24-Texto Do Artigo-41-41-10-20190522

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Revista IBERC

v.2, n. 1, p. 01-23, jan.-abr./2019


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DAS FUNÇÕES RECONSTITUTIVA E PUNITIVA DA RESPONSABILIDADE CIVIL:


PROPOSTAS DE REFORMA DO CÓDIGO CIVIL PORTUGUÊS
_________________________________________________________
DISGORGEMENT DAMAGES AND PUNITIVE DAMAGES: A PROPOSAL TO REFORM THE
PORTUGUESE CIVIL CODE

1
Henrique Sousa Antunes

RESUMO: O tempo vem demonstrando que nos ABSTRACT: Over time we have come to see that
sistemas jurídicos romano-germânicos o resgate Roman-Germanic legal systems lack an adequate
do lucro ilícito carece de uma resposta adequada and effective response for recovering illegal gains.
e eficaz. Em vários instrumentos, nomeadamente In several instruments, in particular of European
de direito europeu, o dever de indemnizar é Law, the duty to indemnify is designed as a
concebido como um remédio que transfere o lucro remedy that transfers the profit to the injured
para o lesado. Tivemos oportunidade de defender party. We have had the opportunity to argue that
que a indemnização é, na verdade, o lugar natural compensation is, indeed, the natural place for
para a restituição do lucro ilícito, mas, de qualquer restoring illegal gains, but, in any case, the
forma, a emergência das novas soluções emergence of new legislative solutions makes
legislativas tornam essa resposta evidente. De such a response clear. Equally, the sphere of civil
igual modo, o espaço próprio do direito civil exige law itself requires that administrative sanctions be
a restrição das sanções administrativas, excluindo restricted, and this public law intervention is
essa intervenção do direito público quando os excluded when the harmed goods are exclusively
bens ofendidos são de natureza exclusiva ou or predominantly individual in character. In such
prevalentemente individual. Justificar-se-á, nesses cases, the application, instead, of a private
casos, a aplicação alternativa de uma pena penalty will be justified, restoring the dignity of the
privada, repondo a dignidade do direito subjetivo subjective right breached. This framework
violado. Este enquadramento reclama uma requires a reform of the Portuguese Civil Code,
reforma do Código Civil português, o que aqui se which is what is being proposed here.
propõe.

Palavras-chave: Lucro ilícito. Restituição. Keywords: Illegal profits. Restitution. Damages.


Indemnização. Contraordenações. Pena privada. Administrative offences. Punitive damages.

Sumário: 1. Introdução. 2. O resgate do lucro ilícito. 3. A pena privada. 4. Propostas de reforma do


Código Civil português. 5. Conclusão. 6. Referências.

1
Professor Associado da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa,
instituição onde se doutorou em 2010. Leciona na área do Direito Privado, regendo Direito das
Obrigações, Direitos Reais e Direito do Consumo. Integra vários grupos de trabalho internacionais.
Publicou artigos e monografias sobre temas diversos, destacando-se a responsabilidade civil, a tutela
coletiva dos direitos, o direito das fundações e os direitos reais. Foi Diretor da Escola de Lisboa da
Faculdade de Direito da UCP entre 2011 e 2013.

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1. INTRODUÇÃO

A discussão sobre a função punitiva da responsabilidade civil está indelevelmente


marcada pelo pecado original da responsabilidade. No início dos tempos, a reparação e a
punição constituíam uma mesma resposta à ofensa praticada. Que a conduta de um agente
pudesse ser sancionada com um fim diverso da retribuição movida pelo mal imputado àquele
comportamento pressupôs a sofisticação do pensamento jurídico. A responsabilidade civil
emancipou-se da responsabilidade penal e, ciosa da sua alforria, rejeita, na pureza dos
2
conceitos, uma diluição de identidades .
A justificação para a sobrevivência ou a emergência de regimes punitivos nos sistemas
jurídicos anglo-saxónicos e, esparsamente, nos direitos da Europa continental aparece diluída
nas circunstâncias do momento que os ditou. Cremos que, neste contexto, mais importante do
3
que perceber os motivos da sua origem é reconhecer a sua existência .
4
As águas da reflexão são turvas e, no entanto, o debate é urgente . Eis os pontos
cardeais destas linhas. A restituição do lucro vem sendo trazida à análise sobre a pertinência
da inclusão de uma dimensão punitiva entre os efeitos da responsabilidade civil. Como
veremos, sem fundamento. Do mesmo modo, a seriedade do labor jurídico não é compatível
com declarações de rejeição epidérmica da função punitiva assinalada. São as exigências da
necessidade humana que condicionam os paradigmas do direito.
Eis, então, as perguntas que orientam o nosso percurso: é possível incluir o resgate do
lucro ilícito no dever de indemnizar? Constitui solução desejável a previsão de penas privadas
como sanção de um facto ilícito?

2. O RESGATE DO LUCRO ILÍCITO

2
Os preceitos ou regimes legais sem indicação diversa no texto são de direito português.
Encontra-se uma síntese da evolução histórica da responsabilidade civil em ALMEIDA COSTA, Mário Júlio
de. Direito das Obrigações, 12.ª edição. Coimbra: Almedina, 2009, pp. 524 e ss.
3
Sobre a premência do debate em diálogo de direito comparado, veja-se, por exemplo, GOMES, Júlio.
Uma função punitiva para a responsabilidade civil e uma função reparatória para a responsabilidade
penal. Revista de Direito e Economia, ano XV (1989), pp. 105 e ss.
4
Em perspectiva diversa, rejeitando a legitimidade de danos punitivos, consulte-se MIRANDA BARBOSA, Ana
Mafalda Castanheira Neves de. Lições de Responsabilidade Civil. Cascais: Princípia, 2017, pp. 41 e ss.

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O conceito de indemnização tem assentado na reconstituição da situação hipotética do


lesado. Trata-se de ressarcir os danos patrimoniais e não patrimoniais da pessoa ofendida pela
lesão. Em virtude da conceptualização talhada pela evolução histórica, os efeitos do facto
determinante da responsabilidade na esfera do lesante são apartados da obrigação de
indemnizar.
E, no entanto, outra vem sendo a abordagem do legislador contemporâneo,
destacando-se, a esse respeito, o legislador europeu. Servem de referência a Diretiva
2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao respeito
dos direitos de propriedade intelectual, e a Diretiva (UE) 2016/943, de 8 de junho de 2016,
relativa à proteção de know-how e de informações comerciais confidenciais (segredos
5
comerciais) contra a sua aquisição, utilização e divulgação ilegais .
No artigo 13.º, n.º 1, da Diretiva 2004/48 lê-se, acerca da indemnização por perdas e
danos (epígrafe da norma):

Os Estados-Membros devem assegurar que, a pedido da parte lesada, as


autoridades judiciais competentes ordenem ao infrator que, sabendo-o ou
tendo motivos razoáveis para o saber, tenha desenvolvido uma atividade
ilícita, pague ao titular do direito uma indemnização por perdas e danos
adequada ao prejuízo por este efetivamente sofrido devido à violação». Ora,
nos termos da alínea a) dessa norma, os lucros indevidos obtidos pelo
infrator constituem uma consequência económica negativa relevante, um
dado que vincula as autoridades judiciais na fixação do montante da
indemnização por perdas e danos. Ou, como se descobre no considerando
26 da Diretiva: «(…) o montante das indemnizações por perdas e danos a
conceder ao titular deverá ter em conta todos os aspetos adequados, como
os lucros cessantes para o titular, ou os lucros indevidamente obtidos pelo
infrator (…).

A fórmula é replicada na Diretiva (UE) 2016/943, com a seguinte justificação


(considerando 30):

A fim de evitar que uma pessoa que adquira, utilize ou divulgue um segredo
comercial, com conhecimento de causa ou com motivos razoáveis para ter
esse conhecimento, possa beneficiar dessa conduta, e de assegurar que o
titular do segredo comercial lesado seja, na medida do possível, colocado na
posição em que estaria caso essa conduta não tivesse ocorrido, é necessário
prever uma compensação adequada do prejuízo sofrido como resultado
dessa conduta ilegal. O montante da indemnização concedida ao titular
lesado do segredo comercial deverá ter em consideração todos os fatores
adequados, como a perda de rendimentos do titular do segredo comercial ou
os lucros indevidos do infrator (…)». Na parte dispositiva, constituem os
lucros do lesante uma consequência económica negativa atendível na fixação

5
Publicadas no “Jornal Oficial da União Europeia”, respetivamente, L 195, de 2 de junho de 2004, pp. 16
a 25, e L 157, de 15 de junho de 2016, pp. 1 a 18.

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da indemnização, prevendo o legislador que os Estados-Membros limitem «a


responsabilidade dos empregados perante os respetivos empregadores por
prejuízos causados em virtude da aquisição, utilização ou divulgação ilegais
de um segredo comercial do empregador caso o seu comportamento não
tenha sido doloso (artigo 14.º, n.ºs 1 e 2).

Em qualquer dos regimes, o legislador permitiu que a indemnização pudesse assumir a


natureza de um montante fixo, correspondente à remuneração devida se a autorização
houvesse sido prestada. Essa quantia constitui, no entanto, um valor mínimo.
As soluções representam, apenas, um pragmatismo na elaboração da lei,
subordinando-se o conceito de indemnização às finalidades prosseguidas, ou constituem,
ainda, uma manifestação desse conceito? Temos defendido que a noção de indemnização
dada pelo direito português é compatível com o caminho que os regimes atrás referidos
procuram trilhar. Afinal, dá-se cumprimento a uma dimensão relacional que anima a
6
indemnização . Reconheça-se, porém, que, em nossa opinião, o resgate do proveito obtido
pelo agente acompanha até o entendimento mais tradicional sobre a indemnização,
considerando que o lucro ilicitamente obtido constitui um dano não patrimonial autónomo
sofrido pelo lesado.
Escrevemos, outrora:

As insuficiências do enriquecimento sem causa, quanto ao seu objeto e a


respeito das suas consequências, a artificialidade do recurso à gestão de
negócios imprópria, e, porventura, os seus efeitos perversos, a limitação da
aplicação analógica das regras da posse, a amplitude com que a
indemnização dos danos não patrimoniais foi acolhida no direito português,
adaptável à evolução das circunstâncias sociais, o fim de satisfazer o lesado
que àquela é reconhecida, reagindo à infirmação do seu direito, a natureza do
bem que é ofendido, o sentimento de justiça, deve habilitar o juiz, nesta sede,
a restituir ao lesante as receitas líquidas imputáveis ao seu comportamento.
Em situações de elevada censurabilidade, admite-se a aplicação do critério
7
das receitas brutas .

Seja como for, é dificilmente sustentável que um conceito clássico de indemnização


possa ser imune às alterações legislativas que, entretanto, vão ocorrendo. A inclusão do lucro
do lesante no juízo de indemnização não é justificável pela especificidade das matérias

6
Considere-se que o artigo 562.º do Código Civil impõe ao lesante o dever de recriar a situação hipotética
que a sua intervenção impossibilitou. Então, retomando o nosso pensamento, «essa realidade alternativa
tem, necessariamente, de compreender a posição do agente. Se o lesante obteve um benefício
patrimonial com o seu comportamento, é uma ficção dizer-se que a restituição escapa à reconstituição da
situação que existiria”. SOUSA ANTUNES, Henrique. Das funções reconstitutiva e punitiva da
responsabilidade civil extracontratual. In CARDOSO GUEDES, Agostinho; PINTO OLIVEIRA, Nuno Manuel
(Org.). Colóquio de Direito Civil de Santo Tirso – O Código Civil 50 anos depois: balanço e perspetivas.
Coimbra: Almedina, 2017, p. 492.
7
SOUSA ANTUNES, Henrique. Da Inclusão do Lucro Ilícito e de Efeitos Punitivos entre as Consequências da
Responsabilidade Civil Extracontratual: a sua Legitimação pelo Dano. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p.
651.

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legisladas, antes constitui uma opção de política legislativa motivada pela prevenção de
comportamentos parasitários, de natureza, necessariamente, geral. Aliás, num sistema jurídico
em que a intervenção de outras disciplinas normativas se revela, certamente imprópria, mas
também ineficaz. O direito português das contraordenações permite que o lesante conserve o
lucro ilícito obtido, na medida em que a elevação da coima em razão do benefício económico
do agente não pode exceder um terço do limite máximo estabelecido por lei (artigo 18.º, n.º 2,
do regime geral das contraordenações – Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro).
Neste sentido, a unidade do sistema jurídico impõe a revisão da noção de
indemnização. É insustentável que o ordenamento acolha regimes parcelares sem atender à
expressão universal da censura ao desrespeito consciente pela decisão alheia sobre o destino
económico dos bens utilizados. Neste sentido, é especialmente significativo o projeto de
reforma da responsabilidade civil em França (março de 2017), estatuindo entre os efeitos da
responsabilidade, uma pena aplicável nos termos da seguinte previsão geral (artigo 1266-1,
alínea1): «En matière extracontractuelle, lorsque l’auteur du dommage a délibérément commis
une faute en vue d’obtenir un gain ou une économie, le juge peut le condamner, à la demande
de la victime ou du ministère public et par une décision spécialement motivée, au paiement
d’une amende civile». Está clara a vocação universal da repressão do lucro ilícito do lesante
pela responsabilidade civil.
Entretanto, que não se duvide da ausência de qualquer efeito punitivo nas opções do
legislador europeu. Assim é, em razão da natureza do resgate do lucro ilícito: o lesante é
colocado na situação em que estaria se não tivesse praticado a lesão. Assim é, também,
porque o legislador expressamente o declara.

3. A PENA PRIVADA

E quanto à atribuição de uma dimensão punitiva à responsabilidade civil? O exercício


de um poder punitivo sobre uma pessoa em benefício de outra pessoa parece ideia adversa à
sujeição das relações jurídico-privadas a uma justiça corretiva, destinada a repor o equilíbrio
entre as partes. Ao longo da história, a punição converteu-se num instrumento da coletividade
destinado a sancionar a ofensa de interesses públicos. Só a tutela da comunidade justificaria a
afetação da liberdade individual ou da integralidade patrimonial em medida que excedesse a
correção dos desequilíbrios gerados pelo comportamento do lesante.
A superação do paradigma de um castigo às mãos do outro, certamente pela
substituição do exercício da tutela privada pela heterotutela, mas também pela demarcação

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progressiva das fronteiras entre o interesse público e o interesse privado, é celebrada como
uma conquista do pensamento jurídico. As penas privadas constituiriam, assim, manifestações
de desforço, de desagravo, memórias de um tempo passado.
Defender a possibilidade de a responsabilidade civil gerar efeitos punitivos parece a
manifestação de uma impropriedade técnico-jurídica, um erro primário de um jurista
impreparado. Assim na Europa continental. A proibição reiterada da condenação em punitive
damages pelo legislador europeu exemplifica que, mais do que as razões ligadas às
especificidades de certo ordenamento jurídico, a afirmação constitui uma verdade intocável. A
rejeição é replicada de forma acrítica: nem sequer se equaciona a bondade da medida,
depurada das desvantagens que as características de outro sistema judicial, como o norte-
americano, impliquem.
Veja-se o que sucede na Recomendação da Comissão Europeia de 11 de junho de
2013, sobre os princípios comuns que devem reger os mecanismos de tutela coletiva inibitórios
e indemnizatórios dos Estados-Membros aplicáveis às violações de direitos garantidos pelo
8
direito da União (2013/396/EU) . Pretende-se facilitar o acesso à justiça e garantir um nível
elevado de proteção do consumidor (considerando 1). Se, à luz das finalidades declaradas, a
existência de danos em massa motivaria a revisão do papel tradicional conferido à
indemnização, o considerando 15 justifica a proibição da condenação em punitive damages
com a prevenção de “uma cultura de litígios abusivos”. E, no entanto, as tradições jurídicas da
maioria dos Estados-Membros (parte final do considerando) são utilizadas como um conforto
argumentativo. Aliás, no Relatório da Comissão sobre a aplicação da Recomendação
9
(apresentado em 25 de janeiro de 2018 ) lê-se, a respeito da proibição das indemnizações
punitivas estabelecida no princípio 31:

O conceito de excesso de compensação por danos punitivos é, de modo


geral, estranho à maioria dos sistemas jurídicos dos Estados-Membros. O
convite à apresentação de informações não revelou qualquer caso de danos
punitivos solicitados ou concedidos em ações de tutela coletiva. Deste modo,
concluiu-se que não havia necessidade de normas especiais para as ações
10
de tutela coletiva .

Outro exemplo de uma opção tomada sem a ponderação devida acerca da adequação
dos instrumentos utilizados para a tutela prosseguida encontramos na Diretiva 2014/104/UE do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que
regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do

8
Publicada no “Jornal Oficial da União Europeia”, L 201/60, de 26 de julho de 2013, pp. 60 a 65.
9
COM(2018) 40 final.
10
P. 18.

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direito da concorrência dos Estados-Membros e da União Europeia . Reconhecendo que a
aplicação privada é uma condição de plena eficácia do direito da concorrência (considerando
3), limita aquela à indemnização dos danos sofridos. Descobre-se no considerando 13, parte
final: «Sem prejuízo da reparação por perda de oportunidade, a reparação integral nos termos
da presente diretiva não deverá conduzir a reparação excessiva, por meio de indemnizações
punitivas, múltiplas ou outras». Neste sentido dispõe o artigo 3.º, n.º 3, da referida Diretiva.
Saliente-se que, no percurso legislativo, o Livro Verde da Comissão sobre o tema (de
12
19 de dezembro de 2005 ) abordou a restituição dos lucros ilícitos e a possibilidade de
13
duplicação da indemnização, soluções que o Livro Branco (de 2 de abril de 2008 ) viria a
silenciar. Parece, a esse respeito, elucidativa a nota seguinte:

A Comissão seguiu um (…) princípio orientador, nos termos do qual o quadro


normativo necessário para assegurar maior eficácia às ações de
indemnização por infração às regras comunitárias no domínio antitrust se
deve basear numa abordagem genuinamente europeia. Consequentemente,
as opções de política geral propostas (…) consistem em medidas
equilibradas, assentes na cultura e tradições jurídicas europeias. (…) As
medidas formuladas no presente Livro Branco são concebidas para criar um
sistema eficaz de aplicação “privada”, baseado em ações de indemnização
que virão completar, sem substituir nem prejudicar, a ação dos poderes
14
públicos neste domínio .

O direito contemporâneo veio, no entanto, demonstrar que a abordagem histórica tem a


si associada um risco de inversão metodológica evidente. Na atualidade, é, frequentemente, a
punição a determinar o interesse público, em vez de este justificar a intervenção punitiva. O
legislador demitiu-se de uma análise prévia sobre a natureza dos interesses em presença. A
disciplina das contraordenações é, porventura, o melhor sinal desse desconcerto. Em tempos,
escrevemos sobre o destempero das contraordenações:

[...] o poder sancionatório da Administração excedeu os limites originais que o


justificaram e inclui, agora, relações em que predomina o interesse privado. A
lei beneficia a coletividade, destinando-lhe uma sanção que, no entanto, tem
origem na ofensa de um bem primariamente individual. Ou seja, a justiça
retributiva encontra fundamento na justiça corretiva, aplicando, contudo, uma
lógica distributiva ao destino da sanção. Há uma incoerência intolerável do
sistema que apenas pode ser corrigida convertendo o particular em
beneficiário da pena. Desse modo, a justiça corretiva funcionaria como o
15
alicerce e a abóboda da justiça retributiva que se entenda aplicável .

11
Publicada no “Jornal Oficial da União Europeia”, L 349, de 5 de dezembro de 2014, pp. 1 a 19.
12
COM(2005) 672.
13
COM(2008) 165 final.
14
Pp. 3 e s.
15
SOUSA ANTUNES, Henrique. Da Inclusão do Lucro ..., p. 32 e s.

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Que sentido faz reconhecer a existência de uma perturbação do interesse coletivo na


afetação de direitos subjetivos sem tutela penal, e, desse modo, esgotando-se o interesse
público na prevenção que uma pena privada é capaz de desempenhar? Em sentido paralelo à
multiplicação de regimes contraordenacionais que sancionam a violação de um direito subjetivo
de natureza patrimonial, como a propriedade intelectual ou a propriedade de coisa corpórea, ou
um direito de personalidade, justificar-se-ia a revisão das penas privadas admitidas pelo
legislador para a tutela do direito de crédito?
Pensa-se, em especial, nos juros moratórios (artigo 806.º do Código Civil), na cláusula
penal (artigos 810.º a 812.º do Código Civil) e na sanção pecuniária compulsória. Tome-se
como exemplo esta última figura, prevista no artigo 829.º-A do Código Civil. No direito francês,
onde descobrimos o antecedente do regime português, o credor recebe na integralidade o
montante da sanção.
Argumente-se, ainda, com o espaço atribuído à indemnização dos danos não
patrimoniais no direito português. O artigo 496.º do Código Civil é lido, geralmente, à luz de
uma finalidade punitiva da disciplina.
Serão estas normas, e outros dispersas na lei civil, resquícios de um tempo primitivo,
imperfeições que o legislador deve corrigir? Não. Constituem tão-só uma expressão da
vinculação das sanções punitivas à natureza dos interesses prosseguidos, sempre que o
legislador identifica a legitimidade, ou a necessidade, de instrumentos preventivos que
acresçam à dinâmica própria de uma justiça corretiva.
Aquela vinculação está em conformidade com as exigências da existência humana.
São palavras nossas: «As sanções privadas que, a respeito das consequências da aplicação
daquele instituto, apresentem um efeito punitivo são legitimadas pelo dano. O dano é a causa
da sua estatuição, destinando-se o remédio, nuns casos a determiná-lo ou a preveni-lo, noutros
16
a concretizar o direito do lesado ao desagravo, à vindicta» .
Os regimes que convocámos, em expressão meramente exemplificativa, tornam
urgente a reforma do sistema, o reposicionamento das contraordenações em face do direito
17
civil . Vejamos.
Na sua origem, as contraordenações procuraram salvaguardar o funcionamento da
18
atividade administrativa, designadamente na conformação do setor económico . E nesses
antecedentes, descobre o conceito o seu objeto fundamental. Tomando de empréstimo a

16
SOUSA ANTUNES, Henrique. Da Inclusão do Lucro ..., p. 608.
17
Eis o que aceita PINTO DE ALBUQUERQUE, Paulo. Comentário do Regime Geral das Contraordenações à
luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Lisboa: UCE, 2011,
p. 12 (§ 17).
18
Veja-se, nomeadamente, SILVA DIAS, Augusto. Direito das Contraordenações. Coimbra: Almedina, 2018
(reimpressão), pp. 16 e ss.

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reflexão de Augusto SILVA DIAS, as contraordenações sancionam «comportamentos que


atentam contra interesses de organização e funcionamento de setores da atividade económico-
19
social e/ou que frustram regras instituídas para a prevenção de perigos» . A fronteira é, em
geral, traçada, em relação ao direito penal, descobrindo neste a retribuição das condutas que,
nas palavras de Augusto SILVA DIAS, «atentam contra os fundamentos da sociedade,
ancorados na ideia de reconhecimento recíproco de pessoas livres e iguais e nos bens
20
jurídicos que a explicitam» .
Acompanhando, ainda, o mesmo autor, «o território das contraordenações – e também
de alguns setores do Direito Penal – é marcado não pela eticidade, aferida em função de um
bem jurídico-penal, mas pela disfuncionalidade dos comportamentos, isto é, pela aptidão
destes para provocar entropia no funcionamento de determinados subsistemas sociais, ou, se
se preferir, para perturbar a vigência regular de interesses de ordenação de âmbitos da
21
atividade social» . Enfim, o fundamento das contraordenações «reside (…) na carência de
regulação de uma dada atividade por necessidades de ordenação e/ou de prevenção
institucional de perigos. Deverá ser esse o critério reitor para a criação de contraordenações,
22
respaldado sempre em exigências de proporcionalidade» .
Neste contexto, perdem as contraordenações legitimidade quando são utilizadas sem
qualquer finalidade regulatória, procurando, tão-só, punir uma conduta que a censura do direito
penal desconhece. Se há ofensa de bens jurídicos de natureza predominantemente individual,
que espaço há para a sanção contraordenacional? Ou se admite a degeneração do conceito
em razão de um desleixo legislativo, confortado por um “pau para toda a obra”, ou trazemos
seriedade à arquitetura do sistema jurídico.
Serve de paradigma o direito do trabalho, que nos acompanhou, para este efeito,
23
noutro momento . Hoje, toma-se como exemplo o Código do Direito de Autor e dos Direitos
Conexos. Na distinção entre os fundamentos das contraordenações previstas nos n.ºs 1 e 2 do
artigo 205.º desenha-se a delimitação entre a violação de regras que enquadram o exercício de
uma atividade e a retribuição pela lesão de direito de autor.
O n.º 1 do artigo 205.º pretende proteger os produtores contra a prensagem ou a
duplicação não autorizada de fonogramas e videogramas, nos termos do artigo 143.º. A
ilicitude consiste na violação de deveres de informação à Inspeção-Geral das Atividades

19
SILVA DIAS, Augusto. Direito das Contraordenações..., p. 55.
20
SILVA DIAS, Augusto. Direito das Contraordenações..., p. 55.
21
SILVA DIAS, Augusto. Direito das Contraordenações..., p. 40.
22
SILVA DIAS, Augusto. Direito das Contraordenações..., p. 51.
23
SOUSA ANTUNES, Henrique. Da Inclusão do Lucro ..., pp. 634 e ss.

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Culturais. Trata-se, pois, da regulação de uma atividade económica e, nessa medida,


adequadamente submetida à competência do regime das contraordenações.
O n.º 2 do artigo 205.º tem um sentido diverso. Nos termos da norma, constitui
contraordenação punível a falta de identificação do autor e/ou da obra considerados. Esta
omissão ofende o núcleo do direito de autor, esvazia o poder jurídico que a lei atribuiu ao
criador intelectual da obra. Silenciada a autoria, onde está o criador? O alcance
essencialmente subjetivo, individual, da lesão é evidente, nesta se descobrindo a negação de
um traço que singulariza a natureza humana. Na criação literária, científica ou artística
reconhece-se a pessoa. Negada a sua identidade, negada é a pessoa. Recuperando as
sugestivas palavras de David G. OWEN, pronunciando-se a respeito da condenação em punitive
damages (tradução nossa):

O estabelecimento de bolhas de direitos, com fronteiras definidas por lei,


atribui a cada pessoa a sensação de que pode, com segurança, atuar no
âmbito da sua bolha privada sem o constrangimento de uma interferência
alheia. Quando uma pessoa viola intencionalmente a bolha de direitos de
outrem, “rouba” a autonomia da vítima, deixando transparecer a ideia de que
o ladrão é mais merecedor do que a vítima. Se a usurpação da autonomia
(…) não fosse submetida a penalidades em adição à restituição dos bens
roubados (indemnização compensatória), a emenda da transação seria
24
incompleta .

A competência das penas privadas não encontra assento no argumento histórico e


formal da sua inclusão no Código Civil. Ela é expressão da convocação genérica do direito civil
à retribuição dos comportamentos entre particulares que, sem merecerem a reprovação do
direito penal, justificam a repreensão do comportamento, satisfazendo a necessidade de
reafirmação da dignidade do ofendido perante o lesante e as exigências de prevenção geral e
especial da conduta. Converter a Administração em beneficiária de uma coima num âmbito que
excede a sua competência é consagrar uma solução manifestamente ilegítima e lesiva da
dignidade do lesado.
Considerando os fins do direito penal e a estrutura bilateral do direito civil, revela-se
inadequado substituir as penas criminais por sanções punitivas de direito privado.
Diversamente sucede a respeito das contraordenações. Falta-lhes a ressonância ética das
sanções que a “coisificação” do direito subjetivo alheio impõe. Nesse sentido, escreve,
exemplarmente, António PINTO MONTEIRO:

É de sublinhar, entretanto, a acentuação que se vem colocando num sistema


sancionatório privatístico, contraposto a um controlo público, seja este atuado
através de sanções do foro penal ou do foro administrativo, pois só o primeiro

24
The Moral Foundations of Punitive Damages. Alabama Law Review, vol. 40 (1988-1989), p. 711.

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dará plena guarida tanto às exigências da despenalização como às de evitar


uma crescente publicização da vida social, pela via do direito administrativo.
E se é certo que a abolição do direito penal, na esteira de Hulsman,
confiando aos particulares e à sociedade civil a gestão dos conflitos de
interesses, não passa de uma utopia, isso não impede, como a doutrina
penalística vem sublinhando, dentro de uma política contrária ao ímpeto
criminalizante do legislador moderno – preocupada, além do mais, com os
efeitos perniciosos da estigmatização individual -, que uma eficaz estratégia
25
de descriminalização passe por um sistema sancionatório civilístico .

É certo que o regime de indemnização dos danos não patrimoniais no direito português
pode trazer algumas incertezas a um regime geral de penas privadas. Eis o que justificaria a
previsão legal desse regime, permitindo recuperar o sentido original da indemnização dos
danos não patrimoniais, vocacionada para a compensação.
Enfim, «o legislador deve redescobrir a pena privada sem constrangimentos, tão-só
motivado pela superior adequação da medida em relação à tutela contraordenacional,
26
considerando a natureza dos interesses em juízo» . Em defesa dessa ampla competência,
propõe André TUNC a legitimidade da pena privada «sempre que se depare com a vontade (do
legislador, do juiz ou mesmo de um contraente) de punir, de reprimir, sem recorrer aos meios
do direito penal clássico, e pela simples atribuição de uma soma de dinheiro (ou
excecionalmente de um bem) à vítima de um comportamento ilícito» (tradução de António
27
PINTO MONTEIRO) .
De novo, o direito europeu, denunciando, agora, a esquizofrenia que a proibição da
condenação em punitive damages, antes declarada, revela. Num plano geral, são vários os
atos normativos que, sem uma referência expressa a sanções punitivas privadas, requerem a
28
imposição de medida efetivas, proporcionadas e dissuasivas . Merece, em especial, relevo a
Diretiva 2006/54/CE, de 5 de julho de 2006, relativa à aplicação do princípio da igualdade de
oportunidades e igualdade de tratamento entre homens e mulheres em domínios ligados ao
emprego e à atividade profissional (reformulação), onde a prossecução de um fim autónomo de
29
prevenção aparece associada à indemnização .
Nos termos do artigo 18.º:

25
Cláusula Penal e Indemnização. Coimbra: Almedina, 1990, p. 668, nota 1537 da p. 663. Ver, ainda, as
considerações e os exemplos de direito comparado do parágrafo anterior ao texto citado.
26
SOUSA ANTUNES, Henrique. Da Inclusão do Lucro ..., p. 629.
27
La Pena Privata nel Diritto Francese. In: BUSNELLI, Francesco D.; SCALFI, Gianguido (Org.). Le Pene
Private. Milano: Giuffrè Editore, 1985, p. 350 (o texto original é citado no nosso Da Inclusão do Lucro ...,
p. 629). Encontra-se a tradução em PINTO MONTEIRO, António. Cláusula Penal ..., p. 666, nota 1537 da p.
663.
28
Ver KOCH, Bernhard A. Punitive Damages in European Law. In: KOZIOL, Helmut; WILCOX, Vanessa (Org.).
Punitive Damages: Common Law and Civil Law Perspetives. Wien/New York: Springer, 2009, pp. 200 e
ss.
29
Publicada no “Jornal Oficial da União Europeia” L 204, de 26 de julho de 2006, pp. 23 a 36.

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Os Estados-Membros introduzem na respetiva ordem jurídica interna as


medidas necessárias para garantir a existência de uma real e efetiva
indemnização ou reparação, conforme os Estados-Membros o determinem,
pelos prejuízos e danos sofridos por uma pessoa lesada em virtude de um
ato discriminatório em razão do sexo, de uma forma que seja dissuasiva e
proporcional aos prejuízos sofridos. Tal indemnização ou reparação não
estará sujeita à fixação prévia de um limite máximo, salvo nos casos em que
o empregador possa provar que o único prejuízo sofrido por um candidato na
sequência de uma discriminação na aceção da presente diretiva seja a
30
recusa em tomar em consideração a respetiva candidatura .

Mais incisivamente, no direito europeu são paradigmas de um reconhecimento


expresso do alcance punitivo do direito civil o artigo 28.º, n.º 1, da Diretiva 2004/109/CE do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de dezembro de 2004, relativa à harmonização dos
requisitos de transparência em informações respeitantes aos emitentes cujos valores
mobiliários estão admitidos à negociação num mercado regulamentado, e o artigo 18.º, n.º 2,
do Regulamento (CE) n.º 1768/95 da Comissão, de 24 de julho de 1995, em matéria do regime
31
comunitário de proteção das variedades vegetais .
Entretanto, a este respeito, tem importância a jurisprudência do Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem, que, fundada no conceito de “reparação razoável” (artigo 41.º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem), parece ter construído um modelo de
indemnização orientado para o restabelecimento da dignidade humana violada e, de igual
modo, a prevenção geral e especial da ilicitude. Observe-se que o sistema é, por definição,
fundado em direitos das pessoas, sem prejuízo do desígnio coletivo que a anima. Ou seja, é
superável o constrangimento de quaisquer argumentos utilitaristas, pois, deste modo, revela-se
desnecessário o direito público para a reafirmação da dignidade da pessoa humana e a justa
ordenação dos comportamentos entre particulares.
Pretende a maioria que a reparação razoável referida se contém no alcance da
indemnização, designadamente por danos não patrimoniais. O juízo parece, no entanto,
silenciar uma realidade manifestamente diversa. Em Cyprus v. Turkey (2014) encontram essas
reflexões apoio.
Desde logo, interessa destacar a afirmação pelo Tribunal da existência de uma relação
de condicionalidade entre a natureza individual dos danos e a reparação razoável. Se a medida
é aplicada num litígio entre Estados, como sucedia, são necessariamente beneficiárias as
vítimas individuais. O sistema está desenhado segundo o reconhecimento de que a sanção
colhe o seu fundamento na dimensão individual da ofensa aos direitos do homem. O Estado de

30
Os precedentes normativos e judiciais deste regime reforçam o entendimento sobre a dimensão
extraindemnizatória da solução (ver SOUSA ANTUNES, Henrique. Da Inclusão do Lucro ..., pp. 640 e ss.).
31
Publicados no “Jornal Oficial da União Europeia”, respetivamente, L 390, de 31 de dezembro de 2004,
pp. 38 a 57, e L 173, de 24 de julho de 1995, pp. 14 a 21.

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que o lesado é cidadão não tem legitimidade para receber a quantia atribuída, pois não é titular
do direito violado. Lê-se, na versão original do Acórdão: (…) it must be always kept in mind that,
according to the very nature of the Convention, it is the individual, and not the State, who is
directly or indirectly harmed and primarily “injured” by a violation of one or several Convention
rights. Therefore, if just satisfaction is afforded in an inter-State case, it should always be done
for the benefit of individual victims (§ 46). Se na reparação razoável identificarmos uma pena
de natureza privada, descobre-se melhor exemplo sobre a impropriedade das
contraordenações que sancionam a violação de bens jurídicos individuais?
Em litígio, a reparação pedida pelo Estado cipriota à Turquia pelo desaparecimento de
1456 pessoas e pelas violações de direitos humanos praticadas sobre cidadãos cipriotas
gregos, na península de Karpas, entre 1974 e 2001. O Tribunal reiterou a posição anterior
assumida no caso Varnava and Others v. Turkey (2009), declarando que o critério de decisão é
a equidade. Segundo a instância, a equidade assegura a flexibilidade e a ponderação exigíveis
à apreciação adequada de todas as circunstâncias do caso, compreendendo, além da posição
do requerente, o contexto geral em que a ofensa foi praticada. A atribuição da reparação tem
como objetivo exprimir que a lesão sofrida pelo requerente foi a consequência da lesão de um
direito humano fundamental e denunciar com a maior amplitude possível a severidade da
ofensa.
É certo que o Tribunal associa a reparação atribuída à compensação de danos não
patrimoniais (30 milhões de euros destinados aos familiares das pessoas falecidas e 60
milhões de euros aos residentes lesados, ou seus herdeiros, da península de Karpas). Razão
tem, no entanto, Paulo PINTO DE ALBUQUERQUE na sua declaração de voto concordante: o
Tribunal condenou o Estado requerido em punitive damages, em penas de natureza privada.
Vários factos permitem dizê-lo. Entre outros: as vítimas em Karpas não foram identificadas nem
são identificáveis; a prescrição vedaria a atribuição de uma indemnização aos familiares das
pessoas desaparecidas se aqueles tivessem agido individualmente; a ausência de critérios
sobre a medida da repartição da indemnização entre os lesados ou os seus herdeiros e a
incerteza sobre a correspondência entre as vítimas efetivas e os destinatários das
32
indemnizações . Acrescentaríamos: a reparação abrange, ainda, as quantias
correspondentes à aplicação de impostos sobre as verbas fixadas.
Em suma, embora o artigo 41.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem limite a
condenação em reparação razoável à impossibilidade de o direito interno da Alta Parte
Contratante se revelar suficiente para obviar às consequências da violação, essa insuficiência
verifica-se na ausência de satisfação das necessidades de prevenção e de punição justificadas

32
Pp. 30 e 31.

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pelas circunstância do caso concreto. Assim o entende, e a nosso ver bem, Paulo PINTO DE
33
ALBUQUERQUE .
Segundo este Juiz, a decisão segue uma orientação genérica do Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem. A condenação em punitive damages recebe a seguinte tipologia: a
violação grave de direitos humanos protegidos pela Convenção ou pelos Protocolos adicionais,
designadamente pela reiteração ou continuidade da prática; incumprimento prolongado e
intencional de uma condenação do Tribunal; o cerceamento severo, ou a ameaça desse
cerceamento, aos direitos humanos do requerente com o objetivo de evitar, dificultar ou
34
restringir o acesso ao Tribunal ou a comunicação do Tribunal com o requerente .
Finalmente, e ainda segundo Paulo PINTO DE ALBUQUERQUE, na condenação em
punitive damages o Tribunal age de acordo com o princípio da proporcionalidade, respeitando
os fatores seguintes: a gravidade objetiva da ofensa, o grau de dolo ou negligência do lesante,
a extensão da lesão causada ao requerente ou a terceiros, os lucros ilícitos obtidos pelo agente
ou terceiros e a probabilidade de inexecução do direito ofendido.
Satisfazendo os requisitos de legalidade e de proporcionalidade aplicáveis, princípios
de que o direito civil não se pode dissociar, a solução parece justificada no direito português.
Aliás, entre nós, a relevância da dimensão coletiva da lesão permitiu ao legislador ensaiar uma
nova abordagem ao dever de indemnizar. Desde logo, para obter um nível ótimo de prevenção,
acolhendo a possibilidade de fixação de uma quantia global (artigo 22.º, n.º 2, da Lei n.º 83/95,
de 31 de agosto). Nas palavras de Miguel TEIXEIRA DE SOUSA:

(…) o regime da ação popular, quando define uma indemnização global que
se destina a ser repartida pelos lesados, (…) preocupa(-se) mais em evitar
que o lesante possa extrair alguma vantagem do facto danoso do que em
assegurar que cada um desses lesados seja realmente indemnizado pela
exata medida do prejuízo sofrido. A indemnização global procura distribuir
pelos lesados os ganhos do lesante, ainda que disso possa resultar alguma
violação da justiça corretiva, pois que essa distribuição não pode assegurar
que todo o dano sofrido seja efetivamente ressarcido pelo seu exato
montante. Para a quantificação da indemnização global utiliza-se mais o
ganho (global) obtido pelo lesante do que o prejuízo (igualmente global) por
ele infligido, o que significa que na sua quantificação não se segue o critério
da reconstituição da situação hipotética que se encontra estabelecido no art.
35
562.º CC .

O espaço revela-se, pois, propício à reflexão sobre a introdução de penas privadas.


Considerando, no entanto, a necessidade de prevenir práticas disseminadas na
sociedade que escapam, geralmente, à justiça coletiva, a analogia, até por maioria de razão,

33
P. 33.
34
P. 36.
35
A Legitimidade Popular na Tutela dos Interesses Difusos. Lisboa: Lex, 2003, pp. 169 e s.

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determina a mesma oportunidade de reforma nas ações individuais. Estas servem, ainda, de
paradigma de um modelo tradicional. Nesse sentido, veja-se o que dispõe o princípio 31 da
Recomendação da Comissão Europeia de 11 de junho de 2013, atrás citada:

Proibição de indemnizações punitivas - A indemnização atribuída às pessoas


singulares ou coletivas lesadas em situação de dano em massa não deve
exceder a compensação que teria sido atribuída se o direito tivesse sido
reclamado através de ações individuais. Devem ser proibidas, em especial,
as indemnizações punitivas, que conduzam a uma sobrecompensação do
dano sofrido a favor da contraparte.

4. PROPOSTAS DE REFORMA DO CÓDIGO CIVIL PORTUGUÊS

Tomando como referência a dissociação do resgate do lucro ilícito relativamente ao


reconhecimento da legitimidade da pena privada, ensaia-se uma alteração legislativa sobre os
36
efeitos da responsabilidade civil no direito português . Eis, então, os termos da proposta.
Desde logo, a revisão do artigo 564.º, n.º 1, do Código Civil, que deveria dispor nos
termos seguintes: «O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os
benefícios subtraídos ao lesado e os lucros obtidos pelo lesante em consequência da lesão».
Depois, a inclusão de um preceito novo no regime da responsabilidade civil:

Artigo 483.º - A Pena pecuniária


1. Em caso de violação ilícita e dolosa do direito de outrem, o Tribunal, a
requerimento do lesado, pode condenar o autor da lesão numa pena
pecuniária que acresce à indemnização, fixada em função da gravidade da
ofensa, dos benefícios recebidos pelo lesante com a prática do facto e da
reiteração da conduta, ponderando, ainda, a situação económica das partes e
as demais circunstâncias do caso concreto.
2. A pena tem como limite o triplo do proveito económico obtido pelo autor
com a prática do facto ilícito ou, se este for superior, o triplo do valor dos
danos causados.
3. Se o facto ilícito constituir crime é inaplicável a pena pecuniária prevista
neste artigo.
4. O montante da pena destina-se ao lesado.
5. O pagamento da pena não pode estar coberto por um seguro.

Afigura-se que, de forma diversa do que sucede com o resgate do lucro ilícito, a
previsão da pena pecuniária restringe o seu alcance à responsabilidade civil extraobrigacional

36
Em análise crítica às opções de reforma do direito francês, salienta-se a equívoca associação entre a
restituição do lucro e a punição do lesante [vejam-se, por exemplo, VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice;
CARVAL, Suzanne. Les effets de la responsabilité, 4e édition. In: GHESTIN, Jacques. Traité de droit civil.
Paris, 2017, pp. 25 e ss., e LE DANTEC, Aude; THOUÉMENT, Amélie. L’amende civile. In: PIGNARRE, Louis-
Frédéric (Org.). La réforme du droit de la responsabilité (Actes du colloque du 25 novembre 2016 –
Faculté de Droit et de Science politique. Université de Montpellier). Université de Montpellier, s/d, pp. 199
e ss.].

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e à responsabilidade obrigacional sem fonte negocial. Na verdade, pretendendo o credor de


uma prestação contratual dispor desse remédio, deve recorrer à previsão de uma cláusula
penal. A autonomia da vontade prevalece sobre a disciplina legal.
A solução que agora se propõe acolhe a emancipação de um direito privado punitivo,
respeitando exigências de legalidade e de proporcionalidade, emergentes, designadamente, da
37
Convenção Europeia dos Direitos do Homem . O pressuposto da condenação acompanha a
arquitetura detalhada das relações jurídico-privadas e, submetida a pena a limites máximos, a
proposta assegura a prevenção de qualquer arbitrariedade que comprometa o respeito pela
integridade do património das pessoas singulares ou coletivas.
Note-se que a certeza da solução é confortada pela restrição da pena pecuniária à
lesão de direitos absolutos. Exclui-se a relevância da violação de disposições legais destinadas
a proteger interesses alheios, pois aí, sem prejuízo do direito de indemnização que o artigo
483.º do Código Civil atribua, há uma dimensão coletiva imbrincada na tutela dos interesses
particulares que justifica o regime da mera ordenação social.
Em proveito da segurança jurídica, sacrifica-se, pois, o espaço autónomo desta
modalidade de ilicitude, designadamente acerca da reparação de danos puramente
patrimoniais. Nesse caso, a dimensão punitiva é, fundamentalmente, restringida à competência
do direito penal ou do direito contraordenacional.
Silencia-se, ainda, o papel auxiliar das normas de proteção na condenação em sanção
punitiva civil pela lesão de um direito alheio. Na verdade, embora esta segunda modalidade de
ilicitude simplifique a determinação da responsabilidade pela violação de direitos absolutos
38
(«nem sequer é necessário que seja previsível a ocorrência de um dano” ), a pena privada,
fundada, como vimos, na prevalência do bem jurídico individual, exige uma conexão imediata
entre a conduta do agente e o direito subjetivo violado. O desrespeito pela norma é incidental
relativamente à imputação subjetiva da lesão. Fica, então, claro que o dolo deve ser aferido em

37
Sobre uma análise recente do projeto de reforma da responsabilidade civil em França a esta luz, vejam-
se, por exemplo, RIAS, Nicolas. Les nouvelles fonctions de la responsabilité civile (regard français). In:
MALLET-BRICOUT, Blandine (Org., sob a égide da Association Henri Capitant). Vers une réforme de la
responsabilité civile française. Regards croisés franco-québecois. Paris: Dalloz, 2018, pp. 67 e ss., e
VÉRON, Paul. Réflexions sur la faute lucrative dans l’avant projet de réforme de la responsabilité civile. In:
PIGNARRE, Louis-Frédéric (Org.). La réforme du droit de la responsabilité, cit., pp. 219 e ss.
38
SINDE MONTEIRO, Jorge Ferreira. Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações.
Coimbra: Almedina, 1989, p. 240. De forma mais desenvolvida, escreve o autor: «Na maior parte das
vezes, as pretensões indemnizatórias por violação de uma disposição legal destinada a proteger
interesses alheios coexistem com as derivadas da lesão de direitos absolutos. Todavia, enquanto a ordem
jurídica, ao conformar um direito como absolutamente protegido, apenas impõe a qualquer terceiro fazer o
objetivamente possível a um homem médio para evitar o pôr em perigo desse direito, as disposições de
proteção prescrevem formas de conduta bem concretas e determinadas, trazendo com isso para o lesado
a vantagem de que a ilicitude do comportamento é mais fácil de comprovar» (p. 238).

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relação ao direito absoluto violado e não ao incumprimento das normas de proteção, infração
que permitiu a verificação do dano.
Em função do que se escreve, a cumulação de uma coima com uma pena pecuniária
só se afigura ofender o princípio ne bis in idem se o regime das contraordenações for
indevidamente aplicado à tutela de bens jurídicos predominantemente individuais, como o
reconhecimento de um direito absoluto atesta. Há separação de águas.
A possibilidade de fixação da pena no triplo do valor de referência segue soluções que,
com esse alcance generoso, o direito português desde já conhece. Veja-se o artigo 1320.º do
Código Civil, a respeito de animais selvagens com guarida própria que hajam sido atraídos
para guarida alheia com fraude ou artifício do terceiro: «(…) é este obrigado a entregá-los ao
antigo dono, ou a pagar-lhe em triplo o valor deles, se lhe não for possível restituí-los». Ou o
artigo 246.º, n.º 1, do Código do Trabalho: «Caso o empregador obste culposamente ao gozo
das férias nos termos previstos nos artigos anteriores, o trabalhador tem direito a compensação
no valor do triplo da retribuição correspondente ao período em falta, que deve ser gozado até
30 de abril do ano civil subsequente».
A proporcionalidade evidencia-se nos critérios que habilitam o julgador à fixação da
pena e na moldura definida pelo legislador. Sem prejuízo do enquadramento da pena nos
limites definidos pelo n.º 2 da disposição proposta, a gravidade da ofensa, os benefícios do
infrator e a reiteração do comportamento ilícito são circunstâncias que justificadamente, o
julgador deve tomar em consideração na definição da sanção aplicável. A adequação da pena
requer, ainda, a ponderação da situação económica das partes e das demais circunstâncias
que se afigurem relevantes.
O projeto de reforma da responsabilidade civil em França, antes mencionado, prevê
que a multa seja limitada ao décuplo do proveito económico obtido pelo agente com a prática
do facto ilícito (artigo 1266-1, alínea 3). A norma circunscreve-se, porém, aos comportamentos
dolosos ditados pela obtenção de um benefício económico com a ofensa (alínea 1). Nesse
sentido, ainda que dúvidas possa haver acerca da bondade da multiplicação do valor de
39
referência por 10, a escolha desse valor parece respeitar um critério de proporcionalidade .
Considerando que a nossa proposta tem outra ambição, diverso será o
enquadramento. Neste contexto, tem especial relevância o exemplo do direito do Québec,
habilitando à condenação em dommages-intérêts punitifs a violação ilícita e intencional de um
direito ou uma liberdade reconhecida pela Carta dos direitos e liberdades da pessoa (1975 –

39
Pronuncia-se no sentido da adequação da proposta JUEN, Emmanuelle. Vers la consécration des
dommages-intérêts punitifs en droit français. Présentation d’un regime. Revue trimestrielle de droit civil,
juillet-septembre 2017, pp. 580 e ss.

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40
artigo 49.º) . O regime está, pois, desvinculado de uma intenção lucrativa do agente.
Considere-se, ainda, que o lucro pode ser inferior ao dano. Assim, parecendo-nos que é
ajustado ligar o valor de referência às circunstâncias do caso concreto, de modo a evitar a
ineficácia gerada pela arbitrariedade da fixação de quantias abstratas, o dano pode
41
desempenhar essa função . Afinal, a punição tem como objeto comportamentos dolosos,
havendo na antecipação do dano um critério que permite vincular a medida da pena à medida
da culpa e às exigências de prevenção (em paralelismo com o disposto no artigo 71.º, n.º 1, do
Código Penal sobre as penas criminais). Esta relação desenha-se, ainda, na condenação em
punitive damages no direito norte-americano, restringida agora à multiplicação por um dígito em
42
ensaios de reconstrução da legitimidade constitucional da figura .
Cremos que se revela bem fundada a opção pela proibição da contratação de um
seguro destinado a cobrir o pagamento daquela sanção. Só a proibição do seguro garante,
com efetividade, os efeitos retributivo e preventivo que andam associados à condenação em
pena privada. É solução que se descobre no projeto de reforma do Código Civil francês,
43
citado .
A previsão legal da pena pecuniária, a competência do juiz, a imposição de limites à
condenação, a subsidiariedade em relação ao direito penal são escolhas que resguardam a
solução das controvérsias que a utilização de punitive damages no direito norte-americano
44
convoca . Reclama-se, porém, a atribuição da quantia punitiva ao lesado, em congruência
com a tese sobre a desconformidade das contraordenações com a sanção da lesão de bens
jurídicos individuais e, retomando uma reflexão anteriormente desenvolvida, em convergência
com o reconhecimento da legitimação da pena pelo dano.
Sobre o primeiro aspeto, há que salientar a diferença entre o direito das
contraordenações e o direito penal. Escrevemos, então:

40
A título exemplificativo, descobre-se uma análise recente deste regime em LACROIX, Mariève. Les
nouvelles fonctions de la responsabilité civile (regard québécois). In: MALLET-BRICOUT, Blandine (Org., sob
a égide da Association Henri Capitant). Vers une réforme de la responsabilité civile française. Regards
croisés franco-québecois, cit., pp. 79 e ss.
41
A utilização conjugada do lucro e do dano como padrões de limitação da pena permite obviar às
objeções a um recurso, em exclusividade, ao critério do dano. Sabendo que a um proveito económico
pode corresponder um dano substancialmente menor, uma pena vinculada aos ilícitos praticados com
intenção lucrativa revelar-se-ia inoperante se limitada pelo valor do dano (neste sentido, JUEN,
Emmanuelle, Vers la consécration des dommages-intérêts punitifs en droit français. Présentation d’un
regime, cit., pp. 579 e ss.).
42
Veja-se SOUSA ANTUNES, Henrique. Da Inclusão do Lucro ..., pp. 109 e ss.
43
Pela bondade dessa solução, veja-se, por exemplo, JUEN, Emmanuelle, Vers la consécration des
dommages-intérêts punitifs en droit français. Présentation d’un regime, cit., pp. 575 e ss.
44
Remete-se para o que escrevemos em Da Inclusão do Lucro ..., pp. 89 e ss.

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[...] objetar-se-á que o destino público da sanção é compatível com a


satisfação do interesse do lesado, pois dessa premissa parte o direito penal.
Sabendo que o movimento destinado a realçar o papel da vítima na ação
penal e na definição da pena aplicável tem recebido amplo acolhimento e
que à pena acolhe a reprovação moral do comportamento ilícito, a
preferência do bem público é, na vigência do direito penal, dissemelhante do
menoscabo do interesse privado. Noutro sentido se apura o direito da mera
ordenação social. Que satisfação retira da coima o particular, se nem o
crédito do agente é lesado? A questão revela-se, ainda, mais premente se o
facto foi praticado por uma pessoa coletiva: esta pode repercutir o seu
prejuízo sobre o património de terceiros. A satisfação do lesado é
inadequada nos direitos em que o beneficiário da coima é uma pessoa
diversa do ofendido, acentuando-se quando respeita a uma pessoa coletiva,
a quem o facto não é subjetivamente imputável, e esta, pela sua natureza,
45
dilui a lesão nas relações que estabelece com terceiros .

Advoga-se, enfim, que converter o lesado em destinatário da quantia correspondente à


pena pecuniária proporciona-lhe um enriquecimento injustificado. É outro o nosso juízo. O
dano é causa dessa atribuição: na ofensa intolerável a bens jurídicos individuais só há
verdadeira justiça corretiva com a satisfação que a aplicação da pena privada proporciona ao
46
lesado .

5. CONCLUSÃO

Com a aprovação do Código Civil português de 1966, o legislador anunciava a revisão


dos efeitos da responsabilidade civil, graduando a medida da indemnização em função do juízo
de censura ao comportamento do lesante. Escrevia João de Matos ANTUNES VARELA:

A ideia de afeiçoar o quantum da indemnização à culpa do agente, por


imitação do que a legislação penal faz com as multas e outras sanções
aplicáveis ao delinquente, era como que uma nota musical a que não
ascendia a audição dos civilistas, completamente surdos a melodias desse
estilo. É precisamente nesse ponto que o novo Código descreve uma viragem
espetacular. Sem destruir a função essencialmente reparadora da
responsabilidade civil, e não permitindo, por isso, que a indemnização a
cargo do lesante alguma vez exceda o valor do dano, em vários textos
relativos à extensão da indemnização se não desdenha de assinar ao
47
instituto, embora subsidiariamente, um papel repressivo do facto ilícito .

45
SOUSA ANTUNES, Henrique. Da Inclusão do Lucro ..., pp. 632 e ss.
46
Veja-se TILBURY, Michael, Reconstructing Damages. Melbourne University Law Review, vol. 27 (2003),
pp. 713 e s., e o nosso Da Inclusão do Lucro ..., pp. 608 e ss.
47
Rasgos Inovadores do Código Civil Português de 1966 em Matéria de Responsabilidade Civil. Coimbra,
1972, pp. 18 e s.

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Cinquenta anos volvidos, outro fôlego crê-se exigível. A esse respeito, sintetizamos os
pressupostos da proposta de reforma que agora se apresenta. Retoma-se, em grande medida,
48
o que já noutros momentos se escreveu :
1. É tempo de chamar à responsabilidade civil extracontratual a restituição do lucro
ilícito e de àquela atribuir a partilha de competências com o direito contraordenacional. É
tempo, enfim, de repensar as fronteiras entre institutos do direito privado e entre este e o
direito público;
2. Acerca da restituição do lucro, são manifestas as insuficiências do enriquecimento
sem causa. Revela-se, ainda, inequívoca a artificialidade do recurso à gestão de negócios
imprópria, e, porventura, os seus efeitos perversos;
3. Considera-se devida a entrega do lucro como um efeito da responsabilidade civil.
Assim vem sucedendo no direito europeu. Esse dever encontra acolhimento na dimensão
relacional do princípio geral estabelecido pelo legislador a respeito da obrigação de
indemnização (artigo 562.º). A lei impõe ao lesante o dever de recriar a situação hipotética que
a sua intervenção impossibilitou. Essa realidade alternativa tem, necessariamente, de
compreender a posição do agente. Se o lesante obteve um benefício patrimonial com o seu
comportamento, é uma ficção dizer-se que a restituição escapa à reconstituição desejada;
4. É bem verdade que o artigo 562.º delimita o devedor pela obrigação de reparação
de um dano, o que, em última instância, privaria de fundamento a interpretação que, em razão
da perspetiva relacional da obrigação de indemnização, nesta pretendesse incluir o resgate do
lucro, se o lesado não sofreu nenhum prejuízo. Sucede, porém, que esse entendimento
restringe o dano a uma dimensão patrimonial ou, pelo menos, silencia o reflexo que o lucro
tem na esfera não patrimonial do lesado;
5. Temos defendido que se apura um dano não patrimonial relevante, e portanto
indemnizável segundo o artigo 496.º do Código Civil, sempre que do sacrifício censurável de
bens do lesado advém para terceiro um benefício económico;
6. A amplitude com que a indemnização dos danos não patrimoniais foi acolhida no
direito português, adaptável à evolução das circunstâncias sociais, o fim de satisfazer o lesado
que àquela é reconhecida, reagindo à infirmação do seu direito, a natureza do bem que é
ofendido, o sentimento de justiça, deve habilitar o juiz, nesta sede, a restituir ao lesante as
receitas líquidas imputáveis ao seu comportamento. Em situações de elevada censurabilidade,
admite-se a aplicação do critério das receitas brutas;

48
SOUSA ANTUNES, Henrique. Das funções reconstitutiva e punitiva da responsabilidade civil
extracontratual. In CARDOSO GUEDES, Agostinho; PINTO OLIVEIRA, Nuno Manuel (Org.). Colóquio de Direito
Civil de Santo Tirso – O Código Civil 50 anos depois: balanço e perspetivas, cit., pp. 502 e ss.

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7. As condições estão criadas para, em função do lucro obtido pelo autor do facto
ilícito, rever o alcance da responsabilidade no respeito dos princípios que, representando uma
vitória da civilização moderna, se converteram na sua ortodoxia. De qualquer forma, em razão
da emergência de regimes diversos que incluem na indemnização a entrega do lucro ilícito a
unidade do sistema jurídico justifica a revisão daquele conceito.
8. Exclui-se qualquer efeito punitivo no resgate do lucro. O lesante perde as vantagens
que ilegitimamente adquiriu, nada mais. Somente se apura aquele efeito quando, desprezando
o direito alheio, o agente coisificou a pessoa. Está, nesse caso, impedido de deduzir à
restituição o custo económico dos fatores produtivos que integram a sua esfera jurídica, mas
deve, porventura, mais;
9. O direito privado vigente desconhece uma cláusula punitiva geral. Há, porém, um
importante traço de identidade nos casos previstos na lei, pois as sanções privadas que, a
respeito das consequências da aplicação da responsabilidade civil, apresentam um efeito
punitivo são legitimadas pelo dano. O dano é a causa da sua estatuição, destinando-se o
remédio, nuns casos a determiná-lo ou a preveni-lo, noutros a satisfazer o direito do lesado ao
desagravo;
10. Verifica-se uma adesão da sanção criminal às características e finalidades da
solenidade da repressão penal que, justificadamente, argumenta em favor da impropriedade
do direito privado, limitado pela natureza bilateral ou relacional das sanções que utiliza;
11. Diversamente sucede a respeito do regime das contraordenações. A lata amplitude
do direito de mera ordenação social constitui uma aplicação do princípio da subsidiariedade do
direito penal. Em alcance injustificado. As sanções beneficiam a Administração sem curar da
natureza essencialmente individual dos bens ofendidos. Urge repensar as fronteiras entre o
direito de mera ordenação social e o direito privado;
12. Afigura-se que, de forma diversa do que sucede com o resgate do lucro ilícito, a
previsão legal de uma pena pecuniária restringe o seu alcance à responsabilidade civil
extraobrigacional e à responsabilidade obrigacional sem fonte negocial. Na verdade,
pretendendo o credor de uma prestação contratual dispor desse remédio, deve recorrer à
previsão de uma cláusula penal;
13. A previsão legal da pena pecuniária, a competência do juiz, a imposição de limites à
condenação, a subsidiariedade em relação ao direito penal são escolhas que resguardam a
solução ora enunciada das controvérsias que a utilização de punitive damages no direito norte-
americano convoca.

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Como citar: SOUSA ANTUNES, Henrique. Das funções reconstitutiva e punitiva da


responsabilidade civil: propostas de reforma do Código Civil português. Revista IBERC, Minas
Gerais, v. 2, n. 1, p. 01-24, jan.-abr./2019.

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