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Representações dos retirantes das secas do Semiárido nordestino

Article in Desenvolvimento e Meio Ambiente · December 2020


DOI: 10.5380/dma.v55i0.73031

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3 authors:

José Gomes Ferreira Anna Lidiane Paiva

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Federal University of Rio Grande do Norte
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Anastácia Brandão de Mélo


Federal Rural University of Pernambuco
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Edição especial - Sociedade e ambiente no Semiárido: controvérsias e abordagens
Vol. 55, p. 9-27, dez. 2020. DOI: 10.5380/dma.v55i0.73031. e-ISSN 2176-9109

DESENVOLVIMENTO
E MEIO AMBIENTE

Representações dos retirantes das secas do


Semiárido nordestino

Representations of droughts emigrants from the northeastern semiarid

José Gomes FERREIRA1*, Anna Lidiane Oliveira PAIVA2, Anastácia Brandão de MÉLO3
1
Universidade do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.
2
Universidade Federal Rural de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Serra Talhada, SerraTalhada, PE, Brasil.
*
E-mail de contato: jose.ferreira@outlook.com

Artigo recebido em 21 de abril de 2020, versão final aceita em 27 de setembro de 2020, publicado em 18 de dezembro de 2020.

RESUMO: As mudanças climáticas e as projeções no sentido do seu agravamento no Nordeste aumentam as preocupações
quanto às repercussões no meio ambiente, na economia e na vida das comunidades. Entre os impactos sociais
mais estudados destacam-se as migrações, temporárias ou permanentes, que integram os chamados refugiados
climáticos. O semiárido nordestino é uma vasta região do território brasileiro historicamente exposta às condições
severas do clima seco, em que longos períodos de estiagem obrigavam o sertanejo a refugiar-se em grandes
cidades do litoral em busca de sobrevivência. O chamado de retirante, ou flagelado da seca, é o elemento mais
fragilizado na hierarquia social e aquele que mais depressa é afetado pela ausência prolongada de chuvas na
região. O artigo analisa as representações sociais dos emigrantes sertanejos por meio de bibliografia científica,
mídia e literatura, buscando melhor conhecer esse fenômeno e contribuir para a resiliência das comunidades em
um contexto de agravamento dos fenômenos climáticos extremos. Os resultados encontrados foram as diversas
representações dos emigrantes nordestinos, o preconceito, os impactos das secas, o drama social e político, as
relações de dominação, a memória de um povo e a necessidade de políticas públicas estruturantes.
Palavras-chave: mudança climática; refugiados climáticos; retirante; seca; semiárido.

ABSTRACT: Climatic changes and their projections of worsening in the Brazilian Northeast increase concerns about the
impact in the environment, economy and the lives of communities. Among the most studied social impacts are
the temporary or permanent migrations that integrate what is called climatic refugees. The semiarid Northeast

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is a vast region in the Brazilian territory that suffers with severe conditions caused by the dry climate, with long
periods of drought that obligates people to refugee in the largest cities of the seaside to survive. This Brazilian
northeasterner, or drought victim, is the most fragile in the social hierarchy and who is most quickly affected
by the regular lack of rains in the region. This article analyzes the social representations of northeasterner
emigrants based on scientific literature, media and literature, aiming to understand this phenomenon and to
contribute to the resilience of communities in a context of worsening of this extreme climatic phenomenon.
As a result, it finds various northeasterner emigrant representations, prejudice, drought impacts, social and
political drama, relationships of domination, people memory and their needs of organizing public policies.
Keywords: climate change; climate refugees; “retirantes”; drought; semiarid.

1. Introdução como exemplo, alguns povos indígenas e comu-


nidades locais dependentes da agricultura de auto-
Desde a Conferência das Nações Unidas sobre consumo, com perspectiva do aumento da pobreza
o Meio Ambiente e o Desenvolvimento realizada entre as comunidades socioambientalmente mais
no Rio de Janeiro, em 1992, a preocupação com as vulneráveis. Assim, as mudanças climáticas têm
mudanças climáticas vem assumindo relevância aumentado as desigualdades sociais e os impactos
política, científica e socioeconômica. As projeções sociais se refletem na progressão demográfica, nas
sucessivamente elaboradas pelo Painel Intergover- relações interpessoais, na justiça socioambiental
namental sobre Mudanças Climáticas das Nações e na emergência de novos conflitos em face da
Unidas (IPCC) e por cientistas de diversas univer- escassez e da desigualdade no acesso aos recursos
sidades apontam para uma subida generalizada da naturais (IPCC, 2019; UNESCO, UN-Water, 2020).
temperatura e para o aumento de eventos extremos Um dos impactos sociais da mudança climática diz
associados à maior ocorrência de desastres naturais, respeito às migrações temporárias ou permanentes,
em particular inundações e secas, as primeiras as- forçadas pela ocorrência de fenômenos climáticos,
sociadas à precipitação forte e frequente em muitas com consequências no aumento do número dos
regiões, podendo vir acompanhada de ciclones chamados “refugiados climáticos”, cuja resposta
tropicais; as segundas em resultado da escassez pro- pode ser encarada como adaptativa no contexto das
longada dessa precipitação, se associando a ondas políticas climáticas (Roy et al., 2019).
de calor e estresse hídrico (IPCC, 2019; Cunha et No semiárido brasileiro, as condições climá-
al., 2019; UNESCO, UN-Water, 2020). ticas têm repercutido sobre o desenvolvimento da
As mudanças climáticas têm interferido região, sobre a divisão da propriedade fundiária e as
substancialmente sobre a produção energética, a formas de dominação. Para um futuro próximo, as
segurança alimentar e o desenvolvimento econô- projeções climáticas indicam que vão se intensificar
mico, o que gerará impactos nos sistemas naturais as dificuldades de acesso à água, com aumento da
e humanos – saúde, segurança alimentar, abasteci- frequência de secas, chuvas torrenciais e concentra-
mento de água – colocando em risco populações das em curto espaço de tempo, assim como a perda
com maiores dificuldades no acesso a recursos, na biodiversidade do bioma caatinga, o aumento
dos riscos de erosão e desertificação e os impactos

10 FERREIRA, J. G. et al. Representações dos retirantes das secas do Semiárido nordestino


na produção agropecuária (Cunha et al., 2019). ticas e refugiados ambientais, além de auxiliar na
Em consequência disso, é igualmente previsível construção da resiliência das comunidades.
um aumento no deslocamento da população para Nesse sentido, o artigo busca identificar e
as grandes cidades ou áreas possíveis de desenvol- analisar as principais representações e políticas de
ver agricultura irrigada, originando “refugiados acolhimento para os emigrantes nordestinos, a partir
ambientais” e aumentando os problemas sociais já de diversas fontes de informação, com destaque para
existentes nos grandes centros urbanos do Nordeste a imagem do retirante na mídia regional e na litera-
e do Brasil (Marengo et al., 2016). tura nordestina, assim como a resposta por meio das
O fenômeno dos refugiados climáticos não é políticas públicas. Desse modo, faremos uso de di-
novo no país. No semiárido nordestino, o flagelado versas fontes no desenvolvimento da pesquisa, com
da seca, o retirante, como é conhecido, perpassa o destaque para obras científicas, bem como relatos
tempo. No novo cenário, deve ser entendido sob jornalístico-científicos, por vezes no cruzamento
novas perspectivas. A construção da imagem do com posicionamentos políticos, incluindo-se no
refugiado ambiental enquanto parte de um grupo de primeiro caso Os sertões, de Euclides da Cunha
pessoas que têm suas relações de vida e sobrevivên- (2016), e no segundo O calvário das secas, de Eloy
cia afetadas por diferentes eventos climáticos, e que de Souza (1909). Recorremos igualmente à litera-
se deslocam voluntária ou forçadamente das regiões tura regionalista e a um dos principais romances de
em que vivem, revela semelhanças para o caso dos Rachel de Queiroz – O Quinze (1948), bem como
retirantes nordestinos, pois ambos carregam con- a outras obras que retratam a fuga dos retirantes na
sigo uma imagética mística e a cultura envolta da primeira pessoa, por vezes de forma romanceada, se
estruturação socioeconômica da região de origem. destacando Memórias de um retirante, de Raimundo
O emigrante nordestino, chamado de retirante Nonato (1957) e Os retirantes, de José Patrocínio
pela narrativa regional, pelas instituições, pesqui- (1889). Ainda na literatura usamos a poesia por
sas e mídias ao longo dos séculos, segue, também, representar o consciente coletivo da imagem do reti-
como consequência da seca enquanto problema rante, no que incluímos um extrato de Morte e vida
social e político, e não apenas climático. O artigo Severina, de João Cabral de Melo Neto (2010) e o
tem como objetivo ampliar a discussão em torno poema Asa Branca, de Luís Gonzaga e Humberto
do perfil dos retirantes no semiárido nordestino, Teixeira (1947). Reforçamos a coleta de informação
que podem ser considerados refugiados de eventos a partir dos registros sobre o tema no arquivo digital
climáticos, buscando, em primeiro lugar, reconstruir do jornal Diário de Natal (1939 a 1989) do Rio
as representações na mídia estadual, em documentos Grande do Norte, presente na Hemeroteca Digital
oficiais, nas pesquisas científicas e narrativas de Brasileira, e diversos documentos em arquivos,
autores locais. Em segundo lugar, queremos dar principalmente na Biblioteca Central e Núcleo
visibilidade ao problema e recuperar histórica e Temático Seca-Semiárido da Universidade Federal
socialmente os retirantes ou flagelados das secas. do Rio Grande do Norte e documentos privados.
Desse modo, estamos contribuindo para recolocar o O artigo inicia com a discussão sobre refugia-
retirante no debate atual sobre as alterações climá- dos e mudanças climáticas, abordando a pluralidade

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 55, Edição especial - Sociedade e ambiente no Semiárido: controvérsias e abordagens, p. 9-27, dez. 2020. 11
de referências em redor do conceito e apresentando ambientalmente deslocadas” que podem ocasionar
as migrações da população entre os impactos pro- migrações internas ou internacionais, temporárias
vocados pelas mudanças climáticas. Em seguida, o ou permanentes, e em situação de vulnerabilidade
texto se concentra especificamente no debate sobre social, econômica e política, obrigados a deixar sua
o histórico das secas do Nordeste brasileiro e sobre a morada por motivos ambientais, e neste particular
figura do retirante como emigrante fugido da tragé- climáticas, que representam riscos e ameaças para
dia das secas. Será dado destaque à resposta gradual a vida (Brito, 2016; Claro, 2018; Pacífico & Araújo
das políticas públicas, assim como às representações Neto, 2018).
sociais do retirante presentes na literatura nordestina Do ponto de vista do monitoramento e resposta
e na mídia regional a partir dos resultados da pes- ao problema dos refugiados, o tema tem merecido
quisa. O texto finaliza com as considerações sobre atenção internacional, fazendo parte da agenda de
o contexto histórico vivenciado pelos retirantes das preocupações do ACNUR – Alto Comissariado das
secas e as mudanças climáticas. Nações Unidas para os Refugiados, assim como de
organizações independentes ou vinculadas a gover-
2. Refugiados e mudanças climáticas nos. Uma dessas entidades é o Internal Displace-
ment Monitoring Centre (IDMC), que desde 1998
é parte integrante do Norwegian Refugee Council
Os desastres ambientais e mais especifica-
(NRC), de cujo trabalho se destaca a publicação
mente os climáticos colocaram no topo da agenda
anual do GRID - The Global Report on Internal
internacional o debate sobre o problema dos re-
Displacement1, um relatório sobre populações des-
fugiados ambientais. O tema carece de pesquisa
locadas nos diversos países e por variadas razões.
aprofundada, não somente designadamente quanto
Seu último relatório, com dados referentes a 2018,
ao impacto nos países de origem e naqueles que,
contabiliza 28 milhões de novos deslocados em 148
temporariamente ou de forma mais prolongada,
países e territórios, separando os refugiados por
são países ou territórios de acolhimento. Concei-
motivos de conflitos (10,8 milhões) e por motivo
tualmente, o significado de refugiado ambiental
de desastres (17,2 milhões).
encontra diversas denominações, que em geral
Em 2018, Filipinas, China e Índia contabiliza-
conduzem ao mesmo. A literatura sobre a temá-
ram cerca de 60% destes deslocamentos forçados,
tica da mudança climática fala sobre “refugiados
mas outros países merecem igualmente referência.
do clima”, “refugiados climáticos”, “refugiados
Por tipologia de deslocamento, destacamos: as
ambientais”, “refugiados ecológicos”, “migrantes
Filipinas (desastres 188.000; conflitos 3.802.000),
do clima”, “migrantes climáticos”, “migrantes
a China (desastres 3.762.000; sem informação de
ambientais”, “deslocados do clima”, “deslocados
conflitos), a Etiópia (desastres 296.000; conflitos
ambientais”, “ecomigrantes”, ou seja, “pessoas
2.895.000) e a Índia (desastres 2.675.000; conflitos

1
O relatório de 2019 encontra-se disponível em <https://www.internal-displacement.org/global-report/grid2019/>. O acesso a relatórios de
anos anteriores está disponível em <https://www.internal-displacement.org/global-report>.

12 FERREIRA, J. G. et al. Representações dos retirantes das secas do Semiárido nordestino


169.000). Os dados desagregados por tipologia contexto de calamidade, em que buscam auxílio
permitem observar que conflitos incluem conflitos em grandes cidades, regressando aos municípios
armados, violência comunitária, violência política, de origem, podendo alguns partir em busca de no-
violência criminal e outras. Em 2018, destacaram-se vas oportunidades. Com base na discussão sobre
os conflitos armados (4,9 milhões de deslocados) e a a resposta à mudança climática, apresentamos a
violência comunitária (4,2 milhões de deslocados). temática do retirante ou do refugiado climático
Os desastres se desdobram em um segundo nível, nordestino, quer como “mitigação de ameaças de
que inclui: temperaturas extremas, deslizamentos escassez de recursos” (Correia & Ojima, 2018, p.
de terra, incêndios florestais, secas, ciclones, fu- 179), quer como resposta adaptativa no contexto
racões e tufões, tempestades, outras tempestades, das políticas climáticas, assim como mecanismo de
cheias, movimentos de terra, tempestades de areia, adaptação às mudanças climáticas que depende das
sismos, erupções vulcânicas. No ano em referência, estratégias dos grupos sociais, se pertencem à elite
o GRID destaca entre os desastres as tempestades proprietária ou a grupos vulneráveis da população
(9,3 milhões de deslocados), os ciclones, furacões que não dispõem de mecanismos de adaptação aos
e tufões (7,9 milhões de deslocados). As secas sistemas produtivos. Temos assim que a mobilidade
obrigaram ao deslocamento de 764.000 pessoas. não é apenas uma resposta à emergência social e
No Brasil o relatório contabiliza 86.000 deslocados climática de determinado momento, “é medida pela
por desastres que, ao que tudo indica, se referem capacidade de adaptação da população, que por sua
majoritariamente às comunidades atingidas pelo vez é condicionada por fatores políticos, institucio-
rompimento da barragem de rejeitos da mineração nais, sociais e culturais” (Barbieri, 2011, p. 108).
em Mariana, Minas Gerais (IDMC, 2019). Para melhor se entender o fluxo migratório
A inclusão dos refugiados na categoria am- nordestino e a vulnerabilidade das populações
bientais ou climáticos merece o comentário de Oji- quando expostas a secas identificamos, a partir
ma et al. (2014). Os autores encontram dificuldade da literatura sobre o tema, três categorias de “re-
em quantificar este tipo de migrações na perspectiva fugiados ambientais”: i) os que foram deslocados
ambiental, colocando que a hipótese dessa dificul- temporariamente devido a eventos ambientais e
dade se deve ao fato de este ser “o posicionamento que provavelmente vão regressar; ii) os que foram
político” que os defensores do termo “refugiados deslocados de forma permanente devido a mudanças
ambientais” buscam destacar, perante “a necessi- permanentes de seu habitat; e iii) os que se deslocam
dade de dar maior atenção aos fatores ambientais”. permanentemente em busca de melhor qualidade
No caso nordestino, afirmam que “a emigração de vida em face a degradação progressiva em seu
nordestina para outras regiões do país sempre teve território (Marques & Oliveira, 2016; Sales & Oli-
estreita ligação com os fatores ambientais” (Ojima veira, 2019). A última categoria é indissociável das
et al., 2014, p. 151). dificuldades em desenvolver a região e da procura
O artigo não busca essas explicações, mas de autonomia dos trabalhadores em face da elite
constitui um argumento para melhor se conhecer proprietária regional (Oliveira, 2008).
o fenômeno dos retirantes das secas, sobretudo em

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 55, Edição especial - Sociedade e ambiente no Semiárido: controvérsias e abordagens, p. 9-27, dez. 2020. 13
A discussão também se coloca quanto ao fato 3. Secas e representações dos retirantes do
de serem migrações internas e ao estatuto jurídico Nordeste brasileiro
destes refugiados. Quanto ao primeiro tópico, não é
clara a exclusão dos refugiados ambientais internos Desde a chegada dos portugueses o problema
da categoria de refugiados, porém, não passando das secas no semiárido nordestino é conhecido.
a ocupar territórios de outros países, continuam Vários naturalistas, jornalistas e pesquisadores
gozando do direito de cidadania brasileira em tu- percorreram a região e deixaram um importante
do o que isso implica. Relativamente ao segundo testemunho dos períodos conturbados pelas secas.
aspecto, a partir de Claro (2018) e outros autores, As estiagens anuais fazem parte do ciclo climático
Sales & Oliveira (2019) chamam a atenção para do semiárido, no entanto, a prolongação do seu pe-
o fato de, apesar da origem do termo “refugiados ríodo não tem calendário marcado, afeta a economia
ambientais” ter sido cunhada por Lester Brown, do e o modo de vida das populações, que ao longo da
World Watch Institute, em 1970 e ser aceita a partir história se viram obrigadas a largar tudo para pedir
daí pelas instituições internacionais, existem ainda socorro numa tentativa de sobrevivência. A ausência
lacunas no direito internacional na abordagem do de chuvas ou a chamada seca verde provocou ciclos
problema, a tal ponto que “a categoria ‘refugiado de emigrantes nordestinos, deixando os sertões
ambiental’ não possui enquadramento técnico e desertos de gente, deslocando-se para os grandes
jurídico no direito internacional dos refugiados” centros urbanos ou buscando migrar em anos nor-
(2019, p. 28). Ainda assim, aplicam-se, entre outras, mais para assim antecipar o período de escassez.
a Convenção relativa ao Estatuto do Refugiado de O debate sobre as origens do retirante iden-
1951 e as Convenções de Direitos Humanos, assim tifica a crucial necessidade de sobrevivência ante
como o princípio de não devolução, o que impede o ímpeto das condições climáticas, coincidindo o
a expulsão dos refugiados ambientais dos países de relato do deslocamento do sertão para o litoral com
abrigo. Desse modo, a classificação dos retirantes o aprofundar da seca praticamente a partir chegada
como refugiados ambientais está dependente de dos portugueses à região (Cunha, 2016), em fluxos
questões do ordenamento jurídico internacional, direcionados às grandes cidades, alterando as rela-
no sentido de definir o tipo de proteção e se o fato ções sociais nos territórios. O emigrante nordestino
de se tratar de um fluxo interno se enquadra igual- tem suas marcas socioculturais enfatizadas, no ima-
mente. Todavia, carregam consigo o peso de serem ginário nacional, pela mídia impressa, literatura e
deslocados, geralmente de territórios densamente arte, e que Eloy de Souza (1909, p. 170) afirmava ser
povoados e pobres. Mostramos mais adiante, com “aplicada a milhares de compatriotas tangidos pelo
recurso a diversas fontes, que os próprios sertanejos inominável flagelo da seca dos sertões nordestinos”
eram pejorativamente chamados de “flagelados”, e que em cada seca se deslocavam para as cidades
que “invadiam” os grandes centros urbanos como do litoral e para o norte e sul do país. Afirmando
“desocupados” que se tornavam uma “ameaça” à que, apesar do trabalho promissor realizado durante
“ordem” e à higiene (Marques & Oliveira, 2016, décadas, “a palavra retirante circulará, sabe Deus
p. 975).

14 FERREIRA, J. G. et al. Representações dos retirantes das secas do Semiárido nordestino


até quando, para o martírio dos homens de coração” saudade do sertão. Remigra. E torna feliz, revigo-
(Souza, 1909, p. 170). rado, cantando; esquecido de infortúnios, buscando
A literatura sobre o tema mostra que as secas as mesmas horas passageiras da ventura perdidiça
na região vão além do fenômeno meteorológico, e instável, os mesmos dias longos de transes e
é um problema social (Menezes, 1970), tendo em provações demoradas” (Cunha, 2016, p. 138-139).
vista que a região semiárida do Nordeste Brasileiro Também Raimundo Nonato (1957) fala do desa-
é a mais populosa do mundo, com características parecimento dos vizinhos, porém conta que não
peculiares, como a desigualdade social e o alto regressavam todos.
percentual de pobreza, e por carregar durante a Importa ainda resgatar o vínculo das gerações
sua trajetória o controle e o poder sobre a água e passadas com determinado lugar a partir das narrati-
a política exercida pelos coronéis, que detinham vas daqueles que são os guardiões da memória, que,
o conhecimento político sobre quais áreas seriam ao narrar a história do grupo, dão continuidade ao
beneficiadas com projetos de açudes e barreiros lugar na memória das gerações presentes (Alencar,
(Menezes, 1970). Pelo que, temos aqui matéria 2007). De outro lado, ao trazer essa aprendizagem
para questionar se o deslocamento das pessoas se e reforço da relação entre memória e lugar, e os
deve a razões ambientais, em concreto climáticas, espaços simbólicos e culturais, para o contexto de
ou a razões sociais de maior peso e que vão de en- mudança, busca-se contribuir por meio desse res-
contro ao debate sobre o fracasso nas tentativas de gate para fortalecer a resiliência e o conhecimento
desenvolvimento do Nordeste focados na resposta sobre possíveis impactos e respostas. Sabe-se que
aos problemas climáticos (Marengo et al., 2011; o agravamento da seca provocará êxodo das po-
Marengo, Torres & Alves, 2016; Correia & Ojima, pulações e a consequente migração, agravando os
2018; Ferreira, 2019). problemas das localidades de acolhimento, e que
A saga dos retirantes expõe os limites da con- as populações tradicionalmente mais vulneráveis
dição humana e representa igualmente o desagregar e menos capacitadas para enfrentar este e outros
da ordem senhorial brasileira, na medida em que a problemas vão ser as mais afetadas (Marengo et
região se viu sem sua força de trabalho, conduzindo al., 2016).
em muitos casos à desestruturação das proprieda- Por outro lado, a seca foi o principal proble-
des, com a agravante do homem pobre habituado ma que impulsionou a saída da região. Ojima et
à vida simples do campo ser obrigado a se adaptar al. (2014) argumentam que em grande parte essa
aos novos contextos, acabando por aumentar os diáspora está relacionada ao contexto econômico e
problemas sociais nas cidades receptoras (Neves, produtivo em um período em que, de um lado, se
2001). Ainda assim, por “apego do nordestino à assistiu à decadência da economia baseada no com-
terra natal”, “o nordestino enxotado pela seca para plexo pecuária-algodão-subsistência e, de outro, ao
terras longínquas passada a calamidade retorna ao desenvolvimento de cidades e regiões com grandes
torrão natal” (Souza, 1909, p. 173). Sobre o tema, exigências de mão de obra. Apresentam como exem-
Euclides da Cunha afirmava em 1903: “Passam-se plos o ciclo da borracha na região Norte do país no
meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o início do século XX, a construção de Brasília na

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 55, Edição especial - Sociedade e ambiente no Semiárido: controvérsias e abordagens, p. 9-27, dez. 2020. 15
década de 1950 e o processo de industrialização impulsionou a organização de respostas regionais
do Estado de São Paulo na década de 1960, que ao problema, colocando parte dos homens na cons-
coincidem com grandes secas e correspondem a trução de obras públicas, com destaque para as
“uma crescente demanda de mão de obra em regiões estradas de ferro. O desenvolvimento do ciclo da
polarizadoras que atraíram migrantes nordestinos borracha na Amazônia levou muitos nordestinos,
ao longo da história” (Ojima et al., 2014, p. 155). essencialmente os homens, a deixarem o Nordeste.
Acrescenta-se a este fluxo migratório a necessidade
3.1. Políticas públicas de apoio ao retirante de mão de obra pelas grandes obras no Sul do país
(Ojima et al., 2014). Por sua vez, Gonçalves (2014)
relata que a cafeicultura em São Paulo se beneficiou
A resposta à situação de emergência das co-
com os migrantes das secas, sendo encaminhados às
munidades se resumiu durante décadas ao auxílio
fazendas de café em consequência da demanda por
às vítimas de forma assistencialista e limitado à
mão de obra. O interesse era tanto que solicitaram
atribuição de esmolas e alguns produtos recolhidos
mais do Ceará e também do Rio Grande do Norte,
em peditórios particulares. O auxílio federal pode-
a que chamavam de trabalhadores nacionais e/ou
ria demorar meses a chegar, registrando enormes
caboclos. Na Grande Seca de 1877-1879, assim
atrasos, agravados por desvio e roubo dos produ-
como nas secas do final de 1900 e início de 1901,
tos. Até a Grande Seca de 1877-1879 não havia
o governo imperial pagou as despesas das passa-
nenhuma política pública de suporte, apenas apoio
gens de trem no deslocamento dos retirantes para
assistencialista com base em peditórios realizados
as fazendas do interior. Gonçalves defende que a
nas grandes cidades. O deslocamento da população
maioria dos cearenses que migraram para São Paulo
das cidades afetadas levava ao seu esvaziamento e
eram sobretudo grupos familiares, uma vez que os
ao esvaziamento do sertão (Cunha, 2016). Por outro
fazendeiros defendiam a migração familiar, por
lado, o estigma e o tratamento desta massa de gente
ser conveniente a combinação da mão de obra do
não favoreciam o apoio em situações de carência.
homem, da mulher e dos filhos acima de sete anos.
Eloy de Souza denuncia o tratamento dos retirantes
E a experiência nas lavouras de algodão do sertão
durante esta seca, em que “eram por muitos con-
cearense possibilitava a sua adaptação no trabalho
sideradas criaturas desprezíveis e como tais perse-
dos cafezais. Em síntese, a “miséria e subvenção
guidas e enxotadas do convívio dos afortunados”
constituíram-se, assim, em elementos-chave na
(Souza, 1909, p. 171). A coleta de mídia mostra que
formação da força de trabalho da economia cafeeira
a fome, a morte, a doença – entre as quais o tifo e
paulista” (Gonçalves, 2014, p. 304).
a tuberculose – e a criminalidade somavam-se aos
Mas as políticas de ocupação e apoio aos reti-
problemas dos retirantes.
rantes não se davam somente fora da região afetada,
Em decorrência da seca de 1877-1879, em
do sertão nordestino. Durante a Grande Seca, no
visita ao Ceará o imperador afirmou: “Não restará
ano de 1878, o governo estadual do Ceará avançou
uma joia da Coroa, mas nenhum nordestino mor-
com um projeto proposto pelo senador do Ceará,
rerá de fome” (Maciel, 1983, p. 7). A Grande Seca
Tomás Pompeu de Souza Brasil, e depois concre-

16 FERREIRA, J. G. et al. Representações dos retirantes das secas do Semiárido nordestino


tizado quando o senador João Lins Vieira Cansan- que, quando as chuvas voltavam ao sertão, “uma
ção de Sinimbú se tornou presidente do Conselho debandada geral de trabalhadores retornava para os
de Estado da Coroa. O projeto Pompeu-Sinimbú roçados, provocando nova ‘falta de braços’, dificul-
pretendeu aproveitar a força de trabalho disponível tando e mesmo levando à interrupção os trabalhos
durante as secas para realizar obras públicas. A im- nas obras” (Cândido, 2012, p. 190).
plantação do projeto Pompeu-Sinimbú permitiu ao A partir de 1909, com a criação da Inspetoria
Ceará e ao Nordeste se desenvolverem, ocupando de Obras Contra as Secas (IOCS), que em 1919
simultaneamente os flagelados. Na transição do passou a se chamar Inspetoria Federal de Obras
século XIX para o XX, ocorreu o recrutamento dos Contra as Secas (IFOCS) e em 1945 levaria à
retirantes como operários de construção das obras criação do atual Departamento Nacional de Obras
públicas – estradas de ferro e açudes. A sua utiliza- Contra as Secas (DNOCS), foi possível melhorar
ção, segundo Cândido (2012), era uma prática para a assistência aos flagelados, designadamente pela
afastar as multidões de flagelados da “ociosidade” maior demanda de mão de obra para apoio às obras
e uma imposição àqueles considerados aptos, para lançadas pelas referidas instituições, alargando as
ter acesso ao socorro do governo. chamadas frentes de trabalho de contratação de
Entre as iniciativas, foi retomada a intervenção flagelados, mantendo simultaneamente incentivos
do Governo Imperial na construção da Estrada de de migrações para a Amazônia. Na seca de 1958,
Ferro de Baturité (Ceará). A obra permitiu a con- meio milhão de pessoas foi posto a trabalhar em
tratação de cerca de 50 mil trabalhadores flagelados obras de emergência. O mesmo aconteceu com a
pela seca. A estrada de ferro de Sobral e outras seca de 1970, na qual o Governo criou mais de
ferrovias tiveram concessões aprovadas e contaram meio milhão de postos de trabalho, criando novas
com o empenho do Imperador, vindo a receber a oportunidades no Nordeste, especialmente por meio
denominação de “ferrovias da seca”, pela função dos projetos de irrigação e abertura de estradas
para as quais eram construídas, participando em aprovadas em 1971 pelo Programa de Integração
quase todas as suas extensões os retirantes da seca. Nacional (PIN) e pelo Programa de Redistribuição
Da mesma forma, grandes açudes, como o do Cedro, de Terras (PROTERRA). E em resposta à seca de
em Quixadá, valeram-se de sertanejos em tempos 1979 a 1983 foram criados mais de três milhões
de secas para sua construção. As elites viam nas de empregos temporários, com uma preocupação
obras de socorro público um meio privilegiado de em evitar deslocamentos familiares; o problema
auxílio aos retirantes porque os converteriam “de é que os proprietários locais usaram sua rede de
mendigos em trabalhadores” (Cândido, 2012, p. influências para obterem apoio para fins privados,
177), geralmente recorrendo a eles para o trabalho alimentando o coronelismo e o paternalismo.
mais desqualificado, o que aumentou o estigma Nas últimas décadas não temos assistido à
sobre os retirantes, observa Cândido (2012). O emigração das populações em momentos de secas,
autor dá conta igualmente de que essas obras eram não por ausência de adversidade do clima (apesar
um espaço disciplinador e violento, pelo fato de de até outubro de 2020 vários municípios se man-

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 55, Edição especial - Sociedade e ambiente no Semiárido: controvérsias e abordagens, p. 9-27, dez. 2020. 17
terem em situação de emergência em decorrência des regionais, que a resposta ao desenvolvimento
da seca que se iniciou em 2012)2, mas devido ao regional também buscou atenuar.
conjunto de políticas públicas, umas mais de caráter A pesquisa que realizamos busca identificar
infraestrutural, de tecnologias sociais, e outras de a imagem do retirante presente em diversas fontes
programas ao apoio social e agrícola às comunida- históricas. O tópico seguinte recorre à literatura
des. Se é verdade que muito se espera da conclusão regionalista para retratar o emigrante nordestino
da transposição, em particular da chegada das águas fugido da severidade das secas, procedendo a uma
ao Eixo Norte, é também verdade que o Programa síntese de referências em que a temática se tem feito
1 Milhão de Cisternas, da ASA – Articulação no presente em termos históricos, para depois dar voz
Semiárido, garantiu autonomia hídrica às comunida- a Rachel de Queiroz, José do Patrocínio, Raimundo
des mais isoladas por vários meses (Ferreira, 2019). Nonato, João Cabral de Melo Neto, Luiz Gonzaga
Por outro lado, tem sido fundamental a resposta e outros. A literatura e posteriormente a análise da
por meio de programas como o Bolsa Estiagem, mídia nos mostram como se consolidou a imagem
o Garantia-Safra, a aposentadoria rural e inclusi- do retirante na identidade nordestina, questões que
vamente o Programa Bolsa Família. Sem esquecer veremos de imediato.
que tem sido muito importante a implementação
do Programa Nacional de Fortalecimento da Agri- 3.2. Representações dos emigrantes
cultura Familiar (PRONAF), criado em 1995 como nordestinos na literatura
a primeira política agrícola nacional direcionada
especificamente para agricultores familiares.
A literatura regionalista, incluindo o cordel,
As políticas públicas têm buscado reduzir as
mas também a arte de uma forma geral, não tem
desigualdades sociais e melhorar a condição de
sido indiferente à temática das secas e que contribui
vulnerabilidade social do agricultor familiar, mas
para a construção da identidade simbólica da região.
sem que um conjunto de estereótipos tenha desa-
Em 1775, no romance O cabeleira, Franklin Távora
parecido por completo. Não é apenas o retirante o
referiu-se a uma peste que assolou Pernambuco na
visado, é todo o Nordeste. A região tem sido histo-
sequência de uma seca abrasadora que provocou
ricamente considerada atrasada, entregue a coronéis
grande número de vítimas. Rodolfo Teófilo publicou
latifundiários do sertão cuja imagem, como afirma
a partir de 1884 vários volumes sobre a “História da
Francisco de Oliveira a partir da interpretação de
Seca no Ceará” e em 1890 publicou A fome, conside-
Gilberto Freyre, “contrastava com as dos salões e
rado o primeiro grande romance que trata das secas
saraus do Nordeste ‘açucareiro’” (Oliveira, 2008,
no Nordeste. No início do novo século, merecem
p. 146), acentuando que as disparidades não eram
destaque O quinze, romance de Rachel de Queiroz,
apenas sociais, mas deixavam explícitas disparida-
de 1930, em que narra a experiência vivida na sua

2
Especificamente quanto à situação do Rio Grande do Norte, a Portaria nº 2.652, de 13 de outubro de 2020, do Ministério do Desenvolvimento
Regional, reconhece situação de emergência em 18 municípios do Estado (Brasil, 2020).

18 FERREIRA, J. G. et al. Representações dos retirantes das secas do Semiárido nordestino


infância durante a grande seca de 1915, no Ceará, e Na década de 1930, a escritora Rachel de
Vidas secas, romance de Graciliano Ramos, publica- Queiroz (1948) relata os acontecimentos na pers-
do em 1938, no qual narra o percurso de uma família pectiva da seca de 1915, no Estado do Ceará, em
nordestina afetada pela seca e pelas desigualdades uma das mais famosas obras da literatura regional,
sociais à procura de melhores condições. Entre 1954 O quinze. Nessa obra, Rachel de Queiroz apresenta
e 1955 seria a vez de João Cabral de Melo Neto de forma romanceada parte da sua experiência e
escrever o poema Morte e vida severina, um livro de sua família obrigada a deixar o Ceará em busca
de poesia regional modernista que conta a história da sobrevivência. Na primeira narrativa do livro,
do retirante Severino. Na pintura, os retirantes da retrata os momentos de Chico Bento e família,
seca foram retratados pela obra de Cândido Portina- retirantes que saem de Quixadá em direção a For-
ri. A xilogravura regionalista tem igualmente dado taleza, com o objetivo de irem para o Amazonas,
grande destaque à emigração nordestina. onde há extração da borracha, mas que embarcaram
Na literatura, o deslocamento das populações para São Paulo em busca de trabalho. São relatos
em busca de áreas com comida e trabalho, o trajeto permeados de indagações e observações, nas quais
tortuoso e desesperante no qual, assim como a seca, o retirante se depara com vida e morte ao longo do
a fome ressurgia ciclicamente como surtos endêmi- seu percurso. Desde a viagem a pé e de trem para
cos, reduzindo o sertão a uma paisagem desértica Fortaleza, ele, a mulher, a cunhada e cinco filhos
e povoada de corpos e bichos magros, pode surgir sofrem com a fome agressiva, a miséria e a morte.
pela caneta de escritores consagrados no momento A autora usa de metáforas, como cabeças vazias e
ou futuramente, ou como relato de experiências os joelhos agudos, para denotar as condições físi-
individuais, como acontece com José do Patrocínio, cas; agachados de fraqueza e cansaço são como a
em Os retirantes, romance publicado em 1889, que, lamparina moribunda, em metáfora com a chama da
para choque de muitos, expõe alguns dos problemas vida que se desgastou; o chão vermelho da estrada
das secas, tais como o abandono e a corrupção, sobre de Quixadá com as árvores negras e agressivas ao
o qual afirmava: longo do caminho como sombras que são vencidas
pela miséria e desespero; embriaguez da fome em
Foi a certeza de tais abusos o que levou o presidente noite escura, seca e limpa à margem da caatinga,
a escassear as remessas de gênero e provimentos de
como um manto de cinzas. Na geomorfologia
dinheiro para o interior, visto como a impossibilidade
da fiscalização fazia com que eles quase nada apro- característica do nordeste descrita pelas enormes
veitassem aos desgraçados. escarpas de granito e altos pedregosos sente-se o
calor. A procissão como marca da religião, em que
A conseqüência da medida foi incomensuravelmente a única aparência de vida eram o canto e o choro, se
desastrada. A fome deu alarma nas cidades, vilas e contrapõe ao verde esperançoso da caatinga quando
povoados, como nos mais humildes casais esparsos se iniciam as chuvas.
pelos tabuleiros e pelas charnecas do sertão, e o
Rachel Queiroz, ao denunciar a situação dos
povo, rápido e ruidoso como a enxurrada, afluiu às
estradas em demanda do litoral e da sede do governo retirantes da seca de 1915, mostrou que as políticas
(Patrocínio, 1889, s/p). continuavam assistencialistas e, sobretudo, que a

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 55, Edição especial - Sociedade e ambiente no Semiárido: controvérsias e abordagens, p. 9-27, dez. 2020. 19
condição de precariedade dos retirantes era explo- campo havia distribuição de comida, as habitações
rada para obter vantagem e sentido de dominação. A eram precárias, predominava o mau cheiro, cada
obra da escritora cearense foi a antecâmara dos no- dia chegavam mais retirantes e também morriam,
vos campos de concentração em 1932, demarcados mas sem perspectiva de emprego ou melhorias das
para supostamente defender a cidade de Fortaleza condições de vida ocorria o aumento do número de
de uma possível invasão dos famintos. Esses cam- pedintes nas ruas (Queiroz, 1948).
pos, também conhecidos como currais do governo, Com relação à seca de 1919, que afetou no-
eram construídos em lugares próximos às ferrovias meadamente o Rio Grande do Norte, Raimundo
em que aportavam retirantes do interior para assim Nonato deixou um testemunho impressionante no
impedir o seu acesso aos bairros mais ricos da ci- livro Memórias de um retirante, em que relata a
dade (Kenny, 2009). Martins & Kupermann (2017) sua vivência como retirante, quando ainda menino
mencionam ainda uma dimensão macabra dos dois saiu com a família da cidade de Martins, interior
campos ao redor de Fortaleza, que também serviram do estado, em busca de meios de subsistência. O
de vitrines para demonstrar a eficiência do poder autor acabou se fixando na cidade de Mossoró,
público de governar e tratar a pobreza com as vestes vindo a exercer várias ocupações. Em seu livro
de um moderno projeto humanitário. descreve vários momentos da viagem a pé, de que
Se pela mão do baiano Rodolfo Teófilo tive- destacamos o seguinte extrato, que narra a partida
mos os primeiros testemunhos sobre os horrores das forçada de Martins:
secas, em A fome (1890) e Secas do Ceará (1901), é
por intermédio de Rachel de Queiroz que conhece- No percurso dos solitários viajantes não foi viva alma.
Tudo era deserto e triste. Abandonado e ermo.
mos a massa humana de velhos, homens, mulheres
em seus molambos, crianças de feições petrificadas
que sobreviviam encurralados. Além disso, o livro Ninguém quis dar notícias da partida dos infelizes
retirantes. [...].
O quinze faz também uma denúncia de alguns dos
problemas nacionais, entre os quais a corrupção no
E por último, ao atravessar o derradeiro quarteirão
governo, o apadrinhamento, a carestia de produtos e da Rua baixa, deixando tudo quanto tinha de mais
as políticas assistencialistas prestadas aos retirantes. querido na vida, a cidade tinha desaparecido (Nonato,
É nesse cenário que as histórias de Vicente e Con- 1957).
ceição cruzam com as do vaqueiro Chico Bento:
em primeiro plano se vê a figura do proprietário Na década de 1950, João Cabral de Melo Neto
de fazenda e gado, Vicente, que queria manter o (1954-55) escreve e publica Morte e vida severina,
rebanho nas mais ásperas condições climáticas, mas obra magistral em que relata o impacto da fuga da
também as histórias de Conceição, a professora que seca dos retirantes do sertão e agreste nordestino.
auxiliava no socorro aos retirantes que chegavam Para fazê-lo, apresenta a trajetória de um dos muitos
aos acampamentos organizados pelo governo, pos- retirantes, chamados de Severinos, que migram para
teriormente reconhecidos como campos de concen- Recife através do rio Capibaribe; nesse entremeio,
tração e aos quais nos referimos anteriormente. No as paisagens descritas apontam o cenário social de

20 FERREIRA, J. G. et al. Representações dos retirantes das secas do Semiárido nordestino


penúria de Severino e das atividades de engenho. As Que braseiro, que fornaia
andanças de Severino mostram a vontade de inter- Nem um pé de prantação
Por falta d’água perdi meu gado
romper a viagem e procurar trabalho pelo caminho Morreu de sede meu alazão
onde passa, mas mostram as desigualdades sociais
e a similitude entre as histórias dos retirantes que Inté mesmo a asa branca
saem com destino a Recife. Esta cidade recebe mui- Bateu asas do sertão
tos migrantes provenientes da Paraíba e do sertão Entonce eu disse, adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração
pernambucano, os quais vão direto às periferias,
e eles sobreviveriam dos mangues. Percebemos Entonce eu disse, adeus Rosinha
pelas metáforas do autor a relação entre a chegada Guarda contigo meu coração
ao mar e a morte. Os retirantes são retratados como
Hoje longe, muitas légua
Severinos de forma geral porque apresentam seme-
Numa triste solidão…
lhanças na vida cotidiana, no trajeto, na alimentação (Gonzaga & Teixeira, 1947)
insuficiente, nos subúrbios em que vivem e na baixa
expectativa de vida. A exortação da identidade regional, o forte
apego ao Nordeste, a saudade e a tristeza pela par-
E se somos Severinos
tida forçada se destacam entre as representações.
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual, Sem nunca esquecer o apelo a Deus e a elementos
mesma morte severina: da cultura tradicional, como o São João.
que é a morte de que se morre Entre as representações são igualmente muito
de velhice antes dos trinta, relevantes as apresentadas pela visão midiática, so-
de emboscada antes dos vinte,
bretudo por meio de jornais regionais, por relatarem
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença o cotidiano das cidades do Nordeste brasileiro de
é que a morte severina onde saíam os retirantes e das cidades que os rece-
ataca em qualquer idade, biam, revelando como as questões político-sociais
e até gente não nascida) perpassavam as diferentes esferas da política bra-
(Melo Neto, 2010, p. 69).
sileira, na figura personificada da gestão pública e
nas agendas institucionais em nível nacional. Essa
A temática da seca e os deslocamentos dos representação é também resultado das posições de
nordestinos estão igualmente presentes na literatura diversos atores sociais regionais, tanto por meio de
popular, com destaque para o chamado cordel, mas entrevistas como de artigos assinados, assim como
também na música. Em Asa Branca, Luiz Gonzaga de poesia regional, por vezes experimentando o
consagrou o sertão e o retirante a todo o Brasil para lugar de retirante ou propondo políticas de respos-
ser cantado. Observe-se a segunda parte da letra, ta. A mídia acaba sendo o palco em que o retirante
após na primeira se ter queixado a Deus deste nada ganha maior visibilidade, confrontando alertas e
fazer em face de tamanho calor e terra queimada, argumentos e dimensões da tragédia, como vamos
que o levou a perder tudo: mostrar a seguir.

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 55, Edição especial - Sociedade e ambiente no Semiárido: controvérsias e abordagens, p. 9-27, dez. 2020. 21
3.3. Representações do retirante na mídia A seca, como grande problema regional, tem
regional canal aberto na mídia, quer pela dramatização do
efeito sobre os retirantes, em que o efeito catástrofe
O arquivo da mídia oferece-nos uma outra ganha relevo no agendamento midiático, quer pela
representação sobre o retirante e que constitui um atenção social e política do tema, abrindo espaço
importante repositório documental e de memória à sua intervenção e às medidas emergenciais to-
coletiva a que tem sido dada pouca atenção. No madas. A seca de 1958 deu destaque especial aos
sentido de contribuir para o resgate desse registro, retirantes, foi uma seca de apenas alguns meses, mas
focamos sobre a temática a partir do jornal Diário surge marcada pela transformação do olhar sobre
de Natal, publicado durante décadas no Rio Grande o Nordeste, após em 1956 o presidente Juscelino
do Norte. Através da Hemeroteca Digital Brasileira, Kubitschek ter criado o Grupo de Trabalho para o
realizamos pesquisa livre no acervo do jornal com Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), nomeando
base no termo “retirante” entre os anos 1939 e 1989. Celso Furtado para a coordenação. A preocupação
A coleta vem trazer novas representações à análise, não era apenas com a seca, o objetivo do GTDN
que ilustramos quando justificado por imagens dos era desenvolver o Nordeste com base na industria-
títulos das próprias notícias. lização, elaborando o relatório “Uma Política de
Desenvolvimento Econômico para o Nordeste”.
Em 1958, o presidente visitou a região, dando muita
atenção à ajuda aos retirantes e, no ano seguinte,
criou a Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste (SUDENE).
Sobre o dramatismo da mídia, as notícias de
2 e 3 de abril de 1958 espelham, respectivamente,
“Flagelados caindo de fome nas ruas de nossa capi-
tal” (Figura 2) e “Retirantes gritavam que estavam
morrendo de fome”, nesse caso referindo-se à che-
gada em massa de retirantes à cidade de Guarabira,
na Paraíba, reclamando víveres e gritando estar
com fome. Entre outras manchetes, destacamos:
“Fugitivos da seca continuam chegando do sertão
potiguar” (DN, 14/3/1958), assim como “Sertane-
jos fogem da inclemência da sêca” e “Avoluma-se
a chegada de fugitivos da sêca” (DN, 17/3/1958),
a primeira sobre o caminho do Sul na fuga à seca
e a segunda dando conta da chegada sucessiva de
FIGURA 1 – Reportagem sobre a estiagem prolongada.
retirantes a Natal. Se é verdade que diversas notícias
FONTE: Diário de Natal, 25/11/1964. dão conta dos rastreios de saúde aos retirantes, de

22 FERREIRA, J. G. et al. Representações dos retirantes das secas do Semiárido nordestino


modo a evitar a proliferação de doenças por toda a
população, o apoio continuou faltando. A notícia do
Diário de Natal de 10/01/1965 dizia isso mesmo,
que os “Retirantes do interior em Natal continuam
vítimas do desamparo”.

FIGURA 3 – Artigo sobre episódios de deslocamentos dos


nordestinos.
FONTE: Diário de Natal, 18/09/1939.

Na seca de 1939 já se discutia o problema


dos atravessadores e vendedores de promessas que
FIGURA 2 – Manchete sobre a chegada dos retirantes à cidade de acabavam enganando quem necessitava de ajuda.
Natal/RN.
FONTE: Diário de Natal, 02/04/1958.
A notícia, também de 18 de setembro de 1939,
destaca o que chama de indústria do transporte em
Sobre o destino dos retirantes e as condições caminhões e a necessidade de combater traficantes
em que saíam de suas cidades encontramos vários e agenciadores que transformam uma ilusão num
exemplos. Em um deles, o jornal Diário de Natal, drama ainda maior. Um problema que, segundo
na sua edição de 18 de setembro de 1939, relata a a notícia, não era recente, mas ter-se-á agravado
tentativa de um grupo de retirantes cearenses que- com a abertura da estrada Bahia-Rio de Janeiro.
rendo chegar à Paraíba e conseguir ajuda. Com a Na resposta, existia uma preocupação em garantir
manchete de primeira página “Urubús atacam nas trabalho para os homens.
estradas os corpos tombados por inanição, mas vi- Durante a seca de 1951, foi grande a migração
vos” (Figura 3), o artigo relata de forma dramática para o Sul. Na notícia de março de 1951, a comu-
essa viagem, descrevendo episódios de suicídio no nicação social deu sobretudo conta do número de
desespero da seca e da fome, os navios que não atingidos pela seca que tiveram como destino o Es-
chegam com comida e levam ao aumento do preço tado de São Paulo. Segundo a manchete, em janeiro
de produtos alimentares, mais elevado distante e fevereiro chegaram ao estado, respectivamente,
das cidades. Durante a viagem são os urubus que 14 mil e 15 mil flagelados, o que constituía uma
tomam conta dos corpos deitados, sem temor se enorme preocupação em face da falta de assistência.
estão mortos ou vivos. Cerca de um mês depois, o drama continua e com
tendência para aumentar. A notícia publicada em
24 de abril de 1951 teve de novo destaque principal

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 55, Edição especial - Sociedade e ambiente no Semiárido: controvérsias e abordagens, p. 9-27, dez. 2020. 23
no Diário de Natal. Tendo como título principal O estereótipo que recaía sobre figura do
“Milhares de nordestinos entregues à própria sorte retirante pode derivar de situações concretas de
enchem cidades do sul” e subtítulo “Como vítimas desespero, mas que se alargava a outras dimensões.
da deshumanidade de indivíduos sem escrúpulos os O retirante no meio da tragédia era o nordestino que
flagelados vivem um drama terrível”, a publicação se via despojado de comida e de esperança, que, ao
dá conta de várias ações que agravam a condição entrar em desespero, alimentava a ideia da culpa da
de fragilidade dos retirantes. Citamos alguns exem- ocorrência de roubos e da desordem pública. Uma
plos: “ação desumana de indivíduos inescrupulosos das imagens do retirante é dada pelo poeta Orilo
que oferecem dinheiro a alguns retirantes para que Dantas, que o Diário de Natal chama de Oiticica
deixem suas filhas moças e esposas em sua compa- (DN, 28 de maio 1976). Diz o poeta: “O retirante
nhia”; “crianças gritando de fome e desabrigadas, faminto, rasgado de pé no chão, é o retrato distinto
enquanto milhares de mulheres, muitas em estado de do ressequido sertão”.
gravidez, deitam-se pelas calçadas onde amanhecem Mas esse é campo fértil não só nessa exalta-
e anoitecem”; por outro lado, certos comerciantes ção do sofrimento e da resistência do nordestino,
aproveitam a oportunidade para aumentar os preços mas também no estereótipo. Na sua edição de 28
de gêneros, chegando mesmo a vender uma lata de março de 1948, o DN publica um artigo mais
d’água por dez e quinze cruzeiros e alugar árvores abrangente do já citado Raimundo Nonato sobre o
para a dormida dos retirantes. Os dois últimos re- êxodo rural que afeta o sertão, mas no qual o autor
latos são da cidade de Monte Azul, região de São deixa um “retrato dos sertões, na época tormentosa
Paulo, mas repetiam-se por todo o Brasil. das sêcas”:
A exploração da borracha da Amazônia, mas
também a mineração e a construção de açudes e Exposto, deste modo, à inconstância da estação chu-
estradas de ferro, integravam igualmente a resposta vosa, o braço forte do trabalhador rural, tão necessário
à seca por meio da criação de emprego. A notícia à expansão de nossa rudimentar agricultura, deserta
do rincão adusto, desgarrando-se dos sítios e da terra
do dia 27 de março de 1951, com o título “Já não de plantar, e como força inútil na região onde o tra-
existe flagelados em Santana do Matos”, indica no balho já não produz mais seus rendimentos, o homem
subtítulo a existência de “Trabalho para os retirantes transforma-se no pária, no retirante que percorre as
nas minas locais. Reunião de governadores, segun- estradas, desesperado, morrendo de fome à vista da
sua Canaan abandonada... (DN, 28 de março de 1948).
da-feira em Recife”. A notícia de 27 de dezembro de
1958 descreve participação dos retirantes no ciclo
da borracha, na Amazônia, informando que em A imagem estereotipada dos retirantes está
menos de 10 dias 2.430 retirantes da seca chegaram presente no trato e em toda uma imagética negativa,
à Amazônia. A notícia diz ainda que esse número que o associa por vezes a bandido, outras a monstro
fazia parte de um grupo de 10.030 cearenses que ou apenas indigente. Num exemplo, o Diário de
se encontravam na Hospedaria Getúlio Vargas, em Natal busca desmitificar essa construção por meio
Fortaleza, e que em desespero saquearam a cidade da publicação de um pequeno conto – O conto do
para que conseguissem algo para comer. domingo. Pedro Justino. Conto de Aluísio Furtado –

24 FERREIRA, J. G. et al. Representações dos retirantes das secas do Semiárido nordestino


que em uma das partes relata o encontro do retirante xemos no artigo a fala de retirantes, mas por meio da
Pedro Justino com uma criança da cidade de Natal: mídia foi possível identificar o dramatismo real do
fenômeno por diversas vezes publicado na primeira
– Cuma vai o patrãozinho? Tá bão? página do Diário de Natal. A mídia contribuiu para
denunciar os episódios degradantes – humilhação,
Fiquei parado, imóvel, sem forças para fugir, os fome, doenças, morte – dos emigrantes nordestinos,
olhos pregados que eu mesmo sentia estar querendo mas também na construção negativa – imagem
saltar das órbitas. Os amiguinhos haviam fugido estereotipada, preconceito, indigente –, ao mesmo
todos e eu estava agora sozinho, frente a frente tempo em que busca a desconstrução desta imagem
com um homem que “comia figo de menino”. Mas,
negativa, por meio de notícias ou pequenos contos,
pouco e pouco, fui compreendendo que aquela voz
não podia ser de má gente: esforçando-se por mostrar que eram membros da
comunidade precisando da solidariedade de todos
e que sua condição de fragilizados não os destitui
– Qual nada, meu santinho! Justino não faz mal a
ninguém, Justino pede esmola. Justino tem fome de relevância social. Por sua vez, a literatura traz
(DN, 6 de fevereiro de 1949). a experiência narrada e a perpetuação do lugar do
retirante no drama social e político do Nordeste,
Se o retirante faminto, homem pária, rasgado mas também seu enraizamento nas expressões
de pé no chão, é o retrato distinto do ressequido culturais mais populares e mais eruditas da região,
sertão (DN, 28/05/1976), a seca representava contribuindo como elemento de identidade regional.
igualmente o regresso dos paus de arara à estrada A literatura sobre a temática das migrações, a
em direção ao Sul. Viaturas de caixa aberta, sem pesquisa e a preocupação contemporânea sobre a
condições e com nordestinos amontoados, que pa- mudança climática deixam igualmente elementos
gavam para se deslocarem para estados como São que merecem aprofundamentos futuros. Somente
Paulo, Minas e o Paraná, em família, com crianças uma pesquisa em escala local permitirá reconstruir
de todas as idades (DN, 08/04/1958). a memória desses retirantes, do destino a que ruma-
ram e se o retorno acontecia efetivamente após cada
seca no caso de se tratarem de migrações climáticas
4. Considerações finais sazonais. As políticas públicas gradualmente im-
plementadas rechaçaram o fluxo; por outro lado, os
O artigo apresenta elementos que nos permitem movimentos sociais e políticos têm reivindicado o
refazer o perfil do tradicional retirante da seca do fim de antigas relações de dominação. As projeções
sertão nordestino de modo que se possa acrescentar climáticas não afastam o ressurgir do problema, nem
conhecimento sobre o fenômeno e contribuir para a da forma desigual como podem afetar comunidades
resiliência das comunidades. O recurso a diversas e municípios, o que constitui um motivo mais para
fontes permitiu fundamentar essas representações, se colocar o tema dos retirantes nordestinos ou re-
trazendo vários exemplos e argumentos. Não trou- fugiados ambientais na agenda de pesquisa.

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 55, Edição especial - Sociedade e ambiente no Semiárido: controvérsias e abordagens, p. 9-27, dez. 2020. 25
Agradecimentos cas Públicas e Estratégias Locais de Enfrentamento
da Seca, de que este artigo é parte. Agradecemos
Agradecemos à Universidade Federal do Rio igualmente aos bolsistas voluntários do referido
Grande do Norte por ter confiado nesta pesquisa, projeto.
com a aprovação do projeto Memória Social, Políti-

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