A Arte Relacional e A Particip

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DOI: 10.5433/2176-6665.2016v21n2p254

A Arte Relacional e a Participação do Público:


Aproximações Poéticas do Período de 1960-70 Com A
27ª Bienal de São Paulo

Luana Hauptman Cardoso de Oliveira1


Amélia Siegel Corrêa2

Resumo
O conceito de Estética Relacional baseia-se em uma construção poética centrada nas
relações humanas e sociais e geralmente é pensada fora do ambiente das instituições
artísticas. Esta prática ganha força a partir da década de 1960-70 e se destaca na poética
de Hélio Oiticica, principalmente na obra Parangolé. Contudo, a conceitualização do
tema acontece apenas em 1990 pelo crítico francês N. Bourriaud, que desconsidera o
trabalho de Oiticica e foca suas análises em artistas europeus do final do século XX.
Por fim, apesar destas intenções poéticas remeterem à década de 1960, elas foram
celebradas institucionalmente no cenário brasileiro apenas em 2006, na 27ª Bienal de
São Paulo. O artigo busca, desta forma, refletir sobre os desencontros conceituais e
as temporalidades distintas que perpassam os três eventos mencionados.
Palavras-chave: Arte relacional. Público de arte. Arte contemporânea. Campo
artístico.

1 Especialista em História Social da Arte pela PUC/PR e mestranda em História pela


Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil. luana_hdeoliveira@yahoo.com.br
2 Doutora em Sociologia pela USP e Pós-doutoranda em Sociologia pela UFPR, é também
professora do curso de especialização em História Social da Arte da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUC/PR), Brasil. ameliascorrea@icloud.com

254 Artigo recebido em 10/08/2015. Aceito em 28/06/2016.


Relational Art and Audience Involvement: Poetic Approaches
From 1960-70s at the 27th São Paulo Art Biennial

Abstract
The concept of Relational Aesthetics is based on a poetic construction centered
on human and social relationships, and it is usually thought outside the artistic
institutions environment. This kind of practice gets stronger in the 1960s and the
1970s, and it stands out on the poetry of the artist Hélio Oiticica, mainly on his
work entitled Parangolé. However, the conceptualization of this theme happens
only in 1990, by the french critic Nicolas Bourriaud, who disregards Oiticica’s work,
focusing his analysis on the work of European artists from the end of the 20th
Century. Finally, although these poetic intentions refer from the 1960s, they were
institutionally celebrated inside the Brazilian scene only in 2006, at the 27th São Paulo
Biennial. This article seeks, therefore, to reflect upon these conceptual mismatches
and the different temporalities that runs through the three above-mentioned events.
Key-words: Relational art. Art audience. Contemporary art. Artistic field.

Preâmbulo3

A proposta curatorial da 27ª Bienal de São Paulo realizada


em 2006 se apresenta como desenrolar de um processo artístico
iniciado em 1960 por Hélio Oiticica. Este artista, entre outros do
cenário brasileiro, apresentou como poética de trabalho os mesmo
critérios defendidos por Nicolas Bourriaud para a Estética Relacional.
Curiosamente, o conceito do crítico francês foi embasado em obras
de arte realizadas por artistas europeus no período de 1990, ou seja,
é bastante posterior ao trabalho de Hélio Oitica. O objetivo deste
artigo é realizar aproximações entre a poética de Hélio Oiticica como
precursor deste discurso e o conceito de Nicolas Bourriaud referente à
Estética Relacional.
Ainda dialogando com conceitos, a escolha da 27ª Bienal
de São Paulo como outro elemento de aproximação justifica-se pela

3 Gostaríamos de agradecer a leitura atenta e cuidadosa e os comentários dos avaliadores deste


artigo.

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inovação curatorial definida por Lisette Lagnado, o que garantiu
grande repercussão da exposição e permitiu um confronto entre
o conceito do crítico francês e as práticas realizadas no Brasil nas
décadas de 1960 e 1970. Através da exposição, vemos aproximações
entre os conceitos estéticos da Bienal e os discursos dos artistas, que
buscaram estabelecer novos diálogos entre a arte contemporânea e o
público, colocando-se como parte ativa das discussões referentes aos
novos papéis do espectador de arte e das instituições.
Faz-se necessário lembrar que estes possíveis novos
paradigmas da arte contemporânea remetem a práticas artísticas
anteriores ao conceito de Estética Relacional de Nicolas Bourriaud
e tais relações conversam tanto com a 27ª Bienal de São Paulo como
também com as práticas artísticas do período de 1960-1970 de Hélio
Oiticica. O fato de Bourriaud ter excluído de suas análises as obras do
artista brasileiro serão examinadas com o auxílio da teoria de campo
do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Este olhar para dentro do campo
da arte mostra-se necessário pois traz à tona as disputas e jogos de
poder, como no caso da menor importância dada às práticas de um
artista periférico em relação ao centro da produção artística mundial,
num confronto binário entre centro e periferia, evidente no discurso
de Bourriaud.
A partir das análises de Bourdieu (1996, 2003) sobre o
funcionamento do campo da arte, entende-se que é na modernidade,
quando a arte atinge seu auge como bem simbólico, que as analogias
entre arte e vida e as relações com o público se acentuam. Já mais
contemporaneamente, as tensões dentro do campo da arte levam a
um afastamento entre receptor e arte, pois a própria arte passa a exigir
das pessoas maior entendimento das trocas e dos códigos simbólicos
para poder participar dos processos de fruição. Este fator ajuda a
compreender as diretrizes da curadoria da 27ª Bienal de São Paulo e
sua preocupação com a preparação de um material educativo voltado

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ao público, assim como a escolha da gratuidade no acesso à exposição,
questões que conversam diretamente com as preocupações estéticas
dos artistas que abordam esta temática e que procuram, se não sanar,
minimizar a elitização da arte por meio das instituições artísticas e de
seus agentes. Ao privilegiar a ação educativa da exposição, a curadoria
aposta na ideia de que um potente projeto pedagógico é peça central
para que o evento atinga seus objetivos civilizatórios (OLIVEIRA, 2001,
p. 27).
Seguindo a linha de pensamento da sociologia da arte de
Bourdieu, o público não inteirado das novas discussões estéticas
permanece à margem mesmo quando as práticas arísticas buscam
estabelecer com ele uma relação mais próxima. Apesar da tal esforço,
o contato do público com os objetos artísticos mantêm-se em um
nível muito raso de conhecimento, apoiando-se em questões de gosto
pessoal e beleza4, pela falta de familiaridade com os códigos internos,
o que acontece principalmente no caso da arte contemporânea,
dificultando a recepção da obra e a desmitificação do “cubo branco”.
Assim, a familiaridade com a “arte retiniana” da qual falava Duchamp,
ou então dos códigos artísticos anteriores ao modernismo, permitia
uma fruição mais acessível às pessoas de um modo geral, tanto pela
proximidade da mensagem com o público quanto pela existência de
temas mais facilmente detectáveis.
Para Bourdieu (1996, p. 259), um objeto artístico se ‘transforma’
em obra de arte quando passa a ser “conhecida e reconhecida, ou seja,
socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados
da disposição e da competência estéticas necessária para conhecer e
reconhecer como tal”. Mas, a partir da década de 1960 e de acordo
com Bourriaud (2009, p. 24) a dinâmica de relacionamento espectador
4 Vale notar que a ideia de um “gosto pessoal” é uma crença de senso comum, que não faz
sentido na sociologia de Bourdieu (2007). O autor faz justo o contrário: desnaturaliza as
preferências estéticas individuais, revelando que elas derivam de disposições internalizadas
ao longo da vida, que compõem o habitus, e que a construção do gosto leva à distinção social.

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– obra de arte passa a ser “regida por outros princípios”. Assim, “uma
exposição criará, segundo o grau de participação que o artista exige do
espectador, a natureza das obras, um ‘domínio de trocas’ particular”,
relação que será proposta tanto nas obras de Hélio Oiticia, como no
projeto curatorial da 27ª Bienal de São Paulo, dispensando que o
público seja conhecedor de critérios e discussões formais e conceituais,
elevando o contato com a arte ao nível de relacionamento.
Ainda assim é importante destacar que, apesar desse novo jogo
de trocas “é cada vez mais raro que o deleite não tenha por condição
a consciência e o conhecimento dos jogos e das apostas históricas dos
quais a obra é produto” (BOURDIEU, 1996, p. 280), e por maior que
seja o envolvimento do público no processo de criação ou execução da
obra de arte, a criação conceitual se utilizará de referências internas
que muitas vezes são restritas ao campo. Assim, apesar de certas
propostas inovadoras, a falta de conhecimento dos processos estéticos
contemporâneos leva a “desencontros entre modernização social e
modernismo cultural, entre política de elite e consumo massivo, entre
inovações experimentais e democratização cultural.” (CANCLINI,
2000, p.150). Logo, as constantes reorganizações dentro do campo que
aparentemente propõe interpretações livres e tentam abrir fronteiras,
podem ser percebidas pelo público não consumidor de arte com algum
receio.
Dentro de um diagnóstico contemporâneo da arte apontado
por Nestor Canclini, “analisar a arte já não é analisar apenas obras,
mas as condições textuais e extratextuais, estéticas e sociais, em
que a interação entre os membros do campo gera e renova sentido”
(CANCLINI, 2000, p. 151). É, portanto, “uma forma de arte cujo
substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o
estar-juntos, o ‘encontro’ entre observador e quadro, a elaboração
coletiva do sentido” (BOURRIAUD, 2009, p. 21), uma estética de
relacionamento. Assim, nestas ações relacionais o público passa a agir

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sobre o campo e seu papel frente à arte se altera, completando-a como
“um elemento de ligação, um princípio de aglutinação dinâmica”
(BOURRIAUD, 2009, p. 29), instável e dependente, que existe a partir
e por conta de encontros aleatórios que envolvem de forma dinâmicas
as relações humanas.
Os debates acima, embora desenvolvidos em outro momento,
aproximam-se da estética desenvolvida nos anos 1960-1970 pelo
artista neocontreto brasileiro Hélio Oiticica. Partindo das experiências
e das novas formas de habitar o mundo, com novos modelos de
sociabilidade, ele toma como ponto de partida as relações humanas,
atitude bastante vanguardista no contexto artístico no qual trabalhava.
Na obra Parangolé, o artista propõe vínculos perceptivos e estruturais
com o público. A cor, elemento formal da arte, é trazida por Oiticia
para o âmbito estrutural, o que permite que as assimilações sejam
potencializadas, uma vez que este elemento que deveria estar contido
toma o espaço e o tempo, fazendo com que seja percebido espacialmente
como objeto, em um nível de participação corporal direta.
Neste sentido o objeto/elemento só se transforma em arte
quando a ação acontece. Assim, Oiticica torna ainda mais relativo o
espaço e “transforma a tríplice perfomance-espaço-tempo na obra,
ou como ele mesmo pontua, ‘obra-ação’.” No caso dos Parangolés, a
necessidade de ‘usar’ a obra “é um ato que exige do espectador uma
vivência e seu corpo se torna núcleo estrutural da obra. Aí se verifica
a inter-relação espectador-obra e sua subjetividade nessa vivência”
(MELO et al., 2012, p. 67), fazendo com que a improvisação permita
uma fruição estética que não exige um conhecimento específico
do campo artístico, conectando indivíduo, coletivo e estruturando
relações. Estas ocorrem de forma menos mediada e mais espontânea,
ao deslocar o objeto artístico para o espaços públicos, ao ar livre,
sugerindo lugares que sejam livres à participação e invenção de uma
criação que se concretiza como coletiva.

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Desta forma, como salienta Bourriaud, o objetivo da estética
relacional não é o convívio simplesmente, mas o produto desse convívio,
numa forma complexa que reúne estrutura formal e objetos postos à
disposição do público refletindo o comportamento coletivo, gerando
microutopias funcionais dentro do corpo social, com novos modelos
de vida dentro da realidade e não com a alteração do que já está posto.

Da Arte Relacional
... examinar a ciência na ótica do artista, mas a arte na da vida.
- Nietzsche

Os livros de Nicolas Bourriaud sobre Estética Relacional


foram publicados na França a partir de 1998, e embora suas traduções
no Brasil tenham chegado apenas em 2009, muito antes desta data
os conceitos de Bourriaud já eram conhecidos por aqui. Em Estética
Relacional (2009) o autor teoriza a partir de trabalhos artísticos europeus
dos anos 1990 sobre possíveis novos questionamentos e paradigmas
da arte contemporânea, como interatividade e hibridização das
linguagens. Ao eleger trabalhos do final do século XX, ignora a
produção de Hélio Oiticica, que já explorava estes conceitos nos anos
1960, e que certamente eram conhecidos pelo autor. A justificativa de
Bourriaud é que, ao contrário da produção artística de 1960-1970, na
geração de 1990 “a questão não é mais ampliar os limites da arte, e sim
testar sua capacidade dentro do campo social global” (BOURRIAUD,
2009, p.43), justificativa que não convenceu os críticos e artistas
brasileiros5. Como aponta Fialho (2015), Bourriaud “faz muito pouca
referência aos antecedentes de sua estética relacional. [...] o problema
mais grave nas propostas de Bourriaud não se refere à estética que
ele defende, mas a fragilidade de seus fundamentos teóricos. Existe
no livro um certo eurocentrismo [...]” ou, em outras palavras, uma
postura colonialista. Estes desencontros podem ser encarados como
5 Essa polêmica pode ser percebida através do relato da palestra de Nicolas Bourriaud no
Seminário Internacional Trocas, 10 de outubro de 2006.(FIALHO, 2015).

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tensões dentro do campo que sempre privilegiam o centro (arte
internacional/europeia e americana) em detrimento da periferia (arte
nacional/latino-americana)6.
Mas, a despeito disso e de acordo com Bourriaud (2009, p. 151),
estética relacional é um “conjunto de práticas artísticas que tomam
como ponto de partida teórico e prático o grupo das relações humanas
e seu contexto social, em vez de um espaço autônomo e privativo”,
ou seja, é um segmento da arte contemporânea que se concentra nas
relações diretas entre espectador e obra.
É certo que a arte esteve habitualmente, em graus distintos,
relacionada às relações humanas e a seus contextos sociais, podendo
“ser lida como uma história dos sucessivos campos relacionais
externos, que mudam de acordo com as práticas determinadas por sua
própria evolução interna.” (BOURRIAUD, 2009, p. 41-42), o que está
de acordo com Bourdieu e as tensões dentro do campo como espaço
de trocas. No entanto, a partir de começo do século XX, com o avanço
tecnológico vivenciado pela sociedade europeia e norte-americana,
novas realidades pediam inovações conceituais e os artistas passaram
a explorar novos temas fazendo com que a arte ultrapassasse suas
próprias classificações. Ainda assim, as ações permaneciam restritas ao
meio e os discursos continuavam velados por barreiras institucionais
e intelectuais que não permitiam a um público mais amplo tomar
parte destas discussões, criando um buraco conceitual e estético entre
apreciação e fruição da obra que só aumentava com o passar do tempo.

6 É oportuno remeter este modelo de análise a Ginzburg e Castelnuovo (1991), que apontam
que esta relação não é apenas de difusão, mas perpassa a esfera das disputas.Na mesma
direção, Alain Quemin (2001) tem problematizado este modelo mostrando que, mesmo
no centro, há abismos e tensões. Na referida pesquisa, o autor francês mostra que no que
concerce às exposições de arte contemporânea, os Estados Unidos tem um peso muito maior
nos rumos do mercado que a Europa. Poderíamos pensar, então, dentro do escopo deste
artigo, a partir do conceito de “universais do norte” (North atlantic universals”) de Trouillot
(2002), para nos referirmos a um sistema de valores oriunos do norte e com grande influência
no sul.

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A partir da década de 1950, o panorama artístico começa a
valorizar, além da obra final, o processo de criação do artista. Esta nova
abordagem poética foi o ponto de partida para uma mutação maior
dentro da arte contemporânea que se iniciou com as performances até
chegar à estética relacional, onde a discussão sobre o papel do artista e
do público em relação à obra de arte voltará a ser questionado:
Essa história, hoje, parece ter tomado um novo rumo:
depois do campo das relações entre humanidade e
divindade, a seguir entre humanidade e objeto, a prática
artística agora se concentra na esfera das relações inter-
humanas, como provam as experiências em curso desde o
começo dos anos 1990. (BOURRIAUD, 2009, p. 41-42)

Interessante observar como as teorizações de Bourriaud, que


o autor faz questão de circunscrever à década de 1990, podem ser
observadas em práticas artísticas já a partir dos anos 1960 no cenário
artístico brasileiro, onde se constata a preocupação dos artistas em
realizar produções em que “a prática artística apareça como um campo
fértil de experimentações sociais, como um espaço parcialmente
poupado à uniformização dos comportamentos.”(BOURRIAUD, 2009,
p. 13), o que por vezes ocorre apenas conceitualmente.
Apesar dos desencontros entre tradição e modernidade,
tanto nas práticas quanto nas conceituações artísticas, as instituições,
de maneira geral, têm procurado se reestruturar e práticas artísticas
relacionais têm sido pensadas para acontecer dentro de museus
e galerias, mas também para além desses espaços. Isto pode ser
interpretado como uma necessidade do mercado da arte e de
seus agentes em ampliar sua rede de conexão, expandindo-se
economicamente para criar novos públicos, mas também passa por
uma ressignifição do papel socialmente criado para estes ambientes
que faz com que a arte, a partir da estética relacional, rompa com certas
barreiras internas de seu campo.

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Os Parangolés de Hélio Oiticica

Hélio Oiticica (1937-1980) é um dos principais artistas da


sua geração que desenvolveu um processo reflexivo sobre sua obra,
construído de forma crítica, como se observa nos vários registros
escritos deixados pelo artista. A partir de 1958, com o Grupo Frente
do Rio de Janeiro e dentro de uma poética neoconstrutivista, sua
trajetória foi se construindo até culminar no que o próprio artista
chama de “construtivismo favelar”. Através desta abordagem, Oiticica
estabelece uma relação “imaginativo-estrutural” entre as construções
e apropriações feitas no ambiente das favelas e sua obra “na relação
pluridimensional que delas decorre entre ‘percepção’ e ‘imaginação
produtiva’ (Kant), ambas inseperáveis, alimentando-se mutuamente”
(OITICICA, 2011, p. 71), relacionando as questões formais da obra
com o espaço-tempo.
Partindo de uma dissidência carioca do movimento concreto,
responsável pelas principais produções e debates artísticos daqueles
anos, Oiticica dá o ponta-pé numa produção em que “o espaço da obra,
até então contido nos limites da tela ou do volume escultórico, tendeu
agora a derramar-se pelos espaços do mundo real” (FREITAS, 2013,
p. 33) utilizando-o como referência e buscando na “constituição do
mundo dos objetos, a procura das raízes da gênese objetiva da obra, a
plasmação direta da mesma” (OITICICA, 2011, p. 68) em uma relação
entre arte e vida.
Dentro deste contexto, a produção artística de Oiticica
constitue-se não apenas em um parâmetro conceitual e prático, mas
abrange novas relações formais de construção, extrapolando as
esferas tradicionais da arte. Isto significa, analogamente ao conceito
de Bourriaud que,
[...] além do caráter relacional intrínseco da obra de arte,
as figuras de referência da esfera das relações humanas
agora se tornaram ‘formas’ integralmente artísticas: assim,

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as reuniões, os encontros, as manifestações, os diferentes
tipos de colaboração entre as pessoas, os jogos, as festas,
os locais de convívio, em suma, todos os modos de contato
e de invenção de relação representa hoje objetos estéticos
passíveis de análise enquanto tais (BOURRIAUD, 2009, p.
40).

Segundo Oiticica, “trata-se da procura de ‘totalidades


ambientais’ que seriam criadas e exploradas em todas as suas ordens,
desde o infinitamente pequeno até o espaço arquitetônico, urbano etc.”
(OITICICA, 2011, p. 68). Assim, mesmo não tendo analisado a obra de
Hélio Oiticica, as avaliações de Bourriaud cabem para as práticas do
artista por conta das bases poéticas de estruturação de seu trabalho,
que toma a vida e as relações humanas como elementos formais.
O tratamento estrutural, a transição da cor do quadro
para o espaço ainda no início da década de 1960 e as experiências
extremamente vivenciais do artista com a realidade das favelas do
Rio de Janeiro, principalmente da comunidade da Mangueira, tiram o
espectador de seu papel passivo7 e colocam-no dentro da obra. Assim,
“a arte parecia enfim pronta a participar do cotidiano que lhe rodeava.
A ‘representação’, enquanto arranjo de elementos sobre um fundo
simbólico, [...] objetos apresentados à experiência do espectador”
(FREITAS, 2013, p. 34), transforma-se em propostas sinestésicas e não
mais contemplativas, num movimento de resistência à estetização
generalizada, criando microestruturas individuais ou coletivas.
A criação da ‘capa’ (já realizadas a 1 e 2) veio trazer não
só a questão de considerar um ‘ciclo de participação’ na
obra, isto é, um ‘assistir’ e ‘vestir’ a obra para sua completa
visão por parte do espectador, mas também a de abordar o
problema da obra no espaço e no tempo não mais como se
7 A ideia de passividade do espectador, difundida a partir da Escola de Frankfurt, foi revista
pelos Estudos Culturais que, a partir de pesquisas de recepção, mostram que os produtos
culturais são assimilados, ou recebidos, de formas diversas pelos indivíduos, e que uma série
de variáveis sociais afetam formas de recepção. Desta forma, quando usamos o termo passivo
neste artigo, o fazemos de forma um pouco caricata, com o intuito de marcar uma distinção
entre uma arte “retiniana” e outra “relacional”.

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fosse ela ‘situada’ em relação a esses elementos, mas como
uma ‘vivência mágica’ dos mesmos (OITICICA, 2011, p.
73).
Neste período as discussões relativas à figuração (entendida
genericamente como a tentativa de representar o reconhecível) giram
em torno da “arte na esfera pública, o que se traduziu, nos anos 1960 e
1970, numa vocação à reinserção da ‘arte’ na ‘vida’, para utilizar termos
da época” (FREITAS, 2013, p. 48). Esta prática, no entanto, antecede
o período em que Bourriaud estabelece como início das produções
relacionais e remete ao aumento da disponibilidade dos materiais
utilizáveis na arte de uso cotidiano, percebidos em movimentos
anteriores, como o dadaísmo e em técnicas de colagem, assembblage
e o ready-made. Ainda assim, essas primeiras inserções da vida na
arte podem ser compreendidas como parciais, pois não consideram o
espectador como partícipe deste processo. Para Bourriaud, a obra de
arte dentro do conceito da estética relacional acontece
[...] quando coloca em jogo interações humanas, a forma de
uma obra de arte nasce da interação do inteligível que nos
coube. Através dela o artista inicia um diálogo. A essência
da prática residiria, assim, na invenção de relações entre
sujeitos. Cada obra de arte em particular seria a proposta
de habitar um mundo em comum (BOURRIAUD, 2009, p.
30-31).

Esta proposta se concretiza quando Hélio Oiticica propõe


os Parangolés. Estruturas que passam a confrontar os paradigmas da
forma, a função do artista perante a obra, que deixa de ser criador
para ser o motivador da relação entre arte e espectador e, até mesmo
o papel do receptor, que passa a ser pensado como participante. Mas
antes de chegar à construção efetiva dos Parangolés, Oiticica já registra
suas preocupações em relação às conexões da arte com a vida em seu
trabalho. Segundo o artista:
Quanto mais não-objetiva é a arte, mais tende à negação do
mundo para a afirmação de outro mundo. Não a negação

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negativa, mas a extirpação dos restos inautênticos das
vivências do mundo, corriqueiras. Só assim seria lícita
a exclamação diante da não-objetividade da arte. “Que
sensação de fim de mundo” ou “de nada”. O que é preciso
é que o mundo seja um mundo do homem e não um
mundo do mundo (OITICICA, 2011, p. 27).

O que o artista estabelece a partir daí é um diálogo entre sua


prática e a matéria que expressa sua intenção poética. Desta forma,
questões formais da arte como o suporte tornam-se um problema a ser
resovido. Para o artista, “há o intermediário entre o sentido de espaço
e estrutura e o espectador que recebe a ideia” (OITICICA, 2011, p. 41)
que não cabem mais nas formas tradicionais de arte. Isto faz com que
na obra de Oiticica a cor passe a ser estutura e não elemento e o suporte
é extentido ao mundo real. A estrutura plana, mesmo que no espaço
e não na tela como nos Núcleos, limita a forma que para o artista deve
se confundir com a estrutura, assim como o espaço se mescla com o
tempo. Nota-se claramente essa transição de suporte na obra do artista
que leva a arte à vida:
Figura 1 – Transição de suportes

Metaesquema (1958) Núcleo1 (1960) Penetrável - PN1 (1960)

Bólide (1965)

Fonte: Autoras.

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É por volta de 1965 que os Parangolés se estabelecem no trabalho
de Oiticica, em uma produção que procura “estabelecer relações
perceptivo-estruturais” (OITICICA, 2011, p. 69) entre o espectador e
a obra.
O Parangolé revela então o seu caráter fundamental de
‘estrutura ambiental’, possuindo um núcleo principal: o
espectador-obra, que se desmembra em ‘participador’
quando assiste, e em ‘obra’ quando assistida de fora
nesse epaço-tempo ambiental. Esses núcleos participador-
obra ao se relacionarem (numa exposição, por exemplo)
criam um ‘sistema ambiental’ Parangolé, que por sua vez
poderia ser ‘assistida’ por outros participadores de fora
(OITICICA, 2011, p. 74).

Esta estrutura cria uma rede de conexões e relacionamentos


e “a proposição artística só se efetiva, de acordo com seu autor, se
aquele que ‘veste’ os Parangolés estiver disposto, no ato de vesti-lo,
a experimentar o espaço”. A obra não precisa mais de um lugar si,
“o que evidentemente se opõe à comercialização do mercado e à
institucionalização dos museus, da mesma forma que impulsiona
o homem – enquanto corpo e consenso – à condição de elemento
‘figurado’ no espaço que lhe envolve.” (FREITAS, 2013, p. 62),
tornando-se o próprio objeto da arte.
Assim, a proposta artística toma parte da vida e se coloca no
mundo para acontecer, a instituição de arte não fica mais confinada
ao cubo branco e se manifesta na mundo, se materializando como uma
“necessidade coletiva de uma atividade criadora latente, que seria
motivada de um determinado modo pelo artista” (OITICICA, 2011, p.
79), mas pensada para a participação, sendo necessária a disposição
por parte do participador, uma ativação, para que, enfim, o processo
se conclua através de uma realização criativa.

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Figura 2 – Parangolé

Fonte:IMMA (1964).

A participação do público para Oiticica a partir dos Parangolés


“é uma ‘participação ambiental’ por excelência. Trata-se da procura
de ‘totalidades ambientais’ que seriam exploradas e criadas em todas
as suas ordens [...]” (OITICICA, 2011, p. 68) como um encontrar de
elementos totais que excluem a classificação de vulgar e erudito na
arte e transformam-na em experiências. Este referencial está presente
na produção de outros tantos artistas deste período no Brasil, como
Ligia Pape e Lígia Clark, e que portanto possuem os elementos centrais
do que será desenvolvido no conceito de estética relacional.

A 27ª Bienal de São Paulo

Uma vez que Bourriaud exclui a produção brasileira dos anos


1960-1970 da sua análise de obras que engendram a construção do
conceito de estética relacional, tomou-se a 27ª Bienal de São Paulo como
parte deste artigo afim de aproximar a teoria do crítico francês e as
práticas artísticas no contexto globalizado atual. Outros três fatores
também contribuíram para esta decisão: 1) possibilita um olhar para
a arte contemporânea mundial a partir de um evento, que mesmo

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internacional, parte de uma concepção nacional; 2) pode ser visto
como a consagração de uma poética que tem início na década de 1960
e que ainda hoje produz ecos na arte contemporânea e, 3) mostra a
procupação da curadoria do principal evento de arte contemporânea
do país em não ser apenas um lugar para guardar e preservar as
obras, mas sim como espaço de trocas com intenção de maximizar a
aproximação entre arte e público.
De forma geral, os modelos expositivos procuraram ao longo
da história da arte adaptar-se às novas formas de produção artística.
Segundo Sant’anna (2010, p. 28) que faz uma análise da mesma 27ª Bienal
de São Paulo, “já no início do século XX, os procedimentos artísticos
modernos exigiam das exposições novos padrões que atendessem as
necessidades de montagem, de modo que facilitassem as possíveis
interpretações do público”. Assim, a ação da curadoria se apresenta
como uma ferramenta facilitadora da experiência estética, mediando
a interação entre arte e público, mas também como propositora de
novos conceitos. Para Lisette Lagnado (2006, p. 53):
A 27ª Bienal aborda essa crise da representação com
todas as forças que pôde conglomerar em torno de
seu projeto conceitual. Se o primeiro passo foi abolir as
chamadas representações nacionais – sistema que minava
a possibilidade de implantar um projeto independente
da autoridade de gabinetes -, os demais passos também
pertencem ao esforço determinado de conferir uma
dimensão política a uma mostra tão importante para a
cidade, o Brasil e o mundo.

O discurso curatorial enfatiza, pois, um caráter político no


sentido de “tratar de princípios da lei, do poder e da comunidade”
(RANCIÈRE apud LAGNADO, 2006, p. 54) alvitrando “distintos graus
de viver-junto”, não apresentados como um manual de instruções, mas
como um questionamento às inúmeras possibilidades de convivência.
O título da 27ª Bienal foi inspirado num conjunto de conferências de

LUANA H. C. DE OLIVEIRA | AMÉLIA S. CORRÊA | A Arte Relacional e a Participação do Público 269


Roland Barthes, nas quais ele discutiu o espaço público e seus conflitos
de interesses.
Nascida na República do Congo, Lisette Lagnado é Doutora
em filosofia pela Universidade de São Paulo, com tese sobre Hélio
Oiticica, o que ajuda a compreendermos ainda melhor as conexões
entre o trabalho do artista e um dos eixos centrais do evento. Contudo,
o projeto curatorial de Lagnado8 não foi recebido sem críticas, como na
ideia de que seu fundamento teórico barthesiano agrupou trabalhos
de uma forma articifical, excluindo conflitos inerentes à vida social
(VILLAS BÔAS, 2012, p. 42).
E aqui, retornamos ao Hélio Oiticica. A Bienal toma como
critério de direcionamento os caminhos estabelecidos pelo artista,
sendo suas pesquisas tomadas como “documento teórico-práticos
(sic), patamar de estranha atualidade para acompanhar os fenômenos
da cultura” buscando “reunir uma série de elementos para dar
sentido a sua mais importante investida: liquidar a representação para
superar o modelo de exposições” (LAGNADO, 2006, p. 55) que ainda,
nos dias de hoje, insistem no modelo tradicional. Para Bourriaud, as
exposições de arte passaram de “unidade de base da qual é possível
pensar as relações entre a arte e a ideologia geradas pelas técnicas em
detrimento da obra individual” (BOURRIAUD, 2009, p. 100), para
promotoras de encontros entre a arte e o espectador/participador e os
espaços de convivência.
Como dito anteriormente, as proposições defendidas por
Bourriaud já faziam parte das produções artísticas brasileiras desde
o neoconcretismo dos anos 1960-1970 e é na estrutura presente na
poética daquele período que a curadoria da 27ª Bienal de São Paulo
se apoia. Assim, segundo Sant’ Anna (2010, p. 35) “a convergência
conceitual entre a teoria de Bourriaud e a curadoria de Lisete Lagnado,

8 Os co-curadores foram Adriano Pedrosa (Brasil), Cristina Freire (Brasil), José Roca
(Colômbia), Rosa Martínez (Espanha) e Jochen Volz (Alemanha/Brasil)

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não pode ser aplicada como um aproveitamento prático das teorias
do crítico francês”, sendo visível no evento uma preocupação estética
que enfatiza “as relações de trocas, de tempo e espaço interpessoais,
ou coletivas” (SANT’ANNA, 2010, p. 37) qual seja, a consagração da
inter-relação arte e vida.
Bebendo da fonte conceitual de Parangolé que transforma
o mundo em museu, redefinindo os conceitos de exposição e das
instituições de arte, discutindo a territorialização do indivíduo na
linguagem de novos artistas, a 27ª Bienal de São Paulo segue o raciocínio
de Rancière sobre a “partilha do sensível” e propõe a “existência de um
comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas”
(RANCIÈRE apud LAGNADO, 2006, p. 59) refletindo uma nova
realidade referente à arte, à vida e às interconexões entre elas. A
expografia do evento reflete estas metas, como na imagem a seguir.
Além disso, a organizacão de seminários internacionais e residências
artísticas pela Bienal atestam para a importância das trocas e de
produção de conhecimento.

Figura 3 - Cânone, de Marepe

Foto: Juan Guerra - http://www.bienal.org.br/post.php?i=633

Desta forma, seja pelo viés de Nicolas Bourriaud ou pelo


referencial teórico-prático de Hélio Oiticica, a 27ª Bienal de São Paulo

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reflete sobre a aproximação do público na interação entre arte e vida
e aborda esta temática a partir de trabalhos atuais que levam em
consideração as novas formas de convivência e as relações políticas
por trás desses rizomas identitários.
Não foi apenas uma Bienal expositiva, mas uma exposição
propositora, que reforça neste sentido o conceito de Bourriaud, em
que a arte contemporânea não se liga mais a forma, mas a formações.
Neste sentido, é importante ressaltar que como um evento que se
propunha como, ou através da estética relacional, a 27ª Bienal de São
Paulo não só cumpre seu papel como também dialoga perfeitamente
com os trabalhos apresentados. Isso pode ser notado na forma como
o público pode conduzir sua visita. Os caminhos são propostos, não
estabelecidos, e desta forma, as possibilidades de trocas e relações
acontecem de forma independente.
Se a estética relacional parte do ponto inicial de trocas e relações,
todo o lugar torna-se possível para a arte. Segundo Bourriaud (2009,
p. 83) “o que costuma chamar ‘realidade’ é uma montagem. Mas
a montagem em que vivemos será a única possível?”. A estética
relacional sugere que não, e a sua consagração através da 27ª Bienal
de São Paulo confirma que os caminhos têm se mostrado abertos,
gerando e renovando sentido na arte. Ainda há, contudo, “oscilação
entre a arte da desformalização integral e uma arte da exposição da
imagem fixada, do fetiche” (LADDAGA, 2012, p. 153), revelando que
o entrelaçamento entre e arte e vida é apenas uma linha-guia da arte
contemporânea.
Neste contexto, o papel do curador também se mescla e torna-
se coletivo, pois “na medida em que as bienais se tornam maiores e
mais complexas, a curadoria coletiva surge como opção de método
de trabalho, [...] cria-se a possibilidade de um diálogo crítico com
múltiplos pontos de vista” (PEDROSA apud LAGNADO, 2006, p. 83-

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84), mostrando que os modelos expositivos, desde sua concepção, tem
se preocupado em se adaptar às poéticas da globalização.

Consideracoes Finais

Tendo a estética relacional como eixo norteador, buscou-se


aproximar a produção poética de Hélio Oiticica dos anos 1960-1970,
a conceitualização do tema pelo crítico francês Nicolas Bourriaud
e a 27ª Bienal de São Paulo como ‘validadora’ deste tema da arte
contemporânea.
Partindo da análise dos trabalhos de Oiticica do período de
1960-1970, é possível pensar suas práticas como fundadoras da estética
relacional. Em 1967, no catálogo da exposição coletiva Nova objetividade
brasileira, o artista prescreve à vanguarda brasileira estas características:
1. Vontade construtiva geral; 2. Tendência para o
objeto ao ser negado e superado o quadro e o cavalete;
3. Participação do espectador: corporal, tátil, visual e
semântica; 4. Abordagem e tomada de posição em relação
aos problemas políticos, sociais e éticos; 5. Tendência
para uma arte coletiva e consequente abolição dos ismos;
6. Ressurgimento e novas formulações do conceito de
antiarte (FREITAS, 2013, p. 67).

Assim, para Oiticica, estes termos se aplicavam ao que ele


chamava de ‘arte ambiental’, mas conceitualmente os parâmetros
poéticos utilizados eram os mesmos da estética relacional, que
seria sintetizado por Nicolas Bourriaud a partir de obras de artistas
europeus dos anos 1990.
Ao estabelecer como critério de análise das produções
relacionais uma “teoria estética que consiste em julgar as obras de arte
em função das relações inter-humanas que elas figuram, produzem
ou criam (Cf. Critério de coexistência)” (BOURRIAUD, 2009, p.151),
fica clara se não a dívida, ao menos a exclusão deliberada de Oiticica
e outros artistas brasileiros que compartilhavam destes preceitos dos

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exemplos inspiradores para a teorização de Bourriaud, numa atitude
tipicamente eurocêntrica.
A curadoria proposta por Lagnado para a 27ª Bienal de São
Paulo estabelece as mesmas relações de julgamento de Bourriaud em
uma proposição de “curar-junto”, onde as inter-relações de diversos
curadores geram múltiplos pontos de vista e, por consequência,
rizomas intermináveis de relações, em uma assinatura conjunta que
parte da questão relacional da arte, buscando estabelecer um diálogo
de aproximação com o público.
Desta maneira, no que se refere aos diálogos entre a 27ª Bienal
de São Paulo e os conceitos de Nicolas Bourriaud as aproximações
convergem a partir das questões poéticas e estéticas conectadas
por discussões políticas, sociais, relativas ao grupo, ao coletivo e ao
interpessoal. As obras projetam novos modelos de convivência partindo
de relações e interações, como uma espécie de reação ao mundo atual.
Ao mesmo tempo, afastam-se do modelo de “informação que pode se
dirigir a qualquer sujeito possível sem implicar em custo maior e só
adquire sentido e valor para um sujeito capaz de decifrá-la e saboreá-
la” (BOURDIEU, 2003, p.113), pois não exigem do espectador uma
contemplação passiva e sim uma fruição relacional.
O evento analisado cumpriu, pois, sua função mediadora,
principalmente no que se refere ao diálgo com o público9, ponto chave
de todos os questionamentos propostos, seja pela ‘arte ambiental’ de
Oiticica, ou pela estética relacional de Bourriaud, colocando o agente
receptor no centro dos diálogos e criando instrumentos que garantem
o acesso à obra e a ampliação de repertório do espectador/participador.

9 Um dos resultados divulgados pela Fundação Bienal foi o comparecimento de mais de 100
mil estudantes na mostra. Mérito da ação educativa realizado em paralelo com a exposição,
que mostrou a preocupação em não só quantitativa, mas também qualitativa (http://
entretenimento.uol.com.br/27bienal). Este dado é o resultado de um dos pontos do projeto
educativo que visava trazer “estudantes da periferia e estudantes do ensino fundamental
e médio, aniosos por conhecimento e orientados previamente por professores das redes
pública e privada” (COSTA apud LAGNADO; PEDROSA, 2006, p. 5).

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Há ainda uma extrapolação de conceitos, quebra-se a formalidade do
espaço expositivo ampliando os espaços de trocas, através de redes,
“conjuntos abertos, cujos componentes se tecem entre si” (LADDAGA,
2012, p.161). A recepção da obra deixa de depender do “controle que o
receptor tem do código” (BOURDIEU, 2003, p. 120) para estabelecer-
se através das relações interpessoais com o objeto de arte e o contexto
do lugar. Desta forma, a 27ª Bienal contribuiu para o afrouxamento do
controle do código, ao buscar compartilhar e dialogar com um público
mais amplo.
A partir das aproximações analisadas percebe-se que as relações
estabelecidadas entre a arte, suas estruturas formais e conceituais e
seus agentes vêm sendo repensadas e a experiência estética passa a ser
um ponto central. Atualmente, o que se vê na arte contemporânea de
maneira geral, são obras que se realizam em proposições que absorvem
o entorno e ganham sentido em vários lugares, tornando a linguagem
global e relacionando-se com a vida. De certa forma;
[...] o que estes projetos se propõem é conceber e
instrumentar mecanismos para que uma coletividade mais
ou menos vasta e diversa possa regular suas interações ao
mesmo tempo que se ocupa da construção de imagens e
discursos em um espaço que seu próprio desenvolvimento
fabrica (LADDAGA, 2012, p. 164).

Sendo assim, novos valores são introduzidos e a ausência de


familiaridade com os códigos da arte, que para Bourdieu condenaria
o público a “importar, em seu exercício de percepção e apreciação da
obra de arte, categorias e valores extrínsecos, ou seja, precisamente as
categorias e valores que organizam sua percepção cotidiana e orientam
seus juízos práticos” (BOURDIEU, 2003, p. 82) passam a ser visto pela
arte contemporânea como requisitos essenciais de apreciação.
Assim, como a visualidade torna-se um problema para os
artistas dos anos 1960-1970 através da banalização da reprodutibilidade
técnica, a construção poética volta-se para “experiência que envolve

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profunda e autenticamente o sujeito, criador ou espectador” (FREITAS,
2013, p. 167), criando-se “a vontade de dialogar com o processo de
estetização do cotidiano” (FREITAS, 2013, p. 171) e instituindo com
isso novas formas de interação entre arte e público, entre arte e vida.
Ao fazer isso ressignifica os processos da arte, “interroga o social e o
político ao extrapolar a limitação do ‘objeto de arte’” (FREIRE apud
LAGNADO, 2006, p. 109).
Desta forma, como a construção da obra de arte passa a
depender de trocas entre as pessoas, o espaço expositivo, seja este
uma galeria ou um museu “também pode servir como material
bruto para um trabalho artístico” (BOURRIAUD, 2009, p.52), pois
“qualquer produção, depois de ingressar no circuito das trocas,
assume uma forma social que não guarda mais nenhuma relação com
sua utilidade original” (BOURRIAUD, 2009, p.58), fazendo com que
os objetos estéticos tornem-se instrumentos de conexão. Portanto, as
aproximações entre Helio Oiticica, Nicolas Bourriaud e a 27ª Bienal de
São Paulo revelam-se através de “negociações, vínculos, coexistências,
[...] relações possíveis entre unidades distintas, de construção de
alianças entre diferentes parceiros.” (BOURRIAUD, 2009, p.63), onde
a arte passa a existir através dessas trocas.
É a partir da postura confrontadora e experimental que emerge
na arte dos anos 1960-1970, muito vinculada ao cenário político, que
novas relações são propostas e a arte passa a criar novos mundos,
fazendo com que as reflexões deste período não conduza para um
estudo apenas estético, mas para uma reflexão de funcionamento
deste objeto artístico na sociedade e suas relações com a instituição
de arte, deixando esta de ser uma totalidade em si, mas parte de um
processo maior.
A obra como documento incorpora o transitório do
tempo e ensina sobre a fugacidade da vida. Como buscar
a permanência de algo que definitivamente escapa? Na
relação entre o objeto e o registro, a obra se torna índice
de algo ausente (FREIRE apud LAGNADO, 2006, p. 113).

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Esse registro do atemporal pode fugir à sensibilidade do
espectador, mas é parte da práxis do fazer artístico. Neste processo, a
instituição artística entra como legitimadora do processo e valida o que
pode ser confundido apenas como processos do cotidiano. Entretanto,
a instituição não está limitada mais aos museus e galerias, aos espaços
físicos, mas passa a ser um “território vivencial, definido por espaços
densos de sentidos, onde o psíquico e o social se fundem aos traços
da memória individual e coletiva” (FREIRE apud LAGNADO, 2006,
p. 114). É essa relação que tanto o trabalho de Oiticica, o conceito
de Bourriaud e a Bienal de São Paulo estabelecem com a arte
contemporânea. As ligações e as relações entre arte e vida permitem
uma expansão poética para o artista e aproximam fisicamente a arte
do público. Desta forma, a ausência de algumas definições deixam
lacunas que não podem ser preenchidas pelo modelo antigo, tanto da
arte quanto das exposições, propondo então novos lugares para serem
experimentados.

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