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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CEG - CENTRO DE ESTUDOS GERAIS


ICHIF - INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
E FILOSOFIA
PPGA - PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM ANTROPOLOGIA

ENTRE A ESTRUTURA E A PERFORMANCE: RITUAL


DE INICIAÇÃO E FACCIONALISMO ENTRE OS
XAVANTE DA TERRA INDÍGENA SÃO MARCOS

Paulo Sérgio Delgado

Niterói
2008
PAULO SÉRGIO DELGADO

Entre a Estrutura e a Performance: Ritual de Iniciação e


Faccionalismo entre os Xavante da Terra Indígena
São Marcos

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da


Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF), como requisito parcial para
obtenção de Grau de Doutor. Área de concentração: Etnologia Indígena.

Orientadora: Profª. Dr.ª Eliane Cantarino O’Dwyer


PPGA/UFF
Co-orientador: Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira
UFRJ/Museu Nacional

Niterói
2008
FICHA CATALOGRÁFICA

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá UFF

D352 Delgado, Paulo Sérgio.


Entre a estrutura e a performance: ritual de iniciação e faccionalismo
entre os Xavante da Terra Indígena São Marcos / Paulo Sérgio
Delgado. – 2008.
450 f.; il.
Orientador: Eliane Cantarino O’Dwyer.
Co-orientador: João Pacheco de Oliveira
Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Antropologia, 2008.
Bibliografia: f. 421-426.
1. Índio Xavante – Rito e cerimônia. 2. Reservas indígenas – Brasil.
I. O’Dwyer, Eliane Cantarino. II. Universidade Federal Fluminense.
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. III. Título.
CDD 980.41

Contato: paulosdelgado@terra.com.br
PAULO SÉRGIO DELGADO

Entre a Estrutura e a Performance: Ritual de Iniciação e


Faccionalismo entre os Xavante da Terra Indígena
São Marcos

Aprovada em 31 de março de 2008.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________
Prof. Dra. Eliane Cantarino O’Dwyer –
Orientadora
Universidade Federal Fluminense - UFF

_____________________________________________
Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira – Co-orientador
UFRJ/Museu Nacional

_____________________________________________
Prof. Dr. Fabio Mura
UFRJ/Laced-Museu Nacional

_____________________________________________
Prof. Dra. Maria Fátima Roberto Machado
Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT

_____________________________________________
Prof. Dra. Paula Caleffi
Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS

_____________________________________________
Prof. Dr. Sidnei Clemente Peres
Universidade Federal Fluminense - UFF

_____________________________________________
Prof. Dr. Jair de Souza Ramos (Suplente)
Universidade Federal Fluminense - UFF
Aos Xavante da Terra Indígena São Marcos
À Silvia e Letícia
Você não sabe
O quanto eu caminhei
Prá chegar até aqui
Percorri milhas e milhas
Antes de dormir
Eu nem cochilei
Os mais belos montes
Escalei
Nas noites escuras
De frio chorei (...)

A Estrada (Cidade Negra)


Composição: Toni Garrido/ Lazão/ Da Gama/ Bino
AGRADECIMENTOS

O que a epigrafe não diz, é que nesta estrada eu nunca estive sozinho. Ao chegar

ao final desta tese e num rápido olhar para o passado me vem à memória um grande

número de pessoas que encontrei pelo caminho e me ajudaram a chegar até aqui. Neste

sentido, agradeço:

Aos Salesianos da Inspetoria de Campo Grande, MS, que favoreceram meu

encontro com os Xavante. Mesmo correndo o risco de cometer alguma injustiça

menciono alguns nomes: Pe. Leal, Pe Pedro Sbardellotto, Pe. Giaccaria, Me. Adalberto

Heide, Pe. Jorge Lachnitt, Pe. Miguel Gaya. Pe. Ademir Lima de Oliveira, amigo dos

tempos de seminário, quando fui salesiano, e dos dias atuais que gentilmente me

emprestou sua máquina fotográfica digital, o que foi fundamental para documentar os

rituais do danhono que acompanhei. Datiö Josina’re, pessoa que conheci na aldeia São

Marcos e ali vive a mais de quarenta anos desempenhando um trabalho voluntário de

assistência aos Xavante – sua fluência na língua Xavante, bem como o conhecimento

profundo das práticas culturais dos Xavante, ajudou-me a repensar e lançar novas

hipóteses de interpretação dos rituais Xavante. Ao Pe. Luilton Pouso, irmão de coração,

que esteve sempre solícito e disponibilizou sua casa e secretaria da Paróquia Santo

Antônio, em Barra do Garças, de onde pude resolver problemas técnicos e burocráticos

do campo, bem como pela ajuda em conseguir material jornalístico que foi de grande

valia para este trabalho.

As Irmãs Salesianas: Ir. Elza, Ir. Vitória, Ir. Estela, Ir. Divina, e tantas outras,

pessoas que fizeram do trabalho missionários com os Xavante uma causa de vida.

Aos Xavante das aldeias de São Marcos e de Nossa Senhora de Guadalupe, bem

como as demais, que me acolheram e me inseriram numa de suas instituições mais

preciosas, as classes de idade, permitindo que eu participasse dos processos de iniciação

do danhono. Agradeço a Luiz Tsirobo’we Dupredzamo, irmão e amigo; e aos

companheiros da classe de idade hötörã.


A Izabel Viana, voluntária entre os Xavante durante o tempo em que morei na

aldeia, que tanto me incentivou a participar dos rituais Xavante e por traduzir parte do

universo feminino Xavante para mim, graças a sua intensa convivência com as mulheres

desta etnia.

A Silvia, que de um encontro na aldeia resultou em casamento e daí nasceu

Letícia que não vê a hora do pai terminar a tese, para que possa brincar com ela.

A Luciene G. Souza e família, pela convivência e trocas de informações sobre os

Xavante e as hipótese de trabalho compartilhadas.

A D. Luzia, mãe de coração, e Dr. Luck (Luiz Carlos) grandes incentivadores

deste trabalho, inclusive financeiramente quando as contas e gastos no campo

encontravam-se numa situação nada fácil.

Aos meus irmãos Aguinelo Delgado e Julio Delgado, que restauraram meu

sorriso.

A turma de doutorado: Débora, Lucieni, Ângela, Soraia, Cintia e Cátia, que se

tornou uma comunidade de aflição, pensando em Victor Turner um dos teóricos usados

nesta tese. Sempre que nos reuníamos sentíamos a necessidade de apaziguar as sombras,

não de caçadores mortos como entre os Ndembu, mas dos ancestrais da antropologia e

dos prazos colocados pelo PPGA/UFF. Para tanto realizávamos alguns rituais de aflição

nos bares e outros espaços. Ademais, pessoas que compartilharam conosco seus projetos

de pesquisa, entres os quais socializamos nossas dificuldades e alegrias.

Aos orientadores desta tese: Eliane Cantarino O’Dwyer, cuja relação desde o

mestrado foi bem mais do que desenvolver um trabalho intelectual, mas também de

amizade e com quem aprendi muito mais do que antropologia. Igualmente agradeço a

João Pacheco que incentivou a continuidade de um trabalho iniciado no mestrado e

agora se materializa nesta tese.

Aos membros da banca de avaliação, de antemão, agradeço as críticas e

sugestões.
Sou grato ao PROJETO Políticas para a "Diversidade" e os Novos "Sujeitos de

Direitos": estudos antropológicos das práticas, gêneros textuais e organizações de

governo, coordenado por Antonio Carlos de Souza Lima (MN/UFRJ), Adriana de

Resende Barreto Vianna (MN/UFRJ) e Eliane Cantarino O´Dwyer (UFF), por meio do

Convênio FINEP nº 01.06.0740.00 – REF: 2173/06 – Processo FUJB nº 12.867-8, nos

quadros do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento

(LACED)/Setor de Etnologia – Depto. de Antropologia/Museu Nacional-UFRJ. Por

financiar uma das etapas de pesquisa de campo.

A FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do

Rio de Janeiro, pelo apoio concedido por meio da bolsa de doutorado, fundamental e

imprescindível para a realização de todas as etapas desta tese.


SUMÁRIO

LISTA DE QUADROS ..................................................................................................... i


LISTA DE MAPAS .......................................................................................................... ii
RESUMO ........................................................................................................................ iii
ABSTRACT .................................................................................................................... iv
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 1
1 - OBJETIVO DA TESE E APORTE METODOLÓGICO........................................ 2
2 – O PROJETO DE PESQUISA E A PESQUISA DO PROJETO ........................... 27
3 - OS XAVANTE DA TERRA INDÍGENA SÃO MARCOS ................................. 32
4 - O TRABALHO DE CAMPO ................................................................................ 40
CAPÍTULO I .................................................................................................................. 46
ESTRUTURA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL XAVANTE ........................................... 46
1 - CLASSES DE IDADE, CLÃS E O SISTEMA POLÍTICO XAVANTE ............. 46
1.1 - OS CLÃS ............................................................................................................ 47
1.2 - CLASSES DE IDADE ....................................................................................... 53
1.3 - CICLO DE VIDA ENTRE OS XAVANTE....................................................... 58
CAPÍTULO II ................................................................................................................. 76
RITUAL ......................................................................................................................... 76
2 - OS RITUAIS DE INICIAÇÃO ENTRE OS XAVANTE ..................................... 76
2.1 - O DANHONO .................................................................................................... 76
2.2 – ABADZIRÃIHIDIBA – RITUAL DE NOMINAÇÃO DAS MULHERES. .... 76
2.3 - TSAWÖRÖ’WA ................................................................................................ 78
2.4 – DARINI (WAI’ARINI) ..................................................................................... 79
2.5 - O DANHONO .................................................................................................... 82
2.5.1 - ATORES E ESPAÇOS RITUAIS E ALGUMAS CERIMÔNIAS ................. 86
2.5.1.1 - OS DANHOHUI’WA................................................................................... 86
2.5.1.2 - HÖ - A CASA DOS SOLTEIROS ............................................................... 90
2.5.1.3 - O RITUAL DO OI’O ................................................................................... 92
2.5.1.4 – ADMISSÃO À CASA DOS SOLTEIROS – HÖ ........................................ 97
2.5.1.5 – O RITUAL DO UIWEDE, CORRIDA DE BURITI ................................. 103
2.5.1.6 – HÖ’WA – MORADOR DA CASA DOS SOLTEIROS ........................... 108
2.5.1.7 – WA’I - A CERIMÔNIA DE LUTA .......................................................... 132
2.5.2 - CARGOS ESPECIAIS NO PROCESSO DE INICIAÇÃO .......................... 136
2.5.2.1 - O A’ÃMA ................................................................................................... 136
2.5.2.2 - OS AIHÖ’UBUNI ...................................................................................... 148
2.5.2.3 - PAHÖRI´WA E TÉBE ............................................................................... 149
CAPÍTULO III ............................................................................................................. 160
O ANO DA EXCELÊNCIA ......................................................................................... 160
3 - FASES DO PROCESSO DE INICIAÇÃO ......................................................... 160
3.1 – PREPARATIVOS PARA O BANHO DE IMERSÃO.................................... 163
3.1.1 – O DATSI’WATÉ - BANHO DE IMERSÃO ............................................... 164
3.2 – DAPOREDZAPU – O FURO DOS LÓBULOS AURICULARES ................ 167
3.3 - NONHAMAHÖBÖ ou NONHAMAHÖPÖ’ÕNO - CERIMÔNIA DO BOLO
DE MILHO ............................................................................................................... 174
3.4 – UIWEDEDZADARÃ – CERIMÔNIA DO BURITI DA BOCA PRETA ........ 179
3.4.1 – DANHO’RE UIWEDEDZADA’RÃ – CANTO DO BURITI DA BOCA
PRETO ...................................................................................................................... 183
3.5 – UIWEDE AHUPRÉDZÉ DAPO’REDZAPU’U RÃRÉ HÃ - CORRIDA DE
BURITI QUE ENCERRA O RITO DE FURAÇÃO DE ORELHA ........................ 185
3.6 – EXPEDIÇÕES DE CAÇADA E COLETA: A BUSCA POR TSUWAIPÓ ... 192
3.7 – O WEDETEDE ................................................................................................ 227
3.8 – O NONI............................................................................................................ 229
3.9 – ĨNI E TSIDUPU............................................................................................... 230
3.10 – A CORRIDA DO NONI ................................................................................ 231
3.11 – ESCOLHA DAS DANHOHUI’WA TSIPI’Õ - MADRINHAS ................... 235
3.12 – ENTREGA DO ĨNI E TSIDUPU .................................................................. 236
3.13 – PAHÖRI’WA MANADÖ E TÉBÉ MANADÖ - A GRANDE CAÇADA
COM FOGO ............................................................................................................. 238
3.14 – RETORNO DA CAÇADA PAHÖRI’WA MANADÖ E TÉBÉ MANADÖ 261
3.15 – WAMNHORÕ MADZATSI – APRESENTAÇÃO DO WAMNHORÕ e
AHU’RÃ ................................................................................................................... 264
3.16 – TÉBÉ – ADORADORES DA LUA? ............................................................ 275
3.17 – PAHÖRI’WA – ADORADORES DO SOL? ................................................ 287
3.18 – WANARIDOBE - WAI’A’RÃPÓ - WAMHORÕ’NHORE: RITUAL DO
WANARIDOBE, CANTO DO WAI’A’RÃPÓ E CANTO DO WAMNHORÕ ..... 297
3.19 – TSAURI’WA – CORRIDA DO SOPRADOR .............................................. 311
3.20 – DANHIRÃ’RE - APRESENTAÇÃO DAS NOIVAS - NOIVADO PÚBLICO
.................................................................................................................................. 324
3.21 – APRESENTAÇÃO DA PRÓXIMA CLASSE DE IDADE .......................... 326
3.22 – ADZAHU....................................................................................................... 328
3.23 – UMNHIÃTSI’RÃURÉ .................................................................................. 331
3.24 – NOIVADO PÚBLICO ................................................................................... 332
3.25 – TSADZUDZU ............................................................................................... 334
3.26 – ABAHU E PARA’WA .................................................................................. 335
3.27 – WAI’A ........................................................................................................... 340
CAPÍTULO IV ............................................................................................................. 345
POLÍTICA E RITUAL ................................................................................................. 345
4 - CENÁRIO POLÍTICO DE SÃO MARCOS ....................................................... 345
4.1 - O CONCEITO DE DRAMA SOCIAL ............................................................ 345
4.2 - DÉCADA DE 70 - PRIMEIRA GRANDE CRISE .......................................... 356
4.2.1 - a) - A RUPTURA .......................................................................................... 356
4.2.2 - b) - A CRISE E OS MECANISMOS DE REPARAÇÃO............................. 357
4.2.3 - c) - A CISÃO ................................................................................................. 359
4.3 - DÉCADA DE 80 - SEGUNDA GRANDE CRISE .......................................... 360
4.3.1 - a) - A RUPTURA .......................................................................................... 360
4.3.2 - b) - A CRISE ................................................................................................. 364
4.3.3 - c) - MECANISMOS DE REPARAÇÃO, CISÕES - NOVA CRISE – CISÕES
.................................................................................................................................. 365
4.4 - DÉCADA DE 90 - TERCEIRA GRANDE CRISE ......................................... 366
4.4.1 - a) - RUPTURA - CRISE E MECANISMOS DE AÇÃO REPARADORA . 367
4.4.2 - b) - A CISÃO................................................................................................. 382
4.5 - RELAÇÕES ENTRE AS ALDEIAS APÓS O GRANDE PROCESSO DE
CISÃO ...................................................................................................................... 386
4.6 - REINTEGRAÇÃO E NOVAS CRISES .......................................................... 388
4.7 - CONTEXTO POLÍTICO E O RITUAL DO DANHONO ............................... 395
CONCLUSÃO .............................................................................................................. 411
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. ........................................................................ 425
GLOSSÁRIO ................................................................................................................ 431
i

LISTA DE QUADROS

QUADRO - 1 - TERRAS INDÍGENAS XAVANTE E NÚMERO DE ALDEIAS ..... 39


QUADRO - 2 - METADES EXOGÂMICAS ................................................................ 48
QUADRO - 3 - IDENTIFICAÇÃO CLÂNICA ENTRE OS XAVANTE .................... 49
QUADRO - 4 - CASAMENTOS POSSÍVEIS ENTRE CLÃS ..................................... 50
QUADRO - 5 -DISTRIBUIÇÃO DAS CLASSES DE IDADE EM METADES
CERIMONIAIS NA TERRA INDÍGENA SÃO MARCOS. ........................ 54
QUADRO - 6 - CICLO DE VIDA XAVANTE ............................................................. 61
QUADRO - 7- HIERARQUIA E DISTRIBUIÇÃO DOS PARTICIPANTES NAS
CELEBRAÇÕES DO WAI’A ....................................................................... 81
QUADRO - 8 - PARTICIPAÇÃO DAS CLASSES DE IDADE NA ADMISSÃO DE
NOVOS MORADORES DA CASA DOS SOLTEIROS .............................. 99
QUADRO - 9 - POSIÇÃO DAS CLASSES DE IDADE EM 2005 ........................... 112
QUADRO - 10 - POSIÇÃO DAS CLASSES DE IDADE EM 1997 ......................... 120
QUADRO - 11 - POSIÇÃO DAS CLASSES DE IDADE EM 1992 ......................... 121
QUADRO - 13 - DISTRIBUIÇÃO REAL DOS WAPTÉ NA HÖ ............................ 129
QUADRO - 12 - DISTRIBUIÇÃO IDEAL DOS WAPTÉ NA HÖ ........................... 129
QUADRO - 14 - CARGOS RITUAIS E CLASSES DE IDADE ............................... 137
QUADRO - 15- VOCABULÁRIO DO A'ÃMA......................................................... 147
QUADRO - 16 - RELAÇÕES DE PARENTESCO DO A'ÃMA ............................... 147
QUADRO - 17 - DISTRIBUIÇÃO DOS ATORES RITUAIS PARA CELEBRAÇÃO
DO WAI'A ................................................................................................... 340
QUADRO - 18 - FLUXOGRAMA DE CISÕES DE ALDEIA NA T. I. SÃO
MARCOS ..................................................................................................... 368
QUADRO - 19 - APOIO POLÍTICO DECLARADO EM 2002 ................................ 387
QUADRO - 20 - FLUXOGRAMA DE COOPERAÇÃO ENTRE ALDEIAS PARA
REALIZAÇÃO DO DANHONO ................................................................ 396
QUADRO - 21 - INICIAÇÃO DAS CLASSES DE IDADE NOS ÚLTIMOS
CINQUENTA ANOS NA ALDEIA DE SÃO MARCOS........................... 417
LISTA DE MAPAS

MAPA - 1 - ALDEIAS XAVANTE DURANTE A PESQUISA DE MAYBURY-


LEWIS E FLUXOS PARA FORMAR A ALDEIA SÃO MARCOS.
FONTE: MYBURY-LEWIS (1984:38) ............................................... 33

MAPA - 2 - LOCALIZAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS XAVANTE. FONTE:


ADAPTADO DE RICARDO & RICARDO (2006) ............................ 39

MAPA - 3 - DISTRIBUIÇÃO DAS FACÇÕES NA CIDADE DE BARRA DO


GARÇAS ............................................................................................ 370

MAPA - 4 - T. I. SÃO MARCOS - ALDEIAS E DESLOCAMENTOS DAS


FACÇÕES .......................................................................................... 391

MAPA - 5 - ALDEIAS QUE REALIZARAM O DANHONO E REGIÕES DE CAÇA


............................................................................................................ 400
RESUMO

Esta tese desenvolvida a partir de pesquisa etnográfica na Terra Indígena São


Marcos – Barra do Garças/MT, em particular nas aldeias Nossa Senhora de Guadalupe e
São Marcos, procura explorar os bastidores de um ritual de iniciação realizado em
intervalos de cinco a seis anos pelos Xavante. A intenção é apontar como os atores
sociais usam o processo ritual tendo em vista a defesa e manutenção de seus objetivos
políticos na aldeia. Observamos durante o trabalho de campo que o processo de
iniciação do danhono, como é chamado pelos Xavante, está impregnado de questões
políticas e pode ser usado para estes fins. Além disso, procuraremos ainda mostrar como
uma sociedade tradicional, a Xavante, procura manter a produção e reprodução das
práticas culturais dentro de um contexto de transformação social provocado pela
situação de contato e interações com outras sociedades, inclusive a não-indígena. Neste
sentido, para atingir estes objetivos estaremos descrevendo etnograficamente a
realização do ritual de iniciação social Xavante, chamado danhono. Isto se faz
necessário tendo em vista que este ritual de iniciação pode ser tomado como uma chave
importante de acesso ao faccionalismo Xavante. Todavia, o danhono não pode ser
tomado por si só como fonte explicativa do faccionalismo. Acreditamos que ele está
inserido no contexto de ações dos atores sociais nele envolvidos. Para esta descrição
lançamos mão de trabalhos etnográficos, já considerados clássicos dentro da vasta
produção antropológica sobre esta etnia, bem como dos vários trabalhos de campo que
realizamos na Terra Indígena São Marcos. Ao confrontarmos nossas observações com a
de outros autores nossa intenção não é apontar incoerências em seus trabalhos, mas,
sobretudo, mostrar como os Xavante lidam com as transformações em sua sociedade e
quais os mecanismos de saída ou escape tendo em vista a realização dos rituais.
Palavras chaves: Xavante; rituais; faccionalismo; índios; conflitos.
ABSTRACT

This thesis was developed in São Marcos indigenous land (T.I São Marcos), in
particular in the villages Nossa Senhora de Guadalupe and São Marcos, and it intends to
explore the embroidery frames of a Xavante initiation ritual realized in intervals of five
at six years. The intention is to show how social actors manipulate the ritual process to
defense and maintenance their political objectives in the village. We observe during the
field work that the danhono, as Xavante called the process of initiation, is impregnated
with political questions and can be used for these ends. Besides, we still discuss how a
traditional society, the Xavante, try to keep their production and reproduction of the
cultural practices within a context of social changes, provoked by the contact and
interactions processes with other societies, including non-indigenous society. To reach
these objectives we will describe ethnographically the danhono - social ritual of
Xavante initiation. This is necessary because this initiation ritual can be taken as an
important key for the Xavante factionalism, but it cannot nevertheless be taken by itself
as an explanation for the factionalism. We think danhono must be inserted into the
context of social actors' shares involved. For this description we use ethnographic
studies, already considered classics within the vast anthropological production on this
ethnic group, and the several field works we realized in T.I. São Marcos. Our intention
in comparing our observations with other authors is not to show incoherencies in their
studies; but overcoat, to show how Xavante deal with the changes in their society and
what the out-going outlet mechanisms they have, considering the realization of the
rituals.
Key words: Xavante; ritual; factionalism; Indians; conflicts.
1

INTRODUÇÃO

Esta tese foi desenvolvida a partir de uma experiência de vida e de um trabalho


de pesquisa etnográfica entre os Xavante da Terra Indígena São Marcos. As aldeias
Nossa Senhora de Guadalupe e São Marcos serviram de palco para as duas situações,
experiência de vida e de pesquisa. Voltaremos a falar de ambas mais adiante no item
quatro desta introdução.
Os Xavante são um povo classificado como pertencentes ao tronco lingüístico
macro-Jê e família lingüística Jê. Juntamente com os Xerente formam os Akwẽ e são
considerados os Jê centrais. Atualmente estão distribuídos em onze terras indígenas
reconhecidas e demarcadas, ou em processo: Areões, Areões I, Areões II, Chão Preto,
Marãiwatsede1, Marechal Rondon, Parabubure, Pimentel Barbosa, Sangradouro-Volta
Grande, São Marcos e Ubawawe (Ricardo & Ricardo, 2006:735-736). A população
Xavante em 2006, segundo dados da FUNASA estava em torno de 12.845 pessoas
(Ricardo & Ricardo, 2006). O número de aldeia de que dispomos, tendo como base o
ano de 2007, era de 167 (FUNASA/DSEI Xavante; Souza, 2008).
No início dos anos setenta, quando se prognosticava a extinção das populações
indígenas, assim Giaccaria & Heide descreviam os objetivos de sua obra Xavante (Auwẽ
Uptabi: Povo Autêntico):

A finalidade principal desta obra é documentar, quanto possível os


costumes, as tradições e a civilização de um povo, que muitos acham
destinado a desaparecer, como já aconteceu a tantos grupos étnicos
da América do Sul, dos quais nem sequer restam traços.
Verificada essa hipótese, perderíamos nós a grande riqueza de
valores humanos, até então conservados intactos, nas savanas e
florestas amazônicas, apesar das insídias dos conquistadores
brancos. De seu influxo, por longo tempo, os xavantes souberam
subtrair-se completamente, conservando intactas suas tradições. Hoje
estão rodeados pela civilização dos brancos que procurou e procura
destruí-los não só física, mas também eticamente (Giaccaria & Heide,
1984[1972]: 21) [destaque nosso].

1
Sobre a grafia das palavras em Xavante seguimos a proposta de uniformização feita pelos
Salesianos e SIL – Summer Institute f Linguistics, em 1977 por iniciativa da FUNAI, num encontro que
aconteceu na Aldeia São Marcos, terra indígena homônima. Utilizamos os dicionários Xavante –
Português e Português – Xavante além da gramática Estudos Sistemáticos e Comparativos de Gramática
Xavante. Não obstante, esta não é a única forma de grafar as palavras Xavante. Os moradores da Terra
Indígena Pimentel Barbosa seguem outra convenção.
2

Passados cinqüenta anos da chegada dos Xavante na aldeia Merure, onde


estavam os Bororo e os Salesianos, e às vésperas de completar outro cinqüentenário – o
da criação da aldeia São Marcos, no 25 de abril do corrente ano, não é difícil constatar
que a hipótese que preocupava os autores Giaccaria & Heide não se concretizou. De lá
para cá muito se produziu em termos etnográficos sobre os Xavante e muitas foram as
transformações em suas vidas. Os Xavante se impuseram como agentes históricos,
reverteram e incorporaram a nova situação social e os processos de transformações daí
decorrentes. Eles conseguiram amansar waradzu2, não índio, ou seja, o Estado, a Igreja
e os invasores de suas terras. Neste sentido, esta tese, além do objetivo abaixo, procura
mostrar como os Xavante trilharam este caminho a partir do processo ritual vivido nos
dias atuais.

1 - OBJETIVO DA TESE E APORTE METODOLÓGICO

Esta tese procura explorar os bastidores de um ritual de iniciação realizado em


intervalos de cinco a seis anos pelos Xavante. A intenção é apontar como os atores
sociais manipulam o processo ritual tendo em vista a defesa e manutenção de seus
objetivos políticos na aldeia. Observamos durante o trabalho de campo que o processo
de iniciação do danhono, como é chamado pelos Xavante, está impregnado de questões
políticas e pode ser usado para estes fins. Além disso, procuraremos ainda mostrar como
uma sociedade tradicional, a Xavante, busca manter a produção e reprodução das
práticas culturais dentro de um contexto de transformação social provocada pela
situação de contato e interações com outras sociedades, inclusive a não-indígena (ou
nacional). Neste sentido, para atingir estes objetivos estaremos descrevendo
etnograficamente a realização do ritual de iniciação social Xavante, chamado danhono.
Isto se faz necessário tendo em vista que este ritual pode ser tomado como uma chave
importante de acesso ao faccionalismo Xavante. Todavia, o danhono não pode ser
tomado por si só como fonte explicativa do faccionalismo. Acreditamos que ele deve ser
pensado no contexto de ações dos atores sociais nele envolvidos. Para esta descrição
lançamos mão de trabalhos etnográficos, já considerados clássicos dentro da vasta
produção antropológica sobre esta etnia, bem como dos vários trabalhos de campo que
2
(...) Conta o sertanista Francisco Meireles, (...), que ao se aproximar do chefe Xavante, viu-se
presenteado com um colar que foi por ele (Chefe Xavante) posto em seu pescoço com palavras cuja
tradução literal seria a seguinte “Amanso-te branco”! (Cardoso de Oliveira, 1976: 49) [grifo meu].
3

realizamos na Terra Indígena São Marcos. Ao confrontarmos nossas observações com a


de outros autores nossa intenção não é apontar incoerências em seus trabalhos, mas,
sobretudo, mostrar como os Xavante lidam com as transformações em sua sociedade e
quais os mecanismos de saída ou escape tendo em vista a realização dos rituais.
O aporte teórico e metodológico adotado neste trabalho se insere na perspectiva
teórica dos antropólogos da Escola Britânica, especialmente ancorado no pensamento de
Turner (1972:XXII), que argumenta que o sistema social pode ser considerado como:
... um campo de tensão, cheio de ambivalência, de co-operação e de
lutas contrastivas. Para esses antropólogos um sistema social não é
um modelo estático, um padrão harmonioso, nem o produto
conceitual de uma perspectiva monística. O sistema social é um
campo de forças no qual, para citar Fortes, tendências centrífugas e
tendências centrípetas puxam uns contra os outros, e cujo poder para
persistir é gerado pelos próprios conflitos socialmente transformados
(tradução livre).

Esta concepção de sistema social contrasta com aquela apregoada pelo


funcionalismo-estrutural que o concebe como sistemas ideais onde sistemas de valores
dão suporte à estrutura social. As estratégias de ações dos atores sociais que não se
enquadram dentro deste sistema de valores são tratadas como desviantes ou como casos
isolados. Como veremos, são as estratégias dos atores sociais que precisam ser levadas
em consideração durante o danhono se quisermos entender o porquê deste ritual de
iniciação ser constantemente tomado e manipulado com finalidades díspares ao próprio
processo ritual. Em outras palavras, se inicialmente o danhono presta para reproduzir
classes de idade, metades cerimoniais, etc., ou seja, aquilo que se poderia chamar de
organização social, o mesmo pode ser igualmente usado pelos atores sociais como
forma de obtenção de prestígio, por exemplo, quando um caçador que se destaca na
caçada de uso no ritual, ou quando o chefe consegue adquirir bens junto a órgãos de
governo (prefeituras e secretarias de Estado) calções para uso no ritual, combustível,
munição, etc., que são redistribuídos gerando capital político. Nestes exemplos, o
prestígio adquirido pode servir para alimentar ambições e projetos pessoais no presente
e no futuro.
Quando inserimos a iniciação do danhono na perspectiva da definição de sistema
social elencada acima por Turner, somos conduzidos a pensá-lo com um processo social
dinâmico, mas não harmonioso, no qual a tendência a situações de conflitos não podem
ser ignoradas. Estas situações de conflitos podem ser melhor entendidas quando
pensamos o danhono situado num campo ampliado de relações sociais que vão além dos
4

limites físicos da aldeia Xavante, onde ocorre a iniciação. O campo de interação daí
resultante pode ser igualmente pensado como um campo político, uma vez que os atores
sociais procuram conduzí-lo para atingir objetivos desta natureza. Segundo SWARTZ,
TURNER & TUDEN (1976:07) o político apresenta três características: se aplica a tudo
ao que é imediatamente público, meta-orientado, e que implica um diferencial de poder
(no sentido de controle) entre os indivíduos em questão. Contudo, este poder não pode
ser entendido como hierárquico, mas relacionado a objetivos públicos a serem atingidos.
Esta natureza política envolve um processo segundo o qual os atores sociais buscam
diversas fontes de apoio, fazem acordos e procuram subordinar adversários para atingir
seus objetivos. Tal processo, pensado a partir de relações entre pessoas e grupos, produz
o que os autores chamam de campo político. Todavia, o campo político não funciona
como uma máquina perfeita. Pelo contrário,
... é um campo de tensão, cheio de antagonistas inteligentes e
determinados, único e corporativo, os quais são motivados por
ambições; altruísmo; interesse próprio e pelo desejo do bem público,
e os quais em sucessivas situações estão ligados uns aos outros por
meio de interesse próprio ou idealismo - e separados ou em oposição
pelos mesmas motivações (SWARTZ, TURNER & TUDEN, 1976:08)
(tradução livre).

Pensar a iniciação do danhono inserida em um campo político, como delineamos


acima, implica em situá-la num tempo histórico e não no tempo estrutural, como
usualmente os rituais têm sido considerados. Quando estivermos apresentando nossas
observações sobre o danhono não pretendemos esperar que os atores rituais de hoje
tenham as mesmas ações do que os de outrora, ou que as performances rituais sejam as
mesmas descritas nas etnografias clássicas com as quais estaremos trabalhando. Do
mesmo modo que visualizamos os atores sociais situados num campo político, o que
pressupõe uma visão de processo, temos em mente que o danhono deve ser analisado
nesse contexto. Acreditamos que a teoria processual formulada por Turner pode ser um
instrumento analítico de grande utilidade, uma vez que ela
... envolve um vocabulário de “devir” bem como de “ser”, admite a
pluralidade, a disparidade, o conflito entre grupos, papéis, ideais e
idéias, e, já que ela está preocupada com seres humanos, considera
variáveis como “objetivo”, “motivações”, “intenção”,
“racionalidade”, e “significado”. Além disso, ela enfatiza a biologia
humana, o ciclo individual de vida, a saúde pública e a patologia.
Incorpora na sua teoria processos ecológicos e econômicos tanto
repetitivos quanto mutáveis (TURNER, 2005:159s).
5

São estas variáveis (“objetivo”, “motivações”, “intenção”, “racionalidade” e


“significado”) que tornam o danhono um processo dinâmico e não mera repetição de
cerimônias do passado, que porventura estariam tão somente remontando narrativas
míticas.
Considerando que os estudos dos ritos podem ser tomados como uma chave para
compreensão da constituição essencial das sociedades humanas (WILSON apud
TURNER,1974:19), partimos do ritual de iniciação como foco principal para visualizar,
na prática, como tem operado a dinâmica faccional Xavante. Por dinâmica faccional
estamos adotando as considerações analíticas definidas por De Paula (2000:20), para o
caso Xerente, que a caracteriza
... através dos confrontos e articulações existentes entre grupos
domésticos, aldeias, linhagens ou segmentos de linhagens, relações
estas que não seja observada idealmente nenhuma articulação com os
demais atores não-indígenas envolvidos no campo político das esferas
focalizadas. As unidades políticas daí resultantes são denominadas
facções. Por outro lado, quando se tratar de um arranjo político no
qual se encontrem articuladas determinadas facções e distintos atores
não-indígenas, denominarei esse processo de dinâmica faccional
ampliada, entendo por fim, que coalizão faccional ampliada é a
unidade política daí resultante. (destaques no original)

Embora De Paula (2000:Resumo) esteja interessado em analisar a dinâmica


faccional Xerente a partir de relações políticas travadas tanto entre as facções Xerente,
como também suas alianças com distintos atores não-indígenas presentes no campo
político das esferas local e regional, que pode ser ampliada para níveis nacionais e
internacionais, de nossa parte estaremos voltados a trabalhar com a dinâmica faccional
Xavante a partir do ritual de iniciação do danhono, ou seja, estaremos nos atendo às
relações políticas no âmbito das aldeias. Para isso temos que levar em consideração a
situação histórica dos Xavante nos dias atuais. Por situação histórica estamos tomando
como base a noção cunhada por Oliveira Filho (1988:54-59), a partir das definições de
situação social de Gluckman, na qual os atores sociais estão relacionados à ações e
eventos, mas, sobretudo quando se apresenta como um eficiente instrumento de estudo
comparativo e a investigação da mudança social (p.57 – destaque no original), campo e
análise situacional. A partir destas concepções Oliveira Filho (1988:57) concebe
situação histórica, como noção que não se refere a eventos isolados, mas a modelos ou
esquemas de distribuição de poder entre diversos atores sociais (destaque no original).
6

Com base nesta noção de situação histórica pensamos o danhono situado a partir
de um conjunto de eventos e relações que não estão circunscritos, ou limitados à uma
aldeia específica. Duas situações etnográficas nos ajudam a pensar o danhono enquanto
situação histórica.
Durante o trabalho de campo levantamos o caso de Rinaldo, membro da classe
de idade ẽtepa
˜ b’rada. Rinaldo é um dos poucos Xavante que passou pelo ritual de
iniciação do danhono antes que seu povo aceitasse o contato com a sociedade não
indígena. Sua iniciação teve início numa aldeia chamada Pawadzara’dzé3 situada na
região conhecida como Couto Magalhães4, tendo como referência o rio homônimo, e foi
abruptamente interrompida pelo ataque de outro grupo Xavante, segundo um
informante, proveniente da região do rio Kuluene, rio principal que forma o Xingu. Em
decorrência deste ataque sua aldeia interrompeu o danhono, que estava na fase da
corrida do noni que será descrita no Capítulo III, item 3.10, dispersando-se e depois
buscando ajuda junto à Missão Salesiana de Merure, em 1956.
Transcorridos mais de cinqüenta anos após o inconcluso processo de iniciação
de Rinaldo, após vários danhono realizados na aldeia São Marcos, bem como em outras
áreas Xavante, o mesmo acompanhou em 1997 a renovação da categoria de sua classe
de idade na ocupação da casa dos solteiros. De outra forma: com a renovação completa
do ciclo das classes de idade, Rinaldo presenciou a renovação do ciclo das classes de
idade com a conclusão da iniciação dos ẽtepa
˜ em 1997, quando a categoria da classe de
idade no qual está inserido completou o processo de iniciação do danhono. A primeira
renovação do ciclo das classes de idade após a aceitação do contato com a sociedade
não-indígena se deu justamente com a conclusão do processo de iniciação dos abare’u
em 2005. Os dois danhono(s), realizados em situações históricas diferentes, acontecem
em campos de interações sociais altamente díspares. No caso de Rinaldo seu danhono
está envolto numa atmosfera de conflitos, entre os próprios Xavante e com os invasores
não-índios de seu território tradicional, que o deixa inconcluso, mesmo depois que seu
grupo foi submetido ao processo de sedentarização através dos missionários salesianos
de Merure. Cinqüenta anos depois, após sucessivas iniciações do danhono, temos a

3
Sobre esta aldeia veja Lopes da Silva (2002:370). Segundo esta autora, os moradores de
Parawadzara’dzé se formaram a partir de reagrupamentos de Xavante oriundos de outros grupos que
entraram em conflito entre si e com regionais.
4
Parte do território Xavante que estava localizado na região do rio Couto Magalhães foi
demarcado e reconhecido como Terra Indígena Parabubure – Municípios de Campinápolis, Água Boa,
Canarana e Nova Xavantina.
7

iniciação da classe de idade abare’u. Aqui os conflitos entre os próprios Xavante estão
novamente em pauta, como veremos no Capítulo IV. Contudo, outros agentes de
interação estão envolvidos, direto ou indiretamente, neste danhono e nos demais que já
aconteceram: FUNAI, FUNASA, Prefeituras, Governo de Estado, ONGs, Missão, etc.
Estes agentes de interação não atuam no danhono, mas são usados como fonte de
recursos para que o danhono aconteça. Portanto, não é possível pensar o processo de
iniciação do danhono isolado do contexto histórico e político que os atores sociais estão
imersos.
Os dois casos nos mostram que os danhono(s) não são meras repetições de
rituais que a tradição Xavante apresenta. São eventos cíclicos, não isolados, que devem
ser considerados no tempo e no espaço. Como decorrente de uma situação histórica
somos convidados a vê-los também como distribuição e luta de poder entre os múltiplos
atores sociais que nele tomam parte e/ou são usados em seu processo de execução. Entre
os Xavante isto pode ser caracterizado como faccionalismo.
Um aspecto marcante da noção de situação histórica, e por isso a consideramos
importante para pensar o caso Xavante, é que, segundo Oliveira Filho (1988:58), ela
não estimula qualquer dualismo (moderno x tradicional ou sociedade nacional x grupo
indígena), ou ainda: aldeia x cidade, momento ritual x momento da vida política
Xavante. Como veremos na descrição etnográfica, a cidade pode ser considerada pelos
Xavante como uma extensão da aldeia e fonte de recursos, não só material mas também
simbólico. Igualmente o momento ritual é tomado pelos atores sociais como palco para
suas expressões políticas e procuram utilizar suas performances para este fim. De mais a
mais, ainda dentro da concepção de situação histórica o contato interétnico precisa ser
pensado como uma situação, isto é, como um conjunto de relações entre atores sociais
vinculados a diferentes grupos étnicos (OLIVEIRA FILHO, 1988:58). No cenário atual
temos assim a etnia Xavante realizando o ritual de iniciação, não de maneira isolada,
mas interagindo com outros atores distribuídos nos centros urbanos, ou fora dele, tais
como: os índios Bororo e fazendeiros vizinhos de seu território. E ainda a presença de
outros atores sociais em território demarcado, tais como: os agentes de governo –
funcionários da FUNAI e FUNASA, missionários e até mesmo o pesquisador que é
incluído no processo. Este cenário posto numa concepção processualista permite
visualizar como os Xavante operam sua produção e manutenção das práticas culturais
entre elas os rituais danhono e darini e seus usos políticos.
8

Com base no que foi exposto acima, procuramos assumir uma postura de análise
dos dados, sobre o processo de iniciação do danhono e faccionalismo Xavante,
semelhante à de Oliveira Filho (1977), quando trata da organização política emergente
em grandes aldeamentos Tukuna. O autor evita separar
... uma ordem política “imposta pelo contacto” de outra “nativa”,
dedicando a essa última toda a atenção (...). A elaboração de novos
padrões de organizativos da vida política foi vista então como
produzida pelos Tukuna a partir de um ponto de apoio – a
organização política articulada à situação histórica precedente – e de
um fator dinâmico – as determinações da nova situação histórica
(OLIVEIRA FILHO, 1977:77).

Assim como o danhono não é mera repetição cíclica de uma organização social,
o sistema de classes de idade, o faccionalismo Xavante não pode ser igualmente
pensado como uma simples continuidade de lutas políticas do passado. Nos dois casos a
situação histórica vivida em diferentes contextos de interação social impele os atores
sociais a repensarem e redefinirem não só a dinâmica do processo ritual, como também
os rearranjos dos grupos políticos, as facções. Desta forma, é preciso ter claro que o
faccionalismo não pode ser considerado uma epidemia que atinge os Xavante, ou outras
etnias, de tempos em tempos. O modo de alocar e distribuir os atores políticos Xavante
no seio de sua organização social, bem como a formação de grupos antagônicos, deve
ser pensado como um tipo de forma organizacional (Barth, 2002). Neste sentido, vemos
que os processos rituais e políticos são constantemente repensados dentro dos novos
contextos de interações.
Tendo em vista o que delineamos até o momento é preciso deixar claro outras
concepções analíticas que estarão sendo utilizados nesta tese. A coleta e apresentação
dos dados procura seguir a orientação do método denominado por M. Gluckman de
estudo de caso detalhado (extended–case method) e renomeado por Van Velsen
(1987:345) como análise situacional. Segundo este autor o método:
... se refere à coleta efetuada pelo etnógrafo de um tipo especial de
informações detalhadas. Mas também implica o modo específico em
que esta informação é usada na análise, sobretudo a tentativa de
incorporar o conflito como sendo “normal” em lugar de parte
“anormal” do processo social (VAN VELSEN, 1987:345.)

Com base neste método procuramos apresentar de forma detalhada as


performances rituais que acompanhamos durante os trabalhos de campo, mostrando os
momentos de tensão que permearam o processo ritual do danhono. Este detalhamento,
9

perceptível na descrição dos ornamentos e das pinturas corporais, nos permitiram


visualizar situações de conflitos que numa descrição menos densa5 não apareceriam. É o
caso, por exemplo, do ornamento corporal abadzipré, que é de uso exclusivo de
algumas linhagens, ou de alguns donos como dizem os Xavante, que quando apropriado
indevidamente durante o processo ritual gera tensões entre os grupos domésticos. O
método de análise situacional tal qual é proposto por Van Velsen tece uma crítica ao
modelo de coleta de dados da escola estruturalista. De acordo com Van Velsen
(1987:346), os antropólogos com orientação pré-estruturalista se interessaram
inicialmente pelos costumes em si deixando de levar em consideração o contexto social
mais amplo de cada instituição específica. Neste sentido, caso ficássemos presos
somente numa descrição do aspecto estrutural da caçada para uso no danhono, para citar
outro exemplo, na qual os participantes e cooperadores na realização dos rituais são
divididos em quatro grupos de acordo com as filiações clânicas e distribuição em
metades cerimoniais, deixaríamos de visualizar as disputas que existem entre estes
grupos, bem como o que está em jogo nestas disputas (prestígio de ser bom caçador;
prover maior quantidade de caça para um determinado grupo; quem abate maior número
de animais considerados nobres pelos Xavante, como é o caso da anta, etc.). Quando
este contexto social, ou seja, o uso do abadzipré e bastidores de uma caçada, deixa de
ser levado em consideração ele presta tão somente para construir um tipo ideal de
sociedade, ou a busca de uma tradição pura. O método de análise estrutural concebido
por Radcliffe-Brown procura dar ênfase à morfologia social, negligenciando, em favor
de uma regularidade estrutural, as variações individuais abstraindo-se as relações
interpessoais observadas em favor das relações estruturais entre grupos. São exatamente
estas variações individuais que constituirão a base para pensarmos o faccionalismo
Xavante.
Segundo BOISSEVAIN (1977:203), o funcionalismo-estrutural toma uma
concepção de sociedade como um sistema de grupos permanentes compostos por status
e papéis sociais apoiados numa série de valores e sanções que lhes são relacionados e
que mantém o sistema em equilíbrio. Nesta concepção, a existência de uma estrutura
social composta de relações sociais institucionalmente controladas, pode ser isolada e
comparada com outras estruturas sociais. A crítica dirigida ao funcionalismo estrutural
diz respeito ao que acontece com os comportamentos que não se enquadram naquelas

5
Cf. GEERTZ, 1978.
10

relações sociais institucionalizadas. Como exemplo, apontamos a ingerência do cacique


no processo ritual, quando convoca os danhohui’wa, padrinhos, a ensaiarem o canto do
wai’a’rãpó num espaço, o centro do acampamento de caça, que estruturalmente não
deveria ser utilizado para tanto (descrevemos este caso etnográfico nos Capítulos III e
IV). Numa análise estrutural este fato seria considerado como desviante em relação à
estrutura dos rituais Xavante. Segundo Van Velsen (1987:348), as análises estruturais
estão principalmente interessadas nas relações entre posições sociais ou status e não
nas relações de Tom, Dick e Harry, ou no comportamento de Jack e Jill (Radcliffe-
Brown, 1952:192). Para Radcliffe-Brown somente o geral, eventos que se repetem,
permitem apresentar a estrutura social. Em busca da descrição desta estrutura social, a
sociedade e as relações sociais são apresentadas em termos ideais, ou nos termos de
como o sistema deveria funcionar. Os comportamentos ou escolhas individuais são
tratados como desvios ou exceções. Portanto, neste tipo análise
... as ações dos indivíduos ficam submersas em princípios gerais que
tanto podem ser as abstrações do antropólogo quanto as afirmações
dos informantes que obviamente podem também constituir abstrações.
Este tipo de análise não faz concessões para o fato de indivíduos
defrontarem-se muitas vezes diante de uma escolha entre padrões
alternativos (VAN VELSEN, 1987:348).

O que os indivíduos fazem, quais são as alternativas de escolha, como lidam


com as incongruências quando suas normas são manipuladas, são questões que não
podem ser ignoradas quando consideramos a definição de sistema social apontada pela
escola processualista. Em suma, o método de análise situacional visa analisar as inter-
relações das regularidades estruturais (“universal”) de um lado, e o comportamento
real (“único”) de indivíduos, de outro (VAN VELSEN, 1987:371). Diante disso,
tecemos uma descrição no Capítulo I desta tese dos elementos de organização social6
Xavante, como chave importante para situar os atores sociais durante o processo ritual
do danhono.
Outra orientação teórica a ser seguida, não muito distante do que foi exposto em
relação à análise situacional, refere-se ao que Turner (2005) considera como método de
caso extenso. Continuando sua concepção da teoria processualista, supracitada, Turner
aponta que este tipo de teoria
... Precisa estimar os efeitos provocados nos subsistemas locais pelos
processos políticos de larga escala em sistemas mais abrangentes.

6
Retomando o título do livro de FIRTH: Elementos de Organização Social (1974).
11

Tais desenvolvimentos resultaram do uso do método de caso extenso,


que estuda as vicissitudes de sistemas sociais específicos ao longo do
tempo através de uma série de estudos de caso, tratando cada qual de
uma grande crise no sistema escolhido ou em partes dele. Os dados
oferecidos por este método nos permitem apreender não apenas os
princípios estruturais do sistema, mas também vários tipos de processos,
inclusive aqueles de mudança estrutural. O material dos casos deve, é
claro, ser analisado em associação íntima e constante com a "estrutura"
social, tanto nos seus sentidos institucionalizados, quanto nos
estatisticamente normativos. Os novos "fatos" não substituem, mas
complementam os antigos (Turner, 2005:160).

O que TURNER está sinalizando nesta concepção do método de caso extenso é


que não basta trabalhar apenas os princípios estruturais do sistema social e tomar os
dados observados apenas como ilustração desta estrutura. No caso Xavante, por
exemplo, não é suficiente dizer que na iniciação do danhono os cargos cerimoniais dos
tébé e dos pahöri’wa são propriedades dos clãs öwawẽ e po’redza’õno,
respectivamente. O importante é a partir deste tipo de informação, estrutural, mapear os
bastidores da escolha dos ocupantes destes cargos cerimoniais e suas implicações ao
longo do processo ritual. Por exemplo, como os próprios Xavante lidam com esta
distribuição de cargos e quais os mecanismos acionados em sua escolha para que o filho
de X e não o de Y seja considerado apto para desempenhar este ou aquele cargo
cerimonial. Esta é uma das muitas questões que o método estrutural-funcionalista não
teria condições de responder. Seus adeptos se dariam por satisfeitos em saber que os
cargos de tébé e dos pahöri’wa são prerrogativas de uma determinada linhagem. Não
obstante, vemos os métodos elencados acima, análise processual, análise situacional e
método de caso extenso, como potencialmente favoráveis para uma melhor
compreensão da iniciação do danhono e sua relação com a dinâmica faccional Xavante.
Nas duas situações sociais existe o fio condutor comum: o conflito. Voltaremos a falar
deste fio condutor comum quando estivermos relacionando processos rituais,
faccionalismo e cisão de aldeias, no Capítulo IV.
Para falarmos do ritual de iniciação do danhono não podemos deixar de ter em
mente as concepções teóricas de VAN GENNEP expostas no clássico: Os Ritos de
Passagem. VAN GENNEP (1978), partindo de uma ampla classificação dos ritos
constrói um conjunto de seqüências cerimoniais que não receberam a devida atenção e
preocupação de outros teóricos em submetê-las a uma classificação. Neste sentido, o
autor traça como plano de trabalho
12

... agrupar todas as seqüências cerimoniais que acompanham a


passagem de uma situação a outra, e de um mundo (cósmico ou
social) a outro. Dada a importância dessas passagens, acredito ser
legítimo distinguir uma categoria especial de Ritos de Passagem, que
se decompõem, quando submetidos à análise, em Ritos de Separação,
Ritos de Margem e Ritos de Agregação" (VAN GENNEP, 1978:31).

O danhono, enquanto rito de passagem, pode igualmente ser enquadrado dentro


do esquema acima. Todavia, tal qual como fora formulado não é suficiente para que
possamos compreender o processo de iniciação e sua relação com a dinâmica faccional
Xavante. A obra de VAN GENNEP se tornou um clássico nos estudos de rituais e
Victor Turner, um dos grandes estudiosos de ritual desde a década de 70, será um dos
autores que retomará os estudos de VAN GENNEP, ampliando, sobretudo, sua noção de
liminaridade (PEIRANO, 2003:30). Diante disso, fomos buscar em suas obras as
orientações metodológicas necessárias para pensar o caso Xavante. Uma obra com a
qual estaremos trabalhando é Floresta de Símbolos: Aspectos do Ritual Ndembu que
reúne uma coletânea de artigos publicados em diferente periódicos. Estes artigos tratam
de diversos aspectos dos rituais dos Ndembu, um povo que vive no continente Africano,
mais precisamente no noroeste da Zâmbia. Os casos etnográficos ali apresentados foram
de grande valia para pensarmos o ritual de iniciação danhono.
Como afirmamos, TURNER (2005:138) retoma a classificação dos ritos de
passagem, ou de transição, como ele sugere, feita por VAN GENNEP sintetizando-a da
seguinte maneira:
Van Gennep mostrou que todos os ritos de transição vêm marcados
por três fases: separação, margem (ou limen) e agregação. A fase
inicial de separação compreende o comportamento simbólico que se
refere ao afastamento do indivíduo, ou do grupo, seja de um ponto
fixo anterior, na estrutura social, ou de um conjunto de condições
culturais (um "estado"); durante o período liminar, interveniente, o
estado do sujeito ritual (o "passageiro") é ambíguo; ele percorre um
reino que tem poucos ou nenhum dos atributos dos estados passado
ou vindouro; na terceira fase a passagem é consumada. O sujeito do
rito, individual ou corporativo, encontra-se, uma vez mais, numa
condição estável, em virtude da qual tem direitos e obrigações de um
tipo "estrutural" claramente definido, e dele se espera um
comportamento de acordo com certas normas costumeiras e certos
padrões éticos (TURNER, 2005:138).

O artigo do qual extraímos o fragmento acima, chamado Betwix and Between: O


Período liminar nos Ritos de Passagem, está totalmente voltado a uma análise da
natureza e características da transição em sociedades onde os ritos de passagem
apresentam períodos liminares bem desenvolvidos, bem delimitados e prolongados
13

(TURNER, 2005:139). É o caso do danhono no qual a constituição de uma nova casa


dos solteiros, a hö, que será ocupada pelos meninos de nova classe de idade, marca a
fase de separação, simbólica e literalmente marginal, uma vez que seus moradores estão
às margens da aldeia. Durante os próximos quatro ou cinco anos, após a entrada na hö,
eles permanecem numa aparente invisibilidade. Aparente porque todas as atenções da
aldeia estarão voltadas para eles. Aqui estes sujeitos, ser-transicional - persona-liminar
– neófito – iniciando, retomando TURNER (2005:140), recebem um nome e um
conjunto de símbolos que marcam e definem sua nova condição social. Os Xavante
chamam genericamente o grupo de moradores da casa dos solteiros, a hö, de wapté,
enquanto que seu grupo doméstico de hö’wa. Para este grupo de moradores, como
veremos na descrição etnográfica, é prescrita uma série de comportamentos e espera-se
que ajam a contento. No Capítulo III, que trata dos rituais do danhono, voltaremos a
falar desta situação liminar e sua maior expressão: a communitas. Concomitante a este
período liminar em que vivem os wapté, está em movimento aquilo que chamamos
acima de dinâmica faccional Xavante, cujos reflexos atingem em cheio o processo
ritual. Voltaremos a falar disso no Capítulo IV e na Conclusão desta tese.
Por ora é preciso ter em mente algumas concepções do que seja ritual,
cerimônia, facção e faccionalismo, categorias que estarão constantemente sendo usadas
ao longo do trabalho.
Por ritual recorremos à definição de TURNER (2005:49) como
...comportamento formal prescrito para ocasiões não devotadas à
rotina tecnológica, tendo como referência a crença em seres ou
poderes místicos. O símbolo é a menor unidade do ritual que ainda
mantém as propriedades específicas do comportamento ritual; é a
unidade última de estrutura específica de um contexto ritual.

Outra definição de ritual que abarca o que foi colocado acima pode ser
encontrada em PEIRANO (2003:11), que se apropria da definição de Tambiah (1985):
...O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele é
constituído de seqüências ordenadas e padronizadas de palavras e
atos, em geral expressos por múltiplos meios. Estas seqüências têm
conteúdo e arranjos caracterizados por graus variados de
formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação
(fusão) e redundância (repetição).

As duas definições acima apresentam pontos em comum: Em uma delas é clara a


presença do elemento simbólico na expressão do ritual. Victor Turner, em outro
trabalho, chega a considerar os símbolos como “moléculas” do ritual (TURNER,
14

1974:29). Todavia, ao se adotar o uso de uma metáfora biológica corre-se o risco de


retirar dos símbolos rituais sua especificidade enquanto fenômeno humano, como alerta
Alban Bensa:
(...) a antropologia corre o risco de deixar escapar a própria
especificidade do fenômeno humano, a saber, sua inscrição numa
temporalidade própria, independente do tempo longo da geologia e
da biologia (BENSA, 1996:57)

Outro ponto relevante a estas definições de ritual é que ele aparece como algo
que foge à rotina do dia a dia, ou seja, ... não devotados à rotina, ou ... caracterizados
por graus variados de formalidade (respectivamente, Turner [2005:49] e Peirano
[2003:11]). Este caráter extraordinário no mundo das relações sociais levou os rituais,
sobretudo aqueles que foram acompanhados e registrados nas sociedades tradicionais,
como as indígenas, a serem tratados como festas. Os Xavante, por exemplo, referem-se
aos ritos do danhono como festas. Assim, a iniciação de uma classe de idade é
considerada como a festa dos abare’u, ou a festa dos tirowa, etc. Diante das fortes
tendências ao conflito que observamos durante os dois momentos em que participamos
do danhono, 1997 e 2005, somos conduzidos ao estranhamento de pensá-lo como festa,
na nossa acepção do termo. Contudo, não eliminamos o caráter jocoso, presente nestas
festas, que muitos rituais apresentam ao longo do processo de iniciação, como por
exemplo no momento em que os moradores da casa dos solteiros reclamam de estarem
cansados de ser wapté e desejam ter acesso às mulheres para transar como os homens já
iniciados, bem como entrar no sistema de troca de mulheres.
Os conflitos que estão presentes no danhono são de três naturezas: a
transgressão das normas; a modificação das normas; e a não aceitação de resultados de
certas cerimônias. Segundo TURNER,
...qualquer tipo de vida social coerente e organizada seria impossível
sem o pressuposto de que certos valores e normas, ditames e
proibições são de caráter axiomático, sendo, enfim, obrigatórios para
todos. Por muitas razões, no entanto, fica difícil de sustentar, na
prática, a qualidade axiomática dessas normas, porque, na infinita
variedade de situações reais, normas consideradas igualmente
válidas, teoricamente, revelam-se, com freqüência, incongruentes
umas em relação às outras, ou mesmo mutuamente conflitantes
(TURNER, 2005:72).

Em relação ao danhono dos Xavante, as normas não chegam a ser conflitantes


entre si, ou pelo menos não observamos situações concretas onde isto poderia ter
acontecido. No entanto, elas tendem a ser manipuladas em favor de interesses e
15

vontades próprias. Isto porque, como diz TURNER (2005:73), as pessoas se reúnem não
enquanto indivíduos, mas como personalidades sociais. Embora possam estar sob um
ideário de normas que possam orientar condutas e performances rituais, na prática
quando estas normas se chocam com as ambições e projetos pessoais, as personalidades
sociais buscam um modo de subjugá-las. Um exemplo de transgressão de normas que
observamos durante o trabalho de campo dizia respeito à proibição de encontros
amorosos entre os moradores da casa dos solteiros, a hö, e suas futuras noivas, cunhadas
ou qualquer outra mulher que não fosse de sua metade exogâmica. Contudo, tanto em
1997 quanto em 2005, constatamos casos em que estes encontros teriam ocorrido,
permitindo que a metade cerimonial oposta à classe de idade que estava sendo iniciada
empreendesse tentativas de punição pela norma transgredida. O resultado foi a eclosão
de um conflito, em 1997, que chegou a vias de fato envolvendo as metades cerimoniais.
Aqui há uma diferença entre os conflitos que acontecem durante o danhono e aqueles
observados por TURNER no ritual de circuncisão dos meninos Ndembu. Enquanto entre
os Ndembu... as pessoas brigam como membros de grupamentos que não são
reconhecidos na estrutura formal do rito (TURNER, 2005:73), entre os Xavante são
justamente entre os grupamentos que compõem a estrutura ritual que eclodem os
conflitos. O conflito no danhono se dá não pela transgressão da norma em si, mas nas
tentativas de impugnação pela transgressão da regra. Transgressões à regra nos parece
serem situações comuns durante o danhono. Todavia, quando descobertas e ao torná-las
de domínio público os grupos cerimoniais são acionados para impugnar, ou castigar, os
acusados da transgressão. Usando como metáfora a terceira Lei de Newton da física
mecânica que diz que para cada ação há uma reação vemos eclodir o conflito no
danhono quando pensado enquanto processo. Ou seja, o grupo que se considera detentor
da tradição, ou que dela deveria ser o zelador, procura penalizar o grupo transgressor
que por seu turno se coloca em estado de defesa. Estes conflitos envolvem metades
cerimoniais que vivem em constantes tensões e são movidas pela instituição vingança.
Neste sentido, quando inserimos o danhono num contexto mais amplo de ações dos
atores rituais, ou seja, consideramos a iniciação do danhono num tempo histórico,
descobrimos que as metades cerimoniais procuram constantemente macular
determinados atores sociais inseridos no processo ritual, ou seja, membros de uma
classe de idade que está sendo iniciada. Isto se concretiza quando a metade cerimonial,
em particular a última classe de idade que passou pelo processo de iniciação, e que atua
16

como defensores e fiscalizadores das normas de conduta dos wapté, moradores da casa
dos solteiros, consegue, surpreender por meio de tocaia, um dos meninos praticando
uma transgressão de norma e fura-lhe os lóbulos auriculares sem festa, como dizem os
Xavante.
Este ato imputa o estigma de atsitõ, que equivale ao sem vergonha em nossa
sociedade. Tal referência é motivo de vergonha para a classe de idade que está sendo
iniciada, para as outras que compõem sua metade cerimonial, bem como para seu grupo
doméstico. De mais a mais, a instituição da vingança está presente em outros momentos
da vida social Xavante. Ela é bem mais expressiva quando se trata de conflitos políticos
envolvendo facções. Voltaremos ao assunto quando estivermos descrevendo o ritual de
iniciação do danhono (Capítulo III) e no capítulo em que estivermos tratando de sua
relação com o sistema político (Capítulo IV).
Uma última consideração que gostaríamos de fazer sobre o ritual é o modo de
abordagem e as possibilidades do método antropológico. Turner observa uma intrínseca
relação entre a realização dos rituais e as crises de vida social das aldeias, mostrando
que há uma ligação entre conflitos e rituais entre os Ndembu (TUNER, 1974:24).
Durante o tempo em que convivemos com os Xavante não observamos este tipo de
relação. Acreditamos que os conflitos sociais de ordem política são tratados como
independentes do processo ritual. Entretanto, o processo ritual pode ser usado para fins
políticos. O que queremos enfatizar é que nos dias atuais não há realizações de rituais
específicos durante o danhono para dirimir conflitos entre os Xavante.
Embora os Xavante possuam um ator social dotado de poderes para intervir em
conflitos, o ‘wamarĩdzutede’wa ou ‘wamarĩtede’wa – o dono do ‘wamarĩ, isto é, o dono
de um pó branco extraído de um tipo de madeira de mesmo nome, considerado um
pacificador – não o vimos atuar durante as situações de conflitos que chegaram a vias
de fato. Segundo Giaccaria & Heide (1984:122s) o status de ‘wamarĩ é passado de pai
para filho. A atribuição principal deste ator social é prever o futuro através de sonhos.
Ademais, segundo os autores supracitados, ele atua diretamente como pacificador de
litígios que surgem dentro de uma aldeia, bem como entre as demais com as quais o
grupo entra em contato. Outra atuação se dá quando morre alguém decorrente de
vingança ou sob suspeitas de feitiçaria onde ele volta a se impor para evitar vingança.
17

Flowers (1983) e Maybury-Lewis7 (1984), identificam entre os Xavante da


aldeia Pimentel Barbosa os ‘wamarĩ como sendo uma importante linhagem ali
estabelecida:

Por causa do expurgo de Apowẽ das outras facções enquanto a aldeia


ainda estava localizada em São Domingos, ela estava ainda mais
homogênea em 1976 do que estivera no momento da pesquisa de
Maybury-Lewis. Ela estava dominada politicamente pela linhagem
‘wamarĩ do clã pereya’ono [po’redza’õno]. Os membros fundadores
desta linhagem eram Apowẽ e seus descendentes e os descendentes
dos irmãos mortos de Apowẽ (Flowers, 1983:156.)[tradução livre].

No entanto, estes autores não tratam a sua atuação como mediadores de


conflitos. Pelo contrário, mostram que a linhagem ‘wamarĩ em São Domingos era
numericamente maior do que as demais. Nesta posição os ‘wamarĩ se colocam como
facção dominante na aldeia Pimentel Barbosa, conforme vemos em Maybury-Lewis
(1984[1967]229-238).
Giaccaria & Heide (1984:267) descrevem uma situação na qual após algumas
semanas decorrentes da morte de um homem e tendo-se discutido no warã8, centro da
aldeia, que sua causa mortis foi decorrente de feitiçaria, e, uma vez descoberto o
feiticeiro o mesmo é executado com um golpe de borduna do tipo uibró dentro de sua
casa ou ainda no ritual do uiwede, corrida de buriti. Vejamos a descrição da
performance ritual na qual o ‘wamarĩtede’wa atua nestas circunstâncias:
(...) Logo após, o ‘wamarĩtede’wa pinta-se de dauhö, joga um
punhado de ĩtsub’rã, na cabeça, põe no danho'rebdzu'a [colar de
algodão] uma pena de waaha e na mão direita um pedaço de ‘wamarĩ.
Então começa a fazer o giro de todas as cabanas jogando ĩtsub’rã.
Quando todos se reuniram na warã, ‘wamarĩ na direita inicia a dança
‘wamarĩmramidzè, acompanhada com o canto ‘wamarĩnhõ're. Após o
canto e a dança, que executou sozinho, exorta todos à paz e a não
matar mais ninguém. Para fazer os parentes, dos mortos pararem de
chorar, todos se reúnem no warã e encarregam o ‘wamarĩtede’wa de
convidar a família do morto a não mais chorar. O ‘wamarĩtede’wa faz
preparar pela própria mulher um bolo grande e, no dia seguinte,
pinta-se de dauhö e, posto no pescoço o danho'rebdzu'a com a pena
de seriema (porque o canto da seriema, como o choro, desperta a
saudade), vai com o bolo à casa do morto, onde já se reuniram os
parentes, e começa a chorar.
Os outros também choram e o pranto de cada qual é diverso e
mais ou menos longo, segundo o grau de parentesco e amizade que o

7
Publicado originalmente em 1967 como Akwe-Shavante Society. Oxford: Claredon
Press. Estaremos usando nesta tese a versão na língua portuguesa de 1984.
8
O warã, centro da aldeia, não é só espaço físico, é também o local de tomada de decisões e
onde fervilha a vida política da aldeia.
18

ligava ao defunto. Quando todos pararam de chorar, o ‘wamarĩ


tede’wa levanta-se e, confortando-os, convida-os a não chorar mais.
Os parentes respondem que obedecerão. O ‘wamarĩtede’wa entrega o
bolo e, por sua vez, os parentes do morto dão-lhe penas de arara e
algodão.
Assim termina a cerimônia pela morte de um Xavante
(Giaccaria & Heide, 1984:268).

Causa-nos estranhamento a linhagem que expurga seus opositores faccionais


sejam também os detentores de um ritual que venham a pedir que os parentes do morto
não venham a acionar a instituição da vingança. É o caso do exemplo etnográfico que
encontramos em Maybury-Lewis:
Os Dzutsi [uma linhagem] tinham suportado o impacto quando do
expurgo em que os ‘Wamarĩ conseguiram que oito homens fossem
mortos por terem “assassinado”, por feitiçaria, um irmão do chefe.
Os Dzutsi que ainda permaneciam em São Domingos estavam,
portanto, ainda seguindo seu destino cautelosamente. Eles não se
haviam aliado aos Uhö [outra linhagem], recém-chegados e, em sua
maioria, jovens inexperientes. Tampouco aliaram-se aos Wahi [outra
linhagem] contra os ‘Wamarĩ. Isto talvez os tenha salvo, a longo
prazo, pois os Wahi foram, posteriormente, eliminados. Quando
houve oportunidade, porém, Prapá [o líder dos Dzutsi] discretamente
convenceu todo um grupo, aliás, bastante numeroso, a sair de São
Domingos e a se mudar para O’Tõ [uma das aldeias Xavante]
(Maybury-Lewis, 1984[1967]:235).

Maybury-Lewis não aponta se após as mortes dos oito acusados de feitiçaria


houve a realização do ritual descrito por Giaccaria & Heide. Em todo o caso, diante
disso nos perguntamos: os parentes do morto, considerando o relato de Giaccaria &
Heide, deixam de acionar a instituição vingança em decorrência do ritual, ou pelo fato
de, no caso da descrição de Maybury-Lewis, os ‘Wamarĩ serem a linhagem mais
poderosa e numerosa? Parece-nos que quando as disputas e conflitos faccionais estão
em pleno vigor elas suprimem performances rituais, ou submetem os rituais em seu
favor. Isto se tornará mais claro no Capítulo IV desta tese quando descreveremos o
contexto da cisão da aldeia São Marcos da qual resultaram várias aldeias dentre elas a
Nossa Senhora de Guadalupe, onde acompanhamos o danhono de 2005.
A presença de um mediador de conflitos, semelhante ao ‘wamarĩtede’wa, pode
ser encontrada em outras situações etnográficas presentes na literatura antropológica. É
o caso, por exemplo, dos Nuer onde encontramos a figura do chefe pele de leopardo que
19

atua na resolução de vendetas9. A vendeta é considerada por EVANS-PRITCHARD


(2002:172), como (...) uma instituição política, sendo um modo aprovado e regulado de
comportamento entre comunidades dentro de uma tribo. Sob ela atua o chefe de pele de
leopardo como (...) um mediador numa situação social específica, e sua mediação tem
êxito apenas porque os laços comunitários são reconhecidos por ambas as partes e porque
estas desejam evitar (...) mais hostilidades (EVANS-PRITCHARD, 2002:185).
O dicionário Aurélio traz como sinônimo para vendeta10 o termo vingança.
Neste sentido, considerando os modos de operar do ‘wamarĩtede’wa e o chefe pele de
leopardo, vemos aqui uma forte aproximação entre estes mediadores de conflito.
Em Floresta de Símbolos encontramos vários tipos de curandeiros (chimbuki
para os Ndembu) que atuam como especialistas em situações que eles mesmos já foram
submetidos. Turner nos traz o caso etnográfico de Ihembi, um curandeiro especialista no
culto do ihamba. O termo ihamba se refere ao dente incisivo central superior de um
caçador morto (TURNER, 2005:453). Este dente pode ser herdado por um caçador que
faz dele um amuleto para ter sorte nas caçadas. O ihamba pode causar aflição nas
pessoas quando eles caem e se perdem antes do funeral do morto, ou quando fogem das
bolsas mukata, onde são guardados. A aflição surge quando o paciente acredita que o
ihamba de um caçador esteja alojado em seu corpo trazendo-lhe dores terríveis. Neste
caso, para se ver livre da aflição é preciso acionar adivinhos e contratar um curandeiro
que possa realizar o culto do ihamba e retirar o dente da sombra do caçador que está
causando a aflição. Turner descreve a performance da atuação de Ihembi sobre o caso
de Kamahasanyi, que acreditava estar sofrendo de ihamba. Sem adentrarmos nos
detalhes da performance ritual, interessa-nos aqui a conclusão de Turner a respeito da
atuação do curandeiro e como ela ajuda a dirimir conflitos que perpassam o tecido
social Ndembu:
Parece que o “curandeiro” Ndembu vê sua missão como sendo menos
a cura de um paciente individual que a solução dos problemas de um
grupo. A doença do paciente é o sinal principal de que “alguma coisa
está podre” no grupo. O paciente não melhora até que todas as

9
Segundo EVANS-PRITCHARD, os Nuer estão envoltos em três situações de conflito: guerras
– que são travadas contra outras tribos (contra os Dinka); disputas – que acontecem contra os segmentos;
e, vendetas – conflitos decorrentes de morte ou roubo que ocorrem no interior das comunidades. O chefe
de pele de leopardo atua na resolução de vendetas, principalmente. Nos outros casos sua participação
acorre somente se as partes assim o desejarem. Uma vendeta pode se transformar numa disputa,
ocorrendo assim o que Turner (1974:39) chama de escalada da crise, como veremos no Capítulo IV.
10
1. Na Córsega, espírito de vingança, entre famílias, provocado por um assassínio, uma
ofensa; vingança. Conf.: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa. Editora Nova Fronteira. (1995:1762).
20

tensões e agressões nas inter-relações do grupo tenham sido


explicitadas e expostas ao tratamento ritual. (...) A missão do
curandeiro é identificar as várias fontes de afeto associadas com
esses conflitos e com as disputas sociais e interpessoais, e canalizá-
las em uma direção socialmente positiva. As energias brutas dos
conflitos são assim domesticadas a serviço da ordem social
tradicional. Uma vez que as várias causas dos sentimentos negativos
contra Kamahasanyi e dos sentimentos negativos deste contra os
outros foram “tornadas visíveis” (para usar o idioma Ndembu), o
curandeiro Ihembi foi capaz, por meio do mecanismo cultural do
Ihamba, de, com sangrias, confissões, purificações, orações aos
mortos tradicionais, retiradas de dentes, e construção de expectativas,
transformar os sentimentos negativos em bem-querer. As emoções são
induzidas e, em seguida, despidas dos seus aspectos ilícitos e anti-
sociais, mas toda a sua intensidade e seu aspecto quantitativo são
preservados nessa transformação (TURNER, 2005:487).

A atuação do curandeiro Ihembi distancia-se do modus operandi do ‘wamarĩ


tede’wa, como também os conflitos onde eles atuam. Tanto o chefe de pele de leopardo
quanto o ‘wamarĩtede’wa lidam com situações de morte de pessoas, cuja repercussão
pode ser a vingança. O curandeiro Ihembi, por sua vez, com a ajuda de um adivinho
escrutina a vida e as relações sociais do paciente em aflição. Como vimos na citação
acima a cura da aflição do paciente não acontece enquanto todas as tensões e agressões
nas inter-relações do grupo tenham sido explicitadas e expostas ao tratamento ritual.
Portanto, na sociedade dos Ndembu a atuação do curandeiro é crucial para evitar que o
conflito chegue a vias de fato, como ocorre entre os Xavante.
As situações de conflitos que elencamos nas páginas precedentes estarão sendo
consideradas a partir das concepções de Turner sobre ritual, iluminada pela teoria
processualista, estudo de caso desdobrado (ou extenso) e análise situacional que abrem-
nos caminhos para entender os bastidores dos rituais Xavante. Entretanto, esta tese não
tem como foco principal o estudo do ritual, mas partimos dele para visualizar e repensar
o modo de expressão política da vida social Xavante, caracterizada como faccionalismo.
Desta forma, o conceito analítico de drama social, cunhado a partir das mesmas
concepções metodológicas já elencadas, permite-nos compreender melhor os conflitos
faccionais Xavante, bem como as cisões de aldeias, conforme pretendemos mostrar no
Capítulo IV. Diante disso, outros instrumentos analíticos e concepções estarão
presentes na tese. Falemos agora de facção e faccionalismo.
A forma como os Xavante têm se organizado ao longo de sua história para
interagir entre si e com outros segmentos sociais está impregnada de elementos que
podem ser resumidos na palavra político. No início desta tese definimos o que
21

caracteriza político, segundo a escola processualista britânica, ou seja: aquilo que se


refere ao que é público; apresenta um objetivo direcionado e possui um diferencial de
poder (controle) entre os indivíduos (SWARTZ, TURNER & TUDEN (1976:07).
Acreditamos que os conflitos que surgem englobando estas propriedades do político
resultam naquilo que comumente chamamos de faccionalismo ou facciosismo11. De
fato, nas considerações que Halph W. Nicholas (1976) traça sobre faccionalismo, e
quando o define como uma atividade política, podem ser encontradas as propriedades
acima mencionadas. Halph W. Nicholas considera:
Por “atividade política” eu quero dizer conflito organizado sobre o
poder público. “Poder” é o controle sobre recursos, seja humano ou
material. Em toda sociedade algum controle sobre recursos é privado
e algum é público, aplicável à sociedade como um todo e alocado de
acordo com um conjunto de regras. Os participantes na atividade
política tentam ampliar seu controle sobre os recursos; ou, se eles
não fizerem, eles não estão comprometidos na ação política.
Nenhuma suposição precisa ser feita sobre o que um ator político
busca no poder; controle sobre recursos materiais e homens pode ser
usado para atingir uma grande variedade de objetivos pessoais
(NICHOLAS, 1976:52) [tradução livre].

Esta é a situação que vemos acontecer entre os Xavante. Recentemente fomos


solicitados pelo cacique da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe a redigir um documento
que foi encaminhado à Cáritas Brasileira12 no qual aquele líder solicitava uma ajuda de
R$ 10.000,00, justificando que este montante seria usado na compra de combustível
para o caminhão da aldeia, sementes e ferramentas que seriam distribuídas entre os
grupos domésticos de sua aldeia, que estavam prestes a abrirem novos roçados. A
solicitação foi feita em nome da associação da aldeia13, recém revitalizada. A Cáritas
Brasileira, através do bispo católico de Barra do Garças, aprovou a liberação do

11
Grande parte dos trabalhos antropológicos que usam estas categorias adota o termo
faccionalismo. De Paula (2000) opta por usar facciosismo, por ser o disponível na língua portuguesa. No
entanto, as duas categorias referem-se ao mesmo fenômeno.
12
Cáritas Brasileira faz parte da Rede Caritas Internationalis, rede da Igreja Católica de atuação
social composta por 162 organizações presentes em 200 países e territórios, com sede em Roma.
Organismo da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) a Cáritas foi criada em 12 de
novembro de 1956 e é reconhecida como de utilidade pública federal. Mais informações podem ser
acessadas na página http://www.teste.caritasbrasileira.org/index.php.
13
Durante o trabalho de campo em 2005 assessoramos as lideranças de Nossa Senhora de
Guadalupe a revitalizar a Associação a Comunidade Indígena Tsõ’repré – ACIT. Esta associação foi
criada em 1992, quando as lideranças de Nossa Senhora de Guadalupe ainda residiam na aldeia São
Marcos, portanto, antes da grande cisão que aconteceu em 2002, como veremos no último capítulo. Com
a cisão, parte do material de escritório (carimbos, papéis timbrados e atas) se perderam. Segundo o
cacique de Nossa senhora de Guadalupe, o inimigo tinha destruído tudo quanto se intaurou a terceira
grande crise em 1998. Este inimigo era o secretário da associação. Quando Orestes retorna de São Paulo,
após a morte de seu pai, reivindicando o cargo de cacique, o secretário, que apoiava Aniceto Tsudzawéré,
cacique de Nossa Senhora de Guadalupe, muda de lado político e destrói os documentos da associação.
22

montante solicitado, o qual foi repassado diretamente ao cacique. Contudo, por ter sido
solicitado através da Associação a Comunidade Indígena Tsõ’repré (ACIT) seus
membros esperavam que o dinheiro fosse repassado ao tesoureiro que juntamente com
os diretores da associação deliberariam sobre o que e onde comprar, embora na
solicitação a aplicação do dinheiro já estivesse pré-definida. No entanto, o dinheiro
permaneceu nas mãos do cacique, sem haver qualquer discussão ou prestação de contas
aos membros da associação. Dias depois da liberação do dinheiro recebemos diversas
ligações telefônicas de lideranças de Nossa Senhora de Guadalupe que reclamavam da
não aplicação do dinheiro para os fins que fora inicialmente solicitado. Eles acusavam o
cacique de ter ficado com todo o dinheiro do projeto. Diante disso, nos disseram que
quando retornássemos à aldeia pediriam novamente nossa assessoria para mudar o nome
da associação e escolher outra diretoria que seria desvinculada daquela que o cacique é
membro.
Este caso nos mostra que o faccionalismo, enquanto atividade ou fenômeno
político é também o conflito entre facções, conforme descrito por Jeremy Boissevain
(1977). Boissevain sugere que o estudo do faccionalismo seria mais útil se ele
começasse pelo estudo dos grupos que estão em conflito – as facções. Uma facção,
segundo Boissevain – baseando-se nas conclusões de Firth quando resumia um
simpósio sobre facções na Índia e sociedades indígenas ultramarina (Firth et al., 1957) –
, é vista como um grupo livremente ordenado em conflito com um grupo similar sobre
uma questão particular (Boissevain, 1977:280 – tradução livre). Entre as principais
características dos grupos faccionais estão a diversidade de bases sobre as quais podem
se constituir (parentesco ou parentes afins, amizade, inimigos comuns, etc.), sendo
ativados em situações específicas. A união de grupos domésticos das aldeias Xavante
quando formam blocos antagônicos e começam a competir pelo cargo de chefia de uma
determinada aldeia, por exemplo, podem ser considerados como facções na acepção de
Boissevain. Os grupos domésticos xavante nas aldeias analisadas se alinham livremente
em favor de um objetivo comum. Não obstante, quando os objetivos deixam de ser
comuns, ou quando se percebe que as alianças estabelecidas não são mais favoráveis às
partes que formaram a facção, estas começam a se desprender do bloco que formava a
facção. Ou ainda, na busca de maior autonomia em relação à facção de uma
determinada aldeia alguns grupos optam por deixar esta aldeia e fundar outras, sem
deixar de manifestar apoio à aldeia de origem, como veremos no Capítulo V, quando
23

consideraremos o fluxograma de cisões de aldeias e depois o fluxograma de cooperação


para realização do danhono na Terra Indígena São Marcos.
Embora uma facção seja um grupo ordenado livremente, segundo Boissevain,
ela se torna expressiva na figura de seus líderes. Segundo Nicholas (1977) as facções se
organizam pela ação de uma liderança, onde se estabelece uma relação líder/seguidor.
Esta relação funciona em mão dupla:
O líder da facção deve ter maior controle sobre os recursos (material,
humano, ou ambos) que quaisquer dos seus partidários, porque eles
estão envolvidos em uma transação na qual o líder dá algo - um
trabalho, terra, dinheiro, proteção, etc. - em troca de apoio político
(Nicholas, 1976:56 – tradução livre).

Ainda segundo este autor, o objetivo de se organizar uma facção é oferecer ao


líder uma margem de vantagem num conflito político. Com este aspecto organizativo
das facções, e seu efeito prático no conflito político, voltamos ao faccionalismo,
definido acima por Boissevain, ou seja, o conflito entre facções.
As ações dos atores sociais Xavante podem igualmente serem pensadas como
inseridas em um campo político, conforme apresentamos acima. Neste sentido,
podemos conceber facção e faccionalismo como situações concretas de inter-relações
dentro deste campo político. Embora os conflitos entre facções Xavante possam se dar
fora do processo ritual, o mesmo pode ser tomado e usado por estas facções em favor de
seus projetos. Foi o que aconteceu na aldeia São Marcos no ano 2002, antes de sua
cisão. Naquela ocasião as duas facções que disputavam o reconhecimento como
caciques daquela aldeia planejaram, cada qual, a realização do ritual de iniciação
religiosa darini, que acontece, em média, a cada dezessete anos. A facção que defendia
a permanência de Tsudzawéré como cacique se antecipou e preparou o processo ritual
antes da oposição, que defendia a troca do atual cacique, Tsudzawéré, por Orestes. Um
dia antes que a facção de Tsudzawéré iniciasse o ritual de iniciação do darini, a
oposição plantou duas traves de futebol no centro da aldeia e pretendiam jogar durante a
performance ritual da iniciação darini. O ritual chegou a ser iniciado, todavia logo seus
executores perceberam que era impossível manter sua realização com a oposição
jogando futebol no centro da aldeia. O resultado foi a cisão da aldeia e um
realinhamento de forças por toda a Terra Indígena. Não obstante, antes do início do
ritual de iniciação religiosa darini as duas facções haviam constituído, cada qual, sua
casa dos solteiros onde deram início ao danhono dos filhos de seus correligionários. Em
24

2005, quando aconteceram várias conclusões dos danhono nas aldeias da Terra Indígena
São Marcos, a rivalidade entre as facções ainda podia ser medida, ou acionada, com
base nos discursos referentes ao sucesso de uma caçada que acontece no final do
danhono. Ao transitarmos de uma aldeia para outra os caçadores nos indagavam sobre a
quantidade de antas que teriam sido abatidas para uso nos rituais dos tébé e pahöri’wa.
Na aldeia São Marcos os caçadores ali se davam por satisfeitos ao saberem que tinham
abatido mais antas do que os de Guadalupe. Voltaremos a estes fatos ao longo desta
tese. Aqui chamamos atenção para um ponto importante nos estudos de facção e
faccionalismo. Enquanto processo social o faccionalismo, atividade política ou
fenômeno, se quisermos pensar como Nicholas (1976), deve estar num tempo histórico
estendido. Isto porque as facções e os conflitos faccionais não surgem do dia para noite.
De mais a mais, é preciso conhecer o contexto social no qual acontecem estes conflitos.
Inicialmente a manifestação do faccionalismo na Terra Indígena São Marcos
esteve submetida àquilo que poderíamos chamar de estado de dormência. Ao comparar
as chefias entre algumas aldeias Xavante, Maybury-Lewis aponta que em São Marcos o
faccionalismo estava enfraquecido pelo grande número de líderes e pela atuação da
atividade missionária.
Em São Marcos, o processo de dissolução da chefia não estava tão
avançado. Ali os chefes estavam enfraquecidos por outro motivo:
havia muitos deles. A relativa diminuição das contendas – resultado
do envolvimento com a Missão – criava dificuldade para que
qualquer deles realmente se impusesse (MAYBURY-LEWIS,
1984[1967]: 257).

Quando Maybury-Lewis tece as considerações acima ele está se baseando nos


dados coligidos entre 1962 e 1964, ou seja, seis anos após a criação da Missão Salesiana
de São Marcos e da aldeia homônima. Como pode ser visto mais abaixo noutro tópico,
parte dos Xavante que estavam na aldeia São Marcos buscaram inicialmente ajuda dos
missionários salesianos em Merure, em 1956, e em 25 de abril de 1958 são transferidos
para a atual aldeia. Após esta transferência, a aldeia de São Marcos voltou a receber
contingentes populacionais de outras regiões onde os Xavante estavam em conflitos
com outros grupos da mesma etnia ou com invasores de seus territórios tradicionais,
como foi o caso da Fazenda Xavantina (Suiá Missu) em 1966. Realmente neste,
contexto tornava-se difícil a expressão do faccionalismo. Ademais, a presença
missionária era bem mais atuante do que nos dias atuais, “controlando” as ações mais
25

agressivas e os conflitos advindos de grupos opostos, com base nos preceitos religiosos
e na formação cristã ministrados no internato e na catequização.
O trabalho de MENEZES (1984:382-383) realizado vinte anos depois da
primeira passagem de Maybury-Lewis, em 1962, aponta outra realidade vivida pelos
Xavante e sua interação com a Missão Salesiana. Agora o faccionalismo começava a
assumir outras dimensões.
No período em que a agência religiosa pôde exercer uma tutela de
fato sobre os Xavante de São Marcos, estabelecendo as condições de
integração da população indígena, a vida política da aldeia esteve
sob seu controle quase absoluto, o que teve como efeito um
amortecimento das práticas políticas em geral e, em particular, das
formas de expressar a hostilidade entre facções rivais. Esta situação
iria modificar-se com a mobilização das aldeias das Missões em prol
da demarcação das terras, o que exigiu a participação dos homens
mais jovens por sua condição de guerreiros, cuja ação deflagrou a
reação contrária à morosidade do poder político prejudicial aos
interesses indígenas. Esquematizou-se um novo modo de fazer
política, que implicou numa interação direta com a administração
oficial e a definição de estratégias de luta que permitissem ao grupo
fazer valer direitos mesmo em condições de submissão.
No contexto deste movimento, os homens mais velhos viram reduzida
sua autonomia de atuação enquanto líderes políticos, passando a
depender cada vez mais da assessoria das lideranças emergentes,
corporificadas pelos integrantes das classes de idade Abare’u e
Nodzö’u, as primeiras a realizarem a festa de iniciação após a
aproximação junto aos salesianos.
No final da campanha, dois líderes haviam conquistado suficiente
prestígio para ambicionar a chefia de São Marcos Dzururã [Mario
Juruna] e Tsusawéra [Aniceto Tsudzawéré] (MENEZES, 1984:382).

Como vemos, a situação de contato inicialmente coloca o faccionalismo num


estado de paralisia, o que nos leva a concordamos com os autores quando afirmam que
inicialmente a Missão tenha freado as divergências faccionais entre os Xavante.
Contudo, quando consideramos o contexto social vivido pelos Xavante naquele
momento bem como sua situação histórica visualizamos outras possibilidades para
pensar o faccionalismo. Ocorre que nos primeiros anos do processo de territorialização
dos Xavante, esta etnia estava voltada para uma reestruturação interna. O passo seguinte
a esta reestruturação foi marcado pela luta e conquista de parte de seus territórios
tradicionais. Isto incluiria também fagocitar, para usar outra metáfora biológica, e
incorporar a missão em seus esquemas de pensamento. Neste processo os Xavante
construíram maior autonomia, mesmo na presença continuada da missão salesiana. Os
Xavante integraram a presença da Missão, reelaborando-a, em seu cotidiano e passaram
26

a utilizá-la como ponto de conquista de recursos que pudessem legitimar lideranças. Isto
pode ser traduzido numa galhofa que corre no pensamento dos moradores de São
Marcos: (...) demorou muito, mas nós conseguimos amansar o Pe. Pedro. Aqui se
inverte o senso comum: são os Xavante a amansar a Igreja e não mais o contrário.
Na medida em que isto de fato se efetiva os Xavante se voltam novamente para
suas arengas internas. O resultado será o acirramento de tensões internas e,
conseqüentemente, a fundação de novas aldeias nas terras reconhecidas. Voltaremos a
estes dados no Capítulo IV desta tese.
A última consideração sobre os conceitos utilizados nesta tese refere-se à noção
de performance. Os estudos de performance surgem de um diálogo entre os estudos de
teatro e ritual como formas expressivas e constituem um suporte para análise da
realidade social (SILVA, 2005:36). Os pioneiros no campo antropológico são: Victor
Turner (1982, 1987), Victor Turner e Edward Bruner (1986), Clifford Geertz (1978,
2001), Michael Taussig (1993), Richard Schechner (1985, 1988) e John Dawsey (1999).
Não faremos aqui um levantamento exaustivo sobre as concepções sobre performance
destes autores. Para tanto indicamos o artigo de SILVA (2005) que elenca os autores
acima e apresenta este balanço bibliográfico. Aqui vale considerar as ponderações de
PEIRANO (2006:13) que questiona se a idéia de performance não estará muito colada
às categorias ocidentais? Ou, melhor, aos objetos e aos temas do mundo ocidental? Na
concepção da antropologia da performance, performance é tema ou teoria? Esta
questão não será aqui respondida. Contudo, as considerações finais do texto de
PEIRANO (2006:14) aproximam-se do uso que estamos dando a performance:
Rituais e “performances” privilegiam o fazer e o agir, reforçam o
contexto, admitem o imponderável e a mudança, vêem a linguagem
em ação, a sociedade em ato e prometem alcançar cosmovisões – tudo
isto podendo levar a um acordo de objetivos teórico-intelectuais com
político-pragmáticos.

Não queremos saber se a antropologia da performance é uma tentativa de


aproximar os dramas sociais, os rituais das formas modernas de expressão como o
teatro. Nosso uso do termo performance é um tanto mais modesto. O que nos inspira em
usá-lo como referência aos rituais dos Xavante é a conotação que Erving Goffman
(1975) aplica ao termo, ou seja, consideramos performance como toda atividade
utilizada por um participante para influenciar, de algum modo, outros participantes.
Em outros termos, a noção de performance teatral para Goffman decorre da constatação
27

de que o mundo social pode ser tomado como um palco no qual os atores sociais
desempenham papéis sociais. De mais a mais a idéia de performance, no inglês, remete
a desempenho, interpretação, apresentação e representação (Dicionário Oxford,
2000:537)

2 – O PROJETO DE PESQUISA E A PESQUISA DO PROJETO

Inicialmente nosso objetivo14 estava direcionado a investigar o faccionalismo


Xavante dentro de uma perspectiva diferente daquela feita por Maybury-Lewis
(1984[1967]) em A sociedade Xavante. Para tanto, delineamos uma proposta na qual o
faccionalismo Xavante poderia ser investigado sob o ponto de vista das interações que
os atuais líderes Xavante estabelecem com diferentes segmentos da sociedade nacional.
Uma hipótese de trabalho era que os atuais contextos sociais de interação colocam
novos desafios aos líderes Xavante e suas facções. Tal hipótese foi formulada a partir de
uma concepção do que seriam as atribuições tradicionais de um líder Xavante e como
ocorria o processo de reconhecimento do mesmo. Neste sentido, partimos de uma
concepção tipo ideal do líder Xavante e como se daria sua legitimação. Com base nos
trabalhos de Giaccaria & Heide (1984) e de Maybury-Lewis (1984[1974]) chegamos a
este tipo ideal segundo o qual, no passado, dentre os vários papéis a serem
desempenhados pelas lideranças Xavante estavam àqueles direcionados ao comando de
campanhas bélicas, seja em defesa de seus territórios tradicionais, seja nas
“perambulações” a outros territórios em expedições de caça e coleta. De acordo com
Maybury-Lewis (1984:251) o chefe Xavante é o cabeça de uma facção. Segundo este
autor, as facções competem eternamente por poder e prestígio assim como pelo prêmio
maior: a chefia (Maybury-Lewis, 1984:250). Um líder Xavante adquire prestígio
mediante o apoio de seus correligionários. Atributos que podem dar prestígio a uma
pessoa seriam garantidos pela capacidade de auto-afirmação, habilidade de oratória,
vigor físico e conhecimento do cerimonial (ibid. 1984:259), e poderíamos acrescentar:
belicosidade e generosidade. Em suma, um chefe se faz pelo poder de coerção de sua
facção e pelo prestígio que tem diante dela e das outras.
Atualmente os contextos de interações foram ampliados e o prestígio de um
chefe Xavante não mais advém apenas dos atributos pessoais apontados acima e do

14
Conforme Projeto de Qualificação apresentado no PPGA/UFF.
28

apoio que ele adquire junto a sua facção. As guerras do passado, seja entre os próprios
Xavante, seja com outras etnias, ou ainda com segmentos da sociedade nacional, nas
quais idealmente os chefes as conduziam, foram deslocadas para outros campos de
batalhas. Estes estão situados em outros espaços, como por exemplo, nos centros
urbanos, ou seja, são as sedes dos órgãos governamentais. Os resultados dos combates
(ou embates) nestes novos campos, e os espólios daí resultantes, uma vez revertidos e
redistribuídos em prol da comunidade aldeã, é que darão prestígio aos líderes atuais.
Assim, nestas novas modalidades de “guerras”, as disputas faccionais tomam outros
sentidos em favor de lutas pelo controle sobre os recursos destinados a educação, a
saúde e às atividades de subsistência oriundas de projetos agrícolas e afins. Em outras
palavras, o chefe tem que se dispor a perambular pelos centros urbanos e órgãos de
governo para conseguir bens a serem revertidos aos grupos domésticos. Todavia, o
prestígio adquirido nestas conquistas pode esvair-se caso os bens adquiridos não sejam
redistribuídos de forma eqüitativa. Será esta capacidade de (re) distribuição eqüitativa
dos bens que conferirão prestígio, ou não, ao chefe. Não obstante, visto que o chefe é o
cabeça da facção dominante ele estará sempre comprometido com seus correligionários
mais próximos. Inicialmente estes correligionários são formados em sua maioria por
membros de seu grupo doméstico estendido. Estes serão os primeiros a receber o
quinhão dos espólios.
Em 2002, quando iniciamos o trabalho de campo do mestrado, ao chegamos à
cidade de Barra do Garças, para depois atingir a Terra Indígena e posteriormente a
aldeia N. S. de Guadalupe, encontramos ali o cacique Tsudzawéré e sua “comitiva” que
retornava de Brasília com algumas dezenas de sacos com cobertores, roupas, sapatos e
brinquedos. Segundo seu relato, estes bens foram adquiridos através de contato com um
deputado federal que mantinha um centro de distribuição daqueles bens. O destino
destes produtos era sua aldeia, onde seriam distribuídos. Ainda antes, numa parada na
rodoviária de Goiânia, de onde seguiríamos para Barra do Garças, ao procurarmos um
espaço no bagageiro do ônibus em meio a dezenas de sacos de roupas e brinquedos,
fomos informados pelo cobrador de que tudo aquilo era coisa de índio. Dentro do
ônibus encontramos o cacique da aldeia São Francisco que retornava de Brasília.
Segundo este cacique os sacos de roupas e brinquedos que ele trazia no bagageiro do
ônibus foram conseguidos através de uma rede de amigos nas cidade satélites de
Brasília.
29

Havíamos planejado no projeto de pesquisa de doutorado mapear estas conexões


externas e identificarmos fontes de captação de recursos, como o presumido depósito
mantido pelo suposto deputado de Brasília ou a rede de amigos, do cacique da aldeia
São Francisco. Para identificar estas fontes externas, a noção de rede social pareceu-nos
de grande valia. Segundo Barnes,
A noção de rede social está sendo desenvolvida na Antropologia
Social tendo em vista a análise e descrição daqueles processos sociais
que envolvem conexões que transpassam os limites de grupos e
categorias (BARNES, 1987:163).

Neste sentido, ao investigarmos e mapearmos as redes sociais que os líderes


Xavante estabeleciam com o mundo além das fronteiras do território demarcado
pretendíamos igualmente fazer a viagem de volta e em caso de sucesso na exploração
dos outros territórios como se dariam os mecanismos de redistribuição dos bens que
porventura tivessem sido adquiridos na comunidade local. Num terceiro momento
avaliaríamos até que ponto esta redistribuição de bens conferiria prestígio ao líder e
fortaleceria sua facção. O trabalho de campo nesta pesquisa seria feito através de uma
constante perseguição, como considerou jocosamente um dos membros da banca que
avaliava o projeto, aos líderes Xavante durante suas incursões aos centros urbanos.
Entretanto, quando chegamos ao campo nos deparamos com outra situação.
Embora os líderes Xavante estivessem realizando viagens aos grandes centros urbanos
do centro oeste (Brasília, Goiânia e Cuiabá) as atenções estavam totalmente voltadas ao
processo ritual de iniciação do danhono. Diante disso, deslocamos o foco principal do
que havíamos proposto quando qualificamos o projeto de pesquisa, ou seja, acompanhar
(ou perseguir) os líderes aos centros urbanos, mapeando as redes sociais ali
estabelecidas, apurando que recursos ou bens foram adquiridos, sua redistribuição na
aldeia e de que modo isto aumentaria o capital políticos daqueles líderes. Em paralelo,
procuraríamos averiguar até que ponto a conquista de bens e recursos aumentaria o
prestígio dos líderes, conferindo-lhes legitimidade, e como isto poderia ser usado nos
conflitos faccionais estabelecidos dentro da própria aldeia, bem como, em relação a
outras aldeias da Terra Indígena São Marcos.
O novo contexto social que encontramos ao chegar à aldeia para realizar o
trabalho de campo levou-nos a reformular, embora com certa resistência, o projeto de
perseguição aos líderes Xavante aos centros urbanos. Quando apresentamos nossa
proposta de pesquisa ao cacique da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, cuja intenção
30

era acompanhá-lo aos centros urbanos, o mesmo considerou uma ótima oportunidade de
ter um secretário waradzu (não Xavante), como ele mesmo disse. Sentimos de imediato
que estávamos sendo cooptados para o projeto político do cacique. Isto se tornou claro
quando o cacique nos pediu logo em seguida para que elaborássemos um documento
que seria encaminhado ao Superintendente de Políticas Indígenas da Casa Civil do
Governo do Estado, Sr. Sardinha, no qual solicitava a doação de cerca de cento e
sessenta calções pretos e vermelhos, a serem usados solenemente durante os diversos
rituais que estavam por vir. Ao longo, do trabalho de campo sempre que procurávamos
o cacique para conversar sobre os rituais em andamento, o mesmo voltava a nos
solicitar que elaborássemos outros documentos que remetiam às arengas políticas que
ele estava envolvido tendo como opositores as lideranças de outras aldeias. Entretanto,
quando se tratava do envolvimento com as disputas envolvendo outros líderes Xavante,
sobretudo quando o teor destes novos documentos propostos era apresentado como
forma de desqualificá-los, com muita sutiliza nos esquivávamos de produzi-los, como
estratégia de não ter fechada outras portas do campo.
No caso do documento elaborado e encaminhado pelo cacique ao
Superintendente de Políticas Indígenas, o resultado foi parcialmente satisfatório.
Quando o cacique retornou de viagem procuramos saber se ele havia conseguido os
calções. Segundo o chefe, o Superintendente de Políticas Indígenas não entende de
xavante. Dizia isto porque em lugar de comprar calções seus assessores compraram
bermudas, que não seriam úteis nas performances rituais. Todavia, depois de
distribuídas elas renderam prestígio e aumento do capital político ao chefe, que pode ser
resumida numa frase de um dos informantes: ele [o chefe] luta pelos bem das
comunidades [Aldeia Nossa Senhora de Guadalupe].
Nos dias que se seguiram quando tomávamos conhecimento de que uma
liderança estaria planejando uma viagem e ao traçarmos uma estratégia para
acompanhá-la éramos obrigados, ou talvez convencidos, a abandonar o plano e
acompanhar o ritual do danhono que estava sendo preparado. Além disso, as condições
financeiras para empreender viagens aos centros urbanos elencados acima não eram
nada favoráveis. Diante disso, a construção do objeto teve que se adequar às novas
condições de implementação da pesquisa etnográfica. Estávamos vivendo uma situação
análoga a de Evans-Pritchard (1978:300) quando afirma: Eu não tinha interesse por
bruxaria quando fui para a terra Zande, mas os Azande tinham; de forma que tive de
31

me deixar guiar por eles. Inicialmente não tínhamos interesse no danhono, haja vista
que já o conhecíamos e nele fomos incorporados em 1997, conforme descrevemos
abaixo. Nosso objetivo inicial era acompanhar as lideranças aos centros urbanos, no
entanto em 2005 quase tudo estava voltado ao processo de iniciação do danhono. Assim
fomos movidos e levados a reconsiderar a questão do faccionalismo Xavante.
Diante das novas condições encontradas no campo, onde tudo estava voltado ao
danhono, descortinou-se para nós outra possibilidade de pesquisa na qual poderia ser
contemplado os conflitos faccionais. O foco da pesquisa voltou-se para os bastidores do
danhono e a possibilidade de (re)apropriação do ritual para uso político, e ainda a
relação do danhono realizado na aldeia N. S. de Guadalupe com outros que estavam
sendo igualmente realizados noutras aldeias da Terra Indígena São Marcos. Neste
sentido, tanto o processo ritual quanto o faccionalismo, como expressão política,
tiveram que ser inseridos numa amplificada de relações sociais. Do mesmo modo o
tempo histórico destas relações não pode ser ignorado. Diante disso, reconstituímos,
através da noção de drama social cunhada por Victor Turner, no capítulo IV desta tese
os processos de cisões e criação de novas aldeias na Terra Indígena São Marcos. Tais
cisões e criação de novas aldeias Xavante é o resultado final daquilo que Turner chama
de escala da crise. Visto que o processo ritual de iniciação do danhono é cíclico, ou
seja, renova-se de tempos em tempos, procuramos também reconstruí-lo inserindo-o no
tempo e apurando alguns dos conflitos instaurados em seus bastidores.
Os bastidores do danhono surgem como locus de excelência para visualizar os
conflitos faccionais. Outro aspecto que a nova situação de pesquisa possibilitou foi a de
empreender um levantamento das condições de manutenção das práticas culturais numa
sociedade em processo de transformação. Em outros termos, se a cultura é dinâmica
como são mantidas as práticas culturais, neste caso os rituais que compõem o danhono,
numa sociedade tradicional que está inserida em novos contextos de interações sociais?
Quais são as estratégias, e suas conseqüências, acionadas pelos atores sociais para
produção do danhono?
Os dados coligidos nesta nova condição de trabalho de campo favorecem a
retomada das discussões sobre o faccionalismo Xavante que havíamos traçado na
elaboração da dissertação de mestrado. Naquela ocasião argumentamos que as bases do
faccionalismo Xavante não estão pautadas sobre uma instituição formal da organização
social Xavante, a casa dos solteiros, como sugere a análise de David Maybury-Lewis
32

(1984[1967]) em A sociedade Xavante. O faccionalismo Xavante lança mão não só dos


processos rituais como também dos novos contextos sociais de interação no qual os
Xavante estão inseridos. Retomaremos estas considerações na conclusão desta tese.

3 - OS XAVANTE DA TERRA INDÍGENA SÃO MARCOS

Pretendemos aqui apresentar, ainda que brevemente, a formação da Terra


Indígena São Marcos. Como salienta Oliveira (1998:17) uma terra indígena não é algo
que esteja relacionado somente ao grupo étnico, com suas representações e práticas
nativas, mas também é uma relação estabelecida e mediada com o Estado Brasileiro
através de processos jurídicos e práticas administrativas. Não obstante outros atores e
agentes sociais estão envolvidos neste processo. No caso da Terra Indígena São Marcos
houve a mediação direta da Igreja Católica, através da Missão Salesiana de Mato
Grosso. A atuação do agente missionário se dava mediante elaboração de relatórios
técnicos, como o do Pe. Pedro Sbardellotto, com o qual estaremos trabalhando aqui.
Considerando a natureza dinâmica destas relações, o que se estabelece é o processo de
territorialização entendido como
“um conjunto de ações sociais por meio das quais um
objeto político administrativo (no Brasil, as ‘comunidades
indígenas’, na América Espanhola, as ‘reducciones’ e os
‘resguardos’, e nas colônias francesas a ‘ethnie’) é
conduzido a transformar-se em uma comunidade
organizada, formulando uma identidade própria,
instituindo mecanismos de tomada de decisões e de
representação, bem como reestruturando as suas formas
culturais (inclusive aquelas concernentes ao meio
ambiente e ao universo religioso)” (Oliveira, 1999:21).

Desta forma, o processo de territorialização dos Xavante, neste caso os da T. I.


São Marcos, deve ser visto como uma (...) intervenção da esfera política (e em especial
do estado) pela qual é estabelecida uma associação de natureza prescritiva entre
indivíduos e grupos com limites geográficos determinados (Oliveira,1998:9).
Os Xavante da Terra Indígena São Marcos, segundo classificação de Maybury-
Lewis (1984:51-60) pertencem ao grupo dos Xavante Ocidentais situados a oeste de
Xavantina no Alto Rio das Mortes. O mesmo autor relata que integrantes deste grupo
pretendiam ir até Cuiabá, para um encontro com o Governador, mas foram impedidos
pelas epidemias e confrontos com os regionais.
33

Durante essa excursão, o grupo dividiu-se em dois: um seguiu para onde é hoje a
Terra Indígena Sangradouro, enquanto o outro buscou ajuda na Missão Salesiana
estabelecida na aldeia Merure, onde vivem os membros da etnia Bororo. Neste local
chegaram no dia 02 de agosto de 1956. Segundo Lopes da Silva (1986:35), os Xavante
que se estabeleceram próximo da aldeia Merure pertenciam ao grande grupo que vivia
na região do rio Couto Magalhães. O mapa, a seguir, mostra de onde vieram os grupos
Xavante que buscaram ajuda junto aos missionários salesianos e/ou foram transferidos,
depois para onde é atualmente a Terra Indígena São Marcos. Embora neste mapa não
seja possível visualizar o rio
Corto Magalhães informamos,
com base no trabalho de
Aracy Lopes da Silva
(1986:34), que o mesmo é
afluente do rio Parabubure
que por sua vez tem origem
no rio Ronuro, afluente do
Xingu. A numeração que
aparece no mapa refere-se a
localização tradicional de
aldeias Xavante e que
posteriomente foram
reconhecidas pelo Estado
como terras indígenas, veja o
número dois mais adiante.
Nos primórdios do ano
seguinte os Xavante foram
transferidos pelos
missionários para outro lugar,
Mapa - 1 - Aldeias Xavante durante a pesquisa de Maybury-
próximo ao Córrego Fundo, Lewis e fluxos para formar a aldeia São Marcos. fonte:
para depois serem transferidos Mybury-Lewis (1984:38)

em definitivo para onde está localizada hoje a aldeia São Marcos. Dois foram os
motivos que os levaram a tal mudança: o local onde estavam era muito próximo a
Merure - cerca de uma légua, e apresentava poucas matas para fazerem as roças e
34

atividades de caça e coleta; tal proximidade favorecia prováveis conflitos entre os


Xavante e Bororo, haja vista que os dois povos eram historicamente inimigos
(CORAZZA, 1995:149; MAYBURY-LEWIS, 1984:49; RELATÓRIOS DO PE.
CHOVELON, 1996:9-41).
O local escolhido para fundação da nova aldeia estava, a 35 km de Merure,
situado na fronteira da Missão de Merure, próximo ao Córrego Boqueirão. Este local
fazia parte de um dos lotes de 25.000 hectares, destinados ao trabalho missionário,
entregues aos salesianos por Dom Aquino Corrêa em 1918, quando era governador do
Estado de Mato Grosso (MARIGUDÚWO e ENAWURÉU, 1986:36). Ali existia um
vigia da missão, não índio casado com uma índia da etnia Bororo, que o Pe. Bruno
Mariano, diretor da Colônia Indígena de Merure, havia colocado como sentinela. A
grande quantidade de mata, bem como, a proximidade de um curso d’água, tornou o
lugar ideal para fundação da nova aldeia. Ademais, o local onde se instalou a aldeia São
Marcos fazia parte de uma reserva15 criada pelo Estado de Mato Grosso, por decreto em
1950, ou seja, antes dos Xavante buscarem apoio junto ao missionários salesianos que
estavam na aldeia Merure já existia uma área destinada aos Xavante que viviam na
região abrangida pelo município de Barra do Garças.
O contingente populacional de São Marcos inicialmente era de 250 pessoas sob
a chefia de Apoena Abtsi'ré. Um dos missionários que esteve acompanhando os
primeiros anos da fundação de São Marcos aponta que o grupo teve que começar do
nada. Segundo ele
(...) Se no Sangradouro os Xavante encontraram tudo pronto e não
tiveram nenhuma contestação, os de São Marcos tiveram que começar
tudo 2 vezes do nada e com oposição dos invasores desta reserva,
manifestada por arregimentação de gente armada, por oferecimento
de comidas envenenadas; por organização de derrubada de mata à
revelia nas imediações, no intuito de sufocar a incipiente Missão (...)
(Sbardellotto, 1996:104).

Esta mudança eliminou a possibilidade de conflitos entre Xavante e Bororo,


porém, abriu a possibilidade de confrontos com posseiros e fazendeiros que moravam
nas proximidades da nova aldeia. O episódio conhecido como “surra” ao Pe. Pedro

15
A reserva foi criada pelo Decreto nº 903 de 28/03/1950. (cópia anexada em DE PAULA: 2007:
ANEXXO II)
35

Sbardellotto16, missionário salesiano, em julho de 1959 apontava os rumos que


tomariam as relações entre índios e grupos da população envolvente.
Instalados na nova aldeia sob assistência dos missionários salesianos, o grupo foi
acrescido de cento e mais índios Xavante (Sbardellotto 1996:104), chefiados por
Sebastião. O mesmo provinha, ao que tudo indica, de acordo com o relatório do Pe.
Pedro, de Santa Terezinha, porém, passou antes pela região onde é hoje a Terra
Indígena Pimentel Barbosa e Couto Magalhães. Ao evitar contato com outros grupos
Xavante que viviam naquela região, Sebastião se estabeleceu em São Marcos em 1961
onde permaneceu alguns anos. Depois resolveu mudar-se com seu grupo para
Sangradouro, outra área de missão dos salesianos e que depois veio a se tornar a Terra
Indígena Sangradouro. Maybury-Lewis (1984:51-60) aponta que em 1962 havia quinze
casas na aldeia de São Marcos. Para o ano de 1964 o número dobra, passando a trinta e
duas. De acordo com este autor o contingente populacional para 1958 era de 200
pessoas, aumentando para 300 em 1962 e 350 em 1964. À esta população mencionada
em 1964 deve se acrescentar a chegada de mais um grupo de aproximadamente oitenta
Xavante vindos da região do rio Batovi.
O último grupo a compor o aldeamento de São Marcos chegou em agosto de
1966. Naquele ano um contingente de 300 Xavante foram retirados de seu território,
onde havia se instalado a Fazenda Suiá-Missu localizada na região conhecida pelos
Xavante como Marãiwatsédé, hoje reconhecida como terra indígena e intrusada por
posseiros. Os Xavante daquela região foram os últimos a serem contatados. Ali havia
duas aldeias: a primeira com cerca de 90 pessoas, chefiada por Tibúrcio que se
estabeleceu, em 1963, próximo de onde se instalou a sede da fazenda Suiá-Missu,
recebendo assistência e vigilância de um funcionário da fazenda, designado para atendê-
los. Acerca de 200 Km da sede daquela fazenda havia outra aldeia, chefiada por
Bödöditu, que recusava estabelecer contatos com regionais. Com apoio do
administrador da fazenda, o missionário salesiano Pe. Pedro Sbardellotto, sobrevoou a
aldeia e decidiu estabelecer contato por terra acompanhado por Tibúrcio, cacique da
primeira aldeia já contatada. Chegando à aldeia de Bödöditu o missionário procurou
convencer seus moradores a permanecer no local, pois tinha pretensão de fundar ali uma
missão salesiana, nos moldes das já existentes em São Marcos e Sangradouro, para
16
O episódio ficou conhecido como a surra do Pe. Pedro. Segundo o próprio Pe. Pedro a ação
foi aconselha da por autoridades municipais e estaduais ...dá uma pisa no padre: ele vai embora, nenhum
outro terá coragem de tomar o lugar dele: vocês ficam com as terras e acabam com os índios; (Lachnitt e
Maciel, 1996:89). Menezes (1984: 366) também apresenta uma versão deste fato.
36

atendê-los. Findada a negociação com Bödöditu, Pe. Pedro Sbardellotto retorna, mas ali
permanece Tibúrcio, que segundo o missionário, pretendia ser chefe de todo o grupo de
Marãiwatsédé reunindo-o na sede da Fazenda. Depois de eliminar fisicamente os líderes
contrários à transferência, Tibúrcio lidera o grupo percorrendo os duzentos quilômetros
até a aldeia que estava próximo à sede da fazenda, onde se instalaram em julho de 1964.
Após um ano de convivência entre os Xavante recém aldeados, a menos de um
quilômetro da sede, começaram a surgir problemas de convivência entre os funcionários
da fazenda com os Xavante. Na área ocupada pela fazenda tentou-se por duas vezes
fundar uma missão, como as existentes em Sangradouro e São Marcos, para atrair os
Xavante. A primeira seria montada a uma distância de 20 km da sede da fazenda. Por
motivos de tratamento de saúde Pe. Pedro Sbardellotto ausentou-se da área, o que
levaria o projeto do missionário ao fracasso. Ao retornar à fazenda, em julho de 1965,
os Xavante já estavam sendo transferidos para outra área distante 65 km da sede, local
considerado impróprio pelo missionário para abertura da missão. Uma solução
encontrada para o conflito entre a fazenda e os Xavante foi a transferência do grupo
para uma das missões salesianas entre os Xavante, Sangradouro ou São Marcos. De
acordo com Pe. Pedro Sbardellotto (1996:108) o grupo escolheu São Marcos. E para lá
foram transferidos os mais de 300 Xavante com avião da FAB no meado de agosto de
1966, abandonando assim definitivamente sua região Marãiwatsédé, não muito
satisfeitos, mas impelidos pelas circunstâncias (...). Tratava-se, portanto, de uma
transferência à revelia dos Xavante.
Dois meses após o grupo vindo de Marãiwatsédé ter se instalado em São Marcos
sobreveio uma epidemia de sarampo matando quase um terço daquela população recém
chegada e apenas alguns já residentes naquela aldeia. Considerando que em 1964 a
população era de 350 pessoas, como apontado acima, com a chegada do grupo de
Marãiwatsédé este número totalizaria 650 Xavante, no mínimo. Para o ano de 1967 a
população de São Marcos foi contabilizada em 800 pessoas (Nunes da Mata, 1999). As
projeções contidas no Relatório do Pe. Pedro Sbardellotto, para o ano de 1970, eram de
que se numa hipótese de 300 Xavante deixassem São Marcos para residirem na região
do rio Couto Magalhães, haveria ainda uma população em São Marcos de 500 e mais
Xavante (Sbardellotto 1996:124). Alguns grupos domésticos de fato deixaram a aldeia
São Marcos, enquanto que outros começaram a fundar novas aldeias depois do processo
de constituição da Terra Indígena.
37

Os Xavante que fundaram a aldeia de São Marcos, e depois aqueles que foram
transferidos para lá, permaneceram sob a tutela dos missionários salesianos que ali
implantaram a Missão Salesiana de São Marcos. A convivência de vários grupos
Xavante entre si, provenientes de regiões diferentes, numa mesma aldeia, em presença
da Missão Salesiana, levou a um enfraquecimento de suas expressões políticas,
principalmente do faccionalismo (Maybury-Lewis, 1984:257).
Nos anos seguintes à implantação da aldeia e Missão Salesiana de São Marcos
deu-se início ao processo que levaria a criação da Terra Indígena homônima. Como
veremos no Capítulo IV, o processo de demarcação da Terra Indígena São Marcos foi
concluído em 1975. A partir deste fato histórico eclodiram-se uma série de crises
políticas, ou faccionais, entre os líderes Xavante que estavam vivendo na aldeia São
Marcos. Os resultados imediatos destas crises foram inúmeras cisões daquela aldeia, ao
longo de cinco décadas, o que levou a uma redistribuição da população no território
recém-demarcado.
Será no contexto das relações entre as aldeias, sobretudo nos processos de cisões
da aldeia São Marcos, que estaremos apresentando o ritual de iniciação do danhono. No
Capítulo IV retomaremos o processo de cisão aqui sinalizado e o relacionaremos com o
danhono, apresentado nos Capítulos II e III.
Atualmente a terra Indígena São Marcos possui 28 aldeias cujas distâncias entre
si variam. Considerando a aldeia mãe São Marcos, as distâncias variam de 01 (um) a 42
quilômetros. Em outros casos, considerando outras aldeias, a distância entre uma aldeia
e outra pode ser ainda menor, como é caso da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe e
Nossa Senhora das Graças cuja distância é de trezentos a quatrocentos metros de
distância.
A população das 28 aldeias da Terra Indígena São Marcos apresenta números
bastante variados. Dados coligidos por nós durante o trabalho de campo de 2005
mostravam que a menor das aldeias tinha uma população de apenas 16 pessoas,
enquanto que as maiores, São Marcos e Nossa Senhora de Guadalupe tinham,
respectivamente, 405 e 405 moradores. A população total da Terra Indígena era de
260417 pessoas.

17
O número de aldeias, população de cada uma delas e as distâncias – a partir da aldeia São
Marcos, constava num mapa desenhado numa cartolina e fixado na Escola Indígena Estadual Deputado
Mário Juruna. Segundo um de nossos informantes o mapa e os dados ali inseridos, era resultado de um
trabalho de treinamento dos Agentes Indígenas de Saúde - AIS, promovido pelo Distrito Sanitário
Especial Indígena – DSEI Barra do Garças.
38

A diferença populacional entre as aldeias da Terra Indígena São Marcos exigiu


que elas estabelecessem entre si um processo de cooperação e alinhamento político
tendo em vista a realização do danhono. Neste sentido, apresentamos no Capítulo IV
dois fluxogramas: um de (re)alinhamentos políticos, quando consideramos as crises
políticas e cisões de aldeias; e outro, no qual destacamos as aldeias que realizaram o
danhono e as demais que estabeleceram alianças com aquelas para que seus meninos e
meninas passassem pelo processo de iniciação. Embora apresentemos o fluxograma de
cooperação para realização o danhono a partir dos realinhamentos políticos, isto não
significa que o mesmo deva ser tomado de maneira absoluta. Como veremos, pessoas de
aldeias que não se declaravam politicamente aliadas de determinadas aldeias
participavam, em certos momentos, dos rituais do danhono que nelas acontecia.
A Terra Indígena São Marcos não foi a única a realizar a conclusão do processo
de iniciação do danhono em 2005. As demais terras indígenas Xavante realizaram
igualmente a conclusão do danhono em algumas de suas aldeias. Assim como ocorreu
na Terra Indígena São Marcos, nas demais Terras Indígenas Xavante também ocorreu
um processo de alinhamentos de cooperação entre aldeias para realização do danhono.
Não estaremos trabalhando com o danhono que aconteceu nas demais terras indígenas
devido à falta de dados etnográficos. Como veremos no próximo item, nosso trabalho de
campo ficou restrito à Terra Indígena São Marcos. Não obstante, soubemos através dos
informantes da existência de um pequeno fluxo de pessoas, matéria prima e objetos de
uso nos rituais circulando entre as Terras Indígenas Xavante. Ademais, através dos
aparelhos de rádios de comunicação, identificamos a existência de uma rede de troca de
informações sobre o andamento do processo ritual nas demais terras indígenas. Quando
se realizava, por exemplo, o ritual do uiwede, corrida de toras de buriti, o resultado do
mesmo, ou seja, a classe de idade vencedora, era rapidamente repassado, via rádio, às
aldeias que realizavam o danhono. Isto aumentava ainda mais a rivalidade e disputa
entre as classes de idade durante os rituais. O entendimento sobre o que estamos aqui
chamando de classes de idade estará disponível no Capítulo I desta tese.
O mapa abaixo permite visualizar a localização das demais Terras Indígenas
Xavante. No destaque (número 02) temos a Terra Indígena São Marcos onde
desenvolvemos nossos trabalhos de campo. Nos números 03 e 06 estão localizadas três
terras indígenas em cada um deles: no número 03 temos as Terras Indígenas Areões,
39

Areões I e Areões II; enquanto que no número 06 as Terras Indígenas Parabubure,


Ubawawe e Chão Preto.
Abaixo apresentamos um quadro com o número total de aldeias em cada terra
indígena destacada no mapa.
TERRA NÚMERO DE ALDEIAS
INDÍGENAS (DEZ 2007)
01 Sangradouro/Volta Grande 26
02 São Marcos 28*
03 Areões – Areões I e Areões II 15
04 Pimentel Barbosa 08
05 Marawatsede 01
06 Parabubure, Chão Preto e Ubawawe 81
07 Marechal Rondon 08
TOTAL 167 Aldeias
Fonte: FUNASA/DISEI Xavante; * dado do pesquisador

QUADRO - 1 - Terras Indígenas Xavante e número de aldeias

Mapa - 2 - Localização das Terras Indígenas Xavante. Fonte: adaptado de Ricardo &
Ricardo (2006)
40

4 - O TRABALHO DE CAMPO

Ao longo de mais de cinco anos, sendo três ininterruptos, tivemos a


oportunidade de trabalhar e conviver com os Xavante de várias Terras Indígenas
Xavante distribuídas pelo leste mato-grossense. A primeira experiência de trabalho com
esta etnia se deu em 1995, quando terminávamos a graduação no curso de Pedagogia
pela Universidade Católica Dom Bosco – Campo Grande/MS. Na ocasião, havia um
projeto com parceria entre o Estado de Mato Grosso e a Missão Salesiana, com sede em
Campo Grande - MS, para implantar o curso de Magistério na aldeia de São José,
situada na T. I. Sangradouro. Através desse projeto fomos lecionar naquela aldeia, onde
permanecemos por um mês. Dois anos depois, ainda através da Missão Salesiana, da
qual éramos membro, fomos trabalhar como professor na aldeia São Marcos, situada na
terra indígena homônima.
Quando chegamos à aldeia São Marcos, em 1997, estava sendo realizado o ritual
de iniciação dos jovens – o danhono. Naquela ocasião fomos incorporados18 à classe de
idade hötörã19. Os membros desta classe de idade, por conta da dinâmica cíclica entres
as classes de idade, assumiram o ciclo de vida danhohui’wa, padrinhos, cujo papel
principal era patrocinar ou também acompanhar e instruir os neófitos durante o tempo
em que vivem na casa dos solteiros, a hö. No ano de conclusão do danhono são os
danhohui’wa que assumem como atores rituais, o desempenho das performances rituais
que compõem o danhono. Naquele ano, 1997, os meninos que estavam sendo iniciados
eram os membros da classe de idade ẽtepa
˜ .
Como membro da classe de idade hötörã tivemos a oportunidade de acompanhar
quase todos os rituais que compõem o conjunto final do danhono. Desta forma, sempre
que tomávamos conhecimento da realização de algum ritual lá estávamos, na condição
de danhohui’wa, para participar. Estes acontecimento incluíam caçadas, corridas de tora
e danças, eventos necessários e parte integrante do danhono. Além dos rituais ligados à
iniciação dos jovens tivemos oportunidade de acompanhar outras atividades cotidianas
da aldeia que envolviam participação coletiva, como caçadas e pescarias, que não

18
Era comum na aldeia de São Marcos os missionários jovens serem incorporados em classes de
idade, se desejassem.
19
Entre os Xavante existem oito classes de idade nos quais os jovens são inseridos quando no ato
da constituição de uma nova casa dos solteiros, a hö. No capítulo I será descrito com detalhes o sistema
de classes de idade.
41

tinham caráter cerimonial. Esta inserção nos vários eventos sociais dos Xavante da
aldeia São Marcos, fossem eles cerimoniais ou não, nos possibilitou acumular uma
gama de informações etnográficas sobre a cultura Xavante, que agora se torna
fundamental para o desenvolvimento deste trabalho.
Depois de um ano na condição de membro da missão salesiana, nos
desvinculamos daquela entidade religiosa. Todavia, optamos por permanecer
trabalhando com educação indígena na aldeia São Marcos, na qualidade de voluntário.
Assim permanecemos ainda por dois anos naquela aldeia. Com isto pudemos assistir o
início de uma nova crise política na aldeia que envolvia a disputa pelo reconhecimento
do posto de cacique por duas lideranças. Um ponto crítico nesta disputa, dentre outros,
foi um conflito que chegou a vias de fato e que teve como palco a aldeia São Marcos.
Descreveremos este conflito no Capítulo IV.
Também constatamos, naquela época, que havia uma grande mobilidade de
pessoas em direção à cidade de Barra do Garças e de outros centros urbanos. Deste
modo, todos os dias, com raras exceções, um caminhão sob comando e responsabilidade
de uma das lideranças da aldeia partia - lotado de jovens, homens adultos, velhos,
mulheres e crianças - durante a madrugada em direção à cidade, retornando quase
sempre no mesmo dia, quando não acontecia algum imprevisto durante a viagem. Tal
movimentação nunca foi bem vista por uma ala de missionários que defendia a
permanência dos Xavante na aldeia. Na opinião deles, agindo dessa maneira os Xavante
estariam caminhando para um processo de perda cultural e de identidade. Entretanto,
como observamos, para os Xavante este “risco” não é assim vivido. Ao acompanharmos
este processo de deslocamento da aldeia à cidade de Barra do Garças, principalmente,
observamos que os Xavante tomavam o espaço urbano como outra fronteira de
exploração.
Deixamos a aldeia São Marcos no final do ano de 1999. As informações e
observações, bem como a experiência pessoal ali vivida, foram de grande valia para o
trabalho de campo do mestrado, que realizamos nos meses de outubro e novembro de
2002. Naquela ocasião a crise política na aldeia São Marcos já tinha atingido seu ápice
resultando na cisão daquela aldeia três meses antes de nossa chegada, resultando na
criação de novas aldeias.
Na dissertação do mestrado procuramos abordar a repercussões das cisões que
aconteceram na aldeia São Marcos na redistribuição da população na Terra Indígena
42

homônima, bem como as relações políticas entre as aldeias. Ademais, mostramos


também que o conflito político na terra indígena teve reflexos no uso e ocupação do
espaço urbano de Barra do Garças/MT. Após o primeiro confronto ocorrido na aldeia
São Marcos, as facções passaram a se deslocar por caminhos diferentes dentro da Terra
Indígena para atingir a cidade de Barra do Garças. Ademais, o espaço interno da terra
indígena também foi (re)apropriado em conseqüência dos conflitos faccionais da aldeia
Terra Indígena São Marcos. O entendimento desta dinâmica foi crucial para o trabalho
de campo, agora para o doutorado, que desenvolvemos em 2005 e 2007.
Conforme dissemos acima, inicialmente nosso objetivo da pesquisa estava
direcionado ao estudo do faccionalismo Xavante a partir de incursões de líderes
Xavante aos centros urbanos e seu retorno às aldeias. Contudo, fomos conduzidos a
mudar esta proposta de pesquisa onde o foco foi deslocado para os bastidores do
danhono. Neste sentido, passamos a considerar os rituais de iniciação do danhono como
espaço social e etnográfico para este trabalho.
A primeira etapa do trabalho de campo aconteceu de meados do mês de maio ao
final do mês de junho de 2005. Quando chegamos ao campo os moradores da casa dos
solteiros haviam passado a noite executando o último banho ritual, chamado datsi’waté,
antes de terem os lóbulos das orelhas furados no dia seguinte (veja item 3.1.1 e 3.2 do
Capítulo III). Após este ritual permanecemos na aldeia acompanhando os demais
rituais e executando algumas viagens à Barra do Garças. Neste tempo procuramos
igualmente levantar informações sobre a conjuntura política da aldeia e dados sobre as
cisões de aldeia da Terra Indígena São Marcos que tinham acontecido no passado. Nos
intervalos de um ritual e outro na aldeia onde estávamos, nos dirigíamos à aldeia São
Marcos onde assistíamos os rituais ali realizados, além de levantar a presença de líderes
de outras aldeias que cooperavam com esta na realização do danhono. Quando a aldeia
Nossa Senhora de Guadalupe deu início ao ritual da corrida do noni e entrega, também
de modo ritual, de dois objetos rituais, ĩni e tsidupu, confeccionados pela última classe
de idade iniciada àquela que estava em processo de iniciação (veja item 3.8, 3.9 e 3.12
do Capítulo III), deixamos o campo por um mês.
Retornamos a Nossa Senhora de Guadalupe no final do mês de julho de 2005
quando aldeia se preparava para realizar a grande caçada, cujo produto final seria
destinado aos rituais do tébé e pahöri’wa (veja item 3.13 a 3.17 do Capítulo III). Nesta
segunda etapa do trabalho de campo permanecemos até o início da segunda metade do
43

mês de setembro, quando o processo de iniciação do danhono foi concluído. Ademais,


seguimos a mesma dinâmica do trabalho de campo anterior, ou seja, sempre que havia
um intervalo entre os rituais que aconteciam em Nossa Senhora de Guadalupe, nos
deslocávamos à São Marcos para igualmente ali acompanharmos os rituais. Esta
estratégia adotada nas duas situações de trabalho de campo permitiu não só visualizar a
presença de líderes de outras aldeias naquelas que realizavam o danhono, mas também o
fluxo de pessoas cooperando entre si, independentemente de serem membros de aldeias
aliadas ou não, no processo ritual. Embora tenha havido diversas cisões nas aldeias da
Terra Indígena São Marcos, por divergências políticas entre seus membros, manteve-se
entre os grupos domésticos um sentimento de continuidade. Em outras palavras, entre os
grupos domésticos existem diversos tipos de relações sociais, como de parentesco, por
exemplo, que a crise política entre facções não consegue eliminar. Deste modo, ao
término de um ritual em Nossa Senhora de Guadalupe, que estava adiantada na
realização dos rituais em relação a São Marcos, era comum o envio de ornamentos,
matéria prima para sua confecção, alimentos de uso ritual, etc., de uma aldeia a outra.
Permanecemos em campo até o início da segunda metade do mês de setembro quando
houve a conclusão do danhono.
A terceira etapa do trabalho de campo se deu na segunda quinzena do mês de
novembro. Ao longo de todo o processo ritual em Nossa Senhora de Guadalupe corria o
boato de que ao seu término vários grupos domésticos deixariam aquela aldeia e outras
seriam fundadas. Diante disso retornamos ao campo para acompanhar o que seria uma
nova cisão. Entretanto, houve mudanças nos planos daqueles que iriam deixar a aldeia
Nossa Senhora de Guadalupe. Com a conclusão do danhono houve uma redução no
nível de tensões dentro da própria aldeia. Isto se deve, ao menos em parte, pelo fato de
que enquanto o processo de iniciação estava em andamento, a aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe recebeu muita gente que fixaram ali residência temporária. Um dos
moradores, que se dizia muito descontente com as ações e atitudes do cacique, havia até
definido o local da próxima aldeia. Ele afirmava ter apoio de outros grupos domésticos,
além do seu, que segundo ele, provocaria uma grande redução na população de Nossa
Senhora de Guadalupe. Entretanto, durante este trabalho de campo o mesmo nos disse
que havia desistido de fundar a nova aldeia, pois seus rancores com o chefe já haviam
ficado para trás. Não obstante, acreditamos que sua desistência em fundar a nova aldeia
tenha se dado por não ter recursos disponíveis para tanto. Ao que tudo indica este
44

morador não desistiu de seus planos de fundar a nova aldeia, pois de vez em quando ele
nos telefona solicitando ajuda para montar um projetinho a ser encaminhado a uma das
montadoras de veículos no qual pretende solicitar a doação de uma viatura.
Retornamos novamente à aldeia Nossa Senhora de Guadalupe em abril de 2007,
onde permanecemos por vinte dias. Novamente este retorno foi motivado pelos boatos
de cisões na aldeia, que não se efetivaram. Ademais, aproveitamos a ocasião para
retomar algumas discussões e esclarecer dúvidas sobre as performances rituais do
danhono.
Além do conhecimento durante nosso convívio direto com os Xavante, bem
como nas etapas de trabalho de campo do mestrado e, por último do doutorado,
dispomos de uma série de vídeos, que retratam de iniciações do danhono ocorridas no
passado, produzidos pela Missão Salesiana que foram de grande utilidade para
visualizarmos continuidades nas performances rituais dos Xavante da aldeia São Marcos
e de Nossa Senhora de Guadalupe.
Mas o trabalho de campo que realizamos entre os Xavante não ficaram restritos
ao ir e vir entre o mundo acadêmico, com seus objetivos e hipóteses de pesquisa, e a
aldeia. Quero aqui resgatar, e talvez seja este o único momento desta tese em que use a
primeira pessoa, o nostálgico texto de Roberto Da Mata, O Ofício de Etnólogo, ou como
ter “Anthropological Blues”, que retrata um pouco do que encontramos no trabalho de
campo, ou ainda de como entramos e saímos de uma situação de pesquisa etnográfica.
Seria possível dizer que o elemento que se insinua no trabalho de
campo é o sentimento e emoção. Estes seriam, para parafrasear Lévi-
Strauss, os hóspedes não candidatos da situação etnográfica. E tudo
indica que tal intrusão da subjetividade e da carga afetiva que vem
com ela, dentro da rotina intelectualizada da pesquisa etnográfica, é
um dado sistemático da situação. (...). É como se na escola graduada
tivessem nos ensinado tudo: espere um sistema matrimonial
prescritivo, um sistema político segmentado, um sistema dualista, etc.,
e jamais nos tivessem prevenindo que a situação etnográfica não é
realizada num vazio e que tanto lá, quanto aqui, se pode ouvir os
anthropological blues! (Da Mata, 1978:30-31)

O calor, a fumaça e a sede durante as caçadas com fogo; a chuva e o frio da


madrugada nos momentos rituais que perduravam por toda a noite; a troca espontânea
de um pedaço de mandioca assada por um pouco de água com um ĩhire, ancião, que não
conseguia descer a pirambeira para saciar sua sede, depois de um dia inteiro de caçada e
sem abater nenhuma caça para que pudéssemos comer ali mesmo as vísceras; as
apreensões (ou medo) de encontrar o fazendeiro no momento de coleta de brotos de
45

buriti. Algumas situações onde sentimento e emoção se fazem presentes na execução do


trabalho antropológico e nos torna igualmente cúmplices da realidade, até o ponto em
que deixamos de nos sentir (ou ser) o exótico numa terra estranha e passamos a nos
sentir em casa. Aqui talvez ocorra uma inversão em relação ao texto de Da Matta: já não
é mais o antropólogo procurando traduzir o exótico em familiar, mas neste universo de
sentidos, são os Xavante, ou o nativo, que faz este movimento: o de transformar o
antropólogo (exótico) em familiar. E foi nesta dinâmica Xavante, que me sentido em
casa, que todas às vezes quando chego à aldeia, ou dela saio, sou recebido com o choro
de damama (pai) Rinaldo e dati’ö Maria (mãe), pessoas do grupo doméstico que me
adotou. Mas estas relações interpessoais se dão em mão dupla em não se restringe mais
no espaço do campo etnográfico. Isto ficava cada vez mais evidente como no dia em
que diante de um problema jurídico que Silvia enfrentava com um inquilino
inadimplente com as contas de condomínio na cidade de Curitiba, fui aconselhado pelos
Xavante, que ficaram indignados ao tomarem conhecimento do fato, a me pintar e pegar
uma das bordunas de minha coleção e resolver o problema à revelia do tribunal. E
ainda, as recomendações de ficar longe dos tiros nos confrontos entre policiais e
traficantes no Rio de Janeiro, notícias que recebiam pelos rádios de pilhas, e agora pela
televisão com a chegada da eletricidade na aldeia, que os deixavam apreensivos.
Por fim, mesmo correndo riscos de naturalizar o campo diante de minha forte
convivência com os Xavante e participação nos rituais, busco apresentar o ritual de
iniciação danhono e seus bastidores tomando-o como ferramenta para pensar o
faccionalismo Xavante.
46

CAPÍTULO I

ESTRUTURA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL XAVANTE

1 - CLASSES DE IDADE, CLÃS E O SISTEMA POLÍTICO XAVANTE

Antes de apresentarmos o ritual de iniciação dos novos guerreiros Xavante – o


danhono, convém mostrar como os Xavante se organizam socialmente. Isso se faz
necessário tendo em vista que todo processo ritual está condicionado às posições
estruturais que uma pessoa xavante ocupa na sociedade. Os atores oficiantes e
participantes do ritual pertencem a clãs, classes de idade, e ocupam posições transitórias
na organização religiosa e ritual. A posição ocupada dentro destas esferas organizativas
define em qual, ou em quais rituais, uma pessoa pode estar inserida, bem como, que
papéis se espera que sejam desenvolvidos durante e após o processo ritual. Neste
sentido, a orientação teórica que melhor preenche estes aspectos pode ser encontrada na
definição que Firth concede àquilo que estamos considerando como estrutura social.
Segundo Firth (1974:47),
(..) a idéia de estrutura da sociedade deve preencher certas
condições. Deve levar em conta as relações ordenadas das partes com
o todo, o arranjo que une os elementos da vida social. Essas relações
devem ser consideradas como construídas umas sobre as outras - são
séries de ordens de complexidade variáveis. Devem possuir uma
significação não apenas momentânea - algum fator de constância ou
continuidade deve estar envolvido nelas.

Diante destas condições Firth levanta duas questões: que tipo de relações sociais
devem ser mais relevantes na descrição de uma estrutura social, e que continuidade
devem apresentar antes de serem incluídas (idem). Firth aponta que alguns
antropólogos tem considerado como estrutura social a rede de todas relações de pessoa
para pessoa numa sociedade. Isto seria para o autor uma definição muito ampla por que
não permitiria fazer distinções entre o que efêmero e o que é duradouro, não revelando a
idéia de totalidade da sociedade. Do lado oposto aparece a idéia de estrutura social que
compreenderia apenas as relações entre grupos maiores da sociedade, nos quais estão
aqueles que apresentam alto grau de persistência, onde se incluiria os clãs deixando de
lado o grupo familiar. Há ainda outra visão de estrutura social, segundo Firth, que
enfatiza relações reais entre pessoas ou grupos consideradas como esperadas ou ideais.
Aqui a forma da sociedade é definida a partir das expectativas individuais ou crenças
47

idealizadas naquilo que se deve ou deveria ser feito. Para Firth considerar a estrutura
social apenas como um conjunto de expectativa é vago. O importante, afirma Firth, é
(...) enfatizar a maneira pela qual os modelos sociais, os
padrões ideais e os conjuntos de expectativas tendem a ser
modificados, de modo reconhecível ou imperceptível, pelos atos dos
indivíduos em resposta a outras influências, dentre as quais inclusive
o desenvolvimento tecnológico. (...) O conceito de estrutura social é
um instrumento analítico, destinado a nos ajudar a compreender
como os homens se comportam em sua vida social. A essência desse
conceito são aquelas relações sociais que parecem ter uma
importância fundamental para o comportamento dos membros da
sociedade - relações que, se não vigorassem, nos impossibilitariam
afirmar a existência da sociedade sob aquela forma (Firth, 1974:48).

O processo de iniciação do danhono promove a inserção dos novos membros da


sociedade Xavante num de seus elementos estruturais: as classes de idade. Praticamente
todos os rituais sociais e religiosos possuem toda ou alguma referência às classes de
idade. Todavia, outros elementos estruturais da sociedade Xavante são acionados para
que isto ocorra. Vejamos a seguir alguns destes elementos.

1.1 - OS CLÃS

A organização clânica entre os Xavante constitui uma de suas principais formas


de organização social. Todo o sistema de parentesco e ritual está a ela relacionado.
Entre os Xavante existem três clãs: po’redza’õno (girino), öwawẽ (rio/água
grande) e tob’ratato (onomatopéia de uma ave noturna – Giaccaria & Heide20
(1972:104); enquanto que para Maybury-Lewis (1984:221) corresponde a círculo no
olho. A filiação clânica é definida por descendência paterna. Os Xavante são
patrilineares e praticam casamento uxorilocal. Segundo, Giaccaria & Heide (1972:104)
e Giaccaria (2000: 28; 144), a sociedade Xavante é constituída por duas metades
exogâmicas nas quais os três clãs se distribuem. Estas metades, danhimire (direita) e
danhimi’e (esquerda), que não possuem qualquer referência com a planta das aldeias ou
casas, teriam surgido, segundo depoimentos coligidos por Giaccaria & Heide, como
20
Bartolomeu GIACCARIA é missionário salesiano padre, nascido na Itália e naturalizado
brasileiro; Adalberto HEIDE também é missionário salesiano, nascido na Alemanha.
48

decorrente de discórdias e tensões sociais. Aqui talvez seja preciso relativizar as


colocações destes autores, não são as discórdias e tensões que produzem as metades
exogâmicas. Como o próprio termo sugere as metades aparecem para regular
casamentos inicialmente, isto é, quem pode dar e receber mulheres.
Ainda de acordo com Giaccaria (2000), tensões na sociedade Xavante, em parte,
são explicadas pela tentativa de uma metade considerar-se superior e procurar dominar a
outra. Estas tensões, de acordo com o autor, ainda persistem na sociedade, que a
primeira vista estaria em constantes conflitos que são suprimidos por mecanismos que
procuram dirimi-las. Há na sociedade Xavante, segundo Giaccaria, duas tendências:
(...) uma que tende para o conflito, a destruição, outra que tende para
a fraternidade e a união, para o incremento e fortalecimento da tribo.
Sempre, pelo menos idealmente, prevalece a segunda (Giaccaria:
2000:29).

Esta visão dualista da sociedade Xavante, a nosso ver, que autor apresenta,
parece traduzir outras formas dualistas do pensamento cristão-romano: sagrado/profano;
céu/inferno; bem/mal, etc. Como veremos ao longo desta tese, a divisão em metades é
fundamental para pensar o processo ritual. Entretanto, quando o conflito surge ele se dá
em decorrência da dinâmica faccional Xavante e não por se tratar de uma sociedade
composta por metades. Uma facção Xavante pode ser composta por pessoas
pertencentes aos três clãs e às duas metades. São as interações sociais que ocasionam o
surgimento e o desaparecimento das facções.
Tais mecanismos aparecem quando se examina os ritos e cerimônias como, por
exemplo, as celebrações do wai’a21
onde são representadas lutas entre as
“forças do bem” e as “forças do mal”,
entre “fertilidade” e “esterilidade”,
entre “saúde” e “doenças”, onde, no
fim, o bem, a prosperidade e a
fecundidade do grupo sempre
prevalecem (idem). Outros
mecanismos que permitem dirimir
tensões e conflitos são as trocas e
QUADRO - 2 - METADES EXOGÂMICAS

21
O wa’ia é um ritual religioso que acontece em várias ocasiões, em modalidades diferentes,
considerando a sazonalidade do ambiente de cerrado.
49

distribuição de bens existentes na sociedade Xavante.


Maybury-Lewis (1984:120) não adota as categorias danhimire (direita) e
danhimi’e (esquerda) para referi-se às metades exogâmicas. Todavia, observa que estas
metades são constituídas da mesma forma: os clãs öwawẽ e tob’ratato de um lado e os
po’redza’õno de outro para as trocas matrimoniais, conforme o Quadro 02.
Observamos, durante o trabalho de campo, que esta forma de organização dos clãs é
utilizada em diversos rituais, cabendo a clãs particulares o desempenho de funções
próprias durante o processo ritual do danhono e do wai’a. Não observamos o uso
corrente dos termos danhimire (direita) e danhimi’e (esquerda) para configurar metades
durante nosso tempo de convívio com os Xavante. Não obstante, encontramos termos
próprios para designarem divisões entre metades durante o processo ritual: oniumpradzá
e pirebapradzá, respectivamente, os de cima e os de baixo. Discutiremos estes termos
quando apresentarmos o danhono, em específico quando tratarmos do acampamento das
capas wamnhorõ.
Os Xavante, em seu cotidiano, não utilizam sinais diacríticos22 que permitam a
identificação de pertencimento aos clãs. Somente em situações cerimoniais estes sinais
aparecem. Em nossa experiência etnográfica identificamos pelo menos quatro
momentos cerimoniais nos quais foram utilizados
sinais diacríticos, (veja o Quadro 03), para
identificação dos clãs durante os processos rituais.
A luta denominada oi’o, que ocorre antes dos
meninos serem admitidos como moradores na casa
dos solteiros, constitui um desses momentos. Nessa QUADRO - 3 - IDENTIFICAÇÃO
CLÂNICA ENTRE OS XAVANTE
luta os pais dos meninos pintam em suas têmporas,
com urucum e jenipapo, os sinais respectivos para os clãs öwawe e po’redza’õno. Os
tob’ratato têm seu símbolo desenhado nas maçãs do rosto. Num segundo momento, em
1997, quando participamos da caçada com fogo, chamada imanadö, presenciamos os
caçadores pintando os sinais clânicos em suas têmpora e maçãs do rosto antes de
realizarem um rito propiciatório. Descreveremos este rito no item 3.13 do Capítulo III.
Tanto em 1997 quanto em 2005, na segunda etapa de campo, acompanhamos e

22
Os sinais diacríticos de acordo com Barth (2000) são usados pelos atores sociais para
comunicarem uma identidade étnica e como marcadores de diferenças dicotômicas entre “nós” e “eles”. O
ritual de iniciação do danhono é o momento na sociedade Xavante onde ocorre a adoção dos batoques
auriculares, que serão acionados como marcadores e delimitadores de fronteiras étnicas entre outras
etnias.
50

participamos da confecção das “capas” wamnhorõ, utilizadas numa das fases do


danhono. Nas duas ocasiões as “capas” receberam pinturas com urucum de acordo com
os clãs. Ainda nesta etapa de confecção das “capas” wamnhorõ, depois que elas ficaram
prontas, os escolhidos para levá-las às casas dos que estavam sendo iniciados pintaram
nas têmporas e maçãs do rosto os sinais de seus clãs. Por fim, outra situação ritual onde
observamos a pintura de sinais diacríticos com sinais clânicos assinalados nas têmporas
e maçãs do rosto foi durante a preparação para a corrida do tsauri’wa, soprador.
Giaccaria & Heide (1984) mencionam que os sinais clânicos são também pintados em
flechas. Visto que a espingarda tem substituído o uso de arco e flecha, nunca
acompanhamos a confecção destes artefatos e as poucas flechas que observamos não
tinham, aparentemente, qualquer identificação.
Giaccaria (2000:31) afirma que atualmente o clã principal em todas as aldeias,
independente de ser numericamente maior ou não, é o po’redza’õno que se identifica
com a metade danhimire (direita). Os clãs öwawẽ e tob’ratato, equivalentes, se juntam e
formam a metade danhimi’e (esquerda). Na aldeia N. S. de Guadalupe, onde
desenvolvemos nossa pesquisa etnográfica,
encontramos poucas pessoas pertencentes ao clã
tob’ratato. Isto ocorre também em outras aldeias.
Especula-se que os membros deste clã seriam
descendentes da etnia Karajá que em algum
momento da história se encontraram e uniram-se
QUADRO - 4 - CASAMENTOS
sendo incorporados entre os Xavante. Luciano, POSSÍVEIS ENTRE CLÃS
membro deste clã, nos disse que seu avô havia trocado mulheres com os Karajá antes do
contato. Ademais, a identificação clânica dos tob’ratato é idêntica ao sinal diacrítico
que os membros da etnia Karajá adotam, ou seja, o círculo nas maças do rosto.
Considerando as filiações clânicas e sua disposição em metades, os membros
destas consideram-se mutuamente como por waniwihã, aqueles são do meu lado, por
oposição a watsi’ré’wa, aqueles que são da outra metade.
No modelo das metades danhimire e danhimi’e os casamentos ocorrem entre
estas metades podendo o clã po’redza’õno dar e receber mulheres dos clãs öwawẽ e
tob’ratato. Entretanto, são considerados ilícitos os casamentos entre os clãs öwawẽ e
tob’ratato, como também entre membros dos próprios clãs. Não obstante, Giaccaria
afirma ter encontrado casais que a princípio afirmavam serem do mesmo clã. O autor
51

esclarece que não houve uma quebra da exogamia entre as metades e que não se tratava
de casamentos reais entre clãs, e, por conseguinte entre metades. Segundo Giaccaria
(2000:32),
(...) os homens transmitem para os filhos o próprio clã com os cargos
e privilégios conexos com o mesmo. Ao pai, porém, é concedida a
faculdade de dar ao próprio filho a denominação do clã da mãe. Os
Xavante dizem que isso se realiza quando pai tem especial predileção
por esse clã. É um fato mais afetivo (...).

Durante o trabalho de campo fizemos um levantamento dos casais de todas as


casas da aldeia N. S. de Guadalupe. Neste levantamento não encontramos ninguém que
nos dissesse que seu cônjuge fosse do mesmo clã. Os casamentos que levantamos eram
claramente definidos entre os clãs, conforme o esquema descrito no quadro. Entretanto,
quando acompanhávamos e participávamos da confecção das “capas” wamnhorõ
observamos alternâncias na relação entre clãs. O acampamento onde estas “capas” são
montadas, o marã, uma clareira próxima a um riacho, é dividido ao meio: do lado do sol
nascente ficam as “capas” pertencentes aos membros dos clãs öwawẽ e tob’ratato;
enquanto que do lado do sol poente ficam as “capas” pertencentes aos po’redza’õno. De
antemão esclarecemos que esta divisão espacial dos clãs não está ligada aos temos
oniumpradzá e pirebapradzá, acima mencionados. Informantes disseram-me que
membros dos três clãs podem pertencer a qualquer uma das metades. Quando as “capas”
estavam praticamente prontas notei que elas se entrecruzavam nos dois lados do
acampamento: várias “capas” dos clãs öwawẽ e tob’ratato que estavam no lado dos
po’redza’õno; e no lado dos po’redza’õno havia “capas” dos öwawẽ e tob’ratato. Luiz
Tsirobowe23, pertencente ao clã öwawẽ, nosso principal informante, nos explicou que os
clãs nunca estão satisfeitos com as pinturas de suas “capas” e consideram as pinturas
nas “capas” do outro clã como sendo mais bonita do que a sua. Há aqui, talvez, uma
relação entre troca de mulheres e troca de pinturas entre as “capas”. A troca de pinturas
entre clãs continua no momento que as “capas” são levadas às casas de seus donos após
ficarem prontas. Nesta ocasião os homens pintam em suas têmporas e maçãs do rosto os
sinais diacríticos que identificam o clã correspondente à capa que carrega, mesmo sendo
de outro clã. Assim, aqueles que escolheram pintar sua capa com os motivos do outro

23
Após o contato, com a imposição do registro civil pelo Estado Nacional, houve uma mudança
no uso dos nomes entre os Xavante. O nome dos homens era trocado várias vezes ao longo de sua vida,
segundo regras de nomeação. As mulheres eram nomeadas, segundo um ritual, uma única vez. Com o
registro civil convencionou-se utilizar um nome na língua portuguesa seguido por outro na língua
Xavante de origem paterna.
52

clã pintam na face os sinais diacríticos daquele clã. As trocas no uso de pinturas nas
“capas” não se dão ao bel prazer de uma pessoa. Para que alguém possa utilizar os
motivos de pinturas ou sinais diacríticos de outro clã é preciso autorização formal
daquele clã. O não cumprimento desta formalidade pode acarretar conflitos entre os
clãs. Existem ainda outros momentos rituais, que serão analisados em outras ocasiões,
onde estas trocas acontecem.
Os conflitos, um dos alvos de nossa pesquisa, envolvendo a relação entre clãs
podem ainda surgir quando alguém se apodera, indevidamente, de ornamentos
corporais, seja durante o danhono seja em outro ritual, pertencentes ao clã oposto. Os
Xavante estão conscientes desta possibilidade de conflito e agem no sentido de
minimizá-los. Participando das costumeiras reuniões no warã, centro da aldeia, após a
realização de um ritual religioso, o wai’a, que permitiria dar continuidade ao danhono,
um dos anciãos tomou a palavra, o que raramente fazia, e pôs-se a falar dizendo sobre a
continuidade do danhono e que as famílias evitassem conflitos respeitando o uso de
ornamentos de cada clã. O filho de Luiz Tsirobowẽ iria usar um ornamento, pertencente
ao clã po’redza’õno, feito por seu avô, o pai do pai. Sabendo que Luiz Tsirobowẽ e seu
filho pertencem ao clã öwawẽ, perguntamos a ele se isso não provocaria os membros do
outro clã quanto ao uso daquele ornamento. De acordo com Luiz Tsirobowẽ sua família
há muito tempo está autorizada a usar o ornamento e por isso não haveria problemas.
Em todas as situações onde observamos o uso de pinturas ou de ornamentos por pessoas
que os tomavam como empréstimo de outro clã isso ocorria de forma pacífica. Os atores
sociais que agiam neste sentido explicaram que seus antepassados há muito tempo
teriam gostado daquela forma de se pintar e haviam começado a usá-la depois pediram
que seus descendentes fizessem o mesmo. Este gostar da pintura do outro por si só não
esclarece muito sobre as trocas de pinturas e ornamentos corporais. Acreditamos que
isto seja decorrente de alianças estabelecidas no passado. Entretanto, não apuramos em
que circunstâncias isto teria se dado.
A relação ritual entre os clãs é bem definida havendo situações onde os papéis
rituais são bem definidos e exclusivos. Durante o danhono há dois momentos onde a
exclusividade ritual para cada clã é claramente definida. O ritual tébé é de exclusividade
dos öwawẽ e dos tob’ratato, enquanto que o ritual pahöri’wa é de exclusividade dos
po’redza’õno (veja item 3.16 e 3.17, respectivamente, do Capítulo III). Nas demais
etapas do danhono há intensa cooperação entre os clãs durante sua realização.
53

1.2 - CLASSES DE IDADE

Antes de apresentarmos as classes de idade convém ressaltar que os autores


“clássicos” tratam de modo distinto esta forma de organização. Maybury-Lewis
considera como classes de idade o resultado de uma convivência coletiva onde:
(...) todos aqueles que viveram juntos um certo período na casa dos
solteiros, foram iniciados conjuntamente e se casaram em cerimônia
coletiva. Esses homens distinguem-se de outros que, por sua vez,
compartilham essas mesmas experiências em épocas anteriores e
posteriores (1984:153).

Giaccaria & Heide (1972:120) consideram esta forma de organização como


grupo de idades para indicar um conjunto de indivíduos (GRUPO), que nasceram no
mesmo lapso de tempo. Por classes de idade Giaccaria & Heide consideram várias
etapas do ciclo biológico de uma pessoa com status social bem definido ao longo deste
ciclo. Os Xavante, influenciados pela tradição missionária, a qual pertencem os autores
Giaccaria & Heide, referem-se a esta forma de organização como GRUPOS DE
IDADE. Seguindo a tradição antropológica estaremos utilizando o termo classes de
idade para referirmos aos grupos de idade.
Não é exagero considerar que as classes de idade são a razão de ser do danhono,
pois será através deste processo de iniciação que a sociedade Xavante recria
ciclicamente as classes de idade.
Entre os Xavante existem oito classes de idade, ou grupos como eles chamam,
que se alternam ciclicamente de tempos em tempos na constituição da casa dos
solteiros, a hö, e conseqüentemente, nos rituais de iniciação. Estas classes de idade são
agrupadas em metades cerimoniais, formando grupos antagônicos que competem entre
si em várias situações rituais. O que estamos chamando de metades cerimoniais aqui
não deve ser confundido com metades exogâmicas, que regulam os casamentos. Dentro
de uma mesma classe de idade de uma metade cerimonial, por exemplo: abare’u, (veja
o Quadro 05), existem pessoas filiadas pela patrilinearidade aos três clãs Xavante
(öwawẽ, tob’ratato e po’redza’õno). O processo de iniciação do danhono vai promover
a inserção dos nascidos no lapso de tempo numa destas classes de idades, obedecendo a
sua dinâmica cíclica de constituição. De outro modo, as classes de idade são cíclicas e
se renovam ao longo do tempo. Assim, os que nasceram no lapso de tempo ao serem
admitidos, mediante os rituais que apresentaremos no capítulo II, assumirão uma classe
54

de idade obedecendo à dinâmica cíclica. Uma pessoa não escolhe24 a classe de idade a
que pertencerá. Os meninos e meninas que nasceram há sete ou oito anos atrás serão
admitidos na classe de idade nodzö’u, a próxima a passar pelo processo de iniciação,
haja vista que a última a ser iniciada, na Terra Indígena São Marcos, foi a abare’u.
O Quadro 05 apresenta um esquema da distribuição das classes de idade
identificadas nas aldeias da Terra Indígena São Marcos:
Os termos DIREITA e ESQUERDA no quadro dizem respeito à posição da casa
dos solteiros na configuração da aldeia. As aldeias Xavante são construídas, idealmente,
em forma de CLASSES DE IDADE
ferradura com a
abertura voltada para DIREITA ESQUERDA

o rio. Nas
1. ABARE'U
extremidades desta 2. NODZÖ'U
abertura, um pouco 3. ANAROWA

afastado da primeira 4. TSADA'RO


5. AI'RERE
casa, são construídas
6. HÖTÖRÃ
as casas dos solteiros, 7. TIROWA
alternadamente de ˜
8. ẼTEPA
acordo com as
9. ABARE'ÕMOB'RADA
iniciações do
10. NODZÖ'ÕMOB'RADA
danhono. Quando 11. ANAROWAB'RADA
esta forma 12. TSARA'ROB'RADA
“tradicional” de 13. AI'RERE'RADA
14. HÖTÖRÃB'RADA
aldeia não é
15. TIROWAB'RADA
encontrada, ou seja,
˜ B'RADA
16. ẼTEPA
quando as aldeias se
Quadro - 5 -DISTRIBUIÇÃO DAS CLASSES DE IDADE EM METADES
apresentam como um CERIMONIAIS NA TERRA INDÍGENA SÃO MARCOS.

círculo ou como um quadrado, configuração comum atualmente, tanto a identificação


quanto a construção da casa dos solteiros se dá tomando como referência o itinerário de
dança das classes de idade, ou seja, circulação pela aldeia, bem como pela posição dos
postes do wedetede, espaço ritual durante a corrida do noni, (descrito no capítulo III –
item 3.7 e 3.8). Aquelas que estão posicionadas no quadro como pertencentes à metade

24
Entretanto, existem casos isolados de pessoas que mudaram de classe de idade, sem que para
isso fosse necessário repetir o processo ritual de iniciação do danhono.
55

da ESQUERDA executam seus cantos e danças no sentido anti-horário, enquanto que as


da DIREITA seguem pelo sentido horário.
O Quadro 5 pode ser lido de duas maneiras: tomando ordem numérica de 1 a 8;
ou de forma inversa considerando a ordem de 8 a 1. Na primeira possibilidade de leitura
o número 1 (um), a classe de idade abare’u, foi a última a passar pelo ritual de iniciação
danhono – na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe (2005) e demais aldeias da Terra
Indígena São Marcos no mesmo ano, enquanto que a número 2 (dois), classe nodzö’u,
deverá ser a próxima a ser submetida a este ritual dentro de aproximadamente quatro a
seis anos, ou seja, entre os anos 2010 e 2012. A segunda possibilidade de leitura do
quadro, na ordem inversa, nos mostra a classe responsável pela educação, patrocínio e
acompanhamento dos moradores da casa dos solteiros desde sua constituição até
término de todos os ritos do danhono. Assim, a última classe iniciada, os (1) abare’u,
teve como patrocinadores de sua iniciação a classe de idade (7) tirowa. Durante o
processo de iniciação os tirowa assumem o status de danhohui’wa, padrinhos. Na
próxima iniciação os moradores da casa dos solteiros, a hö, serão os (2) nodzö’u e terão
como danhohui’wa, padrinhos, a classe de idade (2) ẽtepa
˜ .
Os membros de uma mesma metade cerimonial consideram-se como waniwihö,
aqueles que constroem a hö, casa dos solteiros, do mesmo lado que a minha. Em
oposição estão os õniwihö, os que constroem a hö do outro lado. Estes duas categorias
não devem ser confundidas com waniwihã e watsi’re’wa, que se referem às metades
exogâmicas. Dentro de uma mesma metade cerimonial õniwihö ou waniwihö existem
pessoas de todos os clãs, enquanto que aqueles que se consideram waniwihã por
oposição a watsi’re’wa são de um mesmo clã, ou agrupamento de dois clãs, neste único
caso, öwawẽ e tob’ratato.
A construção da casa dos solteiros é tarefa dos danhohui’wa – padrinhos.
Entretanto, com as transformações ocorridas no modo “tradicional” de construção das
aldeias, como mencionado acima, a casa dos solteiros tem sido construídas quase
sempre no mesmo lugar. Em alguns casos, ela tem uma estrutura arquitetônica fixa
sendo apenas reformada a cada iniciação, o que equivale a troca das palhas da cobertura.
Durante anos a aldeia de São Marcos teve a casa dos solteiros construída em alvenaria
próxima a Missão Salesiana25. Quando uma nova classe de idade era instaurada era

25
A Missão se reapropriou de um sistema tradicional Xavante, a casa dos solteiros, hö,
adaptando-o ao sistema de ensino como estratégia de inculcar novos valores (religiosos), (MENEZES,
1984:146-227; veja também MÜLLER, 1976:76)
56

necessário somente trocar as palhas do teto, trabalho feito pelos danhohui’wa. Ao fim
da iniciação dos ẽtepa
˜ , em 1997, esta casa foi alvo de um incêndio não esclarecido. Ao
término da iniciação de uma classe de idade a casa dos solteiros era destruída pela
mulheres da mesma classe de idade dos danhohui’wa, que assumem o papel ritual de
danhohui’wa tsipi’ õ, madrinhas, dos iniciandos. Na aldeia São Marcos era conveniente,
diante da exigência de trabalho para construir uma nova, para todas as classes de idade a
manutenção da estrutura de alvenaria da casa dos solteiros. Com o incêndio da casa dos
solteiros em 1997, nas iniciações seguintes as novas casas foram construídas em outros
lugares mais próximo da aldeia. Com isso a influência missionária26 sobre esta
instituição diminuiria ainda mais.
Como foi dito, os padrinhos são os principais responsáveis pela educação e
atividades que os moradores da casa dos solteiros devem desenvolver. Contudo, eles
não agem sozinhos. Todos os demais integrantes das classes de idade de sua metade,
seus waniwihö, são co-responsáveis pelos moradores da casa dos solteiros. Nas corridas
de toras, por exemplo, os membros da mesma metade se unem para disputarem com a
outra.
A construção da casa dos solteiros da classe de idade abare’u foi de
responsabilidade dos tirowa, que desempenhavam o papel de danhohui’wa, padrinhos, e
foram igualmente auxiliados pelas demais classes de idade de sua metade cerimonial.
Entretanto, há situações em que os padrinhos não correspondem de fato ao que é
esperado deles na realização de tarefas e preparativos tendo em vista os ritos que
compõem as fases do danhono. Na aldeia N. S. de Guadalupe era esperado que os
padrinhos executassem o canto do wanaridobe (veja item 3.18 do capítulo III) nas
madrugadas e ao entardecer. Entretanto, notamos que por dias consecutivos o canto não
era executado em nenhuma destas ocasiões a ponto de os homens adultos que
participam da assembléia no warã, ou seja, os iniciados há pelo menos duas iniciações
anteriores incluindo a que está em processo, expressarem publicamente seu
descontentamento com os tirowa. Além de taxarem os membros desta classe de idade
como preguiçosos e dorminhocos, jocosamente diziam que os tirowa só gostavam de
ficar na cama com as mulheres, por causa do frio da madrugada. Em outras ocasiões,
após gritarem, sem resultados, na madrugada para que os tirowa acordassem e fossem
cantar no centro, os ĩprédu, homens iniciados, executavam cantos na frente de várias

26
Sobre a influência missionária sobre a instituição da casa dos solteiros na aldeia São Marcos
veja a tese de doutorado de MENEZES (1984).
57

casas, sobretudo onde havia tirowa, para despertá-los. Outro fato que mostra a não
correspondência de expectativas ocorreu ainda durante nossa primeira estada no campo.
Dentre as várias obrigações que os padrinhos possuem está a de construir, ou abrir, a
pista de corrida para uma fase do danhono onde cotidianamente realiza-se uma corrida
chamada noni. Durante dias, enquanto a comunidade estava empenhada na coleta de
brotos de buriti para confecção de certo tipo de ornamento, a capa wamnhorõ, era
esperado que os tirowa preparassem a referida pista para que fosse dada continuidade ao
danhono. Os tirowa até começaram a executar o trabalho, mas não o concluíram. Foi
necessário que se organizasse um mutirão, do qual tomaram parte homens e mulheres já
iniciados, para que a pista do noni ficasse pronta, tendo em vista a continuidade do
danhono.
Foi dito que as classes de idade se alternam ciclicamente na constituição da casa
dos solteiros. Ao término da passagem de todas as classes de idade pela casa dos
solteiros, ou seja, dentro dos próximos quarenta a cinqüenta anos e se não houverem
contratempos, se considerarmos o espaço de cinco anos para cada iniciação, quando a
classe de idade abare’u for novamente admitida como moradores da casa dos solteiros,
os atuais abare’u (iniciados em 2005) passarão a se chamar abare’õmob’rada. Para os
Xavante este é o grande e esperado momento de realização pessoal e coletiva,
considerando sua classe de idade. Assim chegamos à segunda metade do quadro acima.
No mês de setembro quando estivemos realizando a segunda etapa de pesquisa de
campo, pudemos acompanhar o final do danhono e o ritual de apresentação dos futuros
integrantes da próxima classe de idade, os nodzö’u. Após a apresentação daqueles que
serão os novos nodzö’u, os velhos nodzö’u, que recebem o sufixo b’rada a partir deste
momento passam a se chamar nodzö’õmob’rada, reuniram-se com os novos e ensaiaram
um canto e depois se puseram a executá-lo, em sentido horário – como fazem todos os
grupos de sua metade durante outros rituais, percorrendo a frente das casas na aldeia. Na
aldeia N. S. de Guadalupe havia cerca de três ĩhire, anciãos, da classe de idade
nodzö’õmob’rada.
Considerando que a expectativa de vida entre os Xavante está em torno de 63
anos27, são poucos os que têm o privilégio de ver sua classe de idade, enquanto
categoria, se reconstituir enquanto moradores da casa dos solteiros. Em condições
normais dissemos que o ciclo de iniciação se renova a cada quarenta anos. Entretanto,

27
Cálculo feito por Luciane Guimarães Souza, Antropóloga e Demógrafa que trabalha com os
Xavante.
58

dependendo da conjuntura social e política, este tempo pode ser estendido por mais
alguns anos. Na aldeia de São Marcos as iniciações vinham seguindo um ritmo de
realização a cada cinco anos. Este ritmo foi interrompido com a realização da iniciação
religiosa darini28, elevando o intervalo entre a penúltima iniciação do danhono para oito
anos. Assim os quarenta anos de intervalo passam para quarenta e oito anos. Ao término
do danhono, o iniciado está com aproximadamente dezesseis anos. Somando a idade
biológica do iniciado e o tempo entre a renovação do ciclo de grupos de idade temos
sessenta e quatro anos, ou seja, uma temporalidade acima da expectativa de vida,
calculada para os dias atuais, de um homem Xavante. É provável que a expectativa de
vida entre os Xavante ficasse bem abaixo do calculado para os dias atuais, daí a grande
alegria dos nodzö’õmob’rada no momento em que acompanhavam a apresentação dos
novos nodzö’u e executavam o canto pela aldeia. Ali se via três homens com idade entre
64 a 76 anos dançando com crianças de quatro a sete anos. A alegria e entusiasmo dos
nodzö’õmob’rada, como dissemos, era por presenciarem a renovação de sua classe de
idade, para aqueles que serão os próximos nodzö’u e a alegria manifesta era por estarem
já em processo de se constituírem enquanto tal. Na conclusão voltaremos a esse fato
mostrando suas implicações políticas para aqueles que atingem o status de fazerem parte
dos b’rada.

1.3 - CICLO DE VIDA ENTRE OS XAVANTE

Antes de uma descrição pormenorizada dos rituais de iniciação entre os Xavante


convém apresentar ainda outra forma de classificação que os Xavante utilizam para
identificar homens e mulheres dentro de sua sociedade – o ciclo de vida. Esta forma de
classificação decorre do desenvolvimento biológico e social da pessoa Xavante.
Algumas de suas fases não estão condicionadas à realização de rituais específicos para
passagem de um status a outro, enquanto que outras não só dependem dos rituais como
também condicionam sua realização provocando um imbricamento entre o ciclo
biológico e o ciclo ritual. Este imbricamento tem profundas implicações para o sistema
político, permitindo legitimação e reconhecimento dos atores sociais dentro deste
sistema como será apresentado e discutido adiante.

28
Ritual de iniciação religiosa que ocorre em intervalos de quinze a dezessete anos. Também
chamado de wai’arini. Através deste ritual o homem xavante é admitido à uma hierarquia de participação
no wai’a – ritual religioso.
59

O ciclo de vida para homens e mulheres possui pontos de correspondência, em


seu início e fim, e divergência em sua maior parte, conforme descrito no Quadro 6. Ao
desenvolvimento destas fases do ciclo de vida poderemos chamar de crise de vida, no
sentido que Victor Turner dá ao termo, ou seja, um ponto importante de mudança no
desenvolvimento físico/biológico e social do indivíduo (Turner, 2005:35). Façamos um
breve comentário destas fases.
As fases ai’utépré, ai’uté correspondem a ambos os sexos sem distinção.
Ai’utépré refere-se à criança com poucos dias de vida, onde o sufixo pré – vermelho –
diz respeito ao sangue do parto. Ai’uté se diz para criança que está livre do sangue do
parto e estende-se até quando ela começa a sentar-se. Lopes da Silva (1986:67ss) aponta
que em geral as crianças recém nascidas, ou seja, pertencentes às categorias acima, não
são nominadas. No pensamento Xavante, para o recém nascido
(...) o nome é uma carga pesada demais para seu corpo frágil,
“mole”, que acabará adoecendo, até morrer. (...) Quando ela cresce
seu corpo fica mais “duro” e mais resistente, o nome não lhe causará
doença (Lopes da Silva, 1986:67).

Diante disso a criança, do sexo masculino, recebe o nome depois de oito a dez
meses de idade. No caso das meninas, a nominação se dava através de um ritual próprio
que acontecia depois que estavam casadas. Este ritual, chamado abadzirãihidiba não
tem sido realizado há muito tempo na sociedade Xavante. Este abandono temporário, já
que segundo alguns informantes há discussões sobre sua retomada, pode ser visto como
resultado da interação com segmentos religiosos da sociedade não-indígena brasileira e
internacional, no pós-contato, que impôs mudanças no comportamento Xavante. Neste
caso, o ritual de nominação das mulheres, a pressão para seu abando se deu porque a
performance deste ritual chocava-se com os valores cristãos:
O abandono deveu-se, quase sempre, à sua condenação pela moral
dos missionários católicos e protestantes que atuaram (e atuam) em
áreas Xavante. Isto se explica pelo fato de o ritual implicar em
relações sexuais cerimoniais extra-conjugais. Na aldeia de
Sangradouro, no entanto, sua realização foi permitida há alguns anos
embora os procedimentos considerados imorais tenham sido abolidos
ou reformulados, segundo informação de alguns Xavante (Lopes da
Silva, 1986:124).

Como resultado do processo de contato os Xavante foram obrigados a adotar um


nome ocidental em seu registro de nascimento. Desta forma, o primeiro nome via de
regra é ocidental, o segundo definido pelo nome de família do pai seguido por outro
escolhido também pelo pai. Embora, o processo de contato tenha afetado esta forma de
60

organização social Xavante, ou seja, as regras de nominação na qual se estabelece laços


de amizade formalizada entre o irmão da mãe e o filho da irmã, ela não foi esquecida
pelos Xavante. Durante o trabalho de campo realizado em 2002, questionamos vários
Xavante a respeito das regras de nominação. No que pudemos depreender daqueles
informantes, as regras de nominação estavam bem claras para eles, ainda que em
desuso, os quais me indicaram quem daria e quem receberia nomes.
A idéia de que a criança Xavante seja “mole” e “frágil”, física e socialmente, e
que, portanto, não suportaria o nome parece estar sendo relativizada pelos Xavante com
vistas a outros fins. Um destes fins é o acesso a benefícios sociais concedidos pelo
governo federal – o auxílio natalidade. Logo que nasce a criança é registrada segundo o
procedimento acima mencionado, para que os pais ingressem com a documentação
completa junto a FUNAI para ter acesso ao benefício mencionado. Cotidianamente a
criança na categoria de idade ai’uté é identificada pelo nome em português e/ou por
termos de parentesco e posição de nascimento. Ela passa boa parte do tempo junto com
um de seus irmãos ou irmãs mais velhas que se encarregam de seus cuidados enquanto a
mãe se dedica às tarefas domésticas. Quando não há crianças mais velhas na casa que
possam assumir os cuidados da ai’uté, a mãe a transporta em cestos grandes – tsi’õno,
confeccionados com brotos da palmeira buriti que, através de uma alça, ficam suspensos
nas costas tendo a testa como suporte.
CICLO DE VIDA XAVANTE
HOMENS MULHERES
Ai’utépré - recém nascido;
Ai’uté – ambos os sexos quando começam a sentar-se.
‘Watèbrèmire – menino que começa a
andar;
‘Watèbrèmi – menino com até dois anos Ba’õno – menina com idade entre quatro e doze
de idade mais ou menos; anos;
Ai’repudo – menino com idade entre oito Adzarudu – menina com idade mais ou menos onze
a doze anos; anos até a oficialização do casamento;
Wapté - hö’wa = morador da casa dos
solteiros, com idade entre treze a
DANHONO (ritual)

dezessete anos; A correspondência ao sexo masculino não é absoluta


‘Waté’wa - aquele que está participando aqui: tsoimbá - de acordo com Maybury-Lewis
do banho ritual; preparando para furar (1984:201ss) são meninas (adzarudu) para quem
as orelhas; os maridos trouxeram carne; Adaba – (noiva)
‘Hereroi'wa ou heroi’wa- aquele que já mulher casada que ainda não tem filhos; de
teve as orelhas furadas mas não acordo com Maybury-Lewis (1984:201ss) nesta
completou o danhono; categoria estão as mulheres que foram
nominadas; e, araté – mulher com um filho
‘Ritéi'wa ité - (novo guerreiro) aquele que (Lopes da Silva, 1986:135);
já completou o danhono;
‘Ritéi'wa - novo guerreiro que se tornará
danhohui'wa na próxima iniciação;
61

Dahi'wa - aquele que fiscaliza a conduta As mulheres que estão vivenciando o ciclo de vida
dos wapté e será danhonhui'wa na correspondente aos dahi’wa, que também foram
iniciação subseqüente; última classe as últimas a serem iniciadas pelo danhono, têm
de idade iniciada pelo danhono. pouca ou nenhuma atuação neste status.
Danhohui’wa tsipi’õ – madrinhas; passam a
Danhohui’wa - padrinhos; os responsáveis
transição

participar ativamente do danhono quando os


e encarregados de orientar os pelos
homens danhohui’wa começam a cantar o
moradores da hö (hö'wa ou wapté).
wanaridobe.
Dahi’rada
Ĩprédupté - homem adulto que deixou recentemente o papel de danhohui’wa.
Pi´õ – mulher casada com mais de um filho; nesta
VIDA RITUAL E POLÍTICA

categoria pode-se dizer que estão as mulheres


que completaram juntamente com seus
companheiros de classe de idade todos os rituais
Ĩprédu - adulto; homem maduro. do danhono. Este termo de acordo com
Maybury-Lewis pode ser usado também para
distinguir homens (aibö) e mulheres (pi´õ). O
termo pode ainda corresponder a Ĩprédu
indicando maturidade das mulheres.
Ĩhire – homem idoso, ancião. Pi´õ Ĩhire – mulher idosa, anciã.
Tsawörö'wa - explorador. Iniciado após
Não encontramos correspondente.
duas iniciações do danhono.

Quadro - 6 - CICLO DE VIDA XAVANTE

A diferenciação sexual surge inicialmente com ‘watébrémire para o sexo


masculino e ba’õno para o sexo feminino. ‘Watèbrèmire designa menino pequeno –
definido pelo sufixo re – que começa a caminhar. Nesta fase do ciclo de vida a criança
já está plenamente inserida no cotidiano Xavante e começa a explorar o ambiente
doméstico. Ela engatinha ou se arrasta pela casa e à medida que a musculatura da perna
vai se fortalecendo começa a ensaiar os pequenos passos. Para isso ela se agarra nas
paredes de palha, tarimbas e demais “móveis” espalhados pela casa. Durante minha
convivência com os Xavante nunca observei a clássica cena descrita por Giaccaria &
Heide (1984:141), segundo a qual quando a criança dá sinais de querer andar a mãe
crava a uibró – um tipo de borduna, no chão a ser usada pela criança como apoio para
andar.
Outro termo usado para designar criança do sexo masculino é ‘watébrémi que
indica idade biológica aproximada entre dois e sete anos29. O termo ba’õno é aplicado
ao sexo feminino com idade entre quatro e doze anos. Nesta fase do ciclo de vida as
crianças dominam todos os espaços da aldeia. O espaço doméstico cede lugar para
29
As idades biológicas mencionadas aqui consideradas não podem ser pensadas como valores
absolutos para sociedades tradicionais, como os Xavante, que possuem outras formas de classificação
social, que aqui estamos chamando de ciclo de vida. As idades biológicas aqui tomadas como referência
foram construídas como base em nossa experiência etnográfica em diálogo com os trabalhos de Giaccaria
& Heide (1984:135) e Maybury-Lewis .
62

outros horizontes a serem desbravados. A roça, o rio, os lugares “secretos” onde os


homens executam os rituais, a casa dos solteiros são os novos espaços disputados onde
se aprende brincando e se brinca aprendendo. A obra Crianças indígenas: Ensaios
Antropológicos organizado por Aracy Lopes da Silva, Ângela Nunes e Ana Vera Lopes
da Silva Machado nos oferece uma visão mais detalhada do universo da criança
indígena. Preocupados em rever as escassas informações sobre a infância das crianças
indígenas dispersas em pesquisas etnográficas os autores e autoras dos ensaios que
compõem a obra ambicionam reforçar os alicerces de uma área de investigação que só
muito recentemente capta atenções mais contínuas e sistemáticas (LOPES DA SILVA
et all, 2002:12) sobre esta parcela das populações tradicionais. Eles propõem uma
antropologia da criança indígena no Brasil que rompa com a visão “adultocentrica”
onde a criança possa ser vista como ser social tanto quanto qualquer adolescente,
adulto ou velho (NUNES, 2002:276).
Do conjunto de artigos que o livro traz quatro deles dizem respeito às crianças
Xavante. Destes quero destacar o de Ângela M. Nunes – No Tempo e no Espaço:
Brincadeiras das crianças A´uwe-Xavante (págs. 64-99). Este artigo explora as
atividades lúdicas das crianças Xavante em seu cotidiano sem regras ou horários pré-
determinados. Trabalhando com as categorias “tempo e espaço”, onde o lúdico
acontece, a autora mostra como a partir das brincadeiras as crianças Xavante constroem
seus mundos e se relacionam com o mundos dos adultos. Segundo Nunes,
para as crianças, o dia-a-dia na aldeia vai-se alternando entre
algumas tarefas doméstica que observam, fazem sozinhas ou nas
quais ajudam: lavar roupas e louças, tomar conta dos irmãos e irmãs
menores, dar-lhes banho, levar água para casa, ajudar a preparar
algum alimento, levar e trazer recados ou coisas, enxotar galinhas de
dentro das casas etc. (NUNES, 2002:73).

Estas atividades do cotidiano, transformadas facilmente em lúdico, não estão


isentas de responsabilidades. As atividades do cotidiano, sejam elas domésticas ou
produtivas, seguem ritmos de vida e dinâmicas próprias das crianças. Embora a autora
não trabalhe, neste artigo, operando especificamente com as categorias de ciclo de vida
que estamos aqui apresentando, podemos afirmar que sua descrição refere-se a estas
categorias. Não exploraremos o cotidiano das crianças de modo particularizado neste
trabalho. Entretanto, não negligenciaremos sua presença nos rituais quando estes forem
tratados.
63

A categoria de idade de Ai’repudo é aplicada a meninos com idades entre oito e


doze anos, o que corresponderia aquilo que chamamos de pré-adolescência em nossa
sociedade. O cotidiano destes meninos não difere daquele referente às demais categorias
de idade até aqui apresentadas. Entretanto, considerando que já estão em idade escolar,
parte do dia é dedicado às atividades escolares. Aqui a separação entre sexos também se
torna muito clara. Observando o cotidiano escolar30 destes meninos observamos que
eles sempre estão juntos e em grupos de número bastante variado. São alegres,
brincalhões e riem com facilidade. Dentro da sala de aula a tendência é de se agruparem
não se misturando com as meninas. Meninos e meninas se evitam nesta fase de vida. No
caso dos meninos acreditamos que seja uma preparação para a vida de wapté, morador
da casa dos solteiros, categoria a ser discutida mais à frente. Outra explicação possível
para o distanciamento entre meninos e meninas pode ser encontrada na tentativa de uma
auto-preservação no que diz respeito às atitudes jocosas dos mais velhos em relação à
latente sexualidade de ambos.
Fora do ambiente escolar os meninos deste ciclo de idade se envolvem em
diversas atividades: uma ida ao roçado para ajudar na busca de algum alimento para o
consumo do grupo doméstico; uma viagem rápida de bicicleta até uma aldeia próxima
em busca de novidades ou para levar ou buscar alimentos, principalmente quando há
boatos de que algum morador daquela aldeia obteve sucesso numa caçada; uma rápida
expedição para pescar com outros ai’repudu, onde aproveitam também para brincarem
no córrego não muito distante da aldeia. Nesta idade também são mais solicitados a
oferecerem uma contribuição maior nas atividades produtivas e manutenção do grupo
doméstico.
Giaccaria & Heide (1984:144ss) apontam uma série de atividades lúdicas da
qual tomam parte os ai’repudu. Todavia, este universo infantil Xavante não gira
somente no em torno do lúdico. Há uma série de atividades que podem ser tidas como
laboral.
No plano ritual o Ai’repudo constitui uma categoria de referência para que os
ĩhire - anciãos, definam a constituição de uma nova casa dos solteiros.
Estas fases iniciais do ciclo de vida entre os Xavante – ai´utèprè, ai´uté, criança,
[sem distinção sexual], ‘watébrémire, ‘watébrémi, ai’repudu [para o sexo masculino] e
30
Na aldeia São Marcos desde sua fundação houve a implantação, por parte dos missionários, de
escolas. Posteriormente estas escolas de tornaram municipais ou estaduais sendo mantidas por estas
esferas de governo. Os critérios para admissão na escola são os mesmos tomados como referência ao
sistema nacional de ensino.
64

ba’õno, adzarudu [para o sexo feminino] não são marcadas por rituais que as definam e
seguem o curso do desenvolvimento biológico da pessoa. Entretanto, os pais e seus
filhos observam uma série de regras e tabus alimentares que se transgredidos poderiam
trazer conseqüências danosas à saúde das crianças. Giaccaria & Heide (1984:136ss)
apresentam uma série de relatos dos tabus alimentares para homens e mulheres durante
e após o parto. David Mybury-Lewis (1984:111), que também trata destes tabus,
descarta tratar tais restrições como couvade, pois considera que existência de
generalizações dadas ao termo sobre as instituições já analisadas
(...) não deve ser considerada até que estas sejam compreendidas e
descritas em termos das crenças sobre a relação pai-filho(a) nas
sociedades onde tais instituições são encontradas.

Para o caso Xavante o autor considera que a visão Xavante sobre a relação
pai/filho(a) expressa-se por outro termo, descrito por Fraser (1910:247) como
solidariedade física íntima referindo-se ao período ante e pós-parto. Segundo Maybury-
Lewis (1984:111), os Xavante consideram que a criança é macia e mole antes e após seu
nascimento. Por ser o nenê especialmente vulnerável neste período, o pai precisa tomar
precauções especiais para não causar-lhe mal (Maybury-Lewis,1984:111).
A descrição das relações pais/filho(a) são tratadas sob pontos de vista diferentes
entre Maybury-Lewis e Giaccaria & Heide quando o foco está voltado à mãe. Enquanto
Maybury-Lewis (1984:111) aponta que as atividades da mãe não são vitais para sua
saúde [da criança] na mesma proporção que as do pai, cabendo ao marido cuidar da
criança enquanto a mãe sai à procura de comida. Giaccaria & Heide (1984:138)
descrevem uma série de tabus alimentares e precauções que se pai e mãe comerem ou
transgredirem provocariam uma série de distúrbios na criança afetando seu crescimento,
a cor de sua pele, seu sono, etc.
Em nossa experiência etnográfica entre os Xavante deparei-me com várias
situações onde esta solidariedade física íntima, para usar a expressão que Maybury-
Lewis toma de Fraser, esteve manifesta. Uma delas ocorreu na cidade, onde um de
nossos informantes recusou um refrigerante alegando que se ingerisse seu filho recém
nascido teria diarréia. Este mesmo informante relatou-me que noutra ocasião em que
estivera na cidade banqueteou-se fartamente num dos restaurantes, ingerindo dois PFs
(pratos feitos). Retornando a sua aldeia encontrou o filho doente. Pressionado pela
mulher, confessou ter comido em demasia e sofreu forte reprimenda. O informante nos
disse, referindo-se às seqüelas decorrentes de suas ações sobre a saúde de seu filho, que
65

a criança tem estômago muito pequeno e delicado e ao comer muito [o informante] seu
estômago ficou estufado ocorrendo o mesmo com o filho que estava na aldeia. Sobre
este fato o informante relatou-nos que ao retornar da cidade, e conversar com a mulher,
descobriu que seu filho havia tido “estufamento” do estômago no mesmo instante que
ele almoçava na cidade. Noutro contexto etnográfico que presenciamos o informante se
recusou terminantemente a matar uma cobra peçonhenta, que por pouco não o havia
picado. Em sua explicação ele limitou-se a nos dizer que se matasse a cobra seu filho
recém nascido teria sérios problemas de diarréia. A explicação limitada à diarréia sugere
um pavor em relação há algo que não pode ser mencionado diante do tal risco que se
expõe. Aqui sugerimos novamente uma investigação etnográfica mais profunda sobre o
universo cosmológico xavante. Um terceiro caso etnográfico diz respeito à interdição do
consumo de certos animais. Neste caso, o genro de meu informante havia matado um
tatu canastra e levado para casa. Entretanto, mesmo sendo um caça muito apreciada
pelos Xavante, o informante não comeu daquela caça e ainda proibiu o pesquisador de
fazer o mesmo. A explicação dada foi que ambos [pesquisador e informante] tinham
filhos pequenos abaixo de dois anos. Se transgredisse este tabu o espírito do tatu
canastra levaria a alma das crianças e estas morreriam. Estes fatos etnográficos, comer
em demasia, evitar matar certos animais, bem como consumir determinados tipos de
caça, reforçam a concepção de solidariedade física íntima entre pai e filho. Esta
simbiose simbólica entre pai e filho poderia ser vista como uma expressão da
patrilinearidade. Todavia, tal afirmação carece de aprofundamento.
Durante uma caçada, para fins rituais, presenciamos várias situações que
apontam para solidariedade física íntima entre pais e filhos recém nascidos. Numa delas
o pai além de não poder comer a carne de uma anta abatida não poderia sequer tocar na
cabeça do animal, sob pena de causar a morte imediata de seu filho recém nascido. A
relação com a caça, neste caso com a anta, não está condicionada apenas a uma
assimetria negativa onde a ação do pai de transgredir a norma poderia causar um mal, e
até a morte, ao filho. Nesta mesma caçada abateram uma anta que estava prenha. O feto,
que também é consumido, era macho. Ao ser trazido para o acampamento vários
homens, que desejavam ter um filho do mesmo sexo do feto o seguravam como um
recém nascido. Informantes explicaram-me que Danhimite, Deus, ajudaria o homem a
“encontrar” um filho homem. Existem outras práticas rituais adotadas pelos Xavante
para garantirem não só a concepção, mas também o sexo da criança desejada. Entre
66

estas práticas estão o uso dos botoques auriculares pintados de vermelho com motivos
de acordo com o sexo do filho desejado, acompanhado de invocações a Danhimite – o
Criador, e depois usados durante o ato sexual. Os informantes disseram ainda usar uma
espécie de batatinha que é passada no corpo da mulher e do homem antes do ato sexual,
para garantir que o filho seja do sexo masculino. Além destas práticas existem outras
que não serão aqui tratadas por não ser este o objeto desta tese. Por fim, sobre questões
de concepção e práticas sexuais entre os Xavante em conversa com diversos
informantes notei uma autonomia maior entre os Xavante sobre as práticas sexuais se
comparado com a descrição de Giaccaria & Heide (1984:230ss), quando apontam que o
ato sexual deve ser realizado em local coberto – a casa. Uma observação bem diferente
de Maybury-Lewis (1984:117) quando afirma que um homem e mulher quando desejam
manter relações sexuais apenas se dirigem ao cerrado; e acrescentamos, de preferência,
bem longe dos curiosos ai’repudu, ‘watebrèmi e ba’õno.
A fase de ‘watébrémi e ai’repudu pode ser ainda marcada por sua inserção na
vida religiosa Xavante através do ritual de iniciação específico: o darini. Considerando
que o darini acontece em intervalos de quinze a dezessete anos pode advir que muitas
crianças ‘watébrémi e ai’repudu não sejam iniciadas na vida religiosa Xavante enquanto
estão nestas fases do ciclo de vida. Pode ocorrer que elas tenham adentrado em outra
fase do ciclo de vida, o wapté ou ‘ritéi’wa. Quando iniciadas no darini elas são
inseridas na hierarquia religiosa que tem o primeiro patamar denominado waiarã31. Ao
pertencer a este primeiro estágio da hierarquia religiosa os ‘watébrémi e ai’repudu são
submetidos, quando se realiza a cerimônia religiosa do wai’a32, a uma rígida interdição
alimentar que se transgredida estarão sujeitos a punições por parte dos
da’ãmawai’a’wa33. Não obstante, as crianças que nascerem após a realização do darini
não estarão sujeitas a interdições alimentares. Pode acontecer que um menino atinja a
fase de wapté, em seu ciclo de vida, e assim deixa de estar sujeito às interdições
alimentares, bem como proibido de participar das celebrações do wai’a. Estas crianças,
‘watébrémi e ai’repudu, e meninos, wapté, serão chamadas de wautòbtu, ou seja,
aqueles que não conhecem ainda os segredos do wai’a.

31
No próximo capítulo apresentamos um quadro desta hierarquia religiosa.
32
O darini é um ritual de iniciação que permite ao homem participar, dentro de uma hierarquia,
das celebrações do wai´a. Enquanto o primeiro ocorre, como mencionado, em intervalos de quinze a
dezessete anos, o segundo ocorre pelo menos quatro vezes ao ano e possui cinco modalidades.
33
Segundo estágio hierárquico do darini.
67

Nos dias de hoje, de modo geral, a vida das crianças Xavante, meninos e
meninas, não é muito diferente das descrições de Maybury-Lewis (1984:112ss). Elas
são alegres, brincalhonas e gozam de grande autonomia e passam o dia perambulando
pela aldeia brincando, indo e vindo das casas de parentes. Em tempos de rituais elas
quando não tomam parte dos cantos e danças, acompanhadas de seus pais e avôs, elas
organizam-se em pequenos grupos e põem-se a imitar os adultos. Dentre as várias
ocasiões que presenciamos as performances de imitar os adultos destacamos duas
situações, ambas ligadas ao danhono. Cotidianamente, no período de realização do
danhono, os danhohui’wa – padrinhos – dançam nas madrugadas e antes do por do sol.
Tanto em 1997 quanto em 2005, em aldeias diferentes, observamos grupos de crianças,
meninos e meninas, imitando a forma de dança e cantos dos danhohui’wa. Nas duas
ocasiões, em diferentes momentos, os adultos regozijavam-se com a performance das
crianças, sobretudo quando imitavam os gritos característicos que os danhohui’wa dão
quando dançam. A primeira vista o comportamento de imitar os adultos pode parecer
trivial na vida Xavante. Entretanto, ela tem uma função social importante como já havia
observado Maybury-Lewis (1984:117):
... este é um estágio importante no desenvolvimento de uma criança
porque é nesta fase que ela toma consciência das distinções que são
tão importantes na vida Xavante: a distinção entre meninos e
meninas; entre pessoas da mesma idade e os mais velhos (também
agrupados em classes de idade); entre consangüíneos e afins.

O imitar na sociedade Xavante está muito além do lúdico. Ele assume um caráter
pedagógico extremamente importante na vida ritual e social do grupo.
As meninas - ba’õno, adzarudu – tomam parte nas brincadeiras dos meninos até
mais ou menos cinco anos. A partir daí elas começam a assumir várias atividades junto
às suas mães. Tais atividades estão ligadas diretamente às necessidades domésticas:
buscar lenha para o fogo, buscar água numa das torneiras comunitárias34, etc. O
envolvimento das ba’õno e adzarudu nas atividades domésticas é perfeitamente
traduzível nas colocações de Maybury-Lewis (1984:118):
... espera-se que ajudem em casa logo que sejam fisicamente capazes
de fazê-lo. Cheguei a ver menininhas com não mais de três anos sair
com cestinhas minúsculas acompanhando suas mães em excursões de
coleta perto da aldeia. Quando a menina faz cinco anos,

34
Na aldeia N. S. de Guadalupe, bem como em várias aldeias das Terras e Reservas Indígenas
Xavante, o Ministério da Saúde, através da FUNASA, instalou poços artesianos com bombas d´água
movidas a energia com placa solar. Contudo, em determinadas horas do dia, quando a temperatura é mais
elevada, os Xavante preferem consumir água “fresca” de nascentes acerca de um quilômetro da aldeia.
68

aproximadamente, em geral já olha um irmãozinho menor e pode


muito, bem já estar casada. Quando ela faz sete anos, tanto seus
parentes consangüíneos como seu marido observam-na
cuidadosamente pois ela logo será considerada fisicamente apta a
coabitar com um homem. Por isso, uma menina de cerca de seis anos
tende a comportar-se como uma mulherzinha ainda fraca e pouco
desenvolvida.

O casamento de meninas muito pequenas vem diminuindo com os anos. Embora


ainda ocorra, nas duas últimas iniciações do danhono, quando ocorreu a apresentação
das noivas, observamos apenas dois casos em que meninas ainda de colo foram
formalmente apresentadas à seus noivos e à comunidade. Não obstante, esta
transformação no padrão tradicional de apresentação formal das noivas vem
acompanhado de outras transformações sociais na sociedade Xavante. De modo geral, a
redução na apresentação das noivas ocorre tanto quando se se trata de ba’õno quanto de
adzarudu. Isso não significa que os pais não tenham já negociado o casamento de seus
filhos e filhas. Logo após a conclusão do danhono várias “noivas”, adzarudu, foram
“entregues” a seus “noivos” fora do rito oficial. Observamos uma situação etnográfica
onde a “entrega” da noiva aconteceu durante a noite quando o noivo mandou um recado
para Gabriela, esposa de Luiz, para que levasse sua sobrinha – que era de outra aldeia,
mas estava em sua casa - para a casa do pai do noivo. Nove meses depois de concluído
o danhono, numa rápida visita a aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, onde realizamos o
trabalho de campo, observamos que o filho de Luiz havia se casado e sua jovem esposa
estava vivendo na casa de seu sogro (Luiz). Estas situações são bem diferente das
descrições de Maybury-Lewis (1984:132ss) quando aponta que é o noivo que visita a
noiva em sua casa regularmente, mas não habita com ela – o que ocorrerá tempos
depois. Neste período de visitas regulares, negadas terminantemente durante o dia pelo
noivo quando indagado, os pais da noiva reservam uma espécie de quarto ao casal,
chamado ‘rina’rada, para que tenham privacidade. Segundo Maybury-Lewis
(1984[1967]), o noivo nega estar tendo relações com uma mulher para não comprometer
sua individualidade e ainda evitar que seja reconhecida sua dependência de seus afins,
em especial dos sogros. Tempos depois desses encontros deveria acontecer o casamento
“oficial” quando o noivo acompanhado de seus parentes deveria empreender uma
caçada, chamada de dabatsa, cujo resultado seria destinado ao sogro e passaria a viver
na casa deste até o nascimento do segundo filho, quando o sogro e seus cunhados o
ajudam a constituir um grupo doméstico independente. Abaixo descrevemos este ritual.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:226) o noivo passa a coabitar com a noiva na casa do
69

pai da noiva somente depois de se tornar danhohui’wa, padrinho. Isto se daria, pelo
menos dez anos depois de sua iniciação. Entretanto, observamos que na aldeia Nossa
Senhora de Guadalupe e São Marcos, os genros viviam na casa de seus sogros muito
antes de atingirem esta fase do ciclo de vida e status ritual. Os dois casos que
apresentamos acima sinalizam uma transformação na forma de casamento dos Xavante,
que é marcado pela residência uxorilocal.
Segundo Maybury-Lewis (1984:127-128),
Um casamento entre os Xavante não é, portanto, uma ocasião em que
as clivagens sociais são enfatizadas. Os parentes consangüíneos da noiva
não se opõem ritual ou politicamente aos do noivo. Na verdade,
arranjar um casamento não é assunto que diga respeito,
reconhecidamente, aos grupos de parentes consangüíneos
(patrilinhagens, no caso) dos jovens em questão. Cabe aos pais ou aos
tios paternos encontrar o parceiro e isto é feito com pouco
estardalhaço. Não há transferência de propriedade nem casamentos
criteriosos que possibilitem aos cônjuges ou aos seus consangüíneos a
aquisição de prestígio. Os Xavante não usam o laço de casamento nem
mesmo poder-se-ia esperar. Conseguindo maridos convenientes para
suas filhas, os quais poderiam ser convencidos a passar para o lado da
patrilinhagem de seus afins, enfatizando seus laços de afinidade mais que
os de descendência em relação a um grupo político específico. O
casamento de uma classe de idade recém-iniciada é, ao contrário, uma
questão que afeta toda a comunidade. Toda ela fica envolvida, já que está
diretamente relacionada com algum dos noivos e toda a comunidade,
então, se encarrega da cerimônia e dirige o casamento. O
reconhecimento social dos laços de um casamento específico, que ligam
os membros da classe de idade iniciada às suas noivas, não é nada mais
que uma função do re conhecimento, por parte da comunidade como um
todo, de um estado de compromisso que a classe de idade recém-
amadurecida deve assumir sem demora. Que estes rapazes devem se
casar, é uma questão pública, que afeta toda a comunidade. Com quem
vão se casar é que é uma questão puramente doméstica [grifo nosso].

Entretanto, houve duas situações na aldeia São Marcos, quando ali residíamos,
nas quais, após a instauração da crise em 1998 pela disputa pelo reconhecimento do
posto de cacique, os pais das noivas tomaram, como disseram os Xavante, a filha que
estava recém casada. Em um dos casos o casamento já havia sido acordado entre os pais
dos noivos. Contudo, quando o pai do noivo nega apoio político ao pai da noiva, este
entrega a filha ao filho de outro homem influente da aldeia. Assim a afirmação de
Maybury-Lewis de que Os parentes consangüíneos da noiva não se opõem ritual ou
politicamente aos do noivo, se efetiva somente quando a aliança entre os grupos domésticos
tem condições concretas de se realizarem.
Quando os homens saem para caçar com a finalidade de realizar o casamento
ocorre uma mudança no ciclo de vida das meninas Xavante. Até este momento elas são
70

consideradas adzarudu, mas com a saída dos homens para caçada elas se tornam adaba
- esposa. Os termos adaba e adabatsa ou dabatsa35 estão ligados a um dos poucos
rituais Xavante onde as mulheres estão diretamente ligadas e envolvidas no processo
ritual.
O ritual adabatsa envolve a participação ativa dos dois grupos domésticos
envolvidos no casamento de seus filhos. Do lado do noivo, que deve ser, pelo menos,
‘ritéi’wa ité, ou seja, já ter concluído o ritual danhono, seus parentes consangüíneos e
afins organizam a caçada chamada dabatsa, como já dito. A referência à participação de
membros da classe de idade do noivo nesta caçada não é significativa, embora
companheiros da mesma classe possam tomar parte dela, além de que pode ainda haver
irmãos que pertençam à mesma classe de idade participando da caçada. Esta caçada não
tem um tempo de duração estipulado e depende apenas de sucesso. O resultado esperado
é que sejam abatidas preferencialmente antas, que por ser um animal de grande porte
garante logo uma boa quantidade de carne. Entretanto, outros animais podem sem
abatidos sem parcimônia. Os animais abatidos são colocados em “jiraus” onde embaixo
se acende uma fogueira para que a carne seja moqueada.
Quando se tem uma grande quantidade de carne, um dos caçadores – chamado
ritualmente de dautsimri’wa36, do mesmo clã da noiva, confecciona o tsiõtõ höpö –
cesto grande feito com brotos da palmeira buriti, para transportar a carne. Os caçadores
e o noivo acampam próximo da aldeia. Ali ele recebe uma pintura chamada de
dauhöba37 onde apresenta a frente, incluindo braços, pintada de preto com um
retângulo, no sentido vertical, de cor vermelha estampado no abdômen e nas costas
pintadas de vermelho com duas listras, no sentido vertical, pintadas de preto. Com o fim
dos preparativos e uma vez estando prontos, todos se dirigem para a entrada da aldeia

35
De acordo com o dicionário Xavante-Português organizado por Gerog Lachnitt, 2003, 2ª ed., o
termo adabá é um substantivo que significa: esposa, mulher casada sem filhos; enquanto que adabatsa é
um substantivo composto e significa: comida de jovem casada, casamento, também semelhante a dabatsa
que é igualmente um substantivo cujo sentido é caça de casamento.
36
De acordo com Giaccaria & Heide (1984:285) o termo significa: mendigo de carne; um
homem que acompanha um grupo de caçadores para ganhar um pedaço de carne. Daremos mais
informações a respeito deste personagem quando estivermos descrevendo a caçada dos tébé e pahöri’wa
chamada imanadö.
37
Esta pintura pode sofrer variações. Durante as corridas de buriti, das quais participei de várias,
observei alguns homens que usavam variações da pintura do casamento onde apresentavam listras de
vermelho e preto nos braços, informantes explicaram-me, em várias ocasiões, que se tratava de uma
provocação à sogra, e por extensão ao grupo doméstico da esposa, pelo fato de sua mulher não ser mais
virgem quando o marido deitou-se com ela pela primeira vez.
71

onde alguém grita dapã38, e com este sinal o cesto de carne é levado para frente da casa
do sogro onde é depositado.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:224ss), no qual se baseia este relato e
também em nossa experiência etnográfica, após deixar o cesto de carne na frente da
casa do sogro o noivo entra na casa e dirige-se à ‘rina’rada, um cercado destinado ao
casal, onde se deita para descansar por um tempo junto da esposa e depois volta à casa
de seu pai. A carne ali deixada é distribuída pelo danho’rebdzu’wa, literalmente o dono
do colar de algodão – ou aquele que faz o colar, irmão da mãe da noiva, aos presentes
tendo como preferência os parentes próximos.
Ao término da distribuição a noiva é pintada e ornada, dentro de sua casa, pelo
danho’rebdzu’wa com três tipos de colares confeccionados com algodão, por ele, dentes
de capivara e sementes: danho’rebdzu’a, danhoniã e ubdö´wa. Estando pronta ela se
dirige à frente de sua casa e ali aguarda ajoelhada sob os calcanhares a chegada da
adabanho’rebdzuiwatsihui’wa, moça que lhe retira os colares e deposita ao seu lado um
presente39. Como acorre na maioria dos rituais Xavante, a
adabanho’rebdzuiwatsihui’wa deve ser de um clã de uma metade exogâmica oposta à
da noiva.
De acordo com Giaccaria & Heide (1984:226), após este ritual marido e mulher
ainda não estão autorizados a viverem juntos sob o mesmo teto. Eles se encontram na
casa do sogro do genro somente com autorização daquele. Poderão fazê-lo quando o
marido se tornar danhohui’wa, ou seja, aproximadamente dez anos depois de sua
iniciação. Não obstante, esta parece ser uma regra pouco usada pelos Xavante.
Maybury-Lewis (1984:133) aponta que o casal passa a conviver junto, na casa dos
parentes da noiva, (...) quando a moça engravida ou quando sua classe de idade é
promovida à categoria dos homens maduros. Aqui a segunda possibilidade de
convivência permanente do casal se aproxima daquele intervalo de tempo referido por
Giaccaria & Heide. Um homem Xavante torna-se maduro, e com direitos políticos
plenos, pelo menos em tese, após o patrocínio do danhono de uma classe de idade

38
O sentido dado a este termo por Giaccaria & Heide (1984:294) é que se trata de uma melodia
de um único t; alegria e sucesso. Parece-nos que se trata de um tipo de grito que os Xavante dão para
iniciarem uma ação ritual. Um de nossos informantes nos disse ainda que se trata de um grito que
indicativo de que alguma coisa está sendo trazida ao centro da aldeia, exemplificando com um fato no
qual os exploradores tsawörö’wa quando conseguiam tomar algum objeto dos colonizadores antes do
contato.
39
Este presente pode ser um bolo Xavante feito de milho, tsada’ré. Entretanto, atualmente estes
presentes são bem diversificados. Assisti uma destas cerimônias onde foram usados dois franguinhos.
72

imediatamente mais nova do que a sua – o que acontece dez anos após sua iniciação do
danhono. Todos os casais que contraíram matrimônio nas aldeias onde convivemos com
os Xavante passaram a viver na casa do pai da noiva após a realização do adabatsa.
Alguns casais estavam vivendo juntos na casa dos pais da noiva sem, contudo, terem
realizado o ritual do adabatsa. A filha de um dos meus informantes se interessou por
um rapaz que morava em outra Terra Indígena Xavante. Num primeiro momento, em
acordo com o pai, ela foi morar na casa do pai do marido, provocando assim uma
mudança da regra uxorilocal para virilocal. Ali permaneceu um tempo até uma visita da
mãe que a encontrou muito doente e a trouxe de volta para sua aldeia. O marido tempos
depois veio morar com ela na casa do sogro, retornando a uxorilocalidade. Permaneceu
morando com o sogro por um tempo e depois resolveu voltar para casa de seu pai. A
mulher planejava voltar com ele, mas foi impedida pela mãe. Hoje o casal encontra-se
separado. Uma filha resultante deste casamento permanece com a mãe, contrariando as
regras de descendência segundo a qual os (as) filhos (as) pertencem ao pai, haja visto
que os Xavante são patrilineares. Ademais, já apresentamos acima o caso da menina que
foi levada por Gabriela, mulher de Luiz, para passar noites na casa do noivo, o que
contraria também o padrão descrito acima, segundo o qual o marido é quem freqüenta a
casa da noiva. Mais um caso: a noiva do filho de Luiz passou a residir na casa do sogro
alguns meses depois da conclusão do danhono, no qual seu filho tinha ocupado o cargo
cerimonial de tébé.
O ritual de casamento, adabatsa, tem acontecido com pouca freqüência entre os
Xavante. De acordo com informantes, as mães não querem mais este tipo de casamento.
Alguns choques culturais entre o sistema de casamento ocidental e o Xavante começam
a se manifestar os membros desta etnia. Num dos casos que acompanhei a adzarudu
viveu toda sua infância na cidade, mas com a volta de sua família para aldeia foi
obrigada a casar-se com um ‘ritéi´wa ité, que recém tinha concluído o danhono.
Informantes disseram-me que ela chorou durante uma noite toda, pois seu “sonho” era
casar-se como os waradzu, não índios, casam, ou seja, vestida de branco e na Igreja.
Neste caso a regra de casamento foi forçada ao extremo. Apuramos posteriormente que
o casamento nestas circunstâncias aconteceu devido a aliança, política, que estava sendo
estabelecida entre os dois grupos domésticos. O pai da adzarudu estava em disputa pelo
reconhecimento do posto de cacique da aldeia São Marcos. Numa estratégia para
73

aumentar seu capital político sua filha foi dada em casamento ao filho de um homem
que tinha grande prestígio junto à comunidade.
O casamento entre os Xavante acontece entre famílias e gera, além da
cooperação econômica, aliança política. Os pais podem, ainda quando os filhos são
pequenos, estabelecer acordos matrimoniais envolvendo seus filhos. Em muitos casos
estes acordos se tornam manifestos num dos momentos finais do danhono, como
veremos adiante.
As fases seguintes do ciclo de vida Xavante: wapté, ‘waté’wa, ‘rereroi’wa,
‘ritéi’wa, ‘ritéi’wa ĩté, dahi’wa e danhonhui’wa e dahirada estão condicionadas ao
ciclo das classes de idade. Estas sete fases do ciclo de vida compõem a estrutura
organizacional do danhono. A fase danhonhui’wa é vivenciada por homens e mulheres
de uma mesma classe de idade. Entretanto, elas passam a participar efetivamente do
danhono apenas no último ano, quando começam a participar dos ensaios do canto
wanaridobe, trataremos disso no próximo capítulo quando estivermos descrevendo o
danhono.
A categoria do ciclo de vida ĩprédupté diz respeito ao homem adulto que deixou
recentemente o papel de danhohui’wa, padrinho, que havia desempenhado durante o
danhono. Pode-se dizer que ele saindo do plano ritual para adentrar no plano político,
sem conduto deixar o primeiro. Este momento se dá quando a terceira classe de idade,
incluindo a sua, de sua metade cerimonial está sendo admitida à casa dos solteiros. Ele
está se tornando padrinho do padrinho, ou danhimiwanhõ, como dizem os Xavante.
A fase do ciclo de vida que compreende os ĩprédu, adulto, homem maduro, é
atingida quando decorrem três iniciações do danhono. Giaccaria & Heide (1984:135)
apontam que nesta fase o homem chega à maturidade estando com idade de 26 anos.
Entretanto, como já assinalado esta referência à idade biológica da pessoa não pode ser
tomada em absoluto tendo em vista que populações tradicionais possuem outros
mecanismos de classificar o desenvolvimento biológico. A dinâmica do ciclo de vida
Xavante permite, por exemplo, que um homem possa retardar o ingresso na fase ĩprédu.
Isto ocorre quando uma pessoa troca de classe de idade. Num dos casos etnográfico que
levantei um homem que já tinha atingido o status de ĩprédu, quando consideramos o
número de iniciações do danhono, pediu para mudar de classe de idade retornando ao
status de danhohui’wa. Para Maybury-Lewis (1984:193ss) a referência para que um
homem seja considerado maduro, portanto ĩprédu, além de já ter sido iniciado, é o
74

casamento – o que pode já ter acontecido ao final de sua iniciação do danhono.


Entretanto, de acordo com nossos dados etnográficos, o casamento não confere o status
absoluto de ĩprédu a um homem casado. Quando tratarmos do funcionamento do
sistema político retornaremos a discussão sobre a fase de vida ĩprédu, sobretudo quando
descrevermos o warã – centro da aldeia. Por hora queremos ressaltar que admissão à
condição de ĩprédu está condicionada ao número de iniciações do danhono.
A fase do ciclo de vida que abarca os tsawörö’wa envolve somente os homens.
Para ser tsawöro’wa, exploradores – batedores – espiões, é preciso passar por um ritual
que tem quatro dias de duração. Falaremos deste ritual no próximo capítulo. A condição
para participar deste ritual é ser ĩprédu. Esta fase conecta-se com o danhono, na medida
em que se considera o tempo e período de sua realização. Neste sentido, de acordo com
Giaccaria e Heide (1972:240), a iniciação dos tsawörö’wa (exploradores) acontece,
dentro de um intervalo de tempo entre um ano após a iniciação do danhono até um ano
antes do próximo. De acordo com um de nossos informantes as iniciações do
tsawörö’wa estão sendo feitas no intervalo de cada duas iniciações do danhono. As
obrigações dos tsawörö’wa eram de verificar se estava tudo bem na aldeia no período
que antecedia o retorno das caçadas. Em decorrência do processo de territorialização ao
qual os Xavante foram submetidos as grandes expedições de caça e coleta, que duravam
cerca de três meses, deixaram de ser praticadas provocando uma mudança de foco nas
funções dos tsawörö’wa. Hoje em dia quando há conflitos entre os Xavante e não
índios, os ĩhire - anciãos, mandam na linha de frente os tsawörö’wa. De acordo com
Luiz, nosso informante, houve no início da década 80 um conflito entre Xavante e
policiais militares na cidade de Aragarças (GO), vizinha de Barra do Garças (MT). Na
época um policial havia baleado um Xavante. As aldeias da Terra Indígena São Marcos
planejaram uma vingança contra o policial. Para tanto, os ĩhire - anciãos, mandaram
primeiramente os tsawörö’wa, entre os quais se encontrava nosso informante que
afirmou ter enfrentado muitos policiais até que houve a intervenção da Polícia Federal.
No caso das mulheres adultas, designadas como piõ, a referência ao danhono
também deve ser igualmente considerada. Quando vivenciam a fase de vida ba´õno são
apresentadas, juntamente com os ai’repudu, ao término do danhono, como futuras
integrantes da próxima classe de idade. Entretanto, não chegam a viver reclusas, como
os ai’repudu, na casa dos solteiros. Ao tratarmos do danhono teceremos mais
considerações a respeito da posição das mulheres durante o processo ritual. Giaccaria &
75

Heide (1984:135) colocam como condição para que elas sejam classificadas como piõ o
fato delas estarem casadas e com filhos. Maybury-Lewis (1984:203ss), por seu turno,
aponta que dependendo do nível de consideração o termo piõ pode ser usado como
identificador de gênero, ou seja, piõ para mulher em contraste com aibö homem, ou
ainda, piõ referindo-se a mulher madura em oposição à “mulher imatura” adabá e
tsoimbá. Através da categoria piõ as mulheres são reconhecidas como maduras e
colocadas em igualdade social com os homens maduros, os ĩprédu. Neste sentido, uma
mulher, piõ, pode ser igualmente reconhecida como piõ ĩprédu. Nossa hipótese é que
este status é atingido quando decorrem pelo menos três iniciações, como no caso dos
homens. Aqui nos opomos à concepção de Maybury-Lewis, segundo a qual a
participação das mulheres no sistema de classes de idade é apenas classificatório sendo,
portanto, passivo sua participação no sistema de grupos de idade (Maybury-Lewis
1984:207). Este autor aponta que a importância do sistema de classes de idade para as
mulheres está no fato desse sistema atribuir-lhes categorias sociais arbitrárias que são
independentes de seu status biossocial (idem). Nossas observações etnográficas
apontam que o sistema de classes de idade, enquanto um sistema classificatório, engloba
homens e mulheres e condiciona seu reconhecimento na sociedade Xavante. Neste
sistema ,que tem como ponto máximo de sua expressão no danhono, as mulheres de
modo algum são passivas enquanto partícipes do ritual. Como veremos, sua participação
no danhono pode até não ser tão intensa quanto a dos homens, mas nem por isso devam
ser consideradas passivas dentro do sistema.
Por fim, a última etapa do ciclo de vida entre os Xavante, como em seu início,
nivela homens e mulheres, ambos são reconhecidos como ĩhire. O reconhecimento, ou
classificação, de uma pessoa como ĩhire parece-nos estar referenciado mais com seu
desenvolvimento do biológico do que com o plano ritual, como acontece em outras
fases do ciclo biológico. Giaccaria & Heide (1984:135) definem ĩhire como homem
velho, aquele que conhece todos os segredos da tribo. No caso das mulheres, estas são
classificadas como piõ ĩhire, definidas como mulher velha. No plano ritual, como
veremos adiante, embora os ĩhire tenham o domínio dos segredos da tribo isto não
habilitam a gerenciar por completo estes segredos.
76

CAPÍTULO II
RITUAL

2 - OS RITUAIS DE INICIAÇÃO ENTRE OS XAVANTE

Neste capítulo queremos apontar alguns dos rituais Xavante. Não pretendemos
entrar em detalhes sobre estes rituais, a exceção do danhono que retomaremos adiante,
mas faremos um sobrevôo sobre eles para apontar sua existência e de que modo os
Xavante os pensam atualmente. Entre os Xavante os rituais de iniciação podem ser
agrupados nas categorias, considerando suas especificidades, seculares e religiosos. Na
categoria secular apontamos três tipos de rituais: o danhono, a iniciação dos tsawörö’wa
e a nominação das mulheres. Enquanto que na categoria dos rituais religiosos temos o
wai’a, com suas modalidades de celebração, e o darini, ou também wai’arini, ritual
iniciático que permite a entrada de novos membros na sociedade de culto e promove a
ascensão da estrutura hierarquia do wai’a.

2.1 - O DANHONO

Este ritual ocorre em períodos de intervalo de cinco a seis anos. Através deste
ritual os meninos e meninas Xavante são inseridos formalmente ao sistema de classes de
idades. A categoria danhono traduz-se por sono. É como se os meninos e meninas
dormissem durante sua pré-adolescência e adolescência, se quisermos usar duas de
nossas categorias nativas, e acordam na vida adulta, prontos para a guerra e para a troca
de mulheres e procriação, haja vista que aqueles que concluem o processo de iniciação
são considerados os novos guerreiros e estão socialmente permitidos a se casarem. O
capítulo seguinte será dedicado exclusivamente para tratar deste ritual.

2.2 – ABADZIRÃIHIDIBA – RITUAL DE NOMINAÇÃO DAS


MULHERES.

O ritual de nomeação das mulheres abadzirãihidiba, que talvez não seja um


ritual de iniciação propriamente dito, foi praticamente extinto na maioria das aldeias,
77

conforme vimos no capítulo anterior. Entre os fatores que levaram praticamente ao


abandono deste ritual está a influência missionária católica e protestante. Por ser um
ritual onde as mulheres podem escolher parceiros sexuais, preferencialmente cunhados,
durante sua realização, tal prática nunca foi bem vista e aceita pela moral e doutrina
católica e cristã. Segundo Seth Garfield (2001:119-120), referindo-se a atuação do
SPI40, Serviço de Proteção ao Índio, e agentes missionários
A tendência ideológica daqueles que mais diminuíram a importância
da vida dos índios claramente variou em cada experiência histórica
da comunidade Xavante. Os missionários foram os que mais
suprimiram os rituais e costumes sexuais indígenas, se comparados
aos funcionários do governo, procurando suprimir ou alterar
costumes e introduzindo novos sistemas de crenças e códigos
comportamentais. Além do mais, em um nível mais fundamental, a
ênfase missionária na consciência individual e salvação confrontou-
se com a compreensão cultural Xavante sobre a pessoa como um
produto social coletivo, na qual sustenta seu sistema cerimonial
comunitário [tradução livre].

Na Terra Indígena São Marcos, onde os missionários salesianos atuam, desde a


fundação da aldeia homônima em 1958, este ritual nunca foi realizado, conforme nos
disse um dos informantes. Durante a segunda etapa da pesquisa de campo, conversando
com um informante, soubemos que a aldeia São José, situada na Terra Indígena
Sangradouro/Volta Grande, está retomando a realização deste ritual em intervalos de
dois anos. David Maybury-Lewis (1984:203) e Aracy Lopes da Silva (1986:123)
afirmam não terem tido muito sucesso em obter informações sobre este ritual quando
realizaram seus trabalhos de campo. No caso de Maybury-Lewis, nas comunidades que
o autor visitou durante seu trabalho de campo não havia uma freqüência na realização
deste ritual. Ademais, o autor menciona que os relatos coligidos não eram coerentes. A
dificuldade apontada por Aracy Lopes da Silva para conseguir informações sobre este
ritual estava no fato de que o mesmo era realizado com pouca freqüência, antes do
contato, e ter sido totalmente abandonado na maior parte das aldeias. O trabalho de
campo de Aracy Lopes da Silva é posterior ao de Maybury-Lewis. O único relato com
maior requinte de detalhes deste ritual está na obra de Giaccaria & Heide (1972:235-
248). Todavia não faremos aqui um resumo deste ritual, porque não acreditamos que
venha a acrescentar muito à nossa descrição e análise do danhono.

40
Serviço de Proteção ao Índio – SPI, foi um órgão de governo criado pelo Marechal Candido
Rondon e substituído pela atual FUNAI – Fundação Nacional do Índio.
78

2.3 - TSAWÖRÖ’WA

A iniciação dos tsawörö’wa, categoria que pode ser traduzida por exploradores41
– batedores – espiões, como já mencionado no capítulo anterior, acontecia entre uma
iniciação e outra do danhono. Esta iniciação passou por um processo de transformação e
tem acontecido a cada duas iniciações do danhono. O processo ritual, de acordo com o
relato de Giaccaria & Heide (1984:254-255), em quem nos baseamos para este
descrição, tem a duração de quatro dias. Segundo estes autores, ele acontece na estação
chuvosa no intervalo entre um ritual e outro da furação dos lóbulos auriculares, que se
dá durante o danhono. Participam desta iniciação os ĩprédu - homens adultos, já
iniciados no danhono e já desempenharam o papel de danhohui’wa, padrinhos. Quando
o número de homens nesta condição é pouco podem ser iniciados os ‘ritéi’wa – novos
guerreiros. Na fase pré-liminar do ritual os tsawörö’wa atuais preparam os ornamentos
que serão usados durante a iniciação. Dentre eles temos o dadzamo, um tipo de cinto
feito com fibras de seda de buriti, cordas e algodão. No dia estabelecido, por um
tsawörö’wa do clã po’redza’õno, para começar o processo de iniciação, os atuais
tsawörö’wa vão para o lugar onde se prepara para o wai’a, celebração religiosa, onde se
pintam com a modalidade daupté, corpo todo de vermelho, e usam como adorno de
cabeça o adzahu, penas fixadas num talo de folha seca de buriti que é amarrado junto ao
cabelo acima da nuca, formando um tipo de rabo de cavalo. Após a pintura e adorno
corporal dirigem-se à aldeia e executam um canto passando na frente das casas. Em
seguida dirigem-se ao warã, centro da aldeia, onde são retirados seus ornamentos
corporais por dois tsawörö’wa antigos, sendo um de cada clã.
Na tarde do outro dia os tsawörö’wa voltam a se pintarem, agora em suas casas,
acompanhados de dois moradores da casa dos solteiros, wapté, de clã opostos chamados
de tsawörö’wa dzadzu. Desta vez adotam a modalidade dauhö: braços, coxas e tronco
de preto com um retângulo vermelho no abdômen e nas costas, sobre a coluna, da nuca
até a cintura; com aplicação de penugem de gavião real nas franjas. Os que estão sendo
iniciados dirigem-se ao warã, centro da aldeia, e ali permanecem sentados portando
uma cabaça com furos. Quando todos os atuais tsawörö’wa concluíram a pintura e
41
Giaccaria & Heide (1984:301) traduzem o termo como cerimônia de volta da caçada coletiva
– nome de um grupo. Lachnitt em seu dicionário Xavante – Português traduz o termo como explorador.
No contexto da entrevista que fizemos com os informantes os termos batedores e espiões traduzem
melhor as atribuições daqueles que estão vivenciando este ciclo de vida.
79

aplicação dos adornos corporais, eles se dirigem ao warã, onde individualmente


executam um canto e dança acompanhada do som do dzö. Uma vez concluída a dança
os que estão sendo iniciados, os tsawörö’wa ĩté, tsawörö’wa novos, retiram as penugens
de gavião dos atuais tsawörö’wa enquanto estes lhes tomam as cabaças dzö.
O ritual do terceiro dia desta iniciação acontece pela manhã, onde aqueles que
estão sendo iniciados, tsawörö’wa ĩté, dirigem ao local se prepara o wai’a para se
pintarem com a modalidade tsinhotsé42: braços, troncos e cochas pintados de vermelho
com um risco em preto sob o umbigo e o desenho também em preto de uma trave sobre
o tórax. Neste ínterim, os dois wapté, moradores da casa dos solteiros, saem para cortar
um tronco de buriti menor do que é comumente usado nos rituais do uiwede, corrida de
buriti. Quando os tsawörö’wa ĩté terminam a pintura executam um canto e saem ao
encontro dos dois wapté tomando-lhes o tronco e buriti e o leva até o warã, centro da
aldeia. Concluem executando o uiwedenhore, canto depois da corrida de buriti,
percorrendo a aldeia e encerram a performance ritual deste dia.
O encerramento desta iniciação, no quarto dia, é marcado por uma caçada que
dela tomam parte somente os tsawörö’wa ĩté, ao término desta encerra-se também o
processo de iniciação.
Sobre as atribuições dos tsawörö’wa, exploradores ou batedores, já delineamos
algumas considerações no final do capítulo anterior, quando tratamos do ciclo de vida, e
não julgamos necessário retomá-las aqui. Segundo nosso informante, na Terra Indígena
são Marcos a última iniciação dos tsawörö’wa aconteceu antes da iniciação da classe de
idade ẽtepa
˜ , sendo que a próxima está prevista para 2008, marcando assim o intervalo
de duas iniciações, haja vista que depois da classe de idade ẽtepa
˜ aconteceu a iniciação
de outra classe de idade, os abare’u, em 2005.

2.4 – DARINI (WAI’ARINI)

A realização deste ritual acontece em intervalos de quinze a dezessete anos ou


mais, dependendo das circunstâncias políticas que envolvem a região, ou vizinhança. A
definição de vizinhança que Turner apresenta para os Ndembu como sendo um
agrupamento de aldeias de extensão territorial variável, fluido e instável em termos de
42
Müller (1976:52) grafa este tipo de pintura como siñosé’e: traços pretos sobre o tórax à altura
dos ombros (...). Segundo esta autora esta modalidade de pintura é usada em combinação com outra, ao
que tudo indica com duapté. Giaccaria & Heide (1984:290d), na ilustração 17 chama de Pintura
TIÑÕTSÈ dos TSAWÖRÖ’WA.
80

sua composição social (Turner 2005:208; Turner 1974:24), pode ser estendido à
configuração das aldeias na Terra Indígena São Marcos.
Este ritual de iniciação, no qual somente os homens são iniciados, permitirá a
estes a participação nas várias modalidades de celebrações religiosas que acontecem de
acordo com a sazonalidade do ambiente de cerrado. Dissemos que somente os homens
são os iniciados, contudo, durante as performances rituais há a participação das
mulheres em alguns espaços, enquanto outros são interditados.
Nos últimos cinco anos várias aldeias Xavante, distribuídas pelas em suas Terras
indígenas, realizaram o darini. O que foi realizado na Aldeia São Marcos, em 2002,
merece um destaque especial devido ao uso político que as facções daquela aldeia, que
disputavam ali o reconhecimento do posto de cacique, fizeram dele antes de sua
realização. Dedicamos um capítulo de nossa dissertação de mestrado à questão onde
mostramos como a situação conflitiva envolvendo as duas facções resultou na cisão da
aldeia São Marcos levando a fundação de várias aldeias e um realinhamento político na
Terra Indígena São Marcos43. O darini enquanto ritual não traz em si mecanismos que
podem gerar divisões entre aldeias, mas a conjuntura política no qual ele esteve inserido
levou ao acirramento de tensões resultando em cismas.
Não faremos aqui uma descrição pormenorizada da iniciação religiosa do darini.
Entretanto, faremos algumas considerações a respeito deste processo ritual. Assim como
o danhono, o darini é um ritual cíclico na sociedade Xavante. Enquanto o danhono
provoca a admissão da pessoa Xavante (homem e mulher) nos sistema de classe de
idade, favorecendo a partir daí uma série de alterações no ciclo de vida desta pessoa, o
darini, embora esteja diretamente ligado somente ao universo masculino, além de
permitir que os homens possam participar das cerimônias religiosas que acontecem em
várias modalidades durante o ano, condiciona igualmente qual a posição estrutural dos
atores sociais será ocupada durante o wai’a. A realização desta cerimônia religiosa, seja
qual for sua modalidade, se dá dentro de uma estrutura rígida e hierárquica. Neste
sentido, o darini é o momento em que a hierarquia é alterada, promovendo os já

43
Retomaremos estes dados no Capítulo IV para mostrar que o realinhamento de forças políticas
resultou em uma redistribuição populacional da Terra Indígena São Marcos. Tal redistribuição teve
reflexo considerável nos preparativos e execução do danhono de 2005. Os realinhamentos políticos que
aconteceram no período que antecedeu a realização do darini mantiveram-se depois. Nos anos seguintes
os conflitos faccionais foram aos poucos se enfraquecendo de modo que durante o danhono 2005, apesar
das diferenças políticas ainda existe entre as aldeias houve uma reaproximação entre elas decorrente do
fluxo de pessoas que transitavam entre as aldeias que realizava este ritual de iniciação.
81

iniciados, e permitindo que novos atores sociais entrem na sociedade de culto. O quadro
abaixo mostra como o wai’a está estruturado:

GRUPOS DE PESSOAS QUE ATUAM NO DARINI E NO WAI’A


STATUS CERIMONIAL PAPÉIS RITUAIS
Ĩtsa’rata’wa – alguns homens do clã po’redza’õno que decidem quando será realizada
a iniciação do darini; também donos do segredo.
Wedehöri'wa = tocadores do dzö (chocalho)
Wai’arã (iniciados no último
darini) U'mreretede'wa = seguram a ub’ra (um tipo de
borduna)
Da'ãmawai'a'wa ĩté -
da'ãmawai'a'wa novos; Ai'uté'rẽne = fora iniciados quando crianças;
guardiões [policiais como Ĩpredub’rini = foram iniciados quando adultos;
dizem os Xavante]; - Instrutores; eram wai’arã no penúltimo darini;

Da'ãmawai'a'wa'rada antigos
Eram da'ãmawai'a'wa no antepenúltimo darini;
da'ãmawai'a'wa;
Dzö'ratsi'wa ĩté dzö'ratsi'wa novo;
também são chamados de Tocadores do dzö
da'ãmadzö'ratsi'wa
Dzö'ratsi'wa'rada antigo
Eram dzö'ratsi'wa no antepenúltimo darini;
dzö'ratsi'wa
Haviam sido iniciados no darini há pelo menos
três iniciações anteriores;
Homens que já passaram por todas as fases do
WAI'A'RADA darini; o prefixo ‘rada para este grupo
indica também que atuam no sentido de
demonstrar ao novos os procedimentos dos
rituais em geral.
Para todos os grupos e subgrupos estão previstas modalidades de pinturas e ornamentos
particulares.

Quadro - 7- Hierarquia e distribuição dos participantes nas celebrações


do wai’a

A divisão dos rituais de iniciação em secular e religioso, que fizemos acima, é a


princípio arbitrária, visto que os Xavante não os vêem desta maneira. Aliás, nos parece
que os diversos rituais de iniciação no pensamento Xavante poderiam ser categorizados
em públicos e privados, havendo momentos de inversão onde o privado torna-se público
e o público torna-se privado. Ao procedermos desta forma, colocando os rituais de
iniciação nas esferas secular e religioso e público e privado, nossa intenção é oferecer
um quadro geral destes rituais para depois mostrar, mais a frente, que na prática eles se
imbricam e se interpõem nos processos rituais.
82

Vamos retomar novamente o ritual de iniciação danhono, onde procuraremos dar


uma definição mais precisa bem com como a descrição de alguns rituais e atores que
nele toma parte. Com base nestas informações preliminares, faremos no capítulo
seguinte sua descrição em minúcias.

2.5 - O DANHONO

Autores já considerados clássicos, como Giaccaria & Heide e Maybury-Lewis,


descreveram o danhono seguindo procedimentos distintos na apresentação dos dados.
Giaccaria & Heide, no capítulo Etapas da Vida e Ritos de Transição, definem danhono
como (...) a cerimônia da perfuração das orelhas, que transformam os wapté em
‘ritéi’wa (1984:134ss), em seguida procedem a descrição dos preparativos e realização
dos ritos que compõem o mesmo. Maybury-Lewis, por sua vez, dedica um capítulo
denominado O Sistema de Classes de Idade onde trata deste sistema e no qual descreve
o danhono, embora não se utilize desta categoria nativa para nomear o que descreve.
Naquele capítulo as atenções do autor estão voltadas para a importância que o sistema
de classes de idade assume na sociedade Xavante. Para Maybury-Lewis (1984:153ss) os
Xavante consideram sua sociedade como estando como permanentemente (...) dividida
em classes de idade organizadas hierarquicamente, desde as que congregam pessoas de
mais idade até as que reúnem os mais moços. Ainda segundo o autor, o pertencimento a
uma classe de idade, se dá pela convivência por um período de tempo na casa dos
solteiros e através da iniciação e casamento em cerimônia coletiva.
Desta forma, a casa dos solteiros é vista por Maybury-Lewis como a (...) pedra
fundamental do sistema de classes de idade. É lá que um menino Xavante sente pela
primeira vez o que significa pertencer a uma classe de idade (Maybury-Lewis,
1984:153).
Quando apresentamos o ciclo de vida Xavante apontamos que a fase ai’repudu é
tida como referência pelo ĩhire para instauração de uma nova casa dos solteiros. Isto se
torna mais evidente ao término do danhono, quando os futuros membros da próxima
classe de idade são formalmente apresentados à comunidade. Desta forma, não seria
redundante afirmar que o danhono começa pelo final. Enquanto estão vivendo a fase do
ciclo de vida ai’repudu estes meninos gozam de certa autonomia no ir e vir em seu
cotidiano na aldeia. Entretanto, boa parte de seu tempo “livre” está relacionada
83

informalmente com a casa dos solteiros, a hö. Pelo menos em três momentos do dia um
ai’repudu pode estar na casa dos solteiros. Como veremos adiante, a casa dos solteiros
separa os ai’repudu da aldeia e os confinam na hö. Embora não seja uma regra
ortodoxa, seus moradores não estão formalmente autorizados a freqüentarem
diariamente seus grupos domésticos. Assim, os três momentos que ligam os ai’repudu à
casa dos solteiros, ainda que informalmente, está diretamente relacionado aos horários
de alimentação. Considerando que os moradores da casa dos solteiros não estão
autorizados a freqüentarem seus grupos domésticos, salvo algumas exceções, como
veremos adiante, os ai’repudu são incumbidos de levar alimentos para seus parentes que
ali vivem. Esta tarefa é igualmente confiada às ba´õno, meninas pequenas. Entretanto,
estas não entram na casa dos solteiros. Pelo que pudemos observar, elas se aproximam
da casa dos solteiros e permanecem em seus arredores até que o destinatário do alimento
seja avisado e vá ao seu encontro para retirar a “marmita”. Afora, estes momentos de
“trabalho” os ai’repudu estão sempre bem próximos dos moradores da casa dos
solteiros participando de tudo que seus moradores tomam parte. Os banhos de rio,
expedições nos arredores da aldeia, partidas de futebol, dentre outros, são momentos
que permitem grande interação entre moradores casa dos solteiros e ai’repudu.
Os Xavante têm presenciado grandes transformações na forma segundo a qual
vivenciam sua vida cultural. Neste sentido, as descrições que Giaccaria & Heide e de
Maybury-Lewis, centradas num tipo ideal de sociedade e abstraindo-se a situação de
contato, no caso dos primeiros autores, e de suas apropriações pelos Xavante, serão aqui
relativizadas em alguns pontos e contestadas em outros. Isto de modo algum invalida
seus trabalhos, a quem a antropologia brasileira tem seus débitos, com as devidas
distâncias às suas singularidades. Ao apresentarmos outras possibilidades de descrição
sobre os rituais e organização social Xavante queremos oferecer igualmente outras
possibilidades de análise para um mesmo fenômeno social.
Como Maybury-Lewis, vemos a casa dos solteiros como a pedra fundamental do
sistema de classe de idade entre os Xavante e sua centralidade na organização social.
Contudo, discordamos quando este autor afirma que um menino passa a fazer parte de
uma classe de idade somente depois de ser introduzido oficialmente na casa dos
solteiros. Observamos, em duas ocasiões, que ao término do danhono os membros,
ainda que num devir, da próxima classe de idade a ser inserida na casa dos solteiros
foram formalmente apresentados à comunidade. Desta apresentação participaram, além
84

dos futuros moradores da casa dos solteiros, moços e moças que estavam concluindo a
iniciação do danhono, bem como aqueles que sobreviveram ao tempo e estavam
presenciando a renovação da categoria de sua classe de idade na ocupação da casa dos
solteiros. Já mencionamos acima que a convivência entre os ai’repudu e os moradores
da casa dos solteiros é intensa. Isto cria uma expectativa muito grande entre os
ai’repudu para fazer parte da casa dos solteiros. Desta forma a apresentação formal dos
futuros membros da casa dos solteiros não só atende estas expectativas, mas também
informa a sociedade sobre a nova condição social do futuro morador da casa dos
solteiros. Aqui podemos relativizar a afirmação de Maybury-Lewis de que os ai’repudu,
a quem o autor chama de crianças, não seriam
(...) considerados realmente como membros da sociedade Xavante:
eles ainda não tem uma posição definida em uma sociedade cujas
atividades sociais e cerimoniais são desempenhadas, em grande
parte, pelas classes de idade (Maybury-Lewis, 1984:153).

A apresentação dos futuros moradores da casa dos solteiros não só os reconhece


como membros da sociedade, como também os insere na dinâmica ritual das classes de
idade. Portanto, mesmo não fazendo parte formalmente de uma classe de idade um
ai’repudu pode ser considerado como a ela pertencente.
Ademais, como apresentado no capítulo anterior, quando tratamos do ciclo de
vida entre os Xavante, os ai’repudu, assim como os ‘watébrémi, são sub-divididos em
wautobtu e waiarã, respectivamente: os que ainda não conhecem os segredos do wai’a
(ritual religioso) e aqueles que o conhecem. Para ter acesso aos conhecimentos do wai’a
é preciso já ter sido iniciado através do darini, ritual de iniciação religiosa.
Considerando que este ritual de iniciação acontece em longos intervalos de tempo,
conforme apresentamos acima, quando ele acontece pode haver, ou não, wapté, ou seja,
ai’repudu vivendo na casa dos solteiros. Quando há moradores da casa dos solteiros
participando pela primeira vez do darini estes possuem o mesmo grau na hierarquia
religiosa juntamente com os ai’repudu e ‘watébrémi. Não há necessidade de ser
morador da casa dos solteiros para participar da iniciação do darini. Com isso queremos
mostrar que não é somente a iniciação através do sistema de classes de idade que insere
o menino na sociedade Xavante. Se considerarmos o ritual de iniciação religiosa como
um meio para este processo um ai’repudu ou ‘watébrémi poderá já ter sido inserido na
sociedade Xavante sem necessariamente ter passado, ainda, pelo danhono. Guardando
85

as especificidades de cada ritual de iniciação, ambos conferem uma posição social na


sociedade Xavante aos ai’repudu e ‘watébrémi.
Com base no que foi exposto até aqui podemos definir o danhono como um
conjunto de rituais voltados à constituição da casa dos solteiros, a hö, bem como para
iniciação de seus moradores. Com isso estaremos considerando o ritual como processo e
não somente a partir de uma determinada parte dele como aparece na definição de
danhono proposta por Giaccaria & Heide, acima citada, ou seja, da furação dos lóbulos
auriculares. Desta forma ampliamos as transformações ocorridas durante o ciclo de vida
Xavante. Enquanto na definição de danhono dos autores supracitados a transformação
que ocorre se dá de wapté para ‘ritéi’wa, quando ampliamos o plano de consideração
observamos que existem transformações que antecedem àquelas. Ou seja, colocando o
danhono como um ritual em processo temos as seguintes transformações no ciclo de
vida masculino: ai’repudu  wapté  ´waté´wa  ´re´rerói´wa  ‘ritéi’wa
ĩté  ‘ritéi’wa  dahi’wa  danhohui’wa  ĩprédu. No caso das mulheres as
transformações que acontecem são: adzarudu  adaba  danhohui’wa tsipi’õ  ĩprédu.
Como se pode perceber esta forma de abordagem nos possibilita ver uma interconexão
mais profunda entre o ciclo de vida e o ciclo ritual. Esta interconexão acontece,
inicialmente, através da passagem de ai’repudu  wapté, onde o movimento é do ciclo
de vida para o ciclo ritual, e depois de danhohui’wa  ĩprédu, aqui o movimento é do
ciclo ritual para o ciclo de vida. Não obstante ao atingir esta categoria isso não significa
que o homem deixa de se interessar por sua classe de idade, conforme afirma Maybury-
Lewis (1984:366):
(...) tão logo um homem se torna suficientemente maduro para
participar das atividades faccionárias e políticas, porém, ele cessa de
participar das atividades da classe de idade. Para assumir com mais
seriedade suas obrigações para com sua facção e relega a segundo
plano seus deveres para com os companheiros de idade.

Apontamos que o danhono deve ser entendido como processo que se inicia
como veremos a seguir com a admissão dos novos moradores na casa dos solteiros.
Enquanto rito de passagem ele insere os ai’repudu, doravante wapté numa situação
liminar. Considerando a classificação dos ritos de passagem definida por VAN
GENNEP (1978:31): separação, margem e agregação, a categoria nativa DANHONO
traduz perfeitamente esta dinâmica. Danhono pode ser traduzido como dormir. Neste
sentido, os ai’repudu ao serem admitidos na casa dos solteiros simbolicamente passam a
dormir durante a pré-adolescência, para adotar uma de nossas categorias de
86

classificação de ciclo biológico, para acordar mais tarde como adultos, ou melhor:
guerreiros, e para procriar, pois até então são induzidos a se manterem castos enquanto
durar o processo ritual. Este despertar acontecerá por ocasião da retirada das capas do
wamnhorõ, conforme descreveremos no próximo capítulo no item 3.18.
Tendo apresentado nossa concepção de danhono para a sociedade Xavante
passamos agora a mostrar como o processo ritual acontece. Contudo, antes é preciso
tecer mais algumas considerações a respeito dos ‘watébrémi e dos ai’repudu. A
diferença de estatura entre os meninos que se encontram nesta fase do ciclo de vida é
pouco expressiva. Ambos vivem seu cotidiano entre algumas tarefas domésticas e
perambulações pelos arredores da aldeia. Quando há uma casa dos solteiros já
instaurada os ‘watébrémi e os ai’repudu, estes últimos, sobretudo, costumam estar
juntos dos moradores daquela casa acompanhando-os em algumas atividades, como já
dissemos. O que diferenciava o morador da casa dos solteiros era o uso do estojo
peniano, darõ feito com norõwededzahö – folha da palmeira babaçu. Após o contato
com a imposição do uso de roupas ocidentais os Xavante abandonaram o uso de estojos
penianos tanto para os moradores da casa dos solteiros quanto para os adultos.
Entretanto, a postura e comportamento dos moradores da casa dos solteiros em relação
aos ‘watébrémi e ai’repudu aparece ainda como um indicador de diferenças entre as
duas fases do ciclo de vida e ritual. Trataremos destas posturas quando descrevermos a
vida dos moradores da casa dos solteiros.

2.5.1 - ATORES E ESPAÇOS RITUAIS E ALGUMAS CERIMÔNIAS

2.5.1.1 - OS DANHOHUI’WA

Nas páginas precedentes desta tese mencionamos algumas das atribuições e


responsabilidades dos danhohui’wa, padrinhos44. Aqui procuraremos aprofundá-las um
poucos mais. Considerando o ciclo das classes de idade e sua divisão em metades
podemos dizer que os danhohui’wa são membros da última classe de idade, dentro da
metade a qual pertencem, que passaram pela convivência na hö e foram iniciados
através do danhono. De outro modo, considerando o conjunto das classes de idade, ou

44
A tradução de danhohui´wa por “padrinhos” e de wapté por “afilhados” foram feitas,
inicialmente, pelos missionários salesianos, em particular por Giaccaria & Heide. Manteremos esta
tradução uma vez que os Xavante se apropriaram dela e as usam constantemente.
87

seja, as duas metades, não seria incorreto afirmar que os danhohui’wa são membros da
penúltima classe de idade iniciada. Nas duas situações tanto os homens quanto as
mulheres que pertencerem àquela classe de idade serão considerados danhohui’wa,
mesmo que não venham atuar enquanto tal, situação que seria muito difícil, mas não
impossível de acontecer. Contudo, strictu sensu, serão efetivamente danhohui’wa
aqueles que foram escolhidos, previamente, pelos pais dos futuros wapté para serem
padrinhos de seus filhos. Não temos informações etnográficas sobre as negociações que
venham a concretizar esta escolha, muito menos os critérios levados em consideração
para tal. Não obstante, estas negociações são travadas no âmbito doméstico e tornam-se
públicas através de um ritual próprio para esta ocasião.
Diante dos ventos de mudança que assolam a sociedade Xavante este ritual foi
bastante simplificado. Os autores clássicos que descreveram os vários rituais Xavante,
Lopes da Silva, Maybury-Lewis e Müller, reportam-se em sua maioria à descrição de
Giaccaria & Heide (1984:193s). Aqui seguiremos o mesmo caminho e depois
lançaremos nossas observações sobre o ritual, momento que tivemos ocasião de
participar quando fomos efetivados como danhohui’wa na iniciação do grupo ẽtepa
˜ , em
1997.
Segundo o relato de Giaccaria &e Heide (1984:193s) o ritual acontecia quando o
grupo retornava das grandes caçadas, ao final da estação seca e início da chuvosa em
fins de outubro e início de novembro. Nesta ocasião os a’irepudu, meninos, que serão
admitidos na casa dos solteiros constroem um cercado de galhos verdes no warã, centro
da aldeia, chamado utsu45. Os ‘ritéi’wa ĩté, ou seja, os novos guerreiros, iniciados no
último danhono, encarregam-se de confeccionar um ornamento chamado popara. Este
ornamento, em formato de um pequeno cinto, confeccionado com penas coloridas e
unhas de veado, é amarrado na panturrilha e funciona como um chocalho nos momentos
de dança. Depois de pronto, o popara será entregue, ritualmente, aos ‘ritéi’wa’rada,
penúltimos iniciados, que até então desempenharam o papel de dahi’wa, àqueles que
fiscalizam a conduta dos moradores da casa dos solteiros.
O ritual de escolha, ou de instauração da condição de danhohui’wa, acontece
depois do entardecer. Nesta ocasião os ‘ritéi’wa’rada, penúltima classe de idade
iniciada, dirigem-se até o centro da aldeia e se posicionam em semi-circulo na frente da
utsu. Ali dentro encontram-se os ai’repudu e ‘watébrémi que serão membros da

45
Esta categoria pode significar ainda chuva que nunca termina.
88

próxima classe de idade. Um a um eles saem e tomam pelo braço o ‘ritéi’wa’rada que
fora escolhido, previamente por seu pai, para ser seu danhohui’wa e o leva para dentro
da utsu. Paralelamente a isso um dos ‘ritéi’wa ĩté pintado com a modalidade dauhö e
aguarda até que todos os ‘ritéi’wa’rada tenham sido conduzidos a utsu. Terminada a
condução dos ‘ritéi’wa’rada para dentro da utsu estes se tornam oficialmente
danhohui’wa. O primeiro ato nesta nova condição é dar a ordem para que os ai’repudu e
‘watébrémi acendam o fogo. Após a conclusão desta tarefa, entra na utsu o ‘ritéi’wa ĩté
que fora pintado de dauhö e traz consigo o popara. Este ‘ritéi’wa ĩté profere um
discurso dirigido aos ai’repudu e ‘watébrémi, cujo conteúdo é apontado por Giaccaria
& Heide (1984:193), como úteis conselhos. Terminado os conselhos o ‘ritéi’wa ĩté
deixa o popara no chão e retira-se da utsu indo encontrar os demais ‘ritéi’wa ĩté nas
proximidades do warã, centro da aldeia. A partir deste momento todos os ‘ritéi’wa ĩté
assumem uma nova condição social: tornam-se oficialmente dahi’wa. Como já
apontamos acima, um dos papéis desempenhados pelos dahi’wa durante o processo
ritual do danhono é fiscalizar o comportamento sexual dos wapté, morador da casa dos
solteiros. Neste sentido, podemos deduzir que o conteúdo dos úteis conselhos refere-se a
esta questão.
O popara que fora depositada no chão pelo ‘ritéi’wa ĩté é tomado por um
da’ãmawai’a’wa, “polícia” - iniciador ao wai’a, e entrega-o a um dos novos
danhohui’wa, amarrando-o na perna na altura da panturrilha. Em tom de ameaça o
da’ãmawai’a’wa faz datsiparabu46, gesto ritual que expressa desagrado onde em passos
rítmicos o oficiante ameaça pisar no pé do subalterno, para o danhohui’wa que recebeu
o popara. Este gesto é uma ordem ao novo danhohui’wa para que este execute um
canto. Depois de entoado o canto pode ou não ser reprovado pelo da’ãmawai’a’wa. Em
caso de desaprovação o da’ãmawai’a’wa segura a perna do danhohui’wa e a bate no
chão várias vezes. Do contrário, gostando do canto, o da’ãmawai’a’wa puxa as orelhas
e bochechas do danhohui’wa. Este tipo de atitude da parte do da’ãmawai’a’wa pode ser
repetido em outros momentos no processo ritual do danhono. Presenciamos vários
momentos em que isto aconteceu. Num deles além de puxar as bochechas de quem
entoava o canto, o da’ãmawai’a’wa arrancou o dapo’rewa’u, batoque auricular,
jogando-o no e cortando-o a golpes de facão. Toda esta performance aconteceu dentro
46
Maybury-Lewis (1984:173) considera o datsiparabu como dança da agressão, dada a sua
performance que resulta em pisadas nos pés, puxões de orelha – bochecha ou nariz. O próprio autor relata
que teve as bochechas mordidas depois do datsiparabu, antes de ser admitido para participar de um wai’a
(Maybury-Lewis, 1984:330)
89

de um clima de jocosidade. Entretanto, os danhohui’wa que entoavam o canto


permaneciam imóveis e de cabeça baixa. O canto é ensaiado com demais danhohui’wa e
os ai’repudu para ser em seguida executado pela aldeia seguindo o itinerário próprio da
metade a qual pertence à classe de idade que está sendo iniciada. O estilo de dança nesta
ocasião é o dahipopo. Os dahi’wa, por seu turno, ensaiam outro canto e com o mesmo
estilo de dança o entoam, circundando a aldeia, em sentido oposto aos danhohui’wa e os
ai’repudu. Giaccaria & Heide finalizam (1984:194) a descrição do ritual afirmando que
a utsu será destruída assim que a hö, casa dos solteiros, estiver pronta.
Convém ressaltar que os ai’repudu e ‘watébrémi ainda não são moradores da
casa dos solteiros. Como sinalizamos acima este ritual aconteceria no final da estação
seca e início da chuvosa, outubro e novembro, enquanto que a admissão de novos
moradores acontece entre os meados e final da estação chuvosa, março a abril, quando é
possível encontrar e preparar as raízes de oi’o, planta que cresce em brejos, a serem
usadas durante a luta que recebe o mesmo nome. Esta luta é condição sine qua nom para
a admissão de novos moradores na casa dos solteiros. Portanto, o tempo que separa, em
tese, um ritual e outro seria mais ou menos quatro meses. Como veremos adiante este
intervalo tem sido abreviado.
Como se pode notar, o ritual que apresentamos envolve diretamente as duas
últimas classes de idade que passaram pelo processo ritual do danhono e a que está por
vir. Na prática o ritual permite que as duas metades do ciclo das classes de idade façam
uma reformulação dos papéis sociais que seus membros desempenham. Considerando o
ciclo de vida masculino o ritual torna possível os membros das classes de idade a
assumirem novas posições. Assim, os que são ai’repudu e ‘watébrémi logo assumiram o
status de wapté ou hö’wa, morador da casa dos solteiros; aqueles que foram iniciados,
ou seja, os ‘ritéi’wa ĩté tornam-se ‘ritéi’wa e acumulam o status de dahi’wa; os
´ritei´warada assumem o papel de danhohui’wa; estes, por seu turno, tornam-se ĩ
prédupté; os ĩprédupté assumirão a categoria ĩprédu; e, finalmente, os ĩprédu serão
“promovidos” a categoria de ĩhire.
O ato de tornar público a escolha dos danhohui’wa, padrinhos, dos futuros
wapté, morador da casa dos solteiros, pode igualmente ser visto como ponto de partida
para que sejam estabelecidos laços de amizade formalizada entre membros de classes de
idade pertencentes à mesma metade cerimonial quando se considera sua distribuição
desta forma. Estes laços se caracterizam pelo forte sentimento de cooperação e
90

solidariedade presente na relação danhohui’wa X wapté. Embora inicialmente os laços


sejam estabelecidos mediante acordo prévio entre o pai do wapté e seu danhohui’wa, ao
longo do processo ritual as relações passam a ser mais amplas. Trata-se de cooperação
entre duas classes de idade. Isto se torna evidente durante as corridas de buriti que
acontecem durante o danhono. Nestas corridas danhohui’wa e wapté agem
conjuntamente competindo com os dahi’wa que são ligados à metade cerimonial oposta.
Ao longo deste trabalho tornar-se-á evidente que a relação danhohui’wa X wapté é
muito mais coletiva do que individual.
O ritual nos revela ainda o forte imbricamento entre os rituais de iniciação social
e religiosa. A oficialização dos papéis sociais de danhohui’wa e dahi’wa, agentes que
atuam durante o processo ritual do danhono, passa pelo crivo do da’ãmawai’a’wa, ator
ritual que age durante os rituais de iniciação ao wai’a, bem como nas periódicas
celebrações que acontecem seguindo a sazonalidade do ambiente de cerrado.
Nesta fase do processo ritual a presença feminina é pouco expressiva. As
mulheres que pertencem à mesma classe de idade dos danhohui’wa, incluindo suas
esposas, não atuam no ritual que os oficializam. Entretanto, elas agem e sentem-se como
danhohui’wa e assumirão o papel de danhohui’wa tsipi’õ futuramente.

2.5.1.2 - HÖ - A CASA DOS SOLTEIROS

A disposição das casas de uma aldeia Xavante dá-se em forma de ferradura com
abertura voltada para o rio. Neste cenário a casa dos solteiros, a hö, é construída, via de
regra alternando-se, juntamente com as classes de idade, entre as duas extremidades da
aldeia. Não obstante, as aldeias Xavante têm passado por grandes transformações que
vão desde o uso de material na construção das casas ao modo de disposição das casas na
configuração da aldeia. Assim é possível encontrar casas taipa de mão, casas feitas em
alvenaria e algumas de madeira. Entretanto, a maioria das casas Xavante têm sido
erguidas seguindo o “estilo dos regionais”. Estas casas são quadradas cobertas com
folhas de buriti e possuem as paredes erguidas com este mesmo tipo de material.
Entretanto, a ocupação e distribuição do interior das casas Xavante seguem ainda um
estilo próprio. A hö é construída neste estilo, o regional, e não apresenta subdivisões. Na
aldeia São Marcos, sob influência da Missão Salesiana, a hö estava edificada com
parede de alvenaria e localizava-se próximo da missão. Sempre que havia a ascensão de
91

uma nova classe de idade seus membros ocupavam aquela casa que tinha apenas a
cobertura de palha trocada. Em 1999 após um incêndio não esclarecido, que destruiu a
cobertura e comprometeu a estrutura das paredes desta casa, os Xavante mudaram o
local de construção da casa dos solteiros, passando a construí-la mais próximo da aldeia.
Hoje aquela aldeia apresenta o formato circular e tem alternado a construção da hö em
lados opostos do círculo.
A aldeia N. S. de Guadalupe, criada em 2002, também apresenta um formato
circular, próximo do oval, teve a hö erguida fora do círculo onde estão as demais casas
da aldeia. De modo geral, apresentando uma estrutura de aldeia em forma em ferradura,
em círculo, em quadrilátero ou em forma de vilas com uma rua central, a casa dos
solteiros, a hö, é construída sempre a margem da aldeia.
Não há um tempo pré determinado para a composição de uma nova casa dos
solteiros após a iniciação da última. Ao que tudo indica isto acontece tendo-se como
referência o número de ai’repudu disponíveis para isso. Entretanto, isto tem ocorrido
um ano depois da última iniciação.
Acima dissemos que a fase do ciclo de vida que compreende os ai’repudu
constitui uma referência para os ĩhire para o início de uma nova casa dos solteiros.
Dissemos ainda que os ai’repudu, meninos, têm idade que variam de oito a doze anos.
Entretanto, na prática isto não acontece. Nas oportunidades que tivemos de observar a
entrada de novos membros na casa dos solteiros, bem como ao final do processo de
iniciação, observamos que muitos dos meninos poderiam ainda ser enquadrados na
categoria watébrémi do ciclo de vida. Para Giaccaria & Heide (1984:150) o menino
tornar-se-ia morador da casa dos solteiros a partir do treze anos. Maybury-Lewis
(1984:155), por sua vez, indica que a condução formal dos meninos à casa dos solteiros
acontece quando o menino tem entre sete e doze anos e se justifica a variação de idades
em relação a última classe de idade. De fato os que nasceram durante a realização de um
danhono poderão fazer parte da próxima classe de idade a ocupar a casa dos solteiros.
Contudo, aqueles que nasceram próximo ao ano em que está por ser concluída uma
iniciação em andamento poderão não fazer parte da próxima classe de idade devendo,
portanto, esperar a subseqüente, pois estariam com idade entre cinco a seis anos.
Segundo Maybury-Lewis (1984:155) na prática, todo menino que aparenta ser bastante
grande para estar com os membros da nova classe de idade e que se comporta de
acordo pode ser incorporado a ela. Durante o trabalho de campo observamos que havia
92

meninos com idade aproximada de sete a nove anos que tiveram os lóbulos das orelhas
perfurados em cerimônia coletiva do danhono.
Giaccaria & Heide (1984:150) apontam que a decisão sobre quem deveria fazer
parte da nova classe de idade a ocupar a hö na próxima iniciação caberia aos ĩhire,
anciãos, que adotariam como critério de escolha o tamanho dos meninos, dando
preferência aos “maiores”. Ainda segundo a descrição dos autores, este momento
acontecia quando terminava a iniciação da classe de idade que estava em processo.
Após a escolha daqueles que fariam parte da nova classe dava-se procedimento a três
rituais que os habilitariam e os reconheceriam como moradores da casa dos solteiros.
Trataremos destes rituais adiante. Parece-nos que de acordo com esta descrição o
processo de iniciação das classes de idade dava-se em ato contínuo, ou seja, terminada a
que estava em curso imediatamente se começava a outra. Contudo, pelo que tivemos
oportunidade de observar em vários momentos o processo de iniciação do danhono tem
seguido outra dinâmica. Ao término de um processo de iniciação onde se apresentam
àqueles que farão parte da próxima classe de idade a ser iniciada, há o intervalo de pelo
menos um ano até que se inicie a próxima. A aldeia Nossa Senhora de Guadalupe
concluiu o danhono da classe de idade abare’u em 2005, somente em março de 2008 ela
realizou o primeiro ritual que dá início aos preparativos para criação de uma nova casa
dos solteiros. Descrevemos este ritual a seguir.

2.5.1.3 - O RITUAL DO OI’O

O ritual do oi’o é definido por Giaccaria & Heide (1984:147) como um jogo no
qual se defrontam dois times de meninos, todos pintados de vermelho e preto, conforme
o gosto de cada um. Estes “times” ao qual se referem os autores são definidos através da
divisão e agrupamentos dos clãs. No início deste trabalho apresentamos que a sociedade
Xavante é composta por três clãs: öwawẽ, tob’ratato e po’redaza’õno. Em diversos
rituais estes clãs se agrupam em metades e executam cerimônias próprias. Neste sentido,
durante o ritual do oi’o os “times” são na verdade metades compostas, de um lado, pelo
clã po’redaza’õno e, de outro, pela aliança entre os clãs öwawẽ e tob’ratato. Dizendo de
outro modo o ritual envolve waniwi’hã, watsi´re – os do meu lado, contra oniwi´hã,
tsire´wa – os do outro lado. Estas categorias antagônicas dizem respeito à posição de
ego, ou seja, se ele é membro do clã öwawẽ ou tob’ratato será considerado waniwi´hã,
93

watsi´re em relação aos po’redaza’õno que serão seus oniwi´hã, tsire´wa. Do contrario,
sendo ego po’redaza’õno ele será waniwi´hã, watsi´re para seus companheiros enquanto
que os öwawẽ ou tob’ratato serão considerados por ele como oniwi´hã, tsire´wa.
A participação no ritual do oi’o não é privilégios apenas dos meninos. Pode
acontecer que, em alguns casos, o número de meninos disponíveis em uma das metades
seja demasiadamente inferior a outra. Neste caso as meninas pertencentes ao clã da
metade em desfalque podem participar do ritual. Esta informação no foi repassada por
um missionário da Missão Salesiana que na época atuava na aldeia de São Marcos. Em
nossa experiência etnográfica nunca observamos meninas participando do ritual oi’o.
Conversando com um de nossos informantes soubemos que este foi um caso isolado que
teria acontecido na aldeia São Marcos.
O ritual oi’o constitui ainda uma das raras ocasiões onde os Xavante apresentam
sinais diacríticos que permitem identificar a filiação clânica de cada membro da
sociedade, pelo menos aqueles que estão envolvidos diretamente no ritual. Estes sinais
são expressos através de pintura nas têmporas e face daqueles que vão se digladiar
durante o oi’o, conforme descrevemos no capítulo anterior.
Maybury-Lewis (1984:156ss) aponta que participam na cerimônia do oi’o os
moradores da casa dos solteiros. Entretanto, observamos em várias ocasiões, e ainda
com respaldado em Giaccaria & Heide (1984:147), que na realidade quem toma parte da
cerimônia do oi’o são os ‘watébrémi e os ai’repudu. Portanto, membros do ciclo de vida
que ainda não são moradores da hö. O oi’o é o ritual que antecede a entrada e
formalização da admissão dos moradores na hö, casa dos solteiros. É também uma
cerimônia que condiciona a realização de outra, aquela que de fato introduz o novo
morador na hö.
O termo oi’o refere-se à raiz de uma planta com folhas semelhantes à de
bananeira que cresce em algumas áreas de brejos no cerrado. No dia anterior as raízes
oi’o são coletadas e preparadas pelos pais daqueles que estarão participando do ritual.
Como na maioria dos rituais Xavante, a preparação para a realização da
cerimônia começa bem cedo, para ser mais específico, de madrugada. Aqueles que
participarão da cerimônia, ou seja, os ‘watébrémi e os ai’repudu, dirigem-se a casa do
avô onde juntamente com outros meninos tem os cabelos cortados, untados com óleo de
coco de babaçu e depois amarrados em forma de “rabo de cavalo”. Depois de serem
pintados em preto e vermelho, seguindo um estilo de pintura escolhido pelo pai ou avô,
94

são amarradas nos punhos e tornozelos, daqueles que participarão da cerimônia,


cordinhas feitas de embiras, wedenhorõ. Algumas delas com propriedades mágicas que
visa garantir resistência à dor.
Enquanto os meninos estão se preparando para a cerimônia, os avôs, ou parentes
na categoria do ciclo de vida que compreende os ĩhire, costumam fazer exortações
procurando encorajá-los e a lutarem com bravura.
O palco da execução da cerimônia, bem como da maioria dos rituais Xavante, é
o centro da aldeia, o warã. Ao mesmo tempo em que os meninos estão se preparando no
interior dos grupos domésticos, os ĩprédu preparam no centro da aldeia a arena onde se
realiza a cerimônia. Ali o terreno é remexido de modo que a terra fique bem fofa. Este
trabalho, antes feito com enxada e enxadões, agora é feito com um trator e grade
agrícola.
O ritual consiste numa luta entre as metades. De acordo com Giaccaria
(1990:61):
Cada menino é obrigado a bater em um outro da metade oposta (e
naturalmente a ser batido pelo outro) com a finalidade de dirimir as tensões
que surgem entre as metades. Dizem que os meninos, competindo
deste modo, aprendem a lutar sem guardar raiva e assim, quando crescerem,
não brigarão com os da metade oposta. Essa pedagogia é seguida pelos
xavante em outras manifestações com os meninos e rapazes até eles
alcançarem a maturidade adulta.

Durante a luta os combatentes seguram a raiz oi’o, que se parece com uma clava,
com a mão direita tendo como apoio nesta mão a esquerda que segura o punho da mão
direita. No combate os oponentes se posicionam frente a frente com os joelhos
flexionados e procuram golpear o antebraço esquerdo do outro. Quem rebaixar a guarda
por primeiro reconhece que “perdeu” a luta e imediatamente o outro para de deferir
golpes, ambos retornam para seus lugares. Qualquer membro de uma metade pode
desafiar membros da outra. Contudo, esta escolha é assessorada pelos pais que
procuram assegurar igualdade de tamanho e força entre os combatentes. Participam
inicialmente da cerimônia os ‘watébrémi, meninos que mal começaram a andar são
levados à arena. Muitos deles não sabem o que fazer com a raiz de oi’o que lhe foi
entregue. Neste caso, os pais que os acompanham os incitam a golpear seu oponente e
mostram-lhe como fazer. Às vezes basta um leve golpe e ambos saem chorando para
seus lugares.
Além de ser uma cerimônia preparatória, ou seja, que condiciona a realização de
outra, para o ingresso dos moradores na casa dos solteiros, o oi’o pode ser visto como
95

uma cerimônia lúdica. Neste sentido, sua realização mobiliza praticamente toda a
comunidade. O caráter lúdico que deste ritual parece muito mais evidente do que a
afirmação de Giaccaria segundo a qual ele visa dirimir tensões entre as metades, haja
vista os conflitos faccionais que eclodem constantemente nos dias atuais e no passado.
Nos momentos que antecedem a cerimônia praticamente toda a comunidade está a
postos nos arredores da arena buscando os melhores lugares para assistir aos combates.
Como já dito, os primeiros combates são travados entre os ‘watébrémi. A performance
dos pequenos lutadores provoca muitas gargalhadas entre os expectadores, além de
comentários sobre a coragem e destreza de cada um deles. A duração destas primeiras
lutas não ultrapassa quarenta segundos. Os pequenos não suportam mais do que três
golpes deferidos e recebidos e retornam chorando para seus lugares.
O posicionamento dos combatentes no centro da aldeia segue a mesma regra
utilizada pelas metades em outros rituais. Assim, os membros da metade formada pelo
clã tob’ratato e öwawẽ se posicionarão do lado em que o sol nasce, enquanto que a
metade que compreende o clã po’redaza’õno se posicionará do lado onde o sol se põe.
A entrada das metades na arena de luta também obedece esta regra, ou seja, em fila
indiana os combatentes ai’repudu da metade composta pelos clãs tob’ratato e öwawẽ
surgem do lado do sol nascente enquanto que a metade composta pelos po’redaza’õno,
também em fila indiana, surge do lado do sol poente. Cabe aos aiutemanhãri’wa47, o
dono das crianças, conduzir as metades que lutarão até o centro da aldeia segundo a
formalidade já descrita.
Os combates travados pelos ai’repudu são mais agressivos do que aqueles
realizados pelos ‘watébrémi. Os golpes são deferidos com mais força e intensidade
ocasionando por vezes a quebra da raiz oi’o. Neste caso, os parentes masculinos que ali
estão tratam de substituir imediatamente o oi’o quebrado por outro, sem que para isso o
combate tenha que ser interrompido. Os combates entre membros desta classe de idade
têm um tempo de duração maior e podem ultrapassar um minuto. Quando há uma
intensidade na duração do combate travado, sem que nenhum dos combatentes baixe a
guarda, os espectadores e parentes masculinos que assessoram a luta começam a pedir
que haja uma intervenção.

47
Os aiutemanhãri’wa, donos das crianças, são homens que herdam este cargo ritual de suas
linhagens. Eles atuam principalmente no ritual de nominação das mulheres aonde tem o papel de
“palhaços” imitando as crianças (LOPES DA SILVA, 1986:125 e 129); veja também Giaccaria & Heide,
1984:243 a 248.
96

Neste caso, o combate é interrompido e os ai’repudu retornam a seus lugares.


Explicaram-me que esta intervenção tem a finalidade de evitar que se criem rixas e
magoas entre os combates, conforme nos disse um dos informantes. Considerando que
após oi’o os ai’repudu serão introduzidos na casa dos solteiros, através de outro ritual,
onde terão que conviver juntos e desenvolver um esprit de corps, para usar a expressão
de Maybury-Lewis (1984:157), a transferência de rixas da arena do oi’o para a casa dos
solteiros poderia comprometer a realização daquele esprit de corps.
A duração do oi’o pode variar de uma a duas horas e depende tanto da
quantidade de raízes oi’o disponíveis quanto do número de participantes. Os lutadores,
‘watébrémi e os ai’repudu, podem lutar várias vezes. Ao termino de um combate eles
retornam a seus lugares para descansar. Quando os golpes recebidos ocasionam dores
além do suportável, ou lesões nas regiões do braço e espádua, os ‘watébrémi e os
ai’repudu podem se recusar a voltar a lutar sem correrem o risco de sofrerem
repreendas. Observamos ocasiões em que os golpes deferidos resvalaram no ombro do
oponente e acertaram sua cabeça provocando a interrupção imediata da luta. Nestes
casos, dependendo do “acidente cerimonial”, o participante raramente voltava a lutar.
A cerimônia do oi’o encerra-se quando não houver mais interesse entre lutadores
e/ou quando não há mais raízes de oi’o disponíveis, visto que estas se quebram durante
a luta. Percebendo que a cerimônia caminha para seu encerramento a comunidade aldeã
começa a deixar o centro da aldeia, o warã. Quanto aos ‘watébrémi e ai’repudu estes se
dirigem ao rio para tomarem banho. Aqueles que foram escolhidos, pelos pais e
parentes, para serem inseridos na casa dos solteiros serão submetidos aos preparativos
para outra cerimônia.
O cerimonial do oi’o se repete duas ou três vezes ao ano, sobretudo na época da
estação chuvosa. Dissemos acima que esta cerimônia condiciona a realização de outra
que visa inserir se fato os ‘watébrémi e ai’repudu na casa dos solteiros. Entretanto, isso
não significa que todos os que participaram da cerimônia oi’o serão inseridos de
imediato na casa dos solteiros. Muitos dos ‘watébrémi e ai’repudu voltarão a lutar em
outras ocasiões até que seus parentes decidam que eles serão moradores da casa dos
solteiros. As razões para o adiamento da inserção na casa dos solteiros estão
relacionadas, entre outros fatores, ao fato dos pais considerarem que seus filhos ainda
não possuem estatura e maturidade suficiente para isso. Além do mais, pode acontecer
ainda que os parentes também não estejam preparados para inserirem seus filhos na casa
97

dos solteiros. Como veremos adiante, a cerimônia de inserção do morador na casa dos
solteiros exige que ele esteja usando adornos corporais próprios para a ocasião. Um
destes adornos exige uma grande quantidade de algodão e pode ocorrer que o grupo
doméstico não disponha de quantidade necessária para confecção do adorno, adiando a
entrada do filho na casa dos solteiros.

2.5.1.4 – ADMISSÃO À CASA DOS SOLTEIROS – HÖ

Acima dissemos que a cerimônia do oi’o além de ter um caráter lúdico é também

uma cerimônia de preparação para instauração e oficialização da nova classe de idade

que estará ocupando a casa dos solteiros durante o período do danhono. Neste sentido,

após a realização do oi’o os ‘watébrémi e ai’repudu vão ao rio para tomar banho e

retirar a pintura que estavam usando durante a luta do oi’o. Retornando a casa paterna

são submetidos aos preparativos para outra cerimônia. Segundo a descrição de Giaccaria

& Heide (1984:150) somente os “maiores” seriam admitidos como moradores da casa

dos solteiros, ou seja, aqueles que tivessem idade de treze a dezesseis anos. Observamos

em várias ocasiões que durante o ritual de entrada dos novos moradores da casa dos

solteiros aqueles, em sua maioria, tinham idade equivalente à de ‘watébrémi e alguns

ai’repudu. Sobre o estatura dos candidatos a moradores da casa dos solteiros já tecemos

algumas considerações acima. Aqui queremos ressaltar que a decisão sobre quem deve

ou não ser admitido como morador da casa dos solteiros está muito mais condicionada à

decisão paterna, e do grupo doméstico, do que à vontade dos ĩhire – anciãos. Tal atitude

nos sugere que o ideal de uma “gerontocracia” que gerencia o processo ritual perde suas

forças, neste caso, para o âmbito do grupo doméstico. Passemos a descrição da

cerimônia que formaliza a abertura e entrada na casa dos solteiros.

No período que antecede a realização da cerimônia do oi’o os pais daqueles que

serão moradores da casa dos solteiros se põem a fiar algodão para prepararem o

waptépnhõnhiã (também chamado de danhonhi´ã e itsõnhi´ã48) – um tipo de colar

48
Este termo também designa clavícula – local onde o grande colar de algodão é apoiado.
98

confeccionado com grande quantidade de algodão. Este colar tem o formato de uma

roda, sem os raios, e apresenta um diâmetro de mais ou menos um metro. Depois de

pronto recebe de duas ou três penas de arara. O mesmo deve entrar pela cabeça do

‘watébrémi ou ai’repudu e ficar apoiado em seus ombros, sendo que as penas de arara

devem ficar na parte posterior voltada para as costas. A quantidade de algodão usada

neste tipo de ornamento deve ser generosa, pois revela à comunidade o quão produtivo é

o grupo doméstico ao qual o neófito pertence. O contrário não passa despercebido, ou

seja, o grupo doméstico que apresenta seu neófito “vestindo” um waptépnhõnhiã com

pouca quantidade de algodão é alvo de comentários pejorativos pela comunidade. O

conteúdo das apreciações a respeito da pouca quantidade de algodão utilizada pelo

grupo doméstico na confecção do waptépnhõnhiã está ligado a sua capacidade

produtiva e, jocosamente, reprodutiva. Em outras palavras, a pouca quantidade de

algodão pode conferir-lhes o status de dawa´a – preguiça.

A descrição que faremos abaixo está baseada nos relatos de Giaccaria & Heide

(1984:143; 150ss) bem como em nossa observação etnográfica. Segundo aqueles

autores (1984: 150ss), após a cerimônia do oi’o, depois de ter tomado banho, o pai do

candidato a morador da casa dos solteiros coloca nos ombros deste o ornamento

waptépnhõnhiã e entrega-lhe um arco, flechas e uma cestinha com castanhas de babaçu.

O irmão mais velho do candidato, que está pintado com o motivo pahiwatsa (uma

espécie de urubu) – onde se pinta com carvão o lado externo dos braços e nas pernas

dos tornozelos até metade da canela, segurando uma borduna do tipo uibró na mão

direita, toma o irmão pelo braço e o conduz ao warã – centro da aldeia. Ali os itsimhö-

nhiwimhã te te tiwi´re tsanidza´ra itsonhiãhã, ou tsimnhõhu – ou seja, aqueles que

foram danhohui’wa, padrinhos, dos que serão danhohui’wa, padrinhos, dos novos

moradores da casa dos solteiros, retiram o ornamento waptépnhõnhiã daquele que está

se tornando wapté (morador da casa dos solteiros).


99

Considerando a iniciação do danhono concluída em 2005, tínhamos no momento


da admissão de novos moradores na cada dos solteiros as seguintes classes de idade
envolvidas neste ritual:

CLASSES DE IDADE
METADES CERIMONIAIS
DIREITA ESQUERDA

1. ABARE'U (wapté) – meninos que


2. NODZÖ'U estavam sendo admitidos como
moradores da casa dos solteiros
3. ANAROWA
4. TSADA'RO
5. AI'RERE (tsimnhõhu) – foram os
6. HÖTÖRÃ danhohui’wa da classe de idade
tiro’wa.
7. TIROWA – (danhohui’wa)
˜
8. ẼTEPA

Quadro - 8 - participação das classes de idade na admissão de novos


moradores da casa dos solteiros

De acordo com Giaccaria & Heide (1984:151) a seqüência de retida do


waptépnhõnhiã pelos itsimhö-nhiwimhã te te tiwi´re tsanidza´ra itsonhiãhã é a mesma
na qual eles foram feitos wapté,ou seja, os primeiros itsimhö-nhiwimhã te te tiwi´re
tsanidza´ra itsonhiãhã retiram o ornamento waptépnhõnhiã dos primeiros ‘watébrémi
ou ai’repudu que foram conduzidos ao warã. O colar waptépnhõnhiã retirado é
propriedade daquele que o retirou. Após este momento ritual os que estão se tornando
wapté são conduzidos formalmente a hö onde receberiam o darõ, estojo peniano, de
seus padrinhos, os danhohui’wa. Esta entrega também acontecia de modo ritual onde o
wapté se posicionava sentado de costas ao danhohui’wa e com a mão esquerda recebia
daquele o estojo peniano e logo em seguida o colocava.
David Maybury-Lewis (1984:155) também descreve a entrada dos novos
moradores na casa dos solteiros. Em sua descrição, com menos requinte de detalhes, a
condução dos candidatos à casa dos solteiros é feita por um ĩprédu chamado Pahöri´wa.
Este ĩprédu conduz o candidato ao centro da aldeia e dali para a hö, onde recebe o darõ,
estojo peniano. Nesta descrição os candidatos estão pintados de vermelho dos pés à
100

cabeça (idem) e usam folhas nos ombros para não sujar as golas confeccionadas de fios
de algodão branco. Como apontamos, estas golas são chamadas de waptépnhõnhiã.
Após a entrega dos estojos penianos os ‘watébrémi e ai’repudu estes são
reconhecidos socialmente, de agora em diante, como wapté ou hö’wa, moradores da
casa dos solteiros. O estojo peniano deveria ser usado por toda a vida. Ele expressa a
nova condição social do ‘watébrémi ou ai’repudu, que deixam de serem considerados
como crianças. Segundo Maybury-Lewis (1984:156),
(...) o uso do estojo peniano corresponde a uma afirmação simbólica
de maturidade fisiológica. O estojo peniano “encobre” o pênis em
posição de ereção e, assim, indica potência sexual ao mesmo tempo
que afirma o poder social ao qual estão submetidos os poderes
sexuais intrinsecamente perigosos.

Diante disso, os danhohui’wa, padrinhos, nesta ocasião, exortam wapté ou


hö’wa sobre sua nova condição social e o comportamento que devem ter deste momento
em diante. O conteúdo destas exortações está relacionado ao distanciamento que eles
devem ter das mulheres. Elas são como onça – nos disse um informante, referindo-se ao
seu poder de sedução sobre os moradores da casa dos solteiros. Os wapté devem manter
distância e abster-se de dirigir-se a elas. Quando estão dançando na aldeia, como
mostraremos abaixo, ou quando caminham, em grupos, devem manter a cabeça baixa e
evitar dirigir qualquer olhar às mulheres. Esta atitude deve ser mantida até que se
completem os rituais do danhono. Do contrário, transgredindo esta regra de conduta,
estarão sujeitos a várias repreendas sendo a mais grave seria a furação dos lóbulos das
orelhas sem a realização completa dos rituais do danhono, ou seja, como eles dizem,
sem festa. A hipótese disto acontecer coloca os wapté ou hö’wa, moradores da casa dos
solteiros, em atitude constante de vigilância. Não obstante, ela insere o processo ritual
num estado constante de tensão, como veremos adiante.
As descrições de Maybury-Lewis (1984:156) e Giaccaria & Heide (1984:151)
sobre o momento seguinte a entrega dos estojos penianos são discrepantes. Enquanto
que para Maybury-Lewis (1984:156) o momento seguinte seria a realização da
cerimônia do oi’o, como descrita acima, Giaccaria & Heide (1984:151) afirmam que
após a entrega dos estojos penianos pelos danhohui’wa aos ‘watébrémi e ai’repudu,
agora wapté, ensaiam um canto e se dispõem a executá-lo percorrendo a aldeia seguindo
o itinerário próprio de cada metade, ou seja, seguindo o sentido horário ou anti-horário.
Em tempos passados, dizem os autores, no lugar da dança realizava-se uma corrida de
101

buriti. Neste caso, a dança aconteceria depois da corrida e dela tomavam parte não só
membros da metade que estava sendo admitida como moradores da hö, mas também da
outra metade, seguindo cada qual, pela aldeia, seu itinerário de dança. Como
observamos em várias ocasiões, as corridas de buriti, uiwede, são disputadas entre
metades compostas pelos grupos de idade conforme o esquema que apresentamos no
início desta tese. Ao término das corridas, independentemente de quem quer que seja o
vencedor, as metades ensaiam um canto e se põem a executá-lo percorrendo o
semicírculo composto pelas casas da aldeia.
Em nossa experiência etnográfica observamos que “os ventos de mudança49”
assolam grande parte dos rituais Xavante. Com relação à admissão dos novos moradores
na casa dos solteiros, processo que transforma ‘watébrémi e ai’repudu em wapté,
também chamado de hö’wa, estas mudanças são facilmente constatadas. Observamos
que a cerimônia do oi’o é realizada tanto como objetivo lúdico quanto como pré-
condição para a realização de outra cerimônia que admite formalmente a entrada do
novo wapté na hö, casa dos solteiros.
Ao término da cerimônia de oi’o os candidatos a moradores da casa dos solteiros
são ornados com o waptépnhõnhiã, colar de algodão e ficam aguardando na casa
paterna. Em relação às descrições de Giaccaria & Heide (1984:151) observamos que
estes candidatos não são conduzidos pelo irmão mais velho ao centro da aldeia. Vários
ĩprédu, pertencentes à classe de idade composta pelos itsimhö-nhiwimhã te te tiwi´re
tsanidza´ra itsonhiãhã, padrinhos daqueles que serão padrinhos dos novos moradores
das casa dos solteiros, vão até a casa do candidato, que já se encontra adornado, e este o
segue até o warã, centro da aldeia. Ali outros dois itsimhö-nhiwimhã te te tiwi´re
tsanidza´ra itsonhiãhã, padrinhos daqueles que serão padrinhos dos novos moradores da
casa dos solteiros, pertencentes aos clãs po’redza´õno e öwawẽ, aguardam a chegada
dos candidatos. Para esta ocasião os itsimhö-nhiwimhã te te tiwi´re tsanidza´ra
itsonhiãhã se pintam segundo o modo usado pelos wapté quando se prepararam para as
corridas de buriti, ou seja, apresentavam ombros e peito pintados de vermelho com

49
(...) No processo social – entenda-se por processo aqui meramente o curso geral da ação
social – no qual me encontrei, entre os Ndembu da Zâmbia, foi muito útil pensar “biologicamente” sobre
os “ciclos de vida da tribo” e os “ciclos domésticos”, a “origem”, “desenvolvimento” e “decadência”
de aldeias, famílias e linhagens, mas não foi muito útil pensar sobre a mudança como algo imanente na
estrutura da sociedade Ndembu, quando havia claramente “um vento de mudança,” econômica, política,
social, religiosa, legal, e assim por diante, varrendo através de toda África central e originando do lado
de fora de todas as aldeias da sociedade. (Turner, 1974:31-32) (tradução livre)
102

urucum, no abdômen, em vermelho, tinham um retângulo e o mesmo retângulo


desenhado nas costas perfazendo da metade da coluna até a altura da bacia. Nos dois
lados deste retângulo das costas há dois desenhos em preto. Na cabeça usam uma folha
de buriti amarrada em forma de laço na nuca. Nos punhos são amarradas cordas grossas
chamadas de wedenhorõ, e nos tornozelos embiras amarradas como as usadas no wai’a.
Quando o futuro wapté chega ao warã, se pertencente ao clã po´redza´õno terá
seu waptépnhõnhiã, colar de algodão, retirado por um itsimhö-nhiwimhã te te tiwi´re
tsanidza´ra itsonhiãhã, padrinho daqueles que serão padrinhos dos novos moradores da
casa dos solteiros, pertencente aos clã oposto öwawẽ ou tob´ratato. Do contrário, se o
candidato pertence ao clã öwawẽ ou tob´ratato terá seu waptépnhõnhiã, colar de
algodão, retirado pelo itsimhö-nhiwimhã te te tiwi´re tsanidza´ra itsonhiãhã, padrinho
daqueles que serão padrinhos dos novos moradores da casa dos solteiros, pertencente ao
clã po´redza´õno. Após a retirada dos waptépnhõnhiã, colar de algodão, de todos os
candidatos estes se dirigem sozinhos a hö e se tornam wapté, moradores da casa dos
solteiros.
Nossa observação diverge ainda daquela feita por Maybury-Lewis (1984:155)
quando descreve que no momento da apresentação dos candidatos a wapté, morador da
casa dos solteiros, estes se pintam de vermelhos dos pés a cabeça. Observamos que os
candidatos tinham acabado de participar da cerimônia do oi’o e tinham se lavado no rio.
Apresentavam a franja dos cabelos pintada com urucum e traziam ainda marcas
diacríticas nas têmporas revelando o clã ao qual pertenciam. Nas costas, na altura dos
rins, tinham penugens fixadas com resina.
Após o contato, os Xavante passaram a usar roupas ocidentais. Isto provocou
uma transformação no processo ritual Xavante. Como apontamos acima, após a retirada
do ornamento waptépnhõnhiã, colar de algodão, os danhohui’wa, padrinhos,
entregavam aos wapté o estojo peniano, que revela a nova situação social do morador da
casa dos solteiros, devendo ser usado durante toda sua vida. Este momento não mais
acontece. O darõ, estojo peniano depois do contato entrou em desuso.
Este ritual de admissão na casa dos solteiros repete-se ainda em outros
momentos. Conforme já mencionamos, isto se deve às diferenças de estatura entre os
candidatos ou o despreparo dos grupos domésticos para esta ocasião.
103

2.5.1.5 – O RITUAL DO UIWEDE, CORRIDA DE BURITI

O término do processo de admissão dos wapté na hö é semelhante ao descrito


por Giaccaria & Heide (1984:151). Após a retirada do waptépnhõnhiã, colar de algodão,
os ‘watébrémi e ai’repudu, agora oficialmente wapté – moradores da casa dos solteiros,
se dirigiram à hö e ali aguardaram seus pais e padrinhos, os danhohui’wa, para serem
pintados. A pintura tanto dos wapté quanto dos padrinhos acontece tendo em vista a
disputa da corrida de toras de buriti. Os wapté se pintaram conforme os itsimhö-
nhiwimhã te te tiwi´re tsanidza´ra itsonhiãhã ou tsimnhõhu, descritos acima, quando
retiraram o waptépnhõnhiã, colar de algodão. Os danhohui’wa adotam a modalidade de
pintura chamada dauhö. Neste modo de pintura utiliza-se carvão que é passado por todo
o corpo deixando apenas dois retângulos, na altura do abdômen e nas costas, que são
pintados de vermelho utilizando-se o urucum. Na cabeça a franja é pintada de vermelho
e depois se aplicam penugens de gavião real. O restante dos cabelos é amarrado em
forma de rabo de cavalo. Ao término da pintura são amarradas cordinhas, wedenhorõ,
nos pulsos e tornozelos. Algumas destas cordinhas são confeccionadas com embiras que
apresentam, segundo o material utilizado, poderes mágicos que, segundo os Xavante,
aumentam a força e resistência física daqueles que as usam. Tanto os wapté quanto os
danhohui’wa usam no pescoço um adorno chamado danho´rebdzu´a também chamado
de itsõ´rebdzu´a. Este ornamento é confeccionado com algodão trançado e assemelha-se
a uma corda de aproximadamente quarenta centímetros com suas extremidades
desfiadas, como pompom, tendo no ponto médio uma pena fixada com barbante, pó de
madeira e resina. Este ornamento é amarrado no pescoço da forma como se faz um nó
direito50, de modo que os dois pompons da extremidade do ornamento fiquem como
uma gravata51 de borboleta. O danho´rebdzu´a, ou itsõ´rebdzu´a é usado em
praticamente todos os rituais Xavante. Os danhohui’wa usam ainda dois tipos de
ornamentos segundo prerrogativas individuais. O primeiro deles tem a forma de cinto,
chamado ipredzumapro. É confeccionado em algodão fiado e tingido com urucum e
termina com duas pontas. Estas pontas, em formato de “V” invertido, são
confeccionadas com pó de madeira e recebe acabamento de resina branca e perfumada.
Depois de pronto apresenta o formato de um casulo com cerca de 10 cm. O viés mítico
deste ornamento é de extrema importância para o processo ritual. Considerando que seu

50
Conforme a arte de marinharia.
51
Devida a esta semelhança os Xavante chamam este ornamento de gravata.
104

uso obedece a prerrogativas individuais, herdadas de uma patrilinhagem, este ornamento


concede status a quem o usa. Neste sentido, o ipredzumapro tem seu uso extremamente
cobiçado por membros de outros grupos domésticos. Aqui temos um possível motivo
gerador de conflitos entre grupos domésticos, podendo ser estendido às facções. Adiante
apresentaremos uma situação etnográfica que corrobora esta hipótese. Outro ornamento
usado pelos danhohui’wa é o ui’ré. O uso do ui’ré obedece igualmente prerrogativas
individuais. Contudo, estas prerrogativas não estão mais relacionadas a direitos de
certos grupos domésticos, como é o caso do ipredzumapro. O ui’ré tem seu uso restrito
aos iniciados ao wai’a, celebração religiosa. Somente os danhohui’wa que serão
promovidos a dzörotsi’wa, donos da dzö - cabaça, em futuras iniciações do darini,
iniciação religiosa, poderão usá-lo. Ele é confeccionado com cabacinha, com a qual se
faz um dzö, chocalho, maracá, em miniatura. Quando pronto, ele é amarrado com cordas
de algodão, de modo com se faz um colar, ficando o dzö em miniatura pendente nas
costas do danhoihui’wa.
Como já dito, o ritual da corrida com toras de buriti é realizada como uma
modalidade de disputa entre metades cerimoniais. Considerando o cenário do danhono,
quando ela acontece, esta disputa se dá entre membros das classes de idade que estão
vivenciando os ciclos de vida que compreende, de um lado, os wapté, ajudados pelos
dos danhohui’wa, e de outro, os dahi’wa, ou seja, a última classe de idade que foi
iniciada através do danhono, igualmente ajudada pelos membros da classe de idade que
foram seus danhohui’wa, na ocasião de sua iniciação. Na prática as oito classes de idade
distribuídas em metades participam do uiwede, corrida de buriti. Quando posicionamos
os membros do ciclo de vida vivido, de um lado, pelos wapté e seus danhohui’wa, e de
outro, pelos dahi’wa e também seus danhohui’wa queremos informar que são estes os
atores principais da cerimônia do uiwede, corrida de buriti. Isto se torna claro quando
observamos os preparativos para execução da cerimônia. O corte das toras de buriti é
feito alternado-se, dependendo da fase em que se encontra o processo ritual do danhono,
entre os dahi’wa e os danhohui’wa dos wapté. Durante o uiwede, corrida de buriti,
observa-se que somente os dahi’wa e seus danhohui’wa, de um lado, e os wapté
também com seus danhohui’wa, de outro, apresentam por excelência pintura corporal e
ornamentos. Entretanto, alguns ĩhire costumam pintar a franja dos cabelos com urucum
e amarram cordinhas, wedenhorõ, nos pulsos e tornozelos. Usam ainda no pescoço o
colar de algodão chamado danho´rebdzu´a também chamado de itsõ´rebdzu´a. Isto não
105

constitui uma exigência para os ĩhire no processo ritual, se eles o fazem é para ficarem
“bonitos”, como dizem.
Como atores principais do ritual os wapté e dahi’wa se preparam em locais
distintos. Enquanto os wapté e os danhohui’wa se “concentram” para pintar e definir as
estratégias para corrida dentro da hö, os dahi’wa fazem isso no marã, literalmente
sombra, mata, floresta. No entorno da aldeia existem vários marã que são na realidade
clareiras, próxima da aldeia, abertas na mata onde, secretamente, os Xavante se
preparam para executarem vários rituais, entre eles o uiwede, corrida de buriti. De mais
a mais, o marã funciona tanto como um lugar de preparo para executar certos rituais,
quanto um lugar para sua realização. É o caso, por exemplo, do wai’a, em suas quatro
modalidades, que tem seus preparativos em pelos menos três marã diferentes para
depois executado no warã – centro da aldeia.
Quando os dois grupos competidores estão prontos, o que acontece normalmente
entre 12:00 e 13:00, eles partem formalmente em fila indiana para o local de início do
uiwede, corrida de buriti. A saída com destino ao local de início é marcada por grande
descontração que toma conta dos grupos. Em tom de provocação ao oponente os grupos
emitem gritos que são prontamente respondidos com outros gritos. Todavia, a partida
dos grupos não é simultânea. Via de regra, parte primeiro um dos grupos seguindo por
um caminho enquanto o outro segue depois, ou segue por caminhos paralelos.
Observamos em várias ocasiões, nas aldeias São Marcos e N. S. de Guadalupe, que não
são todos os componentes de um grupo que partem em fila indiana. Muitos, depois de
estarem prontos, seguem de bicicletas ou a pé para o local combinado para início da
corrida antes dos demais, se posicionando em pontos estratégicos ao longo do trajeto.
As táticas definidas tanto na hö quanto no marã são postas em prática ao longo
do caminho. Estas dizem respeito ao posicionamento dos corredores ao longo do
caminho, ou seja, quem deverá carregar a tora de buriti no início, nas subidas e descidas
do percurso. As metades sabem quem são os corredores que possuem maior resistência
e força. Na prática isso torna a corrida em seu início muito competitiva, pois se busca
abrir, de imediato, uma grande vantagem de um grupo em relação ao outro onde se
espera que os corredores mais fracos mantenham essa distância ao longo do percurso.
Nos dias de hoje as toras de buriti são cortadas nas cabeceiras, onde crescem as
matas de buriti, e transportadas de caminhão até o centro da aldeia onde são preparadas.
Este preparo consiste em escavar parte do cerne, que os Xavante chamam de carne -
106

inhiwa´wa52,cerca de dez centímetros, deixando uma beirada em torno do tronco de


modo que permita segurar a tora nos ombros durante a corrida. Dependendo da
intensidade da disputa e do momento ritual este trabalho no preparo das toras pode ou
não ser realizado no centro da aldeia. Retomaremos, posteriormente, a descrição sobre
os bastidores do preparo das toras de buriti enfocando, com exemplos etnográficos, os
meios e artimanhas adotadas para que uma das toras apresente mais peso do que a outra
ou que algum infortúnio aconteça prejudicando a outra metade sem que, contudo, aquela
perceba.
No passado a corrida era iniciada no local onde a tora era cortada, ou seja, a
partir das cabeceiras onde crescem os buritizais. Atualmente, a cerimônia do uiwede,
corrida de buriti, acontece utilizando-se das várias estradas que cortam a Terra Indígena
e dão acesso às aldeias. Para tanto as toras são levadas até o local combinado para início
da corrida.
O ponto de partida da cerimônia é definido previamente no warã – centro da
aldeia. Quando estão todos posicionados e as toras se encontram em local definido para
início da corrida elas recebem ainda um último acabamento. Os Xavante utilizam folhas
de lixeira53 para deixar o tronco sem farpas que possam ferir os corredores. No início da
corrida membros das principais classes de idade que estão disputando se posicionam ao
lado das toras e ao grito emitido por um ĩhire – ancião, que acompanha o início da
corrida, uníssonos erguem a tora pondo-a nos ombros e partem para o warã – centro da
aldeia.
O percurso definido para a uiwede varia de acordo com o número de
participantes. Em média os percursos são de cerca de oito quilômetros. Sendo a uiwede
uma cerimônia de revezamento os participantes adotam como estratégias, além das
mencionadas acima, o uso de diversos mecanismos que potencializam as equipes. A
situação de contato proporcionou o acesso à meios de deslocamento, como bicicleta,
caminhões, automóveis e tratores, que se tornaram recorrentes em várias situações do
processo ritual. Neste sentido, depois de iniciada a corrida é comum os participantes das
duas metades, após terem carregado a tora de buriti, utilizarem bicicletas para se

52
O termo inhiwa´wa usado para designar o cerne da tora de buriti é semelhante ao usado para
designar carne de caça - inhi.
53
A Lixeira do Cerrado, (Curatella americana) Família Dilleniaceae, é uma árvore de baixo
porte com folhas duras e ásperas – semelhante a lixa. Os Xavante também a utilizam para afiar pontas
flecha, dar acabamento em arcos e nos botoques auriculares, dentre outros usos.
107

posicionarem novamente a frente da equipe e novamente carregá-la. Em alguns trechos


da corrida a existência de estradas paralelas à principal permite ao caminhão, que
transporta corredores que já tiveram seu momento na corrida, se posicionar a frente das
duas toras e deixar aqueles que estejam dispostos a participar novamente. Como num
exercício militar, estes corredores sobem e descem do caminhão quando este ainda está
em movimento.
O uiwede tem como participantes diretos membros masculinos das classes de
idade. Entretanto, quando o caminhão se prepara para levar as toras de buriti para o
local de início é comum mulheres tomarem lugar na carroceria para acompanharem o
desenvolver da corrida. A presença feminina não só é aceita como também estratégica.
Estas mulheres levam várias garrafas, do tipo pet, com água para oferecer aos membros
de seu grupo doméstico bem como àqueles de sua classe de idade. Considerando o sobe
e desce de participantes da corrida este grupo de “torcedoras” tem por predileção
posicionar-se bem a frente da carroceria onde se tem visão privilegiada sobre o
andamento da corrida. Entretanto, em certas situações, dependendo do número de
torcedoras, podem surgir conflitos, como veremos adiante quando descrevermos outras
fases do danhono.
A uiwede, tora de buriti, deve ser trazida pelas metades para o centro da aldeia.
Durante o percurso da corrida é inevitável que as equipes as deixem. Estas quedas vão
aos poucos comprometendo a borda da tora deixando-a sem apoio para sustentação nos
ombros dificultando a equipe e favorecendo a novas quedas. Contudo, muitas quedas
podem fazer que a tora se rache. Quando isso acontece é fim do ritual para uma das
metades.
A chegada da tora no centro da aldeia é aguardada com grande expectativa pela
comunidade aldeã. Como já dito, a tora deve ser deixada no centro da aldeia. Ali os
anciãos de várias classes de idade pertencentes às duas metades aguardam sua chegada.
Quando os corredores entregam o tronco no centro da aldeia os ĩhire - anciãos
agradecem ritualmente gritando: hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ... obrigado, obrigado, obrigado. Os
competidores aguardam a chegadas dos demais em pontos distintos da aldeia.
Nas várias ocasiões em que participamos das corridas de buriti, na aldeia São
Marcos, os membros da metade na qual estamos inserido aguardavam a chegada dos
demais embaixo de uma mangueira. Era comum nestes momentos a chagada de um
ĩhire, ancião, pertencente a uma das classes de idade de nossa metade cerimonial, e
108

pôr-se a discursar sobre a performance da cerimônia. O conteúdo daqueles discursos


referia-se à bravura e força dos que estavam sendo iniciados bem como de seus
padrinhos. Via de regra, a classe de idade que está sendo iniciada, juntamente com os
danhohui’wa, dirigem-se à hö, casa dos solteiros. Ali acontece o ensaio do
uiwedenhore, canto da corrida de buriti. A outra metade, representada pelo dahi’wa, se
posiciona em outro ponto da aldeia ou um pouco dela afastados e ensaiam igualmente o
uiwedenhore, canto da corrida de buriti. O conteúdo destes cantos é de difícil acesso. Os
Xavante dizem que eles são sonhos. Entretanto, o modo de dançá-lo segue um mesmo
ritmo: o dapraba. Ambas as metades executam o uiwedenhore, canto da corrida de
buriti, seguindo cada qual seu itinerário próprio de dança, conforme descrito no início
deste trabalho.
Embora sigam um mesmo protocolo ritual as cerimônias do uiwede recebem
denominações diversas dependendo da etapa em que acontece dentro do processo ritual
do danhono. Conforme descrevemos acima este ritual marca fim dos ritos iniciais de
admissão de novos moradores da casa dos solteiros, a hö. Nesta ocasião o ritual recebe o
nome de ubdö’warã – corrida do dente branco de capivara.
O encerramento do conjunto de rituais que marcam a admissão de novos
moradores da hö, casa dos solteiros, não limita a entrada de outros ‘watébrémi e
ai’repudu, menino, noutros momentos do processo ritual quando as lutas do oi’ó forem
repetidas.

2.5.1.6 – HÖ’WA – MORADOR DA CASA DOS SOLTEIROS

Os ‘watébrémi e ai’repudu, menino, inseridos na hö, casa dos solteiros, passam


a viver ali praticamente em tempo integral. São reconhecidos doravante como hö’wa.
Contudo, isso não significa que estejam terminantemente proibidos de freqüentar, de
vez em quando, o grupo doméstico. Todavia, mesmo não sendo proibidos evitam fazê-
lo.
Durante o período de cinco anos, tempo em que permanecerem “reclusos” na hö,
casa dos solteiros, idealmente, os hö’wa deveriam aprender o necessário para viver na
sociedade Xavante. Isso incluía, segundo Maybury-Lewis (1984:161ss) instrução sobre
os diversos cerimoniais e confecção de ornamentos de uso ritual. Em tempos de
expedições de caça e coleta acompanhavam homens mais experientes que os orientavam
109

sobre as diversas técnicas de caçadas e hábitos de suas presas. Quando se aproximava o


tempo da conclusão do danhono dedicavam-se a preparar ornamentos que seriam
usados durante o processo ritual. Maybury-Lewis encontrou os wapté executando várias
atividades na aldeia São Domingos em 1958, quando lá esteve em trabalho de campo.
Naquela ocasião os hö’wa estavam ocupados na confecção de colares de sementes de
capim navalha, chamados de a’é. Estes colares são usados na “capas” wamnhorõ por
ocasião dos ritos finais do danhono. O autor aponta que os hö’wa deveriam tecer as
próprias esteiras usadas para dormir na hö. Contudo, raramente o faziam visto que suas
esteiras eram as mais esfarrapadas, segundo este autor.
Giaccaria & Heide (1984:151ss) detalham um pouco mais as atividades a serem
desenvolvidas pelos hö’wa. Segundo estes autores os moradores da casa dos solteiros
não aprendem a trabalhar na roça. Eles deveriam aprender a confeccionar os principais
tipos de flechas – ti, buruaòdò e ariwede54, esteiras – wètènhamri, cestos de transporte -
tsi’rã, fios de algodão usados para prender penas às flechas, cordinhas de embiras
usadas nos punhos e tornozelos durante os rituais – wedenhorõ. Deveriam ainda fabricar
outro tipo de cordinhas a partir de fibras de uma árvore chamada abarudu cuja embira é
vermelha igualmente chamada e tsatede, usadas em punhos e tornozelos.
Ainda que os wapté estejam envolvidos nas atividades acima mencionadas,
Maybury-Lewis (1984:159) afirma que ele tem uma vida relativamente livre e com
poucas obrigações. O alimento do dia-a-dia é provido pelo grupo doméstico. Havendo
notícias sobre a chegada de carne em seu grupo doméstico o hö’wa manda um
mensageiro pedir seu quinhão. Neste caso, uma porção era separada para ser distribuída
aos companheiros presentes e ausentes. Giaccaria & Heide (1984:152) descrevem a
entrega de alimentos pela mãe ao hö’wa de forma extremamente ritualizada onde a
genitora dirigindo-se a hö chama o filho: _ hö’wa!, este estende a mão direita para fora
da hö e recebe o alimento. Para ter certeza de que se trata realmente do filho este deve
mostrar por instantes a cabeça para fora para que a mãe possa vê-lo. Caso ela não o
identifique retorna com o alimento para casa. Durante todo período de convivência entre
os Xavante nunca presenciei algo semelhante à descrição dos autores mencionados. Na
maioria das vezes são os irmãos e irmãs menores que levam o alimento ao hö’wa. Até
mesmo o antropólogo, uma vez inserido e aceito em um grupo doméstico certa vez foi
54
A flecha ti é a mais comum entre os Xavante, feita de taquara e pena. A flecha tipo buruaòdò,
usada principalmente para abater aves, é feita com um tipo de taquara do qual utiliza-se a planta a partir
da raiz que apresenta uma ponta em forma de caroço. Finalmente, a flecha do tipo ariwede, usada para
flechar peixes, é confeccionada com buritirana - (Mauritia aculeata).
110

escalado para levar alimento ao sobrinho que estava residindo na hö. Ali observamos os
menores trazendo alimento para outros moradores e quando estes não se encontravam
ficavam aguardando até que chegassem.
O canto e dança executado diariamente na aldeia pode ser considerada a
principal atividade dos wapté. Neste sentido, diariamente um ĩprédu, homem adulto, se
dirige à hö e conduz seus moradores a cantar e dançar percorrendo a aldeia. O percurso
é definido de acordo com a metade que está vivendo na hö. Considerando o tamanho da
aldeia o canto e dança não é executada na frente de todas as casas. Giaccaria & Heide
(1984:152) identificam quatro momentos em que os wapté executam cantos e danças na
aldeia: dahipopo – canto da tarde, mãrawa’wa danho’re – canto da meia noite,
dadzarõno – canto da madrugada antes da corrida de buriti e o uiwedenho’re executado
após a corrida de buriti. Em nossa experiência etnográfica entre os Xavante observamos
que os cantos dahipopo e dadzarõno, executados, segundo os autores, sem pintura
corporal na realidade são estilos de dança. Neste sentido, o dahipopo é uma dança
executada em roda, de mãos dadas e cabeça baixa, flexionando levemente os joelhos. O
estilo de dança dadzarõno é executado de mãos dadas e cabeça baixa, movimentando-se
em círculo e levantando um dos pés em saltos curtos. Estes dois tipos de dança são
executados acompanhados de cantos que recebem denominações diversas dependendo
do momento do processo ritual. Desta forma, o mãrawa’wa danho’re – canto da meia
noite constitui em verdade um tipo de canto que pode ser executado em estilo de
dahipopo ou dadzarõno. Por seu turno o uiwedenho’re – canto depois da corrida de
buriti pode ser igualmente executado em estilo de dahipopo ou dadzarõno. Um terceiro
estilo de dança acompanhado de cantos com denominações diversas, dependendo do
processo ritual, é o dapraba. Este estilo é semelhante ao dadzarõno, mas executado um
pouco mais rápido. Tanto os estilos dapraba e dadzarõno alternam o movimento da
roda de dança em sentido horário e anti-horário quando estão na metade do canto em
execução. Como veremos adiante, em certas etapas do danhono os três estilos principais
de dança são usados num mesmo ritual.
Nos anos em que moramos na aldeia São Marcos observamos que os wapté
executavam cantos e danças na aldeia com certa regularidade pela manhã, por volta de
05:00hs, e a noite, entre 08:00 e 09:00hs. Considerando que os wapté, enquanto grupo,
não podem ir sozinhos à aldeia, um ĩprédu os acompanha até a aldeia. Este mesmo
111

ĩprédu ensaia com os hö’wa o canto e os conduzem a aldeia. O canto executado nestas
circunstâncias foi sonhado pelo ĩprédu e transmitido aos hö’wa por ocasião do ensaio.
Segundo Maybury-Lewis (1984:161), os cantos usados pelos Xavante podem ser
de natureza pública ou particular. Os situados na primeira categoria são aqueles usados
segundo a formalidade dos rituais. Por seu turno, os cantos de ordem particular são
aqueles pertencentes àqueles que o sonharam. Neste caso aquele que pegou o canto
durante o sonho dirige-se a hö e ensina aos seus moradores. Uma vez tendo aprendido o
canto os hö são acompanhados até a aldeia onde o executam diante das casas. Em
verdade, todos os cantos Xavante são de ordem particular que alguém propôs e se
tornou coletivo. Participando dos preparativos para um ritual de ordem religiosa, o
wai´’a, na aldeia N. S. de Guadalupe fomos informado que durante o ensaio do grupo
dos dzö’ratsi’wa – o dono do chocalho [aquele entoa o canto durante a celebração do
wai’a], foram apresentados três cantos dos quais apenas um foi escolhido.
Posteriormente o canto escolhido foi ensaiado novamente juntamente com os demais
participantes do ritual e finalmente executado no warã, centro da aldeia.
Para Maybury-Lewis (1984:161) qualquer homem maduro poderia conduzir os
hö’wa ao warã, para cantar. Entretanto, somente aqueles que apresentam caráter forte
poderiam de fato fazê-lo e se impor. Os tímidos não teriam sucesso, principalmente se a
noite estivesse fria. Durante seu trabalho de campo o autor observou que era a classe de
idade ai’rere que freqüentemente conduzia os hö’wa ao warã para cantar. Observa
ainda o autor que esta classe de idade era a patrocinadora da iniciação da classe de idade
tirowa, ocupante da hö.
A respeito do exercício de autoridade sobre os moradores da hö é preciso ter em
mente que, enquanto processo ritual, cabe às classes de idade da metade na qual está
situada a classe de idade iniciada exercer este papel. Neste sentido, por mais influente
que um homem maduro seja ele não poderia, em tese, estender sua autoridade á classe
de idade de outra metade, ou se o fizer deve agir com muita cautela. Considerando a
dinâmica faccional Xavante, onde as alianças estão plantadas em areia movediça,
dependendo do clima político que paira sobre a aldeia esta ingerência pode
comprometer o prestígio de uma liderança já consolidada ou em ascensão.
Observamos que cantar na aldeia não constitui uma simples atividade para os
wapté. Executar o canto na aldeia é também uma maneira de alegrar a comunidade.
Presenciamos em vários momentos nos quais os wapté executaram cantos na aldeia. Em
112

alguns deles ouvimos o choro de ĩhire, anciãos, no interior das casas. Ao ser
questionado sobre o motivo do choro, os informantes me diziam que os velhos estavam
alegres pelo canto do wapté. Uma explicação possível para a alegria dos ĩhire, anciãos,
pode estar no fato de estarem presenciando a renovação de sua classe de idade.
Ademais, em algumas situações onde nossa classe de idade se retirava da aldeia para
ensaiar cantos, os demais membros de nossa metade cerimonial, entre eles muitos
ĩhire, anciãos, era comum ouvi-los chorar de emoção pelos cantos executados.
Enquanto estão vivendo na hö os wapté são acompanhados por dois
danhohui’wa - padrinhos, que recebem o nome de dapibui’wa - Giaccaria & Heide
(1984:151).
A nova situação social coloca os wapté, ou hö’wa, moradores da casa dos
solteiros, em dois regimes de disciplina que será exercido por homens que estão vivendo
duas fases do ciclo de vida compreendida, sobretudo, de um lado, pelos danhohui’wa, e
de por outro lado em oposição, pelos dahi’wa. Dentro do sistema de iniciação das
classes de idade o grupo dos dahi’wa é composto pela última classe iniciada, enquanto
que o grupo dos danhohui’wa por membros da penúltima. Esta oposição decorre da
distribuição das oito classes de idade em metades. Neste sentido, na iniciação do
danhono ocorrida em 2005 nas aldeias da Terra Indígena São Marcos a configuração do
sistema de classes de idade que estavam vivenciando as fases do ciclo de vida
mencionadas acima estava expressa da seguinte maneira:

DIREITA ESQUERDA
1. ABARE'U - (hö’wa, wapté) – em
processo de iniciação (2005);
˜
8. ẼTEPA - (dahi’wa) - ‘ritéi’wa –
última classe de idade iniciada
desta metade (1997).
7. TIROWA - (danhohui’wa) – última
classe de idade desta metade
iniciada (1989).

Quadro - 9 - Posição das classes de idade em 2005


113

Em 2005 a classe de idade tirowa, desempenhando o papel de danhohui’wa –


padrinhos, tornou-se responsável pela instrução dos abare’u. O conteúdo dessa
instrução diz respeito a conselhos de ordem moral segundo os padrões Xavante. De
acordo com Giaccaria & Heide (1984:150), antes de ser admitido como moradores da
hö o pai exorta o filho à não brincar com as meninos ou meninas, não olhar as
mulheres e não fugir da casa dos wapté. Posteriormente os danhohui’wa – padrinhos,
deveriam acompanhar o desenvolvimento social dos moradores da casa dos solteiros
reforçando os conselhos paternos até a conclusão dos danhono. Muito mais do que
instruir os hö’wa, cabia aos danhohui’wa – padrinhos, classe de idade tirowa, patrocinar
a iniciação dos hö’wa, classe de idade abare’u. Neste sentido, os tirowa se tornaram
responsáveis em organizar e preparar o conjunto de rituais do danhono. No entanto, em
algumas situações do processo ritual as expectativas em relação ao preparo das diversas
cerimônias não foram atendidas, como veremos adiante.
No sistema disciplinar Xavante, sobretudo durante o danhono, os dahi’wa se
posicionam de modo antagônico. Eles são membros da última classe de idade iniciada,
conforme esquema acima. A eles cabe literalmente fiscalizar o comportamento dos
hö’wa, sobretudo no que diz respeito ao comportamento de sua vida sexual. Aqui
podemos ampliar um pouco mais as considerações de David Maybury-Lewis a respeito
desta questão. Segundo o autor, não se pode dizer que os Xavante atuais asseguram a
castidade de seus meninos não-iniciados através de sua reclusão, impedindo assim que
tenham acesso às meninas (Maybury-Lewis (1984:159). Contudo, mesmo não sendo
assegurada através da “reclusão” na hö ela é incentivada pelos homens mais velhos,
durante visitas à casa dos solteiros, como um ideal até que se tornem ‘ritéi’wa
(Maybury-Lewis (1984:128). De mais a mais, segundo o autor, os hö’wa teriam poucas
oportunidades para terem experiência sexual visto que as meninas com idade
aproximada à sua já estariam casadas com homens já iniciados. Estes homens, de classe
de idade mais avançada, que tiveram que aguardar o amadurecimento de suas noivas
para terem relações sexuais com elas dificilmente tolerariam relações adulteras com
suas jovens esposas. Adiante retomaremos a questão sobre a diferença de idade entre
homens iniciados e suas esposas.
O relato de Giaccaria & Heide (1984:159ss) sobre a vida dos wapté aborda
igualmente o comportamento sexual dos moradores da casa dos solteiros. Nos relatos
114

transcritos pelos autores, a julgar pelas aspas no texto, os Xavante dizem que os wapté
são benquistos pela comunidade. Contudo, quando um wapté faz o “mal” ele é
advertido pelo encarregado de acompanhar os moradores da casa dos solteiros:... não
olhes para as meninas, não brinques ou rias para ela, porque a mulher te observa e
acontece o mal, e não fazes a festa do wamnhorõ e do ‘waté’wa (apud Giaccaria &
Heide, 1984:160). Pode acontecer que um homem veja um wapté em conduta não
adequada. Neste caso o fato é relatado aos homens maduros e anciãos no centro da
aldeia. Ali a questão é debatida e pode-se decidir furar a orelha dos wapté sem o ritual
completo do danhono. Em caso de decisão favorável a punir ao wapté mais uma vez o
encarregado de acompanhá-los pode intervir e verificar se de fato houve uma
transgressão de conduta. Constando-se que se trata de calunia a decisão do conselho do
warã pode ser revogada. Em alguns casos, segundo o relato transcrito por Giaccaria &
Heide (idem) o dapibui’wa, encarregado de acompanhar os moradores da casa dos
solteiros, tomando conhecimento de uma transgressão ele pode infligir uma punição aos
hö’wa. Nesta situação, o dapibui’wa se pinta com a modalidade de pintura dos
danhohui’wa, ou seja, dauhö, e dirige-se à hö e aplica uma surra de borduna em seus
moradores.
As reincidências nas violações sucessivas de conduta, ou como diz o texto
transcrito:... quando um wapté faz sempre o mal, abrem espaço para atuação dos
dahi’wa. Conforme o esquema acima, os dahi’wa são os ‘ritéi’wa, novos guerreiros, ou
seja, jovens pertencentes à última classe de idade iniciada no danhono. Enquanto os
dapibui’wa atuam procurando disciplinar os hö’wa através de conselhos e, em alguns
casos, surras, contudo sem criar tensões durante o processo ritual, os dahi’wa agem de
modo mais dramático. Se comprovado que um hö’wa esteja tendo encontros amorosos,
os dahi’wa poderão pegá-lo, numa emboscada, e o conduzem à mata e furam o lóbulo
de suas orelhas sem festa, como dizem. O castigo de ter a orelha furada fora do conjunto
de rituais do danhono confere ao hö’wa o estigma55 de atsitõ. Na maioria das vezes isso
não ocorre de imediato.
As ocasiões, todas relacionadas à pratica do mal, nas quais os hö’wa, morador da
casa dos solteiros, venham a se tornar atsitõ são múltiplas. Giaccaria & Heide
(1984:160) apresentam versões desencontradas, a partir de transcrições de discursos de
informantes, nas quais os Xavante infligem a punição que torna o hö’wa um atsitõ. Num

55
Cf. Goffman ([1963]1980)
115

primeiro momento é apenas um ihi’wa, ‘rítéi’wa, novo guerreiro, que retira o wapté do
grupo fura-lhe a orelha. Quando são vários os wapté que fazem o mal, todos têm as
orelhas furadas. Noutro momento, quando alguém flagra um wapté fazendo o mal o
caso é relatado aos velhos e homens adultos que decidem não bater no infrator.
Contudo, quando os moradores da casa dos solteiros retornam à hö depois do canto que
costumam entoar, presumivelmente à noite, os homens cercam a casa, para impedir
possíveis fugas, e um ‘ritéi’wa entra na casa e retira aquele que fez o mal. Sendo muitos
os que fizeram o mal, todos os moradores da casa dos solteiros terão as orelhas furadas.
Contradizendo este momento o informante, citado por Giaccaria & Heide (1984:161),
diz que a furação coletiva de orelha dos moradores da casa dos solteiros acontece na
manhã seguinte quando os wapté, depois de correrem pela aldeia, dirigem-se à mata e
são seguidos pelos homens que lhes furam as orelhas, no local onde se realiza a
cerimônia religiosa do wai’a. Ali na mata se pintam e partem para a corrida do
tsauri’wa, soprador, um dos últimos rituais do danhono.
Em verdade, para que um hö’wa venha a ter as orelhas furadas sem festa há um
grande leque de apelações, como se pode deduzir das conclusões de Giaccaria & Heide
(1984:161). Qualquer aplicação de sanções aos hö’wa por terem praticado o “mal” tem
que ter aprovação, em tese, dos ĩhire, anciãos, e ĩprédu, homens maduros, na
assembléia do warã, centro da aldeia. Quando os ĩhire e ĩprédu decidem furar a orelha
de um wapté para torná-lo atsitõ pode ainda acontecer uma intervenção através do
A’ãma, defensor da classe de grupo que está sendo iniciada e membro da mesma metade
cerimonial dos dahi’wa. Adiante voltaremos a tratar sobre a escolha e atribuições do
A’ãma. Por hora é suficiente dizer que o A’ãma ao tomar conhecimento, de uma
possível transgressão de conduta dos hö’wa, procura averiguar se de fato ela ocorreu.
Dizem os autores que se o A’ãma confirma as suspeitas da comunidade sobre a violação
de conduta do wapté, um ĩprédu pinta-se de preto, busca o acusado na hö e o conduz até
o centro da aldeia. Ali ele senta-se numa esteira e tem os lóbulos das orelhas furados.
Em seguida, os danhohui’wa vão até a hö e aconselha os seus moradores a não mais
desobedecerem às orientações, sob pena de todos terem as orelhas furadas sem festa
(Giaccaria & Heide, 1984:161).
Como se pode notar o processo ritual do danhono está pautado por tensões e
pressões sobre a classe de idade que está sendo iniciada. Ainda que o período de
“reclusão” não tenha como objetivo evitar que os moradores da casa dos solteiros
116

tenham relações sexuais pré-maritais, como afirma Maybury-Lewis (1984:159), de


certo modo ele age neste sentido. Considerando que a “reclusão” é mais espacial do que
física, visto que ela apenas coloca os meninos um pouco afastados da aldeia não os
impedindo literalmente de freqüentarem o grupo doméstico esporadicamente, o ideal de
viver casto encontra-se ameaçado. Neste sentido, o acompanhamento feito pelas duas
últimas classes de idade já iniciadas surge como mecanismo de controle de conduta.
Contudo, sem restringir-se a vida sexual dos moradores da casa dos solteiros.
Desta forma, de um lado temos o grupo dos danhohui’wa, padrinhos, formado
pela última classe de idade iniciada, pertencente à mesma metade na qual está a classe
de idade em iniciação. A eles cabe aconselhar e acompanhar a sociabilização dos wapté
na cultura Xavante. Apesar de Giaccaria & Heide (1984:161) afirmarem que os
danhohui’wa podem punir os wapté, furando o lóbulo de suas orelhas sem festa, na
pratica isso tem poucas chances de acontecer. Como registrado acima, quando um wapté
sofre a punição de ter as orelhas furadas, sem festa, ele é estigmatizado como atsitõ.
Este estigma é estendido também aos demais colegas. Em outras palavras, o rótulo
atsitõ é equivalente ao sem vergonha para quem se tornou, bem como, para a classe de
idade em processo de iniciação. Por extensão o estigma atinge também a classe de idade
encarregada de acompanhar os moradores da casa dos solteiros, ou seja, a classe de
idade reconhecida como danhohui’wa, os padrinhos. Como já mencionado, a classe de
idade que compreende os danhohui’wa pertence à mesma metade da classe de idade em
iniciação. Portanto, se os danhohui’wa denunciassem um wapté que estivesse fazendo
aquilo que a tradução missionária está chamando de o mal, eles estariam reconhecendo
publicamente sua incapacidade de orientar e acompanhar os moradores da casa dos
solteiros. Numa sociedade, como veremos adiante, onde a busca de prestígio é
constante, um deslize durante o processo ritual pode afetar, e muito, este objetivo.
Ampliando um pouco mais o alcance que o estigma atsitõ pode alcançar, no plano da
organização social Xavante, a iniciação do danhono envolve uma metade composta por
quatro classes de idade. Neste sentido, o estigma atsitõ alcança igualmente as demais
classes da metade a qual pertence à classe que está sendo iniciada. Ao nível do grupo
doméstico mesmo que um pai tenha conhecimento de que seu filho tenha cometido o
mal, ele dificilmente denunciaria o filho ao conselho dos homens. O estigma atsitõ
atinge igualmente o grupo doméstico, sobretudo o pai, pois isso constitui uma vergonha
para ele. Adiante estes argumentos serão reforçados com um caso empírico.
117

De outro lado está o grupo dos dahi’wa, composto pelos ‘ritéi’wa, novos
guerreiros. Nesta condição espera-se que eles sejam belicosos, vigilantes e bons
caçadores. Eles foram os últimos iniciados no danhono e, por conseguinte, pertencem a
uma metade oposta em relação aos hö’wa. Durante o processo ritual do danhono é o
grupo que realmente assume uma postura oposicionista. Enquanto os pais e os
danhohui’wa, padrinhos, agem como conselheiros e buscam inculcar os valores da
tradição Xavante aos hö’wa, os dahi’wa, por seu turno, estão atentos a qualquer deslize
que os moradores da casa dos solteiros porventura venham a cometer para que possam
castigá-los. Este castigo, como já dissemos, é tornar o hö’wa um atsitõ -
estigmatizando-o como um transgressor de conduta.
Muitos dos novos guerreiros são líderes em potencial e procuram, desde cedo,
marcar posição na sociedade Xavante. Procurando responder às expectativas que a
comunidade tem sobre seu desempenho numa nova condição social, ou seja, de serem
belicosos e vigilantes, os dahi’wa acompanham secretamente o comportamento dos
hö’wa. Para isto estão sempre atentos às “fofocas” e boatos, que circulam pela aldeia,
sobre a conduta dos hö’wa. A vigilância que os dahi’wa, bem como sua reputação, é tão
intensa ao ponto de um informante afirmar que a festa do danhono era deles. Nesta
ocasião, um hö’wa, filho do informante e sobrinho do antropólogo, deixou o hö e foi
visitar seu grupo doméstico em busca de alimento. Depois de ter almoçado o hö’wa ao
invés de retornar para a hö permaneceu na casa paterna e procurando acompanhar o
acontecia na aldeia. Para isto se posicionava na porta da casa com metade do corpo para
dentro e a cabeça para fora acompanhando o vai-e-vem das pessoas que circulavam pela
aldeia. O pai que estava fora ao chegar e encontrar o filho naquela atitude deu-lhe uma
repreenda mandando-o que imediatamente retornasse para o fundo da casa se ali
quisesse permanecer. Ao acompanhar a cena pedimos que o informante me explicasse o
porquê da reprimenda ao filho. Segundo ele: os dahi’wa estão de olho! Eles são
perigosos! E por quê? A festa é deles, eles tem que demonstrar que são valentes.
Dado que a convivência entre os moradores da casa dos solteiros cria entre eles
um spirit de corps56 e solidariedade não seria prudente da parte dos dahi’wa qualquer
intervenção punitiva sobre algum wapté quando este se encontra com o grupo. Durante
a iniciação do danhono de 1997, na aldeia São Marcos, surgiu o boato segundo o qual
um dos hö’wa estaria tendo encontros amorosos com sua prometida esposa. Os dahi’wa,

56
Cf. Maybury-Lewis, 1984:157.
118

naquela ocasião membros da classe de idade tirowa, ao tomarem conhecimento do


boato planejaram uma ação punitiva contra o acusado. Desta forma, resolveram colocar
o plano em ação durante o horário de aula, pois teriam certeza de que o acusado estaria
presente.
A escola indígena da Aldeia São Marcos oferece ensino da pré-escola ao ensino
médio. Naquela escola, bem como nas demais, a idade escolar dos alunos, que segue o
sistema oficial de ensino, é discrepante do ciclo de vida da organização social Xavante.
Neste sentido, membros das diferentes classes de idade estão distribuídos em todas as
séries do sistema de ensino. Desta forma, é possível encontrar membros do ciclo de vida
ai’repudu, hö’wa, ihi´wa, danhohui’wa e até ĩprédu convivendo juntos numa mesma
sala de aula. Nesta situação a sala de aula é simbolicamente divida garantindo espaços
para cada uma destas fases do ciclo de vida levando-se ainda em consideração: gênero,
sistema de divisão clânica e parentesco. No dia e hora marcados para execução do plano
dos tirowa, o acusado estava em sala de aula fazendo uma avaliação. O antropólogo que
na ocasião era professor e aplicava a avaliação notou certo movimento além do normal
nos arredores da sala de aula. Membros da classe de idade tirowa passavam com
freqüência pela janela e observavam os alunos. Até mesmo um rapaz daquela classe de
idade que também estava em sala de aula por várias vezes pediu ao professor para ir ao
banheiro. Entretanto, mais tarde tomamos conhecimento de que este rapaz estava
passando informações aos demais tirowa escondidos no mato nos arredores da escola.
De repente, num piscar de olhos, a sala de aula foi invadida pelos tirowa que
dirigiram-se logo para seu alvo. Enquanto um grupo agarrava o acusado pelo pescoço e
tentava arrastá-lo para fora os demais trocavam socos e cadeiradas. Diante do caos que
tomava conta do recinto o professor, que se tornaria antropólogo anos mais tarde, aos
gritos pedia que parassem. Neste ínterim, outros membros das classes de idade
envolvidos no processo de iniciação do danhono saíram de outras salas de aula e vieram
a somar-se aos que estavam na contenda. Depois de muita pancadaria o professor
conseguiu acalmar os ânimos convencendo os combatentes a ficarem cada qual num
canto. A ação que havia começado numa sala de aula depois se estendido às demais
nesta altura já tinha chegado à aldeia. Com isso pais, avós e danhohui’wa numa correria
dirigiram-se à escola. Choros, da parte dos avós e pais, discursos inflamados da parte
dos danhohui’wa sobre a situação marcava o cenário. As aulas foram suspensas e os
119

moradores da casa dos solteiros se retiraram para a hö. Ali ficaram sendo vigiados pelos
pais e padrinhos para que sofressem outras investidas por parte dos dahi’wa.
Quanto aos tirowa estes se retiraram para um mangueiral próximo da escola
onde procuravam se recompor. Ficamos sabendo posteriormente que planejavam novas
investidas contras o hö’wa com o intuito de castigar o wapté acusado de transgredir a
norma de conduta. Esta nova investida não se concretizou, entre outros motivos, pela
ação missionária que interveio junto ao tirowa persuadindo-os a abortarem o plano.
Entretanto, uma vez descartado o elemento surpresa, visto que os pais e danhohui’wa se
mobilizaram e montaram guarda nas proximidades da hö em defesa dos hö’wa, não
havia mais chances, pelo menos em tese, para uma nova investida dos tirowa. Em tese
porque ainda haveria esta possibilidade, contudo não para este momento. Os tirowa
poderiam deixar a poeira baixar e escolher outro momento para executar seu plano. E
porque não o fizeram? Neste dia a questão foi tratada na instância jurídica máxima da
sociedade Xavante: o warã! Ali era visível o descontentamento do conselho dos ĩhire,
anciãos, a respeito da atitude dos dahi’wa. Os ĩhire sentiam-se desrespeitados em sua
autoridade ritual sobre a questão. Como já afirmamos o conselho dos ĩhire é quem
delibera sobre a aplicação de sanções aos ho´wa, quando há desvios de conduta. Neste
sentido, a ação dos dahi’wa afrontava esta prerrogativa. Assim a questão de maior
relevância não era a hipotética violação de um hö’wa, mas sim o desrespeito ao
conselho por parte dos dahi’wa. Não podemos esquecer que os ĩhire, anciãos,
constituem a autoridade do grupo doméstico a qual seus filhos estão sujeitos. Desde
modo a reprovação do conselho quanto à atitude dos dahi’wa foi estendida ao âmbito
das relações sociais que se dão dentro dos grupos domésticos. Em outros termos, os
ĩhire, chefes dos grupos domésticos, repreenderam seus filhos, os tirowa, por terem
desrespeitado sua autoridade no gerenciamento do processo ritual.
Uma primeira conclusão que se pode tirar deste episódio é que a instância
principal que delibera sobre aplicações de sanções aos hö’wa por possíveis desvios de
conduta é o conselho dos ĩhire que se reúne cotidianamente no warã, centro da aldeia.
Isto confirma o relato dos missionários Giaccaria & Heide (1984:160ss). Desta
conclusão surge outra questão: se cabe aos ĩhire deliberar sobre sanções aos hö’wa e os
dahi’wa têm conhecimento sobre estes tramites legais por que teriam eles agido de
forma contrária? Não teriam eles sucesso e conseguido fazer de um hö’wa um atsitõ
solicitando permissão ao conselho dos ĩhire? Teriam agido para demonstrarem
120

belicosidade frente à sociedade e à nova classe de idade que estava sendo iniciada? Se
aceitarmos que a ação dos dahi’wa teria ocorrido somente para expressar e corresponder
ao que a sociedade Xavante espera deles enquanto estão vivenciando esta fase do ciclo
de vida estaríamos limitando suas ações à estrutura ritual e, por seguinte, excluindo
margens de ações dos sujeitos e atores rituais.
Para entendermos e explicar melhor a ação desastrada dos dahi’wa em aplicar
sanções aos hö’wa este caso deve estar situada dentro do contexto da ação social. Desta
forma uma ferramenta analítica de uso possível é o conceito de drama social utilizado
por Victor Turner (1974). O autor observou que os Ndembu tinham como características
em sua vida social das aldeias Ndembu uma forte inclinação ao conflito. Turner chama
de dramas sociais os conflitos que se manifestam em episódios que levavam ao
surgimento de tensões publicas (Turner 1974:33). Quando os interesses e atitudes de
grupos e indivíduos encontram-se em explícita oposição, os dramas sociais me parecem
constituir unidades do processo social isoláveis e passíveis de uma descrição
pormenorizada (Turner 1974:33). Estas unidades do processo social devem estar
situadas num tempo histórico. Neste sentido um estudo de caso desdobrado, ou análise
situacional, nos ajuda-nos a entender a ação dos dahi’wa. Isto porque através deste tipo
de coleta e análise do material etnográfico o contexto social no qual situam as ações dos
atores sociais são de grande importância para o entendimento de conflitos. Através da
análise situacional o conflito pode ser incorporado como sendo normal em lugar de
parte anormal do processo social (VAN VELSEN, 1987:345). Quando interesses
individuais e de grupos encontram-se em oposição, a manipulação de normas sociais
pode ser acionada para atingir fins particulares. Isto em curta escala pode desestabilizar
temporariamente a ordem social, gerando uma situação de crise.

DIREITA ESQUERDA

8. ˜
ẼTEPA - (hö’wa, wapté) – em
processo de iniciação (1997).

7. TIROWA - (dahi’wa) - ‘ritéi’wa –


última classe de idade iniciada
desta metade (1992)
6. HÖTÖRÃ - (danhohui’wa) – última
classe de idade desta metade
iniciada (1985).

Quadro - 10 - POSIÇÃO DAS CLASSES DE IDADE EM 1997


121

No caso que estamos apresentado, quando ampliamos as investigações em busca


de pistas que possam nos ajudar a entender o porque dos tirowa terem agido contra a
norma, segundo a qual são os ĩhire é que deliberam sobre a aplicação de sanções aos
hö’wa, agindo por conta própria, fomos levados a buscar respostas em outras iniciações
do danhono. Desta forma descobrimos que durante a iniciação ao danhono de 1992
quando foram iniciados os tirowa, sendo eles os hö’wa naquela época, e que 1997
estavam vivenciando o ciclo de vida dahi’wa, houve uma acusação semelhante de
desvio de conduta. A diferença em relação ao ano de 1997 é que os dahi’wa daquela
época conseguiram seu objetivo, ou seja, fizeram com que um tirowa se tornasse atsitõ.
Para isso foram bem mais astutos do que dahi’wa de 1997. Tomamos conhecimento de
que os hötorã, ou seja, os dahi’wa de 1992 armaram uma emboscada e conseguiram
levar um hö’wa, na época da classe de idade tirowa para o mato e furam-lhe o lóbulo
das orelhas fazendo-o um atsitô.
Portanto, quando os tirowa, ou seja, os dahi’wa na iniciação do danhono de
1997 tentam furar a orelha de um hö’wa, da classe de idade ẽtepa
˜ , eles estão agindo não
somente porque se espera que eles sejam vigilantes e belicosos. Situado dentro de um
contexto social mais amplo os fatos nos levam a outro mecanismo de ação ritual e
política, segundo o qual os Xavante orientam suas vidas: a vingança. Os tirowa estavam
ainda “feridos” por terem tido um de seus companheiros castigado e rotulado por toda
sua existência como um atsitõ. Embora não tenham atingido seu objetivo principal, que
era furar a orelha do hö’wa, eles conseguiram deixar o processo ritual extremamente
tenso ao ponto de mobilizar pais e padrinhos a adiantarem a execução de uma série de
rituais que conduziriam à conclusão dos danhono da classe de idade etepa em 1997.
DIREITA ESQUERDA

7. TIROWA - (hö’wa, wapté) – em


processo de iniciação (1992).

6. HÖTÖRÃ - (dahi’wa) - ‘ritéi’wa –


última classe de idade iniciada
desta metade (1985).
5. AI’RE’RE - (danhohui’wa) –
última classe de idade desta
metade iniciada (1979).

Quadro - 11 - POSIÇÃO DAS CLASSES DE IDADE EM 1992


122

-----/////-----
O danhono, enquanto um rito de passagem na acepção de Van Gennep (1978),
segundo a qual o fato de estar vivo leva a pessoa a experimentar uma série de passagens
na em sua existência. Tais passagens, de caráter tanto biológico quanto social, são
pautadas por cerimônias que fazem passar o individuo de uma situação determinada a
outra situação igualmente determinada (Van Gennep, 1978:27). Retomando os estudos
de Van Gennep, Turner define igualmente os ritos de passagens como “ritos que
acompanham qualquer mudança de lugar, estado, posição social ou idade” (Van
Gennep apud Turner, 2005:138). Para Van Gennep (1978:31) os ritos de passagem,
quando analisados, podem ser decompostos em três categorias secundárias: ritos de
separação, ritos de margem e ritos de agregação. Se os ritos de passagem admitem, em
teoria, ritos preliminares (separação), liminares (margens) e pós-liminares (agregação)
não há equivalência entre eles tanto em sua importância quanto em sua elaboração
(idem). Turner, sintetizando estas três categorias de ritos de passagem, denominadas por
ele de ritos de transição, resume estas fases da seguinte maneira: a separação é
entendida como o afastamento do indivíduo, ou grupo, seja de um ponto fixo anterior,
na estrutura social, ou de um conjunto de condições culturais (...); no período liminar a
condição do sujeito ritual é ambígua, pois ele percorre um reino que tem poucos ou
nenhum dos atributos dos estados passado ou vindouro; e, finalmente, na terceira fase
ocorre a agregação onde se consuma a passagem concedendo estabilidade ao sujeito do
rito, individual ou corporativo, de modo que este adquire (...) direitos e obrigações de
um tipo “estrutural” claramente definido, e dele se espera um comportamento de
acordo com certas normas costumeiras e certos padrões éticos (Turner, 2005:138).
Aqui, por hora, nos interessa a fase liminar, ou margem, na qual vemos situados
os ho´wa. Embora possa parecer que estejam vivendo uma situação ambígua, pois não
são mais crianças, mas também não são adultos, a nova situação social, que pode ser
chamada de liminar, permite aos hö’wa viverem com grande liberdade, como
procuramos caracterizar acima. Apesar de os dahi’wa estarem atentos a seus
movimentos, sobretudo no que diz respeito ao comportamento sexual, eles procuram
desafiar a ordem estabelecida. Enquanto se espera que os dahi’wa sejam belicosos e
vigilantes, dos hö’wa é esperado que sejam ousados. Deste modo, quando os dahi’wa
conseguem tornar um hö’wa um atsitõ, mesmo com todos os conflitos que isso possa
gerar, eles reafirmam valores e status que a sociedade Xavante espera deles.
123

Oficialmente se espera que os hö’wa sejam obedientes aos danhohui’wa, que aprendam
os cantos e alegrem a comunidade executando-os cotidianamente, e ainda as técnicas de
produção material de artefatos usados nos rituais. Contudo, no dia-a-dia quando não
estão envolvidos em atividades formais suas ações na maioria das vezes podem estar
direcionadas a desafiar a ordem estabelecida. Neste sentido, apoiados pelo espírito de
solidariedade incorporada (Maybury-Lewis, 1984:157) que a convivência na hö, casa
dos solteiros, proporciona, eles partem em aventuras que se descobertas podem lhes
causar constrangimentos publicamente. Do contrário, quando bem sucedidas, podem
lhes trazer status de astutos e destemidos frente à comunidade. O alvo destas aventuras
são, na maioria das vezes, incursões às roças de toco que circundam a aldeia em busca
de milho verde e mandioca, a serem assados nas proximidades da hö.
Durante o tempo em que convivemos com os Xavante testemunhei vários
episódios nos quais os hö’wa desafiaram a ordem estabelecida. FATO 01: Num deles os
wapté estavam se preparando para uma curta expedição de caça pela Terra Indígena.
Considerando que o estoque de caça está se tornando escasso, as expedições de caça,
quando acontecem, mobiliza o levantamento de suprimentos extras a serem levados para
os acampamentos que são montados nos extremos da Terra Indígena. Já fazia algumas
semanas que os missionários e missionárias da missão vinham se queixando sobre o
desaparecimento de víveres da geladeira da ala masculina. As suspeitas recaiam sobre
os moradores da casa dos solteiros. Contudo, ninguém tinha conseguido provas
suficientes para incriminar os hö’wa. A proximidade da saída dos wapté para a
expedição de caça tinha deixado as missionárias em alerta, pois suspeitavam que os
hö’wa fossem “atacar”. Suas suspeitas não eram infundadas. Assim, por volta de duas
horas da madrugada fomos despertado pelos gritos das freiras que diziam haver uma
“corja” de wapté no terreiro da missão. Ainda sonolento descemos correndo, pois nosso
quarto estava no segundo piso do prédio da missão, e no deparamos com a cena um
tanto hilária: as irmãs desesperadas corriam tentando pegar os hö’wa. Fomos solicitados
a participar daquilo que mais parecia uma brincadeira de gato e rato, e por mais que
tentasse não conseguíamos segurar ninguém. A noite era de lua cheia de modo que era
possível ver os hö’wa que corriam de um lado a outro esquivando-se de seus captores.
Depois de várias tentativa sem sucesso fomos rendidos pelo cansaço. O mais perto que
conseguimos chegar de capturar uma wapté foi agarrando-o e quando já
124

comemorávamos a façanha, liso como quiabo o mesmo conseguiu se libertar. Ficamos


apenas com uma camiseta que o mesmo usava para cobrir o rosto.
Terminada as correrias ainda ajudei as irmãs, revoltadas, a recolher chinelos e
camisetas que os hö’wa haviam deixado para trás. No dia seguinte o assunto era, no
espaço missionário, a desastrada incursão dos wapté na residência dos missionários e,
no espaço dos wapté e demais alunos da escola, o fracasso das irmãs e seu ajudante em
tentar capturar um deles. Investigando os objetos deixados para trás conseguimos
levantar os nomes dos prováveis donos. Contudo, num clima jocoso apresentamos os
objetos aos alunos da escola e pedimos que se porventura seus donos estivessem ali que
viessem, posteriormente, nos procurasse para que os devolvêssemos. Entretanto, não
apareceram.
FATO 02: a missão mantinha uma pequena venda para atender a comunidade
São Marcos e adjacências. Os produtos comercializados, a preço de custo, visto que a
motivação era evitar que os Xavante se dirigissem em massa para a cidade de Barra do
Garças, eram: açúcar, sal, farinha de trigo, fermento químico, etc. O encarregado de
tomar conta da loja era um padre velho, que os Xavante a muito custo conseguiram
amansar, na interpretação deles. Enquanto estava na loja, pela manhã, o padre tinha o
costume de cochilar.
Naquela época a aldeia São Marcos, onde residíamos, estava se preparando para
executar um ritual durante o qual bolos são trocados entre hö’wa e danhohui’wa. Estes
bolos, na tradição Xavante, são preparados com espécies nativas de milho e feijão,
identificadas como milho e feijão xavante. Embora houvesse um estoque considerável
destas espécies nativas, os grupos domésticos estavam fazendo os bolos, chamados de
tsadaré, com farinha de trigo e fermento químico. Assim a procura pelo cereal era
grande. O resultado disso sobre o cochilo do padre já podia ser esperado: num desses
lapsos, enquanto ele sonhava com o paraíso, alguns hö’wa aproveitaram e levaram
alguns fardos de farinha e caixas de fermento químico. Quando o padre acordou a loja
havia sido pilhada, para desespero das irmãs que deram um ultimato: ou o que foi
levado era devolvido ou fechariam a loja! A loja foi fechada e os hö’wa nunca foram
identificados.
FATO 03: em 1998 a classe de idade ẽtepa
˜ já tinha completado sua iniciação
social através do danhono. Entretanto, sentimentos de amizade ainda mantinham os
membros desta classe de idade unidos. Naquele ano novamente a residência dos
125

missionários voltou a sofrer ataques de pilhagem durante a noite. Enquanto os


missionários, salesianos e salesianas estavam em suas respectivas salas de televisão e o
refeitório desguarnecido, os gatunos aproveitavam e limpavam a geladeira e o cesto de
pães. Com destreza entravam e saiam sem deixar pistas. Foi em 1998 o ano em que o
“país do futebol” viveu a euforia e decepção da Copa do Mundo, disputada na França,
com o inexpressivo jogo da final no qual perdeu para os anfitriões. Os Xavante viviam
igualmente a euforia da copa do mundo acompanhando os jogos através de antenas
parabólicas57. Na aldeia de São Marcos, quando a hö era construída nos arredores da
missão, havia um salão destinado à apresentação de vídeos aos alunos da escola. Este
mesmo salão era também usado pelos hö’wa, quando estavam morando na hö. Uma das
justificativas apontadas para o uso que os hö’wa faziam do salão recaia sobre o objetivo
de limitar o acesso dos mesmos a seus grupos domésticos.
Durante a copa do mundo, em vésperas de um jogo no qual estaria a seleção
brasileira entraria em campo, o refeitório dos missionários foi novamente pilhado, mas
desta vez não levaram apenas alimentos. O pesquisador, que trabalhava como voluntário
na missão naquele ano, havia deixado uma máquina fotográfica numa das estantes do
refeitório e a mesma foi levada pelos “gatunos”. No dia seguinte deu-se início a uma
investigação cujo objetivo principal não era descobrir quem tinha levado a máquina
fotográfica, mas sim recuperá-la. Por coincidência o controle das chaves que abria o
salão bem como do caixote no qual era guardada a televisão e o receptor de sinal da
antena parabólica estava a cargo do pesquisador. Neste mesmo dia, o do jogo do Brasil,
um dos representantes dos hö’wa, ocupante de um cargo cerimonial chamado
aihö´ubuni58 – o virgem, chefe do grupo de wapté, veio até o pesquisador solicitar a
abertura do salão para que seus companheiros de classe de idade pudessem assistir ao
jogo. A ocasião era perfeita para negociar a devolução da máquina fotográfica. Embora
não tivesse certeza de que a mesma havia sido levada pelos membros da classe de idade
ẽtepa
˜ , arriscamos condicionando a abertura do salão à devolução da maquina. Deu-se
então uma discussão entre os ‘ritéi’wa ĩté, os novos guerreiros, para levantar quem teria

57
O interesse por futebol não é uma peculiaridade apenas dos moradores da Terra Indígena Ao
Marcos. Seth Garfield (2001:01) relata sua participação numa roda de canto e dança Xavante durante uma
noite estrelada, em 17 de julho de 1994, na aldeia Parabubure. O canto e a dança não eram em honra e
homenagem à tradição ou aos ancestrais. Estavam comemorando a vitória do Brasil na Copa do Mundo.
Os Xavante de da aldeia São Marcos tiveram mais sorte e assistiram a copa pela televisão enquanto que
os de Parabubure se contentaram em ouvir o jogo pelo rádio, haja vista que houve falte de eletricidade
naquela aldeia no dia do jogo.
58
Trataremos sobre os critérios de escolha bem como das atribuições do aihö´buni adiante.
126

sido o autor do roubo. Enquanto aguardávamos a devolução da máquina fotográfica


tínhamos esperança de que deixassem o rolo de filme que havíamos colocado, pois os
autores das incursões noturnas ao refeitório dos missionários poderiam ser identificados,
caso tivessem tirado alguma fotografia. Até o início do jogo havia grande pressão para
que o salão fosse aberto e resistência para a restituição da máquina. Não obstante, a
vontade de acompanhar o jogo era tamanha que a máquina fotográfica foi restituída,
mas sem o filme fotográfico. Soubemos depois que o larápio residia em outra aldeia.
Situações como os fatos descritos acima são previsíveis na situação liminar. De
acordo com Victor Turner (2005) a relação entre os neófitos é marcada, na maioria das
vezes, por igualdade absoluta. Segundo o mesmo autor, (...) o grupo liminar é uma
comunidade ou um comitê de camaradas e não uma estrutura de posições
hierarquicamente arranjadas (Turner, 2006:145). Os três fatos que apresentamos
revelam a existência de um espírito de camaradagem e cumplicidade reinando entre os
hö’wa. Não obstante, este mesmo espírito de camaradagem se perpetua mesmo depois
da conclusão dos ritos do danhono, como pode ser visto no terceiro fato. Temos
constatado que este espírito de camaradagem se perpetua mesmo depois de passadas
várias iniciações.
O sistema de classe de idade e, por conseguinte, a vivência conjunta na casa dos
solteiros favorece a criação de laços de camaradagem e companheirismo entre seus
moradores. Neste sentido, a situação liminar, na qual os wapté estão temporariamente
inseridos, não pode ser pensada apenas como uma etapa do ciclo de vida. É através
desta situação que meninos e meninas, cada qual em seus momentos, são introduzidos
na sociedade Xavante59. Durante este tempo, o liminar, a convivência na hö, casa dos
solteiros, além de favorecer o espírito de companheirismo, que é sua principal
característica, permite ainda que distinções de clã e linhagem sejam superadas
(Maybury-Lewis, 1984:153), pelos menos em tese. Seria como se a casa dos solteiros
estivesse imune ou acima de qualquer pendenga política das facções. Entretanto, como
veremos adiante, as quimeras e desinteligências do jogo político das facções afetam em
cheio a casa dos solteiros.
Não seria exagero afirmar que a inserção no sistema de classe de idade e o
espírito de camaradagem daí decorrente constituem um passaporte para a vida social
Xavante a ser acionado sempre que necessário durante a existência da pessoa. Este

59
Embora possam haver outros rituais como o darini, conforme apontamos no capítulo I.
127

passaporte social, ou seja, ser membro de uma classe de idade, permite que uma pessoa
recém chegada numa aldeia possa ser inserida no contexto social e ritual. Contudo, o
pertencimento a uma classe de idade não é o único marcador social que opera neste
sentido. Filiação clânica, alinhamento faccionário constituem outras possibilidades de
identificação social. Segundo Maybury-Lewis (1984:227)
(...) um homem que chega a uma nova aldeia precisa aprender de que
maneira os vários grupos estão relacionados do ponto de vista das
disputas faccionárias, para poder agir adequadamente.

Diante disto é necessário que se tenha claro a distinção entre a organização


social e a estrutura social Xavante. Enquanto este segundo modo de classificação das
pessoas opera, de acordo com a história de vida de cada uma, distribuinda-os dentro do
sistema de clãs, classes de idade e grupos de rituais, no primeiro é que de fato elas se
revelam, ainda que referenciadas pela estrutura social e manipulando-a em prol de seus
projetos pessoais. A concepção de organização social segundo FIRTH (1974:53), ajuda-
nos a pensar esta realidade dos Xavante
A organização social implica um certo grau de unificação, a reunião
de elementos diversos numa relação comum. Para consegui-lo, pode-
se tirar proveito dos princípios estruturais existentes ou adotar
procedimentos variantes. Isso envolve o exercício da escolha, a
tomada de decisões. Isso se baseia, portanto, em avaliações pessoais,
que representam a tradução dos fins ou valores gerais ao nível do
grupo ou em termos significativos para o indivíduo. No sentido que
toda organização compreende a adoção de recursos, ela implica
dentro do esquema de julgamentos de valores e conceito de eficiência.
Isso conduz à noção de contribuições relativas, que os meios de
importância e qualidade diferentes podem trazer para determinados
fins.

Durante o processo ritual do danhono é possível visualizar com mais clareza o


modus operandi do espírito de camaradagem e companheirismo entre as classes de
idade. Como veremos adiante, as relações de companheirismo não estão circunscritas
somente aos membros de uma classe de idade de uma aldeia. Isto se tornou muito claro
para o antropólogo, que embora não tenha sido iniciado oficialmente na classe de idade
que está inserido, ou seja, não participou da cerimônia coletiva de furação de orelhas
juntamente com seus companheiros de classe de idade, pôde participar de todos os
rituais de iniciação do danhono tanto na aldeia que residia quanto em outras aldeias.
Neste caso, ao chegar numa aldeia onde se realizava o danhono e identificando-se como
um membro da classe de idade as relações mudavam completamente. Após a conclusão
do danhono o uso de categorias nativas de referência tornou-se recorrentes entre o
128

antropólogo e seus companheiros de classe de idade. Estas categorias dizem respeito à a


relação entre a classe de idade na qual o pesquisador está inserido e aquelas que estão
acima ou abaixo considerando o tempo de sua iniciação.
A produção antropológica tem mostrado que situações de companheirismo e

camaradagem são comuns durante o tempo liminar. Neste sentido, entre os Ndembu de

Zâmbia, como exemplifica Turner (2005:145ss), situações de camaradagem e

companheirismo entre os neófitos são percebidas através da partilha de alimentos, tanto

os trazidos pelas mães quanto os obtidos na mata, e no fato de dormirem juntos em

pequenos grupos em torno de fogueiras. Ainda segundo este autor, supõe-se que os

neófitos estejam ligados por laços especiais que persistem até a velhice. A categoria

nativa que os Ndembu de Zâmbia utilizam para caracterizar esta amizade é chamada

wubwambu – que significa peito, ou wulunda, que permite ao homem reivindicar

hospitalidade quando esteja em trânsito pelas aldeias. Não obstante, estas categorias dos

Ndembu parecessem referir-se a um tipo especial de amizade caracterizada na

antropologia por amizade formalizada.

Entre os Xavante este tipo de amizade foi descrito por Aracy Lopes em Nomes e

amigos: da prática Xavante a uma reflexão sobre os Jê, onde retoma as descrições de

Giaccaria & Heide e de Maybury-Lewis, além de suas observações em campo. Segundo

esta autora é possível distinguir entre os Xavante dois sistemas de relações sociais que

indicam possíveis relações de amizade formalizada: os laços que se estabelecem entre a

classe de idade que está inserida na hö, casa dos solteiros, e a classe de idade

encarregada de patrocinar sua iniciação, expresso através da categoria danimiwainhõ; e,

os laços estabelecidos entre dois ou três membros da mesma classe de idade enquanto

estão vivendo na hö e se estendem por toda a vida, que são expressos através da

categoria da´amõ60 (Lopes da Silva 1986: 204 e 214). Ambas as relações são

60
A categoria que expressa esta relação é o iamõ, que significa, de acordo com Giaccaria &
Heide (1984:296) colega, companheiro especial, enquanto que para Maybury-Lewis (1984:158) o termo
pode ser literalmente traduzido por meu outro ou meu parceiro. Acrescido do prefixo da, que segundo a
129

estabelecidas através de rituais próprios tendo por base a iniciação do danhono.

Trataremos do primeiro deles quando estivermos descrevendo a escolha dos

danhohui’wa – padrinhos. No segundo caso, o laço entre o da´amõ, é estabelecido no

momento em que os ai’repudu e ‘watébrémi´re, meninos, são conduzidos e

oficializados como moradores da casa dos solteiros.

Durante o tempo de nossa convivência com os Xavante nunca observei a


realização do ritual que estabelece os laços de amizade formalizada entre o da´amõ. A
descrição que faço do ritual está baseada nos
relatos de Giaccaria & Heide (1984:155).
Segundo estes autores os danhohui’wa,
padrinhos, dispõem os wapté, moradores da casa
dos solteiros, dentro da hö de modo que fiquem
alternados
segundo
sua filiação
clânica (cf.
quadro de
modelo

ideal). Quadro - 13 - Distribuição ideal dos


Desta wapté na hö

forma, tomando como referência a entrada da hö,


o primeiro morador estabelecido, a começar pelo
lado direito, deve pertencer ao clã po´redza´õno
(P.) e o segundo ao clã öwawẽ (Ö.) ou tob´ratato
(T.). Esta disposição segue alternando-se até que
todos os watébrémi e airepudo tenham sido
Quadro - 12 - Distribuição REAL dos
wapté na hö inseridos na hö. Doravante o wapté pertencente
ao clã (P.) usará o termo i’amõ para referir-se ao wapté do clã (O.) que está a sua direita
e este, por seu turno, usará como categoria de referência para com o wapté do clã (P.) o

Gramática Xavante, Pe. Georg Lachnitt (1999:33ss), torna o termo impessoal dando sentido genérico.
Assim, i´ãmo – colega, companheiro, quando recebe o prefixo da fica da´ãmo – do colega, do
companheiro, ou o colega da pessoa, o companheiro da pessoa.
130

termo itsiutsu. Segundo o relato dos autores estas categorias de referências serão usadas
por toda a vida do mesmo modo que a posição assumida na admissão à casa dos
solteiros será mantida durante as danças e contas durante e após o danhono. Para
Maybury-Lewis (1984:158) a importância deste tipo de relação está no fato de os laços
de amizade formal, estabelecidos entre membros da mesma classe de idade, ligar
homens de clãs diferentes. Ainda segundo o autor estes laços somente teriam vigor
durante os anos em que a classe de idade estiver ativa.
Os dois quadros, na página anterior, mostram as transformações que vêm
ocorrendo na cultura Xavante. No primeiro, a planta da hö revela-se em formato
circular, segundo o modo tradicional Xavante de edificação das casas, enquanto que
noutro a planta adotada está em formato retangular. Note-se que a disposição de seus
ocupantes segue novas possibilidades. Nas várias ocasiões em que visitamos a casa dos
solteiros em diversas aldeias observamos que sua ocupação interna não era tão rígida
como o esquema apresentado no quadro doze. Isto nos indica que a relação de amizade
formal entre i’amõ e itsiutsu não exige que eles estejam coabitando lado a lado na casa
dos solteiros. Numa das aldeias devido à quantidade de iniciandos havia mais de uma
hö. Neste caso vez ou outra os moradores das duas hö trocavam de lugar. No caso da
aldeia São Marcos durante a noite os moradores da casa dos solteiros optavam por
dormir nas varandas da escola e nas proximidades da igreja.
Dada à importância que a relação de amizade formal assume na sociedade
Xavante este tema foi retomado e ampliado por Aracy Lopes da Silva na obra que
citamos acima. Segundo a tese defendida por esta autora as relações de amizade
formalizada não se findam quando as classes de idade deixam de ser ativas. Para Lopes
da Silva (1986:216),
(...) estes laços vão se renovando e apenas os que são estabelecidos
após a iniciação é que são mantidos, inalterados, para sempre. Os
que são estabelecidos na casa dos solteiros, são depois substituídos
por relações de afinidade que passam a ser operativas a partir da
atualização do casamento destes jovens.

Isto provoca, segundo a autora, uma mudança na terminologia de relações entre


os membros de uma mesma classe de idade. Neste sentido, os membros da mesma
metade patrilinear utilizam a categoria itsirénhõno, enquanto que se pertencem a outra
metade tratam-se mutuamente de watsiutsu.
A renovação, ou estabelecimento de novos laços de amizade formal acontece
ainda tendo como base o danhono. Não obstante, isto se dará quando os que foram
131

iniciados estiverem vivenciando outras fases do ciclo de vida. Segundo Lopes da Silva
(1986:216) a ocasião onde isto acontece seria na cerimônia de luta chamada wa’i e na
corrida do tsa´uri´wa, descrita no capítulo IV. Aqui, de acordo com a autora, a escolha
de novos i’amõ ocorre entre os que viviam o ciclo de vida ‘ritéi’wa e pessoas de classes
de idade superiores (idem). Tal afirmação carece de detalhamento etnográfico de como
isto efetivamente acontece. Em nossa experiência etnográfica observamos duas
modalidades de luta wa’i: a primeira ocorre em diversos momentos durante o período de
“reclusão” dos moradores da casa dos solteiros e têm como seus oponentes os
danhonhui’wa, padrinhos; a segunda modalidade de luta wa’i ocorre somente uma vez
após todas cerimônias do danhono. Descreveremos etnograficamente estas modalidade
mais adiante.
O danhono permite que novos laços de amizade formal sejam estabelecidos
entre membros de uma classe de idade mesmo depois de sua iniciação. Isto acontece
quando os membros daquela classe de idade estiverem vivenciando o ciclo de vida ĩ
prédupté durante o desempenho do papel de danhohui’wa. Nesta ocasião eles adquirem
um novo i’amõ entre os membros femininos de sua classe de idade por ocasião da dança
do wanaridobe, adiante daremos mais detalhes etnográficos desta aquisição.
Lopes da Silva sintetiza com muita clareza a importância do danhono dentro do
sistema de aquisição de amizade formal. Segundo a autora,
a cada nova iniciação, ou seja, sempre que uma nova classe de idade
passa a integrar o corpo de homens maduros de uma aldeia, há o
estabelecimento de novos laços de i’amõ por virtualmente todos os
homens iniciados da aldeia, mesmo os mais idosos. Isto significa que
toda a comunidade se reorganiza ou, pelo menos, expande os laços de
aliança e amizade que se sobrepõem a relações hostis ou de evitação,
já que para tornar-se i´amõ um do outro, dois indivíduos precisam
pertencera diferentes metades de parentesco (Lopes da Silva,
1986:217).

Em suma, o sistema de classe de idades através da casa dos solteiros “isola”


temporariamente os ‘watébrémi’re e ai’repudu. Nesta nova condição social eles
assumem uma outra fase do ciclo de vida: a de wapté ou hö’wa, ou seja, morador da
casa dos solteiros. Tal convivência gera, através de sua forma organizacional, relações
de amizade formalizada que poderão ser mantidas ou trocadas ao longo da existência do
homem e mulher Xavante.
132

2.5.1.7 – WA’I - A CERIMÔNIA DE LUTA

Para descrever esta cerimônia partimos mais uma vez de relatos clássicos e em
seguida inserimos nossas observações. Segundo Giaccaria & Heide (1984:153), a
cerimônia começa com a convocação dos wapté pelos danhohui’wa para cantar no
entardecer perdurando a noite toda. Quando já é madrugada o warã´wa, aquele que
chega primeiro ao centro da aldeia, acende o fogo e emite gritos sinalizando aos wapté e
danhohui’wa que parem a dança e vão se pintar. Os wapté pintam-se na casa dos
solteiros, hö, enquanto que os danhohui’wa o fazem no centro da aldeia, no warã.
Quando todos estão pintados os danhohui’wa executam o canto uiwedenho’re,
comumente entoado após a corrida de buriti, e tocando um tipo de flauta chamado
upawã dirigindo-se a hö, onde os wapté os aguardam. Os wapté os aguardam sentados a
frente da hö, ficando dentro somente os aihö’ubuni, literalmente o virgem, wapté cujas
orelhas, por prêmio já foram furadas, ficam dentro da hö (Giaccaria & Heide,
1984:153). Eles saem somente depois que a luta teve seu início.
A luta, que ocorre no centro da aldeia, consiste em agarrar o oponente pelo
tronco e derrubá-lo. O danhohui’wa convoca, a seu critério, o wapté com o qual deseja
lutar, observando apenas que não seja de seu clã. Em lados opostos os oponentes se
dirigem de encontro um ao outro, onde o danhohui’wa ameaça golpear wapté com um
bastão ou borduna, jogando-o de lado e agarra o wapté pelo tronco. A performance
repete-se até que ambos estejam cansados, onde um diz: toã - basta, chega; e retornam
aos seus lugares. Segundo os autores, quando todos já passaram pela arena de luta os
danhohui’wa podem liberar a participação dos ‘watébrémi, meninos pequenos ainda não
admitidos como moradores da casa dos solteiros, e das ba’õnò, menininhas. Estes em
grupo lutam contra os danhohui’wa.
Esta parte do ritual deveria encerrar-se com o surgimento do sol. A segunda
parte consiste em dançar pela aldeia, seguindo o itinerário próprio da classe de idade
que está inserida na hö, até por volta de três horas da tarde. Com o fim dos cantos e
danças os wapté dirigem-se ao grupo doméstico de onde retornam trazendo um tipo de
bolo de milho assado nas cinzas chamado nonhama hopö´õno que será entregue a seu
danhohui’wa particular, escolhido conforme descrevemos no início deste trabalho. A
cerimônia encerra-se retornando os wapté para a hö e os danhohui’wa retornam para
suas casas.
133

As informações etnográficas da qual dispomos estão baseadas na iniciação da


classe de idade ẽtepa
˜ concluída em 1997. Nos primeiros meses daquele ano, antes que
se iniciasse o conjunto de rituais que culminam na conclusão do danhono, os
danhohui’wa pertencentes à classe de idade hötörã desafiaram pela última vez seus
“afilhados”, os wapté, da classe de idade ẽtepa
˜ para a luta do wa’i. Aqui os preparativos
foram menos ritualizados se comparados à descrição clássica de Giaccaria & Heide,
apresentada acima. Assim, no dia que antecedeu a luta os danhohui’wa puseram-se a
trabalhar no warã, centro da aldeia, em regime de mutirão, preparando a arena onde
ocorre a luta. Os trabalhos foram suspensos durante a noite e retomados na madrugada
do dia da luta. Este preparo consiste em afofar o solo de modo que este se torne macio.
Em verdade, é esta propriedade da arena, estar afofada, que dá nome a luta. Pode-se
igualmente dizer que wa’i é o trabalho realizado para deixar a arena afofada. O tamanho
da arena varia de acordo com o número de wapté que estejam residindo na casa dos
solteiros. O ritual que assistimos tinham cerca de quarenta wapté e mesmo número de
danhohui’wa. Para abrigar todos os lutadores a arena montada tinha o formato de um
quadrado com medidas de trinta metros pelos lados.
Durante a madrugada os wapté, moradores da casa dos solteiros, pintaram-se
como se preparam para a corrida de buriti e permaneceram aguardando dentro da hö,
casa dos solteiros, a ordem para dirigirem-se ao warã, centro da aldeia. Os
danhohui’wa, por seu turno, concentraram-se numa das clareiras situadas nos arredores
da aldeia onde também se pintaram seguindo o estilo usado durante as corridas de buriti,
porém sem aplicação das penugens de gavião real61.
Ao raiar do dia praticamente toda a aldeia já estava concentrada em volta da
arena buscando os melhores lugares para assistirem aos duelos. Os wapté saíram da hö,
onde estavam concentrados, e dirigiram se em fila indiana e foram os primeiros a
entrarem na arena. Em virtude da grande quantidade de lutadores os dois lados da arena
foram tomados pelos wapté, formando um ângulo de 90º. Em seguida surgiram os

61
A pintura dos wapté, segundo Müller (1976:46) não recebe um nome específico: este motivo
não possui nome e é identificado como pintura do wapté (categoria de idade ou recebe o nome da faixa
vermelha no ombro (dajuné)[passim]. Giaccaria & Heide (1984:290) também não apresentam um nome
para a pintura dos wapté. Em seus esquemas de pinturas Xavante, número 18, apenas dizem tratar de
pintura dos wapté para a corrida do buriti e para o waiño’re (idem). Esta última categoria, waiño´re ou
wa’i’nho’ré é traduzida pelos autores como canto depois da luta. Para este tipo de pintura utiliza-se
urucum com o qual se faz uma faixa de ombro a ombro, tanto na frente quanto nas costas. No abdômen
até altura do umbigo desenha-se um retângulo. Nas costas, partindo da faixa que foi desenhada, pinta-se
um retângulo até a cintura. A pintura dos danhohui´wa usada para esta ocasião é chamada de duhö, onde
se pintam braços, tronco e cochas em preto, com carvão, e desenha-se um retângulo vermelho, com
urucum, no abdômen e nas costas outro retângulo da cintura ao pescoço, também desenhado com urucum.
134

danhohui’wa que caminhavam com o tronco inclinado para frente, de modo semelhante
ao andar quando se procura pistas de uma caça. A maioria deles trazia uma borduna
embaixo do braço, enquanto que outros além da borduna tocavam um tipo de flauta
chamada upawã e emitiam gritos anunciando sua chegada. Os danhohui’wa
posicionaram-se a frente dos wapté ocupando a outra extremidade da arena. Neste
ínterim a comunidade já estava toda reunida em torno da arena atrás dos lutadores.
Alguns, para terem visão privilegiada dos duelos, chegaram mais cedo e trouxeram suas
cadeiras e bancos.
Abrindo os duelos um dos danhohui’wa fingindo-se ser um velho, a julgar pelo
modo de andar, onde segurava a borduna como se fosse uma bengala e com a outra mão
apoiada nos quadris simulava ter dificuldades para caminhar, dirigiu-se até o grupo de
wapté e indicou um deles que prontamente levantou e foi em sua direção. Fazendo-se de
conta como se fosse golpear o wapté com a borduna e depois a arremessando de lado os
dois se agarram pelo tronco e o dahohui´wa o jogou no chão. O duelo repetiu-se por
mais duas ou três vezes. Esta primeira performance levou a comunidade que assistia ao
delírio, que riam e comentavam o desempenho do “velhinho” [ĩhire] frente ao wapté. A
entrada do danhohui’wa fingindo-se ser um velho, às quedas dos lutadores e sua
recomposição eram motivos para muito riso entre os presentes. Ao término, uníssonos
gritavam: hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, pãrĩ; expressão de agradecimento muito usada pelos
Xavante ao término de rituais. Outras lutas seguiram-se depois desta. Numa delas o
danhohui’wa entrou na arena com um pacote de farinha e desafiou um dos wapté.
Quando o wapté se aproximou o mesmo colocou um punhado de farinha na boca e
arremessou o restante sobre seu oponente. O danhohui’wa pôs-se a correr pela arena
sendo perseguido pelo wapté e logo alcançado por este que o derrubou. Foi uma das
cenas mais hilárias dos confrontos. Em alguns casos, quando o danhohui’wa era muito
forte, um grupo de wapté se reunia para tentar derrubá-lo, provocando mais risos entre a
platéia.
Toda a cerimônia durou cerca de duas horas. Não observamos na luta que
assistimos, a entrada dos ‘watébrémi, meninos pequenos ainda não admitidos como
moradores da casa dos solteiros, e das ba’õno, menininhas. Em seguida os participantes
foram dançar no entorno da aldeia seguindo o itinerário próprio da classe de idade ẽtepa
˜
(em sentido horário). Estes cantos e danças recebem o nome de wa’i’nho’ré, canto
depois da luta. Como em outras cerimônias do danhono, são os danhohui’wa os
135

proponentes do canto, que depois de um breve ensaio, são executados seguindo o


esquema que já apontamos. Geralmente nos dias que antecedem os rituais a classe de
idade que está vivenciando o ciclo de vida de danhohui’wa se dirige para um local
muito afastado da aldeia e ensaia os cantos que serão executados no dia da cerimônia. O
número de cantos ensaiados na véspera da cerimônia de luta do wai’i está diretamente
relacionado ao número de danhohui’wa que estejam desempenhando este papel, e/ou
que estejam na aldeia. Desta forma, havendo um número expressivo de danhohui’wa a
execução dos cantos pode levar o dia todo. Do contrário, para que se garanta um
período razoável de execução dos cantos, cerca de cinco a seis horas, alguns
danhohui’wa podem executar mais de um canto durante a performance.
Ao término da fase do wa’i’nho’ré os danhohui’wa se dirigiram ao centro da
aldeia enquanto os wapté foram até seus grupos domésticos retornando logo em seguida
trazendo bolos, frango assado, refrigerantes que foram entregues aos padrinhos. À
medida que entregavam estes “presentes” os wapté retornavam à hö. Os danhohui’wa
consumiram parte dos alimentos que ganharam ali mesmo no centro, outra parte, porém,
fora enviada a seus grupos domésticos.
A cerimônia de luta wa’i, além de ter uma propriedade lúdica, pode ser
igualmente considerada como uma forma de avaliação do desenvolvimento físico dos
wapté por parte de seus “padrinhos” os danhohui’wa. De modo semelhante à cerimônia
de luta oi’o, já descrita acima, ela também pode ser vista como um ritual jocoso.
Durante sua execução a comunidade aldeã se reúne em torno da arena para assistir e não
só a avaliar a demonstração de forças entre os lutadores, mas também descontrair-se
com ela. Atos como andar como um velho, jogar farinha no oponente ou ainda a união
de um grupo de wapté para derrubar um danhohui’wa são fatos que corroboram nossas
afirmações a respeito de sua propriedade jocosa. Entretanto, estas pré-conclusões
carecem ainda de uma investigação antropológica mais detalhada. Quando observamos
sua realização na aldeia São Marcos, nos primeiro meses de 1997, a comunidade aldeã
parecia gozar de relativa paz interna. Não obstante, a cooperação entre aldeias, naquela
fase do processo ritual parecia indicar que questões política ou disputas faccionárias
estavam em gestação e não tinham expressividade. Afirmamos isto considerando que
naquela aldeia havia wapté de várias aldeias, uma vizinhança, segundo Turner
(2005:208), próximas a de São Marcos. De mais a mais, Apoena, líder que conduziu os
Xavante a estabelecerem contato com os missionários Salesianos, em 1956, ainda era
136

vivo. Voltaremos a descrever os bastidores políticos da aldeia São Marcos noutro


capítulo.
Considerando que o período de convivência do wapté na hö é, em média, de
cinco anos, a cerimônia do wa’i pode ocorrer pelo menos uma vez por ano durante este
período. São os ĩhire, anciãos, membros da classe de idade que tem o sufixo ‘brada
acrescido a ela que convocam a realização da luta do wa’i, pois eles também são os
donos da festa, como nos disse um informante.

2.5.2 - CARGOS ESPECIAIS NO PROCESSO DE INICIAÇÃO

2.5.2.1 - O A’ÃMA

A categoria A’ãma foi traduzida por Giaccaria & Heide (1984:291) como:
defensor, advogado de um certo grupo de idade [...]. Os Xavante adotaram a tradução
advogado para referirem-se aqueles atores rituais. Não obstante, seu modo de atuação
justifica esta adoção. Durante todo o processo ritual do danhono, e também fora dele,
sempre que houver um ritual envolvendo classes de idade que se coloquem em
oposição, segundo a configuração de metades cerimoniais, conforme descrito no início
deste trabalho, os a’ãma estarão atuando em prol da classe de idade júnior. Não tivemos
oportunidade de acompanhar a cerimônia que consagra ou instaura a condição de
a’ãma. Entretanto, participamos de vários rituais nos quais sua presença e interseção
estiveram presente. A seguir faremos uma descrição da cerimônia de escolha dos a’ãma.
Tomamos como referência o único relato completo do ritual disponível em Giaccaria &
Heide (1984:155_7), além dos relatos que alguns a’ãma nos forneceram durante
entrevistas.
A escolha dos a’ãma acontece depois da admissão formal de uma nova classe de
idade na casa dos solteiros, quando seus membros se tornam oficialmente wapté.
Considerando que os a’ãma também pertencem a uma classe de idade estes devem ser
escolhidos entre os membros da terceira classe de idade acima daquela que está inserida
na hö, casa dos solteiros. Tendo como base as iniciações do danhono que tem
acontecido na Terra Indígena São Marcos, aldeia homônima, constatamos que os a’ãma
têm sido escolhidos entre os membros da classe de idade que desempenhou os papéis de
danhohui’wa na última iniciação. No quadro número 14, na página seguinte, vemos que
137

a classe de idade abare´u, que fora wapté em 2005, teve como danhohui’wa os
membros da classe de idade tirowa, enquanto que noutra metade os membros da classe
de idade ẽtepa
˜ - última classe iniciada, assumiram o papel de dahi’wa, nesta mesma
metade, entre os membros da classe de idade os hötörã, que desempenharam o papel
danhohui’wa em 1997, foram escolhidos os dois a’ãma da classe de idade abare´u.
Segundo o relato de Giaccaria & Heide os pretendentes a desempenharem o
papel de a’ãma devem pedir aos anciãos que se reúnem cotidianamente no centro da
aldeia. Na eventualidade de haver muitos candidatos escolhem-se os dois primeiros que
se candidataram. Uma vez aprovados, os candidatos retornam à suas casas enquanto os
danhohui’wa dirigem-se á hö, casa dos solteiros e põem-se a gritar. Ao ouvirem os
gritos dos danhohui’wa, os a’ãma cobrem a cabeça com um tipo de abanico chamado
renhamri62 e começam a CLASSES DE IDADE
chorar. Os danhohui’wa
juntamente com os wapté DIREITA ESQUERDA

dirigem-se a aldeia e
1. ABARE'U (wapté)
cantam, à tarde, seguindo o 2. NODZÖ'U
63
estilo dahipopo . No dia 3. ANAROWA

seguinte os danhohui’wa 4. TSADA'RO


5. AI'RERE
acompanhados pelos wapté
6. HÖTÖRÃ (a’amã)
vão caçar para os a’ãma. 7. TIROWA (Danhohui’wa)
Estes, por seu turno, choram ˜
8. ẼTEPA (dahi’wa)
enquanto os caçadores Quadro - 14 - cargos rituais e classes de idade

estiverem fora durante a


caçada. Segundo os autores nos quais nos baseamos este choro é tido como de saudade,
conforme a expressão a expressão transcrita por eles: dapeedzé-te te ‘e da’rü ‘rü –
“estão chorando de saudades”- Giaccaria & Heide (1984:294).
Ao retornarem da caçada um dos danhohui’wa entoa uma tipo de canto chamado
abadzeinhi-rè dapã64. Nos arredores da aldeia dois dos danhohi´wa pintam-se e
ornamentam-se com três tipos de colares (waihiròbò-na, abadzidzanhamri itsõniã e

62
O renhamri se parece como uma pequena esteira e pode ser usado como prato. Nas cerimônias
onde há troca de alimentos este objeto é usado para transportá-los.
63
Neste estilo os dançarinos cantam e dançam de mãos dadas e flexionam levemente os joelhos
seguindo a melodia do canto.
64
Esta categoria pode ser traduzida como canto do cesto de carne, onde: abadzeinhi-rè – cesto
grande de carne e dapã – melodia - grito.
138

ubdö´wa65). Quando todos estão prontos o resultado da caçada é dividido em dois centos
fabricados pelos danhohui’wa. O canto abadzeinhi-rè dapã é novamente entoado e, em
fila, os wapté dirigem-se para a hö enquanto os dois danhohui’wa que haviam se
pintado tomam os cestos com o produto da caçada e dirigem-se à casa dos a’ãma.
Considerando que os dois a’ãma são de clãs opostos, ou seja, um öwawẽ e um
po´redza´õno, a entrega dos cestos de carne dá-se de modo alternado entre os clãs. O
cesto de carne é deixado na frente da casa do a’ãma que depois de advertidos, lançam
um grito e param de chorar. O cesto de carne é levado para dentro da casa pela mulher e
depois será redistribuída pelo irmão mais velho do a’ãma, que não pode tocar na carne
que lhe que fora entregue pelo danhohui’wa sob pena de sentir-se envergonhado por ser
a primeira vez que recebe carne.
As mulheres dos a’ãma preparam, no dia seguinte, bolos de milho ou batatas e
frutas que serão entregues aos danhohui’wa. Assim, por volta do meio dia, dois dos
danhohui’wa, de clã oposto do a’ãma, dirigem-se à suas casas e recebem o bolo que é
levado à hö. Ali o bolo é dividido para os demais danhohui’wa por dois wapté,
preferencialmente os primeiros que foram inseridos na hö. Os wapté não consomem o
bolo feito para os danhohui’wa.
Eventualmente os a’ãma podem pedir aos danhohui’wa que os ajudem a abrir
uma roça, refazer sua casa ou recolher cocos de babaçu. Para isso eles, ou somente
aqueles que estão precisando de ajuda, manda um dos filhos avisar os danhohui’wa
sobre a necessidade do trabalho. À tarde o a’ãma põe-se a chorar. Este choro, dizem
Giaccaria & Heide, deve durar enquanto perdurarem os trabalhos. Como retribuição
pelos trabalhos realizados o a’ãma, em companhia de seus parentes, faz uma caçada
cujo resultado será entregue aos danhohui’wa e wapté. Cerimonialmente o produto da
caça é levado à casa do a’ãma e depois, a tarde, um danhohui’wa vem buscá-lo e o leva
à hö, onde é dividida com os demais membros da classe de idade que desempenha o
papel de danhohui’wa. Porém, os wapté não podem comer desta carne.
Quando acontece a primeira corrida de buriti após a escolha dos a’ãma serão
eles os primeiros a iniciarem o transporte da tora, apoiando a classe de idade que está
em iniciação. Para esta ocasião cerimonial, e para as demais, os a’ãma pintam o corpo
todo em preto utilizando-se de carvão extraído da queima do caule da folha de buriti e
amarram um colar de algodão com uma pena de ema pendente nas costas.

65
Respectivamente: colar com pena de papagaio, colar de algodão que fica sob a clavícula e
colar de dente de capivara.
139

Segundo o relato Giaccaria & Heide existe a possibilidade do a’ãma ser do sexo
feminino. Neste caso a escolha do a’ãma, se for mulher, segue os mesmos
procedimentos. Entretanto, dizem os autores, elas não participam da corrida de buriti
acima mencionada. Nos ritos finais do danhono acontece uma corrida, a ser descrita a
frente, chamada tsauri´wa, soprador. Nesta corrida os a’ãma sendo do sexo masculino
são os primeiros a largarem no início. De outro modo, sendo eles do sexo feminino,
participam a partir da metade do percurso. A pintura corporal e os ornamentos são os
mesmos para homens e mulheres que assumam o papel de a’ãma. Eles utilizam uma
modalidade de pintura chamada ahu’rã66 – onde braços, pernas e tronco são pintados de
preto, e, como ornamentos é utilizado o itsõ’rebdzu’a – colar de algodão amarrado no
pescoço, como uma gravata borboleta, com as pontas desfiadas semelhantes a pompons,
e uma pena, branca, nova de ema chamada madzatsu. Nas entrevistas que realizamos
com alguns a’ãma eles não só confirmaram a possibilidade da participação feminina no
desempenho deste papel como também nos indicaram a existência de uma mulher, que
vivia na Terra Indígena Pimentel Barbosa, pertencente à classe de idade ẽtẽpab´raba,
portanto, muito velha, visto que houve uma renovação de sua classe de idade na
ocupação da casa dos solteiros indicada pelo sufixo ´brada, tempo estimado em
quarenta anos. A certeza de que esta mulher tinha sido um a’ãma estava em seu modo
de falar alterado, como veremos adiante. Soubemos que durante o processo de iniciação
da classe de idade ẽtepa
˜ , entre os anos de 1992 e 1997, estava decidido que um dos
a’ãma seria uma mulher pertencente à classe de idade ai’rere. Entretanto, outro membro
daquela classe de idade que vivia na cidade apareceu e reivindicou sua participação
como a’ãma, vejamos o relato:
Pesquisador: L., tem a’ãma mulher. L.: Tem! Existe!
Antigamente, né. Pesquisador: Antigamente! E agora? L.:
...quando eu ... me convocou era pra ser [a’ãma]a I., era
né, ela concordou para ser a’ãma ... mas como o L.
apareceu vindo da cidade, né?, então ele entrou de
repente. Porque o L., ele aceitou também. Então a I.
largou, afastou67...

66
A pintura ahu’rã é usada também pelos moradores da casa dos solteiros durante uma
modalidade da corrida do noni, a ser descrito a frente, com o diferencial nos ornamentos corporais.
67
Entrevista realizada em 18/07/2007. Optamos por apenas mencionar a inicial dos nomes para
não expô-las.
140

Este relato sobre a possibilidade e interesse de uma mulher ser a’ãma revela-nos
ainda tensões a respeito da escolha deste papel. Na sociedade Xavante onde o controle
do processo ritual está em mãos masculinas é rara, mas não impossível, a participação
feminina no papel de a’ãma. Nossa hipótese para que isto venha se efetivar está nas
circunstâncias do processo ritual, em particular nas tensões entre as metades formadas
pelas classes de idade. Considerando que o a’ãma e sua classe de idade pertencem à
outra metade em oposição a que está sendo iniciada, em caso de tensões entre estas
metades é factível que membros masculinos da classe de idade que deveria
desempenhar este papel se neguem a fazê-lo. Neste caso estaria aberto o espaço para
que de fato as mulheres viessem a desempenhar o papel de a’ãma. Em verdade, a
posição e presença do a’ãma durante o processo ritual, em relação à sua classe de idade
e à metade que está inserido é um tanto ambígua. Na iniciação anterior eles
desempenhavam o papel de danhohui’wa e estavam muito próximos apoiando,
defendendo, protegendo e patrocinando a iniciação dos wapté, que pertenciam à classe
de idade júnior de sua metade. Agora eles literalmente se colocam contra seus wapté,
afilhados, que vivenciam o ciclo de idade dahi’wa. Tal ambigüidade pode ser traduzida
pela palavra traição. Durante trabalho de campo enquanto entrevistava um dos a’ãma
da classe de idade abare´u, última que passou pelo processo de iniciação, um dos
dahi’wa acompanhava a conversa desabafou: ...ele é um traidor! Ao dizer isso o
dahi’wa se afastou de nós.
Dissemos acima que a categoria a’ãma pode ser traduzido por advogado,
defensor. Mas qual seria de fato seu papel ritual e seu modo de agir que algumas vezes o
leva a ser chamado de traidor? Haveria alguma recompensa que justificasse o fato de se
colocar contra os membros de sua metade em especial seus afilhados, os wapté, quando
ele foi danhohui’wa?
Dissemos acima que durante um processo de iniciação um wapté, morador da
casa dos solteiros, pode vir a ser acusado de transgredir uma regra de conduta, ou como
traduziram os missionários salesianos: ...quando um wapté faz mal68. Neste caso ele
pode ser castigado e ter a orelha furada sem festa, ou seja, sem as demais cerimônias
que compõem o danhono. Tal castigo confere-lhe o estigma de atsitõ. Esgotada todas as
instancias de apelação e mesmo que haja consenso sobre uma ação punitiva [...] A
decisão definitiva, qualquer que seja, é subordinada à palavra do a’ãma (Giaccaria &

68
Cf. Giaccaria & Heide 1984:161.
141

Heide 1984:162). Esta decisão se expressa através do choro. Em verdade, a atuação do


a’ãma durante o processo de iniciação se dá, sobretudo através do choro. Qualquer
cerimônia que o a’ãma julgue que os wapté estejam sendo prejudicados ou injustiçados
eles se põem a chorar e o ritual cessa imediatamente. Descreveremos estes momentos
adiante.
Acima, baseando-nos em Giaccaria & Heide, relatamos que os a’ãma podem
solicitar aos danhohui’wa e wapté que os ajudem em algumas tarefas extraordinárias.
Em experiência etnográfica não vimos isto tornar-se realidade, embora situações não
faltassem. Neste sentido, durante o tempo em que residíamos na aldeia de São Marcos e
durante os trabalhos de campo para o mestrado e doutorado, não presenciamos qualquer
pedido dos a’ãma aos danhohui’wa e wapté para ajudarem em seus trabalhos. Na aldeia
N. S. de Guadalupe, por exemplo, em 2005 a FUNASA69 instalou ali um poço artesiano
com bomba d’água movida a eletricidade oriunda de placa solar. Um dos a’ãma foi
contratado para cuidar e manter o equipamento funcionando. Uma semana após a
instalação dos equipamentos o mesmo estava danificado, pelas crianças - ‘watébrémi,
que passavam boa parte do dia brincando com o cano que sai do poço e nas hastes que
sustentavam as placas no melhor ângulo para captar a luz do sol. Apesar de haver uma
cerca pressão sobre o a’ãma para que fizesse uma cerca ao redor das placas solar e do
poço artesiano ele se limitava apenas em fazer pequenos reparos com tiras borracha nos
canos que apresentavam vazamento. Ao pesquisador ele dizia que seu trabalho era
apenas cuidar e não fazer o cercado, mas que estava fazendo um “projetinho” para que a
FUNASA construísse o cercado. A situação se agravou e o poço artesiano parou e ficou
quase um mês sem funcionamento. Em nenhum momento o a’ãma cogitou pedir ajuda
aos danhohui’wa e wapté para que o ajudassem a cercar o poço. Quando questionado
sobre o reparo do poço e seus equipamentos ele dizia que estava cansado de solicitar à
FUNASA para que mandasse um funcionário especializado e fizesse a manutenção.
Este seria um dos momentos que ele poderia pedir esta ajuda. Haja vista, que ele não
tinha roça e trabalhava como professor na escola e acumulava o cargo de agente
sanitário da aldeia.
A trajetória deste a’ãma ajuda-nos ainda a pensar as tensões nos bastidores onde
se escolhem os atores sociais que desempenham estes papéis. Acima vimos uma
situação onde uma mulher, que pleiteava o papel de a’ãma, e desistiu diante dos planos

69
O controle sobre os projetos de saúde indígena deixaram de ser gerenciados pela FUNAI e
foram transferidos para a FUNASA – Fundação Nacional de Saúde.
142

de outro membro, masculino, de sua classe de idade. No relato que apresentamos,


quando havia muitos candidatos ao papel de a’ãma somente os primeiros que se
candidataram eram aceitos para o papel. De acordo com os autores que tomamos como
referência, (...) Se são muitos os que pediram [para ser a’ãma], os dois primeiros são
feitos A’ÃMA [passim], os outros são nomeados sucessivamente (Giaccaria & Heide,
1984:155). Não temos informações em que circunstâncias estas nomeações futuras
aconteciam. Considerando que são dois os a’ãma, pertencentes a clãs opostos, nossa
hipótese é que as nomeações futuras poderiam acontecer em decorrência da falta de um
dos nomeados. Esta falta se daria por morte ou abandono de aldeia, em decorrência de
divergências políticas. É plausível que na ocorrência de muitos candidatos haja
relutância de um deles em desistir da posição de candidato e force os demais a
abandonarem suas pretensões, caso não tenham um forte apoio. Um caso concreto que
levantamos durante o trabalho de campo corrobora esta hipótese.
Segundo um informante, na época em que foram escolhidos os a’ãma para
classe de idade abare´u, antes que os nomes fossem apresentados no warã, centro da
aldeia, onde os “velhos” se reúnem, houve uma reunião entre os membros da classe de
idade da qual sairiam os a’ãma. Parecia haver consenso sobre o nome de dois
candidatos (Fd. e F.) que se colocaram como pretendentes. Entretanto, segundo o
informante, houve uma disputa de última hora, o que provocou uma mudança na
escolha dos a’ãma. Vejamos parte da entrevista:
Pesquisador: Quando vão escolher o a’ãma? Quem escolhe? L.: é o
seguinte: se a pessoa, assim, aceitar, né?, a pessoa mesmo,
pessoalmente. P.: ele se candidata? L.: vai ser candidato, né? Se ele
aceitar já indica: _ tá bom eu vou ser a’ãma! É assim! P.: e se houver
bastante gente querendo ser? L.: ai vai ter reunião na assembléia,
decidindo: _não, você não pode não; _ ele vai ser! _ ah, não, não, eu
não vou querer; _ não! eu aceito!; Então é assim: decide! P.: E se
houverem muitos candidatos insistentes? E ai? L.: O U., ele é
cabeçudo! P.: ele é cabeçudo? Ele quis, porque quis? L.: Ele quis,
mas o grupo dele, o seu grupo70, não gostava para ele. Mas assim
mesmo ele entrou de cara de pau. Porque não tem cabimento Paulo!
P.: mas tinha outro candidato do meu grupo? L.: Tinha! O F., mas ele
(o U.) não deixou para ele. Na última hora foram para cima do
Devagar71, só o grupo, ai falaram para ele: _ não U., deixa para o F.!
e ele: _ não já estou candidato. Ele disse mesmo Paulo! P.: Ele
mesmo? L.: ele mesmo! Ele é cabeçudo mesmo! P.: e quem foi o

70
Refere-se a mesma classe de idade na qual o pesquisador está inserido.
71
Ponto de referência localizado na estrada que dá acesso a aldeia N. S. de Guadalupe. É a
última descida, sentido cidade/aldeia, antes de chegar à aldeia N. S. de Guadalupe. Ali havia uma placa de
sinalização, colocada pelos missionários Salesianos quando estes abriram a estrada, com a inscrição
devagar.
143

companheiro de U.? L.: é o Fd.! Ai concordaram, né? Porque tem


bastante primos, né? Então já combina direto. (...) até é o tio nós
apoiamos (...).

Os bastidores da escolha do a’ãma para as classes de idade ẽtepa


˜ e abare´u
mostra-nos que elas não se dão de modo consensual. No primeiro caso, a retirada da
candidatura de uma mulher em detrimento do candidato homem, que vivia na cidade,
mostra-nos o uso do papel ritual, o de a’ãma, para reafirmação de pretensões políticas
futuras. É comum entre os Xavante a tática de desprestigiar adversários políticos que
vivem na cidade, acusados de renegarem a cultura. Neste sentido, quando L72. retorna
da cidade e assume o papel de a’ãma ele quer passar um recado a seus adversários:
moro na cidade, mas estou conectado com a vida ritual, ou cultural, na aldeia. No
segundo caso, a escolha do a’ãma para classe de idade abare´u, permite-nos duas
conclusões: quando U. se coloca como candidato e depois assume o papel de a’ãma
contrariando as opiniões de seus companheiros de classe de idade que apoiavam F., ele
se mostra mais forte e convicto de suas pretensões. Nesta situação U., é mais velho do
que F. Por seu turno F., em seu dia-a-dia não apresenta grande pretensões políticas.
Desta forma, quando U. desafia seus companheiros de classe de idade ele o faz porque
sabe que seu oponente não se esforçará para se manter na disputa. Daí também o porquê
da classe de idade aceitar U. como a’ãma, uma vez que F. não lutaria por este papel. A
segunda conclusão que tiramos deste episodio ajuda-nos a entender porque F. desistiu
facilmente do papel de a’ãma, enquanto o outro candidato (Fd.) foi aceito sem
contestações e enfrentamentos. Ocorre que Fd., mesmo sem grande expressão política,
tinha grande apoio de parentes, primos e tios. O candidato F. era fraco politicamente e
não tinha apoio de parentes.
Nosso informante revelou-nos, que no seu caso, foram seus parentes que o
convenceram a candidatar-se e assumir o papel de a’ãma da classe de idade ẽtepa
˜ , que
concluiu sua iniciação em 1997. Vejamos parte da conversa:
Pesquisador: como foi no seu caso? Como foi a escolha para você ser
a’ãma? L.: (...) dentro da minha família, dentro dos nossos irmãos,
primo ninguém tem a’ãma, né? Então eles me convocam, assim, né?
Porque eu mesmo, no meu coração, eu aceito, né?Porque eu, assim,
vê, como se fala?, eu to vendo assim a divisão, assim, vê de longe, né?
O futuro. Ai ele, ele mesmo: o meu primo, meu irmão estão me

72
Anos depois, em 2002, este a’ãma deixou a aldeia São Marcos em decorrência dos conflitos
faccionais que levaram a cisão da aldeia, e foi um dos fundadores da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe.
Nesta aldeia L. houve uma disputa pelo posto de cacique e o a’ãma juntamente como outros grupos
domésticos fundaram a aldeia Nossa Senhora de Fátima.
144

apoiando, né? Até os velhos a’ãma, o João Brabo, né? Ele me apoiou,
ele me chamou. Ai eu concordei. Eu vou querer, eu vou aceitar o
a’ãma. Ai concordou. Todo mundo me gostaram, né? Até as pi’õ,
mulher, moça. Pesquisador: principalmente, né? Informante: risos!
(...).

Os dados etnográficos nos levam a concluir que o processo de escolha do papel


ritual de a’ãma é susceptível de ambições pessoais que passam pelo crivo do contexto
político associado ao apoio de uma parentela expressiva, incluindo homens e mulheres.
Neste sentido, atores sociais sem ambições políticas e de personalidade, considerada por
eles, fraca até podem se candidatar e tornar-se a’ãma se tiverem apoio de um grupo de
parentes, mas do contrário, se não tiverem uma base de sustentação, cedem facilmente a
outros atores sociais com maiores ambições políticas. Isto se dará em outros contextos
rituais, como veremos adiante.
Os bastidores do processo de escolha dos a’ãma revelam em que circunstância e
quais as manobras são utilizadas para tanto. Estaria o papel ritual do a’ãma
condicionado somente a interesses de grupos domésticos a terem um de seus membros
desempenhando tal função? Ou teriam os candidatos apenas motivações políticas para
tornarem-se a’ãma a ponto de manipularem o ritual em seu favor? O interesse em ter
ajuda dos danhohui’wa e wapté, na prestação de serviços a ele, não parece ser uma
motivação muito forte, como vimos acima, no caso do a’ãma encarregado de “cuidar”
do poço de abastecimento da aldeia. Conversando com vários a’ãma ao longo do
trabalho de campo, sempre que descobríamos que eles haviam desempenhado este
papel, um ponto nas conversas foram se tornando recorrentes. Este ponto comum está
presente no final do relato sobre a escolha de nosso informante (L.) para o papel de
a’ãma. Segundo ele, Todo mundo me gostaram, né? Até as pi’õ, mulher, moça. Esta
aprovação das mulheres e moças, ainda que não externadas publicamente, constitui uma
forte motivação pela busca do papel de a’ãma.
Ocorre que no dia-a-dia os a’ãma podem ter favores sexuais prestados por
qualquer mulher da aldeia, respeitando as interdições que a organização social Xavante
impõe ao comportamento social. Nas rodas masculinas quando perguntava sobre a
veracidade destes favores havia unanimidade nas afirmações sobre a questão.
Entretanto, ainda tínhamos dúvidas sobre a questão. Tais dúvidas foram esclarecidas
num momento em que o processo ritual de iniciação caminhava para o seu desfecho.
Este momento consistia numa corrida de buriti, a cerimônia do uiwede. Fomos até a
aldeia São Marcos para acompanhar aquela cerimônia. Ali, como de costume, pegamos
145

uma carona no caminhão que leva os competidores até o início da corrida. O caminhão
nos levou até o provável local, em seguida outra viatura, da FUNASA, passou pelo local
levando a tora de buriti para um ponto mais a frente, cerca de um quilometro e meio do
previsto. Juntamente com outros corredores nos dirigimos até aquele local. Optamos por
caminhar ao lado de um a’ãma, já de certa idade. Enquanto caminhávamos ele
explicava como acontecia a escolha do a’ãma. Ao final de suas explicações, sabendo
que este a’ãma era alinhado com o pensamento catequético dos missionários, haja visto
que também desempenhava o papel de agente de pastoral e era catequista, repeti a
mesma questão que havia feito aos demais a’ãma: é verdade que o a’ãma pode ter
relações sexuais com qualquer mulher? No que ele respondeu sorrindo: o a’ãma
respeita todas as mulheres! Entretanto, depois de um breve silêncio, acrescentou: o
a’ãma parece que tem um imã. Ele atrai todas as mulheres! Acredito que esta seja uma
motivação importante que os candidatos ao papel a’ãma levam em consideração quando
se prontificam a exercê-lo. Afinal, nos parece que nem só de interesses e arengas
políticas vivem os homens Xavante.
Uma vez que os a’ãma são aceitos para desempenhar seu papel ritual eles
passam a acompanhar todas as cerimônias que compõem o processo de iniciação. Em
todos os rituais, eles têm autoridade absoluta. Esta autoridade consiste em poder
interromper os rituais sempre que observarem que os iniciandos estão sendo submetidos
a obrigações que estejam além de sua capacidade física, ou que venham a comprometer
seu desempenho em outro momento do processo ritual. Um exemplo da atuação dos
a’ãma pode ser visto durante a corrida do tsauri’wa, soprador, quando eles
acompanham os dahi’wa fiscalizando sua conduta no intuito de evitar que estes se
utilizem de substâncias proibidas que possam prejudicar a saúde dos iniciandos.
Naquela corrida os dahi’wa podem utilizar algumas substâncias, como por exemplo, o
pó extraído da raiz de algumas plantas, com a finalidade de deixar os iniciandos
atordoados e levando-os ao desmaio.
Na iniciação da classe de idade ẽtepa
˜ os a’ãma tentaram impedir, sem sucesso,
que os dahi’wa utilizassem desodorante liquido, que eram esguichados nos iniciandos
durante a corrida. O resultado foi um clima de muita tensão entre pais e danhohui’wa
versus dahi’wa e membros de sua metade no fim da corrida, que se conclui no centro da
aldeia. Em sua defesa os acusados de utilizar desodorante, além de negar o fato,
defendiam-se fazendo eles próprios acusações, quando os dahi’wa foram iniciados os
146

membros da classe de idade que naquele momento tinham este papel ritual teriam
utilizado veneno BHC e DDT que foram aspergidos sobre os iniciandos. Portanto,
tratava-se de uma vingança que os a’ãma não puderam evitar. Retomaremos estes dados
quando estivermos descrendo a cerimônia da corrida do tsauri’wa. De mais a mais, os
a’ãma transitam livremente entre os dahi’wa e os wapté, sobretudo entre os primeiros.
Durante o processo ritual eles estão atentos a qualquer atitude suspeita dos dahi’wa em
relação aos moradores da casa dos solteiros.
O exposto nos ajuda a entender o porquê do a’ãma ser acusado de traição.
Considerando a dinâmica dos rituais de iniciações do danhono parece que o artifício da
vingança está sempre presente. Neste sentido, os dahi’wa de hoje esperam que os
a’ãma, que foram seus danhohui’wa, na última iniciação, os apóiem em seus projetos de
vingança sobre os atuais iniciandos. Entretanto, se a iniciação anterior àqueles que
teriam sido “vítimas” da outra metade cerimonial, cujos membros que tinham o papel de
dahi’wa, e que, portanto, demonstraram ser valentes deixando os iniciandos em situação
de vergonha pública, na iniciação atual eles procuram devolver a vergonha pública a
que foram submetidos no passado. Em caso de sucesso eles estarão correspondendo ao
que se espera deles no momento atual do processo ritual. Do contrário, em caso de
fracasso, a vergonha pública se dá duplamente. Ou seja, foram “vitimas” no passado e
hoje não conseguem infligir a marca da vingança nos membros da metade oposta. Os
a’ãma, movidos pela ética do papel ritual que deles é esperado, ou seja, defender os
wapté, e que, portanto, pertencem à outra metade, ao se colocarem contra os projetos de
vingança dos dahi’wa, membros de sua metade, são por estes considerados traidores.
Ao transpormos a dinâmica ritual para o campo político podemos dizer que a lógica do
pensamento de vingança presente num momento será o estopim de conflitos faccionais
em outros momentos da vida social Xavante. Neste sentido, preliminarmente podemos
concluir que o sentimento de vingança pode ser o combustível que alimenta as tensões
entre as facções. Voltaremos a estas considerações na conclusão deste trabalho.
Após a conclusão do processo de iniciação os a’ãma matem o status ritual,
porém, sem exercê-lo na próxima iniciação. Há duas maneiras de identificar aqueles que
desempenharam o papel ritual de a’ãma. A primeira diz respeito ao modo como os
a’ãma passaram a falar, conforme o quadro73 abaixo:

73
Este quadro foi elaborado a partir de Giaccaria & Heide (1984:157) acrescido de dados
coligidos durante o trabalho de campo.
147

Como se pode notar entre a linguagem comum e a adotada pelos a’ãma a


diferença está no início de cada palavra. Neste sentido, a maior parte das palavras que
os a’ãma utilizam começam com a letra A. Esta peculiaridade na mudança de
linguagem é estendida também às pessoas que atingem o ciclo de vida ĩhire, velhos.
Entretanto, enquanto os a’ãma alteram significativamente o modo de falar mudando
completamente as palavras os ĩhire mudam somente a fonética da grafia. Foi através do
modo de falar que um dos meus informantes confirmou a existência de mulheres que
desempenharam o papel de a’ãma, como vimos acima.
LINGUAGEM COMUM LINGUAGEM DO A´ÃMA TRADUÇÃO
'Ritei'wa Atsabutei'wa Novo guerreiro.
Da'wa Aiare Dente
Danohui'wa Auwe Atsimnhohu Padrinho
Dapo'redza'ru Auwewa’redza'ru Furo das orelhas
Dapo'rewau Aihunihöri Botoque auricular
Pea Atsarebea Peixe
Pone Anê Veado do cerrado
'Ri Atsabu Casa
Uhödö Atsaenê Anta
Utönhi Atsaètenhi Carne de anta
Wapte Auwe Morador da casa dos solteiros

Quadro - 15- Vocabulário do a'ãma

O segundo modo pelo qual podemos identificar os a’ãma, após o fim do


processo de iniciação está na
terminologia de parentesco. Vejamos
o esquema abaixo:
Os irmãos e irmãs do a’ãma
deixam de tratá-los com a
terminologia de parentesco e passam
a referir-se a ele por a´ãmonori. Por
seu turno, o a’ãma tratará seus
irmãos e irmãs, inclusive os
classificatórios, por ‘roptsi seguido
pelo nome da pessoa. Esta categoria
pode ser também usada em sua forma Quadro - 16 - Relações de parentesco do a'ãma

abreviada ‘ro. No caso de seu tio materno que teve sua filha casada com o filho do
a’ãma, logo após o fim da iniciação, ocorreu também uma mudança nas relações e na
terminologia de parentesco. O pai da noiva passou a ser considerando watsini74 pelo

74
De acordo com Giaccaria & Heide (1984:117) a categoria watsini é o conjunto dos pais
daqueles que podem desposar os meus filhos. São, portanto, de grupo diverso meu e seus filhos não têm
nenhuma relação de parentesco com os meus.
148

a’ãma. Ele (o a’ãma), por sua vez, deixou tratar todos os parentes de seus watisni pela
categoria ‘roptsi ou ‘ro.

2.5.2.2 - OS AIHÖ’UBUNI

Os aihö’ubuni, o(s) virgem(ns), desempenham o papel de líder dos wapté até a


oficialização dos pahöri´wa. Segundo Giaccaria & Heide (1984:154) a escolha daqueles
que serão aihö’ubuni se dá através de uma proposta feita pelo tso’rebdzu’wa75, dono dos
colares de algodão, durante a cerimônia do danhimnhõ’rebdzu, retirada dos colares de
algodão antes do menino ser admitido como morador da casa dos solteiros. Nesta
ocasião tso’rebdzu’wa coloca no pescoço do candidato um colar feito de algodão e
sementes de capim navalha e no punho uma pulseira feita com unhas de porco do mato.
O candidato terá seu comportamento vigiado pela comunidade aldeã até o momento da
admissão dos novos moradores na casa dos solteiros, no dia de sua abertura. Nesta
ocasião o pai do candidato perguntará no warã, centro da aldeia, quando os anciãos
estiverem reunidos, se o seu filho tem o mérito de tornar-se aihö’ubuni. Este pode ser
um momento de tensão entre os grupos domésticos, podendo ser estendido às facções. O
“cargo cerimonial” aihö’ubuni confere prestígio a quem o detém. Este prestígio,
segundo Lopes da Silva (1986:76), é decorrente das responsabilidades que o cargo
exige.
Lopes da Silva (idem) considera a categoria aihö’ubuni, juntamente com as de
pahöri’wa e tébé, como títulos na sociedade Xavante. Isto se deve à persistência destas
categorias ao longo da vida de quem as deteve. Enquanto estão vivendo na casa dos
solteiros os meninos são tratados como hö’wa. Esta categoria suprime os nomes
pessoais que os meninos teriam recebido antes de sua admissão formal à casa dos
solteiros. Contudo, após o término do processo de iniciação aqueles que foram
moradores da casa dos solteiros voltarão a receber e dar seus nomes. Estes atores sociais
ficam (...) conhecidos pelo resto da vida pelos nomes dos cargos embora tomem outros
nomes pessoais como fazem todos os outros homens Xavante (Lopes da Silva, 1986:78).
Entre os Xavante certos papéis rituais são prerrogativas de um clã específico.
Este é o caso do papel ritual de aihö’ubuni que é “propriedade” do clã poredza’öno.

75
A categoria tso’rebdzu’wa pode ser traduzida como o dono do colar de algodão. Tso’rebdzu
um tipo de colar de algodão dado ao filho da irmã. Por esta ocasião o MB, irmão da mãe ao entregar o
colar torna-se danho’bdzu’wa, pai cerimonial.
149

Entre suas atribuições está o exercício da liderança junto aos wapté, moradores da casa
dos solteiros. Durante a realização das diversas cerimônias que acontecem durante o
período de “reclusão”, entre elas, por exemplo, os cantos executados diariamente na
aldeia, são os aihö’ubuni que tomam frente na fila na condução dos demais wapté para
sua execução. Além da posição a frente da fila nas cerimônias, é possível identificá-los
pelo uso de ornamentos corporais específicos. O colar de pena de mutum, a’a’a bö, é
um destes ornamentos utilizados nas cerimônias.

2.5.2.3 - PAHÖRI´WA E TÉBE

Os atores sociais que desempenharam o papel ritual de pahöri’wa são membros


do clã po’redza’õno. Segundo o relato de Giaccaria & Heide (1984:154) a escolha dos
pahöri’wa
é confiada aos pahöri’wa ĩté, isto é, aos que são padrinhos do grupo
de wapté e se cumpre perto de um ano antes da verdadeira perfuração
de orelhas, após ter ouvido o parecer dos anciãos (Giaccaria & Heide
(1984:154).

Uma vez definido quem serão os novos pahöri’wa, os pahöri’wa ĩté comunicam
sua decisão aos pais dos candidatos que podem recusá-la individualmente, já que o
papel ritual deve ser exercido por membros do clã. Em acordo com os pais do candidato
os pahöri’wa ĩté dirigem-se até hö, onde os wapté os aguardam sentados à frente da
casa, e fazem os eleitos se levantarem. Por esta ocasião um dos danhohui’wa, do clã
öwawẽ, entoa um canto com estilo de dança dahipopo, acompanhado pelos demais
wapté. Os dois candidatos a pahöri’wa são conduzidos até o rio onde executam o ritual
de bater água, datsi’watè, para amolecer os lóbulos das orelhas. Eles retornam à hö e
aguardam o raiar do dia quando terão os lóbulos das orelhas furados por um dos
danhohui’wa. Os demais wapté pintam-se com o motivo tsanapré76 e aguardam até que
sejam furadas as orelhas dos pahöri’wa. Ao término desta parte da cerimônia os wapté,
conduzidos por um dos danhohui’wa, dirigem-se à aldeia onde executam um canto com
estilo de dança dapraba. Ao término deste canto outro danhohui’wa irá reunir-se ao
grupo e entoar outro canto. Todos os danhohui’wa entoarão cantos juntamente com os
wapté pela aldeia. Neste sentido, considerando que são muitos os danhohui’wa para

76
Neste estilo de pintura desenha-se um retângulo no abdômen e nas costas. Nos tornozelos até
metade da canela pinta-se de carvão, de modo semelhante a uma meia. Como ornamento corporal utiliza-
se cordinhas de embiras nos punhos e tornozelos e o colar de algodão amarrado no pescoço.
150

entoarem o canto esta cerimônia se estende durante o dia todo. Estes cantos não são
iguais e são de propriedade daqueles que o entoaram. Somente o estilo de dança pode
ser o mesmo. De mais a mais, como em outras cerimônias onde o canto perdura o dia
todo, na escolha dos pahöri’wa abre-se com o estilo de dança dapraba seguida pelo
estilo dadzarõno, até o penúltimo canto, para depois encerrar-se com dapraba
novamente.
Após a cicatrização dos furos nos lóbulos das orelhas os pahöri’wa irão
introduzindo batoques auriculares, chamados dapo’rewa’u, maiores para aumentarem o
tamanho dos furos tendo em vista o uso de um ornamento confeccionado com dentes de
capivara, ipo’redza’ru ou dapo’redza’ru, que será introduzido nos lóbulos no dia da
cerimônia que recebe o nome de seus oficiantes, pahöri’wa. Diante disso pode se dizer
que estes wapté são virtualmente pahöri’wa, haja visto que não se realizou ainda a
cerimônia que os oficializam enquanto tal.
A cerimônia de escolha daqueles que serão os pahöri’wa marca o fim da
autoridade dos aihö’ubuni frente aos demais wapté. Deste dia em diante serão os dois
pahöri’wa que tomarão a frente da fila formada pelos moradores da casa dos solteiros
durante a realização de rituais na aldeia. Considerando que tanto os pahöri’wa quanto os
aihö’ubuni devem ser membros do mesmo clã, o po’redza’õno. A troca de posições de
atores rituais pode ser um bom argumento para justificar a prevalência de membros
deste clã frente ao exercício da chefia Xavante nas aldeias. Desconstruiremos esta
hipótese em outro capítulo deste trabalho.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:154) no mesmo dia que ocorre a cerimônia de
escolha dos pahöri’wa escolhe-se também aqueles que serão oficiantes da cerimônia
tébé, cerimônia que confere o mesmo nome a eles. Entretanto, dizem os autores, (...)
este reconhecimento não comporta nenhuma função ou importância particular quando
são wapté (idem). Não obstante, como ocorre entre os pahöri’wa, eles assumem uma
posição fixa na fila cerimonial.
A partir de então da fila cerimonial será composta tendo a frente os dois
pahöri’wa, primeiro o mais velho seguido pelo mais novo, os dois tébé, obedecendo
igualmente à idade biológica, o aihö’ubuni mais velho seguido por outro wapté. O
aihö’ubuni mais novo posiciona-se no meio da fila e, depois dele, os demais wapté
alternando-se de acordo com a filiação clãnica. Assim, completa-se a definição de
151

papéis e cargos especiais que serão desempenhados durante as cerimônias finais do


danhono.
O processo de escolha dos pahöri’wa e dos tebè, segundo os relatos Giaccaria &
Heide, que descrevemos acima, apresentam algumas incongruências quando
confrontados com os dados coligidos por nós em campo. A primeira diz respeito aos
pahöri’wa ĩté. O sufixo ĩté indica uma situação nova. Neste sentido, ele revela que os
pahöri’wa ĩté foram os últimos que desempenharam este papel ritual por ocasião da
derradeira iniciação. Nesta condição eles não são ainda padrinhos do grupo dos wapté,
como afirmam os autores. Ao concluírem sua iniciação os pahöri’wa ĩté, bem como os
demais membros de sua classe de idade, desempenharão o papel de dahi’wa na próxima
iniciação.
Enquanto a definição do papel ritual aihö’ubuni passa pela realização de um
ritual próprio, que antecede a admissão formal dos moradores na casa dos solteiros, no
qual o candidato é apresentado e acompanhado pela comunidade aldeã e,
posteriormente, submetido ao crivo dos ĩhire, os anciãos, que se reúnem no warã,
centro da aldeia, os de pahöri’wa e tébé acontecem ainda quando a iniciação anterior
está em andamento. Para sermos mais precisos, no dia em que se realizam os rituais de
pahöri’wa e tébé no processo de iniciação em andamento. Os dados etnográficos que
levantamos informam que esta escolha é preliminar, uma vez que os candidatos são
muito pequenos ainda. Observamos que durante a realização das cerimônias dos
pahöri’wa e dos tébé havia dois pares de meninos que acompanhavam sua realização
segurando os adornos corporais que seriam usados pelos oficiantes. Delinearemos mais
adiante, em detalhes, estes momentos quando estivermos descrevendo as cerimônias do
tébé e pahöri’wa.
Segundo nossos informantes estes meninos que acompanham os oficiantes
seriam os futuros pahöri’wa e tébé, na próxima iniciação. Quando perguntamos quem
os escolhem, disseram-nos que são os pahöri’wa’rada e os tépé’rada. Já apontamos no
início deste trabalho que os sufixos ‘rada ou ‘brada indicam antigos ou velhos. Neste
sentido, a escolha dos candidatos pahöri’wa e dos tébé é feita por aqueles que
desempenharam este papel há muito tempo. Entretanto, os informantes fizeram questão
de ressaltar que embora os candidatos sejam escolhidos com antecedência isto não dá
garantias que serão os mesmos a desempenharem os papéis rituais no futuro. Estes
meninos terão todo seu comportamento vigiado pela comunidade aldeã durante a fase
152

do ciclo de vida ai’repudu. Este acompanhamento diz respeito não só ao


comportamento social como também sobre o desenvolvimento físico dos meninos até o
momento de se efetivarem enquanto detentores do cargo cerimonial. Referências como
corpo esguio e cabelos longos são atributos considerados para os candidatos aos cargos
cerimoniais. Além disso, a conjuntura política na aldeia pode ser o principal
condicionante na escolha e efetivação dos candidatos.
Como vimos acima, os papéis rituais de aihö’ubuni, bem como os de tébé e
pahöri’wa, conferem grande prestígio a quem os detém. Este prestígio não recai apenas
sobre dos detentores do cargo cerimonial. Ele é igualmente extensivo aos membros do
grupo doméstico de onde provêm os candidatos. O contexto da iniciação da classe de
idade abare’u na aldeia N. S. de Guadalupe ajuda-nos a entender como de fato acontece
à escolha dos pahöri’wa e instiga-nos a pensar o contexto de ação dos atores sociais.
A aldeia N. S. de Guadalupe surgiu de uma cisão da aldeia São Marcos em 2002,
depois de conflitos internos que duraram cerca de cinco anos. O estopim para esta cisão
foi o empenho de duas facções que além de disputarem a chefia da aldeia São Marcos,
disputavam também qual deles controlaria a realização de um ritual de iniciação
religiosa, o darini ou wai’arini. A facção de Tsudzaweré recuou, após diversos conflitos
que envolveram confrontos que levaram a vias de fato, resultando em feridos com
gravidade de ambas as partes, bem como depois de várias intervenções dos missionários
salesianos, e mudou-se para a Aldeia N. S. de Guadalupe, onde uma família já tinha
começado a fundar uma nova aldeia.
Antes que houvesse a cisão da aldeia São Marcos, as duas facções que
disputavam pelo reconhecimento de seus chefes como cacique daquela aldeia haviam
instaurado cada qual a sua hö, casa dos solteiros. Ali as funções cerimoniais de
aihö’ubuni já estavam definidas. A saída da aldeia São Marcos bem como a fundação de
uma nova aldeia, a de N. S. de Guadalupe, pela facção de Tsudzaweré e seus
correligionário não alterou os cargos cerimoniais do danhono que já estavam definidos.
No próximo capítulo descreveremos com minúcia o processo de cisão da aldeia São
Marcos que resultou na aldeia N. S. de Guadalupe e depois, a partir desta, em outras.
Uma vez instalada a nova aldeia seus residentes, bem como os aliados políticos
de outras aldeias, realizaram a iniciação religiosa do darini, na qual os moradores da
casa dos solteiros também tomaram parte. Após o darini o processo ritual de iniciação
do danhono teve continuidade. Nos anos seguintes aconteceram as escolhas dos cargos
153

cerimoniais para tébé, pahöri’wa e a’ãma. Em 2004 um novo conflito se instaurou na


aldeia N. S. de Guadalupe tendo como principal questão uma disputa pela eleição do
novo diretor da escola. A família do candidato que perdeu a eleição decidiu fundar uma
nova aldeia. Trataremos desta cisão noutro capítulo. Aqui nos interessa como este
processo de cisão na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, que resultou na fundação da
aldeia Jesus de Nazaré, engendrou uma nova questão em relação aos cargos cerimoniais
que apresentamos acima.
Esta cisão provocou uma lacuna nos cargos cerimoniais que compõem o
danhono. Cerca de vinte hö’wa, moradores da casa dos solteiros, acompanharam seus
grupos domésticos mudando-se para a aldeia recém fundada. Entre eles, dois haviam
sido escolhidos para desempenharem, respectivamente, os cargos cerimoniais de
aihö’ubuni e pahöri’wa. No caso do aihö’ubuni a escolha se deu ainda quando seu
grupo doméstico ainda vivia na aldeia São Marcos, apoiando a facção de Tsudzaweré.
Tanto em Guadalupe quanto em Jesus de Nazaré foi necessário escolher outros
ocupantes para os cargos cerimoniais desfalcados. Assim, a aldeia N. S. Senhora de
Guadalupe ficou desfalcada de um dos Pahöri’wa.
A escolha deste Pahöri’wa foi tensa. Numa reunião que aconteceu no marã,
clareira perto da aldeia onde se realizam diversos rituais, quando começavam as
primeiras discussões sobre a proposta de um nome que viesse a ocupar o cargo de
pahöri’wa desfalcado o pai de um dos meninos interveio e impôs o mesmo como
candidato. Houve algumas ponderações sobre o físico de seu filho e a proposta de outro
nome. Entretanto, o pai que se impôs mostrava-se irredutível e seu filho, morador da
casa dos solteiros, tornou-se oficialmente pahöri’wa. O embate não se estendeu muito
visto que o proponente era genro do cacique, sendo seu filho neto do mesmo. Um dos
informantes nos disse que a atitude do pai do pahöri’wa escolhido contrariava o
processo oficial de seleção dos ocupantes do cargo cerimonial. Como afirmamos acima,
a escolha dos ocupantes do cargo cerimonial pahöri’wa deveria ser feita pelos
pahöri’wa’rada, os antigos pahöri’wa. No caso do cargo vacante de aihö’ubuni a
escolha foi menos tensa. O cargo foi ocupado por um morador da casa dos solteiros que
vivia na aldeia Hö Hi, Nossa Senhora da Guia. Sabendo da vacância para o cargo de
aihö’ubuni em Nossa Senhora de Guadalupe, um grupo doméstico que morava naquela
aldeia transferiu-se para Guadalupe. Este rapaz já havia sido escolhido em sua aldeia de
154

origem para desempenhar ali o papel de aihö’ubuni. Portanto, não sendo necessário
passar por outro processo de escolha.
A aldeia Jesus de Nazaré teve que escolher mais dois ocupantes do cargo de
aihö’ubuni, os dois tébé, um dos pahöri’wa bem como os dois a’ãma. Aqui não houve a
realização dos rituais que precedem a entrada dos moradores na casa dos solteiros.
Embora Jesus de Nazaré fosse uma aldeia nova os hö’wa, moradores da casa dos
solteiros, que deixaram a aldeia Guadalupe já haviam passado por estes rituais quando
ainda moravam na aldeia São Marcos.
Vimos nas páginas precedentes que a escolha daqueles que irão compor o
quadro de atores rituais não se resume apenas a questões estruturais que indicariam as
posições que os atores sociais ocupariam no processo ritual. Antes de tudo é preciso
considerar o contexto de ações dos atores sociais, bem como os interesses subjacentes
no processo ritual. Neste sentido, afirmar que os cargos cerimoniais de aihö’ubuni, tébé
e pahöri’wa pertencem respectivamente aos clãs po’redza’õno, öwawẽ e po’redza’õno
presta apenas para dizer o óbvio. Entretanto, quando procuramos investigar de que
modos se dão tais escolhas injetamos sangue no processo ritual. Desta forma, não
menosprezamos o modo organizacional da sociedade Xavante, muito menos como ela
classifica os atores sociais. Porém, numa situação processual é importante ver não
somente a organização social, mas como os atores sociais se apropriam e manipulam
esta organização em benefício de seus interesses. Para tanto, somos lançados a
acompanhar o contexto social e político do ritual onde acontece a escolha dos atores
sociais que desempenharão os cargos rituais mencionados.
O contexto social e político do ritual de iniciação da classe de idade Abare’u
deve ser visto a partir da constituição da casa dos solteiros que se deu em 2000, ou seja,
antes da primeira grande cisão na aldeia São Marcos. Já afirmamos nas páginas
precedentes que naquela época foram instaurados duas casas dos solteiros. Os meninos
que estavam vivenciando o ciclo de vida ‘watébrémi foram distribuídos nestas duas
casas dos solteiros segundo os alinhamentos políticos de seus pais. Naquele contexto a
crise política que pairava sobre a aldeia São Marcos já havia se estendido pelas demais
aldeias da terra indígena homônima. Isto provocou um realinhamento de forças entre as
aldeias que se posicionaram em apoio às duas facções que disputavam pelo
reconhecimento enquanto caciques da aldeia São Marcos. Quando ocorre de fato a cisão
física na aldeia São Marcos o apoio político que a facção de Tsudzaweré recebia
155

manteve-se. Voltaremos a delinear o realinhamento das forças políticas na T. I. São


Marcos noutro capítulo.
Com a fundação da aldeia N. S. de Guadalupe a escolha daqueles que ocupariam
os cargos cerimoniais de aihö’ubuni, tébé e pahöri’wa esteve diretamente relacionada à
coalizão de facções que apoiaram Tsudzaweré. De modo semelhante ao que acontece no
cenário político nacional, dada as devidas singularidades, onde os vencedores de uma
eleição tendem a repartir entre os aliados os cargos mais expressivos politicamente, na
aldeia Nossa Senhora de Guadalupe os cargos cerimoniais supracitados foram
escolhidos entre aqueles que apoiaram politicamente a facção majoritária. Desta forma,
como já afirmamos um dos cargos de pahöri’wa e outro de aihö’ubuni ficaram para
uma sub-facção que posteriormente veio a deixar Guadalupe e fundar a aldeia Jesus de
Nazaré e levou consigo os escolhidos, provocando uma nova disputa pelo cargo
vacante. O mesmo veio a ser ocupado pelo neto de Tsudzaweré. O cargo do outro
pahöri’wa ficou para o filho de Tibério, filho de Bruno, que por seu turno era cunhado
de Tsudzaweré. O cargo de primeiro tébé ficou para o filho do sobrinho classificatório
de Tsudzaweré, da classe de idade airere, que goza de certo prestígio político a ponto de
demonstrar fortes pretensões de fundar outra aldeia. O outro cargo de tébé foi dado ao
filho de outro irmão de Tsudzaweré. Entretanto, este irmão goza de ampla autonomia
política em relação à Tsudzaweré. O mesmo é cacique de outra aldeia. Os cargos de
aihö’ubuni, cerca de três no total, foram dados respectivamente à: Jocam, que veio da
aldeia Hö hi, sobrinho de Luiz Tsirobowe; Osmar, filho de Zé Maria que mora na aldeia
São Marcos; e, Delarin, filho de Ubaldo. O caso de Osmar merece destaque pelo fato de
pertencer à Aldeia São Marcos. O pai deste aihö’ubuni sempre procurou colocar-se
neutro nas rixas entre as facções que disputavam a chefia daquela aldeia. Como já
descrito acima, a escolha dos cargos de aihö’ubuni acontece previamente, antes da
instauração de uma nova casa dos solteiros, e torna-se oficial depois da admissão formal
de seus moradores. Digo isto para mostrar que a escolha do Osmar como aihö’ubuni
parece indicar que a posição de neutralidade nas disputas políticas permanece apenas no
discurso, havendo momentos em que uma posição deve ser tomada.
O processo ritual pode ser igualmente visto como um fator decisivo para tomada
de posicionamentos. De outro modo, o fato de a facção de Tsudzaweré aceitar que o
filho de Zé Maria assuma o cargo cerimonial de aihö’ubuni pode ser visto como uma
estratégia de conquista de partidários para sua facção. Em verdade, este apoio de Zé
156

Maria à facção de Tsudzaweré fez com que o mesmo fosse tomado como membro
daquela facção. Isto se tornou claro num dos conflitos que levaram a vias de fato onde
Zé Maria teve o crânio partido por um golpe de borduna. Entretanto, Zé Maria
continuou morando em São Marcos depois que a facção de Tsudzaweré deixou aquela
aldeia, seu filho, porém mudou-se para Guadalupe onde teve continuidade seu processo
de iniciação. Durante os vários rituais que compõem o danhono Zé Maria sempre esteve
presente em Guadalupe acompanhando o desempenho de seu filho.
Lopes da Silva (1986:76) e Maybury-Lewis (1984:119) sinalizam que os cargos
ritual de aihö’ubuni, tébé e pahöri’wa são herdados patrilinearmente. Lopes da Silva,
entretanto, evita investigar a fundo as possibilidades de manipulação política das
“posições” expressas por estes três nomes, linhas antes de afirmar a herança patrilinear
destes papéis rituais (idem), justificando-se que esta opção desviaria do objetivo
principal de seu trabalho e ainda pelo fato de Maybury-Lewis ter já tratado da questão.
De fato Maybury-Lewis procura relacionar a distribuição de papéis rituais entre as
facções na aldeia São Domingos, onde efetuou seu trabalho de campo. Segundo ele a
tarefa de carregar uma capa ritual chamada no’oni77, que dá o mesmo nome a uma
corrida ritual, deveria ser privilégio de uma determinada linhagem, enquanto que os
nomes de Pahöri’wa e Tébé deveriam ser dados a membros de uma facção diferente
daquela à qual pertencem os que carregam a capa (Maybury-Lewis, 1984:317). Isto
possibilitaria a manutenção de uma relação típica de pessoas que são watsire’wa,
(idem), que se opõem aqueles que são aos tsire’wa78. Entretanto, diz o autor, na prática,
essa cláusula (como a maior parte das demais) pode ser violada por uma facção
particularmente forte, que consiga tomar para si os cargos cerimoniais que, de direito,
pertencem à oposição (idem). Os dados etnográficos apresentados por David Maybury-
Lewis mostram que a prática de distribuição dos cargos cerimoniais entre facções na
aldeia São Domingos estava bem consolidada. Os cargos de Pahöri’wa e Tébé estavam
sob domínio da facção chefiada por Apöwẽ, pertencente ao clã po’redza’õno, enquanto
que os carregadores do noni foram escolhidos entre os membros da linhagem Dzutsi,
pertencentes ao clã öwawẽ.

77
Trataremos da corrida do Noni noutro momento deste trabalho procurando seguir o curso de
desenvolvimento do processo ritual de iniciação do danhono.
78
A categoria watsire’wa significa os do meu lado, da mesma metade, conjunto de pessoas do
mesmo clã a qual ego pertence. Enquanto que os Tsire’wa são aqueles que pertencem ao clã oposto de
ego.
157

Estamos de acordo com Maybury-Lewis quanto à manipulação política durante a


distribuição dos cargos cerimoniais entre facções. Contudo, divergimos quanto à
apresentação dos dados para explicar esta afirmativa. O modo como o autor apresenta os
dados etnográficos sugere-nos a entender que de um lado temos a facção de Apöwẽ, do
clã po’redza’õno, em oposição a linhagem Dzutsi, do clã öwawẽ. À facção de Apöwẽ
cabe os cargos rituais de Pahöri’wa e Tébé, enquanto que à linhagem Dzutsi o privilégio
de carregar a capa do noni. Isto garante o que o autor chama de relação típica aquela
entre watsire’wa, que se opõem aqueles que são aos tsire’wa. No entanto, como
apresentamos acima, os cargos de Pahöri’wa e Tébé pertencem, respectivamente, aos
clãs po’redza’õno e öwawẽ. O cargo de carregador do noni é prerrogativa do clã öwawẽ.
Dito isso, podemos afirmar que a relação watsire’wa (nós) X tsire’wa (os outros) dá-se
em conformidade com a filiação clânica exclusivamente, não sendo necessário qualquer
referência à constituição de facções. Uma facção Xavante é composta por vários grupos
domésticos oriundos dos três clãs (po’redza’õno, öwawẽ e tob’ratato). Assim, se a
facção de Apöwẽ detém os cargos de Pahöri’wa e Tébé isto se deve ao fato de haver
entre seus correligionários membros dos clãs po’redza’õno, a qual pertence o chefe da
facção, e öwawẽ. Do outro lado, a linhagem Dzutsi, do clã öwawẽ, por deter o cargo de
carregador da capa do noni marca posição no contexto ritual e político. A facção de
Apöwẽ poderia ter para si o cargo de carregador do noni. Entretanto, ela renuncia para
manter o equilíbrio político na aldeia.
Os dados etnográficos mostram que a distribuição de cargos cerimoniais
acontece tomando por base o contexto político local. Entretanto, não podemos descartar
a posição estrutural destes cargos, pois sem ela o processo ritual estaria ameaçado. Já
afirmamos que a disputa política entre as facções na aldeia São Marcos provocou um
realinhamento de forças resultando na fundação de novas aldeias. A aldeia N. S. de
Fátima foi uma destas aldeias fundadas em decorrência de disputas políticas. Isto se deu
depois da saída da facção de Tsudzaweré da aldeia São Marcos. Fátima, como é
chamada a aldeia Nossa Senhora de Fátima, é resultado de uma cisão da aldeia Nova
Jerusalém. Inicialmente seus fundadores se estabeleceram onde hoje está Nossa Senhora
de Guadalupe.
Com o aumento das tensões na aldeia São Marcos, Tsudzaweré e seus aliados
decidem deixar aquela aldeia e muda-se para Guadalupe. Ali realizam o ritual de
iniciação religiosa darini, juntamente com outras aldeias que o apoiavam. Ao término
158

deste ritual surgem novas tensões na aldeia recém fundada, onde a principal questão era:
quem é o cacique? O cargo reivindicado por Lourenço é cedido para Tsudzaweré. Neste
cenário, Lourenço e seu grupo doméstico bem como outros seguidores deixam
Guadalupe para fundar Fátima. Ali se põem a preparar a iniciação do danhono. Boa
parte dos moradores da aldeia recém fundada pertence ao clã po’redza’õno. Isso porém,
gerou um problema no momento de se escolher o candidatos ao cargo de tébé. Como já
afirmamos este cargo cerimonial deve ser preenchido por membros do clã öwawẽ.
Ocorre que na aldeia recém fundada os membros deste clã que estavam vivenciando o
ciclo de vida hö’wa, morador da casa dos solteiros, eram poucos. Para contornar o
problema escolheram para desempenhar o cargo cerimonial de tébé o filho de Mariano,
que viria a se tornar mais tarde vice-cacique da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe.
Isto favoreceu uma série de eventos que beneficiou a aldeia Nossa Senhora de Fátima.
Antes de tudo, resolveram o problema da falta de membros do clã öwawẽ,
mantiveram laços com a aldeia Guadalupe. A manutenção de laços com Guadalupe
pode ser considerada estratégica para Fátima. Guadalupe tem entre seus bens
comunitários um caminhão que é usado constantemente para transportar seus moradores
à cidade. Quando estive em campo, no auge dos preparativos para confecção das capas
wamnhorõ79, eram freqüentes as saídas do caminhão de Guadalupe para dar assistência
aos moradores de Fátima. Tal assistência consistia em transportar os moradores até
locais próximos de cabeceiras, fora da terra indígena, onde crescem os buritizais de
onde retiraram os brotos desta palmeira, usados na confecção do wamnhorõ. Estas
saídas do caminhão para prestar ajudam à Fátima causava comentários de desaprovação
pelos moradores de Guadalupe em relação ao motorista do caminhão. Coincidência ou
não, o motorista era Mariano, pai de um dos tébé daquela aldeia.
Quando retomamos a literatura de descrições clássicas (Maybury-Lewis,
1984:50-72; Giaccaria & Heide, 1984:27-42; Lopes da Silva, 1986:31-44) sobre a
dinâmica de relações entre as aldeias Xavante chama-nos atenção a forte tendência a
conflitos e cisões de aldeias. Neste contexto de fracionamentos e (re) agrupamentos de
aldeias, antes do contato e até mesmo no pós-contato, é possível a manutenção de uma
continuidade na escolha dos cargos de aihö’ubuni, pahöri’wa e tébé seguindo a linha
patrilinear conforme apontam os autores acima? Acreditamos que não, conforme
apontam os dados etnográficos apresentados acima. De mais a mais, nos parece que

79
Descreveremos a confecção destas capas mais adiante.
159

embora no caso dos pahöri’wa e tébé, estruturalmente, a escolha para o desempenho


destes papéis rituais esteja a cargo, respectivamente, dos pahöri’wa’rada e tépé’rada,
antigos pahöri’wa e tébé que desempenharam estes papéis rituais, na prática ela se
efetiva pelo crivo das relações políticas vigentes na aldeia, conforme procuramos
mostrar acima. Mesmo se aceitarmos que a escolha dos ocupantes dos cargos de
pahöri’wa e tébé aconteça dentro de uma mesma patrilinhagem isto não significa que o
processo ritual seria menos tenso.
Procuramos mostrar nas páginas precedentes como se efetiva a escolha de atores
que atuam diretamente no processo ritual de iniciação danhono. Indicamos alguns
momentos onde estes atuam. Não obstante, deixamos de fora alguns personagens que
apresentam pouca ou nenhuma atuação durante o período que antecede a realização dos
rituais que promoverão a iniciação. Na media em que estes forem sendo eleitos
procuraremos dar os detalhes de sua escolha. Estes rituais serão descritos na segunda
parte deste capítulo.
160

CAPÍTULO III
O ANO DA EXCELÊNCIA

3 - FASES DO PROCESSO DE INICIAÇÃO

No capítulo anterior apresentamos nossa concepção de danhono, ou seja, um


conjunto de rituais voltados à constituição da casa dos solteiros, a hö, bem como para
iniciação de seus moradores. Isto ocorre através de um processo que passa por um
período exclusão/reclusão do meio social para, posteriormente, integrar-se na sociedade.
O auge deste processo se dá nos preparativos e execução dos rituais que produzirão a
iniciação, ou a passagem. Quando situamos o ritual dentro de uma dinâmica processual
queremos igualmente apontar os bastidores do ritual. Neste sentido, procuraremos tecer
uma descrição do ritual que incorpore não só (...) o comportamento formal prescrito
para ocasiões não devotadas à rotina tecnológica, tendo como referência a crença em
seres ou poderes místicos (Turner, 2005:49), mas também as vésperas deste
comportamento e as ações dos atores sociais para que este momento seja efetivado.
No ano que antecede a realização dos rituais que promoverão a iniciação dos
moradores da casa dos solteiros, dos hö’wa, os grupos domésticos aumentam o plantio
do milho xavante, o nodzö ou nodzö’u80, que serão utilizados na confecção de bolos a
serem trocados e oferecidos durante os rituais. Neste tempo, durante as caçadas é dada
uma atenção especial a busca de araras que fornecerão penas a serem utilizadas nos
ornamentos corporais. Não obstante, embora Giaccaria & Heide (1984:162) afirmem
que todos vão à caça de araras, observamos que quando se trata de caçadas não há uma
presa particular a ser alcançada. Durante as expedições de caça em que acompanhamos
os Xavante todas as presas eram alvos em potencial. Até mesmo animais que
implicassem algum tabu alimentar ao caçador como, por exemplo, o tatu canastra. Caso
o caçador tenha alguma criança com menos de três anos ele não pode comer a carne
deste animal. Entretanto, nada o impede de abatê-lo. Em algumas caçadas onde nenhum
animal de médio ou grande porte fora abatido, observamos caçadores dando-se por
satisfeito pelo fato de terem caçado ao menos um pássaro mutum, do qual se extraem as
penas para confecção de colares, em especial para os aihö’ubuni.

80
Nodzö’u é também nome de uma da classe de idade, ver quadro do Capitulo I. Este tipo de
milho caracteriza-se pelo colorido de seus grãos na espiga. Normalmente alternam-se as cores vermelho e
preto. Em relação ao milho convencional, o nodzö’u é mais macio.
161

O processo de territorialização a qual os Xavante foram submetidos tem


provocado grandes transformações na reprodução das práticas culturais desta etnia.
Animais e aves necessários a confecção de ornamentos corporais estão se tornando cada
vez mais escassos nas Terras Indígenas (TIs) reconhecidas. O avanço de grandes
plantações, atreladas ao agronegócio tem provocado um aumento no desmatamento de
áreas próximas às Terras Indígenas. Isto tem contribuído significativamente para uma
grande redução na oferta de animais a serem caçados. Some-se a isto também o
crescimento da população Xavante que tem gerado um aumento na pressão sobre o
estoque de caça. No caso das araras, da qual se extraem penas utilizadas em diversos
ornamentos, estão cada vez mais difíceis de serem encontradas nos territórios
reconhecidos. Diante desta realidade uma alternativa encontrada para garantir o
abastecimento de matéria prima na confecção de ornamentos vem sendo buscada
através de um intercâmbio entre etnias que vivem em outros territórios. Conversamos
com alguns informantes, cujos filhos estariam desenvolvendo cargos especiais durante o
danhono, sobre as alternativas, diante da escassez, encontradas para garantir o
fornecimento de penas e algodões utilizados na confecção de ornamentos corporais.
Tomamos conhecimento da existência de uma rede de cooperação que envolve parentes
que moram em outras aldeias da Terra Indígena São Marcos, bem como, em outras
Terras Indígenas Xavante. Tal rede garante a circulação de vários produtos essenciais na
produção de objetos de uso ritual.
Quando esta rede de cooperação não é suficiente para atender a demanda de
matéria prima, os Xavante laçam-se em busca destes produtos em outras áreas. O caso
de Luiz Tsirobowe é bastante significativo. Seu filho foi escolhido para desempenhar o
cargo cerimonial de tébé. Os ornamentos corporais deste ator ritual exigem uma grande
quantidade de penas de arara. Luiz Tsirobowe não conseguiu estas penas entre seus
parentes da aldeia Guadalupe, muito menos nas demais aldeia da Terra Indígena. Para
contornar esta situação, acompanhado de outro Xavante, o mesmo viajou até o Parque
Indígena do Xingu. Ali conseguiu negociar monetariamente e através de trocas, na qual
oferecia um tipo de caracol encontrado no cerrado e escasso no Parque, uma quantidade
de penas suficiente para confecção dos ornamentos do tébé. Outro informante relatou-
me que boa parte das penas, que ele utilizou na confecção dos ornamentos de seu filho
pahöri’wa, foram adquiridas em Brasília onde teve contato com membros de outras
etnias que dispunham do produto para venda.
162

Esta preocupação em garantir o fornecimento dos principais materiais utilizados


na confecção dos ornamentos não se deve apenas ao capricho dos pais do ator ritual.
Socialmente espera-se que o grupo doméstico, da qual provém o ator ritual, seja capaz
de oferecer ornamentos com certa perfeição estética, segundo o pensamento Xavante.
Tal perfeição estética está relacionada à qualidade e quantidade dos materiais utilizados
nos ornamentos corporais. Ornamentos que apresentam materiais danificados ou em
pouca quantidade gera comentários depreciativos em relação à capacidade de produção
do grupo doméstico em questão.
Além de adquirirem matéria prima em quantidade suficiente para o momento
onde se confeccionam os adornos corporais, os grupos domésticos daqueles que serão
iniciados se põem a fabricar outros ornamentos que serão de uso contínuo durante o
processo ritual. É o caso, por exemplo, da borduna cerimonial ub’ra. Esta borduna, em
formato cilíndrico com cerca de um metro de comprimento, é confeccionada com
madeira aroeira ou pau-brasil. Sua confecção demanda certa quantidade de tempo.
Diante disto, alguns pais que vivem e trabalham na cidade de Barra do Garças e não
dispunham de tempo necessário para confecção das bordunas ub’ra para seus filhos que
estavam sendo iniciados apresentaram o modelo da borduna a um marceneiro na cidade
que as confeccionaram numa máquina chamada torno.
O início da realização dos rituais é discutido no centro da aldeia, no warã. A
decisão sobre quando começar leva em consideração sazonalidade do ambiente de
cerrado. Neste sentido, os processos rituais que levarão a conclusão do danhono têm seu
início no final da estação chuvosa, o que acontece na segunda quinzena do mês de abril.
Uma vez acertada o tempo em que se dará o início dos rituais, a classe de idade que está
vivenciando o ciclo de vida danhohui’wa abrem uma clareira próxima ao riacho. Caso
este riacho apresente o nível de água muito baixo, aproximadamente menos de oitenta
centímetros, os danhohui’wa constroem uma barragem para represá-lo. Nas duas
ocasiões em que acompanhamos a realização do danhono, houve a necessidade da
construção desta barragem. Em 1997, quando fomos incluídos na classe de idade que
vivenciava o ciclo de vida danhohui’wa, participamos da montagem desta barragem.
Para isto, cortam-se alguns troncos de árvores que são atravessados de uma margem a
outra do riacho. Estes troncos recebem escoramento com forquilhas, dando mais
sustentabilidade diante da pressão da água quando começar a ser represada. Os espaços
entre os troncos são preenchidos com taquaras e depois folhas de palmeira bacuri. O
163

trabalho dura cerca de quatro a cinco dias, dependendo do número de danhohui’wa que
estejam empenhados em fazê-lo.

3.1 – PREPARATIVOS PARA O BANHO DE IMERSÃO

Quando a clareira e a barragem no rio estão prontas, marca-se o início dos


rituais, que terão em média seis meses de duração e levarão a conclusão do danhono.
Assim, no dia marcado, durante a madrugada, os danhohui’wa preparam-se para
receberem os wapté, moradores da casa dos solteiros, no centro da aldeia onde se realiza
um ritual preliminar antes de serem conduzidos ao riacho para outro ritual. Nesta
ocasião os danhohui’wa pintam-se com a modalidade daupté, pintura vermelha sobre o
corpo – pintura preta do tornozelo até metade da canela, como ornamentos corporais
amarram fibras de seda da folha de buriti na cabeça, usam os colares de algodão e
cordinhas nos pulsos e tornozelos. Quando estão prontos recebem, dos pais dos wapté,
um tipo de bolsa feita com a tampa de um tsi’õno, cesto grande, chamada renhamri
contendo: penas do rabo de arara vermelha (‘ratabö), uma bola de urucum (bö), sedas
de buriti81 (tsuwaipo) e a borduna (ub’ra). Quando todos estão prontos, tomam posição
no centro da aldeia permanecendo em fila e agachados, aguardando os wapté.
Um ĩhire, ancião, do clã öwawẽ, escolhido dentre os anciãos da mesma classe de
idade que está sendo iniciada, neste caso um abare’u’õmobr’ada dirige-se à hö, casa
dos solteiros, e conduz seus moradores em fila indiana até o centro da aldeia. Este
deslocamento do grupo de wapté faz-se seguindo uma ordem pré-estabelecida tendo a
frente os ocupantes do cargo cerimonial pahöri’wa, tébé, aihö’ubuni seguidos pelos
demais, obedecendo a uma alternância de acordo com a filiação clânica.
No centro da aldeia, warã, os wapté se põem de joelhos de costas para os
danhohui’wa. Neste ritual cada danhohui’wa, que é também danimiwainho, ou seja,
padrinho – como dizem os Xavante, particular de um morador da casa dos solteiros,
com o qual estabelece uma relação de amizade formalizada (Lopes da Silva, 1986:204)
ornamenta o seu afilhado. O danhohui’wa, ou também danimiwainho, utilizando-se dos
recursos disponíveis na bolsa feita com o renhamri encarrega-se de pintar e ornamentar
o copo de seu afilhado. A pintura do afilhado, ou do wapté, nesta ocasião é a dazapré,
na qual o danimiwainho faz três riscos com urucum (bö) no tronco do afilhado, em

81
A seda de buriti, como dizem os Xavante, é extraída de cada folíolo da folha do buriti de onde
se retira a camada plástica deixando a fibra menos quebradiça depois de seca.
164

seguida amarra com as sedas de buriti (tsuwaipo), as penas de arara (‘ratabö) em sua
cabeça de modo que estas fiquem posicionadas na nuca. A borduna (ub’ra) é depositada
ao lado esquerdo do watpté. Quando todos prontos ao sinal de um ĩhire, ancião, os
wapté levantam-se, tomam as bordunas (ub’ra), transportando-as no ombro direito, e
seguindo o mesmo ĩhire que os conduziu ao centro da aldeia dirigem-se para um local
afastado, longe da vista da comunidade aldeã. Nesta ocasião tomam parte na fila
primeiro o ĩhire, seguido pelos wapté, os danhohui’wa e um grupo de danhohui’wa
pintados, com carvão, como os wapté. Todos se dirigem para o local afastado da aldeia
onde os danhohui’wa retiram as penas de arara que foram amarradas na cabeça dos
wapté. O grupo, seguindo a mesma ordem, volta novamente à aldeia cruzando-a e toma
direção do riacho e do local onde foi aberta a clareira pelos danhohui’wa.

3.1.1 – O DATSI’WATÉ - BANHO DE IMERSÃO

Os wapté cruzam o riacho e dirigem-se até a clareira que foi aberta pelos
danhohui’wa onde depositam sob duas forquilhas, previamente preparadas, as borduna
ub’ra, e em seguida voltam para a margem. Neste momento os danhohui’wa e todos os
demais homens da aldeia que acompanharam os wapté até o riacho começam a
demonstrar aos iniciandos como devem proceder ao banho de emersão datsi’waté,
também chamado de “bate água” pelos Xavante. Os homens de todas as classes de idade
iniciadas participam deste momento. Começando pela classe de idade mais antiga, ou
seja, aquelas que já receberam o sufixo ‘brada em sua denominação, por exemplo,
abare’u’õmob’rada, entram na água e praticam o datsi’waté.
A execução do ritual começa com a entrada dos oficiantes na água até a altura da
cintura e daí com as duas mãos unidas em paralelo, em forma de concha com a palma
voltada para água, flexionando os joelhos afundam-nas na água levantando-as em
seguida de modo que tanto na descida quanto na subida uma grande quantidade de água
se ergue sobre o corpo. Esta forma de proceder dá ao ritual igualmente o nome de “bater
água”. Todos seguem o mesmo ritmo, e isso cria com o deslocamento de ar e água de
modo que grandes explosões podem ser ouvidas ao longe. Após a passagem de todas as
classes de idade fazendo demonstração, chega a vez dos wapté executarem o ritual. Sua
entrada na água obedece à mesma ordem nos demais rituais do qual toam parte.
165

Segundo Giaccaria & Heide (1984:164), os wapté deveriam retirar os estojo


peniano antes de entrarem na água. Nesta ocasião usariam uma embira na cintura que
daria sustentação ao pênis, mantendo-o preso. Como já firmamos em outro momento,
após o contato os Xavante deixaram de usar os estojos penianos. Em relação aos relatos
dos autores mencionados, observamos grandes transformações na performance ritual. O
tempo de duração na execução do ritual, hoje parece ser bem mais flexível do que o
descrito por Giaccaria & Heide (1984:164). Segundo estes autores, os wapté devem
permanecer na água até por volta de meio dia, onde ainda imersos recebem, do pai ou
parente, um pedaço de bolo de milho (tsadaré) como alimento – descreveremos o modo
de preparar este bolo noutro momento. Após comerem somente o miolo deste bolo
retomam o datsi’waté. Ao por do sol o mais velho do clã öwawẽ, segundo Giaccaria &
Heide, busca os wapté no rio que saem em fila indiana e ao entrar na aldeia dirigem-se
ao grupo doméstico. Já afirmamos que o mesmo deve pertencer à mesma classe de
idade que está sendo iniciada, ou seja, um abare’u’õmob’rada.
Esta saída da água também é ritualizada. Os wapté pegam as bordunas ub’ra que
estavam depositadas nas forquilhas colocam-nas embaixo do braço esquerdo e levam a
mão direita em punho fechado na boca. Seguem desta maneira, com o corpo curvado
para frente, até o grupo doméstico. Ali uma das irmãs mais nova o aguarda para aplicar-
lhe uma pintura corporal. A pintura, chamada damanawadzu’rã, consiste em desenhar,
com carvão, duas faixas nas costas estendendo das omoplatas a cintura, e nas
panturrilhas. Giaccaria & Heide (1984:164) dizem que neste primeiro dia, após serem
pintados, os wapté se deitam no lugar onde o pai dorme por um tempo e depois se
deitam fora da casa numa esteira especialmente feita para eles. Aqui acontece a primeira
passagem. Com o início dos banhos de imersão, ou bate-água, a condição social wapté
muda-se para ‘waté’wa. Durante a madrugada os ‘waté’wa despertam uns aos outros e
retornam ao rio para tomarem banho e se alimentarem. Voltam a dormir e, ao canto da
saracura, retomam novamente o datsi’waté.
Todos os dias eles desempenharam esta mesma performance, ou seja, dormem
na clareira às margens do riacho, dirigem-se ao grupo doméstico pela manhã e a tarde
onde recebem a pintura da irmã mais nova, e durante o dia, devem executar o
datsi’waté. O tempo de duração do datsi’waté é variável. Em média o ritual leva em
torno de quinze a vinte dias. Ouvi de um missionário da Missão Salesiana a
possibilidade do ritual entender-se um pouco mais por decisão dos ĩhire, anciãos, por
166

desejarem castigar os ‘waté’wa. Entre os motivos que levariam os ĩhire, anciãos, a


aplicar castigos aos ‘waté’wa estaria a indisciplina no comportamento social, seja na
fase de wapté seja na de ‘waté’wa. O prolongamento dos ritos do datsi’waté pode ser
um castigo pelo fato de que nesta época do ano, abril e maio, o clima no cerrado
aproxima-se do deserto, ou seja, muito calor durante o dia e quedas bruscas de
temperatura a noite.
Nas duas ocasiões (1997 e 2005) em que acompanhamos o ritual do datsi’waté
observamos algumas transformações em relação aos relatos de Giaccaria & Heide. Uma
delas diz respeito à proibição dos ‘waté’wa acender fogueiras durante o tempo em que
estiverem realizando o datsi’waté ou colocar folhas no chão para sentar-se durante seu
repouso. No ritual de 1997, na primeira chuva que deu quando os ‘waté’wa estavam na
clareira foram imediatamente socorridos por membros de seus grupos domésticos que se
encarregaram de levantar tendas com lonas plásticas para abrigá-los do mal tempo. A
alimentação dos ‘waté’wa durante o datsi’waté deveria ser a base tsadaré, de bolo de
milho, unhinhã (feijão xavante amassado, e waptsere
˜ ˜ (massa de milho assado triturado
e misturado com água). Este tipo de alimentação, baseada no milho, torna-se difícil de
ser mantido. As roças de milho Xavante não são suficientes para manterem esta dieta,
como veremos adiante o milho xavante é usado, em grande quantidade, no preparo de
alimentos rituais. Outros tipos de alimentos têm sido oferecidos de modo a
complementar a dieta tradicional. Nesta fase do ciclo de vida dos ‘waté’wa a idade
biológica corresponde àquela tomada como referência para a freqüência escolar. Diante
disso, boa parte dos ‘waté’wa estavam matriculados na escola indígena, mantida pelo
Governo de Mato Grosso e administrada pela Missão Salesiana, no casa da aldeia São
Marcos. Assim, com a suspensão das aulas para execução do ritual datsi’waté parte da
merenda escolar destinada aos alunos era direcionada aos ‘waté’wa. De mais a mais, os
grupos domésticos preparavam outros tipos de alimentos a base de arroz e feijão.
Durante a execução deste ritual não há restrições alimentares, o que deverá ocorrer
somente quando os ‘waté’wa tiverem os lóbulos das orelhas furados – como veremos
adiante.
O mesmo ĩhire, ancião, que conduziu os ‘wapté, moradores da casa dos
solteiros, ao centro da aldeia para o ritual preliminar ao datsi’waté fica encarregado de
acompanhar o desempenho dos, agora, ‘waté’wa durante o banho de imersão. Este ĩhire
faz visitas esporádicas ao riacho para ver se os ‘waté’wa estão de fato realizando o
167

datsi’waté e chama lhes a atenção, caso não estejam empenhados. Em São Marcos,
tanto em 1997 quanto em 2005, sempre que um ĩhire estava presente grande parte dos
‘waté’wa estavam no riacho. Quando este deixava o local os ‘waté’wa saíam do riacho e
punham-se a jogar bola numa praia próxima ou passavam grande parte do tempo nas
tendas levantadas ao longo do riacho ouvindo músicas em aparelhos portáteis.
No dia que se inicia o ritual do datsi’waté o ĩhire encarregado de acompanhar o
desempenho dos neófitos, que é também chamado dadzoni’wa, corta um tronco de
árvore, com cerca de trinta centímetros de diâmetro, com cascas grossas e crava-o
próximo ao leito do riacho. A cada dia transcorrido do ritual o ĩhire entalha no tronco
um pequeno quadrado indicando o tempo transcorrido. Este tronco, o wedehöpu, serve
de referência para indicar o quão próximo está à realização de outro ritual, o
daporedza’wa – furação de orelhas.
Além do ĩhire cabe, nesta fase do processo de iniciação, igualmente aos
pahöri’wa conduzir e incentivar os demais ‘waté’wa a permanecerem dentro do riacho
executando o datsi’waté. Já mencionamos que estes atores rituais são os que tomam a
frente da fila durante os rituais que ocorrem na aldeia. O mesmo ocorre quando os
‘waté’wa saem da água, ou da clareira, para irem à suas casas receberem a pintura
corporal. Contudo, se estes pahöri’wa não tiverem uma personalidade suficiente forte
para exercer tal liderança sobre o grupo, eles terão pouco sucesso em tentar manter os
‘waté’wa dentro d’água.
Durante o tempo em que se desenvolve o datsi’waté ocorre, algumas vezes um
banho com folhas e embiras, que segundo os Xavante, ajudam a fortalecer o corpo dos
‘waté’wa, pois permaneceram muito tempo dentro d’água. Cabe aos danhohui’wa
encontrar e encaminhar a folhas e embiras ao riacho. Quando se constata pelo tronco
wedehöpu que o tempo transcorrido foi o suficiente para que os lóbulos das orelhas
estejam moles, pois esta é a finalidade do datsi’waté, marca-se então o dia do ritual
daporedzapu’wa.

3.2 – DAPOREDZAPU – O FURO DOS LÓBULOS AURICULARES

Será a partir desta fase do processo ritual de iniciação da classe de idade abare’u
que estaremos dialogando também com as fontes consultadas a partir dos dados
coligidos durante nosso trabalho de campo de 2005. Nas fases precedentes estivemos
168

nos baseando em dados de 1997, quando participamos da iniciação da classe de idade


ẽtepa
˜ na condição de danhohui’wa, padrinho, por ter sido inserido na classe de idade
hötörã.
O daporedzapu’wa está subordinado aos preparativos de outros rituais que
acontecerão nos dias seguintes. Estes rituais são a nonhama höbö - corrida do bolo,
seguida pelo uiwededzada’rã - buriti preto de boca preta; pelo canto do ‘waté’wa e,
finalmente, no terceiro dia, o uiwede - corrida de buriti que encerra este primeiro
conjunto de rituais do processo de iniciação.
A cerimônia do bolo é a que demanda maior tempo nos preparativos. Para fazer
o bolo tsadaré, bolo de milho, usado na cerimônia nonhama höbö uma grande
quantidade de farinha de milho, às vezes misturada com feijão xavante, deve ser
extraída através da socagem no pilão. Com esta farinha prepara-se uma massa a base de
água. Neste ínterim as mulheres já providenciaram lenhas e montículos de cupinzeiros o
suficiente para assar os bolos. Os montículos de cupinzeiros são esmagados e sobre os
torrões acende-se uma fogueira para aquecê-los. Algumas horas depois de acessa, abre-
se a fogueira, a esta altura restam-se apenas brasas e torrões do cupinzeiro, e no centro
depositam-se camadas de folhas de uma planta nativa dos brejos, semelhante à folha de
bananeira, em seguida a massa de milho é colocada sobre estas folhas. As folhas que
sobram no contorno da massa de milho são dobradas ao centro, sobre a massa, acrescida
de mais folhas de modo a proteger o bolo de areia e cinzas. Sobre este “pacote”
deslocam-se as brasas e torrões de cupinzeiros, que foram deixados de lado. A fogueira
é novamente acessa sobre o monte que se forma e será alimentada com lenha por cerca
de mais oito horas. Um bolo tsadaré leva cerca de doze horas para ficar pronto.
Transcorrido este tempo uma nova operação é feita para retirar o bolo que foi assado
sob as brasas e cupinzeiros. Todo cuidado deve ser tomado para evitar que o bolo se
quebre ao meio. Por estar muito quente o bolo pode quebrar se não for retirado
corretamente. Tanto em São Marcos quanto em Nossa Senhora de Guadalupe
acompanhamos o preparo destes bolos. Sobre ao uso de cupinzeiros usados para assar o
bolo as mulheres que se dispuseram a conversar sobre a técnica disseram que ele
esquenta muito e mantém a temperatura por mais tempo. De fato, observei que sob a
fogueira o cupinzeiro comportava-se como um tipo de tijolo refratário.
O tamanho dos bolos tsadaré, bolo de milho, são bastante significativos.
Observei bolos que tinham tamanho um pouco maior do que um pneu de carro de
169

passeio. A quantidade de milho usado nestes bolos exige que o grupo doméstico tenha
uma plantação de milho muito expressiva. Nesta fase do processo ritual um grupo
doméstico tem em média três meninos sendo iniciados. Para cada um dos iniciados é
imperativo o preparo de dois bolos. Por isso os preparativos dos bolos são demorados,
seja pela quantidade de milho a ser socada, seja pela quantidade de lenha e cupinzeiros
usados, seja pelo número de bolos a serem preparados. Diante da grande quantidade de
bolos que um grupo doméstico tenha que preparar e a escassez de milho, uma
alternativa é o acréscimo de feijão xavante na massa. Outra solução que as mulheres
xavante tem lançado mão é o uso de fubá de milho adquirido no comércio de Barra do
Garças, que pode ser misturado com farinha de trigo, também adquirida na cidade, ou
junto a outro tipo de farinha extraída de arroz branco socado no pilão. Adiante
apontaremos outras estratégias acionadas para substituição dos bolos de tsadaré.
O trabalho que o preparo do tsadaré demanda, condiciona as decisões do
conselho dos homens no centro da aldeia, o warã. Neste sentido, não é suficiente que os
ĩprédu, homens já iniciados, e ĩhire, anciãos, apontem um dia específico para a
realização do dapo’redzapu, furo dos lóbulos auriculares, se não tiverem o aval das
mulheres. Isto pode aumentar o tempo que os ‘waté’wa devem permanecer praticando o
ritual do datsi’waté.
Havendo consenso, marca-se o dia para a cerimônia de furação de orelhas.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:165), no dia que antecede o ritual os ai’repudu,
meninos que não estão sendo iniciados com os ‘waté’wa, coletam uma espécie de
capim, buruteihi, cujos talos serão usados para confeccionar os ĩpo’rewa’u, palitos com
cerca de sete a dez centímetros que serão introduzidos nos lóbulos auriculares após o
furo. Estes palitos são diferentes daqueles usados pelos homens já iniciados. A textura
do capim por ser lisa favorece sua introdução e retirada do furo recém aberto. Depois de
cortados em tamanhos variados os palitos são untados com urucum e depositados numa
cabaça – umre, que aqui recebe o nome de uawi, cortada ao meio, semelhante a uma
bandeja. Não obstante, constatamos em 1997 que a coleta e preparo dos os ĩpo’rewa’u
foi feita pelos dahi’wa, aqueles que vigiam a conduta do wapté. Os danhohui’wa são
impedidos de verem estes pauzinhos. Naquele ano, quando através da classe de idade na
qual estávamos inseridos desempenhamos o papel de danhohui’wa, fomos repreendido
pelos ‘dahi’wa por ter entrado na hö e visto os palitos. Como não dominávamos, e não
170

dominamos ainda todos os protocolos rituais, gafes como estas foram repetidas e
relevadas.
Durante a noite toda, que antecede o dia da cerimônia do dapo’redzapu, os
‘waté’wa praticam o datsi’waté. Antes de o dia amanhecer o ĩhire, ancião, encarregado
de acompanhar os ‘waté’wa se dirige até o local do ritual os conduzem, ritualmente
como já descrito acima, até a entrada da aldeia e dali cada qual toma o rumo da casa de
seu grupo doméstico. Na frente da casa os parentes, em particular o pai, já prepararam
uma esteira especialmente para este fim onde o ‘waté’wa senta-se e deposita a borduna
ub’ra ao seu lado direito e permanece aguardando o momento de ter as orelhas furadas.
O cargo cerimonial de furador de orelhas, o daporedzapuu’wa, é prerrogativa do
clã öwawẽ. O mesmo é escolhido entre os membros da classe de idade que está
desempenhando o papel de danhohui’wa. Cabe aos daporedzapuu’wa’rada, ou seja, os
antigos furadores de orelha que atuaram nos danhono precedentes escolher quem dentre
os danhohui’wa aquele que pode e tem condições de desempenhar tal papel. Entre estas
pré-condições Giaccaria & Heide (1984:166) apontam as habilidades em fazer flechas,
arcos e trabalhos em geral. Segundo meus informantes outras pré-condições levadas em
consideração, como por exemplo: comer pouco e não ser dado a brigas. Ademais este é
um cargo muito delicado para se assumir. Numa sociedade onde o clima entre os
moradores não esteja muito tranqüilo, um furo errado que o daporedzapuu’wa venha a
cometer na orelha de um dos iniciandos pode servir para o acirramento de tensões. Daí
talvez uma provável explicação que nosso informante nos deu para que o
daporedzapuu’wa não seja dado a brigas. O escolhido para desempenhar este papel
dirige-se à hö e ali pinta-se adotando a modalidade tsanapré – onde pinta-se, com
urucum, um retângulo sobre o abdômen e nas costas, entre as omoplatas, outro
retângulo que se estende da nuca à cintura sobre a coluna, e de preto da metade da
canela ao tornozelo. Os cabelos são presos com o colar de algodão, ĩtsõ’rebdzu’a -
gravata.
Enquanto o daporedzapuu’wa, furador de orelha está se pintando outro membro
da mesma classe de idade dos danhohui’wa é escolhido para desempenhar o cargo
cerimonial de wa’ritire, o seriema. Este ator ritual sem ser visto sobe no topo de uma
casa e começa a gritar para os ‘waté’wa que estão sentados na frente de suas casas:
watsede, watsede, watsede – vai doer, vai doer, vai doer. A intenção parece ser a de
causar medo aos ‘waté’wa.
171

Quando todos os atores rituais estão prontos e a postos o daporedzapuu’wa,


furador de orelhas, sai da hö balançando ritualmente a umre, cabaça com os palitos, com
passos largos dirigem-se a primeira casa da aldeia onde os ‘waté’wa o aguardam. Nas
primeiras furações ele será assessorado pelos daporedzapuu’wa’rada, antigos
daporedzapuu’wa dos danhono anteriores. Em Guadalupe, no danhono de 2005, havia
os daporedzapuu’wa’rada das seguintes classes de idade: Vivente – nodzõ’u; Mariano –
airere; Carlos e Ernesto – hötörã; e, Dário – tirowa, classe de idade que desempenhava
o papel de danhohui’wa naquele danhono. Estes daporedzapuu’wa’rada são também os
guardiões do instrumento usado na cerimônia.
O furo nos lóbulos auriculares dos ‘waté’wa é feito com o atsadaateihi, osso da
perna de uma onça parda de cerca de vinte centímetros. Assim, ritualmente o
daporedzapuu’wa ao chegar à frente da casa do ‘waté’wa, fazendo-se de conta que
passaria adiante pára e vira bruscamente o corpo e dirige-se ao iniciando, que o aguarda
sentado com as pernas esticadas e apoiando o corpo com as mãos voltadas para trás. A
umré – cabaça com os palitos é depositada a esquerda do ‘waté’wa e apoiando o joelho
esquerdo no chão com a perna direita flexionada em ângulo de noventa graus, inicia-se
a furação de orelhas. Como já mencionei neste momento o daporedzapuu’wa é
assessorado pelos antigos furadores que o ajudam a posicionar o atsadaateihi, osso de
onça parda, na posição correta para que o batoque auricular não fique torto, apontando
para cima ou para baixo, ou em ângulo desviante da face do ‘waté’wa. Ao fazer o
primeiro furo o daporedzapuu’wa retira o atsadaateihi, osso de onça, e guarda-o
atravessado na boca. Isso ajuda a lubrificar o atsadaateihi para o próximo furo. Com o
atsadaateihi na boca o daporedzapuu’wa procura na umré o melhor botoque e o
introduz, girando-o, no buraco aberto. O mesmo processo é repetido na outra orelha e
dali passa-se ao próximo iniciando.
Ao ter recebido os batoques auriculares o ‘waté’wa dirige-se para dentro da casa
onde a irmã mais nova pinta-o do mesmo modo que o fazia diariamente quando o irmão
saia do riacho. Tendo recebido a pintura retorna ritualmente, ou seja, com a borduna
embaixo do braço esquerdo, a mão em punho na boca e o corpo curvado, ao local onde
esteve fazendo o datsi’waté, banho ritual.
Enquanto sua orelha está sendo perfurada pelo daporedzapuu’wa os ‘waté’wa
não podem chorar ou demonstrar qualquer desconforto frente à situação. Entretanto, a
quantidade de sangue que jorra do lóbulo recém furado é considerada um sinal de
172

virilidade. Não obstante, para os pais o momento é de grande comoção que é expresso
através do choro. Segundo meus informantes a emoção que os pais demonstram neste
momento se deve a nova situação social que seus filhos estão prestes a vivenciar.
Segundo alguns informantes o choro dos pais e parentes se dá também pelo fato de os
‘waté’wa não poderem fazê-lo neste momento.
O daporedzapuu’wa segue o mesmo itinerário de danças da classe de idade que
está sendo iniciada. No caso do danhono da classe de idade abare’u isto se deu em
sentido anti-horário. Ao completar a furação de orelha em todos os ‘waté’wa ele segue
acompanhado dos daporedzapuu’wa’rada para o riacho onde se deu o datsi’waté, banho
de imersão. Ali cada um dos ‘waté’wa tem os furos das orelhas revisados pelos ĩhire,
anciãos, que podem ou não decretar que estes sejam novamente furados. Isto se deve ao
fato de haver disparidade de posicionamento entre os dois batoques auriculares. Nesta
situação o daporedzapuu’wa apenas acompanha o daporedzapuu’wa’rada da classe de
idade mais antiga a corrigir os furos. Em Guadalupe e em São Marcos cerca de dez
‘waté’wa tiveram que passar novamente pelo ritual. Para tanto eles devem entrar
novamente na água e permanecer ali por alguns minutos. Segundo os informantes isto se
faz para que os lóbulos das orelhas amoleçam.
O volume de sangue que escorre do lóbulo recém furado é também um sinal de
virilidade, da mesma forma que a diferença de posição dos batoques é indicativa de
certa dificuldade no desempenho inicial da atividade sexual do futuro guerreiro. Os
informantes disseram haver uma correlação entre o fato de o batoque auricular
apresentar-se torto e a anatomia do falo do ‘waté’wa, que também seria torto. Durante o
ato sexual o novo guerreiro teria dificuldade em encontrar o “caminho” certo para a
cópula. Em se tratando de uma relação onde a parceira ainda seria virgem as
dificuldades seriam ainda maiores. Outra explicação para o mau posicionamento dos
batoques auriculares diz respeito o comportamento dos ‘waté’wa, antes e durante o
banho de imersão, datsi’waté. Durante este tempo o ‘waté’wa que não observou os
conselhos dos danhohui’wa, padrinhos, e do ĩhire que o acompanhava durante o
datsi’waté tem como castigo, além do mau posicionamento dos palitos na orelha, o fato
de ser submetido novamente ao ritual de daporedzapuu.
Após a revisão de todos os ‘waté’wa, o daporedzapuu’wa deposita os batoques
auriculares que sobraram no chão para que os ‘waté’wa escolham alguns que serão
usados nas substituições nos dias que se seguirão. Os pais e parentes que acompanhava
173

a revisão dos furos retornam à suas casas e os ‘waté’wa permanecem no acampamento


juntamente com o ĩhire, ancião, encarregado de acompanhá-los. Este ĩhire passa para os
iniciandos uma série de prescrições alimentares que estes deverão observar até a
cicatrização total do furo.
Ao término das revisões acontece a segunda passagem. Os ‘waté’wa assumem
agora o status de heroi’wa, ou também hereroi’wa, novos guerreiros. Entretanto, este
status ainda constitui um estado liminar. Eles serão de fato novos guerreiros ao
concluírem o danhono.
Em 2005, na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe os ‘waté’wa, agora heroi’wa,
foram obrigados a dormir mais uma noite no acampamento aberto próximo ao rio.
Segundo o relato de Giaccaria & Heide (1984:167) após o furo dos lóbulos auriculares
os heroi’wa deveriam permanecer ainda mais alguns dias praticando o ritual do
datsi’waté até que os ĩhire, anciões, definissem o dia da próxima etapa dos ritos de
iniciação. Situação diferente da qual assistimos durante o trabalho de campo. Nas duas
aldeias, São Marcos e Guadalupe, os herei’wa permaneceram mais um dia na clareira
próximo do rio e ao raiar do dia seguinte tomaram o rumo de suas casas observando a
forma ritual de deslocamento quando estavam ainda na fase do datsi’waté.
Embora a classe de idade que estou inserido não estivesse diretamente envolvida
no danhono dos abare’u, como esteve em 1997, passei a participar de situações
especiais nesta iniciação. Num destes momentos assumimos o papel de pai
classificatório de um dos iniciados. Isto se deu no dia seguinte a furação de orelhas
quando os abare’u deixavam a clareira, próxima ao riacho, onde passaram a noite e
retornavam as suas casas. Uma vez que às mulheres é interditado o acesso a esta
clareira, caberia ao pai do iniciando buscar seus pertences na clareira. Ocorre que o pai
biológico do iniciando estava com reumatismo e grande dificuldade em caminhar.
Diante disto, esta tarefa foi direcionada a nós que aceitamos visualizando uma estratégia
de aproximação maior da comunidade aldeã e dos iniciandos. Assim, dirigi-me até a
clareira onde poucos heroi’wa ainda estavam por lá. Ali observamos que o local havia
sido transformado num dormitório a céu aberto com colchões, cobertores e lonas
plásticas para os dias de chuva. Tomamos os apetrechos do heroi’wa, meu filho
classificatório, e cruzamos a aldeia até sua casa. Tal ato favoreceu a aceitação de minha
presença junto às mulheres que estavam empenhadas no preparo do bolo tsadaré, bolo
de milho, que seria utilizado no dia seguinte. Uma delas em especial, por ser tia do
174

heroi’wa que eu havia ajudado, forneceu-nos muitos detalhes sobre o preparo dos bolos
tsadaré.

3.3 - NONHAMAHÖBÖ ou NONHAMAHÖPÖ’ÕNO82 - CERIMÔNIA DO


BOLO DE MILHO

Os heroi’wa ao retornarem no dia seguinte ao da furação da orelha para seus


grupos domésticos permaneceram o dia todo descansando dentro das casas, sendo
impedidos de saírem. Embora tenham os lóbulos das orelhas furados e estejam usado
batoques auriculares sua iniciação não está por toda completa. No grupo doméstico
onde residíamos, durante o trabalho de campo, havia três heroi’wa. Neste dia receberam
várias visitas de parentes de outras aldeias, que não puderam acompanhar o momento da
furação e agora inspecionavam os furos, além de darem conselhos aos iniciandos. O
conteúdo destes conselhos tinha como referência a conduta sexual dos heroi’wa.
Segundo um dos informantes, as moças da aldeia provocam constantemente os
heroi’wa, por isso eles devem ficar “guardados” em casa. Do contrário, casa haja
alguma situação de transgressão desta regra de conduta os rituais de iniciação sofrem
uma abreviatura, deixando-se de lado várias cerimônias, e passa-se para os ritos
conclusivos.
Enquanto os heroi’wa permaneciam deitados em suas casas, as parentas estavam
empenhadas no preparo dos bolos tsadaré. A técnica de preparo já foi descrita acima.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:167), seriam dois bolos com tamanhos diferentes.
Um deles destina-se ao momento da nonhamahöpö’õno, cerimônia do bolo, enquanto
que o outro deverá ser entregue ao tio materno, danhorebdzu’wa. Na parte da tarde
quando os bolos estavam assando embaixo dos cupinzeiros e brasas, as mães dos
heroi’wa puseram-se a cortar o cabelo (a franja) de seus filhos, para que “ficassem
bonitos”.
Ao entardecer deste mesmo dia, Fortunado, da classe de idade
abare’u’õmob’rada, encarregado de acompanhar os moradores da casa dos solteiros
durante o datsi’waté, tomou um pequeno cesto e seguiu em direção às casas para

82
Nonhamahöbö ou nonhamahöpö’õno segundo Georg Lachnitt (1993) são bolos
confeccionados respectivamente com: milho Xavante e feijão assado debaixo da cinza e bolo de milho
Xavante. O segundo é usado neste ritual.
175

receber, em tese, bolos tsadaré, ou qualquer outra coisa como forma de “pagamento”
pelo trabalho de acompanhar os moradores da casa dos solteiros antes e após o ritual do
datsi’waté. Fomos convidados por ele a fazer este percurso. Ao final ele havia recebido
pacotes de farinha de trigo, pedaços de carne bovina, sabão em barras, pães adquiridos
na cidade e assados na aldeia, e finalmente alguns pedaços de tsadaré. Os presentes
recebidos foram levados por ele ao centro da aldeia onde parte foi divida com os demais
ĩhire, anciãos, que ali estavam e o aguardavam, o restante Fortunato levou para sua
casa. Nesta mesma tarde os danhohui’wa deveriam ensaiar o canto para a cerimônia do
wanaridobe. Entretanto, diante do falecimento de um dos netos do cacique o ensaio
estava suspenso.
Na madrugada do segundo dia após a cerimônia do daporedzapuu, furo das
orelhas, os danhohui’wa, padrinhos, e os heroi’wa, começaram a se preparar para a
cerimônia do nonhamahöpö’õno. Tal cerimônia, que envolve toda a comunidade aldeã,
começa por volta de 2:00hs. Isto se deve, em parte, pelo grande número de pessoas que
devem estar pintadas e ornadas, e ainda pelo fato de que a cerimônia deve começar
antes do sol nascer. Tomam parte direta nesta cerimônia, como atores rituais, os
danhohui’wa – padrinhos, as danhohui’watsipi’õ – madrinhas e os heroi’wa, novos
guerreiros.
Acompanhei todo processo de preparação percorrendo diversos grupos
domésticos onde os heroi’wa eram pintados e ornamentados por um dos irmãos da mãe.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:167), são os danhimãmatã, traduzido pelos autores
como tio materno, que pintam e ornamentam os heroi’wa. O danhimãmatã, dizem os
autores, é um termo entre os parentes usado somente por aqueles que exerçam tal
função em relação ao sobrinho (idem).
Entretanto, segundo Lopes da Silva (1986:80) a categoria danhimãmatã traduz-
se como nominador. Os nominadores pertencem tanto a linha materna quanto paterna.
De outro modo, (...) os nomes de menino vêm geralmente por linha paterna enquanto
que o nome do rapaz iniciado vem da linha materna (Lopes da Silva, 1984:80).
Considerando que os heroi’wa ainda não completaram a iniciação, pode ser que as
relações de nominação ainda não tenham se efetivado de fato. Para Lopes da Silva
(1986:79),
(...) só depois das cerimônias da iniciação e, particularmente depois
da furação das orelhas, é que as relações entre danho’rebdzu’wa e
seus sobrinhos de sexo masculino vão se transformar em relação de
nominação propriamente.
176

Desta forma, podemos afirmar que a tarefa de pintar os heroi’wa cabe aos
danho’rebdzu’wa, que podem ser também nominadores. Tal categoria tem amplo
sentido. Literalmente o termo significa “o fazedor do colar de algodão” (DANHO’RE
= garganta, pescoço, cantar; DZU = ao redor, que amarra; ‘WA = aquele que
constrói, que fabrica, que faz) – Giaccaria (2000:35).
Os danho’rebdzu’wa assumem responsabilidades rituais em diversos momentos
da vida dos filhos e filhas de sua irmã. Portanto, tratam-se relações sociais especificas
do ambiente doméstico. No caso dos meninos, cabe ao danho’rebdzu’wa, ZB – irmãos
da mãe, pintá-los por serem ZS nos rituais que ocorrem do danhono. Para as meninas, o
danho’rebdzu’wa tem forte atuação quando estas estão oficializando o casamento. Nesta
ocasião ele confecciona os colares que a noiva usará durante a adabatsa, cerimônia de
casamento. Além de pintar, são os danho’rebdzu’wa que também confeccionam os
colares a serem usados nos rituais.
A modalidade da pintura corporal que os danho’rebdzu’wa aplicam nos ZS é a
daupté, ou seja, o tronco e braços em vermelho com duas faixas em preto nas costas e,
em preto, dos tornozelos até metade da canela. Após a pintura são colocados quatro
tipos de colares: o danhonhi’a (colar de algodão que fica sobre os ombros); o
uhödzéré’manharĩ (?); o danho’rebdzu’a (colar de algodão); e, o a’a’abö – (colar feito
com penas de mutum e amarrado ao pescoço de modo que as penas fiquem
perpendicular à nuca). Completando a ornamentação o danho’rebdzu’wa amarra uma
cordinha vermelha, chamada danhõprewarĩ, na cabeça do heroi’wa, de modo que esta
lhe prenda o cabelo, e na cintura é colocado uma espécie de cinto chamado da’utsi,
cordão de algodão pintado em vermelho. Os danho’rebdzu’wa, padrinhos, que estão
ornamentando os heroi’wa não pertencem a mesma classe de idade dos danhohui’wa.
Embora as traduções para estas categorias seja padrinho, seus papéis rituais são
distintos. Enquanto o primeiro atua ao longo da vida em vários rituais nos quais os
afilhados tomam parte, o segundo está restrito as cerimônias que compõem o ritual de
iniciação do danhono. Neste último caso suas atuações não estão restritas a uma
iniciação específica, por exemplo, aquela que sua classe de idade patrocina.
Enquanto os danho’rebdzu’wa e heroi’wa estão “confinados” dentro das casas
para pintura corporal e aplicação dos adornos, os danhohui’wa desenvolvem seus
preparativos no centro da aldeia. Ali, ao redor de uma fogueira, eles pintam o corpo
livremente com riscos de carvão, de modo que a pintura fique parecida com uma
177

camuflagem. Os cabelos são amarrados em forma de “rabo de cavalo” e a franja recebe


uma pintura em vermelho, feito com urucum. Junto com os danhohui’wa quatro
danhohui’wa tsipi’õ, escolhidas entre as esposas dos danhohui’wa, pintam-se de modo
semelhante. O estilo de pintura das danhohui’watsipi’õ também lembra uma
camuflagem. No caso das danhohui’wa tsipi’õ não há uma modalidade pré-determinada.
Neste sentido, quem executa a pintura o faz como um artista que toma o corpo feminino
como uma tela onde expressa toda sua criatividade. Ao término da pintura das
danhohui’wa tsipi’õ amarra-se em suas cinturas cintos que tenham algum tipo de sino.
Tanto em Guadalupe quanto em São Marcos foram utilizando cintos que tinham o sino
de metal usado na escola para marcar os horários, ou um tipo sino que os moradores do
campo usam para amarar no pescoço dos animais, ou ainda sinos confeccionados com
caracóis encontrados próximos às matas ciliares. Em suma, qualquer que seja o material
empregado no cinto, o importante é que ele emita som e chame a atenção quando as
danhohui’wa tsipi’õ estiverem correndo.
Ao final, quando todos estão prontos os danho’rebdzu’wa saem do centro da
aldeia e vão esconder-se, antes que o sol apareça, nas proximidades da aldeia. As
danhohui’wa tsipi’õ permanecem no centro da aldeia aguardando o sinal dos ĩhire,
anciãos, para que a cerimônia tenha início. Assim, quando os ĩpredu e ĩhire, percebem
que tudo está pronto eles dão gritos e os heroi’wa começam a deixar suas casas em
direção ao centro da aldeia. Aqui se segue a mesma ordem pré-estabelecida quando os
moradores da casa dos solteiros tenham que se deslocar, ritualmente de um ponto a
outro. Desta forma, o primeiro a deixar o grupo doméstico em direção ao centro da
aldeia é o primeiro pahöri’wa. Este pahöri’wa, como todos os demais iniciandos, deixa
seu grupo doméstico trazendo na mão direita a borduna ub’ra e caminha em passos
lentos em direção do centro da aldeia. Neste momento a danhohui’wa tsipi’õ, esposa do
danhiwanho, padrinho, deste pahöri’wa corre em direção à casa de onde ele saiu e
recebe de sua mãe um bolo tsadaré, bolo de milho, preparado no dia anterior
especialmente para este fim.
A cerimônia do nonhamahöpö’õno - corrida do bolo segue com as saídas dos
demais atores rituais. As danhohui’watsipi’õ correm para pegar os bolos pertencentes
aos afilhados de seus maridos que estão escondidos próximos à aldeia. Com a saída dos
dois pahöri’wa e dos dois tébé, segue-se a ordem por estatura, obedecendo à alternância
de filiação clânica, até que o último heroi’wa, o danhitö’wa – o menor, deixe seu grupo
178

doméstico. Para os demais serão outras mulheres que estarão correndo de sua casa à
casa de onde saiu o heroi’wa. Neste ínterim, no centro da aldeia, ocupado pelos homens,
fica extremamente agitado com várias saídas simultâneas de heroi’wa. Várias mulheres
cruzam a aldeia de um ponto a outro carregando os bolos. Num clima de jocosidade
alguns ĩprédu – homens adultos, já iniciados, ajudam algumas mulheres, já sem fôlego
pela corrida, a carregar o bolo até sua casa. Nos arredores, em frente às casas, as
mulheres gritam incentivando aquelas que têm o papel de buscar o bolo e apontam para
onde as elas devem correr.
As diversas situações rituais nas quais se exige a troca de bolos, tsadaré, geram
uma grande demanda por sua principal matéria prima: o nodzö, milho xavante. Temos
constatado que em aldeias de grande porte, como Guadalupe e São Marcos, onde a
população ultrapassa em mais de quinhentas pessoas em cada uma, os grupos
domésticos não tem conseguido manter um roçado que garanta de forma plena o
fornecimento de nodzö, milho xavante, para os rituais. De mais a mais, a entrada de um
grande contingente de homens em mercados de trabalho assalariado acarreta igualmente
uma diminuição de mão de obra nos roçados. Por outro lado, estes recursos monetários
têm sido usados para manter a dinâmica das trocas rituais. Já relatamos o caso de alguns
Xavante que trabalham na cidade de Barra s Garças que contrataram os serviços de um
marceneiro para fazer as bordunas ub’ra de seus filhos. Durante a cerimônia que
estamos descrevendo, a nonhamahöpö’õno, vários grupos domésticos lançaram mão de
seu poder econômico para adquirir bens e alimentos que foram colocados em
substituição aos tradicionais bolos de milho, tsadaré. Neste sentido, assistimos deste a
entrega de bolos feitos com farinha de trigo e fubá, pilhas de caixas de biscoito, fardos
de farinha de trigo, porcos assados, quartos de vaca moqueados, fardos de arroz, sacos
de feijão, até fardos de refrigerantes em garrafas tipo pet de dois litros. Em São Marcos
a quantidade de produtos alternativos aos bolos tsadaré era maior que em Guadalupe.
Isto sugere que São Marcos tem uma população monetarizada maior do que Guadalupe,
ou seja, um poder de aquisição de bens em maior escala. Ademais, a população da
aldeia São Marcos é maior do que em Nossa Senhora de Guadalupe.
Esta prática adotada pelos Xavante, substituir os tradicionais bolos tsadaré por
outros tipos de bolos e alimentos não pode ser visto como um fator empobrecedor do
ritual. Pelo contrário, a situação de contato não trouxe apenas situações negativas aos
Xavante, como por exemplo o processo de depopulação em seu início, ela permitiu
179

acesso a outras fontes de recursos que amplificam as possibilidades de (re)produção


cultural. Richard F. Salisbury (1984) (apud Marshall Sahlins, 1997:53) chama este
processo de intensificação cultural, entendido como
(...) um é um projeto seletivo e orientado de desenvolvimento integral,
(...), associado a uma promoção explícita da “cultura” indígena —
ainda que materialmente fundada em uma articulação com o mercado
e por isso, em última análise, ameaçada por uma condição de
dependência (idem).

As reflexões de Salisbury a respeito da intensificação cultural são decorrentes de


um Simpósio cujo tema era “Abundância e Sobrevivência Cultural”, que resultou numa
publicação em 1984. Sahlins comenta ainda o artigo de Rena Lederman, que trabalha
com a expressão divelopman retomada de Michael Nihil. Nihil captou o termo a partir
de um trabalho etnográfico desenvolvido entre os Anganen, da Nova Guiné. Segundo
este autor,
... ‘Desenvolvimento’ (divelopman) é um conceito amplo em anganen,
mas que é avaliado sobretudo em termos de bens materiais, avaliação
realizada e simbolizada através do dinheiro. O dinheiro vivo tem
várias utilidades, é claro (...), mas seu maior significado para os
Anganen deriva de sua proeminência nas trocas cerimoniais” (Nihill
1989:147, apud Sahlins, 1997:59).

A partir desta noção, divelopman, Leadman mostra como os Mendi, da Nova


Guiné, convergem bens materiais europeus, inclusive o dinheiro, para sua cultura dando
novos significados e ampliando suas cerimônias.
Os Xavante parecem estar adotando estas mesmas estratégias para manterem a
(re)produção de suas práticas, ou seja, reapropriam-se de bens materiais e simbólicos e
convertem-nos para manutenção e intensificação de sua (re)produção cultural. Entre
uma flauta upawã feito de bambu ou cano de PVC a diferença é apenas aparente, porém
seu uso no ritual não.

3.4 – UIWEDEDZADARÃ – CERIMÔNIA DO BURITI DA BOCA PRETA

Dias antes da cerimônia da corrida de bolos, nonhamahöpö’õno, os


danhohui’wa, padrinhos, saem para cortar dois troncos de tamanhos diferentes que
depois são lapidados e recebem uma pintura com carvão, chamada uiwededzadarã –
buriti da boca preta, com cerca de meio metro numa das extremidades. O maior deles,
com cerca de três metros, é adornado com um tipo de colar de unhas de veado campeiro,
180

popara, que é amarrado na ponta que recebeu a pintura. Os mastros são escondidos,
durante a madrugada em locais próximos, num determinado ponto nos arredores da
aldeia. No dia da cerimônia, que é subseqüente a corrida dos bolos, nonhamahöpö’õno,
após terem se pintado no centro da aldeia, os danhohui’wa, antes do sol nascer, vão se
esconder junto ao seu uiwededzadarã. Eles permanecem escondidos até que todos os
heroi’wa tenham deixado seus grupos domésticos, por ocasião da corrida do bolo.
Durante a cerimônia do nonhamahöpö’õno os heroi’wa ao deixarem o grupo
doméstico dirigem-se ao centro da aldeia e vão posicionando-se lado a lado, em fila,
conforme o modo próprio de deslocamento durante os vários rituais, tendo a mão direita
a borduna ub’ra. Esta posição ritual obedece ainda às orientações dadas quando os
iniciandos ainda viviam na hö, casa dos solteiros, na condição de wapté, ou seja, devem
permanecer com a cabeça baixa com olhar voltado ao chão. Quando todos já tenham
tomado seus lugares o ĩhire, ancião, encarregado de acompanhá-los durante o banho
ritual datsi’waté, posiciona-se a frente dos heroi’wa e demonstra como devem proceder
na fase seguinte do ritual. Este ĩhire, ancião, pinta-se e ornamenta-se de modo
semelhante aos heroi’wa. Assim, chamando a atenção para que os heroi’wa observem
seus movimentos ele lentamente flexiona os joelhos e deposita a borduna ub’ra no chão
e retoma a postura ereta. O movimento é repetido uma ou duas vezes até que os
heroi’wa compreendam como devem proceder.
Atentos ao comando dos ĩhire, anciãos, que acompanham o ritual os heroi’wa
executam a performance recém demonstrada e depositam as bordunas no chão. Ao
término do movimento, que é acompanhado por gritos de: atéma, atéma, atéma,...
devagar, devagar, devagar; para que todos executem o movimento de modo uniforme,
recebem os agradecimentos dos que estão presentes: hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, pãrĩ,ãne...
obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, assim!
Na aldeia Guadalupe este momento foi igualmente marcado pelo discurso de
dois caciques, que procuraram marcar posicionamento político no ritual. O primeiro a
discursar foi o cacique da aldeia Nova Esperança (Tobias). Nesta ocasião o mesmo
estava pintado conforme um guerreiro: tronco e braços em vermelho, tendo uma faixa
preta que estendia pelos braços, partindo do ombro ao punho, no peito um desenho em
preto como uma gravata borboleta; na cabeça usava o wairo – um tipo de cocar,
ornamento usado pelos caciques ou quem deseja comunicar autoridade; no pescoço
trazia o colar de algodão ĩtso’rebdzu’a; além disso, portava um conjunto de arco e
181

flechas. Antes que o cacique da aldeia Diamantino concluísse seu discurso, o cacique da
aldeia Guadalupe, de frente para o cinegrafista que documentava o ritual, se pôs a
discursar. Em contraste com o outro cacique o de Guadalupe não usava nenhuma
pintura corporal. Em parte isto se deve ao fato deste cacique pertencer à outra metade
ritual, considerando as classes de idade.
Após a performance na qual os heroi’wa deixaram as borduna ub’ra no chão,
eles foram orientados a seguirem para fora da aldeia na direção onde provavelmente
estariam escondidos os danhohui’wa. Quando os heroi’wa se aproximaram do
esconderijo dos danhohui’wa estes se levantaram e tomaram seu uiwededzadarã, buriti
da boca, menor e segurando-o na posição vertical dirigiram-se ao centro da aldeia.
Nesta performance o uiwededzadarã – buriti da boca, teve a extremidade sem pintura
constantemente batida ao chão emitindo o som das unhas de veado que foram amarradas
na ponta que recebeu a pintura. Aqui os danhohui’wa agarram-se uns aos outros pela
cintura, permanecendo curvados, e posicionam-se em volta do uiwededzadarã, emitindo
gritos. Neste momento os homens iniciados que acompanham o ritual estavam eufóricos
e procuravam orientar a direção que o uiwededzadarã, deveriam tomar. O tronco foi
levado ao centro da aldeia sendo batido uma última vez ao chão e, de modo semelhante
ao corte de uma árvore, foi deixado que ele caísse. Aqui se fez um breve silêncio para se
ouvir o som da queda do uiwededzadarã – buriti da boca, repetindo-se novamente o:
hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, ãne... obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, assim! Neste
ínterim os heroi’wa já tinham encontrado, com certa dificuldade, o segundo tronco que
é duas vezes maior do que o usado pelos danhohui’wa e repetiram a mesma
performance até o centro da aldeia. Contudo, parte dos danhohui’wa que havia deixado
o tronco que transportavam no centro da aldeia retornaram imediatamente para ajudar os
heroi’wa a carregarem o segundo uiwededzadarã. Ao chegarem ao centro da aldeia
deixaram o tronco cair de maneira semelhante ao dos danhohui’wa, recebendo em
seguida os agradecimentos daqueles que acompanharam a cerimônia.
Segundo meus informantes a diferença de tamanho entre os dois troncos se deve
ao fato dos heroi’wa serem mais novos, portanto, em tese, mais fortes do que os
danhohui’wa. O uiwededzadarã transportado pelos danhohui’wa traz a popara, colar de
unhas de veado, por serem eles os donos dos cantos executados durante todo o processo
de iniciação. Os danhohui’wa “vencem” a corrida do buriti de boca preta por serem
mais espertos do que os heroi’wa. Entretanto, equilibram-se as forças quando os
182

danhohui’wa retornam para ajudar os heroi’wa a carregarem o tronco maior. Há muitos


sentidos míticos embutidos neste ritual. Tais sentidos não serão aqui explorados. Deixo
aqui um indicativo para outras pesquisas que venham a explorar o universo cosmológico
presente no ritual de iniciação danhono. Os dois uiwededzadarã, buriti de boca preta,
simbolizam a vida dos heroi’wa e dos danhohui’wa. Ao deixarem os troncos caírem
espera-se que caiam fortes e não rachem. Caso um deles se quebre ou venha a rachar no
transporte e queda no centro da aldeia a saúde dos heroi’wa estará comprometida,
podendo até a vir a ocorrer a morte de algum deles.
Os troncos trazidos ao centro são de propriedade do ĩhire, ancião, que ficou
encarregado de conduzir e acompanhar os ‘wate’wa durante o ritual de banho de
imersão. Entretanto, um membro da classe de idade ai’rere adiantou-se em relação ao
ĩhire, ancião, e tomou o tronco menor que continha a popara, colar de unhas de veado,
e o levou para sua casa. Ainda no caminho o mesmo foi repreendido pelos demais ĩhire,
anciãos, que estavam no centro da aldeia, que tentaram em vão fazê-lo devolver o
tronco a quem de fato pertencia. Em vias normais do processo ritual os troncos
uiwededzadarã – buriti da boca preta, seriam entregues ao ĩhire, ancião, que
acompanhou os meninos no ritual do datsi’waté , que deveria fincá-lo na frente de suas
casas até o término da iniciação do danhono. Ao final do processo ritual estes troncos
poderiam vir a ser usados como lenha pelo grupo doméstico que o recebeu. Soube
posteriormente que o louco – o cabeçudo, como os informantes fizeram questão de
adjetivar aquele que havia levado o uiwededzadarã, estava precisando de um poste de
igual tamanho para usar em sua casa.
Após a chegada dos dois uiwededzadarã os danhohui’wa se puseram em fila e
aguardaram a chegada dos membros da classe de idade que foram seus danhohui’wa
quando os primeiros estavam sendo iniciados, ou seja, a terceira classe de idade mais
antiga de sua metade. No caso da aldeia Guadalupe a classe de idade que estava sendo
iniciada era a abare’u (heroi’wa) e tinham como danhohui’wa a classe de idade tirowa,
que por seu turno tiveram como danhohui’wa a classe de idade ai’rere. O ato de retirada
dos enfeites revela outro modo pelo qual os Xavante pensam seu universo social. Como
já tratamos acima, isto pode ser traduzido pelas categorias waniwihã – nós, aqueles do
meu lado, da minha metade, em oposição tsire’wa – os outros, do outro lado, da outra
metade cerimonial. A base destas categorias reside na filiação clânica que é dada pela
linha paterna. Desta forma ego considera como waniwihã todos aqueles que pertencem
183

a seu clã, enquanto os outros são tsire’wa. Assim, a retirada dos enfeites se dá
alternando-se os clãs, onde öwawẽ e tob’ratato retiram os enfeites de po’redza’õno, e
vice-versa. Os enfeites retirados pelos ai’rere dos danhohui’wa foram os colares ĩ
tso’rebdzu’a, colar de algodão. Com a retirada dos colares ĩtso’rebdzu’a pelos ai’rere
boa parte dos danhohui’wa dirigiram-se para suas casas onde partiram e comeram dos
bolos que foram recolhidos por suas mulheres na cerimônia anterior. Outros, porém, se
dirigiram ao awã, um cercado próximo ao centro da aldeia.

3.4.1 – DANHO’RE UIWEDEDZADA’RÃ – CANTO DO BURITI DA


BOCA PRETO

No dia anterior a realização das cerimônias que já apresentamos, os


danhohui’wa constroem um cercado chamado awã, próximo ao centro da aldeia. Para
tanto se utilizam de galhos e folhas de palmeira de bacuri, de modo que este cercado
fique indevassável. Os heroi’wa depois de sua participação na cerimônia anterior se
dirigem para este cercado onde seus parentes os aguardam para retirada de parte de seus
ornamentos corporais e da borduna ub’ra. No awã, termo que pode ser traduzido por
sombra, após a retida de partes dos enfeites dos heroi’wa, os danhohui’wa ensaiam
juntamente com seus afilhados um canto e se põem a executá-lo percorrendo a aldeia,
segundo o itinerário de dança da metade cerimonial que está sendo iniciada. No caso
dos abare’u este itinerário segue o sentido anti-horário. Em Guadalupe os três primeiros
cantos foram executados segundo o estilo de dança dadzarono.
Esta parte da cerimônia perdura durante todo o dia. Isto se deve, em parte, pelo
fato de cada danhohui’wa ser encarregado de puxar um ou mais canto. No início da
cerimônia observamos que a participação dos heroi’wa era maciça. Todavia, à medida
que o dia avançava, sobretudo quando o sol estava a pino, notava-se pouca participação
dos iniciandos. O mesmo se dava com os danhohui’wa. Quando isto acontecia, as
mulheres dos danhohui’wa, ou qualquer parente dos heroi’wa, em solidariedade, se
punham a dançar com o grupo. Algumas mulheres embora não entrassem na roda para
dançar com os demais, acompanhava o grupo oferecendo-lhes água, ou simplesmente
molhando o chão para que o mesmo se tornasse menos abrasivo, diante do forte calor
que faz naquela época do ano.
184

Durante esta cerimônia é permitido que entre um canto e outro os danhohui’wa e


heroi’wa façam intervalos para descansarem e se alimentarem. Entretanto, espera-se que
eles não usem esta liberdade. A categoria heroi’wa poder ser traduzida por novo
guerreiro. Neste sentido, eles devem demonstrar através da resistência física em dançar
o dia todo, suportando o sol forte, a sede e a fome, que de fato estão se tornando os
novos guerreiros. Em outras palavras, devem demonstrar virilidade. Todavia, nem todos
suportam o sol forte e procuram escapar das vistas da comunidade aldeã refugiando-se
na hö, casa dos solteiros, ou simplesmente permanecendo no awã, ou ainda escondendo-
se nos arredores da aldeia. Não obstante, um grupo de heroi’wa permanece praticamente
o dia todo dançando: são aqueles que ocupam cargos cerimoniais de destaque: os
pahöri’wa, os tébé e os aihoubuni.
Na aldeia N. S. de Guadalupe o final desta cerimônia foi extremamente
dramático para a comunidade. Naquele dia o sol esteve muito agressivo e o calor era
muito grande. Quando ainda faltavam dois cantos para o encerramento um dos heroi’wa
deixou o grupo e foi tomar banho no riacho acompanhado de outros meninos. Ao jogar-
se na água fria do riacho o mesmo sofreu um choque térmico levando os presentes ao
desespero. Do riacho logo se ouviram os primeiros gritos de socorro, segundo o modo
próprio que os Xavante emitem em situação de perigo ou pedido de ajuda. Com o corpo
todo enrijecido, paralisado e sem consciência o heroi’wa foi levado de carro ao posto de
saúde da aldeia São Marcos, para receber os primeiros socorros. Acompanhamos o
grupo de parentes que conduziu o heroi’wa ao posto de saúde. Em meio ao choro, os
parentes do paciente começaram a aplicar as técnicas tradicionais para ajudar o rapaz a
recobrar à consciência, visto que estava desmaiado. Os parentes puxavam-lhes os
cabelos e sopravam o ouvido.
No posto de saúde, os enfermeiros waradzu, não índio, pouco ou nada podiam
(sabiam) fazer. Aos poucos o heroi’wa foi recuperando os sentidos. Ainda queixando-se
de dores pelo corpo, depois de receber analgésicos, foi enviado novamente para casa.
Embora nesta fase do processo ritual os heroi’wa devam dormir no awã, este
heroi’wa foi conduzido diretamente para casa de seu pai, sem que isso gerasse qualquer
tipo de sanção durante o restante do processo ritual. Todavia, pairava no ar um clima de
ameaça infligido pelos dahi’wa, classe de idade ẽtepa
˜ , segundo o qual estes últimos
estariam atentos a qualquer deslize dos heroi’wa para que pudessem interromper o
processo de iniciação.
185

3.5 – UIWEDE AHUPRÉDZÉ DAPO’REDZAPU’U RÃRÉ HÃ -


CORRIDA DE BURITI QUE ENCERRA O RITO DE FURAÇÃO DE ORELHA

A tora de buriti usada nesta cerimônia é cortada no dia anterior. Enquanto os


danhohui’wa e o heroi’wa executam os cantos da cerimônia danho’re uiwededzada’rã,
os danhohui’wa da classe de idade ẽtepa
˜ , portanto os membros da classe de idade
hötörã, saíram pela manhã para cortar as toras de buriti. Segundo os informantes as
toras de buriti foram cortadas numa fazenda próxima da Terra Indígena. Ocorre que a
Terra Indígena São Marcos possui poucas cabeceiras onde crescem os buritizais. Diante
disto estas toras tem sido cortadas em fazendas próximas, o que tem causado diversos
conflitos, como veremos noutro capítulo. As toras que os hötörã cortadas foram trazidas
para o centro da aldeia e passaram a noite ali.
No dia seguinte as cerimônias que descrevemos acima acontece a cerimônia do
uiwede, corrida de toras de buriti. A performance desta corrida é semelhante às outras
corridas que ocorrem noutros momento ritual seja durante o danhono ou não.
A metade cerimonial composta pelos danhohui’wa e os heroi’wa tem como
“camarim” o awã, cercado erguido para ensaio dos cantos que foram executados na
cerimônia do danho’re uiwededzada’rã, canto do buriti preto ou do ‘waté’wa, no dia
anterior. Novamente os heroi’wa tiveram que dormir no awã. Como de costume, estes
preparativos começam bem cedo. Quando a previsão do início da cerimônia é estimada
para as 14:00hs, estes preparativos começam por volta de 10:00hs. Os dahi’wa, por seu
turno, encontram-se num dos marã, sombra – abertura nos arredores da aldeia onde
preparam-se para os rituais. Já descrevemos estes preparativos em outros lugares. Aqui
podemos nos voltar para os bastidores e às questões de disputa política que subjazem a
performance ritual.
Nas primeiras horas do dia os dois troncos de buriti a serem usados na corrida já
estavam sendo preparados no centro da aldeia. Nestes preparativos a intenção é deixá-
los do mesmo tamanho e com rebaixamento do cerne para que se tenha a borda para
segurá-lo durante a corrida. Poucas pessoas se dedicavam a estes preparativos. Em
verdade, apenas dois ĩhire, anciãos, se responsabilizam pelo ao preparo dos troncos.
Aqui surgiram as primeiras discussões que poderiam dar outros rumos ao processo
ritual. Como o trabalho tinha ficado praticamente a cargo dos dois ĩhire, anciãos, logo
186

se criou uma polêmica sobre a diferença de pesos entre as duas toras. Alguns diziam que
a tora que os heroi’wa, classe de idade abare’u, deveriam carregar estava mais pesada
do que a dos dahi’wa, classe de idade ẽtepa
˜ . Para medir o peso das toras monta-se sobre
elas e segurando-se nas bordas, com uma mão na frente e outra atrás, tenta-se levantá-la
por entre as pernas. Fizemos este teste e contatamos que as toras dos abare’u realmente
estavam um pouco mais pesada. Todavia, membros da metade à qual pertencem os
ẽtepa
˜ diziam que a outra metade pouco se interessou em acompanhar os trabalhos de
preparo das toras. Como saída diplomática para o impasse decidiram escavar novamente
as toras dos abare’u, retirando um pouco mais de cerne.
Por volta de 11:00hs chegou o caminhão da aldeia São Marcos trazendo
membros das duas metades que ajudariam na cerimônia de Guadalupe. A cooperação de
forças e objetos rituais oferecido por outras aldeias àquela onde se realiza o danhono é
fato comum durante o processo ritual. Entretanto, a presença da aldeia São Marcos no
danhono de Guadalupe era algo inusitado. Dois anos e meio antes o encontro das duas
aldeias era impensável diante dos conflitos políticos que estavam em alta. O ápice
destes conflitos foi a cisão da aldeia São Marcos que resultou na fundação de outras
aldeias, inclusive Guadalupe. O estopim para esta cisão foi o ritual de iniciação
religiosa, o darini ou wai’arini. No contexto daquele ritual as facções de Tsudzawéré e
Raimundo disputavam o reconhecimento de caciques de São Marcos. Como forma de
marcar posicionamento político as duas facções se prepararam para a realização do
darini. Não obstante, tendo a facção de Tsudzawéré se adiantado nos preparativos para
realização daquele ritual de iniciação religiosa e até marcado o dia de seu início, na
véspera a facção de Raimundo decidiu abrir um campo de futebol e jogar bola no centro
da aldeia, local onde acontece a maioria das cerimônias do darini. Isto aumentou ainda
mais a temperatura do clima político, e se não houvesse uma intervenção da Missão
Salesiana os ânimos teriam chegado à vias de fato, podendo haver mortes em ambos os
lados. Noutro capítulo trataremos destas disputas políticas e o que favoreceu, depois da
cisão, a reaproximação das duas aldeias.
O que mais nos surpreendeu na chegada do caminhão da aldeia São Marcos foi a
presença do cacique Raimundo junto ao grupo. Raimundo chegou e ficou no centro da
aldeia junto às toras e com outros velhos. Os demais ocupantes do caminhão se
dirigiram ao local onde suas metades cerimoniais estavam se preparando, no awã ou no
marã. No centro da aldeia ainda permanecia a discussão sobre a desigualdade de peso
187

entre as toras. Todavia, para evitar que as toras ficassem sendo comparadas, segundo o
modo que descrevemos acima, um dos ĩhire, ancião, sentou-se sobre uma delas e dali
não mais saiu, até que fossem colocadas no caminhão que as levariam ao local de início
da cerimônia.
Por volta de uma hora da tarde, quando todos já estavam devidamente pintados e
ornamentados para a ocasião, as metades cerimoniais deixaram a aldeia e seguiram pela
estrada que os levariam ao local de início da cerimônia. Os primeiros a deixarem a
aldeia foram os abare’u que saíram do awã em fila indiana, seguidos por seus
danhohui´wa. Concomitantemente os dahi’wa deixaram o marã e seguiram num
caminho paralelo. Os dois grupos emitiam constantemente gritos em desafio um ao
outro. Não são todos os participantes que tomam lugares nas filas de deslocamento até o
local de início da cerimônia. Depois de definidas as estratégias, ou seja, quem e em que
ponto deverá carregar a tora, muitos partem sozinhos ou em grupos deslocando-se a pé
ou de bicicleta. Neste dia o caminhão da comunidade e a viatura usada no transporte de
doentes são colocados a serviço do ritual. Assim, quando as metades começam a deixar
os locais onde estiveram se pintando o caminhão além de transportar as toras até o local
de início da cerimônias, leva também uma multidão de espectadoras que posicionam-se
em locais estratégicos, ou seja, em cima bem na frente para que tenham uma visão
privilegiada do andamento da cerimônia. Da metade da carroceria seguindo para a parte
traseira do caminhão são os competidores que ocupam.
No dia da cerimônia em Guadalupe, como havia dois caminhões esperava-se que
o caminhão de São Marcos fosse colocado a disposição dos organizadores da cerimônia.
Desta forma, o caminhão de Guadalupe saiu superlotado de homens e mulheres para o
local de início da cerimônia. O caminhão de São Marcos ficou parado e não saiu do
local onde parou. Perguntei à alguns informantes se o caminhão de São Marcos iria
levar as toras até o local de início da corrida, até porque esperava encontrar ali uma
carona. Entretanto, os informantes não sabiam ao certo o que estava acontecendo. Os
rumores diziam que o cacique Raimundo não estava autorizando a saída do caminhão.
Por fim, soube que o motorista Xavante do caminhão havia trancado o mesmo e seguido
a pé em direção do início da cerimônia, levando consigo a chave. A explicação foi
aceita, mas o impasse continuava: quem levaria as toras? A questão da chave do
caminhão era algo contornável. Quando moramos em São Marcos o caminhão da
comunidade podia ser ligado até mesmo com um prego. Acreditamos que nesta ocasião
188

o intuito de aceitar a explicação sobre a ausência do motorista com a chave era mais
conveniente para não aumentar ainda mais as tensões entre as duas aldeias. Para
resolver o impasse sobre como levar as toras para o local de início foi enviado um
mensageiro de bicicleta para chamar o caminhão de Guadalupe de volta à aldeia. Após
muito esperar, o caminhão de Guadalupe apareceu e levou as toras, além de vários ĩhire,
anciãos, que desejam assistir o início da corrida. Embarcou também neste caminhão o
cacique Raimundo
Afirmamos que esta cerimônia é semelhante às que acontecem noutros
momentos. Todavia, uma diferença é significativa nesta fase do processo ritual.
Enquanto em outras ocasiões o início da corrida acontece tendo como desafiantes de um
lado os danhohui’wa acompanhado dos wapté e de outro os ‘ritéi’wa, igualmente
ajudados por seus danhohi’wa, sendo estes atores rituais a iniciarem a cerimônia, nesta
etapa do danhono são os heroi’wa que assumem o início corrida de toras. Assim,
quando todos já estavam posicionados permaneceram a certa distância, cerca de cem
metros das toras, um dahi’wa e um heroi’wa. Ao sinal de um ĩhire, ancião, os dois
caminharam em direção das toras. Novamente outro sinal foi dado e as toras foram
erguidas sobre os ombros dos dois desafiantes, que iniciaram a corrida. Cerca de
quarenta metros adiante o heroi’wa passou a tora para um de seus danhohui’wa que
entrou na disputa. Daí em diante somente alguns poucos heroi’wa que apresentavam
capacidade física suficiente para suportar o peso da tora se atreveu a carregá-la.
Nesta corrida, em Guadalupe, os ẽtepa
˜ abriram certa vantagem sobre os abare’u
até derrubarem a tora e estes últimos assumiram a ponta. Não obstante, os abare’u
também derrubaram a tora e os ẽtepa
˜ passaram novamente à frente a mantiveram a
liderança até o centro da aldeia. Logo que as toras chegaram ao centro da aldeia, tendo
os ẽtepa
˜ vencido a corrida, o clima de tensão tomou conta do centro da aldeia. Ao
mesmo tempo, a questão da diferença de peso entre as toras veio à tona. A turma do
deixa disso entrou em ação. Primeiro um dos ĩhire, ancião, sentou-se em cima do tronco
para impedir que novos testes de peso das toras fosse feito. Com o aumento do clima de
tensão, outra vez a turma do deixa disso intervém rolando as toras para frente de duas
casas. Uma das toras foi levada para frente da casa de F., que pertence à classe de idade
hötörã – ligada à metade cerimonial que ganhou a corrida. Enquanto que a outra tora foi
levada para a casa de L., pertencente à classe de idade airere, que fora danhohui’wa dos
189

tirowa – atuais danhohui’wa dos abare’u, ou seja, classes de idade pertencentes à


metade cerimonial que perdeu a corrida.
Enquanto os ĩprédu, homens maduros – já iniciados, e os ĩhire, anciãos,
discutiam no warã, centro da aldeia, a respeito da vitória dos ẽtepa
˜ sobre os abare’u e
tirowa, estas classes de idade puseram-se a executar o canto de encerramento da
cerimônia, o uiwede danho’re, canto da corrida de buriti. Novamente aqui se observam
os itinerários próprios de dança das metades cerimoniais, onde os ẽtepa
˜ percorrem o
sentido horário, enquanto que os abare’u acompanhados dos tirowa danhohui’wa,
padrinhos, percorrem o sentido inverso. O momento da execução destes cantos pode ser
tomado como um termômetro para medir o grau de rivalidade presente no processo
ritual. Num afã para demonstrar que estão se tornando os novos guerreiros, a classe de
idade que está sendo iniciada executa o uiwede danho’re, canto da corrida de buriti,
pelo menos cinco vezes. Isto é prontamente respondido pelos atuais novos guerreiros
que igualmente repetem seus cantos em número igual aos heroi’wa.
O clima de tensão entre as metades cerimoniais é quebrado pela relação jocosa
que este momento do processo ritual permite entre cunhados e cunhadas. Enquanto os
abare’u acompanhados dos danhohui’wa, padrinhos, executavam o canto de
encerramento da cerimônia algumas cunhadas dos danhohui’wa, pertencentes à outra
metade cerimonial, prepararam uma tipo de lama feito com areia e água, ou cinzas e
água, e jogaram sobre a cabeça dos cunhados. Ainda insatisfeitas com a quantidade de
lama jogada na cabeça do cunhado, algumas mulheres jogavam também farinha de trigo
ou punhados de areia. O mesmo aconteceu com a outra metade, composta pelos ẽtepa
˜ .
Quando esta relação jocosa se efetivava entre cunhadas e cunhados a comunidade aldeã
que acompanhava a dança regozijava com a performance. A brincadeira era aceita pelos
danhohui’wa. Entretanto, na aldeia São Marcos presenciamos a revolta de um dos
danhohui’wa que se pôs a correr atrás da cunhada dando-lhe um soco nas costas.
Todavia, outros não só aceitavam a brincadeira, como também a deixava mais picante.
Estes danhohui’wa corriam atrás das cunhadas e as agarravam apertando-as levando os
presentes ao delírio.
Não obstante, esta relação de jocosidade entre cunhados e cunhadas ameniza,
mas não elimina o clima de tensão entre as metades cerimônias após a cerimônia do
uiwede. Enquanto estão dançando as metades cerimoniais são alvos de comentários
depreciativos de cunho jocoso em relação aos tsire’wa, os outros - da outra metade.
190

Constatamos isto em diversas ocasiões nas quais participamos das cerimônias do


uiwede. Numa delas, em 2005, quando estava na frente da casa do cacique no momento
que a classe de idade abare’u dançava com seus danhohui’wa, os tirowa, aquela
liderança começou a chamar os abare’u de boca torta, uaerê (que não tem a boca
direito) mohoni’re (marimbondo que morde e ele matou com a cabeça); dateuri (foi
pego meia noite em cima dos ovos de jaó); atsamro (???) waradzu mremé aihrori (que
fala alta); dudzé airipiti (que tem dois dentes tortos)83. Dias depois deste episódio
estivemos na aldeia São Marcos onde também fora realizado a cerimônia do uiwede. Ali
o final da cerimônia foi semelhante a Guadalupe onde enquanto dançavam os homens já
iniciados não só foram alvos das cunhadas, como também estiveram sob a ira de
algumas piõ ĩhire, mulheres anciã, que liberavam toda sua raiva sobre a metade que
havia ganhado a corrida. Segundo alguns informantes, as piõ ĩhire, mulheres anciã,
ficaram bravas porque seus netos, que estavam sendo iniciados, perderam a corrida
porque os vencedores tinham sabotado a tora de buriti.
Com esta cerimônia encerra-se a primeira parte do processo de iniciação. Nos
dias que se sucederam os heroi’wa voltaram a morar na hö, casa dos solteiros. Com os
furos dos lóbulos das orelhas ainda em processo de cicatrização eles devem ainda
observar algumas restrições alimentares e trocarem regularmente os dapo’rewa’u,
batoques auriculares.
No dia seguinte à cerimônia do uiwede, os professores Xavante da Escola
Indígena Estadual Deputado Mario Juruna reuniram e decidiram que as aulas, que
haviam sido suspensas em razão do processo ritual, seriam retomadas por mais duas
semanas. Alguns heroi’wa que vivem e estudam em Barra do Garças/MT retornaram
àquela cidade, pois estavam preocupados em perder o ano letivo. Numa conversa que
tive com um dos heroi’wa, após a cerimônia do uiwede, pude conhecer o outro lado do
processo ritual. Em outras palavras, o processo ritual visto e concebido pelo iniciando.
O caso deste informante é muito emblemático. O mesmo nasceu no Rio de Janeiro e
vive em Brasília, com o pai que é funcionário da FUNASA84. Ao atingir a idade
apropriada para ser submetido ao processo de iniciação do danhono, o pai pediu licença
do trabalho instalando-se provisoriamente na aldeia Guadalupe. Esta mudança de
ambiente tornou-se um novo desafio a ser somado com o processo de iniciação ao qual

83
Tenho dúvidas sobre o modo de grafar estas palavras.
84
Fundação Nacional de Saúde. O pai deste heroi’wa trabalha na chácara que abriga indígenas
de diversas etnias que vão à Brasília em busca de tratamento de saúde.
191

estaria sendo submetido. Para este heroi’wa a língua foi o primeiro obstáculo a ser
superado. Segundo ele, seus colegas não entendiam como ele sendo Xavante não
compreendia o que estavam conversando. Por outro lado, por falar muito bem o
português fez com que ele fosse admirado e adquirisse prestígio entre os companheiros.
A dificuldade em falar a língua Xavante se deve, em parte, pela pouca convivência entre
outros grupos domésticos Xavante. Em Brasília, a convívio com seu grupo doméstico
permitiu que ele tivesse um domínio parcial da língua materna, enquanto que a
convivência diária com alunos da escola da rede pública onde passa boa parte do dia
permitiu que ele tivesse um domínio maior da língua do waradzu. Segundo este
informante, as fases do danhono que precederam a cerimônia do banho de imersão
foram vivenciadas sem grandes apreensões pelos moradores da casa dos solteiros,
inclusive as preocupações que tinham com os dahi’wa que poderiam fazer deles atsitõ.
Para evitar que isto viesse acontecer os moradores da casa dos solteiros
procuravam sempre andar em grupos, além de se auto-aconselharem a tomarem todas as
precauções possíveis. Não obstante, até este momento do processo ritual o ponto de
maior tensão foi na véspera da cerimônia do daporedzapuu’u, cerimônia do furo dos
lóbulos auriculares. De acordo com o informante, a noite que antecedeu a cerimônia
eles tiveram que executar o datsi’waté, banho de imersão, durante toda a noite, parando
de vez em quando para se aquecerem numa fogueira acesa na beirada do rio. Aos
waté’wa menores foi permitido que dormissem um pouco. O assunto principal nas
conversas entre uma pausa e outra do datsi’waté era sobre a dor no momento da furação
de orelha. Para o grupo isto trazia grande apreensão, sobretudo em relação aos
pequenos. Eles tinham medo que os menores não suportassem a dor quando o lóbulo
fosse furado e chorassem ou gritassem. Isto poderia desonrar o grupo. Como já
dissemos em caso de choro a reputação de guerreiro do iniciando entra em
questionamento. Por outro lado, em caso de jorrar muito sangue no momento da
perfuração é sinal de virilidade. Felizmente, para os abare’u todos os moradores da casa
dos solteiros suportaram a furação da orelhas.
O caso deste heroi’wa sugere-nos o devir de uma nova geração de líderes
Xavante. Além deste, havia outros que nasceram na aldeia, ou na cidade, vivem no
ambiente urbano, em grandes centros, Brasília e Goiânia, desde criança. Isto tem
possibilitado um domínio maior da língua portuguesa, bem como do pensamento
ocidental. Associando o conhecimento do modo de (re)produção de suas práticas
192

culturais da etnia através do processo ritual, a consciência de sua identidade étnica, e o


domínio dos modos de pensar e agir tanto dos Xavante quanto dos waradzu, os não
Xavante, indica-nos que estaremos diante de novos líderes e outras possibilidades de se
fazer política dentro e fora da terra indígena.
A volta às aulas pode ser igualmente pensada como um ritual. Sob influência da
Missão Salesiana, as escolas da Terra Indígena São Marcos adotaram o mesmo ritual
que antecede o início das aulas praticado nas escolas salesianas espalhadas pelo mundo,
onde todos os dias se faz uma oração antes da entrada nas salas de aula e depois um dos
professores dirige aos alunos conselhos sobre a importância dos estudos e conclui com a
expressão: boa tarde ou bom dia, dependendo da ocasião.
Ao término das aulas os heroi’wa contornam a periferia da aldeia e dirigem-se a
hö, onde permanecem ainda durante as fases seguintes do processo ritual. Todavia, é
comum freqüentarem o grupo doméstico com mais intensidade depois da furação de
orelhas. No grupo doméstico onde residíamos durante os trabalhos de campo havia um
heroi’wa que tinha sido escolhido para desempenhar o cargo cerimonial de tébé. O
mesmo passava mais tempo ali do que junto com seus colegas na hö, sem, contudo,
sofrer qualquer sanção.

3.6 – EXPEDIÇÕES DE CAÇADA E COLETA: A BUSCA POR


TSUWAIPÓ

Com o fim das cerimônias que apresentamos acima a comunidade de Guadalupe


se empenhou em organizar diversas expedições de caça e coleta tendo em vista os
preparativos de ornamentos a serem usados nas fases seguintes do danhono.
Participamos destas expedições em diversos momentos.
As expedições são organizadas e planejadas durante a noite na reunião dos
homens que acontece no centro da aldeia, no warã. Ali se discute onde potencialmente
estariam às melhores cabeceiras, nascentes de córregos onde crescem os buritizais, que
poderiam ser exploradas. Uma vez definida direção a ser no tomada, no dia seguinte,
pela manhã o caminhão parte em busca dos brotos. Tomam parte nestas expedições
homens e mulheres de todas as classes de idade. Em verdade, aqui não se trata ou não
de pertencer a esta ou àquela classe de idade, mas sim de cooperar para o processo de
iniciação do filho, do neto ou do sobrinho. Considerando que as saídas do caminhão
193

para estas expedições acontecem ao raiar do dia e retornam ao entardecer, é preciso


levar uma matula, como dizem os Xavante, ou seja, alimentos a serem consumidos
durante o dia – normalmente: arroz cozido, bolinhos fritos de trigo, café, mandioca
cozida.
A recuperação demográfica85 que vem acontecendo na população Xavante
associada à dinâmica da política faccional tem provocado profundas mudanças na
exploração do ambiente de cerrado, sobretudo no território demarcado. Em relação a
este segundo aspecto, a dinâmica faccional, notamos que a Terra Indígena São Marcos
está retalhada e configurada de acordo com os conflitos políticos dos últimos cinco
anos. Em algumas áreas as cabeceiras onde crescem os buritizais não suprem a demanda
desta matéria prima para manutenção das práticas culturais. Diante disso outras áreas,
inclusive cidades, têm sido buscadas para suprir a demanda por matéria prima usada no
processo ritual. Como resultado, temos a eclosão de diversos conflitos nas tentativas de
acesso aos recursos naturais, ainda disponíveis.
Identificamos pelo menos três tipos de conflitos decorrentes da luta pelo controle
de acesso aos recursos naturais: aquele resultante da subdivisão interna da Terra
Indígena, ou seja, pelo controle que certos grupos Xavante reivindicam como sendo
seus espaços de caça e coleta; aqueles resultantes da interação entre as Terras Indígenas
São Marcos, pertencente ao povo Xavante, e da Merure, pertencente ao povo Bororo; e,
aqueles resultantes entre população envolvente, fazendeiros, e os Xavante. A conjunção
destes conflitos resulta de inconciliáveis sentidos que o ambiente cerrado adquire para
os atores sociais envolvidos. Neste sentido, para os Xavante o cerrado é fonte de matéria
prima, cultural e simbólica, imprescindíveis à manutenção da (re)produção da práticas
culturais; para fazendeiros, associados ao agro negócio, o cerrado constitui o ambiente
selvagem e improdutivo que precisa ser dominado; e, finalmente, o povo Bororo
apresenta apreensões e anseios distintos dos demais em relação a seu território
demarcado. Voltaremos a falar destes conflitos políticos noutro capítulo desta tese.
Diante do quadro configurado acima, as expedições de caça e coleta, com o
objetivo principal de extrair os brotos de buriti, realizadas pela aldeia Guadalupe
aconteceram tendo como ponto de destino as fazendas situadas às margens da BR 070
bem como a Terra Indígena Merure, pertencente aos Bororo. Neste sentido, uma vez

85
SOUZA, L. G. e SANTOS, R. V. Perfil Demográfico da População Indígena Xavante de
Sangradouro – Volta Grande, Mato Grosso (1993-1997), Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 17:355-366,
2001.
194

definido, no warã, qual local a ser explorado, sendo ele em algum ponto da BR 070 no
sentido da cidade de Barra do Garças, o caminhão partia por volta de sete da manhã
deixando ao longo da estrada diversos grupos de homens e mulheres. O caminhão, via
de regra, se dirigia à cidade e retornava ao final da tarde recolhendo aqueles que haviam
ficado e o produto de sua expedição. Em outras ocasiões quando a expedição era
planejada para o sentido oposto a Barra do Garças, o caminhão levava os grupos de
coletores deixando-os ao longo do trajeto e retornando também ao final do dia. Não
obstante, outras aldeias, como foi o caso de São Marcos, também se empenharam em
buscar brotos de buriti em áreas fora da Terra Indígena. Em certa ocasião o caminhão
levou um grupo de coletores, do qual também tomamos parte, para explorar as matas de
buriti situadas nas margens da estrada MT-110, localizada a leste da Terra Indígena São
Marcos, começando na BR-070 e seguindo em direção ao vilarejo de Toricoeje. Para
surpresa do grupo as áreas próximas de Toricoeje já haviam sido exploradas pela aldeia
São Marcos. Todavia, isto foi encarado de forma pacífica pelos coletores de Guadalupe,
o que sugere que as áreas a serem exploradas fora do espaço demarcado não são
reivindicadas como de direito de nenhuma das aldeias que promoviam o danhono.
As expedições organizadas para os destinos acima mencionados são marcadas
por grande descontração entre aqueles que tomam parte delas. Seguindo o itinerário
previamente traçado no warã, centro da aldeia, o caminhão faz várias paradas ao longo
do caminho. Nestas paradas os grupos de coletores são livres para decidirem se
exploram ou não a área que está sendo indicada. Em alguns casos quando a cabeceira a
ser explorada oferece uma maior oferta de palmeiras de buriti, vários grupos descem do
caminhão para explorar a área. Isto não configura uma competição para ver quem tira
mais e os melhores brotos de buriti. É claro que grupos de coletores de maior número
terão mais chances de encontrar os melhores brotos e a quantidade extraída será maior.
Não obstante, quando um grupo doméstico de coletor é demasiadamente grande isto
significa que o mesmo tem um maior número de filhos, ou parentes, sendo iniciados.
A extração dos brotos de buriti, o tsuwaipó, é uma tarefa relativamente fácil,
mas demanda grande esforço físico. Uma vez identificada uma palmeira de buriti que
oferece um tsuwaipó ĩwẽ uptabi, um broto de buriti bonito – muito bom, ou seja, que
tenham um comprimento de cerca de três metros e cujas pontas ainda não estejam
desfolhando, estuda-se a melhor maneira de extraí-lo. Isto pode ser feito simplesmente
escalando a palmeira, aproveitando-se das folhas velhas que se quebraram, mas
195

mantiveram sua base ainda fixada ao tronco, ou construindo uma escada improvisada.
Neste último caso, procura-se uma árvore de porte médio que tenha muitos galhos ao
longo do tronco para servirem de degraus à escada. Uma vez cortada esta árvore
deixando a extremidade da copa em forquilha, a ser apoiada no tronco da palmeira,
escala-se através desta “escada” até onde se possa alcançar as folhas do buriti e daí
procurar atingir a copa da palmeira. Ao atingir o topo da palmeira, com um facão corta-
se o broto que ali está crescendo, tomando cuidado para não deixá-lo cair com a ponta
no chão. Este cuidado se deve para que o broto, que apresenta o formato de pino, não
tenha suas folhas esfaceladas, o que dificultaria o transporte.
O que estamos chamando de broto de buriti, o tsuwaipó, é na realidade o pecíolo
que compõe a folha mais nova da palmeira de buriti86 - Mauritia flexuosa. Esta folha, ou
broto, deve ser extraída antes que se abra em leque, formato costapalmado, característica
adulta das folhas desta espécie de palmeira. O tamanho de cada pecíolo varia de 1,5 a 3
metros de comprimento. Os Xavante preferem retirar o tsuwaipó, broto, nesta fase do
ciclo de desenvolvimento da folha por apresentarem mais flexibilidade e serem mais
fáceis de trabalhar.
Quando se coleta uma quantidade razoável de tsuwaipó, brotos de buriti, ou seja,
o equivalente à capacidade de transporte de cada coletor, os mesmos são carregados até
o local marcado para encontro e regresso à aldeia. Em várias expedições, da qual
tomamos parte, a quantidade de brotos disponíveis para extração exigiu que se fizessem
várias idas e vindas entre o ponto de encontro e o local de extração. Neste caso, as
distâncias eram razoavelmente curtas, cerca de três a quatro quilômetros.
Na aldeia os brotos são guardados no interior das casas, para protegê-los do sol,
e vão sendo usados de acordo com ritmo de trabalho de cada grupo doméstico. Nesta
fase do processo ritual é preciso manufaturar os brotos de buriti. O trabalho consiste em
retirar de cada folíolo uma camada plástica que os envolvem. Esta acamada plástica,
denominada pelos Xavante de wamnhorõ, será usada para confeccionar um ornamento
corporal, parecido com uma capa, que recebe o mesmo nome. O trabalho se torna
demorado pelo fato de cada broto de buriti apresentar em média cerca de duzentos
segmentos foliares presos ao pecíolo. Cada segmento foliar é dividido em duas partes,
sendo retirado o wamnhorõ de cada lado destas partes. Portanto, um folíolo fornece

86
Detalhes técnicos extraídos de: SODRÉ, José Barbosa. Morfologia das palmeiras como meio
de identificação e uso paisagístico. Monografia de conclusão de curso. Universidade Federal de Lavras,
2005. 61p.
196

quatro tiras de wamnhorõ, ou seda. Para a confecção do ornamento corporal wamnhorõ


são necessários, em média, oito brotos de buriti. Considerando que somente em
Guadalupe havia cerca de setenta e cinco iniciandos, podemos estimar que para
confecção de todas as capas wamnhorõ seriam necessários cerca de seiscentos brotos.
No entanto o número dobra porque no ritual em que este ornamento é usado tomam
parte as meninas que estarão sendo admitidas à classe de idade dos heroi’wa,ou seja,
abare’u em 2005.
Considerando o grande número de iniciandos houve a necessidade de
racionalizar o uso do caminhão nos deslocamentos até os locais a serem explorados na
busca por brotos de buriti. Neste sentido, os grupos domésticos que partiam numa
expedição raramente seguiam na outra. Ao retornarem das expedições de coleta de
brotos estes se dedicavam exclusivamente à extração da seda até que o estoque coletado
fosse manufaturado. Neste ínterim outros grupos seguiam, de caminhão, em outras
direções também em busca de brotos.
A retirada da seda do buriti exige certa habilidade no manuseio do tsuwaipó.
Para retirar a seda a ponta do segmento foliar é dobrada e pressionada entre os dedos
para ser puxada. Esta manobra desfia parcialmente a ponta do segmento foliar. Para
visualizar melhor a seda que começa e se soltar do segmento foliar o mesmo é golpeado
contra a palma da mão expondo ainda mais o wamnhorõ. O passo seguinte é puxar a
seda até a base do segmento foliar tomando cuidado para que ela não se parta durante a
manobra. Nesta primeira fase a seda é separada do segmento foliar, mas ainda continua
presa ao pecíolo. Depois de executada esta manobra em todos os segmentos foliares, as
pontas de seda são amarradas justas e daí separadas do pecíolo. Este feixe de wamnhorõ
é colocado ao sol para secar. Quando se obtêm uma quantidade de seda suficiente para
confecção de wamnhorõ os feixes desta seda são amarrados num talo seco de folha de
buriti, o pecíolo, sem os segmentos foliares. Este talo, que os Xavante chamam de
wabu, mede aproximadamente três metros. As sedas são dispostas ao seu entorno e
depois envoltas com segmentos foliares secos, ou lonas e sacos plásticos para protegê-
las da poeira.
Em Guadalupe as expedições para coleta de brotos de buriti intensificaram-se
depois do ritual do daporedzapuu’u, furo dos lóbulos auriculares, seguindo-se até o
início da segunda grande fase do processo ritual: o imandö – caçada com fogo. Neste
meio tempo além das questões referentes à obtenção dos brotos de buriti, alguns grupos
197

domésticos estavam preocupados com a confecção de outros ornamentos corporais que


seus filhos deveriam usar nas fases seguintes do processo ritual. Acompanhamos dois
destes grupos. Os mesmos tinham entre os iniciandos dois que ocupariam os cargos
cerimoniais de tébé. Estes atores rituais usam além das capas wamnhorõ, um ornamento
na cabeça chamado tépéwatsu. Tal ornamento é confeccionado no mesmo local onde
são preparadas as capas do wamnhorõ. Entretanto, antes de chegar o momento de
confeccionar o tépéwatsu para o dia solene do ritual, o mesmo teve que ser montado
previamente para que fosse averiguado pelos tépé’rada, antigos atores rituais que
desempenharam o papel de tébé, se estava de acordo com o padrão estético esperado.
Para tanto foi criado um esquema sigiloso para que as mulheres não tomassem
conhecimento sobre o fato. Assim, no dia seguinte ao retorno de uma expedição de
coleta de brotos de buriti, pela manhã, fomos convidados a nos dirigir até uma das
clareias que circundam a aldeia, o marã, para acompanhar o trabalho dos homens que
estavam empenhados em confeccionar colares de algodão e cordinhas para os pulsos e
tornozelos, usados durante os rituais. Ali fomos informados que o marã não é apenas
um local de trabalho, mas também onde se realizam ensaios. Isto significava que o
espaço físico do marã estava dividido de acordo com a organização dos rituais, ou seja,
em metades. Neste caso, as metades se davam pela filiação clânica onde os membros
dos clãs öwawẽ e tob’ratato ocupavam o lado do sol nascente, enquanto que os
po’redza’õno estavam do lado do sol poente. Até então não sabíamos o que estava
acontecendo quando chegaram vários ĩhire, anciãos, e percebemos que não se tratava
apenas de uma rotina de trabalho. Entre os ĩhire, anciãos, um deles trouxe uma bolsa
improvisada a partir de uma renhamri87, pequena esteira, contendo penas de rabo de
arara azul e vermelha e outras partes que compões o tépéwatsu. Para tanto o local foi
cuidadosamente preparado. No chão foi usada como esteira uma lona sob a qual foram
colocados vários sacos plásticos e, por fim, um lençol. Àqueles que iriam manusear os
objetos dirigiram-se ao córrego ao lado do acampamento para lavarem as mãos.
Retornaram e começaram a montar o tépéwaptsu. Aqui as intervenções dos ĩhire,
anciãos, eram constantes. Esta operação levou toda a manhã. Ao término, depois de
várias montagens e desmontagens, o tépéwaptsu foi novamente desmontado e suas

87
O renhamri é confeccionado com a folha de buriti. É usado principalmente para servir de
tampa para o cesto tipo tsi’õno, usado para o transporte de crianças. Além disso, pode servir ainda de
prato. Dobrando-o é possível improvisar uma bolsa.
198

partes cuidadosamente guardadas para serem novamente montadas na véspera do ritual


do tébé.
No plano político, a preocupação principal do cacique estava em conseguir
combustível suficiente para a realização das expedições de coleta de brotos de buriti.
Isto decorria, em parte, da pressão dos grupos domésticos que estavam ávidos para
saírem em busca dos brotos. Para conseguir combustível o cacique recorria, sem muito
sucesso, ao Núcleo de Apóio Local – NAL, montado na cidade de General Carneiro.
Voltaremos a falar do NAL noutro capítulo. Outra estratégia para conseguir combustível
era recorrer ao administrador do Pólo de Saúde em Barra do Garças. Naquela cidade
havia ainda uma Administração Regional da FUNAI. Todavia, o cacique não poderia
contar com qualquer ajuda daquela administração pelo fato de que todos seus
funcionários Xavante serem correligionários de uma facção oposta a ele. Em verdade, a
criação do NAL se deu tendo em vista amenizar os conflitos políticos que envolviam
principalmente a facção chefiada por Tsudzaweré versus a Facção de Raimundo, na
época que disputavam a chefia da aldeia São Marcos. Outra fonte possível para se
conseguir combustível era o prefeito da cidade de General Carneiro. Quando todas as
fontes falhavam recorria-se a realização de uma “vaquinha” para arrecadar uma quantia
suficiente para compra de combustível que pudesse além de levar não só os grupos
domésticos nas expedições de coleta de brotos, mas também uma viagem a Barra do
Garças. Estando o caminhão na aldeia a compra do combustível acontecia mediante o
uso da viatura destinada ao atendimento da saúde que levava os tambores até a cidade
para trazer o combustível. Não obstante, na indisponibilidade da viatura da saúde a
saída era recorrer à Missão Salesiana, com sede na aldeia São Marcos. A Missão
dispunha de um estoque de combustível para seu uso, mas raramente vendia
combustível aos Xavante. Contudo, com a troca de diretores o que assumiu passou a
atender com mais freqüência a demanda dos Xavante, não só dos moradores de
Guadalupe, mas também de outras aldeias. Conversando com o diretor o mesmo
desabafou: a missão estava se tornando um posto de combustível. Para brecar o assédio
dos Xavante por combustível na Missão o diretor pediu a um dos Salesianos padre, da
etnia Xavante, para que fosse ao warã, centro da aldeia, dizer à comunidade que a
missão não tinha como atender a demanda. Apesar de recusar a vender fiado, mas com o
mesmo valor cobrado nas bombas da cidade, levou certo tempo para que os Xavante
deixassem de procurar combustível na Missão. Neste cenário o pesquisador, que
199

também fora membro da Missão Salesiana, foi posto no jogo das relações entre Xavante
e Missionários para interceder junto ao diretor para que este vendesse combustível à
aldeia Guadalupe. Embora recusasse constantemente atuar nestas circunstâncias como
intermediador, o pesquisador acompanhou em diversos momentos as negociações
estabelecidas entre o representante da aldeia Guadalupe e o diretor da Missão, todas
resultaram em sucesso dos objetivos dos Xavante.
O danhono realizando no ano de 2005 em Guadalupe aconteceu igualmente em
outras aldeias da Terra Indígena São Marcos. Neste cenário visualizamos uma coligação
de aldeia que cooperaram entre si para realização deste ritual de iniciação. Tal
cooperação se deu mediante o envio dos meninos que estavam vivenciando o ciclo de
vida ‘watébremi e ai’repudu para residirem na casa dos solteiros, a hö, de uma aldeia
com população de maior número. Isto se deu tendo em vista as relações políticas entre
as facções da Terra Indígena São Marcos. Algumas aldeias optaram por realizar
sozinhas o danhono, embora mantivessem boas relações e se colocassem como aliadas
politicamente de aldeias maiores que conglomeravam outras aldeias para o danhono.
Foi o caso da aldeia N. S. de Fátima, que surgiu de uma cisão na aldeia Guadalupe, mas
mantinha relações amistosas com esta aldeia.
Assim como Guadalupe, a aldeia Nossa Senhora de Fátima estava empenhada na
busca de brotos de buriti para confecção dos ornamentos corporais, as capas do
wamnhorõ. Todavia, Nossa Senhora de Fátima não dispunha de uma condução que
pudesse levar os coletores até os locais onde se pudesse extrair os brotos de buriti. Em
verdade, Fátima até possuía uma caminhonete, mas sua capacidade de transporte era
limitada. Uma alternativa foi pedir à Mariano, que era visto como vice-cacique de
Guadalupe, para que o mesmo disponibilizasse o caminhão para comunidade de Fátima,
que arcaria com o combustível. A proposta foi aceita por Mariano, que numa manhã ao
surgir do sol, saiu com o caminhão e se dirigiu pra Fátima. No centro da aldeia
Guadalupe os homens planejavam mais uma expedição para coletar brotos de buriti e
ficaram surpresos ao ver o caminhão sair. Após o café da manhã nos dirigimos até a
casa do cacique e lá encontramos uma comissão de homens que foram procurar se
informar sobre o destino do caminhão. Ao saberem que o caminhão tinha ido à Fátima
eles pressionavam para que isto não viesse a acontecer novamente, visto que ainda havia
muito grupos domésticos precisando de brotos para confeccionar os ornamentos de seus
filhos. O cacique assumiu as queixas da comitiva dizendo que não deixaria mais o
200

caminhão prestar ajuda a Fátima porque algumas das lideranças daquela aldeia eram
“soberbas”. Na verdade, as relações entre o cacique de Guadalupe e as lideranças de
Fátima não são muito boas. Isto se deve, em parte, pelo fato de antes da saída dos
grupos domésticos para fundarem Fátima, estas lideranças reivindicavam o
reconhecimento como cacique de Guadalupe. No entanto, o atual cacique tinha um
grupo de apoio maior e os descontentes acabaram deixando Guadalupe. Além disso,
quando o cacique de Guadalupe lutava pela construção de uma nova estrada que
encurtaria o caminho para atingir a BR-070, e dali as cidades de General Carneiro e
Barra do Garças, aquelas lideranças não o apoiaram em sua luta. Se havia tantas
motivações das lideranças de Guadalupe em recusar apoio à Fátima, porque então o
vice-cacique se dispôs a ajudá-la? Apuráramos que antes de tudo o vice-cacique era
genro do pai de uma liderança que não teria apoiado a construção da estrada nova. Neste
caso, a tradição cultural Xavante exige que o genro preste serviços ao sogro,
principalmente nos primeiros anos de casado. Todavia, o casamento do vice-cacique já
havia sido consumado há anos. Isto o desobrigaria de estar prestando serviços ao sogro.
Não obstante, como já apontamos em páginas precedentes o filho de Mariano fora
escolhido para desempenhar o papel de tébé naquela aldeia. Isto se deu, em parte, pelo
reduzido número de membros do clã öwawẽ que estavam vivenciando o ciclo de vida
wapté naquela aldeia. De mais a mais, ao conceder um cargo cerimonial expressivo ao
filho do vice-cacique de Guadalupe, que é também motorista do caminhão, a aldeia de
Fátima age estrategicamente para garantir o acesso ao meio de transporte de grande
capacidade. E finalmente, Mariano é funcionário público federal, o que garantiria um
apoio financeiro à Fátima em decorrência das regras sociais que deveria manter com
seus afins, bem como diante do fato de seu filho estar ocupando um cargo cerimonial
importante.
Com o término da primeira fase do processo de iniciação as atenções do cacique
de Guadalupe se voltaram para outras questões. Assim, ele começou uma série de
viagens para manter contato com autoridades com objetivo de adquirir bens e recursos a
serem destinados à sua aldeia. Em viagem à General Carneiro o cacique conseguiu uma
pequena quantidade de calções88 vermelhos e pretos que foram distribuídos
estrategicamente no warã à classe de idade tirowa, que desempenhava o papel de

88
O uso de calções vermelhos e pretos se tornou recorrente entre os Xavante da Terra Indígena
São Marcos como uma maneira de complementar a ornamentação corporal durante os rituais. Neste
sentido, dependendo do tipo de pintura corporal a ser adotada usa-se um calção de mesma cor.
201

danhohui’wa – padrinhos. Alguns ĩhire, anciãos, que estavam no centro da aldeia


também foram contemplados com calções, outros receberam pedaços de fumo em rolo.
Enquanto participávamos da reunião no warã, após distribuição dos calções, o cacique
começou a traçar os planos para a próxima viagem à Cuiabá/MT, onde entraria em
contato com representantes da Superintendência da Política Indígena. Neste órgão o
plano era discutir um projeto de construção de casas na aldeia em alvenaria, visto que os
Xavante já estavam cansados de reconstruírem, a cada cinco anos, as casas de palha,
como nos disse um informante. A presença do pesquisador nesta reunião se tornou
também um recurso adicional a ser usado nesta viagem.
Desta forma, considerando que foram poucos os calções adquiridos junto ao
prefeito de General Carneiro e muitos dos que ali estavam desejam calções novos para
seus filhos que estavam sendo iniciados, a assembléia pediu que o cacique solicitasse
uma doação de calções àquela superintendência. Ao pesquisador foi solicitado que
redigisse a carta de solicitação dos calções. Antes, porém, a assembléia fez uma longa
discussão sobre qual a quantidade e para quem seriam os calções. Ali ficou acertado que
o pedido incluiria: de um lado, os dahi’wa, classe de idade ẽtepa
˜ , (80 calções vermelho
tamanho G); de outro lado, os heroi’wa, classe de idade abare’u, (30 calções tamanho
G, 20 do tamanho médio e 20 tamanho P – todos vermelhos), e para os danhohui’wa,
classe de idade tirowa, (30 calções tamanho G e 30 de tamanho GG, todos pretos). As
passagens de ida e volta à Cuiabá para o cacique estavam garantidas pelo Núcleo de
Apoio Local - NAL em General Carneiro, porém deveria passar por lá para pegá-las.
Neste sentido, aproveitando-se desta ida ao NAL o cacique solicitou ao pesquisador que
redigisse outro “documento”, desta vez solicitando a liberação de 150 litros de
combustível para que o caminhão atendesse as necessidades da comunidade de
Guadalupe e seu entorno. No dia seguinte a esta reunião partimos bem cedo para Barra
do Garças passando por General Carneiro para que o cacique pegasse suas passagens e
encaminhasse o pedido de combustível. Durante o trajeto da viagem vários grupos
domésticos que embarcaram no caminhão desceram em pontos estratégicos para
coletarem brotos de buriti.
Chegando ao NAL fomos informados que o combustível poderia ser liberado na
próxima semana. Segundo o motorista o administrador do NAL, já gozava da fama de
fazer promessas e não cumpri-las. De acordo com alguns informantes de Guadalupe,
após a saída da família do administrador do NAL para fundar a aldeia Jesus de Nazaré
202

este estaria usando do cargo somente para beneficiar sua aldeia. De fato as relações
entre o administrador do NAL e o cacique de Guadalupe não andavam muito boas.
Estava se tornando fato recorrente ouvir do cacique queixas contra o Administrador. O
teor destas quase sempre dizia respeito à falta de apoio do Núcleo para com sua aldeia.
Segundo ele, o apoio que faltava em suas viagens diz respeito à alimentação, transporte
e hospedagem. O cacique queixou-se que quase sempre tinha que recorrer a amigos que
vivem nas cidades para não passar fome e frio. Quando se trata de encontrar
autoridades, como o Governador, com agendamento prévio é melhor atendido. Dias
depois procurei saber junto ao cacique os resultados de sua viagem à Cuiabá. Segundo
ele o projeto de casas na aldeia ainda está em estudo. Sobre os calções a
Superintendência ao invés de comprar calções, acabou comprando bermudas vermelhas
e pretas. Em desacordo com o que foi comprado o cacique se recusou a trazê-las. Outro
objetivo da viagem do cacique era conseguir a doação de uma Kombi pela Polícia
Rodoviária Federal. Todavia, ao chegar à PRF a Kombi já havia sido doada.
Após a passagem pelo NAL seguimos para Barra do Garças onde
acompanhamos alguns grupos domésticos em suas atividades de compras. A viagem de
volta parecia tranqüila quando de repente o caminhão freia subitamente. Da cabine saiu
o grito: wãrãhöbö, wãrãhöbö, wãrãhöbö! [tatu, tatu, tatu!]. Imediatamente vários
jovens desceram do caminhão e saíram em disparada em perseguição ao tatu, que foi
logo capturado. Muito do que se escreveu sobre os Xavante pode ter passado por
transformações e mudanças. Todavia, o mesmo frenesi quando se trata de caça descrito
por Maybury-Lewis (1984:78-87) ainda permanece.
De volta à aldeia retomamos a participação nas expedições de coleta dos brotos
de buriti. Nestas expedições não observamos nenhum rito de entrada no mato ou pedido
à entidades sobrenaturais para extrair os tsuwaipó. Todavia, quando se tratava de
entradas em fazendas havia a preocupação de evitar qualquer encontro com o
fazendeiro. Numa destas expedições fizemos idas e voltas para trazer os brotos até a
estrada. Próximo à BR-070, deixávamos os brotos escondidos nas moitas de capim e
voltávamos para buscar mais. Segundo o coletor que acompanhávamos, esta era uma
precaução para não serem descobertos.
As expedições de coleta de brotos de buriti tiveram início logo após o término
do daporedazpuu’u – furos dos lóbulos auriculares, e prolongaram-se de modo intenso
até por cerca de um mês. Após este mês alguns grupos domésticos ainda saiam nestas
203

expedições. Não obstante, a comunidade aldeã passou a se preparar para realização de


outros rituais que antecedem o uso das capas wamnhorõ, confeccionadas com a seda dos
brotos de buriti que foram coletados.
As expedições que estamos aqui chamando de coleta de brotos nunca se
restringiram a este fim. Em todas as expedições das quais tomamos parte os homens
levavam consigo suas armas de caça. Em certa ocasião, quando buscávamos brotos na
Terra Indígena Merure, dos Bororo, na região conhecida como Pedregulho, um dos
cachorros que levávamos conosco acuou um tamanduá bandeira, que depois de muita
perseguição fora abatido. Agora nos encontrávamos diante de dilema: transportar o
tamanduá ou os brotos que já havíamos colhido. Esta era mais uma questão para o
pesquisador do que para quem o acompanhava. Buscando uma solução possível o
caçador que abatera o tamanduá começou a emitir gritos específicos para indicar o tipo
de caça abatida, e com isso buscar ajuda de outros companheiros que poderiam estar na
região. Entretanto, depois de dez minutos de gritos e nenhuma resposta a solução foi
pré-moquear o bandeira. Com isto a caça fora esquartejada e posta sobre um jirau e uma
fogueira foi acesa por baixo. Rapidamente o caçador fabricou dois cestos com folhas de
buriti para o transporte da caça até o local de encontro. Algumas vísceras foram
consumidas no local, visto que já se passava de três da tarde e a matula que levamos já
há muito tinha sido consumida. Saciados e com as cargas devidamente preparadas nos
deslocamos em direção ao caminhão.
Por sorte ou azar somente este caçador havia abatido uma caça. Ao chegar ao
caminhão encontramos outros grupos que já haviam retornado e ao saberem que
tínhamos abatido uma caça foi grande o alvoroço, onde todos nos pediam um naco de
carne. Prevendo esta situação, o caçador, que considera o pesquisador como irmão o
encarregou de cuidar do cesto com boa parte das vísceras além de reservar um pernil de
tamanduá que deveria ser dado ao cacique. Outras partes já estavam previamente
destinadas aos parentes que ficaram na aldeia. Sem dominar muito bem os códigos de
reciprocidade neste momento, o pesquisador foi colocado em uma situação um tanto
delicada. Por ser considerado irmão do caçador o pesquisador automaticamente estava
inserido numa rede mais ampla de parentesco. Isto exigia que ele fosse generoso para
com seus parentes. Todavia, sem saber distinguir quem era e quem não era parente, não
demorou muito para que o mesmo fosse taxado de tsõti – miserável, mesquinho,
avarento, aquele que não reparte. Este é o pior adjetivo que pode ser atribuído ao
204

homem Xavante. No campo das relações sociais o tsõti é aquele que não sabe/pode
viver em sociedade. Vendo a situação em que o pesquisador fora colocado, o caçador
autorizou a entrega de parte das vísceras e tripas para algumas pessoas e aos poucos o
mal estar foi sendo dissipado. De volta à aldeia o caçador encarregou o pesquisador de
entregar o cesto de carne que ainda nos restava à sogra. Por ser irmão do caçador o
pesquisador ira igualmente considerado como genro por sua sogra. Entre as formas
sociais prescritas na relação sogro/sogra e genro está a obrigação deste trazer-lhe carne
em caso de sucesso em suas caçadas. Nos dias de hoje estas formas prescritivas têm sido
ampliadas diante das novas possibilidades de acesso e aquisição de alimentos e bens de
consumo. Neste sentido, todas as vezes que o pesquisador se deslocava à cidade de
Barra do Garças para comprar o seu rancho, que era socializado no grupo doméstico de
seu irmão, algo especial tinha que ser trazido à sogra, o que poderia ser um pacote de
laranja ou um pedaço de fumo de rolo.
Nos dias que se seguiram após esta caçada era corriqueiro o aparecimento de
parentes em busca de carne do tamanduá. Quase sempre, quando se tratava de homens,
a conversa se prolongava um pouco mais, pois todos queiram ouvir o relato de como o
tamanduá fora abatido, desde o momento em que o cachorro acuou o bicho, passando
pela ocasião em que o pesquisador ficou preso numa moita de cipós e gravatás89 até o
momento em que o caçador conseguiu abatê-lo.
Entre os grupos domésticos que compõem a aldeia Guadalupe as relações eram
relativamente tranqüilas. Nesta fase do processo ritual quando o caminhão retornava das
expedições de coleta de brotos de buriti não raro havia alguns problemas em localizar os
feixes de brotos que eram depositados no assoalho da carroceria. Algumas vezes
acontecia de feixes de brotos desaparecerem. Isto se dava às vezes não por má fé de
quem os pegava, mas sim pela dificuldade em localizar os brotos de buriti na escuridão.
Quando se descobria o dono do broto desviado havia sua restituição.
Antes e após do início do processo ritual do danhono alguns grupos domésticos
deixaram Guadalupe para fundarem outras aldeias. Todavia, estas novas aldeias ainda
eram consideradas como aliadas da facção do cacique, o que possibilitou retornos de
grupos domésticos que se arrependeram da mudança e/ou tiveram problemas de
relacionamento na outra aldeia. Foi caso Ed que deixou Guadalupe, por opor-se
politicamente ao cacique desta aldeia, para morar em Nossa Senhora de Fátima, mas

89
Ananas bracteatus.
205

depois acabou retornando à Nossa Senhora de Guadalupe. Ed contratou o motorista do


Caminhão de Guadalupe para buscar sua mudança para aquela aldeia. Como ele havia
deixado há tempos Guadalupe acabara perdendo seu espaço na forma oval da aldeia.
Considerando a situação emergencial de sua mudança optou por alugar a casa de Ver,
que acabara de construir uma nova casa com o marido na qual usaram telhas de barro,
deixando a antiga vazia. Procuramos saber de Ed quais foram os motivos que o levaram
a retornar para Guadalupe. Entretanto, preocupado com a mudança o mesmo se limitou
a dizer que era por causa da festa dos abare’u. Fomos conversar com o motorista do
caminhão para obter mais informações a respeito da mudança de Ed. De acordo com
este informante a mudança se dera por conflitos familiares na outra aldeia. Todavia, o
motorista não quis dar mais informações sobre a natureza destes conflitos.
Ed viveu tranquilamente por dois meses na casa que fora alugada de Ver,
entretanto, as relações com a “locatária” começaram a se deteriorar. Assim, Ed resolveu
construir outra casa. Aproveitando-se de um espaço deixado por outra família, que
deixara Guadalupe para fundar outra aldeia, bem como da doação do madeiramento
deixado por seu irmão, que igualmente deixou Guadalupe. Ed começou a construiu sua
nova casa ao lado da de seu pai. Durante o processo de construção oferecemos nossa
mão de obra para Ed. Destarte, ao longo dos trabalhos começamos a conversar sobre sua
saída de Nossa Senhora de Fátima e depois acerca do surgimento de um conflito com
Ver. A primeira mudança ocorreu por motivo de fofoca, segundo ele. Quando vivia em
Fátima aconteceu que um motorista waradzu da FUNASA teve que pernoitar naquela
aldeia e para não deixar o mesmo dormisse na cabine da viatura, carro Ed teria cedido
um colchão e espaço para que ele dormisse em sua casa. Tal atitude repercutiu na aldeia
sob a versão de que Ed estaria deixando sua filha se prostituir com o motorista waradzu.
Dias depois, num jogo de futebol das mulheres, suas filhas foram agredidas fisicamente.
Diante disse, ele mudou-se novamente com sua família para São Francisco, aldeia que
fica acerca de oitocentos metros de Guadalupe, onde passou a morar na casa de seu
sogro, Gab. Ed passou a participar de todos os eventos que envolviam o danhono, vindo
todos os dias para Guadalupe. Ao constatar que Ver tinha terminado de construir uma
nova casa ele negociou com ela seu retorno à Guadalupe. Para tanto não procurou o
cacique para pedir permissão de retorno àquela aldeia. Apenas conversou com o pai,
que inicialmente se colocara contra sua saída, mas lhe dera total apoio. Uma vez
residindo em Guadalupe Ed acolheu temporariamente seu sogro, que apresentava
206

dificuldades para caminhar, pois estava perdendo a visão pelos efeitos do diabetes, e
que igualmente acompanhava a iniciação do danhono.
Quanto à decisão de construir outra casa, Ed nos disse que não poderia conversar
conosco na aldeia, pois alguém poderia ouvir a conversa e ele seria taxado de
fofoqueiro. Desta forma, nos encontramos na cidade e nos revelou que decidiu mudar da
casa de Ver porque ela estaria espalhando fofocas segundo a qual ele não estava
pagando o aluguel direito. Visto que ele tinha o apoio de seu pai, Ant, e a ajuda de um
de seus cunhados para construir sua casa, considerou como melhor opção deixar a casa
de Ver.
Os dois fatos que apresentamos, o caso dos brotos de buriti e as relações de Ed
com Ver, não tiveram impactos imediatos sobre o tecido social da aldeia Guadalupe,
não sendo necessário qualquer acionamento de mediadores de conflitos. Todavia,
situações como estas ajudam a criar ressentimentos que podem ser acionados em
momentos oportunos, como veremos ao longo deste trabalho.
Além das pressões dos grupos domésticos para conseguir combustível, a ser
usado nas expedições de coleta de brotos de buriti, o cacique de Guadalupe tinha como
questão nevrálgica problemas de relações com os Bororo de Merure a respeito dos
limites territoriais das duas Terras Indígenas (São Marcos e Merure). Estes problemas
começaram logo após a cisão que ocorreu na aldeia São Marcos que resultou na
fundação de várias aldeias entre elas a de Guadalupe. Esta aldeia foi construída no
limite de uma linha seca que separa as Terras Indígenas Merure e São Marcos. Tal fato
gerou uma acusação por parte dos Bororo da aldeia Merure de que os Xavante estariam
invadindo suas terras. Acompanhamos parte das discussões sobre este limites ainda
quando estávamos realizando o trabalho de campo em 2002 para mestrado. Naquela
época ficou demonstrado que os Xavante de Guadalupe tinham construído sua aldeia no
limite, mas ainda dentro da Terra Indígena São Marcos. Quando se deu outra cisão,
desta vez dentro da própria aldeia de Guadalupe, vários grupos domésticos deixaram
aquela aldeia para fundar Jesus de Nazaré. Esta sim foi erguida do outro lado da Terra
Indígena São Marcos, ou seja, na Terra Indígena Merure. Isto reacendeu novamente
uma velha discussão a respeito dos limites das duas Terras Indígenas. Para compreender
a questão temos que recuar um pouco mais no tempo90.

90
Os dados e fatos apontados foram coligidos em consulta ao processo de demarcação da Terra
Indígena São Marcos com acesso obtido através do Museu do Índio no Rio de Janeiro.
207

Os Xavante da Terra Indígena São Marcos tiveram, inicialmente, sua terra


demarcada através do decreto 71.106 de 14 de setembro de 1972. Os limites e perímetro
deste decreto foi elaborado com base nas sugestões do missionário salesiano Pe. Pedro
Sbardellotto. Quando a empresa de agrimensura Projeto S/A procedia a fixação dos
marcos da demarcação houve descontentamentos tanto dos Xavante quanto de
fazendeiros e posseiros do entorno da Terra Indígena recém criada.
O decreto de 73.233 – 30 de novembro de 1973 e o decreto 73.234 – 30 de
novembro de 1973, redefiniu os limites do decreto de 1972 incorporando à Terra
Indígena São Marcos uma área de propriedade da Missão Salesiana de Mato Grosso, a
qual pertencem os missionários salesianos, que ainda hoje dão assistência aos Xavante
da Terra Indígena São Marcos. Entretanto, conflitos com fazendeiros e posseiros
continuaram.
Para resolver os litígios, algumas fazendas que estavam no entorno da Terra
Indígena definida pelo decreto de 1972 foram incluídas numa nova proposta de
território para os Xavante de São Marcos. A incorporação daquelas fazendas e da área
pertencente à Missão Salesiana resultou no que hoje corresponde à atual Terra Indígena
São Marcos, cujos limites definitivos foram colocados pelo Decreto 76.215 – 05 de
setembro de 1975.
Durante os quase quatros anos em que trabalhamos em São Marcos como
professor, a Terra Indígena São Marcos parecia não ter problemas quanto aos seus
limites, uma vez que já estava totalmente regularizada. Não obstante, depois que
deixamos a aldeia São Marcos (em 2000) houve um acirramento na disputa pela chefia
daquela aldeia. O desfecho daquela disputa resultou na saída de Tsudzawere e um
grande número de pessoas da aldeia São Marcos. Tsudzawere e seu grupo construíram
uma aldeia nas proximidades de uma linha seca que divide as duas terras indígenas.
Outras aldeias foram construídas nestas proximidades. Isto causou certa apreensão aos
missionários salesianos que trabalham em Merure, bem como aos Bororo. Entretanto, os
Xavantes, até onde foi possível constatar, estão com suas aldeias dentro de sua Terra
Indígena.
Durante o trabalho de campo em 2002, tomamos conhecimento da tensão entre
os Bororo e os Xavante no que diz respeito a definição dos limites sul da Terra Indígena
São Marcos. Naquela ocasião tivemos a oportunidade de conversar com alguns velhos
Xavante que haviam trabalhado para empresa de agrimensura Projeto S/A, abrindo
208

picada para fixação dos marcos de demarcação. Foi-nos relatado, por aqueles
informantes, que o limite sul da Terra Indígena se estendia mais ou menos numa direção
de dez quilômetros adentro do que é hoje a Terra Indígena de Merure e atingiria um
lugar conhecido como Morro da Providência. O limite iria, segundo os Xavante
entrevistados, da cabeceira do Córrego Diamante ao Morro da Providência. Contudo,
houve contestação dos Bororo e a demarcação ficou paralisada. Isto teria ocorrido em os
meados do ano de 1974. Os entrevistados nos relataram que certo engenheiro
agrimensor, funcionário da FUNAI, chamado Dr. Valter, que acompanhava a
demarcação, teria dito: “os Xavante tem terra demais” e arbitrariamente resolveu a
questão entre os Xavante e Bororo deslocando o limite sul da Terra Indígena São
Marcos ao que é hoje, e ao que consta no decreto de 05 de nº 76.215 – 05 de setembro
de 1975, publicado no diário oficial em 08 de setembro do mesmo ano.
Conversamos também com missionários salesianos, em 2002, que trabalham em
São Marcos, sobre as questões envolvendo os limites das Terras Indígenas São Marcos e
Merure. Eles me confirmaram a versão Xavante sobre as tensões entre os dois povos na
época da demarcação e relataram que posteriormente, depois da demarcação, teria
havido uma reunião entre lideranças Xavante e Bororo, com presença missionária, e que
nesta reunião teriam chegado a um, digamos, acordo de cavalheiros. Por este acordo os
Xavante poderiam caçar e coletar na área, enquanto que os Bororo poderiam retirar
palhas na Terra Indígena São Marcos para cobertura de suas casas.
Foi neste contexto que, numa das expedições de coleta de brotos – em 2005, na
qual o cacique estava presente, que encontramos um grupo de Bororo, acompanhado de
um missionário Salesiano que trabalha na aldeia Merure, no entroncamento da BR-070
e a estrada que dá acesso à Terra Indígena São Marcos. Inicialmente os Bororo e o
missionário estavam ali para procurarem uma placa solar que havia sido roubada de
Merure e eles queriam saber se os Xavante tinham visto alguém circulando com aquele
objeto pelas estradas. Ao serem avistados pelos Xavante, o grupo que estava na
carroceria começou a gritar: mestre M. traidor, mestre M. traidor... A acusação de
traidor ao missionário se dava porque os Xavante suspeitavam que ele teria feito um
documento no qual se pedia a reintegração de posse da área em que fora construído a
aldeia Jesus de Nazaré. O missionário com apoio dos Bororo defendia-se da acusação
dizendo que ele tinha chegado na missão recentemente e que não tinha nada a ver com o
referido documento. O cacique dos Bororo procurava argumentar que era ele e a
209

comunidade que tinham feito o documento. Todavia, o grupo Xavante não estava
convencido da isenção do missionário na redação do documento. O cacique de
Guadalupe dirigindo-se ao missionário dizia: cadê o exercito pra me tirar? Você trouxe
o exercito? Por seu turno o missionário continuava a negar qualquer participação no
pedido de reintegração de posse. Em tom alterado o cacique dizia que quando eles
aceitaram o contato com os brancos a terra que é hoje dos Bororo estava cheio de
fazendeiro e que foram eles, os Xavante, que os amarram e os expulsaram. Para
finalizar a conversa dirigiu-se novamente ao missionário: você mestre M. ministro de
Deus, está trazendo discórdia entre os povos indígenas??!! Dito isto, encerrou
subitamente a conversa virando as costas ao grupo de Bororo e dirigiu-se ao caminhão
que seguiu viagem. Neste dia o local escolhido para coletar brotos de buriti foi na Terra
Indígena Bororo.
No dia seguinte ao episódio com os Bororo no entroncamento, fomos à casa do
vice-cacique para ver o tal documento que os Bororo haviam feito. Tratava-se de uma
folha digitada e impressa via computador. Na Terra Indígena Merure o único local onde
havia equipamentos de computação era na Missão Salesiana com sede na aldeia Merure.
Tudo indicava que realmente havia participação dos missionários no fato. Todavia, a
julgar pela redação e concordância gramatical do texto parecia tratar-se de uma
produção dos Bororo. No documento os Bororo acusavam os Xavante de invadirem
suas terras e pediam medidas punitivas até que estas fossem desocupadas. Entre as
medida punitivas aos Xavante estavam: a suspensão imediata dos recursos para saúde e
educação e o cancelamento provisório do processo de reconhecimento da Escola
Indígena da aldeia Jesus de Nazaré aberto junto Secretaria de Estadual de Educação –
SEDUC, em Cuiabá.
Uma semana após o episódio relatado acima estivemos na casa dos Salesianos
na cidade de Barra do Garças. Ali tivemos a oportunidade de encontrar um Salesiano
que havia passado alguns dias na aldeia de Merure substituindo outro que estava em
tratamento de saúde. Em conversa com este Salesiano o mesmo nos revelou que havia
sido ele o redator do documento dos Bororo. Segundo sua versão, teria sido o salesiano
mestre M. o mentor do documento após uma reunião com as lideranças Bororo,
confirmando as suspeitas dos Xavante. Estes fatos nos mostram que os conflitos entre
Xavante e Bororo repercute também na esfera missionária e podem ser alimentados por
ela. Com pontos de vista diferenciados cada uma das missões se posiciona em favor de
210

seus índios. Todavia, esta não tem sido a orientação geral da sede dos Salesianos, a
Inspetoria de Campo Grande. Em conversa com os salesianos de Barra do Garças fomos
informados que o Inspetor, numa reunião dos missionários, os teria orientado os não
intrometerem ou tomarem partido nas questões envolvendo conflitos entre os Xavante e
Bororo pelos limites das duas Terras Indígenas. No entanto, esta parece não ser a
realidade.
Os Xavante respondem com outro documento encaminhado à FUNAI no qual
pediam a demarcação da Terra Indígena Morro da Providência, alusão ao indicador de
limites entre as duas Terras Indígenas que fora colocado no relatório do Pe. Pedro
Sbardellotto, a partir do qual foi criado a Terra Indígena São Marcos.
Como forma de melhorar as condições de saúde da população indígena foi
criado pela FUNASA diversos cargos para os quais são contratadas pessoas escolhidas
pela própria comunidade aldeã. Entre estes cargos figura o Agente Indígena de
Saneamento – AISAN91. Cabe ao Distrito Sanitário Especial Indígena – Dsei, a
contratação e treinamento dos AISAN para que possam estar atuando em suas aldeias.
No caso da Terra Indígena São Marcos, das 26 aldeias 15 delas tem um AISAN
contratado, entre elas Guadalupe. Durante a primeira fase do trabalho de campo
acompanhamos uma reunião na aldeia entre o vice-cacique e outros membros da aldeia
com um representante da Coordenação Regional – CORE/MT – vindo de Cuiabá para
ver o andamento e orientar os trabalhos do AISAN. No entanto como o AISAN ainda
não estava presente a reunião começou com o questionamento sobre o projeto de
construção de um Posto de Saúde para melhor atender aquela aldeia e as demais do
entorno. O representante da CORE/MT disse que o recurso para construção do Posto de
Saúde já havia sido liberado, mas não sabia dizer onde estaria parado e o porquê da obra
ainda não ter começado, comprometendo-se em levar estas informações. Após a
cobrança pela construção do Posto de Saúde o vice-cacique falou sobre a necessidade de
se ouvir a comunidade antes das tomadas de decisões referentes aos índios. Segundo

91
É função do AISAN: 1. identificar as condições ambientais da comunidade e os mananciais
disponíveis para o abastecimento de água; 2. reconhecer as doenças relacionadas com a água, dejetos e
lixo, e promover melhorias nas condições de saneamento; 3. promover e orientar a execução de
sistemas alternativos para abastecimento de água, destino de dejetos, melhoria habitacional e controle
de vetores e roedores de acordo com a realidade de sua comunidade; 4. auxiliar e supervisionar na
operação dos sistemas de abastecimento de água e outros projetos de saneamento implantados na sua
área de atuação, bem como a manutenção preventiva e corretiva dos mesmos; 5. executar inquéritos
sanitários domiciliares e auxiliar em estudos preliminares para a implantação de pequenas obras de
saneamento como proteção de fontes, poços rasos, cisternas, banheiros, fossas secas, fossas sépticas e
outros (http://www.funasa.gov.br – acesso em 14/11/2007).
211

ele, não bastava ouvir os índios que estão trabalhando na cidade, era preciso visitar as
aldeias para ver a realidade. Por fim, disse que as comunidades respeitavam a
democracia. Justificando sua concepção de democracia colocando-se contra outras
comunidades que conseguem os recursos com base na pressão, com soco na mesa e
seqüestros. O que não acontecia com Guadalupe que tinha um histórico de reivindicar
passivamente respeitando as autoridades.
Visto que o AISAN não chegava Ruf tomou a palavra e começou a queixar-se
contra Ub, que detinha o cargo. Para Ruf o AISAN Ub, não estava desempenhando o
papel adequadamente, além de estar pedindo transferência para Brasília onde pretendia
morar. Neste sentido, pediu que o representante da CORE/MT e encarregado dos
AISAN deveria investir em quem permanecia direto na aldeia. Para reforçar suas
queixas disse que estava sofrendo com a falta d’água. A falta d’água que Ruf se referia
era decorrente da quebra do conjunto de placa solar e bomba d’água. Em verdade,
quando chegamos à aldeia para o trabalho de campo a FUNASA havia recém entregue o
conjunto de placa solar e bomba d’água e uma caixa com capacidade de dez mil litros
de água, além de uma estrutura composta de dez torneiras, onde as mulheres buscavam
água e passavam o dia lavando roupas e panelas. Entretanto, o conjunto de placa solar e
bomba d’água não foram cercados e tornou-se lugar de brincadeira para crianças,
conforme já descrito.
Finalmente o AISAN chegou, mas nem Ruf ou o representante da CORE/MT
retomaram as acusações contra Ub sobre o conjunto quebrado. Ub acusou o Sr. M.,
técnico responsável pela manutenção, de não atender seus pedidos par vir consertar o
conjunto ou liberar peças hidráulicas de reposição. A reunião foi encerrada com a
entrega de uma cartilha e um conjunto de fichas pelo representante da CORE/MT aos
AISAN Ub, nas quais ele deveria anotar suas atividades desenvolvidas na aldeia. O
representante da CORE/MT fez uma série de fotografias que seriam levadas à Cuiabá
para serem anexadas ao projeto de construção do Posto de Saúde.
Após a reunião procuramos saber entre os presentes porque as criticas ao
AISAN Ub partiram de Ruf. De acordo com os informantes antes da cisão da Aldeia
São Marcos da qual resultou Guadalupe a mulher de Ruf tinha este cargo naquela
aldeia. Com a mudança para Guadalupe o cargo foi dado à Ub, e isto provocou
descontentamento a Ruf que tentava desqualificar Ub e reaver o cargo para sua mulher.
Embora Ruf fosse professor da escola, contratado pelo Estado de Mato Grosso, o
212

mesmo ainda alimentava pretensões de conseguir mais cargos, como AISAN. Para isso
questionou durante a reunião se a CORE/MT não estaria oferecendo cursos de
engenharia sanitária, pois tinha interesse nestes cursos para acumular títulos.
A oferta por cargos oferecidos pela FUNASA, pela FUNAI ou pelo Estado de
Mato Grosso, no caso dos professores, constitui uma forma de monetarização, sobretudo
dos homens na aldeia. Isto possibilita o acesso a bens e conferem prestígio aos grupos
domésticos. Diante disso, há uma busca intensa por estes cargos e o aumento da
competição entre os grupos domésticos. O resultado imediato desta competição está no
enfraquecimento da autoridade política daqueles que distribuem estes cargos. O fato a
seguir mostra-nos isso.
Na época da pesquisa o serviço de transporte de doentes na Terra Indígena São
Marcos estava sendo terceirizado. A empresa prestadora de serviços para Guadalupe era
perdeu a licitação que renovava o contrato e houve uma mudança de prestadores de
serviço. Diante disso, houve a necessidade se contratar dois novos motoristas que
trabalhariam com a viatura. Entretanto, quando o fato foi comunicado à assembléia, no
warã, a desaprovação da atitude do chefe foi grande. Principalmente pelos dois
contratados para motoristas serem Xavante. Segundo um dos informantes a comunidade
tinha mais confiança no motorista waradzu. Até mesmo a filha do cacique, que tem a
função de enfermeira na aldeia, se colocou contra a contração dos motoristas Xavante e
dizia que tinha preferência em trabalhar com o motorista waradzu. As tensões
aumentaram ainda mais quando foi feito o anúncio dos ocupantes do cargo de motorista.
O cacique escolheu para motorista um de seus genros e o outro um de seus netos. O
genro do cacique foi desqualificado por ser, segundo os informantes, um viciado em
ödzaipro, cerveja. Para o neto pesava a inexperiência como motorista, visto que havia
poucos meses que o mesmo tinha tirado habilitação. Tal manobra aplacou boa parte de
seus parentes, sobretudo a filha descontente, visto que o neto contratado era seu filho.
Numa conversa com o pesquisador o cacique defendeu a contratação do índio
em lugar do waradzu, por gerar renda à comunidade. Sobre as reclamações da
comunidade o mesmo dizia que não queria fazer queda. Todos, disse ele, querem
alguma coisa: uns querem que só waradzu trabalhe como motorista, outros querem a
empresa Y. Qual caminho vou seguir?, perguntou ele. A bagunça não resolve nada!,
completava. Por bagunça entendam-se as disputas e posicionamentos em contrário ás
suas decisões. Ele afirma estar avançando na luta pelo bem da comunidade, mas
213

ninguém o agradecia. Tudo o que conquista é para o bem da comunidade. Nada ficaria
para ele ou seus filhos. Quem tem capacidade de fazer progresso?, pergunta novamente.
Seria seu sobrinho Raimundo, cacique de São Marcos, ou Lourenço, cacique de Fátima,
ou ainda, Simão, cacique de Namunkurá?, todos seus opositores politicamente. Segundo
ele, todos estes só querem puxar o filho para deixar o cargo. Em sua visão tudo o que
tem sido feito foi em prol das novas gerações. Por fim traça sua concepção de líder:
Para ser lideranças não é para receber privilégio, não é para fazer também
paternalismo, é para lutar para o bem das comunidades.
No mesmo dia em que conversei com o cacique sobre as mudanças nas empresas
que prestariam serviço de transporte à saúde, na parte da tarde os representantes da
empresa vencedora vieram trazer a viatura. O carro entregue era da montadora
Mitsubishi Motors, cabine dupla com tração 4x4, ano 2005 dirigiu-se até a frente da
casa do cacique onde uma multidão se juntou. Quando todos desceram o cacique
perguntou se o carro era zerinho, e completou dizendo que a comunidade e sua filha não
queriam ferro velho. Enquanto um dos representes mostrava o veículo aos novos
motoristas o outro recolhia seus documentos para encaminhar o processo de
contratação. Ao término os dois motoristas receberam dois pares de uniforme que
deveriam ser usados enquanto estiverem de serviço. Neste ínterim o cacique começou a
dizer aos que estavam presente que aquela viatura era para a saúde apesar de os
fofoqueiros estivessem dizendo que seria usado por sua filha para buscar água gelada,
em São Marcos, para ele. Dizia ele que o outro carro transportava todo mundo, menos
os doentes, isto agora seria diferente. Ao pesquisador afirmou que a empresa que havia
perdido a licitação estava com raiva dele, e seria ela a espalhar fofocas nas aldeias.
Neste momento chegou uma notícia no rádio amador, que também fica dentro da casa
do cacique, dizendo que havia pacientes em alta na Casa de Saúde do Índio – CASAI,
de Barra do Garças. Ao serem comunicados os representantes da empresa disseram que
agora tudo seria resolvido pela comunidade. Eles foram levados à aldeia São Marcos
onde permaneceram e a viatura entrou em operação viajando à Barra do Garças para
buscar os pacientes em alta.
À noite, do mesmo dia que os fatos relatados acima aconteceram, entrevistamos
um informante que estivera presente durante a conversa que tivemos com o cacique pela
manhã. Este informante nos contou de suas mágoas para com o chefe desde os tempos
em que viviam em São Marcos. Na época do projeto de rizicultura, final dos anos 70 e
214

início dos 80, este informante, que é também sobrinho do chefe, pediu várias vezes para
ser contratado como funcionário federal para ocupar os postos de motorista, tratorista ou
professor. O chefe sempre negava seus pedidos e entregava estes cargos às pessoas do
clã po’redza’õno. Sobre a conversa que tivemos pela manhã com o cacique o
informante dizia que ele acusa as outras aldeias de favorecerem parentes e darem cargos
para os filhos e faz a mesma coisa ao colocar o neto e o genro como motoristas. No dia
seguinte enquanto retirávamos seda, wamnhorõ, dos brotos de buriti, na frente de sua
casa, avistamos a outra viatura da aldeia retornar e começar a descarregar lenha na casa
do chefe. Vendo a cena o informante mostrou-se revoltado dizendo que era esse tipo de
coisa que a comunidade não gostava. Para completar disse que muitas famílias só
estavam esperando a festa terminar para deixarem Guadalupe e fundarem outras aldeias.
Entre estas famílias o informante elencou a do cunhado do cacique e outra composta por
um de seus irmãos classificatórios.
No centro da aldeia, o warã, durante a madrugada, as discussões a respeito da
viatura e dos motoristas contratados vieram novamente à tona. Um dos velhos
classificou a viatura como carro de bandido, por ser da cor azul escuro e por ter película
escura nos vidros. Como os homens demoravam a aparecer para conversarem no centro,
alguns velhos ensaiaram um canto e foram executá-los no na frente das casas da aldeia.
Segundo um informante o canto falava sobre o fechamento da água limpa, uma alusão à
fofocas de que o conjunto de bomba, placa solar e caixa d’água montado pela FUNASA
seria fechado para sempre. A medida surtiu efeito e não demorou muito os homens
começaram a chegar ao centro da aldeia, entre eles o cacique. Com um público ainda
maior a questão dos motoristas foi retomada. Um dos ĩhire, anciões, reclamou
novamente da inexperiência do neto do cacique em conduzir a viatura. Como argumento
disse que nas expedições de coleta de brotos de buriti esse motorista não sabia trocar as
marchas do caminhão e sempre fazia um barulho que o incomodava. O cacique volta a
defender as qualidades de motorista do neto usando como contra argumento o fato do
mesmo ter feito curso na cidade e tirado o documento de habilitação. Sendo o assunto
principal a questão do atendimento à saúde foi pedido ao chefe que providenciasse uma
enfermeira waradzu, não Xavante, para o atendimento da comunidade. De acordo com
um dos informantes, as enfermeiras waradzu quando estão na aldeia fazem visitas
regulares às casas, mas a enfermeira Xavante, filha do cacique, não tem esta
preocupação. Além disso, a enfermeira waradzu anterior estava ensinando dois novos
215

enfermeiros Xavante. Não obstante, quando esta enfermeira foi embora à filha do
cacique dispensou os dois aprendizes. Ainda nesta reunião o vice-cacique que tinha
usado o caminhão para ajudar a aldeia de Fátima, tomou a palavra para justificar sua
atitude. Segundo ele, a ajuda resultou na doação de cinqüenta litros de óleo diesel para
Guadalupe. Todavia, foi advertido por outro ĩhire, ancião, para comunicar a
comunidade quando e para onde o caminhão estará indo. Novamente o vice-cacique se
defendeu dizendo que apenas estava querendo fazer união das comunidades. Este
mesmo ĩhire disse que o cacique da aldeia de Fátima, L., deveria fazer um gesto de
humildade e vir a Guadalupe e fazer sua proposta de trabalho conjunto. O cacique
retomou seu discurso e muitos começaram a deixar o local retornando para suas casas
para continuarem os trabalhos de retirada de seda de buriti.
A respeito dos dois aprendizes de enfermeiro que trabalhavam junto com a
enfermeira waradzu, chegamos a acompanhar seu desempenho no atendimento aos
doentes que procuravam a escola, que funcionava como posto de saúde. Em verdade, o
que estamos chamando de Posto de Saúde era o antigo galpão de palha e cobertura de
zinco que funcionou como escola até a construção do outro galpão, em alvenaria,
dividido com madeira compensada, para onde foi transferida a escola. Entretanto, por
causa da quantidade de pulgas que havia no antigo galpão o atendimento aos doentes era
feito no corredor da escola. Ao término do expediente a enfermeira recolhia os remédios
que ficava numa caixa até o dia seguinte para novos atendimentos. Para dormir ela
usava o sótão construído sobre a cozinha da escola. Segundo aquela enfermeira os
estagiários, como já estavam sendo chamados pela comunidade, estavam empenhados
em aprender a ministrar os medicamentos. Apesar de não estarem recebendo salários
pelo serviço prestado eles mantinham certa regularidade de comparecimento ao local de
trabalho. Soube que o vice-cacique havia encaminhando um documento pedindo a
contração dos dois. Não obstante, com a saída da enfermeira waradzu, para gozar seus
dias de folga, os dois estagiários fizeram atendimentos por mais dois dias. Tiveram que
interromper os trabalhos porque a enfermeira, filha do cacique, pegou a caixa com os
remédios e a levou para sua casa, onde os atendimentos passaram a acontecer. Com isto
ela dispensou os estagiários, aumentando mais o descontentamento da aldeia em relação
a seu trabalho.
Após estes episódios circulava pela aldeia um boato, fofoca, de que a enfermeira
Xavante teria dispensado os dois estagiários para ensinar, dentro de casa, uma das filhas
216

para assumir seu posto quando ela aposentasse. Nesta mesma direção surgiu outro boato
segundo o qual o chefe do Distrito Sanitário Especial Indígena Xavante - DISEI, havia
dado uma vaga de enfermeiro ao cacique e este estaria segurando para sua neta de treze
anos.
O local onde a nova viatura ficou estacionada provocou comentários de
reprovação da conduta do chefe. A viatura passou a ficar estacionada na frente da casa
do cacique. De acordo com ele esta teria sido uma orientação da empresa prestadora de
serviços. Os informantes disseram que o carro ficaria ali porque o cacique queria usá-lo
em beneficio próprio. Justificaram esta afirmação dizendo terem ouvido próprio cacique
dizer que quando precisasse ele usaria o carro para resolver alguma coisa na cidade.
As tensões internas provocadas pela mudança da empresa prestadora de serviços,
pela contratação dos parentes do cacique como motorista chegaram ao conhecimento
das outras aldeias da Terra Indígena São Marcos. Da aldeia Fátima chegou o boato
sobre Guadalupe que estaria começando outra divisão. Diziam outra porque aquela
aldeia surgiu em decorrência de divergências com o cacique de Guadalupe. Em todas as
conversas que tive com o cacique, este procurava desqualificar as lideranças de Fátima.
A idéia de que as lideranças indígenas agem em conformidade com os anseios da
comunidade aldeã não encontra sustentação no caso de Nossa Senhora de Guadalupe.
Não demorou muito e os boatos sobre a saída de vários grupos domésticos após o
término do danhono chegaram aos ouvidos do cacique. Estava claro para ele que o
descontentamento foi provocado por sua atitude em contratar o genro e o neto como
motoristas da nova viatura. Todavia, ele não só ignorou estes fatos como também falou
que os descontentes eram mal agradecidos e não reconheciam sua luta pelas melhorias
da comunidade. Ele acusava os que moravam na cidade de insuflar o descontentamento
na aldeia. Segundo ele, os que moram na cidade não conhecem mais e não se interessam
pelos rituais. Somente ele e os demais ĩhire, anciões, da aldeia pensam na cultura.
Um dos informantes que estava muito contrariado com as atitudes do cacique
disse que ele era macaco velho. Isto significava que de alguma maneira ele iria
contornar a crise que havia iniciado. Todavia, não esperava, nem pretendia, fazer isso
nos próximos dias visto que os ânimos estavam muito exaltados.
Nos dias que se passaram a comunidade foi aos poucos voltando novamente suas
atenções aos brotos de buriti. Muitos grupos domésticos estavam adiantados e
acumularam boa quantidade de seda. Estes por seu turno já estavam preparando outros
217

ornamentos a serem usados nos rituais. Não obstante, as expedições de coleta de brotos
voltaram a acontecer. Numa destas viagens algumas pessoas embarcaram no caminhão
com finalidade diversa dos demais. Um grupo embarcou para realizar uma pescaria em
córregos que ficavam dentro da Terra Indígena Merure, que por serem pouco
freqüentados a oferta de peixes era grande. Isto contrariou aqueles que tinham por
objetivo os brotos de buriti. Todavia, apesar da reprovação não houve mudança nos
planos dos pescadores.
Transcorridos pouco mais de vinte dias após o início das expedições de coleta de
brotos e retirada das sedas de buriti, o wamnhorõ, fomos convidados a visitar a casa do
avô de um dos tébé. Quando chegamos encontramos um grande maço de wamnhorõ
disposto sobre um cobertor. Outros ĩhire, anciões, chegaram e começaram a inspecionar
a seda e discutir sobre sua qualidade e tamanho. Um deles juntou as sedas de maior
comprimento e amarrou o feixe numa das pontas, formando uma espécie de capa. O
mesmo colou-a na cabeça e com uma vara de bambu imitava os gestos rituais que o tébé
deve fazer no dia de sua cerimônia. O comprimento da capa de wamnhorõ foi aprovado
pelo pai e avô do tébé. Este feixe de seda foi cuidadosamente amarrado ao longo do
wabu, talo seco da folha de buriti. Depois que a seda de buriti é amarrada no wabu ela
não pode mais ser vista pelos demais moradores da aldeia. Somente os membros do
grupo doméstico sabem de sua presença na casa. Os homens podem conversar
livremente sobre ele no centro da aldeia. Quando se deseja saber se um grupo doméstico
tem seda o suficiente para confecção do ornamento wamnhorõ, o interlocutor deve fazê-
lo de modo discreto. Depois que a seda foi amarrada no wabu, ela não pode circular
durante o dia pela aldeia. Não foi possível aprofundar os motivos destes cuidados.
Paralelo ao danhono outros rituais aconteciam nos finais de semana na aldeia
Guadalupe. No referimos a recita do terço católico, herança do trabalho missionário ao
longo de sessenta anos na Terra Indígena São Marcos. Aos domingos a récita do terço
era organizada pelos agentes de pastoral Xavante, função criada pelos missionários. A
cada quinze dias o salesiano padre celebrava a missa no centro da aldeia ou no antigo
galpão construído para ser escola. Acompanhamos estas celebrações durante o período
de trabalho de campo. Numa delas, no domingo à tarde, o salesiano padre chegou e
dirigiu-se ao antigo galpão da escola onde o grupo de fiéis começou a se reunir logo em
se seguida. O sino fora tocado algumas vezes chamando os fiéis. Enquanto isso no
centro da aldeia os danhohui’wa, classe de idade tirowa, tocavam a flauta upawã,
218

confeccionada com um tubo de PVC de 150mm. As duas cerimônias começaram


concomitantemente, sem prejuízo para ambos. Ao término da celebração o salesiano
padre agradeceu a presença de todos, principalmente a dos heroi’wa, que teriam cantado
bonito e pediu que continuassem a freqüentar a missa depois da festa, o danhono. Neste
momento, aproveitando a sessão de pedidos, um dos fiéis pediu ao padre que este
fizesse um projetinho para a construção de uma Igreja de madeira ou alvenaria na
aldeia. O salesiano tentou argumentar que gostava de celebrar com vista à natureza em
campo aberto. Não obstante o fiel continuava a insistir na construção do templo. O
assunto foi desviado e aos pouco a assembléia se dispersou. O fato nos permite pensar
sobre a incorporação de outros rituais entre os Xavante, bem como a situação de
autonomia, nos dia atuais, em relação a estes rituais. A catequese católica imposta aos
Xavante é hoje assumida por eles e incorporada ao seu mundo cosmológico. Por outro
lado, esta mesma catequese parece não ter mais a força disciplinadora do passado. Em
Guadalupe, como em outras aldeias, os Xavante estão retomando as práticas
poligâmicas, proibidas pelos missionários. Relações sexuais extraconjugais, sobretudo
entre cunhado e cunhada, parece não ser incompatível, para os Xavante, com a profissão
do credo católico. Em conversa com informantes que eram considerados agentes de
pastoral fomos informados que tinham encontros amorosos regulares com suas
cunhadas.
Neste período de preparo das sedas de buriti e de outros ornamentos corporais os
danhohui’wa, classe de idade tirowa, deveriam alegrar todas as manhãs e no entardecer
a aldeia ensaiando o canto do wanaridobe, executado, como veremos, na madrugada do
dia em que acontece o ritual de retirada das capas do wamnhorõ. Não obstante, esta
expectativa em relação a eles não estava sendo atendida. No warã, centro da aldeia, os
ĩhire, anciões, queixavam-se da ausência dos tirowa no ensaio do canto, bem como seu
desinteresse na retirada da seda de buriti. Considerando que muitos grupos domésticos
já se encontravam com os trabalhos de retirada da seda adiantados, os tirowa já
deveriam ter começado a preparar o próximo ritual, a corrida do noni. Como forma de
pressionar os tirowa a empenharem-se mais no processo ritual em várias ocasiões os
ĩhire, anciões, emitiam os gritos usados na cerimônia do tsauri’wa, uma corrida que
acontece na fase final do processo ritual. A intenção era de amedrontar os tirowa, ou
seja, ao emitirem os gritos do tsauri’wa os ĩhire, anciões, estavam comunicando que se
219

os tirowa não se empenhassem mais no processo ritual eles poderiam suspender um


grande número de cerimônias e passarem para o final do danhono.
Caso isto viesse se concretizar eles seriam submetidos a um grande
constrangimento público e ficariam marcados pelo resto da vida como incapazes de
conduzirem o processo ritual. Isto pode equiparar-se à categoria atsitõ, já discutida por
nós nas páginas precedentes. Não obstante, esta medida não surtiu efeito. Os ĩhire,
anciões, passaram a ensaiar cantos e executá-los com maior regularidade nas
madrugadas frias do mês de maio. Além disso, quando estavam no centro os ĩhire,
anciões, gritavam frases de ordem cujo conteúdo procurava macular a virilidade dos
tirowa: tirowa aibö dzöi’re – tirowa homem que não faz nada; tirowa aibö pra – tirowa
homem pela metade, homem fraco; waptõ na tsre´ö92 – aquele não levanta nunca da
cama, só fica com a mulher; tirowa psitimro dzahudzotsepre – o grupo dos tirowa só
procuram duas mulheres. Até mesmo o pesquisador, filiado à classe de idade hötörã,
quando não comparecia ao warã era alvo destes gritos. As medidas tomadas pelos ĩhire,
anciões, faziam pouco efeito e o comparecimento dos tirowa, na madrugada, para cantar
raramente passava de oito pessoas.
Vez ou outra o assunto viatura vinha novamente à tona nas reuniões do warã.
Visto que ela ficava estacionada na frente da casa do cacique, ou na casa da enfermeira
– que ficava atrás da casa do chefe, todas as vezes que ela saía diziam que estava
transportando parentes deles.
Dando continuidade ao processo ritual, no warã iniciaram as discussões para
realização de uma das modalidades do wai’a, celebração religiosa Xavante. Antes era
necessário preparar os ornamentos corporais a serem usados nesta celebração. Neste
sentido, foi discutida a realização de uma expedição para coletar embiras de uma árvore
popularmente conhecida como manduvi ou amendoim de bugre, Sterculia apelata,
disponível numa região da Terra Indígena Merure conhecida como Morro da
Providência. Entretanto, considerando que muitos grupos domésticos ainda precisavam
coletar brotos de buriti esta expedição foi adiada e o caminhão foi destinado a realizar
estas expedições. Realizaram-se pelo menos três expedições de coleta de brotos até que
as atenções se voltassem novamente para o wai’a.
Passaram-se mais alguns dias e o descontentamento dos ĩhire, anciões, em
relação aos tirowa voltou a ser assunto das reuniões no warã. As queixas eram as

92
Temos dúvidas quanto à grafia destas frases, porém não de seu sentido.
220

mesmas: falta de interesse pela retirada da seda, falta de empenho no ensaio do


wanaridobe. Além disso, eles deveriam estar preparando a pista para realização da
cerimônia da corrida do noni. Embora tivesse começado a aplainar parte do terreno onde
seria construída a pista do noni, o trabalho foi interrompido e não mais recomeçaram.
Diante disso os ĩhire, anciões, organizaram um mutirão para acelerar o término da pista
do noni. Neste ínterim os ĩhire delegaram aos heroi’wa escolhidos para desempenharem
o papel ritual de tébé a incumbência de procurarem na mata duas árvores com cerca de
quinze metros de altura para que fosse montado o wedetede – local de chegada nas
disputas da corrida do noni. Adiante voltaremos a descrever o wedetede.
Depois de um dia de trabalho no preparo da pista do noni, em regime de mutirão
do qual tomamos parte, fomos à noite participar das conversas no warã onde, para nossa
surpresa, de repente os grupos começaram a se reunir uns afastados dos demais.
Percebemos então que se tratava dos grupos que possuem funções específicas no ritual
do wai’a, celebração religiosa (veja quadro montado acima). Neste sentido, por também
estarmos inseridos num destes grupos fomos convidados a estar com ele. Neste
momento os principais grupos a se reunirem foram de um lado os dzö’ratsi’wa, os
tocadores de chocalho e os que executam o canto, também chamados de os donos da dzö
– cabaça, e noutro extremos os da’ãmawai’a’wa, são chamados também de guardas ou
policiais por sua função disciplinadora durante o ritual. Aos da’ãmawai’a’wa cabe
confeccionar os objetos sagrados a serem usados durante a celebração do wai’a.
Enquanto estávamos reunidos um dos da’ãmawai’a’wa’rada antigo da’ãmawai’a’wa,
trouxe os objetos sagrados usados na última celebração.
Os Xavante celebram, de acordo com Giaccaria & Heide (1984:205), quatro
modalidades da cerimônia religiosa do wai’a: wai’a piu – celebrado no tempo da seca;
barana tiipetse tsi – onde são usadas flechas do tipo ti’ipe; höiwahö tsimihöparĩ dahã –
celebrado no tempo das chuvas; o aweupré celebrado na passagem do tempo das chuvas
para a estação seca. Maybury-Lewis (1984:321), por seu turno, identificou três
modalidades: o celebrado para os doentes, o wai’a das flechas e o wai’a das máscaras
(wamnhõrõ da). Em paralelo os autores apresentam pontos em comum e divergentes no
que diz respeito às modalidades de wai’a. O que Maybury-Lewis chama de wai’a das
flechas é o correspondente ao que Giaccaria & Heide chamam de barana tiipetse tsi. A
modalidade do wai’a do tsimihöparĩ é comum aos autores. O que Maybury-Lewis está
considerando como wai’a das máscaras (wamnhõrõ da) nos parece ser uma descrição da
221

iniciação ao wai’a chamada darini. A modalidade identificada por Maybury-Lewis


como em favor dos doentes corresponde ao que Giaccaria & Heide chamam de
datsiwaiwẽrẽ. Todavia, estes dois autores não classificam o datsiwaiwẽrẽ como sendo
uma modalidade de wai’a, e sim um ritual de cura. Entretanto, segundo Giaccaria &
Heide (1984:218) a participação no datsiwaiwẽrẽ exige que seus oficiantes sejam
iniciados ao wai’a. Na ocasião que participamos deste ritual observando sua
performance e os atores rituais envolvidos, concordamos com Maybury-Lewis que o
datsiwaiwẽrẽ trata-se de uma modalidade do wai’a.
Na Terra Indígena São Marcos e Sangradouro e Volta Grande o datsiwaiwẽrẽ
tem sido celebrado durante o sábado santo, ou seja antes do domingo de páscoa, de
acordo com o calendário litúrgico da Igreja Católica. O sábado santo para os católicos
corresponde ao dia em que Jesus Cristo ressuscitou. Neste sentido, a recuperação da
saúde do doente corresponderia à ressurreição. Não obstante, o datsiwaiwẽrẽ e a missa
da ressurreição são celebrados de modo sincrético, começando no sábado, perdurando a
noite toda, e encerrando-se no domingo pela manhã. Todavia, algumas partes dos dois
rituais, o datsiwaiwẽrẽ e a missa católica, é suprimida.
O wai’a celebrado em Guadalupe nesta fase do processo ritual de iniciação
danhono foi da modalidade pi’u. Por ser a primeira vez que participávamos de modo
mais intenso deste ritual fomos instruídos sobre a seriedade93 do mesmo e a importância
dos segredos que devem ser guardados, sobretudo, das mulheres. Há pedido dos
da’ãmawai’a’wa, não entraremos nos detalhes destes objetos sagrados. Descreveremos
a seguir as partes públicas do ritual.
Os preparativos para o ritual começam pela madrugada. Assim, por volta de três
horas da madrugada acordamos e fomos ao centro da aldeia, no warã, onde aguardamos
os demais da’ãmawai’a’wa. Neste ínterim acendemos uma fogueira para nos aquecer do
frio da madrugada que faz no cerrado. Aqui fomos alertados sobre a relação entre a
capacidade de acender rapidamente uma fogueira e a generosidade de quem o faz.
Segundo os Xavante o homem que acende rapidamente uma fogueira goza de um
espírito generoso, ou seja, é um ĩtsopru. Do contrário, caso haja muita demora em
acender o fogo é sinal de que ele é um tsõti, mesquinho, avarento. Com a chegada de
um número expressivo da’ãmawai’a’wa fomos tirar os wai’arã, jovem recém-iniciado

93
Tivemos mais sorte do que Maybury-Lewis que teve as bochechas mordida por um
da’ãmawai’a’wa até sangrarem, como forma de deixar claro sobre o respeito em relação aos segredos
deste ritual (Maybury-Lewis, 1984:330)
222

ao wai’a da cama, como dizem os Xavante. Para tanto os da’ãmawai’a’wa entram na


casa do wai’arã e dirigem-se a local onde este dorme, puxa-lhes o cobertor ou lençol e
executa o datsiparabu94. Em seguida o jovem iniciado é tomado pelo punho e
conduzido ao centro da aldeia. Quando todos foram levados ao centro da aldeia os
da’ãmawai’a’wa conduziram os wai’arã até um dos marã, clareiras, que ficam ao redor
da aldeia. Ali todos ficaram em semicírculo dispostos em modo concêntrico. No meio
estavam os dzö’ratsi’wa, depois os da’ãmawai’a’wa e na extremidade os wai’arã. Os
dzö’ratsi’wa puseram-se a mostrar aos wai’arã e da’ãmawai’a’wa o canto que haviam
ensaiado previamente e seria executado durante todo o wai’a. Quando os
da’ãmawai’a’wa notavam que os wai’arã não estavam cantando de forma adequada um
deles se levantava e repetia o gesto ameaçador do datsiparabu. Após o canto ter sido
repetido várias vezes o grupo dos da’ãmawai’a’wa, do qual o pesquisador também faz
parte, deixou o marã onde estavam os demais e seguiram para outro mais distante.
No segundo marã os da’ãmawai’a’wa dividiram-se segundo a filiação clânica,
assim como o espaço local, e puseram-se a preparar os objetos sagrados a serem usados
durante a cerimônia. Estes objetos são considerados dádivas de Danhimite, o Criador.
Os objetos confeccionados pelos clãs não são os mesmo. Segundo os informantes,
durante o preparo dos objetos todos os clãs devem dar conta de providenciar a matéria
prima necessária para o seu trabalho. Observamos três tipos diferentes de objetos
sagrados. Destes, dois podiam ser preparados por qualquer pessoa do acampamento,
enquanto que um deles somente aquele considerado chefe dos da’ãmawai’a’wa é quem
podia manuseá-lo. Após a conclusão de todos os objetos sagrados os da’ãmawai’a’wa
foram autorizados a executarem suas pinturas corporais e “vestirem” seus ornamentos.
Quando todos os da’ãmawai’a’wa ficaram prontos, o grupo deixou o marã dirigindo-se,
silenciosamente por trilhas que cortam a mata ciliar nas proximidades da aldeia, para o
segundo marã onde estavam reunidos os wai’arã e os dzö’ratsi’wa. Antes, porém, os
da’ãmawai’a’wa pararam próximo ao segundo marã e foram divididos em três grupos.
Estes grupos foram entrando, uma a um, no marã e fizeram datsiparabu aos wai’arã,
enquanto os dzö’ratsi’wa continuavam a entoar o canto. Após a entrada dos três grupos
de da’ãmawai’a’wa os wai’arã foram enviados aos poucos ao centro da aldeia. No
marã ficaram apenas os da’ãmawai’a’wa e os dzö’ratsi’wa receberam os objetos
sagrados, inspecionando-os e em seguida fizeram algumas adequações e entregaram

94
Gesto que se parece com uma dança durante o qual o da’ãmawai’a’wa ameaça pisar no pé do
wai’arã.
223

àqueles que seriam seus portadores. Os portadores dos objetos rituais, divididos de
acordo com sua filiação clânica, foram se esconder nos arredores da aldeia, obedecendo
à posição do nascer e por do sol. Assim, membros dos clãs öwawẽ e tob’ratato
posicionaram-se em pontos diferentes da metade da aldeia do lado do nascer do sol,
enquanto que os do clã po’redza’õno nos pontos da outra metade da aldeia voltada ao
sol poente. Os dzö’ratsi’wa e demais da’ãmawai’a’wa se dirigiram ao centro da aldeia,
onde o ritual teve continuidade. No warã, centro da aldeia houve novamente a entrega,
de modo performático, de outros objetos sagrados. O canto ensaiado durante o dia foi
executado de novamente. Ao seu término cinco dentre os wai’arã foram escolhidos para
buscarem, juntamente com os da’ãmawai’a’wa outros objetos rituais que deveriam ser
usados durante todo o ritual. Este grupo saiu correndo em direção ao marã onde
receberam, ritualmente, os objetos. Com eles em mãos os cinco wai’arã dançavam
vibrando-os olhando para o alto movendo a cabeça lentamente para a direita e esquerda,
como se estivessem em êxtase. Ao término do canto os wai’arã e os da’ãmawai’a’wa
dirigiram-se até suas casas de onde retornaram trazendo bolos, pães, pipoca, pacotes de
feijão, açúcar, pacotes de biscoitos e até barras de sabão que foram ofertados aos
dzö’ratsi’wa que ficaram aguardando no warã. Após a entrega das oferendas, os
wai’arã e os da’ãmawai’a’wa retornaram às suas casas para jantar. As oferendas
deixadas no centro da aldeia foram divididas entre os dzö’ratsi’wa, que as levaram para
suas casas. Momentos depois todos retornaram ao centro da aldeia, dando continuidade
ao ritual. Ali ensaiaram novamente o canto e puseram-se a executá-lo percorrendo o
círculo da aldeia. Durante a noite toda esta performance foi repetida. Nos arredores da
aldeia aqueles que receberam os objetos rituais mantinham-se vigilantes tocando de vez
em quando um instrumento musical.
Acompanhamos a performance ritual até as duas da madrugada, quando fomos
dormir. Acordamos por volta de quatro horas e retomamos nossas obrigações no ritual.
Quando o sol dava indícios de aparecer no horizonte o grupo dos da’ãmawai’a’wa saiu
em busca dos wai’arã que tinham abandonado o ritual para dormirem. Ao encontrá-los
os da’ãmawai’a’wa faziam datsiparabu e imediatamente os wai’arã saiam correndo
para o centro da aldeia. Num dos casos, onde da’ãmawai’a’wa e wai’arã tinham mais
intimidade, o primeiro despertou o segundo apertando-lhe o testículo. Com todos
reunidos, o canto foi executado nos arredores da aldeia uma última vez e todos voltaram
para o centro da aldeia. Ali ficaram aguardando o sinal dado através de um assobio. Ao
224

ouvirem o sinal os wai’arã responderam com gritos e saíram correndo em direção do


local de onde este teria partido. Ali um dos objetos sagrados, atirado em direção da
aldeia, era disputado pelos wai’arã para ver qual deles o agarraria primeiro. Aquele que
consegui pegar o objeto sagrado corria para o centro da aldeia e era recebido com
datsiparabu. Isto se repetiu até que todos os objetos sagrados, que ficaram escondidos
durante o ritual, fossem reunidos no centro da aldeia. Estes foram reunidos num feixe e
entregues a um dos da’ãmawai’a’wa’rada, antigo da’ãmawai’a’wa, que percorreu a
aldeia e depois foi guardá-los em sua casa. Novamente os da’ãmawai’a’wa e wai’arã
retornaram as suas casas de onde retornaram com oferendas aos dzö’ratsi’wa que as
repartiram entre si. Estava encerrado assim o ritual do wai’a. Com dia claro, boa parte
dos participantes do ritual foi ao riacho para tomar banho e retirar a pintura corporal,
enquanto outros ficaram no warã onde os homens continuaram a conversar.
Dissemos acima que estaríamos evitando entrar em detalhes sobre os objetos
sagrados. Optamos também por não mencionar o nome das divisões em metades que
ocorrem durante o ritual, bem como o nome dos personagens rituais que os
da’ãmawai’a’wa personificam. Os objetos sagrados, os instrumentos musicais e os
personagens do ritual constituem segredos para as mulheres. A elas é terminantemente
proibido o acesso aos marã e seus arredores. A transgressão deste preceito implica em
castigo. Neste caso, elas são levadas ao marã e ali são violentadas coletivamente. A
partir deste momento elas passam a ter o direito de terem acesso aos segredos do wai’a
e assumem o status, ou estigma, de wai’a tsipi’õ, ou seja, mulher que foi levada ao
wai’a. Segundo alguns informantes, o homem que negligencia o ritual pode como
castigo ter sua mulher levada ao wai’a.
Apesar de terem permissão para assistir e participar do wai’a as mulheres que
nele foram violentadas, por vergonha, dificilmente tomam parte. No ritual que
participamos somente uma pi’õ ĩhire, mulher idosa, atreveu-se a ficar em frente de sua
casa vendo os homens cantar. De acordo com os informantes, no tempo de sua
juventude ela teria se tornado wai’a tsipi’õ. Em Guadalupe, ainda segundo os
informantes, havia muitas mulheres que se tornaram wai’a tsipi’õ, mas não
participavam do ritual para não serem identificadas pela comunidade aldeã.
Durante a noite, após a celebração do wai’a, na costumeira reunião dos homens
no warã, onde a conversa girava em torno do desempenho do pesquisador como
da’ãmawai’a’wa, um dos homens mais velhos da aldeia levantou-se e começou a
225

discursar sobre a cerimônia da corrida do noni. Em seu discurso ele dizia que a corrida
do noni já poderia começar no dia seguinte e que não houvesse provocações, nem
respostas a estas, entre as famílias. O cunho das provocações que o ĩhire se referia
estava relacionado ao uso indevido de determinados ornamentos corporais durante as
cerimônias sem a devida autorização de seus donos. Um destes ornamentos corporais é
o abadzipré, literalmente algodão vermelho, usado como cinto. O mesmo é
confeccionado sob a medida exata da cintura de quem o usará. Na parte de trás pendem-
se dois casulos, feitos de algodão e recobertos com resina branca. Estes casulos são
unidos em uma das extremidades e presos ao cinto de modo a formar um V invertido.
As outras pontas dos casulos terminam com fios de algodão desfiado e correntinhas de
sementes de capim navalha, a’é.
Linhagens e clãs são detentoras da propriedade de vários ornamentos e objetos
rituais. Segundo os informantes, as famílias nunca estão contentes com os seus adornos
corporais, pois acham os dos outros mais bonitos. Isto é ponto nevrálgico no processo
ritual e gera fortes tensões quando os usos indevidos são descobertos. Não obstante, há
situações, como veremos adiante, em que o uso de ornamentos pode ser negociado e
autorizado mediante trocas. Ainda sobre o abadzipré, um de nossos informantes disse
não saber quem eram os seus donos. Entretanto, por gostar muito dele pediu a seu pai
que o fizesse para que seu filho usasse numa das cerimônias finais do processo ritual.
Não apuramos o sentido mítico deste ornamento corporal. Nas tentativas que o fizemos
nossos informantes se limitavam a dizer que gostavam de usar por serem bonitos.
Em continuidade ao seu discurso o ĩhire disse uma vez que já havia acontecido o
wai’a, o wedetede poderia ser montado e que tivesse início à corrida do noni. Esta foi a
primeira vez que presenciamos o direito de oratória deste ĩhire na assembléia do warã.
Ele levantou-se da cadeira que sempre levava consigo e ao começar a falar o burburinho
que havia logo deu lugar ao silêncio. Em tom baixo e extremamente tranqüilo ele pedia
que a cerimônia do noni tivesse início. Entretanto, um dos presentes no warã disse que
o noni não poderia ter início no dia seguinte porque haveria uma reunião importante na
cidade de Barra do Garças e os homens estariam indo participar da mesma.
O discurso deste ĩhire nos sugere que o danhono está intrinsecamente
relacionado com outro rito de iniciação e celebração religiosa o darini e seu resultado,
as celebrações do wai’a. Contudo, esta relação não está condicionada a dicotomia entre
sagrado e profano sugerida por Van Gennep (1978:26). Segundo este autor toda
226

alteração na situação de indivíduo implica ai ações e reações entre o profano e o


sagrado, ações e reações que devem ser regularmente vigiadas a fim de a sociedade
geral não sofrer nenhum constrangimento ou dano (Van Gennep, 1978:26). O danhono
provoca transformações importantes na vida das pessoas. Todavia, ao invés de gerar
danos ou constrangimento pelas ações e reações entre sagrado e profano, ele promove
uma junção entre as duas esferas ao ponto de não ser necessário à atitude de vigilância
sugerida pelo autor, mas sim um convívio complementar entre as duas esferas. O uso
das pinturas e adornos corporais comuns aos dois tipos de iniciação, darini e danonho
corrobora nossa hipótese. Ao longo desta tese apontaremos as situações na qual este
imbricarmento ocorre.
A reunião que estava marcada em Barra era para eleição do novo presidente do
conselho de saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena – DISEI. Destarte, no dia
seguinte viajamos de caminhão até Barra do Garças acompanhando o grupo de homens
que participariam da reunião na sede do Distrito. Havíamos planejado participar desta
reunião, todavia por vários motivos não conseguimos. Na cidade procuramos resolver
algumas pendências de ordem pessoal e tivemos que retornar no mesmo dia para no
seguinte acompanharmos os preparativos da cerimônia do noni. No entanto, antes de
pegar uma carona na viatura da saúde tivemos oportunidade de conversar com o cacique
sobre o andamento da reunião. Os bastidores da reunião que elegeria o novo presidente
do conselho de saúde devem estar situados dentro de uma escala de tempo ampliada. Já
apontamos que os conflitos políticos dentro da Terra Indígena São Marcos provocaram
um realinhamento de forças e isso resultou na cisão e criação de novas aldeias. As
facções consideradas aqui como o alinhamento de aldeias, expandiram seus campos de
influência e atuação para além dos limites da Terra Indígena. Desta feita, o resultado
foram conquistas que geram prestígio às facções. Assim, os principais cargos da
administração regional da FUNAI ficaram repartidos entre os correligionários da facção
do Raimundo, cacique da aldeia São Marcos. Por outro, a facção de Tsudzaweré,
cacique da aldeia Guadalupe, conseguiram a criação do Núcleo de Apoio Local – NAL,
em General Carneiro, cidade situada a cinqüenta quilômetros de Barra do Garças.
Entretanto, os postos considerados de prestígios pelos Xavante ocupados através de
processo eletivo eram cobiçados e disputados entre as facções. O cargo de Presidente do
conselho de saúde do Disei era um destes cargos. É neste cenário que se deu a reunião
em Barra do Garças.
227

Na conversa que tivemos com o cacique, enquanto aguardava a chegada da


viatura da saúde, ele nos relatou que na reunião estavam propondo a municipalização da
saúde indígena. De acordo com ele, com a municipalização dos Distritos os recursos
repassados à saúde indígena seriam encaminhados ao Estado e depois aos Municípios.
Muitos candidatos ao cargo de presidente do Disei, segundo o cacique, apóiavam esta
idéia. Ele se colocou totalmente contra a proposta dizendo que os recursos seriam
facilmente desviados. Não obstante, acusou os índios que estavam apoiando a
municipalização de não pensarem nas comunidades. Ainda de acordo com o cacique,
seriam pessoas que vivem na cidade e só querem a função e o salário. Estas pessoas são
classificadas por ele de índios desaldeados. Não soubemos de imediato o desfecho da
reunião, visto que nossas atenções estavam voltadas aos preparativos da corrida do noni.
Entretanto, soubemos dias depois que o eleito para presidente do DISEI foi um Xavante
de uma aldeia considerada aliada à facção de nossa senhora de Guadalupe.

3.7 – O WEDETEDE

O wedetede, como já sinalizamos acima, é o ponto de chegada durante a


cerimônia da corrida do noni. O termo wedetede refere-se ao nome das árvores usadas
em sua constituição. Em Guadalupe um dia antes da celebração do wai’a os ĩhire
pediram que os tébé fossem à mata cortar duas árvores que seriam usadas para este fim.
Os dois mastros extraídos destas árvores devem ter tamanhos diferente sendo o maior
deles com aproximadamente quinze metros de comprimento. Este trabalho seria quase
impossível de ser feito apenas pelos dois tébé. Para tanto, eles foram ajudados por
outros heroi’wa e vários homens iniciados ligados à metade cerimonial a qual
pertenciam. O grupo partiu com o caminhão pela manhã retornando ao meio dia com os
troncos wedetede que foram fincados no final da pista do noni. Na ponta destes mastros
foram amarrados feixes de galhos, semelhante a um buquê, da mesma planta. O que
estamos considerando aqui como pista do noni é um espaço com cerca de quatrocentos
metros por uns vinte de largura, que se inicia fora da aldeia e a cruza-a até a outra
extremidade onde o wedetede é montado. Considerando o modelo idealizado de uma
aldeia Xavante, ou seja, em formato de ferradura com sua abertura voltada ao riacho,
onde as casas dos solteiros são montadas alternando-se em suas extremidades de acordo
com a metade cerimonial a qual pertence à classe de idade que está sendo iniciada. Esta
228

disposição da casa dos solteiros orienta a fixação dos postes wedetede. Assim, o poste
de maior comprimento é fixado na direção do lado onde está construída a casa dos
solteiros, enquanto que o outro, com cerca de um metro e meio a menos, deve estar do
lado onde será construída a próxima casa dos solteiros. Esta disposição da fixação dos
postes está também relacionada à direção que os iniciandos tomam quando estão
dançando na aldeia. Desta forma, um recém chegado à aldeia ao deparar-se com o poste
maior do wedetede estando fixado do lado direito ele pode inferir que a classe de idade
que está sendo iniciada usa o sentido anti-horário do perímetro interno da aldeia para
executar seus cantos e danças. Não obstante, com as transformações ocorridas na
configuração das aldeias Xavante, que tem deixado de apresentar o formato de ferradura
e assumido o formato circular, o local de construção das casas dos solteiros tem sofrido
pouca ou nenhuma alteração. No caso da aldeia São Marcos, por exemplo, durante
décadas a casa dos solteiros esteve localizada em um único ponto da aldeia. Houve um
tempo, antes da cisão daquela aldeia, que o formato de ferradura deu lugar a uma
estrutura de três círculos concêntricos. No princípio de criação dessa aldeia os
Salesianos adotaram a prática educativa de internato junto aos Xavante. Com isso a hö,
casa dos solteiros, passou a ser considerada a partir do internato. Anos depois, quando o
internato foi abolido, os Xavante continuaram a se utilizar de sua estrutura para
manterem reclusos os wapté, moradores da casa dos solteiros. Durante este período as
classes de idade apenas trocavam, a cada processo de reclusão, a cobertura de palha da
estrutura de alvenaria que constituía a hö. A prática se manteve até a conclusão da
iniciação da classe de idade ẽtepa
˜ .
A iniciação seguinte teve a construção da hö feita noutro ponto, não muito
distante do anterior. Isto nos mostra que a posição dos postes do wedetede sugere, mas
não condiciona o local de construção da casa dos solteiros. Todavia ela ainda é acionada
para indicar o perímetro de dança das classes de idade, bem como o trajeto a ser
percorrido pelos corredores do noni ao final de cada bateria, como veremos adiante.
Os postes fixados durante o dia foram alvos de críticas na reunião dos homens
durante a noite no warã. As considerações que traçamos acima sobre o posicionamento
dos postes wedetede não foram observadas, ou seja, eles estavam invertidos. No dia
seguinte um dos postes teve que ser retirado e fixado no lugar correto. Nesta reunião foi
discutido também quem seria o carregador do noni, que recebe o nome ritual de
nonimrami’wa. Este ator ritual deve ser escolhido entre os membros da classe de idade
229

que está desempenhado o papel de danhonhui’wa. Em Nossa Senhora de Guadalupe na


iniciação de 2005 eram os tirowa que desempenhavam o papel de danhohui’wa. Além
disso, os candidatos a carregar o noni devem ainda pertencer ao clã öwawẽ. Cabe aos
nonimrami’wa’rada, aqueles que carregaram o noni nas iniciações passadas propor e
aprovar o novo nonimrami’wa. É uma escolha difícil, visto que são poucos, e às vezes
nenhum, os candidatos. No dia da escolha do carregador do noni para os abare’u, classe
de idade que estava sendo iniciada, não havia candidatos. A recusa em assumir o posto
de nonimrami’wa se deve em parte pelo comprometimento que o ator ritual deve manter
em relação à cerimônia. Como veremos, ela ocorre todos os dias e exige sua presença.
Diante das recusas, os nonimrami’wa’rada propuseram alguns nomes, que foram
descartados. De acordo com os informantes os candidatos rejeitados tinham pouco
cabelo e isto os impediriam de usar um dos adornos corporais do nonimrami’wa. O
impasse foi resolvido com a proposta de um nome, que apesar de posições em contrário,
foi aceito. Nossa observação sobre a escolha do nonimrami’wa, em 2005, difere dos
dados de Maybury-Lewis (1984:168). Segundo este autor a função do nonimrami’wa,
categoria identificada por ele como Manõwaumurtuwẽ - o mestre de cerimônias, é
prerrogativa de uma das linhagens da aldeia. Como vimos, as constantes recusas em
aceitar o papel de nonimrami’wa sugere que este cargo cerimonial não esteja
estruturalmente atrelado às de linhagens. Se de fato isto viesse a acontecer às discussões
entre os nonimrami’wa’rada, antigos carregadores do noni, para escolha do atual seriam
simplificadas e serviria apenas para confirmar o que é dado estruturalmente, o que na
prática não ocorre. A condição de pertencer ao clã öwawẽ, exclui os danhohui’wa de clã
oposto, mesmo assim o leque de possibilidades de escolha ainda é grande, assim como
as recusas.

3.8 – O NONI

Dois dias após a realização do wai’a os heroi’wa saíram pela manhã para cortar
galhos e árvores de pequeno porte, que foram plantadas no entorno do wedetede
formando quase um semicírculo em sua volta. No dia seguinte os heroi’wa saíram
novamente para o mato para coletarem folhas de buriti. No wedetede sob a companhia
230

do abare’omob’rada95, o mesmo que os acompanhava durante a realização do banho de


imersão datsi’waté, o dadzani’wa, começaram a montar a capa do noni. Para isso as
folhas de buriti têm suas pontas unidas e trançadas, de modo que fiquem como uma
cortina. Após isso elas são destacadas do folíolo e reservadas. Quando se tem uma boa
quantidade de folhas tranças estas são amarradas sob um tronco de lixeira do cerrado96,
que deve apresentar uma leve curvatura, com cerca de uns cinqüenta centímetros. As
partes que foram trançadas são colocadas em várias camadas sobre esse tronco. Em
seguida enrola-se a parte trançada e o tronco com várias folhas extraídas do broto de
buriti. As folhas do broto de buriti são igualmente usadas para confeccionar uma alça
que se prende nas extremidades tronco de modo que o noni possa ser sustentado na
altura dos ombros e a alça presa na testa do nonimrami’wa. Ao terminho o noni é posto
nos ombros de um dos heroi’wa, enquanto o abare’õmob’rada apara as pontas
deixando-as uniforme. Junto com este noni foi montando outro, com menor rigor de
acabamento, que seria usado como demonstração feita pelos nonimrami’wa’rada ao
atual nonimrami’wa e aos heroi’wa. Os noni ficaram escondidos no wedetede sob os
restos das folhas de buriti.
No mesmo dia em que os heroi’wa e o abare’õmob’rada prepararam o noni eles
começaram a preparar partes de um dos ornamentos corporais que serão usados pelos
pahöri’wa no momento de seu ritual. Este ornamento, chamado anhana’rãtomri, é feito
com folhas de buriti, wiwedetsu, que depois de terem a nervura retirada, têm suas pontas
dobradas e amarradas ao centro de modo que fiquem parecidas com uma gravata
borboleta. Cada folha dobrada recebe o mesmo nome do ornamento, anhana’rãtomri.
Embora Giaccaria & Heide (1984:171) afirmem ser um pahöri’wa’rada, antigo
pahöri’wa, que pede a um dos heroi’wa que faça, primeiramente, três anhana’rãtomri,
em Guadalupe não observamos a presença deste antigo ator ritual ou limites para
confecção das partes deste ornamento.

3.9 – ĨNI E TSIDUPU

Neste ínterim, enquanto os heroi’wa estavam empenhados em montar o


wedetede e o noni, os dahi’wa e seus danhohui’wa, respectivamente as classes de idade

95
O abare’omob’rada pertence à mesma classe de idade abareu. Com a renovação do ciclo de
iniciação a esta classe de idade recebe o sufixo ’omob’rada.
96
Curatella americana - família Dilleniaceae
231

ẽtepa
˜ e hötörã, começaram a se reunir em outro marã, distante cerca de uns cinco
quilômetros da aldeia, onde normalmente os dzö’ratsi’wa, donos do chocalho, vão
ensaiar os cantos do wai’a, para confeccionarem dois pares de objetos rituais: o ĩni ou
brudu, segundo um de nossos informantes, e o tsidupu. A escolha de um marã bem
afastado da aldeia nos dois casos, o ensaio dos dzö’ratsi’wa e o preparo destes objetos
do ritual deve-se ao fato de que os moradores da aldeia não deveriam ouvir os sons e
cantos, enquanto estão sendo ensaiados. O canto do wai’a e a apresentação dos objetos
rituais até os dias em que serão usados nas cerimônias constituem segredos para os
demais moradores da aldeia.
O ĩni é um tipo de borduna com cerca de cinco a seis metros de comprimento
por uns quinze de diâmetro. É feito com uma madeira vermelha, a aroeira, e uma das
extremidades, cerca de quarenta centímetros, é revestida com algodão. Abaixo deste
revestimento aplica-se uma fileira de penas de arara por toda a extensão do diâmetro da
borduna. Após aplicação das penas de arara, imediatamente abaixo delas, amarra-se um
pequeno bastão de modo oblíquo formando um gancho.
Enquanto parte do grupo prepara os ĩni ou brudu, os demais se encarregam de
confeccionar o outro objeto do ritual. Para montar o tsidupu, um tipo de flauta, utiliza-se
dois pedaços iguais de taquara com cerca de quarenta centímetros. As taquaras são
amarradas em paralelo com fios de algodão, deixando cerca de cinco a dez centímetros
livres nas extremidades. Uma das pontas é tampada com cera de abelha, enquanto a
outra é levemente rebaixada para facilitar o encaixe dos lábios no momento em que
forem usadas. Todo este trabalho, realizado pelos dahi’wa, é acompanhado e orientado
por seus danhohui’wa.
Quando as flautas tsidupu estão prontas é feito uma disputa entre os dahi’wa
para escolher dois entre eles para ensinar aos pahöri’wa, quando as flautas forem
entregues. Nesta ocasião encolhem-se dois, um de cada clã, que recebem o nome de ĩ
hörö’wa, tocadores deste instrumento.

3.10 – A CORRIDA DO NONI

Ao término da montagem da capa do noni os heroi’wa retornaram à hö onde


começaram a se preparar para o início da cerimônia. Neste ínterim seus pais também se
dirigiram à hö para pintarem seus filhos e ornamentarem seus corpos com as cordinhas,
232

wedenhorõ, tanto nos pulsos quanto nos tornozelos além de amarrar-lhes os colares de
algodão, danho’rebdzu’a. Para esta ocasião os heroi’wa usam o padrão de pintura
chamado tsanapré, no qual pinta-se um retângulo na altura do abdômen, outro nas
costas sobre a coluna, na canela usa-se uma pintura de carvão. As cordinhas amarradas
nos pulsos e tornozelos são confeccionadas com entrecascas de árvores e arbustos, que
apresentam propriedades mágicas e garantem a seus portadores maior resistência. Nas
expedições de coleta dos brotos de buriti nos foram mostradas uma grande variedade
destas plantas que seriam usadas durante a cerimônia do noni. Numa manhã de domingo
fomos convidados a acompanhar um grupo até uma cabeceira para buscar os ramos de
um arbusto que, segundo os Xavante, apresenta estas propriedades mágicas. Neste
sentido, muitos heroi’wa utilizavam-se de mais de um tipo de cordinhas. Além das
cordinhas eles fixavam com resina a serragem extraída de raízes que teriam a mesma
finalidade.
O carregador do noni, o nonimrami’wa, utilizou a modalidade de pintura
conhecida como daupté, na qual braços, tronco, cochas são pintados de vermelho e a
panturrilha pintada de preto. Na cabeça ele utiliza o ornamento chamado burui’pré97,
confeccionado com uma pena de arara vermelha presa num pedaço de flecha com cerca
de quarenta centímetros. Entre o pedaço de flecha e a pena de arara faz-se um
acabamento enrolando fios de algodão tingidos de vermelho. Para fixar o ornamento na
cabeça utiliza-se um pedaço de talo seco da folha de buriti chamado wabu, que depois
de lapidado apresenta propriedade semelhante à cortiça. Inicialmente amarra-se o cabelo
em forma de rabo de cavalo na nuca e depois se prende o wabu com fios de algodão
pintados de vermelho. Durante todo período em que estiverem sendo realizadas as
corridas do noni o nonimrami’wa utilizará esta modalidade de pintura e o mesmo
ornamento de cabeça. Os heroi’wa pintam-se somente nas cerimônias que acontecem no
período da tarde.
Durante o momento da pintura corporal dos heroi’wa, que acontece na hö, o
cacique apareceu com duas caixas de calções vermelhos e começou a distribuí-los aos
iniciandos. Entretanto, considerando que o número de calções era insuficiente para
atender a todos ele aceitou a ajuda de seu cunhado na distribuição. Este cunhado era um

97
A grafia das palavras em Xavante não tem padrão normativo. Alguns autores como Müller
(1976:58) e Giaccaria & Heide (1984:302) grafam, respectivamente este termo como uburõipré e
ubu’rãypré. Giaccária & Heide (idem) apontam ainda que este ornamento é usado nas celebrações do
wai’a, o que reforça nossa hipótese do imbricamento entre a iniciação do danhono, que poderia ser
caracterizado como uma iniciação social, e as celebrações do wai’a, uma celebração religiosa.
233

dos descontentes em relação à postura que o cacique vinha assumindo em relação a


distribuição dos cargos de motorista para a nova viatura da saúde. Ambos privilegiaram
os heroi’wa maiores na distribuição dos calções.
Quando todos concluíram a pintura e ornamentação corporal dirigiram-se para o
wedetede, onde a comunidade aldeã os aguardavam. No wedetede é vetada a presença
das mulheres. Entretanto, para acompanhar a cerimônia elas, com seus bancos e
cadeiras, se puseram nas margens da pista ao longo do trajeto.
As cerimônias do danhono têm como principal característica o envolvimento de
todas as classes de idade, das duas metades cerimoniais, que já passaram pelo processo
de iniciação. Neste sentido, a cerimônia do noni começa com a demonstração de todos
os nonimrami’wa’rada, aqueles que carregaram o noni nas iniciações precedentes.
Igualmente tomam parte os membros das classes de idade que estão presente. Para isso
usa-se o segundo noni, com menor rigor no acabamento. A performance ritual inicia-se
no wedetede com o nonimrami’wa’rada colocando o noni nas costas com sua alça
sustentada na testa e caminha em direção ao início da pista, situada no outro extremo da
aldeia. Nesta ocasião aqueles que irão correr o seguem em fila indiana. No local de
início o nonimrami’wa’rada posiciona-se cerca de uns vinte metros a frente dos
corredores. Quando todos estão a postos o nonimrami’wa’rada leva lentamente um dos
ombros à frente e o recua violentamente para trás fazendo com que a capa do noni seja
balançada. Este é o sinal de partida para os corredores, que começam lentamente e
depois aceleram o máximo que podem até atingir os postes no wedetede. As classes de
idade já iniciadas fazem apenas uma bateria. Quando chega a vez da demonstração da
última classe de idade iniciada a apresentação dá-se de modo completo. O
nonimrami’wa’rada toma o noni principal e segue em passos cadenciados, de modo que
as folhas que compõem o noni sejam farfalhadas. Aqueles que o seguem executam o
mesmo passo. Todos os deslocamentos seguem pelo lado onde foi plantado o wedetede
de maior tamanho. A cada bateria a comunidade aldeã emite gritos de incentivo aos
corredores. Não raro, alguns corredores tropeçam e caem, causando grande
descontração entre os expectadores. Não seria exagero considerar a corrida do noni
como igualmente lúdica.
Quando chega a vez da classe de idade que está sendo iniciada, todos partem em
direção do local de início. Nesta primeira bateria todos tomam parte. Quando chegam ao
wedetede eles aguardam o retorno do nonimrami’wa que desce correndo pelo lado
234

oposto da subida batendo ritmicamente as mãos na capa do noni. Ao passar pelo centro
e sua chegada no wedetede, recebe os agradecimento dos que assistem. Todos retornam
novamente ao início. Entretanto, nas baterias seguintes os heroi’wa correm em grupos
disputando entre si. Durante os dias que se seguirão as demais classes de idade podem
desafiar membros da sua ou de outras. As disputas podem dar-se também entre
membros de clãs opostos. Estes duelos são amplamente incentivados e esperados pela
comunidade aldeã. Às vezes uma disputa pode render diversos dias de conversa na
reunião do warã. Foi caso de uma disputa na qual o pesquisador foi colocado. No dia da
apresentação das classes de idade que já haviam sido iniciadas, uma delas composta por
um grupo de ĩhire, anciãos, teve em seu meio um jovem da mesma classe de idade do
pesquisador. Quando o nonimrami’wa deu o sinal de partida os ĩhire saíram à frente,
mas foram logo ultrapassados pelo jovem. Num clima de jocosidade isto gerou uma
grande discussão entre os presentes. Disseram ao pesquisador que os ĩhire derrotados
eram na maioria seus parentes e pertenciam ao seu clã. Diante disse o pesquisador
deveria vingar a humilhação imposta pelo jovem aos seus parentes e ao seu clã. O duelo
foi marcado para o dia seguinte, na corrida da parte da tarde. A notícia do confronto se
espalhou pelas aldeias vizinhas, de modo que no dia esperado o público era expressivo.
Depois das baterias do heroi’wa o pesquisador e desafiante, sozinhos, seguiram o
nonimrami’wa até o local de início. Ludibriado pela astúcia do jovem desafiante o
pesquisador se descuidou e saiu em desvantagem. Entretanto, gozando de melhor
condição de saúde, pois o desafiante era fumante de cachimbo, no meio do percurso o
pesquisador ultrapassou o desafiante e atingiu o wedetede primeiro. Estava vingada a
honra de seus parentes e do clã.
Ao término das baterias o nonimrami’wa deixa o local de início correndo em
direção ao wedetede, seguindo pelo lado oposto ao de subida e batendo as mãos no noni
farfalhando suas folhas. Ao passar pelo wedetede ele recebe os agradecimentos dos
presentes e dirige-se, sempre correndo, até o local de depósito da capa do noni. Este
local situa-se uns dez metros acima de onde está plantado o poste maior do wedetede.
Ali um tronco, chamado nonidza’odzé, cuja extremidade termina em forquilha é
plantado para receber o noni. Antes de chegar ao nonidza’odzé o nonimrami’wa é
perseguido por um dos heroi’wa, seu afilhado, que lhe retira o ornamento de cabelo
burui’pré. Ele deposita o noni no nonidzaodzé e encerra-se a cerimônia por este dia. À
medida que os dias vão passando o noni começa a secar. Diante disso um novo noni
235

deve ser confeccionado conforme descrevemos acima. Sempre que houver a confecção
de um novo noni fazem-se também novos anhana’rãtomri. Os noni antigos ficarão
depositados no nonidza’odzé até o final da iniciação e depois serão queimados.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:173s) ao término das cerimônias o
nonimrami’wa se dirigia até a hö onde recebia alimentos preparados pelas mães dos
heroi’wa. Durante nossa pesquisa não observamos esta prática. Ao final das cerimônias
do noni o nonimrami’wa se reunia com os demais danhohui’wa para ensaiarem o canto
do wanaridobe. A principal recompensa por sua dedicação virá mais tarde, quando as
capas de wamnhorõ estiverem prontas. Descreveremos esta situação mais adiante.
Durante cerca de quarenta dias a cerimônia do noni se repete pela manhã e no
final da tarde. Neste ínterim, os grupos domésticos seguem confeccionando os
ornamentos corporais e retirando a seda dos brotos de buriti, wamnhorõ.

3.11 – ESCOLHA DAS DANHOHUI’WA TSIPI’Õ - MADRINHAS

Ao término da cerimônia de início da corrida do noni os danhohui’wa reuniram-


se no centro da aldeia para ensaiarem o canto do wanaridobe. Até o dia de início da
cerimônia do noni eles ensaiavam o canto e dança do wanaridobe sozinhos. Para isso
um dos danhohui’wa durante a madrugada e no entardecer toca uma flauta chamada
upawã, confeccionada com um tubo de PVC de 150mm. Este tubo substitui os troncos
de bambu que eram usados no passado. Todavia, a técnica para fabricar este
instrumento e o modo de se tirar o som continuam o mesmo. Assim, uma das
extremidades do tubo é vedada com um pedaço de tábua e cera de abelha. Acerca de dez
centímetros da extremidade que foi vedada faz-se uma abertura com aproximadamente
três centímetros onde, para extrair o som, assopra-se de modo semelhante a um berrante.
Junto com o som do upawã aquele que está convocando os companheiros emite
diversos gritos, próprios para este momento.
Não obstante, após a cerimônia do noni embora seja o danhohui’wa a soprar a
upawã para início do ensaio, são os ĩpredupté, homens já iniciados, em particular
membros da classe de idade que desempenhou o papel de danhohui’wa na última
iniciação, que começam o ensaio. O objetivo da participação dos ĩpredupté nesta
ocasião é para mostrar aos atuais danhohui’wa como devem proceder para escolher as
mulheres, da mesma classe de idade, que serão suas companheiras daí por diante nos
236

ensaios, bem como, no dia da cerimônia. Desta forma, antes de iniciarem os ensaios os
danhohui’wa amarram várias folhas de broto de buriti na cabeça, de modo que elas
fiquem pendentes nas costas. Enquanto estão dançando, alternadamente eles deixam o
círculo e saem correndo com o corpo abaixado, de modo semelhante à corrida quando
se espreita uma presa durante as caçadas, e dirigem-se ao grupo de mulheres que estão
assistindo o ensaio. Tomando-a pela mão ele a conduz até a roda de dança e ornamenta-
a com um dos feixes de folhas de broto de buriti que traz sobressalente na cabeça. Após
a demonstração dos ĩpredupté, os atuais danhohui’wa começam o ensaio e aos poucos
vão incorporando no grupo as companheiras de dança. Eles podem escolher quantas
companheiras desejarem. Todavia, em geral não ultrapassa a duas, do contrário alguns
poderiam ficar sem. De mais a mais, para a cerimônia do wanaridobe os danhohui’wa
devem confeccionar os adornos corporais para suas companheiras além de terem que
presenteá-las com carne ao retornarem da grande caçada. Assim, pode ser mais
econômico ao danhohui’wa ter apenas uma companheira. Entretanto, ter mais de uma
companheira é sinal de coragem e virilidade. A partir deste momento a mulheres
escolhidas passam a vivenciar o ciclo de vida danhohui’wa tsipi’õ, madrinhas.
A definição de quem será companheira de quem acontece nos bastidores do
ritual entre os interessados. Neste sentido, cria-se uma grande expectativa na
comunidade aldeã saber quem será companheiro de quem. No dia em que os ĩpredupté,
da classe de idade hötörã, fizeram a demonstração do modo de escolha havia poucas
mulheres tirowa assistindo. Segundo alguns informantes elas estava com vergonha de
serem apresentadas e não compareceram no warã, centro da aldeia, onde a escolha
acontece. Entretanto, no dia seguinte na parte da tarde, após a corrida do noni, ouve
novamente o ensaio e novas escolhas de companheiras aconteceram. Quando os homens
saírem para a grande caçada, serão elas que darão continuidade ao canto do wanaridobe
nas madrugadas e ao entardecer.

3.12 – ENTREGA DO ĨNI E TSIDUPU

A demonstração que os ĩprédu fizeram aos danhohui’wa foi concluída com o dia
ainda claro. Enquanto eles permaneceram no warã ensaiando, furtivamente os ĩpredupté
deixaram o local e dirigiram-se para outro marã, mais próximo da aldeia. Os objetos
rituais ĩni, ou brudu, e tsidupu que estavam sendo confeccionados longe da aldeia foram
237

trazidos para um local mais próximo da aldeia onde recebia os últimos retoques.
Durante o tempo de trabalho no marã mais distante os ĩpredupté avaliaram os dahi’wa
para saber qual deles conseguiria tirar o melhor som da flauta tsidupu. Além de
escolherem os dois melhores sopradores, os ĩpredupté definiram também quem seriam
os entregadores dos objetos. Os escolhidos para entrega dos objetos, que devem
pertencer a clãs diferentes, são pintados no marã com a modalidade daupté com
variante e ornamentos corporais próprios da celebração do wai’a.
O ritual de entrega do ĩni, ou brudu, e tsidupu prossegue com o recolhimento
dos heroi’wa dentro da hö, onde devem ficar trancados. Os dois dahi’wa escolhidos
para ensinar o modo de como se toca o tsidupu são pintados com o motivo tsanapré, no
qual se desenha um retângulo em vermelho no abdômen e nas costas e a panturrilha
pintada de preto. Como no caso daqueles que entregarão o ĩni, ou brudu e tsidupu, estes
dois dahi’wa igualmente usam alguns adornos corporais próprios do wai’a. Segundo
Giaccaria & Heide (1984:169) um dahi’wa deveria ir até a hö e golpeá-la com uma
borduna tipo uibró. Em Nossa Senhora de Guadalupe o dahi’wa escolhido para este fim
foi orientado a jogar um tronco sobre a porta, de madeira, da hö, o que provocou um
forte estrondo. A este sinal os dois pahöri’wa saíram em perseguição ao dahi’wa, que se
dirigiu ao marã. No marã os dois escolhidos para entregar o ĩni, ou brudu, com a
tsidupu, presa no gancho da ponta que fora ornamentada, estavam de pé com as pernas
abertas, buscando melhor apoio. Com uma das mãos seguravam o ĩni, ou brudu, e com
a outra pressionavam os lábio emitindo um som que os informantes disseram-me tratar
da “voz” do morcego98. Este som é mesmo emitido em certas ocasiões quando se
celebra o wai’a. Quando os pahöri’wa chegaram diante daqueles que seguravam o ĩni,
ou brudu, e tsidupu tentaram tomar-lhes os objetos, mas sofreram certa resistência.
Como se estivessem lutando com entidades sobrenaturais os pahöri’wa conseguiram
tomar o ĩni, ou brudu, e tsidupu e saíram correndo com eles até a hö. Eles foram
seguidos pelos dois dahi’wa escolhidos para demonstrar o modo de se tocar o tsidupu.
Na hö o ĩni, ou brudu, foi posto apoiado no esteio principal da casa enquanto tsidupu foi
entregue aos dahi’wa que passaram a soprá-los. Terminada a demonstração os dois
pahöri’wa tentaram, sem muito sucesso no início, extrair algumas notas da flauta. Ao
término das duas performances os ĩpredupté e ĩhire, anciãos, agradeceram segundo o
modo usual para este tipo de ocasiões: hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ - obrigado, obrigado,

98
Este som parece tratar-se da ecolocalização. Os morcegos emitem ondas de ultra-sons que são
recebidas novamente, permitindo identificar obstáculos e presas.
238

obrigado. Depois que aos dois dahi’wa procederam à entrega dos objetos, foram
conduzidos ao warã onde permaneceram toda a noite em volta de uma fogueira.
No dia seguinte pela manhã, depois que o dia clareou, os heroi’wa foram
conduzidos ao wedetede. Ali, usando apenas os calções vermelho, foram guiados pelo
nonimrami’wa até o local de início das corridas. Fizeram uma única bateria onde todos
tomaram parte. Os dois dahi’wa que entregaram os objetos, de clãs opostos também se
dirigiram ao local de início da corrida do noni. Ao sinal do nonimrami’wa iniciaram
entre si uma disputa. Ao grito de incentivo dos que estavam no warã, cruzaram a aldeia
e atingiram o wedetede. Venceu o dahi’wa do clã öwawẽ, cuja performance tornou-se
assunto principal na reunião matutina do warã. A cerimônia de entrega do ĩni, ou brudu,
e tsidupu estava encerrada. Os heroi’wa continuaram a disputar entre eles novas baterias
de corrida do noni. Nestas baterias outros homens começaram a tomar parte. Alguns
com motivações jocosas deixavam para competir quando os heroi’wa menores corriam,
deixando que eles permaneceram à frente até próximo ao wedetede, e depois eram
ultrapassados.
A cerimônia de corrida do noni duraria ainda mais uns quarenta dias. Neste
ínterim, a comunidade aldeã continuou a realizar expedições de coleta de buriti e
preparar outros ornamentos corporais que seriam usados nas cerimônias seguintes. Aqui
encerramos nosso primeiro trabalho de campo de 2005.

3.13 – PAHÖRI’WA MANADÖ E TÉBÉ MANADÖ - A GRANDE


CAÇADA COM FOGO

Ao retornamos para a segunda etapa do trabalho de campo, tratamos de procurar


o cacique e saber dos últimos acontecimentos na aldeia. Segundo ele as viagens que
tinham realizado a Cuiabá, em busca de recursos para aldeia, bem como para verificar o
andamento do processo de construção de casas populares que estava parado. No que diz
respeito às relações com as aldeias vizinhas ele reclamou do sentimento de inveja e
concorrência por parte delas. De acordo com o cacique, as outras aldeias estão contra a
construção do Posto de Saúde em Guadalupe. Além disso, queixou-se da falta de apoio
em suas viagens: não tem recurso para comer, ficar hospedado e pagar o transporte
dentro da cidade. Entre seus planos estava conseguir recursos para puxar eletricidade do
motor gerador, implantado próximo da escola, para a casa de sua filha, a enfermeira e a
239

casa dele própria. Justificou seus planos dizendo que, no caso da enfermeira, os
remédios precisavam ficar na geladeira. A extensão para sua casa seria para fazer o
rádio amador funcionar melhor com a energia do gerador, visto que até o momento era
alimentado por uma placa solar.
Durante o primeiro trabalho de campo, o gerador da escola quebrou por falta de
experiência do encarregado, Er, em fazê-lo funcionar. Após o seu conserto a
comunidade pressionava o operador para ligá-lo durante a noite para que todos
pudessem assistir filmes de artes marciais. Por uns dias houve a apresentação dos
filmes, mas como aquele era único aparelho de televisão da aldeia. Boa parte de seus
moradores para lá se dirigiam a noite. Não demorou muito para os boatos de encontros
amorosos entre os heroi’wa e meninas começarem a circular. Diante disso, o uso do
motor foi proibido durante a noite. Além disso, o estoque de combustível fornecido pela
SEDUC – Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso, destinado à escola para
que o gerador mantivesse o refrigerador em funcionamento para conservar a merenda
escolar, tinha acabado.
A cerimônia do noni ainda estava acontecendo nos dois momentos do dia, pela
manhã e no entardecer. Nas madrugadas e no entardecer os danhohui’wa estavam mais
empenhados nos ensaios do canto do wanaridobe.
Numa das reuniões do marã, onde os homens se reuniam para preparar os
ornamentos corporais usados na cerimônia do noni, bem como para aquelas cerimônias
que ainda estavam por acontecer, foi discutido os preparativos para realização da caçada
pahöri’wa manadö e tébé manadö. A principal questão era quem compraria a munição
que os caçadores usariam. Segundo o cacique, o administrador do NAL, Núcleo de
Apoio Local, havia prometido comprar dez caixas de bala (.22). Entretanto, o cacique
dizia não confiar mais nas promessas daquele administrador. Segundo ele, todas as
vezes que ele fez promessas deixou de cumpri-las. Diante disso foi solicitado que os
pais e parentes dos pahöri’wa e tébé arcassem com a compra da munição, posto que o
pesquisador era considerado pai classificatório de um dos tébé, ele foi convidado a
ajudar os parentes na compra da munição. Não obstante, esta era uma das questões mais
difíceis, não só para o pesquisador, mas também para os próprios Xavante. Nesta época
estávamos em plena campanha nacional pelo desarmamento da população nacional.
Com isso, praticamente todos os comerciantes de Barra do Garças estavam relutantes
em vender munição aos Xavante. Quando procuramos as lojas especializadas no ramo,
240

sempre nos era solicitado o registro da arma a qual se destinava a munição. Obedecendo
estas condições era possível encontrar munição pelo preço x. Entretanto, visto que as
armas que os Xavante usam não são registradas, a saída foi buscar o mercado
alternativo no comércio de munição. As lojas que exigiam o registro de armas para
vender a munição praticavam também um mercado paralelo. Desta forma, uma caixa
com cinqüenta unidades de bala (.22), neste mercado paralelo, passava a custar três
vezes mais do que o preço oficial. Uma alternativa foi buscar, neste mercado paralelo,
um ex-policial que também comercializava munição. Alguns Xavante o conheciam e
entraram em contato com ele. Num determinado ponto da cidade, acompanhamos seu
encontro com um grupo de Xavante. Embora destoante em relação ao mercado, o preço
da munição do ex-policial estava mais acessível, porém a quantidade disponível era
insuficiente. Os Xavante conseguiram comprar apenas duas caixas, somando 100
unidades. Além das munições para espingarda calibre .22, alguns Xavante possuem
armas de calibre maior como as winchester calibre .38, de propriedade do cacique. A
munição para este tipo de arma é vendida em cartelas de dez unidades no mercado
oficial. Diante do problema da falta de registro para este tipo de arma, a solução foi
igualmente recorrer mercado paralelo. O ex-policial fazia o remanufaturamento das
cápsulas já deflagradas das balas calibre 38. O preço deste tipo de munição saía pela
metade do preço do mercado oficial. Foram compradas cerca de quinze balas daquele
calibre.
Além da munição a comunidade aguardava a liberação de mantimentos que
seriam usados como rancho durante o tempo em que durasse a caçada. Acompanhamos
um grupo de homens à Barra do Garças onde o administrador do Núcleo de Apoio
Local de General Carneiro – NAL, havia comprado a alimentação que seria levada na
caçada. Como veremos adiante, antes do início da caçada os caçadores são divididos em
quatro grupos. Na cidade o mantimento adquirido foi levado ao local de chegada e
partida do caminhão onde fora dividido. Cada um dos quatro grupos recebeu 01 saco de
farinha com 60 kg; 30 kg de sal; 90 kg de arroz; meio saco de cebola; 24 latas de óleo
de soja e um pedaço de 25 cm de fumo. Por ser início de mês e época de pagamento dos
professores e de aposentados, neste dia o caminhão tinha viajado para Barra do Garças
com capacidade acima do limite. Na hora do retorno constatou-se que não caberia no
caminhão todas as pessoas com suas mercadorias. Diante disso, foi decidido que ele
241

faria duas viagens. O pesquisador ficou para trás e seguiria na segunda viagem. Pelo
tempo previsto de ida e volta, o caminhão retornaria às 23:00hs
Ficar na cidade para seguir na próxima viagem nos permitiu observar como os
Xavante agem no contexto urbano, no período da noite, após terem cumprido seus
objetivos principais, normalmente relacionados ao recebimento de salários e pensões do
INSS e posteriormente a aquisição de alimentos nos supermercados. Desta forma,
ficamos com o grupo no local conhecido como Restaurante do Mauro. Este restaurante
fornece refeições na modalidade PF – prato feito. Ali a maioria dos que estavam
esperando o retorno do caminhão aproveitaram para jantar. Outro grupo ficou
conversando numa das praças públicas não muito distante dali, mas estratégica visto que
o caminhão passava sempre por ali. Alguns Xavante após o jantar se reuniram num bar
na frente do restaurante onde permaneceram jogando sinuca. Tudo estava tranqüilo até o
momento em que um dos jovens que desempenhava o papel de dahi’wa no processo
ritual apareceu bêbado e começou a insultar sua mulher. Quando os insultos tenderam
para a agressão física houve a intervenção de seus companheiros de classe de idade que
procuravam, em vão, retirá-lo do local. Passado o momento de maior tensão o rapaz
bêbado sentou-se ao lado do sogro que tinha acompanhado a tudo sem intervir. Segundo
os informantes, o dahi’wa começou a insultar o sogro dizendo que ele estava
espalhando fofocas pela aldeia de que ele bebia demais e agredia a mulher, e se defendia
dizendo que tudo era mentira. A sogra que estava ao lado, vivendo em estado de luto
pela morte da mãe ocorrida a poucos dias, começou a chorar e o clima ficou
extremamente delicado no local. Neste ínterim outros colegas seus chegavam e, com a
voz extremamente baixa, procuravam dar conselhos sobre o consumo de bebida. Depois
que o dahi’wa ficou mais calmo o sogro tomou a palavra e, falando pausadamente, disse
ter perdido a paciência. Sendo aquela a terceira vez que o dahi’wa bebia e batia em sua
filha ele não o queria mais como genro. Ele deveria chegar à aldeia pegar seus filhos e
deixar sua casa, pois não o queria mais casado com sua filha. Um dos informantes nos
disse que o sogro amava seu genro e por isso tinha lhe dado a segunda filha como
esposa. No entanto, diante do problema da bebedeira do genro ele as estava “tomando”
dele. Neste momento chegou a viatura da saúde que viera trazer doentes e estava
retornando à aldeia. Pediram então que a viatura levasse a sogra, que ainda chorava
diante dos fatos.
242

A viatura retornou para aldeia e o restante do grupo ficou aguardando o


caminhão. Quanto ao dahi’wa bêbado, este ficou perambulado pela rua até cair de sono
na calçada do Restaurante do Mauro. À medida que a noite avançava muitos foram se
acomodando pela calçada improvisando camas de papelão e usando lonas pretas como
cobertores. O pesquisador lançou mão de uma capa de chuva para proteger-se do frio
que chegava à madrugada e nada do caminhão aparecer. O dia surgiu e literalmente
amanhecemos na rua. Juntamente com um grupo de Xavante fomos tomar café numa
padaria da cidade e ali tomamos conhecimento dos problemas mecânicos que o
caminhão tivera na viagem para a aldeia. Ao retornar à cidade, acabou o combustível
acerca de 20 quilômetros do destino. Depois de pegarem carona e regressarem com uma
quantidade de combustível suficiente para completar a viagem até a cidade surgiu mais
um problema mecânico. Quando acabou o combustível houve entrada de ar no motor.
Depois de reabastecerem durante a manobra para retirar o ar, a bombinha que faz esta
função quebrou. O jeito foi esperar o comércio na cidade abrir e comprar outra peça.
Finalmente o caminhão chegou à cidade. Não obstante, uma nova seqüência de
problemas obrigou o motorista a levar o caminhão numa oficina. Ali outra questão a ser
superada: quem pagaria o conserto? Houve uma tentativa de negociação com o dono da
oficina, segundo a qual os Xavante assinariam uma nota de empenho que seria
encaminhada à FUNAI ou ao NAL. Tal proposta foi recusada pelo dono da oficina
alegando que já havia muitas notas assinadas e não tinham sido pagas. Ao tomarem
conhecimento da presença do administrador do NAL na cidade, um grupo de Xavante
saiu a sua procura para pressioná-lo a ajudar a pagar a oficina. O resultado foi a
liberação de cem reais de sua parte e os Xavante fizeram uma vaquinha para pagar o
restante.
Com o caminhão consertado seguimos viagem de retorno no final da tarde. Ao
regressarmos mais dois conflitos marcaram a viagem. O primeiro deles se deu com base
numa acusação de roubo de um gravador portátil. Uma pi’õ ĩhire, mulher idosa, fazendo
mimos ao neto havia lhe comprado este aparelho. Durante a viagem até General
Carneiro, o menino havia dormido. Em meio a tanta gente que lotava o caminhão e o
grande volume de mercadorias adquiridas na cidade o gravador do neto desapareceu.
Furiosa a pi’õ ĩhire fez com que todos abrissem suas mochilas para que fossem
inspecionadas. O gravador não foi encontrado. No segundo caso, o caminhão chegou ao
centro da aldeia onde as pessoas começaram a descer suas compras. Neste momento
243

uma das moças pegou um pacote de arroz de outro grupo doméstico. Ao ser solicitada
para que devolvesse o arroz, ela ofereceu um arroz de menor qualidade, e foi recusado.
A dona do arroz usurpado tentou recuperar seu pacote a força. A resistência da outra
parte fez que com o pacote de arroz rasgasse e seu conteúdo espalhasse pelo chão. Com
isso as duas entraram em luta corporal, onde a usurpadora levava a pior até a entrada de
suas irmãs na luta. Do outro lado a mãe da moça também entrou no confronto. Por fim,
a turma do deixa disso entrou em ação e o confronto foi suspenso e todos seguiram para
suas casas.
Conflitos como os apresentados acima raramente são tratados no warã ou
levados ao cacique para que este atue como árbitro entre as partes. No entanto, quando é
ali tratado é colocado dentro das situações consideradas jocosas do dia-a-dia. Não
obstante, a pressão exercida sobre o administrador do NAL, isto sim foi motivo de
assunto na assembléia. Questões referentes ao descontentamento da comunidade em
relação às tomadas de decisões do chefe são contestadas quando este está presente. No
entanto, os planos de algumas famílias de deixarem a aldeia após o processo de
iniciação são discutidos fora do warã. Estas questões são tratadas nos bastidores da vida
cotidiana da aldeia, através de articulações sobre os prováveis acompanhantes de um
grupo doméstico caso ele realmente venha a deixar a aldeia. Na noite em que ficamos
aguardando o retorno do caminhão conversamos com alguns informantes que nos disse
serem muitos os que deixariam a aldeia depois da festa.
Na véspera da saída para a caçada pahöri’wa manadö e tébé manadö os
heroi’wa saíram novamente pela madrugada para buscarem folhas de buriti para
confeccionar outro noni. No entanto, um dos tébé não acompanhou o grupo de
heroi’wa. Quando perguntamos ao seu pai as razões pelas quais ele não tinha
acompanhado seu grupo, ele respondeu que estava com muita raiva do filho porque este
não o obedecia e ignorava seus conselhos. O pai do tébé evitava entrar em confronto
direto com o filho com medo de lhe provocar algum dano sério à sua saúde, haja vista
que todos os demais filhos homens que ele tivera haviam morrido. De mais a mais, o
tébé deveria dormir na hö. Entretanto, desde a furação de orelhas ele vinha dormindo
em casa. Segundo a explicação do pai, sua saúde era muito frágil. Este informante nos
revelou que tivera mais seis filhos e todos morreram. Entre as causas das mortes estava
a desnutrição e abortos, visto que a mulher era portadora de diabetes e não conseguia
manter as gestações.
244

Finalmente chegou o dia em que saímos para a temporada da grande caçada.


Para esta ocasião os dois pahöri’wa estavam pintados e amarraram as flautas tsidupu
nas costas, na altura das omoplatas. Enquanto os caçadores carregavam seus apetrechos
para a carroceria do caminhão surgiu o primeiro impasse: quem seria o motorista que os
levaria até o local da caçada? Um dos motoristas estava com leishmaniose, doença
também conhecida como calazar ou úlcera de Bauru, no pé e não conseguia dirigir;
outro motorista havia decidido ir à Barra do Garças e recusava-se a mudar de idéia. No
warã foi decidido que o motorista chamado Zef levaria os caçadores. No entanto,
quando comunicaram a decisão ao cacique este dizia não confiar neste motorista e tinha
medo de acidentes, apesar da comunidade o considerar o motorista muito experiente. A
decisão do cacique tomou acabou provocando mais descontentamento dos caçadores em
relação ao chefe. Ele resolveu colocar seu filho, J.A., como motorista do caminhão.
Segundo Luiz, o filho do cacique havia começado a dirigir o caminhão fazia menos de
um mês, e não tinha nenhuma experiência. Para este informante o cacique estava
pensando no futuro, numa possível contratação do filho como motorista da aldeia. Esta
suspeita era fundamentada no fato dele ter indicado, a contragosto da comunidade, o
neto e o genro como motoristas da viatura da saúde. Outra solução apontada foi a
indicação do pesquisador como motorista do caminhão, ao lembraram-se de quando ele
trabalhava na Missão Salesiana e também dirigia este tipo de veículo. No entanto, antes
mesmo que houvesse uma recusa formal, outro filho do cacique já tinha se levantado em
protesto contra tal idéia. Prevaleceu a vontade do cacique e seu filho ficou como
motorista.
A postura do cacique mais uma vez indicava o caminho de um suicídio político.
Novamente um dos informantes nos contou sobre seus planos de fundar outra aldeia, na
qual sua irmã seria a cacique. Ainda segundo os informantes outro grupo doméstico
estava disposto a deixar a aldeia depois da festa e fundar igualmente sua aldeia e para
isso já tinham até definido quem seria seu cacique. Procuramos investigar porque o
cacique recusou Zef como motorista, apesar de sua competência reconhecida pela
comunidade aldeã e também pelo pesquisador, que já o tinha visto dirigir. Segundo um
informante Zef tinha se mudado, no ano anterior, da aldeia Nossa Senhora de Fátima
para Guadalupe. Já dissemos que esta surgiu de uma dissidência de Nossa Senhora de
Guadalupe. O cacique de Guadalupe nunca aceitou esta dissidência, daí o real motivo
em recusar o motorista Zef.
245

Não havendo outra opção senão aceitar o motorista imposto pelo cacique, o
caminhão partiu levando a primeira turma de caçadores, os pahöri’wa e vários ĩhire,
anciãos. Por volta de três da tarde o caminhão retornou. Nesta segunda viajem, na qual
tomamos parte, seguiram outros caçadores, mais alguns heroi’wa, os dois tébé e seus
suprimentos. Realmente a comunidade tinha razão sobre a inexperiência do motorista
escolhido. Levamos cerca de três horas para chegar ao local escolhido para ser o
acampamento, percorrendo aproximadamente setenta quilômetros.
O local escolhido para ser explorado durante as caçada estava localizado dentro
da Terra Indígena dos Bororo. O acampamento foi montado num lugar que os Xavante
já tinham usado em outras caçadas e no passado tinha sido sede de uma antiga fazenda.
Próximo passava um córrego conhecido pelos Xavante e Bororo como Barigajal.
Quando chegamos ao ponto de destino, após percorrer uma estrada abandonada dentro
da Terra Indígena Bororo, o acampamento já havia sido limpo pelos heroi’wa e
caçadores da primeira viagem. Ali já estava reservado um local onde ficaríamos
juntamente com o grupo de um dos tébé. Após descarregar nosso tsi’õno, cesto xavante,
saímos a procurar folhas de buriti que nos serviriam de colchão durante a noite, e uma
forquilha para manter a tralha suspensa. Quando anoiteceu os heroi’wa preparam a
janta: arroz e mandioca. Após a janta eles se reuniram no centro do acampamento onde
ensaiaram um canto para depois executá-lo em quatro pontos diferentes.
Um novo ritual, até então não previsto na tradição Xavante, após o canto da
tradição os heroi’wa se reuniram novamente no centro do acampamento para entoarem
outro canto, em Xavante, de consagração a Nossa Senhora e logo em seguida
executaram a récita do terço católico. Após o terço o motorista que fora defenestrado
pelo cacique fez a boa noite99. Depois do boa noite aos pouco todos foram se ajeitando
para dormir. Na madrugada alguns ĩhire, anciãos, costumavam fazer longos discursos
direcionados aos heroi’wa, procurando encorajá-los e pedindo seu empenho nas
atividades que iriam desempenhar. Num destes discursos um dos ĩhire reclamava dos
heroi’wa que não estavam correndo, como deveriam, atrás dos queixadas. Situação
oposta de sua juventude. O cacique em alguns momentos se punha a falar, mas era
praticamente ignorado pelos caçadores.
A primeira noite no acampamento foi difícil para dormir não só para o
pesquisador, mas também para os Xavante. O clima no cerrado nos meses de junho a

99
A prática da boa noite é uma herança da tradição salesiana aplicada nos seminários e
internatos e consiste em dirigir palavras de incentivo a boa conduta e atenção as regras de disciplina.
246

novembro é semelhante ao de deserto, ou seja, muito calor durante o dia e frio a noite.
Por estarmos acampado próximo ao riacho a temperatura caía um pouco mais. Assim, à
medida que a noite avançava, com a temperatura em queda livre, o saco de dormir qua
havíamos levado já não era mais suficiente e o jeito foi buscar um casaco para nos
aquecer. Durante a madrugada com alguns Xavante tentaram reacender a fogueira para
igualmente se aquecer. Antes de o sol nascer os heroi’wa voltaram a entoar o canto.
Pela manhã alguns heroi’wa ainda dormiam enquanto outros estavam empenhados a
prepararem o café da manhã: arroz cozido e farinha. Novamente houve um canto em
homenagem a Nossa Senhora seguido de uma oração. Os homens se reuniram no warã
do acampamento de caça onde discutiam que direção tomariam no primeiro dia de
caçada. De mais a mais, estavam retardando a saída esperando que o sol secasse a
vegetação do forte sereno que havia caído durante a noite.
A finalidade da caçada pahöri’wa manadö e tébé manadö é obter a maior
quantidade possível de carne de caça a ser usada nas cerimônias do tébé e do pahöri’wa.
Para isso o acampamento e os caçadores são divididos em quatro grupos, sendo: um
para o primeiro tébé e outro para o segundo tébé; um para o primeiro pahöri’wa e outro
para o segundo pahöri’wa. A filiação a estes grupos seguem em primeiro plano as
relações de parentesco. Neste caso, o acampamento é pensado a partir dos clãs, onde os
acampamentos dos dois tébé seriam compostos por membros do clã öwawẽ, enquanto
aqueles dos pahöri’wa teriam os membros do clã po’redza’õno. Antigos atores rituais
que desempenharam os papéis de tébé ou pahöri’wa deveriam igualmente ajudar os
acampamentos daqueles. Considerando os danhohui’wa, membros da classe de idade
tirowa, estes teriam que seguir de forma mais rígida a distribuição nos acampamentos
mediante a filiação clânica. No entanto, para garantir um equilíbrio entre os grupos
alguns caçadores podem ser deslocados para outros grupos. De mais a mais, é possível
que um caçador tenha certa predileção por um grupo que não seja de seus parentes. Isto
pode ser motivado por descontentamentos entre os membros do próprio grupo, como
veremos adiante.
Com sol alto os caçadores decidiram sair para caçar. Não obstante, realizaram
antes um ritual propiciatório para garantir uma caçada farta. Neste ritual os homens se
colocam em círculo no centro do acampamento, e segurando com as duas mãos as
armas – espingardas, arco e flechas ou um pedaço madeira, a frente do corpo levemente
inclinado e cabeça baixa, com a perna esquerda servindo de apoio iniciam um canto
247

cujo ritmo é marcado com a perna direita. Segundo Luiz, nosso principal informante, o
canto pede que o Bom Espírito segure firme a caça para o caçador. Ao término do canto
dois tições foram dados a dois caçadores que saíram em direções opostas, acompanhado
de outros, para pôr fogo no cerrado. Dias antes de partirmos para caçada conversamos
com Dário, outro informante, o mesmo nos disse que os caçadores que recebem o fogo
pertencem a clãs opostos. Ainda segundo Dário, no passado os dois caçadores
procuravam incendiar um grande círculo de cerrado e encontravam-se no local onde o
mesmo se fechava. Ali havia a troca de arcos entre os caçadores. Em 2005, os dois
caçadores que receberam os tições de fogo e foram igualmente seguidos por outros
tomando direções opostas. Todos carregavam consigo isqueiros ou caixas de fósforo e
na medida em que adentravam no cerrada colocavam fogo na vegetação procurando
formar o círculo observando a direção do vento. Entretanto, vez ou outra, o vento
mudava de direção e o ideal de se formar um grande círculo de fogo, para cercar os
animais que porventura estivesse por ali, se desfazia. Quando isto acontece prevalece o
perigo de o caçador ser surpreendido pelo fogo. Soubemos de casos em outras aldeias
onde alguns caçadores se acidentaram com a mudança do vento e não conseguiram fugir
a tempo das chamas.
As práticas de caçadas dos Xavante difere daquela praticada pelos Awá, como
constatamos na oportunidade que tivemos de acompanhar uma de suas caçadas em uma
visita de campo a este grupo indígena100. Os caçadores que acompanhamos adentraram
na mata fechada e seguiram por trilhas conhecidas por eles. A diferença de vegetação,
cerrado para os Xavante e mata pré amazônica para os Awá, revela igualmente táticas
distintas para abater certos tipos de caça. Enquanto os Xavante optam por queimar o
cerrado procurando formar um círculo de fogo para caçar porcos do mato, os Awá por
sua vez procuram descobrir a batida do bicho. No dia em que acompanhamos a caçada
dos Awá eles não abateram nenhum animal. Entretanto, encontraram a batida do bicho
e retornaram no dia seguinte com sucesso, abatendo três porcos do mato. O’Dwyer
(2001) descreve em seu laudo que o local de preferência para o acampamento de caça-
coleta dos Awá são os cocais de babaçu, a partir dos quais percorrem o harakwá, isto é
seus territórios de caça e coleta. Nos cocais de babaçu, segundo O’Dwyer, ocorrem
também encontros de patri-grupos, e nesta ocasião dá-se a troca de mulheres e o
100
O trabalho de campo foi realizado no âmbito do projeto de pesquisa Arqueología y
etnoarqueología de los Awá-Guajá (Maranhão, Brasil), como assistente de pesquisa de Eliane Cantarino
O'Dwyer (PPGA-UFF), integrante da equipe coordenada por Almudena Hernando (Universidad
Complutense-UCMADRI).
248

estabelecimento de relações de alianças. Se os Xavante fossem considerados como povo


dos buritizais, dado ao uso que fazem dessa palmeira em seus rituais, os Awá seriam
então o povo dos babaçuais, haja vista que é neste espaço ecológico que se encontram e
se reproduzem enquanto sociedade, excluídos os determinismos de toda ordem.
Os cantos executados antes da partida para uma nova caçada não são iguais aos
anteriores. Segundo os informantes, quando um canto sonhado é executado e resulta em
abundância de caça, o mesmo poderá ser repetido no dia seguinte. Do contrário, troca-se
o canto e a pessoa que o executou. Apontaram-nos duas situações para ilustrar o fato.
No primeiro dia o caçador Bru, já ĩhire, ancião, puxou o canto por dois dias seguidos. O
resultado de seu canto foram apenas porcos queixadas e tamanduás bandeira. Foi
decidido que o caçador Tob, também ĩhire, puxaria outro canto. Desta vez o resultado
foi diferente, abateram duas antas e alguns queixadas. Gravamos vários destes cantos. A
melodia é sempre a mesma e mudam-se algumas entonações.
No primeiro dia de caçada acompanhamos os caçadores até por volta de uma
hora da tarde. Separado do grupo andamos ainda até as três da tarde, quando voltamos
ao acampamento a tempo de assistir o retorno de outros caçadores. Quando chegamos já
haviam trazido dois tamanduás bandeira. Os heroi’wa que permaneceram no
acampamento tomaram os dois animais e os colocaram sobre uma fogueira para que o
pêlo fosse queimado. Após este momento, um dos ĩprédu, homem já iniciado, começou
a esquartejar o bandeira, como dizem os Xavante, cujas partes foram postas num jirau
para serem moqueadas. Outros caçadores retornaram trazendo queixadas, que passaram
pelo processo de queima dos pêlos, esquartejamento e foram colocados as peças no
jirau. Outros caçadores disseram ter encontrado um bando de queixadas, mas com pouca
munição não puderam abater a caça. A falta de munição era o grande problema que os
caçadores enfrentavam neste momento. A noite chegou e novamente os heroi’wa
ensaiaram e executaram os cantos na frente dos quatro jiraus, que haviam sido erguidos,
para os quatro grupos de caçadores. Após o canto houve a reza do terço e o boa noite
proferido por Zef. Nesta hora a noite já estava muito fria. No entanto, os heroi’wa
executaram seus cantos vestindo apenas o calção vermelho e os colares de algodão
danho’rebdzu’a.
Observamos que a vida no acampamento de caça constitui para os heroi’wa um
momento de aprendizagem. Quando as presas são trazidas inteiras para este local são
eles que se encarregam de queimar os pêlos e depois assistem ao ĩprédu, homem adulto
249

já iniciado, esquartejá-la. Além disso, eles devem coletar lenha nos arredores para
manter o fogo acesso embaixo do jirau durante toda a noite para que a carne fique bem
moqueada. São eles também os encarregados de trocar, sempre que necessário, as vigas
de madeira verde que serve de estrado no jirau. De mais a mais, preparam ainda o arroz,
base alimentar na caçada e no cotidiano da aldeia, que é servido sempre que um caçador
retorna ao acampamento e depois no jantar e café da manhã.
Não são todas as partes das presas que vão para o jirau. As vísceras e costelas de
certos animais são consumidas no acampamento ou dadas a pessoas que tem funções
especiais, como veremos adiante, durante o tempo de caçada. Quando se abate uma
anta, por exemplo, por ser um animal de grande porte, é dividida e as peças pré-
moqueadas no próprio local. Nesta situação, algumas vísceras são consumidas ali
mesmo pelos caçadores que ajudam no processo.
O segundo dia de caçada não resultou no esperado. No final da tarde chegaram
mais quatro caçadores que foram incorporados nos grupos. Durante a noite um heroi’wa
do grupo onde estávamos, pertencente ao segundo tébé, ofereceu um prato de comida
para um dos caçadores do grupo do segundo pahöri’wa. Tal atitude foi reprovada pelo
pai do segundo tébé, que disse que isso não poderia acontecer, uma vez que o grupo dos
tébé só podem ajudar membros destes grupos. Entretanto, dias depois observei o mesmo
indo até o jirau do segundo pahöri’wa e retornar com um pedaço de tatu. Questionado
sobre o fato admitiu que a regra não era absoluta. Presenciamos outras situações onde a
quebra de regra era constante. Numa delas, o problema da falta de munição entre os
caçadores era superado com a doação e empréstimo entre os grupos.
À noite, do segundo dia de caçada, não houve récita do terço católico, mas uma
oração depois do tradicional canto dos heroi’wa. O boa noite foi dado por um dos ĩhire,
anciãos. Com a ajuda de um tradutor tivemos acesso ao conteúdo deste boa noite. De
acordo com o tradutor o assunto tratado pelo ĩhire foi o poder de Deus e a pequenez do
homem. Teria pedido também que Deus oferecesse boa caçada no próximo dia. A
prática do boa noite adotada regularmente pelos Xavante parece estar muito próxima do
papel dos danhohui’wa, que devem igualmente dar bons conselhos aos moradores da
casa dos solteiros. Não só os danhohui’wa exerciam o costume de dar conselhos aos
hö’wa. Outros membros, sobretudo os ĩhire, da mesma metade cerimonial poderiam
fazê-lo. O exercício do boa noite, nos moldes salesiano, parece cumprir tal objetivo,
mas com o elemento religioso integrado, e se torna um exercício pedagógico.
250

Pressionado pelos caçadores, que já estavam sem munição, o cacique solicitou


nossa ajuda para fazer um documento ao Administrador do NAL, onde solicitava:
combustível, munição, pneu, refrigerantes ou suco e peças para o caminhão. Depois que
redigimos o documento Luc, um dos professores, que tinha boa caligrafia, o transcreveu
para outra folha. O cacique assinou e entregou a Ambr, motorista da viatura da saúde
que fora levar alguns caçadores e trazer notícias da aldeia. A viatura retornou no final da
tarde com a promessa do Administrador do Núcleo de que o pedido seria atendido no
dia seguinte.
Os caçadores resolveram voltar a caçar no local onde iniciaram a caçada.
Explicaram-me que já fazia alguns dias que haviam queimado o local e nas cabeceiras o
capim novo começava a brotar. Isso atrairia os veados, além de suspeitarem que uma
vara de porcos estivesse circulando pelo local. Aqui foi interessante porque descobrimos
dois atores sociais com funções importantes durante a caçada: a do waptsãi’a,
literalmente cachorro branco, batedor, e a do dautsimri’wa. O waptsãi’a, cachorro
branco, é um batedor que ao achar o rastro de uma vara de queixadas sai correndo
tentando localizar os porcos e emite constantemente gritos dizendo que está na trilha da
presa. O que nos impressionou neste personagem (Tob), que já era considerado ĩhire,
foi seu vigor físico e disposição ao ponto de muitos caçadores, inclusive o pesquisador,
terem desistido de acompanhá-lo. Noutro dia de caçada, onde para chegar ao local
previamente discutido no centro do acampamento era necessário o uso do caminhão,
este ĩhire avistou da carroceria rastos de animais que haviam cruzado a estrada. Logo
que o caminhão parou, ele desceu e ao analisar as pegadas pôs-se a gritar: uhö uptabi,
uhö uptabi, uhö uptabi – queixada mesmo, queixada mesmo, queixada mesmo. Um
frenesi tomou conta dos caçadores levando-os a mudarem os planos de caçar no lugar
pré-definido no acampamento.
Nem todos os caçadores dispunham de armas de fogo ou de arco e flechas para
acompanhar a caçada. No entanto, estes caçadores saiam com o grupo apenas com um
pedaço de madeira. Eles assumiam a segunda função que mencionamos acima: a de
dautsimri’wa. Esta categoria pode ser traduzida, segundo os informantes, como
mendigo da carne. São homens que acompanham os caçadores, de clã oposto ao seu,
para ajudá-los a carregar as presas abatidas. Como recompensas recebem as tripas, o
bucho, pequenos animais e fetos, ou seja, aquilo que não irá para o jirau. No
251

acampamento eles trabalham esquartejando e dispondo as partes principais para


moquear.
A prática da caçada segue uma relação direta com o mundo sobrenatural, que os
Xavante muito raramente comentam. Tivemos acesso a algumas informações que
mostram esta conexão. Já relatamos este fato anteriormente, mas o retomaremos. Certo
dia, quando retornamos mais cedo ao acampamento ficamos observando os caçadores
chegarem com as presas. Um grupo de caçadores tinha abatido uma anta que estava
prenha, com gestação em processo evoluído. O feto, do sexo macho, foi entregue para
um grupo de danhohui’wa. Muitos deles tomavam o feto e o seguravam de modo
semelhante quando se segura um bebê. Após o feto ter circulado pelo acampamento de
braço em braço, ele chegou ao pesquisador que foi estimulado a segurá-lo da mesma
forma. Segundo os informantes, esta prática ajudaria os homens que seguravam o feto a
terem um aibö, ou seja, um filho homem. Num clima de jocosidade, insistiram que o
pesquisador segurasse por mais tempo, pois sabiam que ele tinha apenas uma pi’õ, uma
filha. O fato é que depois que encerramos o trabalho de campo, e retornamos dois anos
depois na aldeia Guadalupe, muitos dos que haviam segurado o feto tinham tido filhos
de sexo masculino. Noutra ocasião, o caçador Sand abateu uma anta e pôs-se a gritar
pelos demais caçadores que estivessem por perto para ajudarem a repartir o animal. O
pesquisador foi um dos primeiros a chegar ao local. Ali observamos que Sand mantinha-
se distante do animal que fora abatido. Outros caçadores chegaram e começaram a
juntar lenha para pré-moquear a anta, enquanto outros forravam o chão com folhas de
palmeira. Logo o animal começou a ser esquartejado segundo o modo Xavante:
posicionando-se o animal de pernas para cima, primeiro corta-se a barriga como um
retângulo; em seguida retiram-se as vísceras e tripas; depois a pele e separada do peito
na direção das costas para que seja possível extrair as paletas; as costelas são retiradas a
partir da espinha dorsal de modo que permaneçam presas no peito; a espinha dorsal,
afastada da pele e separada do pescoço, é dividida em várias partes; o pescoço é
mantido preso à cabeça. Na medida em que o animal está sendo partido, outros
caçadores ascendem uma fogueira para pré-moquear as peças. Neste ínterim, se houve
caçadores disponíveis estes se põem a preparar pequenos cestos que serão usados para o
transporte das partes do animal. Ao término do corte do animal retira-se o conteúdo das
tripas e bucho, que não são moqueados, mas colocados em cestos. Entretanto, o caçador
Sand assistia a tudo e mantinha-se distante. Ocorre que o mesmo estava proibido de
252

tocar o animal, mesmo sendo ele que o tivera abatido. Segundo o próprio caçador, ele
havia se tornado pai há poucos dias. Com isso qualquer ação sua sobre o corpo do
animal repercutiria sobre o corpo do recém-nascido. Caso ele tocasse a cabeça da anta a
criança morreria. Um toque no nariz levaria ao congestionamento da criança podendo
levá-la também a morte. No momento em que os outros caçadores começaram a comer
algumas vísceras, ele se retirou do lugar. Tinha medo que houvesse problemas com os
rins e fígado do recém nascido.
Ao retornarmos de outro dia de caçada observamos que logo após o canto dos
heroi’wa, os danhohui’wa começaram a colocar alguns troncos de forma circular no
centro do acompanhando. Ali, apesar da demora, foram aos poucos se reunindo e
começaram a ensaiar um canto. Notamos que Luiz, estava inquieto em relação ao canto
que esta sendo ensaiado. Ao questionarmos o que estava acontecendo o mesmo nos
relatou que o cacique tinha convocado os danhohui’wa, classe de idade tirowa a ensaiar
um canto que não deveria ser feito ali no acampamento. De acordo com o informante, o
chefe esta agindo desta forma para demonstrar sua autoridade. No entanto, ele só estava
fazendo isso porque contava ainda com o apoio de outros ĩhire, que estavam no
acampamento. Enquanto alguns tirowa ainda se posicionavam e preparavam o lugar
para o ensaio, um deles veio até Luiz e ficaram por um tempo conversando. Embora não
entendesse o que falavam era perceptível que se tratava de uma conversa séria, diante da
formalidade própria dos Xavante usada quando se trata de questões importantes.
Terminada a conversa entre os dois, perguntamos sobre o que falavam. De acordo com
Luiz o chefe havia cometido alguns erros que estava gerando descontentamento entre os
tirowa. O primeiro erro estava relacionado a autoridade ritual, que o chefe não teria,
para convocar os tirowa a ensaiarem o canto e só o estava fazendo por ter o apoio de
alguns ĩhire. O outro erro estava relacionado ao local destinado para o ensaio do canto.
Antes de explicar estes erros convêm falar um pouco mais do canto.
Este canto, chamado wai’a’rãpó, deve ser mantido em segredo, principalmente
dos heroi’wa, até sua execução pública. A primeira apresentação pública, ainda que de
forma velada, acontece após a cerimônia do pahöri’wa,durante a dança das capas na
frente do wedetede, quando os ĩprédu e ĩhire o executam de forma extremamente
baixa. No dia seguinte, durante a madrugada acontece o canto wanaridobe e logo após a
cerimônia de retirada das capas wamnhorõ. Enquanto os danhohui’wa, padrinhos, que
promoveram a retirada das capas estão reunidos no centro, os dahi’wa, ou seja,
253

membros da última classe iniciada os ẽtepa


˜ , juntamente com os heroi’wa, os iniciandos,
acompanhados das meninas que igualmente farão parte da nova classe de idade que está
sendo iniciada, se reúnem próximo ao wedetede onde um ĩprédu, homem já iniciado,
apresentam oficialmente em público o canto. Até a chegada deste momento os dahi’wa
e heroi’wa não poderiam ouvir o canto.
De acordo com o protocolo ritual, o ensaio do canto wai’a’rãpó acontece por
ocasião desta caçada. No entanto, quando isto ocorre é feito a uma distância
considerável do acampamento de caça de modo que o mesmo não possa ser ouvido. Em
1997, quando participamos desta mesma modalidade de caçada, a classe de idade na
qual estamos inseridos, os hötörã, desempenhava o papel de danhohui’wa, padrinhos,
dos ẽtepa
˜ , classe de idade que estava sendo iniciada através do danhono. Naquela
ocasião todas as noites, quando os caçadores retornavam do acampamento, após a janta,
a classe de idade hötörã saia com o caminhão para um local distante do acampamento
para ensaiar o canto wai’a’rãpó. Isto se fazia necessário pelo fato de que no
acampamento havia um grande número de jovens do grupo ẽtepa
˜ , que estavam sendo
iniciados, e de tirowa – que naquela época eram os dahi’wa.
Ao retornar da caçada, quando os homens estão confeccionando as capas
wamnhorõ no marã, sombra, acontecem outros ensaios do canto wai’a’rãpó. Aqui o
canto, que até então era segredo para os dahi’wa é revelado a eles.
A configuração do acampamento da caçada imanadö em 2005 não era muito
diferente daquela de 1997, somente os locais de caça eram distintos. Ali havia meninos
que estavam sendo iniciados, padrinhos e os fiscalizadores da conduta dos iniciados. O
que muda em relação a 1997 é a posição dos grupos que assumem os papéis de
iniciados, padrinhos e fiscais dos iniciandos. Neste sentido, os ẽtepa
˜ que eram
iniciandos em 1997 agora são dahi’wa, enquanto que os tirowa deixaram de ser dahi’wa
para serem, em 2005, danhohui’wa dos abare’u, grupo que estava sendo iniciado.
Quando o chefe convoca os tirowa a ensaiarem o canto wai’a’rãpó no centro do
acampamento de caça, sem autoridade ritual para tanto, ele interfere num processo ritual
que possui uma dinâmica própria. No momento o chefe procura reafirmar sua
autoridade, e de fato consegue pois o ensaio acontece. Contudo, ele perde capital
político visto que o fato abre descontentamentos e frustra atores sociais envolvidos no
processo ritual.
254

Ao término da conversa que ocorrera entre o informante e o dahi’wa, soubemos


que este último planejava, no retorno da caçada à aldeia, contar tudo aos demais
companheiros que não estavam no acampamento. As notícias e fofocas circulam com
muita rapidez entre os Xavante. Assim é provável que a ingerência do chefe no
andamento do ritual chegasse à aldeia antes mesmo que o dahi’wa descontente. Em
curto prazo esta ingerência aparentemente não traria desconforto político ao chefe.
Entretanto, a soma de fatos isolados compromete sua ação política e pode levá-lo a
perder aliados na aldeia. Antes que o danhono estivesse concluído corria boatos que
algumas famílias estavam esperando o término das festas para deixar a aldeia N. S. de
Guadalupe para fundarem outras aldeias, assim se desligando da autoridade desse chefe.
O fato nos mostra que a relação entre o sistema de classes de idade e o sistema
político Xavante não se dá de modo excludente. A ação do chefe em procurar firmar
uma autoridade política interferindo no processo ritual também nos mostra que o
interesse de um homem Xavante por sua classe de idade não diminui à medida que ele
se torna adulto, como sugere Maybury-Lewis (1984:366). No entanto, quando nosso
informante diz que o chefe está querendo demonstrar autoridade ele está se referindo ao
plano político. Aqui temos que fazer uma distinção entre autoridade política e
autoridade ritual. A primeira é decorrente do reconhecimento da hegemonia de uma
facção sobre as demais. Esta hegemonia torna-se aparente quando o cabeça da facção é
reconhecido como chefe pela comunidade aldeã. A autoridade ritual depende da
situação ritual em contexto. No caso do processo ritual do danhono esta autoridade está
investida sobre aqueles que receberam o sufixo b’rada incorporado ao nome de sua
classe de idade. Ademais, considerando que as classes de idade estão divididas em
metades cerimoniais àqueles que foi acrescentado o sufixo b’rada é conferido o
reconhecimento de gerenciar a dinâmica do processo ritual, principalmente na iniciação
das classes de idades de sua metade. Quando nosso informante diz que o chefe não teria
autoridade para o tipo de ingerência que ele havia feito, na realidade ele está querendo
dizer que o chefe ainda não era b’rada. Em verdade, o chefe atingiu este estágio no final
do ritual danhono quando foram apresentados o nome da nova classe de idade e aqueles
que dela farão parte, constituindo os moradores da nova casa dos solteiros, a hö, a ser
ainda construída. Nesta cerimônia foram apresentados os novos nodzö’u e os antigos
passaram a ser nodzö’uõmob’rada, entre os quais estava o chefe.
255

Ter o sufixo b’rada agregado ao nome da classe de idade é, idealmente,


condição sine qua non para exercer a plenitude de seus direitos rituais e políticos na
sociedade Xavante. Entretanto, no jogo de relações entre os atores políticos ele não é
suficiente para garantir que isto de fato ocorra. Constantemente os atores políticos estão
manipulando suas posições dadas pelo prestígio conquistado em favor de seus projetos
pessoais. O cacique embora não tenha ainda o sufixo b’rada agregado em sua classe de
idade obtém êxito em fazer com que os tirowa executem o ensaio no centro do
acampamento graças ao apoio dos que o têm e por estes darem a ele sustentação
política, apoiando como membros de sua facção.
----/////----
Embora a distribuição dos caçadores nos grupos deva obedecer a certa equidade,
mantendo certo equilíbrio, isso não garante que o rendimento dos grupos será igual para
todos. Um ou outro grupo pode ter mais sorte e sobressair-se em relação aos demais na
quantidade de animais abatidos. Diante disso, foi combinado no primeiro dia de caçada
que sobressaindo um grupo em relação aos demais as presas seriam repartidas para que
os quatro grupos mantivessem o mesmo volume de carne nos jiraus. Certo dia fora
abatido 14 porcos queixada e dois tamanduás. Um dos caçadores ligado ao grupo do
segundo tébé abateu sozinho 05 dos animais. No caminhão no momento do retorno
começaram a dividir os porcos entre os acampamentos. O cacique ligado ao grupo do
primeiro pahöri’wa, que era seu neto, queria que quatro porcos fossem para seu
acampamento. O caçador que havia abatido mais protestou, e o cacique procurou
lembrá-lo do combinado no primeiro dia. Como contra-argumento o caçador disse que
no primeiro dia de caçada seu acampamento tinha matado dois porcos e que não foram
repartidos com nenhum acampamento dos tébé, e que, portanto, a divisão que havia sido
previamente feita garantia a igualdade entre os grupos. Assim, o grupo do segundo tébé
recebeu quatro queixadas, um bandeira inteiro e metade do outro; o primeiro pahöri’wa,
grupo do cacique, recebeu três queixadas; o segundo pahöri’wa três queixadas; o grupo
do primeiro tébé ficou com quatro queixadas e o restante do segundo bandeira. Embora
os discursos dos caçadores apareçam em tom conciliatório e objetivos comuns de
equidade entre os grupos, na prática observamos que a caçada é marcada por grande
competição e disputa entre os caçadores. Aqueles que abatem maior quantidade de
animais, sobretudo antas, gozam de maior prestígio entre os demais. Além disso,
256

embora se procure distribuir o volume de caça, há sempre à questão: quem foi o grupo
campeão?, como me disseram.
Além da aldeia Guadalupe, as aldeias de Fátima e Jesus de Nazaré, dentre
outras, estavam realizando o danhono. As duas aldeias mencionadas também estavam
caçando na Terra Indígena Bororo. Diante disso, certo dia antes de sairmos para outra
região da Terra Indígena Bororo, onde ainda não havia sido queimado o cerrado, fomos
procurados pelo cacique que nos aconselhou a ter cuidado no encontro com os Xavante
daquelas aldeias, pois também estariam caçando naquela área. Ao entrarmos no cerrado,
sempre acompanhando os caçadores, horas depois ouvimos os gritos de um caçador que
tinha abatido uma anta. Corremos até o local onde acompanhamos a divisão do animal e
seu preparo para ser transportado. Neste ínterim, apareceram dois caçadores de Fátima
que cumprimentaram os de Guadalupe e ficaram conversando. Um deles seguiu adiante,
enquanto o outro ficou aguardando a abertura da anta e depois de ter recebido um
pedaço de fígado assado, também foi embora. Os caçadores de Guadalupe que por ali
estavam relataram terem encontrado outros caçadores das aldeias de Fátima e Nazaré. A
preocupação em encontrar membros de outras aldeias parecia mais um problema para o
cacique do que para os demais. A cisão de Guadalupe que resultou na criação das
aldeias de Fátima e Nazaré, não provocou isolamento entre elas, visto que entre outras
coisas, há ligações fortes de parentesco entre os que ficaram em Guadalupe e os que
foram para aquelas aldeias. Os laços de companheirismo entre as classes de idade são
muito fortes entre as aldeias, apesar da divergência política de suas lideranças. Estando
as três aldeias caçando no mesmo território, Guadalupe aparece com maior
probabilidade de sucesso. Isto se deve pela diferença populacional entre as aldeias.
Depois da aldeia São Marcos, Guadalupe é a que tem maior população e
conseqüentemente mais caçadores do que Fátima e Nazaré.
Toda a caçada foi realizada dentro das terras dos Bororo. Desde os primeiros
dias a área explorada foi à parte sul daquela terra indígena, situada na margem esquerda
da BR 070, que corta o território Bororo, sentido Cuiabá. No penúltimo dia os Xavante
decidiram explorar a área da margem direita – a leste da aldeia Merure, dos Bororo.
Tudo transcorria como um dia normal de caçada: colocar fogo no cerrado, seguir as
pegadas dos animais, ajudar a carregar o que fora abatido. Ao retornarmos para o ponto
de encontro, onde o caminhão nos havia deixado e de onde partiríamos de volta ao
acampamento, tomamos conhecimento de um fato que por pouco não teve
257

conseqüências trágicas às duas etnias. Segundo o cacique M., cunhado do pai do


segundo tébé, estava caçando sozinho quando ouviu tiros vindos das proximidades. M.
relatou aos presentes que os tiros estavam sendo dados em sua direção e passavam perto
de sua cabeça a ponto de ouvir o som das balas. Pensando serem companheiros que
estivessem atirando em alguma queixada, o mesmo ficou abaixado. Entretanto, os tiros
continuaram. Teriam sido dados cinco tiros. Quando ele se levantou viu que o atirador
era um Bororo que estava montado a cavalo. M. teria ficado escondido e o Bororo foi
embora. Outro caçador, U., teria encontrado o Bororo que estava armado com uma
espingarda semi-automática. O Bororo teria dito a este caçador que estava procurando
uma vaca perdida. Enquanto aguardávamos o caminhão, nas margens da BR-070, o
cacique avistou uma viatura dos Bororo que estava retornando da aldeia Merure para
outra. A viatura foi obrigada a parar e o cacique perguntou quem era o vaqueiro Bororo
de Merure. Após relatar o fato, o cacique falou que se fosse noutros tempos teria ido à
Merure e matado o vaqueiro como vingança. Em tom de conciliação pediu que
transmitissem o recado ao Bororo que não fizesse isso novamente. Se tivesse acertado
ele teria vingado. Pediu que avisassem o Bororo que não haveria vingança, e concluiu:
Deus é grande e não queremos fazer isso com nossos irmãos, mas se ele (o bororo)
quer fazer... não pode fazer mais isso.
De volta ao acampamento, quando os outros caçadores retornaram e tomaram
conhecimento do fato, decidiram que no dia seguinte iriam até Merure para vingar. O
acampamento estava dividido sobre a questão. Dias antes havia chegado a notícia que os
Bororo tinham tomado as ferramentas usadas por parte do grupo dos dahi’wa que tinha
ficado na aldeia Guadalupe preparando o terreno, dentro da Terra Indígena Merure, no
qual iniciar-se-ia uma corrida cerimonial no final do processo de iniciação. Parece-nos
que os Bororo encontraram a clareira aberta dentro de suas terras e imaginaram que os
Xavante estaria planejando construir ali outra aldeia. As ferramentas usadas pelos
dahi’wa estavam escondidas nas proximidades e foram levadas. Entretanto, prevaleceu
a palavra do cacique de que não haveria vingança. Entretanto, foi decidido que uma
parte dos caçadores ficaria no acampamento de caça, caso os Bororo aparecessem. Ao
pesquisador o cacique relatou novamente que os Xavante haviam adquirido o direito de
caçar nas terras dos Bororo depois que ele, Mario Juruna e outros ĩhire que estavam no
acampamento, expulsaram os fazendeiros na década de setenta quando ocorreram as
demarcações das duas terras indígenas. Segundo o cacique os Bororo não querem
258

agradecer. Uma forma de agradecer seria deixar os Xavante executarem suas caçadas
ali. Eles (os Xavante) poderiam até tirar madeira ali, mas não tinham interesse em fazer.
Apesar de os Xavante sentirem-se no direito de caçar nas terras dos Bororo,
havia sempre a preocupação de encontrá-los. Numa caçada que se deu na direção da
aldeia dos Bororo chamada Garças, passando pela aldeia do Bororo Paulinho, famosa
por ter recebido a visita do Ministro da Cultura Gilberto Gil em abril de 2004, os
caçadores Xavante tinham receio de andar pela estrada carregando as presas abatidas.
Ao retornamos para o ponto de encontro onde o caminhão nos pegaria, fomos
orientados por um dos caçadores a não andar na estrada com o queixada que
ajudávamos a carregar para que os Bororo não nos visse. Segundo o caçador, se o
Bororo estivesse bêbado o mesmo poderia criar problemas.
Após onze dias caçando os homens consideraram que já havia carne suficiente
nos quatro acampamentos para realização dos rituais seguintes. De mais a mais, eles já
haviam queimado todo o cerrado da parte centro sul da Terra Indígena dos Bororo e
com isso os animais estavam ariscos e difíceis de serem encontrados. Some-se a isso o
fato de haver caçadores das aldeias Nossa Senhora de Fátima e Jesus de Nazaré
competindo com os de Guadalupe.
O resultado do último dia da pahöri’wa manadö e tébé manadö é destinado aos
danhohui’wa. Todos os animais abatidos neste dia de caçada serão divididos entre eles,
que deverão levar às suas companheiras que ficaram na aldeia. Estas são membros de
sua classe de idade e foram escolhidas para serem parceiras durante o ensaio e
realização da cerimônia do wanaridobe, conforme vimos acima. Enquanto os
danhohui’wa estiveram na caçada elas, as danhohui’wa tsipi’õ, ensaiaram sozinhas o
canto do wanaridobe. Embora esta seja a regra da caçada, destinar o último dia aos
danhohui’wa, na prática ela não é bem aceita. Em relação ao danhono de 1997,
realizado na aldeia São Marcos, quando os danhohui’wa eram da classe de idade hötörã
a participação deles nas caçadas se deu de forma maciça. O mesmo não ocorreu em
2005, quando os danhohui’wa eram da classe de idade tirowa. Diante disso, na manhã
do último dia de caçada cogitou-se não oferecer nada aos tirowa devido seu fraco
empenho não só na caçada, mas também do processo ritual como um todo. Entretanto,
tal ameaça parecia mais uma estratégia dos ĩhire, anciãos, para cobrar mais empenho
deles.
259

Neste último dia de caçada os Xavante decidiram explorar a área leste da Terra
dos Bororo seguindo por uma estrada que levaria até a fazenda Bandeirantes. Segundo
os Xavante aquela fazenda teria sido criada a partir de um pedaço da Terra Indígena
Bororo. Acusação que somente uma revisão dos limites da Terra Indígena dirá se a
medição corresponde ou não àquilo que foi decretado como Terra Indígena Xavante.
Naquela área o terreno era extremamente acidentado e difícil de caminhar. Não
demorou muito e começamos a escutar os gritos de um caçador que indicava ter abatido
uma anta. Corremos até o local onde o encontramos ao lado do animal. Aqui
descobrimos mais uma regra social entre os caçadores. Depois que nós chegamos outros
quatro caçadores apareceram no local. O último caçador a se aproximar do local, um ˜
ihire, apareceu fazendo exigências: o mesmo pedia que lhe fosse entregue a cabeça e as
costelas da anta. O clima no local ficou tenso e o caçador que havia chegado primeiro e
ajudava a partir o animal interrompeu seu trabalho para esperar o desfecho. Depois de
algumas ponderações entre os caçadores o ĩhire, nervoso deixou o local. Segundo os
informantes que estavam no local, tem preferência de escolha das partes do animal
abatido, neste caso a anta, o caçador que chegou ao local primeiro, depois do próprio
matador da caça, que quase sempre abre mão de sua escolha. Aquele que chega primeiro
parte o animal, que depois de pré-moqueado, é entregue aos demais.
Por ser o último dia, os caçadores decidiram retornar mais cedo ao
acampamento. Quando ali chegamos todos já estavam arrumando seus apetrechos para
retornarem à aldeia. Os ĩhire, de cada um dos grupos, confeccionavam quatro cestos
grandes, que os Xavante chamam de tsi’õtõ höpo, para o transporte do resultado de onze
dias de caçada. Diante da grande quantidade de pessoas, bagagens dos caçadores e os
cestos de carne foi decidido que o caminhão faria duas viagens, e decidimos viajar na
segunda. Na primeira viagem embarcaram o tsi’õtõ höpo do segundo pahöri’wa, todos
os heroi’wa que estavam no acampamento e um grande número de caçadores. No
acampamento ficaram os três cestos, os dahi’wa e os demais caçadores.
O grupo que partiu na primeira viagem tinha a missão de preparar outro
acampamento, próximo da aldeia onde passaríamos a noite e no dia seguinte, de forma
ritual, a carne seria levada à comunidade aldeã. Enquanto esperávamos o caminhão
retornar o acampamento passou por uma limpeza e parte do lixo produzido foi
queimado juntamente com as palhas que serviram de colchão. Com a ausência dos
heroi’wa os danhohui’wa puseram-se a ensaiar o canto do wai’rãmpo. Considerando
260

que o caminhão havia deixado o acampamento por volta da quatro da tarde, estava
previsto que ele retornasse às nove da noite. Entretanto, só apareceu às vinte e três
horas. Tinha acontecido o que todos temiam: a inexperiência do motorista, filho do
cacique, favoreceu a ocorrência de um acidente. Segundo relatos dos que estavam no
caminhão, que já retornava para realizar a segunda viagem, vinha muito devagar pela
BR-070 quando uma caminhonete de um fazendeiro que vinha em alta velocidade
colidiu com a traseira do caminhão. O motorista da caminhonete iria fazer uma
ultrapassagem, mas foi impedido ao avistar outro veículo que vinha em sentido
contrário e a colisão teria sido inevitável. Os informantes disseram que a caminhonete
ficou com a frente toda destruída e o caminhão dos Xavante teve um deslocamento da
carroceria, o pára-choque e as lanternas traseiras ficaram totalmente inutilizadas. Em
condições de seguir viagem o caminhão deixou o local, depois de dizer que o motorista
da caminhonete pagaria os estragos. Entretanto, o motorista do caminhão, o filho do
cacique, não anotou a placa e menos o nome do motorista. No acampamento após ter
relatado o episódio ele foi substituído por seu cunhado, genro do cacique, e que tinha
habilitação.
Os cestos de carne e a bagagem dos caçadores foram embarcados. Antes de
seguirmos viagem o cacique nos chamou a parte e pediu que ficássemos a distância, não
tomando posição, quando encontrássemos o motorista da caminhonete. Era para deixar
que os índios resolvessem a questão. O motorista que assumira a boléia nos disse que
cobraria a quantia de três mil reais pelos estragos causados ao caminhão. Indagado o
porquê do valor, disse: é a nossa lei! O pesquisador foi consultado se aquele valor
cobriria os estragos. Respondemos não ter conhecimento sobre os serviços a serem
executados e seguimos viagem. Na carroceria alguns cogitavam pedir cinco vacas, que
somariam ao resultado da caçada, que seriam usadas durante as cerimônias que estavam
por vir. Quando chegamos ao local do acidente o motorista da caminhonete já havia
deixado o local. Vemos que o fator sorte, se ele existe, favoreceu aquele motorista de
não ter encontrado o grupo maior de Xavante, armados como estavam.
Antes de chegarmos ao território Xavante, após ter deixado a BR-070,
encontramos a viatura da saúde que seguia para Barra do Garças encaminhando um
paciente. O cacique pediu que a viatura retornasse e desse apoio ao caminhão porque o
combustível era pouco. No entanto, a gravidade do paciente fez com que seguissem
viagem. Depois que entramos na Terra Indígena na primeira subida o caminhão ficou
261

sem combustível. Rapidamente um grupo pulou do caminhão procurando pedras e


galhos para calçá-lo e impedir que retornasse ladeira abaixo. Visto que estávamos a um
quilômetro da aldeia Jesus de Nazaré, onde morava o Administrador do NAL, um grupo
se dirigiu até lá e conseguiram vinte litros de combustível. A primeira tentativa de
religar o caminhão indicava que havia entrado ar no motor. Entretanto, a posição
inclinada do caminhão não favorecia que a bomba injetora puxasse o combustível do
tanque. A viatura retornou da Barra e retiraram mais uns vinte litros, mas isso também
não foi suficiente para garantir que houvesse um nível mínimo para que o cano da
bomba injetora puxasse o combustível. Em meio a tantas tentativas de fazer o caminhão
funcionar vimos o dia amanhecer. Por fim, apareceu um motorista mais experiente e
indicou outra possibilidade de tirar o ar do motor. Por volta de nove horas da manhã o
caminhão funcionou e conseguimos chegar ao acampamento, acerca de cinco
quilômetros da aldeia, que os heroi’wa haviam preparado. Ali eles começavam a pintar-
se como se estivessem se preparando para a corrida do noni. Além deles, quatro
dahi’wa, sendo dois de cada clã, também se pintaram. Estes usavam a modalidade de
pintura chamada dauhöba, na qual toda a parte da frente da pessoa é pintada de preto e
um retângulo vermelho no abdômen, na parte de trás pinta-se todo de vermelho com
duas listras em preto em paralelo a coluna vertebral. Além heroi’wa e dahi’wa, o
carregador do noni, o nonimrami’wa, que é um dos danhohui’wa, pintou-se como o faz
para a corrida do noni.

3.14 – RETORNO DA CAÇADA PAHÖRI’WA MANADÖ E TÉBÉ


MANADÖ

Depois que os heroi’wa concluíram sua pintura corporal, preparando-se para a


corrida do noni, eles seguiram em fila tomando a direção da aldeia. Os cestos de carne,
os caçadores e suas bagagens foram novamente embarcados no caminhão. Os quatro
dahi’wa que foram pintados embarcaram na viatura da saúde, que estava dando apoio
nesta fase da conclusão da caçada pahöri’wa manadö e tébé manadö. Após esperarem
os heroi’wa se aproximarem da aldeia os veículos também partiram naquela direção,
onde chegaram primeiro. Logo uma multidão se juntou ao lado do caminhão para
recolher os apetrechos dos caçadores. Posteriormente o caminhão deixou os cestos de
carne acerca de trinta metros das casas dos dois tébé e dos dois pahöri’wa. Junto a cada
262

cesto ficou um dos dahi’wa que haviam se pintado no acampamento próximo da aldeia.
Como afirmamos acima foram escolhidos dois de cada clã. Neste sentido os dahi’wa
que permaneceram junto aos cestos dos tébé e pahöria’wa eram respectivamente dos
clãs po’redza’õno e öwawẽ. Quando os heroi’wa entraram em fila, caminhando em
direção ao wedetede, ao atingirem o centro da aldeia os ĩhire deram um grito e os cestos
de carne foram colocados nas costas dos dahi’wa que os levaram a frente das casas de
seus donos, os tébé e pahöria’wa. No wedetede o nonimrami’wa partiu com o noni,
acompanhado dos heroi’wa em direção ao local de início da corrida. Fizeram uma única
bateria onde todos os heroi’wa tomaram parte. Nesta corrida, no retorno da caçada, cria-
se grande expectativa entre os moradores da aldeia e caçadores sobre qual clã triunfaria.
Naquele dia sagrou-se vencedor um heroi’wa do clã po’redza’õno, o que teria dado
muita alegria a seus filiados. De nossa parte, os öwawẽ, apenas lamentamos a vitória
deles.
Considerando a descrição etnográfica de Maybury-Lewis (1984:172) sobre o
retorno da caçada é gritante as diferenças entre o volume de carne trazido pelos
caçadores de São Domingos, em 1958, se comparado com o resultado obtido pelos
caçadores de Guadalupe em 2007. Em 1958, descreve Maybury-Lewis, foram levados
três cestos, com cerca de 90 kg de carne em cada um deles às casas dos pahöri’wa e
tébé. Além disso, outra quantidade de carne foi distribuída aos moradores da aldeia que
aguardavam o retorno dos caçadores. Em Guadalupe o volume de carne dos cestos era
aproximadamente o mesmo apontado por Maybury-Lewis. Entretanto, além dos
dautsimri’wa, mendigos da carne, que trouxeram tripas e estômagos de animais
moqueados, e dos danhohui’wa que receberam alguns pedaços de carne a serem
oferecidos às suas companheiras de dança, as donhohui’wa tsipi’õ, os demais membros
da comunidade aldeã nada recebeu. Todos os cestos de carne foram lavados às casas dos
pahöri’wa e tébé lá permaneceram intocados. Na casa de um dos tébé a carne foi levada
para dentro da casa e recoberta com uma lona. Após o almoço o pai do tébé nos
convidou a buscar no mato caibros e forquilhas para montar um jirau ao lado da casa.
Depois de pronto toda a carne foi novamente colocada sob o jirau. Segundo o pai do
tébé, tal medida era tomada para evitar que alguma peça que não houvesse sido
moqueada adequadamente entrasse em estado de decomposição. Constatamos depois
que os outros grupos domésticos dos pahöri’wa e tébé tinham tomado a mesma
263

precaução. Assim, durante o dia toda a carne era transposta pela manhã para aquele jirau
e retirada no entardecer até o dia de sua distribuição como parte das cerimônias.
Ao entardecer do mesmo dia em que os caçadores retornaram da caçada, um dos
danhohui’wa tocou no warã, centro da aldeia, a flauta upawã convidando os demais
para ensaiarem o canto wanaridobe. Desde o início da corrida do noni eles estavam
sendo acompanhados das donhohui’wa tsipi’õ, mulheres da mesma classe de idade que
assumiram naquela fase do processo ritual o papel de donhohui’wa. Com a saída dos
donhohui’wa elas ficaram na aldeia executando diariamente os ensaios do wanaridobe.
Antes de saírem para caçada os donhohui’wa começaram a preparar ornamentos
corporais que seriam usados pelas donhohui’wa tsipi’õ no dia do ritual wanaridobe. No
dia em que retornaram da caçada, no entardecer antes do ensaio do wanaridobe houve
uma troca de alimentos entre os donhohui’wa e as donhohui’wa tsipi’õ. Nesta ocasião
os donhohui’wa apresentam às suas companheiras os ornamentos corporais que eles
estiveram confeccionando até então. Nesta fase do processo ritual estes ornamentos
ainda não estão completamente prontos. Trata-se mais de uma prova e prévia de
demonstração da criatividade dos donhohui’wa, que é ansiosamente aguardada por suas
companheiras e pela comunidade. Assim, a reciprocidade entre os donhohui’wa e suas
companheiras efetiva-se com a entrega, por parte delas, de pães ou bolos (tsadaré – bolo
de milho xavante, ou preparado com farinha de trigo e fermento), aos homens que lhes
retribuem com um pedaço de carne trazido da caçada pahöri’wa manadö e tébé
manadö. Ambos entregam os presentes a membros de seus grupos domésticos, que
comparecerem ao centro da aldeia para acompanhar a troca de presentes e a
apresentação dos ornamentos corporais.
É grande a expectativa sobre que tipo de ornamento que o donhohui’wa
preparou a sua companheira de ritual, a donhohui’wa tsipi’õ. Estes ornamentos não
seguem um padrão ou motivo pré-estabelecido. A única condição é ser “livre para
criar”. Desta forma, é possível encontrar ornamentos que vão desde a caracterização de
cangaceiras, vaqueiras até índias de outras etnias. O material empregado nestes
ornamentos extrapola o padrão Xavante baseado, sobretudo no urucum e no carvão. Ao
terminarmos o primeiro trabalho de campo, sabendo os Xavante que moramos numa
região litorânea, foram muitos os pedidos de conchas marinhas, para serem usadas na
confecção de colares. Muitos lançaram mão de chapéus e plumas coloridas, comuns nos
bailes de carnaval do waradzu, não índio. Entretanto, como dissemos, este momento era
264

apenas uma prévia do que estaria por vir. No dias que se seguiram após o retorno da
caçada os donhohui’wa e suas companheiras voltaram a ensaiar usando apensas as
fibras de tsuwaipo, broto de buriti.
Além da apresentação dos ornamentos os donhohui’wa e suas companheiras
ensaiaram também como devem proceder no dia ritual do wanaridobe. Assim, enquanto
dançavam todos estavam atentos com a cabeça erguida acompanhando o que se sucedia
fora e ao lado da roda que haviam formado para o momento, como se estivessem
buscando algo escondido ou esperando que algo fosse acontecer. Quando o canto estava
na metade, duas ba’õno, meninas, com um maço de folhas de broto de buriti, secos,
amarrados na cabeça saíram correndo em direção ao centro da aldeia. Ao verem as
meninas dois donhohui’wa deixaram a roda e puseram a persegui-las para tomarem os
maços de brotos de buriti. Dada a agilidade das meninas os donhohui’wa tiveram certa
dificuldade em conseguir interceptá-las, o que arrancou gargalhas da platéia que
assistia. Por fim, os donhohui’wa tomaram os maços de brotos de buriti que as meninas
traziam na cabeça e retornaram correndo para juntarem-se ao grupo que ainda dançava.
Os maços de brotos de buriti foram agressivamente jogados no centro da roda, seguido
de um grito agudo emitido pelos donhohui’wa que retomaram seus lugares junto ao
grupo. A performance recebeu o tradicional agradecimento dos anciãos que
acompanhavam e orientavam o ensaio. Depois do ensaio a comunidade se dispersou e
os homens foram ao centro da aldeia discutir o próximo passo do processo de iniciação.

3.15 – WAMNHORÕ MADZATSI – APRESENTAÇÃO DO


WAMNHORÕ e AHU’RÃ

Após o encerramento do canto do wanaridobe os ĩprédu e ĩhire, adultos e


anciãos, se reuniram novamente no warã, para conversarem sobre a próxima etapa do
ritual. O passo seguinte no processo de iniciação seria a apresentação do wamnhorõ no
centro da aldeia e dali para o marã, clareira onde seria trabalhado e ainda mais uma
modalidade de corrida do noni, desta vez chamada de ahu’rã. Como a maioria dos
rituais começam seus preparativos na madrugada, então lá estávamos nós por volta de
quatro horas da manhã no centro da aldeia, onde encontramos inicialmente dois homens
e três mulheres da classe de idade tirowa, que se preparavam para o ensaio do canto
wanaridobe. Enquanto eles ensaiavam aquele canto, retornamos para casa onde fizemos
265

a pintura e ornamentação corporal necessária ao ritual que estava por vir. Aqui o
procedimento é semelhante aquele do wai’a, onde pinta-se todo de vermelho e
amarram-se embiras nos punhos, tornozelos e no pescoço. Tomamos o wabu – talo seco
da folha de buriti, pecíolo, no qual foi amarrado o wamnhorõ, seda de buriti, e
retornamos novamente ao centro da aldeia, onde se encontravam outros ĩprédu. Todos
estavam agachados formando um semicírculo no entorno de uma fogueira onde se
encontravam os ĩhire. Segundo os informantes, a postura na qual se encontravam era
para evitar serem vistos pelas mulheres. Todo este procedimento deveria ser feito antes
do sol nascer. Entretanto, diante do atraso de vários ĩprédu, que dormiram demais e
apareceram usando somente as pulseiras de embiras, pois não tiveram tempo de se
pintarem, quando se passou para a etapa seguinte era possível ver na frente das casas
muitas mulheres que procuravam acompanhar, mesmo de longe a cerimônia. O grupo
dos ĩprédu que portavam o wabu ainda estava incompleto quando os ĩhire, anciãos,
deram a ordem para que todos fossem ao marã. E assim, seguindo em fila, alternando-se
de acordo com a filiação clânica, todos se dirigiram para o local onde seriam
confeccionadas as capas que recebem o mesmo nome da seda de buriti, o wamnhorõ.
Aqueles que não chegaram a tempo de participar da cerimônia puderam levar seu
wamnhorõ até o marã em outra ocasião percorrendo caminhos paralelos nos arredores
da aldeia.
O marã usado para esta ocasião situava-se bem próximo da aldeia. Ali também
são executadas algumas partes da cerimônia religiosa do wai’a. O lugar também fora
usado como acampamento dos heroi’wa, quando eram waté’wa durante os banhos de
imersão, onde dormiam e passavam boa parte do tempo quando não estavam
executando o datsi’waté, o bater água, como dizem os Xavante. Lá chegando os ĩprédu
dividiram o marã ao meio, de modo que a metade direcionada ao sol nascente foi
ocupada pelos clãs öwawẽ e tob’ratato, enquanto que na metade oposta se colocaram os
po’redza’õno. Obedecendo esta mesma disposição, no centro do marã foram colocados
os wabu com o wamnhorõ dos dois tébé e outros quatro pertencentes aos pahöri’wa.
Todos os wabu foram fincados no chão, contornando o perímetro do grande círculo do
marã, e ali permaneceram com a seda de buriti, o wamnhorõ, amaradas no seu entorno.
Ao terminarem de fixar os wabu, talos secos da folha de buriti, no entorno do
marã, os pahöri’wa’rada começaram a montar o wamnhorõ dos pahöri’wa. Neste
ínterim, enquanto os pahöri’wa’rada se mantinham naquele trabalho, os demais se
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puseram em círculo, no centro do marã para ensaiarem novamente o canto do


wai’a’rampó, a ser executado após a cerimônia do wanaridobe. Neste ensaio os
participantes que estavam no marã assumiram a mesma posição tomada durante as
celebrações religiosas do wai’a.
O primeiro dia de trabalho no marã é dedicado exclusivamente á montagem do
wamnhorõ dos tébé e dos pahöri’wa. Inicialmente o wamnhorõ foi retirado do wabu e
disposto sobre uma lona onde as fibras foram criteriosamente classificadas por tamanho.
Em seguida espalharam-na sobre a lona, de modo que ficassem como um tapete.
Tomando pequenos feixes, acerca de trinta cinco a quarenta centímetros de uma das
extremidades, as fibras de wamnhorõ foram unidas com fios de algodão, dando a forma
de um trançado numa faixa de dois centímetros. Aqueles que teciam esta parte do
wamnhorõ tomavam a precaução de deixar uma sobra de barbantes de ambos os lados
para facilitar sua amarração na testa de quem o usaria durante a cerimônia. Erste tipo de
costura no wamnhorõ, segundo Giaccaria & Heide (1984:174), recebe o nome de
wamnhorõ babaridzé. O restante da extremidade acima deste trançado é amarrado em
feixe único com fios de algodão e recebe o nome de wamnhorõwada, a ponta do
wamnhorõ enrolada com fios de algodão. Terminado estes procedimentos iniciais, que
podem repetir-se várias vezes até que se tenha o máximo de perfeição na montagem do
wamnhorõ, passa-se a etapa de pintura.
Quando os wamnhorõ dos tébé e dos pahöri’wa estão com seus trabalhos
avançados os membros dos demais grupos domésticos começam a montar aqueles que
serão destinados aos filhos, netos e sobrinhos. Ainda na parte da manhã, um pouco antes
do almoço, boa parte dos homens deixou o marã e foram para suas casas de depois à hö,
onde começaram a preparar os filhos para a penúltima corrida do noni.
Por volta de quatorze horas todos os heroi’wa já estavam no wedetede fazendo
os últimos ajustes para a penúltima corrida do noni chamada ahu’rã. Em verdade esta
categoria indica também a modalidade de pintura adotada para este ritual. Enquanto nos
outros dias os heroi’wa adotavam a modalidade de pintura tsanapré, onde se pinta com
urucum um retângulo no abdômen e nas costas, agora na modalidade ahu’rã onde o
tronco, braços e pernas são pintados em preto, com água e carvão extraído da queima de
wabu, talos secos de folhas de buriti. Antes que a aplicação desta pintura seque por
completo fazem-se riscos com as unhas partindo de cada ombro seguindo pelo peito até
próximo da virilha. Este mesmo risco é repetido na parte externa dos braços e nas coxas.
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Há duas modalidades destes riscos que indicam a participação e filiação a dois tipos
diferentes de grupos de culto no wai’a. Tal filiação a estes grupos obedece ainda
descendência clânica dos atores sociais envolvidos. Como ornamento corporal o cabelo
é preso como um rabo de cavalo e no qual se amarra um pedaço de wabu, depois de
lapidado. Neste pedaço de wabu são presas de dois a quatro penas de arara montadas em
dois tipos de flechas: um pedaço cilíndrico, extraído de buritirana, chamado ariwede,
usada nas flechas de pesca, e outro pedaço de taquarinha chamado ti. Sobre o ariwede
encaixa-se o ti no qual por sua vez se encaixa a pena de arara. O conjunto recebe como
acabamento final fios de algodão que servem para dar sustentação do ti sobre o ariwede
bem como do ti sobre as penas de arara. Depois de pronto o conjunto ariwede, ti e penas
de arara são fixados, em forma de leque, no caule de buriti, wabu. Por fim, enrola-se
sobre o wabu, que já está preso ao cabelo, maços de algodão que ainda não foram
fiados.
Dissemos acima que as penas fixadas se dão entre duas a quatro. Acreditamos
que isto se deva em parte pela escassez deste material. Grupos domésticos mais
abastados em termos de parafernália ritual e que desejam ostentar opulência cravam até
quatro penas no wabu. Durante as várias baterias desta modalidade de noni observamos
que alguns heroi’wa aguardavam o retorno de outros companheiros para terem as penas
retiradas e fixadas no wabu que já haviam sido previamente amarrados junto ao cabelo
na parte detrás da cabeça. Não obstante, alguns dos heroi’wa cujo grupo doméstico
recentemente havia passado por uma situação de luto e tiveram que raspar a cabeça,
como manda a tradição, amarravam o wabu na cabeça com fibras de brotos de buriti.
Ainda como parte da ornamentação corporal, juntamente com a modalidade de pintura
ahu’rã os heroi’wa substituíram os calções vermelhos, que vinham usando nas corridas
anteriores, por pretos. O nonimrami’wa, carregador do noni, adotou a mesma pintura
corporal que vinha usando anteriormente, ou seja, a modalidade daupté, onde o corpo
todo é pintado de vermelho e desenha-se duas listras em preto nas costas, duas listras
abaixo dos bíceps e uma listra entre o umbigo e a ponta do externo. Quando todos
estavam prontos o nonimrami’wa se dirigiu, sozinho, até o local de início das baterias
do noni.
Nesta modalidade de corrida as disputas se deram de forma diferente em relação
às demais, onde nos outros dias os heroi’wa disputavam entre si e com outras classes de
idade. Na modalidade ahu’rã os duelos se dão inicialmente disputando pahöri’wa
268

contra pahöri’wa, em seguida tébé contra tébé. Assim, depois de prontos os dois
pahöri’wa dirigiram-se sozinhos percorrendo a lateral da pista do noni até o local de
início. Depois da largada e ao atingirem o wedetede, seguiram os dois tébé, fazendo o
mesmo percurso e executando a mesma performance. As baterias seguintes se deram
inicialmente tendo um aihö’ubuni contra um heroi’wa de clã oposto. Segundo os
informantes, diferentemente dos tébé e dos pahöri’wa que correm contra si, os
aihö’ubuni devem competir com membros de clãs opostos aos seus. Os demais
heroi’wa seguiram dois a dois, öwawẽ contra po’redza’õno, obedecendo a critérios de
estatura para garantir competitividade entre os participantes. Depois que todos tomaram
parte em pelo menos uma bateria o nonimrami’wa deixou o local de início e dirigiu-se
correndo segundo seu modo de encerrar a cerimônia, em direção ao wedetede e dali até
o nonidza’odzé, forquilha onde se guardam os noni. Ao término desta e de todas as
outras baterias os ĩprédu e ĩhire que assistiam a cerimônia agradeciam em coro: hepãrĩ,
pãrĩ, pãrĩ - obrigado, obrigado, obrigado.
Quando todos davam por encerrado o ritual e estavam deixando o wedetede, um
dos ĩhire, ancião, um pahöri’wa’rada, ou seja, desempenhou o cargo cerimonial de
pahöri’wa da classe de idade hötörãb’rada, portanto já havia assistido a sua classe de
idade se renovar na ocupação da hö, onde podemos estimar que tenha se passado pelo
menos sessenta anos a julgar pela atual classe de idade que estava sendo iniciada,
chamou todos de volta dizendo que o ritual estava incompleto, faltava o gran finnalle.
Todos retornaram ao wedetede onde assistiram a demonstração de como o fechamento
do ritual deve se realizar. Quando ele chamou atenção sobre o ritual que faltava os
demais se lembraram do ritual. Assim ele começou a demonstração não apenas por ter
se lembrado, mas, sobretudo por ser o pahöri’wa’rada, isto é, o mais velho que estava
presente. Após sua demonstração, os pahöri’wa’rada das demais classes de idade
fizeram o mesmo até chegar o momento dos atuais pahöri’wa repetirem do mesmo
modo.
Para realização deste ritual de encerramento das corridas do noni os
pahöri’wa’rada amarram uma popara, colar de unhas de veado ou queixada, um pouco
abaixo do joelho direito, sobre a panturrilha, e usavam o tradicional colar de algodão
chamado danho’rebdzu’a. Nesta ocasião os pahöri’wa’rada não usavam pintura
corporal. A performance ritual consistia em tomar a capa do noni e posicionar-se entre
os dois postes do wedetede. Ali o pahöri’wa dançou com o noni dando três passos de
269

lado, saindo do poste menor em direção ao maior e retornando novamente ao poste


menor. Ao retornar a este pose ele deveria bater o pé direito, que emitia o som da
popara, com mais força e jogar o noni para trás. Ao término de cada apresentação os
ĩprédu e ĩhire que assistiam a cerimônia repetiam os agradecimentos: hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ
- obrigado, obrigado, obrigado.
Nossa observação etnográfica sobre a performance cerimonial da modalidade de
corrida do noni denominada ahu’rã difere daquela relatada por Giaccaria & Heide
(1984:175). Segundo aqueles autores inicialmente tomam parte nesta modalidade os
ĩprédu, em número de três, depois os dahi’wa. Como descrito acima observamos que
somente a classe de idade que estava sendo iniciada participou da cerimônia. Entretanto,
a descrição de Maybury-Lewis (1984:173-174), aproxima-se dos relatos de Giaccaria &
Heide. Segundo Maybury-Lewis neste dia todos os homens estavam pintados de preto e
participaram do encerramento. Giaccaria & Heide não apresentam o evento final de
encerramento da cerimônia do noni chamada ahu’rã, enquanto que Maybury-Lewis trás
detalhes deste final. Na descrição de Maybury-Lewis o nonimrami’wa, ou
Manõwaumurtuwẽ - o mestre de cerimônias, como é por ele considerado, está sempre
atrasado para o início da cerimônia. Não era o caso do carregador do noni em
Guadalupe que, embora primasse pela vaidade quando estava se pintando, chegava
junto com os heroi’wa no wedetede para dar início à cerimônia.
A performance do ritual ahu’rã terminou com o dia ainda bem claro. Os
danhohui’wa acompanhados de suas companheiras se reuniram novamente no centro da
aldeia para ensaiarem o canto do wanaridobe. Os heroi’wa retornaram a hö, e dali
foram ao córrego para tomar banho e retirar a pintura corporal. Os dahi’wa, por seu
turno, foram ao marã onde executaram ensaios de outra cerimônia que estava por vir.
Eles ensaiaram o início de uma corrida, considerada como a principal cerimônia de
encerramento do danhono. No entanto, como veremos adiante, existem outras
cerimônias após esta corrida. Antes do início do ensaio para o tsa’uri’wa, corrida do
soprador, como é chamada, alguns membros ligados à metade cerimonial a qual
pertencem à classe de idade ẽtepa
˜ , que desempenhava o papel de dahi’wa, ou seja, das
classes de idade: tsada’ro, nodzö’u e hötörã, dirigiram palavras de incentivo e pedindo
seriedade aos dahi’wa, os ẽtepa
˜ , quando eles estivessem desenvolvendo sua parte na
corrida do tsa’uri’wa. Inicialmente foram os tsada’ro, seguidos pelos nodzö’u e por fim
os hötörã, classe de idade a qual está ligado o pesquisador, a demonstrar como deve ser
270

iniciada a corrida do tsa’uri’wa. A classe de idade hötörã repetiu por três vezes sua
demonstração até que os ẽtepa
˜ a fizessem. Quando preparavam para outra
demonstração, membros da metade cerimonial oposta começaram a aparecer no marã e
o ensaio foi suspenso. Isto se deve às estratégias cerimoniais tomadas pelas metades.
Neste ensaio a metade cerimonial a qual pertencem os ẽtepa
˜ procurava escolher dentre
eles alguns que tivessem maior desempenho físico e resistência para iniciar a corrida do
tsa’uri’wa. Eles “perseguiriam” os heroi’wa durante boa parte do trajeto até que outros
dahi’wa que estariam escondidos no mato aparecessem. Daremos mais detalhes do ritua
tsa’uri’wa quando o descrevermos mais adiante.
Com a chegada de membros da metade cerimonial oposta os ẽtepa
˜
interromperam os ensaios e permaneceram no marã. Aqueles que apareceram
posteriormente ficaram por ali conversando e fumando cachimbo até o cair da noite e
depois retornaram às suas casas. Quanto aos dahi’wa, estes deveriam permanecer no
marã enquanto as capas de wamnhorõ estivessem por ali. Segundo os informantes eles
são os guardiões das capas. Entretanto, isto não se deu de modo gratuito. Todos os dias
um dos dahi’wa poderá dirigir-se até a casa dos dois tébé e poderá pegar qualquer
pedaço de carne que desejar do tsi’õtõ höpo, cesto de carne. Foi o que presenciamos na
noite do mesmo dia em que as sedas de wamnhorõ foram levadas até o marã. Naquele
dia, enquanto conversávamos na frente da casa do pai de um dos tébé, apareceu um dos
dahi’wa, de banho tomado e usando um calção preto além do colar de algodão
danho’rebdzu’a, sem cerimônia adentrou-se e dirigiu-se até onde o cesto de carne havia
sido depositado. O pai do tébé o acompanhou e auxiliando com uma lanterna deixou
que o dahi’wa escolhesse um pedaço de costela de anta e um pernil de queixada.
Segundo o informante, outro dahi’wa estaria fazendo o mesmo na casa do outro tébé.
As peças de carne são levadas até o marã, onde estão os demais dahi’wa, e consumida
por todos. Pode participar deste banquete noturno no marã a classe de idade que na
última iniciação desempenhou o papel de danhohui’wa dos dahi’wa.
O dia seguinte ao da abertura dos trabalhos no marã foi marcado pelo início da
confecção dos wamnhorõ dos demais heroi’wa e das meninas que estarão sendo
oficialmente reconhecidas como membros da classe de idade abare’u. Contudo, os
wamnhorõ dos tébé e dos pahöri’wa apenas tinham sido montados no dia anterior.
Agora começava a fase de pintura dos mesmos. A pintura do wamnhorõ dos tébé, bem
como dos demais membros do clã öwawẽ, é feita segundo a modalidade chamada
271

ĩtsarébépré. Nesta modalidade as capas wamnhorõ do clã öwawẽ têm cerca de


cinqüenta centímetros da barra pintadas em vermelho. Os pahöri’wa possuem quatro
capas wamnhorõ, duas para cada ator ritual. No entanto, apenas duas delas recebem
pinturas, e serão usados durante uma cerimônia noturna, como veremos adiante. Os
pahöri’wa embora pertençam ao clã po’redza’õno têm suas capas de wamnhorõ
pintadas com a mesma modalidade de pintura, ĩtsarébépré, usada pelos tébé, que são do
clã öwawẽ. O segundo conjunto de capas usadas pelos pahöri’wa é chamado wamnhorõ
ĩdzub’a, ou seja, wamnhorõ sem pintura.
As capas wamnhorõ dos demais membros do clã po’redza’õno que circundam o
marã são pintadas segundo a modalidade ĩwawi - riscos. Aqui três feixes de palha que
compõem o wamnhorõ são pintados da altura dos fios de algodão que foram usados para
unir as fibras de brotos de buriti até sua barra. Não obstante, os feixes que recebem
pintura estão nas posições dos braços e nas costas de quem usará o wamnhorõ. Por fim,
as capas que serão usadas pelos membros do clã tob’ratato recebem a modalidade de
pintura chamada ĩtsihödö, na qual são pintadas três faixas horizontais no entorno do
wamnhorõ. O material empregado na pintura das capas é o bö, urucum, e norõdzu,
amêndoas de cocos de babaçu. Durante o processo de pintura as amêndoas são
mastigadas para que o óleo seja extraído e cuspido sobre uma bola de urucum,
semelhante a um sabonete. A tinta extraída desta mistura é passada em pequenos feixes
de wamnhorõ até que todo o conjunto seja pintado. O acabamento final é dado com a
ornamentação das capas com nove fios nos quais são enfiadas sementes de capim
navalha e ao final de cada um deles é colocada uma unha de veado ou queixada onde
também se encaixa uma pena de arara. Os wamnhorõ dza’rudzé, como é chamado cada
um destes fios, são agrupados três a três e presos no algodão que serviu para juntar as
fibras de buriti, e que servirão para amarrar a capa na cabeça de quem a usará. O
conjunto é distribuído nas laterais e nas costas da capa.
A situação de contato permitiu o acesso a outros materiais que têm sido
incorporados na produção de objetos rituais. É o caso, por exemplo, das sementes de
capim navalha, ou a’é como dizem os Xavante, que estão sendo substituídas por
miçangas coloridas. Outro material adotado foi o barbante de algodão que tem
substituído os fios de algodão usados, entre outras coisas, para juntar e amarrar feixes
das fibras de broto de buriti e ajudam a dar formato à capa. A substituição dos materiais
tradicionais pelos adquiridos no comercio local não pode ser visto como um
272

empobrecimento do objeto ritual. Estes novos matérias adquiridos podem ser


considerados de duas maneiras: economia de tempo e superação da escassez. A primeira
é de tornar a produção ritual mais dinâmica, ou seja, entre fiar o algodão e adquirir o fio
pronto no mercado se ganha em economia de tempo. No segundo caso, a necessidade de
se confeccionar um número maior de objetos rituais tem sido constante com a
recuperação demográfica da população Xavante, uma vez que o número de iniciados a
cada cinco anos tem aumentado consideravelmente. Diante disso temos constatado que
a terra indígena não tem condições de fornecer toda a matéria prima necessária para
produção do ritual.
Sinalizamos acima os padrões de pintura das capas do wamnhorõ para cada um
dos clãs Xavante. Entretanto, estes padrões não são absolutos. Já apontamos em outro
momento que informantes Xavante nos disseram que eles nunca estão satisfeitos com
seus objetos rituais. Isto veio à tona quando, já no final da confecção das capas do
wamnhorõ, quando observamos que no marã, que fora dividido ao meio ficando öwawẽ
e po’redza’õno em lados opostos, havia capas de wamnhorõ com modalidade de pintura
fora de onde deveriam ficar. Em outros termos, notamos que capas de wamnhorõ com a
modalidade de pintura própria do clã öwawẽ estavam sendo pintadas no lado oposto, ou
seja, junto com as capas dos po’redza’õno e vice e versa. Os que ali trabalhavam na
pintura das capas nos disseram que seus antepassados teriam “negociado” com o dono
da capa, pertencente ao clã oposto, a troca dos padrões de pintura. Um trabalho futuro
que abordasse as trocas de objetos rituais entre os clãs ainda está em aberto.
Durante a pintura das capas wamnhorõ as questões políticas da aldeia estavam
em estado de dormência. Todos estavam empenhados na confecção dos ornamentos que
seriam usados na bateria de cerimônias que estavam por acontecer. Entretanto, um
episódio no posto de saúde, que funcionava de modo improvisado na escola, tirou o
foco do processo ritual. Numa manhã quando acompanhávamos os preparativos da
viatura da saúde para levar pacientes à cidade, na qual o cacique também pegaria uma
carona até a terra dos Bororo, segundo ele para extrair embirada para fazer cordinhas
que seriam usadas nos pulsos e tornozelos - wedenhorõ, vimos a enfermeira waradzu,
não Xavante, reclamar ao chefe que haviam roubado um litro de álcool do local. O fato
deixou o cacique alterado emocionalmente que reclamou ao pesquisador sobre a
conduta dos mais novos que estão entrando no vício da bebida e desprezando o conselho
dos ĩhire, anciãos. À noite no warã o fato foi novamente relatado e trouxe indignação e
273

reprovação da parte dos ĩprédu e ĩhire. O litro de álcool não foi recuperado, muito
menos se chegou aos culpados pelo sumiço. Entretanto, pairava no ar suspeitas sobre
alguns membros das classes de idade tirowa e ẽtepa
˜ , que tinham no processo de
iniciação, respectivamente, os papéis de danhohui’wa e dahi’wa, pelo fato de terem sido
flagrados em diversos momentos consumindo bebidas alcoólicas e embriagados.
Depois que o wamnhorõ dos tébé teve sua pintura concluída um grupo de ĩprédu
e ĩhire voltou suas atenções para os adornos corporais que seriam usados pelos
ocupantes daquele cargo cerimonial. O primeiro destes ornamentos é o waihi. Em
verdade o termo waihi é dado à nervura dos folíolos das folhas de buriti. Durante as
expedições de coleta de brotos de buriti os grupos domésticos observam o tamanho dos
brotos extraídos. O maior deles é escolhido para retirar o waihi, após ter sido extraído a
seda wamnhorõ. Normalmente os waihi apresentam de dois e meio a três metros de
comprimento. Depois de seco são unidos num feixe e, partindo da extremidade mais
grossa, são encapados com folhas secas de brotos de buriti deixando livre cerca de
sessenta centímetros, de modo que esta se apresente levemente desfiada. Um feixe de
seda de buriti, chamado ĩ’wadza’ru101, de cerca de cinqüenta centímetros, é amarrado
logo adiante da metade do waihi. Por fim, este pequeno feixe recebe uma pintura
vermelha, a partir do urucum, de modo semelhante à capa de wamnhorõ que o tébé
estará usando, ou seja, apenas na barra da seda. Concluída a montagem deste
ornamento, que assume o aspecto de um cetro, o mesmo é depositado sobre uma
forquilha que foi especialmente colocada ao lado do wabu onde se encontra a capa de
wamnhorõ dos tébé.
O segundo ornamento que os tébé usarão durante a cerimônia é o tepewaptsu. Já
nos referimos a ele quando mencionamos a situação na qual fomos convidados a
acompanhar sua primeira montagem. Trata-se de um ornamento confeccionado com
pedaços de flechas, penas de arara e fios de algodão. Inicialmente um conjunto de
aproximadamente vinte quatro pedaços, com cerca de quarenta centímetros, de flechas
do tipo ti são furados a uma distância de quinze centímetros da base. Acima deste furo
cada um dos pedaços de flecha é enrolado com um fino barbante de algodão. A seguir
os pedaços de flechas são colocados em paralelo e passa-se um barbante de algodão por
entre os furos para que eles fiquem unidos de modo semelhante a uma pequena esteira.
Tomando outro pedaço de cordão de algodão faz-se um trançado um pouco acima do

101
Giaccaria & Heide (1984:97 e 298) traduzem esta categoria como um penduricalho feito de
capim navalha (a’é) com uma pena no final, e que é amarrado nas flechas.
274

ponto médio dos pedaços de flechas que foram enrolados com fios de algodão. Isto
permite que este conjunto de pedaços de flechas fique com a extremidade na qual foram
enrolados os fios de algodão mais aberta do que aquela onde foram feito os furos para
passar o barbante. As flechas tipo ti são fabricadas com um tipo de taquara. Por serem
ocas favorecem a fixação das penas de arara. Quando a primeira etapa está concluída
adiciona-se na parte oca da extremidade que fora enrolada com fios de algodão peninhas
de arara. Na ocasião em que assistimos a primeira montagem o tepewaptsu este primeiro
conjunto já estava pronto. Naquele momento o tepewaptsu foi montado e desmontado.
Ao ser desfeito preservou-se a montagem do primeiro conjunto, retirando somente as
penas maiores de arara.
Uma vez que o tepewaptsu já havia sido montado previamente tudo indicava que
ao ser montado novamente para o dia oficial do ritual, os trabalhos seriam mais fáceis.
Ledo engano. Foram necessárias umas três horas para que houvesse consenso entre os
ĩprédu e ĩhire sobre a melhor forma de montá-lo. Havia penas de rabo de arara de
diversos tamanhos a serem fixadas na parte oca dos pedaços de flechas que já haviam
recebido as peninhas. A demora em montar o ornamento advinha da falta de consenso
na posição destas penas grande. Ao final o tepewaptsu deve ficar parecido com a cauda
de um pássaro. Depois de pronto ele foi depositado num renhamri, uma pequena esteira
que depois de dobrada se parece com uma bolsa, e colocado junto à capa do wamnhorõ.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:176) são os tépé’rada, antigos tébé, que
preparam os ornamentos corporais para os tébé. Entretanto, nossa observação
etnográfica aponta para outra situação. A montagem das capas wamnhorõ foi
inicialmente feita pelos ĩhire, anciãos, que passavam a maior parte do tempo no marã.
Depois de prontas os o tébé ĩté, o últimos tébé iniciados, foram orientados sobre o modo
como deveriam pintar o wamnhorõ. A primeira parte do tepewaptsu, composta pelo
conjunto de pedaços de flechas enroladas como algodão e peninhas, foi encomendada a
um dos homens, que não tinha sido tébé, com grande habilidade em fazer aquele
trabalho. Tanto na primeira quanto na segunda montagem deste ornamento foram os
ĩhire, anciãos, que se puseram a montá-lo. É bem verdade que ali estavam alguns
tépé’rada, mas eles pouco atuavam.
A respeito do homem que montou a primeira parte do tepewaptsu, seu trabalho
não foi voluntário. Dias depois que retornamos da caçada o encontramos conversando
com o pai de um dos tébé junto ao jirau de carne que fora montado na frente de sua
275

casa. Após a conversa o pai do tébé entregou a ele dois pedaços de queixada, porco do
mato, em especial a coluna ainda trazia a cabeça grudada a ela, ao homem de que logo
deixou o lugar. Em particular o pai do tébé nos revelou que fora aquele homem que
havia montado a primeira parte dos dois tepewaptsu, e agora estava cobrando o
trabalho. Segundo ele, o pai do outro tébé logo seria procurado para saldar a dívida, pois
ele havia igualmente feito a mesma parte do tepewaptsu do outro tébé. Além desta
dívida havia outra a ser paga. Parte do algodão que seu filho tébé estaria usando nos
ornamentos foram fiados por uma tia, a mulher do cacique, a quem prometera pagar
com três tsi’a, frango, galinha, que seriam adquiridas no comercio de Barra do Garças.
A explicação pela predileção por este tipo de pagamento dizia respeito à idade da pessoa
que havia fiado o algodão. Segundo ele, tratava-se de uma pessoa idosa e já havia
perdido os dentes. A explicação dada, portanto, era de a tsi’a possui a carne mais tenra e
mais fácil para mastigar. Note-se que a cooperação na produção do ritual envolve
obrigações de ressarcimento àqueles que se dispuseram a ajudar ou foram convidados.
Em nossa experiência de pesquisa observamos que isso ocorre em outros momentos da
vida social Xavante. Os funerais, por exemplo, podem ser dispendiosos àqueles que
perdem um ente. Todo o serviço funerário é prestado por membros do clã oposto ao
defunto. Este tipo de serviço inclui a abertura da sepultura e no momento do enterro
barrar os parentes que desejam se jogar na cova onde está sendo posto o morto. Após o
enterro aqueles que prestaram o serviço entram na casa onde vivia o morto e retiram
qualquer objeto de valor que desejarem. Em dias atuais os objetos mais cobiçados têm
sido televisores, aparelhos de som, bicicletas, armas de fogo, geladeiras dentre outros.

3.16 – TÉBÉ – ADORADORES DA LUA?

Transcorridos quatro dias após os inícios dos trabalhos no marã todas as capas
de wamnhorõ já estavam prontas. Os wamnhorõ que serão usados pelos ocupantes do
cargo cerimonial tébé idealmente deveriam ser levados aos grupos domésticos no dia
anterior. Entretanto, L., pai de um dos tébé viajou à Barra do Garças para fazer compras
e a cerimônia de entrega das capas não pode ser concretizar. Segundo F., este trabalho
de entrega deveria ser feito pelos tépé’rada, antigos tébé. Nesta ocasião eles deveriam
ser pintados e levar os wamnhorõ em sigilo, evitando que fossem vistos pelas mulheres,
até a casa dos tébé. Eles, os tépé’rada, deveriam ficar dentro da casa até o momento
276

oficial da cerimônia. Isto se daria por volta de meio dia quando dois dentre os dahi’wa
estariam pintados e levariam os wamnhorõ até o wedetede, e lá ficariam até o início da
cerimônia, o que acontece no final da tarde. Não obstante, os fatos não ocorreram como
manda o protocolo ritual. Pela manhã nos dirigimos até o marã onde encontramos os
homens dando os retoques finais nos wamnhorõ destinados aos filhos e filhas. O pai do
tébé foi à mata ciliar, onde o marã está encravado, para cortar palhas de palmeira que
seriam usadas no momento da cerimônia de seu filho. Quando chegamos ao marã
encontramos dois dentre os dahi’wa sendo pintados com uma modalidade usada nas
cerimônias religiosas do wai’a. Uma vez concluída a pintura os renhamri, esteira
dobradas formando bolsas, contendo os tepewaptsu e os feixes de seda de buriti
pintados em vermelho, e os wamnhorõ com os waihi foram entregues aos dois que
saíram em fila, por volta de dez horas da manhã em direção à aldeia. Caminharam
juntos até o centro da aldeia onde se separaram e dirigiram-se até a casa dos pais dos
tébé. Acompanhamos a entrada ritual de um dos dahi’wa na casa de um dos tébé. O pai
deste tébé, que também seguia o dahi’wa adiantou-se à frente e dentro da casa reservou
uma cadeira para recebê-lo. Ao adentrar na residência a avó do tébé começou a chorar,
segundo o costume Xavante. O pai deste tébé também estava emocionado, mas conteve-
se. O wamnhorõ do tébé foi depositado sobre uma das camas da casa e o dahi’wa
permaneceu sentado ao lado, como um guardião. Segundo L., ele não poderia jamais
deixar o local, e assim o fez até o momento da cerimônia. Na hora do almoço lhe foi
servido um prato de arroz acompanhado de carne de caça.
Neste dia fomos orientados a almoçar mais cedo. Neste sentido, por volta de dez
e meia já tínhamos almoçado. Assim que acabamos o almoço os parentes deste tébé e
outros membros do clã öwawẽ, ao qual pertencem, começaram a chegar e logo a casa já
estava pequena. Muitos deles traziam bolos preparados com farinha de trigo, que foram
colocados junto ao grande cesto de carne da caçada que fora realizada especialmente
para este dia. Ainda dentro da casa começaram a se pintar e a vestir os adornos
corporais. A modalidade de pintura para esta ocasião foi daupté, na qual o corpo todo é
pintado de vermelho, as panturrilhas em preto, date’rã - após aplicação desta pintura
remove-se um pouco com as unhas de modo que fiquem três listras; um pouco acima
dos cotovelos, utilizando-se de carvão e água, faz-se uma listra em preto, outra é feita
entre a ponta do externo e o umbigo. Como adorno corporal usa-se os colores de
277

algodão danho’rebdzu’a e feixes de seda de buriti pintado em vermelho, danhipsipré102,


que são amarrados nos punhos e tornozelos. Observamos que havia algumas mulheres
com uma modalidade de pintura diferente da qual estávamos usando para este momento.
Aqui o padrão adotado por elas era o corpo todo pintado de preto com um retângulo
desenhado em vermelho no abdômen. Segundo L., a pintura diferente era decorrente de
um pedido que os antigos fizeram para que se usasse aquela modalidade de pintura nesta
ocasião. Além da casa de L., pai de um dos tébé, os mesmos preparativos aconteciam na
casa de M., pai do outro tébé.
Por volta de quatorze horas, quando todos já haviam concluído a fase de pintura
e ornamentação corporal, foi dado um sinal a partir do wedetede e dois cortejos
compostos pelos dois grupos domésticos deixaram as casas e ritualmente se puseram em
direção ao wedetede. A frente do cortejo que deixou a casa de L. estava um tépé’rada,
que trazia: um feixe de seda de buriti pintado de vermelho, um colar danho’rebdzu’a,
um abadzipré – tipo de cinto, e um cestinho contendo material de pintura. Em seguida
vinha o dahi’wa, que fora escolhido para levar o wamnhorõ do marã até casa do tébé,
trazendo uma esteira na qual estava enrolado aquele ornamento e o waihi.
Acompanhando o dahi’wa estava um ai’repudu, menino antes de ser admitido como
morador da casa dos solteiros, transportando o renhamri, bolsa, que continha o
tepewaptsu, adorno de cabeça do tébé. A pintura corporal deste ai’repudu era a mesma
que seria aplicada nos tébé. Segundo alguns informantes, virtualmente aquele menino
ocuparia o mesmo cargo cerimonial na próxima iniciação. Contudo, a dinâmica
faccional da aldeia pode alterar esta escolha. Após o ai’repudu estava uma ba’õno,
menina, igualmente usando a mesma modalidade de pintura do tébé, que levava o
tsi’õtõ höpo, cesto de carne. Os demais parentes e membros do clã öwawẽ e tob’ratato,
metade cerimonial dos tébé, seguiram atrás da ba’õno. Todos elevavam renhamri, que
agora servia de prato, com bolos e pedaços de carne retirados do tsi’õtõ höpo. O
pesquisador, por ser admitido à esta metade exogâmica e pertencendo ao clã öwawẽ
tomou igualmente parte na fila. No wedetede, onde os dois cortejos se encontraram, os
cestos de carne foram colocados sobre folhas buriti e teve todo seu conteúdo retirado e
depositado sobre aquelas folhas juntamente com os bolos de farinha de trigo e até
garrafas de refrigerante. No local uma multidão já estava à espera. Em seguida um
ĩprédupté e um danhohui’wa, J.A e D., filhos do cacique, ambos do clã öwawẽ e de

102
Müller (1976:53) grafa este ornamento como: dañipsiré. Atualizamos para outra possibilidade
de grafar as palavras da língua Xavante, onde troca-se o ñ por nh.
278

classes de idade diferentes, começaram a distribuir parte do tépé manadö, banquete dos
tébé, como é chamado os alimentos, e esta parte da cerimônia, os quais estavam num
dos cestos. Neste momento apenas alguns ĩhire, anciãos, que estava no wedetede
receberam parte dos bolos e carne, o restante foi novamente colocado no tsi’õtõ höpo e
levado à casa de J.A. Esta distribuição do tépé manadö não parece estar condicionada
padrões estruturais ou políticos que envolvem os atores sociais que a fizeram. Nos dois
grupos domésticos, a distribuição de parte do banquete para os ĩhire que ali estavam, foi
realizada pelos atores mencionados apenas por serem parentes dos tébé.
Com a retirada dos cestos de carne e bolos do wedetede a multidão que havia se
juntado ali começou a se dispersar. A carne levada aos grupos domésticos, parentes dos
tébé, foi logo distribuída àqueles que lá se fizeram presentes. Nesta fase da cerimônia,
os ocupantes dos cargos cerimônias tébé não estavam no wedetede. Eles aguardavam,
juntamente com os demais heroi’wa, dentro da hö, casa dos solteiros. Não obstante, os
encarregados de levar os ornamentos corporais que seriam usados pelos tébé, ou seja, o
tépé’rada, o dahi’wa o ai’repudu, que recebe a designação cerimonial de
tepewaptsuimrami’wa103 – aquele que carrega o tepewaptsu, permaneceram em paralelo
cada um na frente de um dos postes do wedetede até o início da segunda parte da
cerimônia.
Neste ínterim, os homens retornaram novamente ao marã, local onde se
encontravam as demais capas de wamnhorõ. Ali seria realizada outra cerimônia no
intervalo da que estava em andamento. Tratava-se da escolha das capas que seriam
retiradas dos iniciandos pelos danhohui’wa,homens e mulheres, no dia seguinte como
parte da cerimônia do canto do wanaridobe. Segundo alguns informantes os
danhohui’wa, homens, podem chegar ao marã e escolher qualquer uma das capas que
ali estiver. Não obstante, a única regra a se observar é deixar que o nonimrami’wa, o
carregador do noni, seja o primeiro a escolher. O sinal de escolha, segundo os
informantes, é um laço feito com folhas ou seda de buriti amarrado no entorno das
capas. Enquanto conversava com o grupo de informantes era possível ouvir os
danhohui’wa ensaiarem no centro da aldeia o canto wanaridobe. Observando as capas
de wamnhorõ notamos que algumas já haviam sido previamente escolhidas, antes do
nonimrami’wa, a julgar pela seda de buriti que nela fora amarrado, sinal indicativo da
escolha. Ao mostrarmos e questionar o pai de um dos tébé sobre a transgressão da regra,

103
Cf. Giaccaria & Heide (1984:177)
279

o mesmo ficou furioso e disse que seu irmão, o dono do wamnhorõ, era um cabeça
dura, um cabeçudo. L., o pai do tébé, pegou uma faca e cortou a fibra que fora
amarrada no entorno do wamnhorõ. Posteriormente, R., o dono do wamnhorõ, que havia
ido ao riacho próximo do local, retornou e ao ver que o mesmo havia sido desamarrado
ficou indignado e o amarrou novamente. Questionamos R. sobre a regra que dava
preferência ao nonimrami’wa, que nos respondeu que não a seguiria. Soube, depois que
R. já havia combinado de antemão que outra pessoa seria dono do wamnhorõ que ele
havia preparado para seus filhos. Este foi o único mal entendido que observamos na
escolha das capas, mas não teve grandes repercussões no processo ritual. Por fim,
chegou o nonimrami’wa, que havia deixado o centro da aldeia, enquanto outros
companheiros, os danhohui’wa, continuavam a ensaiar o wanaridobe. C., o
nonimrami’wa, escolheu doze capas que seriam por ele retiradas cerimonialmente na
manhã seguinte. Cada wamnhorõ que ele amarrava os ĩprédu agradeciam solenemente:
hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, – obrigado, obrigado, obrigado, obrigado! Por fim, J., o pai de
um dos pahöri’wa o chamou até o centro do marã, onde ficavam as capas dos ocupantes
daquele cargo cerimonial, e ofereceu a C. o wamnhorõ de seu filho. Segundo L., um de
nossos tradutores, em seu discurso a C., aquele pai teria dito que estava dando a ele a
capa porque o mesmo teria trabalhado muito carregando o noni durante a cerimônia que
recebe o mesmo nome. O pai do pahöri’wa estava reconhecendo que C. assumira uma
tarefa que nenhum dos danhohui’wa quisera, e por isso ele estava sendo recompensado.
Ao terminar sua escolha o nonimrami’wa cedeu lugar aos demais danhohui’wa que
haviam chegado a marã. Eles se dividiram por clãs e começaram a amarrar os
wamnhorõ que seriam seus após o wanaridobe. No entanto, mantiveram a preocupação
de amarrarem capas que fossem de clã oposto ao seu, ou seja, öwawẽ e tob’ratato
amarrariam wamnhorõ de po’redza’õno e vice e versa. O pai do segundo pahöri’wa
chamou um tirowa do clã öwawẽ e perguntou se ele desejava amarrar a capa que seria
usada por seu filho, o restante da conversa se deu de modo particular e não foi possível
ouvir o que conversavam. Ao terminarem a conversa o tirowa ritualmente amarrou a
capa e foi ovacionado: hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, – obrigado, obrigado, obrigado,
obrigado! Ao terminarem de amarrar as capas os danhohui’wa e
ĩprédu retornaram novamente ao wedetede onde uma multidão voltou a se reunir
novamente para acompanhar o prosseguimento da cerimônia do tébé.
280

No dia anterior os danhohui’wa prepararam seis troncos em paralelo unindo os


dois postes do wedetede e montaram o wa’ritidzatsi, o ninho da seriema. Junto ao
quinto tronco, a contar de baixo para cima, é colocado outro no lado oposto, de modo
que fique como um banco entre os dois postes do wedetede onde no dia seguinte sentar-
se-á o wa’ritire, seriema. Giaccaria & Heide (1984:179) apontam que a construção do
ninho da seriema acontece após a cerimônia do tébé. Entretanto, não foi bem isso que
observamos nas duas iniciações que assistimos em 1997 e 2005. Nestas duas iniciações
a construção do ninho da seriema se deu no dia anterior à cerimônia do tébé visto que ao
seu final, como veremos adiante, o wa’ritire começa sua atuação e não haveria tempo
hábil para fazê-lo após a cerimônia. O wa’ritire, seriema, é um dos danhohui’wa,
escolhido entre membros do clã öwawẽ, e atua como um palhaço ou um bobo da corte.
Do alto, em seu ninho ele imita o canto da seriema e vez ou outra desce e se põe a correr
atrás das crianças (ai’repudu e ba’õno) que estão bisbilhotando no wedetede, palco dos
rituais. Aqui ele procura bater ou arranhar suas pernas com um galho seco. Não
obstante, igualmente os ĩprédu e ĩhire são vítimas wa’ritire. Neste caso, ele procura
beliscar as nádegas ou puxar a perna para que elas caiam. Os saltos de suas vítimas,
provocados pelos beliscões, arrancam gargalhadas daqueles que ali estão. M., pai de um
dos tébé, embora tenha atuado como wa’ritire há muito tempo, devido sua idade, de vez
em quando subia no wa’ritidzatsi, ninho da seriema, e incorporava o personagem e
descia perseguindo a todos, crianças e adultos, que ali estavam. Entre seus alvos
estavam também as mulheres que se reuniam nas proximidades, mas não podiam chegar
ao wedetede. As pi’õ ĩhire, anciãs, eram seus alvos prediletos por elas reagirem com
maior indignação, quando ele apertava-lhes as nádegas, e despertarem mais gargalhadas
entre a platéia.
Uma vez concluída a escolha das capas os ĩprédu retornaram novamente ao
wedetede onde o tépé’rada, o dahi’wa e o ai’repudu, cerimonialmente chamado de
tepewaptsuimrami’wa – aquele que carrega o tepewaptsu, ornamento de cabeça do tébé,
aguardavam silenciosamente o momento de início da cerimônia. Inicialmente os tébé,
que aguardavam na hö, casa dos solteiros, foram conduzidos ao wedetede, por outro
tépé’rada, onde se posicionaram, um em cima de uma lona preta e o outro sobre uma
esteira especialmente confeccionada por seu avô para este ritual. Ali os tépé’rada deram
início a ornamentação e pintura corporal dos ocupantes daquele cargo cerimonial.
Embora seja, papel dos tépé’rada fazer este trabalho, logo eles começaram a ser
281

ajudados pelos os ĩprédu e ĩhire. Primeiramente foram amarrados nos pulsos e


tornozelos feixes de seda de buriti pintada em vermelho. Antes aplicar a pintura os
corpos dos tébé foram untados com óleo de amêndoas e babaçu. A modalidade de
pintura aplicada aos tébé é a daupté, onde todo o corpo é pintado em vermelho.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:295) esta modalidade é usada no wai’a, celebração
religiosa. No entanto, na cerimônia do tébé ela sofre acréscimo. Depois de concluída a
pintura aplica-se duas faixas de resina, em paralelo, que se estende da altura dos
mamilos até a cintura. A resina aplicada serve para serem fixadas penugens brancas de
gavião real.
Neste ínterim, os heroi’wa, que também aguardavam na hö, foram conduzidos
formalmente por F. até o wedetede. Como em outras situações de deslocamento, os
pahöri’wa seguiam a frente do grupo e traziam os dois ĩni, ou brudu, tendo em suas
pontas as flautas tsidupu. Os demais heroi’wa posicionaram-se de forma semicircular
atrás do wedetede de onde puderam assistir a ornamentação dos tébé. Assim, uma vez
tendo concluída a pintura corporal pelos tépé’rada, os ĩprédu e os ĩhire pegaram os
wamnhorõ que os dahi’wa ainda seguravam e o colocaram sobre a cabeça dos tébé. O
ornamento foi amarrado sobre a testa dos tébé com a sobra de barbantes que foram
propositalmente deixados para isso no ato de sua montagem no marã. O movimento
seguinte foi fixar o tepewaptsu, tarefa feita pelos ĩprédu e ĩhire. Este ornamento de
cabeça, que assume o formato de uma cauda de pássaro, é preso atrás da cabeça do tébé
e para isso se utiliza os fios excedentes de barbantes de algodão que foram usados para
unir os pedaços de flechas e que serviram de base para o ornamento. Para completar a
fixação do tepewaptsu os ĩprédu e ĩhire enrolaram um faixa de fios de algodão, com
aproximadamente dois metros e meio de comprimento. Enquanto executavam este
trabalho J. e M., avós de um dos tébé, além de outros parentes começaram a chorar
segundo o modo Xavante. Ao final deste último ato tiveram que refazer todo o trabalho
em um dos tébé porque o tepewaptsu não havia ficado firme o suficiente e os ĩprédu e
ĩhire tinham medo que ele caísse durante a execução da cerimônia. Segundo L., pai de
um dos tébé, que apenas assistia a ornamentação do filho, caso o tepewaptsu venha a
cair durante a cerimônia o tébé que o estaria usando morria nos próximos dias ou
prematuramente jovem.
Com a conclusão da pintura e ornamentação dos tébé deram início as
demonstrações pelos tépé’rada de todas as classes de idade até que se chegasse o
282

momento da classe que estava sendo iniciada. Considerando a expectativa de vida


Xavante, mobilidade entre as aldeias, mortes e conflitos faccionais, nem todas as classes
de idade dispunham de tépé’rada para demonstrarem aos novos como se executava o
ritual. Diante disso, os Xavante passaram a eleger suplentes, como disseram, para fazer
par quando havia apenas um, ou até mesmo dois suplentes quando não havia nenhum
tépé’rada de determinada classe de idade. O mesmo se sucedeu com os
nonimrami’wa’rada, antigos carregadores de noni, que também participam destas
demonstrações assim como o atual nonimrami’wa, que toma parte da cerimônia
juntamente com os tébé. Os nonimrami’wa’rada que estavam faltando também foram
substituídos por suplentes. Quando chegou a vez dos tépé’rada da classe de idade
hötörã executar sua demonstração quiseram que o pesquisador fizesse às vezes de
suplente, uma vez que o mesmo é membro daquela classe. Recusamos desempenhar este
papel, tendo em vista que não sentíamos segurança em executar a performance ritual, e
outra pessoa foi indicada. Não obstante, o nonimrami’wa’rada que carregou o noni
durante a iniciação dos hötörã, portando pertencente à classe de idade tsada’ro, que fora
também danhohui’wa deles, estava presente na aldeia e assistia a cerimônia da porta de
sua casa, enquanto fumava seu cachimbo. Ao ser chamado aos gritos pelos ĩprédu e
ĩhire ele se recusava terminantemente a comparecer ao wedetede. Impacientes os ĩprédu
e ĩhire indicaram outro membro dentre os tsada’ro, um suplente, para fazer a
demonstração diante da recusa do titular.
Havia transcorrido quase uma hora e meia do início das pinturas e ornamentação
dos tébé até o momento deles executarem o ritual. Antes do início da performance ritual
o nonimrami’wa recebe um noni novo, recém confeccionada apenas para este ritual e
com tamanho maior do que os anteriores, durante as demonstrações os
nonimrami’wa’rada usam um noni velho e assenta-se numa esteira diante do wedetede.
Cada um dos tébé recebeu um waihi, uma espécie de cetro conforme descrevemos
acima, que foram usados durante a demonstração pelos tépé’rada. Para executar o ritual
os tébé se posicionam atrás do nonimrami’wa, que estava sentado tendo as pernas
estendidas e com o noni em suas costas, e lado a lado, começam a “abanar” e bater a
ponta do waihi sobre o noni e o nonimrami’wa. Buscando melhor apoio os tébé colocam
a perna direita um pouco a frente do corpo e enquanto batiam o waihi sobre o noni
marcavam um ritmo flexionando levemente o joelho. Após breve instante batendo sobre
o noni começaram também a assobiar ritmicamente acompanhando os movimentos das
283

pernas e do waihi. O assobio é interrompido por um momento, mas os tébé continuaram


a performance das pernas e do waihi, e retomam segundo depois. Ao todo a
apresentação tem aproximadamente um minuto onde o assobiar é intercalado três vezes.
Quando os tébé concluíram sua exibição foram ovacionados pelos ĩprédu e ĩhire que
estavam no wedetede, segundo o modo tradicional Xavante: hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, –
obrigado, obrigado, obrigado, obrigado!
Não obstante, esta primeira apresentação, no wedetede, foi a primeira de talvez
centenas que deveriam acontecer durante toda a noite. Desta forma, após os
agradecimentos os heroi’wa saíram em fila, tendo a frente os pahöri’wa que carregavam
dois ĩni, ou brudu, contendo em suas pontas as flautas tsidupu, percorrendo o sentido
anti-horário da aldeia, como fazem as classes de idade da metade cerimonial que estava
sendo iniciada, e pararam em frente da primeira casa, onde morava R., avô de um dos
tébé. C. o nonimrami’wa, carregador do noni, recebeu ajuda de dois dos heroi’wa, e
também seguiu em paralelo a fila sendo acompanhado por dois iniciandos, um deles
levava uma esteira onde o carregador do noni deveria sentar-se. Os dois tébé foram o
últimos a seguirem o cortejo. Quando chegaram à frente da primeira casa os heroi’wa,
de costas a casa, tinham assumido uma posição semi-circular tendo ao centro o
nonimrami’wa, que já estava sentado ritualmente na esteira. Ali os tébé executaram
novamente a mesma performance que havia feito no wedetede. Como já mencionamos,
eles seguiram noite adentro repetindo a cerimônia em diferentes pontos da aldeia.
Durante suas apresentações, idealmente eles deveriam permanecer com seus
ornamentos corporais. Entretanto, um fato histórico sem uma data cronológica definida,
mas muito vivo na memória ritual dos Xavante, permitia que a partir de determinada
hora a faixa de algodão e o tepewaptsu poderiam ser retirados. Segundo L., antigamente
os tébé ficavam com os ornamentos de cabeça durante a noite toda até que, numa
iniciação, um dos tébé veio a falecer porque o tepewaptsu fora amarrado de forma muito
apertada em sua cabeça. Então Tsihörirã104, um reformador e organizador de todos os
rituais Xavante, permitiu que o tepewaptsu fosse retirado depois que a noite estivesse

104
Poucos informantes se dispuseram a falar deste personagem, alegando desconhecerem sua
história. Entretanto, segundo P., Tsihörirã foi um filósofo Xavante que reformou e reformulou muitos
aspectos dos processos rituais. Este informante nos revelou que todas as pinturas e suas variantes para as
diversas cerimônias foram definidas por Tsihörirã. Não só a iniciação do danhono mas também a
iniciação do danhono e do darini, iniciação religiosa, bem como as diversas modalidade de celebrações
do wai’a, foram redefinidas por ele. Ainda segundo o informante, ele teve ajuda de um companheiro, mas
ninguém se lembra do nome dele. Este fato precisa ser mais pesquisado e aprofundado. Acreditamos que
ele possa fornecer uma chave importante para uma melhor compreensão de todo processo ritual de
iniciação dos Xavante.
284

bem avançada, escura e as mulheres se recolhido dentro das casas. Assim, por volta de
oito da noite fomos ao wedetede onde presenciamos a retirada dos ornamentos de
cabeça, ficando os tébé apenas com a capa wamnhorõ. Os tepewaptsu e as faixas de
algodão foram levadas para casa de um dos ĩhire e lá ficaram até a madrugada do dia
seguinte, quando foram novamente fixados nas cabeças dos tébé.
Durante a noite alguns dos heroi’wa foram dormir e poucos, os maiores,
acompanharam toda a cerimônia. No entanto, durante a madrugada foram despertados e
juntaram-se ao grupo que seguia executando o ritual. Já com o dia claro, os atores
rituais executaram pela última vez a performance no wedetede. Dali partiram em
direção ao local onde se inicia a corrida do noni, segundo o modo quando estavam
realizando aquela cerimônia, ou seja, à frente o nonimrami’wa seguido pelos pahöri’wa,
que havia deixado na hö os dois ĩni, ou brudu, com as tsidupu, depois os tébé com os
waihi, um aihö’ubuni e os demais heroi’wa.
No local de início da corrida do noni, o nonimrami’wa posicionou-se a frente
dos heroi’wa e balançou o noni, dando a última largada para que todos os heroi’wa,
menos os ocupantes do cargo cerimonial de tébé, partissem em direção ao wedetede.
Nesta parte da cerimônia cria-se grande expectativa em saber o clã, dentre os heroi’wa,
que vencerá esta corrida. Em Guadalupe o vencedor foi um heroi’wa pertencente ao clã
öwawẽ, o que provocou comentários negativos dos po’redza’õno. Entretanto, os
murmúrios do clã perdedor, neste contexto ritual, não compromete a estabilidade da
vida política da aldeia, eles apenas aumentam a glória dos vencedores. Com a chegada
dos heroi’wa no wedetede, o nonimrami’wa balançou novamente a capa do noni desta
vez dando a largada para que os dois tébé corressem naquela direção. Em verdade, eles
não correram e sim saltitavam, parecendo mais um trote, lado a lado até chegarem à
frente dos dois postes do wedetede, mas não o tocaram. Cada um se posicionou em
frente sobre uma esteira. Dois tépé’rada, que estavam devidamente pintados para esta
ocasião se encarregaram de retirar os ornamentos corporais dos dois tébé e os levaram
para casa. Neste ínterim, o nonimrami’wa deixou o local de início da corrida do noni e
correndo, segundo modo próprio, o seja, batendo as mãos sobre a capa do noni
forfalhando suas folhas, e dirigiu-se até o nonidza’odzé – lugar onde se guarda o noni,
onde depositou o noni pela última vez. Tanto na chegada dos tébé quanto do
nonimrami’wa os ĩprédu e ĩhire que ali estavam agradeceram solenemente: hepãrĩ,
pãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, – obrigado, obrigado, obrigado, obrigado!
285

Quando o dia amanheceu, antes da conclusão da cerimônia do tébé que


descrevemos acima, o wa’ritire, seriema, já estava sentado no wa’ritidzatsi, seu ninho,
ou seja, nos troncos colocados no dia anterior entre os dois postes do wedetede. Dali ele
emitia constantemente um grito anunciando sua presença e vez ou outra descia para
correr atrás das crianças ou beliscar as nádegas dos ĩprédu e ĩhire, que quase sempre
eram pegos de surpresa e davam pulos arrancando gargalhadas dos presentes. Ainda
sobre o encerramento do tébé, embora as mulheres não sejam formalmente aceitas no
wedetede para acompanharem as cerimônias, elas arrumaram uma maneira de
acompanhar o desfecho. Para isso se colocaram ao longo da pista de corrida do noni, de
onde puderam observar todo o desenrolar da cerimônia.
Não obstante, a chegada dos tébé no wedetede não encerra a cerimônia. O gran
finnalle estava acoplado ao rito do grito da anta, em xavante itsitrodzu105. Os tébé que
haviam concluído sua cerimônia e ficaram a frente do wedetede foram deslocados para
o lado onde estava o poste maior. Ali eles assistiram a demonstração de como executar a
cerimônia final. No dia anterior um grupo de homens foi às cabeceiras onde crescem os
buritizais e coletaram novos brotos de buriti. No entanto, estes novos brotos foram
extraídos a partir do cerne da palmeira, próximo ao palmito. Com isso cada um dos
brotos tinha aproximadamente quatro metros de altura. Acerca de um metro foi
amarrado uma popara, colar de unhas de queixada ou veado campeiro. A exibição sobre
o procedimento ritual começou com os tépé’rada, de todas as classes de idade. Por fim
chegou à vez dos atuais tébé, onde cerimonialmente deveriam colocar-se entre os dois
postes do wedetede. Ali individualmente tinham que levantar o broto de buriti
verticalmente e bater sua ponta no chão. Quando o broto estava elevado o tébé deveria
emitir um grito longo: Kuuuui, kuuuui. Segundo L., o grito indicava que a anta havia
sido abatida. A performance foi repetida três vezes por cada um dos tébé e
posteriormente pelos pahöri’wa e em seguida pelos demais heroi’wa. Ao término de
cada apresentação individual os ĩprédu e ĩhire agradeciam: hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, –
obrigado, obrigado, obrigado, obrigado! Além de tecerem comentários sobre o
desempenho do heroi’wa. Alguns heroi’wa não conseguiam emitir o grito, outros por
serem muito pequenos sequer conseguiam erguer o broto de buriti para batê-lo ao chão.
Nos dois casos os presentes riam demoradamente. Sobre estes L. nos disse que não

105
A categoria itsitrodzu nos foi repassada como sendo o nome da cerimônia. Não obstante, não
conseguimos verificar se há outra categoria nativa que possa ser usada para designar esta cerimônia.
Temos dúvidas sobre sua grafia.
286

seriam bons caçadores e mesmo que conseguissem abater uma anta a perderiam por não
saberem gritar para avisar os demais caçadores. Neste ínterim, o wa’ritire, seriema,
continuava a espantar os ai’repudu e ba’õno que insistiam em permanecer no wedetede.
Segundo L., o termo itsitrodzu além de indicar o grito da anta, ele indica que a
parte mole do broto está sendo amassada. O mesmo é também usado para indicar que
alguém está chupando o coco da palmeira bocaiúva106. Noutra acepção, é comparado ao
ato de socar no pilão. Por fim, indica também uma fantasia sexual de sexo anal. Neste
último caso, segundo L., itsitrodzu seria o pênis do homem batendo no ânus da parceira.
Ao término do grito da anta, os heroi’wa se retiraram à hö e os tébé foram ao
riacho para tomar banho e retirar a pintura corporal. Os demais retornaram às suas casas
para tomarem café e começarem a se preparar para a próxima cerimônia que viria em
seguida.
No início da descrição colocamos uma questão: seriam os tébé adoradores da
lua? A questão é posta porque alguns missionários salesianos associaram o ritual
noturno à adoração da lua. Alguns Xavante assumiram esta explicação e não raro ainda
a utilizam. Não obstante, conversando com alguns informantes e com Josina, voluntária
leiga que trabalha na missão salesiana de São Marcos há mais de quarenta anos e nos
ajudou no diálogo com alguns anciãos, fomos informados que o ritual do tébé por ser a
noite não traz nenhuma relação com a lua. A referência aqui é feita ao pássaro noturno
conhecido pelos Xavante como tepere. O tepere é conhecido pelos moradores regionais
como caburé107, uma espécie de coruja. Durante sua performance ritual os tébé ao
balançarem waihi emitem assobios em três intervalos em cada apresentação. Quando se
houve o som do canto do pássaro caburé a semelhança com o assobio que os tébé fazem
é muito grande, inclusive as pausas que o pássaro faz são semelhantes à performance
dos tébé. Ademais, observando a montagem do tepewaptsu, adorno de cabeça dos tébé,

106
Conforme o dicionário Aurélio: bocaiúva [Do tupi.] Substantivo feminino. Bras. Bot. 1.
Palmeira (Acrocomia mokayayba) encontrada em MT e MS, dotada de frutos drupáceos globosos,
comestíveis, e espique de até 7m de altura; mocajaíba. 2. Palmeira (Acrocomia odorata), encontrada em
MT e MS, de frutos drupáceos doces, e caule liso e fino; bocaiúva-de-são-lourenço, bocaiúva-dos-
pantanais. 3. V. coco-de-catarro.
107
Na ONG CEO - Centro de Estudos Ornitológicos estudo e preservação das aves em sua
página na rede mundial de computadores (www.ceo.org.br/) é possível encontrar imagens e sons do canto
deste pássaro. Helmut Sick, em seu livro Ornitologia Brasileira, apresenta três tipos de caburé: CABURÉ-
MIUDINHO, Glaucidium minutissimum; caburé-da-amazônia CABURÉ-MIUDINHO, Glaucidium hardyi; e,
caburé Glaucidium brasilianum. Estes pássaros são da ordem strigiformes, família: strigidae. Dentre os
três tipos o que apresenta o canto mais próximo do assobio que os tébé fazem durante o ritual é o caburé
Glaucidium brasilianum. Entretanto, segundo o autor, este pássaro canta freqüentemente durante o dia
(SICK, Helmut, 1997:403).
287

quando montavam e desmontavam o ornamento, perguntamos por que não estava bom,
e a resposta foi: porque não está igual ao rabo de pássaro!
Outra observação de campo ajuda a relativizar a referência do ritual com a lua,
está no fato de que nos dia em que se realizou este ritual na aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe (25/08/05) a fase lunar108 estava na véspera do início da minguante, quando
o astro surge à meia noite e se põe ao meio dia. Quando realizou-se este mesmo ritual na
aldeia São Marcos (01/09/2005) a lua estava na fase final da minguante e iniciando a
nova o que se daria no dia 03, ou seja, quando a lua praticamente desaparece da noite.
Um levantamento mais extenso dos locais e datas em que foram realizadas os rituais do
tébé poderá mostrar se há, ou não, ligação entre o ritual e o astro, haja vista que ele pode
estar visível ou não.
Os Xavante não gostam de falar de seu universo cosmológico, conforme já
afirmamos em outro momento. Acreditamos que um aprofundamento sobre este
universo cosmológico e o simbolismo dos adornos e pinturas corporais seria um passo
importante para uma melhor compreensão deste ritual. Por hora estamos interessados
em seus usos político.

3.17 – PAHÖRI’WA – ADORADORES DO SOL?

Após um rápido café da manhã, depois que foi concluída a cerimônia do tébé,
fomos ao marã para acompanhar o ensaio das capas do wamnhorõ e da performance
ritual dos pahöri’wa. No marã a maioria das capas já havia sido levada as casas. Ali
ficaram somente aquelas que seriam usadas durante a apresentação de um canto e dança
que ocorreria por volta de meio dia. Quando chegamos o ensaio do canto e dança já
havia acontecido. Segundo informantes que estavam no local, apenas dois ĩhire,
anciãos, fizeram a demonstração. Do marã nos dirigimos a outro local, que pode ser
igualmente considerado um marã, ali encontramos um grupo de danhohui’wa tsipi’õ,
madrinhas – mulheres ligadas à mesma classe de idade dos danhohui’wa, padrinhos,
que patrocinam a iniciação da classe de idade junior de sua metade cerimonial, que
estavam se pintando para a cerimônia. Elas adotaram a modalidade de pintura que
assemelha-se a uma camuflagem, onde o corpo e o rosto são pintados com carvão
desenhando-se vários riscos. Para acompanhar esta modalidade vestiram calções e sutiãs

108
Consulta realizada na rede mundial de computadores, página do Departamento de Astronomia
do Instituto de Física da UFRGS: http://astro.if.ufrgs.br/.
288

pretos, sendo a parte descoberta preenchida com a pintura mencionada. Informantes


disseram que esta modalidade de pintura recebe o nome de hötörã, categoria que
também indica o nome de uma classe de idade, por se parecer com um peixe que recebe
o mesmo nome. De volta ao marã das capas wamnhorõ encontramos os homens
divididos segundo sua filiação clãnica, os öwawẽ - do lado do sol nascente; e os
po’redza’õno – do lado onde o sol se põe, traçando as estratégias de entrada na aldeia
no momento propício durante a cerimônia dos pahöri’wa. Terminadas as discussões eles
voltaram a se reunir para acompanhar as demonstrações dos pahöri’wa’rada aos novos
pahöria’wa sobre o procedimento cerimonial. Aqui novamente a ausência de
pahöri’wa’rada foi resolvida com a escolha de suplentes, como ocorreu na cerimônia
dos tébé. De mais a mais, esta apresentação no marã se deu porque boa parte dos
homens estariam escondidos e não veriam a apresentação dos atuais pahöri’wa, como
nos disse um informante.
De fato, como veremos adiante, no wedetede, palco da cerimônia, as
demonstrações foram repetidas. Retornamos mais um vez ao segundo marã, onde desta
vez, após concluírem a pintura corporal as danhohui’wa tsipi’õ, madrinhas, ensaiavam
cantos. E mais uma vez voltamos ao marã das capas, onde acompanhamos desta vez a
pintura corporal dos homens que fariam a dança das capas. Aqui chamamos atenção à
modalidade de pintura adotado e sua relação com o wai’a, celebração religiosa. Antes
de começarem a se pintar todos os homes fizeram uma tonsura no centro da cabeça,
danhire’pre109, ou seja, rasparam ali os cabelos de forma circular, própria das
celebrações do wai’a. Os ornamentos corporais, pulseiras de punho e tornozelos, foram
igualmente os mesmos usados do wai’a. A pintura corporal aplicada foi a modalidade
daupté, onde todo o corpo é pintado de vermelho. Após a pintura desenha-se dois ou
três riscos, dependendo da filiação aos grupos de culto no wai’a, usando as cunhas dos
dedos indicador, médio e anelar. A variação em relação ao wai’a foram os desenhos
indicativos da filiação clânica nas têmporas, e ainda faixas acima ou abaixo dos lábios.
Deixamos o marã das capas, nos dirigimos à aldeia, e fomos à casa do grupo
domésticos de um dos pahöri’wa. Ali a cena era semelhante àquela que observamos no
dia anterior na casa de um dos tébé, ou seja, membros e parentes do clã po’redza’õno
estavam se pintando para o grande evento. No entanto, a modalidade de pintura adotada
pelos membros daquele clã para esta ocasião era completamente diferente. Enquanto no

109
Cf. Müller, 1976:52.
289

dia anterior membros do clã öwawẽ adotaram a modalidade daupté, os po’redza’õno


aplicaram a pintura tsanapré, onde é desenhado em vermelho um retângulo no abdômen
e outro nas costas percorrendo a espinha, nas panturrilhas usaram o padrão date’rã,
pintadas com carvão. Aquelas pessoas que desempenhariam algum papel especial
durante o ritual usavam calções e sutiãs brancos, enquanto as demais usavam as mesmas
peças em vermelho. Havia também uma diferença nos adornos corporais usados entre os
que teriam participação direta e aqueles que seriam coadjuvantes. No primeiro caso, as
cordinhas wedenhorõ, amarradas nos pulsos e tornozelos, foram substituída por embiras
do mesmo tipo que os homens usam durante o wai’a. Ainda em relação do primeiro
grupo, os que teriam participação direta, a ornamentação corporal ficou completa com
uma pintura em volta da boca com carvão. Novamente observamos que algumas
mulheres usavam outras modalidades de pintura, como dauhö – onde além dos
retângulos no abdômen e nas costas, elas pintam o restante o corpo em preto, e as
franjas acima da testa em vermelho tendo os cabelos amarrados em forma de rabo de
cavalo num pedaço de wabu, talo seco da folha de buriti, e posteriormente amarrado
com fios vermelhos de algodão. Em menor número, algumas seguiram a modalidade
daupté, ou seja o corpo todo pintado de vermelho.
Já era quase meio dia quando os membros do clã po’redza’õno deixaram a casa
dos dois grupos domésticos onde viviam os ocupantes do cargo cerimonial pahöri’wa.
Como no caso dos tébé os grupos domésticos deixaram as casas seguindo ritualmente
em fila até o wedetede. A frente da fila estava um pahöri’wa’rada, que levava como um
estandarte o ĩni, ou brudu, contendo na ponta a flauta tsidupu, seguido por um
ai’repudu – que transportava num renhamri os ornamentos corporais que serão usados
pelos pahöri’wa. Atrás deste veio um pahöri’wa ĩté, último a desempenhar este cargo
cerimonial, trazendo embiras e um colar especial de algodão no qual estava presa uma
pena rosa de garça. Imediatamente após o pahöri’wa ĩté, acompanhava uma adzarudu,
moça antes do casamento, que transportava o tsi’õtõ höpo, cesto de carne. Logo após
seguiram os demais membros do clã po’redza’õno que levavam pedaços de carne e
bolos de farinha de trigo. Ao atingirem o wedetede, palco da cerimônia, os dois cortejos
depositaram os cestos e os pedaços de carne e os bolos sobre palhas secas de buriti
especialmente ali colocadas. Este conjunto de alimentos conduzidos ao wedetede é
chamado pahöri’wa manadö, ou seja, banquete do pahöria’wa. Parte da comida ali
conduzida é distribuída. Segundo Giaccaria & Heide (1984:179) esta distribuição foi
290

feita pelos pahöri’wa’rada aos membros do clã po’redza’õno. Ainda segundo os


autores os öwawẽ receberão seu quinhão fora do wedetede, em sua casa. Observamos
que os cestos de carne foram conduzidos novamente aos grupos domésticos de onde
foram retirados. Concomitantemente, no alto em seu ninho, wa’ritidzatsi, o seriema,
wa’ritire, emitia constantemente gritos anunciando sua presença. Para otimizar sua
performance ele havia preparado um tipo de massa líquida composta de água e farinha
de trigo. Vez ou outra ele atirava parte desta massa nas pessoas que estavam embaixo.
Segundo F., quando o wa’ritire agia desta maneira o mesmo estava defecando sobre as
pessoas.
Os cestos de carne e o ĩni, ou brudu, com as flautas tsidupu, foram logo retirados
do local, sendo levados novamente cada um ao local de onde havia saído em cortejo. A
seguir um dos ĩhire se dirigiu até a hö para buscar os heroi’wa, sem a presença dos
pahöri’wa, que se posicionaram atrás do wedetede, como haviam feito no dia anterior
durante a cerimônia dos tébé. Ali eles pegaram restos de brotos de buriti e amarraram
como uma fita em volta da cabeça, deixando que o excedente descesse junto dos longos
cabelos. Todos receberam igualmente chumaços, que pareciam pompons de torcidas
organizadas, da seda de wamnhorõ que havia sobrado. T., um dos pahöri’wa’rada, se
dirigiu até a hö e conduziu até o wedetede os dois escolhidos para desempenharem o
cargo de pahöri’wa.
Com a chegada dos pahöri’wa no wedetede os ataques do seriema cessaram,
limitando-se apenas a emitir os gritos, que imitam o canto daquela ave. Aqui o clima de
jocosidade que o seriema provocava deu lugar à comoção dos parentes ligados aos
pahö’ri'wa. Eles foram posicionados de joelhos sobre duas esteiras, onde os pahöri’wa ĩ
té primeiramente ungiram seus corpos com óleo de amêndoas de babaçu, extraído
mediante mastigação e cuspido nas mãos para serem espalhados em seguida. Ao
término desta unção aplicaram a pintura corporal e depois vestiram adornos. Neste
ínterim, inspecionamos rapidamente os arredores do wedetede, onde localizamos o
grupo de danhohui’wa tsipi’õ, madrinhas, que durante a manhã havíamos encontrado no
segundo marã se pintando e posteriormente ensaiando cantos, escondidas acerca de
cinqüenta metros do palco ritual, o wedetede. Não muito distante delas encontramos M.,
pai de um dos tébé, um dos ĩhire, ancião, escondido com uma das capas wamnhorõ. O
mesmo nos disse que escolheu ficar mais perto do wedetede porque não teria forças para
correr muito durante sua atuação que estava por vir.
291

De volta ao wedetede vimos os pahöri’wa ĩté concluírem a pintura corporal dos


pahöria’wa, cuja modalidade foi tsanapré, ou seja os retângulos em vermelho nas
costas e no abdômen. Complementa a pintura corporal o uso de calções brancos. Em
seguida os ĩprédu, ĩhire e pahöri’wa’rada começaram a vestir os ornamentos corporais
próprios dos pahöri’wa. Já dissemos em outro momento que um ano antes dos ritos
conclusivos do danhono os pahöri’wa cerimonialmente têm os lóbulos das orelhas
furados antes dos demais. Durante o período que antecede a realização dos ritos finais
do danhono, entre eles a própria cerimônia do pahöri’wa, os ocupantes deste cargo
cerimonial vão paulatinamente introduzindo batoques auriculares maiores para
aumentar o furo nos lóbulos da orelha. O objetivo é deixar estes furos bem dilatados
para que durante a esta cerimônia possam ser introduzido neles um adorno corporal
chamado ĩpo’redza’ru110, ou dapo’redza’ru. Este ornamento é confeccionado com um
pedaço de taquara de flecha, watétéihi, com aproximadamente quarenta e cinco
centímetros, penas de arara, fios algodão, dente de capivara, unhas de veado ou
queixada e sementes de capim navalha – a’é. O dente de capivara é encaixado numa
das extremidades do wateteihi sendo em seguida encapado com fios de algodão,
tomando-se o cuidado de enrolar um pouco mais de fios no local onde o dente de
capivara foi encaixado, evitando que se solte. Neste local é aplicada uma resina e
depois raspas, semelhante a serragem, do tronco de uma árvore. Na outra extremidade
na parte oca são colocadas peninhas de arara e onde também prende-se três correntinhas
de a’é, capim navalha, com pouco mais de cinco centímetros que terminam cada uma
com uma unha de veado e uma pena de arara, de modo que ao final o ornamento tenha
de um lado o dente de capivara, no meio o corpo encapado com fios de algodão, e outro,
no final três penas de arara. Para cada um dos pahöri’wa são confeccionados dois destes
ornamentos. Deste modo no dia da cerimônia, os pahöri’wa’rada e os ĩhire pegaram os
dois ĩpo’redza’ru e passaram os dentes de capivara em cada um dos furos nos lóbulos
auriculares e juntaram os wateteihi atrás da cabeça amarrando-o e deixando-o como um
xis. Em seguida eles pegaram uma faixa composta de fios de algodão com
aproximadamente dois metros de comprimento e enrolaram sobre a cabeça dos
pahöri’wa, na altura da testa e passando sobre as orelhas, deixando a mostra somente os
dentes de capivara, de modo que ao final ficou parecendo um turbante. Ao término da
pintura e ornamentação corporal os pahöri’wa permaneceram de joelhos enquanto os

110
Müller (1976:59) grafa este ornamento corporal como dapo’rẽja’ru.
292

pahöri’wa’rada de todas as classes de idade, a começar pela mais antiga, depois de


vestirem um colar confeccionado com os anhana’rãtomri, ou seja, com as folhas de
buriti que foram dobradas sempre que se fazia uma nova capa de noni, como vimos nas
páginas precedentes, começaram a demonstrar aos neófitos como deveriam proceder
durante a cerimônia. Isto já havia sido feito no marã na parte da manhã, conforme
descrevemos acima. Deste o início da pintura e ornamentação corporal dos pahöri’wa
seus parentes começaram a chorar. L., avó de um dos pahöri’wa pegou dois renhamri,
tampa de cesto, um para sentar-se e outro para cobrir a cabeça para proteger-se do sol
forte, e colocou-se ao lado do neto e chorava copiosamente.
No wedetede, horas antes do início da cerimônia R. tomou uma enxada e
desenhou um círculo, movendo parte da areia. Este círculo foi abruptamente
interrompido por uma reta secante que direcionava os atores rituais ao ponto de origem.
Segundo um de nossos informantes esta delimitação chama-se tsahödö111. Terminada as
demonstrações dos pahöri’wa’rada os pahöri’wa se colocaram de pé para receberem,
cada qual o colar de folhas de buriti dobradas, anhana’rãtõmri112, e uma nova popara,
colar de penas e unhas de veado ou queixada, amarrada na panturrilha da perna direita.
Para iniciar a cerimônia, ambos se colocaram ajoelhados sobre a perna esquerda, com as
mãos cruzadas sobre o peito e a perna esquerda dobrada em ângulo de noventa graus.
Nesta posição e lado a lado eles rapidamente abaixaram o tronco, como uma reverência,
bateram o calcanhar direito, fazendo soar a popara, olharam alguns segundos para o alto
sua a direita e virando subitamente em seguida o olhar para a esquerda. Em seguida,
ainda na mesma posição começaram a fazer vibrar a popara olhando alternadamente
para direita e para esquerda. Os dois se levantaram, perfilados e com as mãos unidas
sobre o peito puseram-se a saltar batendo fortemente a perna direita no chão e
percorrendo o círculo (tsahödö) na frente do wedetede. Olhando fixamente para frente,
deram três saltos e mudaram o olhar para o lado oposto, mais três saltos, voltaram a
olhar na direção anterior, mais três saltos e inverteram o olhar novamente, e por fim
outros três saltos outra mudança de olhar e depois de três saltos uma parada brusca
assumindo a mesma posição de início. Nesta parada executaram a mesma performance
que marcava o início do ritual. Deste ponto levantaram-se, ainda com as mãos cruzadas
sobre o peito, seguindo por uma reta secante ao círculo, que não chegou a se formar em

111
O termo pode referir-se ainda ao ato de mover terra, como por exemplo: terraplanagem.
112
De acordo com L. este termo é também usado para designar um besouro chamado
popularmente de rola-bosta, um tipo de escaravelho.
293

seu percurso, retornaram lado a lado batendo fortemente a perna direita até o ponto de
partida. Esta performance começou às doze horas e vinte minutos terminado às doze e
vinte sete. Enquanto os pahöri’wa dançavam, como dizem os Xavante, todo seu grupo
doméstico estava em prantos, os demais que assistiam permaneceram calados o tempo
todo. Ouvia-se os sons da popara durante os saltos e quando estava sendo vibrada, o
choro dos parentes e o grito melancólico do seriema que estava no alto dos postes no
wedetede. O cacique, avô de um dos pahöri’wa, chorava copiosamente e volume de seu
choro podia ser ouvido à distância. Tanto na apresentação dos pahöri’wa’rada e dos
pahöri’wa houve a necessidade de se molhar a terra que estava escaldante pela alta
temperatura naquela hora do dia, que deveria estar próxima de 40º C. O primeiro
pahöri’wa’rada não chegou a atingir o primeiro ponto de corte do círculo, de onde
seguiria pela reta secante até o local de início, apesar de muitos gritos indicando os
locais de mudança de olhares e até onde devesse ir.
Ao término da cerimônia os pahöri’wa foram rapidamente despidos de seus
adornos corporais que foram entregues aos pahöri’wa ĩté, que por seu turno levaram
instantaneamente para suas casas. Imediatamente os pahöri’wa foram vestidos com os
wamnhorõ ĩdzub’a, o wamnhorõ sem pintura, e tiveram outra faixa de algodão enrolada
sobre a cabeça, como um turbante. Neste ínterim um grupo de ĩhire, gritava na direção
de onde estariam as danhohui’wa tsipi’õ: dzahadu, dzahadu, dzahadu! Esperem,
esperem, esperem! Enquanto recebiam o wamnhorõ ĩdzub’a os pahöri’wa foram
rodeados pelos demais heroi’wa, que eram ao mesmo tempo orientados por F. sobre
como deveriam agir na próxima seqüência da cerimônia. Em meio à gritaria dos
ĩprédu e ĩhire, que pediam pressa nesta fase do ritual, foram obrigados a deitarem por
instantes sobre esteiras colocadas à frente do wedetede. Ao se deitarem foram
totalmente envoltos pelos heroi’wa que ficavam abanando nas costas os maços de sedas
de buriti que haviam recebido no momento em que foram conduzidos até o wedetede.
Em seguida os ĩhire, anciãos, emitiram um grito sinalizando às danhohui’wa tsipi’õ –
madrinha, que haviam se pintando e se escondido nos arredores da aldeia, que
entrassem em cena.
Concomitantemente, os pahöri’wa ainda com as esteiras nas costas se
levantaram, sempre rodeados e protegidos pelos demais heroi’wa, e puseram-se a correr
lentamente em direção ao centro da aldeia. As danhohui’wa tsipi’õ igualmente
invadiram o wedetede e correram em sua direção para tomar as capas wamnhorõ
294

ĩdzub’a. Logo que conseguiram despojar os pahöri’wa das capas wamnhorõ ĩdzub’a
receberam pequenos cestos, de parentas que estavam à espera, e saíram correndo na
direção das casas dos grupos domésticos dos pahöri’wa para receberem parte da carne
que fora levada para lá no início da cerimônia. De acordo com L. este momento
constitui também um treinamento para o dia seguinte quando deverão retirar o
wamnhorõ dos demais heroi’wa, após o final do canto wanaridobe, como veremos
adiante. Enquanto isso, sempre aos gritos de: cuidado! depressa!, os ĩprédu e ĩhire
pediam que todos deixassem logo a frente do wedetede, tendo em vista a performance
ritual seguinte.
Enquanto os heroi’wa e os pahöri’wa retornavam novamente para atrás do
wedetede, e as danhohui’wa tsipi’õ, madrinhas, corriam atrás da carne os ĩprédu e ĩhire
que haviam se escondido nos arredores da aldeia com as capas wamnhorõ entraram na
aldeia com elas em punho e correram até o wedetede, onde ficaram dando voltas em
sentido anti-horário até que todos chegassem. Quando os ĩprédu e ĩhire paravam,
agitando as capas, procuravam apoiar-se sobre a parte externa dos pés, procurando
deixar a sola dos pés fora de contato com o chão devido ao forte calor que deixava à
areia muito abrasiva. Embora muitos usassem tênis ou meias, foi necessário que os
parentes jogassem água no local onde estavam para refrescar o chão. Com a chegada de
todos, eles pararam de correr e ficaram agitando o wamnhorõ no ar de acordo com o
modo particular de cada clã113, enquanto Sabino, um dos ĩprédu do clã po’redza’õno,
ligado à metade cerimonial do wai’a chamada pi’rebapradza, os de baixo, entrava
dentro círculo com um chocalho de unhas de veado que marcava o ritmo da dança das
capas. Este ĩprédu começou a puxar um canto chamado wai’a’rãpó114 e foi
imediatamente acompanhado pelos demais portadores da capa. Entretanto, cantavam de
maneira extremamente baixa, parecendo mais um sussurro, para que os demais não
ouvissem, ou entendessem o que era cantado. Ao término do canto os ĩprédu e ĩhire
deixaram o wedetede e correram na direção das casas onde moravam aqueles que

113
Os membros do clã öwawẽ flexionando as pernas no ritmo do chocalho levanta e abaixam as
capas do wamnhorõ, enquanto que os membros do clã po’redza’õno, sob o mesmo ritmo, movimentam as
capas para frente e para trás, esticando e recolhendo o braço esquerdo com o qual seguram as capas.
114
O canto do wai’a’rãpó é prerrogativa do clã po’redza’õno e deve ser executado por um
membro da metade cerimonial do wai’a – cerimônia religiosa, pi’rebapradza. É o mesmo canto que
provocou a ira dos dahi’wa no acampamento de caça quando o cacique convocou-os a executarem o
canto na frente do heroi’wa que ali estavam. Este canto foi novamente ensaiado em diversos momentos
no acampamento das capas, quando o wamnhorõ estava sendo montado. De acordo com L., em oposição
a metade cerimonial pi’rebapradza estão os höimapradza, ligados aos clãs öwawẽ e tob’ratato. Estes
últimos nunca deverão se colocar como puxadores deste canto.
295

usariam no dia seguinte as capas de wamnhorõ que traziam. As capas foram depositadas
sobre as camas onde dormiam os heroi’wa, as ba’õno e as adzarudu. Em seguida os
ĩprédu e ĩhire retornaram novamente ao marã, encerrando a cerimônia.
Acompanhamos esta mesma cerimônia em São Marcos. Ali o canto do
wai’a’rãpó entoado, no centro do circulo formado por aqueles que transportavam as
capas, por T. O diferencial aqui foi o uso de uma pintura corporal, adota por J.M., um
dos que transportavam uma capa wamnhorõ, que ainda não tínhamos visto: atsada’rã,
lobo guará. Nesta modalidade pinta-se o tronco e os braços até os cotovelos todo em
vermelho o restante é pintado de preto com carvão. Parte do rosto do ator ritual é
pintada de vermelho, enquanto que o entorno da boca, das maças ao queixo e abaixo do
nariz, é pintado de preto. Esta modalidade de pintura é usada num dos momentos do
ritual de nominação das mulheres, conforme descrição deste ritual em Giaccaria &
Heide (1984:243-248).
Após o término da cerimônia, na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, os ĩprédu
e ĩhire reuniram-se no wedetede e começaram a discutir a performance ritual. A
principal questão trazida a eles foi à participação a revelia de uma mulher que não
pertencia à classe de idade tirowa. Na perseguição aos pahöri’wa quando estes
deixaram o wedetede, sendo protegidos pelos heroi’wa, e foram interceptado pelas
danhohui’wa tsipi’õ, madrinhas, que estavam escondidas nos arredores, esta mulher
correu antes das danhohui’wa tsipi’õ e retirou o wamnhorõ de um dos pahöri’wa.
Soube que esta mulher pertencia à classe de idade hötörã, ou seja, à metade cerimonial
oposta àquela que estava patrocinando a iniciação dos abare’u. Segundo L., a prima
desta mulher por ser gorda e mais lenta teria combinado com a mesma que ficasse nas
proximidades do wedetede e quando os velhos dessem o sinal ela corresse a frente e
capturasse o wamnhorõ ĩdzub’a, wamnhorõ sem pintura. A estratégia deu certo, depois
que a mulher de V. pegou o wamnhorõ ĩdzub’a ela o entregou a D. Entretanto, apesar de
tudo os ĩprédu e ĩhire não solicitaram que o wamnhorõ ĩdzub’a fosse dado à outra
pessoa. As discussões e reprovações continuaram por cerca de meia hora e aos poucos
as pessoas foram se dispersando. Novamente afirmamos que este tipo de questão não
compromete o tecido social político da aldeia. No âmbito da performance ritual é bem
provável que na próxima iniciação as mulheres da classe de idade tirowa acionem o
instrumento da vingança e procurem tomar o wamnhorõ ĩdzub’a das mulheres da classe
296

de idade ẽtepa
˜ , que estarão desempenhando o papel de danhohui’wa tsipi’õ, madrinhas,
da classe de idade nodzö’u, classe de idade que estará sendo iniciada.
No final da tarde deste mesmo dia os danhohui’wa e as danhohui’wa tsipi’õ
ensaiaram pela última vez o canto do wanaridobe. Ao final deste ensaio reuniram-se em
local separados, divididos por clãs, para traçarem as estratégias de retirada das capas de
wamnhorõ após o canto do wanaridobe, que aconteceria na madrugada do dia seguinte.
Assistimos esta mesma cerimônia na aldeia São Marcos. Guadalupe realizou um
ritual mais repleto de emoções externada pelo choro dos parentes daqueles que tinham o
cargo cerimonial de pahöri’wa. A atuação do wa’ritire, seriema, se deu de modo mais
cômico do que em São Marcos. Em São Marcos prevaleceu um ritual mais canônico,
com atores rituais devidamente posicionados em pontos rigidamente demarcados. Estas
comparações que fazemos não têm por intenção mostrar qual das aldeias teria feito o
ritual mais ou menos completo. Elas são importantes na medida em que os próprios
atores sociais acionam estas diferenças para desqualificar uns aos outros. Foi o caso, por
exemplo, da aldeia de N. S. de Fátima que igualmente realizava a iniciação do danhono.
Naquela aldeia um dos ĩhire, ancião, concedeu um dia de folga aos heroi’wa,
provocando um hiato entre as cerimônias do tébé e pahöri’wa. Tal atitude gerou
comentários de reprovação da parte dos ĩhire, anciãos, de Guadalupe bem como das
demais aldeias que realizavam o danhono. Embora, as aldeias Guadalupe, São Marcos e
Fátima se colocam como antagônicas umas em relação às outras, nesta ação envolvendo
o processo ritual todas se colocaram contra as atitudes do ĩhire de Fátima.
Como no ritual do tébé, acima lançamos a questão: adoradores do sol? Esta
surge devido às mesmas considerações que traçamos para os tébé, ou seja, a referência
pelos missionários salesianos de que este ritual, o dos pahöri’wa, seria uma adoração do
astro sol, idéia que alguns Xavante também assumiram. A confusão sobre este ritual
aparece quando se compara o percurso ritual que os pahöri’wa fazem quando executam
o ritual. O fato de eles iniciarem o ritual e depois movimentarem-se por um círculo que
se interrompe por uma reta secante e retornando ao ponto de origem levaram os autores
Giaccaria & Heide (1984:181-182) a comparar o trajeto com o nascer e pôr do sol.
Quando chegam diante do lugar donde partiram, param e se colocam
um ao lado do outro, de joelhos, e logos depois, sempre um ao lado
do outro, voltam ao ponto de partida, com o olhar não mais voltado
para cima, mas para a terra e sem virar a cabeça. O percurso dos
dançarinos corresponde perfeitamente à idéia que eles têm do
caminho do sol; por isso parece fundada a hipótese de que no sol,
297

mais precisamente, no itinerário que o sol faz no céu inspira-se esta


dança dos PAHÖRI'WA (Giaccaria & Heide, 1984: 181 e 182).

Os informantes com os quais conversamos sobre a relação do sol com o ritual


dos pahöri’wa não confirmaram que se tratava de uma adoração, ou veneração. Alguns
dos ĩhire, anciãos, segundo Josina115, disseram que se tratava de uma amizade com o
sol, e não deram mais explicações. Acreditamos que não se trata de uma relação
explicitamente com o sol, mas com o dia que tem como centro quando o sol está a pino.
Deixamos aqui uma pista para outros desdobramentos de pesquisa. Quando morre um
pahöri’wa, independente de ser moço ou velho, ele é sepultado quando o sol está a pino.
Foi o que presenciamos quando morávamos na aldeia São Marcos, quando ali faleceu
Apoena, a liderança que conduziu os Xavante a buscarem ajuda junto aos missionários
salesianos que trabalhavam na missão salesiana de Merure em 1956 e depois foram
transferidos para aquela aldeia em 1958. Seria uma referência ao ritual realizado por
ele? Ademais, não encontramos em outros autores (Maybury-Lewis e Lopes da Silva)
qualquer referência à lua e sol como entidades divinas. Pelo contrário, o universo
cosmológico e religioso Xavante aponta para existência de seres metafísicos e não para
elementos naturais. Um campo investigativo para o simbolismo ritual Xavante está em
aberto.

3.18 – WANARIDOBE - WAI’A’RÃPÓ - WAMHORÕ’NHORE: RITUAL


DO WANARIDOBE, CANTO DO WAI’A’RÃPÓ E CANTO DO WAMNHORÕ

Ao término de um dia intenso fomos aconselhados a dormir mais cedo porque à


meia noite haveria uma cerimônia importante próximo ao wedetede. Pensando nisso
programamos o despertador para vinte e três horas e quarenta. Não obstante, chegamos
uns quinze minutos antes do tempo previsto e para nossa surpresa o ritual já havia
acontecido. Tratava-se da retirada dos wamnhorõ e adornos corporais usados pelos
pahöri’wa. Os wamnhorõ e adornos corporais destes atores rituais constituem segredo
para as mulheres. Por que constituem segredo não nos foi possível apurar. Os
informantes se limitavam a dizer que elas não poderiam ver. Esta é mais uma daquelas
questões que merecem ser aprofundadas mediante um inquérito de narrativas míticas
sobre o danhono. Não obstante, esta lacuna foi preenchida quando fomos acompanhar,

115
Josina é uma voluntária que atua na missão junto às irmãs salesianas. Além de falar
fluentemente a língua Xavante ela possui um grande conhecimento das práticas culturais Xavante.
298

dias depois, a mesma cerimônia na aldeia de São Marcos. Naquela aldeia nos foi dito
que a cerimônia aconteceria por volta de meia noite. No entanto, para evitar
contratempos, seguimos duas horas mais cedo para o centro da aldeia, no warã. Ali
soubemos que os dois pahöri’wa estavam em casas próximas, um deles estava na casa
de seu pai J. Os dois foram novamente ornamentados sem receber nenhuma modalidade
de pintura corporal. Os ornamentos utilizados foram: o segundo conjunto de wamnhorõ,
que havia recebido pintura no acampamento das capas, no marã; novas popara, os colar
de algodão danho’rebdzu’a, e a faixa de fios de algodão. Depois de terem os colares de
algodão amarrados como gravatas borboleta no pescoço, as capas de wamnhorõ foram
colocadas sobre suas cabeças sendo em seguida enroladas com a faixa de algodão de
modo semelhante a um turbante. Próximo do horário previsto, para ser mais exato às
vinte e três horas e cinqüenta e cinco minutos, os dois pahöri’wa deixaram as casas e
lado a lado com as mãos cruzadas no peito, de modo semelhante à última performance
de encerramento da cerimônia do meio dia, quando cortaram o círculo numa reta
secante, seguiram em direção ao centro da aldeia batendo fortemente perna direita,
fazendo soar a popara. Antes de atingirem o centro foram interceptados e agarrados por
dois danhonhui’wa, membros da classe de idade tirowa, que lhes retiraram os adornos
corporais. A cerimônia durou menos de cinco minutos. A capa do wamnhorõ e demais
adornos corporais foram levados pelo danhohui’wa que os havia retirado. Segundo os
informantes no local, a popara teve que ser levada com muito cuidado para que as
mulheres não a vissem ou ouvissem enquanto era transportada.
O relato de Giaccaria & Heide (1984:183) aponta que nesta ocasião os
pahöri’wa estariam pintados com a modalidade tsanapré, o que não foi por nós
observado. Ainda de acordo com seus relatos participariam desta performance seis
danhohui’wa, do clã öwawẽ, três atuando em cada um dos pahöri’wa, onde um deles
segura e outros dois os despojam. Ainda de acordo com aqueles autores, os pahöri’wa
ao deixarem as casas de seus pais correriam em direção ao wedetede. Não obstante,
observamos que eles seguiram para o lado oposto ao wedetede. Fazemos este tipo de
comparação para mostrar que os atores rituais não estão performaticamente presos ao
script ritual, se é que ele existe. De mais a mais, considerando a dinâmica dos processos
rituais, não poderíamos esperar que fossem as mesmas em toda parte. Parece-nos claro
que em cada situação os atores sociais manipulam, simplificam e até eliminam partes do
ritual, sem comprometer o todo da iniciação.
299

Após serem despojados de seus adornos corporais os pahöri’wa retornaram às


casas de onde haviam saído e dali foram à hö. Tanto em São Marcos quanto em
Guadalupe depois desta cerimônia um dos danhohui’wa foi autorizado a tocar a flauta
upawã convidando aos demais a se dirigirem ao warã, centro da aldeia, onde
começariam a se pintar para a cerimônia de logo mais às cinco da manhã.
Em Nossa Senhora de Guadalupe, apesar da cerimônia noturna dos pahöri’wa
ter acontecido bem mais cedo do que em São Marcos, houve um atraso no
comparecimento dos danhohui’wa e das danhohui’wa tsipi’õ, padrinhos e madrinhas,
para se pintarem. Neste ínterim, dentro das casas tanto os heroi’wa quando as meninas
que estavam vivendo o mesmo ciclo de vida, também se pintaram para posteriormente
vestirem as capas de wamnhorõ. Giaccaria & Heide (1984:184) descrevem para esta
ocasião as modalidade de pintura: daupté, o corpo todo pintado de vermelho;
aiutemanhãri’wa116, o corpo todo pintado em vermelho, o entorno da boca pintado em
preto e uso de penugens nas franjas dos cabelos; danhihödö, listras em preto por todo o
corpo; e, dauhö, corpo todo pintado em preto com um retângulo em vermelho no
abdômen e outro nas costas. Entretanto, observamos tanto em 1997 quanto em 2005
prevalecia uma modalidade de pintura que se aproxima de danhihödö. Não obstante,
apenas um casal de danhohui’wa e danhohui’wa tsipi’õ se pintou com a modalidade
aiutemanhãri’wa, enquanto a maioria deles adotou a modalidade danhihödö, com
significativas variações. Parece-nos que durante a realização desta modalidade de
pintura corporal o danhohui’wa toma seu corpo e o de sua companheira como uma tela
na qual ele expressa toda sua criatividade. Aqui a intenção é mostrar-se camuflado, mas
também produzir arte sobre o corpo. Diante disso o emprego de materiais de pintura e
ornamentação corporal são extremamente variados. Encontramos desde o uso de tintas
multicoloridas usadas nas aulas de educação artística da escola até cocares importados
do Xingu. Ali no warã depois de pintarem as companheiras, os danhohui’wa as
ornamentam com os enfeites que estiveram fazendo para esta ocasião e que foram
apresentados, pelos menos em parte, no momento que os homens retornam da caçada.
Além destes adornos que os danhohui’wa, ou seus pais, confeccionam eles lançam mão
de chapéus e perucas usadas em bailes de carnaval. Ao tomarem conhecimento que o
pesquisador morava numa cidade litorânea, o mesmo fora constantemente solicitado a

116
Esta modalidade de pintura é usada numa das cerimônias de nominação das mulheres (cf.
Giaccaria & Heide, 1984:235ss), atualmente em desuso.
300

recolher conchas nas praias para serem usadas em adornos corporais confeccionados
especialmente para este momento, conforme já mencionamos anteriormente.
Enquanto os danhohui’wa e as danhohui’wa tsipi’õ estavam empenhados em se
pintarem e vestirem os adornos corporais, dentro das casas são os danhorebdzu’wa, o
irmão da mãe (MB), que pintam os afilhados. Este ator social possui dois papéis
importantes na vida dos filhos e filhas de sua irmã. No caso das meninas, é ele quem
confecciona os colares que serão usados em sua cerimônia de casamento. Para os
meninos sua atuação mais efetiva se neste momento do processo ritual de iniciação, o
danhono. Cabe a ele pintar o sobrinho e vestir-lhe a capa do wamnhorõ. Em troca ele
recebe da irmã do sobrinho(a) um bolo tsadaré, bolo de milho. Contudo, este bolo tem
sido substituído por pães caseiros, biscoitos, dentre outros tipos de alimentos. A
modalidade de pintura aplicada aos heroi’wa e ba’õno ou adzarudu é a daupté.
Entretanto, há pequenas diferenças para meninos e meninas. Para os meninos depois de
aplicada a pintura daupté, são amarrados em seus tornozelos embiras, do mesmo tipo
que se usa no wai’a. As meninas recebem a mesma modalidade de pintura e como
adornos corporais usam além do colar de algodão danho’rebdzu’a, comum também para
os meninos, cordinhas wedenhorõ nos pulsos e tornozelos.
À medida que os danhohui’wa e as danhohui’wa tsipi’õ concluíam a pintura e
ornamentação corporal, eles começavam a dançar e cantar o wanaridobe como vinham
fazendo, em tese, todas as manhãs e tardes desde que começaram os ritos conclusivos
do danhono, ou seja, a partir do datsi’waté. Neste ínterim os dahi’wa, membros da
classe de idade ẽtepa
˜ , ligados à outra metade cerimonial, portando arcos, flechas e
carabinas, se reuniram no wedetede onde permaneceram em volta de uma fogueira.
Junto com eles estavam também os dois pahöri’wa e os dois tébé. Estes atores rituais já
foram despojados de seus wamnhorõ anteriormente: os tébé na manhã em que
concluíram seu ritual noturno; os pahöri’wa, por seu turno, após a conclusão do ritual
que fizeram na frente do wedetede, momento em que as danhohui’wa tsipi’õ disputaram
entre si os wamnhorõ ĩdzub’a, e depois, próximo da meia noite quando eles deixaram
seus grupos domésticos vestindo o wamnhorõ e os danhohui’wa retiraram este
ornamento.
Antes que o sol surgisse por completo no horizonte um ‘watébrémi, escolhido
dentre os po’redza’õno, vestindo uma capa wamnhorõ sem pintura, ou seja, um
wamnhorõ ĩdzub’a, se colocou deitado no chão e coberto com uma esteira e ali
301

permaneceu até o sinal que seria dado pelos ĩhire para que a cerimônia passasse a outra
fase. O wamnhorõ ĩdzub’a é montado no marã, acampamento das capas, juntamente
com as demais capas. O mesmo é levado, às escondidas, até a casa do ‘watébrémi
escolhido para desempenhar este papel no momento em que as capas dos demais
heroi’wa e meninas da mesma classe de idade são apresentadas após a cerimônia dos
pahöri’wa.
No centro da aldeia, warã, um frenesi tomava conta dos ĩhire que a todo instante
gritavam: dzahadu, dzahadu! Esperem, esperem! Por fim, eles deram um grito
sinalizando o próximo movimento do ritual. O ‘watébrémi, que estava deitado e
camuflado pela esteira saiu correndo em direção ao centro da aldeia. Com isso, C., o
nonimrami’wa – carregador do noni, deixou a roda de canto do wanaridobe, enquanto
os demais prosseguiram cantando de dançando, e saiu correndo em seu encalço,
tomando-lhe o wamnhorõ ĩdzub’a com as faixas de algodão que o prendia na cabeça. C.
retornou correndo com o wamnhorõ ĩdzub’a e adentrou no centro da roda de dança
jogando agressivamente a capa no chão emitindo um grito. Era o sinal para que todos os
demais danhohui’wa e as danhohui’wa tsipi’õ partissem na direção das casas onde no
dia anterior haviam sido levadas as capas de wamnhorõ. Enquanto os danhohui’wa e as
danhohui’wa tsipi’õ corriam, em separado, na direção das casas, os heroi’wa e as
meninas da mesma classe de idade dos iniciandos deixavam seus grupos domésticos
vestidos com o wamnhorõ e seguiam caminhando lentamente em direção do centro da
aldeia. Em atitude ameaçadora, fingindo-se golpear o heroi’wa ou a menina com um
pequeno bastão, o danhohui’wa ou a danhohui’wa tsipi’õ, emitindo um grito, tomava o
wamnhorõ com a faixa de algodão que fora enrolada como um turbante sobre sua
cabeça, e retornavam correndo novamente ao centro da aldeia onde a jogavam no chão e
retornavam novamente a outra casa para procederem da mesma maneira. Lembrando
que a retirada das capas wamnhorõ se deram em conformidade com a escolha que os
danhohui’wa fizeram dois dias antes, no intervalo da cerimônia dos tébé, conforme
apresentamos acima. Após aquela escolha, que se deu mediante amarração das capas
com folhas de buriti; no dia seguinte eles, após o último ensaio do wanaridobe,
combinaram com as danhohui’wa tsipi’õ onde estariam as capas que deveriam ser
retiradas por cada um deles. Os heroi’wa e as meninas da mesma classe de idade ao
serem despojados do wamnhorõ seguiam correndo em direção ao wedetede, onde
302

estavam os dahi’wa e foram se colocando lado a lado em fila, organizando-se por


estatura.
No centro da aldeia, após terem capturado as capas do wamnhorõ, os
danhohui’wa e as danhohui’wa tsipi’õ foram novamente se reunindo para repartirem
entre si os despojos. Vez ou outra ainda saiam atrasados das casas alguns dos heroi’wa
ou menina e seguiam lentamente em direção ao centro da aldeia, o que voltava a causar
grande excitação entre os que ali estavam. Sem saber qual dos danhohui’wa ou
danhohui’wa tsipi’õ deveria ter retirado o wamnhorõ do retardatário dois ou mais
padrinhos saiam correndo, numa disputa particular, para despojá-lo. Ainda no centro da
aldeia os danhohui’wa e as danhohui’wa tsipi’õ também foram despojados de seus
adornos corporais por aqueles que tinham sido seus danhohui’wa e danhohui’wa tsipi’õ
quando eles foram iniciados. Neste caso, no momento atual a classe de idade tirowa
estava desempenhando o papel de danhohui’wa e danhohui’wa tsipi’õ da classe de
idade que estava sendo iniciada, a abare’u. Assim quando os tirowa foram iniciados,
aproximadamente quinze anos antes, a classe de idade ai’rere havia sido seus
danhohui’wa e danhohui’wa tsipi’õ e agora retiravam os adornos corporais dos
primeiros.
Enquanto os danhohui’wa e as danhohui’wa tsipi’õ estavam sendo despojados
no centro houve um princípio de confusão motivado pela retirada indevida de
wamnhorõ por alguns que não haviam combinado previamente com o grupo doméstico
de onde saíra o heroi’wa. Em outras palavras, a quantidade de iniciandos, que se
aproximava de cento e trinta a contar meninos e meninas, provocou certa confusão entre
os próprios danhohui’wa e danhohui’wa tsipi’õ que confundiram as casas onde
deveriam ir para retirar o wamnhorõ dos heroi’wa ou das meninas de mesma classe de
idade. Não obstante, o conflito decorrente desta situação permaneceu restrito à
performance ritual, não estendendo-se a outros setores de convivência social.
As diferentes datas nas quais aconteciam as cerimônias em Guadalupe, São
Marcos, Jesus de Nazaré, Fátima, dentre outras aldeias da Terra Indígena São Marcos,
favoreceu que os participantes de determinada cerimônia pudessem atuar novamente em
outras aldeias. Isso já vinha acontecendo desde o início do danhono, sobretudo nas
cerimônias do uiwede, corrida de buriti, quando prevalece mais esprit de corps, para nos
referirmos a expressão usada por Maybury-Lewis. Não obstante, durante a cerimônia do
wanaridobe o esprit de corps que marca uma classe de idade é suprimido pelos projetos
303

e ambições pessoais do danhohui’wa. Durante a captura das capas wamnhorõ eles


atuam de modo individualista procurando capturar o máximo de capas possível. A
possibilidade de participar deste mesmo ritual nas demais aldeias que realizavam o
danhono, potencializa as oportunidades de captura daqueles ornamentos corporais.
Entretanto, quando as ambições pessoais extrapolam um limite socialmente aceito
temos a possibilidade de eclosão dos conflitos. Foi por exemplo, o caso de um
danhohui’wa que inicialmente participou da cerimônia do wanaridobe em Guadalupe
onde conseguiu um grande número de capas. Dias depois ele participou da mesma
cerimônia em São Marcos e ali também conseguiu um número de capas ainda maior do
que antes. Nas duas aldeias houve reprovação de sua atitude. O que estamos
considerando como reprovação são comentários negativos que se dão no centro da
aldeia durante os encontros que acontecem nas madrugadas e no início da noite. Os
comentários de reprovação circulam pela aldeia, mas sem que sejam acionadas
instâncias jurídicas formais que venham atuar sobre o fato.
Ainda sobre o final desta primeira parte da cerimônia, aproveitando-se de uma
câmera filmadora117 o cacique pôs-se a proferir um discurso onde resgatava a história do
contato com a Missão Salesiana em 1958, quando buscaram ajuda junto aos
missionários salesianos que atuavam na Colônia Sagrado Coração de Jesus – Merure,
com a etnia Bororo.
Concomitantemente ao que acontecia no warã, a retirada dos adornos corporais
dos tirowa pelo ai’rere, no wedetede os dahi’wa começaram a ensaiar com os heroi’wa
e meninas o canto do wai’a’rãpó. Este canto é o mesmo que fora ensaiado pelos
danhohui’wa durante a caçada, posteriormente no marã onde as capas de wamnhorõ
estavam sendo confeccionadas e também quando os dahi’wa tomaram conhecimento
dele, e depois após a cerimônia dos pahöri’wa quando houve a dança das capas no
wedetede antes que elas fossem levadas às casas aqueles que as usariam. Para tanto, os
dahi’wa posicionarem-se lado a lado em fila, em seguida posicionou-se Sabino, o
puxador do canto, e na medida em que os heroi’wa e as meninas de mesma classe de
idade deixavam as casas, igualmente tomavam lugar na fila, imediatamente depois do
puxador de canto, para executarem a performance ritual. Primeiramente eles ensaiaram
o canto no wedetede, e seguindo o sentido anti-horário, itinerário da classe de idade que
estava sendo iniciada, puseram-se a executar o canto na frente de outras casas da aldeia.

117
Levada a campo pelo pesquisador e manuseada por um Xavante.
304

Jocosamente os padrinhos dos dahi’wa, ou seja, respectivamente classes de idade


hötörã e ẽtepa
˜ , obrigaram as meninas iniciandas, classe de idade abare’u a retiraram os
sutiãs vermelho que faziam parte da ornamentação e pintura corporal. Embora a
situação transcorresse em clima jocoso para as meninas parecia mais uma condição de
constrangimento. Não obstante, os hötörã vestiram os sutiãs e tomaram lugar na fila
posicionando-se ao lado das meninas e seguiram o grupo na execução dos cantos. Vez
ou outra uma das mulheres da mesma classe de idade dos hötörã reclamava com os
homens sobre suas atitudes em tomar os sutiãs das meninas abare’u. Isto abria
precedentes para outra situação jocosa que levava os presentes ao riso solto. Os homens
investiam sobre estas mulheres para tomar-lhes o sutiã e entravam numa espécie de luta
corporal cujo desfecho era aguardado com grande expectativa. De mais a mais, até
mesmo entre mulheres de metades cerimoniais diferentes as lutas para retirada de
roupas aconteciam no mesmo clima de jocosidade. Aqui as mulheres da metade
cerimonial oposta faziam que as outras retirassem apenas as blusas fazendo-as
dançarem apenas de saia e sutiã.
A postura cerimonial dos participantes da cerimônia do canto do wai’a’rãpó
dava-se de modo diferenciado para cada grupo ritual. Os dahi’wa, que puxavam a fila,
portando arcos e flechas, espingardas ou pedaços de troncos finos de árvores,
colocaram-se com as pernas abertas, e segurando estes objetos à frente do corpo
entoavam o canto acompanhando o puxador que o fazia batendo nas mãos um chocalho
confeccionado com unhas de veado ou queixada. Procurando diferenciar-se dos demais,
sobretudo dos heroi’wa, buscavam entoar o canto com a voz o mais grave possível. Os
heroi’wa com os dedos das mãos cruzados na altura do externo, acompanhavam o canto
flexionando levemente os joelhos e balançando as mãos. As meninas da mesma classe
de idade dos abare’u, envergonhadas, a julgar pelo modo procuravam esconder os seios,
por estarem sem os sutiãs, uniam os punhos fechados com os polegares eretos na altura
do peito, cantavam e dançavam flexionando levemente os joelhos e com a cabeça baixa.
O grupo executou o canto em pontos diferentes da aldeia até retornarem novamente ao
wedetede, onde encerraram a performance.
Ao término do canto do wai’a’rãpó as meninas que dele participaram retornaram
à suas casas. Os heroi’wa e seus danhohui’wa voltaram a se reunir no wedetede onde
ensaiaram um canto e começaram a executá-lo percorrendo diversos pontos da aldeia.
Assim davam início ao último grande evento, que deveria durar o dia inteiro: o
305

wamhorõ’nhore, o canto do wamnhorõ. Inicialmente poucos danhohui’wa, padrinhos,


participaram do primeiro canto. A maioria deles se dirigiu aos seus grupos domésticos
para guardarem as capas de wamnhorõ que haviam retirado pela manhã e para comerem
algo, haja vista que estavam acordados desde as duas da madrugada. Os heroi’wa, por
seu turno, compareceram em massa nos primeiros cantos. À medida que o dia avançava
os heroi’wa menores paulatinamente deixavam de participar da roda de cantos. Aqueles
que ocupavam cargos cerimoniais de destaque dentro do grupo como pahöri’wa, tébé e
aihö’ubuni participaram praticamente o tempo todo, parando raramente para comerem
ou beberem algo.
O dia em que aconteceram as cerimônias que descrevemos acima estava
extremamente quente. O wamhorõ’nhore, canto do wamnhorõ deveria acontecer
durante o dia todo. Diante disso, visto que a temperatura do dia estava muito alta e o
solo arenoso se tornava cada vez mais abrasivo na medida em o dia avançava, uma
comitiva de pais e parentes passou a acompanhar os heroi’wa e seus danhohui’wa,
durante a execução dos cantos. Enquanto estavam dançando estes parentes jogavam
água no solo para amenizar um pouco o calor da areia. Como forma de encorajar os
heroi’wa outros membros da mesma metade cerimonial da classe de idade que estava
sendo iniciada começaram igualmente a participar da roda de cantos que circulava pela
aldeia. L., o pai de um dos tébé, nos disse que estava participando do wamhorõ’nhore
porque queria sofrer com seu filho. De mais a mais, por volta de quatorze horas as
danhohui’wa tsipi’õ, madrinhas dos heroi’wa – ligadas à classe de idade que estava
patrocinando sua iniciação tomaram parte na roda de cantos para ajudarem seus
companheiros, os danhohui’wa, a encorajarem os heroi’wa. Já mencionamos em outra
ocasião que cada um dos danhohui’wa deve propor um canto. Este era sempre ensaiado
no wedetede e executado percorrendo a aldeia no sentido de deslocamento da metade
cerimonial que estava sendo iniciada, neste caso em sentido anti-horário.
Por volta das quinze horas aconteceu algo que estava previsto, mas ninguém
poderia confirmar se de fato aconteceria. Houve a intervenção do a’ãma, advogado.
Comentamos em outro momento que o a’ãma é um advogado, como dizem os Xavante,
ou defensor e deve ser encolhido entre membros da classe de idade que atuou como
danhohui’wa, padrinho, da classe de idade que desempenha o papel de dahi’wa no
processo de iniciação do danhono que está em curso. Normalmente são escolhidos dois
deles, mas atuam independentemente. Tanto o a’ãma, quanto os dahi’wa são membros
306

de classes de idade ligadas a metade cerimonial oposta a que está sendo iniciada. A
performance de atuação do a’ãma é rápida. Previamente ele se pinta com a modalidade
ahu’rã, na qual o corpo todo é pintado de preto com carvão e em seguida coloca um
colar de algodão danho’rebdzu’a no qual é presa uma pena branca de ema que fica ereta
na altura da nuca. Após ter se pintado e vestido o adorno corporal o a’ãma toma um
renhamri, uma pequena esteira que serve ainda como tampa de cesto, bolsa – quando
dobrada, e amarra na cabeça como um boné.
Enquanto os heroi’wa estão dançando com seus danhohui’wa, danhohui’wa
tsipi’õ e parentes ele entra no centro da roda e chora ritualmente. Segundo L. o a’ãma
chorou porque ficou com pena dos heroi’wa haja vista que o sol estava muito quente
naquele horário e castigava muito os abare’u, classe de idade que estava sendo iniciada.
Além disso, o a’ãma estava preocupado com o dia seguinte quando aconteceria outra
cerimônia que exigiria muito fisicamente dos iniciandos. À medida que o a’ãma
chorava o canto foi interrompido e os participantes começaram a se dispersar. Segundo
um dos informantes faltava ainda cinco cantos a serem executados. Os heroi’wa
retornaram à hö, enquanto os danhohui’wa, danhohui’wa tsipi’õ foram para outro ponto
nos arredores da aldeia para tomar banho no riacho.
No danhono de São Marcos nesta e na outra cerimônia os heroi’wa foram
favorecidos pelo clima. Desta forma, o dia amanheceu nublado e assim permaneceu, os
danhohui’wa, padrinhos, executaram todos os cantos que haviam previamente ensaiado
e os concluíram por volta de dezesseis horas e trinta minutos. Interromperam a
cerimônia para recomeçá-la logo mais no entardecer, quando os dahi’wa também
cantam e dançam a modalidade dahipopo.
À noite aconteceu mais outro ritual que marcaria o dia. Como de costume nos
dirigimos ao warã, centro da aldeia, para ouvir a conversa dos homens e porque nos
disseram que aconteceria algo engraçado. Quando ali chegamos encontramos o cacique
que conversava em separado com um dos dahi’wa, que estava portando um arco e
algumas flechas. Segundo nosso informante, este dahi’wa, fora o danhito’wa, ou seja, o
menor de sua classe de idade quando concluíram o danhono, em 1997. Enquanto isso,
os demais dahi’wa e os heroi’wa estavam escutando um canto noturno, percorrendo a
aldeia em lados opostos. Ao término do canto os heroi’wa foram recolhidos dentro da
hö, casa dos solteiros, e ali permaneceram até segunda ordem. Do centro da aldeia os
ĩprédu, e os ĩhire se deslocaram até a hö onde se posicionaram agachados formando um
307

grande semicírculo em volta de sua entrada. O silêncio era vez ou outra quebrado pelo
som de flatos que propositalmente eram soltos por alguns daqueles que estavam de
cócoras no semicírculo, o que causava risos entre os presentes. O tempo sonoro de cada
flato ditava a intensidade dos risos. Parece que o dahi’wa escolhido se atrasou e tivemos
que ficar mais tempo do que o previsto ali ouvindo o som dos flatos. Momentos depois
de se instalarem na frente da hö um ĩprédu por vez se dirigia até a porta da casa dos
solteiros e pronunciava uma palavra aos que ali estavam. Por fim chegou o dahi’wa e
solenemente se colocou no centro do semicírculo, ou seja, com as pernas um pouco
abertas e segurando o arco e as flechas à frente do corpo. Após sua chegada os heroi’wa
foram autorizados a saírem de dentro da hö e se posicionaram também agachados a sua
frente. Dentre eles foi escolhido o menor, chamado danhitö’wa, que foi conduzido até a
frente do dahi’wa e começaram a estabelecer o seguinte diálogo:

A putsi, a putsi
Sai118, sai...
A putsi, a putsi
Sai, sai...
A putsi, a putsi
Sai, sai...
A putsi, a putsi
Sai, sai...

1- (Danhi’wa [ ẽtepa
˜ ]) – hema, hema, ipedze te, ipedze te, wawe itsima’wa
protsi te, wawe itsima’wa protsi te atsima anhimi dza’re petse wa wawe istima waprotsi
te tsi’wã ö’are wa, tsi’wã ö’are wa, wa atsima anhimi dza’re petse wa.
Hema, hema,[refere-se ao som ao pênis quando entra
na vagina das moças virgens],eu estou com saudades, estou
com saudades, estou visitando vocês porque nunca mais vi
vocês. Água está rasa, água está rasa. Você se castigou,
você se castigou.

118
A tradução, em negrito, do diálogo foi feita com a ajuda de dois Xavante na aldeia Nossa
Senhora de Guadalupe. Entretanto, pode haver divergência quando submetida a outros tradutores
Xavante.
308

2- (Danhitö’wa [abare’u]) - hema, hema, róródi, róródi ‘re itsi wa’õ ‘re
mono wa, ‘re itsi wa’õ ‘re mono wa; ma to we ti höiwa dza, ma to we ti höiwa dza,
wawa utuhö ane wa oto ihöiba titsõ te’re datsai waptó mono hö, te’re datsai waptó
mono hö, wawa utu’hö, wawa utu’hö.
Hema, hema, eu choro de vontade, o dia está
clareando amanhecendo, o dia está clareando amanhecendo,
quero descansar, quero descansar [está cansado de ser
wapté], me entrego às mulheres.
3 – (anciãos) – Hepäri, päri, päri, tane, tane, tane, dza te ãma ‘re ubare te,
dza te ãma ‘re ubare te.
Obrigado, obrigado, assim, assim, assim. Meu pinto
está dobrado como ponte, meu pinto está dobrado como ponte.
1 – hema, hema, ‘re watsidzada dzu te waptó mono hö, ‘re watsidzada dzu te
waptó mono hö, wa we itsima waprotsi te, wa we itsima waprotsi te.
Hema, hema, minha cocha (minha perna) está forte
para ajudar, podemos andar juntos, eu entrego para vocês.
Eu entrego para vocês.
2 – Ihe, ihe, dza te’re tsaiwapto te. Ihe, ihe, dza te’re tsaiwapto te.
Sim, sim, nós podemos comer [transar] juntos. Sim,
sim, nós podemos comer [transar] juntos.
3 – (anciãos) – Hepäri, päri, päri, tane, tane, tane, dza te ãma ‘re ubare te,
dza te ãma ‘re ubare te.
Obrigado, obrigado, assim, assim, assim. Meu pinto
está dobrado como ponte, meu pinto está dobrado como ponte
[não conseguem ereção].
1 – hema, hema, ‘re watsidzada dzu te waptó mono hö, ‘re watsidzada dzu te
waptó mono hö, wa we itsima waprotsi te, wa we itsima waprotsi te.
hema, hema, minha cocha (minha perna) está forte
para ajudar, podemos andar juntos, eu entrego para vocês.
Eu entrego para vocês.
2 – ‘re watsidzada dzu te waptó mono. re watsidzada dzu te waptó mono.
Minha cocha (minha perna) está forte para ajudar.
Minha cocha (minha perna) está forte para ajudar.
309

3 – wapari’aredi. Hepäri, päri, päri, tane, tane, tane, dza te ãmã ‘re ubare te,
dza te ãmã ‘re ubare te. Dza te’re rãiwatsa wawa wapte ta hã dza te ãma ‘re ubare
wapte, dza te ãma ‘re ubare wapte.
Estou cansado de ouvir. Obrigado, obrigado, assim,
assim, assim, Meu pinto está dobrado como ponte, meu pinto
está dobrado como ponte. Se você transar de dia no mato seu
cabelo vai arrepiar, aquele meu pinto está dobrado como
ponte, meu pinto está dobrado como ponte.
(encerramento com assobios dos anciãos....)

Ao término de cada diálogo entre o dahi’wa e o danhitö’wa os ĩprédu e ĩhire


agradeciam animadamente. A forma segundo a qual o danhitö’wa respondia as
respostas do dahi’wa provocava grande algazarra e euforia entre os ĩprédu e ĩhire.
Terminada a sessão de diálogos os ĩprédu e ĩhire saudaram os abare’u com uma salva
de assobios e dispersaram-se. Alguns retornaram ao warã, centro da aldeia, onde foram
conversar sobre a performance envolvendo o dahi’wa e o danhitö’wa, enquanto outros
foram para suas casas.
Após a conclusão da cerimônia L. nos convidou a ir à casa de seu pai onde
testemunharíamos à resolução de um conflito envolvendo a retirada de capas de
wamnhorõ, na cerimônia que acontecerá na parte da manhã. Segundo ele outra pessoa
que não a escolhida correu até sua casa para retirar o wamnhorõ de sua neta M. J., ou
melhor, apenas a faixa de algodão que fora amarrada em sua cabeça, visto que L., o avô,
não tinha feito uma wamnhorõ para M. J. e seu pai estava separado da mãe e vivendo
em outra Terra Indígena, mas P., a esposa de L., impediu que esta pessoa retirasse a
faixa de algodão até que aquela que fora escolhida aparecesse. A questão foi levada ao
pai de L., bisavô de M.J., que solicitou a presença do filho para esclarecer a situação.
Ali L. tratou de esclarecer ao seu pai a atitude de sua esposa. A questão encerrou-se ali e
não houve outros desdobramentos.
O diálogo estabelecido entre o dahi’wa e o danhitö’wa, segundo L., é um pedido
formal dos heroi’wa, dos quais o danhitö’wa é porta voz, para transarem. L. dizia:
agora eles podem comer com a gente; ... eles pedem para comer no copo sujo [vagina
velha, transar com mulheres mais velhas]; pedem desta maneira porque o pênis dos
velhos estão se tornando como ponte, pois já não são mais capazes de ter uma ereção
completa e assumem posição de arco. Giaccaria & Heide (1984:185) descrevem
310

parcialmente a cerimônia do e ĩtepaipó, como foi nominada por L., eliminando e


distorcendo sua conotação erótica. Na descrição daqueles autores, primeiramente os ˜
ihire e depois os ĩprédu entram na hö e dizem que eles, os heroi’wa, estão prestes a se
tornarem ‘ritéi’wa, novos guerreiros – donos da casa nova. O danhitö’wa, representando
os heroi’wa, se posiciona na frente da hö, conforme descrevemos acima, e diz aos ˜
iprédu e ĩhire que eles estão cansados de serem heroi’wa e querem logo se tornar
‘ritéi’wa. Após isso os demais heroi’wa saem da hö e recebem uma mancheia de folhas
de buriti que são colocadas no pescoço sendo em seguida seguradas pelas extremidades.
Os heroi’wa começariam a assobiar enquanto os danhohui’wa entram na hö e retiram as
esteiras. A cerimônia, na descrição de Giaccaria & Heide, encerra-se com o término do
assobio dos heroi’wa que retornam novamente à hö onde pendurariam as folhas de
buriti que haviam recebido e dormiriam sobre outras folhas.
Em São Marcos esta cerimônia aconteceu com menor requinte de detalhes do
que em Guadalupe. Os heroi’wa foram reunidos num canto próximo ao centro da aldeia
logo após terem concluído o canto final com a modalidade de dança dahipopo. Parece-
nos que os dois danhitö’wa, das classes de idade abare’u e ẽtepa
˜ , não ensaiaram
previamente a cerimônia de modo que não conseguiam manter um diálogo fluente como
aconteceu em Guadalupe.
Afirmamos anteriormente que a categoria danhono traduz-se por sono, dormir.
Considerando o processo ritual do danhono como um rito de passagem segundo a
acepção de VAN GENNEP (1978), para quem os rituais são classificados em ritos de
separação, ritos de margem e ritos de agregação, ou crise e vida segundo TURNER
(2005), podemos dizer que os rituais que apresentamos acima marcam e promovem a
agregação dos moradores da casa dos solteiros na sociedade Xavante. Eles foram
separados da comunidade aldeã pelo ritual de admissão à casa dos solteiros, passaram
por um período liminar ou de margem e agora com o ritual do wanaridobe são
acordados na vida adulta, simbolicamente falando, para procriarem ao receberem e
darem mulheres. Isto se torna claro no momento do diálogo entre os três atores sociais
de ciclos biológicos distintos: o danhito’wa (o menor dos moradores da casa dos
solteiros) – o dahi’wa (último iniciado que se coloca como detentor da tradição, pois
atua como fiscalizador da conduta dos moradores da casa dos solteiros) e os ĩhire e os ˜
iprédu (homens iniciados que detêm a tradição e o comando político da sociedade). Os
danhito’wa pedem para fazer parte da vida reprodutiva e sexual da aldeia. Por isso ele
311

se dirige inicialmente aos dahi’wa membro da última classe de idade que foi admitida,
ele também se dirige aos ĩhire, principalmente cuja força reprodutiva está em declínio e
diz que pode ajudá-los, pois eles os danhito’wa tem a perna forte. Os dahi’wa
autorizam, na troca de mulheres, os danhito’wa a viverem sexualmente ativos a partir
deste momento: eles podem andar juntos e entregam aos danhito’wa as mulheres. No
diálogo entre os danhito’wa e os ĩhire, este dizem que estão reconhecendo que estão
deixando de ser reprodutivos, o pênis está se tornando como ponte – sem ereção. O
danhito’wa diz que podem ajudar, pois tem a perna forte, e dizem que podem transar
juntos, pois eles entregam mulheres aos ĩhire. Os ĩhire agradecem e por serem mais
experientes dão conselhos aos danhi’wa: Se você transar de dia no mato seu cabelo vai
arrepiar.
A tensão que o processo ritual traz parece estar superada. O encerramento do
ritual dá-se por meio de assobios, felicidade, da parte dos ĩhire, pois o danhito’wa e o
danhi’wa os substituirão na troca de mulheres garantindo a reprodução física e social do
grupo. Ademais estão felizes, pois os o danhito’wa e o danhi’wa não os excluem da
vida sexual: podemos comer juntos, ou seja, garantem aos ĩhire, anciãos, a continuidade
do acesso às mulheres.
Terminado o diálogo os grupos de dispersaram tendo em vista o ritual que
aconteceria no dia seguinte, e como de praxe deveriam começar pela madrugada.

3.19 – TSAURI’WA – CORRIDA DO SOPRADOR

Por volta de quatro horas da madrugada nos dirigimos novamente ao warã,


centro da aldeia, onde já estavam muitos ĩhire e alguns ĩprédu aquecendo-se em volta
de uma fogueira. Os heroi’wa foram aparecendo aos poucos e se reuniram no wedetede,
onde ficaram aguardando a chegada de Fortunato119, o ĩhire encarregado de conduzi-los
formalmente em vários momentos rituais. Quando Fortunato chegou conduziu os
heroi’wa em fila e deram uma volta numa corrida moderada em volta da aldeia. Nesta
corrida os heroi’wa batiam palmas e emitiam ritmicamente um grito: kui, kui, kui, kui
kui kui, kui, kui, kui. Do lado oposto os ẽtepa
˜ , que vivenciavam o ciclo de vida de
dahi’wa e ‘ritéi’wa, se puseram a executar a mesma corrida, percorrendo a aldeia em
119
Fortunato é membro da classe de idade abare’u õmobr’ada, ou seja, é um dos poucos ĩhire
que estavam presenciando a renovação se sua classe de idade na ocupação da casa dos solteiros. Ele fora
escolhido entre os poucos abare’u õmobr’ada para desempenhar o papel de conduzir cerimonialmente os
abare’u, que agora estavam vivenciando a fase do ciclo de vida denominada heroi’wa.
312

outro sentido, respondendo com a mesma modalidade de gritos aos abare’u, os


heroi’wa.
Os heroi’wa voltaram a se reunir no centro da aldeia onde executaram outro
ritual. Inicialmente eles colocaram-se de joelhos, voltados na direção do sol nascente.
Fortunato, que os tinha conduzido pela aldeia distribuiu entre eles as nervuras das folhas
de buriti, chamadas waihi, com aproximadamente cinqüenta centímetros de
comprimento, e começou a demonstrar como deveriam proceder. Com o braço esquerdo
levantado, na direção de onde o sol nasce, e segurando uma das pontas do waihi com a
mão direita ele o roçavam entre os dedos polegar e indicador da mão esquerda que
estava levantada, de modo semelhante quando se prepara para atirar uma flecha. O
oficiante da performance pronunciou algumas palavras e em seguida cuspiu na direção
do sol, que ainda não tinha surgido no horizonte. O danhitö’wa, o menor dentre os
heroi’wa, que tinha participado da cerimônia do ĩtepaipó, no dia anterior na frente da
hö, foi escolhido para seguir o mesmo procedimento. Depois que o danhitö’wa repetiu,
juntamente com os demais heroi’wa, os gestos e palavras pronunciadas por Fortunato,
este recolheu novamente os waihi. De acordo com L., este ritual é um pedido que os
heroi’wa fazem a Danhimite, Bom Espírito - Deus, para que durante a corrida mande
nuvens para esconder o sol, e que este não esteja muito abrasivo durante a corrida do
tsauri’wa. Ao término desta performance, os dois heroi’wa, ocupantes dos cargos de
pahöri’wa receberam um tição com brasas e fogo e se dirigiram ao marã, local onde
tinham permanecido durante o período de banho de imersão, o datsi’waté, e também
onde foram montadas as capas do wamnhorõ. Neste local também se realizam alguns
dos preparativos da cerimônia religiosa wai’a. Quando o marã é usado com esta
finalidade ele recebe o nome de waiatsiubumrodzé, conforme Giaccaria & Heide,
1984:186.
Os heroi’wa acompanharam os pahöri’wa e os demais ĩprédu e ĩhire
permaneceram no warã, centro da aldeia, discutindo sobre os próximos passos dos
rituais que ainda estavam por vir. Nesta reunião o ĩprédu P. M. propôs que o caminhão
levasse os abare’u até o local de início da corrida do tsauri’wa. Entretanto, tal questão
foi rechaçada pelos demais ĩprédu, membros da classe de idade hötörã, ligados a
metade cerimonial que atua como oposição ao danhono dos abare’u. T. cacique de
outra aldeia e parente do cacique de Guadalupe pediu que houvesse respeito entre os
grupos cerimoniais durante a corrida, e que ambos ignorassem as provocações que
313

acontecem durante seu percurso. Ele dizia isso porque na aldeia Namunkurá, situada ao
norte da Terra Indígena São Marcos, onde também estava acontecendo a iniciação do
danhono, quase ocorreu uma briga entre dahi’wa versus danhohui’wa e heroi’wa
durante o percurso da corrida. Outra questão que ali se discutiu foi sobre o corte de
cabelo dos primogênitos. No marã, como veremos adiante, acontece o corte de cabelo,
pintura e ornamentação corporal. Os filhos primogênitos dos danhohui’wa, classe de
idade tirowa, fazem uma tonsura, danhire’pré, muito ampla, de modo semelhante à de
um monge. Não obstante, os primogênitos que já tiveram os lóbulos das orelhas
furados, e estão em processo de iniciação, fazem uma tonsura menor. Esta questão foi
trazida no warã por T. Segundo L., nosso tradutor, em 1997, quando os hötörã eram
danhohui’wa dos ẽtepa
˜ seus filhos primogênitos mesmo tendo os lóbulos das orelhas
furados eles foram submetidos a uma tonsura muito grande, o que contrariava o preceito
estabelecido por Tsihörirã, personagem que definiu os padrões de pintura e
ornamentação corporal dos rituais Xavante. De mais a mais T. estava preocupado com
seus netos, e eram muitos, que estavam sendo iniciados.
Quando o sol surgiu por completo no horizonte os participantes da conversa no
warã deixaram o local e foram para suas casas comerem algo e em seguida se dirigiram
ao marã, ou waiatsiubumrodzé, onde estavam os heroi’wa, os primogênitos e
primogênitas dos danhohui’wa, as meninas da mesma classe de idade dos heroi’wa, ou
seja, abare’u. Ali inicialmente cortaram os cabelos conforme a prescrição para cada
participante de acordo com o momento ritual que cada um estava vivenciando. Os
heroi’wa inicialmente tiveram os cabelos cortados no centro da cabeça em forma
circular, como uma tonsura, danhire’pré. Posteriormente, de posse de uma folha de
buriti em volta no pescoço, prendendo as longas madeixas junto à nuca tiveram os
cabelos cortados nesta altura. Os meninos e meninos primogênitos dos danhohui’wa
foram submetidos a uma tonsura maior do que os demais, conforme já adiantamos
acima. Estes também tiveram os cabelos cortados na altura da nuca. Todos eles tiveram
ainda as franjas cortadas de orelha a orelha. Findado os cortes de cabelos começaram as
pinturas corporais, onde identificamos as modalidades: para os pahöri’wa, demais
heroi’wa, e meninas foi usada a tsanapré, na qual pinta-se um retângulo na altura do
abdômen e nas costas, na extensão da coluna vertebral (numa variante deste tipo de
pintura acrescenta-se um contorno com carvão no em torno da boca, dzada’rã); para os
tébé e aihö’ubuni aplicam-se a daupté onde o tronco o corpo é pintado de vermelho e
314

depois se desenha duas faixas em preto nas costas, riscos também em preto entre o
umbigo e o externo e um pouco acima dos cotovelos. Em todas as modalidades usa-se a
date’rã, pintura com carvão nas canelas. Aplica-se ainda sobre a date’rã o
date’rãwabdza, ou seja, retirada com as unhas de parte da pintura em preto de modo que
se formem dois ou três riscos na parte externa e interna da canela – estes riscos indicam
também a filiação aos grupos de culto na cerimônia do wai’a. Os adornos corporais
foram: danho’rebdzu’a, colares de algodão, com diversas variantes indicadas pelas
diferentes penas que são presas na parte que fica na nuca de quem os usam; wedenhorõ,
cordinhas de embiras amarradas nos pulsos e tornozelos; danhipsipré120, fios de seda de
buriti pintados de vermelho amarrados em feixes nos pulsos e tornozelos; danhipsipó e
daimidzupó121, respectivamente, embiras de casca de árvore amarradas nos pulso e
tornozelos; fios de algodão pintados de vermelho e amarrados na cabeça. Além dos
heroi’wa, meninas da mesma classe de idade, e os primogênitos e primogênitas, alguns
ĩprédu, da classe de idade hötörã também se pintaram neste marã. Eles adotaram a
modalidade de pintura daupté, corpo todo em vermelho e como adornos corporais
usaram dabutupo, colar de embira, daimidzupó, embira no tornozelo, danhipsipó,
embiras nos punhos – todos provenientes de um mesmo tipo de árvore. Esta modalidade
de pintura e ornamentos corporais são os mesmos usados na celebração religiosa do
wai’a.
Os danhohui’wa e danhohui’wa tsipi’õ reuniram-se noutro marã, não muito
distante de onde estavam os heroi’wa, e igualmente se pintaram e adornaram seus
corpos. Estes por seu turno adotaram a modalidade de pintura danhihödö, na qual são
feitos riscos em preto por todo o corpo, parecendo uma camuflagem. Os Xavante tem
inovado na composição desta modalidade de pintura. Tanto em 1997, quando atuamos
como danhohui’wa para a classe de idade ẽtepa
˜ , quanto em 2005, quando
acompanhamos a iniciação dos abare’u, o corpo se tornou uma tela cujos motivos de
pintura variavam muito. Na iniciação dos abare’u danhohui’wa e danhohui’wa tsipi’õ
além de camuflar o corpo com esta modalidade de pintura, o transformaram em placas
de recado aos dahi’wa. Assim era possível ver: desenhos de caveiras, semelhantes aos
usados em sinalização de perigo alta-tensão, com dizeres upitõ adö [não se aproxime];
tsauri’wa 2005; 2005. Além dos dizeres, um dos danhohui’wa pintou o rosto de modo
semelhante ao personagem do filme Guerra na Estrelas. Nesta a modalidade, a

120
Cf. Muller, 1976:53.
121
Idem.
315

danhihödö, as franjas dos cabelos são pintadas com urucum e o restante dos cabelos é
preso em forma de rabo de cavalo. Entretanto, um dos danhohui’wa inovando pintou a
cabeça por completo com urucum, talvez para se parecer com aquilo que chamamos de
diabo, em Xavante: wa’uburé. Complementa a pintura corporal dos danhohui’wa o uso
de danho’rebdzu’a, colares de algodão e wedenhorõ, cordinhas, nos pulsos e tornozelos.
As danhohui’wa tsipi’õ utilizam um bastonete de madeira, com aproximadamente uns
cinqüenta centímetros de comprimento, pintado de vermelho. Os danhohui’wa, por seu
turno, devem confeccionar flautas upawã que deverão ser tocadas durante a corrida.
Os dahi’wa, os opositores, e os a’amã, advogados, pintaram-se no
tsa’uri’wadza’ru, onde se inicia a corrida. Este local é construído a uma distância de
aproximadamente dez quilômetros da aldeia. Em Nossa Senhora de Guadalupe o local
escolhido para construção do tsa’uri’wadza’ru foi próximo à antiga estrada que ligava a
aldeia São Marcos à BR-070, passando próxima a aldeia Merure, do povo Bororo. Desta
forma, partindo de Guadalupe e seguindo-se esta antiga estrada depois de
aproximadamente dez quilômetros os heroi’wa adentram uns cem metros no cerrado,
onde abriram uma clareira. O detalhe é que depois da aldeia Guadalupe começa a Terra
Indígena Merure. Portanto, o tsa’uri’wadza’ru foi construído dentro da terra dos
Bororo. Isto causou apreensão aos missionários salesianos que trabalham com os Bororo
na aldeia Merure, como também aos próprios Bororo que ao descobrirem que os
Xavante estavam abrindo uma clareira próximo a estrada interpretaram como uma
tentativa de construção de uma nova aldeia Xavante no local. A descoberta da clareira
levou os Bororo a fazerem uma batida no local onde descobriram as ferramentas que os
dahi’wa, classe de idade ẽtepa
˜ , haviam escondido nos arredores. Isto se somando ao
episódio no qual o vaqueiro Bororo teria disparado em direção de M., durante a grande
caçada que se deu na Terra Indígena Bororo, que já relatamos nas páginas precedentes,
serviu para acirrar ainda mais os ânimos entre as duas etnias.
Por volta de nove e meia da manhã os primogênitos e primogênitas dos
danhohui’wa, os heroi’wa e as meninas da mesma classe de idade, começaram a deixar
o marã para dirigiram-se ao local de início da corrida. A saída para o local de inicio do
tsa’uri’wa se deu de modo extremamente ritual. Assim, tomando a frente da fila se
colocaram os primogênitos e primogênitas (meninos e meninas pequenos), seguidos
pelos heroi’wa, que se deslocavam tendo a frente os dois pahöri’wa, os dois tébé e um
aihö’ubuni, e depois os demais se alternando por ordem clânica. Após os heroi’wa
316

encontravam-se as meninas que estavam sendo incorporadas à classe de idade abare’u,


a mesma dos heroi’wa. Posteriormente vieram os danhohui’wa tocando as flautas
upawã e portando ramos com folhas verdes procurando esconder o rosto. Eles andavam
com os corpos levemente inclinados a frente e de vez em quando paravam e ficavam
agachados por um instante, sempre tocando as upawã. Por fim, as danhohui’wa tsipi’õ
seguiram atrás dos danhohui’wa portando igualmente ramos e galhos com folhas verdes
encobrindo o rosto. Ao começarem a deixar o marã uma saraivada de foguetes e rojão
anunciava que eles e elas estavam a caminho. Além do som das flautas os muitos dos
participantes tocavam apitos, gaitas, ou qualquer outro instrumento que fizesse barulho.
Alguns chegaram a improvisar apitos assoprando bordas de pequenos vidros que eram
distribuídos com xarope no ambulatório.
Enquanto aqueles que participariam diretamente da corrida se punham em
direção de seu início, os demais membros da comunidade, sobretudo as mulheres,
acompanhavam atentamente o deslocamento tendo em mãos garrafas pet, garrafões e
baldes ou qualquer outro recipiente que pudesse ser usado para transportar água a ser
usada no momento da chegada dos corredores. Alguns ĩprédu e ĩhire ao verem filhos,
filhas e netos partindo para o tsa’uri’wa, começaram chorar, segundo o modo próprio
dos Xavante. Um deles sentou-se solitariamente sobre um tronco no warã, centro da
aldeia, e em prantos acompanhava o andamento da fila que deixava a aldeia.
As crianças menores iniciaram a corrida acerca de quatrocentos metros da
aldeia, antes mesmo que os atores principais atingissem o local de início, e foram
recebidas com todas as honras dispensadas aos outros corredores. As meninas abare’u
começaram a correr em direção da aldeia percorrendo uma distância de
aproximadamente uns três quilômetros. Nem todos os heroi’wa atingiram o local de
início do tsa’uri’wa, de acordo com a estatura eles foram ficando ao longo da estrada.
Após a saída de todos os corredores da aldeia o caminhão da comunidade se pôs
em direção ao tsa’uri’wadza’ru. Embora tivesse sido discutido no warã, pela manhã,
que o caminhão não levaria os abare’u para o local de início da corrida, logo na saída o
caminhão parou e um grande número de heroi’wa e danhohui’wa embarcaram nele.
Aproveitamos a carona no caminhão e também embarcamos. À medida que o caminhão
seguia seu trajeto, do alto da carroceria vez ou outra era possível ver alguns dahi’wa
escondidos ao longo do caminho. Acerca de dois quilômetros do tsa’uri’wadza’ru o
caminhão parou e os heroi’wa acompanhados dos danhohui’wa seguiram a pé. Neste
317

local um dos a’amã chorava ritualmente a beira da estrada. Após seu choro ele dirigiu-
se até os heroi’wa aconselhando-os a não temerem os dahi’wa, pois eles não tinham
veneno ou feitiço que poderiam ser usados para prejudicá-los durante a corrida.
Segundo L., o a’amã disse que os dahi’wa tentariam matá-los de cansaço. Nós
permanecemos na carroceria do caminhão, que vazio se dirigiu até o local de início, o
tsa’uri’wadza’ru.
Chegamos ao local de início da corrida bem antes dos demais. Isto nos
possibilitou inspecionar os arredores e identificar as posições que seriam tomadas pelos
atores rituais e suas estratégias. O tsa’uri’wadza’ru, local de início do tsa’uri’wa,
constitui-se de uma grande clareira aberta pelos dahi’wa num trabalho secreto que
durou umas três semanas. Até então apenas eles, os dahi’wa, e seus danhohui’wa
tinham conhecimento deste lugar. No dia marcado para início da corrida ainda de
madrugada eles haviam se dirigido até este local, onde se pintaram e vestiram os
adornos corporais. Além deles, U., um dos a’ãma também se pintou junto com o grupo.
A presença do a’ãma era tida como estratégica para a classe de idade que estava sendo
iniciada, pois visava coibir abusos por parte dos dahi’wa. Em 1997, quando atuamos
como danhohui’wa, o a’ãma dos ẽtepa
˜ era constantemente cobrado a estar junto com os
dahi’wa para evitar que eles acionassem a instituição da vingança tendo como
referência a iniciação de 1992, quando os dahi’wa ao invés de utilizarem veneno
tradicional, teriam usado BHC e audrin122 que foram jogados nos heroi’wa daquela
época. Apesar de toda essa vigilância ao término do tsa’uri’wa de 1997, alguns dos
dahi’wa foram acusados de jogar desodorante nos heroi’wa.
A modalidade de pintura adotada pelos dahi’wa para esta ocasião é a daupté, ou
seja, o corpo todo em vermelho. Depois de aplicada esta modalidade de pintura faz-se
dois ou três riscos, de acordo com a filiação ao grupo de culto no wai’a, com as unhas
partindo dos ombros e fazendo uma curva na altura do peito e terminando na virilha.
Como adornos corporais usavam os cabelos presos em um pedaço de talo da folha de
buriti, wabu, assumindo a forma de rabo de cavalo. Sobre o wabu é fixada uma pena de
arara montada sobre um pedaço de flecha chamada ubu’rãipré. Depois de preso ao
cabelo o wabu é ainda envolto com uma faixa de algodão que ainda não foi fiado. No
pescoço eles usam, além do colar de algodão danho’rebdzu’a, o dabutupo,
confeccionado com embiras. Este mesmo material é também amarrado nos tornozelos e

122
Defensivos agrícolas.
318

recebe o nome de daimidzupó. Na canela usam ainda a modalidade date’rã, ou seja,


pintura em preto com listras semelhantes à que foram feita sobre o tronco chamada
date’rã’wabdza. Em outras palavras, a pintura e os adornos corporais adotados pelos
dahi’wa é a mesma que se usa durante da celebração religiosa do wai’a. Os a’ãma se
pintam com a modalidade ahu’rã, ou seja, o corpo todo em preto, e usam como adornos
corporais o colar de algodão danho’rebdzu’a e wedenhorõ, cordinhas amarradas nos
punhos e tornozelos.
Para entrar no tsa’uri’wadza’ru deixa-se a estrada no sentido BR-070 e seguindo
por um caminho estreito com uns cinqüenta metros chega-se numa grande clareira.
Logo nesta entrada os dahi’wa colocaram o pohö, um casco de tatu apoiado sobre um
tronco, que segundo diziam era um feitiço para enfraquecer os heroi’wa. Outro pohö,
desta vez uma pele seca de veado sobre a qual fora colocado um tipo de veneno, foi
deixada logo após o casco de tatu. Ao lado destes pohö, em margens opostas do
caminho, escondiam-se dois dahi’wa que recebem também o nome de pohö, pelo fato
de portarem igualmente veneno. No fundo da clareira, no lado direito, tendo como
referência a entrada, fora dela os dahi’wa montaram uma barricada, com cerca de dez
metros de comprimento, com galhos e arbustos que foram retirados quando estava
abrindo a clareira. Esta barricada serviu de esconderijo para o a’amã e os dahi’wa.
Todos estavam deitados de lado apoiados sobre o braço direito. Fora deste esconderijo,
circulando pela clareira encontravam-se alguns ĩprédu que lá estavam para dar início à
corrida. Além destes dahi’wa que estavam escondidos na beirada do tsa’uri’wadza’ru,
outros tinham se camuflado ao longo da estrada. Estes por seu turno se colocavam
sempre em duplas, de clãs diferentes, e se posicionavam em margens opostas da estrada.
O veneno que mencionamos acima e em outros momentos é uma raspa de raízes
de diversas espécies que segundo os Xavante podem provocar a morte dos heroi’wa.
Tanto os dahi’wa quanto os danhohui’wa podem portá-los. Os dahi’wa o transportam
nas mãos e jogam-no sobre os heroi’wa quando cruzam com estes durante o percurso da
corrida. Os danhohui’wa, por seu turno, colocam outros tipos de veneno dentro das
flautas upawã e o assoprarem sobre os dahi’wa com a intenção de neutralizar os outros
tipos de venenos que são atirados sobre os iniciandos. Em 1997, durante a caçada para a
cerimônia dos tébé e pahöri’wa na iniciação da classe de idade ẽtepa
˜ presenciamos um
dos ĩhire, anciãos, preparando este tipo de veneno a partir de uma raiz cuja planta não
identificamos. Durante a corrida do tsa’uri’wa desta mesma classe de idade, enquanto
319

escoltávamos um heroi’wa, por estarmos atuando como danhohui’wa naquela ocasião,


um dos dahi’wa jogou sobre nós um tipo de pó que ao ser inalado causava uma
sensação de sufocamento. Uma vez dispersa a nuvem de pó a sensação de sufocamento
desapareceu. Acreditamos que este tipo de sensação associado a fatores emocionais
acionados pela atmosfera que permeia a corrida do tsa’uri’wa, leve alguns dos heroi’wa
a desmaios, considerados pelos Xavante como morte. Cada uma das metades
cerimoniais detém conhecimentos específicos sobre plantas e raízes que possam ser
utilizadas para extração de venenos.
Momentos depois de nossa chegada ao local começamos a ouvir os heroi’wa e
seus danhohui’wa gritando e emitindo sons com as upawã. A pouca distância do
tsa’uri’wadza’ru eles ficaram em silêncio mandando um dos heroi’wa para atuar como
batedor. Este, por seu turno, entrou correndo no tsa’uri’wadza’ru percorrendo-o até o
final e retornou novamente ao encontro dos demais. Por fim, chegaram os heroi’wa e
seus danhohui’wa tendo a frente do grupo Fortunato, da classe de idade
abare’u’õmobra’da, o encarregado de acompanhar os heroi’wa durante o banho de
imersão e conduzi-los nos momentos formais das cerimônias. Em seguida estavam cerca
de trinta heroi’wa, tendo a frente os ocupantes dos cargos cerimoniais pahöri’wa, tébé e
aihö’ubuni, seguidos pelos demais. Imediatamente depois estava parte dos danhohui’wa
que ainda usavam os ramos verdes e tocam upawã. Adentraram no tsa’uri’wadza’ru
com os corpos curvados agachando-se em alguns momentos. Junto ao grupo também
estava o cacique que trazia um garrafão de plástico com água. As danhohui’wa tsipi’õ,
madrinhas, são proibidas de chegarem ao tsa’uri’wadza’ru. Diante disso, elas
permaneceram escondidas à beira da estrada acerca de três quilômetros da aldeia.
Antes de tomarem posição dentro do tsa’uri’wadza’ru um dos danhohui’wa pôs
fogo na vegetação próxima àquele local. Segundo um dos informantes esta ação era para
queimar vivos os dahi’wa que porventura estivessem escondidos por ali. Os heroi’wa
adentraram-se até o final do tsa’uri’wadza’ru onde se posicionaram formando um
semicírculo, com abertura voltada a saída. Em seguida os danhohui’wa que estavam
agachados no centro abandonaram os ramos verdes e saíram correndo e colocaram-se
imediatamente atrás deles. Neste ínterim o a’ãma deixou o esconderijo para posicionar-
se sentado na frente dos heroi’wa, acerca de trinta metros, e começou a chorar
ritualmente. No mesmo instante os dahi’wa deixaram o esconderijo e correndo a passos
largos agitando os braços e com os punhos fechados, tomaram posição entre os
320

heroi’wa e o a’ãma. Agitando os braços, como o bater de asas, os dahi’wa bateram três
vezes o pé direito no solo, olhando em direção do sol nascente e do sol poente, e dois
deles saíram em disparada. Ao mesmo tempo os heroi’wa também saíram correndo,
juntamente com os danhohui’wa, e passaram pelos dahi’wa e pelo a’ãma, que
continuava a chorar. Após serem ultrapassados pelo grupo heroi’wa, os dahi’wa saíram
em seu encalço, lançando vez ou outra o pó venenoso para atrapalhar os primeiros.
Segundo Lachnitt (1993:130) e Giaccaria & Heide (1984:187), antes do início da
corrida os dahi’wa executam brevemente um canto chamado dahi’wanho’re, canto do
dahi’wa, e somente após este canto é dado o sinal de partida ao toque da flauta upawã.
Entretanto, nas duas ocasiões em que participamos deste início (em 1997 e 2005), bem
como do ensaio feito pelos dahi’wa e acompanhado pelos ĩprédupté, em especial
quando aqueles foram danhohui’wa dos dahi’wa, não observamos a realização deste
canto.
Concomitante a performance, que marcou o início do tsa’uri’wa, um dos
ĩprédu lançou no ar fogos de artifício que além dar a largada igualmente informava aos
que estavam ao longo do trajeto que a corrida tinha começado. Apesar de a corrida ter
iniciado por volta de dez horas e trinta minutos, o sol já estava muito quente.
Não apuramos o sentido cosmológico da corrida do tsa’uri’wa. Entretanto,
considerando todo seu aparato, interdição de algumas partes às mulheres, as modalidade
de pintura corporal semelhantes àquelas usadas no wai’a lançamos a hipótese de que se
trata de uma corrida na qual os iniciandos enfrentam espíritos, presentes do wai’a,
incorporados pelos dahi’wa.
Durante todo o trajeto da corrida os heroi’wa recebem proteção dos
danhohui’wa que tocam constantemente as flautas upawã e dos pais, parentes que os
acompanham soprando os apitos e gritando o todo tempo. Os dahi’wa correm cruzando
o caminho dos heroi’wa fingindo sorrateiramente estar atirando sobre eles o pó
venenoso abrindo e fechando as mãos. Quando um dahi’wa aproxima-se muito do
heroi’wa o danhohui’wa diz: to omotina123! Saia! Mantenha-se distante!
Seguimos a corrida do tsa’uri’wa em seus dois quilômetros iniciais. Ali
pudemos acompanhar o drama vivido pelo neto do cacique, que detinha um dos cargos
cerimoniais de pahöri’wa. Este heroi’wa por ser muito gordo tinha pouca resistência
física, o fez com que ele ficasse por último durante todo o trajeto da corrida. Para

123
Temos dúvidas sobre esta grafia.
321

protegê-lo da investidas dos dahi’wa dois danhohui’wa o escoltavam. De mais a mais, o


avô cacique acompanhou o neto por alguns metros e depois subiu na viatura da saúde
que prestava apoio. Dali era possível ouvi-lo chorar ritual e copiosamente ao ver o neto
na última posição, sofrendo, como dizem os Xavante, exposto ao veneno dos dahi’wa.
O trajeto da corrida era muito acidentado com subidas e descidas. Diante disso, houve
um ponto que este pahöri’wa não conseguiu subir uma das ladeiras, sendo necessário
recorrer ao caminhão para transportá-lo.
Na medida em que os heroi’wa se aproximavam da aldeia eles passaram a ser
escoltados também pelas danhohui’wa tsipi’õ, madrinhas. Os dahi’wa perseguiram os
heroi’wa até as proximidades da aldeia, quando ao chegarem num determinado ponto
tiveram seus ornamentos de cabelos retirados por membros da classe de idade que
tinham sido seus danhohui’wa quando eles estavam passando pelo processo de
iniciação. Ao atingirem este local seguiram por um caminho paralelo até a aldeia. A
partir deste ponto outras mulheres, mães e irmãs concluíram a escolta dos heroi’wa até
o centro da aldeia.
Cerca de uma hora depois da largada, ou seja, por volta da onze horas e trinta
minutos, os heroi’wa começaram a chegar ao centro da aldeia. Aqui a recepção foi
extremamente dramática e carregada de emoção. Quando chegavam os meninos e
meninas eram agarrados pelos parentes que despejavam sobre suas cabeças as garrafas
de água que tinham preparado especialmente para este momento, e imediatamente
retiravam seus colares de algodão. A retirada dos colares de algodão dava-se de modo
extremamente rápido. Segundo H., fazem isso para evitar que os colares de algodão
enforquem o heroi’wa. A comoção dos parentes neste momento atingia seu ápice, que
ao receberem os heroi’wa choravam copiosamente. Segundo um informante, quando
acompanhamos o mesmo ritual na aldeia de São Marcos, os parentes choram de
saudades de seus filhos e netos. Outra explicação dada ao choro compulsivo era que este
provinha do medo decorrente aos perigos que os heroi’wa foram expostos. Perigo
oferecido pelos dahi’wa que jogavam veneno na estrada e poderia matar os iniciandos.
Muitos dos heroi’wa chegaram a desmaiar ao chegarem. Sobre estes era jogado ainda
mais água. Um caso que nos chamou atenção foi o de um heroi’wa que depois de
desmaiar e retomar os sentidos foi obrigado pela avó, que estava em prantos, a beijar
repetidamente um crucifixo. Como técnica de ressuscitamento, para que recobrassem os
sentidos, os parentes puxavam-lhes os cabelos e sopravam em seus ouvidos. Uma vez
322

refeitos do cansaço e tendo os sentidos recuperados, no caso daqueles que desmaiaram,


os heroi’wa foram se posicionando lado a lado em fila enquanto aguardavam os demais.
Os dahi’wa por seu turno após terem seguido por caminhos paralelos reuniram-se a
parte, próximo ao wedetede. Antes mesmo que todos os heroi’wa tivessem chegado eles
começaram a executar um canto percorrendo a aldeia em sentido horário, como fazem
os membros de sua metade cerimonial. Os dahi’wa que participaram desta corrida na
aldeia São Marcos executaram este canto quatro vezes como forma de demonstrar que
eram mais viris do que os iniciandos. Este sim, poderia ser o canto dahi’wanho’re,
canto do dahi’wa, que os autores acima dizem iniciar a corrida do tsauri’wa. Parece que
na verdade ele encerra o ritual.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:188) em caso de desmaio do heroi’wa ao
longo do trajeto da corrida, seus parentes jogam água sobre sua cabeça e sopram-lhe os
ouvidos. Após recobrar os sentidos seus companheiros o levam ao rio para tomarem
banho e depois retornam à aldeia. Ainda segundo estes autores, no passado os Xavante
praticavam canibalismo durante o tsa’uri’wa. Quando morria um heroi’wa durante o
percurso os ĩhire o levavam ao centro da aldeia onde após ter apreciado sua carne,
devolvia os ossos à mãe para que fosse sepultado. Segundo Lachnitt (1993:131), o
termo dadö é o mesmo para designar desmaio e morte. Assim, o desmaio dos heroi’wa
ao longo do trajeto da corrida é encarado como morte dos iniciandos. Segundo a
observação daquele autor sobre a performance desta corrida os ĩprédu, em particular os
danhohui’wa dos dahi’wa, chegaram a preparar fogueiras e jiraus, semelhantes aos
usados para moquear carne durante as caçadas, ao longo da estrada para impressionar os
dahi’wa, e reforçar a história de canibalismo vivida no passado.
Com a chegada do último dos heroi’wa, o pahöri’wa neto do cacique, todos
estavam posicionados em fila, inclusive as meninas da mesma classe de idade. Toda a
comunidade passou diante dos iniciandos tocando-lhes a cabeça. Segundo L. tratava-se
de uma despedida. Após este ato os heroi’wa foram executar um canto percorrendo a
aldeia em sentido oposto aos dahi’wa. Agora não era mais os pahöri’wa a tomar a frente
da fila nos deslocamentos do grupo, como faziam anteriormente. O danhitö’wa, o
menor dentre os heroi’wa, assumiu a ponta e por ordem do menor ao maior seguiram
para aldeia parando e cantando em diversos pontos. A partir deste momento não serão
mais os pahöri’wa a tomarem a dianteira do grupo, como faziam anteriormente, nos
momentos em que se deslocam pela aldeia. Aqui acontece outra passagem na vida social
323

dos moradores da casa dos solteiros: eles deixam de serem considerados heroi’wa e
assumem o status de ‘ritéi’wa ĩté, novo guerreiro – o dono da casa nova. Os atuais
‘ritéi’wa, que também são os dahi’wa, permanecerão sob este status até o ritual que os
promoverão à danhui’wa.
Os hötörã se reuniram em lugar aparte e dividiram entre si os ornamentos de
cabelo que haviam retirado dos dahi’wa. Os outros grupos se dispersaram, encerrando a
cerimônia. Do mesmo modo que os danhohui’wa, os hötörã, da classe de idade ẽtepa
˜ ,
os dahi’wa, retiram os ornamentos destes e depois dividem entre si. A classe de idade
que fora danhohui’wa dos hötörã, neste caso os tsada’ro, pode igualmente retirar
ornamentos que porventura seus afilhados estejam usando.
Conforme sinalizamos no item anterior, a corrida do tsa’uri’wa que aconteceu
em São Marcos foi favorecida pelo clima chuvoso. Entretanto, ela carregava consigo os
mesmos dramas e comoções que presenciamos em Guadalupe. Na medida em que os
participantes chegavam ao centro da aldeia eram recebidos com uma abundância de
água derramada sobre suas cabeças. Muitos acabavam desmaiando e eram submetidos
aos mesmos processos de ressuscitamento que apresentamos acima.
De acordo com Giaccaria & Heide (1984:189) a corrida do tsa’uri’wa e a
despedida, que os autores chamam de imposição das mãos, podem ser repetidas outras
duas vezes com menor ostentação cerimonial. Um de nossos informantes disse que esta
corrida é chamada de tsauri’wa dos ĩprédu. Nesta modalidade a classe de idade
abare’u, que está assumindo o ciclo de vida ‘ritéi’wa ĩté assumirá o papel de dahi’wa,
enquanto que os atuais dahi’wa, membros da classe de idade ẽtepa
˜ estarão assumindo o
ciclo de vida danhohui’wa. Em outros termos, a metade cerimonial que estava sendo
iniciada, oficialmente se coloca como oposição a outra metade que dá os primeiros
passos em direção à iniciação de sua classe de idade mais nova, que será virtualmente
apresentada no ritual do dia seguinte ao encerramento da corrida do tsauri’wa. Isto se dá
através da mudança de dahi’wa, vivido atualmente pela classe de idade ẽtepa
˜ ,para
danhohui’wa.
324

3.20 – DANHIRÃ’RE - APRESENTAÇÃO DAS NOIVAS - NOIVADO


PÚBLICO

Na segunda metade da tarde deste mesmo dia de encerramento do ritual do


tsauri’wa os heroi’wa, agora ‘ritéi’wa ĩté, levantaram um cercado, próximo ao
wedetede, chamado awã, sobra – arbusto. Entretanto, a montagem deste awã ficou bem
diferente dos demais que são montados para outros rituais. Aqui os ‘ritéi’wa ĩté se
limitaram a fixar alguns galhos que passavam a idéia de um cercado. Situação diferente
do awã montado para o canto wamnhorõ, onde além dos galhos, foram colocadas folhas
de palmeira bacuri, deixando o cercado indevassável de modo que não era possível
saber o que acontecia ali dentro. Antes do pôr do sol a comunidade aldeã começou a se
reunir ao redor do awã para acompanhar a apresentação das noivas cujos contratos de
casamento já haviam sido previamente tratados entre os grupos domésticos. Idealmente,
considerando o relato de Giaccaria & Heide (1984:190), a mãe da noiva deveria
preparar dois bolos de milho e feijão - nonhamahöbö. Primeiro deles será entregue aos
danhohui’wa do noivo da filha, enquanto que o segundo posteriormente deve ser
entregue à família do noivo.
Depois de pronto o awã os ‘ritéi’wa ĩté, cujos casamentos já foram acertados, se
dirigiram para dentro daquele local e permaneceram deitados e cobertos com esteiras,
cobertores, lençóis e até lonas pretas, aguardando a chegada de sua noiva. Nas
apresentações de noivas que assistimos na aldeia São Marcos em 1997 e 2005, bem
como em Guadalupe em 2005, a mãe da noiva a conduziu até a entrada do awã onde
entregava aos danhohui’wa do noivo o primeiro bolo. Em seguida com a ajuda de dois
danhohui’wa procurava-se entre os ‘ritéi’wa ĩté que estavam encobertos qual deles seria
o noivo. Uma vez identificado o noivo, a menina, ciclo biológico adzarudu ou ba’õno,
deve deitar-se ao seu lado e igualmente ser encoberta por alguns segundos, após isso se
levanta e retorna a sua casa. Ritualmente o noivo deve estar deitado com as mãos
entrelaçadas sobre o peito. A menina, por seu turno, deve deitar-se de lado e pôr uma
das mãos sobre o peito do noivo. Ao término da cerimônia os danhohui’wa dividem
entre si os bolos que foram ofertados pelas mães.
Na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, na iniciação dos abare’u, as mães
apresentaram suas filhas para o noivado, porém sem trazerem os bolos, tsadaré, a serem
oferecidos aos danhohui’wa. Uma delas se limitou a trazer algumas raízes de mandioca.
325

Com isso os danhohui’wa, jocosamente gritavam para que as mães trouxessem tsadaré,
bolos de milho, pois diziam estar com fome. No entanto, os pedidos foram em vão. O
tempo entre uma apresentação de noiva e outra era demasiado longo. Diante disse um
grupo de ĩprédu, homens adultos já iniciados, em tom de brincadeira, se fizeram passar
por mãe e filha, conduzindo-se até um dos ‘ritéi’wa ĩté que levantou e deixou o local
correndo. Tal performance levou os presentes às gargalhadas. Uma das noivas
apresentadas nesta ocasião era tão pequena, com idade aproximada e dois anos, que não
tinha a menor idéia do que estava acontecendo. Quando a mãe tentou colocá-la ao lado
de seu noivo ela se recusar em permanecer encoberta ao lado do rapaz. A comunidade
que acompanhava atentamente ria sem parar das tentativas daquela mãe em fazer com
que a filha ficasse deitada ao menos um segundo. Por fim, ela forçou a filha a ficar
deitada e pegando-lhe a mãozinha bateu levemente sobre o peito do noivo e retirou-se
do local com a criança que a esta altura chorava copiosamente.
Conversando com um grupo de ĩprédu sobre o pouco número de mães a trazer
suas filhas para serem apresentadas à comunidade por ocasião do noivado público,
ouvimos a explicação de que hoje em dia os pais estão mais preocupados com o estudo
dos filhos e o casamento muito cedo não estava em seus planos. Entretanto, L. um de
nossos informantes que estava neste grupo e igualmente defendia a tese de casamento
tardio do filho teve o casamento do mesmo efetuado poucos dias depois desta
cerimônia.
Ao término da cerimônia de apresentação das noivas a comunidade aldeã se
dispersou enquanto o grupo de ĩprédu e ĩhire foi se reunir no warã, centro da aldeia.
Acompanhamos parte desta reunião cujo assunto principal era as cerimônias que
aconteceram durante o dia: a corrida do tsa’uri’wa e o noivado público. Sobre o
tsa’uri’wa discutiam sobre os desempenhos individuais: quem chegou primeiro, quem
desmaiou na chegada. Sobre o desempenho do neto do cacique, o pahöri’wa, foram
poucos os comentários e limitaram-se a fazer referência ao sofrimento que ele tinha
passado. No entanto, nos bastidores, aqueles que não apoiaram sua escolha estavam
satisfeitos com este sofrimento. Os Xavante consideram como padrão de beleza para os
jovens que estão em processo de iniciação, sobretudo os ocupantes de cargos
cerimoniais, o corpo magro e cabelos compridos. O corpo magro é ainda tido como
sinal de virilidade, pois consideram os magros bons corredores e caçadores. Isto se torna
visível nas expedições de caça e coleta da qual os wapté tomam parte. Quando um deles
326

consegue capturar uma seriema ou porco do mato apenas correndo o mesmo adquire
grande prestígio pessoal entre o grupo e os caçadores iniciados. Quando algum
informante se referia ao neto do cacique à principal questão recaia sobre o peso do
mesmo.
Presenciamos esta mesma cerimônia em São Marcos. Naquela aldeia foram
igualmente apresentadas poucas noivas. Alguns informantes fizeram o mesmo discurso
de que os filhos querem estudar um pouco mais antes de se casarem. A novidade aqui
foi que o discurso provinha de uma menina.

3.21 – APRESENTAÇÃO DA PRÓXIMA CLASSE DE IDADE

No dia seguinte por volta de seis horas da manhã as crianças que pertencerão à
próxima classe de idade a ser iniciada foram conduzidas formalmente ao warã. Ali
foram colocadas em fila por ordem de tamanho. À frente destas crianças se
posicionaram, igualmente em fila, os ‘ritéi’wa ĩté meninos e meninas da classe de idade
abare’u que estava concluindo a iniciação. Num clima de alegria e entusiasmo, entre as
duas fileiras de meninos, estavam três ĩhire (Fernando, Gabriel, e Tsudzawéré, o
cacique) pertencentes à classe de idade nodzö’u e que estava prestes a assumir o status
de nodzö’õmob’rada, ou seja, estavam presenciando a renovação de sua classe de idade
na ocupação da casa dos solteiros, o que para estes ĩhire era um momento de grande
alegria. Um dos ‘ritéi’wa ĩté foi escolhido para, sob orientação dos ĩhire conduzir
formalmente a cerimônia de apresentação da nova classe de idade. Este ‘ritéi’wa ĩté
estava pintado com a modalidade dauhöba, na qual a frente do corpo recebe uma
pintura de carvão sendo desenhado um retângulo em vermelho na altura do abdômen, as
costas e na parte detrás dos braços o mesmo usava uma pintura vermelha com duas
listras em preto paralelo a coluna. Como adorno corporal portava um dos tipos de
borduna de uso cerimonial, a ub’rã.
Depois que todos estavam devidamente posicionados o ‘ritéi’wa ĩté lentamente
deixou a borduna ub’ra no chão e dirigiu-se à fila onde estavam os ‘watébrémi, ba’õno
e ai’repudu, meninos e meninas com idades diferenciadas, e tomou o maior deles pelo
punho conduzindo-o até a fileira onde estavam os demais ‘ritéi’wa ĩté, rapazes e
meninas da classe de idade abare’u. Inicialmente o ‘ritéi’wa ĩté conduzia um a um os
que seriam apresentados como membros da próxima classe de idade, depois ele passou a
327

conduzir dois a dois e, por fim, pequenos grupos até que todos estivessem na frente dos
que estavam concluindo a iniciação. Os futuros nodzö’u se colocaram de costas aos
abare’u que se puseram untar seus cabelos com óleo de babaçu, extraído depois que as
amêndoas foram mastigadas e a saliva cuspida da mão e era espalhada sobre a cabeça,
para depois penteá-los e em seguida cortar alguns centímetros das pontas. As crianças
nodzö’u pegaram as mechas de cabelos que foram cortadas e depositaram-nas sobre
uma bandeja plástica que Fernando tinha levado ao centro especialmente para esta
cerimônia. Na medida em que depositam o cabelo corriam a suas casas de onde
retornavam trazendo penas que foram depositadas sobre um renhamri, tampa de cesto –
uma pequena esteira, que era administrada por Tsudzawéré, o cacique. Ao final as penas
e mechas de cabelos foram encaminhadas às casas de seus donos.
Quando todos concluíram a oferta de penas aos ĩhire, Fernando iniciou um
diálogo com os futuros nodzö’u no qual indagava a qualidade dos cabelos apresentados
e comparava-o com os cabelos dos membros das classes de idade da outra metade
cerimonial. A resposta esperada era que os cabelos dos nodzö’u eram melhores. O
diálogo foi concluído com a pergunta sobre o nome da nova classe de idade. Em seguida
os ĩhire ensaiaram ali mesmo no warã, juntamente com os ‘watébrémi, ba’õno e
ai’repudu, meninos e meninas com idades diferenciadas, um canto com estilo de dança
dadzarõno, modalidade de dança executada de mãos dadas e cabeça baixa,
movimentando-se em círculo e levantando um dos pés em saltos curtos. Os ‘ritéi’wa ĩté,
rapazes, se reuniram no wedetede, onde igualmente ensaiaram outro canto e o
executaram percorrendo a aldeia num itinerário oposto aos ‘watébrémi, ba’õno e
ai’repudu que seriam membros da classe de idade nodzö’u. como já dito anteriormente,
agora é o danhito’wa, o menor dentre os ‘ritéi’wa ĩté, que conduz o grupo.
Assistimos esta mesma cerimônia em São Marcos que foi igualmente marcada
pela grande alegria e algazarra dos próximos nodzö’u. Como em Guadalupe a cerimônia
foi conduzida pelos ĩhire que estarão recebendo o sufixo b’rada em sua classe de idade.
As duas últimas cerimônias que apresentamos como as que ainda serão descritas,
não apresentam grandes repercussões sobre o sistema político. Não obstante, a
apresentação da nova classe de idade confere ainda mais autoridade ritual àqueles ĩhire
que estavam assumindo o status de nodzö’õmob’rada. Entretanto este tipo de autoridade
não pode ser confundido com autoridade política, embora possa ser usado para este fim,
conforme vimos na situação onde o cacique convocou indevidamente os tirowa a
328

ensaiarem o canto wai’a’rãpó. A autoridade que os ĩhire estão adquirindo aqui ao ter
adicionado o sufixo ‘b’rada em sua classe de idade, passado de nodzö’u à
nodzö’õmob’rada, deve ser entendida de outra maneira.
(...) é preciso compreender que a autoridade dos mais velhos sobre os
novatos não se baseia em sanções legais; ela constitui, num certo
sentido, a personificação da autoridade auto-evidente da tradição. A
autoridade dos mais velhos é absoluta, porque representa os valores
axiomáticos, absolutos, da sociedade, através dos quais se expressam
o "bem comum" e o interesse comum. A essência do irrestrito
obedecer dos neófitos é submeter-se aos mais velhos, mas apenas na
medida em que estes têm a seu cargo, por assim dizer, o bem comum e
representam, em suas pessoas, a comunidade total (TURNER,
2005:144).

Neste sentido, ao se tornarem nodzö’õmob’rada, a alegria daqueles ĩhire,


anciãos, como mencionamos acima, não era somente por verem seu grupo de idade se
reconstituindo como ocupantes da hö, mas também por estarem atingindo um status que
os qualifica como atores rituais e políticos plenos. No primeiro caso porque cabe a eles
determinar os rumos que a iniciação da renovação de sua classe de idade deve tomar.
No segundo caso, ator político pleno, porque a esta altura de seu ciclo de vida ele deve
ter um grupo doméstico expressivo, seus filhos e filhas terão se casado ampliando ainda
mais as possibilidade de alianças políticas.
A corrida do tsa’uri’wa é tida como cerimônia de encerramento da iniciação do
danhono. Até mesmo os Xavante parecem pensar desta maneira, quando consideramos
as adesões nas cerimônias seguintes. Durante a apresentação da nova classe de idade
apenas metade dos ‘ritéi’wa ĩté estavam presentes, os demais haviam viajado para Barra
do Garças, enquanto outros retornaram à suas aldeias.

3.22 – ADZAHU

Na reunião da madrugada que aconteceu no warã, centro da aldeia, os ĩprédu e


ĩhire voltaram a discutir a respeito das cerimônias que ainda faltam para dar por
concluído o danhono dos abare’u. Foi decidido que por volta de treze horas seria
realizada a cerimônia adzahu. No entanto, a cerimônia só veio acontecer por volta de
dezesseis horas. Foi preciso que um dos ĩhire, ancião, Tob, passasse de casa em casa
convocando os participantes da cerimônia a se prepararem para sua execução que seria
no centro da aldeia.
329

A categoria adzahu é igualmente usada para designar um ornamento corporal


composto de penas de arara, que são presas num talo seco de folha de buriti, wabu, e
amarrado na parte de trás da cabeça, depois que aquele talo foi preso junto ao cabelo em
forma de rabo de cavalo. Antes de ser preso no wabu, talo seco da folha de buriti, cada
pena é montada a partir de dois pedaços de flechas. O primeiro deles provém da flecha
ti, um pedaço de taquara, no qual a pena de arara é presa numa das extremidades oca,
enquanto na outra se encaixa um pedaço de flecha tipo ariwede, extraído da palmeira
buritirana. O pedaço de flecha ti, que está entre a pena de arara e o pedaço de flecha
ariwede, é enrolado com fios brancos de algodão. Embora Müller (1976:58) e Giaccaria
& Heide (1984:291) apontem que neste ornamento sejam usadas oito penas de arara, em
Guadalupe em 2005 elas não passavam de quatro. Isto se deve, em parte, pela escassez
de matéria prima disponível para confecção de ornamentos corporais, sobretudo aqueles
que necessitam grande quantidade de penas. Como vimos sinalizando, com a
recuperação demográfica que a população Xavante está vivenciando nos últimos anos
constatamos que paulatinamente o território demarcado tem se tornado insuficiente para
suprir todas as necessidades culturais do grupo. Isto tem acarretado diversos conflitos
como já apontamos em outros momentos.
Em relação às demais cerimônias do processo de iniciação, adzahu não exige a
presença de todos os ‘ritéi’wa ĩté. Dela tomam parte apenas aqueles que possuem irmãs.
Talvez isso ajude a explicar, em parte, o baixo número de participantes na cerimônia
que acompanhamos em Guadalupe. Antes da cerimônia os atores rituais adotam a
modalidade de pintura corporal daupté, na qual o tronco e os braços são pintados de
vermelho, e date’rã, pintura de carvão nas panturrilhas. Como adornos corporais, além
do adzahu, utilizam os colares de algodão e cordinhas amarradas nos pulsos e
tornozelos. Escolhe-se dentre os danhohui’wa, padrinhos, dois para desempenharem o
papel de mestres de cerimônia. Estes por seu turno adotam a modalidade de pintura
duhö, na qual tronco e braços são pintados em preto depois de serem feitos dois
retângulos em vermelho: um deles sobre o abdômen e outro nas costas a partir da nuca
até a cintura; a franja dos cabelos é pintada de vermelho, porém não se aplica penugens
de gavião real como em outras circunstâncias.
Em Guadalupe embora tenha sido escolhido dois danhohui’wa para
desempenhar este papel apenas um deles se pintou e atuou diretamente. Assim, J. A.,
filho do cacique, membro da classe de idade tirowa, portanto, danhohui’wa, estava
330

pintado conforme descrevemos acima e aguardava, no warã, a chegada dos ‘ritéi’wa ĩté.
Como mencionamos acima a adesão dos‘ritéi’wa ĩté neste ritual foi baixa. Até mesmo
os ĩprédu e ĩhire que costumam acompanhar em maior número a cerimônia
compareceram em número reduzido ao centro da aldeia. L., um ĩprédu da classe de
idade ai’rere, pai de um dos ‘ritéi’wa ĩté que havia desempenhado o cargo cerimonial
de tébé, e que deveria participar desta cerimônia partiu cedo para uma caçada
individual. Antes, porém, quis delegar ao pesquisador a tarefa de pintar seu filho, visto
que este seria seu filho classificatório, uma vez que considerava o antropólogo como seu
irmão. Recusamos esta tarefa que no momento oportuno foi executada por P., sua
esposa.
A performance ritual aconteceu com a saída, em fila, dos irmãos e irmãs‘ritéi’wa
ĩté de seus grupos domésticos que se dirigiram até o warã, centro da aldeia. Ali
colocavam-se de joelhos aguardando danhohui’wa que se dirigi ao seu encontro
correndo lentamente a passos largos com o corpo inclinado a frente e de punhos
fechados. Ao chegar até os ‘ritéi’wa ĩté retirou-lhes os adornos de cabeça, adzahu,
retornado e balançando-o de um lado a outro, correndo do mesmo modo, ao ponto de
partida. Ali os adzahu eram depositados no chão enquanto aguardava a chegada dos
demais. Em cada ação de retirada do adzahu os poucos ĩprédu e ĩhire que assistiam a
cerimônia respondiam em coro: hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ - obrigado, obrigado, obrigado. Os
‘ritéi’wa ĩté, rapazes, como Maybury-Lewis refere-se a eles ao longo de sua obra,
permaneceram em fila aguardando a chegada de outros colegas. As meninas, por seu
turno, retornaram aos seus grupos domésticos. Quando todos os rapazes que atendiam
os critérios de participação na cerimônia, e que estavam presentes na aldeia, foram
reunidos no centro o outro ajudante do danhohui’wa dividiu os adzahu em dois feixes
que foram imediatamente levados pelo mestre de cerimônias seguindo a mesma
solenidade adotada para retirada dos ‘ritéi’wa ĩté. Ao partir para sua casa com os
adzahu, o danhohui’wa foi novamente ovacionado com os agradecimentos: hepãrĩ, pãrĩ
, pãrĩ - obrigado, obrigado, obrigado.
Os ‘ritéi’wa ĩté seguiram em fila, tendo a frente o danhitö’wa, o menor deles, até
o local onde ainda estavam fincados os postes do wedetede. Ali ensaiaram um canto
com a modalidade de dança dapraba, na qual se dança de mãos dadas dando voltas em
circulo levantando o pé direito rapidamente para se deslocar de lado, e puseram a
executá-los percorrendo a aldeia segundo o itinerário de dança de sua metade
331

cerimonial. O encerramento da cerimônia aconteceu com o termino do canto executado


pela aldeia, em seguida os ‘ritéi’wa ĩté se dispersaram.
A performance desta cerimônia em São Marcos contou com dois danhohui’wa,
pertencentes a clãs opostos, pintados com a modalidade que descrevemos acima. Na
medida em que os ‘ritéi’wa ĩté chegavam ao centro da aldeia os mesmos eram
despojados do adzhu por um dos danhohui’wa de clã oposto ao seu.
No final da tarde, quando o sol se punha no horizonte, o caminhão da
comunidade retornou da cidade de Barra do Garças trazendo aqueles que foram fazer
compras e os caçadores que o ficaram aguardando na beira de estrada, entre eles estava
L., o pai do tébé. À noite soubemos de boatos de que nas semanas seguintes deveria
chegar os funcionários do governo do Estado de Mato Grosso com materiais e
equipamentos para construírem sessentas casas de alvenaria em Guadalupe e um posto
de saúde para atendimento daquela e de outras aldeias vizinhas. Na medida em que o
processo de iniciação caminha para seu final as atenções e assuntos da comunidade se
voltam para questões que estavam suspensas para preparo e execução dos rituais.
Com a chegada de L. da caçada soube que a maioria dos que saíram para esta
expedição eram ĩhire, ou seja, anciãos. Após o jantar fomos à casa do pai de L., R., para
saber mais a respeito da caçada e o que tinham conseguido abater. Segundo R., B.,
cunhado do cacique, abateu uma anta e por R. ter ajudado a dividir o animal, recebeu
parte da carne. Apenas B. obteve sucesso nesta expedição de caça. No entanto, o
resultado de seu sucesso foi estendido a diversos grupos domésticos da aldeia. Mais
tarde soubemos que R. recebeu um quinhão da caça de B. não apenas por tê-lo ajudado
a dividir a presa mas sim pelo fato a filha de B. estar contraindo casamento com o neto
de R., que é o filho de L., que por seu turno desempenhara o papel tébé durante o
danhono. De mais a mais, os outros caçadores aproveitaram para coletar embiras de
uma determinada árvore que seriam usadas numa celebração do wai’a que estava sendo
preparada para os próximos dias.

3.23 – UMNHIÃTSI’RÃURÉ

Esta parece ser um dos rituais que os Xavante deixaram de executar. Ao menos
nas ocasiões em que acompanhamos o danhono, bem como nas filmagens que dispomos
332

das iniciações124 que aconteceram em São Marcos em 1974, 1992, 1997 e 2005, não
vemos menção a ela. Encontramos referência à umnhiãtsi’rãuré nos relatos de Giaccaria
& Heide (1984:192s). Segundo estes autores o ritual acontece no retorno de uma
caçada. Por esta ocasião antes de entrarem na aldeia os moços, como referem-se os
autores aos ‘ritéi’wa ĩté, desatam a corda dos arcos e preparam apitos com taquara.
Após pintarem-se com a modalidade usada para o casamento, recebem do padrinho, nos
parece ser o danhohui’wa, cestos de carne que são entregues às mães de suas noivas. As
mães, por seu turno, retribuem o gesto oferecendo aos genros um bolo de milho. A
troca, segundo os autores, acontece antes de entrarem na aldeia.
Uma vez concluída as trocas entre genro e sogra, dois a dois os ‘ritéi’wa ĩté, a
começar pelos pahöri’wa, entram correndo e apitando na aldeia, passando pelo warã, se
dirigem ao rio onde tomam um breve banho retornando novamente ao centro da aldeia
pondo-se em fila e depositam os arcos em buracos previamente abertos pelos ĩhire.
Quando todos executaram esta performance recebem alguns conselhos dos ĩhire e
dirigem-se aos grupos domésticos onde executam o choro ritual da saudade. Novamente
os ‘ritéi’wa ĩté voltam a se reunir no warã para daí executarem três vezes um canto em
estilo de dança dapraba, e posteriormente, à noite, outros cantos com a modalidade
dahipopo, na qual se dança flexionando levemente os joelhos.
Os autores concluem o relato do ritual informando que os ‘ritéi’wa ĩté, cujas
noivas já são crescidas são autorizados a passar a noite com elas, enquanto os outros
retornam à casa paterna.

3.24 – NOIVADO PÚBLICO

No dia seguinte à cerimônia do adzahu, pela madrugada uma família deixou a


aldeia Guadalupe retornando à Barreirinho, sua aldeia de origem. Esta família tinha
alugado uma das casas cujo morador tinha deixado Guadalupe para, juntamente com
outros grupos domésticos, fundarem a aldeia Jesus de Nazaré. Segundo L., optaram por
sair de madrugada para não chamar a atenção dos demais moradores. Ainda pela manhã
L. saiu juntamente com seus companheiros de grupo na celebração do wai’a, os

124
Algumas destas filmagens foram realizadas pelos missionários salesianos, enquanto que
outras pelos próprios Xavante. Em 2005 levamos a campo uma filmadora que ficou sobre
responsabilidade de um dos Xavante que se dispôs a documentar os rituais. As fitas com a documentação
dos rituais de 2005 foram convertidas no formato de DVD e redistribuídos na aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe.
333

dzö’ratsi’wa, para escolherem e ensaiarem o canto do wai’a que estava sendo


preparado.
Passamos parte do dia percorrendo a aldeia para identificar os participantes da
cerimônia de outra modalidade de festa do noivado. Esta cerimônia envolve a
participação dos noivos e noivas que foram formalmente apresentados por ocasião do
noivado público após a corrida do tsa’uri’wa. Tomamos conhecimento de que uma das
noivas a participar da cerimônia era filha de D. No entanto, quando chegamos a sua casa
seus pais não tinham feito os preparativos necessários para a ocasião. Decidimos então
ir à casa de seu noivo, na casa de S. Ali ficamos sabendo que o noivo tinha se recusado
a preparar-se, o que incluía pintar-se e vestir os adornos corporais, para a cerimônia.
Seu pai, S., nos disse que estava respeitando a vontade do filho e não o forçaria a se
pintar. S. aproveitando-se de nossa visita pediu que fizéssemos uma inspeção em sua
espingarda125 que estava com mau funcionamento. Com isso perdemos a oportunidade
de acompanhar as duas únicas cerimônias que aconteceram. De longe observamos que a
noiva é pintada e adornada com a modalidade de pintura própria do casamento, ou seja,
toda de vermelho e usando os colares de algodão com dentes de capivara. Segundo Lu.,
participam desta cerimônia algumas danhohui’wa tsipi’õ, madrinha da classe de idade
que estava sendo iniciada, que por ocasião de sua iniciação há cerca de quinze anos
atrás foram apresentadas formalmente como noivas durante a cerimônia que
descrevemos no ritual danhirã’re (item 3.20). É condição sine qua non que as
danhohui’wa tenham se mantido casadas com o mesmo marido até então, do contrário
não participam do ritual. A performance ritual se desenvolve com a saída formal do
noivo da casa de seu grupo doméstico, levando em paralelo ao corpo uma borduna
cerimonial ub’ra, e caminha normalmente até o centro da aldeia. Neste ínterim, sua
noiva, tsõiba, deixa igualmente seu grupo doméstico e ajoelha-se sobre uma renhamri,
pequena esteira, e aguarda a chegada da danhohui’wa tsipi’õ. Esta por seu turno corre
até a noiva, tsõiba, e retira-lhes os adornos corporais. Ambas retornam novamente a
suas casas. Como nos casamentos reais a retirada dos ornamentos corporais da tsõiba
deve ser feita por uma danhohui’wa tsipi’õ ligada à metade exogâmica oposta, ou seja,
de outro clã. No centro da aldeia os noivos, que ao deixarem suas casas estavam
pintados com a modalidade que Giaccaria & Heide (1984:290b) chamam de pintura do
danhohui’wa, semelhante à daupté, porém com duas listras em paralelo à coluna,

125
Quando moramos na aldeia São Marcos dentre os vários trabalhos que fazíamos um deles era
o de eventualmente consertar espingardas, soldar bicicletas quebradas, etc.
334

sentaram-se lado a lado deixando as bordunas atrás do corpo enquanto um dos


danhohui’wa retirou-lhes parte dos colares de algodão que eram usados como adornos
corporais.
Embora somente duas tsõiba, noivas, tenham formalmente participado da
cerimônia, um número maior de ‘ritéi’wa ĩté saiu de suas casas e tomaram a direção do
centro da aldeia. Após a retirada de parte dos colares de algodão que usavam eles se
reuniram próximo ao wedetede onde ensaiaram um canto que foi executado na frente
das casas, circulando pela aldeia.
A cerimônia seria encerrada com este canto. No entanto, aproveitando que havia
um número razoável de ‘ritéi’wa ĩté que tinha participando desta cerimônia, os
danhohui’wa decidiram dar continuidade a execução dos cantos que ficaram faltando na
cerimônia do dia que antecedeu a corrida do tsa’uri’wa. Conforme descrevemos acima,
aquela cerimônia foi abruptamente encerrada quando o a´ãma, advogado, entrou no
círculo de dança e chorou ritualmente. Desta forma, os ‘ritéi’wa ĩté e seus danhohui’wa
executaram ainda os outros cincos cantos que estavam pendentes.

3.25 – TSADZUDZU

Não tivemos oportunidade de acompanhar o ritual do tsadzudzu. Na aldeia


Nossa Senhora de Guadalupe ele estava planejado para acontecer no dia seguinte ao
ritual que apresentamos acima. Entretanto, não aconteceu no dia indicado e veio a ser
realizada depois que já havíamos deixado aquela aldeia. Segundo nossos informantes,
ele envolve a participação direta dos membros da nova classe de idade que foi
apresentada formalmente no centro da aldeia, os ‘ritéi’wa ĩté e os membros da classe de
idade que está presenciando sua renovação na ocupação da casa dos solteiros. Em 2005
as classes de idade envolvidas nesta cerimônia eram: os nodzö’u, os abare’u e os
nodzö’õmob’brada. De acordo com os informantes os abare’u, que concluíram o
danhono e agora são os ‘ritéi’wa ĩté, dirigem-se individualmente, até a casa de seus
primos, àqueles que foram apresentados para serem membros da nova classe de idade,
neste caso os nodzö’u, e pede que estes lhes entreguem o tsadzudzu, o fubá de milho,
que deve ser levado ao warã, centro da aldeia, e entregue aos nodzö’õmob’brada, que já
são ĩhire, anciãos. Ao receberem o recipiente contendo o tsadzudzu, os ‘ritéi’wa ĩté
tomam o cuidado de passar um pouco deste fubá no entorno dos lábios para,
335

jocosamente, enganarem os ĩhire dizendo que já comeram todo o fubá. O deslocamento


e retorno dos ‘ritéi’wa ĩté até a casa de seus primos deve ser com o corpo levemente
inclinado à frente. A comunidade aldeã, que assiste a performance na frente das casas,
se diverte com o modo de andar dos ‘ritéi’wa ĩté e suas tentativas de enganar os ĩhire,
os nodzö’õmob’brada. O ritual conclui-se quando todos abare’u foram às casas de seus
primos e retornaram com o tsadzudzu.

3.26 – ABAHU E PARA’WA

Após termos acompanhado as cerimônias do danhono na aldeia São Marcos, que


se deram a partir do pahöri’wa, retornamos a Guadalupe aonde chegamos, pela tarde, a
tempo de presenciar a divisão dos ‘ritéi’wa ĩté, de acordo com o porte físico, em dois
grupos. São os pais que dizem em qual dos grupos os filhos devem ser encaixados.
Como já mencionamos os critérios observados para constituir os dois grupos foi o porte
físico, situação contrária às demais cerimônias onde os grupos são divididos de acordo
com a metade cerimonial formada pelo agrupamento de quatro classes de idade,
independentemente dos clãs ao qual pertencem seus membros. Segundo Luc, os grupos
recebem os nomes de abahu e para’wa. Aqueles que são considerados mais fortes
fisicamente são colocados no grupo abahu, enquanto que os tidos como fracos vão para
o grupo para’wa. De acordo com aquele informante os nomes destes grupos são dados
em referência as modalidade de pintura que adotam. Neste sentido, abahu é composto
pelo grupo que se pinta de preto, enquanto os para’wa de vermelho.
Em verdade, a abahu corresponde à modalidade dauhö na qual pinta-se os
braços, coxas e tronco de preto e desenha-se um retângulo no abdômen e nas costas,
sobre a coluna, da nuca até a cintura; as franjas dos cabelos são igualmente pintadas de
vermelho. Como adornos corporais usam cordinhas amarradas nos pulsos, tornozelos e
cintura, bem como o colar de algodão. Esta modalidade de pintura é a mesma usada
pelos danhohui’wa, todavia sem a aplicação de penugens de gavião real sobre a franja
que foi pintada com urucum. Para’wa, por seu turno, corresponde à modalidade de
pintura usada pelos que detém o cargo cerimonial de aihö’ubuni126, ou seja, daupté,
onde os braços, tronco e cochas são pintados de vermelho e depois se aplicam: duas

126
Cargo outorgado a alguns moradores da casa dos solteiros, do clã poredza’õno. Eles
desempenham o papel de líderes do grupo até o momento da escolha dos ocupantes do cargo pahöri’wa.
336

listras em preto paralelamente à coluna (damanarada127 = literalmente pênis velho),


uma listra preta abaixo do externo sobre o estômago e listras pretas na altura dos
cotovelos (respectivamente, danhõ’ra128 e dapanhihödö129), por fim, as panturrilhas são
pintadas de preto, date’rã. Os adornos corporais usados nesta modalidade pintura são
diversos tipos de colares, alguns com unhas de ema, de algodão sendo que num deles é
preso uma pena da cauda de mutum, sinal diacrítico que identifica o aihö’ubuni. Na
cabeça, depois de pintar as franjas, amarra-se seda de buriti, fibra extraída da palmeira
de mesmo nome.
No dia seguinte a divisão dos ‘ritéi’wa ĩté em para’wa e abahu, estes grupos se
reuniram durante a madrugada para se pintarem conforme as modalidades que acima
apresentamos. Quando chegamos ao centro da aldeia, antes do sol nascer, o grupo de
‘ritéi’wa ĩté formado pelos para’wa já estavam sentados em torno de uma arena
quadrada que fora delimitada pela madrugada pelos ĩprédu e ĩhire. A organização desta
arena se dá do mesmo modo segundo o qual se preparam para execução da cerimônia do
wai’i, luta corporal envolvendo os danhohui’wa e os hö’wa, moradores da casa dos
solteiros, conforme apresentamos no início deste trabalho. O termo wai’i designa terra
arada, afofada. Assim, o trabalho que os ĩprédu e ĩhire desempenharam durante a
madrugada foi deixar um quadrado, com mais ou menos dez metros de cada lado, com a
terra remexida. Por volta das sete horas da manhã os abahu deixaram a casa de Sab,
onde estavam se reunido para pintarem, e puseram-se em fila na direção do centro da
aldeia, onde estava localizada a arena. Caminhavam com os corpos levemente curvados
a frente tendo embaixo do braço direito uma borduna do tipo ub’ra. Os dois grupos se
colocaram frente a frente, em lados opostos da arena. O ritual teve início quando um
membro do grupo abahu levantou-se e dirigindo-se até os para’wa desafiou um deles
para o duelo. Visto que foram os pais que distribuíram os filhos nos dois grupos o
abahu deve desafiar um de seus irmãos ou primos que estejam do outro lado, tomando o
cuidado de que seu oponente apresente o mesmo porte físico. Os dois se dirigiram até o
centro da arena onde o abahu fingindo golpear o para’wa com a borduna, mas jogando-
a ao seu lado, agarraram-se pelo tronco procurando derrubar um ao outro. Ambos
acabaram caindo na terra fofa da arena e levantaram-se imediatamente, recomeçando a
performance. Outros abahu também se levantaram para desafiar os para’wa para a luta.

127
Cf. Giaccaria & Heide, 1984:290b; Müller, 1976:51
128
Idem.
129
Idem.
337

A arena comportava até três combates por vez, enquanto os demais os acompanhavam.
Neste ínterim, a comunidade aldeã já estava toda reunida circundando a arena e
regozijando-se com as várias quedas dos gladiadores. Um dos momentos mais cômicos
foi a entrada na arena de um dos ‘ritéi’wa ĩté (abahu), detentor do cargo cerimonial de
pahöri’wa, o neto do cacique – o mesmo que apresentou dificuldade na corrida do
tsa’uri’wa por estar muito gordo, quando três a quatro dos ‘ritéi’wa ĩté (para’wa)
tentavam em vão derrubá-lo. Até mesmo outros membros do grupo para’wa de mesma
estatura que o pahöri’wa evitavam desafiá-lo por desvantagem em relação ao porte
físico. O ritual durou cerca de quarenta minutos e foi encerrado com um canto que os
‘ritéi’wa ĩté, tanto os para’wa quanto os abahu, ensaiaram ali mesmo nas proximidades
da arena e o executaram percorrendo a aldeia.
Este ritual, segundo os informantes, serve como um tira teima para verificar
entre os irmãos e primos qual deles seria o mais forte. Até então se comenta que ego
seja mais forte do que seu irmão ou primo, mas sem nenhuma comprovação empírica.
Dizem os informantes, que até este momento tudo o que ser tem são hipóteses sobre a
força e virilidade entre os irmãos e primos. Neste sentido, a cerimônia serve para
confirmar ou refutar tais hipóteses. Nosso informante, membro da classe de idade
airere, iniciado em 1979, tinha claro na memória a luta com seus primos. Segundo ele,
seu pai o tinha colocado no grupo para’wa e lutou contra seis de seus primos abahu,
perdendo de alguns e ganhando de outros.
Nem todos os ‘ritéi’wa ĩté participaram do canto após o ritual. Por ser uma
segunda-feira muitos estavam ávidos para viajaram à Barra do Garças. Desta forma, tão
logo o ritual foi encerrado muitos dos ‘ritéi’wa ĩté saíram correndo para tomar banho e
tirar a pintura corporal, retornando em seguida e dirigindo-se ao caminhão. Até mesmo
o antropólogo e a família com a qual estava residindo subiram no caminhão para
aproveitar a carona. Entretanto, desta vez a carroceria do caminhão estava com uma
lotação três vezes superior a sua capacidade. Além disso, o cacique ainda queria que
fosse ali colocado um enorme tambor de plástico com capacidade de mil litros para
trazer combustível da cidade. A primeira tentativa foi em vão. O antropólogo, que já
tinha subido na carroceria, foi acionado pelo chefe para que ajudasse a colocar o tambor
ali em cima. Respondemos que isso era impossível. Profundamente irritado o chefe fez
um longo discurso sobre a capacidade do caminhão. Entretanto, tal discurso não surtiu
nenhum efeito. Todos permaneceram imóveis no caminhão. Dirigindo-se aos mais
338

jovens, que eram maioria, disse que tinha uma borduna a ser usada para quebrar as
canelas daqueles que chegassem bêbados na aldeia. Nosso informante não traduziu o
discurso do chefe por completo, mas nos demonstrou estar igualmente irritado com o
cacique. Desistimos da viajem e retornamos para casa. Outras pessoas também, um
tanto a contragosto, deixaram o caminhão que seguiu ainda superlotado em direção à
cidade.
De volta à casa de L. onde estávamos residindo, o mesmo retomou novamente a
conversa sobre seu descontentamento em relação ao chefe. Disse-nos que está pensando
num projeto para comprar um carro e com isso fundar uma nova aldeia, cujo local já
estaria previamente definido. De mais a mais, nos relatou que até mesmo o cunhado do
chefe, Bru, teria ficado igualmente irritado com a postura e discurso autoritário do
cacique. O mesmo também estava pensando em deixar Guadalupe e igualmente fundar
outra aldeia. Caso isso de fato viesse a acontecer, nos informou Luiz Tsirobowe,
Guadalupe ficaria vazia, visto que seu grupo doméstico estendido, bem com o de Bru,
era grande.
Conseguimos carona na viatura da saúde na qual também embarcou a família de
Luiz. Permanecemos três dias na cidade e retornamos com o caminhão. Aqui
constatamos que as preocupações do cacique não eram de todo infundada. Por ser uma
época de pagamento para os funcionários da escola, bem como dos aposentados do
INSS, muitas pessoas estavam fazendo compras na cidade. Entre elas alguns abusaram
do consumo de bebida alcoólica. Não obstante, aqueles que haviam bebido ficaram
extremamente alegres e passaram a ser tratados como bobos, não da corte, mas do
caminhão. Ainda na cidade tomamos conhecimento de que teria havido um sobrevôo de
helicóptero sobre a Terra Indígena São Marcos, promovido por uma ONG denominada
Warã, com sede em São Paulo. De acordo com os informantes, neste sobrevôo teriam
sido constatadas duas irregularidades em relação aos limites da Terra Indígena. A
primeira delas teria ocorrido no norte da T.I., localizada na cabeceira do Córrego São
Marquinhos, onde teria havido desmatamento e invasão de um fazendeiro. Esta invasão
teria ocorrido pelo fato de os próprios Xavante terem vendido um pedaço de terra ao
fazendeiro. A segunda irregularidade estava relacionada a uma área próxima ao local
conhecido como fazenda do cabo Lucas. Ali teria havido igualmente venda de terra.
Estas acusações carecem de mais dados que devem estar diretamente ligadas ao
processo de revisão dos limites da Terra Indígena. Por hora, elas funcionam como
339

combustível que alimenta as tensões internas entre as lideranças das aldeias. Foi o que
constatamos ao final de nosso terceiro trabalho de campo. Naquela ocasião tomamos
carona com uma equipe de saúde da FUNASA, e fomos até a Aldeia Terra Prometida,
localizada no extremo norte da Terra Indígena São Marcos. O acesso àquela aldeia é
feito partindo da cidade de Barra do Garças tomando a BR 158, na direção de Nova
Xavantina, para em seguida tomar pequenas estradas que cortam diversas fazendas até
chegar aos limites entre a Terra Indígena e algumas fazendas. Ali Lo., um Xavante que
trabalhava como motorista da viatura e residente na aldeia São Marcos nos mostrou, ao
longe, uma sede de fazenda que estaria incidindo dentro da área Xavante. De acordo
com Lo, nos anos 80 o cacique de Guadalupe, mas que na época era o de São Marcos,
visto que ainda não havia ocorrido as diversas cisões nesta aldeia, teria vendido o bico
da Terra Indígena, na parte norte àquele fazendeiro. Ao entramos novamente na Terra
Indígena observamos a existência de um piquete com pastagem formada e sinais de
presença do gado. Aquele mesmo informante nos revelou que os moradores da Aldeia
Terra Prometida haviam arrendado aquele pedaço da T.I. ao fazendeiro vizinho. Como
já dissemos estas questões precisam ser averiguadas com mais profundidade,
principalmente quando consideramos os atores sociais que estão diretamente
envolvidos. Lo, e seu grupo doméstico, foi um dos fortes opositores ao cacique de
Guadalupe, que antes vivia em São Marcos. Quando Orestes retornou de São Paulo à
São Marcos, logo após a morte de seu pai, pleiteando o posto de cacique, o grupo
doméstico de Lo concedeu-lhe apoio. Não obstante, mesmo após a morte de Orestes,
quando seu irmão Raimundo assumiu seu lugar dando continuidade a disputa pelo posto
de cacique que resultou mais tarde numa grande cisão de São Marcos, o grupo
doméstico de Lo manteve o apoio. Estas questões, como já sinalizamos, precisam ser
aprofundadas, não o fizemos durante o trabalho de campo para não comprometer outros
pontos da pesquisa e não oferecer mecanismo para novos acirramentos de tensões que
poderiam levar aos conflitos, principalmente quando observávamos que estava
ocorrendo uma reaproximação de facões que há três anos, em relação ao ano da
pesquisa 2005, estavam vivenciando o ponto culminante das tensões que resultaram nas
cisões de algumas aldeias e o realinhamento das forças políticas da terra indígena.
Retomando o ritual do abahu, que descrevemos acima, este sim foi considerado
como o de encerramento do processo de iniciação do danhono, que promoveu a
incorporação na sociedade Xavante de uma nova classe de idade e formação de um
340

novo grupo de guerreiros: os ‘ritéi’wa ĩté. Entretanto, já no final de nosso segundo


trabalho campo acompanhamos a realização de outra celebração do wai’a.

3.27 – WAI’A

A modalidade de wai’a celebrada agora, no final do danhono, mês de setembro,


foi a mesma que ocorreu no mês de junho, antes do início da cerimônia da corrida do
noni. Isto se deve, em parte, pelo fato de que esta modalidade, chamada pi’u, é
celebrada durante a estação da seca. A performance desta cerimônia foi à mesma que
apresentamos no final do item 3.6, por isso não a descreveremos por completo. Faremos
apenas alguns apontamos indicando a transição de uma parte a outra. Assim, durante a
madrugada os da’ãmawai’a’wa, aqueles que foram iniciados wai’a na penúltima
iniciação – os guardiões,
saíram para despertar os
wai’arã, jovens recém-
iniciados ao wai’a, que foram
reunidos no warã, centro da
aldeia. Posteriormente os
da’ãmawai’a’wa conduziram
os wai’arã até um marã,
clareira – sombra, nos
arredores da aldeia que agora
recebe o nome de
waiatsiubumrodzé, isto é, o
lugar onde se realizaram
partes do wai’a, e onde
estavam os
da’ãmadzö’ratsi’wa, os Quadro - 17 - Distribuição dos atores rituais para celebração
do wai'a
tocadores do chocalho
chamado dzö.
No waiatsiubumrodzé os atores rituais se posicionaram conforme o quadro ao
lado. Inicialmente os da’ãmadzö’ratsi’wa o entoaram duas vezes um canto que foi
acompanhado pelos demais participantes. Ao término deste ensaio do canto dois dos
341

da’ãmadzö’ratsi’wa, ligados à metade ai’uté’rẽne130, que estavam escondidos,


apareceram, de forma camuflada com ramos encobrindo o rosto, trazendo dois cestos de
carne, igualmente camuflados por folhas de palmeira. Foram recebidos por dois
da’ãmadzö’ratsi’wa que lhes fizeram datsiparabu, ou seja, numa espécie de dança onde
batem pés e agitam os braços ameaçando pisar nos pés daqueles que trouxeram a carne.
O datsiparabu é praticado somente pelos da’ãmawai’a’wa, ou por aqueles que já
passaram por esta fase na hierarquia do ritual, durante as performances das várias
celebrações do wai’a. A intenção dos da’ãmawai’a’wa quando o executam é chamar a
atenção do wai’arã, principalmente, para seriedade do ritual. Quando os
da’ãmawai’a’wa observam que o wai’arã não está empenhado em cantar ou dançar eles
levantam-se e põem-se a executar o datsiparabu para todos os wai’arã. O pesquisador
que está inserido no grupo dos da’ãmawai’a’wa era constantemente acionado pelos
demais a executar o datsiparabu e até obrigar alguns wai’arã a retiraram camisas e
sapatos para participarem do wai’a. De mais a mais, quando os danhohui’wa estão
executando cantos juntamente como os wapté, moradores da casa dos solteiros, alguns
ĩprédu, hierarquicamente acima dos danhohui’wa em relação à organização do wai’a,
executam também o datsiparabu. Neste caso, a cena transcorre mais num clima de
jocosidade. Presenciamos um ĩprédu, num destes momentos, arrancar os dapo’rewa’u,
batoque auricular, do danhohui’wa e cortá-los com um facão e pisar várias vezes sobre
o que restou e ainda fazer datsiparabu. Os que assistiam riam da performance, enquanto
o danhohui’wa apenas permanecia imóvel e de cabeça baixa.
O cesto de carne recebido pelos da’ãmadzö’ratsi’wa foi colocado perto da
fogueira e logo inspecionado por um ĩhire, que tomou o cuidado de retirar as peças de
carne e depositá-las sobre as folhas de palmeira que serviram para camuflar o cesto.
Todos executaram o canto, novamente, logo em seguida, os da’ãmawai’a’wa se retiram
para outro marã, clareira – sombra – local de trabalho, onde confeccionaram os objetos
sagrados. Os da’ãmadzö’ratsi’wa e os wai’arã permaneceram o dia todo no
waiatsiubumrodzé, local onde se realiza algumas partes do wai’a, ensaiando o canto. Ao
entardecer os da’ãmawai’a’wa retornaram ao waiatsiubumrodzé com os objetos
sagrados, que foram inspecionados pelos da’ãmawai’a’wa, em seguida todos se
dirigiram ao centro da aldeia onde começaram a executar o ritual. Após cantarem três

130
Ai’uté’rẽne e ˜prédub’rini
i refere-se àqueles que foram iniciados no wai’a ainda pequenos ou
depois de adultos, respectivamente. Cada qual desempenham papéis especiais durante a celebração da
modalidade wai’a pi’u que não serão aqui descritas por fazerem parte do segredo do ritual.
342

vezes circundando a aldeia os atores rituais voltaram a se reunir novamente no centro da


aldeia, ali permaneceram somente os da’ãmadzö’ratsi’wa, enquanto os
da’ãmawai’a’wa e os wai’arã se dirigiram até seus grupos domésticos retornando em
seguida com bolos e pães que foram oferecidos aos da’ãmadzö’ratsi’wa. Eles dividiram
entre si as oferendas e foram igualmente para suas casas retornando mais tarde para
darem continuidade ao ritual.
A cerimônia transcorreu por toda a noite e encerrou-se, seguindo a mesma
performance que apresentamos no item 3.6, já com dia claro. Novamente houve oferta
de alimentos aos da’ãmadzö’ratsi’wa e os participantes retornaram para suas casas,
enquanto outra parte permaneceu no centro da aldeia. As cerimônias do wai’a têm sido
celebradas, via de regra, de sábado para domingo. Segundo Menezes (1984:270), na
época em que realizou seu trabalho de campo entre os anos de 1977 e 1981, os sábados
à tarde e à noite são reservados as corridas de buriti e para o wai’a. Ademais, nas
ocasiões em que a comunidade Xavante preparava-se para realização deste ritual ou
discutir sua programação, a missão colocava alguma atividade, uma sessão de cinema
ou missas campais, intencionalmente programadas para coincidir (...) com as
manifestações cerimoniais indígenas (Menezes, 1984:324). Entretanto, estando
Guadalupe longe das influências da Missão, ali continua a se realizar o wai’a, bem
como outros rituais, nos finais de semana. Hoje em dia isto acontece mais por
conveniência do que por imposição missionária. Muitos Xavante, não só os de
Guadalupe, estão vivendo e trabalhando em Barra do Garças. A transferência dos rituais
nos finais de semana tem favorecido a participação daqueles que estão fora. Além disso,
outras atividades do cotidiano da aldeia, como escola e trabalhos nos roçados, podem
ser uma explicação possível para realização dos rituais no final de semana. Isto nos
sugere ainda que os Xavante se apropriaram do modo de controle do tempo para
manterem sua prática cultural, como a realização do wai’a nos fins de semana.
Relatamos acima que o ritual da luta abahu x para’wa aconteceu numa segunda feira de
madrugada, antes que o ritual se completasse muitos participantes já estavam subindo
no caminhão que iria para Barra do Garças.
Retomando a cerimônia do wai’a, constatamos que nesta ocasião havia um
menor número de participantes, como pudemos notar observando a quantidade de
oferendas que foram levadas até os da’ãmadzö’ratsi’wa tanto na parte da noite, quanto
no encerramento pela manhã. Isto se explica, em parte, pelo fato de que a iniciação já
343

havia sido concluída e alguns grupos domésticos tinham deixado Guadalupe. Além
disso, os moradores de outras aldeia que vinham com mais freqüência à Guadalupe por
conta da iniciação agora não o fazem mais.
Após a cerimônia do wai’a pi’u muitos permaneceram no centro da aldeia, como
já mencionamos. Todavia, estavam ali para outro ritual: a missa, que fora celebrada pelo
diretor da missão, que de quinze em quinze dias se dirigia até Guadalupe para este fim.
Assim, destacavam-se entre os fiéis alguns ĩprédu e ĩhire, homens adultos e anciões,
ainda sonolentos visto que tinham passado a noite acordados no ritual anterior. Com o
término da missa a aldeia se mobilizou para o terceiro ritual do dia: o futebol. Tratamos
o futebol como um ritual porque os Xavante assim o fazem. Em Guadalupe existe toda
uma organização que garante o pleno desempenho desta atividade. Os times defendem
as aldeias do entorno de Guadalupe e que são aliadas politicamente entre si. Do
contrário, a possibilidade de eclodir conflitos é muito maior que em relação à
participação nos rituais do danhono. Quando os times entram em campo fazem a
tradicional apresentação à torcida, como os grandes times do campeonato nacional. O
trio de arbitragem entrou solenemente no campo, tendo ao meio o juiz ladeado por seus
auxiliares, os bandeirinhas. O juiz antes de entrar em campo tocou o solo e solenemente
se benzeu fazendo o sinal da cruz. O fato é que este mesmo juiz no ritual do wai’a
desempenha o papel de da’ãmadzö’ratsi’wa, o tocador do chocalho – aqueles que
executam o canto durante toda a cerimônia. No centro do campo o trio de arbitragem
cumprimentou os capitães dos times, se cumprimentaram e cada qual tomou seus
lugares, de acordo com a organização do futebol. Ao término do primeiro tempo do jogo
e no seu encerramento o trio voltou a se reunir novamente no centro do campo para
deixar a arena de chão batido, ou seja, sem gramado.
A situação descrita acima mostra as transformações ocorridas em relação a
observação de Maybury-Lewis, nos primórdios da criação da aldeia São Marcos:
(...) nestes Xavante [os de São Marcos] despertou a paixão ou, pode-
se mesmo dizer, o vício do futebol. Todos jogavam, jovens e velhos, e
a toda hora. Os missionários não permitiam que a bola da missão fosse
utilizada durante as horas de trabalho mas a aldeia havia conseguido
uma bola e lá havia sempre um jogo muito disputado. As pessoas
entravam ou saíam do jogo de acordo com sua vontade e, quando
todos os homens se cansavam de jogar, as mulheres tomavam, então, o
seu lugar (Maybury-Lewis, 1984:61).

Concluído o torneio masculino, na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, as


partidas tiveram continuidade com os jogos das mulheres, no qual observamos os
344

mesmos procedimentos rituais: entrada em campo; cumprimento entre capitães e


apresentação à torcida.
Ao término das cerimônias de iniciação do danhono, wai’a e futebol a aldeia
voltou a sua rotina do dia-a-dia. Planejávamos agora conversar com o cacique e retomar
algumas questões políticas que levaram a uma reaproximação das aldeias após a cisão
de 2002. Entretanto, o mesmo já tinha uma viagem marcada à Cuiabá para buscar
informações sobre o projeto de construção do posto de saúde da aldeia, haja vista que o
atual funcionava improvisadamente no sótão da escola, logo acima da cozinha. Há dias
durante uma cerimônia o cacique havia nos disse que igualmente deseja ter uma
conversa de esclarecimento sobre a emancipação dos índios, considerada pelo anuncio
ou boato de que haveria o fim da tutela proposta, segundo ele, no novo estatuto dos
índios, engavetado no Congresso Nacional. A segunda pauta da conversa seria sobre
uma proposta de municipalização dos repasses de recursos destinados ao atendimento
da saúde indígena. Entretanto, a principal questão estava relacionada ao Administrador
do Núcleo de Apoio Local de General Carneiro. Considerando que há muito tempo o
Administrador não vinha atendendo as solicitações de combustível para o caminhão da
comunidade, além de liberação de recursos para pagar consertos do mesmo, bem como,
a não liberação de passagens para o chefe viajar à Brasília, Cuiabá ou qualquer outra
localidade, o cacique pretendia destituí-lo e colocar alguém de confiança em seu lugar.
Para isso ele estava contando com o apoio do pesquisador para que este elaborasse o
documento que seria entregue à Presidência da FUNAI, em Brasília. De nossa parte,
estávamos evitando uma conversa que caminhasse para essa direção, visto que poderia
comprometer o andamento da pesquisa, e por corrermos o risco de estarmos
alimentando ainda mais as tensões entre as facções através da produção de documentos.
345

CAPÍTULO IV
POLÍTICA E RITUAL

4 - CENÁRIO POLÍTICO DE SÃO MARCOS

Neste capítulo queremos estabelecer uma relação entre os processos rituais e as


relações políticas entre as aldeias da Terra Indígena São Marcos. O objetivo é mostrar
como depois dos processos de cisões as aldeias estabelecem alianças para realizarem os
rituais de iniciações darini ou danhono. A descrição etnográfica que estabeleceremos
procura apresentar um levantamento dos eventos históricos que inicialmente levaram a
cisão da aldeia São Marcos, que chamamos de aldeia mãe, resultando na constituição de
novas aldeias. Posteriormente as novas aldeias passaram por outras divisões levando a
uma redistribuição da população Xavante pela Terra Indígena São Marcos. Aqui talvez
seja útil seguir a recomendação de Turner (1974:374) para pensar nas sociedades como
fluindo.
Os dados etnográficos referentes aos conflitos entre as facções Xavante, e os
processos de ruptura daí decorrentes, serão analisados em sintonia com o conceito de
drama social elaborado por Victor Turner, que aparece inicialmente na obra Schism And
Continuity In An African Society de 1972 e posteriormente retomado em Dramas,
Fields, and Metaphors: Symbolic Action in Human Society (1974).

4.1 - O CONCEITO DE DRAMA SOCIAL

Durante o trabalho de campo Turner notou que perturbações marcavam a vida


social dos Ndembu. Tais perturbações levavam o grupo a se dividir em duas facções
contrárias; os conflitos eram direcionados entre algumas pessoas das partes em contenda
ou permanecia num nível meramente de caráter impessoal. O autor passou a notar certo
padrão na explosões de conflitos detectando suas fases de desenvolvimento. Estas
explosões, chamadas pelo autor de drama social, apresentavam uma “forma
processual”, sintetizadas em quatro fases (TURNER, 1972:91).
Convicto do caráter dinâmico das relações sociais em Dramas, Fields, and
Metaphors (...) Turner diz ter observado
... movimento tanto como estrutura, persistência tanto como mudança
e, na realidade, persistência como aspecto impressionante da
mudança. Observei pessoas interagindo, e, como dia após dia, as
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conseqüências de suas interações. Então comecei a perceber uma


forma no processo do tempo social. Esta forma era essencialmente
dramática (TURNER, 1974:32).

Aqui o autor, a partir de Znaniecki (1936), apresenta uma diferenciação entre


sistemas naturais e sistemas sociais. Enquanto o primeiro não depende da ação humana,
o segundo por seu turno, não só contempla a ação humana, mas também coloca o
homem como um ser dotado de vontade e consciente das relações contínuas e mutáveis
dos homens entre si (idem). O que caracteriza os sistemas culturais segundo Znaniecki
(apud Turner) é o que ele chama de coeficiente humanístico. É este coeficiente
humanístico que Turner procura acrescentar em seu modelo de análise,
(...) para fazer sentido os processos sociais humanos. Uma das
propriedades mais interessantes na vida social das aldeias dos
Ndembu era sua a propensão ao conflito. O conflito era predominante
nos grupos de pouco mais de duas dúzias ou parentela que formavam
a comunidade aldeã. Ele se manifestava em episódios de irrupção
pública de tensão que chamei de “dramas sociais”. Os dramas
sociais tomam lugar naquilo que Kurt Lewin teria chamado de fases
“não-harmônicas” do processo social em andamento. Quando os
interesses e atitudes de grupos e indivíduos encontram-se em óbvia
oposição, os dramas sociais me pareceram constituir unidades do
processo social isoláveis e passíveis de uma descrição minuciosa.
Nem todos os dramas sociais chegaram a uma resolução clara, mas o
bastante para fazer com que eu pudesse formular o que eu chamei de
“forma processual” do drama (TURNER, 1974:33).

Os dramas sociais e as atividades sociais, de acordo com Turner, representam


seqüências de eventos sociais, que vistos retrospectivamente por um observador, podem
ser mostrados como tendo uma estrutura (TURNER, 1974:35). Estrutura aqui é
entendida como temporal, e não atemporal, organizada no tempo. Nas fases do drama
social ela, a estrutura, não é produto do instinto, mas de modelos e metáforas
carregadas na cabeça dos atores (TURNER, 1974:36). Como características das
estruturas temporais o autor aponta que elas são experimentáveis, com metas, meios e
alternativos para atingi-las. No foco das metas sociais fatores psicológicos como
vontade, motivação, espaço de atenção, nível de aspiração, e assim por diante,
assumem grande relevância na análise (TURNER, 1974:37). Em suma, os dramas
sociais são, segundo Turner, unidades de processos não-harmônicos ou desarmônicos
que surgem em situações de conflitos (TURNER, 1974:37).
O processo que as leva a constituir um drama social foi dividido por Turner em
quatro fazes:
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1 - ruptura das relações sociais entre pessoas ou grupos que estão dentro de um
mesmo sistema de relações sociais (TURNER, 1972:91). Em Dramas, Fields, and
Metaphors :Symbolic Action in Human Society Turner amplia e nomeia os grupos onde
podem ocorrer rupturas (igrejas, departamentos universitários, partidos políticos, etc.) ,
ou seja, onde haja um campo de interações sociais. Esta fase se caracteriza por tornar
público à recusa do cumprimento de uma norma crucial que regule as relações entre as
partes. Segundo Turner (1974:38) não se trata de um crime, embora se pareça com ele.
Apesar de ser pratica por um individuo, o mesmo acredita estar agindo em prol de
outros e sente-se como seu representante.
2 – na segunda fase a ruptura das relações sociais regulares é marcada pela
montagem da crise, a menos que o conflito seja cercado numa área limitada da interação
social. Aqui prevalece a tendência da ruptura se tornar co-estensiva ao conjunto de
relações sociais às quais as partes contrárias pertencem. A fase da crise expõe o padrão
de luta faccional corrente dentro do grupo (...) (TURNER, 1972:91). Na obra Dramas,
Fields, and Metaphors (...) o autor chega a falar de escalada da crise nesta fase,
indicando sua progressão na direção de uma clivagem ampliada, como o caso dos
blocos comunistas e capitalistas durante a guerra fria. A crise, nesta fase,
(...) é sempre um daqueles pontos decisivos de perigo ou suspense,
quando o verdadeiro estado dos acontecimentos é revelado, quando é
mais difícil o uso de máscaras ou supor que não há nada de corrupto
na aldeia (1974:39).

Turner chama atenção às características liminares que surgem entre as crises


públicas, (...) desde que elas sejam um limiar mais ou menos estáveil entre as fases do
processo social (TURNER, 1974:39).
3 – numa tentativa de impedir que a ruptura se espalhe certos mecanismos de
reparação, formais ou informais, são acionados pelas lideranças do grupo social
(TURNER, 1972:92). Os tipos de mecanismos de reparação, ou ação reparadora,
acionados
(...) variam de tipo e complexidade com fatores tais como a
profundidade e significado social compartilhado da ruptura, a
inclusão social da crise, a natureza do grupo social no qual a ruptura
aconteceu e o grau de sua autonomia com referência ao sistema de
relações sociais amplo ou externo (TURNER, 1974:39).

Estes variam desde conselhos pessoais a intervenção do aparato jurídico formal e


legal; e de acordo com o tipo de crise até a realização de um ritual público. Aqui a idéia
de escalada da crise pode aparecer novamente, quando os atores sociais buscam
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instâncias mais altas para solucionarem a crise. Turner recomenda muita atenção a esta
fase, sobretudo se o objeto de estudo recai sobre mudanças sociais. Neste caso se deve
perguntar se o aparato jurídico acionado é capaz de restaurar a situação anterior e trazer
paz entre os grupos em contenda. Como ele procede para atingir este objetivo? A ação
reparadora apresenta igualmente uma característica liminar, como betwixt and between,
e apresenta um resumo e crítica dos eventos que compõem a crise. Este resumo
(...) pode estar relacionado ao idioma ou processo judicial, ou no
idioma metafórico e simbólico do processo ritual, dependendo da
natureza e gravidade da crise. Quando a reparação falha,
normalmente há um retorno à crise. Neste ponto, a força direta pode
ser usada, nas variadas formas de luta, revoluções, atos intermitentes
de violência, repressão ou rebelião. Contudo, onde a comunidade
perturbada é pequena e vis-à-vis a autoridade central relativamente
fraca, a regressão à crise tende a se tornar uma questão de
faccionalismo endêmico, penetrante, latente, sem contornos nítidos, e
aberto entre as partes consistentemente distintas (TURNER, 1974:41).

4 - a fase final do drama social consiste na reintegração do grupo social ou em


uma ruptura irreparável entre as partes em contenda (TURNER, 1972:92). Aqui
acontece o reconhecimento e legitimação social da cisma irreparável entre as parte em
conflito.
Freqüentemente acontece que depois de um intervalo de vários anos,
uma das aldeias então formada promove um grande ritual para o qual
membros de outras aldeias são expressamente convidados,
demonstrando assim reconciliação num nível diferente de integração
política (TURNER, 1974:41).

Embora Turner teça as considerações acima tendo como base seus dados de
campo coligidos entre os Ndembu, encontramos uma situação em tudo comparável à
Terra Indígena São Marcos, envolvendo algumas aldeias. No ano de 2002 aconteceu um
cisma na aldeia São Marcos resultando na criação de novas aldeias. Quando realizamos
nosso trabalho de campo em 2005 observamos que membros das diversas aldeias que
tinham se envolvido numa briga com os moradores da aldeia N. S. de Guadalupe, antes
de sua cisão na aldeia São Marcos, compareceram a esta aldeia para participarem dos
rituais do danhono, que ali acontecia, ajudando e cooperando com sua metade
cerimonial. Quando o mesmo ritual era realizado na aldeia São Marcos, palco da
contenda, igualmente alguns moradores de Guadalupe ali se dirigiam para também
participarem dos rituais. O clímax da circulação dos atores sociais entre aldeias foi a
presença num dos rituais que acontecia em Guadalupe do cacique de São Marcos.
Relatamos este exemplo quando descrevemos o ritual do uiwede, corrida de buriti, no
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item 3.6 do capítulo III. Outro exemplo etnográfico, dentre muitos, que levantamos
durante o trabalho de campo foi o caso de uma contratação de Cam, morador da aldeia
São Marcos, para filmar um dos rituais centrais do danhono, a furação dos lóbulos
auriculares. Em 2002 L., o contratante do serviço, ainda vivia em São Marcos e se
colocava como aliado da facção que viria a se retirar daquela aldeia. Num dos episódios
aonde as tensões chegaram a vias de fato, Cam e L. se envolveram em luta corporal, e
após a mesma se declaravam inimigos. Aqui o conflito é extensivo aos grupos
domésticos das duas partes. Entretanto, durante os trabalhos de filmagens Cam na aldeia
N. S. de Guadalupe, este fora orientado por outros membros do grupo doméstico de L. a
privilegiar nas filmagens os filhos de seu oponente e dos demais de seu grupo doméstico
estendido. Cam não só acatou a recomendação como também disponibilizou a fita com
as imagens do ritual para que L. fizesse cópias na cidade de Barra do Garças. Podemos
antecipar que os processos rituais Xavante podem ser usados no contexto de lutas
política dos atores sociais. Eles podem ainda conduzir e favorecer o processo de cisão
de aldeia, assim como eles podem igualmente favorecer a reintegração de relações
sociais entre as aldeias.
Em suma, a forma processual do drama social pode ser formulada como: (1)
ruptura; (2) crise; (3) ação reparadora; (4) reintegração ou reconhecimento do cisma
(TURNER, 1971:92). Contudo, o autor ressalta que este processo não se sucede da
mesma maneira para todos os segmentos e sociedades. Por exemplo, o fracasso na fase
3 – a ação reparadora, pode levar a uma regressão da crise. Para que a vida na aldeia
Ndembu seja possível é necessário que seus membros compartilhem valores comuns, e
a normas de comportamento devem ser apoiada por todos. Cada exemplo de ruptura nas
relações sociais faz uma ocasião de reafirmação de suas normas reguladoras
(TURNER, 1971:92).
Turner (1972:93) considera o drama social como uma ferramenta analítica útil
quando associada a outras técnicas de coleta de dados da antropologia tais como:
genealogias, censos e diagrama das casas na aldeia. A análise destes materiais, obtidos
desta forma, pode ajudar a revelar regularidades nas relações sociais, consideradas
também como estruturas.
No drama social conflitos latentes de interesses tornam-se manifestos,
e laços de parentesco, cujo significado não é observado em
genealogias, emergem dentro de uma chave importante. Se nós
examinarmos uma seqüência de dramas sociais que surgem dentro de
uma mesma unidade social, cada um fornece-nos um olhar, de como
350

ele era, da fase contemporânea de maturação ou decadência da


estrutura social daquela unidade (TURNER, 1972:93).

Considerando o caráter temporal de um drama social e ao situá-lo dentro de um


campo político, poder-se-á notar que a natureza e a intensidade das relações entre as
partes passaram por grandes mudanças.
Descobre-se que as oposições podem ter se tornado alianças, e vice-
versa. As relações assimétricas podem ter se tornado igualitárias.
Status elevado terá se tornado status rebaixado e vice-versa. Novos
poderes poderão ter sido direcionados ao antigo, e novas e antigas
autoridades defenestradas. A proximidade terá se tornado distância, e
vice-versa. Partes integradas anteriormente terão sido segmentadas;
partes antes independente terão se fundido. Algumas partes não
pertencerão mais ao campo, outras terão sido introduzidas nele. As
relações institucionalizadas terão se tornado informais; as
regularidades sociais terão se tornado irregularidades. Novas normas
e regras poderão ter sido geradas durante tentativas de reparar
conflito; as regras antigas terão caído em descrédito e terão sido
abolidas. As bases de apoio político terão se alterado. Alguns
componentes do campo terão menos apoio, outros mais, outros terão
novo apoio, e alguns não terão nada. A distribuição dos fatores de
legitimidade terá modificado, como também as técnicas usadas por
líderes para obter submissão. Estas mudanças podem ser observadas;
averiguadas; listadas; e em alguns casos os seus indicadores podem
até mesmo ser medidos e expressos em termos quantitativos
(TURNER,1974:42).

Contudo, embora possam ocorrer mudanças, do tipo acima mencionado,


algumas normas e relações persistirão. A explicação sobre as mudanças e persistências,
segundo Turner, podem ser buscadas a partir de análise sistemática de unidades
Processual e estruturas temporais, pela observação das fases assim como dos sistemas
atemporais (TURNER, 1974:42). Tais fases apresentam propriedades específicas. O
autor observa que ao comparar as estruturas temporais de certos processos sociais nota-
se que as fases do drama social caminham para um clímax. Igualmente no nível da
linguagem cada fase apresenta um discurso próprio, além de simbolismos e linguagem
não-verbais, que variam tanto interculturalmente quanto intertemporalmente. Turner
defende que existe alguma afinidade entre discurso e linguagem nas fases, do drama
social, de crise, reparadora e reintegração. Aqui o autor tece uma crítica às
comparações interculturais que foram feitas sem considerar os níveis da linguagem e do
discurso, limitando-se às estruturas atemporais e dissociando-se os produtos da
atividade humana dos processos nos quais eles surgem (TURNER, 1974:43). Uma
comparação ao nível da linguagem e do discurso nas fases do drama social só pode ser
351

feita a partir de uma grande quantidade de estudos de caso estendido. Aqui a definição
de caso estendido é colocado dentro de uma perspectiva histórica.
Uma história de caso estendido é a história de um único grupo ou
comunidade sobre uma duração considerável de tempo, coligido
como uma seqüência de unidades processuais de diferentes tipos,
incluindo os dramas sociais e os empreendimentos sociais já
mencionados (TURNER, 1974:43).

Para Turner, um estudo nesta direção é mais do que historiografia uma vez que
ele lança mão das ferramentas conceituais da antropologia. Uma destas ferramentas é o
processualismo, termo que abarca análise dramatística.
A análise Processual admite análise cultural, da mesma forma que
admite análise estrutural funcional, incluindo análise morfológica
comparativa mais estática. Ela não refuta nenhuma destas análises,
mas coloca a dinâmica em primeiro plano. Ainda na ordem da
apresentação de fatos ela é estrategicamente útil para mostrar um
resumo sistemático dos princípios sobre os quais a estrutura social
institucionalizada é construída e medir a sua importância relativa,
intensidade, e variação em várias circunstâncias com dados
numéricos ou estatísticos, se possível (TURNER, 1974:44).

Segundo Turner (TURNER, 1974:44), as atividades sociais de onde se extrai


uma estrutura estatística podem ser caracterizadas como tendo um processo lento, se
comparado com o processo observado nos dramas sociais, caracterizado por apresentar
muita singularidade e arbitrariedade. Embora tudo esteja em movimento no mundo
social, alguns processos podem parecer que estão lentos ou estagnados. Contudo, se
houverem dados disponíveis sobre uma seqüência de unidades processuais cruciais
num período de tempo de vinte a trinta anos é possível visualizar situações de mudanças
nos processos que são considerados lentos.
Com base nestes princípios e orientações teóricas que as obras de Turner
apresentam vamos descrever e analisar nosso material coligido durante o trabalho de
campo.
Como apresentamos no início desta tese os Xavante que estão vivendo onde é
hoje a Terra Indígena São Marcos provém de diversos grupos que ali foram reunidos
(Lopes da Silva, 1986:40-44; Lopes da Silva, 2002:370-371; Maybury-Lewis, 1984:57-
61). Inicialmente a terra indígena era composta de uma única aldeia, a São Marcos. Por
se tratarem de grupos diferentes convivendo numa única aldeia passou-se a impressão
de que os líderes Xavante estivessem enfraquecidos por estarem convivendo juntos sob
os auspícios da Missão Salesiana.
352

Maybury-Lewis evidencia dois motivos afirmando que ali a chefia havia perdido
seu sentido. Ao observar as comunidades, categoria usada pelo autor, dos Xavante
Ocidentes que compreendia as aldeias do Batovi – Simões Lopes - Sangradouro e São
Marcos, durante seu trabalho de campos realizado 1958, o autor constata o
enfraquecimento dos líderes naquelas aldeias. No caso de São Marcos
(...) o processo de dissolução da chefia não andava tão avançado. Ali
os chefes estavam enfraquecidos por outro motivo: havia muitos
deles. A relativa diminuição das contendas - resultado do
envolvimento com a Missão - criava dificuldades para que qualquer
deles realmente se impusesse. (1984:257)

De toda forma, naquele contexto o enfraquecimento, se realmente houve,


aconteceu não só pela pluralidade de líderes ou intervenções missionárias, mas também
pelas novas exigências do contexto histórico que os grupos estavam vivendo. A nova
situação histórica131 imposta pelo contato levou os diversos grupos Xavante a se
alinharam em torno de um objetivo comum: qual seja, a luta pelo reconhecimento de
demarcação de suas.
Até 1970 São Marcos permaneceu como uma única aldeia, onde residiam
praticamente todos os grupos Xavante que ali tinham sido colocados, à exceção de dois
deles: o de Benedito e o de Sebastião. O primeiro chegou a São Marcos em 1961 onde
permaneceu por quatro anos. Benedito estivera no aldeamento inicial próximo de
Merure (aldeia Bororo onde estava a Missão Salesiana) em 1957, retirando-se depois
para voltar em 1961, quando todos os grupos já estavam São Marcos. Depois de
instalado em São Marcos naquele ano, retirou-se da aldeia mãe fixando-se com mais
duas famílias a uma distância de 1500 metros fora das vistas dos missionários
(Sbardellotto 1996:102). Ao recusar as regras impostas pelo diretor da missão, Benedito
muda-se com seu grupo para Couto Magalhães, fixando-se na área já ocupada pela
fazenda “Xavantina”, instalada em seu antigo território. Essa transferência “revelou”
aos missionários, de acordo com o relatório do Pe. Pedro, possíveis planos dos Xavante
que viviam tanto em São Marcos, quanto em Sangradouro de voltarem a seus antigos
territórios para retomada de suas terras (Sbardellotto 1996:100). No segundo caso, o
Sebastião, este chegara com seu grupo em São Marcos também em 1961, mesmo tendo
a garantia dos missionários quanto a sua segurança, preferiu se retirar para Sangradouro.
Uma década antes Sebastião, havia assassinado o chefe de sua aldeia, que era irmão de

131
Cf. Oliveira Filho (1988:57)
353

Apoena, chefe de São Marcos naquele ano de 1961. Este fato por si só nos mostra que
os líderes Xavante não estavam tão enfraquecidos por estarem sob a égide da Missão,
como sugere Maybury-Lewis. O equilíbrio de poder entre ele e a atuação da missão
impedia expressões agudas do faccionalismo: o conflito, mas a reunião deles numa
única área parece exacerbar estes conflitos.
A respeito do primeiro grupo que procurou ajuda entre os missionário da missão
salesiana de Merure, também aldeia dos Bororo, e que depois seria transferido para São
Marcos, Nunes da Guia colheu o depoimento a seguir, indicando os grupos domésticos
que formavam a facção principal que tinha como principal líder Apoena Abtsi'ré,
também chamado de Apöwẽ132.
Quando os meus avós saíram lá de Couto Magalhães133, em 1956, eles
estavam sendo liderados por Apoena Abtsi'ré. Foram encontrar os
padres, que naquela época eram chamados de “curandeiros”,
“milagreiros”. Eles viviam em Couto Magalhães, unidos com suas
“famílias”, nunca se separaram. Essa história é verdadeira.
Antigamente, o dono da pessoa era o primogênito. Na época, era
Butsé Tsimhöpopo. A seguir, passou para o irmão mais novo, que é o
Apoena Abtsi'ré, que liderou essa caminhada. As famílias que vieram
foram estas: Apoena Tseredze, Olavo Pariwawi, Butsé, Tsimhöpopo,
Félix Wa'aire, Bento Tserewatsa, Geraldo Tserewaruwe, José Maria
Tsimrihu, Agostinho Potowara, Lucas Tseredzé, Brito Tserenhitowe,
Salvador Tsere'urã, Zacarias Tsi'eiwa'adi, Benedito Rowadzó, e o
mais novo, Podze'u. Junto com eles, também vieram outras famílias:
Jacó A'oiwe, conhecido como Tsibupá, Pedro Tsipi'radi, Raimundo
Hãbe, Ângelo Abhö'ödi, conhecido como Meru, Tsidzapi, João Bravo
Tsitobné, conhecido como A'amadub'a, e outros rapazes que
acompanhavam essas “famílias”, na caminhada para chegar em
Meruri, que em Xavante se chamava Urébérób'u Etetsi'utsei'u
(Luciano Paratsé, setembro de 1999) (Nunes da Mata, 1999).

Estes grupos domésticos foram os pioneiros na abertura da nova aldeia São


Marcos. Aos poucos foram chegando outros grupos como indicado acima. O armistício,
não declarado mas imposto pela nova situação social vivida, entre as facções
perdurariam até o término do processo de demarcação da Terra Indígena. De fato, tal
processo inicia-se a partir das reivindicações dos próprios Xavante tendo como
mediadores os agentes missionários, que atuavam junto aos Xavante de São Marcos
desde a sua fundação. A participação missionária no processo de demarcação, se deu
através da elaboração de relatórios técnicos como o do Pe. Pedro enviados à FUNAI em
10 de março de 1970.

132
Não confundir com o cacique Apöwẽ de São Domingos, informante de Maybury-Lewis.
133
Refere-se ao Rio Couto Magalhães, hoje a região foi reconhecida como Terra Indígena
Parabubure.
354

A principal chefia de São Marcos, Apoena, que mantinha contatos constantes


com autoridades de Brasília, bem como as chefias de outros aldeamentos Xavante,
tinham pouco domínio da Língua Portuguesa. Diante desta deficiência elegeram como
“secretários” jovens lideranças que passaram a figurar como intérpretes nas negociações
entre o órgão tutelar, bem como nas relações entre os missionários e a comunidade
Xavante, como no caso de São Marcos. Com a ascensão destas novas lideranças novas
qualidades passaram a ser requisitadas às características da chefia Xavante.
Maybury-Lewis (1984:250) destaca que a facciosidade é um fato básico na vida
Xavante. O autor acentua que as diversas facções estão em constante competição por
prestígio e poder, tendo como maior prêmio a chefia. De fato, o chefe é aquele que se
torna líder uma facção forte. Para ser chefe além de ter a garantia do prestígio por parte
de seus correligionários, o indivíduo precisa ter grande capacidade de lidar com o poder.
Assim, a função do chefe é muito mais influenciar a opinião pública do que dar ordens
(ibid. 1984:259). Tal capacidade de influenciar, Maybury-Lewis chama de prestígio.
Atributos que podem dar prestígio a uma pessoa seriam garantidos pela capacidade de
auto-afirmação, habilidade de oratória, vigor físico e conhecimento do cerimonial
(ibid. 1984:250), e poderíamos acrescentar: belicosidade e generosidade. Em suma, um
chefe se faz pelo poder de coerção de sua facção e pelo prestígio que tem diante dela e
das outras.
Vimos as prerrogativas que fazem um chefe e a condição para sua ascensão. No
entanto aquelas prerrogativas já não eram suficientes para dar conta das novas
exigências impostas pela situação de contato. Deste modo tornou-se necessário às
lideranças “partilharem” seus cargos com jovens lideranças em ascensão, mas que ainda
não estariam maduros o suficiente para assumirem o comando de uma facção naquele
momento, e assim tornarem-se chefe. Menezes (1984:386) afirma que os atributos
tradicionais, que habilitavam um homem Xavante para a chefia, cederam lugar a
outras qualificações: falar com fluência o português, ser letrado ou pelo menos ter
rudimentos de leitura e escrita, ser viajado, experiente e jovem (grifo meu).
Concordamos quanto à necessidade de se ter domínio da língua portuguesa, entretanto
discordamos que as qualificações tradicionais tenham cedido lugar a outros atributos
como coloca aquela autora. Se assim fosse estaríamos minimizando por demais a
sociedade Xavante bem como seus esquemas de pensamento. Estaríamos ignorando a
capacidade dos Xavante de apreenderem e transformarem esquemas de pensamento
355

estranhos ao grupo. Como bem frisou Sahlins (1999:07), as pessoas organizam seus
projetos e dão sentido aos objetos partindo de compreensões preexistentes da ordem
cultural. O fato de Apöwẽ ter permanecido a frente de seu grupo político até o final do
processo de demarcação da Terra Indígena de São Marcos, corrobora nosso ponto de
vista contrário a visão dos autores citados sobre o enfraquecimento das lideranças
Xavante em São Marcos.
Dentre as lideranças jovens que se destacaram naquele período temos Pio,
Dzururã – que ficou conhecido na mídia como Mário Juruna, Cipriano, Tsudzawéré –
mais conhecido como Aniceto, e Humberto. Enquanto estavam envolvidos com a
demarcação de suas terras estas lideranças permaneceram residindo na aldeia mãe. Com
o fim do processo demarcatório, o jogo político das facções volta a fazer parte das
questões cotidianas da aldeia. Quando dizemos que volta, não significa que estivessem
ausente, apenas haviam dado uma trégua, tendo em vista outro objetivo comum, que foi
a demarcação das terras. Deste modo, o envelhecimento das lideranças mais antigas,
bem como as necessidades externas cada vez mais crescentes do envolvimento das
mesmas com órgãos de governo e outros setores da sociedade nacional, levaram os
Xavante a rediscutirem e repensarem seu modo de fazer política.
Assim as disputas faccionárias em São Marcos voltam à tona tendo como
objetivo definir o mediador entre a aldeia e os agentes externos. Dentre os nomes
apresentados acima dois deles se destacaram, Tsudzawéré e Dzururã, graças às
experiências que tiveram com o mundo do waradzu134 - não índio. Para que fossem
superadas as tensões geradas entre as facções de São Marcos, a saída foi o
fracionamento da aldeia, onde as lideranças em ascensão, juntamente com seus grupos
domésticos fundaram novas aldeias aproveitando infra-estruturas já existentes onde
haviam retiros de posseiros que ocupavam áreas da Terra Indígena e saíram em
conseqüência da demarcação.
Em verdade, o processo de demarcação das terras Xavante se iniciou com a
criação da Terra Indígena através do Decreto 71.106 de 14/09/72 e depois com os
Decretos 73.233 e 73.243, ambos de 30/11/73. Este período foi marcado por grandes
tensões envolvendo os Xavante e regionais, como apontam as manchetes dos jornais da

134
Waradzu são todos aqueles não índios. Enquanto que outros povos indígenas são tratados,
genericamente, como Auwẽ. Os xavante se autodenominam A Auwẽ uptabi, ou seja, povo, pessoa
verdadeira.
356

época: Fazendeiros e Posseiros se unem contra Xavantes135; Xavantes podem criar


confederação para expulsar invasores; Estado de alerta na reserva Xavante: há perigo
de guerra136. Estas manchetes ajudam a pensar o que vimos afirmando até o momento,
ou seja, não houve um enfraquecimento nos modos tradicionais de disputas entre as
facções que compõem o universo político da aldeia de São Marcos. Entre ameaças e
disputas judiciais a Terra Indígena de São Marcos foi demarcada em definitivo através
do Decreto 76.215 de 05/09/75 com uma área de 188.478 ha. A população da Terra
Indígena, um ano depois da demarcação, era de 854 Xavante distribuídos em quatro
aldeias137.

4.2 - DÉCADA DE 70 - PRIMEIRA GRANDE CRISE

Retomando o modelo de análise dos dramas sociais elaborado por Victor Turner
(1972 e 1974), passamos a considerar os conflitos que resultaram em cismas da aldeia
São Marcos, e depois em outras, na terra indígena São Marcos.

4.2.1 - a) - A RUPTURA

O episódio que marcou a saída do primeiro grupo Xavante de São Marcos está
ligado à disputa entre facções que apoiavam as duas jovens lideranças apontadas acima.
A ruptura começa, portanto, com dois líderes em ascensão pleiteando a reconhecimento
como cacique da aldeia. De um lado Tsudzawéré, cunhado de Apöwẽ, o atual cacique -
liderança que conduziu o grupo Xavante até Merure e depois para São Marcos, se
destacou durante o processo de demarcação da terra de São Marcos mediando
negociações com setores de governo. Além disso, teve destaque durante o período em
que ficou no internato salesiano, implantado pelos missionários com a finalidade de
catequizar e de preparar mão-de-obra138 indígena para ser usada na produção agrícola.
De outro lado, Dzururã, de acordo com Menezes, tinha permanecido fora da aldeia por

135
Diário de Notícias – 1º Caderno – página 08, em 15/08/73.
136
O Globo 1º caderno, página 03, em 1º/09/73 e O Globo, página 03, em 26/10/73
137
Relatório sobre o levantamento sócio-econômico feito na Reserva de São Marcos, p. 17
(1976), elaborado pelo antropólogo Cláudio dos Santos Romero. Anexado ao processo de demarcação.
Tivemos acesso a este relatório em consulta ao arquivo da FUNAI/Brasília.
138
Hoje vemos que a projeção de futuro feita por Menezes (1984:284), a partir de casos do Alto
Rio Negro no Amazonas, na qual a formação e qualificação para o trabalho ali oferecidos levariam os
índios ao abandono das áreas em direção aos centros urbanos, o que não se confirma.
357

um período de tempo vivendo com o waradzu - não índio. Dzururã foi destaque no
cenário político nacional quando se tornou deputado federal. Outro marco de sua
atuação política junto aos waradzu - não índio, foi o uso do gravador, onde registrava as
promessas de políticos para depois cobrá-las. O mesmo tinha, ainda de acordo com
Menezes (1984:384), uma postura crítica diante do trabalho da Missão, sendo por isso
hostilizado pelos missionários.

4.2.2 - b) - A CRISE E OS MECANISMOS DE REPARAÇÃO

A pretensão em assumir a chefia de São Marcos por estes atores sociais gerou
um impasse na aldeia. Na versão apresentada por Menezes (1984:382), a solução para o
impasse se daria com a saída de Tsudzawéré que fundaria outra aldeia. Entretanto, se
Dzururã assumisse a chefia de São Marcos o relacionamento entre os Xavante com os
missionários estaria comprometido, pelos motivos indicados acima. Para contornar essa
ameaça a Missão propôs que a decisão sobre quem deveria sair fosse decidida por uma
votação, expediente estranho ao grupo que possui outros critérios para suas resoluções
políticas. O resultado dessa votação referendou Tsudzawéré como novo chefe de São
Marcos. Segundo Menezes, os Xavante referem-se a este evento como uma transmissão
de mando: Apöwẽ teria “dado” a chefia para Tsudzawéra139, contrariando os
interesses de sua patrilinhagem (ibid. 1984:385). Aqui cabe mais uma ressalva a
respeito da sucessão de liderança numa aldeia Xavante. Menezes (1984:381) acredita
que
(...) a regra de descendência constitui a principal das condições que
legitimam as pretensões de um postulante à chefia, prerrogativa
herdada patrilinharmente e que deve ser patrilinharmente assumida
pelos descendentes diretos de um imãmã anterior.

Ora, se assim fosse de que valeria o jogo político das facções? Se um chefe se
faz pelo prestígio que ele adquire junto à sua facção e, não necessariamente, das demais
facções da aldeia associado ao poder que sua facção detém dentre as demais, a
descendência patrilinear não se sustenta.

139
O nome de Tsudzawéré está escrito de maneira incorreta no trabalho de Menezes. Tivemos a
oportunidade de conferir através de entrevista com o próprio de Tsudzawéré em nosso trabalho de campo
realizado em novembro de 2002.
358

Maybury-Lewis (1984:250) com muita clareza já havia ressaltado os elementos,


poder e prestígio, que podem levar um homem a ocupar a posição de chefe. Segundo
este autor,
(...) Os chefes não são instaurados formalmente no cargo, nem há
procedimento algum, já preestabelecido, para sua eleição, indicação
ou sucessão. Eles não dispõem de nenhuma insígnia e são poucas as
prerrogativas que os distinguem de seus companheiros. Trata-se, de
fato, de homens que exercem liderança e, nessa medida, reivindicam o
status de chefes. Nem todos os líderes, porém, tornam-se chefes e
acontece, às vezes, de um homem que reivindica tal condição ser
reconhecido apenas por uma parte dos membros da comunidade.
Quando o poder está dividido de modo equilibrado entre as facções,
pode haver mais de uma pessoa a quem a chefia é imputada. Os Xavante
encaram essa situação com muita naturalidade, já que a chefia é
sancionada simplesmente pelo reconhecimento, na prática, da
detenção do poder por determinados indivíduos. Não há outra forma
de legitimidade. Os Xavante reconhecem o fato de homens influentes
competirem constantemente pelo direito de serem vistos como chefes.
Assim, quando um homem tenta depor outro que seja considerado, de
modo geral o chefe, sua atuação não é contrária às noções de
Xavante relativas ao comportamento correto. Um chefe é reconhecido
como tal enquanto é o cabeça de uma facção forte (Maybury-Lewis,
1984:250-251)

A eleição acima mencionada só faz confirmar o que já estava estabelecido. Em


outros termos, conforme vimos nas colocações de Maybury-Lewis, o chefe é o cabeça
de uma facção forte. A eleição é a tradução esta realidade. O próprio Apöwe, o chefe da
facção dominante, apoiava Tsudzawéré, e este apoio foi seguido por seus
correligionários. Apöwe continuava a desfrutar de maior prestígio, sobretudo por estar
mais ligado à Missão Salesiana. Na opção de escolher entre a Missão, fonte de bens e
recursos que poderiam ser usados em seu favor, e uma liderança que colocava contra
esta fonte, os Xavante escolheram a primeira opção. Todavia, isso não significa que a
Missão também não tenha agido nos bastidores para que a escolha fosse favorável a ela.
Neste sentido, o resultado do referendo proposto pela missão nada mais fez do que
reafirmar esta primazia.
Segundo uma versão apresentada por um dos missionários, que há muito tempo
trabalha na Missão, a crise começou pelo fato das novas lideranças estarem cansadas de
servirem de intérprete para Apöwe nos relacionamentos extra-aldeia, haja vista que o
mesmo não tinha domínio da língua portuguesa. Desta forma, Tsudzawéré juntamente
com Simão, irmão de Dzururã, se dirigiram à Apöwe e lhe expondo o fato e pedindo
para que este escolhesse outro chefe para substituí-lo, proposta que foi acatada por
359

Apöwe. A escolha foi feita através de uma eleição sendo que os mais votados foram: em
primeiro Humberto, em segundo Benjamim e, finalmente, em terceiro Tsudzawéré. No
dia em que seria apresentado o novo chefe, no centro da aldeia – no warã, Apöwẽ ao
invés de apresentar Humberto, que era muito novo, apresentou Tsudzawéré, seu
cunhado. Talvez ai esteja à confirmação de que Apöwẽ teria cedido o posto cacique à
Tsudzawéré.

4.2.3 - c) - A CISÃO

Os demais não aceitaram a decisão, porém por um tempo ainda permaneceram


na aldeia para depois saírem para fundarem outras. Benjamim fundou N. S. Auxiliadora,
mas depois foi para a região do rio Couto Magalhães (hoje T. I. Parabubure) e depois
para São Pedro na Terra Indígena Parabubure onde se tornou chefe. Atualmente,
Benjamin, após deixar São Pedro, é cacique da aldeia Abadzi nhoredzé, na mesma terra
indígena. Humberto fundou a aldeia N. S. Aparecida, mas quase não permaneceu na
aldeia ficando seu irmão como chefe. Todavia, apesar de terem mudado para outras
aldeias, a questão voltava à tona porque acusavam que Tsudzawéré havia usurpado
deles a chefia. Novas crises ocorreram, juntamente com novas eleições onde a disputa
estava entre Tsudzawéré e Dzururã, mas desta vez quem ganhou foi Tsudzawéré,
segundo o missionário informante.
Em conseqüência do resultado da “eleição”, quem saiu de São Marcos para
fundar outro núcleo foi a facção de Dzururã (Mario Juruna). Em 1976, portanto,
começa o ocorrer o fracionamento da aldeia de São Marcos com a fundação da aldeia
Namunkurá. Anos depois Dzururã deixará a aldeia para entrar na vida pública e dedicar-
se à política no mundo do waradzu. No mesmo ano Benjamin fundou a aldeia Nossa
Senhora Auxiliadora. No ano seguinte, 1977, Humberto funda a aldeia de Nossa
Senhora Aparecida. Última aldeia a ser fundada na década de 70 será S. José, por Josué,
em 1978 – que mais tarde se transferiu para a região do rio Coluene (hoje T. I.
Parabubure).
360

4.3 - DÉCADA DE 80 - SEGUNDA GRANDE CRISE

4.3.1 - a) - A RUPTURA

O início da década de 80 foi marcado por outra crise política. Desta vez
envolvendo de um lado Tsudzawéré, atual liderança, e Orestes, filho de Apöwẽ.
Inconformado com a “administração” de Tsudzawéré, Orestes tentou reaver a chefia de
São Marcos, que no passado estava nas mãos de seu pai, que em decorrência às
situações já expostas foi repassada para Tsudzawéré. Orestes tinha para isso o apoio e
prestígio de Dzururã e de seu pai. Segundo Menezes (1984:517), as acusações que
pesavam sobre Tsudzawéré estavam ligadas à redistribuição de recursos e bens, onde os
maiores beneficiados seriam os membros de seu grupo doméstico.
(...) Tsusawéra era incriminado por realizar uma política de caráter
clientelista, elegendo critérios personalistas para distribuir cargos, e
doações e por favorecer seu grupo doméstico e aliados com maior
quantidade de carne nos abates dos animais pertencentes ao rebanho
que a comunidade indígena recebera por ocasião da demarcação da
reserva (Menezes 1984:517).

As acusações incluíam ainda o desvio de dinheiro das aposentadorias e a venda


de parte do rebanho da comunidade. A justificativa da venda do rebanho é de que seria
para compra de apetrechos para mantê-lo (vacinas e arreios), versão que não era aceita
por seus adversários políticos. Contra as pretensões de Tsudzawéré continuar ocupando
o posto de cacique, Orestes acionou o mecanismo da tradição alegando que o cargo de
chefia seria um direito natural do clã po’redza’õno, o clã de seu pai.
Aqui convém tecer algumas considerações a respeito deste “direito natural” à
chefia creditado aos membros do clã po’redza’õno. Conforme apresentamos no início
do capítulo I desta tese, os clãs Xavante po’redza’õno, öwawẽ e tob’ratato são
distribuídos em duas metades: danhimire (os da direita) onde se encaixa o clã
po’redza’õno; e, danhi’e (os da esquerda) composta pelos clãs öwawẽ e tob’ratato. Os
casamentos, uxorilocais, e alguns rituais acontecem tendo como referência esta forma
organizacional. Segundo Giaccaria, este modo de organização tem
(...) a importante função de resolver tensões de no interior do grupo
ou entre grupos de uma mesma tribo. As contínuas tensões surgem,
em parte, pelo fato de uma metade ser considerada superior à outra.
Uma quer dominar e a outra não quer ser dominada (Giaccaria,
[1990:24] 2000:144) [grifo meu].
361

Não obstante, quando observamos a dinâmica faccional Xavante constatamos


que as tensões não estão relacionadas à composição de metades. O arranjo faccional
Xavante independe de filiação clânica ou de metades. Conforme salienta Boissevain,
uma facção é composta por (...) um grupo livremente ordenado em conflito com um
grupo similar sobre uma questão particular (Boissevain, 1977:280 – tradução livre).
Retomemos as considerações a respeito de clã e chefia. Existiria um “direito
natural” que conferiria a prerrogativa da chefia a membros do clã po’redza’õno?
Giaccaria afirma que
Atualmente, o clã principal é o po’redza’õno em todas as aldeias,
mesmo nas quais é o clã de menor número de pessoas. As funções e
cerimoniais principais pertencem a ele. É a metade danhimire (da
direita) (Giaccaria, [1990:24] 2000:145).

Teria Orestes se apropriado das interpretações missionárias, haja vista que ele
pertence ao clã po’redza’õno, para argumentar que seu clã teria o direito à chefia? Aqui
é preciso retomar a descrição etnográfica da iniciação do danhono que empreendemos
no capítulo anterior. Procuramos mostrar que a iniciação do danhono acontece tendo em
vista a organização das classes de idade em metades cerimoniais. Em cada uma das
metades cerimoniais estão presentes os clãs po’redza’õno, öwawẽ e tob’ratato. Durante
as diversas fases do processo ritual há rituais em que a filiação clânica não é relevante, e
sim saber a que metade cerimonial o outro está ligado. O exemplo mais explícito desta
organização é o ritual uiwede, corrida de buriti, no qual as classes de idade distribuídas
em metades competem entre si. Duas categorias nativas traduzem o que estamos
falando: waniwihö e õniwihö. A primeira, waniwihö, diz respeito aos membros das
classes de idade que constroem a casa dos solteiros do mesmo lado da aldeia que a
minha; enquanto que õniwihö são aqueles que constroem a casa dos solteiros do outro
lado. Portanto, durante boa parte do processo de iniciação do danhono o importante não
é filiação clânica, mas a metade cerimonial a que o ator social esteja ligado.
Entretanto, vimos que em dois rituais do danhono a filiação clânica assume
relevância: pahöri’wa e tébé. O cargo cerimonial de pahöri’wa é prerrogativa dos
po’redza’õno, enquanto que o de tébé dos öwawẽ. Nesta situação não cabe dizer que um
seja mais importante do que o outro. Ademais, poder-se-ia dizer que a chefia seria de
direito dos membros do clã po’redza’õno ao se considerar o cargo cerimonial de
aihö’ubuni, que é concedido a alguns moradores da casa dos solteiros filiados daquele
clã. O papel ritual do aihö’ubuni é liderar e guiar os demais moradores da casa dos
362

solteiros enquanto estiverem convivendo juntos na hö. Como vimos antes da escolha
dos pahöri’wa são eles que tomam a frente da fila em seus deslocamentos formais à
aldeia, quando vão executar os cantos da madrugada e no início da noite ou em qualquer
outro momento cerimonial desenvolvido em público. A partir do momento em que se
definem os cargos de pahöri’wa serão estes atores rituais que tomarão a dianteira da fila
e conduzirão os companheiros nos diversos rituais em que tomarem parte.
Ao término do processo ritual o cargo cerimonial perde sua importância, todavia
mantém-se o título, pois cotidianamente os membros da comunidade aldeã os tratam
pelo nome do cargo. Aqueles que já foram iniciados no danhono e mantendo-se o status
pahöri’wa, tébé e aihö’ubuni se reunirão por ocasiões de outros rituais de iniciação do
danhono para escolherem dentre os moradores da hö, casa dos solteiros, os novos
ocupantes destes cargos, obedecendo aos critérios de filiação clânica. Portanto, durante
e após o processo ritual os cargos cerimoniais ali desempenhados não possuem qualquer
ligação com os critérios de definição de líder da aldeia. Entretanto, nada impede que o
processo ritual seja usado pelos atores sociais de modo que os cargos cerimoniais
pahöri’wa, tébé e aihö’ubuni, considerados de prestígio, sejam dados aos filhos
daqueles que se apresentam com maior influência no cotidiano da aldeia. Não obstante,
isto não acontece de modo pacífico, como vimos em nossa descrição etnográfica.
Maybury-Lewis aponta que na comunidade de São Domingos, onde desenvolveu
seu trabalho de campo em 1958, o chefe Apöwẽ tinha conseguido fazer com que um de
seus filhos assumisse um dos cargos cerimoniais de pahöri’wa, enquanto o outro fora
assumido pelo filho de seu irmão, durante a iniciação da classe de idade tirowa. Nas
duas iniciações precedentes Apöwẽ havia imposto que seus filhos também ocupassem o
cargo cerimonial de pahöri’wa. Segundo Maybury-Lewis (1984:254), Apöwẽ (...)
procura garantir que sua facção continue a dominar, usando o sistema de classes de
idade para treinar seus parentes próximos na função de líderes da comunidade. Aqui o
autor não consegue “escapar” das armadilhas do estruturalismo ao colocar a estrutura (o
sistema de classes de idade), ou seja, deter um cargo cerimonial, como preponderante
sobre a dinâmica da vida social. O fato de ser filho do chefe não é garantia que o
morador da casa dos solteiros terá condições pessoais de desempenhar o papel de
liderança. Reveja, por exemplo, a situação dramática do neto do cacique de Guadalupe
conforme descrição que tecemos sobre sua performance durante da corrida do tsauri’wa
no item 3.19 do capítulo III. Durante a iniciação de 1997 observamos que um dos
363

moradores da casa dos solteiros escolhido para desempenhar o cargo cerimonial de


aihö’ubuni apresentava uma personalidade extremamente retraída, a ponto de os colegas
referirem-se a ele como molão, molengão. Na iniciação de 2005, que acompanhamos na
aldeia N. S. de Guadalupe o pahöri’wa que era neto do cacique não apresentava sinais
de que conseguia se impor ao colegas. Seus companheiros o respeitavam mais pelo seu
tamanho e peso do que pelas suas qualidades de liderança. Um dos tébé, neste mesmo
processo de iniciação, passava mais tempo em casa do que entre seus colegas da casa
dos solteiros e por hora não apresentava igualmente sinais de comando entre os demais.
Não obstante, os membros mais ativos enquanto líderes do grupo de moradores da casa
dos solteiros eram aqueles que estavam vivendo na cidade, e agora estavam na aldeia
por conta da iniciação, ou que tinham vivido por lá e retornaram a aldeia.
Conforme salientamos no início deste trabalho, tendo por base as considerações
de Maybury-Lewis a respeito dos líderes Xavante, são os atributos e qualidades pessoais
que favorecem que um homem Xavante tenha condições de pleitear o cargo de chefe.
Antes de tudo, o líder aparece como o cabeça de uma facção (Maybury-Lewis,
1984:250). Segundo este autor as facções estão em constantes disputas entre si cujo
prêmio maior é o reconhecimento enquanto chefe. Todavia, antes que um homem
xavante se coloque como postulante do cargo de chefe da aldeia, ele deve antes de tudo
ser referendado por sua facção, e não podemos descartar as disputas internas durante
este processo. Os Xavante reconhecem o fato de homens influentes competirem
constantemente pelo direito de serem vistos como chefes (Maybury-Lewis, 1984:250)
[grifo meu]. O que faz um homem ser considerado influente é sua capacidade de
oratória, virilidade, generosidade. Por fim, não podemos destacar o apoio de seu grupo
doméstico, uma vez que entre os correligionários de uma facção o apoio do grupo
doméstico é extremamente importante.
Ademais, o fato de no processo de iniciação religiosa o darini, o cargo
cerimonial de Ĩtsa’rata’wa140 pertencer ao clã po’redza’õno não pode ser tomado para
justificar que cargos de liderança política seja deste clã.
Como vimos acima, ser filiado a determinado clã não é garantia de sucesso na
vida política. Nos rituais, a filiação clânica assume relevância quando considerada
juntamente com a divisão das classes de idade em metades cerimoniais. Não tratamos

140
Cabe aos Ĩtsa’rata’wa definir a realização do processo de iniciação religiosa o darini.
Somente os iniciados neste ritual é que podem participar das várias modalidade de celebrações
religiosas wai’a.
364

nesta tese do ritual de iniciação religiosa o darini. Não obstante, pelo que apuramos a
forma de organização da esfera religiosa não é tão diferente do que no danhono,
considerando a existência de cargos cerimoniais a serem ocupados de acordo com a
filiação clânica, bem como, a referência ao estágio de inserção do ator ritual na
iniciação do darini. Todavia, o apelo a uma suposta tradição não foi suficiente para
derrubar Tsudzawéré, haja vista que a facção que o mantinha no poder era
numericamente maior, e, além disso, o mesmo manipulava a Missão em seu favor.

4.3.2 - b) - A CRISE

Durante algum tempo era reconhecida à existência de dois chefes na aldeia de


São Marcos, fato que não é um problema para os Xavante como vimos acima na citação
de Maybury-Lewis.
Segundo Menezes (1984:518), tanto a FUNAI quanto a Missão interferiram
diretamente no conflito, dispostos a conduzi-lo a um desfecho favorável para a
programação de atividades produtivas em funcionamento. De fato 1980 era o ano em
que o Projeto Xavante estava no auge de seu funcionamento, e uma interrupção no
processo de produção levaria a perda dos investimentos já realizados. O Plano de
Desenvolvimento da Nação Xavante ou simplesmente Projeto Xavante, como ficou
conhecido, pretendia
(...) criar condições para a auto-suficiência dos Xavante e dispôs,
para isto, de verbas extremamente generosas. O projeto parece ter
sido encarado pelos Xavante como uma fonte segura de verbas a
serem consumidas na aquisição de bens imediatamente necessários (e
não investidas em iniciativas que garantissem, de fato, sua maior
autonomia em relação ao órgão tutelar) e um endereço certo para
suas reivindicações, um objeto definido para suas pressões. Nesta
medida foi, portanto, bem visto e bem recebido pelos índios (Lopes da
Silva, 1986:52).

Com a persistência da crise instaurada dentro do contexto do Projeto Xavante, o


órgão tutelar e os Missionários fizeram pressão para o fim do imbróglio.
365

4.3.3 - c) - MECANISMOS DE REPARAÇÃO, CISÕES - NOVA CRISE –


CISÕES

O impasse foi resolvido pelos próprios Xavante através de várias reuniões em


São Marcos, onde foi excluída a participação dos missionários e funcionários da
FUNAI. Para dissolução do conflito os próprios Xavante
(...) optaram por uma solução inédita para uma conduta política que
normalmente implica o uso da força. Foi proposto a Apöwẽ uma
indenização em troca de sua desistência como postulante à chefia,
quarenta cabeças de gado provenientes do rebanho coletivo da
aldeia. Acatada esta solução, Tsusawéra foi reafirmado, uma vez
mais, na posição de líder principal e sua facção sentiu-se reforçada
no poder. Apöwẽ , inicialmente disposto a fundar uma nova aldeia,
preferiu permanecer em São Marcos; Orestes, apesar da desistência
do pai e ressentido com a perda política, decidiu deixar a aldeia-sede
fundando um novo núcleo (Buriti Alegre) com mais duas famílias,
para onde transportou o rebanho paterno. Meses depois indispôs-se
com os novos parceiros, transferindo-se para Couto Magalhães,
onde foi residir junto a seus irmãos mais velhos (Menezes, 1984:519).

Segundo nosso informante missionário, Orestes por ser filho de Apöwẽ, queria
ser chefe de São Marcos. Porém, ele mesmo não gozava de apoio do seu pai que não o
considerava apto a ser chefe. Como Tsudzawéré era detentor de um pequeno rebanho,
negociou com Orestes para que ele desistisse de ser chefe. O preço pago foram quarenta
cabeças de gado. Orestes pegou este rebanho e foi para São José, aonde veio a se
desentender com a liderança daquela aldeia por ter vendido todo o gado e ter gasto o
dinheiro, ao que tudo indica, com ele e sua família sem qualquer tipo de redistribuição.
Como resultado desta nova situação de conflito Orestes deixa São José para fundar
outra aldeia. O local escolhido foi aquele que já mencionamos anteriormente por
Menezes, Buriti Alegre, onde fundou a aldeia Cristo Rei. Mais uma vez novos
desentendimentos, agora com Emílio, sobrinho de Tsudzawéré. Orestes volta à São
Marcos em 1986, para no ano seguinte se mudar para São Paulo, onde lá permanece por
doze anos.
Até meados da década de 80 a Terra Indígena São Marcos contava com seis
aldeias (São Marcos, Namunkurá, N. S. Auxiliadora, N. S. Aparecida, Cristo Rei [Buriti
Alegre] e São José), com uma população de 1032 pessoas, aproximadamente (LOPES
DA SILVA, 1986:306). Na segunda metade, outras aldeias foram fundadas a partir da
aldeia São Marcos, como foi o caso de Nova Jerusalém. Aqui surge a primeira cisão de
uma aldeia que havia cindido de São Marcos: São Luiz. José Tropeiro, irmão do cacique
366

de Namunkurá se desentende com o mesmo e retira-se com seu grupo doméstico e


funda a Aldeia São Luiz.

4.4 - DÉCADA DE 90 - TERCEIRA GRANDE CRISE

Antes que uma nova crise se tornasse pública várias lideranças de São Marcos
começaram a deixar esta aldeia para fundarem outras. A aldeia de São Marcos no início
dos anos noventa contava com uma população de aproximadamente 874 pessoas. Com
um contingente populacional desta magnitude a vida social da aldeia estava se tornando
inviável. No plano da execução dos rituais, por um lado, a situação era favorável por
haver muita gente colaborando para sua execução, por outro, a pressão exercida sobre
os recursos naturais disponíveis nos arredores da aldeia comprometia sua realização.
Diante disso os atores rituais estavam buscando matéria prima em outras áreas e até em
fazendas da região. É o caso, por exemplo, do ritual uiwede - corridas de buriti, onde o
buritizal, local onde crescem estas palmeiras, mais próximo estava localizado na
fazenda São Bento, depois da terra indígena seguindo pela estrada MT-312, sentido
Barra do Garças.
Idealmente uma aldeia Xavante conta com vinte cinco a trinta casas, numa
imagem aérea141 de uma aldeia xavante antes do contato podem-se contar vinte e três
casas – incluindo a hö casa dos solteiros, com uma população girando em torno de cento
e cinqüenta a duzentos e cinqüenta pessoas. Além deste limite máximo, se cria, na
aldeia, uma situação de desequilíbrio, que traz o fracionamento do grupo e o
aparecimento de uma nova aldeia (Giaccaria & Heide, 1984:56). Não obstante, estes
autores não exploram analiticamente como isto ocorre. Conforme sinaliza Turner
(1974:42), apresentar a morfologia é importe, todavia, é preciso analisá-la em seu
caráter dinâmico.
Entre as motivações que levavam os grupos domésticos a deixarem São Marcos
estava o descontentamento com a administração do cacique Tsudzawéré. Nos
bastidores, dizia-se que aquela liderança procurava beneficiar somente seus parentes
quando recursos e bens direcionados à comunidade aldeã. Até aqui nenhuma novidade,
haja vista que nos anos setenta e oitenta este tipo de acusação já era freqüente.
Contudo, quando observamos, abaixo, o Fluxograma de Cisões de Aldeias na Terra

141
Veja página na rede mundial de computadores do Instituto Sócio Ambiental:
http://socioambiental.org/home_html.
367

Indígena São Marcos142 pode-se constatar que o ritmo de criação de aldeias é


relativamente lento. Na segunda metade da década de setenta foram criadas quatro
aldeias (N. S. Auxiliadora, São José, N. S. Aparecida e Namunkurá) imediatamente
após o reconhecimento e demarcação da Terra Indígena São Marcos. A década seguinte,
nos anos 80, o ritmo foi ainda mais lento, sendo criadas apenas três aldeias (Nova
Jerusalém, Cristo Rei e São Luiz) em espaçamento de tempo mais longo, em média a
cada três anos. Na primeira metade dos anos noventa visualizamos a criação de apenas
uma aldeia (Sagrada Família). A situação muda completamente na segunda metade
como veremos abaixo.

4.4.1 - a) - RUPTURA - CRISE E MECANISMOS DE AÇÃO REPARADORA

O ano de 1997 é marcado pela conclusão da iniciação do danhono da classe de


idade ẽtepa
˜ , iniciado em 1993, em várias aldeias da Terra Indígena São Marcos.
Mencionamos acima a estimativa da população Xavante na aldeia São Marcos, 874
pessoas. A expressão desta super população em relação ao tamanho ideal de uma aldeia
Xavante estava traduzida na casa dos solteiros. Em outros termos, o tamanho da
população refletia no número de iniciados no danhono. Foram aproximadamente cento e
vinte membros da classe de idade ẽtepa
˜ a serem iniciados. Diante disso, uma única casa
dos solteiros, a hö, não foi suficiente para abrigar a todos, sendo necessário a construção
de outra. Contudo, nem todos os iniciandos eram residentes da aldeia São Marcos.
Aldeias menores que não tinham condições de promoverem o danhono enviaram os
ai’repudu, meninos em idade de serem admitidos na hö, à São Marcos para passarem
pelo processo de reclusão até a conclusão do rito de passagem. Isto criava uma falsa
imagem de que a Terra Indígena São Marcos estaria vivendo um processo de paz.
No ano seguinte, 1998, acontece a morte de Apöwẽ Abtsiré, um dos líderes que
conduziu os Xavante de São Marcos ao encontro dos missionários da Missão Salesiana
em Merure, que atuavam junto aos Bororo. Orestes, filho de Apöwẽ Abtsiré, retorna
novamente à São Marcos, vindo de São Paulo, com planos de se tornar cacique. Para
tanto ele conta com o apoio de boa parte das aldeias que haviam naquela época,
conforme o quadro que montamos na dissertação de mestrado e reproduzimos abaixo.
Naquele ano de 1998, estávamos trabalhando como voluntário na Missão atuando como

142
Agradeço a Luciene de Souza Guimarães, antropóloga e demógrafa, que executa pesquisas
entre os Xavante, por colaborar na composição do fluxograma.
368

professor na escola indígena. Certa manhã fomos solicitados por um dos professores a
redigir um documento a ser encaminhado à FUNAI. Sem ter conhecimento do teor do
documento aceitamos a incumbência de redigi-lo. Após termos começado a redigir o
texto do documento é que fomos tomando conhecimento de seu conteúdo. O documento
informava a FUNAI que a liderança tradicional de São Marcos havia tomado posse
como cacique daquela aldeia. A ruptura e crise estavam oficialmente instauradas e os
atores sociais tomam seus posicionamentos manifestando apoio às facções em disputa
pelo reconhecimento de um ou outro cacique da aldeia São Marcos.

Quadro - 18 - Fluxograma de cisões de aldeia na T. I. São Marcos

Todavia, não seria um documento que tiraria Tsudzawéré do posto de cacique,


que mais uma vez apoiado por sua facção, resiste em entregar a chefia da aldeia ao
pretendente, gerando um novo impasse na comunidade. Como ocorreu em 1980, quando
a aldeia São Marcos passou a ter dois chefes.
O que caracteriza este episódio são os fatos que remetem às situações vividas
antes do contato. A etnografia Xavante (Maybury-Lewis, 1984:235) nos mostra que ao
se estabelecerem clivagens entre facções numa aldeia havia duas possibilidades de
resolução do impasse: na primeira os membros da facção minoritária procurariam uma
maneira de deixar a aldeia que estavam em contenda buscando asilo numa outra; na
369

segunda os membros da facção dominante executariam fisicamente alguns homens


adultos da facção concorrente, sobretudo, os pretendentes à chefia, enquanto o restante
de seu grupo doméstico iria se refugiar em outras aldeias.
De imediato, sem mecanismos de reparação, como no modelo de Turner, a crise
se espalha atingindo todas as aldeias da Terra Indígena São Marcos, bem como, outras
situadas nas demais terras indígenas.
Para estabelecer um elo entre os correligionários da facção de Tsudzawéré e
grupos de apoio que estavam em outras Terras Indígenas este grupo mantinha o controle
do rádio amador que estava guardado no Posto de Saúde localizado próximo da aldeia.
O mesmo era usado para se comunicar com aldeias de outras Terras Indígenas,
sobretudo aquelas onde havia parentes e que apoiavam Tsudzawéré, expondo a situação
conflitiva que se vivia em São Marcos, além de se buscar alianças naquelas terra
indígenas. Como numa estratégia de guerra, a facção contrária tratou de interromper a
comunicação do inimigo. Para isso os correligionários de Orestes planejaram e
executaram um modo de apreender o rádio amador. Assim, numa manhã de domingo
enquanto a maioria dos moradores estavam nas casas preparando o almoço, o grupo
descontente foi até o Posto de Saúde, onde havia uma sala destinada ao rádio, e depois
de pedirem para que as enfermeiras, contratadas pela FUNASA, se retirassem,
arrombaram a porta levando o aparelho que foi totalmente destruído. O clima já andava
tenso naqueles dias, tal fato serviu como estopim para que se desencadeasse um
confronto corpo a corpo, semelhante aos “velhos tempos”, isto é, antes da
sedentarização forçada e do convício na presença da missão. Presenciamos este conflito,
que durou cerca de quarenta minutos, até que os dois grupos em contenda se retiraram
para lugares opostos. Contudo, o clima de tensão permaneceu por semanas. Desta vez
não houve mortes, e nem foram usadas as tradicionais bordunas. Este não foi um fato
isolado. Mais tarde novos enfrentamentos se repetiram em outros locais.
Como dissemos acima, a disputa pelo reconhecimento de cacique da aldeia São
Marcos atingiu outras aldeias da terra indígena homônima. Entretanto, algumas aldeias
não foram unânimes em apoiar uma ou outra facção. Foi o caso das aldeias Nova
Jerusalém e Nossa Senhora Auxiliadora. Estas duas aldeias estavam divididas no que
diz respeito ao apoio dado a Orestes e Tsudzawéré. No caso de Nova Jerusalém a
situação chegou a vias de fato, após o conflito que acontecera na aldeia São Marcos.
370

MAPA - 3 - DISTRIBUIÇÃO DAS FACÇÕES NA CIDADE DE BARRA DO GARÇAS

Já afirmamos que o conflito político que teve início na aldeia São Marcos se
espalhou pela terra indígena homônima e atingiu outras áreas Xavante. De mais a mais,
o conflito atingiu também a cidade de Barra do Garças, alterando as formas de
deslocamento, adotadas pelas facções, da aldeia à cidade bem como o modo de
ocupação do espaço urbano. Assim, temerosos de serem surpreendidos por tocaias as
facções passaram a seguir por caminhos opostos para chegarem à cidade de Barra do
Garças. A facção Tsudzawéré e seus correligionários seguiam pela estrada que corta a
Terra Indígena Merure, dos Bororo, até atingir a BR-070 e dali tomavam o rumo de
371

Barra do Garças. A facção de Orestes se deslocava pela MT-312, que corta a Terra
Indígena São Marcos até a BR-158 e dali chegar até Barra do Garças.
A cidade de Barra do Garças foi igualmente reapropriada de acordo com os
conflitos faccionais. Neste sentido, a facção de Orestes ocupava a área do Hotel Santo
André, próxima à antiga rodoviária. Os da facção Tsudzawéré, por seu turno, se
dirigiam para o local conhecido como Restaurante do Mauro ou se concentravam no
Dormitório Avenida, localizado na rua principal da cidade. As relações comerciais que
as facções mantinham na cidade também foram alteradas, e cada um dos grupos passou
a privilegiar alguns centros de comércio. O mapa abaixo mostra o posicionamento das
facções na cidade de Barra do Garças.
Um mecanismo de ação reparadora acionado foi novamente a realização de uma
pesquisa, segundo Jornal a Gazeta do Vale do Araguaia143, promovida pela FUNAI a
pedido dos Xavante. De acordo com aquele jornal uma equipe da FUNAI passou de
casa em casa perguntando ao chefe do domicílio quem o mesmo apoiava. A reportagem
diz que o vencedor na pesquisa foi Orestes, com base numa entrevista feita com o
Professor Raimundo. Na entrevista da reportagem com Raimundo, este desqualifica a
oposição dizendo que o tio Aniceto (Tsudzawéré), que igualmente se defende no posto
de cacique, o ameaçara de morte e desejava resolver tudo na violência por ser um
homem valente. Não obstante, FERNANDES144 (2005:42) em sua dissertação de
mestrado, diz que o presidente da FUNAI Sulivan Silvestre, ocupante do cargo de
agosto de 1997 a fevereiro de 1999, promoveu a eleição e o resultando foi um empate.
A partir daí, segundo Fernandes, Orestes passa a assinar documentos como Presidente
da Nação Xavante ou Cacique de São Marcos Oriental, enquanto Aniceto adota o título
de Cacique de São Marcos Ocidental. Não obstante, numa entrevista que realizamos
com um dos correligionários de Tsudzawéré [Aniceto] o mesmo nos disse que sua
facção havia perdido a eleição promovida pela FUNAI. Todavia, a derrota aconteceu
porque houve fraude no pleito. Quando os pesquisadores chegaram a uma das casas,
uma viúva que seria a chefe da casa foi impedida de votar por seus dois genros que
apoiavam Orestes. Ocorre que os dois genros eram moradores de outra aldeia e ao

143
Jornal a Gazeta do Vale do Araguaia Ano XIII nº. 552 (de 27 de outubro a 02 de novembro de
2000).
144
Notamos aqui uma imprecisão nos dados que Fernandes apresenta. A referida pesquisa
aconteceu no mês de outubro de 2000, sendo presidente da FUNAI na época Glênio Alvarez (maio de
2000 a junho de 2002).
372

saberem da eleição foram para a casa da sogra e assumiram a posição de donos da casa,
com isso houve uma diferença de dois votos em favor de Orestes.
O fato de Tsudzawéré ter conseguido praticamente metade dos votos dos
moradores da aldeia São Marcos ajuda a pensar que o mesmo se mantinha como cacique
não só pelo apoio dos missionários, como recebera no passado. O resultado da eleição
mostra que a facção de Tsudzawéré era consideravelmente forte para manter-se na
disputa pela permanência no cargo de cacique.
Ainda segundo nosso informante, após a divulgação do resultado da eleição,
Tsudzawéré não reconheceu a derrota e se recusava a entregar o cargo e reconhecer
Orestes como vencedor. Segundo um de nossos informantes, Tsudzawéré acompanhado
de seus correligionário foi até a cidade de Barra do Garças para se reunir com o
funcionário da FUNAI, Marc145, que havia promovido a pesquisa (ou eleição). Após a
reunião, enquanto Tsudzawéré tomava um lanche num bar o mesmo foi abordado por
Tibúrcio (já falecido), cacique da aldeia Nossa Senhora Aparecida, que manifestava
apoio à Orestes, que passou a agredi-lo verbalmente com palavrões. Segundo o
informante, Tibúrcio, que portava uma borduna, estava querendo briga com
Tsudzawéré. Em defesa de Tsudzawéré, Seb146 se atracou em luta corporal com
Tibúrcio jogando-o no chão. Ao cair Tibúrcio, segundo o informante entrou em
convulsão. Houve uma intervenção de outras pessoas que estavam por perto e
Tibúrcio,que depois de voltar da convulsão, deixou o local dizendo que no sábado
próximo mataria Seb na aldeia São Marcos. O conflito acima teria acontecido numa
quinta feira, segundo nosso informante, daí a referência à sábado como dia provável
para a desforra. Visto que este conflito, que teve como palco o espaço urbano, portanto,
longe das atenções dos missionários, o mesmo serviu de “combustível” para outro que
aconteceria na própria aldeia, como fora anunciado.
No sábado, conforme nosso informante, a facção de Orestes se preparou e
realizou o ritual do uiwede, corrida da buriti, modalidade ubdö’warã (dente branco de
capivara) que acontece após os ritos de admissão dos novos moradores na casa dos
solteiros. A facção de Tsudzawéré já estava preparada para o confronto, haja vista a
ameaça que Tibúrcio havia feito na cidade. No jornal Diário de Cuiabá, edição de 17 de
outubro de 2000, a matéria com o título Índio Xavantes: briga pelo poder deixa 14
feridos, diz que o conflito

145
Para preservar o funcionário alteramos seu nome.
146
Nome alterado.
373

(...) começou com uma “falsa” corrida do Buriti entre as aldeias


Sagrada Família, Nova Jerusalém, Rainha da Paz, Nossa Senhora
Aparecida, Namukurá, São Luiz, Salvador, Imaculada Conceição e
Terra Prometida, liderada pelo cacique Orestes. A chegada era na
aldeia São Marcos. O final foi marcado por provocações. O choque
foi inevitável e mais de 15 índios ficaram feridos, quatro em estado
grave - Tomaz, Serafim, Zé Maria e Nazareno, este último ferido à
bala (Diário de Cuiabá, edição 9754, 17/10/2000).

Uma reportagem147 da Folha Online148, de 17 de outubro de 2000, trata


igualmente deste fato. A matéria com o título: Xavantes brigam por liderança de aldeia
e três são hospitalizados, confirma o local e data do conflito, bem como a referência à
corrida de toras de buriti como pano de fundo do conflito e o relaciona a disputa entre as
duas facções. Outro ponto em comum entre as duas reportagens é o motivo pelo qual
Aniceto (Tsudawéré) e Orestes, tio e sobrinho respectivamente, entraram em conflito:

O choque entre os grupos liderados por Aniceto e Orestes era


esperado há muito tempo, apesar do esforço de outros líderes em
manter a paz na reserva. “As provocações começaram há bastante
tempo. Se algo não for feito vai haver mais derramamento de
sangue”, disse ontem em Barra do Garças um dos xavantes que
apoiam o cacique tio, que pediu para não ser identificado.
A revolta do cacique Orestes vem desde que ele retornou de São
Paulo há mais de quatro anos. Durante esse tempo, as provocações
têm sido constantes. Ele acusa o tio de tomar o poder de forma
arbitrária, quando era o sucessor natural por ser filho do cacique
Apuá, morto há vários anos. Aniceto vem resistindo às pressões sem
partir para o ataque ao sobrinho. No final de semana o conflito foi
inevitável com o envolvimento de todas as aldeias (Diário de Cuiabá,
edição 9754, 17/10/2000).

Folha Online:

De acordo a apuração da polícia, o xavante Orestes quer ser o chefe


da aldeia, no lugar de Aniceto, seu tio.
Orestes é filho do ex-chefe Apoá, que morreu há dez anos. O xavante
alega que seria o "herdeiro natural" do pai, e por isso teria de
assumir a liderança da aldeia.
Orestes deixou de ser chefe pois deixou a aldeia para estudar em São
Paulo e Brasília. Ao retornar à aldeia, passou a exigir a função
exercida por décadas pelo pai.

147
Outras reportagens sobre o conflito:
Midia News – O Primeiro Jornal Online de Mato Grosso: 21/10/2000 – Xavantes feridos em
São Marcos recebem alta em Brasília; 23/10/2000 – Conflito entre Xavante pode estar chegando ao fim;
Funai propõe divisão de aldeia para acabar com a “guerra”; 25/10/2000 – Índio que Exército para
evitar conflitos entre os Xavantes.
Diário de Cuiabá: Edição nº 9755 18/10/2000 - Xavantes tentam chegar a um acordo; Edição nº
9762 25/10/2000 - Xavantes mantêm unidade de Barra fechada.
148
Disponível em: http://www.folha.uol.com.br/, acesso em 17 de janeiro de 2008.
374

Os nomes Apuá e Apoá referem-se a mesma pessoa: Apöwẽ Abtsiré que faleceu
em 1998. O ponto em comum nas duas matérias jornalística é a referência à tomada de
poder pelo tio (Aniceto) e o direito natural [sucessor natural por ser filho do cacique
Apuá - no Diário de Cuiabá; ou "herdeiro natural" do pai – na Folha Online] do
sobrinho (Orestes). Vimos acima que a dinâmica faccional Xavante independe de
critérios estruturais tais como ser filho de um chefe ou filiação a determinado clã para
existir, mas estes são acionados para reivindicar legitimidade. É claro que estes critérios
estruturais são relevantes. Todavia, eles não são suficientes para dar legitimidade ao
pretendente do cargo de chefe.
Pode-se considerar que este foi o pior conflito entre facções em toda a história
da Terra Indígena São Marcos. Em decorrência deste confronto vários homens tiveram
traumatismo craniano decorrentes dos golpes de bordunas, um deles foi baleado e outro
ferido a faca. E muitos outros com escoriações e hematomas provocados pelas
bordunadas e socos. Os que tiveram traumatismo craniano, bem como o baleado, foram
levados para Brasília onde permaneceram entre a vida e a morte. Felizmente não houve
mortes, o que levaria as facções a acionarem novamente o artifício da vingança. Neste
confronto não se pode dizer que houve vencedores ou perdedores, uma vez que as
vítimas foram de ambos os lados.
O conflito só não foi mais grave devido à intervenção dos missionários (as)
salesianos (as), em particular de uma das irmãs. Um dos informantes nos relatou que
uma irmã salesiana para interromper o conflito entrou no meio da “turba” com uma
imagens de Nossa Senhora Aparecida na mão pedindo que parassem. Não obstante, ao
dispararem o tiro que acertou um dos combatentes ela foi obrigada a deixar o local. Este
disparo fez com que por, precaução, cada grupo recuasse para lugares opostos. Foi o
momento de resgatar e encaminhar os feridos à Barra do Garças e depois para Brasília.
375

A reportagem que citamos acima, a qual se refere à vitória de Orestes durante a


pesquisa da FUNAI, nos foi repassada por um dos seus correligionários. No entanto a
matéria jornalística era mais extensa. A primeira parte que reproduzimos abaixo tinha
como título: Índios estariam comprando armas para conflito interno.

Como se pode ver a reportagem foi motivada por uma acusação de que o grupo
de Orestes estaria comprando armas para o conflito. Agnelo correligionário de Orestes
nega as acusações e passa a defender sua facção dizendo que os Xavante tem que brigar
com o inimigo. Este inimigo é o governo: Eu, por exemplo, estou brigando com o
governo para melhorar a assistência médica aos índios. A reportagem termina
apontando que o real motivo do conflito teria sido pela volta da administração da
376

FUNAI para os brancos. O administrador Jonas (Xavante) que saiu era também
correligionário de Orestes. A entrada de um administrador branco é transitória, em seu
lugar entraria depois o Professor Raimundo. Raimundo também é correligionário, ou
melhor, irmão de Orestes. No final a administração regional de Barra do Garças
continuaria com a facção de Orestes. Abaixo inserimos a segunda parte da reportagem
com o título.

Na edição seguinte à reportagem acima, o jornal A Gazeta do Vale do


Araguaia voltou a entrevistar Edmundo Xavante, o estudante universitário, citado na
reportagem anterior e de onde partiu a acusação de compras de armas pelos
correligionários de Orestes. Abaixo reproduzimos a reportagem que foi publicada na
edição de 03 a 09 de novembro de 2000 – ano XIII nº 553:
377

Enquanto na edição anterior Buno Xavante era estudante universitário, nesta


reportagem ele surge como Assessor do Cacique Aniceto Tsuazawere. O mesmo
confirma as acusações e diz que são o funcionário tanto branco quanto índios que estão
378

envolvidos na compra de armas. Na versão do assessor não depende dele entregar o


cargo, pois tem comunidade que não aceita que ele passe o cargo para o sujeito
Orestes. Ele diz houve uma pesquisa em outras áreas, mas não em São Marcos.
Segundo o assessor, seriam outras aldeias Xavante que estariam impondo Orestes como
cacique. Há um resumo da trajetória de vida de Orestes levantada para desqualificá-lo
enquanto cacique. Ademais, acusava o postulante a ocupar o cargo de administrador da
FUNAI de Barra do Garças de incitar os jovens à violência, o que não condiz com o que
é esperado de um professor. Por fim, a reportagem é encerrada com o assessor
enaltecendo o progresso que o cacique Aniceto fez nas áreas de educação e saúde.
Como reflexo deste conflito a administração regional de Barra do Garças ficou
fechada por algum tempo. Segundo algumas reportagens do Diário de Cuiabá (18 e
25/10/2000), os Xavante em contenda excluíram a participação de mediadores da
FUNAI, bem como a presença da Polícia Federal na aldeia onde houve o conflito. De
acordo com a reportagem de 25/10/00, Bruno Xavante, um estudante, chegou a pedir
numa entrevista ao canal de televisão local a presença da Polícia Federal e do Exercito
para desarmar as duas facções: todos estão armados. Se providências não forem
tomadas vai morrer índio nesta.
Após este episódio não houve mais enfretamentos entre as facções. Todavia,
permaneceu o clima de tensão na aldeia, que continuava com duas chefias. Outra
expressão da divisão política da aldeia São Marcos podia ser vista através da
constituição da casa dos solteiros. Cada facção tratou de construir para seus jovens a
serem iniciados uma hö, casa dos solteiros.
No ano seguinte, cinco meses após o conflito relatado acima, um evento
inesperado traria mais tensões e acirraria os ânimos entre as facções: a morte de Orestes.
Orestes estava na cidade de Barra do Garças para tratamento de saúde.
Recusando-se a ser tratado na Casa de Saúde do Índio, situada em Aragarças – GO,
preferiu se hospedar no hotel Santo André, onde era assistido por uma enfermeira, que
pela manhã vinha ministrar-lhe medicamentos. Seu estado de saúde se agravou e ele
veio a falecer no Hotel Santo André em 22 de fevereiro de 2001. Este novo fato trouxe a
tona outro mecanismo de grande relevância para o mundo social e cosmológico
Xavante: as acusações de feitiçaria.
A causa mortis parece ter sido uma hepatite. Segundo um informante, enquanto
Orestes estava na aldeia teria sentido dores na nuca e procurou tratamento na cidade. A
379

suspeita era de meningite, mas recusando-se a ser tratado no hospital, é provável que
tenha pego uma hepatite enquanto estava no Hotel. Contudo, para seus aliados o motivo
teria sido um feitiço que foi lançado sobre ele por porte de seus oponentes, Tsudzawéré
e seus correligionários. Outra versão que ouvimos foi a de que os padres (missionários
salesianos), que estariam apoiando Tsudzawéré, seriam portadores de um feitiço muito
forte e por isso teriam matado Orestes. Associados feitiçaria e vingança teriam
provocado outro confronto com conseqüências ainda maiores do que o anterior. Haja
vista, que os mais exaltados queriam exterminar Tsudzawéré e seu grupo. Aqui houve
uma intervenção direta dos missionários que aos poucos foram acalmando os ânimos
exaltados. Por outro lado, Raimundo, irmão de Orestes, juntamente com outros homens
influentes de seu grupo procuraram apaziguar seus aliados, evitando assim aquilo que
seria, talvez, um massacre.
Ao se atribuir a causa da morte de um homem em decorrência de feitiçaria,
conseqüentemente aquele que fosse o acusado de ser o feiticeiro seria executado, por se
tratar de uma pessoa perigosa à comunidade. Segundo Giaccaria & Heide (1984:267-
268), a execução se daria através de dois meios prescritos: um se daria na casa do
acusado através de um golpe de borduna, uibro; o outro poderia ocorrer durante uma
corrida de toras de buriti, onde num dado momento o homem, acusado de ser o
feiticeiro, seria imobilizado e golpeado com a borduna. Neste último caso a corrida não
terminaria, e seus participantes iriam para suas casas. Não obstante, segundo o
informante que nos relatou o novo clima de tensão que tomou conta da aldeia, os
mecanismos para vingar a morte de Orestes não seguiriam a ordem prescrita. Até
porque, a facção na qual o acusado estaria situado não aceitaria facilmente que um de
seus aliados fosse executado sem luta.
Para Maybury-Lewis (1984:341), uma análise da morte implica, no entanto, em
uma análise da feitiçaria. A hostilidade entre grupos, a partir da relação Nós e os
Outros,
(...) pode ser expressa por meio da feitiçaria (pelo mais fraco contra o
mais forte) ou de acusações de feitiçaria, seguidas por matança ou
expulsões (pelo mais forte contra o mais fraco) (Maybury-Lewis
1984:341).

A morte de um homem pode ser investigada a partir da provável malevolência e


feitiçaria de seus opositores faccionários (Maybury-Lewis 1984:342). A menos que a
morte não tenha ocorrido por meio de luta ou execução, ela será investigada ou
380

atribuída à feitiçaria. Por outro lado, a morte de mulheres e crianças não segue o mesmo
tratamento, mas pode ser pensada como decorrente de subproduto de uma feitiçaria que
foi praticada por um homem que procurava atingir o outro.
De acordo com Maybury-Lewis (1984:343),
(...) segundo o raciocínio Xavante, a única forma do mais fraco
enfrentar o mais forte é através de meios sobrenaturais. Em sua
própria sociedade é só assim que os membros de uma facção fraca
podem atingir membros de uma facção forte.

O indivíduo em si não teria poder para praticar o mal à outra pessoa. Ele só o
faz através de rituais e/ou pela manipulação de determinados tipos de plantas, da qual
produzem um pó. Quando estava caçando com o grupo em 1997, com fins cerimoniais,
presenciei um velho extraindo um pó de uma raiz, transformado-a em serragem. Este pó
seria usado como veneno, serviria para enfeitiçar opositores durante a corrida do
tsa’uri’wa, um dos rituais que acontece no final da iniciação dos solteiros. No entanto,
segundo Maybury-Lewis (1984:343), portar determinados tipos de pó não faz de uma
pessoa uma feiticeira. Este tipo de material pode ser usado em ocasiões rituais, e nem
por isso são considerados como feitiço. Maybury-Lewis diz que os Xavante consideram
o wede dzu, pó ruim, como feitiço quando ele é manipulado juntamente com ritos
específicos, que os Xavante mantém em segredo.
Turner (2005:162) ao propor outra possibilidade, que não a estrutural, de análise
das acusações de bruxaria, diz que elas devem
(...) ser examinadas dentro de um contexto total de práticas sociais.
(...) A questão importante sobre um dado tipo de acusação não é que
seja feita por alguém contra um certo tipo de parente, mas que seja
formulada em um certo contexto empírico. Este contexto incluiria não
apenas a estrutura do grupo e dos subgrupos aos quais o acusador e
o acusado pertencem, mas também a sua divisão em alianças e
facções transitórias baseadas nos interesses imediatos, ambições,
aspirações morais e coisas a fim. Deveria também incluir a história
desses grupos, subgrupos, alianças e facções, na medida em que
considerada relevante para a compreensão da acusação feita pelos
atores principais no contexto empírico.

Não é o rótulo de bruxo, para as sociedades africanas, ou feiticeiro149, no caso


dos Xavante que deve ser aqui pensado, mas o contexto da prática social. Em outras
palavras, não estamos discutindo se o modo pelo qual os Xavante se utilizam de meios

149
Na clássica distinção de bruxa e feiticeiro feita por Evans-Pritchard entre os Azande as
pessoas que são bruxas prejudicam as outras a partir de uma qualidade inerente enquanto que os
feiticeiros o fazem a partir da manipulação de poções e ritos mágicos.
381

naturais ou sobrenaturais para causar aflição em seus adversários políticos deva ser
caracterizado de bruxaria ou feitiçaria. Aqui estamos mais interessados nos resultados
sociais práticos e imediatos que este tipo de acusação provoca. Assim nos perguntamos:
se não houvesse um conflito faccional de fundo, teria sido a morte de Orestes creditada
à feitiçaria? Acreditamos que não. Durante o tempo em que moramos na aldeia São
Marcos várias pessoas morreram, inclusive o pai de Orestes. Na ocasião não ouvimos
nenhuma acusação nesta direção. Isto não significa, porém, que a feitiçaria estava longe
do pensamento Xavante naquela época. Durante as corridas de toras de buriti, sempre
ouvíamos da metade cerimonial que havia perdido que isto se dera porque a oposição
havia usado feitiços nas toras.
A acusação de feitiçaria que os correligionários de Orestes fizeram sobre a
facção de Tsudzawéré, não se tratava apenas de atribuir sua morte em decorrência da
atuação daqueles. Era antes de tudo, um ato de desespero político pela morte inesperada
do líder da facção. Quais seriam os desdobramentos políticos desta nova situação
social? O primeiro ponto foi a exploração política do fato. Como dissemos acima, os
opositores de Tsudzawéré desejavam exterminá-lo e só não levaram adiante este plano
devido a intervenção dos missionários (as) salesianos (as), bem como da interferência
de Raimundo seu sucessor.
Raimundo e alguns homens influentes de sua facção procuraram acalmar os
ânimos mais exaltados e aos poucos a névoa do conflito foi se dissipando.
Com a morte de Orestes, Raimundo assume seu lugar na tentativa de destituir
Tsudzawéré do cargo de cacique. A partir deste fato, torna-se difícil dizer que a Missão
tenha alguma predileção por alguns dos líderes faccionais. Raimundo é ligado à Missão
Salesiana e atuava como agente de pastoral indígena. De mais a mais, nas missas
dominicais era Raimundo que se colocava como tradutor do sermão do padre. Não
obstante, a crise se prolongará por mais quinze meses, quando um novo episódio
colocará as facções frente a frente num clima de guerra.
A aldeia continuava ainda com dois caciques vivendo sob o clima das tensões
agravadas por qualquer fato eventual que pudesse ser interpretado como sendo causado
por um ou outro grupo. Foi o que aconteceu com a morte de um jovem durante uma
caçada. O jovem havia atirado numa queixada, porém o tiro não foi fatal. Ao perseguir o
animal ferido, o jovem foi alvejado por um tiro, ao que tudo indica acidental, disparado
por seu tio. O fato só não resultou num confronto maior porque o jovem não morreu de
382

imediato. Antes de sua morte ele ainda conversou com seu pai a quem pediu que não
fosse feita nenhuma vingança. Ele procurou esclarecer ao pai que o que acontecera tinha
sido um acidente. Pedira ainda que cuidassem de seus filhos e seus irmãos. Mesmo
assim ainda houve o princípio de um tumulto que não tomaram proporções maiores
devido a presença do diretor da Missão na casa do rapaz, atuando como mediador entre
as facções.

4.4.2 - b) - A CISÃO

Antes de falarmos da cisão na qual a partir da aldeia São Marcos resultou na


criação da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, convém tecer algumas considerações a
respeito do quadro de Fluxograma de Cisões de Aldeias. A figura nos mostra que a
partir do momento em que se instaura a crise pela disputa pelo reconhecimento de
cacique entre as facções de Orestes e Tsudzawéré no ano de 1998, sete novas aldeias
são criadas no espaço de dois anos antes do final da década de 1990 (Imaculada
Conceição; Rainha da Paz; Diamantino; Divina Providência; Barreirinho; Evangélica de
Deus e Terra Prometida). Destas, sete novas aldeias fundadas a partir da aldeia São
Marcos, cinco mantém apoio à facção de Orestes (Imaculada Conceição; Rainha da Paz;
Divina Providência; Evangélica de Deus e Terra Prometida); enquanto as outras duas
(Diamantino e Barreirinho) dão apoio à facção de Tsudzawéré.
A década de 2000 inicia-se com a saída de um grupo doméstico para fundar a
Aldeia São Francisco, mas continua a manter apoio político à facção de Tsudzawéré. No
ano seguinte, 2001, um conflito interno na aldeia Nossa Senhora Auxiliadora leva esta
aldeia a uma cisão na qual mais da metade dos moradores a deixam para fundarem a
aldeia Nossa Senhora da Graças. Os que ficam em Nossa Senhora Auxiliadora
manifestam apoio à facção de Orestes, enquanto àqueles que fundaram Nossa Senhora
das Graças continuam a apoiar a facção de Tsudzawéré.
As aldeias que foram fundadas antes de 1998 também estão alinhadas em
relação a uma ou outra facção. Desta forma, ligados à facção de Orestes estão: Nossa
Senhora Aparecida; São Luiz; metade de Nova Jerusalém; Sagrada Família; Nossa
Senhora da Guia; Salvador; Santíssima Trindade; São José; Nossa Senhora Auxiliadora
e Namunkurá. A facção de Tsudzawéré é apoiada por: Cristo Rei e a outra metade de
Nova Jerusalém.
383

Neste cenário o convívio entre as aldeias se dava de forma polarizada visível na


cooperação na realização dos rituais, nos deslocamentos e ocupação do espaço urbano
de Barra do Garças, conforme descrevemos acima.
Os Xavante possuem um rito de iniciação religiosa que ocorre em média entre
quinze a vinte anos. Trata-se do wai’arini ou darini. Este ritual habilitará o homem
Xavante a participar das quatro modalidades anuais do wai’a, do qual as mulheres estão
excluídas de participarem. Em São Marcos a última iniciação ao wai’a ocorreu em 1986
e a próxima estava sendo pensada para 2002, ou seja, após dezesseis anos. Digo sendo
pensada pelo fato de que todos os rituais, sejam eles sociais – corridas de buriti, luta do
oi’o, dentre outros; sejam religiosos – como os vários wai’a que ocorrem durante o ano,
são realizados depois de muita discussão no warã, ou seja, no centro da aldeia. No caso
específico do wai’arini, é pensado com um ano de antecedência devido aos preparativos
preliminares.
A facção Tsudzawéré se preparou para realizar a iniciação do darini em 2002.
Entretanto, a facção de Orestes – agora comandada por Raimundo se antecipou e o
realizou primeiro. Diante da possibilidade de conflitos durante a realização do darini,
Tsudzawéré e seus correligionários não participaram a exceção de um indivíduo que
participou por um dia, mas depois abandou a iniciação. Optaram por fazer a iniciação
num momento posterior. Não obstante, a facção de Raimundo lançou o argumento de
que a outra facção não poderia realizar o darini porque não havia entre eles alguém que
detivesse o segredo.
O impasse gerado pela nova situação criou um clima de tensão envolvendo
novamente as duas facções. A máquina jurídica formal, para nos referimos a Turner,
acionada para mediar o conflito foi a Missão Salesiana. Desta forma, o diretor da
Missão começou a fazer reuniões em separado entre as duas facções, que se recusavam
a dialogar entre si sobre a existência de um detentor do segredo por parte da facção de
Tsudzawéré. Num primeiro momento Lui150, um dos líderes responsáveis pela
realização darini, partidário de Tsudzawéré, procurou o diretor da missão para mostrar
que tinha o segredo e que, portanto estava apto a realizar o darini. Entretanto, houve
contestação da outra parte que afirmava não ser possível àquele líder do ritual possuir o
segredo uma vez que o mesmo não havia participado da última iniciação do darini em
São Marcos. Em sua defesa Lui argumentava ter participado desta iniciação em outra

150
Nome alterado.
384

aldeia e lá recebera o segredo dos ĩtsa’rata’wa - os donos do segredo do wai’a. O


diretor da Missão propôs então uma reunião entre as duas facções na qual o segredo
seria mostrado por Lui a seus opositores. Contudo, um cacique de outra aldeia, aliado a
Raimundo, não concordou com a mediação do diretor alegando que a questão deveria
ser resolvida no mato entre Xavante e Xavante e não entre Xavante e waradzu – um não
xavante. Diante do impasse as negociações foram suspensas e a facção de Tsudzawéré
deu continuidade aos preparativos para realização do darini.
Poucos dias antes do inicio do darini pela facção de Tsudzawéré, foi levantada
uma casa no meio da pista que ligaria o warã (centro da aldeia) ao awã (cercado -
acampamento fora da aldeia) impedindo o trajeto a ser percorrido pelos
da’ãmawai’a’wa, que circulam o dia todo entre os dois pontos durante o ritual. Para
evitar um confronto a facção de Tsudzawéré optou por derrubar uma casa, de um de
seus aliados, ao lado da que estava sendo construída abrindo um novo corredor para os
da’ãmawai’a’wa.
O início do darini a ser realizado pela facção de Tsudzawéré foi marcado, sob
um forte clima de tensão, programado para o dia 24 de junho de 2002. Entretanto, um
dia antes os correligionários da outra facção, numa última cartada para impedir a
realização do darini, plantaram duas traves de futebol no centro da aldeia, onde
pretendia disputar partidas de futebol durante a realização do ritual. Além disso,
derrubaram o awã que fora construído no final da pista próximo ao córrego Boqueirão.
A situação que já andava muito tensa e se agravou ainda mais depois que as duas
facções se armaram para um provável confronto, como o que tinha ocorrido dois anos
atrás, em outubro de 2000 – conforme já relatamos.
Para evitar que chegassem a vias de fato, cujo resultado seria provavelmente
mais trágico do que no evento anterior, o diretor da Missão se colocou como
interlocutor entre as facções. Sua atuação era de um porta voz se deslocando entre uma
facção e outra, haja vista que elas se recusavam a ficar frente a frente para negociação.
Na entrevista que fizemos com o diretor em novembro de 2002, o mesmo nos relatou a
situação dramática que a aldeia viveu naquele dia. Segundo ele, num momento se dizia
ser possível realizar o darini, noutro isso não seria mais. Por um tempo a facção de
Tsudzawéré aceitou adiar a iniciação e negociar sua realização. O outro lado não aceitou
argumentando que o darini não poderia ser realizado duas vezes seguidas, no mesmo
ano e na mesma aldeia. A tensão era tamanha que os mais exaltados choravam,
385

enquanto outro decidiu jogar álcool e colocar fogo em sua casa. Fato que foi negociado
e evitado. Se isso se concretizasse toda a aldeia seria queimada, haja vista que as casa
são construídas muito próximas uma das outras. Haveria perdas de ambos os lados.
Finalmente, depois de muita conversa entre o diretor da missão e o grupo de
Tsudzawéré, que não desistira de realizar a festa, decidiram que iriam se mudar da
aldeia. Solução que recebeu o apoio dos missionários que prometeram toda ajuda ao
grupo. Contudo, decidiram que antes de saírem botariam fogo em suas casas. A cena
descrita por outro missionário que estava presente, na entrevista com o pesquisador,
para a noite anterior à mudança era a seguinte: (...) dia 25, a noite, estava tudo para fora
das casas: quem iria mudar estava carregando suas coisas; quem ficou, ficou com
medo do fogo, botou as coisas para fora. Fato que só não foi consumado devido a mais
uma intervenção do diretor da missão, que argumentava sobre o aproveitamento do
material usado na construção das casas. As palhas bem como o madeiramento de muitas
casas eram novos e poderiam ser usados na edificação da nova aldeia. Após uns quatro
dias de tensão, a idéia de se por fogo nas casas foi totalmente abandonada.
Ao sair de São Marcos o grupo doméstico de Lourenço de dirigiu para onde é
hoje a aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, enquanto que a maioria se mudou para
aldeia S. Francisco. Porém a quantidade de água, proveniente de um poço perfurado
pela Missão naquela aldeia, não era suficiente para abastecer todos os moradores. De
São Francisco o grupo de Tsudzawéré foi se agrupar junto ao grupo de Lourenço que
estava em Guadalupe. O total de casas abandonadas em São Marcos foi de 46
permanecendo 36. Contudo nem todos foram para São Francisco ou Guadalupe. Um
grupo doméstico fundou sua própria aldeia, como foi o caso da aldeia Salvador.
Em Guadalupe os recém chegados depois de se instalarem, tendo apoio dos
missionários que perfuraram um poço e instalaram uma placa solar para tocar uma
bomba d’água, além de fornecer-lhes lonas de plástico para cobrirem as casa, cobertores
e alimentos, um novo impasse passou a se formar sobre a liderança da aldeia: Lourenço
que havia chegado primeiro ou Tsudzawéré, que chegou depois? Entretanto, como tudo
já estava preparado para a iniciação do darini, optaram por realizá-lo e depois
resolverem as divergências. O darini foi realizado em agosto de 2002. Numa reunião
que aconteceu num dos marã, sombra – local onde são preparados alguns rituais, os
líderes que haviam deixado São Marcos se reuniram para comunicarem que por se tratar
de uma aldeia nova haveriam de ter também um novo cacique. Tsudzawéré não aceitou
386

ceder o cargo de cacique e os grupos domésticos ligados à Lino e Lourenço decidiram


então deixar Guadalupe.
Quando estive no campo em novembro de 2002, visitei o local onde seria
instalada a aldeia de Lourenço, que juntamente com seu grupo decidira mudar de
Guadalupe. Não obstante, uma nova situação de conflito estava por se estabelecer.
Novembro constitui final do período de seca na região, com isso vários cursos d’água
secam ou diminuem seu volume neste período. Uma das cabeceiras do córrego
Diamante, onde seria instalada a aldeia de Lourenço, estava com seu curso d’água no
limite. Abaixo deste curso d’água já estava instalada outra aldeia, Nova Esperança.
Temerosos que os dejetos e a água de sabão, da lavagem de roupa, prejudicassem o
abastecimento de água, bem como a saúde de seus moradores, o cacique daquela aldeia
se colocara contra a construção da aldeia. Quando deixamos o campo o impasse ainda
estava sendo resolvido, e para isso se indicava outra possibilidade de captação de água
para aldeia rio abaixo. Soubemos posteriormente que no mês seguinte, em dezembro, os
grupos domésticos que apoiavam Lino e Lourenço deixaram Guadalupe e fundaram a
aldeia Nossa Senhora de Fátima.
Ao mesmo tempo em que os correligionários de Tsudzawéré deixaram a aldeia
São Marcos dirigindo-se para São Francisco e depois para Nossa Senhora de
Guadalupe, grupos domésticos de outras aldeias também se deslocaram para Guadalupe.
Foi o que aconteceu com parte dos moradores da aldeia Nova Jerusalém , onde metade
dos grupos domésticos deixaram aquela aldeia.

4.5 - RELAÇÕES ENTRE AS ALDEIAS APÓS O GRANDE PROCESSO


DE CISÃO

O processo político que resultou na saída da facção de Tsudzawéré da aldeia São


Marcos envolveu praticamente todas as aldeias da Terra Indígena. Até meados da
década de oitenta existiam cinco aldeias em toda a Terra Indígena. Em 2002 este
número se alterou expressivamente passando para 23 aldeias distribuídas no mesmo
território demarcado em 1975. Acreditamos que o crescimento da distribuição da
população em várias aldeias está diretamente relacionado ao crescimento populacional,
ao jogo político das facções e, finalmente, ao desejo de se tornar chefe de uma aldeia. O
prestígio que esta função confere ao homem Xavante vai além dos limites da
387

aldeia/Terra Indígena. De fato, tornar-se chefe pode ser uma maneira direta de se ter
acesso aos recursos oferecidos pelo órgão indigenista, ou por ONGS ligadas a
movimentos de preservação ambiental, p. ex., WWF.
O provável alinhamento, em 2002, entre as forças políticas da Terra Indígena de
São Marcos estava assim definido conforme o quadro abaixo.
ALDEIA CACIQUE LIGADOS A FACÇÃO DE:
Barreirinho Cosme – genro do Mário Juruna Tsudzawéré
Cristo Rei Emílio Tsudzawéré
Divina Providência Roberto (Reginaldo- filho) Raimundo
Evangélica de Deus Benedito Raimundo
Guadalupe Tsudzawéré/Lourenço Tsudzawéré
Imaculada Conceição Vitor Raimundo
(Dzub’aze)
N. S. Aparecida Tibúrcio Raimundo
N. S. Auxiliadora Clemente – era Henrique Raimundo
N. S. da Guia Liberato (?) Raimundo
N. S. das Graças Henrique Tsudzawéré
N. s. de Fátima Lourenço disputa com Lino neutro
Namunkurá Simão Raimundo
Nova Esperança Diogo – Vitória– filha do Juruna Tsudzawéré
Nova Jerusalém Manoel Raimundo
Rainha da Paz (Tsirami) Silvio Raimundo
Sagrada Família Jorge / ou Sérgio Raimundo
Salvador Júlio Mié Raimundo
Santíssima Trindade Justo (?) Raimundo
São Francisco Paulo Henrique – Raimundo Tsudzawéré
São Gabriel Antão (?) Raimundo
São José João Wedu Raimundo
São Luiz Lúcio (?) Raimundo
Terra Prometida Primo Raimundo

Quadro - 19 - Apoio político declarado em 2002


388

Este quadro não é absoluto, no sentido de os alinhamentos estarem fechados.


Embora algumas lideranças se declarem apoiando um ou outro grupo, isso não significa
que a aldeia como um todo siga a mesma tendência. É o caso, p. ex., das aldeias Nova
Jerusalém e N. S. Auxiliadora, onde apesar das lideranças declararem apoio a Raimundo
alguns grupos domésticos declararam apoio a Tsudzawéré. Nestas aldeias, como vimos,
na medida em que se instaura a crise elas se manifestam apoiando uma outra facção e
permanecem divididas internamente até que ocorra a saída da aldeia de alguns grupos
domésticos para fundarem outra aldeia, como aconteceu com parte dos moradores de
Nossa Senhora Auxiliadora que saiu antes da grande cisão de São Marcos e fundaram a
aldeia Nossa Senhora das Graças. No caso de Nova Jerusalém vimos que a saída se deu
quando a facção de Tsudzawéré deixa São Marcos. Em conseqüência nota-se uma
grande movimentação de grupos doméstico de uma aldeia a outra, podendo levar a
aldeia de origem ao quase despovoamento, situação vivida por Nossa Senhora
Auxiliadora.
Por outro lado, o deslocamento de grupos domésticos de uma aldeia à outra não
significa uma ruptura ipsis litteris com a aldeia de origem. É o caso, p. ex., de
Guadalupe, onde diariamente grupos de mulheres se dirigiam à São Marcos para buscar
manga, fruto em abundância naquela aldeia, como pude observar na época do trabalho
de campo de 2002. Muitos grupos domésticos que se mudaram para Guadalupe tinham
suas roças em São Marcos, onde constantemente se dirigiam para buscar mandioca em
suas plantações. Contudo, esse movimento em direção às roças que ainda havia em São
Marcos era temporário, haja vista, que muitos roçados começaram a ser abertos nas
proximidades da aldeia Guadalupe. Não obstante, mesmo depois que a produção das
roças que haviam sido deixadas para traz se esgotaram, o fluxo de pessoas indo e
voltando à São Marcos permaneceu constante.

4.6 - REINTEGRAÇÃO E NOVAS CRISES

Até o momento estivemos relacionando as crises entre as aldeias da Terra


Indígena São Marcos cujo resultado final dos dramas sociais vivenciados resultaram em
cisões e criação de novas aldeias. Aqui gostaríamos de chamar atenção ao processo de
reintegração que marcaria uma nova situação social na relação entre as facções. Turner
(1974:41) aponta que entre os Ndembu alguns anos depois a nova aldeia, formada a
389

partir do processo de cisão, promove um ritual para o qual convida as demais aldeias de
modo a promover uma reconciliação e realinhamento entre as partes. Acima
relacionamos esta situação vivida pelos Ndembu com o ritual de iniciação do danhono
realizado na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe. Não obstante, o danhono que
aconteceu tanto em Guadalupe quanto nas demais aldeias da Terra Indígena São Marcos
não tinha por objetivo específico promover a reintegração de aldeias cindidas. Se isto
aconteceu o vemos como um processo de reaproximação decorrente de outros processos
sociais. Antes de falarmos deste processo de reaproximação, convêm comentar a
terceira parte de nosso quadro de Fluxograma de Cisões de Aldeias.
Após a realização do darini em agosto de 2002, Lourenço e Lino que não
aceitaram dividir a liderança da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe com Tsudzawéré
optaram por deixá-la e fundaram Nossa Senhora de Fátima no final de 2002. Aqui a
saída dos grupos domésticos para fundarem a nova aldeia se deu de forma pacífica, a
briga foi só de boca, como disso um informante naquela época. No ano seguinte, em
2003, é oficialmente criada a Escola Estadual Indígena Deputado Mario Juruna. A
disputa pelo cargo de diretor desta escola será o pivô de novas situações de conflito que
resultará em outra cisão da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe. Quando a escola foi
oficialmente criada escolheram como diretor Luc151. Não obstante, sua gestão como
diretor foi marcada por profundos problemas na prestação de conta das verbas da escola
que o mesmo deveria gerenciar. Diante disso, no final do ano letivo de 2004 foi
decidido que fariam uma eleição para escolha de outro diretor. Inicialmente um
candidato desejava que o mesmo fosse conduzido ao cargo de diretor sem eleição. No
entanto, mais três professores da escola se apresentaram como candidatos ao cargo de
diretor. Ao se discutir a modalidade de eleição, com voto secreto ou não, prevalecendo
o voto aberto, dois candidatos renunciam à disputa. O candidato que deseja ser
conduzido ao cargo sem eleição permaneceu na disputa. No processo eleitoral aberto os
eleitores, um a um, anunciavam seus votos publicamente a uma pessoa que o marcava
no quadro da escola. No final foi eleito Car como diretor. O candidato derrotado não
aceitou a derrota e, juntamente com seu grupo doméstico resolveram então deixar a
aldeia Nossa Senhora de Guadalupe e fundaram Jesus de Nazaré.
A criação da aldeia Jesus de Nazaré provocou outro conflito. Desta vez, a
questão envolvia os Bororo. Isto porque a nova aldeia foi erguida dentro da Terra

151
Nome alterado.
390

Indígena Merure, da etnia Bororo. Visto que não foi apenas o grupo doméstico do
candidato a diretor derrotado que deixou Guadalupe, houve a necessidade de construção
de nova escola em Jesus de Nazaré. Neste sentido, os representantes desta aldeia
entraram com um processo formal junto a SEDUC - Secretaria de Estado de Educação
(SEDUC - MT) para reconhecimento da nova escola que recebeu o nome de Escola
Estadual Indígena RAIWI’A152 Xavante. Não é difícil deduzir quem foi escolhido para
diretor da nova escola.
O contra-ataque dos Bororo em relação a construção de uma aldeia Xavante em
seu território, veio com um documento encaminhado a Procuradoria da República em
Mato Grosso, em 16 de junho de 2005, onde também tiveram uma reunião com o
procurador na qual reclamam da pressão que os Xavante exercem sobre seu território e
pedem que o Estado de Mato Grosso não reconheça a escola recém fundada e que
suspenda todos os recursos destinados às aldeias da Terra Indígena São Marcos,
inclusive a merenda escolar, até que os Xavante da aldeia Jesus de Nazaré deixem suas
terras.
Duas aldeias criadas neste início de década não resultaram de conflitos políticos
ou dos reflexos provocados pela crise entre as facções que disputavam o
reconhecimento do cargo de cacique em São Marcos. A aldeia São Gabriel é resultado
de um conflito envolvendo o cacique de São Luiz e outro morador daquela aldeia
devido a relações amorosas entre a mulher do cacique e aquele morador. Muitos
Xavante jocosamente questionam se a aldeia São Gabriel realmente existe, haja vista
que ela possui apenas uma casa e seu fundador, que reivindica o reconhecimento como
cacique, vive e trabalha na cidade de Barra do Garças. A mais nova aldeia da Terra
indígena São Marcos também foi criada como reflexo de outra crise doméstica e não
propriamente “política”, no sentido do uso comum do termo. O cacique da aldeia Terra
Prometida resolveu casar-se com uma segunda mulher bem mais nova do que aquela
com a qual estava casado. A primeira esposa não aceitou e decidiu, juntamente com
seus filhos fundar a aldeia Paranoá (?), não muito distante de Terra Prometida.
A penúltima aldeia criada foi Boa Vida e surgiu de uma cisão da aldeia Nossa
Senhora Aparecida (não temos informações etnográficas sobre o que motivou esta
cisão).

152
RAIWI’A é tido pelos Xavante como um guerreiro muito valente. Seus descendentes seriam
os Xavante ligados ao grupo doméstico de Tsudzawéré.
391

Tendo em mente as aldeias e os contextos em que foram criadas passamos agora


a apontar o que favoreceu a reaproximação entre as aldeias depois do longo processo de
crise cujos resultados foram os conflitos elencados resultando nas cisões bem como num
reordenamento da ocupação do território da Terra Indígena São Marcos.
Após a principal cisão, que foi a saída da facção de Tsudzawéré da aldeia São

MAPA - 4 - T. I. SÃO MARCOS - ALDEIAS E DESLOCAMENTOS DAS FACÇÕES

Marcos, os grupos em contenda passaram a se evitar. O distanciamento entre as aldeias


também favoreceu que os ânimos e ranços fossem pouco a pouco entrando num estado
de catarse153. O clima de paz foi igualmente favorecido pela criação do Núcleo de
Apoio Local – NAL, em General Carneiro.
Acima dissemos que após o conflito de outubro de 2000, que levaram a vias de
fato na aldeia São Marcos, as facções passaram a se deslocar para o centro urbano de

153
Conforme o dicionário Aurélio: (...) 4.Teatr. O efeito moral e purificador da tragédia clássica,
conceituado por Aristóteles (v. aristotelismo), cujas situações dramáticas, de extrema intensidade e
violência, trazem à tona os sentimentos de terror e piedade dos espectadores, proporcionando-lhes o
alívio, ou purgação, desses sentimentos: (...)
392

Barra do Garças por caminhos opostos (veja o mapa abaixo). Na cidade as facções
passaram a ocupar lugares distintos evitando se encontrarem conforme mostramos no
mapa acima. A administração regional da FUNAI em Barra do Garças estava nas mãos
de correligionários de Raimundo, inclusive o cargo de administrador. Com isso o
atendimento às demandas dos correligionários de Tsudzawéré dificilmente eram
atendidas. Tsudzawéré, por seu turno recorria a administração regional da FUNAI em
Goiânia. Diante disso Tsudzawéré e seus aliados começam uma longa luta para criação
do Núcleo de Apoio Local – NAL, em General Carneiro. As constantes viagens a
Brasília como forma de pressão à Presidência resultou na criação deste núcleo de apoio,
pela Portaria 780 de 12 de agosto de 2003, assinada pelo então presidente da FUNAI
Eduardo Aguiar de Almeida (fevereiro à agosto de 2003), três dias antes de ser
exonerado.
A criação do NAL significou muito mais do que o estabelecimento de uma
filial154 da Administração Regional de Barra do Garças na cidade de General Carneiro.
Simbolicamente a criação do NAL comunicava aos opositores políticos que a facção de
Tsudzawéré continuava forte e atuante. No entanto, ao mesmo tempo em que a facção
demonstrava assim estar atuante com a criação do NAL, internamente abria-se brechas
para novos conflitos. A questão era: quem seria o administrador do NAL? Numa
entrevista que fizemos com um dos correligionários que estava presente na sede da
FUNAI, em Brasília, no momento da assinatura da portaria que criava o NAL, o mesmo
nos revelou como se deu a escolha, ou indicação, do administrador do núcleo.
Inicialmente Tsudzawéré, segundo o informante, tinha planejado indicar um waradzu,
não índio, para o cargo de administrador. Após a assinatura da portaria o presidente da
FUNAI perguntou aos presentes quem seria indicado como chefe, e antes que
Tsudzawéré respondesse outra liderança tomou a palavra e disse que seu irmão é quem
seria o administrador do núcleo. No momento não houve contestação, e o NAL estava
criado tendo como administrador Bruno.
Até dezembro de 2004 o administrador do NAL residia em Nossa Senhora de
Guadalupe. Não obstante, com a situação de conflito que se instaura naquela aldeia pela
disputa do cargo de diretor cujo resultado foi uma nova cisão, o grupo doméstico do
administrador deixa Nossa Senhora de Guadalupe e funda a aldeia Jesus Nazaré. Aqui

154
Consideramos filial pelo fato de que os funcionário lotados no NAL foral deslocados da
Administração Regional de Barra do Garças. Todos os dias, os funcionários de deslocavam de Barra do
Garças para General Carneiro para darem expediente.
393

tornam-se públicas as acusações de que o administrador do NAL estaria beneficiando


somente os membros de seu grupo doméstico, agora residente em Jesus de Nazaré. Até
então tais acusações eram veladas. Agora se dizia que o administrador não beneficiava
somente seu grupo doméstico, mas a nova aldeia. Durante o período de trabalho de
campo boa parte dos pedidos encaminhados ao NAL não eram atendidos, sob a
justificativa de falta de recursos. O momento de maior expressão da crise entre o
administrador do NAL e o cacique de Nossa Senhora de Guadalupe aconteceu no início
de 2008. Segundo um de nossos informantes, numa conversa por telefone, o
administrador do NAL fretou um caminhão para fazer o transporte de mercadorias e
seus compradores da cidade de Barra do Garças até a aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe, haja vista que o caminhão daquela aldeia estava quebrado. Quando o
caminhão fretado chegou à aldeia, o cacique irritado com o administrador porque não
havia pagado o conserto do caminhão da comunidade – quebrado há vários meses,
pegou uma faca e deu um golpe no pneu do caminhão fretado. O dono do caminhão
disse que cobraria o conserto do administrador do NAL e não mais aceitaria fazer
fretamento àquele órgão. Segundo este informante, depois deste episódio, mas não em
conseqüência disso, o NAL de General Carneiro foi fechado. De fato, nos parece que a
atual presidência da FUNAI para conter gastos está fechando boa parte dos Núcleos de
Apoio criados por outros presidentes. A primeira medida foi subordinar os Núcleos de
Apoio Local de Parabubure/MT, Norotã/MT, General Carneiro/MT, Novo São
Joaquim/MT e Maraiwatsede Paridzané/MT criados respectivamente pelas Portarias nº
801/PRES/2005, 527/PRES/2005, 780/PRES/2003, 745/PRES/2004 e 392/PRES/2006 à
Administração Executiva Regional de Goiânia/GO, conforme portaria nº 317 de 25 de
abril de 2007. No final do ano uma nova portaria, a 1223/Pres de 06 de dezembro de
2007, volta a subordinar os núcleos a administração a regional de Barra do Garças.
Atualmente os núcleos estão fechados.
Embora o Núcleo de Apoio Local de General Carneiro – NAL não tenha
atendido todos as expectativas da facção de Tsudzawéré, ele ao menos serviu para evitar
encontros e dissabores com a facção de Raimundo que detém a administração regional
de Barra do Garças. No entanto, pode se dizer que as relações entre o administrador e
Tsudzawéré não foram marcadas apenas pelas negativas no atendimento às suas
reivindicações. Num dos projetos do NAL o caminhão da aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe passou por uma grande reforma. No entanto, a falta de cuidados com a
394

manutenção da parte dos motoristas levou o caminhão a sofrer uma avaria que o
deixaria parado por dois meses. Novamente aqui nos referimos ao episódio no qual a
perda de uma porca que prendia uma barra de ferro impedindo que a hélice do motor de
encostar-se ao radiador. Sem esta porca o radiador ficou solto e foi corroído pela hélice
do motor prejudicando a refrigeração do mesmo. Durante a caçada que descrevemos no
capítulo anterior todo o suprimento de comida levado para o mato foi comprado pelo
NAL. Ademais, enquanto estávamos caçando por pressão do cacique de Nossa Senhora
de Guadalupe o administrador comprou munições e forneceu um pouco de combustível
para o caminhão. Por fim, outra situação que punha em crise a relação do administrador
com Tsudzawéré eram as negativas no fornecimento de passagens para suas viagens aos
grande centros urbanos, sobretudo Brasília e Cuiabá.
Outra conquista importante da facção de Tsudzawéré, e que por sua vez veio a
favorecer a reaproximação entre as aldeias, foi a construção de uma nova estrada
ligando a Terra Indígena São Marcos à BR-070. Inicialmente todas as aldeias da terra
indígena utilizavam a estrada aberta pela Missão Salesiana que ligava a aldeia São
Marcos à BR-070, passando pela Terra Indígena Merure, dos Bororo. Neste trajeto, da
aldeia São Marcos até a BR-070 eram 37 km de estrada de terra. Depois mais 113 km de
asfalto pela BR-070 até Barra do Garças. Com a instauração dos conflitos pela disputa
do cargo de cacique na aldeia de São Marcos, mais precisamente após a primeira
contenda que levaram a vias de fato naquela aldeia, as facções passaram a se deslocar
por caminhos opostos, conforme o mapa acima. As viagens da facção de
Orestes/Raimundo eram feitas pela estrada de MT-312 (atualmente MT-336). Por se
tratar de uma estrada sem pavimentação as viagens eram extremamente demoradas e
provocavam maior consumo de combustível e desgaste das viaturas. Ademais, some-se
a isso o desconforto da poeira quando se viaja em carroceria de caminhão. O trecho de
viagem pela MT-336, até atingir a BR-158, era cerca de 90 km de estrada de terra. Em
2004 a facção de Tsudzawéré conseguiu através da Superintendência de Políticas
Indígenas do Governo do Estado de Mato Grosso a construção de uma nova estrada
ligando a aldeia Nossa Senhora de Guadalupe à BR-070, sem passar pelo território dos
Bororo. A nova estrada, com extensão de 28 km, além de encurtar o trajeto também
favorecia o acesso às aldeias que estavam ligadas, ou deram apoio político, a facção de
Tsudzawéré (Nova Esperança, Diamantino, Cristo Rei, São Francisco, Nossa Senhora
das Graças, Jesus de Nazaré, Nossa Senhora de Fátima) durante a disputa com
395

Orestes/Raimundo e depois da cisão em 2002 deixaram Nossa Senhora de Guadalupe,


no caso de Nossa Senhora de Fátima e Jesus de Nazaré.
Aos poucos as demais aldeias passaram a circular pela nova estrada. Numa
conversa que tivemos com Tsudzawéré o mesmo queixou-se que todos, entenda-se seus
opositores políticos, estavam usando a nova estrada mas sem pedir a ele autorização.
Não obstante, um maior número de caminhões e viaturas circulando pela nova estrada
potencializou as oportunidades dos moradores da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe e
de outras se deslocarem para General Carneiro e Barra do Garças, principalmente.
Quando o caminhão de Guadalupe estava quebrado ou sem combustível alguns
moradores se dirigiam a beira da estrada aguardando veículos de outras aldeias para
pegarem carona. Um destes veículos era um ônibus da aldeia São Marcos que fazia
viagens constantemente durante a semana para Barra do Garças.

4.7 - CONTEXTO POLÍTICO E O RITUAL DO DANHONO

Foi no contexto político que delineamos acima que aconteceu o danhono na


Terra Indígena São Marcos, conforme relatamos no capítulo anterior. Nossa descrição
do danhono baseou-se inicialmente numa experiência etnográfica que tivemos em 1997,
quando participamos do danhono do danhohui’wa, padrinho, patrocinando a iniciação
da classe de idade ẽtepa
˜ . Em 2005 foram seis as aldeias que realizaram o danhono: São
Marcos, Namunkurá, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Fátima, Jesus de
Nazaré e Nossa Senhora da Guia. Em nosso trabalho de campo em 2005 acompanhamos
os danhono que aconteceram nas aldeias Nossa Senhora de Guadalupe e São Marcos.
Nossa presença em outras aldeias se tornaram inviáveis dada a distância entre elas.
Ademais, inicialmente, como apresentamos na introdução desta tese, nossa intenção era
acompanhar alguns líderes aos centros urbanos; mapear as redes sociais ali
estabelecidas; e, ao retornarem às aldeias acompanhar a redistribuição de bens
adquiridos nos centros urbanos e analisar até que ponto a conquista e redistribuição de
bens dão prestígio e legitimam os líderes faccionais. Não obstante, nos deparamos com
uma realidade toda voltada à execução do rito de iniciação do danhono. Por mais que
procurássemos voltar o foco da pesquisa para o objetivo inicial, os Xavante nos
conduziam ao danhono e seus bastidores, haja vista nossa inserção numa metade
cerimonial que aconteceu 1997. Neste sentido, passamos a participar das expedições de
396

caça e coleta, dos rituais nos quais era permitida e prescrito a participação da metade
cerimonial na qual estamos inseridos, e dos preparativos de adornos corporais a serem
usados nas cerimônias. Para isso ficamos morando na aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe. Desta arte, não abandonamos por completo o projeto inicial, mas passamos
a considerá-lo a partir do danhono, ou seja, os bastidores do ritual de iniciação seus
conflitos e tentativas de uso político e suas conseqüências.

Quadro - 20 - Fluxograma de cooperação entre aldeias para realização do danhono

Uma vez que o foco estava sobre as questões políticas envolvendo o danhono
estendemos nossa observação também ao danhono que acontecia em São Marcos, aldeia
da qual após vinte e seis anos de crises a facção de Tsudzawéré deixa para fundar a
aldeia Nossa Senhora de Guadalupe.
Quando chegamos ao campo em maio de 2005 o processo ritual do danhono
estava na parte do dapo’redzapuu’u – ritual do furo dos lóbulos auriculares. Ali
constatamos inicialmente que não eram apenas os moradores de Nossa Senhora de
Guadalupe que estavam sendo iniciados. No Fluxograma de Cooperação para
Realização do Danhono na T. I. São Marcos, podemos observar as aldeias que
realizaram o danhono em 2005, bem como os alinhamentos de cooperação entre aldeias.
No caso de Nossa Senhora de Guadalupe estavam sendo ali iniciados os meninos e
397

meninas das aldeias Nossa Senhora das Graças, São Francisco, Barreirinho,
Diamantino, Cristo Rei e Nova Esperança. Os caciques destas três últimas aldeias,
respectivamente: Matias, Emílio e Tobias, irmãos do cacique de Nossa Senhora de
Guadalupe, mudaram temporariamente para esta aldeia. Para isso alugaram casas que
haviam sido desocupadas por conta da última cisão de Nossa Senhora de Guadalupe,
onde alguns grupos domésticos deixaram a aldeia para fundarem Jesus de Nazaré, em
decorrência da disputa pelo cargo de diretor da Escola, conforme descrevemos acima.
As aldeias Nossa Senhora das Graças e São Francisco por muito próximas de Nossa
Senhora de Guadalupe, cerca de trezentos e oitocentos metros respectivamente, faziam
o movimento de ida e volta todos os dias.
As aldeias Jesus de Nazaré e Nossa Senhora de Fátima, resultantes da cisão de
nossa Senhora de Guadalupe promoveram individualmente o danhono. Todavia isto não
significa que estivessem isoladas. Aqui as relações entre os caciques daquelas aldeias e
o de Nossa Senhora de Guadalupe eram simplesmente toleradas. Constantemente em
conversas que eventualmente tínhamos com o cacique de Nossa Senhora de Guadalupe
o mesmo procurava de todas as formas desqualificar os caciques dissidentes. Entretanto,
os grupos domésticos das três aldeias mantinham um espírito cooperativo fazendo
circular adornos corporais e alimentos de uso cerimonial entre elas. Relatamos no
capítulo anterior o caso de conflito que envolveu o vice- cacique e o cacique de Nossa
Senhora de Guadalupe devido o uso do caminhão da comunidade que o primeiro fez em
prol de Nossa Senhora de Fátima. Relembrando, o vice-cacique, que também é um dos
motoristas da aldeia, pegou o caminhão e foi até Nossa Senhora de Fátima,
posteriormente levou parte de seus moradores numa expedição de coleta de brotos de
buriti que seriam usados na confecção das capas chamadas de wamnhorõ. O fato causou
revolta entre os moradores de Nossa Senhora de Guadalupe porque desejavam
igualmente sair em expedição de coleta de brotos de buriti. De imediato o cacique
pressionou o vice para que doravante comunicasse a ele sobre as saídas do caminhão.
Em sua defesa o vice-cacique disse que estava tentando reaproximar as comunidades.
No entanto, verificamos mais tarde que o vice-cacique estava benevolente com os
moradores de Nossa Senhora de Fátima porque seu filho estava desempenhando o cargo
cerimonial de tébé naquela aldeia. Ademais, o vice-cacique é cunhado do cacique
daquela aldeia.
398

Outra situação de conflito durante o danhono envolvendo a aldeia Nossa


Senhora de Fátima se deu na parte dos rituais de tébé e pahöri’wa. A questão aqui
envolveu mais uma discussão sobre a performance do ritual que propriamente um
conflito político. Após a cerimônia do tébé um dos ĩhire, anciãos, concedeu um dia de
descanso entre um ritual e outro. O fato foi veementemente condenado não só pelos
ĩhire da aldeia Nossa Senhora Guadalupe como também pelos outros das demais
aldeias.
Como já dissemos o cacique de Nossa Senhora de Guadalupe e os líderes
dissidentes que fundaram Nossa Senhora de Fátima toleravam-se mutuamente. Durante
todo o danhono permaneceu o fluxo de cooperação no âmbito dos grupos domésticos
entre as aldeias. Não obstante, nas ocasiões em que se realizava o wai’a, celebração
religiosa, um grande número de moradores da Nossa Senhora de Fátima, inclusive seus
líderes, se dirigiram para Nossa Senhora de Guadalupe onde participaram da celebração.
Fora do domínio do ritual, nas questões envolvendo algo que polarizasse com as
outras facções percebemos que havia uma reaproximação política entre os líderes de
Nossa Senhora de Fátima e o cacique de Nossa Senhora de Guadalupe. Foi o que
aconteceu na época da eleição do novo presidente do Conselho Distrital de Saúde
Indígena de Barra do Garças, em 2005. Embora considerasse os líderes de Nossa
Senhora de Fátima opositores políticos, o cacique de Nossa Senhora de Guadalupe
apoiou a eleição de um daqueles líderes para ser presidente do Conselho Distrital de
Saúde Indígena de Barra do Garças. O outro candidato nesta eleição estava ligado à
facção de Raimundo e ficou como vice-presidente. Em relação aos líderes de Nossa
Senhora de Fátima o discurso acusatório mais comum do cacique de Nossa Senhora de
Guadalupe era dizer que eles eram viciados, tarados, índios desaldeados, uma vez que
estavam constantemente na cidade e viviam somente em busca da função, referindo-se a
busca de cargos e salários.
A aldeia Jesus de Nazaré, como já dissemos, deixou Nossa Senhora de
Guadalupe no final de 2004. Na ocasião da saída dos grupos domésticos a iniciação do
danhono já estava em andamento sendo que um dos ocupantes do cargo cerimonial de
pahöri’wa era membro de um daqueles grupos. O cargo cerimonial em desfalque foi
preenchido pelo neto do cacique. Como já dissemos noutro capítulo o escolhido não era
o mais cotado por ser muito gordo, padrão estético que não é bem quisto pelos Xavante
399

para ocuparem cargos cerimoniais155. Entretanto, o pai impôs o nome do filho e os


pahöri’wa’rada, antigos ocupantes deste cargo cerimonial a quem cabia escolher
aqueles que deveriam desempenhar este papel ritual, acataram a imposição. Na aldeia
Jesus de Nazaré os demais cargos cerimoniais foram escolhidos e deram continuidade
ao ritual. Ali foram iniciados cerca de quinze rapazes. Não obstante, conforme já
relatamos anteriormente, a aldeia Jesus de Nazaré foi erguida em território Bororo
levando os membros desta etnia a acionarem, através de um documento, a Procuradoria
Geral da República em Cuiabá pedindo o bloqueio de todos os recursos estaduais
destinados às aldeias da Terra Indígena São Marcos, bem como o não reconhecimento
da nova escola que ali fora erguida e cujo processo estava encaminhado na SEDUC/MT.
Quando os Xavante tomaram conhecimento sobre este documento se revoltaram não
contra os Bororo, mas sobretudo contra um missionário salesiano que morava em
Merure. O cacique de Nossa Senhora de Guadalupe tomou as dores da aldeia Jesus de
Nazaré ao encontrar este salesiano e o acusou de ter elaborado o documento que fora
encaminhado à Procuradoria Geral da República. O encontro aconteceu durante a saída
de uma expedição de coleta de brotos de buriti, que porventura aconteceu no território
dos Bororo. Na ocasião deste encontro os Xavante acusaram o missionário de traidor e
de insultar a discórdia entre os dois povos indígenas. Relatamos este episódio quando
descrevemos as expedições de coleta de brotos de buriti.
As arengas do cacique de Nossa Senhora de Guadalupe em relação às lideranças
de Jesus de Nazaré estavam mais direcionadas ao administrador do Núcleo de Apoio
Local instalado em General Carneiro, que residia naquela aldeia. Por mais de uma vez o
cacique de Nossa Senhora de Guadalupe disse que precisava sentar e conversar com o
pesquisador sobre o Administrador e depois ajudá-lo a elaborar um documento, que
deveria ser muito bem feito, segundo o cacique, no qual pediria à presidência da FUNAI
sua exoneração. Felizmente não chegamos a ter esta conversa séria.
Uma das partes do processo ritual do danhono consiste numa caçada cujo
produto final é destinado aos rituais do tébé e pahöri’wa. Os moradores da aldeia Nossa
Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Fátima e Jesus de Nazaré se deslocaram para
o território dos Bororo, conforme o mapa abaixo, para realizarem esta caçada, que
recebe o nome de imanadö, caçada com fogo. Por estarem mais adiantados do que as

155
O mesmo não se pode dizer para as mulheres. Os Xavante acham as mulheres gordas mais
sensuais do que as magras. Segundo um dos informantes: as gordas têm mais carne para se pegar. Além
de um corpo retilíneo os Xavante adicionam como padrão de beleza os cabelos longos.
400

demais aldeias na execução do processo ritual, os moradores de Guadalupe se


instalaram primeiro no território Bororo. Uma semana após o início da caçada os
caçadores planejaram explorar a área leste da terra dos Bororo. Antes de embarcarmos
no caminhão, que levaria os caçadores até o local programado, o cacique nos chamou
para estivéssemos prevenidos contra possíveis encontros com os caçadores de Nossa
Senhora de Fátima, Jesus de Nazaré ou ainda com os próprios Bororo. Não obstante,

MAPA - 5 - ALDEIAS QUE REALIZARAM O DANHONO E REGIÕES DE CAÇA

este encontro não só aconteceu como também foi marcado por muita cordialidade entre
os caçadores. Presenciamos o encontro após os caçadores Rinaldo e Fábio terem abatido
duas antas em locais bem próximos. Ali apareceram Lourenço, um dos líderes de Nossa
Senhora de Fátima e Antonino de Jesus de Nazaré. Estes caçadores permaneceram um
tempo ali conversando sobre como as antas haviam sido abatidas e depois de ganharem
pedaços de vísceras seguiram caçando.
Constatamos que o temor de encontrar caçadores de outras aldeias era mais um
problema para o cacique de Nossa Senhora de Guadalupe do que para os demais
caçadores.
401

Os rituais de corridas de toras de buriti, uiwede, foram os que mais mobilizaram


os moradores das aldeias da Terra Indígena São Marcos. Das seis aldeias que
promoveram o danhono acompanhamos as corridas de toras em duas delas: Nossa
Senhora de Guadalupe e São Marcos. Em Nossa Senhora de Guadalupe a corrida foi
marcada pela presença do Cacique da aldeia São Marcos, Raimundo, e vários líderes
importantes daquela aldeia. Três anos antes isso seria impossível de acontecer, haja
vista ser o período de maior tensão entre as aldeias. As corridas de toras acontecem por
volta de meio dia à uma hora da tarde. Todavia, os Xavante começam bem cedo o
preparo das toras de buriti e depois as modalidades de pintura corporal que demandam
tempo, principalmente quando o número de participantes é expressivo. Normalmente é
o caminhão da aldeia que leva as toras até o local de início. Nele pegam carona uma
grande quantidade de corredores, principalmente os que desejam iniciar a competição.
No momento oportuno as metades cerimoniais saem em fila dos locais onde
estavam se pintando e dirigem-se até o local de início distribuindo-se ao longo do
trajeto. Em Nossa Senhora de Guadalupe o caminhão daquela aldeia saiu para levar os
corredores até o ponto de partida. No centro da aldeia permaneceram as toras, haja vista
que os ĩhire, anciãos, de uma das metades cerimoniais acusavam que o peso das toras
estava desigual favorecendo a metade cerimonial oposta à que estava sendo iniciada.
Diante disso o cerne de uma das toras foi novamente escavado até que o peso entre as
duas estivesse, aparentemente, equivalente.
O fato de haver dois caminhões na aldeia esperava-se que o caminhão de São
Marcos cooperasse no transporte das toras até o ponto de partida, bem como alguns
corredores e espectadores. Entretanto, o caminhão estava trancado e a chave ficou com
o motorista que havia se dirigido a pé até o local de início. Não obstante, chegou-se a
dizer que o cacique Raimundo não havia liberado o caminhão para ajudar no transporte
das toras. Raimundo esclareceu que gostaria de ajudar, mas a chave do caminhão não
estava com ele. Diante disso a corrida sofreu um atraso, sendo necessário o envio de
uma ciclista para solicitar o retorno do caminhão de Nossa Senhora de Guadalupe para
buscar as toras. As toras foram embarcadas e o cacique de São Marcos também subiu no
caminhão de Nossa Senhora de Guadalupe dirigindo-se até o ponto de partida da
corrida. A metade cerimonial oposta a que estava sendo iniciada representada pela
classe de idade ẽtepa
˜ foi a vencedora da corrida. Quando as duas toras de buriti foram
novamente reunidas no centro da aldeia os ĩhire, anciãos, incluindo os que vieram de
402

São Marcos, começaram novamente a discutir sobre a desigualdade de peso entre as


toras. Para evitar que elas fossem submetidas a constantes testes de peso um dos ĩhire,
de Nossa Senhora de Guadalupe sentou-se sobre a tora dos ẽtepa
˜ , que se dizia estar mais
leve. O clima de tensão começou a se elevar e antes que chegassem a vias de fato, dois
ĩprédu, homens maduros já iniciados, trataram de rolar uma das toras até a frente de
suas casas. Uma vez que o objeto de contenda fora retirado do centro da aldeia a “turba”
se dispersou. Os competidores que vieram de São Marcos, bem com o cacique daquela
aldeia, após o canto que é executado pelas metades cerimoniais que ocorre ao término
da corrida, retornam com o caminhão para sua aldeia.
Além dos moradores de São Marcos, neste ritual estavam pessoas provenientes
de outras aldeias. Após o encerramento do ritual, o caminhão de Nossa Senhora de
Guadalupe ainda levou os competidores e expectadores de outras aldeias, inclusive para
São Marcos, pois muitas pessoas haviam sido deixadas pelo caminhão daquela aldeia.
A aldeia São Marcos realizou a mesma corrida dezesseis dias depois de Nossa
Senhora de Guadalupe. No ano de 2005 o danhono aconteceu igualmente em todas as
terras indígena Xavante. O ritual uiwede, corrida de buriti, que aconteceu em São
Marcos além de ser o último a ser realizado na Terra Indígena São Marcos, foi também
o derradeiro de todas as demais terras indígenas dos Xavante. Em quase todos as
corridas anteriores a classe de idade que estava sendo iniciada, a saber: abare’u, havia
perdido a competição para os ẽtepa
˜ . Diante disso, o ritual em São Marcos era aguardado
com muita expectativa. Desta forma, no dia marcado para o ritual logo cedo era visível
o fluxo de bicicletas, caminhões e veículos menores se dirigindo à aldeia São Marcos.
Aldeias que em 2002 não existiam, mas seus fundadores se colocavam contra a facção
de Raimundo, cacique da aldeia São Marcos, também se dirigiram para lá. Isto incluía
todas as aldeias que foram fundadas depois de 2002 na parte sul da Terra Indígena São
Marcos, que os correligionários de Tsudzawéré chamam de vale do Penório.
Conforme descrevemos no capítulo anterior, as toras usadas na corrida
permaneceram escondidas até o momento de seu início, quando foram trazidas pela
viatura que prestava serviço ao atendimento de saúde. Ao comparar o peso das toras
antes do início da corrida, constatava-se sem muita dificuldade a desigualdade de peso
entre elas, favorecendo a classe de idade abare’u – em processo de iniciação.
Diferentemente da corrida que aconteceu em Nossa Senhora de Guadalupe, aqui não
houve o momento de se discutir e comparar o peso das toras, haja vista que elas
403

permaneceram o tempo toda escondidas. Diante do grande número de participantes


desta corrida, haja vista que aqueles que se dirigiram à São Marcos não foram apenas
observar o ritual, mas tomar parte nele, alguns líderes quiseram dar início a corrida a
uma distância de aproximadamente uns treze quilômetros da aldeia São Marcos.
Contudo, depois de muita discussão reduziram para dez.
O conflito mais evidente nesta corrida se deu entre o cacique Raimundo e as
mulheres de sua aldeia. Ávidas para assistirem à corrida, um grande número de
mulheres subiu no caminhão da aldeia anfitriã portando garrafas e garrafões de plástico
com água a ser oferecido aos corredores e com a intenção de assistirem de camarote o
ritual. Entretanto, além do peso excessivo a quantidade de gente na carroceria parecia
comprometer não só a segurança, mas também o madeiramento da carroceria. O
motorista parou o caminhão e expôs a situação ao cacique que por seu turno pediu às
mulheres que descessem tentando explicar o perigo a que estavam sujeitas. Contudo,
descontentes elas passaram a discutir com o cacique e se recusavam a descer do
caminhão. A situação provocou um engarrafamento na estrada, uma vez que a mesma
era estreita e o caminhão parado bloqueava a passagem dos demais veículos que
também se dirigiam para o ponto de partida levando corredores. Relutantes as mulheres
cederam à pressão e um grande número delas desceu parece que aliviando parte do peso
no caminhão.
A classe de idade ẽtepa
˜ , vinculada à metade cerimonial que atuava como
oposição aos abare’u foi derrotada nesta última corrida de buriti, fato único em toda a
Terra Indígena São Marcos, ou seja, nas seis aldeias onde acontecia o danhono os ẽtepa
˜
venceram cinco. No centro da aldeia, onde as toras de buriti foram levadas, deu-se uma
longa discussão sobre a diferença de peso entre as toras bem como o surgimento de
acusações de uso de feitiçaria156 para prejudicar a classe de idade ẽtepa
˜ . Diferente do
que aconteceu em Nossa Senhora de Guadalupe as toras não foram retiradas do centro
da aldeia. No entanto, a estratégia de sentar em cima delas evitando que se fizessem
comparações sobre o peso de cada uma foi adotada. O pesquisador, filiado à metade

156
A prática da feitiçaria nas corridas de toras de buriti consiste no uso, por parte dos corredores,
de vários tipos de pó extraídos de plantas que os Xavante acreditam darem mais resistência e forças aos
usuários. Algumas combinações de pinturas corporais apresentam igualmente esta finalidade. A metade
cerimonial que prepara as toras a serem utilizadas na corrida costuma cravar na tora da outra metade
alguns palitos de plantas e/ou ossos, como de morcegos, para deixar o tronco mais pesado ou provocar
constantemente sua queda e por seguinte a quebra. Quando uma das toras de buriti quebra durante a
corrida, a metade cerimonial que deixou isso acontecer é automaticamente considerada como perdedora.
Outra estratégia é colocar a tora da oposição dentro d’água durante a noite visando igualmente deixá-la
mais pesada.
404

cerimonial que perdeu a corrida, era constantemente provocado por seus opositores.
Numa destas provocações um dos ĩhire, ancião, chegou a dizer que a aldeia São Marcos
era a capital da Terra Indígena homônima e que por isso a vitória dos abare’u que ali
acontecera apagava todas as derrotas anteriores.
Em relação à corrida de buriti que aconteceu em Nossa Senhora de Guadalupe, a
presença de lideranças daquela aldeia em São Marcos foi pouco expressiva. Enquanto
em Nossa Senhora de Guadalupe houve a participação do cacique de São Marcos, a
recíproca não se efetivou. Uma das lideranças de Nossa Senhora de Guadalupe, ainda
ressentida, com os fatos de 2002 – ano do conflito e cisão, dizia nunca mais por os pés
em São Marcos, postura que mudaria a partir de 2007. A maioria dos homens de Nossa
Senhora de Guadalupe que estiveram em São Marcos eram membros das classes de
idade que havia sido iniciadas nos últimos quinze anos, tirowa e ẽtepa
˜ , cuja participação
no campo político ainda estava sendo construída. Contudo, observamos uma presença
maciça de líderes que apoiavam a facção de Raimundo. Não obstante, conforme vemos
no Fluxograma de Cooperação para Realização do Danhono que apresentamos acima,
onze aldeias enviaram seus filhos para serem iniciados na aldeia São Marcos. Diante
disso, durante a realização dos rituais o contingente populacional aumentava
significativamente. Neste contexto, a presença de lideranças das demais aldeias não só
era esperada pelo apoio político, como também pelo fato de haver ali meninos e
meninas, portanto, filhos e netos, que estavam sendo iniciados oriundos daquelas
aldeias.
Até onde apuramos a principal uma questão de âmbito político que gerou
conflitos internos na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe foi decorrente de mudanças no
serviço de transporte de doentes. Com esta mudança o cacique conseguiu que a nova
empresa disponibilizasse uma viatura nova para a qual foram contratados dois
motoristas. O conflito surge quando o cacique resolve colocar o neto e o genro como
motoristas. Até então um dos filhos ocupava o cargo de secretário da escola; uma das
filhas trabalhava como professora; outra era a enfermeira da aldeia, sem contar um
grande número de sobrinhos que estava atuando como funcionários assalariados na
escola em funções diversas. Conforme relatamos no capítulo anterior, ao ser
apresentado os nomes daqueles que seriam os motoristas contratados houve muitas
tentativas de desqualificá-los. Sobre o neto dizia-se que ele era inexperiente e poderia
colocar o pacientes em perigo. O genro era acusado de ser viciado em ödzaipro, cerveja,
405

e poderia comprometer igualmente a segurança dos pacientes. No entanto, no warã,


centro da aldeia, o cacique disse já haver decidido sobre os parentes a serem contratados
e não mudaria de idéia. O resultado imediato disso foi o descontentamento que tomou
conta de outros líderes da aldeia, bem como dos caciques de outras aldeias que estavam
participando do danhono em Nossa Senhora de Guadalupe. Logo surgiram boatos de
que após o danhono alguns grupos domésticos deixariam a aldeia para fundarem novas
bem como o fim do apoio político que os caciques de outras aldeias haviam dado ao de
Nossa Senhora de Guadalupe durante todo o conflito polarizado com a facção de
Orestes/Raimundo. O fato é que após o danhono não houve a esperada, ou ameaçada,
diáspora de moradores de Nossa Senhora de Guadalupe em virtude da contratação do
genro e neto do cacique como motoristas da viatura que prestava serviço ao atendimento
à saúde.
Contraditório neste contexto são os discursos do cacique de Nossa Senhora de
Guadalupe em relação à contratação dos parentes como motoristas e as acusações ou
tentativas de desqualificar alguns líderes de Nossa Senhora de Fátima e Jesus de Nazaré.
Numa das conversas que tivemos com o cacique o mesmo disse-nos que não pretendia
deixar nenhum cargo para os filhos, exemplificando que no momento da escolha
daqueles que fariam o curso de AISAN - Agente Indígena de Saneamento e AIS -
Agente Indígena de Saúde, não aceitou colocar seus dois filhos mais novos. Caso ele
colocasse os filhos ocupando alguns destes cargos estaria dando mal exemplo. Situação
que apontava como diferença entre ele e os demais líderes de Nossa Senhora de Fátima
e Jesus de Nazaré, que procuravam trazer os filhos para função. Apesar de ter obtido
muitas conquistas nas áreas de saúde e educação, dizia que nunca pretendeu entrar na
função, ou seja, ocupar cargos nas áreas correlatas. O cacique apontou, naquela
conversa, que sua intenção era deixar o símbolo (referindo-se às conquistas) para os
netos e bisnetos, e lamentava não ser reconhecido pelas melhorias que havia trazido à
comunidade, aldeia. Entretanto, após aquela conversa, um dos sobrinhos do cacique que
nos acompanhava ficou indignado com as apalavras do chefe. Segundo este sobrinho, o
cacique sempre favoreceu os membros mais próximos de sua família, e todas as vezes
que teve uma chance de ser contratado como motorista ou monitor bilíngüe o chefe
oferecia o cargo a outras pessoas. A revolta contra o chefe se intensificou quando
observamos a chegada de um dos carros da aldeia retornando com um carregamento de
lenha que foi despejado na frente da casa do cacique.
406

No plano do processo ritual alguns conflitos ficaram restritos ao ritual


propriamente dito, ou seja, não repercutiram na esfera política. Alguns casos: um deles
se deu após o ritual do uiwededzadarã, buriti de boca preta, quando os danhohui’wa,
padrinhos, e os heroi’wa, novos guerreiros, trazem dois postes de madeira de tamanhos
diferentes até o centro da aldeia. Após este ritual os troncos são de propriedade do ĩhire,
ancião, encarregado de acompanhar os moradores da casa dos solteiros durante o banho
de imersão, pertencente à classe de idade que presencia a renovação de sua classe de
idade na ocupação da casa dos solteiros, portanto de um abareu’õmob’rada, haja vista
que a classe de idade em iniciação era a abare’u, que recebe o nome de cerimonial de
dadzoni’wa. Ao término deste ritual em Nossa Senhora de Guadalupe os postes foram
tomados por um ĩprédu, homem adulto, da classe de idade ai’rere e levados para sua
casa apesar de protestos em contrário daqueles que estavam presentes no warã, centro
da aldeia. A transgressão desta prerrogativa do processo ritual que garantia a
propriedade dos postes do uiwededzadarã, buriti de boca preta, ao dadzoni’wa não
provocou danos às performances rituais que estavam por vir. Tão pouco o ĩhire, ancião,
acionou qualquer instância jurídica para garantir o que lhe era de direito. Noutra
situação, desta vez envolvendo o ritual do pahöri’wa, conforme descrevemos no item
3.17 do capítulo anterior, a transgressão das regras de ordenamento do ritual se deu com
a participação indevida de um membro da metade cerimonial oposta e que nesta
situação não teria qualquer participação no ritual. Após a realização do ritual dos
pahöri’wa os dois atores rituais que desempenham este papel cerimonial são cobertos
com capas de wamnhorõ ĩdzub’a, wamnhorõ sem pintura. Ao fim deste ato, as
danhohui’wa tsipi’õ, madrinhas - mulheres dos danhohui’wa, padrinhos, membros da
classe de idade que patrocina a iniciação do danhono em curso, entram correndo no
wedetede – local onde ocorre o ritual do pahöri’wa, e disputam entre si qual delas
conseguirá tomar dos atores rituais pahöri’wa os wamnhorõ idzub’a. Entretanto, uma
das danhohui’wa tsipi’õ por estar um pouco acima do peso, o que prejudicava seu
desempenho na corrida e disputa pelos wamnhorõ idzub’a, combinou previamente com
uma de suas primas que a ajudasse a retirar o disputado ornamento. Ocorre que a prima
com a qual havia tramada a estratégia era membro da classe de idade oposta à metade
cerimonial que patrocinava a iniciação, ou seja, as danhohui’wa tsipi’õ, madrinhas,
estavam filiadas à classe de idade tirowa, enquanto que a prima estava filiada à classe
de idade hötörã. No momento oportuno da performance ritual a prima entra em cena e
407

consegue capturar o wamnhorõ idzub’a. Conseqüentemente, houve uma revolta das


demais danhohui’wa tsipi’õ bem como dos ĩhire, anciãos, ligados à metade cerimonial
na qual os abare’u estavam sendo iniciados. Entretanto, apesar de todos os protestos de
reprovação contra a atitude das primas em transgredir este protocolo do ritual não houve
nenhuma aplicação de sanções ou necessidade de acionar mecanismos de reparação. No
máximo o que pode acontecer é na próxima iniciação o instituto da vingança ser
acionado contra a classe de idade que estará assumindo o papel de danhohui’wa tsipi’õ,
ou seja, os ẽtepa
˜ . Por fim, outra caso de conflito durante o processo ritual se deu no
momento da retirada das capas do wamnhorõ por parte dos danhohui’wa e danhohui’wa
tsipi’õ, padrinhos e madrinhas – respectivamente. Aqui o conflito teve origem no dia
anterior, quando os danhohui’wa procederam à amarração dos wamnhorõ que seriam
retirados após o canto do wanaridobe. Após a pintura das capas do wamnhorõ, os
danhohui’wa dirigem-se até o marã, sombra – clareira onde se preparam para os rituais,
inclusive o local onde as capas são montadas e pintadas, e escolhem àquelas que melhor
lhes agradam. No entanto, é prerrogativa do carregador do noni, o nonimrami’wa, fazer
a primeira escolha. Acontece que no momento que o nonimrami’wa entra no marã e
amarra diversas capas, um dois pais a qual uma das capas pertencia não estava presente
neste momento. Quando este pai retorna e encontra uma de suas capas amarradas, cheio
de cólera arrebenta a fibra de buriti que fora utilizada para isso. Indignado seu irmão
tenta persuadi-lo a mudar de postura. Porém, o dono das capas diz que já havia
combinado previamente com outro danhohui’wa que faria a retirada das capas de seus
filhos no momento da performance ritual. Não obstante, no dia seguinte após canto do
wanaridobe, os danhohui’wa saem em disparada na direção das casas de seus afilhados
e tomam-lhes as capas de wamnhorõ que estes estavam vestidos. O grande número de
meninos e meninas sendo iniciados favoreceu a ocorrência de alguns desencontros e
danhohui’wa e danhohui’wa tsipi’õ no momento de retirada das capas de wamnhorõ.
Assim, alguns padrinhos e madrinhas erram a casa de onde sairia seus afilhados
retirando o wamnhorõ de outros. Nestes casos, apesar de protestos a situação foi
contornada e não houve danos ao processo ritual.
Os conflitos que elencamos acima, durante o processo ritual, não repercutiram
ou provocaram danos ao contexto político da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe. O
caso mais claro de ingerência política no ritual se deu no acampamento de caça,
conforme descrevemos no capitulo anterior. Vemos este caso como de ingerência
408

política no ritual, porque um de nossos informantes igualmente o interpretou desta


forma ao dizer que o chefe estava tentando demonstrar força política. Recapitulando os
fatos: durante a caça imanadö, cujo produto final é usado nos rituais de tébé e
pahöri’wa, os danhohui’wa ensaiam o canto do wai’a’rãpó a ser executado na
apresentação oficial das capas do wamnhorõ, que acontece após o ritual do pahöri’wa, e
no dia seguinte após o canto do wanaridobe. Até estes dois momentos o canto deve ser
mantido em segredo dos iniciandos. Todavia, durante a caçada o cacique convocou os
danhohui’wa, membros da classe de idade tirowa, a ensaiarem o canto no meio do
acampamento de caça. Receosos, mas pressionados por outros ĩhire, anciãos, que
davam apoio político ao cacique aceitaram e ensaiaram o canto no centro do
acampamento de caça. Entretanto, os dahi’wa, membros da última classe de idade
iniciada e na iniciação em andamento atuam como oposição, se colocando em alguns
momentos como detentores e portadores de uma moral ritual a ponto de ameaçarem a
realização e/ou conclusão do processo ritual caso alguns dos iniciandos viessem a
cometer transgressões de interditos sexuais, e se colocaram contra as atitudes do chefe,
porém sem se dirigirem diretamente a ele. Um destes dahi’wa dirigiu-se até nosso
informante, ligado a sua metade cerimonial, no acampamento de caça, e começou a
reclamar sobre a postura do chefe. Este dahi’wa planejava chegar à aldeia e relatar aos
demais companheiros de classe idade a ingerência do cacique no processo ritual de sua
metade cerimonial. O mesmo iria propor junto aos demais membros de sua classe de
idade algum boicote nos rituais que estavam por vir. Não visualizamos este boicote nos
rituais que se sucederam. Contudo, constatamos que naquele contexto o chefe impôs sua
autoridade, haja vista que o ensaio do canto aconteceu.
Aqui convêm fazer uma conexão entre autoridade política e autoridade ritual
mostrando em que momento elas coincidem. A iniciação do danhono é o primeiro passo
a conduzir os homens a adquirirem o status de ĩprédu (homem maduro) aptos a
participarem efetivamente das reuniões do warã, centro da aldeia – assembléia, palco
das decisões políticas. Entretanto, um homem adquire status de ĩprédu somente após ter
atuado como danhohui’wa, o que ocorre depois de três iniciações, incluindo a sua, ou
seja, após quinze anos. O status de ĩprédu, dependendo do tempo de admissão nesta
categoria, permite que ele exerça sua capacidade de oratória no warã e que opine sobre
os diversos assuntos ali tratados. Contudo, ele não tem autoridade absoluta na tomada
de decisões, embora seus argumentos possam ter certo peso dependendo da facção que
409

ele apóia e é apoiado. Com base em nosso material etnográfico, observamos que a etapa
ou status de ĩhire, ancião, é a plenitude ritual e social/política da pessoa. Dentro do
processo ritual os ĩhire, em sua maioria, efetivamente já atingiram o status de terem em
seus respectivos grupos de idade o sufixo b’rada, e, portanto, adquirem autoridade neste
processo. No campo das relações políticas suas ambições estão em pleno vapor.
Politicamente o ĩhire é bastante influente, podendo inclusive ser o cabeça de sua facção
e recebendo dela apoio para ser chefe da aldeia. Isso não significa que somente ĩhire
possa ser reconhecido como chefe. O ĩprédu, sim, pode ser reconhecido enquanto chefe.
Entretanto, ele irá buscar apoio político, sobretudo entre os ĩhire. Uma pessoa ĩhire
possui uma família grande nesta etapa final de sua vida. Neste sentido, o apoio político
recebido de um ĩhire, teoricamente, é (deveria ser) seguido por todo seu grupo
doméstico.
Para entendermos melhor a posição dos grupos de idade e o sistema político
acreditamos que seja melhor distinguirmos, pare efeito de descrição, os grupos de idade
enquanto seu caráter organizacional, como ritual, de seu caráter político. Considerando
as obrigações rituais dos grupos de idade, observamos que elas se valorizam com o ciclo
ritual das iniciações que se alternam na ocupação da casa dos solteiros. Isso nos leva a
assumir outra postura em relação à Maybury-Lewis (1984:366) quando afirma que tão
logo um homem se torna suficientemente maduro para participar das atividades
faccionárias e políticas (...) ele cessa de participar das atividades da classe de idade.
Em nossas observações etnográficas verificamos que durante o processo ritual do
danhono, e também durante o ritual de iniciação darini, a autoridade ritual não está
investida no chefe de facções e sim sobre aqueles que já atingiram o status de ter o
sufixo b’rada, ver quadro das classes de idade e ciclo de vida Xavante. São as pessoas
b’rada, que definem os tempos em que devem ser realizadas as diversas etapas do
danhono. Para ser mais preciso os b’rada da classe de idade em iniciação. Quando
realizamos as três etapas de campo, em 2005, ansioso por saber quando se dariam as
etapas do danhono, até para organizar uma estratégia de pesquisa, nosso informante
dizia que tudo dependia dos ĩhire (anciãos). É digno de nota que ĩhire não está
exclusivamente relacionado à idade biológica da pessoa. Um indivíduo ĩhire que tenha
sido iniciado através do danhono com nove anos, como vem acontecendo em casos
isolados, no curso normal do ciclo das iniciações poderá ver a renovação de seu grupo
de idade na hö com menos de sessenta anos. Não queremos dizer que os ĩhire que não
410

possuem sufixo b’rada em seu grupo de idade estejam excluídos das discussões acerca
dos rumos que devem tomar o processo ritual do danhono. Eles participam efetivamente
das discussões no warã devido não só a sua condição de ĩhire, mas também por terem
netos e bisnetos submetidos ao ritual de iniciação danhono. Contudo, não possuem
autoridade reconhecida neste processo. Passar por cima deste esquema de organização
pode acarretar conflitos ou abrir precedentes para aumentar descontentamentos entre os
atores envolvidos no processo ritual.
Como mencionado, a autoridade sobre as etapas e rumos que devem tomar o
danhono está sobre aqueles que adquiriram o sufixo “b’rada” em sua classe de idade
com a renovação da mesma na ocupação da casa dos solteiros. O cacique de N. S. de
Guadalupe durante o processo ritual do danhono da classe de idade abare’u, em 2005,
pertence à classe de idade nodzö’u. O fato de pertencer à classe de idade nodzö’u coloca
o chefe na metade cerimonial oposta a que estava sendo iniciada através da classe de
idade abare’u. Segundo nossos informantes, além de ter o sufixo “b’rada” acrescido ao
nome de sua classe de idade, a autoridade no processo ritual efetiva-se quando esta
classe de idade está ligada à metade cerimonial que está sendo iniciada. Portanto, no
danhono de 2005 na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe a autoridade ritual estava
investida sobre os abareu’õmob’rada. Durante as etapas e discussões, no warã, sobre
o danhono, realizadas na aldeia, o chefe aparecia com uma freqüência mediana.
Algumas vezes quando ele chegava certas decisões já haviam sido tomadas pelos ĩhire.
Isto se deve não por sua negligência ao processo ritual, mas, sobretudo porque tinha
consciência de que eram os “b’rada” da outra metade cerimonial que tinham total
autoridade no ritual. Não obstante, o cacique adquire o sufixo “b’rada” em sua classe
de idade quando foi apresentada no warã, centro da aldeia, o nome da nova classe de
idade e os futuros moradores da casa dos solteiros: os nodzö’u. A partir daí ele passa a
ter direito pleno de participação e decisão sobre os rituais de iniciação do danhono,
principalmente os de sua metade cerimonial.
411

CONCLUSÃO

Neste ano, em 25 de abril de 2008, completa-se cinqüenta anos da fundação da


aldeia São Marcos. Pensando este episódio a partir de uma análise de caso extenso
podemos traçar a trajetória social e política deste grupo Xavante no curso deste curso de
tempo. No início buscaram “socorro”, como dizem, junto aos Missionários Salesianos
que viviam juntamente com os Bororo na aldeia Merure, sede da Missão. Sob a tutela
missionária fundaram a aldeia São Marcos em 1958. A nova situação social de
aldeamento resultou em um enfraquecimento de suas expressões políticas, o
faccionalismo, mesmo levando-se em conta, naquele período, o convívio intenso de
muitos líderes numa só aldeia. A relativa diminuição das contendas tem sido explicada
pela presença da Missão, que criava dificuldades para que qualquer deles (cabeça da
facção) se impusesse (Maybury-Lewis, 1984:257). De fato, naquele contexto não havia
condições para que isso fosse de imediato alterado. Das observações etnográficas de
Maybury-Lewis no final dos anos 1950, à situação etnográfica que encontramos durante
a pesquisa de campo nos anos de 2002, 2005 e 2007, podemos afirmar que tal
enfraquecimento da chefia Xavante se reverteu com o fortalecimento do faccionalismo e
todas as suas expressões na vida política e ritual Xavante reelaborados neste novo
contexto. Assim, quando fazemos uma recomposição circunstancial (Bensa, 1996:57)
dos eventos chegamos a um conjunto de situações que vão da tutela missionária à
construção de uma relativa autonomia no campo social e político. Elenquemos a ordem
dos eventos:
* os Xavante buscam ajuda em Merure, sede da Missão Salesiana, em 1956;
* são transferidos pelos salesianos em abril de 1958 para atual aldeia São
Marcos;
* em 1959 os Xavante da aldeia São Marcos realizam a primeira iniciação do
danhono (veja quadro adiante);
* em 1961 chega um novo grupo com mais de cem Xavante em São Marcos
(chefiados por Sebastião, vindo de Santa Teresinha);
* em 1962 realizam outro processo de iniciação do danhono.
* em 1966 um novo contingente populacional é agregado em São Marcos
(retirados à revelia da Fazenda Xavantina, que havia se instalado no território indígena).
412

* em 1967 os Xavante da aldeia São Marcos realizam novamente o processo de


iniciação do danhono.
Conforme vimos, no período que compreende os anos de 1956 a 1967,
praticamente numa década, mesmo que se constate etnograficamente, como fez
Maybury-Lewis, o enfraquecimento do exercício da chefia, os Xavante deram
continuidade ao curso das ações sociais que lhes são próprias, como no caso da
realização dos rituais de iniciação do danhono. Fora do espaço dominado pela Missão o
terreno ainda estava minado, a julgar pelo evento que ficou conhecido como a surra do
Padre Pedro (1959). Nesta ocorrência o padre Pedro apanhou de chicote de um
fazendeiro, considerado invasor das terras da Missão, na qual havia sido recém
implantada a nova aldeia Xavante de São Marcos. Segundo o relatório do Pe Pedro,
naquela ocasião as autoridades municipais e estaduais haviam aconselhado o fazendeiro
a agir desta forma: ... dá uma pisa no padre: ele vai embora, nenhum outro terá
coragem de tomar o lugar dele: vocês ficam com a terra e acabam com os índios
(Sbardellotto, 1966:89). Entretanto, prevaleceu o efeito contrário, isto é, a Missão
Salesiana se fortalece para atuar como mediadora entre os Xavante e o SPI, depois
FUNAI, tendo em vista a criação das reservas indígenas Xavante.
Com a mediação da Missão Salesiana, dá-se início ao processo de demarcação
das terras Xavante com o encaminhamento do relatório do Pe Pedro Sbardellotto em
março de 1970. No ano de 1972 surge o primeiro decreto demarcatório de nº 71.106
(14/09/72). Ao ser colocado em prática, ou seja, durante a fase de fixação do marcos da
recém criada Reserva houve conflitos entre índios e fazendeiros, provocando uma
redefinição do decreto. No ano seguinte dois decretos, o de nº 73.233 e 73.234 ambos
de 30/11/73, redefinem o decreto anterior e incorporam a área de propriedade da Missão
Salesiana. Entretanto, os conflitos entre Xavante e fazendeiros, contrários à demarcação,
provocam uma nova reformulação dos decretos de 1973. Entre conflitos e contestações
judiciais a Terra Indígena São Marcos foi demarcada em definitivo mediante o Decreto
76.215 – 05 de setembro de 1975.
Parece ter sido mais conveniente para os Xavante em São Marcos permanecer
sob a égide da Missão Salesiana, para que pudessem se recompor enquanto grupo
étnico, haja vista que o sistema político Xavante não comporta a convivência, neste caso
praticamente forçada, entre grupos de várias aldeias antes distintas, o que em tese pode
criar situações de exacerbação dos conflitos e lutas fratricidas. Tanto assim, que
413

Sebastião ao ser instalado na aldeia de São Marcos procurou pouco tempo depois se
transferir para Sangradouro, lugar de outra Missão Salesiana, onde também se
estabelecera uma nova aldeia Xavante. Neste caso, Sebastião parece ter ficado receoso
da convivência em São Marcos com o irmão de uma liderança que ele havia eliminado
dez anos antes, segundo relatório do Pe. Pedro.
Aracy Lopes da Silva (1986) que desenvolveu trabalho de pesquisa etnográfica
entre os Xavante, nos anos 1975 a 1978, teceu o seguinte comentário em relação à
convivência entre índios e missionários que estavam compartilhando o mesmo espaço,
enquanto aldeias e missões, nas terras indígenas de São Marcos e Sangradouro:
A missão executa um trabalho de assistência á saúde, fornecimento de
infra-estrutura para os trabalhos agrícolas (ferramentas e máquinas)
e atua diretamente sobre as novas gerações, tomando a seu cargo a
educação dos jovens. Esta educação se efetivou sempre através de
internatos que impediam que os processos tradicionais de socialização
atingissem plenamente as crianças e adolescentes. O trabalho de
catequese e evangelização fazia-se em íntima conexão com a
alfabetização e a iniciação à aritmética. Nos últimos anos da década de
70, Sangradouro abandonou o sistema de internato e São Marcos o
mantém, apesar das pressões dos setores missionários mais
progressistas da Igreja Católica. Em poucas palavras, a situação
pode ser resumida como sendo uma troca permitida e até certo ponto
bastante consciente entre as duas partes: os índios deixam-se catequizar
e os missionários garantem assistência, proteção e apoio na defesa das
terras (LOPES DA SILVA, 1986:43) [grifos nossos].

Após a demarcação das terras indígenas Xavante, como no caso de São Marcos
pelo Decreto 76.215 – 05 de setembro de 1975 e várias outras criadas no mesmo
período, eclodem as cisões na aldeia de São Marcos, segundo fluxograma apresentado
no capítulo IV. Os primeiros grupos a formarem novas aldeias dentro da Terra Indígena
de São Marcos, longe da “aldeia-mãe” situada ao lado da sede da Missão, fizeram-no a
partir de 1976, ou seja, um ano após a demarcação. Portanto, os líderes Xavante na
primeira década de existência da aldeia de São Marcos, poderiam estar enfraquecidos,
mas pelo visto presentes na vida cotidiana e nas práticas rituais Xavante, embora as
estratégias a serem acionadas em situação de conflito não permitissem na prática a
manifestação pública das facções, pois o “direito de asilo” considerado “elemento
essencial para o funcionamento do sistema político”, quando um grupo procura residir
em outra aldeia, estava impraticável devido a reunião de vários grupos em um espaço
único e restrito de aldeamento.Como bem frisou Maybury-Lewis (1984:268 e 269):
(...) a facção dominante precisa estar eternamente atenta para impedir
que uma linhagem menor torne-se forte suficiente - seja como
414

linhagem, seja como cabeça de facção -para desafiar o grupo dominante


e vencê-lo na disputa pela chefia. Da mesma forma, toda a aldeia
automaticamente garante asilo aos dissidentes e refugiados de outros
grupos.
Esse direito de asilo é elemento essencial para o funcionamento do
sistema político. Se um grupo procura permissão para passar a residir em
uma determinada aldeia, tal permissão lhe é sempre concedida mesmo que
se trate de indivíduos ou grupos que não são considerados bem-vindos
pela linhagem dominante. A garantia dessa autorização não se deve ao
fato de os Xavante acreditarem em um direito de asilo sancionado
sobrenatural ou moralmente aos membros de outras aldeias e sim a uma
simples questão de reciprocidade. Garante-se asilo aos refugiados para
que se possa ter também a possibilidade de obtê-lo, em caso de
emergência.

Com a criação do Plano Integrado de Desenvolvimento da Nação Xavante, ou


simplesmente Projeto Xavante, elaborado pela FUNAI, cujo objetivo era tornar as terras
indígenas produtivas e rentáveis (Lopes da Silva, 2002:376), houve uma redução no
ritmo de criação de aldeias Xavante na Terra Indígena São Marcos, conforme
observamos no fluxograma de cisões de aldeias. O ritmo ainda mantém-se lento no
período que vai da segunda metade dos anos 1980 até a primeira dos anos de 1990. A
partir daí há uma intensificação de crises e conflitos, conforme apontamos no capítulo
IV, que resultaram na criação de diversas aldeias na Terra Indígena São Marcos. A
criação de novas aldeias não se deve única e exclusivamente aos conflitos faccionais,
mas decorre igualmente do crescimento populacional numa aldeia e busca sistemática
de prestígio pelos líderes emergentes.
Atualmente o faccionalismo Xavante volta a se manifestar neste contexto de
criação de novas aldeias na Terra Indígena de São Marcos, e também de novas
condições de interação social, que se dão inclusive nos grandes centros urbanos, com a
presença de atores não indígenas e instituições responsáveis por políticas de governo.
Deste modo, os Xavante se (re)apropriam de bens e recursos, materiais e simbólicos,
neste novo contexto social, do qual lançam mão para viabilizar planos e atender
interesses, que se por um lado são pessoais, isto é, das lideranças em luta pelo prestígio
e reconhecimento público da sua aldeia, por outro, só se viabiliza no exercício de uma
redistribuição de tais bens e recursos acumulados, não só entre os próprios parentes e
membros dos seus grupos, como também para os demais integrantes da comunidade
aldeã. De acordo com (Bensa,1996:66),
(...) as sociedades não constituem blocos compactos; sua fragilidade
estrutural — que deriva de sua inscrição no tempo — se alimenta das
tensões entre as pessoas e os grupos: o holismo, ponto de vista que
415

privilegia o interesse geral, e o individualismo, acoplado ao interesse


particular, coexistem de fato permanentemente, como dois tipos de
argumentos necessários, mas cada um impróprio, sozinho, para
caracterizar uma formação social-tipo.
É verdade que empiricamente uma sociedade só pode ser percebida
no cotidiano através dos fluxos díspares e inacabados de práticas e de
discursos individuais. Cada um tenta fazer coincidirem, em seu
próprio benefício, os interesses dominantes (que o etnólogo às vezes
toma pelo "interesse coletivo") com as suas próprias reivindicações,
tenta reconstruir, em seu próprio proveito, a conjuntura, modificar as
normas em função dos projetos do momento. Tecida com múltiplas
estratégias que se entrecruzam, se confrontam ou se equilibram
temporariamente, a coletividade estudada se define como um espaço
de interlocuções e de comportamentos repetidos: nos próprios fatos,
nas trocas de palavras induzidas pela pesquisa, a sociedade resiste
portanto à coisificação. Colocá-la como objeto fechado e
determinado por seus contornos implica nos afastarmos
deliberadamente dos movimentos que constituem a realidade.

Aqui torna-se mais claro o discurso do cacique que nos disse: Para ser liderança
não é para receber privilégio, não é para fazer também paternalismo, é para lutar para
o bem das comunidades; ou ainda, quando chegava de uma viagem: estava correndo
atrás do bem da comunidade (aldeia Nossa Senhora de Guadalupe) - depois de ter
conseguido que a empresa prestadora de serviços de transporte de doentes da aldeia para
o atendimento na cidade, contratasse dois funcionários Xavante para dirigir a viatura
recém entregue a ele. Contudo, os escolhidos e contratados como motoristas foram,
respectivamente, seu neto e genro. Ademais, como já informamos, a filha do cacique
tinha sido contratada como enfermeira; um dos filhos era o secretário da escola, além de
vários sobrinhos que eram contratados também como professores. Tal excesso de
favores aos seus próprios parentes acirra a eclosão de novos conflitos na aldeia.
O faccionalismo está na ordem do dia. Quando vemos eclodir os conflitos
faccionais atuais parece que nada mudou no exercício da chefia Xavante. Depois de
“amansar missionários”, como dizem, se fazer temer pelos fazendeiros e funcionários de
órgãos de governo, os Xavante se voltam para suas arengas internas. Quem são os
líderes deste facciosismo? São os mesmo jovens (hoje velhos) que a Missão incorporou
em seus internatos na década de 1960 e 1970.
Impressionante como a bibliografia sobre os Xavante fala a respeito das
interferências missionárias na vida deste povo indígena, como se os missionários
manipulassem uma ou outra facção e esta viesse a acatar passivamente suas orientações.
Não estariam estas facções usando igualmente os missionários como forma de aumentar
sua autonomia e força política?
416

O que apresentamos ao longo desta tese sugere que o projeto missionário e o


projeto dos Xavante lançaram mão um do outro para atingir seus objetivos. Os
Missionários Salesianos pretendiam catequizar os índios, e ao parece conseguiram, haja
vista as seguintes manifestações religiosas dos Xavante: durante a caçada com fogo,
tanto em 1997 quando em 2005, paralelamente aos rituais do acampamento de caça,
acontecia também entre eles os rituais da Igreja Católica, como a reza do terço e a
prática da boa noite (propriedade da pedagogia Salesiana); na aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe, no mês de maio aos domingos, após os rituais Xavante, havia procissões
com récita de terço pela aldeia. O interessante é que em todas estas e outras situações
quem dirigia os rituais católicos eram os próprios Xavante. O projeto dos Xavante, por
seu turno, fez uso da mediação da Missão para recuperar seus territórios, ou pelo menos
parte deles, como se encontra no relatório encaminhado à FUNAI, no qual consta a
solicitação do Pe Pedro Sbardellotto para criação de várias reservas Xavante que hoje
abrigam todos os membros desta etnia. Após a consolidação de um território Xavante,
pode-se constatar um distanciamento construído paulatinamente entre missionários e
índios. Hoje a Missão parece não ter tanta influência sobre os Xavante como dantes. No
entanto, ela ainda atua como mediadora em situações de conflitos, como vimos na
situação histórica da cisão da aldeia de São Marcos em 2002. Os Xavante, por seu turno,
começam a retomar algumas práticas sociais tradicionais, como por exemplo a
poligamia, antes condenada pelos missionários. Houve igualmente custos, portanto, para
ambos os lados: os Xavante têm algumas de suas práticas culturais reprimidas, enquanto
para os missionários há o caso da surra do Pe Pedro e o assassinato do Pe Rodolfo, em
Merure em 1974, fatos que tomamos aqui apenas como ilustração dos argumentos
acima.
Sobre as práticas culturais dos Xavante, dissemos que algumas foram
suprimidas, como o ritual de nominação das mulheres. Não obstante, outras
permaneceram como é caso o do danhono e do darini. No caso do danhono, podemos
dizer que, mediante este processo de iniciação das classes de idades, obtêm-se um elo
entre missionários e índios. Embora não tenhamos aprofundado e realizado uma
descrição sobre o internato criado para os Xavante e instalado na aldeia de São Marcos
pelos Salesianos, apontamos sua existência em algumas passagens da tese, o que nos
leva a considerar um plano de interseção entre ambas instituições, mesmo que
vivenciadas de modos distintos: o internato salesiano e a casa dos solteiros, a hö, onde
417

acontece o danhono. As duas instituições parecem atender um só objetivo: socializar os


mais novos e inculcar valores, mesmo que mantidas as devidas distâncias culturais.
Desta forma, a missão encontra uma forma para transmitir sua mensagem religiosa e os
Xavante garantem a continuidade das iniciações do danhono e do ciclo das classes de
idade, consideradas centrais para a reprodução social e cultural deste grupo indígena.
Como visto nos capítulos da tese, os Xavante possuem oito classes de idade, que são
iniciadas a cada cinco anos, mediante o processo de iniciação do danhono. Terminada a
passagem das oito classes de idade pelo processo de iniciação do danhono, o ciclo se
renova, o que acontece em média a cada cinqüenta anos.
E foi justamente esta renovação do ciclo das classes de idade, que
acompanhamos durante o trabalho de campo em 2005. Neste ano de 2008, a aldeia de
São Marcos completa cinqüenta anos de fundação, sendo que no ano seguinte à sua
criação, portanto em 1959, os Xavante realizaram ali a primeira iniciação do danhono.
O quadro157 abaixo mostra os anos em que as iniciações se deram:
CLASSES DE IDADE

DIREITA ESQUERDA

1. ABARE'U (1959) (2005)


2. NODZÖ'U (1962)
3. ANAROWA (1967)
4. TSADA'RO (1974)
5. AI'RERE (1979)
6. HÖTÖRÃ (1985)
7. TIROWA (1989)
˜
8. ẼTEPA (1997)
QUADRO - 21 - Iniciação das classes de idade nos últimos cinquenta
anos na aldeia de São Marcos
Este quadro ajuda-nos a responder uma das questões levantadas no início desta
tese, a saber: como os Xavante mantém sua produção cultural em um contexto de
transformação? Aqui precisamos incorporar à definição de ritual que apresentamos no
inicio da tese, ou seja, o ritual como algo extraordinário ao cotidiano, para considerá-lo
como igualmente inserido em distintas situações sociais e contextos de interação. Como
sugere Alban Bensa (1996:46):
157
Este quadro foi montado a partir de um trabalho escolar dos alunos Xavante do 3º e 4º ano da
Escola Indígena Estadual Deputado Mário Juruna, na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, sob a
orientação do Professor Francisco Tsi’remé, isto é, ele também um Xavante.
418

(...) os rituais - ou, ao menos, as práticas repertoriadas sob essa


rubrica - nunca param de recompor sua encenação: eles trazem para
dentro dela imagens, gestos e discursos característicos de situações e
de épocas diferentes mas que respondem às novas condições do
momento. A fusão de contextos de origens distintas dentro de uma
prática única dá a esta última toda a sua força evocativa.

O contexto atual vivido pelos Xavante potencializa a realização dos rituais.


Quando não se tem tempo de fabricar uma borduna, é possível apresentar o modelo ao
carpinteiro (ou marceneiro) que o mesmo pode fabricá-la no torno elétrico; se não há
milho e feijão para cozer bolos tsadaré, usados nas trocas rituais, faz-se de trigo e na
falta deste o alimento a ser trocado é substituído por fardos de refrigerante – sacos de
farinha – caixas de biscoito – carne de gado assada, etc. O uso pelos Xavante de
câmeras filmadoras, gravadores de som e máquinas fotográficas garantem uma
continuidade do ritual depois de seu encerramento e ad extremum a comunicação de
performances e protocolos rituais. Ademais os Xavante se reapropriam inclusive de
categorias do discurso antropológico. Quando perguntamos ao informante o porquê dos
‘heroi’wa, novos guerreiros, terem que dançar o dia inteiro, o mesmo nos respondeu: ...
é a nossa cultura.
É nos bastidores do processo ritual, ou fora dele, que se torna igualmente
expressivo o modo de fazer política para os Xavante: o faccionalismo. Inicialmente o
danhono é um dos mecanismos que ajuda a reproduzir a estrutura social. Ali as pessoas
revivem o pertencimento à clãs, metades exogâmicas, metades cerimoniais e classes de
idade. Além de reproduzir estruturas ele fortalece prestígios (embora não seja este seu
objetivo principal), que podem ser acionados para desqualificar outros atores sociais.
Neste sentido, conhecer os protocolos rituais e suas performances é ter poder.
O danhono surge então como uma chave importante, mas isso não quer dizer
que ele seja o agente potencializador do faccionalismo. Quais seriam então os reflexos
do danhono no sistema político, considerado a partir das lutas faccionais? A princípio
ele prepara os homens para o jogo político das facções. Consideremos inicialmente o
warã, centro da aldeia. É neste espaço físico que os homens iniciados se encontram para
fazer política, ou seja, no warã socializam diversos assuntos e buscam resolver seus
problemas. O menino Xavante ao ser iniciado pelo danhono, depois de passar cinco
anos como recluso na casa dos solteiros, a hö, adquire o status de ‘heroi’wa (novo
guerreiro); na iniciação seguinte, cinco anos depois, passa a ser ‘ritéi’wa, guerreiro onde
ele desempenha também o papel de dahi’wa, que fiscaliza a conduta dos novos
419

moradores da casa dos solteiros, os quais, por sua vez, são iniciandos da metade
cerimonial oposta; passados cinco anos, ele desempenha o papel de danhohui’wa,
padrinho, onde patrocina a iniciação de outros moradores da casa dos solteiros, desta
vez de sua metade cerimonial. Ao concluir este processo de iniciação, este menino, que
agora é um homem, provavelmente, casado e com filhos, adquire o status de
predzamoi’wa, e pode participar juntamente com os ipredu, homens iniciados, dos
encontros que acontecem no warã, centro da aldeia. Segundo nossos informantes, a
categoria predzamoi’wa pode ser traduzida como os novos pedaços de lenha que
aparecem no centro da aldeia quando ali se acende o fogo. A partir daí sua trajetória
política tende a ficar mais intensa. Principalmente se ele desenvolve as qualidades que
se espera de um homem Xavante: bom orador, bom caçador, generosidade, virilidade.
Na próxima iniciação aquele que era um menino torna-se ĩprédu, mais uma iniciação e
ele se tornará ĩhire – anciãos. O ciclo se fecha e se renova com a admissão da categoria
de sua classe de idade na ocupação da casa dos solteiros, a hö. Quando isto acontece
este homem adquire status político e ritual plenos. Aqui sua classe de idade adquire o
sufixo b’rada.
As classes de idade e clãs assumem importância vital no pensamento Xavante e
estão presentes em praticamente todos os eventos e práticas sociais desta etnia. Para
Maybury-Lewis, após a terceira iniciação, quando uma classe de idade completa o
patrocínio da iniciação de outro grupo, o interesse de um homem pela sua classe de
idade entra em declínio e ele passa a agir mais na direção de uma projeção pessoal do
que enquanto membro deste grupo e deixa de realizar junto à mesma qualquer função
cerimonial incorporada de modo que os (...) mais idosos despontam como figuras
proeminentes no âmbito de suas próprias linhagens e facções, e não como líderes de
sua classe de idade (Maybury-Lewis, 1984:199). Não obstante, como vimos
anteriormente toda a trajetória de vida de um homem Xavante está relacionada ao
sistema de classes de idade. Na medida em que este homem envelhece tudo aponta para
uma hiper-valorização de sua classe de idade, como vimos no final do capítulo IV.
Em suma, o faccionalismo Xavante não é institucionalizado (estrutura), mas ele
coopta os homens iniciados através do ciclo das classes de idade (ritual), portanto,
atores sociais, que se unem em torno de um líder político, o cabeça da facção, como
diria Maybury-Lewis. Não obstante, o faccionalismo não pode ser considerado como
algo endêmico na sociedade Xavante. Ele deve estar situado antes de tudo como um
420

instrumento analítico, criado pela disciplina tendo em vista explicar a manifestação de


um fenômeno político em algumas sociedades. Enquanto instrumento analítico ele não
tem existência própria ou perpétua. Portanto, ele é uma construção que deve ser pensada
a partir de um determinado contexto histórico. Para tanto a noção de situação histórica
de Oliveira Filho (1977 e 1988) foi um instrumento de análise de grande valia para
pensarmos o faccionalismo Xavante. Como ocorreu entre os Tukuna, este modo de fazer
política dos Xavante foi usado como um instrumento de dominação utilizado pela
administração tutelar para distribuir benefícios limitados e para promover
interferências socioculturais de seu interesse (OLIVEIRA FILHO, 1999:223). Por
administração tutelar não estamos pensando apenas no Serviço de Proteção ao Índio
(SPI) e depois a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), mas também pela atuação de
missões religiosas e ONGs.
O faccionalismo Xavante não é algo interno e estrutural à sua sociedade, como
já dissemos acima, mas a manifestação de uma forma de fazer política. Esta forma de
fazer política se de um lado pode ser vista como sendo reapropriada pela administração
tutelar para os fins acima mencionados, por outro pode ser considerada de modo
inverso, ou seja, os próprios Xavante incorporando a administração tutelar (SPI e
FUNAI), Missões e ONGs, e ainda, o pesquisador, para garantir recursos materiais,
simbólicos e ideológicos para um grupo político. Isto nos mostra que os Xavante não
são apenas atores sociais passivos num determinado contexto histórico, ainda que
estejam subjugados pela tutela, mas também senhores deste contexto.
Assim, refletir sobre o faccionalismo Xavante, presente igualmente nos rituais,
representa descrever “de dentro” das práticas, principalmente do danhono, no qual a
communitas entre os iniciados de uma classe de idade é exacerbada pelas demais e
vivida em sua plenitude de admiração e respeito pelos chamados mais velhos, os ĩhire,
pertencentes à última classe de idade que se renova nominalmente pelo iniciandos.
Contudo, no próprio contexto do danhono ocorre a irrupção de conflitos que se
expressam na conformidade com as regras e performances rituais, e seguem o jogo de
fusão e fissão entre lideranças, que nele se distinguem e fortalecem, para ocupar
legitimamente cargos, status e posição na sociedade Xavante.
421

Conforme iniciamos esta conclusão, a Aldeia São Marcos está comemorando


cinqüenta anos de fundação. E agora eles convidam para a festa...
422
423

Ou seria de novo para o ritual...


424
425

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431

GLOSSÁRIO

ẽtepa
˜ – pedra comprida – uma das classes de idade.
ĩhire - anciãos,
ĩni ou brudu – um tipo de mastro cuja ponta decorada leva as flautas tsidupu.
ĩprédu - homens adultos, já iniciados.
ĩtsarébépré – modalidade pintura usada no wamnhorõ dos tébé e pahöri’wa e demais
membros do clã öwawẽ.
ĩtsihödö – modalidade de pintura usada nos wamnhorõ dos membros do clã tob’ratato.
ĩwawi – riscos – modalidade de pintura usada nos wamnhorõ dos membros do clã
po’redza’õno.
‘rina’rada – quarto construído com folha de buriti para o casal que contraiu casamento
recentemente.
‘ritéi’wa – membros da penúltima classe de idade iniciada; novo guerreiro; o dono da
casa nova.
‘ritéi’wa ĩté – membros da última classe de idade iniciada.
‘wamarĩ - um tipo de madeira usado pelo ‘wamarĩtede’wa em sua atuação ritual.
‘wamarĩmramidzè – dança do ‘wamarĩtede’wa.
‘wamarĩnhõ're – canto executado pelo ‘wamarĩtede’wa.
‘wamarĩtede’wa – o dono do ‘wamarĩ; pacificador, sonhador.
‘watébrémi – menino
A’ãma – advogado, defensor. Escolhido entre membros da classe de idade que atuou
como danhohui’wa, padrinho, da classe de idade que desempenha o papel de
dahi’wa no processo de iniciação do danhono que está em curso.
Abadzidzanhamri itsõniã - colar de algodão que fica sob a clavícula
Abadzipré – um tipo de cinto usado por alguns grupos domésticos que detêm direitos de
propriedade sobre o mesmo; é confeccionado sob medida para quem o usará.
Abadzirãihidiba – ritual de nominação das mulheres.
Abahu – grupo cerimonial formando para enfrentar seus irmãos ou primos distribuídos
em outro grupo: o para’wa.
Abare’u – uma das classes de idade; pequi.
Adaba – mulher recém casada.
Adabanho’rebdzuiwatsihui’wa - moça que lhe retira os colares da noiva.
Adabatsa – caça destinada ao casamento.
432

Adzahu – nome de um ornamento corporal composto de penas de arara, que são presas
num talo seco de folha de buriti, wabu, e amarrado na parte de trás da cabeça,
depois que aquele talo foi amarrado no cabelo em forma de rabo de cavalo.
Adzarudu – moça antes do casamento.
Ahu’rã - modalidade de pintura corporal na qual o corpo todo é pintado de preto
utilizando-se carvão.
Ahu’rã – pintura de carvão onde o corpo todo é pintado.
Ai’repudu – menino antes de ser admitido como morador da casa dos solteiros, quando
assume a categoria de wapté.
Ai’rere – uma das classes de idade; um tipo de palmeira.
Ai’uté – criança.
Aihö’ubuni – cargo entre os wapté, cervo virgem, o virgem.
Aiutemanhãri’wa – o dono das crianças; modalidade de pintura corporal semelhante a
daupté. O diferencial aparece no uso de penugens na franja dos cabelos e o
entorno da boca pintado em preto.
Anhana’rãtõmri – partes do enfeite usado no pescoço pelos pahöri’wa.
Ariwede – tipo de flecha confeccionada com buritirana ou buriti-bravo.
Atsadaateihi – osso de onça parda usado na furação de orelhas.
Atsitõ -
Awã – cercado no centro da aldeia usado em diversos rituais.
Ba’õno – menina.
Bö – urucum.
Buruaòdò
Burui’pré – ornamento de cabeça usado no wai’a e pelo nonimrami’wa – carregador do
noni.
Buruteihi – capim do qual se extrai os talos para ser usado durante a furação dos lóbulos
auriculares.
Dabatsa – caçada para o ritual do casamento.
Dabutupo – colar de entrecasca usando principalmente na cerimônia o wai’a.
Dadzarõno – modalidade de dança é executada de mãos dadas e cabeça baixa,
movimentando-se em círculo e levantando um dos pés em saltos curtos.
Dadzoni’wa – ancião da mesma classe de idade que está sendo iniciada que acompanha
o ritual de imersão datsi’waté e os demais que virão a partir daí.
433

Dahi’wa - àqueles que fiscalizam a conduta dos moradores da casa dos solteiros e se
colocam como portadores da tradição cultural.
Dahi’wanho’re - canto do dahi’wa.
Dahipopo – modalidade de dança de rodas, na qual os participantes de mãos dadas
dançam flexionando levemente os joelhos.
Dahirada –
Daimidzupó – embiras amarradas nos tornozelos.
Damanarada = listas listras pintadas com carvão aplicadas em paralelo à coluna;
literalmente pênis velho.
Danhihödö – modalidade de pintura corporal na qual o corpo é pintado com carvão
desenhando riscos circulares por toda sua extensão, parecendo uma camuflagem.
Danhimi’e – (os da esquerda) metade exogâmica, composta pelo clã öwawẽ e tob’ratato.
Danhimire - (os da direita) metade exogâmica, composta pelo clã po’redza’õno.
Danhimiwanhõ – padrinho dos padrinhos.
Danhimnhõ’rebdzu – cerimônia os meninos têm os enfeites danhonhi´ã retirados antes
da admissão formal à hö.
Danhimnhohu –
Danhipsipó – embira amarrada nos punhos.
Danhipsipré - fios de seda de buriti pintados de vermelho amarrados em feixes nos
pulsos e tornozelos, usados principalmente pelos participantes da cerimônia do
tébé.
Danhirare – noivado público (?).
Danhire’pré – tonsura no centro da cabeça (danhire = corte de cabelo) e depois é
pintado com urucum (pré = vermelho)
Danhitö’wa - o menor ‘ritéi’wa iniciado; o menor da fila dos iniciandos no danhono.
Danhiwanho – padrinho específico de um wapté.
Danhõ’ra - uma listra preta aplicada abaixo do externo sobre o estômago numa das
modalidades de pintura usada pelos danhohui’wa.
Danho’rebdzu’a – colar de algodão.
Danho’rebdzu’wa - literalmente o dono do colar de algodão – ou aquele que faz o colar;
tem função cerimonial no casamento da filha de sua irmã.
Danhohui’wa – padrinho, ...
434

Danhohui’wa tsipi’õ – madrinha dos wapté - mulher da mesma classe de idade dos
danhohui’wa, padrinhos, durante a iniciação da classe de idade junior de sua
metade cerimonial.
Danhonhi´ã e itsõnhi´ã – colar de algodão do wapté.
Danhoniã – um dos colares usados pela noiva durante a cerimônia de casamento.
Danhono – dormir, ritual de iniciação das classes de idade.
Danimiwainho – padrinho particular escolhido pelo pai do wapté entre os membros da
classe de idade que desempenha o papel de danhohui’wa na iniciação do danhono.
Dapanhihödö – uma listra preta pintada na altura dos cotovelos, numa das modalidade
de pintura dos danhohui’wa.
Dapibui’wa – dahohui’wa encarregado de acompanhar os moradores da casa dos
solteiros.
Dapo’redzapu’u – ritual do furo dos lóbulos auriculares.
Dapo’redzapu’u’wa – o furador de lóbulos auriculares.
Dapo’rewa’u, batoque auriculares.
Dapraba - estilo dança semelhante ao dadzarõno, mas executado um pouco mais rápido.
Darini – processo ritual de iniciação ao wai’a, ou seja, habilita o homem xavante a
participar das celebrações religiosas de sua sociedade. Acontece em intevalos de
tempo que variam de quinze a dezessete anos; também chamado wai’arini.
Darõ - estojo peniano feito com folha de babaçu.
Date’rã – pintura com carvão aplicada nas panturrilhas.
Date’rãwabdza - dois ou três riscos feito com as unhas sobre a pintura de carvão nas
canelas.
Datsi’waté - banho de imersão durante uma das fases do danhono. Cerimônia de bater
água.
Datsiwai’õ – um dos rituais de nominação das mulheres.
Dauhö – modalidade de pintura usada pelos danhohui’wa – padrinhos, na qual pinta-se
o os braços, coxas e tronco de preto e desenha-se um retângulo no abdômen e nas
costas, sobre a coluna, da nuca até a cintura; as franjas dos cabelos são igualmente
pintadas de vermelho e recebem penugens de gavião. Como adornos corporais
usam cordinhas amarradas nos pulsos, tornozelos e cintura, bem como o colar de
algodão.
435

Dauhöba – modalidade de pintura corporal na qual pinta-se a frente com carvão e


desenha-se retângulo em vermelho na altura do abdômen, nas costas e na parte
detrás dos braços se usa uma pintura vermelha com duas listras em preto paralelo
a coluna, as franjas dos cabelos é igualmente pintada de vermelho. Como adornos
corporais usa-se colar de algodão de cordinhas amarrada nos pulsos e tornozelos.
Daupté – modalidade de pintura na qual o corpo todo é pintado de vermelho.
Daupté – modalidade de pintura.
Dautsimri’wa – mendigo da carne; acompanha os caçadores e ajuda a carregar a caça
abatida para ganhar um quinhão.
Dzada’rã – boca preta, contorno nos lábios feito com carvão.
Dzahadu – espere um pouco!
Dzäratsi’wa – aqueles que usam o chocalho no wai’a.
Dzö - cabaça.
Hepãrĩ – obrigado - elogio
Hö’wa – moradora da casa dos solteiros
Hötörã – classe de idade – peixe listrado (piabinha).
Hötörã – peixe (piabinha) – uma das classes de idade.
Ĩhörö’wa – tocadores de flauta tsidupu no momento de sua entrega.
Ĩtsa’rata’wa - os donos do segredo do wai’a; são detentores da memória religiosa e
encarregados de transmitirem o segredo; o cargo cerimonial é prerrogativa do clã
po'redza'õno.
Ĩtso’rebdzu’a – colar de algodão – gravata.
Ĩtsub’rã – pó branco usado pelo ‘wamarĩtede’wa; farinha.
Ĩwẽ uptabi - bonito – muito bom.
I’amõ - forma de tratamento de wapté do clã öwawẽ ou tob’ratato para outro do clã
po’redza’õno.
Imandö – caçada com fogo cujo produto é destinado aos rituais do tébé e pahöri’wa.
Inhiwa´wa - o cerne da tora de buriti; termo também usado para designar carne de caça
- inhi.
Ipradzumapro – cinto ornamental usado, segundo prerrogativas de alguns grupos
domésticos, em diversos rituais xavante.
Ipredzumapro. Cinto confeccionado em algodão fiado e tingido com urucum e termina
com duas pontas. Estas pontas, em formato de “V” invertido, são confeccionadas
436

com pó de madeira e recebe acabamento de resina branca e perfumada. Depois de


pronto apresenta o formato de um casulo com cerca de 10 cm, que fica na parte
detrás da cintura de quem o usa.
Itsirénhõno – outro da mesma metade patrilinear.
Itsiutsu – forma de tratamento de wapté do clã po’redza’õno para outro dos clãs öwawẽ
ou tob’ratato.
Itsöhui´watsipiõ – as madrinhas de um certo grupo de idade.
Madzatsu – pena de ema usada pelo a’ãma.
Marã – sombra, clareira, mata – local onde se realizam atividades rituais.
Nodzö’u – classe de idade; nodzö milho xavante.
Nodzö’uômob’rada – classe de idade que presenciou sua renovação na ocupação da casa
dos solteiros.
Nonhama höpö’õno – bolo de milho.
Nonhamahöbö – cerimônia do bolo de milho – ocorre no dia seguinte à furação de
orelhas.
Nonidza’odzé – lugar onde se guarda o noni.
Nonimrami’wa – carregado do noni.
Norõdzu – castanha de coco de babaçu.
Norõwededzahö – folha da palmeira babaçu usada para confeccionar estojos penianos.
Ödzaipro – cerveja.
Oi’ó – luta ritual que antecede a admissão de novos moradores da casa dos solteiros;
raiz que cresce em brejos utilizada neste ritual.
Õniwihö - são aqueles que constroem a casa dos solteiros do outro lado; oposto a
waniwihö.
Öwawẽ - um dos clã xavante; água grande.
Pahiwatsa - uma espécie de urubu – modalidade de pintura onde se pinta com carvão o
lado externo dos braços e nas pernas dos tornozelos até metade da canela.
Pahöri’wa – cargo cerimonial do clã po’redza’õno, ocupado durante a iniciação do
danhono.
Pahöri’wa’rada - cargo cerimonial do clã po’redza’õno cuja classe de idade do detentor
já passou pela casa do solteiros durante a iniciação do danhono.
Para’wa- veja abahu.
Po’redza’õno – um dos clã xavante; girino.
437

Pohö – o lugar do veneno; dahi’wa que porta o veneno.


Popara – ornamento amarrado na panturrilha confeccionado com unhas de veado ou
queixada usado pelos danhohui’wa.
Renhamri – pequena esteira confeccionada com a folha de buriti. É usada
principalmente como tampa para o tsi’õno, cesto grande xavante, utilizando para o
transporte de crianças. Entre outros usos pode servir ainda de prato; quando
dobrada assume a forma de uma bolsa.
Tébé - cargo cerimonial.
Tépé’rada – aqueles de ocuparam o cargo cerimonial de tébé em outras iniciações.
Tepewaptsu – ornamento usado na cabeça do tébé, confeccionado com taquaras e penas
de arara.
Ti – flecha confeccionada com taquarinha.
Toã - basta, chega;
Tob’ratato – um dos clãs xavante; circulo na face pelo qual identifica-se a filiação
clânica.
Tob’ratato – um dos clãs xavante; onomatopéia de uma ave noturna; círculo nas maças
do rosto.
Tsa’uri’wa – soprador, uma corrida cerimonial da fase de encerramento do danhono.
Tsa’uri’wadza’ru – clareira aberta onde se inicia a corrida do tsa’uri’wa.
Tsada’ro – classe de idade.
Tsadzudzu – fubá de milho torrado; uma das cerimônias conclusiva ao danhono.
Tsanapré – modalidade de pintura corporal onde pinta-se um retângulo na altura do
abdômen e nas costas, na extensão da coluna vertebral.
Tsauri’wa – soprador, corrida cerimonial que acontece próximo à conclusão do ritual de
iniciação danhono.
Tsawörö’wa – explorador; batedores que vão à frente do grupo quando estão caçando.
Tsi’a – galinha, frango de granja.
Tsi’õno – cesto grande usado no transporte de crianças e alimentos.
Tsi’õtõ höpo – cesto grande da caçada.
Tsi’rã – cesto de transporte.
Tsidupu – um tipo de flauta.
Tsihörirã – personagem (mítico?) Que definiu os padrões de pintura e ornamentação
corporal dos rituais xavante.
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Tsimnhõhu – avô do grupo que está sendo introduzido na hö (??).


Tsinhotsé: braços, troncos e cochas pintados de vermelho com um risco em preto sob o
umbigo e o desenho também em preto de uma trave sobre o tórax,
Tsire’wa – os outros, do outro lado, da outra metade.
Tsõiba – noiva.
Tsuwaipo – broto de buriti.
Ub’ra – borduna de uso ritual.
Ubdö´wa – colar de dente de capivara usado pela noiva.
Ubdö’warã – corrida do dente branco de capivara.
Ubu’rãipré – pena de arara vermelha fixada sobre um pedaço de taquara de fecha, usada
na corrida do tsa’uri’wa e nas celebrações do wai’a.
Ui’ré – ornamento usado durante a corrida de buriti.
Uibró – um tipo de borduna.
Uiwede – cerimônia da corrida de buriti disputada entre metades cerimoniais.
Uiwededzadarã – buriti da boca preta
Uiwedenhore – canto depois da corrida de buriti.
Unhinhã - feijão xavante amassado com mandioca seca e ralada.
Upawã –flauta confeccionada com bambu ou cano de pvc.
Utsu – cercado no centro da aldeia para fins rituais; chuva que nunca termina.
Wa’i’nho’ré - canto depois da luta do wai’i.
Wa’ritidzatsi – ninho da seriema, dois troncos colocados no alto unindo os dois postes
do wedetede.
Wa’ritidzatsi - o ninho da seriema – postes horizontais que unem os dois poste do
wedetede.
Wa’ritire – seriema – ator ritual durante os rituais dapo’redzapuu’u, tébé e pahori’wa.
Wa’uburé – diabo.
Wabu – talo seco da folha de buriti, pecíolo.
Wai’a – cerimônia religiosa xavante; apresenta várias modalidades.
Wai’a’rãpó – canto executado quando as capas do wamnhorõ são apresentadas no
centro da aldeia e no dia seguinte após o ritual do wanaridobe.
Wai’arini – veja darini.
Waiarã – recém iniciados no wai’a por conta da última iniciação do darini.
Waiatsiubumrodzé – local onde se realizam partes da cerimônia religiosa wai’a.
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Waihi – nervura dos folíolos das folhas de buriti, cetro do tébé.


Waihiròbò-na - colar com pena de papagaio.
Wairo – ornamento confeccionado com penas de arara, azul ou vermelha, usado na
cabeça; cocar.
Wamnhorõ – seda de brotos de buriti – capa cerimonial.
Wamnhorõ babaridzé – costura do wamnhorõ que une as fibras e formam o ornamento.
Wamnhorõ dza’rudzé – fio de com sementes de capim navalha (a’é) com uma unha de
queixada na qual se encaixa uma pena de rabo de arara, usadas na ornamentação
das capas wamnhorõ.
Wamnhorõ ĩdzub’a - wamnhorõ sem pintura.
Wamnhorõwada, a ponta do wamnhorõ enfaixada com fios de algodão.
Waniwihã – nós, aqueles do meu lado, da minha metade.
Waniwihö - diz respeito aos membros das classes de idade que constroem a casa dos
solteiros do mesmo lado da aldeia que a minha; oposto õniwihö.
Wapté – morador da casa dos solteiros
Waptépnhõnhiã - também chamado de danhonhi´ã e itsõnhi´ã – um tipo de colar
confeccionado com grande quantidade de algodão, semelhante ao formato de um
pneu de automóvel que é depositado sobre os ombros daqueles que estarão sendo
admitidos como moradores da casa dos solteiros.
Waptsere
˜ ˜ - (massa de milho assado triturado e misturado com água).
Warã – centro da aldeia; espaço político dos homens; assembléia.
Warã´wa - aquele que chega primeiro, na madrugada, ao centro da aldeia e acende o
fogo
Waradzu - não xavante e não indígena.
Watsi’ré’wa, aqueles que são da outra metade.
Watsiutsu – outro da outra metade.
Wautòbtu – meninos que não foram iniciados no darini para ter acesso às celebrações do
wai’a.
Wedenhorõ – cordinhas dos pulsos e tornozelos.
Wètènhamri –.

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