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Capítulo 6

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CAPÍTULO 6 - Saúde como Campo de Práticas

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Neste capítulo, eu pretendo explorar concepções de saúde como práxis. Por questões
históricas e políticas, a construção teórica (e retórica) da saúde tem sido realizada mediante
o abundante recurso à metáfora de campo: a saúde é um campo, o campo da saúde
coletiva, o campo científico da saúde etc. Penso que nesse momento será oportuno revisar
circunstâncias e efeitos do uso de metáforas dessa ordem na construção teórica do
conceito de saúde e dos objetos da saúde-doença-cuidado. Enfim, tomar a saúde como
campo de saberes e de práticas, resultado da complexa e rica trama de atos humanos e
instituições socialmente organizadas e coletivamente estabelecidas para enfrentar, nos
planos simbólico e concreto, os efeitos de fenômenos, eventos, fatores e processos
relativos à vida e morte, a satisfação e sofrimento, normalidade e patologia, enfermidade e
saúde.
Nessa perspectiva, retomando argumentos analisados anteriormente (Almeida-Filho,
2000b), pretendo mostrar como uma análise histórico-epistemológica revela ou denuncia
campos de saberes recortados por paradigmas, do ponto de vista da crítica
teórico-conceitual, e setores de práticas conflagrados por lutas e disputas próprias das
crises paradigmáticas e sua transição-superação. Para isso, inicialmente, apresento de
modo breve e objetivo alguns elementos introdutórios aos conceitos de paradigma e “campo
social'', cruciais para a discussão de alcance e efeitos da saúde práxis institucional. Em
segundo lugar, pretendo analisar saúde como um campo geral de saberes e práticas
sociais, capaz de articular modelos de ações preventivas de riscos, doenças e mortes, além
de medidas de proteção e promoção da saúde-doença em indivíduos e na comunidade, em
que princípios precaucionarios são cada vez mais valorizados.

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PARADIGMAS E CAMPO

Originário do grego antigo, categoria-chave da ontologia platônica, o termo paradigma®


denota um sentido razoavelmente estabelecido no campo teórico da filosofia da ciência. Em
4 Estrutura das Revoluções Científicas, sua obra mais divulgada, Thomas Kuhn propõe dois
conjuntos de sentidos para o termo. Por um lado, como categoria epistemológica, o
paradigma constitui um instrumento de abstração, uma ferramenta auxiliar para o
pensamento sistemático da ciência. Nesse caso, trata-se de uma construção destinada à
organização do raciocínio, fonte de construção lógica das explicações, firmando as regras
elementares de uma dada sintaxe do pensamento científico e assim tornando-se em matriz
para os modelos teóricos. Por outro lado, o paradigma constitui uma visão de mundo
peculiar, própria do campo social científico. Nesse sentido, implica um conjunto de
generalizações simbólicas, geralmente na forma de metáforas, figuras e analogias,
configurando-se de certo modo como a subcultura de uma dada comunidade científica
(Almeida-Filho,2000b).

A teoria kuhniana do paradigma científico (e suas variantes) rejeita claramente o sentido do


senso comum para o termo "paradigma", na acepção de padrão de referência ou modelo a
ser seguido, como ao se dizer que o sistema de saúde inglês é o paradigma da medicina
social, por exemplo.

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No nível semântico, a categoria paradigma tem provocado grande controvérsia entre os


filósofos da ciência. Porém, de todo modo, essa concepção fez avançar uma abordagem
construtivista da ciência, propondo que a construção do conhecimento científico não se dá
em abstrato, isolada no individualismo dos pesquisadores, mas sim que ocorre
institucionalmente organizada, no seio de uma cultura, de dentro da linguagem. A ciência
pode então ser vista como prática social historicamente determinada que só existe no seio
do paradigma (Almeida-Filho,2000b).

Partindo da teoria histórico-social de Kuhn, Boaventura de Sousa Santos (2000) elabora o


conceito de paradigmas socioculturais e propõe a noção de “transição paradigmática" para
dar conta das dimensões social e política na pós-modernidade. Segundo esse autor, os
paradigmas socioculturais nascem, desenvolvem-se e morrem. Assim, o paradigma da
modernidade surgido entre os séculos XVI e XVIII centrava-se em dois pilares: regulação e
emancipação. O primeiro foi constituído pelos princípios do Estado (Hobbes), do mercado
Locke e Adam Smith) e da comunidade (Rousseau). O segundo seria formado pelas
racionalidades weberianas estético-expressiva (artes e literatura), cognitivo-instrumental
(ciência e tecnologia) e moral-prática (ética e direito). O paradigma sociocultural da
modernidade, embora ambicioso e revolucionário, enfrenta as contradições entre os dois
pilares, gerando promessas não cumpridas e lacunas irremediáveis. Assim, "o que mais
nitidamente caracteriza a condição sociocultural deste fim de século é a absorção do pilar
da emancipação pelo da regulação" (Sousa Santos, 2000: 55).

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Na análise das revoluções científicas, todavia, a visão kuhniana privilegia as ciências


naturais, reconhecendo o caráter pré-paradigmático das ciências sociais. O paradigma
dominante no campo científico da saúde fundamenta-se em uma série de pressupostos que
nos acostumamos a chamar quase pejorativamente de positivismo. O positivismo mais
radical considera que a realidade é que determina o conhecimento, sendo possível uma
abordagem imediata do mundo, das coisas e dos homens. Além disso, o paradigma do
positivismo opera como se todos os entes constituíssem mecanismos ou organismos,
sistemas com determinações fixas, condicionados pela própria posição dos seus elementos.
No sentido cartesiano original, conhecer não é apenas expor o mecanismo do objeto nas
suas peças fundamentais, mas sim ser capaz de reencontrar a posição de cada peça,
reconstruir o mecanismo e pô-lo em funcionamento. O processo do conhecimento opera na
direção da síntese, da remontagem do objeto reduzido, na tentativa de restaurar sua
estrutura e função. De fato, uma versão ingênua do cartesianismo ainda assola o campo da
saúde, principalmente na sua área de aplicação mais individualizada, a clínica médica.
Perante os processos da saúde-doença-cuidado, por exemplo, a metáfora do corpo como
mecanismo (e dos seus órgãos como peças) tem sido efetivamente muito influente na
constituição das chamadas ciências básicas da saúde (Almeida-Filho, 2000b).
Nessa etapa, a metáfora do mecanismo representa a forma mais simplista de dar conta do
conhecimento como revelação do determinismo do objeto, porém a ciência produz
metáforas mais sofisticadas e eficazes para explicar os seus objetos cada vez menos
tolerantes a abordagens reducionistas. Por esse motivo, o paradigma mecanicista termina
por encontrar uma série de dificuldades institucionais, políticas, históricas e principalmente
epistemológicas, logo alcançando limites na sua abordagem.

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O avanço do conhecimento científico rompe as fronteiras impostas por essa forma de


prática científica, que assim perde a posição prestigiosa de fonte de legitimidade baseada
em uma verdade racional. Vejamos agora o conceito de campo. Devemos o conceito de
campo social a Pierre Bourdieu. Nas epistemologias pragmáticas contemporâneas,
define-se campo como espaço social relativamente autônomo, constituído por uma estrutura
de redes de relações objetivas, tendo o conceito de habitus (referentes simbólicos) como
central. Esse conceito permite considerar, no plano epistemológico, cenários, atores e
movimentos de crítica, elaboração e superação de matrizes paradigmáticas capazes de
alimentar o pensamento e a ação transformadora no âmbito da práxis.
Nessa linha, Bourdieu (1983) contribui com os conceitos de capital simbólico e campo
científico, em que operam determinações políticas e científicas para a sua constituição.
Para esse autor, além do capital econômico, cabe considerar no mundo social o capital
cultural, o capital social e o capital simbólico. Este último, fundamental para a análise do
campo científico, manifesto com prestígio, reputação, fama etc., seria a fonte estruturante
da legitimação das diferentes espécies de capital. O campo científico constitui um campo
social como outro qualquer, com relações de força e monopólio, lutas e estratégias,
interesses e lucros. A produção científica se dá num campo de forças sociais que pode ser
compreendido como um espaço multidimensional de relações em que os agentes ou grupos
de agentes ocupam determinadas posições relativas, em razão de diferentes tipos de poder.

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Desse modo, Bourdieu (1983) articula estruturalmente os conceitos de campo econômico,


campo político, campo literário, campo religioso, campo científico. Com referência a este
ultimo, que nos interessa, considera o campo científico (ou campo disciplinar) como espaço
social do capital científico. Subsidiariamente, poderemos considerar também o conceito de
campo de ação tecnológica, definido como espaço de aplicação dos saberes e das técnicas
gerados pelos campos científicos.

PARADIGMAS NO CAMPO SOCIAL DA SAÚDE

No campo da saúde, o termo paradigma foi inicialmente utilizado por Juan César Garcia
para orientar o desenho de plano de estudo que facilitassem a incorporação do ensino das
ciências sociais na saúde pública, mediante a incorporação de variáveis
psicossocioculturais pertinentes a modelos de compreensão da produção social da saúde.
Nesta acepção, o termo paradigma aproxima-se da noção de modelo, como representação
simplificada e esquemática da realidade que retém os seus traços mais significativos, a
exemplo do paradigma da história natural da doença' de Leavell e Clark (1976) ou do campo
da saúde' (Paim & Almeida-Filho,2000).
Atualmente, podemos encontrar numerosos usos (e até abusos) do conceito de paradigma
no campo da saúde coletiva - desde uma equivalência do paradigma ao conceito amplo de
campo disciplinar, como por exemplo na noção de paradigma da saúde pública", até um
tratamento mais regionalizado de paradigma no sentido da mera atitude perante uma
instituição, como nos múltiplos usos que o termo vem adquirindo no campo das ciências da
gestão. Em um nível intermediário, no próprio campo da saúde, documentos oficiais de
construções doutrinárias tem feito uso do termo na conotação de modelo ou abordagem,
como por exemplo a noção de “paradigma da atenção primária à saúde”. O termo
paradigma tem sido também empregado para qualificar distintos movimentos ideológicos
que se têm apresentado sucessivamente no campo da saúde, tais como a medicina
preventiva, a saúde comunitária e, mais recentemente, a saúde coletiva, a 'nova
saúde pública ou o movimento da promoção da saúde Paim & Almeida-Filho,2000).

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Nessa linha, resulta óbvio e imediato o uso da metáfora de campo, juntamente com o seu
referencial teórico, para designar o espaço social em que sujeitos aplicam conhecimentos e
operam tecnologias ancorados em conjuntos articulados de instituições e redes sociais
organizadas para reproduzir saberes e produzir práticas de saúde. O trabalho
teórico-epistemológico de inspiração bourdieusiana empreendido mais recentemente aponta
o campo da saúde como um espaço de saberes interdisciplinares e multiculturais e não
propriamente como uma disciplina científica.
A ideia de que a saúde conforma um campo social aparece formalmente em 1974, no
Canadá, num documento conhecido como Relatório Lalonde (Paim & Almeida-Filho, 2000).
Este relatório lança as bases de um movimento pela promoção da saúde, trazendo a meta
de adicionar não só anos à vida, mas vida aos anos. Toma como modelo uma metáfora
topológica que veio a se chamar de campo da saúde', composto por quatro eixos: a biologia
humana, incluindo ciclos de vida, do nascimento à adolescência, da maturidade ao
envelhecimento, além de biossistemas complexos e herança genética; o sistema de
organização dos serviços, contemplando as redes institucionais de cuidado,
compreendendo componentes de recuperação, curativo e preventivo; “ambiente”, definido
de um modo amplo e abrangente, que envolve o social, o psicológico e o físico; e,
finalmente, “ estilo de vida", considerando padrões de consumo e comportamentos de risco,
atividades de lazer, participação política, emprego e riscos ocupacionais.

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Com base nessas ideias e aplicando modelos inovadores de planejamento estratégico,


implanta-se em várias províncias do Canadá um sistema de medicina socializada, síntese
dos modelos de atenção precedentes. A Carta de Ottawa, documento oficial que
institucionaliza o modelo canadense, define os principais elementos discursivos do
movimento da promoção da saúde: 1) integração da saúde como parte de políticas públicas
"saudáveis”, 2) atuação da comunidade na gestão do sistema de saúde; 3) reorientação dos
sistemas de saúde; 4) ênfase na mudança dos estilos de vida. Propõe um modelo de
atenção à saúde com base em gravidade dos problemas de saúde, prioridade do tomadores
de decisão, disponibilidade de soluções efetivas com resultados mensuráveis e custos
planejados, focalizando iniciativas centradas na promoção da saúde, na regulação, na
pesquisa, na eficiência da gestão e no estabelecimento de objetivos dos programas e
planos de cuidado à saúde (Paim & Almeida-Filho,2000). Cabe aqui introduzir uma proposta
de distinção, não trivial, entre campo da saúde (definido pragmaticamente no Relatório
Lalonde e teoricamente na perspectiva bourdieusiana, como vimos até agora) e campo da
saúde coletiva. Como campo de conhecimento, a saúde coletiva estuda fatos da saúde/
doença em populações como processo social; investiga a dinâmica das doenças na
sociedade como fluxos de reprodução social, busca práticas sociais; analisa as formas com
que a sociedade identifica suas necessidades e problemas de saúde, busca sua explicação
e, para enfrentá-los, constitui, organiza e sustenta um campo social específico. A saúde
coletiva, tal como vem se concretizando nas últimas décadas, especialmente no Brasil,
orienta-se para uma delimitação provisória como um campo de pesquisa, de formação
acadêmica e profissional e de transformação de um espaço de práticas sociais
especificamente voltadas para lidar com fenômenos, desenvolver conceitos, produzir
conhecimentos, aplicar técnicas. É esse espaço peculiar e específico que proponho
designar como campo da saúde coletiva.

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Enfim, o que chamamos hoje de saúde coletiva se estrutura sobre um campo disciplinar: a
epidemiologia; um campo de ação tecnológica: o planejamento e gestão em saúde; e um
campo de prática social: a promoção da saúde. Nessa perspectiva, pode ser considerada
como um campo de conhecimento de natureza interdisciplinar que desenvolve atividades de
investigação sobre o estado sanitário da população, a natureza das políticas de saúde, a
relação entre os processos de trabalho e doenças e agravos, bem como as intervenções de
grupos e classes sociais sobre a questão sanitária, São disciplinas complementares desse
campo a estatística, a demografia, a geografia, a clínica, a genética, as ciências biomédicas
básicas etc. Essa área do saber fundamenta um âmbito de práticas transdisciplinares,
multiprofissional, interinstitucional e transetorial. Esse campo é certamente caudatário de
outros campos, como os campos de prática social das políticas públicas e da saúde
ambiental; o campo de ação tecnológica da clínica, definida como atenção à saúde
individual; bem como os campos disciplinares da matemática/estatística e das ciências
humanas e sociais.

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MODELOS DE PRÁTICA

O objeto possível da saúde enfermidade - cuidado é sem dúvida um objeto de alta


complexidade que só se define em sua configuração mais ampla, já que tem facetas e
ângulos distintos, cujo olhar não dá acesso à sua integralidade. Não se trata de um objeto
obediente às determinações da predição, aquela das antecipações limitadas e limitantes,
rigorosas e precisas. Efetivamente, o objeto saúde é muito mais tolerante a formas
aproximadas de antecipação do seu processo, ressaltando a natureza não linear da sua
determinação e a imprecisão (ou borrosidade) dos seus limites. Faz parte de uma nova
família de objetos científicos, construída como objeto totalizado. Trata-se, enfim, de um
objeto por definição complexo e contextualizado, congruente com o neo sistemismo típico
das novas aberturas paradigmáticas. A lógica que deve predominar em tais objetos
possíveis, por conseguinte, seria múltipla e plural, não se expressando de maneira
codificada, mas possível de ser reconhecida por seus efeitos.
A ideia de um campo geral de práticas chamado de promoção da saúde, contendo tanto a
prevenção quanto a proteção e a promoção (senso estrito) da saúde individual e coletiva,
supõe um repertório social de ações preventivas de morbidade (riscos, doenças etc.),
protetoras e fomentadoras da salubridade, que de certo modo contribui para a redução dos
sofrimentos causados por problemas de saúde-doença na comunidade. Tal perspectiva
impõe uma integração teórica e filosófica da rede de conceitos correlatos a saúde (vida,
riscos, doença, cuidado, cura) aí conjunto de práticas discursivas e operacionais dos novos
campos de saberes e de práticas que cada vez com mais intensidade e frequência se
formam em torno do objeto saúde (Almeida-Filho,2000b).

Com esse objetivo, os conceitos e as práticas que correspondem à promoção no campo da


saúde podem ser agrupados em três grupos:

1. Modelos de prevenção de doenças ou eventos mórbidos, eficazes nos campos de prática


tecnológica da saúde pública e da clínica, com as seguintes variantes:
a) modelos de prevenção individual (conceito clínico de risco individual);
b) modelos de prevenção populacional (conceito de risco epidemiológico).

2. Modelos de intervenção nos campos da saúde ambiental e ocupacional, tomando o


conceito de risco como perigo estruturado. Neste caso, é preciso explorar sua base
dedutiva, descritiva, estrutural, tarefa que evidentemente extrapola os objetivos do presente
ensaio.

3. Modelos de risco como emergência. Trata-se, neste caso, de explicitar a base filosófica
da contingência, articulada como processos de emergência em modelos de complexidade.
Este conceito subsidia:
a) modelos de promoção da saúde;
b) modelos de vigilância em saúde.

O Quadro 2 ilustra comparativamente os principais elementos de atuação comparativos


dessas estratégias.

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Os dispositivos, signos e ações apontados no Quadro 2 são característicos de cada


estratégia, porém não se propõe aí uma relação de exclusividade, nem biunívoca, ponto a
ponto. Para uma compreensão mais clara dos quadros propostos, explicitamos, a seguir,
seus termos.
O exame desse quadro propicia elementos de análise que permitem posicionar a noção de
integralidade no contexto das práticas de saúde. Tais práticas podem ser agrupadas em
quatro grupos:

1) PREVENÇÃO DE RISCOS OU DANOS - trata-se de ações destinadas a evitar a


ocorrência de doenças ou agravos específicos e suas complicações ou sequelas. Em geral,
constituem ações de aplicação e alcance individuais, não obstante repercussões no nível
coletivo provenientes de efeitos agregados cumulativos das medidas de prevenção. Os
textos clássicos que construíram o modelo preventivista propõem uma distinção entre
prevenção primária, secundária e terciária (Leavell & Clark, 1976).

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A prevenção primária compreende a eliminação ou redução das causas das doenças ou


problemas de saúde, na fase pré clínica, antes do aparecimento de sinais ou sintomas, com
a finalidade de impedir ou minimizar a sua ocorrência. A prevenção secundária implica
identificação precoce dos primeiros sinais clínicos, buscando abreviar o curso, prevenir
complicações ou melhorar o prognóstico de uma dada patologia por meio de tratamentos
rápidos e eficientes. A prevenção terciária destina-se à redução de danos ou sequelas
resultantes de processos patológicos. Note-se que, por um lado, apenas o primeiro nível
corresponde à definição de prevenção do senso comum, enquanto, por outro, os demais
níveis de prevenção terminam por englobar todo o repertório de práticas terapêuticas e
reabilitativas da clínica. O essencial da crítica ao modelo preventivista foi estabelecido por
Sérgio Arouca em 1975, numa tese clássica intitulada O Dilema Preventivista.

2) PROTEÇÃO DA SAÚDE - compreende ações específicas, de caráter defensivo, com a


finalidade de proteger indivíduos ou grupos de indivíduos contra doenças ou agravos.
Distingue-se da prevenção porque a especificidade da proteção encontra-se na natureza e
magnitude das defesas e não na intensidade dos riscos. A proteção da saúde pode ser
tanto individual quanto coletiva. A redução da vulnerabilidade (melhora de condicionamento
físico, por exemplo) e o aumento da resistência (ou resiliência, no caso de doenças
psicossomáticas) são ilustrativos do primeiro caso; as eficientes tecnologias de fomento de
imunidade coletiva são exemplos do segundo caso.

3) PROMOÇÃO DA SAÚDE (em sentido restrito) - incluem-se aqui ações de fomento da


capacidade dos seres e dos ambientes no sentido de reforçar positivamente os valores de
promoção da vida° - para usar uma expressão de Jaime Breilh (2003) um sentido defensivo
mas sim afirmativo da saúde. O conceito restrito de promoção da saúde refere-se à ação
difusa, sem alvo determinado, contra um agravo ou risco específico, buscando a melhoria
global no estado de bem-estar ou qualidade de vida do grupo ou comunidade.

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4) PRECAUÇÃO EM SAÚDE - a utilização das estratégias de precaução no campo da


saúde, como construção de cenários antecipatórios possíveis a danos existentes ou
projetados, desempenha um papel que não pode ser negligenciado de também antecipar, e
nesse caso conter, reações de pânico ou inquietação generalizadas que muitas vezes o
imaginário social desenvolve ante o desconhecido. Associamos a estratégia de precaução
em saúde aos modelos de imprevisibilidade de eventos, incorporados nas teorias da
complexidade como emergência e na filosofia como contingência. De todas as modalidades
lógicas, esta é, seguramente, a que mais resiste a uma apreensão direta de sentido.
Em outras palavras, trata-se da ocorrência de um evento que faz cessar, interrompe
bruscamente, um estado anterior, mas que, em conformidade com o real, não se inscreve
como fato. Poderá ser, retroativamente, integrado à cadeia significante como suporte para
estratégias fomentadoras de ações globais de supervisão e vigilância. Integra-se, dessa
maneira, às práticas atualmente denominadas de promoção da saúde, destinadas a
detectar, compreender e significar emergências-ocorrências-contingências para, com isso,
reconhecer (para fazer cessar seus efeitos) eventos similares futuros (Almeida-Filho &
Coutinho, 2007).

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Como um todo, a ideia de um campo geral de promoção da saúde, contendo tanto a


proteção da saúde como a prevenção de riscos e o tratamento de doenças, juntamente com
uma definição restrita de promoção da satide, implica que todo o repertório social de ações
preventivas, curativas e reabilitativas sobre riscos e doenças, protetoras e fomentadoras da
saúde, de certo modo contribui para a redução do sofrimento causado por problemas de
satide na comunidade. A prática de localização precoce de portadores e pacientes de
doenças de alta transmissibilidade, característica da vigilância epidemiológica, constitui
aplicação direta e clara da ideia de prevenção secundária em nível agregado, em que cada
caso índice corresponderia a um sintoma ou sinal precoce, e o isolamento, bloqueio ou
outras medidas de controle corresponderia ao tratamento rápido destinado à prevenção de
complicações na situação de saúde, no caso de um surto epidêmico de grandes
proporções, por exemplo.
A estratégia de prevenção em saúde há muito se converteu à ordem da necessidade,
assentada no modelo da causalidade e cuja intervenção mais específica seria a modelagem
da realidade. Por sua vez, a proteção à saúde como estratégia, por vários ângulos de
análise, é logicamente impossível, apesar de historicamente ter sido construída como
campo de prática plausível. Seu modelo é o controle, e a intervenção requerida, o
experimento. Tal modalidade - o impossível - deve ser tomada em sua estrutura lógica, não
significando com isso que não exista.
Controle e experimento não são realidades em si, mas realidades linguísticas não
encontráveis nas condições efetivas da pesquisa ou da intervenção; tal como os eventos
contingentes, são realizados e somente então reconhecidos por seus efeitos.
Rigorosamente, um experimento nunca pode ser reproduzido, é único, podendo, ao ser
replicado, constituir série.

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Porém tal replicação nunca se dá conforme o planejado, posto que a situação do laboratório
não tem com a vida outra relação senão de verossimilhança; por mais que ensaiemos,
jamais a realidade do experimento corresponderá ao real do evento. Nessa perspectiva, os
conceitos de emergência ou contingência articulam acontecimentos dos quais podemos
apenas constatar efeitos e, na impossibilidade de propor medidas de ação retroativas,
indicar formas precaucionárias de base analógica. Em geral, são acontecimentos
desencadeados por fatores múltiplos e interconectados, estruturados em redes abertas, o
que impossibilita estabelecer, entre eles, relações lineares de causalidade (Almeida-Filho &
Coutinho, 2007).
O conceito de saúde empregado para a definição de cada uma dessas estratégias e suas
respectivas ações (com sinais, dispositivos, alvos etc.) é definidor dos critérios de avaliação
do seu impacto sobre a situação de saúde. A noção de proteção da saúde fundamenta-se
em um conceito estrutural de risco como possibilidade, enquanto o modelo de prevenção
baseia-se no conceito epidemiológico de risco como probabilidade. Ratificando a ideia de
centralidade do campo disciplinar da epidemiologia, eu gostaria enfim de destacar que o
conceito correlato "fator de risco” subsidia tecnologias de controle de doenças que permitem
operacionalizar a prevenção primária. A noção de "marcador de risco”, por sua vez,
articula-se à vigilância de grupos de risco e à identificação precoce de casos nas ações de
prevenção secundária. Cabe incorporar a esse glossário os conceitos suplementares de
'sensor de risco' e de 'monitor de risco', referidos a indicadores estruturais de risco (de
processos, produtos e ambientes) como propiciadores da possibilidade de ocorrência de
doenças ou agravos à saúde. Assim, o modelo preventivista rege-se por uma concepção de
saúde como ausência de doença, posto que será sempre necessário referir-se à doença e
ao risco quando se orientam ações no sentido de preveni-los. Em contrapartida, os modelos
de proteção e promoção da saúde somente se viabilizam com base em concepções
positivas da saúde, tanto no sentido individual quanto no sentido coletivo (Almeida-Filho &
Coutinho, 2007).

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UMA NOVA PERSPECTIVA DE DETERMINAÇÃO DA SAÚDE


O esquema proposto neste capítulo implica um dispositivo ainda preliminar e esquemático
de síntese, por definição insuficiente para dar conta da complexidade dos fenômenos,
processos e problemas de saúde. A oportunidade para conceber o complexo
“'promoção-saúde-doença-cuidado' em uma nova perspectiva paradigmática, mediante
políticas públicas saudáveis e participação da sociedade nas questões de saúde, condições
e estilos de vida, implica a construção de um marco teórico-conceitual capaz de reconfigurar
o campo social da saúde, atualizando-o face às evidências de esgotamento do paradigma
científico que sustenta as suas práticas (Paim & Almeida-Filho,2000). Não obstante seus
limites, essa proposta pode ser útil para o necessário debate teórico-epistemológico sobre a
noção de integralidade das ações de saúde como estratégia de interferência na complexa
problemática da conjuntura sanitária brasileira neste início do milênio.
Nesse sentido, no âmbito da práxis, a saúde coletiva deve participar ativamente na
transição epistemológica, começando por se contrapor radicalmente ao paradigma
mecanicista e individualizador hegemônico no campo. Os elementos histórico-concretos
aqui assinalados permitem a análise de novos paradigmas no campo da saúde, já que
campos disciplinares não são preenchidos por entidades abstratas tais como noções,
conceitos e modelos, são de fato ocupados por sujeitos históricos organizados em
comunidades científicas e em “comunidades de prática” e vinculados ao contexto
sociopolítico mais amplo. São esses sujeitos que, na sua prática concreta cotidiana, dentro
e fora das instituições de formação, constroem e reconstroem paradigmas e buscam
introduzi-los nas respectivas práxis (Paim & Almeida-Filho,2000).
No âmbito da produção de conhecimento, conforme tenho buscado analisar em diversas
oportunidades (Almeida-Filho, 2000a, 2000b, 2001, 2009; Almeida-Filho & Coutinho, 2007),
o passo mais importante será certamente reconfigurar o objeto "saúde”. Assim, podemos
falar de sobredeterminação como uma categoria geral, cujas modalidades seriam múltiplas,
dando como exemplo a determinação causal, a determinação dialética e a determinação
estrutural, dentre outras. Aplicando de modo livre tal abordagem pluralista ao nosso tema,
proponho que o campo da saúde resulta da sobredeterminação de processos e vetores de
desigualdades que podem ser referenciados pelas seguintes categorias particulares de
processos determinantes:

1. "Determinação” social da situação e das condições de saúde.


2. "Produção” cultural das práticas de saúde'.
3. “'Construção” política das instituições de saúde.
4. “Invenção” simbólica dos sentidos da saúde.

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Do ponto de vista da sobredeterminação da saúde-doença-cuidado (Almeida-Filho &


Coutinho, 2007), mais importante que formalizar rigorosamente métodos para medir
desigualdades em saúde certamente será compreender suas raízes e determinantes. Sobre
essa plataforma conceitual então podemos adicionar à questão da determinação da saúde
os importantes temas da produção das práticas, construção das instituições e da "invenção''
dos sentidos da saúde. O diferencial semântico sugerido entre os termos determinação
social', produção “cultural', “construção política' e 'invenção simbólica' corresponde, numa
perspectiva epistemológica mais consistente, a diferentes planos de realidade e distintos
efeitos da estrutura de desigualdades que, no cotidiano das sociedades contemporâneas,
tornam-se permanente fonte de injustiças e iniquidades.
Enfim, qualquer tratamento heuristicamente eficiente da questão da saúde deverá
certamente ancorá-la em modelos explicativos de maior complexidade e em espectros
conceituais mais amplos: do molecular-subindividual-sistêmico-ecológico na dimensão
biológica ao individual-grupal-societal-cultural na dimensão histórica, conforme discutiremos
no capítulo seguinte.

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