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20 anos da ABETH e teoria queer

2022, REBEH - Revista Brasileira de Estudos de Homocultura

: At the celebration of twenty years of ABETH (Brazilian Association of Trans-Homoculture Studies), I have tried to remember the encounters that led to the creation of the association and its second congress in Brasilia with the publication of Image and Sexual Diversity in dialogue with a personal story related to my first contact with queer theory, in 1995, in New York and its uprising and challenges in Brazil.

20 anos da ABETH e teoria queer Denilson Lopes1 Resumo: Na celebração dos vinte anos de ABETH, tentei lembrar os encontros que levaram à criação da associação e o seu segundo congresso em Brasília com a publicação de Imagem e Diversidade Sexual em diálogo e com uma estória pessoal relacionada ao meu primeiro contato com teoria queer, em 1995, em Nova Iorque e sua emergência e seus desafios no Brasil. Palavras-chave: ABETH; Teoria Queer; Brasil. Professor titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do CNPq e da FAPERJ, autor de Mário Peixoto antes e de pois de Limite (20121), Afetos, Experiências e Encontros com Filmes Brasileiros Contemporâneos (2016), No Coração do Mundo: Paisagens Transculturais (2012); A Delicadeza: Estética, Experiência e Paisagens (2007); O Homem que Amava Rapazes e Outros Ensaios (2002); Nós os Mortos: Melancolia e Neo-Barroco (1999) e co-autor com André Antonio Barbosa, Pedro Pinheiro Neves e Ricardo Duarte Filho de Inúteis, Frívols e Distantes: à procura dos Dândis (2019). 1 Vol. 05, N. 18, Set. - Dez., 2022 - http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/index 134 De pronto, digo, que diante dos 20 anos da história da ABETH, minha participação é relativamente breve e se resume aos seus primeiros congressos: o primeiro quando o presidente era Deneval Azevedo, em 2002, realizado em Vitória, na Universidade Federal do Espírito Santos; e o segundo, em 2004, realizado em Brasília, na Universidade de Brasília, quando fui presidente. Depois, eu deixei de participar, em parte, por outros interesses teóricos e motivos profissionais que me levaram a apresentar trabalhos em outras associações. Só vi algumas mesas, quando estava em Salvador por conta da curadoria das mostras sobre New Queer Cinema, quando Leandro Colling foi presidente. E naturalmente, nesta mesa de comemoração. Uma outra observação inicial é desde que comecei a pensar sobre o que deveria falar aqui; as lembranças de lugares, dos encontros estão mais claras do que datas e para várias lembranças tive que recorrer a memória armazenada na internet. Desde já me desculpem por qualquer equívoco. Minha história na ABETH está intimamente vinculada com o surgimento de meu interesse pelos estudos queer. Tanto quanto consigo lembrar, meu primeiro contato mais decisivo com essa área de estudos aconteceu entre 1995 e 1996, aconteceu quando estava com bolsa-sanduíche de doutoramento no Centro de Estudos Culturais da City University of New York, sob a supervisão de George Yudice. Foi em Nova Iorque, em meio a tantas descobertas pessoais, afetivas e intelectuais, que me deparei com o queer. A palavra começou a aparecer em vários lugares. Lembro de uma banda chama The Queers, cujo nome, supostamente, tinha sido dado para rimar com beer (cerveja), mas as letras das músicas já falavam de ambivalência do desejo. Me lembro em especial de uma música em que um garoto hetero falava de seu amigo gay apaixonado por ele. Na universidade, queer aparecia então não só associado a alguns nomes entre os quais o de Judith Butler é o que mais teve repercussão entre nós, mas também no campo da arte ( vi uma mesa na New School com artistas relacionadas ao que ficou conhecido como o New Queer Cinema), assim como sua presença no movimento político (por exemplo, Vol. 05, N. 18, Set. - Dez., 2022 - http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/index 135 Queer Nation, criado em Nova Iorque por membros do Act Up, em 1990) que problematizava uma visão gay e lésbica (a questão trans parecia menos visível) de classe média, exclusivamente assimilacionista marcada pela conquista de direitos (nos EUA, união civil ou casamento, adoção ou constituição de família, aceitação de LGBTs nas forças armadas). Queer era um claro contraponto ao que podemos chamar hoje de hetero, homo e trans normatividades e sintetizava o desejo de construção política de um lugar em que gays, lésbicas e trans, os principais sujeitos políticos então, pudessem se encontrar com heterossexuais simpatizantes e aliados. Me interessou o queer porque ele seria pra mim um substituto da sopa de letrinhas (o feliz título do livro de Regina Facchini) e incluía os simpatizantes ou heterossexuais não normativos. mas as letrinhas só aumentaram desde os anos 90. Mais de 30 anos depois de sua emergência chegou talvez a ter uma certa visibilidade no Brasil, muito em função da polêmica em torno da exposição Queermuseu (2017/2018), mas muito restrita à universidade, ao campo da arte e, infelizmente, até estabeleceu uma polarização improdutiva teórica e politicamente entre militantes identitários e pesquisadores queer, diferente dos EUA. Pra mim era importante não ser anti-identitário não só em reconhecimento aos movimentos políticos feministas desde o século XIX e aos pioneiros alemães do movimento gay nos anos 20). Nunca achei identidade uma limitação, uma classificação, algo não que tolhe, mas que abre possibilidades, é relacional (a gente é o que a gente a partir de como nós nos vemos, mas como os outros nos veem). Até hoje eu sinto uma necessidade de ver filmes e séries com personagens gays, mesmos ruins. Por que? Eu não sei. Devido à minha proximidade com o cinema, acho importante mencionar o que, um grupo de jovens cineastas norte-americanos, do qual Karim Aïnouz estava próximo, foi identificado, com uma forma de fazer filmes que fugisse a como uma temática LGBT estava chegando na grande mídia. Então, havia quase uma inversão, ao invés de representações negativas (o ridículo, o criminoso, a vítima, o suicida) apareciam Vol. 05, N. 18, Set. - Dez., 2022 - http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/index 136 representações positivas (novo príncipe encantado das comédias românticas ou a lesbian chic, tão idealizados como insossos) ao qual iria se somar um novo herói, o ativista. O New Queer Cinema buscava estória distintas de um padrão narrativo hollywoodiano hegemônico, que, ao mesmo tempo, eram respostas não documentais, factuais às transformações em meio aos governos conservadores de Reagan (de 81 a 89) e de Bush pai (89 a 93) e à pandemia da AIDS, dos quais o que tem uma carreira mais visível é Todd Haynes. Meu maior interesse era como os estudos queer e a militância poderiam contribuir para o conhecimento das artes. Ainda, no programa de estudos de performance da New York University, em 1995, 1996, foi crucial assistir ao curso Sex in Public (sim, meus amigos sempre me perguntavam qual era o dever de casa da semana) oferecido por José Muñoz, então professor recém-contratado, hoje já falecido. O que foi discutido lá foi fundamental para o seu livro Disidentifications, publicado em 1999, importante contribuição para a relação entre estudos queer e questões pós-coloniais e raciais. Na universidade, os livros Gender Troubles (1990) e Bodies that matter (1993) de Judith Butler desenvolveram, como sabemos, sobretudo a reflexão da subjetividade, especialmente do gênero, que não era propriamente nova na antropologia ou nos estudos culturais, como tendo uma dimensão performativa, ao invés de essencialista, na esteira de um pensamento que coloca o gênero como construção social e histórica. Mas a autora que mais me estimulou neste momento não foi Butler que fora as polêmicas torno do documentário Paris is Burning de Jenny Livingstone (1990) sobre o qual diversos autores escreveram sobre, não me trouxe um olhar importante para a arte. Questões como a precariedade, a partir de 2011 foram incorporadas com fecundidade ao campo da arte, mas me parece que seu interesse maior estava mais num campo entre a filosofia e a política do que nos estudos de arte. De todo modo, acompanhei muito pouco seu trabalho. Vol. 05, N. 18, Set. - Dez., 2022 - http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/index 137 Nessa busca de uma relação entre a teoria queer e a arte, a autora mais central foi Eve Kosofsky Sedgwick, que acho ainda não tem nenhum livro traduzido para o português, estudiosa de literatura inglesa e norte-americana e que faleceu em 2009, por complicações associadas a um câncer. Nunca teve uma repercussão como Butler, talvez devido ao seu temperamento, à conversão ao budismo, mesmo quando foi professora na City University of New York (entre 1998 e 2009) onde foi constituído o CLAGS (Center for Lesbian and Gay Studies) que se constituiu uma referência como espaço interdisciplinar de estudos gays e lésbicos e na divulgação da teoria queer. Seu segundo livro Between Men: English Literature and Male Homosocial Desire (1985), sobre a homossociabilidade masculina foi muito importante para que eu pudesse pensar uma homoafetividade masculina quando voltei ao Brasil. Acho que até hoje meu interesse decisivo era e acho que é sobre a masculinidade e a amizade. Talvez seja Epistemology of the Closet (1990), seu livro mais ambicioso ao colocar o armário (closet) como uma categoria teórica. Haveria uma homotransfosbia teórica? Não por usar nomes e pronomes indevidos, mas algo mais constitutivo ou seria simplesmente por um certo autoenclausuramento dos estudos de gênero? Como se nos dissessem: “legal estas questões que você estuda. Solidariedade do ponto de vista político. Empatia pessoal, mas vamos ser sérios, deixar de bichiches e estudar as correntes teóricas e autores relevantes!”. O oposto também é lamentável, estudantes de gênero, que só estudam gênero, Superespecialização é sempre um problema nas humanidades. Em Tendencies (1993), estão os controversos ensaios “Jane Austen and the Masturbating Girl” ou “How to bring your kids up gay: the war on efffeminate boys”, sobre sexualidade infantil, que merecem ser relidos quando visões moralistas e fundamentalistas sobre a arte estão tão visíveis tanto nos discursos conservadores, religiosos quanto nos estudos e movimentos feministas, LGBTTIQPNA+, negro-brasileiros. Em conjunto com Feminist Accused of Sexual Harassment de Jane Vol. 05, N. 18, Set. - Dez., 2022 - http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/index 138 Gallop (1997) me ajudaram a repensar o espaço da sala de aula como espaço afetivo e o quanto as relações intergeracionais estavam sendo cada vez mais podadas e criminalizadas. Mas um ensaio, em particular, de Tendencies foi, especialmente, estimulante, “A Poem is being written”, em formato de poema, por pensar um outro tipo de textualidade, não só associada ao testemunho da primeira pessoa, que ela também realizou ao fazer uma mistura de diário de terapia e biografia intelectual em A Dialogue on Love (2000). |Nele aparece uma questão ética e política crucial. Por que ela sempre se interessou pelo que não era (uma mulher falando sobre masculinidade, branca nos EUA cuja sensibilidade foi definida pela cultura afro-americana, e como heterossexual que sempre se sentiu melhor e fazendo parte na companhia de homossexuais)? Mas tudo que ela não era a fizeram diferente ao invés de visões em que a experiência biográfica se fecha sobre si mesma.e não um lugar de abertura para o mundo. A experiência, ao contrário de simplificações realizada através de termos como lugar de fala, nos lembra Joan Scott em “The evidence of experience” (1991), traduzido para o português, a experiência do pesquisador é importante, mas não é um selo de autenticidade suficiente para legitimar a teoria, a crítica, o conhecimento. Infelizmente, a experiência pode se politizada, mas também pode ser monetizada e espetacularizada. Questões então levantadas ainda são desafios: em que medida a primeira pessoa pode ser não um narcisisimo mas uma forma de conhecimento? Como buscar outras formas textuais que vão do ensaio ao fragmento ao testemunho, à crítica biográfica, à autoetnografia, ao uso da narrativa, a palestras performáticas etc. Essas leituras me levaram não a recusa de autores europeus, mas lê-los a partir de uma outra perspectiva, como Michel Foucault e Roland Barthes. Na minha volta ao Brasil para concluir minha tese de doutorado em sociologia na Universidade de Brasília, uma das minhas dúvidas cruciais era saber se poderia conectar a experiência queer com a produção cultural brasileira. Uma posição para mim era clara, não queria ser visto como aquele rapaz que falava de autores e obras não Vol. 05, N. 18, Set. - Dez., 2022 - http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/index 139 estudadas no Brasil, que trazia as novidades da metrópole, e usava uma palavra pouco conhecida que ao ser dita em português sem tradução escondia o seu potencial contestador. Desde então foi para mim importante pensar se os estudos queer teriam alguma importância, como deveria ser evitado que eles fossem instrumentalizados numa outra realidade social e histórica. Como traduzir o queer? como se perguntava Mario Lugarinho. Guacira Lopes Louro responderia como o estranho (Um Corpo estranho, 2004). Haveria um queer no Brasil do antes do queer nos EUA? Como pensar a contribuição de Suely Rolnik, Néstor Perlongher entre outros? Era então fundamental dialogar com a produção artística bem como crítica e teórica realizada no Brasil que poderia ser lida como queer mesmo quando a palavra não era explicitamente usada. Minha resposta veio a partir de Devassos no Paraiso (1986, traduzido para o inglês, hoje em 4ª edição revista e ampliada) de João Silverio Trevisan, mas que não época estava esgotado. Tinha um xerox que eu consegui, depois que eu emprestei a primeira edição e não me devolveram. Era uma visão libertária centrada na arte que trazia um imenso repertório a ser explorado e, em grande parte, desconhecido por mim pela abordagem que empreendia. Até hoje acho que deve ser o primeiro livro que alguém interessado na questão queer no Brasil deveria ler. A partir dele, a ponte foi construída, especialmente no meu caso, pelos escritores Silviano Santiago, João Gilberto Noll e Caio Fernando Abreu, Com Noll, segui seus personagens à deriva, na estrada, nem sempre espaços claros, dentro e fora do Brasil. Sobretudo, ele me ensinou como a experiência entre homens pode dissolver a dualidade entre homo e heterossexualidade, desde| seu primeiro conto “Alguma coisa urgentemente” no seu primeiro livro O cego e a dançarina (1980), adaptado para o cinema em 1984, por Murilo Salles como “Nunca fomos tão felizes”, visão da ditadura entre uma geração que virou guerrilheira e outra, como a minha, mais interessado no mundo da mídia, na música pop, na sexualidade. Em Rastros de Verão (1986), a relação entre um homem e um adolescente se multiplicam em relações: pai e filho, filho e pai, Vol. 05, N. 18, Set. - Dez., 2022 - http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/index 140 irmãos, amigos, amantes, companheiro de viagem. Essa homoafetividade foi a mais rica possibilidade de pensar relações intergeracionais. Caio Fernando Abreu desde o fim dos anos 60 até 1996, quando morre, realizou uma história afetiva do Brasil desde o adolescente tímido do interior do Rio Grande do Sul, que sofre uma guinada contracultural com direito de viagem a Londres, muita droga música, até o impacto da Aids, na passagem da vida adulta para a velhice que ele só pegou o começo, de artista marginal à visibilidade midiática. Já tinha escrito minha dissertação de mestrado sobre Silviano Santiago, onde se esboçavam questões como a do camp como base uma estética queer e uma relação entre experiência estrangeira e sexualidade, distinta da de Noll, uma espécie de sexílio em Stella Manhattan (1985) e Keith Jarret no Blue Noite (1996) bem como nos seus ensaios, num cruzamento de uma formação francesa e uma leitura norte e latino-americana. Não um fetichismo da teoria. Nossa melhor resposta viria talvez não de uma teoria difícil de ser formulada e aceita geopoliticamente, mas a resposta em dialogo, num entrelugar, de forma local e cosmopolita, a partir de um material inédito, como frisava ele, que possa interessar dentro e fora do Brasil, estabelecer um diálogo comparativo e oferecer uma leitura inesperada. Não ser um divulgador, um comentador nem um discípulo. A partir de seu ensaio “O homossexual astucioso”, nem todo silencio era morte, nem toda invisibilidade era repressão. Procurei reunir essas leituras em O Homem que amava os rapazes e outros ensaios (2002). Muita gente pensou (e pensa) que era um romance ou uma autobiografia. Esses ensaios foram minha resposta porque achava que a teoria queer poderia dizer algo à cultura brasileira. Mas não queria usar a palavra queer no título e evitei o quanto pude usar nos textos. Apenas para reforçar essa dúvida sobre que termo usar lembro que quando Christopher Larkosh, tradutor e prof. da Universidade de Massachusetts em Darmouth, falecido há pouco tempo, Marcelo Secron Bessa, autor de Histórias Positivas e Perigosos mas nem tanto, dois livros fundamentais sobre a AIDS Vol. 05, N. 18, Set. - Dez., 2022 - http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/index 141 no Brasil, resolvemos propor uma mesa para o congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada, em 1998, em Florianópolis, e escolhemos o título de Vida Viadas, Estéticas Bichas reforça a preocupação que mencionei. Num quadro de maior interesse e visibilidade na sociedade, na mídia e na universidade sobre as questões de diversidade sexual, a publicação de O Homem que Amava Rapazes me abriu portas no Brasil e no exterior, para publicar, fazer conferências, alargar diálogos, enfim. Esse livro não teria sido também possível sem a série de três encontros inicialmente centradas na relação entre literatura e homoerotismo (friso esse termo) realizadas em Niterói, na UFF, em 1999, em 2000 e em 2001, onde gradualmente, o espaço foi se convertendo num lugar interdisciplinar, apesar da hegemonia dos estudiosos de literatura. Sendo que no último encontro a palavra cultura substituiu literatura. A partir desses encontros é que foi criada a ABEH, por um conjunto de então jovens professores, recém-doutores e pós-graduandos, basicamente homens gays (e não era por falta de interesse na questão lésbica, mas quando nossa primeira colega ficou mais próxima de nós, Eliane Berutti, profa. da UERJ, ela se interessava bem mais pelas experiências trans). A palavra homocultura, salvo engano, foi trazida pelo colega Wilton Garcia, hoje prof. da Uniso, para tentar contemplar essa abertura. Esses encontros não eram não só trocas intelectuais, mas sempre terminavam nas noites das cidades onde nós encontrávamos (Niterói, Rio de Janeiro, São Paulo, Nova Iorque). Outra atividade importante foi decorrente de passar a pertencer ao comitê da International Resource Network, organizada a partir do Center for Gay and Lesbian Studies da City University of New York, pelo qual participei de três encontros, visando a fomentar um diálogo global entre pesquisadores. O primeiro encontro de que participei foi na Cidade do México e os seguintes foram em Bangkok e San Juan. Esses encontros reafirmaram para mim a importância de diálogo com intelectuais latino-americanos e abriram uma possibilidade mais recente e cada vez mais importante Vol. 05, N. 18, Set. - Dez., 2022 - http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/index 142 no redimensionamento transcultural de meus interesses, ao integrarem a reflexão que vem do e sobre o Leste asiático. Em São Paulo, não lembro mais se por causa de encontro da diretoria ou de algum outro evento, acabamos indo parar na Sogo, que acho que não existe mais que tinha um térreo com um bar e um andar acima que ficava um labirinto de pequenas salas de pegação, em que a luz ia gradualmente diminuindo até chegar num darkroom no fim. (Claro, que todo mundo subiu para o andar de cima ou quase todo mundo, até que pelas tantas um amigo veio dizer que Wiltinho, Wilton Garcia tava sozinho no bar cochilando, quase dormindo (então já era casado, o que tinha de trabalhador, não tinha tanto de resistência noturna). Então toca chamar todo mundo para descer. No fim, tava faltando um amigo. Então subimos de novo e nada de encontrar. Bom, então outro amigo entrou na abertura para o darkroom e chamou esse perdido. No fundo do silencio dos gemidos, veio uma resposta: deixa a menina gozar, demônio. Cinco minutos depois nosso amigo perdido apareceu embaixo e fomos embora). Além dos encontros que motivaram a criação da ABEH, nessa época, os poucos eventos em estudos de gêneros, entre eles o mais importante, o Fazendo Gênero, cujo primeiro congresso internacional aconteceu em 1994. se concentrava sobretudo numa abordagem feminista ao falar de gênero. E, é importante, lembrar que a emergência dos estudos queer se deu tanto como uma crítica aos estudos representacionais gays, lésbicos e trans bem como ao pouco interesse que o feminismo tinha pela masculinidade, pelas homossociabilidades e homoafetividades masculinas, termos importantes então. Também grupo militantes se multiplicavam. Eu mesmo participei por um breve tempo no Estruturação em Brasília e no Arco-iris no Rio de Janeiro. E é bom lembrar que a hoje chamada Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos, designada pela sigla ABGLT, foi criada em 1995 e tinha por Vol. 05, N. 18, Set. - Dez., 2022 - http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/index 143 papel reunir os grupos militantes brasileiros. O que foi mais uma razão pela qual a ABEH se concentrou em agregar pesquisadores. No período em que estivemos na diretoria (Wilton Garcia, Sergio Aboud, Mário Lugarinho e eu), entre 2003 e 2004, nosso esforço (e aqui é importante mencionar a comissão organizadora da qual fazia parte além de Sergio Aboud, Berenice Bento, Marcelo Larcher que foi meu aluno na UnB, hoje jornalista, Henrique Codato, então meu aluno e já falecido, e Luciano Mendes, hoje prof. na Universidade de Brasília). nosso desejo era afirmar cada vez mais a ABEH como um espaço plural de encontro para além do grupo fundador. Nessa perspectiva, o congresso foi aberto pelo Prof. Thomas Waugh da Universidade de Concórdia, especialista em pornografia, e contou com diversos colegas de diversas regiões do Brasil e fora do Brasil. Estiveram presentes pesquisadores da Argentina, Peru, México, Inglaterra, EUA, Canadá, de onde veio nosso palestrante da abertura, e foi, pela primeira vez, novamente se não me engano, que tivemos apoio financeiro não só de entidades que apoiavam a pesquisa (Capes, Cnpq, Fapesp) mas de instituições que incluíam. além da própria Universidade de Brasília, o centro cultural Banco do Brasil de Brasília e a comissão de direitos humanos da Câmara dos Deputados. (Na época até dinheiro para pagarmos o palestrante da abertura conseguimos.) Houve 188 trabalhos inscritos e em torno de 300 participantes, 5 vezes mais do que acontecera no primeiro congresso, trabalhos reunidos no livro Imagem e Diversidade Sexual, infelizmente esgotado e ainda não disponibilizado online. Vol. 05, N. 18, Set. - Dez., 2022 - http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/index 144 Figura 1: capa do livro. Como era a primeira vez em que estava à frente da organização de um congresso maior, a correria foi tão grande que mesmo hoje tenho poucas lembranças mesmo de amigos meus que estiveram presentes. Acho que a ficha só caiu na festa de encerramento, organizada por André Costa, então Andre isnt, dj e organizador de festas eletrônicas, hoje professor de arquitetura na UnB, realizada no subsolo do Conic, espécie de shopping center então alternativo em Brasília onde havia sedes de sindicatos e de partidos de esquerda, salas de cinemas, sauna, New Aquarius, a boate gay mais antiga de Brasília. No Conic, também punks, skatistas e roqueiros de várias tribos se reuniam, prostitutas, michês e estudantes da primeira faculdade de teatro de Brasília criada por Dulcina de Moraes, se misturavam. Achávamos que melhor lugar não haveria para representar o espírito plural que a associação deveria encarnar. Nem sei se Vol. 05, N. 18, Set. - Dez., 2022 - http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/index 145 apresentei nesse congresso, mas me lembro da festa, (exausto, mas contente, logo ficando no chão da entrada com um garoto. Do fim da noite não lembro de nada. E é verdade.) Tentei seguir os tópicos que Bruna Irineu nos pediu. Espero que tenha conseguido algo de interesse. Por ter ficado tanto tempo afastado é difícil para mim pensar no hoje e no futuro. Se pudesse destacar algo ainda seria frisar a importância de se pensar os estudos queer (hoje gosto mais do nome que no século passado) como um campo inter e transdisciplinar e com uma diversidade teórica... Quando a ABEH surgiu havia poucos espaços institucionais para se discutir as experiências LGBTTIQAPN+ e das letrinhas que continuam a aparecer e hoje grande parte das associações profissionais e de programas pós-graduação já incorporaram esse debate em mesas, grupos de trabalho, eventos. Talvez o desafio, hoje, seja pensar em que a ABETH pode trazer que não está nessas associações. Acho crucial também repensar o formato de apresentações de 15, 20 minutos. A experiência mais satisfatória acadêmica que tenho tido são os grupos de trabalho da Compós (Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação), que se reúnem por dois dias e onde apenas 10 trabalhos são apresentados. Os trabalhos são disponibilizados previa e integralmente aos participantes e a cada um é concedida uma hora para apresentação do autor, do debatedor e para a discussão dos participantes. É uma sugestão que não sei se contribui. Não sei se a teoria queer, cuir, decolonial ou descolonial, cis ou trans, pós-humana, inumana terá futuro. Desconfio que para sobreviver e fazer algum sentido todas as perspectivas dissidentes deverão responder ao ódio com diálogo, saber escolher os inimigos, comprar as lutas que valem à pena, não se provincianizar nem se mediocrizar diante da crise política, econômica e cultural que vivemos, longe do vitimismo e do ressentimento, dos fundamentalismos religiosos e minoritários. Vol. 05, N. 18, Set. - Dez., 2022 - http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/index 146 No fundo, eu acho que gênero e seu corolário deveria desaparecer. Por isso transitei para o campo das sensações, dos afetos e das sensibilidades e não tanto dos conceitos, dos slogans e palavras de ordem. Ou talvez isso não seja tão importante assim. O importante é não esquecer dos encontros presenciais ou virtuais, da busca de outras formas de viver, de outros tempos. Deixem as meninas, meninos, menines gozarem! Essa frase é ótima e acho que vou lembrar até o final dos tempos. 20 years of ABETH and queer theory Abstract: At the celebration of twenty years of ABETH, I have tried to remember the encounters that led to the creation of the association and its second congress in Brasilia with the publication of Image and Sexual Diversity in dialogue with a personal story related to my first contact with queer theory, in 1995, in New York and its uprising and challenges in Brazil. Keywords: ABETH; Queer Theory; Brazil. Recebido: 30/11/2022 Aceito: 01/12/2022 Vol. 05, N. 18, Set. - Dez., 2022 - http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/index 147