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DESENVOLVIMENTO
E MEIO AMBIENTE
José Gomes FERREIRA1*, Anna Lidiane Oliveira PAIVA2, Anastácia Brandão de MÉLO3
1
Universidade do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.
2
Universidade Federal Rural de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Serra Talhada, SerraTalhada, PE, Brasil.
*
E-mail de contato: jose.ferreira@outlook.com
Artigo recebido em 21 de abril de 2020, versão final aceita em 27 de setembro de 2020, publicado em 18 de dezembro de 2020.
RESUMO: As mudanças climáticas e as projeções no sentido do seu agravamento no Nordeste aumentam as preocupações
quanto às repercussões no meio ambiente, na economia e na vida das comunidades. Entre os impactos sociais
mais estudados destacam-se as migrações, temporárias ou permanentes, que integram os chamados refugiados
climáticos. O semiárido nordestino é uma vasta região do território brasileiro historicamente exposta às condições
severas do clima seco, em que longos períodos de estiagem obrigavam o sertanejo a refugiar-se em grandes
cidades do litoral em busca de sobrevivência. O chamado de retirante, ou flagelado da seca, é o elemento mais
fragilizado na hierarquia social e aquele que mais depressa é afetado pela ausência prolongada de chuvas na
região. O artigo analisa as representações sociais dos emigrantes sertanejos por meio de bibliografia científica,
mídia e literatura, buscando melhor conhecer esse fenômeno e contribuir para a resiliência das comunidades em
um contexto de agravamento dos fenômenos climáticos extremos. Os resultados encontrados foram as diversas
representações dos emigrantes nordestinos, o preconceito, os impactos das secas, o drama social e político, as
relações de dominação, a memória de um povo e a necessidade de políticas públicas estruturantes.
Palavras-chave: mudança climática; refugiados climáticos; retirante; seca; semiárido.
ABSTRACT: Climatic changes and their projections of worsening in the Brazilian Northeast increase concerns about the
impact in the environment, economy and the lives of communities. Among the most studied social impacts are
the temporary or permanent migrations that integrate what is called climatic refugees. The semiarid Northeast
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is a vast region in the Brazilian territory that suffers with severe conditions caused by the dry climate, with long
periods of drought that obligates people to refugee in the largest cities of the seaside to survive. This Brazilian
northeasterner, or drought victim, is the most fragile in the social hierarchy and who is most quickly affected
by the regular lack of rains in the region. This article analyzes the social representations of northeasterner
emigrants based on scientific literature, media and literature, aiming to understand this phenomenon and to
contribute to the resilience of communities in a context of worsening of this extreme climatic phenomenon.
As a result, it finds various northeasterner emigrant representations, prejudice, drought impacts, social and
political drama, relationships of domination, people memory and their needs of organizing public policies.
Keywords: climate change; climate refugees; “retirantes”; drought; semiarid.
Desenvolv. Meio Ambiente, v. 55, Edição especial - Sociedade e ambiente no Semiárido: controvérsias e abordagens, p. 9-27, dez. 2020. 11
de referências em redor do conceito e apresentando ambientalmente deslocadas” que podem ocasionar
as migrações da população entre os impactos pro- migrações internas ou internacionais, temporárias
vocados pelas mudanças climáticas. Em seguida, o ou permanentes, e em situação de vulnerabilidade
texto se concentra especificamente no debate sobre social, econômica e política, obrigados a deixar sua
o histórico das secas do Nordeste brasileiro e sobre a morada por motivos ambientais, e neste particular
figura do retirante como emigrante fugido da tragé- climáticas, que representam riscos e ameaças para
dia das secas. Será dado destaque à resposta gradual a vida (Brito, 2016; Claro, 2018; Pacífico & Araújo
das políticas públicas, assim como às representações Neto, 2018).
sociais do retirante presentes na literatura nordestina Do ponto de vista do monitoramento e resposta
e na mídia regional a partir dos resultados da pes- ao problema dos refugiados, o tema tem merecido
quisa. O texto finaliza com as considerações sobre atenção internacional, fazendo parte da agenda de
o contexto histórico vivenciado pelos retirantes das preocupações do ACNUR – Alto Comissariado das
secas e as mudanças climáticas. Nações Unidas para os Refugiados, assim como de
organizações independentes ou vinculadas a gover-
2. Refugiados e mudanças climáticas nos. Uma dessas entidades é o Internal Displace-
ment Monitoring Centre (IDMC), que desde 1998
é parte integrante do Norwegian Refugee Council
Os desastres ambientais e mais especifica-
(NRC), de cujo trabalho se destaca a publicação
mente os climáticos colocaram no topo da agenda
anual do GRID - The Global Report on Internal
internacional o debate sobre o problema dos re-
Displacement1, um relatório sobre populações des-
fugiados ambientais. O tema carece de pesquisa
locadas nos diversos países e por variadas razões.
aprofundada, não somente designadamente quanto
Seu último relatório, com dados referentes a 2018,
ao impacto nos países de origem e naqueles que,
contabiliza 28 milhões de novos deslocados em 148
temporariamente ou de forma mais prolongada,
países e territórios, separando os refugiados por
são países ou territórios de acolhimento. Concei-
motivos de conflitos (10,8 milhões) e por motivo
tualmente, o significado de refugiado ambiental
de desastres (17,2 milhões).
encontra diversas denominações, que em geral
Em 2018, Filipinas, China e Índia contabiliza-
conduzem ao mesmo. A literatura sobre a temá-
ram cerca de 60% destes deslocamentos forçados,
tica da mudança climática fala sobre “refugiados
mas outros países merecem igualmente referência.
do clima”, “refugiados climáticos”, “refugiados
Por tipologia de deslocamento, destacamos: as
ambientais”, “refugiados ecológicos”, “migrantes
Filipinas (desastres 188.000; conflitos 3.802.000),
do clima”, “migrantes climáticos”, “migrantes
a China (desastres 3.762.000; sem informação de
ambientais”, “deslocados do clima”, “deslocados
conflitos), a Etiópia (desastres 296.000; conflitos
ambientais”, “ecomigrantes”, ou seja, “pessoas
2.895.000) e a Índia (desastres 2.675.000; conflitos
1
O relatório de 2019 encontra-se disponível em <https://www.internal-displacement.org/global-report/grid2019/>. O acesso a relatórios de
anos anteriores está disponível em <https://www.internal-displacement.org/global-report>.
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A discussão também se coloca quanto ao fato 3. Secas e representações dos retirantes do
de serem migrações internas e ao estatuto jurídico Nordeste brasileiro
destes refugiados. Quanto ao primeiro tópico, não é
clara a exclusão dos refugiados ambientais internos Desde a chegada dos portugueses o problema
da categoria de refugiados, porém, não passando das secas no semiárido nordestino é conhecido.
a ocupar territórios de outros países, continuam Vários naturalistas, jornalistas e pesquisadores
gozando do direito de cidadania brasileira em tu- percorreram a região e deixaram um importante
do o que isso implica. Relativamente ao segundo testemunho dos períodos conturbados pelas secas.
aspecto, a partir de Claro (2018) e outros autores, As estiagens anuais fazem parte do ciclo climático
Sales & Oliveira (2019) chamam a atenção para do semiárido, no entanto, a prolongação do seu pe-
o fato de, apesar da origem do termo “refugiados ríodo não tem calendário marcado, afeta a economia
ambientais” ter sido cunhada por Lester Brown, do e o modo de vida das populações, que ao longo da
World Watch Institute, em 1970 e ser aceita a partir história se viram obrigadas a largar tudo para pedir
daí pelas instituições internacionais, existem ainda socorro numa tentativa de sobrevivência. A ausência
lacunas no direito internacional na abordagem do de chuvas ou a chamada seca verde provocou ciclos
problema, a tal ponto que “a categoria ‘refugiado de emigrantes nordestinos, deixando os sertões
ambiental’ não possui enquadramento técnico e desertos de gente, deslocando-se para os grandes
jurídico no direito internacional dos refugiados” centros urbanos ou buscando migrar em anos nor-
(2019, p. 28). Ainda assim, aplicam-se, entre outras, mais para assim antecipar o período de escassez.
a Convenção relativa ao Estatuto do Refugiado de O debate sobre as origens do retirante iden-
1951 e as Convenções de Direitos Humanos, assim tifica a crucial necessidade de sobrevivência ante
como o princípio de não devolução, o que impede o ímpeto das condições climáticas, coincidindo o
a expulsão dos refugiados ambientais dos países de relato do deslocamento do sertão para o litoral com
abrigo. Desse modo, a classificação dos retirantes o aprofundar da seca praticamente a partir chegada
como refugiados ambientais está dependente de dos portugueses à região (Cunha, 2016), em fluxos
questões do ordenamento jurídico internacional, direcionados às grandes cidades, alterando as rela-
no sentido de definir o tipo de proteção e se o fato ções sociais nos territórios. O emigrante nordestino
de se tratar de um fluxo interno se enquadra igual- tem suas marcas socioculturais enfatizadas, no ima-
mente. Todavia, carregam consigo o peso de serem ginário nacional, pela mídia impressa, literatura e
deslocados, geralmente de territórios densamente arte, e que Eloy de Souza (1909, p. 170) afirmava ser
povoados e pobres. Mostramos mais adiante, com “aplicada a milhares de compatriotas tangidos pelo
recurso a diversas fontes, que os próprios sertanejos inominável flagelo da seca dos sertões nordestinos”
eram pejorativamente chamados de “flagelados”, e que em cada seca se deslocavam para as cidades
que “invadiam” os grandes centros urbanos como do litoral e para o norte e sul do país. Afirmando
“desocupados” que se tornavam uma “ameaça” à que, apesar do trabalho promissor realizado durante
“ordem” e à higiene (Marques & Oliveira, 2016, décadas, “a palavra retirante circulará, sabe Deus
p. 975).
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década de 1950 e o processo de industrialização impulsionou a organização de respostas regionais
do Estado de São Paulo na década de 1960, que ao problema, colocando parte dos homens na cons-
coincidem com grandes secas e correspondem a trução de obras públicas, com destaque para as
“uma crescente demanda de mão de obra em regiões estradas de ferro. O desenvolvimento do ciclo da
polarizadoras que atraíram migrantes nordestinos borracha na Amazônia levou muitos nordestinos,
ao longo da história” (Ojima et al., 2014, p. 155). essencialmente os homens, a deixarem o Nordeste.
Acrescenta-se a este fluxo migratório a necessidade
3.1. Políticas públicas de apoio ao retirante de mão de obra pelas grandes obras no Sul do país
(Ojima et al., 2014). Por sua vez, Gonçalves (2014)
relata que a cafeicultura em São Paulo se beneficiou
A resposta à situação de emergência das co-
com os migrantes das secas, sendo encaminhados às
munidades se resumiu durante décadas ao auxílio
fazendas de café em consequência da demanda por
às vítimas de forma assistencialista e limitado à
mão de obra. O interesse era tanto que solicitaram
atribuição de esmolas e alguns produtos recolhidos
mais do Ceará e também do Rio Grande do Norte,
em peditórios particulares. O auxílio federal pode-
a que chamavam de trabalhadores nacionais e/ou
ria demorar meses a chegar, registrando enormes
caboclos. Na Grande Seca de 1877-1879, assim
atrasos, agravados por desvio e roubo dos produ-
como nas secas do final de 1900 e início de 1901,
tos. Até a Grande Seca de 1877-1879 não havia
o governo imperial pagou as despesas das passa-
nenhuma política pública de suporte, apenas apoio
gens de trem no deslocamento dos retirantes para
assistencialista com base em peditórios realizados
as fazendas do interior. Gonçalves defende que a
nas grandes cidades. O deslocamento da população
maioria dos cearenses que migraram para São Paulo
das cidades afetadas levava ao seu esvaziamento e
eram sobretudo grupos familiares, uma vez que os
ao esvaziamento do sertão (Cunha, 2016). Por outro
fazendeiros defendiam a migração familiar, por
lado, o estigma e o tratamento desta massa de gente
ser conveniente a combinação da mão de obra do
não favoreciam o apoio em situações de carência.
homem, da mulher e dos filhos acima de sete anos.
Eloy de Souza denuncia o tratamento dos retirantes
E a experiência nas lavouras de algodão do sertão
durante esta seca, em que “eram por muitos con-
cearense possibilitava a sua adaptação no trabalho
sideradas criaturas desprezíveis e como tais perse-
dos cafezais. Em síntese, a “miséria e subvenção
guidas e enxotadas do convívio dos afortunados”
constituíram-se, assim, em elementos-chave na
(Souza, 1909, p. 171). A coleta de mídia mostra que
formação da força de trabalho da economia cafeeira
a fome, a morte, a doença – entre as quais o tifo e
paulista” (Gonçalves, 2014, p. 304).
a tuberculose – e a criminalidade somavam-se aos
Mas as políticas de ocupação e apoio aos reti-
problemas dos retirantes.
rantes não se davam somente fora da região afetada,
Em decorrência da seca de 1877-1879, em
do sertão nordestino. Durante a Grande Seca, no
visita ao Ceará o imperador afirmou: “Não restará
ano de 1878, o governo estadual do Ceará avançou
uma joia da Coroa, mas nenhum nordestino mor-
com um projeto proposto pelo senador do Ceará,
rerá de fome” (Maciel, 1983, p. 7). A Grande Seca
Tomás Pompeu de Souza Brasil, e depois concre-
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terem em situação de emergência em decorrência des regionais, que a resposta ao desenvolvimento
da seca que se iniciou em 2012)2, mas devido ao regional também buscou atenuar.
conjunto de políticas públicas, umas mais de caráter A pesquisa que realizamos busca identificar
infraestrutural, de tecnologias sociais, e outras de a imagem do retirante presente em diversas fontes
programas ao apoio social e agrícola às comunida- históricas. O tópico seguinte recorre à literatura
des. Se é verdade que muito se espera da conclusão regionalista para retratar o emigrante nordestino
da transposição, em particular da chegada das águas fugido da severidade das secas, procedendo a uma
ao Eixo Norte, é também verdade que o Programa síntese de referências em que a temática se tem feito
1 Milhão de Cisternas, da ASA – Articulação no presente em termos históricos, para depois dar voz
Semiárido, garantiu autonomia hídrica às comunida- a Rachel de Queiroz, José do Patrocínio, Raimundo
des mais isoladas por vários meses (Ferreira, 2019). Nonato, João Cabral de Melo Neto, Luiz Gonzaga
Por outro lado, tem sido fundamental a resposta e outros. A literatura e posteriormente a análise da
por meio de programas como o Bolsa Estiagem, mídia nos mostram como se consolidou a imagem
o Garantia-Safra, a aposentadoria rural e inclusi- do retirante na identidade nordestina, questões que
vamente o Programa Bolsa Família. Sem esquecer veremos de imediato.
que tem sido muito importante a implementação
do Programa Nacional de Fortalecimento da Agri- 3.2. Representações dos emigrantes
cultura Familiar (PRONAF), criado em 1995 como nordestinos na literatura
a primeira política agrícola nacional direcionada
especificamente para agricultores familiares.
A literatura regionalista, incluindo o cordel,
As políticas públicas têm buscado reduzir as
mas também a arte de uma forma geral, não tem
desigualdades sociais e melhorar a condição de
sido indiferente à temática das secas e que contribui
vulnerabilidade social do agricultor familiar, mas
para a construção da identidade simbólica da região.
sem que um conjunto de estereótipos tenha desa-
Em 1775, no romance O cabeleira, Franklin Távora
parecido por completo. Não é apenas o retirante o
referiu-se a uma peste que assolou Pernambuco na
visado, é todo o Nordeste. A região tem sido histo-
sequência de uma seca abrasadora que provocou
ricamente considerada atrasada, entregue a coronéis
grande número de vítimas. Rodolfo Teófilo publicou
latifundiários do sertão cuja imagem, como afirma
a partir de 1884 vários volumes sobre a “História da
Francisco de Oliveira a partir da interpretação de
Seca no Ceará” e em 1890 publicou A fome, conside-
Gilberto Freyre, “contrastava com as dos salões e
rado o primeiro grande romance que trata das secas
saraus do Nordeste ‘açucareiro’” (Oliveira, 2008,
no Nordeste. No início do novo século, merecem
p. 146), acentuando que as disparidades não eram
destaque O quinze, romance de Rachel de Queiroz,
apenas sociais, mas deixavam explícitas disparida-
de 1930, em que narra a experiência vivida na sua
2
Especificamente quanto à situação do Rio Grande do Norte, a Portaria nº 2.652, de 13 de outubro de 2020, do Ministério do Desenvolvimento
Regional, reconhece situação de emergência em 18 municípios do Estado (Brasil, 2020).
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condição de precariedade dos retirantes era explo- campo havia distribuição de comida, as habitações
rada para obter vantagem e sentido de dominação. A eram precárias, predominava o mau cheiro, cada
obra da escritora cearense foi a antecâmara dos no- dia chegavam mais retirantes e também morriam,
vos campos de concentração em 1932, demarcados mas sem perspectiva de emprego ou melhorias das
para supostamente defender a cidade de Fortaleza condições de vida ocorria o aumento do número de
de uma possível invasão dos famintos. Esses cam- pedintes nas ruas (Queiroz, 1948).
pos, também conhecidos como currais do governo, Com relação à seca de 1919, que afetou no-
eram construídos em lugares próximos às ferrovias meadamente o Rio Grande do Norte, Raimundo
em que aportavam retirantes do interior para assim Nonato deixou um testemunho impressionante no
impedir o seu acesso aos bairros mais ricos da ci- livro Memórias de um retirante, em que relata a
dade (Kenny, 2009). Martins & Kupermann (2017) sua vivência como retirante, quando ainda menino
mencionam ainda uma dimensão macabra dos dois saiu com a família da cidade de Martins, interior
campos ao redor de Fortaleza, que também serviram do estado, em busca de meios de subsistência. O
de vitrines para demonstrar a eficiência do poder autor acabou se fixando na cidade de Mossoró,
público de governar e tratar a pobreza com as vestes vindo a exercer várias ocupações. Em seu livro
de um moderno projeto humanitário. descreve vários momentos da viagem a pé, de que
Se pela mão do baiano Rodolfo Teófilo tive- destacamos o seguinte extrato, que narra a partida
mos os primeiros testemunhos sobre os horrores das forçada de Martins:
secas, em A fome (1890) e Secas do Ceará (1901), é
por intermédio de Rachel de Queiroz que conhece- No percurso dos solitários viajantes não foi viva alma.
Tudo era deserto e triste. Abandonado e ermo.
mos a massa humana de velhos, homens, mulheres
em seus molambos, crianças de feições petrificadas
que sobreviviam encurralados. Além disso, o livro Ninguém quis dar notícias da partida dos infelizes
retirantes. [...].
O quinze faz também uma denúncia de alguns dos
problemas nacionais, entre os quais a corrupção no
E por último, ao atravessar o derradeiro quarteirão
governo, o apadrinhamento, a carestia de produtos e da Rua baixa, deixando tudo quanto tinha de mais
as políticas assistencialistas prestadas aos retirantes. querido na vida, a cidade tinha desaparecido (Nonato,
É nesse cenário que as histórias de Vicente e Con- 1957).
ceição cruzam com as do vaqueiro Chico Bento:
em primeiro plano se vê a figura do proprietário Na década de 1950, João Cabral de Melo Neto
de fazenda e gado, Vicente, que queria manter o (1954-55) escreve e publica Morte e vida severina,
rebanho nas mais ásperas condições climáticas, mas obra magistral em que relata o impacto da fuga da
também as histórias de Conceição, a professora que seca dos retirantes do sertão e agreste nordestino.
auxiliava no socorro aos retirantes que chegavam Para fazê-lo, apresenta a trajetória de um dos muitos
aos acampamentos organizados pelo governo, pos- retirantes, chamados de Severinos, que migram para
teriormente reconhecidos como campos de concen- Recife através do rio Capibaribe; nesse entremeio,
tração e aos quais nos referimos anteriormente. No as paisagens descritas apontam o cenário social de
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3.3. Representações do retirante na mídia A seca, como grande problema regional, tem
regional canal aberto na mídia, quer pela dramatização do
efeito sobre os retirantes, em que o efeito catástrofe
O arquivo da mídia oferece-nos uma outra ganha relevo no agendamento midiático, quer pela
representação sobre o retirante e que constitui um atenção social e política do tema, abrindo espaço
importante repositório documental e de memória à sua intervenção e às medidas emergenciais to-
coletiva a que tem sido dada pouca atenção. No madas. A seca de 1958 deu destaque especial aos
sentido de contribuir para o resgate desse registro, retirantes, foi uma seca de apenas alguns meses, mas
focamos sobre a temática a partir do jornal Diário surge marcada pela transformação do olhar sobre
de Natal, publicado durante décadas no Rio Grande o Nordeste, após em 1956 o presidente Juscelino
do Norte. Através da Hemeroteca Digital Brasileira, Kubitschek ter criado o Grupo de Trabalho para o
realizamos pesquisa livre no acervo do jornal com Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), nomeando
base no termo “retirante” entre os anos 1939 e 1989. Celso Furtado para a coordenação. A preocupação
A coleta vem trazer novas representações à análise, não era apenas com a seca, o objetivo do GTDN
que ilustramos quando justificado por imagens dos era desenvolver o Nordeste com base na industria-
títulos das próprias notícias. lização, elaborando o relatório “Uma Política de
Desenvolvimento Econômico para o Nordeste”.
Em 1958, o presidente visitou a região, dando muita
atenção à ajuda aos retirantes e, no ano seguinte,
criou a Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste (SUDENE).
Sobre o dramatismo da mídia, as notícias de
2 e 3 de abril de 1958 espelham, respectivamente,
“Flagelados caindo de fome nas ruas de nossa capi-
tal” (Figura 2) e “Retirantes gritavam que estavam
morrendo de fome”, nesse caso referindo-se à che-
gada em massa de retirantes à cidade de Guarabira,
na Paraíba, reclamando víveres e gritando estar
com fome. Entre outras manchetes, destacamos:
“Fugitivos da seca continuam chegando do sertão
potiguar” (DN, 14/3/1958), assim como “Sertane-
jos fogem da inclemência da sêca” e “Avoluma-se
a chegada de fugitivos da sêca” (DN, 17/3/1958),
a primeira sobre o caminho do Sul na fuga à seca
e a segunda dando conta da chegada sucessiva de
FIGURA 1 – Reportagem sobre a estiagem prolongada.
retirantes a Natal. Se é verdade que diversas notícias
FONTE: Diário de Natal, 25/11/1964. dão conta dos rastreios de saúde aos retirantes, de
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no Diário de Natal. Tendo como título principal O estereótipo que recaía sobre figura do
“Milhares de nordestinos entregues à própria sorte retirante pode derivar de situações concretas de
enchem cidades do sul” e subtítulo “Como vítimas desespero, mas que se alargava a outras dimensões.
da deshumanidade de indivíduos sem escrúpulos os O retirante no meio da tragédia era o nordestino que
flagelados vivem um drama terrível”, a publicação se via despojado de comida e de esperança, que, ao
dá conta de várias ações que agravam a condição entrar em desespero, alimentava a ideia da culpa da
de fragilidade dos retirantes. Citamos alguns exem- ocorrência de roubos e da desordem pública. Uma
plos: “ação desumana de indivíduos inescrupulosos das imagens do retirante é dada pelo poeta Orilo
que oferecem dinheiro a alguns retirantes para que Dantas, que o Diário de Natal chama de Oiticica
deixem suas filhas moças e esposas em sua compa- (DN, 28 de maio 1976). Diz o poeta: “O retirante
nhia”; “crianças gritando de fome e desabrigadas, faminto, rasgado de pé no chão, é o retrato distinto
enquanto milhares de mulheres, muitas em estado de do ressequido sertão”.
gravidez, deitam-se pelas calçadas onde amanhecem Mas esse é campo fértil não só nessa exalta-
e anoitecem”; por outro lado, certos comerciantes ção do sofrimento e da resistência do nordestino,
aproveitam a oportunidade para aumentar os preços mas também no estereótipo. Na sua edição de 28
de gêneros, chegando mesmo a vender uma lata de março de 1948, o DN publica um artigo mais
d’água por dez e quinze cruzeiros e alugar árvores abrangente do já citado Raimundo Nonato sobre o
para a dormida dos retirantes. Os dois últimos re- êxodo rural que afeta o sertão, mas no qual o autor
latos são da cidade de Monte Azul, região de São deixa um “retrato dos sertões, na época tormentosa
Paulo, mas repetiam-se por todo o Brasil. das sêcas”:
A exploração da borracha da Amazônia, mas
também a mineração e a construção de açudes e Exposto, deste modo, à inconstância da estação chu-
estradas de ferro, integravam igualmente a resposta vosa, o braço forte do trabalhador rural, tão necessário
à seca por meio da criação de emprego. A notícia à expansão de nossa rudimentar agricultura, deserta
do rincão adusto, desgarrando-se dos sítios e da terra
do dia 27 de março de 1951, com o título “Já não de plantar, e como força inútil na região onde o tra-
existe flagelados em Santana do Matos”, indica no balho já não produz mais seus rendimentos, o homem
subtítulo a existência de “Trabalho para os retirantes transforma-se no pária, no retirante que percorre as
nas minas locais. Reunião de governadores, segun- estradas, desesperado, morrendo de fome à vista da
sua Canaan abandonada... (DN, 28 de março de 1948).
da-feira em Recife”. A notícia de 27 de dezembro de
1958 descreve participação dos retirantes no ciclo
da borracha, na Amazônia, informando que em A imagem estereotipada dos retirantes está
menos de 10 dias 2.430 retirantes da seca chegaram presente no trato e em toda uma imagética negativa,
à Amazônia. A notícia diz ainda que esse número que o associa por vezes a bandido, outras a monstro
fazia parte de um grupo de 10.030 cearenses que ou apenas indigente. Num exemplo, o Diário de
se encontravam na Hospedaria Getúlio Vargas, em Natal busca desmitificar essa construção por meio
Fortaleza, e que em desespero saquearam a cidade da publicação de um pequeno conto – O conto do
para que conseguissem algo para comer. domingo. Pedro Justino. Conto de Aluísio Furtado –
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Agradecimentos cas Públicas e Estratégias Locais de Enfrentamento
da Seca, de que este artigo é parte. Agradecemos
Agradecemos à Universidade Federal do Rio igualmente aos bolsistas voluntários do referido
Grande do Norte por ter confiado nesta pesquisa, projeto.
com a aprovação do projeto Memória Social, Políti-
Referências
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Teoria & Pesquisa, 16(2), 95-110, 2007. doi: 10.4322/
Diário de Natal. Várias edições, com datas indicadas no
tp.v16i2.108
corpo do texto.
Barbieri, A. F. Mudanças climáticas, mobilidade popula-
Ferreira, J. G. A transposição das águas do Rio São Francis-
cional e cenários de vulnerabilidade para o Brasil. REMHU
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