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Pensamento Biocêntrico

Revista

Pensamento Biocêntrico
Número 30

Julho / Dezembro de 2018


Semestral

ISSN 1807-8028

Pensamento Biocêntrico Pelotas Nº 30 p - 1-159 Jul/Dez 2018


CORPO EDITORIAL
Agostinho Mario Dalla Vecchia (Pelotas, Brasil), Feliciano Flores
(Porto Alegre, Brasil), Geny Aparecida Cantos (Florianó-polis, Bra-
sil), Gaston Andino (Montevideo, Uruguai), Cezar Wagner, Ruth
Cavalcante e Cássia Regina (Fortaleza, Brasil), Ismênia Reis (Te-
resina, Brasil), Stela Piperno (Carlos Paz, Argen-tina), Carlos Pagés
(Buenos Aires, Argentina), Gabriela Mader (Colonia, Alemanha),
Luis Otávio (Barcelona, Espanha) e Môni-ca Turco (Bolonha, Itália).
SUMÁRIO

07 BIODANZA, UMA INVERSÃO EPISTEMOLÓGICA OU PARA


DIGMÁTICA
Feliciano E. V. Flores

37 A MÚSICA E SUA CAPACIDADE DE DEFLAGRAR VIVÊNCIAS


NA PERSPECTIVA DA BIODANZA
Rita de Cássia Surrage de Medeiros
Lilian Rose Marques da Rocha

71 O RESGATE DA SEXUALIDADE SAGRADA:


A DANÇA DE SHIVASHAKTI
DIÁLOGO ENTRE BIODANÇA E O NEOTANTRA
Clarissa Simões dos Reis

109 ORGANIZAÇÃO E EVOLUÇÃO DO SER VIVO NUMA


ABORDAGEM BIOCÊNTRICA
Geny Aparecida Cantos

133 METODOLOGIA DE APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS


ECOLÓGICOS EM SESSÕES DE BIODANZA COMO ESPAÇO
DE REFLEXÃO POLÍTICA EM DEFESA DO MEIO AMBIENTE
Olga Santana Sales

157 EL “ÉXITO”
Gastón Andino
BIODANZA, UMA INVERSÃO
EPISTEMOLÓGICA OU PARADIGMÁTICA

Feliciano E. V. Flores

RESUMO: O presente trabalho consiste numa análise passageira e prelimi-


nar do conceito de “Para-digma”, levantando alguns possíveis exemplos, e
sua expressão mais acentuada no “Novo Para-digma da Ciência” caracteri-
zado por Fritjof Capra. A partir deste preâmbulo, no entanto, o foco principal
se dirige à análise da proposta de Rolando Toro para uma inversão da estra-
tégia epis-temológica ou paradigmática através dos fundamentos teóricos e
da metodologia do Sistema Biodanza.

INTRODUÇÃO
Neste artigo, após fazer uma breve caracterização do
tema Paradigma ou Paradigmas e citar alguns exemplos, preten-
do examinar mais detalhadamente o que Rolando Toro propõe,
no meu entendimento, como uma “inversão epistemológica” ou
“novas propostas paradigmáticas” nos fundamentos teóricos do
Sistema Biodanza.
Originalmente, Rolando Toro fala em “inversão episte-
mológica” quando se refere ao enfoque do Sistema Biodanza
priorizando a vivência sobre a consciência, a emoção antes da
razão. Neste enfoque, ele critica a percepção “analítica” do ser
humano, com o estabelecimento de tipos, níveis ou categorias,
própria de grandes teóricos da Psicologia. Para Toro, esta é a
visão de um ser humano dividido, categorizado e desintegra-
do. Em resposta, Rolando busca sublinhar a gênese vivencial da
consciência, do pensamento e das operações formais em geral.
A seguir, sugere que esta epistemologia, na qual o centro
de atenção dos investigadores está na consciência – o que impede
de ver que a gênese do projeto existencial se inicia nas emoções e
não no pensamento – precisa mudar sua estratégia.

“Somente quando a perspectiva para uma imagem do


Homem mudar seu ângulo visual e o centrar, não na
consciência nem na razão, mas sim na Afetividade, as
ciências do Homem poderão superar as imensas barrei-
ras existentes atualmente para a compreensão do huma-
no. (TORO, 1991)

Esta é, portanto, sua principal proposta de inversão epis-


temológica.
No entanto, existem outros aspectos na teoria do Sistema
Biodanza que, se não se caracterizam como inversão epistemológi-
ca, podem ser considerados como propostas de novos paradigmas,
novas visões do pensamento predominante na nossa cultura atual.
É sobre estas propostas paradigmáticas, as quais, no meu
entender, identifico na fundamentação teórica de Biodanza, que
pretendo me debruçar no final deste artigo.

A. PARADIGMA
Paradigma vem do termo grego paradeigma, que signi-
fica “modelo” ou “padrão”.
Na filosofia grega, paradigma era também considerado
como a fluência (fluxo) de um pensamento ou ideia.

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Platão utiliza esse termo no seu diálogo Parmênides,
em que as ideias primordiais na narrativa são chamadas por Só-
crates de “paradigmas” (paradeigmata), como modelos eternos
que são copiados no mundo sensível. Ele também usa a palavra
“paradeigma” ao contar o mito de Er (A República, livro X)
como uma forma básica que engloba todo o destino da pessoa.
Mais tarde, o conceito começou a ser usado especifica-
mente na Gramática ou na retórica para se referir a uma parábo-
la ou uma fábula.
Em Linguística, Ferdinand de Saussure (1857-1913),
utilizou o termo paradigma para se referir a um tipo específico
de relação estrutural entre elementos da linguagem.
O termo “Paradigma” ganhou maior destaque quando
o norte-americano Thomas Samuel Kuhn (1922-1996), físico e
filósofo da ciência, lançou em 1987, seu livro “A Estrutura das
Revoluções Científicas”.
Kuhn designou como paradigma as “realizações cientí-
ficas que geram modelos que, por período mais ou menos longo
e de modo mais ou menos explícito, orientam o desenvolvimen-
to posterior das pesquisas exclusivamente na busca da solução
para os problemas por elas suscitados.”
Ao perpassarmos todo o texto de seu livro, vamos notar
que Kuhn apresenta mais de 20 significados diferentes para “pa-
radigma”. Mais tarde, em nova edição de 1969, ele acrescentou
um “posfácio” em que admitia só 2 sentidos. (KUHN, 1994)
Mas, resumidamente, Paradigmas, para Kuhn, seriam:
“Modelos consensuais adotados pela comunidade cien-
tífica de uma época”.
Não vou entrar nos detalhes que Kuhn descreve sobre
os processos que ocorrem no campo científico até que haja uma

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mudança de paradigmas levando ao que ele chama de “revolu-
ção científica”.
Como podemos notar, o conceito de Kuhn se refere à
área científica, particularmente das ciências ditas “duras” ou ex-
perimentais.
No livro “A Teia da Vida” (CAPRA, 1997), assim como
na sua última obra “A visão sistêmica da vida” (CAPRA & LUI-
SI, 2014), Fritjof Capra busca generalizar a definição de Kuhn
do campo científico para o campo social caracterizando-a como
“uma constelação de conceitos, valores, percepções e práticas
compartilhadas por uma comunidade, formando uma visão par-
ticular da realidade que é a base da maneira pela qual a comuni-
dade se organiza.”

B. EXEMPLOS DE PARADIGMAS
Considerando esta visão mais ampla, podemos identifi-
car certos paradigmas nas diferentes áreas do conhecimento, in-
clusive a contraposição que ainda se observa entre alguns deles:
Na Educação se destacam dois paradigmas:

- ensino: é o modelo predominante na estrutura escolar


atual. Há um programa pré-estabelecido com os conteú-
dos (currículos) que devem ser ensinados aos estudan-
tes. Consiste, portanto, em um modelo que atua de fora
para dentro através da transferência de conhecimentos.
Essa palavra vem do Latim insignare, “gravar, colocar
uma marca em”, de in, “em”, e signum, “marca, sinal”.

- aprendizagem: embora seja definida como um processo


de mudança de comportamento mediada por fatores emo-
cionais, relacionais e ambientais que levam a uma mo-

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dificação do comportamento do indivíduo em função da
experiência, esta proposta favorece a busca autônoma dos
conhecimentos desejados por parte do aprendiz. Consiste
num método relacionado com o ato ou efeito de apren-
der. Busca-se que o estudante descubra o “sabor do sa-
ber” e o “prazer de aprender”. (FLORES, 2006)

Também na Medicina existem dois paradigmas predo-


minantes:
- tratamento: este método consiste, fundamentalmente,
na aplicação de remédios depois da doença instalada.
O seu objetivo é minimizar ou curar os sintomas detec-
tados através de um diagnóstico. É o que caracteriza a
chamada Medicina alopática ou convencional que uti-
liza medicamentos para produzir no organismo do doen-
te reação contrária aos sintomas que ele apresenta.

- prevenção: este procedimento busca os meios para evi-


tar a manifestação das doenças. Consiste em um conjunto
de ações que visam, por antecipação, evitar a doença na
população, removendo os fatores causais, ou seja, visam
a diminuição da incidência da doença. Tem por objetivo,
ao invés de curar ou tratar os sintomas de uma doença, a
promoção de ações que evitem sua manifestação. É o que
caracteriza a chamada “Medicina preventiva”.

Na Sociologia, resumidamente, contrapõem-se duas visões:


- indivíduo: para os seguidores de Max Weber (1864-
1920), a preocupação central da Sociologia deve ser
compreender o indivíduo e suas ações.
- sociedade: já para aqueles que seguem as ideias de
Émile Durkheim (1858-1917), a sociedade sempre
prevalece sobre o indivíduo.

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No momento atual, em que vivemos uma pandemia,
muitas opiniões têm sido manifestadas por ambas as visões. Al-
guns argumentam que são atingidos em sua liberdade individual
quando os governos decretam o uso obrigatório de máscaras ou
o fechamento do comércio. Outros consideram que o interesse
coletivo na manutenção da saúde da população é mais impor-
tante na prevenção do contágio e que as perdas econômicas não
podem ser comparadas às perdas de vidas.
Na Economia podemos observar duas tendências pre-
dominantes:
- competição: no predomínio das relações comerciais
dominadas pelo capitalismo, o assim denominado “mer-
cado” impõe uma disputa por vantagens sobre o concor-
rente. Um grande número de compradores e vendedores
independentes competem por mercadorias idênticas e
negociam livremente entre si. A maior ou menor capa-
cidade de realizar esta concorrência se denomina “com-
petitividade”.

Esta visão predomina em muitos âmbitos da socieda-


de. O sistema escolar é fortemente influenciado por conceitos
desportivos na sua pior acepção de competição e superação do
adversário. Esta modalidade desportiva consiste nos “saltos de
obstáculos” das provas, testes e exames, na “conquista” das no-
tas e na “vitória” de passar de ano. Nas escolas, em geral, se
pratica o mais nefasto darwinismo social: a luta pela vida e a
predominância do mais forte. Tudo isto justificado pela preten-
sa preparação do aluno para ter sucesso futuro na livre e sadia
competição no mercado de trabalho. (FLORES, 2006)
- cooperação: consiste no ato de colaboração na busca
de um projeto ou objetivo comum. Pessoas ou grupos se
unem buscando um consenso de ações que sejam van-

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tajosas para todos os membros. Mesmo com a predo-
minância da competição capitalista, cada vez mais tem
surgido a organização de “cooperativas” e se desenvol-
vido o conceito de cooperativismo. Este movimento se
caracteriza como um sistema econômico que faz das
cooperativas a base de todas as atividades de produção e
distribuição de riquezas.

Em uma interpretação equivocada da proposta de


Darwin, tem sido incentivada a ideia da competição como prin-
cipal motor da evolução. Contrariamente, Lynn Margulis (1938-
2011) afirma que, sem a cooperação, os seres vivos não teriam
chegado ao atual estado evolutivo.
Nas Ciências tem ocorrido uma grande revisão paradig-
mática desde o livro de Kuhn citado anteriormente.
O paradigma ainda predominante nas ciências deriva
das ideias de René Descartes, Francis Bacon e Isaac Newton e
leva a denominação de mecanicista ou reducionista.
O novo paradigma, chamado de sistêmico ou holístico,
tem como raízes os trabalhos realizados desde Leonardo da Vin-
ci, entre os séculos XV e XVI, até as ideias de Goethe, William
Blake e George Cuvier na passagem dos séculos XVIII para XIX.
Também servem de base para este novo paradigma a descoberta
da célula (Robert Hooke, 1663) que se consubstanciou na Teoria
Celular (Schleiden e Schwann, década de 1830) e na noção de
organismo. Hoje em dia servem de suporte ao novo paradigma a
Teoria da Complexidade e a visão da Ecologia Profunda.

C. PARADIGMAS UNIVERSAIS
Antes de uma análise mais detalhada do Novo Paradigma
Científico, que farei mais adiante, quero trazer exemplos de pa-

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radigmas ditos “universais” que são assumidos por quase toda a
humanidade, em determinadas épocas. São visões paradigmáticas
antigas que, no entanto, continuam coexistindo nos tempos atuais:
PARADIGMA COSMOCÊNTRICO: acredita-se que uma visão
cosmocêntrica do mundo deve ter surgido com os primeiros se-
res humanos ao serem confrontados com os mistérios das estre-
las, com as variações do clima e das estações e com os demais
seres com os quais conviviam. No entanto, historicamente, ad-
mite-se sua expressão maior com os filósofos gregos pré-socrá-
ticos. Superando a visão mítica e mágica predominante até en-
tão, estes filósofos buscaram dar explicações sobre a natureza, o
funcionamento e a origem do mundo que os cercava. Original-
mente, estes filósofos viam nos quatro elementos (Água, Terra,
Fogo e Ar) a origem de tudo o que existia. Com isto, começou a
passagem do Mito ao Arché (Princípio de todas as coisas).

PARADIGMA TEOCÊNTRICO: paralelamente a uma visão


Cosmocêntrica, a atribuição da origem de tudo a divindades co-
meça com as cosmogonias gregas, egípcias e judaicas. A Teo-
gonia de Hesíodo, o Gênesis de Moisés, a Enéade e a Pedra
de Shabaka dos egípcios são alguns dos textos que atribuem a
divindades a origem de tudo. Do monoteísmo judeu, derivado
do Egito, o Teocentrismo se consolidou com o surgimento do
Cristianismo. A Teologia da Igreja Romana passou a dominar o
pensamento e as visões de mundo até o fim da chamada Idade
Média (fins do século XV d. C.).

PARADIGMA ANTROPOCÊNTRICO: o fim da Idade Média


(1453) foi marcado pelo início do chamado Renascimento (Itália,
no início do século XV) que trouxe, como uma de suas caracterís-
ticas, o Antropocentrismo. Esta nova visão de mundo colocava o
Homem como centro do universo e a mais perfeita obra de cria-
ção da natureza, em detrimento do pensamento medieval, no qual

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a religião era o centro de tudo (Teocentrismo). Com a invenção
de imprensa, a reforma protestante, o declínio do sistema feudal,
o surgimento da burguesia e as grandes navegações, o paradigma
Antropocêntrico foi se fortalecendo e alcançando proeminência
com a eclosão do Iluminismo (França, séc. XVII – XVIII). No
Iluminismo a razão pura passa a ser o fundamento de explicação
e compreensão da realidade. O Homem é um ser racional.

PARADIGMA BIOCÊNTRICO: este paradigma é representado


pelo Princípio Biocêntrico, proposto por Rolando Toro Arane-
da como fundamento do Sistema Biodanza, e considera a Vida
como princípio de tudo o que existe. Na visão biocêntrica de
Toro, a vida é o valor maior, a origem, a causa primeira, a razão
de tudo existir. No entanto, este princípio, e seu decorrente pa-
radigma, não deve ser confundido com movimentos de Biocen-
trismo que, embora considerem o valor intrínseco e primordial
da vida, não a têm como origem de tudo.

D. REVOLUÇÕES DO CONHECIMENTO
Ainda é possível citar como exemplos de paradigmas, e de
suas mudanças, as várias e grandes Revoluções do Conhecimento:
IMPRENSA: No período do Renascimento, uma das in-
venções que provocaram uma verdadeira revolução no terreno
da escrita e da leitura foi a imprensa, isto é, a máquina de im-
pressão tipográfica inventada pelo alemão Johann Gutenberg
(1454). A característica marcante desta invenção foi o uso da
prensa e dos tipos móveis, letras gravadas em madeira ou chum-
bo, e que podiam ser rearrumados formando palavras e frases.

COSMOLOGIA: No campo da Cosmologia, a revolução mais


marcante foi a teoria do Heliocentrismo. Proposta desde o séc.

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III a.C. pelo filósofo grego Aristarco de Samos, foi sistematizada
somente no século XVI d.C. por Nicolau Copérnico (1473-1543).
Este modelo foi expandido e aprimorado por Johannes Kepler
(1571-1630) e defendido e reafirmado por Galileu Galilei (1564-
1642). Sua explicitação foi fortalecida por Isaac Newton (1642-
1727) através de sua lei da gravitação universal.

FÍSICA: Nesta área do conhecimento, a mais importante


revolução foi também trazida por Isaac Newton com seus es-
tudos da composição da luz e, principalmente, as três leis do
movimento dos corpos (Inércia, Dinâmica, Ação e Reação) e a
citada lei da gravitação universal.

QUÍMICA: Antoine-Laurent de Lavoisier (1743-1794) é


considerado o “pai da química moderna” por ter descoberto vá-
rios elementos, entre eles o oxigênio e seu papel na combustão.
Foi o primeiro a sistematizar uma lista de elementos químicos e
colaborar na nomenclatura química. Outra grande contribuição
foi sua “lei da conservação das massas” (1789): “na natureza,
nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.”

BIOLOGIA: A Teoria da Evolução foi a mais importante


revolução dentro da área da Biologia. Charles Darwin (1809-
1882), depois de uma viagem de mais de cinco anos pelas cos-
tas da América do Sul onde aportou, fez expedições e coletou
amostras, construiu uma teoria sobre a evolução das espécies
que revolucionou o pensamento científico (e religioso) da épo-
ca. Sua ideia básica é a de que as espécies foram mudando
gradualmente ao longo dos tempos através de um mecanismo
que denominou “seleção natural”. Em seu livro “A Origem das
Espécies” (1859), defendeu que todos os seres vivos têm an-
cestrais em comum e que as variações decorrem de mutações e
da adaptação ao ambiente, podendo serem transmitidas para a
geração seguinte.

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PSICOLOGIA: Com Sigmund Freud (1856-1939) surgiu
um modo diferente de entender a mente humana. Criando o mé-
todo da Psicanálise, Freud se aprofundou no estudo dos proces-
sos mentais inconscientes, fundando uma nova área do conheci-
mento. Suas teorias a respeito do inconsciente, da infância, das
neuroses, da sexualidade e dos relacionamentos humanos leva-
ram a compreender melhor a mente humana e o comportamento
dos homens e a entender melhor a sociedade.

NOVOS PARADIGMAS DE PENSAMENTO NAS CIÊNCIAS


Como já foi dito acima, a Ciência moderna vem passan-
do por uma urgente e profunda revisão paradigmática. A visão
anterior e antiga, caracterizada como mecanicista, vem sendo
substituída por conceitos mais ecológicos e holísticos.
Uma boa descrição desta nova visão pode ser encontrada
em CAPRA & STEINDL-RAST (2001) e em CAPRA & LUISI
(2014). A primeira descrição esquematizada pode ser também
lida nos Cadernos de Biodança (1994, nº 1, p. 28~29).
Vou fazer um resumo dos principais aspectos desta revi-
são paradigmática denominando o paradigma antigo, dito meca-
nicista, reducionista, cartesiano, baconiano, newtoniano, apenas
como mecanicista. O novo paradigma, denominado sistêmico,
holístico, ecológico, citarei apenas como sistêmico.

A. MUDANÇA DA PARTE PARA O TODO.


Mecanicista: a análise das partes leva à compreensão da
dinâmica do todo.

Sistêmico: somente a dinâmica do todo permite com-


preender as propriedades das partes. O todo represen-

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ta mais do que a soma de suas partes. As propriedades
essenciais dos sistemas são próprias do todo e não das
partes que os formam.

B. MUDANÇA DA ESTRUTURA PARA O PROCESSO.


Mecanicista: existem estruturas fundamentais que dão
origem aos processos.
Sistêmico: as relações entre as estruturas são manifesta-
ções de processos subjacentes. Uma estrutura não pode
ser isolada num sistema.

C. MUDANÇA DA QUANTIDADE PARA A QUALIDADE.


Mecanicista: as relações e os padrões podem e devem
ser medidos e quantificados.
Sistêmico: todos os processos de conhecimento reque-
rem uma análise qualitativa. Os valores dos conheci-
mentos são reconhecidos por seu grau de complexidade.

D. MUDANÇA DA MEDIÇÃO PARA O MAPEAMENTO.


Mecanicista: os objetos e suas possíveis relações de-
vem ser medidos e pesados.
Sistêmico: os objetos e suas relações devem ser consi-
derados em um contexto. Neste mapeamento encontra-
mos configurações que se repetem em padrões de orga-
nização em redes, ciclos, etc.

E. MUDANÇA DA CIÊNCIA OBJETIVA PARA A CIÊNCIA EPISTÊMICA.


Mecanicista: o observador descreve os fenômenos ob-
jetivamente, com isenção.

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Sistêmico: os fenômenos devem ser descritos de forma
epistêmica, isto é, incluindo a compreensão do proces-
so de conhecimento. A dimensão subjetiva está sempre
implícita na prática científica.

F. MUDANÇA DE OBJETOS PARA RELAÇÕES.


Mecanicista: o mundo é uma coleção de objetos e suas
relações não são importantes.
Sistêmico: cada objeto é, por si mesmo, uma rede mul-
tidimensional de relações encaixada em redes maiores.
As relações têm importância intrínseca e preliminar.

G. MUDANÇA DA VERDADE PARA A POSSIBILIDADE.


Mecanicista: o conhecimento científico pode alcançar a
certeza absoluta e final.
Sistêmico: as descrições da realidade são aproximati-
vas e limitadas. A ciência não busca a verdade enquanto
correspondência entre a descrição e o fato, mas se ocupa
em obter descrições que apontem possibilidades nas ca-
racterísticas apresentadas.

PARADIGMAS EM BIODANZA
O objetivo principal deste texto, como destaquei no iní-
cio, é examinar a proposta de “inversão epistemológica ou pa-
radigmática” apresentada por Rolando Toro nos fundamentos
teóricos do Sistema Biodanza.
Uma introdução a esta proposta pode ser lida em “Teoria
da Biodança: coletânea de textos. Tomo I – Parte I – Capítulo
IV – item 01”, editado pela ALAB, 1991.

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Antes de analisar a proposta com mais detalhes, seria
oportuno caracterizar o que Rolando considera como paradig-
mas dentro da teoria do Sistema Biodanza.

“Paradigmas são os pensamentos chaves, anteriores a


toda outra formulação teórica e metodológica. Os pa-
radigmas da Biodança são aqueles pontos de partida
sem os quais este sistema não teria estrutura operatória.
Constituem, portanto, a gênese axiomática capaz de re-
velar aspectos novos e desconhecidos dentro do traba-
lho de Biodança e de dar-lhe poderosa coerência.

Os paradigmas estão perfeitamente relacionados entre


si e conformam uma rede de grandes intuições, mais vin-
culadas com a revelação mística do que com as estraté-
gias cognitivas convencionais.” (TORO, 1991)

Para Rolando, portanto, os paradigmas que ele conside-


ra, dentro da teoria do Sistema Biodanza, são pontos de partida
que geram as premissas básicas daquela teoria. Resultantes de
uma rede de grandes intuições, conferem uma poderosa coerên-
cia ao Sistema. Estes paradigmas precedem quaisquer propostas
teóricas ou metodológicas, uma vez que é a partir deles que elas
se estruturam.
Os paradigmas a que Rolando se refere aqui são, poste-
riormente (TORO, 2009 e TORO, 2014), denominados “Con-
ceitos Teóricos de Valor Heurístico”.
Por Valor Heurístico, penso que Rolando tem a ideia de
considerar estes Conceitos ou Paradigmas como instrumentos
para descobrir, revelar e esclarecer o sentido fundamental da
proposta de um Princípio Biocêntrico e das demais propostas de
inversão epistemológica.

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Vou tentar resumir estes conceitos deixando para o final
o paradigma do Princípio Biocêntrico, visto que este engloba
todos os outros.

1. PRINCÍPIO NEGUENTRÓPICO DE AMOR E ILUMINAÇÃO


O termo neguentrópico significa o caminho da organiza-
ção que caracteriza os seres vivos. Segundo Erwin Schrödinger
(1887-1961), em seu livro “O Que é Vida” (1997): “Ela (a vida)
se alimenta de “entropia negativa”. Esta entropia negativa foi
depois denominada “neguentropia”.
Neguentropia significa “ordem a partir da desordem”.
Mais especificamente, organização através de um desvio da en-
tropia exigida pela segunda lei da Termodinâmica. Mais deta-
lhes no livro acima citado...
O princípio proposto por Rolando significa que a orga-
nização biológica se dá pela força do Amor e por nossa possibi-
lidade de Iluminação.
“Através de sucessivos atos de iluminação gerados no
amor, é possível elevar a qualidade da vida e conduzi-la
para seu máximo esplendor e plenitude.” (TORO, 1991)
Nossos “desempenhos biológicos neguentrópicos” ge-
ram mais vida na Vida!

2. EXPANSÃO DA EXISTÊNCIA A PARTIR DO POTENCIAL GENÉTICO


O ser humano nasce trazendo em seu genoma (conjunto de
todos os seus genes) potenciais herdados que foram desenvolvi-
dos no processo evolutivo. Estes potenciais são altamente diferen-
ciados e se expressam em funções, instintos e vivências (TORO,
2014). Sua manifestação, durante a vida, depende das condições e
influências ambientais e, mesmo, das nossas próprias atitudes.

21
Assim sendo, na visão de Rolando, podemos expandir
nossa expressão no mundo a partir da ativação de nossos poten-
ciais. Nossas ações, nosso comprometimento, nossa disponibi-
lidade para a vivência da transcendência nos permitem buscar
novas formas de diferenciação, de autonomia e integração.
A via de acesso a esses estados de aperfeiçoamento é o
amor. (TORO, 2014)
Segundo MATURANA (1999), o amor é um fenômeno
biológico.
“Nós, humanos, somos animais amorosos. - ... o amor é
a base de nossa existência humana”.
(MATURANA, 1999)

O amor, portanto, é um imperativo biológico herdado


com nossos potenciais.

3. PROGRESSO BIOLÓGICO (EVOLUÇÃO) AUTOINDUZIDO


ATRAVÉS DA VIVÊNCIA (TRANSE REGRESSIVO)
O ser humano tem a potencialidade de, autonomicamente,
conduzir seu processo evolutivo através de ações anti-entrópicas.

“A metodologia vivencial de Biodanza, através das cin-


co Linhas de Vivência, permite desencadear processos
de diferenciação evolutiva induzidos por estados cícli-
cos de regressão ↔ consciência. As cerimônias de re-
gressão podem fortalecer a homeostase e a autorregu-
lação autopoiética. Estes processos biológicos resultam
da disposição autônoma e voluntária do indivíduo na
sua entrega à Vivência.

22
Portanto, a autoevolução pode ser um progresso bioló-
gico resultante da decisão livre e consciente do próprio
indivíduo!” (FLORES, 2018)

“A única maneira de garantir um futuro evolutivo pro-


gressivo para a humanidade é o homem dar uma mão
(participar, tomar parte) no processo. Embora seja ne-
cessário muito mais conhecimento, é sem dúvida pos-
sível o homem guiar sua própria evolução (dentro dos
limites) ao longo de linhas desejáveis.” (SIMPSON,
1960, in FLORES, 2018)

Neste sentido, é importante que cada um desenvolva sua


autonomia e assuma a opção por gerir sua própria evolução. A
evolução pessoal é a evolução da Humanidade!

4. PULSAÇÃO E PERMEABILIDADE DA IDENTIDADE


Nossa identidade é biológica e não cultural. Somos uma
singularidade orgânica, psíquica e comportamental.

“A Identidade é ‘o único e seus atributos’, o que cada


pessoa ‘é’ essencialmente frente a qualquer outro siste-
ma de realidade”. (TORO, 1991)

A identidade se caracteriza por dois paradoxos: (1) somos


hoje o mesmo que fomos, mas mudamos; (2) nossa identidade
somente se evidencia na relação com o outro que nos reconhece.

“A percepção da própria Identidade nos dá a refe-


rência absoluta: sou o mesmo que fui quando meni-
no; mudei, mas sou eu mesmo; estou mudando, mas
serei sempre o mesmo em essência”.

23
a. A Identidade se torna evidente somente através do
outro.

b. A Identidade tem uma essência invariável, uma vez


que se transforma constantemente devido a sua dimen-
são espaço-temporal”. (TORO, 1991).

Consequentemente, a identidade é permeável ao tempo,


à presença do outro e, particularmente, à música.

“Para Rolando, o processo ontológico de construção da


identidade encontra seu caminho ideal no êxtase musi-
cal. Através da música ‘a consciência se transforma em
vivência e a vivência retorna de novo à consciência’. A
música, conectando caminhos energéticos que ligam o
inconsciente vital ao psiquismo celular, penetra no âma-
go da compreensão do ser-si-mesmo”. (FLORES, 2018)

5. O PONTO DE PARTIDA AUTORREGULADOR É A VIVÊNCIA


Na metodologia de Biodanza, a Vivência tem prioridade
sobre a Consciência. Isto significa que todos os processos de
autorregulação e auto-evolução têm seu ponto de partida na Vi-
vência, nos estados de percepção intensa e apaixonada de estar
vivo aqui e agora.
A consciência, por sua vez, reconhece, registra e dá sig-
nificado aos novos estados de integração, regulação e otimiza-
ção. (FLORES, 2018)

“Vivência é a experiência vivida com grande intensi-


dade por um indivíduo em um lapso de tempo aqui-a-
gora (‘gênese atual’) abarcando as funções emocio-
nais, cenestésicas e orgânicas”.

24
“A raiz geradora das vivências é o substrato orgâni-
co do inconsciente vital”.
“As vivências são o dado primordial da identidade”.
(TORO, 1991)
Na vivência eu sou eu. Chego à minha essência!
As vivências são individuais e únicas. São originais e de
caráter íntimo. Sendo “evocadas”, não podem ser controladas
pela consciência.
Além dos paradigmas citados podemos ainda caracte-
rizar o que Rolando Toro denomina “Conceitos estruturais de
Biodança”.
São eles: o Inconsciente Vital, a Inteligência Afetiva, os
Potenciais de Vida, as Linhas de Vivência, a Música, a Dança,
o Grupo, o Encontro, a Carícia, a Corporeidade, a Identidade, a
Vivência e, mais recente, o Inconsciente Numinoso.
Os paradigmas acima expostos estão tão intimamente
correlacionados que poderiam configurar num só paradigma: O
Princípio Biocêntrico.” (TORO, 1991).
Este Princípio, como paradigma fundamental da Bio-
dança, será destacado na descrição e análise dos principais pon-
tos que caracterizam o que considero como novas propostas pa-
radigmáticas de Rolando Toro.

PARA UMA INVERSÃO DA ESTRATÉGIA EPISTEMOLÓGICA OU


NOVAS VISÕES PARADIGMÁTICAS NO SISTEMA BIODANÇA
1. UNIVERSO COMO HOLOGRAMA VIVO.
Esta primeira visão paradigmática vem substituir o Pa-
radigma Antropocêntrico através do Princípio Biocêntrico.

25
Além de enfatizar a Vida como valor maior, este Para-
digma Biocêntrico considera o Universo como um holograma
vivo, isto é, a Vida preenche o Todo. Nesta proposta, o Universo
é organizado em função da vida. Portanto, o universo existe por-
que existe a vida e não o contrário.
Além disto, a manifestação da Vida nos seres vivos ter-
restres, incluindo os seres humanos, se revela como um milagre,
uma manifestação do Sagrado, uma Hierofania!
Para nós, seres humanos, a Vida é, portanto, o valor su-
premo da existência!

“O Princípio Biocêntrico é o primeiro e fundamental pa-


radigma da Biodança, constituindo-se na proposta mais
avançada e mais desafiadora de Rolando Toro. Conceber o
Universo como um sistema vivo e a Vida como justificativa
e razão de tudo o que existe pode parecer uma ideia fan-
tasiosa, mas, surpreendentemente, se revela como a mais
fabulosa intuição do nosso tempo.

De acordo com o Princípio Biocêntrico, o universo é um


portentoso sistema vivo. A vida não surgiu como uma
consequência de processos atômicos e químicos, mas sim
constitui-se na estrutura geratriz que guia a construção do
universo.” (FLORES, Cadernos de Biodança, nº 2, 1995)

A intuição do universo como um sistema vivo vem des-


de a filosofia grega e se revela, inclusive, na visão moderna de
vários cientistas. Citando resumidamente:
TALES de Mileto (625 a.C. a 548 a.C.): hilozoísmo epi-
cureu (séc. III a.C.), considerava a matéria (e, por ex-
tensão, todo o Universo) como um organismo biológico.

26
PLATÃO (426 a.C. a 348 a.C.): “O universo foi criado
como um animal dotado de alma e razão.” (Timeu)
GRIBBIN, John (1995) em seu livro “No Início”, capí-
tulo 8, descreve a Via Láctea como uma Galáxia Viva.
DE DUVE, Christian (1997) escreveu “Poeira Vital: a
vida como imperativo cósmico” e, em seu último capítu-
lo, O Cosmo Vivente, afirma: O universo é uma semen-
teira de vida.
VILLAVERDE, Léo (2000) escreve “Biocosmos – O
Universo Vivo”.
IMPEY, Chris (2009), em “O Universo Vivo”, analisa a
possibilidade de vida em outros mundos.
GARDNER, James (2009), em “O Universo Inteligente”
levanta o tema de uma inteligência universal, de uma
consciência cósmica, tema já levantado por Peter RUS-
SEL (1991).
LANZA, Robert (2009), em sua proposta recente e desa-
fiadora contida na obra “Biocentrism”, traz novamente
o tema de uma consciência precedendo o universo e afir-
ma, quase usando as mesmas palavras de Rolando Toro,
que “A vida cria o universo, e não o contrário, como
estabelecido pela ciência tradicional”.

Como complementação desta análise do universo como


um sistema vivo, sugiro a leitura de meu artigo “Considerações
sobre o Princípio Biocêntrico” incluído em FLORES (2006), na
página 173.

27
PRIMEIRA NOVA VISÃO PARADIGMÁTICA E INVERSÃO EPISTEMOLÓGICA:
A VIDA EM TODO O UNIVERSO!

2. VIVÊNCIA PRECEDE A CONSCIÊNCIA.


Vivência (Erlebnis) é um conceito da filosofia alemã
que foi assumido, analisado e destacado por Wilhelm Dilthey
(1833~1911) para descrever a percepção mais profunda da rea-
lidade no “aqui-e-agora”, isto é, do instante vivido.
O pensamento contemporâneo dá prioridade à razão, à
consciência, à experiência objetiva.
No entanto, a percepção do mundo, através dos nossos
sentidos, se dá, primeiramente, pelo sistema límbico, denomi-
nado “cérebro emocional”, que é a sede das emoções, dos ins-
tintos, dos afetos.
Todas as mensagens sensoriais, com exceção das pro-
venientes dos receptores do olfato, passam pelo tálamo antes
de atingir o córtex cerebral.
Portanto, primeiro sentimos, depois pensamos. É a
emoção que organiza o pensamento.
A metodologia de Biodanza dá prioridade à vivência
sobre a consciência. Por isto, fechamos os olhos, não falamos,
não cantamos, absorvemos a música, entregamo-nos ao movi-
mento da dança, damos lugar ao sistema límbico e silenciamos
o córtex.
É pela vivência que ampliamos a consciência e
adquirimos uma percepção mais refinada do mundo externo.
Porque esta percepção do mundo se gera na Afetividade!

28
SEGUNDA NOVA VISÃO PARADIGMÁTICA E INVERSÃO EPISTEMOLÓGICA:
A EMOÇÃO PRECEDE A RAZÃO!

3. SUPERAÇÃO DAS DICOTOMIAS.


Vivemos em mundo predominantemente maniqueísta,
numa constante divisão e oposição entre o Bem e o Mal. Esta
dicotomia se repete e se reforça em vários outros aspectos de
nossa cultura.
Rolando Toro afirma que vivemos em uma Cultura cin-
dida ou dissociativa marcada por dicotomias que separam as
noções de corpo e alma, homem e natureza, matéria e energia,
indivíduo e sociedade, sagrado e profano, etc.
Estas visões predominam patologicamente em todos os
âmbitos do saber: na Educação, na Psicoterapia, na Medicina,
na Sociologia e nas Ciências Humanas em geral.
Uma cultura cindida, dicotômica e dissociativa desqua-
lifica a vida dessacralizando-a e sabotando seu valor intrínseco.
É uma cultura que está a serviço de valores contrários à vida.
No entanto, estas dissociações vêm sendo pouco a pou-
co superadas através de propostas renovadoras de vários pen-
sadores e cientistas: Henri Atlan (Auto-organização), Gregory
Bateson (Ecologia da Mente), David Bohn (Ordem Implicada),
Fritjof Capra (O Ponto de Mutação), Paul Davies (Deus e a nova
Física), Albert Einstein (Relatividade), James Lovelock (Gaia),
Edgar Morin (Complexidade), Ilya Prigogine (O fim das certe-
zas), Rupert Sheldrake (Campos morfogenéticos), etc.
Portanto, a evolução da ciência e do pensamento com-
plexo se orienta atualmente para a integração de conceitos que
permaneceram separados durante muitos séculos.
A proposta de Rolando é pela superação das dicotomias
e construção de uma Cultura Biocêntrica.

29
TERCEIRA NOVA VISÃO PARADIGMÁTICA E INVERSÃO EPISTEMOLÓGICA:
UNIÃO DE OPOSTOS! FIM DAS DISSOCIAÇÕES!

3. EXISTÊNCIA COMO PROJETO EMOCIONAL.


O que é a existência? O que é existir?
Existimos porque estamos vivos. Sabemos que estamos vi-
vos com a consciência. Nós nos “damos conta” que estamos vivos.
Mas percebemos, sentimos a Vida em nós pelo instinto,
pela emoção. Temos um Inconsciente Vital!
Somos (o nosso Ser) porque percebemos a Vida em nós.
Como “Ser Vivo”, nossas características biológicas defi-
nem nossa natureza: um ser de existência que manifesta a Vida.

“Minha natureza é manifestar a vida em mim. Minha


existência expressa a Vida no mundo!”
(FLORES, 2004)

Através da expressão de nossa existência, da nossa ex-


pressão existencial, a Vida passa a ser a manifestação do mila-
gre da existência através de nossa Criatividade. Sim, pois “ex-
pressão” é o exercício da Criatividade e, portanto, “expressão
existencial” é recriar a própria vida no mundo através de nosso
potencial criativo.
O milagre da nossa existência está na nossa singularida-
de, na nossa identidade. Somos únicos, singulares e indivíduos,
isto é, indivisíveis. A vida em nós é o milagre dos encontros de
amor que nos precederam e que, finalmente, nos deu origem,
isto é, existência no mundo.
Dançar a Vida, portanto, é um projeto criativo e emocio-
nal de expressão da Vida.

30
QUARTA NOVA VISÃO PARADIGMÁTICA E INVERSÃO EPISTEMOLÓGICA:
A VIDA COMO EXPRESSÃO EXISTENCIAL!

4. AUTONOMIA NA AUTO-EVOLUÇÃO
Ao propor o Princípio Neguentrópico de Amor e Ilumi-
nação, Rolando Toro lança a proposta e o desafio de uma auto
-evolução.

“Este princípio postula que o sistema vivo humano não


é somente capaz de autorregulação, autonomia, mas
também de auto-evolução.” (TORO, 1991)

Rolando, portanto, acredita que o ser humano tem po-


tenciais para assumir sua própria evolução. Assumir significa
tomar para si.
Nós mesmos, autonomicamente, podemos assumir a ta-
refa de sermos os agentes de nossa transformação.
Esta é a proposta expressa no Modelo Teórico de Bio-
danza no eixo da Ontogênese.
Ontogênese significa “gênese do Ser”, a construção de
nós mesmos.
A proposta de Biodança, expressa no Modelo Teórico,
é a de que, através da Cinco Linhas de Vivência, nós somos
agentes da construção, transformação e integração de nosso Ser.
Somos capazes e responsáveis pela gênese de nós mes-
mos, por nossa auto-evolução!

31
QUINTA NOVA VISÃO PARADIGMÁTICA E INVERSÃO EPISTEMOLÓGICA:
SOMOS AGENTES DE NOSSA EVOLUÇÃO!
5. DESEMPENHOS BIOLÓGICOS ANTIENTRÓPICOS.
Na Apostila de “Aspectos Biológicos de Biodança”, ao
analisar a seletividade em relação ao meio ambiente, Rolando
Toro levanta a seguinte hipótese:

“Será tarefa do futuro investigar até que ponto a ativi-


dade criadora - como essência do princípio existencial
-, o amor e a autodoação, o êxtase cósmico, a atividade
poética, etc., são performances biológicas antientrópicas
que tendem a uma biossíntese evolutiva.” (TORO, 2009).

O que seriam “performances antientrópicas que tendem


a uma biossíntese evolutiva”?
Só podemos concluir que seriam os nossos desempenhos,
nossas ações, nossos comportamentos, nossas atitudes, nossas
atuações no mundo em que vivemos e que, seguindo a proposta
de Rolando, trariam mais vida à Vida. (FLORES, 2018)
E que atos seriam estes?
Na expressão de nossos Potenciais de Vida, através de
cada Linha de Vivência, existem as possibilidades de pormos
em prática ações que representam “criar mais vida na Vida”.
Na Vitalidade pode ser cada ato de cuidado, acolhimen-
to e proteção; na Sexualidade, o encontro em fusão amorosa; na
Criatividade, nossa própria ontogênese e a construção do mun-
do; na Afetividade, a presença amorosa junto ao semelhante; na
Transcendência, o amor incondicional a tudo o que existe e a
percepção da sacralidade da Vida!
QUINTA NOVA VISÃO PARADIGMÁTICA E INVERSÃO EPISTEMOLÓGICA:
NOSSAS AÇÕES TRAZEM MAIS VIDA À VIDA!

32
CONCLUSÃO
O conceito de Paradigma perpassa as diversas áreas do
conhecimento e podemos identificar seus variados exemplos em
diferentes enfoques.
Na fundamentação teórica de Biodanza Sistema Rolan-
do Toro encontramos a proposta de uma inversão da estratégia
epistemológica ou paradigmática.
O que significa isto?
Uma inversão epistemológica se refere à metodologia
de enfoque e análise da natureza dos conhecimentos científicos.
Para Rolando Toro, a epistemologia predominante se-
gue um itinerário demasiadamente antropocêntrico e racionalis-
ta, tomando seu objeto de conhecimento partindo do particular
para o geral.
Desde que se assumiu a noção de que “o todo é maior do
que a soma das partes”, passou-se a considerar, como propõem
os autores de Biologia Revisada (HARMAN & SAHTOURIS,
2003), buscar o conhecimento a partir de visões mais holísticas
e ecológicas.

“Se a ciência começasse com a Biologia, no lugar da


Física, pareceria a coisa mais natural tratar do todo
antes das partes.” (HARMAN & SAHTOURIS, 2003)
“O núcleo criador da cultura do 3º Milênio irá surgir da
subordinação da Física à Biologia. Desde que começa-
mos a perceber que o fenômeno da vida não surge como
um processo evolutivo da matéria inanimada, mas que
a matéria, aparentemente inanimada, se organiza como
resultado de um onipresente sistema vivo, o enfoque des-
tas ciências se inverte radicalmente”. (TORO, 1991).

33
Como já foi caracterizado anteriormente, o novo paradig-
ma da ciência se fundamenta nesta nova visão: “somente a dinâ-
mica do todo permite compreender as propriedades das partes.”
Uma nova epistemologia exige considerar noções mais
atualizadas como, por exemplo, a Teoria da Complexidade, a
Teoria Quântica, a Visão Holística (conceito de Hólon) e a dinâ-
mica ecológica.
Assim, quando Rolando Toro propõe uma inversão epis-
temológica já está apontando para uma revisão paradigmática.
E uma mudança paradigmática dentro de uma área de conheci-
mento implica uma ruptura ou inversão epistemológica.
O primeiro e mais importante paradigma proposto por
Rolando é, nas palavras dele, “la intuición de un Universo
Vivo”, do que decorre o Princípio Biocêntrico!
Ao nosso nível de Seres Humanos, Rolando acentua a
Vida como valor maior, como milagre de expressão existencial.
Também afirma a precedência do sistema límbico sobre as fun-
ções corticais: a emoção precede a razão.
Além disto, ao considerar vida como expressão existen-
cial, Rolando reconhece em nós as potencialidades para gerir
nossa ontogênese e sermos agentes de nossa própria evolução.
Acentua também que nossas ações criativas e amorosas podem
contribuir para gerar mais vida na Vida, num processo de orga-
nização anti-entrópica no mundo em que vivemos.
Do ponto de vista cultural, Rolando relembra que vive-
mos numa cultura dissociada na qual devemos superar e dissol-
ver as dicotomias baseadas numa visão maniqueísta.
Disto podemos concluir que toda a teoria e prática meto-
dológica do Sistema Biodanza proposto por Rolando Toro con-
siste, fundamentalmente, numa inversão epistemológica que se
traduz em novo paradigma, o Paradigma Biocêntrico.

34
BIBLIOGRAFIA
CAPRA, Fritjof, A Teia da Vida: uma nova compreensão dos sistemas vivos. São
Paulo, Brasil: Editora Cultrix/Amana-Key, 1997.

CAPRA, Fritjof & STEINDL-RAST, David. Pertencendo ao universo. São Paulo:


Cultrix, 2001.

CAPRA, Fritjof, & LUISI, Pier Luigi, A visão sistêmica da vida. São Paulo, Brasil:
Editora Cultrix/Amana-Key, 2014).

De DUVE, Christian. Poeira Vital: a vida como imperativo cósmico. Rio de Janeiro:
Campus, 1997.

FLORES, Feliciano E. V. Espírito e Natureza: um reencontro? Revista Pensamento


Biocêntrico – Pelotas - Nº 01 - p– 43-49 Out/dez 2004.

FLORES, Feliciano E. V. Educação Biocêntrica: por uma educação centrada na


vida. In: FLORES, F.E.V. (Org.) Educação Biocêntrica: aprendizagem visceral e inte-
gração afetiva. Porto Alegre: Evangraf, 2006.

FLORES, Feliciano Edi Vieira. Vida é Dança – Biologia e Expressão Existencial.


Porto Alegre: Evangraf, 2018.

GARDNER, James. O Universo Inteligente: inteligência artificial, extraterrestres e


a mente emergente do cosmos. São Paulo: Cultrix, 2009.

GRIBBIN, John, No Início: antes e depois do Big Bang. Rio de Janeiro: Cam-
pus,1995.

HARMAN, Willis W. & SAHTOURIS, Elisabet. Biologia Revisada. São Paulo:


Cultrix, 2003.

IMPEY, Chris. O Universo Vivo: nossa busca por vida no cosmos. São Paulo:
Larousse do Brasil, 2009.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva,


1994.

LANZA, Robert & BERMAN, Bob. Biocentrism: how life and consciousness are
the keys to understanding the true nature of the universe. BenBella Books, Inc.,
2009.

35
MATURANA, Humberto. Transformación en la Convivencia. Santiago (Chile):
Dolmen, 1999.

RUSSELL, Peter, O Despertar da Terra: o cérebro global. São Paulo: Cultrix,


1991.

SCHRÖDINGER, Erwin R. J. A. O que é vida? O aspecto físico da célula viva (se-


guido de Mente e matéria e Fragmentos autobiográficos). São Paulo: Ed. UNESP,
1997.

Toro, Rolando. Teoria da Biodança - Coletânea de textos. (TOMOS). Fortaleza:


Editora ALAB, 1991.

TORO, Rolando. Apostilas do Curso de Formação Docente em Biodança, 2009.

TORO, Rolando. O Princípio Biocêntrico: Novo Paradigma para as Ciências Hu-


manas. A Vida como Matriz Cultural. Santiago (Chile): Cuarto Propio, 1ª ed., 2014.

VILLAVERDE, Léo. Biocosmos, o universo vivo: a contestação do big-bang. São


Paulo: Cultrix, 2000.

36
A MÚSICA E SUA CAPACIDADE DE DEFLAGRAR
VIVÊNCIAS NA PERSPECTIVA DA BIODANZA

Rita de Cássia Surrage de Medeiros*


Lilian Rose Marques da Rocha**

RESUMO: Este artigo objetiva apresentar, através dos avanços da Neuroci-


ência, as relações entre música, cérebro e emoções aplicadas no contexto
do Sistema Biodanza. Visa, de outra forma, despertar o olhar do Facilitador
de Biodanza para elementos intrínsecos às músicas e que futuramente po-
dem servir como critérios mais refinados e eficazes na escolha das peças
musicais, a serem utilizadas em Biodanza. Trata, ainda, do poder transfor-
mador da música estabelecido no tripé música - movimento – vivência, que
evoca a força do estado vivencial no autoconhecimento do ser humano e no
processo de expansão da consciência. Este estudo evidencia que, dentre os
princípios que edificam o cerne metodológico da Biodanza, a música possibi-
lita alcançar um estado de profunda conexão do participante consigo mesmo,
com o outro e com o Universo que o cerca. Outrossim, aborda, aspectos da
Semântica Musical, exemplificando linhas de vivência, exercícios e a riqueza
musical na aplicação dos mesmos.

Palavras-chave: Biodanza. Emoções. Semântica musical. Sistema nervoso.


Vivência.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Escrever a respeito da música e seus efeitos é desafiador
e instigante, misterioso e transcendente. Em qualquer lugar onde
haja seres humanos, a música permeia seus ambientes. Seja em
* Mestre em Biologia Animal pela Universidade de Brasília. E-mail: <ritasurrage@gmail.com>.
** Farmacêutica e Analista Clínica. E-mail: <lilian24@terra.com.br>.
festas, enterros, cultos, rituais, hospitais ou comícios políticos,
a música está sempre presente, intimamente relacionada às lem-
branças, emoções e aos sentimentos humanos. Até o presente
momento, todas as culturas pesquisadas no âmbito da história
humana apresentaram algum tipo de relação com a música, seja
através de registros históricos documentados ou instrumentos
musicais primitivos encontrados em meio às escavações (LE-
VITIN, 2010).
A relação da música com o homem é tão antiga quanto a
própria história da humanidade. Mitos arcaicos vinculam o uni-
verso à fenômenos rítmicos de pulsação e vibração ordenados
dentro de um plano harmônico que se inicia na percepção do
próprio corpo e do meio que envolve o homem. A alternância do
dia e da noite, as fases da lua, o bater do coração e a respiração,
a alternância dos passos no ato de caminhar, o vai vem das on-
das do mar e muitos outros exemplos nos leva a perceber pulsos
constantes e periódicos, ritmos (TORO, 2005).
Lendas antiquíssimas provenientes da China, India e
Grécia descrevem relações não compreendidas entre a música
que exerce um poder misterioso sobre a natureza e um ser ilu-
minado. A música, ao longo dos séculos, possui um histórico de
relação com a cura física e psicológica, com o lazer e os atos
de celebração (TORO, 1991a). Cotte (1988) traz interessantes
aspectos do simbolismo da música afirmando que, segundo tra-
dições imemoriais, o Criador era tido como um canto de resso-
nância infinita e a Criação era considerada como a cristaliza-
ção desse canto. Partindo-se desse princípio, é compreensível o
pensamento de Pitágoras, segundo o qual a estrutura da música
bastaria para explicar o arcabouço do Universo.
O poder curador e transformador da música vem sendo
estudado progressivamente junto à expansão do conhecimento
nas áreas da Psicologia e Medicina, especialmente no campo

38
das Neurociências, em consequência do acentuado avanço das
imagens computadorizadas. Em especial, a Neurociência tem
desenvolvido estudos cada vez mais complexos buscando a re-
lação da percepção auditiva da música com o movimento, lin-
guagem, memória e especialmente o profundo vínculo com as
emoções (ROCHA; BOGGIO, 2013). Por fim, um tema rico e
que merece atenção é o de que a música é um instrumento capaz
de gerar mudanças dinâmicas e permanentes na consciência in-
dividual (STEWART, 1987).
Rolando Toro Araneda, chileno, antropólogo e poeta, em
apurado trabalho de pesquisa e observação, percebeu o grande
potencial da música entrelaçada a outros elementos. Foi assim
que ele idealizou, criou e difundiu o Sistema Biodanza que des-
de então vem se desenvolvendo e se aperfeiçoando. Atualmente
é conhecido ao redor do mundo simplesmente como Biodanza.
A Biodanza propõe um caminho de re-conexão com a
vida, colocada no eixo da percepção de mundo, como centro da
ação e referência da realidade. Sua proposta é assegurar uma
contínua atenção aos fatores positivos que preservam, estimu-
lam, mantêm e nutrem a vida (VIOTTI, 2006).
Promove ainda a inclusão ecológica, a integração exter-
na e interna, o desenvolvimento psíquico saudável, alegria de
viver e expansão de consciência promovendo mudanças fisioló-
gicas, emocionais e existenciais profundas (ALMEIDA, 2009).
A metodologia estabelecida por Toro (1991a, 1991b) se
baseia na indução de vivências integradoras geradas por um con-
junto de princípios inseparáveis e coerentes entre si que são a mú-
sica, movimentos corporais (dança) e situações de encontro em
grupo. A proposta de Rolando Toro não se resumiu simplesmente
a unir esses elementos e sim sistematizá-los de forma que o Siste-
ma Biodanza seja altamente eficaz, o que tem sido demonstrado
amplamente desde sua criação. Com sessões organizadas dentro

39
de um modelo teórico estruturado, são propostos exercícios vi-
venciais, alinhados a músicas cuidadosamente escolhidas que têm
o potencial para desencadear vivências integradoras dispostas em
cinco linhas a saber: vitalidade, sexualidade, criatividade, afeti-
vidade e transcendência. Através desse roteiro seguro, é possível
traçar uma via de contato consigo mesmo, com o outro e com o
mundo de forma leve, prazerosa e profunda.
Uma vez que a música é um elemento profundamente
transformador da mente e do coração humanos e que incide em
emoções e sentimentos, este artigo tem por objetivo principal
dar pequena contribuição aos progressos investigatórios atua-
lizados acerca das reações do cérebro humano frente à música,
despertando emoções dentro da perspectiva da Biodanza. O de-
sencadear de vivências no que tange as músicas apresentadas
durante os exercícios, geram diferentes emoções proporcionan-
do riso, choro, arrepios, júbilo, entre outras. As vivências origi-
nam sensações próprias da ativação da área cortical e sub-cor-
tical que controla a emoção no cérebro e sistemas vinculados
(TORO, 2005).
O mote gerador desse artigo é ainda colaborar com o fa-
cilitador de Biodanza a entender melhor os mecanismos do cé-
rebro e suas reações no que tange a eficácia da Biodanza, anali-
sada sob a ótica musical, além de sugerir estratégias futuras que
poderão ser empregadas na seleção de músicas para Biodanza.

40
2 O SOM PLENO DE SENTIDO, A MÚSICA
Antes da música, eis o som, resultado de vibrações sob
a forma de ondas propagadas pelo ar, captada pelos ouvidos e
interpretada pelo cérebro dando-lhe configurações e sentidos.
A partir dessa propagação oscilatória, os corpos vibram como
resposta, na própria acepção do termo. O som movimenta-se
desenhando o ambiente num movimento de complementarieda-
de, rapidamente e de forma fugaz. Essa característica do som
permite que muitas culturas o percebam como um modelo de
essência universal (WISNIK, 1989). No ocidente, o som sempre
foi abordado como algo misterioso com suas características oni-
presentes e evanescentes (PINTO, 2001).
Descobertas recentes da Cimática, um ramo científico
que estuda as ondas propagadas em superfícies, evidencia por
meio de observações visuais do som em um meio fisíco (areia,
fumaça ou água), que ocorrem emanações esféricas em forma
de bolhas sônicas que expandem e contraem de acordo com a
periodicidade da fonte inicial, levando a criação de formas geo-
métricas específicas de acordo com a vibração realizada (THE
DEVELOPMENT…, [201-?]).
Segundo Meyer (1992), a física quântica consegue ex-
plicar os efeitos da vibração dos sons sobre o organismo hu-
mano. Para este ramo teórico da Ciência, toda matéria está em
constante vibração e tudo que vibra possui uma frequência (os-
cilações por segundo) característica. Os sons e as células de
nosso corpo entrariam em ressonância, reverberando a sintonia
respectiva por todo o corpo, a depender do estilo vibracional
do som, podendo trazer estados de equilíbrio ou desequilíbrio.
Isso nos leva a crer de que forma as músicas podem atingir em
diferentes níveis físicos os seres humanos, alterando inclusive
seus estados frequenciais.

41
A música, segundo o clássico conceito de Med (1996,
p. 11) é “a arte de combinar sons, simultânea e sucessivamente,
com ordem, equilíbrio e proporção dentro do tempo.” A com-
preensão do que é a música não é tão simples como parece e não
se extingue aí. Existem variadas correntes de musicólogos e teó-
ricos que tentam definir a música não apenas como uma arte mas
também como ciência. Logicamente, a matéria prima da música
é o som intercalado ao silêncio e só a partir dessa organização
é possível gerar o que chamamos música. Os quatro elementos
principais e estruturantes da música são som, melodia, harmo-
nia e ritmo (BRUSCIA, 2016). Além desses, existem inúmeros
outros tais como timbre, altura, andamento, unidade de sentido,
entre outros. Podemos conceituar melodia como sendo uma se-
quência de sons dispostos sucessivamente gerando o que pode
ser chamado de concepção horizontal da música (MED, 1996).
A harmonia, um termo de entendimento complexo dentro da
música, é acrescentar à melodia, um acompanhamento ou acor-
des que possibilitem uma combinação adequada, harmonizando
o ambiente em que a música vibra (BUCHER, 2001).
É bem verdade que a música raramente pode ser enten-
dida como simplesmente uma organização sonora dentro de um
lapso de tempo. É muito mais que isso. Trata-se de som e movi-
mento num sentido lato e pode ser entendida como uma forma
de linguagem que possui seus próprios códigos (PINTO, 2001).

2.1 Música, cérebro e emoções


É notório que o cérebro humano representa uma das
maiores obras-primas de que se tem notícia. Ao longo dos sé-
culos, os estudos sobre ele tem ampliado aspectos fascinantes e
ainda hoje estamos distantes do desvendar completo desse mis-
terioso órgão por excelência.

42
O córtex cerebral é constituído por uma intrincada rede
com mais de cem bilhões de células nervosas individuais (neu-
rônios) conectadas em sistemas denominados circuitos neurais
que constroem a impressão do mundo exterior, controlam a ma-
quinaria complexa das ações humanas, coordenam a homeosta-
se (equilíbrio interno) e decifram todas as sensações, emoções e
sentimentos existentes (KANDEL et al., 2014; LEVITIN, 2010).
O cérebro é pregueado e forma circunvoluções separadas por
fissuras e sulcos. Vale destacar dentre os aspectos gerais, que o
cérebro se divide em dois hemisférios onde cada um deles está
associado com processos sensoriais e motores no lado contrala-
teral do corpo. O hemisfério direito está relacionado a processos
espaciais, com o holístico, a criatividade, o espiritual, consciên-
cia musical, concepção artística, a imaginação, intuição, entre
outras atividades que seguem a mesma linha. Já o hemisfério
esquerdo é a sede da linguagem, responsável pelo pensamento
analítico, operações lógicas, funções racionais e cognitivas do
ser humano (KANDEL et al., 2010; TORO, 2005). No entanto,
sabemos hoje a respeito do processo denominado neuroplastici-
dade ou plasticidade neuronal, capacidade do sistema nervoso
de mudar, adaptar-se e moldar-se a nível estrutural e funcional
quando sujeito a novas experiências como decorrência de aci-
dentes ou distúrbios físicos de diferentes naturezas. É possível
tecer certas generalizações a respeito das funções cerebrais e
suas intrincadas relações, todavia, o comportamento humano
envolvendo emoções e sentimentos é bastante complexo não po-
dendo ser reduzido a simples mapeamentos (LEVITIN, 2010).
Cada área da imensa rede neural é responsável por
complexas operações que levam ao controle motor, memória,
sensações, linguagem e emoções. Desde a virada do Século
XIX, pesquisadores descobriram a importância da amígdala,
hipotálamo e tálamo como estruturas fundamentais no proces-
samento emocional. Além dessas estruturas, áreas corticais e

43
sub-corticais participam ativamente, mediando e respondendo
ao estímulo emocional consciente e/ou inconsciente. Dentre
todas as estruturas cerebrais, o Sistema Integrador-adaptativo
-límbico-hipotalâmico (SIALH) possui relações intrínsecas e
diretas com à expressão instintiva, à deflagração vivencial, às
emoções e à afetividade (TORO, 2005). Portanto, o SIALH re-
cebe a informação por meio de estímulos e responde por meio
de três sistemas conhecidos: Sistema Endócrino (produção de
neurotransmissores), Sistema Nervoso Autônomo (Simpático e
Parassimpático) e Sistema musculoesquelético que reage fisi-
camente a manifestação dos comportamentos (KANDEL et al.,
2014). Por sua vez, o sistema nervoso autônomo está formado
pelo sistema simpático - adrenérgico e pelo sistema parassim-
pático - colinérgico que atuam em concurso, estimulando ou
moderando a atividade geral dos órgãos (TORO, [entre 1990 e
2009a]) (Figura 1).

44
Figura 2 – Estruturas cerebrais envolvidas na atividade dapercepção musical

Fonte: Rocha (2020).


Nota: Figura adaptada por <mindasks.blospot.com> a partir de Levitin (2010, p. 306). Recebida
por e-mail.

Percepção musical é o processo de ouvir e entender mú-


sica. O ser humano é capaz de perceber, organizar e vivenciar
quaisquer informações de ordem sensória. Zatorre, Belin e Pe-
nhume (2002), pioneiros no estudo da música à luz da Neuro-
ciência, detalham a relação entre o córtex auditivo e o papel do
hemisfério direito no processamento da música. Um ato consi-
derado relativamente simples como ouvir música se inicia nas
estruturas sub-corticais - núcleos cocleares (ouvidos), segue ao
tronco cerebral, avança para o cerebelo e em seguida atinge o
córtex auditivo de ambos os lados para posterior processamen-
to da informação e resposta. As áreas recrutadas envolvem as
regiões corticais (córtex pré-frontal, córtex pré-motor, córtex
motor, córtex somato-sensorial, lobos temporais, córtex parietal
e córtex occipital), além do cerebelo e áreas do sistema límbico
incluindo amígdala e tálamo (OVERY; MOLNAR-SZACKA-

45
CS, 2009). A Figura 2, evidencia o grande número de estruturas
cerebrais envolvidas na atividade da percepção musical.
Há fortes correlações da música com o cerebelo quan-
do no acompanhamento do pulso musical (tempo) e em outro
contexto instigante, músicas que se aprecia ou já são conheci-
das. Igualmente o cerebelo tem um papel importante em alguns
elementos da emoção como alerta, medo, raiva, calma e instinto
gregário bem como no próprio processamento auditivo (LEVI-
TIN, 2010).
Examinando a um nível mais apurado, as emoções que
sentimos ao ouvir música envolvem estruturas profundas do ar-
quiencéfalo (cérebro primitivo ou reptiliano) e amígdala loca-
lizada no Hipotálamo, também conhecida como sentinela das
emoções. O cérebro funciona eminentemente em regime de para-
lelismos, com uma ampla rede de operações interconectadas por
neurônios, sendo raro encontrar uma estrutura única responsável
por somente um aspecto cognitivo ou sensorial. Portanto, com a
música e emoções ocorre o mesmo (LEVITIN, 2010). Nas ilus-
trações a seguir, Levitin (2010) apresenta os principais centros
de processamento da música no cérebro visto lateralmente onde
a porção frontal localiza-se a esquerda (Figura 3) e o interior do
cérebro observado sob o mesmo ponto de vista (Figura 4).

46
Figura 3 – Visão lateral do cérebro e o processamento musical

Fonte: LEVITIN (2010, p. 306)

Figura 4 – Interior do cérebro e o processamento musical

Fonte: LEVITIN (2010, p. 307)

47
2.2 A vivência
É fundamental a abordagem do significado e papel trans-
formador da vivência por tratar-se de uma prioridade dentro da
metodologia proposta para a Biodanza.
Nas palavras do próprio sistematizador, a “vivência é a
experiência vivida com grande intensidade por um indivíduo no
momento presente, que envolve a cinestesia, as funções visce-
rais e emocionais.” (TORO, 2005, p. 30).
O estabelecimento desse estado epistemológico propor-
ciona um profundo momento consciencial, uma conexão pro-
funda e única consigo mesmo. As vivências suscitam um estado
interno de integração, precedem a consciência e embora sejam
passageiras, deixam profundas marcas em quem as experimen-
ta. Podem ocorrer nos níveis vivencial, cognitivo e visceral e
ainda que apresentem independência, estão conectadas a nível
neurológico (TORO, 2005). Isso significa dizer que a vivência
tem um valor intrínseco com efeito imediato de integração “sem
passar pelos filtros analíticos da razão” no dizer de Almeida
(2009). Estar por alguns instantes nesse estado existencial, de
uma fresta aberta no espaço e no tempo pode ser também algo
assustador, porque perdermos, mesmo por segundos, o contato
com a realidade (GUERGUEN NETO, 2009). Posteriormente
ao estado vivido, o indivíduo pode analisar o que sentiu e trazer
à luz da razão, tirando suas próprias conclusões. Como parte
do trabalho, evita-se a análise ou interpretação psicológica por
parte do facilitador de Biodanza.

2.3 A música na Biodanza


Utilizar o som como ferramenta para promover saúde
e bem-estar é uma prática antiquíssima. Segundo a American
Music Association (2020), a música utilizada como “influência

48
de cura” alterando o comportamento humano remete aos es-
critos de Aristóteles e Platão. No Antigo Testamento, conta-se
que Davi ao tocar sua harpa amenizava a depressão do Rei Saul
(GROUT; PALISCA, 2014). Na Grécia Antiga, o mito de Orfeu
nos apresenta uma profunda relação entre o ser humano e a mú-
sica universal, ambos exercendo poderes sobre a natureza. Nes-
sa história, o poeta e músico Orfeu, encantava com sua lira feras
selvagens e corações humanos, amadurecia os frutos e estreme-
cia as rochas sob a vibração de seus acordes (TORO, 2005).
A música é uma linguagem universal, onde cada pes-
soa, independente de sua cultura, a sente de maneira diversa.
A experiência subjetiva de cada indivíduo é consequência do
caráter complexo da música que desafia o pensamento analíti-
co. Considerando-se o ambiente cultural, a música tem o poder
de alcançar a todos igualmente, estampando sua marca coletiva
num código emocional e simbólico (PAGÉS, 2013).
Na perspectiva da Biodanza, a música é um dos elemen-
tos deflagradores de emoções vivenciais e sentimentos que as-
somam à flor da pele. Através da música-dança-vivência, é pro-
porcionado um desenvolvimento psíquico saudável, integração
consigo mesmo e com o outro, alegria de viver além de outros
inúmeros benefícios. O movimento pleno de sentido (dança)
desencadeado pela música é o resgate da natureza íntima e ins-
tintiva do Ser, quando se convoca à alma a dançar livremente,
sem coreografias estabelecidas. Trata-se de um potente caminho
de autotransformação quando a linguagem íntima e silenciosa
nos aproxima de nossa verdade. Com a Biodanza driblamos a
racionalidade da mente, acessando a espontaneidade e o prazer
da vida. Os vínculos afetivos surgem e/ou se reafirmam, per-
mitindo uma saída do automatismo tão comum na atualidade e
levando a um caminho baseado na afetividade.

49
A música tem o dom de induzir e transformar estados
emocionais dando aos movimentos um significado funcional
que reflete o nosso íntimo (GODOY, 2008). É possível se co-
nectar com a música e atingir um estado de profunda vinculação
consigo mesmo. No binômio música - movimento, a música re-
presenta um papel central na Biodanza nos convidando a inte-
gração e por conter em si, as sementes do movimento corporal.
Entendida como arte, a música possui extensa representação
neuropsicológica com acesso direto à afetividade (WEIGS-
DING; BARBOSA, 2014), linha cerne da Biodanza.
Toro ([entre 1990 e 2009a]) encontrou na linguagem
musical a possibilidade de operar mudanças de caráter íntimo e
permanente, atravessando as barreiras intelectualizadas da mente
e falando diretamente aos corações. A música age diretamente em
alterações fisiológicas ao nível de sistema nervoso autônomo.
Na metodologia proposta por Rolando Toro, no que con-
cerne a música, há definições importantes que devem ser es-
clarecidas para o artigo em questão. As músicas são escolhidas
cuidadosamente para serem aplicadas nas sessões de Biodanza
através de critérios definidos a serem tratados adiante. Elas de-
vem apresentar, nos primeiros instantes, o estímulo necessário
ao despertar os estados emocionais e biológicos como proposta
de um desenvolvimento coerente. Trata-se da prolepse musical,
a previsibilidade do que se espera já nos primeiros acordes, que
ressoa de algo desconhecido a motivar potenciais biológicos e
emocionais. A prolepse leva a ativação de uma resposta afetivo-
motor-expressiva (TORO, [entre 1990 e 2009c]).
Toro (2005) aconselha somente o uso das músicas orgâ-
nicas. Segundo ele, música orgânica é aquela que contêm atri-
butos biológicos (fluidez, ritmo, harmonia, tônus e unidade de
sentido) estruturados a partir de um núcleo emocional ou de um

50
componente fortemente expressivo capaz de gerar resposta mo-
tora, estimulação visceral, emoção e expressividade. Segundo
ele, músicas inorgânicas são aquelas que tornaram-se mais re-
flexivas e abstratas, abandonando a métrica, a fluidez e deixan-
do-se levar por atributos descontínuos. Ocorrem por exemplo, a
quebra do ritmo, da harmonia, das tonalidades e ao tempo que
foram introduzidos elementos aleatórios, tais como dissonâncias
extremas, silêncios fora das pausas tradicionais, volumes dife-
renciados, etc. Portanto, na categoria de músicas inorgânicas en-
quadram-se a música contemporânea, techno, concreta, serial e
sintética, dentre outras de mesmo estilo. Vale ressaltar ainda que
a moderna ASMR (Autonomous Sensor Meridian Response),
febre entre os adolescentes de hoje são sinais sonoros e visuais
que induzem respostas sensoriais e estão igualmente enquadra-
das como inorgânicas uma vez que não trazem qualquer rele-
vância para o trabalho proposto pela Biodanza. Eventualmente,
músicas inorgânicas podem ser utilizadas com propostas espe-
cíficas em exercícios da linha da criatividade.
A seleção de músicas a serem utilizadas em Biodanza
são de fundamental importância para o alcance de resultados
eficazes. A música representa a semente deflagradora do movi-
mento e se integrada leva como consequência a um movimento
igualmente integrado (CRUZ, 2012). A semântica musical é a
metodologia usada para seleção de músicas pautadas nos estu-
dos dos significados emocionais das mesmas e adequadas a evo-
car qualidades emocionais distintas dentro da linha de vivência
específica. Portanto, critérios rigorosamente definidos foram
estipulados por Toro (2005) quando da criação do método pro-
posto. Destacam-se os seguintes critérios elencados: coerência
entre prolepse e desenvolvimento musical, conteúdo emocional
definido e intenso, tema musical estável e tema musical que ex-
presse um estado de ânimo elevado.

51
As músicas selecionadas são provenientes de diversas
origens, épocas e regiões. Podem ser eruditas, populares, na-
cionais ou internacionais, primitivas, ocidentais ou orientais
(TORO, [entre 1990 e 2009c]). O criador do Sistema Biodanza,
após meticulosas e pacientes pesquisas nos deixou um legado de
músicas, exercícios e consignas , material compilado e organi-
zado pela International Biocentric Foundation (2012) na “Lista
Oficinal de Exercícios, Música e Consigna”. Apesar desse catá-
logo ser vasto e robusto, facilitadores experientes e interessados
em colaborar com o crescimento da Biodanza, atualizam essa
listagem de músicas vinculando-as aos exercícios nas linhas de
vivência específicas.
Em resumo, as músicas selecionadas para a Biodanza
precisam ter um conteúdo autêntico e integrador revelando doses
emocionais e psicológicas profundas (conscientes e inconscien-
tes) na forma pessoal e coletiva. Sua seleção não segue critérios
puramente estéticos e sim funcionais específicos, respeitando-se
as pausas fisiológicas básicas (ritmo e frequência cardiorespira-
tória) possuidoras de um poder deflagrador no convite à organi-
cidade, à integridade e à plenitude do Ser, adequando os níveis
de regulação homeostática (CRUZ, 1999; GODOY, 2008). A es-
trutura musical semântica escolhida deve se adequar a cada uma
das linhas de vivências. Deve ser capaz e trazer uma linguagem
emocional intrínseca que, unidas ao movimento corporal e em
contato ao grupo, permitem o desabrochar das experiências que
possibilitam a re-conexão consigo (GODOY, 2008).
Mas não só a Biodanza se utiliza do poder transforma-
dor da música. Outras terapias foram tocadas pelo mesmo con-
dão restaurador e atuam de forma diversa, cada qual explorando
elementos diferenciados. Dentre elas podemos destacar a Mu-
sicoterapia, o Movimento Vital Expressivo (MVE) ou Sistema
Psicocorporal Rio Aberto, Yoga da Voz e Corpo Sonoro, dentre

52
outras. Além de terapias formais que possuem metodologias es-
truturadas, como as já citadas, existem ainda práticas indepen-
dentes onde a música é utilizada de forma livre de técnicas.

3 METODOLOGIA
A metodologia usada, de natureza qualitativa, buscou
subsídios teóricos num levantamento bibliográfico realizado
em livros, apostilas do curso de formação para facilitador de
Biodanza, monografias, teses e dissertações, material de outros
cursos de assuntos correlatos e sítios na internet, objetivando
criar um arcabouço que amparasse a idéia de que a música é
uma poderosa ferramenta deflagradora de vivências, elemento
fundamental da Biodanza.

4 ANÁLISE E DISCUSSÃO
Grout e Palisca (2014) revelam no seu grande tratado
“História da Música Ocidental” que no período barroco (1660-
1750) havia a conhecida “Teoria dos Afetos” onde compositores
conseguiam criar, através de intervalos melódicos específicos,
estruturas próprias que provocavam emoções por meio da mú-
sica. Várias informações vêm corroborar que a música é, desde
muito, um palco onde as emoções e sentimentos emergentes são
os verdadeiros protagonistas dessa história. Os elementos da
música estão interconectados uns aos outros de forma estável e
harmônica, estabelecendo uma ordem vigente (PINTO, 2001).
Segundo Levitin (2010), algumas músicas possuem uma
misteriosa força de atração sobre as pessoas. Essa espécie de po-
der mágico se deve, segundo ele, à forma como as subdivisões
são feitas e na acentuação de determinadas notas no ato da com-
posição musical. O autor prossegue dizendo que tais músicas

53
são tão irresistíveis ao ouvido que equivalem a um livro que não
conseguimos parar de ler. Decifrar a organização interna desses
fatores que fluem interdependentes na música, associando-os às
emoções que se pretende desencadear, pode ser um passo se-
guinte no estudo da semântica musical para o uso na Biodanza.
Como já dito, a Biodanza opera buscando alcançar o
equilíbrio entre a ação adrenérgica e colinérgica dos Sistemas
Nervoso Simpático e Parassimpático respectivamente (Figura
1), de forma a alcançar um ambiente neurovegetativo de har-
monia interna. Para o alcance desse equilíbrio, a metodologia
propõe estruturar a sessão numa curva senoidal onde a aula pro-
priamente dita começa com uma etapa de ativação e progressi-
vamente aprofunda-se numa fase que leva à regressão, retornan-
do ao final da sessão para um novo período ativado (Figura 5).
Podendo apresentar-se em todas as linhas vivenciais, a regres-
são é um processo biológico de retorno ao estado de origem com
profundo papel restaurador, tanto fisiológico como emocional
(TORO, 2005). No momento da sessão designada como regres-
são, a curva sofre uma queda fisiológica como observado, iden-
tificando a ativação do sistema parassimpático e a consequente
desaceleração dos sistemas cardiorespiratório, entre outros. As
músicas utilizadas no momento regressivo são de caráter dife-
renciado daquelas tocadas na ativação. São músicas com uma
linha melódica mais acentuada, mais lentas e com maior expres-
sividade emocional. Entretanto, vale salientar que esta não é a
única via de acesso ao estado regressivo, existindo ainda outras
formas de alcançar este estado como por exemplo, o transe atin-
gido pelo ritmo, como veremos logo adiante.
Analisando-se o gráfico da curva da sessão de Biodan-
za, podemos perceber que a curva da proposta musical (Figura
6) logicamente acompanha a mesma inclinação apresentada na
curva da sessão, por tratar-se a música justamente seu mote or-

54
denador. Na fase de ativação da aula, o componente musical
predominante é o ritmo/andamento e no momento de regressão,
a melodia. Simplesmente é a música que dará o tom da aula.
Cada sessão possui sua própria curva que pode ser mais acen-
tuada ou mais sutil dependendo do tipo e nível do grupo e da
linha vivencial enfocada. Por exemplo, num grupo de idosos ou
deficientes, a ativação e regressão precisam ser mais leves e se
evidenciam nos gráficos como curvas suaves acima e abaixo do
eixo principal (Integração da Identidade).

Figura 5 – Curva senoidal (geral) de uma sessão de Biodanza

Fonte: PERALVA (2005, p. 12)

Figura 6 – Curva musical

Fonte: ROCHA (2018)

55
A percepção musical merece destaque por fazer parte do
processo do despertar das emoções. Após compilação das infor-
mações aqui apresentadas, vale salientar que além das emoções,
o SIALH também tem um papel importante na percepção musical
envolvendo vários parâmetros básicos da música. Embora sejam
necessários ainda muitos estudos complementares nessa linha de
raciocínio, parecem existir cruzamentos corticais envolvendo in-
formações sensoriais relativos à percepção musical x emoções,
uma vez que ambos, segundo referências aqui apresentadas, são
processados nas mesmas áreas corticais. Dessa forma, tanto a per-
cepção primária do som quanto seu entendimento semântico são
extraordinariamente modulados pela experiência emocional de se
ouvir música (ROCHA; BOGGIO, 2013).
A proposta da Biodanza une três pilares já destacados an-
teriormente que são a música, a dança e o grupo que permuta
afetividade, todos reverberando como ecofatores positivos pos-
suidores do poder deflagrador vivencial onde se potencializam
reciprocamente alcançando assim a homeostase do sistema orgâ-
nico, regulação do SIALH gerando bem estar, plenitude e conse-
quentemente melhoria da qualidade de vida num espectro amplo.
As músicas na Biodanza são utilizadas para criarem um
ambiente harmônico, objetivando o alcance da homeostase fisio-
lógica e emocional e sempre indicam uma das cinco linhas de
vivência no qual se almeja prioritariamente trabalhar, podendo
os exercícios pertencerem a mais de uma linha. A quantidade de
músicas disponíveis para os exercícios é abundante, o que traz
ao facilitador amplas possibilidades de ousar em sua criatividade
quando no planejamento das sessões. Uma mesma música pode
se prestar a trabalhar linhas de vivência diferentes desde que a
proposta do exercício (movimento) e consigna conduzam a tal.
Na primeira metade do Século XX, pesquisadores mo-
tivaram-se para o estudo aprofundado da unidade rítmica e seus
efeitos no corpo humano. Como vimos, o ritmo está presente

56
na natureza e dentro de nós mesmos. Na música, ele se expres-
sa como pulsação marcada em intervalos periódicos e regula-
res, podendo ter pulsos mais ou menos salientes com métricas
também mais ou menos definidas. É fácil observar o predomí-
nio dos elementos de percussão, sem ignorar a importância da
polifonia da voz e dos instrumentos de sopro e corda (PINTO,
2001). Repertórios de música afro-brasileira, músicas regionais
folclóricas tais como a ciranda e diversos sambas são exemplos
de músicas que exploram com abundância o ritmo. Resultados
relativamente recentes (CARLSEN; WITEK, 2010) obtidos
no Instituto de Musicologia da Universidade de Oslo/Noruega
relacionaram a complexidade do ritmo ao estímulo de dançar.
Como resultado secundário obtido a partir dessa pesquisa, de-
monstrou-se que a batida ritmada do som cria a sensação de
previsibilidade e expectativa, ambas fontes de emoção.
É bem conhecido na Biodanza, o poder das músicas de
ritmo euforizante com melodia alegre e envolvente que possuem
ação estimulante sobre o sistema simpático fomentando a motri-
cidade, trazendo a consciência da realidade e gerando vivências
integradoras (TORO, [entre 1990 e 2009d]; PAGÉS, 1995; PE-
RALVA, 2005). As músicas ritmadas e rápidas estão relacionadas
preliminarmente à exercícios na linha da vitalidade, promovendo
deslocamento que geram calor, transpiração, riso e liberação da
respiração. Dentre os exercícios dessa linha, podemos destacar
o caminhar sinérgico e fisiológico, as rodas inicial e final, roda
progressiva, roda eurrítmica, roda guerreira, jogos construtivos e
conectivos, danças com ritmos tropicais (samba, batucada, cum-
bia e ciranda) e sincronização rítmica, entre outros.
Como bem afirma Toro (2005), o ritmo também pode
ser usado para alcance do transe coletivo ou individual com alto
poder de cura e eficácia. Cerimônias de transe e renovação exis-
tencial são milenarmente conhecidas. O som dos tambores ou
outros instrumentos de percussão musicais possibilitam a entra-

57
da nos passos de dança marcados com os pés, tais como a afro
ou outras com o mesmo fim, onde o ritmo exerce papel principal.
Pessoas permitem-se abandonar ao êxtase com perda circunstan-
cial da identidade e integração à totalidade. Em danças sagradas,
o fenômeno do movimento sempre se deu por um encantamento
de integração com o cosmos. Atingindo o ápice, dança e música
são inseparáveis, o corpo se transforma em música, fenômeno
denominado por Toro como mediunidade musical.
Por ser um exercício básico de comunicação afetiva, as
rodas estão sempre presentes na Biodanza, seja iniciando, fina-
lizando ou incluídas ao longo das sessões. Enquadradas priori-
tariamente nas linhas da vitalidade e afetividade, provocam a
integração preliminar e a intimidade entre o membros do grupo.
Os participantes ficam de mãos dadas e na posição da roda, se
permitem trocar olhares, simulando o encontro da comunidade
humana, que instintivamente já fazia uso dessa formação desde
tempos imemoriais. A roda representa uma mandala simbolizan-
do um espaço de transformação (GODOY, 2008). Os participan-
tes se deixam levar então pelo ritmo da música girando muitas
vezes, marcando o pulso com os pés. Quanto mais perceptível e
saliente o ritmo, melhor a sincronização com o ritmo biológico.
Não apenas nas rodas, mas em geral nos exercícios da
linha da vitalidade, a mensagem inserida na letra da música, per-
mite integrar as sensações emocionais da percepção cognitiva
com a mensagem transmitida. Usadas na ativação, inicial ou fi-
nal da sessão, a letra tem um impacto positivo especial usando
temas de otimismo, leveza, alegria e esperança. É comum ob-
servarmos nessas rodas, os participantes estarem em estado de
muita alegria e animação, cantando juntos toda a letra da música
proposta ou ao menos, os refrões. O fato de cantar também en-
volve um nível a mais na ativação fisiológica por ativar o córtex
cerebral referente a linguagem. A integração das emoções à ação

58
se encontra movida a partir de uma mensagem musical que per-
mite a manifestação coerente do movimento junto às sensações
geradas pelo som (PAGÉS, 1995). Em termos neurológicos, a
passagem do ritmo à melodia é similar à travessia emocional
do instinto à emoção (PERALVA, 2005). O ritmo então é o ele-
mento predominante nas músicas utilizadas para rodas desta-
cando-se em especial os sambas como por exemplo “Canta,
canta minha gente” e “Vai ou não vai” de Martinho da Vila,
além de muitos outros.
Além das rodas, o caminhar em Biodanza é um exercício
básico na metodologia proposta por Toro (INTERNATIONAL
BIOCENTRIC FOUNDATION, 2012) e também está vinculado
aos exercícios da linha da vitalidade. Existem vários tipos pro-
postos de caminhar que se relacionam ao objetivo o qual propõe
o facilitador. A aprendizagem do caminhar tem uma condução
antes metafórica que física, sendo a expressão notória da atitude
do ser humano frente a vida. É um modo de expressão existen-
cial, a procura por integrar-se ao mundo seguindo em direção as
suas realizações pessoais e à plenitude. Nessa busca, a música
ritmada “pede” um caminhar com todo o corpo. O objetivo geral
é o de aumentar a integração motora e acentuar o sinergismo
espontâneo entre braços e pernas. Muitas são as músicas sugeri-
das para o caminhar. No entanto, damos aqui especial destaque
ao jazz nascente, originário da cidade de New Orleans/EUA,
com origens entre 1916-1925 destacando-se os grupos Tradi-
cional Jazz Band, Dixieland Jazz Band, Antiqua Jazz Band e
The New Orleans Banjo Band com músicas tais como “Doctor
Jazz” e “Hello Dolly” (Tradicional Jazz Band), ”Sweet Georgia
Brown” e “The Darktown Strutter’s Ball” (The New Orleans
Banjo Band). A primeira vista, pode soar estranho que o jazz
possua realmente o embrião rítmico necessário ao caminhar mas
vale salientar que não trata-se do jazz contemporâneo e sim dos
primeiros conjuntos embrionários do estilo citado, possuidores

59
de um ritmo inequívoco. As músicas utilizadas são em geral,
instrumentais com ênfase aos instrumentos de sopro (trompete
e saxofone) que estimulam em suas notas, a motricidade. Além
dessas músicas, destacamos ainda as brasileiras tais como “An-
dar com fé” e “Toda menina baiana” (Gilberto Gil), “Esperando
na janela” (Targino Gondim) ou as internacionais “I’m yours”
(Jason Mraz) e “Caminando por la Calle” (Gipsy Kings).
Os jogos têm um papel fundamental na ativação das ses-
sões de Biodanza, importantes na linha da vitalidade, afetividade
e criatividade. Alegres e descontraídos promovem a integração
do grupo, alegria de viver, o experienciar do lúdico, a ativação
da atenção e a liberação da auto-expressão, entre outros objeti-
vos. A prática de jogos conduzem o participante a desenvolver
aspectos humanos próprios tais como o sinergismo, autorregula-
ção sistêmica e expressão espontânea de sentimentos e emoções
(CARVALHO; FILIZOLA; LELLIS, [2013]). Diversas músicas
utilizadas nos jogos lúdico-vivenciais são categorizadas como
infantis e trazem um arcabouço referenciando lembranças da
fase de infância/adolescência e podem deflagrar vivências sin-
gulares. São exemplos de músicas infantis utilizadas nos jogos:
“O passo do elefantinho” (Trio Esperança), “O sapo não lava o
pé” (A galinha pitadinha), “O carimbador maluco” (Raul Sei-
xas) e “Farofa-fá” (Orquestra e Coro Carroussel). Outras ain-
da, não infantis, possuem temática alegre, leve e divertida. São
exemplos de músicas para este segmento: “Isso aqui tá bom de-
mais” (Dominguinhos), “Bicharada” (Chico Buarque), “Theme
the Pink Panther” (Quincy Jones) e “Fazendo música, jogando
bola” (Pepeu Gomes), apenas para citar algumas.
Destacamos aqui detalhes importantes na escolha musi-
cal que o facilitador deve atentar ao preparar sua aula. A mesma
música pode apresentar diferentes versões, dois ou mais intér-
pretes, que nos dois casos pode vir a alterar completamente a

60
proposta da linha de vivência a qual se propõe. Este é o caso
da música “I don’t worry, be happy” interpretada por Bob Ma-
cFerrin, que traz um contexto de leveza, alegria e puro ritmo
sendo adequada ao caminhar na linha da vitalidade/afetividade.
No entanto, a mesma música na versão de Martinália nos leva a
uma temática musical na linha da sexualidade por ter sido criada
uma alteração leve no ritmo, que tornou-se mais cadenciado o
que provoca a ideia de sinuosidades. Tal ocorrência é mais co-
mum do que se imagina e é importante estar atento para que na
hora da escolha da música, seja igualmente selecionada a versão
exata que se pretende usar.
É comum os facilitadores empregarem para o momento
regressivo da curva, músicas eruditas tais como sinfonias, so-
natas, concertos ou mesmo peças avulsas de compositores di-
versos. No entanto, outros tipos de músicas, não menos belas
são corriqueiras no uso de exercícios determinantes. Podemos
destacar “Because” (The Beatles) no exercício Segmentar de
pescoço, “In a sentimental mood” (Duke Ellington e John Col-
trane) para a Extensão Máxima, “ Oxygène, parte I” (Jean Mi-
chel Jarre) para o Caminhar em Câmara Lenta (ou Caminhar do
Astronauta) e por fim, o eminente Zamfir com “Thais” no exer-
cício Batismo de Luz. É impossível separar a estrutura musical
da emoção sutil que a transporta. A melodia incorpora o valor
afetivo, comunicante, doce ou sensual. A música é sem dúvida
alguma, o mediador entre a emoção e o movimento corporal
(PERALVA, 2005).
Como mais um exemplo de momento regressivo, citamos
a peça romântica de Franz Liszt, “Liebestraum”, Notturno S 541,
nº 3 in As-Dur-Liebestraume indicada pela International Biocen-
tric Foundation (2012) para a dança expressiva melódica livre,
exercício enquadrado na linha da criatividade. Essa dança tem
por objetivo desenvolver a expressão e a capacidade de inovar,

61
se manifestando com abertura peitoral nos movimentos sutis e
pulsantes dos braços, modulação sensível de tonicidade em mãos
e punhos. Ao ouvinte atento, a apaixonante e melancólica música
de Liszt comunica-se emocionalmente por meio de sistemáticas
violações de expectativas que ocorrem no domínio do piano. O
tema principal vai crescendo lentamente, preparando-nos para o
auge da peça pautado por acordes e uma dinâmica forte. Ocorre
ao longo da música, alternância de tonalidades até que Liszt au-
menta a velocidade e conduz-nos até ao clímax da peça seguido
por uma outra cadência, bastante técnica, que devolve a dinâmi-
ca e retorno ao tema inicial da obra (ALVES, 2017). É evidente a
repercussão corporal da peça no exercício proposto. A magnífica
peça de Franz Liszt apresenta picos de deflagração que são hia-
tos de entrega, de abertura do inconsciente que se revelam como
oportunidades únicas ao longo da música. O convite é a abertura
peitoral, movimentos ondulantes de braços e mãos e o mergulho
no som aveludado do piano envolvendo um abandonar-se ao mo-
vimento sequencial das notas. Dependendo da linha de vivência
proposta, a música escolhida pode ter maior ou menor número de
picos de deflagração vivencial.
O exercício conhecido como Posição Geratriz de Valor,
na linha da Transcendência, tem por objetivo potencializar a
identidade e deve ser realizado com músicas cuja essência re-
flita energia Yang conjugando expressividade ampla de força,
coragem e determinação. Nos exercícios de transcendência, é
trabalhado o harmônico, o ilimitado, o oceânico e eterno (GO-
DOY, 2008). A música mais utilizada para este exercício é “As-
sim falou Zaratustra” de Richard Strauss (SANTOS, 2009). Um
tema ousado gerando uma prolepse com uma sequência simples
de três notas tocadas por um trompete que consegue trazer a
ideia do eterno, do profundo e cheio de significado, dando ênfa-
se a harmonia com a combinação simultânea de sons (BLANC,
2010). E em perfeita sintonia com a música, os participantes

62
desse momento mágico, são convidados a se colocar na postura
orientada pelo exercício que propõe o transcender, assumindo a
grandiosidade de si mesmo.
Destaca-se a notória sinergia entre música-movimento-
vivência quando supomos aplicar o mesmo exercício com músi-
cas diferentes. Por exemplo, o exercício de auto-acariciamento
de mãos (carícia das próprias mãos) pode ser trabalhado com
o grupo na linha da afetividade ou na linha da sexualidade. No
primeiro caso, o exercício pode ser realizado com a música Ada-
gio - Concerto em re menor para Oboé, arcos e BC - 2, SF 935
promovendo uma profunda conexão consigo mesmo e o desper-
tar do prazer para o auto-cuidado. Música mais conhecida do
compositor barroco Marcelo Alessandro (1669-1747) tem como
instrumento principal o oboé, instrumento de sopro que com seu
toque melancólico e doce nos leva a um profundo processo de
introspecção. Por outro lado, se a linha a ser trabalhada for a da
sexualidade, pode ser utilizada a música Allouette (Denise Em-
mer) onde a melodia e a harmonia criadas geram outra nuance
no exercício, dessa vez, na linha da sexualidade. Pode-se ainda
variar o exercício para acariciamento de mãos a dois. A consig-
na e a demonstração do exercício pelo facilitador, igualmente
desempenha papel de importância. Considerados também agen-
tes desencadeadores secundários do processo vivencial, con-
duzem através da palavra e movimentos, a postura inicial dos
participantes frente ao exercício e consequentemente, a gera-
ção da expectativa de execução. Portanto, o mesmo exercício
com diferentes músicas terão respostas heterogêneas. Indo mais
além, uma música vinculada a determinado exercício, produ-
zirá em cada membro do grupo, vivências afins com matizes e
intensidades completamente diferentes. É válido afirmar ainda
que cada indivíduo tem a sua percepção musical própria e dessa
forma, apresentará feedback emocional e cognitivo igualmente

63
diverso. As estruturas cerebrais, glandulares e nervosas que tra-
duzem as emoções as quais a música atingiu são as mesmas. No
entanto, cada Ser responde diferente às sonoridades apresenta-
das. Essa riqueza de respostas emocionais e os sentimentos dela
resultantes, entre outros aspectos, é o que gera a grande riqueza
do processo da Biodanza.
A proposta da metodologia trazida por Toro estabelece
que os exercícios sejam realizados pelos participantes, de prefe-
rência, em silêncio, para que o sentir seja evidenciado, calando-
se o lado racional do cérebro e facilitando o acesso ao estado vi-
vencial. Exceto em determinados momentos, tais como o relato
verbal (no início da sessão) ou em exercícios específicos onde a
expressão oral é incentivada.
Segundo Rocha (2005), embora a voz em Biodanza não
tenha o devido destaque, seu uso deve ser incentivado por ser
uma via distinta da entrega à emoção. É também um meio de
dissolver as couraças que causam tensões corporais. A voz tem
seu papel em exercícios integrados a movimentos pélvicos, ab-
dominais, diafragmáticos, peitorais e cervicais alinhados em
perfeita sintonia com braços, pernas, pés e mãos revelando nos
exercícios corporais a expressão e emoção.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo possui a prerrogativa de levantar a pon-
ta do véu que cobre os mistérios da ação da música na Biodanza
relacionando-os às emoções que afloram nas sessões no âmbito
das diversas linhas de vivência. Não é nossa pretensão cobrir os
vastos aspectos da semântica musical e sim semear conhecimen-
tos recentes na área da Neurociência para colaborar na brilhante
metodologia proposta pelo mestre Rolando Toro Araneda.

64
Independente da cultura a que pertença, pudemos per-
ceber que a música é capaz de provocar calafrios, lágrimas,
risos além de muitas outras sensações emocionais. Talvez não
tenhamos ainda as ferramentas que nos possibilitem detectar
com clareza, ao examinar uma peça musical, quais são os ele-
mentos nela presentes que provocam o torvelinho de emoções
suscitados na prática da Biodanza. A escolha das músicas ainda
não pôde alcançar a análise em particularidades minuciosas, ca-
bendo esse requinte unicamente aos gênios da composição ou
estudiosos da musicologia. Tais particularidades contemplam
reações químicas emocionais aos intervalos e linhas melódicas,
à perfeição da quinta ou mesmo à harmonia das oitavas, não
sabemos. No entanto, fica demonstrado a eficácia da Biodanza
desde o início de sua aplicação.
Concluiu-se ainda que a integração de áreas corticais do
cérebro e sistema límbico faz com que a emoção seja influencia-
da diretamente pelo seguimento musical. A capacidade da músi-
ca despertar emoções, apesar de ter sido amplamente estudada,
merece ainda a continuidade de pesquisas mais detalhadas para
desvelar o quanto o cruzamento das ações corticais que envolvem
a música e emoções pode ser algo íntimo e pessoal. Apesar do au-
mento crescente do número de pesquisas em Neurociência da mú-
sica na última década, há ainda muitas perguntas sem respostas.
O estudo da semântica musical em Biodanza é crucial
para que o facilitador, de posse desse admirável recurso possa
trabalhar com as nuances musicais, combinando acuradamente
a música com o movimento e gerando assim a tão almejada ex-
pansão de consciência e harmonia do ser humano.

65
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69
O RESGATE DA SEXUALIDADE SAGRADA: A DANÇA DE
SHIVASHAKTI - DIÁLOGO ENTRE BIODANÇA E O NEOTANTRA
Clarissa Simões dos Reis

Ainda no início da década de 90, nasceu o trabalho inti-


tulado Sexualidade Sagrada, obra idealizada pelas facilitadoras
Sônia Reis e Isa Freire. Tomadas pelo sentimento contra-cul-
tura subversivo e festivo da geração Woodstock, iniciadas na
arte do encontro afetivo - Biodança e, mergulhadas em leituras
como O Retorno da Deusa de Edward Whitmont e Deusa In-
terior de Jennifer Woolger e Roger Woolger, além dos estudos
em Mitologia Grega como Eros e Psiquê. Naturalmente, como
para a maioria de nós, também as experiências íntimas de prazer
empobrecidas tiveram um significativo lugar na idealização e
facilitação deste trabalho, partindo de uma motivação pessoal e
se estendendo, solidariamente, ao outro, provavelmente igual-
mente insatisfeito e aquém de sua potência sexual.
Em 2001, as imersões de Sexualidade Sagrada foram
suspensas devido a um acidente sofrido por Sônia. O trabalho,
até 2018, passou a acontecer somente dentro das Escolas de
Biodança do Brasil, quando em 2019, recebo o legado de Sônia,
minha mãe, e Isa, nossa amiga. O propósito deste trabalho me
toma o coração de sentido e passa a ser o meu tema de monogra-
fia e a minha “menina dos olhos”.
Eu, Clarissa Reis, idealizo-o a partir do que ele foi e,
também, deixo nele a minha própria identidade, meu ineditismo,
mantendo as vivências de Biodança na íntegra e, agora, expan-
dindo-o para uma conversa com a escola filosófica-espiritual do
Tantra, bem como com as práticas da Terapia Tântrica Ociden-
talizada ou do Neotantra. Então, o nomeio como o Resgate da
Sexualidade Sagrada: Dança de ShivaShakti. O trabalho passa
a ser oferecido para pessoas aprofundadas em Biodança, inde-
pendentemente se essas eram vinculadas às Escolas e se torna o
campo de pesquisa para meu trabalho de conclusão, o qual me
daria o título de facilitadora de Biodança mais tarde.
Ao longo do trabalho nos deparamos com os conhe-
cidos, sofridos e, infelizmente, não tão incomuns transtornos
sexuais - frigidez, anorgasmia, impotência sexual, ejaculação
precoce, compulsão sexual. No entanto, o que não esperávamos
era o frisson e o ibope que receberíamos de alguns do nosso
próprio coletivo. A resistência de alguns dentro da comunidade
Biodanceira. Nesse sentido, o recorte deste trabalho privilegia
os fenômenos que ocorreram na comunidade de Biodança. Para
quem se interessar em conhecer os resultados e análise do traba-
lho vivencial dos participantes, sugiro a leitura da monografia O
Resgate da Sexualidade Sagrada.
Considerando o público aprofundado em Biodança e,
também, a proposta ousada de seu mentor Rolando Toro, logo
de início, fomos surpreendidas com dificuldades que imagi-
návamos estarem superadas, indicando para nós sintomas de
adoecimento neurótico como sentimentos de medo, vergonha e
preconceitos. Os motivos para que isso ainda ocorra dentro da
nossa abordagem estão explanados ao longo de nossas discus-
sões e conclusões acerca do tema e do presente trabalho.
Cabe nesse momento lembrar da conceituação edifican-
te da Organização Mundial de Saúde – OMS, quando se diz:
“A sexualidade é ‘uma energia que nos motiva a procu-
rar amor, contato, ternura e intimidade, que se integra no
modo como nos sentimos, movemos, tocamos e somos toca-
dos, é ser-se sensual e ao mesmo tempo sexual; ela influen-

72
cia pensamentos, sentimentos, ações e interações e, por
isso, influencia também a nossa saúde’ ” (2014).1)2)3)4)

Nesse sentido, consideramos a sexualidade como fator


determinante para a saúde humana, sendo incluída, pela própria
OMS, como um dos aspectos fundamentais para a qualidade de
vida. Para Toro (1991) sexualidade é a própria sacralização do
amor. Toro entende que o tema da sexualidade deve pautar-se na
percepção do feminino e do masculino como vivências essen-
ciais e diferentes. O autor é um defensor do esforço ao reencon-
tro do sentido sagrado da sexualidade, como emoção primitiva
da conexão entre os seres. Através da harmonização e integra-
ção dos dois arquétipos – feminino e masculino –, da vivência
do sujeito humano à experiência da deidade.
Eis o nosso objetivo geral do trabalho: restaurar o aspec-
to sagrado à sexualidade humana, concebendo-a como um modo
de unir-se, o sujeito humano, à sexualidade cósmica, como um
veículo para se alcançar o numinoso, bem como compreender os
fenômenos reativos dentro de nossa coletividade.

1.Sexualidade: A Gênese da Vida e o Culto à Grande Deusa


Com o intuito de restaurar a sacralidade da sexualidade,
vamos precisar problematizar a nossa cultura anti-vida, altamen-
te castradora do nosso entusiasmo pela vida. Trago então uma
preposição: Como está a relação do ser humano com a vida?
Como a concebemos? Se é ela – a vida – quem nos concebe?
A maior parte de nós vive num ambiente artificial nas grandes
cidades. Longe dos bosques, do contato com um ar puro, dos
riachos, dos pássaros, vivemos em verdadeiros cativeiros, nos
quais tantas vezes somos bombardeados pelos meios de comu-
nicação por notícias da pior qualidade: infanticídio, feminicídio,
violência/assédio, corrupção, degradação do meio ambiente, en-
tre tantas outras práticas anti-vida. O mesmo se dá, tantas vezes,

73
em roda de amigos, na intimidade do lar, nos espaços de traba-
lho, nas igrejas, filas dos mercados.
Sinto a presença do medo a ser instalado. Percebo rea-
ções defensivas e combativas. Nasce um corpo assustado, sem
espaço vital, encolhido e encurtado e com sua capacidade de
gozar a vida gravemente comprometida. Pergunto-me: concebe-
mos a vida pelo seu avesso? (Sobre)Vivemos numa cultura que
desqualifica, maltrata e sacrifica a vida? E o mais assustador:
sentir num nível visceral, que existe uma certa dose de satisfa-
ção masoquista inconsciente, pré-consciente ou consciente no
estilo de viver mortificado (Freud, 1972).
Porém, nem sempre foi assim. Longe do puritanismo
hipócrita e da libertinagem adoecida de uma boderlização gene-
ralizada, a educação sexual para além do controle de natalidade
e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, mas, so-
bretudo, incluindo, também, a conscientização de sua dimensão
sagrada é a nossa alternativa segura para a vivência da sexuali-
dade saudável e plena. Paradoxalmente (e para alguns é óbvio,
para outros é retrocesso), poderemos avançar bastante acerca de
nossa compreensão de sexualidade bebendo na fonte de nossa
ancestralidade.
Em algum momento da história da humanidade, homens
e mulheres viviam em maior harmonia entre si e integrados com
a natureza. A relação entre religiosidade e sexualidade era es-
treita (Zeldin, 1996). O ser humano gozava de sua relação com
toda a manifestação da natureza livre de sentimentos neuróticos,
como a culpa e a vergonha.
De forma didática, faremos uma visita à história da se-
xualidade para compreender seu caráter sagrado vivenciado por
nossos ancestrais e nossas alternativas de caminhos pelos quais
podemos retornar a vivência da sexualidade espiritualizada.

74
No período paleolítico, quando se tem os primeiros re-
gistros do homo-sapiens, os casamentos aconteciam de forma
coletiva. As crianças eram responsabilidade de todos do clã e
não se sabia quem eram os genitores masculinos, mesmo porque
não se sabia que os homens teriam alguma participação na pro-
criação da espécie (Navarro, 2007).
Às mulheres era conferido o status de Deusas exata-
mente por sua capacidade misteriosa de gerar a vida. Assim,
apenas se reconhecia a linhagem materna. Fertilidade era causa
atribuída a elas e não havia nenhuma relação de entendimento
entre sexo e procrição. Em tempos remotos, ainda no período
paleolítico, os monumentos e esculturas com teor sexual, mega-
líticos representando a Deusa na figura da mulher de seios fartos
e ancas largas, indicando sua fertilidade e, possivelmente, a re-
lação com a corporeidade de forma consciente e natural (https://
pt.slideshare.net/cresac/a-sexualidade-no-tempo-1)
Encontramos sincretismos do culto à Grande-Mãe nas
sociedades mais diversas ditas primitivas, onde os rituais eram,
essencialmente, sexuais: a Deusa Vênus de Willendorf; Ishtar
da Babilônia; Isis do Egito; Astarte da Fenícia; Cibele, na Frí-
gia; Inana, na Suméria; Nukua, na China; Yemanjá, na África; e
Shakti, na Índia, para citar algumas. Múltipla e universal, era a
Deusa entendida e reverenciada como a própria força propulso-
ra de tudo que é vivo (Navarro, 2007).
Nessa época, a relação sexual acontecia entre pessoas de
sexos opostos e de mesmo sexo. As chamadas orgias primitivas
eram experienciadas sem tabus e seu exercício estava, essen-
cialmente, vinculado ao prazer e à fertlização da terra, uma vez
que se acreditava que tais relações nutriam os campos, fazendo
-os frutificar, florir e chover, ou seja, as cerimônias sexuais eram
verdadeiras oferendas à Deusa (Engelsman, 1979).

75
Foi assim até a idade do bronze, segundo Navarrro
(2007). A figura central mística e religiosa era a Deusa- Mãe,
fonte de toda a vida, que provinha a todos as necessidades de
alimento, ar, água, calor, abrigo, e belezas naturais. A fertilida-
de da terra estava profundamente relacionada à fertilidade da
mulher, e vice-versa. Para as religiões primitivas, acreditava-se
que as liturgias sexuais alimentavam a terra e a faziam prosperar
(Shobinger, 1975).
Diferentemente do Deus-Pai punitivo, exigente e castrador,
do paradigma religioso patriarcal que predomina, ainda hoje, nas
mais diversas tradições religiosas, os povos arcaicos reverenciam a
Deusa-Mãe, não como uma governante do mundo, senão o mundo
em si mesmo. A experiência com a divindade feminina, segundo a
religião natural (provinda da natureza), era de benevolência, gene-
rosidade, fartura, beleza e amorosidade (Bolen, 1984).
Atentas ao perigo de devastação dos animais, a agricul-
tura surge como uma invenção feminina (Navarro, 2007), uma
vez que perceberam que domesticar os animais seria mais segu-
ro do que exterminá-los. Neste momento, já estava nascendo o
período neolítico, quando reinava uma paz primitiva, pois sem a
necessidade da figura de um homem caçador, seus atributos de
força bruta não eram necessários e, portanto, não havia o senti-
mento de superioridade dos homens sobre as mulheres. As ativi-
dades econômicas eram verdadeiras oferendas à Grande-Deusa
Natureza, em retorno honrado e grato a toda abundância por Ela
manifestada a nós (Bolen, 1984).
Foram cerca de 15 mil anos de paz em nossa pré-história
de raiz matriarcal, na qual as relações entre mulheres e homens
eram simétricas e marcadas pela parceria, diferentemente do
que possam acreditar aqueles enviesados pela lógica patriarcal,
onde necessariamente um dominante (homem) explora outra
dominada (mulher), segundo Tannahill (1983). Nessa atmosfera
pacífica e colaborativa entre mulheres e homens, há que se ima-

76
ginar que a sexualidade vivenciada nesse período fosse bastante
diferente do que observamos e vivemos nos tempos atuais.
E é nesse lugar das sociedades matrifocais, onde nasce
o Tantrismo, na Ìndia antiga e profunda, a Índia Dravidiana, há
mais de 7500 anos antes de nossa Era (Lysebeth, 1994). Nessa
tradição esotérica proveniente do hinduísmo, o culto à Deusa-
Mãe, a Grande Ancestral, a Shakti, iniciadora de toda a vida e
encarnada por toda mulher. O Kaulâvalî-Tantra diz:

“É preciso reverenciar diante de qualquer mulher, seja


ela no esplendor juvenil, seja velha, seja bela ou feia, boa
ou má. Nunca se deve enganá-la, nem calúnia-la, nem
fazer-lhe mal algum. Esses atos tornam qualquer siddhi
(realização) impossível” (apud, Lysebeth, 1994, pg. 99).

A civilização matriarcal marcou toda a nossa pré-histó-


ria, da bacia do Mediterrâneo à Índia dravidiana, nos períodos
neolítico e paleolítico. A Deusa-Mãe ou a Mãe-Natureza perso-
nificada em toda a mulher - as sacerdotisas, magas, bruxas, fei-
ticeiras, curandeiras, iniciadoras e sacerdotisas na arte de fazer
amor, benzedeiras, entre outras, é a religião original da humani-
dade. São as mulheres as guardiãs dos segredos da natureza, da-
quilo que provê vida e saúde, além de compreender os abissais
da alma humana. O Tantra é a religião viva, dotada de corpo,
movimento, som, expressão, respiração, matéria, completamen-
te de acordo com a religião original. Isto quer dizer que o Tantra
é, essencialmente, feminino (Rajneesh, 1977). Na contramão
está o Deus Pai das religiões e do paradigma patriarcal - dog-
mático, doutrinário, abstrato, colonizador e que intelectualiza
Deus, O tornando separado de nós.
Ao contrário do que o leitor possa imaginar, o homem
que participa do culto tântrico à feminilidade não necessita se

77
desvirilizar. Ele deve reconhecer a mulher como sua verdadei-
ra iniciadora. Isso significa que nossos ancestrais primitivos ti-
nham uma consciência absolutamente revolucionária, pela qual
todo o homem (e toda a mulher também) devem passar por Ela
(a mulher, a Deusa) para passar a ser, para passar a existir, para
que o ser possa ter alma. Para se tornar um verdadeiro homem,
ele precisará redescobrir sua feminilidade oculta e reprimida
(Feuerstein, 1994).

2. Princípio Biocêntrico: Uma Disciplina Tântrica


Receio apropriações estrangeiras. Contudo, acredito
que podemos nos inspirar em outras tradições, no nosso caso as
orientais, para nos ajudar a encontrar e incrementar o nosso pró-
prio método, a nossa própria tradição, a nossa própria cerimônia
e nossos próprios rituais nativos, pelos quais possamos comun-
gar de um sentido pessoal e coletivo. Inclusive e especialmente,
no que concerne à sexualidade, uma vez que estamos à deriva no
que diz respeito a nossa energia primordial sexual. Se não fosse
assim, Rolando Toro não teria desenvolvido uma teoria e me-
todologia debruçando-se numa pesquisa antropológica ampla
e intercambiante, criando um sistema de desenvolvimento hu-
mano sofisticadíssimo - A Arte do Encontro Afetivo: Biodança.
Partimos dele e avançamos conversando com outros conheci-
mentos, inaugurando novos trabalhos vivenciais e integrativos.
Segundo Lloyd (1966, apud, Lysebeth, 1994), a primeira
religião humana como experiência numinosa estava fundamen-
tada na sexualidade e no culto à Deusa Mãe, face feminina do
divino. Nossa aposta é que é por meio da religião original que
poderemos reencontrar nossa verdadeira origem e, assim, paci-
ficar os nossos seres e as nossas relações. Ao que tudo indica, o
Tantrismo é o triunfo da religião raíz matrifocal, atravessando
a Era do Patriarcado com bastante perdas e adulterações, não

78
tenhamos dúvidas, e, ainda assim, permanecendo leal à devoção
da Deusa Shakti (sem se esquecer do Deus Shiva), ao princípio
do prazer transcendente vivenciado no corpo, que é percebido
não como objeto de pecado, o qual devemos temer, mas aquele
que é o instrumento de acesso ao Sagrado e templo absoluto de
nossa alma nessa existência.
Em contraponto a uma cultura anti-vida, o Princípio
Biocêntrico – PB, fundamentado por Rolando Toro, é a nossa
bússola e o nosso mapa ao reencontro da religião primitiva, atra-
vés do qual vamos nos encaminhando para um lugar, no qual
podemos recuperar a satisfação pela vida, alocando-a em seu
lugar central e, consequentemente, confirmando seu caráter sa-
grado, via realização da sexualidade plena e inerente a todos os
seres viventes.
Segundo Cavalcanti e Góis (2015), PB é denominado por
um estilo de sentir e pensar que toma como ponto de partida e como
referência existencial, a vivência e a compreensão dos sistemas vi-
ventes. Este Princípio admite a existência de um universo organi-
zado em função da vida - Biocosmologia, o que está totalmente de
acordo com o culto à Deusa, com a nossa religião primária.
A filosofia do PB diz é que nossos movimentos,
nossas danças, nossos encontros uns com os outros se manifes-
tam como expressão da vida para nutri-la e fazer gerar ainda
mais vida dentro da vida. Não visa alcançar objetivos antropoló-
gicos, sociais, políticos, econômicos ou religiosos. O universo,
como totalidade, pode ser concebido como um sistema vivente,
como um organismo pulsador de vida.
Sendo assim, ainda na visão de Toro (1991), através do
PB, a consciência toma uma nova dimensão, no sentido de que
se anima pela comovente, grandiosa e orgástica sensação de ser,
de se relacionar: material de vida, contato, vinculação de energia
viva com outras energias vivas. A consciência se incorpora de

79
emocionalidade-vivencial: nossos olhos extasiados pela beleza
e graça de viver, nossa sensorialidade a experimentar o êxtase,
nossos vínculos a se fortalecerem através de carícias verbais e
corporais, e também pelas carícias a receber dos raios do sol, da
brisa, da terra, do mar, ou seja, um estado de permanente cópula
com o universo. A qualidade de nossa evolução consiste na dis-
posição nata de nossos sistema viventes para entrar em fusão e
permanente orgasmo com o cosmos - transcendência.
Diante do exposto, entendemos que a internalização do
PB é a grande e melhor possibilidade de cura para uma cultura
anti-vida, à qual estamos expostos. Este princípio entende que
a vida se organiza em convivência e coexistência com o divino,
pelo qual o sagrado se manifesta em qualquer situação onde a
vida se faz presente. Os estudos sobre biologia celular, segundo
o PB, são a própria manifestação do divino que revela a existên-
cia de uma verdadeira comunicação inteligente e amorosa entre
as comunidades celulares ao integrarem ações bioquímicas de
afinidade e cooperação, evidenciando um espírito francamente
matrifocal. Em cada partícula, átomo ou molécula, está, ali, a
consciência onipresente. A vida é fruto dessa inteligência afeti-
va e sexual (MOURA, 2017).
A vivência da sexualidade está presente em todas as es-
pécies, em toda forma de vida, seja no acasalamento dos insetos,
seja através da penetração das águas doces no oceano. Quanto à
vida humana, se perpetua através do encontro entre dois seres,
atraídos pela força de eros e pelo profundo pacto de amor entre
duas células – o óvulo e o espermatozóide – quando ambos se
unem no instante da concepção. Essa sabedoria biocósmica é
anterior à cultura e gera os seres viventes (SANTOS, 2009).
Desse modo, podemos dizer que se estivermos sob a
regência do PB, harmonizados com a nossa natureza, perce-
beremos que somos concebidos para eros, para a vida plena

80
de prazer, para o gozo de viver. A espécie humana é funda-
mentalmente sexual, capaz de conferir à sua sexualidade sen-
tido maior que a procriação. Basta raciocinar que, na cadência
razoável de dois contatos de relação sexual por semana, em
vinte anos de relacionamento, teremos a grosso modo, dois
mil coitos. Assim, uma mãe de uma criança, teria tido 1999
relações “inúteis” procriativamente, contra uma “útil”, ou seja,
fecunda. Isso mostra o quanto a sexualidade humana não está
vinculada apenas ao fim procriativo. O que queremos dizer é
que a sexualidade é, sim, o instinto que garante a perpetua-
ção das espécies; contudo seu sentido extrapola esse fim e se
fundamenta, sobretudo, na experiência saudável da identidade
humana. É, portanto, um eixo estruturante do psiquismo e da
identidade humana: a graça de viver virtuosamente, em pleni-
tude e alegria.
Nosso mestre Rolando (1991) afirma imperativamente
que a energia erótica é energia cósmica que gera vida. Todas as
vezes que pudermos nos relacionar eroticamente estaremos nu-
trindo todo o cosmos, prestando um serviço que gera vida. Com
muita segurança podemos aproximar o PB à filosofia tântrica e
às demais religiões primitivas que tinham como figura central
de seu culto à Deusa.
Dito isso e para fins deste trabalho, ainda em se tratando
de um revolucionário e profundo resgate da sacralidade da se-
xualidade, se faz necessário conhecermos e integrarmos nossas
partes ainda ocultas de natureza feminina e masculina. Tanto as
mulheres reivindicarem o tanto de masculino que as habita, con-
ferindo-lhes essa força misteriosa da virilidade, da capacidade
de penetrar todo o universo com seu yang; quanto os homens
acolherem o quanto de feminino há em si. O quanto podem ser
doces, pacientes, ternos e amáveis e, assim, penetrar em uma
mulher, e na vida, a partir de seu eros feminino, com triunfante
vitalidade (Toro, 1991).

81
Reencontrar o sentido sagrado da sexualidade é, por as-
sim dizer, rnos econciliarmos com a nossa emoção primitiva,
doce e impetuosa da conexão. A dessacralização do sexo é uma
resposta à dissociação afetivo-sexual promovida por uma cultu-
ra anti-vida, que faz conflitar atributos complementares, dico-
tomizando e fazendo duelar homens e mulheres e, também, as
forças feminina e masculina dentro de nós e em nossas relações
uns com os outros.
Sempre que um homem entra em contato com sua con-
traparte feminina, que representa um aspecto da vida não viven-
ciado nem percebido por ele, excluído de sua atitude consciente,
ele se abre para sua feminilidade latente, e a mulher, para sua
masculinidade latente. O caráter unilateral de sua vida é aban-
donado, seu ser total se enriquece, e isso é muito importante
para seu caminho evolutivo. A feminilidade que o homem expe-
rimenta por intermédio, de e graças a uma mulher objetiva, e às
forças inconscientes de seu psiquismo, está mais profundamente
enraizada no domínio da realidade do que as forças masculinas,
embora estas operem em conjunto com aquela. Quando as for-
ças masculinas a combatem, há o perigo de perder contato com
as camadas mais profundas do ser (Guenther, 1979).
Em nosso próximo tópico, estaremos a discorrer sobre o
formato que se deu o nosso trabalho O Resgate da Sexualidade
Sagrada; como viabilizamos o intercâmbio entre Biodança e a
Terapia Tântrica, com suas ferramentas de massagens e medita-
ções, e quais suas implicações.

3. Biodançando e Tantralizando: divergindo, conver-


gindo, avançando e integrando
Biodança é um sistema de integração e desenvolvimento
humano, renovação orgânica, reeducação afetiva e de aprendiza-

82
gem das funções originárias da vida, segundo a definição de seu
próprio autor, Rolando Toro (1991). Sua metodologia consiste
em induzir uma sequência de danças que desenham uma curva
orgânica auto-reguladora através de movimentos de ativação e
regressão, onde a arte do encontro humano deflagrado pela mú-
sica e pela dança proposta é vivenciado como uma experiência
plena de sentido existencial. Uma vivência de Biodança é facili-
tada contando com o modelo teórico e metodológico e prescrita
conforme os objetivos do que se quer trabalhar e alcançar.
Sendo assim, as vivência de Biodança foram pensadas,
sentidas e facilitadas assumindo o potencial das cinco linhas de
vivências - vitalidade, sexualidade, afetividade, criatividade e
transcendência, porém com endereço especial à sexualidade - o
despertar do desejo, de modo a criar maior sensibilidade aos
estímulos de prazer em todo o corpo através da sensualidade e
erotismo, ampliando a capacidade orgástica.

“Para desenvolver muito bem o trabalho da linha da sexua-


lidade é necessário compreender sua relação com a vitali-
dade (conservação da vida); com a criatividade (expressão
do desejo e sedução); com a afetividade (capacidade de
empatia); e com a transcendência (entrega e abandono do
ego)”. Toro e Terren, Curso de Especialização em Sexuali-
dade, Erotismo e Amor no Distrito Federal (junho, 2018).

Iniciamos o trabalho numa sexta-feira à noite, de forma


cerimoniosa, com uma vivência de Biodança. O salão de vivên-
cia ganhou um áurea de templo religioso, dispondo de imagens
hindus como Shiva Nataraja (Deus da Dança), Lacksmi (Deusa
da prosperidade e da beleza), a trindade hindu Shiva, Parvarti
e Ganesha; decoração com panos de seda; mandalas; incenso e
essências; velas; oferendas de frutas e flores. Todos dispostos
perifericamente, de forma a priorizar o espaço interno do salão.

83
Minha mestra mãe e eu vestimos roupas confortáveis, e também,
dotadas de elegância, dando um atmosfera solene, nos identifi-
cando com as sacerdotisas da Deusa (Qualls-Corbett, 1990). Ela
costuma estar toda de branco e eu, em tons de dourado e rosa.
Iniciamos com uma roda de compromisso, onde cada
participante se dirige ao centro da roda e verbaliza sua promes-
sa em ser uma guardiã e um guardião da sexualidade sagrada,
honrando nossa capacidade inerente que dispomos em viver a
vida em júbilo e contentamento. As palavras de cada partici-
pante são próprias de sua subjetividade, mas o compromisso é
pessoal, coletivo e único, no sentido de criar um clima de de
atenção, presença, cuidado e vigilância com o tema, que é caro
a todos nós e devemos, portanto, nos responsabilizar por ele,
uma vez que é facilmente corrompido com atitudes levianas,
pudicas e vulgares.
Abrir um trabalho à noite e lançando uma promessa,
também remete ao mistério no nosso feminino profundo expres-
so no período negro da noite, mais fria, mais úmida, enluarada,
provocando, estimulando e acordando as profundezas ocultas
de nosso inconsciente. Esse ato de compromisso mobiliza nosso
ser inteiro, muitas vezes, revelando nossos temores e ansiedades
com o tema e, simultaneamente, excitação, interesse genuíno e
disponibilidade ao amor indiferenciado.
É muito pertinente não incorrermos no risco de roman-
cear esse trabalho, uma vez que é na nossa sexualidade onde re-
sidem os nossos maiores segredos, feridas e contradições; onde
moram conteúdos de nossa sombra que não gostamos nem ao
menos fazer uma visita rápida, quiçá conhecê-los intimamente.
Talvez esse dado não seja nada publicitário ou comercial, mas
a verdade é que a longa jornada rumo à origem da sexualidade
– sua sacralidade –, exige de nós encararmos as feras aterrori-
zantes que moram nos abissais de nossa alma.

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A integração afetiva, que é o grande carro-chefe de todo
o trabalho em Biodança, facilita o acolhimento do material som-
brio, para o qual precisamos evocar toda a nossa capacidade de
compaixão conosco mesmos e com os demais. Adentramos um
portal e chegamos num ambiente de absoluta proteção, permea-
do pelas virtudes da amorosidade, benevolência e cooperação.
Nos próximos dias, já pela manhã, também abrimos os
trabalhos com as rodas de Biodança num clima de alegria impul-
sionado pelo dia ensolarado próprio do planalto brasileiro, em
meio a vegetação nativa do cerrado, movidos pela consciência
masculina do dia. Há muitas brincadeiras, jogos lúdicos nesse
momento, uma vez que brincar é algo levado muito a sério por
nós nesse trabalho, pois é um grande ato de sexualidade despre-
tensiosa, leve, bem humorada, irreverente e, assim, vamos nos
autorizando a ousar, a nos tocar mutuamente com maior natura-
lidade, a explorar os nossos corpos numa aventura entusiasman-
te das zonas erógenas através da virtude da inocência.
Percebemos também a grande necessidade de se traba-
lhar a força da identidade através de danças como grito/canto
do nome, caminhar com determinação, dança de oposição har-
mônica, dizer NÃO - estabelecer limites, dança da semente e al-
guns desafios do minotauro como dança de liberação-opressão,
pois entendemos que o tema da sexualidade exige o amadureci-
mento de uma identidade adulta que se autoriza a gozar a vida
desafiando todos os mandatos culturais de efermidade, sejam
eles velados e subliminares, sejam escancarados.
A busca de prazer ativo e engajado, quando a pessoa
torna-se adulta e capaz de protagonizar seu erotismo e sensuali-
dade, quando ela sabe comunicar como e onde quer ser tocada
ou estabelecer os limites que se fizerem necessários dentro de
uma experiência sexual, compõe uma vivência ego-sintônica. O

85
oposto psicológico a essa posição ativa de luta e fuga é a regres-
são infantil, na qual a necessidade ou o desejo sexual não é mais
imperioso (LOWEN, 1982).
As danças que para sua maior potência pedem o desnu-
damento, como: samba a cinco; sopro sobre o corpo; gozo cines-
tésico; dança da serpente; acariciamentos diversos; percepção do
outro com os cinco sentidos foram cuidadosamente costuradas
dentro da vivência, considerando a progressividade tão caracte-
rística do rigor da metodologia em Biodança. De forma criativa
e prevenindo dogmas que mortificam a vivência com o sagrado,
dispomos de recursos que nascem no aqui e agora do momento
vivencial para que o ato de se desnudar pudesse acontecer dentro
de um rito religioso tão qual os nossos ancestrais faziam quando a
religião original, provida de sexualidade, era cultuada. Nesse mo-
mento, cada peça de roupa retirada representava algo mais íntimo
e simbólico - um gesto de desnudamento da alma: desnudar-se do
medo, das dores, da violência, dos nossos vícios egóicos - vaida-
de, arrogância, orgulho, sentimento de menos-valia, entre outros,
conforme a vontade manifesta de cada participante.
Pudemos dançar nossas polaridades feminina e masculi-
na através das danças de expressão da feminilidade e da mascu-
linidade; danças de sedução das mulheres e dos homens; dança
de integração yin-yang; danças sequenciais do amor, num nobre
gesto de harmonização e integração de nossos opostos comple-
mentares tão costumeiramente conflitantes em nossa civilização
dicotômica. Algumas danças são citadas, aqui, apenas para fins
de visualização para o leitor, que jamais alcançará, como bem
sabemos, o esplendor da experiência vivida.
Esse recorte das vivências de Biodança é, notadamente,
desenhado e facilitado para um grupo de aprofundamento. No
entanto, fomos surpreendidas por alguns sintomas neuróticos e

86
normativos de quem esteve fora do salão de vivência. Sabemos
que um trabalho desse porte começa muito antes do que a data
oficial anunciada do trabalho de imersão, e seus desdobramen-
tos podem reverberar para a posteridade. O que não imagináva-
mos era toda a repercussão para além daqueles que vivenciaram
o Resgate da Sexualidade Sagrada - Dança de ShivaShakti.
Ficamos também admiradas com o movimento dentro
da própria comunidade de Biodança, em sua maioria, facilita-
dores, didatas e diretores, chegando a envolver algumas “auto-
ridades”, se é que assim podemos chamar pessoas de prestígio
dentro do movimento de Biodança, uma vez que não dispomos
de cargos, hierarquia, subordinados, salários e nada ao que se
refere à ideia de carreira ou ao mundo organizacional. É verdade
que recebemos apoio e incentivo, também, de muitos – a maio-
ria, felizmente – em todo o país.
O alvoroço e a preocupação em torno do trabalho deu-
se devido ao intercâmbio de conhecimentos e práticas entre as
duas abordagens: Biodança e Terapia Tântrica. As possíveis
massagens nas genitálias eram e são, sem dúvida, o maior temor.
Além de todo o estigma e corrupção que sofre a palavra “Tantra”
estando tão próxima ao nome da Biodança. Qual seria o custo
deste consórcio? Entro nesse campo porque a controvérsia sobre
o tema é, com muita certeza, uma fonte de pesquisa riquíssima.
Ora veladamente, ora explicitamente, recebíamos acu-
sações a respeito de nossa “afronta” em unir duas abordagens
que, segundo entendimento dos que não compreendem ou sim-
plesmente resistem, não convergem. Um dos pontos centrais da
discussão era a polêmica quanto ao controle da ejaculação es-
timulado pelo universo tântrico e a suposta defesa de Rolando
em relação às respostas naturais e reflexas do corpo. A crítica
era fundamental: o problema da domesticação do corpo. Rece-
bemos também a atribuição de estar alterando a própria curva

87
da vivência de Biodança, comprometendo por sua vez, o pró-
prio modelo teórico, pois como caberia a metodologia da terapia
tântrica dentro de uma vivência de Biodança que dispõe de sua
própria metodologia?
A possibilidade de toque nas genitálias gerou um gran-
de frenesi. Algumas inferências, inclusive, em relação à suposta
falta com a virtude do respeito e a ofensa desse ato dentro de
uma vivência de Biodança. Por fim, foi provocado um abaixo
-assinado com o objetivo de retirar Sônia Reis do cronograma
dos módulos da Escola de Biodança, Escola que ela mesma fun-
dou pela confiança de Rolando Toro em março de 2005, com a
motivação de estar com o seu nome “maculado” por estar en-
volvida com um trabalho que faz dialogar duas propostas que
seriam divergentes. O que, possivelmente, denuncia uma rivali-
zação das abordagens que trabalham com desenvolvimento hu-
mano, mas não apenas isso, como a rivalização entre os próprios
facilitadores, ainda que algumas verdades nos custe admiti-las.
De certo, quem assinasse tal documento estaria logo,
também, posicionando-se contrariamente ao nosso trabalho.
Muito pertinente identificarmos possíveis atitudes assediadoras,
pois vindo a iniciativa das “autoridades”, os demais “meros fa-
cilitadores” ficariam bastante constrangidos e inseguros em não
assinar o documento sob pena de retaliações. Tivemos notícias de
alguns que nos contataram pessoalmente para comunicar sua so-
lidariedade. Uma mensagem que me tocou profundamente: “Cla-
rissa, escrevo rapidinho aqui só para contar que estou chocado
com essa movimentação toda sobre o seu trabalho com Tantra.
Tenho total empatia pela sua coragem e me incomoda profunda-
mente a forma como essa manifestação está sendo promovida”.
Arrisco-me a expor tais eventos com o intuito maior de
compreender o fenômeno da repressão sexual, ainda fortemente
presente na contemporaneidade, inclusive, dentro de uma abor-

88
dagem que tem, entre suas linhas de vivência, a sexualidade, a
qual foi incluída por Rolando Toro, ser humano notoriamente
conhecido por sua ousadia no campo da sexualidade também,
impiedosamente criticado e devotamente aplaudido por essa
mesma motivação. Em menor grau, mas presente, obviamente,
aproveito para responder “supostas denúncias” com o fim de
esclarecimento. Todos temos o direito fundamental de natureza
constitucional ao contraditório e ampla defesa. Isso também nos
ajuda a avançar no conhecimento para se produzir ciência.

“Ouvimos tanto sobre o dever de um soldado sacrificar a


vida pelo seu país e ouvimos tão pouco sobre o dever de
todo o cientista expor a verdade logo que é reconhecida
como tal, custe o que custar” (REICH,1979, pg. 24).

A princípio, o trabalho recebeu o nome de Biodança com


Tantra e o título da minha monografia seria algo próximo com
“Diálogos entre Biodança e a Filosofia Espiritual do Tantra” ou
“Alguns Fundamentos do Tantrismo no Desenvolvimento da Teo-
ria em Biodança”. Logo, isso gerou perturbações e precisei fazer
supressões e edições no texto como no trabalho vivencial. O tí-
tulo do trabalho gerou, até mesmo, ameaças de processo judicial,
uma vez que Biodança estava sendo defendida como uma marca
que não poderia ser comercializada sem as devidas autorizações.
Ingenuamente, acreditava ser o nome Biodança com Tantra uma
grande homenagem à Biodança. Esse foi o primeiro susto. Ama-
durecemos e evoluímos para o nome O Resgate da Sexualidade
Sagrada, que me pareceu mesmo mais apropriado e mais honroso
àquilo que minha mestra mãe começara lá atrás. O nome tam-
bém nos traria maior liberdade para atuar com as abordagens de
integração humana, das quais estaríamos habilitadas (psicologia
como formação acadêmica, pós-graduação em Sexualidade Hu-
mana e Terapia Tântrica e Psicologia Analítica, Psicodinâmica,
Psicoterapia Sistêmica, Psicodrama Triádico e Moreniano, Psico-

89
logia Analítica, Hipnoterapia Clássica e Ericksoniana, Programa-
ção Neurolinguística). O público em geral é quem vem outorgan-
do a qualidade, validade e pertinência do trabalho.
Um sistema de desenvolvimento humano com as qualida-
des da Biodança sofre, esperadamente, fortes preconceitos e, nem
todo o tempo, estamos imunes a eles. Quando, na década de 90, a
Biodança ficou estigmatizada por ser considerada uma prática “im-
pura”, exatamente por sua proposta vivencial de liberação sexual,
não era incomum os relatos de tantos que fugiam dos salões de Bio-
dança porque essa seria uma abordagem dada à “promiscuidade”.
O movimento de Biodança sente, naturalmente, a força opressora
na linha da sexualidade e passa a tomar certos cuidados para ser
tratada em sua importância e potencial de integração do sujeito hu-
mano. Estes cuidados não devem, contudo, serem impeditivos para
avançarmos no tema, tão caro à humanidade. O que quero dizer
aqui é que aproximar o Tantra da Biodança num trabalho de Sexua-
lidade Sagrada foi sentido como uma ameaça à credibilidade do
Sistema Biodança. Afinal, foi devido a muitos esforços e sacrifícios
que a Biodança conseguiu encontrar o seu lugar ao sol. O custo? A
sexualidade, o prazer erotizado e sensual. A quem beneficiaria? À
ordem vigente patriarcal castradora e punitiva. E assim, cegamente,
vamos perpetuando um sistema perverso, que não cultua a vida em
sua natureza orgásmica biocentrada, mas se presta à obediência in-
consciente de uma vida morna para alguns, indiferente para outros,
cruel para tantos outros e banalizada para quase todos - a anti-vida.

O termo latino sacrificium (um sacrifício) derivado do


latim sacrificus (realizar funções sacerdotais ou sacrifí-
cios), que combinava os conceitos sacra (coisas sagra-
das) e facere (fazer ou executar). “Sacrifice”. https://
www.etymonline.com/ . 11 de fevereiro de 2021.

90
Fazer (facere) coisas sagradas (sacra). No caso, o sexo,
quando é sagrado, é um sacro ofício. Este é o sacrifício origi-
nal dos ritos antigos. Curioso perceber como uma palavra como
sacrifício foi sacrificada de seu significado profundo e original
juntamente com a sexualidade, que era a sua oferenda dos hu-
manos para as Deusas e Deuses. Não mais tardamos em admitir
que fizemos isso também em Biodança. Por necessidade, sabe-
mos. Quanto antes nos confessarmos, humildemente, de que
essa onda opressora-conservadora também nos naufragou, mais
cedo estaremos aptos a nos resgatar.
Fica fácil entender que tudo, absolutamente tudo, que se
relaciona com sexualidade foi sacrificado. Façamos um cálculo
rápido e superficial e poderemos imaginar o tamanho do prejuízo
para a filosofia milenar e matrifocal do Tantra. Somente alguns
significados corrompidos que encontramos no imaginário pessoal
e social à respeito da palavra Tantra: pornografia, suruba, sexo
perfomático, desempenho sexual, assédio, abuso, perversão se-
xual, promiscuidade, prostituição. Alguns deles podem pairar na
mente criativa do leitor. Compreensível. Um dia foi assim para
nós também. Não se trata de julgar. Trata-se de fazer um belo
diagnóstico de uma cultura gravemente adoecida em sua sexuali-
dade para que possamos, enfim, medicá-la, cura-lá, (re)integrá-la.
O resgate da sexualidade plena, saudável e consciente
requer a busca de novas concepções acerca do corpo e do pra-
zer: eis onde a terapêutica tântrica revela seu valor. Com essa
terapêutica, podemos ressignificar a existência vivida no cor-
po e rever suas necessidades em seu potencial auto-regulador e
curativo. O corpo é o território central da terapêutica tântrica.
Para o tantra, o corpo não é uma carcaça, nem a antítese
do espírito - aquele que devemos tratar com austeridade e mor-
tificar para salvar a alma -, senão o seu contrário: é um maravi-
lhoso instrumento, dotado da mais alta tecnologia biológica, e é
a sede da consciência (LYSEBETH, 1994).

91
A terapia tântrica é uma ruptura com o sistema dominan-
te que nega e demoniza o corpo – o que, por si só, já é terapêuti-
co. Há muitos séculos, a ideia de corpo tem sido associada à dor,
à doença e à culpa. No tantra, o corpo é veículo para o despertar
do prazer e do autoconhecimento, que são estruturantes da saú-
de e possibilitam a vivência integradora da identidade humana.
A história da massagem tântrica, como conhecemos,
tem origem em 1982, com o americano Joseph Kramer que,
após passar anos estudando técnicas de respiração e masso-
terapias, desenvolveu o que ele chamou de “Massagem Eró-
tica Taoísta”. A técnica consistia em, sob o ponto de vista do
sistema de meridianos energéticos do corpo, os ensinamen-
tos sexuais Taoistas e da respiração consciente, intensificar
o fluxo energético corporal (Gaiarsa, 1985). O objetivo não
era a ejaculação, mas, sim, o sentir do fluxo de energia, em
como a energia sexual e a excitação circulam pelo corpo e
intensificar o fluxo energético (https://prazeremsentir.com.
br/2020/07/29/desmistificando-a-massagem-tantrica-como-
funciona-e-porque-funciona/).
Todo o corpo é um potencial de erotismo. Nosso órgão
mais sensível é a pele, que nos reveste por inteiro. Para o des-
pertar do prazer em todo o prolongamento da superfície da pele,
utiliza-se, na terapia tântrica com massagem, a técnica denomi-
nada “sensitive”, a qual eu gosto de chamar de carícia sensível:
uma massagem com toque sutil, através das pontas dos dedos,
que tem por intuito o despertar da bioeletricidade de todo o cor-
po ou aquilo que Reich (1979) chamou de orgone.
Estas descargas bioenergéticas ativam diversos proces-
sos psíquicos e biológicos: a sensorialidade; maior sensibili-
dade; a construção de novas sinapses nervosas; o despertar de
memórias traumáticas e suas ressignificações; o despertar de
memórias de alegria; insights; elaborações psíquicas; vivência

92
de unidade corporal; aceitação ao toque e ao próprio corpo; auto
-percepção; cura de disfunções sexuais; o despertar do desejo e
da energia sexual; e a capacidade auto-reguladora do corpo em
expressão de homeostase e cura.
O ato de ser acariciado suscita uma resposta natural
nos seres humanos para o pleno desenvolvimento orgânico-e-
mocional. Não pode haver saúde, nem o funcionamento pleno
do organismo, se os sistemas vivos não mantiverem contatos
frequentes. Desse modo, podemos também nos dar conta do
quanto a sexualidade fixada nas genitálias empobrece a nossa
experiência do contato íntimo de toda a pele, que é nossa maior
zona erógena (MONTAGU, 1988).
Contudo, não incluir as genitálias ou qualquer outra
área do corpo, na experiência sexual, provoca experiência sub-
jetiva de fragmentação corporal e, portanto, também no nível
da identidade individual. Surge uma sensação de ressentimen-
to da parte do corpo que não é tocada, e o indivíduo experi-
menta um corte no corpo, uma vivência esquizofrênica, uma
censura e a impossibilidade de se viver o corpo em sua intei-
reza. Por esse motivo, na terapêutica tântrica da massagem,
é previsto o toque nas genitálias, com o mesmo princípio da
massagem sensitive, mediante a licença de quem recebe. Nes-
se contexto, o toque é experimentado dentro de um ambiente
terapêutico protegido, em uma relação de vínculo de confiança
com o terapeuta, que deve tocar todo o corpo, em uma atitude
de reverência.
Diante desse cenário, ao pênis, desenvolvemos fixação:
seja pelo seu temor, seja pela sua exaltação. À vagina, oferece-
mos a nossa negligência, profundo ato de desamor, maquiado
por discursos e comportamento morais. Muitas são as mulheres
que nos buscam enquanto psicólogas, sexólogas e terapeutas
sexuais para nos confidenciar que suas genitálias são “depósi-
tos de sêmen” num ato sexual mecânico e rápido, incapazes de

93
provocar prazer, muito menos o gozo. Outras tantas revelam o
quanto desejam receber sexo oral, mas seus companheiros têm
“nojo, pois dizem cheirar mal e ser, a vagina, feia”.
É urgente uma verdadeira reforma sexual, que sacraliza
o corpo em sua inteireza. Por que então estamos em Biodança
levantando a bandeira da “integração do corpo”, se o que está
acontecendo é o vestir, mais uma vez, das tarjas pretas nas ge-
nitálias, inclusive, com a orientação das atualizações em meto-
dologia de Biodança, a qual reitera a cultura normativa e opres-
sora: não tirem suas calcinhas! Não tirem suas roupas íntimas!
Facilmente o pênis escapa para dentro da vagina e pronto! Esta-
remos confirmando o terrível e temido estigma da década de 90
de que realmente as biodanceiras e biodanceiros são um bando
de depravados!
A fala imperativa é para que possamos acordar do coma
pretensioso de achar que estamos chegando a níveis profundos
de intimidade negando as genitálias, dizendo ao corpo que ele
ainda não pode estar inteiro. Não estamos! Ainda não saímos
dos grupos de iniciação tímidos, afirmando convictamente que
somos aprofundados em Biodança ou radicalizados na vivência.
A medicina que me inspirei para poder sanar a esquizo-
frenia corporal foi a terapia tântrica, que não é o Tantra raiz, por-
que isso seria impossível, uma vez que muito foi perdido pelas
invasão e colonização dos arianos na Índia Antiga e, mais tarde,
também pelos ingleses (Wallis, 2013). Evidentemente, uma tradi-
ção milenar (cerca de 30 séculos a.c) passou por inúmeras trans-
formações e, até chegar no Ocidente, mais transformações ainda.
De todo o modo, a terapia tântrica é o eco do tantrismo.
A arte da iluminação do Tantra e a Terapia Tântrica ocidenta-
lizada tem em comum o seu olhar genuíno e inocente sobre as
nossas genitálias, pela qual se compreende em sânscrito Yoni

94
- portal da vida, passagem divina, portal de luz, energia poten-
cial da Deusa Shakti e, Lingam (pênis) - coluna de sustentação,
bastão de luz, energia potencial do Deus Shiva. No Tantra origi-
nal as imagens da Yoni e do Lingam são postos no altar, como
símbolos sagrados da vida, e, assim, fizemos em nosso trabalho,
enaltecendo as sagradas genitálias.
Sendo assim, o salão de Biodança amplo e espaçoso
cede lugar ao salão do Tantra, numa troca de cenários amorosa-
mente preparado por nossa coordenadora Marina Sousa, mulher
sacerdotisa também. Por suas mãos os adornos ganham expres-
são de beleza.
Da periferia do salão, agora ganham o centro do salão:
guirlandas florais, flores-cores, perfumes, essências, fogo, pedras,
incenso. Tantra é beleza. Sexualidade merece a virtude do belo,
profundamente erótico. Na periferia, rodeando o salão, o lugar cui-
dadosamente disposto para cada paridade com o material necessá-
rio para a massagem, como os óleos essenciais, entre outros itens.
Um dos significados da palavra Tantra é integração, in-
clusão, aceitação. Sendo assim, as paridades podem ser mulher
e homem; mulher e mulher; e homem e homem, uma vez que
as nossas polaridades Shiva-Shakti precisam se casar dentro de
nós. As paridades podem já irem formadas ou podemos formar a
paridade durante o trabalho, estimulando o encontro erótico-afe-
tivo por esse ambiente e pela facilitação das Deusas e Deuses
encarnados pelos terapeutas que prestam o serviço sacerdotal.
As massagens são ensinadas após o descanso do almoço.
As refeições são vegetarianas e criteriosamente feitas de forma a
auxiliar Shivas e Shaktis a uma boa experiência. No final do dia,
ao entardecer, iniciamos as vivências tântricas. Quando a noite
chega novamente, estamos, mais uma vez, na energia femini-
na, onde acontece o ápice da experiência erótica-numinosa. Não
há, em momento algum, mistura de metodologias. Isso não seria

95
possível porque ambas as metodologias, da Biodança e da Tera-
pia Tântrica, dispõem de seus próprios métodos, que são absolu-
tamente autônomos e redondos. As abordagens se complemen-
tam em momentos únicos para ambas dentro da mesma imersão.
“Com frequência os terapeutas que tentam misturar
técnicas criam um produto híbrido, espécie de hidra de nove
cabeças, sem coerência nem unidade. É por este motivo que o
livro de Roberto Crema constitue um acontecimento de valor
paradigmático dentro dos meios terapêuticos. Com profundo
conhecimento de ambas as disciplinas, esse autor meditou so-
bre as diferenças e semelhanças, para logo deduzir seus aspec-
tos complementares. O presente livro permite ao terapeuta não
formado nestas técincas, recomendar ao paciente um programa
apropriado a sua situação. Na prática, ambas técnicas não de-
vem misturar-se, ma spodem realizar-se sessões alternativas ou
sucessivas de Biodança e Análise Transacional. Isso abre ines-
peradas pers´pectivas no processo de mudança. A nova atitude
permite complementar técnicas que põe sua ênfase em esferas
diferentes: cognitiva, vivencial e/ou visceral, sem confundir os
recursos de cada uma delas” (RolandoToro prefaciando o livro
Psicodança e Análise Transacional: Uma proposta de Integra-
ção, 1983, pg. 6 e 7)
Ao iniciar a liturgia tântrica, os sinos, os tambores e os
mantras tocam. A respiração é estimulada dentro de um ato me-
ditativo. Respiração se transforma em mais um som. A respira-
ção consciente e profunda é fundamental, uma vez que todo o
fluxo emocional-transcendental depende da qualidade de respi-
rar. A meditação é a do Tratak, que, em sânscrito significa lá-
grima (Rajneesh, 1994). As paridades se olham nos olhos e por
alguns instantes procuram não piscar. Um fenômeno fisiológico
-emocional ocorre: as lágrimas começam a escorrer pelos ros-
tos, provocando visões, abertura do chakra Ajna, o da intuição,
que fica entre nossas sobrancelhas, o chamado terceiro olho.

96
Nessa altura, já estamos transcendendo, em intenso ato
devocional e de oração. Shiva contempla Shakti, Shakti contem-
pla Shiva, ambos se adorando. Até que é chegado o momento,
onde Shakti deita-se e fecha os olhos, num movimento de en-
trega de sua vulnerabilidade, pois, a essa altura, já estão nuas
para poderem ser acariciadas em cada centímetro de pele que
as cobre. Inicia-se a sensitive massagem ou a carícia sensível.
As músicas tocam sequencialmente dentro de uma crescente,
começando das mais melódicas e suaves às mais intensas, à me-
dida que a kundalini (energia primordial sexual) acorda e se
movimenta em direção ascendente, abrindo caminho aos sete
estados de percepção, as sete rodas - chakras ou sete lótus (pad-
ma). Os sete centros são: o períneo ou chakra raíz - muladara; o
umbilical sacral - swadhistana; plexo solar no estômago - ma-
nipura; o cardíaco - anahata; o laríngeo - vishuddha; o terceiro
olho - ajna; e o coronal – sahasrara (Arundale, 1938)
Essa energia chamada Kundalini dentro da mitologia
Tântrica é representada por uma serpente ígnea, liberada a partir
da construção do mundo e reside (dorminhoca para a maioria de
nós) no nosso primeiro centro energético na região do cóccix, o
muladhara. A sensitive massagem é um instrumento que possi-
bilita o despertar da kundalini gradativamente e a sua ascensão
passando por todos os chakras, inflamando-os com sua energia
cósmica e vital endereçando-a até o último chakra, o lótus de
mil pétalas, reconectando-nos com o divino que nos habita.
A Kundalini pode ser também a representação da Deu-
sa Shakti, consorte do Deus Shiva. Quando a kudalini-Shakti
acorda, passa pelos sete centros de energia e, finalmente, acessa
o último chakra na coroa - Sahasrara, acontece o casamento sa-
grado entre ela e Shiva, a coroação, o estado do samadhi, êxta-
se supremo. A jornada da kundalini acontece no nosso interior,
integrando nossas energias, yin e yang. Essa é uma tentativa de
descrever a nossa comunhão com o divino. O acesso ao numino-

97
so via corpo e transcendendo; via sexualidade e iluminando-se.
Quando kundalini-Shakti chega ao centro do cocuruto se reúne
com o Amado Eterno - o abraço divino, suas duas faces reen-
contradas (Arundale, 1938).
Naturalmente, por toda a explicação anteriormente feita
nesse estudo, as Shaktis, como são chamadas as mulheres no
nosso trabalho, são as primeiras a receberem. Elas são a encar-
nação da Deusa e todo o ritual é centrado na energia criadora
de Shakti. No outro dia, é a vez dos Shivas, nossos homens,
receberem, sendo iniciados na poderosa manifestação de Shakti,
realização do feminino neles.
Falando em Shivas, para o melhor entendimento do que
seria o controle da ejaculação, fortemente criticado por alguns
do movimento Biodança, como algo contrário ao que Rolando
acreditaria. Inicialmente acho importante lembrar que nenhum
pesquisador detém a verdade ou o conhecimento absoluto. O
conhecimento é um processo orgânico, construído histórica-
culturalmente, de natureza refutável e cumulativa. A primeira
vacina que sugiro tomarmos é contra o fanatismo laudatório que
percebo dentro do movimento de Biodança com a figura de seu
precursor Rolando Toro. Tal atitude é um desserviço ao conhe-
cimento e um risco importante de nos encaminharmos para um
movimento fundamentalista, frequentemente violento. No nos-
so caso, uma violência perfeita , ideia primorosa desenvolvida
por Marilena Chaui (2017). Isso não quer dizer (antes que eu
seja banida de um movimento que me pariu, me embalou e me
criou e, por isso, nutro um profundo amor) que eu não reconhe-
ça toda a pesquisa e desenvolvimento de um sistema absoluta-
mente transformador como é a Biodança, dedicadamente feito
por Rolando. A ele, a nossa eterna gratidão.
Ainda que a falta de concordância sobre esse assunto
seja um ponto central que impossibilita uma conversa entre as

98
abordagens, a dialética é, desde os filósofos antigos, uma fonte
de diálogo, por vezes conflitantes, pelo qual os interlocutores
ajudam no avanço da construção do conhecimento. Estaríamos
a falar de uma questão epistemológica da mais alta relevância
no campo da saúde sexual/mental. Mas essa não é a nossa dis-
cussão no momento. Em tempo: não temos garantia alguma de
que um autor de uma dada teoria ou sistema, se continuasse
vivo, mantivesse ipsis litteris sua obra, que certamente não foi
fundada e, sim, continuada pelos que o sucedem.

Só haveria respeito às tradições e nenhuma resistência


contra ela, se a juventude pudesse dizer sem temer, as
consequências. Isso recebemos de vós porque é enérgi-
co, honesto, ainda adequado ao nosso tempo e suscetível
de desenvolvimento. Contudo, aquilo que não podemos
receber, que foi útil e verdadeiro para o vosso tempo,
será inútil para o nosso. Nós, hoje jovens, teremos que
estar preparados para ouvir o mesmo das próximas ge-
rações (Reich, 1979, p. 23, com adaptações).

Fechando parêntesis, e seguindo com a questão do con-


trole ejaculátorio: nas escrituras sagradas sânscritas do tantris-
mo, a energia nervosa sutil é denominada ojas, que significa ser
forte. Assim, ojas diz respeito à força da vida, à vitalidade. Su-
postamente, os hindus tântricos acreditam que há um grau sig-
nificativo de ojas no sêmen. Por isso, para eles, a conservação
do sêmen tem um valor religioso, pois ponderam que, a partir
da observação das experiências introspectivas como meditação
e o próprio ato sexual, a descarga seminal traz consigo, também,
uma prostração. Não raras são as ejaculações em momento pre-
coce da relação sexual, gerando bastante frustração para mulhe-
res, e mesmo para homens que desejariam aproveitar mais a re-
lação, prolongando o prazer, a felicidade do encontro amoroso.

99
Não se trata de desenvolver sentimentos de culpa, medo
ou vergonha em relação à ejaculação. Isso seria um erro gra-
ve. Um trabalho terapêutico que se presta a isso é iatrogênico
por definição. Em nosso trabalho quando um homem ejacula, a
massagem continua com movimentos mais leves e elevando o
sêmen ao centro cardíaco-afetivo, promovendo uma verdadeira
alquimia sexual a fim de conectar os dois centros: sexual e afe-
tivo. Trata-se de nos perguntarmos como desenvolver uma se-
xualidade masculina mais próxima possível da feminina: lenta,
crescente e múltipla orgasmicamente. E, antes que os descrédu-
los se defendam sequestrando mínima dose de esperança dessa
possibilidade se concretizar em algum momento, eu e alguns
colegas, também terapeutas tântricos e sexólogos, já tivemos a
sorte de testemunhar, em nosso trabalho, alguns homens com
essa qualidade de sexualidade, que são os incomuns homens fe-
mininos, os verdadeiros para uma visão tântrica.
As mulheres os adoram porque podem desfrutar sem
pressa da intimidade sexual; conseguem mais facilmente al-
cançar o orgasmo ou os múltiplos orgasmos. Os ensinamentos
tântricos dizem que abster-se de ejacular provoca uma inversão
aparente do sêmem. A energia misteriosa que teria sido dissipa-
da passa a ser poupada e, além disso, ampliada, ficando, assim,
à disposição espiritual do indivíduo (Feuerstein, 1994).
Contudo, humildemente reconhecemos que, na nossa cul-
tura ocidentalizada, judaico-cristã, durante muito tempo da histó-
ria, e até os dias atuais, atribuem o pecado ao ato sexual, sendo ele
meramente um veículo para procriação, desprovido de qualquer
intimidade, erotismo e sensualidade, no qual o homem deve pe-
netrar a mulher vestida, e com o menor intervalo de tempo, des-
carregar o seu sêmen. Precisaremos de uma boa dose de paciência
para alcançar o entendimento e a vivência do sexo sem a ejacu-
lação e com orgasmos secos para o homem. Inimaginável essa
inversão. Quanto de nossa sexualidade ainda desconhecemos?

100
A distância entre as culturas é abismal e o desinteresse
das “autoridades” em Biodança (diretores de Escolas e didatas)
em tratar o assunto é por si só um sintoma da cultura judaico-
cristã do paradigma patriarcal focada no pecado e na ideia de
um Deus punitivo e castrador, que vive em nós biodanceiros
também. A realidade frustrante da maioria das mullheres sobre
sentirem-se um depósito de sêmen, mencionada anteriormen-
te, e sem conseguirem aproveitar da relação sexual com toda a
riqueza que ela pode oferecer, está a denunciar uma dessacra-
lização do sexo em níveis incalculáveis. A educação sexual do
controle ejaculatório deve acontecer considerando a cultura no
tempo, entendendo que este costuma ser um processo longo de
conscientização e apropriação do corpo.
Não pretendo esgotar esse assunto aqui, pois existe mui-
to mais a ser posto. O que desejo provocar é uma reflexão a res-
peito da falta de conversa entre abordagens, como se uma fosse
colocar a outra em descrédito ou na vala do charlatanismo. E se
for isto, precisamos admitir que a Biodança estaria do lado mais
fraco da força, pois é o Tantra uma filosofia infinitamente mais
antiga e desenvolvida ao longo dos séculos. Não foi o Tantra
quem bebeu na fonte dos escritos e achados geniais de Rolando
Toro. Mas, este, sim, bebeu na fonte do tantrismo, como nos in-
dica as suas obras do Tommos. Uma tradição deve, sim, quando
bem apropriada por uma nova corrente, trazer legitimidade a
ela, e não ser um motivo de confronto e mal estar.

4. Conclusão
Ao desenvolver esse trabalho, mergulhar nesse tema de
pesquisa e me deparar com leituras altamente provocantes e ou-
sadas do próprio Rolando Toro e demais autores que se debru-
çaram no assunto, confrontei-me com uma quantidade impor-
tante de pessoas se queixando que a linha da sexualidade estava

101
sendo desenvolvida de forma acanhada e careta e, até mesmo,
em alguns grupos regulares, de maneira inexistente, dentro do
movimento de Biodança. Entendo que o legado de conhecimen-
to e vivência deixado por Rolando Toro (conhecido pela sua
irreverência e espírito transgressor a uma cultura fortemente
opressiva) deve ser levado a rigor; caso contrário, um Sistema
como o da Biodança pode se distanciar de seu caráter libertário,
que ajude a construir uma cultura a favor do prazer, do gozo de
viver, fundamentada no Princípio Biocêntrico, na minha visão,
expressão matrifocal.
O que já se pode e deve considerar é que o tema da se-
xualidade foi e vem sendo um alvo fácil para práticas de abuso
e violência, inclusive em ambientes terapêuticos e religiosos.
Entrar no terreno da sexualidade requer de um terapeuta ou fa-
cilitador bastante coragem, foco, atenção e grande reverência
entusiasmada pelo tema, sob pena de desprestigiar o trabalho.
A ética nos relacionamentos humanos não deve ser con-
fundida com a moral sexual neurotizante, a qual escraviza os ins-
tintos humanos. Todo o esforço de recentes políticas públicas na
área, voltadas para a defesa da integridade física, sexual, social
moral e psíquica das pessoas deve, portanto, estar atenta a qual
moral ela serve: a moral sexual natural - ética nos relacionamen-
tos, ou a moral sexual civilizada – constantemente neurotizante.
A moral sexual natural fala em conservar a saúde e a
vitalidade, enquanto que a moral sexual neurotizante estimula
os seres humanos a uma intensa e produtiva atividade cultural
estimulada por um modelo econômico cruel, na qual a saúde e
vitalidade das pessoas sofre danos. Tais prejuízos, causados pe-
los sacrifícios que lhes são exigidos, acabam por ferir a própria
cultura. Exemplo clássico e corriqueiro da moral produzida pela
cultura é a negação da sexualidade em ambientes religiosos,
onde acontecem as maiores perversidades e escândalos sexuais:
um fenômeno psicossocial sintomático de uma forte repressão

102
da cultura sobre os instintos. Todos os fatores que suprimem a
naturalidade da vida sexual e, portanto, a sua sacralidade, de-
vem ser vistos como fatores patogênicos das psiconeuroses.
Não é improvável que muitos terapeutas e facilitadores
se mantenham defensivos e receosos em relação ao aprofunda-
mento no tema, dada a realidade de denúncias de assédio se-
xual, possibilidade de enfrentamento de processos judiciais e
outros constrangimentos e, em se tratando de grupo, das situa-
ções de interação entre os participantes, as quais escapam ao
controle do facilitador, dentro dos grupos de Biodança e para
além dele. O prejuízo é não avançarmos num tema tão caro,
que é “somente” o ponto de partida da concepção da vida. Se
quisermos trazer alguma contribuição significativa à humani-
dade, precisaremos, corajosa e amorosamente, investir a nossa
energia vital na cura da sexualidade e, todo o resto, ocorrerá
por desdobramento, como já nos mostrava as valiosas e escla-
recedoras pesquisas de Reich (1976).
Estou segura de que um trabalho como o do Resgate da
Sexualidade Sagrada - Dança de ShivaShakti é um trabalho to-
talmente convergente com a ideia do Princípio Biocêntrico, pelo
qual a centralidade da vida é soberana. Devolver à sexualidade
seu caráter sagrado é, para mim, um grande pleonasmo. Uma
vez que é através dela que todos os seres que vivem podem se
reproduzir e viver em alegria. Isso significa estar em harmonia
com as leis da natureza, celebrar à vida que se preserva, recicla
e se perpetua graças à força da sexualidade. Isto é tomar a vida
como o nosso maior patrimônio.
Todo trabalho que tem como carro-chefe a linha da sexua-
lidade-afetividade, deve contar com a presença de facilitadores
amadurecidos na sua própria identidade sexual, a ponto de per-
ceber todas as formas de corrupção da sexualidade desprovida
de afetos saudáveis, e poder, com habilidade, gerar consciência
e mudança no sentido de cuidar sempre do casamento afetivida-

103
de-sexualidade, pois, assim, sacralizamos a vida, determinando-a
como o bem mais precioso da humanidade e de toda a natureza.
O amadurecimento da/do facilitadora/facilitador em re-
lação a sua própria identidade sexual dará a ela / ele condições
de identificar as formas sutis de opressão, abusos e violências,
para poder promover, sensibilizar e conscientizar as pessoas so-
bre as mudanças em seu repertório de comportamento sexual.
Tal amadurecimento permite aos facilitadores a coragem de
adentrar na linha da sexualidade com assertividade e doçura, ao
invés de ignorá-la. O fortalecimento da identidade sexual dos
facilitadores em Biodança traz um entendimento doloroso em
relação a compreender que todo o mal-estar em relação ao tema
da sexualidade exige uma boa dose de aceitação de que, ora po-
demos estar na posição de opressores/abusadores sexuais e ora
podemos ocupar a posição de oprimidos/abusados.
Isso significa dizer que, em se tratando de sexualidade,
nos deparamos, em muitos momentos, com uma relação domi-
nador/dominado consentida, ainda que seja fundamental reco-
nhecermos que o dominado seja a parte mais frágil dessa rela-
ção. Admitir esse jogo na relação e identificar os personagens
(vítimas e algozes) para abandonarmos esses papéis, a fim de
vivenciar uma sexualidade madura, consciente e sagrada, é um
movimento prospectivo, se quisermos avançar no tema.
Aqueles que confiam a nós, facilitadores, o desenvol-
vimento de sua sexualidade, contam, também, com o quão ca-
minhamos no exercício da nossa sexualidade coerente, afeti-
va, madura e calcada na sacralidade, no Princípio Biocêntrico.
Nesse sentido, no Resgate da Sexualidade Sagrada - Dança de
ShivaShakti estamos comprometidas e comprometidos com o
nosso desenvolvimento pessoal na esfera da sexualidade, nas
nossas trajetórias de vida, em nosso autoconhecimento. E essa
será sempre uma lacuna em nosso trabalho, uma vez que sempre
teremos o que trabalhar, onde avançar e o que integrar.

104
Compreendemos que nenhum ser humano e nenhuma
de suas criações - teorias, escolas, abordagens, metodologia,
tecnologia – podem ser acabadas, perfeitas e completas, porque
é exatamente essa a natureza do conhecimento e da vida: a in-
completude, a organicidade, a capacidade de estarmos sempre
inaugurando algo a mais, como nos lembra bem a linha da cria-
tividade em Biodança.
Como sugestões para futuros trabalhos envolvendo a li-
nha da sexualidade e o assunto sexualidade sagrada, acreditamos
que ainda podemos avançar no estudo de como a sexualidade,
dentro da história do movimento de Biodança, sofreu fortes im-
pactos, resistências, preconceitos, discriminação, incompreen-
sões, e como ela, a Biodança, reagiu a todos esses fenômenos
de repressão.
Sendo assim, finalizamos esse trabalho, com a sensação
de que parte de nossa missão foi concluída e que, de agora em
diante, o mergulho deve, merece e precisa ser cada vez mais
profundo nesse oceano de prazer e amor. Os desafios são gran-
des e a nossa vontade é maior.
Por fim, encerro esse trabalho com sinceros votos de ter
aberto uma reflexão no campo da sexualidade, avançando no en-
tendimento teórico, metodológico e vivencial, dialogando com
abordagens afins e não afins e, naturalmente e só assim, avan-
çando na construção do conhecimento, numa verdadeira atitude
de aproximação e integração de saberes, práticas e de pessoas
humanas que se disponibilizam a cuidar do sujeito humano.

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107
ORGANIZAÇÃO E EVOLUÇÃO DO SER VIVO
NUMA ABORDAGEM BIOCÊNTRICA
Geny Aparecida Cantos

RESUMO: A evolução dos seres vivos nos mostra que somos o resultado de
formas estruturais primitivas com extraordinária capacidade de organização
de vida. Isto significa que nossa jornada é uma aventura de seres que sobre-
viveram às mais diversas adaptações e mudanças em um ambiente inteligen-
te, dinâmico e cooperativo. Em concordância a isso, o princípio biocêntrico
inspira-se do fato que o universo está organizado em função da vida e tenta
estabelecer critérios comuns, que permitam a expressão de nossos pode-
res evolutivos. O sistema Biodanza permite estimular ações que priorizem
a organização e cooperação como expressão de vida. Assim, as ideias arti-
culadas neste artigo têm por objetivo relacionar o processo de organização
e evolução da vida com reflexões em torno de uma abordagem biocêntrica,
utilizando o sistema Biodanza.

ABSTRACT: The evolution of living beings shows us that we are the result of
primitive structural forms with an extraordinary capacity for organizing life. This
means that our journey is an adventure of beings that have survived the most
diverse adaptations and changes in an intelligent, dynamic and cooperative
environment. Accordingly, the biocentric principle is inspired by the fact that the
universe is organized according to life and tries to establish common criteria,
which allow the expression of our evolutionary powers. The biodanza system
allows stimulating actions that prioritize organization and cooperation as an
expression of life. Thus, the ideas articulated in this article aim to relate the
process of organization and evolution of life with reflections around a biocentric
approach, using the biodanza system.

*Doutora em Bioquímica, facilitadora ditada em Biodanza, Professora de


Yoga e Yoga Dance, Líder de yoga do riso e parapsicóloga.
INTRODUÇÃO
Uma característica dos seres vivos é evoluir. A evolução
está conectada à transformação e à criação de toda espécie de
ser vivo. A vida está em constante transformação com o meio,
num equilíbrio instável. O meio foi alterando a vida e a vida foi
alterando o meio. A evolução é um constante refazer, onde a
vida cria e recria a si mesma, sendo que os padrões de organiza-
ção celulares são normalmente preservados.
Os seres vivos vivem em uma constante luta pela sobre-
vivência e desenvolveram várias estratégias para se manterem
vivos. A organização foi, sem dúvida, uma das características
que favoreceu o processo de evolução dos seres vivos. A célula,
a menor unidade de todo ser vivo, possui um padrão de organi-
zação que possibilita todas as condições necessárias para obter
do meio ambiente o material biológico que necessita para reali-
zar seus processos vitais, tais como nutrição, trocas de energia,
e reprodução. O material assim obtido é constantemente trans-
formado e organizado por estruturas internas presentes dentro
da célula. Foi somando as capacidades, segundo as necessidades
de cada um, que os organismos se organizaram e prosperaram.
Ao analisamos a maneira como a vida se organiza po-
demos verificar que existem certos níveis hierárquicos de orga-
nização, que contribuem para o estudo da vida. Para um melhor
entendimento dessa hierarquia, em organismos pluricelulares,
dado às suas complexidades, podemos dividir essa organização
em estratos. Partindo do mais simples ao mais complexo tere-
mos os átomos que formam as moléculas orgânicas. Estas es-
tão organizadas de modo a formar organelas que se integram na
formação de células. Das células passamos para os tecidos, que
ocorrem apenas nos organismos multicelulares (animais e plan-
tas). A partir daí seguem as seguintes escalas: órgãos e sistemas.
A união de todos os sistemas forma o organismo. Percebe-se,

110
pois, que todo nosso organismo é um sistema é constituído de
células (unidades de vida) que se organizam. As células traba-
lham juntas num sistema de organização e cooperação, para o
bem do organismo.
O princípio biocêntrico elaborado por Rolando Toro con-
sidera que o universo se organiza em função da vida. Este princí-
pio abarca a vida em tudo que existe e conecta o ser humano com o
cosmo. Consiste em preservar a vida, em favorecê-la e conduzi-la
ao seu mais alto valor. A Biodanza, também criada por Rolando
Toro, foi inspirada neste princípio e tem o poder de impulsionar
condições pelas quais a vida possa ser protegida. Ela utiliza des-
sa abordagem promovendo um melhor modo de viver, a partir de
intensas vivências induzidas pela música e pela dança em grupo.
Considerando estes aspectos, este artigo apresenta sabe-
res do microcosmo primitivo, que deram origem ao ser humano
e faz um viés biocêntrico, para compreender todas as formas
de vida como um acontecimento cósmico. O ponto forte das
reflexões será a cooperação, onde as funções geradoras e man-
tenedoras de vida passarão pelo reconhecimento e necessidades
do outro, pela promoção e qualidade de vida do meio ambiente,
que são favoráveis à expressão e a evolução da vida.

O princípio biocêntrico tem como referência imediata a


vida, e se inspira nas leis universais que conservam os siste-
mas vivos e tornam possível sua evolução. (Rolando Toro).

Biodanza é um sistema de integração e desenvolvimento


humano, de renovação orgânica, de reeducação afetiva
e reaprendizagem das funções originárias da vida. Sua
metodologia consiste em induzir vivências integradoras
por meio da música, do canto, do movimento e de situa-
ções de encontro em grupo. (Rolando Toro).

111
2.O NICHO ECOLÓGICO
Uma forma de entender da vida na sua organização e
evolução é considerar as relações entre as espécies com o meio
ambiente. A preservação do meio ambiente caminha junto com
a manutenção dos nichos ecológicos. Pode se dizer que nicho
é o “modo de vida” ou formas de ocupação e atuação de um
organismo na natureza, dentro de um ecossistema. O nicho eco-
lógico é uma estratégia de sobrevivência de uma espécie, sendo
fundamental para a manutenção e a evolução da vida no planeta.
O nicho ecológico considera que muitas espécies possam viver
em um habitat específico sem que haja competição entre as mes-
mas. Diga-se que o interesse das espécies em termos de matéria
e energia é diminuir, tanto quanto possível, as competições inter
e intraespecíficas, de forma que as interações ocorridas levem
um benefício entre os seres vivos.
Nas sessões de Biodanza o grupo cumpre a função
de nicho ecológico, acolhedor, estimulante e amoroso (San-
tos, 2009). Nos referimos a ele os referimos a ele para ilustrar
como cada um de nós, com nosso modo de vida e com as nossas
necessidades encontra, condições favoráveis para o nosso de-
senvolvimento. Para tal há necessidade de que cada um tenha
como meta o bem-estar do todo. Dançamos juntos, interagimos
com o outro, num ambiente de ajuda mútua. A dança amorosa
de criação nos permite mergulhar no outro e o outro se deixa
penetrar movido pelo amor. O salutar amor da união ecológica
gerado pelo grupo (nicho ecológico) tem o poder organizar o
nosso organismo, dando origem ao fenômeno de solidariedade
celular, que nos permite o êxito do nosso desenvolvimento in-
finito frente à evolução.

Quando me encontro com o outro, começo a ter notícias


de mim ““. Rolando Toro

112
3.AUTO-ORGANIZAÇÃO /TEORIA DO CAOS
A auto-organização assegura a sobrevida e dispõe de
um grande poder de criação. Atlan (1992) diz que a auto-orga-
nização é um fenômeno primário que caracteriza os seres vivos
em suas organizações, tanto estruturais quanto funcionais. O
termo auto, nesse caso, reflete ao fato de que não haver nenhu-
ma instrução do ambiente sobre como a organização ocorrerá.
Maturana & Varela (1987) colocam que a auto-organização,
além de manter o organismo vivo e estruturá-lo, é uma das ca-
racterísticas essenciais da vida.
Schroedinger (1997), notou que em sistemas vivos
há uma ordenação presente nos processos vitais que emerge
espontaneamente de uma desordem inicial, ou seja, a partir
da desordem, há uma auto-organização dinâmica. Prigogine
(1989) já havia considerado que essas instabilidades suces-
sivas, não-lineares, são favoráveis ao processo de evolução.
Segundo Atlan (1992), a entropia (uma medida de desordem
molecular) é um dos grandes princípios físicos que regem a
evolução dos sistemas naturais.

Considerando os aspectos acima mencionados, é possí-


vel estabelecer uma analogia da auto-organização com a teoria
do caos. Essa teoria prevê que uma muda pequeníssima no início
de um evento poderia causar resultados totalmente diferentes no
final. Esse efeito ficou conhecido como Efeito Borboleta, que é a

113
relação entre pequenas mudanças meteorológicas e grandes ca-
tástrofes. É como se o bater das asas de uma borboleta pudesse
gerar um tornado no outro canto do mundo. Isso quer dizer que
em qualquer dimensão, tudo que fazemos, desde o nosso cami-
nhar até a palavra tem efeito direto no mundo em que vivemos.
O caos está presente em qualquer sistema natural que
tenha algum nível de complexidade e dinamismo. Existe na
natureza desde as células, órgãos, organismos, indivíduos e
organizações. Por exemplo, um pequeno desequilíbrio de gás
carbônico pode prejudicar um ecossistema inteiro. Segundo a
teoria do caos é impossível fugir da imprevisibilidade e incerte-
zas que o Efeito Borboleta impõe sobre nossa realidade.
Contudo, há sempre uma ordem escondida atrás do
caos. A ordem e desordem cooperam na organização do univer-
so. É uma parte constituinte do meio social. Caos é considerado
como um “sintoma” de não-linearidade, como também é o caso
da auto-organização. Do crescimento celular desordenado sur-
gem a organização e a diferenciação precisas dos tecidos e dos
órgãos. Do desorganizado aglomerado de enzimas nascem os
sofisticados mecanismos de regulação e homeostase. Do exces-
so de microrganismos e toxinas que se acumulam na pele e nas
mucosas aparece a imunidade, fornecendo adequadamente os
limites e as aberturas de troca com o meio (Oliveira & Minayo,
2001; in Gyton, 1996). O sistema vivo está constantemente se
desorganizando, se desordenando, se desintegrando, vivendo
uma série de pequenas e fugazes mortes cotidianas. Cerca de
90% das nossas moléculas envelhecem e morrem no espaço de
um ano. Apesar disso, o organismo é capaz de organizar suas
funções fisiológicas e metabólicas, assegurando sua sobrevivên-
cia (Guyton, 1996).
Toro (2002) diz que o caos gera vida. Ele parte do prin-
cípio de que existe uma força amorosa e poderosa que orienta a

114
vida no sentido de estabelecer estruturas vitais coerentes. Nes-
ses termos, o amor é uma energia que permite a conservação
da vida, constituindo-se como um processo ante entrópico. Se
um simples bater de asas poderia ocasionar um tufão do outro
lado do mundo, nós também podemos fazer escolhas pautadas
no amor. Aceitando as metamorfoses que nos ocorre de forma
amorosa, poderemos nos organizamos e evoluir. Diga-se graus
excessivos de desordem rompe nossa unidade, levando a pre-
juízos tanto no meio externo quanto no nosso próprio interior,
e isso que é incompatível com a vida. Somos capazes de criar
formas e estruturas novas, ou seja, qualidades auto organizado-
ras a partir da desordem.
O princípio biocêntrico coloca seu interesse em um uni-
verso compreendido como sistema vivo. O nosso estilo de vida
reflete os parâmetros da vida cósmica e vice-versa. Em outros
termos, os nossos comportamentos se organizam como expres-
são de vida (Toro, 2002). A Biodanza no seu movimento de vida
e veiculação da espécie oportuniza o renascer do caos obsceno
de nossa época. Por exemplo, as posições geratrizes de harmo-
nia, as mais variadas danças de comunicação em grupo são ca-
pazes de despertar uma sensibilidade adormecida, de maneira
que o caos possa fluir no movimento e nas constantes interações
em grupo, havendo ajustes rumo a uma eficácia maior. A Bio-
danza cria novas pautas internas para viver, novos espaços onde
as pessoas trilham o caminho do cuidado e da afetividade.

“Não haverá borboletas se a vida não passar por longas


e silenciosas metamorfoses”. (Rubens Alves)

4. AUTOPOIESE
Uma das características do ser vivo é a autopoeise. Esta
palavra significa: auto (por si próprio) e poesis (criação e pro-

115
dução). A teoria autopoiética tem como ideia básica um sistema
organizado e autossuficiente, como ocorre na organização ce-
lular e a membrana celular desempenha um papel fundamental
nessa organização,
As células que formam um organismo possuem uma
membrana celular. Não se tem conhecimento da existência de
nenhum tipo de vida sem algum tipo de membrana. Ela é uma
barreira fina que demarca o espaço da célula, e tem a capacidade
de selecionar o que irá entrar ou sair da célula, sendo capaz de se
preservar efetivamente contra as agressões do mundo (Margu-
lis & Sagan, 2002). Esses mecanismos asseguram a sobrevida,
permitindo que as células possam realizar funções vitais como
nutrição, liberação de energia e reprodução.
Aliás, o organismo realiza trocas constantes de seus
componentes químicos, sem perder sua identidade e memória,
sendo que a organização celular sempre é preservada. Isto em
essência, é a noção de autopoiese proposta por Humberto Matu-
rana e Francisco Varela (1987). Em outras palavras isto quer di-
zer que uma célula “constrói-se a si mesma”, ela é autogeradora,
devido à cadeia de reações ocorridas no interior de sua fronteira.
Notem que o foco desta abordagem está no padrão de
organização do sistema, pois todos os fenômenos vivos são au-
tocriados a partir de seus próprios sistemas internos. Sua ordem
é gerada a partir da interação de seus próprios elementos numa
rede fechada e circular necessária e suficiente para manter seu
próprio sistema. Essa circularidade é uma propriedade dos sis-
temas vivos auto poéticos e de certa forma serve como um cri-
tério para uma descrição abrangente da natureza da vida.
De acordo com a tese central de seus criadores, os seres
vivos não são agregados de partes, mas sim padrões de inter
-relacionamentos entre suas partes, que dinamicamente se re-
novam. Por este aspecto podemos ver que a vida é cíclica. Um

116
sistema autopoético prevê uma adaptação do ser vivo no seu
meio. Estamos sempre mudando e nos refazendo sistematica-
mente. A mudança requer uma sustentabilidade em relação ao
meio em que vivemos.
Essa teoria nos ajuda a perceber que as explicações da
evolução devem enfocar suas relações com o mundo exterior,
sendo que as abordagens devem encorajar um processo con-
tínuo de construção da identidade. Mudamos, mas mantemos
a mesma essência. No contexto da Biodanza, a capacidade de
experimentar-se a si mesmo surge na intensa sensação de estar
vivo e de se elevar ao mesmo tempo a uma espiral evolutiva.
Por esse caminho a identidade é uma expressão da totalidade. A
teoria da autopoiese demonstra que a preservação da identidade
é fundamental para todos os sistemas vivos.
Nossa história evolutiva associa-se ao sistema social hu-
mano. Opera em descrever a manutenção da identidade do ser
vivo, garantido pela autopoiese, mas também considera a susten-
tabilidade do meio ambiente a fim de manter a organização de
suas estruturas. Nosso bem-estar depende de como utilizamos os
recursos naturais disponíveis preservando o meio ambiente. As
ações pautadas na preservação do meio ambiente relacionam-se
diretamente com a sustentabilidade de vida das pessoas.
A nossa sustentabilidade como seres humanos, na con-
cepção biocêntrica, está em não agredir o meio que vivemos.
Está em regenerar os ecossistemas, promovendo e garantindo
a qualidade de vida das gerações atuais e futuras. O ponto de
vista biocêntrico nos conecta a uma ética ambiental, onde nossa
existência, como membros da comunidade “vida na terra”, tem
relações com outros seres vivos e o conjunto de ecossistemas
naturais de nosso planeta. Cabe a cada uma de nós desenvolver
experiências biocêntricas orientadas na qualidade de vida do
meio ambiente, contribuindo um mundo melhor.

117
Um sistema autopoético está constantemente se au-
toproduzindo e autorregulando a exemplo do material genético
que nunca é transmitido sozinho. Quando uma célula se repro-
duz toda rede biológica celular participa do processo, ou seja,
os genes só podem funcionar dentro do contexto da rede auto-
poética. Contudo não podemos desconsiderar que a autonomia
também faz parte das relações de um dado sistema. A proposta
da teoria autopoética, em Biodanza, parte da nossa capacidade
de autorregulação, em busca da homeostase. Esta permite ao
organismo manter-se em estado de equilíbrio dinâmico, dentro
dos limites de tolerância. Na Biodanza a vivência é uma expe-
riência que nos autorregula e nos organiza. A sabedoria é não
correr, nem se deter.
A função primária de um sistema auto poético é a auto
renovação, recursiva de sua própria rede de componentes au-
tônomos. Tecidos e órgãos substituem suas células em ciclos
contínuos. Há uma constante renovação celular dos trilhões de
células no nosso corpo. Cada célula tem vida própria e uma
expectativa de vida diferente, sendo que quando morrem são
substituídas por novas células. A regeneração celular se dá con-
forme a necessidade. Por exemplo, as células da nossa pele são
renováveis a cada 2 ou 3 semanas, as hemácias cerca de quatro
meses e os leucócitos, principais agentes no combate às infec-
ções, apenas alguns dias, as vezes pouco mais de uma semana.
Calcula-se que os adultos remodelem de 10 a 30% da sua massa
óssea a cada ano.
Pela perspectiva biológica o conceito de autopoiese se
engrena num sistema inteligente, onde as modificações de um
sistema aconteceriam à fim de manter sua própria organização.
Por exemplo, ao sofrer um corte na pele, ocorre uma sequência
de eventos moleculares e celulares que interagem, cicatrizando
a ferida. Isso ocorre porque cada célula tem flexibilidade de en-
frentar um imprevisto que possa ocorrer. Outro exemplo de in-
teligência celular é o processo inflamatório. Este envolve várias

118
células do sistema imune, eliminando as células e tecidos dani-
ficados, reparando-os e restaurando-os. Percebe-se, pois, que as
células trabalham de maneira integrada cooperando umas com
as outras, dividindo o trabalho entre si e juntas executam tarefas
responsáveis pela manutenção da vida.
Rolando Toro diz toda essa inteligência não é apenas
um tributo autopoético. Para ele o sistema de autopoiese é cog-
nitivo, no sentido que o cosmo é cognitivo. O universo é vivo e
inteligente e os seres vivos participam dessa inteligência global.
O fluxo organizador da vida cósmica gera estruturas de auto-
poiese que são capazes de se conservarem, se diferenciarem e
de se reproduzirem. A vida não tem sentido fora de si mesma.
Somos uma inteligência coletiva, onde tudo está em ressonância
profunda com o macro e microcosmo.
Sob esta ótica, e apropriando-se dos conceitos apresen-
tados, podemos dizer a autopoiese é algo acontece conosco e
dentro de nós, fazendo parte de toda rede como unidade. Em-
bora sistemas autônomos fazem referência somente a si mesmo,
as relações estabelecidas implicam em atuar em um ambiente
pulsante, se conectando com o outro e com o mundo de forma
criativa, flexível e versátil. Hoje se sabe que a autopoiese, e a
auto conservação constitui-se a base de toda célula viva.

O princípio biocêntrico propõe a potencialização da


vida e da expressão de seus poderes evolutivos. Biodan-
za é, deste ponto de vista, uma poética do vivente, funda-
da nas leis universais que conservam e permitem a evo-
lução da vida. Todas as ações de Biodanza se orientam
em ressonância com o fenômeno profundo e comovedor
da vida. (Rolando Toro)

119
5.ESTRUTUTAS DISSIPATIVAS
Antes das células, os primeiros sistemas semelhantes a
elas foram às estruturas dissipativas. Na atmosfera primitiva do
nosso planeta existiam metano, amônia, hidrogênio e vapor de
água. Estes elementos sob altas temperaturas, em presença de
centelhas elétricas e raios ultravioletas se combinaram originando
moléculas como aminoácidos, polissacarídeos, proteínas, que fica-
vam flutuando na atmosfera. Eram estruturas chamadas dissipati-
vas, que se organizavam e mudavam de forma espontaneamente.
Eram sistemas “abertos”, porque precisavam se alimen-
tar de um contínuo fluxo da matéria e de energias extraídas do
seu meio ambiente para permanecerem vivos. Essas estruturas
não tinham capacidade de reproduzirem a si próprias, mas quan-
do o fluxo de energia aumentava, o sistema chegava a um ponto
de instabilidade, chamado ponto de bifurcação, no qual possi-
bilitava estados totalmente novos, surgindo novas estruturas e
novas formas de ordem (Capra, 1997).
No geral as bifurcações são sinais de instabilidade e
também de vitalidade que irão imergir um novo evento. Por
estarem afastados do equilíbrio, entende-se que são sistemas
fluentes e dinâmicos. Isto significa que estão em constantes in-
terações com o meio ambiente. Ou seja, mudanças estruturais
do sistema causam mudanças estruturais no ambiente e vice-
versa. Nesse sentido, embora autopoiese seja útil para caracte-
rizar a vida, ela não explica o comportamento dos seres vivos
quanto seres sociais e as modificações aleatórias do meio, ca-
racterísticas essenciais da vida.
Assim, podemos dizer que os sistemas vivos são fecha-
dos no que diz respeito a sua organização, mas aberto do ponto
de vista material e energético. Isso significa que precisamos
definir a célula como um sistema aberto, que é uma das ca-
racterísticas do conceito de estruturas dissipativas (Maturana

120
& Varela, 1985). No sistema aberto há uma dependência do
ambiente para que as estruturas mantenham suas autonomias.
Um sistema vivo é uma rede multiplamente interco-
nectada cujos componentes estão mudando constantemente e
sendo transformados e repostos por outros componentes. Por
exemplo, ao analisarmos os componentes das células de diver-
sos seres vivos, vemos que existem elementos que estarão sem-
pre presentes. Absorvemos esses elementos químicos a partir
de alimentos e água ingerida. Toda a estrutura dissipativa do
organismo participa do processo. Com efeito, a estrutura muda
constantemente em congruência com as modificações do meio.
Esse surgimento espontâneo é um dos conceitos mais
importantes na compreensão da vida. A presença dos primeiros
organismos se deu em um ambiente inorgânico e uma biosfera
autorreguladora. As estruturas dissipativas são sistemas comu-
mente encontrados na natureza. Organismos vivos extraem es-
truturas ordenadas do meio ambiente, usam-nas como recurso
no seu metabolismo e dissipam estruturas em forma de resíduo,
criando uma desordem no ambiente. O ambiente a partir de um
ponto de instabilidade se reorganiza, de modo que os resíduos
são continuamente reciclados (Capra, 1996). Assim, uma es-
trutura dissipativa pode ser entendida por intermédio de pro-
cessos metabólicos. A regulação metabólica permite, pois, aos
organismos dar resposta a estímulos do exterior, permitindo a
interação com o seu ambiente. Interrompendo esse fluxo o sis-
tema tende a se desintegrar. Somente as células e os organismos
compostos de células fazem esse metabolismo perene.
Esse “padrão de organização” abre espaço para enten-
dermos os seres vivos. Nossa história mostra que somos seres
criativos, dinâmicos, onde a vida segue rumo ao novo. Dentro
deste contexto, o princípio biocêntrico se coloca na possibili-
dade de perceber a multiciplidade que há no mundo, não só no

121
limite da nossa sobrevivência, mas numa vida completa, que
nos englobe como ser único, coletivo e como ser cósmico. A
Biodanza nos impulsiona a tomar decisões que sustentem a
vida. A conexão com a vida nos remete ousar, ir de encontro
ao desconhecido. Nessa trajetória, por meio de um processo
dinâmico que envolve a presença do outro, nos apoderamos de
ferramentas que permitem o desenvolvimento de potenciais in-
dividuais e coletivos, reconhecendo o mundo e criando cami-
nhos que nos propiciam expressões de vida.
Para Toro (2002) as relações constituem a essência do
mundo vivo. Ele diz que na comovedora percepção de si mes-
mo, no prazer de sentir-se vivo, na beleza de ser único, estará
sempre presente a figura do “outro”. Impulsos afetivos impe-
dem a manifestação de comportamentos violentos em contextos
de interação social. Relações do tipo afetivas regulam a vida
humana, proporcionando um sistema equilibrado e feliz, rumo a
evolução. O afeto organiza nosso modo de agir com o ambiente
e traz benefício mútuo entre o eu e o nós. O afeto nos leva a ter
experiências de beleza e amor que estão destinadas a eternidade.
Prigogine (1967) acredita que a mudança conceitual
subentendida pela teoria das estruturas dissipativas é não ape-
nas fundamental para os cientistas entenderem a natureza da
vida, como também nos ajudará a nos integrarmos mais ple-
namente na natureza. Para descrever a natureza com precisão,
deve-se tentar falar a linguagem da natureza, a qual, é uma
linguagem de relações.
Podemos então dizer que essa teoria permite estabele-
cer paralelos com o comportamento humano. Ainda pensamos
na natureza como uma realidade exterior, sem nos sentirmos
parte da mesma ou mesmo como parte de nós. Contudo, o mun-
do que vemos e vivemos fora de nós é o mundo que vemos e

122
guardamos dentro de nós. Somos capazes de mudar o mundo
em que vivemos. A aliança com o outro nos conduz a práticas
sociais e a evolução.

“É necessário que o mundo, depois de ti, seja melhor,


porque tu viveste nele” Papa João XXIII,

6. A EVOLUÇÃO DE ORGANISMOS
Sistemas abertos desenvolvem-se e caminham em di-
reção as evoluções. Toro diz que as zonas dissipativas do caos
foram os caminhos para criar os primeiros movimentos de vida.
Mais adiante, novas ordens foram geradas, surgindo estruturas
mais complexas e gotas membranosas, as quais conservavam a
energia de forma mais efetiva diante das perturbações externas.
Surgiram assim as primeiras células que são consideradas os
seres vivos mais primitivos. Com base em estudos essas células
surgiram na terra há cerca de 3.5 bilhões de anos. Estes eram
microscópicos, envoltos por uma membrana e em seu interior
ocorriam diversas reações químicas ordenadas e controladas
por informações genéticas.
Essas habilidades foram desenvolvidas com muito tra-
balho e muito esforço. As características de uma geração a outra
se deu possivelmente pela molécula de RNA. Para defender essa
ideia cientista associaram que o universo é cheio de simples açu-
cares e que estas moléculas tiveram um papel importantíssimo
na formação de RNA (Purves et al, 2002). Conforme a evolução
avançou o RNA deixou de ser autorreplicante e passou a ter ou-
tras funções importantes no transporte da informação genética,
mas o “carro chefe” dos organismos vivos passou a ser mesmo a
molécula de DNA. Isso acorreu provavelmente como um meio
de proteção à vida, uma vez que a molécula de DNA é mais lon-

123
ga e mais estável do que a de RNA, sendo pois menos propensa
a acidente e, portanto, são mais capazes de se auto conservarem.
As primeiras células, assim organizadas, fazem parte
dos organismos procariontes (sem núcleo e sem compartimen-
tos). Alguns micro-organismos, como por exemplo, as bactérias,
são organismos unicelulares, onde cada célula é um todo. Atual-
mente essas células podem ser encontradas apenas em bactérias
e algas azuis, também conhecidas como cianobactérias.
Vários dados apoiam a suposição que no processo de
evolução esses organismos isolados penetraram em outros pro-
cariontes e, uma vez em seu interior desenvolveram células mais
complexas com inúmeros compartimentos especializados e com
membrana nuclear. Nessa fusão, hóspedes e prisioneiros eram a
mesma coisa, sendo que um passou a ser indispensável ao outro.
Essa hipótese, outrora revolucionária, é agora amplamente acei-
ta, progredindo na descoberta das etapas envolvidas no processo
evolutivo. Organismos tais como protozoários fungos, plantas e
animais possuem células do tipo eucarionte (com núcleo).
Várias linhas de evidências sustentam que as mitocôn-
drias são derivadas desse evento endossimbiótico. As mitocôn-
drias eram bactérias menores que penetraram no interior de
bactéria maiores e se hibernaram. Com o tempo o “invasor”
passou a usar o oxigênio da célula hospedeira. A medida que
ia ficando mais à vontade o predador foi perdendo parte do seu
DNA e RNA e passou a produzir de energia para célula, crian-
do assim uma interdependência. Houve, pois, uma fusão onde
ambos obtiveram vitórias de cooperação. Hoje em dia sabe-se
que as mitocôndrias são totalmente dependentes do total da cé-
lula. As células usam a energia gerada nas mitocôndrias e essas
usam os ácidos orgânicos que representa o material residual do
invasor. Sem a mitocôndria a célula não poderia usar o oxigê-
nio e consequentemente morreria (Margulis & Sagan, 2002).

124
Relações harmônicas de cooperação foram as que le-
varam à sobrevivência dos seres vivos. Essas relações podem
ser bem observadas ao consideramos a megacivilização de mi-
crorganismos que coexistem dentro e fora de nós em harmonia
e cooperação. Nosso corpo é na verdade uma coletividade de
células, bactérias e fungos, vírus, que juntos, em cooperação
controlam e sustentam a vida em nós. Quando essa sintonia
é perturbada inicia-se a doença. Percebe-se, pois, que nossa
saúde é dependente da restauração adequada de comunidades
microbianas que existem dentro de nós.
Essa nova visão tem forçado biólogos e demais cientis-
tas a reconhecer a importância vital da cooperação no processo
evolutivo. Estamos começando a reconhecer que, a cooperação
contínua e a dependência mútua entre todas as formas de vida,
têm aspectos centrais no processo de evolução. Com base nessas
alianças que ocorreram no microcosmo podemos dizer que os se-
res humanos contem a autêntica história da vida na Terra e que a
evolução do microcosmo definiu os contornos da vida moderna.
O princípio biocêntrico considera que o fenômeno da
vida é uma propriedade do sistema como um todo. A visão unifi-
cadora se dá na diversidade onde cada um tem sua própria iden-
tidade. A união se dá na harmonia, na cooperação, como se fosse
uma orquestra, onde cada um aceita as características do outro, e
se complementam com o seu potencial, na totalidade. A união se
sustenta na manifestação e sustentabilidade da vida, no sagrado
que une e abrange todas as formas de vida.
Os cientistas dizem que se a vida fosse competição, não
teríamos sobrevivido. Há muito mais cooperação do que com-
petição entre os seres vivos. A competição significa a negação
do outro. A vida é muito menos uma luta competitiva pela so-
brevivência do que um triunfo da cooperação e da criatividade.
Na verdade, desde a criação das primeiras células nucleadas,

125
a evolução procedeu por meio de arranjos de cooperação e de
coevolução cada vez mais intrincados (Tortoga et al., 2005).
A evolução mostra que os organismos existentes derivam
uns dos outros, de forma progressiva e em conformidade aos cri-
térios de adaptação. A progressividade está relacionada à sucessão
ininterrupta e constante dos diversos estágios de um processo “e
existe em todo um processo evolutivo. A vida não pula etapas, ela
se desenvolve continuamente e progressivamente. Então, podemos
entender que a progressividade se refere a uma qualidade que está
associada à própria natureza, à própria vida, ao próprio universo”.
Toro, reconhecendo a natureza progressiva de todo pro-
cesso de desenvolvimento humano, coloca a progressividade
como um dos princípios básicos que orienta o desenvolvimento
metodológico do sistema Biodanza. Progredir é realizar-se gra-
dualmente, evitando o confronto com o que não se tolera con-
viver. É preciso mastigar para depois engolir e digerir. Trata-se,
pois, de uma atitude sensível e inteligente perante a vida, não só
consigo mesmo, mas também com o outro e com o Universo.
A história nos mostra que a fusão de seres se deu por um
processo de simbiose. Contudo a cultura ocidental é a cultura da
não vida, pois reforça a competividade como mecanismo de poder.
A competividade é a negação e dominação do outro A desconexão
dos seres humanos dessa matriz cósmica cooperativa leva a disso-
ciações e nos conduz à profunda crise cultural em que vivemos.
A Biodanza é um convite ao processo simbiótico. Os
exercícios (as danças), a estrutura grupal e o processo viven-
cial, são fundamentais para que o sistema Biodanza funcio-
ne. Ela oferece condições necessárias para uma legítima troca
amorosa com outro. Nessa troca há permissão para que pos-
samos ser diferentes, de forma a expressar com autenticidade
nossos pensamentos, nossas emoções ainda que diferenciem
dos demais. Os exercícios são realizados, sem competição e

126
nem comparação com o movimento do outro, respeitando cada
um o seu limite. Isto requer que os mesmos sejam realizados
de forma progressiva e com autorregulação. A ideia é manter a
vitalidade sem fadiga demasiada, de forma que possamos haver
uma integração dos sistemas respiratório, circulatório e muscu-
lar. Dependendo do exercício e da intensidade do mesmo, pro-
põem-se intervalos descanso de forma que haja um equilíbrio
entre as catecolaminas simpáticas (adrenalina e noradrenalina)
e o neurotransmissor parassimpático acetilcolina.
Toro diz que o grupo funciona como um biogerador de
vida. O princípio biocêntrico define um estilo de viver, de sentir,
de pensar e agir pautado na conservação de vida no planeta. Osó-
rio (2003) diz as civilizações mais primitivas, sobreviveram devi-
do às relações grupais, a fim de garantir sua unidade e sobrevivên-
cia. Ressalta que o cooperativismo ganha maiores perspectivas de
desenvolvimento laboral e maiores ganhos para os seus membros.
Então vejamos, em um grupo de Biodanza há geral-
mente há diversificação e isso nos coloca em uma situação que
permeia as diferenças e estabelece que o relacionamento se deve
dar em “feedback”, evitando conflitos e permitindo melhor de-
senvolvimento progressivo do grupo. Dançando em grupo, os
rituais de aproximação passam pela percepção do nosso limite
e do limite do outro. Este é o princípio de reciprocidade. Existe
um “tecer” que se processa no amor e por meio de um entendi-
mento recíproco. Essas atitudes têm um êxito mais elevado na
comunicação afetiva, resultando na maior liberdade de expres-
são da nossa própria identidade. Respeitando esses mecanismos
naturais, podemos fluir e garantir um processo suave e progres-
sivo de transformação evolutiva (Jaubert, 2015).
Resumindo, podemos dizer que a existência de qual-
quer fenômeno vivo se faz pelo movimento, onde os visíveis e
invisíveis caminham juntos. Nesse caminhar, o homem é fruto

127
da combinação de organismos no processo de evolução do uni-
verso. O homem é o único ser que consegue perceber o micro-
cosmo que tem dentro de si mesmo.
Somos regidos pelas leis naturais que nos sustentam e
permite a preservação da espécie. O princípio biocêntrico pau-
ta na sabedoria cósmica que gera, mantem e transforma os se-
res vivos. De fato, nós, organismos Macrocosmo, vivemos em
constante equilíbrio com o Microcosmo. Nos tornamos o que
somos hoje por meio da união de bactérias, onde o processo de
simbiose prossegue de maneira interrupta. Somos lados de uma
mesma unidade, a unidade da consciência cósmica.

Penso que a vida não surgiu da matéria, mas que a ma-


téria se ordena em relação às possíveis estruturas da
vida. A causa do universo é a vida.

(Rolando Toro)

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Somos afetados por um processo evolucionário, que
avança com base em estágios específicos tornando-nos seres
humanos. Conhecer a lógica de progressão desses estágios nos
ensina a entender a ter novas visões do que é ser humano. Nos-
sa jornada evolutiva como seres vivos e sociais nos traz carac-
terísticas extraordinárias na história do conhecimento humano,
em suas inúmeras possibilidades de relações com a nossa so-
ciedade. Somos todos seres sociais. Essa percepção nas expe-
riências da vida é o grande desafio que nos desloca, para novos
paradigmas de nossa existência, fornecendo elementos para a
compreensão do ser humano na sua relação com o ambiente,
cultura e sociedade.

128
O desejo legítimo de viver das células bacterianas nos
mostra que podemos participar do processo da nossa própria
evolução e favorecer a evolução das futuras gerações. Somos
agentes de transformação e parte integrante de um sistema ge-
rador de vida e responsáveis pelo que pensamos e pelo que
fazemos. Somos capazes de criar formas e estruturas novas, ou
seja, qualidades auto organizadoras a partir da desordem. Cabe
a cada uma de nós resgatar nossas potencialidades e aprender
a viver de maneira que possamos fazer a algo de melhor para
nossa evolução.
Essa nossa jornada segue entre erros e acertos, onde
todos convivem em interdependência uns com os outros. Os
enganos nos transmitem vastíssimos conhecimentos. Errar
faz parte do processo evolutivo. A experiência está em fazer
algo de melhor para nossa própria evolução. O homem, este
ser humano desconhecido, tem que conhecer a si para também
conhecer o Universo. Se estivermos vinculados à vida, como
condição suprema, poderemos organizar uma convivência e
coexistência com a criação divina, em todos âmbitos da ati-
vidade humana. Se pensarmos, sentirmos e agirmos em co-
munhão com o todo, poderemos ajustar a nossa própria vida e
poderemos ter tudo que o todo tem nessa unificação. O todo é
puro amor. É a essência do Universo.
O poder de criação dos divinos e tudo que se encerra
nos planos menores não terminam em si mesmo senão no todo.
Olhando para vida e tantas identidades viventes, podemos
considerar que a humanidade é mesmo uma expressão des-
sa conexão, adaptabilidade, progressividade e reciprocidade.
Podemos considerar esses valores vitais como expressão do
vivente. Percebendo a atitude de nossos ancestrais, cultivando
a afetividade e a solidariedade dentro de uma visão orgânica
unitária poderemos ter mais alegria, mais harmonia conosco,
com o outro e com o mundo.

129
Assim, meditando sobre o Macro e Microcosmo como
tudo começou, poderemos expressar a nossa gratidão a muitos que
caminharam por esta trilha antes de nós, cujos rastros nós segui-
mos Somos pois parte do cosmos, onde tudo tem a ver com tudo.

Somos pois parte do cosmos, onde tudo tem a ver com tudo.
( Leonardo Boff)

8. REFERÊNCIAS
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co-químicos. Cienc. Cult. v. 63, n.1, p.23-25, 2011.

131
METODOLOGIA DE APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS ECOLÓ-
GICOS EM SESSÕES DE BIODANZA COMO ESPAÇO DE
REFLEXÃO POLÍTICA EM DEFESA DO MEIO AMBIENTE
Olga Santana Sales*

RESUMO: Este artigo tem como objetivo apresentar a metodologia utilizada


para a aplicação de princípios ecológicos em sessões de Biodanza realiza-
das no estágio de Formação para facilitador de Biodanza, com deficientes
visuais na Biblioteca Braille – Taguatinga/DF. Nesta pesquisa, pretendeu-
se promover o desenvolvimento de sessões que propiciassem a junção dos
princípios: ecológicos, do encontro humano e da Carta da Terra, construindo,
assim, um espaço de reflexão sobre as questões ambientais, que estimulas-
sem o despertar da consciência para o cuidado com todas as formas de vida.
Trata-se de uma abordagem qualitativa e de caráter pioneiro, alicerçada em
autores como Capra (1996, 2006), Santos (2009), Santos e Acácio (2017),
Gadotti (2000), Boff (2000, 2001), Leloup (2015), Morin (2007), Weil (2017),
entre outros, que sedimentaram a coerência da proposição do estudo, com o
pensamento do criador do Sistema Biodanza, Rolando Toro.

Palavras-chave: Biodanza, Meio ambiente, Princípios do encontro, Princí-


pios ecológicos, Carta da Terra.

Considerações iniciais
Constata-se hoje, mais do que em tempos passados, em
razão da devastação ecológica que todo o planeta atravessa, a
necessidade de uma reculturalização para um reaprendizado
afetivo das relações inter-humanas dos homens com a natureza.
Capra denominou esse processo, de alfabetização eco-
lógica. Em 1996, este cientista formulou os Princípios Ecológi-
* Mestre em Planejamento e Gestão Ambiental pela Universidade Católica de Brasília.
cos ou Princípios da Alfabetização Ecológica, baseados na ob-
servação da sabedoria da natureza e na análise dos ecossistemas,
objetivando a construção de comunidades humanas autossus-
tentáveis e cooperativas, sob uma perspectiva que se estende às
futuras gerações.
Um destes princípios, a Interdependência, por exemplo,
afirma que a interligação de todos os seres vivos estabelece uma
extensa e multifacetada rede de relações, denominada, por Ca-
pra , de Teia da Vida (CAPRA, 1996).
Rolando Toro, criador do Sistema Biodanza, inspirou-se
em diversas fontes de conhecimento e, dentre estas, no pensa-
mento de Capra, que contribuiu para a elaboração do Sistema
Biodanza, especialmente do pensar biocêntrico.
Toro (1991) desenvolveu, em sua teoria, o Princípio
Biocêntrico, embasado no respeito e no cuidado com todas as
formas de vida. Esta ótica da percepção do real considera a vida
como centro e ressalta a importância de cada cidadão na prote-
ção e na evolução da vida. Nesse sentido, todos são responsá-
veis e coartífices da vida.
Além disso, a teoria da Biodanza e a sua metodologia
têm como fio condutor o afeto e o cuidado, que se manifesta na
escolha e planejamento das atividades vivenciais e das relações
do facilitador com seus alunos e destes, entre si.
Rolando Toro, em exposições verbais, ressaltou que fa-
cilitadores e alunos de Biodanza são multiplicadores de vida e
que, os facilitadores são, singularmente, missionários da vida.
Este artigo tem por objetivo primeiro apresentar metodo-
logia utilizada para aplicação dos princípios ecológicos em ses-
sões de Biodanza, por meio do desenvolvimento de sessões que
promovessem a junção dos respectivos princípios ecológicos, do
encontro e da Carta da Terra, possibilitando a construção de um

134
espaço de reflexão sobre as questões ambientais e um despertar da
consciência para o cuidado com todas as formas de vida.
A importância do estudo, pioneiro, pode ser apreciada
em vários pontos: primeiro, ele trata de um tema que se consti-
tui como uma das maiores preocupações da atualidade, podendo
contribuir para ampliar a consciência ecológica de seus partici-
pantes. Em segundo lugar, pode ser oferecido a diferentes grupos,
como de crianças, jovens e idosos, grupos especiais, entre outros,
e ser utilizado em trabalhos temáticos de Biodanza, realizados em
sessões consecutivas ou em trabalhos de final de semana.
Outro aspecto interessante, o terceiro, é o embasamen-
to teórico alicerçado em autores de reconhecido valor no meio
científico e pedagógico, como, Gadotti (2000), Boff (2000,
2001), Leloup (2015), Morin (2007), Weil (2017) e Capra (1996,
2006).
Para tanto, realizou-se uma revisão de literatura, par-
tindo dos conceitos básicos da Biodanza e dos seus princípios
cunhados pelo criador do Sistema Biodanza, Rolando Toro,
cujas ideias foram associadas às de outros pensadores das ques-
tões ambientais a fim de conferir embasamento para a utilização
dos princípios ecológicos em sessões de Biodanza.

1. Aplicação dos Princípios Ecológicos em sessões de


Biodanza, como um espaço de reflexão política em defesa do
meio ambiente
A Biodanza, segundo seu criador, Rolando Toro Arane-
da (1924-2010), é um sistema de integração afetiva, que propõe
o restabelecimento da unidade perdida entre a percepção, a mo-
tricidade, a afetividade e as funções viscerais, assim como obje-
tiva a renovação orgânica, que se traduz pelo restabelecimento
da harmonia homeostática, induzida, principalmente, por meio

135
de estados especiais de transe. Outro aspecto, incluído por Toro
(2005), inter-relacionado com os demais, é a reaprendizagem
das funções originárias de vida, que retroalimenta o comporta-
mento e o estilo de vida.
O criador da Biodanza ressalta um caráter essencial à
prática desta metodologia: o trabalho em grupo, Segundo ele,
“a Biodanza não é praticada individualmente; ela resulta eficaz
dentro de um grupo afetivamente integrado, que oferece possi-
bilidades diversificadas de comunicação e proporciona um con-
tinente protetor” (TORO, 2005, p.33).
Pode-se conceber que a prática grupal ofertada pela Bio-
danza é, também, um espaço político de reflexão, a partir de
experiências vivenciais integradoras que são levadas ao mun-
do e que influenciam o coletivo. Toro (1991, p. 10) afirma que
“uma técnica de grupo é também de massa” pela possibilidade
de divulgação e disseminação de ideias e de práticas afetivas e
ecológicas.
Este autor (1991, p. 16) reiterava que a mudança por
meio “da Biodanza não é uma mera reformulação de valores,
mas uma verdadeira transculturação [...]” e ainda, ao trazer o
pensar biocêntrico, declarou que:
O Princípio Biocêntrico tem a chave que abre todas as
portas. [...] infiltra todos os âmbitos da atividade huma-
na. Se a pessoa está conectada com a vida, está auto-
maticamente instalada em uma posição política: aquela
de quem defende a vida e luta contra a exploração e a
injustiça. Se indivíduo está vinculado de centro a cen-
tro com o Princípio da Vida, experimenta a vinculação
cosmobiológica, a antiga familiaridade com as pedras,
com os pássaros, com o sol com o mar. Se age a partir do
Princípio Biocêntrico, pertence à Resistência Ecológi-
ca: quer os rios claros, transparente (não poluído), de-

136
fende o respeito pela fauna e pela flora. Agindo a partir
do Princípio Biocêntrico, este indivíduo é um pedagogo,
um amante, um artista, um poeta. .(TORO, 1991, p.21).
Toda a fala de Toro é um discurso que busca espaços
para reflexão política e ação social, o que não significa assumir
partidarismos políticos ou ideológicos.
Santos (2009), ao abordar as diversas áreas de aplica-
bilidade da Biodanza, destaca a “área ambiental”, em que des-
creve como sendo a realização de:
Projetos de ecologia profunda, onde a pessoa se percebe como
parte do ecossistema, desenvolvendo, de forma consciente, ações para con-
servação da vida e a reeducação para um novo estilo de vida que se preocu-
pa com a preservação do planeta (SANTOS, 2009, p.27).

Gonzalez (2015), facilitadora e didata em Biodanza,


nos alerta sobre esse caminho que a humanidade tem tomado,
de descartar tudo que nos aproxima de nossa humanidade, até
mesmo das relações afetivas. Segundo a autora, nos distancia-
mos de forma muito perigosa do significado de “Ser-no-Mun-
do”, diante de um ambiente artificial, planejado, murado, que
nos torna apenas mais uma peça de uma engrenagem.
Esta é uma das razões que evidencia a importância de
se vivenciar os princípios ecológicos em sessões de Biodanza e
desenvolver os saberes abordados por Morin (2007): ensinar a
condição humana, ensinar a identidade terrena, ensinar a com-
preensão, que poderíamos nominar, respectivamente, como, fa-
cilitar a condição humana, a identidade terrena e a compreensão.
Dando sequência ao texto, serão apresentados, em se-
guida, os Princípios do Encontro Humano, Princípios Ecoló-
gicos ou Princípios da Alfabetização Ecológica, bem como A
Carta da Terra.

137
Os Princípios do Encontro Humano representam uma
proposta de Toro, relatada por Santos e Acácio (2017, p. 103-
121), que possibilita ao ser humano o fortalecimento dos três
níveis de vínculos relacionais, quais sejam: consigo, com o
outro e como o coletivo. Esses princípios enriquecem a Teoria
da Biodanza, por meio de seus 12 princípios: “compressão-
descompressão, diálogo psicotônico, diversificação, eurritmia,
expressividade, fluidez, incondicionalidade, iniciativa recípro-
ca, integração, reciprocidade e sincronicidade”.
Por meio da prática desses princípios, o ser humano se
dispõe ao encontro do outro (SANTOS; ACÁCIO, 2017). A
aplicação destes, em sessões de Biodanza, oportuniza ao par-
ticipante se colocar em movimento perante a vida, por ampliar
os níveis de consciência, concernente às relações humanas e à
grandeza que esses encontros promovem. Nenhum princípio se
opõe ao outro e todos estão voltados à consciência universal.
Os Princípios Ecológicos ou Princípios da Alfabetiza-
ção Ecológica foram formulados por Capra (1996), baseados
na sabedoria da natureza e no entendimento dos ecossiste-
mas como redes de autocriação que formam a teia da vida.
O autor identifica esses princípios como sendo básicos da
ecologia e se pode utilizá-los como diretrizes para construir
comunidades humanas sustentáveis. Os princípios formula-
dos foram os seguintes: Interdependência, Sustentabilidade,
Ciclos ecológicos, Fluxo de energia, Associação, Flexibili-
dade, Diversidade e Coevolução. As ideias lançadas trazem
uma proposta de criação de uma conexão entre coletividades
ecológicas e humanas.
Mantendo, ainda, o pensamento de que os princípios
ecológicos podem ensinar o caminho da sustentabilidade, em
1987, a Comissão Brundtland, das Nações Unidas para o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento, recomendou a redação de

138
uma nova carta sobre o desenvolvimento sustentável. Porém,
somente na Cúpula da Terra (Eco-92), no Rio de Janeiro, é que
foi redigida a primeira versão dessa Carta e o Brasil foi consi-
derado “o berço da Carta da Terra” (GADOTTI, 2010, p.13).
Este documento é fundamentado “na afirmação de princípios
éticos e valores fundamentais que norteiam pessoas, nações,
Estados, raças e culturas no que se refere à sustentabilidade”.
(GADOTTI, 2010, p.19).
A Carta da Terra aborda, dentre outros assuntos, os di-
reitos humanos, a democracia, a economia, a erradicação da
pobreza, por meio de quatro macros princípios: “I- Respeitar
e cuidar da comunidade de vida; II- Integridade ecológica; III-
Justiça social e econômica; IV- Democracia, não violência e
paz”, que se constroem por outros subprincípios (GADOTTI,
2010, p.61-73).
A Carta da Terra é um chamado ao bem viver com toda a
comunidade de vida. Muitos procuram esse bem viver que traga
a paz e a serenidade em vários campos da vida, e, quando não as
encontram, acabam enveredando no caminho dos estresses e das
doenças. Weil (2017) nos instiga a refletir: em qual lugar con-
seguiríamos descobrir paz e serenidade? Esse caminho começa
pela compreensão do que denomina de “as três ecologias ou as
três consciências”. Para Weil, “a roda da arte de viver em paz
nos mostra o quanto são interdependentes os diferentes tipos de
consciência, de ecologia e de vivência da paz” (p. 33).
Comenta este mesmo autor que a Declaração da UNES-
CO, em seu preâmbulo, afirma que “uma vez que as guerras
iniciam na mente dos homens, é na mente dos homens que de-
vem ser construídas as defesas da paz” (WEIL,2007, p 34). Por
conseguinte, depreendemos que a paz sempre esteve presente,
porém, não aprendemos a encontrá-la; para tanto, é necessária
uma tomada de consciência, uma mudança de atitude.

139
Weil (2017) ressalta o suicídio coletivo que está ocorrendo
ao extinguirmos, em dimensões progressivas, a vida do Planeta Ter-
ra, pois viver é a arte de existir e dialogar em paz com a natureza.
Desse modo, para se retomar o caminho perdido pela
Humanidade, no sentido de desfazer a separatividade entre o
Homem-Natureza, é preciso dançar um novo encontro, resig-
nificando a posição de cada SER neste Universo e a sua impor-
tância na relação com o outro.
Nesse caminho, este estudo apresenta a convergência
que há entre os Princípios Ecológicos e os Princípios da Carta
da Terra com a proposta do Princípio Biocêntrico, que, segun-
do seu criador, Rolando Toro, (1991, p.6), “se nutre da sabedo-
ria biocósmica. Nosso mestre é a própria natureza”.

2. Eco Metodológico
A metodologia, de natureza qualitativa, buscou subsí-
dios teóricos em pensadores que trouxessem uma abordagem
ambiental de cuidado com a vida, em suas diferentes formas e
que se aproximassem do pensamento de Toro, como já referido.
Após identificar uma correlação significativa do pen-
samento de Weil, Boff e Capra com a aplicabilidade vivencial
da Teoria da Biodanza, formatou-se o projeto de Biodanza de-
nominado Enxergando a vida com outros olhos, submetido à
Biblioteca Braille e a Escola de Biodanza Rolando Toro de
Brasília, que tinha como orientação a prática de exercícios que
possibilitasse a vivência dos Princípios da Carta da Terra, dos
Princípios Ecológicos de Capra (1996), do Encontro Humano,
de Santos e Acácio, (2017). A execução do Projeto teve início
com o desenvolvimento de 12 sessões de Biodanza.
A pesquisa de campo foi realizada no período de
01/09/2018 a 30/11/2018, aos sábados, na Biblioteca Braille

140
“Dorina Nowill”, situada na CNB, Área Especial 01, Setor
Central, Taguatinga, Distrito Federal.
Participaram da pesquisa 16 pessoas, entre homens e
mulheres, sendo oito deficientes visuais, com deficiência total
ou subtotal entre 100 e 85%, além de oito videntes, termo uti-
lizado na Biblioteca para designar as pessoas que enxergam,
sendo duas monitoras e seis participantes videntes. Os partici-
pantes videntes estiveram presentes em 5 das 12 sessões.
Durante o planejamento didático, foram relacionadas
todas as categorias de princípios em um quadro que facilitasse
a busca do princípio mais apropriado para cada sessão. Em to-
das as sessões, vivenciaram-se as três categorias de princípios
e da mesma forma, os “três níveis de vínculos”, referenciados
por Santos (2009), que se inter-relacionam com “as três ecolo-
gias ou consciências”, de Weil (2017), Quadro 1.

Quadro 1 – Inter-relação do pensamento de Weil (2017) e Santos (2009)

As três ecologias ou as três consciên- Os três vínculos relacionais


cias (WEIL, 2017) (SANTOS, 2019)
Existem três direções nas quais podemos O impulso de vinculação envolve
enxergar a paz. Cada uma delas necessita a afetividade, o gesto, a postura e
de uma forma de consciência e de um a sensibilidade cenestésica. [...] O
tipo de ecologia. Essas consciências e encontro é uma forma de despertar
ecologias são profundamente interligadas a vivência de solidariedade, presen-
e inseparáveis (p.32-33). ça, e de criar condições para que o
‘estranho’ se transforme em irmão
(p.335-336).

141
Ecologia Individual Vínculo Consigo mesmo
A paz consigo mesmo: dentro de cada um Compromisso consigo mesmo, de
de nós. Há momentos em que estamos em total fusão da consciência com a
paz e há outros em que estamos tensos e própria palpitação da vida.
agitados. Esse é um ato de cumplicidade com
o mais íntimo que há em si mesmo,
Há, por conseguinte, necessidade da cons-
de autoaceitação incondicional.
ciência individual para definir e localizar
Progressivamente, a ‘consciência’
a paz dentro de nós mesmos para, em
desse ato começa a desaparecer;
seguida, dizer como braça -la. É o que se
então já não há desdobramento,
chama de ecologia interior ou ecologia do
mas a pura “vivência” de si mesmo
ser, que se apoia na consciência individual.
(p. 335).
A ecologia individual é o estado de harmo-
nia do ser pessoal (p.32).
Ecologia Social Vínculo Com o outro
A paz com os outros: Essa paz também é Todo seu ser flui através dos braços
instável nas nossas relações com marido, lançados para adiante, como se
mulher, amigos, colegas, pais e filhos etc. uma força que surge do peito, mas
[...] Harmonia com a sociedade e dentro que está alimentada desde os pés,
dela. A ecologia social pressupõe, exige o arrastasse desesperadamente
e depende da consciência social de cada para a outra pessoa. É o desejo
cidadão e de uma consciência social cole- de braça-la, de estreitá-la entre os
tiva maior do que a soma das consciências braços, de fundir-se com ela até o
individuais (p.33). ponto em que a própria Identidade
chega a desaparecer (p.336).
Ecologia Ambiental Vínculo Com o grupo
É a paz com o meio ambiente, com a natu- É, na realidade, a entrega ao centro
reza em torno de nós. A ecologia ambiental do infinito, sentindo que o lugar em
é um estado de equilíbrio dos ecossiste- que se está, seja qual for, é parte
mas. Esse equilíbrio, tudo o indica, é uma viva do Todo. A energia que une
expressão da consciência do universo. Com todas as coisas, flui dentro e fora
a intervenção destrutiva, pelo ser humano, do organismo e os limites do corpo
do equilíbrio ecológico, foi e continua sendo deixam de ser percebidos (p.336).
indispensável o despertar da consciência
ecológica individual em cada cidadão do pla-
neta. Ao proceder assim, podemos contribuir
em dissolver a ilusão de que somos separa-
dos deste universo autoconsciente (p.33).
Fonte: Weil (2017) e Santos (2009).

142
As sessões foram pautadas nas observações de Santos
e Acácio (2017), sobre o que se aspira alcançar com a vivên-
cia. Relaciona-se com o “porquê” e o “para quê” do exercício
ou movimento, além do “significado existencial”, traduzido
pela projeção da vivência no cotidiano, constituídos pelos re-
sultados duradouros que o exercício provoca.
O planejamento das sessões também manifestava a ne-
cessidade observada por Boff (2000) de que a existência de va-
lores sociais expressa o interesse pelos outros, o que pressupõe
que esse outro, o indivíduo, esteja inserido em um núcleo social,
seja ele denominado de família, comunidade, nação ou humani-
dade, cujos interesses antecedam os interesses individuais.
Mediante essas reflexões, foram apresentados exercícios
que trabalhassem os três níveis de vínculos propostos na Biodanza.
A definição do tema da aula foi orientada pela busca de
uma inter-relação entre a categoria de princípios: Carta da Ter-
ra, Ecológico e do Encontro Humano, que melhor alcançassem
o objetivo geral identificado para cada sessão.
Ao delinear os princípios que mais se relacionavam en-
tre si, escolheram-se os exercícios e as músicas que considera-
dos deflagradores das vivências específicas e foram construí-
das as respectivas consignas, utilizando o sentido dos próprios
princípios, em especial os da Carta da Terra.
A proposta apresentada no Quadro 2, compõem as sessões
vivenciadas durante o estágio realizado na Biblioteca Braille.

143
Quadro 2 – Proposta das sessões de Biodanza
P.E – Princípios do Encontro
P.A.E – Princípios da Alfabetização Ecológica
P.C.T – Carta da Terra
Tema da aula Objetivo da aula Princípios Trabalhados na aula
1- O significado da Cuidar da P.E: Expressividade e Reciproci-
primavera em nós. comunidade da dade;
vida em toda sua P.A.E: Interdependência e Diver-
diversidade. sidade;
P.C.T: I - Respeitar e cuidar da
comunidade de vida.
2- Assumindo Despertar o P.E: Expressividade, Fluidez e
nossa cidadania compromisso Reciprocidade;
com o coletivo a P.A.E: Fluxo de energia;
partir do compro- P.C.T: IV - Democracia não
misso com nós violência e paz.
mesmos.
3- Como me per- Despertar para o P.E: Diálogo psicotônico Compres-
cebo? cuidado conosco. são-Descompressão;
P.A.E: Ciclos ecológicos e Flexi-
bilidade;
P.C.T: Respeitar e cuidar da comu-
nidade de vida
4- Qual o meu Despertar para o P.E: Sintonia, Diálogo psicôtonico
papel no mundo? compromisso que e Compressão-Descompressão;
todos temos uns P.A.E: Interdependência e Ciclos
com os outros. ecológicos;
P.C.T: Justiça social e econômica.
5- Como se pode Compreender a P.E: Diversificação, Fluidez e
fazer a morte e o possibilidade de reciprocidade;
renascer de uma renovação diária P.A.E: Flexibilidade e Coevolução;
situação de forma to- em nossas vidas. P.C.T: Justiça social e econômica.
talmente renovada?

144
6- Onde deixei a Fortalecer a iden- P.E: Iniciativa recíproca e Diálogo
minha identidade? tidade do grupo. psicotônico;
P.A.E: Fluxo de energia;
P.C.T: II - Integridade ecológica.
7- Dançando a Dissolver as cou- P.E: Iniciativa recíproca e Diálogo;
liberdade de ser raças do grupo P.A.E: Fluxo de energia;
P.C.T: Democracia, não-violência
e paz.
8- É possível Estimular a P.E: Iniciativa recíproca;
sonhar um mundo criatividade no P.A.E: Associação;
melhor grupo. P.C.T :I-Respeitar e cuidar da
comunidade de vida.

9- Vivenciar as Agradecer as bên- P.E: Expressividade e Sincronici-


bênçãos recebidas çãos recebidas dade;
P.A.E: Ciclos ecológicos;
P.C.T: IV - Democracia, não-vio-
lência e paz.

10- Boniteza de um Estimular a criati- P.E: Iniciativa recíproca;


sonho vidade no grupo P.A.E: Associação;
P.C.T :I-Respeitar e cuidar da
comunidade de vida.

11- Liberdade para Possibilitar a P.E: Compressão-Descompressão,


ser quem somos expressividade Eurritmia, Diversificação, Expressi-
do grupo vidade, Reciprocidade;
P.A.E: Interdependência, Parceria;
P.C.T: I – Respeitar e cuidar da
comunidade de vida.
12- Reciclando Estimular a cons- P.E: Compressão-Descompres-
nossas atitudes ciência ambiental são, Sincronicidade, Sintonia,
Diversificação;
P.A.E: Ciclos ecológicos, Fluxos
de energia e Coevolução;
P.C.T: II – Integridade ecológica.
Fonte: Produção da própria autora.

145
3. Análise e Discussão dos Resultados
A análise de dados ocorreu por meio dos relatos verbais
dos participantes, tanto dos deficientes visuais como dos viden-
tes. Os depoimentos foram transcritos na forma como foram re-
latados pelos participantes, por esta razão, a palavra Biodanza
está com grafia diferente; a letra entre parênteses não indica a
inicial do nome do participante, de forma a manter o sigilo de
sua identidade.
O relato ou partilha verbal aconteceu no primeiro mo-
mento das sessões de Biodanza, no qual foram dedicados a este
momento cerca de 30 minutos para compartilhamento de emo-
ções, de impressões e de sensações relacionas à sessão anterior
e a outras sessões.
Tais relatos corroboram, dentre outros aspectos, à refor-
mulação de padrões de vida, buscando referenciais mais saudá-
veis, que potencializam a manifestação evolutiva da vida, con-
sonante com a proposta do Princípio Biocêntrico (Toro, 1991).
As Vivências visaram estimular no ser humano exatamente o
prazer de estar junto, de estar com o outro e de pôr a vida no
centro, direcionar cuidado a essa vida, resgatando seu lado luz.
A vivência dos princípios aplicados neste estudo possi-
bilitou aos seus participantes o desenvolvimento da autoestima,
da autoimagem e do autoconceito, de atitudes saudáveis perante
a vida, bem como da função de vínculo que levam ao desenvol-
vimento humano. Santos e Acácio, (2017, p.115) trazem a afir-
mativa de que “o Princípio Biocêntrico e a Biodanza ensinam
a empatia, a seguir o movimento sensível do outro, a amar e
valorizar a vida em tudo que a sustenta”.
Alguns relatos dos participantes da Biodanza presentes
neste estudo fortalecem o exposto até aqui, demonstrando uma
internalização das propostas vivenciais que foram oferecidas
nas sessões de Biodanza.

146
1. (A - deficiente visual): A gente esquece tudo quando
está aqui e abre espaço para compartilhar. Você nasce enxergan-
do, depois perde...
A árvore cresceu dentro de mim, fiquei leve (referência
a uma vivência de natureza). Chego cedo e fico esperando a
aula. Nossa simplicidade se fortalece uns com os outros. A mú-
sica faz com que você relaxe e tira a pane da vida. Se você não
olhar para você, não tem quem olhe.
2. (B - deficiente visual): Senti leveza e fez esquecer o tem-
po de desafios. Me senti em paz comigo mesma, com todo mundo.
3. (F - vidente): Abri a janela cedo e vi o parque, os pássa-
ros, o cheiro da chuva. Admirando o jardim, chamei o marido para
ver. Não ficar preocupada com o passado e futuro. Tô mais calma
e mais tranquila, menos ansiosa. E me faz bem e me faz tão bem!
Diante destes relatos, seguimos o pensamento de Morin
(2007), que afirma sobre a necessidade de se reconhecer a mul-
tidimensionalidade da condição humana e, em consequência, é
preciso retomar Toro (2005), quando ele menciona a respeito da
possibilidade de desenvolvimento dos potenciais de vida.
4. (A - deficiente visual): Sentir os pingos da chuva, que
as estrelas estão brilhando.
5. (C - deficiente visual): A pessoa que estava comigo
me mostrou flores que existem na sala. Vi flores lindas, me lem-
brei que plantava com a minha avó. No roseiral, quando via as
flores aqui, me recordei dos girassóis.
6. (F - deficiente visual): Cores, cheiros, perfume e can-
tar dos pássaros. Eu sinto outros sentidos.
7. (A - deficiente visual): Este tema trouxe reminiscên-
cias da infância – situações prazerosas e felizes, em uma época
que enxergava.

147
8. (C - deficiente visual): É boa a sensação de voltar no
tempo e relembrar a infância.
9. (D - deficiente visual): O que eu colho aqui é harmo-
nia, paz, felicidade e onde eu ando as pessoas percebem essa paz
que sai da minha boca. As pessoas oferecem ajuda e eu agradeço
e aceito. Sempre acho alguém que me ajude a atravessar a rua.
[...] Eu tenho alguma autonomia, mas mesmo assim preciso de
ajuda, até para evitar que machuque meu corpo.
A proposta da Biodanza é exatamente unir e sanar a
ferida aberta entre corpo e mente, homem e cosmos, pois todos
somos filhos das estrelas. Por isso, Morin (2007) entende que
É impossível conceber a unidade complexa do ser huma-
no pelo pensamento disjuntivo, que concebe nossa huma-
nidade de maneira insular, fora do cosmos que a rodeia,
da matéria física e do espírito do qual somos constituídos
[...], que restringe a unidade humana a um substrato pu-
ramente bio-anatômico (MORIN, 2007, p. 48).

O autor prossegue dizendo que “devemos reconhecer nosso


duplo enraizamento no cosmo físico e na esfera viva e, ao mesmo
tempo, nosso desenraizamento propriamente humano. Estamos si-
multaneamente dentro e fora da natureza“ (p. 48). Portanto, “deve-
mos reconhecer nossa identidade terrena, física e biológica” (p. 50).
Estas reflexões de Morin (2007) corroboram com as pala-
vras de Toro (1991) de que somos constituídos do pó das estrelas:
“somos originários do cosmos, da natureza, da vida, mas, devido à
própria humanidade, à nossa cultura, à nossa mente, à nossa cons-
ciência, tornamo-nos estranhos a este cosmos, que nos parece secre-
tamente íntimo” (p. 51).
Ao propor a utilização dos princípios ecológicos em sessões
de Biodanza, houve a aproximação de nossa humanidade dentro de

148
um Universo cósmico, pois, como ressalta Morin (2007), o “nosso
pensamento e nossa consciência fazem-nos conhecer o mundo físi-
co”, mas nos distanciam desse cosmos. “Desenvolvemo-nos além
do mundo físico e vivo. É neste “além” que tem lugar a plenitude da
humanidade” (p. 51).
Assim, a Biodanza, ao trabalhar, em especial, as Linhas da
afetividade e da transcendência, possibilitou alcançar esse “além” e
encontrar nossa plenitude para chegar ao terceiro nível de vínculo
– o vínculo com a totalidade (SANTOS, 2009) e à “terceira ecolo-
gia ou consciências” abordadas por Weil (2017) como ecologia ou
consciência ambiental.
10. (D - deficiente visual): Procuro pensar antes de falar as
palavras. Eu quero a paz para todos, desde a minha casa, a rua, cada
esquina.
A junção de Princípios Ecológicos cunhados por pensadores
da área ambiental aos Princípios do Encontro formulados por Ro-
lando Toro e citados por Santos e Acácio (2017) quando utilizados
em sessões de Biodanza, promovem reflexões sobre as questões
humanas e ambientais: eu comigo mesmo, eu com a sociedade e
eu com o cosmo. Diante do exposto, o espaço da Biodanza, pode
e deve ser um espaço de reflexão política, não partidária, de tudo
que envolve o cotidiano e a condição humana.
11. (E - deficiente visual): Em termos de autonomia,
como eu vejo um pouco (só 15% de um olho), eu acho que não
preciso de ajuda. Eu tento conversar comigo mesma e me cons-
cientizar que preciso de ajuda. Estou aceitando e me conscienti-
zando da deficiência visual e me imaginei dentro da bolha (Vi-
vência de caminhar com a bolha) e a necessidade de equilíbrio,
com a deficiência. Frágil como a bolha. Temos que nos blindar
de certas coisas, que o mundo está lá fora.

149
12. (A - deficiente visual): Tenho esperança de voltar a
enxergar... Aceitar a situação da falta de visão. O aprendizado
e a terapia é pra nós mesmos e a ideia de que tem que aprender
consigo mesmo.
O equilíbrio que a bola (Vivência de caminhar com a
bolha) traz é o equilíbrio que tenho que ter na vida. Eu me con-
formo no silêncio, daquele momento de turbulência e o fato de
precisar de outras pessoas, dependência. Aceitar. Eu não pos-
so sair batendo a bengala sem saber pra onde vou. Sem rumo,
como eu volto depois? E as pessoas lá de casa?
13. (D - deficiente visual): Passei a ter mais responsabi-
lidade comigo mesmo e cuidado.
Como bem afirma Toro (2014), o “Princípio Biocêntrico
desconhece toda forma de alienação ou condicionamento auto-
ritário” (p. 48) e, consequentemente, toda forma de discrimina-
ção do ser humano. E, por essa razão, pode parecer subversiva
uma disciplina que tenha suas raízes fincadas no respeito à vida,
no direito ao amor e ao contato e no gozo de viver.
14. (G - vidente): A gente, idoso é invisível. [...] Tenho
uma filha que eu nem posso conversar, então pra não ouvir ela dizer
“menos” (gesto de pedir para falar menos), eu prefiro nem falar,
agora aqui e no UNISER eu converso muito.
15. (D - deficiente visual): A minha vida mudou muito, o
meu orçamento, a maneira de falar com as pessoas. Me sinto con-
templado.
16. (A - deficiente visual): A pessoa senta na roda e se sente
valorizado.
17. (A - deficiente visual): Compreensão da eternidade,
quando você se aproxima de outra pessoa, o calor humano faz
com que você seja reconhecido, melhoria do valor próprio. O

150
que eu ganho aqui na roda eu levo pra casa. O abraço daqui é di-
ferente do abraço em casa. A gente acaba acreditando na gente.
Não tem explicação para o que a gente está vivendo.
18. (E - deficiente visual): A Biodanza é como um remé-
dio... perda (visual) de agosto para cá... me fortaleceu. Não é reli-
gião, não é crença, é vida”.
19. (B - deficiente visual): Equilíbrio na vida.
20. (E - deficiente visual): O trenzinho, (vivência do trenzi-
nho) coletivo, pensar em todos.
21. (C - deficiente visual): A família percebe situações má-
gicas que acontecem, eles pensam que é religião, e eu digo que não
tem nada a ver.
22. (A - deficiente visual): A Biodanza dá liberdade de ex-
pressão, você com a natureza, respeito com a natureza. A expres-
são da aproximação, respeito e consideração, respeito de valores
pessoais. Com a Biodança a gente expressa e vive melhor, tira o
pesadelo em que vive.
23. (E - deficiente visual): A Biodança dá outro horizonte
na vida.
24. (E - deficiente visual): Eu sou deficiente, mas tenho
meus direitos; ao tentar fazer uma faculdade e a plataforma da
faculdade tinha prometido uma coisa e não cumpriu.
25. (C - deficiente visual): A Biodanza me deu autono-
mia, ninguém vai pensando que vai fazer o que quiser comigo,
que não vai!
26. (A - deficiente visual): Trouxe muita coisa para dife-
renciar a mudança de vida, tempo para parar e analisar que a vida
tem continuidade. Ninguém na família trouxe a transformação
que a Biodanza trouxe. Pude abraçar uma árvore que eu nunca
imaginava que era uma vida. Nós somos o pó, a areia, o vento.

151
27. (C - deficiente visual): A Biodanza trouxe a agrega-
ção muito boa na minha vida. As respostas que eu precisei em
casa com amigos, vinham daqui. A Biodanza abriu meus olhos
pra muita coisa, ela explicou muitas coisas mais, eu era cego
duas vezes mais.
Os relatos verbais transcritos expressaram, claramen-
te, que houve uma radicalização das vivências, uma tomada de
consciência sobre o valor de si mesmo, assim como a preocupa-
ção com os outros, com a natureza, principalmente pelos colegas
deficientes visuais que continuaram no projeto por mais tempo.
Houve uma internalização dos “níveis de vínculos” e igualmen-
te das “três ecologias”, um sentimento de responsabilidade con-
sigo mesmo, um crescimento da autoestima e autonomia, apesar
da deficiência visual.
É preciso ponderar que, em um grupo de videntes, a per-
cepção dos Princípios Ecológicos e da Carta da Terra foi mais
ampla, em decorrência da possibilidade de acesso aos diversos
periódicos de notícias e a visão de ambientes. Por conseguinte,
observamos que os deficientes visuais apresentaram um apren-
dizado mais lento, e isso dificultou a compreensão mais ampla
do mundo. Entretanto, eles tiveram a oportunidade de fazerem
uma sessão de Biodanza ao ar livre, permitindo o contato com
um ambiente praticamente desconhecido para muitos. Essa vi-
vência ao ar livre ocorreu no Parque Ecológico Saburo Onoya-
ma, localizado no Setor C Sul ,AE, QSC 26 – Taguatinga Sul,
DF, em comemoração à Semana de Meio Ambiente.

4 Considerações Finais
O presente artigo apresentou a possibilidade de aplicar
conceitos diversos na metodologia da Biodanza, desde que não
se desviasse de sua fundamentação básica, desenvolvida nas
cinco Linhas de Vivência.

152
É importante ressaltar que os Princípios do Encontro
Humano, Ecológicos e da Carta da Terra se encontram imersos
em toda a teoria e metodologia da Biodanza. Nesta pesquisa, foi
possível identificá-los, dar-lhes um direcionamento e uma fun-
damentação para serem vivenciados em sessões de Biodanza.
A formulação deste artigo confere, naturalmente, uma
publicidade a este instrumento, tão fundamental e ainda desco-
nhecido por muitos, que é a Carta da Terra, pois nos permite
compreender que os princípios que regem as relações humanas
são os mesmos que regem as relações da natureza.
Nesse sentido, evidenciou-se a sincronicidade entre as
três categorias de princípios e que, com o desenvolvimento des-
ta metodologia, foi possível alcançar os objetivos propostos ao
desenvolver sessões que promovessem a junção dos respectivos
princípios, construindo um espaço de reflexão sobre as questões
ambientais e despertando a consciência para o cuidado com to-
das as formas de vida.
Podemos reiterar que construímos o mundo a partir de
laços afetivos e que o habitamos não somente pelo trabalho, mas,
em essência, pelo cuidado e amorosidade, pois tudo está implica-
do com a totalidade, em todos os momentos e em todos os cená-
rios. Nenhum de nós pode viver apartado destas relações. Assim,
cada palavra, cada ação, mesmo que aparentemente isolada, mo-
vimenta uma teia de relações em todo o cosmo.
Ao unir as categorias de princípios em sessões de Bio-
danza, potencializando as vivências por meio de consignas mais
profundas, possibilitou-se que o ser humano percebesse a sin-
cronicidade que existe da Biodanza com a dinâmica da natureza.
Logo, acredita-se que o objetivo deste estudo de apre-
sentar uma metodologia que reuniu, na prática, conceitos e pen-
samentos de Toro, Capra, Weil e Boff, foi contemplado. Esta

153
proposta permite dançar no ritmo, na melodia e na harmonia, em
sincronicidade com os movimentos ecossistêmicos da natureza,
fluindo e coevoluindo na interdependência do Cosmos.
A Biodanza se mostra, à semelhança dos fluxos de ener-
gia dos ecossistemas, como espaços abertos para aprendizagem
e reflexões, em que se permite educar na biologia do amor, do
afeto, da solidariedade e da fraternidade.

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WEIL, P. A Arte de Viver a Vida . 2 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2017.

155
EL “ÉXITO”
Gastón Andino

El ser exitoso depende siempre del marco cultural por el


que se lo define, está sujeto totalmente a los valores de la cultura
dominante. Lo que hoy es visto como exitoso en otros tiempos
podría no serlo y viceversa, porque los valores culturales cam-
bian con el tiempo.
La cultura actual dominante es una cultura globalizada
que toma aspectos de la cultura occidental-cristiana, de la cultu-
ra anglo-sajona y de la cultura oriental creando un mix multicul-
tural donde el eje central es el poder y la ganancia, a cualquier
costo, no respetando principios éticos, sociales o espirituales;
todo tiene un precio de consumo. Esta se articula en toda una red
que va desde lo tecnológico hasta lo ético, todo amalgamado a
viejos conceptos de que para ser alguien tengo que tener cierta
cantidad de bienes materiales y cierto status social, el viejo con-
cepto de “tener para ser” hoy superado por el concepto “aparen-
tar para ser” es decir creo una imagen de mi mismo a partir de
los valores externo-culturales de lo que no tengo ni poseo pero
que socialmente es bien visto, entonces soy incluido en el gran
circo social. Esto reforzado por el concepto de sacrificio, de que
en algún momento seremos “recompensados”, justificando si-
tuaciones difíciles a las cuales algunas veces somos sometidos
socialmente o por las cuales estamos pasando. Somos presos de
los deseos sociales y no de los deseos existenciales; la tecnolo-
gía ha profundizado esta disociación entre lo que siento, pienso
y hago. La vida solo tiene significado de acuerdo a si poseo
cierto status de cosas materiales y por esto se mide tu éxito o no.
El éxito es siempre visto como un aspecto únicamente indivi-
dual y el suceso o fracaso determina mi valor personal.
La llamada meritocracia se jacta de decirnos que todos
nacemos con las mismas posibilidades y condiciones para reali-
zarnos en la vida; que el contexto socioeconómico, familiar, etc.
no influye en los proyectos que se quieran desarrollar. Todo se
resumiría a las capacidades y habilidades que cada individuo
tenga o desarrolle para “darse bien” en la vida. Este concepto
es casi un darwinismo social donde todo se justifica en la lucha
por la supervivencia y que es el más apto para sobrevivir es el
que vence. Un astuto argumento para justificar las desigualda-
des sociales.
El no ser exitoso, los “fracasos” en la vida son tomados
únicamente como algo personal y no como parte de un contex-
to mayor. No es solo mi deseo y mis ganas de realizar algo
que por eso lo logre; muchas personas presionadas por ese
mandato social, que para ser felices tienen que ser exitosas, a
cualquier precio manipulan situaciones y personas para alcanzar
su objetivo, no tienen ética. Podríamos decir que el fin justifica
los medios. El “fracaso” tiene tal magnitud, tal impacto per-
sonal que nos puede cerrar la puerta para la vida, para algunos
el único camino es la autoeliminación, porque la “derrota” es
emocionalmente insostenible; también porque en ese momento
las “pequeñas derrotas” o episodios similares que he tenido a lo
largo de mi vida, emergen y se constelan en ese instante en que
“bajo la guardia” y me “pesa la vida”; se me hace insostenible
vivir en esa circunstancias. Porque cada uno vive como puede
vivir y hace lo mejor de sí para ser feliz y tener una vida digna.
Capaz que en una cultura que valorice la vida, las perso-

158
nas y toda la naturaleza, los valores de ser exitosos sean otros;
como la capacidad de cuidar de si y a las personas, ejercer el
sentido de la compasión profundamente como dice su signifi-
cado: con la pasión del otro. Ser auténticamente solidario, no
querer serlo por una cuestión de conveniencia sino sentirlo pro-
fundamente, que con mi acción cuido y ayudo al otro en su ne-
cesidad de ese momento. Ser tolerante con las diferencias sean
estas políticas, religiosas o sexuales e incluirlas progresivamen-
te como una postura de vida que convive con la diversidad en
toda sus manifestaciones. Tener una vida interna en armonía con
la naturaleza enraizada en una visión ecológica de la sociedad
y el planeta. Donde toda la sociedad se organice en función del
cuidado con la vida en todas sus manifestaciones; del bienestar
integral del otro, cuidando de las necesidades básicas de alimen-
tación, vivienda, educación, afecto y arte (entre otras).
Una nueva sociedad en la cual se respire vida, donde el
aire puro nos revitalice para tener la fuerza y el coraje para cui-
dar de la vida y de su manifestación de la diversidad.

159

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