Tese Final Revisada Versão Entregue No Ppga
Tese Final Revisada Versão Entregue No Ppga
Tese Final Revisada Versão Entregue No Ppga
Niterói
2008
PAULO SÉRGIO DELGADO
Niterói
2008
FICHA CATALOGRÁFICA
Contato: paulosdelgado@terra.com.br
PAULO SÉRGIO DELGADO
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dra. Eliane Cantarino O’Dwyer –
Orientadora
Universidade Federal Fluminense - UFF
_____________________________________________
Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira – Co-orientador
UFRJ/Museu Nacional
_____________________________________________
Prof. Dr. Fabio Mura
UFRJ/Laced-Museu Nacional
_____________________________________________
Prof. Dra. Maria Fátima Roberto Machado
Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT
_____________________________________________
Prof. Dra. Paula Caleffi
Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS
_____________________________________________
Prof. Dr. Sidnei Clemente Peres
Universidade Federal Fluminense - UFF
_____________________________________________
Prof. Dr. Jair de Souza Ramos (Suplente)
Universidade Federal Fluminense - UFF
Aos Xavante da Terra Indígena São Marcos
À Silvia e Letícia
Você não sabe
O quanto eu caminhei
Prá chegar até aqui
Percorri milhas e milhas
Antes de dormir
Eu nem cochilei
Os mais belos montes
Escalei
Nas noites escuras
De frio chorei (...)
O que a epigrafe não diz, é que nesta estrada eu nunca estive sozinho. Ao chegar
ao final desta tese e num rápido olhar para o passado me vem à memória um grande
número de pessoas que encontrei pelo caminho e me ajudaram a chegar até aqui. Neste
sentido, agradeço:
menciono alguns nomes: Pe. Leal, Pe Pedro Sbardellotto, Pe. Giaccaria, Me. Adalberto
Heide, Pe. Jorge Lachnitt, Pe. Miguel Gaya. Pe. Ademir Lima de Oliveira, amigo dos
tempos de seminário, quando fui salesiano, e dos dias atuais que gentilmente me
emprestou sua máquina fotográfica digital, o que foi fundamental para documentar os
rituais do danhono que acompanhei. Datiö Josina’re, pessoa que conheci na aldeia São
assistência aos Xavante – sua fluência na língua Xavante, bem como o conhecimento
profundo das práticas culturais dos Xavante, ajudou-me a repensar e lançar novas
hipóteses de interpretação dos rituais Xavante. Ao Pe. Luilton Pouso, irmão de coração,
que esteve sempre solícito e disponibilizou sua casa e secretaria da Paróquia Santo
do campo, bem como pela ajuda em conseguir material jornalístico que foi de grande
As Irmãs Salesianas: Ir. Elza, Ir. Vitória, Ir. Estela, Ir. Divina, e tantas outras,
pessoas que fizeram do trabalho missionários com os Xavante uma causa de vida.
Aos Xavante das aldeias de São Marcos e de Nossa Senhora de Guadalupe, bem
aldeia, que tanto me incentivou a participar dos rituais Xavante e por traduzir parte do
universo feminino Xavante para mim, graças a sua intensa convivência com as mulheres
desta etnia.
Letícia que não vê a hora do pai terminar a tese, para que possa brincar com ela.
Aos meus irmãos Aguinelo Delgado e Julio Delgado, que restauraram meu
sorriso.
tornou uma comunidade de aflição, pensando em Victor Turner um dos teóricos usados
nesta tese. Sempre que nos reuníamos sentíamos a necessidade de apaziguar as sombras,
não de caçadores mortos como entre os Ndembu, mas dos ancestrais da antropologia e
dos prazos colocados pelo PPGA/UFF. Para tanto realizávamos alguns rituais de aflição
nos bares e outros espaços. Ademais, pessoas que compartilharam conosco seus projetos
Aos orientadores desta tese: Eliane Cantarino O’Dwyer, cuja relação desde o
mestrado foi bem mais do que desenvolver um trabalho intelectual, mas também de
amizade e com quem aprendi muito mais do que antropologia. Igualmente agradeço a
sugestões.
Sou grato ao PROJETO Políticas para a "Diversidade" e os Novos "Sujeitos de
Resende Barreto Vianna (MN/UFRJ) e Eliane Cantarino O´Dwyer (UFF), por meio do
Rio de Janeiro, pelo apoio concedido por meio da bolsa de doutorado, fundamental e
LISTA DE QUADROS
This thesis was developed in São Marcos indigenous land (T.I São Marcos), in
particular in the villages Nossa Senhora de Guadalupe and São Marcos, and it intends to
explore the embroidery frames of a Xavante initiation ritual realized in intervals of five
at six years. The intention is to show how social actors manipulate the ritual process to
defense and maintenance their political objectives in the village. We observe during the
field work that the danhono, as Xavante called the process of initiation, is impregnated
with political questions and can be used for these ends. Besides, we still discuss how a
traditional society, the Xavante, try to keep their production and reproduction of the
cultural practices within a context of social changes, provoked by the contact and
interactions processes with other societies, including non-indigenous society. To reach
these objectives we will describe ethnographically the danhono - social ritual of
Xavante initiation. This is necessary because this initiation ritual can be taken as an
important key for the Xavante factionalism, but it cannot nevertheless be taken by itself
as an explanation for the factionalism. We think danhono must be inserted into the
context of social actors' shares involved. For this description we use ethnographic
studies, already considered classics within the vast anthropological production on this
ethnic group, and the several field works we realized in T.I. São Marcos. Our intention
in comparing our observations with other authors is not to show incoherencies in their
studies; but overcoat, to show how Xavante deal with the changes in their society and
what the out-going outlet mechanisms they have, considering the realization of the
rituals.
Key words: Xavante; ritual; factionalism; Indians; conflicts.
1
INTRODUÇÃO
1
Sobre a grafia das palavras em Xavante seguimos a proposta de uniformização feita pelos
Salesianos e SIL – Summer Institute f Linguistics, em 1977 por iniciativa da FUNAI, num encontro que
aconteceu na Aldeia São Marcos, terra indígena homônima. Utilizamos os dicionários Xavante –
Português e Português – Xavante além da gramática Estudos Sistemáticos e Comparativos de Gramática
Xavante. Não obstante, esta não é a única forma de grafar as palavras Xavante. Os moradores da Terra
Indígena Pimentel Barbosa seguem outra convenção.
2
limites físicos da aldeia Xavante, onde ocorre a iniciação. O campo de interação daí
resultante pode ser igualmente pensado como um campo político, uma vez que os atores
sociais procuram conduzí-lo para atingir objetivos desta natureza. Segundo SWARTZ,
TURNER & TUDEN (1976:07) o político apresenta três características: se aplica a tudo
ao que é imediatamente público, meta-orientado, e que implica um diferencial de poder
(no sentido de controle) entre os indivíduos em questão. Contudo, este poder não pode
ser entendido como hierárquico, mas relacionado a objetivos públicos a serem atingidos.
Esta natureza política envolve um processo segundo o qual os atores sociais buscam
diversas fontes de apoio, fazem acordos e procuram subordinar adversários para atingir
seus objetivos. Tal processo, pensado a partir de relações entre pessoas e grupos, produz
o que os autores chamam de campo político. Todavia, o campo político não funciona
como uma máquina perfeita. Pelo contrário,
... é um campo de tensão, cheio de antagonistas inteligentes e
determinados, único e corporativo, os quais são motivados por
ambições; altruísmo; interesse próprio e pelo desejo do bem público,
e os quais em sucessivas situações estão ligados uns aos outros por
meio de interesse próprio ou idealismo - e separados ou em oposição
pelos mesmas motivações (SWARTZ, TURNER & TUDEN, 1976:08)
(tradução livre).
Com base nesta noção de situação histórica pensamos o danhono situado a partir
de um conjunto de eventos e relações que não estão circunscritos, ou limitados à uma
aldeia específica. Duas situações etnográficas nos ajudam a pensar o danhono enquanto
situação histórica.
Durante o trabalho de campo levantamos o caso de Rinaldo, membro da classe
de idade ẽtepa
˜ b’rada. Rinaldo é um dos poucos Xavante que passou pelo ritual de
iniciação do danhono antes que seu povo aceitasse o contato com a sociedade não
indígena. Sua iniciação teve início numa aldeia chamada Pawadzara’dzé3 situada na
região conhecida como Couto Magalhães4, tendo como referência o rio homônimo, e foi
abruptamente interrompida pelo ataque de outro grupo Xavante, segundo um
informante, proveniente da região do rio Kuluene, rio principal que forma o Xingu. Em
decorrência deste ataque sua aldeia interrompeu o danhono, que estava na fase da
corrida do noni que será descrita no Capítulo III, item 3.10, dispersando-se e depois
buscando ajuda junto à Missão Salesiana de Merure, em 1956.
Transcorridos mais de cinqüenta anos após o inconcluso processo de iniciação
de Rinaldo, após vários danhono realizados na aldeia São Marcos, bem como em outras
áreas Xavante, o mesmo acompanhou em 1997 a renovação da categoria de sua classe
de idade na ocupação da casa dos solteiros. De outra forma: com a renovação completa
do ciclo das classes de idade, Rinaldo presenciou a renovação do ciclo das classes de
idade com a conclusão da iniciação dos ẽtepa
˜ em 1997, quando a categoria da classe de
idade no qual está inserido completou o processo de iniciação do danhono. A primeira
renovação do ciclo das classes de idade após a aceitação do contato com a sociedade
não-indígena se deu justamente com a conclusão do processo de iniciação dos abare’u
em 2005. Os dois danhono(s), realizados em situações históricas diferentes, acontecem
em campos de interações sociais altamente díspares. No caso de Rinaldo seu danhono
está envolto numa atmosfera de conflitos, entre os próprios Xavante e com os invasores
não-índios de seu território tradicional, que o deixa inconcluso, mesmo depois que seu
grupo foi submetido ao processo de sedentarização através dos missionários salesianos
de Merure. Cinqüenta anos depois, após sucessivas iniciações do danhono, temos a
3
Sobre esta aldeia veja Lopes da Silva (2002:370). Segundo esta autora, os moradores de
Parawadzara’dzé se formaram a partir de reagrupamentos de Xavante oriundos de outros grupos que
entraram em conflito entre si e com regionais.
4
Parte do território Xavante que estava localizado na região do rio Couto Magalhães foi
demarcado e reconhecido como Terra Indígena Parabubure – Municípios de Campinápolis, Água Boa,
Canarana e Nova Xavantina.
7
iniciação da classe de idade abare’u. Aqui os conflitos entre os próprios Xavante estão
novamente em pauta, como veremos no Capítulo IV. Contudo, outros agentes de
interação estão envolvidos, direto ou indiretamente, neste danhono e nos demais que já
aconteceram: FUNAI, FUNASA, Prefeituras, Governo de Estado, ONGs, Missão, etc.
Estes agentes de interação não atuam no danhono, mas são usados como fonte de
recursos para que o danhono aconteça. Portanto, não é possível pensar o processo de
iniciação do danhono isolado do contexto histórico e político que os atores sociais estão
imersos.
Os dois casos nos mostram que os danhono(s) não são meras repetições de
rituais que a tradição Xavante apresenta. São eventos cíclicos, não isolados, que devem
ser considerados no tempo e no espaço. Como decorrente de uma situação histórica
somos convidados a vê-los também como distribuição e luta de poder entre os múltiplos
atores sociais que nele tomam parte e/ou são usados em seu processo de execução. Entre
os Xavante isto pode ser caracterizado como faccionalismo.
Um aspecto marcante da noção de situação histórica, e por isso a consideramos
importante para pensar o caso Xavante, é que, segundo Oliveira Filho (1988:58), ela
não estimula qualquer dualismo (moderno x tradicional ou sociedade nacional x grupo
indígena), ou ainda: aldeia x cidade, momento ritual x momento da vida política
Xavante. Como veremos na descrição etnográfica, a cidade pode ser considerada pelos
Xavante como uma extensão da aldeia e fonte de recursos, não só material mas também
simbólico. Igualmente o momento ritual é tomado pelos atores sociais como palco para
suas expressões políticas e procuram utilizar suas performances para este fim. De mais a
mais, ainda dentro da concepção de situação histórica o contato interétnico precisa ser
pensado como uma situação, isto é, como um conjunto de relações entre atores sociais
vinculados a diferentes grupos étnicos (OLIVEIRA FILHO, 1988:58). No cenário atual
temos assim a etnia Xavante realizando o ritual de iniciação, não de maneira isolada,
mas interagindo com outros atores distribuídos nos centros urbanos, ou fora dele, tais
como: os índios Bororo e fazendeiros vizinhos de seu território. E ainda a presença de
outros atores sociais em território demarcado, tais como: os agentes de governo –
funcionários da FUNAI e FUNASA, missionários e até mesmo o pesquisador que é
incluído no processo. Este cenário posto numa concepção processualista permite
visualizar como os Xavante operam sua produção e manutenção das práticas culturais
entre elas os rituais danhono e darini e seus usos políticos.
8
Com base no que foi exposto acima, procuramos assumir uma postura de análise
dos dados, sobre o processo de iniciação do danhono e faccionalismo Xavante,
semelhante à de Oliveira Filho (1977), quando trata da organização política emergente
em grandes aldeamentos Tukuna. O autor evita separar
... uma ordem política “imposta pelo contacto” de outra “nativa”,
dedicando a essa última toda a atenção (...). A elaboração de novos
padrões de organizativos da vida política foi vista então como
produzida pelos Tukuna a partir de um ponto de apoio – a
organização política articulada à situação histórica precedente – e de
um fator dinâmico – as determinações da nova situação histórica
(OLIVEIRA FILHO, 1977:77).
Assim como o danhono não é mera repetição cíclica de uma organização social,
o sistema de classes de idade, o faccionalismo Xavante não pode ser igualmente
pensado como uma simples continuidade de lutas políticas do passado. Nos dois casos a
situação histórica vivida em diferentes contextos de interação social impele os atores
sociais a repensarem e redefinirem não só a dinâmica do processo ritual, como também
os rearranjos dos grupos políticos, as facções. Desta forma, é preciso ter claro que o
faccionalismo não pode ser considerado uma epidemia que atinge os Xavante, ou outras
etnias, de tempos em tempos. O modo de alocar e distribuir os atores políticos Xavante
no seio de sua organização social, bem como a formação de grupos antagônicos, deve
ser pensado como um tipo de forma organizacional (Barth, 2002). Neste sentido, vemos
que os processos rituais e políticos são constantemente repensados dentro dos novos
contextos de interações.
Tendo em vista o que delineamos até o momento é preciso deixar claro outras
concepções analíticas que estarão sendo utilizados nesta tese. A coleta e apresentação
dos dados procura seguir a orientação do método denominado por M. Gluckman de
estudo de caso detalhado (extended–case method) e renomeado por Van Velsen
(1987:345) como análise situacional. Segundo este autor o método:
... se refere à coleta efetuada pelo etnógrafo de um tipo especial de
informações detalhadas. Mas também implica o modo específico em
que esta informação é usada na análise, sobretudo a tentativa de
incorporar o conflito como sendo “normal” em lugar de parte
“anormal” do processo social (VAN VELSEN, 1987:345.)
5
Cf. GEERTZ, 1978.
10
6
Retomando o título do livro de FIRTH: Elementos de Organização Social (1974).
11
Outra definição de ritual que abarca o que foi colocado acima pode ser
encontrada em PEIRANO (2003:11), que se apropria da definição de Tambiah (1985):
...O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele é
constituído de seqüências ordenadas e padronizadas de palavras e
atos, em geral expressos por múltiplos meios. Estas seqüências têm
conteúdo e arranjos caracterizados por graus variados de
formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação
(fusão) e redundância (repetição).
Outro ponto relevante a estas definições de ritual é que ele aparece como algo
que foge à rotina do dia a dia, ou seja, ... não devotados à rotina, ou ... caracterizados
por graus variados de formalidade (respectivamente, Turner [2005:49] e Peirano
[2003:11]). Este caráter extraordinário no mundo das relações sociais levou os rituais,
sobretudo aqueles que foram acompanhados e registrados nas sociedades tradicionais,
como as indígenas, a serem tratados como festas. Os Xavante, por exemplo, referem-se
aos ritos do danhono como festas. Assim, a iniciação de uma classe de idade é
considerada como a festa dos abare’u, ou a festa dos tirowa, etc. Diante das fortes
tendências ao conflito que observamos durante os dois momentos em que participamos
do danhono, 1997 e 2005, somos conduzidos ao estranhamento de pensá-lo como festa,
na nossa acepção do termo. Contudo, não eliminamos o caráter jocoso, presente nestas
festas, que muitos rituais apresentam ao longo do processo de iniciação, como por
exemplo no momento em que os moradores da casa dos solteiros reclamam de estarem
cansados de ser wapté e desejam ter acesso às mulheres para transar como os homens já
iniciados, bem como entrar no sistema de troca de mulheres.
Os conflitos que estão presentes no danhono são de três naturezas: a
transgressão das normas; a modificação das normas; e a não aceitação de resultados de
certas cerimônias. Segundo TURNER,
...qualquer tipo de vida social coerente e organizada seria impossível
sem o pressuposto de que certos valores e normas, ditames e
proibições são de caráter axiomático, sendo, enfim, obrigatórios para
todos. Por muitas razões, no entanto, fica difícil de sustentar, na
prática, a qualidade axiomática dessas normas, porque, na infinita
variedade de situações reais, normas consideradas igualmente
válidas, teoricamente, revelam-se, com freqüência, incongruentes
umas em relação às outras, ou mesmo mutuamente conflitantes
(TURNER, 2005:72).
vontades próprias. Isto porque, como diz TURNER (2005:73), as pessoas se reúnem não
enquanto indivíduos, mas como personalidades sociais. Embora possam estar sob um
ideário de normas que possam orientar condutas e performances rituais, na prática
quando estas normas se chocam com as ambições e projetos pessoais, as personalidades
sociais buscam um modo de subjugá-las. Um exemplo de transgressão de normas que
observamos durante o trabalho de campo dizia respeito à proibição de encontros
amorosos entre os moradores da casa dos solteiros, a hö, e suas futuras noivas, cunhadas
ou qualquer outra mulher que não fosse de sua metade exogâmica. Contudo, tanto em
1997 quanto em 2005, constatamos casos em que estes encontros teriam ocorrido,
permitindo que a metade cerimonial oposta à classe de idade que estava sendo iniciada
empreendesse tentativas de punição pela norma transgredida. O resultado foi a eclosão
de um conflito, em 1997, que chegou a vias de fato envolvendo as metades cerimoniais.
Aqui há uma diferença entre os conflitos que acontecem durante o danhono e aqueles
observados por TURNER no ritual de circuncisão dos meninos Ndembu. Enquanto entre
os Ndembu... as pessoas brigam como membros de grupamentos que não são
reconhecidos na estrutura formal do rito (TURNER, 2005:73), entre os Xavante são
justamente entre os grupamentos que compõem a estrutura ritual que eclodem os
conflitos. O conflito no danhono se dá não pela transgressão da norma em si, mas nas
tentativas de impugnação pela transgressão da regra. Transgressões à regra nos parece
serem situações comuns durante o danhono. Todavia, quando descobertas e ao torná-las
de domínio público os grupos cerimoniais são acionados para impugnar, ou castigar, os
acusados da transgressão. Usando como metáfora a terceira Lei de Newton da física
mecânica que diz que para cada ação há uma reação vemos eclodir o conflito no
danhono quando pensado enquanto processo. Ou seja, o grupo que se considera detentor
da tradição, ou que dela deveria ser o zelador, procura penalizar o grupo transgressor
que por seu turno se coloca em estado de defesa. Estes conflitos envolvem metades
cerimoniais que vivem em constantes tensões e são movidas pela instituição vingança.
Neste sentido, quando inserimos o danhono num contexto mais amplo de ações dos
atores rituais, ou seja, consideramos a iniciação do danhono num tempo histórico,
descobrimos que as metades cerimoniais procuram constantemente macular
determinados atores sociais inseridos no processo ritual, ou seja, membros de uma
classe de idade que está sendo iniciada. Isto se concretiza quando a metade cerimonial,
em particular a última classe de idade que passou pelo processo de iniciação, e que atua
16
como defensores e fiscalizadores das normas de conduta dos wapté, moradores da casa
dos solteiros, consegue, surpreender por meio de tocaia, um dos meninos praticando
uma transgressão de norma e fura-lhe os lóbulos auriculares sem festa, como dizem os
Xavante.
Este ato imputa o estigma de atsitõ, que equivale ao sem vergonha em nossa
sociedade. Tal referência é motivo de vergonha para a classe de idade que está sendo
iniciada, para as outras que compõem sua metade cerimonial, bem como para seu grupo
doméstico. De mais a mais, a instituição da vingança está presente em outros momentos
da vida social Xavante. Ela é bem mais expressiva quando se trata de conflitos políticos
envolvendo facções. Voltaremos ao assunto quando estivermos descrevendo o ritual de
iniciação do danhono (Capítulo III) e no capítulo em que estivermos tratando de sua
relação com o sistema político (Capítulo IV).
Uma última consideração que gostaríamos de fazer sobre o ritual é o modo de
abordagem e as possibilidades do método antropológico. Turner observa uma intrínseca
relação entre a realização dos rituais e as crises de vida social das aldeias, mostrando
que há uma ligação entre conflitos e rituais entre os Ndembu (TUNER, 1974:24).
Durante o tempo em que convivemos com os Xavante não observamos este tipo de
relação. Acreditamos que os conflitos sociais de ordem política são tratados como
independentes do processo ritual. Entretanto, o processo ritual pode ser usado para fins
políticos. O que queremos enfatizar é que nos dias atuais não há realizações de rituais
específicos durante o danhono para dirimir conflitos entre os Xavante.
Embora os Xavante possuam um ator social dotado de poderes para intervir em
conflitos, o ‘wamarĩdzutede’wa ou ‘wamarĩtede’wa – o dono do ‘wamarĩ, isto é, o dono
de um pó branco extraído de um tipo de madeira de mesmo nome, considerado um
pacificador – não o vimos atuar durante as situações de conflitos que chegaram a vias
de fato. Segundo Giaccaria & Heide (1984:122s) o status de ‘wamarĩ é passado de pai
para filho. A atribuição principal deste ator social é prever o futuro através de sonhos.
Ademais, segundo os autores supracitados, ele atua diretamente como pacificador de
litígios que surgem dentro de uma aldeia, bem como entre as demais com as quais o
grupo entra em contato. Outra atuação se dá quando morre alguém decorrente de
vingança ou sob suspeitas de feitiçaria onde ele volta a se impor para evitar vingança.
17
7
Publicado originalmente em 1967 como Akwe-Shavante Society. Oxford: Claredon
Press. Estaremos usando nesta tese a versão na língua portuguesa de 1984.
8
O warã, centro da aldeia, não é só espaço físico, é também o local de tomada de decisões e
onde fervilha a vida política da aldeia.
18
9
Segundo EVANS-PRITCHARD, os Nuer estão envoltos em três situações de conflito: guerras
– que são travadas contra outras tribos (contra os Dinka); disputas – que acontecem contra os segmentos;
e, vendetas – conflitos decorrentes de morte ou roubo que ocorrem no interior das comunidades. O chefe
de pele de leopardo atua na resolução de vendetas, principalmente. Nos outros casos sua participação
acorre somente se as partes assim o desejarem. Uma vendeta pode se transformar numa disputa,
ocorrendo assim o que Turner (1974:39) chama de escalada da crise, como veremos no Capítulo IV.
10
1. Na Córsega, espírito de vingança, entre famílias, provocado por um assassínio, uma
ofensa; vingança. Conf.: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa. Editora Nova Fronteira. (1995:1762).
20
11
Grande parte dos trabalhos antropológicos que usam estas categorias adota o termo
faccionalismo. De Paula (2000) opta por usar facciosismo, por ser o disponível na língua portuguesa. No
entanto, as duas categorias referem-se ao mesmo fenômeno.
12
Cáritas Brasileira faz parte da Rede Caritas Internationalis, rede da Igreja Católica de atuação
social composta por 162 organizações presentes em 200 países e territórios, com sede em Roma.
Organismo da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) a Cáritas foi criada em 12 de
novembro de 1956 e é reconhecida como de utilidade pública federal. Mais informações podem ser
acessadas na página http://www.teste.caritasbrasileira.org/index.php.
13
Durante o trabalho de campo em 2005 assessoramos as lideranças de Nossa Senhora de
Guadalupe a revitalizar a Associação a Comunidade Indígena Tsõ’repré – ACIT. Esta associação foi
criada em 1992, quando as lideranças de Nossa Senhora de Guadalupe ainda residiam na aldeia São
Marcos, portanto, antes da grande cisão que aconteceu em 2002, como veremos no último capítulo. Com
a cisão, parte do material de escritório (carimbos, papéis timbrados e atas) se perderam. Segundo o
cacique de Nossa senhora de Guadalupe, o inimigo tinha destruído tudo quanto se intaurou a terceira
grande crise em 1998. Este inimigo era o secretário da associação. Quando Orestes retorna de São Paulo,
após a morte de seu pai, reivindicando o cargo de cacique, o secretário, que apoiava Aniceto Tsudzawéré,
cacique de Nossa Senhora de Guadalupe, muda de lado político e destrói os documentos da associação.
22
montante solicitado, o qual foi repassado diretamente ao cacique. Contudo, por ter sido
solicitado através da Associação a Comunidade Indígena Tsõ’repré (ACIT) seus
membros esperavam que o dinheiro fosse repassado ao tesoureiro que juntamente com
os diretores da associação deliberariam sobre o que e onde comprar, embora na
solicitação a aplicação do dinheiro já estivesse pré-definida. No entanto, o dinheiro
permaneceu nas mãos do cacique, sem haver qualquer discussão ou prestação de contas
aos membros da associação. Dias depois da liberação do dinheiro recebemos diversas
ligações telefônicas de lideranças de Nossa Senhora de Guadalupe que reclamavam da
não aplicação do dinheiro para os fins que fora inicialmente solicitado. Eles acusavam o
cacique de ter ficado com todo o dinheiro do projeto. Diante disso, nos disseram que
quando retornássemos à aldeia pediriam novamente nossa assessoria para mudar o nome
da associação e escolher outra diretoria que seria desvinculada daquela que o cacique é
membro.
Este caso nos mostra que o faccionalismo, enquanto atividade ou fenômeno
político é também o conflito entre facções, conforme descrito por Jeremy Boissevain
(1977). Boissevain sugere que o estudo do faccionalismo seria mais útil se ele
começasse pelo estudo dos grupos que estão em conflito – as facções. Uma facção,
segundo Boissevain – baseando-se nas conclusões de Firth quando resumia um
simpósio sobre facções na Índia e sociedades indígenas ultramarina (Firth et al., 1957) –
, é vista como um grupo livremente ordenado em conflito com um grupo similar sobre
uma questão particular (Boissevain, 1977:280 – tradução livre). Entre as principais
características dos grupos faccionais estão a diversidade de bases sobre as quais podem
se constituir (parentesco ou parentes afins, amizade, inimigos comuns, etc.), sendo
ativados em situações específicas. A união de grupos domésticos das aldeias Xavante
quando formam blocos antagônicos e começam a competir pelo cargo de chefia de uma
determinada aldeia, por exemplo, podem ser considerados como facções na acepção de
Boissevain. Os grupos domésticos xavante nas aldeias analisadas se alinham livremente
em favor de um objetivo comum. Não obstante, quando os objetivos deixam de ser
comuns, ou quando se percebe que as alianças estabelecidas não são mais favoráveis às
partes que formaram a facção, estas começam a se desprender do bloco que formava a
facção. Ou ainda, na busca de maior autonomia em relação à facção de uma
determinada aldeia alguns grupos optam por deixar esta aldeia e fundar outras, sem
deixar de manifestar apoio à aldeia de origem, como veremos no Capítulo V, quando
23
2005, quando aconteceram várias conclusões dos danhono nas aldeias da Terra Indígena
São Marcos, a rivalidade entre as facções ainda podia ser medida, ou acionada, com
base nos discursos referentes ao sucesso de uma caçada que acontece no final do
danhono. Ao transitarmos de uma aldeia para outra os caçadores nos indagavam sobre a
quantidade de antas que teriam sido abatidas para uso nos rituais dos tébé e pahöri’wa.
Na aldeia São Marcos os caçadores ali se davam por satisfeitos ao saberem que tinham
abatido mais antas do que os de Guadalupe. Voltaremos a estes fatos ao longo desta
tese. Aqui chamamos atenção para um ponto importante nos estudos de facção e
faccionalismo. Enquanto processo social o faccionalismo, atividade política ou
fenômeno, se quisermos pensar como Nicholas (1976), deve estar num tempo histórico
estendido. Isto porque as facções e os conflitos faccionais não surgem do dia para noite.
De mais a mais, é preciso conhecer o contexto social no qual acontecem estes conflitos.
Inicialmente a manifestação do faccionalismo na Terra Indígena São Marcos
esteve submetida àquilo que poderíamos chamar de estado de dormência. Ao comparar
as chefias entre algumas aldeias Xavante, Maybury-Lewis aponta que em São Marcos o
faccionalismo estava enfraquecido pelo grande número de líderes e pela atuação da
atividade missionária.
Em São Marcos, o processo de dissolução da chefia não estava tão
avançado. Ali os chefes estavam enfraquecidos por outro motivo:
havia muitos deles. A relativa diminuição das contendas – resultado
do envolvimento com a Missão – criava dificuldade para que
qualquer deles realmente se impusesse (MAYBURY-LEWIS,
1984[1967]: 257).
agressivas e os conflitos advindos de grupos opostos, com base nos preceitos religiosos
e na formação cristã ministrados no internato e na catequização.
O trabalho de MENEZES (1984:382-383) realizado vinte anos depois da
primeira passagem de Maybury-Lewis, em 1962, aponta outra realidade vivida pelos
Xavante e sua interação com a Missão Salesiana. Agora o faccionalismo começava a
assumir outras dimensões.
No período em que a agência religiosa pôde exercer uma tutela de
fato sobre os Xavante de São Marcos, estabelecendo as condições de
integração da população indígena, a vida política da aldeia esteve
sob seu controle quase absoluto, o que teve como efeito um
amortecimento das práticas políticas em geral e, em particular, das
formas de expressar a hostilidade entre facções rivais. Esta situação
iria modificar-se com a mobilização das aldeias das Missões em prol
da demarcação das terras, o que exigiu a participação dos homens
mais jovens por sua condição de guerreiros, cuja ação deflagrou a
reação contrária à morosidade do poder político prejudicial aos
interesses indígenas. Esquematizou-se um novo modo de fazer
política, que implicou numa interação direta com a administração
oficial e a definição de estratégias de luta que permitissem ao grupo
fazer valer direitos mesmo em condições de submissão.
No contexto deste movimento, os homens mais velhos viram reduzida
sua autonomia de atuação enquanto líderes políticos, passando a
depender cada vez mais da assessoria das lideranças emergentes,
corporificadas pelos integrantes das classes de idade Abare’u e
Nodzö’u, as primeiras a realizarem a festa de iniciação após a
aproximação junto aos salesianos.
No final da campanha, dois líderes haviam conquistado suficiente
prestígio para ambicionar a chefia de São Marcos Dzururã [Mario
Juruna] e Tsusawéra [Aniceto Tsudzawéré] (MENEZES, 1984:382).
a utilizá-la como ponto de conquista de recursos que pudessem legitimar lideranças. Isto
pode ser traduzido numa galhofa que corre no pensamento dos moradores de São
Marcos: (...) demorou muito, mas nós conseguimos amansar o Pe. Pedro. Aqui se
inverte o senso comum: são os Xavante a amansar a Igreja e não mais o contrário.
Na medida em que isto de fato se efetiva os Xavante se voltam novamente para
suas arengas internas. O resultado será o acirramento de tensões internas e,
conseqüentemente, a fundação de novas aldeias nas terras reconhecidas. Voltaremos a
estes dados no Capítulo IV desta tese.
A última consideração sobre os conceitos utilizados nesta tese refere-se à noção
de performance. Os estudos de performance surgem de um diálogo entre os estudos de
teatro e ritual como formas expressivas e constituem um suporte para análise da
realidade social (SILVA, 2005:36). Os pioneiros no campo antropológico são: Victor
Turner (1982, 1987), Victor Turner e Edward Bruner (1986), Clifford Geertz (1978,
2001), Michael Taussig (1993), Richard Schechner (1985, 1988) e John Dawsey (1999).
Não faremos aqui um levantamento exaustivo sobre as concepções sobre performance
destes autores. Para tanto indicamos o artigo de SILVA (2005) que elenca os autores
acima e apresenta este balanço bibliográfico. Aqui vale considerar as ponderações de
PEIRANO (2006:13) que questiona se a idéia de performance não estará muito colada
às categorias ocidentais? Ou, melhor, aos objetos e aos temas do mundo ocidental? Na
concepção da antropologia da performance, performance é tema ou teoria? Esta
questão não será aqui respondida. Contudo, as considerações finais do texto de
PEIRANO (2006:14) aproximam-se do uso que estamos dando a performance:
Rituais e “performances” privilegiam o fazer e o agir, reforçam o
contexto, admitem o imponderável e a mudança, vêem a linguagem
em ação, a sociedade em ato e prometem alcançar cosmovisões – tudo
isto podendo levar a um acordo de objetivos teórico-intelectuais com
político-pragmáticos.
de que o mundo social pode ser tomado como um palco no qual os atores sociais
desempenham papéis sociais. De mais a mais a idéia de performance, no inglês, remete
a desempenho, interpretação, apresentação e representação (Dicionário Oxford,
2000:537)
14
Conforme Projeto de Qualificação apresentado no PPGA/UFF.
28
apoio que ele adquire junto a sua facção. As guerras do passado, seja entre os próprios
Xavante, seja com outras etnias, ou ainda com segmentos da sociedade nacional, nas
quais idealmente os chefes as conduziam, foram deslocadas para outros campos de
batalhas. Estes estão situados em outros espaços, como por exemplo, nos centros
urbanos, ou seja, são as sedes dos órgãos governamentais. Os resultados dos combates
(ou embates) nestes novos campos, e os espólios daí resultantes, uma vez revertidos e
redistribuídos em prol da comunidade aldeã, é que darão prestígio aos líderes atuais.
Assim, nestas novas modalidades de “guerras”, as disputas faccionais tomam outros
sentidos em favor de lutas pelo controle sobre os recursos destinados a educação, a
saúde e às atividades de subsistência oriundas de projetos agrícolas e afins. Em outras
palavras, o chefe tem que se dispor a perambular pelos centros urbanos e órgãos de
governo para conseguir bens a serem revertidos aos grupos domésticos. Todavia, o
prestígio adquirido nestas conquistas pode esvair-se caso os bens adquiridos não sejam
redistribuídos de forma eqüitativa. Será esta capacidade de (re) distribuição eqüitativa
dos bens que conferirão prestígio, ou não, ao chefe. Não obstante, visto que o chefe é o
cabeça da facção dominante ele estará sempre comprometido com seus correligionários
mais próximos. Inicialmente estes correligionários são formados em sua maioria por
membros de seu grupo doméstico estendido. Estes serão os primeiros a receber o
quinhão dos espólios.
Em 2002, quando iniciamos o trabalho de campo do mestrado, ao chegamos à
cidade de Barra do Garças, para depois atingir a Terra Indígena e posteriormente a
aldeia N. S. de Guadalupe, encontramos ali o cacique Tsudzawéré e sua “comitiva” que
retornava de Brasília com algumas dezenas de sacos com cobertores, roupas, sapatos e
brinquedos. Segundo seu relato, estes bens foram adquiridos através de contato com um
deputado federal que mantinha um centro de distribuição daqueles bens. O destino
destes produtos era sua aldeia, onde seriam distribuídos. Ainda antes, numa parada na
rodoviária de Goiânia, de onde seguiríamos para Barra do Garças, ao procurarmos um
espaço no bagageiro do ônibus em meio a dezenas de sacos de roupas e brinquedos,
fomos informados pelo cobrador de que tudo aquilo era coisa de índio. Dentro do
ônibus encontramos o cacique da aldeia São Francisco que retornava de Brasília.
Segundo este cacique os sacos de roupas e brinquedos que ele trazia no bagageiro do
ônibus foram conseguidos através de uma rede de amigos nas cidade satélites de
Brasília.
29
era acompanhá-lo aos centros urbanos, o mesmo considerou uma ótima oportunidade de
ter um secretário waradzu (não Xavante), como ele mesmo disse. Sentimos de imediato
que estávamos sendo cooptados para o projeto político do cacique. Isto se tornou claro
quando o cacique nos pediu logo em seguida para que elaborássemos um documento
que seria encaminhado ao Superintendente de Políticas Indígenas da Casa Civil do
Governo do Estado, Sr. Sardinha, no qual solicitava a doação de cerca de cento e
sessenta calções pretos e vermelhos, a serem usados solenemente durante os diversos
rituais que estavam por vir. Ao longo, do trabalho de campo sempre que procurávamos
o cacique para conversar sobre os rituais em andamento, o mesmo voltava a nos
solicitar que elaborássemos outros documentos que remetiam às arengas políticas que
ele estava envolvido tendo como opositores as lideranças de outras aldeias. Entretanto,
quando se tratava do envolvimento com as disputas envolvendo outros líderes Xavante,
sobretudo quando o teor destes novos documentos propostos era apresentado como
forma de desqualificá-los, com muita sutiliza nos esquivávamos de produzi-los, como
estratégia de não ter fechada outras portas do campo.
No caso do documento elaborado e encaminhado pelo cacique ao
Superintendente de Políticas Indígenas, o resultado foi parcialmente satisfatório.
Quando o cacique retornou de viagem procuramos saber se ele havia conseguido os
calções. Segundo o chefe, o Superintendente de Políticas Indígenas não entende de
xavante. Dizia isto porque em lugar de comprar calções seus assessores compraram
bermudas, que não seriam úteis nas performances rituais. Todavia, depois de
distribuídas elas renderam prestígio e aumento do capital político ao chefe, que pode ser
resumida numa frase de um dos informantes: ele [o chefe] luta pelos bem das
comunidades [Aldeia Nossa Senhora de Guadalupe].
Nos dias que se seguiram quando tomávamos conhecimento de que uma
liderança estaria planejando uma viagem e ao traçarmos uma estratégia para
acompanhá-la éramos obrigados, ou talvez convencidos, a abandonar o plano e
acompanhar o ritual do danhono que estava sendo preparado. Além disso, as condições
financeiras para empreender viagens aos centros urbanos elencados acima não eram
nada favoráveis. Diante disso, a construção do objeto teve que se adequar às novas
condições de implementação da pesquisa etnográfica. Estávamos vivendo uma situação
análoga a de Evans-Pritchard (1978:300) quando afirma: Eu não tinha interesse por
bruxaria quando fui para a terra Zande, mas os Azande tinham; de forma que tive de
31
me deixar guiar por eles. Inicialmente não tínhamos interesse no danhono, haja vista
que já o conhecíamos e nele fomos incorporados em 1997, conforme descrevemos
abaixo. Nosso objetivo inicial era acompanhar as lideranças aos centros urbanos, no
entanto em 2005 quase tudo estava voltado ao processo de iniciação do danhono. Assim
fomos movidos e levados a reconsiderar a questão do faccionalismo Xavante.
Diante das novas condições encontradas no campo, onde tudo estava voltado ao
danhono, descortinou-se para nós outra possibilidade de pesquisa na qual poderia ser
contemplado os conflitos faccionais. O foco da pesquisa voltou-se para os bastidores do
danhono e a possibilidade de (re)apropriação do ritual para uso político, e ainda a
relação do danhono realizado na aldeia N. S. de Guadalupe com outros que estavam
sendo igualmente realizados noutras aldeias da Terra Indígena São Marcos. Neste
sentido, tanto o processo ritual quanto o faccionalismo, como expressão política,
tiveram que ser inseridos numa amplificada de relações sociais. Do mesmo modo o
tempo histórico destas relações não pode ser ignorado. Diante disso, reconstituímos,
através da noção de drama social cunhada por Victor Turner, no capítulo IV desta tese
os processos de cisões e criação de novas aldeias na Terra Indígena São Marcos. Tais
cisões e criação de novas aldeias Xavante é o resultado final daquilo que Turner chama
de escala da crise. Visto que o processo ritual de iniciação do danhono é cíclico, ou
seja, renova-se de tempos em tempos, procuramos também reconstruí-lo inserindo-o no
tempo e apurando alguns dos conflitos instaurados em seus bastidores.
Os bastidores do danhono surgem como locus de excelência para visualizar os
conflitos faccionais. Outro aspecto que a nova situação de pesquisa possibilitou foi a de
empreender um levantamento das condições de manutenção das práticas culturais numa
sociedade em processo de transformação. Em outros termos, se a cultura é dinâmica
como são mantidas as práticas culturais, neste caso os rituais que compõem o danhono,
numa sociedade tradicional que está inserida em novos contextos de interações sociais?
Quais são as estratégias, e suas conseqüências, acionadas pelos atores sociais para
produção do danhono?
Os dados coligidos nesta nova condição de trabalho de campo favorecem a
retomada das discussões sobre o faccionalismo Xavante que havíamos traçado na
elaboração da dissertação de mestrado. Naquela ocasião argumentamos que as bases do
faccionalismo Xavante não estão pautadas sobre uma instituição formal da organização
social Xavante, a casa dos solteiros, como sugere a análise de David Maybury-Lewis
32
Durante essa excursão, o grupo dividiu-se em dois: um seguiu para onde é hoje a
Terra Indígena Sangradouro, enquanto o outro buscou ajuda na Missão Salesiana
estabelecida na aldeia Merure, onde vivem os membros da etnia Bororo. Neste local
chegaram no dia 02 de agosto de 1956. Segundo Lopes da Silva (1986:35), os Xavante
que se estabeleceram próximo da aldeia Merure pertenciam ao grande grupo que vivia
na região do rio Couto Magalhães. O mapa, a seguir, mostra de onde vieram os grupos
Xavante que buscaram ajuda junto aos missionários salesianos e/ou foram transferidos,
depois para onde é atualmente a Terra Indígena São Marcos. Embora neste mapa não
seja possível visualizar o rio
Corto Magalhães informamos,
com base no trabalho de
Aracy Lopes da Silva
(1986:34), que o mesmo é
afluente do rio Parabubure
que por sua vez tem origem
no rio Ronuro, afluente do
Xingu. A numeração que
aparece no mapa refere-se a
localização tradicional de
aldeias Xavante e que
posteriomente foram
reconhecidas pelo Estado
como terras indígenas, veja o
número dois mais adiante.
Nos primórdios do ano
seguinte os Xavante foram
transferidos pelos
missionários para outro lugar,
Mapa - 1 - Aldeias Xavante durante a pesquisa de Maybury-
próximo ao Córrego Fundo, Lewis e fluxos para formar a aldeia São Marcos. fonte:
para depois serem transferidos Mybury-Lewis (1984:38)
em definitivo para onde está localizada hoje a aldeia São Marcos. Dois foram os
motivos que os levaram a tal mudança: o local onde estavam era muito próximo a
Merure - cerca de uma légua, e apresentava poucas matas para fazerem as roças e
34
15
A reserva foi criada pelo Decreto nº 903 de 28/03/1950. (cópia anexada em DE PAULA: 2007:
ANEXXO II)
35
atendê-los. Findada a negociação com Bödöditu, Pe. Pedro Sbardellotto retorna, mas ali
permanece Tibúrcio, que segundo o missionário, pretendia ser chefe de todo o grupo de
Marãiwatsédé reunindo-o na sede da Fazenda. Depois de eliminar fisicamente os líderes
contrários à transferência, Tibúrcio lidera o grupo percorrendo os duzentos quilômetros
até a aldeia que estava próximo à sede da fazenda, onde se instalaram em julho de 1964.
Após um ano de convivência entre os Xavante recém aldeados, a menos de um
quilômetro da sede, começaram a surgir problemas de convivência entre os funcionários
da fazenda com os Xavante. Na área ocupada pela fazenda tentou-se por duas vezes
fundar uma missão, como as existentes em Sangradouro e São Marcos, para atrair os
Xavante. A primeira seria montada a uma distância de 20 km da sede da fazenda. Por
motivos de tratamento de saúde Pe. Pedro Sbardellotto ausentou-se da área, o que
levaria o projeto do missionário ao fracasso. Ao retornar à fazenda, em julho de 1965,
os Xavante já estavam sendo transferidos para outra área distante 65 km da sede, local
considerado impróprio pelo missionário para abertura da missão. Uma solução
encontrada para o conflito entre a fazenda e os Xavante foi a transferência do grupo
para uma das missões salesianas entre os Xavante, Sangradouro ou São Marcos. De
acordo com Pe. Pedro Sbardellotto (1996:108) o grupo escolheu São Marcos. E para lá
foram transferidos os mais de 300 Xavante com avião da FAB no meado de agosto de
1966, abandonando assim definitivamente sua região Marãiwatsédé, não muito
satisfeitos, mas impelidos pelas circunstâncias (...). Tratava-se, portanto, de uma
transferência à revelia dos Xavante.
Dois meses após o grupo vindo de Marãiwatsédé ter se instalado em São Marcos
sobreveio uma epidemia de sarampo matando quase um terço daquela população recém
chegada e apenas alguns já residentes naquela aldeia. Considerando que em 1964 a
população era de 350 pessoas, como apontado acima, com a chegada do grupo de
Marãiwatsédé este número totalizaria 650 Xavante, no mínimo. Para o ano de 1967 a
população de São Marcos foi contabilizada em 800 pessoas (Nunes da Mata, 1999). As
projeções contidas no Relatório do Pe. Pedro Sbardellotto, para o ano de 1970, eram de
que se numa hipótese de 300 Xavante deixassem São Marcos para residirem na região
do rio Couto Magalhães, haveria ainda uma população em São Marcos de 500 e mais
Xavante (Sbardellotto 1996:124). Alguns grupos domésticos de fato deixaram a aldeia
São Marcos, enquanto que outros começaram a fundar novas aldeias depois do processo
de constituição da Terra Indígena.
37
Os Xavante que fundaram a aldeia de São Marcos, e depois aqueles que foram
transferidos para lá, permaneceram sob a tutela dos missionários salesianos que ali
implantaram a Missão Salesiana de São Marcos. A convivência de vários grupos
Xavante entre si, provenientes de regiões diferentes, numa mesma aldeia, em presença
da Missão Salesiana, levou a um enfraquecimento de suas expressões políticas,
principalmente do faccionalismo (Maybury-Lewis, 1984:257).
Nos anos seguintes à implantação da aldeia e Missão Salesiana de São Marcos
deu-se início ao processo que levaria a criação da Terra Indígena homônima. Como
veremos no Capítulo IV, o processo de demarcação da Terra Indígena São Marcos foi
concluído em 1975. A partir deste fato histórico eclodiram-se uma série de crises
políticas, ou faccionais, entre os líderes Xavante que estavam vivendo na aldeia São
Marcos. Os resultados imediatos destas crises foram inúmeras cisões daquela aldeia, ao
longo de cinco décadas, o que levou a uma redistribuição da população no território
recém-demarcado.
Será no contexto das relações entre as aldeias, sobretudo nos processos de cisões
da aldeia São Marcos, que estaremos apresentando o ritual de iniciação do danhono. No
Capítulo IV retomaremos o processo de cisão aqui sinalizado e o relacionaremos com o
danhono, apresentado nos Capítulos II e III.
Atualmente a terra Indígena São Marcos possui 28 aldeias cujas distâncias entre
si variam. Considerando a aldeia mãe São Marcos, as distâncias variam de 01 (um) a 42
quilômetros. Em outros casos, considerando outras aldeias, a distância entre uma aldeia
e outra pode ser ainda menor, como é caso da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe e
Nossa Senhora das Graças cuja distância é de trezentos a quatrocentos metros de
distância.
A população das 28 aldeias da Terra Indígena São Marcos apresenta números
bastante variados. Dados coligidos por nós durante o trabalho de campo de 2005
mostravam que a menor das aldeias tinha uma população de apenas 16 pessoas,
enquanto que as maiores, São Marcos e Nossa Senhora de Guadalupe tinham,
respectivamente, 405 e 405 moradores. A população total da Terra Indígena era de
260417 pessoas.
17
O número de aldeias, população de cada uma delas e as distâncias – a partir da aldeia São
Marcos, constava num mapa desenhado numa cartolina e fixado na Escola Indígena Estadual Deputado
Mário Juruna. Segundo um de nossos informantes o mapa e os dados ali inseridos, era resultado de um
trabalho de treinamento dos Agentes Indígenas de Saúde - AIS, promovido pelo Distrito Sanitário
Especial Indígena – DSEI Barra do Garças.
38
Mapa - 2 - Localização das Terras Indígenas Xavante. Fonte: adaptado de Ricardo &
Ricardo (2006)
40
4 - O TRABALHO DE CAMPO
18
Era comum na aldeia de São Marcos os missionários jovens serem incorporados em classes de
idade, se desejassem.
19
Entre os Xavante existem oito classes de idade nos quais os jovens são inseridos quando no ato
da constituição de uma nova casa dos solteiros, a hö. No capítulo I será descrito com detalhes o sistema
de classes de idade.
41
tinham caráter cerimonial. Esta inserção nos vários eventos sociais dos Xavante da
aldeia São Marcos, fossem eles cerimoniais ou não, nos possibilitou acumular uma
gama de informações etnográficas sobre a cultura Xavante, que agora se torna
fundamental para o desenvolvimento deste trabalho.
Depois de um ano na condição de membro da missão salesiana, nos
desvinculamos daquela entidade religiosa. Todavia, optamos por permanecer
trabalhando com educação indígena na aldeia São Marcos, na qualidade de voluntário.
Assim permanecemos ainda por dois anos naquela aldeia. Com isto pudemos assistir o
início de uma nova crise política na aldeia que envolvia a disputa pelo reconhecimento
do posto de cacique por duas lideranças. Um ponto crítico nesta disputa, dentre outros,
foi um conflito que chegou a vias de fato e que teve como palco a aldeia São Marcos.
Descreveremos este conflito no Capítulo IV.
Também constatamos, naquela época, que havia uma grande mobilidade de
pessoas em direção à cidade de Barra do Garças e de outros centros urbanos. Deste
modo, todos os dias, com raras exceções, um caminhão sob comando e responsabilidade
de uma das lideranças da aldeia partia - lotado de jovens, homens adultos, velhos,
mulheres e crianças - durante a madrugada em direção à cidade, retornando quase
sempre no mesmo dia, quando não acontecia algum imprevisto durante a viagem. Tal
movimentação nunca foi bem vista por uma ala de missionários que defendia a
permanência dos Xavante na aldeia. Na opinião deles, agindo dessa maneira os Xavante
estariam caminhando para um processo de perda cultural e de identidade. Entretanto,
como observamos, para os Xavante este “risco” não é assim vivido. Ao acompanharmos
este processo de deslocamento da aldeia à cidade de Barra do Garças, principalmente,
observamos que os Xavante tomavam o espaço urbano como outra fronteira de
exploração.
Deixamos a aldeia São Marcos no final do ano de 1999. As informações e
observações, bem como a experiência pessoal ali vivida, foram de grande valia para o
trabalho de campo do mestrado, que realizamos nos meses de outubro e novembro de
2002. Naquela ocasião a crise política na aldeia São Marcos já tinha atingido seu ápice
resultando na cisão daquela aldeia três meses antes de nossa chegada, resultando na
criação de novas aldeias.
Na dissertação do mestrado procuramos abordar a repercussões das cisões que
aconteceram na aldeia São Marcos na redistribuição da população na Terra Indígena
42
morador não desistiu de seus planos de fundar a nova aldeia, pois de vez em quando ele
nos telefona solicitando ajuda para montar um projetinho a ser encaminhado a uma das
montadoras de veículos no qual pretende solicitar a doação de uma viatura.
Retornamos novamente à aldeia Nossa Senhora de Guadalupe em abril de 2007,
onde permanecemos por vinte dias. Novamente este retorno foi motivado pelos boatos
de cisões na aldeia, que não se efetivaram. Ademais, aproveitamos a ocasião para
retomar algumas discussões e esclarecer dúvidas sobre as performances rituais do
danhono.
Além do conhecimento durante nosso convívio direto com os Xavante, bem
como nas etapas de trabalho de campo do mestrado e, por último do doutorado,
dispomos de uma série de vídeos, que retratam de iniciações do danhono ocorridas no
passado, produzidos pela Missão Salesiana que foram de grande utilidade para
visualizarmos continuidades nas performances rituais dos Xavante da aldeia São Marcos
e de Nossa Senhora de Guadalupe.
Mas o trabalho de campo que realizamos entre os Xavante não ficaram restritos
ao ir e vir entre o mundo acadêmico, com seus objetivos e hipóteses de pesquisa, e a
aldeia. Quero aqui resgatar, e talvez seja este o único momento desta tese em que use a
primeira pessoa, o nostálgico texto de Roberto Da Mata, O Ofício de Etnólogo, ou como
ter “Anthropological Blues”, que retrata um pouco do que encontramos no trabalho de
campo, ou ainda de como entramos e saímos de uma situação de pesquisa etnográfica.
Seria possível dizer que o elemento que se insinua no trabalho de
campo é o sentimento e emoção. Estes seriam, para parafrasear Lévi-
Strauss, os hóspedes não candidatos da situação etnográfica. E tudo
indica que tal intrusão da subjetividade e da carga afetiva que vem
com ela, dentro da rotina intelectualizada da pesquisa etnográfica, é
um dado sistemático da situação. (...). É como se na escola graduada
tivessem nos ensinado tudo: espere um sistema matrimonial
prescritivo, um sistema político segmentado, um sistema dualista, etc.,
e jamais nos tivessem prevenindo que a situação etnográfica não é
realizada num vazio e que tanto lá, quanto aqui, se pode ouvir os
anthropological blues! (Da Mata, 1978:30-31)
CAPÍTULO I
Diante destas condições Firth levanta duas questões: que tipo de relações sociais
devem ser mais relevantes na descrição de uma estrutura social, e que continuidade
devem apresentar antes de serem incluídas (idem). Firth aponta que alguns
antropólogos tem considerado como estrutura social a rede de todas relações de pessoa
para pessoa numa sociedade. Isto seria para o autor uma definição muito ampla por que
não permitiria fazer distinções entre o que efêmero e o que é duradouro, não revelando a
idéia de totalidade da sociedade. Do lado oposto aparece a idéia de estrutura social que
compreenderia apenas as relações entre grupos maiores da sociedade, nos quais estão
aqueles que apresentam alto grau de persistência, onde se incluiria os clãs deixando de
lado o grupo familiar. Há ainda outra visão de estrutura social, segundo Firth, que
enfatiza relações reais entre pessoas ou grupos consideradas como esperadas ou ideais.
Aqui a forma da sociedade é definida a partir das expectativas individuais ou crenças
47
idealizadas naquilo que se deve ou deveria ser feito. Para Firth considerar a estrutura
social apenas como um conjunto de expectativa é vago. O importante, afirma Firth, é
(...) enfatizar a maneira pela qual os modelos sociais, os
padrões ideais e os conjuntos de expectativas tendem a ser
modificados, de modo reconhecível ou imperceptível, pelos atos dos
indivíduos em resposta a outras influências, dentre as quais inclusive
o desenvolvimento tecnológico. (...) O conceito de estrutura social é
um instrumento analítico, destinado a nos ajudar a compreender
como os homens se comportam em sua vida social. A essência desse
conceito são aquelas relações sociais que parecem ter uma
importância fundamental para o comportamento dos membros da
sociedade - relações que, se não vigorassem, nos impossibilitariam
afirmar a existência da sociedade sob aquela forma (Firth, 1974:48).
1.1 - OS CLÃS
Esta visão dualista da sociedade Xavante, a nosso ver, que autor apresenta,
parece traduzir outras formas dualistas do pensamento cristão-romano: sagrado/profano;
céu/inferno; bem/mal, etc. Como veremos ao longo desta tese, a divisão em metades é
fundamental para pensar o processo ritual. Entretanto, quando o conflito surge ele se dá
em decorrência da dinâmica faccional Xavante e não por se tratar de uma sociedade
composta por metades. Uma facção Xavante pode ser composta por pessoas
pertencentes aos três clãs e às duas metades. São as interações sociais que ocasionam o
surgimento e o desaparecimento das facções.
Tais mecanismos aparecem quando se examina os ritos e cerimônias como, por
exemplo, as celebrações do wai’a21
onde são representadas lutas entre as
“forças do bem” e as “forças do mal”,
entre “fertilidade” e “esterilidade”,
entre “saúde” e “doenças”, onde, no
fim, o bem, a prosperidade e a
fecundidade do grupo sempre
prevalecem (idem). Outros
mecanismos que permitem dirimir
tensões e conflitos são as trocas e
QUADRO - 2 - METADES EXOGÂMICAS
21
O wa’ia é um ritual religioso que acontece em várias ocasiões, em modalidades diferentes,
considerando a sazonalidade do ambiente de cerrado.
49
22
Os sinais diacríticos de acordo com Barth (2000) são usados pelos atores sociais para
comunicarem uma identidade étnica e como marcadores de diferenças dicotômicas entre “nós” e “eles”. O
ritual de iniciação do danhono é o momento na sociedade Xavante onde ocorre a adoção dos batoques
auriculares, que serão acionados como marcadores e delimitadores de fronteiras étnicas entre outras
etnias.
50
esclarece que não houve uma quebra da exogamia entre as metades e que não se tratava
de casamentos reais entre clãs, e, por conseguinte entre metades. Segundo Giaccaria
(2000:32),
(...) os homens transmitem para os filhos o próprio clã com os cargos
e privilégios conexos com o mesmo. Ao pai, porém, é concedida a
faculdade de dar ao próprio filho a denominação do clã da mãe. Os
Xavante dizem que isso se realiza quando pai tem especial predileção
por esse clã. É um fato mais afetivo (...).
23
Após o contato, com a imposição do registro civil pelo Estado Nacional, houve uma mudança
no uso dos nomes entre os Xavante. O nome dos homens era trocado várias vezes ao longo de sua vida,
segundo regras de nomeação. As mulheres eram nomeadas, segundo um ritual, uma única vez. Com o
registro civil convencionou-se utilizar um nome na língua portuguesa seguido por outro na língua
Xavante de origem paterna.
52
clã pintam na face os sinais diacríticos daquele clã. As trocas no uso de pinturas nas
“capas” não se dão ao bel prazer de uma pessoa. Para que alguém possa utilizar os
motivos de pinturas ou sinais diacríticos de outro clã é preciso autorização formal
daquele clã. O não cumprimento desta formalidade pode acarretar conflitos entre os
clãs. Existem ainda outros momentos rituais, que serão analisados em outras ocasiões,
onde estas trocas acontecem.
Os conflitos, um dos alvos de nossa pesquisa, envolvendo a relação entre clãs
podem ainda surgir quando alguém se apodera, indevidamente, de ornamentos
corporais, seja durante o danhono seja em outro ritual, pertencentes ao clã oposto. Os
Xavante estão conscientes desta possibilidade de conflito e agem no sentido de
minimizá-los. Participando das costumeiras reuniões no warã, centro da aldeia, após a
realização de um ritual religioso, o wai’a, que permitiria dar continuidade ao danhono,
um dos anciãos tomou a palavra, o que raramente fazia, e pôs-se a falar dizendo sobre a
continuidade do danhono e que as famílias evitassem conflitos respeitando o uso de
ornamentos de cada clã. O filho de Luiz Tsirobowẽ iria usar um ornamento, pertencente
ao clã po’redza’õno, feito por seu avô, o pai do pai. Sabendo que Luiz Tsirobowẽ e seu
filho pertencem ao clã öwawẽ, perguntamos a ele se isso não provocaria os membros do
outro clã quanto ao uso daquele ornamento. De acordo com Luiz Tsirobowẽ sua família
há muito tempo está autorizada a usar o ornamento e por isso não haveria problemas.
Em todas as situações onde observamos o uso de pinturas ou de ornamentos por pessoas
que os tomavam como empréstimo de outro clã isso ocorria de forma pacífica. Os atores
sociais que agiam neste sentido explicaram que seus antepassados há muito tempo
teriam gostado daquela forma de se pintar e haviam começado a usá-la depois pediram
que seus descendentes fizessem o mesmo. Este gostar da pintura do outro por si só não
esclarece muito sobre as trocas de pinturas e ornamentos corporais. Acreditamos que
isto seja decorrente de alianças estabelecidas no passado. Entretanto, não apuramos em
que circunstâncias isto teria se dado.
A relação ritual entre os clãs é bem definida havendo situações onde os papéis
rituais são bem definidos e exclusivos. Durante o danhono há dois momentos onde a
exclusividade ritual para cada clã é claramente definida. O ritual tébé é de exclusividade
dos öwawẽ e dos tob’ratato, enquanto que o ritual pahöri’wa é de exclusividade dos
po’redza’õno (veja item 3.16 e 3.17, respectivamente, do Capítulo III). Nas demais
etapas do danhono há intensa cooperação entre os clãs durante sua realização.
53
de idade obedecendo à dinâmica cíclica. Uma pessoa não escolhe24 a classe de idade a
que pertencerá. Os meninos e meninas que nasceram há sete ou oito anos atrás serão
admitidos na classe de idade nodzö’u, a próxima a passar pelo processo de iniciação,
haja vista que a última a ser iniciada, na Terra Indígena São Marcos, foi a abare’u.
O Quadro 05 apresenta um esquema da distribuição das classes de idade
identificadas nas aldeias da Terra Indígena São Marcos:
Os termos DIREITA e ESQUERDA no quadro dizem respeito à posição da casa
dos solteiros na configuração da aldeia. As aldeias Xavante são construídas, idealmente,
em forma de CLASSES DE IDADE
ferradura com a
abertura voltada para DIREITA ESQUERDA
o rio. Nas
1. ABARE'U
extremidades desta 2. NODZÖ'U
abertura, um pouco 3. ANAROWA
24
Entretanto, existem casos isolados de pessoas que mudaram de classe de idade, sem que para
isso fosse necessário repetir o processo ritual de iniciação do danhono.
55
25
A Missão se reapropriou de um sistema tradicional Xavante, a casa dos solteiros, hö,
adaptando-o ao sistema de ensino como estratégia de inculcar novos valores (religiosos), (MENEZES,
1984:146-227; veja também MÜLLER, 1976:76)
56
necessário somente trocar as palhas do teto, trabalho feito pelos danhohui’wa. Ao fim
da iniciação dos ẽtepa
˜ , em 1997, esta casa foi alvo de um incêndio não esclarecido. Ao
término da iniciação de uma classe de idade a casa dos solteiros era destruída pela
mulheres da mesma classe de idade dos danhohui’wa, que assumem o papel ritual de
danhohui’wa tsipi’ õ, madrinhas, dos iniciandos. Na aldeia São Marcos era conveniente,
diante da exigência de trabalho para construir uma nova, para todas as classes de idade a
manutenção da estrutura de alvenaria da casa dos solteiros. Com o incêndio da casa dos
solteiros em 1997, nas iniciações seguintes as novas casas foram construídas em outros
lugares mais próximo da aldeia. Com isso a influência missionária26 sobre esta
instituição diminuiria ainda mais.
Como foi dito, os padrinhos são os principais responsáveis pela educação e
atividades que os moradores da casa dos solteiros devem desenvolver. Contudo, eles
não agem sozinhos. Todos os demais integrantes das classes de idade de sua metade,
seus waniwihö, são co-responsáveis pelos moradores da casa dos solteiros. Nas corridas
de toras, por exemplo, os membros da mesma metade se unem para disputarem com a
outra.
A construção da casa dos solteiros da classe de idade abare’u foi de
responsabilidade dos tirowa, que desempenhavam o papel de danhohui’wa, padrinhos, e
foram igualmente auxiliados pelas demais classes de idade de sua metade cerimonial.
Entretanto, há situações em que os padrinhos não correspondem de fato ao que é
esperado deles na realização de tarefas e preparativos tendo em vista os ritos que
compõem as fases do danhono. Na aldeia N. S. de Guadalupe era esperado que os
padrinhos executassem o canto do wanaridobe (veja item 3.18 do capítulo III) nas
madrugadas e ao entardecer. Entretanto, notamos que por dias consecutivos o canto não
era executado em nenhuma destas ocasiões a ponto de os homens adultos que
participam da assembléia no warã, ou seja, os iniciados há pelo menos duas iniciações
anteriores incluindo a que está em processo, expressarem publicamente seu
descontentamento com os tirowa. Além de taxarem os membros desta classe de idade
como preguiçosos e dorminhocos, jocosamente diziam que os tirowa só gostavam de
ficar na cama com as mulheres, por causa do frio da madrugada. Em outras ocasiões,
após gritarem, sem resultados, na madrugada para que os tirowa acordassem e fossem
cantar no centro, os ĩprédu, homens iniciados, executavam cantos na frente de várias
26
Sobre a influência missionária sobre a instituição da casa dos solteiros na aldeia São Marcos
veja a tese de doutorado de MENEZES (1984).
57
casas, sobretudo onde havia tirowa, para despertá-los. Outro fato que mostra a não
correspondência de expectativas ocorreu ainda durante nossa primeira estada no campo.
Dentre as várias obrigações que os padrinhos possuem está a de construir, ou abrir, a
pista de corrida para uma fase do danhono onde cotidianamente realiza-se uma corrida
chamada noni. Durante dias, enquanto a comunidade estava empenhada na coleta de
brotos de buriti para confecção de certo tipo de ornamento, a capa wamnhorõ, era
esperado que os tirowa preparassem a referida pista para que fosse dada continuidade ao
danhono. Os tirowa até começaram a executar o trabalho, mas não o concluíram. Foi
necessário que se organizasse um mutirão, do qual tomaram parte homens e mulheres já
iniciados, para que a pista do noni ficasse pronta, tendo em vista a continuidade do
danhono.
Foi dito que as classes de idade se alternam ciclicamente na constituição da casa
dos solteiros. Ao término da passagem de todas as classes de idade pela casa dos
solteiros, ou seja, dentro dos próximos quarenta a cinqüenta anos e se não houverem
contratempos, se considerarmos o espaço de cinco anos para cada iniciação, quando a
classe de idade abare’u for novamente admitida como moradores da casa dos solteiros,
os atuais abare’u (iniciados em 2005) passarão a se chamar abare’õmob’rada. Para os
Xavante este é o grande e esperado momento de realização pessoal e coletiva,
considerando sua classe de idade. Assim chegamos à segunda metade do quadro acima.
No mês de setembro quando estivemos realizando a segunda etapa de pesquisa de
campo, pudemos acompanhar o final do danhono e o ritual de apresentação dos futuros
integrantes da próxima classe de idade, os nodzö’u. Após a apresentação daqueles que
serão os novos nodzö’u, os velhos nodzö’u, que recebem o sufixo b’rada a partir deste
momento passam a se chamar nodzö’õmob’rada, reuniram-se com os novos e ensaiaram
um canto e depois se puseram a executá-lo, em sentido horário – como fazem todos os
grupos de sua metade durante outros rituais, percorrendo a frente das casas na aldeia. Na
aldeia N. S. de Guadalupe havia cerca de três ĩhire, anciãos, da classe de idade
nodzö’õmob’rada.
Considerando que a expectativa de vida entre os Xavante está em torno de 63
anos27, são poucos os que têm o privilégio de ver sua classe de idade, enquanto
categoria, se reconstituir enquanto moradores da casa dos solteiros. Em condições
normais dissemos que o ciclo de iniciação se renova a cada quarenta anos. Entretanto,
27
Cálculo feito por Luciane Guimarães Souza, Antropóloga e Demógrafa que trabalha com os
Xavante.
58
dependendo da conjuntura social e política, este tempo pode ser estendido por mais
alguns anos. Na aldeia de São Marcos as iniciações vinham seguindo um ritmo de
realização a cada cinco anos. Este ritmo foi interrompido com a realização da iniciação
religiosa darini28, elevando o intervalo entre a penúltima iniciação do danhono para oito
anos. Assim os quarenta anos de intervalo passam para quarenta e oito anos. Ao término
do danhono, o iniciado está com aproximadamente dezesseis anos. Somando a idade
biológica do iniciado e o tempo entre a renovação do ciclo de grupos de idade temos
sessenta e quatro anos, ou seja, uma temporalidade acima da expectativa de vida,
calculada para os dias atuais, de um homem Xavante. É provável que a expectativa de
vida entre os Xavante ficasse bem abaixo do calculado para os dias atuais, daí a grande
alegria dos nodzö’õmob’rada no momento em que acompanhavam a apresentação dos
novos nodzö’u e executavam o canto pela aldeia. Ali se via três homens com idade entre
64 a 76 anos dançando com crianças de quatro a sete anos. A alegria e entusiasmo dos
nodzö’õmob’rada, como dissemos, era por presenciarem a renovação de sua classe de
idade, para aqueles que serão os próximos nodzö’u e a alegria manifesta era por estarem
já em processo de se constituírem enquanto tal. Na conclusão voltaremos a esse fato
mostrando suas implicações políticas para aqueles que atingem o status de fazerem parte
dos b’rada.
28
Ritual de iniciação religiosa que ocorre em intervalos de quinze a dezessete anos. Também
chamado de wai’arini. Através deste ritual o homem xavante é admitido à uma hierarquia de participação
no wai’a – ritual religioso.
59
Diante disso a criança, do sexo masculino, recebe o nome depois de oito a dez
meses de idade. No caso das meninas, a nominação se dava através de um ritual próprio
que acontecia depois que estavam casadas. Este ritual, chamado abadzirãihidiba não
tem sido realizado há muito tempo na sociedade Xavante. Este abandono temporário, já
que segundo alguns informantes há discussões sobre sua retomada, pode ser visto como
resultado da interação com segmentos religiosos da sociedade não-indígena brasileira e
internacional, no pós-contato, que impôs mudanças no comportamento Xavante. Neste
caso, o ritual de nominação das mulheres, a pressão para seu abando se deu porque a
performance deste ritual chocava-se com os valores cristãos:
O abandono deveu-se, quase sempre, à sua condenação pela moral
dos missionários católicos e protestantes que atuaram (e atuam) em
áreas Xavante. Isto se explica pelo fato de o ritual implicar em
relações sexuais cerimoniais extra-conjugais. Na aldeia de
Sangradouro, no entanto, sua realização foi permitida há alguns anos
embora os procedimentos considerados imorais tenham sido abolidos
ou reformulados, segundo informação de alguns Xavante (Lopes da
Silva, 1986:124).
Dahi'wa - aquele que fiscaliza a conduta As mulheres que estão vivenciando o ciclo de vida
dos wapté e será danhonhui'wa na correspondente aos dahi’wa, que também foram
iniciação subseqüente; última classe as últimas a serem iniciadas pelo danhono, têm
de idade iniciada pelo danhono. pouca ou nenhuma atuação neste status.
Danhohui’wa tsipi’õ – madrinhas; passam a
Danhohui’wa - padrinhos; os responsáveis
transição
ba’õno, adzarudu [para o sexo feminino] não são marcadas por rituais que as definam e
seguem o curso do desenvolvimento biológico da pessoa. Entretanto, os pais e seus
filhos observam uma série de regras e tabus alimentares que se transgredidos poderiam
trazer conseqüências danosas à saúde das crianças. Giaccaria & Heide (1984:136ss)
apresentam uma série de relatos dos tabus alimentares para homens e mulheres durante
e após o parto. David Mybury-Lewis (1984:111), que também trata destes tabus,
descarta tratar tais restrições como couvade, pois considera que existência de
generalizações dadas ao termo sobre as instituições já analisadas
(...) não deve ser considerada até que estas sejam compreendidas e
descritas em termos das crenças sobre a relação pai-filho(a) nas
sociedades onde tais instituições são encontradas.
Para o caso Xavante o autor considera que a visão Xavante sobre a relação
pai/filho(a) expressa-se por outro termo, descrito por Fraser (1910:247) como
solidariedade física íntima referindo-se ao período ante e pós-parto. Segundo Maybury-
Lewis (1984:111), os Xavante consideram que a criança é macia e mole antes e após seu
nascimento. Por ser o nenê especialmente vulnerável neste período, o pai precisa tomar
precauções especiais para não causar-lhe mal (Maybury-Lewis,1984:111).
A descrição das relações pais/filho(a) são tratadas sob pontos de vista diferentes
entre Maybury-Lewis e Giaccaria & Heide quando o foco está voltado à mãe. Enquanto
Maybury-Lewis (1984:111) aponta que as atividades da mãe não são vitais para sua
saúde [da criança] na mesma proporção que as do pai, cabendo ao marido cuidar da
criança enquanto a mãe sai à procura de comida. Giaccaria & Heide (1984:138)
descrevem uma série de tabus alimentares e precauções que se pai e mãe comerem ou
transgredirem provocariam uma série de distúrbios na criança afetando seu crescimento,
a cor de sua pele, seu sono, etc.
Em nossa experiência etnográfica entre os Xavante deparei-me com várias
situações onde esta solidariedade física íntima, para usar a expressão que Maybury-
Lewis toma de Fraser, esteve manifesta. Uma delas ocorreu na cidade, onde um de
nossos informantes recusou um refrigerante alegando que se ingerisse seu filho recém
nascido teria diarréia. Este mesmo informante relatou-me que noutra ocasião em que
estivera na cidade banqueteou-se fartamente num dos restaurantes, ingerindo dois PFs
(pratos feitos). Retornando a sua aldeia encontrou o filho doente. Pressionado pela
mulher, confessou ter comido em demasia e sofreu forte reprimenda. O informante nos
disse, referindo-se às seqüelas decorrentes de suas ações sobre a saúde de seu filho, que
65
a criança tem estômago muito pequeno e delicado e ao comer muito [o informante] seu
estômago ficou estufado ocorrendo o mesmo com o filho que estava na aldeia. Sobre
este fato o informante relatou-nos que ao retornar da cidade, e conversar com a mulher,
descobriu que seu filho havia tido “estufamento” do estômago no mesmo instante que
ele almoçava na cidade. Noutro contexto etnográfico que presenciamos o informante se
recusou terminantemente a matar uma cobra peçonhenta, que por pouco não o havia
picado. Em sua explicação ele limitou-se a nos dizer que se matasse a cobra seu filho
recém nascido teria sérios problemas de diarréia. A explicação limitada à diarréia sugere
um pavor em relação há algo que não pode ser mencionado diante do tal risco que se
expõe. Aqui sugerimos novamente uma investigação etnográfica mais profunda sobre o
universo cosmológico xavante. Um terceiro caso etnográfico diz respeito à interdição do
consumo de certos animais. Neste caso, o genro de meu informante havia matado um
tatu canastra e levado para casa. Entretanto, mesmo sendo um caça muito apreciada
pelos Xavante, o informante não comeu daquela caça e ainda proibiu o pesquisador de
fazer o mesmo. A explicação dada foi que ambos [pesquisador e informante] tinham
filhos pequenos abaixo de dois anos. Se transgredisse este tabu o espírito do tatu
canastra levaria a alma das crianças e estas morreriam. Estes fatos etnográficos, comer
em demasia, evitar matar certos animais, bem como consumir determinados tipos de
caça, reforçam a concepção de solidariedade física íntima entre pai e filho. Esta
simbiose simbólica entre pai e filho poderia ser vista como uma expressão da
patrilinearidade. Todavia, tal afirmação carece de aprofundamento.
Durante uma caçada, para fins rituais, presenciamos várias situações que
apontam para solidariedade física íntima entre pais e filhos recém nascidos. Numa delas
o pai além de não poder comer a carne de uma anta abatida não poderia sequer tocar na
cabeça do animal, sob pena de causar a morte imediata de seu filho recém nascido. A
relação com a caça, neste caso com a anta, não está condicionada apenas a uma
assimetria negativa onde a ação do pai de transgredir a norma poderia causar um mal, e
até a morte, ao filho. Nesta mesma caçada abateram uma anta que estava prenha. O feto,
que também é consumido, era macho. Ao ser trazido para o acampamento vários
homens, que desejavam ter um filho do mesmo sexo do feto o seguravam como um
recém nascido. Informantes explicaram-me que Danhimite, Deus, ajudaria o homem a
“encontrar” um filho homem. Existem outras práticas rituais adotadas pelos Xavante
para garantirem não só a concepção, mas também o sexo da criança desejada. Entre
66
estas práticas estão o uso dos botoques auriculares pintados de vermelho com motivos
de acordo com o sexo do filho desejado, acompanhado de invocações a Danhimite – o
Criador, e depois usados durante o ato sexual. Os informantes disseram ainda usar uma
espécie de batatinha que é passada no corpo da mulher e do homem antes do ato sexual,
para garantir que o filho seja do sexo masculino. Além destas práticas existem outras
que não serão aqui tratadas por não ser este o objeto desta tese. Por fim, sobre questões
de concepção e práticas sexuais entre os Xavante em conversa com diversos
informantes notei uma autonomia maior entre os Xavante sobre as práticas sexuais se
comparado com a descrição de Giaccaria & Heide (1984:230ss), quando apontam que o
ato sexual deve ser realizado em local coberto – a casa. Uma observação bem diferente
de Maybury-Lewis (1984:117) quando afirma que um homem e mulher quando desejam
manter relações sexuais apenas se dirigem ao cerrado; e acrescentamos, de preferência,
bem longe dos curiosos ai’repudu, ‘watebrèmi e ba’õno.
A fase de ‘watébrémi e ai’repudu pode ser ainda marcada por sua inserção na
vida religiosa Xavante através do ritual de iniciação específico: o darini. Considerando
que o darini acontece em intervalos de quinze a dezessete anos pode advir que muitas
crianças ‘watébrémi e ai’repudu não sejam iniciadas na vida religiosa Xavante enquanto
estão nestas fases do ciclo de vida. Pode ocorrer que elas tenham adentrado em outra
fase do ciclo de vida, o wapté ou ‘ritéi’wa. Quando iniciadas no darini elas são
inseridas na hierarquia religiosa que tem o primeiro patamar denominado waiarã31. Ao
pertencer a este primeiro estágio da hierarquia religiosa os ‘watébrémi e ai’repudu são
submetidos, quando se realiza a cerimônia religiosa do wai’a32, a uma rígida interdição
alimentar que se transgredida estarão sujeitos a punições por parte dos
da’ãmawai’a’wa33. Não obstante, as crianças que nascerem após a realização do darini
não estarão sujeitas a interdições alimentares. Pode acontecer que um menino atinja a
fase de wapté, em seu ciclo de vida, e assim deixa de estar sujeito às interdições
alimentares, bem como proibido de participar das celebrações do wai’a. Estas crianças,
‘watébrémi e ai’repudu, e meninos, wapté, serão chamadas de wautòbtu, ou seja,
aqueles que não conhecem ainda os segredos do wai’a.
31
No próximo capítulo apresentamos um quadro desta hierarquia religiosa.
32
O darini é um ritual de iniciação que permite ao homem participar, dentro de uma hierarquia,
das celebrações do wai´a. Enquanto o primeiro ocorre, como mencionado, em intervalos de quinze a
dezessete anos, o segundo ocorre pelo menos quatro vezes ao ano e possui cinco modalidades.
33
Segundo estágio hierárquico do darini.
67
Nos dias de hoje, de modo geral, a vida das crianças Xavante, meninos e
meninas, não é muito diferente das descrições de Maybury-Lewis (1984:112ss). Elas
são alegres, brincalhonas e gozam de grande autonomia e passam o dia perambulando
pela aldeia brincando, indo e vindo das casas de parentes. Em tempos de rituais elas
quando não tomam parte dos cantos e danças, acompanhadas de seus pais e avôs, elas
organizam-se em pequenos grupos e põem-se a imitar os adultos. Dentre as várias
ocasiões que presenciamos as performances de imitar os adultos destacamos duas
situações, ambas ligadas ao danhono. Cotidianamente, no período de realização do
danhono, os danhohui’wa – padrinhos – dançam nas madrugadas e antes do por do sol.
Tanto em 1997 quanto em 2005, em aldeias diferentes, observamos grupos de crianças,
meninos e meninas, imitando a forma de dança e cantos dos danhohui’wa. Nas duas
ocasiões, em diferentes momentos, os adultos regozijavam-se com a performance das
crianças, sobretudo quando imitavam os gritos característicos que os danhohui’wa dão
quando dançam. A primeira vista o comportamento de imitar os adultos pode parecer
trivial na vida Xavante. Entretanto, ela tem uma função social importante como já havia
observado Maybury-Lewis (1984:117):
... este é um estágio importante no desenvolvimento de uma criança
porque é nesta fase que ela toma consciência das distinções que são
tão importantes na vida Xavante: a distinção entre meninos e
meninas; entre pessoas da mesma idade e os mais velhos (também
agrupados em classes de idade); entre consangüíneos e afins.
O imitar na sociedade Xavante está muito além do lúdico. Ele assume um caráter
pedagógico extremamente importante na vida ritual e social do grupo.
As meninas - ba’õno, adzarudu – tomam parte nas brincadeiras dos meninos até
mais ou menos cinco anos. A partir daí elas começam a assumir várias atividades junto
às suas mães. Tais atividades estão ligadas diretamente às necessidades domésticas:
buscar lenha para o fogo, buscar água numa das torneiras comunitárias34, etc. O
envolvimento das ba’õno e adzarudu nas atividades domésticas é perfeitamente
traduzível nas colocações de Maybury-Lewis (1984:118):
... espera-se que ajudem em casa logo que sejam fisicamente capazes
de fazê-lo. Cheguei a ver menininhas com não mais de três anos sair
com cestinhas minúsculas acompanhando suas mães em excursões de
coleta perto da aldeia. Quando a menina faz cinco anos,
34
Na aldeia N. S. de Guadalupe, bem como em várias aldeias das Terras e Reservas Indígenas
Xavante, o Ministério da Saúde, através da FUNASA, instalou poços artesianos com bombas d´água
movidas a energia com placa solar. Contudo, em determinadas horas do dia, quando a temperatura é mais
elevada, os Xavante preferem consumir água “fresca” de nascentes acerca de um quilômetro da aldeia.
68
pai da noiva somente depois de se tornar danhohui’wa, padrinho. Isto se daria, pelo
menos dez anos depois de sua iniciação. Entretanto, observamos que na aldeia Nossa
Senhora de Guadalupe e São Marcos, os genros viviam na casa de seus sogros muito
antes de atingirem esta fase do ciclo de vida e status ritual. Os dois casos que
apresentamos acima sinalizam uma transformação na forma de casamento dos Xavante,
que é marcado pela residência uxorilocal.
Segundo Maybury-Lewis (1984:127-128),
Um casamento entre os Xavante não é, portanto, uma ocasião em que
as clivagens sociais são enfatizadas. Os parentes consangüíneos da noiva
não se opõem ritual ou politicamente aos do noivo. Na verdade,
arranjar um casamento não é assunto que diga respeito,
reconhecidamente, aos grupos de parentes consangüíneos
(patrilinhagens, no caso) dos jovens em questão. Cabe aos pais ou aos
tios paternos encontrar o parceiro e isto é feito com pouco
estardalhaço. Não há transferência de propriedade nem casamentos
criteriosos que possibilitem aos cônjuges ou aos seus consangüíneos a
aquisição de prestígio. Os Xavante não usam o laço de casamento nem
mesmo poder-se-ia esperar. Conseguindo maridos convenientes para
suas filhas, os quais poderiam ser convencidos a passar para o lado da
patrilinhagem de seus afins, enfatizando seus laços de afinidade mais que
os de descendência em relação a um grupo político específico. O
casamento de uma classe de idade recém-iniciada é, ao contrário, uma
questão que afeta toda a comunidade. Toda ela fica envolvida, já que está
diretamente relacionada com algum dos noivos e toda a comunidade,
então, se encarrega da cerimônia e dirige o casamento. O
reconhecimento social dos laços de um casamento específico, que ligam
os membros da classe de idade iniciada às suas noivas, não é nada mais
que uma função do re conhecimento, por parte da comunidade como um
todo, de um estado de compromisso que a classe de idade recém-
amadurecida deve assumir sem demora. Que estes rapazes devem se
casar, é uma questão pública, que afeta toda a comunidade. Com quem
vão se casar é que é uma questão puramente doméstica [grifo nosso].
Entretanto, houve duas situações na aldeia São Marcos, quando ali residíamos,
nas quais, após a instauração da crise em 1998 pela disputa pelo reconhecimento do
posto de cacique, os pais das noivas tomaram, como disseram os Xavante, a filha que
estava recém casada. Em um dos casos o casamento já havia sido acordado entre os pais
dos noivos. Contudo, quando o pai do noivo nega apoio político ao pai da noiva, este
entrega a filha ao filho de outro homem influente da aldeia. Assim a afirmação de
Maybury-Lewis de que Os parentes consangüíneos da noiva não se opõem ritual ou
politicamente aos do noivo, se efetiva somente quando a aliança entre os grupos domésticos
tem condições concretas de se realizarem.
Quando os homens saem para caçar com a finalidade de realizar o casamento
ocorre uma mudança no ciclo de vida das meninas Xavante. Até este momento elas são
70
consideradas adzarudu, mas com a saída dos homens para caçada elas se tornam adaba
- esposa. Os termos adaba e adabatsa ou dabatsa35 estão ligados a um dos poucos
rituais Xavante onde as mulheres estão diretamente ligadas e envolvidas no processo
ritual.
O ritual adabatsa envolve a participação ativa dos dois grupos domésticos
envolvidos no casamento de seus filhos. Do lado do noivo, que deve ser, pelo menos,
‘ritéi’wa ité, ou seja, já ter concluído o ritual danhono, seus parentes consangüíneos e
afins organizam a caçada chamada dabatsa, como já dito. A referência à participação de
membros da classe de idade do noivo nesta caçada não é significativa, embora
companheiros da mesma classe possam tomar parte dela, além de que pode ainda haver
irmãos que pertençam à mesma classe de idade participando da caçada. Esta caçada não
tem um tempo de duração estipulado e depende apenas de sucesso. O resultado esperado
é que sejam abatidas preferencialmente antas, que por ser um animal de grande porte
garante logo uma boa quantidade de carne. Entretanto, outros animais podem sem
abatidos sem parcimônia. Os animais abatidos são colocados em “jiraus” onde embaixo
se acende uma fogueira para que a carne seja moqueada.
Quando se tem uma grande quantidade de carne, um dos caçadores – chamado
ritualmente de dautsimri’wa36, do mesmo clã da noiva, confecciona o tsiõtõ höpö –
cesto grande feito com brotos da palmeira buriti, para transportar a carne. Os caçadores
e o noivo acampam próximo da aldeia. Ali ele recebe uma pintura chamada de
dauhöba37 onde apresenta a frente, incluindo braços, pintada de preto com um
retângulo, no sentido vertical, de cor vermelha estampado no abdômen e nas costas
pintadas de vermelho com duas listras, no sentido vertical, pintadas de preto. Com o fim
dos preparativos e uma vez estando prontos, todos se dirigem para a entrada da aldeia
35
De acordo com o dicionário Xavante-Português organizado por Gerog Lachnitt, 2003, 2ª ed., o
termo adabá é um substantivo que significa: esposa, mulher casada sem filhos; enquanto que adabatsa é
um substantivo composto e significa: comida de jovem casada, casamento, também semelhante a dabatsa
que é igualmente um substantivo cujo sentido é caça de casamento.
36
De acordo com Giaccaria & Heide (1984:285) o termo significa: mendigo de carne; um
homem que acompanha um grupo de caçadores para ganhar um pedaço de carne. Daremos mais
informações a respeito deste personagem quando estivermos descrevendo a caçada dos tébé e pahöri’wa
chamada imanadö.
37
Esta pintura pode sofrer variações. Durante as corridas de buriti, das quais participei de várias,
observei alguns homens que usavam variações da pintura do casamento onde apresentavam listras de
vermelho e preto nos braços, informantes explicaram-me, em várias ocasiões, que se tratava de uma
provocação à sogra, e por extensão ao grupo doméstico da esposa, pelo fato de sua mulher não ser mais
virgem quando o marido deitou-se com ela pela primeira vez.
71
onde alguém grita dapã38, e com este sinal o cesto de carne é levado para frente da casa
do sogro onde é depositado.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:224ss), no qual se baseia este relato e
também em nossa experiência etnográfica, após deixar o cesto de carne na frente da
casa do sogro o noivo entra na casa e dirige-se à ‘rina’rada, um cercado destinado ao
casal, onde se deita para descansar por um tempo junto da esposa e depois volta à casa
de seu pai. A carne ali deixada é distribuída pelo danho’rebdzu’wa, literalmente o dono
do colar de algodão – ou aquele que faz o colar, irmão da mãe da noiva, aos presentes
tendo como preferência os parentes próximos.
Ao término da distribuição a noiva é pintada e ornada, dentro de sua casa, pelo
danho’rebdzu’wa com três tipos de colares confeccionados com algodão, por ele, dentes
de capivara e sementes: danho’rebdzu’a, danhoniã e ubdö´wa. Estando pronta ela se
dirige à frente de sua casa e ali aguarda ajoelhada sob os calcanhares a chegada da
adabanho’rebdzuiwatsihui’wa, moça que lhe retira os colares e deposita ao seu lado um
presente39. Como acorre na maioria dos rituais Xavante, a
adabanho’rebdzuiwatsihui’wa deve ser de um clã de uma metade exogâmica oposta à
da noiva.
De acordo com Giaccaria & Heide (1984:226), após este ritual marido e mulher
ainda não estão autorizados a viverem juntos sob o mesmo teto. Eles se encontram na
casa do sogro do genro somente com autorização daquele. Poderão fazê-lo quando o
marido se tornar danhohui’wa, ou seja, aproximadamente dez anos depois de sua
iniciação. Não obstante, esta parece ser uma regra pouco usada pelos Xavante.
Maybury-Lewis (1984:133) aponta que o casal passa a conviver junto, na casa dos
parentes da noiva, (...) quando a moça engravida ou quando sua classe de idade é
promovida à categoria dos homens maduros. Aqui a segunda possibilidade de
convivência permanente do casal se aproxima daquele intervalo de tempo referido por
Giaccaria & Heide. Um homem Xavante torna-se maduro, e com direitos políticos
plenos, pelo menos em tese, após o patrocínio do danhono de uma classe de idade
38
O sentido dado a este termo por Giaccaria & Heide (1984:294) é que se trata de uma melodia
de um único t; alegria e sucesso. Parece-nos que se trata de um tipo de grito que os Xavante dão para
iniciarem uma ação ritual. Um de nossos informantes nos disse ainda que se trata de um grito que
indicativo de que alguma coisa está sendo trazida ao centro da aldeia, exemplificando com um fato no
qual os exploradores tsawörö’wa quando conseguiam tomar algum objeto dos colonizadores antes do
contato.
39
Este presente pode ser um bolo Xavante feito de milho, tsada’ré. Entretanto, atualmente estes
presentes são bem diversificados. Assisti uma destas cerimônias onde foram usados dois franguinhos.
72
imediatamente mais nova do que a sua – o que acontece dez anos após sua iniciação do
danhono. Todos os casais que contraíram matrimônio nas aldeias onde convivemos com
os Xavante passaram a viver na casa do pai da noiva após a realização do adabatsa.
Alguns casais estavam vivendo juntos na casa dos pais da noiva sem, contudo, terem
realizado o ritual do adabatsa. A filha de um dos meus informantes se interessou por
um rapaz que morava em outra Terra Indígena Xavante. Num primeiro momento, em
acordo com o pai, ela foi morar na casa do pai do marido, provocando assim uma
mudança da regra uxorilocal para virilocal. Ali permaneceu um tempo até uma visita da
mãe que a encontrou muito doente e a trouxe de volta para sua aldeia. O marido tempos
depois veio morar com ela na casa do sogro, retornando a uxorilocalidade. Permaneceu
morando com o sogro por um tempo e depois resolveu voltar para casa de seu pai. A
mulher planejava voltar com ele, mas foi impedida pela mãe. Hoje o casal encontra-se
separado. Uma filha resultante deste casamento permanece com a mãe, contrariando as
regras de descendência segundo a qual os (as) filhos (as) pertencem ao pai, haja visto
que os Xavante são patrilineares. Ademais, já apresentamos acima o caso da menina que
foi levada por Gabriela, mulher de Luiz, para passar noites na casa do noivo, o que
contraria também o padrão descrito acima, segundo o qual o marido é quem freqüenta a
casa da noiva. Mais um caso: a noiva do filho de Luiz passou a residir na casa do sogro
alguns meses depois da conclusão do danhono, no qual seu filho tinha ocupado o cargo
cerimonial de tébé.
O ritual de casamento, adabatsa, tem acontecido com pouca freqüência entre os
Xavante. De acordo com informantes, as mães não querem mais este tipo de casamento.
Alguns choques culturais entre o sistema de casamento ocidental e o Xavante começam
a se manifestar os membros desta etnia. Num dos casos que acompanhei a adzarudu
viveu toda sua infância na cidade, mas com a volta de sua família para aldeia foi
obrigada a casar-se com um ‘ritéi´wa ité, que recém tinha concluído o danhono.
Informantes disseram-me que ela chorou durante uma noite toda, pois seu “sonho” era
casar-se como os waradzu, não índios, casam, ou seja, vestida de branco e na Igreja.
Neste caso a regra de casamento foi forçada ao extremo. Apuramos posteriormente que
o casamento nestas circunstâncias aconteceu devido a aliança, política, que estava sendo
estabelecida entre os dois grupos domésticos. O pai da adzarudu estava em disputa pelo
reconhecimento do posto de cacique da aldeia São Marcos. Numa estratégia para
73
aumentar seu capital político sua filha foi dada em casamento ao filho de um homem
que tinha grande prestígio junto à comunidade.
O casamento entre os Xavante acontece entre famílias e gera, além da
cooperação econômica, aliança política. Os pais podem, ainda quando os filhos são
pequenos, estabelecer acordos matrimoniais envolvendo seus filhos. Em muitos casos
estes acordos se tornam manifestos num dos momentos finais do danhono, como
veremos adiante.
As fases seguintes do ciclo de vida Xavante: wapté, ‘waté’wa, ‘rereroi’wa,
‘ritéi’wa, ‘ritéi’wa ĩté, dahi’wa e danhonhui’wa e dahirada estão condicionadas ao
ciclo das classes de idade. Estas sete fases do ciclo de vida compõem a estrutura
organizacional do danhono. A fase danhonhui’wa é vivenciada por homens e mulheres
de uma mesma classe de idade. Entretanto, elas passam a participar efetivamente do
danhono apenas no último ano, quando começam a participar dos ensaios do canto
wanaridobe, trataremos disso no próximo capítulo quando estivermos descrevendo o
danhono.
A categoria do ciclo de vida ĩprédupté diz respeito ao homem adulto que deixou
recentemente o papel de danhohui’wa, padrinho, que havia desempenhado durante o
danhono. Pode-se dizer que ele saindo do plano ritual para adentrar no plano político,
sem conduto deixar o primeiro. Este momento se dá quando a terceira classe de idade,
incluindo a sua, de sua metade cerimonial está sendo admitida à casa dos solteiros. Ele
está se tornando padrinho do padrinho, ou danhimiwanhõ, como dizem os Xavante.
A fase do ciclo de vida que compreende os ĩprédu, adulto, homem maduro, é
atingida quando decorrem três iniciações do danhono. Giaccaria & Heide (1984:135)
apontam que nesta fase o homem chega à maturidade estando com idade de 26 anos.
Entretanto, como já assinalado esta referência à idade biológica da pessoa não pode ser
tomada em absoluto tendo em vista que populações tradicionais possuem outros
mecanismos de classificar o desenvolvimento biológico. A dinâmica do ciclo de vida
Xavante permite, por exemplo, que um homem possa retardar o ingresso na fase ĩprédu.
Isto ocorre quando uma pessoa troca de classe de idade. Num dos casos etnográfico que
levantei um homem que já tinha atingido o status de ĩprédu, quando consideramos o
número de iniciações do danhono, pediu para mudar de classe de idade retornando ao
status de danhohui’wa. Para Maybury-Lewis (1984:193ss) a referência para que um
homem seja considerado maduro, portanto ĩprédu, além de já ter sido iniciado, é o
74
Heide (1984:135) colocam como condição para que elas sejam classificadas como piõ o
fato delas estarem casadas e com filhos. Maybury-Lewis (1984:203ss), por seu turno,
aponta que dependendo do nível de consideração o termo piõ pode ser usado como
identificador de gênero, ou seja, piõ para mulher em contraste com aibö homem, ou
ainda, piõ referindo-se a mulher madura em oposição à “mulher imatura” adabá e
tsoimbá. Através da categoria piõ as mulheres são reconhecidas como maduras e
colocadas em igualdade social com os homens maduros, os ĩprédu. Neste sentido, uma
mulher, piõ, pode ser igualmente reconhecida como piõ ĩprédu. Nossa hipótese é que
este status é atingido quando decorrem pelo menos três iniciações, como no caso dos
homens. Aqui nos opomos à concepção de Maybury-Lewis, segundo a qual a
participação das mulheres no sistema de classes de idade é apenas classificatório sendo,
portanto, passivo sua participação no sistema de grupos de idade (Maybury-Lewis
1984:207). Este autor aponta que a importância do sistema de classes de idade para as
mulheres está no fato desse sistema atribuir-lhes categorias sociais arbitrárias que são
independentes de seu status biossocial (idem). Nossas observações etnográficas
apontam que o sistema de classes de idade, enquanto um sistema classificatório, engloba
homens e mulheres e condiciona seu reconhecimento na sociedade Xavante. Neste
sistema ,que tem como ponto máximo de sua expressão no danhono, as mulheres de
modo algum são passivas enquanto partícipes do ritual. Como veremos, sua participação
no danhono pode até não ser tão intensa quanto a dos homens, mas nem por isso devam
ser consideradas passivas dentro do sistema.
Por fim, a última etapa do ciclo de vida entre os Xavante, como em seu início,
nivela homens e mulheres, ambos são reconhecidos como ĩhire. O reconhecimento, ou
classificação, de uma pessoa como ĩhire parece-nos estar referenciado mais com seu
desenvolvimento do biológico do que com o plano ritual, como acontece em outras
fases do ciclo biológico. Giaccaria & Heide (1984:135) definem ĩhire como homem
velho, aquele que conhece todos os segredos da tribo. No caso das mulheres, estas são
classificadas como piõ ĩhire, definidas como mulher velha. No plano ritual, como
veremos adiante, embora os ĩhire tenham o domínio dos segredos da tribo isto não
habilitam a gerenciar por completo estes segredos.
76
CAPÍTULO II
RITUAL
Neste capítulo queremos apontar alguns dos rituais Xavante. Não pretendemos
entrar em detalhes sobre estes rituais, a exceção do danhono que retomaremos adiante,
mas faremos um sobrevôo sobre eles para apontar sua existência e de que modo os
Xavante os pensam atualmente. Entre os Xavante os rituais de iniciação podem ser
agrupados nas categorias, considerando suas especificidades, seculares e religiosos. Na
categoria secular apontamos três tipos de rituais: o danhono, a iniciação dos tsawörö’wa
e a nominação das mulheres. Enquanto que na categoria dos rituais religiosos temos o
wai’a, com suas modalidades de celebração, e o darini, ou também wai’arini, ritual
iniciático que permite a entrada de novos membros na sociedade de culto e promove a
ascensão da estrutura hierarquia do wai’a.
2.1 - O DANHONO
Este ritual ocorre em períodos de intervalo de cinco a seis anos. Através deste
ritual os meninos e meninas Xavante são inseridos formalmente ao sistema de classes de
idades. A categoria danhono traduz-se por sono. É como se os meninos e meninas
dormissem durante sua pré-adolescência e adolescência, se quisermos usar duas de
nossas categorias nativas, e acordam na vida adulta, prontos para a guerra e para a troca
de mulheres e procriação, haja vista que aqueles que concluem o processo de iniciação
são considerados os novos guerreiros e estão socialmente permitidos a se casarem. O
capítulo seguinte será dedicado exclusivamente para tratar deste ritual.
40
Serviço de Proteção ao Índio – SPI, foi um órgão de governo criado pelo Marechal Candido
Rondon e substituído pela atual FUNAI – Fundação Nacional do Índio.
78
2.3 - TSAWÖRÖ’WA
A iniciação dos tsawörö’wa, categoria que pode ser traduzida por exploradores41
– batedores – espiões, como já mencionado no capítulo anterior, acontecia entre uma
iniciação e outra do danhono. Esta iniciação passou por um processo de transformação e
tem acontecido a cada duas iniciações do danhono. O processo ritual, de acordo com o
relato de Giaccaria & Heide (1984:254-255), em quem nos baseamos para este
descrição, tem a duração de quatro dias. Segundo estes autores, ele acontece na estação
chuvosa no intervalo entre um ritual e outro da furação dos lóbulos auriculares, que se
dá durante o danhono. Participam desta iniciação os ĩprédu - homens adultos, já
iniciados no danhono e já desempenharam o papel de danhohui’wa, padrinhos. Quando
o número de homens nesta condição é pouco podem ser iniciados os ‘ritéi’wa – novos
guerreiros. Na fase pré-liminar do ritual os tsawörö’wa atuais preparam os ornamentos
que serão usados durante a iniciação. Dentre eles temos o dadzamo, um tipo de cinto
feito com fibras de seda de buriti, cordas e algodão. No dia estabelecido, por um
tsawörö’wa do clã po’redza’õno, para começar o processo de iniciação, os atuais
tsawörö’wa vão para o lugar onde se prepara para o wai’a, celebração religiosa, onde se
pintam com a modalidade daupté, corpo todo de vermelho, e usam como adorno de
cabeça o adzahu, penas fixadas num talo de folha seca de buriti que é amarrado junto ao
cabelo acima da nuca, formando um tipo de rabo de cavalo. Após a pintura e adorno
corporal dirigem-se à aldeia e executam um canto passando na frente das casas. Em
seguida dirigem-se ao warã, centro da aldeia, onde são retirados seus ornamentos
corporais por dois tsawörö’wa antigos, sendo um de cada clã.
Na tarde do outro dia os tsawörö’wa voltam a se pintarem, agora em suas casas,
acompanhados de dois moradores da casa dos solteiros, wapté, de clã opostos chamados
de tsawörö’wa dzadzu. Desta vez adotam a modalidade dauhö: braços, coxas e tronco
de preto com um retângulo vermelho no abdômen e nas costas, sobre a coluna, da nuca
até a cintura; com aplicação de penugem de gavião real nas franjas. Os que estão sendo
iniciados dirigem-se ao warã, centro da aldeia, e ali permanecem sentados portando
uma cabaça com furos. Quando todos os atuais tsawörö’wa concluíram a pintura e
41
Giaccaria & Heide (1984:301) traduzem o termo como cerimônia de volta da caçada coletiva
– nome de um grupo. Lachnitt em seu dicionário Xavante – Português traduz o termo como explorador.
No contexto da entrevista que fizemos com os informantes os termos batedores e espiões traduzem
melhor as atribuições daqueles que estão vivenciando este ciclo de vida.
79
sua composição social (Turner 2005:208; Turner 1974:24), pode ser estendido à
configuração das aldeias na Terra Indígena São Marcos.
Este ritual de iniciação, no qual somente os homens são iniciados, permitirá a
estes a participação nas várias modalidades de celebrações religiosas que acontecem de
acordo com a sazonalidade do ambiente de cerrado. Dissemos que somente os homens
são os iniciados, contudo, durante as performances rituais há a participação das
mulheres em alguns espaços, enquanto outros são interditados.
Nos últimos cinco anos várias aldeias Xavante, distribuídas pelas em suas Terras
indígenas, realizaram o darini. O que foi realizado na Aldeia São Marcos, em 2002,
merece um destaque especial devido ao uso político que as facções daquela aldeia, que
disputavam ali o reconhecimento do posto de cacique, fizeram dele antes de sua
realização. Dedicamos um capítulo de nossa dissertação de mestrado à questão onde
mostramos como a situação conflitiva envolvendo as duas facções resultou na cisão da
aldeia São Marcos levando a fundação de várias aldeias e um realinhamento político na
Terra Indígena São Marcos43. O darini enquanto ritual não traz em si mecanismos que
podem gerar divisões entre aldeias, mas a conjuntura política no qual ele esteve inserido
levou ao acirramento de tensões resultando em cismas.
Não faremos aqui uma descrição pormenorizada da iniciação religiosa do darini.
Entretanto, faremos algumas considerações a respeito deste processo ritual. Assim como
o danhono, o darini é um ritual cíclico na sociedade Xavante. Enquanto o danhono
provoca a admissão da pessoa Xavante (homem e mulher) nos sistema de classe de
idade, favorecendo a partir daí uma série de alterações no ciclo de vida desta pessoa, o
darini, embora esteja diretamente ligado somente ao universo masculino, além de
permitir que os homens possam participar das cerimônias religiosas que acontecem em
várias modalidades durante o ano, condiciona igualmente qual a posição estrutural dos
atores sociais será ocupada durante o wai’a. A realização desta cerimônia religiosa, seja
qual for sua modalidade, se dá dentro de uma estrutura rígida e hierárquica. Neste
sentido, o darini é o momento em que a hierarquia é alterada, promovendo os já
43
Retomaremos estes dados no Capítulo IV para mostrar que o realinhamento de forças políticas
resultou em uma redistribuição populacional da Terra Indígena São Marcos. Tal redistribuição teve
reflexo considerável nos preparativos e execução do danhono de 2005. Os realinhamentos políticos que
aconteceram no período que antecedeu a realização do darini mantiveram-se depois. Nos anos seguintes
os conflitos faccionais foram aos poucos se enfraquecendo de modo que durante o danhono 2005, apesar
das diferenças políticas ainda existe entre as aldeias houve uma reaproximação entre elas decorrente do
fluxo de pessoas que transitavam entre as aldeias que realizava este ritual de iniciação.
81
iniciados, e permitindo que novos atores sociais entrem na sociedade de culto. O quadro
abaixo mostra como o wai’a está estruturado:
Da'ãmawai'a'wa'rada antigos
Eram da'ãmawai'a'wa no antepenúltimo darini;
da'ãmawai'a'wa;
Dzö'ratsi'wa ĩté dzö'ratsi'wa novo;
também são chamados de Tocadores do dzö
da'ãmadzö'ratsi'wa
Dzö'ratsi'wa'rada antigo
Eram dzö'ratsi'wa no antepenúltimo darini;
dzö'ratsi'wa
Haviam sido iniciados no darini há pelo menos
três iniciações anteriores;
Homens que já passaram por todas as fases do
WAI'A'RADA darini; o prefixo ‘rada para este grupo
indica também que atuam no sentido de
demonstrar ao novos os procedimentos dos
rituais em geral.
Para todos os grupos e subgrupos estão previstas modalidades de pinturas e ornamentos
particulares.
2.5 - O DANHONO
informalmente com a casa dos solteiros, a hö. Pelo menos em três momentos do dia um
ai’repudu pode estar na casa dos solteiros. Como veremos adiante, a casa dos solteiros
separa os ai’repudu da aldeia e os confinam na hö. Embora não seja uma regra
ortodoxa, seus moradores não estão formalmente autorizados a freqüentarem
diariamente seus grupos domésticos. Assim, os três momentos que ligam os ai’repudu à
casa dos solteiros, ainda que informalmente, está diretamente relacionado aos horários
de alimentação. Considerando que os moradores da casa dos solteiros não estão
autorizados a freqüentarem seus grupos domésticos, salvo algumas exceções, como
veremos adiante, os ai’repudu são incumbidos de levar alimentos para seus parentes que
ali vivem. Esta tarefa é igualmente confiada às ba´õno, meninas pequenas. Entretanto,
estas não entram na casa dos solteiros. Pelo que pudemos observar, elas se aproximam
da casa dos solteiros e permanecem em seus arredores até que o destinatário do alimento
seja avisado e vá ao seu encontro para retirar a “marmita”. Afora, estes momentos de
“trabalho” os ai’repudu estão sempre bem próximos dos moradores da casa dos
solteiros participando de tudo que seus moradores tomam parte. Os banhos de rio,
expedições nos arredores da aldeia, partidas de futebol, dentre outros, são momentos
que permitem grande interação entre moradores casa dos solteiros e ai’repudu.
Os Xavante têm presenciado grandes transformações na forma segundo a qual
vivenciam sua vida cultural. Neste sentido, as descrições que Giaccaria & Heide e de
Maybury-Lewis, centradas num tipo ideal de sociedade e abstraindo-se a situação de
contato, no caso dos primeiros autores, e de suas apropriações pelos Xavante, serão aqui
relativizadas em alguns pontos e contestadas em outros. Isto de modo algum invalida
seus trabalhos, a quem a antropologia brasileira tem seus débitos, com as devidas
distâncias às suas singularidades. Ao apresentarmos outras possibilidades de descrição
sobre os rituais e organização social Xavante queremos oferecer igualmente outras
possibilidades de análise para um mesmo fenômeno social.
Como Maybury-Lewis, vemos a casa dos solteiros como a pedra fundamental do
sistema de classe de idade entre os Xavante e sua centralidade na organização social.
Contudo, discordamos quando este autor afirma que um menino passa a fazer parte de
uma classe de idade somente depois de ser introduzido oficialmente na casa dos
solteiros. Observamos, em duas ocasiões, que ao término do danhono os membros,
ainda que num devir, da próxima classe de idade a ser inserida na casa dos solteiros
foram formalmente apresentados à comunidade. Desta apresentação participaram, além
84
dos futuros moradores da casa dos solteiros, moços e moças que estavam concluindo a
iniciação do danhono, bem como aqueles que sobreviveram ao tempo e estavam
presenciando a renovação da categoria de sua classe de idade na ocupação da casa dos
solteiros. Já mencionamos acima que a convivência entre os ai’repudu e os moradores
da casa dos solteiros é intensa. Isto cria uma expectativa muito grande entre os
ai’repudu para fazer parte da casa dos solteiros. Desta forma a apresentação formal dos
futuros membros da casa dos solteiros não só atende estas expectativas, mas também
informa a sociedade sobre a nova condição social do futuro morador da casa dos
solteiros. Aqui podemos relativizar a afirmação de Maybury-Lewis de que os ai’repudu,
a quem o autor chama de crianças, não seriam
(...) considerados realmente como membros da sociedade Xavante:
eles ainda não tem uma posição definida em uma sociedade cujas
atividades sociais e cerimoniais são desempenhadas, em grande
parte, pelas classes de idade (Maybury-Lewis, 1984:153).
Apontamos que o danhono deve ser entendido como processo que se inicia
como veremos a seguir com a admissão dos novos moradores na casa dos solteiros.
Enquanto rito de passagem ele insere os ai’repudu, doravante wapté numa situação
liminar. Considerando a classificação dos ritos de passagem definida por VAN
GENNEP (1978:31): separação, margem e agregação, a categoria nativa DANHONO
traduz perfeitamente esta dinâmica. Danhono pode ser traduzido como dormir. Neste
sentido, os ai’repudu ao serem admitidos na casa dos solteiros simbolicamente passam a
dormir durante a pré-adolescência, para adotar uma de nossas categorias de
86
classificação de ciclo biológico, para acordar mais tarde como adultos, ou melhor:
guerreiros, e para procriar, pois até então são induzidos a se manterem castos enquanto
durar o processo ritual. Este despertar acontecerá por ocasião da retirada das capas do
wamnhorõ, conforme descreveremos no próximo capítulo no item 3.18.
Tendo apresentado nossa concepção de danhono para a sociedade Xavante
passamos agora a mostrar como o processo ritual acontece. Contudo, antes é preciso
tecer mais algumas considerações a respeito dos ‘watébrémi e dos ai’repudu. A
diferença de estatura entre os meninos que se encontram nesta fase do ciclo de vida é
pouco expressiva. Ambos vivem seu cotidiano entre algumas tarefas domésticas e
perambulações pelos arredores da aldeia. Quando há uma casa dos solteiros já
instaurada os ‘watébrémi e os ai’repudu, estes últimos, sobretudo, costumam estar
juntos dos moradores daquela casa acompanhando-os em algumas atividades, como já
dissemos. O que diferenciava o morador da casa dos solteiros era o uso do estojo
peniano, darõ feito com norõwededzahö – folha da palmeira babaçu. Após o contato
com a imposição do uso de roupas ocidentais os Xavante abandonaram o uso de estojos
penianos tanto para os moradores da casa dos solteiros quanto para os adultos.
Entretanto, a postura e comportamento dos moradores da casa dos solteiros em relação
aos ‘watébrémi e ai’repudu aparece ainda como um indicador de diferenças entre as
duas fases do ciclo de vida e ritual. Trataremos destas posturas quando descrevermos a
vida dos moradores da casa dos solteiros.
2.5.1.1 - OS DANHOHUI’WA
44
A tradução de danhohui´wa por “padrinhos” e de wapté por “afilhados” foram feitas,
inicialmente, pelos missionários salesianos, em particular por Giaccaria & Heide. Manteremos esta
tradução uma vez que os Xavante se apropriaram dela e as usam constantemente.
87
seja, as duas metades, não seria incorreto afirmar que os danhohui’wa são membros da
penúltima classe de idade iniciada. Nas duas situações tanto os homens quanto as
mulheres que pertencerem àquela classe de idade serão considerados danhohui’wa,
mesmo que não venham atuar enquanto tal, situação que seria muito difícil, mas não
impossível de acontecer. Contudo, strictu sensu, serão efetivamente danhohui’wa
aqueles que foram escolhidos, previamente, pelos pais dos futuros wapté para serem
padrinhos de seus filhos. Não temos informações etnográficas sobre as negociações que
venham a concretizar esta escolha, muito menos os critérios levados em consideração
para tal. Não obstante, estas negociações são travadas no âmbito doméstico e tornam-se
públicas através de um ritual próprio para esta ocasião.
Diante dos ventos de mudança que assolam a sociedade Xavante este ritual foi
bastante simplificado. Os autores clássicos que descreveram os vários rituais Xavante,
Lopes da Silva, Maybury-Lewis e Müller, reportam-se em sua maioria à descrição de
Giaccaria & Heide (1984:193s). Aqui seguiremos o mesmo caminho e depois
lançaremos nossas observações sobre o ritual, momento que tivemos ocasião de
participar quando fomos efetivados como danhohui’wa na iniciação do grupo ẽtepa
˜ , em
1997.
Segundo o relato de Giaccaria &e Heide (1984:193s) o ritual acontecia quando o
grupo retornava das grandes caçadas, ao final da estação seca e início da chuvosa em
fins de outubro e início de novembro. Nesta ocasião os a’irepudu, meninos, que serão
admitidos na casa dos solteiros constroem um cercado de galhos verdes no warã, centro
da aldeia, chamado utsu45. Os ‘ritéi’wa ĩté, ou seja, os novos guerreiros, iniciados no
último danhono, encarregam-se de confeccionar um ornamento chamado popara. Este
ornamento, em formato de um pequeno cinto, confeccionado com penas coloridas e
unhas de veado, é amarrado na panturrilha e funciona como um chocalho nos momentos
de dança. Depois de pronto, o popara será entregue, ritualmente, aos ‘ritéi’wa’rada,
penúltimos iniciados, que até então desempenharam o papel de dahi’wa, àqueles que
fiscalizam a conduta dos moradores da casa dos solteiros.
O ritual de escolha, ou de instauração da condição de danhohui’wa, acontece
depois do entardecer. Nesta ocasião os ‘ritéi’wa’rada, penúltima classe de idade
iniciada, dirigem-se até o centro da aldeia e se posicionam em semi-circulo na frente da
utsu. Ali dentro encontram-se os ai’repudu e ‘watébrémi que serão membros da
45
Esta categoria pode significar ainda chuva que nunca termina.
88
próxima classe de idade. Um a um eles saem e tomam pelo braço o ‘ritéi’wa’rada que
fora escolhido, previamente por seu pai, para ser seu danhohui’wa e o leva para dentro
da utsu. Paralelamente a isso um dos ‘ritéi’wa ĩté pintado com a modalidade dauhö e
aguarda até que todos os ‘ritéi’wa’rada tenham sido conduzidos a utsu. Terminada a
condução dos ‘ritéi’wa’rada para dentro da utsu estes se tornam oficialmente
danhohui’wa. O primeiro ato nesta nova condição é dar a ordem para que os ai’repudu e
‘watébrémi acendam o fogo. Após a conclusão desta tarefa, entra na utsu o ‘ritéi’wa ĩté
que fora pintado de dauhö e traz consigo o popara. Este ‘ritéi’wa ĩté profere um
discurso dirigido aos ai’repudu e ‘watébrémi, cujo conteúdo é apontado por Giaccaria
& Heide (1984:193), como úteis conselhos. Terminado os conselhos o ‘ritéi’wa ĩté
deixa o popara no chão e retira-se da utsu indo encontrar os demais ‘ritéi’wa ĩté nas
proximidades do warã, centro da aldeia. A partir deste momento todos os ‘ritéi’wa ĩté
assumem uma nova condição social: tornam-se oficialmente dahi’wa. Como já
apontamos acima, um dos papéis desempenhados pelos dahi’wa durante o processo
ritual do danhono é fiscalizar o comportamento sexual dos wapté, morador da casa dos
solteiros. Neste sentido, podemos deduzir que o conteúdo dos úteis conselhos refere-se a
esta questão.
O popara que fora depositada no chão pelo ‘ritéi’wa ĩté é tomado por um
da’ãmawai’a’wa, “polícia” - iniciador ao wai’a, e entrega-o a um dos novos
danhohui’wa, amarrando-o na perna na altura da panturrilha. Em tom de ameaça o
da’ãmawai’a’wa faz datsiparabu46, gesto ritual que expressa desagrado onde em passos
rítmicos o oficiante ameaça pisar no pé do subalterno, para o danhohui’wa que recebeu
o popara. Este gesto é uma ordem ao novo danhohui’wa para que este execute um
canto. Depois de entoado o canto pode ou não ser reprovado pelo da’ãmawai’a’wa. Em
caso de desaprovação o da’ãmawai’a’wa segura a perna do danhohui’wa e a bate no
chão várias vezes. Do contrário, gostando do canto, o da’ãmawai’a’wa puxa as orelhas
e bochechas do danhohui’wa. Este tipo de atitude da parte do da’ãmawai’a’wa pode ser
repetido em outros momentos no processo ritual do danhono. Presenciamos vários
momentos em que isto aconteceu. Num deles além de puxar as bochechas de quem
entoava o canto, o da’ãmawai’a’wa arrancou o dapo’rewa’u, batoque auricular,
jogando-o no e cortando-o a golpes de facão. Toda esta performance aconteceu dentro
46
Maybury-Lewis (1984:173) considera o datsiparabu como dança da agressão, dada a sua
performance que resulta em pisadas nos pés, puxões de orelha – bochecha ou nariz. O próprio autor relata
que teve as bochechas mordidas depois do datsiparabu, antes de ser admitido para participar de um wai’a
(Maybury-Lewis, 1984:330)
89
A disposição das casas de uma aldeia Xavante dá-se em forma de ferradura com
abertura voltada para o rio. Neste cenário a casa dos solteiros, a hö, é construída, via de
regra alternando-se, juntamente com as classes de idade, entre as duas extremidades da
aldeia. Não obstante, as aldeias Xavante têm passado por grandes transformações que
vão desde o uso de material na construção das casas ao modo de disposição das casas na
configuração da aldeia. Assim é possível encontrar casas taipa de mão, casas feitas em
alvenaria e algumas de madeira. Entretanto, a maioria das casas Xavante têm sido
erguidas seguindo o “estilo dos regionais”. Estas casas são quadradas cobertas com
folhas de buriti e possuem as paredes erguidas com este mesmo tipo de material.
Entretanto, a ocupação e distribuição do interior das casas Xavante seguem ainda um
estilo próprio. A hö é construída neste estilo, o regional, e não apresenta subdivisões. Na
aldeia São Marcos, sob influência da Missão Salesiana, a hö estava edificada com
parede de alvenaria e localizava-se próximo da missão. Sempre que havia a ascensão de
91
uma nova classe de idade seus membros ocupavam aquela casa que tinha apenas a
cobertura de palha trocada. Em 1999 após um incêndio não esclarecido, que destruiu a
cobertura e comprometeu a estrutura das paredes desta casa, os Xavante mudaram o
local de construção da casa dos solteiros, passando a construí-la mais próximo da aldeia.
Hoje aquela aldeia apresenta o formato circular e tem alternado a construção da hö em
lados opostos do círculo.
A aldeia N. S. de Guadalupe, criada em 2002, também apresenta um formato
circular, próximo do oval, teve a hö erguida fora do círculo onde estão as demais casas
da aldeia. De modo geral, apresentando uma estrutura de aldeia em forma em ferradura,
em círculo, em quadrilátero ou em forma de vilas com uma rua central, a casa dos
solteiros, a hö, é construída sempre a margem da aldeia.
Não há um tempo pré determinado para a composição de uma nova casa dos
solteiros após a iniciação da última. Ao que tudo indica isto acontece tendo-se como
referência o número de ai’repudu disponíveis para isso. Entretanto, isto tem ocorrido
um ano depois da última iniciação.
Acima dissemos que a fase do ciclo de vida que compreende os ai’repudu
constitui uma referência para os ĩhire para o início de uma nova casa dos solteiros.
Dissemos ainda que os ai’repudu, meninos, têm idade que variam de oito a doze anos.
Entretanto, na prática isto não acontece. Nas oportunidades que tivemos de observar a
entrada de novos membros na casa dos solteiros, bem como ao final do processo de
iniciação, observamos que muitos dos meninos poderiam ainda ser enquadrados na
categoria watébrémi do ciclo de vida. Para Giaccaria & Heide (1984:150) o menino
tornar-se-ia morador da casa dos solteiros a partir do treze anos. Maybury-Lewis
(1984:155), por sua vez, indica que a condução formal dos meninos à casa dos solteiros
acontece quando o menino tem entre sete e doze anos e se justifica a variação de idades
em relação a última classe de idade. De fato os que nasceram durante a realização de um
danhono poderão fazer parte da próxima classe de idade a ocupar a casa dos solteiros.
Contudo, aqueles que nasceram próximo ao ano em que está por ser concluída uma
iniciação em andamento poderão não fazer parte da próxima classe de idade devendo,
portanto, esperar a subseqüente, pois estariam com idade entre cinco a seis anos.
Segundo Maybury-Lewis (1984:155) na prática, todo menino que aparenta ser bastante
grande para estar com os membros da nova classe de idade e que se comporta de
acordo pode ser incorporado a ela. Durante o trabalho de campo observamos que havia
92
meninos com idade aproximada de sete a nove anos que tiveram os lóbulos das orelhas
perfurados em cerimônia coletiva do danhono.
Giaccaria & Heide (1984:150) apontam que a decisão sobre quem deveria fazer
parte da nova classe de idade a ocupar a hö na próxima iniciação caberia aos ĩhire,
anciãos, que adotariam como critério de escolha o tamanho dos meninos, dando
preferência aos “maiores”. Ainda segundo a descrição dos autores, este momento
acontecia quando terminava a iniciação da classe de idade que estava em processo.
Após a escolha daqueles que fariam parte da nova classe dava-se procedimento a três
rituais que os habilitariam e os reconheceriam como moradores da casa dos solteiros.
Trataremos destes rituais adiante. Parece-nos que de acordo com esta descrição o
processo de iniciação das classes de idade dava-se em ato contínuo, ou seja, terminada a
que estava em curso imediatamente se começava a outra. Contudo, pelo que tivemos
oportunidade de observar em vários momentos o processo de iniciação do danhono tem
seguido outra dinâmica. Ao término de um processo de iniciação onde se apresentam
àqueles que farão parte da próxima classe de idade a ser iniciada, há o intervalo de pelo
menos um ano até que se inicie a próxima. A aldeia Nossa Senhora de Guadalupe
concluiu o danhono da classe de idade abare’u em 2005, somente em março de 2008 ela
realizou o primeiro ritual que dá início aos preparativos para criação de uma nova casa
dos solteiros. Descrevemos este ritual a seguir.
O ritual do oi’o é definido por Giaccaria & Heide (1984:147) como um jogo no
qual se defrontam dois times de meninos, todos pintados de vermelho e preto, conforme
o gosto de cada um. Estes “times” ao qual se referem os autores são definidos através da
divisão e agrupamentos dos clãs. No início deste trabalho apresentamos que a sociedade
Xavante é composta por três clãs: öwawẽ, tob’ratato e po’redaza’õno. Em diversos
rituais estes clãs se agrupam em metades e executam cerimônias próprias. Neste sentido,
durante o ritual do oi’o os “times” são na verdade metades compostas, de um lado, pelo
clã po’redaza’õno e, de outro, pela aliança entre os clãs öwawẽ e tob’ratato. Dizendo de
outro modo o ritual envolve waniwi’hã, watsi´re – os do meu lado, contra oniwi´hã,
tsire´wa – os do outro lado. Estas categorias antagônicas dizem respeito à posição de
ego, ou seja, se ele é membro do clã öwawẽ ou tob’ratato será considerado waniwi´hã,
93
watsi´re em relação aos po’redaza’õno que serão seus oniwi´hã, tsire´wa. Do contrario,
sendo ego po’redaza’õno ele será waniwi´hã, watsi´re para seus companheiros enquanto
que os öwawẽ ou tob’ratato serão considerados por ele como oniwi´hã, tsire´wa.
A participação no ritual do oi’o não é privilégios apenas dos meninos. Pode
acontecer que, em alguns casos, o número de meninos disponíveis em uma das metades
seja demasiadamente inferior a outra. Neste caso as meninas pertencentes ao clã da
metade em desfalque podem participar do ritual. Esta informação no foi repassada por
um missionário da Missão Salesiana que na época atuava na aldeia de São Marcos. Em
nossa experiência etnográfica nunca observamos meninas participando do ritual oi’o.
Conversando com um de nossos informantes soubemos que este foi um caso isolado que
teria acontecido na aldeia São Marcos.
O ritual oi’o constitui ainda uma das raras ocasiões onde os Xavante apresentam
sinais diacríticos que permitem identificar a filiação clânica de cada membro da
sociedade, pelo menos aqueles que estão envolvidos diretamente no ritual. Estes sinais
são expressos através de pintura nas têmporas e face daqueles que vão se digladiar
durante o oi’o, conforme descrevemos no capítulo anterior.
Maybury-Lewis (1984:156ss) aponta que participam na cerimônia do oi’o os
moradores da casa dos solteiros. Entretanto, observamos em várias ocasiões, e ainda
com respaldado em Giaccaria & Heide (1984:147), que na realidade quem toma parte da
cerimônia do oi’o são os ‘watébrémi e os ai’repudu. Portanto, membros do ciclo de vida
que ainda não são moradores da hö. O oi’o é o ritual que antecede a entrada e
formalização da admissão dos moradores na hö, casa dos solteiros. É também uma
cerimônia que condiciona a realização de outra, aquela que de fato introduz o novo
morador na hö.
O termo oi’o refere-se à raiz de uma planta com folhas semelhantes à de
bananeira que cresce em algumas áreas de brejos no cerrado. No dia anterior as raízes
oi’o são coletadas e preparadas pelos pais daqueles que estarão participando do ritual.
Como na maioria dos rituais Xavante, a preparação para a realização da
cerimônia começa bem cedo, para ser mais específico, de madrugada. Aqueles que
participarão da cerimônia, ou seja, os ‘watébrémi e os ai’repudu, dirigem-se a casa do
avô onde juntamente com outros meninos tem os cabelos cortados, untados com óleo de
coco de babaçu e depois amarrados em forma de “rabo de cavalo”. Depois de serem
pintados em preto e vermelho, seguindo um estilo de pintura escolhido pelo pai ou avô,
94
Durante a luta os combatentes seguram a raiz oi’o, que se parece com uma clava,
com a mão direita tendo como apoio nesta mão a esquerda que segura o punho da mão
direita. No combate os oponentes se posicionam frente a frente com os joelhos
flexionados e procuram golpear o antebraço esquerdo do outro. Quem rebaixar a guarda
por primeiro reconhece que “perdeu” a luta e imediatamente o outro para de deferir
golpes, ambos retornam para seus lugares. Qualquer membro de uma metade pode
desafiar membros da outra. Contudo, esta escolha é assessorada pelos pais que
procuram assegurar igualdade de tamanho e força entre os combatentes. Participam
inicialmente da cerimônia os ‘watébrémi, meninos que mal começaram a andar são
levados à arena. Muitos deles não sabem o que fazer com a raiz de oi’o que lhe foi
entregue. Neste caso, os pais que os acompanham os incitam a golpear seu oponente e
mostram-lhe como fazer. Às vezes basta um leve golpe e ambos saem chorando para
seus lugares.
Além de ser uma cerimônia preparatória, ou seja, que condiciona a realização de
outra, para o ingresso dos moradores na casa dos solteiros, o oi’o pode ser visto como
95
uma cerimônia lúdica. Neste sentido, sua realização mobiliza praticamente toda a
comunidade. O caráter lúdico que deste ritual parece muito mais evidente do que a
afirmação de Giaccaria segundo a qual ele visa dirimir tensões entre as metades, haja
vista os conflitos faccionais que eclodem constantemente nos dias atuais e no passado.
Nos momentos que antecedem a cerimônia praticamente toda a comunidade está a
postos nos arredores da arena buscando os melhores lugares para assistir aos combates.
Como já dito, os primeiros combates são travados entre os ‘watébrémi. A performance
dos pequenos lutadores provoca muitas gargalhadas entre os expectadores, além de
comentários sobre a coragem e destreza de cada um deles. A duração destas primeiras
lutas não ultrapassa quarenta segundos. Os pequenos não suportam mais do que três
golpes deferidos e recebidos e retornam chorando para seus lugares.
O posicionamento dos combatentes no centro da aldeia segue a mesma regra
utilizada pelas metades em outros rituais. Assim, os membros da metade formada pelo
clã tob’ratato e öwawẽ se posicionarão do lado em que o sol nasce, enquanto que a
metade que compreende o clã po’redaza’õno se posicionará do lado onde o sol se põe.
A entrada das metades na arena de luta também obedece esta regra, ou seja, em fila
indiana os combatentes ai’repudu da metade composta pelos clãs tob’ratato e öwawẽ
surgem do lado do sol nascente enquanto que a metade composta pelos po’redaza’õno,
também em fila indiana, surge do lado do sol poente. Cabe aos aiutemanhãri’wa47, o
dono das crianças, conduzir as metades que lutarão até o centro da aldeia segundo a
formalidade já descrita.
Os combates travados pelos ai’repudu são mais agressivos do que aqueles
realizados pelos ‘watébrémi. Os golpes são deferidos com mais força e intensidade
ocasionando por vezes a quebra da raiz oi’o. Neste caso, os parentes masculinos que ali
estão tratam de substituir imediatamente o oi’o quebrado por outro, sem que para isso o
combate tenha que ser interrompido. Os combates entre membros desta classe de idade
têm um tempo de duração maior e podem ultrapassar um minuto. Quando há uma
intensidade na duração do combate travado, sem que nenhum dos combatentes baixe a
guarda, os espectadores e parentes masculinos que assessoram a luta começam a pedir
que haja uma intervenção.
47
Os aiutemanhãri’wa, donos das crianças, são homens que herdam este cargo ritual de suas
linhagens. Eles atuam principalmente no ritual de nominação das mulheres aonde tem o papel de
“palhaços” imitando as crianças (LOPES DA SILVA, 1986:125 e 129); veja também Giaccaria & Heide,
1984:243 a 248.
96
dos solteiros. Como veremos adiante, a cerimônia de inserção do morador na casa dos
solteiros exige que ele esteja usando adornos corporais próprios para a ocasião. Um
destes adornos exige uma grande quantidade de algodão e pode ocorrer que o grupo
doméstico não disponha de quantidade necessária para confecção do adorno, adiando a
entrada do filho na casa dos solteiros.
Acima dissemos que a cerimônia do oi’o além de ter um caráter lúdico é também
que estará ocupando a casa dos solteiros durante o período do danhono. Neste sentido,
após a realização do oi’o os ‘watébrémi e ai’repudu vão ao rio para tomar banho e
retirar a pintura que estavam usando durante a luta do oi’o. Retornando a casa paterna
são submetidos aos preparativos para outra cerimônia. Segundo a descrição de Giaccaria
& Heide (1984:150) somente os “maiores” seriam admitidos como moradores da casa
dos solteiros, ou seja, aqueles que tivessem idade de treze a dezesseis anos. Observamos
em várias ocasiões que durante o ritual de entrada dos novos moradores da casa dos
ai’repudu. Sobre o estatura dos candidatos a moradores da casa dos solteiros já tecemos
algumas considerações acima. Aqui queremos ressaltar que a decisão sobre quem deve
ou não ser admitido como morador da casa dos solteiros está muito mais condicionada à
decisão paterna, e do grupo doméstico, do que à vontade dos ĩhire – anciãos. Tal atitude
nos sugere que o ideal de uma “gerontocracia” que gerencia o processo ritual perde suas
serão moradores da casa dos solteiros se põem a fiar algodão para prepararem o
48
Este termo também designa clavícula – local onde o grande colar de algodão é apoiado.
98
confeccionado com grande quantidade de algodão. Este colar tem o formato de uma
pronto recebe de duas ou três penas de arara. O mesmo deve entrar pela cabeça do
‘watébrémi ou ai’repudu e ficar apoiado em seus ombros, sendo que as penas de arara
devem ficar na parte posterior voltada para as costas. A quantidade de algodão usada
neste tipo de ornamento deve ser generosa, pois revela à comunidade o quão produtivo é
seja, o grupo doméstico que apresenta seu neófito “vestindo” um waptépnhõnhiã com
A descrição que faremos abaixo está baseada nos relatos de Giaccaria & Heide
autores (1984: 150ss), após a cerimônia do oi’o, depois de ter tomado banho, o pai do
candidato a morador da casa dos solteiros coloca nos ombros deste o ornamento
O irmão mais velho do candidato, que está pintado com o motivo pahiwatsa (uma
espécie de urubu) – onde se pinta com carvão o lado externo dos braços e nas pernas
dos tornozelos até metade da canela, segurando uma borduna do tipo uibró na mão
direita, toma o irmão pelo braço e o conduz ao warã – centro da aldeia. Ali os itsimhö-
foram danhohui’wa, padrinhos, dos que serão danhohui’wa, padrinhos, dos novos
moradores da casa dos solteiros, retiram o ornamento waptépnhõnhiã daquele que está
CLASSES DE IDADE
METADES CERIMONIAIS
DIREITA ESQUERDA
cabeça (idem) e usam folhas nos ombros para não sujar as golas confeccionadas de fios
de algodão branco. Como apontamos, estas golas são chamadas de waptépnhõnhiã.
Após a entrega dos estojos penianos os ‘watébrémi e ai’repudu estes são
reconhecidos socialmente, de agora em diante, como wapté ou hö’wa, moradores da
casa dos solteiros. O estojo peniano deveria ser usado por toda a vida. Ele expressa a
nova condição social do ‘watébrémi ou ai’repudu, que deixam de serem considerados
como crianças. Segundo Maybury-Lewis (1984:156),
(...) o uso do estojo peniano corresponde a uma afirmação simbólica
de maturidade fisiológica. O estojo peniano “encobre” o pênis em
posição de ereção e, assim, indica potência sexual ao mesmo tempo
que afirma o poder social ao qual estão submetidos os poderes
sexuais intrinsecamente perigosos.
buriti. Neste caso, a dança aconteceria depois da corrida e dela tomavam parte não só
membros da metade que estava sendo admitida como moradores da hö, mas também da
outra metade, seguindo cada qual, pela aldeia, seu itinerário de dança. Como
observamos em várias ocasiões, as corridas de buriti, uiwede, são disputadas entre
metades compostas pelos grupos de idade conforme o esquema que apresentamos no
início desta tese. Ao término das corridas, independentemente de quem quer que seja o
vencedor, as metades ensaiam um canto e se põem a executá-lo percorrendo o
semicírculo composto pelas casas da aldeia.
Em nossa experiência etnográfica observamos que “os ventos de mudança49”
assolam grande parte dos rituais Xavante. Com relação à admissão dos novos moradores
na casa dos solteiros, processo que transforma ‘watébrémi e ai’repudu em wapté,
também chamado de hö’wa, estas mudanças são facilmente constatadas. Observamos
que a cerimônia do oi’o é realizada tanto como objetivo lúdico quanto como pré-
condição para a realização de outra cerimônia que admite formalmente a entrada do
novo wapté na hö, casa dos solteiros.
Ao término da cerimônia de oi’o os candidatos a moradores da casa dos solteiros
são ornados com o waptépnhõnhiã, colar de algodão e ficam aguardando na casa
paterna. Em relação às descrições de Giaccaria & Heide (1984:151) observamos que
estes candidatos não são conduzidos pelo irmão mais velho ao centro da aldeia. Vários
ĩprédu, pertencentes à classe de idade composta pelos itsimhö-nhiwimhã te te tiwi´re
tsanidza´ra itsonhiãhã, padrinhos daqueles que serão padrinhos dos novos moradores
das casa dos solteiros, vão até a casa do candidato, que já se encontra adornado, e este o
segue até o warã, centro da aldeia. Ali outros dois itsimhö-nhiwimhã te te tiwi´re
tsanidza´ra itsonhiãhã, padrinhos daqueles que serão padrinhos dos novos moradores da
casa dos solteiros, pertencentes aos clãs po’redza´õno e öwawẽ, aguardam a chegada
dos candidatos. Para esta ocasião os itsimhö-nhiwimhã te te tiwi´re tsanidza´ra
itsonhiãhã se pintam segundo o modo usado pelos wapté quando se prepararam para as
corridas de buriti, ou seja, apresentavam ombros e peito pintados de vermelho com
49
(...) No processo social – entenda-se por processo aqui meramente o curso geral da ação
social – no qual me encontrei, entre os Ndembu da Zâmbia, foi muito útil pensar “biologicamente” sobre
os “ciclos de vida da tribo” e os “ciclos domésticos”, a “origem”, “desenvolvimento” e “decadência”
de aldeias, famílias e linhagens, mas não foi muito útil pensar sobre a mudança como algo imanente na
estrutura da sociedade Ndembu, quando havia claramente “um vento de mudança,” econômica, política,
social, religiosa, legal, e assim por diante, varrendo através de toda África central e originando do lado
de fora de todas as aldeias da sociedade. (Turner, 1974:31-32) (tradução livre)
102
50
Conforme a arte de marinharia.
51
Devida a esta semelhança os Xavante chamam este ornamento de gravata.
104
constitui uma exigência para os ĩhire no processo ritual, se eles o fazem é para ficarem
“bonitos”, como dizem.
Como atores principais do ritual os wapté e dahi’wa se preparam em locais
distintos. Enquanto os wapté e os danhohui’wa se “concentram” para pintar e definir as
estratégias para corrida dentro da hö, os dahi’wa fazem isso no marã, literalmente
sombra, mata, floresta. No entorno da aldeia existem vários marã que são na realidade
clareiras, próxima da aldeia, abertas na mata onde, secretamente, os Xavante se
preparam para executarem vários rituais, entre eles o uiwede, corrida de buriti. De mais
a mais, o marã funciona tanto como um lugar de preparo para executar certos rituais,
quanto um lugar para sua realização. É o caso, por exemplo, do wai’a, em suas quatro
modalidades, que tem seus preparativos em pelos menos três marã diferentes para
depois executado no warã – centro da aldeia.
Quando os dois grupos competidores estão prontos, o que acontece normalmente
entre 12:00 e 13:00, eles partem formalmente em fila indiana para o local de início do
uiwede, corrida de buriti. A saída com destino ao local de início é marcada por grande
descontração que toma conta dos grupos. Em tom de provocação ao oponente os grupos
emitem gritos que são prontamente respondidos com outros gritos. Todavia, a partida
dos grupos não é simultânea. Via de regra, parte primeiro um dos grupos seguindo por
um caminho enquanto o outro segue depois, ou segue por caminhos paralelos.
Observamos em várias ocasiões, nas aldeias São Marcos e N. S. de Guadalupe, que não
são todos os componentes de um grupo que partem em fila indiana. Muitos, depois de
estarem prontos, seguem de bicicletas ou a pé para o local combinado para início da
corrida antes dos demais, se posicionando em pontos estratégicos ao longo do trajeto.
As táticas definidas tanto na hö quanto no marã são postas em prática ao longo
do caminho. Estas dizem respeito ao posicionamento dos corredores ao longo do
caminho, ou seja, quem deverá carregar a tora de buriti no início, nas subidas e descidas
do percurso. As metades sabem quem são os corredores que possuem maior resistência
e força. Na prática isso torna a corrida em seu início muito competitiva, pois se busca
abrir, de imediato, uma grande vantagem de um grupo em relação ao outro onde se
espera que os corredores mais fracos mantenham essa distância ao longo do percurso.
Nos dias de hoje as toras de buriti são cortadas nas cabeceiras, onde crescem as
matas de buriti, e transportadas de caminhão até o centro da aldeia onde são preparadas.
Este preparo consiste em escavar parte do cerne, que os Xavante chamam de carne -
106
52
O termo inhiwa´wa usado para designar o cerne da tora de buriti é semelhante ao usado para
designar carne de caça - inhi.
53
A Lixeira do Cerrado, (Curatella americana) Família Dilleniaceae, é uma árvore de baixo
porte com folhas duras e ásperas – semelhante a lixa. Os Xavante também a utilizam para afiar pontas
flecha, dar acabamento em arcos e nos botoques auriculares, dentre outros usos.
107
escalado para levar alimento ao sobrinho que estava residindo na hö. Ali observamos os
menores trazendo alimento para outros moradores e quando estes não se encontravam
ficavam aguardando até que chegassem.
O canto e dança executado diariamente na aldeia pode ser considerada a
principal atividade dos wapté. Neste sentido, diariamente um ĩprédu, homem adulto, se
dirige à hö e conduz seus moradores a cantar e dançar percorrendo a aldeia. O percurso
é definido de acordo com a metade que está vivendo na hö. Considerando o tamanho da
aldeia o canto e dança não é executada na frente de todas as casas. Giaccaria & Heide
(1984:152) identificam quatro momentos em que os wapté executam cantos e danças na
aldeia: dahipopo – canto da tarde, mãrawa’wa danho’re – canto da meia noite,
dadzarõno – canto da madrugada antes da corrida de buriti e o uiwedenho’re executado
após a corrida de buriti. Em nossa experiência etnográfica entre os Xavante observamos
que os cantos dahipopo e dadzarõno, executados, segundo os autores, sem pintura
corporal na realidade são estilos de dança. Neste sentido, o dahipopo é uma dança
executada em roda, de mãos dadas e cabeça baixa, flexionando levemente os joelhos. O
estilo de dança dadzarõno é executado de mãos dadas e cabeça baixa, movimentando-se
em círculo e levantando um dos pés em saltos curtos. Estes dois tipos de dança são
executados acompanhados de cantos que recebem denominações diversas dependendo
do momento do processo ritual. Desta forma, o mãrawa’wa danho’re – canto da meia
noite constitui em verdade um tipo de canto que pode ser executado em estilo de
dahipopo ou dadzarõno. Por seu turno o uiwedenho’re – canto depois da corrida de
buriti pode ser igualmente executado em estilo de dahipopo ou dadzarõno. Um terceiro
estilo de dança acompanhado de cantos com denominações diversas, dependendo do
processo ritual, é o dapraba. Este estilo é semelhante ao dadzarõno, mas executado um
pouco mais rápido. Tanto os estilos dapraba e dadzarõno alternam o movimento da
roda de dança em sentido horário e anti-horário quando estão na metade do canto em
execução. Como veremos adiante, em certas etapas do danhono os três estilos principais
de dança são usados num mesmo ritual.
Nos anos em que moramos na aldeia São Marcos observamos que os wapté
executavam cantos e danças na aldeia com certa regularidade pela manhã, por volta de
05:00hs, e a noite, entre 08:00 e 09:00hs. Considerando que os wapté, enquanto grupo,
não podem ir sozinhos à aldeia, um ĩprédu os acompanha até a aldeia. Este mesmo
111
ĩprédu ensaia com os hö’wa o canto e os conduzem a aldeia. O canto executado nestas
circunstâncias foi sonhado pelo ĩprédu e transmitido aos hö’wa por ocasião do ensaio.
Segundo Maybury-Lewis (1984:161), os cantos usados pelos Xavante podem ser
de natureza pública ou particular. Os situados na primeira categoria são aqueles usados
segundo a formalidade dos rituais. Por seu turno, os cantos de ordem particular são
aqueles pertencentes àqueles que o sonharam. Neste caso aquele que pegou o canto
durante o sonho dirige-se a hö e ensina aos seus moradores. Uma vez tendo aprendido o
canto os hö são acompanhados até a aldeia onde o executam diante das casas. Em
verdade, todos os cantos Xavante são de ordem particular que alguém propôs e se
tornou coletivo. Participando dos preparativos para um ritual de ordem religiosa, o
wai´’a, na aldeia N. S. de Guadalupe fomos informado que durante o ensaio do grupo
dos dzö’ratsi’wa – o dono do chocalho [aquele entoa o canto durante a celebração do
wai’a], foram apresentados três cantos dos quais apenas um foi escolhido.
Posteriormente o canto escolhido foi ensaiado novamente juntamente com os demais
participantes do ritual e finalmente executado no warã, centro da aldeia.
Para Maybury-Lewis (1984:161) qualquer homem maduro poderia conduzir os
hö’wa ao warã, para cantar. Entretanto, somente aqueles que apresentam caráter forte
poderiam de fato fazê-lo e se impor. Os tímidos não teriam sucesso, principalmente se a
noite estivesse fria. Durante seu trabalho de campo o autor observou que era a classe de
idade ai’rere que freqüentemente conduzia os hö’wa ao warã para cantar. Observa
ainda o autor que esta classe de idade era a patrocinadora da iniciação da classe de idade
tirowa, ocupante da hö.
A respeito do exercício de autoridade sobre os moradores da hö é preciso ter em
mente que, enquanto processo ritual, cabe às classes de idade da metade na qual está
situada a classe de idade iniciada exercer este papel. Neste sentido, por mais influente
que um homem maduro seja ele não poderia, em tese, estender sua autoridade á classe
de idade de outra metade, ou se o fizer deve agir com muita cautela. Considerando a
dinâmica faccional Xavante, onde as alianças estão plantadas em areia movediça,
dependendo do clima político que paira sobre a aldeia esta ingerência pode
comprometer o prestígio de uma liderança já consolidada ou em ascensão.
Observamos que cantar na aldeia não constitui uma simples atividade para os
wapté. Executar o canto na aldeia é também uma maneira de alegrar a comunidade.
Presenciamos em vários momentos nos quais os wapté executaram cantos na aldeia. Em
112
alguns deles ouvimos o choro de ĩhire, anciãos, no interior das casas. Ao ser
questionado sobre o motivo do choro, os informantes me diziam que os velhos estavam
alegres pelo canto do wapté. Uma explicação possível para a alegria dos ĩhire, anciãos,
pode estar no fato de estarem presenciando a renovação de sua classe de idade.
Ademais, em algumas situações onde nossa classe de idade se retirava da aldeia para
ensaiar cantos, os demais membros de nossa metade cerimonial, entre eles muitos
ĩhire, anciãos, era comum ouvi-los chorar de emoção pelos cantos executados.
Enquanto estão vivendo na hö os wapté são acompanhados por dois
danhohui’wa - padrinhos, que recebem o nome de dapibui’wa - Giaccaria & Heide
(1984:151).
A nova situação social coloca os wapté, ou hö’wa, moradores da casa dos
solteiros, em dois regimes de disciplina que será exercido por homens que estão vivendo
duas fases do ciclo de vida compreendida, sobretudo, de um lado, pelos danhohui’wa, e
de por outro lado em oposição, pelos dahi’wa. Dentro do sistema de iniciação das
classes de idade o grupo dos dahi’wa é composto pela última classe iniciada, enquanto
que o grupo dos danhohui’wa por membros da penúltima. Esta oposição decorre da
distribuição das oito classes de idade em metades. Neste sentido, na iniciação do
danhono ocorrida em 2005 nas aldeias da Terra Indígena São Marcos a configuração do
sistema de classes de idade que estavam vivenciando as fases do ciclo de vida
mencionadas acima estava expressa da seguinte maneira:
DIREITA ESQUERDA
1. ABARE'U - (hö’wa, wapté) – em
processo de iniciação (2005);
˜
8. ẼTEPA - (dahi’wa) - ‘ritéi’wa –
última classe de idade iniciada
desta metade (1997).
7. TIROWA - (danhohui’wa) – última
classe de idade desta metade
iniciada (1989).
transcritos pelos autores, a julgar pelas aspas no texto, os Xavante dizem que os wapté
são benquistos pela comunidade. Contudo, quando um wapté faz o “mal” ele é
advertido pelo encarregado de acompanhar os moradores da casa dos solteiros:... não
olhes para as meninas, não brinques ou rias para ela, porque a mulher te observa e
acontece o mal, e não fazes a festa do wamnhorõ e do ‘waté’wa (apud Giaccaria &
Heide, 1984:160). Pode acontecer que um homem veja um wapté em conduta não
adequada. Neste caso o fato é relatado aos homens maduros e anciãos no centro da
aldeia. Ali a questão é debatida e pode-se decidir furar a orelha dos wapté sem o ritual
completo do danhono. Em caso de decisão favorável a punir ao wapté mais uma vez o
encarregado de acompanhá-los pode intervir e verificar se de fato houve uma
transgressão de conduta. Constando-se que se trata de calunia a decisão do conselho do
warã pode ser revogada. Em alguns casos, segundo o relato transcrito por Giaccaria &
Heide (idem) o dapibui’wa, encarregado de acompanhar os moradores da casa dos
solteiros, tomando conhecimento de uma transgressão ele pode infligir uma punição aos
hö’wa. Nesta situação, o dapibui’wa se pinta com a modalidade de pintura dos
danhohui’wa, ou seja, dauhö, e dirige-se à hö e aplica uma surra de borduna em seus
moradores.
As reincidências nas violações sucessivas de conduta, ou como diz o texto
transcrito:... quando um wapté faz sempre o mal, abrem espaço para atuação dos
dahi’wa. Conforme o esquema acima, os dahi’wa são os ‘ritéi’wa, novos guerreiros, ou
seja, jovens pertencentes à última classe de idade iniciada no danhono. Enquanto os
dapibui’wa atuam procurando disciplinar os hö’wa através de conselhos e, em alguns
casos, surras, contudo sem criar tensões durante o processo ritual, os dahi’wa agem de
modo mais dramático. Se comprovado que um hö’wa esteja tendo encontros amorosos,
os dahi’wa poderão pegá-lo, numa emboscada, e o conduzem à mata e furam o lóbulo
de suas orelhas sem festa, como dizem. O castigo de ter a orelha furada fora do conjunto
de rituais do danhono confere ao hö’wa o estigma55 de atsitõ. Na maioria das vezes isso
não ocorre de imediato.
As ocasiões, todas relacionadas à pratica do mal, nas quais os hö’wa, morador da
casa dos solteiros, venham a se tornar atsitõ são múltiplas. Giaccaria & Heide
(1984:160) apresentam versões desencontradas, a partir de transcrições de discursos de
informantes, nas quais os Xavante infligem a punição que torna o hö’wa um atsitõ. Num
55
Cf. Goffman ([1963]1980)
115
primeiro momento é apenas um ihi’wa, ‘rítéi’wa, novo guerreiro, que retira o wapté do
grupo fura-lhe a orelha. Quando são vários os wapté que fazem o mal, todos têm as
orelhas furadas. Noutro momento, quando alguém flagra um wapté fazendo o mal o
caso é relatado aos velhos e homens adultos que decidem não bater no infrator.
Contudo, quando os moradores da casa dos solteiros retornam à hö depois do canto que
costumam entoar, presumivelmente à noite, os homens cercam a casa, para impedir
possíveis fugas, e um ‘ritéi’wa entra na casa e retira aquele que fez o mal. Sendo muitos
os que fizeram o mal, todos os moradores da casa dos solteiros terão as orelhas furadas.
Contradizendo este momento o informante, citado por Giaccaria & Heide (1984:161),
diz que a furação coletiva de orelha dos moradores da casa dos solteiros acontece na
manhã seguinte quando os wapté, depois de correrem pela aldeia, dirigem-se à mata e
são seguidos pelos homens que lhes furam as orelhas, no local onde se realiza a
cerimônia religiosa do wai’a. Ali na mata se pintam e partem para a corrida do
tsauri’wa, soprador, um dos últimos rituais do danhono.
Em verdade, para que um hö’wa venha a ter as orelhas furadas sem festa há um
grande leque de apelações, como se pode deduzir das conclusões de Giaccaria & Heide
(1984:161). Qualquer aplicação de sanções aos hö’wa por terem praticado o “mal” tem
que ter aprovação, em tese, dos ĩhire, anciãos, e ĩprédu, homens maduros, na
assembléia do warã, centro da aldeia. Quando os ĩhire e ĩprédu decidem furar a orelha
de um wapté para torná-lo atsitõ pode ainda acontecer uma intervenção através do
A’ãma, defensor da classe de grupo que está sendo iniciada e membro da mesma metade
cerimonial dos dahi’wa. Adiante voltaremos a tratar sobre a escolha e atribuições do
A’ãma. Por hora é suficiente dizer que o A’ãma ao tomar conhecimento, de uma
possível transgressão de conduta dos hö’wa, procura averiguar se de fato ela ocorreu.
Dizem os autores que se o A’ãma confirma as suspeitas da comunidade sobre a violação
de conduta do wapté, um ĩprédu pinta-se de preto, busca o acusado na hö e o conduz até
o centro da aldeia. Ali ele senta-se numa esteira e tem os lóbulos das orelhas furados.
Em seguida, os danhohui’wa vão até a hö e aconselha os seus moradores a não mais
desobedecerem às orientações, sob pena de todos terem as orelhas furadas sem festa
(Giaccaria & Heide, 1984:161).
Como se pode notar o processo ritual do danhono está pautado por tensões e
pressões sobre a classe de idade que está sendo iniciada. Ainda que o período de
“reclusão” não tenha como objetivo evitar que os moradores da casa dos solteiros
116
De outro lado está o grupo dos dahi’wa, composto pelos ‘ritéi’wa, novos
guerreiros. Nesta condição espera-se que eles sejam belicosos, vigilantes e bons
caçadores. Eles foram os últimos iniciados no danhono e, por conseguinte, pertencem a
uma metade oposta em relação aos hö’wa. Durante o processo ritual do danhono é o
grupo que realmente assume uma postura oposicionista. Enquanto os pais e os
danhohui’wa, padrinhos, agem como conselheiros e buscam inculcar os valores da
tradição Xavante aos hö’wa, os dahi’wa, por seu turno, estão atentos a qualquer deslize
que os moradores da casa dos solteiros porventura venham a cometer para que possam
castigá-los. Este castigo, como já dissemos, é tornar o hö’wa um atsitõ -
estigmatizando-o como um transgressor de conduta.
Muitos dos novos guerreiros são líderes em potencial e procuram, desde cedo,
marcar posição na sociedade Xavante. Procurando responder às expectativas que a
comunidade tem sobre seu desempenho numa nova condição social, ou seja, de serem
belicosos e vigilantes, os dahi’wa acompanham secretamente o comportamento dos
hö’wa. Para isto estão sempre atentos às “fofocas” e boatos, que circulam pela aldeia,
sobre a conduta dos hö’wa. A vigilância que os dahi’wa, bem como sua reputação, é tão
intensa ao ponto de um informante afirmar que a festa do danhono era deles. Nesta
ocasião, um hö’wa, filho do informante e sobrinho do antropólogo, deixou o hö e foi
visitar seu grupo doméstico em busca de alimento. Depois de ter almoçado o hö’wa ao
invés de retornar para a hö permaneceu na casa paterna e procurando acompanhar o
acontecia na aldeia. Para isto se posicionava na porta da casa com metade do corpo para
dentro e a cabeça para fora acompanhando o vai-e-vem das pessoas que circulavam pela
aldeia. O pai que estava fora ao chegar e encontrar o filho naquela atitude deu-lhe uma
repreenda mandando-o que imediatamente retornasse para o fundo da casa se ali
quisesse permanecer. Ao acompanhar a cena pedimos que o informante me explicasse o
porquê da reprimenda ao filho. Segundo ele: os dahi’wa estão de olho! Eles são
perigosos! E por quê? A festa é deles, eles tem que demonstrar que são valentes.
Dado que a convivência entre os moradores da casa dos solteiros cria entre eles
um spirit de corps56 e solidariedade não seria prudente da parte dos dahi’wa qualquer
intervenção punitiva sobre algum wapté quando este se encontra com o grupo. Durante
a iniciação do danhono de 1997, na aldeia São Marcos, surgiu o boato segundo o qual
um dos hö’wa estaria tendo encontros amorosos com sua prometida esposa. Os dahi’wa,
56
Cf. Maybury-Lewis, 1984:157.
118
moradores da casa dos solteiros se retiraram para a hö. Ali ficaram sendo vigiados pelos
pais e padrinhos para que sofressem outras investidas por parte dos dahi’wa.
Quanto aos tirowa estes se retiraram para um mangueiral próximo da escola
onde procuravam se recompor. Ficamos sabendo posteriormente que planejavam novas
investidas contras o hö’wa com o intuito de castigar o wapté acusado de transgredir a
norma de conduta. Esta nova investida não se concretizou, entre outros motivos, pela
ação missionária que interveio junto ao tirowa persuadindo-os a abortarem o plano.
Entretanto, uma vez descartado o elemento surpresa, visto que os pais e danhohui’wa se
mobilizaram e montaram guarda nas proximidades da hö em defesa dos hö’wa, não
havia mais chances, pelo menos em tese, para uma nova investida dos tirowa. Em tese
porque ainda haveria esta possibilidade, contudo não para este momento. Os tirowa
poderiam deixar a poeira baixar e escolher outro momento para executar seu plano. E
porque não o fizeram? Neste dia a questão foi tratada na instância jurídica máxima da
sociedade Xavante: o warã! Ali era visível o descontentamento do conselho dos ĩhire,
anciãos, a respeito da atitude dos dahi’wa. Os ĩhire sentiam-se desrespeitados em sua
autoridade ritual sobre a questão. Como já afirmamos o conselho dos ĩhire é quem
delibera sobre a aplicação de sanções aos ho´wa, quando há desvios de conduta. Neste
sentido, a ação dos dahi’wa afrontava esta prerrogativa. Assim a questão de maior
relevância não era a hipotética violação de um hö’wa, mas sim o desrespeito ao
conselho por parte dos dahi’wa. Não podemos esquecer que os ĩhire, anciãos,
constituem a autoridade do grupo doméstico a qual seus filhos estão sujeitos. Desde
modo a reprovação do conselho quanto à atitude dos dahi’wa foi estendida ao âmbito
das relações sociais que se dão dentro dos grupos domésticos. Em outros termos, os
ĩhire, chefes dos grupos domésticos, repreenderam seus filhos, os tirowa, por terem
desrespeitado sua autoridade no gerenciamento do processo ritual.
Uma primeira conclusão que se pode tirar deste episódio é que a instância
principal que delibera sobre aplicações de sanções aos hö’wa por possíveis desvios de
conduta é o conselho dos ĩhire que se reúne cotidianamente no warã, centro da aldeia.
Isto confirma o relato dos missionários Giaccaria & Heide (1984:160ss). Desta
conclusão surge outra questão: se cabe aos ĩhire deliberar sobre sanções aos hö’wa e os
dahi’wa têm conhecimento sobre estes tramites legais por que teriam eles agido de
forma contrária? Não teriam eles sucesso e conseguido fazer de um hö’wa um atsitõ
solicitando permissão ao conselho dos ĩhire? Teriam agido para demonstrarem
120
belicosidade frente à sociedade e à nova classe de idade que estava sendo iniciada? Se
aceitarmos que a ação dos dahi’wa teria ocorrido somente para expressar e corresponder
ao que a sociedade Xavante espera deles enquanto estão vivenciando esta fase do ciclo
de vida estaríamos limitando suas ações à estrutura ritual e, por seguinte, excluindo
margens de ações dos sujeitos e atores rituais.
Para entendermos e explicar melhor a ação desastrada dos dahi’wa em aplicar
sanções aos hö’wa este caso deve estar situada dentro do contexto da ação social. Desta
forma uma ferramenta analítica de uso possível é o conceito de drama social utilizado
por Victor Turner (1974). O autor observou que os Ndembu tinham como características
em sua vida social das aldeias Ndembu uma forte inclinação ao conflito. Turner chama
de dramas sociais os conflitos que se manifestam em episódios que levavam ao
surgimento de tensões publicas (Turner 1974:33). Quando os interesses e atitudes de
grupos e indivíduos encontram-se em explícita oposição, os dramas sociais me parecem
constituir unidades do processo social isoláveis e passíveis de uma descrição
pormenorizada (Turner 1974:33). Estas unidades do processo social devem estar
situadas num tempo histórico. Neste sentido um estudo de caso desdobrado, ou análise
situacional, nos ajuda-nos a entender a ação dos dahi’wa. Isto porque através deste tipo
de coleta e análise do material etnográfico o contexto social no qual situam as ações dos
atores sociais são de grande importância para o entendimento de conflitos. Através da
análise situacional o conflito pode ser incorporado como sendo normal em lugar de
parte anormal do processo social (VAN VELSEN, 1987:345). Quando interesses
individuais e de grupos encontram-se em oposição, a manipulação de normas sociais
pode ser acionada para atingir fins particulares. Isto em curta escala pode desestabilizar
temporariamente a ordem social, gerando uma situação de crise.
DIREITA ESQUERDA
8. ˜
ẼTEPA - (hö’wa, wapté) – em
processo de iniciação (1997).
-----/////-----
O danhono, enquanto um rito de passagem na acepção de Van Gennep (1978),
segundo a qual o fato de estar vivo leva a pessoa a experimentar uma série de passagens
na em sua existência. Tais passagens, de caráter tanto biológico quanto social, são
pautadas por cerimônias que fazem passar o individuo de uma situação determinada a
outra situação igualmente determinada (Van Gennep, 1978:27). Retomando os estudos
de Van Gennep, Turner define igualmente os ritos de passagens como “ritos que
acompanham qualquer mudança de lugar, estado, posição social ou idade” (Van
Gennep apud Turner, 2005:138). Para Van Gennep (1978:31) os ritos de passagem,
quando analisados, podem ser decompostos em três categorias secundárias: ritos de
separação, ritos de margem e ritos de agregação. Se os ritos de passagem admitem, em
teoria, ritos preliminares (separação), liminares (margens) e pós-liminares (agregação)
não há equivalência entre eles tanto em sua importância quanto em sua elaboração
(idem). Turner, sintetizando estas três categorias de ritos de passagem, denominadas por
ele de ritos de transição, resume estas fases da seguinte maneira: a separação é
entendida como o afastamento do indivíduo, ou grupo, seja de um ponto fixo anterior,
na estrutura social, ou de um conjunto de condições culturais (...); no período liminar a
condição do sujeito ritual é ambígua, pois ele percorre um reino que tem poucos ou
nenhum dos atributos dos estados passado ou vindouro; e, finalmente, na terceira fase
ocorre a agregação onde se consuma a passagem concedendo estabilidade ao sujeito do
rito, individual ou corporativo, de modo que este adquire (...) direitos e obrigações de
um tipo “estrutural” claramente definido, e dele se espera um comportamento de
acordo com certas normas costumeiras e certos padrões éticos (Turner, 2005:138).
Aqui, por hora, nos interessa a fase liminar, ou margem, na qual vemos situados
os ho´wa. Embora possa parecer que estejam vivendo uma situação ambígua, pois não
são mais crianças, mas também não são adultos, a nova situação social, que pode ser
chamada de liminar, permite aos hö’wa viverem com grande liberdade, como
procuramos caracterizar acima. Apesar de os dahi’wa estarem atentos a seus
movimentos, sobretudo no que diz respeito ao comportamento sexual, eles procuram
desafiar a ordem estabelecida. Enquanto se espera que os dahi’wa sejam belicosos e
vigilantes, dos hö’wa é esperado que sejam ousados. Deste modo, quando os dahi’wa
conseguem tornar um hö’wa um atsitõ, mesmo com todos os conflitos que isso possa
gerar, eles reafirmam valores e status que a sociedade Xavante espera deles.
123
Oficialmente se espera que os hö’wa sejam obedientes aos danhohui’wa, que aprendam
os cantos e alegrem a comunidade executando-os cotidianamente, e ainda as técnicas de
produção material de artefatos usados nos rituais. Contudo, no dia-a-dia quando não
estão envolvidos em atividades formais suas ações na maioria das vezes podem estar
direcionadas a desafiar a ordem estabelecida. Neste sentido, apoiados pelo espírito de
solidariedade incorporada (Maybury-Lewis, 1984:157) que a convivência na hö, casa
dos solteiros, proporciona, eles partem em aventuras que se descobertas podem lhes
causar constrangimentos publicamente. Do contrário, quando bem sucedidas, podem
lhes trazer status de astutos e destemidos frente à comunidade. O alvo destas aventuras
são, na maioria das vezes, incursões às roças de toco que circundam a aldeia em busca
de milho verde e mandioca, a serem assados nas proximidades da hö.
Durante o tempo em que convivemos com os Xavante testemunhei vários
episódios nos quais os hö’wa desafiaram a ordem estabelecida. FATO 01: Num deles os
wapté estavam se preparando para uma curta expedição de caça pela Terra Indígena.
Considerando que o estoque de caça está se tornando escasso, as expedições de caça,
quando acontecem, mobiliza o levantamento de suprimentos extras a serem levados para
os acampamentos que são montados nos extremos da Terra Indígena. Já fazia algumas
semanas que os missionários e missionárias da missão vinham se queixando sobre o
desaparecimento de víveres da geladeira da ala masculina. As suspeitas recaiam sobre
os moradores da casa dos solteiros. Contudo, ninguém tinha conseguido provas
suficientes para incriminar os hö’wa. A proximidade da saída dos wapté para a
expedição de caça tinha deixado as missionárias em alerta, pois suspeitavam que os
hö’wa fossem “atacar”. Suas suspeitas não eram infundadas. Assim, por volta de duas
horas da madrugada fomos despertado pelos gritos das freiras que diziam haver uma
“corja” de wapté no terreiro da missão. Ainda sonolento descemos correndo, pois nosso
quarto estava no segundo piso do prédio da missão, e no deparamos com a cena um
tanto hilária: as irmãs desesperadas corriam tentando pegar os hö’wa. Fomos solicitados
a participar daquilo que mais parecia uma brincadeira de gato e rato, e por mais que
tentasse não conseguíamos segurar ninguém. A noite era de lua cheia de modo que era
possível ver os hö’wa que corriam de um lado a outro esquivando-se de seus captores.
Depois de várias tentativa sem sucesso fomos rendidos pelo cansaço. O mais perto que
conseguimos chegar de capturar uma wapté foi agarrando-o e quando já
124
57
O interesse por futebol não é uma peculiaridade apenas dos moradores da Terra Indígena Ao
Marcos. Seth Garfield (2001:01) relata sua participação numa roda de canto e dança Xavante durante uma
noite estrelada, em 17 de julho de 1994, na aldeia Parabubure. O canto e a dança não eram em honra e
homenagem à tradição ou aos ancestrais. Estavam comemorando a vitória do Brasil na Copa do Mundo.
Os Xavante de da aldeia São Marcos tiveram mais sorte e assistiram a copa pela televisão enquanto que
os de Parabubure se contentaram em ouvir o jogo pelo rádio, haja vista que houve falte de eletricidade
naquela aldeia no dia do jogo.
58
Trataremos sobre os critérios de escolha bem como das atribuições do aihö´buni adiante.
126
59
Embora possam haver outros rituais como o darini, conforme apontamos no capítulo I.
127
passaporte social, ou seja, ser membro de uma classe de idade, permite que uma pessoa
recém chegada numa aldeia possa ser inserida no contexto social e ritual. Contudo, o
pertencimento a uma classe de idade não é o único marcador social que opera neste
sentido. Filiação clânica, alinhamento faccionário constituem outras possibilidades de
identificação social. Segundo Maybury-Lewis (1984:227)
(...) um homem que chega a uma nova aldeia precisa aprender de que
maneira os vários grupos estão relacionados do ponto de vista das
disputas faccionárias, para poder agir adequadamente.
camaradagem são comuns durante o tempo liminar. Neste sentido, entre os Ndembu de
pequenos grupos em torno de fogueiras. Ainda segundo este autor, supõe-se que os
neófitos estejam ligados por laços especiais que persistem até a velhice. A categoria
nativa que os Ndembu de Zâmbia utilizam para caracterizar esta amizade é chamada
hospitalidade quando esteja em trânsito pelas aldeias. Não obstante, estas categorias dos
Entre os Xavante este tipo de amizade foi descrito por Aracy Lopes em Nomes e
amigos: da prática Xavante a uma reflexão sobre os Jê, onde retoma as descrições de
esta autora é possível distinguir entre os Xavante dois sistemas de relações sociais que
classe de idade que está inserida na hö, casa dos solteiros, e a classe de idade
os laços estabelecidos entre dois ou três membros da mesma classe de idade enquanto
estão vivendo na hö e se estendem por toda a vida, que são expressos através da
categoria da´amõ60 (Lopes da Silva 1986: 204 e 214). Ambas as relações são
60
A categoria que expressa esta relação é o iamõ, que significa, de acordo com Giaccaria &
Heide (1984:296) colega, companheiro especial, enquanto que para Maybury-Lewis (1984:158) o termo
pode ser literalmente traduzido por meu outro ou meu parceiro. Acrescido do prefixo da, que segundo a
129
Gramática Xavante, Pe. Georg Lachnitt (1999:33ss), torna o termo impessoal dando sentido genérico.
Assim, i´ãmo – colega, companheiro, quando recebe o prefixo da fica da´ãmo – do colega, do
companheiro, ou o colega da pessoa, o companheiro da pessoa.
130
termo itsiutsu. Segundo o relato dos autores estas categorias de referências serão usadas
por toda a vida do mesmo modo que a posição assumida na admissão à casa dos
solteiros será mantida durante as danças e contas durante e após o danhono. Para
Maybury-Lewis (1984:158) a importância deste tipo de relação está no fato de os laços
de amizade formal, estabelecidos entre membros da mesma classe de idade, ligar
homens de clãs diferentes. Ainda segundo o autor estes laços somente teriam vigor
durante os anos em que a classe de idade estiver ativa.
Os dois quadros, na página anterior, mostram as transformações que vêm
ocorrendo na cultura Xavante. No primeiro, a planta da hö revela-se em formato
circular, segundo o modo tradicional Xavante de edificação das casas, enquanto que
noutro a planta adotada está em formato retangular. Note-se que a disposição de seus
ocupantes segue novas possibilidades. Nas várias ocasiões em que visitamos a casa dos
solteiros em diversas aldeias observamos que sua ocupação interna não era tão rígida
como o esquema apresentado no quadro doze. Isto nos indica que a relação de amizade
formal entre i’amõ e itsiutsu não exige que eles estejam coabitando lado a lado na casa
dos solteiros. Numa das aldeias devido à quantidade de iniciandos havia mais de uma
hö. Neste caso vez ou outra os moradores das duas hö trocavam de lugar. No caso da
aldeia São Marcos durante a noite os moradores da casa dos solteiros optavam por
dormir nas varandas da escola e nas proximidades da igreja.
Dada à importância que a relação de amizade formal assume na sociedade
Xavante este tema foi retomado e ampliado por Aracy Lopes da Silva na obra que
citamos acima. Segundo a tese defendida por esta autora as relações de amizade
formalizada não se findam quando as classes de idade deixam de ser ativas. Para Lopes
da Silva (1986:216),
(...) estes laços vão se renovando e apenas os que são estabelecidos
após a iniciação é que são mantidos, inalterados, para sempre. Os
que são estabelecidos na casa dos solteiros, são depois substituídos
por relações de afinidade que passam a ser operativas a partir da
atualização do casamento destes jovens.
iniciados estiverem vivenciando outras fases do ciclo de vida. Segundo Lopes da Silva
(1986:216) a ocasião onde isto acontece seria na cerimônia de luta chamada wa’i e na
corrida do tsa´uri´wa, descrita no capítulo IV. Aqui, de acordo com a autora, a escolha
de novos i’amõ ocorre entre os que viviam o ciclo de vida ‘ritéi’wa e pessoas de classes
de idade superiores (idem). Tal afirmação carece de detalhamento etnográfico de como
isto efetivamente acontece. Em nossa experiência etnográfica observamos duas
modalidades de luta wa’i: a primeira ocorre em diversos momentos durante o período de
“reclusão” dos moradores da casa dos solteiros e têm como seus oponentes os
danhonhui’wa, padrinhos; a segunda modalidade de luta wa’i ocorre somente uma vez
após todas cerimônias do danhono. Descreveremos etnograficamente estas modalidade
mais adiante.
O danhono permite que novos laços de amizade formal sejam estabelecidos
entre membros de uma classe de idade mesmo depois de sua iniciação. Isto acontece
quando os membros daquela classe de idade estiverem vivenciando o ciclo de vida ĩ
prédupté durante o desempenho do papel de danhohui’wa. Nesta ocasião eles adquirem
um novo i’amõ entre os membros femininos de sua classe de idade por ocasião da dança
do wanaridobe, adiante daremos mais detalhes etnográficos desta aquisição.
Lopes da Silva sintetiza com muita clareza a importância do danhono dentro do
sistema de aquisição de amizade formal. Segundo a autora,
a cada nova iniciação, ou seja, sempre que uma nova classe de idade
passa a integrar o corpo de homens maduros de uma aldeia, há o
estabelecimento de novos laços de i’amõ por virtualmente todos os
homens iniciados da aldeia, mesmo os mais idosos. Isto significa que
toda a comunidade se reorganiza ou, pelo menos, expande os laços de
aliança e amizade que se sobrepõem a relações hostis ou de evitação,
já que para tornar-se i´amõ um do outro, dois indivíduos precisam
pertencera diferentes metades de parentesco (Lopes da Silva,
1986:217).
Para descrever esta cerimônia partimos mais uma vez de relatos clássicos e em
seguida inserimos nossas observações. Segundo Giaccaria & Heide (1984:153), a
cerimônia começa com a convocação dos wapté pelos danhohui’wa para cantar no
entardecer perdurando a noite toda. Quando já é madrugada o warã´wa, aquele que
chega primeiro ao centro da aldeia, acende o fogo e emite gritos sinalizando aos wapté e
danhohui’wa que parem a dança e vão se pintar. Os wapté pintam-se na casa dos
solteiros, hö, enquanto que os danhohui’wa o fazem no centro da aldeia, no warã.
Quando todos estão pintados os danhohui’wa executam o canto uiwedenho’re,
comumente entoado após a corrida de buriti, e tocando um tipo de flauta chamado
upawã dirigindo-se a hö, onde os wapté os aguardam. Os wapté os aguardam sentados a
frente da hö, ficando dentro somente os aihö’ubuni, literalmente o virgem, wapté cujas
orelhas, por prêmio já foram furadas, ficam dentro da hö (Giaccaria & Heide,
1984:153). Eles saem somente depois que a luta teve seu início.
A luta, que ocorre no centro da aldeia, consiste em agarrar o oponente pelo
tronco e derrubá-lo. O danhohui’wa convoca, a seu critério, o wapté com o qual deseja
lutar, observando apenas que não seja de seu clã. Em lados opostos os oponentes se
dirigem de encontro um ao outro, onde o danhohui’wa ameaça golpear wapté com um
bastão ou borduna, jogando-o de lado e agarra o wapté pelo tronco. A performance
repete-se até que ambos estejam cansados, onde um diz: toã - basta, chega; e retornam
aos seus lugares. Segundo os autores, quando todos já passaram pela arena de luta os
danhohui’wa podem liberar a participação dos ‘watébrémi, meninos pequenos ainda não
admitidos como moradores da casa dos solteiros, e das ba’õnò, menininhas. Estes em
grupo lutam contra os danhohui’wa.
Esta parte do ritual deveria encerrar-se com o surgimento do sol. A segunda
parte consiste em dançar pela aldeia, seguindo o itinerário próprio da classe de idade
que está inserida na hö, até por volta de três horas da tarde. Com o fim dos cantos e
danças os wapté dirigem-se ao grupo doméstico de onde retornam trazendo um tipo de
bolo de milho assado nas cinzas chamado nonhama hopö´õno que será entregue a seu
danhohui’wa particular, escolhido conforme descrevemos no início deste trabalho. A
cerimônia encerra-se retornando os wapté para a hö e os danhohui’wa retornam para
suas casas.
133
61
A pintura dos wapté, segundo Müller (1976:46) não recebe um nome específico: este motivo
não possui nome e é identificado como pintura do wapté (categoria de idade ou recebe o nome da faixa
vermelha no ombro (dajuné)[passim]. Giaccaria & Heide (1984:290) também não apresentam um nome
para a pintura dos wapté. Em seus esquemas de pinturas Xavante, número 18, apenas dizem tratar de
pintura dos wapté para a corrida do buriti e para o waiño’re (idem). Esta última categoria, waiño´re ou
wa’i’nho’ré é traduzida pelos autores como canto depois da luta. Para este tipo de pintura utiliza-se
urucum com o qual se faz uma faixa de ombro a ombro, tanto na frente quanto nas costas. No abdômen
até altura do umbigo desenha-se um retângulo. Nas costas, partindo da faixa que foi desenhada, pinta-se
um retângulo até a cintura. A pintura dos danhohui´wa usada para esta ocasião é chamada de duhö, onde
se pintam braços, tronco e cochas em preto, com carvão, e desenha-se um retângulo vermelho, com
urucum, no abdômen e nas costas outro retângulo da cintura ao pescoço, também desenhado com urucum.
134
danhohui’wa que caminhavam com o tronco inclinado para frente, de modo semelhante
ao andar quando se procura pistas de uma caça. A maioria deles trazia uma borduna
embaixo do braço, enquanto que outros além da borduna tocavam um tipo de flauta
chamada upawã e emitiam gritos anunciando sua chegada. Os danhohui’wa
posicionaram-se a frente dos wapté ocupando a outra extremidade da arena. Neste
ínterim a comunidade já estava toda reunida em torno da arena atrás dos lutadores.
Alguns, para terem visão privilegiada dos duelos, chegaram mais cedo e trouxeram suas
cadeiras e bancos.
Abrindo os duelos um dos danhohui’wa fingindo-se ser um velho, a julgar pelo
modo de andar, onde segurava a borduna como se fosse uma bengala e com a outra mão
apoiada nos quadris simulava ter dificuldades para caminhar, dirigiu-se até o grupo de
wapté e indicou um deles que prontamente levantou e foi em sua direção. Fazendo-se de
conta como se fosse golpear o wapté com a borduna e depois a arremessando de lado os
dois se agarram pelo tronco e o dahohui´wa o jogou no chão. O duelo repetiu-se por
mais duas ou três vezes. Esta primeira performance levou a comunidade que assistia ao
delírio, que riam e comentavam o desempenho do “velhinho” [ĩhire] frente ao wapté. A
entrada do danhohui’wa fingindo-se ser um velho, às quedas dos lutadores e sua
recomposição eram motivos para muito riso entre os presentes. Ao término, uníssonos
gritavam: hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, pãrĩ; expressão de agradecimento muito usada pelos
Xavante ao término de rituais. Outras lutas seguiram-se depois desta. Numa delas o
danhohui’wa entrou na arena com um pacote de farinha e desafiou um dos wapté.
Quando o wapté se aproximou o mesmo colocou um punhado de farinha na boca e
arremessou o restante sobre seu oponente. O danhohui’wa pôs-se a correr pela arena
sendo perseguido pelo wapté e logo alcançado por este que o derrubou. Foi uma das
cenas mais hilárias dos confrontos. Em alguns casos, quando o danhohui’wa era muito
forte, um grupo de wapté se reunia para tentar derrubá-lo, provocando mais risos entre a
platéia.
Toda a cerimônia durou cerca de duas horas. Não observamos na luta que
assistimos, a entrada dos ‘watébrémi, meninos pequenos ainda não admitidos como
moradores da casa dos solteiros, e das ba’õno, menininhas. Em seguida os participantes
foram dançar no entorno da aldeia seguindo o itinerário próprio da classe de idade ẽtepa
˜
(em sentido horário). Estes cantos e danças recebem o nome de wa’i’nho’ré, canto
depois da luta. Como em outras cerimônias do danhono, são os danhohui’wa os
135
2.5.2.1 - O A’ÃMA
A categoria A’ãma foi traduzida por Giaccaria & Heide (1984:291) como:
defensor, advogado de um certo grupo de idade [...]. Os Xavante adotaram a tradução
advogado para referirem-se aqueles atores rituais. Não obstante, seu modo de atuação
justifica esta adoção. Durante todo o processo ritual do danhono, e também fora dele,
sempre que houver um ritual envolvendo classes de idade que se coloquem em
oposição, segundo a configuração de metades cerimoniais, conforme descrito no início
deste trabalho, os a’ãma estarão atuando em prol da classe de idade júnior. Não tivemos
oportunidade de acompanhar a cerimônia que consagra ou instaura a condição de
a’ãma. Entretanto, participamos de vários rituais nos quais sua presença e interseção
estiveram presente. A seguir faremos uma descrição da cerimônia de escolha dos a’ãma.
Tomamos como referência o único relato completo do ritual disponível em Giaccaria &
Heide (1984:155_7), além dos relatos que alguns a’ãma nos forneceram durante
entrevistas.
A escolha dos a’ãma acontece depois da admissão formal de uma nova classe de
idade na casa dos solteiros, quando seus membros se tornam oficialmente wapté.
Considerando que os a’ãma também pertencem a uma classe de idade estes devem ser
escolhidos entre os membros da terceira classe de idade acima daquela que está inserida
na hö, casa dos solteiros. Tendo como base as iniciações do danhono que tem
acontecido na Terra Indígena São Marcos, aldeia homônima, constatamos que os a’ãma
têm sido escolhidos entre os membros da classe de idade que desempenhou os papéis de
danhohui’wa na última iniciação. No quadro número 14, na página seguinte, vemos que
137
a classe de idade abare´u, que fora wapté em 2005, teve como danhohui’wa os
membros da classe de idade tirowa, enquanto que noutra metade os membros da classe
de idade ẽtepa
˜ - última classe iniciada, assumiram o papel de dahi’wa, nesta mesma
metade, entre os membros da classe de idade os hötörã, que desempenharam o papel
danhohui’wa em 1997, foram escolhidos os dois a’ãma da classe de idade abare´u.
Segundo o relato de Giaccaria & Heide os pretendentes a desempenharem o
papel de a’ãma devem pedir aos anciãos que se reúnem cotidianamente no centro da
aldeia. Na eventualidade de haver muitos candidatos escolhem-se os dois primeiros que
se candidataram. Uma vez aprovados, os candidatos retornam à suas casas enquanto os
danhohui’wa dirigem-se á hö, casa dos solteiros e põem-se a gritar. Ao ouvirem os
gritos dos danhohui’wa, os a’ãma cobrem a cabeça com um tipo de abanico chamado
renhamri62 e começam a CLASSES DE IDADE
chorar. Os danhohui’wa
juntamente com os wapté DIREITA ESQUERDA
dirigem-se a aldeia e
1. ABARE'U (wapté)
cantam, à tarde, seguindo o 2. NODZÖ'U
63
estilo dahipopo . No dia 3. ANAROWA
62
O renhamri se parece como uma pequena esteira e pode ser usado como prato. Nas cerimônias
onde há troca de alimentos este objeto é usado para transportá-los.
63
Neste estilo os dançarinos cantam e dançam de mãos dadas e flexionam levemente os joelhos
seguindo a melodia do canto.
64
Esta categoria pode ser traduzida como canto do cesto de carne, onde: abadzeinhi-rè – cesto
grande de carne e dapã – melodia - grito.
138
ubdö´wa65). Quando todos estão prontos o resultado da caçada é dividido em dois centos
fabricados pelos danhohui’wa. O canto abadzeinhi-rè dapã é novamente entoado e, em
fila, os wapté dirigem-se para a hö enquanto os dois danhohui’wa que haviam se
pintado tomam os cestos com o produto da caçada e dirigem-se à casa dos a’ãma.
Considerando que os dois a’ãma são de clãs opostos, ou seja, um öwawẽ e um
po´redza´õno, a entrega dos cestos de carne dá-se de modo alternado entre os clãs. O
cesto de carne é deixado na frente da casa do a’ãma que depois de advertidos, lançam
um grito e param de chorar. O cesto de carne é levado para dentro da casa pela mulher e
depois será redistribuída pelo irmão mais velho do a’ãma, que não pode tocar na carne
que lhe que fora entregue pelo danhohui’wa sob pena de sentir-se envergonhado por ser
a primeira vez que recebe carne.
As mulheres dos a’ãma preparam, no dia seguinte, bolos de milho ou batatas e
frutas que serão entregues aos danhohui’wa. Assim, por volta do meio dia, dois dos
danhohui’wa, de clã oposto do a’ãma, dirigem-se à suas casas e recebem o bolo que é
levado à hö. Ali o bolo é dividido para os demais danhohui’wa por dois wapté,
preferencialmente os primeiros que foram inseridos na hö. Os wapté não consomem o
bolo feito para os danhohui’wa.
Eventualmente os a’ãma podem pedir aos danhohui’wa que os ajudem a abrir
uma roça, refazer sua casa ou recolher cocos de babaçu. Para isso eles, ou somente
aqueles que estão precisando de ajuda, manda um dos filhos avisar os danhohui’wa
sobre a necessidade do trabalho. À tarde o a’ãma põe-se a chorar. Este choro, dizem
Giaccaria & Heide, deve durar enquanto perdurarem os trabalhos. Como retribuição
pelos trabalhos realizados o a’ãma, em companhia de seus parentes, faz uma caçada
cujo resultado será entregue aos danhohui’wa e wapté. Cerimonialmente o produto da
caça é levado à casa do a’ãma e depois, a tarde, um danhohui’wa vem buscá-lo e o leva
à hö, onde é dividida com os demais membros da classe de idade que desempenha o
papel de danhohui’wa. Porém, os wapté não podem comer desta carne.
Quando acontece a primeira corrida de buriti após a escolha dos a’ãma serão
eles os primeiros a iniciarem o transporte da tora, apoiando a classe de idade que está
em iniciação. Para esta ocasião cerimonial, e para as demais, os a’ãma pintam o corpo
todo em preto utilizando-se de carvão extraído da queima do caule da folha de buriti e
amarram um colar de algodão com uma pena de ema pendente nas costas.
65
Respectivamente: colar com pena de papagaio, colar de algodão que fica sob a clavícula e
colar de dente de capivara.
139
Segundo o relato Giaccaria & Heide existe a possibilidade do a’ãma ser do sexo
feminino. Neste caso a escolha do a’ãma, se for mulher, segue os mesmos
procedimentos. Entretanto, dizem os autores, elas não participam da corrida de buriti
acima mencionada. Nos ritos finais do danhono acontece uma corrida, a ser descrita a
frente, chamada tsauri´wa, soprador. Nesta corrida os a’ãma sendo do sexo masculino
são os primeiros a largarem no início. De outro modo, sendo eles do sexo feminino,
participam a partir da metade do percurso. A pintura corporal e os ornamentos são os
mesmos para homens e mulheres que assumam o papel de a’ãma. Eles utilizam uma
modalidade de pintura chamada ahu’rã66 – onde braços, pernas e tronco são pintados de
preto, e, como ornamentos é utilizado o itsõ’rebdzu’a – colar de algodão amarrado no
pescoço, como uma gravata borboleta, com as pontas desfiadas semelhantes a pompons,
e uma pena, branca, nova de ema chamada madzatsu. Nas entrevistas que realizamos
com alguns a’ãma eles não só confirmaram a possibilidade da participação feminina no
desempenho deste papel como também nos indicaram a existência de uma mulher, que
vivia na Terra Indígena Pimentel Barbosa, pertencente à classe de idade ẽtẽpab´raba,
portanto, muito velha, visto que houve uma renovação de sua classe de idade na
ocupação da casa dos solteiros indicada pelo sufixo ´brada, tempo estimado em
quarenta anos. A certeza de que esta mulher tinha sido um a’ãma estava em seu modo
de falar alterado, como veremos adiante. Soubemos que durante o processo de iniciação
da classe de idade ẽtepa
˜ , entre os anos de 1992 e 1997, estava decidido que um dos
a’ãma seria uma mulher pertencente à classe de idade ai’rere. Entretanto, outro membro
daquela classe de idade que vivia na cidade apareceu e reivindicou sua participação
como a’ãma, vejamos o relato:
Pesquisador: L., tem a’ãma mulher. L.: Tem! Existe!
Antigamente, né. Pesquisador: Antigamente! E agora? L.:
...quando eu ... me convocou era pra ser [a’ãma]a I., era
né, ela concordou para ser a’ãma ... mas como o L.
apareceu vindo da cidade, né?, então ele entrou de
repente. Porque o L., ele aceitou também. Então a I.
largou, afastou67...
66
A pintura ahu’rã é usada também pelos moradores da casa dos solteiros durante uma
modalidade da corrida do noni, a ser descrito a frente, com o diferencial nos ornamentos corporais.
67
Entrevista realizada em 18/07/2007. Optamos por apenas mencionar a inicial dos nomes para
não expô-las.
140
Este relato sobre a possibilidade e interesse de uma mulher ser a’ãma revela-nos
ainda tensões a respeito da escolha deste papel. Na sociedade Xavante onde o controle
do processo ritual está em mãos masculinas é rara, mas não impossível, a participação
feminina no papel de a’ãma. Nossa hipótese para que isto venha se efetivar está nas
circunstâncias do processo ritual, em particular nas tensões entre as metades formadas
pelas classes de idade. Considerando que o a’ãma e sua classe de idade pertencem à
outra metade em oposição a que está sendo iniciada, em caso de tensões entre estas
metades é factível que membros masculinos da classe de idade que deveria
desempenhar este papel se neguem a fazê-lo. Neste caso estaria aberto o espaço para
que de fato as mulheres viessem a desempenhar o papel de a’ãma. Em verdade, a
posição e presença do a’ãma durante o processo ritual, em relação à sua classe de idade
e à metade que está inserido é um tanto ambígua. Na iniciação anterior eles
desempenhavam o papel de danhohui’wa e estavam muito próximos apoiando,
defendendo, protegendo e patrocinando a iniciação dos wapté, que pertenciam à classe
de idade júnior de sua metade. Agora eles literalmente se colocam contra seus wapté,
afilhados, que vivenciam o ciclo de idade dahi’wa. Tal ambigüidade pode ser traduzida
pela palavra traição. Durante trabalho de campo enquanto entrevistava um dos a’ãma
da classe de idade abare´u, última que passou pelo processo de iniciação, um dos
dahi’wa acompanhava a conversa desabafou: ...ele é um traidor! Ao dizer isso o
dahi’wa se afastou de nós.
Dissemos acima que a categoria a’ãma pode ser traduzido por advogado,
defensor. Mas qual seria de fato seu papel ritual e seu modo de agir que algumas vezes o
leva a ser chamado de traidor? Haveria alguma recompensa que justificasse o fato de se
colocar contra os membros de sua metade em especial seus afilhados, os wapté, quando
ele foi danhohui’wa?
Dissemos acima que durante um processo de iniciação um wapté, morador da
casa dos solteiros, pode vir a ser acusado de transgredir uma regra de conduta, ou como
traduziram os missionários salesianos: ...quando um wapté faz mal68. Neste caso ele
pode ser castigado e ter a orelha furada sem festa, ou seja, sem as demais cerimônias
que compõem o danhono. Tal castigo confere-lhe o estigma de atsitõ. Esgotada todas as
instancias de apelação e mesmo que haja consenso sobre uma ação punitiva [...] A
decisão definitiva, qualquer que seja, é subordinada à palavra do a’ãma (Giaccaria &
68
Cf. Giaccaria & Heide 1984:161.
141
69
O controle sobre os projetos de saúde indígena deixaram de ser gerenciados pela FUNAI e
foram transferidos para a FUNASA – Fundação Nacional de Saúde.
142
70
Refere-se a mesma classe de idade na qual o pesquisador está inserido.
71
Ponto de referência localizado na estrada que dá acesso a aldeia N. S. de Guadalupe. É a
última descida, sentido cidade/aldeia, antes de chegar à aldeia N. S. de Guadalupe. Ali havia uma placa de
sinalização, colocada pelos missionários Salesianos quando estes abriram a estrada, com a inscrição
devagar.
143
72
Anos depois, em 2002, este a’ãma deixou a aldeia São Marcos em decorrência dos conflitos
faccionais que levaram a cisão da aldeia, e foi um dos fundadores da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe.
Nesta aldeia L. houve uma disputa pelo posto de cacique e o a’ãma juntamente como outros grupos
domésticos fundaram a aldeia Nossa Senhora de Fátima.
144
apoiando, né? Até os velhos a’ãma, o João Brabo, né? Ele me apoiou,
ele me chamou. Ai eu concordei. Eu vou querer, eu vou aceitar o
a’ãma. Ai concordou. Todo mundo me gostaram, né? Até as pi’õ,
mulher, moça. Pesquisador: principalmente, né? Informante: risos!
(...).
uma carona no caminhão que leva os competidores até o início da corrida. O caminhão
nos levou até o provável local, em seguida outra viatura, da FUNASA, passou pelo local
levando a tora de buriti para um ponto mais a frente, cerca de um quilometro e meio do
previsto. Juntamente com outros corredores nos dirigimos até aquele local. Optamos por
caminhar ao lado de um a’ãma, já de certa idade. Enquanto caminhávamos ele
explicava como acontecia a escolha do a’ãma. Ao final de suas explicações, sabendo
que este a’ãma era alinhado com o pensamento catequético dos missionários, haja visto
que também desempenhava o papel de agente de pastoral e era catequista, repeti a
mesma questão que havia feito aos demais a’ãma: é verdade que o a’ãma pode ter
relações sexuais com qualquer mulher? No que ele respondeu sorrindo: o a’ãma
respeita todas as mulheres! Entretanto, depois de um breve silêncio, acrescentou: o
a’ãma parece que tem um imã. Ele atrai todas as mulheres! Acredito que esta seja uma
motivação importante que os candidatos ao papel a’ãma levam em consideração quando
se prontificam a exercê-lo. Afinal, nos parece que nem só de interesses e arengas
políticas vivem os homens Xavante.
Uma vez que os a’ãma são aceitos para desempenhar seu papel ritual eles
passam a acompanhar todas as cerimônias que compõem o processo de iniciação. Em
todos os rituais, eles têm autoridade absoluta. Esta autoridade consiste em poder
interromper os rituais sempre que observarem que os iniciandos estão sendo submetidos
a obrigações que estejam além de sua capacidade física, ou que venham a comprometer
seu desempenho em outro momento do processo ritual. Um exemplo da atuação dos
a’ãma pode ser visto durante a corrida do tsauri’wa, soprador, quando eles
acompanham os dahi’wa fiscalizando sua conduta no intuito de evitar que estes se
utilizem de substâncias proibidas que possam prejudicar a saúde dos iniciandos.
Naquela corrida os dahi’wa podem utilizar algumas substâncias, como por exemplo, o
pó extraído da raiz de algumas plantas, com a finalidade de deixar os iniciandos
atordoados e levando-os ao desmaio.
Na iniciação da classe de idade ẽtepa
˜ os a’ãma tentaram impedir, sem sucesso,
que os dahi’wa utilizassem desodorante liquido, que eram esguichados nos iniciandos
durante a corrida. O resultado foi um clima de muita tensão entre pais e danhohui’wa
versus dahi’wa e membros de sua metade no fim da corrida, que se conclui no centro da
aldeia. Em sua defesa os acusados de utilizar desodorante, além de negar o fato,
defendiam-se fazendo eles próprios acusações, quando os dahi’wa foram iniciados os
146
membros da classe de idade que naquele momento tinham este papel ritual teriam
utilizado veneno BHC e DDT que foram aspergidos sobre os iniciandos. Portanto,
tratava-se de uma vingança que os a’ãma não puderam evitar. Retomaremos estes dados
quando estivermos descrendo a cerimônia da corrida do tsauri’wa. De mais a mais, os
a’ãma transitam livremente entre os dahi’wa e os wapté, sobretudo entre os primeiros.
Durante o processo ritual eles estão atentos a qualquer atitude suspeita dos dahi’wa em
relação aos moradores da casa dos solteiros.
O exposto nos ajuda a entender o porquê do a’ãma ser acusado de traição.
Considerando a dinâmica dos rituais de iniciações do danhono parece que o artifício da
vingança está sempre presente. Neste sentido, os dahi’wa de hoje esperam que os
a’ãma, que foram seus danhohui’wa, na última iniciação, os apóiem em seus projetos de
vingança sobre os atuais iniciandos. Entretanto, se a iniciação anterior àqueles que
teriam sido “vítimas” da outra metade cerimonial, cujos membros que tinham o papel de
dahi’wa, e que, portanto, demonstraram ser valentes deixando os iniciandos em situação
de vergonha pública, na iniciação atual eles procuram devolver a vergonha pública a
que foram submetidos no passado. Em caso de sucesso eles estarão correspondendo ao
que se espera deles no momento atual do processo ritual. Do contrário, em caso de
fracasso, a vergonha pública se dá duplamente. Ou seja, foram “vitimas” no passado e
hoje não conseguem infligir a marca da vingança nos membros da metade oposta. Os
a’ãma, movidos pela ética do papel ritual que deles é esperado, ou seja, defender os
wapté, e que, portanto, pertencem à outra metade, ao se colocarem contra os projetos de
vingança dos dahi’wa, membros de sua metade, são por estes considerados traidores.
Ao transpormos a dinâmica ritual para o campo político podemos dizer que a lógica do
pensamento de vingança presente num momento será o estopim de conflitos faccionais
em outros momentos da vida social Xavante. Neste sentido, preliminarmente podemos
concluir que o sentimento de vingança pode ser o combustível que alimenta as tensões
entre as facções. Voltaremos a estas considerações na conclusão deste trabalho.
Após a conclusão do processo de iniciação os a’ãma matem o status ritual,
porém, sem exercê-lo na próxima iniciação. Há duas maneiras de identificar aqueles que
desempenharam o papel ritual de a’ãma. A primeira diz respeito ao modo como os
a’ãma passaram a falar, conforme o quadro73 abaixo:
73
Este quadro foi elaborado a partir de Giaccaria & Heide (1984:157) acrescido de dados
coligidos durante o trabalho de campo.
147
abreviada ‘ro. No caso de seu tio materno que teve sua filha casada com o filho do
a’ãma, logo após o fim da iniciação, ocorreu também uma mudança nas relações e na
terminologia de parentesco. O pai da noiva passou a ser considerando watsini74 pelo
74
De acordo com Giaccaria & Heide (1984:117) a categoria watsini é o conjunto dos pais
daqueles que podem desposar os meus filhos. São, portanto, de grupo diverso meu e seus filhos não têm
nenhuma relação de parentesco com os meus.
148
a’ãma. Ele (o a’ãma), por sua vez, deixou tratar todos os parentes de seus watisni pela
categoria ‘roptsi ou ‘ro.
2.5.2.2 - OS AIHÖ’UBUNI
75
A categoria tso’rebdzu’wa pode ser traduzida como o dono do colar de algodão. Tso’rebdzu
um tipo de colar de algodão dado ao filho da irmã. Por esta ocasião o MB, irmão da mãe ao entregar o
colar torna-se danho’bdzu’wa, pai cerimonial.
149
Entre suas atribuições está o exercício da liderança junto aos wapté, moradores da casa
dos solteiros. Durante a realização das diversas cerimônias que acontecem durante o
período de “reclusão”, entre elas, por exemplo, os cantos executados diariamente na
aldeia, são os aihö’ubuni que tomam frente na fila na condução dos demais wapté para
sua execução. Além da posição a frente da fila nas cerimônias, é possível identificá-los
pelo uso de ornamentos corporais específicos. O colar de pena de mutum, a’a’a bö, é
um destes ornamentos utilizados nas cerimônias.
Uma vez definido quem serão os novos pahöri’wa, os pahöri’wa ĩté comunicam
sua decisão aos pais dos candidatos que podem recusá-la individualmente, já que o
papel ritual deve ser exercido por membros do clã. Em acordo com os pais do candidato
os pahöri’wa ĩté dirigem-se até hö, onde os wapté os aguardam sentados à frente da
casa, e fazem os eleitos se levantarem. Por esta ocasião um dos danhohui’wa, do clã
öwawẽ, entoa um canto com estilo de dança dahipopo, acompanhado pelos demais
wapté. Os dois candidatos a pahöri’wa são conduzidos até o rio onde executam o ritual
de bater água, datsi’watè, para amolecer os lóbulos das orelhas. Eles retornam à hö e
aguardam o raiar do dia quando terão os lóbulos das orelhas furados por um dos
danhohui’wa. Os demais wapté pintam-se com o motivo tsanapré76 e aguardam até que
sejam furadas as orelhas dos pahöri’wa. Ao término desta parte da cerimônia os wapté,
conduzidos por um dos danhohui’wa, dirigem-se à aldeia onde executam um canto com
estilo de dança dapraba. Ao término deste canto outro danhohui’wa irá reunir-se ao
grupo e entoar outro canto. Todos os danhohui’wa entoarão cantos juntamente com os
wapté pela aldeia. Neste sentido, considerando que são muitos os danhohui’wa para
76
Neste estilo de pintura desenha-se um retângulo no abdômen e nas costas. Nos tornozelos até
metade da canela pinta-se de carvão, de modo semelhante a uma meia. Como ornamento corporal utiliza-
se cordinhas de embiras nos punhos e tornozelos e o colar de algodão amarrado no pescoço.
150
entoarem o canto esta cerimônia se estende durante o dia todo. Estes cantos não são
iguais e são de propriedade daqueles que o entoaram. Somente o estilo de dança pode
ser o mesmo. De mais a mais, como em outras cerimônias onde o canto perdura o dia
todo, na escolha dos pahöri’wa abre-se com o estilo de dança dapraba seguida pelo
estilo dadzarõno, até o penúltimo canto, para depois encerrar-se com dapraba
novamente.
Após a cicatrização dos furos nos lóbulos das orelhas os pahöri’wa irão
introduzindo batoques auriculares, chamados dapo’rewa’u, maiores para aumentarem o
tamanho dos furos tendo em vista o uso de um ornamento confeccionado com dentes de
capivara, ipo’redza’ru ou dapo’redza’ru, que será introduzido nos lóbulos no dia da
cerimônia que recebe o nome de seus oficiantes, pahöri’wa. Diante disso pode se dizer
que estes wapté são virtualmente pahöri’wa, haja visto que não se realizou ainda a
cerimônia que os oficializam enquanto tal.
A cerimônia de escolha daqueles que serão os pahöri’wa marca o fim da
autoridade dos aihö’ubuni frente aos demais wapté. Deste dia em diante serão os dois
pahöri’wa que tomarão a frente da fila formada pelos moradores da casa dos solteiros
durante a realização de rituais na aldeia. Considerando que tanto os pahöri’wa quanto os
aihö’ubuni devem ser membros do mesmo clã, o po’redza’õno. A troca de posições de
atores rituais pode ser um bom argumento para justificar a prevalência de membros
deste clã frente ao exercício da chefia Xavante nas aldeias. Desconstruiremos esta
hipótese em outro capítulo deste trabalho.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:154) no mesmo dia que ocorre a cerimônia de
escolha dos pahöri’wa escolhe-se também aqueles que serão oficiantes da cerimônia
tébé, cerimônia que confere o mesmo nome a eles. Entretanto, dizem os autores, (...)
este reconhecimento não comporta nenhuma função ou importância particular quando
são wapté (idem). Não obstante, como ocorre entre os pahöri’wa, eles assumem uma
posição fixa na fila cerimonial.
A partir de então da fila cerimonial será composta tendo a frente os dois
pahöri’wa, primeiro o mais velho seguido pelo mais novo, os dois tébé, obedecendo
igualmente à idade biológica, o aihö’ubuni mais velho seguido por outro wapté. O
aihö’ubuni mais novo posiciona-se no meio da fila e, depois dele, os demais wapté
alternando-se de acordo com a filiação clãnica. Assim, completa-se a definição de
151
origem para desempenhar ali o papel de aihö’ubuni. Portanto, não sendo necessário
passar por outro processo de escolha.
A aldeia Jesus de Nazaré teve que escolher mais dois ocupantes do cargo de
aihö’ubuni, os dois tébé, um dos pahöri’wa bem como os dois a’ãma. Aqui não houve a
realização dos rituais que precedem a entrada dos moradores na casa dos solteiros.
Embora Jesus de Nazaré fosse uma aldeia nova os hö’wa, moradores da casa dos
solteiros, que deixaram a aldeia Guadalupe já haviam passado por estes rituais quando
ainda moravam na aldeia São Marcos.
Vimos nas páginas precedentes que a escolha daqueles que irão compor o
quadro de atores rituais não se resume apenas a questões estruturais que indicariam as
posições que os atores sociais ocupariam no processo ritual. Antes de tudo é preciso
considerar o contexto de ações dos atores sociais, bem como os interesses subjacentes
no processo ritual. Neste sentido, afirmar que os cargos cerimoniais de aihö’ubuni, tébé
e pahöri’wa pertencem respectivamente aos clãs po’redza’õno, öwawẽ e po’redza’õno
presta apenas para dizer o óbvio. Entretanto, quando procuramos investigar de que
modos se dão tais escolhas injetamos sangue no processo ritual. Desta forma, não
menosprezamos o modo organizacional da sociedade Xavante, muito menos como ela
classifica os atores sociais. Porém, numa situação processual é importante ver não
somente a organização social, mas como os atores sociais se apropriam e manipulam
esta organização em benefício de seus interesses. Para tanto, somos lançados a
acompanhar o contexto social e político do ritual onde acontece a escolha dos atores
sociais que desempenharão os cargos rituais mencionados.
O contexto social e político do ritual de iniciação da classe de idade Abare’u
deve ser visto a partir da constituição da casa dos solteiros que se deu em 2000, ou seja,
antes da primeira grande cisão na aldeia São Marcos. Já afirmamos nas páginas
precedentes que naquela época foram instaurados duas casas dos solteiros. Os meninos
que estavam vivenciando o ciclo de vida ‘watébrémi foram distribuídos nestas duas
casas dos solteiros segundo os alinhamentos políticos de seus pais. Naquele contexto a
crise política que pairava sobre a aldeia São Marcos já havia se estendido pelas demais
aldeias da terra indígena homônima. Isto provocou um realinhamento de forças entre as
aldeias que se posicionaram em apoio às duas facções que disputavam pelo
reconhecimento enquanto caciques da aldeia São Marcos. Quando ocorre de fato a cisão
física na aldeia São Marcos o apoio político que a facção de Tsudzaweré recebia
155
Maria à facção de Tsudzaweré fez com que o mesmo fosse tomado como membro
daquela facção. Isto se tornou claro num dos conflitos que levaram a vias de fato onde
Zé Maria teve o crânio partido por um golpe de borduna. Entretanto, Zé Maria
continuou morando em São Marcos depois que a facção de Tsudzaweré deixou aquela
aldeia, seu filho, porém mudou-se para Guadalupe onde teve continuidade seu processo
de iniciação. Durante os vários rituais que compõem o danhono Zé Maria sempre esteve
presente em Guadalupe acompanhando o desempenho de seu filho.
Lopes da Silva (1986:76) e Maybury-Lewis (1984:119) sinalizam que os cargos
ritual de aihö’ubuni, tébé e pahöri’wa são herdados patrilinearmente. Lopes da Silva,
entretanto, evita investigar a fundo as possibilidades de manipulação política das
“posições” expressas por estes três nomes, linhas antes de afirmar a herança patrilinear
destes papéis rituais (idem), justificando-se que esta opção desviaria do objetivo
principal de seu trabalho e ainda pelo fato de Maybury-Lewis ter já tratado da questão.
De fato Maybury-Lewis procura relacionar a distribuição de papéis rituais entre as
facções na aldeia São Domingos, onde efetuou seu trabalho de campo. Segundo ele a
tarefa de carregar uma capa ritual chamada no’oni77, que dá o mesmo nome a uma
corrida ritual, deveria ser privilégio de uma determinada linhagem, enquanto que os
nomes de Pahöri’wa e Tébé deveriam ser dados a membros de uma facção diferente
daquela à qual pertencem os que carregam a capa (Maybury-Lewis, 1984:317). Isto
possibilitaria a manutenção de uma relação típica de pessoas que são watsire’wa,
(idem), que se opõem aqueles que são aos tsire’wa78. Entretanto, diz o autor, na prática,
essa cláusula (como a maior parte das demais) pode ser violada por uma facção
particularmente forte, que consiga tomar para si os cargos cerimoniais que, de direito,
pertencem à oposição (idem). Os dados etnográficos apresentados por David Maybury-
Lewis mostram que a prática de distribuição dos cargos cerimoniais entre facções na
aldeia São Domingos estava bem consolidada. Os cargos de Pahöri’wa e Tébé estavam
sob domínio da facção chefiada por Apöwẽ, pertencente ao clã po’redza’õno, enquanto
que os carregadores do noni foram escolhidos entre os membros da linhagem Dzutsi,
pertencentes ao clã öwawẽ.
77
Trataremos da corrida do Noni noutro momento deste trabalho procurando seguir o curso de
desenvolvimento do processo ritual de iniciação do danhono.
78
A categoria watsire’wa significa os do meu lado, da mesma metade, conjunto de pessoas do
mesmo clã a qual ego pertence. Enquanto que os Tsire’wa são aqueles que pertencem ao clã oposto de
ego.
157
deste ritual surgem novas tensões na aldeia recém fundada, onde a principal questão era:
quem é o cacique? O cargo reivindicado por Lourenço é cedido para Tsudzaweré. Neste
cenário, Lourenço e seu grupo doméstico bem como outros seguidores deixam
Guadalupe para fundar Fátima. Ali se põem a preparar a iniciação do danhono. Boa
parte dos moradores da aldeia recém fundada pertence ao clã po’redza’õno. Isso porém,
gerou um problema no momento de se escolher o candidatos ao cargo de tébé. Como já
afirmamos este cargo cerimonial deve ser preenchido por membros do clã öwawẽ.
Ocorre que na aldeia recém fundada os membros deste clã que estavam vivenciando o
ciclo de vida hö’wa, morador da casa dos solteiros, eram poucos. Para contornar o
problema escolheram para desempenhar o cargo cerimonial de tébé o filho de Mariano,
que viria a se tornar mais tarde vice-cacique da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe.
Isto favoreceu uma série de eventos que beneficiou a aldeia Nossa Senhora de Fátima.
Antes de tudo, resolveram o problema da falta de membros do clã öwawẽ,
mantiveram laços com a aldeia Guadalupe. A manutenção de laços com Guadalupe
pode ser considerada estratégica para Fátima. Guadalupe tem entre seus bens
comunitários um caminhão que é usado constantemente para transportar seus moradores
à cidade. Quando estive em campo, no auge dos preparativos para confecção das capas
wamnhorõ79, eram freqüentes as saídas do caminhão de Guadalupe para dar assistência
aos moradores de Fátima. Tal assistência consistia em transportar os moradores até
locais próximos de cabeceiras, fora da terra indígena, onde crescem os buritizais de
onde retiraram os brotos desta palmeira, usados na confecção do wamnhorõ. Estas
saídas do caminhão para prestar ajudam à Fátima causava comentários de desaprovação
pelos moradores de Guadalupe em relação ao motorista do caminhão. Coincidência ou
não, o motorista era Mariano, pai de um dos tébé daquela aldeia.
Quando retomamos a literatura de descrições clássicas (Maybury-Lewis,
1984:50-72; Giaccaria & Heide, 1984:27-42; Lopes da Silva, 1986:31-44) sobre a
dinâmica de relações entre as aldeias Xavante chama-nos atenção a forte tendência a
conflitos e cisões de aldeias. Neste contexto de fracionamentos e (re) agrupamentos de
aldeias, antes do contato e até mesmo no pós-contato, é possível a manutenção de uma
continuidade na escolha dos cargos de aihö’ubuni, pahöri’wa e tébé seguindo a linha
patrilinear conforme apontam os autores acima? Acreditamos que não, conforme
apontam os dados etnográficos apresentados acima. De mais a mais, nos parece que
79
Descreveremos a confecção destas capas mais adiante.
159
CAPÍTULO III
O ANO DA EXCELÊNCIA
80
Nodzö’u é também nome de uma da classe de idade, ver quadro do Capitulo I. Este tipo de
milho caracteriza-se pelo colorido de seus grãos na espiga. Normalmente alternam-se as cores vermelho e
preto. Em relação ao milho convencional, o nodzö’u é mais macio.
161
trabalho dura cerca de quatro a cinco dias, dependendo do número de danhohui’wa que
estejam empenhados em fazê-lo.
81
A seda de buriti, como dizem os Xavante, é extraída de cada folíolo da folha do buriti de onde
se retira a camada plástica deixando a fibra menos quebradiça depois de seca.
164
seguida amarra com as sedas de buriti (tsuwaipo), as penas de arara (‘ratabö) em sua
cabeça de modo que estas fiquem posicionadas na nuca. A borduna (ub’ra) é depositada
ao lado esquerdo do watpté. Quando todos prontos ao sinal de um ĩhire, ancião, os
wapté levantam-se, tomam as bordunas (ub’ra), transportando-as no ombro direito, e
seguindo o mesmo ĩhire que os conduziu ao centro da aldeia dirigem-se para um local
afastado, longe da vista da comunidade aldeã. Nesta ocasião tomam parte na fila
primeiro o ĩhire, seguido pelos wapté, os danhohui’wa e um grupo de danhohui’wa
pintados, com carvão, como os wapté. Todos se dirigem para o local afastado da aldeia
onde os danhohui’wa retiram as penas de arara que foram amarradas na cabeça dos
wapté. O grupo, seguindo a mesma ordem, volta novamente à aldeia cruzando-a e toma
direção do riacho e do local onde foi aberta a clareira pelos danhohui’wa.
Os wapté cruzam o riacho e dirigem-se até a clareira que foi aberta pelos
danhohui’wa onde depositam sob duas forquilhas, previamente preparadas, as borduna
ub’ra, e em seguida voltam para a margem. Neste momento os danhohui’wa e todos os
demais homens da aldeia que acompanharam os wapté até o riacho começam a
demonstrar aos iniciandos como devem proceder ao banho de emersão datsi’waté,
também chamado de “bate água” pelos Xavante. Os homens de todas as classes de idade
iniciadas participam deste momento. Começando pela classe de idade mais antiga, ou
seja, aquelas que já receberam o sufixo ‘brada em sua denominação, por exemplo,
abare’u’õmob’rada, entram na água e praticam o datsi’waté.
A execução do ritual começa com a entrada dos oficiantes na água até a altura da
cintura e daí com as duas mãos unidas em paralelo, em forma de concha com a palma
voltada para água, flexionando os joelhos afundam-nas na água levantando-as em
seguida de modo que tanto na descida quanto na subida uma grande quantidade de água
se ergue sobre o corpo. Esta forma de proceder dá ao ritual igualmente o nome de “bater
água”. Todos seguem o mesmo ritmo, e isso cria com o deslocamento de ar e água de
modo que grandes explosões podem ser ouvidas ao longe. Após a passagem de todas as
classes de idade fazendo demonstração, chega a vez dos wapté executarem o ritual. Sua
entrada na água obedece à mesma ordem nos demais rituais do qual toam parte.
165
datsi’waté e chama lhes a atenção, caso não estejam empenhados. Em São Marcos,
tanto em 1997 quanto em 2005, sempre que um ĩhire estava presente grande parte dos
‘waté’wa estavam no riacho. Quando este deixava o local os ‘waté’wa saíam do riacho e
punham-se a jogar bola numa praia próxima ou passavam grande parte do tempo nas
tendas levantadas ao longo do riacho ouvindo músicas em aparelhos portáteis.
No dia que se inicia o ritual do datsi’waté o ĩhire encarregado de acompanhar o
desempenho dos neófitos, que é também chamado dadzoni’wa, corta um tronco de
árvore, com cerca de trinta centímetros de diâmetro, com cascas grossas e crava-o
próximo ao leito do riacho. A cada dia transcorrido do ritual o ĩhire entalha no tronco
um pequeno quadrado indicando o tempo transcorrido. Este tronco, o wedehöpu, serve
de referência para indicar o quão próximo está à realização de outro ritual, o
daporedza’wa – furação de orelhas.
Além do ĩhire cabe, nesta fase do processo de iniciação, igualmente aos
pahöri’wa conduzir e incentivar os demais ‘waté’wa a permanecerem dentro do riacho
executando o datsi’waté. Já mencionamos que estes atores rituais são os que tomam a
frente da fila durante os rituais que ocorrem na aldeia. O mesmo ocorre quando os
‘waté’wa saem da água, ou da clareira, para irem à suas casas receberem a pintura
corporal. Contudo, se estes pahöri’wa não tiverem uma personalidade suficiente forte
para exercer tal liderança sobre o grupo, eles terão pouco sucesso em tentar manter os
‘waté’wa dentro d’água.
Durante o tempo em que se desenvolve o datsi’waté ocorre, algumas vezes um
banho com folhas e embiras, que segundo os Xavante, ajudam a fortalecer o corpo dos
‘waté’wa, pois permaneceram muito tempo dentro d’água. Cabe aos danhohui’wa
encontrar e encaminhar a folhas e embiras ao riacho. Quando se constata pelo tronco
wedehöpu que o tempo transcorrido foi o suficiente para que os lóbulos das orelhas
estejam moles, pois esta é a finalidade do datsi’waté, marca-se então o dia do ritual
daporedzapu’wa.
Será a partir desta fase do processo ritual de iniciação da classe de idade abare’u
que estaremos dialogando também com as fontes consultadas a partir dos dados
coligidos durante nosso trabalho de campo de 2005. Nas fases precedentes estivemos
168
passeio. A quantidade de milho usado nestes bolos exige que o grupo doméstico tenha
uma plantação de milho muito expressiva. Nesta fase do processo ritual um grupo
doméstico tem em média três meninos sendo iniciados. Para cada um dos iniciados é
imperativo o preparo de dois bolos. Por isso os preparativos dos bolos são demorados,
seja pela quantidade de milho a ser socada, seja pela quantidade de lenha e cupinzeiros
usados, seja pelo número de bolos a serem preparados. Diante da grande quantidade de
bolos que um grupo doméstico tenha que preparar e a escassez de milho, uma
alternativa é o acréscimo de feijão xavante na massa. Outra solução que as mulheres
xavante tem lançado mão é o uso de fubá de milho adquirido no comércio de Barra do
Garças, que pode ser misturado com farinha de trigo, também adquirida na cidade, ou
junto a outro tipo de farinha extraída de arroz branco socado no pilão. Adiante
apontaremos outras estratégias acionadas para substituição dos bolos de tsadaré.
O trabalho que o preparo do tsadaré demanda, condiciona as decisões do
conselho dos homens no centro da aldeia, o warã. Neste sentido, não é suficiente que os
ĩprédu, homens já iniciados, e ĩhire, anciãos, apontem um dia específico para a
realização do dapo’redzapu, furo dos lóbulos auriculares, se não tiverem o aval das
mulheres. Isto pode aumentar o tempo que os ‘waté’wa devem permanecer praticando o
ritual do datsi’waté.
Havendo consenso, marca-se o dia para a cerimônia de furação de orelhas.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:165), no dia que antecede o ritual os ai’repudu,
meninos que não estão sendo iniciados com os ‘waté’wa, coletam uma espécie de
capim, buruteihi, cujos talos serão usados para confeccionar os ĩpo’rewa’u, palitos com
cerca de sete a dez centímetros que serão introduzidos nos lóbulos auriculares após o
furo. Estes palitos são diferentes daqueles usados pelos homens já iniciados. A textura
do capim por ser lisa favorece sua introdução e retirada do furo recém aberto. Depois de
cortados em tamanhos variados os palitos são untados com urucum e depositados numa
cabaça – umre, que aqui recebe o nome de uawi, cortada ao meio, semelhante a uma
bandeja. Não obstante, constatamos em 1997 que a coleta e preparo dos os ĩpo’rewa’u
foi feita pelos dahi’wa, aqueles que vigiam a conduta do wapté. Os danhohui’wa são
impedidos de verem estes pauzinhos. Naquele ano, quando através da classe de idade na
qual estávamos inseridos desempenhamos o papel de danhohui’wa, fomos repreendido
pelos ‘dahi’wa por ter entrado na hö e visto os palitos. Como não dominávamos, e não
170
dominamos ainda todos os protocolos rituais, gafes como estas foram repetidas e
relevadas.
Durante a noite toda, que antecede o dia da cerimônia do dapo’redzapu, os
‘waté’wa praticam o datsi’waté. Antes de o dia amanhecer o ĩhire, ancião, encarregado
de acompanhar os ‘waté’wa se dirige até o local do ritual os conduzem, ritualmente
como já descrito acima, até a entrada da aldeia e dali cada qual toma o rumo da casa de
seu grupo doméstico. Na frente da casa os parentes, em particular o pai, já prepararam
uma esteira especialmente para este fim onde o ‘waté’wa senta-se e deposita a borduna
ub’ra ao seu lado direito e permanece aguardando o momento de ter as orelhas furadas.
O cargo cerimonial de furador de orelhas, o daporedzapuu’wa, é prerrogativa do
clã öwawẽ. O mesmo é escolhido entre os membros da classe de idade que está
desempenhando o papel de danhohui’wa. Cabe aos daporedzapuu’wa’rada, ou seja, os
antigos furadores de orelha que atuaram nos danhono precedentes escolher quem dentre
os danhohui’wa aquele que pode e tem condições de desempenhar tal papel. Entre estas
pré-condições Giaccaria & Heide (1984:166) apontam as habilidades em fazer flechas,
arcos e trabalhos em geral. Segundo meus informantes outras pré-condições levadas em
consideração, como por exemplo: comer pouco e não ser dado a brigas. Ademais este é
um cargo muito delicado para se assumir. Numa sociedade onde o clima entre os
moradores não esteja muito tranqüilo, um furo errado que o daporedzapuu’wa venha a
cometer na orelha de um dos iniciandos pode servir para o acirramento de tensões. Daí
talvez uma provável explicação que nosso informante nos deu para que o
daporedzapuu’wa não seja dado a brigas. O escolhido para desempenhar este papel
dirige-se à hö e ali pinta-se adotando a modalidade tsanapré – onde pinta-se, com
urucum, um retângulo sobre o abdômen e nas costas, entre as omoplatas, outro
retângulo que se estende da nuca à cintura sobre a coluna, e de preto da metade da
canela ao tornozelo. Os cabelos são presos com o colar de algodão, ĩtsõ’rebdzu’a -
gravata.
Enquanto o daporedzapuu’wa, furador de orelha está se pintando outro membro
da mesma classe de idade dos danhohui’wa é escolhido para desempenhar o cargo
cerimonial de wa’ritire, o seriema. Este ator ritual sem ser visto sobe no topo de uma
casa e começa a gritar para os ‘waté’wa que estão sentados na frente de suas casas:
watsede, watsede, watsede – vai doer, vai doer, vai doer. A intenção parece ser a de
causar medo aos ‘waté’wa.
171
virilidade. Não obstante, para os pais o momento é de grande comoção que é expresso
através do choro. Segundo meus informantes a emoção que os pais demonstram neste
momento se deve a nova situação social que seus filhos estão prestes a vivenciar.
Segundo alguns informantes o choro dos pais e parentes se dá também pelo fato de os
‘waté’wa não poderem fazê-lo neste momento.
O daporedzapuu’wa segue o mesmo itinerário de danças da classe de idade que
está sendo iniciada. No caso do danhono da classe de idade abare’u isto se deu em
sentido anti-horário. Ao completar a furação de orelha em todos os ‘waté’wa ele segue
acompanhado dos daporedzapuu’wa’rada para o riacho onde se deu o datsi’waté, banho
de imersão. Ali cada um dos ‘waté’wa tem os furos das orelhas revisados pelos ĩhire,
anciãos, que podem ou não decretar que estes sejam novamente furados. Isto se deve ao
fato de haver disparidade de posicionamento entre os dois batoques auriculares. Nesta
situação o daporedzapuu’wa apenas acompanha o daporedzapuu’wa’rada da classe de
idade mais antiga a corrigir os furos. Em Guadalupe e em São Marcos cerca de dez
‘waté’wa tiveram que passar novamente pelo ritual. Para tanto eles devem entrar
novamente na água e permanecer ali por alguns minutos. Segundo os informantes isto se
faz para que os lóbulos das orelhas amoleçam.
O volume de sangue que escorre do lóbulo recém furado é também um sinal de
virilidade, da mesma forma que a diferença de posição dos batoques é indicativa de
certa dificuldade no desempenho inicial da atividade sexual do futuro guerreiro. Os
informantes disseram haver uma correlação entre o fato de o batoque auricular
apresentar-se torto e a anatomia do falo do ‘waté’wa, que também seria torto. Durante o
ato sexual o novo guerreiro teria dificuldade em encontrar o “caminho” certo para a
cópula. Em se tratando de uma relação onde a parceira ainda seria virgem as
dificuldades seriam ainda maiores. Outra explicação para o mau posicionamento dos
batoques auriculares diz respeito o comportamento dos ‘waté’wa, antes e durante o
banho de imersão, datsi’waté. Durante este tempo o ‘waté’wa que não observou os
conselhos dos danhohui’wa, padrinhos, e do ĩhire que o acompanhava durante o
datsi’waté tem como castigo, além do mau posicionamento dos palitos na orelha, o fato
de ser submetido novamente ao ritual de daporedzapuu.
Após a revisão de todos os ‘waté’wa, o daporedzapuu’wa deposita os batoques
auriculares que sobraram no chão para que os ‘waté’wa escolham alguns que serão
usados nas substituições nos dias que se seguirão. Os pais e parentes que acompanhava
173
heroi’wa que eu havia ajudado, forneceu-nos muitos detalhes sobre o preparo dos bolos
tsadaré.
82
Nonhamahöbö ou nonhamahöpö’õno segundo Georg Lachnitt (1993) são bolos
confeccionados respectivamente com: milho Xavante e feijão assado debaixo da cinza e bolo de milho
Xavante. O segundo é usado neste ritual.
175
receber, em tese, bolos tsadaré, ou qualquer outra coisa como forma de “pagamento”
pelo trabalho de acompanhar os moradores da casa dos solteiros antes e após o ritual do
datsi’waté. Fomos convidados por ele a fazer este percurso. Ao final ele havia recebido
pacotes de farinha de trigo, pedaços de carne bovina, sabão em barras, pães adquiridos
na cidade e assados na aldeia, e finalmente alguns pedaços de tsadaré. Os presentes
recebidos foram levados por ele ao centro da aldeia onde parte foi divida com os demais
ĩhire, anciãos, que ali estavam e o aguardavam, o restante Fortunato levou para sua
casa. Nesta mesma tarde os danhohui’wa deveriam ensaiar o canto para a cerimônia do
wanaridobe. Entretanto, diante do falecimento de um dos netos do cacique o ensaio
estava suspenso.
Na madrugada do segundo dia após a cerimônia do daporedzapuu, furo das
orelhas, os danhohui’wa, padrinhos, e os heroi’wa, começaram a se preparar para a
cerimônia do nonhamahöpö’õno. Tal cerimônia, que envolve toda a comunidade aldeã,
começa por volta de 2:00hs. Isto se deve, em parte, pelo grande número de pessoas que
devem estar pintadas e ornadas, e ainda pelo fato de que a cerimônia deve começar
antes do sol nascer. Tomam parte direta nesta cerimônia, como atores rituais, os
danhohui’wa – padrinhos, as danhohui’watsipi’õ – madrinhas e os heroi’wa, novos
guerreiros.
Acompanhei todo processo de preparação percorrendo diversos grupos
domésticos onde os heroi’wa eram pintados e ornamentados por um dos irmãos da mãe.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:167), são os danhimãmatã, traduzido pelos autores
como tio materno, que pintam e ornamentam os heroi’wa. O danhimãmatã, dizem os
autores, é um termo entre os parentes usado somente por aqueles que exerçam tal
função em relação ao sobrinho (idem).
Entretanto, segundo Lopes da Silva (1986:80) a categoria danhimãmatã traduz-
se como nominador. Os nominadores pertencem tanto a linha materna quanto paterna.
De outro modo, (...) os nomes de menino vêm geralmente por linha paterna enquanto
que o nome do rapaz iniciado vem da linha materna (Lopes da Silva, 1984:80).
Considerando que os heroi’wa ainda não completaram a iniciação, pode ser que as
relações de nominação ainda não tenham se efetivado de fato. Para Lopes da Silva
(1986:79),
(...) só depois das cerimônias da iniciação e, particularmente depois
da furação das orelhas, é que as relações entre danho’rebdzu’wa e
seus sobrinhos de sexo masculino vão se transformar em relação de
nominação propriamente.
176
Desta forma, podemos afirmar que a tarefa de pintar os heroi’wa cabe aos
danho’rebdzu’wa, que podem ser também nominadores. Tal categoria tem amplo
sentido. Literalmente o termo significa “o fazedor do colar de algodão” (DANHO’RE
= garganta, pescoço, cantar; DZU = ao redor, que amarra; ‘WA = aquele que
constrói, que fabrica, que faz) – Giaccaria (2000:35).
Os danho’rebdzu’wa assumem responsabilidades rituais em diversos momentos
da vida dos filhos e filhas de sua irmã. Portanto, tratam-se relações sociais especificas
do ambiente doméstico. No caso dos meninos, cabe ao danho’rebdzu’wa, ZB – irmãos
da mãe, pintá-los por serem ZS nos rituais que ocorrem do danhono. Para as meninas, o
danho’rebdzu’wa tem forte atuação quando estas estão oficializando o casamento. Nesta
ocasião ele confecciona os colares que a noiva usará durante a adabatsa, cerimônia de
casamento. Além de pintar, são os danho’rebdzu’wa que também confeccionam os
colares a serem usados nos rituais.
A modalidade da pintura corporal que os danho’rebdzu’wa aplicam nos ZS é a
daupté, ou seja, o tronco e braços em vermelho com duas faixas em preto nas costas e,
em preto, dos tornozelos até metade da canela. Após a pintura são colocados quatro
tipos de colares: o danhonhi’a (colar de algodão que fica sobre os ombros); o
uhödzéré’manharĩ (?); o danho’rebdzu’a (colar de algodão); e, o a’a’abö – (colar feito
com penas de mutum e amarrado ao pescoço de modo que as penas fiquem
perpendicular à nuca). Completando a ornamentação o danho’rebdzu’wa amarra uma
cordinha vermelha, chamada danhõprewarĩ, na cabeça do heroi’wa, de modo que esta
lhe prenda o cabelo, e na cintura é colocado uma espécie de cinto chamado da’utsi,
cordão de algodão pintado em vermelho. Os danho’rebdzu’wa, padrinhos, que estão
ornamentando os heroi’wa não pertencem a mesma classe de idade dos danhohui’wa.
Embora as traduções para estas categorias seja padrinho, seus papéis rituais são
distintos. Enquanto o primeiro atua ao longo da vida em vários rituais nos quais os
afilhados tomam parte, o segundo está restrito as cerimônias que compõem o ritual de
iniciação do danhono. Neste último caso suas atuações não estão restritas a uma
iniciação específica, por exemplo, aquela que sua classe de idade patrocina.
Enquanto os danho’rebdzu’wa e heroi’wa estão “confinados” dentro das casas
para pintura corporal e aplicação dos adornos, os danhohui’wa desenvolvem seus
preparativos no centro da aldeia. Ali, ao redor de uma fogueira, eles pintam o corpo
livremente com riscos de carvão, de modo que a pintura fique parecida com uma
177
doméstico. Para os demais serão outras mulheres que estarão correndo de sua casa à
casa de onde saiu o heroi’wa. Neste ínterim, no centro da aldeia, ocupado pelos homens,
fica extremamente agitado com várias saídas simultâneas de heroi’wa. Várias mulheres
cruzam a aldeia de um ponto a outro carregando os bolos. Num clima de jocosidade
alguns ĩprédu – homens adultos, já iniciados, ajudam algumas mulheres, já sem fôlego
pela corrida, a carregar o bolo até sua casa. Nos arredores, em frente às casas, as
mulheres gritam incentivando aquelas que têm o papel de buscar o bolo e apontam para
onde as elas devem correr.
As diversas situações rituais nas quais se exige a troca de bolos, tsadaré, geram
uma grande demanda por sua principal matéria prima: o nodzö, milho xavante. Temos
constatado que em aldeias de grande porte, como Guadalupe e São Marcos, onde a
população ultrapassa em mais de quinhentas pessoas em cada uma, os grupos
domésticos não tem conseguido manter um roçado que garanta de forma plena o
fornecimento de nodzö, milho xavante, para os rituais. De mais a mais, a entrada de um
grande contingente de homens em mercados de trabalho assalariado acarreta igualmente
uma diminuição de mão de obra nos roçados. Por outro lado, estes recursos monetários
têm sido usados para manter a dinâmica das trocas rituais. Já relatamos o caso de alguns
Xavante que trabalham na cidade de Barra s Garças que contrataram os serviços de um
marceneiro para fazer as bordunas ub’ra de seus filhos. Durante a cerimônia que
estamos descrevendo, a nonhamahöpö’õno, vários grupos domésticos lançaram mão de
seu poder econômico para adquirir bens e alimentos que foram colocados em
substituição aos tradicionais bolos de milho, tsadaré. Neste sentido, assistimos deste a
entrega de bolos feitos com farinha de trigo e fubá, pilhas de caixas de biscoito, fardos
de farinha de trigo, porcos assados, quartos de vaca moqueados, fardos de arroz, sacos
de feijão, até fardos de refrigerantes em garrafas tipo pet de dois litros. Em São Marcos
a quantidade de produtos alternativos aos bolos tsadaré era maior que em Guadalupe.
Isto sugere que São Marcos tem uma população monetarizada maior do que Guadalupe,
ou seja, um poder de aquisição de bens em maior escala. Ademais, a população da
aldeia São Marcos é maior do que em Nossa Senhora de Guadalupe.
Esta prática adotada pelos Xavante, substituir os tradicionais bolos tsadaré por
outros tipos de bolos e alimentos não pode ser visto como um fator empobrecedor do
ritual. Pelo contrário, a situação de contato não trouxe apenas situações negativas aos
Xavante, como por exemplo o processo de depopulação em seu início, ela permitiu
179
popara, que é amarrado na ponta que recebeu a pintura. Os mastros são escondidos,
durante a madrugada em locais próximos, num determinado ponto nos arredores da
aldeia. No dia da cerimônia, que é subseqüente a corrida dos bolos, nonhamahöpö’õno,
após terem se pintado no centro da aldeia, os danhohui’wa, antes do sol nascer, vão se
esconder junto ao seu uiwededzadarã. Eles permanecem escondidos até que todos os
heroi’wa tenham deixado seus grupos domésticos, por ocasião da corrida do bolo.
Durante a cerimônia do nonhamahöpö’õno os heroi’wa ao deixarem o grupo
doméstico dirigem-se ao centro da aldeia e vão posicionando-se lado a lado, em fila,
conforme o modo próprio de deslocamento durante os vários rituais, tendo a mão direita
a borduna ub’ra. Esta posição ritual obedece ainda às orientações dadas quando os
iniciandos ainda viviam na hö, casa dos solteiros, na condição de wapté, ou seja, devem
permanecer com a cabeça baixa com olhar voltado ao chão. Quando todos já tenham
tomado seus lugares o ĩhire, ancião, encarregado de acompanhá-los durante o banho
ritual datsi’waté, posiciona-se a frente dos heroi’wa e demonstra como devem proceder
na fase seguinte do ritual. Este ĩhire, ancião, pinta-se e ornamenta-se de modo
semelhante aos heroi’wa. Assim, chamando a atenção para que os heroi’wa observem
seus movimentos ele lentamente flexiona os joelhos e deposita a borduna ub’ra no chão
e retoma a postura ereta. O movimento é repetido uma ou duas vezes até que os
heroi’wa compreendam como devem proceder.
Atentos ao comando dos ĩhire, anciãos, que acompanham o ritual os heroi’wa
executam a performance recém demonstrada e depositam as bordunas no chão. Ao
término do movimento, que é acompanhado por gritos de: atéma, atéma, atéma,...
devagar, devagar, devagar; para que todos executem o movimento de modo uniforme,
recebem os agradecimentos dos que estão presentes: hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, pãrĩ,ãne...
obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, assim!
Na aldeia Guadalupe este momento foi igualmente marcado pelo discurso de
dois caciques, que procuraram marcar posicionamento político no ritual. O primeiro a
discursar foi o cacique da aldeia Nova Esperança (Tobias). Nesta ocasião o mesmo
estava pintado conforme um guerreiro: tronco e braços em vermelho, tendo uma faixa
preta que estendia pelos braços, partindo do ombro ao punho, no peito um desenho em
preto como uma gravata borboleta; na cabeça usava o wairo – um tipo de cocar,
ornamento usado pelos caciques ou quem deseja comunicar autoridade; no pescoço
trazia o colar de algodão ĩtso’rebdzu’a; além disso, portava um conjunto de arco e
181
flechas. Antes que o cacique da aldeia Diamantino concluísse seu discurso, o cacique da
aldeia Guadalupe, de frente para o cinegrafista que documentava o ritual, se pôs a
discursar. Em contraste com o outro cacique o de Guadalupe não usava nenhuma
pintura corporal. Em parte isto se deve ao fato deste cacique pertencer à outra metade
ritual, considerando as classes de idade.
Após a performance na qual os heroi’wa deixaram as borduna ub’ra no chão,
eles foram orientados a seguirem para fora da aldeia na direção onde provavelmente
estariam escondidos os danhohui’wa. Quando os heroi’wa se aproximaram do
esconderijo dos danhohui’wa estes se levantaram e tomaram seu uiwededzadarã, buriti
da boca, menor e segurando-o na posição vertical dirigiram-se ao centro da aldeia.
Nesta performance o uiwededzadarã – buriti da boca, teve a extremidade sem pintura
constantemente batida ao chão emitindo o som das unhas de veado que foram amarradas
na ponta que recebeu a pintura. Aqui os danhohui’wa agarram-se uns aos outros pela
cintura, permanecendo curvados, e posicionam-se em volta do uiwededzadarã, emitindo
gritos. Neste momento os homens iniciados que acompanham o ritual estavam eufóricos
e procuravam orientar a direção que o uiwededzadarã, deveriam tomar. O tronco foi
levado ao centro da aldeia sendo batido uma última vez ao chão e, de modo semelhante
ao corte de uma árvore, foi deixado que ele caísse. Aqui se fez um breve silêncio para se
ouvir o som da queda do uiwededzadarã – buriti da boca, repetindo-se novamente o:
hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, ãne... obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, assim! Neste
ínterim os heroi’wa já tinham encontrado, com certa dificuldade, o segundo tronco que
é duas vezes maior do que o usado pelos danhohui’wa e repetiram a mesma
performance até o centro da aldeia. Contudo, parte dos danhohui’wa que havia deixado
o tronco que transportavam no centro da aldeia retornaram imediatamente para ajudar os
heroi’wa a carregarem o segundo uiwededzadarã. Ao chegarem ao centro da aldeia
deixaram o tronco cair de maneira semelhante ao dos danhohui’wa, recebendo em
seguida os agradecimentos daqueles que acompanharam a cerimônia.
Segundo meus informantes a diferença de tamanho entre os dois troncos se deve
ao fato dos heroi’wa serem mais novos, portanto, em tese, mais fortes do que os
danhohui’wa. O uiwededzadarã transportado pelos danhohui’wa traz a popara, colar de
unhas de veado, por serem eles os donos dos cantos executados durante todo o processo
de iniciação. Os danhohui’wa “vencem” a corrida do buriti de boca preta por serem
mais espertos do que os heroi’wa. Entretanto, equilibram-se as forças quando os
182
a seu clã, enquanto os outros são tsire’wa. Assim, a retirada dos enfeites se dá
alternando-se os clãs, onde öwawẽ e tob’ratato retiram os enfeites de po’redza’õno, e
vice-versa. Os enfeites retirados pelos ai’rere dos danhohui’wa foram os colares ĩ
tso’rebdzu’a, colar de algodão. Com a retirada dos colares ĩtso’rebdzu’a pelos ai’rere
boa parte dos danhohui’wa dirigiram-se para suas casas onde partiram e comeram dos
bolos que foram recolhidos por suas mulheres na cerimônia anterior. Outros, porém, se
dirigiram ao awã, um cercado próximo ao centro da aldeia.
se criou uma polêmica sobre a diferença de pesos entre as duas toras. Alguns diziam que
a tora que os heroi’wa, classe de idade abare’u, deveriam carregar estava mais pesada
do que a dos dahi’wa, classe de idade ẽtepa
˜ . Para medir o peso das toras monta-se sobre
elas e segurando-se nas bordas, com uma mão na frente e outra atrás, tenta-se levantá-la
por entre as pernas. Fizemos este teste e contatamos que as toras dos abare’u realmente
estavam um pouco mais pesada. Todavia, membros da metade à qual pertencem os
ẽtepa
˜ diziam que a outra metade pouco se interessou em acompanhar os trabalhos de
preparo das toras. Como saída diplomática para o impasse decidiram escavar novamente
as toras dos abare’u, retirando um pouco mais de cerne.
Por volta de 11:00hs chegou o caminhão da aldeia São Marcos trazendo
membros das duas metades que ajudariam na cerimônia de Guadalupe. A cooperação de
forças e objetos rituais oferecido por outras aldeias àquela onde se realiza o danhono é
fato comum durante o processo ritual. Entretanto, a presença da aldeia São Marcos no
danhono de Guadalupe era algo inusitado. Dois anos e meio antes o encontro das duas
aldeias era impensável diante dos conflitos políticos que estavam em alta. O ápice
destes conflitos foi a cisão da aldeia São Marcos que resultou na fundação de outras
aldeias, inclusive Guadalupe. O estopim para esta cisão foi o ritual de iniciação
religiosa, o darini ou wai’arini. No contexto daquele ritual as facções de Tsudzawéré e
Raimundo disputavam o reconhecimento de caciques de São Marcos. Como forma de
marcar posicionamento político as duas facções se prepararam para a realização do
darini. Não obstante, tendo a facção de Tsudzawéré se adiantado nos preparativos para
realização daquele ritual de iniciação religiosa e até marcado o dia de seu início, na
véspera a facção de Raimundo decidiu abrir um campo de futebol e jogar bola no centro
da aldeia, local onde acontece a maioria das cerimônias do darini. Isto aumentou ainda
mais a temperatura do clima político, e se não houvesse uma intervenção da Missão
Salesiana os ânimos teriam chegado à vias de fato, podendo haver mortes em ambos os
lados. Noutro capítulo trataremos destas disputas políticas e o que favoreceu, depois da
cisão, a reaproximação das duas aldeias.
O que mais nos surpreendeu na chegada do caminhão da aldeia São Marcos foi a
presença do cacique Raimundo junto ao grupo. Raimundo chegou e ficou no centro da
aldeia junto às toras e com outros velhos. Os demais ocupantes do caminhão se
dirigiram ao local onde suas metades cerimoniais estavam se preparando, no awã ou no
marã. No centro da aldeia ainda permanecia a discussão sobre a desigualdade de peso
187
entre as toras. Todavia, para evitar que as toras ficassem sendo comparadas, segundo o
modo que descrevemos acima, um dos ĩhire, ancião, sentou-se sobre uma delas e dali
não mais saiu, até que fossem colocadas no caminhão que as levariam ao local de início
da cerimônia.
Por volta de uma hora da tarde, quando todos já estavam devidamente pintados e
ornamentados para a ocasião, as metades cerimoniais deixaram a aldeia e seguiram pela
estrada que os levariam ao local de início da cerimônia. Os primeiros a deixarem a
aldeia foram os abare’u que saíram do awã em fila indiana, seguidos por seus
danhohui´wa. Concomitantemente os dahi’wa deixaram o marã e seguiram num
caminho paralelo. Os dois grupos emitiam constantemente gritos em desafio um ao
outro. Não são todos os participantes que tomam lugares nas filas de deslocamento até o
local de início da cerimônia. Depois de definidas as estratégias, ou seja, quem e em que
ponto deverá carregar a tora, muitos partem sozinhos ou em grupos deslocando-se a pé
ou de bicicleta. Neste dia o caminhão da comunidade e a viatura usada no transporte de
doentes são colocados a serviço do ritual. Assim, quando as metades começam a deixar
os locais onde estiveram se pintando o caminhão além de transportar as toras até o local
de início da cerimônias, leva também uma multidão de espectadoras que posicionam-se
em locais estratégicos, ou seja, em cima bem na frente para que tenham uma visão
privilegiada do andamento da cerimônia. Da metade da carroceria seguindo para a parte
traseira do caminhão são os competidores que ocupam.
No dia da cerimônia em Guadalupe, como havia dois caminhões esperava-se que
o caminhão de São Marcos fosse colocado a disposição dos organizadores da cerimônia.
Desta forma, o caminhão de Guadalupe saiu superlotado de homens e mulheres para o
local de início da cerimônia. O caminhão de São Marcos ficou parado e não saiu do
local onde parou. Perguntei à alguns informantes se o caminhão de São Marcos iria
levar as toras até o local de início da corrida, até porque esperava encontrar ali uma
carona. Entretanto, os informantes não sabiam ao certo o que estava acontecendo. Os
rumores diziam que o cacique Raimundo não estava autorizando a saída do caminhão.
Por fim, soube que o motorista Xavante do caminhão havia trancado o mesmo e seguido
a pé em direção do início da cerimônia, levando consigo a chave. A explicação foi
aceita, mas o impasse continuava: quem levaria as toras? A questão da chave do
caminhão era algo contornável. Quando moramos em São Marcos o caminhão da
comunidade podia ser ligado até mesmo com um prego. Acreditamos que nesta ocasião
188
o intuito de aceitar a explicação sobre a ausência do motorista com a chave era mais
conveniente para não aumentar ainda mais as tensões entre as duas aldeias. Para
resolver o impasse sobre como levar as toras para o local de início foi enviado um
mensageiro de bicicleta para chamar o caminhão de Guadalupe de volta à aldeia. Após
muito esperar, o caminhão de Guadalupe apareceu e levou as toras, além de vários ĩhire,
anciãos, que desejam assistir o início da corrida. Embarcou também neste caminhão o
cacique Raimundo
Afirmamos que esta cerimônia é semelhante às que acontecem noutros
momentos. Todavia, uma diferença é significativa nesta fase do processo ritual.
Enquanto em outras ocasiões o início da corrida acontece tendo como desafiantes de um
lado os danhohui’wa acompanhado dos wapté e de outro os ‘ritéi’wa, igualmente
ajudados por seus danhohi’wa, sendo estes atores rituais a iniciarem a cerimônia, nesta
etapa do danhono são os heroi’wa que assumem o início corrida de toras. Assim,
quando todos já estavam posicionados permaneceram a certa distância, cerca de cem
metros das toras, um dahi’wa e um heroi’wa. Ao sinal de um ĩhire, ancião, os dois
caminharam em direção das toras. Novamente outro sinal foi dado e as toras foram
erguidas sobre os ombros dos dois desafiantes, que iniciaram a corrida. Cerca de
quarenta metros adiante o heroi’wa passou a tora para um de seus danhohui’wa que
entrou na disputa. Daí em diante somente alguns poucos heroi’wa que apresentavam
capacidade física suficiente para suportar o peso da tora se atreveu a carregá-la.
Nesta corrida, em Guadalupe, os ẽtepa
˜ abriram certa vantagem sobre os abare’u
até derrubarem a tora e estes últimos assumiram a ponta. Não obstante, os abare’u
também derrubaram a tora e os ẽtepa
˜ passaram novamente à frente a mantiveram a
liderança até o centro da aldeia. Logo que as toras chegaram ao centro da aldeia, tendo
os ẽtepa
˜ vencido a corrida, o clima de tensão tomou conta do centro da aldeia. Ao
mesmo tempo, a questão da diferença de peso entre as toras veio à tona. A turma do
deixa disso entrou em ação. Primeiro um dos ĩhire, ancião, sentou-se em cima do tronco
para impedir que novos testes de peso das toras fosse feito. Com o aumento do clima de
tensão, outra vez a turma do deixa disso intervém rolando as toras para frente de duas
casas. Uma das toras foi levada para frente da casa de F., que pertence à classe de idade
hötörã – ligada à metade cerimonial que ganhou a corrida. Enquanto que a outra tora foi
levada para a casa de L., pertencente à classe de idade airere, que fora danhohui’wa dos
189
83
Tenho dúvidas sobre o modo de grafar estas palavras.
84
Fundação Nacional de Saúde. O pai deste heroi’wa trabalha na chácara que abriga indígenas
de diversas etnias que vão à Brasília em busca de tratamento de saúde.
191
estaria sendo submetido. Para este heroi’wa a língua foi o primeiro obstáculo a ser
superado. Segundo ele, seus colegas não entendiam como ele sendo Xavante não
compreendia o que estavam conversando. Por outro lado, por falar muito bem o
português fez com que ele fosse admirado e adquirisse prestígio entre os companheiros.
A dificuldade em falar a língua Xavante se deve, em parte, pela pouca convivência entre
outros grupos domésticos Xavante. Em Brasília, a convívio com seu grupo doméstico
permitiu que ele tivesse um domínio parcial da língua materna, enquanto que a
convivência diária com alunos da escola da rede pública onde passa boa parte do dia
permitiu que ele tivesse um domínio maior da língua do waradzu. Segundo este
informante, as fases do danhono que precederam a cerimônia do banho de imersão
foram vivenciadas sem grandes apreensões pelos moradores da casa dos solteiros,
inclusive as preocupações que tinham com os dahi’wa que poderiam fazer deles atsitõ.
Para evitar que isto viesse acontecer os moradores da casa dos solteiros
procuravam sempre andar em grupos, além de se auto-aconselharem a tomarem todas as
precauções possíveis. Não obstante, até este momento do processo ritual o ponto de
maior tensão foi na véspera da cerimônia do daporedzapuu’u, cerimônia do furo dos
lóbulos auriculares. De acordo com o informante, a noite que antecedeu a cerimônia
eles tiveram que executar o datsi’waté, banho de imersão, durante toda a noite, parando
de vez em quando para se aquecerem numa fogueira acesa na beirada do rio. Aos
waté’wa menores foi permitido que dormissem um pouco. O assunto principal nas
conversas entre uma pausa e outra do datsi’waté era sobre a dor no momento da furação
de orelha. Para o grupo isto trazia grande apreensão, sobretudo em relação aos
pequenos. Eles tinham medo que os menores não suportassem a dor quando o lóbulo
fosse furado e chorassem ou gritassem. Isto poderia desonrar o grupo. Como já
dissemos em caso de choro a reputação de guerreiro do iniciando entra em
questionamento. Por outro lado, em caso de jorrar muito sangue no momento da
perfuração é sinal de virilidade. Felizmente, para os abare’u todos os moradores da casa
dos solteiros suportaram a furação da orelhas.
O caso deste heroi’wa sugere-nos o devir de uma nova geração de líderes
Xavante. Além deste, havia outros que nasceram na aldeia, ou na cidade, vivem no
ambiente urbano, em grandes centros, Brasília e Goiânia, desde criança. Isto tem
possibilitado um domínio maior da língua portuguesa, bem como do pensamento
ocidental. Associando o conhecimento do modo de (re)produção de suas práticas
192
85
SOUZA, L. G. e SANTOS, R. V. Perfil Demográfico da População Indígena Xavante de
Sangradouro – Volta Grande, Mato Grosso (1993-1997), Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 17:355-366,
2001.
194
definido, no warã, qual local a ser explorado, sendo ele em algum ponto da BR 070 no
sentido da cidade de Barra do Garças, o caminhão partia por volta de sete da manhã
deixando ao longo da estrada diversos grupos de homens e mulheres. O caminhão, via
de regra, se dirigia à cidade e retornava ao final da tarde recolhendo aqueles que haviam
ficado e o produto de sua expedição. Em outras ocasiões quando a expedição era
planejada para o sentido oposto a Barra do Garças, o caminhão levava os grupos de
coletores deixando-os ao longo do trajeto e retornando também ao final do dia. Não
obstante, outras aldeias, como foi o caso de São Marcos, também se empenharam em
buscar brotos de buriti em áreas fora da Terra Indígena. Em certa ocasião o caminhão
levou um grupo de coletores, do qual também tomamos parte, para explorar as matas de
buriti situadas nas margens da estrada MT-110, localizada a leste da Terra Indígena São
Marcos, começando na BR-070 e seguindo em direção ao vilarejo de Toricoeje. Para
surpresa do grupo as áreas próximas de Toricoeje já haviam sido exploradas pela aldeia
São Marcos. Todavia, isto foi encarado de forma pacífica pelos coletores de Guadalupe,
o que sugere que as áreas a serem exploradas fora do espaço demarcado não são
reivindicadas como de direito de nenhuma das aldeias que promoviam o danhono.
As expedições organizadas para os destinos acima mencionados são marcadas
por grande descontração entre aqueles que tomam parte delas. Seguindo o itinerário
previamente traçado no warã, centro da aldeia, o caminhão faz várias paradas ao longo
do caminho. Nestas paradas os grupos de coletores são livres para decidirem se
exploram ou não a área que está sendo indicada. Em alguns casos quando a cabeceira a
ser explorada oferece uma maior oferta de palmeiras de buriti, vários grupos descem do
caminhão para explorar a área. Isto não configura uma competição para ver quem tira
mais e os melhores brotos de buriti. É claro que grupos de coletores de maior número
terão mais chances de encontrar os melhores brotos e a quantidade extraída será maior.
Não obstante, quando um grupo doméstico de coletor é demasiadamente grande isto
significa que o mesmo tem um maior número de filhos, ou parentes, sendo iniciados.
A extração dos brotos de buriti, o tsuwaipó, é uma tarefa relativamente fácil,
mas demanda grande esforço físico. Uma vez identificada uma palmeira de buriti que
oferece um tsuwaipó ĩwẽ uptabi, um broto de buriti bonito – muito bom, ou seja, que
tenham um comprimento de cerca de três metros e cujas pontas ainda não estejam
desfolhando, estuda-se a melhor maneira de extraí-lo. Isto pode ser feito simplesmente
escalando a palmeira, aproveitando-se das folhas velhas que se quebraram, mas
195
mantiveram sua base ainda fixada ao tronco, ou construindo uma escada improvisada.
Neste último caso, procura-se uma árvore de porte médio que tenha muitos galhos ao
longo do tronco para servirem de degraus à escada. Uma vez cortada esta árvore
deixando a extremidade da copa em forquilha, a ser apoiada no tronco da palmeira,
escala-se através desta “escada” até onde se possa alcançar as folhas do buriti e daí
procurar atingir a copa da palmeira. Ao atingir o topo da palmeira, com um facão corta-
se o broto que ali está crescendo, tomando cuidado para não deixá-lo cair com a ponta
no chão. Este cuidado se deve para que o broto, que apresenta o formato de pino, não
tenha suas folhas esfaceladas, o que dificultaria o transporte.
O que estamos chamando de broto de buriti, o tsuwaipó, é na realidade o pecíolo
que compõe a folha mais nova da palmeira de buriti86 - Mauritia flexuosa. Esta folha, ou
broto, deve ser extraída antes que se abra em leque, formato costapalmado, característica
adulta das folhas desta espécie de palmeira. O tamanho de cada pecíolo varia de 1,5 a 3
metros de comprimento. Os Xavante preferem retirar o tsuwaipó, broto, nesta fase do
ciclo de desenvolvimento da folha por apresentarem mais flexibilidade e serem mais
fáceis de trabalhar.
Quando se coleta uma quantidade razoável de tsuwaipó, brotos de buriti, ou seja,
o equivalente à capacidade de transporte de cada coletor, os mesmos são carregados até
o local marcado para encontro e regresso à aldeia. Em várias expedições, da qual
tomamos parte, a quantidade de brotos disponíveis para extração exigiu que se fizessem
várias idas e vindas entre o ponto de encontro e o local de extração. Neste caso, as
distâncias eram razoavelmente curtas, cerca de três a quatro quilômetros.
Na aldeia os brotos são guardados no interior das casas, para protegê-los do sol,
e vão sendo usados de acordo com ritmo de trabalho de cada grupo doméstico. Nesta
fase do processo ritual é preciso manufaturar os brotos de buriti. O trabalho consiste em
retirar de cada folíolo uma camada plástica que os envolvem. Esta acamada plástica,
denominada pelos Xavante de wamnhorõ, será usada para confeccionar um ornamento
corporal, parecido com uma capa, que recebe o mesmo nome. O trabalho se torna
demorado pelo fato de cada broto de buriti apresentar em média cerca de duzentos
segmentos foliares presos ao pecíolo. Cada segmento foliar é dividido em duas partes,
sendo retirado o wamnhorõ de cada lado destas partes. Portanto, um folíolo fornece
86
Detalhes técnicos extraídos de: SODRÉ, José Barbosa. Morfologia das palmeiras como meio
de identificação e uso paisagístico. Monografia de conclusão de curso. Universidade Federal de Lavras,
2005. 61p.
196
87
O renhamri é confeccionado com a folha de buriti. É usado principalmente para servir de
tampa para o cesto tipo tsi’õno, usado para o transporte de crianças. Além disso, pode servir ainda de
prato. Dobrando-o é possível improvisar uma bolsa.
198
também fora membro da Missão Salesiana, foi posto no jogo das relações entre Xavante
e Missionários para interceder junto ao diretor para que este vendesse combustível à
aldeia Guadalupe. Embora recusasse constantemente atuar nestas circunstâncias como
intermediador, o pesquisador acompanhou em diversos momentos as negociações
estabelecidas entre o representante da aldeia Guadalupe e o diretor da Missão, todas
resultaram em sucesso dos objetivos dos Xavante.
O danhono realizando no ano de 2005 em Guadalupe aconteceu igualmente em
outras aldeias da Terra Indígena São Marcos. Neste cenário visualizamos uma coligação
de aldeia que cooperaram entre si para realização deste ritual de iniciação. Tal
cooperação se deu mediante o envio dos meninos que estavam vivenciando o ciclo de
vida ‘watébremi e ai’repudu para residirem na casa dos solteiros, a hö, de uma aldeia
com população de maior número. Isto se deu tendo em vista as relações políticas entre
as facções da Terra Indígena São Marcos. Algumas aldeias optaram por realizar
sozinhas o danhono, embora mantivessem boas relações e se colocassem como aliadas
politicamente de aldeias maiores que conglomeravam outras aldeias para o danhono.
Foi o caso da aldeia N. S. de Fátima, que surgiu de uma cisão na aldeia Guadalupe, mas
mantinha relações amistosas com esta aldeia.
Assim como Guadalupe, a aldeia Nossa Senhora de Fátima estava empenhada na
busca de brotos de buriti para confecção dos ornamentos corporais, as capas do
wamnhorõ. Todavia, Nossa Senhora de Fátima não dispunha de uma condução que
pudesse levar os coletores até os locais onde se pudesse extrair os brotos de buriti. Em
verdade, Fátima até possuía uma caminhonete, mas sua capacidade de transporte era
limitada. Uma alternativa foi pedir à Mariano, que era visto como vice-cacique de
Guadalupe, para que o mesmo disponibilizasse o caminhão para comunidade de Fátima,
que arcaria com o combustível. A proposta foi aceita por Mariano, que numa manhã ao
surgir do sol, saiu com o caminhão e se dirigiu pra Fátima. No centro da aldeia
Guadalupe os homens planejavam mais uma expedição para coletar brotos de buriti e
ficaram surpresos ao ver o caminhão sair. Após o café da manhã nos dirigimos até a
casa do cacique e lá encontramos uma comissão de homens que foram procurar se
informar sobre o destino do caminhão. Ao saberem que o caminhão tinha ido à Fátima
eles pressionavam para que isto não viesse a acontecer novamente, visto que ainda havia
muito grupos domésticos precisando de brotos para confeccionar os ornamentos de seus
filhos. O cacique assumiu as queixas da comitiva dizendo que não deixaria mais o
200
caminhão prestar ajuda a Fátima porque algumas das lideranças daquela aldeia eram
“soberbas”. Na verdade, as relações entre o cacique de Guadalupe e as lideranças de
Fátima não são muito boas. Isto se deve, em parte, pelo fato de antes da saída dos
grupos domésticos para fundarem Fátima, estas lideranças reivindicavam o
reconhecimento como cacique de Guadalupe. No entanto, o atual cacique tinha um
grupo de apoio maior e os descontentes acabaram deixando Guadalupe. Além disso,
quando o cacique de Guadalupe lutava pela construção de uma nova estrada que
encurtaria o caminho para atingir a BR-070, e dali as cidades de General Carneiro e
Barra do Garças, aquelas lideranças não o apoiaram em sua luta. Se havia tantas
motivações das lideranças de Guadalupe em recusar apoio à Fátima, porque então o
vice-cacique se dispôs a ajudá-la? Apuráramos que antes de tudo o vice-cacique era
genro do pai de uma liderança que não teria apoiado a construção da estrada nova. Neste
caso, a tradição cultural Xavante exige que o genro preste serviços ao sogro,
principalmente nos primeiros anos de casado. Todavia, o casamento do vice-cacique já
havia sido consumado há anos. Isto o desobrigaria de estar prestando serviços ao sogro.
Não obstante, como já apontamos em páginas precedentes o filho de Mariano fora
escolhido para desempenhar o papel de tébé naquela aldeia. Isto se deu, em parte, pelo
reduzido número de membros do clã öwawẽ que estavam vivenciando o ciclo de vida
wapté naquela aldeia. De mais a mais, ao conceder um cargo cerimonial expressivo ao
filho do vice-cacique de Guadalupe, que é também motorista do caminhão, a aldeia de
Fátima age estrategicamente para garantir o acesso ao meio de transporte de grande
capacidade. E finalmente, Mariano é funcionário público federal, o que garantiria um
apoio financeiro à Fátima em decorrência das regras sociais que deveria manter com
seus afins, bem como diante do fato de seu filho estar ocupando um cargo cerimonial
importante.
Com o término da primeira fase do processo de iniciação as atenções do cacique
de Guadalupe se voltaram para outras questões. Assim, ele começou uma série de
viagens para manter contato com autoridades com objetivo de adquirir bens e recursos a
serem destinados à sua aldeia. Em viagem à General Carneiro o cacique conseguiu uma
pequena quantidade de calções88 vermelhos e pretos que foram distribuídos
estrategicamente no warã à classe de idade tirowa, que desempenhava o papel de
88
O uso de calções vermelhos e pretos se tornou recorrente entre os Xavante da Terra Indígena
São Marcos como uma maneira de complementar a ornamentação corporal durante os rituais. Neste
sentido, dependendo do tipo de pintura corporal a ser adotada usa-se um calção de mesma cor.
201
este estaria usando do cargo somente para beneficiar sua aldeia. De fato as relações
entre o administrador do NAL e o cacique de Guadalupe não andavam muito boas.
Estava se tornando fato recorrente ouvir do cacique queixas contra o Administrador. O
teor destas quase sempre dizia respeito à falta de apoio do Núcleo para com sua aldeia.
Segundo ele, o apoio que faltava em suas viagens diz respeito à alimentação, transporte
e hospedagem. O cacique queixou-se que quase sempre tinha que recorrer a amigos que
vivem nas cidades para não passar fome e frio. Quando se trata de encontrar
autoridades, como o Governador, com agendamento prévio é melhor atendido. Dias
depois procurei saber junto ao cacique os resultados de sua viagem à Cuiabá. Segundo
ele o projeto de casas na aldeia ainda está em estudo. Sobre os calções a
Superintendência ao invés de comprar calções, acabou comprando bermudas vermelhas
e pretas. Em desacordo com o que foi comprado o cacique se recusou a trazê-las. Outro
objetivo da viagem do cacique era conseguir a doação de uma Kombi pela Polícia
Rodoviária Federal. Todavia, ao chegar à PRF a Kombi já havia sido doada.
Após a passagem pelo NAL seguimos para Barra do Garças onde
acompanhamos alguns grupos domésticos em suas atividades de compras. A viagem de
volta parecia tranqüila quando de repente o caminhão freia subitamente. Da cabine saiu
o grito: wãrãhöbö, wãrãhöbö, wãrãhöbö! [tatu, tatu, tatu!]. Imediatamente vários
jovens desceram do caminhão e saíram em disparada em perseguição ao tatu, que foi
logo capturado. Muito do que se escreveu sobre os Xavante pode ter passado por
transformações e mudanças. Todavia, o mesmo frenesi quando se trata de caça descrito
por Maybury-Lewis (1984:78-87) ainda permanece.
De volta à aldeia retomamos a participação nas expedições de coleta dos brotos
de buriti. Nestas expedições não observamos nenhum rito de entrada no mato ou pedido
à entidades sobrenaturais para extrair os tsuwaipó. Todavia, quando se tratava de
entradas em fazendas havia a preocupação de evitar qualquer encontro com o
fazendeiro. Numa destas expedições fizemos idas e voltas para trazer os brotos até a
estrada. Próximo à BR-070, deixávamos os brotos escondidos nas moitas de capim e
voltávamos para buscar mais. Segundo o coletor que acompanhávamos, esta era uma
precaução para não serem descobertos.
As expedições de coleta de brotos de buriti tiveram início logo após o término
do daporedazpuu’u – furos dos lóbulos auriculares, e prolongaram-se de modo intenso
até por cerca de um mês. Após este mês alguns grupos domésticos ainda saiam nestas
203
homem Xavante. No campo das relações sociais o tsõti é aquele que não sabe/pode
viver em sociedade. Vendo a situação em que o pesquisador fora colocado, o caçador
autorizou a entrega de parte das vísceras e tripas para algumas pessoas e aos poucos o
mal estar foi sendo dissipado. De volta à aldeia o caçador encarregou o pesquisador de
entregar o cesto de carne que ainda nos restava à sogra. Por ser irmão do caçador o
pesquisador ira igualmente considerado como genro por sua sogra. Entre as formas
sociais prescritas na relação sogro/sogra e genro está a obrigação deste trazer-lhe carne
em caso de sucesso em suas caçadas. Nos dias de hoje estas formas prescritivas têm sido
ampliadas diante das novas possibilidades de acesso e aquisição de alimentos e bens de
consumo. Neste sentido, todas as vezes que o pesquisador se deslocava à cidade de
Barra do Garças para comprar o seu rancho, que era socializado no grupo doméstico de
seu irmão, algo especial tinha que ser trazido à sogra, o que poderia ser um pacote de
laranja ou um pedaço de fumo de rolo.
Nos dias que se seguiram após esta caçada era corriqueiro o aparecimento de
parentes em busca de carne do tamanduá. Quase sempre, quando se tratava de homens,
a conversa se prolongava um pouco mais, pois todos queiram ouvir o relato de como o
tamanduá fora abatido, desde o momento em que o cachorro acuou o bicho, passando
pela ocasião em que o pesquisador ficou preso numa moita de cipós e gravatás89 até o
momento em que o caçador conseguiu abatê-lo.
Entre os grupos domésticos que compõem a aldeia Guadalupe as relações eram
relativamente tranqüilas. Nesta fase do processo ritual quando o caminhão retornava das
expedições de coleta de brotos de buriti não raro havia alguns problemas em localizar os
feixes de brotos que eram depositados no assoalho da carroceria. Algumas vezes
acontecia de feixes de brotos desaparecerem. Isto se dava às vezes não por má fé de
quem os pegava, mas sim pela dificuldade em localizar os brotos de buriti na escuridão.
Quando se descobria o dono do broto desviado havia sua restituição.
Antes e após do início do processo ritual do danhono alguns grupos domésticos
deixaram Guadalupe para fundarem outras aldeias. Todavia, estas novas aldeias ainda
eram consideradas como aliadas da facção do cacique, o que possibilitou retornos de
grupos domésticos que se arrependeram da mudança e/ou tiveram problemas de
relacionamento na outra aldeia. Foi caso Ed que deixou Guadalupe, por opor-se
politicamente ao cacique desta aldeia, para morar em Nossa Senhora de Fátima, mas
89
Ananas bracteatus.
205
dificuldades para caminhar, pois estava perdendo a visão pelos efeitos do diabetes, e
que igualmente acompanhava a iniciação do danhono.
Quanto à decisão de construir outra casa, Ed nos disse que não poderia conversar
conosco na aldeia, pois alguém poderia ouvir a conversa e ele seria taxado de
fofoqueiro. Desta forma, nos encontramos na cidade e nos revelou que decidiu mudar da
casa de Ver porque ela estaria espalhando fofocas segundo a qual ele não estava
pagando o aluguel direito. Visto que ele tinha o apoio de seu pai, Ant, e a ajuda de um
de seus cunhados para construir sua casa, considerou como melhor opção deixar a casa
de Ver.
Os dois fatos que apresentamos, o caso dos brotos de buriti e as relações de Ed
com Ver, não tiveram impactos imediatos sobre o tecido social da aldeia Guadalupe,
não sendo necessário qualquer acionamento de mediadores de conflitos. Todavia,
situações como estas ajudam a criar ressentimentos que podem ser acionados em
momentos oportunos, como veremos ao longo deste trabalho.
Além das pressões dos grupos domésticos para conseguir combustível, a ser
usado nas expedições de coleta de brotos de buriti, o cacique de Guadalupe tinha como
questão nevrálgica problemas de relações com os Bororo de Merure a respeito dos
limites territoriais das duas Terras Indígenas (São Marcos e Merure). Estes problemas
começaram logo após a cisão que ocorreu na aldeia São Marcos que resultou na
fundação de várias aldeias entre elas a de Guadalupe. Esta aldeia foi construída no
limite de uma linha seca que separa as Terras Indígenas Merure e São Marcos. Tal fato
gerou uma acusação por parte dos Bororo da aldeia Merure de que os Xavante estariam
invadindo suas terras. Acompanhamos parte das discussões sobre este limites ainda
quando estávamos realizando o trabalho de campo em 2002 para mestrado. Naquela
época ficou demonstrado que os Xavante de Guadalupe tinham construído sua aldeia no
limite, mas ainda dentro da Terra Indígena São Marcos. Quando se deu outra cisão,
desta vez dentro da própria aldeia de Guadalupe, vários grupos domésticos deixaram
aquela aldeia para fundar Jesus de Nazaré. Esta sim foi erguida do outro lado da Terra
Indígena São Marcos, ou seja, na Terra Indígena Merure. Isto reacendeu novamente
uma velha discussão a respeito dos limites das duas Terras Indígenas. Para compreender
a questão temos que recuar um pouco mais no tempo90.
90
Os dados e fatos apontados foram coligidos em consulta ao processo de demarcação da Terra
Indígena São Marcos com acesso obtido através do Museu do Índio no Rio de Janeiro.
207
picada para fixação dos marcos de demarcação. Foi-nos relatado, por aqueles
informantes, que o limite sul da Terra Indígena se estendia mais ou menos numa direção
de dez quilômetros adentro do que é hoje a Terra Indígena de Merure e atingiria um
lugar conhecido como Morro da Providência. O limite iria, segundo os Xavante
entrevistados, da cabeceira do Córrego Diamante ao Morro da Providência. Contudo,
houve contestação dos Bororo e a demarcação ficou paralisada. Isto teria ocorrido em os
meados do ano de 1974. Os entrevistados nos relataram que certo engenheiro
agrimensor, funcionário da FUNAI, chamado Dr. Valter, que acompanhava a
demarcação, teria dito: “os Xavante tem terra demais” e arbitrariamente resolveu a
questão entre os Xavante e Bororo deslocando o limite sul da Terra Indígena São
Marcos ao que é hoje, e ao que consta no decreto de 05 de nº 76.215 – 05 de setembro
de 1975, publicado no diário oficial em 08 de setembro do mesmo ano.
Conversamos também com missionários salesianos, em 2002, que trabalham em
São Marcos, sobre as questões envolvendo os limites das Terras Indígenas São Marcos e
Merure. Eles me confirmaram a versão Xavante sobre as tensões entre os dois povos na
época da demarcação e relataram que posteriormente, depois da demarcação, teria
havido uma reunião entre lideranças Xavante e Bororo, com presença missionária, e que
nesta reunião teriam chegado a um, digamos, acordo de cavalheiros. Por este acordo os
Xavante poderiam caçar e coletar na área, enquanto que os Bororo poderiam retirar
palhas na Terra Indígena São Marcos para cobertura de suas casas.
Foi neste contexto que, numa das expedições de coleta de brotos – em 2005, na
qual o cacique estava presente, que encontramos um grupo de Bororo, acompanhado de
um missionário Salesiano que trabalha na aldeia Merure, no entroncamento da BR-070
e a estrada que dá acesso à Terra Indígena São Marcos. Inicialmente os Bororo e o
missionário estavam ali para procurarem uma placa solar que havia sido roubada de
Merure e eles queriam saber se os Xavante tinham visto alguém circulando com aquele
objeto pelas estradas. Ao serem avistados pelos Xavante, o grupo que estava na
carroceria começou a gritar: mestre M. traidor, mestre M. traidor... A acusação de
traidor ao missionário se dava porque os Xavante suspeitavam que ele teria feito um
documento no qual se pedia a reintegração de posse da área em que fora construído a
aldeia Jesus de Nazaré. O missionário com apoio dos Bororo defendia-se da acusação
dizendo que ele tinha chegado na missão recentemente e que não tinha nada a ver com o
referido documento. O cacique dos Bororo procurava argumentar que era ele e a
209
comunidade que tinham feito o documento. Todavia, o grupo Xavante não estava
convencido da isenção do missionário na redação do documento. O cacique de
Guadalupe dirigindo-se ao missionário dizia: cadê o exercito pra me tirar? Você trouxe
o exercito? Por seu turno o missionário continuava a negar qualquer participação no
pedido de reintegração de posse. Em tom alterado o cacique dizia que quando eles
aceitaram o contato com os brancos a terra que é hoje dos Bororo estava cheio de
fazendeiro e que foram eles, os Xavante, que os amarram e os expulsaram. Para
finalizar a conversa dirigiu-se novamente ao missionário: você mestre M. ministro de
Deus, está trazendo discórdia entre os povos indígenas??!! Dito isto, encerrou
subitamente a conversa virando as costas ao grupo de Bororo e dirigiu-se ao caminhão
que seguiu viagem. Neste dia o local escolhido para coletar brotos de buriti foi na Terra
Indígena Bororo.
No dia seguinte ao episódio com os Bororo no entroncamento, fomos à casa do
vice-cacique para ver o tal documento que os Bororo haviam feito. Tratava-se de uma
folha digitada e impressa via computador. Na Terra Indígena Merure o único local onde
havia equipamentos de computação era na Missão Salesiana com sede na aldeia Merure.
Tudo indicava que realmente havia participação dos missionários no fato. Todavia, a
julgar pela redação e concordância gramatical do texto parecia tratar-se de uma
produção dos Bororo. No documento os Bororo acusavam os Xavante de invadirem
suas terras e pediam medidas punitivas até que estas fossem desocupadas. Entre as
medida punitivas aos Xavante estavam: a suspensão imediata dos recursos para saúde e
educação e o cancelamento provisório do processo de reconhecimento da Escola
Indígena da aldeia Jesus de Nazaré aberto junto Secretaria de Estadual de Educação –
SEDUC, em Cuiabá.
Uma semana após o episódio relatado acima estivemos na casa dos Salesianos
na cidade de Barra do Garças. Ali tivemos a oportunidade de encontrar um Salesiano
que havia passado alguns dias na aldeia de Merure substituindo outro que estava em
tratamento de saúde. Em conversa com este Salesiano o mesmo nos revelou que havia
sido ele o redator do documento dos Bororo. Segundo sua versão, teria sido o salesiano
mestre M. o mentor do documento após uma reunião com as lideranças Bororo,
confirmando as suspeitas dos Xavante. Estes fatos nos mostram que os conflitos entre
Xavante e Bororo repercute também na esfera missionária e podem ser alimentados por
ela. Com pontos de vista diferenciados cada uma das missões se posiciona em favor de
210
seus índios. Todavia, esta não tem sido a orientação geral da sede dos Salesianos, a
Inspetoria de Campo Grande. Em conversa com os salesianos de Barra do Garças fomos
informados que o Inspetor, numa reunião dos missionários, os teria orientado os não
intrometerem ou tomarem partido nas questões envolvendo conflitos entre os Xavante e
Bororo pelos limites das duas Terras Indígenas. No entanto, esta parece não ser a
realidade.
Os Xavante respondem com outro documento encaminhado à FUNAI no qual
pediam a demarcação da Terra Indígena Morro da Providência, alusão ao indicador de
limites entre as duas Terras Indígenas que fora colocado no relatório do Pe. Pedro
Sbardellotto, a partir do qual foi criado a Terra Indígena São Marcos.
Como forma de melhorar as condições de saúde da população indígena foi
criado pela FUNASA diversos cargos para os quais são contratadas pessoas escolhidas
pela própria comunidade aldeã. Entre estes cargos figura o Agente Indígena de
Saneamento – AISAN91. Cabe ao Distrito Sanitário Especial Indígena – Dsei, a
contratação e treinamento dos AISAN para que possam estar atuando em suas aldeias.
No caso da Terra Indígena São Marcos, das 26 aldeias 15 delas tem um AISAN
contratado, entre elas Guadalupe. Durante a primeira fase do trabalho de campo
acompanhamos uma reunião na aldeia entre o vice-cacique e outros membros da aldeia
com um representante da Coordenação Regional – CORE/MT – vindo de Cuiabá para
ver o andamento e orientar os trabalhos do AISAN. No entanto como o AISAN ainda
não estava presente a reunião começou com o questionamento sobre o projeto de
construção de um Posto de Saúde para melhor atender aquela aldeia e as demais do
entorno. O representante da CORE/MT disse que o recurso para construção do Posto de
Saúde já havia sido liberado, mas não sabia dizer onde estaria parado e o porquê da obra
ainda não ter começado, comprometendo-se em levar estas informações. Após a
cobrança pela construção do Posto de Saúde o vice-cacique falou sobre a necessidade de
se ouvir a comunidade antes das tomadas de decisões referentes aos índios. Segundo
91
É função do AISAN: 1. identificar as condições ambientais da comunidade e os mananciais
disponíveis para o abastecimento de água; 2. reconhecer as doenças relacionadas com a água, dejetos e
lixo, e promover melhorias nas condições de saneamento; 3. promover e orientar a execução de
sistemas alternativos para abastecimento de água, destino de dejetos, melhoria habitacional e controle
de vetores e roedores de acordo com a realidade de sua comunidade; 4. auxiliar e supervisionar na
operação dos sistemas de abastecimento de água e outros projetos de saneamento implantados na sua
área de atuação, bem como a manutenção preventiva e corretiva dos mesmos; 5. executar inquéritos
sanitários domiciliares e auxiliar em estudos preliminares para a implantação de pequenas obras de
saneamento como proteção de fontes, poços rasos, cisternas, banheiros, fossas secas, fossas sépticas e
outros (http://www.funasa.gov.br – acesso em 14/11/2007).
211
ele, não bastava ouvir os índios que estão trabalhando na cidade, era preciso visitar as
aldeias para ver a realidade. Por fim, disse que as comunidades respeitavam a
democracia. Justificando sua concepção de democracia colocando-se contra outras
comunidades que conseguem os recursos com base na pressão, com soco na mesa e
seqüestros. O que não acontecia com Guadalupe que tinha um histórico de reivindicar
passivamente respeitando as autoridades.
Visto que o AISAN não chegava Ruf tomou a palavra e começou a queixar-se
contra Ub, que detinha o cargo. Para Ruf o AISAN Ub, não estava desempenhando o
papel adequadamente, além de estar pedindo transferência para Brasília onde pretendia
morar. Neste sentido, pediu que o representante da CORE/MT e encarregado dos
AISAN deveria investir em quem permanecia direto na aldeia. Para reforçar suas
queixas disse que estava sofrendo com a falta d’água. A falta d’água que Ruf se referia
era decorrente da quebra do conjunto de placa solar e bomba d’água. Em verdade,
quando chegamos à aldeia para o trabalho de campo a FUNASA havia recém entregue o
conjunto de placa solar e bomba d’água e uma caixa com capacidade de dez mil litros
de água, além de uma estrutura composta de dez torneiras, onde as mulheres buscavam
água e passavam o dia lavando roupas e panelas. Entretanto, o conjunto de placa solar e
bomba d’água não foram cercados e tornou-se lugar de brincadeira para crianças,
conforme já descrito.
Finalmente o AISAN chegou, mas nem Ruf ou o representante da CORE/MT
retomaram as acusações contra Ub sobre o conjunto quebrado. Ub acusou o Sr. M.,
técnico responsável pela manutenção, de não atender seus pedidos par vir consertar o
conjunto ou liberar peças hidráulicas de reposição. A reunião foi encerrada com a
entrega de uma cartilha e um conjunto de fichas pelo representante da CORE/MT aos
AISAN Ub, nas quais ele deveria anotar suas atividades desenvolvidas na aldeia. O
representante da CORE/MT fez uma série de fotografias que seriam levadas à Cuiabá
para serem anexadas ao projeto de construção do Posto de Saúde.
Após a reunião procuramos saber entre os presentes porque as criticas ao
AISAN Ub partiram de Ruf. De acordo com os informantes antes da cisão da Aldeia
São Marcos da qual resultou Guadalupe a mulher de Ruf tinha este cargo naquela
aldeia. Com a mudança para Guadalupe o cargo foi dado à Ub, e isto provocou
descontentamento a Ruf que tentava desqualificar Ub e reaver o cargo para sua mulher.
Embora Ruf fosse professor da escola, contratado pelo Estado de Mato Grosso, o
212
mesmo ainda alimentava pretensões de conseguir mais cargos, como AISAN. Para isso
questionou durante a reunião se a CORE/MT não estaria oferecendo cursos de
engenharia sanitária, pois tinha interesse nestes cursos para acumular títulos.
A oferta por cargos oferecidos pela FUNASA, pela FUNAI ou pelo Estado de
Mato Grosso, no caso dos professores, constitui uma forma de monetarização, sobretudo
dos homens na aldeia. Isto possibilita o acesso a bens e conferem prestígio aos grupos
domésticos. Diante disso, há uma busca intensa por estes cargos e o aumento da
competição entre os grupos domésticos. O resultado imediato desta competição está no
enfraquecimento da autoridade política daqueles que distribuem estes cargos. O fato a
seguir mostra-nos isso.
Na época da pesquisa o serviço de transporte de doentes na Terra Indígena São
Marcos estava sendo terceirizado. A empresa prestadora de serviços para Guadalupe era
perdeu a licitação que renovava o contrato e houve uma mudança de prestadores de
serviço. Diante disso, houve a necessidade se contratar dois novos motoristas que
trabalhariam com a viatura. Entretanto, quando o fato foi comunicado à assembléia, no
warã, a desaprovação da atitude do chefe foi grande. Principalmente pelos dois
contratados para motoristas serem Xavante. Segundo um dos informantes a comunidade
tinha mais confiança no motorista waradzu. Até mesmo a filha do cacique, que tem a
função de enfermeira na aldeia, se colocou contra a contração dos motoristas Xavante e
dizia que tinha preferência em trabalhar com o motorista waradzu. As tensões
aumentaram ainda mais quando foi feito o anúncio dos ocupantes do cargo de motorista.
O cacique escolheu para motorista um de seus genros e o outro um de seus netos. O
genro do cacique foi desqualificado por ser, segundo os informantes, um viciado em
ödzaipro, cerveja. Para o neto pesava a inexperiência como motorista, visto que havia
poucos meses que o mesmo tinha tirado habilitação. Tal manobra aplacou boa parte de
seus parentes, sobretudo a filha descontente, visto que o neto contratado era seu filho.
Numa conversa com o pesquisador o cacique defendeu a contratação do índio
em lugar do waradzu, por gerar renda à comunidade. Sobre as reclamações da
comunidade o mesmo dizia que não queria fazer queda. Todos, disse ele, querem
alguma coisa: uns querem que só waradzu trabalhe como motorista, outros querem a
empresa Y. Qual caminho vou seguir?, perguntou ele. A bagunça não resolve nada!,
completava. Por bagunça entendam-se as disputas e posicionamentos em contrário ás
suas decisões. Ele afirma estar avançando na luta pelo bem da comunidade, mas
213
ninguém o agradecia. Tudo o que conquista é para o bem da comunidade. Nada ficaria
para ele ou seus filhos. Quem tem capacidade de fazer progresso?, pergunta novamente.
Seria seu sobrinho Raimundo, cacique de São Marcos, ou Lourenço, cacique de Fátima,
ou ainda, Simão, cacique de Namunkurá?, todos seus opositores politicamente. Segundo
ele, todos estes só querem puxar o filho para deixar o cargo. Em sua visão tudo o que
tem sido feito foi em prol das novas gerações. Por fim traça sua concepção de líder:
Para ser lideranças não é para receber privilégio, não é para fazer também
paternalismo, é para lutar para o bem das comunidades.
No mesmo dia em que conversei com o cacique sobre as mudanças nas empresas
que prestariam serviço de transporte à saúde, na parte da tarde os representantes da
empresa vencedora vieram trazer a viatura. O carro entregue era da montadora
Mitsubishi Motors, cabine dupla com tração 4x4, ano 2005 dirigiu-se até a frente da
casa do cacique onde uma multidão se juntou. Quando todos desceram o cacique
perguntou se o carro era zerinho, e completou dizendo que a comunidade e sua filha não
queriam ferro velho. Enquanto um dos representes mostrava o veículo aos novos
motoristas o outro recolhia seus documentos para encaminhar o processo de
contratação. Ao término os dois motoristas receberam dois pares de uniforme que
deveriam ser usados enquanto estiverem de serviço. Neste ínterim o cacique começou a
dizer aos que estavam presente que aquela viatura era para a saúde apesar de os
fofoqueiros estivessem dizendo que seria usado por sua filha para buscar água gelada,
em São Marcos, para ele. Dizia ele que o outro carro transportava todo mundo, menos
os doentes, isto agora seria diferente. Ao pesquisador afirmou que a empresa que havia
perdido a licitação estava com raiva dele, e seria ela a espalhar fofocas nas aldeias.
Neste momento chegou uma notícia no rádio amador, que também fica dentro da casa
do cacique, dizendo que havia pacientes em alta na Casa de Saúde do Índio – CASAI,
de Barra do Garças. Ao serem comunicados os representantes da empresa disseram que
agora tudo seria resolvido pela comunidade. Eles foram levados à aldeia São Marcos
onde permaneceram e a viatura entrou em operação viajando à Barra do Garças para
buscar os pacientes em alta.
À noite, do mesmo dia que os fatos relatados acima aconteceram, entrevistamos
um informante que estivera presente durante a conversa que tivemos com o cacique pela
manhã. Este informante nos contou de suas mágoas para com o chefe desde os tempos
em que viviam em São Marcos. Na época do projeto de rizicultura, final dos anos 70 e
214
início dos 80, este informante, que é também sobrinho do chefe, pediu várias vezes para
ser contratado como funcionário federal para ocupar os postos de motorista, tratorista ou
professor. O chefe sempre negava seus pedidos e entregava estes cargos às pessoas do
clã po’redza’õno. Sobre a conversa que tivemos pela manhã com o cacique o
informante dizia que ele acusa as outras aldeias de favorecerem parentes e darem cargos
para os filhos e faz a mesma coisa ao colocar o neto e o genro como motoristas. No dia
seguinte enquanto retirávamos seda, wamnhorõ, dos brotos de buriti, na frente de sua
casa, avistamos a outra viatura da aldeia retornar e começar a descarregar lenha na casa
do chefe. Vendo a cena o informante mostrou-se revoltado dizendo que era esse tipo de
coisa que a comunidade não gostava. Para completar disse que muitas famílias só
estavam esperando a festa terminar para deixarem Guadalupe e fundarem outras aldeias.
Entre estas famílias o informante elencou a do cunhado do cacique e outra composta por
um de seus irmãos classificatórios.
No centro da aldeia, o warã, durante a madrugada, as discussões a respeito da
viatura e dos motoristas contratados vieram novamente à tona. Um dos velhos
classificou a viatura como carro de bandido, por ser da cor azul escuro e por ter película
escura nos vidros. Como os homens demoravam a aparecer para conversarem no centro,
alguns velhos ensaiaram um canto e foram executá-los no na frente das casas da aldeia.
Segundo um informante o canto falava sobre o fechamento da água limpa, uma alusão à
fofocas de que o conjunto de bomba, placa solar e caixa d’água montado pela FUNASA
seria fechado para sempre. A medida surtiu efeito e não demorou muito os homens
começaram a chegar ao centro da aldeia, entre eles o cacique. Com um público ainda
maior a questão dos motoristas foi retomada. Um dos ĩhire, anciões, reclamou
novamente da inexperiência do neto do cacique em conduzir a viatura. Como argumento
disse que nas expedições de coleta de brotos de buriti esse motorista não sabia trocar as
marchas do caminhão e sempre fazia um barulho que o incomodava. O cacique volta a
defender as qualidades de motorista do neto usando como contra argumento o fato do
mesmo ter feito curso na cidade e tirado o documento de habilitação. Sendo o assunto
principal a questão do atendimento à saúde foi pedido ao chefe que providenciasse uma
enfermeira waradzu, não Xavante, para o atendimento da comunidade. De acordo com
um dos informantes, as enfermeiras waradzu quando estão na aldeia fazem visitas
regulares às casas, mas a enfermeira Xavante, filha do cacique, não tem esta
preocupação. Além disso, a enfermeira waradzu anterior estava ensinando dois novos
215
enfermeiros Xavante. Não obstante, quando esta enfermeira foi embora à filha do
cacique dispensou os dois aprendizes. Ainda nesta reunião o vice-cacique que tinha
usado o caminhão para ajudar a aldeia de Fátima, tomou a palavra para justificar sua
atitude. Segundo ele, a ajuda resultou na doação de cinqüenta litros de óleo diesel para
Guadalupe. Todavia, foi advertido por outro ĩhire, ancião, para comunicar a
comunidade quando e para onde o caminhão estará indo. Novamente o vice-cacique se
defendeu dizendo que apenas estava querendo fazer união das comunidades. Este
mesmo ĩhire disse que o cacique da aldeia de Fátima, L., deveria fazer um gesto de
humildade e vir a Guadalupe e fazer sua proposta de trabalho conjunto. O cacique
retomou seu discurso e muitos começaram a deixar o local retornando para suas casas
para continuarem os trabalhos de retirada de seda de buriti.
A respeito dos dois aprendizes de enfermeiro que trabalhavam junto com a
enfermeira waradzu, chegamos a acompanhar seu desempenho no atendimento aos
doentes que procuravam a escola, que funcionava como posto de saúde. Em verdade, o
que estamos chamando de Posto de Saúde era o antigo galpão de palha e cobertura de
zinco que funcionou como escola até a construção do outro galpão, em alvenaria,
dividido com madeira compensada, para onde foi transferida a escola. Entretanto, por
causa da quantidade de pulgas que havia no antigo galpão o atendimento aos doentes era
feito no corredor da escola. Ao término do expediente a enfermeira recolhia os remédios
que ficava numa caixa até o dia seguinte para novos atendimentos. Para dormir ela
usava o sótão construído sobre a cozinha da escola. Segundo aquela enfermeira os
estagiários, como já estavam sendo chamados pela comunidade, estavam empenhados
em aprender a ministrar os medicamentos. Apesar de não estarem recebendo salários
pelo serviço prestado eles mantinham certa regularidade de comparecimento ao local de
trabalho. Soube que o vice-cacique havia encaminhando um documento pedindo a
contração dos dois. Não obstante, com a saída da enfermeira waradzu, para gozar seus
dias de folga, os dois estagiários fizeram atendimentos por mais dois dias. Tiveram que
interromper os trabalhos porque a enfermeira, filha do cacique, pegou a caixa com os
remédios e a levou para sua casa, onde os atendimentos passaram a acontecer. Com isto
ela dispensou os estagiários, aumentando mais o descontentamento da aldeia em relação
a seu trabalho.
Após estes episódios circulava pela aldeia um boato, fofoca, de que a enfermeira
Xavante teria dispensado os dois estagiários para ensinar, dentro de casa, uma das filhas
216
para assumir seu posto quando ela aposentasse. Nesta mesma direção surgiu outro boato
segundo o qual o chefe do Distrito Sanitário Especial Indígena Xavante - DISEI, havia
dado uma vaga de enfermeiro ao cacique e este estaria segurando para sua neta de treze
anos.
O local onde a nova viatura ficou estacionada provocou comentários de
reprovação da conduta do chefe. A viatura passou a ficar estacionada na frente da casa
do cacique. De acordo com ele esta teria sido uma orientação da empresa prestadora de
serviços. Os informantes disseram que o carro ficaria ali porque o cacique queria usá-lo
em beneficio próprio. Justificaram esta afirmação dizendo terem ouvido próprio cacique
dizer que quando precisasse ele usaria o carro para resolver alguma coisa na cidade.
As tensões internas provocadas pela mudança da empresa prestadora de serviços,
pela contratação dos parentes do cacique como motorista chegaram ao conhecimento
das outras aldeias da Terra Indígena São Marcos. Da aldeia Fátima chegou o boato
sobre Guadalupe que estaria começando outra divisão. Diziam outra porque aquela
aldeia surgiu em decorrência de divergências com o cacique de Guadalupe. Em todas as
conversas que tive com o cacique, este procurava desqualificar as lideranças de Fátima.
A idéia de que as lideranças indígenas agem em conformidade com os anseios da
comunidade aldeã não encontra sustentação no caso de Nossa Senhora de Guadalupe.
Não demorou muito e os boatos sobre a saída de vários grupos domésticos após o
término do danhono chegaram aos ouvidos do cacique. Estava claro para ele que o
descontentamento foi provocado por sua atitude em contratar o genro e o neto como
motoristas da nova viatura. Todavia, ele não só ignorou estes fatos como também falou
que os descontentes eram mal agradecidos e não reconheciam sua luta pelas melhorias
da comunidade. Ele acusava os que moravam na cidade de insuflar o descontentamento
na aldeia. Segundo ele, os que moram na cidade não conhecem mais e não se interessam
pelos rituais. Somente ele e os demais ĩhire, anciões, da aldeia pensam na cultura.
Um dos informantes que estava muito contrariado com as atitudes do cacique
disse que ele era macaco velho. Isto significava que de alguma maneira ele iria
contornar a crise que havia iniciado. Todavia, não esperava, nem pretendia, fazer isso
nos próximos dias visto que os ânimos estavam muito exaltados.
Nos dias que se passaram a comunidade foi aos poucos voltando novamente suas
atenções aos brotos de buriti. Muitos grupos domésticos estavam adiantados e
acumularam boa quantidade de seda. Estes por seu turno já estavam preparando outros
217
ornamentos a serem usados nos rituais. Não obstante, as expedições de coleta de brotos
voltaram a acontecer. Numa destas viagens algumas pessoas embarcaram no caminhão
com finalidade diversa dos demais. Um grupo embarcou para realizar uma pescaria em
córregos que ficavam dentro da Terra Indígena Merure, que por serem pouco
freqüentados a oferta de peixes era grande. Isto contrariou aqueles que tinham por
objetivo os brotos de buriti. Todavia, apesar da reprovação não houve mudança nos
planos dos pescadores.
Transcorridos pouco mais de vinte dias após o início das expedições de coleta de
brotos e retirada das sedas de buriti, o wamnhorõ, fomos convidados a visitar a casa do
avô de um dos tébé. Quando chegamos encontramos um grande maço de wamnhorõ
disposto sobre um cobertor. Outros ĩhire, anciões, chegaram e começaram a inspecionar
a seda e discutir sobre sua qualidade e tamanho. Um deles juntou as sedas de maior
comprimento e amarrou o feixe numa das pontas, formando uma espécie de capa. O
mesmo colou-a na cabeça e com uma vara de bambu imitava os gestos rituais que o tébé
deve fazer no dia de sua cerimônia. O comprimento da capa de wamnhorõ foi aprovado
pelo pai e avô do tébé. Este feixe de seda foi cuidadosamente amarrado ao longo do
wabu, talo seco da folha de buriti. Depois que a seda de buriti é amarrada no wabu ela
não pode mais ser vista pelos demais moradores da aldeia. Somente os membros do
grupo doméstico sabem de sua presença na casa. Os homens podem conversar
livremente sobre ele no centro da aldeia. Quando se deseja saber se um grupo doméstico
tem seda o suficiente para confecção do ornamento wamnhorõ, o interlocutor deve fazê-
lo de modo discreto. Depois que a seda foi amarrada no wabu, ela não pode circular
durante o dia pela aldeia. Não foi possível aprofundar os motivos destes cuidados.
Paralelo ao danhono outros rituais aconteciam nos finais de semana na aldeia
Guadalupe. No referimos a recita do terço católico, herança do trabalho missionário ao
longo de sessenta anos na Terra Indígena São Marcos. Aos domingos a récita do terço
era organizada pelos agentes de pastoral Xavante, função criada pelos missionários. A
cada quinze dias o salesiano padre celebrava a missa no centro da aldeia ou no antigo
galpão construído para ser escola. Acompanhamos estas celebrações durante o período
de trabalho de campo. Numa delas, no domingo à tarde, o salesiano padre chegou e
dirigiu-se ao antigo galpão da escola onde o grupo de fiéis começou a se reunir logo em
se seguida. O sino fora tocado algumas vezes chamando os fiéis. Enquanto isso no
centro da aldeia os danhohui’wa, classe de idade tirowa, tocavam a flauta upawã,
218
92
Temos dúvidas quanto à grafia destas frases, porém não de seu sentido.
220
93
Tivemos mais sorte do que Maybury-Lewis que teve as bochechas mordida por um
da’ãmawai’a’wa até sangrarem, como forma de deixar claro sobre o respeito em relação aos segredos
deste ritual (Maybury-Lewis, 1984:330)
222
94
Gesto que se parece com uma dança durante o qual o da’ãmawai’a’wa ameaça pisar no pé do
wai’arã.
223
àqueles que seriam seus portadores. Os portadores dos objetos rituais, divididos de
acordo com sua filiação clânica, foram se esconder nos arredores da aldeia, obedecendo
à posição do nascer e por do sol. Assim, membros dos clãs öwawẽ e tob’ratato
posicionaram-se em pontos diferentes da metade da aldeia do lado do nascer do sol,
enquanto que os do clã po’redza’õno nos pontos da outra metade da aldeia voltada ao
sol poente. Os dzö’ratsi’wa e demais da’ãmawai’a’wa se dirigiram ao centro da aldeia,
onde o ritual teve continuidade. No warã, centro da aldeia houve novamente a entrega,
de modo performático, de outros objetos sagrados. O canto ensaiado durante o dia foi
executado de novamente. Ao seu término cinco dentre os wai’arã foram escolhidos para
buscarem, juntamente com os da’ãmawai’a’wa outros objetos rituais que deveriam ser
usados durante todo o ritual. Este grupo saiu correndo em direção ao marã onde
receberam, ritualmente, os objetos. Com eles em mãos os cinco wai’arã dançavam
vibrando-os olhando para o alto movendo a cabeça lentamente para a direita e esquerda,
como se estivessem em êxtase. Ao término do canto os wai’arã e os da’ãmawai’a’wa
dirigiram-se até suas casas de onde retornaram trazendo bolos, pães, pipoca, pacotes de
feijão, açúcar, pacotes de biscoitos e até barras de sabão que foram ofertados aos
dzö’ratsi’wa que ficaram aguardando no warã. Após a entrega das oferendas, os
wai’arã e os da’ãmawai’a’wa retornaram às suas casas para jantar. As oferendas
deixadas no centro da aldeia foram divididas entre os dzö’ratsi’wa, que as levaram para
suas casas. Momentos depois todos retornaram ao centro da aldeia, dando continuidade
ao ritual. Ali ensaiaram novamente o canto e puseram-se a executá-lo percorrendo o
círculo da aldeia. Durante a noite toda esta performance foi repetida. Nos arredores da
aldeia aqueles que receberam os objetos rituais mantinham-se vigilantes tocando de vez
em quando um instrumento musical.
Acompanhamos a performance ritual até as duas da madrugada, quando fomos
dormir. Acordamos por volta de quatro horas e retomamos nossas obrigações no ritual.
Quando o sol dava indícios de aparecer no horizonte o grupo dos da’ãmawai’a’wa saiu
em busca dos wai’arã que tinham abandonado o ritual para dormirem. Ao encontrá-los
os da’ãmawai’a’wa faziam datsiparabu e imediatamente os wai’arã saiam correndo
para o centro da aldeia. Num dos casos, onde da’ãmawai’a’wa e wai’arã tinham mais
intimidade, o primeiro despertou o segundo apertando-lhe o testículo. Com todos
reunidos, o canto foi executado nos arredores da aldeia uma última vez e todos voltaram
para o centro da aldeia. Ali ficaram aguardando o sinal dado através de um assobio. Ao
224
discursar sobre a cerimônia da corrida do noni. Em seu discurso ele dizia que a corrida
do noni já poderia começar no dia seguinte e que não houvesse provocações, nem
respostas a estas, entre as famílias. O cunho das provocações que o ĩhire se referia
estava relacionado ao uso indevido de determinados ornamentos corporais durante as
cerimônias sem a devida autorização de seus donos. Um destes ornamentos corporais é
o abadzipré, literalmente algodão vermelho, usado como cinto. O mesmo é
confeccionado sob a medida exata da cintura de quem o usará. Na parte de trás pendem-
se dois casulos, feitos de algodão e recobertos com resina branca. Estes casulos são
unidos em uma das extremidades e presos ao cinto de modo a formar um V invertido.
As outras pontas dos casulos terminam com fios de algodão desfiado e correntinhas de
sementes de capim navalha, a’é.
Linhagens e clãs são detentoras da propriedade de vários ornamentos e objetos
rituais. Segundo os informantes, as famílias nunca estão contentes com os seus adornos
corporais, pois acham os dos outros mais bonitos. Isto é ponto nevrálgico no processo
ritual e gera fortes tensões quando os usos indevidos são descobertos. Não obstante, há
situações, como veremos adiante, em que o uso de ornamentos pode ser negociado e
autorizado mediante trocas. Ainda sobre o abadzipré, um de nossos informantes disse
não saber quem eram os seus donos. Entretanto, por gostar muito dele pediu a seu pai
que o fizesse para que seu filho usasse numa das cerimônias finais do processo ritual.
Não apuramos o sentido mítico deste ornamento corporal. Nas tentativas que o fizemos
nossos informantes se limitavam a dizer que gostavam de usar por serem bonitos.
Em continuidade ao seu discurso o ĩhire disse uma vez que já havia acontecido o
wai’a, o wedetede poderia ser montado e que tivesse início à corrida do noni. Esta foi a
primeira vez que presenciamos o direito de oratória deste ĩhire na assembléia do warã.
Ele levantou-se da cadeira que sempre levava consigo e ao começar a falar o burburinho
que havia logo deu lugar ao silêncio. Em tom baixo e extremamente tranqüilo ele pedia
que a cerimônia do noni tivesse início. Entretanto, um dos presentes no warã disse que
o noni não poderia ter início no dia seguinte porque haveria uma reunião importante na
cidade de Barra do Garças e os homens estariam indo participar da mesma.
O discurso deste ĩhire nos sugere que o danhono está intrinsecamente
relacionado com outro rito de iniciação e celebração religiosa o darini e seu resultado,
as celebrações do wai’a. Contudo, esta relação não está condicionada a dicotomia entre
sagrado e profano sugerida por Van Gennep (1978:26). Segundo este autor toda
226
3.7 – O WEDETEDE
disposição da casa dos solteiros orienta a fixação dos postes wedetede. Assim, o poste
de maior comprimento é fixado na direção do lado onde está construída a casa dos
solteiros, enquanto que o outro, com cerca de um metro e meio a menos, deve estar do
lado onde será construída a próxima casa dos solteiros. Esta disposição da fixação dos
postes está também relacionada à direção que os iniciandos tomam quando estão
dançando na aldeia. Desta forma, um recém chegado à aldeia ao deparar-se com o poste
maior do wedetede estando fixado do lado direito ele pode inferir que a classe de idade
que está sendo iniciada usa o sentido anti-horário do perímetro interno da aldeia para
executar seus cantos e danças. Não obstante, com as transformações ocorridas na
configuração das aldeias Xavante, que tem deixado de apresentar o formato de ferradura
e assumido o formato circular, o local de construção das casas dos solteiros tem sofrido
pouca ou nenhuma alteração. No caso da aldeia São Marcos, por exemplo, durante
décadas a casa dos solteiros esteve localizada em um único ponto da aldeia. Houve um
tempo, antes da cisão daquela aldeia, que o formato de ferradura deu lugar a uma
estrutura de três círculos concêntricos. No princípio de criação dessa aldeia os
Salesianos adotaram a prática educativa de internato junto aos Xavante. Com isso a hö,
casa dos solteiros, passou a ser considerada a partir do internato. Anos depois, quando o
internato foi abolido, os Xavante continuaram a se utilizar de sua estrutura para
manterem reclusos os wapté, moradores da casa dos solteiros. Durante este período as
classes de idade apenas trocavam, a cada processo de reclusão, a cobertura de palha da
estrutura de alvenaria que constituía a hö. A prática se manteve até a conclusão da
iniciação da classe de idade ẽtepa
˜ .
A iniciação seguinte teve a construção da hö feita noutro ponto, não muito
distante do anterior. Isto nos mostra que a posição dos postes do wedetede sugere, mas
não condiciona o local de construção da casa dos solteiros. Todavia ela ainda é acionada
para indicar o perímetro de dança das classes de idade, bem como o trajeto a ser
percorrido pelos corredores do noni ao final de cada bateria, como veremos adiante.
Os postes fixados durante o dia foram alvos de críticas na reunião dos homens
durante a noite no warã. As considerações que traçamos acima sobre o posicionamento
dos postes wedetede não foram observadas, ou seja, eles estavam invertidos. No dia
seguinte um dos postes teve que ser retirado e fixado no lugar correto. Nesta reunião foi
discutido também quem seria o carregador do noni, que recebe o nome ritual de
nonimrami’wa. Este ator ritual deve ser escolhido entre os membros da classe de idade
229
3.8 – O NONI
Dois dias após a realização do wai’a os heroi’wa saíram pela manhã para cortar
galhos e árvores de pequeno porte, que foram plantadas no entorno do wedetede
formando quase um semicírculo em sua volta. No dia seguinte os heroi’wa saíram
novamente para o mato para coletarem folhas de buriti. No wedetede sob a companhia
230
95
O abare’omob’rada pertence à mesma classe de idade abareu. Com a renovação do ciclo de
iniciação a esta classe de idade recebe o sufixo ’omob’rada.
96
Curatella americana - família Dilleniaceae
231
ẽtepa
˜ e hötörã, começaram a se reunir em outro marã, distante cerca de uns cinco
quilômetros da aldeia, onde normalmente os dzö’ratsi’wa, donos do chocalho, vão
ensaiar os cantos do wai’a, para confeccionarem dois pares de objetos rituais: o ĩni ou
brudu, segundo um de nossos informantes, e o tsidupu. A escolha de um marã bem
afastado da aldeia nos dois casos, o ensaio dos dzö’ratsi’wa e o preparo destes objetos
do ritual deve-se ao fato de que os moradores da aldeia não deveriam ouvir os sons e
cantos, enquanto estão sendo ensaiados. O canto do wai’a e a apresentação dos objetos
rituais até os dias em que serão usados nas cerimônias constituem segredos para os
demais moradores da aldeia.
O ĩni é um tipo de borduna com cerca de cinco a seis metros de comprimento
por uns quinze de diâmetro. É feito com uma madeira vermelha, a aroeira, e uma das
extremidades, cerca de quarenta centímetros, é revestida com algodão. Abaixo deste
revestimento aplica-se uma fileira de penas de arara por toda a extensão do diâmetro da
borduna. Após aplicação das penas de arara, imediatamente abaixo delas, amarra-se um
pequeno bastão de modo oblíquo formando um gancho.
Enquanto parte do grupo prepara os ĩni ou brudu, os demais se encarregam de
confeccionar o outro objeto do ritual. Para montar o tsidupu, um tipo de flauta, utiliza-se
dois pedaços iguais de taquara com cerca de quarenta centímetros. As taquaras são
amarradas em paralelo com fios de algodão, deixando cerca de cinco a dez centímetros
livres nas extremidades. Uma das pontas é tampada com cera de abelha, enquanto a
outra é levemente rebaixada para facilitar o encaixe dos lábios no momento em que
forem usadas. Todo este trabalho, realizado pelos dahi’wa, é acompanhado e orientado
por seus danhohui’wa.
Quando as flautas tsidupu estão prontas é feito uma disputa entre os dahi’wa
para escolher dois entre eles para ensinar aos pahöri’wa, quando as flautas forem
entregues. Nesta ocasião encolhem-se dois, um de cada clã, que recebem o nome de ĩ
hörö’wa, tocadores deste instrumento.
wedenhorõ, tanto nos pulsos quanto nos tornozelos além de amarrar-lhes os colares de
algodão, danho’rebdzu’a. Para esta ocasião os heroi’wa usam o padrão de pintura
chamado tsanapré, no qual pinta-se um retângulo na altura do abdômen, outro nas
costas sobre a coluna, na canela usa-se uma pintura de carvão. As cordinhas amarradas
nos pulsos e tornozelos são confeccionadas com entrecascas de árvores e arbustos, que
apresentam propriedades mágicas e garantem a seus portadores maior resistência. Nas
expedições de coleta dos brotos de buriti nos foram mostradas uma grande variedade
destas plantas que seriam usadas durante a cerimônia do noni. Numa manhã de domingo
fomos convidados a acompanhar um grupo até uma cabeceira para buscar os ramos de
um arbusto que, segundo os Xavante, apresenta estas propriedades mágicas. Neste
sentido, muitos heroi’wa utilizavam-se de mais de um tipo de cordinhas. Além das
cordinhas eles fixavam com resina a serragem extraída de raízes que teriam a mesma
finalidade.
O carregador do noni, o nonimrami’wa, utilizou a modalidade de pintura
conhecida como daupté, na qual braços, tronco, cochas são pintados de vermelho e a
panturrilha pintada de preto. Na cabeça ele utiliza o ornamento chamado burui’pré97,
confeccionado com uma pena de arara vermelha presa num pedaço de flecha com cerca
de quarenta centímetros. Entre o pedaço de flecha e a pena de arara faz-se um
acabamento enrolando fios de algodão tingidos de vermelho. Para fixar o ornamento na
cabeça utiliza-se um pedaço de talo seco da folha de buriti chamado wabu, que depois
de lapidado apresenta propriedade semelhante à cortiça. Inicialmente amarra-se o cabelo
em forma de rabo de cavalo na nuca e depois se prende o wabu com fios de algodão
pintados de vermelho. Durante todo período em que estiverem sendo realizadas as
corridas do noni o nonimrami’wa utilizará esta modalidade de pintura e o mesmo
ornamento de cabeça. Os heroi’wa pintam-se somente nas cerimônias que acontecem no
período da tarde.
Durante o momento da pintura corporal dos heroi’wa, que acontece na hö, o
cacique apareceu com duas caixas de calções vermelhos e começou a distribuí-los aos
iniciandos. Entretanto, considerando que o número de calções era insuficiente para
atender a todos ele aceitou a ajuda de seu cunhado na distribuição. Este cunhado era um
97
A grafia das palavras em Xavante não tem padrão normativo. Alguns autores como Müller
(1976:58) e Giaccaria & Heide (1984:302) grafam, respectivamente este termo como uburõipré e
ubu’rãypré. Giaccária & Heide (idem) apontam ainda que este ornamento é usado nas celebrações do
wai’a, o que reforça nossa hipótese do imbricamento entre a iniciação do danhono, que poderia ser
caracterizado como uma iniciação social, e as celebrações do wai’a, uma celebração religiosa.
233
oposto da subida batendo ritmicamente as mãos na capa do noni. Ao passar pelo centro
e sua chegada no wedetede, recebe os agradecimento dos que assistem. Todos retornam
novamente ao início. Entretanto, nas baterias seguintes os heroi’wa correm em grupos
disputando entre si. Durante os dias que se seguirão as demais classes de idade podem
desafiar membros da sua ou de outras. As disputas podem dar-se também entre
membros de clãs opostos. Estes duelos são amplamente incentivados e esperados pela
comunidade aldeã. Às vezes uma disputa pode render diversos dias de conversa na
reunião do warã. Foi caso de uma disputa na qual o pesquisador foi colocado. No dia da
apresentação das classes de idade que já haviam sido iniciadas, uma delas composta por
um grupo de ĩhire, anciãos, teve em seu meio um jovem da mesma classe de idade do
pesquisador. Quando o nonimrami’wa deu o sinal de partida os ĩhire saíram à frente,
mas foram logo ultrapassados pelo jovem. Num clima de jocosidade isto gerou uma
grande discussão entre os presentes. Disseram ao pesquisador que os ĩhire derrotados
eram na maioria seus parentes e pertenciam ao seu clã. Diante disse o pesquisador
deveria vingar a humilhação imposta pelo jovem aos seus parentes e ao seu clã. O duelo
foi marcado para o dia seguinte, na corrida da parte da tarde. A notícia do confronto se
espalhou pelas aldeias vizinhas, de modo que no dia esperado o público era expressivo.
Depois das baterias do heroi’wa o pesquisador e desafiante, sozinhos, seguiram o
nonimrami’wa até o local de início. Ludibriado pela astúcia do jovem desafiante o
pesquisador se descuidou e saiu em desvantagem. Entretanto, gozando de melhor
condição de saúde, pois o desafiante era fumante de cachimbo, no meio do percurso o
pesquisador ultrapassou o desafiante e atingiu o wedetede primeiro. Estava vingada a
honra de seus parentes e do clã.
Ao término das baterias o nonimrami’wa deixa o local de início correndo em
direção ao wedetede, seguindo pelo lado oposto ao de subida e batendo as mãos no noni
farfalhando suas folhas. Ao passar pelo wedetede ele recebe os agradecimentos dos
presentes e dirige-se, sempre correndo, até o local de depósito da capa do noni. Este
local situa-se uns dez metros acima de onde está plantado o poste maior do wedetede.
Ali um tronco, chamado nonidza’odzé, cuja extremidade termina em forquilha é
plantado para receber o noni. Antes de chegar ao nonidza’odzé o nonimrami’wa é
perseguido por um dos heroi’wa, seu afilhado, que lhe retira o ornamento de cabelo
burui’pré. Ele deposita o noni no nonidzaodzé e encerra-se a cerimônia por este dia. À
medida que os dias vão passando o noni começa a secar. Diante disso um novo noni
235
deve ser confeccionado conforme descrevemos acima. Sempre que houver a confecção
de um novo noni fazem-se também novos anhana’rãtomri. Os noni antigos ficarão
depositados no nonidza’odzé até o final da iniciação e depois serão queimados.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:173s) ao término das cerimônias o
nonimrami’wa se dirigia até a hö onde recebia alimentos preparados pelas mães dos
heroi’wa. Durante nossa pesquisa não observamos esta prática. Ao final das cerimônias
do noni o nonimrami’wa se reunia com os demais danhohui’wa para ensaiarem o canto
do wanaridobe. A principal recompensa por sua dedicação virá mais tarde, quando as
capas de wamnhorõ estiverem prontas. Descreveremos esta situação mais adiante.
Durante cerca de quarenta dias a cerimônia do noni se repete pela manhã e no
final da tarde. Neste ínterim, os grupos domésticos seguem confeccionando os
ornamentos corporais e retirando a seda dos brotos de buriti, wamnhorõ.
ensaios, bem como, no dia da cerimônia. Desta forma, antes de iniciarem os ensaios os
danhohui’wa amarram várias folhas de broto de buriti na cabeça, de modo que elas
fiquem pendentes nas costas. Enquanto estão dançando, alternadamente eles deixam o
círculo e saem correndo com o corpo abaixado, de modo semelhante à corrida quando
se espreita uma presa durante as caçadas, e dirigem-se ao grupo de mulheres que estão
assistindo o ensaio. Tomando-a pela mão ele a conduz até a roda de dança e ornamenta-
a com um dos feixes de folhas de broto de buriti que traz sobressalente na cabeça. Após
a demonstração dos ĩpredupté, os atuais danhohui’wa começam o ensaio e aos poucos
vão incorporando no grupo as companheiras de dança. Eles podem escolher quantas
companheiras desejarem. Todavia, em geral não ultrapassa a duas, do contrário alguns
poderiam ficar sem. De mais a mais, para a cerimônia do wanaridobe os danhohui’wa
devem confeccionar os adornos corporais para suas companheiras além de terem que
presenteá-las com carne ao retornarem da grande caçada. Assim, pode ser mais
econômico ao danhohui’wa ter apenas uma companheira. Entretanto, ter mais de uma
companheira é sinal de coragem e virilidade. A partir deste momento a mulheres
escolhidas passam a vivenciar o ciclo de vida danhohui’wa tsipi’õ, madrinhas.
A definição de quem será companheira de quem acontece nos bastidores do
ritual entre os interessados. Neste sentido, cria-se uma grande expectativa na
comunidade aldeã saber quem será companheiro de quem. No dia em que os ĩpredupté,
da classe de idade hötörã, fizeram a demonstração do modo de escolha havia poucas
mulheres tirowa assistindo. Segundo alguns informantes elas estava com vergonha de
serem apresentadas e não compareceram no warã, centro da aldeia, onde a escolha
acontece. Entretanto, no dia seguinte na parte da tarde, após a corrida do noni, ouve
novamente o ensaio e novas escolhas de companheiras aconteceram. Quando os homens
saírem para a grande caçada, serão elas que darão continuidade ao canto do wanaridobe
nas madrugadas e ao entardecer.
A demonstração que os ĩprédu fizeram aos danhohui’wa foi concluída com o dia
ainda claro. Enquanto eles permaneceram no warã ensaiando, furtivamente os ĩpredupté
deixaram o local e dirigiram-se para outro marã, mais próximo da aldeia. Os objetos
rituais ĩni, ou brudu, e tsidupu que estavam sendo confeccionados longe da aldeia foram
237
trazidos para um local mais próximo da aldeia onde recebia os últimos retoques.
Durante o tempo de trabalho no marã mais distante os ĩpredupté avaliaram os dahi’wa
para saber qual deles conseguiria tirar o melhor som da flauta tsidupu. Além de
escolherem os dois melhores sopradores, os ĩpredupté definiram também quem seriam
os entregadores dos objetos. Os escolhidos para entrega dos objetos, que devem
pertencer a clãs diferentes, são pintados no marã com a modalidade daupté com
variante e ornamentos corporais próprios da celebração do wai’a.
O ritual de entrega do ĩni, ou brudu, e tsidupu prossegue com o recolhimento
dos heroi’wa dentro da hö, onde devem ficar trancados. Os dois dahi’wa escolhidos
para ensinar o modo de como se toca o tsidupu são pintados com o motivo tsanapré, no
qual se desenha um retângulo em vermelho no abdômen e nas costas e a panturrilha
pintada de preto. Como no caso daqueles que entregarão o ĩni, ou brudu e tsidupu, estes
dois dahi’wa igualmente usam alguns adornos corporais próprios do wai’a. Segundo
Giaccaria & Heide (1984:169) um dahi’wa deveria ir até a hö e golpeá-la com uma
borduna tipo uibró. Em Nossa Senhora de Guadalupe o dahi’wa escolhido para este fim
foi orientado a jogar um tronco sobre a porta, de madeira, da hö, o que provocou um
forte estrondo. A este sinal os dois pahöri’wa saíram em perseguição ao dahi’wa, que se
dirigiu ao marã. No marã os dois escolhidos para entregar o ĩni, ou brudu, com a
tsidupu, presa no gancho da ponta que fora ornamentada, estavam de pé com as pernas
abertas, buscando melhor apoio. Com uma das mãos seguravam o ĩni, ou brudu, e com
a outra pressionavam os lábio emitindo um som que os informantes disseram-me tratar
da “voz” do morcego98. Este som é mesmo emitido em certas ocasiões quando se
celebra o wai’a. Quando os pahöri’wa chegaram diante daqueles que seguravam o ĩni,
ou brudu, e tsidupu tentaram tomar-lhes os objetos, mas sofreram certa resistência.
Como se estivessem lutando com entidades sobrenaturais os pahöri’wa conseguiram
tomar o ĩni, ou brudu, e tsidupu e saíram correndo com eles até a hö. Eles foram
seguidos pelos dois dahi’wa escolhidos para demonstrar o modo de se tocar o tsidupu.
Na hö o ĩni, ou brudu, foi posto apoiado no esteio principal da casa enquanto tsidupu foi
entregue aos dahi’wa que passaram a soprá-los. Terminada a demonstração os dois
pahöri’wa tentaram, sem muito sucesso no início, extrair algumas notas da flauta. Ao
término das duas performances os ĩpredupté e ĩhire, anciãos, agradeceram segundo o
modo usual para este tipo de ocasiões: hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ - obrigado, obrigado,
98
Este som parece tratar-se da ecolocalização. Os morcegos emitem ondas de ultra-sons que são
recebidas novamente, permitindo identificar obstáculos e presas.
238
obrigado. Depois que aos dois dahi’wa procederam à entrega dos objetos, foram
conduzidos ao warã onde permaneceram toda a noite em volta de uma fogueira.
No dia seguinte pela manhã, depois que o dia clareou, os heroi’wa foram
conduzidos ao wedetede. Ali, usando apenas os calções vermelho, foram guiados pelo
nonimrami’wa até o local de início das corridas. Fizeram uma única bateria onde todos
tomaram parte. Os dois dahi’wa que entregaram os objetos, de clãs opostos também se
dirigiram ao local de início da corrida do noni. Ao sinal do nonimrami’wa iniciaram
entre si uma disputa. Ao grito de incentivo dos que estavam no warã, cruzaram a aldeia
e atingiram o wedetede. Venceu o dahi’wa do clã öwawẽ, cuja performance tornou-se
assunto principal na reunião matutina do warã. A cerimônia de entrega do ĩni, ou brudu,
e tsidupu estava encerrada. Os heroi’wa continuaram a disputar entre eles novas baterias
de corrida do noni. Nestas baterias outros homens começaram a tomar parte. Alguns
com motivações jocosas deixavam para competir quando os heroi’wa menores corriam,
deixando que eles permaneceram à frente até próximo ao wedetede, e depois eram
ultrapassados.
A cerimônia de corrida do noni duraria ainda mais uns quarenta dias. Neste
ínterim, a comunidade aldeã continuou a realizar expedições de coleta de buriti e
preparar outros ornamentos corporais que seriam usados nas cerimônias seguintes. Aqui
encerramos nosso primeiro trabalho de campo de 2005.
casa dele própria. Justificou seus planos dizendo que, no caso da enfermeira, os
remédios precisavam ficar na geladeira. A extensão para sua casa seria para fazer o
rádio amador funcionar melhor com a energia do gerador, visto que até o momento era
alimentado por uma placa solar.
Durante o primeiro trabalho de campo, o gerador da escola quebrou por falta de
experiência do encarregado, Er, em fazê-lo funcionar. Após o seu conserto a
comunidade pressionava o operador para ligá-lo durante a noite para que todos
pudessem assistir filmes de artes marciais. Por uns dias houve a apresentação dos
filmes, mas como aquele era único aparelho de televisão da aldeia. Boa parte de seus
moradores para lá se dirigiam a noite. Não demorou muito para os boatos de encontros
amorosos entre os heroi’wa e meninas começarem a circular. Diante disso, o uso do
motor foi proibido durante a noite. Além disso, o estoque de combustível fornecido pela
SEDUC – Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso, destinado à escola para
que o gerador mantivesse o refrigerador em funcionamento para conservar a merenda
escolar, tinha acabado.
A cerimônia do noni ainda estava acontecendo nos dois momentos do dia, pela
manhã e no entardecer. Nas madrugadas e no entardecer os danhohui’wa estavam mais
empenhados nos ensaios do canto do wanaridobe.
Numa das reuniões do marã, onde os homens se reuniam para preparar os
ornamentos corporais usados na cerimônia do noni, bem como para aquelas cerimônias
que ainda estavam por acontecer, foi discutido os preparativos para realização da caçada
pahöri’wa manadö e tébé manadö. A principal questão era quem compraria a munição
que os caçadores usariam. Segundo o cacique, o administrador do NAL, Núcleo de
Apoio Local, havia prometido comprar dez caixas de bala (.22). Entretanto, o cacique
dizia não confiar mais nas promessas daquele administrador. Segundo ele, todas as
vezes que ele fez promessas deixou de cumpri-las. Diante disso foi solicitado que os
pais e parentes dos pahöri’wa e tébé arcassem com a compra da munição, posto que o
pesquisador era considerado pai classificatório de um dos tébé, ele foi convidado a
ajudar os parentes na compra da munição. Não obstante, esta era uma das questões mais
difíceis, não só para o pesquisador, mas também para os próprios Xavante. Nesta época
estávamos em plena campanha nacional pelo desarmamento da população nacional.
Com isso, praticamente todos os comerciantes de Barra do Garças estavam relutantes
em vender munição aos Xavante. Quando procuramos as lojas especializadas no ramo,
240
sempre nos era solicitado o registro da arma a qual se destinava a munição. Obedecendo
estas condições era possível encontrar munição pelo preço x. Entretanto, visto que as
armas que os Xavante usam não são registradas, a saída foi buscar o mercado
alternativo no comércio de munição. As lojas que exigiam o registro de armas para
vender a munição praticavam também um mercado paralelo. Desta forma, uma caixa
com cinqüenta unidades de bala (.22), neste mercado paralelo, passava a custar três
vezes mais do que o preço oficial. Uma alternativa foi buscar, neste mercado paralelo,
um ex-policial que também comercializava munição. Alguns Xavante o conheciam e
entraram em contato com ele. Num determinado ponto da cidade, acompanhamos seu
encontro com um grupo de Xavante. Embora destoante em relação ao mercado, o preço
da munição do ex-policial estava mais acessível, porém a quantidade disponível era
insuficiente. Os Xavante conseguiram comprar apenas duas caixas, somando 100
unidades. Além das munições para espingarda calibre .22, alguns Xavante possuem
armas de calibre maior como as winchester calibre .38, de propriedade do cacique. A
munição para este tipo de arma é vendida em cartelas de dez unidades no mercado
oficial. Diante do problema da falta de registro para este tipo de arma, a solução foi
igualmente recorrer mercado paralelo. O ex-policial fazia o remanufaturamento das
cápsulas já deflagradas das balas calibre 38. O preço deste tipo de munição saía pela
metade do preço do mercado oficial. Foram compradas cerca de quinze balas daquele
calibre.
Além da munição a comunidade aguardava a liberação de mantimentos que
seriam usados como rancho durante o tempo em que durasse a caçada. Acompanhamos
um grupo de homens à Barra do Garças onde o administrador do Núcleo de Apoio
Local de General Carneiro – NAL, havia comprado a alimentação que seria levada na
caçada. Como veremos adiante, antes do início da caçada os caçadores são divididos em
quatro grupos. Na cidade o mantimento adquirido foi levado ao local de chegada e
partida do caminhão onde fora dividido. Cada um dos quatro grupos recebeu 01 saco de
farinha com 60 kg; 30 kg de sal; 90 kg de arroz; meio saco de cebola; 24 latas de óleo
de soja e um pedaço de 25 cm de fumo. Por ser início de mês e época de pagamento dos
professores e de aposentados, neste dia o caminhão tinha viajado para Barra do Garças
com capacidade acima do limite. Na hora do retorno constatou-se que não caberia no
caminhão todas as pessoas com suas mercadorias. Diante disso, foi decidido que ele
241
faria duas viagens. O pesquisador ficou para trás e seguiria na segunda viagem. Pelo
tempo previsto de ida e volta, o caminhão retornaria às 23:00hs
Ficar na cidade para seguir na próxima viagem nos permitiu observar como os
Xavante agem no contexto urbano, no período da noite, após terem cumprido seus
objetivos principais, normalmente relacionados ao recebimento de salários e pensões do
INSS e posteriormente a aquisição de alimentos nos supermercados. Desta forma,
ficamos com o grupo no local conhecido como Restaurante do Mauro. Este restaurante
fornece refeições na modalidade PF – prato feito. Ali a maioria dos que estavam
esperando o retorno do caminhão aproveitaram para jantar. Outro grupo ficou
conversando numa das praças públicas não muito distante dali, mas estratégica visto que
o caminhão passava sempre por ali. Alguns Xavante após o jantar se reuniram num bar
na frente do restaurante onde permaneceram jogando sinuca. Tudo estava tranqüilo até o
momento em que um dos jovens que desempenhava o papel de dahi’wa no processo
ritual apareceu bêbado e começou a insultar sua mulher. Quando os insultos tenderam
para a agressão física houve a intervenção de seus companheiros de classe de idade que
procuravam, em vão, retirá-lo do local. Passado o momento de maior tensão o rapaz
bêbado sentou-se ao lado do sogro que tinha acompanhado a tudo sem intervir. Segundo
os informantes, o dahi’wa começou a insultar o sogro dizendo que ele estava
espalhando fofocas pela aldeia de que ele bebia demais e agredia a mulher, e se defendia
dizendo que tudo era mentira. A sogra que estava ao lado, vivendo em estado de luto
pela morte da mãe ocorrida a poucos dias, começou a chorar e o clima ficou
extremamente delicado no local. Neste ínterim outros colegas seus chegavam e, com a
voz extremamente baixa, procuravam dar conselhos sobre o consumo de bebida. Depois
que o dahi’wa ficou mais calmo o sogro tomou a palavra e, falando pausadamente, disse
ter perdido a paciência. Sendo aquela a terceira vez que o dahi’wa bebia e batia em sua
filha ele não o queria mais como genro. Ele deveria chegar à aldeia pegar seus filhos e
deixar sua casa, pois não o queria mais casado com sua filha. Um dos informantes nos
disse que o sogro amava seu genro e por isso tinha lhe dado a segunda filha como
esposa. No entanto, diante do problema da bebedeira do genro ele as estava “tomando”
dele. Neste momento chegou a viatura da saúde que viera trazer doentes e estava
retornando à aldeia. Pediram então que a viatura levasse a sogra, que ainda chorava
diante dos fatos.
242
uma das moças pegou um pacote de arroz de outro grupo doméstico. Ao ser solicitada
para que devolvesse o arroz, ela ofereceu um arroz de menor qualidade, e foi recusado.
A dona do arroz usurpado tentou recuperar seu pacote a força. A resistência da outra
parte fez que com o pacote de arroz rasgasse e seu conteúdo espalhasse pelo chão. Com
isso as duas entraram em luta corporal, onde a usurpadora levava a pior até a entrada de
suas irmãs na luta. Do outro lado a mãe da moça também entrou no confronto. Por fim,
a turma do deixa disso entrou em ação e o confronto foi suspenso e todos seguiram para
suas casas.
Conflitos como os apresentados acima raramente são tratados no warã ou
levados ao cacique para que este atue como árbitro entre as partes. No entanto, quando é
ali tratado é colocado dentro das situações consideradas jocosas do dia-a-dia. Não
obstante, a pressão exercida sobre o administrador do NAL, isto sim foi motivo de
assunto na assembléia. Questões referentes ao descontentamento da comunidade em
relação às tomadas de decisões do chefe são contestadas quando este está presente. No
entanto, os planos de algumas famílias de deixarem a aldeia após o processo de
iniciação são discutidos fora do warã. Estas questões são tratadas nos bastidores da vida
cotidiana da aldeia, através de articulações sobre os prováveis acompanhantes de um
grupo doméstico caso ele realmente venha a deixar a aldeia. Na noite em que ficamos
aguardando o retorno do caminhão conversamos com alguns informantes que nos disse
serem muitos os que deixariam a aldeia depois da festa.
Na véspera da saída para a caçada pahöri’wa manadö e tébé manadö os
heroi’wa saíram novamente pela madrugada para buscarem folhas de buriti para
confeccionar outro noni. No entanto, um dos tébé não acompanhou o grupo de
heroi’wa. Quando perguntamos ao seu pai as razões pelas quais ele não tinha
acompanhado seu grupo, ele respondeu que estava com muita raiva do filho porque este
não o obedecia e ignorava seus conselhos. O pai do tébé evitava entrar em confronto
direto com o filho com medo de lhe provocar algum dano sério à sua saúde, haja vista
que todos os demais filhos homens que ele tivera haviam morrido. De mais a mais, o
tébé deveria dormir na hö. Entretanto, desde a furação de orelhas ele vinha dormindo
em casa. Segundo a explicação do pai, sua saúde era muito frágil. Este informante nos
revelou que tivera mais seis filhos e todos morreram. Entre as causas das mortes estava
a desnutrição e abortos, visto que a mulher era portadora de diabetes e não conseguia
manter as gestações.
244
Não havendo outra opção senão aceitar o motorista imposto pelo cacique, o
caminhão partiu levando a primeira turma de caçadores, os pahöri’wa e vários ĩhire,
anciãos. Por volta de três da tarde o caminhão retornou. Nesta segunda viajem, na qual
tomamos parte, seguiram outros caçadores, mais alguns heroi’wa, os dois tébé e seus
suprimentos. Realmente a comunidade tinha razão sobre a inexperiência do motorista
escolhido. Levamos cerca de três horas para chegar ao local escolhido para ser o
acampamento, percorrendo aproximadamente setenta quilômetros.
O local escolhido para ser explorado durante as caçada estava localizado dentro
da Terra Indígena dos Bororo. O acampamento foi montado num lugar que os Xavante
já tinham usado em outras caçadas e no passado tinha sido sede de uma antiga fazenda.
Próximo passava um córrego conhecido pelos Xavante e Bororo como Barigajal.
Quando chegamos ao ponto de destino, após percorrer uma estrada abandonada dentro
da Terra Indígena Bororo, o acampamento já havia sido limpo pelos heroi’wa e
caçadores da primeira viagem. Ali já estava reservado um local onde ficaríamos
juntamente com o grupo de um dos tébé. Após descarregar nosso tsi’õno, cesto xavante,
saímos a procurar folhas de buriti que nos serviriam de colchão durante a noite, e uma
forquilha para manter a tralha suspensa. Quando anoiteceu os heroi’wa preparam a
janta: arroz e mandioca. Após a janta eles se reuniram no centro do acampamento onde
ensaiaram um canto para depois executá-lo em quatro pontos diferentes.
Um novo ritual, até então não previsto na tradição Xavante, após o canto da
tradição os heroi’wa se reuniram novamente no centro do acampamento para entoarem
outro canto, em Xavante, de consagração a Nossa Senhora e logo em seguida
executaram a récita do terço católico. Após o terço o motorista que fora defenestrado
pelo cacique fez a boa noite99. Depois do boa noite aos pouco todos foram se ajeitando
para dormir. Na madrugada alguns ĩhire, anciãos, costumavam fazer longos discursos
direcionados aos heroi’wa, procurando encorajá-los e pedindo seu empenho nas
atividades que iriam desempenhar. Num destes discursos um dos ĩhire reclamava dos
heroi’wa que não estavam correndo, como deveriam, atrás dos queixadas. Situação
oposta de sua juventude. O cacique em alguns momentos se punha a falar, mas era
praticamente ignorado pelos caçadores.
A primeira noite no acampamento foi difícil para dormir não só para o
pesquisador, mas também para os Xavante. O clima no cerrado nos meses de junho a
99
A prática da boa noite é uma herança da tradição salesiana aplicada nos seminários e
internatos e consiste em dirigir palavras de incentivo a boa conduta e atenção as regras de disciplina.
246
novembro é semelhante ao de deserto, ou seja, muito calor durante o dia e frio a noite.
Por estarmos acampado próximo ao riacho a temperatura caía um pouco mais. Assim, à
medida que a noite avançava, com a temperatura em queda livre, o saco de dormir qua
havíamos levado já não era mais suficiente e o jeito foi buscar um casaco para nos
aquecer. Durante a madrugada com alguns Xavante tentaram reacender a fogueira para
igualmente se aquecer. Antes de o sol nascer os heroi’wa voltaram a entoar o canto.
Pela manhã alguns heroi’wa ainda dormiam enquanto outros estavam empenhados a
prepararem o café da manhã: arroz cozido e farinha. Novamente houve um canto em
homenagem a Nossa Senhora seguido de uma oração. Os homens se reuniram no warã
do acampamento de caça onde discutiam que direção tomariam no primeiro dia de
caçada. De mais a mais, estavam retardando a saída esperando que o sol secasse a
vegetação do forte sereno que havia caído durante a noite.
A finalidade da caçada pahöri’wa manadö e tébé manadö é obter a maior
quantidade possível de carne de caça a ser usada nas cerimônias do tébé e do pahöri’wa.
Para isso o acampamento e os caçadores são divididos em quatro grupos, sendo: um
para o primeiro tébé e outro para o segundo tébé; um para o primeiro pahöri’wa e outro
para o segundo pahöri’wa. A filiação a estes grupos seguem em primeiro plano as
relações de parentesco. Neste caso, o acampamento é pensado a partir dos clãs, onde os
acampamentos dos dois tébé seriam compostos por membros do clã öwawẽ, enquanto
aqueles dos pahöri’wa teriam os membros do clã po’redza’õno. Antigos atores rituais
que desempenharam os papéis de tébé ou pahöri’wa deveriam igualmente ajudar os
acampamentos daqueles. Considerando os danhohui’wa, membros da classe de idade
tirowa, estes teriam que seguir de forma mais rígida a distribuição nos acampamentos
mediante a filiação clânica. No entanto, para garantir um equilíbrio entre os grupos
alguns caçadores podem ser deslocados para outros grupos. De mais a mais, é possível
que um caçador tenha certa predileção por um grupo que não seja de seus parentes. Isto
pode ser motivado por descontentamentos entre os membros do próprio grupo, como
veremos adiante.
Com sol alto os caçadores decidiram sair para caçar. Não obstante, realizaram
antes um ritual propiciatório para garantir uma caçada farta. Neste ritual os homens se
colocam em círculo no centro do acampamento, e segurando com as duas mãos as
armas – espingardas, arco e flechas ou um pedaço madeira, a frente do corpo levemente
inclinado e cabeça baixa, com a perna esquerda servindo de apoio iniciam um canto
247
cujo ritmo é marcado com a perna direita. Segundo Luiz, nosso principal informante, o
canto pede que o Bom Espírito segure firme a caça para o caçador. Ao término do canto
dois tições foram dados a dois caçadores que saíram em direções opostas, acompanhado
de outros, para pôr fogo no cerrado. Dias antes de partirmos para caçada conversamos
com Dário, outro informante, o mesmo nos disse que os caçadores que recebem o fogo
pertencem a clãs opostos. Ainda segundo Dário, no passado os dois caçadores
procuravam incendiar um grande círculo de cerrado e encontravam-se no local onde o
mesmo se fechava. Ali havia a troca de arcos entre os caçadores. Em 2005, os dois
caçadores que receberam os tições de fogo e foram igualmente seguidos por outros
tomando direções opostas. Todos carregavam consigo isqueiros ou caixas de fósforo e
na medida em que adentravam no cerrada colocavam fogo na vegetação procurando
formar o círculo observando a direção do vento. Entretanto, vez ou outra, o vento
mudava de direção e o ideal de se formar um grande círculo de fogo, para cercar os
animais que porventura estivesse por ali, se desfazia. Quando isto acontece prevalece o
perigo de o caçador ser surpreendido pelo fogo. Soubemos de casos em outras aldeias
onde alguns caçadores se acidentaram com a mudança do vento e não conseguiram fugir
a tempo das chamas.
As práticas de caçadas dos Xavante difere daquela praticada pelos Awá, como
constatamos na oportunidade que tivemos de acompanhar uma de suas caçadas em uma
visita de campo a este grupo indígena100. Os caçadores que acompanhamos adentraram
na mata fechada e seguiram por trilhas conhecidas por eles. A diferença de vegetação,
cerrado para os Xavante e mata pré amazônica para os Awá, revela igualmente táticas
distintas para abater certos tipos de caça. Enquanto os Xavante optam por queimar o
cerrado procurando formar um círculo de fogo para caçar porcos do mato, os Awá por
sua vez procuram descobrir a batida do bicho. No dia em que acompanhamos a caçada
dos Awá eles não abateram nenhum animal. Entretanto, encontraram a batida do bicho
e retornaram no dia seguinte com sucesso, abatendo três porcos do mato. O’Dwyer
(2001) descreve em seu laudo que o local de preferência para o acampamento de caça-
coleta dos Awá são os cocais de babaçu, a partir dos quais percorrem o harakwá, isto é
seus territórios de caça e coleta. Nos cocais de babaçu, segundo O’Dwyer, ocorrem
também encontros de patri-grupos, e nesta ocasião dá-se a troca de mulheres e o
100
O trabalho de campo foi realizado no âmbito do projeto de pesquisa Arqueología y
etnoarqueología de los Awá-Guajá (Maranhão, Brasil), como assistente de pesquisa de Eliane Cantarino
O'Dwyer (PPGA-UFF), integrante da equipe coordenada por Almudena Hernando (Universidad
Complutense-UCMADRI).
248
já iniciado, esquartejá-la. Além disso, eles devem coletar lenha nos arredores para
manter o fogo acesso embaixo do jirau durante toda a noite para que a carne fique bem
moqueada. São eles também os encarregados de trocar, sempre que necessário, as vigas
de madeira verde que serve de estrado no jirau. De mais a mais, preparam ainda o arroz,
base alimentar na caçada e no cotidiano da aldeia, que é servido sempre que um caçador
retorna ao acampamento e depois no jantar e café da manhã.
Não são todas as partes das presas que vão para o jirau. As vísceras e costelas de
certos animais são consumidas no acampamento ou dadas a pessoas que tem funções
especiais, como veremos adiante, durante o tempo de caçada. Quando se abate uma
anta, por exemplo, por ser um animal de grande porte, é dividida e as peças pré-
moqueadas no próprio local. Nesta situação, algumas vísceras são consumidas ali
mesmo pelos caçadores que ajudam no processo.
O segundo dia de caçada não resultou no esperado. No final da tarde chegaram
mais quatro caçadores que foram incorporados nos grupos. Durante a noite um heroi’wa
do grupo onde estávamos, pertencente ao segundo tébé, ofereceu um prato de comida
para um dos caçadores do grupo do segundo pahöri’wa. Tal atitude foi reprovada pelo
pai do segundo tébé, que disse que isso não poderia acontecer, uma vez que o grupo dos
tébé só podem ajudar membros destes grupos. Entretanto, dias depois observei o mesmo
indo até o jirau do segundo pahöri’wa e retornar com um pedaço de tatu. Questionado
sobre o fato admitiu que a regra não era absoluta. Presenciamos outras situações onde a
quebra de regra era constante. Numa delas, o problema da falta de munição entre os
caçadores era superado com a doação e empréstimo entre os grupos.
À noite, do segundo dia de caçada, não houve récita do terço católico, mas uma
oração depois do tradicional canto dos heroi’wa. O boa noite foi dado por um dos ĩhire,
anciãos. Com a ajuda de um tradutor tivemos acesso ao conteúdo deste boa noite. De
acordo com o tradutor o assunto tratado pelo ĩhire foi o poder de Deus e a pequenez do
homem. Teria pedido também que Deus oferecesse boa caçada no próximo dia. A
prática do boa noite adotada regularmente pelos Xavante parece estar muito próxima do
papel dos danhohui’wa, que devem igualmente dar bons conselhos aos moradores da
casa dos solteiros. Não só os danhohui’wa exerciam o costume de dar conselhos aos
hö’wa. Outros membros, sobretudo os ĩhire, da mesma metade cerimonial poderiam
fazê-lo. O exercício do boa noite, nos moldes salesiano, parece cumprir tal objetivo,
mas com o elemento religioso integrado, e se torna um exercício pedagógico.
250
tocar o animal, mesmo sendo ele que o tivera abatido. Segundo o próprio caçador, ele
havia se tornado pai há poucos dias. Com isso qualquer ação sua sobre o corpo do
animal repercutiria sobre o corpo do recém-nascido. Caso ele tocasse a cabeça da anta a
criança morreria. Um toque no nariz levaria ao congestionamento da criança podendo
levá-la também a morte. No momento em que os outros caçadores começaram a comer
algumas vísceras, ele se retirou do lugar. Tinha medo que houvesse problemas com os
rins e fígado do recém nascido.
Ao retornarmos de outro dia de caçada observamos que logo após o canto dos
heroi’wa, os danhohui’wa começaram a colocar alguns troncos de forma circular no
centro do acompanhando. Ali, apesar da demora, foram aos poucos se reunindo e
começaram a ensaiar um canto. Notamos que Luiz, estava inquieto em relação ao canto
que esta sendo ensaiado. Ao questionarmos o que estava acontecendo o mesmo nos
relatou que o cacique tinha convocado os danhohui’wa, classe de idade tirowa a ensaiar
um canto que não deveria ser feito ali no acampamento. De acordo com o informante, o
chefe esta agindo desta forma para demonstrar sua autoridade. No entanto, ele só estava
fazendo isso porque contava ainda com o apoio de outros ĩhire, que estavam no
acampamento. Enquanto alguns tirowa ainda se posicionavam e preparavam o lugar
para o ensaio, um deles veio até Luiz e ficaram por um tempo conversando. Embora não
entendesse o que falavam era perceptível que se tratava de uma conversa séria, diante da
formalidade própria dos Xavante usada quando se trata de questões importantes.
Terminada a conversa entre os dois, perguntamos sobre o que falavam. De acordo com
Luiz o chefe havia cometido alguns erros que estava gerando descontentamento entre os
tirowa. O primeiro erro estava relacionado a autoridade ritual, que o chefe não teria,
para convocar os tirowa a ensaiarem o canto e só o estava fazendo por ter o apoio de
alguns ĩhire. O outro erro estava relacionado ao local destinado para o ensaio do canto.
Antes de explicar estes erros convêm falar um pouco mais do canto.
Este canto, chamado wai’a’rãpó, deve ser mantido em segredo, principalmente
dos heroi’wa, até sua execução pública. A primeira apresentação pública, ainda que de
forma velada, acontece após a cerimônia do pahöri’wa,durante a dança das capas na
frente do wedetede, quando os ĩprédu e ĩhire o executam de forma extremamente
baixa. No dia seguinte, durante a madrugada acontece o canto wanaridobe e logo após a
cerimônia de retirada das capas wamnhorõ. Enquanto os danhohui’wa, padrinhos, que
promoveram a retirada das capas estão reunidos no centro, os dahi’wa, ou seja,
253
embora se procure distribuir o volume de caça, há sempre à questão: quem foi o grupo
campeão?, como me disseram.
Além da aldeia Guadalupe, as aldeias de Fátima e Jesus de Nazaré, dentre
outras, estavam realizando o danhono. As duas aldeias mencionadas também estavam
caçando na Terra Indígena Bororo. Diante disso, certo dia antes de sairmos para outra
região da Terra Indígena Bororo, onde ainda não havia sido queimado o cerrado, fomos
procurados pelo cacique que nos aconselhou a ter cuidado no encontro com os Xavante
daquelas aldeias, pois também estariam caçando naquela área. Ao entrarmos no cerrado,
sempre acompanhando os caçadores, horas depois ouvimos os gritos de um caçador que
tinha abatido uma anta. Corremos até o local onde acompanhamos a divisão do animal e
seu preparo para ser transportado. Neste ínterim, apareceram dois caçadores de Fátima
que cumprimentaram os de Guadalupe e ficaram conversando. Um deles seguiu adiante,
enquanto o outro ficou aguardando a abertura da anta e depois de ter recebido um
pedaço de fígado assado, também foi embora. Os caçadores de Guadalupe que por ali
estavam relataram terem encontrado outros caçadores das aldeias de Fátima e Nazaré. A
preocupação em encontrar membros de outras aldeias parecia mais um problema para o
cacique do que para os demais. A cisão de Guadalupe que resultou na criação das
aldeias de Fátima e Nazaré, não provocou isolamento entre elas, visto que entre outras
coisas, há ligações fortes de parentesco entre os que ficaram em Guadalupe e os que
foram para aquelas aldeias. Os laços de companheirismo entre as classes de idade são
muito fortes entre as aldeias, apesar da divergência política de suas lideranças. Estando
as três aldeias caçando no mesmo território, Guadalupe aparece com maior
probabilidade de sucesso. Isto se deve pela diferença populacional entre as aldeias.
Depois da aldeia São Marcos, Guadalupe é a que tem maior população e
conseqüentemente mais caçadores do que Fátima e Nazaré.
Toda a caçada foi realizada dentro das terras dos Bororo. Desde os primeiros
dias a área explorada foi à parte sul daquela terra indígena, situada na margem esquerda
da BR 070, que corta o território Bororo, sentido Cuiabá. No penúltimo dia os Xavante
decidiram explorar a área da margem direita – a leste da aldeia Merure, dos Bororo.
Tudo transcorria como um dia normal de caçada: colocar fogo no cerrado, seguir as
pegadas dos animais, ajudar a carregar o que fora abatido. Ao retornarmos para o ponto
de encontro, onde o caminhão nos havia deixado e de onde partiríamos de volta ao
acampamento, tomamos conhecimento de um fato que por pouco não teve
257
agradecer. Uma forma de agradecer seria deixar os Xavante executarem suas caçadas
ali. Eles (os Xavante) poderiam até tirar madeira ali, mas não tinham interesse em fazer.
Apesar de os Xavante sentirem-se no direito de caçar nas terras dos Bororo,
havia sempre a preocupação de encontrá-los. Numa caçada que se deu na direção da
aldeia dos Bororo chamada Garças, passando pela aldeia do Bororo Paulinho, famosa
por ter recebido a visita do Ministro da Cultura Gilberto Gil em abril de 2004, os
caçadores Xavante tinham receio de andar pela estrada carregando as presas abatidas.
Ao retornamos para o ponto de encontro onde o caminhão nos pegaria, fomos
orientados por um dos caçadores a não andar na estrada com o queixada que
ajudávamos a carregar para que os Bororo não nos visse. Segundo o caçador, se o
Bororo estivesse bêbado o mesmo poderia criar problemas.
Após onze dias caçando os homens consideraram que já havia carne suficiente
nos quatro acampamentos para realização dos rituais seguintes. De mais a mais, eles já
haviam queimado todo o cerrado da parte centro sul da Terra Indígena dos Bororo e
com isso os animais estavam ariscos e difíceis de serem encontrados. Some-se a isso o
fato de haver caçadores das aldeias Nossa Senhora de Fátima e Jesus de Nazaré
competindo com os de Guadalupe.
O resultado do último dia da pahöri’wa manadö e tébé manadö é destinado aos
danhohui’wa. Todos os animais abatidos neste dia de caçada serão divididos entre eles,
que deverão levar às suas companheiras que ficaram na aldeia. Estas são membros de
sua classe de idade e foram escolhidas para serem parceiras durante o ensaio e
realização da cerimônia do wanaridobe, conforme vimos acima. Enquanto os
danhohui’wa estiveram na caçada elas, as danhohui’wa tsipi’õ, ensaiaram sozinhas o
canto do wanaridobe. Embora esta seja a regra da caçada, destinar o último dia aos
danhohui’wa, na prática ela não é bem aceita. Em relação ao danhono de 1997,
realizado na aldeia São Marcos, quando os danhohui’wa eram da classe de idade hötörã
a participação deles nas caçadas se deu de forma maciça. O mesmo não ocorreu em
2005, quando os danhohui’wa eram da classe de idade tirowa. Diante disso, na manhã
do último dia de caçada cogitou-se não oferecer nada aos tirowa devido seu fraco
empenho não só na caçada, mas também do processo ritual como um todo. Entretanto,
tal ameaça parecia mais uma estratégia dos ĩhire, anciãos, para cobrar mais empenho
deles.
259
Neste último dia de caçada os Xavante decidiram explorar a área leste da Terra
dos Bororo seguindo por uma estrada que levaria até a fazenda Bandeirantes. Segundo
os Xavante aquela fazenda teria sido criada a partir de um pedaço da Terra Indígena
Bororo. Acusação que somente uma revisão dos limites da Terra Indígena dirá se a
medição corresponde ou não àquilo que foi decretado como Terra Indígena Xavante.
Naquela área o terreno era extremamente acidentado e difícil de caminhar. Não
demorou muito e começamos a escutar os gritos de um caçador que indicava ter abatido
uma anta. Corremos até o local onde o encontramos ao lado do animal. Aqui
descobrimos mais uma regra social entre os caçadores. Depois que nós chegamos outros
quatro caçadores apareceram no local. O último caçador a se aproximar do local, um ˜
ihire, apareceu fazendo exigências: o mesmo pedia que lhe fosse entregue a cabeça e as
costelas da anta. O clima no local ficou tenso e o caçador que havia chegado primeiro e
ajudava a partir o animal interrompeu seu trabalho para esperar o desfecho. Depois de
algumas ponderações entre os caçadores o ĩhire, nervoso deixou o local. Segundo os
informantes que estavam no local, tem preferência de escolha das partes do animal
abatido, neste caso a anta, o caçador que chegou ao local primeiro, depois do próprio
matador da caça, que quase sempre abre mão de sua escolha. Aquele que chega primeiro
parte o animal, que depois de pré-moqueado, é entregue aos demais.
Por ser o último dia, os caçadores decidiram retornar mais cedo ao
acampamento. Quando ali chegamos todos já estavam arrumando seus apetrechos para
retornarem à aldeia. Os ĩhire, de cada um dos grupos, confeccionavam quatro cestos
grandes, que os Xavante chamam de tsi’õtõ höpo, para o transporte do resultado de onze
dias de caçada. Diante da grande quantidade de pessoas, bagagens dos caçadores e os
cestos de carne foi decidido que o caminhão faria duas viagens, e decidimos viajar na
segunda. Na primeira viagem embarcaram o tsi’õtõ höpo do segundo pahöri’wa, todos
os heroi’wa que estavam no acampamento e um grande número de caçadores. No
acampamento ficaram os três cestos, os dahi’wa e os demais caçadores.
O grupo que partiu na primeira viagem tinha a missão de preparar outro
acampamento, próximo da aldeia onde passaríamos a noite e no dia seguinte, de forma
ritual, a carne seria levada à comunidade aldeã. Enquanto esperávamos o caminhão
retornar o acampamento passou por uma limpeza e parte do lixo produzido foi
queimado juntamente com as palhas que serviram de colchão. Com a ausência dos
heroi’wa os danhohui’wa puseram-se a ensaiar o canto do wai’rãmpo. Considerando
260
que o caminhão havia deixado o acampamento por volta da quatro da tarde, estava
previsto que ele retornasse às nove da noite. Entretanto, só apareceu às vinte e três
horas. Tinha acontecido o que todos temiam: a inexperiência do motorista, filho do
cacique, favoreceu a ocorrência de um acidente. Segundo relatos dos que estavam no
caminhão, que já retornava para realizar a segunda viagem, vinha muito devagar pela
BR-070 quando uma caminhonete de um fazendeiro que vinha em alta velocidade
colidiu com a traseira do caminhão. O motorista da caminhonete iria fazer uma
ultrapassagem, mas foi impedido ao avistar outro veículo que vinha em sentido
contrário e a colisão teria sido inevitável. Os informantes disseram que a caminhonete
ficou com a frente toda destruída e o caminhão dos Xavante teve um deslocamento da
carroceria, o pára-choque e as lanternas traseiras ficaram totalmente inutilizadas. Em
condições de seguir viagem o caminhão deixou o local, depois de dizer que o motorista
da caminhonete pagaria os estragos. Entretanto, o motorista do caminhão, o filho do
cacique, não anotou a placa e menos o nome do motorista. No acampamento após ter
relatado o episódio ele foi substituído por seu cunhado, genro do cacique, e que tinha
habilitação.
Os cestos de carne e a bagagem dos caçadores foram embarcados. Antes de
seguirmos viagem o cacique nos chamou a parte e pediu que ficássemos a distância, não
tomando posição, quando encontrássemos o motorista da caminhonete. Era para deixar
que os índios resolvessem a questão. O motorista que assumira a boléia nos disse que
cobraria a quantia de três mil reais pelos estragos causados ao caminhão. Indagado o
porquê do valor, disse: é a nossa lei! O pesquisador foi consultado se aquele valor
cobriria os estragos. Respondemos não ter conhecimento sobre os serviços a serem
executados e seguimos viagem. Na carroceria alguns cogitavam pedir cinco vacas, que
somariam ao resultado da caçada, que seriam usadas durante as cerimônias que estavam
por vir. Quando chegamos ao local do acidente o motorista da caminhonete já havia
deixado o local. Vemos que o fator sorte, se ele existe, favoreceu aquele motorista de
não ter encontrado o grupo maior de Xavante, armados como estavam.
Antes de chegarmos ao território Xavante, após ter deixado a BR-070,
encontramos a viatura da saúde que seguia para Barra do Garças encaminhando um
paciente. O cacique pediu que a viatura retornasse e desse apoio ao caminhão porque o
combustível era pouco. No entanto, a gravidade do paciente fez com que seguissem
viagem. Depois que entramos na Terra Indígena na primeira subida o caminhão ficou
261
cesto ficou um dos dahi’wa que haviam se pintado no acampamento próximo da aldeia.
Como afirmamos acima foram escolhidos dois de cada clã. Neste sentido os dahi’wa
que permaneceram junto aos cestos dos tébé e pahöria’wa eram respectivamente dos
clãs po’redza’õno e öwawẽ. Quando os heroi’wa entraram em fila, caminhando em
direção ao wedetede, ao atingirem o centro da aldeia os ĩhire deram um grito e os cestos
de carne foram colocados nas costas dos dahi’wa que os levaram a frente das casas de
seus donos, os tébé e pahöria’wa. No wedetede o nonimrami’wa partiu com o noni,
acompanhado dos heroi’wa em direção ao local de início da corrida. Fizeram uma única
bateria onde todos os heroi’wa tomaram parte. Nesta corrida, no retorno da caçada, cria-
se grande expectativa entre os moradores da aldeia e caçadores sobre qual clã triunfaria.
Naquele dia sagrou-se vencedor um heroi’wa do clã po’redza’õno, o que teria dado
muita alegria a seus filiados. De nossa parte, os öwawẽ, apenas lamentamos a vitória
deles.
Considerando a descrição etnográfica de Maybury-Lewis (1984:172) sobre o
retorno da caçada é gritante as diferenças entre o volume de carne trazido pelos
caçadores de São Domingos, em 1958, se comparado com o resultado obtido pelos
caçadores de Guadalupe em 2007. Em 1958, descreve Maybury-Lewis, foram levados
três cestos, com cerca de 90 kg de carne em cada um deles às casas dos pahöri’wa e
tébé. Além disso, outra quantidade de carne foi distribuída aos moradores da aldeia que
aguardavam o retorno dos caçadores. Em Guadalupe o volume de carne dos cestos era
aproximadamente o mesmo apontado por Maybury-Lewis. Entretanto, além dos
dautsimri’wa, mendigos da carne, que trouxeram tripas e estômagos de animais
moqueados, e dos danhohui’wa que receberam alguns pedaços de carne a serem
oferecidos às suas companheiras de dança, as donhohui’wa tsipi’õ, os demais membros
da comunidade aldeã nada recebeu. Todos os cestos de carne foram lavados às casas dos
pahöri’wa e tébé lá permaneceram intocados. Na casa de um dos tébé a carne foi levada
para dentro da casa e recoberta com uma lona. Após o almoço o pai do tébé nos
convidou a buscar no mato caibros e forquilhas para montar um jirau ao lado da casa.
Depois de pronto toda a carne foi novamente colocada sob o jirau. Segundo o pai do
tébé, tal medida era tomada para evitar que alguma peça que não houvesse sido
moqueada adequadamente entrasse em estado de decomposição. Constatamos depois
que os outros grupos domésticos dos pahöri’wa e tébé tinham tomado a mesma
263
precaução. Assim, durante o dia toda a carne era transposta pela manhã para aquele jirau
e retirada no entardecer até o dia de sua distribuição como parte das cerimônias.
Ao entardecer do mesmo dia em que os caçadores retornaram da caçada, um dos
danhohui’wa tocou no warã, centro da aldeia, a flauta upawã convidando os demais
para ensaiarem o canto wanaridobe. Desde o início da corrida do noni eles estavam
sendo acompanhados das donhohui’wa tsipi’õ, mulheres da mesma classe de idade que
assumiram naquela fase do processo ritual o papel de donhohui’wa. Com a saída dos
donhohui’wa elas ficaram na aldeia executando diariamente os ensaios do wanaridobe.
Antes de saírem para caçada os donhohui’wa começaram a preparar ornamentos
corporais que seriam usados pelas donhohui’wa tsipi’õ no dia do ritual wanaridobe. No
dia em que retornaram da caçada, no entardecer antes do ensaio do wanaridobe houve
uma troca de alimentos entre os donhohui’wa e as donhohui’wa tsipi’õ. Nesta ocasião
os donhohui’wa apresentam às suas companheiras os ornamentos corporais que eles
estiveram confeccionando até então. Nesta fase do processo ritual estes ornamentos
ainda não estão completamente prontos. Trata-se mais de uma prova e prévia de
demonstração da criatividade dos donhohui’wa, que é ansiosamente aguardada por suas
companheiras e pela comunidade. Assim, a reciprocidade entre os donhohui’wa e suas
companheiras efetiva-se com a entrega, por parte delas, de pães ou bolos (tsadaré – bolo
de milho xavante, ou preparado com farinha de trigo e fermento), aos homens que lhes
retribuem com um pedaço de carne trazido da caçada pahöri’wa manadö e tébé
manadö. Ambos entregam os presentes a membros de seus grupos domésticos, que
comparecerem ao centro da aldeia para acompanhar a troca de presentes e a
apresentação dos ornamentos corporais.
É grande a expectativa sobre que tipo de ornamento que o donhohui’wa
preparou a sua companheira de ritual, a donhohui’wa tsipi’õ. Estes ornamentos não
seguem um padrão ou motivo pré-estabelecido. A única condição é ser “livre para
criar”. Desta forma, é possível encontrar ornamentos que vão desde a caracterização de
cangaceiras, vaqueiras até índias de outras etnias. O material empregado nestes
ornamentos extrapola o padrão Xavante baseado, sobretudo no urucum e no carvão. Ao
terminarmos o primeiro trabalho de campo, sabendo os Xavante que moramos numa
região litorânea, foram muitos os pedidos de conchas marinhas, para serem usadas na
confecção de colares. Muitos lançaram mão de chapéus e plumas coloridas, comuns nos
bailes de carnaval do waradzu, não índio. Entretanto, como dissemos, este momento era
264
apenas uma prévia do que estaria por vir. No dias que se seguiram após o retorno da
caçada os donhohui’wa e suas companheiras voltaram a ensaiar usando apensas as
fibras de tsuwaipo, broto de buriti.
Além da apresentação dos ornamentos os donhohui’wa e suas companheiras
ensaiaram também como devem proceder no dia ritual do wanaridobe. Assim, enquanto
dançavam todos estavam atentos com a cabeça erguida acompanhando o que se sucedia
fora e ao lado da roda que haviam formado para o momento, como se estivessem
buscando algo escondido ou esperando que algo fosse acontecer. Quando o canto estava
na metade, duas ba’õno, meninas, com um maço de folhas de broto de buriti, secos,
amarrados na cabeça saíram correndo em direção ao centro da aldeia. Ao verem as
meninas dois donhohui’wa deixaram a roda e puseram a persegui-las para tomarem os
maços de brotos de buriti. Dada a agilidade das meninas os donhohui’wa tiveram certa
dificuldade em conseguir interceptá-las, o que arrancou gargalhas da platéia que
assistia. Por fim, os donhohui’wa tomaram os maços de brotos de buriti que as meninas
traziam na cabeça e retornaram correndo para juntarem-se ao grupo que ainda dançava.
Os maços de brotos de buriti foram agressivamente jogados no centro da roda, seguido
de um grito agudo emitido pelos donhohui’wa que retomaram seus lugares junto ao
grupo. A performance recebeu o tradicional agradecimento dos anciãos que
acompanhavam e orientavam o ensaio. Depois do ensaio a comunidade se dispersou e
os homens foram ao centro da aldeia discutir o próximo passo do processo de iniciação.
a pintura e ornamentação corporal necessária ao ritual que estava por vir. Aqui o
procedimento é semelhante aquele do wai’a, onde pinta-se todo de vermelho e
amarram-se embiras nos punhos, tornozelos e no pescoço. Tomamos o wabu – talo seco
da folha de buriti, pecíolo, no qual foi amarrado o wamnhorõ, seda de buriti, e
retornamos novamente ao centro da aldeia, onde se encontravam outros ĩprédu. Todos
estavam agachados formando um semicírculo no entorno de uma fogueira onde se
encontravam os ĩhire. Segundo os informantes, a postura na qual se encontravam era
para evitar serem vistos pelas mulheres. Todo este procedimento deveria ser feito antes
do sol nascer. Entretanto, diante do atraso de vários ĩprédu, que dormiram demais e
apareceram usando somente as pulseiras de embiras, pois não tiveram tempo de se
pintarem, quando se passou para a etapa seguinte era possível ver na frente das casas
muitas mulheres que procuravam acompanhar, mesmo de longe a cerimônia. O grupo
dos ĩprédu que portavam o wabu ainda estava incompleto quando os ĩhire, anciãos,
deram a ordem para que todos fossem ao marã. E assim, seguindo em fila, alternando-se
de acordo com a filiação clânica, todos se dirigiram para o local onde seriam
confeccionadas as capas que recebem o mesmo nome da seda de buriti, o wamnhorõ.
Aqueles que não chegaram a tempo de participar da cerimônia puderam levar seu
wamnhorõ até o marã em outra ocasião percorrendo caminhos paralelos nos arredores
da aldeia.
O marã usado para esta ocasião situava-se bem próximo da aldeia. Ali também
são executadas algumas partes da cerimônia religiosa do wai’a. O lugar também fora
usado como acampamento dos heroi’wa, quando eram waté’wa durante os banhos de
imersão, onde dormiam e passavam boa parte do tempo quando não estavam
executando o datsi’waté, o bater água, como dizem os Xavante. Lá chegando os ĩprédu
dividiram o marã ao meio, de modo que a metade direcionada ao sol nascente foi
ocupada pelos clãs öwawẽ e tob’ratato, enquanto que na metade oposta se colocaram os
po’redza’õno. Obedecendo esta mesma disposição, no centro do marã foram colocados
os wabu com o wamnhorõ dos dois tébé e outros quatro pertencentes aos pahöri’wa.
Todos os wabu foram fincados no chão, contornando o perímetro do grande círculo do
marã, e ali permaneceram com a seda de buriti, o wamnhorõ, amaradas no seu entorno.
Ao terminarem de fixar os wabu, talos secos da folha de buriti, no entorno do
marã, os pahöri’wa’rada começaram a montar o wamnhorõ dos pahöri’wa. Neste
ínterim, enquanto os pahöri’wa’rada se mantinham naquele trabalho, os demais se
266
Há duas modalidades destes riscos que indicam a participação e filiação a dois tipos
diferentes de grupos de culto no wai’a. Tal filiação a estes grupos obedece ainda
descendência clânica dos atores sociais envolvidos. Como ornamento corporal o cabelo
é preso como um rabo de cavalo e no qual se amarra um pedaço de wabu, depois de
lapidado. Neste pedaço de wabu são presas de dois a quatro penas de arara montadas em
dois tipos de flechas: um pedaço cilíndrico, extraído de buritirana, chamado ariwede,
usada nas flechas de pesca, e outro pedaço de taquarinha chamado ti. Sobre o ariwede
encaixa-se o ti no qual por sua vez se encaixa a pena de arara. O conjunto recebe como
acabamento final fios de algodão que servem para dar sustentação do ti sobre o ariwede
bem como do ti sobre as penas de arara. Depois de pronto o conjunto ariwede, ti e penas
de arara são fixados, em forma de leque, no caule de buriti, wabu. Por fim, enrola-se
sobre o wabu, que já está preso ao cabelo, maços de algodão que ainda não foram
fiados.
Dissemos acima que as penas fixadas se dão entre duas a quatro. Acreditamos
que isto se deva em parte pela escassez deste material. Grupos domésticos mais
abastados em termos de parafernália ritual e que desejam ostentar opulência cravam até
quatro penas no wabu. Durante as várias baterias desta modalidade de noni observamos
que alguns heroi’wa aguardavam o retorno de outros companheiros para terem as penas
retiradas e fixadas no wabu que já haviam sido previamente amarrados junto ao cabelo
na parte detrás da cabeça. Não obstante, alguns dos heroi’wa cujo grupo doméstico
recentemente havia passado por uma situação de luto e tiveram que raspar a cabeça,
como manda a tradição, amarravam o wabu na cabeça com fibras de brotos de buriti.
Ainda como parte da ornamentação corporal, juntamente com a modalidade de pintura
ahu’rã os heroi’wa substituíram os calções vermelhos, que vinham usando nas corridas
anteriores, por pretos. O nonimrami’wa, carregador do noni, adotou a mesma pintura
corporal que vinha usando anteriormente, ou seja, a modalidade daupté, onde o corpo
todo é pintado de vermelho e desenha-se duas listras em preto nas costas, duas listras
abaixo dos bíceps e uma listra entre o umbigo e a ponta do externo. Quando todos
estavam prontos o nonimrami’wa se dirigiu, sozinho, até o local de início das baterias
do noni.
Nesta modalidade de corrida as disputas se deram de forma diferente em relação
às demais, onde nos outros dias os heroi’wa disputavam entre si e com outras classes de
idade. Na modalidade ahu’rã os duelos se dão inicialmente disputando pahöri’wa
268
contra pahöri’wa, em seguida tébé contra tébé. Assim, depois de prontos os dois
pahöri’wa dirigiram-se sozinhos percorrendo a lateral da pista do noni até o local de
início. Depois da largada e ao atingirem o wedetede, seguiram os dois tébé, fazendo o
mesmo percurso e executando a mesma performance. As baterias seguintes se deram
inicialmente tendo um aihö’ubuni contra um heroi’wa de clã oposto. Segundo os
informantes, diferentemente dos tébé e dos pahöri’wa que correm contra si, os
aihö’ubuni devem competir com membros de clãs opostos aos seus. Os demais
heroi’wa seguiram dois a dois, öwawẽ contra po’redza’õno, obedecendo a critérios de
estatura para garantir competitividade entre os participantes. Depois que todos tomaram
parte em pelo menos uma bateria o nonimrami’wa deixou o local de início e dirigiu-se
correndo segundo seu modo de encerrar a cerimônia, em direção ao wedetede e dali até
o nonidza’odzé, forquilha onde se guardam os noni. Ao término desta e de todas as
outras baterias os ĩprédu e ĩhire que assistiam a cerimônia agradeciam em coro: hepãrĩ,
pãrĩ, pãrĩ - obrigado, obrigado, obrigado.
Quando todos davam por encerrado o ritual e estavam deixando o wedetede, um
dos ĩhire, ancião, um pahöri’wa’rada, ou seja, desempenhou o cargo cerimonial de
pahöri’wa da classe de idade hötörãb’rada, portanto já havia assistido a sua classe de
idade se renovar na ocupação da hö, onde podemos estimar que tenha se passado pelo
menos sessenta anos a julgar pela atual classe de idade que estava sendo iniciada,
chamou todos de volta dizendo que o ritual estava incompleto, faltava o gran finnalle.
Todos retornaram ao wedetede onde assistiram a demonstração de como o fechamento
do ritual deve se realizar. Quando ele chamou atenção sobre o ritual que faltava os
demais se lembraram do ritual. Assim ele começou a demonstração não apenas por ter
se lembrado, mas, sobretudo por ser o pahöri’wa’rada, isto é, o mais velho que estava
presente. Após sua demonstração, os pahöri’wa’rada das demais classes de idade
fizeram o mesmo até chegar o momento dos atuais pahöri’wa repetirem do mesmo
modo.
Para realização deste ritual de encerramento das corridas do noni os
pahöri’wa’rada amarram uma popara, colar de unhas de veado ou queixada, um pouco
abaixo do joelho direito, sobre a panturrilha, e usavam o tradicional colar de algodão
chamado danho’rebdzu’a. Nesta ocasião os pahöri’wa’rada não usavam pintura
corporal. A performance ritual consistia em tomar a capa do noni e posicionar-se entre
os dois postes do wedetede. Ali o pahöri’wa dançou com o noni dando três passos de
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iniciada a corrida do tsa’uri’wa. A classe de idade hötörã repetiu por três vezes sua
demonstração até que os ẽtepa
˜ a fizessem. Quando preparavam para outra
demonstração, membros da metade cerimonial oposta começaram a aparecer no marã e
o ensaio foi suspenso. Isto se deve às estratégias cerimoniais tomadas pelas metades.
Neste ensaio a metade cerimonial a qual pertencem os ẽtepa
˜ procurava escolher dentre
eles alguns que tivessem maior desempenho físico e resistência para iniciar a corrida do
tsa’uri’wa. Eles “perseguiriam” os heroi’wa durante boa parte do trajeto até que outros
dahi’wa que estariam escondidos no mato aparecessem. Daremos mais detalhes do ritua
tsa’uri’wa quando o descrevermos mais adiante.
Com a chegada de membros da metade cerimonial oposta os ẽtepa
˜
interromperam os ensaios e permaneceram no marã. Aqueles que apareceram
posteriormente ficaram por ali conversando e fumando cachimbo até o cair da noite e
depois retornaram às suas casas. Quanto aos dahi’wa, estes deveriam permanecer no
marã enquanto as capas de wamnhorõ estivessem por ali. Segundo os informantes eles
são os guardiões das capas. Entretanto, isto não se deu de modo gratuito. Todos os dias
um dos dahi’wa poderá dirigir-se até a casa dos dois tébé e poderá pegar qualquer
pedaço de carne que desejar do tsi’õtõ höpo, cesto de carne. Foi o que presenciamos na
noite do mesmo dia em que as sedas de wamnhorõ foram levadas até o marã. Naquele
dia, enquanto conversávamos na frente da casa do pai de um dos tébé, apareceu um dos
dahi’wa, de banho tomado e usando um calção preto além do colar de algodão
danho’rebdzu’a, sem cerimônia adentrou-se e dirigiu-se até onde o cesto de carne havia
sido depositado. O pai do tébé o acompanhou e auxiliando com uma lanterna deixou
que o dahi’wa escolhesse um pedaço de costela de anta e um pernil de queixada.
Segundo o informante, outro dahi’wa estaria fazendo o mesmo na casa do outro tébé.
As peças de carne são levadas até o marã, onde estão os demais dahi’wa, e consumida
por todos. Pode participar deste banquete noturno no marã a classe de idade que na
última iniciação desempenhou o papel de danhohui’wa dos dahi’wa.
O dia seguinte ao da abertura dos trabalhos no marã foi marcado pelo início da
confecção dos wamnhorõ dos demais heroi’wa e das meninas que estarão sendo
oficialmente reconhecidas como membros da classe de idade abare’u. Contudo, os
wamnhorõ dos tébé e dos pahöri’wa apenas tinham sido montados no dia anterior.
Agora começava a fase de pintura dos mesmos. A pintura do wamnhorõ dos tébé, bem
como dos demais membros do clã öwawẽ, é feita segundo a modalidade chamada
271
reprovação da parte dos ĩprédu e ĩhire. O litro de álcool não foi recuperado, muito
menos se chegou aos culpados pelo sumiço. Entretanto, pairava no ar suspeitas sobre
alguns membros das classes de idade tirowa e ẽtepa
˜ , que tinham no processo de
iniciação, respectivamente, os papéis de danhohui’wa e dahi’wa, pelo fato de terem sido
flagrados em diversos momentos consumindo bebidas alcoólicas e embriagados.
Depois que o wamnhorõ dos tébé teve sua pintura concluída um grupo de ĩprédu
e ĩhire voltou suas atenções para os adornos corporais que seriam usados pelos
ocupantes daquele cargo cerimonial. O primeiro destes ornamentos é o waihi. Em
verdade o termo waihi é dado à nervura dos folíolos das folhas de buriti. Durante as
expedições de coleta de brotos de buriti os grupos domésticos observam o tamanho dos
brotos extraídos. O maior deles é escolhido para retirar o waihi, após ter sido extraído a
seda wamnhorõ. Normalmente os waihi apresentam de dois e meio a três metros de
comprimento. Depois de seco são unidos num feixe e, partindo da extremidade mais
grossa, são encapados com folhas secas de brotos de buriti deixando livre cerca de
sessenta centímetros, de modo que esta se apresente levemente desfiada. Um feixe de
seda de buriti, chamado ĩ’wadza’ru101, de cerca de cinqüenta centímetros, é amarrado
logo adiante da metade do waihi. Por fim, este pequeno feixe recebe uma pintura
vermelha, a partir do urucum, de modo semelhante à capa de wamnhorõ que o tébé
estará usando, ou seja, apenas na barra da seda. Concluída a montagem deste
ornamento, que assume o aspecto de um cetro, o mesmo é depositado sobre uma
forquilha que foi especialmente colocada ao lado do wabu onde se encontra a capa de
wamnhorõ dos tébé.
O segundo ornamento que os tébé usarão durante a cerimônia é o tepewaptsu. Já
nos referimos a ele quando mencionamos a situação na qual fomos convidados a
acompanhar sua primeira montagem. Trata-se de um ornamento confeccionado com
pedaços de flechas, penas de arara e fios de algodão. Inicialmente um conjunto de
aproximadamente vinte quatro pedaços, com cerca de quarenta centímetros, de flechas
do tipo ti são furados a uma distância de quinze centímetros da base. Acima deste furo
cada um dos pedaços de flecha é enrolado com um fino barbante de algodão. A seguir
os pedaços de flechas são colocados em paralelo e passa-se um barbante de algodão por
entre os furos para que eles fiquem unidos de modo semelhante a uma pequena esteira.
Tomando outro pedaço de cordão de algodão faz-se um trançado um pouco acima do
101
Giaccaria & Heide (1984:97 e 298) traduzem esta categoria como um penduricalho feito de
capim navalha (a’é) com uma pena no final, e que é amarrado nas flechas.
274
ponto médio dos pedaços de flechas que foram enrolados com fios de algodão. Isto
permite que este conjunto de pedaços de flechas fique com a extremidade na qual foram
enrolados os fios de algodão mais aberta do que aquela onde foram feito os furos para
passar o barbante. As flechas tipo ti são fabricadas com um tipo de taquara. Por serem
ocas favorecem a fixação das penas de arara. Quando a primeira etapa está concluída
adiciona-se na parte oca da extremidade que fora enrolada com fios de algodão peninhas
de arara. Na ocasião em que assistimos a primeira montagem o tepewaptsu este primeiro
conjunto já estava pronto. Naquele momento o tepewaptsu foi montado e desmontado.
Ao ser desfeito preservou-se a montagem do primeiro conjunto, retirando somente as
penas maiores de arara.
Uma vez que o tepewaptsu já havia sido montado previamente tudo indicava que
ao ser montado novamente para o dia oficial do ritual, os trabalhos seriam mais fáceis.
Ledo engano. Foram necessárias umas três horas para que houvesse consenso entre os
ĩprédu e ĩhire sobre a melhor forma de montá-lo. Havia penas de rabo de arara de
diversos tamanhos a serem fixadas na parte oca dos pedaços de flechas que já haviam
recebido as peninhas. A demora em montar o ornamento advinha da falta de consenso
na posição destas penas grande. Ao final o tepewaptsu deve ficar parecido com a cauda
de um pássaro. Depois de pronto ele foi depositado num renhamri, uma pequena esteira
que depois de dobrada se parece com uma bolsa, e colocado junto à capa do wamnhorõ.
Segundo Giaccaria & Heide (1984:176) são os tépé’rada, antigos tébé, que
preparam os ornamentos corporais para os tébé. Entretanto, nossa observação
etnográfica aponta para outra situação. A montagem das capas wamnhorõ foi
inicialmente feita pelos ĩhire, anciãos, que passavam a maior parte do tempo no marã.
Depois de prontas os o tébé ĩté, o últimos tébé iniciados, foram orientados sobre o modo
como deveriam pintar o wamnhorõ. A primeira parte do tepewaptsu, composta pelo
conjunto de pedaços de flechas enroladas como algodão e peninhas, foi encomendada a
um dos homens, que não tinha sido tébé, com grande habilidade em fazer aquele
trabalho. Tanto na primeira quanto na segunda montagem deste ornamento foram os
ĩhire, anciãos, que se puseram a montá-lo. É bem verdade que ali estavam alguns
tépé’rada, mas eles pouco atuavam.
A respeito do homem que montou a primeira parte do tepewaptsu, seu trabalho
não foi voluntário. Dias depois que retornamos da caçada o encontramos conversando
com o pai de um dos tébé junto ao jirau de carne que fora montado na frente de sua
275
casa. Após a conversa o pai do tébé entregou a ele dois pedaços de queixada, porco do
mato, em especial a coluna ainda trazia a cabeça grudada a ela, ao homem de que logo
deixou o lugar. Em particular o pai do tébé nos revelou que fora aquele homem que
havia montado a primeira parte dos dois tepewaptsu, e agora estava cobrando o
trabalho. Segundo ele, o pai do outro tébé logo seria procurado para saldar a dívida, pois
ele havia igualmente feito a mesma parte do tepewaptsu do outro tébé. Além desta
dívida havia outra a ser paga. Parte do algodão que seu filho tébé estaria usando nos
ornamentos foram fiados por uma tia, a mulher do cacique, a quem prometera pagar
com três tsi’a, frango, galinha, que seriam adquiridas no comercio de Barra do Garças.
A explicação pela predileção por este tipo de pagamento dizia respeito à idade da pessoa
que havia fiado o algodão. Segundo ele, tratava-se de uma pessoa idosa e já havia
perdido os dentes. A explicação dada, portanto, era de a tsi’a possui a carne mais tenra e
mais fácil para mastigar. Note-se que a cooperação na produção do ritual envolve
obrigações de ressarcimento àqueles que se dispuseram a ajudar ou foram convidados.
Em nossa experiência de pesquisa observamos que isso ocorre em outros momentos da
vida social Xavante. Os funerais, por exemplo, podem ser dispendiosos àqueles que
perdem um ente. Todo o serviço funerário é prestado por membros do clã oposto ao
defunto. Este tipo de serviço inclui a abertura da sepultura e no momento do enterro
barrar os parentes que desejam se jogar na cova onde está sendo posto o morto. Após o
enterro aqueles que prestaram o serviço entram na casa onde vivia o morto e retiram
qualquer objeto de valor que desejarem. Em dias atuais os objetos mais cobiçados têm
sido televisores, aparelhos de som, bicicletas, armas de fogo, geladeiras dentre outros.
Transcorridos quatro dias após os inícios dos trabalhos no marã todas as capas
de wamnhorõ já estavam prontas. Os wamnhorõ que serão usados pelos ocupantes do
cargo cerimonial tébé idealmente deveriam ser levados aos grupos domésticos no dia
anterior. Entretanto, L., pai de um dos tébé viajou à Barra do Garças para fazer compras
e a cerimônia de entrega das capas não pode ser concretizar. Segundo F., este trabalho
de entrega deveria ser feito pelos tépé’rada, antigos tébé. Nesta ocasião eles deveriam
ser pintados e levar os wamnhorõ em sigilo, evitando que fossem vistos pelas mulheres,
até a casa dos tébé. Eles, os tépé’rada, deveriam ficar dentro da casa até o momento
276
oficial da cerimônia. Isto se daria por volta de meio dia quando dois dentre os dahi’wa
estariam pintados e levariam os wamnhorõ até o wedetede, e lá ficariam até o início da
cerimônia, o que acontece no final da tarde. Não obstante, os fatos não ocorreram como
manda o protocolo ritual. Pela manhã nos dirigimos até o marã onde encontramos os
homens dando os retoques finais nos wamnhorõ destinados aos filhos e filhas. O pai do
tébé foi à mata ciliar, onde o marã está encravado, para cortar palhas de palmeira que
seriam usadas no momento da cerimônia de seu filho. Quando chegamos ao marã
encontramos dois dentre os dahi’wa sendo pintados com uma modalidade usada nas
cerimônias religiosas do wai’a. Uma vez concluída a pintura os renhamri, esteira
dobradas formando bolsas, contendo os tepewaptsu e os feixes de seda de buriti
pintados em vermelho, e os wamnhorõ com os waihi foram entregues aos dois que
saíram em fila, por volta de dez horas da manhã em direção à aldeia. Caminharam
juntos até o centro da aldeia onde se separaram e dirigiram-se até a casa dos pais dos
tébé. Acompanhamos a entrada ritual de um dos dahi’wa na casa de um dos tébé. O pai
deste tébé, que também seguia o dahi’wa adiantou-se à frente e dentro da casa reservou
uma cadeira para recebê-lo. Ao adentrar na residência a avó do tébé começou a chorar,
segundo o costume Xavante. O pai deste tébé também estava emocionado, mas conteve-
se. O wamnhorõ do tébé foi depositado sobre uma das camas da casa e o dahi’wa
permaneceu sentado ao lado, como um guardião. Segundo L., ele não poderia jamais
deixar o local, e assim o fez até o momento da cerimônia. Na hora do almoço lhe foi
servido um prato de arroz acompanhado de carne de caça.
Neste dia fomos orientados a almoçar mais cedo. Neste sentido, por volta de dez
e meia já tínhamos almoçado. Assim que acabamos o almoço os parentes deste tébé e
outros membros do clã öwawẽ, ao qual pertencem, começaram a chegar e logo a casa já
estava pequena. Muitos deles traziam bolos preparados com farinha de trigo, que foram
colocados junto ao grande cesto de carne da caçada que fora realizada especialmente
para este dia. Ainda dentro da casa começaram a se pintar e a vestir os adornos
corporais. A modalidade de pintura para esta ocasião foi daupté, na qual o corpo todo é
pintado de vermelho, as panturrilhas em preto, date’rã - após aplicação desta pintura
remove-se um pouco com as unhas de modo que fiquem três listras; um pouco acima
dos cotovelos, utilizando-se de carvão e água, faz-se uma listra em preto, outra é feita
entre a ponta do externo e o umbigo. Como adorno corporal usa-se os colores de
277
102
Müller (1976:53) grafa este ornamento como: dañipsiré. Atualizamos para outra possibilidade
de grafar as palavras da língua Xavante, onde troca-se o ñ por nh.
278
classes de idade diferentes, começaram a distribuir parte do tépé manadö, banquete dos
tébé, como é chamado os alimentos, e esta parte da cerimônia, os quais estavam num
dos cestos. Neste momento apenas alguns ĩhire, anciãos, que estava no wedetede
receberam parte dos bolos e carne, o restante foi novamente colocado no tsi’õtõ höpo e
levado à casa de J.A. Esta distribuição do tépé manadö não parece estar condicionada
padrões estruturais ou políticos que envolvem os atores sociais que a fizeram. Nos dois
grupos domésticos, a distribuição de parte do banquete para os ĩhire que ali estavam, foi
realizada pelos atores mencionados apenas por serem parentes dos tébé.
Com a retirada dos cestos de carne e bolos do wedetede a multidão que havia se
juntado ali começou a se dispersar. A carne levada aos grupos domésticos, parentes dos
tébé, foi logo distribuída àqueles que lá se fizeram presentes. Nesta fase da cerimônia,
os ocupantes dos cargos cerimônias tébé não estavam no wedetede. Eles aguardavam,
juntamente com os demais heroi’wa, dentro da hö, casa dos solteiros. Não obstante, os
encarregados de levar os ornamentos corporais que seriam usados pelos tébé, ou seja, o
tépé’rada, o dahi’wa o ai’repudu, que recebe a designação cerimonial de
tepewaptsuimrami’wa103 – aquele que carrega o tepewaptsu, permaneceram em paralelo
cada um na frente de um dos postes do wedetede até o início da segunda parte da
cerimônia.
Neste ínterim, os homens retornaram novamente ao marã, local onde se
encontravam as demais capas de wamnhorõ. Ali seria realizada outra cerimônia no
intervalo da que estava em andamento. Tratava-se da escolha das capas que seriam
retiradas dos iniciandos pelos danhohui’wa,homens e mulheres, no dia seguinte como
parte da cerimônia do canto do wanaridobe. Segundo alguns informantes os
danhohui’wa, homens, podem chegar ao marã e escolher qualquer uma das capas que
ali estiver. Não obstante, a única regra a se observar é deixar que o nonimrami’wa, o
carregador do noni, seja o primeiro a escolher. O sinal de escolha, segundo os
informantes, é um laço feito com folhas ou seda de buriti amarrado no entorno das
capas. Enquanto conversava com o grupo de informantes era possível ouvir os
danhohui’wa ensaiarem no centro da aldeia o canto wanaridobe. Observando as capas
de wamnhorõ notamos que algumas já haviam sido previamente escolhidas, antes do
nonimrami’wa, a julgar pela seda de buriti que nela fora amarrado, sinal indicativo da
escolha. Ao mostrarmos e questionar o pai de um dos tébé sobre a transgressão da regra,
103
Cf. Giaccaria & Heide (1984:177)
279
o mesmo ficou furioso e disse que seu irmão, o dono do wamnhorõ, era um cabeça
dura, um cabeçudo. L., o pai do tébé, pegou uma faca e cortou a fibra que fora
amarrada no entorno do wamnhorõ. Posteriormente, R., o dono do wamnhorõ, que havia
ido ao riacho próximo do local, retornou e ao ver que o mesmo havia sido desamarrado
ficou indignado e o amarrou novamente. Questionamos R. sobre a regra que dava
preferência ao nonimrami’wa, que nos respondeu que não a seguiria. Soube, depois que
R. já havia combinado de antemão que outra pessoa seria dono do wamnhorõ que ele
havia preparado para seus filhos. Este foi o único mal entendido que observamos na
escolha das capas, mas não teve grandes repercussões no processo ritual. Por fim,
chegou o nonimrami’wa, que havia deixado o centro da aldeia, enquanto outros
companheiros, os danhohui’wa, continuavam a ensaiar o wanaridobe. C., o
nonimrami’wa, escolheu doze capas que seriam por ele retiradas cerimonialmente na
manhã seguinte. Cada wamnhorõ que ele amarrava os ĩprédu agradeciam solenemente:
hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, – obrigado, obrigado, obrigado, obrigado! Por fim, J., o pai de
um dos pahöri’wa o chamou até o centro do marã, onde ficavam as capas dos ocupantes
daquele cargo cerimonial, e ofereceu a C. o wamnhorõ de seu filho. Segundo L., um de
nossos tradutores, em seu discurso a C., aquele pai teria dito que estava dando a ele a
capa porque o mesmo teria trabalhado muito carregando o noni durante a cerimônia que
recebe o mesmo nome. O pai do pahöri’wa estava reconhecendo que C. assumira uma
tarefa que nenhum dos danhohui’wa quisera, e por isso ele estava sendo recompensado.
Ao terminar sua escolha o nonimrami’wa cedeu lugar aos demais danhohui’wa que
haviam chegado a marã. Eles se dividiram por clãs e começaram a amarrar os
wamnhorõ que seriam seus após o wanaridobe. No entanto, mantiveram a preocupação
de amarrarem capas que fossem de clã oposto ao seu, ou seja, öwawẽ e tob’ratato
amarrariam wamnhorõ de po’redza’õno e vice e versa. O pai do segundo pahöri’wa
chamou um tirowa do clã öwawẽ e perguntou se ele desejava amarrar a capa que seria
usada por seu filho, o restante da conversa se deu de modo particular e não foi possível
ouvir o que conversavam. Ao terminarem a conversa o tirowa ritualmente amarrou a
capa e foi ovacionado: hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, – obrigado, obrigado, obrigado,
obrigado! Ao terminarem de amarrar as capas os danhohui’wa e
ĩprédu retornaram novamente ao wedetede onde uma multidão voltou a se reunir
novamente para acompanhar o prosseguimento da cerimônia do tébé.
280
104
Poucos informantes se dispuseram a falar deste personagem, alegando desconhecerem sua
história. Entretanto, segundo P., Tsihörirã foi um filósofo Xavante que reformou e reformulou muitos
aspectos dos processos rituais. Este informante nos revelou que todas as pinturas e suas variantes para as
diversas cerimônias foram definidas por Tsihörirã. Não só a iniciação do danhono mas também a
iniciação do danhono e do darini, iniciação religiosa, bem como as diversas modalidade de celebrações
do wai’a, foram redefinidas por ele. Ainda segundo o informante, ele teve ajuda de um companheiro, mas
ninguém se lembra do nome dele. Este fato precisa ser mais pesquisado e aprofundado. Acreditamos que
ele possa fornecer uma chave importante para uma melhor compreensão de todo processo ritual de
iniciação dos Xavante.
284
bem avançada, escura e as mulheres se recolhido dentro das casas. Assim, por volta de
oito da noite fomos ao wedetede onde presenciamos a retirada dos ornamentos de
cabeça, ficando os tébé apenas com a capa wamnhorõ. Os tepewaptsu e as faixas de
algodão foram levadas para casa de um dos ĩhire e lá ficaram até a madrugada do dia
seguinte, quando foram novamente fixados nas cabeças dos tébé.
Durante a noite alguns dos heroi’wa foram dormir e poucos, os maiores,
acompanharam toda a cerimônia. No entanto, durante a madrugada foram despertados e
juntaram-se ao grupo que seguia executando o ritual. Já com o dia claro, os atores
rituais executaram pela última vez a performance no wedetede. Dali partiram em
direção ao local onde se inicia a corrida do noni, segundo o modo quando estavam
realizando aquela cerimônia, ou seja, à frente o nonimrami’wa seguido pelos pahöri’wa,
que havia deixado na hö os dois ĩni, ou brudu, com as tsidupu, depois os tébé com os
waihi, um aihö’ubuni e os demais heroi’wa.
No local de início da corrida do noni, o nonimrami’wa posicionou-se a frente
dos heroi’wa e balançou o noni, dando a última largada para que todos os heroi’wa,
menos os ocupantes do cargo cerimonial de tébé, partissem em direção ao wedetede.
Nesta parte da cerimônia cria-se grande expectativa em saber o clã, dentre os heroi’wa,
que vencerá esta corrida. Em Guadalupe o vencedor foi um heroi’wa pertencente ao clã
öwawẽ, o que provocou comentários negativos dos po’redza’õno. Entretanto, os
murmúrios do clã perdedor, neste contexto ritual, não compromete a estabilidade da
vida política da aldeia, eles apenas aumentam a glória dos vencedores. Com a chegada
dos heroi’wa no wedetede, o nonimrami’wa balançou novamente a capa do noni desta
vez dando a largada para que os dois tébé corressem naquela direção. Em verdade, eles
não correram e sim saltitavam, parecendo mais um trote, lado a lado até chegarem à
frente dos dois postes do wedetede, mas não o tocaram. Cada um se posicionou em
frente sobre uma esteira. Dois tépé’rada, que estavam devidamente pintados para esta
ocasião se encarregaram de retirar os ornamentos corporais dos dois tébé e os levaram
para casa. Neste ínterim, o nonimrami’wa deixou o local de início da corrida do noni e
correndo, segundo modo próprio, o seja, batendo as mãos sobre a capa do noni
forfalhando suas folhas, e dirigiu-se até o nonidza’odzé – lugar onde se guarda o noni,
onde depositou o noni pela última vez. Tanto na chegada dos tébé quanto do
nonimrami’wa os ĩprédu e ĩhire que ali estavam agradeceram solenemente: hepãrĩ,
pãrĩ, pãrĩ, pãrĩ, – obrigado, obrigado, obrigado, obrigado!
285
105
A categoria itsitrodzu nos foi repassada como sendo o nome da cerimônia. Não obstante, não
conseguimos verificar se há outra categoria nativa que possa ser usada para designar esta cerimônia.
Temos dúvidas sobre sua grafia.
286
seriam bons caçadores e mesmo que conseguissem abater uma anta a perderiam por não
saberem gritar para avisar os demais caçadores. Neste ínterim, o wa’ritire, seriema,
continuava a espantar os ai’repudu e ba’õno que insistiam em permanecer no wedetede.
Segundo L., o termo itsitrodzu além de indicar o grito da anta, ele indica que a
parte mole do broto está sendo amassada. O mesmo é também usado para indicar que
alguém está chupando o coco da palmeira bocaiúva106. Noutra acepção, é comparado ao
ato de socar no pilão. Por fim, indica também uma fantasia sexual de sexo anal. Neste
último caso, segundo L., itsitrodzu seria o pênis do homem batendo no ânus da parceira.
Ao término do grito da anta, os heroi’wa se retiraram à hö e os tébé foram ao
riacho para tomar banho e retirar a pintura corporal. Os demais retornaram às suas casas
para tomarem café e começarem a se preparar para a próxima cerimônia que viria em
seguida.
No início da descrição colocamos uma questão: seriam os tébé adoradores da
lua? A questão é posta porque alguns missionários salesianos associaram o ritual
noturno à adoração da lua. Alguns Xavante assumiram esta explicação e não raro ainda
a utilizam. Não obstante, conversando com alguns informantes e com Josina, voluntária
leiga que trabalha na missão salesiana de São Marcos há mais de quarenta anos e nos
ajudou no diálogo com alguns anciãos, fomos informados que o ritual do tébé por ser a
noite não traz nenhuma relação com a lua. A referência aqui é feita ao pássaro noturno
conhecido pelos Xavante como tepere. O tepere é conhecido pelos moradores regionais
como caburé107, uma espécie de coruja. Durante sua performance ritual os tébé ao
balançarem waihi emitem assobios em três intervalos em cada apresentação. Quando se
houve o som do canto do pássaro caburé a semelhança com o assobio que os tébé fazem
é muito grande, inclusive as pausas que o pássaro faz são semelhantes à performance
dos tébé. Ademais, observando a montagem do tepewaptsu, adorno de cabeça dos tébé,
106
Conforme o dicionário Aurélio: bocaiúva [Do tupi.] Substantivo feminino. Bras. Bot. 1.
Palmeira (Acrocomia mokayayba) encontrada em MT e MS, dotada de frutos drupáceos globosos,
comestíveis, e espique de até 7m de altura; mocajaíba. 2. Palmeira (Acrocomia odorata), encontrada em
MT e MS, de frutos drupáceos doces, e caule liso e fino; bocaiúva-de-são-lourenço, bocaiúva-dos-
pantanais. 3. V. coco-de-catarro.
107
Na ONG CEO - Centro de Estudos Ornitológicos estudo e preservação das aves em sua
página na rede mundial de computadores (www.ceo.org.br/) é possível encontrar imagens e sons do canto
deste pássaro. Helmut Sick, em seu livro Ornitologia Brasileira, apresenta três tipos de caburé: CABURÉ-
MIUDINHO, Glaucidium minutissimum; caburé-da-amazônia CABURÉ-MIUDINHO, Glaucidium hardyi; e,
caburé Glaucidium brasilianum. Estes pássaros são da ordem strigiformes, família: strigidae. Dentre os
três tipos o que apresenta o canto mais próximo do assobio que os tébé fazem durante o ritual é o caburé
Glaucidium brasilianum. Entretanto, segundo o autor, este pássaro canta freqüentemente durante o dia
(SICK, Helmut, 1997:403).
287
quando montavam e desmontavam o ornamento, perguntamos por que não estava bom,
e a resposta foi: porque não está igual ao rabo de pássaro!
Outra observação de campo ajuda a relativizar a referência do ritual com a lua,
está no fato de que nos dia em que se realizou este ritual na aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe (25/08/05) a fase lunar108 estava na véspera do início da minguante, quando
o astro surge à meia noite e se põe ao meio dia. Quando realizou-se este mesmo ritual na
aldeia São Marcos (01/09/2005) a lua estava na fase final da minguante e iniciando a
nova o que se daria no dia 03, ou seja, quando a lua praticamente desaparece da noite.
Um levantamento mais extenso dos locais e datas em que foram realizadas os rituais do
tébé poderá mostrar se há, ou não, ligação entre o ritual e o astro, haja vista que ele pode
estar visível ou não.
Os Xavante não gostam de falar de seu universo cosmológico, conforme já
afirmamos em outro momento. Acreditamos que um aprofundamento sobre este
universo cosmológico e o simbolismo dos adornos e pinturas corporais seria um passo
importante para uma melhor compreensão deste ritual. Por hora estamos interessados
em seus usos político.
Após um rápido café da manhã, depois que foi concluída a cerimônia do tébé,
fomos ao marã para acompanhar o ensaio das capas do wamnhorõ e da performance
ritual dos pahöri’wa. No marã a maioria das capas já havia sido levada as casas. Ali
ficaram somente aquelas que seriam usadas durante a apresentação de um canto e dança
que ocorreria por volta de meio dia. Quando chegamos o ensaio do canto e dança já
havia acontecido. Segundo informantes que estavam no local, apenas dois ĩhire,
anciãos, fizeram a demonstração. Do marã nos dirigimos a outro local, que pode ser
igualmente considerado um marã, ali encontramos um grupo de danhohui’wa tsipi’õ,
madrinhas – mulheres ligadas à mesma classe de idade dos danhohui’wa, padrinhos,
que patrocinam a iniciação da classe de idade junior de sua metade cerimonial, que
estavam se pintando para a cerimônia. Elas adotaram a modalidade de pintura que
assemelha-se a uma camuflagem, onde o corpo e o rosto são pintados com carvão
desenhando-se vários riscos. Para acompanhar esta modalidade vestiram calções e sutiãs
108
Consulta realizada na rede mundial de computadores, página do Departamento de Astronomia
do Instituto de Física da UFRGS: http://astro.if.ufrgs.br/.
288
109
Cf. Müller, 1976:52.
289
110
Müller (1976:59) grafa este ornamento corporal como dapo’rẽja’ru.
292
111
O termo pode referir-se ainda ao ato de mover terra, como por exemplo: terraplanagem.
112
De acordo com L. este termo é também usado para designar um besouro chamado
popularmente de rola-bosta, um tipo de escaravelho.
293
seu percurso, retornaram lado a lado batendo fortemente a perna direita até o ponto de
partida. Esta performance começou às doze horas e vinte minutos terminado às doze e
vinte sete. Enquanto os pahöri’wa dançavam, como dizem os Xavante, todo seu grupo
doméstico estava em prantos, os demais que assistiam permaneceram calados o tempo
todo. Ouvia-se os sons da popara durante os saltos e quando estava sendo vibrada, o
choro dos parentes e o grito melancólico do seriema que estava no alto dos postes no
wedetede. O cacique, avô de um dos pahöri’wa, chorava copiosamente e volume de seu
choro podia ser ouvido à distância. Tanto na apresentação dos pahöri’wa’rada e dos
pahöri’wa houve a necessidade de se molhar a terra que estava escaldante pela alta
temperatura naquela hora do dia, que deveria estar próxima de 40º C. O primeiro
pahöri’wa’rada não chegou a atingir o primeiro ponto de corte do círculo, de onde
seguiria pela reta secante até o local de início, apesar de muitos gritos indicando os
locais de mudança de olhares e até onde devesse ir.
Ao término da cerimônia os pahöri’wa foram rapidamente despidos de seus
adornos corporais que foram entregues aos pahöri’wa ĩté, que por seu turno levaram
instantaneamente para suas casas. Imediatamente os pahöri’wa foram vestidos com os
wamnhorõ ĩdzub’a, o wamnhorõ sem pintura, e tiveram outra faixa de algodão enrolada
sobre a cabeça, como um turbante. Neste ínterim um grupo de ĩhire, gritava na direção
de onde estariam as danhohui’wa tsipi’õ: dzahadu, dzahadu, dzahadu! Esperem,
esperem, esperem! Enquanto recebiam o wamnhorõ ĩdzub’a os pahöri’wa foram
rodeados pelos demais heroi’wa, que eram ao mesmo tempo orientados por F. sobre
como deveriam agir na próxima seqüência da cerimônia. Em meio à gritaria dos
ĩprédu e ĩhire, que pediam pressa nesta fase do ritual, foram obrigados a deitarem por
instantes sobre esteiras colocadas à frente do wedetede. Ao se deitarem foram
totalmente envoltos pelos heroi’wa que ficavam abanando nas costas os maços de sedas
de buriti que haviam recebido no momento em que foram conduzidos até o wedetede.
Em seguida os ĩhire, anciãos, emitiram um grito sinalizando às danhohui’wa tsipi’õ –
madrinha, que haviam se pintando e se escondido nos arredores da aldeia, que
entrassem em cena.
Concomitantemente, os pahöri’wa ainda com as esteiras nas costas se
levantaram, sempre rodeados e protegidos pelos demais heroi’wa, e puseram-se a correr
lentamente em direção ao centro da aldeia. As danhohui’wa tsipi’õ igualmente
invadiram o wedetede e correram em sua direção para tomar as capas wamnhorõ
294
ĩdzub’a. Logo que conseguiram despojar os pahöri’wa das capas wamnhorõ ĩdzub’a
receberam pequenos cestos, de parentas que estavam à espera, e saíram correndo na
direção das casas dos grupos domésticos dos pahöri’wa para receberem parte da carne
que fora levada para lá no início da cerimônia. De acordo com L. este momento
constitui também um treinamento para o dia seguinte quando deverão retirar o
wamnhorõ dos demais heroi’wa, após o final do canto wanaridobe, como veremos
adiante. Enquanto isso, sempre aos gritos de: cuidado! depressa!, os ĩprédu e ĩhire
pediam que todos deixassem logo a frente do wedetede, tendo em vista a performance
ritual seguinte.
Enquanto os heroi’wa e os pahöri’wa retornavam novamente para atrás do
wedetede, e as danhohui’wa tsipi’õ, madrinhas, corriam atrás da carne os ĩprédu e ĩhire
que haviam se escondido nos arredores da aldeia com as capas wamnhorõ entraram na
aldeia com elas em punho e correram até o wedetede, onde ficaram dando voltas em
sentido anti-horário até que todos chegassem. Quando os ĩprédu e ĩhire paravam,
agitando as capas, procuravam apoiar-se sobre a parte externa dos pés, procurando
deixar a sola dos pés fora de contato com o chão devido ao forte calor que deixava à
areia muito abrasiva. Embora muitos usassem tênis ou meias, foi necessário que os
parentes jogassem água no local onde estavam para refrescar o chão. Com a chegada de
todos, eles pararam de correr e ficaram agitando o wamnhorõ no ar de acordo com o
modo particular de cada clã113, enquanto Sabino, um dos ĩprédu do clã po’redza’õno,
ligado à metade cerimonial do wai’a chamada pi’rebapradza, os de baixo, entrava
dentro círculo com um chocalho de unhas de veado que marcava o ritmo da dança das
capas. Este ĩprédu começou a puxar um canto chamado wai’a’rãpó114 e foi
imediatamente acompanhado pelos demais portadores da capa. Entretanto, cantavam de
maneira extremamente baixa, parecendo mais um sussurro, para que os demais não
ouvissem, ou entendessem o que era cantado. Ao término do canto os ĩprédu e ĩhire
deixaram o wedetede e correram na direção das casas onde moravam aqueles que
113
Os membros do clã öwawẽ flexionando as pernas no ritmo do chocalho levanta e abaixam as
capas do wamnhorõ, enquanto que os membros do clã po’redza’õno, sob o mesmo ritmo, movimentam as
capas para frente e para trás, esticando e recolhendo o braço esquerdo com o qual seguram as capas.
114
O canto do wai’a’rãpó é prerrogativa do clã po’redza’õno e deve ser executado por um
membro da metade cerimonial do wai’a – cerimônia religiosa, pi’rebapradza. É o mesmo canto que
provocou a ira dos dahi’wa no acampamento de caça quando o cacique convocou-os a executarem o
canto na frente do heroi’wa que ali estavam. Este canto foi novamente ensaiado em diversos momentos
no acampamento das capas, quando o wamnhorõ estava sendo montado. De acordo com L., em oposição
a metade cerimonial pi’rebapradza estão os höimapradza, ligados aos clãs öwawẽ e tob’ratato. Estes
últimos nunca deverão se colocar como puxadores deste canto.
295
usariam no dia seguinte as capas de wamnhorõ que traziam. As capas foram depositadas
sobre as camas onde dormiam os heroi’wa, as ba’õno e as adzarudu. Em seguida os
ĩprédu e ĩhire retornaram novamente ao marã, encerrando a cerimônia.
Acompanhamos esta mesma cerimônia em São Marcos. Ali o canto do
wai’a’rãpó entoado, no centro do circulo formado por aqueles que transportavam as
capas, por T. O diferencial aqui foi o uso de uma pintura corporal, adota por J.M., um
dos que transportavam uma capa wamnhorõ, que ainda não tínhamos visto: atsada’rã,
lobo guará. Nesta modalidade pinta-se o tronco e os braços até os cotovelos todo em
vermelho o restante é pintado de preto com carvão. Parte do rosto do ator ritual é
pintada de vermelho, enquanto que o entorno da boca, das maças ao queixo e abaixo do
nariz, é pintado de preto. Esta modalidade de pintura é usada num dos momentos do
ritual de nominação das mulheres, conforme descrição deste ritual em Giaccaria &
Heide (1984:243-248).
Após o término da cerimônia, na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, os ĩprédu
e ĩhire reuniram-se no wedetede e começaram a discutir a performance ritual. A
principal questão trazida a eles foi à participação a revelia de uma mulher que não
pertencia à classe de idade tirowa. Na perseguição aos pahöri’wa quando estes
deixaram o wedetede, sendo protegidos pelos heroi’wa, e foram interceptado pelas
danhohui’wa tsipi’õ, madrinhas, que estavam escondidas nos arredores, esta mulher
correu antes das danhohui’wa tsipi’õ e retirou o wamnhorõ de um dos pahöri’wa.
Soube que esta mulher pertencia à classe de idade hötörã, ou seja, à metade cerimonial
oposta àquela que estava patrocinando a iniciação dos abare’u. Segundo L., a prima
desta mulher por ser gorda e mais lenta teria combinado com a mesma que ficasse nas
proximidades do wedetede e quando os velhos dessem o sinal ela corresse a frente e
capturasse o wamnhorõ ĩdzub’a, wamnhorõ sem pintura. A estratégia deu certo, depois
que a mulher de V. pegou o wamnhorõ ĩdzub’a ela o entregou a D. Entretanto, apesar de
tudo os ĩprédu e ĩhire não solicitaram que o wamnhorõ ĩdzub’a fosse dado à outra
pessoa. As discussões e reprovações continuaram por cerca de meia hora e aos poucos
as pessoas foram se dispersando. Novamente afirmamos que este tipo de questão não
compromete o tecido social político da aldeia. No âmbito da performance ritual é bem
provável que na próxima iniciação as mulheres da classe de idade tirowa acionem o
instrumento da vingança e procurem tomar o wamnhorõ ĩdzub’a das mulheres da classe
296
de idade ẽtepa
˜ , que estarão desempenhando o papel de danhohui’wa tsipi’õ, madrinhas,
da classe de idade nodzö’u, classe de idade que estará sendo iniciada.
No final da tarde deste mesmo dia os danhohui’wa e as danhohui’wa tsipi’õ
ensaiaram pela última vez o canto do wanaridobe. Ao final deste ensaio reuniram-se em
local separados, divididos por clãs, para traçarem as estratégias de retirada das capas de
wamnhorõ após o canto do wanaridobe, que aconteceria na madrugada do dia seguinte.
Assistimos esta mesma cerimônia na aldeia São Marcos. Guadalupe realizou um
ritual mais repleto de emoções externada pelo choro dos parentes daqueles que tinham o
cargo cerimonial de pahöri’wa. A atuação do wa’ritire, seriema, se deu de modo mais
cômico do que em São Marcos. Em São Marcos prevaleceu um ritual mais canônico,
com atores rituais devidamente posicionados em pontos rigidamente demarcados. Estas
comparações que fazemos não têm por intenção mostrar qual das aldeias teria feito o
ritual mais ou menos completo. Elas são importantes na medida em que os próprios
atores sociais acionam estas diferenças para desqualificar uns aos outros. Foi o caso, por
exemplo, da aldeia de N. S. de Fátima que igualmente realizava a iniciação do danhono.
Naquela aldeia um dos ĩhire, ancião, concedeu um dia de folga aos heroi’wa,
provocando um hiato entre as cerimônias do tébé e pahöri’wa. Tal atitude gerou
comentários de reprovação da parte dos ĩhire, anciãos, de Guadalupe bem como das
demais aldeias que realizavam o danhono. Embora, as aldeias Guadalupe, São Marcos e
Fátima se colocam como antagônicas umas em relação às outras, nesta ação envolvendo
o processo ritual todas se colocaram contra as atitudes do ĩhire de Fátima.
Como no ritual do tébé, acima lançamos a questão: adoradores do sol? Esta
surge devido às mesmas considerações que traçamos para os tébé, ou seja, a referência
pelos missionários salesianos de que este ritual, o dos pahöri’wa, seria uma adoração do
astro sol, idéia que alguns Xavante também assumiram. A confusão sobre este ritual
aparece quando se compara o percurso ritual que os pahöri’wa fazem quando executam
o ritual. O fato de eles iniciarem o ritual e depois movimentarem-se por um círculo que
se interrompe por uma reta secante e retornando ao ponto de origem levaram os autores
Giaccaria & Heide (1984:181-182) a comparar o trajeto com o nascer e pôr do sol.
Quando chegam diante do lugar donde partiram, param e se colocam
um ao lado do outro, de joelhos, e logos depois, sempre um ao lado
do outro, voltam ao ponto de partida, com o olhar não mais voltado
para cima, mas para a terra e sem virar a cabeça. O percurso dos
dançarinos corresponde perfeitamente à idéia que eles têm do
caminho do sol; por isso parece fundada a hipótese de que no sol,
297
115
Josina é uma voluntária que atua na missão junto às irmãs salesianas. Além de falar
fluentemente a língua Xavante ela possui um grande conhecimento das práticas culturais Xavante.
298
dias depois, a mesma cerimônia na aldeia de São Marcos. Naquela aldeia nos foi dito
que a cerimônia aconteceria por volta de meia noite. No entanto, para evitar
contratempos, seguimos duas horas mais cedo para o centro da aldeia, no warã. Ali
soubemos que os dois pahöri’wa estavam em casas próximas, um deles estava na casa
de seu pai J. Os dois foram novamente ornamentados sem receber nenhuma modalidade
de pintura corporal. Os ornamentos utilizados foram: o segundo conjunto de wamnhorõ,
que havia recebido pintura no acampamento das capas, no marã; novas popara, os colar
de algodão danho’rebdzu’a, e a faixa de fios de algodão. Depois de terem os colares de
algodão amarrados como gravatas borboleta no pescoço, as capas de wamnhorõ foram
colocadas sobre suas cabeças sendo em seguida enroladas com a faixa de algodão de
modo semelhante a um turbante. Próximo do horário previsto, para ser mais exato às
vinte e três horas e cinqüenta e cinco minutos, os dois pahöri’wa deixaram as casas e
lado a lado com as mãos cruzadas no peito, de modo semelhante à última performance
de encerramento da cerimônia do meio dia, quando cortaram o círculo numa reta
secante, seguiram em direção ao centro da aldeia batendo fortemente perna direita,
fazendo soar a popara. Antes de atingirem o centro foram interceptados e agarrados por
dois danhonhui’wa, membros da classe de idade tirowa, que lhes retiraram os adornos
corporais. A cerimônia durou menos de cinco minutos. A capa do wamnhorõ e demais
adornos corporais foram levados pelo danhohui’wa que os havia retirado. Segundo os
informantes no local, a popara teve que ser levada com muito cuidado para que as
mulheres não a vissem ou ouvissem enquanto era transportada.
O relato de Giaccaria & Heide (1984:183) aponta que nesta ocasião os
pahöri’wa estariam pintados com a modalidade tsanapré, o que não foi por nós
observado. Ainda de acordo com seus relatos participariam desta performance seis
danhohui’wa, do clã öwawẽ, três atuando em cada um dos pahöri’wa, onde um deles
segura e outros dois os despojam. Ainda de acordo com aqueles autores, os pahöri’wa
ao deixarem as casas de seus pais correriam em direção ao wedetede. Não obstante,
observamos que eles seguiram para o lado oposto ao wedetede. Fazemos este tipo de
comparação para mostrar que os atores rituais não estão performaticamente presos ao
script ritual, se é que ele existe. De mais a mais, considerando a dinâmica dos processos
rituais, não poderíamos esperar que fossem as mesmas em toda parte. Parece-nos claro
que em cada situação os atores sociais manipulam, simplificam e até eliminam partes do
ritual, sem comprometer o todo da iniciação.
299
116
Esta modalidade de pintura é usada numa das cerimônias de nominação das mulheres (cf.
Giaccaria & Heide, 1984:235ss), atualmente em desuso.
300
recolher conchas nas praias para serem usadas em adornos corporais confeccionados
especialmente para este momento, conforme já mencionamos anteriormente.
Enquanto os danhohui’wa e as danhohui’wa tsipi’õ estavam empenhados em se
pintarem e vestirem os adornos corporais, dentro das casas são os danhorebdzu’wa, o
irmão da mãe (MB), que pintam os afilhados. Este ator social possui dois papéis
importantes na vida dos filhos e filhas de sua irmã. No caso das meninas, é ele quem
confecciona os colares que serão usados em sua cerimônia de casamento. Para os
meninos sua atuação mais efetiva se neste momento do processo ritual de iniciação, o
danhono. Cabe a ele pintar o sobrinho e vestir-lhe a capa do wamnhorõ. Em troca ele
recebe da irmã do sobrinho(a) um bolo tsadaré, bolo de milho. Contudo, este bolo tem
sido substituído por pães caseiros, biscoitos, dentre outros tipos de alimentos. A
modalidade de pintura aplicada aos heroi’wa e ba’õno ou adzarudu é a daupté.
Entretanto, há pequenas diferenças para meninos e meninas. Para os meninos depois de
aplicada a pintura daupté, são amarrados em seus tornozelos embiras, do mesmo tipo
que se usa no wai’a. As meninas recebem a mesma modalidade de pintura e como
adornos corporais usam além do colar de algodão danho’rebdzu’a, comum também para
os meninos, cordinhas wedenhorõ nos pulsos e tornozelos.
À medida que os danhohui’wa e as danhohui’wa tsipi’õ concluíam a pintura e
ornamentação corporal, eles começavam a dançar e cantar o wanaridobe como vinham
fazendo, em tese, todas as manhãs e tardes desde que começaram os ritos conclusivos
do danhono, ou seja, a partir do datsi’waté. Neste ínterim os dahi’wa, membros da
classe de idade ẽtepa
˜ , ligados à outra metade cerimonial, portando arcos, flechas e
carabinas, se reuniram no wedetede onde permaneceram em volta de uma fogueira.
Junto com eles estavam também os dois pahöri’wa e os dois tébé. Estes atores rituais já
foram despojados de seus wamnhorõ anteriormente: os tébé na manhã em que
concluíram seu ritual noturno; os pahöri’wa, por seu turno, após a conclusão do ritual
que fizeram na frente do wedetede, momento em que as danhohui’wa tsipi’õ disputaram
entre si os wamnhorõ ĩdzub’a, e depois, próximo da meia noite quando eles deixaram
seus grupos domésticos vestindo o wamnhorõ e os danhohui’wa retiraram este
ornamento.
Antes que o sol surgisse por completo no horizonte um ‘watébrémi, escolhido
dentre os po’redza’õno, vestindo uma capa wamnhorõ sem pintura, ou seja, um
wamnhorõ ĩdzub’a, se colocou deitado no chão e coberto com uma esteira e ali
301
permaneceu até o sinal que seria dado pelos ĩhire para que a cerimônia passasse a outra
fase. O wamnhorõ ĩdzub’a é montado no marã, acampamento das capas, juntamente
com as demais capas. O mesmo é levado, às escondidas, até a casa do ‘watébrémi
escolhido para desempenhar este papel no momento em que as capas dos demais
heroi’wa e meninas da mesma classe de idade são apresentadas após a cerimônia dos
pahöri’wa.
No centro da aldeia, warã, um frenesi tomava conta dos ĩhire que a todo instante
gritavam: dzahadu, dzahadu! Esperem, esperem! Por fim, eles deram um grito
sinalizando o próximo movimento do ritual. O ‘watébrémi, que estava deitado e
camuflado pela esteira saiu correndo em direção ao centro da aldeia. Com isso, C., o
nonimrami’wa – carregador do noni, deixou a roda de canto do wanaridobe, enquanto
os demais prosseguiram cantando de dançando, e saiu correndo em seu encalço,
tomando-lhe o wamnhorõ ĩdzub’a com as faixas de algodão que o prendia na cabeça. C.
retornou correndo com o wamnhorõ ĩdzub’a e adentrou no centro da roda de dança
jogando agressivamente a capa no chão emitindo um grito. Era o sinal para que todos os
demais danhohui’wa e as danhohui’wa tsipi’õ partissem na direção das casas onde no
dia anterior haviam sido levadas as capas de wamnhorõ. Enquanto os danhohui’wa e as
danhohui’wa tsipi’õ corriam, em separado, na direção das casas, os heroi’wa e as
meninas da mesma classe de idade dos iniciandos deixavam seus grupos domésticos
vestidos com o wamnhorõ e seguiam caminhando lentamente em direção do centro da
aldeia. Em atitude ameaçadora, fingindo-se golpear o heroi’wa ou a menina com um
pequeno bastão, o danhohui’wa ou a danhohui’wa tsipi’õ, emitindo um grito, tomava o
wamnhorõ com a faixa de algodão que fora enrolada como um turbante sobre sua
cabeça, e retornavam correndo novamente ao centro da aldeia onde a jogavam no chão e
retornavam novamente a outra casa para procederem da mesma maneira. Lembrando
que a retirada das capas wamnhorõ se deram em conformidade com a escolha que os
danhohui’wa fizeram dois dias antes, no intervalo da cerimônia dos tébé, conforme
apresentamos acima. Após aquela escolha, que se deu mediante amarração das capas
com folhas de buriti; no dia seguinte eles, após o último ensaio do wanaridobe,
combinaram com as danhohui’wa tsipi’õ onde estariam as capas que deveriam ser
retiradas por cada um deles. Os heroi’wa e as meninas da mesma classe de idade ao
serem despojados do wamnhorõ seguiam correndo em direção ao wedetede, onde
302
117
Levada a campo pelo pesquisador e manuseada por um Xavante.
304
de classes de idade ligadas a metade cerimonial oposta a que está sendo iniciada. A
performance de atuação do a’ãma é rápida. Previamente ele se pinta com a modalidade
ahu’rã, na qual o corpo todo é pintado de preto com carvão e em seguida coloca um
colar de algodão danho’rebdzu’a no qual é presa uma pena branca de ema que fica ereta
na altura da nuca. Após ter se pintado e vestido o adorno corporal o a’ãma toma um
renhamri, uma pequena esteira que serve ainda como tampa de cesto, bolsa – quando
dobrada, e amarra na cabeça como um boné.
Enquanto os heroi’wa estão dançando com seus danhohui’wa, danhohui’wa
tsipi’õ e parentes ele entra no centro da roda e chora ritualmente. Segundo L. o a’ãma
chorou porque ficou com pena dos heroi’wa haja vista que o sol estava muito quente
naquele horário e castigava muito os abare’u, classe de idade que estava sendo iniciada.
Além disso, o a’ãma estava preocupado com o dia seguinte quando aconteceria outra
cerimônia que exigiria muito fisicamente dos iniciandos. À medida que o a’ãma
chorava o canto foi interrompido e os participantes começaram a se dispersar. Segundo
um dos informantes faltava ainda cinco cantos a serem executados. Os heroi’wa
retornaram à hö, enquanto os danhohui’wa, danhohui’wa tsipi’õ foram para outro ponto
nos arredores da aldeia para tomar banho no riacho.
No danhono de São Marcos nesta e na outra cerimônia os heroi’wa foram
favorecidos pelo clima. Desta forma, o dia amanheceu nublado e assim permaneceu, os
danhohui’wa, padrinhos, executaram todos os cantos que haviam previamente ensaiado
e os concluíram por volta de dezesseis horas e trinta minutos. Interromperam a
cerimônia para recomeçá-la logo mais no entardecer, quando os dahi’wa também
cantam e dançam a modalidade dahipopo.
À noite aconteceu mais outro ritual que marcaria o dia. Como de costume nos
dirigimos ao warã, centro da aldeia, para ouvir a conversa dos homens e porque nos
disseram que aconteceria algo engraçado. Quando ali chegamos encontramos o cacique
que conversava em separado com um dos dahi’wa, que estava portando um arco e
algumas flechas. Segundo nosso informante, este dahi’wa, fora o danhito’wa, ou seja, o
menor de sua classe de idade quando concluíram o danhono, em 1997. Enquanto isso,
os demais dahi’wa e os heroi’wa estavam escutando um canto noturno, percorrendo a
aldeia em lados opostos. Ao término do canto os heroi’wa foram recolhidos dentro da
hö, casa dos solteiros, e ali permaneceram até segunda ordem. Do centro da aldeia os
ĩprédu, e os ĩhire se deslocaram até a hö onde se posicionaram agachados formando um
307
grande semicírculo em volta de sua entrada. O silêncio era vez ou outra quebrado pelo
som de flatos que propositalmente eram soltos por alguns daqueles que estavam de
cócoras no semicírculo, o que causava risos entre os presentes. O tempo sonoro de cada
flato ditava a intensidade dos risos. Parece que o dahi’wa escolhido se atrasou e tivemos
que ficar mais tempo do que o previsto ali ouvindo o som dos flatos. Momentos depois
de se instalarem na frente da hö um ĩprédu por vez se dirigia até a porta da casa dos
solteiros e pronunciava uma palavra aos que ali estavam. Por fim chegou o dahi’wa e
solenemente se colocou no centro do semicírculo, ou seja, com as pernas um pouco
abertas e segurando o arco e as flechas à frente do corpo. Após sua chegada os heroi’wa
foram autorizados a saírem de dentro da hö e se posicionaram também agachados a sua
frente. Dentre eles foi escolhido o menor, chamado danhitö’wa, que foi conduzido até a
frente do dahi’wa e começaram a estabelecer o seguinte diálogo:
A putsi, a putsi
Sai118, sai...
A putsi, a putsi
Sai, sai...
A putsi, a putsi
Sai, sai...
A putsi, a putsi
Sai, sai...
1- (Danhi’wa [ ẽtepa
˜ ]) – hema, hema, ipedze te, ipedze te, wawe itsima’wa
protsi te, wawe itsima’wa protsi te atsima anhimi dza’re petse wa wawe istima waprotsi
te tsi’wã ö’are wa, tsi’wã ö’are wa, wa atsima anhimi dza’re petse wa.
Hema, hema,[refere-se ao som ao pênis quando entra
na vagina das moças virgens],eu estou com saudades, estou
com saudades, estou visitando vocês porque nunca mais vi
vocês. Água está rasa, água está rasa. Você se castigou,
você se castigou.
118
A tradução, em negrito, do diálogo foi feita com a ajuda de dois Xavante na aldeia Nossa
Senhora de Guadalupe. Entretanto, pode haver divergência quando submetida a outros tradutores
Xavante.
308
2- (Danhitö’wa [abare’u]) - hema, hema, róródi, róródi ‘re itsi wa’õ ‘re
mono wa, ‘re itsi wa’õ ‘re mono wa; ma to we ti höiwa dza, ma to we ti höiwa dza,
wawa utuhö ane wa oto ihöiba titsõ te’re datsai waptó mono hö, te’re datsai waptó
mono hö, wawa utu’hö, wawa utu’hö.
Hema, hema, eu choro de vontade, o dia está
clareando amanhecendo, o dia está clareando amanhecendo,
quero descansar, quero descansar [está cansado de ser
wapté], me entrego às mulheres.
3 – (anciãos) – Hepäri, päri, päri, tane, tane, tane, dza te ãma ‘re ubare te,
dza te ãma ‘re ubare te.
Obrigado, obrigado, assim, assim, assim. Meu pinto
está dobrado como ponte, meu pinto está dobrado como ponte.
1 – hema, hema, ‘re watsidzada dzu te waptó mono hö, ‘re watsidzada dzu te
waptó mono hö, wa we itsima waprotsi te, wa we itsima waprotsi te.
Hema, hema, minha cocha (minha perna) está forte
para ajudar, podemos andar juntos, eu entrego para vocês.
Eu entrego para vocês.
2 – Ihe, ihe, dza te’re tsaiwapto te. Ihe, ihe, dza te’re tsaiwapto te.
Sim, sim, nós podemos comer [transar] juntos. Sim,
sim, nós podemos comer [transar] juntos.
3 – (anciãos) – Hepäri, päri, päri, tane, tane, tane, dza te ãma ‘re ubare te,
dza te ãma ‘re ubare te.
Obrigado, obrigado, assim, assim, assim. Meu pinto
está dobrado como ponte, meu pinto está dobrado como ponte
[não conseguem ereção].
1 – hema, hema, ‘re watsidzada dzu te waptó mono hö, ‘re watsidzada dzu te
waptó mono hö, wa we itsima waprotsi te, wa we itsima waprotsi te.
hema, hema, minha cocha (minha perna) está forte
para ajudar, podemos andar juntos, eu entrego para vocês.
Eu entrego para vocês.
2 – ‘re watsidzada dzu te waptó mono. re watsidzada dzu te waptó mono.
Minha cocha (minha perna) está forte para ajudar.
Minha cocha (minha perna) está forte para ajudar.
309
3 – wapari’aredi. Hepäri, päri, päri, tane, tane, tane, dza te ãmã ‘re ubare te,
dza te ãmã ‘re ubare te. Dza te’re rãiwatsa wawa wapte ta hã dza te ãma ‘re ubare
wapte, dza te ãma ‘re ubare wapte.
Estou cansado de ouvir. Obrigado, obrigado, assim,
assim, assim, Meu pinto está dobrado como ponte, meu pinto
está dobrado como ponte. Se você transar de dia no mato seu
cabelo vai arrepiar, aquele meu pinto está dobrado como
ponte, meu pinto está dobrado como ponte.
(encerramento com assobios dos anciãos....)
se dirige inicialmente aos dahi’wa membro da última classe de idade que foi admitida,
ele também se dirige aos ĩhire, principalmente cuja força reprodutiva está em declínio e
diz que pode ajudá-los, pois eles os danhito’wa tem a perna forte. Os dahi’wa
autorizam, na troca de mulheres, os danhito’wa a viverem sexualmente ativos a partir
deste momento: eles podem andar juntos e entregam aos danhito’wa as mulheres. No
diálogo entre os danhito’wa e os ĩhire, este dizem que estão reconhecendo que estão
deixando de ser reprodutivos, o pênis está se tornando como ponte – sem ereção. O
danhito’wa diz que podem ajudar, pois tem a perna forte, e dizem que podem transar
juntos, pois eles entregam mulheres aos ĩhire. Os ĩhire agradecem e por serem mais
experientes dão conselhos aos danhi’wa: Se você transar de dia no mato seu cabelo vai
arrepiar.
A tensão que o processo ritual traz parece estar superada. O encerramento do
ritual dá-se por meio de assobios, felicidade, da parte dos ĩhire, pois o danhito’wa e o
danhi’wa os substituirão na troca de mulheres garantindo a reprodução física e social do
grupo. Ademais estão felizes, pois os o danhito’wa e o danhi’wa não os excluem da
vida sexual: podemos comer juntos, ou seja, garantem aos ĩhire, anciãos, a continuidade
do acesso às mulheres.
Terminado o diálogo os grupos de dispersaram tendo em vista o ritual que
aconteceria no dia seguinte, e como de praxe deveriam começar pela madrugada.
acontecem durante seu percurso. Ele dizia isso porque na aldeia Namunkurá, situada ao
norte da Terra Indígena São Marcos, onde também estava acontecendo a iniciação do
danhono, quase ocorreu uma briga entre dahi’wa versus danhohui’wa e heroi’wa
durante o percurso da corrida. Outra questão que ali se discutiu foi sobre o corte de
cabelo dos primogênitos. No marã, como veremos adiante, acontece o corte de cabelo,
pintura e ornamentação corporal. Os filhos primogênitos dos danhohui’wa, classe de
idade tirowa, fazem uma tonsura, danhire’pré, muito ampla, de modo semelhante à de
um monge. Não obstante, os primogênitos que já tiveram os lóbulos das orelhas
furados, e estão em processo de iniciação, fazem uma tonsura menor. Esta questão foi
trazida no warã por T. Segundo L., nosso tradutor, em 1997, quando os hötörã eram
danhohui’wa dos ẽtepa
˜ seus filhos primogênitos mesmo tendo os lóbulos das orelhas
furados eles foram submetidos a uma tonsura muito grande, o que contrariava o preceito
estabelecido por Tsihörirã, personagem que definiu os padrões de pintura e
ornamentação corporal dos rituais Xavante. De mais a mais T. estava preocupado com
seus netos, e eram muitos, que estavam sendo iniciados.
Quando o sol surgiu por completo no horizonte os participantes da conversa no
warã deixaram o local e foram para suas casas comerem algo e em seguida se dirigiram
ao marã, ou waiatsiubumrodzé, onde estavam os heroi’wa, os primogênitos e
primogênitas dos danhohui’wa, as meninas da mesma classe de idade dos heroi’wa, ou
seja, abare’u. Ali inicialmente cortaram os cabelos conforme a prescrição para cada
participante de acordo com o momento ritual que cada um estava vivenciando. Os
heroi’wa inicialmente tiveram os cabelos cortados no centro da cabeça em forma
circular, como uma tonsura, danhire’pré. Posteriormente, de posse de uma folha de
buriti em volta no pescoço, prendendo as longas madeixas junto à nuca tiveram os
cabelos cortados nesta altura. Os meninos e meninos primogênitos dos danhohui’wa
foram submetidos a uma tonsura maior do que os demais, conforme já adiantamos
acima. Estes também tiveram os cabelos cortados na altura da nuca. Todos eles tiveram
ainda as franjas cortadas de orelha a orelha. Findado os cortes de cabelos começaram as
pinturas corporais, onde identificamos as modalidades: para os pahöri’wa, demais
heroi’wa, e meninas foi usada a tsanapré, na qual pinta-se um retângulo na altura do
abdômen e nas costas, na extensão da coluna vertebral (numa variante deste tipo de
pintura acrescenta-se um contorno com carvão no em torno da boca, dzada’rã); para os
tébé e aihö’ubuni aplicam-se a daupté onde o tronco o corpo é pintado de vermelho e
314
depois se desenha duas faixas em preto nas costas, riscos também em preto entre o
umbigo e o externo e um pouco acima dos cotovelos. Em todas as modalidades usa-se a
date’rã, pintura com carvão nas canelas. Aplica-se ainda sobre a date’rã o
date’rãwabdza, ou seja, retirada com as unhas de parte da pintura em preto de modo que
se formem dois ou três riscos na parte externa e interna da canela – estes riscos indicam
também a filiação aos grupos de culto na cerimônia do wai’a. Os adornos corporais
foram: danho’rebdzu’a, colares de algodão, com diversas variantes indicadas pelas
diferentes penas que são presas na parte que fica na nuca de quem os usam; wedenhorõ,
cordinhas de embiras amarradas nos pulsos e tornozelos; danhipsipré120, fios de seda de
buriti pintados de vermelho amarrados em feixes nos pulsos e tornozelos; danhipsipó e
daimidzupó121, respectivamente, embiras de casca de árvore amarradas nos pulso e
tornozelos; fios de algodão pintados de vermelho e amarrados na cabeça. Além dos
heroi’wa, meninas da mesma classe de idade, e os primogênitos e primogênitas, alguns
ĩprédu, da classe de idade hötörã também se pintaram neste marã. Eles adotaram a
modalidade de pintura daupté, corpo todo em vermelho e como adornos corporais
usaram dabutupo, colar de embira, daimidzupó, embira no tornozelo, danhipsipó,
embiras nos punhos – todos provenientes de um mesmo tipo de árvore. Esta modalidade
de pintura e ornamentos corporais são os mesmos usados na celebração religiosa do
wai’a.
Os danhohui’wa e danhohui’wa tsipi’õ reuniram-se noutro marã, não muito
distante de onde estavam os heroi’wa, e igualmente se pintaram e adornaram seus
corpos. Estes por seu turno adotaram a modalidade de pintura danhihödö, na qual são
feitos riscos em preto por todo o corpo, parecendo uma camuflagem. Os Xavante tem
inovado na composição desta modalidade de pintura. Tanto em 1997, quando atuamos
como danhohui’wa para a classe de idade ẽtepa
˜ , quanto em 2005, quando
acompanhamos a iniciação dos abare’u, o corpo se tornou uma tela cujos motivos de
pintura variavam muito. Na iniciação dos abare’u danhohui’wa e danhohui’wa tsipi’õ
além de camuflar o corpo com esta modalidade de pintura, o transformaram em placas
de recado aos dahi’wa. Assim era possível ver: desenhos de caveiras, semelhantes aos
usados em sinalização de perigo alta-tensão, com dizeres upitõ adö [não se aproxime];
tsauri’wa 2005; 2005. Além dos dizeres, um dos danhohui’wa pintou o rosto de modo
semelhante ao personagem do filme Guerra na Estrelas. Nesta a modalidade, a
120
Cf. Muller, 1976:53.
121
Idem.
315
danhihödö, as franjas dos cabelos são pintadas com urucum e o restante dos cabelos é
preso em forma de rabo de cavalo. Entretanto, um dos danhohui’wa inovando pintou a
cabeça por completo com urucum, talvez para se parecer com aquilo que chamamos de
diabo, em Xavante: wa’uburé. Complementa a pintura corporal dos danhohui’wa o uso
de danho’rebdzu’a, colares de algodão e wedenhorõ, cordinhas, nos pulsos e tornozelos.
As danhohui’wa tsipi’õ utilizam um bastonete de madeira, com aproximadamente uns
cinqüenta centímetros de comprimento, pintado de vermelho. Os danhohui’wa, por seu
turno, devem confeccionar flautas upawã que deverão ser tocadas durante a corrida.
Os dahi’wa, os opositores, e os a’amã, advogados, pintaram-se no
tsa’uri’wadza’ru, onde se inicia a corrida. Este local é construído a uma distância de
aproximadamente dez quilômetros da aldeia. Em Nossa Senhora de Guadalupe o local
escolhido para construção do tsa’uri’wadza’ru foi próximo à antiga estrada que ligava a
aldeia São Marcos à BR-070, passando próxima a aldeia Merure, do povo Bororo. Desta
forma, partindo de Guadalupe e seguindo-se esta antiga estrada depois de
aproximadamente dez quilômetros os heroi’wa adentram uns cem metros no cerrado,
onde abriram uma clareira. O detalhe é que depois da aldeia Guadalupe começa a Terra
Indígena Merure. Portanto, o tsa’uri’wadza’ru foi construído dentro da terra dos
Bororo. Isto causou apreensão aos missionários salesianos que trabalham com os Bororo
na aldeia Merure, como também aos próprios Bororo que ao descobrirem que os
Xavante estavam abrindo uma clareira próximo a estrada interpretaram como uma
tentativa de construção de uma nova aldeia Xavante no local. A descoberta da clareira
levou os Bororo a fazerem uma batida no local onde descobriram as ferramentas que os
dahi’wa, classe de idade ẽtepa
˜ , haviam escondido nos arredores. Isto se somando ao
episódio no qual o vaqueiro Bororo teria disparado em direção de M., durante a grande
caçada que se deu na Terra Indígena Bororo, que já relatamos nas páginas precedentes,
serviu para acirrar ainda mais os ânimos entre as duas etnias.
Por volta de nove e meia da manhã os primogênitos e primogênitas dos
danhohui’wa, os heroi’wa e as meninas da mesma classe de idade, começaram a deixar
o marã para dirigiram-se ao local de início da corrida. A saída para o local de inicio do
tsa’uri’wa se deu de modo extremamente ritual. Assim, tomando a frente da fila se
colocaram os primogênitos e primogênitas (meninos e meninas pequenos), seguidos
pelos heroi’wa, que se deslocavam tendo a frente os dois pahöri’wa, os dois tébé e um
aihö’ubuni, e depois os demais se alternando por ordem clânica. Após os heroi’wa
316
local um dos a’amã chorava ritualmente a beira da estrada. Após seu choro ele dirigiu-
se até os heroi’wa aconselhando-os a não temerem os dahi’wa, pois eles não tinham
veneno ou feitiço que poderiam ser usados para prejudicá-los durante a corrida.
Segundo L., o a’amã disse que os dahi’wa tentariam matá-los de cansaço. Nós
permanecemos na carroceria do caminhão, que vazio se dirigiu até o local de início, o
tsa’uri’wadza’ru.
Chegamos ao local de início da corrida bem antes dos demais. Isto nos
possibilitou inspecionar os arredores e identificar as posições que seriam tomadas pelos
atores rituais e suas estratégias. O tsa’uri’wadza’ru, local de início do tsa’uri’wa,
constitui-se de uma grande clareira aberta pelos dahi’wa num trabalho secreto que
durou umas três semanas. Até então apenas eles, os dahi’wa, e seus danhohui’wa
tinham conhecimento deste lugar. No dia marcado para início da corrida ainda de
madrugada eles haviam se dirigido até este local, onde se pintaram e vestiram os
adornos corporais. Além deles, U., um dos a’ãma também se pintou junto com o grupo.
A presença do a’ãma era tida como estratégica para a classe de idade que estava sendo
iniciada, pois visava coibir abusos por parte dos dahi’wa. Em 1997, quando atuamos
como danhohui’wa, o a’ãma dos ẽtepa
˜ era constantemente cobrado a estar junto com os
dahi’wa para evitar que eles acionassem a instituição da vingança tendo como
referência a iniciação de 1992, quando os dahi’wa ao invés de utilizarem veneno
tradicional, teriam usado BHC e audrin122 que foram jogados nos heroi’wa daquela
época. Apesar de toda essa vigilância ao término do tsa’uri’wa de 1997, alguns dos
dahi’wa foram acusados de jogar desodorante nos heroi’wa.
A modalidade de pintura adotada pelos dahi’wa para esta ocasião é a daupté, ou
seja, o corpo todo em vermelho. Depois de aplicada esta modalidade de pintura faz-se
dois ou três riscos, de acordo com a filiação ao grupo de culto no wai’a, com as unhas
partindo dos ombros e fazendo uma curva na altura do peito e terminando na virilha.
Como adornos corporais usavam os cabelos presos em um pedaço de talo da folha de
buriti, wabu, assumindo a forma de rabo de cavalo. Sobre o wabu é fixada uma pena de
arara montada sobre um pedaço de flecha chamada ubu’rãipré. Depois de preso ao
cabelo o wabu é ainda envolto com uma faixa de algodão que ainda não foi fiado. No
pescoço eles usam, além do colar de algodão danho’rebdzu’a, o dabutupo,
confeccionado com embiras. Este mesmo material é também amarrado nos tornozelos e
122
Defensivos agrícolas.
318
heroi’wa e o a’ãma. Agitando os braços, como o bater de asas, os dahi’wa bateram três
vezes o pé direito no solo, olhando em direção do sol nascente e do sol poente, e dois
deles saíram em disparada. Ao mesmo tempo os heroi’wa também saíram correndo,
juntamente com os danhohui’wa, e passaram pelos dahi’wa e pelo a’ãma, que
continuava a chorar. Após serem ultrapassados pelo grupo heroi’wa, os dahi’wa saíram
em seu encalço, lançando vez ou outra o pó venenoso para atrapalhar os primeiros.
Segundo Lachnitt (1993:130) e Giaccaria & Heide (1984:187), antes do início da
corrida os dahi’wa executam brevemente um canto chamado dahi’wanho’re, canto do
dahi’wa, e somente após este canto é dado o sinal de partida ao toque da flauta upawã.
Entretanto, nas duas ocasiões em que participamos deste início (em 1997 e 2005), bem
como do ensaio feito pelos dahi’wa e acompanhado pelos ĩprédupté, em especial
quando aqueles foram danhohui’wa dos dahi’wa, não observamos a realização deste
canto.
Concomitante a performance, que marcou o início do tsa’uri’wa, um dos
ĩprédu lançou no ar fogos de artifício que além dar a largada igualmente informava aos
que estavam ao longo do trajeto que a corrida tinha começado. Apesar de a corrida ter
iniciado por volta de dez horas e trinta minutos, o sol já estava muito quente.
Não apuramos o sentido cosmológico da corrida do tsa’uri’wa. Entretanto,
considerando todo seu aparato, interdição de algumas partes às mulheres, as modalidade
de pintura corporal semelhantes àquelas usadas no wai’a lançamos a hipótese de que se
trata de uma corrida na qual os iniciandos enfrentam espíritos, presentes do wai’a,
incorporados pelos dahi’wa.
Durante todo o trajeto da corrida os heroi’wa recebem proteção dos
danhohui’wa que tocam constantemente as flautas upawã e dos pais, parentes que os
acompanham soprando os apitos e gritando o todo tempo. Os dahi’wa correm cruzando
o caminho dos heroi’wa fingindo sorrateiramente estar atirando sobre eles o pó
venenoso abrindo e fechando as mãos. Quando um dahi’wa aproxima-se muito do
heroi’wa o danhohui’wa diz: to omotina123! Saia! Mantenha-se distante!
Seguimos a corrida do tsa’uri’wa em seus dois quilômetros iniciais. Ali
pudemos acompanhar o drama vivido pelo neto do cacique, que detinha um dos cargos
cerimoniais de pahöri’wa. Este heroi’wa por ser muito gordo tinha pouca resistência
física, o fez com que ele ficasse por último durante todo o trajeto da corrida. Para
123
Temos dúvidas sobre esta grafia.
321
dos moradores da casa dos solteiros: eles deixam de serem considerados heroi’wa e
assumem o status de ‘ritéi’wa ĩté, novo guerreiro – o dono da casa nova. Os atuais
‘ritéi’wa, que também são os dahi’wa, permanecerão sob este status até o ritual que os
promoverão à danhui’wa.
Os hötörã se reuniram em lugar aparte e dividiram entre si os ornamentos de
cabelo que haviam retirado dos dahi’wa. Os outros grupos se dispersaram, encerrando a
cerimônia. Do mesmo modo que os danhohui’wa, os hötörã, da classe de idade ẽtepa
˜ ,
os dahi’wa, retiram os ornamentos destes e depois dividem entre si. A classe de idade
que fora danhohui’wa dos hötörã, neste caso os tsada’ro, pode igualmente retirar
ornamentos que porventura seus afilhados estejam usando.
Conforme sinalizamos no item anterior, a corrida do tsa’uri’wa que aconteceu
em São Marcos foi favorecida pelo clima chuvoso. Entretanto, ela carregava consigo os
mesmos dramas e comoções que presenciamos em Guadalupe. Na medida em que os
participantes chegavam ao centro da aldeia eram recebidos com uma abundância de
água derramada sobre suas cabeças. Muitos acabavam desmaiando e eram submetidos
aos mesmos processos de ressuscitamento que apresentamos acima.
De acordo com Giaccaria & Heide (1984:189) a corrida do tsa’uri’wa e a
despedida, que os autores chamam de imposição das mãos, podem ser repetidas outras
duas vezes com menor ostentação cerimonial. Um de nossos informantes disse que esta
corrida é chamada de tsauri’wa dos ĩprédu. Nesta modalidade a classe de idade
abare’u, que está assumindo o ciclo de vida ‘ritéi’wa ĩté assumirá o papel de dahi’wa,
enquanto que os atuais dahi’wa, membros da classe de idade ẽtepa
˜ estarão assumindo o
ciclo de vida danhohui’wa. Em outros termos, a metade cerimonial que estava sendo
iniciada, oficialmente se coloca como oposição a outra metade que dá os primeiros
passos em direção à iniciação de sua classe de idade mais nova, que será virtualmente
apresentada no ritual do dia seguinte ao encerramento da corrida do tsauri’wa. Isto se dá
através da mudança de dahi’wa, vivido atualmente pela classe de idade ẽtepa
˜ ,para
danhohui’wa.
324
Com isso os danhohui’wa, jocosamente gritavam para que as mães trouxessem tsadaré,
bolos de milho, pois diziam estar com fome. No entanto, os pedidos foram em vão. O
tempo entre uma apresentação de noiva e outra era demasiado longo. Diante disse um
grupo de ĩprédu, homens adultos já iniciados, em tom de brincadeira, se fizeram passar
por mãe e filha, conduzindo-se até um dos ‘ritéi’wa ĩté que levantou e deixou o local
correndo. Tal performance levou os presentes às gargalhadas. Uma das noivas
apresentadas nesta ocasião era tão pequena, com idade aproximada e dois anos, que não
tinha a menor idéia do que estava acontecendo. Quando a mãe tentou colocá-la ao lado
de seu noivo ela se recusar em permanecer encoberta ao lado do rapaz. A comunidade
que acompanhava atentamente ria sem parar das tentativas daquela mãe em fazer com
que a filha ficasse deitada ao menos um segundo. Por fim, ela forçou a filha a ficar
deitada e pegando-lhe a mãozinha bateu levemente sobre o peito do noivo e retirou-se
do local com a criança que a esta altura chorava copiosamente.
Conversando com um grupo de ĩprédu sobre o pouco número de mães a trazer
suas filhas para serem apresentadas à comunidade por ocasião do noivado público,
ouvimos a explicação de que hoje em dia os pais estão mais preocupados com o estudo
dos filhos e o casamento muito cedo não estava em seus planos. Entretanto, L. um de
nossos informantes que estava neste grupo e igualmente defendia a tese de casamento
tardio do filho teve o casamento do mesmo efetuado poucos dias depois desta
cerimônia.
Ao término da cerimônia de apresentação das noivas a comunidade aldeã se
dispersou enquanto o grupo de ĩprédu e ĩhire foi se reunir no warã, centro da aldeia.
Acompanhamos parte desta reunião cujo assunto principal era as cerimônias que
aconteceram durante o dia: a corrida do tsa’uri’wa e o noivado público. Sobre o
tsa’uri’wa discutiam sobre os desempenhos individuais: quem chegou primeiro, quem
desmaiou na chegada. Sobre o desempenho do neto do cacique, o pahöri’wa, foram
poucos os comentários e limitaram-se a fazer referência ao sofrimento que ele tinha
passado. No entanto, nos bastidores, aqueles que não apoiaram sua escolha estavam
satisfeitos com este sofrimento. Os Xavante consideram como padrão de beleza para os
jovens que estão em processo de iniciação, sobretudo os ocupantes de cargos
cerimoniais, o corpo magro e cabelos compridos. O corpo magro é ainda tido como
sinal de virilidade, pois consideram os magros bons corredores e caçadores. Isto se torna
visível nas expedições de caça e coleta da qual os wapté tomam parte. Quando um deles
326
consegue capturar uma seriema ou porco do mato apenas correndo o mesmo adquire
grande prestígio pessoal entre o grupo e os caçadores iniciados. Quando algum
informante se referia ao neto do cacique à principal questão recaia sobre o peso do
mesmo.
Presenciamos esta mesma cerimônia em São Marcos. Naquela aldeia foram
igualmente apresentadas poucas noivas. Alguns informantes fizeram o mesmo discurso
de que os filhos querem estudar um pouco mais antes de se casarem. A novidade aqui
foi que o discurso provinha de uma menina.
No dia seguinte por volta de seis horas da manhã as crianças que pertencerão à
próxima classe de idade a ser iniciada foram conduzidas formalmente ao warã. Ali
foram colocadas em fila por ordem de tamanho. À frente destas crianças se
posicionaram, igualmente em fila, os ‘ritéi’wa ĩté meninos e meninas da classe de idade
abare’u que estava concluindo a iniciação. Num clima de alegria e entusiasmo, entre as
duas fileiras de meninos, estavam três ĩhire (Fernando, Gabriel, e Tsudzawéré, o
cacique) pertencentes à classe de idade nodzö’u e que estava prestes a assumir o status
de nodzö’õmob’rada, ou seja, estavam presenciando a renovação de sua classe de idade
na ocupação da casa dos solteiros, o que para estes ĩhire era um momento de grande
alegria. Um dos ‘ritéi’wa ĩté foi escolhido para, sob orientação dos ĩhire conduzir
formalmente a cerimônia de apresentação da nova classe de idade. Este ‘ritéi’wa ĩté
estava pintado com a modalidade dauhöba, na qual a frente do corpo recebe uma
pintura de carvão sendo desenhado um retângulo em vermelho na altura do abdômen, as
costas e na parte detrás dos braços o mesmo usava uma pintura vermelha com duas
listras em preto paralelo a coluna. Como adorno corporal portava um dos tipos de
borduna de uso cerimonial, a ub’rã.
Depois que todos estavam devidamente posicionados o ‘ritéi’wa ĩté lentamente
deixou a borduna ub’ra no chão e dirigiu-se à fila onde estavam os ‘watébrémi, ba’õno
e ai’repudu, meninos e meninas com idades diferenciadas, e tomou o maior deles pelo
punho conduzindo-o até a fileira onde estavam os demais ‘ritéi’wa ĩté, rapazes e
meninas da classe de idade abare’u. Inicialmente o ‘ritéi’wa ĩté conduzia um a um os
que seriam apresentados como membros da próxima classe de idade, depois ele passou a
327
conduzir dois a dois e, por fim, pequenos grupos até que todos estivessem na frente dos
que estavam concluindo a iniciação. Os futuros nodzö’u se colocaram de costas aos
abare’u que se puseram untar seus cabelos com óleo de babaçu, extraído depois que as
amêndoas foram mastigadas e a saliva cuspida da mão e era espalhada sobre a cabeça,
para depois penteá-los e em seguida cortar alguns centímetros das pontas. As crianças
nodzö’u pegaram as mechas de cabelos que foram cortadas e depositaram-nas sobre
uma bandeja plástica que Fernando tinha levado ao centro especialmente para esta
cerimônia. Na medida em que depositam o cabelo corriam a suas casas de onde
retornavam trazendo penas que foram depositadas sobre um renhamri, tampa de cesto –
uma pequena esteira, que era administrada por Tsudzawéré, o cacique. Ao final as penas
e mechas de cabelos foram encaminhadas às casas de seus donos.
Quando todos concluíram a oferta de penas aos ĩhire, Fernando iniciou um
diálogo com os futuros nodzö’u no qual indagava a qualidade dos cabelos apresentados
e comparava-o com os cabelos dos membros das classes de idade da outra metade
cerimonial. A resposta esperada era que os cabelos dos nodzö’u eram melhores. O
diálogo foi concluído com a pergunta sobre o nome da nova classe de idade. Em seguida
os ĩhire ensaiaram ali mesmo no warã, juntamente com os ‘watébrémi, ba’õno e
ai’repudu, meninos e meninas com idades diferenciadas, um canto com estilo de dança
dadzarõno, modalidade de dança executada de mãos dadas e cabeça baixa,
movimentando-se em círculo e levantando um dos pés em saltos curtos. Os ‘ritéi’wa ĩté,
rapazes, se reuniram no wedetede, onde igualmente ensaiaram outro canto e o
executaram percorrendo a aldeia num itinerário oposto aos ‘watébrémi, ba’õno e
ai’repudu que seriam membros da classe de idade nodzö’u. como já dito anteriormente,
agora é o danhito’wa, o menor dentre os ‘ritéi’wa ĩté, que conduz o grupo.
Assistimos esta mesma cerimônia em São Marcos que foi igualmente marcada
pela grande alegria e algazarra dos próximos nodzö’u. Como em Guadalupe a cerimônia
foi conduzida pelos ĩhire que estarão recebendo o sufixo b’rada em sua classe de idade.
As duas últimas cerimônias que apresentamos como as que ainda serão descritas,
não apresentam grandes repercussões sobre o sistema político. Não obstante, a
apresentação da nova classe de idade confere ainda mais autoridade ritual àqueles ĩhire
que estavam assumindo o status de nodzö’õmob’rada. Entretanto este tipo de autoridade
não pode ser confundido com autoridade política, embora possa ser usado para este fim,
conforme vimos na situação onde o cacique convocou indevidamente os tirowa a
328
ensaiarem o canto wai’a’rãpó. A autoridade que os ĩhire estão adquirindo aqui ao ter
adicionado o sufixo ‘b’rada em sua classe de idade, passado de nodzö’u à
nodzö’õmob’rada, deve ser entendida de outra maneira.
(...) é preciso compreender que a autoridade dos mais velhos sobre os
novatos não se baseia em sanções legais; ela constitui, num certo
sentido, a personificação da autoridade auto-evidente da tradição. A
autoridade dos mais velhos é absoluta, porque representa os valores
axiomáticos, absolutos, da sociedade, através dos quais se expressam
o "bem comum" e o interesse comum. A essência do irrestrito
obedecer dos neófitos é submeter-se aos mais velhos, mas apenas na
medida em que estes têm a seu cargo, por assim dizer, o bem comum e
representam, em suas pessoas, a comunidade total (TURNER,
2005:144).
3.22 – ADZAHU
pintado conforme descrevemos acima e aguardava, no warã, a chegada dos ‘ritéi’wa ĩté.
Como mencionamos acima a adesão dos‘ritéi’wa ĩté neste ritual foi baixa. Até mesmo
os ĩprédu e ĩhire que costumam acompanhar em maior número a cerimônia
compareceram em número reduzido ao centro da aldeia. L., um ĩprédu da classe de
idade ai’rere, pai de um dos ‘ritéi’wa ĩté que havia desempenhado o cargo cerimonial
de tébé, e que deveria participar desta cerimônia partiu cedo para uma caçada
individual. Antes, porém, quis delegar ao pesquisador a tarefa de pintar seu filho, visto
que este seria seu filho classificatório, uma vez que considerava o antropólogo como seu
irmão. Recusamos esta tarefa que no momento oportuno foi executada por P., sua
esposa.
A performance ritual aconteceu com a saída, em fila, dos irmãos e irmãs‘ritéi’wa
ĩté de seus grupos domésticos que se dirigiram até o warã, centro da aldeia. Ali
colocavam-se de joelhos aguardando danhohui’wa que se dirigi ao seu encontro
correndo lentamente a passos largos com o corpo inclinado a frente e de punhos
fechados. Ao chegar até os ‘ritéi’wa ĩté retirou-lhes os adornos de cabeça, adzahu,
retornado e balançando-o de um lado a outro, correndo do mesmo modo, ao ponto de
partida. Ali os adzahu eram depositados no chão enquanto aguardava a chegada dos
demais. Em cada ação de retirada do adzahu os poucos ĩprédu e ĩhire que assistiam a
cerimônia respondiam em coro: hepãrĩ, pãrĩ, pãrĩ - obrigado, obrigado, obrigado. Os
‘ritéi’wa ĩté, rapazes, como Maybury-Lewis refere-se a eles ao longo de sua obra,
permaneceram em fila aguardando a chegada de outros colegas. As meninas, por seu
turno, retornaram aos seus grupos domésticos. Quando todos os rapazes que atendiam
os critérios de participação na cerimônia, e que estavam presentes na aldeia, foram
reunidos no centro o outro ajudante do danhohui’wa dividiu os adzahu em dois feixes
que foram imediatamente levados pelo mestre de cerimônias seguindo a mesma
solenidade adotada para retirada dos ‘ritéi’wa ĩté. Ao partir para sua casa com os
adzahu, o danhohui’wa foi novamente ovacionado com os agradecimentos: hepãrĩ, pãrĩ
, pãrĩ - obrigado, obrigado, obrigado.
Os ‘ritéi’wa ĩté seguiram em fila, tendo a frente o danhitö’wa, o menor deles, até
o local onde ainda estavam fincados os postes do wedetede. Ali ensaiaram um canto
com a modalidade de dança dapraba, na qual se dança de mãos dadas dando voltas em
circulo levantando o pé direito rapidamente para se deslocar de lado, e puseram a
executá-los percorrendo a aldeia segundo o itinerário de dança de sua metade
331
3.23 – UMNHIÃTSI’RÃURÉ
Esta parece ser um dos rituais que os Xavante deixaram de executar. Ao menos
nas ocasiões em que acompanhamos o danhono, bem como nas filmagens que dispomos
332
das iniciações124 que aconteceram em São Marcos em 1974, 1992, 1997 e 2005, não
vemos menção a ela. Encontramos referência à umnhiãtsi’rãuré nos relatos de Giaccaria
& Heide (1984:192s). Segundo estes autores o ritual acontece no retorno de uma
caçada. Por esta ocasião antes de entrarem na aldeia os moços, como referem-se os
autores aos ‘ritéi’wa ĩté, desatam a corda dos arcos e preparam apitos com taquara.
Após pintarem-se com a modalidade usada para o casamento, recebem do padrinho, nos
parece ser o danhohui’wa, cestos de carne que são entregues às mães de suas noivas. As
mães, por seu turno, retribuem o gesto oferecendo aos genros um bolo de milho. A
troca, segundo os autores, acontece antes de entrarem na aldeia.
Uma vez concluída as trocas entre genro e sogra, dois a dois os ‘ritéi’wa ĩté, a
começar pelos pahöri’wa, entram correndo e apitando na aldeia, passando pelo warã, se
dirigem ao rio onde tomam um breve banho retornando novamente ao centro da aldeia
pondo-se em fila e depositam os arcos em buracos previamente abertos pelos ĩhire.
Quando todos executaram esta performance recebem alguns conselhos dos ĩhire e
dirigem-se aos grupos domésticos onde executam o choro ritual da saudade. Novamente
os ‘ritéi’wa ĩté voltam a se reunir no warã para daí executarem três vezes um canto em
estilo de dança dapraba, e posteriormente, à noite, outros cantos com a modalidade
dahipopo, na qual se dança flexionando levemente os joelhos.
Os autores concluem o relato do ritual informando que os ‘ritéi’wa ĩté, cujas
noivas já são crescidas são autorizados a passar a noite com elas, enquanto os outros
retornam à casa paterna.
124
Algumas destas filmagens foram realizadas pelos missionários salesianos, enquanto que
outras pelos próprios Xavante. Em 2005 levamos a campo uma filmadora que ficou sobre
responsabilidade de um dos Xavante que se dispôs a documentar os rituais. As fitas com a documentação
dos rituais de 2005 foram convertidas no formato de DVD e redistribuídos na aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe.
333
125
Quando moramos na aldeia São Marcos dentre os vários trabalhos que fazíamos um deles era
o de eventualmente consertar espingardas, soldar bicicletas quebradas, etc.
334
3.25 – TSADZUDZU
126
Cargo outorgado a alguns moradores da casa dos solteiros, do clã poredza’õno. Eles
desempenham o papel de líderes do grupo até o momento da escolha dos ocupantes do cargo pahöri’wa.
336
127
Cf. Giaccaria & Heide, 1984:290b; Müller, 1976:51
128
Idem.
129
Idem.
337
A arena comportava até três combates por vez, enquanto os demais os acompanhavam.
Neste ínterim, a comunidade aldeã já estava toda reunida circundando a arena e
regozijando-se com as várias quedas dos gladiadores. Um dos momentos mais cômicos
foi a entrada na arena de um dos ‘ritéi’wa ĩté (abahu), detentor do cargo cerimonial de
pahöri’wa, o neto do cacique – o mesmo que apresentou dificuldade na corrida do
tsa’uri’wa por estar muito gordo, quando três a quatro dos ‘ritéi’wa ĩté (para’wa)
tentavam em vão derrubá-lo. Até mesmo outros membros do grupo para’wa de mesma
estatura que o pahöri’wa evitavam desafiá-lo por desvantagem em relação ao porte
físico. O ritual durou cerca de quarenta minutos e foi encerrado com um canto que os
‘ritéi’wa ĩté, tanto os para’wa quanto os abahu, ensaiaram ali mesmo nas proximidades
da arena e o executaram percorrendo a aldeia.
Este ritual, segundo os informantes, serve como um tira teima para verificar
entre os irmãos e primos qual deles seria o mais forte. Até então se comenta que ego
seja mais forte do que seu irmão ou primo, mas sem nenhuma comprovação empírica.
Dizem os informantes, que até este momento tudo o que ser tem são hipóteses sobre a
força e virilidade entre os irmãos e primos. Neste sentido, a cerimônia serve para
confirmar ou refutar tais hipóteses. Nosso informante, membro da classe de idade
airere, iniciado em 1979, tinha claro na memória a luta com seus primos. Segundo ele,
seu pai o tinha colocado no grupo para’wa e lutou contra seis de seus primos abahu,
perdendo de alguns e ganhando de outros.
Nem todos os ‘ritéi’wa ĩté participaram do canto após o ritual. Por ser uma
segunda-feira muitos estavam ávidos para viajaram à Barra do Garças. Desta forma, tão
logo o ritual foi encerrado muitos dos ‘ritéi’wa ĩté saíram correndo para tomar banho e
tirar a pintura corporal, retornando em seguida e dirigindo-se ao caminhão. Até mesmo
o antropólogo e a família com a qual estava residindo subiram no caminhão para
aproveitar a carona. Entretanto, desta vez a carroceria do caminhão estava com uma
lotação três vezes superior a sua capacidade. Além disso, o cacique ainda queria que
fosse ali colocado um enorme tambor de plástico com capacidade de mil litros para
trazer combustível da cidade. A primeira tentativa foi em vão. O antropólogo, que já
tinha subido na carroceria, foi acionado pelo chefe para que ajudasse a colocar o tambor
ali em cima. Respondemos que isso era impossível. Profundamente irritado o chefe fez
um longo discurso sobre a capacidade do caminhão. Entretanto, tal discurso não surtiu
nenhum efeito. Todos permaneceram imóveis no caminhão. Dirigindo-se aos mais
338
jovens, que eram maioria, disse que tinha uma borduna a ser usada para quebrar as
canelas daqueles que chegassem bêbados na aldeia. Nosso informante não traduziu o
discurso do chefe por completo, mas nos demonstrou estar igualmente irritado com o
cacique. Desistimos da viajem e retornamos para casa. Outras pessoas também, um
tanto a contragosto, deixaram o caminhão que seguiu ainda superlotado em direção à
cidade.
De volta à casa de L. onde estávamos residindo, o mesmo retomou novamente a
conversa sobre seu descontentamento em relação ao chefe. Disse-nos que está pensando
num projeto para comprar um carro e com isso fundar uma nova aldeia, cujo local já
estaria previamente definido. De mais a mais, nos relatou que até mesmo o cunhado do
chefe, Bru, teria ficado igualmente irritado com a postura e discurso autoritário do
cacique. O mesmo também estava pensando em deixar Guadalupe e igualmente fundar
outra aldeia. Caso isso de fato viesse a acontecer, nos informou Luiz Tsirobowe,
Guadalupe ficaria vazia, visto que seu grupo doméstico estendido, bem com o de Bru,
era grande.
Conseguimos carona na viatura da saúde na qual também embarcou a família de
Luiz. Permanecemos três dias na cidade e retornamos com o caminhão. Aqui
constatamos que as preocupações do cacique não eram de todo infundada. Por ser uma
época de pagamento para os funcionários da escola, bem como dos aposentados do
INSS, muitas pessoas estavam fazendo compras na cidade. Entre elas alguns abusaram
do consumo de bebida alcoólica. Não obstante, aqueles que haviam bebido ficaram
extremamente alegres e passaram a ser tratados como bobos, não da corte, mas do
caminhão. Ainda na cidade tomamos conhecimento de que teria havido um sobrevôo de
helicóptero sobre a Terra Indígena São Marcos, promovido por uma ONG denominada
Warã, com sede em São Paulo. De acordo com os informantes, neste sobrevôo teriam
sido constatadas duas irregularidades em relação aos limites da Terra Indígena. A
primeira delas teria ocorrido no norte da T.I., localizada na cabeceira do Córrego São
Marquinhos, onde teria havido desmatamento e invasão de um fazendeiro. Esta invasão
teria ocorrido pelo fato de os próprios Xavante terem vendido um pedaço de terra ao
fazendeiro. A segunda irregularidade estava relacionada a uma área próxima ao local
conhecido como fazenda do cabo Lucas. Ali teria havido igualmente venda de terra.
Estas acusações carecem de mais dados que devem estar diretamente ligadas ao
processo de revisão dos limites da Terra Indígena. Por hora, elas funcionam como
339
combustível que alimenta as tensões internas entre as lideranças das aldeias. Foi o que
constatamos ao final de nosso terceiro trabalho de campo. Naquela ocasião tomamos
carona com uma equipe de saúde da FUNASA, e fomos até a Aldeia Terra Prometida,
localizada no extremo norte da Terra Indígena São Marcos. O acesso àquela aldeia é
feito partindo da cidade de Barra do Garças tomando a BR 158, na direção de Nova
Xavantina, para em seguida tomar pequenas estradas que cortam diversas fazendas até
chegar aos limites entre a Terra Indígena e algumas fazendas. Ali Lo., um Xavante que
trabalhava como motorista da viatura e residente na aldeia São Marcos nos mostrou, ao
longe, uma sede de fazenda que estaria incidindo dentro da área Xavante. De acordo
com Lo, nos anos 80 o cacique de Guadalupe, mas que na época era o de São Marcos,
visto que ainda não havia ocorrido as diversas cisões nesta aldeia, teria vendido o bico
da Terra Indígena, na parte norte àquele fazendeiro. Ao entramos novamente na Terra
Indígena observamos a existência de um piquete com pastagem formada e sinais de
presença do gado. Aquele mesmo informante nos revelou que os moradores da Aldeia
Terra Prometida haviam arrendado aquele pedaço da T.I. ao fazendeiro vizinho. Como
já dissemos estas questões precisam ser averiguadas com mais profundidade,
principalmente quando consideramos os atores sociais que estão diretamente
envolvidos. Lo, e seu grupo doméstico, foi um dos fortes opositores ao cacique de
Guadalupe, que antes vivia em São Marcos. Quando Orestes retornou de São Paulo à
São Marcos, logo após a morte de seu pai, pleiteando o posto de cacique, o grupo
doméstico de Lo concedeu-lhe apoio. Não obstante, mesmo após a morte de Orestes,
quando seu irmão Raimundo assumiu seu lugar dando continuidade a disputa pelo posto
de cacique que resultou mais tarde numa grande cisão de São Marcos, o grupo
doméstico de Lo manteve o apoio. Estas questões, como já sinalizamos, precisam ser
aprofundadas, não o fizemos durante o trabalho de campo para não comprometer outros
pontos da pesquisa e não oferecer mecanismo para novos acirramentos de tensões que
poderiam levar aos conflitos, principalmente quando observávamos que estava
ocorrendo uma reaproximação de facões que há três anos, em relação ao ano da
pesquisa 2005, estavam vivenciando o ponto culminante das tensões que resultaram nas
cisões de algumas aldeias e o realinhamento das forças políticas da terra indígena.
Retomando o ritual do abahu, que descrevemos acima, este sim foi considerado
como o de encerramento do processo de iniciação do danhono, que promoveu a
incorporação na sociedade Xavante de uma nova classe de idade e formação de um
340
3.27 – WAI’A
130
Ai’uté’rẽne e ˜prédub’rini
i refere-se àqueles que foram iniciados no wai’a ainda pequenos ou
depois de adultos, respectivamente. Cada qual desempenham papéis especiais durante a celebração da
modalidade wai’a pi’u que não serão aqui descritas por fazerem parte do segredo do ritual.
342
havia sido concluída e alguns grupos domésticos tinham deixado Guadalupe. Além
disso, os moradores de outras aldeia que vinham com mais freqüência à Guadalupe por
conta da iniciação agora não o fazem mais.
Após a cerimônia do wai’a pi’u muitos permaneceram no centro da aldeia, como
já mencionamos. Todavia, estavam ali para outro ritual: a missa, que fora celebrada pelo
diretor da missão, que de quinze em quinze dias se dirigia até Guadalupe para este fim.
Assim, destacavam-se entre os fiéis alguns ĩprédu e ĩhire, homens adultos e anciões,
ainda sonolentos visto que tinham passado a noite acordados no ritual anterior. Com o
término da missa a aldeia se mobilizou para o terceiro ritual do dia: o futebol. Tratamos
o futebol como um ritual porque os Xavante assim o fazem. Em Guadalupe existe toda
uma organização que garante o pleno desempenho desta atividade. Os times defendem
as aldeias do entorno de Guadalupe e que são aliadas politicamente entre si. Do
contrário, a possibilidade de eclodir conflitos é muito maior que em relação à
participação nos rituais do danhono. Quando os times entram em campo fazem a
tradicional apresentação à torcida, como os grandes times do campeonato nacional. O
trio de arbitragem entrou solenemente no campo, tendo ao meio o juiz ladeado por seus
auxiliares, os bandeirinhas. O juiz antes de entrar em campo tocou o solo e solenemente
se benzeu fazendo o sinal da cruz. O fato é que este mesmo juiz no ritual do wai’a
desempenha o papel de da’ãmadzö’ratsi’wa, o tocador do chocalho – aqueles que
executam o canto durante toda a cerimônia. No centro do campo o trio de arbitragem
cumprimentou os capitães dos times, se cumprimentaram e cada qual tomou seus
lugares, de acordo com a organização do futebol. Ao término do primeiro tempo do jogo
e no seu encerramento o trio voltou a se reunir novamente no centro do campo para
deixar a arena de chão batido, ou seja, sem gramado.
A situação descrita acima mostra as transformações ocorridas em relação a
observação de Maybury-Lewis, nos primórdios da criação da aldeia São Marcos:
(...) nestes Xavante [os de São Marcos] despertou a paixão ou, pode-
se mesmo dizer, o vício do futebol. Todos jogavam, jovens e velhos, e
a toda hora. Os missionários não permitiam que a bola da missão fosse
utilizada durante as horas de trabalho mas a aldeia havia conseguido
uma bola e lá havia sempre um jogo muito disputado. As pessoas
entravam ou saíam do jogo de acordo com sua vontade e, quando
todos os homens se cansavam de jogar, as mulheres tomavam, então, o
seu lugar (Maybury-Lewis, 1984:61).
CAPÍTULO IV
POLÍTICA E RITUAL
1 - ruptura das relações sociais entre pessoas ou grupos que estão dentro de um
mesmo sistema de relações sociais (TURNER, 1972:91). Em Dramas, Fields, and
Metaphors :Symbolic Action in Human Society Turner amplia e nomeia os grupos onde
podem ocorrer rupturas (igrejas, departamentos universitários, partidos políticos, etc.) ,
ou seja, onde haja um campo de interações sociais. Esta fase se caracteriza por tornar
público à recusa do cumprimento de uma norma crucial que regule as relações entre as
partes. Segundo Turner (1974:38) não se trata de um crime, embora se pareça com ele.
Apesar de ser pratica por um individuo, o mesmo acredita estar agindo em prol de
outros e sente-se como seu representante.
2 – na segunda fase a ruptura das relações sociais regulares é marcada pela
montagem da crise, a menos que o conflito seja cercado numa área limitada da interação
social. Aqui prevalece a tendência da ruptura se tornar co-estensiva ao conjunto de
relações sociais às quais as partes contrárias pertencem. A fase da crise expõe o padrão
de luta faccional corrente dentro do grupo (...) (TURNER, 1972:91). Na obra Dramas,
Fields, and Metaphors (...) o autor chega a falar de escalada da crise nesta fase,
indicando sua progressão na direção de uma clivagem ampliada, como o caso dos
blocos comunistas e capitalistas durante a guerra fria. A crise, nesta fase,
(...) é sempre um daqueles pontos decisivos de perigo ou suspense,
quando o verdadeiro estado dos acontecimentos é revelado, quando é
mais difícil o uso de máscaras ou supor que não há nada de corrupto
na aldeia (1974:39).
instâncias mais altas para solucionarem a crise. Turner recomenda muita atenção a esta
fase, sobretudo se o objeto de estudo recai sobre mudanças sociais. Neste caso se deve
perguntar se o aparato jurídico acionado é capaz de restaurar a situação anterior e trazer
paz entre os grupos em contenda. Como ele procede para atingir este objetivo? A ação
reparadora apresenta igualmente uma característica liminar, como betwixt and between,
e apresenta um resumo e crítica dos eventos que compõem a crise. Este resumo
(...) pode estar relacionado ao idioma ou processo judicial, ou no
idioma metafórico e simbólico do processo ritual, dependendo da
natureza e gravidade da crise. Quando a reparação falha,
normalmente há um retorno à crise. Neste ponto, a força direta pode
ser usada, nas variadas formas de luta, revoluções, atos intermitentes
de violência, repressão ou rebelião. Contudo, onde a comunidade
perturbada é pequena e vis-à-vis a autoridade central relativamente
fraca, a regressão à crise tende a se tornar uma questão de
faccionalismo endêmico, penetrante, latente, sem contornos nítidos, e
aberto entre as partes consistentemente distintas (TURNER, 1974:41).
Embora Turner teça as considerações acima tendo como base seus dados de
campo coligidos entre os Ndembu, encontramos uma situação em tudo comparável à
Terra Indígena São Marcos, envolvendo algumas aldeias. No ano de 2002 aconteceu um
cisma na aldeia São Marcos resultando na criação de novas aldeias. Quando realizamos
nosso trabalho de campo em 2005 observamos que membros das diversas aldeias que
tinham se envolvido numa briga com os moradores da aldeia N. S. de Guadalupe, antes
de sua cisão na aldeia São Marcos, compareceram a esta aldeia para participarem dos
rituais do danhono, que ali acontecia, ajudando e cooperando com sua metade
cerimonial. Quando o mesmo ritual era realizado na aldeia São Marcos, palco da
contenda, igualmente alguns moradores de Guadalupe ali se dirigiam para também
participarem dos rituais. O clímax da circulação dos atores sociais entre aldeias foi a
presença num dos rituais que acontecia em Guadalupe do cacique de São Marcos.
Relatamos este exemplo quando descrevemos o ritual do uiwede, corrida de buriti, no
349
item 3.6 do capítulo III. Outro exemplo etnográfico, dentre muitos, que levantamos
durante o trabalho de campo foi o caso de uma contratação de Cam, morador da aldeia
São Marcos, para filmar um dos rituais centrais do danhono, a furação dos lóbulos
auriculares. Em 2002 L., o contratante do serviço, ainda vivia em São Marcos e se
colocava como aliado da facção que viria a se retirar daquela aldeia. Num dos episódios
aonde as tensões chegaram a vias de fato, Cam e L. se envolveram em luta corporal, e
após a mesma se declaravam inimigos. Aqui o conflito é extensivo aos grupos
domésticos das duas partes. Entretanto, durante os trabalhos de filmagens Cam na aldeia
N. S. de Guadalupe, este fora orientado por outros membros do grupo doméstico de L. a
privilegiar nas filmagens os filhos de seu oponente e dos demais de seu grupo doméstico
estendido. Cam não só acatou a recomendação como também disponibilizou a fita com
as imagens do ritual para que L. fizesse cópias na cidade de Barra do Garças. Podemos
antecipar que os processos rituais Xavante podem ser usados no contexto de lutas
política dos atores sociais. Eles podem ainda conduzir e favorecer o processo de cisão
de aldeia, assim como eles podem igualmente favorecer a reintegração de relações
sociais entre as aldeias.
Em suma, a forma processual do drama social pode ser formulada como: (1)
ruptura; (2) crise; (3) ação reparadora; (4) reintegração ou reconhecimento do cisma
(TURNER, 1971:92). Contudo, o autor ressalta que este processo não se sucede da
mesma maneira para todos os segmentos e sociedades. Por exemplo, o fracasso na fase
3 – a ação reparadora, pode levar a uma regressão da crise. Para que a vida na aldeia
Ndembu seja possível é necessário que seus membros compartilhem valores comuns, e
a normas de comportamento devem ser apoiada por todos. Cada exemplo de ruptura nas
relações sociais faz uma ocasião de reafirmação de suas normas reguladoras
(TURNER, 1971:92).
Turner (1972:93) considera o drama social como uma ferramenta analítica útil
quando associada a outras técnicas de coleta de dados da antropologia tais como:
genealogias, censos e diagrama das casas na aldeia. A análise destes materiais, obtidos
desta forma, pode ajudar a revelar regularidades nas relações sociais, consideradas
também como estruturas.
No drama social conflitos latentes de interesses tornam-se manifestos,
e laços de parentesco, cujo significado não é observado em
genealogias, emergem dentro de uma chave importante. Se nós
examinarmos uma seqüência de dramas sociais que surgem dentro de
uma mesma unidade social, cada um fornece-nos um olhar, de como
350
feita a partir de uma grande quantidade de estudos de caso estendido. Aqui a definição
de caso estendido é colocado dentro de uma perspectiva histórica.
Uma história de caso estendido é a história de um único grupo ou
comunidade sobre uma duração considerável de tempo, coligido
como uma seqüência de unidades processuais de diferentes tipos,
incluindo os dramas sociais e os empreendimentos sociais já
mencionados (TURNER, 1974:43).
Para Turner, um estudo nesta direção é mais do que historiografia uma vez que
ele lança mão das ferramentas conceituais da antropologia. Uma destas ferramentas é o
processualismo, termo que abarca análise dramatística.
A análise Processual admite análise cultural, da mesma forma que
admite análise estrutural funcional, incluindo análise morfológica
comparativa mais estática. Ela não refuta nenhuma destas análises,
mas coloca a dinâmica em primeiro plano. Ainda na ordem da
apresentação de fatos ela é estrategicamente útil para mostrar um
resumo sistemático dos princípios sobre os quais a estrutura social
institucionalizada é construída e medir a sua importância relativa,
intensidade, e variação em várias circunstâncias com dados
numéricos ou estatísticos, se possível (TURNER, 1974:44).
Maybury-Lewis evidencia dois motivos afirmando que ali a chefia havia perdido
seu sentido. Ao observar as comunidades, categoria usada pelo autor, dos Xavante
Ocidentes que compreendia as aldeias do Batovi – Simões Lopes - Sangradouro e São
Marcos, durante seu trabalho de campos realizado 1958, o autor constata o
enfraquecimento dos líderes naquelas aldeias. No caso de São Marcos
(...) o processo de dissolução da chefia não andava tão avançado. Ali
os chefes estavam enfraquecidos por outro motivo: havia muitos
deles. A relativa diminuição das contendas - resultado do
envolvimento com a Missão - criava dificuldades para que qualquer
deles realmente se impusesse. (1984:257)
131
Cf. Oliveira Filho (1988:57)
353
Apoena, chefe de São Marcos naquele ano de 1961. Este fato por si só nos mostra que
os líderes Xavante não estavam tão enfraquecidos por estarem sob a égide da Missão,
como sugere Maybury-Lewis. O equilíbrio de poder entre ele e a atuação da missão
impedia expressões agudas do faccionalismo: o conflito, mas a reunião deles numa
única área parece exacerbar estes conflitos.
A respeito do primeiro grupo que procurou ajuda entre os missionário da missão
salesiana de Merure, também aldeia dos Bororo, e que depois seria transferido para São
Marcos, Nunes da Guia colheu o depoimento a seguir, indicando os grupos domésticos
que formavam a facção principal que tinha como principal líder Apoena Abtsi'ré,
também chamado de Apöwẽ132.
Quando os meus avós saíram lá de Couto Magalhães133, em 1956, eles
estavam sendo liderados por Apoena Abtsi'ré. Foram encontrar os
padres, que naquela época eram chamados de “curandeiros”,
“milagreiros”. Eles viviam em Couto Magalhães, unidos com suas
“famílias”, nunca se separaram. Essa história é verdadeira.
Antigamente, o dono da pessoa era o primogênito. Na época, era
Butsé Tsimhöpopo. A seguir, passou para o irmão mais novo, que é o
Apoena Abtsi'ré, que liderou essa caminhada. As famílias que vieram
foram estas: Apoena Tseredze, Olavo Pariwawi, Butsé, Tsimhöpopo,
Félix Wa'aire, Bento Tserewatsa, Geraldo Tserewaruwe, José Maria
Tsimrihu, Agostinho Potowara, Lucas Tseredzé, Brito Tserenhitowe,
Salvador Tsere'urã, Zacarias Tsi'eiwa'adi, Benedito Rowadzó, e o
mais novo, Podze'u. Junto com eles, também vieram outras famílias:
Jacó A'oiwe, conhecido como Tsibupá, Pedro Tsipi'radi, Raimundo
Hãbe, Ângelo Abhö'ödi, conhecido como Meru, Tsidzapi, João Bravo
Tsitobné, conhecido como A'amadub'a, e outros rapazes que
acompanhavam essas “famílias”, na caminhada para chegar em
Meruri, que em Xavante se chamava Urébérób'u Etetsi'utsei'u
(Luciano Paratsé, setembro de 1999) (Nunes da Mata, 1999).
132
Não confundir com o cacique Apöwẽ de São Domingos, informante de Maybury-Lewis.
133
Refere-se ao Rio Couto Magalhães, hoje a região foi reconhecida como Terra Indígena
Parabubure.
354
estranhos ao grupo. Como bem frisou Sahlins (1999:07), as pessoas organizam seus
projetos e dão sentido aos objetos partindo de compreensões preexistentes da ordem
cultural. O fato de Apöwẽ ter permanecido a frente de seu grupo político até o final do
processo de demarcação da Terra Indígena de São Marcos, corrobora nosso ponto de
vista contrário a visão dos autores citados sobre o enfraquecimento das lideranças
Xavante em São Marcos.
Dentre as lideranças jovens que se destacaram naquele período temos Pio,
Dzururã – que ficou conhecido na mídia como Mário Juruna, Cipriano, Tsudzawéré –
mais conhecido como Aniceto, e Humberto. Enquanto estavam envolvidos com a
demarcação de suas terras estas lideranças permaneceram residindo na aldeia mãe. Com
o fim do processo demarcatório, o jogo político das facções volta a fazer parte das
questões cotidianas da aldeia. Quando dizemos que volta, não significa que estivessem
ausente, apenas haviam dado uma trégua, tendo em vista outro objetivo comum, que foi
a demarcação das terras. Deste modo, o envelhecimento das lideranças mais antigas,
bem como as necessidades externas cada vez mais crescentes do envolvimento das
mesmas com órgãos de governo e outros setores da sociedade nacional, levaram os
Xavante a rediscutirem e repensarem seu modo de fazer política.
Assim as disputas faccionárias em São Marcos voltam à tona tendo como
objetivo definir o mediador entre a aldeia e os agentes externos. Dentre os nomes
apresentados acima dois deles se destacaram, Tsudzawéré e Dzururã, graças às
experiências que tiveram com o mundo do waradzu134 - não índio. Para que fossem
superadas as tensões geradas entre as facções de São Marcos, a saída foi o
fracionamento da aldeia, onde as lideranças em ascensão, juntamente com seus grupos
domésticos fundaram novas aldeias aproveitando infra-estruturas já existentes onde
haviam retiros de posseiros que ocupavam áreas da Terra Indígena e saíram em
conseqüência da demarcação.
Em verdade, o processo de demarcação das terras Xavante se iniciou com a
criação da Terra Indígena através do Decreto 71.106 de 14/09/72 e depois com os
Decretos 73.233 e 73.243, ambos de 30/11/73. Este período foi marcado por grandes
tensões envolvendo os Xavante e regionais, como apontam as manchetes dos jornais da
134
Waradzu são todos aqueles não índios. Enquanto que outros povos indígenas são tratados,
genericamente, como Auwẽ. Os xavante se autodenominam A Auwẽ uptabi, ou seja, povo, pessoa
verdadeira.
356
Retomando o modelo de análise dos dramas sociais elaborado por Victor Turner
(1972 e 1974), passamos a considerar os conflitos que resultaram em cismas da aldeia
São Marcos, e depois em outras, na terra indígena São Marcos.
4.2.1 - a) - A RUPTURA
O episódio que marcou a saída do primeiro grupo Xavante de São Marcos está
ligado à disputa entre facções que apoiavam as duas jovens lideranças apontadas acima.
A ruptura começa, portanto, com dois líderes em ascensão pleiteando a reconhecimento
como cacique da aldeia. De um lado Tsudzawéré, cunhado de Apöwẽ, o atual cacique -
liderança que conduziu o grupo Xavante até Merure e depois para São Marcos, se
destacou durante o processo de demarcação da terra de São Marcos mediando
negociações com setores de governo. Além disso, teve destaque durante o período em
que ficou no internato salesiano, implantado pelos missionários com a finalidade de
catequizar e de preparar mão-de-obra138 indígena para ser usada na produção agrícola.
De outro lado, Dzururã, de acordo com Menezes, tinha permanecido fora da aldeia por
135
Diário de Notícias – 1º Caderno – página 08, em 15/08/73.
136
O Globo 1º caderno, página 03, em 1º/09/73 e O Globo, página 03, em 26/10/73
137
Relatório sobre o levantamento sócio-econômico feito na Reserva de São Marcos, p. 17
(1976), elaborado pelo antropólogo Cláudio dos Santos Romero. Anexado ao processo de demarcação.
Tivemos acesso a este relatório em consulta ao arquivo da FUNAI/Brasília.
138
Hoje vemos que a projeção de futuro feita por Menezes (1984:284), a partir de casos do Alto
Rio Negro no Amazonas, na qual a formação e qualificação para o trabalho ali oferecidos levariam os
índios ao abandono das áreas em direção aos centros urbanos, o que não se confirma.
357
um período de tempo vivendo com o waradzu - não índio. Dzururã foi destaque no
cenário político nacional quando se tornou deputado federal. Outro marco de sua
atuação política junto aos waradzu - não índio, foi o uso do gravador, onde registrava as
promessas de políticos para depois cobrá-las. O mesmo tinha, ainda de acordo com
Menezes (1984:384), uma postura crítica diante do trabalho da Missão, sendo por isso
hostilizado pelos missionários.
A pretensão em assumir a chefia de São Marcos por estes atores sociais gerou
um impasse na aldeia. Na versão apresentada por Menezes (1984:382), a solução para o
impasse se daria com a saída de Tsudzawéré que fundaria outra aldeia. Entretanto, se
Dzururã assumisse a chefia de São Marcos o relacionamento entre os Xavante com os
missionários estaria comprometido, pelos motivos indicados acima. Para contornar essa
ameaça a Missão propôs que a decisão sobre quem deveria sair fosse decidida por uma
votação, expediente estranho ao grupo que possui outros critérios para suas resoluções
políticas. O resultado dessa votação referendou Tsudzawéré como novo chefe de São
Marcos. Segundo Menezes, os Xavante referem-se a este evento como uma transmissão
de mando: Apöwẽ teria “dado” a chefia para Tsudzawéra139, contrariando os
interesses de sua patrilinhagem (ibid. 1984:385). Aqui cabe mais uma ressalva a
respeito da sucessão de liderança numa aldeia Xavante. Menezes (1984:381) acredita
que
(...) a regra de descendência constitui a principal das condições que
legitimam as pretensões de um postulante à chefia, prerrogativa
herdada patrilinharmente e que deve ser patrilinharmente assumida
pelos descendentes diretos de um imãmã anterior.
Ora, se assim fosse de que valeria o jogo político das facções? Se um chefe se
faz pelo prestígio que ele adquire junto à sua facção e, não necessariamente, das demais
facções da aldeia associado ao poder que sua facção detém dentre as demais, a
descendência patrilinear não se sustenta.
139
O nome de Tsudzawéré está escrito de maneira incorreta no trabalho de Menezes. Tivemos a
oportunidade de conferir através de entrevista com o próprio de Tsudzawéré em nosso trabalho de campo
realizado em novembro de 2002.
358
Apöwe. A escolha foi feita através de uma eleição sendo que os mais votados foram: em
primeiro Humberto, em segundo Benjamim e, finalmente, em terceiro Tsudzawéré. No
dia em que seria apresentado o novo chefe, no centro da aldeia – no warã, Apöwẽ ao
invés de apresentar Humberto, que era muito novo, apresentou Tsudzawéré, seu
cunhado. Talvez ai esteja à confirmação de que Apöwẽ teria cedido o posto cacique à
Tsudzawéré.
4.2.3 - c) - A CISÃO
4.3.1 - a) - A RUPTURA
O início da década de 80 foi marcado por outra crise política. Desta vez
envolvendo de um lado Tsudzawéré, atual liderança, e Orestes, filho de Apöwẽ.
Inconformado com a “administração” de Tsudzawéré, Orestes tentou reaver a chefia de
São Marcos, que no passado estava nas mãos de seu pai, que em decorrência às
situações já expostas foi repassada para Tsudzawéré. Orestes tinha para isso o apoio e
prestígio de Dzururã e de seu pai. Segundo Menezes (1984:517), as acusações que
pesavam sobre Tsudzawéré estavam ligadas à redistribuição de recursos e bens, onde os
maiores beneficiados seriam os membros de seu grupo doméstico.
(...) Tsusawéra era incriminado por realizar uma política de caráter
clientelista, elegendo critérios personalistas para distribuir cargos, e
doações e por favorecer seu grupo doméstico e aliados com maior
quantidade de carne nos abates dos animais pertencentes ao rebanho
que a comunidade indígena recebera por ocasião da demarcação da
reserva (Menezes 1984:517).
Teria Orestes se apropriado das interpretações missionárias, haja vista que ele
pertence ao clã po’redza’õno, para argumentar que seu clã teria o direito à chefia? Aqui
é preciso retomar a descrição etnográfica da iniciação do danhono que empreendemos
no capítulo anterior. Procuramos mostrar que a iniciação do danhono acontece tendo em
vista a organização das classes de idade em metades cerimoniais. Em cada uma das
metades cerimoniais estão presentes os clãs po’redza’õno, öwawẽ e tob’ratato. Durante
as diversas fases do processo ritual há rituais em que a filiação clânica não é relevante, e
sim saber a que metade cerimonial o outro está ligado. O exemplo mais explícito desta
organização é o ritual uiwede, corrida de buriti, no qual as classes de idade distribuídas
em metades competem entre si. Duas categorias nativas traduzem o que estamos
falando: waniwihö e õniwihö. A primeira, waniwihö, diz respeito aos membros das
classes de idade que constroem a casa dos solteiros do mesmo lado da aldeia que a
minha; enquanto que õniwihö são aqueles que constroem a casa dos solteiros do outro
lado. Portanto, durante boa parte do processo de iniciação do danhono o importante não
é filiação clânica, mas a metade cerimonial a que o ator social esteja ligado.
Entretanto, vimos que em dois rituais do danhono a filiação clânica assume
relevância: pahöri’wa e tébé. O cargo cerimonial de pahöri’wa é prerrogativa dos
po’redza’õno, enquanto que o de tébé dos öwawẽ. Nesta situação não cabe dizer que um
seja mais importante do que o outro. Ademais, poder-se-ia dizer que a chefia seria de
direito dos membros do clã po’redza’õno ao se considerar o cargo cerimonial de
aihö’ubuni, que é concedido a alguns moradores da casa dos solteiros filiados daquele
clã. O papel ritual do aihö’ubuni é liderar e guiar os demais moradores da casa dos
362
solteiros enquanto estiverem convivendo juntos na hö. Como vimos antes da escolha
dos pahöri’wa são eles que tomam a frente da fila em seus deslocamentos formais à
aldeia, quando vão executar os cantos da madrugada e no início da noite ou em qualquer
outro momento cerimonial desenvolvido em público. A partir do momento em que se
definem os cargos de pahöri’wa serão estes atores rituais que tomarão a dianteira da fila
e conduzirão os companheiros nos diversos rituais em que tomarem parte.
Ao término do processo ritual o cargo cerimonial perde sua importância, todavia
mantém-se o título, pois cotidianamente os membros da comunidade aldeã os tratam
pelo nome do cargo. Aqueles que já foram iniciados no danhono e mantendo-se o status
pahöri’wa, tébé e aihö’ubuni se reunirão por ocasiões de outros rituais de iniciação do
danhono para escolherem dentre os moradores da hö, casa dos solteiros, os novos
ocupantes destes cargos, obedecendo aos critérios de filiação clânica. Portanto, durante
e após o processo ritual os cargos cerimoniais ali desempenhados não possuem qualquer
ligação com os critérios de definição de líder da aldeia. Entretanto, nada impede que o
processo ritual seja usado pelos atores sociais de modo que os cargos cerimoniais
pahöri’wa, tébé e aihö’ubuni, considerados de prestígio, sejam dados aos filhos
daqueles que se apresentam com maior influência no cotidiano da aldeia. Não obstante,
isto não acontece de modo pacífico, como vimos em nossa descrição etnográfica.
Maybury-Lewis aponta que na comunidade de São Domingos, onde desenvolveu
seu trabalho de campo em 1958, o chefe Apöwẽ tinha conseguido fazer com que um de
seus filhos assumisse um dos cargos cerimoniais de pahöri’wa, enquanto o outro fora
assumido pelo filho de seu irmão, durante a iniciação da classe de idade tirowa. Nas
duas iniciações precedentes Apöwẽ havia imposto que seus filhos também ocupassem o
cargo cerimonial de pahöri’wa. Segundo Maybury-Lewis (1984:254), Apöwẽ (...)
procura garantir que sua facção continue a dominar, usando o sistema de classes de
idade para treinar seus parentes próximos na função de líderes da comunidade. Aqui o
autor não consegue “escapar” das armadilhas do estruturalismo ao colocar a estrutura (o
sistema de classes de idade), ou seja, deter um cargo cerimonial, como preponderante
sobre a dinâmica da vida social. O fato de ser filho do chefe não é garantia que o
morador da casa dos solteiros terá condições pessoais de desempenhar o papel de
liderança. Reveja, por exemplo, a situação dramática do neto do cacique de Guadalupe
conforme descrição que tecemos sobre sua performance durante da corrida do tsauri’wa
no item 3.19 do capítulo III. Durante a iniciação de 1997 observamos que um dos
363
140
Cabe aos Ĩtsa’rata’wa definir a realização do processo de iniciação religiosa o darini.
Somente os iniciados neste ritual é que podem participar das várias modalidade de celebrações
religiosas wai’a.
364
nesta tese do ritual de iniciação religiosa o darini. Não obstante, pelo que apuramos a
forma de organização da esfera religiosa não é tão diferente do que no danhono,
considerando a existência de cargos cerimoniais a serem ocupados de acordo com a
filiação clânica, bem como, a referência ao estágio de inserção do ator ritual na
iniciação do darini. Todavia, o apelo a uma suposta tradição não foi suficiente para
derrubar Tsudzawéré, haja vista que a facção que o mantinha no poder era
numericamente maior, e, além disso, o mesmo manipulava a Missão em seu favor.
4.3.2 - b) - A CRISE
Segundo nosso informante missionário, Orestes por ser filho de Apöwẽ, queria
ser chefe de São Marcos. Porém, ele mesmo não gozava de apoio do seu pai que não o
considerava apto a ser chefe. Como Tsudzawéré era detentor de um pequeno rebanho,
negociou com Orestes para que ele desistisse de ser chefe. O preço pago foram quarenta
cabeças de gado. Orestes pegou este rebanho e foi para São José, aonde veio a se
desentender com a liderança daquela aldeia por ter vendido todo o gado e ter gasto o
dinheiro, ao que tudo indica, com ele e sua família sem qualquer tipo de redistribuição.
Como resultado desta nova situação de conflito Orestes deixa São José para fundar
outra aldeia. O local escolhido foi aquele que já mencionamos anteriormente por
Menezes, Buriti Alegre, onde fundou a aldeia Cristo Rei. Mais uma vez novos
desentendimentos, agora com Emílio, sobrinho de Tsudzawéré. Orestes volta à São
Marcos em 1986, para no ano seguinte se mudar para São Paulo, onde lá permanece por
doze anos.
Até meados da década de 80 a Terra Indígena São Marcos contava com seis
aldeias (São Marcos, Namunkurá, N. S. Auxiliadora, N. S. Aparecida, Cristo Rei [Buriti
Alegre] e São José), com uma população de 1032 pessoas, aproximadamente (LOPES
DA SILVA, 1986:306). Na segunda metade, outras aldeias foram fundadas a partir da
aldeia São Marcos, como foi o caso de Nova Jerusalém. Aqui surge a primeira cisão de
uma aldeia que havia cindido de São Marcos: São Luiz. José Tropeiro, irmão do cacique
366
Antes que uma nova crise se tornasse pública várias lideranças de São Marcos
começaram a deixar esta aldeia para fundarem outras. A aldeia de São Marcos no início
dos anos noventa contava com uma população de aproximadamente 874 pessoas. Com
um contingente populacional desta magnitude a vida social da aldeia estava se tornando
inviável. No plano da execução dos rituais, por um lado, a situação era favorável por
haver muita gente colaborando para sua execução, por outro, a pressão exercida sobre
os recursos naturais disponíveis nos arredores da aldeia comprometia sua realização.
Diante disso os atores rituais estavam buscando matéria prima em outras áreas e até em
fazendas da região. É o caso, por exemplo, do ritual uiwede - corridas de buriti, onde o
buritizal, local onde crescem estas palmeiras, mais próximo estava localizado na
fazenda São Bento, depois da terra indígena seguindo pela estrada MT-312, sentido
Barra do Garças.
Idealmente uma aldeia Xavante conta com vinte cinco a trinta casas, numa
imagem aérea141 de uma aldeia xavante antes do contato podem-se contar vinte e três
casas – incluindo a hö casa dos solteiros, com uma população girando em torno de cento
e cinqüenta a duzentos e cinqüenta pessoas. Além deste limite máximo, se cria, na
aldeia, uma situação de desequilíbrio, que traz o fracionamento do grupo e o
aparecimento de uma nova aldeia (Giaccaria & Heide, 1984:56). Não obstante, estes
autores não exploram analiticamente como isto ocorre. Conforme sinaliza Turner
(1974:42), apresentar a morfologia é importe, todavia, é preciso analisá-la em seu
caráter dinâmico.
Entre as motivações que levavam os grupos domésticos a deixarem São Marcos
estava o descontentamento com a administração do cacique Tsudzawéré. Nos
bastidores, dizia-se que aquela liderança procurava beneficiar somente seus parentes
quando recursos e bens direcionados à comunidade aldeã. Até aqui nenhuma novidade,
haja vista que nos anos setenta e oitenta este tipo de acusação já era freqüente.
Contudo, quando observamos, abaixo, o Fluxograma de Cisões de Aldeias na Terra
141
Veja página na rede mundial de computadores do Instituto Sócio Ambiental:
http://socioambiental.org/home_html.
367
142
Agradeço a Luciene de Souza Guimarães, antropóloga e demógrafa, que executa pesquisas
entre os Xavante, por colaborar na composição do fluxograma.
368
professor na escola indígena. Certa manhã fomos solicitados por um dos professores a
redigir um documento a ser encaminhado à FUNAI. Sem ter conhecimento do teor do
documento aceitamos a incumbência de redigi-lo. Após termos começado a redigir o
texto do documento é que fomos tomando conhecimento de seu conteúdo. O documento
informava a FUNAI que a liderança tradicional de São Marcos havia tomado posse
como cacique daquela aldeia. A ruptura e crise estavam oficialmente instauradas e os
atores sociais tomam seus posicionamentos manifestando apoio às facções em disputa
pelo reconhecimento de um ou outro cacique da aldeia São Marcos.
Já afirmamos que o conflito político que teve início na aldeia São Marcos se
espalhou pela terra indígena homônima e atingiu outras áreas Xavante. De mais a mais,
o conflito atingiu também a cidade de Barra do Garças, alterando as formas de
deslocamento, adotadas pelas facções, da aldeia à cidade bem como o modo de
ocupação do espaço urbano. Assim, temerosos de serem surpreendidos por tocaias as
facções passaram a seguir por caminhos opostos para chegarem à cidade de Barra do
Garças. A facção Tsudzawéré e seus correligionários seguiam pela estrada que corta a
Terra Indígena Merure, dos Bororo, até atingir a BR-070 e dali tomavam o rumo de
371
Barra do Garças. A facção de Orestes se deslocava pela MT-312, que corta a Terra
Indígena São Marcos até a BR-158 e dali chegar até Barra do Garças.
A cidade de Barra do Garças foi igualmente reapropriada de acordo com os
conflitos faccionais. Neste sentido, a facção de Orestes ocupava a área do Hotel Santo
André, próxima à antiga rodoviária. Os da facção Tsudzawéré, por seu turno, se
dirigiam para o local conhecido como Restaurante do Mauro ou se concentravam no
Dormitório Avenida, localizado na rua principal da cidade. As relações comerciais que
as facções mantinham na cidade também foram alteradas, e cada um dos grupos passou
a privilegiar alguns centros de comércio. O mapa abaixo mostra o posicionamento das
facções na cidade de Barra do Garças.
Um mecanismo de ação reparadora acionado foi novamente a realização de uma
pesquisa, segundo Jornal a Gazeta do Vale do Araguaia143, promovida pela FUNAI a
pedido dos Xavante. De acordo com aquele jornal uma equipe da FUNAI passou de
casa em casa perguntando ao chefe do domicílio quem o mesmo apoiava. A reportagem
diz que o vencedor na pesquisa foi Orestes, com base numa entrevista feita com o
Professor Raimundo. Na entrevista da reportagem com Raimundo, este desqualifica a
oposição dizendo que o tio Aniceto (Tsudzawéré), que igualmente se defende no posto
de cacique, o ameaçara de morte e desejava resolver tudo na violência por ser um
homem valente. Não obstante, FERNANDES144 (2005:42) em sua dissertação de
mestrado, diz que o presidente da FUNAI Sulivan Silvestre, ocupante do cargo de
agosto de 1997 a fevereiro de 1999, promoveu a eleição e o resultando foi um empate.
A partir daí, segundo Fernandes, Orestes passa a assinar documentos como Presidente
da Nação Xavante ou Cacique de São Marcos Oriental, enquanto Aniceto adota o título
de Cacique de São Marcos Ocidental. Não obstante, numa entrevista que realizamos
com um dos correligionários de Tsudzawéré [Aniceto] o mesmo nos disse que sua
facção havia perdido a eleição promovida pela FUNAI. Todavia, a derrota aconteceu
porque houve fraude no pleito. Quando os pesquisadores chegaram a uma das casas,
uma viúva que seria a chefe da casa foi impedida de votar por seus dois genros que
apoiavam Orestes. Ocorre que os dois genros eram moradores de outra aldeia e ao
143
Jornal a Gazeta do Vale do Araguaia Ano XIII nº. 552 (de 27 de outubro a 02 de novembro de
2000).
144
Notamos aqui uma imprecisão nos dados que Fernandes apresenta. A referida pesquisa
aconteceu no mês de outubro de 2000, sendo presidente da FUNAI na época Glênio Alvarez (maio de
2000 a junho de 2002).
372
saberem da eleição foram para a casa da sogra e assumiram a posição de donos da casa,
com isso houve uma diferença de dois votos em favor de Orestes.
O fato de Tsudzawéré ter conseguido praticamente metade dos votos dos
moradores da aldeia São Marcos ajuda a pensar que o mesmo se mantinha como cacique
não só pelo apoio dos missionários, como recebera no passado. O resultado da eleição
mostra que a facção de Tsudzawéré era consideravelmente forte para manter-se na
disputa pela permanência no cargo de cacique.
Ainda segundo nosso informante, após a divulgação do resultado da eleição,
Tsudzawéré não reconheceu a derrota e se recusava a entregar o cargo e reconhecer
Orestes como vencedor. Segundo um de nossos informantes, Tsudzawéré acompanhado
de seus correligionário foi até a cidade de Barra do Garças para se reunir com o
funcionário da FUNAI, Marc145, que havia promovido a pesquisa (ou eleição). Após a
reunião, enquanto Tsudzawéré tomava um lanche num bar o mesmo foi abordado por
Tibúrcio (já falecido), cacique da aldeia Nossa Senhora Aparecida, que manifestava
apoio à Orestes, que passou a agredi-lo verbalmente com palavrões. Segundo o
informante, Tibúrcio, que portava uma borduna, estava querendo briga com
Tsudzawéré. Em defesa de Tsudzawéré, Seb146 se atracou em luta corporal com
Tibúrcio jogando-o no chão. Ao cair Tibúrcio, segundo o informante entrou em
convulsão. Houve uma intervenção de outras pessoas que estavam por perto e
Tibúrcio,que depois de voltar da convulsão, deixou o local dizendo que no sábado
próximo mataria Seb na aldeia São Marcos. O conflito acima teria acontecido numa
quinta feira, segundo nosso informante, daí a referência à sábado como dia provável
para a desforra. Visto que este conflito, que teve como palco o espaço urbano, portanto,
longe das atenções dos missionários, o mesmo serviu de “combustível” para outro que
aconteceria na própria aldeia, como fora anunciado.
No sábado, conforme nosso informante, a facção de Orestes se preparou e
realizou o ritual do uiwede, corrida da buriti, modalidade ubdö’warã (dente branco de
capivara) que acontece após os ritos de admissão dos novos moradores na casa dos
solteiros. A facção de Tsudzawéré já estava preparada para o confronto, haja vista a
ameaça que Tibúrcio havia feito na cidade. No jornal Diário de Cuiabá, edição de 17 de
outubro de 2000, a matéria com o título Índio Xavantes: briga pelo poder deixa 14
feridos, diz que o conflito
145
Para preservar o funcionário alteramos seu nome.
146
Nome alterado.
373
Folha Online:
147
Outras reportagens sobre o conflito:
Midia News – O Primeiro Jornal Online de Mato Grosso: 21/10/2000 – Xavantes feridos em
São Marcos recebem alta em Brasília; 23/10/2000 – Conflito entre Xavante pode estar chegando ao fim;
Funai propõe divisão de aldeia para acabar com a “guerra”; 25/10/2000 – Índio que Exército para
evitar conflitos entre os Xavantes.
Diário de Cuiabá: Edição nº 9755 18/10/2000 - Xavantes tentam chegar a um acordo; Edição nº
9762 25/10/2000 - Xavantes mantêm unidade de Barra fechada.
148
Disponível em: http://www.folha.uol.com.br/, acesso em 17 de janeiro de 2008.
374
Os nomes Apuá e Apoá referem-se a mesma pessoa: Apöwẽ Abtsiré que faleceu
em 1998. O ponto em comum nas duas matérias jornalística é a referência à tomada de
poder pelo tio (Aniceto) e o direito natural [sucessor natural por ser filho do cacique
Apuá - no Diário de Cuiabá; ou "herdeiro natural" do pai – na Folha Online] do
sobrinho (Orestes). Vimos acima que a dinâmica faccional Xavante independe de
critérios estruturais tais como ser filho de um chefe ou filiação a determinado clã para
existir, mas estes são acionados para reivindicar legitimidade. É claro que estes critérios
estruturais são relevantes. Todavia, eles não são suficientes para dar legitimidade ao
pretendente do cargo de chefe.
Pode-se considerar que este foi o pior conflito entre facções em toda a história
da Terra Indígena São Marcos. Em decorrência deste confronto vários homens tiveram
traumatismo craniano decorrentes dos golpes de bordunas, um deles foi baleado e outro
ferido a faca. E muitos outros com escoriações e hematomas provocados pelas
bordunadas e socos. Os que tiveram traumatismo craniano, bem como o baleado, foram
levados para Brasília onde permaneceram entre a vida e a morte. Felizmente não houve
mortes, o que levaria as facções a acionarem novamente o artifício da vingança. Neste
confronto não se pode dizer que houve vencedores ou perdedores, uma vez que as
vítimas foram de ambos os lados.
O conflito só não foi mais grave devido à intervenção dos missionários (as)
salesianos (as), em particular de uma das irmãs. Um dos informantes nos relatou que
uma irmã salesiana para interromper o conflito entrou no meio da “turba” com uma
imagens de Nossa Senhora Aparecida na mão pedindo que parassem. Não obstante, ao
dispararem o tiro que acertou um dos combatentes ela foi obrigada a deixar o local. Este
disparo fez com que por, precaução, cada grupo recuasse para lugares opostos. Foi o
momento de resgatar e encaminhar os feridos à Barra do Garças e depois para Brasília.
375
Como se pode ver a reportagem foi motivada por uma acusação de que o grupo
de Orestes estaria comprando armas para o conflito. Agnelo correligionário de Orestes
nega as acusações e passa a defender sua facção dizendo que os Xavante tem que brigar
com o inimigo. Este inimigo é o governo: Eu, por exemplo, estou brigando com o
governo para melhorar a assistência médica aos índios. A reportagem termina
apontando que o real motivo do conflito teria sido pela volta da administração da
376
FUNAI para os brancos. O administrador Jonas (Xavante) que saiu era também
correligionário de Orestes. A entrada de um administrador branco é transitória, em seu
lugar entraria depois o Professor Raimundo. Raimundo também é correligionário, ou
melhor, irmão de Orestes. No final a administração regional de Barra do Garças
continuaria com a facção de Orestes. Abaixo inserimos a segunda parte da reportagem
com o título.
suspeita era de meningite, mas recusando-se a ser tratado no hospital, é provável que
tenha pego uma hepatite enquanto estava no Hotel. Contudo, para seus aliados o motivo
teria sido um feitiço que foi lançado sobre ele por porte de seus oponentes, Tsudzawéré
e seus correligionários. Outra versão que ouvimos foi a de que os padres (missionários
salesianos), que estariam apoiando Tsudzawéré, seriam portadores de um feitiço muito
forte e por isso teriam matado Orestes. Associados feitiçaria e vingança teriam
provocado outro confronto com conseqüências ainda maiores do que o anterior. Haja
vista, que os mais exaltados queriam exterminar Tsudzawéré e seu grupo. Aqui houve
uma intervenção direta dos missionários que aos poucos foram acalmando os ânimos
exaltados. Por outro lado, Raimundo, irmão de Orestes, juntamente com outros homens
influentes de seu grupo procuraram apaziguar seus aliados, evitando assim aquilo que
seria, talvez, um massacre.
Ao se atribuir a causa da morte de um homem em decorrência de feitiçaria,
conseqüentemente aquele que fosse o acusado de ser o feiticeiro seria executado, por se
tratar de uma pessoa perigosa à comunidade. Segundo Giaccaria & Heide (1984:267-
268), a execução se daria através de dois meios prescritos: um se daria na casa do
acusado através de um golpe de borduna, uibro; o outro poderia ocorrer durante uma
corrida de toras de buriti, onde num dado momento o homem, acusado de ser o
feiticeiro, seria imobilizado e golpeado com a borduna. Neste último caso a corrida não
terminaria, e seus participantes iriam para suas casas. Não obstante, segundo o
informante que nos relatou o novo clima de tensão que tomou conta da aldeia, os
mecanismos para vingar a morte de Orestes não seguiriam a ordem prescrita. Até
porque, a facção na qual o acusado estaria situado não aceitaria facilmente que um de
seus aliados fosse executado sem luta.
Para Maybury-Lewis (1984:341), uma análise da morte implica, no entanto, em
uma análise da feitiçaria. A hostilidade entre grupos, a partir da relação Nós e os
Outros,
(...) pode ser expressa por meio da feitiçaria (pelo mais fraco contra o
mais forte) ou de acusações de feitiçaria, seguidas por matança ou
expulsões (pelo mais forte contra o mais fraco) (Maybury-Lewis
1984:341).
atribuída à feitiçaria. Por outro lado, a morte de mulheres e crianças não segue o mesmo
tratamento, mas pode ser pensada como decorrente de subproduto de uma feitiçaria que
foi praticada por um homem que procurava atingir o outro.
De acordo com Maybury-Lewis (1984:343),
(...) segundo o raciocínio Xavante, a única forma do mais fraco
enfrentar o mais forte é através de meios sobrenaturais. Em sua
própria sociedade é só assim que os membros de uma facção fraca
podem atingir membros de uma facção forte.
O indivíduo em si não teria poder para praticar o mal à outra pessoa. Ele só o
faz através de rituais e/ou pela manipulação de determinados tipos de plantas, da qual
produzem um pó. Quando estava caçando com o grupo em 1997, com fins cerimoniais,
presenciei um velho extraindo um pó de uma raiz, transformado-a em serragem. Este pó
seria usado como veneno, serviria para enfeitiçar opositores durante a corrida do
tsa’uri’wa, um dos rituais que acontece no final da iniciação dos solteiros. No entanto,
segundo Maybury-Lewis (1984:343), portar determinados tipos de pó não faz de uma
pessoa uma feiticeira. Este tipo de material pode ser usado em ocasiões rituais, e nem
por isso são considerados como feitiço. Maybury-Lewis diz que os Xavante consideram
o wede dzu, pó ruim, como feitiço quando ele é manipulado juntamente com ritos
específicos, que os Xavante mantém em segredo.
Turner (2005:162) ao propor outra possibilidade, que não a estrutural, de análise
das acusações de bruxaria, diz que elas devem
(...) ser examinadas dentro de um contexto total de práticas sociais.
(...) A questão importante sobre um dado tipo de acusação não é que
seja feita por alguém contra um certo tipo de parente, mas que seja
formulada em um certo contexto empírico. Este contexto incluiria não
apenas a estrutura do grupo e dos subgrupos aos quais o acusador e
o acusado pertencem, mas também a sua divisão em alianças e
facções transitórias baseadas nos interesses imediatos, ambições,
aspirações morais e coisas a fim. Deveria também incluir a história
desses grupos, subgrupos, alianças e facções, na medida em que
considerada relevante para a compreensão da acusação feita pelos
atores principais no contexto empírico.
149
Na clássica distinção de bruxa e feiticeiro feita por Evans-Pritchard entre os Azande as
pessoas que são bruxas prejudicam as outras a partir de uma qualidade inerente enquanto que os
feiticeiros o fazem a partir da manipulação de poções e ritos mágicos.
381
naturais ou sobrenaturais para causar aflição em seus adversários políticos deva ser
caracterizado de bruxaria ou feitiçaria. Aqui estamos mais interessados nos resultados
sociais práticos e imediatos que este tipo de acusação provoca. Assim nos perguntamos:
se não houvesse um conflito faccional de fundo, teria sido a morte de Orestes creditada
à feitiçaria? Acreditamos que não. Durante o tempo em que moramos na aldeia São
Marcos várias pessoas morreram, inclusive o pai de Orestes. Na ocasião não ouvimos
nenhuma acusação nesta direção. Isto não significa, porém, que a feitiçaria estava longe
do pensamento Xavante naquela época. Durante as corridas de toras de buriti, sempre
ouvíamos da metade cerimonial que havia perdido que isto se dera porque a oposição
havia usado feitiços nas toras.
A acusação de feitiçaria que os correligionários de Orestes fizeram sobre a
facção de Tsudzawéré, não se tratava apenas de atribuir sua morte em decorrência da
atuação daqueles. Era antes de tudo, um ato de desespero político pela morte inesperada
do líder da facção. Quais seriam os desdobramentos políticos desta nova situação
social? O primeiro ponto foi a exploração política do fato. Como dissemos acima, os
opositores de Tsudzawéré desejavam exterminá-lo e só não levaram adiante este plano
devido a intervenção dos missionários (as) salesianos (as), bem como da interferência
de Raimundo seu sucessor.
Raimundo e alguns homens influentes de sua facção procuraram acalmar os
ânimos mais exaltados e aos poucos a névoa do conflito foi se dissipando.
Com a morte de Orestes, Raimundo assume seu lugar na tentativa de destituir
Tsudzawéré do cargo de cacique. A partir deste fato, torna-se difícil dizer que a Missão
tenha alguma predileção por alguns dos líderes faccionais. Raimundo é ligado à Missão
Salesiana e atuava como agente de pastoral indígena. De mais a mais, nas missas
dominicais era Raimundo que se colocava como tradutor do sermão do padre. Não
obstante, a crise se prolongará por mais quinze meses, quando um novo episódio
colocará as facções frente a frente num clima de guerra.
A aldeia continuava ainda com dois caciques vivendo sob o clima das tensões
agravadas por qualquer fato eventual que pudesse ser interpretado como sendo causado
por um ou outro grupo. Foi o que aconteceu com a morte de um jovem durante uma
caçada. O jovem havia atirado numa queixada, porém o tiro não foi fatal. Ao perseguir o
animal ferido, o jovem foi alvejado por um tiro, ao que tudo indica acidental, disparado
por seu tio. O fato só não resultou num confronto maior porque o jovem não morreu de
382
imediato. Antes de sua morte ele ainda conversou com seu pai a quem pediu que não
fosse feita nenhuma vingança. Ele procurou esclarecer ao pai que o que acontecera tinha
sido um acidente. Pedira ainda que cuidassem de seus filhos e seus irmãos. Mesmo
assim ainda houve o princípio de um tumulto que não tomaram proporções maiores
devido a presença do diretor da Missão na casa do rapaz, atuando como mediador entre
as facções.
4.4.2 - b) - A CISÃO
150
Nome alterado.
384
enquanto outro decidiu jogar álcool e colocar fogo em sua casa. Fato que foi negociado
e evitado. Se isso se concretizasse toda a aldeia seria queimada, haja vista que as casa
são construídas muito próximas uma das outras. Haveria perdas de ambos os lados.
Finalmente, depois de muita conversa entre o diretor da missão e o grupo de
Tsudzawéré, que não desistira de realizar a festa, decidiram que iriam se mudar da
aldeia. Solução que recebeu o apoio dos missionários que prometeram toda ajuda ao
grupo. Contudo, decidiram que antes de saírem botariam fogo em suas casas. A cena
descrita por outro missionário que estava presente, na entrevista com o pesquisador,
para a noite anterior à mudança era a seguinte: (...) dia 25, a noite, estava tudo para fora
das casas: quem iria mudar estava carregando suas coisas; quem ficou, ficou com
medo do fogo, botou as coisas para fora. Fato que só não foi consumado devido a mais
uma intervenção do diretor da missão, que argumentava sobre o aproveitamento do
material usado na construção das casas. As palhas bem como o madeiramento de muitas
casas eram novos e poderiam ser usados na edificação da nova aldeia. Após uns quatro
dias de tensão, a idéia de se por fogo nas casas foi totalmente abandonada.
Ao sair de São Marcos o grupo doméstico de Lourenço de dirigiu para onde é
hoje a aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, enquanto que a maioria se mudou para
aldeia S. Francisco. Porém a quantidade de água, proveniente de um poço perfurado
pela Missão naquela aldeia, não era suficiente para abastecer todos os moradores. De
São Francisco o grupo de Tsudzawéré foi se agrupar junto ao grupo de Lourenço que
estava em Guadalupe. O total de casas abandonadas em São Marcos foi de 46
permanecendo 36. Contudo nem todos foram para São Francisco ou Guadalupe. Um
grupo doméstico fundou sua própria aldeia, como foi o caso da aldeia Salvador.
Em Guadalupe os recém chegados depois de se instalarem, tendo apoio dos
missionários que perfuraram um poço e instalaram uma placa solar para tocar uma
bomba d’água, além de fornecer-lhes lonas de plástico para cobrirem as casa, cobertores
e alimentos, um novo impasse passou a se formar sobre a liderança da aldeia: Lourenço
que havia chegado primeiro ou Tsudzawéré, que chegou depois? Entretanto, como tudo
já estava preparado para a iniciação do darini, optaram por realizá-lo e depois
resolverem as divergências. O darini foi realizado em agosto de 2002. Numa reunião
que aconteceu num dos marã, sombra – local onde são preparados alguns rituais, os
líderes que haviam deixado São Marcos se reuniram para comunicarem que por se tratar
de uma aldeia nova haveriam de ter também um novo cacique. Tsudzawéré não aceitou
386
aldeia/Terra Indígena. De fato, tornar-se chefe pode ser uma maneira direta de se ter
acesso aos recursos oferecidos pelo órgão indigenista, ou por ONGS ligadas a
movimentos de preservação ambiental, p. ex., WWF.
O provável alinhamento, em 2002, entre as forças políticas da Terra Indígena de
São Marcos estava assim definido conforme o quadro abaixo.
ALDEIA CACIQUE LIGADOS A FACÇÃO DE:
Barreirinho Cosme – genro do Mário Juruna Tsudzawéré
Cristo Rei Emílio Tsudzawéré
Divina Providência Roberto (Reginaldo- filho) Raimundo
Evangélica de Deus Benedito Raimundo
Guadalupe Tsudzawéré/Lourenço Tsudzawéré
Imaculada Conceição Vitor Raimundo
(Dzub’aze)
N. S. Aparecida Tibúrcio Raimundo
N. S. Auxiliadora Clemente – era Henrique Raimundo
N. S. da Guia Liberato (?) Raimundo
N. S. das Graças Henrique Tsudzawéré
N. s. de Fátima Lourenço disputa com Lino neutro
Namunkurá Simão Raimundo
Nova Esperança Diogo – Vitória– filha do Juruna Tsudzawéré
Nova Jerusalém Manoel Raimundo
Rainha da Paz (Tsirami) Silvio Raimundo
Sagrada Família Jorge / ou Sérgio Raimundo
Salvador Júlio Mié Raimundo
Santíssima Trindade Justo (?) Raimundo
São Francisco Paulo Henrique – Raimundo Tsudzawéré
São Gabriel Antão (?) Raimundo
São José João Wedu Raimundo
São Luiz Lúcio (?) Raimundo
Terra Prometida Primo Raimundo
partir do processo de cisão, promove um ritual para o qual convida as demais aldeias de
modo a promover uma reconciliação e realinhamento entre as partes. Acima
relacionamos esta situação vivida pelos Ndembu com o ritual de iniciação do danhono
realizado na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe. Não obstante, o danhono que
aconteceu tanto em Guadalupe quanto nas demais aldeias da Terra Indígena São Marcos
não tinha por objetivo específico promover a reintegração de aldeias cindidas. Se isto
aconteceu o vemos como um processo de reaproximação decorrente de outros processos
sociais. Antes de falarmos deste processo de reaproximação, convêm comentar a
terceira parte de nosso quadro de Fluxograma de Cisões de Aldeias.
Após a realização do darini em agosto de 2002, Lourenço e Lino que não
aceitaram dividir a liderança da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe com Tsudzawéré
optaram por deixá-la e fundaram Nossa Senhora de Fátima no final de 2002. Aqui a
saída dos grupos domésticos para fundarem a nova aldeia se deu de forma pacífica, a
briga foi só de boca, como disso um informante naquela época. No ano seguinte, em
2003, é oficialmente criada a Escola Estadual Indígena Deputado Mario Juruna. A
disputa pelo cargo de diretor desta escola será o pivô de novas situações de conflito que
resultará em outra cisão da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe. Quando a escola foi
oficialmente criada escolheram como diretor Luc151. Não obstante, sua gestão como
diretor foi marcada por profundos problemas na prestação de conta das verbas da escola
que o mesmo deveria gerenciar. Diante disso, no final do ano letivo de 2004 foi
decidido que fariam uma eleição para escolha de outro diretor. Inicialmente um
candidato desejava que o mesmo fosse conduzido ao cargo de diretor sem eleição. No
entanto, mais três professores da escola se apresentaram como candidatos ao cargo de
diretor. Ao se discutir a modalidade de eleição, com voto secreto ou não, prevalecendo
o voto aberto, dois candidatos renunciam à disputa. O candidato que deseja ser
conduzido ao cargo sem eleição permaneceu na disputa. No processo eleitoral aberto os
eleitores, um a um, anunciavam seus votos publicamente a uma pessoa que o marcava
no quadro da escola. No final foi eleito Car como diretor. O candidato derrotado não
aceitou a derrota e, juntamente com seu grupo doméstico resolveram então deixar a
aldeia Nossa Senhora de Guadalupe e fundaram Jesus de Nazaré.
A criação da aldeia Jesus de Nazaré provocou outro conflito. Desta vez, a
questão envolvia os Bororo. Isto porque a nova aldeia foi erguida dentro da Terra
151
Nome alterado.
390
Indígena Merure, da etnia Bororo. Visto que não foi apenas o grupo doméstico do
candidato a diretor derrotado que deixou Guadalupe, houve a necessidade de construção
de nova escola em Jesus de Nazaré. Neste sentido, os representantes desta aldeia
entraram com um processo formal junto a SEDUC - Secretaria de Estado de Educação
(SEDUC - MT) para reconhecimento da nova escola que recebeu o nome de Escola
Estadual Indígena RAIWI’A152 Xavante. Não é difícil deduzir quem foi escolhido para
diretor da nova escola.
O contra-ataque dos Bororo em relação a construção de uma aldeia Xavante em
seu território, veio com um documento encaminhado a Procuradoria da República em
Mato Grosso, em 16 de junho de 2005, onde também tiveram uma reunião com o
procurador na qual reclamam da pressão que os Xavante exercem sobre seu território e
pedem que o Estado de Mato Grosso não reconheça a escola recém fundada e que
suspenda todos os recursos destinados às aldeias da Terra Indígena São Marcos,
inclusive a merenda escolar, até que os Xavante da aldeia Jesus de Nazaré deixem suas
terras.
Duas aldeias criadas neste início de década não resultaram de conflitos políticos
ou dos reflexos provocados pela crise entre as facções que disputavam o
reconhecimento do cargo de cacique em São Marcos. A aldeia São Gabriel é resultado
de um conflito envolvendo o cacique de São Luiz e outro morador daquela aldeia
devido a relações amorosas entre a mulher do cacique e aquele morador. Muitos
Xavante jocosamente questionam se a aldeia São Gabriel realmente existe, haja vista
que ela possui apenas uma casa e seu fundador, que reivindica o reconhecimento como
cacique, vive e trabalha na cidade de Barra do Garças. A mais nova aldeia da Terra
indígena São Marcos também foi criada como reflexo de outra crise doméstica e não
propriamente “política”, no sentido do uso comum do termo. O cacique da aldeia Terra
Prometida resolveu casar-se com uma segunda mulher bem mais nova do que aquela
com a qual estava casado. A primeira esposa não aceitou e decidiu, juntamente com
seus filhos fundar a aldeia Paranoá (?), não muito distante de Terra Prometida.
A penúltima aldeia criada foi Boa Vida e surgiu de uma cisão da aldeia Nossa
Senhora Aparecida (não temos informações etnográficas sobre o que motivou esta
cisão).
152
RAIWI’A é tido pelos Xavante como um guerreiro muito valente. Seus descendentes seriam
os Xavante ligados ao grupo doméstico de Tsudzawéré.
391
153
Conforme o dicionário Aurélio: (...) 4.Teatr. O efeito moral e purificador da tragédia clássica,
conceituado por Aristóteles (v. aristotelismo), cujas situações dramáticas, de extrema intensidade e
violência, trazem à tona os sentimentos de terror e piedade dos espectadores, proporcionando-lhes o
alívio, ou purgação, desses sentimentos: (...)
392
Barra do Garças por caminhos opostos (veja o mapa abaixo). Na cidade as facções
passaram a ocupar lugares distintos evitando se encontrarem conforme mostramos no
mapa acima. A administração regional da FUNAI em Barra do Garças estava nas mãos
de correligionários de Raimundo, inclusive o cargo de administrador. Com isso o
atendimento às demandas dos correligionários de Tsudzawéré dificilmente eram
atendidas. Tsudzawéré, por seu turno recorria a administração regional da FUNAI em
Goiânia. Diante disso Tsudzawéré e seus aliados começam uma longa luta para criação
do Núcleo de Apoio Local – NAL, em General Carneiro. As constantes viagens a
Brasília como forma de pressão à Presidência resultou na criação deste núcleo de apoio,
pela Portaria 780 de 12 de agosto de 2003, assinada pelo então presidente da FUNAI
Eduardo Aguiar de Almeida (fevereiro à agosto de 2003), três dias antes de ser
exonerado.
A criação do NAL significou muito mais do que o estabelecimento de uma
filial154 da Administração Regional de Barra do Garças na cidade de General Carneiro.
Simbolicamente a criação do NAL comunicava aos opositores políticos que a facção de
Tsudzawéré continuava forte e atuante. No entanto, ao mesmo tempo em que a facção
demonstrava assim estar atuante com a criação do NAL, internamente abria-se brechas
para novos conflitos. A questão era: quem seria o administrador do NAL? Numa
entrevista que fizemos com um dos correligionários que estava presente na sede da
FUNAI, em Brasília, no momento da assinatura da portaria que criava o NAL, o mesmo
nos revelou como se deu a escolha, ou indicação, do administrador do núcleo.
Inicialmente Tsudzawéré, segundo o informante, tinha planejado indicar um waradzu,
não índio, para o cargo de administrador. Após a assinatura da portaria o presidente da
FUNAI perguntou aos presentes quem seria indicado como chefe, e antes que
Tsudzawéré respondesse outra liderança tomou a palavra e disse que seu irmão é quem
seria o administrador do núcleo. No momento não houve contestação, e o NAL estava
criado tendo como administrador Bruno.
Até dezembro de 2004 o administrador do NAL residia em Nossa Senhora de
Guadalupe. Não obstante, com a situação de conflito que se instaura naquela aldeia pela
disputa do cargo de diretor cujo resultado foi uma nova cisão, o grupo doméstico do
administrador deixa Nossa Senhora de Guadalupe e funda a aldeia Jesus Nazaré. Aqui
154
Consideramos filial pelo fato de que os funcionário lotados no NAL foral deslocados da
Administração Regional de Barra do Garças. Todos os dias, os funcionários de deslocavam de Barra do
Garças para General Carneiro para darem expediente.
393
manutenção da parte dos motoristas levou o caminhão a sofrer uma avaria que o
deixaria parado por dois meses. Novamente aqui nos referimos ao episódio no qual a
perda de uma porca que prendia uma barra de ferro impedindo que a hélice do motor de
encostar-se ao radiador. Sem esta porca o radiador ficou solto e foi corroído pela hélice
do motor prejudicando a refrigeração do mesmo. Durante a caçada que descrevemos no
capítulo anterior todo o suprimento de comida levado para o mato foi comprado pelo
NAL. Ademais, enquanto estávamos caçando por pressão do cacique de Nossa Senhora
de Guadalupe o administrador comprou munições e forneceu um pouco de combustível
para o caminhão. Por fim, outra situação que punha em crise a relação do administrador
com Tsudzawéré eram as negativas no fornecimento de passagens para suas viagens aos
grande centros urbanos, sobretudo Brasília e Cuiabá.
Outra conquista importante da facção de Tsudzawéré, e que por sua vez veio a
favorecer a reaproximação entre as aldeias, foi a construção de uma nova estrada
ligando a Terra Indígena São Marcos à BR-070. Inicialmente todas as aldeias da terra
indígena utilizavam a estrada aberta pela Missão Salesiana que ligava a aldeia São
Marcos à BR-070, passando pela Terra Indígena Merure, dos Bororo. Neste trajeto, da
aldeia São Marcos até a BR-070 eram 37 km de estrada de terra. Depois mais 113 km de
asfalto pela BR-070 até Barra do Garças. Com a instauração dos conflitos pela disputa
do cargo de cacique na aldeia de São Marcos, mais precisamente após a primeira
contenda que levaram a vias de fato naquela aldeia, as facções passaram a se deslocar
por caminhos opostos, conforme o mapa acima. As viagens da facção de
Orestes/Raimundo eram feitas pela estrada de MT-312 (atualmente MT-336). Por se
tratar de uma estrada sem pavimentação as viagens eram extremamente demoradas e
provocavam maior consumo de combustível e desgaste das viaturas. Ademais, some-se
a isso o desconforto da poeira quando se viaja em carroceria de caminhão. O trecho de
viagem pela MT-336, até atingir a BR-158, era cerca de 90 km de estrada de terra. Em
2004 a facção de Tsudzawéré conseguiu através da Superintendência de Políticas
Indígenas do Governo do Estado de Mato Grosso a construção de uma nova estrada
ligando a aldeia Nossa Senhora de Guadalupe à BR-070, sem passar pelo território dos
Bororo. A nova estrada, com extensão de 28 km, além de encurtar o trajeto também
favorecia o acesso às aldeias que estavam ligadas, ou deram apoio político, a facção de
Tsudzawéré (Nova Esperança, Diamantino, Cristo Rei, São Francisco, Nossa Senhora
das Graças, Jesus de Nazaré, Nossa Senhora de Fátima) durante a disputa com
395
caça e coleta, dos rituais nos quais era permitida e prescrito a participação da metade
cerimonial na qual estamos inseridos, e dos preparativos de adornos corporais a serem
usados nas cerimônias. Para isso ficamos morando na aldeia Nossa Senhora de
Guadalupe. Desta arte, não abandonamos por completo o projeto inicial, mas passamos
a considerá-lo a partir do danhono, ou seja, os bastidores do ritual de iniciação seus
conflitos e tentativas de uso político e suas conseqüências.
Uma vez que o foco estava sobre as questões políticas envolvendo o danhono
estendemos nossa observação também ao danhono que acontecia em São Marcos, aldeia
da qual após vinte e seis anos de crises a facção de Tsudzawéré deixa para fundar a
aldeia Nossa Senhora de Guadalupe.
Quando chegamos ao campo em maio de 2005 o processo ritual do danhono
estava na parte do dapo’redzapuu’u – ritual do furo dos lóbulos auriculares. Ali
constatamos inicialmente que não eram apenas os moradores de Nossa Senhora de
Guadalupe que estavam sendo iniciados. No Fluxograma de Cooperação para
Realização do Danhono na T. I. São Marcos, podemos observar as aldeias que
realizaram o danhono em 2005, bem como os alinhamentos de cooperação entre aldeias.
No caso de Nossa Senhora de Guadalupe estavam sendo ali iniciados os meninos e
397
meninas das aldeias Nossa Senhora das Graças, São Francisco, Barreirinho,
Diamantino, Cristo Rei e Nova Esperança. Os caciques destas três últimas aldeias,
respectivamente: Matias, Emílio e Tobias, irmãos do cacique de Nossa Senhora de
Guadalupe, mudaram temporariamente para esta aldeia. Para isso alugaram casas que
haviam sido desocupadas por conta da última cisão de Nossa Senhora de Guadalupe,
onde alguns grupos domésticos deixaram a aldeia para fundarem Jesus de Nazaré, em
decorrência da disputa pelo cargo de diretor da Escola, conforme descrevemos acima.
As aldeias Nossa Senhora das Graças e São Francisco por muito próximas de Nossa
Senhora de Guadalupe, cerca de trezentos e oitocentos metros respectivamente, faziam
o movimento de ida e volta todos os dias.
As aldeias Jesus de Nazaré e Nossa Senhora de Fátima, resultantes da cisão de
nossa Senhora de Guadalupe promoveram individualmente o danhono. Todavia isto não
significa que estivessem isoladas. Aqui as relações entre os caciques daquelas aldeias e
o de Nossa Senhora de Guadalupe eram simplesmente toleradas. Constantemente em
conversas que eventualmente tínhamos com o cacique de Nossa Senhora de Guadalupe
o mesmo procurava de todas as formas desqualificar os caciques dissidentes. Entretanto,
os grupos domésticos das três aldeias mantinham um espírito cooperativo fazendo
circular adornos corporais e alimentos de uso cerimonial entre elas. Relatamos no
capítulo anterior o caso de conflito que envolveu o vice- cacique e o cacique de Nossa
Senhora de Guadalupe devido o uso do caminhão da comunidade que o primeiro fez em
prol de Nossa Senhora de Fátima. Relembrando, o vice-cacique, que também é um dos
motoristas da aldeia, pegou o caminhão e foi até Nossa Senhora de Fátima,
posteriormente levou parte de seus moradores numa expedição de coleta de brotos de
buriti que seriam usados na confecção das capas chamadas de wamnhorõ. O fato causou
revolta entre os moradores de Nossa Senhora de Guadalupe porque desejavam
igualmente sair em expedição de coleta de brotos de buriti. De imediato o cacique
pressionou o vice para que doravante comunicasse a ele sobre as saídas do caminhão.
Em sua defesa o vice-cacique disse que estava tentando reaproximar as comunidades.
No entanto, verificamos mais tarde que o vice-cacique estava benevolente com os
moradores de Nossa Senhora de Fátima porque seu filho estava desempenhando o cargo
cerimonial de tébé naquela aldeia. Ademais, o vice-cacique é cunhado do cacique
daquela aldeia.
398
155
O mesmo não se pode dizer para as mulheres. Os Xavante acham as mulheres gordas mais
sensuais do que as magras. Segundo um dos informantes: as gordas têm mais carne para se pegar. Além
de um corpo retilíneo os Xavante adicionam como padrão de beleza os cabelos longos.
400
este encontro não só aconteceu como também foi marcado por muita cordialidade entre
os caçadores. Presenciamos o encontro após os caçadores Rinaldo e Fábio terem abatido
duas antas em locais bem próximos. Ali apareceram Lourenço, um dos líderes de Nossa
Senhora de Fátima e Antonino de Jesus de Nazaré. Estes caçadores permaneceram um
tempo ali conversando sobre como as antas haviam sido abatidas e depois de ganharem
pedaços de vísceras seguiram caçando.
Constatamos que o temor de encontrar caçadores de outras aldeias era mais um
problema para o cacique de Nossa Senhora de Guadalupe do que para os demais
caçadores.
401
156
A prática da feitiçaria nas corridas de toras de buriti consiste no uso, por parte dos corredores,
de vários tipos de pó extraídos de plantas que os Xavante acreditam darem mais resistência e forças aos
usuários. Algumas combinações de pinturas corporais apresentam igualmente esta finalidade. A metade
cerimonial que prepara as toras a serem utilizadas na corrida costuma cravar na tora da outra metade
alguns palitos de plantas e/ou ossos, como de morcegos, para deixar o tronco mais pesado ou provocar
constantemente sua queda e por seguinte a quebra. Quando uma das toras de buriti quebra durante a
corrida, a metade cerimonial que deixou isso acontecer é automaticamente considerada como perdedora.
Outra estratégia é colocar a tora da oposição dentro d’água durante a noite visando igualmente deixá-la
mais pesada.
404
cerimonial que perdeu a corrida, era constantemente provocado por seus opositores.
Numa destas provocações um dos ĩhire, ancião, chegou a dizer que a aldeia São Marcos
era a capital da Terra Indígena homônima e que por isso a vitória dos abare’u que ali
acontecera apagava todas as derrotas anteriores.
Em relação à corrida de buriti que aconteceu em Nossa Senhora de Guadalupe, a
presença de lideranças daquela aldeia em São Marcos foi pouco expressiva. Enquanto
em Nossa Senhora de Guadalupe houve a participação do cacique de São Marcos, a
recíproca não se efetivou. Uma das lideranças de Nossa Senhora de Guadalupe, ainda
ressentida, com os fatos de 2002 – ano do conflito e cisão, dizia nunca mais por os pés
em São Marcos, postura que mudaria a partir de 2007. A maioria dos homens de Nossa
Senhora de Guadalupe que estiveram em São Marcos eram membros das classes de
idade que havia sido iniciadas nos últimos quinze anos, tirowa e ẽtepa
˜ , cuja participação
no campo político ainda estava sendo construída. Contudo, observamos uma presença
maciça de líderes que apoiavam a facção de Raimundo. Não obstante, conforme vemos
no Fluxograma de Cooperação para Realização do Danhono que apresentamos acima,
onze aldeias enviaram seus filhos para serem iniciados na aldeia São Marcos. Diante
disso, durante a realização dos rituais o contingente populacional aumentava
significativamente. Neste contexto, a presença de lideranças das demais aldeias não só
era esperada pelo apoio político, como também pelo fato de haver ali meninos e
meninas, portanto, filhos e netos, que estavam sendo iniciados oriundos daquelas
aldeias.
Até onde apuramos a principal uma questão de âmbito político que gerou
conflitos internos na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe foi decorrente de mudanças no
serviço de transporte de doentes. Com esta mudança o cacique conseguiu que a nova
empresa disponibilizasse uma viatura nova para a qual foram contratados dois
motoristas. O conflito surge quando o cacique resolve colocar o neto e o genro como
motoristas. Até então um dos filhos ocupava o cargo de secretário da escola; uma das
filhas trabalhava como professora; outra era a enfermeira da aldeia, sem contar um
grande número de sobrinhos que estava atuando como funcionários assalariados na
escola em funções diversas. Conforme relatamos no capítulo anterior, ao ser
apresentado os nomes daqueles que seriam os motoristas contratados houve muitas
tentativas de desqualificá-los. Sobre o neto dizia-se que ele era inexperiente e poderia
colocar o pacientes em perigo. O genro era acusado de ser viciado em ödzaipro, cerveja,
405
ele apóia e é apoiado. Com base em nosso material etnográfico, observamos que a etapa
ou status de ĩhire, ancião, é a plenitude ritual e social/política da pessoa. Dentro do
processo ritual os ĩhire, em sua maioria, efetivamente já atingiram o status de terem em
seus respectivos grupos de idade o sufixo b’rada, e, portanto, adquirem autoridade neste
processo. No campo das relações políticas suas ambições estão em pleno vapor.
Politicamente o ĩhire é bastante influente, podendo inclusive ser o cabeça de sua facção
e recebendo dela apoio para ser chefe da aldeia. Isso não significa que somente ĩhire
possa ser reconhecido como chefe. O ĩprédu, sim, pode ser reconhecido enquanto chefe.
Entretanto, ele irá buscar apoio político, sobretudo entre os ĩhire. Uma pessoa ĩhire
possui uma família grande nesta etapa final de sua vida. Neste sentido, o apoio político
recebido de um ĩhire, teoricamente, é (deveria ser) seguido por todo seu grupo
doméstico.
Para entendermos melhor a posição dos grupos de idade e o sistema político
acreditamos que seja melhor distinguirmos, pare efeito de descrição, os grupos de idade
enquanto seu caráter organizacional, como ritual, de seu caráter político. Considerando
as obrigações rituais dos grupos de idade, observamos que elas se valorizam com o ciclo
ritual das iniciações que se alternam na ocupação da casa dos solteiros. Isso nos leva a
assumir outra postura em relação à Maybury-Lewis (1984:366) quando afirma que tão
logo um homem se torna suficientemente maduro para participar das atividades
faccionárias e políticas (...) ele cessa de participar das atividades da classe de idade.
Em nossas observações etnográficas verificamos que durante o processo ritual do
danhono, e também durante o ritual de iniciação darini, a autoridade ritual não está
investida no chefe de facções e sim sobre aqueles que já atingiram o status de ter o
sufixo b’rada, ver quadro das classes de idade e ciclo de vida Xavante. São as pessoas
b’rada, que definem os tempos em que devem ser realizadas as diversas etapas do
danhono. Para ser mais preciso os b’rada da classe de idade em iniciação. Quando
realizamos as três etapas de campo, em 2005, ansioso por saber quando se dariam as
etapas do danhono, até para organizar uma estratégia de pesquisa, nosso informante
dizia que tudo dependia dos ĩhire (anciãos). É digno de nota que ĩhire não está
exclusivamente relacionado à idade biológica da pessoa. Um indivíduo ĩhire que tenha
sido iniciado através do danhono com nove anos, como vem acontecendo em casos
isolados, no curso normal do ciclo das iniciações poderá ver a renovação de seu grupo
de idade na hö com menos de sessenta anos. Não queremos dizer que os ĩhire que não
410
possuem sufixo b’rada em seu grupo de idade estejam excluídos das discussões acerca
dos rumos que devem tomar o processo ritual do danhono. Eles participam efetivamente
das discussões no warã devido não só a sua condição de ĩhire, mas também por terem
netos e bisnetos submetidos ao ritual de iniciação danhono. Contudo, não possuem
autoridade reconhecida neste processo. Passar por cima deste esquema de organização
pode acarretar conflitos ou abrir precedentes para aumentar descontentamentos entre os
atores envolvidos no processo ritual.
Como mencionado, a autoridade sobre as etapas e rumos que devem tomar o
danhono está sobre aqueles que adquiriram o sufixo “b’rada” em sua classe de idade
com a renovação da mesma na ocupação da casa dos solteiros. O cacique de N. S. de
Guadalupe durante o processo ritual do danhono da classe de idade abare’u, em 2005,
pertence à classe de idade nodzö’u. O fato de pertencer à classe de idade nodzö’u coloca
o chefe na metade cerimonial oposta a que estava sendo iniciada através da classe de
idade abare’u. Segundo nossos informantes, além de ter o sufixo “b’rada” acrescido ao
nome de sua classe de idade, a autoridade no processo ritual efetiva-se quando esta
classe de idade está ligada à metade cerimonial que está sendo iniciada. Portanto, no
danhono de 2005 na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe a autoridade ritual estava
investida sobre os abareu’õmob’rada. Durante as etapas e discussões, no warã, sobre
o danhono, realizadas na aldeia, o chefe aparecia com uma freqüência mediana.
Algumas vezes quando ele chegava certas decisões já haviam sido tomadas pelos ĩhire.
Isto se deve não por sua negligência ao processo ritual, mas, sobretudo porque tinha
consciência de que eram os “b’rada” da outra metade cerimonial que tinham total
autoridade no ritual. Não obstante, o cacique adquire o sufixo “b’rada” em sua classe
de idade quando foi apresentada no warã, centro da aldeia, o nome da nova classe de
idade e os futuros moradores da casa dos solteiros: os nodzö’u. A partir daí ele passa a
ter direito pleno de participação e decisão sobre os rituais de iniciação do danhono,
principalmente os de sua metade cerimonial.
411
CONCLUSÃO
Sebastião ao ser instalado na aldeia de São Marcos procurou pouco tempo depois se
transferir para Sangradouro, lugar de outra Missão Salesiana, onde também se
estabelecera uma nova aldeia Xavante. Neste caso, Sebastião parece ter ficado receoso
da convivência em São Marcos com o irmão de uma liderança que ele havia eliminado
dez anos antes, segundo relatório do Pe. Pedro.
Aracy Lopes da Silva (1986) que desenvolveu trabalho de pesquisa etnográfica
entre os Xavante, nos anos 1975 a 1978, teceu o seguinte comentário em relação à
convivência entre índios e missionários que estavam compartilhando o mesmo espaço,
enquanto aldeias e missões, nas terras indígenas de São Marcos e Sangradouro:
A missão executa um trabalho de assistência á saúde, fornecimento de
infra-estrutura para os trabalhos agrícolas (ferramentas e máquinas)
e atua diretamente sobre as novas gerações, tomando a seu cargo a
educação dos jovens. Esta educação se efetivou sempre através de
internatos que impediam que os processos tradicionais de socialização
atingissem plenamente as crianças e adolescentes. O trabalho de
catequese e evangelização fazia-se em íntima conexão com a
alfabetização e a iniciação à aritmética. Nos últimos anos da década de
70, Sangradouro abandonou o sistema de internato e São Marcos o
mantém, apesar das pressões dos setores missionários mais
progressistas da Igreja Católica. Em poucas palavras, a situação
pode ser resumida como sendo uma troca permitida e até certo ponto
bastante consciente entre as duas partes: os índios deixam-se catequizar
e os missionários garantem assistência, proteção e apoio na defesa das
terras (LOPES DA SILVA, 1986:43) [grifos nossos].
Após a demarcação das terras indígenas Xavante, como no caso de São Marcos
pelo Decreto 76.215 – 05 de setembro de 1975 e várias outras criadas no mesmo
período, eclodem as cisões na aldeia de São Marcos, segundo fluxograma apresentado
no capítulo IV. Os primeiros grupos a formarem novas aldeias dentro da Terra Indígena
de São Marcos, longe da “aldeia-mãe” situada ao lado da sede da Missão, fizeram-no a
partir de 1976, ou seja, um ano após a demarcação. Portanto, os líderes Xavante na
primeira década de existência da aldeia de São Marcos, poderiam estar enfraquecidos,
mas pelo visto presentes na vida cotidiana e nas práticas rituais Xavante, embora as
estratégias a serem acionadas em situação de conflito não permitissem na prática a
manifestação pública das facções, pois o “direito de asilo” considerado “elemento
essencial para o funcionamento do sistema político”, quando um grupo procura residir
em outra aldeia, estava impraticável devido a reunião de vários grupos em um espaço
único e restrito de aldeamento.Como bem frisou Maybury-Lewis (1984:268 e 269):
(...) a facção dominante precisa estar eternamente atenta para impedir
que uma linhagem menor torne-se forte suficiente - seja como
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Aqui torna-se mais claro o discurso do cacique que nos disse: Para ser liderança
não é para receber privilégio, não é para fazer também paternalismo, é para lutar para
o bem das comunidades; ou ainda, quando chegava de uma viagem: estava correndo
atrás do bem da comunidade (aldeia Nossa Senhora de Guadalupe) - depois de ter
conseguido que a empresa prestadora de serviços de transporte de doentes da aldeia para
o atendimento na cidade, contratasse dois funcionários Xavante para dirigir a viatura
recém entregue a ele. Contudo, os escolhidos e contratados como motoristas foram,
respectivamente, seu neto e genro. Ademais, como já informamos, a filha do cacique
tinha sido contratada como enfermeira; um dos filhos era o secretário da escola, além de
vários sobrinhos que eram contratados também como professores. Tal excesso de
favores aos seus próprios parentes acirra a eclosão de novos conflitos na aldeia.
O faccionalismo está na ordem do dia. Quando vemos eclodir os conflitos
faccionais atuais parece que nada mudou no exercício da chefia Xavante. Depois de
“amansar missionários”, como dizem, se fazer temer pelos fazendeiros e funcionários de
órgãos de governo, os Xavante se voltam para suas arengas internas. Quem são os
líderes deste facciosismo? São os mesmo jovens (hoje velhos) que a Missão incorporou
em seus internatos na década de 1960 e 1970.
Impressionante como a bibliografia sobre os Xavante fala a respeito das
interferências missionárias na vida deste povo indígena, como se os missionários
manipulassem uma ou outra facção e esta viesse a acatar passivamente suas orientações.
Não estariam estas facções usando igualmente os missionários como forma de aumentar
sua autonomia e força política?
416
DIREITA ESQUERDA
moradores da casa dos solteiros, os quais, por sua vez, são iniciandos da metade
cerimonial oposta; passados cinco anos, ele desempenha o papel de danhohui’wa,
padrinho, onde patrocina a iniciação de outros moradores da casa dos solteiros, desta
vez de sua metade cerimonial. Ao concluir este processo de iniciação, este menino, que
agora é um homem, provavelmente, casado e com filhos, adquire o status de
predzamoi’wa, e pode participar juntamente com os ipredu, homens iniciados, dos
encontros que acontecem no warã, centro da aldeia. Segundo nossos informantes, a
categoria predzamoi’wa pode ser traduzida como os novos pedaços de lenha que
aparecem no centro da aldeia quando ali se acende o fogo. A partir daí sua trajetória
política tende a ficar mais intensa. Principalmente se ele desenvolve as qualidades que
se espera de um homem Xavante: bom orador, bom caçador, generosidade, virilidade.
Na próxima iniciação aquele que era um menino torna-se ĩprédu, mais uma iniciação e
ele se tornará ĩhire – anciãos. O ciclo se fecha e se renova com a admissão da categoria
de sua classe de idade na ocupação da casa dos solteiros, a hö. Quando isto acontece
este homem adquire status político e ritual plenos. Aqui sua classe de idade adquire o
sufixo b’rada.
As classes de idade e clãs assumem importância vital no pensamento Xavante e
estão presentes em praticamente todos os eventos e práticas sociais desta etnia. Para
Maybury-Lewis, após a terceira iniciação, quando uma classe de idade completa o
patrocínio da iniciação de outro grupo, o interesse de um homem pela sua classe de
idade entra em declínio e ele passa a agir mais na direção de uma projeção pessoal do
que enquanto membro deste grupo e deixa de realizar junto à mesma qualquer função
cerimonial incorporada de modo que os (...) mais idosos despontam como figuras
proeminentes no âmbito de suas próprias linhagens e facções, e não como líderes de
sua classe de idade (Maybury-Lewis, 1984:199). Não obstante, como vimos
anteriormente toda a trajetória de vida de um homem Xavante está relacionada ao
sistema de classes de idade. Na medida em que este homem envelhece tudo aponta para
uma hiper-valorização de sua classe de idade, como vimos no final do capítulo IV.
Em suma, o faccionalismo Xavante não é institucionalizado (estrutura), mas ele
coopta os homens iniciados através do ciclo das classes de idade (ritual), portanto,
atores sociais, que se unem em torno de um líder político, o cabeça da facção, como
diria Maybury-Lewis. Não obstante, o faccionalismo não pode ser considerado como
algo endêmico na sociedade Xavante. Ele deve estar situado antes de tudo como um
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=25734&edicao=9754&anter
ior=1 – ACESSADO EM 11/02/2008.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u9104.shtml - ACESSADO EM
11/02/2008.
http://www.midianews.com.br – ACESSADO EM 17/01/2008.
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GLOSSÁRIO
ẽtepa
˜ – pedra comprida – uma das classes de idade.
ĩhire - anciãos,
ĩni ou brudu – um tipo de mastro cuja ponta decorada leva as flautas tsidupu.
ĩprédu - homens adultos, já iniciados.
ĩtsarébépré – modalidade pintura usada no wamnhorõ dos tébé e pahöri’wa e demais
membros do clã öwawẽ.
ĩtsihödö – modalidade de pintura usada nos wamnhorõ dos membros do clã tob’ratato.
ĩwawi – riscos – modalidade de pintura usada nos wamnhorõ dos membros do clã
po’redza’õno.
‘rina’rada – quarto construído com folha de buriti para o casal que contraiu casamento
recentemente.
‘ritéi’wa – membros da penúltima classe de idade iniciada; novo guerreiro; o dono da
casa nova.
‘ritéi’wa ĩté – membros da última classe de idade iniciada.
‘wamarĩ - um tipo de madeira usado pelo ‘wamarĩtede’wa em sua atuação ritual.
‘wamarĩmramidzè – dança do ‘wamarĩtede’wa.
‘wamarĩnhõ're – canto executado pelo ‘wamarĩtede’wa.
‘wamarĩtede’wa – o dono do ‘wamarĩ; pacificador, sonhador.
‘watébrémi – menino
A’ãma – advogado, defensor. Escolhido entre membros da classe de idade que atuou
como danhohui’wa, padrinho, da classe de idade que desempenha o papel de
dahi’wa no processo de iniciação do danhono que está em curso.
Abadzidzanhamri itsõniã - colar de algodão que fica sob a clavícula
Abadzipré – um tipo de cinto usado por alguns grupos domésticos que detêm direitos de
propriedade sobre o mesmo; é confeccionado sob medida para quem o usará.
Abadzirãihidiba – ritual de nominação das mulheres.
Abahu – grupo cerimonial formando para enfrentar seus irmãos ou primos distribuídos
em outro grupo: o para’wa.
Abare’u – uma das classes de idade; pequi.
Adaba – mulher recém casada.
Adabanho’rebdzuiwatsihui’wa - moça que lhe retira os colares da noiva.
Adabatsa – caça destinada ao casamento.
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Adzahu – nome de um ornamento corporal composto de penas de arara, que são presas
num talo seco de folha de buriti, wabu, e amarrado na parte de trás da cabeça,
depois que aquele talo foi amarrado no cabelo em forma de rabo de cavalo.
Adzarudu – moça antes do casamento.
Ahu’rã - modalidade de pintura corporal na qual o corpo todo é pintado de preto
utilizando-se carvão.
Ahu’rã – pintura de carvão onde o corpo todo é pintado.
Ai’repudu – menino antes de ser admitido como morador da casa dos solteiros, quando
assume a categoria de wapté.
Ai’rere – uma das classes de idade; um tipo de palmeira.
Ai’uté – criança.
Aihö’ubuni – cargo entre os wapté, cervo virgem, o virgem.
Aiutemanhãri’wa – o dono das crianças; modalidade de pintura corporal semelhante a
daupté. O diferencial aparece no uso de penugens na franja dos cabelos e o
entorno da boca pintado em preto.
Anhana’rãtõmri – partes do enfeite usado no pescoço pelos pahöri’wa.
Ariwede – tipo de flecha confeccionada com buritirana ou buriti-bravo.
Atsadaateihi – osso de onça parda usado na furação de orelhas.
Atsitõ -
Awã – cercado no centro da aldeia usado em diversos rituais.
Ba’õno – menina.
Bö – urucum.
Buruaòdò
Burui’pré – ornamento de cabeça usado no wai’a e pelo nonimrami’wa – carregador do
noni.
Buruteihi – capim do qual se extrai os talos para ser usado durante a furação dos lóbulos
auriculares.
Dabatsa – caçada para o ritual do casamento.
Dabutupo – colar de entrecasca usando principalmente na cerimônia o wai’a.
Dadzarõno – modalidade de dança é executada de mãos dadas e cabeça baixa,
movimentando-se em círculo e levantando um dos pés em saltos curtos.
Dadzoni’wa – ancião da mesma classe de idade que está sendo iniciada que acompanha
o ritual de imersão datsi’waté e os demais que virão a partir daí.
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Dahi’wa - àqueles que fiscalizam a conduta dos moradores da casa dos solteiros e se
colocam como portadores da tradição cultural.
Dahi’wanho’re - canto do dahi’wa.
Dahipopo – modalidade de dança de rodas, na qual os participantes de mãos dadas
dançam flexionando levemente os joelhos.
Dahirada –
Daimidzupó – embiras amarradas nos tornozelos.
Damanarada = listas listras pintadas com carvão aplicadas em paralelo à coluna;
literalmente pênis velho.
Danhihödö – modalidade de pintura corporal na qual o corpo é pintado com carvão
desenhando riscos circulares por toda sua extensão, parecendo uma camuflagem.
Danhimi’e – (os da esquerda) metade exogâmica, composta pelo clã öwawẽ e tob’ratato.
Danhimire - (os da direita) metade exogâmica, composta pelo clã po’redza’õno.
Danhimiwanhõ – padrinho dos padrinhos.
Danhimnhõ’rebdzu – cerimônia os meninos têm os enfeites danhonhi´ã retirados antes
da admissão formal à hö.
Danhimnhohu –
Danhipsipó – embira amarrada nos punhos.
Danhipsipré - fios de seda de buriti pintados de vermelho amarrados em feixes nos
pulsos e tornozelos, usados principalmente pelos participantes da cerimônia do
tébé.
Danhirare – noivado público (?).
Danhire’pré – tonsura no centro da cabeça (danhire = corte de cabelo) e depois é
pintado com urucum (pré = vermelho)
Danhitö’wa - o menor ‘ritéi’wa iniciado; o menor da fila dos iniciandos no danhono.
Danhiwanho – padrinho específico de um wapté.
Danhõ’ra - uma listra preta aplicada abaixo do externo sobre o estômago numa das
modalidades de pintura usada pelos danhohui’wa.
Danho’rebdzu’a – colar de algodão.
Danho’rebdzu’wa - literalmente o dono do colar de algodão – ou aquele que faz o colar;
tem função cerimonial no casamento da filha de sua irmã.
Danhohui’wa – padrinho, ...
434
Danhohui’wa tsipi’õ – madrinha dos wapté - mulher da mesma classe de idade dos
danhohui’wa, padrinhos, durante a iniciação da classe de idade junior de sua
metade cerimonial.
Danhonhi´ã e itsõnhi´ã – colar de algodão do wapté.
Danhoniã – um dos colares usados pela noiva durante a cerimônia de casamento.
Danhono – dormir, ritual de iniciação das classes de idade.
Danimiwainho – padrinho particular escolhido pelo pai do wapté entre os membros da
classe de idade que desempenha o papel de danhohui’wa na iniciação do danhono.
Dapanhihödö – uma listra preta pintada na altura dos cotovelos, numa das modalidade
de pintura dos danhohui’wa.
Dapibui’wa – dahohui’wa encarregado de acompanhar os moradores da casa dos
solteiros.
Dapo’redzapu’u – ritual do furo dos lóbulos auriculares.
Dapo’redzapu’u’wa – o furador de lóbulos auriculares.
Dapo’rewa’u, batoque auriculares.
Dapraba - estilo dança semelhante ao dadzarõno, mas executado um pouco mais rápido.
Darini – processo ritual de iniciação ao wai’a, ou seja, habilita o homem xavante a
participar das celebrações religiosas de sua sociedade. Acontece em intevalos de
tempo que variam de quinze a dezessete anos; também chamado wai’arini.
Darõ - estojo peniano feito com folha de babaçu.
Date’rã – pintura com carvão aplicada nas panturrilhas.
Date’rãwabdza - dois ou três riscos feito com as unhas sobre a pintura de carvão nas
canelas.
Datsi’waté - banho de imersão durante uma das fases do danhono. Cerimônia de bater
água.
Datsiwai’õ – um dos rituais de nominação das mulheres.
Dauhö – modalidade de pintura usada pelos danhohui’wa – padrinhos, na qual pinta-se
o os braços, coxas e tronco de preto e desenha-se um retângulo no abdômen e nas
costas, sobre a coluna, da nuca até a cintura; as franjas dos cabelos são igualmente
pintadas de vermelho e recebem penugens de gavião. Como adornos corporais
usam cordinhas amarradas nos pulsos, tornozelos e cintura, bem como o colar de
algodão.
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