixa transformar no produto. Aqui, o educador oferece
condições para que o educando aprenda, e este reage ativamente, participando como
sujeito (orientado por sua vontade) da elaboração do produto.
Em virtude de o aluno operar como sujeito, o professor também tem de atuar
como sujeito, e mais: como sujeito que dialoga com sujeito. Isso afeta inapelavelmente
sua condição de trabalhador, e o coloca diante de questões técnicas inteiramente
singulares. É nesse contexto que as determinações técnicas se entrecruzam com as
determinações políticas.
O ser humano não é um ser apenas social, mas um ser político, porque, nas
relações sociais que estabelece, está suposta a condição de sujeito dos envolvidos. O
conceito mais amplo de política refere-se, pois, à atividade humano-social com o
propósito de tornar possível a convivência entre grupos e pessoas em sua condição de
sujeitos, portadores de múltiplos valores e interesses. (Paro, 2010).
Observe-se, então, que os professores do ensino fundamental, mais do que uma
função técnica, têm de desempenhar uma função política. Ou, expressando de forma
mais precisa, a função técnica contém ela mesma o político. Além disso, não se trata de
qualquer ação política, mas da ação política em sua forma democrática. A democracia,
também em sentido amplo, consiste na atividade política em que a convivência se
dá entre sujeitos que se afirmam como tais. Há, portanto, o respeito à subjetividade do
outro, com quem se dialoga em igualdade de autonomia. Esse é, precisamente, o tipo de
relação tecnicamente exigida para que a atividade pedagógica se efetive. Como vimos,
as ciências da educação mostram que, sem diálogo, não há aprendizado, logo, não há
ensino. Em Pedagogia, portanto, a natureza política (democrática) da relação é uma
necessidade técnica.

174
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

Professor como trabalhador no contexto da ação educativa escolar

As ponderações sobre educação e trabalho até aqui (sucintamente) apresentadas


podem jogar alguma luz sobre a ação educativa na escola de ensino fundamental como
processo de trabalho e as implicações daí decorrentes para as políticas educacionais
e para a administração escolar. É nesse contexto que convém examinar a questão do
professor como trabalhador, visto que a ação deste precisa integrar-se a essas políticas,
a essa administração e ao tipo de educação que estas têm por objeto.
Assim, com relação às políticas públicas, a questão é examinar as chances de se
constituir sistemas de ensino que verdadeiramente cumpram a magna função de formar
personalidades cidadãs, oferecendo os meios necessários para a efetivação da educação
escolar, e verificar até que ponto a razão mercantil e o amadorismo pedagógico têm
contribuído para solapar as esperanças nesse sentido. São muitas as indagações a esse
respeito, mas algumas se destacam por sua direta relação com a questão do professor
como trabalhador.
Um primeiro ponto – talvez o mais determinante de todos – consiste em indagar
em que medida o objetivo de formar cidadãos, associado à necessária dimensão de sujeito
do estudante da escola fundamental, está presente nas políticas públicas educacionais.
É possível traçar políticas, estabelecer planos, tomar medidas, implantar projetos,
orientar ações, sem que se tenha presente a natureza do próprio objeto de trabalho
que cumpre transformar para se consumar a realização dos produtos que são a razão
de ser do sistema? A necessidade de contemplar esse objetivo e essa dimensão parece
tornar insustentável a aplicação da razão mercantil na concepção e implementação
de políticas educacionais, pois seus seguidores, ao ignorarem o objetivo último da
educação, têm violado o princípio básico da própria Administração que é a adequação
entre meios e fins. Como esperar que os procedimentos didático-pedagógicos adotados
no nível da unidade escolar e da situação de ensino sejam coerentes com a formação
de personalidades humano-históricas, se esse objetivo, nos discursos e nas práticas, é
permanentemente ignorado em nível de sistemas, em favor de interesses centrados
na lógica do mercado e nas inconsequências do amadorismo pedagógico, como vimos
anteriormente?

175
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

Outro aspecto, também intimamente relacionado ao objetivo do ensino, diz


respeito à noção de qualidade daí decorrente, bem como dos mecanismos adequados
a sua aferição. A boa qualidade de determinado produto está relacionada aos atributos
esperados desse produto. No caso da educação escolar, tais predicados dizem respeito
a expectativas e interesses individuais e sociais. Se essas expectativas e interesses não
consistem mais em apenas conquistar certificados, adequar-se ao emprego ou avançar
em ranques de duvidoso valor, então, a verificação da qualidade precisa dizer respeito aos
novos atributos relacionados à formação integral do cidadão. Assim, é de se perguntar
se uma política de avaliação da qualidade do produto escolar (o que o aluno aprende
ou aprendeu), bem como do desempenho da própria escola e de seus servidores, pode
continuar bastando-se nos duvidosos testes em ampla escala. Em primeiro lugar, se
se está realmente interessado nos resultados, a avaliação mais importante de que se
deve cuidar é aquela que se dá durante o próprio processo de realização do produto.
Além disso, se o objetivo não é mais guardar conhecimentos e conceitos, mas aprender
cultura, a complexidade do produto estaria a exigir mecanismos de avaliação externa
muito mais refinados e inclusivos – na forma de supervisão direta, assessoria técnica
e compromisso com a escola – do que a mera fiscalização com o objetivo de buscar
culpados que funcionem como álibis para a incompetência do sistema.
Esse rigor e esse cuidado com a educação escolar e com a qualidade de seu
produto apontam necessariamente para a atenção que deve ser dada ao professor como
trabalhador do ensino. As questões aqui são bastante numerosas, mas duas podem ser
preliminarmente destacadas: suas condições de trabalho e sua formação. No primeiro
caso, sobressai a questão do salário, mas esta não é a única, porque, na escola, embora
seja o protagonista da função docente, o professor não educa sozinho. A escola é que
precisa ser concebida como educadora pois a função educativa escolar não depende
apenas do professor, mas de toda a estrutura e funcionamento da escola. Contudo, no
tratamento dado ao salário do professor é que parece residirem os maiores equívocos
e mal-entendidos resultantes da razão mercantil e do amadorismo pedagógico. Na
produção capitalista a remuneração apenas da força de trabalho degrada o vida do
trabalhador mas faz parte da lógica do capital e é coerente com o produto que se busca
realizar. O trabalho, mesmo forçado, traz eficiência na produção e concorre para o
alcance dos objetivos dos proprietários dos meios de produção.

176
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

Mas, na educação escolar, não parece possível seguir essa lógica sem comprometer
seriamente o alcance dos objetivos pois o educador não pode ensinar, de fato, apenas
orientado por seu interesse no salário. Daí o caráter extremamente problemático de
alcançar maior produtividade por meio de estímulos pecuniários como a chamada
“remuneração por mérito”. Em vez disso, parece muito mais razoável concluir que se,
como vimos, o salário não pode ser a razão de ser da atividade do mestre educador –
porque a complexidade de sua função lhe exige um envolvimento sui generis com o
educando e sua formação, motivo último de seu ofício – então seu salário precisa ser tão
justo e compensador, de tal modo que isso sequer seja motivo de preocupação, estando
ele livre e tranquilo para realizar seu trabalho voltando-se para os interesses que de fato
contribuem para a boa realização de seu produto.
Sobre esse tema, tanto na academia, quanto nas entidades sindicais de
professores, parece haver uma lacuna nos discursos críticos acerca do modo como se
dá o trabalho docente no ensino público fundamental, que consiste precisamente na
não consideração dessa singularidade do trabalho educativo. As análises, em geral, se
ocupam longamente da crítica ao modo capitalista de produção, à alienação do trabalho
inerente a esse modo de produzir, e, diretamente ou por analogia, à opressão sofrida
pelo trabalhador da educação quando subsumido à lógica mercantil capitalista. Sem
dúvida, a adoção de mecanismos de mercado no recrutamento, contratação e gestão do
trabalho de professores e demais educadores escolares é um dos aspectos mais insólitos
das atuais políticas educacionais baseadas na gestão empresarial. Para a crítica dessa
tendência, o estudo da habituação (forçada) do trabalhador ao modo de produção
capitalista é essencial para identificar importantes forças que atuam no desempenho
e no moral dos professores da escola básica. Não é, contudo, suficiente para elucidar a
complexidade do trabalho docente. É preciso, além disso, ter presente a singularidade
da ação educativa, que só se faz com o exercício da condição de sujeito dos envolvidos.
É preciso, portanto, evitar certo tipo de crítica que, não conseguindo se desapegar
de jargões contra o neoliberalismo, acabam restringindo sua análise aos fatos do mercado,
deixando de ultrapassar os limites estabelecidos pela própria razão mercantil. Ignora-
se, com isso, que a adoção de padrões capitalistas de gestão traz consequências funestas
não só para os interesses do trabalhador mas também para a efetivação do ensino. É
dupla, pois, a violência da aplicação da gerência capitalista na escola. Ou seja, mesmo
depois de plenamente estabelecido o caráter deletério da utilização da “fúria gestionária”
177
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

no trabalho de modo geral, com seu contributo degradante para o trabalhador, ainda
restará analisar a singularidade do trabalho docente e os entraves que a desconsideração
dessa singularidade opõe à efetivação da educação.
A formação docente, por sua vez, é um dos assuntos mais complexos, quando
se contempla essa singularidade do trabalho pedagógico. Usualmente, se acredita que
bastam a frequência a um curso superior e a obtenção de um diploma de licenciatura para
exercer com qualidade as atribuições docentes. Nessa perspectiva, as referências a uma
melhor qualificação se resumem, em grande medida, na apropriação dos conhecimentos
relativos aos conteúdos curriculares, às teorias pedagógicas e às metodologias de ensino.
Quando, todavia, a partir de uma concepção crítica de educação, se considera seu caráter
intrinsecamente político, aparecem questões que não costumam estar presentes nos
debates sobre formação docente. Uma das mais relevantes é o fato de que a formação
política necessária para se estabelecer um diálogo democrático na relação pedagógica
inicia-se na infância. É desde a mais tenra idade, iniciando-se pela socialização primária
(Berger; Luckmann, 1973), mas prolongando-se por toda a fase de desenvolvimento
biopsíquico-social da criança e do adolescente, que se assimilam valores e condutas que
formarão personalidades mais, ou menos, democráticas. O que fazer, portanto, quando
se sabe que o primeiro contato formal com “preparação” docente do professor se dá na
educação infantil e no ensino fundamental? Parece que essa é uma boa indagação para se
refletir mais intensamente sobre qualidade do ensino nesses níveis, em que se dá parte
importante da própria formação pedagógica de seus futuros professores (Paro, 2003).
Além disso, há que se envidar esforços para introduzir, já, na formação docente (regular
e em serviço) medidas que concorram para neutralizar os vícios autoritários trazidos
para o ensino superior ou para a prática docente dos que exercem a profissão, e ao
mesmo tempo desenvolver virtudes democráticas condizentes com o ofício de educar.
Finalmente, no caso da administração escolar, em sintonia com igual movimento
nas políticas educacionais, constata-se uma verdadeira “fúria gestionária” que procura
aplicar na escola e em sua gestão, cada vez mais estritamente, os métodos e técnicas da
empresa tipicamente capitalista. Mais e mais indivíduos, vindos do mundo dos negócios
e desprovidos de qualquer familiaridade com a educação e com a escola, se põem a dar
ideias e a oferecer soluções para os problemas da gestão escolar. Em geral, buscam se
fundamentar no discurso empresarial e, em virtude do amadorismo pedagógico antes
178
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

referido, se sentem seduzidos pelas promessas de medidas milagrosas para tornar


efetivo o desenvolvimento administrativo da escola, aderindo à “qualidade total” ao
“empreendedorismo” ou a outra moda qualquer que acabe de sair do forno conceitual e
ideológico dos gerentes e idealizadores do controle do trabalho alheio.
Uma das aplicações mais questionáveis dos procedimentos da administração
mercantil na escola é o controle que se faz do trabalho do professor. Na empresa
capitalista, a gestão de pessoal consiste no controle do trabalho alheio. Esse controle
heterônomo, exterior ao trabalhador, faz sentido onde o trabalho é forçado, o que,
como vimos, não é o caso do trabalho pedagógico. Considerando, então, o caráter
imprescindível do compromisso do professor com a subjetividade do educando, é
preciso buscar configurações para a coordenação do esforço humano (individual e
coletivo) na escola, que favoreçam o trabalho livre do educador. Como superar, por
exemplo, as inspeções autoritárias e as odiosas “remunerações por mérito”, por meio de
motivações intrínsecas ao próprio trabalho que o professor realiza? Ou, como conceber
e implementar formas de supervisão de estilo dialógico e cooperativo entre os docentes,
mais consentâneas com a própria atividade pedagógica que exercem?
Em síntese, o que essas breves reflexões sugerem é que a contraposição à razão
mercantil e ao amadorismo pedagógico que se apoderaram das políticas educacionais e
da administração escolar se faz urgente e necessária diante do estado em que se encontra
o ensino fundamental, e que os esforços nesse sentido não podem deixar de aliar o
ideal de uma educação como emancipação humana ao reconhecimento do caráter
político-democrático da relação pedagógica, da riqueza histórico-cultural dessa relação,
da importância da atividade docente e da singularidade do papel do professor como
trabalhador.

179
o professor como trabalhador Vitor Henrique Paro

Referências

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Fonte dos textos

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têm a ver com isso?
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02. A utopia da gestão escolar democrática.


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1994. p. 9-14.

03. Eleição de diretores de escolas públicas: avanços e limites da prática.


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182
fonte dos textos Vitor Henrique Paro

04. Parem de preparar para o trabalho!!! Reflexões acerca dos efeitos do


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In: FERRETTI, Celso João; SILVA JÚNIOR, João dos Reis; OLIVEIRA, Maria Rita
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05. Políticas educacionais: considerações sobre o discurso genérico e a abstração


da realidade.
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06. Educação para a democracia: o elemento que falta na discussão da qualidade


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fonte dos textos Vitor Henrique Paro

07. Reprovação escolar? Não, obrigado.


Estadao.com.br. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/artigodoleitor/
htm/2002/fev/15/151.htm> Acesso em 15 fev. 2002.
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08. Implicações do caráter político da educação para a administração da escola


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In: REUNIÃO ANUAL DA ANPEd, 25., 2002, Caxambu. Anais: educação: manifestos,
lutas e utopias. Rio de Janeiro: ANPEd, 2002. CD-ROM.
In: REUNIÃO ANUAL DA ANPEd, 25., 2002, Caxambu. Anais: educação: manifestos,
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184
fonte dos textos Vitor Henrique Paro

10. Interferências privadas na escola básica: sequestro do público e degradação do


pedagógico.
In: TOMMASIELLO, Maria Guiomar Carneiro; MARIN, Alda Junqueira; PIMENTA,
Selma Garrido; CARVALHO, Luiz Marcelo de; FUSARI, José Cerchi. Didática e
práticas de ensino na realidade escolar contemporânea: constatações, análises e proposições.
Araraquara: Junqueira & Marin, 2012. p. 85-95
In: JARDILINO, José Rubens Lima; MATOS, Daniel Abud Seabra; SILVA, Marcelo
Donizete da. (Org.). Formação e políticas públicas na educação: profissão e condição docente.
Jundiaí: Paco Editorial, 2014. p. 147-157.

11. O professor como trabalhador: implicações para a política educacional e para a


gestão escolar.
In: ALMEIDA, Luana Costa; PINO, Ivany Rodrigues; PINTO, José Marcelino de
Rezende; GOUVEIA, Andréa Barbosa. (Org.). IV Seminário de Educação Brasileira: PNE
em foco: políticas de responsabilização, regime de colaboração e Sistema Nacional de
Educação. Campinas-SP: Cedes, 2013, v. 1.[livro eletrônico]. p. 957-971.

185
Este livro utilizou as fontes tipográficas
Crimson Text e DIN Next LT Pro,
e foi terminado em abril de 2023,
em São Paulo.
Com esta coletânea de textos de Vitor Henrique Paro – Gestão,
política, economia e ética na educação –, publicada por ocasião
da outorga do título de Professor Emérito da Universidade
de São Paulo, o leitor entrará em contato com suas ideias,
pensamentos, estudos e palavras. É o seu vigésimo livro, o
primeiro inteiramente em formato digital, uma antologia
de onze textos publicados em revistas acadêmicas, livros,
eventos acadêmicos e jornais de grande circulação.

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