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ARTIGOS DE TEMA LIVRE / FREE THEMED ARTICLES

DOI: 10.12957/demetra.2018.28663

O Marco de Referência de Educação Alimentar e


Nutricional para Políticas Públicas no Brasil no
contexto do atendimento nutricional
The Food and Nutrition Education Framework for Public Policies in the context of nutritional
care in Brazil

Irene Coutinho de Macedo1 Resumo


Rita de Cássia de Aquino2
O atendimento nutricional contribui para que o indivíduo seja
1
Centro Universitário Senac. São Paulo, SP, agente de suas escolhas alimentares e consciente dos benefícios
Brasil. de uma alimentação saudável e deve ser pautado em documentos
2
Universidade São Judas Tadeu, Curso Mestrado norteadores, tais como o Marco de Referência de Educação
em Ciências do Envelhecimento. São Paulo, SP, Alimentar e Nutricional para Políticas Públicas. Este artigo se
Brasil.
propõe a refletir sobre o atendimento nutricional, discutindo
Correspondência / Correspondence conceitos relevantes como a educação alimentar e nutricional, os
Rita de Cássia de Aquino determinantes do padrão dietético, o aconselhamento e a forma
E-mail: rcaquino@uol.com.br como o Marco de Referência pode colaborar com esse processo.
Os principais pontos de interface entre o Marco e o atendimento
nutricional são a necessidade de compreender as interações e
significados que determinam o comportamento alimentar, não
devendo o atendimento enfatizar apenas os aspectos biológicos
da nutrição. Destaca-se a postura adequada do profissional,
como educador, que favorece a abertura do diálogo e contribui
para o empoderamento, promoção do autocuidado e geração
de autonomia no que tange ao comportamento alimentar.
Considerando a complexidade das escolhas alimentares,
instrumentos que colaborem com o aconselhamento e a educação
alimentar e nutricional podem contribuir de forma significativa
ao acesso democrático a uma alimentação saudável.

Palavras-chave: Educação Alimentar e Nutricional. Nutrição em


Saúde Pública. Políticas Públicas.

Demetra; 2018; 13(1); 21-35 21


Demetra: alimentação, nutrição & saúde

Abstract
Nutritional care contributes to the individual being an agent
of his food choices, aware of the benefits of healthy eating. It
should be guided by documents such as the Marco de Referência
de Educação Alimentar e Nutricional para Políticas Públicas [Food
and Nutrition Education Framework for Public Policies]. This article
aims to reflect on nutritional care, discussing relevant concepts
such as food and nutrition education, the determinants of dietary
pattern, counseling, and how the Framework can contribute with
this process. The main interface points between this document
and nutritional care are the need to understand the interactions
and meanings that determine feeding behavior, and care should
not focus only on biological aspects of nutrition. Emphasis is
placed on the professional’s proper posture as an educator, which
favors the opening of dialogue and contributes to empowerment,
promotion of self-care and generation of autonomy concerning
eating behavior. Considering the complexity of food choices,
instruments that collaborate with counseling and food and
nutrition education can significantly contribute to democratic
access to healthy food.

Keywords: Food and Nutritional Education. Nutrition in Public


Health. Public Policies.

Introdução
De acordo com a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN),1 a Educação Alimentar e
Nutricional (EAN) compõe o elenco de estratégias fundamentais para a promoção da alimentação
adequada e saudável, sendo fundamental no processo de atendimento nutricional. E, apesar do
progresso histórico nas ações no campo da EAN, constatou-se a necessidade de ampliar a discussão
sobre as possibilidades, limites e modos como é realizada nos diversos ambientes e contextos.
Assim, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome coordenou e publicou o Marco
de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas,2 documento norteador
que tem como objetivo promover um campo comum de reflexão e orientação da prática.
Na Epidemiologia das Doenças Crônicas, a alimentação é considerada importante fator
etiológico modificável e uma das principais causas da obesidade.3 Estratégias que envolvam a
alimentação como forma de promoção de saúde são imprescindíveis para a efetividade de políticas
para a vida saudável4,5 e devem ser pautadas na prática da educação alimentar e nutricional (EAN),
viabilizadas pelo atendimento nutricional.

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O Marco de Referência no atendimento nutricional

O atendimento nutricional pode ser definido como o ato de prestar assistência em relação à
alimentação e nutrição de um indivíduo, grupo ou população. Tem como meta viabilizar condutas
que venham promover um padrão alimentar que contribua com a qualidade de vida e que atenda
às necessidades e recomendações nutricionais.
A demanda para o atendimento nutricional tem crescido nos últimos anos e ocupa importante
papel na promoção de saúde, prevenção e tratamento de doenças. A busca por uma alimentação
saudável tem levado a população a procurar por aconselhamento, a fim de rever seus hábitos
alimentares e selecionar os alimentos consumidos.
É importante destacar que a educação alimentar e nutricional deve considerar as diversas
dimensões da alimentação e elementos que compõem o comportamento alimentar. Muito se
conhece sobre os aspectos que são relevantes e determinam o consumo, mas pouco se utiliza no
processo de atendimento. Hábitos são influenciados por determinantes complexos e dinâmicos
que interagem, e a alimentação deve ser entendida não apenas pela contribuição biológica, mas
pelo conjunto das necessidades biopsicossociais que pode representar.
Assim, este artigo se propõe a refletir sobre o atendimento nutricional, apresentando e
discutindo conceitos e pontos de intersecção sobre os temas de Educação Alimentar e Nutricional
apresentados no Marco de referência,2 bem como os determinantes de consumo e os processos de
aconselhamento nutricional nas quais se processam as ações do atendimento nutricional.

Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional


Em 2012, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) publicou o Marco
de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para Políticas Públicas,2 importante documento a
ser utilizado em diversas esferas civis, públicas e acadêmicas no Brasil.
Considerando-se o campo de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN),6 o documento busca um
diálogo entre os diversos programas disponíveis, tendo como base práticas alimentares promotoras
de saúde, que repensem a complexidade da articulação entre políticas públicas e o modo de fazer.7
A necessidade de publicar um documento como o Marco foi apontada por Santos,8 que
enfatizou haver poucas referências que norteassem as políticas públicas: “a educação alimentar
e nutricional está em todos os lugares e, ao mesmo tempo, em lugar nenhum” (p. 688). Porém,
desde sua publicação, ainda se observa uma escassez de trabalhos acadêmicos e científicos que
façam referência ao documento e que ressaltem sua relevância, especialmente no contexto do
atendimento nutricional.

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Demetra: alimentação, nutrição & saúde

O documento sugere a adoção da nomenclatura “Educação Alimentar e Nutricional”,


contraindicando os termos “Educação Alimentar” ou “Educação Nutricional” uma vez que
estes, isolados, podem, no primeiro caso, reforçar apenas os aspectos relacionados ao alimento
e alimentação e, no segundo, apenas os aspectos nutricionais. Essa indicação corrobora um
amplo conceito de educação alimentar e nutricional que contempla desde o contexto no qual será
realizada, os campos de conhecimento, abordagem educativa e o modelo pedagógico, até o espaço
e o público a que se destina.
Observa-se que o Marco não fez referência ao termo “reeducação alimentar”, muitas vezes
utilizado no processo de aconselhamento nutricional e também no meio acadêmico. Santos9 destaca
que não está muito clara, nas bases teóricas na literatura científica, a adequação conceitual deste
termo. No entanto, ao traçar um paralelo entre o conceito de “educação alimentar e nutricional”
estabelecido no Marco e a expressão “reeducação alimentar”, infere-se que não seja adequada tal
utilização. Isso porque o processo educativo presume prática contínua e permanente, implicando
tomada de decisões e consequente transformação da realidade, considerando todas as interações
e significados que compõem o comportamento alimentar. Esse é um percurso que não há como
refazer, reconstruir ou reeducar, e sim fazer a partir de uma nova estrutura, construir a partir
de um novo conhecimento ou educar a partir de novas vivências.
Sobre os campos de práticas da educação alimentar e nutricional (EAN), o Marco2 aponta que
as mesmas podem ocorrer em diversos setores e devem observar os “princípios organizativos e
doutrinários do campo no qual está inserida” (p. 24) e, enquanto Política Pública, a educação
alimentar e nutricional pode ocorrer em diversas áreas da sociedade. Segundo Santos,9 as práticas
desenvolvidas no campo da Nutrição Clínica e Ambulatorial são concebidas em um complexo
contexto de atenção à saúde. É importante considerar que as atividades de atendimento nutricional,
individualizadas ou em grupos, realizadas em ambulatórios das redes institucionais de serviço
público e consultórios privados, devem ser pautadas nas recomendações do documento.
Considerando “alimentação uma prática social, resultante da integração das dimensões
biológica, sociocultural, ambiental e econômica” (p. 31), o Marco2 destaca que a EAN requer uma
abordagem integrada, e por esse motivo, profissionais de diversas áreas podem e devem desenvolver
ações relacionadas. No entanto, quando envolvam indivíduos ou grupos com alguma doença,
onde a EAN seja considerada um recurso terapêutico, as ações devem respeitar as especificidades
regulamentadoras das categorias profissionais.
Em estudo de análise de produção científica brasileira sobre intervenções em educação alimentar
e nutricional (EAN), Cervato-Mancuso et al.10 observaram que houve maior atuação do nutricionista
nas intervenções que apresentaram como pretensão o tratamento de doenças, quando comparados
aos estudos focados na promoção de saúde e alimentação saudável. Os autores inferem que a possível
ampliação de atuação em EAN para outros profissionais, vislumbrada no Marco, pode-se dever ao

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O Marco de Referência no atendimento nutricional

fato de que nutricionistas não vinham desenvolvendo as práticas de forma suficientemente acessíveis
às demandas da sociedade, sendo, portanto, indicada a abertura de ação para outros profissionais.
Sobre a formação dos profissionais da área da saúde, apontam-se desafios a serem superados,
uma vez que são insuficientes os métodos de ensino relacionados à educação alimentar e nutricional
(EAN) e observa-se pouca articulação entre o estudo da Ética, Filosofia, Sociologia e Antropologia
e os aspectos biológicos da Alimentação e Nutrição. Além disso, há predominância da abordagem
biomédica e de estruturas curriculares que não vislumbram que a abordagem de EAN aconteça
de forma transversal entre os componentes curriculares.2
Alguns desses desafios foram apontados por Boog11 na formação do nutricionista, que destacou
predomínio do estudo das ciências biológicas e desvalorização das ciências humanas. Segundo
Navolar et al.,12 a ciência da Nutrição, por estar inserida no modelo “biologicista” e com foco
na doença e no risco, apresenta práticas interventivas restritivas que transformam a EAN em
prescrições de alimentos e suplementos, desarticulando a abordagem do contexto social do sujeito
com suas crenças e história.
Para Santos,13 a abordagem dos aspectos culturais da alimentação presente no Marco é
extremamente relevante, pois permite um “alargamento das formas de ver e pensar a tríade do
comer, alimentar e nutrir e como elas dialogam com as dimensões forjadas pela biomedicina, eixo
central da Ciência da Nutrição desde seu nascimento” (p. 597).
Uma análise de publicações referentes a ações em Educação Alimentar e Nutricional (EAN)
reconhece que há avanços na busca da integralidade do sujeito na sua dimensão biopsicosocial,
com importante contribuição da Psicologia em contraponto ao modelo biomédico vigente. No
entanto, ainda predomina a abordagem fragmentada entre os conhecimentos da área biomédica
e das ciências humanas comportamentais, com abordagens pautadas em informações dietéticas,
nutrientes e grupos alimentares.9,10
Frente a esses desafios, o Marco2 apresenta uma agenda pública voltada para a formação
profissional, estudos e pesquisas na qual se destacam as ações para extensão, que valorizem a
articulação entre saberes populares, comunidades tradicionais e conhecimento técnico-científico.
Nesse contexto, a nova versão do Guia Alimentar para a População Brasileira14 foi elaborada, tendo
em vista o atendimento aos princípios e diretrizes estabelecidos pelo Marco, configurando-se como
instrumento para apoiar ações de educação alimentar e nutricional.
A publicação do Marco2 é um importante passo para direcionar reflexões sobre EAN nos
diversos setores da sociedade e campos de ação. No entanto, apresenta-se como um documento
inacabado e em contínuo processo de construção, uma vez que haverá desdobramentos próprios
que, a partir das novas experiências, aprendizados, princípios e saberes, poderão ser incorporados
na prática do atendimento nutricional.

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Demetra: alimentação, nutrição & saúde

Determinantes do comportamento alimentar


Segundo o Marco,2 a Educação Alimentar e Nutricional deve considerar “as interações e
significados que compõem o comportamento alimentar” (p. 23) uma vez que o
[...] ato de comer, além de satisfazer as necessidades biológicas, é também fonte de prazer, socialização e
expressão cultural, e as características do modo de vida contemporânea influenciam significativamente
o comportamento alimentar (p.14).

No processo educativo do atendimento nutricional, que visa promover a autonomia para


escolhas adequadas, é importante considerar que o comportamento alimentar é determinado
por fatores pessoais, sociais, culturais, econômicos e ambientais e, principalmente, pela interação
entre eles. A alimentação, comumente vinculada à promoção de saúde, muda segundo contextos
históricos, a partir de diferentes formas de construção social, mudanças ambientais e tecnológicas
na sociedade, que podem determinar o consumo alimentar.8,15
É no início da vida que os hábitos alimentares vão sendo formados, desde as primeiras
experiências do aleitamento materno, até o processo de transição para uma alimentação geral,
que será moldada pelas preferências inatas da criança, pelas decisões familiares e contexto social
e afetivo em que esses são experimentados.16-19 É importante destacar a relevância da estrutura
familiar, uma vez que o indivíduo está diariamente exposto a esses padrões e hábitos.
Segundo Rossi et al.,19 os pais servem de modelo para o comportamento alimentar da criança,
uma vez que têm papel fundamental no processo da aprendizagem e na exposição a padrões
alimentares. Para Poulain,17 é na refeição familiar que “as crianças interiorizam as regras e valores
da propriedade, do respeito aos outros, da partilha” (p. 177).
O conhecimento de que os indivíduos dispõem sobre a alimentação, seja ele científico ou popular,
expresso por mitos, crenças e tabus, também determinam, em certa medida, o comportamento
alimentar. Neste item, inserem-se as informações divulgadas pelos meios de comunicação,
especialmente a televisão, que exercem influência na compra e consumo de alimentos.18-20
As características sensoriais dos alimentos como sabor, aparência, odor e textura agradáveis
são os principais preditores da escolha alimentar, principalmente se associadas à memória de
experiências anteriores. A depender do contexto social no qual os alimentos são apresentados e
consumidos, pode haver uma associação de prazer, busca e repetição do alimento quando existe
associação positiva de recompensa, ou seja, uma memória agradável associada ao consumo. Da
mesma maneira, quando o consumo estiver associado a um evento de conflito, possivelmente
haverá rejeição ao alimento.20

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O Marco de Referência no atendimento nutricional

Dentre os determinantes do comportamento alimentar, também estão aqueles relacionados ao


sistema de produção de alimentos, que correspondem ao conjunto de estruturas tecnológicas e
sociais empregadas desde a coleta até a preparação culinária,21 o que Poulain17 define como “canais
nos quais se deslocam os alimentos” (p. 49). Segundo o autor, “os alimentos não se movimentam
sozinhos” (p. 49). O acesso físico e financeiro ao alimento, o desenvolvimento social, a produção
de alimentos, os métodos de aquisição e as transformações culinárias definirão aquilo que o
indivíduo irá consumir.
Fatores biológicos individuais, subdivididos em componentes fisiológicos, patológicos e genéticos,
também determinam o comportamento alimentar. As necessidades nutricionais influenciarão na
quantidade e qualidade da alimentação a ser consumida nos diferentes estágios da vida e condições
fisiológicas ou patológicas.22
No Marco, 2 observa-se uma instigação para a necessidade de discutir e considerar os
determinantes do comportamento alimentar no contexto de EAN. No entanto, a abordagem
sobre este tema limita-se à descrição de que as escolhas alimentares são oriundas das dimensões
individuais (aspectos subjetivos, conhecimento sobre a alimentação e percepções individuais) e
coletivas (fatores econômicos, sociais e culturais). É relevante ampliar a discussão, uma vez que
a educação alimentar e nutricional terá resultados mais eficazes, favorecendo a autonomia de
escolha dos indivíduos, se articulada a estratégias que abranjam esses determinantes que envolvem
o comportamento alimentar.
Para Cervato-Macuso et al.,10 estudos de intervenção educativa que vierem a ser realizados após
a publicação do Marco poderão apresentar resultados que contemplem estratégias mais inclusivas e
problematizadoras, nas quais a pesquisa qualitativa seja fortalecida, evidenciando uma compreensão
mais evidente da complexa rede dos fatores que determinam o comportamento alimentar.

O atendimento nutricional e o aconselhamento dietético


O atendimento nutricional pode ser realizado em vários contextos e ambientes. Segundo a
Resolução no 380/2005 do Conselho Federal de Nutricionistas (CFN),23 o atendimento é definido
como “serviço de informação ou assistência prestado ao cliente ou paciente que necessite de
orientações, informações ou cuidados alimentares e nutricionais específicos”, e inclui a consulta
nutricional. A consulta nutricional é definida como uma
[...] atividade realizada por nutricionista em unidade de ambulatório, ambiente hospitalar, consultório
ou em domicílio para o levantamento de informações que possibilitem o diagnóstico nutricional e o
conhecimento sanitário, a prescrição dietética e orientações individualizadas.23

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Demetra: alimentação, nutrição & saúde

O atendimento nutricional é um processo dinâmico e imprevisível, com diversas linguagens,


que podem auxiliar no cuidado nutricional e ao mesmo tempo criar barreiras. O momento e o
espaço onde é realizado deve favorecer o acesso aos saberes mútuos e partilha dos mesmos.7 O
profissional deve estar aberto para receber o indivíduo e criar um ambiente gentil e receptivo.
É importante realizar inicialmente uma apresentação e colocar-se à disposição para o diálogo e
valorizar a iniciativa de busca de atendimento. Assim, a empatia e a formação de vínculo são os
passos iniciais para estabelecer uma relação de confiança entre os sujeitos envolvidos no processo.
No atendimento, outro ponto importante a ser considerado é a carga emocional dos indivíduos,
pois trazem consigo expectativa, angústia e fragilidade que devem ser identificadas e respeitadas.
Deve-se perceber sinais de nervosismo e ansiedade, observando atitudes como gestos, expressões
faciais e corporais, além do timbre da voz e o excesso de informações ou de silêncio. É importante
reduzir a intensidade desses sentimentos, que podem dificultar o estabelecimento do vínculo
necessário. Após a redução da intensidade do primeiro contato, é importante ouvir a “queixa”
individual, buscando compreender as razões da busca por atendimento e favorecendo o diálogo
para gerar relatos verdadeiros que evite a omissão de informações.24
A relação com o indivíduo deve ser a prioridade no atendimento nutricional e em todas as
ações profissionais. É preciso, antes de tudo, compreender o outro, conhecendo suas queixas e
inquietações, permitindo o desencadeamento do atendimento. Por meio de estratégias e práticas
adequadas, em conjunto com uma adequada formação humanística e no cuidado centrado na
pessoa, o paciente poderá ser estimulado e encorajado a fazer escolhas mais saudáveis em relação
à sua saúde.
Um dos protocolos previstos no atendimento nutricional é a realização da anamnese nutricional,
que pode ser definida como a entrevista e o registro detalhado dos antecedentes fisiológicos,
patológicos e socioeconômico-culturais do paciente e de seus familiares, com a finalidade de facilitar
o diagnóstico nutricional.25 As informações obtidas a partir da anamnese devem servir como base
para a problematização em busca de soluções para o tratamento, apontando-se as alternativas
relacionadas aos hábitos alimentares e de vida de cada indivíduo.2,24 No entanto, como reflexo do
predomínio das ciências biológicas na formação dos profissionais de saúde,11,12 é natural observar
nas anamneses uma atenção maior para os dados antropométricos, clínicos e dietéticos, estes mais
focados nos dados quantitativos do consumo alimentar. O campo de investigação para elementos
sociais, históricos e culturais que influenciam na alimentação é, em muitos casos, reduzido a apenas
uma questão sobre a religião do indivíduo ou sobre sua etnia.
Um dos princípios para as ações de EAN estabelecidos no Marco2 trata da importância
da abordagem do sistema alimentar na sua integralidade. Para isso, é importante ampliar a
investigação no processo de anamnese de forma a identificar elementos que influenciam no
comportamento alimentar ao longo de todo o processo alimentar.

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O Marco de Referência no atendimento nutricional

Na prática, pouco se questiona e se identifica sobre os fatores que influenciam nas escolhas
alimentares representadas pelas interações e significados que compõem o comportamento e o
sistema alimentar na sua integralidade. Esse evento foi observado no estudo de Cervato-Mancuso
et al.10 Os autores relataram que, dentre os estudos de intervenção educativa analisados, a maioria
remetia aos indicadores quantitativos, especialmente sobre consumo alimentar e verificação
antropométrica, ficando em segundo plano as questões comportamentais.
Além da anamnese, faz parte do processo de atendimento nutricional o aconselhamento
dietético, definido por Rodrigues et al.26 como
[...] uma abordagem de educação nutricional, efetuada por meio do diálogo entre o cliente portador de
uma história de vida - que procura ajuda para solucionar problemas de alimentação - e o nutricionista,
preparado para analisar o problema alimentar no contexto biopsicossociocultural da pessoa, que a
auxiliará a explicitar os conflitos que permeiam o problema, a fim de buscar soluções que permitam
integrar as experiências de criação de estratégias para o enfrentamento dos problemas alimentares
na vida cotidiana, buscando um estado de harmonia compatível com a saúde (p. 127).

No entanto, na prática, o aconselhamento é frequentemente realizado de forma prescritiva,


limitada ao que deve ser feito, sem considerar as dimensões que afetam o comportamento. Trata-se
de uma abordagem tradicional da educação fundamentada na transmissão oral e de conhecimento
entre alguém que detém o conhecimento e o transfere àquele que não o tem. O indivíduo não é o foco
de atendimento, mas sim a doença que ele apresenta, que o fragmenta e reduz a responsabilidade
da ação.26 Para Boog,11 esse modelo é o que se conceitua como “orientação nutricional”. Segundo a
autora, a “orientação” difere do termo “educação” pois, embora inserida no processo de educação,
a orientação faz parte de um escopo de ações mais restritas, limitadas ao objetivo de instruir em
casos de uma emergente necessidade de mudança, quando, por exemplo, o indivíduo recebe o
diagnóstico de uma doença para a qual há necessidade de alterações alimentares imediatas.
A arte do aconselhamento não deve se limitar a “proibir” e “permitir”. O aconselhamento deve
ser pautado em um processo dinâmico de educação, respeitando-se os valores biopsicossociais
do indivíduo. Considerando os conceitos adotados por Rodrigues et al.,26 o aconselhamento visa
promover apoio técnico e emocional ao indivíduo no desenvolvimento de sua capacidade pessoal
em realizar suas próprias escolhas alimentares, permitindo uma relação educativa diferenciada e
voltada para a tomada de decisões e atitudes situadas no contexto de suas vivências.
Segundo o Marco,2 a forma como a comunicação é desenvolvida é fundamental para a obtenção
de resultados que favoreçam as escolhas alimentares adequadas e que ultrapassem os limites
da transmissão verbal de informações. A comunicação no contexto da educação alimentar e
nutricional (EAN) deve ser pautada na escuta ativa e próxima, no reconhecimento e valorização
das diferentes formas de saberes e práticas e na busca de soluções contextualizadas. Assim,

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Demetra: alimentação, nutrição & saúde

destaca a importância da valorização do respeito às histórias individuais e o reconhecimento da


legitimidade dos saberes de diferentes naturezas, sem expressão de julgamento imposta pelo
profissional. Segundo Paulo Freire,27 o processo educativo que favorece a autonomia exige do
educador o respeito aos saberes dos educandos.
A atitude de escuta pressupõe a capacidade do profissional em propiciar um espaço para que o
indivíduo possa expressar aquilo que sabe, pensa e sente em relação a suas escolhas alimentares e
responder a suas reais expectativas, dúvidas e necessidades. É importante motivá-lo a expor suas
necessidades e dificuldades para a adoção de práticas e hábitos de vida saudáveis, pois é nesta
relação entre o educador e educando que se estabelece a possibilidade de uma experiência de
problematização do comportamento alimentar e a oportunidade de transformá-la em solução.28,29
No processo de aconselhamento dietético, é necessário compreender os diversos significados
que o indivíduo atribui a suas limitações e possibilidades em resolver os problemas relacionados
à sua alimentação. Para tanto, é fundamental desenvolver uma comunicação competente, isto
é, informações apropriadas às necessidades do indivíduo, além da adequação da linguagem
empregada para favorecer a compreensão do conteúdo.30
O profissional que se dedica ao aconselhamento dietético necessita desenvolver características
pessoais e profissionais que facilitem o processo educativo e o “empoderamento” para escolhas
alimentares adequadas. Um dos princípios do Guia Alimentar para a População Brasileira,14
respaldado pelo Marco, é o reconhecimento de que os guias devem ampliar a autonomia nas
escolhas alimentares, que as pessoas possam buscar as mudanças em si mesmas e terem condições
de governar e conduzir suas próprias vidas, fazendo escolhas que promovam a melhora da
qualidade de vida.
Empatia, tolerância, compreensão e flexibilidade são, portanto, imprescindíveis. Na abordagem,
o indivíduo deve se sentir acolhido e compreendido, e não julgado por suas atitudes alimentares.24
Nesse contexto, o Marco2 aponta para a necessidade de ampliar a discussão sobre o processo de
comunicação em EAN, desenvolvendo novos instrumentos teóricos e metodológicos que abordem
questões relevantes como compartilhamento de saberes e construção de soluções.
O Marco2 infere que a forma de comunicação influencia diretamente nos resultados do
processo educativo e por isso sugere que a mesma seja pautada em uma escuta ativa e próxima,
no reconhecimento de diferentes saberes e práticas, na formação de vínculo entre os diferentes
sujeitos e na busca de soluções contextualizadas.
As práticas educativas devem procurar seguir os princípios para as ações de educação
preconizadas pelo Marco,2 que sugere a promoção do autocuidado e a autonomia como principais
caminhos para garantir o envolvimento do indivíduo nas ações de EAN, gerando situações de
reflexão sobre atitudes e consequente busca de soluções pautadas na problematização.

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O Marco de Referência no atendimento nutricional

A abordagem teórico-pedagógica que vislumbra a ênfase na dialogicidade e autonomia do


sujeito, com utilização de recursos problematizadores, é fundamentada no pensamento de Paulo
Freire.27 Para o educador, “nas condições verdadeiras de aprendizagem os educandos vão se
transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do
educador, igualmente sujeito do processo” (p. 26). Isso somente é possível pelo diálogo horizontal
entre os agentes do processo educativo, no qual existem respeito e mútua busca por alternativas
para a resolução de problemas.
Assim, é necessário desenvolver no indivíduo valores positivos em relação a seus hábitos, que
contribuam com sua autodescoberta e reconhecimento do que pode estar contribuindo com suas
atitudes em relação a suas escolhas alimentares. Toral30 coloca, em seu estudo sobre comportamento
alimentar em adolescentes, que um importante fator a ser desenvolvido durante o aconselhamento
é a autoeficácia do indivíduo, isto é, o desenvolvimento da confiança que ele tem em si mesmo em
relação à sua habilidade para fazer escolhas alimentares saudáveis.
Um dos desafios apresentados no processo de aconselhamento dietético é a adoção da comida
e do alimento como referências, uma vez que
[...] as pessoas, [...], não se alimentam de nutrientes, mas de alimentos e preparações escolhidas e
combinadas de uma maneira particular, com cheiro, cor, temperatura, textura e sabor, se alimentam
também de seus significados e dos aspectos simbólicos.2 (p. 26).

É fundamental, assim, atender ao princípio da valorização da culinária enquanto prática


emancipatória, estabelecido no Marco, 2 pois facilita a reflexão e o exercício das dimensões
sensoriais, cognitivas e simbólicas da alimentação. O desenvolvimento de habilidades culinárias
é estimulado no Guia Alimentar para a População Brasileira14 como uma prática fundamental para
geração de autonomia e ampliação das possibilidades de escolhas para uma alimentação à base
de alimentos in natura.
Estudo realizado por Castro et al.31 identificou que, por meio de culinária, foi possível
proporcionar aos participantes uma experiência de vivência e reflexão sobre as relações entre
alimentação, cultura e saúde, resultando na instrumentalização para as escolhas e práticas
adequadas à promoção da alimentação saudável. Os autores apontam ser factível a utilização da
culinária como eixo estruturante de estratégia educativa, pois desenvolve a autonomia para as
escolhas, além de envolver o sujeito como protagonista do processo.
Como resultado desta reflexão, vislumbra-se um formato de espaço e estrutura física para o
atendimento nutricional nos quais, além de salas equipadas com instrumentos para antropometria
e computadores, deveriam ser instaladas cozinhas onde poderiam ser desenvolvidas preparações
saborosas e ao mesmo tempo saudáveis.31

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Demetra: alimentação, nutrição & saúde

Embora o Marco2 faça referência ao “uso de recursos educacionais” e que seja sabida a
importância da escolha de materiais adequados e estratégias educativas adaptadas segundo recursos
físicos e humanos, o documento não infere sobre materiais ou recursos didáticos que possam ser
utilizados nos processos educativos.
Para Santos,13 o Marco traz à tona a necessidade de reflexão sobre como pensar na formação
de profissionais que possam atuar em práticas educativas que acontecem em um mundo real no
qual os eventos não podem ser controlados, tais como os experimentos laboratoriais. O desafio é
construir indicadores quantitativos e qualitativos pertinentes ao campo que envolve a educação,
exigindo dos pesquisadores a “disposição de lidar com o ineditismo da experiência humana e
estar implicados com sua prática de pesquisa” (p. 599).
No processo de aconselhamento, é preciso assumir o desafio de exercer o papel de educador,
contemplando a preocupação com as representações sobre o comer e a comida, a busca de autonomia
e a aplicação de abordagens problematizadoras, além da abertura de diálogo e construção coletiva
de uma proposta dietética na qual o indivíduo seja o agente de sua transformação e permita a
adoção de comportamentos que contribuam para a sua saúde.9,11,13

Considerações finais
A Educação Alimentar e Nutricional se apresenta como uma das estratégias fundamentais para a
prevenção e controle dos problemas alimentares e nutricionais contemporâneos, sendo fundamental
no processo de atendimento nutricional. No entanto, o atendimento e o aconselhamento dietético
são práticas complexas e desafiadoras que exigem extrapolar a dimensão da informação correta e
ampliar sua ação para o contexto biológico, psicológico, social e cultural do indivíduo. A riqueza
dessa prática está em promover mudanças no pensar, no sentir e no agir.
Nesse contexto, o Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para Políticas Públicas2
vem propiciar maior reflexão sobre a importância do atendimento nutricional na promoção da
saúde da população brasileira e, segundo o documento, “a promoção da alimentação adequada e
saudável é a expressão da cidadania e fator protetor da vida” (p. 36).
É preciso reduzir o hiato que existe entre as informações disponíveis sobre alimentação e o
estado de saúde e nutrição da população. Se, por um lado, as informações sobre alimentação
saudável têm sido amplamente divulgadas, por outro, a epidemia da obesidade e de outras
doenças crônicas vem apresentando progressivo aumento em todas as idades. Tal descompasso
induz ao questionamento de como estratégias de prevenção vêm sendo aplicadas e quais favorecem
efetivamente a incorporação de novos hábitos alimentares. Dentre as estratégias reconhecidas,
o aconselhamento dietético vem sendo apontado como uma prática eficaz e fundamental para a
adoção de atitudes voltadas para o cuidado que o indivíduo tem com si próprio.

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O Marco de Referência no atendimento nutricional

Porém, para uma análise mais efetiva da aplicação dos princípios do Marco no atendimento
nutricional, é necessário ampliar a publicação de estudos que adotem descrição metodológica
que apresentem os elementos suficientes para a compreensão e interpretação de todo o percurso
educativo, incluindo agentes, estratégias educativas, sistemas de avaliação e observação dos aspectos
comportamentais.
Uma orientação bem planejada e individualizada deve permitir que o indivíduo seja agente
de suas escolhas, consciente dos benefícios de hábitos saudáveis e, gradativamente, tenha uma
alimentação que permita promover a saúde e reduzir o risco de doenças.
O atendimento nutricional implica compromisso e deve ser fornecido de forma presencial,
continuada, sistematizada e documentada, com a participação ativa do indivíduo, para obtermelhor
qualidade de vida. Espera-se que o Marco venha a ser um instrumento que contribua com o objetivo
de garantir o acesso à alimentação saudável.

Colaboradores
Macedo IC e Aquino RC realizaram em conjunto a redação do texto e a revisão crítica final.
Conflito de interesses: as autoras declaram não haver conflitos de interesses.

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Recebido: 07 de maio, 2017


Revisado: 26 de setembro, 2017
Aceito: 11 de janeiro, 2018

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