20 anos da ABETH e teoria queer
Denilson Lopes1
Resumo: Na celebração dos vinte anos de ABETH, tentei lembrar os encontros que
levaram à criação da associação e o seu segundo congresso em Brasília com a
publicação de Imagem e Diversidade Sexual em diálogo e com uma estória pessoal
relacionada ao meu primeiro contato com teoria queer, em 1995, em Nova Iorque e sua
emergência e seus desafios no Brasil.
Palavras-chave: ABETH; Teoria Queer; Brasil.
Professor titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do
CNPq e da FAPERJ, autor de Mário Peixoto antes e de pois de Limite (20121), Afetos, Experiências e
Encontros com Filmes Brasileiros Contemporâneos (2016), No Coração do Mundo: Paisagens
Transculturais (2012); A Delicadeza: Estética, Experiência e Paisagens (2007); O Homem que Amava
Rapazes e Outros Ensaios (2002); Nós os Mortos: Melancolia e Neo-Barroco (1999) e co-autor com
André Antonio Barbosa, Pedro Pinheiro Neves e Ricardo Duarte Filho de Inúteis, Frívols e Distantes: à
procura dos Dândis (2019).
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De pronto, digo, que diante dos 20 anos da história da ABETH, minha
participação é relativamente breve e se resume aos seus primeiros congressos:
o
primeiro quando o presidente era Deneval Azevedo, em 2002, realizado em Vitória, na
Universidade Federal do Espírito Santos; e o segundo, em 2004, realizado em Brasília,
na Universidade de Brasília, quando fui presidente. Depois, eu deixei de participar, em
parte, por outros interesses teóricos e motivos profissionais que me levaram a apresentar
trabalhos em outras associações. Só vi algumas mesas, quando estava em Salvador por
conta da curadoria das mostras sobre New Queer Cinema, quando Leandro Colling foi
presidente. E naturalmente, nesta mesa de comemoração.
Uma outra observação inicial é desde que comecei a pensar sobre o que deveria
falar aqui; as lembranças de lugares, dos encontros estão mais claras do que datas e para
várias lembranças tive que recorrer a memória armazenada na internet. Desde já me
desculpem por qualquer equívoco.
Minha história na ABETH está intimamente vinculada com o surgimento de meu
interesse pelos estudos queer. Tanto quanto consigo lembrar, meu primeiro contato mais
decisivo com essa área de estudos aconteceu entre 1995 e 1996, aconteceu quando
estava com bolsa-sanduíche de doutoramento no Centro de Estudos Culturais da City
University of New York, sob a supervisão de George Yudice. Foi em Nova Iorque, em
meio a tantas descobertas pessoais, afetivas e intelectuais, que me deparei com o queer.
A palavra começou a aparecer em vários lugares. Lembro de uma banda chama The
Queers, cujo nome, supostamente, tinha sido dado para rimar com beer (cerveja), mas as
letras das músicas já falavam de ambivalência do desejo. Me lembro em especial de
uma música em que um garoto hetero falava de seu amigo gay apaixonado por ele. Na
universidade, queer aparecia então não só associado a alguns nomes entre os quais o de
Judith Butler é o que mais teve repercussão entre nós, mas também no campo da arte (
vi uma mesa na New School com artistas relacionadas ao que ficou conhecido como o
New Queer Cinema), assim como sua presença no movimento político (por exemplo,
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Queer Nation, criado em Nova Iorque por membros do Act Up, em 1990) que
problematizava uma visão gay e lésbica (a questão trans parecia menos visível) de
classe média, exclusivamente assimilacionista marcada pela conquista de direitos (nos
EUA,
união civil ou casamento, adoção ou constituição de família, aceitação de
LGBTs nas forças armadas). Queer era um claro contraponto ao que podemos chamar
hoje de hetero, homo e trans normatividades e sintetizava o desejo de construção
política de um lugar em que gays, lésbicas e trans, os principais sujeitos políticos então,
pudessem se encontrar com heterossexuais simpatizantes e aliados.
Me interessou o queer porque ele seria pra mim um substituto da sopa de
letrinhas (o feliz título do livro de Regina Facchini) e incluía os simpatizantes ou
heterossexuais não normativos. mas as letrinhas só aumentaram desde os anos 90. Mais
de 30 anos depois de sua emergência chegou talvez a ter uma certa visibilidade no
Brasil, muito em função da polêmica em torno da exposição Queermuseu (2017/2018),
mas muito restrita à universidade, ao campo da arte e, infelizmente, até estabeleceu uma
polarização improdutiva teórica e politicamente entre militantes identitários e
pesquisadores queer, diferente dos EUA. Pra mim era importante não ser anti-identitário
não só em reconhecimento aos movimentos políticos feministas desde o século XIX e
aos pioneiros alemães do movimento gay nos anos 20). Nunca achei identidade uma
limitação, uma classificação, algo não que tolhe, mas que abre possibilidades, é
relacional (a gente é o que a gente a partir de como nós nos vemos, mas como os outros
nos veem). Até hoje eu sinto uma necessidade de ver filmes e séries com personagens
gays, mesmos ruins. Por que? Eu não sei.
Devido à minha proximidade com o cinema, acho importante mencionar o que,
um grupo de jovens cineastas norte-americanos, do qual Karim Aïnouz estava próximo,
foi identificado, com uma forma de fazer filmes que fugisse a como uma temática
LGBT estava chegando na grande mídia. Então, havia quase uma inversão, ao invés de
representações negativas (o ridículo, o criminoso, a vítima, o suicida) apareciam
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representações positivas (novo príncipe encantado das comédias românticas ou a lesbian
chic, tão idealizados como insossos) ao qual iria se somar um novo herói, o ativista. O
New Queer Cinema buscava estória distintas de um padrão narrativo hollywoodiano
hegemônico, que, ao mesmo tempo, eram respostas não documentais, factuais às
transformações em meio aos governos conservadores de Reagan (de 81 a 89) e de Bush
pai (89 a 93) e à pandemia da AIDS, dos quais o que tem uma carreira mais visível é
Todd Haynes.
Meu maior interesse era como os estudos queer e a militância poderiam
contribuir para o conhecimento das artes. Ainda, no programa de estudos de
performance da New York University, em 1995, 1996, foi crucial assistir ao curso Sex
in Public (sim, meus amigos sempre me perguntavam qual era o dever de casa da
semana) oferecido por José Muñoz, então professor recém-contratado, hoje já falecido.
O que foi discutido lá foi fundamental para o seu livro Disidentifications, publicado em
1999, importante contribuição para a relação entre estudos queer e questões
pós-coloniais e raciais.
Na universidade, os livros Gender Troubles (1990) e Bodies that matter (1993)
de Judith Butler desenvolveram, como sabemos, sobretudo a reflexão da subjetividade,
especialmente do gênero, que não era propriamente nova na antropologia ou nos estudos
culturais, como tendo uma dimensão performativa, ao invés de essencialista, na esteira
de um pensamento que coloca o gênero como construção social e histórica. Mas a
autora que mais me estimulou neste momento não foi Butler que fora as polêmicas
torno do documentário Paris is Burning de Jenny Livingstone (1990) sobre o qual
diversos autores escreveram sobre, não me trouxe um olhar importante para a arte.
Questões como a precariedade, a partir de 2011 foram incorporadas com fecundidade ao
campo da arte, mas me parece que seu interesse maior estava mais num campo entre a
filosofia e a política do que nos estudos de arte. De todo modo, acompanhei muito
pouco seu trabalho.
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Nessa busca de uma relação entre a teoria queer e a arte, a autora mais central foi
Eve Kosofsky Sedgwick, que acho ainda não tem nenhum livro traduzido para o
português, estudiosa de literatura inglesa e norte-americana e que faleceu em 2009, por
complicações associadas a um câncer. Nunca teve uma repercussão como Butler, talvez
devido ao seu temperamento, à conversão ao budismo, mesmo quando foi professora na
City University of New York (entre 1998 e 2009) onde foi constituído o CLAGS
(Center for Lesbian and Gay Studies) que se constituiu uma referência como espaço
interdisciplinar de estudos gays e lésbicos e na divulgação da teoria queer. Seu segundo
livro Between Men: English Literature and Male Homosocial Desire (1985), sobre a
homossociabilidade masculina foi muito importante para que eu pudesse pensar uma
homoafetividade masculina quando voltei ao Brasil. Acho que até hoje meu interesse
decisivo era e acho que é sobre a masculinidade e a amizade.
Talvez seja Epistemology of the Closet (1990), seu livro mais ambicioso ao
colocar o armário (closet) como uma categoria teórica. Haveria uma homotransfosbia
teórica? Não por usar nomes e pronomes indevidos, mas algo mais constitutivo ou seria
simplesmente por um certo autoenclausuramento dos estudos de gênero? Como se nos
dissessem: “legal estas questões que você estuda. Solidariedade do ponto de vista
político. Empatia pessoal, mas vamos ser sérios, deixar de bichiches e estudar as
correntes teóricas e autores relevantes!”. O oposto também é lamentável, estudantes de
gênero, que só estudam gênero, Superespecialização é sempre um problema nas
humanidades.
Em Tendencies (1993), estão os controversos ensaios “Jane Austen and the
Masturbating Girl” ou “How to bring your kids up gay: the war on efffeminate boys”,
sobre sexualidade infantil, que merecem ser relidos quando visões moralistas e
fundamentalistas sobre a arte estão tão visíveis tanto nos discursos conservadores,
religiosos
quanto
nos
estudos
e
movimentos
feministas,
LGBTTIQPNA+,
negro-brasileiros. Em conjunto com Feminist Accused of Sexual Harassment de Jane
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Gallop (1997) me ajudaram a repensar o espaço da sala de aula como espaço afetivo e o
quanto as relações intergeracionais estavam sendo cada vez mais podadas e
criminalizadas. Mas um ensaio, em particular, de Tendencies foi, especialmente,
estimulante, “A Poem is being written”, em formato de poema, por pensar um outro tipo
de textualidade, não só associada ao testemunho da primeira pessoa, que ela também
realizou ao fazer uma mistura de diário de terapia e biografia intelectual em A Dialogue
on Love (2000). |Nele aparece uma questão ética e política crucial. Por que ela sempre
se interessou pelo que não era (uma mulher falando sobre masculinidade, branca nos
EUA cuja sensibilidade foi definida pela cultura afro-americana, e como heterossexual
que sempre se sentiu melhor e fazendo parte na companhia de homossexuais)? Mas tudo
que ela não era a fizeram diferente ao invés de visões em que a experiência biográfica se
fecha sobre si mesma.e não um lugar de abertura para o mundo. A experiência, ao
contrário de simplificações realizada através de termos como lugar de fala, nos lembra
Joan Scott em “The evidence of experience” (1991), traduzido para o português, a
experiência do pesquisador é importante, mas não é um selo de autenticidade suficiente
para legitimar a teoria, a crítica, o conhecimento. Infelizmente, a experiência pode se
politizada, mas também pode ser monetizada e espetacularizada. Questões então
levantadas ainda são desafios: em que medida a primeira pessoa pode ser não um
narcisisimo mas uma forma de conhecimento? Como buscar outras formas textuais que
vão do ensaio ao fragmento ao testemunho, à crítica biográfica, à autoetnografia, ao uso
da narrativa, a palestras performáticas etc. Essas leituras me levaram não a recusa de
autores europeus, mas lê-los a partir de uma outra perspectiva, como Michel Foucault e
Roland Barthes.
Na minha volta ao Brasil para concluir minha tese de doutorado em sociologia
na Universidade de Brasília, uma das minhas dúvidas cruciais era saber se poderia
conectar a experiência queer com a produção cultural brasileira. Uma posição para mim
era clara, não queria ser visto como aquele rapaz que falava de autores e obras não
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estudadas no Brasil, que trazia as novidades da metrópole, e usava uma palavra pouco
conhecida que ao ser dita em português sem tradução escondia o seu potencial
contestador. Desde então foi para mim importante pensar se os estudos queer teriam
alguma importância, como deveria ser evitado que eles fossem instrumentalizados numa
outra realidade social e histórica. Como traduzir o queer? como se perguntava Mario
Lugarinho. Guacira Lopes Louro responderia como o estranho (Um Corpo estranho,
2004). Haveria um queer no Brasil do antes do queer nos EUA? Como pensar a
contribuição de Suely Rolnik, Néstor Perlongher entre outros?
Era então fundamental dialogar com a produção artística bem como crítica e
teórica realizada no Brasil que poderia ser lida como queer mesmo quando a palavra não
era explicitamente usada. Minha resposta veio a partir de Devassos no Paraiso (1986,
traduzido para o inglês, hoje em 4ª edição revista e ampliada) de João Silverio Trevisan,
mas que não época estava esgotado. Tinha um xerox que eu consegui, depois que eu
emprestei a primeira edição e não me devolveram. Era uma visão libertária centrada na
arte que trazia um imenso repertório a ser explorado e, em grande parte, desconhecido
por mim pela abordagem que empreendia. Até hoje acho que deve ser o primeiro livro
que alguém interessado na questão queer no Brasil deveria ler.
A partir dele, a ponte foi construída, especialmente no meu caso, pelos escritores
Silviano Santiago, João Gilberto Noll e Caio Fernando Abreu, Com Noll, segui seus
personagens à deriva, na estrada, nem sempre espaços claros, dentro e fora do Brasil.
Sobretudo, ele me ensinou como a experiência entre homens pode dissolver a dualidade
entre homo e heterossexualidade, desde| seu primeiro conto “Alguma coisa
urgentemente” no seu primeiro livro O cego e a dançarina (1980), adaptado para o
cinema em 1984, por Murilo Salles como “Nunca fomos tão felizes”, visão da ditadura
entre uma geração que virou guerrilheira e outra, como a minha, mais interessado no
mundo da mídia, na música pop, na sexualidade. Em Rastros de Verão (1986), a relação
entre um homem e um adolescente se multiplicam em relações: pai e filho, filho e pai,
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irmãos, amigos, amantes, companheiro de viagem. Essa homoafetividade foi a mais rica
possibilidade de pensar relações intergeracionais.
Caio Fernando Abreu desde o fim dos anos 60 até 1996, quando morre, realizou
uma história afetiva do Brasil desde o adolescente tímido do interior do Rio Grande do
Sul, que sofre uma guinada contracultural com direito de viagem a Londres, muita
droga música, até o impacto da Aids, na passagem da vida adulta para a velhice que ele
só pegou o começo, de artista marginal à visibilidade midiática.
Já tinha escrito minha dissertação de mestrado sobre Silviano Santiago, onde se
esboçavam questões como a do camp como base uma estética queer e uma relação entre
experiência estrangeira e sexualidade, distinta da de Noll, uma espécie de sexílio em
Stella Manhattan (1985) e Keith Jarret no Blue Noite (1996) bem como nos seus
ensaios, num cruzamento de uma formação francesa e uma leitura norte e
latino-americana. Não um fetichismo da teoria. Nossa melhor resposta viria talvez não
de uma teoria difícil de ser formulada e aceita geopoliticamente, mas a resposta em
dialogo, num entrelugar, de forma local e cosmopolita, a partir de um material inédito,
como frisava ele, que possa interessar dentro e fora do Brasil, estabelecer um diálogo
comparativo e oferecer uma leitura inesperada. Não ser um divulgador, um comentador
nem um discípulo. A partir de seu ensaio “O homossexual astucioso”, nem todo silencio
era morte, nem toda invisibilidade era repressão.
Procurei reunir essas leituras em O Homem que amava os rapazes e outros
ensaios (2002). Muita gente pensou (e pensa) que era um romance ou uma
autobiografia. Esses ensaios foram minha resposta porque achava que a teoria queer
poderia dizer algo à cultura brasileira. Mas não queria usar a palavra queer no título e
evitei o quanto pude usar nos textos. Apenas para reforçar essa dúvida sobre que termo
usar lembro que quando Christopher Larkosh, tradutor e prof. da Universidade de
Massachusetts em Darmouth, falecido há pouco tempo, Marcelo Secron Bessa, autor de
Histórias Positivas e Perigosos mas nem tanto, dois livros fundamentais sobre a AIDS
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no Brasil, resolvemos propor uma mesa para o congresso da Associação Brasileira de
Literatura Comparada, em 1998, em Florianópolis, e escolhemos o título de Vida
Viadas, Estéticas Bichas reforça a preocupação que mencionei.
Num quadro de maior interesse e visibilidade na sociedade, na mídia e na
universidade sobre as questões de diversidade sexual, a publicação de O Homem que
Amava Rapazes me abriu portas no Brasil e no exterior, para publicar, fazer
conferências, alargar diálogos, enfim. Esse livro não teria sido também possível sem a
série de três encontros inicialmente centradas na relação entre literatura e homoerotismo
(friso esse termo) realizadas em Niterói, na UFF, em 1999, em 2000 e em 2001, onde
gradualmente, o espaço foi se convertendo num lugar interdisciplinar, apesar da
hegemonia dos estudiosos de literatura. Sendo que no último encontro a palavra cultura
substituiu literatura. A partir desses encontros é que foi criada a ABEH, por um
conjunto de então jovens professores, recém-doutores e pós-graduandos, basicamente
homens gays (e não era por falta de interesse na questão lésbica, mas quando nossa
primeira colega ficou mais próxima de nós, Eliane Berutti, profa. da UERJ, ela se
interessava bem mais pelas experiências trans). A palavra homocultura, salvo engano,
foi trazida pelo colega Wilton Garcia, hoje prof. da Uniso, para tentar contemplar essa
abertura. Esses encontros não eram não só trocas intelectuais, mas sempre terminavam
nas noites das cidades onde nós encontrávamos (Niterói, Rio de Janeiro, São Paulo,
Nova Iorque).
Outra atividade importante foi decorrente de passar a pertencer ao comitê da
International Resource Network, organizada a partir do Center for Gay and Lesbian
Studies da City University of New York, pelo qual participei de três encontros, visando
a fomentar um diálogo global entre pesquisadores. O primeiro encontro de que
participei foi na Cidade do México e os seguintes foram em Bangkok e San Juan. Esses
encontros reafirmaram para mim a importância de diálogo com intelectuais
latino-americanos e abriram uma possibilidade mais recente e cada vez mais importante
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no redimensionamento transcultural de meus interesses, ao integrarem a reflexão que
vem do e sobre o Leste asiático.
Em São Paulo, não lembro mais se por causa de encontro da diretoria ou de
algum outro evento, acabamos indo parar na Sogo, que acho que não existe mais que
tinha um térreo com um bar e um andar acima que ficava um labirinto de pequenas salas
de pegação, em que a luz ia gradualmente diminuindo até chegar num darkroom no fim.
(Claro, que todo mundo subiu para o andar de cima ou quase todo mundo, até que pelas
tantas um amigo veio dizer que Wiltinho, Wilton Garcia tava sozinho no bar cochilando,
quase dormindo (então já era casado, o que tinha de trabalhador, não tinha tanto de
resistência noturna). Então toca chamar todo mundo para descer. No fim, tava faltando
um amigo. Então subimos de novo e nada de encontrar. Bom, então outro amigo entrou
na abertura para o darkroom e chamou esse perdido. No fundo do silencio dos gemidos,
veio uma resposta: deixa a menina gozar, demônio. Cinco minutos depois nosso amigo
perdido apareceu embaixo e fomos embora).
Além dos encontros que motivaram a criação da ABEH, nessa época, os poucos
eventos em estudos de gêneros, entre eles o mais importante, o Fazendo Gênero, cujo
primeiro congresso internacional aconteceu em 1994. se concentrava sobretudo numa
abordagem feminista ao falar de gênero. E, é importante, lembrar que a emergência dos
estudos queer se deu tanto como uma crítica aos estudos representacionais gays,
lésbicos e trans bem como ao pouco interesse que o feminismo tinha pela
masculinidade, pelas homossociabilidades e homoafetividades masculinas, termos
importantes então.
Também grupo militantes se multiplicavam. Eu mesmo participei por um breve
tempo no Estruturação em Brasília e no Arco-iris no Rio de Janeiro. E é bom lembrar
que a hoje chamada Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais e Intersexos, designada pela sigla ABGLT, foi criada em 1995 e tinha por
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papel reunir os grupos militantes brasileiros. O que foi mais uma razão pela qual a
ABEH se concentrou em agregar pesquisadores.
No período em que estivemos na diretoria (Wilton Garcia, Sergio Aboud, Mário
Lugarinho e eu), entre 2003 e 2004, nosso esforço (e aqui é importante mencionar a
comissão organizadora da qual fazia parte além de Sergio Aboud, Berenice Bento,
Marcelo Larcher que foi meu aluno na UnB, hoje jornalista, Henrique Codato, então
meu aluno e já falecido, e Luciano Mendes, hoje prof. na Universidade de Brasília).
nosso desejo era afirmar cada vez mais a ABEH como um espaço plural de encontro
para além do grupo fundador. Nessa perspectiva, o congresso foi aberto pelo Prof.
Thomas Waugh da Universidade de Concórdia, especialista em pornografia, e contou
com diversos colegas de diversas regiões do Brasil e fora do Brasil. Estiveram presentes
pesquisadores da Argentina, Peru, México, Inglaterra, EUA, Canadá, de onde veio
nosso palestrante da abertura, e foi, pela primeira vez, novamente se não me engano,
que tivemos apoio financeiro não só de entidades que apoiavam a pesquisa (Capes,
Cnpq, Fapesp) mas de instituições que incluíam. além da própria Universidade de
Brasília, o centro cultural Banco do Brasil de Brasília e a comissão de direitos humanos
da Câmara dos Deputados. (Na época até dinheiro para pagarmos o palestrante da
abertura conseguimos.) Houve 188 trabalhos inscritos e em torno de 300 participantes, 5
vezes mais do que acontecera no primeiro congresso, trabalhos reunidos no livro
Imagem e Diversidade Sexual, infelizmente esgotado e ainda não disponibilizado
online.
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Figura 1: capa do livro.
Como era a primeira vez em que estava à frente da organização de um congresso
maior, a correria foi tão grande que mesmo hoje tenho poucas lembranças mesmo de
amigos meus que estiveram presentes. Acho que a ficha só caiu na festa de
encerramento, organizada por André Costa, então Andre isnt, dj e organizador de festas
eletrônicas, hoje professor de arquitetura na UnB, realizada no subsolo do Conic,
espécie de shopping center então alternativo em Brasília onde havia sedes de sindicatos
e de partidos de esquerda, salas de cinemas, sauna, New Aquarius, a boate gay mais
antiga de Brasília. No Conic, também punks, skatistas e roqueiros de várias tribos se
reuniam, prostitutas, michês e estudantes da primeira faculdade de teatro de Brasília
criada por Dulcina de Moraes, se misturavam. Achávamos que melhor lugar não haveria
para representar o espírito plural que a associação deveria encarnar. Nem sei se
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apresentei nesse congresso, mas me lembro da festa, (exausto, mas contente, logo
ficando no chão da entrada com um garoto. Do fim da noite não lembro de nada. E é
verdade.)
Tentei seguir os tópicos que Bruna Irineu nos pediu. Espero que tenha
conseguido algo de interesse. Por ter ficado tanto tempo afastado é difícil para mim
pensar no hoje e no futuro. Se pudesse destacar algo ainda seria frisar a importância de
se pensar os estudos queer (hoje gosto mais do nome que no século passado) como um
campo inter e transdisciplinar e com uma diversidade teórica...
Quando a ABEH surgiu havia poucos espaços institucionais para se discutir as
experiências LGBTTIQAPN+ e das letrinhas que continuam a aparecer e hoje grande
parte das associações profissionais e de programas pós-graduação já incorporaram esse
debate em mesas, grupos de trabalho, eventos. Talvez o desafio, hoje, seja pensar em
que a ABETH pode trazer que não está nessas associações. Acho crucial também
repensar o formato de apresentações de 15, 20 minutos. A experiência mais satisfatória
acadêmica que tenho tido são os grupos de trabalho da Compós (Associação Nacional
dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação), que se reúnem por dois dias e
onde apenas 10 trabalhos são apresentados. Os trabalhos são disponibilizados previa e
integralmente aos participantes e a cada um é concedida uma hora para apresentação do
autor, do debatedor e para a discussão dos participantes. É uma sugestão que não sei se
contribui.
Não sei se a teoria queer, cuir, decolonial ou descolonial, cis ou trans,
pós-humana, inumana terá futuro. Desconfio que para sobreviver e fazer algum sentido
todas as perspectivas dissidentes deverão responder ao ódio com diálogo, saber escolher
os inimigos, comprar as lutas que valem à pena, não se provincianizar nem se
mediocrizar diante da crise política, econômica e cultural que vivemos, longe do
vitimismo e do ressentimento, dos fundamentalismos religiosos e minoritários.
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No fundo, eu acho que gênero e seu corolário deveria desaparecer. Por isso
transitei para o campo das sensações, dos afetos e das sensibilidades e não tanto dos
conceitos, dos slogans e palavras de ordem. Ou talvez isso não seja tão importante
assim.
O importante é não esquecer dos encontros presenciais ou virtuais, da busca de
outras formas de viver, de outros tempos.
Deixem as meninas, meninos, menines gozarem! Essa frase é ótima e acho que
vou lembrar até o final dos tempos.
20 years of ABETH and queer theory
Abstract: At the celebration of twenty years of ABETH, I have tried to remember the
encounters that led to the creation of the association and its second congress in Brasilia
with the publication of Image and Sexual Diversity in dialogue with a personal story
related to my first contact with queer theory, in 1995, in New York and its uprising and
challenges in Brazil.
Keywords: ABETH; Queer Theory; Brazil.
Recebido: 30/11/2022
Aceito: 01/12/2022
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