DOCUMENTOS DIGITAIS

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DOCUMENTOS DIGITAIS: AUTENTICIDADE E

CUSTÓDIA

Margareth da Silva
Doutora pela Universidade de São Paulo (USP).
Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense e professora do Programa
de Pós-Graduação em Memória e Acervos da Fundação Casa de Rui Barbosa, RJ,
Brasil.
http://lattes.cnpq.br/8896101082853685;
margarethsilva@id.uff.br;

Submetido em: 27/05/2023. Aprovado em: 12/07/2024. Publicado em: dd/mm/yyyy .

RESUMO:
Esse trabalho tem como tema a relação entre autenticidade e custódia em um ambiente tecnológico
complexo e como a autenticidade ao longo do tempo é dependente de uma cadeia de custódia
ininterrupta e da atuação de um custodiante confiável. O objetivo do nosso trabalho é expor essa
relação, destacando a importância de transpor a esfera do produtor e passar para a do preservador, e
apresentar como a autenticidade é entendida no campo das ciências a fim de que os arquivistas, ao
atuar nesse ramo de atividade, compreendam como esses profissionais lidam com a autenticidade e
confiabilidade dos seus objetos de pesquisa. Esse trabalho utiliza como referencial teórico as
publicações do InterPARES Project (InterPARES 1 Project, 2001a; 2001b; InterPARES 2 Project, 2011a;
2011b; 2012), bem como de Duranti (1994, 2005 e 2007), Jenkinson (1922) e Tschan (2015). Nosso
estudo é descritivo e procura sistematizar o conhecimento básico para compreender a relação entre
autenticidade e custódia, bem como compreender como o campo das ciências compreende a
autenticidade e de que forma os arquivistas podem atuar junto com esse ramo de atividade.
Palavras-chave: autenticidade; custódia; documento arquivístico digital; documentos
científicos.
Abstract:

INTRODUÇÃO

O mundo contemporâneo, no qual predomina o formato digital para documentar as ações de


organizações e pessoas, apresenta muitas incertezas para os arquivistas ao lidarem com a preservação
desses documentos. A tecnologia acarretou muitas mudanças na forma de produzir, manter e dar acesso
aos documentos, exigindo dos profissionais da área determinadas habilidades e competências para que
o material, sob sua guarda, permaneça autêntico, isto é, livre de suspeitas, e estejam acessíveis e em
condições de ser utilizado e compreendido pelos usuários, sem questionamentos a respeito da sua
validade jurídica e administrativa.
Assim, o principal desafio e eixo de atuação dos arquivistas nesse mundo digital é a
preservação da autenticidade, a qual depende de diversos fatores tais como: a aplicação de
procedimentos de gestão arquivística de documentos, de forma a assegurar a produção e manutenção
de documentos capazes de efetivar a ação, e a implementação de sistemas aderentes a modelos de
requisitos funcionais e padrões de metadados, como os previstos pelo e-ARQ Brasil (Conselho Nacional
de Arquivos, 2011; 2022). Como afirmam Silva e Lacombe (2022), o ponto nevrálgico dos sistemas
informatizados, que produzem e mantêm documentos digitais, é se esses têm condições de garantir que
os procedimentos, as obrigações jurídicas e administrativas e todas as funções arquivísticas foram
considerados no desenho desses sistemas, ou seja, se seguiram um modelo ou padrão de requisitos
funcionais e de metadados.
Além desses fatores, outros também são necessários como a adoção de planos e programas
de preservação digital, que estabeleçam ações e medidas capazes de preservar os documentos durante
todo o ciclo de vida, e o estabelecimento de repositórios que implementem as estratégias de preservação
dos documentos digitais, garantindo que permanecerão autênticos e acessíveis pelo tempo necessário.
Santos (2021) considera a relevância do Repositório digital confiável (RDC) para assegurar a
preservação e acesso a documentos autênticos, e destaca também sua importância para os usuários:

[...] o RDC torna-se uma referência para os usuários em geral, sendo um


ambiente que garante a preservação e o acesso ininterrupto para documentos
digitais autênticos. Portanto, cabe aos administradores do RDC demonstrar a
consistência dos métodos empregados, e assim, conquistarem a confiança do
público geral. (Santos, 2021, p. 6)

A autenticidade, como característica dos documentos arquivísticos, é a que está mais exposta
aos riscos e à insegurança do ambiente eletrônico. A obsolescência tecnológica e a vulnerabilidade
intrínseca do formato digital impõem uma série de cuidados e a aplicação de procedimentos, que
garantam que os documentos não foram alterados indevidamente e continuam com a sua autenticidade
intacta. O Conselho Internacional de Arquivos, no Código de Ética (International Council on Archives,
1996), estabeleceu que os arquivistas preservam a autenticidade dos documentos na sua atuação
prática, incluindo os documentos eletrônicos, bem como a integridade dos arquivos, garantindo que se
constituam em testemunho fidedigno do passado. Isso significa que é dever dos arquivistas preservar a
autenticidade dos documentos independentemente do suporte a fim de que cidadãos e usuários de
quaisquer tipos possam usar documentos como testemunhos confiáveis, podendo obter direitos,
imunidades e informação a respeito do passado.
Jenkinson (1922), Duranti (2007) e Tschan (2015) consideram que a autenticidade dos
documentos arquivísticos é dependente da linha de custodiantes responsáveis, isto é, a cadeia de
custódia ininterrupta, e, portanto, consideram prioritário transferir os documentos do ambiente do
produtor para as instituições arquivísticas, ou entidades de preservação, pois as ameaças à
autenticidade são maiores se os documentos permanecem com os produtores muito tempo depois de
terem cumprido suas finalidades. Os produtores dos arquivos podem não ter interesse em manter os
documentos intactos, e essa situação existe tanto para os documentos em papel como para os
documentos digitais. As organizações produzem documentos em formato digital como forma de registrar
suas atividades. Esse fato significa que documentos arquivísticos digitais são criados1 por essas
organizações como forma de registrar suas ações. Neste sentido, o primeiro elemento a ser considerado
na identificação do documento arquivístico, em qualquer suporte e em qualquer ambiente, antigo ou
contemporâneo, é a conexão desse documento com a atividade de um produtor, seja ele uma
organização ou uma pessoa física. Podemos seguir a definição de documento arquivístico apresentada
pelo Glossário da Câmara Técnica de Documentos Eletrônicos do Conselho Nacional de Arquivos:
“Documento produzido (elaborado ou recebido), no curso de uma atividade prática, como instrumento ou
resultado de tal atividade, e retido para ação ou referência” (CONARQ, 2020, p. 24).
Assim, embora o formato digital seja vulnerável às ameaças, que atingem a sua autenticidade,
precisamos assegurar que esses documentos permaneçam autênticos, com poder de aceitação em
qualquer instância, do mesmo modo que os documentos não digitais.
Uma questão a ser considerada diz respeito à preservação desses documentos a longo prazo,
pois, se uma organização, ou pessoa, registra suas ações em formato digital, esses documentos devem
permanecer como testemunho autêntico de que a organização, ou a pessoa, desempenhou essas
atividades e que estão em condições de serem apresentados em qualquer esfera ou instância de poder,
e, portanto, é preciso demonstrar que os documentos foram mantidos estáveis e em segurança. Esse
fato depende da existência de uma cadeia de custodiantes responsáveis, desde o produtor original,
passando pelos seus sucessores legítimos, até a sua guarda definitiva numa instituição de custódia.
A dificuldade em enfrentar esses desafios, autenticidade e preservação de longo prazo, se
refere à natureza do próprio formato digital, uma vez que os equipamentos, hardwares, softwares e
suportes sofrem com a obsolescência tecnológica e com a sua vulnerabilidade intrínseca2. Além disso,

1
Usamos nesse texto os termos “produzir” e “criar” documentos como sinônimos. Ver no
Multilingual Archival Terminology os termos “create records” e “produzir documentos”.
Disponivel em: http://www.ciscra.org/mat. Acesso em: 3 maio 2023.
2
Sobre obsolescência tecnológica, ver: SANTOS, H.; FLORES, D. Os impactos da
obsolescência tecnológica frente à preservação de documentos digitais. Brazilian Journal of
Information Studies: Research Trends, Marília, v. 11, n. 2, p. 28-37, 2017. Disponível em:
como os procedimentos de controle referentes à elaboração, ao recebimento, à tramitação e ao
arquivamento, no ambiente eletrônico, são muito mais fluidos, ou são realizados sem supervisão, há
muitas dúvidas quanto ao caráter autêntico desses documentos, ocorrendo desconfianças e até mesmo
suspeitas de que possa ter sido manipulado e alterado.
Com relação à obsolescência, esta significa que o aparato tecnológico ficará sem utilidade em
um prazo mais curto que o ciclo de vida dos documentos, sendo substituído por recursos mais
dinâmicos, os quais passam a ser predominantes em termos de mercado e de aceitação pela sociedade.
Além disso, os suportes como HD, CD, DVD, disquetes e pen drive são suscetíveis à degradação física,
e os sistemas, que produzem e mantêm os objetos digitais, são vulneráveis à obsolescência e a ataques
externos como os provenientes de hackers, que podem alterar ou até mesmo apagar o conteúdo desses
objetos.
Tanto a obsolescência tecnológica e a degradação física dos suportes como a vulnerabilidade
dos sistemas demonstram que temos um quadro de instabilidade e insegurança do contexto tecnológico.
A preservação dos documentos digitais depende de planejamento e implementação de um conjunto de
medidas a serem aplicadas sequencialmente durante todo o seu ciclo de vida, previstas ainda na
concepção dos sistemas, que produzem esses documentos. Neste sentido, não bastam medidas
ambientais, como condições adequadas para a manutenção do aparato tecnológico, é preciso também
medidas que enfrentem a obsolescência, antes mesmo do momento de produção dos documentos em
sistemas informatizados, prevendo as ações necessárias para que os documentos não fiquem
desprotegidos.
Os documentos, que são produzidos, mantidos e preservados em formato digital, ficam em
situação de risco em um prazo muito curto, ou pelo menos mais curto que o seu ciclo de vida, o que
impacta diretamente na avaliação da autenticidade e na durabilidade desse material. Além disso, em
razão da obsolescência e da fragilidade, a preservação dos documentos digitais exige reprodução
contínua, o que significa que as estratégias e medidas de preservação procuram preservar a capacidade
de o documento ser reproduzido, no decorrer da sua existência, e não os seus dígitos binários e seu
software nativo.
De acordo com o InterPARES 1 Project (2001, p. 7, tradução nossa)3,

https://doi.org/10.36311/1981-1640.2017.v11n2.04.p28. Acesso em: 3 maio 2022.


3
Original: “The transformations entailed by storing, retrieving, and presenting an electronic
record led to the recognition that, in literal terms, you cannot preserve an electronic record, you
can only preserve the ability to reproduce the record. A logical corollary to this assertion is that
the only real way to prove that an electronic record has been preserved is to reproduce it. While
the production of copies is usually seen as part of the archival reference or communication
function, in the case of electronic records it is also within the scope of preservation. These
functions overlap at the point of reproduction. The emphasis of the reference function is that the
copies produced respond to the interests and requests of users, while the preservation function
As transformações envolvidas pelo armazenamento, recuperação e
apresentação dos documentos arquivísticos digitais levam ao reconhecimento
de que não é possível preservar um documento digital, só é possível preservar
a habilidade de reproduzir esse documento. Uma consequência lógica dessa
afirmativa é que o único meio real de provar que um documento digital foi
preservado é reproduzi-lo. Enquanto a produção de cópias é frequentemente
parte da função de referência e divulgação dos arquivos, no caso dos
documentos digitais faz parte também do escopo da preservação. [...] A ênfase
da função de referência é que as cópias produzidas atendam aos interesses e
solicitações dos usuários, enquanto a função de preservação enfatiza a
produção de cópias autênticas.

Essas ações de reprodução significam que o agente, que implementará ações e medidas como
a migração, por exemplo, a fim de manter o documento digital, deverá obrigatoriamente ser um
preservador confiável.
O desafio da preservação dos documentos digitais depende muito da prevenção à
obsolescência e às vulnerabilidades intrínsecas do contexto tecnológico. Para isso, é necessário
planejamento e implementação cuidadosa de medidas e ações, que assegurem que os documentos
arquivísticos se mantenham como objetos acessíveis e autênticos durante todo o seu ciclo de vida. É o
que o InterPARES 2 Project (2011a) chama de cadeia de preservação4.
Como uma das características mais ameaçadas no ambiente eletrônico é a autenticidade, a
preservação tem que estar associada a medidas e ações que garantam que esse material se manterá
autêntico. Quando falamos de preservação de documentos digitais, nós, arquivistas estamos falando não
apenas da longevidade e do acesso, mas também da preservação da autenticidade desses documentos
ao longo do tempo.
Os especialistas em diplomática, como Duranti (1998) e Rogers (2016), reconhecem diferentes
tipos de autenticidade: a legal, a histórica e a diplomática.

Documentos legalmente autênticos são aqueles que dão testemunho de si


próprios, em razão da intervenção de uma autoridade pública representativa,
durante ou após sua produção, que garante sua genuinidade. Documentos
diplomaticamente autênticos são aqueles que foram escritos de acordo com a
prática do tempo e do lugar indicados no texto e assinados pela pessoa (ou
pessoas) com competência para produzi-los. Documentos historicamente
autênticos são aqueles que atestam eventos, que de fato aconteceram, ou com
informações verdadeiras. (Duranti, 1998, p. 45-46, tradução nossa)5.

emphasizes the production of certifiably authentic copies.” (InterPARES 1 Project, 2001b, p. 7).
4
Ver em Diretrizes do preservador do InterPARES 2 Project (2011a). Uma explicação sobre o
conceito de cadeia de preservação pode ser encontrada no artigo Custódia, cadeia de preservação
e custodiante confiável de Silva (2019). Disponível em:
https://revistas.ufrj.br/index.php/rca/article/view/30291. Acesso em: 11 maio 2022.
Também a compreensão do que significa autenticidade difere, dependendo do ramo de
atividade e da área de conhecimento, como demonstraram os estudos no âmbito do InterPARES 2
Project, que analisou nas ciências e as artes o uso do conceito de “autenticidade”. Assim, como afirma
Mak (2015) o que constitui autenticidade em um determinado contexto é flexível e mudará ao longo do
tempo.
Como esse dossiê temático da revista Inclusão Social busca discutir os objetos digitais
informacionais, avaliamos que seria relevante tratar de um tipo de objeto digital, o documento arquivístico
digital, cuja especificidade e características, especialmente a autenticidade, passam desapercebidas por
muitos profissionais da área.
Desta forma, o objetivo do nosso trabalho é expor a relação entre autenticidade e custódia
nesse novo ambiente, destacando a importância de transpor a esfera do produtor e passar para a do
preservador, e apresentar como a autenticidade é entendida no campo das ciências a fim de que os
arquivistas, ao atuar nesse ramo de atividade, compreendam como esses profissionais lidam com a
autenticidade e confiabilidade dos seus objetos de pesquisa.
Consideramos que o enfrentamento dessas questões passa necessariamente pelo
conhecimento dos fundamentos teóricos da Arquivologia. Esse trabalho utiliza como referencial teórico
as publicações do InterPARES Project (InterPARES 1 Project, 2001a; 2001b; InterPARES 2 Project,
2011a; 2011b; 2012), bem como de Duranti (1994, 2005 e 2007), Jenkinson (1922), Tschan (2015).
Nosso estudo procura sistematizar o conhecimento básico para compreender a relação entre
autenticidade e custódia, particularmente dos documentos em formato digital, bem como compreender
como o campo das ciências compreende a autenticidade e de que forma os arquivistas podem atuar
junto com esse ramo de atividade. Assim, focalizamos prioritariamente os resultados da investigação
empreendida pelo InterPARES Project, que vem se dedicando, há mais de duas décadas, na reflexão a
respeito da preservação da autenticidade dos documentos arquivísticos digitais. Esse conhecimento
basilar a respeito da autenticidade e da custódia foi desenvolvido nas fases iniciais do InterPARES
Project (1999-2012) e, portanto, grande parte das nossas referências dizem respeito a esse período.
Cumpre ressaltar que alguns termos, ao serem traduzidos para o português, foi indicado ao lado, entre
parênteses, o termo original em inglês.

5
Original: “Legally authentic documents are those which bear witness on their own because of
the intervention, during or after their creation, of a representative of a public authority
guaranteeing their genuineness. Diplomatically authentic documents are those which were
written according to the practice of the time and place indicated in the text, and signed with the
name(s) of the person(s) competent to create them. Historically authentic documents are those
which attest to events that actually took place or to information that is true.” (Duranti, 1998, p.
45-46).
Autenticidade: identidade e integridade do documento arquivístico digital

Todos os documentos de qualquer suporte, formato, origem, época, lugar e tipo estão
sujeitos a riscos e ameaças. Uma das maiores ameaças é aquela que pode alterar indevidamente,
corromper ou fraudar um documento arquivístico tanto no ambiente tradicional como no
ambiente eletrônico.
A autenticidade é definida pelo Glossário de documentos digitais como:
Credibilidade de um documento enquanto documento, isto é, a qualidade de um
documento ser o que diz ser e que está livre de adulteração ou qualquer outro tipo de
corrupção. A autenticidade é composta de identidade e integridade (CONARQ, 2020, p.
12).
Duranti (1994, p. 51) considera que a autenticidade é vinculada à continuidade que existe
entre os procedimentos de produção, manutenção e custódia: “[...] os documentos são autênticos
porque são criados, mantidos e conservados sob custódia de acordo com procedimentos regulares
que podem ser comprovados”.
Assim, manter um documento autêntico depende da aplicação de procedimentos
controlados e monitorados durante toda a sua existência, incluindo o período em que os
documentos são transferidos da custódia de um produtor para outro produtor, isto é, um sucessor
legítimo, e para a custódia de uma instituição arquivística, a qual assumirá sua guarda,
preservação e acesso.
No ambiente eletrônico, o documento digital fica mais suscetível a ameaças e aos riscos à
sua autenticidade quando a tecnologia fica obsoleta e quando é transmitido no tempo e no
espaço. No tempo, quando os documentos ficam armazenados no decorrer da sua existência, ou
quando o hardware ou software é atualizado ou substituído por uma tecnologia mais recente. No
espaço, quando são encaminhados para outros sistemas e aplicativos, conforme afirma o
InterPARES 2 Project em Diretrizes do Produtor (2011b, n. p.).
Duranti (2005, p. 11) explica que, durante a execução do InterPARES1 Project, que
analisou vários estudos de caso, a equipe de pesquisadores procurou elucidar o conceito de
autenticidade, dividindo-o em dois componentes: a identidade e a integridade. A identidade
significa: “Conjunto de características de um documento ou de um documento arquivístico que o
identifica de forma única e o distingue dos demais” (InterPARES 2 Project, 2011b, n. p.).
A identidade do documento é expressa por meio de propriedades e atributos, chamados de
metadados de identidade. Metadados são “dados estruturados que descrevem e permitem
encontrar, gerenciar, compreender e/ou preservar documentos arquivísticos ao longo do tempo”
(CONARQ, 2020, p. 36).
Assim, os metadados de identidade permitem localizar e gerenciar um documento, como
também verificar e manter a sua autenticidade. O InterPARES 2 Project (2011b) indica uma lista
de 12 metadados de identidade, entre os quais, citamos: nome das pessoas envolvidas como o
destinatário e o autor, forma do documento (carta, relatório), apresentação digital (formato),
datas de produção e transmissão, expressão do contexto, entre outros.
Outro componente da autenticidade do documento digital é a integridade, a qual significa
“[...] qualidade de ser completo e inalterado em todos os aspectos essenciais” (InterPARES 2
Project, 2011b, n. p.).
A integridade diz respeito a não alteração, ou a não corrupção do documento, ao seu
caráter completo e intacto, ao longo do tempo. Se os metadados de identidade ajudam a
distinguir os documentos uns dos outros, já que nesse ambiente os documentos são copiados,
replicados em diferentes sistemas e suportes, dificultando a sua identificação única, os
metadados de integridade permitem inferir que esses documentos são os mesmos desde o
momento em que foram produzidos, isto é, se os documentos permaneceram inalterados e,
portanto, capazes de servirem como fonte de prova e testemunho das ações realizadas pelo
produtor.
Assim, para o InterPARES 2 Project (2011b), os atributos referentes à integridade dos
documentos digitais indicam como os documentos foram mantidos e preservados e a
responsabilidade pelo seu uso apropriado, incluindo as medidas de preservação necessárias à
manutenção dos documentos pelo produtor e a transferência desses documentos para outros
sistemas.
O InterPARES 2 Project (2011b) indica uma lista de 8 metadados de integridade, entre os
quais destacamos os seguintes: nome da pessoa ou unidade administrativa que utiliza os
documentos, indicação de mudanças técnicas nos documentos ou nos aplicativos, destinação
planejada como a remoção de documentos de um sistema ativo ou transferência para um
custodiante confiável.
De acordo com Duranti (2005, p. 11), uma diferença importante entre os documentos
tradicionais, como o papel, e os digitais, no tocante à autenticidade, se refere ao fato de que a
teoria arquivística, seguindo o Direito e a jurisprudência, avalia que “[...] os documentos
considerados como confiáveis pelos seus produtores no curso normal das suas atividades são
presumidos autênticos”.
Isto significa que há uma suposição razoável de que esses não foram alterados,
corrompidos, ou fraudados, e têm aceitação jurídica e administrativa em qualquer instância e
esfera de poder da sociedade, já que seus produtores têm mandato para desempenhar suas
competências específicas e os documentos decorrentes das suas ações devem ter cumprido todas
as formalidades previstas pelo contexto jurídico-administrativo.
No caso dos documentos digitais, segundo Duranti (2005, p. 11), a presunção de
autenticidade, ou seja, essa suposição razoável, deve ser “[...] apoiada pela evidência de que um
documento não foi modificado ou corrompido em seus aspectos essenciais durante sua
transmissão e manutenção”.
Para avaliar a autenticidade dos documentos digitais, o preservador deve ser capaz de
estabelecer a identidade e demonstrar a integridade dos documentos, observando os requisitos de
referência para apoiar autenticidade dos documentos arquivísticos digitais, descritos pelo
InterPARES 2 Project (2011a, n. p). O atendimento, ou a satisfação, desses requisitos “[...] dará
ao preservador a capacidade para inferir a autenticidade dos documentos” (InterPARES 2
PROJECT (2011a, n. p). Desta forma, é necessário que o arquivista entenda que a presunção de
autenticidade de documentos públicos em meio convencional se diferencia enormemente da
presunção de autenticidade dos documentos digitais. No primeiro caso, não é necessária
nenhuma operação para presumir que os documentos são autênticos. No entanto, para os
documentos digitais, é preciso que analisemos determinados requisitos para inferirmos que
aquele grupo ou conjunto de documentos se presumem autênticos.
Os requisitos de referência (benchmark) para apoiar a autenticidade do InterPARES 2
Project (2011a, n. p) foram divididos em segmentos: o Requisito A.1, que compreende 16
metadados, identifica o contexto imediato de produção do documento e como foi utilizado e
mantido e assim estabelece a sua identidade, por meio do registro nos metadados de identidade.
Também indica alguns metadados de integridade (como por exemplo nome da unidade
responsável pela execução da ação contida no documento). Os requisitos A.2 até o A.8, que
compreendem sete metadados, identificam os tipos de controles referentes aos procedimentos de
produção, utilização e manutenção dos documentos, e demonstram a sua integridade, o seu
caráter completo e inalterado, registrando os metadados de integridade como os procedimentos
de proteção contra perda e corrupção, a remoção e transferência dos documentos, entre outros.
Assim, pelos requisitos de referência acima descritos, podemos perceber que a prioridade
para a manutenção de documentos autênticos pelo produtor depende, inicialmente, de aplicar um
conjunto de procedimentos referentes à gestão de documentos, o que significa no ambiente
eletrônico, adotar um sistema informatizado capaz de garantir a produção e manutenção dos
documentos arquivísticos digitais autênticos durante o seu ciclo de vida. Como afirma MacNeil
(2000):

É geralmente reconhecido que a verificação da autenticidade dos documentos


arquivísticos digitais ao longo do tempo depende do desenvolvimento e implementação
de sistemas de gestão confiáveis (Macneil, 2000, p. 68, tradução nossa)6

Esse sistema deve ser aderente a padrões de requisitos funcionais e de metadados, como o
e-ARQ Brasil: Modelo de requisitos funcionais para sistemas informatizados de gestão
arquivística de documentos (CONARQ, 2022). Esse conjunto de procedimentos e o sistema
informatizado de gestão é uma das bases para se garantir a autenticidade dos documentos no
ambiente do produtor.
No entanto, se as organizações devem adotar um sistema aderente aos requisitos e
metadados de forma a controlar os documentos durante o seu ciclo de vida, no âmbito de
determinadas atividades como as científicas, que se desenvolvem em laboratórios e unidades de
pesquisa de pequeno porte, há necessidade de outras recomendações e orientações a fim de que
os produtores desse tipo de documento possam garantir que estão mantendo documentos
autênticos em um ambiente tecnológico complexo, exigindo maiores cuidados com relação ao
momento de elaboração ou captura dos dados científicos 7. Neste sentido, o InterPARES 2 Project
6
Original: “It is generally acknowledged that verification of the authenticity ofelectronic records
over the long term depends on the development andimplementation of trust management
systems.” (Macneil, 2000, p. 68).
7
Um dos produtos do InterPARES 2 Project foi a publicação de “Diretrizes do produtor”, cujo
público principal seriam os produtores individuais de documentos arquivísticos das áreas de
ciência e artes, ainda que possa ser utilizado por qualquer pessoa ou mesmo grupos e entidades
de pequeno porte. Disponível em:
https://www.gov.br/arquivonacional/pt-br/canais_atendimento/imprensa/copy_of_noticias/serie-
realizou uma série de estudos de caso nas áreas das ciências 8, artes e governo e verificou como
são utilizados os termos autenticidade, fidedignidade e acurácia, cujos resultados foram
publicados no Relatório final desse Projeto 9. Aqui destacamos apenas os resultados e conclusões
no campo das ciências.

O conceito de autenticidade nas atividades científicas


Rogers (2016) destaca que durante a condução do InterPARES 2 Project verificou-se a
diversidade de significados atribuídos ao termo “autenticidade” nas áreas de artes, ciências e
governo. No campo das ciências, autenticidade é uma palavra pouco utilizada enquanto os
termos identidade, integridade e proveniência são essenciais, e o sentido atribuído aos termos
documento arquivístico, fidedignidade (reliability) e acurácia, no campo das ciências, também
não é exatamente o mesmo sentido que os arquivistas utilizam.
Segundo Roeder (2008), no desenvolvimento da pesquisa do InterPARES 2 que analisou
a literatura científica e examinou estudos de caso da área das ciências, se verificou que muitos
cientistas tendem a igualar “documentos arquivísticos científicos” (scientific records) com dados
científicos, e frequentemente usam o termo “documentos de dados científicos” (scientific data
records). Assim, é importante que os arquivistas compreendam que, para os cientistas, dados
científicos podem ser definidos de diferentes formas. Uma primeira significa: “[...] quantidades
numéricas ou outros atributos factuais gerados por cientistas e derivados durante o processo de
pesquisa (por meio de observações, experimentos, cálculos e análises)” (Codata apud Roeder et
al., 2008, p. 13, tradução nossa)10. Outra definição se refere a “[...] números, imagens, vídeo ou
streams de áudio, software e informação de versão de software, algoritmos, equações, animações
ou modelos/simulações” (National Science Foundation, 2005, p. 18 apud Roeder et al., 2008, p.
13)11.

publicacoes-do-conarq-diretrizes-do-produtor-e-do-preservador. Acesso em: 15 maio 2023.


8
Disponível em: http://interpares.org/ip2/ip2_case_studies.cfm. Acesso em: 15 maio 2023.
9
Disponível em: http://www.interpares.org/ip2/display_file.cfm?doc=ip2_book_part_3_domain2_task_force.pdf.
Acesso em: 15 maio 2023
10
Original: “numerical quantities or other factual attributes generated by scientists and derived
during the research process (through observations, experiments, calculations and analysis”
(Codata apud Roeder et al., 2008, p. 13).
A pesquisa verificou que, aos olhos de muitos cientistas, a manutenção dos arquivos nas
ciências é menos um ato de gerenciar documentos (recordkeeping)12 e mais um ato de gestão e
processamento de dados. Além disso, a comunidade científica manifesta menos interesse na
autenticidade do que na acurácia e fidedignidade (reliability).
Na revisão da literatura científica, empreendida pelo InterPARES 2, Roeder (2008)
constatou que dos três conceitos – autenticidade, fidedignidade e acurácia - este último é aquele
que recebe maior atenção dessa literatura, pois é crucial para a validade da pesquisa científica a
qualidade dos dados (data quality). Diferentemente do que ocorre na teoria arquivística, o
conceito de acurácia é fundamental para a pesquisa científica, ainda que o InterPARES 2 tenha
definido acurácia de forma ampla para incluir dados e conjuntos de dados, bem como
documentos e documentos arquivísticos.
No Glossário do InterPARES 2 (2012, n. p., tradução nossa) 13, acurácia é definida como
“[...] o grau pelo qual os dados, informações , documentos ou documentos arquivísticos são
precisos, corretos, verdadeiros, livres de erros e distorção ou pertinentes ao assunto”.
Roeder (2008, p. 14, tradução nossa)14 afirma que, no campo dos arquivos, um “[...]
documento arquivístico acurado é aquele que contém dados corretos, precisos e exatos, que
geralmente são julgados em relação à inteireza dos dados que relata, ou sua pertinência perfeita
ou exclusiva ao assunto em questão”. Além disso, o autor considera que a acurácia de um
documento arquivístico existe quando este é criado e utilizado no curso dos processos
administrativos (business processes) para executar funções administrativas, baseados na

11
Original: “numbers, images, video or audio streams, software and software versioning
information, algorithms, equations, animations, or models/simulations.” (National Science
Foundation, 2005, p. 18 apud Roeder et al., 2008, p. 13, tradução nossa).
12
A definição de recordkeeping no Glossary, “The systematic creation, use, maintenance, and
disposition of records to meet administrative, programmatic, legal, and financial needs and
responsibilities” (disponível em: SAA Dictionary: recordkeeping (archivists.org). Acesso em: 16
maio 2023. É próxima, ainda que não exatamente igual, à definição de gestão de documentos
estabelecida no art. 3º da Lei nº 8159 de 1991.
13
“[...] The degree to which data, information, documents or records are precise, correct, truthful,
free of error or distortion, or pertinent to the matter” InterPARES 2 (2012, n. p).
14
Original: “[...] accurate record is one that contains correct, precise and exact data, which is
often adjudged in relation to the absoluteness of the data it reports or its perfect or exclusive
pertinence to the matter in question.” (Roeder, 2008, p. 14).
premissa de que documentos arquivísticos não acurados prejudicam os interesses da
administração que os produziu (Roeder, 2008).
A abordagem da pesquisa científica, de acordo com Roeder (2008), para o termo acurácia,
é diferente da abordagem arquivística, em razão dos erros e da incerteza que são próprios da
atividade científica, existindo uma tendência para a ideia de que qualquer número, para ter
significado científico, deve ser acompanhado de uma estimativa de incerteza.
Com relação à autenticidade no contexto arquivístico, esta não significa necessariamente
que o conteúdo do documento arquivístico seja acurado e verdadeiro. Mak (2012, p. 5) afirma
que “a designação de ser diplomaticamente autêntico indica somente que um determinado
documento ‘parece’ atender uma medida de consistência com outros documentos similares da
mesma origem”.
Nas Diretrizes para a presunção da autenticidade dos documentos arquivísticos digitais
(CONARQ, 2011) são apontadas situações em que documentos que obedecem a procedimentos
administrativos regulares e emitidos por autoridade competente, mas cujo conteúdo contém
informação que não corresponde à realidade, são considerados diplomaticamente e legalmente
autênticos, mas historicamente falsos: “[...] no que tange ao ponto de vista da diplomática, a
autenticidade se refere a não alteração do documento após sua produção, mesmo que o conteúdo
não seja verdadeiro” (CONARQ, 2012, p. 4).
Se no campo arquivístico, a autenticidade é crucial, no contexto das ciências, a primazia
diz respeito à qualidade dos dados. Segundo Roeder (2008, p. 14, tradução nossa) 15, “[...] a
qualidade dos dados inclui o conceito de autenticidade expresso como proveniência ou linhagem
de dados. Nesse contexto, acurácia de dados é crítica e os dados precisam ser fidedignos”. Além
disso, o autor considera que a qualidade de dados é geralmente expressa nos metadados de
datasets, pois sem metadados ou parâmetros de qualidade de dados, os cientistas não usariam ou
confiariam nesses dados. Roeder apresenta os elementos de qualidade de dados que as ciências
consideram como importantes na avaliação da qualidade:

Ainda que cada disciplina científica difira em como define qualidade de dados
científicos, muitas incluem alguns ou a maioria dos seguintes elementos de qualidade de
dados: acurácia posicional; atributos e acurácia temática ; completitude; acurácia
15
Original: “[...] data quality, which includes the concept of authenticity, normally articulated as
data provenance or lineage. In this context, data accuracy is critical and the data need to be
reliable.” (Roeder, 2008, p. 14).
semântica; informação temporal; fidedignidade; linhagem; consistência lógica e
objetividade. (Roeder, 2008, p. 14, tradução nossa)16.

A partir da literatura científica, Roeder (2008, p. 16) constata que os cientistas, ainda que
não usem o termo autenticidade, estão muito preocupados com as questões de identidade e
integridade de dados, sendo que, para o InterPARES 2 Project (2011b), identidade e integridade
são componentes chave da autenticidade dos documentos arquivísticos no ambiente digital. No
contexto da ciência, identidade é estabelecida pelos metadados, que registram os fenômenos
observados e os tipos de medição obtidos e por quais instrumentos e em que tempo e lugar e sob
qual responsabilidade. Integridade significa que os dados não foram alterados, nem por
adulteração não autorizada ou por corrupção devido à falha técnica, desde que eles foram
primeiramente criados. “[...] a integridade de dados é frequentemente mantida primeiro por
autenticação e outras medidas de segurança para prevenir adulteração, por meio de checksums
ou outras técnicas que detectam bits alterados” (Roeder, 2008, p. 16, tradução nossa)17.
Roeder (2008, p. 20) conclui que a autenticidade, no campo das ciências, é expressa pelos
termos acurácia, fidedignidade ou integridade. Como por exemplo foi observado no estudo de
caso do InterPARES 2 sobre Mars Global Surveyor Data Records in the Planetary Data System,
no qual os membros da equipe do projeto, gestores, cientistas não usam o termo autêntico para
caracterizar os produtos de dados que criam, mantêm e usam, mas estão preocupados com o fato
de os registros de dados (data records) estarem completos, confiáveis, precisos e que a
integridade do registro de dados (data record) esteja garantida.
Por último, Roeder (2008, p. 22) destaca a proximidade entre o campo arquivístico e o
das ciências no uso dos conceitos de acurácia, fidedignidade e autenticidade e na importância
desses conceitos para a preservação dos documentos arquivísticos científicos, afirmando que,
como a pesquisa científica é dependente da acurácia dos dados obtidos em experimentos
científicos, esse conceito assume maior relevância que os conceitos de autenticidade e

16
Original: “Although each scientific discipline differs in how it defines scientific data quality,
most include some or most of the following data quality elements: positional accuracy; attribute
and thematic accuracy; completeness; semantic accuracy; and temporal information, reliability,
lineage, logical consistency and objectivity” (Roeder, 2008, p. 14).
17
Original: “data integrity is often guarded first by authentication and other security measures to
prevent unauthorized tampering, then by checksums or other techniques to spot altered bits.”
(Roeder, 2008, p. 16).
fidedignidade (reliability), exemplificando com o uso de dados de satélites que foram usados
como prova em processos judiciais, assim como no caso dos cadernos de laboratório: “Questões
sobre a acurácia de dados mantidos ao longo do tempo não são diferentes das questões
relacionadas com a autenticidade de documentos arquivísticos ao longo do tempo” (Roeder,
2008, p. 22, tradução nossa)18.
Além disso, o autor ressalta que as questões de linhagem de dados podem ser
consideradas como análogas às questões arquivísticas a respeito de proveniência e cadeia de
custódia. O reconhecimento que datasets fidedignos estão conectados com coletores (collectors)
de dados autorizados tem eco nas questões arquivísticas referentes à autoridade dos produtores
de documentos arquivísticos. As diferenças no uso científico desses três termos são mais de
ênfase, que refletem questões específicas dos cientistas:

As diferenças no uso científico desses três conceitos são mais de ênfase, que refletem as
preocupações específicas dos cientistas, mas não há evidências de desprezo real pelos
conceitos de autenticidade, acurácia e fidedignidade, conforme visto da perspectiva
arquivística (Roeder, 2008, p. 22, tradução nossa)19.

Assim, ainda que a relação entre autenticidade e custódia seja expressa por termos como
acurácia e linhagem, estes são considerados relevantes para avaliação da qualidade dos dados
científicos e a sua aceitação por essa comunidade, o que pode possibilitar a construção de um
terreno comum entre o campo dos arquivos e o das ciências, para a reflexão e uso dos conceitos
de autenticidade e custódia nas ciências e nos arquivos.

Sales e Sayão (2019), ao discutirem a importância de bons repositórios de dados de


pesquisa, explicam que os repositórios não devem desempenhar apenas funções de
armazenamento estático, pois os acervos de dados de pesquisa em formato digital exigem uma
dinâmica própria para se tornarem memória científica e proverem serviços para a comunidade
científica. A execução dos processos de gestão e de implantação de serviços de dados voltados
para a pesquisa científica precisa de um arcabouço que compreenda todo o ciclo de vida dos
18
Original: “Questions about the accuracy of the data maintained over time are not dissimilar to
questions relating to the authenticity of records maintained over time” (Roeder, 2008, p. 22).
19
Original: “The differences in scientific use of these three concepts is more one of emphasis
reflecting the particular concerns of scientists, but there is no evidence of real disregard for the
concepts of authenticity, accuracy and reliability as viewed from the archival perspective.”
(Roeder, 2008, p. 22).
dados. Esse ciclo se inicia no planejamento desses recursos iniciais e continua além do seu
arquivamento de longo prazo, como no caso dos dados de valor contínuo, os dados
observacionais, por exemplo, os quais precisam permanecer estáveis, íntegros e autênticos para
sempre. Outro ponto abordado pelos autores diz respeito à proveniência de dados, às ações de
transformação pelas quais os dados passaram e a relação com os demais dados de pesquisa em
uma coleção, que se conectam com as questões arquivísticas. A proveniência dos dados guarda
bastante similaridade com a proveniência dos arquivos e com a custódia, pois em ambos os
campos se busca a origem do material e quais as condições em que foram mantidos e
armazenados; e a relação dos dados de pesquisa com os demais dados em uma coleção tem
proximidade com o vínculo que um documento arquivístico mantém com os demais documentos
do mesmo arquivo, ou seja, a manutenção do seu caráter orgânico.

Desta forma, podemos perceber que tanto documentos arquivísticos como dados
científicos possuem determinadas características e que mesmo com diferenças de significado,
especialmente quanto ao conceito de autenticidade, ainda assim em ambos os campos está se
considerando as questões que envolvem a correção, a precisão, a não corrupção, bem como a
proveniência e a custódia.

AVALIAÇÃO DA AUTENTICIDADE DO DOCUMENTO DIGITAL


Uma questão importante diz respeito à diferença entre presunção de autenticidade e
avaliação da autenticidade. De acordo com o Authenticity Task Force Report, do InterPARES 1
Project, a presunção da autenticidade é
[...] uma inferência retirada de fatos conhecidos sobre a maneira pela qual o documento
foi produzido, utilizado e mantido. A evidência, que embasa a presunção de que o
produtor produziu e manteve a autenticidade de seus documentos arquivísticos digitais,
está enumerada nos Requisitos de Referência (InterPARES 1 Project, 2001a, p. 22,
tradução nossa)20.

Neste sentido, a presunção de autenticidade tem como base o número de requisitos de


referência (benchmark) satisfeitos e o grau de satisfação de cada um, que foram descritos
anteriormente. Os requisitos são, portanto, cumulativos: quanto maior o número de requisitos

20
Original: “[...] is an inference that is drawn from known facts about the manner in which a
record has been created, handled, and maintained. The evidence supporting the presumption that
the creator created and maintained its electronic records authentic is enumerated in the
Benchmark Requirements [...]” (InterPARES1 Project, 2001a, p. 22)
satisfeitos, e quanto maior o grau de satisfação dos requisitos individuais, mais forte a presunção
de autenticidade.
Com relação à verificação da autenticidade, o InterPARES1 Project (2001a, 2001b)
considera que esta é prevista quando, em uma situação, pode não haver base suficiente para a
presunção de autenticidade, ou a presunção pode ser extremamente fraca.
A verificação de autenticidade é “[...] o ato ou processo de estabelecer uma
correspondência entre fatos conhecidos sobre o documento e os vários contextos em que foi
produzido e mantido, e o fato proposto da autenticidade do documento” (InterPARES 1 Project,
2001a, p. 22, tradução nossa)21.
Diferentemente da presunção de autenticidade, estabelecida com base nos requisitos
indicados acima, a verificação da autenticidade abrange um exame detalhado dos próprios
documentos e a disponibilidade de informação confiável em outras fontes sobre os documentos e
os vários contextos em que foram produzidos e mantidos.
Os métodos de verificação incluem uma comparação dos documentos em questão com as
cópias preservadas em outro lugar, ou em fitas back-up. Também pode ser feita uma comparação
dos documentos em questão com um registro de entrada e saída de documentos; uma análise
textual do conteúdo do documento; análise forense de aspectos como o suporte e o texto; um
estudo sobre trilhas de auditoria; e o testemunho de uma parte neutra confiável. (InterPARES 1
Project, 2001, p. 22).
De acordo com o Diretrizes do preservador do InterPARES 2 Project (2011b), a
verificação da autenticidade para os documentos tradicionais era feita por meio de três métodos
principais. O primeiro método procurava confirmar a “[...] existência de uma cadeia de custódia
ininterrupta desde o momento da produção do documento até a sua transferência para a entidade
arquivística, responsável pela sua preservação” (InterPARES 2 Project, 2011b, online).
O segundo método é o da Diplomática 22, o qual depende do “[...] conhecimento do
arquivista a respeito das práticas de guarda e manutenção dos documentos, tanto historicamente

21
Original: “[...] the act or process of establishing a correspondence between known facts about
the record and the various contexts in which it has been created and maintained, and the
proposed fact of the record’s authenticity.”
22
Sobre a análise crítica da Diplomática, ver Duranti, L. Diplomática: novos usos para uma
antiga ciência (parte V). Disponível em:
https://revista.an.gov.br/index.php/revistaacervo/article/view/600. Acesso em: 5 maio 2023.
quanto em relação aos tipos de documentos e procedimentos administrativos” (InterPARES 2
Project, 2011b, online). O terceiro método, menos utilizado, baseia-se na comparação:
“Documentos de um fundo arquivístico são comparados com as cópias encaminhadas e mantidas
por fontes externas no curso normal do trabalho do produtor” (InterPARES 2 Project, 2011a, n.
p.).
No ambiente eletrônico, os documentos arquivísticos apresentam outras dificuldades.
Segundo o InterPARES2 Project (2011a), um dos maiores riscos à autenticidade é a facilidade
com que documentos podem ser alterados ou mesmo falsificados sem deixar rastro,
diferentemente dos suportes tradicionais, os quais pelas suas características físicas podem deixar
algum vestígio de que foi alterado. Esse Projeto também elenca outros problemas que
apareceram junto com o formato digital, os quais dificultam a avaliação da autenticidade.
Um primeiro problema diz respeito ao suporte em que os documentos são armazenados,
os quais não podem confirmar a data ou o lugar de elaboração de um documento, pois qualquer
pessoa, que tiver acesso a um equipamento obsoleto, mas que esteja em funcionamento, e às
mídias de armazenamento (como por exemplo um disquete ou uma fita magnética) pode copiar
esses arquivos. (InterPARES 2 Project, 2011a, n. p.). Nessa situação, o suporte não tem
capacidade de indicar com precisão as circunstâncias do tempo e do lugar em que o documento
foi produzido.
O segundo problema é quanto à exatidão do elemento data, isto é, o carimbo do tempo 23,
o qual pode ser modificado se o relógio do sistema for ajustado. (InterPARES 2 Project, 2011a,
n. p.). Devemos destacar que o carimbo de tempo não registra a data e hora de produção do
documento, mas a hora e data da requisição do carimbo à Autoridade de Carimbo de Tempo.
O terceiro problema se relaciona com a deterioração das práticas e procedimentos de
elaboração, tramitação e arquivamento dos documentos: “[...] memorandos e correspondência
com cabeçalho, desapareceram sob o massacre de formulários [...] novos e individualizados, que
rapidamente acrescentaram cores personalizadas, gráficos e mesmo efeitos sonoros”
(InterPARES 2 Project, 2011a, n. p.).
23
O carimbo digital de tempo: “[...] um documento eletrônico emitido por uma Autoridade de
Carimbo do Tempo (ACT) que serve como evidência de que uma informação digital existia
numa determinada data e hora. O timestamp, calculado a partir do hash do documento, é o
registro da data e hora em que a requisição do timestamp (Time Stamp Request) chegou à
Autoridade de Carimbo do Tempo, e não se refere à data e hora de criação do documento. É uma
forma de autenticação do documento” (CONARQ, 2020, p. 15).
O quarto problema diz respeito à introdução das redes de mensagens eletrônicas que
também minaram as práticas de tramitação oficiais dos documentos arquivísticos. (InterPARES 2
Project, 2011a, n. p.).
O quinto se refere às reduções de pessoal nas atividades de arquivos, porque as
organizações passaram a considerar que os objetos digitais não precisavam mais ser geridos
como os documentos em papel, acabando com “[...] os acervos de arquivos correntes que
deixaram de receber documentos produzidos e transmitidos em forma digital”. (InterPARES 2
Project, 2011a, n. p.).
Todos esses problemas são desafios à avaliação da autenticidade dos documentos digitais.
Em razão de todos os problemas e desafios indicados, os arquivistas e os funcionários de
organizações públicas e privadas se preocupam com a autenticidade, porque sabem que os
originais, ou as cópias autênticas, são insubstituíveis como fonte de prova para um cidadão, uma
comunidade, ou mesmo para a própria administração que criou esses documentos. Na sua
ausência, ou se existirem desconfianças quanto ao seu caráter autêntico, pessoas, organizações,
comunidades e estados podem ter seus direitos questionados, ou mesmo negados, levando a
prejuízos econômicos, sociais, políticos e culturais.
Como a autenticidade está ligada às circunstâncias de como o documento foi mantido sob
custódia, é preciso esclarecer os pontos essenciais do conceito de custódia no ambiente
arquivístico.

Custódia e autenticidade
Custódia é definida pelo Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística (2005, p. 62)
como “responsabilidade jurídica de guarda e proteção de arquivos, independentemente de
vínculo de propriedade”.
O Dicionário de Terminologia Arquivística de Camargo e Bellotto (2010, p. 35) apresenta
a custódia como “[...] responsabilidade jurídica, temporária ou definitiva, de guarda e proteção
de documentos dos quais não se detém a propriedade”.
A ideia básica de custódia é a responsabilidade que alguém deve assumir para proteger os
arquivos contra qualquer ameaça que corrompa, altere, subtraia ou destrua sem autorização os
documentos, e, portanto, se vincula com o conceito de autenticidade, o qual significa que os
documentos permaneceram sem alteração e com os seus elementos essenciais intactos.
A relação entre autenticidade e custódia foi apontada por Jenkinson (1922) como
essencial à caracterização de um arquivo, pois como os arquivos estão sujeitos a uma série de
ameaças, demonstrar que os documentos permaneceram sem alteração e não foram corrompidos,
é uma função essencial da custódia. O autor afirma que a autenticidade está ligada à própria
definição de arquivo, já que os documentos devem ser preservados sob a custódia do produtor e
seus legítimos sucessores, como pode ser visto na sua definição de arquivo:
Um documento dito como pertencente à classe dos arquivos é aquele elaborado ou
usado no curso de uma transação administrativa ou executiva (pública ou privada) da
qual tomou parte; e subsequentemente preservado sob sua custódia e para a sua
própria informação pela pessoa ou pessoas responsáveis por aquela transação e
seus legítimos sucessores (Jenkinson, 1922, p. 11, tradução e grifos nossos)24.

Jenkinson (1922, p. 11) considerou que, para ser considerado arquivo, é necessário que
esse material seja autêntico e o meio de demonstrar a autenticidade é a possiblidade de provar
uma linha imaculada de custodiantes responsáveis. A preocupação desse autor se refere à
existência de falsificações ou mesmo documentos que foram separados da sua origem e que, em
muitos casos, ocorreram por falha na custódia, ou seja, a custódia foi interrompida.
Assim, Jenkinson (1922) considera as circunstâncias em que muitos documentos,
desconectados da sua origem, terem sido trazidos à custódia administrativa e não serem arquivos,
como por exemplo: documentos comprados, documentos oficiais que estão com pessoas
privadas, ou ainda documentos que foram desmembrados e estão em museus. Essas situações
significam que o vínculo que esses documentos tinham com outros documentos do mesmo
conjunto, foi rompido e não é possível demonstrar que permaneceram autênticos. Se existe
custódia ininterrupta a possibilidade de falsificação é nula, pois houve cuidados por parte do
custodiante quanto à proteção dos documentos.
A linha de custodiantes responsáveis se refere à transmissão dos arquivos ao longo do
tempo, de um produtor aos seus sucessores legítimos até o arquivista, cuja função é manter
preservados os documentos originais e autênticos dos produtores de arquivos, sendo, portanto,
um legítimo sucessor desses produtores.

24
Original: “A document which may be said to belong to the class of Archives is one which was
drawn up or used in the course of an administrative or executive transaction [whether public or
private] of which itself formed a part; and subsequently preserved in their own custody for their
own information by the person or persons responsible for that transaction and their legitimate
successors.” (Jenkinson, 1922, p. 11).
Até agora temos classificado como arquivista (nos termos de nossa definição de
arquivos) tanto a pessoa que assume o controle, ou o seu substituto, como parte de um
legado legítimo de um órgão, que atesta os relatos escritos das atividades do órgão no
passado, ou, como no caso de um funcionário do Public Record Office, a pessoa
encarregada do dever de receber de funcionários das (às vezes) instituições extintas o
legado de um patrimônio sem herdeiros diretos, um tipo de depositário público
(Jenkinson, 1922, p. 39, tradução nossa)25.

Desta forma, a existência de uma “linha imaculada de custodiantes” ou “custódia


ininterrupta”, termos utilizados por Jenkinson (1922), depende basicamente da atuação desses
custodiantes, que podem fazer parte da administração produtora, ou serem pessoas ou entidades
que os sucederam e que assumiram a sua guarda de forma responsável, ou ainda quando são
recolhidos para uma instituição arquivística.
De acordo com Duranti (2007), a custódia ininterrupta é considerada essencial para que
os documentos digitais ingressem em uma instituição de preservação, tendo em vista que no
âmbito do produtor original e seus sucessores, esses documentos passaram por diversas
migrações e mudanças tecnológicas, e que podem ter sofrido algum tipo de alteração, que
comprometa o documento. Neste sentido, o arquivo, a entidade oficial de preservação, cumpre o
papel de ser uma parte que, não tendo interesse no conteúdo do documento, como os produtores
e usuários, pode manter os documentos autênticos ao longo do tempo.
O Glossário de documentos digitais apresenta a definição de cadeia de custódia
ininterrupta, de acordo com o significado atribuído pelo InterPARES Project:

Linha contínua de custodiadores de documentos arquivísticos (desde o seu produtor até


o seu legitimo sucessor) pela qual se assegura que esses documentos são os mesmos
desde o início, não sofreram nenhum processo de alteração e, portanto, são autênticos
(CONARQ, 2020, p. 14).

A custódia ininterrupta explicita a ideia da transmissão dos arquivos como uma cadeia de
responsabilidades dos órgãos produtores e os seus sucessores até o arquivo instituição, com a
finalidade de assegurar a autenticidade e o valor de prova dos documentos.

25
Original: “So far we haveclassed as an Archivist (by the terms of our definition of Archives)
either the person who takes over, by himself or his deputy, as part of the legitimate inheritance of
an office he fulfils the written memorials of its activities in the past, or, as in the case of an
official of the Public Record Office, a person charged with the duty of receiving from the
functionaries of (sometimes) expiring other institutions the inheritance for which there will be no
direct heir, a kind of Public Trustee.” (Jenkinson, 1922, p. 39).
Deve-se ressaltar ainda que, ao transmitir os arquivos de produtores e seus sucessores
para uma instituição arquivística, significa que os documentos estarão em segurança, não mais
sujeitos às alterações, que podem ocorrem no âmbito dos produtores. No ambiente do produtor,
quando os documentos não são mais necessários aos propósitos pelos quais foram criados,
porque a ação registrada neles foi encerrada ou concluída, estes ficam em situação de risco e
sujeitos à perda, deterioração e alteração indevida.
Com relação à validade da custódia como necessária à preservação de longo prazo dos
documentos digitais, Duranti (2007) considera que não é possível proteger o documento
arquivístico sem a custódia, exercida por uma entidade de preservação, em razão da necessidade
de se demonstrar que a entidade preserva de forma transparente os documentos sob sua guarda. É
o que a autora chama de “transparência da preservação”.
A autenticidade é garantida por procedimentos e requisitos legais, administrativos e
técnicos, aos quais os produtores estão submetidos e que pertencem as suas obrigações e
responsabilidades por um certo período. A partir do momento em que este período termina, o
documento pode ficar em situação de risco, podendo ser subtraído, corrompido ou mesmo
destruído, pois pode não fazer parte do mandato, nem do interesse do produtor, manter os
documentos intactos. Assim,
[...] a razão de ser do ambiente arquivístico é garantir a autenticidade contínua dos
documentos arquivísticos contra alterações propositais ou acidentais e é seu mandato
fazê-lo. Este conceito de necessidade de uma terceira parte neutra que é responsável
especificamente pela preservação e transparência da autenticidade dos documentos
produzidos por outras partes é formalmente reconhecido também na legislação referente
aos contratos eletrônicos (Duranti, 2007, p. 461, tradução nossa)26.

Outro fator importante, para Duranti (2007), se refere à segurança, isto é, a certeza de
que os documentos não podem ser alterados, o que comprometeria a sua autenticidade, pois esta
característica reside mais em garantias circunstanciais do que tecnológicas.
Além disso, de acordo com Duranti (2005, p. 11), no ambiente convencional, as
organizações recebem uma delegação de poder para realizarem suas atividades e, portanto, todos
os documentos produzidos pelo produtor se presumem autênticos. Já no ambiente digital, em
virtude da obsolescência tecnológica e da vulnerabilidade intrínseca desse material, a
26
Original: “[...] the raison d’être of the archival environment is to guarantee the continuing
authenticity of records against purposeful or accidental alterations, and it is its mandate to do so.
This concept of the need for a neutral third party who is specifically responsible for the
preservation and accountable for the authenticity of the records produced by other parties is
formally recognised also in electronic contracting law.” (Duranti, 2007, p. 461).
autenticidade deve ser demonstrada pela evidência de que um documento não foi corrompido ou
alterado durante sua transmissão e manutenção.
A autora destaca ainda a relevância da passagem do ambiente do produtor para o
ambiente do arquivo, como forma de assegurar a estabilidade do contexto do documento
arquivístico:
[...] o contexto do documento arquivístico é definido e imutável, isto é, que todos os
seus relacionamentos são estabelecidos e mantidos intactos, e isto não pode ser
garantido sem uma clara demarcação do momento em que a definição do contexto esteja
completa, finalizada e capaz de ser autenticada (Duranti, 2007, p. 463, tradução nossa) 27.

Para garantir a transparência da preservação do documento, sua segurança e


estabilidade, é necessário que este atravesse o limiar arquivístico, o espaço onde não é possível
qualquer alteração. Quando o documento é transferido do ambiente do produtor e passa para o
ambiente arquivístico, não há mudança de natureza, ou seja, não é que ele antes era um registro e
agora é um arquivo. O caráter arquivístico é definido no momento da criação, ou seja, o
documento é criado como documento arquivístico e integra o arquivo da pessoa física ou
jurídica, e a sua passagem para a custódia de uma entidade de preservação significa que o
documento irá permanecer autêntico e pode desempenhar sua função testemunhal.
Atravessar o limiar arquivístico, dessa forma, não mudaria a natureza do documento
arquivístico nem o seu valor, mas demarcaria o momento de sua estabilidade e a
obtenção da sua capacidade de servir como testemunho da ação (Duranti, 2007, p. 463-
464, tradução nossa)28.

Com relação à inviolabilidade do documento, a autora considera que o limiar


arquivístico e o domínio de armazenamento devem ser colocados sob a jurisdição de uma
autoridade independente como uma unidade de arquivo (archival office), ou uma instituição de
preservação, desde que sejam capazes de assegurar transparência e segurança de preservação e
de apresentar documentos autênticos (Duranti, 2007).
A instituição arquivística, no desempenho da sua função de custodiante dos documentos
digitais, deve estabelecer uma arquitetura na qual os documentos de todos os produtores, uma
vez recebidos, possam ser colocados em relações estáveis e que estejam claramente definidas, e,
27
Original: “[...] context is defined and immutable, that is, that all its relationships are
established and maintained intact, and this cannot be guaranteed without a clear demarcation of
the moment in which the contexto definition is complete, finalized, capable of being
authenticated.” (Duranti, 2007, p. 463).
28
Original: “Crossing the archival threshold in such a case would not change the nature of the
record, neither its value, but would demarcate its moment of stability, the achievement of the
capacity to serve as testimony of action” (Duranti, 2007, p. 463-464).
ainda, que seu contexto mais amplo possa ser identificado, bem como as associações entre os
documentos nunca possam ser rompidas (Duranti, 2007).
A concepção de Duranti sobre a relação entre custódia e autenticidade também foi
desenvolvida pelo InterPARES 2 Project, que definiu custodiante confiável como “preservador
que pode demonstrar que não tem razões para alterar ou permitir que outros alterem os
documentos arquivísticos preservados e é capaz de implementar todos os requisitos para a
preservação de documentos arquivísticos autênticos” (InterPARES 2 Project, 2011b, n. p.).
Na definição de custodiante confiável do InterPARES 2 Project foram destacados dois
pontos: a não alteração, isto é, a autenticidade, e a viabilidade de preservação dos documentos
digitais. Isso significa que a autenticidade é contínua e que a preservação de documentos digitais
autênticos exige uma série de requisitos para a sua execução, tais como planejamento, recursos
humanos, materiais e tecnológicos, procedimentos, estratégias de manutenção e preservação.
O significado primário de custódia é guarda responsável e, portanto, não está vinculada
ao suporte ou formato, já que o seu exercício por um custodiante compreende os arquivos sob
sua guarda, sem distinção de tipo, data ou suporte. Outro ponto importante se refere ao fato de
que a preservação de documentos digitais exige um aparato tecnológico complexo e condições
de viabilizar todas as medidas de preservação do material custodiado, e que essas medidas
devem ser previstas desde o início do ciclo de vida dos documentos.
Esses pontos são abordados na produção do InterPARES 2 Project (2011b) com a
apresentação dos conceitos de cadeia de custódia ininterrupta e cadeia de preservação. Enquanto
a cadeia de custódia ininterrupta diz respeito a linha de custodiantes responsáveis ao longo do
tempo, isto é, a sucessão de custodiantes que mantiveram a autenticidade dos documentos, a
cadeia de preservação se apoia no conceito de ciclo de vida e recomenda um conjunto de
medidas e ações a serem implementadas para assegurar que os documentos serão mantidos
autênticos durante toda a sua existência. Tanto a cadeia de custódia ininterrupta como a cadeia de
preservação são condições para assegurar a autenticidade dos documentos digitais, porém
enquanto a primeira diz respeito aos responsáveis pela guarda, de forma que possam ser
rastreados, a segunda se refere especificamente às ações de preservação, que foram adotadas e
implementadas durante a vida do documento, de forma rastreável e auditável.
Neste sentido, a custódia e a preservação se relacionam mutuamente, pois é necessário
implementar uma série de ações planejadas, encadeadas e auditáveis, como elos de uma corrente,
a fim de garantir que o material custodiado está preservado, acessível e autêntico (Silva, 2019).
As reflexões aqui apresentadas nos levam a considerar a importância das instituições de
custódia, como os arquivos públicos, na preservação da autenticidade dos documentos, incluindo
os digitais, ou ainda, das entidades como os serviços de arquivo dos órgãos, que possuam
autonomia e autoridade sobre os arquivos custodiados. Para que essas instituições possam
garantir a preservação e o acesso a materiais autênticos, é preciso atravessar o limiar arquivístico,
ou seja, mudar do ambiente e da responsabilidade do produtor para o ambiente e
responsabilidade do preservador, o qual pode ser uma instituição arquivística ou uma entidade de
preservação, desde que tenha mandato específico para preservar e dar acesso ao material sob sua
guarda. Esse preservador, por não ter interesse no conteúdo dos documentos e por ter um
mandato específico, regulado jurídica e administrativamente, é a pessoa, física ou jurídica, mais
habilitada e competente para realizar a preservação e o acesso a esse material.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve por objetivo expor a relação entre autenticidade e custódia nesse
ambiente tecnológico complexo e como a autenticidade é dependente de uma cadeia de custódia
ininterrupta e da atuação de um custodiante confiável. Indicamos a necessidade de
procedimentos rigorosos de gestão de documentos, por meio da adoção de um sistema
informatizado aderente a modelos de requisitos e padrões de metadados, como forma de garantir
a produção e manutenção de documentos autênticos, bem como a implementação de
procedimentos de gestão de documentos para que indivíduos, principalmente aqueles que atuam
na pesquisa científica, possam assegurar que os documentos arquivísticos ali produzidos possam
se manter autênticos. Com relação ao uso do conceito de autenticidade no campo das ciências e
da pesquisa científica, os pesquisadores do InterPARES 2 Project constataram que o termo
acurácia recebe maior atenção do que o termo autenticidade, pois é crucial para a validade da
pesquisa científica a qualidade dos dados. Verificaram que os cientistas, mesmo que não usem o
termo autenticidade, estão muito preocupados com as questões de identidade e integridade de
dados, que têm correlação com a identidade e integridade dos documentos arquivísticos digitais,
que são conceitos fundamentais para a presunção da autenticidade dos documentos digitais,
conforme proposta do InterPARES2 Project 2 (2011b). O estudo destacou, ainda, que as
questões de linhagem de dados seriam análogas às questões arquivísticas sobre proveniência e
cadeia de custódia e concluiu que as diferenças no uso dos termos autenticidade, acurácia e
fidedignidade seriam mais de ênfase em razão das questões específicas da atividade dos
cientistas.
Além disso, ressaltamos a necessidade de implementar todas as ações e medidas
necessárias para a preservação dos documentos arquivísticos digitais, utilizando o modelo da
cadeia de preservação proposta pelo InterPARES 2 Project (2011) a fim de assegurar que os
documentos não sofreram com a fragilidade e instabilidade do contexto tecnológico e estarão em
condições de serem utilizados. Buscamos também demonstrar a relação entre autenticidade e
custódia e como a guarda responsável é condição para a manutenção da autenticidade dos
documentos arquivísticos digitais.
Assim, destacamos a importância de transpor o limiar arquivístico, a fronteira entre
produtor e a entidade de preservação, a fim de que os documentos, postos sob uma guarda
responsável e independente, permanecerão autênticos, preservados e em condições de serem
utilizados por quaisquer usuários, tendo a garantia de que estes não foram manipulados nem
alterados.
O arquivista, hoje, está sendo chamado para desempenhar diversas funções no ambiente
eletrônico e não pode esquecer que é fundamentalmente um preservador, que garante a
durabilidade e o acesso a documentos autênticos. Como preservador de documentos autênticos e
que assegura o seu acesso, seu maior compromisso é com os arquivos, pois o cidadão, ao utilizar
documentos autênticos, pode exercer seus direitos e obter benefícios e imunidades. O arquivo,
portanto, é muito mais que um local de pesquisa para o investigador erudito, sendo
fundamentalmente um lugar de exercício da cidadania.

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