15597-Texto Do Artigo-18578-1-10-20120518

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Fazer a história da arquitetura recente

Gérard Monnier*

Resumo
O texto apresenta uma reflexão crítica e propositiva acerca da história da
arquitetura. Defende a necessidade de realização de uma história crítica da
arquitetura recente, problematizando os limites da crônica e informações de
divulgação. Assume como premissa que os edifícios, como outras produções
materiais, são objeto de consumo e renovação/alteração muito rápidas. Desta forma,
defende a construção de um projeto de história destes objetos recentes de forma a
evitar ou minimizar o desaparecimento das fontes documentais, escritas ou orais,
afeitas a estes objetos arquiteturais. Indica alguns critérios e procedimentos que
viabilizariam a realização deste projeto, e propõe que o historiador desta arquitetura
do passado recente deve ter também papel propositivo acerca de intervenções
nestes objetos. O olhar profissional e qualificado sobre estes bens arquitetônicos,
diferenciando-se da crônica e das posturas doutrinárias, deverá ser capaz de
apresentar pontos de vistas inéditos que tragam esclarecimentos e visões
renovadoras sobre estes edifícios modernos, presenças de um "passado recente".

Palavras-chave: História da arquitetura.

Make the history of recent architecture

Abstract
The paper presents a critical and propositive reflection about history of architecture. It
points out the need for a critical history of recent architecture, questioning the limits
of chronological record and mass-media information. Assuming that buildings, as well
as other material productions, are subject to very quick consumption and renovation,
it defends the construction of a historical approach of these recent architectural
objects, in order to avoid or minimize the disappearance of documental sources,
written or oral, related to them. It indicates some criteria and procedures that make
feasible the realization of this project and proposes that the historian of this
architecture of the recent past should also have a propositive role on the

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interventions on these objects. The professional and qualified look at their
architectural assets, different from chronicles and doctrinary postures, shall bring
renewing clarification and points of views on these modern buildings, material
presences of a "recent past".

Keywords: History of architecture.

A necessidade de tal história não é evidente por si só: a maioria dos edifícios
recentes não estão nem perdidos de vista, nem esquecidos, ou tampouco relegados
a um passado incerto; eles são simplesmente um material que está diante de nossos
olhos. Para o pesquisador de história da arquitetura, a própria presença dos objetos
diferencia este tipo de pesquisa de outros trabalhos na área de História: a existência
dos edifícios na história da arquitetura não depende primeiramente de seu lugar na
narrativa, e esta narrativa está relacionada aos objetos vistos por certas pessoas
todos os dias (se admitirmos temporariamente que nenhuma destruição venha
abater as fileiras). Diferentemente de outros fatos históricos, como, a crise de 1929,
o colonialismo, ou a descoberta da radioterapia, - que são ao mesmo tempo objetos
invisíveis e ausentes da memória pessoal da maior parte de nossos
contemporâneos -, esses objetos de conhecimento estão completamente
identificados com a produção dos historiadores.

Além disso, muitos desses edifícios foram o suporte de diferentes conceitos que
expressam níveis diferentes da formação de opinião, desde boatos mais ou menos
espontâneos (caso da La Maison du Fada, A Casa do Fada, em Marselha), a textos
de críticos profissionais. Estes últimos, temos de admitir, ensinaram-nos a ver e a
situar estes edifícios dentro de uma cronologia aproximativa, porém, suficiente para
orientar a nossa própria memória de décadas passadas. Alguns destes edifícios,
dentro dessa crônica, estão identificados com um mito, seja ele pessoal (a obra de
um arquiteto genial), seja ele estilístico e/ou conceitual (um edifício art-déco): da
“torre de 300 m” que acabou batizado com o nome de seu engenheiro idealizador,
Gustave Eiffel, às entradas do metrô de Hector Guimard, às principais
manifestações de Horta em Bruxelas.
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Esta crônica tem virtudes incontestáveis: estado primitivo do saber, ela possui
freqüentemente o frescor e o deslumbramento do primeiro olhar; ela acrescenta à
trajetória dos atores a autenticidade de um testemunho vivido, dos conceitos
entendidos, da convicção compartilhada. Entretanto ela também é plena de um fluxo
de informações pouco controladas, de rumores, de inexatidão e de lacunas. Quando
começamos, em 1981, o estudo da Casa de Campo Noailles, o balanço de
informações sobre esta construção de R. Mallet-Stevens, hoje mais conhecida, era
um emaranhado de informações de segunda mão com erros grosseiros, alguns
ridículos: todos os autores sem exceção afirmavam, sem comprovação, que o
edifício tinha sido construído em concreto armado; ainda em 1977, um crítico
importante explicava de maneira bastante erudita a contribuição de Théo van
Doesburg ao projeto, a Blumenzimmer, como sendo o “projeto de uma loja de flores
para Hyères” (1). Era de nossa obrigação mostrar que a maior parte da obra era
uma construção de alvenaria de pedras, e que a Blumenzimmer indicava
exatamente o local, perto do vestíbulo, onde a senhora de Noailles costumava
preparar os vasos de flores (BRIOLLE; FUZIBET; MONNIER, 1990).

Nas suas próprias formas lingüísticas, as crônicas ou narrativas estão carregadas do


aparecimento de mitos favoráveis, porém, profundamente irritantes, que a história
custa a avaliar adequadamente e a substituir. Que seja, por falta de formalismo, a
proibição das realizações de Fernand Pouillon na L’Archicteture d’aujourd’hui (A
Arquitetura de Hoje) - uma interdição que envolve a competição profissional -, ou a
adoção de categorias, como a hightech, que consolidam classificações pseudo-
estilísticas; estas fórmulas prontas, muito freqüentes na imprensa, não têm valor.
Moeda falsa da narrativa, mas montagens autênticas, sem compromisso na
descrição da realidade, elas simplesmente expressam a vontade dos atores de fazer
sentido.

A crônica, como acumulação primitiva de conhecimento, pode ser corrigida,


completada e aperfeiçoada até o ponto de satisfazer as necessidades de uma
construção histórica? Ela pode constituir o processo de entrada; dessa maneira,
para a arquitetura da Reconstrução, as publicações contemporâneas constituíam os
componentes de uma opinião crítica estimulante. Tenha ela sido determinada pelos

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conflitos de tendência, exacerbados pela imprensa profissional da época (cujo
exemplo mais gritante é a exclusão de Pouillon na L’Archicteture d’aujourd’hui); ou
pela falta de consciência de uma geração de arquitetos - pouco preocupados em
destacar suas responsabilidades em realizações medíocres e sofríveis - que levava
a uma espécie de esquecimento circunstancial, e denunciava, ao mesmo tempo,
testemunhos virulentos (POUILLON, 1968). Além disso, aquilo que esta crônica
atenuava ou mesmo dissimulava, começando por tudo o que a época devia às
decisões tomadas pelo governo de Vichy, estimulava também o questionamento
histórico. Em suma, impetuosa ou cheia de lacunas, a crônica constituía a fonte
primeira de uma enquete histórica mais ampla, alimentada, a partir dos anos 1970,
por numerosas contribuições que multiplicaram os pontos de vista, descobriram as
fontes, cercaram os métodos, adotaram os recursos da história oral. Ao ponto que a
história da Reconstrução, na França, serviu em grande parte de laboratório coletivo
para a formação de uma geração de pesquisadores em história da arquitetura, como
mostra Danièle Voldman em um estudo recente (2003, p. 351-359). Cabe notar que
nestes anos - que coincidem com o início da realização do Inventário Geral, criado
em 1964 - o período da Reconstrução, sendo considerado recente demais, foi
colocado fora do campo de estudos do Inventário, no mesmo momento em que os
esforços dos historiadores principiavam uma ultrapassagem da crônica, enquanto
que a importância dada para o estudo local, no trabalho dos historiadores da
Reconstrução, recuperava exatamente uma das contribuições mais inovadoras dos
métodos do Inventário.

Além do mais, a crônica da atualidade não é homogênea. Para uma grande maioria,
a crônica é feita de um fluxo de informação, mas também de ecos reunidos, de
pontos de vista fugazes, e como vimos, de rumores instalados por repetição no
pseudo-conhecimento; neste caso, ela é ao mesmo tempo evidente e fugaz, se
esquiva e se renova a cada dia. Ela pode ser tão inconsistente que não fixe nem a
memória. Entretanto existe também uma crônica informada, preocupada em articular
suas informações, de colocá-las em perspectiva, de esclarecê-las através de um
olhar transversal. Para o período seguinte, aquele do crescimento dos anos de 1960,
o livro de Maurice Besset, Nouvelle Archicteture Française, (Nova arquitetura
francesa) nos fornece um excelente exemplo (1967). Mesmo escrito no calor da
hora, ele apresenta com lucidez um conjunto de realizações documentadas com

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rigor. Sua escolha é pertinente, malgrado o fraco retrocesso cronológico. As
principais diferenças com o estudo histórico são duplicadas: primeiro, o cronista
abandona, pelo próprio fato de se tratar de um texto encomendado, toda
possibilidade de escolha na determinação lógica do período; e, com efeito, a
produção do período de crescimento que vai até 1972 está, na obra de Besset,
dividida em dois, pelo limite arbitrário de uma crônica que se estende, quanto à
escolha dos edifícios, de 1950 a 1963. Em seguida, os dados da história política e
administrativa, que não estão no centro de interesses principais do autor, são pouco
presentes para caracterizar o conteúdo da demanda da arquitetura na França neste
momento.

Esta passagem da crônica para a história impõe objetivos e uma dimensão que a
narrativa cotidiana não possui. Os aspectos mais evidentes desta dimensão estão
na forma da demanda de história pelo corpo social. Citaremos dois exemplos: o
primeiro, consiste em preencher as lacunas ou os erros da crônica; o segundo, exige
que a história documente e especifique os critérios de qualidade para o edifício, úteis
à industria do turismo, às políticas de agenciamento urbano, à proteção do
patrimônio.

Assim, o lugar da arquitetura da habitação social na produção de aglomerações não


é ignorado, mas sua abordagem fica fragmentária. Para acabar com estas
insuficiências, a principal decisão tomada pela nova Agência de Patrimônio do
Conselho Geral, no quadro da descentralização administrativa, foi, em 2002, a de
realizar o inventário da habitação social na região Seine-Saint-Denis. Este
levantamento permitiu reunir a informação existente, completá-la e mostrar a
importância e a variedade das obras promovidas nesse âmbito até os últimos anos.
O inventário mostrou que elas foram confiadas a numerosos arquitetos, dentre os
quais, muitos são personalidades conhecidas nacionalmente, contribuindo para
conferir uma dimensão de laboratório de arquitetura para este domínio, que pode
encontrar aí uma identidade cultural, até então insuspeitada. Complementando o
trabalho documental foram realizados uma representação cartográfica, e um
levantamento fotográfico; também uma publicação destinada ao grande público
acaba de ser editada.

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Essa necessidade do estudo histórico dos edifícios recentes é, muitas vezes,
determinada e reiterada pela sua urgência. Primeiro, porque como outras produções
materiais, os edifícios são o objeto de um consumo e renovação rápidos; seja
porque eles estão submetidos à obsolescência do uso, que atinge categorias inteiras
(os sanatórios, os grandes cinemas, os postos de gasolina); seja porque as apostas
e investimentos da economia imobiliária e fundiária, ou os motores de uma política
urbana, os condena a serem substituídos por outros. Segundo, porque as paixões e
a ideologia colocam-nos em primeiro plano, seja para lançá-los numa destruição
violenta (Les Halles de Paris), seja para, ao contrário, dar-lhes uma nova existência:
como a salvação da Vila Savoye, sob a pressão de uma petição internacional em
1959, ou a reconstrução do Palácio do Alumínio em Villepinte, em 1999.

Frente a esta precariedade efetiva dos objetos, o projeto de uma história recente
pode conduzir ao levantamento exaustivo das fontes documentais, arquivos escritos
e fontes orais, que podem fundamentar a proteção dos monumentos; definida por lei,
que obriga o Estado, em nome de um poder público, a proteger os testemunhos da
arte e da história. Dela decorre uma forte demanda por informações para dar
consistência às solicitações de proteção material e simbólica dos edifícios de
interesse para preservação. A administração atua através da verificação de
relatórios, vistorias, pela formulação de pareceres, por tomadas de decisão
justificadas. Neste processo, o lugar central, compartilhado com a vistoria
arquitetônica, é ocupado por informações elaboradas a partir de fontes históricas
(arquivos, documentos, fontes secundárias).

No campo da proteção do patrimônio, a administração na França atribui, desde


1972, uma importância crescente para os edifícios do século XX, com fortes
conseqüências sobre a produção histórica. A primeira forma de solicitação, por
iniciativa de Jean Jenger, do serviço de criação arquitetural, durante o ministério de
Jacques Duhamel, parece ser o levantamento dos edifícios parisienses do período
de 1848-1914, confiado a Paul Chemetov (2). Se, em 1975, a primeira campanha de
proteção de edifícios do século XX, por iniciativa de Michel Guy, ministro da Cultura,
aparentemente não mobilizou novos estudos, isto não voltaria a acontecer alguns
anos mais tarde. De fato, em 1984, a criação dos Corephae (Comissões Regionais
de Estudo do Patrimônio Histórico, Arqueológico e Etnológico), descentraliza a

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preparação de dossiês de proteção, confiando-os às equipes dos órgãos regionais
de preservação de Monumentos Históricos. Organiza-se um trabalho documental,
realizado por equipes locais; estas, buscando o apoio de universidades e escolas de
arquitetura, produziram redes eficazes e duráveis de informação, que chegaram a
influir na própria escolha dos objetos de estudo. Em duas décadas, a acumulação
destes estudos pontuais foi excepcional, conduzindo, além das decisões
administrativas de proteção, a conhecimentos inéditos. E, em muitos casos, os
meios utilizados pela administração para a conservação material dos edifícios
protegidos abriram caminho para um estudo arqueológico e técnico dos edifícios,
estudo impossível de ser realizado de outra maneira, por falta de orçamento à altura
dessas demandas especializadas. Daí, decorreram publicações novas, que são
freqüentemente trabalhos pioneiros, na medida em que as investigações exploradas
não possuem equivalentes, do ponto de vista das fontes mobilizadas, na
historiografia do século XX.

O conjunto dessa produção histórica, qualquer que seja o seu mérito, tem,
entretanto, limites evidentes. São estudos pontuais que dependem estreitamente de
valores ligados ao reconhecimento prévio dos arquitetos, a prestigiados programas
de arquitetura, ou a territórios determinados; propõe a noção de “estudos temáticos”
que o Ministério da Cultura, em determinado momento, pôs em uso para incitar à
proteção de categorias e de séries - por mais interessante que seja, constituiu
apenas um reagrupamento. Esses estudos deixam em aberto as questões ligadas a
uma história problematizada da arquitetura, e as questões nascidas da própria
pesquisa. Esta realização de investigação histórica, adaptada e finalizada aos
programas de proteção, por mais importante que seja, é portanto, distinta de uma
produção histórica completa e autônoma: ela está relacionada a um objeto isolado,
ela é dependente de um objeto existente. Nesse sentido, resulta que este
procedimento não pode se estender a um conjunto de edifícios dispersos no espaço,
nem a uma pergunta, nem a um conceito; ele não pode ser aplicado tampouco a
projetos não construídos, ou a edifícios desaparecidos. O campo de proteção
patrimonial, pelos seus limites, não pode estar identificado com a pesquisa de base;
é um campo de aplicação.

Os eixos fundamentais que o pesquisador de história da arquitetura do presente

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deve tratar consistem em identificar os significados e os valores inclusos na
produção de edifícios, de tal maneira que as obras de arquitetura tenham, por um
dado período, um lugar orgânico dentro de uma história material, política, social,
cultural e artística. Para esse trabalho de fundo podemos distinguir diversas formas,
que me proponho a esclarecer através de publicações recentes. Primeiro, é preciso
estabelecer dentro de uma narrativa a duração de um período ou de um momento,
dentro de um dado território; uma narrativa que se proponha a fazer a síntese dos
conhecimentos, a construir relações com os dados históricos gerais, com as
tomadas de posição e com as doutrinas. Evidentemente, diferenciaremos o estudo
de síntese do estudo pioneiro, o primeiro a decifrar uma pergunta. Entre os critérios
de validade desses estudos, o recorte cronológico do período tratado, o começo e o
fim, incluindo as fases intermediárias, constitui em si mesmo um resultado.
Freqüentemente sob a forma de uma obra coletiva, com as vantagens e os
inconvenientes do gênero, associado eventualmente a uma exposição, esta
investigação privilegia a atualização de conhecimentos. Acredito que o melhor
exemplo desta acumulação sistemática de conhecimentos esteja na obra L’Art de
l’Engenieur (A Arte do Engenheiro), associada à exposição com o mesmo nome
organizada pelo Centro Georges-Pompidou (PICON, 1997). Na forma de uma
enciclopédia que reúne rubricas temáticas e notas biográficas, esta obra nos conduz
a ir além da questão, e nos fornece uma notável visão de conjunto chegando até os
nossos dias.

Entretanto, o valor deste tipo de obra é frágil, por ela ser inversamente proporcional
às lacunas e às faltas que desequilibram iniciativas, louvável sob todos os aspectos.
Assim, o estudo Les années 30: L’archicteture et les arts de l’espace entre industrie
et nostalgie (Os anos 30: A arquitetura e as artes do espaço entre indústria e
nostalgia), rico em novas contribuições sobre a arquitetura deste período de crise,
concentra as análises na produção de cinco países (Alemanha, Estados Unidos,
França, Itália, URSS) (COHEN, 1997). Ignorando territórios tão ativos quanto a Grã
Bretanha, a Escandinávia, o Japão ou o Brasil, eles criaram uma distorção estranha
na abordagem de um fenômeno maior dos anos 1930, a recepção e o intercâmbio
entre centro e periferia. Estes estudos, sobretudo quando acompanhados de um
balanço sobre as artes do período, nos fornecem, entretanto, uma transversalidade
preciosa. Da mesma maneira, meus estudos de arquiteturas dos anos 1950,

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reunidos com um balanço das artes do período na Europa, tem sua importância na
confrontação com as artes do momento (3). É certo que, na falta de uma
exaustividade freqüentemente ilusória, a pesquisa pode encontrar sua coerência
histórica através de uma aproximação histórica de um período, baseada numa
seleção significativa de estudos monográficos. Foi o que tentamos fazer para o
estudo das arquiteturas do desenvolvimento na França, marcadas por um estimulo à
inovação e por uma produção intensa de edifícios originais. (MONNIER; KLEIN,
2002)

Fragmento deste conjunto, a história de um programa arquitetônico, tem a vantagem


de apresentar, em razão do caráter especializado da questão, uma coerência que
permite freqüentemente um percurso esclarecedor. Os estudos históricos que se
limitam a uma categoria de edifícios necessitam, porém, de um inventário de
documentos adequado; seu interesse é reforçado pela transparência da relação
entre a oferta e a procura, que pode responder a uma conjuntura limitada no tempo.
Assim, o programa da escola ao ar livre, ligado a um momento de prevenção da
tuberculose no âmbito escolar, nascido na Alemanha em 1881, foi abordado nos
vários países europeus, em contextos ao mesmo tempo parecidos e diferentes, e
teve seu maior desenvolvimento entre as duas grandes guerras, quando a oferta
arquitetônica se presta a projetos arquiteturais bastante inovadores (CHATELET,
[s.d.]). A arquitetura de sanatório, que produz uma trajetória tipológica coerente e
que é, da mesma maneira, limitada no tempo, se presta a um estudo de escala
européia (CREMNITZER, 1998).

O projeto de um estudo de base pode ter outras ambições. Propomos a hipótese de


que o pesquisador de história da arquitetura do passado recente esteja em
condições de ser aquele que se propõe a revelar as questões enterradas, as
problemáticas escondidas, as situações não evidentes. Num campo complexo, do
qual a crônica e o debate doutrinário constituem apenas uma pequena parte, a
experiência prova que pontos de vista inéditos, baseados em conjuntos
comparativos, iluminam novas idéias, sobre novas realidades.

A avaliação da espessura social das práticas de arquitetura pode ser um dos seus
eixos. Detalhando a articulação dos processos, da encomenda à concepção e à

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realização, integrando os usos e os diferentes níveis de recepção, a narrativa ganha
terreno, se estende à complexidade das operações, à sua instalação na longa
duração. Não somente as circunstâncias detalhadas da decisão, da elaboração, da
relação com o debate do momento sobre o projeto, e sobre a utilização esperada,
tornam-se objetos de estudo e componentes da narrativa; mas, também, os usos, as
representações, os investimentos posteriores de manutenção, de transformações,
ou mesmo de demolições, têm seu lugar dentro de uma história mais completa. A
obra torna-se o lugar onde se cruzam significações e apostas até então insuspeitas,
que são dinâmicas na longa duração, que se transformam, que se renovam. O
edifício é o ponto de apoio de uma história social relativa que tem seu território e sua
duração. Este enriquecimento da história da arquitetura, que tentamos aplicar no
estudo das Unidades de Habitação de Le Corbusier, levou-nos, por exemplo, a
descobrir que a Unidade de Rezé torna-se, durante a obra, e trinta anos após sua
construção, uma jogada política municipal com múltiplas conseqüências práticas e
simbólicas (MONNIER, 2002). É neste sentido, o de uma história extensiva da
arquitetura, que orientamos a atividade de pesquisa nestes últimos anos, pesquisa
que encontrou grande cumplicidade em seminários, colóquios e publicações. (4)

Um outro projeto fundamental consiste em revelar que, apesar da dispersão das


iniciativas de trabalhos e da profusão de edifícios, sistemas escondidos são
abandonados, que a crônica - mesmo se um autor cuidadoso os tenha percebido -
não aprofundou, nem ratificou efetivamente. O estudo da invenção tipológica no
período contemporâneo depende deste campo. Assim a cumeeira invertida, uma
solução nova para a cobertura de edifícios, pela sua importância volumétrica, quanto
ao perfil e por escamotear o material de cobertura, tem, além de sua dimensão
técnica, um lugar que depende da intervenção tipológica. A cumeeira invertida, muito
freqüente em edifícios de pequeno e médio porte, se limita a soluções pontuais (em
Le Corbusier, em Niemeyer, entre outros) antes de alcançar um desenvolvimento
regional, a partir da segunda guerra mundial, em muitos lugares e programas. Entre
outras inovações tipológicas, a do edifício duplo, de um lado e do outro de um
espaço intermediário qualificado, é ao mesmo tempo incontestável e participa das
peripécias de uma história reprimida dos tipos arquitetônicos, descartada pelo
privilegio concedido às obras singulares. Entretanto a crônica, há pelo menos duas
décadas, identificou o dispositivo do edifício em bloco horizontal duplo, com sua

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especificidade formal, por Jean-Claude Garcias (1982). Desde então, outras
manifestações foram acumuladas, com referências, algumas vezes brilhantes, que
estabelecem os recursos práticos do novo espaço e respondem a novos critérios de
utilização, justificando-os e atribuindo-lhes sentido. É o primeiro balanço, de um
corpus mais abrangente e particularmente alimentado pela atualidade, que podemos
invocar aqui. O dispositivo é discreto e pouco flagrante, como forma, mas, ao
mesmo tempo, portador de um fascinante potencial de interpretações. Discreto a tal
ponto que as barras duplas ainda não suscitaram um termo próprio para nomeá-las.
“Lâminas duplas” (doubles barres), “Lâminas gêmeas” (barres jumelles), “Lâmina
dupla” (barre double), estes termos continuam inusitados na prática, como se o tipo
não existisse, como se o parentesco formal deste dispositivo com a rua, ladeado por
dois imóveis de mesmo gabarito (no esquema haussmanniano, entre outros),
dispensasse as lâminas gêmeas de uma existência própria. As linhas que se
seguem têm justamente como objetivo atualizar a grande originalidade desta
parelha, originalidade que justifica que este dispositivo seja reconhecido como um
tipo.

O interesse principal do dispositivo é que justamente as lâminas gêmeas, quando


estão separadas por um espaço intermediário que não é uma rua, produzem um
conjunto novo e específico. A parelha, determinando um terceiro elemento, produz,
ao associar os cheios e o vazio intermediário, um conjunto ternário que apaga os
componentes binários, ao ponto de não serem mais nomeados como tal.
Naturalmente, é o grande valor de uso desta associação que fixa o interesse do
conjunto ternário que nomearemos a partir de agora como o tipo 3.

Arquitetos precursores interessaram-se intuitivamente pelo dispositivo, ao mesmo


tempo em que a lâmina se impunha como tipo dominante. Para proteger os
escritórios da Air France em Orly, Edouard Albert desenha o projeto de duas lâminas
paralelas de quatro níveis, religadas por uma passarela de vidro (plano:1958;
construção: 1959-1960). Solução pragmática para reunir uma importante área de
escritórios (14.000 m2 de superfície útil, em uma construção leve - tubos de aço
soldados), o dispositivo está previsto para uma eventual extensão (3.000 m2)
fechando o projeto nas duas extremidades (extensão que não será realizada). A
harmonia e a elegância do espaço intermediário são perceptíveis e sem dúvida

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tiveram um grande papel na integridade da obra desde sua construção. Mas este
conjunto ternário, neste edifício apreciado (BESSTE, 1967), nunca foi considerado
em si mesmo.

Um estudo de Jean Bossu, Une Artère Résidentielle (Uma Artéria Residencial)


resulta do amadurecimento de uma idéia que o arquiteto formula em 1959 (5). Ela
parece proceder ao mesmo tempo de sua fascinação pela Unidade de Habitação de
Marselha e da preocupação de produzir um dispositivo mais urbano, sem dúvida
inspirado por seus trabalhos na reconstrução de Oréansville (El Asnam, hoje). O
projeto de Bossu, que poderia ter se tornado um manifesto tipológico, continua do
projeto de uma obra singular.

É em Brasília que encontramos as manifestações mais fortes do tipo 3. Nas


superquadras, Lucio Costa dispõe, em fileiras duplas, lâminas de habitação coletivo,
opostas de um lado e do outro por um espaço de serviço, para o qual voltam-se
elevações passivas, sem articulação, formadas por claustros, enquanto que as salas
ficam do outro lado, voltadas para o parque. Oscar Niemeyer, na Universidade de
Brasília (1960-1962), mostra num equipamento oficial de grande escala, o grande
interesse do dispositivo: duas lâminas (T + 1), separadas por uma dupla galeria
coberta e um jardim, permitem uma circulação excelente e a continuidade de lugares
de trabalho e de convívio. Elas estão apoiadas sobre um nível subterrâneo, e sob
uma das galerias corre uma rua acessível aos veículos de serviço, que prestam um
mau serviço para, entre outros, os laboratórios científicos. De planta ligeiramente
arqueada na parte central, mas retilíneo nas extremidades, os dois edifícios, em dois
volumes contínuos, acolhem as salas de aulas, os escritórios, os anfiteatros; as
cafeterias localizam-se no espaço intermediário, cortado por circulações
transversais, sobre os dois níveis; o controle da insolação dos edifícios é
assegurado pelo estudo preciso do corte da galeria voltada para o norte, e a
irrigação diária dos canteiros contribui para criar um agradável frescor nas galerias.
O espaço intermediário recebe as circulações longitudinais e transversais, os
acessos aos pisos. As duas elevações exteriores, repetitivas e fechadas, são
paredes passivas e monótonas, enquanto que o espaço intermediário, cuja
continuidade visual agradável se presta à descoberta progressiva, é dinâmico e
atraente.

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O tipo 3 é uma proposta estimulante para responder aos critérios de planejamento
urbano atual. Em Lyon, na Cité Internationale (arquiteto R. Piano, projeto 1986,
realização 1991-1995), as duas fileiras de edifícios limitam uma via interior para
pedestres protegida na parte central por uma vidraça descontínua; o dispositivo
retoma o traçado de uma rua antiga, traçada entre os imóveis (desaparecidos) da
feira de Lyon. Os novos imóveis dispõem de vistas para o interior e para o exterior,
mas este “verdadeiro pedaço de cidade, secreto e recolhido” (R. Piano), está
construído ao abrigo da circulação exterior, do qual ele protege.

A atualidade mais viva do dispositivo está em sua utilização quase sistemática em


programas onde a adaptação do edifício ao clima é procurada, constituindo um
espaço de tal maneira que economiza a energia elétrica habitualmente utilizada para
refrescar e ventilar os locais. O melhor exemplo deste tipo de edifício, apesar da
notoriedade de seu arquiteto passou, entretanto, praticamente despercebido: o
colégio Albert Camus, construído em Fréjus por Norman Foster (1992-1993). Ele
comporta duas fileiras de dois níveis de salas de aula, uma de frente para a outra,
recobertas por uma casca dupla de concreto armado. O espaço intermediário - que
contém simultaneamente o hall, as coxias de circulação e as passarelas elevadas - é
recoberto por uma clarabóia contínua que absorve a luminosidade incidente, atenua
a claridade do espaço intermediário, e evacua o ar quente.

Sobre o mesmo princípio, explicitado no corte, encontramos no último período


numerosos estudos e projetos, em meios preocupados com a problemática de uma
arquitetura de meio ambiente. Em Berlim, os estudos do engenheiro urbanista,
Eckart Hahn, por uma construção solar integrada, para a Praça Postdamer, se
fundem sobre duas fileiras de duplos edifícios, nos quais o espaço intermediário é
recoberto por uma vidraça (desenho publicado na T&A, nº 47-1993). Na verdade,
neste espaço, a loja Die Arkaden, de Renzo Piano, adapta o tipo 3 ao projeto de
uma grande loja de departamento. Um edifício de escritórios e de laboratórios, o
centro tecnológico de Oberhausen (em IBA Emscher Park, Reichen e Robert, projeto
de 1993), tem a forma de um duplo semicírculo, separado por um intervalo recoberto
por uma vidraça. Construído, o imóvel de escritórios de Verbundnetz Gas AG, em
Leipzig (BECKER; GEWERS; KÜHN arch., 1995), comporta sobre um embasamento

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comum, dois blocos de três e seis níveis, separadas por um espaço intermediário
coberto. Em construção na Ruhr (concurso 1992), o centro de formação de Herne
Sodingen (F.-H. Jourda e G. Perraudin arch.), sob um envelope de vidro sustentado
por uma estrutura de madeira, reúne duas fileiras de edifícios separados por um
amplo espaço intermediário.

Para ir ainda mais longe em sua missão de desvendamento, resta enfim ao


pesquisador de história da arquitetura preparar, dentro do seu campo, as bases de
uma compreensão de mecanismos gerais desta atividade. Ele deve contribuir para a
compreensão dos esquemas de uma economia política da arquitetura, ajudar a
despojá-la do prestígio e da obscuridade que ela ainda carrega das Belas-Artes. Dito
de outra maneira, para esta arte aplicada, em qual relação inscrever os respectivos
papéis dos parceiros, da cultura erudita dos profissionais e das necessidades, da
pesquisa e da conjuntura. A teoria de uma troca equilibrada entre a oferta e a
procura parece poder responder a essas questões. Resta de fato ao pesquisador
estar disponível para alimentar em termos acessíveis a cultura dos cidadãos, e a
competência dos profissionais. A menos que os interesses estreitos dos arquitetos
reivindiquem ainda uma autoridade sobre o trabalho da história; neste caso, não há
o que fazer, e a história voltará à sua função de instrumento de legitimação.

Parece verdadeiro, ao contrário, que o projeto de uma história extensiva convém


àqueles, mais inquietos, que admitem a idéia de que o seu papel na concepção do
edifício é o trabalho de um mediador do espaço e do tempo. Mediador do espaço
urbano que se renova, mediador do tempo longo, da perenidade das coisas
estabelecidas, e do tempo curto das utilizações, dos equipamentos rapidamente
obsoletos; mediador de um espaço durável e de um espaço consumível. Para eles, a
história extensiva do lugar e do construído tem um sentido. É para eles que foi
escrita esta (nova) história.

Notas
(1) No catálogo de uma exposição em Berlim, na qual o projeto da Blumenzimmer estava exposto.

(2) Este primeiro estudo está publicado sob a forma de um catálogo de exposição, Architectures Paris 1848-
1914, em 1976.

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(3) MONNIER, Gérard. Actualité de l'art sacré (p. 48-53), La reconstruction et l'architecture en Europe (p. 190-
198), L'architecture des années cinquante (p. 263-271), dans l'ouvrage collectif L'art en Europe 1945-1953,
Genève, Musée d'art moderne de Saint-Etienne-Skira,1987.

(4) Image, use and heritage. The reception of architecture of the Modern Movement, VII conférence internationale
de DOCOMOMO, UNESCO, Paris, 16 au 21 septembre 2002 ; KLEIN Richard (Org.), La réception de
l’architecture, Lille-Paris, École d’architecture de Lille / Jean-Michel Place, 2002; MONNIER, Gérard (Org.),
L’architecture : la réception immédiate et la réception différée. L’œuvre jugée, l’édifice habité, le monument
célébré, Paris, Publications de la Sorbonne, sous presse.

(5) Publicada na Techniques et Architecture, n. 6,1967.

Referências Bibliográficas

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1967.

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pour une histoire des politiques du patrimoine. Paris: Comité d’histoire du ministère de la culture / Fondation
Maison des sciences de l’homme, 2003.

* Professor emérito da Université de Paris I Panthéon-Sorbonne.

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