Sistemico A Que Se Refere Hoje
Sistemico A Que Se Refere Hoje
Sistemico A Que Se Refere Hoje
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Maria José Esteves de Vasconcellos2
Ao deparar com um capítulo com esse título, num livro que aborda os sistemas
eletroenergéticos no ambiente 5,0, você, leitor, pode perguntar o porquê da
inclusão aqui deste capítulo, ou como ele se relaciona com o tema deste livro.
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Esse texto está publicado como o Cap 7 do livro Sistemas Eletroenergéticos no ambiente 5,0 e seguintes, na
perspectiva e orientação da sustentabilidade e resiliência, organizado por Eduardo Neri (2022). Uma forma
anterior desse texto está publicada, com o título “Usos contemporâneos do adjetivo ‘sistêmico’”. In: Mendes,
J. A. A. e Bucher-Maluscke, J. N. F. (Orgs). Perspectiva Sistêmica e Práticas em Psicologia. Temas e Campos de
Atuação. Editora CRV, 2020.
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Consultora, Professora e Palestrante: Pensamento Sistêmico Novo-Paradigmático e Metodologia de
Atendimento Sistêmico. Autora de: Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da ciência (2002, 11ª edição
2018); Systems Thinking. The new paradigma of Science (2020); Terapia Familiar Sistêmica. Bases cibernéticas
(1995). Cocriadora da Metodologia de Atendimento Sistêmico para solução de situação-problema, pelos
próprios envolvidos nela, em contexto colaborativo, de autonomia e coautora da obra Atendimento Sistêmico
de Famílias e Redes Sociais (Vol I 2005; Vol II 2007; Vol III 2010). Coautora de: Curso de Engenharia de Energia.
Uma iniciativa audaciosa de ensino, 2018. Cocriadora e Coordenadora de Cursos de Pós-Graduação em
Metodologia de Atendimento Sistêmico, preparando profissionais para práticas sociais inovadoras em
diferentes contextos. Professora convidada em diversas Pós-graduações. Terapeuta de Família e Casal.
Professora na UFMG (1968-1992). Sócia fundadora da EquipSIS – Equipe Sistêmica, Belo Horizonte (1993-2010).
Artigos publicados em coletâneas e em periódicos nacionais e internacionais.
contato@mariajoseesteves.com.br www.mariajoseesteves.com.br
- Como podemos atuar para que a sociedade se comprometa com avanços em
direção ao Ambiente 5.0?
- O que precisa acontecer para que, ocorrendo a mudança, seja uma mudança
sustentável?
Hoje sabemos também que seres vivos – e seres vivos humanos – se comportam
de acordo com as possibilidades contidas em suas estruturas e que as “instruções”
apresentadas pelo meio ao ser vivo terão seu efeito dependente dessas
possibilidades. Assim, segundo Maturana (1997/1987), é impossível a “interação
instrutiva” com seres vivos e com seres humanos - seres vivos que vivemos na
linguagem.
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Em sua Teoria da Autopoiese, Maturana e Varela (1987/1983) utilizam o conceito de estrutura do sistema
vivo, por meio da qual este se mantém em acoplamento estrutural com o meio, mantendo-se vivo.
Quando abordamos seres humanos, ou seja, seres vivos que vivem na linguagem, tem-se feito uma
extensão desse conceito, falando-se de uma estrutura relacional (Esteves-Vasconcellos 2013; Esteves de
Vasconcellos 2018/2002), constituída pelas características humanas – dentre as quais podem-se destacar
suas premissas – que viabilizam o acoplamento do ser humano com o meio social, constituído de outros
seres humanos.
ou premissa passar a fazer parte da estrutura relacional das pessoas e é pouco
provável que isso aconteça com a implantação de uma “Política de Solidariedade”.
Aqui também quero propor uma reflexão sobre o que venho percebendo como
usos indiscriminados ou pouco cuidadosos do adjetivo sistêmico, o que muitas
vezes vem criando dúvidas sobre o que se entende hoje por sistêmico.
Em 1968, em seu livro Teoria Geral dos Sistemas, Bertalanffy já tinha apontado que
a palavra sistema se colocava no topo de uma lista dos termos que vinham
aparecendo com maior frequência na literatura científica.
Hoje, mais de 50 anos depois, parece que a situação não é muito diferente. Uma
pesquisa cuidadosa mostrará provavelmente que o adjetivo sistêmico(a) vem
sendo cada vez mais usado (direito sistêmico, constelação sistêmica, pedagogia
sistêmica, inovação sistêmica, liderança sistêmica, coaching sistêmico, design
sistêmico, abordagem psicométrica sistêmica, gestão sistêmica, leitura corporal
sistêmica, psicologia sistêmica...), às vezes até sugerindo que a qualificação de algo
como sistêmico pode conferir um sentido de atualidade ou de prestígio ao que
está sendo apresentado como sistêmico(a).
Você mesmo pode fazer a experiência de listar todas as palavras que já tenha
encontrado acompanhadas do adjetivo sistêmico(a). Partindo do pressuposto de
que aqui estejamos nos movendo no domínio linguístico4 da ciência, acredito que
muito provavelmente você listará palavras que se referem às diferentes dimensões
que podemos distinguir no nosso afazer científico, a saber: as práticas, as teorias e
a epistemologia.
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A noção de domínio linguístico decorre do reconhecimento da inexistência da realidade independente
de um observador e da emergência da(s) realidade(s) em conversações, em espaços de intersubjetividade.
Assim, reconhecemos que, conversando, constituímos diferentes domínios linguísticos (filosofia, ciência,
religião...), cada um com diferentes critérios para validação das afirmações.
A teoria é um conjunto articulado de princípios explicativos do fenômeno, que o
profissional / cientista usa para explicar ou compreender o fenômeno que ele está
abordando, no nosso caso, o funcionamento do sistema.
Vejamos, a seguir, que epistemologia, que teorias, que práticas podemos entender
como sistêmicas.
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Importante ressaltar que tomo apenas um dos sentidos do termo paradigma, o de crenças e valores dos
cientistas, como equivalente de um dos sentidos de epistemologia, o de visão ou concepção de mundo
implícita na atividade científica.
Além dessas, entre as palavras que você listou, podem ter aparecido também:
perspectiva, concepção, percepção, postura, em geral usadas em referência à
dimensão epistemológica do afazer científico.
Esse seria, muito resumidamente, o quadro do que tem sido chamado de ciência
tradicional. Nos Capítulos 2 e 3 do Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da
ciência (Esteves de Vasconcellos 2002), encontram-se descrições mais detalhadas
a respeito do paradigma da ciência tradicional.
Aconteceu que, a partir dos anos 60/70 do século XX, cientistas / pesquisadores,
trabalhando em seus laboratórios, em microfísica (Niels Bohr – a questão da
contradição lógica onda / corpúsculo), em termodinâmica (Boltzman – a questão
da desordem, da agitação desordenada das moléculas), em física quântica
(Heisenberg – a questão da impossibilidade da objetividade e o princípio da
incerteza), em físico-química (Prigogine – os saltos qualitativos do sistema que
funciona longe do equilíbrio), em biologia experimental (Maturana e Varela – o
caminho explicativo da objetividade entre parênteses), em física cibernética (von
Foerster – a conexão entre observador, linguagem, sociedade e os sistemas
observantes), em biofísica (Atlan – a questão da complexidade), se defrontaram
com evidências que os levaram a questionar, entre outras, as noções da
compartimentação do saber, do acesso a realidades objetivas, da possibilidade de
instruções serem seguidas por sistemas humanos os quais, como sistemas vivos,
foram reconhecidos como sistemas autônomos.
ciência contemporânea
ciência tradicional emergente
simplicidade complexidade
análise contextualização
causalidade linear causalidade recursiva
estabilidade instabilidade
determinismo - previsibilidade indeterminação - imprevisibilidade
reversibilidade - controlabilidade irreversibilidade - incontrolabilidade
objetividade intersubjetividade
subjetividade entre parênteses objetividade entre parênteses
uni-versum multi-versa
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Interessante destacar que Capra (1996, p. 50) também fala de novo paradigma na ciência, porém destaca
apenas “dois grandes fios” do pensamento sistêmico, apresentando-o como um pensamento “contextual”
e como um pensamento “processual”. “Quanto à terceira dimensão do pensamento sistêmico novo-
paradigmático, ele não parece ter assumido que a objetividade é impossível e que não existe a realidade
independente de um observador” (Esteves de Vasconcellos 2018/2002, p. 157).
Considerando a equivalência entre os termos epistemologia e paradigma,
poderíamos dizer que o livro Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da ciência
aborda a epistemologia sistêmica, a nova epistemologia da ciência. Entretanto,
ressalto que aqui se rompe a equivalência entre Epistemologia e Filosofia da
Ciência, a partir do momento em que os próprios cientistas levam para seus
laboratórios a pergunta epistemológica - a pergunta sobre como conhecemos - e
respondem-na cientificamente.
Assim, temos hoje uma epistemologia científica ou uma ciência da ciência, a qual
se relaciona, dentro do mesmo domínio linguístico da ciência, com as teorias
científicas e com as práticas científicas, como a Figura 2 pretende evidenciar.
prática
científica
teoria
científica
epistemologia
científica
Entre as palavras que você listou – adjetivadas com sistêmico(a) – é provável que
se encontrem as palavras modelo, linha, enfoque, movimento, abordagem,
frequentemente tomadas no sentido de teoria.
Cibernética da Cibernética
Teoria da Autopoiese
Paradigma
A Nova Teoria Geral dos
Sistemas
Teoria Geral dos Sistemas
Autônomos
Hoje entendo que esse livro veio preencher uma lacuna teórica, no âmbito da
ciência de sistemas, disponibilizando para nós, não só uma teoria geral de sistemas
novo-paradigmática, como também uma teoria novo-paradigmática para os
sistemas sociais, exatamente o que nos faltava para fundamentar práticas
sistêmicas novo-paradigmáticas desenvolvidas com sistemas sociais.
De fato, esse autor apresenta uma teoria que distinguiu implícita na extensa obra
científica de Maturana, anterior a 2000. Estudando detidamente os textos de
Maturana, Mateus distinguiu algumas noções teóricas e conceitos sistêmicos,
aplicáveis a todo e qualquer sistema e não apenas aos sistemas vivos. Ele explicitou
esses princípios teóricos e os apresentou de forma sistemática, como um conjunto
articulado que constitui uma teoria sistêmica novo-paradigmática, de 2ª Ordem –
e, portanto, transdisciplinar – que o próprio Maturana nunca explicitou como tal e
que Mateus intitulou “A Nova Teoria Geral dos Sistemas” (Parte I do livro). Nova
porque antes já havia uma Teoria Geral de Sistemas e nova também por ser uma
teoria sistêmica novo-paradigmática ou de 2ª Ordem.
Porém, não é apenas isso que o livro contém. Conforme fica explicitado em seu
subtítulo, “Dos sistemas autopoiéticos aos sistemas sociais”, o autor aborda e
responde à questão polêmica – já instalada na área – sobre autopoiese no domínio
social humano, ou seja, a questão da identificação dos sistemas sociais – e da
sociedade como um todo – como sistemas autopoiéticos.
O autor elaborou a Teoria Geral dos Sistemas Autônomos (Parte II do livro) e assim
evidenciou que sistemas sociais não podem ser distinguidos como sistemas
autopoiéticos, o que vem contradizer a proposta de Luhmann (1990), de considerar
a sociedade como um sistema autopoiético. Com essa Teoria Geral dos Sistemas
Autônomos, o autor mostra que tanto os sistemas autopoiéticos (que são apenas
os sistemas vivos descritos pela Teoria da Autopoiese de Maturana), quanto os
sistemas sociais humanos (definidos como sistemas linguísticos), compartilham
algumas características, por pertencerem, ambos, à categoria mais ampla de
sistemas autônomos, como podemos ver na Figura 5.
Sistemas autônomos
Sistemas de
Instituições interconstituição de 2ª
Ordem
Na Parte III do livro, dedicada ao domínio social humano, o autor distingue duas
classes especiais de sistemas sociais humanos: as instituições e os sistemas de
interconstituição de 2ª Ordem. De um lado, as instituições, que são sistemas sociais
humanos nos quais os indivíduos distinguem um padrão de interações pré-
estabelecido, que deve ser seguido por eles próprios. De outro lado, os sistemas
de interconstituição de 2ª Ordem, que são sistemas sociais humanos nos quais os
indivíduos – conversando sobre suas próprias relações – constroem e reconstroem
recursivamente suas próprias formas de interação.
Já vimos que todos tendemos a nos comportar de modo coerente com nossas
premissas ou pressupostos, ou seja, de acordo com aquilo em que acreditamos.
Quando, em determinadas situações, não nos comportamos conforme nossas
crenças, experimentamos um desconforto, a chamada dissonância cognitiva.
Assim, tendo ultrapassado os pressupostos da ciência tradicional e tendo assumido
uma visão sistêmica, o profissional procurará naturalmente realizar práticas
sistêmicas, não porque a ciência o esteja exigindo, mas sim como implicação de
suas novas crenças. Esse profissional procurará desenvolver, sempre que o
contexto o permita, práticas consistentes com sua epistemologia ou visão de
mundo sistêmica.
- Viable Systems Model – VSM ou Método dos Sistemas Viáveis (Stafford Beer 1967;
1979). Referido como modelo ou método para diagnóstico ou entendimento
sistêmico sobre a viabilidade das organizações.
- Critical Systems Heuristics – CSH (Werner Ulrich 2005). Definida como um quadro
de referência para a prática reflexiva, que pode também servir de instrumento
para coproduzir conhecimento e para se atingirem objetivos emancipatórios por
parte de pessoas preocupadas – mas não necessariamente envolvidas – com a
definição de fatos e valores relevantes.
Espero que esse texto tenha evidenciado que considero importante tanto
distinguirmos as diferentes dimensões do afazer científico, como também termos
claro o que, a cada momento, estamos qualificando com o adjetivo sistêmico – se
epistemologia, teoria(s) ou prática(s). E que ele tenha também evidenciado que
considero fundamental diferenciarmos entre epistemologia, teoria(s), prática(s) de
1ª Ordem e de 2ª Ordem, tendo sempre presente o que estamos concebendo
como um sistema, concepção de onde decorre necessariamente a qualidade de
sistêmico.
Essa minha compreensão sobre os usos do adjetivo sistêmico me faz estar atenta
e distinguir situações em que, a meu ver, esse adjetivo não está sendo
consistentemente utilizado e, a título de exemplos, aponto adiante algumas delas.
Referências
Andrade, A. L. O Curso do Pensamento Sistêmico. São Paulo: Digital Publish & Print
Editora, 2014.
Bertalanffy, L. von. Teoria geral dos sistemas. Petrópolis: Vozes, 1973. Original inglês,
1968.
Britto, C. M. Sustainable Community Development: A Brief Introduction to the Multi-
Modal Systems Method. Systemic Practice and Action Research, 24: p. 509-521, 2011.
Capra, F. A teia da vida. Uma nova compreensão dos sistemas vivos. São Paulo:
Cultrix, 1997. Original inglês, 1996.
Checkland, P. Systems Thinking, Systems Practice. London: John Wiley & Sons, 1981.