Unidade 1 Clínica Ampliada e Compartilhada

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PROGRAMA Clínica Ampliada

e Apoio Matricial
DE EDUCAÇÃO
PERMANENTE
EM SAÚDE
DA FAMÍLIA

UNIDADE 1
Clínica ampliada

Anderson Sales Dias


Aula 1: A clínica do biológico

A economia e o interesse político influenciaram, historicamente, a saúde no Brasil. É impor-


tante apontar que todas as características das políticas de saúde apresentadas ao longo do
século XX ainda são encontradas nos dias de hoje, inclusive influenciando o processo de
trabalho dos trabalhadores da saúde.

O que imaginamos ao pensar em clínica?


Talvez você responda que seja uma consulta médica com avaliação de um paciente de forma
objetiva buscando a causa de algum acometimento para conduzir um processo terapêutico,
ou reavaliar a conduta, conforme evolução do quadro.

Embora no imaginário popular a clínica esteja fortemente ligada à figura médica, todos os
profissionais da saúde possuem sua própria clínica. Campos (2009) descreve como a clínica
é percebida e que na concepção dos profissionais de saúde “A objetividade da clínica é for-
necida pelo conhecimento acumulado em protocolos e diretrizes construídos com base em
evidências” (p. 68-69). O autor ainda nos coloca alguns conteúdos e técnicas que permitem
ao profissional escrever parte da história do processo de adoecimento de uma pessoa, entre
elas a semiologia da doença e avaliação do risco, por meio de entrevistas, exames físicos e
coletas de dados provenientes de laboratórios, imagens ou anatomopatológicos. Esse con-
junto de conhecimentos legitima a autoridade do profissional de saúde frente a um usuário.

Para Campos (2009), essa concepção de saúde não está presente apenas no profissional.
Ela é mantida por três sujeitos nesse processo: o profissional, o usuário e o gestor. Entre os
usuários, é forte a concepção de saúde como um “bem de consumo”, então o momento de
encontro com o profissional de saúde deve ser rápido, resolutivo, com a prescrição de algum
produto a ser consumido pelo usuário que resolva o seu problema. As pessoas querem a
receita e o encaminhamento dos médicos, os choquinhos e a massagem do fisioterapeuta,
a dieta milagrosa da nutricionista, e assim por diante.

Na nossa situação problema, você pode verificar essa concepção no momento em que
a equipe cita os usuários e sua busca pelas “receitas azuis”, como popularmente são
conhecidas as receitas de medicamentos controlados — no caso da situação problema, os
benzodiazepínicos. Esse modelo favorece a criação de relações rápidas e superficiais entre os
profissionais e os serviços, favorecendo a busca por outros locais de trabalho para preencher
o tempo restante e melhorar o salário. Os gestores, por sua vez, caso não sejam implicados
com a qualificação da saúde ou a mudança no modelo de atenção, ficam diante de um cenário
favorável à desqualificação da atenção, em que só precisam mediar a relação entre usuários
e profissionais, dando a cada um o que querem. O resultado é o consumo de procedimentos
nas sintomatologias e pouca resolutividade sobre as causas dos problemas de saúde.

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Clínica ampliada 2
No Brasil, a construção das ações de saúde foi fortemente influen-
ciada pelo enfoque clínico, tendo o “corpo biológico” e a “doença”
como principais objetos de trabalho para os profissionais de saúde.
Na construção do sistema de saúde brasileiro, esse modelo foi bas-
tante difundido pela medicina previdenciária, privada e dos grupos
médicos, tendo como locus de atuação o hospital e a busca da maior
especialização dos profissionais para o enfrentamento dos problemas
de saúde. Esse modelo de saúde centrado na doença, no biológico, em
procedimentos e tendo o hospital como local privilegiado para com-
bate às doenças foi importado do modelo norte-americano, proposto
por Flexner, ficando conhecido como modelo flexineriano, biologicista
ou hospitalocêntrico. Esse modelo tem sido o grande ordenador da
formação dos profissionais de saúde e da clínica tradicional.

Arouca (1975), em sua tese O Dilema Preventivista, afirmou que uma escola médica norteada
pela clínica biológica, tendo o hospital como local privilegiado para formação e centrada
em procedimentos, gera profissionais descontextualizados das necessidades de saúde da
população. Por isso, a necessidade de compreender a particularidade de cada pessoa e de
cada comunidade é fundamental para ampliar a capacidade resolutiva de uma equipe, seja
ela uma Estratégia Saúde da Família, um NASF, seja um consultório na rua.

Historicamente, uma falsa dicotomia entre clínica e saúde coletiva permeou o espaço dos
serviços de saúde. A atenção primária é vista por alguns profissionais como local exclusivo
para prevenção e ações coletivas, mesmo contendo profissionais que realizam apenas as
condutas clínicas individuais e estas ocorrem no período patogênico, conforme descrito no
modelo da história natural da doença.

Reflita sobre sua prática clínica: o que a orienta?

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Aula 2: Por que ampliar a clínica?

A clínica tradicional é um modelo surgido nos ambientes hospitalares e que acabou por ser
reproduzido nos demais pontos do sistema de saúde. Contudo, este não consegue respon-
der às demandas de necessidade de saúde de uma população, gerando algumas situações
que são objetos de estudo:

A clínica tradicional

• Fragmentação do processo de trabalho em saúde


O conhecimento dos trabalhadores é organizado por área e, dessa forma, com-
partimentaliza (fragmenta) o corpo humano (centralidade do modelo biológico),
pois cada profissional é responsável por uma “parte do corpo biológico”, cada
um com papel específico. O centro do processo é o saber do núcleo profissional,
o que dificulta o diálogo entre os próprios trabalhadores, mesmo que estejam
compartilhando o mesmo espaço físico (SANTOS; ASSIS, 2006).

• Descontinuidade do cuidado
A descontinuidade do cuidado é reflexo da fragmentação do processo de trabalho.
Cada acesso do usuário aos profissionais da rede é isolado, não havendo continui-
dade entre as ações de cada profissional. Exemplo: no tratamento de um usuário
com diabetes, não há um cuidado pactuado dos papéis da Equipe de Saúde da
Família com o endocrinologista da média complexidade ou com o nutricionista
ou o educador físico do NASF.

• Disputa corporativa entre as profissões, o que dificulta o trabalho em equipe


Como cada profissional está centrado no seu núcleo profissional, há uma disputa pela
adesão do paciente à conduta prescrita, em detrimento do cuidado como um todo.

• Baixa efetividade do sistema de saúde em responder às necessidades


de saúde da população
As ações são voltadas aos sintomas e ao biológico, com menor atenção aos compo-
nentes psicossociais e com comunicação baixa ou inexistente entre os pontos da rede.

• Baixa adesão de usuários aos tratamentos


Abandono do tratamento devido à baixa resolutividade do sistema, aliado às várias
barreiras de acesso e ao pouco acolhimento.

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Ao defender a proposta da clínica ampliada, não se nega a dimensão biológica, mas se
defende a ampliação desta para outros enfoques (sociais, políticos, psicológicos, econômi-
cos etc.) que fazem parte do cotidiano de usuários, famílias e grupos sociais, influenciando
diretamente suas vidas.

Todos temos algo que orienta nossa forma de agir, que é construído na relação entre nossa
personalidade e a cultura na qual estamos inseridos. Se pensarmos em culturas diferentes,
será que a concepção sobre ter saúde é a mesma para um árabe, um norte-americano, um
coreano, um alemão e um cubano?

E se olharmos para um mesmo país, o Brasil, por exemplo: será a concepção de saúde para
um amazonense a mesma de um paulistano, de um baiano, de um goiano ou de um gaúcho?
Ou de um índio de uma tribo do Xingu, ou um agricultor de assentamento sem-terra, um mora-
dor de comunidade ribeirinha, ou quilombola? Para homens, mulheres, crianças ou idosos?
Todos temos um conjunto de valores que orientam nossa conduta na vida, seja o que acredita-
mos ser saúde, seja a forma de nos relacionar com o mundo. Estar sensível às particularidades
nos deixa mais próximos de entender o outro e auxilia no momento de pactuar um tratamento.

No caso da nossa situação problema, fica claro que existem outros fatores que desenca-
deiam a utilização de benzodiazepínicos e anti-inflamatórios, principalmente a situação social
da família. Para o enfrentamento do problema, foi preciso mobilizar um conjunto de ações
enquanto ofertas para atingir as causas do adoecimento e não apenas os seus sintomas.

Como já falamos anteriormente, os profissionais de saúde, em algum momento, tomam o


lugar de usuários. Entretanto, suas concepções sobre saúde também são construídas pela
formação, que ao longo da história teve compromisso em formar profissionais para o mer-
cado de trabalho e capazes de se adequarem às rotinas dos serviços de saúde, e esse con-
junto de fatores modula a conduta profissional e interfere no seu encontro com o usuário
no momento da produção da saúde.

Alguma vez você já teve a impressão de que as condutas e orientações


que você apresenta aos usuários não são seguidas por eles? Se sim,
por que você acha que eles não as seguem?

Embora o diagnóstico de uma doença parta da generalização, de um princípio que auxilie a


identificar características na população de forma regular, produzindo uma certa igualdade,
isso é verdade apenas em parte, pois não é o diagnóstico o único fator que definirá todo o
tratamento de uma pessoa. Essa simples noção de que cada caso é um caso pode mudar,
em parte, a conduta entre os profissionais (BRASIL, 2009).
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O trabalho em saúde é complexo e para muitos profissionais tudo o que não diz respeito
às doenças acaba por ser encarado como uma demanda “excessiva” e que não faria parte
do seu “real” papel. No entanto, diante de uma postura de clínica ampliada, não se pode
desvalorizar nenhuma abordagem disciplinar. Busca-se a articulação entre as abordagens,
ampliando a possibilidade de maior eficácia no manejo das situações complexas. Há a cons-
ciência da importância do trabalho transdisciplinar e, portanto, multiprofissional.

Segundo a Política Nacional de Humanização (PNH) (BRASIL, 2009), trata-se de colocar em


discussão justamente a fragmentação do processo de trabalho e, por isso, é necessário criar
um contexto favorável para que se possa falar dos sentimentos relacionados aos temas e às
atividades não restritas à doença ou ao núcleo profissional.

Os serviços de saúde também são organizados por níveis hierárquicos. Quanto maior o nível
hierárquico, maior o suporte de tecnologias duras (eletrocardiograma, ventilação mecânica
etc.), maior a especialização do serviço (centro de referência em cardiologia, em oncolo-
gia, uma maternidade etc.), e menor a autonomia do usuário sobre o “projeto terapêutico”
proposto para reestabelecer sua saúde (geralmente organizado por protocolos clínicos e
rotinas dos serviços). Esse é o caso de um hospital, por exemplo. Nesse tipo de ambiente, é
forte e necessária a preocupação com a velocidade no diagnóstico e na conduta, e menor a
consideração sobre as relações sociais dos indivíduos e a influência destas no processo de
adoecimento e reestabelecimento da saúde.

Quando olhamos para a atenção primária, temos menor aporte de tecnologias duras, com
o predomínio das tecnologias leves (vínculo, escuta qualificada, negociação de projetos) e
leve-duras (conhecimentos de Clínica, Antropologia, Geografia, História, etc.), devido a uma
grande complexidade de fatores que interferem na vida das pessoas e no processo de saú-
de-doença (moradia, renda, condições sanitárias, lazer, educação etc.). Nos espaços em que
ocorre a atenção primária, os usuários possuem mais autonomia para aderir ou não às pro-
postas terapêuticas das equipes, conforme façam sentido ou não em suas vidas.

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SERVIÇOS DE SAÚDE EM
MAIOR NÍVEL HIERÁRQUICO

Maior suporte de tecnologias duras

Maior especialização do serviço

Menor autonomia do usuário sobre o “projeto terapêutico”

Maior velocidade no diagnóstico e na conduta

Menor consideração das relações sociais dos indivíduos


na influência dos processos de saúde

SERVIÇOS DE SAÚDE EM
MENOR NÍVEL HIERÁRQUICO

Predomínio das tecnologias leves

Maior autonomia do usuário para adesão às propostas


terapêuticas

Maior consideração das relações sociais dos indivíduos


na influência dos processos de saúde

Figura 1 - Características dos serviços de saúde de acordo com seus níveis hierárquicos

Arte: Lyo Lima

Veja que:

Tecnologia leve: refere-se às tecnologias de relações do tipo produção de víncu-


lo, autonomização, acolhimento.

Tecnologia leve-dura: refere-se aos saberes bem estruturados que operam no pro-
cesso de trabalho em saúde, como a clínica médica, a epidemiologia, o taylorismo.

Tecnologia dura: trata-se do uso de equipamentos tecnológicos do tipo máqui-


nas, normas e estruturas organizacionais.

MERHY, E. E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde.


In: MERHY, E. E.; ONOCKO, R. (Org.). Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo:
Hucitec, 1997. p. 71-112.

Observou as diferenças hierárquicas dos serviços de saúde? Elas são importantes para com-
preendermos a clínica ampliada, que é o conteúdo de nossa próxima aula. Até lá!
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Aula 3: O que é clínica ampliada?

Vamos, agora, refletir o que afinal é clínica ampliada, começando pelo conceito definido na
Política Nacional de Humanização – PNH.

Clínica ampliada: um compromisso radical com o sujeito doente, visto de modo singular. É
assumir a RESPONSABILIDADE sobre os usuários dos serviços de saúde, buscar ajuda em
outros setores, ao que se dá o nome de INTERSETORIALIDADE. É ainda RECONHECER OS
LIMITES DOS CONHECIMENTOS dos profissionais de saúde e das TECNOLOGIAS por eles
empregadas, buscar outros conhecimentos em diferentes setores e assumir um compro-
misso ÉTICO profundo.

Entenda melhor a proposta da Política Nacional de Humanização acessando o portal do


Ministério da Saúde.

As dificuldades pessoais no trabalho em saúde refletem, na maior


parte das vezes, problemas do processo de trabalho, baixa grupalidade
solidária na equipe, alta conflitividade, dificuldade de vislumbrar os
resultados do trabalho em decorrência da fragmentação do processo
de trabalho (BRASIL, 2009).

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Não há receita de bolo, contudo, a PNH aponta cinco eixos norteadores da clínica ampliada,
conforme pode ser observado no quadro a seguir.

Eixo Orientação

Evitar privilegiar apenas uma dimensão da vida.

Olhar a situação a partir da construção da vida – situações


1. Compreensão ampliada do
reais com sujeitos reais.
processo saúde-doença
Realizar sínteses tencionando os limites das disciplinas
(conhecimentos: economia, saúde, política etc.).

Reconhecer a complexidade dos problemas e a incomple-


tude do conhecimento.
2. Construção compartilhada
Compartilhamento na discussão do caso em todo proces-
dos diagnósticos e terapêuti-
so até a construção da solução.
cas (reunião de equipe)
Construção compartilhada com equipe, sistema de saúde
e usuários.

Romper com a fragmentação do processo de trabalho e


com a hiperespecialização.
3. Ampliação do “objeto de
trabalho” Pensar o objeto em relação com seu meio – o objeto de
trabalho é o ser humano e as comunidades nos contextos em
que estão inseridos, e não as patologias e os procedimentos.

Privilegiar arranjos e dispositivos de gestão que fortaleçam


a comunicação transversal na equipe e entre equipes (nas
4. A transformação dos organizações e RAS).
“meios” ou instrumentos de Utilizar técnicas que aumentem a capacidade de escuta do
trabalho outro e de si mesmo, e que ensinem lidar com condutas
automatizadas de forma crítica, com a expressão de proble-
mas sociais e subjetivos, com família e com comunidade etc.

Criar instrumentos de suporte aos profissionais de saúde


para que eles possam lidar com as próprias dificuldades.
5. Suporte para os profissio-
Enfrentar dificuldade de realizar a escuta do outro, de lidar
nais de saúde
com a dor e o sofrimento.

Enfrentar o não envolvimento e a falsa neutralidade.

Quadro 1 – Os 5 eixos norteadores da clínica ampliada

Fonte: Elaborado a partir de Brasil (2009).

Uma importante estratégia para construção compartilhada de soluções para os problemas


mais complexos do território tem sido a construção de Projetos Terapêuticos Singulares
entre usuário e equipe e em alguns momentos envolvendo equipes de Apoio Matricial.
Na Unidade 4, discutiremos Projeto Terapêutico Singular e outras ferramentas de aborda-
gem familiar. A Unidade 3 tratará das equipes de referência e do Apoio Matricial, e então
você compreenderá melhor esses aspectos.
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A construção da clínica ampliada é um grande desafio para trabalhadores, gestores e usu-
ários. Para os trabalhadores, o principal desafio para essa mudança talvez seja enfrentar o
ideal de “neutralidade” e “não envolvimento” que muitas vezes coloca um “interdito para os
profissionais de saúde quando o assunto é a própria subjetividade”. Ações como individua-
lizar e culpabilizar não auxiliam ao enfrentar esse problema. É importante a criação de um
ambiente favorável pactuado entre equipe e gestão local para poder analisar as dificuldades
e discuti-las de forma acolhedora. Às vezes, é necessária uma mediação externa como, por
exemplo, de um serviço de saúde mental para discutir as dificuldades de alguns profissio-
nais em lidar com a dor e o sofrimento (BRASIL, 2009).

Algumas sugestões encontradas na PNH podem auxiliar você e sua equipe no processo de
ampliação do olhar:

• Exercitar a escuta qualificada dos usuários, acolhendo todo relato ou queixa, mesmo que aparen-
temente não contribua em um primeiro momento para o diagnóstico ou terapêutica – essa atitude
pode ajudar a reconstruir e a respeitar os motivos que ocasionaram o seu adoecimento. Isso tam-
bém o auxiliará a compreender a relação da doença com sua vida e a corresponsabilizá-lo. Mesmo
não podendo ampliar a escuta de forma detalhada em todos os casos, é preciso priorizar os que
precisam mais, mas os outros encontros clínicos podem ser menos duros se norteados com alguns
elementos da vida.

• Essa atitude também colabora com o fortalecimento de vínculo e afetos, o que aumenta as pos-
sibilidades e chances de ajudar a pessoa doente a ganhar mais autonomia e lidar com a doença.
Veremos na Unidade 3 que o vínculo é uma importante diretriz para o trabalho das equipes de
referência, tanto com as famílias quanto para melhorar a relação entre os profissionais da equipe.

• O combate ao excesso de procedimentos – a cultura de consumo constrói a visão de que saúde é


igual a consumo de procedimentos, exames etc., contudo, também aumenta e muito a chance de
procedimentos inadequados. Por isso, alertar os usuários sobre os riscos que alguns exames e pro-
cedimentos podem trazer também auxilia. Na clínica ampliada, a cultura da promoção da saúde e
de paz é uma alternativa à medicalização da vida.

• Culpa e medo não são bons aliados. Eles geram resistência e humilhação. Não precisamos de culpa-
dos, e sim de corresponsáveis, pois um plano pactuado entre equipe e usuários gera cumplicidade;
se der certo, foram os dois; e se não estiver dando, a responsabilidade deve ser compartilhada tam-
bém, pois isso diminui as resistências e os abandonos aos tratamentos. Mudar hábitos de vida nem
sempre é fácil: em vez de prescrever mudanças, você pode ofertar experiências novas, novas sensa-
ções prazerosas, por meio de uma atividade física e mudanças alimentares. Não existe só um jeito
saudável de viver a vida. Diálogo e informação são boas ferramentas e lembre-se:

A doença não pode ser a única preocupação da vida de uma pessoa. [...]

O processo de “medicalização da vida” faz diminuir a autonomia e aumenta


a dependência ou a resistência ao tratamento, fazendo de uma interminável
sucessão de consultas, exames e procedimentos o centro da vida. [...]

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A medicação deve ser encarada como se fosse um pedido de tempo numa
partida esportiva: permite uma respirada e uma reflexão para continuar o
jogo. Mas o essencial é o jogo e não sua interrupção (BRASIL, 2009, p. 30-31).

Assim, a política de humanização avança em busca da consolidação da clínica ampliada.

Na Unidade seguinte, discutiremos como fazer a gestão da clínica.

Até lá!

UM ATO de coragem. Direção de Nick


Cassavetes. Estados Unidos da América:
PlayArte, 2001. 1 DVD (115 min.),
son., color.

John Q. Archibald (Denzel Washington)


é um homem comum, que trabalha em
uma fábrica e vive feliz com sua esposa
Denise (Kimberly Elise) e seu filho Michael
(Daniel E. Smith), até que Michael fica
gravemente doente, necessitando
com urgência de um transplante de
coração para sobreviver. Sem ter
condições de pagar pela operação e
com o plano de saúde de sua família
não cobrindo tais gastos, John Q. se vê
então numa luta contra o tempo pela
sobrevivência de seu filho. Em uma
atitude desesperada, ele então decide
tomar como refém todo o setor de
emergência de um hospital, passando
a discutir uma solução para o caso
com um negociador da polícia (Robert
Duvall) e com um impaciente chefe de
polícia (Ray Liotta), que deseja encerrar
o caso o mais rapidamente possível.

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UM GOLPE do destino. Direção de Randa
Haines. Estados Unidos da América:
Touchstone Pictures Studio, 1991. 1 DVD.
(122 min.), color.

Jack McKee (William Hurt) é um médico


bem-sucedido, rico e aparentemente sem
nenhum problema, até o momento em
que é diagnosticado com câncer de gar-
ganta. Com a perspectiva de um paciente,
ele busca hospitais, tratamentos e médi-
cos, percebendo que ser um doutor é mais
do que somente cirurgias e prescrições.

PATCH Adams – o amor é contagioso.


Direção de Tom Shadyac. Estados Unidos
da America: Sextante, 1998. 1 DVD. (115
min.), color.

Em 1969, após tentar se suicidar, Hunter


Adams (Robin Williams) voluntariamente
se interna em um sanatório. Ao ajudar
outros internos, descobre que deseja ser
médico para poder ajudar as pessoas.
Desse modo, sai da instituição e entra
na faculdade de Medicina. Seus métodos
poucos convencionais causam inicialmente espanto, mas aos poucos
vai conquistando todos, com exceção do reitor, que quer arrumar
um motivo para expulsá-lo, apesar de ele ser o primeiro da turma.

Clínica ampliada e apoio matricial


Clínica ampliada 12
PROGRAMA Clínica Ampliada
e Apoio Matricial
DE EDUCAÇÃO
PERMANENTE
EM SAÚDE
DA FAMÍLIA

UNIDADE
Apoio matricial
3

Anderson Sales Dias


Prezados(as) alunos(as),

Agora que vocês já conhecem conceitos importantes sobre clínica ampliada, família e as ferra-
mentas de abordagem familiar, vamos imergir nos pressupostos do apoio matricial para uma
adequada gestão do cuidado em saúde.

Clínica ampliada e apoio matricial


Gestão da clínica 2
Aula 1: Equipe de referência
e apoio matricial

Um dos grandes desafios para se realizar a gestão do cuidado em saúde sempre foi a supe-
ração dos modelos hierárquicos piramidais e a extrema especialização, com fragmentação
do trabalho.

Historicamente os serviços de saúde obedecem a uma ordem hierarquizada de organização,


semelhante aos modelos piramidais. O ápice é formado, no caso da atenção, pelos serviços
de maior densidade tecnológica dura, das atenções terciárias e quaternárias, e a base, por
serviços de menor densidade de tecnologias duras, como é o caso da atenção primária.

• Atenções Terciárias
e Quaternárias
• Maior densidade de
tecnologias duras

• Atenção Primária
• Menor densidade
de tecnologias duras

Figura 1 - Densidade de tecnologia e atenção

Fonte: Rommel Figueiredo.

Além desse arranjo vertical de relação, há uma profunda fragmentação das unidades produti-
vas de saúde, com uma crescente especialização. Em um ambulatório hospitalar, por exemplo,
encontraremos o coordenador médico, o de enfermagem, o da nutrição, o administrador que
cuidará da equipe de limpeza e insumos, o chefe da segurança etc. Geralmente a relação entre
os membros está balizada por instrumentos burocráticos, como protocolos, mapas, fichas
de encaminhamento, referência e contrarreferência, com transferência de responsabilidade
sobre o paciente, como em uma linha de produção.

Se pensarmos em uma secretaria de saúde, não será muito diferente. As diretorias e depar-
tamentos obedecem à mesma lógica piramidal, com relações verticais e baixa ou inexistente
Clínica ampliada e apoio matricial
Apoio matricial 3
comunicação horizontal. Assim, temos a diretoria de vigilância, diretoria de Atenção Básica, dire-
toria de atenção hospitalar, o gabinete do secretário, o conselho municipal ou estadual de saúde.

A estratégia das equipes de referência e Apoio Matricial tem por objetivo original superar
essa fragmentação na perspectiva da construção de RAS, cuidadoras e corresponsáveis e
cogestoras do cuidado realizado à população.

Nesta nova unidade, conheceremos um pouco sobre o conceito de equipes de referência e


Apoio Matricial, tomando por exemplos as ações dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família
(NASF) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Segundo Campos e Domitti, (2007), os conceitos de Apoio Matricial e equipe de referência


foram propostos em uma linha de pesquisa que trabalhava reformas das organizações de saú-
de e do trabalho em saúde. Foram aplicados primeiramente no município de Campinas/SP,
enquanto metodologia de gestão do cuidado em serviços de saúde mental 2, de Atenção
Básica e da área hospitalar do Sistema Único de Saúde. Tempos depois foram adotados pelo
Ministério da Saúde como conceitos integrantes das políticas nacionais de humanização, de
saúde mental e de Atenção Básica.

Segundo esses autores, a equipe de referência seria uma equipe multiprofissional respon-
sável pela condução de problemas de saúde dentro de certo campo de conhecimento e que
busca atingir objetivos comuns, sendo responsável pela realização de um conjunto de tarefas,
ainda que operando com diversos modos de intervenção. Poderia ser a equipe responsável
pela enfermaria de oncologia de um hospital ou a Equipe de Saúde da Família responsável
pela população de um território adscrito. Independentemente de qual seja, ela estará mais
próxima dos problemas de saúde, da população acompanhada e do desenrolar dos projetos
de intervenção, ou terapêuticos, em desenvolvimento.

Para tanto, deverá trabalhar com instrumentos operacionais que auxiliem na definição da res-
ponsabilidade sanitária que ela possua e ampliem a construção de vínculo como, por exem-
plo, a adscrição de clientela à equipe de referência, por meio de registro e um cadastro de
casos sob sua responsabilidade, para avaliar risco, vulnerabilidade e identificação de casos
que mereceriam a elaboração de um Projeto Terapêutico Singular, ou mesmo alteração da
avaliação diagnóstica ou dos procedimentos de cuidado (CAMPOS; DOMITTI, 2007).

Essa equipe possui a responsabilidade sanitária e manterá o contato longitudinal com a


comunidade, mesmo quando houver inserção de outros serviços ou profissionais especia-
listas no cuidado ao usuário.

Clínica ampliada e apoio matricial


Gestão da clínica 4
Vamos pensar em um exemplo?

Um usuário foi identificado com transtornos mentais. Ele passa a ser


acompanhado por um CAPS, mas permanece sob responsabilidade
da Equipe de Saúde da Família que, inclusive, deve participar da cons-
trução e do acompanhamento do projeto terapêutico desenvolvido
em conjunto com a família e o CAPS.

Veja que nessa proposta não existe mais espaço para pensamentos
do tipo “o usuário não é mais ‘meu’, ele é agora do CAPS”. O usuário
é acompanhado pela RAS, e a Estratégia de Saúde da Família é a sua
equipe de referência. Assim, deverá acompanhá-lo durante todo
itinerário terapêutico.

Mas o que seria o apoiador matricial?


O termo matriz carrega vários sentidos; por um lado, em sua origem latina, significa o lugar
onde se geram e se criam coisas; por outro, foi utilizado para indicar um conjunto de núme-
ros que guardam relação entre si quer os analisemos na vertical, quer na horizontal, quer
em linhas transversais. O termo apoio sugere uma metodologia para ordenar as relações
entre referência e especialista não mais com base na autoridade, mas com base em proce-
dimentos dialógicos. Uma tentativa de ruptura com o modelo piramidal, vertical.

O apoiador matricial é um especialista que tem um núcleo de conhecimento


e um perfil distinto daquele dos profissionais de referência, mas que pode
agregar recursos de saber e mesmo contribuir com intervenções que aumen-
tem a capacidade de resolver problemas de saúde da equipe primariamente
responsável pelo caso (CAMPOS; DOMITTI, 2007, p. 401).

É importante ressaltar que ele não elimina a hierarquia nem responsabilidades, mas propõe
novas formas de interação entre os membros de uma Equipe de Saúde, de uma rede de
atenção ou da própria gestão. O termo foi retirado da proposta do apoiador institucional do
Apoio Paideia, em que este sujeito atua tanto na gestão do trabalho em equipe quanto na
clínica, na saúde pública ou nos processos pedagógicos. Dessa forma, a relação entre sujei-
tos com saberes, valores e papéis distintos pode ocorrer de maneira dialógica.

Assim, equipes de referência e equipes matriciais devem se relacionar de forma horizontal,


buscando arranjos que auxiliem na gestão do cuidado e no enfrentamento dos problemas
de saúde. Essa relação pode ocorrer em três planos fundamentais:

Clínica ampliada e apoio matricial


Gestão da clínica 5
a) atendimentos e intervenções conjuntas entre o especialista matricial
e alguns profissionais da equipe de referência;

b) em situações que exijam atenção específica ao núcleo de saber


do apoiador. Este pode programar para si mesmo uma série de
atendimentos ou de intervenções especializadas, mantendo contato
com a equipe de referência, que não se descomprometeria com o
caso — ao contrário, procuraria redefinir um padrão de seguimento
complementar e compatível ao cuidado oferecido pelo apoiador
diretamente ao paciente, à família ou à comunidade;

c) troca de conhecimento e de orientações entre equipe e apoiador;


diálogo sobre alterações na avaliação do caso e mesmo reorienta-
ção de condutas antes adotadas, permanecendo, contudo, o caso
sob cuidado da equipe de referência.

Os dois primeiros planos fariam parte da dimensão “clínico-assistencial”. Assim chamamos


as ações nas quais o apoiador é demandado, em conhecimentos específicos do seu núcleo
profissional, a atuar de forma compartilhada ou isolada na atenção à comunidade. É impor-
tante ressaltar que, mesmo durante condutas individuais do apoiador, a responsabilidade
do cuidado ao usuário é da equipe de referência. O terceiro plano faria parte da dimensão
técnico-pedagógica.

Nas próximas aulas traremos duas possiblidades de trabalho em equipes matriciais: os


Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Clínica ampliada e apoio matricial


Gestão da clínica 6
Aula 2: Equipe de apoio matricial – NASF

Agora que você compreende a noção macro de Apoio Matricial, vamos estudar um pouco o
Núcleo de Apoio à Saúde da Família – NASF, enquanto Apoio Matricial.

O que é o NASF?
O Núcleo de Apoio à Saúde da Família – NASF foi criado em 2008 pela Portaria nº 154, de 24
de janeiro, e atualmente é regulado pelas Portarias nº 2.488, de 2012, da Política Nacional de
Atenção Básica – PNAB, segundo a qual:

Os Núcleos de Apoio à Saúde da Família são equipes multiprofissionais,


compostas por profissionais de diferentes profissões ou especialidades,
que devem atuar de maneira integrada e apoiando os profissionais
das equipes de Saúde da Família e das equipes de Atenção Básica para
populações específicas (consultórios na Rua, equipes ribeirinhas e flu-
viais), compartilhando práticas e saberes em saúde com as equipes de
referência apoiadas, buscando auxiliá-las no manejo ou na resolução
de problemas clínicos e sanitários, bem como agregando práticas, na
Atenção Básica, que ampliem o seu escopo de ofertas.

Inicialmente foram criadas duas modalidades de NASF (tipo I e tipo II), que foram redefini-
das pela Portaria nº 3.124, de dezembro de 2012, a qual também criou a modalidade tipo III.
O quadro a seguir apresenta esses três tipos:

Clínica ampliada e apoio matricial


Apoio matricial 7
Somatória das cargas
Modalidades Nº de equipes vinculadas
horárias profissionais

Mínimo 200 horas semanais.


5 a 9 eSF e/ou eAB para popu-
Cada ocupação deve ter, no
Nasf 1 lações específicas (eCR, equipe
mínimo, 20h e, no máximo,
ribeirinha e fluvial)
80h de carga horária semanal.

Mínimo 120 horas semanais.


3 a 4 eSF e/ou eAB para popu-
Cada ocupação deve ter, no
Nasf 2 lações específicas (eCR, equipe
mínimo, 20h e, no máximo,
ribeirinha e fluvial)
40h de carga horária semanal.

Mínimo 80 horas semanais.


1 a 2 eSF e/ou eAB para popu-
Cada ocupação deve ter, no
Nasf 3 lações específicas (eCR, equipe
mínimo, 20h e, no máximo,
ribeirinha e fluvial)
40h de carga horária semanal.

Quadro 2 – Modalidades de NASF, conforme a Portaria nº 3.124/2012

Fonte: Adaptado de DAB/SAS/MS (2014, p. 16).

A modalidade de NASF obedece a critérios populacionais e define o quantitativo de equipes


a serem acompanhadas:

NASF 1: cinco a nove equipes de AB vinculadas

NASF 2: três a quatro equipes de AB vinculadas

NASF 3: uma a duas equipes de AB vinculadas.

A proposta do NASF aponta o conceito de Apoio Matricial como orientador de sua prática.
O NASF apresenta, enquanto objetivo,

Aumentar efetivamente a resolutividade e a qualidade da Atenção


Básica. Isso deve ser feito por meio da ampliação das ofertas de cuidado,
do suporte ao cuidado e à intervenção sobre problemas e necessidades
de saúde, tanto em âmbito individual quanto coletivo. Dessa forma,
amplia-se o repertório de ações da Atenção Básica, a capacidade de
cuidado de cada profissional e o acesso da população a ofertas mais
abrangentes e próximas das suas necessidades (BRASIL, 2014).

Clínica ampliada e apoio matricial


Apoio matricial 8
Cada equipe NASF pode ser composta, conforme sua modalidade e características do território
a ser apoiado, das seguintes profissões: assistente social; profissional de Educação Física;
farmacêutico; fisioterapeuta; fonoaudiólogo; profissional com formação em arte e educação
(arte educador); nutricionista; psicólogo; terapeuta ocupacional; médico ginecologista/
obstetra; médico homeopata; médico pediatra; médico veterinário; médico psiquiatra;
médico geriatra; médico internista (clínica médica); médico do trabalho; médico acupunturista
e profissional de saúde sanitarista, ou seja, profissional graduado na área de saúde com pós-
graduação em saúde pública ou coletiva ou graduado diretamente em uma dessas áreas.

Por fazer parte da Atenção Básica, o NASF é orientado pelos mesmos princípios, contudo, ele
não é um serviço com um espaço físico independente. Seu local de atuação é nas unidades
de saúde da família e em seus territórios, tendo como público-alvo as equipes de referência
apoiadas (ESF, EAB para populações específicas – consultórios na Rua, equipes ribeirinhas e
fluviais) e diretamente os usuários do Sistema Único de Saúde. Para tanto, é importante criar
mecanismos de identificação e escuta das demandas das equipes e para diálogo sobre suas
práticas e sobre o cuidado realizado diretamente aos usuários (BRASIL, 2014).

Para saber mais sobre o NASF, acesse


o Caderno de Atenção Básica, n. 39,
do Ministério da Saúde, de 2014, no
link: <http://189.28.128.100/dab/docs/
portaldab/publicacoes/caderno_39.
pdf>. Acesso em: 21 fev. 2017.

A publicação trata dos Núcleos de


Apoio à Saúde da Família (NASF) nos
municípios do Brasil, com o objetivo de aumentar efetivamente a
resolutividade e a qualidade da Atenção Básica. Aborda os seguintes
assuntos: implantação do NASF; algumas ferramentas que o NASF
pode utilizar; integração entre serviços da rede de atenção à saúde
e articulação de redes sociais de apoio e o uso da informação para a
qualificação das ações do NASF.

Clínica ampliada e apoio matricial


Gestão da clínica 9
Para realizar o trabalho, o NASF tem inúmeras atividades que abrangem tanto a dimensão
clínica e sanitária quanto a pedagógica (ou até ambas ao mesmo tempo), a saber:

• discussões de casos;

• atendimento em conjunto com profissionais das equipes apoiadas;

• atendimentos individuais e posteriormente compartilhados com as equipes;

• construção conjunta de Projetos Terapêuticos Singulares;

• educação permanente;

• intervenções no território e outros espaços da comunidade para além das unidades de saúde;

• visitas domiciliares;

• ações intersetoriais;

• ações de prevenção e promoção da saúde;

• discussão do processo de trabalho das equipes etc.

Estas atividades comporão a agenda da equipe NASF e podem ser organizadas em:

• reunião de matriciamento;

• reunião de equipe NASF;

• atendimento individual e compartilhado e específico;

• atendimento domiciliar compartilhado e específico;

• atividade coletiva compartilhada e específica;

• elaboração de materiais de apoio, rotinas, protocolos e outras ações de educação permanente.

Mais do que ações diferentes, são posturas diferentes de relação entre os trabalhadores da
saúde. No quadro a seguir, exemplifica-se a diferença entre o modelo tradicional de encami-
nhamento e a proposta do Apoio Matricial.

Clínica ampliada e apoio matricial


Gestão da clínica 10
Modelo tradicional Proposta do apoio matricial

• Discutir o tema Diabetes melittus e


estratégias para seu controle com
os profissionais do NASF (psicólogo,
assistente social, profissional de Educação
Física, nutricionista, entre outros).
• Encaminhar as pessoas para agendamento
de consulta individual com o nutricionista • Discutir com os profissionais do NASF
para orientações alimentares e nutricionais. propostas de ações e condutas que a
própria equipe de AB poderia realizar
• Encaminhar as pessoas para agendamento individual ou coletivamente.
de visita domiciliar do farmacêutico para
avaliação da adesão aos medicamentos. • Planejar e realizar com os profissionais
do NASF intervenções conjuntas
• Encaminhar as pessoas ao profissional de (atendimentos individuais ou coletivos,
Educação Física para prática coletiva de atendimentos domiciliares, atividades no
atividade física. território etc.).

• Encaminhar as pessoas para o • Pactuar intervenções específicas dos


endocrinologista. profissionais do NASF, com discussão e
repactuação permanentes com a equipe
de referência.

• Construir Projetos Terapêuticos Singulares


para os casos mais difíceis e complexos.

Quadro 3 – Diferenças entre o modelo tradicional de encaminhamento de usuários


e a proposta do Apoio Matricial

Fonte: Adaptado de DAB/SAS/MS (2014).

É interessante entender que as coisas não mudam do dia para a noite, então realizar
um conjunto de reuniões entre equipes de referência e Apoio Matricial é fundamental.
Um importante espaço na construção da relação entre equipes de referência e Apoio
Matricial são as reuniões matriciais. Estas são configuradas por:

Discussão de casos ou temas entre os profissionais que compõem as dife-


rentes equipes envolvidas, obtendo-se um diagnóstico de necessidades e o
levantamento/planejamento de ações que possam ser desenvolvidas para
atendê-las da melhor maneira possível. A partir das pactuações realizadas,
segue-se um movimento de monitoramento dos resultados alcançados e a
continuidade dessa articulação, a partir de novas situações que se apresen-
tem na Atenção Básica (BRASIL, 2014, p. 59).

Clínica ampliada e apoio matricial


Gestão da clínica 11
Um primeiro ciclo de reuniões matriciais pode ter por objeto a integração entre a equipe de
referência e a equipe matricial, conforme o exemplo a seguir:

Reunião
com as ESF

Conduta e Discussão de casos


monitoramento em reunião
ESF-NASF ESF-NASF

Elaboração de Diagnóstico das


propostas necessidades

Figura 2 - Movimento de integração entre NASF e as equipes vinculadas

Fonte: OSCEJAM (2013).

Vencida essa etapa, é fundamental a pactuação das ações a serem desenvolvidas, associadas
às metas de qualidade da atenção e produção de indicadores que mensurem a efetividade
das ações. Avaliar não é uma atividade fácil, e monitorar é um dos principais desafios para as
políticas de saúde, contudo, por meio do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da
Atenção Básica – PMAQ, todos os profissionais, inclusive o NASF, possuem instrumentos pró-
prios e compartilhados para avaliarem e proporem ações que visam a qualidade da atenção.

Para tanto, são necessárias algumas medidas que garantam a efetividade da ação de avalia-
ção e monitoramento:

• Pactuação de indicadores mais próximos da realidade e de necessidades do território de atuação


das equipes.

• Meios de divulgação e apresentação periódicos das informações registradas pelas equipes, tais
como: relatórios, boletins, informativos, reuniões comunitárias, conselho de saúde, entre outros.

• Espaços para discussão dos resultados obtidos.

• Sistemas de informação que dialoguem com as especificidades locais.

• Melhoria da infraestrutura da tecnologia da informação das UBS.


Clínica ampliada e apoio matricial
Gestão da clínica 12
Aula 3: Apoio matricial e CAPS

Agora que já sabemos o papel do NASF no Apoio Matricial, vamos refletir sobre o Centro de
Atenção Psicossocial – CAPS.

Com o movimento da reforma psiquiátrica da década de 1980, surgiram no país experiên-


cias de modelos substitutivos aos hospitais psiquiátricos (como os CAPS, a própria Atenção
Básica, as residências terapêuticas, os ambulatórios, os centros de convivência, os clubes
de lazer, entre outros), com a proposta de trabalhar o cuidado em saúde mental em uma
perspectiva inclusiva de reinserção social.

Nessa abordagem, o território de origem das pessoas, não só o geográfico mas também
o afetivo, tem grande importância. A saúde mental, com o Decreto nº 7.508/11, passou a
ser uma das RAS prioritárias para o SUS, o que provoca a discussão em como a rede pode
trabalhar essa temática. Não é incomum encontrar profissionais de atenção primária que
possuem resistência, receio, insegurança ou outros adjetivos frequentemente utilizados,
quando se deparam com casos de saúde mental.

Surgidos na década de 80 do século XX, no município de São Paulo, os Centros de Aten-


ção Psicossocial constituem uma importante estratégia para os cuidados em saúde mental,
substitutivo às internações em hospitais psiquiátricos.

O objetivo desta aula é apresentar o CAPS e sua potencialidade


enquanto equipe de Apoio Matricial para as equipes de atenção
primária, na linha do cuidado em saúde mental, e contribuir para a
superação do mito da dificuldade da abordagem em saúde mental
na atenção primária.

A realidade das equipes de Atenção Básica demonstra que, cotidianamente, elas se deparam
com problemas de saúde mental. Por sua proximidade com famílias e comunidades, as
equipes da Atenção Básica são um recurso estratégico para o enfrentamento de agravos
vinculados ao uso abusivo de álcool, drogas e diversas formas de sofrimento psíquico.
Existe um componente de sofrimento subjetivo associado a toda e qualquer doença,
Clínica ampliada e apoio matricial
Apoio matricial 13
às vezes atuando como entrave à adesão a práticas preventivas ou de vida mais saudáveis.
Poderíamos dizer que todo problema de saúde é também – e sempre – mental, e que toda
saúde mental é também – e sempre – produção de saúde (BRASIL, 2003).

As ações de saúde mental na Atenção Básica devem obedecer ao modelo de redes de cuida-
do, de base territorial e atuação transversal com outras políticas específicas e que busquem
o estabelecimento de vínculos e acolhimento. Essas ações devem estar fundamentadas nos
princípios do SUS e nos princípios da Reforma Psiquiátrica. Podemos sintetizar como princí-
pios fundamentais dessa articulação entre saúde mental e Atenção Básica:

• noção de território;

• organização da atenção à saúde mental em rede;

• intersetorialidade;

• reabilitação psicossocial;

• multiprofissionalidade/interdisciplinaridade;

• desinstitucionalização;

• promoção da cidadania dos usuários;

• construção da autonomia possível de usuários e familiares (BRASIL, 2003).

As ações de saúde mental na Atenção Básica devem obedecer ao modelo de redes de cuida-
do, de base territorial e atuação transversal com outras políticas específicas e que busquem
o estabelecimento de vínculos e acolhimento.

Afinal, você sabe o que é CAPS? Existe algum de referência para a sua equipe?

Os Centros de Atenção Psicossociais, ou CAPS, são serviços de saúde do SUS


de acesso aberto e de base comunitária, que se constituem enquanto refe-
rência para o tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais
(psicoses, neuroses graves, uso de álcool e outras drogas etc.) que necessi-
tarem de cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor de vida
(BRASIL, 2004).

Clínica ampliada e apoio matricial


Gestão da clínica 14
Objetivos e responsabilidades dos CAPS

Vamos agora compreender os principais objetivos e responsabilidades dos CAPS com o


auxílio do quadro a seguir:

Objetivos Responsabilidades

• Organizar a rede de serviços de saúde


mental de seu território.
• Prestar atendimento em regime de
• Dar suporte e supervisionar a atenção à
atenção diária.
saúde mental na Atenção Básica.
• Gerenciar os Projetos Terapêuticos
• Regular a porta de entrada da rede de
oferecendo cuidado clínico eficiente
assistência em saúde mental de sua área.
e personalizado.
• Coordenar junto com o gestor local as
• Promover a inserção social dos usuários
atividades de supervisão de unidades
por meio de ações intersetoriais que
hospitalares psiquiátricas que atuem no
envolvam educação, trabalho, esporte,
seu território.
cultura e lazer, montando estratégias con-
juntas de enfrentamento dos problemas. • Manter atualizada a listagem dos pacien-
tes de sua região que utilizam medica-
mentos para a saúde mental.

Quadro 3 – Objetivos e responsabilidades dos CAPS

Fonte: Brasil, 2014.

Muitos profissionais não têm conhecimento sobre o papel de um CAPS na atenção primária, de
que forma ele pode atuar em uma perspectiva de Apoio Matricial. Como vimos anteriormente,
na dimensão clínico-assistencial ou técnico-pedagógica, ele visa fornecer-lhes: orientação
e supervisão; atendimento conjunto em situações mais complexas; realização de visitas
domiciliares acompanhadas das equipes da Atenção Básica; atendimento a casos complexos
por solicitação da Atenção Básica; participação da construção e acompanhamento de PTS.

Para tanto, é necessário: realizar atividades de educação permanente (capacitação, super-


visão) sobre saúde mental, em cooperação com as equipes da Atenção Básica; conhecer e
interagir com as equipes de Atenção Básica de seu território; e estabelecer iniciativas con-
juntas de levantamento de dados relevantes sobre os principais problemas e necessidades
de saúde mental no território (BRASIL, 2004).

De acordo com a política de saúde mental, os itens descritos são considerados dispositivos
estratégicos para a organização da rede de atenção em saúde mental. Para tanto, devem
estar territorializados de forma estratégica, circunscritos no espaço de convívio social (famí-
lia, escola, trabalho, igreja etc.) daqueles usuários que os frequentam. Se olharmos pelo
prisma da clínica ampliada, veremos que a proposta é olhar para além da doença, na vida,
resgatar as potencialidades dos recursos comunitários, pois estes fazem parte dos cuidados
em saúde mental.

Clínica ampliada e apoio matricial


Gestão da clínica 15
Responsabilidades compartilhadas entre as equipes matriciais
de saúde mental e da Atenção Básica

As equipes de saúde mental de apoio à Atenção Básica incorporam ações de supervisão,


atendimento em conjunto e atendimento específico, além de participar das iniciativas de
capacitação. Além disso, as seguintes ações devem ser compartilhadas:

a. Desenvolver ações conjuntas, priorizando: casos de transtornos mentais severos e


persistentes, uso abusivo de álcool e outras drogas, pacientes egressos de internações
psiquiátricas, pacientes atendidos nos CAPS, tentativas de suicídio, vítimas de violência
doméstica intradomiciliar.

b. Discutir casos identificados pelas equipes da Atenção Básica que necessitem de uma
ampliação da clínica em relação às questões subjetivas.

c. Criar estratégias comuns para abordagem de problemas vinculados à violência, abuso


de álcool e outras drogas, estratégias de redução de danos etc. nos grupos de risco e nas
populações em geral.

d. Evitar práticas que levem à psiquiatrização e medicalização de situações individuais e


sociais, comuns à vida cotidiana.

e. Fomentar ações que visem à difusão de uma cultura de assistência não manicomial, dimi-
nuindo o preconceito e a segregação com a loucura.

f. Desenvolver ações de mobilização de recursos comunitários, buscando construir espa-


ços de reabilitação psicossocial na comunidade, como oficinas comunitárias, destacando a
relevância da articulação intersetorial (conselhos tutelares, associações de bairro, grupos de
autoajuda etc.).

g. Priorizar abordagens coletivas e de grupos como estratégias para atenção em saúde men-
tal, que podem ser desenvolvidas nas Unidades de Saúde, bem como na comunidade.

h. Adotar a estratégia de redução de danos nos grupos de maior vulnerabilidade, no mane-


jo das situações envolvendo consumo de álcool e outras drogas. Avaliar a possibilidade de
integração dos agentes redutores de dano a essa equipe de Apoio Matricial.

i. Trabalhar o vínculo com as famílias, tomando-as como parceiras no tratamento e buscar


constituir redes de apoio e integração.

E como e quando realizar essas atividades? Lembremos que estamos diante de uma pro-
posta de Apoio Matricial e não de encaminhamento tradicional. Você já pensou em reuniões
matriciais envolvendo os atores do território (ESF, NASF, CAPS)?

Clínica ampliada e apoio matricial


Gestão da clínica 16
PROGRAMA Clínica Ampliada
e Apoio Matricial
DE EDUCAÇÃO
PERMANENTE
EM SAÚDE
DA FAMÍLIA

UNIDADE 4
Projeto Terapêutico
Singular

Anderson Sales Dias


José Adailton da Silva
Estamos chegando ao final do nosso módulo. Você pôde aprender nas unidades anteriores
o conceito de clínica ampliada, equipes de referência e apoio matricial e algumas ferramen-
tas para abordagem familiar. Durante todas as unidades, falou-se sempre em construção de
Projetos Terapêuticos Singulares, seja pela equipe, seja em conjunto com o apoio matricial.

Nesta última unidade, iremos apresentar algumas reflexões sobre o Projeto Terapêutico
Singular – PTS. Contudo, gostaríamos que você entendesse que não existe receita para essa
construção. Partindo do conceito de singular, próprio, único, cada projeto deve ser pensado
para a realidade que irá intervir.

Clínica ampliada e apoio matricial


Projeto terapêutico singular 2
Aula 1: O que é Projeto
Terapêutico Singular?

A concepção da clínica tradicional nos condiciona a pensar em processos universalizantes,


que possam ser replicados com o maior número possível de casos. É justamente desse pen-
samento que devemos fugir.

A noção de singularidade advém da especificidade irreprodutível da


situação sobre a qual o PTS atua, relacionada ao problema de uma deter-
minada pessoa, uma família, um grupo ou um coletivo (BRASIL, 2013).

Em vez de instrumentos e roteiros predeterminados, pensemos em modificação de pro-


cesso de trabalho, na perspectiva de trazer o usuário e sua família para a centralidade do
processo, não como uma atitude “politicamente correta”, mas como uma mudança de para-
digma de como construir saúde com a população e não para a população.

Nesse sentido, os conceitos de clínica ampliada e Projeto Terapêutico Singular são um con-
vite ao enfrentamento de situações vivenciadas pelas equipes e encaradas como de difícil
resolução, pois esbarram nos limites da clínica tradicional. A superação desse desafio é uma
provocação ao modelo de atenção e à gestão dos serviços de saúde a se reinventarem com
instrumentos novos que auxiliem a superação dos limites impostos pela clínica tradicional
(BRASIL, 2009).

Vimos em nossa situação problema que a Equipe de Saúde da Família e o NASF se reuni-
ram para discutir a situação complexa de uma família frente ao adoecimento e submetida
a uma realidade de exploração. Naquele momento, a equipe chegou à conclusão de que as
terapêuticas não fariam mais resultados e o quanto isso era frustrante. Pensou-se então na
elaboração de uma proposta mais ampla de intervenção, envolvendo família, universidade,
Equipe de Saúde e associação de moradores. Começava a construção de um Projeto Tera-
pêutico Singular.

Clínica ampliada e apoio matricial


Projeto terapêutico singular 3
Você já refletiu o quanto a vida está medicalizada? No seu dia a dia, o
quanto a medicalização está presente? Em que situações você geral-
mente recorre à automedicação?

Segundo a Política Nacional de Humanização, o Projeto Terapêutico Singular (PTS) é um


movimento de coprodução e de cogestão do processo terapêutico de indivíduos ou coletivo,
em situação de vulnerabilidade. Entende-se por vulnerabilidade a situação em que os indiví-
duos apresentam dificuldades ou impossibilidade para se prevenir ou sair de uma situação.
No caso da família da nossa situação problema, o contexto da exploração do trabalho, alta
jornada de trabalho e as condições inadequadas de vida eram fatores que os deixavam vul-
neráveis ao adoecimento e que impediam a superação dessa situação.

O PTS pode ser definido como uma estratégia de cuidado que articula um conjunto de ações
resultantes da discussão e da construção coletiva de uma equipe multidisciplinar e leva em
conta as necessidades, as expectativas, as crenças e o contexto social da pessoa ou do cole-
tivo para o qual está dirigido (BRASIL, 2007). É o resultado da discussão de uma equipe
interdisciplinar, equipe de referência de forma interna ou com a equipe de Apoio Matricial.

O PTS foi bastante utilizado pela saúde mental para buscar outras alternativas ao trata-
mento psiquiátrico, fechado no diagnóstico e na medicalização, para uma perspectiva de
atuação integrada de equipe valorizando as opiniões de todos os profissionais e usuários na
busca de propostas de ações (BRASIL, 2009).

Para alguns é uma modificação de uma discussão de caso clínico, com uma forma própria
de discutir e sistematizar as intervenções, os responsáveis para possíveis reavaliações.
Contudo, não é aconselhável, e na maioria das vezes, nem viável ou necessário construí-lo
para todos os casos acompanhados por uma Equipe de Saúde (BRASIL, 2013).

Clínica ampliada e apoio matricial


Projeto terapêutico singular 4
Aula 2: Como construir um PTS?

Como construir um PTS?

Geralmente, os casos tidos como mais complexos e/ou graves devem ser priorizados obser-
vando algumas dicas:
• Qual a extensão e/ou intensidade dos problemas apresentados?
• Quais dimensões estão sendo afetadas? Biológica, psicológica ou social?
• O caso exige uma articulação da equipe?

• Será preciso envolver outras instâncias como os recursos comunitários, outros serviços de saúde
e/ou instituições intersetoriais?

Para se elaborar um PTS, é necessário seguir algumas etapas. A depender do autor, o projeto pode
ser dividido em três ou quatro momentos. Neste módulo, optamos por utilizar quatro momentos:

PACTUAÇÃO ENTRE EQUIPE E USUÁRIOS

DEFINIÇÃO DE HIPÓTESES,
DIAGNÓSTICO, CONDICIONANTES E ENVOLVIDOS

Definição e
pactuação da
situação de um
sujeito,família
ou comunidade
AVALIAÇÃO / DEFINIÇÃO DE
REAVALIAÇÃO DA SITUAÇÃO OBJETIVOS E METAS

DIVISÃO DE TAREFAS
E REFERÊNCIAS

Figura 1 - Fases de construção de um Projeto Terapêutico Singular

Arte: Lyo Lima

Clínica ampliada e apoio matricial


Projeto terapêutico singular 5
O PTS poderá ser construído e acompanhado pela equipe de referência, com o auxílio da
equipe matricial (NASF, CAPS etc.), de acordo com a necessidade do caso. Vamos, agora,
estudar suas etapas.

Diagnóstico situacional
Essa etapa também é conhecida como definição de hipóteses e diagnósticos. O fundamental
dela é o processo de aproximação da equipe da situação vivenciada por um sujeito, família ou
comunidade, de forma mais extensiva possível. Em se tratando de uma situação nova para
a equipe, se orienta o cuidado com o acolhimento empático e a escuta cuidadosa e sensível
para favorecer o vínculo, possibilitando disponibilidade de receber e ofertar, em qualquer
momento ao longo do processo de cuidado, uma escuta cuidadosa e sensível; ofertar a voz
à pessoa, à família, ao grupo ou ao coletivo para que falem sobre seus problemas, suas
expectativas, suas explicações e suas tentativas de intervenção (BRASIL, 2013).

Se o caso já é acompanhado, é recomendado que o profissional que possui maior vínculo


com o caso deve apresentar todos os elementos já coletados a respeito deste. Quem são os
envolvidos, qual o problema enfrentado, o que a equipe já fez sobre o caso e quais os resul-
tados anteriores, que situações novas surgiram. É importante criar um ambiente de respeito
às falas de todos para favorecer a contribuição do grupo. Nesse momento, cada profissio-
nal escutará a história de vida, como realizando uma anamnese ampliada, com dimensões
sociais e psicológicas do caso. Toda visão é importante para compreendê-lo bem (BRASIL,
2009). O profissional com maior proximidade com o caso pode ir tirando dúvidas.

Com essa etapa pretende-se:

• identificar necessidades, demandas, vulnerabilidades e potencialidades;

• cartografar o contexto social e histórico em que se inserem a pessoa, a família, o grupo ou o coleti-
vo ao qual está dirigido;

• identificar intervenções já realizadas e seus resultados.

Caso haja necessidade de coleta de mais informações, é possível utilizar-se alguns dispositi-
vos para ampliar o conhecimento sobre a situação do usuário, da família ou da comunidade:

• visitas in loco para diagnóstico situacional;

• construção de genogramas e ecomapas;

• discussão com aparelhos sociais e serviços envolvidos nos casos (igreja, trabalho, CRAS);

• exposição de cada membro da equipe que teve contato com a situação (agente comunitário, médi-
co, enfermeiro, nutricionista etc.).

Clínica ampliada e apoio matricial


Projeto terapêutico singular 6
A definição de objetivos e metas
Nesta fase, é fundamental a escuta sensível para a pactuação das metas e dos objetivos.
Um membro da equipe estará como referência e terá o papel de mediar essa construção,
hora com a equipe, hora com o usuário, família ou grupo. Durante essa elaboração, diferen-
ças, conflitos e contradições precisarão ser explicitados e trabalhados, de maneira a pactuar
os consensos possíveis entre os diversos agentes envolvidos. As expectativas devem ser tra-
balhadas e esclarecidas e deve-se analisar a viabilidade das propostas relacionando-as com
o grau de envolvimento e pactuação entre os membros da equipe e os sujeitos, famílias ou
grupos. Podemos utilizar algumas questões para auxiliar esse momento:

• Como gostaríamos que determinada pessoa a ser cuidada estivesse daqui a algum tempo?

• Como ela gostaria de estar?

• E como seus familiares gostariam que ela estivesse?

A pactuação do que é possível fazer deve incluir todos os envolvidos – equipe e pessoa, famí-
lia, grupo ou coletivo para o qual está dirigido o PTS, pois isso estimula o compartilhamento
e a cogestão do processo de cuidado.

Divisão de tarefas e responsabilidades


(quem faz o que e quando?)
Nessa etapa, já há a clareza do que deve ser feito. A divisão das tarefas tem que ser clara
para não comprometer o projeto. Primeiramente é definido um técnico de referência que
coordenará o projeto terapêutico e que, de preferência, é o trabalhador com maior vínculo
com os sujeitos, famílias ou grupos em questão. Assim, nessa fase, ele deverá esclarecer o
que vai ser feito, por quem e em que prazos (BRASIL, 2013).

O técnico de referência tem a responsabilidade de coordenar o PTS,


suas tarefas, metas e prazos por meio do acompanhamento, articu-
lação, negociação pactuada e reavaliação do processo com a pessoa,
seus familiares, a Equipe de Saúde e outras instâncias que sejam
necessárias (BRASIL, 2013).

A reavaliação do PTS
A condução da reavaliação é de responsabilidade do técnico responsável. Ele pode realizá-la
em diversos momentos, tais como:

• reuniões com a pessoa cuidada, sua família;


Clínica ampliada e apoio matricial
Projeto terapêutico singular 7
• reunião de equipe;

• reuniões ampliadas com outros serviços (CAPS, ambulatórios, CRAS etc.) e instituições implicadas
(escola, associação de moradores, ONGs).

O objetivo desse momento é: a revisão de prazos, expectativas, tarefas, objetivos, metas e


resultados esperados e obtidos, que podem ajudar a manter o PTS ou introduzir e redirecio-
nar as intervenções conforme as necessidades (MÂNGIA; BARROS, 2009 apud BRASIL, 2013).

ALGUNS DESAFIOS PARA A CONSTRUÇÃO DE PTS

Algumas situações podem surgir como desafios para que as equipes


realizem a construção de PTS em seus territórios:

1 – Equipe com processo de trabalho fragmentado, pouco envolvi-


mento de seus membros (cada um cuidando do “seu quadrado”)

É importante o envolvimento de todos. Para superar essa dificuldade,


é aconselhável o apoio da gestão e de um ator externo. O apoio matri-
cial é uma ótima alternativa, e deve-se ter o cuidado em distribuir
os casos entre todos para não haver sobrecarga. Se lembrarmos de
unidades anteriores, o papel técnico-pedagógico preconiza a troca
de experiências entre membros do Apoio Matricial e equipe de refe-
rência sobre casos acompanhados e sobre o processo de trabalho;
as equipes NASF ou a do CAPS, a depender do caso, são uma opção.

2 – A proteção da agenda para construção de PTS

Para a construção dessa agenda, é preciso repensar o modelo de


reunião tradicional, burocrática e pouco produtiva — um fala e outros
escutam. Criar um ambiente agradável e que respeite a contribuição
de todos favorece a manutenção do espaço; uma estratégia para
adesão é trabalhar os casos que mais mobilizam as equipes. Um
outro problema para a manutenção dessa reunião é a pactuação da
agenda com a comunidade, que encara como “menos atendimento”.
Para isso, a apresentação da proposta, de forma articulada com a
gestão, é um bom caminho para a sua proteção.

3 – Projetos Terapêuticos por si só não mudam modelos de aten-


ção e não são receitas de bolo

Cada equipe deve estar disposta a construir, mas também precisará


de espaço protegido para discutir dúvidas e fragilidades. Lidar com
o sofrimento do outro é algo que não é abordado na maioria das

Clínica ampliada e apoio matricial


Projeto terapêutico singular 8
formações da área da saúde, nas quais há o incentivo da neutrali-
dade e do não envolvimento. É preciso criar ambientes para cuidar
da equipe, de seus medos e que incentivem a subjetividade.

4 – Necessidade de plano de educação permanente

A educação permanente tem sido uma grande aliada no processo


de mudança de práticas de gestão e atenção em saúde. Repensar
as reuniões de equipes e enxergar o processo de trabalho enquanto
matéria-prima para o aprendizado podem auxiliar no aperfeiçoa-
mento da construção dos PTS, de forma horizontal e valorizando o
conhecimento de todos os membros das equipes e da comunidade.

5 – Práticas integrativas e complementares

Essas práticas têm sido grandes aliadas em ofertas das equipes para
as comunidades nas pactuações de projetos terapêuticos e na cons-
trução da clínica ampliada. O conhecimento técnico das profissões é
fundamental para o cuidado, só que há a necessidade de ampliá-lo e
passar a encará-lo como mais uma oferta de um cardápio que pode
ser pactuado com os usuários.

Ao longo desta unidade buscamos envolvê-lo na produção do cuidado ampliado às neces-


sidades de saúde da população. Mais do que promover um módulo, acreditamos que os
trabalhadores de saúde convivem com a realidade da população e acabam buscando pro-
teções individuais para continuar sua atividade. Aprender a lidar com as necessidades das
pessoas e possibilitar ofertas para auxiliar o enfrentamento e a construção da autonomia
dos usuários traz sentido ao trabalho em saúde; com isso, um maior prazer e satisfação para
aqueles que escolheram cuidar do outro e, por consequência, acabam cuidando de si.

Clínica ampliada e apoio matricial


Projeto terapêutico singular 9

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