NIVELAMENTO PORTUGUES

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NIVELAMENTO

DE PORTUGUÊS
A língua portuguesa
no ensino superior
Tamires Pereira Duarte Goulart

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

> Identificar o papel do estudo da língua portuguesa nos cursos superiores.


> Verificar a relação entre as concepções de gramática e linguagem.
> Reconhecer formas de integrar o ensino de gramática ao de produção
de texto e de vocabulário.

Introdução
A língua portuguesa é a ferramenta de comunicação que nos conecta como
falantes de um mesmo idioma. Em contexto nacional, é por meio dela que pro-
curamos garantir a efetiva compreensão do que falamos e do que escutamos.
Nesse sentido, é necessário que possamos entendê-la para além da aplicação
de normas e regras gramaticais.
Considerando, em especial, o nível de ensino superior, é importante perceber
que o conhecimento sobre as particularidades da língua portuguesa é um
caminho fundamental para o aperfeiçoamento tanto em âmbito pessoal como
profissional. Independentemente da área de atuação, o profissional que domina
e articula sua língua materna atinge seus objetivos discursivos de forma mais
efetiva. Entretanto, durante o ensino fundamental e o ensino médio, muitas
vezes, o processo de ensino-aprendizagem do idioma direciona-se predominan-
temente às regras ortográficas e gramaticais, o que não possibilita um amplo
conhecimento das relações que se estabelecem na perspectiva enunciativa.
Desse modo, não se propicia que os estudantes conheçam os diferentes eixos
que compõem a língua portuguesa, como a fonologia, a morfologia, a sintaxe,
2 A língua portuguesa no ensino superior

a semântica e a morfologia, assim como a relação existente entre essas áreas


e a veiculação de um texto.
O domínio da língua, portanto, contempla a reflexão sobre os diferentes eixos
linguísticos que a compõem. Nesse sentido, é fundamental que o processo de
ensino-aprendizagem da língua portuguesa no ensino superior esteja centrado
na reflexão sobre a língua, a linguagem e seus usos, e não apenas sobre as
regras relacionadas à gramática normativa.
Neste capítulo, você vai refletir sobre o papel do estudo da disciplina de
língua portuguesa nos cursos superiores. Além disso, vai verificar a relação
entre as concepções de gramática e linguagem e as formas de integrar o ensino
de gramática ao de produção de texto e de vocabulário.

O papel do estudo da língua portuguesa nos


cursos superiores
O ensino-aprendizagem da língua portuguesa permite o desenvolvimento
de diferentes áreas do desenvolvimento humano, em especial a cognitiva,
a social e a afetiva. Inicialmente, é necessário entender que é por meio da
aquisição da linguagem que os seres humanos desenvolvem habilidades,
potencializam aprendizagens e se comunicam (Vygotsky, 1989). As teorias de
aprendizagem, desde seus estudos iniciais, já previam a necessidade do ser
humano de desenvolver a linguagem. O Quadro 1 apresenta as premissas de
algumas dessas teorias.

Quadro 1. Linguagem e as teorias de aprendizagem

Teoria comportamentalista que teve como precursores


John Broadus Watson e Ivan Petrovich Pavlov. Foi com
Burrhus Frederic Skinner (1953), no entanto, que as ideias
behavioristas ganharam mais impacto. Ele centrou-se no
método experimental na psicologia, entendendo que o
Behaviorismo ambiente é essencial para a ocorrência da aprendizagem,
sendo esta medida pelo reforço ou pela negação de
comportamentos. Nesse contexto, a linguagem é adquirida
em sua essência pelos comportamentos com base em
estímulo-resposta, e o meio é um determinante para que
se adquira essa habilidade.

(Continua)
A língua portuguesa no ensino superior 3

(Continuação)

Importante movimento que foi difundido no século XX


a partir dos ensinamentos do linguista Ferdinand de
Saussure. Atingiu diferentes áreas do conhecimento,
sobretudo pelo entendimento dos conceitos de significado
e significante. A linguagem, sob essa perspectiva, é
Estruturalismo
entendida como a aquisição de uma estrutura, um sistema
de regras que se combinam para veicular significado,
em que cada elemento pode ser definido a partir de sua
relação (de equivalência ou oposição) com os outros
elementos.

Em meados de 1957, Noam Chomsky buscou a formalização


de fatos linguísticos, entendendo como eixo norteador
um conjunto de regras e princípios que formaliza a
Gerativismo aprendizagem. Em especial, a área de aquisição da
linguagem está atrelada à ideia de gramática universal
(GU), um conjunto de regras internalizadas em cada falante
de uma mesma língua que garante a comunicação.

Teoria de base epistemológica que busca entender a


construção do conhecimento a partir da genética e da
influência do meio. Teve as premissas sustentadas pelas
pesquisas de Jean Piaget, em meados do século XX,
com primícias em 1967. A linguagem é vista como uma
Construtivismo
aprendizagem a ser adquirida por meio das relações entre
o desenvolvimento do sujeito e seu meio, considerando os
estágios do desenvolvimento do conhecimento: sensório-
motor, pré-operatório, operatório concreto e operatório
formal.

Na década de 1970, Lev Vygotsky propôs o entendimento


do ser humano e seu desenvolvimento a partir de uma
Sociointera- visão sociocultural, por meio da interação com o outro. A
cionismo linguagem é entendida como uma habilidade que requer a
interação social e que está atrelada ao desenvolvimento
do pensamento, pois age na sua estrutura.

Uma das redes teóricas contemporâneas que descrevem


e estudam fenômenos sob o viés de diferentes áreas,
como inteligência artificial, psicologia cognitiva, ciências
cognitivas e neurociência. Nessa abordagem, a
linguagem é um tipo de cognição (como a visão) que
envolve o processamento de informações pelo cérebro.
Conexionismo Pesquisadores dessa área questionam pressupostos
gerativistas, como um conhecimento gramatical
previamente dado. Como explica Cristina Magro (2003), o
conhecimento da linguagem, no conexionismo, não é igual
ao conhecimento da gramática. As regras gramaticais,
nesse sentido, são uma descrição do resultado da
aprendizagem (o uso da linguagem), não seu pré-requisito.

Fonte: Adaptado de Moreira (1999).


4 A língua portuguesa no ensino superior

O desenvolvimento da comunicação pode ocorrer por diferentes tipos


de linguagens: verbal (com o uso da palavra falada ou escrita), não verbal
(com o uso de imagens, desenhos, gestos, figuras, símbolos, etc.) ou mista
(com o uso das linguagens verbal e não verbal no mesmo ato comunicativo).
Esses diferentes modos de linguagem se manifestam por meio de gêneros
textuais, a depender da finalidade e do contexto comunicativo. Nesse sentido,
cabe salientar que língua e linguagem se diferenciam. A língua é o sistema
de estruturas mentais que o falante internaliza ao aprender um idioma,
ao passo que a linguagem é a materialização dessas estruturas para veicular
a comunicação entre os sujeitos e, por isso, pode acontecer por mais de uma
via (Chomsky, 1995). A língua de sinais é um bom exemplo disso, já que se
constitui a partir da linguagem gestual-visual.
Mas o que significa gênero textual? Luiz Antônio Marcuschi (2006) discute
que, pela necessidade de comunicar-se, o indivíduo recorre aos gêneros como
uma forma de se adequar a determinado contexto, de modo que os textos
e/ou os discursos circulam por intermédio dos gêneros. Em outras palavras,
um gênero textual é uma ação comunicativa que tem características específicas
para atingir um objetivo; por exemplo, um artigo científico tem por objetivo
apresentar ideias e resultados de pesquisas qualitativas e/ou quantitativas.
Essas premissas são fundamentais para que o estudante do ensino superior
entenda que toda construção de aprendizagens ao longo da escolarização,
desde o processo de alfabetização até o entendimento de regras mais precisas
sobre determinados eixos linguísticos, pode servir como instrumento potente
para a produção textual, ou seja, para a ação comunicativa, especialmente
em se tratando da linguagem verbal (fala ou escrita).
Nesse ponto, é essencial o conceito de letramento (Soares, 2020). Desde
muito cedo, a intencionalidade pedagógica da escolarização deve primar pelo
letramento dos estudantes. Essa ideia está além da alfabetização, visto que,
para ser letrado, precisa-se da compreensão social da leitura e da escrita,
habilidades estas que estão muito além do processo de decodificação do
sistema alfabético. Ou seja, é preciso saber ler e escrever diferentes gêneros
e discursos, apropriados a cada contexto.
Além disso, entende-se que o letramento começa antes da alfabetização
e se estende durante toda a vida de uma pessoa, pois novos gêneros textuais
surgem a todo momento, em particular considerando-se os avanços midiáticos
e tecnológicos. Nesse contexto, estudantes de ensino superior precisam de
um trabalho pedagógico direcionado à plena interpretação, compreensão,
leitura e escrita de textos para estarem preparados a atuar, socialmente, nos
mais diversos campos.
A língua portuguesa no ensino superior 5

O que é, de fato, o letramento? Magda Soares (2020) denomina le-


tramento o desenvolvimento explícito e sistemático de habilidades
e estratégias de leitura e escrita. É aprender o sistema de escrita alfabético e,
contemporaneamente, conhecer e aprender seus usos sociais: ler, interpretar
e produzir textos.

Assim, o ensino de língua portuguesa no ensino superior compreende o


estudo da língua em uso, aliando a aprendizagem dos aspectos gramaticais
à leitura e à escrita. Saber ler e escrever para manter a efetiva comunicação
é vital para o bom desempenho acadêmico e profissional em qualquer área
de atuação. Em se tratando da leitura, há dois conceitos a serem discutidos:
o de compreensão e o de interpretação.
Ler para compreender depreende a realização da leitura fluente para
buscar e extrair informações a partir de um contexto discursivo (Soares,
2020), informações que estão explícitas no texto e que são compreendidas
pelo leitor por intermédio de uma leitura fluente. Já ler para interpretar
depreende um conjunto de condições para a leitura que envolvem, além da
compreensão do que está escrito, os conhecimentos prévios do leitor para
interpretar informações implícitas no texto. Esses dois processos são o eixo
estruturante para que o estudante domine as funções sociais da leitura com
precisão, pois será capaz de ir além da superfície textual, do sentido mais
imediato, e poderá interpretar de forma mais aprofundada cada gênero a que
se dedicar, considerando suas especificidades.
Assim, considerando a aprendizagem da escrita, precisamos atentar aos
seguintes fatos:

„ o processo de aprendizagem precisa ser contínuo e sistemático;


„ os eixos ortográfico, sintático e semântico precisam ser compreendidos
a favor da unidade textual;
„ é fundamental o ensino sistemático das regras e particularidades do
português, considerando que muitos gêneros textuais contemplam a
variedade formal da língua. Cabe ressaltar, sobretudo, que também há
gêneros que permitem uma escrita com maior informalidade, como, por
exemplo, o bilhete e a escrita por meio de aplicativos, como WhatsApp.
6 A língua portuguesa no ensino superior

Sobre isso, vale pensar que o português brasileiro (PB) é uma língua de
estrutura alfabética, ou seja, que tem como base o Sistema de Escrita Alfa-
bética (SEA). A essência do SEA é a relação fonológica estabelecida entre o
som (fonema) e a letra (grafema), o que chamamos de consciência fonológica.

O PB é considerado uma língua parcialmente transparente. O que isso


significa? A discrepância de opções pelo tipo de aspectos linguísticos
privilegiados pela ortografia de cada língua origina a divisão entre línguas com
sistemas de escrita fonemicamente transparentes e línguas com sistemas de
escrita fonemicamente opacos (Veloso, 2005).
As línguas com escrita fonemicamente transparente são aquelas que apre-
sentam uma correspondência maximamente regular, sistemática e biunívoca
entre os segmentos fonológicos e os símbolos gráficos discretos. Já as línguas
com sistemas de escrita fonemicamente opacos têm um afastamento em relação
a essa correspondência direta, biunívoca e isomórfica com as cadeias segmen-
tais da forma fonético-fonológica das palavras (Veloso, 2005). Dessa forma, o
sistema ortográfico de línguas transparentes é mais fácil de ser apreendido
pelas crianças.
No entanto, Veloso (2005) considera o português como uma língua parcial-
mente transparente. Isso significa dizer que o processo de ensino-aprendizagem
não é trivial e, muitas vezes, apresenta complexidade, em especial quando não
há a correspondência biunívoca entre fonema e grafema – ou seja, quando um
som pode ser representado por mais de uma letra. Por esse motivo, a habilidade
de escrita da língua portuguesa depende do entendimento do funcionamento
do sistema linguístico.

Como visto, o estudo da língua portuguesa no ensino superior é uma


oportunidade de aperfeiçoamento sobre os eixos que estruturam a língua
para todos os falantes, considerando, preponderantemente, que aumenta
possibilidades de contato com gêneros textuais mais formais, como relatório,
apresentações, seminário, artigo, roteiro, ofício, memorando e jurisdição.
O mercado de trabalho, nesse ponto, está cada vez mais atento às habilidades
de fluência leitora, compreensão, interpretação e produção textual. A seguir,
serão apresentadas as concepções de gramática e linguagem.

As concepções de gramática e de linguagem


Ao considerar o ensino da disciplina de língua portuguesa nos diferentes níveis
de escolarização, há um conceito que precisa ser discutido: o de gramática.
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Quando se pensa em gramática, é preciso entender que as evidências lin-


guísticas mostram que ensinar uma língua não se limita ao ensino de regras
gramaticais (Chomsky, 1995), sobretudo porque a própria ideia de gramática
vai muito além disso. O campo que traz essa discussão em diferentes âmbitos
é a linguística, que visa a estudar o movimento das línguas e como elas se
estruturam. Assim, faz-se necessário conhecer como os sistemas linguísticos
se organizam, considerando as particularidades de cada língua.
Foi no século XX, a partir dos estudos de Ferdinand de Saussure (2006),
na perspectiva do estruturalismo, que essa discussão ganhou destaque, em
especial quando Saussure estabeleceu a funcionalidade da língua e da fala.

Você sabe qual é a diferença entre língua e fala? De acordo com a


corrente estruturalista, há uma diferença importante entre a língua
(langue) e a fala (parole). A língua é social, coletiva, um sistema estruturado
que compõe as regras que cada falante tem internalizadas sobre a sua língua
materna. Já a fala é individual, particular, é a materialização desse sistema em
uso por cada falante (Saussure, 2006).

A parole pode trazer mudanças ao longo do tempo para a langue. Assim, o


estruturalismo impactou o entendimento de pontos relevantes para a cons-
trução da ideia de gramática, explicando dicotomias que ampliam a reflexão
sobre a língua. Além de língua versus fala, são consideradas as dicotomias a
seguir (Saussure, 2006).

„ Diacronia versus sincronia: a diacronia refere-se ao estudo da língua


através dos tempos, ao longo da história e do processo de mudanças,
ao passo que a sincronia é o estudo da língua considerando apenas
um determinado período ou movimento preciso.
„ Significante versus significado: o significante está relacionado à parte
de expressão do signo, como, por exemplo, os fonemas de uma língua
que se agrupam para formar uma palavra. O significado, por sua vez, é o
eixo do conteúdo, que transmite um sentido, um conceito que é gerado.
„ Sintagma versus paradigma: o sintagma é a relação que cada vocábulo
assume dentro de uma sentença, de forma linear. Já o paradigma é o
eixo de escolhas de vocabulário que o falante tem cada vez que decide
formar uma sentença discursiva.
8 A língua portuguesa no ensino superior

Foi com esses marcos dicotômicos que começou o pensamento em gra-


mática linguística do ponto de vista heterogênico, ou seja, voltado para as
possibilidades de manifestação linguística, e não mais apenas homogêneo,
para o que é considerado correto e padrão (gramática normativa). Desse
modo, o estudo da Língua Portuguesa incorpora diferentes tipos de gramática
(Figura 1).

Gramática normativa ou prescritiva: Gramática descritiva: estabelece análise


estabelece padrões e regras em caráter e reflexão sobre o uso da língua em
de uso formal para uma determinada diferentes contextos, tendo como foco a
língua, privilegiando a prescrição de língua viva, em uso, sem estabelever
normas e regras juízo de valor às variações linguísticas

Gramática comparativa: estuda e reflete


Gramática histórica: por meio de sobre uma língua em comparação à(a)
estudos diacrônicos, tem por função outra(s) de uma mesma família
estudar a origem e a evolução de uma linguística. No caso da língua
detrminada língua portuguesa, essa análise se dá com as
línguas românicas

Figura 1. Tipos de gramática.


Fonte: Adaptada de Geraldi (2011).

Para refletir sobre as diferentes concepções de gramática, Geraldi (2011,


p. 37) propõe uma primeira distinção entre domínio da língua e capacidade
de análise dela:

[...] uma coisa é saber a língua, isto é, dominar as habilidades de uso da língua
em situações concretas de interação, entendendo e produzindo enunciados ade-
quados aos diversos contextos, percebendo as dificuldades entre uma forma de
expressão e outra. Outra coisa é saber analisar a língua, dominando conceitos
e metalinguagens a partir dos quais se fala sobre a língua, se apresentam suas
características estruturais e de uso.
A língua portuguesa no ensino superior 9

É com base na compreensão das nuances de cada um dos tipos de gramática


que somos comtemplados com a análise sobre a língua e seu uso em con-
texto universal, natural e dinâmico. As línguas estão em constante mudança.
A visão de gramática tradicional, do ensino que prioriza a aprendizagem de
regras e normas, está relacionada às premissas da gramática normativa, que
prescreve normas. Essa ainda é uma visão muito abordada no ensino escolar,
em especial na educação básica.
A gramática descritiva, em sua contextualização, requer uma atenção
especial, devido, sobretudo, ao fato de que, nesse contexto, saber gramática
significa “ser capaz de distinguir, nas expressões de uma língua, as categorias,
as funções e as relações que entram em sua construção, descrevendo com
elas sua estrutura interna e avaliando sua gramaticalidade” (Travaglia, 2002,
p. 27). É sob esse escopo que Geraldi (2011) aponta as três principais concepções
de linguagem, ligadas a diferentes perspectivas de estudo:

„ Linguagem como expressão de pensamento: primeiros entendimentos


sobre linguagem, até o início das reflexões advindas de Ferdinand de
Saussure, em que o pensamento é o responsável pelas exteriorizações
linguísticas.
„ Linguagem como instrumento de comunicação: estudos reflexivos sobre
as relações entre a língua e a sociedade ganham impulso a partir do
reconhecimento da linguagem como um código linguístico organizado
pelo qual os falantes se comunicam.
„ Linguagem como processo de interação: reflexão sobre a funcionalidade
da língua em uso, evidenciando a interação e o processo comunicativo,
destacando-se, assim, o investimento no processo de construção
do conhecimento por meio dos gêneros textuais e suas diversidades
interacionais.

Sobre essa última concepção, Travaglia (2002, p. 23) explica que, nesse
caso, a linguagem é considerada um lugar de interação comunicativa “pela
produção de efeitos de sentido entre interlocutores, em uma das situações
de comunicação e em um contexto sócio-histórico e ideológico”. Sob esse
viés, o processo de ensino-aprendizagem merece um novo olhar desde o
ensino fundamental até o ensino superior, pois deve considerar as relações
estabelecidas entre uma língua viva e seus falantes. É preciso aprimorar
nossa reflexão sobre a língua portuguesa como falantes de um sistema,
permitindo que o estudante seja protagonista e reflexivo sobre a necessidade
de comunicação dos usuários de um mesmo idioma.
10 A língua portuguesa no ensino superior

É importante salientar que, embora cada viés tenha seu valor e seja im-
portante para um determinado momento histórico, esse terceiro viés é o mais
significativo no contexto do ensino da língua portuguesa atual. Isso porque
considera o processo de ensino-aprendizagem como um espaço de poten-
cialidades para o aperfeiçoamento das habilidades linguísticas por meio do
uso efetivo da língua em situações comunicacionais autênticas. A seguir, será
analisado como o ensino de gramática pode ser aliado à produção textual e
ao vocabulário no ensino superior.

O ensino de gramática aliado à produção


textual e ao vocabulário
Conforme Travaglia (2002, p. 101), “o ensino de gramática em nossas escolas
tem sido primordialmente prescritivo, apegando-se a regras de gramática
normativa que são estabelecidas de acordo com a tradição literária clássica,
da qual é tirada a maioria dos exemplos”. Essa visão do ensino, que requer
uma abordagem mais densa e normativa a respeito das regras linguísticas,
muitas vezes é desenvolvida a partir de listas de atividades e exercícios iso-
lados e desconectados do texto, que é a unidade de significado em contexto
comunicativo.
No momento em que as perspectivas para o ensino contemplam a postura
de um estudante mais ativo e protagonista, de fato, o processo de ensino da
língua portuguesa ganha uma nova versão. Assim, o olhar para a gramática
descritiva ganha destaque, sobretudo por permitir o entendimento do sistema
fonológico, morfológico, sintático e semântico a favor da construção textual.
A mudança de perspectiva da gramática normativa para a descritiva se dá
quando a aprendizagem ocorre para a comunicação. Por isso, o texto é o
elemento de funcionalidade do ensino. O estudante de ensino fundamental,
médio ou superior precisa aprender a pensar sobre sua língua, com a inten-
cionalidade de efetivar o processo de compreender, interpretar e se fazer
compreendido por meio da palavra e de suas performances.
Nessa perspectiva, a linguagem como interação, proposta por Geraldi (2011),
é um ponto central para o planejamento sistemático e objetivo do professor
de língua materna. É necessário ter uma visão que permita o engajamento
das aulas para o desenvolvimento de competências e habilidades que tenham
o texto como fonte de construção de um novo texto, afinal, aprendemos a
língua a partir dos seus usos.
A língua portuguesa no ensino superior 11

O professor precisa ter objetivos em curto, médio e longo prazos, buscando


possibilidades de aplicabilidade do discurso em práticas comunicativas, para
que a reflexão, o diálogo e o entendimento sobre a língua ganhem a vez nas
aulas de língua portuguesa. Assim, aprender gramática normativa ganha
uma função na perspectiva de interação e comunicação do enunciado, e é
possibilitada ao estudante a análise de um todo significativo. Isso significa
que, quando se entende a linguagem como interação, o ensino aumenta
as possiblidades no contexto de reflexão sobre algo que é pertencente ao
indivíduo, ou seja, a sua própria língua.
Trabalhos de pesquisa, seminários e atividades colaborativas são algumas
possibilidades de exploração acadêmicas que aumentam a proximidade
dos falantes estudantes com a língua portuguesa. Além disso, momentos
de ampliação de vocabulário expandem o inventário semântico do falante,
permitindo uma melhor compreensão, interpretação e produção discursiva.
Devido a isso, é de fundamental relevância a exploração dos diferentes usos
e contextos que as palavras podem assumir dentro da perspectiva de um
texto. Jogos digitais ou físicos, como jogo da memória ou tabuleiros, gincanas
e atividades de uso do dicionário (físico ou digital), são possibilidades de
estímulo a essa habilidade. Além disso, escritas, leituras e interpretações
coletivas, em que o professor possibilita a reflexão do estudante sobre o
significado de palavras dentro de um contexto, são muito necessárias.
Outro elemento primordial no planejamento sistemático e objetivo para o
desenvolvimento de habilidades e competências linguísticas é o trabalho com
a ortografia do português, afinal, nosso idioma é considerado parcialmente
transparente (Veloso, 2005), de modo que, para aprender as regras contextuais
do sistema ortográfico, o estudante depende de experiências que o levem à
exposição da escrita. Nesse sentido, é importante reforçar que toda proposta
pedagógica precisa levar o estudante a pensar sobre o seu idioma e a ser
protagonista da sua fluência linguística em língua materna.
Leite (2011, p. 19) discute que é necessário “dar espaço para que os alunos
possam refletir sobre a forma de organização da língua(gem) e os usos dessas
formas em diferentes contextos de produção”. Nesse ponto, entende-se que
uma aprendizagem significativa em língua portuguesa é aquela que prevê a
ação do estudante:

„ a partir da sua língua (por meio de práticas de oralidade desde a edu-


cação infantil, por exemplo, em que o estudante é convidado a se
comunicar);
12 A língua portuguesa no ensino superior

„ na sua língua (privilegiando as habilidades de ler, escrever, compreender


e interpretar textos diversos);
„ sobre sua língua (refletindo sobre diferentes contextos de uso de
expressões, situações, do implícito e explícito, a partir de um discurso).

Essa perspectiva pode ser um caminho para desmistificar as aulas de


língua portuguesa, vistas por muitos estudantes como entediantes e meras
repetições de regras e normativas, que são apreendidas de forma descon-
textualizada, desvinculada do sentido e da vida de cada um. A Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), documento oficial norteador do processo de ensino-
-aprendizagem da rede básica, tem por premissa a concepção de linguagem
como interação e para comunicação, entendendo que é necessário atingir,
nas aulas de língua materna, o uso social da língua:

A proposta assume a centralidade do texto como unidade de trabalho e as pers-


pectivas enunciativo-discursivas na abordagem, de forma a sempre relacionar os
textos a seus contextos de produção e o desenvolvimento de habilidades ao uso
significativo da linguagem em atividades de leitura, escuta e produção de textos
em várias mídias e semioses (Brasil, 2018, 67).

O documento ainda entende que cabe ao componente língua portuguesa


proporcionar experiências que contribuam para ampliar os letramentos dos
estudantes, possibilitando uma participação significativa e críticas nas dife-
rentes práticas sociais, sejam elas atravessadas pela oralidade, pela escrita
ou por outras linguagens (Brasil, 2018).
Portanto, é preciso que espaços de debate e conhecimento sobre a língua
e as linguagens ganhem cada vez mais espaço em salas de aula de diferentes
níveis escolares, desde a educação infantil até o ensino superior, para que
possamos, como falantes (profissionais, estudantes, seres humanos), atingir
nossas metas e objetivos. A fluência em nossa língua, especialmente com a
perspectiva de uma boa comunicação, é um excelente meio para que isso
aconteça.

Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018.
CHOMSKY, N. The minimalist program. Cambridge: MIT Press, 1995.
GERALDI, J. V. Concepções de linguagem e ensino de português. In: GERALDI, J. V. (org.).
O texto na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Ática, 2011. p. 33-38.
LEITE, L. C. M. Gramática e literatura: desencontro e desesperanças. In: GERALDI, J. V.
(org.). O texto na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Ática, 2011. p. 18-23.
A língua portuguesa no ensino superior 13

MAGRO, C. Da história à implementação de sistemas conexionistas. VEREDAS, v. 7, n.


1-2, p. 169-185, 2003.
MARCUSCHI, L. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In: KAWORSKI,
A. et al. (org.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.
MOREIRA, M. A. Teorias de aprendizagem. São Paulo: EPU, 1999.
SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
SOARES, M. Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever. São Paulo: Con-
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TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no
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VELOSO, J. Língua na escrita e a escrita da língua: algumas considerações gerais sobre
transparência e opacidade fonémicas na escrita do português e outras questões.
INVEP, v. 6, n. 1, p. 49-69, 2005.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

Leituras recomendadas
ANTUNES, I. Gramática contextualizada: limpando o pó das ideias simples. São Paulo:
Parábola, 2014.
SANTOS, D. O. B.; SANTOS D. F. O ensino de língua portuguesa na perspectiva do pro-
fessor: que gramática devemos ensinar? Eutomia: Revista de Literatura e Linguística,
v. 23, n. 1, p. 45-68, 2019.

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