Capítulo 6
Capítulo 6
Capítulo 6
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Neste capítulo, eu pretendo explorar concepções de saúde como práxis. Por questões
históricas e políticas, a construção teórica (e retórica) da saúde tem sido realizada mediante
o abundante recurso à metáfora de campo: a saúde é um campo, o campo da saúde
coletiva, o campo científico da saúde etc. Penso que nesse momento será oportuno revisar
circunstâncias e efeitos do uso de metáforas dessa ordem na construção teórica do
conceito de saúde e dos objetos da saúde-doença-cuidado. Enfim, tomar a saúde como
campo de saberes e de práticas, resultado da complexa e rica trama de atos humanos e
instituições socialmente organizadas e coletivamente estabelecidas para enfrentar, nos
planos simbólico e concreto, os efeitos de fenômenos, eventos, fatores e processos
relativos à vida e morte, a satisfação e sofrimento, normalidade e patologia, enfermidade e
saúde.
Nessa perspectiva, retomando argumentos analisados anteriormente (Almeida-Filho,
2000b), pretendo mostrar como uma análise histórico-epistemológica revela ou denuncia
campos de saberes recortados por paradigmas, do ponto de vista da crítica
teórico-conceitual, e setores de práticas conflagrados por lutas e disputas próprias das
crises paradigmáticas e sua transição-superação. Para isso, inicialmente, apresento de
modo breve e objetivo alguns elementos introdutórios aos conceitos de paradigma e “campo
social'', cruciais para a discussão de alcance e efeitos da saúde práxis institucional. Em
segundo lugar, pretendo analisar saúde como um campo geral de saberes e práticas
sociais, capaz de articular modelos de ações preventivas de riscos, doenças e mortes, além
de medidas de proteção e promoção da saúde-doença em indivíduos e na comunidade, em
que princípios precaucionarios são cada vez mais valorizados.
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PARADIGMAS E CAMPO
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No campo da saúde, o termo paradigma foi inicialmente utilizado por Juan César Garcia
para orientar o desenho de plano de estudo que facilitassem a incorporação do ensino das
ciências sociais na saúde pública, mediante a incorporação de variáveis
psicossocioculturais pertinentes a modelos de compreensão da produção social da saúde.
Nesta acepção, o termo paradigma aproxima-se da noção de modelo, como representação
simplificada e esquemática da realidade que retém os seus traços mais significativos, a
exemplo do paradigma da história natural da doença' de Leavell e Clark (1976) ou do campo
da saúde' (Paim & Almeida-Filho,2000).
Atualmente, podemos encontrar numerosos usos (e até abusos) do conceito de paradigma
no campo da saúde coletiva - desde uma equivalência do paradigma ao conceito amplo de
campo disciplinar, como por exemplo na noção de paradigma da saúde pública", até um
tratamento mais regionalizado de paradigma no sentido da mera atitude perante uma
instituição, como nos múltiplos usos que o termo vem adquirindo no campo das ciências da
gestão. Em um nível intermediário, no próprio campo da saúde, documentos oficiais de
construções doutrinárias tem feito uso do termo na conotação de modelo ou abordagem,
como por exemplo a noção de “paradigma da atenção primária à saúde”. O termo
paradigma tem sido também empregado para qualificar distintos movimentos ideológicos
que se têm apresentado sucessivamente no campo da saúde, tais como a medicina
preventiva, a saúde comunitária e, mais recentemente, a saúde coletiva, a 'nova
saúde pública ou o movimento da promoção da saúde Paim & Almeida-Filho,2000).
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Nessa linha, resulta óbvio e imediato o uso da metáfora de campo, juntamente com o seu
referencial teórico, para designar o espaço social em que sujeitos aplicam conhecimentos e
operam tecnologias ancorados em conjuntos articulados de instituições e redes sociais
organizadas para reproduzir saberes e produzir práticas de saúde. O trabalho
teórico-epistemológico de inspiração bourdieusiana empreendido mais recentemente aponta
o campo da saúde como um espaço de saberes interdisciplinares e multiculturais e não
propriamente como uma disciplina científica.
A ideia de que a saúde conforma um campo social aparece formalmente em 1974, no
Canadá, num documento conhecido como Relatório Lalonde (Paim & Almeida-Filho, 2000).
Este relatório lança as bases de um movimento pela promoção da saúde, trazendo a meta
de adicionar não só anos à vida, mas vida aos anos. Toma como modelo uma metáfora
topológica que veio a se chamar de campo da saúde', composto por quatro eixos: a biologia
humana, incluindo ciclos de vida, do nascimento à adolescência, da maturidade ao
envelhecimento, além de biossistemas complexos e herança genética; o sistema de
organização dos serviços, contemplando as redes institucionais de cuidado,
compreendendo componentes de recuperação, curativo e preventivo; “ambiente”, definido
de um modo amplo e abrangente, que envolve o social, o psicológico e o físico; e,
finalmente, “ estilo de vida", considerando padrões de consumo e comportamentos de risco,
atividades de lazer, participação política, emprego e riscos ocupacionais.
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Enfim, o que chamamos hoje de saúde coletiva se estrutura sobre um campo disciplinar: a
epidemiologia; um campo de ação tecnológica: o planejamento e gestão em saúde; e um
campo de prática social: a promoção da saúde. Nessa perspectiva, pode ser considerada
como um campo de conhecimento de natureza interdisciplinar que desenvolve atividades de
investigação sobre o estado sanitário da população, a natureza das políticas de saúde, a
relação entre os processos de trabalho e doenças e agravos, bem como as intervenções de
grupos e classes sociais sobre a questão sanitária, São disciplinas complementares desse
campo a estatística, a demografia, a geografia, a clínica, a genética, as ciências biomédicas
básicas etc. Essa área do saber fundamenta um âmbito de práticas transdisciplinares,
multiprofissional, interinstitucional e transetorial. Esse campo é certamente caudatário de
outros campos, como os campos de prática social das políticas públicas e da saúde
ambiental; o campo de ação tecnológica da clínica, definida como atenção à saúde
individual; bem como os campos disciplinares da matemática/estatística e das ciências
humanas e sociais.
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MODELOS DE PRÁTICA
3. Modelos de risco como emergência. Trata-se, neste caso, de explicitar a base filosófica
da contingência, articulada como processos de emergência em modelos de complexidade.
Este conceito subsidia:
a) modelos de promoção da saúde;
b) modelos de vigilância em saúde.
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Porém tal replicação nunca se dá conforme o planejado, posto que a situação do laboratório
não tem com a vida outra relação senão de verossimilhança; por mais que ensaiemos,
jamais a realidade do experimento corresponderá ao real do evento. Nessa perspectiva, os
conceitos de emergência ou contingência articulam acontecimentos dos quais podemos
apenas constatar efeitos e, na impossibilidade de propor medidas de ação retroativas,
indicar formas precaucionárias de base analógica. Em geral, são acontecimentos
desencadeados por fatores múltiplos e interconectados, estruturados em redes abertas, o
que impossibilita estabelecer, entre eles, relações lineares de causalidade (Almeida-Filho &
Coutinho, 2007).
O conceito de saúde empregado para a definição de cada uma dessas estratégias e suas
respectivas ações (com sinais, dispositivos, alvos etc.) é definidor dos critérios de avaliação
do seu impacto sobre a situação de saúde. A noção de proteção da saúde fundamenta-se
em um conceito estrutural de risco como possibilidade, enquanto o modelo de prevenção
baseia-se no conceito epidemiológico de risco como probabilidade. Ratificando a ideia de
centralidade do campo disciplinar da epidemiologia, eu gostaria enfim de destacar que o
conceito correlato "fator de risco” subsidia tecnologias de controle de doenças que permitem
operacionalizar a prevenção primária. A noção de "marcador de risco”, por sua vez,
articula-se à vigilância de grupos de risco e à identificação precoce de casos nas ações de
prevenção secundária. Cabe incorporar a esse glossário os conceitos suplementares de
'sensor de risco' e de 'monitor de risco', referidos a indicadores estruturais de risco (de
processos, produtos e ambientes) como propiciadores da possibilidade de ocorrência de
doenças ou agravos à saúde. Assim, o modelo preventivista rege-se por uma concepção de
saúde como ausência de doença, posto que será sempre necessário referir-se à doença e
ao risco quando se orientam ações no sentido de preveni-los. Em contrapartida, os modelos
de proteção e promoção da saúde somente se viabilizam com base em concepções
positivas da saúde, tanto no sentido individual quanto no sentido coletivo (Almeida-Filho &
Coutinho, 2007).
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