TESE Fernando Guilherme Bruno Filho INTEGRAL

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 207

1

Fernando Guilherme Bruno Filho

POLÍTICA URBANA E PRINCÍPIOS DE DIREITO


URBANÍSTICO: REPERCUSSÕES NO ESTADO
CONTEMPORÂNEO

Tese de doutorado

Orientador Professor Doutor Sebastião Botto de Barros Tojal

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

São Paulo – 2013


2

Fernando Guilherme Bruno Filho

POLÍTICA URBANA E PRINCÍPIOS DE DIREITO


URBANÍSTICO: REPERCUSSÕES NO ESTADO
CONTEMPORÂNEO

Tese apresentada à Comissão de Pós-graduação da


Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, como exigência parcial para a obtenção do
título de doutor em Direito, sob a orientação do
Professor Doutor Sebastião Botto de Barros Tojal.

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

São Paulo – 2013


3

Banca Examinadora:
4

Para
Ana Paula
Vitor e Ligia
Meu pai, Fernando
E minha mãe, Celina (in memorian)
5

AGRADECIMENTOS

Ao Professor Sebastião Tojal, não só pela orientação, mas, sobretudo, pela confiança,
otimismo e tranquilidade constantemente transmitidos, frutos de um espírito verdadeiramente
generoso,

A Rosana Denaldi e Jeroen Klink (Jan e Maria também), sempre,

A Fernando Herren Aguillar, Solange Gonçalves Dias e a todos e todas colegas professores da
Universidade São Judas Tadeu,

Aos professores e professoras especiais com quem tive o privilégio de conviver e aprender,
aqui representados por Regina Meyer, Odete Medauar, Fernando Menezes de Almeida, Ana
Maria Nusdeo, Elival da Silva Ramos e Roger Stieffelmann,

A Cláudia Virgínia Cabral de Souza, Margareth Uemura, Irineu Bagnariolli Junior, Vanessa
Figueiredo, Maria Tereza Carvalho, Celso Sampaio, Sebastião Ney Vaz, João Ricardo
Guimarães, Paula Maria Motta Lara, Simone Beralda, Márcia Cristina Rossi, Aylton Affonso,
Márcia Gesina, João Bosco, Márcio Luiz Vale, Carlos Miaciro, Evangelina Pinho, Roseli
Gotti, Luis Carlos Rodrigues, Gisele Gonçalves Dias, Rafael Bischof, Dânia Brajato, Nara
Argiles, Marcela Cherubine, Carlos Eduardo de Mello, Jorge Henrique de Oliveira Souza,
Luis Paulo Bresciani, Patrícia Laczinsky, Mário Maurici de Lima Morais, Mauricio Mindrisz,
Antonio Carlos Granado, Miriam Belchior, Celso Daniel (in memorian), e tantos e tantas que
acreditaram e acreditam numa administração pública e numa política urbana democráticas e
populares,

A Paula Ravanelli Losada, Celso Carvalho, Ricardo Moretti, Francisco Comaru, Érica de
Castro, Kazuo Nakano, Flávio Martins, Cacilda Lopes, Fábio Vital e a meus companheiros e
companheiras do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico-IBDU, dentre eles Nelson Saule
Junior, Daniela Liborio Di Sarno, Rosane Tierno, Henrique Frota, Ellade Imparato,
Florisvaldo Cavalcanti, Edésio Fernandes, Betânia Alfonsin, Vanêsca Prestes, Karina Uzzo,
Isabel Ginters e Guadalupe Abib de Almeida,

A Fabiane Alves e Renata Boulos,

A minhas irmãs Denise, Beatriz e Heloisa,

A Fábio Corrêa Martins, Guto Arouca, Beto Bannwart e Fernando Caram,

Às lideranças e militantes populares, sociais e ambientalistas, que compartilharam comigo


seus sonhos de uma sociedade fraterna, justa e sustentável.
6

RESUMO

Em qualquer sistema de normas que se procura estabelecer ou interpretar é decisivo o papel


dos princípios jurídicos, seja para dar coerência às relações que se estabelecem entre essas
normas, seja principalmente para interpretá-las de maneira afinada com os objetivos que delas
se esperam. Isso faz ainda mais sentido quando o sistema de normas está fadado pela própria
Constituição a promover transformações de realidades indesejadas, como a pobreza e a
marginalização, pois está-se então diante de valores caros à comunidade. O direito urbanístico
tem justamente a função de tornar mais efetiva a política urbana, escolhida pela Constituição
como o instrumento para “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
garantir o bem-estar de seus habitantes”. Identificar os princípios de direito urbanístico é
uma forma de colaborar nessa tarefa.
O trabalho parte da constatação de que muitos dos planos diretores municipais foram
aprovados ou estão sendo aplicados de maneira insuficiente para fazer frente aos problemas
específicos de cada município, especialmente se considerada a complexidade das pressões que
atuam na expansão ou na reconfiguração das cidades brasileiras, e a compreensão dos
princípios de direito urbanístico podem dar argumentos para evitar que isso ocorra.
Prtende então debater e posicionar adequadamente as visões acerca de o que seja a política
urbana e também do estágio atual de desenvolvimento do direito urbanístico, considerando
especialmente os conceitos de função social da cidade e de função social da propriedade
imóvel urbana, analisando a evolução mais recente da legislação que deve dar concretude a
eles, partindo do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), mas avançando para as leis nacionais
que dispõem sobre setores específicos, como o parcelamento do solo e a regularização
fundiária, o saneamento e a gestão de resíduos sólidos, a mobilidade urbana e a prevenção de
desastres. Em seguida, estabelece um quadro sintético das teorias e das ações que
configuraram o urbanismo contemporâneo, desde o final do século XIX até propostas mais
recentes e que vão além do uso e ocupação do solo, com ênfase nos movimentos da “reforma
urbana” e do “planejamento estratégico de cidades”. Insere para discussão aspectos
considerados decisivos à reflexão atual sobre as cidades, quais sejam, as crises econômicas e
seus efeitos, os problemas ambientais globais e o conceito de “desenvolvimento sustentável” e
os novos usos possíveis da tecnologia da informação. Adentra na teoria dos princípios de
direito, buscando identificar seus fundamentos e as consequências para a interpretação
jurídica. Por fim, examina mais detidamente certas questões relacionadas ao direito
urbanístico (as diretrizes da política urbana e os planos diretores) e apresenta uma proposta de
princípios que orientam esse sistema de normas.

PALAVRAS-CHAVE: Direito urbanístico- politica urbana- princípios do direito.


7

ABSTRACT

The role of the legal principles is crucial in any regulatory system that seeks to interpret or to
establish to give coherence to the relations established between these rules or mainly to
accurately interpret them according to the goals expected. This makes even more sense when
the regulatory system is fated by its own Constitution to promote change of unwanted realities
such as poverty and marginalisation because one would be facing expensive values to the
community. The urban law has, therefore, the goal to make urban policy more effective since
it was chosen by the Constitution to be the tool to “order the full development of the city’s
social functions and assure the well-being of its inhabitants”. To identify the urban law is a
way to collaborate with such task.
This piece of work is based on the finding that many of the approved municipal master plans
or the ones that are being conducted are not really being able to deal with the specific
problems of each municipal government, especially if considering the complexity of pressures
in the expansion or redesign of Brazilian cities. The comprehension of the urban law
principles could provide arguments to avoid this situation.
It seeks, therefore, to debate and adequately place the ideas about the real meaning of the
urban policy and of the actual urban law’s state of development. It especially considers the
concepts of the city’s social function and the social function of the urban property analysing
the recent evolution of the subject’s core legislation, starting from the City Statute (Estatuto
da Cidade - Law 10.257/2001), but advancing to the national law regarding specific sectors
such as the division of land and land reform, sanitation, solid waste management, urban
mobility and disaster prevention. Then, a brief frame of theories and actions that have shaped
the actual urbanism from the end of the 19th century to today will be established going beyond
land use and occupation, emphasising on the urban reform and municipal strategic planning
manifestations. Crucial aspects are brought to a more recent discussion about cities, economic
crisis and its effects, global environmental problems and the concept of sustainable
development and the new possible uses of information technology. The Legal Principles
Theory is referred seeking to identify its basis and consequences for the legal interpretation.
Finally some questions related to urban law will be carefully debated (the guidelines of urban
policies and master plans) and a proposal of principles to guide this system of norms will be
presented.

KEY WORDS: Urban law - urban policy – principles of law


8

RÉSUMÉ

Concernant n’importe quel système de normes dont on cherche à établir ou à interpréter, le


rôle des principes juridiques est capital, soit pour rendre cohérent les rapports qui se nouent
entre ces normes, soit surtout pour les interpréter de manière précise selon les objectifs
souhaités. Cela a encore plus de sens lorsque le système de normes est assigné par la propre
Constitution à promouvoir la transformation de quelques réalités regrettables, comme la
pauvreté, et la marginalisation, en faisant face à des valeurs précieuses pour la communauté.
Le droit de l’urbanisme joue précisément le rôle de rendre la politique urbaine plus efficace,
classé par la Constitution comme un outil pour “ ordonner le développement plein des
fonctions sociales de la ville, et assurer le bien-être de ses habitants ”. Identifier les principes
du droit de l’urbanisme est un moyen de collaborer à cette tâche.
Le travail démarre à partir d’une constatation : les plans directeurs municipaux ont été
approuvés ou mis en place sans toutefois faire face aux problématiques particulières à chaque
municipalité, surtout si on considère la complexité des forces agissant sur l’expansion ou le
réaménagment des villes brésiliennes, et la compréhension des principes du droit de
l’urbanisme peut proposer des arguments évitant cela.
On cherche alors à discuter, et à placer de manière convenable les notions sur ce qui
représente la politique urbaine, ainsi que le niveau actuel de développement du droit de
l’urbanisme, en considérant notamment les concepts de fonction sociale de la ville, et de
fonction sociale de la propriété foncière urbaine, en analysant l’évolution plus récente de la loi
qui doit les rendre pragmatiques, à partir des Status de la Ville (Loi 10 257/2001), mais se
dirigeant vers des lois fédérales traitant des domaines particuliers, tels que la parcellisation, et
la régularisation des terres, l’assainissement et la gestion des déchets solides, la mobilité
urbaine et la prévention des catastrophes. Ensuite, on établit un tableau synthétique des
théories, et des actions représentant l’urbanisme contemporain, depuis la fin du XIXème siècle
jusqu’à des propositions plus récentes, qui dépassent l’occupation du sol, en soulignant les
mouvements de la “ réforme urbaine ”, et de la “ planification stratégique des villes ”. Des
aspects considérés comme décisifs à la réflexion actuelle sur les villes sont insérés dans la
discussion, comme les crises économiques, et leurs conséquences, les problèmes
environnementaux mondiaux, et le concept de “ développement durable ”, ainsi que les
nouveaux usages des technologies de l’information. On rentre dans la théorie des principes du
droit, cherchant à identifier ses fondements, et les conséquences pour l’interprétation
juridique. Enfin, on examine plus particulièrement certains aspects liés au droit de
l’urbanisme (les consignes de la politique urbaine, et les plans directeurs), et on présente une
proposition concernant les principes qui touchent ce système de normes.

MOTS-CLÉS : Droit de l’urbanisme - politique urbaine – principes du droit.


9

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 1

2. A CIDADE E O DIREITO 8
2.1. Cidades, regiões metropolitanas e “redes de cidades 10
2.1.1. “Redes de cidades” e a rede urbana no Brasil 14
2.2. Política urbana (ou de desenvolvimento urbano): política pública? 17
2.2.1. Um conceito de política urbana 20
2.3. Direito urbanístico em evolução 23
2.3.1. Direito urbanístico no Brasil 25
2.3.2. A autonomia do direito urbanístico: um problema superado? 28
2.3.3. O campo do direito urbanístico 31
2.3.4. Um enquadramento funcional do direito urbanístico 34
2.4. Função social da propriedade imóvel urbana (FSPIU): primeira abordagem 37
2.4.1. FSPIU e limitações ao direito de propriedade 41
2.5. Função social da cidade (FSC): primeira abordagem 43
2.6. Normatização da política urbana 44
2.6.1. O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001): base e catalisador da política urbana 46
2.6.2. Parcelamento do solo urbano (Lei 6766/79) 48
2.6.2.1.Regularização fundiária e urbanística (Lei 10.977/2009) 49
2.6.3. Saneamento básico (Leis 11.445/2007 e 12.305/2010) 51
2.6.4. Mobilidade (Lei 12.587/2012) 54
2.6.5. Proteção e defesa civil (Leis 12.340/2010 e 12.608/2012) 55

3. TEORIA E AÇÃO SOBRE A CIDADE 58


3.1. Urbanismo, planejamento e reforma urbanos 61
3.2. O planejamento e a cidade 63
3.2.1. Cidade e infraestrutura econômica 65
3.3. Higienismo e contradição nos primórdios do urbanismo 68
3.3.1. Cidades brasileiras na transição para a República 73
3.4. O modernismo, primeiro ato (entre guerras) 75
3.4.1. Industrialização e fim da “república velha” 78
10

3.5. O modernismo, segundo ato: o pós-guerra 79


3.5.1. O planejamento urbano se afirma no Brasil 83
3.6. Há um “pós-modernismo” no urbanismo? 86
3.6.1. Fragmentação e embate conceitual no pós-modernismo 89
3.6.2. “Empresarialismo”, ou o valor de troca levado ao extremo 90
3.6.2.1.O “planejamento estratégico de cidades” 93
3.6.3. Reforma urbana na periferia do capitalismo 95
3.3. Há um “fim do urbanismo”? 98

4. NOVOS INFLUXOS: ECONOMIA, MEIO AMBIENTE E TECNOLOGIA (O


DIREITO TAMBÉM) 102
4.1. Crise(s) econômica(s): uma nova geografia 103
4.1.1. Brasil: uma nova inserção na economia? 106
4.2. Meio ambiente e desenvolvimento sustentável 109
4.2.1. Mudanças climáticas e justiça ambiental 112
4.3. Tecnologia e percepção do território 114
4.3.1. Georreferenciamento: aplicações e potencialidades 116
4.4. Princípios e Direito: um panorama 118
4.4.1. Norma, princípios e regras 119
4.4.2. Questões e desdobramentos da noção de princípios 122
4.4.3. Princípios e constitucionalismo, e a origem dos princípios 126
4.4.3.1.Lá de onde nascem os princípios 128
4.4.4. Interpretação sob princípios 132
4.4.4.1.Á guisa de exercício: o interesse público em colisão 135

5. PONTOS ESSENCIAIS DA POLÍTICA URBANA E UM ELENCO POSSÍVEL DE


PRINCÍPIOS 139
5.1. A atratividade das diretrizes gerais 141
5.2. O plano diretor (PD) municipal 145
5.2.1. O Plano Diretor “esgota” a política urbana? 150
5.3. Enunciando os princípios de direito urbanístico 152
5.4. Os princípios constitucionais de direito urbanístico 157
5.4.1. Função social da propriedade imóvel urbana e da cidade: complementos 158
5.5. Princípios derivados de direito urbanístico 160
11

5.5.1. Sustentabilidade urbana 161


5.5.2. Solidariedade urbana
5.5.3. Democratização da política urbana 165
5.5.4. Proeminência do Plano Diretor (PD) e do planejamento 167
5.5.5. Compartilhamento das responsabilidades públicas em política urbana 169
5.5.6. Essencialidade da moradia adequada 172
5.6. A ordem urbanística 174

6. CONCLUSÃO 176

7. REFERÊNCIAS 181
12

1. INTRODUÇÃO.

À primeira vista, o tema e a abordagem do trabalho ora propostos poderiam soar como
datados, no sentido de que representariam um olhar acerca de específico momento da
construção de uma dada política pública- planejamento e desenvolvimento urbano, ou
resumidamente, política urbana- no Brasil. O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) já
ultrapassa dez anos de vigência, ainda tendo em conta o momento presente, e na sua esteira
centenas de municípios em todo país produziram ou revisaram normas locais versando sobre
as cidades, especialmente os planos diretores preconizados pelo art. 182 da Constituição
Federal como “instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”.

Entretanto, queremos crer que a relação ente o Direito e as cidades não é relevante
apenas nessa específica conjuntura histórica, ou não deveria ser. Com efeito, a pesquisa e,
sobretudo, a reflexão a que nos propomos abarca necessidades e situações universais e
pertinentes ás mais diversas contingências, aplicáveis a grande numero de problemas
efetivamente vivenciados por parcelas consideráveis da população brasileira (quiçá de outros
países) e relacionadas a um contexto de urbanização intensa que deita raízes no passado, e se
encontra em fase de consolidação quantitativa mas também de mudanças qualitativas.
Confrontando uns e outros, problemas concretos e dispositivos legais, mediados por uma
análise e argumentação adequadas, acreditamos ser possível (o que adotamos como
motivação) afirmar e controlar a racionalidade da política urbana conforme ela implanta-se e
aplica-se no Brasil. Essa é uma tarefa plausível, ainda em nossa crença, se pudermos
estabelecer uma descrição dos fundamentos de tal política pública e de um conteúdo material
obrigatório, ao mesmo tempo que respeitando as peculiaridades e a diversidade de situações e
desafios que se colocam para cada ente federativo.

Porém, tudo indica que isso não tem ocorrido.


13

Pesquisa levada a cabo pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional


da Universidade do Rio de Janeiro- IPPUR/UFRJ1, por demanda e com apoio do Ministério
das Cidades, dão ensejo à percepção de que algumas questões estruturantes da politica urbana
podem estar sendo relevadas ou não adequadamente disciplinadas nos planos diretores e na
legislação local, o que tornaria esse sistema- a política urbana- falho e incompleto. Ali se
constata, como mero exemplo, que no Estado de São Paulo apenas 53,3% dos municípios
pesquisados traduziram em seus planos diretores diretrizes para a recuperação de parte da
valorização imobiliária decorrente de investimentos do poder público (art. 2º, XI, do Estatuto
da Cidade); no Estado do Rio de Janeiro não mais que 39,3% sequer estabeleceram a
definição do perímetro urbano (art. 2º, VII, também do Estatuto da Cidade); no Estado de
Minas Gerais, a grande maioria dos municípios abaixo de 100.000 habitantes se omitiu em
prever a universalização dos serviços de saneamento (art. 2º, I, da Lei 10445/07). Para além
disso, conforme interpretação dos próprios pesquisadores e considerando o conjunto de
municípios, a mera transcrição de dispositivos do Estatuto nos planos diretores foi uma
constante, o mesmo valendo para a inaplicabilidade imediata dos mesmos planos, e as
insuficiências que comentamos são quase que a regra em todos os estados e setores
(habitação, mobilidade, etc.). Tratam-se apenas, repita-se, de exemplos e informações que
instigam a um olhar mais acurado acerca da efetividade com que as ações públicas
relacionadas ao ambiente urbano estão sendo estabelecidas e, sobretudo, interpretadas no
Brasil, mas principalmente se esse momento político e jurídico vivenciado pela sociedade está
consoante um programa constitucionalmente concebido.

O problema como assim colocado comporta, a nosso ver, possibilidades de resolução.


Nossa hipótese é que a promulgação de diversos diplomas legais nos últimos anos, com
destaque para o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) mas também de outros no plano nacional
ou federal- relacionados ao saneamento e gestão de resíduos sólidos, regularização fundiária,
mobilidade e proteção e defesa civil, por exemplo- permitem inferir uma série de princípios
que não se mostravam com tanta clareza até então, mesmo aqueles já consagrados (como a
função social da propriedade imóvel urbana e a função social da cidade). Desvelar os
princípios de direito urbanístico dessa forma induz a um novo papel para os governos e para a

1
Os dados desagregados da pesquisa, onde se pode quantificar os elementos dos planos diretores pesquisados,
estão disponíveis em http://www.observatoriodasmetropoles.net/planosdiretores, acesso em 01/06/2011. A
sistematização e uma interpretação completa no âmbito do trabalho deu-se na obra organizada por Orlando Alves
dos SANTOS JUNIOR e Daniel Todtmann MONTANDON (Os planos diretores municipais pós-Estatuto da
Cidade, passim).
14

administração pública, mas também para a sociedade, indo muito além do poder de polícia ou
do mero fomento de atividades e então construindo uma política urbana afinada de fato com a
Constituição e as novas realidades políticas, culturais e materiais. Ademais, também a
evolução da teoria do direito, buscando fazer frente à herança positivista que ainda deita
influências exageradas, pode garantir efetividade a esses e a outros princípios de forma a fazer
valer no espaço urbano as finalidades almejadas.

Buscaremos demonstrar em nosso trabalho que a listagem e a descrição dos princípios


de direito urbanístico que foram veiculadas pela doutrina brasileira até o momento se
tornaram insuficientes, e que agora pode-se então enunciá-los e descrevê-los de maneira mais
ampla e ao mesmo tempo rigorosa, por força da configuração mais recente da legislação
infraconstitucional relacionada à política urbana.

Ressalvamos que tal insuficiência não se deve a falhas dos autores que nos
precederam, muito pelo contrário. É que trata-se de um momento novo para o ordenamento
jurídico brasileiro, o qual no futuro poderá de reconfigurar, inclusive.

Não se pretende, ainda no âmbito desse trabalho, realizar uma leitura da totalidade dos
componentes normativos que irão interferir na configuração final da politica urbana,
especialmente os locais (planos diretores, leis de uso e ocupação do solo, de parcelamento,
etc.) ou aqueles mais aparentados a outras disciplinas (desapropriação, tributos, etc.). Ao
contrário, nosso objetivo é tentar entender como eles articulam-se, ou deveriam articular-se,
no contexto de um sistema cujo resultado seja valioso e afinado com as finalidades do Estado
brasileiro, da maneira como estampadas no art. 3º da Constituição.

A esse sistema podemos denominar de direito urbanístico, face jurídica da política


urbana. Sendo assim, definimos abordagens essenciais a descrevê-lo e relacioná-lo com outros
sistemas normativos, bem como uma trajetória que julgamos adequada para compreendê-lo.

A primeira etapa, ou capítulo 2, é um desembarque no conceito de cidade e de região e


também de direito urbanístico, posicionando, da maneira que entendemos adequada, as
principais peças do quadro que configura a relação entre o Direito e o fenômeno urbano no
Brasil. Um possível conceito de política urbana e a apresentação do que denominamos de
campo do direito urbanístico são partes essenciais dessa trajetória, assim como uma
15

sistematização tanto dos dispositivos constitucionais quanto daqueles infraconstitucionais que


irão sustentar nossa visão do Direito na cidade. Portanto, além de apresentarmos
esquematicamente o texto do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), também o faremos
quanto à legislação de parcelamento do solo (Lei 6766/79) e de regularização fundiária e
urbanística (Lei 11.977/2009), saneamento básico (Leis 11.445/2007 e 12305/2010, esta
ultima especificamente tratando dos resíduos sólidos), mobilidade urbana (Lei 12.587/2012) e
proteção e defesa civil (Leis 12.608/2012 e 12.340/2010). Discutir as diversas percepções
acerca de função social da propriedade imóvel urbana e de função social da cidade é também
imprescindível, e terá início ainda nesse capítulo.

Em seguida, no capítulo 3, tentaremos estabelecer um panorama do planejamento


urbano, iniciando com alguns ajustes necessários na linguagem adotada, de forma a apresentar
tanto quanto possível certos conceitos que não são apriorísticos, especialmente para o Direito
(o próprio planejamento e suas relações com a economia e outras disciplinas, plano, projeto,
reforma urbana, etc.). Daí para frente, urbanismo será então tratado como um processo
histórico, e não uma concepção demarcada e estática no tempo ou no mundo das ideias.
Buscaremos as raízes da pretensão de se estabelecer a racionalidade na ordenação do espaço
urbano, no mundo e no Brasil, com as principais contribuições havidas nesse percurso, mas
também as falhas e desvios, encerrando com um quadro ligeiro das tendências mais
contemporâneas. O sentido dessa etapa é (i) realçar a necessidade de buscar insumos ao
estabelecimento definitivo de pontos comuns entre o urbanismo, ou o planejamento urbano, e
o Direito, sem os quais um e outro permanecerão estanques e até apartados em seus métodos e
linguagens, com consequências negativas à construção de alternativas para as cidades, e (ii)
compreender a origem e a consolidação de fenômenos indesejáveis que persistem no espaço
urbano, ora como passivos já fisicamente estabelecidos (exclusão socioterritorial, degradação
urbana e ambiental, vazios urbanos, “deseconomias” urbanas, etc.) ora como vetores que
inercialmente ainda atuam (a falta de participação e de diálogo entre técnicos e população, as
insuficiências da administração pública, a segregação, etc.) de grande complexidade quanto a
controlá-los e revertê-los.

Na sequência, a primeira metade do capítulo 4 irá avançar nesse quadro, mas agora
abordando os influxos mais recentes que pressionam a configuração (ou reconfiguração) das
cidades: as crises econômicas, os novos usos da tecnologia e a questão ambiental, os quais na
verdade permeiam todos os desafios que se apresentam para a sociedade e o Estado, e têm
16

transformado a ambos. Se lá (no capítulo anterior) ainda contaremos com o distanciamento


histórico, aqui só poderemos falar efetivamente em tendências e possibilidades, mas cuja
análise não pode ser adiada. Na segunda metade do mesmo capítulo, adentraremos então em
uma exposição das teorias acerca dos princípios no Direito e a relevância que podem ter na
estruturação e na interpretação de um sistema normativo. Será necessária a adoção de um
olhar crítico, entretanto, e até certo ponto pragmático, selecionando no âmbito do debate as
questões que mais de perto nos interessam. Com efeito, o caráter normogenético exercido
pelos princípios- naquilo que vincula especialmente o trabalho do legislador- tem especial
preocupação, mas não podemos negar que é no estudo acerca da interpretação e aplicação da
norma positivada que nasce e viceja a questão dos princípios. Assim, do possível esgotamento
(ou reformulação) do positivismo jurídico partiremos para as tentativas de sistematização
mais consagradas (Dworkin e Alexy, além de outros que daí prosseguiram) da noção de
princípios. A diferenciação entre princípios e regras- se do modo de aplicação, do
relacionamento normativo, do conteúdo axiológico ou outros- será tratada como um ensaio
para se exercitar técnicas de reconhecimento dos princípios, ou de normas que exerçam este
papel.

O capítulo 5 representa uma retomada de discussões que se iniciaram no capítulo 2,


mas agora em novo patamar. Nele então buscaremos apresentar mais detalhadamente o
sistema, ou o conjunto de “circuitos” que se estabelecem para que tenha forma o pano de
fundo jurídico no qual a politica urbana deve se desenvolver a fim de colaborar na
concretização das finalidades do Estado. Então, um olhar mais detido será posto sobre o plano
diretor e as diretrizes estabelecidas pelo art. 2º do Estatuto da Cidade, mas também daremos
retoques finais à configuração da função social da propriedade imóvel urbana e da função
social da cidade. Ainda será exposta uma resenha das construções teóricas já divulgadas do
que se considera até então como o rol de princípios de direito urbanístico, com seus
argumentos e implicações. Por fim, e a partir do acúmulo havido até então, ousaremos
descrever como se apresenta no atual estágio do direito brasileiro esse mesmo elenco de
princípios, e algumas razões de por que os consideramos como a melhor tradução dos
vínculos a que estão submetidos quem elabora e quem aplica a politica urbana no Brasil, e as
possibilidades (ordem urbanística) de fazê-los valer nos não poucos conflitos urbanos que
marcam a convivência dos grupos sociais nas cidades e regiões brasileiros.
17

Deliberadamente não faremos (ou apenas tangenciaremos) uma exposição mais


sistemática das competências constitucionais acerca do direito urbanístico; muitos autores já
deram cabo disso e com grande maestria2. Também nos acudiremos da doutrina jurídica
estrangeira ainda não traduzida para o português apenas em caráter ilustrativo e quando
necessária para os devidos contrapontos quanto à evolução do planejamento urbano e do
direito urbanístico no Brasil. De um lado, há um manancial mais do que suficiente de estudos
disponíveis em língua portuguesa, orginalmente concebidos ou nela vazados, para dar conta
de nossa tarefa; de outro lado, o direito urbanístico já se desenvolveu o suficiente em nosso
país para que as comparações sejam apenas, como dito, ilustrativas.

Mesmo que questões relacionadas à ocupação do solo urbano (conflitos de posse ou de


usos, limitações ao direito de propriedade, etc.) frequentem há muito o judiciário, o caráter
estipulativo de nossa pesquisa já denota que as decisões dos tribunais superiores orientadas
por princípios de direito urbanístico são raras. Quando presentes, entretanto, serão anotadas
no momento adequado.

Nosso referencial teórico não se resume à obra de um autor, unicamente desdobrando-


a ou criticando-a. Isso seria limitador, em face do problema colocado. Partiremos na verdade
de um conjunto de ideias críticas que são geralmente agrupadas sob a marca da “reforma
urbana”, conforme estas foram divulgadas por pensadores oriundos de outras disciplinas
(urbanismo, filosofia, geografia, sociologia e economia), estrangeiros (Henri Lefebvre,
Manoel Castells, Peter Hall e David Harvey) e brasileiros também com abordagem ampla
(Ermínia Maricato, Raquel Rolnick, Flávio Villaça, e, no Direito, Nelson Saule Junior, Edésio
Fernandes e outros). Nesse espectro incluímos ainda aqueles que, a seu tempo e por conta de
sua obra, ajudaram a promover a “crítica da crítica” do ideário da reforma urbana, como Mark
Gottdiener (no plano internacional), Maurício Lopes de Souza e Victor Carvalho Pinto (no
plano nacional).

Acreditamos, no início de nosso trabalho, que os princípios derivam de elementos que


perpassam e se afirmam, por vezes após anos de desenvolvimento, a partir da evolução
filosófica, política, econômica, muitas vezes científica (o que fica bem claro na relação
urbanismo e Direito) de uma comunidade. Positivados, tais princípios ingressam num sistema

2
José Afonso da SILVA (Direito urbanístico brasileiro) é a referência mais completa e adotada, mas há outros
também preciosos.
18

aberto (jurídico) e, portanto, ainda mantém laços estreitos com a realidade dinâmica de onde
vieram. Assim, reputamos que ouvir a opinião de pessoas das mais diversas origens e
formações (técnicos, pesquisadores, lideranças sociais, etc.) acerca da percepção que possuem
em relação a tais princípios, e de como os interpretam sob dadas circunstâncias, seria
metodologicamente tão importante quanto apontar a substância desses mesmos princípios por
força de ponderação. Não obstante, isso pode demonstrar igualmente aquelas que
consideramos as principais qualidades dos princípios: plasticidade e dinamismo.

Dessas qualidades é que emergem, ainda em nossa compreensão, sua força e


efetividade.
19

2. A CIDADE E O DIREITO.

Não foi por falta de leis e de planos que nossas


cidades tomaram o rumo que tomaram.
Ermínia Maricato

A análise da cidade enquanto objeto de estudo das ciências sociais (mas também, em
certa medida, daquelas físicas), e de significado para a sociedade contemporânea, transcende,
de muito, a mera perspectiva do crescimento populacional ou das migrações do campo para a
cidade. Assim, dizer que, em 2010, 84,35% da população brasileira morava em cidades (mais
de 160 milhões de pessoas)3 é um numero significativo, mas que por si só não explica muita
coisa, a começar pela definição do que seja uma “cidade”. Mesmo que respondida tal questão,
ainda é necessário aprofundar a busca por dados, no mais das vezes empíricos, constatando
que, por exemplo, cerca de 10% dessa população, ainda em 2010, morava em “ocupações”;
em outras palavras, áreas sobre as quais não possuíam qualquer título de domínio4 e portanto
foco de tensões inevitáveis. Outro dado aponta que aproximadamente 49%5 dos domicílios
não tinha acesso, em 2008, à rede pública de esgotamento sanitário, sendo que apenas os
esgotos de 30% do total de domicílios passavam por tratamento. Ou ainda que entre 2003 e
2007 diminuiu6 a mobilidade por transporte coletivo nas dez maiores cidades brasileiras, com
aumento de outros modais (motorizados ou não), o que aponta para um verdadeiro paradoxo.
Em suma, números e interpretações existem à profusão, o que só realça (i) a complexidade do
processo brasileiro de urbanização, (ii) a diversidade de interpretações possíveis de tais
números, e (iii) a necessidade imperiosa de diálogo entre as ciências, a fim de transformar
tais números em ações orientadas para as finalidades do Estado.

A cidade e o Direito são, ambos, produtos da cultura humana, há muito presentes na


sociedade. A aproximação intensa entre tais elementos, porém, é mais recente do que se
imagina. Além disso, nenhuma dessas realidades evoluiu de maneira retilínea. Ao contrário,

3
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1766, acesso em
05/09/2012.
4
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/aglomerados_subnormais/aglomerados_subnorm
ais_tab_brasil_zip.shtm, acesso em 05/09/2012.
5
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb2008/PNSB_2008.pdf, acesso em
05/09/2012
6
Maria Piedade MORAIS “et alii” (A Constituição brasileira de 1988 revisitada, p. 140-148).
20

mudanças cumulativas em ambas geraram novas escalas, por vezes de maneira incrivelmente
rápidas.

A cidade contemporânea é prenhe de desafios ao Direito, conforme este se estruturou


na modernidade. O que não se pode ignorar é quão o próprio Direito também molda as
cidades.

De forma direta, a legislação urbanística gera espaços mais ou menos valorizados, em


função do potencial construtivo, da acessibilidade e da proximidade de equipamentos
públicos. De forma indireta, pode facilitar ou, tragicamente, inviabilizar o acesso à terra
urbanizada, à moradia adequada, aos empregos, às condições de saúde, segurança e
salubridade7 no espaço urbano.

Essa análise, que por si só merece um estudo completo e crítico, especialmente da


sociologia urbana, passa por compreender o papel da legislação na produção do espaço
urbano e o impacto socioeconômico na distribuição espacial de atividades e populações8.

Vale então a lição de Tércio Sampaio Ferraz Junior quando, ao analisar a função social
da dogmática analítica, ensina que:

“Nas sociedades desenvolvidas e complexas, o sistema jurídico se constitui


como um sistema diferenciado, isto é, com caracteres próprios e auto-
regulado, mas que mantém com outros sistemas sociais (político, religioso,
econômico, etc.) relações de intercâmbio de informações.(...)Ao conceber o
sistema jurídico, enquanto um sistema social nos termos que acabamos de
descrever, na forma teórica de um sistema estático de relações jurídicas e
dinâmico de produção de normas, a dogmática confere às questões de
decidibilidade jurídica dos conflitos sociais um vetor explícito: do sistema
para o seu mundo circundante (isto é, os demais sistemas sociais). Importante

7
A legislação federal de parcelamento do solo se mostrou insuficiente para fazer frente à expansão urbana ao
longo das décadas de 80 e 90 do século XX, ao menos nas grandes cidades e quando considerada a população de
menor poder aquisitivo. Isso colaborou decisivamente para o aumento da ocupação por favelas e também
loteamentos clandestinos, ainda mais nas áreas ambientalmente sensíveis, como demonstra Ermínia
MARICATO (Metrópole na periferia do capitalismo, p. 47-49). No mesmo sentido, e com uma análise histórica
do problema, Maria Lúcia Refinetti MARTINS (Moradia e mananciais, p.54-63)
8
Como anotado, entre outros, por Edésio FERNANDES (“Direito do urbanismo”, p. 10.).
21

torna-se saber o que o sistema jurídico tem a dizer sobre as informações


recebidas dos outros, sem se preocupar com o desencadeamento de efeitos
sobre eles.”9

Tal relação, estreita e por vezes contraditória ou paradoxal, é elemento constante do


trabalho que ora se inicia.

2.1. Cidade, regiões metropolitanas e “redes de cidades”.10

O fenômeno urbano, mas principalmente a abordagem jurídica em relação à


ele, não comporta há muito a visão da “cidade” como um objeto isolado, qual seja, aquela
realidade quase colonial (ou medieval, se pensarmos na Europa) de um núcleo concentrador
de atividades comerciais, religiosas e politico-institucionais, rodeado de áreas rurais e com
estas se relacionando diretamente, dotado de um “centro” único para onde todos convergem, e
de habitação densificada, ao menos para os padrões seculares da produção agrária. Nossa
estrutura federativa acaba por reforçar certo senso comum acerca da questão urbana estanque,
posto a autonomia municipal, singular11 em relação à outros estados federais - e portanto uma
pretensa capacidade de dar conta por si só (sociedade e poder público municipal) do
“interesse local”.

Isso é insuficiente, com certeza. As forças que geram tendências no uso e


ocupação do solo urbano (e por consequência de outros setores a ele associados) são, em
graus variáveis, mas nunca desprezíveis, originadas externamente aos limites do Município,
tanto as positivas (recursos econômicos, dinamismo cultural) quanto negativas (passivos
ambientais, descontrole demográfico, etc.).

9
Introdução ao estudo do direito, p. 253, grifos no original.
10
Deliberadamente, não abordamos nesta etapa os consórcios públicos, previstos pela Constituição em seu
art.241, regulamentados pela Lei federal 11.207/2005 e pelo Decreto federal 6017/2007. Por um lado, o assunto
é deveras extenso e qualquer síntese apertada estaria fadada à incompletude, mas, sobretudo, consideramos que a
instituição do consórcio não se funda na necessidade de fazer frente a fenômenos próprios da urbanização, ainda
que possa ter tais realidades (planejamento e serviços urbanos) como objeto. De regra, o objetivo do
consorciamento é superar obstáculos financeiros e administrativos na consecução de competências federativas.
Da mesma forma passamos ao largo de associações voluntárias entre municípios para atuação no plano político
(Frente Nacional de Prefeitos-FNP, Confederação Nacional de Municípios-CNM, Mercocidades, etc.), por
razões semelhantes.
11
Evidente que, pela própria tendência de descentralização como técnica de governo, diversos outros
ordenamentos estipulam formas de poder local. Nos EUA, como anota Luiz Alfredo de Oliveira BARACHO 11
(Teoria geral do federalismo, p. 107), há uma miscelânea de escalas e modalidades de organizações políticas e
administrativas locais, por vezes se sobrepondo territorialmente. No entanto, alçado à condição de componente
da Federação, o caso do Município brasileiro é de fato singular.
22

A forma mais complexa, mas também integral, de tentar superar esse paradoxo
é (ou deveria ser) a institucionalização e regulamentação de Regiões Metropolitanas (RMs) e
seus assemelhados: aglomerações urbanas e microrregiões. Identificá-las e descrevê-las
fisicamente, num primeiro momento, não é tarefa das mais difíceis, sendo necessárias apenas
a conurbação entre as cidades de municípios limítrofes e a distribuição de atividades
complementares por toda essa mancha. Ou, como resume Clementina de Ambrosis, trata-se de
uma:

“(...) realidade social e econômica cujo centro dinâmico é a metrópole, polo


de atração (e/ou de dominação) de um grande espaço de produção e consumo,
e cuja manifestação é a intensa urbanização que dá origem a múltiplas funções
de interesse comum aos municípios limítrofes que a contém”.12

As RMs ingressaram na estrutura do Estado brasileiro entre o final da década


de 6013 e o inicio da de 70 do século passado, mas a trajetória inicial14 de sua gestão foi pífia,
senão desastrosa, posto que ineficaz, enquanto cresciam desordenadamente. E isso se deve,
fundamentalmente, ao fato de que a questão central não é a delimitação física, mas sim (i) a
identificação dos itens e da forma de entrelaçamento das funções de interesse comum, e, por
consequência, (ii) a determinação do ente que responderá por tais funções, e em qual
intensidade.

Eros Grau, escrevendo no início da década de 8015 é incisivo ao demonstrar


que, a par de insuficiências políticas e administrativas, ora por desprezo, ora por equívoco,
desde sempre a definição caso a caso do interesse metropolitano em face do interesse local

12
Regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, p. 167. Também José Afonso da SILVA
(Direito urbanístico brasileiro, p. 156) coloca acento na conurbação e na correlação profunda de funções entre
os territórios dentro da metrópole.
13
O Estado de São Paulo foi o pioneiro, ao criar a Região da Grande São Paulo, por decreto e em 1967, como
relata Daniela Cordeiro de FARIAS (Direito urbanístico e ambiental, p.233). A aparente inconstitucionalidade
dessa medida, em face da Constituição então vigente, acabou se tornando irrelevante por conta das medidas
subsequentes do governo federal.
14
As RMs foram previstas como formas de organização intermunicipal pela Constituição de 1969, em seu art.
169 (“A União, mediante lei complementar, poderá para a realização de serviços comuns, estabelecer regiões
metropolitanas, constituídas por municípios que, independentemente de sua vinculação administrativa, façam
parte da mesma comunidade sócioeconômica”), e as primeiras- São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto
Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belém e Fortaleza- criadas pelas leis complementares (federais) 14/73 e
20/74.
15
Regiões metropolitanas, sete anos depois, p. 97 a 101, portanto sob a realidade referida na nota anterior.
23

dos municípios (ou “peculiar interesse”, na dicção da Constituição revogada de 1969) esteve
na base das dificuldades de implementação efetiva das RMs. Uma competência enviesada,
portanto, que o autor busca superar com a ideia de “interesse interlocal”, ou metropolitano16,
atribuível à totalidade dos municípios inseridos, e também ao Estado federado, mas não se
resumido na competência deste.

Dizemos “desde sempre”, pois, a partir da Constituição de 1988, atribui-se aos


Estados federados (art. 25, §2º) a competência de estabelecimento das RM’s, assim como das
aglomerações urbanas e microrregiões. Estes, por sua vez, acabaram dando definições
díspares acerca de tais figuras, das quais as RMs é a que mais nos interessa. Tal diversidade é
muito bem descrita por José Afonso da Silva17, e na sequência da lição do renomado autor
exsurge18 o mesmo problema: afinal, o que são funções públicas de interesse comum- o que
vai além, portanto, de “serviços comuns”, expressão utilizada na Constituição de 1969- como
decorrência do interesse metropolitano referenciado por Eros Grau? E mais- acrescentaríamos
para bem colocar o problema no âmbito deste trabalho- quantas dessas funções estariam
contidas no objeto do direito urbanístico, e em que medida?

A mera enunciação em tipologias normativas (nas Constituição ou nas leis


complementares estaduais) não resolve o problema, ao menos na perspectiva do direito
urbanístico. Como assevera o mesmo José Afonso da Silva,

“O direito urbanístico não se satisfaz com esse formalismo que encobre a


realidade que fundamenta o estabelecimento de regiões metropolitanas, cujos
elementos estruturais há de ser apenas a existência de um conjunto de
Municípios limítrofes, porque isso não lhes dá qualquer conotação específica,
peculiar.”19

A par da conurbação, portanto, há uma realidade intrínseca, e que diferencia a


RM em relação à cidade circunscrita aos limites politico-administrativos municipais. Acerca
disso, anota Marcelo Lopes de Souza que:

16
Direito urbano, p. 41. Na mesma linha, e já sob a égide da Constituição de 1988, Alaor Caffé ALVES (Temas
de direito ambiental e urbanístico, p. 33).
17
Direito urbanístico brasileiro, p. 153-155.
18
Ibidem, p. 159-162.
19
Ibidem, p. 156.
24

“Embora seja impossível formalizar isso, parece existir um limite crítico,


atingível em algum momento ao longo do processo de crescimento da cidade e
de sua transformação em metrópole, cuja ultrapassagem deflagra uma nova
qualidade da ‘questão urbana’, originando novos estados, uma nova
complexidade, expressa através da fragmentação do tecido sociopolítico-
espacial da cidade e do fenômeno (cuja magnitude é habilmente exagerada e
cuja interpretação é quase sempre enviesada) da ingovernabilidade urbana”20.

Assim, se nos limites deste trabalho não podemos afirmar um conceito acabado
das “funções públicas de interesse comum”, ao menos é possível apontar o problema com que
se debate a gestão das RMs: a identificação de tais funções, na realidade concreta de cada
região, e a articulação necessária entre Estado federado e municípios para sua implementação.
Ninguém nega, seja no ambiente político ou acadêmico, a necessidade premente de se adotar
a RM como plataforma para soluções de problemas vários, para os quais o trato isolado pelos
municípios, é fadado ao fracasso E de fato, dentre as 40 RMs instituídas até o presente
momento, envolvendo 482 municípios, soluções as mais diversas de gestão foram adotadas 21,
e bem como todo tipo de rol das funções públicas de interesse comum se estabeleceu. Não há
um balanço positivo de tais soluções, infelizmente, mas apenas experiências pontualmente
exitosas. E é interessante ainda lembrar que um dos substitutivos ao Projeto de Lei que
acabou desaguando no Estatuto da Cidade trazia sim definições tanto de o que caracteriza
uma RM quanto diretrizes para sua implementação e estabelecimento das funções públicas de
interesse comum, a par de exigir a elaboração de planos diretores metropolitanos,
concatenado aos planos diretores locais2223.

20
O desafio metropolitano, p.31. Por “fragmentação do tecido sociopolítico-espacial”, adverte o autor em outra
passagem (p.216-220), entenda-se mais do que apenas segregação, e sim uma ocupação e uma relação dinâmica
entre pontos ou “nós” dentro do território. Esse conceito pode tanto se aplicar às classes abastadas (circuito
condomínio fechado-“shopping”-escola-trabalho, por exemplo) quanto ao tráfico de drogas (circuito usuário-
comunidade-“boca”-traficante), este ultimo estudado em detalhes na obra citada.
21
Dados coligidos por Andrea T. VIZZOTO (A região metropolitana como alternativa à organização
administrativa brasileira, p. 48-50), autora que também sistematiza a diversidade de estruturas instituídas. A
esse universo, Ronaldo Guimarães GOUVÊA acresce a observação (A questão metropolitana no Brasil, p. 234 e
ss.) de que muitas destas RMs sequer conurbação apresentam, dentre outros inúmeros fatores que desvirtuam o
instituto.
22
Conforme descreve Clementina de AMBROSIS, ibidem, p. 168-170. Acerca das propostas que redundaram na
Lei 10.257, vide item 2.6, “infra”.
23
Quando da conclusão deste trabalho, em 28/02/2013, formou-se maioria dos ministros do STF pela tese da
“gestão compartilhadas das RMs entre estado e municípios” (ADI 1842-RJ). Ainda que demande uma digressão
maior, à primeira vista isso pode redundar que em certos temas (dos quais o saneamento é o mais delicado),
25

2.1.1. “Redes de cidades” e a rede urbana no Brasil.24

É outro o panorama quando tratamos das “redes de cidades”, rótulo


multifacetado que compreende contextos também diferentes, onde a conurbação ou mesmo a
integração física não desempenha um papel tão relevante, mas mesmo assim processos
econômicos, políticos e sociais rebatem fortemente no uso e ocupação do solo.

As redes de cidades, de regra, constituem-se por força de políticas e


decisões tomadas em esferas diferentes das municipais, no mais das vezes econômicas e
ancoradas, também de regra, em questões de logística e mobilidade. É só imaginarmos as
possibilidades que se descortinam com obras como as dos trens de alta velocidade 25, o
incentivo ao escoamento da produção nas fronteiras agrícolas ou mesmo a instalação de novos
polos de extração de recursos naturais, que aquele processo pode então ser melhor percebido.

O que se observa, então, é que todo tipo de vetor, especialmente o


demográfico, opera no território municipal, sem que, entretanto, o poder público e a sociedade
municipal tenham qualquer (ou pouca) capacidade de sobre eles intervirem, ficando
dependentes de decisões nas esferas estadual ou federal, observada a origem da iniciativa.
Mais ainda: ficam à mercê das estratégias (quando existem) nacionais ou estaduais de
desenvolvimento territorial.

Talvez por isso, não se disseminou aqui, como na Europa e nos EUA, o
fenômeno da cidade-região, ou novo regionalismo, apresentado pioneiramente no Brasil por
Jeroen Klink26, onde os municípios que se identificam em problemas e vocações comuns
articulam-se, sobretudo, com grande grau de protagonismo econômico, mas também político.
A atuação do Estado nacional é decisiva para a emergência dessa relação, ainda segundo
Klink.

salvo se houver a oposição da totalidade dos municípios que integrem (compulsoriamente, ainda segundo a tese
majoritária no tribunal) a RM, ocorrerá a transferência do “interesse local” para a esfera do estado federado.
24
Para uma proposta completa de institucionalização da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, com a
articulação federativa visando um sistema nacional de cidades, ver Nelson SAULE JUNIOR (Direito
urbanístico, p. 83-183)
25
Como o que se prevê, quando da elaboração deste trabalho (2012), ligará as cidades de Campinas, São Paulo e
Rio de Janeiro.
26
A cidade região, p.15-45.
26

Ademais, excetuando obras e estratégias econômicas e sociais


específicas, e indo mais além nessa ótica de movimentos e ações do governo federal, todo o
conjunto de cidades que se espalham pelo território nacional pode também ser considerada em
ultima instância como uma grande rede- a rede urbana brasileira27.

Não é por acaso que José Afonso da Silva empreende um tão grande
esforço28 em definir o conteúdo de planos urbanísticos nacionais e estaduais, ciente do caráter
fundamental de tais dimensões. Com efeito, ele pinçou nos pífios resultados do planejamento
urbanístico no passado recente (décadas de 60 e 70) os fatos para demonstrar que a:

“(...) integração horizontal, no nível municipal, estará sempre fadada ao


fracasso, por carência de competência dos Municípios em matéria econômica
nos limites pretendidos. Essa integração dos aspectos físico-territoriais com os
econômicos e territoriais só cobrará êxito se se estruturar num sistema de
planejamento urbano global, em que também os aspectos físico-territoriais se
integrem com o econômico em sentido vertical-horizontal, ou seja, o
planejamento econômico e social no nível nacional estabeleça diretrizes de
desenvolvimento urbano (interurbano, ou seja, da rede urbana nacional),
como aspecto da politica de crescimento econômico e da melhoria da
qualidade de vida das populações (...). A carência de uma política urbana
nacional e de um sistema de planejamento urbano estrutural constituiu outro
fator do fracasso da concepção do plano diretor de desenvolvimento integrado
entre nós, e, por consequência, do planejamento urbanístico entre nós”29.

Como observa Milton Santos30, a territorialização do urbano no Brasil,


a partir da década de 50 do século XX, foi fortemente impulsionada por planos federais, e
ainda mais acelerada durante a segunda etapa do regime militar (1970-1985, sob as bases

27
Definir o que é uma “região” é tarefa mais complexa do que se pode imaginar. Além disso, é algo mutável,
bem assim as relações entre as regiões, as hierarquias e dependências mútuas, inclusive aquelas numa
perspectiva global, todas sujeitas às mudanças operadas por políticas econômicas do Estado nacional e também
por conveniências das grandes corporações econômicas. Uma síntese e também uma análise crítica dos critérios
adotados podem ser encontradas em Georges BENKO (Economia, espaço e globalização na aurora do século
XXI, p. 50-66).
28
Direito urbanístico brasileiro, p. 110 a 132.
29
Ibidem, p.101-102.
30
A urbanização brasileira, p. 27, dentre outras passagens.
27

especialmente do II Plano Nacional de Desenvolvimento-PND, de 1975 a 1979), bem


sintetizada na afirmação de que:

“a supressão, de fato, da federação, facilitou a concentração de recursos


fiscais em mãos do governo federal, que assim podia escolher livremente a
geografização dos equipamentos coletivos (...),As cidades são preparadas para
o projeto nacional, e o arranjo espacial muda para atender a esse projeto.”31

Na sequência, porém, o Estado nacional brasileiro reflui nessa


estratégia32 e sequer apõe outra no lugar, ao menos até o início dos anos 2000, como anotado
por Jeroen Klink 33.

Não vemos argumento para afirmar que a União cumpre seu papel,
inclusive naquilo que exigível na Constituição em seu art. 21 34, pelo simples fato de editar
normas gerais acerca dos temas como ocupação do solo, saneamento, habitação e mobilidade-
normas estas que examinaremos mais adiante.

Há de fato uma tendência centrípeta de nossa federação, para além dos


aspectos formais, mas no plano da concretização de funções, como anota Fernanda Dias
Menezes Almeida35. Tratar-se-ia, em verdade (enquanto também competência material36, e
não apenas legislativa) de orientar ações em caráter articulado e coerente com as necessidades
e problemas decorrentes da distribuição espacial das cidades e RMs, o que ainda é algo em
(re)construção37. Essa necessária coerência nos obriga a avançar sobre o conceito de políticas
públicas e política urbana.

31
Ibidem p. 107.
32
Uma boa síntese da tentativa de consolidação de uma politica de rede(s) urbana(s) entre 1975-1979 (II PND) e
os anos imediatamente anteriores e o progressivo abandono dessa pretensão nos posteriores, especialmente no
aspecto político/administrativo pode ser encontrado em Diana Meirelles da MOTTA “et alii” (A Constituição
brasileira de 1988 revisitada, p . 91-97)
33
Ibidem, p. 83-86.
34
“Art. 21. Compete á União:
(...) XX- instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes
urbanos.”
35
Competências na Constituição de 1988, p. 43.
36
O art. 23 da Constituição estabelece que “é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios: (...) IX- promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições
habitacionais e de saneamento básico”.
37
Observemos, por exemplo, a regra do art. 3º, §1º, III, da Lei 11.977/2009, que institui o Programa “Minha
Casa, Minha Vida”, estipulando como critério de priorização “a implementação, pelos Municípios, dos
instrumentos da Lei 10.257/2001 voltados ao controle da retenção das áreas urbanas em ociosidade”. O que
28

2.2. Política urbana (ou “de desenvolvimento urbano”): política pública?

A complexidade do fenômeno urbano, e também sua dimensão, exigem do


Direito respostas também diferenciadas. Portanto, torna-se imperioso refletir acerca das
mudanças das formas de atuação do Estado, ainda mais no contexto brasileiro, surgidas ou ao
menos aprofundadas em anos mais recentes. E, dentre tais mudanças, a que mais nos interessa
é a exigência (ou a ampliação dela) dde que a ação governamental se dê por via de políticas
públicas. Ou, como bem anota Fabio Konder Comparato38, prever e prover o futuro se tornou
tarefa indispensável de todo e qualquer governo, pela complexidade mesma da sociedade
contemporânea em seus variados aspectos, social, econômico e tecnológico. Seja qual for o
matiz ideológico, o estado contemporâneo passou de um “government by law” para um
“government by polices”39. E vai além o renomado professor paulista: aponta como
inafastável das políticas públicas a prática do planejamento, e ainda propõe uma nova forma
de tripartição de poderes- diversa da original sistematizada por Montesquieu sob a ideia da
prevalência da lei- destacando a função de planejamento das demais.

Ninguém no Brasil, entretanto, avançou tanto na análise jurídica de políticas


públicas- seu papel catalisador nas mudanças do Estado e do Direito contemporâneos- do que
Maria Paula Dallari Bucci, partindo da definição de que:

“Políticas públicas são programas de ação governamental visando a


coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a
realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.
(...) Adotar a concepção das políticas públicas em direito consiste em aceitar
um grau maior de interpenetração entre as esferas jurídica e política ou, em
outras palavras, assumir a comunicação que há entre os dois subsistemas,
(,,,)”40.

deveria exemplo maior de integração entre as ações do governo federal e o controle do uso do solo municipal, é
solenemente ignorado na regulamentação levada a termo pelo Executivo federal
(http://www.cidades.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=859:legislacao-geral-
pmcmv&catid=94&Itemid=126, consultado em 08/11/2012) daquele que é, sem dúvida, o maior programa
habitacional das ultimas décadas.
38
Planejar o desenvolvimento, p.30-32.
39
Ibidem, p. 29.
40
Direito administrativo e políticas públicas, p. 241, com grifos nossos. Entretanto, reconhece mais adiante (p.
251) que “política pública é uma locução polissêmica cuja conceituação só pode ser estipulativa”.
29

Não são poucos os riscos dessa interpenetração, sublinha a autora. Além disso,
políticas públicas só são de fato alternativa de abordagem à luz de uma discussão e também
de ação sobre o papel do Estado contemporâneo, como ela própria adverte41. Entretanto, o
modelo de governo por políticas públicas não exclui a legalidade, antes convive com ela, e,
sobretudo, o que consideramos relevante, “a política pública transcende os instrumentos do
plano ou do programa”42. Portanto, a política pública pode ser vista, agora sim, como um
processo, com efeitos perceptíveis na delimitação da discricionariedade dos poderes públicos,
e por consequência, numa mais ampla participação (e controle) da sociedade em face da ação
estatal.

E, como todo processo que envolva o Estado, o elemento finalidade nos parece
essencial.

Por outro lado, nem todos os modelos e teorias que buscam explicar como são
selecionados os objetivos que integram as politicas públicas enfatizam o conteúdo de tais
finalidades, privilegiando, em sua maioria, aspectos como a estrutura governamental, a análise
econômica dos resultados, o processo politico, a inter-relação com outras politicas, etc43.

Governar por politicas, assim, é governar objetivando as finalidades


preconizadas para o Estado, “in casu”, o brasileiro. Portanto, o mérito tanto dos objetivos
(tendo as finalidades como baliza) quanto dos arranjos pode ser aferível e contestado, no
aspecto politico e, quiçá, jurídico e jurisdicional44. Em resumo, não há política pública, “de
per si”45, mas apenas quando ela estiver conforme os ditames constitucionais, especialmente
quanto ao valor (ou não) das finalidades perseguidas e das estruturas adotadas. E, igualmente,
não há política pública, por mais complexa e delicada quanto aos temas que aborda, que não

41
Ibidem, p. 245 e ss.
42
Ibidem, p. 259. No mesmo sentido, Maria Goretti DAL BOSCO (Discricionariedade em politicas públicas, p.
246-247)
43
Jean Carlos DIAS. (O controle judicial de politicas públicas, p. 44-48) sistematiza nove modelos teóricos e
analisa seus elementos principais, inferindo a conclusão que descrevemos.
44
Não falta quem defenda que qualquer ação governamental ou administrativa seja enquadrada como “politica
pública”, escorado normalmente em Eros Grau (O direito posto e o direito pressuposto, p. 25-29). Uma leitura
atenta da lição do renomado mestre, entretanto, mostra que ele justamente afirma as transformações em curso, do
caráter meramente estrutural para o conjuntural, e portanto dinâmico, da norma jurídica, ou seja, em suas
palavras, “o direito é ele também uma política pública”.
45
Certos equívocos podem decorrer do fato de que nos EUA o termo “policy” (plural “policies”) é empregado
para designar toda ação pública, por isso, inclusive, sem a expressão “public”. Mas se trata de outro modelo, que
não podemos comparar neste curto espaço de digressão.
30

possa se sujeitar ao controle social, ou no mínimo que não deva estar condicionada à
publicidade quanto às suas ações e resultados aferidos.

Um bom exemplo da compreensão de política pública como de caráter


essencialmente dinâmico pode ser encontrado na própria sistemática constitucional acerca das
competências municipais46 quanto ao ao espaço urbano. Isso porque, de um lado encontramos
o art. 30, VIII, que trata das competências dos municípios (“promover, no que couber,
adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso do solo, do
parcelamento e da ocupação do solo urbano"), e, de outro, o art. 182, “caput” (“A política de
desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais
fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes”). Esse contraponto nos leva a perguntar:
tratar-se-iam de competências que se somam? Ou expressões diferentes do mesmo poder-
dever estatal, considerando que do complexo processo constituinte originário inevitavelmente
restam algumas imperfeições técnicas na elaboração da norma, e então dar relevo a tais
imperfeições não é bom caminho para uma interpretação ótima?

Queremos crer que se trata de uma mesma função, porém expressa sob
dimensões diferentes. Uma delas (o art. 30, inciso VIII) com maior acento na legislação
(zoneamento, estética urbana, códigos de obras, etc.) e na realização de ações pontuais,
mesmo que embutidas em planos (como sistemas viários, equipamentos comunitários, etc);
ademais, expressando competência privativa do Município. A outra (o art. 182, “caput”), de
maior alcance temporal e envolvendo todos os entes federativos-ainda que realçado o papel do
Município em sua execução, e podendo mesmo desbordar-se em alguns aspectos da lei e dos
planos (mas jamais do Direito)- implica em “uma estratégia de mudança no sentido de obter
a melhoria da qualidade de vida da comunidade local", conforme as palavras de José Afonso
da Silva47.

46
Não estamos, nem remotamente, afirmando que política urbana é competência exclusiva dos municípios. As
questões apontadas no item anterior, e também dispositivos constitucionais e legais, já seriam suficientes para
excluir tal possibilidade, mas voltaremos ao tema das responsabilidades quanto a politica urbana mais adiante.
47
Direito urbanístico brasileiro, p. 124. Em verdade, a expressão é utilizada pelo autor ao se referir aos
objetivos gerais do plano diretor, mas isso não invalida o raciocínio. Ele também coloca a politica urbana e o
desenvolvimento urbano como sinônimos, e, portanto, o plano diretor como seu principal veículo.
31

Todavia, sem a "ordenação da cidade" não há "desenvolvimento". Uma é


corolário do outro, de maneira reflexa. Até por isso, é impossível encartá-los distintamente
num quadro de competências dos entes federativos.

2.2.1. Um conceito de política urbana

Transpor o quadro relatado acima para um possível conceito de política


urbana não é tarefa tão simples.

No plano internacional da pesquisa urbana, Manoel Castells realça a


importância desse estudo quando afirma que

“o coração da análise sociológica da questão urbana está no estudo da


politica urbana, quer dizer, da articulação específica dos processos
designados como ‘urbanos’ com o campo da luta de classes e, por conseguinte,
com a intervenção da instância política (aparatos do Estado)- objeto, centro e
alvo da luta política”.48

Em seguida, o mesmo autor estabelece49 o que denomina de campo e


instrumentos teóricos da definição de política urbana. Privilegiando o localismo, no sentido de
se tratar precipuamente de um processo envolvendo a comunidade municipal, acaba por
entender que a política urbana se configura na relação entre a planificação e os grupos
(movimentos, em verdade) sociais.

De seu turno, Jean Lojkine50 critica vivamente essa definição, posto


entender que, nos países desenvolvidos, o urbanismo que se observa é uma constante
distorção entre planos e práticas51, e sobretudo,- o que nos parece essencial, e Lojkine escande
dados empíricos para sustentar essa posição- dependente de decisões e ações para além do
local. Assim, a politica urbana seria um produto de contradições urbanas, composto de três
dimensões, (i) uma planificadora, mas também (ii) uma operacional, de práticas reais pelas

48
A questão urbana, p. 297.
49
Ibidem, p. 302 e ss.
50
O estado capitalista e a questão urbana, p. 197-241, grifos no original.
51
Teremos a oportunidade de verificar esse fato também no desenvolvimento urbano brasileiro, mais adiante. Ao
senso comum, não deixa de causar espécie tal diagnóstico, em se tratando de um país europeu- a França.
32

quais os entes estatais intervém jurídica e financeiramente no espaço e (iii) uma urbanística
em sentido estrito, de medição dos efeitos das duas anteriores. Assim, o autor anota que:

“A hipótese que formulamos de uma política urbana coerente não remete


portanto nem à suposta existência de uma ‘vontade’ (que seria o poder do
Estado ou de um indivíduo) ou de uma decisão, nem a de um ‘projeto’
materializado por um plano e realizado por um conjunto de práticas estatais
coercitivas. A unidade e a coerência-supostas-residem, para nós, nos efeitos
do par plano/operações de urbanismo sobre o conjunto da organização social
do espaço. (...)Pode de fato acontecer que os agentes do poder do Estado não
tenham nenhuma consciência da politica urbana real que eles ajudam a pôr
em funcionamento.”52

Entretanto, como observa Victor Carvalho Pinto a Constituição


brasileira “talvez seja a única a tratar da política urbana”53; portanto, é nos seus marcos que
devemos nos referenciar54. Indo mais além, nosso ordenamento infraconstitucional estabelece
as diretrizes de tal política, o que será objeto de análise no momento oportuno.

O próprio autor tem uma posição mais objetiva quanto à definição de


política urbana. Com efeito, a conceitua como:

“o setor da atuação do Estado que trata da ordenação do território das


cidades, mediante alocação do recurso ‘espaço’ entre os diversos usos que o
disputam (...) A politica urbana constitui um conjunto de ações que pode ser
descrito e compreendido, enquanto o urbanismo apresenta-se como um

52
Ibidem, p. 207, com grifos nossos. A crítica à Castells em face de seu pretenso “localismo” nos parece
exagerada. Este de fato reconhece (A questão urbana, p. 315) que outras escalas do aparato estatal interferem, e
muito, na planificação, e também de que muitas lutas reivindicatórias ocorrem fora do campo institucional, mas,
pelo método que adota (análise empírica de planos e sua relação com os movimentos sociais), acaba por não
desbordar do conceito formulado, quando o desenvolve.
53
Direito urbanístico, p. 104.
54
“Capítulo II- Da Política Urbana
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes
gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir
o bem-estar de seus habitantes.
§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil
habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.(...). Os grifos são
nossos, e estão a denotar que, apesar de nomenclaturas diferentes, é do mesmo objeto- a política urbana,
encimando o capítulo- que estamos a tratar.
33

conjunto de técnicas que podem ou não ser empregadas na prática. (...) Os


dois grandes campos de atuação da politica urbana são a localização dos
equipamentos públicos e a regulamentação da construção civil”.55

Também neste sentido Carlos Ari Sundfeld56, realçando, igualmente, a


necessária coordenação do uso do solo com o que seriam, em sua opinião, outras politicas
(habitação, transporte, saneamento).

Mesmo tendo a qualidade inegável de afastar uma série imensa de ações


do poder público que ocorrem no ambiente urbano, mas sem dele depender ou sobre ele
influir de forma estratégica (política macroeconômica, seguridade social, educação, ciência e
tecnologia, etc.), os enquadramentos propostos acabam, na prática, por não agregar e integrar
efetivamente outras temáticas, que decorrem do uso e ocupação do solo (por exemplo, a
mobilidade ou a preservação do patrimônio cultural) ou nele impactam (por exemplo o
saneamento e a prevenção de acidentes naturais). Mais do que isso, entretanto, não fica claro
que a política pública compreende também, como anota Maria Paula Dallari Bucci57 e
comentamos no item anterior, uma finalidade de interesse público, aferível e objeto de disputa
em sua definição- ou, na dicção constitucional, “ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes”58.

Ordenar o uso do solo- índices urbanísticos, zoneamento, etc.- por si só


e sem uma opção política e outra estratégica, é insuficiente. Entretanto, não deixa de ser
saudável apontar no mínimo a centralidade do uso do solo para a política urbana. A
experiência dos planos diretores municipais absolutamente ineficazes e inoperantes das
décadas de 60 e 7059, levados a isso justamente por desbordar e muito do uso do solo, são
exemplo gritante da flexibilização excessiva, e por isso perniciosa, do conceito de política
urbana.

55
Direito urbanístico, p. 44-45. O autor guarda a expressão “desenvolvimento urbano” para denominar outras
politicas em interlocução com o urbano, como as de habitação, saneamento, transporte e trânsito. Ressalte-se
outrossim, que sua metodologia de abordagem tem um viés de análise econômica, onde então se justifica esse
conceito, para nós restrito.
56
O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais, p. 48-50.
57
Ibidem, p. 265.
58
Art. 182, caput.
59
Tendo por grande paradigma o PDDI- Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da capital paulista, em
1971.
34

Bruno de Souza Vichi aparentemente comunga de nosso


entendimento , ainda que enfatize mais a relação entre urbanismo e finanças públicas 61.
60

Mesmo assim realça um tratamento sistemático do campo da política urbana-“stricto sensu”-


em face de outros elementos que não só o uso do solo. Também Odete Medauar 62 irá fazer
coincidir as expressões política urbana e política de desenvolvimento urbano, e por via de
consequência (interpretação sistemática do art. 21, inciso XX63, com o art. 182, “caput”,
ambos da Constituição) vislumbra seu conteúdo como para além da ordenação do território,
chegando às ações e serviços públicos típicos do espaço urbano.

É por isso que preferimos um conceito de política urbana como o


conjunto de ações governamentais, planos e normas de regulação ou repercussão imediata no
espaço territorial urbano, articulados entre si e vinculados a um objetivo de interesse público
relacionado à transformação do ambiente urbano na busca da melhora da qualidade de vida
dos habitantes da cidade e da concretização dos direitos fundamentais.

Defendemos então uma noção de politica urbana mais ampla do que


ordenação territorial, esta sim de caráter essencialmente físico-territorial e polarizadora dos
demais elementos ditos “setoriais” (habitação, saneamento, mobilidade, etc.). Nessa opção, a
organização administrativa (criação ou não de ministérios e outros órgãos, alocação ou não de
recursos em fundos, etc.) também exerce um papel fundamental e pode ser analisada
contextualmente.

O papel primordial do direito urbanístico na concepção e execução da


política urbana será analisado a seguir.

2.3. Direito urbanístico em evolução.

Se o fenômeno urbano e suas implicações culturais, econômicas e culturais


ainda são capazes de causar perplexidade aos mais habilitados pesquisadores, também o

60
Política urbana, p. 179-188 e 216.
61
Ibidem, p. 188-199.
62
A força vinculante das diretrizes da politica urbana, p. 17.
63
Vide nota 31, “supra”.O fato deste dispositivo tradicionalmente ser encartado entre as competências materiais
da União não parece ser o ponto mais relevante para afastar um (o “desenvolvimento urbano” do art. 21) de
outro (a “política de desenvolvimento urbano” do art. 182.)
35

direito urbanístico constantemente se vê como objeto de remodelação e reflexão, quanto a seu


objeto e institutos.

A abordagem jurídico-sistemática das questões urbanas teve início já no final


dos anos 30, na Itália64, mas é logo no pós-guerra que se dissemina na Europa como foco de
atenção da ciência jurídica, em face da proliferação de grandes sistemas nacionais de
planejamento urbano (Inglaterra e Suécia-1947, França e Alemanha-década de 50) e normas
nacionais de urbanismo (Inglaterra- 1947, com reformulações em 1953, 1958 e 1990;
Espanha- 1956 e reformulada em 1975, 1992 e 1998; Itália-1942, reformulada em 1967 e
1977; França-1954, com alterações importantes em 1967 e entre 1983-85 e 1995; Alemanha-
1960; Portugal-um pouco adiante, em 1970)65. Já nas décadas de 70 e 80, é a vez dos países
latino-americanos (Venezuela, Chile Argentina, Colômbia, México) e de outros continentes
formularem sua legislação respectiva.

Analisando esse movimento sob a ótica europeia, observa-se que em comum


aqueles países apontam para a forma de Estado Unitário- exceção feita à Alemanha, mas onde
os entes locais não são autônomos- e também para a ênfase no planejamento hierarquicamente
construído, partindo do regional66, passando pela cidade e chegando aos bairros, em graus
progressivos de concretude, mas sempre vinculados, em ultima instância, à autoridade
nacional. Por força da função social da propriedade, (regra constitucional naqueles países),
são tais planos que estipulam integralmente o direito de aproveitamento do solo, donde a
marca do direito de propriedade como um direito planejado. A Inglaterra foge um pouco a
esse modelo, na medida em que, a par de diretrizes gerais, a decisão acerca do uso do solo e

64
Conf. Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO (Introdução ao direito ecológico e ao direito urbanístico, p. 50-
51).
65
As alterações constantes de certos ordenamentos estrangeiros são reflexos de falhas ou atualizações
necessárias, a reboque de mudanças estruturais da economia e das sociedades correspondentes. No caso
espanhol, os primeiros vinte anos (1956-1976) da “Ley del Suelo” foram diagnosticados como de grandes
insuficiências (conf. Luciano Parejo ALFONSO, Derecho urbanístico, p. 49-55), e mesmo as modificações
posteriores a 1998 (ensejadas pela declaração de inconstitucionalidade quanto a um excessivo controle pelo
governo central em face dos governos autônomos, decorrente da legislação em vigor) abriram as portas para a
expansão descontrolada dos limites urbanizáveis. Para Alvaro Sànchez Bravo, professor da Universidad de
Sevilla (em relato pessoal no 1º Encontro Internacional de Ambiente Urbano-ENINTAU, de 29 a 31 de maio de
2012, na PUC-SP) essa excessiva flexibilização deu as bases para a “bolha imobiliária” espanhola, poucos anos
depois e com consequências funestas à economia e ao meio ambiente espanhol. No caso francês, a necessidade
de financiar o desenvolvimento urbano e garantir maior efetividade aos planos, por via de descentralização
administrativa (conf. JACQUOT e PRIET, Droit de l’urbanisme, p.31-40) foram o “leitmotiv” das
transformações. Em suma, adotar-se os ordenamentos estrangeiros como paradigma para uma análise crítica dos
problemas da política urbana brasileira está longe de ser uma opção única ou principal, posto que também prenhe
de insuficiências.
66
Cuja elaboração não foi regra, como se imaginaria, anota Victor Carvalho PINTO (ibidem, p. 79).
36

de sua intensidade é tomada caso a caso, pela administração pública. Entretanto, isso ocorre
em contexto de ampla possibilidade de discussão técnica, obedecendo de fato ao “due process
of law”, e em ambiente de um serviço público extremamente capacitado e apartado das
ingerências políticas, como descreve Victor Carvalho Pinto67.

Atravessando o Atlântico, Marcelo Lopes de Souza68 e Victor Carvalho Pinto69


demonstram que os EUA jamais chegaram a desenvolver um sistema unificado de
planejamento, mas cada estado estabeleceu suas regras. Entretanto, este ultimo70 tece
interessante análise, mostrando como certa padronização acabou de fato constituindo-se, mas
centrado no instituto do zoneamento e suas possíveis derrogações. A mais completa análise do
planejamento urbano nos EUA, inclusive das políticas “setoriais” (habitação, transporte,
proteção ao patrimônio histórico, etc.) é desenvolvida por Cullingworth e Caves 71. Naquele
país, e em decorrência de seu específico federalismo, o governo central atuou fortemente na
configuração urbana via outras políticas que não a de vincular diretamente as diretrizes do
planejamento urbanístico72.

2.3.1. Direito urbanístico no Brasil.

O estudo do direito urbanístico aporta no Brasil na década de 70 do


século passado, sem (i) uma lei nacional sobre urbanismo e planejamento urbano ou (ii)
estruturas administrativas consolidadas, em que pese já certa experiência com planos
urbanísticos municipais, de resultados questionáveis, entretanto73. Some-se a isso frágeis
regulamentação e compreensão do princípio da função social da propriedade, por força
inclusive da herança patrimonialista brasileira, com consequências negativas a uma cultura do

67
Ibidem, p. 93.
68
Mudar a cidade, p. 124.
69
Direito urbanístico, p. 78.
70
Ibidem, p. 83-89.
71
“Planning in the USA, passim.
72
Mas houve sim, por parte das agências federais, uma diretriz de estudos e desenvolvimento de ferramentas,
induzindo a consolidação de certos parâmetros, cujo marco principal foi o “The standard state zoning enabling
act”, já na década de 1930, conforme relatam os próprios autores (ibidem, p. 70-71). Não obstante, e ainda na
trilha de CULLINGWORTH e CAVES, observamos que a política ambiental é federalizada em diversos
aspectos (ibidem, p. 320 e ss.), como o das áreas de preservação e dos recursos hídricos. Por fim, nos EUA o
planejamento urbano teve vários momentos de “judicialização” dos debates sobre as limitações ao direito de
propriedade, daí decorrendo uma sequência longa de “lead-cases” (ibidem, p. 20, 66-67, 72-74, 87, etc.).
73
O que apontaremos no item 3.4.1, “infra”.
37

planejamento74, e podemos talvez então perceber os desafios que se apresentavam aos


primeiros comentadores.

Respeitadas as contribuições anteriores, como as obras de Hely Lopes


Meirelles (dentre elas Direito de construir, de 1961, e Direito municipal brasileiro, de 1964),
que discutiam a ordenação das cidades, mas quase exclusivamente sobre o prisma das
limitações urbanísticas, temos como marco fundamental Introdução ao direito ecológico e ao
direito urbanístico, de Diogo de Figueiredo Moreira, em 1975 e de notável modernidade, até
hoje. A ela se seguiram artigos em publicações variadas (muitos deles motivados pela
tramitação do Projeto de Lei 775/83, a primeira propositura de norma urbanística nacional),
cursos (tendo como vanguarda o Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal-
CEPAM, em São Paulo, e o Instituto Brasileiro de Administração Municipal- IBAM, no Rio
de Janeiro), estudos e manifestos (como a célebre “Carta do Embu”, preconizando a separação
entre direito de propriedade e direito de construir). Outras obras do período são também
marcantes, como Disciplina urbanística da propriedade, de Lucia Valle Figueiredo (1980);
Elementos de direito urbanístico, de Pedro de Milanelo Piovezane (1981); Desapropriações
para fins urbanísticos, de Adilson Abreu Dallari (1981); Direito do urbanismo, organizado
por Álvaro Pessoa (1981) também com certos capítulos ainda de grande atualidade e Direito
urbano, de Eros Grau (1983). Um fato primordial foi a primeira edição (1982) de Direito
urbanístico brasileiro, de José Afonso da Silva, até hoje referência básica nos estudos sobre
direito urbanístico, e o inicio do programa de pós-graduação em direito urbanístico da
Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, também em 198275.

Essa primeira fase do direito urbanístico brasileiro foi marcada pela


influência da doutrina estrangeira, especialmente italiana, francesa e espanhola, decorrente da
normatização anotada nos parágrafos anteriores e também da maior identidade com o direito
administrativo europeu-continental, ou seja, com grande atenção a temas como o sentido da
função social da propriedade, a vinculação decorrente dos planos urbanísticos, a natureza de
institutos diversos, relacionados às limitações urbanísticas (zoneamento, tombamento, etc.),
mas também outros mais específicos aos problemas do ordenamento brasileiro (regiões

74
Pedro de Milanelo PIOVEZANE (Elementos de direito urbanístico, p.19) comenta os embates pró e contra o
planejamento econômico na década de 40, de forma a inferir tal resistência.
75
Sem esquecer a introdução da disciplina de direito urbanístico no programa de pós-graduação da Faculdade de
Direito da USP, já em 1976.
38

metropolitanas e competências federativas), e em especial a questão da autonomia do direito


urbanístico.

A partir da década de 80, mas, sobretudo, da de 90, a par do avanço dos


estudos sob as bases anteriores, uma nova linha afirmou-se.

A Constituição de 1988, com a inserção do já citado capítulo da


reforma urbana, e a “práxis” de governos locais e organizações não governamentais
empenhados em viabilizar a regularização fundiária e urbanística das comunidades excluídas
no âmbito socioespacial (favelas, loteamentos irregulares e clandestinos, cortiços) acabou
ampliando e diversificando a produção do direito urbanístico. Assim, não só o direito à
moradia adequada76assume assim um papel primordial, mas também a reflexão acerca da
função social da propriedade ganha novos contornos.

Em certa medida, portanto, o direito urbanístico no Brasil acaba


rompendo (ou agregando novos elementos) com o paradigma europeu-continental, e também
compartilhando uma evolução comum a ambos, especialmente pela intersecção entre o direito
urbanístico e o ambiental77. Deste período (que não sucedeu simplesmente ao anterior,
reiteramos, mas o diversificou) destacam-se autores ainda na ativa, como Edésio Fernandes
(Direito urbanístico-1997; Direito urbanístico e política urbana no Brasil- 2000) e Nelson
Saule Junior (Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro- 1997; Direito à cidade-
1999) como referências obrigatórias78, mas também se intensificou o diálogo com

76
O direito à moradia foi explicitado, por força da Emenda Constitucional (EC) 26/2000, no art. 6º, “caput”, da
Constituição. Seu núcleo básico compreende viver com segurança, paz e dignidade. Trata-se de um direito
indivisível, interdependente e inter-relacionado com os demais direitos humanos (vida, igualdade, saúde, etc.) e
implica (i) segurança jurídica da posse, (ii) disponibilidade de serviços de infraestrutura, (iii) custo acessível, (iv)
salubridade, (v) acessibilidade a grupos vulneráveis,(vi) inserção que permita o acesso ao emprego, transporte
público, educação, cultura e lazer, e (vi) respeito aos padrões culturais dos grupos sociais e culturais. Tudo isso é
inferido por Nelson SAULE JUNIOR. (A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares, p. 132 a
139), a partir de Declarações e Convenções internacionais que versam sobre os direitos humanos, especialmente
da “Agenda Habitat”, documento adotado pela Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos-
Habitat II, realizada em Istambul (junho de 1996).
77
Neste sentido, Henri JACQUOT e François PRIET (Droit de l’urbanisme, p. 13-16).
78
A prática comum de obras organizadas ou coordenadas, integrando a reflexão jurídica àquela urbanística em
sentido amplo (geografia, economia, ciência política, além do urbanismo em sentido estrito) faz com que seja
impossível elencar todos os autores e a produção dessa linhagem. Não podemos esquecer, porém e igualmente,
de Joaquim Falcão (“Invasões urbanas”- 1984, com análises inovadoras de Boaventura de Souza Santos, Tércio
Sampaio e outros). Esse período marcou também um aumento expressivo de artigos e ensaios em periódicos de
divulgação científica já consolidados, e o surgimento de outros dedicados especificamente ao direito urbanístico.
No ano de 2000, em Belo Horizonte-MG, ocorreu o I Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico, que se repete
até o presente (a 6ª edição teve lugar em Brasilia-DF, no final de 2010).
39

pesquisadores e autores de outras áreas (urbanismo, economia, geografia), posto que uma
linguagem comum começou a se desenvolver, deixando o jurista de ser apenas um
“consultor” na elaboração de planos e projetos.

Por fim, a promulgação da Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) insere


em definitivo o direito urbanístico na agenda científica do direito brasileiro.

2.3.2. A autonomia do direito urbanístico: um problema superado?

Como anotado no item acima, a questão da pretensa autonomia do


direito urbanístico, enquanto campo de pesquisa e aplicação do Direito, demandou uma
reflexão considerável de diversos autores em sua fase de afirmação, mas também
posteriormente. Com certeza, dessa discussão pode decorrer a admissibilidade-ou não- de
certos princípios e também a definição do instrumental adequado para a interpretação de
normas que regulam a cidade. De qualquer forma, é um mero ponto de partida, e restringir-se
a ele significa privilegiar o formal em detrimento do material, como bem anota Edésio
Fernandes79, empobrecendo o debate e fortalecendo uma visão acrítica do próprio Direito.

Essa discussão remonta à própria emergência do direito urbanístico no


Brasil , mas a pauta de reflexão foi dada por José Afonso da Silva81, em grande esforço de
80

sistematização doutrinária, quando separa a autonomia didática- decorrente de um conjunto


homogêneo de normas- da autonomia científica- com o desenvolvimento de institutos e
princípios próprios. O próprio Silva não afirma que a segunda tenha se configurado no direito
brasileiro, mantendo a posição (“prudente”, em suas palavras82) de uma “disciplina de
síntese”.

De regra, outros autores que debateram o tema costumam colocar o


direito urbanístico enquanto um peculiar desenvolvimento do direito administrativo, e ainda
assim com grandes ressalvas. Toshio Mukai, por exemplo83, trata o primeiro como

79
“Direito do urbanismo”, p. 8.
80
Com Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO encartando (Introdução do direito ecológico e ao direito
urbanístico, p. 58) o direito urbanístico naquilo que à época denominou de “direito ecológico”, este ainda longe
de caracterizar o direito ambiental como hoje estruturado no Brasil e no mundo.
81
Direito urbanístico brasileiro, p. 38-44.
82
Ibidem, p. 44.
83
Direito urbano-ambiental brasileiro, p. 22.
40

“especialização técnico-funcional do direito administrativo”; Victor Carvalho Pinto vai mais


além quando declara que:

“A afirmação da autonomia do direito urbanístico deve-se à necessidade de


suspender, em alguma medida, a aplicação dos paradigmas gerais do direito
administrativo à política urbana. Esta só é viável mediante uma interpretação
extensiva dos institutos tradicionais, que chega a deformá-los, e não produz
efeitos satisfatórios.O direito urbanístico pode ser considerado um
‘laboratório’, em que novos princípios e institutos estão sendo gerados.
Poderão alguns desses conceitos ser generalizados para o direito
administrativo como um todo? É cedo para dizer, mas trata-se de uma hipótese
que não pode ser descartada”.84

Para Lúcia Valle Figueiredo85, esse descompasso do direito urbanístico


em relação ao direito administrativo é resultado do anacronismo, neste, do conceito de poder
de polícia, insuficiente para expressar a disciplina da propriedade imóvel urbana, decorrente,
em verdade, das disposições constitucionais pertinentes à sua função social.

Entretanto, seria a pauta (“supra”) de Silva a única aceitável (e mesmo


operacional) para podermos denominar certo sistema de normas e princípios como direito
urbanístico? Precisaríamos efetivamente buscar premissas e conceitos epistemológicos para
tanto? Isso é de fato positivo à ciência do direito, aceitando-se que a autonomia didática é um
processo histórico que já se consolidou?

Na origem da discussão- no Brasil- da natureza do direito urbanístico


encontramos reflexões valiosas para enfrentar tais questões.

O direito urbanístico pode ser, sem prejuízo, um “tertium genus” no


âmbito da ciência do direito, dada a realidade que busca regular, complexa e mutável. Ou seja,

84
Direito urbanístico, p. 27-28.
85
Disciplina urbanística da propriedade, p. 24-31, e apoiada nas lições de Agustín Gordillo. Carlos Ari
SUNDFELD parte da mesma base para um “ataque” ainda mais sistemático à inadequação do conceito de poder
de polícia (Direito administrativo ordenador, p. 11-19), substituindo-o por “condicionamentos de direitos”, o
que será retomado oportunamente.
41

e reiterando o pensamento do início deste capítulo, a cidade transforma o Direito tanto quanto
o Direito interfere na cidade. Assim, como afirma Paulo Estelita Herkenhoff Filho:

" Problemas macrosociais exigem um direito amplo, um direito-síntese ou


encruzilhada.(...) Uma tarefa nítida que se coloca para advogados e juízes é a
de resolver a inadaptação do direito para solucionar os conflitos da cidade. É,
por exemplo, procurar ajustar as regras jurídicas às exigências
86
contemporâneas de uma sociedade urbano-industrial."

E, mais adiante, o mesmo autor envereda por interessante comparação


acerca da emergência de novas disciplinas (exemplificando no direito do trabalho e do
consumidor):

“Numa determinada instância, esses novos ramos do Direito consagram uma


nova ética do capitalismo. Sem alterar os aspectos básicos das relações
econômicas, é uma nova moral, que apazigua as más consciências do
sistema.(...) Por mais que o desenvolvimento desses direitos tenha trazido um
custo econômico ao capital, eles contribuem, paradoxalmente, para a
capacidade do regime capitalista de se manter hegemônico, e de suas classes
dominantes na obtenção de legitimidade e aceitação, e na imposição de sua
ideologia”87.

Ainda que sem nos posicionarmos quanto à essência dos argumentos do


autor, os trazemos à colação para afirmar justamente que ou (i) a autonomia científica do
direito urbanístico é um elemento importante, mas não essencial no contexto de sua função, se
tivermos em mira as finalidades da Constituição e da política urbana (art. 182), ou (ii) essa
mesma autonomia, de tão perseguida, pode cronificar conceitos, métodos e a hermenêutica
adequada à concretização das normas urbanísticas.

Evidente que definir os institutos e principalmente os princípios do


direito urbanístico (motivação maior deste trabalho, inclusive) são tarefa das mais relevantes.
Mas essa é uma atividade reiterada, e mutável, tanto quanto mutáveis são os problemas

86
Direito do urbanismo- uma visão sócio-jurídica, p. 74 e 85.
87
Ibidem, p. 76-78.
42

urbanos. Se no passado afirmar a identidade do direito urbanístico era um desafio, este, hoje, é
sua integração com as demais disciplinas..

Por enquanto, mais producente talvez seja discutirmos o campo de ação


do direito urbanístico.

2.3.3. O campo do direito urbanístico.

Por “campo de ação” denominamos os institutos jurídicos e as normas


positivas que o direito urbanístico se dedica a estudar e oferecer elementos necessários a uma
interpretação adequada, tendo como norte finalidades constitucionalmente valiosas.
Entretanto, longe de configurar um espaço estanque, isso quer dizer apenas maior ênfase,
considerando a unicidade do Direito enquanto ciência.

De outra parte, uma definição provisória se faz necessária, a fim de


termos à mão o ferramental necessário.

Se ao discutirmos a pretensa autonomia do direito urbanístico o fizemos


no contexto do Direito, determinar seu campo implica considerar aspectos mais amplos da
cultura humana, ou ao menos aquele conjunto que engendrou o intenso processo de
urbanização nos anos mais recentes. Assim, na medida em que fruto da vida humana em
sociedade, as cidades e as relações que nela se estabelecem podem ser descritas (mediante a
ciência), conformadas (mediante a técnica) ou valoradas (mediante a arte). Ao conjunto
dessas possibilidades, que convergem para a ordenação funcional do espaço habitável,
denominaremos de “urbanismo”, cuja trajetória será analisada detidamente no capítulo
seguinte.

Já não cabe, há muito, de entender o direito urbanístico como mero


veículo dos conceitos exarados em outros saberes, ou mais especificamente do “urbanismo”,
destinado a dar a eles coercibilidade88. Isso porque, ao serem positivados, e inseridos no
ordenamento legal, conceitos destes outros saberes passam a trafegar num sistema jurídico, e
estão sujeitos às premissas deste sistema (por exemplo, a supremacia constitucional, ou as

88
Como Hely Lopes MEIRELLES (Direito municipal brasileiro, p. 379-380) e até mesmo Diogo de Figueiredo
MOREIRA NETO (Introdução ao direito ecológico e ao direito urbanístico, p. 60-61).
43

regras de vigência e de interpretação da norma jurídica, construções como legalidade,


interesse público, etc.) adquirindo um perfil próprio e diferente daquele que possuíam nos
seus próprios círculos (da economia, da geografia, da sociologia, do “urbanismo”, etc.). Os
resultados obtidos com a mera transposição de programas ou planos urbanísticos para a norma
jurídica, sob o prisma da eficácia social, é um estudo que merece ser desenvolvido, mas há um
certo senso comum no sentido de que sejam- os resultados- negativos. Ou, no mínimo, de
tecnicismo excessivo, como anota Guillermo Andrés Muñoz (no contexto argentino, mas que
nos parece aplicável igualmente ao brasileiro): “Basta asomarse a algunos de esos mal
denominados planes o a muchas de las caprichosas ordenanzaz dictadas en materia
urbanística para advertir sus gravísssimas imperfecciones jurídicas; su caráter errático; su
contenido habitualmente indescifrable”89.

Ainda assim, a ligação umbilical entre o direito urbanístico e o


“urbanismo” é quase consenso na doutrina. Uns poucos90, entretanto, cuidaram se inserir em
suas exposições as etapas de desenvolvimento do dito “urbanismo”. Mesmo por isso, grassam
definições do direito urbanístico como aquele voltado à análise de normas disciplinadoras dos
espaços habitáveis (nas cidades, mas também no campo), e voltados ao bem-estar de seus
habitantes.

Tais definições são preciosas, especialmente quando enfatizam as


finalidades perseguidas, mas ainda vagas.

Interessante observar o quão vários autores que se debruçam sobre o


direito ambiental91 simplesmente passam ao largo dessa reflexão, inserindo os espaços
habitáveis como parte do meio ambiente (na categoria de “artificial” ou “construído”) sem
maiores preocupações argumentativas.

89
Derecho de propriedad, urbanismo e princípio de legalidad, p. 90.
90
Como José Afonso da SILVA (Direito urbanístico brasileiro, p. 27-31), Daniela Libório DI SARNO
(Elementos de direito urbanístico, p. 5-27) e Victor Carvalho PINTO (Direito urbanístico, p.67-71 e p. 170-
175). Este ultimo, por sinal, agrega uma leitura crítica dos limites inerentes àquilo que considera como
“urbanismo”. No plano internacional, JACQUOT e PRIET (Droit de l’urbanisme, p.24-32.)
91
Dentre outros, Paulo de Bessa ANTUNES (Direito ambiental, p. 345 e ss.) e Paulo Affonso Leme
MACHADO (Direito ambiental brasileiro,p. 259-292). Édis MILARÈ segue a mesma linha em sua obra mais
consagrada (Direito ambiental), porém em outro estudo (Um ordenamento jurídico para a qualidade de vida
urbana, passim) tece longas considerações sobre a história das cidades e a relação dela com o home, mas sob o
aspecto essencialmente estético.
44

Uma importante exceção é Celso Antonio Fiorillo92, que traça rápida


evolução das cidades, sintética mas rica, por atentar aos fenômenos culturais e econômicos.
Entretanto, acaba por concluir na linha de que a Constituição validou a definição jurídica
apontada na Lei 6938/81 em seu art. 3º, I. Logo, se o dispositivo conceitua meio ambiente
como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e
biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”, inevitavelmente o
meio ambiente urbano (assim como o meio ambiente cultural, natural e do trabalho) seria
apenas mais uma faceta-relevante, com certeza- do meio ambiente globalmente considerado.

De um lado, como usualmente considerado, não é boa técnica


interpretar a norma constitucional a partir de definições legais. De outro, se realça a
prioridade do fator ambiental em qualquer análise jurídica do espaço urbano, esse raciocínio
pode conduzir a certas simplificações. A integração forçosa pode causar mais danos do que
benefícios a ambos (direito ambiental e direito urbanístico), pois inevitavelmente certa
experiência e saberes construídos paulatinamente ao longo de anos acabam se perdendo nesse
processo. Melhor, talvez, encará-los (ambiental e urbanístico) como dimensões igualmente
ricas, complementares e cambiantes, como faz José Afonso da Silva93, ou justapostas em igual
relevância no ambiente urbano, como Daniela Libório Di Sarno94. Aliás, bem anota a
professora paulista quando afirma que “A relação entre o direito urbanístico e o direito
ambiental não se refere à soma de dois conteúdos. Não é síntese. Na verdade é a qualificação
que o urbanismo moderno recebe ao conformar a dinâmica de seus objetivos às necessidades
atuais.”95

Esse parece ser o sentido mais adequado das normas nacionais


(Estatuto da Cidade à frente) acerca do uso do solo, a ser perseguido por seus
desdobramentos, legais e administrativos, nas esferas federal, estadual e municipal96. Abordar
o direito urbanístico, seus institutos e princípios (como aqui fazemos) significa
inevitavelmente ter o viés ambiental, e também o direito ambiental, como intrínseco e
permanente, mais do que simplesmente uma referência.

92
Curso de direito ambiental brasileiro, p. 259-270.
93
Direito ambiental constitucional, p.240.
94
Elementos de direito urbanístico, p. 89-84.
95
Ibidem, p. 94.
96
Sobre a integração urbano-ambiental, Vanêsca Buzelato PRESTES, em aspectos diversos do planejamento e
da gestão locais, (Temas de direito urbano-ambiental, p. 19-50 em aspectos diversos do planejamento e da
gestão locais e p. 123-140 especificamente no licenciamento).
45

2.3.4. Um enquadramento funcional do direito urbanístico.

Reiteramos a necessidade de estabelecer limites, ainda que funcionais, à


atuação do direito urbanístico. Não se trata de colocá-lo num espaço estanque, o que por sinal
seria inviável, dados os institutos que sob ele se albergam, mas de permitir uma melhor
atividade hermenêutica97.Com toda certeza, não é um direito municipal, por força das
competências que se espraiam entre todos os entes federativos, em que pese a relevância do
Município em sua execução (art. 182, “caput”, da Constituição). Também não é exatamente
um direito da politica urbana, ao menos na visão ampla que desta estabelecemos98, onde
diretrizes por vezes distantes do espaço urbano nele repercutem inevitavelmente, em face da
urbanização como consolidada no Brasil99. Seu desdobramento em perspectivas
especializadas (direito do planejamento urbanístico, direito urbanístico econômico, etc.) como
cogitado, enquanto tendência, por José Afonso da Silva100, pode vir a ser um abordagem
produtiva.

Contudo, é Victor Carvalho Pinto, com grande rigor metodológico,


quem desenvolve uma proposta clara de campo do direito urbanístico (na esteira de seu
conceito de politica urbana, já exposto no item 2.2.1). Desse modo, o autor compreende tal
recorte como o “ramo do direito voltado para a ordenação do território, mediante o controle
das transformações do ambiente urbano realizadas pela iniciativa privada e pelo setor
público”101. No desenvolvimento de seus argumentos fica clara a compreensão que adota do
alcance do direito urbanístico: regular a distribuição dos usos (via zoneamento, por exemplo),
a densidade populacional (coeficientes de aproveitamento), estética e conforto (gabaritos,
recuos), sistema viário e de áreas verdes, etc. Mas não deixa de fazer a advertência de que:

97
No mínimo, como adverte Carlos Ari SUNDFELD (Estatuto da cidade, p. 48), para solucionar conflitos de
competências federativas.
98
E, por conta disso, discordando agora do mesmo Carlos Ari SUNDFELD (Estatuto da cidade, p. 46-47), que
justamente faz coincidir direito urbanístico e política urbana, e esta com a regulação espacial do solo urbano. Há,
é certo, elementos importantes da política urbana que se relacionam mais ao direito ambiental, constitucional e
administrativo.
99
A título de exemplo, imaginemos que um incentivo fiscal à aquisição de automóveis seja concedido pelo
governo federal. Isoladamente aposta, tal medida denota justamente uma omissão em termos de política urbana
no plano federal, pelo aumento exponencial do volume de carros nas cidades, mas o direito urbanístico não
dispõe de institutos, normas ou princípios suficientes, até o momento, para a tal situação se contrapor. A política,
sim, no que insistiremos no capítulo 5.
100
Direito urbanístico brasileiro, p. 39-40.
101
Direito urbanístico, p. 38.
46

“Seria desejável conjugar em uma única política a alocação de espaço com as


opções setoriais que determinam sua demanda, mas esta tarefa exigiria uma
metodologia sofisticada e ainda inexistente, que considerasse simultaneamente
as inúmeras variáveis envolvidas em cada política setorial”102.

Essa integração é premente em várias das “politicas setoriais”. José


Afonso da Silva, por exemplo, ao tratar do planejamento dos transportes urbanos, anota que:

“sendo o sistema de transportes urbanos importante manifestação urbanística,


sua ordenação há de ser parte expressiva da ordenação do solo (...) porquanto
transportes urbanos e urbanificação não são senão dois aspectos de um mesmo
fenômeno, e é a busca de uma política comum que deve ser empreendida”103.

Assim também compreendemos; qual seja, da organização do território


decorrem demandas e vínculos com várias outras realidades, ora serviços públicos
(mobilidade, saneamento), ora impactos indesejáveis, mas não territorializados (poluição,
encarecimento da terra urbana, baixo provimento habitacional). O fato de ser uma intersecção
complexa não é suficiente para afastar o direito urbanístico de tais temas; ao contrário
constitui um de seus grandes desafios. Por fim, não se pode desconsiderar a “práxis”, no
sentido de que sob a marca “direito urbanístico”, nos anos mais recentes, toda sorte de estudos
envolvendo o regime jurídico destas politicas vem se consolidando, e descartar tais
contribuições seria um prejuízo maior do que os benefícios do excesso de rigor classificatório,
pretensamente científico.

Tais considerações só demonstram quão largos e interessantes podem


ser os estudos levados a cabo para melhor se abordar os problemas que envolvem as relações
entre a cidade e o Direito. Se pudermos então definir graficamente o campo do direito
urbanístico, o faremos como abaixo.

102
Ibidem, p. 45.
103
Direito urbanístico brasileiro, p. 233.
47

Como se observa, delineamos um campo mediato, ou “núcleo duro”,


composto pelas normas de parcelamento, uso e ocupação do solo, e um segundo círculo, mais
largo e denominado de campo imediato, ou “atmosfera”, onde gravitam temas setoriais que
dialogam em maior ou menor intensidade com o território (dentre outros, saneamento e
resíduos sólidos, mobilidade, patrimônio histórico e cultural, defesa civil e habitação de
interesse social, inclusive regularização fundiária- na qual estão contidas as normas de
registros públicos também de grande preocupação do direito urbanístico). Perpassando todos
eles, mas vindo de outras bases e indo além, posicionamos a preservação e recuperação
ambiental, que também resvala no campo mediato (como a questão das áreas de preservação
permanente estipuladas na Lei 12.651/2012, dentre inúmeros outros exemplos). Por fim, o
campo das finanças públicas, que se imiscui nas questões territoriais por via de certos
institutos específicos, como a contribuição de melhoria, o imposto predial e territorial urbano
48

(IPTU) progressivo no tempo ou diferenciado no espaço104, etc., mas também do vinculo


estabelecido aos orçamentos públicos por força da Lei 10.257/2001105.

Deliberadamente não incluímos nessa ilustração o tema da “gestão


democrática”, posto que o consideramos como uma qualidade de todos os demais,
vinculando- e neles inseridos, e não um campo (ou esfera) delimitada.

Algumas dessas relações talvez sejam melhor explicadas quando


apresentarmos as diretrizes da política urbana estampados pelo Estatuto da Cidade. Por ora,
importa analisar o conceito que dá fundamento a todo esse sistema, qual seja, a função social
da propriedade imóvel urbana.

2.4. Função social da propriedade imóvel urbana (FSPIU): primeira abordagem.

A Constituição Federal abriga a ideia de função social da propriedade em


diversos preceptivos, mas com três “loci” bem definidos.

O primeiro, no art. 5º, incisos XXII e XXIII, institui o direito de propriedade


como um direito fundamental, dentre os individuais e a par de outro, coletivo, ou o direito da
comunidade a que a propriedade cumpra sua função social. Ambos, propriedade e função, da
forma como inseridos no texto constitucional, são indivisíveis. Portanto, são igualmente
insuscetíveis de emenda constitucional que tenda a suprimi-los (conforme art. 60, § 4º, IV, da
Constituição). O segundo, que conota a relevância econômica da propriedade enquanto bem
de produção ou potencial geradora de riqueza, está no art. 170, III, onde a função social da
propriedade é arrolada como princípio geral da atividade econômica. O terceiro, por fim,
estabelece maiores critérios ao exercício do domínio de duas específicas modalidades de
propriedade, quais sejam, a urbana (art. 182, § 2º, que aliás não explicita tratar-se da

104
Art. 156, §1º da Constituição.
105
“Art. 40. (...)
§ 1o O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as
diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.”
49

propriedade imóvel, o que se deflui dos outros preceptivos albergados no mesmo artigo) e a
imobiliária rural (artigos 184 e 186)106.

Quando nos referimos a propriedade, estamos a designar realidades muito


diferentes entre si (propriedade material ou imaterial, fungível ou infungível, móvel ou
imóvel). Mais certo ainda é o fato de que direito de propriedade também compreenderá
tratamentos e perspectivas diferentes para tal diversidade de realidades, o mesmo valendo,
portanto, para o conceito de “função social da propriedade”. Mesmo em se tratando da
propriedade imóvel, fica fácil observar diferenças patentes entre aquela rural e urbana, se
considerarmos que à primeira se atribui valor em função de suas características intrínsecas
(qualidade do solo, por exemplo), enquanto na segunda o conteúdo econômico decorre
enormemente do uso (regulado quase exclusivamente pelo Direito) e da localização no
contexto urbano.

Não nos arriscamos a cometer qualquer engano quando afirmamos ser


impossível discutir o conteúdo da política urbana e do direito urbanístico no Brasil sem
perpassar a origem e os fundamentos do direito de propriedade em nosso ordenamento
jurídico. Ou pelo menos, do que tange à função social da propriedade imóvel urbana
(FSPIU). Liana Portilho Mattos107 chega mesmo a considerar que é da finalidade de adequar a
propriedade imóvel urbana à sua função social que deriva todo direito urbanístico e se
justifica o estabelecimento de uma política urbana. Talvez não cheguemos a tanto, levando em
conta que a vida urbana em si engendra comportamentos e necessidades para além da relação
com a terra. Entretanto, não podemos negar que a concretização daquele atributo é o objetivo
primordial do direito urbanístico, e é nele, e na relação com seus demais princípios,
especificidades e institutos que se devem buscar elementos para a implementação da FSPIU.
Por fim, há que se atentar para a evolução do direito de propriedade no ordenamento jurídico
brasileiro, onde o conteúdo liberal e individualista de propriedade em seus aspectos jurídico,
político e cultural ainda apresenta uma peculiar resistência.

Diversos autores, sob perspectivas também diversas, se dedicaram a delinear o


trajeto da regulação jurídica do direito de propriedade no mundo ocidental e no Brasil. Isso é

106
Como bem observa Fernando Dias Menezes de ALMEIDA (Estatuto da Cidade-comentários, p.42-43) há
uma definição material para a função social da propriedade imóvel rural (art. 186 da Constituição), e outra
apenas formal (posto que postergada para os planos diretores) quanto àquela imóvel urbana.
107
A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do Estatuto da Cidade, p. 40 e 76.
50

verdade especialmente quanto àquela urbana. Tais estudos se deram ora de maneira analítica,
ora, o que de fato nos interessa, estabelecendo a crítica acerca do quão marcos legais do
passado ainda deitam influência concreta e efetiva na maneira como cresceram as cidades
brasileiras e seus paradoxos 108. Sonia Rabello de CASTRO tece inclusive observação deveras
instigante quanto a essa trajetória quando observa que

“É interessante remarcar que, na sua formulação [da propriedade] mais


definitiva, feita há quase um século pelo Código Civil Brasileiro (1916), houve
um abandono de nossas raízes jurídicas portuguesas, bem como de toda
tradição consuetudinária praticada pelos grupos étnicos (índio ou negro),
formadores da raça brasileira. Buscou-se, essencialmente, a reprodução do
pensamento jurídico alemão, bem como do pensamento jurídico francês,
materializado no Código de Napoleão. Naqueles países europeus, cuja
legislação nos serviu de modelo, quando houve movimento de codificação do
direito civil no século XVIII e XIX, perseguiu-se caminho diverso. O papel dos
costumes, praticado nas várias regiões, foi fator relevante para a conformação
do direito codificado, pelo qual se pretendia, justamente, alcançar e moldar a
unidade nacional”.109

Em geral, e sem se ater a um ordenamento ou a uma modalidade específicos, à


medida que o Estado evolui de uma concepção liberal para outra social e democrática,
também se alteram os elementos que venham a legitimar o exercício da propriedade,
inicialmente buscando impedir seu uso nocivo- o que se dava desde o Código Napoleônico de
1801- e, depois, instrumentalizando-a, fazendo dela fator de desenvolvimento da sociedade
como um todo. Assim, sem que deixe de ser individual (ou como condição para continuar a
sê-lo) o exercício do direito de propriedade tem que se dar em condições que colabore na
consecução do bem comum da sociedade. Como repararam Carlos Ari Sundfeld110 e José
Afonso da Silva111, a função social da propriedade introduz traços socializantes a um
elemento essencial do capitalismo liberal, que é a proteção da propriedade em face do Estado.
108
Além da própria Liana Portilho MATTOS (idem, p. 23-64), destacamos Raquel ROLNICK (A cidade e a lei,
p. 20-28), acerca da influência do direito português e da Lei de Terras de 1850, especialmente no caso de São
Paulo, Edésio FERNANDES (Estatuto da cidade comentado, p. 31-40 dentre outros estudos) e Álvaro PESSOA
(Direito do urbanismo- uma visão sócio-jurídica, p. 51 a 62)
109
Direito urbanístico e política urbana no Brasil, p. 80-83.A autora descreve, por exemplo, o abandono do
conceito de “propriedade útil”, base do regime de sesmarias.
110
Temas de direito urbanístico-1, p. 3.
111
Direito urbanístico brasileiro, p. 76.
51

Isto ocorre, queremos crer, tanto por fatores ideológicos112 como também por uma
necessidade funcional da própria evolução e sobrevivência do capitalismo, na medida em que
é incompatível e inconcebível com o atual estágio da sociedade urbana uma forma diferente
de garantir o exercício individual do direito de propriedade.

Não custa lembrar mais uma vez que é do conceito de função social da
propriedade que deriva toda possibilidade de desenvolvimento do espaço urbano que se
alberga no direito urbanístico; reflexamente, é no urbano que a função social se manifesta em
sua maior plenitude, também como afirma José Afonso da Silva:

É em relação à propriedade urbana que a função social, como preceito


jurídico-constitucional plenamente eficaz, tem seu alcance mais intenso de
atingir o regime de atribuição do direito e o regime de seu exercício.(...)Vale
dizer que a destinação urbanística dos terrenos é uma utilidade acrescida a
eles pelos planos e leis de caráter urbanístico. Utilidade que se especifica em
várias modalidades, conforme o aproveitamento concreto definido para cada
terreno”113.

A expressão “função”, no contexto jurídico e em diversas disciplinas, adquire o


sentido de poder condicionado, voltado a uma finalidade, nem sempre de interesse exclusivo
daquele que age. E, se é atribuível tal poder, também é exigível que a finalidade se cumpra.
Portanto, ao invés da faculdade de usar, gozar e dispor do bem, como se traduzia o direito de
propriedade na concepção liberal que ainda percorre os mais variados aspectos da vida social,
é correto o entendimento de que se trata de uma obrigação ao exercício desses atributos em
certa direção. Assim, a função social legitima a propriedade individual, mas não a subtrai,
salvo se violada.

Até por isso, na busca de um índice de equilíbrio, anota Nelson Saule Junior
que “para a propriedade urbana atender sua função social é preciso que exista um grau de

112
Sem desprezar a relevância de tais elementos, postos em relevo por Edésio FERNANDES (Idem, p. 55-60),
dentre outros.
113
Disciplina jurídico-urbanística da propriedade urbana, p. 8, grifos no original.
52

razoabilidade entre a intensidade de seu uso com o potencial de desenvolvimento das


atividades de interesse urbano”114.

2.4.1. FSPIU e limitações ao direito de propriedade.

Função social da propriedade e limitações ao direito de propriedade


tendem a se confundir, até por que (i) incidem sobre o mesmo objeto, qual seja, a propriedade
urbana, (ii) não podem chegar ao ponto de aniquilar a propriedade e (iii) são instrumentos
efetivos de ordenação do espaço urbano. Portanto, não é fácil extremá-las, mas necessário, a
fim de que se tenha uma noção mais acabada da própria função social da propriedade.

O desenvolvimento das limitações administrativas se relaciona ao papel


regulador do Estado. Com efeito, no sentido de evitar efeitos nocivos à coletividade (saúde,
higiene, salubridade, segurança) sempre se reconheceu a possibilidade do estabelecimento de
limitações ao uso, gozo e disposição dos bens privados, que iam além dos simples direitos de
vizinhança. As limitações administrativas, enquanto instrumentos de atuação urbanística, são
denominadas por José Afonso da Silva115 de limitações urbanísticas à propriedade, e
classificadas em (i) restrições urbanísticas, ou "as limitações impostas às faculdades de
fruição, de modificação e de alienação da propriedade no interesse da ordenação do
território”116; (ii) servidões urbanísticas, onde há uma efetiva diminuição do domínio do
privado, mas não sua extinção; e (iii) desapropriação urbanística, onde se opera o transpasse
do privado para o ente público.

Há, nessa classificação, como reconhece o próprio Silva117, uma


gradação de intensidade da limitação do interesse privado pelo público. Ora, não podemos
falar em gradação da função social. Um imóvel não atinge mais ou menos118 a função social.
Ou a conduta de seu proprietário, ao exercer suas faculdades individuais, está voltada à
função social, ou não está. Portanto, não se trata de confrontar interesses- o que ocorre nas

114
Direito urbanístico, p.53. A definição ocorre no exame de um caso paradigmático: o uso habitacional em
regiões de mananciais hídricos.
115
Direito urbanístico brasileiro, p. 392.
116
Ibidem, p. 394.
117
Ibidem, p.407.
118
Não se confunda aqui com a ponderação de princípios no caso concreto, que será examinada mais adiante.
Trata-se, neste momento, de aferir o resultado da conduta.
53

limitações- mas sim de moldar alguns (os privados) a outros (os públicos). Como bem anota
Carlos Ari Sundfeld:

“ Sempre se aceitou normalmente a imposição de obrigação de fazer ao


proprietário, como condição para o exercício do direito de propriedade.(...)
Do que nunca se cogitou, porque incompatível com a propriedade
individualista, foi da imposição da obrigação de utilizar o imóvel, isto é
obrigação de exercer o direito em benefício de um interesse social”119.

Contudo é o próprio Sundfeld quem acaba, em outro momento120, por


reatar as duas noções (limitações e função social), mediante o que denomina de
“condicionamentos administrativos de direitos”, uma evolução do poder de polícia que
sustentava até então a legitimidade das limitações e que se mostra hoje insuficiente.

A aplicabilidade da exigência de cumprimento da FSPIU dar-se-á


primordialmente no nível municipal, como preceituado pelo art. 182 da Constituição Federal.
No entanto, este preceptivo estabelece já uma diretriz, qual seja, o atendimento “às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. Portanto, uma conclusão
preliminar é que a ordenação da cidade, plano diretor à frente, não pode prescindir de um
entendimento quanto à própria noção de função social, trazendo para o plano normativo local
a compreensão de fenômenos e conceitos universais para direcionar processos e vincular o
exercício de direitos também localmente.

A FSPIU constitui assim algo que denominaremos provisoriamente de


sobreprincípio, não tanto hierarquicamente superior, mas com efeitos mais amplos do que os
demais, dada sua própria estrutura e inserção histórica e política. Daí irão derivar outros
tantos princípios, que darão à função social maior concretude, e nela sustentarão sua validade
e aplicabilidade. Mais do que um conteúdo unívoco, o que se deve buscar são procedimentos
lógico-argumentativos que tornem coerente sua expressão em cada fato ou programa
específicos, minimamente plausíveis e efetivos para as realidades cambiantes em que opera-
ou seja, as cidades, com toda miríade de diversidade e pluralidade que abrigam entre si ou
dentro de si.

119
Temas de direito urbanístico-1, p. 11.
120
Direito administrativo ordenador, p. 53 e ss.
54

2.5. Função social da cidade (FSC): primeira abordagem.

É digno de nota reparar quão poucos são os autores que se dedicam a buscar
um sentido para função social da cidade (FSC), na medida em que constitui o objetivo
primordial da politica urbana (ou “de desenvolvimento urbano”). Ou, eventualmente, o fazem
equiparando tal conceito ao de função social da propriedade. Ora, quando abordamos a função
social da propriedade, verificamos (item anterior) que se trata de uma conduta exigida do
proprietário, no sentido de que dê ao bem um uso adequado ao interesse da sociedade. Em
qualquer outro preceito constitucional a que se aluda à função social, pode-se vislumbrar o
detentor de um bem ou uma riqueza, que deve pautar sua relação com esse objeto numa
perspectiva que redunde em benefício a toda a sociedade.

Entretanto, a cidade não tem um detentor exclusivo, um sujeito de quem se


possa cobrar esta postura. Ao contrário, a hipótese mais coerente aponta no sentido de que, à
semelhança de diversas das políticas estampadas no Título VIII da Constituição (“Da Ordem
Social”), como a seguridade social e o meio ambiente, a FSC estão a cargo primordialmente
do poder público (com o diferencial de a este competir “ordenar seu pleno desenvolvimento”,
o que, efetivamente, pode dele ser exigido) mas também da sociedade. Portanto, função social
da cidade é mais do que uma simples “soma” das funções sociais das inúmeras propriedades
urbanas. Observa-se ainda que a locução "ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade" é colocada no "caput" do art. 182 da Constituição ao lado da garantia do
"bem-estar de seus habitantes", ambos como objetivos da política de desenvolvimento
urbano. Assim, parece-nos coerente entender que um ("função social da cidade") e o outro
("bem-estar dos habitantes da cidade") sejam realidade inseparáveis e reciprocamente
complementares.

Nelson Saule Junior, ao examinar a positivação, no âmbito do direito


internacional, do conceito de desenvolvimento sustentável, e sua recepção pelo ordenamento
brasileiro, inicia apontando uma noção facilmente perceptível, ainda que apriorística:

“As funções sociais da cidade, na verdade, são interesses difusos, pois não há
como identificar os sujeitos afetados pelas atividades e funções nas cidades, os
proprietários, moradores, trabalhadores, comerciantes, migrantes têm como
contingência habitar e usar um mesmo espaço territorial, a relação que se
55

estabelece entre os sujeitos é a cidade, que é um bem de vida difuso(...).Outra


característica, que identifica como interesses difusos as funções sociais da
cidade, é a intensa litigiosidade, a presença de complexos conflitos
urbanos(...)”121.

E, prosseguindo o mesmo autor, ainda na perspectiva do princípio do


desenvolvimento sustentável, afirma:

“As funções sociais da cidade estarão sendo desenvolvidas de forma plena


quando houver redução das desigualdades sociais, promoção da justiça social
e melhoria da qualidade de vida urbana. Esse preceito constitucional serve
como referência para impedir medidas e ações dos agentes públicos e privados
que gerem situações de segregação e exclusão da população pobre. Enquanto
essa população não tiver acesso à moradia, transporte público, saneamento,
cultura, lazer, segurança, educação, saúde não haverá como postular a defesa
de que a cidade esteja atendendo à sua função social”.122

Indo além, portanto, até da promoção de direitos fundamentais típicos de uma


“ordenação urbana” (moradia, saúde- no que relacionado ao saneamento e à salubridade-
segurança, transporte, preservação ambiental, etc.) trata-se de exigir, de uma política urbana, a
busca de concretude dos direitos fundamentais em seu conjunto, como assim estipulados no
ordenamento constitucional. Também a FSC tem características de sobreprincípio, o que
discutiremos ao final.

2.6. Normatização da politica urbana.123

A necessidade de uma legislação nacional para o processo de urbanização já


fora pressentida, e defendida, por vários dos que se defrontaram com a tarefa de planejar o

121
Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro, p. 61, com grifos nossos. Também com acento no
caráter difuso das funções sociais da cidade, inclusive colecionando jurisprudência esclarecedora, José Carlos de
FREITAS, Temas de direito urbanístico, p. 281 e ss.
122
Ibidem, mesma página, grifos nossos.
123
Para descrições do processo político e legislativo que redundou no capítulo da política urbana (art. 182 e 183
da Constituição) e no Estatuto da Cidade, em variadas versões e nuances, ver Grazia DE GRAZIA (Estatuto da
cidade e reforma urbana, p 15-38), Mariana MOREIRA (Estatuto da cidade, p. 27-43), Nelson SAULE
JUNIOR (Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro, p. 25 a 34) e Victor Carvalho PINTO (Direito
urbanístico, p. 112 a 117).
56

crescimento das cidades brasileiras, desde o início do século (item 3.4.1, “infra”). Mais ainda,
quando a urbanização apresenta elementos de depreciação e descontrole, no final dos anos 60
e início dos 70 do século passado, o temor da instabilidade política a eles associada fez com
que o regime de então (item 3.5.1, “infra”) iniciasse o processo de fundar esse regramento, ou
pelo menos corrigir o caráter assistemático do que então vigorava.

A primeira medida foi a edição da Lei 6766/79, ainda hoje em vigor com certas
modificações pontuais ao longo desse período, e também com uma revisão pouco mais
sistemática perpetrada pela Lei 9785/99. Logo em seguida, foi enviado ao Congresso
Nacional o Projeto de Lei (PL) 775/83, o qual trazia em seu bojo uma proposta de
regulamentação da função social da propriedade imóvel urbana e outros dispositivos, à FSPIU
relacionados, vários deles de cunho inédito para a conjuntura da época. Com efeito, já previa
diretrizes nacionais do “desenvolvimento urbano”, inclusive, (i) justa distribuição dos
benefícios e ônus da urbanização, (ii) regularização fundiária e urbanização específica de
áreas ocupadas por população de baixa renda, (iii) recuperação dos investimentos públicos de
que tenha resultado valorização de imóveis, e (iv) combate à ociosidade dos imóveis. E ia
mais além, tanto em temas estratégicos da urbanização (como o licenciamento, o potencial
construtivo e a definição do perímetro urbano), quanto nas funções da União e dos Estados
federados. Por fim, instituía alguns dos então chamados “instrumentos do desenvolvimento
urbano”, vários deles recepcionados após décadas, inclusive com aquela configuração
original, pelo Estatuto da Cidade.

Com o advento da Constituição, em 1988, o PL 775 foi arquivado e outras


propostas emergiram, desta feita para “regulamentar” a política urbana conforme
constitucionalizada. Para a Ciência Política, os embates, as convergências, as divergências e
alterações de conteúdo de tais proposituras expõem um riquíssimo material acerca da
percepção que os variados grupos (pesquisadores, organizações não-governamentais com as
mais variadas finalidades, os governos que se sucederam, empresários, etc.) têm sobre o que
de fato é estratégico em termos de “desenvolvimento urbano”. Compreender tal percurso é de
grande inspiração à interpretação dos alicerces da política urbana, os quais só concretizaram-
se de fato mais de uma década após, com a promulgação da Lei 10.257 de 10 de Julho de
2001, autodenominada Estatuto da Cidade. Desde então, o Estatuto (como doravante iremos
57

nos referir), passou por algumas modificações, por força da integração dogmática com outras
normas124.

2.6.1. O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001): base e catalisador da


politica urbana.

O Estatuto cumpre um papel diferenciado no que tange à normatização


da politica urbana. Não apenas “regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal”
(expressão que consta em sua ementa), mas vai além, estabelecendo verdadeiramente os
parâmetros de elaboração e implementação da politica urbana. Ainda que contenha
majoritariamente normas que possam estar no “campo” do direito urbanístico, conforme o
definimos (item 2.3.4, “supra”), traz algumas outras que dele desbordam 125.Seu
dimensionamento e estrutura são bastante sintéticos, considerando a extensão e complexidade
da política cujas bases procura estabelecer.

O Capítulo I do Estatuto, denominado de “Diretrizes Gerais” principia,


logo no art. 1º, com a afirmação de que a lei vincula a “execução da política urbana”, o que
poderia nos remeter exclusivamente à atuação dos municípios. Isso é incorreto, entretanto,
numa interpretação sistemática que mostra o quanto seus dispositivos também se direcionam à
elaboração (por exemplo, em todos os preceptivos relacionados à gestão democrática) quanto
á aferição de resultados (por exemplo, artigos 40, §4º; 42, III; 53 e 54) dessa política. Mas o
“coração” desse capítulo, e de toda a política urbana, está no art. 2º, onde tais diretrizes
“gerais” são especificadas, e cujos desdobramentos apresentaremos mais adiante.

124
Mais especificamente alterações trazidas pela Lei 11.977/2009 (Programa “Minha Casa Minha Vida”) e
principalmente pela Lei 12.608/2012 (Politica Nacional de Proteção e Defesa Civil).
125
Por exemplo, certos instrumentos como os planos de desenvolvimento econômico e social e os incentivos
fiscais (art. 4º, III, “h” e IV, “c”) e a gestão orçamentária participativa (art. 4º, III, “f” e art. 44); o consórcio
imobiliário (art. 46); a ampliação das hipóteses de improbidade administrativa (art. 52); as questões registrárias
(artigos 55 e 56); a usucapião especial de imóvel urbano na perspectiva individual (art. 9º). O direito de
superfície é um capítulo à parte, tanto por envolver, “a priori”, interesses entre particulares, quanto por ter uma
regulamentação no Estatuto (artigos 21 a 24) e outra no Código Civil (Lei 10406/2002, artigos 1369 a 1377),
inclusive com certos conflitos entre eles -o prazo contratual pode ser indeterminado no Estatuto e é sempre
determinado no Código Civil, por exemplo. Assim, a aplicação de um ou de outro depende da circunstância, se
vinculado ou não à política urbana.
58

O Capítulo II inicia elencando (art. 4º), sem exauri-los126, os


instrumentos que podem ser manejados para a execução da política urbana, tanto aqueles
regulamentados (e aqui a expressão é correta) pelo Estatuto (parcelamento, edificação ou
utilização compulsórios-PEUC, e seus sucedâneos IPTU progressivo no tempo e
desapropriação com pagamento em títulos) ou estabelecidos por ele (direito de preempção,
outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso, operações urbanas consorciadas,
transferência do direito de construir e estudo de impacto de vizinhança-EIV), quanto outros
tanto regulados por outras normas (desapropriação, tombamento, etc.). Todos, entretanto,
guardam uma relação estreita com as diretrizes do art. 2º, seja por se tornarem exigíveis
quando necessários a uma dada realidade (ou cidade), seja pela modulação que as diretrizes a
eles impõem.

O Capítulo III cuida de um instrumento capital e indispensável à


implementação dos demais: o plano diretor. Além de algumas disposições gerais (artigos 39 a
40), traz a exigência de um conteúdo mínimo aplicável a todos os municípios (art. 42) e outro,
com itens suplementares (art.42-A), aplicável àqueles “incluídos no cadastro nacional de
municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto,
inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos”, nos termos da Lei
12608/2012. O papel primordial do plano diretor perpassa outros dispositivos ao longo do
Estatuto, que serão referenciados no momento apropriado.

O Capítulo IV apresenta parâmetros mínimos (dentre outros dispersos


no Estatuto), portanto também sem exauri-los, da gestão democrática da cidade, que ademais
já era também referenciada no art. 2º.

Por fim, o Capítulo V traz diversas disposições gerais, das quais a mais
relevante, a nosso ver, é a tipificação de novas condutas que poderão caracterizar improbidade
administrativa na execução da política urbana (art. 52).

126
São inúmeras as possibilidades de se utilizar instrumentos não relacionados no art. 4º para a execução da
política urbana. Por exemplo, a dação em pagamento em bens imóveis (art. 156, XI, da Lei 5172-Código
Tributário Nacional) pode ser uma simples forma de extinção do crédito tributário, mas também uma estratégia
de aquisição de áreas públicas para sustentação da política urbana no âmbito local com grandes vantagens em
relação à desapropriação.
59

2.6.2. Parcelamento do solo urbano (Lei 6766/79)127.

As grandes cidades brasileiras sempre cresceram primordialmente no


sentido horizontal. As novas áreas ocupadas pela expansão urbana eram (e são ainda hoje)
tomadas ao meio rural, mas deixando para trás inúmeros terrenos vazios e setores de ocupação
mais antiga, propícios à degradação. A expansão nesse sentido arrasta consigo as demandas
por serviços públicos (transporte, saneamento, eletrificação, equipamentos comunitários, etc.),
necessárias ao atendimento da população que irá se instalar nos espaços então incorporados
(por vezes precariamente) à malha urbana Esse processo ainda predomina, especialmente nas
cidades médias, ou sob a forma de loteamentos, ou de “condomínios fechados”. Por isso a-
ainda hoje- relevância estratégica das normas de parcelamento do solo, encimadas pela lei
federal 6766/79 e desdobradas no plano estadual mas, sobretudo, no municipal, todas de
leitura obrigatoriamente consonante com o Estatuto128 e com outros dispositivos de impacto
no espaço urbano ou rural.

O capítulo I da Lei trata de algumas definições, com relevo para a de


lote129 e a de infraestrutura básica, esta mais flexível nas áreas definidas como de interesse
social (art. 2º, § 6º), e as vedações ao parcelamento (art. 3º). Na sequência, no capítulo II são
indicados os critérios mínimos para a implantação do parcelamento com qualidade urbana
(dimensões dos lotes, articulação com o sistema viário, reserva de áreas, etc.), a serem
quantificados no plano diretor municipal. Os dispositivos subsequentes tratam, em geral, do
procedimento de elaboração e aprovação do projeto de parcelamento, inclusive com regras de
competência (artigos 13 a 15), de registro público (artigos 18 a 23), dos contratos de aquisição
dos lotes (artigos 23 a 36) e da tipificação penal (artigos 50 a 52) do parcelamento
clandestino. Ou seja, temas estratégicos, mas sem relação direta com o desenho urbano que se
estabelecerá naquela porção de território. Portanto, não se pode encarar estas tais regras como
irrelevantes; muito ao contrário, falhas no processo de parcelamento (implantação inadequada

127
O PL 3057/00, em trâmite na Câmara dos Deputados, propõe uma reconfiguração considerável da disciplina
nacional de parcelamento do solo urbano, com novas definições, institutos e relações (por exemplo, integrando o
licenciamento ambiental com o urbanístico), dentre dezenas de dispositivos. A intensidade dos debates visando
sua aprovação arrefeceu consideravelmente quando promulgada a Lei 11.977/09, a qual estabeleceu as bases da
regularização fundiária sustentável, um dos pontos centrais daquela propositura.
128
A começar pelo artigo 42-B, especialmente seu § 3º,introduzidos pela Lei 12.608/2012, determinando
diversas condicionantes à expansão do perímetro urbano e aos parcelamentos que se pretenda ali implantar.
129
Acerca do “lote” como ponto final de uma convergência entre o interesse do loteador e as regras de densidade
e edificabilidade, conforme o interesse público, e o papel essencial deste processo no desenvolvimento urbano,
ver Victor Carvalho PINTO (Direito urbanístico, p. 273-277, entre várias outras passagens).
60

ou incompleta, irregularidades no registro, inadimplência generalizada entre quaisquer partes)


facilitam a degradação urbana e a grande discrepância entre o projeto e o espaço ao final
urbanizado.

2.6.2.1. Regularização fundiária e urbanística (Lei 11.977/2009).130

O descompasso entre a legislação e a real ocupação do solo


urbano é uma das características mais marcantes, em seu pior sentido, da urbanização no
Brasil, nos países periféricos ao capitalismo hegemônico e até mesmo em alguns daqueles
ditos “desenvolvidos”. A análise dos fatores intrínsecos à ineficácia (para dizer o mínimo) da
normatização que até recentemente predominou e dos fatores à ela relacionados dão ensejo a
toda uma corrente de estudos, debates e reflexões131.

É muito difícil uma síntese adequada da questão, nos estreitos


limites deste trabalho, ainda que parte dela seja tangenciada no capítulo seguinte (item 3.6.3).
Mas importa anotar que a ilegalidade pode se dar em virtude de loteamentos que não
completaram o ciclo previsto na legislação (loteamentos irregulares) ou que nem sequer foram
concebidos em seus marcos (loteamentos clandestinos). Nestes casos, ao menos a princípio,
há a figura de um particular (o loteador) que promoveu a ocupação, e pode ser
responsabilizado pelas irregularidades. De outra parte, e aqui residem as maiores
complexidades, temos as ocupações gradativas (“favelas”), sobre as quais nenhum critério
presidiu a edificação das moradias, e que de regra se instalam nas áreas desprezadas pelo
mercado formal (ambientalmente ou geologicamente sensíveis e com toda sorte de riscos).
Nestes casos, inclusive, a periferização não chega a ser regra.

130
A ilegalidade e a informalidade decorrem de fatores variados e combinados, inclusive a ineficácia da própria
legislação, como já comentamos. Pelo menos desde a década de 80, vários governos e organizações da sociedade
civil (com destaque para aquelas dos próprios moradores) encetaram esforços para enfrentá-los, mas nos marcos
postos pela legislação, adaptando-os e deles se apropriando, como as ZEIS (Zonas de Especial Interesse Social,
admitidas pela própria lei 6766/79) ou a concessão de direito real de uso (decreto-lei 271/67). O Estatuto deu um
grande impulso a tal movimento (por exemplo, regulamentando a usucapião urbana e a concessão especial para
fins de moradia, esta por força da Medida Provisória 2220), mas é apenas com a lei 10977/2009 que uma
estrutura sistemática legal e nacional se afirma.
131
Tipificar e quantificar a irregularidade está longe de ser objeto de consenso, no ambiente acadêmico mas
principalmente governamental (veja-se, por exemplo, José Carlos Alves da SILVA, Direito urbanístico e
ambiental, p. 271-278). A adoção de um dado critério é decisivo para a efetividade- ou não- da política pública
correspondente.
61

Ademais, a regularização esbarra tanto no problema (i) da


precariedade ou ausência de equipamentos públicos (água, esgoto, drenagem, eletrificação e
iluminação) e comunitários (educação, saúde, lazer, convivência), quanto (ii) na ausência de
titulação do domínio e também (iii) na segregação socioespacial em si, com fragilidades
generalizadas no que tange ao emprego, ao transporte, à informação e participação, etc. Ou,
como bem definido por Betânia de Moraes Alfonsin, referência nacional e internacional no
tema:

“Regularização fundiária é o processo de intervenção pública, sob os aspectos


jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência de populações
moradoras de áreas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de
habitação, implicando acessoriamente melhorias no ambiente urbano do
assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da população
beneficiária”132.

A favela133, no entanto, é resultado mas também causa de


vários dos problemas urbanos (ambientais, econômicos e sociais). Sendo assim, e como
reconhece a mesma autora em outra obra134, as melhorias decorrentes da regularização
repercutem em toda cidade.

Eventualmente por isso, a lei 11.977/2009 define (art.46) a


regularização fundiária como:

“conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à


regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de
modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das
funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado” (grifos nossos).

A Lei 11.977/2009 prossegue (art. 47) com uma série de


outras definições, ora funcionais à sua própria interpretação (como ao diferenciar

132
Regularização fundiária, p. 163, com grifos nossos.
133
A expressão pode variar em cada região: vila, maloca, etc.
134
Direito urbanístico e política urbana no Brasil, p. 235.
62

regularização fundiária de interesse social daquela de interesse específico), ora de institutos


novos, também por ela introduzidos e regulados (demarcação urbanística e legitimação na
posse). Avança ainda ao estabelecer a observância a certos princípios 135, esclarecendo que
estes devem ser lidos à luz das diretrizes do art. 2º do Estatuto.

Nos artigos seguintes (49 a 52), cuida de estabelecer regras


gerais para o projeto de regularização e, na sequência de suas específicas modalidades, quais
sejam, a regularização de interesse social (artigos 53 a 60-A) e a regularização de interesse
específico (artigos 61 e 62), bem como das questões registrárias (artigos 64 a 68).

Os dispositivos da Lei 11.977/2009 integram e dialogam com


um plexo considerável de outras normas, de caráter social, urbanístico e ambiental, legais e
infralegais (por exemplo, Resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente-CONAMA),
de todos os entes federativos, e que nesse contexto devem ser interpretadas. Destaca-se ainda
as interfaces com os registros públicos de imóveis e sua normatização (especialmente a Lei
6015/73), considerando que a segurança da posse é um dos objetivos centrais da
regularização, mas, como nunca antes, dispõe-se agora de dispositivos que funcionam como
polarizadores e orientadores das ações de regularização.

2.6.3. Saneamento básico (Leis 11.445/2007 e 12305/2010).

O ambiente construído das cidades é fonte inesgotável de inspiração e


admiração, pela riqueza de possibilidades estéticas, seja no apuro artístico da arquitetura, na
geometria das vias, na pulsão dos aglomerados, e até no colorido das favelas.

135
“ Art. 48. Respeitadas as diretrizes gerais da política urbana estabelecidas na Lei no 10.257, de 10 de julho de
2001, a regularização fundiária observará os seguintes princípios:
I – ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, com prioridade para sua permanência
na área ocupada, assegurados o nível adequado de habitabilidade e a melhoria das condições de sustentabilidade
urbanística, social e ambiental;
II – articulação com as políticas setoriais de habitação, de meio ambiente, de saneamento básico e de mobilidade
urbana, nos diferentes níveis de governo e com as iniciativas públicas e privadas, voltadas à integração social e à
geração de emprego e renda;
III – participação dos interessados em todas as etapas do processo de regularização;
IV – estímulo à resolução extrajudicial de conflitos; e
V – concessão do título preferencialmente para a mulher.”
63

Mas há outra dimensão, tão intensa quanto despida de apelo, que subjaz
a este ambiente, quase que como veias e artérias de um corpo: a relação com a água e com o
recolhimento dos dejetos, ou, em resumo, o saneamento ambiental.

Ainda que estivesse consagrada em certos círculos a expressão


“saneamento ambiental”, a lei 11.455/2007 manteve a mais usual (e constitucional), qual seja,
“saneamento básico”, a fim de designar a politica (nacional)136 que veicula, enquanto
concretização de diversas regras constitucionais137. E inicia elencando ao menos 12
princípios138 (art. 2º) e estabelecendo igualmente uma série de definições (art. 3º), da qual a
mais estruturante é justamente a compreensão do saneamento como serviços (ai inclusos
instalações e infraestrutura) de abastecimento de água, esgotamento sanitário de efluentes,
drenagem e manejo de aguas pluviais no ambiente urbano, limpeza urbana e a coleta, manejo
e destinação final dos resíduos sólidos- este último regulado, para além do caráter de serviço,
igualmente pela lei 12.305/2010.

Os demais dispositivos irão tratar das atribuições do titular dos serviços


(artigos 8º a 13), do planejamento, prestação e regulação dos serviços (artigos 14 a 28), dos
critérios de sustentação econômica e social (artigos 29 a 42), dos aspectos técnicos e controle
social (artigos 43 a 47) e do papel da União (artigos 48 a 53).

No que tange á intersecção dos serviços de saneamento com o uso do


solo, há alguns pontos que se destacar.

O primeiro, evidentemente, é o princípio da universalização do acesso


(art. 2º, I). Dentre outros efeitos, e combinado com também outros princípios (inciso III, ou
adequação à saúde pública e à proteção do meio ambiente; inciso VI, de articulação com
outras politicas, inclusive de combate e erradicação da pobreza, todos do mesmo art. 2º) e

136
Os artigos 48 a 53, na verdade, tratam da politica federal de saneamento. Não é demais anotar que os custos e
a complexidade dos serviços de saneamento o tornam um dos com maior percentual de “federalização”; qual
seja, de dependência de estados e municípios em relação aos planos e recursos federais.
137
Para ficar apenas no terreno das competências constitucionais, artigos 21, inciso XX; 23, inciso IX,
combinado com seu parágrafo único; 24, inciso VI; e, em nosso paradigma, art. 182, “caput”. Por fim, o que a
lei mal tangencia, o artigo 200, inciso IV- o que não gera maiores prejuízos, a nosso ver, posto tratar-se de norma
de eficácia plena.
138
Luiz Henrique Antunes ALOCHIO (Direito do saneamento, p. 18-21) reporta interessante princípio não
explicitado, mas debatido na doutrina estrangeira, o da valorização, e que induz a se tratar os rejeitos como
matéria-prima relevante no ciclo de produção. Apenas no que tange aos resíduos sólidos, o princípio irá se
manifestar na Lei 12.305/2010, art. 6º, VIII.
64

regras (artigo 45, por exemplo, acerca da prioridade da ligação doméstica às redes públicas), a
inteligência da noção de universalização joga por terra, definitivamente, qualquer restrição à
implantação de serviços adequados de saneamento em áreas urbanas irregulares ou informais,
ou seu fornecimento em caráter precário, sob o argumento de “não incentivar a ocupação”. Ou
seja, irregularidade dominial ou urbanística não é, como não poderia ser jamais, fundamento à
restrição dos serviços.

O outro princípio a se destacar é a vinculação dos serviços com as


políticas de desenvolvimento urbano e regional e de habitação (o já citado art. 2º, inciso VI);
não obstante, o plano de saneamento básico é de atribuição do titular (e não do prestador,
quando este for concessionário) dos serviços139 (artigos 9º e 19), o que obrigatoriamente
conduzirá à coerência necessária entre o plano diretor e o plano de saneamento, como já
intuído por Victor Carvalho Pinto140. Considerando que o saneamento básico, nessa acepção
ampla, constitui a espinha dorsal da infraestrutura necessária à urbanização, aqui entendida
como expansão da malha urbana, fica, portanto, evidente a impossibilidade de que um- o
plano de saneamento- destoe do outro- o plano diretor, em especial no que tange à definição
das áreas urbanizáveis. Nem sempre, entretanto, é o que ocorre na prática da administração
pública, quando então a infraestrutura básica (com destaque para as redes de água e esgoto)
acabam funcionando como fator de pressão para o parcelamento e ocupação das áreas rurais
ou de expansão urbana.

Por seu turno, a Lei 12.305/2010 tem um acento diferente. Se quanto ao


saneamento básico trata-se primordialmente de dar institucionalidade a um serviço público- os
resíduos sólidos inclusos- aqui realça a responsabilização dos geradores de resíduos, cabendo
ao poder público o papel de, através dos planos de resíduos sólidos (artigos 14 e ss.), o
monitoramento, pesquisa, financiamento, incentivo e algumas limitações administrativas (por
exemplo, art.32). Seus princípios estão estabelecidos no artigo 6º, onde ficam patentes tais
elementos de compartilhamento de atribuições entre sociedade, especialmente o setor
produtivo, e os governos. Como bem destacado por Guilherme José Purvin de Figueiredo:

139
Deliberadamente, a lei não declara o titular (se os Estados federados ou os municípios). Tal definição é
conflituosa quando se trata de regiões metropolitanas ou outras situações de integração regional A decisão
iminente no bojo da ADI 1842-RJ, ora tramitando no STF, deverá repercutir nesse tema, conforme anotamos em
rodapé no item 2.1, “supra”.
140
Direito urbanístico, p.148.
65

“O cumprimento pleno da função social da propriedade implica em atribuir ao


proprietário do bem a responsabilidade pelo seu resíduo. É inadmissível
seguir a tendência no sentido de tolerar que o proprietário, usufruindo todas
as vantagens econômicas do bem que possui, descarte sua parcela indesejável
no meio ambiente, reduzindo com isto a qualidade de vida de toda a população
que jamais aproveitou, ainda que reflexamente, das vantagens daquela
propriedade”141.

Como bem se vê, a função social da propriedade que não a imóvel


também deita consequências à configuração da vida urbana, no que bem reparou o autor.

Ainda assim, restam igualmente responsabilidades ao poder público


também, das quais destacamos aquelas pertinentes à destinação final dos resíduos (art. 7º, III;
art. 17, IX e XI, “a”; e principalmente art. 19, II e XVIII), dado seu impacto no território.

2.6.4. Mobilidade urbana (Lei 12.587/2012).

A mobilidade é referenciada explicitamente (não obstante várias


relações implícitas) em mais de um “locus” do Estatuto; assim ocorre no art. 2º (incisos I, V e
VI “d”), art. 37, V; e especialmente, no art. 41,§ 2º, com a exigência de um plano de
transporte urbano compatível com o plano diretor, para os municípios com mais de 500 mil
habitantes.

A Lei 12.587/12, em vigor desde 14 de abril de 2012, realça tal


afinidade, no art. 1º (cujo parágrafo único reafirma o espaço rural como parte da politica
urbana) e sobretudo no artigo 2º142. O cerne dessa relação, entretanto, parece ser o elenco de
princípios da política de mobilidade urbana- art. 5º, especialmente os incisos II
(“desenvolvimento sustentável das cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais”),e
VII ( “justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do uso dos diferentes modos e
serviços”), e suas diretrizes, estampadas no art. 6º, incisos I (“integração com a política de

141
Resíduos sólidos, p. 1727, com grifos nossos.
142
“Art. 2o A Política Nacional de Mobilidade Urbana tem por objetivo contribuir para o acesso universal à
cidade, o fomento e a concretização das condições que contribuam para a efetivação dos princípios, objetivos e
diretrizes da política de desenvolvimento urbano, por meio do planejamento e da gestão democrática do Sistema
Nacional de Mobilidade Urbana.”
66

desenvolvimento urbano e respectivas políticas setoriais de habitação, saneamento básico,


planejamento e gestão do uso do solo no âmbito dos entes federativos”), II (“prioridade dos
modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte
público coletivo sobre o transporte individual motorizado”), IV (“mitigação dos custos
ambientais, sociais e econômicos dos deslocamentos de pessoas e cargas na cidade”, da qual
se deflui a diminuição do tempo e do número de deslocamentos, onde a distribuição de usos
pelo espaço urbano é determinante), e VI (“priorização de projetos de transporte público
coletivo estruturadores do território e indutores do desenvolvimento urbano integrado”). Em
outras palavras, e com base nos mencionados princípios, a relação entre uso o solo e
mobilidade é mais do que próxima; em verdade são elementos mutuamente dependentes para
as finalidades constitucional e legalmente estabelecidas. A partir do art. 8º, a lei tratará das
questões relacionadas ao serviço de transporte coletivo, especialmente tarifas, formas de
operação e direitos dos usuários (artigos 8º a 15), atribuições dos entes federativos 143 (artigos
16 a 20), e do planejamento e gestão da política de mobilidade (artigos 21 a 25).

2.6.5. Proteção e defesa civil (Lei 12.608/2012, c/c Lei 12.340/2010).

O regramento da defesa civil144 está estipulado pela Constituição (art.


22, inciso XXVIII) como matéria de competência privativa da União; entretanto, mesmo ao
leigo se mostra que os desastres de maior impacto (enchentes, deslizamentos, desabamentos,
etc.) estão diretamente relacionados ao uso e ocupação do solo urbano, e, indo mais além, às

143
Atendendo ao artigo 23, parágrafo único da Constituição, e dentre os quais destacamos alguns dispositivos do
artigo 23 da lei:
“Art. 23. Os entes federativos poderão utilizar, dentre outros instrumentos de gestão do sistema de transporte e
da mobilidade urbana, os seguintes:
I - restrição e controle de acesso e circulação, permanente ou temporário, de veículos motorizados em locais e
horários predeterminados;
II - estipulação de padrões de emissão de poluentes para locais e horários determinados, podendo condicionar o
acesso e a circulação aos espaços urbanos sob controle;
III - aplicação de tributos sobre modos e serviços de transporte urbano pela utilização da infraestrutura urbana,
visando a desestimular o uso de determinados modos e serviços de mobilidade, vinculando-se a receita à
aplicação exclusiva em infraestrutura urbana destinada ao transporte público coletivo e ao transporte não
motorizado e no financiamento do subsídio público da tarifa de transporte público, na forma da lei;
(...)
VII - monitoramento e controle das emissões dos gases de efeito local e de efeito estufa dos modos de transporte
motorizado, facultando a restrição de acesso a determinadas vias em razão da criticidade dos índices de emissões
de poluição; (...)”.
144
Sintetizando os conceitos do decreto federal 7527/2010, podemos entender defesa civil como “ações
preventivas, de socorro, e de recuperação de desastres” e estes últimos como “eventos adversos, naturais ou
provocados pelo homem sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais ou ambientais e
prejuízos econômicos e sociais.”
67

omissões, equívocos ou falhas sistêmicas da legislação respectiva, não obstante a ineficácia


administrativa em sua aplicação e exigibilidade. Portanto, é também na competência para
legislar sobre direito urbanístico (art. 24, inciso I, da Constituição), que a Lei 12.608/2012 vai
buscar seu fundamento de validade.

De fato, essa relação fica evidente logo nos objetivos da politica


nacional que veicula (art. 5º), dentre eles “incorporar a redução do risco de desastre e as
ações de proteção e defesa civil entre os elementos da gestão territorial e do planejamento
das políticas setoriais” (inciso IV); “estimular o desenvolvimento de cidades resilientes e os
processos sustentáveis de urbanização” (inciso VI); “estimular o ordenamento da ocupação
do solo urbano e rural, tendo em vista sua conservação e a proteção da vegetação nativa, dos
recursos hídricos e da vida humana” (inciso X); e “estimular iniciativas que resultem na
destinação de moradia em local seguro” (inciso XII).

Há ainda um número considerável de regras com rebatimento na


politica urbana, dispersas pelo texto da lei, algumas de fomento145 e outras vinculativas, ainda
que de grande obviedade146.

Por fim, a lei 12.608/2012, introduz relevantes alterações no Estatuto.


Uma delas é ao acrescer uma alínea “h” ao inciso VI do art. 2º, estabelecendo que a
“exposição da população a riscos de desastres” é um item a mais a ser evitado pela
“ordenação e controle do uso do solo”.

A outra está relacionada ao “cadastro nacional de municípios com


áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou
processos geológicos ou hidrológicos correlatos”, que compete à União elaborar (art. 6º, VI,
da lei 12.608/2012). A inserção no cadastro147, com conteúdo definido pelo art. 3º-A da Lei

145
“Art. 16. Fica a União autorizada a conceder incentivo ao Município que adotar medidas voltadas ao
aumento da oferta de terra urbanizada para utilização em habitação de interesse social, por meio dos institutos
previstos na Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, na forma do regulamento.
Parágrafo único. O incentivo de que trata o caput compreenderá a transferência de recursos para a aquisição de
terrenos destinados a programas de habitação de interesse social.”.
146
“Art. 23. É vedada a concessão de licença ou alvará de construção em áreas de risco indicadas como não
edificáveis no plano diretor ou legislação dele derivada.”
147
A Lei 6766/79 também foi alterada, no sentido de que “Nos Municípios inseridos no cadastro nacional de
municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou
processos geológicos ou hidrológicos correlatos, a aprovação do projeto de que trata o caput ficará vinculada ao
68

12.340/2010, não é exigível dos municípios, “a priori”. Uma vez inscrito, entretanto, (i) o
plano diretor torna-se obrigatório, conforme artigo 41 do Estatuto- redação dada pela Lei
12.608/2012- se já não o era por outros motivos, e (ii) o conteúdo mínimo do mesmo plano
diretor é ampliado- artigo 42-A do Estatuto, inserido pela Lei 12.608/2012. Para além do
cadastro, um artigo 42-B foi igualmente aposto ao Estatuto, estabelecendo regras acerca da
ampliação do perímetro urbano de qualquer município.

Assim, a politica urbana progressivamente se robustece, ao menos no


que tange à positivação de preceitos.

atendimento dos requisitos constantes da carta geotécnica de aptidão à urbanização” (art. 12, §2º, com redação
dada pela Lei 12.608/2012, e início da vigência após dois anos da promulgação desta ultima).
69

3. TEORIA E AÇÃO SOBRE A CIDADE.

Talvez tenhamos nos tornado um povo tão


displicente que não mais nos importamos com o
funcionamento real das coisas, mas apenas com a
impressão exterior imediata e fácil que elas nos
transmitem. Se for assim, há pouca esperança
para nossas cidades, e provavelmente para
muitas coisas na nossa sociedade. Mas não acho
que seja assim.
Jane Jacobs

No capítulo anterior (item 2.3.3), apresentamos certa visão do direito urbanístico


enquanto veículo de uma atividade preliminarmente definida como “o urbanismo”
(denominação adotada provisoriamente, a ser confirmada, por isso as aspas), o Direito
emprestando a esta- o “urbanismo”- uma coercibilidade e integração sistêmica no plano da
ação estatal, para além de meras conjunturas políticas. Como advertência também preliminar,
consignamos que uma das partes dessa relação (o dito “urbanismo”), não apenas se serve, mas
é igualmente transformada quando interage com a segunda (o Direito), por conta do
arcabouço-científico, histórico, politico e mesmo ideológico- em que se apoia o Direito148.

De outra parte (item 2.3.4), e com um pouco mais de profundidade, ponderamos


acerca do caráter multifacetário e de síntese com que se reveste o direito urbanístico. Se o fim
de abordagens estanques na pesquisa e na aplicação do Direito pode ser considerado uma
tendência em curso na ciência contemporânea, o direito urbanístico, quando se consolida, já o
faz com tal característica, justamente porque o objeto que busca regular- a cidade, como dado
cultural, sobretudo- é uma das mais complexas e mutantes experiências da história humana.

Em suma, o perfil que ressaltamos do direito urbanístico desta forma o é porque a


cidade e o “urbanismo” assim exigem.

148
Este processo por vezes exaspera alguns profissionais daquilo que tradicionalmente se denomina como
“urbanismo”, ou seja, com formação em engenharia, arquitetura e mesmo outras ciências sociais, como a
geografia, a política e a sociologia. De início, estes esperam certezas e literalidades na interpretação e na
aplicação da norma jurídica. Aos poucos, compreendem que a norma não é, e nem dever ser, mera transposição
de um programa de ação determinado e determinável “de per si”.
70

Mas, afinal, o que estamos designando com “urbanismo”? Muito mais do que meras
questões de nomenclatura, deve-se perguntar: a qual conjunto de atividades relacionadas com
a cidade se referencia o Direito para construir um universo denominado “direito urbanístico”?
Trata-se de arte, ciência, técnica ou ramo da filosofia? Qual seu objeto, método e relação com
outras atividades sociais, entre elas a política e a economia? Quais desafios coloca, em
especial ao mundo jurídico, para a concretização de suas finalidades (se é que elas existem
“de per si”)? E, em especial: como evoluiu e se apresenta no mundo contemporâneo, em face
das cidades repletas de contradições, insuficiências e singularidades?

As respostas a tais questões se impõem para além de simplesmente elencar elementos


técnicos visando à interpretação ortodoxa da norma urbanística, o que poderia ser obtido com
a enunciação de um glossário, ainda que extenso (v.g., o que é zoneamento? E coeficiente de
aproveitamento? O que se entende por planejamento regional?).

Certamente não se resume a isso. Na perspectiva deste trabalho, adotamos a premissa


de que a origem dos princípios que norteiam a aplicação do direito urbanístico (e não só dele,
mas da norma jurídica por sobre a cidade) deve ser buscada na própria cidade, bem como na
ação e reflexão sobre ela. Neste sentido, é primordial compreender a origem das concepções
que orientaram, e ainda orientam, a interação da sociedade com e, sobretudo, da ação estatal
sobre os aglomerados humanos.

Assim torna-se também primordial compreendermos aspectos importantes das


demais disciplinas que se debruçam à análise e explicação do “fenômeno da cidade”. A
riqueza e a diversidade de pesquisas, enfoques e principalmente de produção analítica sobre
as cidades por parte dos mais diversos ramos do saber (a Filosofia, a História, a Engenharia, a
Arquitetura, a Antropologia, a Geografia, a Sociologia, a Economia, a Ciência Política, e até
mesmo a Medicina e as ciências da natureza, como a Meteorologia) suscitam do Direito uma
abertura metodológica muito mais ampla do que aquilo que é oferecido, em um primeiro
momento, pela hermenêutica usual e mais consolidada, se a intenção for de fato apontar para a
eficácia social e também jurídica de seus preceitos. Em outras palavras, se apegado a métodos
tradicionais, ao invés de fomentar soluções aos graves problemas urbanos, ambientais e
sociais em um momento tão decisivo da história, o Direito estaria se amesquinhando,
desprezando o esforço conjunto e necessário que toda teoria e “práxis” devem encetar na
71

integração e concretização de valores relevantes à comunidade humana. Posicionado de forma


diversa, o Direito assumiria o papel que dele se espera, nem apartado, e nem diluído no
conjunto das ciências sociais, nos permitindo reconhecer, assim como Luis Roberto Barroso,
que “o direito tem seus limites e possibilidades, não sendo o único e nem sequer o melhor
instrumento de ação social”.149

Ao longo desta etapa do trabalho, procuraremos descrever alguns dos temas e das
ideias mais estratégicos para uma análise crítica do fenômeno urbano como ele se apresenta
no mundo contemporâneo. O recorte adotado obedece à premissa empírica da influência de
tais temas e ideias na ação - política, econômica e social- que redundou na configuração atual
das cidades, especialmente as brasileiras, suas mazelas e potencialidades. Por suposto, nem
remotamente ambicionamos construir um quadro completo e acabado das diversas
concepções de cidade e seus rebatimentos; ou seja, não podemos substituir outras disciplinas,
mas tão somente com elas estabelecer pontes.

O mais relevante desta exposição é apontar a necessidade imperiosa de o Direito e o


jurista reconhecerem a cidade, de modo que possam assim melhor atuar sobre ela. Sem isso,
formas ultrapassadas de hermenêutica continuarão a prevalecer, e as finalidades do
ordenamento jurídico ainda mais se distanciarão da realidade social.

A abordagem apresentada, especialmente após o item 2.2, é histórico-cronológica, e


sobre isso uma última advertência se faz necessária.

O percurso sobre tais temas e ideias não é linear, num ciclo demarcado de ascensão,
queda e abandono por parte dos cientistas e agentes políticos ou sociais. Ao contrário, há um
acúmulo, um retorno e por vezes um soerguimento de camadas já recobertas; processo longos
de maturação, acomodação e implementação; em certos momentos, como no presente, um
estilhaçamento de propostas e de teorias críticas, no aguardo (ou não) de nova consolidação.
Ainda assim, a perspectiva histórico-cronológica, além de nos permitir um enfoque
generalista, assumidamente adotado neste momento, ajuda a realçar a importância de duas
atitudes que julgamos essenciais.

149
Direito constitucional brasileiro, p.63.
72

A primeira, é que a urbanização na escala e na proporção atuais é um fenômeno ainda


novo em termos de história humana, e em vários de seus aspectos a ciência e mesmo a técnica
não desenvolveram ainda um arcabouço tão satisfatório como se imagina. Esperar delas
respostas seguras envolve certa temeridade.

A segunda, é que processos urbanos indesejáveis (segregação, degradação,


especulação) podem se instalar rapidamente, em face de equívocos, omissões ou
insuficiências, e sua supressão, de regra, demandam recursos humanos e financeiros enormes,
muitos anos depois, postos os impactos físico-territoriais das decisões a partir de normas e
concepções sobre a cidade. Em suma, é fácil e rápido criar um problema urbano, porém
difícil, longo (e dispendioso) revertê-lo posteriormente.

3.1. Urbanismo, planejamento e reforma urbanos.

Tão nova em perspectiva histórica quanto as cidades, na escala e dimensão


vivenciadas pelo mundo contemporâneo, é a palavra “urbanismo” como significante da
reflexão e intervenção sobre elas. Ao que tudo indica, o vocábulo começa a se disseminar no
início do século XX, a partir da França e associado aos planos de embelezamento, conforme
anota Flávio Villaça150. Por sinal, o citado professor paulista estabelece um contraponto
sistemático entre o urbanismo- as intervenções intraurbanas como saneamento, habitação e
transporte- e o planejamento urbano, este efetivamente designando a disciplina da ocupação
do espaço pelas aglomerações urbanas, assim como as relações entre elas151.

De fato, os modernistas, na década de 20 e com Le Corbusier152 à frente,


acabam por adotar “urbanismo” como a marca de suas propostas, à época radicais. O arquiteto
franco-suiço, por sinal, reconhece a natureza inovadora do urbanismo como fruto direto (i) da
emergência das grandes cidades, nos anos imediatamente precedentes e (ii) da necessidade de
reforma dessas mesmas cidades, afirmando inclusive que tal seria o desencadeador de uma
“nova arquitetura”153. Na doutrina corbusiana, urbanismo é tarefa dos arquitetos, apenas,
posto que derivado de um novo patamar da arquitetura, tanto quanto a cidade deveria ser

150
Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil, p. 205.
151
Ibidem, p. 173.
152
Urbanismo, p. 50.
153
Ibidem, p. 92.
73

apenas a transposição em escala maior da lógica que deve guiar o projeto da casa. As
consequências desta máxima, por sinal, serão analisadas mais adiante.

Ainda mais enfático é Marcelo Lopes de Souza, também apondo o urbanismo


como um subconjunto dentro do planejamento urbano, e realçando o fato de que aquele (o
urbanismo) é essencialmente voltado a aspectos estéticos, ao passo que o cientista social que
se dedica ao planejamento urbano incorpora -e prioriza- dimensões econômicas, políticas e
sociais154. O mesmo autor reitera diversas vezes tal relação, lembrando inclusive que
“urbanismo”, no mundo anglo-saxão, designa muito mais um estilo de vida (moda,
linguagem, hábitos e valores) do que propriamente certa atividade intelectual ou técnica155.

Entendemos pertinente o rigorismo adotado pelos dois autores acima,


contrapondo urbanismo e planejamento urbano, o segundo contendo o primeiro. As
transformações históricas que relataremos adiante lhes dão argumentos sólidos neste sentido.
Entretanto, a disseminação do uso da expressão “urbanismo”, muito além inclusive dos
círculos especializados ou intelectualizados, acabou por encontrar um nicho seguro na
linguagem cotidiana, como se tradução única ou completa da intervenção nas cidades. De
outra parte, denota certa permanência dos ideais e concepções modernistas- na visão do leigo-
acerca do que é, efetivamente, uma ação pública no âmbito urbano.

Por seu turno, “reforma urbana” é locução empregada geralmente para designar
um momento e um movimento definidos do planejamento urbano no Brasil -mesmo que
pretendesse e ainda pretenda ir além disso, como também comentaremos adiante. Suas raízes
estariam nas “reformas de base” propugnadas ao final do governo João Goulart, e estampadas
em manifesto de 1963 patrocinado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil- IAB ao cabo de um
congresso que reuniu inúmeros profissionais e pensadores no Hotel Quitandinha, em
Petrópolis-RJ, propugnando uma estratégia nacional e politizada de intervenção no espaço
urbano, centrada na habitação popular156.

Abatida em seu nascedouro pelo golpe de 1964, e retomada a partir de meados


da década de 70, a “reforma urbana” é novamente ancorada na questão da moradia popular.

154
Mudar a cidade, p. 57.
155
Ibidem, p. 59.
156
Luiz César de Queiros RIBEIRO e Adauto Lúcio CARDOSO, Planejamento urbano no Brasil: paradigmas e
experiências, p.86.
74

Paulatinamente, entretanto, foi ampliando seu escopo para os problemas fundiários e de uso e
ocupação do solo. Esse movimento foi essencial para a configuração dos marcos políticos e
jurídico-institucionais brasileiros acerca das cidades, como (i) o texto do capítulo “Da Política
Urbana” na Constituição, já anotado no capítulo anterior, (ii) a experimentação adotada por
diversos governos locais nas décadas de 80 e 90 em planejamento e gestão urbanos
reformistas, (iii) o advento das leis 10.257/2001,11.445/2007157 e outras, e por fim (iv) pela
criação do Ministério das Cidades e uma certa institucionalização da politica urbana158.

Ainda que decisiva à reflexão e ação sobre as cidades no Brasil, e com um


caráter multifacetado, a “reforma urbana” pode ser encartada como uma modalidade de
planejamento urbano, como aliás assim o faz Marcelo Lopes de Souza159. Isso nos parece
correto, e pode ser identificado empiricamente, ao menos em trabalhos que procurem
identificar grandes modelos de planejamento. Entretanto, certo cuidado é necessário quando
examina-se e classifica-se modelos mais recentes, posto o ecletismo (ou até o “ecumenismo”)
pois há uma imbricação patente entre tendências. O risco de incoerência também há de ser
considerado. O uso daquela expressão, entretanto, será adotado em vários momentos, posto
sua importância estratégica à compreensão do estágio atual da politica urbana no Brasil.

3.2. O planejamento e a cidade.

Como anotamos anteriormente, o percurso estabelecido neste capítulo não visa


a determinar o objeto do direito urbanístico - o que já propusemos no item 2.3.3 “supra” - mas
auxiliar na compreensão de seus institutos. Portanto, aceitando-se que a evolução do
planejamento urbano é que nos dará tais insumos, algumas advertências são também
necessárias.

A primeira diz respeito a certa confusão que se faz entre planejamento e


gestão urbanos. Ambos são atividades complementares e inseparáveis, porém com
referenciais temporais distintos (longos no caso do planejamento, imediatos na gestão), sendo
certo ainda que a gestão decorre, ou deveria decorrer, do planejamento. Aliás, substituir o

157
Além da lei 11.124/05, que regula o Sistema e o Fundo Nacionais de Habitação de Interesse Nacional
(SNHIS/FNHIS), e da também do marco legal da regularização fundiária (artigos 53 a 58 da lei 11977/2009)
158
Erminia MARICATO, O impasse da politica urbana no Brasil, p. 136 e ss.
159
Ibidem, p. 163, também ressalvando desvios mais recentes do movimento da “reforma urbana”, como um
excessivo apego aos planos diretores municipais enquanto ponto focal do planejamento.
75

primeiro pela segunda, como bem adverte Marcelo Lopes de Souza160 pode escamotear, em
verdade, uma inaceitável abstenção quanto ao planejamento.

O mesmo vale quando se contrapõe plano e projeto urbanísticos. Com efeito,


e considerando a ótica da intervenção no espaço urbano, o plano é um catalisador de
ideologias, interesses, propostas e desejos, ainda que de maneira territorializada. Como anota
Bernardo Sechi, em linguagem expressiva:

O plano urbanístico é muitas coisas ao mesmo tempo e, como tal, tem posto
muitos críticos em dificuldades. É imagem do futuro da cidade e do território,
antecipação do que esses poderiam ser ou que se desejaria que fossem. É
programação das intervenções que são consideradas necessárias para realizar
essa mesma imagem e satisfazer os desejos, as demandas e as necessidades
que esta tenta interpretar. É distribuição de incumbências(...) conjunto de
regras(...).”161

Projeto urbanístico, por seu turno, é a ideia e o programa de intervenção no


território, para além até da edificação. No passado (até o advento do modernismo), projeto
inclusive era algo que se antecipava162 ao plano; no presente, dada a institucionalização dos
planos, podemos considerar que os projetos se sucedem e estão vinculados aos planos, ainda
que numa relação de complementariedade, e não exatamente de hierarquia163.

A segunda advertência é quanto ao caráter pretensamente interdisciplinar do


planejamento urbano, aceito como imperativo lógico a partir especialmente da década de 50
do século passado, em face da complexidade acelerada com que o fenômeno urbano se
apresentou aos pesquisadores.

Ainda que desejável, tal interdisciplinaridade, sucedida a nosso ver de uma


decisiva integração entre disciplinas, não é um fim em si mesma, mas uma condição de
eficácia, e portanto deve acontecer na medida e com a peculiaridade dos problemas que se

160
Ibidem, p. 46-47
161
Primeira lição de urbanismo, p. 132
162
Ibidem.
163
Flávio VILLAÇA (Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil, p. 175) também
busca apartar as duas realidades, acentuando o caráter do projeto enquanto execução.
76

enfrenta. Henri Lefebvre cita várias situações onde malogra a síntese de saberes, por
decorrências das próprias ciências afins, seus métodos e premissas:

“(...)essa complexidade torna indispensável uma cooperação interdisciplinar.


O fenômeno urbano, tomado em sua amplitude, não pertence a nenhuma
ciência especializada. Mesmo considerando-se como princípio metodológico
que nenhuma ciência renuncia a si própria, mas que ao contrário, cada
especialidade deve levar a utilização de seus próprios recursos até o limite
para atingir o fenômeno global, nenhuma dessas ciências deve pretender
esgotá-lo(...)”.164

Encerrando essa contextualização, importa ressaltar que não faltam propostas


de tipologias do planejamento urbano. Observamos, entretanto, que estas são construídas e
justificadas essencialmente a partir da interpretação da história recente, tanto das propostas
quanto dos processos concretos.

Nos itens seguintes, pretendemos estabelecer os momentos mais relevantes


dessa história.

3.2.1. Cidade e infraestrutura econômica.

O crescimento das cidades não é uma linha contínua, dos assentamentos


pós-revolução agrícola até a metrópole contemporânea, e nem nos interessa no âmbito deste
trabalho retroceder à cidade-estado grega, Roma ou mesmo à cidade medieval. A importância
daquelas todas é um fato, posto que berço da filosofia e da racionalidade ensejadoras dos
movimentos políticos, culturais e sociais que deram ao mundo a configuração hodierna. Não
por acaso, as reminiscências dessa cidade antiga (o “casco original”, na Europa, a cidade
colonial nas Américas- no extremo oriente este referencial parece ser abandonado com maior
facilidade) continua a povoar as reflexões de estudiosos, e principalmente, evocar no cidadão
comum sentimentos nostálgicos de um pretenso humanismo perdido, ainda mais em face do
caos das grandes metrópoles. Tal sentimento, propulsor inclusive de intensa atividade

164
A revolução urbana, p. 55-56.
77

econômica, turismo à frente, tem origem, para Henri Lefebvre165, em difusa perplexidade que
acomete o habitante da cidade com o processo que rompeu a lógica da cidade essencialmente
politica a partir do XIX: sua captura pela industrialização.

Não se trata - e aqui vai uma ideia central para compreender o


desenvolvimento restante do trabalho – tão só de uma ocupação física das cidades pela
indústria, mas sim, no primeiro momento, da lógica organizacional (cristalizada no
taylorismo-fordismo) se enfronhando na estruturação da cidade, direcionando seu
desenvolvimento para (i) a reprodução da força de trabalho, e (ii) a organização da
distribuição de bens166. Num momento seguinte, as relações entre o capital e a cidade se
tornam ainda mais imbricadas e dialéticas, pois, nas palavras de Mark Gottdiener, “se as
necessidades de capital se manifestam no espaço, as mudanças espaciais se manifestam nas
necessidades de capital”167. Ou seja, não há simplesmente uma projeção do capitalismo no
espaço, mas uma interação entre espaço urbano e infraestrutura econômica.

Indo mais além, David Harvey168, anota que as cidades são tanto
produto quanto condição das mudanças sociais decorrentes do processo de acumulação de
capital e formação de excedentes. Neste sentido, as decorrências do chamado “capitalismo
tardio” ou do “modo de acumulação flexível” também se fazem sentir nas cidades.

Nada é simples nessa seara, porém. Compreender processos


econômicos não é suficiente para diagnósticos completos e planos de ação perfeitos no que
tange ao espaço. Na versão do mesmo David Harvey, as crises cíclicas de geração de
excedentes além do esperado para a economia capitalista acabam por se contradizer com a
imobilidade do ambiente construído. O produto resultante conspira contra propostas de ação
de ciclo curto ou médio, tornando-os ultrapassados antes mesmo de se completarem. A

165
Direito à cidade, p. 19 e p. 101. A relação paradoxal dos habitantes da cidade com seu passado edificado é
pontuada por vários outros autores, entre eles David HARVEY (Condição pós-moderna, p. 271).
166
Dentre outros, Manoel CASTELLS (A questão urbana, p.64, e várias outras passagens). Porém, nos aspectos
quantitativos, a relação entre industrialização e urbanização não é assim tão direta. O próprio CASTELLS
(ibidem, p. 55-57) nota como nos países periféricos surgem “cidades parasitárias”, onde a hiperurbanização se dá
acima do nível de industrialização.
167
A produção social do espaço urbano, p. 32.
168
A produção capitalista do espaço, p. 165. O mesmo HARVEY (ibidem, p. 151-152), assim como
GOTTDIENER (ibidem, p. 211 e 222), demonstram que certos acordos (entre capital e trabalho) e divergências
(entre setores do capital), inconcebíveis no plano mais geral das disputas econômicas, acabam ocorrendo em
“alianças para o desenvolvimento local” nas cidades ou regiões. Isso só reforça o quão simplório pode ser a mera
transposição dos arranjos políticos e ideológicos globais para o campo do planejamento urbano.
78

compreensão de processos extraurbanos - econômicos, culturais e mesmo sociológicos, que


quase se fundem à análise da sociedade urbana169 - por si só não têm sido suficiente para
direcionar o desenvolvimento urbano, seja igualmente ns mesmos campos, mas também
naquele político e filosófico. Como bem esclarece Mark Gottdiener:

(...) o ambiente construído assume uma forma que representa as


características do capitalismo tardio, mas que não reflete qualquer conjunto
de imperativos socioespaciais coerentes produzidos por esse sistema. Embora
a disponibilidade geral de capital para o circuito secundário possa
determinar, de maneira cíclica, a intensidade total da atividade no setor
imobiliário, não pode explicar a forma específica que assume o
desenvolvimento”.170

A parte final da citação acima, por nós grifada, já aponta para outro
aspecto da interação entre a cidade e o processo produtivo, e que será igualmente decisivo
para nossa análise: a cidade, mais especificamente o solo urbano e a partir da industrialização,
deixa de ter apenas um valor de uso, predominante no passado, e passa a ter um valor de
troca171, inserindo-se decisivamente na circulação de capital e sendo por isso mesmo moldado
em função de sua dinâmica. Em grande número de casos a lógica dos urbanistas e a dos
financistas caminham juntas, ora uma precedendo a outra, o que já demonstrou na prática Jane
Jacobs172.

Como observaremos a seguir, a história recente da urbanização (aquela


na qual o crescimento das cidades está vinculado à infraestrutura econômica) pode ser
resumida a dois grandes caudais, intelectuais e políticos, por vezes explícitos, outros
subliminares, porém identificáveis a um olhar mais acurado, mas fundamentalmente
dialéticos: de um lado a concepção e também a implementação de “cidades ideais” 173, ou
utopias urbanas, e de outro as propostas de “reforma urbana” em sentido amplo (portanto não
exatamente o movimento crítico a que nos referimos anteriormente), corrigindo vetores de
169
Manoel CASTELLSs chega ao limite de converter (Problemas de investigação em sociologia urbana, p.57) a
sociologia urbana em sociologia geral, na esteira da colonização dos valores e práticas urbanas abarcando toda a
sociedade,
170
Ibidem, p. 226.
171
Henri LEFEBVRE, Direito à cidade, p. 14.
172
Morte e vida das grandes cidades, p. 335. Diversos exemplos dessa interação poderão ser inferidas em nosso
percurso ao longo da história do urbanismo.
173
Da qual Brasília é um dos ícones maiores.
79

expansão urbana e mesmo refazendo em termos diferentes as áreas edificadas (habitações,


sistemas viários, espaços públicos) existentes, Ainda que o primeiro movimento seja
minoritário no que tange à implementação concreta de suas premissas, a influência ideológica
e técnica sobre o segundo movimento é imenso174, e no mais das vezes as dimensões acabam
se fundindo no caso específico ora de um plano, ora de um projeto.

Ambos interessam a nós, juristas ou não juristas, aos quais se impõem o


reconhecimento das cidades.

3.3. Higienismo e contradição nos primórdios do urbanismo.

O período que vai do fim das guerras napoleônicas até as revoluções de 1848
(na França, Alemanha, Itália, Áustria, dentre outros países) foi de intenso crescimento
demográfico e reorganização espacial na Europa, especialmente nas regiões industrializadas,
com expansão das cidades por força da migração a partir do campo. Atraídos pelas novas
atividades, os trabalhadores (operários, mas não só) ocupavam desordenadamente os espaços
vazios dos bairros já implantados ou geravam periferias desordenadas. Esse período vibrante
gerou igualmente um número considerável de propostas idealistas (no bojo do “socialismo
utópico”) acerca de novas formas de organização política e social, veiculadas por nomes
como Saint-Simon (talvez o primeiro a enunciar a ideia da função social da propriedade),
Robert Owen, Charles Fourier, Pierre-Joseph Proudhon e Etiene Cabet. A maioria dessas
propostas é focada nas virtudes da vida comunitária e, portanto, em concepções também
utópicas sobre a cidade e a habitação ideais175. Algumas chegaram mesmo a se implantar pelo
esforço de seus inspiradores e seguidores, mas fracassaram logo em seguida, ao menos se
considerarmos o critério de expansão e adesão176. No campo ideológico e político, e por
vários anos seguintes como veremos, a influência de tais iniciativas foi intensa, e perdurou
por vários anos seguintes, como veremos.

Na segunda metade do século XIX, a urbanização incrementa-se ainda mais,


agora porém numa escala que acaba gerando problemas inéditos, mas que se tornariam
estruturantes logo adiante.

174
Neste sentido, Jane JACOBS (Morte e vida das grandes cidades, p. 335 e ss.), Flávio VILLAÇA (Uma
contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil, p. 175), dentre outros.
175
Françoise CHOAY (O urbanismo, p. 61 e ss.) a eles se refere como “pré-urbanistas progressistas”.
176
Leonardo BENEVOLO, As origens da urbanística moderna, p. 51 e ss.
80

A pobreza e a miséria, já presentes na vida no campo, concentram-se nas


cidades e inclusive ocupam a vizinhança da classe dominante, a qual sempre teve a cidade
como seu espaço de exercício do poder e de satisfação. Mais do que isso, essa pobreza
concentrada se mostra como um verdadeiro “barril de pólvora”, de iminente irrupção no
campo politico. Como bem sintetiza Peter Hall:

“O problema era a própria cidade-gigante. A percepção dele [o problema] viu-


a como fonte de inúmeros males sociais, possível declínio biológico e
insurreição política em potencial. De 1880 a 1900, talvez até 1914, a
sociedade de classe média- os que tomavam as decisões, os editorialistas, os
panfletistas, os ativistas- estava fugindo, apavorada. (...).Essa pobreza fora
endêmica desde os primórdios da sociedade, mas, no campo, pudera
permanecer mais ou menos oculta; uma vez, porém concentrada na cidade,
mostrou-se por inteiro, (...). A diferença, portanto, reside na concentração, em
virtude da qual alguns milhares de ricos e alguns milhões de indivíduos de
classe média foram levados a um contato estreito com milhões de pobres e
indigentes.”177

A partir da década de 50 do século XIX, sob o argumento- plausível, com


toda certeza- de combater as inúmeras epidemias que assolavam as cidades, especialmente
cólera, várias administrações públicas estabeleceram e implementaram as primeiras grandes
intervenções urbanas, com enfoque no saneamento (Londres, 1848-65), mas principalmente
na expansão periférica (Barcelona, 1859; Viena, 1857). Justamente por conta desse argumento
é que genericamente esse momento foi posteriormente alcunhado como “higienista”.
Entretanto, como já se pode inferir, isso é apenas a face exposta de uma deliberada tentativa
de manter sob controle as classes mais desprovidas, e, por isso mesmo, potencialmente
revolucionárias.

Entretanto, o verdadeiro ponto de inflexão dessa primeira fase é a reforma


conduzida na malha urbana de Paris pelo Barão Haussmann, de remodelação incisiva sobre o
“casco”- áreas centrais ocupadas pela população mais pobre- da cidade, mediante a abertura

177
Cidades do amanhã, p. 50.
81

de largas avenidas, tanto ali quanto na periferia178. As obras duraram de 1853 a 1869, criando
o paradigma (“in casu”, o próprio Haussmann) do engenheiro movido por razões puramente
técnicas, e, portanto, conservador em relação àqueles utopistas do período anterior.

De outra parte, a ênfase na abertura de vias acaba exatamente por reafirmar e


garantir, no território, a separação entre espaço público (representado pelas ruas, praças e
bulevares) e espaço privado (a habitação). Essa atitude reforça a importância desde antes
anunciada, e confirmada pelos pósteros, da habitação como unidade básica do planejamento
urbano. Entretanto, também franqueia em definitivo a atividade imobiliária, ainda mais aquela
de caráter especulativo calcada na valorização artificial do terreno por força de obras públicas.
Ainda que contrário a tal consequência, a verdade é que a ação de Haussmann e outras que se
lhe seguiram consolidou a característica de que, nas palavras de Leonardo Benevolo, “ao
contrapor fortemente espaços privados e públicos (...) esta nova estrutura pretende superar o
antigo dualismo entre campo e cidade, e seu corolário mais recente, isto é, a apropriação
privada do território urbano, para daí tirar uma fonte de receita.”179.

As reformas não apontaram para a superação da pobreza na cidade, ao


contrário, mesmo as agravaram, de forma que em 1880 cerca de 35% da população londrina
era considerada pobre e morava precariamente. Guardadas as peculiaridades – por exemplo, a
formação de guetos étnicos em cidades de imigrantes, como Nova Iorque- a salubridade da
habitação e outras questões associadas, como alcoolismo e violência, era verdadeiramente o
“espectro que ronda a Europa” no final do século XIX. E, por mais que leis fossem aprovadas
e fundos fossem alocados, o problema não era facilmente equacionado, deixando perplexos a
todos. Causava espécie, por exemplo, a resistência dos operários quanto à iniciativas de
remoção, posto que já haviam criado- e gostariam de manter- redes de auxílio mútuo e
economia doméstica no próprio bairro, como bem descreve Christian Topalov180.

Ainda assim, até o inicio do século XX outras contribuições decisivas se


apresentaram para a solução dos problemas urbanos; algumas, entretanto, o foram no sentido
de defender uma “fuga das cidades”, ou mais apropriadamente a tentativa de reverter o

178
Foram 95 quilômetros de vias no perímetro tradicional da cidade, e outros 70 em espaços periféricos para
serem ocupados posteriormente na periferia (conf. Leonardo BENEVOLO, História da cidade, p. 589).
179
História da cidade, p. 631.
180
Da “questão social” aos “problemas urbanos”, p. 28. Se à mente do leitor vierem as dificuldades de
remoções em favelas no presente por motivos idênticos, não terá sido por acaso.
82

processo desencadeado cerca de um século antes pela industrialização e que redundara nas
grandes cidades. Com este viés, destaca-se a vertente representada por Ebenezer Howard e a
“cidade-jardim”, ou a proposta de uma pequena comunidade que representasse a união
perfeita entre o urbano e o rural, planejada e totalmente setorizada e integrada numa lógica
rigorosa. Em grande medida, a proposta se nutria dos utopistas, mas ia muito além quando
destacava o conceito cultural de cidade, a par dos aspectos materiais como o oferta de
moradia e alimentação181. Sua influência se faria sentir enormemente no futuro próximo,
ainda que não exatamente como concebida.

Mas é Frank Lloyd Wright que introduz um elemento essencial à essa crítica
da cidade degrada: o individualismo, e também a proposta de diversificação dos espaços de
moradias, integrados à natureza inclusive no que se refere ao uso dos materiais de construção.
Na definição de Susan Faistein e Scott Campbell,

“Frank Lloyd Wright stands betwen Howard and Le Corbusier, at least in age.
If Howard’s dominant value was cooperation, Wright’s was individualism. And
no one can deny that he practiced what he preached.(…). Wright wanted the
whole United States to become a nation of individuals.”182 183

O ponto nodal da teoria urbanística de Wright é a “broadacre city”, unidades


formadas por pequenos núcleos urbanos, unidos por vias largas e extensas, com grandes
terrenos afetados a cada família e dispondo de também grandes espaços livres. Nas palavras
dos mesmos autores:

“His planned city, which he called ‘Broadacre’, took decentralization beyond


the small community (Howard’s ideal) to the individual family home. In
Broadacres all cities thousands of homesteads that cover the countryside.
Everyone has the right to as much land as he can use, a minimum of an acre
per person.(…) A network of superhighways joins together scattered elements

181
Por isso mesmo classificado como “urbanismo culturalista” por Françoise CHOAY, ibidem, p.27.
182
Urban utopias in the twentieth century, p. 35.
183
Frank Lloyd Wright está entre Howard e Le Corbusier, pelo menos no tempo. Se o valor dominante de
Howard era a cooperação, o de Wright era o individualismo. E ninguém pode negar que ele praticava o que
pregava. (...). Wright queria que os Estados Unidos se tornassem uma nação de indivíduos. (versão de nossa
autoria).
83

of society. Wright believed that individuality must be founded on individual


ownership.”184 185

Também o chamado “movimento ‘city beautiful’”, proposta de redefinição da


cidade de Chicago (encabeçada por Daniel Burnham), a partir de novos logradouros, remoção
de cortiços e ampliação de parques, vai, mais adiante, inspirar projetos e concepções de
planejamento urbano, ancorado em um caráter monumental e intencionalmente reestruturador
do desenho posto da cidade, quase fazendo “tábula rasa” do existente em prol de uma
grandiosidade cívica. Na ocasião, porém, a proposta continha um viés integrador186 quanto às
diversas comunidades étnicas ou linguísticas que se constituíram no processo de imigração
para as grandes cidades norte-americanas no século XIX.

Por fim, mas não com menor importância, cabe uma referência a duas
concepções aparentemente contraditórias.

De um lado, aos projetos de Tony Garnier e sua “cidade industrial”, na qual


se estabeleceria a separação das funções urbanas, estruturada de forma rigorosa e detalhista-
mais até do que a “cidade-jardim” – e, sobretudo (i) o enaltecer da construção padronizada, a
partir das novas técnicas e materiais desenvolvidos pela indústria, especialmente o concreto, e
ainda (ii) a defesa da verticalização. Sua influência no modernismo de entre guerras (item 2.4,
“infra”) é visceral.

De outro, um aparente contraponto aposto por Camillo Sitte, anterior mesmo


a Howard, mas centrado na valorização da estética e da arte como elementos fundantes de
uma certa humanização da vida nas cidades, recuperando e atualizando seu papel de local de
convivência e trocas culturais tanto quanto na cidade antiga187.

184
Ibidem, p. 35-36, com grifos nossos.
185
Sua cidade planejada, a qual ele chamou de “Broadacre”', levou a descentralização para além da pequena
comunidade (o ideal de Howard), para a casa da família dos indivíduos. Nas “Broadacres”, todos têm o direito a
tanta terra quanto puderem usar, com um mínimo de um acre por pessoa. (...) Uma rede de autoestradas une
elementos dispersos da sociedade. Wright acreditava que a individualidade deve ser fundada sobre a propriedade
individual. (versão de nossa autoria)
186
Peter HALL, Cidades do amanhã, p. 211-215.
187
Ou seja, Sitte se mostra despregado da ênfase racional que já se tornava hegemônica. Justamente por isso,
será recuperado posteriormente, quando da crítica àquela linha.
84

Ainda que tenhamos deixado de lado inúmeras outras contribuições neste


período, podemos afirmar que aquelas acima relatadas lançaram as bases para a emergência
do chamado “movimento modernista”, e mesmo do “urbanismo” (novamente com aspas) logo
após a Primeira Grande guerra.

3.3.1. Cidades brasileiras na transição para a República.

O processo de expansão das cidades brasileiras entre o final do século


XIX e o início do século XX não coincide exatamente com os movimentos (especialmente a
industrialização) que operaram na Europa e nos EUA até antes disso. Em parte, porque se
dava em poucos núcleos (Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Porto Alegre, Salvador 188), e
ainda porque estes mantinham características de centro administrativo, político e comercial ou
de serviços, onde residiam os proprietários de terras, que periodicamente retornavam às
fazendas, além dos grupos que da renda destes dependiam, como bem anotado por Milton
Santos189. Quanto á prevalência do cortiço insalubre como forma de moradia das classes não
proprietárias e a ocorrência periódica de surtos epidêmicos, entretanto, ao menos São Paulo e
Rio de Janeiro assemelhavam-se às suas correspondentes europeias. Portanto, soluções
higienistas (no discurso) também se farão sentir por aqui.

Em São Paulo os cortiços foram proibidos190 nas áreas centrais a partir


do Código de Posturas de 1886 (nada mais do que a reformulação da Lei Municipal 62, de
1875), a mesma norma que, paradoxalmente e por força de seus padrões construtivos,
inviabilizava no perímetro urbano a edificação popular, como demonstra estudo clássico de
Raquel Rolnik191. A expansão da moradia das classes populares, portanto, só poderia ocorrer
na direção da periferia, cujos territórios não estavam abrangidos pelos rigorosos padrões
adotados.

188
Belo Horizonte, cidade planejada dentro do conceito de Haussmann de largas avenidas e bulevares com
urbanização controlada na periferia, só foi inaugurada em 1897. O plano original projetava uma população de
100.000 habitantes, e não os atuais 2.375.344 habitantes aferidos pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) no censo de 2010.
189
A urbanização brasileira, p. 21-22. No período de 1872 a 1900, conforme o mesmo autor, a população urbana
passou de 5,9 para 9,4%, de um total, no início do século, de pouco mais de 17 milhões de pessoas. De qualquer
forma, a urbanização se iniciava e acelerava.
190
O Plano Municipal de Habitação de São Paulo assume a persistência, ainda, de 80.389 domicílios em cortiços
(http://www.habisp.inf.br/theke/documentos/pmh/pmh_versao_outubro_2011_pdf/PMH, acesso em 22/09/2012.)
191
A cidade e a lei, p. 37 e 60.
85

Ainda que míope, esse movimento tinha uma finalidade. Nas palavras
da mesma autora:

“A primeira preocupação da legislação municipal, além de redesenhar as ruas


centrais, foi eliminar estas formas de ocupação da área mais valorizada- o
centro da cidade. Com a proibição da instalação de cortiços, casas de
operários e cubículos, proibiu-se genericamente a presença de pobres no
centro da cidade, que no momento em estudo era o principal objeto de
investimentos através dos chamados ‘Planos de Melhoramentos da Capital’.
Esse tipo de intervenção no território ‘popular’ complementava o projeto
urbanístico municipal de construção de uma nova imagem pública para a
cidade, aquela de um cenário limpo e ordenado que correspondia à
respeitabilidade burguesa com a qual a elite do café se identificava”192.

Para além disso, mas com essa diretriz associada, estava a preocupação
com a rentabilidade dos imóveis nessa região central193, no que São Paulo acompanhava
portanto a emergência do mercado imobiliário acoplado às obras de remodelação urbana (item
2.3, “supra”).

Já o Rio de Janeiro abrigou no início do século XX uma profunda


intervenção urbana, o chamado “Plano Pereira Passos”, executado entre 1903 e 1906, mas
proposto e debatido desde o final do império (1875). O conjunto de obras (aterros, avenidas,
etc.) não escondia a inspiração de além-mar, e marcou o período dos chamados “planos de
embelezamento”. Foi talvez, como afirma Flávio Villaça194, o primeiro e único plano (e
respectivos projetos) integralmente executado e conforme as linhas traçadas por seus
idealizadores, dentre tantos outros que se sucederam nas cidades brasileiras. Para completar
seu parentesco com as iniciativas europeias e norte-americanas, não faltaram inclusive as
interferências do capital especulativo, interessado na valorização imobiliária ao final, e a
condição hegemônica das classes dirigentes195 no debate e deliberação quanto às ações, o que
talvez explique sua efetividade, como comentamos.

192
Ibidem, p. 37.
193
Ibidem, p. 42-44.
194
Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil, p. 197.
195
Ibidem, p. 194 a 197.
86

Podemos inferir então, “mutatis mutandis”, certa identidade politica e


ideológica desse início da urbanização brasileira com o que ocorria no exterior, ou mais
especificamente na Europa; entretanto fatores nativos (como o início da formação de
periferias ilegais) trariam consequências sérias, o que observaremos adiante.

3.4. O modernismo, primeiro ato (entre guerras).

O modernismo no período entre guerras não é um movimento centrado


exclusivamente na reflexão e proposição de soluções urbanas. Trata-se em verdade da
expressão peculiar, no urbanismo196, de uma série de manifestações culturais, especialmente
as artísticas, mas também sociais e políticas, cujas raízes podem ser buscadas décadas
anteriores (por exemplo o impressionismo nas artes plásticas e o simbolismo na poesia),
abarcando inclusive ideias contraditórias entre si, por vezes. Na perspectiva urbanística, no
entanto, adquire face própria, posto que se debruça sobre uma realidade concreta e cotidiana:
as cidades.

Se pudéssemos definir o modernismo urbanístico, o faríamos com David


Harvey197, que identifica ali um apogeu do culto à racionalidade, que se iniciara muito antes,
no iluminismo, mas que igualmente guarda a pretensão de dominar a natureza, e assim
dominar também o destino e mesmo a felicidade do homem. Tanto como o iluminismo em
face dos valores medievais, o modernismo também é, portanto, contestador em relação a seus
precedentes, e rompe de maneira radical com eles, como se pudéssemos iniciar um mundo
novo das ruínas do anterior. Nas palavras de Le Corbusier:

“(...) portanto, penso bem friamente que cumpre chegar a essa ideia de
demolir o centro das grandes cidades e de reconstrui-lo, e que cumpre abolir o
cinturão miserável dos subúrbios, transportar estes para mais longe e, no local
em que estavam, instituir, pouco a pouco, uma zona de proteção livre que, no
momento oportuno, dará perfeita liberdade de movimentos(...)”.198

196
Já presente nas décadas anteriores, mas que só nesse momento incorpora a expressão como marca, conforme
anotamos no item 2.1, “supra”.
197
Condição pós-moderna, p. 24 e 36-37, mas também Jurgen HABERMAS (Arquitetura moderna e pós-
moderna, p. 118).
198
Urbanismo, p. 87.
87

São pensamentos com um pé na utopia, e outro no sentido épico da história


(por sinal também presente nos totalitarismos) tão em voga na época, mas que não desprezam
os comezinhos aspectos financeiros, ainda que pensados como um patrimônio público, como
se nota na continuidade da exposição:

“(...)e daqui até lá permitirá constituir a preço baixo um capital cujo valor
decuplicará e mesmo centuplicará. Se o centro das cidades é o capital
intensivamente ativo com o qual especula a bolsa desenfreada da especulação
privada (o caso de Nova York é típico), a zona de proteção constitui nos autos
da municipalidade uma reserva financeira formidável”199.

Ao observarmos as experiências relatadas no item anterior, com a possível


exceção de Camillo Sitte (mas que terá importância mais à frente) fica fácil observar, desde
então, o componente racional-científico, inclusive entre os utopistas. Mas o que de fato
desprega o modernismo a partir do final da Primeira Guerra mundial de seus antecessores é
que, ao invés de se adaptar à industrialização, ele a celebra e a incorpora em suas premissas,
especialmente no que tange à produção em massa de formas padronizadas (fordismo) e a um
grande apego à linha reta e despojada. Como expressa o mesmo Le Corbusier, o grande
panfletário do movimento:

“esse sentimento moderno é um espírito de geometria, um espírito de


construção e de síntese. A exatidão e a ordem são sua condição. Nossos meios
são tais que a exatidão e a ordem nos são possíveis e o labor acirrado que nos
deu os meios de realização cria em nós esse sentimento que é uma aspiração,
um ideal, uma tendência implacável, uma necessidade tirânica”200.

O modernismo se espraiou em muito devido aos Congressos Internacionais de


Arquitetura Moderna- CIAM’s, a partir de 1928 e até o final da década de 50. No bojo destes
(mais especialmente do IV CIAM-1933) veio a público a célebre Carta de Atenas, na qual se
pretendia definir as funções da cidade: morar, trabalhar, circular, divertir-se. O zoneamento
funcional, ou a estruturação da cidade a partir de um mero jogo de encaixe entre estes

199
Ibidem, p. 88.
200
ibidem, p. 36.
88

atributos, é alçado à condição de cânone, ainda que já tenha precedido os modernistas desse
período enquanto norma e diretriz201 e até mesmo na prática de alguns planos.

Entre os nomes principais do movimento estão Walter Gropius e Mies Van der
Rohe (Escola Bauhaus), mas principalmente Le Corbusier. É a doutrina deste ultimo (mas
também de outros comentados nos itens anteriores) que sintetizará os desdobramentos mais
estratégicos para o urbanismo nos anos seguintes. É nele também que encontraremos a defesa
enfática e radical do modernismo como acima o caracterizamos; na verdade, o próprio Le
Corbusier se encarregou de estabelecer tal formato, com seus livros, sua atuação e projetos,
dos quais poucos saíram do papel. O principal deles, a chamada “Cidade Radiosa”, resumia
muito de seu pensamento: verticalização total das construções, deixando amplos espaços
verdes e para circulação de automóveis; padronização das construções, especialmente das
moradias (que ele chamava de “células” ou “máquinas de morar”), inclusive quanto ao
mobiliário; e uma divisão não apenas de funções, mas, sobretudo, de classes. A rua, para Le
Corbusier, era apenas uma artéria para o tráfego dos automóveis, sendo outros os espaços (e
também apartados por classes sociais) de convivência social.

A par do modernismo, outra vertente importante para o futuro do planejamento


urbano se desenhava no âmbito da sociologia, por força da chamada “Escola de Chicago”.
Sob tal égide, se encontravam pesquisadores (em especial Robert Park, Ernest Burgess e
Rodrick McKenzie) que enfatizavam os levantamentos empíricos202 como método para ao
final conseguir relacionar a criminalidade com a inserção do individuo na sociedade urbana,
numa perspectiva de ecologia humana, e portanto, de interação entre os grupos (étnicos,
sobretudo)203, inclusive de como eles se sucediam na ocupação do espaço urbano. Para além
da questão criminológica204, ficava definitivamente demonstrada a relevância da sociologia (e
também da geografia, da psicologia, da economia, etc.) num urbanismo que logo adiante se
moldaria como multidisciplinar.

Voltando ao modernismo, podemos afirmar que ele representa um ponto da


fusão das tendências que o precederam, desde mesmo o iluminismo, como afirmado. Apesar

201
Ver, no item anterior, as propostas de Tony Garnier.
202
Não foram os primeiros, porém. Charles Booth já fizera um trabalho de coleta e sistematização detalhada de
dados sobre a pobreza na Londres vitoriana (como relata Peter HALL, Cidades do amanhã, p.31)
203
Manuel CASTELLS, Problemas de investigação em sociologia urbana, p. 31 e ss.
204
Interessante síntese pode ser conseguida em Wagner Cinelli de Paula FREITAS (Espaço urbano e
criminalidade), inclusive com análise das teorias ao contexto das cidades brasileiras.
89

de parcamente aplicado nesse momento histórico, suas premissas se mostraram hegemônicas


no segundo pós-guerra. Antes disso, é pertinente um breve olhar sobre o que ocorria no Brasil
quando tais ideias pululavam nos países do norte.

3.4.1. Industrialização e fim da “república velha”.

No período entre 1920 e 1940, o percentual de população urbana no


Brasil salta de pouco mais de 10 para 31,4 %. Entretanto, como repara Milton Santos205, o
grupo empregado nos serviços cresce mais do que a população economicamente ativa. Em
outras palavras, as cidades cresciam muito mais como forma de organizar o consumo do que
para reprodução da força de trabalho na indústria, ainda que, do ponto de vista político, o
operariado urbano já mostrasse capacidade de, ao menos e logo adiante, enfrentar o
monopólio de poder das elites cafeeiras.

Em São Paulo, prosseguia a produção da “cidade ilegal”, na periferia e


à margem dos padrões (de fato inalcançáveis pelas classes populares) normativos formais. Em
1930, a capital paulistana atingia a marca de um milhão de habitantes, mais da metade
morando em situação de ilegalidade, como relata Raquel Rolnik206. A partir dai, tem inicio o
que a autora denomina de “anistias em massa”, com essa imensidão de assentamentos sendo
incorporada paulatinamente, a fim de que o poder público pudesse para ali estender a oferta
de melhoramentos e serviços públicos reivindicados, como asfalto, drenagem, linhas de
ônibus, água, esgoto e etc. A par de assistemática, essa atividade estava diretamente vinculada
a políticas clientelistas, mas veio acompanhada também da estipulação de zoneamentos
excludentes, uma “reação territorial das elites em relação ao espectro do povo”, no feliz
enunciado da mesma autora207.

O fim da república velha, com a revolução de 1930, marca um ponto de


inflexão político. No campo do urbanismo, logo em seguida (ainda que maturados antes)
surgem duas propostas decisivas para o planejamento urbano no Brasil: o Plano Agache, no
Rio de Janeiro, e o impropriamente designado “Plano de Avenidas” de Prestes Maia, para São

205
A urbanização brasileira, p. 25.
206
A cidade e a lei, p. 149. O estudo que apontava essa situação foi conduzido por Luis de Anhaia Mello, um dos
mais proeminentes urbanistas e então prefeito da capital.
207
Ibidem, p. 173.
90

Paulo208. Ambos - assim como as propostas para Salvador e Porto Alegre, já na década de
1940- marcam o início dos planos enfaticamente voltados para a estipulação de obras de
infraestrutura, ao contrário do mero embelezamento estético que marcara o período
anterior209. Entretanto, e ao contrário do plano de Pereira Passos, não foram executados por
completo, mas apenas na dimensão viária.

Na verdade, os planos desse período encerravam em si uma questão não


completamente resolvida até hoje, e representada (i) pela preocupação com uma lógica interna
coerente e fundamentada, mas deslocada em relação à realidade, econômica, social e política,
e (ii) por uma abertura metodológica para abarcar todo território e aspectos da cidade, mas
cuja execução se dará ao sabor de interesses imobiliários.

Estavam dadas as condições para a disseminação dos “planos-


discurso”, na feliz expressão de Flávio Villaça, “um descolamento entre o que a classe
dominante dizia que iria fazer (plano-discurso) e o que realmente ela pretendia fazer”210.

O cientificismo e a legitimação pela técnica desembarcavam


definitivamente no urbanismo brasileiro.

3.5. O modernismo, segundo ato (o pós-guerra).

Pontos centrais da proposta modernista, a padronização de estruturas e


materiais e o planejamento central direcionaram fortemente a expansão e remodelação das
cidades no pós-guerra na Europa. Em verdade, tais elementos foram essenciais na gigantesca
tarefa de reconstrução, e assumidos pelos governos enquanto tal, como bem anota David
Harvey211. Nos EUA, por outro lado, se aprofunda um processo que já se iniciara antes do

208
Dizemos impropriamente pois, como relata Flávio VILLAÇA (Uma contribuição para a história do
planejamento urbano no Brasil p. 209) seu conteúdo ultrapassava a dimensão do sistema viário que direcionou
o espraiamento horizontal da cidade, propondo também um sistema de transportes, a retificação do rio Tietê,
habitação popular, zoneamento e até fundamentos de uma legislação urbanística. O Plano Agache, por sinal,
além de também amplo, é o primeiro a propor uma legislação nacional de urbanização.
209
Flávio VILLAÇA, ibidem, p.199.
210
Ibidem, p.204. E fez e ainda faz, em certa medida. Ao plano-discurso, explícito e ideológico, corresponde um
outro, implícito e real, como bem assevera Ermínia MARICATO (As ideias fora do lugar e o lugar fora das
ideias, p. 124). Aquele (o discurso) é rígido e completo, ao passo que este (o real), pragmático e maleável ao
sabor de interesses corporativos ou de classes, é como de fato a infraestrutura se implanta e as ações da
administração pública se concretizam.
211
Condição pós-moderna, p.69 e ss.
91

conflito, o da descentralização ao longo de prolífica rede rodoviária. Agora, porém, tal prática
é também fortemente incentivada pelo governo central, ao contrário do que normalmente se
imagina, como afirmado por Peter Dreir “et alli”:

“Here we examine four stealth urban policies: transportation, military


spending, federal programs to promote home ownership, and the federal
failure to reduce racial discrimination in housing. None of these policies was
intended primarily to shape urban development, but each had profound urban
impacts. In reality, these federal policies subsidized america’s postwar
suburban exodus (and still do) by pushing people and businesses out of cities
and pulling them into suburbs. The idea that it is happened purely as a result
of the free market is a myth.”212 213

O que se vislumbra, portanto, são as propostas respectivamente de Le


Corbusier e Frank Lloyd Wright, com pitadas de outros pensadores e adaptações às
circunstâncias, apropriadas pelos agentes públicos e também privados como dogmas do novo
mundo urbano que emergia. A “cidade-jardim” de Ebenezer Howard também faz escola, mas
de maneira transversa, seja pelas “cidades-satélites” implementadas na Inglaterra mas com
porte muito maior, seja mesmo pelo direcionamento da expansão urbana mediante bairros
rigorosamente planejados para a oferta de todo tipo de serviços e comodidades.

A solução da precariedade habitacional, por via de adaptações da “máquina de


morar” de Le Corbusier, com padronização em massa, e a “fuga das cidades” pareciam
finalmente à vista, mas as consequências dessa adesão acrítica aos pressupostos modernistas
logo mostraria suas consequências e limitações. Os grandes conjuntos habitacionais inóspitos

212
Place matters, p. 103. Neste sentido também CULLINGWORTH e CAVES (Plannig in the USA, p.40) Por
seu turno, Robert BRUEGMANN (Sprawl: a compact history, p. 96 a 112) elenca uma série de outros fatores, a
saber (i) atitudes antiurbanas e racistas, (ii) fatores econômicos relacionados à construção civil, (iii) advento de
novas tecnologias de comunicação e (iv) a ascensão econômica da classe média como elementos que se
somariam à política governamental deliberada para a ocupação de baixa densidade. Conclui no sentido de que a
suburbanização se deve à somatória destes fatores, mas gasta a maior parte da argumentação justamente para
analisar o fator “ação governamental”.
213
Aqui examinamos quatro políticas urbanas dissimuladas: transporte, gastos militares, os programas do
governo federal para promover a aquisição de casa, e o fracasso federal para reduzir a discriminação racial na
habitação. Nenhuma dessas políticas foi destinada especialmente a moldar o desenvolvimento urbano, mas cada
uma teve profundos impactos urbanos. Na realidade, estas políticas federais subsidiavam o êxodo suburbano da
América pós-guerra (e ainda o fazem), empurrando as pessoas e empresas fora das cidades e puxando-os para os
subúrbios. A ideia de que isso acontece puramente como resultado do livre mercado é um mito. (versão de nossa
autoria)
92

e monótonos, de um lado, e a profunda dependência dos carros e dos grandes “malls”, de


outro, impactaram negativamente no cotidiano da população, em aspectos tão díspares quanto
a violência ou a alienação política. A força imagética da descrição de Henri Lefebvre
magnetiza nossa atenção:

“Eis aqui um vida cotidiana bem decupada em fragmentos: trabalho,


transporte, vida privada, lazeres. A separação analítica os isolou como
ingredientes e elementos químicos, como matérias brutas (quando na verdade
resultam de uma longa história e implicam uma apropriação da
materialidade). Ainda não acabou. Eis o ser humano desmembrado,
dissociado. Eis os sentidos, o olfato, o paladar, a visão, o tato, a audição, uns
atrofiados, outros hipertrofiados. Eis, funcionando separadamente, a
percepção, a inteligência, a razão. Eis a palavra e o discurso, o escrito. Eis a
cotidianidade e a festa, esta ultima moribunda. Com toda certeza, e com a
máxima urgência, é impossível continuar nesta situação. A síntese, portanto, se
inscreve na ordem do dia, na ordem do século. Mas esta síntese, para o
intelecto analítico, surge apenas como combinatória dos elementos separados.
Ora a combinação não é, não é nunca uma síntese. Não se recompõe a cidade
e o urbano a partir dos signos da cidade, dos semantemas do urbano, e isto
ainda que a cidade seja um conjunto significante. A cidade não é apenas uma
linguagem, mas uma prática”.214

As reações não tardaram, e tiveram na obra e no “humanismo” de Jane Jacobs


uma referência até hoje expressiva. A jornalista norte-americana tece uma análise contundente
quanto aos resultados desastrosos da hegemonia racional-modernista na qualidade de vida
cotidiana, especialmente no que ela gera de segregação. A tal diretriz ela contrapõe os
aspectos positivos da diversidade étnica e econômica, mas sem resvalar para o saudosismo ou
revigorar a proposta de “fuga das cidades”. Em linguagem exata, mas coloquial, tece
exemplos e compila dados e impressões que marcam corações e mentes, como sua defesa das
formas de convivência comunitária, quando afirma que:

214
Direito à cidade, p. 101. A obra é de 1968, quando esta situação já se disseminara em um sem-número de
cidades e regiões.
93

Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos lugares em que ela
funciona a contento, uma ordem surpreendente que garante a manutenção da
segurança e da liberdade. É uma ordem complexa. Sua essência é a
complexidade do uso das calçadas, que traz consigo uma sucessão permanente
de olhos”.215

Ou então, ao refletir livremente sobre a pretensão de padronizar processos


prenhes de peculiaridades, intui que:

“os processos urbanos, na prática, são complexos demais para serem


rotineiros; particularizados demais para serem aplicados como abstrações.
Eles sempre se compõem de interações entre combinações singulares de
particularidades, e nada substitui a compreensão das particularidades.”216.

Jacobs reagia a um processo de fato acumulado, mas que no caso dos EUA e
especialmente de Nova Iorque (onde ela residia) movimentou bilhões de dólares na
remodelação de bairros e regiões inteiras, e ficou simbolizado na figura de Robert Moses,
verdadeiro ícone do planejamento centralizado e autocrático217 no período pós-guerra e até o
final da década de 1960.

Somada aos acontecimentos que culminaram nas grandes manifestações de


1968, a rejeição popular ao planejamento como concebido pelos modernistas dará ensejo a
uma nova rodada de críticas e mesmo da afirmação da “morte do planejamento”, no início dos
anos 70. À frente desta crítica estavam os autores ditos marxistas (Henri Lefebvre, e na
sequência Manuel Castells e David Harvey), associando o planejamento à reprodução do
capitalismo. Mas é interessante observar, com Marcelo Lopes de Souza, que também à direita
as críticas vicejaram, e em certa medida floresceram mais até do que propostas de renovação
do planejamento, sob nova orientação:

215
Morte e vida das grandes cidades, p 52.
216
Ibidem, p. 491.
217
Peter HALL (Cidades do amanhã, p. 269-270), a par de elucidar valores e obras integrantes das grandes
intervenções capitaneadas por Moses, elucida que a reação de Jacobs se deu justamente porque aquele, numa de
suas remodelações urbanas, pretendia demolir o quarteirão onde ela morava.
94

A crítica marxista é no sentido de desprezar o planejamento, pois este seria


uma mera estratégia de reprodução do capitalismo e a crítica conservadora
decorre da crise do estado intervencionista, colocando no lugar do
planejamento a ênfase na ‘gestão’. (...).O enfraquecimento do planejamento se
faz acompanhar pela popularização do termo gestão(nos países de língua
inglesa, management) o que é muito sintomático: como a gestão significa, a
rigor, a administração dos recursos e problemas aqui e agora, operando,
portanto, no curto e médio prazos, o hiperprivilegiamento da ideia de gestão
em detrimento de um planejamento consistente representa o triunfo do
imediatismo e da miopia dos ideólogos ultraconservadores do ‘mercado
livre’”218.

Seja por um viés ou por outro, a pretensa superação do modernismo será


analisada no item 3.6.2, “infra”; antes porém, uma rápida passagem sobre o urbanismo no
Brasil do pós-guerra.

3.5.1. O planejamento urbano se afirma no Brasil.

À redemocratização brasileira logo após a Segunda Guerra se soma uma


aceleração do processo de industrialização para substituição das importações, e, na
perspectiva das cidades, uma mudança no perfil de suas populações por força do incremento
da migração, em especial do norte e nordeste para o sudeste. Tal mudança não é só
demográfica e física, mas especialmente cultural e de integração da produção e circulação de
capital, como bem anota Milton Santos219.

Para Flávio Villaça220, é nesse momento que, enquanto metodologia, se


consolida o planejamento urbano no Brasil, ou seja, a busca de um conteúdo definitivo para os
planos diretores, multidisciplinares e complexos, mas de forma que conduzam
inevitavelmente a uma série de finalidades desejadas e racionalmente construídas. Assim, e
sob esse fundamento cientificista, os planos passam a se afigurar como uma tarefa inafastável;

218
Mudar a cidade, p. 29 e 31. Não estamos, evidentemente, a afirmar que gestão e planejamento são exclusivos
respectivamente de uma ou outra corrente, e o autor justamente defende o contrário. Apenas fica claro como
cada ideologia pode se apropriar de um conceito, e dar a ele o uso que lhe for mais conveniente.
219
A urbanização brasileira, p. 27-28.
220
Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil, p.177.
95

de fato, quase um dogma. Na verdade, como já comentamos alhures com fundamento no


próprio Villaça, os planos se impõem numa perspectiva falsa, de ocultamento e de mero
discurso. “Quanto mais complexos e abrangentes tornavam-se os planos, mas crescia a
variedade de problemas sociais nos quais se envolviam e com isso mais se afastavam dos
interesses reais das classes dominantes e portanto de suas possibilidades de aplicação”.221

Assim, e por muito tempo depois disso, os planos urbanísticos faziam


sentido em si, mas eventualmente não com a realidade em que se assentavam, diferentemente
do que ocorria na Europa e nos EUA, onde o questionamento era quanto aos resultados. Esse
caráter racional, ainda que inexequível, vinha bem a calhar em relação à proposta de
desenvolvimento nacional, e dele se alimentava. Propostas alternativas como o “movimento
economia e humanismo”, encabeçado pelo padre Lebret, com grande influência no ensino e
na prática de planejamento do final da década de 50, também se nutriam desse racionalismo,
mas temperado pela ênfase profunda na pesquisa empírica222.

“Mutatis mutandis”, mas apenas do ponto de vista intelectual, o


percurso do urbanismo no Brasil guardava certas semelhanças com seus equivalentes
europeus e norte-americanos. No aspecto administrativo e de políticas públicas, entretanto, as
cidades cresciam ainda na ilegalidade profunda, e com carências habitacionais fortíssimas.

Neste sentido, a construção de Brasília é quase um “ponto fora da


curva”, planejada que foi quase integralmente na doutrina corbusiana. Com efeito, é o próprio
Lúcio Costa quem assume esse parentesco, quando do relatório apresentado para o “Concurso
para Escolha do Projeto da Nova Capital”, ao afirmar que a cidade “deve ser concebida como
organismo capaz de preencher satisfatoriamente e sem esforço as funções vitais próprias de
uma cidade moderna qualquer, não apenas como urbs, mas como: civitas, possuidora dos
atributos inerentes a uma capital.”223.

Infelizmente, mais do que Brasília em si, as carências e paradoxos das


cidades-satélites (Ceilândia, Taguatinga, etc.) são mais um testemunho do fracasso do
pensamento modernista, quando levado aos extremos do preconizado por seus idealizadores.

221
Ibidem, p. 214.
222
Celso LAMPARELLI, Louis-Joseph Lebret e a pesquisa urbano-regional no Brasil.
223
Extraído da transcrição do relatório perpetrada por Armando J. BUCHMAN (Lúcio Costa, o inventor da
cidade de Brasília”, p. 61).
96

Entretanto, no que tange à crítica que se formou em países centrais, o


Brasil dela foi abruptamente apartado em virtude do golpe militar de 64. Como já
comentamos no item 3.1, “supra”, uma proposta de reforma urbana- centrada basicamente no
provimento habitacional, portanto num estágio anterior ao que ocorria nos EUA e Estados
Unidos- chegou a ser formatada, mas, como todas as reformas de base do período, foi abatida
em seu nascedouro.

O que se viu doravante e em todo o período militar foi uma


supervalorização do planejamento, como forma de legitimação substituta, posto que aquela da
democracia (participação popular, no mínimo através do voto, da liberdade partidária e de
expressão) não era dada. A par disso, entretanto, e como bem anota Roberto Monte-Mor:

“O modelo de desenvolvimento econômico adotado após 1964 continha,


implicitamente, uma opção de concentração urbana, na medida em que se
apoiava no processo de intensificação da industrialização e nos mercados
urbanos, de maior elasticidade, face aos produtos principais da crescente
indústria de bens duráveis. Os objetivos principais perseguidos pelo governo
encontravam nas cidades grandes o meio propício à sua consecução, na
medida em que estas permitiam maior rentabilidade ao capital investido, pelas
condições de economias externas que oferecem mercado e mão-de-obra semi-
especializada, e se prestavam mais à estratégia de concentração de renda,
através de poupança e compressão salarial, para gerar novos
investimentos”224.

Ainda que de forma contraditória, como demonstra o mesmo autor ao


analisar a trajetória do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo- SERFHAU na elaboração
de estudos e planos diretores, o regime militar acabou mudando de rumo quanto ao
urbanismo, por compreender a necessidade de (i) um modelo centralizado de planejamento
urbano que superasse as carências das populações pobres e concentradas nas grandes cidades,
não exatamente por apego aos direitos sociais, mas por sentir ai um foco de instabilidade 225,

224
Do urbanismo à política urbana: notas sobre a experiência brasileira, p. 48.
225
Essa foi a tônica do Seminário “O homem e a cidade”, promovido pela Fundação Milton Campos, órgão do
partido de apoio ao regime (Aliança Renovadora Nacional-ARENA) entre 25 e 28 de novembro de 1975, cujos
97

mas que também (ii) permitisse uma desconcentração de atividades para cidades médias,
evitando a crise que já avizinhava-se, na produção e consumo, assim como na política,
fundada na insatisfação dessas mesmas populações.

Sem adentrar nos possíveis efeitos positivos da ação do SERFHAU


enquanto propagador de metodologias e “know-how” técnico, sua atuação efetiva foi pífia.
Como anota o mesmo Roberto Monte-Mor226, o órgão se restringiu ao planejamento
intraurbano de municípios pequenos e médios, predominantemente- dos 237 onde atuou até
1973, 68% tinham menos de 50.000 habitantes, e apenas 4% acima de 250 mil. Para os
municípios maiores, especialmente capitais, se preparam os “superplanos”, com os problemas
da escala grandiosa e abrangente ao extremo, como já narrado por Flávio Villaça alguns
parágrafos acima. Entretanto, uma característica ali não destacada deve sê-lo agora: tais
planos eram prenhes de princípios, diretrizes e objetivos, a serem alcançados por outros
planos, posteriormente elaborados. Portanto, tais “superplanos” eram vazios de verdadeiro
conteúdo227, ao menos naquele contexto.

A consequência mais nefasta do período militar para a evolução do


planejamento urbano no Brasil talvez tenha sido o descolamento da experiência e da discussão
urbanística aqui em relação ao pensamento crítico que se apresentava nos EUA, mas,
sobretudo, na Europa a partir do final da década de 60, já tangenciado no final do item 3.5, o
qual examinaremos melhor a seguir.

3.6. Há um “pós-modernismo” no urbanismo?

Como já anotado, a emergência do modernismo no período entre guerras era o


ápice de uma construção intelectual que remontava pelo menos até o iluminismo, e que
mostrava-se ambicioso quanto às suas pretensões: reconstruir as cidades para reconstruir a
sociedade. De outra parte, mas também por conta dessas raízes, importa rememorar que

anais foram publicados no ano seguinte. A lei nacional de parcelamento do solo urbano (Lei 6766/79) e mesmo a
primeira proposta de norma geral sobre urbanismo (PL 775/83, arquivado no final da década) são
desdobramentos desse processo.
226
Ibidem, p. 50.
227
Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil, p.221. Um dos paradigmas dessa
inoperância foi o plano paulistano de 1971, denominado de PDDI (Plano de Desenvolvimento Urbano
Integrado).
98

estamos tratando de um movimento amplo, que abarca ou influencia as mais diversas


atividades da ciência e da cultura humanas.

Portanto, nessa perspectiva, nem sequer teríamos distanciamento histórico


suficiente para perceber e descrever a superação completa de algo tão marcante para a
configuração atual das cidades contemporâneas.

Nossa experiência profissional e política obriga a que concordemos com


Ermínia Maricato, quando esta afirma, após longa análise do percurso recente do urbanismo
brasileiro, que “o lugar do planejamento modernista ainda não está vago nas academias e
nos departamentos governamentais (embora estes estejam totalmente desprestigiados), pois
não existe um modelo em condições de consenso, necessário para a substituição”228.

Tratando especificamente da arquitetura, Jürgen Habermas, na década de 80,


negava a emergência de um pós-modernismo, na medida em que a separação entre forma e
função, esta ultima o depositário do racionalismo modernista, ainda se apresentava nas obras
mais icônicas do momento229.

Já David Harvey, também na década de 80, vai ainda mais longe: o pós-
modernismo é mais uma correção de rota daquilo que ocorreu até o final da década de 60; há
mais continuidade que ruptura entre modernismo e pós-modernismo, este ultimo enfatizando
o lado (i) efêmero, (ii) fragmentário e mesmo caótico230 das transformações havidas, de fato,
do modo de acumulação capitalista, e também de regulamentação, do fordismo-keynesiano
em direção ao “modo de acumulação flexível”231.

A efemeridade conduziria à necessidade de descobrir ou produzir algum tipo


de verdade eterna, e daí o revivalismo religioso, a reafirmação de raízes históricas e
comunitárias232. O fragmentário, por outro lado, se equilibra em ofertas de estabilidade

228
A cidade do pensamento único, p. 171.
229
Arquitetura moderna e pós-moderna, p. 122.
230
Condição pós-moderna, p.112,
231
Ibidem, p.119.
232
Ibidem, p. 263.
99

simbólicas, numa aceitação de diferenças e nuanças como nunca antes (raças, opção sexual,
etc.)233. Os eventos de intolerância, todavia, mostram o quão frágil é esse equilíbrio.

Os efeitos desse novo “modus vivendi” são por vezes paradoxais, mas não
vemos como não enxergar consequências graves. Anota o mesmo David Harvey que:

A afirmação de qualquer identidade dependente de lugar tem de apoiar-se em


algum ponto no poder motivacional da tradição. É, porém, difícil manter
qualquer sentido de continuidade histórica diante de todo fluxo e efemeridade
da acumulação flexível. A ironia é que a tradição é agora preservação, com
frequência ao ser mercadificada e comercializada como tal (...)”234.

Por mais diversificados que tenham sido os rumos do urbanismo doravante, há


pelo menos duas orientações fortes, opostas e que ainda se digladiam, especialmente no
Brasil. À primeira delas denominaremos de “empresarialismo”, por falta de denominação
mais apropriada235, ensaiada e praticada nos países centrais antes de desembarcar nos
trópicos; quanto à segunda adotaremos a expressão “reforma urbana”, por razões já
explicitadas no item 3.1, “supra”.

Ainda que opostas, ambas as correntes guardam uma semelhança interessante.


Com efeito, se até o auge do planejamento regulatório (modernista) pretendia-se uma relação
de lógica intrínseca, ou de integração, entre o planejamento do uso do solo urbano e as
análises de outras ciências (da economia, da sociologia, da geografia, etc.), mas encimada
sempre pelo primeiro, a partir daí tanto o “empresarialismo” (em menor grau) como a
“reforma urbana” (em maior grau) acabam utilizando o planejamento urbano como um eixo
central de suas propostas de transformação, as quais se viabilizariam mediante a concretização
de outros elementos, ou de maneira centrípeta- aumento da riqueza (no empresarialismo) e
promoção de direitos (na reforma urbana) - ou de maneira centrífuga- flexibilidade no uso do
solo (empresarialismo) e acesso à terra urbanizada e serviços públicos (reforma urbana). Não
se trata exatamente de conquistar a interdisciplinariedade, a fusão de saberes dada como
inviável por Lefebvre (item 3.2, “supra”), mas de fato é algo diverso e mais pragmático, ou

233
Ibidem, p. 109.
234
Ibidem, p. 271, com grifos nossos.
235
E que, na verdade, emprestamos de Marcelo Lopes de SOUZA (Mudar a cidade).
100

uma mera soma de esforços que convergem para certa finalidade. Em suma, o uso e ocupação
do solo é central, mas os dois movimentos o utilizam (de maneira oposta) como plataforma
para ir além dele.

Antes de descrever detalhadamente tais propostas, faz-se necessário


aprofundar a análise das críticas mais articuladas ao modernismo, iniciadas ao final do item
3.5, “supra”.

3.6.1. Fragmentação e embate conceitual no pós-modernismo.

Por um viés jornalístico, Jane Jacobs inaugurou uma fase de crítica


contundente aos pressupostos modernistas, ao menos como este foi apropriado no período de
guerra fria e de construção do “welfare state” e da sociedade afluente. Entretanto, as
contradições intrínsecas do período acabaram desaguando nas revoltas, greves e
manifestações do final da década de 60, especialmente em 1968. Daí por diante, o
questionamento ao planejamento urbano exacerbou-se, ao menos na Europa, como já
apontamos.

Entretanto, e é bom que se diga, mais do que apontar os equívocos e


limitações do período anterior, essa nova geração mostrava-se propositiva, abrindo novos
campos de investigação e abordagem, especialmente na sociologia urbana, como bem anota
Ermínia Maricato236, mas também na geografia, na filosofia e mesmo na economia. Para além
de “colonizar” outros saberes, a questão urbana definitivamente ingressa num momento de
intensa crítica, mas também de diversificação que não permite mais o enquadramento ou a
sistematização das ideias numa única corrente ou escola.

Uma das referências desse período é Henri Lefebvre, que maneja


conceitos como a diferenciação entre valor de uso (a cidade como realização humana) e valor
de troca (a cidade como elemento de transação no contexto do capitalismo)237, mas também
propõe ações a serem encetadas pelos cidadãos, como aquilo que chama de transdução, ou

236
O impasse da politica urbana no Brasil, p. 121-125.
237
Direito à cidade, p. 14.
101

uma relação permanente entre ciência e realidade cambiante, a experimentação de utopias e


uma relação em pé de igualdade entre forma, estrutura e função238.

Assim também, e logo em seguida, o pensamento de Manoel Castells


obtém grande aceitação, pela descrição detalhada de um esquema analítico da estrutura
urbana, superando os enunciados modernistas e relacionando-os a determinados processos de
produção (atividades que contribuem para a formação de bens ou para a gestão do processo
produtivo) e de consumo (reprodução da força de trabalho)239.

Não faltaram contrapontos entre eles, especialmente de Castells para


Lefebvre, o primeiro criticando o segundo por eventualmente desprezar a relação intrínseca
entre fenômenos macrossociais e sua repercussão no espaço.

É Mark Gottdiener quem acaba por consolidar, pela via da crítica, as


colaborações dos dois autores. E o faz, com efeito, mostrando como um (Lefebvre)
supervaloriza a dimensão espacial na consideração dos fenômenos urbanos, enquanto o outro
(Castells) leva para muito longe do local as determinantes do uso do espaço. Na verdade, e na
versão de Gottdiener, a produção do espaço seria uma ponderação entre os dois fatores, gerais
e locais240.

O fato nos parece ser que desse balanço da herança modernista,


especialmente do planejamento técnico-centralizado, emergiram duas propostas opostas, as
quais analisaremos a seguir.

3.6.2. “Empresarialismo”, ou o valor de troca levado ao extremo.

Em mais de uma ocasião (tratando das ações de Haussmann, ou das


propostas de Le Corbusier, e mesmo da São Paulo do início do século) apontamos como o
valor imobiliário era elemento essencial à compreensão do desenvolvimento das propostas em
urbanismo, estratégico mesmo. Entretanto, com o aparente fracasso do modernismo, os

238
Ibidem, p, 110-114.
239
Problemas de investigação em sociologia urbana, p. 142.
240
A produção social do espaço urbano, p. 197 e ss.
102

agentes econômicos privados, mais do que interagirem com, praticamente se apropriaram da


política urbana.

Nas palavras de Peter Hall:

“Cidades, a nova mensagem soou em alto e bom som, eram máquinas de


produzir riqueza; o primeiro e principal objetivo do planejamento devia ser o
de azeitar a máquina. O planejador foi-se confundido cada vez mais com seu
tradicional adversário, o empreendedor; o guarda-caça transformava-se em
caçador furtivo”.241

O papel do capital nas transformações urbanas já era um traço


característico do urbanismo norte-americano desde antes da década de 70, mas foi a crise do
petróleo (1973)242, a desindustrialização e o desemprego crescentes nos países centrais que
alçaram as correntes neoliberais à condição de hegemonia ideológica nas propostas de
revitalização urbana, e nas dimensões tanto do plano quanto do projeto urbanísticos.

Uma advertência necessária é que não há, como bem delineado por
Mark Gottdiener243, um bloco coeso no que tange aos interesses do capital quando tratamos de
sua relação com o solo urbano; ao contrário, ele se mostra fragmentado e por vezes até em
campos (ou “coalizações”, com prefere o autor) opostos. Porém, o setor dos proprietários de
imóveis tem, evidentemente, um papel decisivo nesses arranjos.

De qualquer forma, o percurso desse movimento foi crescente, e


ancorado em realizações sob certo ponto de vista exuberantes, qualidade pela qual buscava
legitimar-se politicamente. Aos projetos de revitalização (Inner Harbor, em Baltimore;
Docklands, em Londres244) somam-se e sucedem-se perspectivas “mercadófilas” de regulação
do uso do solo urbano, ou, para ser mais claro, a ênfase na gestão flexível e ajustável, em

241
Cidades do amanhã, p. 407.
242
Conf., dentre outros, David HARVEY (A produção capitalista do espaço, p. 167-168).
243
Ibidem, p. 211 e ss.
244
É interessante observar como zonas portuárias se prestam a “grandes projetos de revitalização”, em regra de
forma repetitiva quanto às suas diretrizes- abrigo de restaurantes, centros culturais, lojas, museus, comércio em
geral.... Porto Madero (Buenos Aires-Argentina); Granville (Vancouver-Canadá); Belém (Estação das Docas), e,
ainda em desenvolvimento quando da elaboração deste trabalho, a Operação Urbana Porto Maravilha, no Rio de
Janeiro, entre inúmeros outros exemplos, numa demonstração da persistência de certo padrão. À monotonia
habitacional, decorrente dos projetos modernistas, parece corresponder hoje a monotonia do consumo.
103

detrimento do planejamento convencional ou regulatório. Assim se apresentam o


planejamento subordinado às tendências do mercado (denominado sinteticamente de “trend
planning” desde os anos 70), o planejamento de facilitação (“leverage planning”) e o
planejamento de administração privada (“private-management planning”), que do mundo
anglo-saxão se estenderam a outros países na esteira de governos conservadores ou
convertidos à lógica que a eles corresponde.

Depois da fase inicial, de reação à crise econômica, a tendência


“empresarialista” ganha vida própria, muito devido à necessidade de direcionamento dos
capitais excedentes que precisam ser alocados a fim de evitar novas crises, inevitáveis, ainda
que adiáveis, como bem demonstrado por David Harvey245.

Por vezes aderindo, em outras convivendo, sociedades e agentes


políticos imergiam na lógica do desenvolvimentismo urbano, traduzido como geração de
renda, aumento da atividade e do dinamismo econômicos. Praticamente não havia como se
contrapor, postas as condições descritas por Otília Arantes como:

“(...) o que poderia ter sido motivo de escândalo-a revelação da


mercadorização integral de um valor de uso civilizatório como a cidade-
tornou-se razão legitimadora ostensivamente invocada: aqui a novidade
realmente espantosa, e tanto mais que eficiente, não só por deixar a crítica
espontânea da cidade-empresa com a sensação de estar arrombando uma
porta aberta, mas sobretudo por contar com a ‘compreensão’ das populações
deprimidas por duas décadas de estagnação econômica e catástrofe urbana.
Fica assim bem mais simples persuadi-las a se tornarem ‘competitivas’, na
pessoa de suas camadas ‘dinâmicas’, bem entendido.”246

Abusos e privilégios ocorriam, observam Marcelo Lopes de Souza247 e


Mark Gottdiener248, e em muitas situações o planejamento regulatório persistia, mas
“temperado” pelas novas práticas.

245
A produção capitalista do espaço, p. 155 a 165.
246
A cidade do pensamento único, p. 17.
247
Mudar a cidade, p. 287.
248
A produção social do espaço urbano, p. 222.
104

3.6.2.1. O “planejamento estratégico de cidades”

O ponto alto dessa nova (quase) hegemonia acabou sendo a


escola do “planejamento estratégico de cidades”249, na figura icônica de arquitetos e
administradores espanhóis ( na verdade catalães) como Jordi Borja.

Suas propostas vão muito além da questão do uso do solo,


mas neste tem seu alicerce e objeto de transformação, e por isso deitou influência estrutural
também sobre o planejamento urbano. Seu ideário é extremamente sedutor, englobando (i)
inserção das cidades na economia global250, (ii) atração de atividades econômicas
qualificadas, (iii) aumento da autoestima e do espírito cívico dos cidadãos, (iv) maior
governabilidade e integração social, (v) soluções integradas e melhoria da infraestrutura por
força da colaboração entre setores públicos e privados.

E, mais ainda, tais propostas poderiam ser transpostas para a


realidade da maioria das cidades latino-americanas, pois:

“a insegurança do cidadão, o tempo consumido na movimentação cotidiana, a


degradação dos espaços públicos, e, em geral, do meio ambiente urbano
também têm custos econômicos. Uma cidade competitiva deve ter a
capacidade de integrar, em termos socioculturais, a grande maioria da
população.”251

O próprio Borja252 não esconde que essa verdadeira


transfiguração só seria possível quando se sobrepusesse às disputas políticas ordinárias, ou
mediante um “consenso” quanto às mudanças necessárias. Em linguagem bem expressiva,
Carlos Vainer tece críticas contundentes a tal condição, quando afirma que:

249
“Planejamento estratégico” é expressão oriunda do pensamento de esquerda, apropriada e divulgada por
Carlos Matus, assessor de Salvador Allende quando presidente. Tinha (e tem) a grande vantagem em relação ao
planejamento regulatório por sua característica “situacional”, ou seja, de adaptação das ações frente a realidades
mutantes. Posteriormente, foi incorporada pelas grandes corporações econômicas, e após este “filtro” é que
desembarcou nas propostas de desenvolvimento urbano.
250
Acerca da ideia de “cidade global”, e das diversas acepções que isso pode adquirir, ver Georges BENKO
(Economia, espaço e globalização na aurora do século XXI, p.67-86.)
251
Gestão contemporânea, p. 85.
252
Gestão contemporânea, p. 84, dentre outras passagens.
105

“O conceito de cidade, e com ele os conceitos de poder público e de governo


da cidade são investidos de novos significados, numa operação que tem como
um dos esteios a transformação da cidade em sujeito\ator cuja natureza
mercantil e empresarial instaura o poder de uma nova lógica, com a qual se
pretende legitimar a apropriação direta dos instrumentos de poder público por
grupos empresariais privados. A constituição e legitimação da nova cidadania
conferida aos segmentos estratégicos caminha pari passu com a destituição dos
grupos com ‘escassa relevância estratégica’. A cidade-empresa está obrigada
a ser realista, conformar-se às tendências do mercado e não pode dar-se ao
luxo de produzir planos utópicos.A percepção da crise é utilizada como
argumento para o consenso e para a pacificação política, a cessação forçosa
do conflito em prol de um crescimento. Este sentimento, entretanto, pode ser, e
é fugidio, passageiro, e portanto não pode legitimar uma estratégia de longo
prazo.”253.

Com efeito, o consenso é perseguido pelos defensores do


“planejamento estratégico de cidades”, ora com o aceno do crescimento econômico, ora, de
maneira mais sutil porém não menos eficaz, com o viés de incremento cultural e artístico, na
descrição esclarecedora de Otília Arantes254. Ou ainda, nas palavras de David Harvey255, um
“pão e circo redivivo, de criação de identidade entre os grupos e de fervor cívico.”

Se resultados obteve na Europa, o “planejamento estratégico


de cidades” não conseguiu até o presente se concatenar face uma realidade comum às grandes
cidades do Brasil e de outros países em desenvolvimento: a ilegalidade, a exclusão
socioterritorial e a pobreza. Ao contrário, parece passar ao largo, olimpicamente, ou
respondendo com diretrizes inexequíveis para essa parcela, como a proposta de Borja para a
gestão empresarial dos serviços públicos256.

253
A cidade do pensamento único, p. 89-90, com grifos nossos.
254
Ibidem, p. 45
255
A produção capitalista do espaço, p. 185.
256
Gestão contemporânea, p. 96. Dizemos inexequíveis na medida em que nos parece incompatível a
universalização de certos serviços, por exemplo o saneamento ambiental, se for dada como premissa a
lucratividade, essencial à lógica empresária mas inviável na oferta e manutenção tendo por público as camadas
mais pobres.
106

Não por acaso, a oposição mais firme a suas premissas


vieram no bojo de análises de pesquisadores e agentes da chamada “reforma urbana”, nosso
próximo tópico.

3.6.3. Reforma urbana na periferia do capitalismo.

Em verdade, toda história do urbanismo se desenvolve numa


perspectiva de “reforma urbana”, em sentido amplo. Pelo menos no que tange às principais
contribuições teóricas, mas também quanto à ação concreta de agentes públicos ou privados,
os esforços e estudos sempre tiveram por mote reconstruir e também de direcionar o
crescimento das cidades sob diretrizes inovadoras e de resolução dos passivos e problemas já
postos em cada momento e lugar.

Para nós, entretanto, reforma urbana designa uma linha- de pensamento


e também de ação- bem demarcada nos últimos 40 anos do urbanismo brasileiro, como reação
à desigualdade das cidades, já presente desde o final do século XIX, porém que se torna ainda
mais dramática por força (i) da urbanização e metropolização avassaladoras ao longo da
segunda metade do século XX, e em especial (ii) da crise econômica a partir do final dos anos
70, com o fim do “milagre econômico”, e da “estagflação”257 e do desemprego na década de
80. Entretanto, é certo que parte do núcleo central da reforma urbana, como a descreveremos-
por exemplo, a regularização fundiária dos assentamentos informais- ainda que com
fundamentos eventualmente diferentes também vicejou em outros países, concomitante ou
sucessivamente ao Brasil (Colômbia, México, Peru, África do Sul, India).

Já nos referimos à reforma urbana em outras passagens, neste mesmo


capítulo (item 3.1), e a ela voltaremos ainda em alguns momentos, posto constituir nosso
referencial teórico genérico, como a ele nos referimos na introdução. Defini-la, porém, não é
tarefa das mais fáceis, principalmente porque incompleta ainda está sua trajetória.

Marcelo Lopes de Souza busca sintetizar sua natureza como:

257
Combinação entre crescimento baixo e inflaçãoalta.
107

“um conjunto articulado de políticas públicas, de caráter redistributivista e


universalista, voltado para o atendimento do seguinte objetivo primário:
reduzir os níveis de injustiça social no meio urbano e promover uma maior
democratização do planejamento e da gestão das cidades.”.258

O mesmo autor não se furta a uma análise de avanços mas também de


insuficiências conjunturais da reforma urbana. Resumidamente, aponta que as forças que
impulsionaram o movimento teriam se acomodado na, ou se iludido com, a elaboração dos
planos diretores “progressistas” ao longo da década de 90, gerando então um “tecnocratismo
de esquerda”, sem margem de manobra política para sua implementação, a par de um
esvaziamento de outros pontos de apoio decisivos, como os movimentos sociais259. Em certa
medida, Flávio Villaça260 também critica um eventual apego de setores da reforma urbana ao
planejamento institucional, quando repara que ações de fato essenciais (regularização
fundiária, por exemplo) não dependem dos planos diretores, nos moldes do Estatuto da
Cidade.

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro261 e Grazia de Grazia262 dão suas versões


acerca do núcleo conceitual da reforma urbana, estando ali presentes as questões (i) da gestão
democrática das cidades, (ii) da universalização dos serviços públicos e acesso igualitário aos
serviços e equipamentos urbanos; (iii) do controle do uso do solo, expresso na fórmula da
função social da propriedade imóvel urbana (FSPIU, já abordada no capítulo anterior).
Entretanto, há leves divergências nos enunciados. Ribeiro, por exemplo, conecta a gestão
democrática a uma maior eficácia da ação estatal, enquanto De Grazia, também a título de
exemplo, já ressalta a condição do uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado do
espaço urbano.

São evidentemente olhares e interpretações diferentes apenas nos


detalhes, por sinal de dois autores envolvidos na análise da reforma urbana enquanto
partícipes do movimento desde o seu nascedouro. De qualquer forma, já denotam um ponto
relevante, qual seja, o de que a proposta não se limita às questões espaciais ou territoriais,

258
Mudar a cidade, p. 158.
259
A posição é expressa em obra de 2001.
260
Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil, p. 238.
261
Reforma urbana e gestão democrática, p. 14.
262
Ibidem, p. 54.
108

ainda que tendo nelas o ponto de convergência. Programas de geração de emprego e renda, de
saúde e educação, de incremento da participação popular e do controle social são igualmente
relevantes. De outra parte, ainda que a resolução do problema da moradia inadequada seja
central e mesmo o grande impulsionador, o planejamento urbano em si incorpora valores
estratégicos como o combate à especulação imobiliária e aos vazios urbanos, a relevância
estratégica da mobilidade urbana, ou a reversão da degradação ambiental. Enfim, se trata de
combater a exclusão socioespacial, em todas as suas manifestações.

Mas é em Ermínia Maricato263 que encontramos um balanço mais


acabado, contextualizado e, sobretudo, atualizado da pauta da reforma urbana no Brasil. Não
por acaso, Maricato foi (e é) uma das artífices das transformações no urbanismo brasileiro, em
todas as frentes (pesquisa e ensino, ação política institucional, movimentos sociais e populares
e administração pública) que se conjugaram em momentos diferentes e com pesos variáveis,
nas ultimas décadas e na configuração da reforma urbana.

A professora paulista demonstra que são inegáveis os avanços obtidos


em políticas sociais (especialmente regularização fundiária e urbanística264,em seu sentido
mais amplo), espaços institucionais de gestão e também de controle social e na constituição de
um novo marco legislativo para enfrentar a conturbada e excludente grande cidade e
metrópole brasileira; entretanto, e paralelamente, outros vetores políticos e econômicos se
mantiveram- e até se adaptaram-ora impactando, ora anulando ou obstando a concretização
efetiva das finalidades da reforma urbana.

De um lado, ressalta que a manutenção de um modelo que privilegia


aspectos financeiros da gestão pública no governo federal, aliado à desarticulação de
planejamento entre os órgãos dessa mesma esfera, até a primeira metade dos anos 2000
retirava da política urbana um componente essencial, e por vezes colocado em segundo plano:
a essencialidade de diretrizes e ações coerentes no plano nacional, especialmente quanto à
políticas “setoriais” (habitação, saneamento, etc.). Inafastáveis por si, essas diretrizes e ações
são ainda mais decisivas no caso do Brasil por conta da fragilidade da grande maioria das
administrações municipais265.

263
O impasse da política urbana no Brasil, dentre outros escritos.
264
Ibidem, p. 101,107-109 e 139-144.
265
Ibidem, p.25-34 e 42 e seguintes.
109

De outro lado, também anota o esgotamento das forças vivas e políticas


que impulsionaram o movimento, seja por cooptação inconsciente à lógica da administração
pública, seja por fragmentação e desmobilização propriamente ditas266.

Mas, acima de tudo, aponta que (i) as razões de mercado continuam a se


sobrepor às necessárias readequações espaciais no uso do solo, em especial no provimento
habitacional incrementado enormemente nos últimos anos (Programa “Minha Casa, Minha
Vida”, à frente), o que constitui problema central dos processos que levam à segregação
socioespacial267, e (ii) a questão fundiária, de concentração e ainda de patrimonialização da
propriedade imóvel urbana (o “valor de troca” se sobrepondo ao “valor de uso”) não foi
equacionado até o momento.

3.7. Há um “fim do urbanismo”?

A pergunta que introduz este item constitui, como se observa, mero uso
literário da expressão “fim da história” consagrada pelo filósofo e economista norte-
americano Francis Fukuyama, e amplamente utilizada (especialmente por setores
conservadores, mas também pela mídia) no início dos anos 90.

Com certeza, a resposta é não, ainda mais quando consideramos a realidade


brasileira.

Em outros momentos já comentamos que o viés histórico numa análise de


conceitos e processos importa em certo distanciamento, no tempo, essencial à concatenação
dos fatos e de suas consequências. Esta talvez seja a grande qualidade da ciência histórica,
aliás: exigir do pesquisador a dúvida permanente quanto às verdades que, numa primeira
análise e num certo específico momento, possam soar como absolutas.

Sendo assim, e contrariamente à versão vulgar do conceito de Fukuyama, fica


evidente que o crescimento das cidades brasileiras, das relações entre elas e com os contextos
econômico e político nacional e internacional se aceleraram nas ultimas décadas; a par disso,

266
Ibidem, p.83-86, 151-156.
267
Ibidem, p. 69 e ss.
110

o passivo de exclusão socioterritorial que vem de décadas já justificaria por si só um esforço


científico e politico para apontar abordagens e novas soluções de regulação do espaço urbano.

Entretanto, certos fenômenos qualitativos também se produzem ou estão em


curso, entre eles mudanças no padrão de acumulação capitalista, de um lado, e de concepções
políticas (especialmente da democracia contemporânea) de outro. Acerca dos primeiros, o
impacto nas cidades é bem definido por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, quando põe relevo no
fato de que:

“(...) os circuitos mercantis-imobiliários, que anteriormente estavam nas mãos


dos pequenos e médios capitais locais, passam também por um processo de
concentração e internacionalização. Em muitos países, verifica-se a
associação dos grandes capitais internacionais na realização de operações
urbanas de grande porte que articulam a construção de grandes conjuntos
imobiliários com a expansão de serviços urbanos privatizados.(...) Não se trata
mais de compatibilizar valor e antivalor, acumulação privada e necessidades
sociais, mas de submeter o público aos novos desígnios e necessidades da
acumulação privada da riqueza. Entre os novos desígnios e necessidades do
capital, temos os princípios da flexibilidade e dos critérios de mercado como
fundamentos da intervenção pública na cidade.”268

De base para as atividades que se desenvolvem nas cidades, e com um valor


diretamente relacionado à renda fundiária269, o solo urbano se converte ele próprio, e
definitivamente, em mercadoria não mais relacionada à potencialidade para tais atividades,
numa substituição da especulação imobiliária pela especulação financeira ancorada em
patrimônio imobiliário. O fenômeno se cristaliza quando se observam (i) o aporte dos fundos
de pensão e investidores nacionais e internacionais às construtoras e incorporadoras
brasileiras e (ii) a “abertura de capital”, ou oferta pública de ações das grandes construtoras
entre os anos de 2008 e 2009270.

268
O Estatuto da Cidade e a questão urbana brasileira, p. 17-18.
269
Uma excelente visão da estrutura da propriedade como produtora de renda fundiária pode ser encontrada em
Boaventura de Souza SANTOS (O Estado, o direito e a questão urbana, p. 41-73), em especial da diversidade
de formas com que se dá a relação entre o capital e a propriedade fundiária.
270
Em nossa atividade profissional buscávamos apresentar aos servidores públicos responsáveis pela aprovação
de projetos a seguinte metáfora: um dia a mais de análise, ou uma exigência suplementar para o licenciamento de
um grande empreendimento, passa a influir decisivamente na queda ou na alta das cotações do mercado de
111

Algumas destas relações (meio ambiente, renda e consumo e tecnologia)


discutiremos no capítulo seguinte. Entretanto, certas considerações são necessárias para
reunirmos elementos que serão importantes na definição dos princípios de direito urbanístico.

A primeira é a inserção do urbanismo numa longa linhagem de afirmação do


racionalismo ocidental, a partir do iluminismo. Assim, o planejamento e os planos-inclusive
com natureza de norma jurídica- acabaram se afirmando como veículos dos conceitos e
opções para a gestão e reformulação das cidades. Entretanto, como descreve a célebre
constatação de Ermínia Maricato, “não foi por falta de planos e leis que nossas cidades
tomaram o rumo que tomaram”. Bem repara a mesma autora, é na década de 70, quando há
uma produção considerável de teses, cursos, e planos diretores, que as cidades brasileiras mais
cresceram fora da lei271.

A segunda é o papel central da moradia como eixo das propostas, doutrinas e


planos relacionados diretamente ao uso do solo urbano. Com efeito, é a partir da instabilidade
e da inadequação da moradia que derivou toda a história do urbanismo. Não se nega a
importância da mobilidade, da cultura e do desenvolvimento econômico inseridos no
planejamento, e sobretudo, nos períodos mais recentes, do viés ambiental com natureza
estratégica (o que também abordaremos com vagar no capítulo seguinte), mas é certo que sem
o equacionamento da questão da moradia, de forma adequada nos aspectos micro (da
construção) e macro (da localização), todo o resto fica comprometido.

A terceira é a relação estreita entre processos econômicos e o “valor de troca”


do solo urbano, patente a partir da industrialização, mas mantida e mesmo acelerada nos
estágios posteriores dos desdobramentos do capitalismo. Sem esse equacionamento, os
desequilíbrios das cidades continuarão a acompanhar oas vicissitudes da economia capitalista,
mas ainda que o capital possa se reconfigurar rapidamente, o mesmo não acontece com as
cidades272.

capitais. Daí para compreender a disparidade no debate entre administração e planos locais e os interesses
empresariais envolvidos, é apenas um passo.
271
A cidade do pensamento único, p. 140, entre outros escritos. Como desdobramento importante, da mesma
autora “não é por falta de leis que a maioria da população urbana foi historicamente excluída da propriedade
formal da terra, no campo ou na cidade, no Brasil” (O impasse da politica urbana, p. 95).
272
Como sobejamente demonstrado por David HARVEY (A produção capitalista do espaço urbano, p. 136-
150).
112

A quarta e ultima decorre das anteriores, mas é das mais palpáveis. Trata-se de
constatar o impacto decisivo e vinculante de movimentações econômicas mundiais, mas
sobretudo de políticas nacionais na estruturação das cidades, estas ultimas bem mais ao
alcance do processo decisório democrático.
113

4. NOVOS INFLUXOS: ECONOMIA, MEIO AMBIENTE E TECNOLOGIA


(O DIREITO TAMBÉM).

A forma de uma cidade muda mais depressa,


lamentavelmente, que o coração de um mortal.
Baudelaire, citado por Jacques Le Goff

Se considerarmos as transformações das cidades como inseridas em ciclos de evolução


social e política dos últimos séculos, não podemos deixar de lado a compreensão de certos
vetores- de onde provêm, seus desdobramentos e tendências- que impulsionaram as
reconfigurações do Estado e da sociedade contemporâneos.

Assim, para este capítulo selecionamentos três temas, entrelaçados, mas que de regra
trafegam independentes como preocupações mais agudas nos campos acadêmico, politico e
cultural. Assim o fizemos posto o papel transformador que vêm exercendo, e por serem
assuntos transversais em relação ao nosso objeto principal, qual seja, o território das cidades e
as atividades que com ele dialogam. Como pretendemos deixar claro no capítulo anterior, a
cidade é um produto de circunstâncias e fenômenos mais complexos do que apenas o
crescimento demográfico.

Em verdade, o que estipulamos foram recortes de tais vetores ou temas, mais ou


menos extensos no intuito de deixar bem claro o quão determinantes podem ser para o
processo de urbanização, suas consequências e perspectivas de controle.

No ultimo item, apresentamos um tema diverso, mas que em nossa específica


abordagem se soma aos anteriores, qual seja, as vicissitudes do Direito nesse mundo
cambiante, em especial da norma positiva e sua interpretação. Também aqui adotamos um
recorte, senão arbitrário, mas que acreditamos apropriado para encaminharmos as devidas
contribuições da ciência jurídica nesse quadro de transformação: os princípios de direito.
Entendemos que a teoria dos princípios e os vínculos que a partir dela podem-se estabelecer é
uma das melhores respostas que o Direito pode dar a um mundo que se reconfigura, às vezes
de forma vertiginosa, abalando mesmo as próprias bases estabelecidas nos últimos séculos, o
114

que não deixa de causar certa perplexidade. Mas isso é necessário quando tais bases não mais
se mostram firmes o suficiente para avanços desejados pela sociedade.

4.1. Crise(s) econômica(s): uma nova geografia.

O período que vai do final da Segunda Guerra até, pelo menos, a primeira
crise do petróleo (1973) foi de intenso e quase contínuo crescimento econômico, isso se
considerarmos genericamente os chamados “países centrais” (Europa ocidental, Japão e EUA-
não estamos considerando a “cortina de ferro”, ou países de economia centralizada como
Rússia, China e leste europeu, mas o processo era semelhante) e mesmo suas respectivas
periferias (dentre elas o Brasil). Aqui e ali, crises afloravam, como, por exemplo, nos anos de
1958 e 1966, mas decorrentes de problemas de superprodução, e superadas logo em seguida
pela criação de demanda. De qualquer forma, pairava uma sensação de que o sistema
funcionava a contento. As discussões sobre qual seria o melhor rumo das políticas e
estratégias de cada Estado se davam em torno de modelos mais ou menos definidos, todos
(genericamente agrupados em capitalistas ou socialistas) com argumentos válidos para
sustentar suas vantagens. Eventualmente, foi um ciclo de adiamento artificial das crises
cíclicas e globais do capitalismo, como depois aventaram certos pensadores marxistas.

Nesse mesmo período (e mesmo logo em seguida, por inércia), não por
coincidência, vicejou o desenvolvimentismo na forma de grandes obras de infraestrutura,
inclusive urbanas (rodovias, metrôs, grandes conjuntos habitacionais e até novas cidades) de
maneira a alocar o capital excedente e adiando então as crises 273. A unanimidade do
planejamento racional e centrado no ente estatal, em regimes capitalistas ou socialistas, seguiu
a reboque.

De lá para cá, entretanto, a economia mundial passou a evoluir em “soluços”,


ou administrando toda sorte de crises, recessões, e mesmo períodos localizados de depressões,
intercalados por momentos de grande prosperidade. Essa nova fase culminou porém com a
“mãe de todas as crises”, ou a “prostração global”274, a partir do colapso de grandes
instituições financeiras (Lehman Brothers©, JP Morgan© e AIG©) em setembro de 2008. O

273
David HARVEY, O enigma do capital, p. 137 e ss.
274
Paul KRUGMAN, A crise de 2008 e a economia da depressão, p.188 e ss.
115

gatilho desses eventos recentes275 foi a difusão de “ativos tóxicos”, ou títulos acoplados em
compromissos duvidosos, que se originavam, por sua vez, da oferta exponencial de crédito
fácil a tomadores sem lastro, a par de garantias também infladas artificialmente, os chamados
“subprime”. O risco, inerente à oferta de crédito, era dissolvido em inúmeras operações
cruzadas e de rastreamento difícil. Como descreve Paul Krugman:

“A ‘securitização’ de recebíveis imobiliários-formação de grandes pools de


empréstimos hipotecários e venda de cotas a investidores, que conferem aos
titulares direito de participação nos pagamentos dos devedores- não é prática
nova.(...) A inovação financeira que possibilitou a securitização de
empréstimos hipotecários subprime foi o chamado ‘collateralized debt
obligatio’ (títulos garantidos por dívidas), ou CDO’s, que oferecia cotas de
participação nos pagamentos dos recebíveis- mas nem todas as cotas eram
iguais. (...) E, assim, as agências de classificação de crédito atribuíam grau
AAA às cotas privilegiadas dos CDO’s, mesmo que os empréstimos
hipotecários, em si, fossem duvidosos.(...), Enquanto os preços das moradias
se mantiveram em alta, tudo parecia perfeito e a corrente da felicidade
continuava rolando.”276.

Entretanto, e a par disso, o que realmente interessa é o contexto, estruturado


nos anos anteriores a quando tais “defaults” ocorreram. Essa conjuntura pode ser brevemente
resumida pela (i) desregulamentação do mercado financeiro, ou expansão de instituições “de
per si” não regulamentadas como o são os bancos tradicionais, dando margem a todo tipo de
aventureirismo e prospecção de brechas e novos nichos de investimentos, potencializados
pelas mudanças políticas (abertura de mercados) e tecnológicas que permitiram
movimentações instantâneas e globais de recursos, e (ii) pela financeirização exacerbada dos
excedentes gerados pelo capital, a partir do final da década de 70 e início da de 80, em
decorrência do fim da taxa de câmbio fixa do dólar nos EUA e da assunção de outros eixos de
produção de bens (Japão e Alemanha, no primeiro momento, e países periféricos e China na
sequência). De forma que, já em meados dos anos 2000, como aponta David Harvey:

275
Ainda não encerrados, quando da elaboração deste trabalho. A crise deflagrada em 2008 aparenta ser daquelas
em “W”, como designam alguns economistas. Ou seja, à uma primeira queda da atividade econômica, as
autoridades reagem com medidas de cunho financeiro e monetário, e que recuperam no primeiro momento os
fluxos de capital e a confiança dos agentes. Logo em seguida, porém, fatores não resolvidos, ou a insuficiência
das medidas, jogam novamente a economia para uma recessão, como a observada na União Europeia em 2012.
276
Ibidem, p. 155-157.
116

“mercados de ações e derivativos totalmente novos com negociações ilegais e


com frequência não regulamentadas dominavam o comércio (600 trilhões de
dólares em negócios em 2008 em relação à produção total de bens e serviços
na economia mundial de cerca de 55 trilhões de dólares)”277.

Na perspectiva que adotamos (e aqui não discrepam autores eventualmente


com visões díspares, como os já citados Harvey e Krugman), a história do capitalismo desde
meados da década 70 constitui um grande ciclo de crises, por vezes contidas regionalmente (a
questão das dívidas de México, Brasil e Argentina entre 1982 e 1990), outras delas em
economias que “não podiam quebrar” (Japão, a partir de 1991, Suécia e países nórdicos no
mesmo período), ou solucionadas rapidamente com a realocação de investimentos (sudeste da
Ásia em 1997 e Rússia em 1998). A tal ponto se tornaram comuns tais crises (e só citamos
uns poucos exemplos) que havia a sensação até recentemente que elas se tornaram inevitáveis,
mas também que todas poderiam ser controladas, ainda que não sem alguns efeitos colaterais.
De qualquer forma, um mundo bem inseguro, se comparado aos trinta anos anteriores, e com
toda certeza de maiores diferenças entre ricos e pobres: de regra, nos período entre crises
grandes fortunas surgem com maior facilidade do que a ascensão de parcelas miseráveis ou
despossuídas.

As crises podem ser momentos de depuração, segundo alguns economistas.


David Harvey (que não é economista), insiste que:

“as crises são, por assim dizer, os racionalizadores irracionais de um


capitalismo sempre instável. Temos sempre a perguntar: o que está sendo
racionalizado aqui e em que direção estão tomando as racionalizações, uma
vez que isso é o que vai definir não só a nossa forma de saída da crise, mas o
caráter futuro do capitalismo?”278

Também interessa à nossa reflexão a observação de Paul Krugman, de que:

277
Ibidem, p. 86.
278
Ibidem, p. 65, entre outras passagens.
117

“A lição para o mundo real é que a vulnerabilidade dos ciclos econômicos


talvez pouco se relacione ou, quem sabe, não tenha nada a ver com as forças
e debilidades fundamentais da economia: as economias sólidas e fortes
também estão sujeitas a desventuras”279.

Reunir as duas anotações acima pode ser um passo importante para um inicio
de análise das reações da economia brasileira, senão ao ciclo todo, em relação ao qual o saldo
parece extremamente negativo, mas pelo menos à nova etapa, a partir de 2008.

4.1.1. Brasil: uma nova inserção na economia?

Com efeito, o Brasil não passou incólume às crises reiteradas a partir


dos anos 1970, chegando a decretar moratória da dívida em 1987 (com a primeira intervenção
do FMI, logo na sequência). Quase dez anos depois, em 1998, à desaceleração econômica já
em curso somou-se a fuga de capitais financeiros, levando o governo de então a estabelecer
programa intensivo de estabilização, centrado em aumento de impostos, redução dos gastos
públicos e manutenção de taxas elevadíssimas de juros- tudo sob os auspícios novamente do
FMI, para proteger a relação entre o real e o dólar, diminuir o déficit orçamentário a qualquer
custo e, assim, manter (ou reconquistar) a confiança dos “mercados”.

Na crise de 2008, entretanto- ainda que esta não esteja totalmente


superada- os reflexos no Brasil não foram tão dramáticos, podendo-se mesmo dizer que estes
passaram ao largo, por enquanto. Por quê? Estaria dada certa sustentabilidade, ou os fatores
que levaram à crise global, como que num efeito colateral positivo, garantiram tal condição
privilegiada?

Uma possível resposta pode ser o fato de que a China se recuperou mais
rápido e com maior sucesso que outros países. Neste sentido, portanto, o Brasil continuou
como um vendedor ativo e em quantidades imensas de “commodities” para aquele imenso
mercado, em especial quanto a grãos e minérios, como anotou David Harvey280, com
consequências positivas para a balança comercial no primeiro momento, mesmo considerando
que este perfil exportador não gere bases sólidas e, mais à frente, possa vir a soçobrar. De

279
Ibidem, p. 19, com grifos nossos.
280
Ibidem, p. 213 e 220-221.
118

outra parte, o propalado “descasamento”, com a diminuição de empréstimos externos e a


formação de grandes reservas cambiais, que regulariam o valor da moeda, não se mostra
suficiente para explicar o fenômeno, ao menos na visão de Paul Krugman281.

Entretanto, um fator importante de sustentação (e de alavancagem) da


posição brasileira, este de grande interesse à nossa pesquisa, foram as mudanças no mercado
interno, mais especificamente na distribuição da renda.

Este processo acabou sendo alcunhado como o surgimento de “uma


nova classe média”, ou “nova classe C” para expressar a incorporação de um imenso
contingente populacional ao mercado de consumo, especialmente quanto a bens duráveis ou
semiduráveis. E tal movimento foi, de fato, intenso no período que vai de 2001 a 2009,
mantendo, ao que tudo indica uma velocidade semelhante até pelo menos 2011282.

Marcelo Neri283 define como “classe C” o indivíduo inserido numa


faixa de renda domiciliar a partir de R$ 1.200,00 até R$ 5.174,00 (valores de 2011), e relata
como o percentual da população brasileira neste segmento pulou de 38,7% da população em
2001 para 55,05% em 2011- em números absolutos, 39,6 milhões de pessoas ascenderam,
completando um total de 100,5 milhões de brasileiros. As classes A e B tiveram aumento até
relativamente maior (39,6%) no mesmo período, recebendo cerca de 9,2 milhões pessoas, ao
passo que as classes D e E (abaixo de R$1.200,00 de renda domiciliar) diminuíram de 96,2
para 63,6 milhões em 2011. Se considerarmos o crescimento vegetativo da população, tais
números ganham ainda maior impacto. Por fim, o mesmo autor arremata: a partir de 2011, a
classe C já concentrava 46,6% do poder de compra, superando as classes A e B, à qual
restaram 45,6%.

Capitalizada então, parcela considerável da população parte para o


consumo. Em verdade, ela nunca deixou de fazê-lo; como bem demonstrou Francisco de
Oliveira em estudo clássico, a industrialização brasileira já visava desde antes da Segunda
Guerra atender às necessidades de acumulação, porém com intuito de manter baixo o custo da

281
Ibidem, p.184-185.
282
Marcelo NERI, A nova classe média, p. 84-85.
283
Ibidem, p. 24-29.
119

reprodução da força de trabalho mediante o acesso a bens não duráveis284, e, no período entre
1958 e 1969, mesmo com redução do poder individual de compra285, houve um incremento da
possibilidade de aquisição de bens duráveis, pela duplicação (familiar) da força de trabalho. O
fenômeno, no presente, é de outra ordem e consequências.

Marcio Pochmann adota um recorte diferente, ao analisar a base da


pirâmide social, quais sejam os trabalhadores com renda (individual) de até 1,5 salários
mínimos (ou R$ 933,00 em 2012). E mesmo assim constata avanços consideráveis, tanto em
participação na renda quanto, sobretudo, na formalização do trabalho, o que conduz a maior
segurança, estabilidade, e, por conseguinte, também maior consumo de bens e serviços
associados à economia popular286. E mais: a maioria desses novos postos de trabalho formal
foram ocupados pela faixa etária dos 24 aos 35 anos, justamente quando o indivíduo está
constituindo seus ativos pessoais (casa, automóvel, eletrodomésticos, etc.).

Em outra obra, Pochmann expõe interessante consequência desse


processo. No período que vai de 2000 a 2010, todas as 30 maiores cidades brasileiras
diminuíram a relação de habitantes por automóveis287. Tal redução, evidentemente, se mostra
pelo aumento do número de veículos, e não pelo encolhimento da população, a qual cresceu
em termos absolutos no mesmo período. Entretanto, nenhuma daquelas cinco que apontaram
as maiores reduções (Teresina, Recife, São Luiz, Maceió e Fortaleza), estão sequer entre
aquelas dez que apresentaram maior crescimento da renda “per capita”288. Em outras palavras,
numa possível interpretação, a renda aumentou proporcionalmente mais entre aqueles com
demanda reprimida por bens duráveis, dentre os quais o automóvel é talvez o mais almejado.

Combinados, formalização do mercado de trabalho e investimentos da


classe ascendente em educação e previdência seriam suficientes para garantir sustentabilidade
à diminuição das desigualdades de renda. Entretanto, o item educação, pelo menos, ainda não
refletiu exatamente a mobilidade social mais recente, como demonstra Marcelo Neri289.

Resta então o consumo em si mesmo.

284
Crítica à razão dualista/o ornitorrinco, p.50.
285
Ibidem, p. 88.
286
Nova classe média? p.31 e ss.
287
Reconquistar a cidade, p. 31.
288
Ibidem, p. 126
289
Ibidem, p. 168 e ss.
120

Não obstante reconhecer a justiça social da diminuição do fosso de


renda entre as classes sociais, e a relevância desse processo para a primeira “imunização” da
economia brasileira em relação às crises globais, há motivos para preocupação. Não se pode
negar certa temeridade do consumo enquanto âncora do crescimento, com o condão de gerar
consequências perigosas; por exemplo, maior demanda por energia, como, denota o aumento
(descolado de razoabilidade) do número de veículos, anotado acima.

Parte dos riscos (os ambientais), discutiremos no item seguinte.

4.2. Meio ambiente e desenvolvimento sustentável.

“A luta pela vida na Terra vai ser vencida ou perdida nas cidades”.

A frase é de Ahmed Djohglaf, ex-secretário executivo da Convenção sobre


Diversidade Biológica (CBD) da ONU290, e reflete como poucas a realidade intrínseca que
compartilham a urbanização global e os problemas ambientais. E a questão central, ou o pano
de fundo do pensamento acima, nos parece ser: a urbanização compromete-por aumentar o
consumo de recursos- ou facilita- por concentrar população e permitir soluções estruturadas- o
combate à degradação ambiental?

Tal questão nos leva a um conceito-chave adotado a partir do final da década


de 80 como pretensa base do enfrentamento à aceleração dos problemas ambientais, qual seja,
o de desenvolvimento sustentável, ou mesmo de sustentabilidade291.

Não estamos aqui, e refletindo na perspectiva hermenêutica, apenas diante de


um “conceito indeterminado”, comportando um círculo de certeza, outro absolutamente
distinto, e uma "zona cinzenta" a ser preenchida pela razoabilidade e pela proporcionalidade,
em busca da "solução ótima".292 Para além disso, aquelas expressões são palco de profunda

290
Ou por ele disseminada, cuja formulação mais ampla pode ser encontrada, dentre outros, em
http://redaalc.com/biodivurbana/curitiba/discurso_ciudades_biodiversidad_2010_port.pdf, acesso em
24/12/2012.
291
Não sinônimas, com certeza. A primeira se aproxima do crescimento econômico, ao contrário da segunda, o
que debateremos logo adiante.
292
Na feliz expressão de Onaldo Franco JANOTTI (Conceitos indeterminados e origem lógico-normativa da
discricionariedade, passim).
121

disputa ideológica, onde noções e atitudes nem sempre correspondem; ao contrário,


entrecruzam-se293. Ganha densidade assim a afirmação de Henri Acselrad de que “ao
contrário dos conceitos analíticos, voltados para a explicação do real, a noção de
sustentabilidade está submetida à lógica das práticas”294, e suas traduções em geral, seriam
“expressões vagas, manifestações de um positivismo frustrado”295.

De qualquer forma, há, segundo o mesmo autor, matrizes a serem


obrigatoriamente consideradas na busca de sentido para sustentabilidade, como (i) eficiência
(racionalidade), (ii) escala (limites quantitativos ao crescimento), (iii) autossuficiência, (iv)
equidade (justiça e ecologia), e (v) ética (interação entre a base mental e a continuidade da
vida)296.

O fato é, contudo, que os agentes econômicos se apropriaram do(s) sentido(s)


de desenvolvimento sustentável mais do que os ambientalistas. Nesse ponto estão de acordo,
entre outros, o próprio Acselrad297 e Marcos Nobre298. Esse ultimo, por sinal, traça rica
análise, mostrando como (i) a vaguidão do termo foi proposital, desde o célebre “Relatório
Brundtland” (“Our common future”-1987), justamente para permitir sua institucionalização, e
(ii) há um contexto histórico e político que explica o porquê dessa apropriação. É de grande
interesse o percurso e argumentos por ele traçados, que buscamos sintetizar nos termos que se
seguem.

O debate ambiental da década de 70 foi profundamente marcado por


concepções acerca dos limites do crescimento e do uso dos recursos naturais, dada sua
finitude inexorável, ainda mais agravada em face do crescimento demográfico nos anos
anteriores. É fato que a repercussão dos estudos da época não alcançava ainda o circuito
politico e social como ocorreu nos anos seguintes; mesmo assim os defensores da economia
neoclássica contrapuseram-se (contestando ou ignorando) às posições denominadas de
“catastrofistas”, e especialmente os países em desenvolvimento se opunham a qualquer
proposta de “crescimento zero”. Isso começou a mudar no início dos anos 80, à medida que
293
Para uma análise do descompasso entre práticas e ideias, com fundamento na teoria da ideologia em
Althusser, ver Luiz Sérgio Fernandes de SOUZA (O papel da ideologia no preenchimento das lacunas no
direito, p. 128-150).
294
A duração das cidades, p. 45.
295
Ibidem, p. 41.
296
Ibidem, p. 35.
297
Ibidem, p. 45.
298
Desenvolvimento sustentável, p. 68, dentre outras passagens.
122

problemas como pobreza e endividamento externo (típicos àqueles países) assumiram outro
patamar nesse debate. Portanto, a noção de desenvolvimento sustentável teve como berço um
ambiente politizado, e não técnico, propondo naquele momento o crescimento ordenado como
solução, e não causa da degradação ambiental299.

O ponto de inflexão deu-se com a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento (Unced) no Rio de Janeiro, em 1992, quando então a posição
dos países desenvolvidos acabou prevalecendo, posto que mantiveram sob seu controle- por
via de acordos bilaterais ou através do Banco Mundial- os recursos e a transferência de
tecnologia necessários à diminuição de impactos ambientais300. Para eles (países do norte),
nas palavras de Nobre:

“sustentabilidade é quase exclusivamente interpretada como uma forma pós-


moderna de gestão ambiental que diz respeito à necessidade de introduzir
mudanças tecnológicas apropriadas para afastar a ameaça da mudança
ambiental global, mas não se questionam as premissas filosóficas e os valores
fundamentais de uma sociedade moderna industrializada.”301

Ou seja, o preço da institucionalização e da assunção da sustentabilidade à


pauta internacional foi, talvez, seu edulcoramento.

No entanto, o debate não se encerrou, e nem o prevalecimento do viés


econômico (de extrato neoclássico302) na consideração sobre sustentabilidade se traduziu
exatamente em hegemonia. Ao contrário o confronto entre economia ambiental neoclássica-
princípio da escassez - e a economia ecológica- princípio da exauribilidade dos recursos - e
novas reconfigurações do conceito de desenvolvimento sustentável reprocessam-se a todo
momento, à medida que também novos dados e consequências nefastas concretizam-se aos
olhos da sociedade.

299
Desenvolvimento sustentável, p. 21-48.
300
Ibidem, p. 49-61.
301
Ibidem, p. 63.
302
Ainda que mais tinta seja utilizada nas questões históricas, diplomáticas e econômicas, NOBRE também
argumenta com outros fatores que mostram como a economia neoclássica é capaz (ibidem, p. 77) de construir um
discurso convincente e racional, no sentido de tratar os problemas ambientais como sempre tratou outros
obstáculos à acumulação: internalizando custos.
123

Em especial, há um dado que se insere como uma cunha nesse enfrentamento,


ao que tudo indica respaldando posições anticrescimento econômico: as mudanças climáticas.

4.2.1. Mudanças climáticas e justiça ambiental.

Os efeitos deletérios da queima de combustíveis fósseis (petróleo e


carvão, sobretudo) e da dissipação na atmosfera de outros gases já são preocupação de
décadas, mas que ganhou novo vulto a partir de 1989, com a instalação do Painel
Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês), vinculado á ONU e
à Organização Meteorológica Mundial, e com a divulgação de seus relatórios periódicos
(2001 e 2007)303, dando conta (i) do aquecimento em curso, já inevitável dado o acúmulo
havido de dióxido de carbono, metano e outros gases, tratando-se apenas de enfrentar cenários
mais ou menos graves, e (ii) da responsabilidade da ação humana nesse processo.

Ninguém melhor do que James Lovelock apresenta a questão, em toda


sua dramaticidade304, mas também trazendo para debate as alternativas que se colocam.

O notável cientista inglês peremptoriamente descarta a expressão


“desenvolvimento sustentável”305, posto tarde demais para isso em função da
306
irreversibilidade do processo de aquecimento, e em seu lugar coloca o conceito de
“retirada sustentável”, ou uma reconversão tecnológica e social de forma a limitar, ao menos,
os efeitos do fenômeno. Desenvolvimento sustentável seria, para Lovelock, um conceito
humanista não mais adequado às transformações operadas pelo homem no sistema
(autorregulado, segundo ele, mas já exausto naturalmente) da Terra307. Soma a isso o fato de
que as dinâmicas instaladas pela ação humana colocam em cheque a capacidade de previsão e
montagem de cenários nos limites da ciência atual308, e o quadro que forma então é de uma

303
Nova rodada de divulgação de relatórios deve ocorrer entre o final de 2013 e início de 2014.
304
No final de abril de 2012, em entrevista concedida à rede norte-americana de TV MSNBC
(http://worldnews.nbcnews.com/_news/2012/04/23/11144098-gaia-scientist-james-lovelock-i-was-alarmist-
about-climate-change?lite, acesso em 12/12/2012), LOVELOCK reconheceu que as transformações não estavam
ocorrendo na velocidade e no sentido que previra em meados da década de 2000, e por isso afirmou que fora
“alarmista” em certos aspectos. Entretanto, não negou o aquecimento como um fenômeno real, e nem a
participação da sociedade humana nesse processo.
305
A vingança de Gaia, p. 20.
306
Ibidem, p. 58,130 e outras passagens.
307
Ibidem, p. 132.
308
Mais do que cumulativo, o efeito estufa seria retroalimentado (ibidem, p.35 a 44). Por exemplo, as alterações
da salinidade dos mares em função do degelo alterariam o trajeto e a intensidade das correntes marítimas, as
124

insegurança como nunca dantes na história da civilização, superior às epidemias e guerras do


passado.

É evidente que muitas páginas podem ser utilizadas para afastar a ideia
de que desenvolvimento corresponda a crescimento econômico. Os autores citados já colocam
na berlinda essa equivalência, mas a tarefa é complexa, como bem repara Marcelo Lopes de
Souza309, vez que as tentativas de estabelecer uma compreensão mais adequada aos novos
tempos esbarram no problema de que desenvolvimento ainda é vinculado pela grande maioria
de agentes políticos e pensadores à modernização da sociedade em sentido capitalista e
ocidental, e considerações sociais e ecológicas apenas amenizam, mas não tiram a matriz de
crescimento econômico, nessa acepção mais convencional.

No cenário da impossibilidade de crescimento econômico como


tradicionalmente manejado pela ciência e pela política, restaria então- o que não é pouca
coisa- entender o desenvolvimento sob a perspectiva de justiça ambiental, estreitando o fosso
entre pobres e ricos na apropriação dos recursos naturais exauríveis, em médio prazo, e
concomitantemente diminuindo a dependência desses últimos, de forma a, pelo menos,
adaptar a sociedade às mudanças climáticas.

A redistribuição assim operada também é bastante complexa, indo da


perspectiva internacional (ou relação norte-sul entre Estados soberanos, rapidamente
comentada no item anterior), mas igualmente, o que é relevante, afastando dos grupos e
comunidades mais pobres os riscos ambientais. Com efeito, e realça Henri Acselrad310, a
noção de justiça ambiental tem como marco a constatação, na Nova Iorque da década de 70,
de que a localização do lixo tóxico se concentrava basicamente nos bairros pobres da
comunidade afrodescendente. Dai por diante, essa linha de estudos se aprofundou, sendo
possível caracterizar as cidades contemporâneas, sob os efeitos da globalização, justamente

quais assim acelerariam o mesmo degelo de maneira incomensurável (p. 61-62);o derretimento do “permafrost”
(solo permanentemente congelado das altas latitudes do norte) liberaria na atmosfera gás metano há século
aprisionado e nunca medido com precisão (p. 126), dentre outras passagens.
309
Mudar a cidade, p. 60 e ss. O autor tece densas considerações acerca de sua visão de desenvolvimento,
partindo da ideia- correta, a nosso ver- de que esse só pode ser definido contendo em si o elemento socioespacial
(o que é mais do que territorialização no sentido físico). A partir daí, aprofunda as percepções de melhoria da
qualidade de vida e aumento da justiça social, para além de aspectos formais e conectando-as à autonomia
(individual e coletiva), na linha do pensamento de Castor Castoriadis.
310
A duração das cidades, p. 31-32.
125

pela profunda desigualdade social na exposição aos riscos ambientais. Ou ainda, na sentença
de que:

“o desafio de construir cidades com novos parâmetros, portanto, não se pode


restringir às concepções de um urbanismo ecologizado que se satisfaça em
promover cidades compactas, capazes de economizar espaço e energia,
tampouco que tenha na ‘sustentabilidade’ um mero atributo simbólico
adicional para a competição interurbana desenvolvida por meio de marketing
de cidades”.311

A tecnologia aplicada ao planejamento e à gestão das cidades pode ter


muito a dizer nesse contexto.

4.3. Tecnologia e percepção do território.

Em verdade, ao desenvolvimento técnico estão diretamente ligadas as


características da urbanização no século XX, e das possibilidades daí geradas é que
consolidou-se o modernismo como o apresentamos no capítulo anterior312. Com efeito, o
aperfeiçoamento dos meios de transporte individual e coletivo, dos meios de comunicação
individual e de massa, mas principalmente a evolução da construção civil possibilitando tanto
a proliferação de obras estruturantes (pontes, túneis, estradas, etc.) quanto a verticalização em
larga escala das edificações, acabaram por influir decisivamente na configuração das
cidades313 que hoje nos abrigam.

Todavia, compreender de fato as possibilidades que a tecnologia abre ao


desenvolvimento urbano no mundo contemporâneo implica em tentar confluir duas
realidades, anteriores, e que adquiriram outra escala, e portanto, outro perfil, nas décadas mais
recentes.

311
Ibidem, p. 35.
312
Por exemplo, nas propostas de Tony Garnier (item 3.3) que tanta influência deitaram sobre o movimento
modernista.
313
Isso vale também para os aspectos estéticos. Com efeito, sem a evolução da tecnologia do concreto parte
considerável da obra de Oscar Niemeyer talvez não teria saído da prancheta.
126

A primeira é a tecnologia da informação, como ela passou a ser gerada e


disseminada, e o papel transversal que assumiu nas mudanças ainda em curso, políticas e
sociais, marcantes da transição do século XX para a atualidade. Mais do que a inovação em si,
a miniaturização314 dos equipamentos, seu barateamento, difusão e acessibilidade, nas mais
diversas plataformas, acabaram por gerar novas conexões e, por via de consequência, novas
linguagens e relações.

A outra, talvez mais sutil, é a capacidade imensa de transformações politicas


que decorrem das novas formas de percepção da realidade, para além apenas do volume de
informação. De fato, a argumentação racional, por mais fundada e compartilhada, não tem o
mesmo potencial que a imagem e a experiência cultural na mobilização de sentimentos e
desejos que, apropriados pelas comunidades, conduzem às mudanças politicas. Por exemplo, a
historiadora norte-americana Lynn Hunt demonstra315 como, desde o século XVIII, o
desenvolvimento da noção de direitos individuais- e sua universalização- se sustentou na
proliferação das comunicações, especialmente mediante formatos à época inovadores, como o
romance e o folhetim. Sua conclusão, deveras interessante, aponta para a capacidade de
transformação a partir da forma com que as ideias são apresentadas, e não apenas de seu
conteúdo, gerando relações psicológicas que levam à aceitação (ou não) das diferenças e
semelhanças entre os seres humanos e as coletividades, para além, reitere-se da lógica
racional e argumentativa que busque demonstrar a mesma coisa.

Isso poderia soar irrelevante quando imaginamos que a cidade é por excelência
o espaço de convivência “tête-à-tête” e de trocas culturais intensas entre os indivíduos, mas tal
elemento perde significado se consideradas as dimensões da metrópole e, principalmente, a
segregação socioespacial, que afastam esses mesmos indivíduos e os grupos fisicamente (e
apenas isso) próximos. A ironia de dois sujeitos que estão ao lado um do outro, mas se
comunicando por mensagem de texto, é mais do que mera curiosidade, e sim retrato dos
paradoxos que imiscuíram-se no cotidiano das pessoas e das instituições, mas ainda em fase
de sistematização.

314
Basta pensar na banalização das câmeras de monitoramento por vídeo, em ambientes públicos e privados, ou
dos telefones celulares, para se dar conta da potencialidade transformadora dessas tecnologias.
315
A invenção dos direitos humanos, em diversas passagens mas bem sintetizada à p. 30-33.
127

Por isso, as novas tecnologias voltadas ao território têm muito a dizer, quanto á
gestão, e também quanto à participação politica.

4.3.1. Georreferenciamento: aplicações e potencialidades.

As representações da realidade urbana por meio de modelos


computacionais tiveram início no final dos anos 50 e início dos 60 do século passado316,
incialmente relacionadas ao planejamento de tráfego, ampliando posteriormente seu escopo
para a distribuição espacial das atividades e populações, já nos anos 80. Nesse ultimo período
é que incorporou-se a representação física do território, com os programas denominados
genericamente de Sistemas de Informações Georreferenciadas (SIG317), disseminados nos
anos 90. Sua estrutura é composta de diversos “layers”, ou camadas que se sobrepõe a um
mapa digital, e que podem então servir de maneira isolada ou integrada com as demais para
interpretação dos fenômenos que ocorrem no território. Tais camadas representam
informações desagregadas sobre uso do solo, vegetação, declividade, cursos d’água, tráfego,
redes de infraestrutura (capacidade, dimensões, vida útil, etc.), microclima, população, renda,
equipamentos públicos, entre centenas de outros. Já no início dos anos 2000, como relatam
Cullingworth e Caves318, a administração de San Diego (Califórnia, EUA) manejava um
sistema de georreferenciamento com mais de 450 “layers”.

A partir dos anos 2000, (i) o uso de imagens de satélite319 com alta
resolução, (ii) o desenvolvimento das ortofotos e suas possibilidades de expressão
tridimensional dos ambientes, e (iii) o uso intensivo do GPS (“global positioning system”) e a
instantaneidade do envio de dados que ele permite, tornaram, em definitivo, essa tecnologia
uma ferramenta indispensável à gestão urbana. A versatilidade também aumentou, com a
inserção e integração de mais e mais informações socioeconômicas e biofísicas.

As potencialidades desses programas são imensas, se bem exploradas,


monitorando questões como o risco de desabamento de encostas, dispersão de poluentes,
tendências de problemas no tráfego, capacidade da infraestrutura, valorização imobiliária,

316
Cláudia Faria de ALMEIDA “et alii” (Geoinformação em urbanismo, p. 15-19) fornecem esclarecedora
síntese da evolução ora descrita, que adotamos com a inserção de outras considerações.
317
Ou GIS (“geographic information systems”).
318
Planning in the USA, p. 384.
319
Em 2005, o visualizador Goggle© Earth instaurou um padrão que se tornou o mais comum hoje.
128

padrões de ocupação do solo, entre muitos outros. Como anotam Cláudia Faria de Almeida
“et alii”:

“O uso de ferramentas de geoinformação como instrumento para a análise de


geodados representa a possibilidade de se lidar com uma totalidade exaustiva
de recursos e de combinar dados de maneira não auto-evidentes, que
conduzem à descoberta de aspectos surpreendentes do mundo real, os quais
teriam sido de outra forma negligenciados”320.

Entretanto, há um corte importante e que muito interessa a nosso


raciocínio: quem se utiliza desse potencial, e para quê, tendo em vista as finalidades
preconizadas constitucionalmente para o Estado brasileiro e sua relação com o espaço urbano
(e também rural)?

Ricardo Castillo, analisando o processo no início dos anos 2000-


quando a popularização dos GPS ainda não se consolidara, por exemplo- entende de maneira
muito incisiva, que “as novas tecnologias de percepção territorial são apropriadas pelas
grandes corporações e pelo Estado, os quais então selecionam o tratamento da informação
assim gerada- regulação, vigilância, controle, gestão, especulação”.321

Indo além, o mesmo autor enxerga interações entre o espaço e as novas


tecnologias de informação, estas gerando sobre aquele a possibilidade de um uso mais
especializado, ao mesmo tempo hierarquizado e articulado; por isso, tais possibilidades não
suprimem e nem prescindem do espaço (sempre na perspectiva corporativa e estatal), mas, ao
contrário, confirmam sua importância322.

O que não podemos negar é o caráter estratégico da informação, após a


decantação da linguagem e das tecnicalidades inerentes a sistemas complexos, para o processo
de gestão democrático dos planos, em especial daqueles urbanísticos. Ou seja, trata-se de
subverter um sistema concebido originalmente para uma abordagem meramente técnica do

320
Ibidem, p. 25.
321
Tecnologia da informação e os novos fundamentos do espaço geográfico, p. 246.
322
Ibidem, p. 249.
129

território323, disseminando seu uso e permitindo sua apropriação efetiva e constante pelos
mais diversos atores sociais.

4.4. Princípios e Direito: um panorama.

Em certa medida, enxergamos semelhanças entre a teoria dos princípios na


ciência jurídica e a física das partículas. Ao observador, e em ambas, o objeto (i) é fugidio aos
olhos, vislumbrado em plena transformação, e, portanto, sempre com um contorno indefinido,
mas (ii) dele não se pode prescindir, sob pena de não se explicar convincentemente a estrutura
maior e perceptível (a matéria ou o Direito, em cada caso).

Importa fazermos determinados cortes, todavia, de maneira a não nos


obrigarmos à explanação de uma teoria geral, própria ou emprestada, o que de qualquer forma
seria inviável nos limites deste trabalho, sem prejuízo de a teorias gerais nos referenciarmos.

Assim, optamos por nos deter (i) nas possibilidades que se descortinam à
identificação dos princípios e eventualmente (se forem princípios explícitos) da estrutura - se
é que ela existe- das normas positivas que colaboram para enunciá-los, e (ii) na efetividade
dos princípios enquanto elementos operacionais de interpretação “ótima” do direito, ai inclusa
(iii) a problemática dos “conflitos entre princípios”.

Claro que não se trata de erigir os princípios à essência suficiente do Direito,


longe disso. As advertências e Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos 324, mas
sobretudo de J. J. Gomes Canotilho325 falam por nós quanto a tal risco.

É possível uma periodicização da abordagem jurídica em relação aos


princípios326, sinteticamente estabelecida pelas fases jusnaturalista (de universalidade dos

323
A “subversão” da formação técnica dos especialistas pelos agentes históricos (cidadãos e comunidades) é
proposta de Marcelo Lopes de SOUZA (Mudar a cidade, p. 36-41, dentre outras passagens), ancorado no
pensamento de Paulo Freire, e base do que aquele autor denomina de “planejamento crítico”.
324
A nova interpretação constitucional dos princípios, p. 102 e 115.
325
Direito constitucional e teoria da Constituição, p.1162-63.
326
Paulo BONAVIDES (Curso de direito constitucional, p.259 e ss.) traça o percurso da(s) teoria(s) dos
princípios intercalando-o com as principais contribuições de cada autor. De maneira mais esquemática, André
Ramos TAVARES (Elementos para uma teoria geral dos princípios na perspectiva constitucional, p. 28 a 32) e
também Luis Roberto BARROSO e Ana Paula de BARCELLOS (A nova interpretação constitucional, p. 104-
108).
130

princípios), positivista (dos princípios gerais do direito, com papel subsidiário na superação
das “lacunas” da lei) e pós-positivistas (ainda em construção no presente, mas com certa
consolidação já passível de se vislumbrar). Esse historicismo não é irrelevante, se
entendermos que questões epistemológicas também não o são em temas tão estruturantes do
pensamento jurídico. Por isso, releva anotar que a noção contemporânea327 dos princípios de
direito foi sendo construída paulatinamente a partir da década de 60, e a pauta atual, com a
definitiva inserção dos princípios enquanto norma, deve-se ao trabalho de Ronald Dworkin328
e ao desenvolvimento posterior levado a cabo por Robert Alexy329, declaradamente como uma
forma de superação do positivismo tradicional. Daí até o presente, essa pauta foi sendo
enriquecida, desdobrada, sistematizada e mesmo contestada, tornando-se inafastável de
qualquer doutrina, especialmente porque imbricada com a premência da afirmação dos
direitos fundamentais e da eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais. No Brasil,
especialmente, a promulgação da Constituição em 1988 foi o marco decisivo para a
disseminação dos estudos envolvendo os princípios jurídicos sob a pauta acima considerada.

4.4.1. Norma, princípios e regras.

Se até agora utilizamos o vocábulo norma com o sentido de norma


positiva, certa correção faz-se necessária: separar o texto, ou como prefere Humberto Ávila330,
o dispositivo, que é a expressão linguística adotada pelo legislador, da norma, que é a
consequência da interpretação havida. Em verdade, e ainda que referenciada por inúmeros
doutrinadores, tal distinção se deve ao trabalho de Friedrich Müller331, e o adotamos com a
advertência de Eros Grau332, no sentido de que ela (a norma) é resultado também de uma
interpretação dos fatos. Isso nos interessa, se estivermos (como estamos) disposto a inferir
princípios; talvez a tarefa seria mais fácil se nosso foco fossem regras, pois, efetivamente, de
um dispositivo se pode extrair mais de uma norma, ou, igualmente, é verdade que uma norma
eventualmente se cristalizará no conjunto de vários dispositivos reunidos e articulados, no
caso concreto.

327
Até Kelsen dos princípios se ocupou, evidentemente contestando sua relevância, como relata Eros GRAU
(Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 169-170).
328
Levando os direitos a sério, de 1977, entre outros escritos.
329
Teoria dos direitos fundamentais, de 1986, também dentre outros escritos.
330
Teoria dos princípios, p. 22.
331
Método de trabalho do direito constitucional, p. 38-47.Segundo Elival da Silva RAMOS (Ativismo judicial,
p. 99), a teoria de Müller se assenta no positivismo, mesmo que este se autodenomine “pós-positivista”.
332
Ibidem, p. 102-103.
131

Pois bem, o ponto de partida adotado costumeiramente é o esquema


desenhado por Dworkin. Este busca empreender um “ataque geral contra o positivismo”333,
não por mero capricho, mas porque tal doutrina mostra-se insuficiente nos “casos difíceis”
(“hardcases”)334, e em relação a eles o juiz é obrigado a ir além dos padrões costumeiros da
mera subsunção do fato ao dispositivo. Numa sintética e consagrada expressão da noção de
princípios segundo Dworkin, e na perspectiva do momento da aplicação, as regras operam
como “tudo ou nada”; em outras palavras, ou são, ou não são consideradas para a decisão de
um caso concreto, e, se o forem, o serão integralmente, com exclusão de outra qualquer. Já os
princípios possuem uma dimensão diferente das regras, implicando num “padrão”335 também
diferente para a decisão, de “mais ou menos”, querendo dizer que podem interferir na decisão
com maior ou menor “peso” no resultado final, e à vista de cada fato este “peso” também irá
variar. Em suma, cada princípio irá interferir, pouco, muito, ou de forma decisiva na aplicação
do Direito ao caso concreto, sendo que um princípio poderá se sobrepor ao outro (quando
forem colidentes numa situação determinada), mas sem que este último perca sua validade,
podendo inclusive prevalecer em relação ao primeiro, em outra situação.

Interessante observar que Dworkin chega a apontar uma terceira


tipologia, ou “padrão”: aquilo que denomina de “política”, a qual “estabelece um objetivo a
ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da
comunidade”336. Entretanto, ele a abriga na ideia mais geral de princípio, e volta a sacá-la
novamente quando vai tratar da interpretação sob princípios, mas ainda mantendo-as em seu
nicho. Eros Grau (que identifica tais dispositivos com as normas-objetivo de sua teoria),
mesmo aceitando o encarte- e até mesmo julgando-o metodologicamente útil- põe relevo na
peculiaridade dessa tipologia337, quando da interpretação sob princípios. Concluímos nós,
então, que tais “políticas” tratam-se igualmente de princípios, mas que terão aferidos seu
“peso” levando em conta aquela característica- a de expressar um objetivo coletivamente
relevante- quando no caso concreto338.

333
Levando os direitos a sério, p. 35.
334
Ibidem, p. 46-57. Mas as referências aos “hardcases” e seu enquadramento se espraiam pela obra de Dworkin,
quando aparta regras e princípios e também quando debate a interpretação de tais situações a partir dos
princípios (ibidem, p.127 e ss), o que demonstra sua preocupação com uma sistemática coerente do direito, ainda
que mais larga do que o positivismo.
335
É essa a expressão usada por Dworkin em várias passagens (Levando os direitos a sério, p. 36 e ss., por
exemplo).
336
Ibidem, p. 36-37.
337
Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 133-137.
338
Voltaremos ao tema mais adiante, quando tratarmos dos desdobramentos da pauta dos princípios.
132

Se Dworkin desenvolveu suas ideias num contexto de “common law”, o


que poderia justificar muito de seu raciocínio por conta do maior poder dado ao julgador e à
tradição dos precedentes, essa ressalva não vale para Robert Alexy, que introduz a noção dos
princípios enquanto mandamentos de otimização, restando às regras a qualidade de
mandamentos de definição. A otimização implica em considerar, nas palavras de Alexy, que
os princípios sejam:

“normas que ordenam que algo seja realizado em uma medida, tão alta quanto
possível, relativamente às possibilidades jurídicas e fáticas [e] são cumpríveis
em graus diferentes, enquanto regras, como mandamentos definitivos, sempre
somente ou podem ser cumpridas ou não cumpridas”339.

Melhor esclarecendo, como o faz Luis Afonso Heck340, o mandamento


de otimização é intrínseco ao princípio, e não algo a ele externo ou dele uma tradução, e então
“sua eliminação iria significar que o respectivo princípio perderia seu caráter como
princípio”. E mais além, como bem esclarece Humberto Ávila:

“os princípios são definidos como normas imediatamente finalísticas, isto é,


normas que impõem a promoção de um estado ideal de coisas por meio da
prescrição indireta de comportamentos cujos efeitos são havidos como
necessários àquela promoção”.341

Ganha relevo em Alexy a ideia da colisão de princípios no caso


concreto e as consequências daí advindas342, pois, como bem resume o mesmo Humberto
Ávila343, nesta perspectiva fica mais claro que a distinção entre princípios e regras não poderia
se ater apenas aos critérios de “tudo ou nada” e “mais ou menos”. Em verdade, nessa leitura,
há, entre princípios e regras, diferenças (i) na colisão, onde os primeiros tem sua realidade
limitada reciprocamente, e as segundas se excluem, e (ii) diferenças quanto à obrigação que

339
Direito, razão, discurso, p.180.
340
Regras e princípios jurídicos no pensamento de Robert Alexy, p. 82-84.
341
Teoria dos princípios, p. 81. Os grifos são nossos, e de grande relevância para o restante de nosso raciocínio.
342
Mais uma vez aqui, a metáfora da física de partículas, onde as propriedades dos elementos se mostram apenas
após a colisão entre eles, induzida pelos “aceleradores de partículas”.
343
Ibidem, p. 30.
133

instituem, já que a das regras é absoluta (ou nula, se descartadas pelos fatos), enquanto os
princípios coexistem. Na síntese de Luis Roberto Barroso, quanto ao conflito entre princípios:

“á vista do caso concreto, o intérprete irá aferir o peso que cada princípio
deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e
preservando o máximo de cada um, na medida do possível. Sua aplicação,
portanto, não será no esquema tudo ou nada, mas graduada à vista das
circunstâncias representadas por outras normas ou por situações de fato”.344

Em suma, a distinção entre regras e princípios, e a situação de conflitos


entre estes, servem, no fundo, para compreender a natureza dos princípios, nem que seja
apenas funcionalmente. Mas é preciso avançar um pouco mais, para que isso se torne
possível, e agregando então a visão de outros autores, além daqueles já referenciados.

4.4.2. Questões e desdobramentos da noção de princípios.

Em verdade, as distinções estabelecidas por Dworkin e Alexy, são


daquelas denominadas pelos comentadores de qualitativas, ou lógicas, dado que decorrentes,
sobretudo, da estrutura da norma (com o sentido que demos a tal expressão, “supra”) ou de
seu papel no ordenamento jurídico. A reflexão acerca dos princípios e das regras não começou
e principalmente não se encerrou com tais autores, entretanto.

A natureza “plástica” que dá o tom aos princípios decorre em larga


medida da (i) construção adotada para a enunciação- o caráter “prima facie”- dos dispositivos
que lhes servem de base, o que serve para os princípios explícitos, mas também e
principalmente da (ii) capacidade de serem brandidos em um universo largo e indefinido de
situações, o que também aproveita aos princípios implícitos. Tais características-
“abstratividade, abertura ou inexauribilidade, consoante a expressão de André Ramos
Tavares345- devem sempre se mostrar unidas; isso porque as regras igualmente se revestem de
generalidade, em variados graus, mas os princípios delas se distinguem justamente pelo fato
de que a tal qualidade se soma outra, qual seja, a indefinição latente de aplicação. Nas
palavras de Eros Grau:

344
Interpretação e aplicação da Constituição, p. 354.
345
Elementos para uma teoria geral dos princípios, p. 37 e ss.
134

“o critério-estrutural- da generalidade não é senão consequência necessária


da consideração de critério funcional: os princípios gerais, porque dotados de
generalidade mais ampla, compreendem uma série indeterminada de facti
species (dados ou possíveis) distintos”.346

Um pouco mais problemática é a compreensão dos princípios como


hierarquicamente superiores às regras, no âmbito do ordenamento jurídico, ou sua maior
relevância. De fato, além da “plasticidade” acima referida, e portanto da capacidade em se
enfrentar “casos difíceis”, há outros fatores que colaboram para tal percepção.

O primeiro deles é a noção também referenciada por diversos autores,


de que as regras derivam dos princípios, ou lhes dão concreção347; portanto, um conflito entre
regras, na verdade, o seria entre princípios que lhes sustentam. Daí é que surgem construções
clássicas, a mais difundida delas aquela enunciada por Celso Antonio Bandeira de Mello, no
sentido de enxergar o princípio como:

“mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição


fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito
e servindo de critério para a exata compreensão e inteligência delas,
exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo,
conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico”.348

Entretanto, do ponto de vista da estrutura (ou da “arquitetura”) das


normas que expressam princípios, isso nem sempre será verdade, seja pela generalidade, seja
pela “largueza” de situações sobre as quais recaem. Ao menos assim demonstra Virgílio
Afonso da Silva, quando mostra349 a possibilidade de que muitos mandamentos (como o

346
Ensaio e discussão sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 179-180, sintetizando pensamento de
Crisafulli.
347
Conf. Eros GRAU (ibidem, p. 197), J.J. Gomes CANOTILHO (ibidem, p. 1160 e 1175), dentre outros.
348
Curso de direito administrativo, p. 53, com grifos nossos, os quais conotam justamente a dúvida que temos
acerca dessa possibilidade.
349
Princípios e regras, p. 613. Levado ao extremo, esse raciocínio pode ensejar a própria rejeição da utilidade de
uma separação entre princípios e regras. Aarnio Aulis, por exemplo, (“apud” Wilson ENGELMANN, Crítica ao
positivismo jurídico, p. 113) também enxerga princípios que se comportam como regras, e regras que se
comportam como princípios. Não há espaço para a avançarmos nessa teoria, mas a trazemos à lume apenas para
realçar os horizontes largos em que o debate trafega.
135

“princípio” da legalidade, ou o da anterioridade tributária), pelos critérios de Alexy, sejam, na


verdade, regras (aplicação no modo “tudo ou nada”- ou é legal, ou não é) e não princípios
(aplicação no modo “mais ou menos”- não havendo algo mais ou menos legal), não obstante a
generalidade inequívoca e a amplitude de aplicação idem. Isso porque, ainda segundo tais
critérios, o conceito de princípios seria axiologicamente neutro.

Todavia, justamente a alta carga valorativa, ou a remissão a valores


éticos, são fatores usualmente utilizados350 para a identificação de princípios.

Em verdade, na argumentação de muitos autores, a aproximação


genérica entre princípios e valores ou ética se funda numa afirmação de J. J. Gomes Canotilho
acerca do pensamento de Dworkin, aquele apontando nas lições deste uma sintética noção de
que os princípios seriam “‘standards’ juridicamente vinculantes radicados na exigências de
‘justiça’”351. Ora, ao menos na filosofia clássica, valores são as virtudes (conteúdo positivo),
ou certas condutas importantes para se alcançar o bem e a felicidade no convívio com outros;
são os fins da ação ética, ou a excelência- “realização perfeita de um modo de agir, ser,
sentir” Da mesma forma, estão abarcados no conceito de valores os meios para alcançar fins
éticos, entre estes inclusive a justiça352. Ademais, são históricos (valores de uma comunidade
num certo momento), compreendem uma escala (mais ou menos valor), e podem integrar-se
em objetos (religiosos, artísticos, jurídicos, até profissionais).

Com efeito, num primeiro momento Dworkin efetivamente empreende


longa discussão sobre justiça353, e reconhece que os princípios podem derivar do que chama
de moralidade convencional, a qual decorre da prática social354, mas ainda sem conectar as
duas coisas355. Em seguida, quando desenvolve sua ideia de integridade356 como um ideal

350
Por exemplo, Luis Roberto BARROSO (Interpretação e aplicação da Constituição, p. 355); Walter Claudius
ROTHENBURG (Princípios constitucionais, p. 16), e especialmente Paulo BONAVIDES (Curso de direito
constitucional, p. 282).
351
Direito constitucional e teoria da Constituição, p.1160.
352
Ao menos para Aristóteles. Acerca da filosofia ética, moral e dos valores, Marilena CHAUÍ (Convite á
filosofia, p.307 e ss.)
353
Levando os direitos a sério, p.235 e ss., quando tece comentários da obra do jusfilósofo John Rawls.
354
ibidem, p. 76-93.
355
ibidem, p. 211 a 213.
356
O império do direito, p. 254-259. Por sinal, a comunidade que ambiciona a integridade é justamente
denominada por ele de “comunidade de princípios”.
136

político a ser perseguido pela comunidade, então justiça e equidade357 se apresentam como
produtos (fins) dessa virtude.

Já a construção conceitual de Alexy aponta decisivamente para o caráter


deontológico dos princípios, mas também não nega de forma peremptória a proximidade das
noções de princípio e valor358-muito pelo contrário- e mesmo as semelhanças com que se
opera a colisão ora entre uns, ora entre outros. Entretanto, como bem nota Paulo Bonavides359,
o valor em Alexy está no “peso” que cada princípio ostenta, e não em sua estrutura, e isso
manteria íntegra a noção de diferença qualitativa (e também a observação de Virgilio Afonso
da Silva, relatada acima) em relação às regras.

Se aceitarmos os valores como componentes dos princípios, e não


apenas sua origem ou sua finalidade, e mudando o que deve ser mudado em nossa afirmação
acerca da generalidade, importa reparar que toda e qualquer norma jurídica sempre terá
também certa carga axiológica, inclusive as regras, nem que seja orientadas vagamente para
uma finalidade. Desembarcamos, assim, no terreno da diferenciação entre princípios e regras
por uma questão de grau, e não por elementos qualitativos, como apontado no início deste
item, o que dá contornos de maior complexidade à aproximação em relação ao conceito de
princípios, evitando cair em arbitrariedades. E, no Brasil, ninguém melhor dispôs-se a
enfrentar essa possibilidade do que Humberto Ávila, a partir da constatação de que:

“podem-se analisar os princípios de modo a exaltar os valores por eles


protegidos, sem, no entanto, examinar quais são os comportamentos
indispensáveis à realização desses valores, [e] pode-se investigar os princípios
de maneira a privilegiar o exame de sua estrutura, especialmente para nela
encontrar um procedimento racional de fundamentação que permita tanto
especificar as condutas necessárias à realização dos valores por eles
prestigiados quanto justificar e controlar sua aplicação (...)”.360

357
Justiça e equidade são também intrínsecas, mas diferentes quanto à sua concretização, como bem demonstra
Alysson Leandro MASCARO (Filosofia do direito, p.77-80)
358
Ver a propósito, a excelente síntese perpetrada por Luis Afonso HECK (Regras e princípios jurídicos no
pensamento de Robert Alexy, p. 70 e ss.).
359
Ibidem, p. 280.
360
Teoria dos princípios, p. 56. Os grifos, por nós apostos, realçam a trilha adotada pelo autor, à qual
retornaremos em outros momentos.
137

Não estamos a optar por uma (de qualidade) ou outra (de grau) forma de
diferenciação. O acento nos critérios de generalidade e conteúdo axiológico (ou fins éticos) só
foi colocado justamente para demonstrar quão complexo pode ser o debate nas bases da teoria
do princípios. Mas intuitivamente nos parece que, tanto num olhar descritivo quanto analítico,
uma nova escala de dimensão gera um novo objeto, e portanto, se estremados por grau, dois
objetos aparentados, a partir de uma certa distância, serão diferenciados por qualidade. E
como igualmente afirma Humberto Ávila, com o que efetivamente perfilhamos:

“qualquer classificação das espécies normativas será inadequada se não


fornecer critérios minimamente seguros de antecipação das características
normativas, nem minorar a sobrecarga argumentativa que pesa sobre o
aplicador (...).Uma análise mais atenta das referidas distinções entre
princípios e regras demonstra que os critérios utilizados pela doutrina muitas
vezes manipulam, para a interpretação abstrata das normas, elementos que só
podem ser avaliados no plano concreto de aplicação das normas”.361

Queremos crer que parte da noção de fundamentalidade, ou de alta


carga axiológica deva-se ao fato de que princípios e normas constitucionais interceptam-se de
maneira forte, o que analisaremos a seguir.

4.4.3. Princípios e constitucionalismo (e a origem dos princípios).

As normas constitucionais, estas sim, categoricamente veiculam valores


com frequência, por sua própria normogênese- o poder constituinte originário. Portanto, faz
todo sentido compreender a relação entre valores e princípios, mas isso não parece ser o
bastante para identificar e descrever os princípios no contexto jurídico, integralmente
considerado, pois não bastaria a positivação, mesmo no plano constitucional, para tanto. Mas
é certo, como observa Elival da Silva Ramos, que:

“as normas-princípio, amparadas em texto constitucional explícito ou


inferidas de um conjunto de dispositivos, em face de sua maior força expansiva
e de seu rarefeito conteúdo significativo, põem a descoberto sua intensa carga

361
Ibidem, p. 57, com grifos nossos.
138

valorativa, que nas regras acaba encoberta pelos elementos formais(...).


Ademais, por se tratar de normas-princípios de porte constitucional, encarnam
os valores que o constituinte reputou fundamentais(...). O caráter fortemente
axiológico e finalístico dos princípios constitucionais serviu de autêntica
trincheira ao moralismo jurídico ao lançar o seu postulado central de que o
direito positivo deveria, em alguma medida, ser aproximado de uma ordem de
valores dotada de certa objetividade e transcendência no tocante ao processo
histórico”.362

No plano constitucional, os princípios podem ser agrupados segundo


certas peculiaridades, relacionadas às características que mais comumente lhes são atribuídos
pela doutrina. É assim que J.J. Gomes Canotilho os classifica em (i) jurídico-fundamentais,
aqueles historicamente objetivados- Estado de Direito, acesso á justiça, publicidade etc.; (ii)
politicamente conformadores, como a forma de Estado, separação dos poderes, etc.; (iii)
impositivos, que expressam as finalidades do Estado- no caso brasileiro, o art. 3º da
Constituição e outros a eles relacionados; e por fim (iv) os princípios-garantia, que expressam
direitos individuais, explícita ou implicitamente363. Num outro arranjo, este vertical, Canotilho
hierarquiza os princípios, colocando no topo aqueles ditos estruturantes, a serem densificados
paulatinamente pelos princípios gerais, sequencialmente pelos especiais, e por fim pelas
regras, sempre, repita-se, numa escala progressivamente de maior concretização, porém
também num processo dito “biunívoco”, ou seja, em dois sentidos- de cima para baixo ou ao
inverso, os princípios abaixo melhor caracterizando os que lhes são mais elevados, e sendo
por estes validados. Assim, por exemplo, do princípio do Estado de Direito (estruturante),
decorre o princípio da legalidade (geral), mas aquele é também por este reforçado, e
sequencialmente irá derivar ainda, no caso da lei penal, a retroatividade da lei mais benéfica
ao réu (princípio especial), o qual igualmente reforça aquele que lhe é anterior.364

362
Ativismo judicial, p. 90-91. Bem se vê, pela parte final da transcrição, o caráter crítico que o autor adota em
relação a certo “expansionismo” do papel dos princípios, precaução importante para as considerações que
faremos adiante sob a ótica da “interpretação sob princípios”.
363
Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 1165-67.
364
Ibidem, p. 1173-75. Os exemplos não são exatamente os mesmos apontados pelo mestre português, mas
refletem seu raciocínio.
139

E classificações existem outras365. Mas o mais importante dessa tarefa


de ordenação talvez não seja o produto em si, mas a percepção de que há um sistema,
apreendido racionalmente e justificável pela argumentação, quando adequada ao caso
concreto. Em suma, de que não obstante apontarem para valores, os princípios não são uma
“porta aberta” aos subjetivismos e à arbitrariedade.

Contudo, antes de avançar em relação à interpretação sob princípios, e


novamente em face do objeto de nosso trabalho, importa fazermos duas considerações acerca
dos “loci” donde provém os princípios.

4.4.3.1. Lá de onde nascem os princípios.

O primeiro ponto de vista, que denominamos de vertical


quanto ao sistema de normas positivas (ou “textos”, ou “dispositivos”, conforme
nomenclatura que adotamos), consiste em considerar se os princípios são apenas aqueles
estatuídos, implícita ou explicitamente, pela Constituição de um dado ordenamento jurídico,
ou se, ao contrário, no bojo desse mesmo ordenamento outros que nem sequer tangenciados
pelo constituinte (originário e até derivado) poderiam se configurar.

Não se trata, evidentemente, de descartar a relevância da


concretização, por via do legislador ordinário ou do aplicador (sobretudo do judiciário). Ao
contrário, é outra a questão, de ênfase material, e não formal. E também não se trata de negar
que princípios possam constar da pauta do legislador ordinário, mas sim de como sua
conformação dar-se-á em face da Constituição. Sendo assim, nos parece, “a priori”,
perfeitamente aceitável, por exemplo, que o plano diretor de um dado município “X” coloque
como “princípio” da politica urbana local a orientação de que certos serviços públicos sejam
oferecidos “prioritariamente aos residentes no Município ‘X’”. Presentes as caraterísticas
estruturais dos princípios (alta generalidade e amplitude ou “largueza” de aplicação e
possibilidade de ponderação), é de um princípio que estamos a tratar, mas que, confrontado a

365
Luis Roberto BARROSO (Interpretação e aplicação da Constituição, p. 370-377) separa os princípios
constitucionais em instrumentais (todos implícitos) e materiais, destes derivando os fundamentais, gerais e
setoriais; José Afonso da SILVA (Curso de direito constitucional positivo, p. 91-92, a partir de Canotilho)
declaradamente reúne apenas os princípios explícitos ou positivados para então apartá-los em políticos-
constitucionais (art. 1º a 4º da Constituição e seus desdobramentos) e jurídico-constitucionais; Walter Claudius
ROTHENBURG faz uma pequena resenha (Princípios constitucionais, p. 67-71) das propostas de vários autores,
dentre eles os que aqui já citamos.
140

todo momento com os princípios constitucionais (em especial a isonomia e a universalidade),


cederá parcial ou totalmente em inúmeros casos, sem que seja eventualmente inconstitucional,
por esse só fato.

Em face dessa proeminência, a ideia de princípios


infraconstitucionais é rejeitada por André Ramos Tavares - na perspectiva brasileira - por
força da profunda constitucionalização havida em todos os setores da vida social, a partir da
Constituição de 1988. Assim, segundo ele, “é possível afiançar que os principais princípios
encontram-se realmente já plasmados na Constituição, apesar de serem reiterados pelas
normas infraconstitucionais” 366. De qualquer forma, uma passada rápida de olhos na doutrina
de qualquer das disciplinas jurídico-dogmáticas (direito civil, processual, penal, do trabalho,
do consumidor, ambiental etc., e especialmente no direito administrativo, com a prodigalidade
com que a vertente dita “europeia-continental” gerou princípios implícitos) mostra o quanto se
detectam princípios de toda ordem cujo enunciado guarda relação por vezes muito tênue com
os dispositivos constitucionais.

Mas isso se deve em muito à segunda perspectiva, aquela que


denominamos de horizontal enquanto berço dos princípios. Ou seja, a consideração de que
princípios podem brotar tanto do enunciado dos dispositivos legais quanto de práticas e
concepções paralelas à norma positiva, mas que com ela guardam uma relação efetiva e
relevante, a ponto de categoricamente comporem o ordenamento jurídico. São ideias acerca
do que seja o Direito e seu papel na vida em sociedade, incorporadas à consciência coletiva
nos últimos séculos na cultura e na consciência coletiva dos povos que compartilham heranças
históricas comuns. Não se trata de compreender a origem apenas do direito positivo, mas sim
de aceitar a relação intensa e constante entre dimensões nem sempre visualizadas facilmente,
ainda que, reitere-se, sejam relações efetivas.

Dworkin se refere à “moralidade convencional” para


expressar esse universo, jurídico em sua concepção367; além disso, a aproximação com valores
é também presente em Alexy, conforme anotamos acima. E ancorar os princípios nos valores

366
Elementos para uma teoria geral dos princípios, p. 33, com grifos nossos. Assim também Walter Claudius
ROTHENBURG (Princípios constitucionais, p. 46).
367
Vide item 4.4.2, “supra”.
141

ou numa difusa “ética”, genericamente considerados, foi alvo de importantes objeções da


parte de Habermas em relação à teoria dos princípios.

Habermas de fato é bem reticente quanto à efetividade e à


capacidade de inferir-se princípios jurídicos a partir de valores, pois “ao contrário da
filosofia, a teoria do direito não pode desprezar os aspectos resultantes do nexo interno entre
direito e poder político”368, assim como “a tese defendida(...) segundo a qual o discurso
jurídico tem que ser visto como um caso especial da aplicação do discurso moral, não faz jus
à relação complexa entre justiça e legislação”369.

E isso tudo porque:

“a legislação política não se apoia somente, e nem em primeira linha, em


argumentos morais, mas também em argumentos de outras proveniências [e]
esse processo é mais complexo que o da argumentação moral, porque a
legitimidade das leis não se mede apenas pela correção dos juízos morais, mas
também pela disponibilidade, relevância, pertinência e escolha das
informações, pela fecundidade da elaboração das informações, pela
adequação das interpretações da situação, pela racionalidade de decisões
eleitorais, (...)”.370

Ou, como bem resumido por Luis Afonso Heck371, ao


comentar o pensamento de Habermas:

“valores devem, ao contrário [das normas], ter somente uma vinculatividade


relativa. Eles não dizem o que ‘é’ bom para todos, mas somente o que ‘é bom,
visto como um todo, para nós (ou para mim)’. (...) Normas não devem se
contradizer. Para assegurar isso, elas devem ser trazidas a uma conexão
coerente. Valores devem, ao contrário, concorrer para a primazia.(...).Isso se
368
Direito e democracia, p. 244.
369
Ibidem, p. 245.
370
Ibidem, p. 290, com grifos nossos.
371
Regras e princípios jurídicos no pensamento de Robert Alexy, p. 92-97. Também Eros GRAU (Ensaio e
discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p.183-185) e Elival da Silva RAMOS (Ativismo judicial, p.
93) comentam os argumentos de Habermas como contraponto à relação entre valores e princípios. O resumo que
transcrevemos foi buscado num trecho da exposição de Habermas (Direito e democracia, p. 316-320) quando
examina especificamente as normas constitucionais.
142

pode trazer na fórmula de que o sistema de normas deve ser produzido por
coerência, o dos valores por preferência”.372

As advertências de Habermas são de fato sérias, e devem ser


consideradas com grande atenção e até cautela. Uma das considerações que lança em relação à
metódica baseada em princípios seria, segundo ele, o risco de que todos os valores concorram
em pé de igualdade; em sendo assim, direitos individuais eventualmente possam ser
sacrificados em prol de bens coletivos, sem uma forma segura de se controlar a primazia
(posto que valores) entre eles373.

Eros Grau aponta para outro percurso, ainda que também


considere a proximidade entre Direito e ética374, onde os horizontes do Direito igualmente se
alargam para fins de extração dos princípios. Com efeito, Grau denomina como direito
pressuposto a esse halo que envolve o direito positivo (ou direito posto375), sendo ambos
comunicantes entre si e mutuamente conformados. E tal concepção acaba por colocar em
cheque a análise estrutural376 do Direito elaborada pelos positivistas, vez que mais ampla, e
também porque nessa abordagem “o direito acolhe as contradições das relações sociais,
reproduzindo-as, de sorte que, nele, os paradoxos não configuram anomalias, porém
elementos essenciais do seu discurso”377.

Em apertadíssima síntese, Grau vai buscar no materialismo


histórico de Marx e na concepção de modo de produção378 (da vida material, e não
exclusivamente dos bens) a instância predominante de conformação da sociedade
contemporânea, “in casu”, a econômica. Esse dado, porém, não subsiste, nem sustenta-se ou
justifica-se sem as outras instâncias, entre elas o Direito, com papel decisivo. Portanto, o
Direito não é mera correia de transmissão do econômico, mas partícipe do meio de produção
da vida social379. Em outras palavras, das práticas jurídicas que se manifestam na

372
Regras e princípios jurídicos no pensamento de Robert Alexy, p. 93.
373
Direito e democracia, p. 320-321, após justamente comentar decisões de tribunais constitucionais. Acerca dos
critérios para evitar isso, no pensamento de Alexy, ver Luis Afonso HECK (ibidem, p. 97-100)
374
O direito posto e o direito pressuposto, p. 110-112.
375
O direito de cada sociedade, como adverte o autor (O direito posto e o direito pressuposto, p.24 e em
inúmeras outras passagens desta e de outras obras.)
376
Ibidem, p. 29.
377
Ibidem, p. 44.
378
Ibidem, p. 49.
379
Ibidem, p. 57-59.Mais adiante, na mesma obra (p.88-90) o autor traduz a legitimidade do direito posto
também como a concordância ou não com o pleno desenvolvimento das forças materiais produtivas.
143

infraestrutura (aqui o econômico, donde emerge o direito pressuposto) passa-se à


superestrutura (também aqui o direito estatal, ou posto), porém esta modifica as condições em
que aquela se configura380.E prossegue o autor, analisando o papel do Direito como ideologia,
e o fato de que, para desempenhar tal função, reclama-se no Direito um mínimo de coerência.

No direito pressuposto estaria, ainda segundo Grau, a sede


dos princípios de direito. Aliás, “o direito pressuposto é fundamentalmente princípios, nada
obstando, de toda sorte, que nele vicejem regras”381.

Entretanto, não parece ser esse um campo consensual.


Walther Claudius Rothemburg382, por sinal, enfileira uma sequência de autores que
vislumbram os princípios, mesmo os implícitos, como contidos no “ordenamento jurídico”
(direito positivo), ainda que por um liame quase remoto, mas sempre embutidos nos
dispositivos ou textos. Ou seja, posições mais contidas do que Eros Grau.

4.4.4. Interpretação sob princípios.

Princípios não são aquilo que gostaríamos (indivíduos) que eles fossem,
em cada caso. Os valores para os quais eles apontam se constroem de maneira intersubjetiva,
e, para além disso, social. Mas o risco de o intérprete reverter para suas próprias convicções a
construção que deriva dos princípios é grande. De qualquer forma, tal possibilidade existe ao
adotar-se qualquer método ou escola de interpretação, inclusive aquelas mais próximas ao
positivismo (ao menos quando adotamos uma percepção minimamente crítica do direito), não
servindo essa constatação, exposta dessa maneira rasa, como argumento para abater a
relevância dos princípios. A questão vai além de optar-se por uma ou outra visão do direito, e
chega a fundamentar o ceticismo dos chamados realistas (“o juiz faz o direito”). Sem chegar a
tanto, ficamos com Luis Roberto Barroso, no sentido de que “a impossibilidade de chegar-se
à objetividade plena não minimiza a necessidade de se buscar a objetividade possível”.383

Mas a verdade é que de fato os pensadores que alicerçaram o


positivismo contemporâneo (Kelsen e Hart) não chegaram a desenvolver métodos de

380
Ibidem, p. 63-64. Dai concluir o autor que o direito é sim instrumento de mudança social.
381
Ibidem, p. 77 e 83.
382
Princípios constitucionais, p. 54-58.
383
Interpretação e aplicação da Constituição, p. 291.
144

interpretação, como bem demonstrou Dimitri Dimoulis384. Por outro lado, e isso é constatação
nossa, o esquema dedução-subsunção, por raciocínio silogístico, servia de maneira muito
adequada ao positivismo, sem que eventualmente houvesse, para afirmação de seus
pressupostos, a necessidade de um método385.

Para além de métodos, a assunção dos princípios na teoria do direito


está diretamente relacionada às insuficiências da hermenêutica em face das transformações
sociais e políticas, para as quais o positivismo não estava preparado. A forma de resolução dos
“casos difíceis” são o exemplo máximo das novas possibilidades trazidas pela teoria dos
princípios, ao menos na sua vertente mais acabada (Dworkin, Alexy e seus comentadores). É
flagrante portanto a influência que exerceu sobre a metodologia da interpretação em geral, e
especialmente a da Constituição, como demonstra a sistematização apresentada por Moacyr
Parra Motta386. De maneira simplificada, passou-se da subsunção à ponderação, em que ganha
ainda maior relevo, então, a argumentação como condutora, tanto quanto possível, da
objetividade que o direito demanda.

E então a estrutura da argumentação também avulta de forma


diferenciada, enquanto sustentáculo da legitimidade da decisão. Alexy dispendeu muitas
linhas para posicionar a argumentação ao lado da racionalidade, a partir da
procedimentalização387, mas alertando que:

“A justificação ou fundamentação da interpretação escolhida por argumentos


deve ser distinguida do processo real da obtenção do resultado. No primeiro
caso, trata-se do processo de justificação (process of justification), no segundo
processo de descoberta (process of discovery). A justificação é uma atividade
argumentativa, a descoberta uma psíquica”.388

Em bela síntese, e no contexto da interpretação como raciocínio de


ponderação, Luis Roberto Barroso põe em relevo a necessidade (i) de se explicitar os
fundamentos normativos, ainda que implícitos, afastando assim o “bom senso” e o “sentido de

384
Positivismo jurídico, p. 210-217.
385
Trata-se de uma generalização nossa, com a qual não concordaria decerto Elival da Silva RAMOS (Ativismo
judicial, p. 97-98)
386
Interpretação constitucional sob princípios, p. 178 e ss.
387
Direito, razão, discurso, p. 61 e ss.
388
Ibidem, p.67.
145

justiça”, de regra subjetivos; (ii) a possibilidade de universalização dos critérios adotados, e


(iii) a enunciação dos princípios instrumentais (supremacia e unidade da Constituição,
razoabilidade ou proporcionalidade, presunção de constitucionalidade, efetividade e
conformidade) e materiais manejados389. Mas há pelo menos dois importantes
desdobramentos de tal esquema, e que devemos apontar.

Para Eros Grau390, a ponderação é uma dimensão separada da


interpretação, posto envolver o plano dos valores que subjazem aos princípios, e que ocorre
no momento em que produzida aquilo que denomina como “norma de decisão”, ou a
aplicação da interpretação havida ao caso concreto. Ou seja, a ponderação é entre valores, e
não entre normas jurídicas. Daí para a discricionariedade indesejada, ou a incerteza jurídica,
vai apenas um passo. Mas as consequências não seriam desastrosas, ao contrário, como
argumenta o mesmo autor391. O dinamismo, ou a “transgressão”, ainda em suas palavras, que
operam e ao mesmo tempo renovam o mundo do “ser”, podem assim ganhar concretude no
mundo do “dever-ser”.

Seriam então a proporcionalidade e a razoabilidade os verdadeiros


elementos a moderarem desvios e subjetivismos por parte do aplicador (para além de apenas
intérprete) do direito?

Para o mesmo Eros Grau, a proporcionalidade e a razoabilidade não


consubstanciam princípios. Colocadas no momento da norma de decisão, elas impõem
perguntar se de sua não satisfação a consequência será a ilegalidade 392. Em ultima instância, e
assim também, representam uma versão mais contemporânea da equidade aristotélica393. E
ambas, reitera o mesmo autor em vários momentos, devem operar no momento da norma de
decisão, e não no anterior, o da interpretação.

Uma discussão ainda mais completa desses elementos é empreendida


por Humberto Ávila, que denomina proporcionalidade e razoabilidade de postulados
389
Interpretação e aplicação da Constituição, p. 364 e ss. A parte final (enunciação dos princípios materiais)
embute na verdade um duplo desafio, posto concordarmos com Eros GRAU (Ensaio e discurso sobre a
interpretação/aplicação do direito, p. 209) no sentido de que “além de serem tomados como critério dominante
para ela- a interpretação- os princípios se compõem também como objeto da interpretação”.
390
Ibidem, p. 102-103 e 283 e ss.
391
Ibidem, p. 291 e ss.
392
Ibidem, p. 189.
393
Ibidem, p. 193.
146

normativos. E sua primeira advertência é justamente estabelecer o critério distintivo em


relação às normas, princípios ou regras, ao afirmar que

“só elipticamente é que se pode afirmar que são violados os postulados da


razoabilidade, da proporcionalidade ou da eficiência, por exemplo. A rigor,
violadas são as normas –princípios e regras- que deixaram de ser devidamente
aplicadas.”394

Porém, ao contrário de Grau, Ávila não coloca os postulados dentre as


regras, ao menos não aquelas que possam ser subsumidas pela hermenêutica mais tradicional.
E num grande trabalho de partida empírica, propõe uma série de postulados, alguns que
denomina de inespecíficos (sem critérios orientadores de aplicação), como a própria
ponderação de bens, a concordância prática (finalidade a ser maximizada) e a proibição de
excesso, e outros tantos específicos (com critérios orientadores, ainda que tênues), dentre eles
a razoabilidade e a proporcionalidade, sobre os quais mais se detém395. Acerca dos primeiros,
destaca o papel que desempenham de maneira triangular, conectando a generalidade da norma
com (i) as individualidades do caso concreto, (ii) o contexto da realidade a qual ela se refere
os as finalidades que persegue e (iii) a relação de equivalência entre as duas grandezas 396.
Quanto á proporcionalidade, a relação é entre os meios empregados e os fins pretendidos,
especialmente quando se trata de restringir direitos fundamentais, como exemplificaremos
logo a seguir.

Como se vê, uma interpretação sob princípios não induz a maior


ilegitimidade da decisão, mas também não está dela a salvo. A construção teórica e o trabalho
interpretativo são, porém, mais complexos, posto que mais desafiadores.

4.4.4.1. À guisa de exercício: o interesse público em colisão.

Os novos paradigmas trazidos pela interpretação sob


princípios rebatem fortemente em questões cruciais ao funcionamento do Estado, ou como
este se consolidou desde o advento das revoluções liberais. E tais mudanças podem ser

394
Teoria dos princípios, p. 80. Em verdade, o autor ora as denomina de “metanormas”, ora de
“sobreprincípios”, mas sem alterar a concepção.
395
Ibidem, p. 85-117.
396
Ibidem, p. 121.
147

demonstradas sob variadas óticas. Colocaremos para reflexão as novas acepções que setorial
ou globalmente podem ser buscadas de interesse público e, mais ainda, de sua supremacia em
face dos interesses privados, posto que de interesse para o encaminhamento de nossas
conclusões.

Bem anota Gustavo Binenbojm que, cada vez mais:

“a definição do que é o interesse público, e de sua propalada supremacia


sobre os interesses particulares, deixa de estar ao inteiro arbítrio do
administrador, passando a depender de juízos de ponderação proporcional
entre os direitos fundamentais e outros valores e interesses metaindividuais
constitucionalmente consagrados”.397

Em outras palavras, se de maneira absoluta um princípio (“in


casu”, a dita supremacia do interesse público) não pode ceder jamais na colisão com outros,
não é de um princípio que estamos a tratar. E Binenbojm colaciona decisões em sede de
controle de constitucionalidade onde essa ponderação ocorreu.

O autor promove interessante releitura da gênese deste e de


outros conceitos do direito administrativo, nos desdobramentos da Revolução Francesa,
buscando demonstrar o quão falsa teria sido a intenção e a prática da subordinação da
administração à legalidade estrita398. Ao contrário, a história verdadeira seria a da submissão
do cidadão à administração. E avança mais ainda, numa leitura crítica da afirmação da
supremacia do interesse público, apontando incongruências ou incoerências nas lições de
vários doutrinadores, para concluir que “a proteção de um interesse privado
constitucionalmente consagrado, ainda que parcialmente, pode representar, da mesma forma,
a realização de um interesse público”399. A via escolhida é justamente a aplicação do
postulado da ponderação, como acima rascunhado.

397
Temas de direito administrativo e constitucional, p. 7, grifos nossos. A título de memória, reportamos à
objeção potencial de Habermas acerca do confronto entre direitos individuais e bens coletivos, comentada
“supra” (item 4.4.3.1), o que poderia ser desenvolvido num trabalho de maior fôlego.
398
Ibidem, p. 61.
399
Ibidem, p. 77. Mas o contrário também pode ser verdadeiro. Consagrar um interesse privado de maneira
desmedida- imagine-se a situação de um plano diretor voltado prioritariamente à construção civil- e assim alça-lo
à condição de “interesse público”, respaldado por certa “supremacia” é uma maneira perigosa de de compreender
a relação entre política e direito.
148

O exercício assim desenvolvido tem outros efeitos, para além


de resolver casos concretos. Como prelecionam Carlos Ari Sundfeld “et alii”:

“Ao negar o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e


substitui-lo por outro, como o dever de proporcionalidade, por exemplo, o
profissional passa a visualizar outros valores(...). De fato, torna-se possível,
por exemplo, a percepção da existência de múltiplos interesses públicos
incidentes numa mesma situação(...). A própria categorização dos interesses
passa a ser questionada, na medida em que não se tem somente a dualidade
interesse público/interesse privado, mas a pulverização de esferas
intermediárias de interesses.”.400

Bem coadunada, essa visão do Estado em evolução, num


ambiente pluralista de concepções e opções, se respalda não só numa nova perspectiva da
interpretação do Direito, mas principalmente nas transformações que buscamos apontar nos
itens anteriores. É o próprio J. J. Gomes Canotilho quem dá testemunho dessa realidade,
quando afirma que

“As constituições dirigentes, entendidas como constituições programático-


estatais, não padecem apenas de um pecado original- o da má utopia do
sujeito projectante, como dissemos; elas ergueram o Estado a ‘homem de
direção’ exclusiva (ou quase exclusiva) da sociedade, e converteram o direito
em instrumento funcional dessa direção. Deste modo, o Estado e o direito são
ambos arrastados para a crise da política regulativa. Por um lado, erguer o
estado a ‘homem de direção’ implica o desconhecimento do alto grau de
diferenciação da estatalidade pluralisticamente organizada. Por outro lado,
confiar ao direito o encargo de regular- e de regular autoritária e
intervencionisticamente- equivale a desconhecer outras formas de direção
politica, que vão desde os modelos regulativos típicos da subsidiariedade, isto
é, modelos de autodireção social estatalmente garantida, até aos modelos
neocorporativos, passando pelas formas de delegação conducentes à regulação
descentrada e descentralizada.”.401

400
Introdução ao direito administrativo, p. 5.
401
“Brancosos” e interconstitucionalidade, p. 108-109.
149

Outras repercussões como estas relatadas poderiam ser


expostas, o que só realça justamente o fato de que as transformações do Estado operam um
novo Direito, mas isso é também uma via de mão dupla.
150

5. PONTOS ESSENCIAIS DA POLITICA URBANA E UM ELENCO


POSSÍVEL DE PRINCÍPIOS.

Ás vezes é preciso fechar os livros e abrir os


olhos.
Mohhamad Yunius

A teoria dos princípios implica numa aparente impossibilidade de enumerá-los, como


já afirmava Dworkin402; assim, apenas no caso concreto é que emergiriam. Portanto, talvez
pudéssemos encerrar aqui nossa exposição, deixando as impressões colhidas como insumos a
outros intérpretes, para que em cada situação possam eles inferir os princípios aplicáveis, e
em qual medida.

Avançaremos, contudo, menos com o intuito de restringir as possibilidades que se


descortinam continuamente no dia-a-dia da pesquisa e da aplicação do Direito, e mais com a
pretensão de oferecer uma plataforma mínima de princípios, que não pode ser encarada como
limitadora ou cerceadora; ao contrário, seus enunciados devem ser remodelados e objeto de
crítica a cada caso concreto, e mesmo devem servir a que novos princípios possam ser
identificados pela prática.

Nesse trajeto, há pelo menos três grupos de elementos que nos parecem essenciais, e
que devidamente articulados podem ensejar um produto mais legitimo.

O primeiro é o plano constitucional, com as normas positivas e sua contextualização


valorativa e hermenêutica, tendo como polo de irradiação o dispositivo do art. 182, “caput” e
§§ 1º e 2º403, mas, sobretudo, três conceitos do texto que o compõe: (i) a função social da
propriedade imóvel urbana, (ii) as funções sociais da cidade, e (iii) o plano diretor. O conjunto

402
Levando os direitos a sério, p. 41. Em contrário, J.J. Gomes CANOTILHO (Direito constitucional e teoria da
Constituição, p. 1164).
403
“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade
e garantir o bem- estar de seus habitantes.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil
habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação
da cidade expressas no plano diretor.(...).”
151

assim composto estabelece obrigatoriamente um número considerável de conexões com


outras realidades jurídicas e políticas (competências federativas, direitos fundamentais,
finalidades do Estado, etc.), dentro do mesmo plano constitucional e que deverá ser amoldado
dependendo do caso concreto404 que se afigura.

O segundo elemento, ainda no contexto de uma abordagem de interpretação adequada,


é que o quadro de conexões assim estabelecido se liga quase sempre a outro plano,
representado pelo dispositivo do art. 2º da Lei 10.257/2000 (Estatuto405) e mediante um eixo
vertical de grande importância estratégica. A partir daí, nova sequência de circuitos
horizontais constitui-se, mais fortes ou mais fracos também sempre em face de casos
concretos. A diferença aqui é que cada novo terminal destas conexões (aqueles situados em
dispositivos infraconstitucionais os mais diversos, do Estatuto ou para além dele, do direito
público ou privado) pode estar também ligado por outros eixos verticais a dispositivos
constitucionais que irão interferir na corrente ao final caracterizada como política urbana.
Com especial cuidado há que se observar as interfaces, inevitavelmente fortes, dos objetivos
da politica urbana (o art. 2º do Estatuto) com os textos de normas mais a eles aparentados,
quais sejam, os diplomas legais- e em especial os objetivos e “princípios” por estes expressos-
que regulam o parcelamento do solo urbano (Lei 6766/79 e leis estaduais e municipais
correlatas, ai inclusa a regularização fundiária e urbanística - Lei 11.977/2009, artigos 46 a 68
e especialmente o art. 48); o saneamento básico (Lei 11.455/2007, com destaque para seu art.
2º) e a gestão de resíduos sólidos (Lei 12.305/2010, ainda mais o art. 6º); a mobilidade urbana
(Lei 12.587/2012, especialmente art. 5º); a proteção e defesa civil (lei 12.608/2012,com realce
para os objetivos do art. 5º e combinada com a Lei 12.340/2010). À evidência, não se está a
menosprezar a interferência recíproca, ou, na nossa nomenclatura, a formação de terminais
com um sem número de outros institutos (do direito administrativo,especialmente-
desapropriação, concessão de serviços públicos, etc.- ou do direito civil, direito tributário-
IPTU, contribuição de melhoria, etc.- do direito financeiro, ambiental, etc.). O efeito mais
evidente é o da releitura desses institutos, alguns aplicados há décadas, mas que agora devem
se interpretados sob novas luzes, trazidas pela emergência mais recente dos diplomas legais
que tratamos ao final do capítulo 2 e em outros momentos.

404
Ou “do problema” se adotadas as premissas da tópica constitucional.
405
“Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: (...).”
152

O terceiro elemento, tão decisivo quanto os demais, mas que os envolve qual um halo
de densidade variável em função também do caso proposto, é o conjunto de condições reais
(físicas, econômicas, culturais, político-ideológicas) que plasmaram o ambiente urbano, ou
que sobre ele interferem ainda hoje, e que debatemos nos capítulos anteriores.

Na tensão entre esses grupos ou elementos é que prosseguiremos com nossos


argumentos.

5.1. A atratividade das diretrizes gerais.

No aspecto formal, não há hierarquia entre o Estatuto e os demais diplomas


legais e dispositivos que rebatem na politica urbana, salvo a Constituição e, em outro sentido,
os planos diretores municipais, que ao Estatuto devem concordância. Entretanto, por
decorrência de sua maior especialidade, ele exerce o papel de estruturador do sistema que será
operado para a normatização dessa política. A tal qualidade denominamos de atratividade, e
esse caráter mostra-se ainda mais claramente quando examinamos o aspecto das tais
“diretrizes gerais” (art. 2º do Estatuto).

A pretensão do estabelecimento de diretrizes esteve presente desde as primeiras


propostas de lei nacional de desenvolvimento urbano (“v.g.”, PL 775/83, e posteriormente o
PL 5788/90), sendo certo que algumas dentre elas (como, por exemplo, a regularização
fundiária, a integração entre os espaços urbanos e rurais, a recuperação das “mais-valias” do
processo de urbanização), inclusive com a mesma redação, atravessaram incólumes desde
então, e até a promulgação do Estatuto. Mas esse elenco foi sendo enriquecido nas etapas de
processo legislativo, e pouco antes da versão final, aprovada e sancionada, recebeu um forte
componente explicitamente ambiental.

Por conta dessa trajetória, as diretrizes gerais do art. 2º agregam ideias com
alcances qualitativamente diferenciados. Assim, por exemplo, a “garantia do direito a
cidades sustentáveis” (inciso I) e a “gestão democrática” (inciso II) inspiram uma apropriação
hermenêutica diferente do que a “simplificação da legislação” (inciso XV), ou mesmo a
“recuperação dos investimentos do poder público” (inciso XI); a “cooperação entre os
governos, a iniciativa privada e os demais setores” (inciso III) poderá até se cruzar com a
“adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira” (inciso X), mas
153

um não se apoia e nem depende diretamente do outro. Sobretudo, ali no art. 2º se encontram
ora objetivos em sentido estrito (“proteção, preservação e recuperação do meio ambiente
natural e protegido”, inciso XII, ou “adoção de padrões de produção e consumo”, inciso
VIII, dentre outros), ora meios para concretizá-los (“ordenação e controle do uso do solo”,
inciso VI, por exemplo). Especialmente neste ultimo caso, valem nossas considerações
anteriores quando tangenciamos a noção de valores (item 4.4.2), e reparamos que estes
abrangem tanto os fins éticos, quanto os meios para atingi-los. Mas não se pode negar que as
tais diretrizes gerais constituem um conjunto de certa forma heterogêneo, senão na maneira
como estipulados (alto grau de generalidade), mas com certeza no “peso” que podem adquirir-
tudo isso para repetir a nomenclatura que emprestamos fartamente na abordagem dos
princípios (itens 4.4 e seguintes, “supra”).

Na tentativa de uma visão de conjunto, respeitada a complexidade que


obrigatoriamente decorre da diversidade de estruturas como apontamos acima, alguns autores
buscaram pontos comuns entre os enunciados das diretrizes, tentando apreender seu caráter
geral.

Celso Fiorillo, fiel à sua visão da cidade como o “meio ambiente construído”,
entende que todos os incisos do art. 2º “procuram, na verdade tratar, com pormenores, da
integração dos bens de uso comum do povo- os bens ambientais- em face das necessidades
concretas dos habitantes da cidade(...)”406. Se aponta para um caráter apenas instrumental, ao
menos o faz em face da viabilização do ideal de dignidade da pessoa humana, o que de resto
vale para qualquer política pública. Já Liana Portilho Mattos destaca o papel das diretrizes
como desdobramentos concretizadores dos objetivos maiores da politica urbana, ou seja, da
função social da cidade e da função social da propriedade imóvel urbana 407. E concordamos
de que esta direção seja correta, mas se faz necessário ainda descrevê-la com mais vagar. Para
avançar é preciso que nos debrucemos sobre algumas reflexões mais profundamente
encetadas.

406
Estatuto da cidade comentado, p. 25 a 27.
407
A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do Estatuto da Cidade, p. 94 e ss.
154

Odete Medauar propõe para a questão uma análise sistemática408, buscando, em


primeiro lugar, tentar entender o sentido da expressão “diretrizes” nos mais variados campos,
do etimológico ao constitucional e infraconstitucional. Nessa trajetória, acaba por fazer
coincidir as diretrizes e as normas gerais de direito urbanístico, cuja edição compete à União
conforme estipulado pelo art. 24, inciso I, combinado com o §1º do mesmo artigo, todos da
Constituição. Ainda que quase óbvia, a exposição da célebre professora acaba por recuperar o
sentido mais exato de normas gerais, em parte desvirtuado pela prática legislativa: a de
paradigma básico, de âncora da legislação que lhe suceda no plano federal, estadual e
municipal. E o faz adotando e comentando a lição clássica de Diogo de Figueiredo Moreira
Neto, na qual as normas gerais constituem:

"declarações principiológicas que cabe à União editar, no uso de sua


competência concorrente limitada, restrita ao estabelecimento de diretrizes
nacionais sobre certos assuntos, que deverão ser respeitadas pelos estados-
membros na feitura de suas respectivas legislações, através de normas
específicas e particularizantes que as detalharão. De modo que possam ser
aplicadas, direta e imediatamente, às relações e situações concretas a que se
destinam, em seus respectivos âmbitos políticos."409

José Afonso da Silva estabelece correlação semelhante, ainda que em percurso


inverso: da compreensão possível acerca de normas gerais em matéria urbanística para sua
identificação, enquanto “conceitos básicos de sua [do desenvolvimento urbano] atuação”,
alojando-os no citado art. 2º, mas também nos instrumentos que se lhe sucedem no próprio
texto do Estatuto410. Esse método decorre da patente preocupação do autor no sentido de
preservar a autonomia municipal, o que só se dá quando aceitamos os limites claros das
normas gerais.

Naquela que é talvez a mais extensa e contextualizada abordagem do tema,


Carlos Ari Sundfeld411 traça um painel da normatização do direito urbanístico ao longo do

408
A força vinculante das diretrizes da política urbana. Em sua proveitosa reflexão, a conhecida professora
paulista nota igualmente o quão as expressões “diretrizes” e “princípios” são utilizadas pela legislação
infraconstitucional sem uma acepção técnico-jurídica coerente.
409
Competência concorrente limitada, com grifos nossos.
410
Direito urbanístico brasileiro, p. 64-67.
411
O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais, passim. Ainda que não concordemos (item 2.2.1, “supra”) com
sua posição quanto aos limites da política urbana, a qual se restringiria ao uso do solo, e tenhamos extraído
155

tempo, e a partir da combinação entre os artigos 182 (com acento na política urbana e no
plano diretor) e 30, inciso VIII (“adequado ordenamento territorial”, a cargo do Município),
ambos da Constituição, se mune do conceito de ordem urbanística (que tangenciaremos mais
adiante) para então desembarcar nas diretrizes. E, ali, assim apetrechado, demonstra o quão
estratégicas são as diretrizes, em face da realidade urbana, posto que

“Ao assentar suas diretrizes gerais, o Estatuto expressa a convicção de que,


nas cidades, o equilíbrio é possível- e, por isso necessário. Deve-se buscar o
equilíbrio das várias funções entre si (moradia, trabalho, lazer, circulação,
etc.) bem como entre a realização do presente e a preservação do futuro (art.
2º, I); entre o estatal e o não-estatal (incisos III e XVI); entre o rural e o
urbano (inciso VII); entre a oferta de bens urbanos e a necessidade dos
habitantes (inciso V) (...).O crescimento não é um objetivo; o equilíbrio sim;
(...). E qual a repercussão prática, no campo do Direito, dessas afirmações de
princípio? São três: por um lado possibilitar a sanção jurídica da inércia do
Poder Público (omissão em ordenar o emprego do solo e proteger o
patrimônio); por outro, fornecer parâmetros normativos para controle das
orientações seguidas pela política urbana, com isso viabilizando a invalidação
das normas e atos a eles contrários; ainda, permitir o bloqueio dos
comportamentos privados que agridam o equilíbrio urbano”.412

As diretrizes, assim, permitiriam uma retomada, ou mais precisamente uma


reconversão da ação pública sobre as cidades, por força dos elementos centrais que Sundfeld
extrai dessa percepção e do agrupamento que estabelece dos vários enunciados albergados no
art. 2º: planejamento (pressuposto da ordem urbanística, em sua concepção), gestão
democrática, e o que chama de “direito urbanístico popular”, ou a regularização e inclusão
socioterritorial da “cidade ilegal”.

Nelson Saule Junior413 vem somar a tal perspectiva, quando é enfático ao


apontar o caráter de consonância obrigatória entre as diretrizes do art. 2º e a forma como

conclusões ligeiramente diferentes da combinação entre os artigos 182 e 30, inciso VIII (item 2.2, também
“supra”), a visão que Sundfeld descortina das diretrizes a partir desse instrumental é das mais ricas e
fundamentadas.
412
Ibidem, p. 54-55.
413
Estatuto da Cidade e reforma urbana, p. 79-85.
156

todos os instrumentos de política urbana- em especial o plano diretor- devem se traduzir na


legislação específica, municipal ou não, e devem ainda operar no sentido que vierem a
adquirir nessa relação. Não havendo tal identidade entre as diretrizes e outras normas,
especialmente os planos diretores municipais, a consequência seria a responsabilização de
gestores públicos que as produziram de maneira deturpada, ainda na lição de Saule Junior.
Mais adiante, aprofundaremos as consequências jurídicas e jurisdicionais desse eventual
descompasso.

Apesar das diversas citações, salta aos olhos que as diretrizes não são objeto de
análises de maior fôlego, ao menos se comparadas com a produção que envolve outros
aspectos do direito urbanístico (plano diretor, demais instrumentos e institutos, competências,
etc.). Aparentemente, e com toda vênia aos que foram além disso, de regra se declara a
importância que de fato elas possuem, faz-se uma descrição “prima facie” de seu conteúdo, e
pouco ou quase nada a mais. É razoável supor que tal timidez da doutrina nacional colabore
para a baixa efetividade dos valores que buscou-se expressar com tais diretrizes. Mas já é
possível inferir que (i) as diretrizes são produto de uma compreensão legislativa acerca da
função social da cidade e da função social da propriedade imóvel urbana, (ii) vinculam a
interpretação e a produção da legislação urbanística que decorrem ou que com ela se
relacionam, (iii) são qualitativamente diferentes entre si, com destaque, pela sua extensão e
amplitude, para as noções de “direito às cidades sustentáveis” e “gestão democrática” (incisos
I e II).

Todavia, o caráter fundante dos planos diretores na concretização das diretrizes


nos obriga a percorrer a trilha que permita vislumbrar sua natureza.

5.2. O Plano Diretor (PD) municipal.

Na introdução já comentávamos o quão insuficiente, ou equivocado, tem se


cristalizado o conteúdo e a efetividade de boa parte dos planos diretores municipais (PDs)
após a edição do Estatuto da Cidade. De outra parte, seria um absoluto contrassenso tentar
sustentar em sentido oposto ao papel fundante- reiteramos- dos PDs municipais no
estabelecimento da política urbana. O que buscamos são justamente argumentos que garantam
que isso ocorra não apenas formal, mas, sobretudo, materialmente. Então, umas poucas
considerações históricas, e outras tantas hermenêuticas, se fazem necessárias, para
157

entendermos a verdadeira posição do PD: se o “alfa e ômega” da política urbana, se um


instrumento como outro qualquer ou algo intermediário.

O plano diretor, com a posição que lhe foi dada pela Constituição, não era uma
reivindicação do movimento pela reforma urbana, quando do processo constituinte414, posto
que os PDs estavam desacreditados após anos de experiências fracassadas de sua
implementação efetiva na cultura administrativa e política brasileiras 415. A preocupação maior
daquela articulação e naquele momento era a afirmação de princípios e compromissos, em
especial algumas definições que tornassem mais vinculantes as funções sociais da cidade e da
propriedade imóvel urbana. A dependência quase direta da política urbana e da função social
da propriedade imóvel urbana (FSPIU) com o PD, conforme se consolidou no art. 182, §§ 1º,
2º e 4º, decorreu da ação de outros setores, à época denominados de “centrão” 416 e que
representavam interesses politicamente mais conservadores.

A partir dai, e antes mesmo da edição do Estatuto, o PD ganhou referências em


outros dispositivos infraconstitucionais417, e planos diretores foram promulgados em inúmeros
municípios, alguns tentando extrair o sentido determinado pelo texto constitucional, outros
nem tanto. Por fim, e ainda nessa etapa, o plano foi objeto de várias e interessantes
considerações da literatura, jurídica ou não, parte dela com grande atualidade ainda hoje.

O advento do Estatuto não foi suficiente-e nem deveria ser, em nossa visão,
conforme desdobraremos abaixo- para fazer coincidir integralmente politica urbana e PD. Se
o posicionou (art. 4º, III) ao lado de outros instrumentos, igualmente exigiu a consonância
para com ele de vários institutos pelo próprio Estatuto regulados (como o direito de
preempção- art.25, §1º; a outorga onerosa- art.28; as operações urbanas consorciadas- art. 32;
etc.). Para além de “locus” de instrumentos, o conteúdo (artigos 39, 40 “caput” e § 2º, 41 e

414
Vide Grazia DE GRAZIA (Reforma urbana e Estatuto da Cidade, p. 53, entre outros escritos), e Nelson
SAULE JUNIOR. (Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro, p. 25-31).
415
Conforme se depreende da trajetória que anotamos no item 3.5.1, “supra”. Também nesse sentido, Ermínia
MARICATO (O impasse da política urbana no Brasil, p. 141 dentre outras passagens) e Nelson SAULE
JUNIOR (ibidem, p. 38-39).
416
Victor Carvalho PINTO (Direito urbanístico, plano diretor e direito de propriedade,p.114-118) relata o
processo a partir dos anais da constituinte, e fica claro, como demonstra o autor, que a proposta e a natureza de
plano diretor ali apresentadas era físico-territorial, especialmente de veículo do zoneamento, índices e
parâmetros urbanísticos.
417
Por exemplo nas alterações havidas na Lei 6766/79 (especialmente artigos 3º e 4º, I) e na já revogada lei
4771, ou antigo Código Florestal. Mas tão ou mais relevante, foi a incorporação do plano diretor pelas
constituições estaduais e pelas leis orgânicas municipais, processo tão bem sistematizada por Nelson SAULE
JUNIOR (Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro, p.212-218 e 229-240).
158

42) e o processo (art. 40 §§ 1º,3º, 4º e art. 50, este com prazo alterado pela lei 11.673/2008)
do PD foram igualmente regrados pelo Estatuto. Alterações legislativas posteriores também
consideraram o realce do plano diretor na implementação da politica urbana418.
Sequencialmente, o Conselho das Cidades419 editou a Resolução 34/2005420; esta, ainda que
formalmente constitua recomendação, tem o condão de induzir e direcionar a politica urbana
(na concepção ampla que adotamos) no âmbito federal. No ato regulamentar daquele órgão
colegiado se encontra uma visão bastante detalhada dos elementos necessários a um PD que
de fato cumpriria seu papel constitucionalmente previsto, partindo das questões físico-
territoriais, mas ancorando nelas outros tantos aspectos: destinação de espaços para garantir
acessibilidade e mobilidade, proteção ao patrimônio histórico, universalização do acesso á
água, esgotamento sanitário e de resíduos sólidos, habitação de interesse social e
desenvolvimento econômico com ênfase nos pequenos negócios (art. 2º da Resolução), e
também a exigibilidade de processos participativos na elaboração e acompanhamento das
ações do poder público (artigos 6º e 7º também da Resolução).

O que se observa como ponto comum nos inúmeros painéis teóricos que
buscam explicar o conteúdo dos PDs é que eles dependem da visão que cada autor terá
também da política urbana.

Poucos como Victor Carvalho Pinto traçaram com tanta acuidade a origem e a
recepção constitucional do plano diretor. Coerente com sua concepção de política urbana (que
apresentamos no item 2.2.1), para ele também o PD tem por objeto apenas o ordenamento
territorial, pois:

“Sabe-se exatamente como o plano urbanístico é executado e fiscalizado, a fim


de que possa realmente influenciar a realidade. Já com relação aos demais
temas, não se sabe muito bem como controlar sua execução. Uma avenida só
pode ser construída caso esteja projetada em um plano diretor. Como
controlar, no entanto, um sistema de ônibus, um sistema de tratamento de
saúde ou uma política de geração de empregos? Já por aí se vê a conveniência

418
Conforme comentamos nos itens 2.6.2 e seguintes, “supra”.
419
O qual tivemos a honra de compor, entre 2006 e 2008.
420
O inteiro teor da Resolução, inclusive com seus diversos considerandos, pode ser obtido em
http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosCidades/ArquivosPDF/Resolucoes/resolucao-34-2005.pdf.
(acesso em 15/12/2012).
159

de separar, pelo menos em termos jurídicos, o urbanismo das demais


políticas”.421

Pinto defende como consoante à Constituição os planos que sejam


autoaplicáveis, com ênfase na definição da localização das atividades (por via do zoneamento,
por exemplo) e de índices e parâmetros urbanísticos para o parcelamento e o uso do solo,
ainda que reconheça não ser essa a unanimidade das propostas e mesmo dos planos aprovados
após a Constituição, e também, na sequência, do Estatuto422. Sua perspectiva, porém, está
longe de ser restritiva; muito ao contrário, o autor a utiliza para afirmar a propriedade imóvel
urbana como conformada de maneira integral pelo plano, o que não é pouco, de um lado, e de
outro para identificar o princípio da reserva de plano, o qual:

“garante institucionalmente que as diversas demandas setoriais sejam


coordenadas pelo órgão do planejamento. Ele consiste na exigência de que as
medidas que possam vir a afetar a transformação do território constem dos
planos urbanísticos, como condição para que possam ser executadas.(...) O
princípio da reserva do plano é o que permite a articulação entre o
ordenamento jurídico e o planejamento. Este opera não tanto pela imposição
de obrigações aos agentes públicos e privados, mas pela proibição de ações
não planejadas.”423

É certo que Pinto leva a extremos a concepção de um plano técnico424,


elaborado segundo ditames de certo urbanismo ainda identificado com o modernismo, cujos
limites e superação tentamos demonstrar no capítulo 3. Mas isso se deve, queremos crer, ao
objetivo central a que se propôs: demonstrar ser possível a institucionalização da política
urbana425, por via do direito urbanístico, e assim evitando ou corrigindo as distorções do
crescimento das cidades.

421
Direito urbanístico, plano diretor e direito de propriedade, p. 121, entre várias outras passagens.
422
Idem, p. 125- 130.
423
Ibidem, p. 204-205.
424
Ibidem, p. 228 e ss.
425
Ibidem, p. 36-37.
160

Escrevendo antes da promulgação do Estatuto426, Nelson Saule Junior parte de


fundamentos ligeiramente diferentes, ainda que também constitucionais ou por vezes
considerando os tratados e convenções aos quais o Brasil aderiu, para ir um pouco além dos
quadros do uso e ocupação do solo enquanto fronteiras do PD. Com efeito, é talvez o primeiro
a fazer coincidir desenvolvimento urbano, desenvolvimento sustentável e direito ao
desenvolvimento, e apresentar a nuance que cada um desses conceitos adquire na formatação
da politica urbana427. A par disso, vai buscar nos princípios do Estado brasileiro (o que é
imprescindível, sempre), como a justiça social- daí dando densidade ao conceito de FSPIU- e
no sentido de democracia participativa os fundamentos para então compreender os
instrumentos de participação popular como inerentes não só ao processo de aprovação 428 do
PD como também integrantes obrigatórios de seu conteúdo429, ou, em outras palavras, do
processo de gestão da politica urbana local.

De seu turno, José Afonso da Silva é peremptório na crítica aos PDs das
décadas de 60 e 70, posto tão largos em seus objetivos (temáticas sociais e econômicas
inclusas) que tornaram-se inexequíveis430 e relegaram o aspecto urbanístico a um papel
secundário431. Mesmo por isso, cuida o autor de posicionar o PD atual ao lado de outros
planos essenciais no âmbito do planejamento municipal mais amplo (de governo, financeiro,
social, etc.) e destaca igualmente a necessidade ainda de outros planos também urbanísticos
(regionais, abarcando frações do território, ou setoriais, de temas relacionados diretamente ao
uso e ocupação do solo)432. E mais: aponta certas condições elementares, como (i) a
relevância do processo, para além do conteúdo do plano, (ii) a exequibilidade, (iii) o
equilíbrio entre a generalidade e a especificidade, que não “engesse” mas também não
inviabilize a aplicação do plano, (iv) a integração entre os planos, no sentido horizontal
(intramunicipal) e vertical (com planos estaduais e federais) e (v) a democratização, tudo isso
como condições essenciais433.

426
Mas confirmando em escritos posteriores a posição que ora expomos.
427
Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro, p. 62-70 e outras passagens.
428
Ibidem, p. 249-259.
429
Ibidem, p. 259-272. O Estatuto exigiu a existência de instrumentos para a “gestão democrática da cidade” (art.
43), mas não os relacionou diretamente ao plano diretor.
430
A propósito, nossa síntese inserta no item 3.5.1, “in fine”.
431
Direito urbanístico brasileiro, p. 97-103 e 137.
432
Ibidem, p. 134 e 147-150.
433
Ibidem, p. 135-136.
161

Especificamente quanto ao conteúdo, Silva também tende à prevalência dos


aspectos físicos (sistema viário, disciplina de uso- como o zoneamento- espaços livres, etc.),
mas não descarta as estratégias, ainda territoriais, para o desenvolvimento econômico e social.
Entretanto, o que julgamos de suma importância, admite igualmente que o plano diretor
incorpore aspectos administrativo-institucionais necessários à transformação e ao
desenvolvimento urbanos434. Ainda que não afirme categoricamente a autoaplicação do plano,
é enfático em destacar a necessidade de que seja vinculante, e em realçar a metodologia
necessária para a integração entre os planos urbanísticos (diretor à frente) e econômico-
sociais435.

5.2.1. O Plano Diretor “esgota” a política urbana?

Em torno das posições acima é que se agrupam as visões de conteúdo e


de processo de elaboração dos planos diretores no Brasil, mas queremos crer que elas não
encerram todas as perspectivas possíveis, postas algumas considerações adicionais. Daniela
Libório Di Sarno, por exemplo, critica a omissão do Estatuto ao não estabelecer de forma
mais explícita a integração entre os planos (no sentido horizontal, entre todos os entes
federativos), e vertical (com o restante da legislação local)436, daí as insuficiências do PD. Na
mesma linha, mas com uma exposição mais ampla, Marcelo Lopes de Souza437 demonstra
certo desencanto quando nota que:

“a implementação da reforma urbana por meio apenas de planos diretores é


tarefa muito mais complicada do que o superotimismo da maior parte do
‘planejadores politizados’ fazia supor, e que, entre a elaboração da proposta e
a sua execução consistente se interpõe uma verdadeira via crucis, repleta de
obstáculos de ordem sociopolítica, institucional e outras”.438

Ainda que não se refira explicitamente aos PDs, e sim ao planejamento


enquanto um sistema, para Souza não soa estranho que se insira como elementos centrais do
planejamento urbano temas como os programas para geração de emprego e renda quando

434
Ibidem, p. 138-140.
435
Ibidem, p. 148-149.
436
Elementos de direito urbanístico, p. 63-64.
437
Mudar a cidade, p. 158-168.
438
Ibidem, p. 166.
162

associados à exclusão territorial (favelas e etc.) e muito menos o chamado orçamento


participativo, cujas virtudes e potencialidades ele analisa detidamente. Ou seja, e para esse
autor, questão físico-territorial é relevante, porém não a única que deve ser objeto do
planejamento urbano.

Mesmo no que tange à concretização da FSPIU, o PD pode não se


constituir em único instrumento apto, ainda que seja com certeza aquele básico, como
demonstra de maneira brilhante o estudo de Liana Portilho Mattos439. De fato, a autora vai
ancorar a efetividade da função social no art. 182, §2º da Constituição, mas igualmente no art.
2º do Estatuto (diretrizes gerais, expostas acima), o qual vincula o plano diretor, mas o
ultrapassa. Nessa visão mais ampla e panorâmica, necessária inclusive, uma leitura contrária
faria equiparar as limitações urbanísticas à FSPIU, o que também repara Mattos, e que não
nos parece adequado, conforme já comentamos acima (item 2.4.1). Assim, para ela:

“essa crença, como se disse, além de guardar relação estreita com a defesa da
função social como ‘norma programática’, é fruto, ainda, de um alto grau de
desatenção do intérprete, conferindo ao §2º do artigo 182 da Constituição (e
artigo 39 do Estatuto) uma importância e um conteúdo que ele não tem. Por
tudo que se disse, é urgente que se altere a leitura predominante desse artigo,
‘a propriedade cumpre sua função social [somente] quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor’
para ‘a propriedade cumpre sua função social quando [também] atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano
diretor’.”440

A afirmação da jurista mineira, traduzindo para termos simples uma


constatação tão essencial, ganha ainda mais sentido, se considerado o princípio da máxima
efetividade, um dos cânones da interpretação da norma constitucional. Em outras palavras,
relegar à formalidade de uma lei municipal a definição da FSPIU, em detrimento de sua
consistência material, é um risco sério cujas consequências nefastas já se mostram em dados
empíricos, como aqueles que pretendemos expor na introdução deste trabalho e reiteramos em
outros momentos.

439
A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do Estatuto da Cidade, p. 104 e ss.
440
Idem, p. 113.
163

5.3. Enunciando os princípios de direito urbanístico.

A trilha que percorremos até agora ainda denota certo relativismo, com
posições igualmente fundamentadas e consistentes, mas contraditórias. A insegurança que dai
decorre não colabora para um quadro funcional do direito urbanístico, na mira de seu papel
central: colaborar com a finalidade constitucional de promover a qualidade vida dos cidadãos
no ambiente urbano. É o momento, portanto, de apontar como essa função pode ser cumprida,
conforme antecipamos na introdução, posicionando devidamente os princípios de direito
urbanístico, como orientadores na formulação e na interpretação das normas que se conectam
de maneira direta ou indireta à política urbana.

A discussão acerca dos princípios de direito urbanístico, no Brasil, é pautada


desde pelo menos a década de 80 na exposição de José Afonso da Silva441. O autor os extrai
da doutrina estrangeira (espanhola), e em edições mais recentes de sua obra se limita a afirmar
que tais princípios foram acolhidos “implícita ou explicitamente” pelas diretrizes do art. 2º do
Estatuto. Sequencialmente, mas ainda antes do Estatuto, Regina Helena Costa442 também
buscou inferi-los, novamente numa leitura de sistematizações estrangeiras, mas também das
possibilidades de então do ordenamento positivo brasileiro.

O quadro resultante dessas duas posições, adotado doravante e por um bom


tempo como plataforma, era o seguinte:
a) Urbanismo é função pública: Princípio implícito, mas decorrente da própria definição
estrutural do direito urbanístico e do papel da administração pública na implementação da
política urbana. Conota principalmente o fato de que, como toda função pública, a
regulação da atividade urbanística constitui também dever do poder público, passível,
inclusive, de caracterizar eventualmente sua omissão;
b) Princípio da subsidiariedade: Extraído por Regina Helena Costa, que o enxerga como
desdobramento do artigo 173 da Constituição443, mas não elencado por José Afonso da
Silva. Expressa o papel primordial do privado na implementação física dos planos,
restando ao poder público sua assunção apenas quando absolutamente necessário. Á

441
Direito urbanístico brasileiro, p.44-45.
442
Princípios de direito urbanístico na Constituição de 1988, e também Reflexões sobre os princípios de direito
urbanístico na Constituição de 1988.
443
“Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo
Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse
coletivo, conforme definidos em lei.”
164

primeira vista pode causar espécie a ideia de encartar a política urbana nas diretrizes
constitucionais da política econômica, mas concordamos com a autora que, pelo menos,
este princípio não seria incompatível com o da função pública, e portanto não seria
igualmente este o motivo de críticas à sua aceitação. Porém, enxergamos também uma
conexão, em algumas situações, com a afetação das mais-valias ao custo da urbanização,
que veremos a seguir. Isto porque por vezes e como contrapartida à inevitável valorização
imobiliária (como na implantação de loteamentos, na adoção de medidas mitigadoras em
licenciamento, nas operações consorciadas, etc.) o privado deve implementar etapas do
plano, mediante obrigação de fazer intervenções físicas, que vão além daquelas
decorrentes dos direitos de vizinhança;
c) Coesão dinâmica das normas urbanísticas: Princípio descrito por José Afonso da Silva
como singularidade da norma urbanística, que deve ser apanhada em sua aplicabilidade
antes como integrante de um processo que interfere de maneira distinta em realidades
(territoriais, econômicas, sociais, etc.) também diversas, mas que converge para
finalidades comuns a essas conjunturas todas;
d) Conformação da propriedade urbana: Ainda que José Afonso da Silva não desça a
detalhes, apenas afirmando tratar-se de decorrência da função pública do urbanismo, já
demos uma breve descrição deste princípio no item 5.2, “supra”, mas na versão de Victor
Carvalho Pinto acerca da reserva do plano. Como observamos ali, os atributos do
proprietário em relação a sua propriedade não são intrínsecos a ela, mas decorrência
daquilo que estabelecido pelo plano;
e) Remissão ao plano: Inferido por Regina Helena Costa da FSPIU enquanto subprincípio
daquela, dado o papel de validação do plano diretor em relação às demais normas
urbanísticas, estabelecendo o papel de hierarquia funcional de que se reveste o PD no
ordenamento jurídico municipal;
f) Afetação das mais-valias ao custo da urbanificação444: Nesse ponto não discrepam os dois
tratadistas, ao explicarem que tal princípio consiste em buscar reverter, ao poder público e
na medida dos benefícios auferidos pelo particular, os custos da ação pública (redes de
infraestrutura, equipamentos, etc.). Regina Helena Costa exemplifica suas assertivas
mediante os institutos da desapropriação por zona e da contribuição por melhoria, e José
Afonso da Silva refere-se à aplicação do princípio, em face do proprietário, por conta da
“compensação pela melhoria das condições de edificabilidade que dela derivam para seu

444
Urbanificação é expressão consagrada por José Afonso da Silva.
165

lote”. Se aceitável, como propusemos na alínea "b", hipótese de subsidiariedade como


dever em algumas situações (loteamentos, por exemplo), e não como mera possibilidade, a
citada compensação iria além da mera condição de edificar, implicando numa imputação
maior de obrigações aos empreendedores, até porque maior o benefício;
g) Justa distribuição dos benefícios e ônus derivados da atuação urbanística: Princípio
apresentado por José Afonso da Silva, quer-nos parecer um cadinho onde se completam,
em busca de concretude, os princípios da isonomia (que informa o sistema jurídico com
um todo), da função social da propriedade e da afetação das mais-valias ao custo da
urbanificação, com este sentido mais amplo a que nos referimos.

Silva não relaciona a FSPIU entre os princípios de direito urbanístico, ainda


que entenda445 que a função pública dela decorra, mas Costa sim. Esta, por outro lado, faz
derivar todos os demais princípios da supremacia do interesse público, cujas transformações
comentamos no item 4.4.4.1, “supra”. Ambos, reitere-se, partem de análises feitas por autores
estrangeiros, que trafegam portanto em seus respectivos ordenamentos.

De regra, a maioria dos que desenvolveram o direito urbanístico na sequência


adotaram em maior ou menor grau o elenco que sistematizamos; mesmo assim, novas
percepções foram se agregando, em especial após o advento do Estatuto.

Daniela Libório Di Sarno, por exemplo, adota um rol semelhante446 ao que


expusemos acima, mas já incorporando a função social da cidade e trazendo novos
argumentos. Por exemplo, demonstra as dificuldades para aferir-se a “repartição”- em
substituição à “distribuição” e sem o adjetivo “justa”, no enunciado que utiliza- de ônus e
benefícios, pelo caráter cambiante que a valorização imobiliária introduz nos processos
urbanos. George Louis Humbert propõe uma maior síntese, bem apurada e fundamentada, o
que nos parece uma preocupação correta, dado o papel orientador dos princípios, e portanto a
economia com que devemos enuncia-los, evitando assim uma possível banalização. Assim,
resume os princípios de direito urbanístico em apenas quatro, quais sejam, (i) função social da
propriedade, (ii) função social da cidade, (iii) planejamento urbano e (iv) gestão democrática
das cidades447.

445
Ibidem, p. 76-77.
446
Elementos de direito urbanístico, p. 47-55.
447
Direito urbanístico e função socioambiental da propriedade imóvel urbana, p.53-63.
166

Já Victor Carvalho Pinto introduz uma percepção diferenciada do planejamento


e da remissão ao plano: o princípio da reserva do plano, conforme já anotamos no item 5.2
“supra”, ou o fato de que o planejamento deve sempre anteceder a urbanização 448, esta só
viável quando e na forma com que prevista nesse mesmo plano. Por via de consequência, o
PD deve inexoravelmente ser autoaplicável. Em verdade, nos parece que a reserva do plano é
uma consequência da conformação da propriedade urbana, inserida no quadro acima, e, de
fato, haveria de ser aceito como um princípio, por sua amplitude. Mas se repararmos nas
considerações feitas no capítulo anterior, é perceptível que a reserva do plano não é aplicável
pelo modelo “mais ou menos” (ponderação), característico dos princípios, e sim “tudo ou
nada”, como se regra fosse - ou está previsto no plano, ou não está. Para além disso, e ainda
que o desenvolva menos que gostaríamos, o autor resgata do direito alemão e com grande
oportunidade o princípio da justa ponderação dos interesses públicos e privados, onde:

“é dever do urbanismo buscar um compromisso entre os diferentes interesses


afetados pelo plano.(...) O que se exige é que (...) se fundamente a preferência
por um ou outro interesse. A preterição de um interesse não pode ser
injustificável ou desproporcional.(...) Trata-se buscar no caso concreto qual a
melhor solução para trade-offs como: apoiar a atividade econômica sem
degradar o meio ambiente; melhorar o tráfego sem prejudicar o paisagismo;
construir moradias populares sem prejudicar a qualidade de vida dos
moradores já residentes no bairro; preservar o valor das propriedades sem
impedir a imigração de novas pessoas”.449

Por fim, mas talvez com maior importância para sua teoria, Pinto busca
também nos ordenamentos estrangeiros o princípio da vinculação situacional450, ou adequação
do direito de construir à edificabilidade já existente no entorno (portanto, igual a zero no meio
rural). De regra aplicável apenas às cidades sem PD, o autor desdobra o sentido desse
princípio para afirmar que todo direito de construir decorre do cumprimento de diversas
modalidades de ônus urbanísticos por parte do proprietário, inicialmente na constituição do
loteamento- com todas as obrigações dai inerentes, como a implantação de infraestrutura e a

448
Direito urbanístico, plano diretor e direito de propriedade, p. 143, mas principalmente p. 208-218.
449
Ibidem, p. 222-223.
450
Ibidem, p. 272 e ss.
167

reserva e doação de áreas públicas previstas na Lei 6766/79- para concluir pela separação
entre o direito de propriedade e o direito de construir, e a consequente patrimonialização451
deste ultimo como a tônica do ordenamento brasileiro. Isto se traduz, em suma na noção de
que o direito de construir é adquirido, e não uma consequência do direito de propriedade. Daí
para frente, a edificabilidade poderia até ser ampliada, via a adoção de institutos como os da
outorga onerosa ou das operações urbanas consorciadas (artigos 28 e 32 do Estatuto,
respectivamente).

Vicente de Abreu Amadei traça um percurso bastante original, mas até certo
ponto contraditório, ou no mínimo complementar452. De um lado, enumera o que chama de
princípios supranormativos, também colhidos na doutrina espanhola, a saber, (i) a
subsidiariedade, mas com uma interessante inversão, no sentido de abstenção do Estado
enquanto regra; (ii) a necessidade, corolário do anterior; (iii) a viabilidade; (iv) a justiça,
semelhante à “justa distribuição dos ônus e benefícios”; (v) a homogeneidade institucional,
ou o respeito à propriedade privada e à liberdade); e (vi) a fidelidade ao destino da sociedade
(o bem comum). Como se depreende, um ideário de certo modo conservador para a superação
do conceito tradicional de propriedade individual. De outro lado, porém, quando se debruça
sobre o ordenamento jurídico brasileiro para estabelecer aquilo que irá denominar de
princípios intranormativos, o resultado é quase inverso, pois então encontra (i) a primazia
social das classes menos favorecidas, ou o interesse social); (ii) a sustentabilidade; (iii) a
gestão democrática; (iv) a cooperação público-privada; (v) a universalidade, entendida como a
composição entre ações preventivas, de ordenação do crescimento, e de retificação dos
passivos urbanísticos já engendrados; e por fim (vi) a descentralização, ou respeito às
peculiaridades de cada região ou região.

Como se vê, por toda exposição havida até agora, especialmente nos últimos
itens, há um universo rico de construções teóricas e pontos de vista a explorar para dar cabo
de nossa tarefa. Não se trata de descartar totalmente umas, aceitar totalmente outras ou
promover uma síntese obrigatória entre elas, mesmo porque os princípios mudam por conta de
fatores históricos, e, principalmente, pelo advento de nova normatização, como aliás ocorreu e
vem ocorrendo mais recentemente no Brasil. Mas é prudente sempre buscar um equilíbrio nas

451
Nesse contexto, “patrimonialização” é um conceito neutro, ao contrário da maneira negativa com que é
adotado por Ermínia Maricato (ver item 3.6.3, “supra”).
452
Urbanismo realista, p. 32-44.
168

listagens de princípios, tão longas quanto for relevante para descrever corretamente as
características peculiares que eles abrigam, e tão curtas quanto necessário para não banalizá-
los, posto que veículos de valores sociais e políticos relevantes, como afirmamos acima.
Assim apetrechados, adentraremos então na construção que julgamos mais adequada dos
princípios de direito urbanístico com a realidade jurídica presente.

5.4. Os princípios constitucionais de direito urbanístico.

Adentrar a plêiade de princípios constitucionais – da pluralidade política e da


dignidade da pessoa humana à moralidade administrativa e anterioridade tributária, passando
por tantos outros- que interferem na elaboração e na aplicação das normas vinculadas à
política urbana é tarefa para o intérprete, e quando este estiver defronte ao caso concreto. Tal
compreensão é primordial até mesmo para reforço dos princípios que por ora denominamos
como “de direito urbanístico”, com as aspas demonstrando a impropriedade de caixas
estanques quando se fala do direito. A nós, resta advertir que buscamos, neste momento, tão-
somente elencar aqueles específicos, e mais estruturantes do direito urbanístico e da política
urbana. Em outras palavras, um alicerce para início de qualquer debate ou argumentação
relacionados às instâncias- o Direito, o Estado e a cidade- que buscamos aproximar com este
trabalho.

Estamos então a tratar da função social da cidade (FSC) e da função social da


propriedade imóvel urbana (FSPIU), posto uma, a FSC, como objetivo e horizonte
perseguidos pela política urbana, e a outra, a FSPIU, como condicionante inafastável desse
objetivo. Das duas já tratamos de maneira até certo ponto aprofundada e em momentos
anteriores (itens 2.4 e 2.5, “supra”), e ali deixamos clara nossa opção quanto a nominá-las de
sobreprincípios, dado o papel que de fato exercem. Restam, entretanto, algumas considerações
adicionais, malgrado o caráter quase infindável e dinâmico do debate quanto à natureza e ao
conteúdo de tais conceitos. Entenda-se aqui como sobreprincípios nada mais que os princípios
de direito, com todas suas características elementares, mas cuja amplidão é tanta que permite
a derivação de outros tantos princípios também de direito, que com os anteriores guardam
uma relação dialética, de reforço e de validação. De fato, e numa perspectiva pragmática,
alguns princípios são tão amplos que sua aplicabilidade, ainda que não dependente, nem
mesmo para a solução do caso concreto, se torna mais plausível e até legítima quando
169

desenvolvida ou desdobrada453. É o que ocorre, ainda em nossa percepção, com os dois


sobreprincípios (FSPIU e FSC), aqui examinados, e então algumas considerações
suplementares se fazem necessárias, de forma a prosseguir para o plano infraconstitucional.

5.4.1. Função social da propriedade imóvel urbana e da cidade:


complementos.

Queremos crer que os argumentos expendidos no item 2.4, “supra”,


falem por si quanto ao papel essencial da FSPIU na politica urbana, Principalmente por, ainda
em nossa opinião, termos deixado clara a diferença em relação às limitações administrativas, e
portanto as possibilidades mínimas de se caracterizar, no caso da FSPIU, quaisquer
perspectivas indenizatórias em sua aplicação. Assim, o particular não cede em seu direito
individual face ao interesse coletivo; ao contrário, esse direito é definido pela função. Ou seja,
ao direito individual de propriedade- art. 5º, inciso XXII da Constituição- corresponde um
direito coletivo à oferta da função social- art. 5º, inciso XXIII, também da Constituição454.

O mais importante, entretanto, é nossa defesa quanto ao caráter material


da FSPIU, descartando vez que insuficiente, sua apreensão apenas formal no âmbito dos
planos diretores municipais. Não basta declará-la nos PDs, portanto, mas se exige que sua
definição atenda ás condições objetivas da cidade que se pretende desenvolver, e essa relação
deve ser passível de demonstrar, em cada caso (cidade e PD).

Tal argumentação pode ser mais bem aclarada e exemplificada se


explorarmos um pouco mais o art. 182 da Constituição. Ali encontraremos os elementos já
esmiuçados (PD, FSPIU e FSC), mas também, no §4º, a possibilidade do Município instituir a
obrigação de uso (parcelamento, edificação ou utilização) compulsório da propriedade imóvel
urbana (PEUC).

Entender que cumprir a FSPIU se resuma a edificar ou utilizar a


propriedade constitui um grave equívoco, mas é sim notável que dentre todas as propostas de
instrumentos para a reforma urbana que se apresentavam na década de 80, o único

453
E não vai aqui qualquer grande novidade, bastando observar a hierarquização de CANOTILHO que já
expusemos no item 4.4.3, “supra”, no caso presente com a adaptação de considerar princípios constitucionais e
infraconstitucionais.
454
A propósito, Victor Carvalho PINTO (Direito urbanístico, plano diretor e direito de propriedade, p. 203).
170

constitucionalizado foi o parcelamento, edificação e utilização compulsórios, e seus


sucedâneos- imposto predial e territorial urbano (IPTU) progressivo no tempo e
desapropriação com pagamento em títulos455, depois regulamentados pelos artigos 5º a 12 do
Estatuto.

De fato os efeitos perversos dos vazios urbanos privados (salvo


honrosas exceções, como as áreas vegetadas) se projetam para toda cidade ou região, com
encarecimento de terrenos em áreas mais providas de infraestrutura e consequente
periferização da malha urbana, dado o não acesso às áreas centrais pelo grande contingente de
população com poucos recursos. Como já apontamos em outra reflexão456, não obstante a
“faculdade” expressa pelo texto constitucional, se presentes as condições objetivas que
justifiquem sua adoção- “in casu”, vazios urbanos com consequências negativas- a dicção
correta é de uma obrigação de adoção por parte do PD, em respeito à consagrada fórmula do
“poder-dever”. Tratando-se então de competências constitucionalmente estabelecidas, é dever
dos municípios desenvolver, via PDs, o combate aos vazios urbanos, adotando-se o citado
instrumento (PEUC) ou outros, quando configurados tais vazios.

Outra consideração igualmente importante é ponderarmos a importância


ou não de se adotar a nomenclatura “socioambiental”, hoje disseminada para designar a
essência do direito de propriedade, mas que não nos parece assim tão relevante. Em respeito
aos argumentos de Georges Louis Humbert457, dentre outros autores, que enxerga com toda
razão o componente ambiental em toda política pública incidente sobre o espaço e as
atividades, contrapomos o fato de que a preservação e a recuperação ambiental são também
finalidades de interesse social. Por mais indeterminado que seja este conceito, de há muito se
aceita que as ações para atingir o interesse social não se compadecem apenas com a oferta de
bens materiais e apropriados individualmente, como o emprego, a renda, a terra, o consumo,
ou a moradia. Assim, e para nós, o ambiental, difuso mas essencial, está ínsito ao social.

455
“Art. 182. (...)
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir,
nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que
promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo
Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o
valor real da indenização e os juros legais.”
456
Parcelamento, edificação e utilização compulsórios, p.39-40.
457
Direito urbanístico e função socioambiental da propriedade imóvel urbana, p. 119-138.
171

Quanto à FSC, também procuramos (item 2.5, “supra”) aprofundar seu


caráter estratégico. Entretanto, o fizemos mais em relação à sua natureza (de direito difuso) do
que ao seu conteúdo. Valem, portanto, algumas considerações também adicionais, e
adentrando um terreno deveras desafiador.

O ideal de FSC é tão largo quanto ambiciosos são os objetivos que


alberga. Talvez inalcançáveis, mas necessários como norte de uma proposta efetivamente
transformadora de realidades que inercialmente se consolidaram, buscando apontar para a
justiça e a igualdade. Em suma, utópico, e por isso tão precioso como tantas outras utopias
que o espírito humano engendrou.

A compreensão da FSC implica em inovações profundas no “modus


operandi” da administração pública e do Estado, direcionando suas ações definitivamente para
o reequilíbrio de situações indesejada, exacerbadas e acumuladas ao longo de décadas. Como
tenta demonstrar Rogério Gesta Leal458, na perspectiva de uma sociedade urbana a FSC é um
elemento de integração social, portanto de um Estado com compromisso primeiro e,
sobretudo, em relação às parcelas excluídas pelo histórico econômico e político. Talvez por
isso, a FSC seja ainda mais larga e ideologicamente difusa do que a FSPIU.

Ambas porém não são valiosas apenas por sua aplicabilidade “de per si”
(ainda que isso seja admissível) às situações concretas, mas sobretudo pela capacidade de
gerar outros princípios, como trataremos a seguir.

5.5. Princípios derivados de direito urbanístico.

Optamos por não adotar nesta exposição a nomenclatura de


infraconstitucionais, quando nos referimos aos demais princípios do direito urbanístico. Isso
não porque poderíamos sugerir que sua gênese se dê despregada da Constituição; muito ao
contrário, a relação dos demais princípios que enunciamos com a FSC, a FSPIU e mesmo
com outros princípios constitucionais é de validação recíproca, construída a reconstruída
continuamente pelo legislador, pelo aplicador, pelo estudioso do Direito e pela comunidade,

458
A função social da propriedade e da cidade no Brasil, p.80-81 e 113-114.
172

com toda pluralidade que estes atores albergam, ainda mais em temas tão candentes. Nesse
processo, de dinamismo constante, a argamassa acaba sendo sim a legislação, mas também as
condições históricas concretas, as experiências e a consciência política da sociedade, a
economia e a politica, cada qual com sua maneira própria de ingressar no espaço do Direito.
Mas, no fundo, é sempre da FSC e da FSPIU que estamos a tratar, e legitimá-las, enquanto
decisão política evidente do constituinte originário, implica em considerações de todos
aqueles atores, ponderadas, mas jamais desprezadas no caso concreto. Os rumos da legislação
são de fato relevantes, talvez até decisivos, mas não esgotam as possibilidades de
concretização dos princípios constitucionais que tratamos.

A partir desses fundamentos, optamos por descrever como também princípios


aqueles que derivam da FSC e da FSPIU, como se segue.

5.5.1. Sustentabilidade urbana.

Na ótica da politica urbana, conforme a construímos, a sustentabilidade


se relaciona ao acesso tanto aos recursos naturais quanto àqueles sociais e necessários ao
cumprimento da FSC, estes expressos como direito à moradia, ao saneamento, à infraestrutura
urbana, ao transporte e serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, tudo na dicção do art. 2º, I,
do Estatuto. Foi em busca de tais diretos por parte de grandes parcelas da população que,
décadas ou séculos atrás, a civilização iniciou o processo hoje irreversível de conversão do
rural para o urbano, e sustentável então deve ser a preservação dessas funções das cidades-
refúgio, alternativa de uma nova vida, de sonho e esperança, palco de novas experiências, de
elevação espiritual e intelectual- muito além do que apenas espaço de acumulação ou renda.
Em suma, trata-se de privilegiar o valor de uso tanto ou mais do que o valor de troca,
conforme expresso por Henri Lefebvre459. O que há de ser sustentável, portanto, é a própria
cidade, naquilo que ela representa de avanço histórico para as condições materiais (e até
espirituais, repita-se) da comunidade como um todo. Então, vai ganhar acento definitivamente
(i) o possível descolamento, no caso concreto, entre recuperação e preservação do ambiente
urbano quando a ele estiver contraposto o crescimento econômico nos moldes capitalistas, o
segundo sempre dependente e condicionado pela primeira, e, portanto, (ii) os limites e
condições estruturais da expansão não só da malha urbana, mas também dos usos de impacto

459
Item 3.2.1, “supra”.
173

excessivo. Desenvolvimento passa a ser visto com mais acento nos seus aspectos qualitativos,
e não apenas quantitativos, de forma a não se admitir doravante efeitos outrora aceitos como
“colaterais”, ou o “preço a pagar” pela vida urbana (poluição em todas as suas formas,
insegurança, congestionamentos e longos percursos, hipervalorização dos imóveis, segregação
e falta de espaços públicos de convivência, periferização, etc.). Além do já citado inciso I, sua
configuração se completa em inúmeros outros dispositivos do art. 2º do Estatuto (incisos
III,IV, V, VI alíneas “c” a “g”, VII, VIII, X a XII e XVI) e ao longo desse mesmo diploma
legal (art. 4º incisos I, II, III alíneas “c”, “g” e “h”, V alínea “d”, VI; art. 26 incisos IV a VIII;
art. 28, § 3º; art. 32, §1º; art. 33, inciso V; artigos 36 a 38; art. 39, art. 41, inciso V; artigos 53
e 54). Para além disso, a sustentabilidade vai estruturar parte considerável da legislação
correlata, da qual destacamos na Lei 11.977/2009 o já citado artigo 48, inciso I, mas
igualmente os incisos II e V460; na Lei 6766/79 o art. 3º § único; na Lei 11.455/2007 o art. 2º
incisos III a VII e XII, art. 4º, § único, art. 11, §2º, inciso IV; na Lei 12.305/2010 todo seu
espírito, mas com destaque para os artigos 6º incisos I a VII e aqueles outros que
fundamentam a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos (definida no
artigo 30); na Lei 12.587/2012 o art. 5º incisos II, VI, VIII e IX; na Lei 12.608/2012 tudo
aquilo que já incorporado ao Estatuto e que busca conter a expansão da malha urbana.

O caráter intergeracional, presente ainda no art. 2º, I (“in fine”) do


Estatuto também não pode ser relegado. Na sua esteira ganham relevância aspectos diversos e
que apontam para uma política urbana com certa constância em seus fundamentos,
implementada paulatinamente e sem retrocessos, mas sujeita a crítica e reavaliação
constantes. Colaboram para cumprir essa exigência os mais diversos dispositivos do Estatuto,
como a obrigatoriedade de revisão periódica dos PDs (art. 40, § 3º), passando pela exigência
de sistemas de controle e monitoramento (art. 42, III) e até a análise obrigatória de impactos
(artigos 36 a 38, já apontados acima).

As consequências de nossa compreensão acerca da sustentabilidade


podem ser as mais diversas, e seus argumentos brandidos em situações até díspares. Vão da
460
Art. 48. (...):
II – articulação com as políticas setoriais de habitação, de meio ambiente, de saneamento básico e de mobilidade
urbana, nos diferentes níveis de governo e com as iniciativas públicas e privadas, voltadas à integração social e à
geração de emprego e renda;
V – concessão do título preferencialmente para a mulher.”
Os grifos apostos estão a apontar para elementos que garantem a permanência da família no assentamento,
evitando novas migrações e o surgimento de novas ocupações precárias.
174

premência de aparato técnico nas administrações públicas, possibilitando o monitoramento de


todos os vetores que impactam na cidade ou região, até a vedação da expansão urbana sem
infraestrutura com custos razoáveis de manutenção ou que gerem segregação, passando pela
obrigatoriedade da revitalização de áreas degradadas, do combate aos vazios urbanos, da
limitação e condicionamento adequado de usos impactantes, da expansão de áreas verdes e da
restrição de veículos motorizados. Se está fundada na FSC, é a sustentabilidade que pode
posicionar adequadamente a exigibilidade da FSPIU, ainda mais nos “casos difíceis”.

Como princípio mais tipicamente sujeito à ponderação, a


sustentabilidade guarda uma relação estreita com os dois próximos que examinaremos, a
solidariedade urbana e a gestão participativa.

5.5.2. Solidariedade urbana.

Em certa medida, buscamos aqui atualizar a mesma justa distribuição


dos ônus e benefícios da urbanização, presente desde há muito nas propostas de positivação
da política urbana, e incorporada como princípio nas construções teóricas. De plano já não
podemos admitir como estrutural a distribuição de ônus, posto o conceito acima exposto
quanto á sustentabilidade, na pior das hipóteses substituindo-a por distribuição dos efeitos. De
outra parte, para ser “justa”, na perspectiva histórica que estabelecemos, tal distribuição deve
ter em vista não só a expansão, ou o planejamento e a gestão futuros da cidade, mas também a
reconversão dos passivos já instalados, tudo isso sem desbordar para as utopias da primeira
metade do século, pois a história mostrou a impossibilidade de simplesmente refazer as
cidades sem o risco de reproduzir suas contradições. Esse componente de aceitação dos erros
do passado na cidade presente e a responsabilidade comum por sua correção, atribuída ao
Estado e à sociedade presentes, continua a viver no âmbito da solidariedade urbana.

O ponto de partida lógico da solidariedade urbana nos parece ser a


noção de equilíbrio, presente no art. 1º, § único do Estatuto, mas que funciona como fio
condutor de todo art. 2º, o que foi percebido de forma primeira e extraordinária por Carlos Ari
Sundfeld, cujo pensamento declinamos o item 5.1. Relevante por si própria, essa visão serve
também para eliminar qualquer sentimento de repulsa ou condenação da atividade econômica
e de seus agentes (da construção civil ou outras indústrias ao comércio e serviços) enquanto
“vilões” no âmbito da cidade como esta resultou no mundo contemporâneo, mesmo porque
175

incoerente com a sistemática do Estatuto. Ao contrário, não obstante críticas aos excessos que
a lógica da acumulação engendra, solidariedade significa aceitar que a cidade e a região
constituem como que uma nave, onde os rumos e resultados a todos afetam ou a todos
beneficiam, mesmo que disso não nos apercebamos no primeiro momento. Entender que a
regularização fundiária e urbanística é benéfica apenas aos moradores do assentamento é algo
de grande miopia, tanto quanto sufocar a atividade econômica, até o ponto de asfixiá-la.
Como estipulada anteriormente, a justa distribuição de ônus e benefícios denota grupos
apartados e incomunicáveis no cotidiano, eventualmente se digladiando por seus interesses
(pedestres e motoristas, favelas e condomínios fechados, moradia vertical e horizontal, bares
noturnos e trabalhadores diurnos, terra urbanizada e áreas de preservação, produtores e
consumidores). Não se trata, à evidência, de alimentar ilusões quanto à conflituosidade
inerente à apropriação do solo urbano, mas sim de explicitá-la e justificar opções adotadas na
política urbana, como na definição dada por Victor Carvalho Pinto acerca do princípio da
justa ponderação dos interesses públicos e privados, que indicamos no item 5.3, “supra”.

De outra parte, albergamos aqui também a apropriação das mais-valias


decorrentes da valorização imobiliária. Assim o fazemos por conta da redefinição ainda em
curso da visão de interesse público, cuja trajetória mais recente pontuamos em vários
momentos de nossa exposição, especialmente no item 4.4.4.1. Isso afasta em definitivo a
possibilidade de que instrumentos como a outorga onerosa do direito de construir ou de
mudança de uso (artigos 28 a 30 do Estatuto), a contribuição de melhoria e outros, sejam
adotados com finalidade meramente arrecadatória, e abre outras tantas possibilidades de
controle social, inclusive por via de ação popular, de desapropriações inoportunas e gastos e
ações temerárias por parte de uma administração pública que já não é mais a depositária
exclusiva das finalidades do Estado, e sim um ente (ainda que o mais fadado a cumpri-las)
dentre outros que as perseguem. Por fim, mas não com menor importância, esse raciocínio
torna obsoleta a discussão do urbanismo como função pública e seu contraponto, o princípio
da subsidiariedade. Eles remanescem, mas no direito constitucional, econômico e
administrativo, e ingressam no direito urbanístico pela lógica lá construída e com os filtros
que a disciplina deste aqui estabelecer, por exemplo quando se discute o instrumento das
concessões urbanísticas.461

461
Não negamos que é delicado afastar “função pública do urbanismo” e “subsidiariedade” enquanto princípios
de direito urbanístico. O uso potencial do instrumento denominado “concessão urbanística”, aqui citado, é uma
prova disso, quando argumentos contidos no direito urbanístico acabam sendo utilizados para fundamentar
176

A solidariedade perpassa vários dispositivos do Estatuto (art. 2º incisos


III, VI alíneas “b”, “d” e “e”, IX, X, XI e XVI; artigos 28 a 34 e 46 e 47) e da legislação
correlata ou “setorial”, onde quer que se constate que priorizar o atendimento a um setor
desprovido de certo serviço ou direito inevitavelmente redundará em benefícios ao conjunto
da comunidade. A universalização dos serviços de saneamento (Lei 11.445/2007, art. 2º, I, II
e IV) falam por si quanto a rebatimento positivo na mitigação de riscos ambientais e na saúde
pública.

5.5.3. Democratização da política urbana.

A política urbana talvez seja aquela mais propícia ao exercício da


participação e do controle sociais, em suma, da concretização da democracia participativa. De
um lado, porque é provavelmente a mais descentralizada das políticas públicas, face ao papel
predominante do Município em sua formulação e execução. E, de outro lado, é aqui que a
experiência vivida no cotidiano permite engendrar soluções eficazes e avaliações realísticas
dos efeitos concretos de opções havidas, com desenvolvimento da crítica e da formação dos
cidadãos para, inclusive, então melhor atuarem em outras instâncias de discussão. Ou seja,
indo além de assegurar transparência e controle, por si só justificadores da participação, mas
também perseguindo eficácia da política pública a partir da percepção e reflexão do cidadão, e
não do agente público. Foi a partir disso que a participação galgou um papel central nas
propostas de reforma urbana e ingressou na estrutura da política urbana preconizada pelo
direito urbanístico como ele se apresenta nos dias de hoje.

Note-se bem, estamos a colocar no mesmo patamar a interferência


cidadã no planejamento e também na gestão dos planos, mesmo porque instâncias
inafastáveis, cabendo ao promotor- apenas isso- da participação (ou seja, à administração
pública), adequar os instrumentos a um ou a outra. O art. 2º, inciso II do Estatuto462 adota a

visões acerca das funções estatais que eventualmente não conferem com a Constituição e a legislação que lhe dá
seguimento, o que poderia ser mitigado com uma discussão mais profunda de o que significa “função pública do
urbanismo”. Mas o papel do Estado, seus limites e atribuições, perpassa todo o direito, não constituindo
peculiaridade do direito urbanístico, e será sim considerado no caso concreto, ingressando como objeto de
ponderação. Para aprofundar a noção de “concessão urbanística”, Mariana NOVIS (O regime jurídico da
concessão urbanística, passim, inclusive já debatendo o caso paulistano do “Projeto Nova Luz”).
462
“Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: (...)
177

expressão gestão para se referir à política pública (“in casu”, a urbana), mas mesmo assim fica
claro que se tratam de momentos distintos (“pré-plano” e “pós-plano”), ambos igualmente tão
legítimos quanto direcionados pela democracia participativa.

Para tanto, há ao menos duas condições essenciais que devem se


cumprir, não apenas como ideais éticos ou políticos, mas sim por constituírem exigências de
nosso ordenamento.

A primeira é o acesso permanente à informação, vazada em linguagem


ao mesmo tempo rigorosa nos dados e conceitos e formatada à compreensão do cidadão com
cultura mediana, o que, de resto, é exigível em qualquer metodologia participativa. O
diferencial, quanto à política urbana, mas também à ambiental, é de intensidade; vale dizer
que, muito mais do que em outras (políticas econômica, educacional, cultural, etc.) não se
trata de apenas definir caminhos, mas também de reagir a dinâmicas indesejadas e instaladas
ao longo do tempo (esgotamento de recursos naturais, degradação urbanística, poluição, etc.),
com uma dificuldade maior de redirecionamento, portanto, e resultados sempre a médio ou
longo prazo.

A outra é a peculiaridade da interface entre técnicos e cidadãos.


Marcelo Lopes de Souza enxerga aqui não só o grande “nó”, mas também a verdadeira
possibilidade de emancipação do planejamento, para além da racionalidade tradicional. Para
ele, o planejamento crítico só se define quando o intelectual (pesquisador, planejador ou
técnico) se limita a “chamar a atenção” dos sujeitos históricos para pontos estratégicos, e ao
mesmo tempo se mantém “vigilante diante do senso-comum, desafiando-o e buscando
superá-lo, ao interrogar o não-interrogado e duvidar das certezas não-questionadas”.463. Em
suma, e na construção da autonomia social, grande mote do mesmo autor, quem planeja são
os atores sociais com apoio dos técnicos, e não o contrário.

II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários
segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de
desenvolvimento urbano.”
463
Mudar a cidade, p. 36-37. O tema é retomado em outras passagens e sob outras perspectivas. Acerca do valor
do conhecimento tradicional para o planejamento, na mesma obra, p. 118. Em complemento a essa ideia veja
nossa observação no item 4.3.1, “supra”.
178

A democratização é em verdade um dos sustentáculos da política


urbana, desta compondo um dos órgãos vitais. A partir da matriz já citada do art. 2º inciso II
do Estatuto, se desdobram outros tantos dispositivos (no mesmo diploma legal, art. 2º, incisos
XIII e XV464; art. 4º, inciso III- o “orçamento participativo”- inciso IV alíneas “r” e “s”; art.
33, inciso VII; art. 37, § único; art. 40, § 4º, com consequências, caso inobservado, no art. 52,
inciso VI; artigo 42, inciso III- o qual inferimos como democrático por análise sistemática; e
em especial, por seu caráter substantivo, o Capítulo IV- artigos 43 a 45; e por fim e em certa
medida, o art. 53). Na legislação correlata (ou “setorial”) a democratização também é uma
constante, como se observa na Lei 11.977/2009, art. 48 inciso III; na Lei 11.445/2007, art. 18
§ 5º; na Lei 12.587/2012, especialmente art. 5º, inciso V.

5.5.4. Proeminência do Plano Diretor (PD) e do planejamento.

Acreditamos ter deixado claro em várias passagens as insuficiências e


equívocos, ou pelo menos o esgotamento, de certa racionalidade que derivou das concepções
modernistas de urbanismo, e da qual a fé no planejamento é um desaguadouro. E não se pode
negar que o PD local, como compreendido no Brasil e no mundo após a Segunda Guerra, tem
em seus genes o apego a tal racionalidade. Mas colocar em xeque a validade do planejamento,
e do PD, na concretização da FSC e da FSPIU pode soar quase que como heresia. Ai está o
art. 182, § 2º da Constituição, combinado com os artigos 39 e 40, “caput”, do Estatuto, para
afastar tal possibilidade. Mesmo quem o faz com contundência e muito bem municiado, como
Flávio Villaça465, critica a concepção disseminada, e não o instrumento em si.

E de fato, como já realçado anteriormente, nos parece mais producente


e afinado com o ordenamento jurídico estabelecido apresentar o princípio da proeminência
não sob o aspecto formal, aquele do PD e do planejamento como a pedra fundamental da
competência municipal acerca da política urbana e até mesmo com um conteúdo mínimo
estabelecido pelo Estatuto466, mas sim no aspecto material, e portanto também de dever. Ai

464
O enunciado (“simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias,
com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta de lotes e unidades habitacionais”) aponta para
uma clara reivindicação do setor da construção civil, onde a velocidade do giro do capital é decisia. O colocamos
como parte da acessibilidade à informação, pois o fim acaba por condicionar o meio, e este é o que os interessa,
neste contexto.
465
As ilusões do plano diretor, deliberadamente disponibilizado pelo festejado professor apenas na internet, em
http://www.flaviovillaca.arq.br/pdf/ilusao_pd.pdf, acesso em 22/02/2013.
466
“Art. 42. O plano diretor deverá conter no mínimo:
179

então se torna exigível que o PD reflita efetivamente as condições materiais, políticas e


históricas de um dado município, e o aparato necessário a superar os dados que impedem a
cidade de cumprir a FSC, determinando o cumprimento da FSPIU tendo em vista tal meta,
mas também agregando outros elementos que estejam à mão da comunidade e do poder
público locais. A ausência de um PD acarreta inconstitucionalidade 467 e improbidade
administrativa, esta também passível de ocorrer quando cerceada a participação popular em
sua elaboração. Porém, inconstitucional também será o PD que de maneira patente e não
justificada se afastar de seu papel.

Aqui entram em cena, também no aspecto material, as ferramentas e


concepções que a técnica do planejamento pode oferecer. No mínimo, torna-se indispensável
o estabelecimento de uma combinação lógica entre o diagnóstico da realidade e as estratégias
necessárias a superá-la, com a determinação de diretrizes e meios funcionais, metas e
objetivos passíveis de aferição. É nesse espaço onde verdadeiramente as ações (e
principalmente as omissões) dos governos e agentes públicos serão confrontadas e corrigidas
ou invalidadas quando do PD destoarem.

Por fim, a proeminência conduz à invalidação da legislação urbanística


municipal, que se suceda ou não seja recepcionada pelo PD. O nome (PD, lei de uso do solo,
lei de zoneamento, etc.) pouco importa, e sim o conteúdo, de matriz da atuação do poder
público e da sociedade local sobre a cidade, inserida num processo dinâmico de planejamento.
A coesão dinâmica das normas urbanísticas, por vários referenciada, nada mais é do que uma
tradução da ora adotada proeminência do plano, mas aqui mais facilmente verificável e,
sobretudo, orientada e vinculada ao cumprimento de objetivos e finalidades socialmente
estratégicas e politicamente ajustadas entre os diversos interesses que permeiam as relações
com o uso do solo.

São diversas as referências ao PD e ao planejamento obrigatório no


Estatuto (art. 2º incisos IV, VI, X; art. 4º incisos I a III; art. 5º, “caput”; art. 25 §1º; art.28,

I – a delimitação das áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização
compulsórios, considerando a existência de infra-estrutura e de demanda para utilização, na forma do art. 5 o
desta Lei;
II – disposições requeridas pelos arts. 25, 28, 29, 32 e 35 desta Lei;
III – sistema de acompanhamento e controle.”
467
Nelson SAULE JUNIOR., em vários escritos antes e após a promulgação do Estatuto, dentre eles Estatuto da
Cidade comentado, p. 288-293.
180

“caput e §§ 2º e 3º; art. 29; art. 32; art. 35), mas é nos artigos 39 a 42-B que se encontram
explicitadas sua natureza (art. 39, cujos enunciados ainda mais sustentam nossa concepção468,
art. 40 “caput” e § 1º) e implementação (art. 40, §§2º a 4º; art. 41, 42, 42-A e 42-B; e artigo
50, com redação dada pela Lei 11.673/2008, prorrogando o prazo exigível de aprovação).
Também a proeminência perpassa a legislação correlata, onde as políticas respectivas estão
sempre apoiadas no planejamento, em planos e em sistemas de planejamento integrados entre
os diversos entes federativos (por exemplo, a Lei 12.587/2012, artigos 21 a 24, ou a Lei
11.445/2007, artigos 19, 20 e 52).

5.5.5. Compartilhamento das responsabilidades públicas em política


urbana.

Esse é talvez o mais instável dos princípios que emergem de nossa


pesquisa, mas sem sua ponderação, nos momentos adequados, comprometida pode restar a
eficácia da política urbana na concretização da FSC e as possibilidades de efetivação da
FSPIU. Como já anotamos no item 2.1 “supra”, há vetores que interferem no crescimento (ou
no esvaziamento) das cidades mas que se originam longe delas, em outros entes federativos
que não o Município (ou seja, a União e os Estados federados). Por isso mesmo é que nosso
conceito de política urbana vai além de considerar apenas a regulação do uso do solo e a partir
exclusivamente do PD.

Um plexo grande de ações federais ou estaduais, mesmo assim


descritas, não são controláveis, ao menos juridicamente (talvez politicamente) e com
fundamento exclusivo na legislação urbanística: incentivos à aquisição de veículos que irão
ampliar os congestionamentos e a poluição, ou a criação de condições para certas atividades
econômicas, cuja consequência será o fechamento ou a migração de fábricas. Não é disso que
se trata, ao menos não por enquanto.

468
“Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos
quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as
diretrizes previstas no art. 2o desta Lei.
Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e
expansão urbana.
§ 1o O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as
diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.”
181

Sempre se aceitou como correto e natural que a regulação do espaço


urbano pela legislação municipal não poderia colocar em risco o desempenho de serviços
operados ou regulados pela União469, ou das atribuições dos Estados470, e queremos crer que
tal seja verdadeiro. Do que pouco se cogita, enquanto vinculante jurídico, é que as políticas
manejadas pela União (ou pelos Estados federados) sejam moduladas de forma a priorizar
obrigatoriamente os territórios urbanos e as situações onde elas sejam mais necessárias471, sob
pena de incorrerem em ilegalidade ou inconstitucionalidade.

O art. 23, parágrafo único, da Constituição, que trata das competências


materiais comuns (dentre elas preservação do patrimônio, construção de moradias e melhorias
habitacionais, saneamento básico, etc.), remete às leis complementares a atribuição de regular
a cooperação entre a União, os Estados federados e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio
do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional, o que é repetido pelo art. 3º do
Estatuto.

No âmbito do saneamento, os já citados artigos 19472 e 20 da lei


11.445/2007 apontam para uma lógica da universalização que obedeça a critérios tanto
mensuráveis quanto escalonados, da maior para a menor carência, inclusive em termos
regionais. Isso fica ainda mais patente quando se observam os critérios para a política
nacional de saneamento, a partir do art. 48473. Já na Lei 12.587/2002, talvez pela própria

469
Por exemplo, limites à instalação de antenas de telefonia móvel que comprometam os serviços, ou obstáculos
à operação de pousos e decolagens de aeronaves.
470
Também por exemplo, a vedação a centros de ressocialização de adolescentes que cometeram atos
infracionais, ainda que aqui violação se dá em relação aos próprios adolescentes, e o direito que possuem à
convivência familiar e comunitária.
471
Com raras exceções e a título mais político do que jusriscional, na tentativa de conciliação em sede de ações
possessórias, como no famoso caso “Pinheirinho”, em São José dos Campos-SP.
472
“ Art. 19. A prestação de serviços públicos de saneamento básico observará plano, que poderá ser específico
para cada serviço, o qual abrangerá, no mínimo:
I - diagnóstico da situação e de seus impactos nas condições de vida, utilizando sistema de indicadores sanitários,
epidemiológicos, ambientais e socioeconômicos e apontando as causas das deficiências detectadas;
II - objetivos e metas de curto, médio e longo prazos para a universalização, admitidas soluções graduais e
progressivas, observando a compatibilidade com os demais planos setoriais;
III - programas, projetos e ações necessárias para atingir os objetivos e as metas, de modo compatível com os
respectivos planos plurianuais e com outros planos governamentais correlatos, identificando possíveis fontes de
financiamento;”
473
Art. 48. A União, no estabelecimento de sua política de saneamento básico, observará as seguintes diretrizes:
I - prioridade para as ações que promovam a eqüidade social e territorial no acesso ao saneamento básico;(...)
IV - utilização de indicadores epidemiológicos e de desenvolvimento social no planejamento, implementação e
avaliação das suas ações de saneamento básico;
V - melhoria da qualidade de vida e das condições ambientais e de saúde pública;
VI - colaboração para o desenvolvimento urbano e regional;(...)
182

peculiaridade do serviço, é bem mais fluida a vinculação que deve guardar a política nacional
de mobilidade urbana; de qualquer forma, certos dispositivos474 podem ser invocados para
questionar opções da União e dos Estados federados desmesuradas ou não razoáveis.

A Lei 11.977/2009, com a redação dada pela lei 12.424/2011 e quando


trata do provimento habitacional em sentido estrito (e não da regularização fundiária e
urbanística de núcleos habitacionais já estabelecidos), é talvez aquela que adote um esquema
mais acabado de priorização face às dinâmicas urbanas, ora por porte do município atendido
(art. 2º, inciso III, o que nos parece endereçado a combater a evasão dos pequenos
municípios), ora levando em consideração o crescimento demográfico mais ou menos
acentuado em períodos recentes (art. 2º, §2º475), o que de fato é uma presunção de pressão
para a ocupação irregular e demanda por novas moradias. Apesar de óbvia, a diferenciação
regional do valor máximo de financiamento de unidades habitacionais 476 só a partir da edição
deste diploma legal passou a ser um elemento importante. Resta, entretanto, o que não
podemos realizar nos marcos deste trabalho, uma análise mais acurada (i) da localização
intraurbana dos empreendimentos (se centrais e acessíveis aos serviços públicos, ou não) e (ii)
se a fração na qual maior o déficit habitacional (em torno da faixa de zero a três salários-
mínimos nacionais) está de fato sendo atendida477.

IX - adoção de critérios objetivos de elegibilidade e prioridade, levando em consideração fatores como nível de
renda e cobertura, grau de urbanização, concentração populacional, disponibilidade hídrica, riscos sanitários,
epidemiológicos e ambientais;(...)
474
“Art. 6o A Política Nacional de Mobilidade Urbana é orientada pelas seguintes diretrizes: (...)
VI - priorização de projetos de transporte público coletivo estruturadores do território e indutores do
desenvolvimento urbano integrado;”
475
“Art. 2o Para a implementação do PMCMV, a União, observada a disponibilidade orçamentária e
financeira: (...)
III - realizará oferta pública de recursos destinados à subvenção econômica ao beneficiário pessoa física de
operações em Municípios com população de até 50.000 (cinquenta mil) habitantes; (...)
§ 1o A aplicação das condições previstas no inciso III do caput dar-se-á sem prejuízo da possibilidade de
atendimento aos Municípios com população entre 20.000 (vinte mil) e 50.000 (cinquenta mil) habitantes por
outras formas admissíveis no âmbito do PMCMV, nos termos do regulamento.
§ 2º O regulamento previsto no § 1o deverá prever, entre outras condições, atendimento aos Municípios com
população urbana igual ou superior a 70% (setenta por cento) de sua população total e taxa de crescimento
populacional, entre os anos 2000 e 2010, superior à taxa verificada no respectivo Estado.”
476
“Art. 8o Caberá ao Poder Executivo a regulamentação do PNHU, especialmente em relação:
(...)
II – à distribuição regional dos recursos e à fixação dos critérios complementares de distribuição desses
recursos;”
477
Ainda que consultada, não trouxemos à luz a regulamentação (decretos, portarias e resoluções) que dão
operacionalidade à legislação citada, posto não ser nosso escopo.
183

5.5.6. A essencialidade da moradia adequada.

Na base de todos os movimentos que redundaram no urbanismo e no


seu desenvolvimento posterior sempre esteve, como “leitmotiv”, o combate à inadequação478
da moradia, conforme pontuamos no capítulo 3. Na emenda popular apresentada ao
Congresso Constituinte, o direito de propriedade estava subordinado ao estado de
necessidade479, qual seja, ao respeito às situações não desejadas e que levaram (e ainda levam)
parcelas imensas da população a ocuparem áreas públicas e privadas, vazias ou edificadas,
pelo simples fato de não lhes restar qualquer outra alternativa de moradia. Mesmo as
concepções mais plasmadas pelo aspecto de preservação ambiental reconhecem que da
persistência do problema redundam consequências nefastas para além das famílias
diretamente atingidas, como a pressão pela ocupação irregular das margens de córregos, a
dificuldade na coleta de resíduos, os riscos de desastres, etc. Por sinal, numa concepção de
justiça ambiental, os assentamentos irregulares estão quase no ultimo grau, inclusive enquanto
os mais sujeitos às mudanças climáticas.

No plano do direito positivo, a moradia figura como um direito social


(art. 6º da Constituição) e também como ponto de partida para o advento da propriedade, via
usucapião (art. 183).480 Não obstante, permeia ou se conecta a diversos outros dispositivos,
como a garantia da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), a erradicação da pobreza
e da marginalização (art. 3º, inciso III), o poder-dever que decorre das competências
federativas (“in casu” os artigos 21, inciso XX e 23 incisos IX e X), o conteúdo do direito à
saúde (artigo 196), os direitos de crianças, jovens e adolescentes (artigo 227), entre outros. A
moradia adequada, da qual a segurança da posse é um componente, perpassa todo o texto do
Estatuto (art. 2º incisos I e XIV; 3º, inciso III; 4º, inciso V, alíneas “f”,”h” “j”,”q”, “r”, “t”,
“u” e §2º; artigos 9º a 14, art. 26 incisos I e II; art. 35, inciso II; art.42-A, inciso V; art. 42-B,
inciso V; art.48; e o conjunto de dispositivos da Medida Provisória 2220, acerca da concessão
especial para fins de moradia em imóveis públicos).

478
Para um conceito de moradia adequada como direito humano, reiteramos a brilhante sistematização encetada
por Nelson SAULE JR. e que já expusemos no item 2.3.1, “supra”.
479
Nelson SAULE JUNIOR (Direito urbanístico, p. 49).
480
“Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco
anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o
domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.” Note-se que nenhuma outra
modalidade de usucapião, anterior ou posterior ao texto constitucional vigente, especifica a moradia como
condição principal ou única para aquisição da propriedade.
184

São dezenas de referência, na legislação que examinamos no item 2.6, à


moradia adequada, dentre as quais destacamos a segurança da posse e a possível
compatibilização entre esta e os valores ambientais nos processos de regularização fundiária
(lei 11.977/2009, respectivamente artigos 48, inciso I481, e 54, §1º482). Outros diplomas legais
que não comentamos, como a Lei de Registros Públicos (6015/73, nas alterações introduzidas
mais recentemente) ou a regulação do patrimônio da União (especialmente a Lei 11401/2007)
só reforçam esse quadro de prioridade e de reforma ampla.

Elevada à condição de princípio, a essencialidade da moradia adequada


tende a promover mudanças significativas na ponderação com outros princípios, consolidando
a arena interpretativa até então formada com a presença apenas da FSPIU ou da FSC, com a
amplitude rarefeita de que estas se revestem. Algumas das consequências são o reforço de
decisões, em sede judiciária, que condicionam a proteção da propriedade nas ações
possessórias que envolvem assentamentos, e não apenas indivíduos, à oferta de moradia
adequada aos ocupantes483. Para além disso, o que julgamos de maior potencial, estariam (i) a
inconstitucionalidade de planos diretores omissos em enfrentarem o déficit habitacional ou a
irregularidade fundiária e urbanística, estas se presentes situações objetivas de inadequação, e
principalmente (ii) o reforço à proibição do retrocesso quando da implantação de programas
de regularização e de provimento habitacional, em qualquer instância federativa 484. É certo
que este último fator vale para todo e qualquer direito fundamental, mas quanto á habitação, e

481
“Art. 48. Respeitadas as diretrizes gerais da política urbana estabelecidas na Lei no 10.257, de 10 de julho de
2001, a regularização fundiária observará os seguintes princípios:
I – ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, com prioridade para sua permanência
na área ocupada, assegurados o nível adequado de habitabilidade e a melhoria das condições de sustentabilidade
urbanística, social e ambiental;(...)”.
482
“Art. 54. (...)
§ 1o O Município poderá, por decisão motivada, admitir a regularização fundiária de interesse social em Áreas
de Preservação Permanente, ocupadas até 31 de dezembro de 2007 e inseridas em área urbana consolidada,
desde que estudo técnico comprove que esta intervenção implica a melhoria das condições ambientais em
relação à situação de ocupação irregular anterior.
483
Dentre muitos outros exemplos, Ac. 200.2003.032706-4-001,TJPB, 3ª C.Cível, Rel. Des. Genésio Gomes
Pereira Filho, DJPB 07/12/2011; Ac. 2011.006932-1, TJRN, 2ª C.Cível, Rel. Des. João Rebouças, DJRN
16/12/2011. Pela profundidade e riqueza da argumentação, reforçando nossos argumentos, TRF 4ª Região,
Apelação 2006.72.04.003887-4/SC, Rel. Roger Raupp Rios, j. 12/05/2009, e também STJ, 3ª Turma, AgrRg
2007/0054808-9, Rel. Ministro Ari Pargendler, j. 07/05/2007.
484
Uma longa digressão seria possível acerca da “proibição do retrocesso”, sua definição via tribunais
constitucionais europeus e recepção na jurisprudência constitucional brasileira. Pela síntese clara e sistemática,
reportamo-nos a JJ. Gomes CANOTILHO (Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 338 e ss., e com
sentido reforçado mas também mais conformado à circunstâncias mutantes, Estudos sobre direitos fundamentais,
p. 243-268).
185

especialmente nos processos de eliminação de riscos e regularização fundiária, a interrupção


gera consequências exponencialmente mais difíceis de recuperação logo adiante.

5.6. A ordem urbanística.

Com seus princípios e regras, e nos tempos que correm, as novas possibilidades
trazidas pelo direito urbanístico podem cumprir papéis diversos, e acreditamos que todos
valiosos. De um lado, se torna mais perceptível ao cidadão se a legislação de sua cidade (e da
União ou de seu estado) está de fato condizente com o projeto constitucional. De outro, pode
tornar-se um instrumento a ser mais e mais manejado nas lides judiciárias, quando
imprescindivel.

Um grande número de ações típicas pode ser adotado para questionamento da


legislação urbanística, da ação popular àquelas do controle difuso ou concentrado de
constitucionalidade. Mas é na Ação Civil Pública (ACP), regulada pela Lei 7347/85 e suas
alterações posteriores que repousa parte considerável dessas possibilidades. Tanto assim é que
o Estatuto também aportou naquele diploma legal a defesa da ordem urbanística485. A FSC,
como já anotamos acima, é tipicamente um interesse difuso, ainda que a expressão
“metaindividual”, abrigando difusos, coletivos e individuais homogêneos, caia ainda mais
apropriadamente do que em outros temas.486

A ordem urbanística representa muito mais do que os marcos estipulados ao


PD, e o transborda, mesmo quando este se mostra completo e suficiente em seus limites
Abarca ainda os dispositivos de outros diplomas legais, como afirma, em mais de uma
ocasião, Cassio Scarpinella Bueno487. Por si só, isso já demonstra a largueza das opções que
se abrem quando nosso objeto é a ordem urbanística. E, em certa medida, esse caminho vem
sendo trilhado, especialmente pelo Ministério Público, mas também pelas Defensorias
Públicas e entidades da sociedade civil legitimadas a tanto 488.Da poluição sonora á
regularização dos assentamentos precários e punição aos loteadores dolosamente clandestinos;

485
Acerca das idas e vindas legislativas para que isso ocorresse, Casio Scarpinella BUENO (Estatuto da Cidade-
comentários à Lei federal 10.257/2001, p.380-386).
486
Conforme dicção do art. 81 da Lei 8079/90 (Código de Defesa do Consumidor), e brilhantemente explorada,
no que tange à “ordem urbanística”, antes mesmo da edição do Estatuto por José Carlos de FREITAS (Temas de
direito urbanístico, p. 281-303).
487
Ibidem, p. 392 e 394.
488
Art. 5º, incisos II e V da Lei 7347/1985.
186

da obrigatoriedade de participação popular substantiva à exigência de medidas contra


enchentes e deslizamentos; da proteção efetiva ao patrimônios histórico e arquitetônico
degradado à proteção de populações socialmente fragilizadas (moradores de ruas, camelôs,
etc.); somam-se e multiplicam-se as iniciativas extrajudiciais ou judiciais de resolução dos
conflitos que por vezes permaneceram latentes ou sufocados por práticas e culturas já
superadas.

O papel do Direito na tarefa de construir cidades mais justas e sustentáveis não


se encerrou com a edição do Estatuto e da legislação com ele conecta, inclusive os planos
diretores municipais. Ao contrário, talvez mal tenha começado.
187

6. CONCLUSÃO.

Celso Bastos, em clássica lição, afirmava que “as revoluções, no mais das vezes, são
feitas em nome de poucos princípios, a partir dos quais extrair-se-ão os preceitos que, ao
depois, mais direta e concretamente regerão a sociedade e o Estado.”489

O conceito de revolução, na história e na ciência política, adquire um sentido mais


amplo do que movimentos sangrentos e de irrupção violenta. O que de fato permanece como
de interesse para a vida das sociedades é o esgotamento de um sistema, incapaz de atender
minimamente a essa mesma sociedade, conduzindo a uma ruptura que pode durar meses ou
até anos, e o advento então de outra ordem. Entretanto, a ideia do saudoso constitucionalista é
importante por demonstrar que princípios têm um papel muito mais prospectivo, de orientação
para a nova ordem, e menos de explicar o passado, ou o estabelecido.

Em que medida vivemos, no Brasil e no mundo, uma ruptura com práticas e conceitos
acerca da vida urbana?

Acreditamos que é difícil responder a essa pergunta, por absoluta falta de


distanciamento e perspectiva históricos. Os dados coligidos em nossa pesquisa apontam para
uma resposta positiva, no sentido de que os elementos materiais que demonstram a ineficácia
de modelos anteriores estão presentes no cotidiano das cidades brasileiras (enchentes e outros
desastres, congestionamentos, resiliência da pobreza e da exclusão, violência, poluição de
todo tipo, etc.) e, em paralelo, um esforço social está em curso para reverter tal realidade.
Uma questão central é que a alternativa jurídica (o advento de outras normas e até de novos
métodos de interpretação) talvez não seja o espaço ideal para efetuar rompimentos radicais,
quando esses fazem-se necessários, mas pode colaborar para a configuração dos novos rumos
que a história deverá seguir. Ademais, é imprescindível que os agentes políticos que emergem
não concordem com o “status quo”, e tenham voz e instrumentos para a insurgência, daí a
importância da democracia, quando então a transição pode se dar de maneira qualitativamente
diferente. Não podemos nos esquecer de que a degradação e a injustiça ambiental não são

489
Curso de direito constitucional, p. 55.
188

suficientes para conduzir, no médio prazo, ao abandono da vida nas cidades, como sonhavam
os utópicos entre os séculos XIX e XX, mesmo porque ela oferece ao homem tanto (acesso a
serviços, compartilhamento de experiências e soluções, proteção, expressão, etc.) quanto lhe
retira (doenças da modernidade, solidão, opressão, injustiça, etc.).

Eventualmente não apresentamos neste trabalho nenhuma grande inovação, dentro dos
parâmetros atuais da ciência jurídica. Nas ciências em geral, a novidade não está, muitas
vezes, na descoberta de uma explicação em detrimento de outras, mas na ponderação
equilibrada de contribuições várias, a pairar num dado momento e então reunidas
adequadamente. No mundo contemporâneo, da construção do saber “em rede”, isto é,
simultâneo e progressivo, isso se torna cada vez mais corriqueiro, com grandes vantagens à
solução de problemas que surgem de maneira inédita. Então, talvez tenhamos mesmo
recolhido ideias dispersas, e lhes dado sistematização nova e mais funcional, a partir da qual
passa a fazer sentido uma plataforma mais firme de interpretação dos institutos que compõem
o direito urbanístico, e sobretudo, a necessidade que esta interpretação atenda mais claramente
a certos objetivos efetivamente recepcionados pelo ordenamento jurídico.

A grande crítica aos planos diretores das décadas de 60 e 70, por conta de sua
generalidade e remissão a outras normas que delas decorreriam, mas que nunca se
concretizaram, seria melhor resolvida no atual estágio da teoria do direito. Tais planos, e suas
“generalidades”, poderiam, no presente, ser brandidos em juízo e nas lides políticas, e suas
premissas exigíveis em face das carências e dos desvios praticados pelo poder público. A
concepção moderna acerca dos princípios teria o condão de promover essa mudança.
Portanto, metas e finalidades dos planos diretores atuais não são descartáveis, nem sintoma de
ineficácia jurídica e inaplicabilidade, mas ao contrário, imprescindíveis, desde que a elas
estejam acoplados instrumentos e também que sejam apropriadas, pela “práxis”, a juridicidade
de que, com certeza, se revestem.

Mesmo que não os tenhamos manejado como gostaríamos, compreendemos em nosso


trabalho o quão relevantes são os dados empíricos, a fim de aferir a efetividade de qualquer
política pública, mas em especial da política urbana. É impossível afirmar que certa norma,
especialmente quando nosso foco for determinado plano diretor, esteja ou não consoante o
projeto constitucional, se não nos munirmos de elementos quantitativos e qualitativos
fornecidos pelas outras disciplinas, dentre as quais a história, a geografia (inclusive a
189

demografia), a economia, a sociologia e até a antropologia. A diferença, hoje, é que tais


disciplinas podem aportar seu cabedal não só na elaboração, mas, sobretudo, na interpretação
das normas jurídicas, com o valor que merecem. Para além disso, é primordial que jurista e
aplicadores do Direito se apropriem dos fundamentos, métodos e principalmente linguagens
das outras disciplinas que discutem e analisam a cidade, e também ofereçam a elas seus
conceitos, herança teórica, métodos e linguagens. O Direito e sua lógica interferem na gestão
da política urbana também, e de maneira decisiva. Não pode mais haver justaposição ou
subordinação, mas sim integração, para a qual a pesquisa acadêmica cumpre um papel
decisivo.

Resumir a política urbana à definição, e ainda no âmbito local, de edificabilidade e


distribuição de uso, se mostrou muito insuficiente para dar conta das finalidades que a
Constituição atribui-lhe. Na pior das hipóteses, é fundamental agregar a participação e
controle sociais e elementos de reconfiguração administrativa dos diversos entes federativos.
Porém, entendemos que seja necessário ir além disso, tratando, no mesmo patama,r algumas
tantas políticas usualmente denominadas de “setoriais” (especialmente, mas não só, a
habitação, o saneamento básico e a mobilidade), sob pena de ineficácia de uma e outras, dada
sua dependência recíproca. Gestores públicos e sociedade civil precisam ter em mente que a
cidade não se constrói apenas por decisões em função de conjunturas locais; muito pelo
contrário, um olhar crítico por sobre ações de outros entes federativos é decisivo para se aferir
o quanto a instância local constitui tanto o motor, quanto, sobretudo, o ponto final das opções
políticas adotadas em cada momento histórico. As cidades, em sua maioria, não são mais
capazes de engendrar sozinhas suas próprias soluções, mas estas por sua vez não se darão sem
que sejam partícipes efetivos a sociedade e os governos locais.

Especificamente quanto ao elenco atual de princípios de direito urbanístico, notamos


que ele deve ser objeto de constante crítica e atualização, o que só ocorrerá se, efetivamente,
estiverem presentes na consciência e na prática da argumentação jurídica. Função social da
propriedade imóvel urbana e função social da cidade constituem verdadeiros sobreprincípios,
que podem ser apropriados no caso concreto, mas cuja eficácia ainda melhor se perfaz quando
se compreende todo sistema que deles deriva, ai então pode-se identificar outros tantos
princípios com eles diretamente relacionados. A política urbana atua sobre uma realidade
prenhe de conflitos dos mais diversos tipos e dimensões, da posse e propriedade à qualidade
de vida, cujas nuances exigem um esforço ainda maior para que se identifiquem as razões e
190

peculiaridades envolvidas. Por vezes, inclusive, poderemos vislumbrar razões e objetivos


comuns onde o conhecimento tradicional só enxergaria divergências inconciliáveis. O ponto
de partida- tolerância e respeito à pluralidade- é algo que só a vida urbana mediada por
valores democráticos pode produzir.

A tese que expusemos na introdução acabou se mostrando verdadeira, no sentido de


ter ficado claro que as concepções e os enunciados dos princípios de direito urbanístico já
elaborados por autores brasileiros estão parcialmente superados, ainda que tenham se
mostrado uma base segura para avançarmos na reconfiguração conceitual desses princípios. A
listagem e a descrição que elaboramos nos itens 5.4 e 5.5 deste trabalho se mostraram mais
atualizados em face da configuração também mais recente da legislação relacionada ao
ambiente urbano.

A busca por cidades mais justas e democráticas, objetivo da chamada reforma urbana a
qual se agregou posteriormente a noção de sustentabilidade, foi incorporada formalmente ao
ordenamento jurídico-constitucional, após um longo processo, mas o que não é pouco. Porém,
isso não tem sido suficiente para concretizar seus ideais, e talvez nem mesmo haja um ponto
definitivo a ser alcançado. Mas o fato é que parte considerável das cidades brasileiras ainda
cresce, ou transforma-se, de maneira predatória, do ponto de vista social e ambiental, o que
não significa que se deva abortar aquele objetivo. Neste campo o espaço para a utopia é
grande e necessário, como mostra a própria história do urbanismo. Ademais, experiências
positivas vicejam aqui e ali, permitindo que a trajetória da reforma urbana seja a todo
momento revista e ponderada, mas também alimentada.

A visão ambiental corriqueira apresenta as cidades como um “nó górdio”, sem que
possamos admitir um golpe de espada para desatá-lo. Ocupando um pequeno espaço do
território global, consomem recursos e expelem dejetos de maneira quase imensurável. Mas
talvez essa visão possa ser diferente, pois nas cidades as soluções de grande escala são mais
viáveis, e, justamente, sustentáveis, no sentido de progressivamente reverter tais problemas,
pela incorporação de novas práticas e uma nova ética. Se a vida urbana gerou ou possibilitou
novos padrões de consumo, depois adotados como regra por parte considerável da sociedade,
é também nas cidades que pode brotar e se disseminar uma nova percepção de o que seja
desenvolvimento.
191

A cidade permitiu que o espírito humano alcançasse seu ponto máximo nas artes, na
ciência e na política. Foi ainda, como ocorreu na revolução industrial, o ponto de fuga para a
fome e a miséria. Cabe à nossa geração manter a primeira função, e verdadeiramente fazer
cumprir a segunda.
192

7. REFERÊNCIAS.

ACSELRAD, Henri (org.). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas politicas
urbanas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed.
São Paulo: Malheiros, 2011.
_________. Direito, razão, discurso: estudos para a filosofia do direito. Trad. de Luis Afonso
Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

ALFONSIN, Betânia de Moraes. Regularização fundiária: um imperativo ético da cidade


sustentável. “In” SAULE JUNIOR, Nelson (org.).Direito à cidade: trilhas legais para o
direito às cidades sustentáveis. São Paulo: Max Limonad/Polis, p. 157-171, 1999.
_________ . Politicas de regularização fundiária: justificação, impactos e sustentabilidade.
“In”: FERNANDES, Edésio (org.). Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo
Horizonte: Del Rey, p. 195- 268, 2000.

ALFONSO, Luciano Parejo. Derecho urbanístico- instituciones básicas. Mendoza: Ciudad


Argentina, 1986.

ALMEIDA, Cláudia Faria “et alii”. Geoinformação em urbanismo: cidade real X cidade
virtual. São Paulo: Oficina de Textos, 2007.

ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Competências na Constituição de 1988. 2ª ed. São


Paulo: Atlas, 2000.

ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Comentários aos artigos 4º a 8º do Estatuto da


Cidade. “In”: MEDAUAR, Odete; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de (org.). Estatuto da
Cidade- comentários. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p.29-82, 2004.
193

ALMEIDA, Guilherme Assis de; CHRISTIMANN, Martha Ochsenhofer. Ética e direito: uma
perspectiva integrada. São Paulo: Atlas, 2002.

ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Direito do saneamento: introdução à lei de diretrizes


nacionais de saneamento básico. 2ª ed. Campinas: Millennium Editora, 2010.

ALVES, Alaôr Caffé. Regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões: novas


dimensões constitucionais da organização do Estado brasileiro. “In”: FIGUEIREDO,
Guilherme José Purvin de (org.). Temas de direito ambiental e urbanístico. São Paulo: Max
Limonad, p. 13-44, 1998.

AMADEI, Vicente de Abreu. Urbanismo realista. Campinas: Millennium Editora, 2006.

AMBROSIS, Clementina de. Regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões.


“In”: MOREIRA, Mariana (coord.). Estatuto da Cidade. São Paulo: Fundação Prefeito Faria
Lima-CEPAM, p.165-176, 2001.

ANTUNES, Paulo Bessa. Direito ambiental. 7ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

ARANTES, Otília. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. “In”:
ARANTES, Otilia; MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. A cidade do pensamento único:
desmanchando consensos. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, p. 11-74, 2000.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
São Paulo: Malheiros, 2003.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 27ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2010.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo. Rio de Janeiro: Forense,
1986.

BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma


dogmática constitucional transformadora. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
194

________. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: pós-


modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. “In”: QUARESMA, Regina; OLIVEIRA,
Maria Lúcia de Paula (coord.). Direito constitucional brasileiro: perspectivas e controvérsias
contemporâneas. Rio de Janeiro: Forense, p. 27-91, 2006.
________ ;BARCELLOS, Ana Paula de. A nova interpretação constitucional: ponderação,
argumentação e papel dos princípios. “In”: LEITE, George Salomão (org.). Dos princípios
constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São
Paulo: Malheiros, p.101-135, 2003.

BASTOS , Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 20ª ed.. São Paulo: Saraiva, 1999.

BENEVOLO, Leonardo. História da cidade. 3ª ed. Trad. Silvia Mazza. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2003.
________ . As origens da urbanística moderna. 2ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 1987.

BENKO, Georges. Economia, espaço e globalização na aurora do século XXI. 3ª ed. Trad.
Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002.

BINENBOJM, Gustavo. Temas de direito administrativo e constitucional. Rio de Janeiro:


Renovar, 2008.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 22ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

BORJA, Jordi. As cidades e o planejamento estratégico: uma reflexão europeia e


latinoamericana. “In”: FISCHER, Tânia (org.). Gestão contemporânea: cidades estratégicas e
organizações locais. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, p. 79-99, 1996.

BRUEGMANN, Robert. Sprawl: a compact history. Chicago (USA): The University of


Chicago Press, 2005.

BRUNO FILHO, Fernando G.; DENALDI, Rosana. Parcelamento, edificação e utilização


compulsórios: um instrumento (ainda) em construção. PÓS- Revista do programa de pós-
graduação em arquitetura da FAUUSP. São Paulo: FAUUSP 26: 33-49, dezembro/2009.
195

BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva,
2002.

BUCHMANN, Armando José. Lúcio Costa, o inventor da cidade de Brasília. Brasília:


Thesaurus, 2002.

BUENO, Cássio Scarpinella. Ação Civil Pública e Estatuto da Cidade. “In”: DALLARI,
Adilson; FERRAZ, Sergio. Estatuto da Cidade (comentários à lei federal 10.257/2001). São
Paulo: Malheiros/SBDP, p. 380-396, 2002

CAMPOS FILHO, Cândido Malta. Cidades brasileiras: seu controle ou o caos. São Paulo:
Nobel, 1989.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed.


Coimbra: Almedina, 2003.
________. Estudos sobre direitos fundamentais. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008.
________.”Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a
historicidade constitucional. Coimbra: Almedina, 2008.

CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Trad. Arlene Castro. São Paulo-Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1983.
________ . Problemas de investigação em sociologia urbana. Lisboa: Editorial Presença,
1975.

CASTILLO, Ricardo Abid. Tecnologia da informação e os novos fundamentos do espaço


geográfico. “In”: DOWBOR, Ladislau, “et alli”. Desafios da comunicação. Petropólis: Vozes,
p. 240-252, 2001.

CASTRO, Sônia Rabello de. Algumas formas diferentes de se pensar e de reconstruir o


direito de propriedade e os direitos de posse nos “países novos”. “In”: FERNANDES, Edésio
(org.). Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, p. 77-100,
2000.

CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 13ª ed. São Paulo: Ática, s/d.
196

CHOAY, Françoise. O urbanismo. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

COMPARATO, Fábio Konder. Planejar o desenvolvimento: perspectiva institucional. Revista


de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais 88:18-43, out/dez. 1988.

COSTA, Regina Helena. Princípios de direito urbanístico na Constituição de 1988. “In”:


DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO, Lúcia Valle (coords.). Temas de direito
urbanístico- 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 109-128, 1991 .
________. Reflexões sobre os princípios de direito urbanístico na Constituição de 1988. “In”:
FREITAS, José Carlos de (coord.). Temas de direito urbanístico. São Paulo: Ministério
Público/ Imprensa Oficial, p. 11-19, 1999.

CULLINGWORTH, Barry; CAVES, Roger W. Plannig in the USA: policies, issues, and
processes. 3ª ed. New York (NY, USA): Routledge, 2009.

DAL BOSCO, Maria Goretti. Discricionariedade em politicas públicas: um olhar garantista


da aplicação da lei de improbidade administrativa. Curitiba: Juruá, 2008.

DIAS, Jean Carlos. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Método, 2007.

DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do


pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006.

DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico. Barueri: Manole,


2004.

DREIER, Peter; MOLLENKOPF John; SWANSTROM, Todd. Place matters: metropolitics


for the twenty-first century. Lawrence (KA, USA): University Press of Kansas, 2001.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3ª ed. Trad. Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2010.
________. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
197

ENGELMANN, Wilson. Crítica ao positivismo jurídico: princípios, regras e o conceito de


direito. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2001.

ESPINDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. 2ª ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2002.

FERNANDES, Edésio. Direito do urbanismo: entre a “cidade legal” e a “cidade ilegal. “In”:
FERNANDES, Edésio (org.).Direito urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
________ . A regularização de favelas no Brasil: problemas e perspectivas.”In”: SAULE
JUNIOR, Nelson (coord.). Direito à cidade: trilhas legais para o direito às cidades
sustentáveis. São Paulo: Max Limonad, 1999.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito-técnica, decisão,


dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1996.

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. 2ª ed. São Paulo:


Malheiros, 2005.

FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Resíduos sólidos: ponto final da insustentabilidade
econômica. Revista de direitos difusos. São Paulo: IBAP/ADCOAS, 13: 1717-1745, 2002.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2002.
________ . Curso de direito ambiental brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Saraiva,2005.

FISHMAN, Robert. Urban utopias in the twentieth century: Ebenezer Howard, Frank Lloyd
Wright and Le Corbusier. In: FAINSTEIN, Susan S.;CAMPBELL, Scott (org.). Readings in
plannning theory. 3ª ed. Hoboken (NJ, USA): Wiley Blackwell, p.27-53, 2011.

FREITAS, José Carlos de. Dos interesses metaindividuais urbanísticos. “In”: FREITAS, José
Carlos de (coord.).Temas de direito urbanístico. São Paulo: Ministério Público/ Imprensa
Oficial, p. 281-303, 1999.
198

FREITAS, Wagner Cinelli de Paula. Espaço urbano e criminalidade: lições da Escola de


Chicago. São Paulo: Método, 2004.

GOTTDIENER, Mark. A produção social do espaço urbano. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 1997.

GOUVÊA, Ronaldo Guimarães. A questão metropolitana no Brasil. Rio de Janeiro: Editora


FGV, 2005.

GRAU, Eros Roberto. Direito urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983.
________. O direito posto e o direito pressuposto. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
________. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2009.

GRAZIA, Grazia de. Reforma urbana e o Estatuto da Cidade. “In”: RIBEIRO, Luiz Cesar de
Queiroz; CARDOSO, Adauto Lucio. Reforma urbana e gestão democrática: promessas e
desafios do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Revan, p. 53-70, 2003.
________ . Estatuto da Cidade: uma longa história com vitórias e derrotas. “In”: OSORIO,
Letícia Marques (org.). Estatuto da Cidade e reforma urbana: novas perspectivas para as
cidades brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 15-38, 2002.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da


constituição. Trad. Gilmar Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2ª ed. Trad.
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
________. Arquitetura moderna e pós-moderna. Novos Estudos. São Paulo: Cebrap 18:112-
128, setembro/1987.

HALL, Peter. Cidades do amanhã. São Paulo: Perspectiva, 1995.

HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2006.
________. Condição pós-moderna.14ª ed. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stella
Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2005.
199

________ . O enigma do capital e as crises do capitalismo. Trad. João Alexandre Peschanski.


São Paulo: Boitempo, 2011.

HECK, Luís Afonso. Regras, princípios jurídicos e sua estrutura no pensamento de Robert
Alexy. “In”: LEITE, George Salomão (org.). Dos princípios constitucionais: considerações
em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, p. 52-100,
2003.

HERKENROFF FILHO, Paulo Estelita. Questões anteriores ao direito urbano. “In”:


PESSÔA, Álvaro (coord.). Direito do urbanismo- uma visão sócio-jurídica. Rio de Janeiro:
IBAM, p. 75-90, 1981.

HUMBERT, George Louis Hage. Direito urbanístico e função socioambiental da


propriedade imóvel urbana. Belo Horizonte: Forum, 2009.

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos-uma história. Trad. Rosaura Eichenberg. São
Paulo: Companha das Letras, 2009.

JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. 3ª ed. Trad. Carlos S. Mendes Rosa,São
Paulo: WMF Martins Fontes,2011.

JACQUOT, Henri; PRIET, François. Droit de l’ubanisme. 3ª ed. Paris: Dalloz, 1998.

JANOTTI, Onaldo Franco. Conceitos indeterminados e origem lógico-normativa da


discricionariedade. Revista de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais 64: 37-53,
out-dez. 1982.

KLINK, Jeroen Johannes. A cidade-região: regionalismo e reestruturação no Grande ABC


paulista. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

KRUGMAN, Paul. A crise de 2008 e a economia da depressão. 3ª ed. Trad. Afonso Celso da
Cunha Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
200

LAMPARELLI, Celso. Louis-Joseph Lebret e a pesquisa urbano-regional no Brasil. Espaço


& debates- Revista de estudos regionais e urbanos. São Paulo: Annablume 37:77-89, 1994.

LE CORBUSIER (Charles-Édouard Jeanneret). Urbanismo. Trad. Maria Ernantina Galvão


Gomes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

LEFEBVRE, Henry. A revolução urbana. Trad. Sergio Martins. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1999.
________. Direito à cidade. Tradução Rubens Eduardo Frias. 5ª ed. São Paulo: Centauro
Editora, 2008.

LEAL, Roberto Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil- aspectos


jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.

LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

LOJKINE, Jean. O estado capitalista e a questão urbana. 2ª ed. Trad. de Estela dos Santos
Abreu. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

LOVELOCK, James. A vingança de Gaia. Trad. Ivo Korytowski. Rio de Janeiro: Intrínseca,
2006.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 15ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2007.

MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo. S. Paulo: Hucitec, 1996.


________. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. “In”: ARANTES, Otilia;
MARICATO,Ermínia; VAINER,Carlos. A cidade do pensamento único: desmanchando
consensos. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, p. 121-189, 2000.
________ . O impasse da politica urbana no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.

MARTINS, Maria Lucia Refinetti. Moradia e mananciais: tensão e diálogo na metrópole.


São Paulo: FAUUSP/FAPESP, 2006.
201

MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2010.

MATTOS, Liana Portilho.A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do


Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Temas e Idéias, 2003.

MEDAUAR, Odete. A força vinculante das diretrizes da política urbana. Temas de direito
urbanístico 4. São Paulo: Imprensa Oficial, p. 15-24, 2005.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 6ª ed. S. Paulo: Malheiros, 1993.

MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
________ ; Um ordenamento jurídico para a qualidade de vida urbana. “In”: AGRELLI,
Vanusa Murta; SILVA, Bruno Campos. Direito urbanístico e ambiental- estudos em
homenagem ao professor Toshio Mukai Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 37-69, 2008.

MONTE-MOR, Roberto Luis de Melo. Do urbanismo à politica urbana: notas sobre a


experiência brasileira. “In”: COSTA, Geraldo Magela; MENDONÇA, Jupira Gomes de
(org.).Planejamento urbano no Brasil: trajetória, avanços e perspectivas. Belo Horizonte:
C/Arte, p.31-63, 2008.

MORAIS, Maria Piedade “et alli”. A CF/88 e as políticas setoriais urbanas. “In”: CARDOSO
JUNIOR, José Celso “et alii” (org.).A Constituição brasileira de 1988 revisitada:
recuperação histórica e desafios atuais das politicas públicas nas áreas regional, urbana e
ambiental. Volume 2. Brasilia: IPEA, p. 117-158, 2009

MOREIRA, Mariana. A história do Estatuto da Cidade. “In”: DALLARi, Adilson; FERRAZ,


Sergio. Estatuto da Cidade (comentários à lei federal 10.257/2001). São Paulo:
Malheiros/SBDP, p. 27-43, 2002.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Introdução ao direito ecológico e ao direito


urbanístico. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1975.
________. Competência concorrente limitada: o problema da conceituação das normas gerais.
Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal,100: 127-162, 1988.
202

MOTTA, Moacyr Parra. Interpretação constitucional sob princípios. Belo Horizonte:


Mandamentos, 2003.

MOTTA, Diana Meirelles da “et alii”. A CF/88 e o desenvolvimento urbano. “In”:


CARDOSO JUNIOR, José Celso “et alii” (org.).A Constituição brasileira de 1988 revisitada:
recuperação histórica e desafios atuais das politicas públicas nas áreas regional, urbana e
ambiental. Volume 2.Brasilia:IPEA, p. 91-116, 2009.

MUÑOZ, Guillermo Andrés. Derecho de propriedad, urbanismo e princípio de legalidad.


Revista de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais 90: 11-20, abr./jun. 1989.

MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 3ª ed. Trad. Peter


Naumann. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2005.

MUKAI, Toshio. Direito e legislação urbanística no Brasil (história- teoria-prática).


S.Paulo: Saraiva, 1988.
________ . Direito urbano-ambiental brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Dialética, 2002.

NERI, Marcelo. A nova classe média- o lado brilhante da base da pirâmide. São Paulo:
Saraiva, 2011.

NOBRE, Marcos. Desenvolvimento sustentável: origens e significado atual. “In”: NOBRE,


Marcos; AMAZONAS, Maurício de Carvalho (org.). Desenvolvimento sustentável: a
institucionalização de um conceito. Brasília: Ibama, p. 21-98,2002.

NOVIS, Mariana. O regime jurídico da concessão urbanística. Relo Horizonte: Forum, 2011.

OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista/ o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.

PESSÔA, Álvaro. Equacionando a nova propriedade urbana. “In”: PESSÔA, Álvaro (coord.).
Direito do urbanismo- uma visão sócio-jurídica. Rio de Janeiro: IBAM, p. 51-71, 1981

PINTO, Victor Carvalho. Direito urbanístico: plano diretor e direito de propriedade. 3ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
203

________ . O Estatuto da Cidade e a patrimonialização do direito de construir. Temas de


direito urbanístico 4. São Paulo: Imprensa Oficial, p. 109-139, 2005.

PIOVEZANE, Pedro de Milanelo. Elementos de direito urbanístico. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1981.

PIRES, Ailton Brasiliense, “et alii”. Transporte Humano: cidades com qualidade de vida. São
Paulo: ANTP, 2007.

POCHMANN, Márcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social


brasileira. SãoPaulo: Boitempo, 2012.
________ . Reconquistar a cidade- O conhecimento como estratégia das mudanças. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2012.

PRESTES, Vanêsca Buzelato. Municípios e meio ambiente: a necessidade de uma gestão


urbano-ambiental. “In”: PRESTES, Vanêsca Buzelato (org.). Temas de direito urbano-
ambiental. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo:Saraiva,


2010.

RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiros. O Estatuto da Cidade e a questão urbana brasileira. “In”:
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lucio. Reforma urbana e gestão
democrática: promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Revan, p. 11-26,
2003.

RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lucio. Planejamento urbano no


Brasil: paradigmas e experiências. Espaço & debates- Revista de estudos regionais e urbanos.
São Paulo: Annablume 37:77-89, 1994.

ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, politica urbana e territórios na cidade de São
Paulo. Nobel: São Paulo,1997.
204

RHOTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sérgio


Antonio Fabris editor, 1999.

SANTOS, Boaventura de Souza. O Estado, o direito e a questão urbana. “In”: FALCÃO,


Joaquim (org.). Invasões urbanas: conflito de direito de propriedade. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2008.

SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 2ª ed. São Paulo:Hucitec, 1994.

SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; MONTANDON, Daniel Todtmann (org.). Os planos
diretores municipais pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro:
Letra Capital, 2011.

SAULE JUNIOR, Nelson. Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro- ordenamento


constitucional da política urbana- aplicação e eficácia do plano diretor. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris Editor, 1997.
________ . A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2004.
_________. O tratamento constitucional do plano diretor como instrumento de política
urbana. “In”: FERNANDES, Edésio (org.). Direito urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, p.
33-65, 1998.
________ . Bases jurídicas para a instituição de uma lei federal sobre o sistema nacional de
desenvolvimento urbano. “In”: SAULE JUNIOR., Nelson (org.). Direito urbanístico: vias
jurídicas das politicas urbanas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 83-183, 2007.
________ . A relevância do direito á cidade na construção de cidades justas, democráticas e
sustentáveis. “In”: SAULE JUNIOR., Nelson (org.). Direito urbanístico: vias jurídicas das
politicas urbanas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 27-82, 2007.
________ . Estatuto da Cidade e o Plano Diretor- possibilidades de uma nova ordem legal
urbana justa e democrática. “In”: OSORIO, Letícia Marques (org.). Estatuto da Cidade e
reforma urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, p. 77-120, 2002.

SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. Trad. Marisa Barda, São Paulo:
Perspectiva, 2006.
205

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
________. Curso de direito constitucional positivo. 33ª ed. S. Paulo: Malheiros, 2010.
________. Disciplina jurídico-urbanística da propriedade urbana. Revista de Direito
Administrativo. Rio de Janeiro: FGV 142: 1-10, out./dez. 1980.
________. Direito Ambiental Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

SILVA, José Carlos Alves da. Favelas e meio ambiente urbano. “In” DALLARI, Adilson
Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório. Direito urbanístico e ambiental. Belo
Horizonte: Editora Forum, 2007.

SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção.
Revista Latinoamericana de estudos constitucionais, volume 1, p. 603-630,2003.

SOUZA, Jorge Henrique de Oliveira. Tributação e meio ambiente. Belo Horizonte: Del Rey,
2009.

SOUZA, Luis Sérgio Fernandes de. O papel da ideologia no preenchimento das lacunas no
direito. São Paulo: Editora RT, 1993.

SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à
gestão urbanos. 2ª ed.. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2003.
________ . O desafio metropolitano: um estudo sobre a problemática sócio-espacial nas
metrópoles brasileiras. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 1997.
________; MONTEIRO, Vera (org.). Introdução ao direito administrativo. São Paulo:
Saraiva, 2008.
________. Função social da propriedade. “In”: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO,
Lúcia Valle (coords.). Temas de direito urbanístico-1. S. Paulo: Revista dos Tribunais, p. 1-
22, 1987.
206

________ . O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais. “In”: DALLARi, Adilson;


FERRAZ, Sergio. Estatuto da Cidade (comentários à lei federal 10.257/2001). São Paulo:
Malheiros/SBDP, p. 44-60, 2002.

TAVARES, André Ramos, Elementos para uma teoria geral dos princípios na perspectiva
constitucional. “In”: LEITE, George Salomão (org.). Dos princípios constitucionais:
considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros,
p.21-51, 2003.

TONANI, Paula. Responsabilidade decorrente da poluição por resíduos sólidos. 2ª ed. São
Paulo: Método, 2011.

TOPALOV, Christian. Da “questão social” aos “problemas urbanos”: os reformadores e a


população das metrópoles em princípios do século XX. “In”: RIBEIRO, Luiz César de
Queiroz; PECHMAN, Robert (org.). Cidade, povo e nação: gênese do urbanismo moderno.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.23-51, 1996.

VAINER, Carlos B. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do


planejamento estratégico urbano. “In”: ARANTES, Otilia; MARICATO, Ermínia; VAINER,
Carlos. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, p.
75-119,2000.

VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. “In”:
DEAK, Csába; SCHIFFER, Sueli Ramos (org.) O processo de urbanização no Brasil. São
Paulo: Edusp, p. 171-243, 1999.
________. As ilusões do plano diretor. Disponível em
http://www.flaviovillaca.arq.br/pdf/ilusao_pd.pdf, acesso em 22/02/2013.

VIZZOTTO, Andrea. A região metropolitana como alternativa à organização administrativa


brasileira. Revista Magister de direito ambiental e urbanístico. Porto Alegre: Editora
Magister, 43: 38-52, agosto-set/2012.
207

“Sites” consultados:

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE):


http://www.ibge.gov.br

RED DE AUTORIDADES PARA LA GESTIÓN AMBIENTAL EM CIUDADES DE


AMERICA LATINA Y EL CARIBE: http://redaalc.com

NATIONAL BROADCASTING COMPANY (NBC): http://www.nbcnews.com

MINISTÉRIO DAS CIDADES: http://www.cidades.gov.br

“SITE” DO PROFESSOR FLAVIO VILLAÇA: http://www.flaviovillaca.com.br

OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES: http://www.observatoriodasmetropoles.net

PLANO MUNICIPAL DE HABITAÇÃO DE SÃO PAULO: http://www.habisp.inf.br

Você também pode gostar