Sobre Apneia - Jorge Valentim

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https://doi.org/10.22409/abriluff.v15i31.

58669

“OS SINAIS ESTAVAM LÁ TODOS”:


VIOLÊNCIAS E ABUSOS NA
NOVÍSSIMA FICÇÃO PORTUGUESA –
REFLEXÕES EM TORNO DE APNEIA,
DE TÂNIA GANHO

“THE SIGNS WERE ALL THERE”:


VIOLENCES AND ABUSES IN THE BRAND
NEW PORTUGUESE FICTION – REFLECTIONS
ON APNEIA, BY TANIA GANHO

Jorge Vicente Valentim1

RESUMO
Este trabalho apresenta, num primeiro momento, uma breve reflexão sobre
a relevância da efabulação do tema da violência e de seus respectivos ecos,
seja na tônica da representação de abusos das mais diversas ordens, seja na
efabulação da dinâmica dos seus efeitos colaterais. Em seguida, propõe-se
uma leitura do mais recente romance da escritora portuguesa Tânia Ganho,
Apneia (2020), destacando as representações de violências e abusos contra
personagens femininas e infantis. Para tanto, tomaremos como suporte
teórico alguns pressupostos de pensadores das Ciências Humanas, como
Hannah Arendt (1985), Judith Butler (2021), Marie-France Hirigoyen (2010)
e Zygmunt Bauman (2008).
PALAVRAS-CHAVE: Violências. Abusos. Representações ficcionais. No-
víssima ficção portuguesa. Tânia Ganho.

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ABSTRACT
This work presents, at first, a brief reflection on the relevance of fabulating
the theme of violence and its respective echoes, whether in terms of the re-
presentation of abuse of the most diverse orders, or in the fable of dynamics
of its side effects. Then, a reading of the most recent novel by the Portuguese
writer Tânia Ganho, Apneia (2020), is proposed, highlighting the represen-
tations of violence and abuse against female and child characters. To do so,
we will take as theoretical support some assumptions from Human Sciences
thinkers, such as Hannah Arendt (1985), Judith Butler (2021), Marie-France
Hirigoyen (2010) and Zygmunt Bauman (2008).
KEYWORDS: Violences. Abuses. Fictional representations. Brand new
Portuguese fiction. Tânia Ganho.

Apnéia. S.f. med suspensão momentânea da respiração.


Antônio Houaiss. Dicionário Houaiss da Língua Portu-
guesa, p. 254.

Ela caiu em si e abraçou-o. Seria assim que se criavam


pessoas neuróticas, pensou, pessoas que se habituavam a
viver imersas na violência? Pessoas para quem era normal
a bofetada psicológica seguida de um gesto de carinho? O
seu cansaço deixava-a sem filtros.
Tânia Ganho. Apneia, p. 466.

Abordar a violência nunca foi uma tarefa tranquila e de fácil de-


senvoltura. Mesmo com todas as fortunas críticas disponíveis nas mais
diversas áreas das Humanidades, essa questão sempre suscitou dificuldades,
para não dizer repulsas, sobretudo quando, no momento de analisar uma
determinada obra literária sobre este viés, os atos efabulados são dirigidos
a personagens representativas ora de classes sociais desfavorecidas, ora de
grupos étnicos demarcados por uma segregação injusta, para além daquelas
que trazem à cena as questões de gênero nos seus mais diferentes matizes
(mulheres, personagens lgbtqia+ e crianças, por exemplo).
Para mim, especificamente, um professor e pesquisador homosse-
xual, cisgênero e oriundo do Rio de Janeiro, cidade por demais conhecida
pela turbulência urbana (como toda grande metrópole, aliás, acaba se des-
tacando), já tive a oportunidade de presenciar diversas cenas de violência,
vivi de perto muitas delas, sofri bullying e vi-me, não poucas vezes, no meio
do escárnio coletivo seja no trabalho, seja na rua ou mesmo no ambiente
familiar. Sem querer minimizar ou normalizar tais atos, em outras palavras,
a violência não me é estranha, ainda que, em muitas situações, sobretudo na
atualidade, eu continue me surpreendendo com a capacidade humana de
exercer a intolerância e a truculência sobre o outro, por motivos mais banais.

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Mesmo tendo visto, vivido e, mais atualmente, lido sobre o tema,
por causa do trabalho de investigação sobre a novíssima ficção portuguesa,
alguns títulos não deixam de me inquietar, sobretudo pela forma como
conseguem efabular situações tão incompreensíveis e as dimensionar no uni-
verso da criação literária. Nesse sentido, se a ficção brasileira contemporânea
constitui um manancial onde abundam exemplos e casos muito bem conse-
guidos — quem não se recordará, por exemplo, de Cidade de Deus (1997),
de Paulo Lins; de Histórias de amor (1997), de Rubem Fonseca; ou, ainda,
de Nossos ossos (2013), de Marcelino Freire; ou mesmo Marrom e amarelo
(2019), de Paulo Scott, para além de outros títulos que fazem com que Tânia
Pellegrini aponte a maneira “inegável que a violência, por qualquer ângulo
que se olhe, surge como organizadora da própria ordem social brasileira e
como um elemento constitutivo da cultura”, daí que “como consequência,
a experiência criativa e a expressão simbólica, como acontece com a maior
parte das culturas de extração colonial, estão profundamente marcadas por
ela” (PELLEGRINI, 2008, p. 179)? —, não menos a ficção portuguesa nascida
a partir dos anos 2000, ou seja, florescida no século XXI, traz no seu bojo
exemplos paradigmáticos dessa percepção de uma presença inevitável da
violência no cotidiano sócio-afetivo.
Ao abordar o romance português das últimas décadas, Miguel
Real — talvez, um dos mais atentos leitores da novíssima ficção portuguesa
— chama a atenção para a relevância da violência, enquanto instrumento
importante no constructo ficcional de um autor como António Lobo Antunes.
No entanto, não deixa de ser curioso o fato de o mesmo crítico não dar uma
atenção especial ao tema e nem sublinhar, diante das possibilidades que o(a)
s autore(a)s portuguese(a)s do século XXI podem oferecer.
Num breve olhar, não são poucos os casos em que a violência emerge
como um demarcador sócio-cultural no contexto português. Já mesmo nos
anos posteriores à Revolução dos Cravos, três exemplos podem ser aponta-
dos como obras de destaque pela forma como revelam as reações de seus/
suas protagonistas diante de cenas de truculências, abusos e hostilidades.
No meu entender, Ema (1984), de Maria Teresa Horta, sobressai pela forma
como expõe as violências perpetradas dos homens sobre as mulheres, de
forma repetida de geração em geração. Mas, ao contrário de sua homônima
oitocentista — Emma Bovary —, a Ema de Maria Teresa Horta não toma
cianureto ou ameaça se matar. Ela mata o seu agressor, o seu marido. Ou
seja, ao contrário de sua avó e sua mãe, ela é uma mulher que mata, em de-
fesa do seu próprio corpo, de sua liberdade e de sua vida. Também A costa
dos murmúrios (1988), romance de Lídia Jorge, por demais abordado pela
crítica sob este viés, expõe uma série de brutalidades no cenário das guerras
de libertação em Moçambique, para além do próprio corpo da protagonista
(Evita/Eva Lopo), que incide como uma voz resistente aos desmandos ma-
chistas. Por fim, Ursamaior (2000), de Mário Cláudio, debruça-se sobre e
efabula um assassinato ocorrido no Porto, reiterando a violência urbana e as
suas reverberações dentro do sistema carcerário, com uma cena antológica
de um estupro coletivo num presídio masculino.

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Se, como nos faz crer Isabel Cristina Rodrigues (2014), a novís-
sima ficção portuguesa mantém uma relação de aproximação e, ao mesmo
tempo, de afastamento com a tradição literária alicerçada em nomes como
José Saramago, António Lobo Antunes, Agustina Bessa-Luís, dentre outros,
criando uma espécie de espaço “entre-dois” (RODRIGUES, 2014, p. 106),
então, gosto de pensar que, na esteira daquela violência já encenada em dé-
cadas anteriores, alguns/algumas autores(a)s da atualidade parecem beber
nessa mesma fonte, exacerbando e levando até às ultimas consequências
não apenas os distintos modos como a hostilidade se espalha e se mantém,
mas também os diferentes medos sentidos por quem sofre a agressividade.
Assim, não será à toa que alguns títulos, na esteira daquilo que
Miguel Real (2012) irá designar como uma prática cosmopolita do romance
português atual — qual seja, de uma ficção que não se restringe ao universo
e aos leitores portugueses, mas extrapola as fronteiras geográficas com uma
amplitude na abordagem dos principais temas da atualidade — irão reite-
rar esse modus operandi nos mais variados cenários ficcionais. Romances,
como O coração dos homens (2006), de Hugo Gonçalves, surpreendem pelo
despojamento com que descreve cenas explícitas de violência misógina e
machista. Confesso que este texto já me pegara desprevenido pela forma
avant la lettre com que lida com a “masculinidade tóxica”2, termo delineado
nos últimos anos, e que surge nas suas páginas, reconfigurando as múltiplas
masculinidades abarcadas no mundo atual. Aliás, a violência machista e
misógina será igualmente um dos aspectos efabulados no romance Deus Pá-
tria Família (2021), sobretudo, na composição de uma das personagens, um
serial killer com um perfil específico de vítima: mulheres jovens em situação
vulnerável são assassinadas e abandonadas com vestes que remontam aos
ofícios religiosos. E ele próprio, o criminoso, sofrera no passado a violência
física perpetrada pelo amante da mãe e a pedofilia de um padre que deveria
zelar pela sua estabilidade e educação.
De igual modo, valendo-se da abjeção como um dos elementos da
construção actancial, Gonçalo M. Tavares investe nos espaços hospitalares
confinados, em Jerusalém (2004), e evoca com pertinência as barbáries co-
metidas pelo regime nazista sobre os judeus e o horror ostentado por agentes
médicos sobre seres humanos indefesos. Também João Pinto Coelho, em
Perguntem a Sarah Gross (2015), não poupa os detalhes traumáticos causados
pelas barbáries dos campos de concentração e pela perseguição aos judeus
executados pelos nazistas, sobretudo, às mulheres que tiverem de conviver
dia após dia com os seus torturadores.
Outro romance que também evoca as atrocidades dos regimes
ditatoriais é As longas noites de Caxias (2019), de Ana Cristina Silva. Nele, a
autora volta-se para a recuperação de tempos de autoritarismos e impressiona
pelo rigor com que investe na efabulação da tortura e dos agentes femininos
da PIDE, responsáveis pela sua manutenção com requintes de brutalidade,
sobre mulheres perseguidas pelo Estado Novo Salazarista. E se as décadas
anteriores ao 25 de Abril de 1974 fornecem matéria para as narrativas preo-

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cupadas em perceber as atrocidades cometidas sobre os menos favorecidos
e os silenciados, não menos os tempos democráticos parecem ter aliviado
a cota de violência sobre a mulher e sobre as crianças. Nesse sentido, A
construção do vazio (2017) e As crianças invisíveis (2019), de Patrícia Reis,
pintam cenários familiares, onde sobejam os abusos contra menores e as
mais variadas formas de violência de gênero.
Como se pode perceber, diante desse breve quadro, a ficção por-
tuguesa do século XXI longe está de ser entendida como um conjunto
despreocupado com as questões sociais mais prementes. E, nesse elenco
de possibilidades, bem recentemente, uma obra chamou a minha atenção
não só pela ousadia em abordar temas tão sensíveis e complexos, como a
violência de gênero, o abuso sexual de menores e a pedofilia, mas também
pelos mecanismos articulados na trama narrativa para prender a atenção
do leitor, fazendo-o seguir adiante até o fim do volume, ainda que, muitas
vezes, a repulsa venha à tona diante das sequências narradas. Refiro-me ao
impactante romance Apneia, de Tânia Ganho3.
Trata-se, na minha perspectiva, de uma daquelas obras que, nos
moldes explicados por Roland Barthes, só é possível “ler levantando a cabeça”
(BARTHES, 1988, p. 40), tal a confluência de reflexão e interrogação que
suscita no leitor. Ao final, as sensações de desgaste, impotência e incômodo
vão se intercalando à medida que as ideias vão confluindo e a dinâmica
narrativa ganha compreensão no universo do leitor. Mas, o que há de tão
surpreendente nas quase 700 páginas desse denso e longo romance?
Em primeiro lugar, acredito que a forma como a narrativa se estru-
tura, com capítulos relativamente curtos, na medida em que, na sua grande
maioria (com exceção de alguns pouquíssimos capítulos), procuram não
ultrapassar uma média de cinco a seis páginas no máximo, contribui para
a assimilação das situações descritas ao longo da trama. Isto porque somos
levados a entrar aos poucos e de forma muito gradativa nos espaços privados
da célula familiar composta por Alessandro, um empresário italiano que se
casa com Adriana, uma jovem artista plástica portuguesa, que se encontra
num momento de conclusão do seu mestrado com um estudo comparativo
entre literatura e artes plásticas. Da união matrimonial dos dois, nasce Edoar-
do, uma criança que, com o decorrer do tempo, vai desenvolvendo traumas,
em virtude dos gestos de impaciência, intolerância e violência do pai. Todo
o enredo envolve o período de sua infância até a adolescência, momento
em que são revelados os segredos que traumatizam o jovem e como este se
revolta contra o pai e acaba se aproximando mais da mãe.
Numa das cenas inicias, o narrador descreve um desentendimento
entre o casal por causa da maneira como Alessandro se refere aos pais ido-
sos, desejando que sofram um acidente e morram, para que ele não precise
tomar conta deles. Sem acreditar no que ouvira, Adriana exige do marido
uma retratação e este, por sua vez, num rompante, grita-lhe uma série de
impropérios e sai com o filho pequeno no colo, sem dar qualquer notícia à

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mulher. Nessa sequência, o leitor percebe que não está diante de uma história
comum de mais um caso de briga de casal. Na verdade, ao devassar a priva-
cidade da casa dos dois, o narrador parece já dar pistas das aproximações
que pretende desenvolver com a personagem feminina:
Quando finalmente Alessandro regressou, às três da tarde,
trazia um sorriso embaraçado, o bebé choroso ao colo e a
mão esquerda sem aliança.

Com os olhos inchados e sem abrir a boca, Adriana tirou-lhe


Edoardo dos braços e sentou-se na cama, reconfortando o filho,
enquanto Alessandro ia ao carro procurar a aliança debaixo
dos bancos, porque, com a raiva, a atirara e ela desaparecera.

Quando se sentaram para jantar, já os contornos da discussão


se tinham esbatido e ela própria começara a questionar a sua
reacção. Talvez tivesse, de facto, reagido de maneira exces-
siva, não era possível ele ter querido dizer que desejava que
os pais morressem num acidente de viação, só para resolver
o problema de quem trataria deles na velhice e na doença.
O argumento era tão absurdo, que deu por si a retribuir os
sorrisos de troça de Alessandro com um encolher de ombros
e um riso nervoso.

— És mesmo exagerada — disse ele, e deu-lhe uma palmadinha


no braço, gesto que, por um instante, a fez sentir-se um cão.
(GANHO, 2021, p. 20)

Ora, já nesta sequência inicial, é possível detectar algumas pistas


sobre a construção das personagens e das situações que envolvem a violência
de Alessandro sobre Adriana e, posteriormente, sobre Edoardo. Ao longo
de todo o romance, ficamos diante de uma personagem feminina temerosa
de se colocar contra o marido, a ponto de desenvolver pensamentos de au-
todepreciação, como se estivesse levando tudo para um ponto de exagero
e paranoia, além de reforçar os gestos de importunação, desvalorização e
desrespeito do marido sobre a sua condição de mulher e de mãe. Não me
parece à toa, por exemplo, que a palmadinha no braço transmita a sensação
de que o homem a considera inferior, daí a sua sensação de se sentir um cão.
Não serão poucas vezes, portanto, as devassas do narrador sobre os
pensamentos e as perspectivas de Adriana, em que ela própria põe em dúvida
as suas reações e os seus temores, tentando minimizar e adiar o inevitável.
Por mais que a focalização na heterodiegese aponte para uma possível neu-
tralidade na forma de narrar, sugerindo aquela “distância crítica do antigo
realismo” (PELLEGRINI, 2008, p. 190), o romance de Tânia Ganho não cai
na armadilha de uma não identificação com a matéria narrada, posto que,
na cena acima, a maneira como o narrador vai se aproximando de Adriana
e imprimindo nas instâncias actanciais os seus medos, as suas dúvidas e,
acima de tudo, as suas ansiedades, revela-se como um narrador observador
extremamente sensível com a matéria moldada pela efabulação.

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“À distância do futuro, tudo parece um prenúncio” (GANHO, 2021,
p. 45), declara a voz narrante, antes de revelar mais uma das insensibilidades
do marido. Antes mesmo do casamento, ao sofrer um acidente em casa, bater
a cabeça e quase desmaiar, Adriana fica surpresa com a indiferença de Ales-
sandro e com a sua forma imperturbável de não parar o que estava fazendo
e socorrer a companheira. Num primeiro momento, Adriana recusa-se a
perceber que todas essas pistas escondem uma natureza perversa, violenta
e implacável: “Os sinais estavam todos lá. [...] Adriana vira os sinais — os
símbolos — e decidira não lhes dar importância. Rotulara-os de excentrici-
dades e idiossincrasias, stresse e ciúmes. Existe um rótulo complacente para
tudo aquilo que queremos justificar” (GANHO, 2021, p. 46-47).
Ao vasculhar meticulosamente as cenas íntimas da vida familiar,
o narrador vai descortinando um cenário onde a “violência perversa” — ou
seja, aquele tipo de agressividade que se instala “quando o afetivo falha, ou
então quando existe uma proximidade excessivamente grande com o objeto
amado” (HIRIGOYEN, 2010, p. 21-22) — se instaura e contamina a trajetória
de mãe e filho. Isto porque se o movimento perverso reside na total falta de
afetividade e sintonia entre Alessandro e Adriana, por outro lado, é o amor
incondicional desta por Edoardo, seu filho, que a fará se movimentar, mais
adiante, de forma destemida.
Todo o declínio afetivo surge metaforizado na imagem da planta,
do hibisco deixado no pórtico da casa da Atalaia, espaço destinado à vida
em família das três personagens, e quando este começa a espelhar os ves-
tígios de que o casamento já não sustentava o frescor dos anos iniciais. As
relações com a vizinhança são reduzidas aos gestos mínimos de educação
e bom convívio, no entanto, o narrador é enfático ao decretar: “talvez o ar
do seu casamento já estivesse tão estagnado e fétido, que contaminasse o
espaço em redor” (GANHO, 2021, p. 22).
Acompanhando as mudanças espaciais do casal, o hibisco sugere
uma espécie de metáfora daquilo que um dia cresceu e que cedeu ao su-
focamento do cotidiano. Ainda que a planta não tenha florescido, a ponto
de se conseguir identificar a sua espécie, o fato de se indicar uma flor que
necessita de cuidados, sobretudo, por causa de temperaturas frias capazes
de lhe causar danos irreparáveis, não me parece uma informação gratuita,
afinal, na trama, o hibisco parece absorver e manifestar a frigidez das relações
afetivas de Adriana e Alessandro. Mesmo com todos os cuidados desta, em
limpar as folhas do vaso e regar a terra, a planta não resiste às investidas das
obras da casa e morre asfixiada:
Quando finalmente pintaram a fachada, o hibisco que talvez
nem fosse um hibisco e que já era maior do que Edoardo,
morreu, asfixiado por uma camada de tinta branca e cinzenta,
porque os pintores lavavam as trinchas na torneira mesmo
ao lado. Para Adriana, a morte do hibisco foi o símbolo e
o prelúdio da morte do seu casamento. (GANHO, 2021, p.
41; grifos meus)

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Ao que tudo indica, o distanciamento entre Alessandro e Adriana
torna-se a tônica de um relacionamento fadado ao fracasso, cabendo ao filho
o papel do único fio capaz de os ligar e à mulher a função de mantenedora
da família. Não por acaso, o narrador, mais uma vez, devassa a privacidade
do casal e revela a fragilidade daquela união: “A sua vida sexual com Ales-
sandro era insípida, totalmente desprovida de imaginação. Ao fim de um
ano, a frustração tornou-se gritante, mas, por essa altura, já tinham um filho.
Adriana achou que a sua obrigação, enquanto mãe, era lutar pelo sucesso
do casamento” (GANHO, 2021, p. 69).
Sem quaisquer traços de apego ou sinais de uma estabilidade
emocional, apenas “a noção de que não teriam um futuro juntos” (GANHO,
2021, p. 27), a separação torna-se o único caminho possível a ser trilhado
pela protagonista. A partir daí, tudo muda. A insensibilidade de Alessandro
transforma-se em agressividade e o seu espírito irritadiço dá lugar a um tem-
peramento vingativo, cujo alvo principal é Adriana, mas que tem Edoardo,
o filho, o meio de execução para o seu plano violento.
Nesse momento, o narrador fornece novos sinais não só da cons-
trução narrativa, mas também do próprio título da obra, na medida em
que todos os esforços por obter a guarda do filho, fora do alcance de um
homem que revela uma face desconhecida e amedrontadora, despendem
uma energia de Adriana, comparável apenas às demandas físicas de uma
intensa atividade esportiva:
Todo o processo de luta pela guarda do filho era uma maratona
e, enquanto Alessandro tinha a resistência de um corredor
de fundo, Adriana foi, durante anos, incapaz de fazer outra
coisa que não sprints. E, no fim de cada sprint, estava esgotada.
Demorou muito tempo a transformar-se em maratonista, a do-
minar a arte da respiração bradicárdica (GANHO, 2021, p. 34).

Se o fato de a protagonista cultivar o hábito de atividades esportivas


(Adriana corre e nada, e motiva o filho a praticar os mesmos esportes) leva
o narrador a se valer da imagem para comparar e desenhar as diferenças
entre ela e o marido, não podemos deixar de observar que o fato de não
dominar uma espécie de respiração contribui para pensarmos as razões da
estruturação do romance, afinal, os capítulos pequenos não poderiam ser
entendidos como breves respirações ou tentativas destas, num cotidiano
marcado pelo assombro, pelo medo e pela asfixia? Ao mesmo tempo, parece
que cada cena contida nas partes de curta extensão guarda um bocado da
violência suportada até às últimas consequências pela mulher.
Nesse sentido, o leitor consegue vislumbrar gradativamente a
trajetória de uma mãe subjugada por um “homem de poder, propenso ao
secretismo” (GANHO, 2021, p. 24) e ele próprio parece também sentir os
efeitos colaterais dessa respiração ofegante e entrecortada. Mas, para além
desta possibilidade de leitura e compreensão da estrutura romanesca, não
será a tentativa de Adriana em controlar a sua respiração, seja na natação,

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seja na corrida, uma forma de vencer a apneia imposta pelo desgaste de
todo o processo de separação? Não à toa, é o próprio narrador que adverte:
“Um processo de guarda nos tribunais portugueses é uma corrida de fundo”
(GANHO, 2021, p. 313).
Gosto de pensar que cada cena narrada nos capítulos de Apneia
encerra uma breve asfixia que o leitor vai devassando junto com o narrador.
Assim, é o próprio cansaço de Adriana diante do cansativo comportamento
de Alessandro que também vai tomando conta do narrador que, de maneira
constante, se aproxima da protagonista e desvela o seu cotidiano, passo a
passo. Deste modo, parte por parte, o leitor vai acompanhando o longo e
desgastante percurso de uma mãe com seu filho:
a) os sentimentos de remorso e a expectativa de uma separação
amigável, alimentados pela complacência desmedida de Adriana:
Até um dia fazerem as pazes, pensou, até ele a perdoar por
ter pedido o divórcio. No fim de contas, a culpa era sua. Ela
abandonara-o, destruíra a fachada perfeita que ele tanto se
empenhara em construir. Ferira-lhe o orgulho, cabia-lhe a
si apaziguá-lo. A fúria dele era compreensível. (GANHO,
2021, p. 57)

b) o machismo do marido revestido por uma xenofobia declarada


e a sua pretensa superioridade em relação à Adriana, não apenas pelo fato
de ela ser mulher, mas também por ser portuguesa:
Ele mandou-a pedir orçamentos a pelo menos três empresas
de mudanças. Discorreu um ror de minutos sobre o porquê
de três orçamentos e não menos. Algumas das empresas não
responderam aos pedidos ou perderam tempo com e-mails
inúteis, e Alessandro atribuía a culpa a Adriana, que, «típica
portuguesa» que era, tinha «pendor para a dispersão» e não
conseguia obter informações de maneira rápida e concisa.
«O cliente é rei, tens de apertar com as pessoas ao telefone.»
Ela tentava explicar-lhe que, em Portugal, a agressividade
não dava frutos, quem quisesse um serviço bem feito tinha
de saber conversar, ouvir, pedir; as exigências não o levariam
a lado algum.

Cinquenta por cento das discussões em que Adriana e Alessan-


dro se envolviam eram arquivadas na gaveta das “Diferenças
Culturais”. Adriana destituía-as de importância, esvaziava-as
do seu carácter violento, dizendo para si própria que não eram
uma questão de personalidade, mas sim de nacionalidade.
Tornava-se mais fácil rotular de italiano o comportamento
explosivo de Alessandro do que reconhecer que a agressividade
era um traço do carácter dele. Complicado era justificar os
restantes cinquenta por cento de disputas, porque dificilmente
se poderia considerar uma característica italiana a aversão de
Alessandro por decotes, minissaias e maquilhagem. (GANHO,
2021, p. 78-79)

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c) o desequilíbrio e a impaciência de Alessandro em relação a
tarefas da casa, sobretudo, quando esta se encontrava em obras:
Na recta final das obras, o orçamento da casa começou a
derrapar. O enervamento de Alessandro era constante e a
pressão para que Adriana fosse firme com o empreiteiro
aumentava a cada visita à Atalaia. As discussões tornaram
-se mais frequentes e violentas. Alessandro decidiu que os
roupeiros seriam feitos pelo construtor, mas compraria ele
os puxadores, as portas seriam de abrir e não de correr, e os
rodapés seriam brancos como as portas e não iguais ao soalho
flutuante. Adriana imaginou a quantidade de puxadores que
ele a obrigaria a ver nas semanas seguintes e sentiu tédio por
antecipação. A casa só estaria pronta em Julho, mas ele queria
sair do apartamento das escadas no final de Maio e mudar-
-se, nesse interregno, para um apartamento em Lisboa que
pertencia ao irmão de Adriana e que acabara de ficar vago,
porque o inquilino decidira emigrar. (GANHO, 2021, p. 93)

d) a truculência verbal dos processos judiciais redigidos pelos


advogados do marido e a insatisfação de Adriana diante de um sistema
burocrático que emperra e impede uma resolução rápida e favorável ao pe-
queno Edoardo e, em contrapartida, dá espaços para a violência do marido
se manifestar em misoginia e machismo:
Durante dois anos, houve requerimentos todas as semanas,
ou quase todas as semanas. A frequência era suficientemente
massacrante para ela sentir que passava os dias a ler os e-mails
do seu advogado e os textos descabelados da advogada de
Alessandro, e a alinhavar respostas com muitas alíneas, umas
atrás das outras, desmontando cada acusação, cada crítica.
Era uma ocupação a tempo inteiro, e o seu trabalho — a pin-
tura, o mestrado —, um passatempo que ela relegava para o
serão. O tom dos requerimentos era sarcástico, humilhador,
pontuado por frases exclamativas: «Finalmente fez-se luz
no espírito da Requerente!» Adriana não sabia que se podia
exclamar tanto em linguagem jurídica. Não sabia que ainda
se podia dizer impunemente em tribunal uma frase vitoriana
como «a Requerente não é nenhum anjo do lar», sem que
a própria juíza fizesse ver que já em 1931 Virginia Woolf
matara o Anjo do Lar. Não sabia que um homem moderno
ainda ousava levantar-se numa conferência de pais, em pleno
gabinete de uma juíza, e bradar que não estava disposto a
continuar a pagar impostos por causa de uma mulher que
já não lhe «pertencia». (GANHO, 2021, p. 129)

e) as expressões grosseiras a ela dirigidas, colocando em xeque,


inclusive, a sua sanidade mental, e a decisão de Adriana em não ceder ao
terrorismo imposto pelo espírito vingativo do marido:
Ceder à depressão era render-se a Alessandro, pisar o cadafalso
e colocar ela própria a corda ao pescoço. Era aceitar o rótulo
de desequilibrada e ver cópias das suas receitas psiquiátricas
surgirem inexplicavelmente apensas a um requerimento. Recu-
sava-se a dar essa arma a Alessandro. (GANHO, 2021, p. 133)

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f) o assédio sofrido por Adriana, concretizado pelo advogado da família:
O seu computador era antigo, as ligações por Skype tinham
uma imagem desfocada, tremida, mas não tão má que ela
não percebesse, ao primeiro olhar, que ele estava sentado
num sofá, com um enorme quadro abstracto por trás, de
roupão de seda estampada, um copo de uísque numa mão e
um cigarro na outra. [...] Quis desligar, durante a totalidade
da chamada não houve um segundo em que não quisesse
desligar, mas na sua mente passava um refrão em loop: «É
o meu advogado, preciso dele, preciso dele para não perder
o meu filho, não posso antagonizá-lo.» Foi cúmplice do
que aconteceu. O medo castrou-a, impediu-a de clicar no
botão e pôr fim à chamada. Ficou paralisada, incapaz de
desviar os olhos do ecrã, incapaz de mover a mão, de proferir
uma frase, um coelhinho encandeado pelos faróis de um
automóvel. Uma coelhinha. Fez um shut-down completo,
o cérebro, as emoções. Foi devorada por um vazio enorme,
por um vazio enorme, sobrava apenas o refrão obsessivo,
«preciso dele, preciso dele para não perder o meu filho».
Deixou-o masturbar-se num ecrã cuja imagem de má
qualidade a poupou a demasiados pormenores e lhe atenuou
a repugnância. Ele satisfez-se, desligou, e ela passou a noite
em branco, com nojo, nojo dele, nojo de si própria. Nojo do
medo. (GANHO, 2021, p. 153-154)

g) a violência somada aos abusos do pai sobre o filho, os discursos


de ódio e xenofobia, fazendo com que Adriana tenha de desfazer toda a agres-
sividade do marido, reverberada nos gestos hostis e repetitivos de Edoardo:
Durante a fase de residência alternada, as suas semanas com
Edoardo assentavam num movimento de Sísifo, repetitivo
e desgastante, em que Adriana tinha de desconstruir o que
Alessandro destruía, para depois reconstruir e ver novamente
destruir. Havia dias em que se sentia arcaica, velha de sécu-
los. Nunca sabia o que a esperava às quatro da tarde, quando
visse o filho, mas seria certamente mais do mesmo: medo,
esperança, desespero. Ainda ia tendo capacidade de lamber
as feridas dele, mas até quando, perguntava-se, até quando.
(GANHO, 2021, p. 157)

A guarda partilhada transformava a vida de ambos numa


espécie de bipolaridade não diagnosticada. (GANHO, 2021,
p. 176)

O que mais a chocava aos sábados, depois de Edoardo ter


passado uma semana inteira com o pai, era a violência. A
violência das palavras e gestos do filho e, por reflexo, dos
seus. Ao fim de umas horas a ouvir acusações descabeladas
em que, na boca de Edoardo, Adriana sentia a intensidade do
ódio de Alessandro, dava por si a enervar-se e a ter de sair
da divisão onde estivessem, para respirar fundo e não gritar
com ele, repetindo para si própria: «Ele não tem culpa, ele não

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tem culpa, ele não tem culpa.» Nesses dias, tinha vontade de
sair porta fora e fugir. Vontade de dizer a Alessandro: Toma,
fica com o miúdo, não aguento tanta violência. (GANHO,
2021, p. 184-185)

O pai fundira-lhe o medo do “outro”, dos negros, ciganos,


árabes, dos pobres, sem-abrigo, plantando nele as sementes
do racismo, da xenofobia. Destruindo a simplicidade com que,
antigamente, Edoardo olhava para as pessoas e as descrevia
como brancas, beges ou castanhas, de cabelo amarelo, vermelho
ou preto, e todas as cores eram banais, sem conotações nem
preconceitos. (GANHO, 2021, p. 387-388)

h) as sensações de impunidade e de indiferença, sem falar nas su-


gestões de uma má vontade e uma incompetência cristalinas, transmitidas
pelos tribunais judiciais, que tratam as crianças como marionetes e as mães,
como deslocadas da realidade, num triste retrato de situações constrangedoras
e de pura misoginia a que muitas mulheres são submetidas:
Foi nesse dia que Adriana percebeu que o tribunal não fazia
ideia de quem era o verdadeiro Alessandro; também o juiz
estava sob o efeito dele, preso nos tentáculos do polvo. E,
frustrada, percebeu igualmente que tudo o que escrevia nos
requerimentos era menosprezado pelos magistrados, tratado
como um discurso hiperbólico; o juiz ainda só não conseguira
diagnosticar se as hipérboles eram fruto de uma personalidade
emotiva ou de uma mente calculista.

A voz de Adriana não tinha o selo da autoridade, as suas


palavras careciam de peso. Ela era a «senhora» e Alessandro,
o «senhor doutor», embora tivessem as mesmas habilitações
académicas. Ela era uma mãe histérica e possessiva e ele, um
pai extremoso. (GANHO, 2021, p. 238)

Mas a clarividência surgiu a posteriori. No gabinete, Adriana


sentiu-se encolher na cadeira, reassumindo a sua vulnerabi-
lidade de menina que se escudava na figura protectora. Uma
espécie de regressão ao modo submisso que Alessandro lhe
impusera ao longo dos anos. (GANHO, 2021, p. 557-558)

i) as inúmeras tentativas de Alessandro em controlar o corpo


da mulher e da criança, tentando transformar Edoardo numa espécie de
autômato subserviente à sua vontade, a ponto de não deixar Adriana criar
laços afetivos com Duarte, um biólogo especialista no estudo do ciclo das
cagarras, com quem a protagonista tem um breve romance:
Foi do próprio Edoardo a ideia de irem passar novamente um
fim-de-semana à ilha. Antes de escolherem a data, Adriana
certificou-se de que nem o Pinto, nem o Murta estavam de
serviço. O primeiro, com os seus modos bruscos, poderia
dar azo a mais celeuma e o segundo ficara tão irritado com a
história da mensagem que a sua mulher recebera por Face-
book a acusá-lo de a trair com Adriana, que lhe pedira para
não aparecer no farol quando ele estivesse a trabalhar; não

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queria arranjar mais sarilhos em casa. Duarte combinou com
o Neves que Adriana e o filho ficariam instalados num dos
quartos do farol e Duarte, noutro, como se lá vivesse habi-
tualmente. Assim, poderiam conviver harmoniosamente, sem
que Edoardo se sentisse ameaçado pela presença do biólogo.
(GANHO, 2021, p. 301)

j) os medos sofridos pelo filho, diante da insensibilidade do pai,


que o coloca para ver filmes violentos e decora o seu quarto com figuras
assustadoras, que amedrontam Edoardo desde a mais tenra idade, além de
uma crueldade explícita ao trazer uma pizza para dentro do quarto do hos-
pital, logo depois da operação do filho, com a nítida intenção de provocação:
— Se já não jogas ao GTA — perguntou-lhe ela, desconcerta-
da —, o que é que se passa em casa do teu pai, para voltares
assim, tão violento?

Edoardo encolheu os ombros, baixou os olhos. (GANHO,


2021, p. 497)

Adriana observou-o, perguntando-se se ele não teria perce-


bido o que a enfermeira dissera em português. Dando-lhe o
benefício da dúvida, traduziu a advertência. Alessandro não
respondeu. Daí a pouco, saiu do quarto. Regressou passado
meia hora. Com uma pizza grande. Adriana e Edoardo olha-
ram para ele, pasmados.

— Funghi, a tua preferida — declarou, sentando-se na poltrona


ao lado da cama e abrindo a caixa. O cheiro a queijo derretido
e massa acabada de sair do forno encheu o quarto.

Edoardo olhou para a pizza e da pizza para o pai, perplexo.


Fitou a mãe.

— Queres? — perguntou Alessandro ao filho.

Adriana teve vontade de o esmurrar. Contou até dez, men-


talmente. A sua mãe levantou-se e foi procurar a enfermeira.
Sentindo um desejo avassalador de pedir desculpa a Edoardo,
desculpa por não poder protegê-lo daquela crueldade, Adria-
na deu-lhe a mão. O menino abanou a cabeça, com as faces
escarlates. (GANHO, 2021, p. 511)

k) a descoberta de Adriana da tentativa de sequestro de Edoardo


por Alessandro, bem como das solicitações fraudulentas do marido de se-
gunda via de passaporte e da carteira de vacinação, num plano orquestrado
para retirar a criança do país e leva-la diretamente para o Oriente Médio,
onde seria impossível para uma mulher reaver os seus direitos maternos:
Durante meses, ele incutiu em Edoardo a ideia de que seria
maravilhoso celebrar os doze anos em Nova Iorque, ou em
Los Angeles. Mas Adriana instalou-se dentro da cabeça dele
e sabia, todo o seu corpo lho dizia, que o verdadeiro desti-
no de Alessandro era os Emirados. Um destino escolhido a
dedo, onde uma mulher, uma mãe, não tinha direitos, não

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podia recorrer às autoridades locais para reivindicar a guarda
de uma criança, sobretudo uma criança do sexo masculino.
Nos Emirados, o acesso de Adriana ao próprio filho ser-lhe-
-ia negado, se o pai o decidisse. O plano era genial, pensou.
(GANHO, 2021, p. 544-545)

l) a transformação imediata de Adriana, de uma mulher pacífica


em uma mãe em guerra não só contra um sistema, que se recusa a ajudar
a si e ao seu filho em perigo, mas também contra o machismo, a violência
verbal e psicológica de Alessandro, como uma espécie de reação protetora
sobre ela e Edoardo:
Se Alessandro conseguisse levar Edoardo para um país árabe,
Adriana sabia que não veria o filho durante muito, muito
tempo. E quando voltasse a vê-lo, não seria o mesmo, nada
seria como antes. Alessandro encarregar-se-ia de corromper
Edoardo, de o vergar. Mãe e filho seriam dois desconhecidos.
Chegara a hora de reconhecer que não existia uma solução
pacífica para lidar com um pai como Alessandro. Sete anos
depois, chegara a hora de regressar a tribunal.
Finalmente sentia raiva e, com a raiva, força. Não seria a ví-
tima, a histérica, a deprimida. Não seria Anne, Sylvia. Seria
«a bruxa possuída» de Sexton, assombrando o ar negro, mais
corajosa à noite. Seria Lady Lazarus, a feiticeira de Plath: Cui-
dado./ Das cinzas/ Me ergo com o meu cabelo ruivo/ E devoro
homens como ar.

Seria ela própria, Adriana, sem medo. (GANHO, 2021, p. 546)

m) a percepção chocante da capacidade de Alessandro em planejar


e executar um ato de “violência perversa” (HIRIGOYEN, 2010, p. 47) sobre
seu próprio filho e os efeitos colaterais sentidos por Edoardo:
Adriana achava curioso que, numa época em que se falava
tanto de terrorismo, bullying e violência doméstica, numa
época pautada pela maldade gratuita, as pessoas não estives-
sem preparadas para aceitar a ideia de que um pai pudesse
querer mal a um filho. Que um pai pudesse fazer mal a um
filho. Deliberadamente, por vingança ou perversão. «Pai é
pai», diziam-lhe os ingénuos. «Um pai não deixa que nada
de mal aconteça ao próprio filho.» E ela dava por si a explicar
e, de cada vez que explicava, baixava a voz, e os exemplos
eram sempre dolorosos, por mais que os repetisse. E, depois
da dor, o embaraço por ter tido de partilhar a dor. (GANHO,
2021, p. 542)

Quantas crianças se tornariam depressivas, suicidas, rebeldes,


delinquentes, por causa do ódio de um progenitor. (GANHO,
2021, p. 553)

n) o amadurecimento precoce de Edoardo, concretizado pela


experiência da violência psicológica e física, confirmando, mais uma vez, a
sensação de sufocamento e de apneia, como um dos mecanismos necessá-
rios de sobrevivência e resistência à agressividade do outro, do próprio pai:

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Os pormenores que o angustiavam vinham à tona como bolhas
de ar, rompendo a superfície, e ele partilhava-os. O pedopsi-
quiatra dizia que já nem precisava de uma introdução para que
Edoardo se abrisse; o menino sentava-se e falava, queixava-se
disto e daquilo, relacionava acontecimentos entre si, analisava
factos. A evolução era extraordinária, como se ao dealbar dos
doze anos e da puberdade correspondesse um salto intelectual
incomensurável. (GANHO, 2021, p. 567)

o) a perseguição, as ameaças e o stalking de Alessandro sobre


Adriana e Edoardo, assediando o adolescente nos espaços de convívio, como
a escola e a própria casa, e a força desesperada da mãe em buscar uma rápi-
da e efetiva “medida judicial que protegesse o filho de visitas indesejadas”
(GANHO, 2021, p. 622):
Edoardo enviou uma mensagem ao pai por telemóvel: «Não
te quero ver na escola, nem no bairro, nem em lado nenhum.»
Ao final do dia, recebeu a resposta de Alessandro: uma fo-
tografia de um cão com as patas enfaixadas e o texto «Eis o
que acontece quando se atravessa a estrada sem olhar... duas
pernas partidas!!! Coitada da cadela dos vizinhos. Um beijo,
meu amor». (GANHO, 2021, p. 627)

Alessandro prefere criar toda uma envolvência de terror, fa-


zendo aparições fantasmagóricas, que não podem ser provadas
nem punidas. Impõe a sua presença, sem nunca se mostrar.
Eles sabem que ele pode estar dentro do prédio, dentro da
escola, nas ruas que percorrem, mas é a palavra deles contra
a de Alessandro. Não têm provas. Nunca terão provas. Nunca
saberão se Alessandro tencionava realmente raptar Edoardo e
levá-lo para fora do espaço Schengen, porque Adriana lutou
em todas as frentes para o evitar, sujeitando-se ao diagnóstico
de «paranóica». Nunca saberão se ele os vigia, se os segue,
porque ele se limita a deixar indícios da sua passagem pelos
locais que frequentam. (GANHO, 2021, p. 651-652)

p) a transformação das dúvidas sobre a natureza da violência de


Alessandro imposta sobre Edoardo em certeza, diante da constatação do
ato hediondo do pai sobre o filho. A reação natural de repulsa de Adriana,
somada à sua revolta, cola-se à perspectiva do narrador que, diante da abje-
ção do próprio ato per se, não consegue esconder o sentimento de asco que
o leva adiante na tarefa de narrar o inenarrável:
Quando Edoardo diz, repetidamente, «pedófilo, ele é pedó-
filo», há qualquer coisa dentro dela que bloqueia, incapaz
de computar a palavra. Uma espécie de dissociação. Aquela
palavra não pertence à sua vida, não faz sentido na boca de
Edoardo, não se aplica ao seu marido. O seu cérebro rejeita-a.
O corpo mergulha numa espécie de dormência que cria uma
distância abissal entre si e os seus sentimentos. Será um efeito
do antidepressivo, pensa, será o fármaco que não me deixa
sentir? Assiste, atordoada, à fúria do filho. Tenta mitigá-la, ra-
cionalizando-a, organizando-a sob a forma de vocábulos: Que
aconteceu na Atalaia, no último fim-de-semana? Conta-me.

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«Nada, nada, não aconteceu nada», repete Edoardo, «mas ele
é um pedófilo de merda nojento filho da puta». O garoto é um
disco riscado e ela quer levantar a agulha e libertá-lo daquele
sulco em que caiu, mas não consegue. [...]
Que aconteceu naquela casa? Nada? Tudo? O horror? Quantos
anos teria de esperar para saber a verdade, a extensão do mal?
Dez, vinte? Meses, semanas?
O trauma é um ruído com que as vítimas vivem de manhã
à noite, o ruído da violência sempre presente, ao acordar, ao
deitar, e pelo meio, a tentativa de ser normal. A normalidade
ansiada e que, a cada momento de insegurança ou frustração,
se percebe que está longe de ser uma realidade.
O pedopsiquiatra, a sua psicóloga, o seu irmão dizem-lhe: o
tempo, o tempo das revelações, tem de ser o dele, e pode nunca
chegar. Edoardo pode preferir nunca contar o que aconteceu.
Houve algo que o aterrorizou no pai. O quê o quê o quê o quê
o quê. (GANHO, 2021, p. 617-618)
O inspector voltou para o gabinete e sentou-se. Estendeu-lhe
as folhas. Ela assinou-as, incapaz de ler o texto naquele mo-
mento. Nada do que dissera era importante, comparado com
o que Edoardo contara. A imagem de Alessandro enfiando-se
dentro da cama do filho, seminu, tocando-lhe, instalara-se-
-lhe no cérebro e impunha-se, repugnante, mesmo com os
olhos abertos e os papéis diante de si e a figura expectante
do inspector.
— Porque é que ele não queria que eu soubesse? — murmurou.
— Para não a magoar — disse o inspector.
Não se recorda do caminho para casa. Lembra-se de ter anoi-
tecido no trajecto, e da voz de Edoardo, disparando frases
às rajadas, «consegui contar tudo, mamma», eufórico, sob o
efeito da adrenalina. Ela respeitou o pedido do inspector e não
lhe disse que sabia o que era o «tudo»; esperou, paciente, que
ele desse o passo final e lhe contasse o que contara à Polícia
Judiciária. Fê-lo dois dias depois, com os olhos cheios de lá-
grimas, mas profundamente aliviado, porque o inspector não
só acreditara nele, como lhe explicara que a culpa não era dele,
a culpa nunca era da criança. Ao longo dos meses seguintes,
Adriana repetiria esse mantra vezes sem conta: A culpa não
foi tua, dirigindo-se ao filho, mas também a si, reflectida no
espelho. A culpa não foi tua.
O nojo é pegajoso, cola-se-lhe às recordações, conspurcando
todas as memórias. Cobre a memória do belo, destrói-a. Sobre
o álbum fotográfico mental do casamento derrama-se uma
mancha de óleo que alastra e fede. Não resta nada. (GANHO,
2021, p. 633-635)

Se todas as citações acima indiciam uma violência pulverizada


nos mais diversos graus (a psicológica sobre Adriana e Edoardo, além da
de gênero e a sexual; a propagação de discursos de ódio contra moradores

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de rua, homossexuais, árabes e ciganos) de maneira concreta e direta, sobre
os corpos das personagens, não podemos deixar de considerar também um
outro tipo de violência sentida por eles. Esta, menos explícita, mas igual-
mente nefasta nos seus efeitos, encontra-se nos tribunais e nos meandros
judiciais. Trata-se, no meu entender, de uma espécie de violência institu-
cional e institucionalizada, que dá aos homens plenos poderes de isenção
sobre a agressividade cometida e impõe às mulheres e às crianças situações
penosas e constrangedoras:
Assim que a porta se abre, ao fundo do corredor sombrio, ou-
vem o choro de Edoardo, entrecortado por soluços, ganhando
volume a cada passo. Levantam-se os três de um salto e, aflita,
Adriana olha para a advogada e para o irmão, interrogando-se
em voz alta: «Que aconteceu?!» Aproximam-se do limiar,
no instante em que o menino, escoltado pela funcionária de
capa negra, entra na salinha, destroçado. Precipita-se para a
mãe, fungando:

— Eles torturaram-me, mamma, não acreditaram em mim!


—, arquejando, chora de raiva. — Trataram-me como se eu
fosse mentiroso! (GANHO, 2021, p. 641).
As cenas narradas em Apneia, por mais impactantes que possam
parecer, destacam-se e chocam, não apenas pela situação per se, mas tam-
bém porque não estão distantes de uma realidade vivida por pessoas que
dependem da boa vontade dos agentes judiciários, e nem sempre podem
contar com as respectivas paciências. Em entrevista a Paulo Nóbrega Serra,
é a própria autora que alerta para este detalhe. Ao ser arguida sobre o tempo
de coleta de dados no Tribunal de Família e Menores de Lisboa e no Mi-
nistério Público, além de outros órgãos, Tania Ganho sublinha: “A pesquisa
ocupou-me mais tempo que a escrita. Só escrevo quando consigo pôr-me na
pele das minhas personagens, ter a certeza do que pensam, sentem, fazem”
(apud SERRA, 2021).
Talvez, por isso, por tentar se aproximar dessa realidade, a esperança
no final do túnel não poderia ficar ausente. Na verdade, o encontro com a
promotora pública, responsável por investigar a ausência de pagamento de
pensão para o filho e a sua descoberta do abuso perpetrado por Alessandro
sobre Edoardo, constitui um caso à parte na trama narrativa (“Meses mais
tarde, pensaria novamente: Bem-haja quem trabalha com zelo na justiça”;
GANHO, 2021, p. 616).
Graças a ela, a protagonista pode vislumbrar um outro horizonte
possível. No entanto, se atentarmos para as cenas efabuladas nos espaços
dos tribunais, não será difícil perceber os mecanismos de entrave e de agres-
são performatizados pelos sujeitos de toga. Aqui, vale a pena recuperar o
pensamento de Hannah Arendt, quando, ao dissertar sobre as diferentes
formas de domínio do homem sobre outros homens (e, por conseguinte,
sobre as mulheres), assinala as origens desta forma predatória de controle
no poder absoluto exercido em diferentes momentos pelos Estados-Nações
europeus. Ao identificar o domínio do homem sobre todas as coisas, ela é
cirúrgica ao declarar:

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Hoje devemos acrescentar a mais nova e talvez a mais for-
midável forma desse domínio: a burocracia ou o domínio de
um intrincado sistema de órgãos na qual homem algum pode
ser tido como responsável, e que poderia ser chamado com
muita propriedade o domínio de Ninguém. (Se, de acordo
com o pensamento político, identificarmos a tirania como um
tipo de governo que não responde por seus próprios atos, o
domínio de Ninguém é claramente o mais tirânico de todos,
uma vez que não existe alguém a quem se possa solicitar que
preste contas por aquilo que está sendo feito. É esse estado
de coisas tornando impossível a localização da responsabili-
dade e a identificação do inimigo, que figura entre as mais;
potentes causas da inquietação rebelde que reina em todo o
mundo, de sua natureza caótica, e de sua perigosa tendência
a descontrolar-se. (ARENDT, 1985, p. 20-21)

Ainda que a ênfase da filósofa alemã esteja direcionada à “vio-


lência nos domínios da política” (ARENDT, 1985, p. 19), o seu ensaio abre
um caminho interessante de reflexão para a obra em análise, na medida
em que os movimentos de Adriana nos tribunais de justiça, a forma como
a burocracia atravanca o seu futuro e o do seu filho e os mecanismos que
apenas reforçam a perspectiva dominadora de Alessandro não deixam de se
enquadrar neste “domínio de Ninguém”, onde a voz da mulher, a perspectiva
da mãe e o sofrimento da criança, a maior vítima da violência perpetrada
por um pai possessivo e predador sexual, são relegados a papéis pejorativos
e negativos, afinal, a mulher é sempre a agente do descontrole, e a criança
mostra-se incapaz de dizer a verdade.
É preciso, no entanto, compreender que Apneia não promove uma
demonização dos agentes da justiça, antes, procura acompanhar de perto as
angústias e os medos daqueles que dependem de um processo burocrático
lento e insensível diante das necessidades dos indivíduos. Estes acabam pa-
gando um preço muito alto devido à demora de soluções práticas e efetivas.
Nesse sentido, o medo propicia a presença e confirma um espaço ocupado
pela violência.
Ao analisar os medos presentes no mundo contemporâneo, Zyg-
munt Bauman é preciso e cirúrgico ao declarar que “O que mais amedronta
é a ubiquidade dos medos; eles podem vazar de qualquer canto ou fresta de
nossos lares e de nosso planeta” (BAUMAN, 2008, p. 11). No caso de Apneia,
o medo emerge de dentro do próprio seio familiar, e este, por sua vez, se
encontra marcado pela quebra e pela ruptura da estabilidade. Ainda assim,
é preciso compreender que o romance não lança uma campanha negativa
em relação ao processo de divórcio. O problema ocorre quando, por detrás
da separação, se oculta a mácula da violência, seja ela física e/ou psicológica,
alimentada e favorecida pela lentidão dos processos judiciais.
Recorro, novamente, a Bauman, porque, em Medo líquido, o so-
ciólogo polonês descreve de forma exata algumas situações efabuladas na
trama de Tânia Ganho. Segundo ele,

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Os perigos dos quais se tem medo (e também os medos deriva-
dos que estimulam) podem ser de três tipos. Alguns ameaçam
o corpo e as propriedades. Outros são de natureza mais geral,
ameaçando a durabilidade da ordem social e a confiabilidade
nela, da qual depende a segurança do sustento (renda, em-
prego) ou mesmo da sobrevivência no caso de invalidez ou
velhice. Depois vêm os perigos que ameaçam o lugar da pessoa
no mundo — a posição na hierarquia social, a identidade (de
classe, de gênero, étnica, religiosa) e, de modo mais geral, a
imunidade à degradação e à exclusão sociais. (BAUMAN,
2008, p. 10)

Ora, ao verificar os passos da trama de Apneia, não será difícil


perceber que os três medos acima delineados se encontram na estrutura
romanesca. Se, por um lado, o discurso de ódio de Alessandro sobre ára-
bes, ciganos, moradores de rua e negros insufla um medo desproporcional
e injustificado em Edoardo, a ponto de ele repetir para Adriana o mesmo
conteúdo, e esta ter de reensinar o filho a saber compreender e respeitar a
diferença, não entendo tal articulação da personagem como um medo do
outro ou uma ameaça sobre o seu corpo e a sua propriedade. Na verdade,
este é instaurado pelas atitudes de um marido possessivo, “um predador
sexual” (GANHO, 2021, p. 636), muito inteligente e perspicaz, a ponto de
ocultar uma faceta da própria mulher e dos seus pais.
Também o medo diante da ameaça de Alessandro sobre a durabi-
lidade e a confiança de Adriana e Edoardo na ordem social mais ampla leva
a mãe a insistir na interferência positiva da justiça, recorrendo ao Ministério
Público, a fim de garantir os direitos da criança não só à pensão alimentar,
mas, sobretudo, à segurança no direito de ir e vir, sem sobressaltos ou te-
mores. Graças a essa atitude, vem a revelação impactante de uma violência
levada até às últimas consequências: Alessandro é um pedófilo, e abusa do
filho, sempre que este se encontra sob sua guarda.
Por conseguinte, é o próprio medo do perigo e da ameaça de Ales-
sandro sobre o lugar no mundo ocupado por Adriana e Edoardo que leva
mãe e filho a se refugiarem na ilha, almejando afastar-se completamente do
espectro de um marido violento e vingativo. Interessante observar que, diante
da força truculenta do ex-marido, Adriana opta por um caminho adverso
ao adotado por Alessandro. Enquanto este se refere à ex-esposa com termos
depreciativos e de baixo calão, manda-lhe e-mails agressivos, fala mal de si
para o filho e procura coloca-lo sempre contra ela, criando situações falsas
de despreparo emocional e abandono, Adriana opta por aquilo que Judith
Butler irá chamar de “não-violência” (BUTLER, 2021, p. 13).
Não são poucos os momentos em que o narrador expõe as diferenças
de comportamento entre Alessandro e Adriana. Enquanto o primeiro opta
pela agressividade desmesurada, a segundo resiste com um silêncio firme
e contundente:

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No espaço de uns meses, Alessandro conseguiu que toda a
escola deixasse de dirigir a palavra a Adriana. A história da
ruptura — a versão dele — propagou-se e ela reduziu-se ao
silêncio, como fizera tantas vezes ao longo do casamento,
incapaz de falar da sua vida privada, das suas razões, incapaz
de expor a sua intimidade, a violência que habitava no centro
dessa intimidade. Pareceu-lhe mais correcto coser os lábios/
e não deixar escapulir-se uma palavra ou uma pedra morta.
Assumiu a sua condição de proscrita. (GANHO, 2021, p. 59)

Nesse instante, Adriana tomou consciência de que Edoardo


ocuparia o lugar que ela deixara vago na casa da Atalaia.
Edoardo substituí-la-ia, preencheria a sua função: a de espe-
lho do pai. Alessandro já começara a sujeitá-lo aos seus jogos
mentais, como a sujeitara a ela, só que, agora, o faria a um
ritmo mais intensivo. O primeiro passo seria convencer o filho
de que o pai era a vítima, manipulá-lo para que sentisse pena.
O segundo seria persuadi-lo de que a culpada pelo sofrimento
do pai era a mãe.

A santificação do pai ocorreria em simultâneo com a demo-


nização da mãe. (GANHO, 2021, p. 62)

Enquanto ele berrava, Adriana apercebeu-se de que desli-


gara, porque, de repente, o seu cérebro só captava uma ou
outra palavra — puttana, malata di mente — a torrente de
impropérios. A sua mente foi ocupada por uma ideia fixa,
irreprimível: tinha de fugir. Tinha de fugir, senão morreria
naquele carro, às mãos de Alessandro. Talvez não literalmente,
mas emocionalmente. O seu instinto de sobrevivência reagiu.
(GANHO, 2021, p. 172)

O que a chocava, mais do que a possibilidade da perfídia de


Alessandro, era a sua própria capacidade de imaginar essa
perfídia. O instinto de sobrevivência obrigara-a a identificar
e antecipar os esquemas mentais perversos de Alessandro,
para se proteger e defender deles, e afligia-a a dúvida se essa
sua capacidade significaria que era igual a ele. Se seriam um
monstro com duas cabeças, enredando o filho nas suas tramas
de ódio e subjugação, até se tornarem um mítico cérbero.
(GANHO, 2021, p. 287)

Num meio social em que tantos casais pagavam fortunas para


assegurar que os filhos fossem bilíngues, trilíngues, Alessandro
esforçava-se por reduzir o filho ao monolinguismo, matar a
língua materna, matar a mãe. (GANHO, 2021, p. 386)

Ao se recusar a utilizar os mesmos mecanismos de Alessandro


(mentiras, dissimulação, manipulação e xingamentos), Adriana empreende
uma força contrária, muito mais preocupada em defender o filho. Sua atitude
em não tornar pública “a violência que habitava no centro dessa intimidade”
(GANHO, 2021, p. 59) explica, inclusive, a opção da autora em criar uma
narrativa a partir da heterodiegese. De certo modo, é isto que impulsiona o
narrador de Apneia, não só dar voz aos sufocados por um sistema burocrático

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e às vítimas das mais variadas formas de agressividade, mas também colar-se
nas suas perspectivas e revelar os seus temores, suas ansiedades e suas formas
de resistência. Daí que os gestos da protagonista podem ser compreendidos
na dimensão de “uma posição moral, uma questão de consciência individual
ou das razões invocadas para uma escolha individual de não se envolver de
um modo violento” (BUTLER, 2021, p. 23).
Acredito, nesse sentido, que a trama criada por Tânia Ganho subli-
nha uma personagem aparentemente fraca, mas que, na verdade, é tomada
por uma força protetiva e de autopreservação, muito longe daquele lugar
destinado à mulher como sendo o “sexo frágil”. Se há alguma fragilidade
no início da trama, esta é transformada em força, no momento em que
descobre os planos obscuros de Alessandro. A partir daí, ela entre numa
luta pelo filho com todas as energias possíveis, mesmo reconhecendo, tal
como o narrador faz questão de sublinhar, que “Um divórcio litigioso é uma
carnificina” (GANHO, 2021, p. 177).
Mas, para além desta reação, Adriana é uma personagem artista, é
a pintora capaz de representar a si própria em posições de nudez, completa-
mente despida de qualquer obstáculo, e é também a escritora pesquisadora,
na preparação de uma dissertação de mestrado sobre pintura, literatura e
autorretrato, em obras de autoras e artistas plásticas. Na minha perspectiva,
todo o seu exercício reflexão sobre mulheres que se autorrepresentam em
tempos de violência sobre elas cometida constitui uma forma de Adriana
compreender a sua própria identidade e os percalços de sua trajetória como
mãe e mulher. Escrever sobre mulheres que se autorretratam não deixa de
ser uma forma de escrever sobre si própria.
Não será por acaso, portanto, que o romance de Tânia Ganho traz
um elenco considerável de artistas notáveis, tais como as escritoras Anne
Sexton, Sylvia Plath, A. S. Byatt e Rebecca Solnit; as pintoras surrealistas
Leonora Carrington (com Down Below, “um texto autobiográfico em que a
pintora relata o esgotamento nervoso que sofreu quando o seu companheiro,
Max Ernst, foi enviado, pela segunda vez, para um campo de concentração,
e ela acabou por ser encarcerada num manicómio em Espanha”; GANHO,
2021, p. 364) e Dorothea Tanning (com o quadro “Aniversário”, de 1942,
obra em que “se auto-representa com os seios expostos, envergando uma
saia que parece feita de folhas e gravetos, mas que, ao perto, se vê que são
corpos femininos desnudos”; GANHO, 2021, p. 193).
Além destas, a fotógrafa Francesca Woodman; a pintora Frida
Kahlo (“Interessava-lhe a forma como Kahlo canalizara para a pintura as
suas dores e sofrimento, emergindo, não como uma vítima vulnerável, mas
como uma sobrevivente intrépida. Com o coração partido e a coluna frac-
turada, soubera reinventar-se”; GANHO, 2021, p. 200); a performer Marina
Abramovic (com Rhythm O, conhecida apresentação de 1974 em que a
artista “permaneceu imóvel durante seis horas, de tronco nu”; GANHO,
2021, p. 217); as escritoras norte-americanas Siri Hustvedt (com o seu livro
de memórias, The shaking woman, de 2010) e Meg Wolitzer.

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Artista reconhecida nacional e internacionalmente, Adriana es-
tabelece um jogo especular com a sua própria criação, na medida em que a
sua exposição em Sydney chama-se “O Eu Narcísico”. Gosto de pensar, nesse
sentido, que, se por um lado a relação com Duarte apazigua o sofrimento e
o desgaste passado com Alessandro, por outro, é na arte que ela encontra o
verdadeiro ponto de equilíbrio, refúgio e, ao mesmo tempo, catarse. Não por
acaso, na esteira de uma declaração de Paula Rego recuperada em pensa-
mento, ela “gostaria de examinar, através do meio mais explícito da escrita, o
medo e o sentimento de luto e expropriação inerente a um divórcio. Queria
fazer alquimia: transformar a dor em literatura” (GANHO, 2021, p. 348).
Do mesmo modo que as artistas por ela estudadas, Adriana tam-
bém “escrevia para sentir que recuperava o controlo de sua narrativa, que
se lhe escapava a cada audiência em tribunal, a cada promoção da procu-
radora, a cada despacho do juiz” (GANHO, 2021, p. 348). Para escrever
sobre si própria é necessário observar com atenção àquelas que vieram
antes dela e expuseram, a partir de diferentes manifestações artísticas, os
sofrimentos e as violências impelidas sobre elas. Ela não seria, portanto,
a primeira, mas, a partir do conhecimento de si própria transformado em
escrita, parece que a protagonista quer deixar registrada a memória da
sobrevivência.
Enquanto Alessandro insufla o medo do corpo do outro, como
se este fosse um agente deturpador da harmonia e da estabilidade social,
Adriana aprende com o seu próprio corpo e com a arte reconhecer as dife-
renças e assumir uma autonomia, gestos reprimidos pela agressividade do
ex-marido. Talvez, por isso, ela procura ensinar o filho a gostar-se do que
vê diante do espelho:
A pintura ajudou-a a perder a vergonha, era um exercício
de despudor a que se forçara, no início, como a natação. Na
piscina, tinha de percorrer uns metros entre os balneários e
o tanque de água, de fato de banho, de pele exposta, sob a
luz forte e impiedosa do dia ou do néon, sob os olhares dos
outros utentes, homens, mulheres, gente feia, gente bonita,
gente. Para pintar, despia-se, esquadrinhava o seu reflexo
no espelho, despojava-se do preconceito e do medo. Com
o tempo, a nudez na pintura e na piscina tornou-se natural,
perdeu a mácula.

Gostar do seu corpo fora um processo, um lento processo de


reaprendizagem que, agora, ela tentava transmitir ao filho.
Ensinava-o a gostar, também ele, do seu corpo. Para isso,
tinham ambos de se libertar do olhar clínico e impiedoso de
Alessandro. (GANHO, 2021, p. 477)

Ora, gosto de pensar, neste sentido, que a construção de Adriana


como uma personagem artista aponta para um caminho alternativo e pos-
sível diante de cenários violentos e despóticos. Isto porque a sua reação, seja
pela arte, seja pelo silêncio, não entrando no mesmo caminho de mentiras

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e vingança de Alessandro, pode ser entendido como uma autêntica expres-
são da “força da não-violência” (BUTLER, 2021), tal como o mais recente
ensaio de Judith Butler nos adverte. Partindo, portanto, daquela premissa
de que “quando qualquer um de nós comete atos de violência, está, nesses
e por esses atos, a construir um mundo mais violento” (BUTLER, 2021, p.
27), Adriana repudia a truculência e a agressividade de Alessandro e aposta
numa educação ética, baseada no afeto, na segurança e na firmeza.
A casa da Atalaia, bem como os tribunais por onde esta passa com
o filho, podem ser lidos como um “campo de força da violência”, nos moldes
descritos por Judith Butler, afinal,
[...] quando o mundo se apresenta como um campo de força
de violência, a tarefa da não-violência consiste em encontrar
maneiras de viver e de agir nesse mundo, de tal modo violência
seja limitada ou aperfeiçoada, ou a sua direção contrariada,
precisamente nos momentos em que parece saturar esse mun-
do e não oferecer qualquer saída. O corpo pode ser o vetor
dessa viragem, mas também o discurso, as práticas coletivas,
as infraestruturas e as instituições (BUTLER, 2021, p. 20).

Deste modo, na minha perspectiva, o corpo abusado e violenta-


do de Edoardo e o autorrepresentado na pintura de Adriana emergem em
Apneia não só como vetores de uma viragem possível, mas como imagens
discursivas na contramão da violência instaurada por Alessandro. Mãe e filho
constroem e consolidam um pacto de defesa e sanidade que a truculência
do ex-marido não poderia suportar. Muito atenta à coerência e à logica da
construção romanesca, Tânia Ganho não opta pela passividade absoluta ou
pela indiferença, antes, a sua personagem compreende que a não-violência
não significa uma completa ausência de força. Por isso, o desfecho trágico
não poderia ser outro. É preciso defender a vida, nem que, para isso, seja
necessário eliminar o agressor:
Edoardo imita-a. E exclama, enlevado. A imensidade do céu
a abrir-se por cima deles é redentora. No topo da escarpa,
sentindo o vento desanuviar-lhes a mente e oxigenar-lhes o
corpo, ouvindo as gaivotas que rodopiam em redor, liber-
tam-se do fardo que os verga há tantos anos. Àquela altitude,
sozinhos na ilha remota, alaga-os uma sensação de bem-estar
e esperança. Fecham os olhos. Adriana move o braço e dá uma
palmadinha afectuosa na mão do filho.

— Ma guarda come è bello! — exclama uma voz escarninha.

Alessandro. Adriana e Edoardo dão um salto como se tivessem


levado uma descarga eléctrica. Edoardo põe-se de pé de um
pulo, recua uns passos, tropeçando nas pedras soltas; Adriana
senta-se, atabalhoada, não se consegue levantar, arrasta-se
para trás, de rabo na manta, até ganhar forças e ímpeto para
se erguer. Puxa Edoardo para trás de si, interpondo-se entre
pai e filho.

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— Mãe e filho unidos, que bonito — diz Alessandro, soltando
uma gargalhada desdenhosa. A loucura ressoa-lhe na voz,
baixinho, ainda não se apoderou dele por inteiro, mas começa
a emergir.

Nas costas de Adriano, Edoardo grita:

— Pedófilo de merda! Deixa-nos em paz! — Adriana sente-o


tremer, de medo e raiva. — Quero que tu morras!

Ela abre os braços para ele não sair de trás de si. [...]

Adriana recua, tropeça nos pés do filho, que cambaleia para


trás.

— Estás a assustá-lo, Alex — diz. — Ele tem saudades tuas,


quer estar contigo, não estragues tudo — insiste. Vamos à
Judiciária, eu digo que é tudo mentira, eu inventei tudo.

— Agora é tarde de mais — riposta Alessandro. — O mal


está feito.

— Não — teima Adriana; as sinapses formam um tufão dentro


do seu crânio e deixam-na zonza. — O Edoardo ainda não
foi ouvido pelas perícias. Estás a ouvir-me? Ainda não houve
perícias. — Alessandro levanta os olhos inexpressivos e fixa
o filho por cima do ombro dela. Edoardo faz que sim com a
cabeça, abafando um soluço. — Ele vai às perícias e explica
que eu inventei tudo e o obriguei a mentir. Guarda a arma,
por favor.

Alessandro estica o braço e aponta o revólver à cabeça de


Adriana. Edoardo solta um grito e sai de trás dela.

— Eu vou contigo — berra. — Eu vou contigo.

Adriana tenta puxá-lo pelo braço, mas ele avança para o pai,
de mãos abertas. Ela vê o abismo, a falésia que termina abrup-
tamente. Um bando de gaivotas levanta voo e grita por cima
deles. Alessandro estremece e levanta a cabeça para as seguir.

Ela precipita-se para ele como um animal desembestado,


Edoardo imita-a, agem em uníssono como uma criatura com
duas cabeças, quatro braços. As suas mãos aterram no peito
de Alessandro e empurram-no com toda a força, canalizando
para esse gesto anos e anos de medo e sofrimento. O tempo
suspende-se entre o momento em que lhe tocam e o momento
em que tomam consciência de que ele desapareceu, despenhou-
-se. O ímpeto fê-los cair de joelhos, Adriana sente as palmas
das mãos na terra, as arestas das rochas a enterrarem-se-lhe
na carne. Ao seu lado, Edoardo está caído de bruços, a arfar.
Vira-se e procura a mão dela. Não sabem quanto tempo ficam
assim, estendidos no solo pedregoso, mudos, a olhar para o
céu azul, seguindo as gaivotas lá no alto. (GANHO, 201, p.
681-684)

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Numa sequência ágil e de nítido pendor cinematográfico, a cena
da morte de Alessandro decreta um fim definitivo a serie de agressões co-
metidas pelo ex-marido: “A violência psicológica, os anos de humilhação
em tribunal, os abusos, os pesadelos” (GANHO, 2021, p. 686). Mas, o mais
importante nesse processo é que a legítima defesa de Adriana e Edoardo
possui uma testemunha: “O faroleiro Murta testemunhara a ocorrência, do
cimo do farol, pelos binóculos, e o seu depoimento fora inequívoco: Ales-
sandro apontara uma pistola à ex-mulher e ao filho. Adriana e Edoardo não
tiveram alternativa, a não ser defender-se” (GANHO, 2021, p. 686).
Na verdade, se a arte de Adriana, a sua escrita, a sua forma como
reeducar Edoardo, fora dos extremos de violência concretizados por Ales-
sandro, revelam, na esteira do pensamento de Butler (2021), que os meios
por ela escolhidos para reagir constituem “um modo de resistência a formas
sistémicas de destruição associado ao compromisso para a construção de um
mundo que honre a interdependência global do tipo que incorpora ideais de
liberdade e igualdade económica, social e política” (BUTLER, 2021, p. 28),
então, a reação imediata de defesa do filho acaba por extrapolar a inação e
a passividade.
Por mais chocante que possa parecer, é a morte de Alessandro que
garante à mãe e ao filho uma estabilidade emocional, que nunca puderam
sentir. Por isso, empurrar o ex-marido e fazê-lo despencar para a morte
são atos reveladores de uma preocupação das personagens num futuro de
liberdade e equilíbrio. O fato de ambos provocarem a morte do agressor
confirma, mais uma vez, que “a não-violência não emerge necessariamente
de uma parte da alma pacífica ou calma. Muitas vezes é uma expressão de
fúria, indignação e agressão” (BUTLER, 2021, p. 28). Talvez, por isso, a sen-
sação do leitor seja a de que os meios encontrados por Adriana e Edoardo
indicam que, apelando para uma atitude extremada de fúria em autodefesa,
“as formas de resistência não-violentas poderem e deverem ser agressiva-
mente procuradas” (BUTLER, 2021, p. 28).
Longe de apelar para um happy end, a escritora portuguesa tem
plena consciência da complexidade da matéria ficcional do romance e de-
monstra tal sensibilidade ao mover as suas criaturas para uma busca pelo
equilíbrio psicológico: “Adriana redescobre gradualmente, muito devagar,
a liberdade de decidir. Edoardo regozija-se com essa liberdade” (GANHO,
2021, p. 687).
Gosto de pensar, neste sentido, que, do mesmo modo como Adriana
escreve e pinta com o objetivo de “Criar para combater o destruir” (GANHO,
2021, p. 49), Tânia Ganho escreve sobre a violência doméstica e a de gênero,
sobre o abuso sexual e a pedofilia não para fazer um discurso laudatório ou
mesmo um apanágio desses fenômenos. Trata-se, no meu entender, de uma
obra que não dispensa o enfrentamento direto com o problema, com todas
as possibilidades que a licença poética permite.

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Apneia não é um romance panfletário, nem de propaganda política.
Apneia é um romance necessário que aborda temas problemáticos, complexos
e altamente presentes não apenas na sociedade portuguesa, mas num cenário
global muito mais amplo. Por isso, ainda que reconheçamos alguns espaços
descritos, na verdade, ele não é apenas sobre uma mulher portuguesa e o
seu filho. Tal como a sua criatura, a criadora de Apneia compõe um denso e
tenso romance para combater a destruição que tais males operam nas mais
diferentes células familiares:
A arte de sobreviver não passa pelo esquecimento; consiste em
aprender a viver com o que magoa e, aos poucos, ir desmon-
tando a dor e separando os seus componentes como quem
desarmadilha pacientemente uma bomba. Um dia, sobrarão
apenas as peças, arquivadas em caixas. (GANHO, 2021, p. 689)

Posso mesmo desafiar qualquer leitor a uma pergunta inevitável:


quem de nós nunca encarou ou não conhece uma Adriana, um Edoardo,
vítimas de um Alessandro? Na minha perspectiva, portanto, aqui reside a
consolidação de uma poética romanesca cosmopolita (REAL, 2012), por-
que, ainda que a trama se passe em território português, o seu conteúdo diz
respeito a uma abrangência que ultrapassa as fronteiras geográficas. Aqui
reside o seu impacto e a sua potência, porque não minimiza os problemas, as
ansiedades, os medos e as violências, mas também não entra num exercício
de puro pessimismo, daí que Adriana e Edoardo sejam criaturas movidas
pela “força da não-violência” (BUTLER, 2021), com gestos de resistência,
em que, para sobreviver, é preciso valer-se da emoção do momento e da
reação de legítima defesa em favor da vida.
Nesse sentido, o romance Apneia de Tânia Ganho promove uma
espécie de magnetismo atávico no leitor, na mesma direção das melhores
produções contemporâneas, tal como explicado por Tânia Pellegrini:
A literatura, como sabemos, ao imobilizar ou fixar a vida
por meio do discurso, transforma-a em representação. Nesse
sentido, como ela permite fazer também uma espécie de teste
dos limites da palavra enquanto possibilidade de tradução de
uma dada realidade, em se tratando de uma matéria como
essa, a exploração das possibilidades de transgressão ditada
pelas situações mais extremas — o sexo, a doença, a violência,
a morte — cria temas “necessários” para o escritor (não mais
para o etnógrafo) que, por meio deles, garante um interesse
narrativo (para o leitor) escorado na antiquíssima catarse
aristotélica, em que o terror e a piedade, a atração e a repulsa,
a aceitação e a recusa são movimentos inerentes à sedução
atávica atraindo para o indizível e o interdito, para as regiões
desconhecidas da alma e da vida humanas. (PELLEGRINI,
2008, p. 189)

Concluo, portanto, com a certeza de que estamos diante de mais


uma obra que confirma aquelas “novas identidades de escrita” (SILVA, 2016,
p. 6), que a novíssima ficção portuguesa faz nascer no cenário literário de

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língua portuguesa do século XXI. E com essa mesma sensação contraditória,
mas extremamente saudável, de “aceitação e recusa”, de “terror e piedade”,
retomo Roland Barthes (1988) para pensar que só é possível ler Apneia, de
Tânia Ganho, levantando a cabeça, graças à tradução ficcional operada pela
escritora portuguesa de temas absolutamente necessários ao nosso cotidiano,
ao nosso tempo, ainda que sobrecarregada de situações extremas.
Como bem nos assinala o narrador, Apneia, de Tânia Ganho, é um
romance sobre a “arte de sobreviver”, por isso, torna-se urgente não esquecer,
mas lembrar e alertar sobre a matéria. E a obra em questão constitui uma
sinalização positiva para todos, não apenas aos que sofrem com diferentes
tipos de violência, mas também aos que assistem: é possível resistir com a
não-violência, é possível sobreviver sem perder a esperança.

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VILLODRES, María López. Sete exemplos de masculinidade tóxica que


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tal ao medicinal, 2008. Artigo em Hypertexto. Disponível em: http://www.
infobibos.com/Artigos/2008_4/hibisco/index.htm. Acesso em 28 de maio
de 2023.

Recebido para avaliação em 31/05/2023.


Aprovado para publicação em 15/06/2023.

NOTAS
1 Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa) pela Faculdade de Letras da UFRJ.
Professor Titular de Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Letras da UFSCar.
Coordenador do Grupo de Estudos sobre a Novísisma Ficção Portuguesa (GENFIP/CNPq/
UFSCar). Bolsista Produtividade do CNPq. Presidente da ABRAPLIP – Gestão 2022-2023.
2 Conceito definido por María López Villodres (2019) como uma espécie de masculi-
nidade hegemônica, que se impõe pela agressividade na resolução dos problemas e pela
invulnerabilidade em relação às mulheres e às dissidências sexuais. Tal postura reitera uma
hierarquia do patriarcado, cujos sentimentos dos homens são reprimidos como uma forma
de legitimização do poder.
3 Nascida em Coimbra, Tânia Ganho é Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas,
tendo trabalhado durante vários anos em legendagem para televisão e cinema. Foi assistente
convidada na Universidade de Coimbra, onde leccionou tradução literária, área a que se
dedica há mais de 20 anos. Traduziu autores como Hervé Le Tellier, Angela Davis, Siri Hus-
tvedt, Maya Angelou, Leila Slimani, Chimamanda Adichie, Amor Towles, David Lodge e
Alan Hollinghurst, entre muitos outros. É autora dos romances A vida sem ti (2005), Cuba
Libre (2007), A lucidez do amor (2010), A Mulher-Casa (2012) e Apneia (2020), com o qual
se destacou como finalista do Prémio Livro do Ano 2020, da Editora Bertrand, e do Prémio
Fernando Namora 2021. Tem vários contos publicados na revista Egoísta.
4 De antemão, adianto que a noção de violência aqui adotada vai ao encontro da definição
esboçada por Carme Alemany, para quem, “as violências contra as mulheres devido ao seu
sexo assumem múltiplas formas. Elas englobam todos os atos que, por meio de ameaça,
coação ou força, lhes infligem, na vida privada ou pública, sofrimentos físicos, sexuais ou
psicológicos, com a finalidade de intimidá-las, humilhá-las, atingi-las na sua integridade
física e na sua subjetividade” (ALEMANY, 2009, p. 271). Dentre as variadas maneiras de
manifestação da violência, para além das citadas, ainda incluo a violência de gênero.

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5 Segundo Márcia Vizzotto e Marina Couto Pereira (2008), o hibisco necessita de uma
série de cuidados, seja para uso ornamental, seja para uso medicinal. As duas espécies são
distintas e exigem do seu cultivador atenção e observação no plantio e na manutenção.
Mais informações, consultar o artigo em destaque.
6 Ainda que a narrativa não indique exatamente o nome da ilha, Tânia Ganho revela a sua
inspiração na Ilha de Berlenga, na costa portuguesa, na altura da cidade de Peniche. Como
a própria autora sugere, essa ilha inominada, onde Adriana conhece Duarte, é o “espaço
onde o tempo se suspende e onde Adriana consegue respirar, deixar para trás a violência
da sua relação com Alessandro” (apud SERRA, 2021).
7 Termo condicionado popularmente à condição da mulher, mas que, na verdade, camufla
um discurso machista, misógino e preconceituoso, que, de acordo com Aline Gouveia,
constitui uma “construção social inserida dentro de uma lógica de relação de poder”
(GOUVEIA, 2023).

ABRIL – Revista do NEPA/UFF, Niterói, v.15, n.31, p. 33-61, jul.-dez. 2023 61

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