MARSHALL MCLUHAN
OS MEI OS DE COMUNI CAÇÃO
COMO EXTENSÕES DO HOMEM
(UNDERSTANDI NG MEDI A)
CULTRI X
CONTRACAPA
OS MEI OS DE COMUNI CAÇÃO COMO EXTENSÕES DO HOMEM
Marshall McLuhan
Neste livro revolucionário e desmistificador, um dos grandes pensadores
de nosso século, que tem sido comparado, pelo alcance e pela profundeza de
suas idéias, a Spengler e Toynbee, passa em revista as tecnologias do passado
e do presente e mostra como os meios de comunicação de massa afetam
profundamente a vida física e mental do Homem, levando-o do mundo linear e
mecânico da Primeira Revolução I ndustrial para o novo mundo audiotáctil e
tribalizado da Era Eletrônica. Um livro de leitura indispensável para estudantes
e professores de Sociologia, Psicologia, Comunicações etc., bem como todo e
qualquer leitor que queira estar em dia com o mundo em que vive.
ORELHAS DO LI VRO
OS MEI OS DE COMUNI CAÇÃO COMO EXTENSÕES DO HOMEM
MARSHALL MCLUHAN
Herbert Marshall McLuhan, ex-professor de literatura inglesa no Canadá,
professor de diversas universidades dos Estados Unidos e hoje autoridade
mundial em comunicações de massa, é, sem dúvida, o pensador
contemporâneo cujas idéias, mercê do seu caráter visceralmente revolucionário,
têm provocado as mais acesas e apaixonadas polêmI cas intelectuais de que se
tem notícia nos últimos tempos. O ardor com que macluhanistas e antimacluhanistas quebram lanças em defesa de suas posições advém do fato de
McLuhan ser um pensador de vanguarda, que não teme levar às últimas
conseqüências — ao profetismo inclusive (ou sobretudo) — suas formulações
teóricas, as quais buscam abarcar todas as implicações, no plano humano,
daquilo que singulariza o mundo de nossos dias: a complexíssima rede de
comunicações em que está imerso o Homem na era da eletrônica, da
cibernética, da automação, e que afetam profundamente sua visão e sua
experiência do mundo, de si mesmo e dos outros.
Os MEI OS DE COMUNI CAÇÃO COMO EXTENSÕES DO HOMEM — que a
Editora Cultrix se orgulha de ora apresentar ao leitor brasileiro numa notável
tradução de Décio Pignatari, poeta de vanguarda e professor de Teoria da
I nformação — é por excelência a summa do pensamento de Marshall McLuhan.
Neste livro, o chamado “filósofo da era eletrônica” ou “humanista da era da
comunicação” passa em revista as tecnologias como extensões do corpo e da
inteligência do Homem e mostra como elas nos estão levando, do mundo
linear, aristotélico, tipográfico, mecânico, da Primeira Revolução I ndustrial, para
o mundo audiotáctil, tribalizado, cósmico, da Segunda Revolução I ndustrial, a
Era Eletrônica em cujo limiar rios encontramos agora.
Desmistificador no esquematismo agressivo de seus aforismos;
estimulante e amiúde entontecedor nas perspectivas intelectuais que desvenda
ao leitor — este livro irá certamente merecer do público ledor brasileiro,
universitário ou não, a mesma consagradora acolhida que teve nos Estados
Unidos e nos países da América e da Europa em que já foi traduzido.
Outras obras de interesse:
ODI SSÉI A – Homero
A DI VI NA COMÉDI A – Dante Alighieri
MAQUI AVEL ou As Origens da Sociologia do Conhecimento – Gérard Namer
O PRÍ NCI PE – Maquiavel
VI DAS – Plutarco
DI ÁLOGOS – Platão
PI TÁGORAS – Uma Vida – Peter Gorman
OS DEUSES GREGOS – Karl Kerényi
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MARSHALL MACLUHAN
OS MEI OS DE COMUNI CAÇÃO COM EXTENSÕES DO HOMEM
Tradução de Décio Pignatari
Editora Cultrix
São Paulo
Título do original: Understanding Media: The Extensions of Man
Copyright © 1964 by Marshall McLuhan.
Publicado nos Estados Unidos da América por McGraw-Hill Book Company
(Nova York, Toronto, Londres)
Edição: 10-11-12-13-14-15-16-17
Ano: 00-01-02-03-04-05
Direitos de tradução para a língua portuguesa adquiridos com exclusividade
pela EDI TORA CULTRI X LI DA.
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que se reserva a propriedade literária desta traduçáo.
I mpresso em nossas oficinas gráficas.
Í NDI CE
I ntrodução à Terceira Edição em I nglês
Prefácio
PRI MEI RA PARTE
1. O Meio É a Mensagem
2. Meios Quentes e Frios
3. Reversão do Meio Superaquecido
4. O Amante de “Gadgets”: Narciso como Narcose
5. A Energia Híbrida: Les Liaisons Dangereuses
6. Os Meios como Tradutores
7. Desafio e Colapso: A Nêmese da Criatividade
SEGUNDA PARTE
8. A Palavra Falada: Flor do Mal?
9. A Palavra Escrita: Um Olho por um Ouvido
10. Estradas e Rotas de Papel
11. Numero: O Perfil da Multidão
12. Vestuário: Extensão de Nossa Pele
13. Habitação: New Look e Nova Visão
14. Dinheiro: O Carnê do Pobre
15. Relógios: A Fragrância do Tempo
16. Tipografia: Como Morar no Assunto
17. Estórias em Quadrinhos: MAD: Vestíbulo para a TV
18. A Palavra I mpressa: O Arquiteto do Nacionalismo
19. Roda, Bicicleta e Avião
20. A Fotografia: O Bordel Sem Paredes
21. A I mprensa: Governo por I ndiscrição Jornalística
22. O Automóvel: A Noiva Mecânica
23. Anúncios: Preocupando-se com os Vizinhos
24. Jogos: As Extensões do Homem
25. Telégrafo: O Hormônio Social
26. A Máquina de Escrever: Na Era da Mania do Ferro
27. O Telefone: Metais Sonoros ou Símbolo Tilintante?
28. O Fonógrafo: O Brinquedo que Esvaziou a Caixa (Torácica) Nacional
29. O Cinema: O Mundo Real do Rolo
30. Rádio: O Tambor Tribal
31. A Televisão: O Gigante Tímido
32. Armamentos: A Guerra dos Í cones
33. Automação: Aprendendo a Ganhar a Vida
Leituras Ulteriores para Estudo dos Meios de Comunicação
I NTRODUÇÃO À TERCEI RA EDI ÇÃO EM I NGLÊS
Contou o entrevistador de TV Jack Paar que, certa vez, perguntou a um
jovem amigo: “Por que vocês de agora usam “frio” para significar “quente”?”
Respondeu-lhe o rapaz: “Porque vocês, meu velho, gastaram a palavra
“quente”, antes de nós chegarmos.” É um fato que “frio" é muitas vezes
utilizado hoje para significar o que antes era designado por “quente”.
Antigamente, uma “discussão calorosa ou quente” (ou “a coisa esteve quente”)
significava uma discussão ou cena em que as pessoas se envolviam em
profundidade. De outro lado, “uma atitude fria” costumava designar uma
atitude de objetividade a distância e desinteressada. Naqueles tempos, a
palavra “desinteressada” significava a nobre qualidade de um caráter bem
formado. Como que de repente passou a significar “não dou a mínima bola”. A
palavra “quente caiu em desuso semelhante, na medida em que se foram
processando profundas mudanças no ambiente. Mas o termo de gíria “frio”
quer dizer muito mais do que a velha idéia de “quente”. I ndica uma espécie de
empenho e participação em situações que envolvem todas as faculdades de
uma pessoa. Neste sentido, podemos dizer que a automação é fria, enquanto
as velhas espécies mecânicas de “empregos” (trabalhos) especializados ou
fragmentados são “quadradas”. As situações e pessoas “quadrada? não são
“frias” porque apresentam muito pouco do hábito de envolvimento profundo de
nossas faculdades. Os jovens de hoje dizem: “O humor não é frio.” Suas piadas
favoritas o demonstram. Pergunta: “O que é vermelho e zumbe?” Resposta:
“Uma uva elétrica.” “E por que ela zumbe?” Resposta: “Porque não conhece as
palavras.” Presumivelmente o humor não é “frio” porque nos induz a rir de
alguma coisa, em como dos filmes “frios”. Os filmes de Bergman e Fellini
exigem muito maior participação do que os espetáculos narrativos. Um enredo
abrange um conjunto de eventos muito semelhante à linha melódica, em
música. A melodia, melos modos, o “princípio-meio-fim” é uma estrutura
contínua, encadeada e repetitiva, que não comparece na arte “fria” do Oriente.
A arte e a poesia Zen criam o envolvimento por meio do intervalo, da pausa, e
não na conexão empregada no mundo ocidental visualmente organizado. O
espectador se torna artista na arte oriental porque ele mesmo deve contribuir
com todos os elos.
O capítulo sobre os “meios quentes e frios” provocou a confusão de
muitos críticos de Understanding Media, incapazes de reconhecer as enormes
mudanças estruturais que hoje estão ocorrendo no ambiente humano. A gíria
oferece uma indicação imediata da percepção em transformação. Não se baseia
em teorias, mas na experiência imediata. O estudante dos meios de
comunicação não apenas deve ter em conta a gíria, como um guia para a
percepção em transformação, mas também estudar esses meios enquanto
introdutores de novos hábitos de percepção.
O capítulo sobre “o meio é a mensagem” pode talvez mais bem
esclarecido observando-se que toda tecnologia gradualmente cria um ambiente
humano totalmente novo. Os ambientes não são envoltórios passivos, mas
processos ativos. Em seu esplêndido trabalho Prefácio a Platão (Harvard
University Press, 1963), Eric Havelock estabelece o contraste entre as culturas
oral e escrita dos gregos. No tempo de Platão a palavra escrita tinha criado um
novo ambiente, que já começara a destribalizar o homem. Anteriormente, os
gregos se formavam graças ao processo da enciclopédia tribal. Tinham
memorizado os poetas. Os poetas proviam uma sabedoria operacional
específica para todas as contingências da vida — Ann Landers em verso [ Autora
de uma espécie de enciclopédia popular (N. do T.)] . Com o advento do homem
individual destribalizado, uma nova educação se fez necessária. Platão delineou
esse programa para os alfabetizados, um programa baseado nas idéias. Com o
alfabeto fonético, o conhecimento classificado tomou o lugar do conhecimento
operacional de Homero e Hesíodo e da enciclopédia tribal. Desde então, a
educação por dados classificados tem sido a linha programática no Ocidente.
Hoje, no entanto, na era da eletrônica, a classificação dos dados cede ao
reconhecimento de estruturas e padrões. a frase-chave da I BM. Quando os
dados se alteram rapidamente, a classificação é por demais fragmentária. Para
dar conta dos dados em velocidade elétrica e em situações características de
“sobrecarga da informação”, os homens recorrem ao estudo das configurações,
como o marinheiro do Maesltrom, de Edgar Allan Poe. Apenas começou a se
desenvolver a situação dos desistentes (drop outs) em nossas escolas. Hoje, o
jovem estudante cresce num mundo eletricamente estruturado. Não é um
mundo de rodas, mas de circuitos, não é um mundo de fragmentos, mas de
configurações e estruturas. O estudante, hoje, vive miticamente e em
profundidade. Na escola, no entanto, ele encontra uma situação organizada
segundo a informação classificada. Os assuntos não são relacionados. Eles são
visualmente concebidos em termos de um projeto ou planta arquitetônica. O
estudante não encontra meio possível de participar dele, nem consegue
descobrir como a cena educacional se liga ao mundo mítico dos dados e
experiências processados eletronicamente e que para ele constitui ponto
pacífico. Como diz um executivo da I BM: “Quando entraram para o primeiro
ano primário, minhas crianças já tinham vivido diversas existências, em
comparação aos seus avós.”
“O meio é a mensagem” significa, em termos da era eletrônica, que já se
criou um ambiente totalmente novo. O “conteúdo” deste novo ambiente é o
velho ambiente mecanizado da era industrial. O novo ambiente reprocessa o
velho tão radicalmente quanto a TV está reprocessando o cinema. Pois o
“conteúdo” da TV é o cinema. A televisão é ambiental e imperceptível como
todos os ambientes. Nós apenas temos consciência do “conteúdo”, ou seja, do
velho ambiente. Quando a produção de máquinas era nova, gradualmente foi
criando um ambiente cujo conteúdo era o velho ambiente da vida agrária e das
artes e ofícios. Este ambiente antigo se foi elevando à categoria de forma
artística por obra do novo ambiente mecânico. A máquina transformou a
Natureza numa forma de arte. Pela primeira vez os homens começaram a olhar
a Natureza como fonte de valores estéticos e espirituais. Maravilhavam-se de
que as eras passadas tivessem sido tão desapercebidas do mundo da Natureza
enquanto arte. Toda tecnologia nova cria um ambiente que é logo considerado
corrupto e degradante. Todavia o novo transforma seu predecessor em forma
de arte. Quando o escrever era novo, Platão transformou o velho diálogo oral
em forma artística. “A visão do mundo elisabetano” era uma visão da I dade
Média. E a I dade I ndustrial transformou a Renascença numa forma de arte,
como se vê na obra de Jacob Burckhardt. Em troca, Siegfried Giedion, na era
da eletricidade, ensinou-nos como encarar o processo total da mecanização
como um processo artístico (Mechanization Takes Command).
À medida que tecnologias proliferam e criam series inteiras de ambientes
novos, os homens começam a considerar as artes como “antiambientes” ou
“contra-ambientes” que nos fornecem os meios de perceber o próprio
ambiente. Como Edward T. Hall explicou em The Silent Language, os homens
nunca têm consciência das normas básicas de seus sistemas ambientais ou de
suas culturas. Hoje, as tecnologias e seus ambientes conseqüentes se sucedem
com tal rapidez que um ambiente já nos prepara para o próximo. As tecnologias
começam a desempenhar a função da arte, tornando-nos conscientes das
conseqüências psíquicas e sociais da tecnologia.
A arte como antiambiente se torna, mais do que nunca, um meio de
treinar a percepção e o julgamento. A arte ofertada como um bem de consumo
e não como um meio de apurar a percepção permanece enganosa e esnobe
como sempre. O estudo dos meios, de uma só vez, abre as portas da
percepção. E aqui vemos por que os jovens podem fazer trabalhos de alta
pesquisa. O professor tem apenas de convidar o estudante a fazer um
inventário tão completo quanto possível. Qualquer criança pode fazer uma lista
dos efeitos do telefone, ou do rádio, ou do cano, no sentido de moldar a vida e
o trabalho de seus amigos e de sua comunidade. Uma lista geral dos efeitos
dos meios abre muitas vias insuspeitadas de consciência e investigação.
Edmond Bacon, da comissão do plano-diretor de Filadélfia, descobriu que
os escolares podiam ser colegas e pesquisadores de inestimável valia na tarefa
de refazer a imagem da cidade. Nós estamos entrando na nova era da
educação, que passa a ser programada no sentido da descoberta, mais do que
no sentido da instrução. Na medida em que os meios de alimentação de dados
aumentam, assim deve aumentar a necessidade de introvisão e de
reconhecimento de estruturas. A famosa experiência de Hawthorne, na fábrica
da Western Electric, perto de Chicago, pôs a descoberto, há anos atrás, um
fenômeno bastante misterioso. Por mais que se alterassem as condições de
trabalho dos operários, eles trabalhavam mais e melhor. Quer fossem adversas
ou agradáveis as condições de temperatura, luz e mesmo de lazer, a qualidade
da produção aumentava. Os pesquisadores melancolicamente concluíram que
os testes distorciam a realidade. Não perceberam eles um fato da maior
importância: quando os operários conseguem juntar esforços num trabalho de
aprendizado e descoberta, a eficiência que daí resulta é simplesmente
extraordinária.
Mais atrás fizemos referência ao fenômeno dos estudantes desistentes,
que simplesmente abandonam a escola: esta situação vai piorar muito mais,
devido à frustração dos estudantes em relação à sua participação no processo
de ensino. Esta situação se refere também ao problema da “criança
culturalmente retardada”. Esta criança existe não somente nas favelas: o seu
número aumenta também nos subúrbios, nos núcleos familiares de razoável
nível econômico. A criança culturalmente retardada é a criança-televisão. A
televisão propiciou um ambiente de baixa orientação visual e alta participação,
o que torna muito difícil a sua adaptação ao nosso sistema de ensino. Uma das
soluções seria elevar o nível visual da imagem da TV, a fim de possibilitar ao
jovem estudante o acesso ao velho mundo visual da sala de aulas e da classe.
Valeria a pena tentá-lo — como expediente temporário. A televisão, porém, é
apenas um componente do ambiente elétrico de circuito instantâneo, que
sucedeu ao velho mundo da roda, das porcas e parafusos e dos raios. Seríamos
tolos se não tentássemos superar, por todos os meios, o mundo visual
fragmentário de nosso sistema educacional atual.
A filosofia existencial, bem como o Teatro do Absurdo, representam
antiambientes que apontam para as pressões críticas exercidas pelo novo
ambiente elétrico. Tanto Jean Paul Sartre, como Samuel Beckett e Arthur Miller,
denunciam a futilidade dos projetos, dados classificados e “empregos”, como
via de saída. Mesmo palavras e expressões como “fuga” e “vida delegada”
derivam da nova cena e cenário do envolvimento eletrônico. Os engenheiros da
televisão já começaram a explorar o verdadeiro caráter Braille da imagem do
vídeo, como meio de propiciar a sua visão aos cegos, projetando a imagem
diretamente em sua pele. É dessa maneira que devemos usar todos os meios e
veículos, a fim de que possamos enxergar a nossa situação.
Na página 23 há algumas linhas extraídas de Romeu e Julieta,
marotamente modificadas, fazendo alusão à televisão. Alguns críticos logo
pensaram que se tratava de uma involuntária citação errada.
O poder das artes de antecipar, de uma ou mais gerações, os futuros
desenvolvimentos sociais e técnicos foi reconhecido há muito tempo. Ezra
Pound chamou o artista de “antenas da raça”. A arte, como o radar, atua como
se fosse um verdadeiro “sistema de alarme premonitório”, capacitando-nos a
descobrir e a enfrentar objetivos sociais e psíquicos, com grande antecedência.
O conceito profético das artes entra em conflito com o conceito corrente das
artes como meios de auto-expressão. Se a arte é um “sistema de alarme
prévio” — para usar uma expressão da Segunda Guerra Mundial, quando o
radar era novidade — tem ela a maior relevância não apenas no estudo dos
meios e veículos de comunicação, como no desenvolvimento dos controles
nesses mesmos meios.
Quando o radar era novidade, verificou-se a necessidade de eliminar o
sistema de balões que precedeu o radar como sistema de proteção das cidades.
Os balões interferiam na auto-alimentação elétrica da nova informação do
radar. Este parece ser o caso de nosso atual currículo escolar, para não falar
das artes em geral. Tanto de um como de outras, apenas devemos utilizar
aquelas manifestações que acentuam a nossa percepção da tecnologia e de
suas conseqüências psicológicas e sociais. A arte, como ambiente-radar, exerce
a função de indispensável treino perceptivo — e não de papel de dieta
privilegiada para a elite. A finalidade da arte, enquanto auto-alimentação tipo
radar, que nos fornece uma imagem corporativa, dinâmica e mutável, não é
tanto de preparar-nos para as transformações quanto a de permitir-nos manter
um roteiro estável em direção a metas permanentes, mesmo em meio a
inovações as mais perturbadoras. Pois já percebemos a futilidade que é mudar
nossos objetivos quando mudamos nossas tecnologias.
PREFÁCI O
James Reston escreveu no The New York Times (7-6-1957):
“Um diretor da saúde pública... noticiou esta semana que um ratinho
que, presumivelmente, andara assistindo televisão, atacou uma menina e seu
gato, já adulto... Ambos, gato e rato, sobreviveram, e o incidente fica
registrado como lembrete de que as coisas parecem estar mudando.”
Depois de três mil anos de explosão, graças às tecnologias fragmentárias
e mecânicas, o mundo ocidental está implodindo. Durante as idades mecânicas
projetamos nossos corpos no espaço. Hoje, depois de mais de um século de
tecnologia elétrica, projetamos nosso próprio sistema nervoso central num
abraço global, abolindo tempo e espaço (pelo menos naquilo que concerne ao
nosso planeta). Estamos nos aproximando rapidamente da fase final das
extensões do homem: a simulação tecnológica da consciência, pela qual o
processo criativo do conhecimento se estenderá coletiva e corporativamente a
toda a sociedade humana, tal como já se fez com nossos sentidos e nossos
nervos através dos diversos meios e veículos. Se a projeção da consciência —
já antiga aspiração dos anunciantes para produtos específicos — será ou não
uma “boa coisa, e uma questão aberta as mais variadas soluções. São poucas
as possibilidades de responder a essas questões relativas às extensões do
homem, se não levarmos em conta todas as extensões em conjunto. Qualquer
extensão — seja da pele, da mão, ou do pé — afeta todo o complexo psíquico e
social.
Algumas das principais extensões — juntamente com algumas de suas
conseqüências psíquicas e sociais — são estudadas neste livro. Para se ter uma
idéia da pouca atenção que se tem dado a esses assuntos no passado, basta
referir-me à verdadeira consternação que este livro provocou num de seus
editores. Notou ele, desconsolado, que “setenta e cinco por cento de sua
matéria é nova. Um livro de sucesso não pode arriscar mais do que dez por
cento de novidade”. Parece que em nossos dias vale a pena correr um tal risco:
as barreiras estão cada vez mais altas e a necessidade de entender os efeitos
das extensões do homem se torna cada vez mais urgente.
Na idade mecânica, que agora vai mergulhando no passado, muitas
ações podiam ser empreendidas sem maiores preocupações. A lentidão do
movimento retardava as reações por consideráveis lapsos de tempo. Hoje, ação
e reação ocorrem quase que ao mesmo tempo. Vivemos coma que miticamente
e integralmente, mas continuamos a pensar dentro dos velhos padrões da
idade pré-elétrica e do espaço e tempo fracionados.
Com a tecnologia da alfabetização, o homem ocidental adquiriu o poder
de agir sem reação. As vantagens de fragmentar-se deste modo podem ser
exemplificadas pelo caso do cirurgião, que se tornaria desamparado se tivesse
de envolver-se humanamente em suas intervenções. Adquirimos a arte de levar
a cabo as mais perigosas operações sociais com a mais completa isenção. A
nossa isenção era uma atitude de não-participação. Mas na era da eletricidade,
quando o nosso sistema nervoso central é tecnologicamente projetado para
envolver-nos na Humanidade inteira, incorporando-a em nós, temos
necessariamente de envolver-nos, em profundidade, em cada uma de nossas
ações. Não é mais possível adorar o papel olímpico e dissociado do literato
ocidental.
O teatro do absurdo dramatiza este recente dilema do homem ocidental
— o dilema do homem de ação que parece não estar envolvido na ação. Esta é
a origem e a atração dos palhaços de Samuel Beckett. Depois de três mil anos
de explosão especializada, de especialização e alienação crescentes nas
extensões tecnológicas de nosso corpo, nosso mundo tornou-se compressivo
por uma dramática reversão. Eletricamente contraído, o globo já não é mais do
que uma vila. A velocidade elétrica, aglutinando todas as funções sociais e
políticas numa súbita implosão, elevou a consciência humana de
responsabilidade a um grau dos mais intensos. É este fator implosivo que altera
a posição do negro, do adolescente e de outros grupos. Eles já não podem ser
contidos, no sentido político de associação limitada. Eles agora estão envolvidos
em nossas vidas, como nós na deles — graças aos meios elétricos.
Esta é a I dade da Angústia, por força da implosão elétrica, que obriga ao
compromisso e à participação, independentemente de qualquer “ponto de
vista”. Por nobre que seja, o caráter parcial e especializado do ponto de vista
não tem maior utilidade na idade da eletricidade. Ao nível da informação, o
mesmo abalo ocorreu com a substituição do simples ponto de vista pela
imagem inclusiva. Se o século XI X foi a idade da cadeira do chefe de redação e
do editorialista, o nosso é o século do divã do psicanalista. Enquanto extensão
do homem, a cadeira é uma ablação especializada do traseiro, uma espécie de
ablativo das costas. ao passo que o divã prolonga ou “estende” o ser integral. O
psicanalista utiliza o divã porque ele elimina a tentação de expressar pontos de
vista particulares e afasta a necessidade de racionalizar os fatos.
A aspiração de nosso tempo pela totalidade, pela empatia e pela
conscientização profunda é um corolário natural da tecnologia elétrica. A idade
da indústria mecânica que nos precedeu encontrou seu modo natural de
expressão na afirmação veemente da perspectiva particular. Todas as culturas
possuem seus modelos favoritos de percepção e conhecimento, que elas
buscam aplicar a tudo e a todos. Uma das características de nosso tempo é a
rebelião contra os padrões impostos. Como que subitamente, passamos a
ansiar por que as pessoas e as coisas explicitem seus seres totalmente. Nesta
nova atitude há uma profunda fé a ser procurada — uma fé que se refere à
harmonia última de todo ser. E é com esta fé que este livro foi escrito. Ele
explora os contornos de nossos próprios seres, prolongados em nossas
tecnologias, buscando um princípio de inteligibilidade em cada um deles.
Plenamente confiante em que é possível atingir uma compreensão dessas
formas, de modo a ordená-las utilmente, encarei-as de maneira nova,
acolhendo muito pouco do acervo de conhecimentos convencionais que sobre
elas se acumulou. Podemos dizer dos meios e veículos o que Robert Theobald
disse das depressões econômicas: Há um fator adicional que ajudou a controlar
as depressões: a melhor compreensão de seu desenvolvimento.” O exame da
origem e do desenvolvimento das extensões individuais do homem deve ser
precedido de um lance de olhos sobre alguns aspectos gerais dos meios e
veículos — extensões do homem — a começar pelo jamais explicado
entorpecimento que cada uma das extensões acarreta no indivíduo e na
sociedade.
PRI MEI RA PARTE
1. O MEI O É A MENSAGEM
Numa cultura como a nossa, há muito acostumada a dividir e estilhaçar
todas as coisas como meio de controlá-las, não deixa, às vezes, de ser um
tanto chocante lembrar que, para efeitos práticos e operacionais, o meio é a
mensagem. I sto apenas significa que as conseqüências sociais e pessoais de
qualquer meio — ou seja, de qualquer uma das extensões de nós mesmos —
constituem o resultado do novo estalão introduzido em nossas vidas por uma
nova tecnologia ou extensão de nos mesmos. Assim, com a automação, por
exemplo, os novos padrões da associação humana tendem a eliminar
empregos, não há dúvida. Trata-se de um resultado negativo. Do lado positivo,
a automação cria papéis que as pessoas devem desempenhar, em seu trabalho
ou em suas relações com os outros, com aquele profundo sentido de
participação que a tecnologia mecânica que a precedeu havia destruído. Muita
gente estaria inclinada a dizer que não era a máquina, mas o que se fez com
ela, que constitui de fato o seu significado ou mensagem. Em termos da
mudança que a máquina introduziu em nossas relações com outros e conosco
mesmos, pouco importava que ela produzisse flocos de milho ou Cadillacs. A
reestruturação da associação e do trabalho humanos foi moldada pela técnica
de fragmentação, que constitui a essência da tecnologia da máquina. O oposto
é que constitui a essência da tecnologia da automação. Ela é integral e
descentralizadora, em profundidade, assim como a máquina era fragmentária,
centralizadora e superficial na estruturação das relações humanas.
Neste passo, o exemplo da luz elétrica pode mostrar-se esclarecedor. A
luz elétrica é informação pura. É algo assim como um meio sem mensagem, a
menos que seja usada para explicitar algum anúncio verbal ou algum nome.
Este fato, característico de todos os veículos, significa que o “conteúdo” de
qualquer meio ou veículo é sempre um outro meio ou veículo. O conteúdo da
escrita é a fala, assim como a palavra escrita é o conteúdo da imprensa e a
palavra impressa é o conteúdo do telégrafo. Se alguém perguntar, “Qual é o
conteúdo da fala?”, necessário se torna dizer: “É um processo de pensamento,
real, não-verbal em si mesmo.” Uma pintura abstrata representa uma
manifestação direta dos processos do pensamento criativo, tais como poderiam
comparecer nos desenhos de um computador. Estamos aqui nos referindo,
contudo, às conseqüências psicológicas e sociais dos desenhos e padrões, na
medida em que ampliam ou aceleram os processos já existentes. Pois a
“mensagem” de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, cadência
ou padrão que esse meio ou tecnologia introduz nas coisas, humanas. A
estrada de ferro não introduziu movimento, transporte, roda ou caminhos na
sociedade humana, mas acelerou e ampliou a escala das funções humanas
anteriores, criando tipos de cidades, de trabalho e de lazer totalmente novos.
I sto se deu independentemente do fato de a ferrovia estar operando numa
região tropical ou setentrional, sem nenhuma relação com o frete ou conteúdo
do veículo ferroviário. O avião. de outro lado, acelerando o ritmo de transporte,
tende a dissolver a forma “ferroviária” da cidade, da política e das associações,
independentemente da finalidade para a qual é utilizado.
Voltemos à luz elétrica. Pouca diferença faz que seja usada para uma
intervenção cirúrgica no cérebro ou para uma partida noturna de beisebol.
Poderia objetar-se que essas atividades, de certa maneira, constituem o
“conteúdo” da luz elétrica, uma vez que não poderiam existir sem ela. Este fato
apenas serve para destacar o ponto de que “o meio é a mensagem”, porque é
o meio que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações
humanas. O conteúdo ou usos desses meios são tão diversos quão ineficazes
na estruturação da forma das associações humanas. Na verdade não deixa de
ser bastante típico que o “conteúdo” de qualquer meio nos cegue para a
natureza desse mesmo meio. Somente hoje as indústrias se tornaram
conscientes das diversas espécies de negócios em que estão mergulhadas. A
I BM só começou a navegar com boa visibilidade depois que descobriu que não
estava no ramo da produção de máquinas e equipamentos para escritórios e
sim no de processamento da informação. A General Electric aufere uma boa
parte de seus lucros das lâmpadas elétricas e dos sistemas de iluminação. Ela
ainda não descobriu que, tanto quanto a A. T. & T., ela está no negócio da
informação móvel e em mudança.
Não percebemos a luz elétrica como meio de comunicação simplesmente
porque ela não possui “conteúdo”. É o quanto basta para exemplificar como se
falha no estudo dos meios e veículos. Somente compreendemos que a luz
elétrica é um meio de comunicação quando utilizada no registro do nome de
algum produto. O que aqui notamos, porém. não é a luz, mas o “conteúdo” (ou
seja. aquilo que na verdade é um outro meio). A mensagem da luz elétrica é
como a mensagem da energia elétrica na indústria: totalmente radical, difusa e
descentralizada. Embora desligadas de seus usos, tanto a luz como a energia
elétrica eliminam os fatores de tempo e espaço da associação humana,
exatamente como o fazem o rádio, o telégrafo. o telefone e a televisão, criando
a participação em profundidade.
Um manual bastante completo para o estudo das extensões do homem
poderia ser organizado compilando-se citações de Shakespeare. Não
chegaríamos a pensar na televisão se alguém nos propusesse, como adivinha,
estes versos de Romeu e Julieta?:
Mas, veja! Que luz é aquela, que passa pela janela?
Ela fala — e não diz nada.
No Otelo, que, tanto quanto o Rei Lear, trata do tormento de pessoas
transformadas por ilusões, lemos estes versos, que bem falam da intuição de
Shakespeare em relação aos poderes de transformação dos novos meios:
Não há encantos
Pelos quais a virtude de moços e moças
Possa dar em desmandos? Você, Roderigo,
Já não leu algo assim?
Em Troilo e Cressida, que é quase completamente dedicado ao estudo
tanto social como psicológico da comunicação, Shakespeare reafirma a sua
consciência de que a verdadeira navegação política e social depende da
capacidade de antecipar as conseqüências da inovação:
A providência de um estado previdente
Distingue cada grão do tesouro de Pluto,
Encontra o fundo das profundas insondáveis,
Liga senso e lugar, e quase como os deuses
Descobre os pensamentos em seus berços mudos.
A consciência crescente que se tem da ação dos meios,
independentemente de seu “conteúdo” ou programação, vem indicada nesta
quadrinha anônima e irritada:
No pensamento (e nos fatos) de hoje
Tudo induz e conduz ao ato e â ação,
De forma que só é digno de elogio
Falar da queda e não da contusão.
A mesma espécie de conhecimento total e configuracional que revela por
que, socialmente falando, o meio é a mensagem, é constatada também na mais
recente e radical das teorias médicas. Em sua obra, Stress of Life (“A Tensão da
Vida”), Hans Selye fala da consternação manifestada por um de seus colegas
de pesquisa, ao ouvir a sua teoria:
“Quando me viu embarcado em mais uma descrição extasiada do que eu
observara em animais tratados com este ou aquele material impuro ou tóxico,
olhou-me com olhos angustiosamente tristes e disse, num desespero patente:
“Mas, Selye, veja bem o que você esta fazendo, antes que seja tarde! Você
parece estar decidido a dedicar toda a sua vida ao estudo da farmacologia da
sujeira!”
(Hans Selye, The Stress 0/ Li/ e)
Assim como Selye trata da situação ambiental total em sua teoria da
doença baseada no stress, assim as mais recentes abordagens ao estudo dos
meios levam em conta não apenas o “conteúdo”, mas o próprio meio e a matriz
cultural em que um meio ou veículo específico atua, O antigo desconhecimento
dos efeitos sociais e psicológicos dos meios pode ser ilustrado praticamente por
qualquer um dos pronunciamentos oficiais.
Ao aceitar um grau honorífico da Universidade de Notre Dame, há alguns
anos, o Gen. David Sarnoff declarou o seguinte: “Estamos sempre inclinados a
transformar o instrumental técnico em bode expiatório dos pecados praticados
por aqueles que os manejam. Os produtos da ciência moderna, em si mesmos,
não são bons nem maus: é o modo com que são empregados que determina o
seu valor.” Aqui temos a voz do sonambulismo de nossos dias. É o mesmo que
dizer: “Uma torta de maçãs, em si mesma, não é boa nem má: o seu valor
depende do modo com que é utilizada.” Ou ainda: “O vírus da varíola, em si
mesmo, não é bom nem mau: o modo como é usado é que determina o seu
valor.” E ainda: “As armas de fogo, em si mesmas, não são boas nem más: o
seu valor é determinado pelo modo como são empregadas.” Vale dizer: se os
estilhaços atingem as pessoas certas, as armas são boas; se o tubo de televisão
detona a munição certa e atinge o público certo, então ele é bom. Não estou
querendo ser maldoso. Na afirmação de Sarnoff praticamente nada resiste a
analise, pois ela ignora a natureza do meio, dos meios em geral e de qualquer
meio em particular, bem no estilo narcisístico de alguém que se sente
hipnotizado pela amputação e extensão de seu próprio ser numa forma técnica
nova. O General Sarnoff continuou a explicação de sua atitude frente à
tecnologia da imprensa dizendo que era verdade que a imprensa veiculava
muita droga, mas, em compensação, havia disseminado a Bíblia e os
pensamentos dos profetas e filósofos. Nunca ocorreu ao General Sarnoff que
qualquer tecnologia pode fazer tudo, menos somar-se ao que já somos.
Economistas como Robert Theobald, W. W. Rostow e John Kenneth
Galbraith, há anos vêm expondo por que a economia clássica” não consegue
explicar as mudanças ou o crescimento. E o paradoxo da mecanização reside
no fato de ser, ela mesma, a causa do desenvolvimento e das mudanças,
enquanto que o princípio da mecanização exclui a própria possibilidade de
crescimento ou a compreensão dAs transformações. I sto porque a mecanização
se realiza pela fragmentação de um processo, seguida da seriação das partes
fragmentadas. Contudo, como David Hume mostrou no século XVI I I , não há
princípio de causalidade numa mera seqüência. O fato de uma coisa seguir-se a
outra não significa nada. A simples sucessão não conduz a nada, a não ser à
mudança. Assim a eletricidade viria a causar a maior das revoluções, ao liquidar
a seqüência e tornar as coisas simultâneas. Com a “velocidade instantânea”, as
causas das coisas vieram novamente à tona da consciência, o que não ocorria
com as coisas em seqüência e em conseqüente concatenação. Em lugar de
perguntar o que veio primeiro, o ovo ou a galinha, começou-se a desconfiar
que a galinha foi idéia do ovo para a produção de mais ovos.
Antes de o avião romper a barreira do som, as ondas sonoras se fizeram
visíveis nas asas do avião. A súbita visibilidade do som, justo no momento em
que ele termina é um exemplo adequado daquela grande estrutura do ser que
revela formas novas e contraditórias precisamente quando as formas anteriores
atingem seu desempenho máximo. A mecanização nunca se revelou tão
claramente em sua natureza fragmentada ou seqüencial no nascimento do
cinema — o momento em que fomos traduzidos, para além do mecanismo, em
termos de um mundo de crescimento e de inter-relação orgânica. O cinema,
pela pura aceleração mecânica, transportou-nos do mundo das seqüências e
dos encadeamentos para o mundo das estruturas e das configurações criativas.
A mensagem do cinema enquanto meio é a mensagem da transição da
sucessão linear para a configuração. Foi esta transição que deu nascimento à
observação, hoje perfeitamente correta: “Se funciona, então é obsoleto.”
Quando a velocidade elétrica sucede à seqüência mecânica do cinema, as linhas
de força das estruturas e dos meios se tornam audíveis e claras. Retornamos à
forma inclusiva do icone.
Para uma cultura altamente mecanizada e letrada, o cinema surgiu como
um mundo de ilusões triunfantes e de sonhos que o dinheiro podia comprar. Foi
nesta fase do cinema que o cubismo apareceu, e foi descrito por E. H.
Gombrich (Art and I llusion) como “a mais radical tentativa de extinguir a
ambigüidade e acentuar a leitura integral do quadro — que se torna uma
construção feita pelo homem, uma tela colorida”. O cubismo substitui o “ponto
de vista”, ou faceta da ilusão perspectivista, por todas as facetas do objeto
apresentadas simultaneamente. Em lugar da ilusão especializada da terceira
dimensão, o cubismo erige na tela um jogo de planos contraditórios ou um
dramático conflito de estruturas, luzes e texturas, que forçam e transmitem a
mensagem por insolvência. E há muitos que têm isto como exercício praticado
no campo da pintura — e não no campo da ilusão.
Em outras palavras, o cubismo, exibindo o dentro e o fora, o acima e o
abaixo, a frente, as costas e tudo o mais, em duas dimensões, desfaz a ilusão
da perspectiva em favor da apreensão sensória instantânea do todo. Ao
propiciar a apreensão total instantânea, o cubismo como que de repente
anunciou que o meio é a mensagem. Não se torna, pois, evidente que, a partir
do momento em que o seqüencial cede ao simultâneo, ingressamos no mundo
da estrutura e da configuração? E não foi isto que aconteceu tanto na Física
como na pintura, na poesia e na comunicação? Os segmentos especializados da
atenção deslocaram-se para o campo total, e é por isso que agora podemos
dizer, da maneira a mais natural possível: “O meio é a mensagem.” Antes da
velocidade elétrica e do campo integral ou unificado, que’ o meio fosse a
mensagem era algo que não tinha nada de óbvio. Parecia, então que a
mensagem era o “conteúdo”, como costumavam dizer as pessoas ao
perguntarem sobre o que significava um quadro, ou de que coisa tratava.
Nunca se lembravam de perguntar do que tratava uma melodia, ou uma casa
ou um vestido. Nestes assuntos, as pessoas sempre conservavam um certo
senso de integralidade, de forma e função como unidade. Mas na era da
eletricidade, esta idéia integral de estrutura e configuração se tornou tão
dominante que as teorias educacionais passaram a lançar mão dela. Em lugar
de operar com “problemas” particulares de aritmética, a abordagem estrutural
agora segue as linhas de força do campo dos números — e passamos a ver
crianças meditando sobre a teoria dos números e dos conjuntos.
O Cardeal Newman disse de Napoleão: “Ele compreendeu a gramática da
pólvora” Napoleão dedicou alguma atenção a outros meios também,
especialmente ao telégrafo semafórico, que lhe deu grande vantagem sobre
seus inimigos. E os anais registram a sua declaração de que “três jornais hostis
são mais de temer do que mil baionetas”.
Alexis de Tocqueville foi o primeiro a dominar a gramática da imprensa e
da tipografia. Capacitou-se assim a decifrar a mensagem das mudanças
iminentes na França e na América, como se estivesse lendo em voz alta um
texto que lhe tivessem passado às mãos. De fato, o século XI X, na França e na
América, se apresentava como um livro aberto a Tocqueville, pois havia
aprendido a gramática da imprensa. E sabia também quando a gramática não
funcionava. Perguntado por que não escrevia um livro sobre a I nglaterra, uma
vez que a conhecia e admirava tanto, respondeu:
“Somente quem estivesse afetado por um elevado grau de delírio
filosófico acreditar-se-ia capaz de julgar a I nglaterra em apenas seis meses. Um
ano sempre pareceu um tempo por demais breve para conhecer bem os
Estados Unidos, e é muito mais fácil ter uma noção clara e precisa da União
Americana do que da Grã-Bretanha. Na América, todas as leis, num certo
sentido, derivam da mesma linha de pensamento. A sociedade como um todo
se funda sobre um simples fato, por assim dizer; tudo brota de um mesmo
principio. Pode-se comparar a América a uma floresta atravessada por
numerosas estradas retas, convergindo para um mesmo ponto. Basta encontrar
um centro e tudo o mais se revela, num relance. Na I nglaterra, os caminhos se
emaranham e só percorrendo um por um pode-se traçar um quadro do todo.”
Em trabalho anterior sobre a Revolução Francesa, De Tocqueville já
havia explicado como a palavra impressa, atingindo sua saturação cultural no
século XVI I I , havia homogeneizado a nação francesa. Os franceses se tornaram
a mesma espécie de gente, do norte ao sul. Os princípios tipográficos da
uniformidade, da continuidade e da linearidade se haviam superposto às
complexidades da antiga sociedade feudal e oral. A revolução foi empreendida
pelos novos literatos e bacharéis.
Na I nglaterra, contudo, era tal a força das antigas tradições orais do
direito costumeiro, estribadas na instituição medieval do Parlamento, que
nenhuma uniformidade ou continuidade da nova cultura impressa e visual
poderia vir a prevalecer completamente. O resultado foi que o mais importante
acontecimento da história inglesa simplesmente não houve — vale dizer, a
Revolução I nglesa na trilha da Revolução Francesa. A parte a monarquia, a
Revolução Americana não teve que descartar ou desenraizar instituições legais
medievais. E muitos têm sustentado que a presidência americana se tornou
muito mais personalista e monárquica do que qualquer monarquia européia.
O contraste entre a I nglaterra e a América, estabelecido por De
Tocqueville, baseia-se claramente na criação da uniformidade e da continuidade
pela tipografia e pela cultura impressa. A I nglaterra, diz ele, rejeitou esse
princípio, permanecendo fiel à tradição oral e dinâmica do direito costumeiro.
Daí a qualidade descontínua e imprevisível da cultura inglesa. A gramática da
imprensa não tem serventia na elaboração da mensagem das instituições e de
uma cultura oral e não escrita. A aristocracia inglesa foi justamente classificada
como bárbara por Mathew Arnold, porque o seu poder e o seu status nada
tinham que ver com a cultura letrada ou com as formas culturais da tipografia.
Dizia o Duque de Gloucester a Edward Gibbon, por ocasião do lançamento da
Declínio e Queda do I mpério Romano, deste último: “Mais um maldito tijolo.
hein Sr. Gibbon? Escrevinhar, escrevinhar, escrevinhar, hein, Sr. Gibbon?” De
Tocqueville era um aristocrata altamente letrado, mas perfeitamente capaz de
desligar-se de valores e pressupostos da tipografia. Eis por que só ele entendeu
a gramática da tipografia. E é somente assim, permanecendo à margem de
qualquer estrutura ou meio, que os seus princípios e linhas de força podem ser
percebidos. Pois os meios têm o poder de impor seus pressupostos e sua
própria adoção aos incautos. A predição e o controle consistem em evitar este
estado subliminar de transe narcísico. Mas o melhor adjutório para este fim
consiste simplesmente em saber que o feitiço pode ocorrer imediatamente, por
contato, como os primeiros compassos de uma melodia.
Passagem para a Í ndia, de E. M. Forster, é um estudo dramático da
inabilidade das culturas orientais, intuitivas e orais, de assimilar e compreender
os padrões de experiência europeus, racionais e visuais. Para os ocidentais, há
muito tempo, “racional”, naturalmente significa “seqüência uniforme e
contínua”. Em outras palavras, confundimos razão com instrução letrada e
racionalismo com uma tecnologia isolada. Dessa forma, na era da eletricidade,
o homem parece tomar-se irracional aos olhos do ocidental comum. No
romance de Forster, o momento da verdade e da desalienação do transe
tipográfico ocidental ocorre nas Cavernas Marabar. A força de argumentação de
Adela Quested não pode medir-se com o campo de ressonância total e inclusiva
que é a Í ndia. Depois das Cavernas, “a vida continuou como sempre, mas sem
conseqüências, isto é, os sons não tinham eco nem o pensamento se
desenvolvia. Tudo parecia cortado pela raiz e infectado de ilusão”. Passagem
para a Í ndia (a expressão é de Whitman, que viu a América marchando para o
Oriente) é uma parábola do homem ocidental na era da eletricidade e só
incidental-mente se refere à Europa ou ao Oriente. O conflito último entre a
visão e o som, entre as formas escritas e orais de percepção e organização da
existência, está ocorrendo agora. Uma vez que a compreensão paralisa a ação,
como observou Nietzsche, podemos moderar a rudeza desse conflito pela
compreensão dos meios que nos- prolongam e que provocam essas guerras
dentro de nos.
A destribalização pela escrita e seus efeitos traumáticos no homem tribal
é o tema de um livro do psiquiatra J. C. Carothers, The African Mind in Health
and Disease (“A Mentalidade Africana, na Saúde e na Doença”), editado pela
Organização de Saúde, Genebra, 1959. A maior parte desse material apareceu
num artigo da revista Psychiatry, intitulado “A Cultura, a Psiquiatria e a Palavra
Escrita” (novembro, 1959) - Novamente aqui, vemos a velocidade elétrica
revelando as linhas de força que, a partir da tecnologia ocidental, operam nas
mais remotas áreas da caatinga, da savana e do deserto. Um exemplo é o
beduíno levando, no camelo, seu rádio transistor. Submergir os nativos com
torrentes de conceitos para os quais não foram preparados é a ação normal de
toda a nossa tecnologia. Mas com os meios elétricos, o próprio homem
ocidental começa a sofrer exatamente a mesma inundação que atinge o remoto
nativo. Não estamos mais bem preparados para enfrentar o rádio e a televisão
em nosso ambiente letrado do que o nativo de Gana em relação à escrita, que
o expulsa de seu mundo tribal coletivo, acuando-o num isolamento individual.
Estamos tão sonados em nosso novo mundo elétrico quanto o nativo envolvido
por nossa cultura escrita e mecânica.
A velocidade elétrica mistura as culturas da pré-história com os detritos
dos mercadologistas industriais, os analfabetos com os - semiletrados e os pósletrados. Crises de esgotamento nervoso e mental, nos mais variados graus.
constituem o resultado, bastante comum, do desarraigamento e da inundação
provocada pelas novas informações e pelas novas e infindáveis estruturas
informacionais. Wyndham Lewis escolheu este tema para o seu ciclo de
romances chamado The Human Age (“A Era Humana”). O primeiro deles, The
Childermass (“O Dia dos Santos I nocentes”), aborda precisamente a questão da
mudança acelerada dos meios, vista como uma espécie de massacre dos
inocentes. Em nosso próprio mundo, à medida em que ganhamos consciência
dos efeitos da tecnologia na formação e nas manifestações psíquicas, vamos
perdendo toda a confiança em nosso direito de atribuir culpas. As antigas
sociedades pré-históricas têm como patético o crime violento. O assassino é
encarado da mesma forma como encaramos uma vítima do câncer. “Deve ser
horrível sentir-se assim”, dizem eles. J. M. Synge desenvolveu essa idéia de
maneira bastante conseqüente em sua peça O Playboy do Mundo Ocidental.
Se o criminoso é visto como um inconformista, incapaz de atender aos
ditames da tecnologia, no sentido do comportamento segundo padrões
uniformes e contínuos, o homem letrado se inclina a encarar pateticamente
aqueles que não se enquadram nos esquemas. Mais especialmente, a criança, o
aleijado, a mulher e as pessoas de cor comparecem como vítimas da injustiça,
no mundo da tecnologia tipográfica e visual. Por outro lado, numa cultura que
distribua papéis (sentido teatral) em lugar de empregos, o anão, o deformado e
a criança criam seus próprios espaços. Deles não se espera que venham a
caber em nichos uniformes e repetitivos — sempre fora de medida para os seus
tamanhos. Veja-se a. frase: “É um mundo para homens.” Como observação
quantitativa, infindavelmente repetida numa cultura homogeneizada, ela se
refere a homens que precisam ser Dagwoods em série, se quiserem integrar-se
nela. É em nossos testes de Q. I . que produzimos a maior enchente de padrões
espúrios. I nscientes de nossa tendência cultural tipográfica, nossos
pesquisadores partem do princípio de que hábitos uniformes e contínuos
constituem índices de inteligência, dessa forma eliminando o homem-ouvido e o
homem-tato.
C. P. Snow, resenhando um livro de A. L. Rowse (The New York Times
Book Review, 24-12-61), sobre o Apaziguamento e a estrada de Munique, traça
uma descrição dos cérebros e da experiência dos ingleses, nos anos 30. “Seu Q.
I . era muito mais elevado do que o habitual entre os próceres políticos. Como
puderam chegar a um tal fracasso?”. E Snow aprova a opinião de Rowse: “Não
davam ouvido a advertências porque não queriam ouvir.” O fato de serem
anticomunistas tornava-lhes impossível a leitura da mensagem de Hitler. Mas o
fracasso deles não foi nada em comparação com o nosso atual. Os padrões
americanos fincados na escrita como tecnologia uniforme aplicável a todos os
níveis — educação, governo, indústria e vida social — estão agora ameaçados
pela tecnologia elétrica. A ameaça de Stalin ou Hitler era externa. A tecnologia
elétrica está dentro dos muros e nós somos insensíveis, surdos, cegos e mudos,
ante a sua confrontação com a tecnologia de Gutenberg, na e através da qual
se formou o modo americano de vida. Mas não é o momento de sugerir
estratégias, quando a existência da ameaça sequer foi reconhecida. Estou na
mesma posição de Pasteur, ao dizer aos doutores que seu maior inimigo era
perfeitamente invisível — e perfeitamente irreconhecível por eles. Nossa
resposta aos meios e veículos de comunicação — ou seja, o que conta é o
modo como são usados — tem muito da postura alvar do idiota tecnológico. O
“conteúdo” de um meio é como a “bola” de carne que o assaltante leva consigo
para distrair o cão de guarda da mente. O efeito de um meio se torna mais
forte e intenso justamente porque o seu “conteúdo” e um outro meio. O
conteúdo de um filme é um romance, uma peça de teatro ou uma ópera. O
efeito da forma fílmica não está relacionado ao conteúdo de seu programa. O
“conteúdo” da escrita ou da imprensa e a fala, mas o leitor permanece quase
que inteiramente inconsciente, seja em relação à palavra impressa, seja em
relação à palavra falada.
Arnold Toynbee ignora até à inocência a função dos meios na formação
da história, mas contém muitos exemplos úteis ao estudante dos media. Em
certa altura, chega até a sugerir que a educação de adultos — através da
Associação Educacional dos Trabalhadores, na I nglaterra —pode constituir-se
numa força eficaz contra a imprensa popular. Toynbee acha que, embora todas
as sociedades orientais já tenham aceitado a tecnologia industrial e suas
conseqüências políticas, “no plano cultural, no entanto, não se observa uma
tendência uniforme correspondente” (Somervell. 1. 267). Esta é a voz do
letrado que, aos tropeções no mundo dos anúncios, garganteia: "Pessoalmente,
não dou atenção a anúncios.” As reservas espirituais e culturais que os povos
orientais possam ter em relação à nossa tecnologia não lhes poderão valer
muito. Os efeitos da tecnologia não ocorrem aos níveis das opiniões e dos
conceitos: eles se manifestam nas relações entre os sentidos e nas estruturas
da percepção, num passo firme e sem qualquer resistência. O artista sério é a
única pessoa capaz de enfrentar, impune, a tecnologia, justamente porque ele
é um perito nas mudanças da percepção.
A operação do meio monetário no Japão do século XVI I produziu efeitos
semelhantes aos da “operação tipografia” no Ocidente. A penetração da
economia do dinheiro, escreveu G. B. Sansom (Japan, Cresset Press, Londres,
1931), “provocou uma revolução, lenta mas irresistível, que culminou com o
esfacelamento do governo feudal e a retomada do intercAmbio com países
estrangeiros, depois de mais de dois séculos de isolamento”. O dinheiro
reorganizou a vida dos sentidos dos povos precisamente porque ele é uma
extensão da vida de nossos sentidos. Esta mudança não depende da aprovação
ou desaprovação dos membros constitutivos da sociedade.
Arnold Toynbee abordou o tema do poder de transformação dos meios,
em seu conceito da "eterização”, que ele tem como o princípio da simplificação
e da eficiência progressivas em qualquer organização ou tecnologia. Mas é
significativo que ele ignore o efeito do desafio dessas formas sobre as reações
de nossos sentidos. Acha que a resposta expressa por nossas opiniões é que é
relevante em relação aos efeitos dos meios e da tecnologia na sociedade — um
“ponto de vista” claramente resultante do feitiço tipográfico. O homem de uma
sociedade letrada e homogeneizada já não é sensível à diversa e descontínua
vida das formas. Ele adquire a ilusão da terceira dimensão e do “ponto de vista
pessoal” como parte de sua fixação narcísica, excluindo-se assim da consciência
de um Blake ou do Salmista, para os quais nós nos transformamos naquilo que
contemplamos.
Hoje, se quisermos estabelecer os marcos de nossa própria cultura,
permanecendo à margem das tendências e pressões exercidas por qualquer
forma técnica de expressão humana, basta que visitemos uma sociedade onde
uma certa forma particular ainda não foi sentida ou um período histórico onde
ela ainda era desconhecida. O Prof. Wilbur Schramm efetuou essa manobra
tática, ao estudar a Television in the Lives of our Children (“A Televisão na Vida
de Nossas Crianças”). Encontrou áreas onde a televisão ainda não havia
penetrado o suficiente e efetuou alguns testes. Como não havia feito nenhum
estudo sobre a natureza específica da imagem televisada, seus testes versaram
sobre preferências de “conteúdo”, tempo de exposição ao vídeo e
levantamentos de vocabulário. Numa palavra, sua abordagem do problema foi
puramente literária, embora inconsciente. Em conseqüência, não teve nada a
relatar. Tivesse empregado tais métodos em 1500 para descobrir os efeitos do
livro impresso sobre a vida de crianças e adultos, nada teria concluído sobre as
mudanças provocadas pela tipografia sobre a psicologia humana e social. A
imprensa criou o individualismo e o nacionalismo no século XVI . A análise de
programas e “conteúdos” não oferece pistas para a magia desses meios ou sua
carga subliminar.
Leonard Doob, em seu relatório Communication in Africa (“Comunicação
na África”), conta de um africano que sofria um bocado para ouvir, todas as
noites, o noticiário da BBC — embora não entendesse nada do que se falava.
Mas estar em presença daqueles sons, às 7 horas da noite, diariamente, era
importante para ele. Sua atitude para com a fala era igual à nossa diante da
melodia: a entonação ressonante já é bastante significativa. No século XVI I ,
nossos ancestrais ainda partilhavam dessa atitude do nativo ante as formas dos
meios, como bem nos faz sentir o francês Bernard Lam, em The Art of Speaking
(“A Arte de Falar”, Londres, 1697):
“É uma virtude da sabedoria de Deus, que criou o Homem para a
felicidade, que o que lhe é útil na conversação e no modo de vida também lhe é
agradável ... porque toda vitualha que provê à nutrição é saborosa, enquanto
insípidas se tornam outras coisas que não podem ser assimiladas e
transformadas em nossa própria substância. Não pode agradar ao Ouvinte um
Discurso que não flua fácil da boca do Orador, nem pode ser ele facilmente
proferido se com deleite não for ouvido.”
Há aqui uma teoria do equilíbrio da expressão e da dieta humanas. que
só agora estamos tentando recuperar em relação aos meios — depois de
séculos de fragmentação e especialização.
O Papa Pio XI I preocupava-se profundamente com o desenvolvimento de
estudos sérios sobre os atuais meios de comunicação. Dizia ele, em 17 de
fevereiro de 1950:
“Não é um exagero dizer-se que o futuro da sociedade moderna, bem
como da estabilidade de sua vida interior, dependem em grande parte da
manutenção de um equilíbrio entre a força das técnicas de comunicação e a
capacidade de reação do indivíduo.”
Durante séculos, o fracasso da Humanidade a esse respeito tem sido
característico e total. A aceitação dócil e subliminar do impacto causado pelos
meios transformou-os em prisões sem muros para seus usuários. Como
observou A. J. Liebling em seu livro The Press (“A I mprensa”), um homem não
consegue ser livre se não consegue enxergar para onde vai, ainda que tenha
um revólver para ajudá-lo. Todo meio ou veículo de comunicação também é
uma arma poderosa para abater outros meios e veículos e outros grupos.
Resulta daí que os tempos que correm se têm caracterizado por numerosas
guerras civis, que não se limitam ao mundo da arte e do entretenimento. Em
War and Human Progress (“A Guerra e o Progresso Humano”), o Prof. J. U. Nef
declara: “As guerras totais de nosso tempo têm resultado de uma série de erros
intelectuais..."
Como a força plasmadora dos meios são os próprios meios, questões de
largo alcance se impõem à nossa consideração; embora mereçam volumes, não
podem aqui ser senão mencionadas. Uma delas é que os meios tecnológicos
são recursos naturais ou matérias-primas, a mesmo título que o carvão, o
algodão e o petróleo. Todos concordarão em que uma sociedade cuja economia
depende de um ou dois produtos básicos, algodão ou trigo, madeira, peixe ou
gado, apresentará, como resultado, determinados e evidentes padrões sociais
de organização. A ênfase em certas matérias-primas básicas é responsável pela
extrema instabilidade da economia, mas também pela maior capacidade de
resistência da população. O pathos e o humor do estadunidense do Sul se
implantam numa economia desse tipo, de produtos limitados. Uma sociedade
configurada segundo o apoio que lhe fornecem alguns poucos bens tende a
aceitá-los como liames ou elos sociais, tal como a metrópole em relação à
imprensa. O algodão e o petróleo, como o rádio e a televisão, tornam-se
“tributos fixos” para a inteira vida psíquica da comunidade. É este fato que,
permeando uma sociedade, lhe confere aquele peculiar sabor cultural. Cada
produto que molda uma sociedade acaba por transpirar em todos e por todos
os seus sentidos.
Que os nossos sentidos humanos, de que os meios são extensões,
também se constituem em tributos fixos sobre as nossas energias pessoais e
que também configuram a consciência e experiência de cada um de nós pode
ser percebido naquela situação mencionada pelo psicólogo C. G.
Jung:
“Todo Romano era cercado por escravos. O escravo e a sua psicologia
inundaram a I tália antiga, e todo Romano se tornou interiormente — e, claro,
inconscientemente — um escravo. Vivendo constantemente na atmosfera dos
escravos, ele se contaminou de sua psicologia, através do inconsciente.
Ninguém consegue evitar essa influência.” (Contributions to Analytical
Psychology, Londres, 1928).
2. MEI OS QUENTES E FRI OS
“O surgimento da valsa — explicou Curt Sachs, em sua World History of
the Dance (“História Mundial da Dança”) — foi o resultado daquela aspiração
pela verdade, simplicidade, convívio com a natureza e primitivismo propiciados
pelos últimos dois terços do século XVI I I ." No século do Jazz, nós tendemos a
subestimar o aparecimento da valsa, expressão humana quente e explosiva,
que rompeu aquelas barreiras formais do feudalismo representadas pelos
estilos da dança coral e palaciana.
Há um princípio básico pelo qual se pode distinguir um meio quente,
como o rádio, de um meio frio, como o telefone, ou um meio quente, como o
cinema, de um meio frio, como a televisão. Um meio quente é aquele que
prolonga um único de nossos sentidos e em “alta definição”. Alta definição se
refere a um estado de alta saturação de dados. Visualmente, uma fotografia se
distingue pela “alta definição”. Já uma caricatura ou um desenho animado são
de “baixa definição”, pois fornecem pouca informação visual, O telefone é um
meio frio, ou de baixa definição, porque ao ouvido é fornecida unia magra
quantidade de informação. A fala é um meio frio de baixa definição, porque
muito pouco é fornecido e muita coisa deve ser preenchida pelo ouvinte. De
outro lado, os meios quentes não deixam muita coisa a ser preenchida ou
completada pela audiência. Segue-se naturalmente que um meio quente. como
o rádio, e um meio frio, como o telefone, têm efeitos bem diferentes sobre seus
usuários.
Um meio frio como os caracteres escritos hieroglíficos ou ideogrâmicos
atua de modo muito diferente daquele de um meio quente e explosivo como o
do alfabeto fonético. Quando elevado a um alto grau de intensidade visual
abstrata, o alfabeto se transforma em tipografia. A palavra impressa, graças à
sua intensidade especializada, quebrou os elos das corporações e mosteiros
medievais, criando forma, de empresas e de monopólios extremamente
individualistas. Mas a reversão típica ocorreu quando o monopólio extremado
trouxe de volta a corporação, com seu domínio impessoal sobre muitas vidas. O
aquecimento do meio da escrita pela intensificação da imprensa repetitiva
conduziu ao nacionalismo e às guerras religiosas do século XVI ) Os meios
pesados e maciços, como a pedra agem como inter-ligadores do tempo. Usados
para a escrita, são em verdade bastante frios e servem para unificar as eras e
as idades; já o papel é um meio quente, que serve para unificar os espaços
horizontalmente, seja nos impérios do entretenimento, seja nos impérios
políticos.
Um meio quente permite menos participação do que um frio: uma
conferência envolve menos do que um seminário, e um livro menos do que um
diálogo. Com a imprensa, muitas formas anteriores foram excluídas da vida e
da arte, enquanto outras ganharam uma nova intensidade. Mas o nosso próprio
tempo está cheio de exemplos do princípio segundo o qual a forma quente
exclui e a forma fria inclui. Quando as bailarinas começaram a dançar nas
pontas dos pés, há um século atrás, todos sentiram que a arte do balé havia
adquirido uma nova “espiritualidade”. Devido a essa nova intensidade, as
figuras masculinas foram excluídas do balé. O papel das mulheres também se
tornou fragmentário com o advento da especialização industrial e a explosão
das funções caseiras em lavanderias, padarias e hospitais na periferia da
comunidade. A intensidade, ou alta definição, produz a fragmentação ou
especialização, tanto na vida como no entretenimento; isto explica por que toda
experiência intensa deve ser “esquecida”, “censurada” e reduzida a um estado
bastante frio antes de ser “aprendida” ou assimilada. A “censura” freudiana é
menos uma função moral do que uma indispensável condição do aprendizado.
Aceitássemos integral e diretamente todos os choques causados nas várias
estruturas de nossa consciência, e logo não passaríamos de pobres náufragos
neuróticos, gaguejando e apertando botões de alarme a cada minuto. A
censura protege nosso sistema central de valores, bem como nosso sistema
nervoso, arrefecendo e esfriando bastante as arremetidas da experiência. Para
muita gente, este sistema de esfriamento redunda num perpétuo estado de
rigor mortis psíquico, ou de sonambulismo, particularmente notável em
períodos de novas tecnologias.
Um exemplo do impacto dilacerante de uma tecnologia quente
sucedendo-se a uma tecnologia fria é fornecido por Robert Theobald em The
Rich and the Poor (“Os Ricos e os Pobres”). Quando os missionários deram
machados de aço aos nativos australianos, sua cultura — baseada no machado
de pedra — entrou em colapso. O machado não apenas era raro como sempre
fora um símbolo de classe (status), de importância viril. Os missionários
providenciaram uma grande quantidade de afiados machados de aço e os
entregaram às mulheres e às crianças. Os homens tinham mesmo de pedi-los
emprestados às mulheres, o que causou a ruína da dignidade dos machos. Uma
hierarquia feudal e tribal de tipo tradicional entra rapidamente em decadência
quando se defronta com qualquer meio quente do tipo mecânico, uniforme e
repetitivo. Enquanto meios, o dinheiro, a roda, a escrita ou qualquer outra
forma especializada de aceleração, de intercâmbio e de informações. operam
no sentido da fragmentação da estrutura tribal. I gualmente, uma aceleração
extremamente acentuada, como a que ocorre com a eletricidade, contribui para
restaurar os padrões tribais de envolvimento intenso, tal como a que ocorreu
com a introdução do rádio na Europa, e como tende a acontecer na América,
como resultado da televisão. As tecnologias especializadas destribalizam. A
tecnologia elétrica não especializada retribaliza. O processo de perturbação
resultante de uma nova distribuição de habilidades vem acompanhado de muita
defasagem cultural: as pessoas se sentem compelidas a encarar as novas
situações como se fossem velhas, daí derivando idéias como a da “explosão
demográfica”, numa área de implosão. No tempo dos relógios, Newton acabou
por apresentar o universo físico à imagem de um relógio. Poetas como Blake,
porém. estavam bem adiante de Newton, em suas reações ao desafio do
relógio. Blake falou da necessidade de livrar-se “da visão única e do sono de
Newton”, percebendo muito bem que a resposta de Newton ao desafio
proposto pelo novo mecanismo não era senão uma repetição mecânica desse
mesmo desafio. Blake via Newton, Locke e outros como Narcisos hipnotizados,
totalmente incapazes de enfrentar o repto do mecanismo. W. B. Yeats deu a
sua versão blakeana integral sobre Newton e Locke num famoso epigrama:
Locke adormece a sonhar:
O jardim se esvai.
De seu flanco Deus extrai
O fuso do tear.
Yeats apresenta Locke, o filósofo do associacionismo mecânico e linear, como
que hipnotizado por sua própria imagem. O “jardim” ou consciência unificada
desaparece. O homem do século XVI I I prolongou-se a si mesmo sob a forma
do tear mecânico, que Yeats dota de toda a sua significação sexual. A própria
mulher é assim vista como uma extensão tecnológica do ser do homem.
A contra-estratégia de Blake para o seu tempo era a de opor ao
mecanismo o mito orgânico. Hoje. imerso na era da eletricidade, o próprio mito
é uma resposta simples e automática passível de expressão e formulação
matemática, sem nada daquela percepção imaginativa de Blake. Estivesse
mergulhado na era elétrica e Blake não teria aceito o desafio em termos de
mera repetição da forma elétrica. Porque o mito é a visão instantânea de um
processo complexo que normalmente se prolonga por um longo período. O mito
é a contração ou implosão de qualquer processo e a velocidade instantânea da
eletricidade confere dimensão mítica a todas as corriqueiras ações sociais e
industriais de hoje. Nós vivemos miticamente, mas continuamos a pensar
fragmentariamente e em planos separados.
Os estudiosos estão perfeitamente cônscios da discrepância entre as
maneiras com que abordam os assuntos e os próprios assuntos. Os eruditos
das Escrituras, tanto do Velho como do Novo Testamento, freqüentemente
declaram que o objeto de suas indagações não é linear, embora julguem que
assim deva ser tratado. O tema é o das relações entre Deus e o homem, entre
Deus e o mundo e entre o homem e o seu próximo — e todas as relações são
conjuntas, agindo e reagindo umas sobre as outras ao mesmo tempo. No início
de uma discussão, o modo de pensamento oriental e hebraico é o de atar e
atacar simultaneamente o problema e a sua resposta, o que é típico das
sociedades orais em geral. A mensagem integral é traçada e retraçada
incessantemente, seguindo o fio de uma espiral concêntrica com redundância
aparente. - Basta parar em qualquer parte, depois das primeiras sentenças,
para recuperar toda a mensagem — quando se está preparado para “escavála”. Este tipo de plano parece haver inspirado Frank Lloyd Wright em seu
projeto da Guggenheim Art Gallery, apoiado num partido espiral e concêntrico.
É uma forma redundante inevitável na era da eletricidade, pois a estrutura
concêntrica superpondo-se em profundidade é imposta pela qualidade
instantânea da velocidade elétrica. O concêntrico, com sua infindável interseção
de planos, é necessário para a introvisão. Em verdade, ele é a própria técnica
da introvisão e, como tal, necessário para o estudo dos meios, uma vez que
nenhum meio tem sua existência ou significado por si só, estando na
dependência da constante inter-relação com os outros meios.
A nova configuração e estruturação elétrica da vida cada vez mais se
opõe aos velhos processos e instrumentos de análise, lineares e fragmentários,
da idade mecânica. E cada vez mais nos apartamos do conteúdo das
mensagens para estudar o efeito total. Kenneth Boulding tocou no assunto em
The I mage (“A I magem”), ao dizer: “O significado de uma mensagem é a
mudança que ela produz na imagem." O interesse antes pelo efeito do que pelo
significado é uma mudança básica de nosso tempo, pois o efeito envolve a
situação total e não apenas um plano do movimento da informação. Por
estranho que pareça, a precedência do efeito sobre a informação está implícita
na idéia de libelo, no Direito I nglês: “Quanto maior a verdade. maior o libelo.”
I nicialmente, o efeito da tecnologia elétrica foi a angústia. E agora
parece estar criando tédio. Vimos atravessando os três estágios — alarma,
resistência, exaustão —que caracterizam qualquer doença ou stress vital, seja
individual ou coletiva. Pelo menos, nossa queda cansada após o primeiro
entrevero com a eletricidade inclinou-nos para a expectativa de novos
problemas. Entretanto, os países subdesenvolvidos que mostraram pouca
permeabilidade à nossa cultura mecânica e especializada estão em muito
melhores condições para enfrentar e entender a tecnologia elétrica. Não apenas
as culturas atrasadas e não-industriais não possuem hábitos de especialização
que devam superar em sua confrontação com o eletromagnetismo, como, na
cultura oral de sua tradição, ainda possuem muito daquele “campo” unificado
total de nosso novo eletromagnetismo. Nossas velhas áreas industrializadas,
tendo corroído automaticamente suas tradições orais, encontram-se na posição
de ter de redescobri-las se desejarem manter-se à altura da era da eletricidade.
Em termos de meios frios e quentes, os países atrasados são frios e nós
somos quentes. O citadino bem posto e quente, o rústico do interior é frio. Mas
em termos da reversão dos procedimentos e valores da era elétrica, os tempos
mecânicos passados eram quentes, enquanto nós da era da TV somos frios. A
valsa era uma dança quente, rápida e mecânica, adequada aos tempos
industriais, em seus aspectos de pompa e cerimônia. O twist, ao contrário, e
uma forma fria de gesto improvisado, envolvente e tagarela. No tempo do
cinema e do rádio, que eram novos meios quentes, o jazz era quente (hot jazz).
Em si mesmo, porém, o jazz tende a ser forma dançável de diálogo informal,
tendo muito pouco das formas mecânicas e repetitivas da valsa. Depois que o
primeiro impacto do rádio e do cinema foi absorvido, o jazz frio (cool jazz)
surgiu naturalmente.
No número da revista Life de 13-9-1963, dedicado à Rússia, menciona-se
que, nos clubes noturnos e restaurantes russos, “embora o charleston seja
tolerado, o twist é tabu”. Tudo isto não indica senão que um país em vias de
industrialização tende a considerar o hot jazz como mais consentâneo com seus
programas de desenvolvimento. De outra parte, o twist, forma fria e
envolvente, chocaria essa cultura, por retrógrado e incompatível com a recente
ênfase no mecânico. O charleston, em seu aspecto de boneco mecânico tirado
a cordel, se constitui numa forma de vanguarda para os russos. De nossa parte,
encontramos a vanguarda no frio e n~ primitivo, que nos prometem
envolvimento em profundidade e expressão integral.
A venda pesada (hard sell) e a linha quente (hot line) tornam-se cômicas
na era da televisão, e a morte de todos os caixeiros-viajantes, a um simples
golpe da TV, fez passar de quente a fria a cultura americana, ainda incapaz de
reconhecer-se. Em verdade, a América mais parece estar vivendo segundo o
processo inverso ao descrito por Margaret Mead, na revista Time (4-9-1954):
“Muito se lamenta o fato de a sociedade ter de mudar depressa demais para
acompanhar a máquina. Há uma grande vantagem em caminhar rápido, se
você caminha de maneira completa, se as mudanças sociais, educacionais e de
recreação estejam de passos acertados. Necessário se torna mudar toda a
estrutura de uma vez e todo o grupo junto — e as próprias pessoas devem
decidir-se a mudar.”
Margaret Mead toma aqui a mudança como aceleração uniforme do
movimento ou uma elevação uniforme das temperaturas nas sociedades
atrasadas. Não há dúvida de que estamos chegando bastante próximos de um
mundo controlado automaticamente, a ponto de podermos dizer: “Menos seis
horas de rádio na I ndonésia, na próxima semana, senão haverá uma grande
queda no índice de atenção literária.” Ou: “Programemos vinte horas mais de
TV na África do Sul, na próxima semana, para esfriar a temperatura tribal,
elevada pelo rádio na última semana.” Culturas inteiras podem agora ser
programadas, no sentido de que seu clima emocional se mantenha estável,
assim como já começamos a saber alguma coisa sobre a manutenção do
equilíbrio nas economias comerciais do mundo.
Na esfera puramente pessoal e privada, muitas vezes nos lembramos de
como mudanças de tom e atitude são requeridas em diferentes estações e
ocasiões, a fim de manter a situação sob controle. Os clubmen ingleses, a bem
do companheirismo e da amabilidade, há muito excluíram de sua conversação
certos tópicos particularmente quentes. tais como religião e política, no âmbito
de seus clubes altamente “participacionais”. Explorando essa veia, W. H. Auden
escreveu. em sua introdução ao livro de John Betjeman, Slick But Not
Streamlined (“Bem Passado mas não Passageiro”): "... nesta temporada, o
homem de boa vontade deve usar o coração ao alcance da mão, mas não
nela... O estilo escorreito do homem hoje apenas cai bem em lago”. No
Renascimento, quando a imprensa aqueceu o milieu do homem a um grau
bastante elevado, o cavalheiro e o cortesão (no estilo Hamlet-Mercúcio),
adotavam, como contraste, a atitude descontraída e informal de um ser
superior e lúdico. A alusão de Auden a I ago nos lembra de que I ago era o alter
ego e o assessor do seriíssimo e nada descontraído General Otelo. I mitando seu
honesto e reto general, I ago aqueceu sua própria imagem, deixando à mostra
seu coração, até que o General Otelo o pronunciasse claramente “honesto
I ago”, um homem à imagem e semelhança de seu próprio coração honesto e
implacável.
Em The City in History (“A Cidade na História”), Lewis Mumford se
mostra favorável às cidades frias e informalmente estruturadas, contra as
cidades quentes e densamente povoadas. Acha ele que o grande período de
Atenas foi aquele em que ainda estavam vivos os hábitos democráticos aldeões
de viver e participar. Foi então que floresceu toda a gama de expressões e
indagações humanas que posteriormente se tornaram impossíveis nos centros
urbanos altamente desenvolvidos. Por definição, uma situação altamente
desenvolvida é baixa em oportunidades de participação e rigorosa em suas
exigências de fragmentação especializada para com aqueles que pudessem
controlá-la. Por exemplo, o que hoje se chama “aumento de empregos”, nos
negócios e no empresariado, consiste em permitir ao empregado maior
liberdade na descoberta e definição de sua função. Assim também, ao ler uma
estória policial, o leitor participa como co-autor, simplesmente por que muita
coisa é deixada fora da narrativa. A meia de seda de malha larga é muito mais
sensual do que o nylon macio, porque o olho manipula, preenchendo-a e
completando a imagem, tal como no mosaico da imagem da TV.
Douglas Cater, em The Fourth Branch of Government (“O Quarto Poder
do Governo”), narra como o pessoal de serviço de imprensa de Washington se
compraria em completar ou preencher as lacunas da personalidade de Calvin
Coolidge. Ele era tão parecido com uma simples charge, que eles sentiam
necessidade de completar sua imagem, para ele mesmo e para o seu público.
Não deixa de ser instrutivo o fato de a imprensa aplicar o adjetivo “frio” (cool) a
Cal. No sentido real de um meio frio, Calvin Coolidge era tão carente de dados
articulados em sua imagem pública que só havia uma palavra para ele. Ele era
realmente frio. Nos quentes anos 20, o quente meio da imprensa achava Cal
bastante frio, e se regozijava com sua “falta de imagem”, pois esta mesma falta
convidava a imprensa a elaborar uma imagem para o público. Em
contraposição, F. D. R. (Franklin Delano Roosevelt) era um quente homem de
imprensa, que rivalizava com o jornal e se compraria em derrotar a imprensa
através de um rival, o meio quente do rádio. Como contraste, Jack Paar,
famoso entrevistador da TV americana, levava um espetáculo frio ao frio meio
da televisão, tornando-se um rival dos fofoqueiros noturnos e de seus aliados
nas colunas sociais. A guerra de Jack Para com os colunistas foi um estranho
exemplo do choque entre um meio frio e um meio quente, tal como ocorreu
com o escândalo da trapaça do show de TV “O céu é o limite”. A rivalidade
entre os meios quentes da imprensa e do rádio, de um lado, e a televisão, do
outro, na conquista das verbas de publicidade, apenas serviu para confundir e
superaquecer as questões implicadas no negócio, que acabou por envolver
despropositadamente Charles Van Doren.
Um despacho da Associated Press, de Santa Mônica. Califórnia, de 9-81962, informava que:
Uns cem infratores de trânsito assistiram hoje a uma fita sobre acidentes
de trânsito, como castigo às suas infrações. Dois deles foram acometidos de
choque emocional e acessos de náusea. Aos assistentes se oferecia uma
redução de cinco dólares nas multas, desde que concordassem em assistir ao
referido filme, Signal 30, feito pela polícia do Estado de Ohio. O espetáculo
mostrava ferragens retorcidas e corpos mutilados, além de gravações dos gritos
das vítimas.
Que um meio quente, com conteúdo quente. possa servir para esfriar
motoristas quentes é coisa muito discutível. Mas a questão interessa à
compreensão dos meios. O efeito do tratamento por meios quentes dificilmente
implica a empatia e a participação. A este propósito, um anúncio de seguros de
vida que mostrava o Papai num pulmão de aço rodeado de um alegre grupo
familiar fez mais para despertar sentimentos de horror no leitor do que as mais
sábias advertências do mundo. Este problema também surge em relação à pena
capital. Uma pena rigorosa constitui o melhor meio de dissuasão para os
grandes crimes? E quanto à bomba atômica e à guerra fria, as ameaças de
retaliação maciça serão o meio mais eficaz para a paz? Não parece evidente
que quando se força uma situação humana a um ponto extremo de saturação,
o resultado mais provável é a precipitação? Quando todos os recursos e
energias disponíveis são aplicados a um organismo ou estrutura. dá-se uma
espécie de reversão da estrutura. O espetáculo da brutalidade empregado como
dissuasão pode brutalizar. Sob certas condições, pelo menos, a brutalidade
usada no esporte pode humanizar. Com respeito à bomba e à retaliação como
antídotos, podemos dizer que o entorpecimento é o resultado óbvio de todo
terror prolongado, como ficou comprovado ao se tornar público o programa dos
abrigos atômicos. A indiferença é o preço da eterna vigilância.
Todavia, importa muito saber se um meio quente é utilizado numa
cultura quente ou fria. O rádio, meio quente, aplicado a culturas frias ou não
letradas, provoca um efeito violento, contrariamente ao que acontece, por
exemplo, na I nglaterra e na América, onde o rádio é considerado divertimento.
Uma cultura fria, ou pouco letrada, não pode aceitar como simples
divertimentos os meios quentes, como o rádio e o cinema. Estes meios são tão
perturbadores para elas como o meio frio da televisão acabou por se mostrar
em nosso mundo altamente letrado.
Quanto ao pavor da guerra fria e da bomba quente, a estratégia cultural
mais necessária é a que envolve o humor e o jogo. O jogo esfria as situações
quentes da vida real, arremedando-as. A competição esportiva entre a Rússia e
o Ocidente dificilmente servirá ao propósito da distensão. Estes esportes são
inflamáveis, eis a verdade. O que consideramos divertimento ou piada em
nossos meios, inevitavelmente se transforma em violenta agitação política
numa cultura fria.
Um modo de estabelecer a diferença básica entre os empregos dos
meios quentes e frios é o de comparar e opor a transmissão de um concerto
sinfônico e a transmissão de um ensaio sinfônico. Dois dos melhores
espetáculos da CBC foram os que focalizaram Glenn Gould na gravação de
recitais de piano e a apresentação de I gor Stravinsky ensaiando a Sinfônica de
Toronto, numa de suas novas peças. Um meio frio como a TV, quando
corretamente empregado, exige este envolvimento no processo. As mensagens
bem delineadas são mais adequadas aos meios quentes. como o rádio e a
vitrola. Francis Bacon nunca se cansava de comparar a prosa fria e a prosa
quente. Escrever métodos, ou “embalagens completas” opunha-se, para ele, ao
escrever por aforismos ou por observações simples, tais como “A vingança é
uma espécie de justiça selvagem”. O consumidor passivo deseja pacotes já
prontos, mas, dizia Bacon. aquele que está interessado no avanço do
conhecimento e na indagação das causas recorrerá aos aforismos porque são
incompletos e solicitam a participação em profundidade.
O princípio que distingue os meios frios e quentes está perfeitamente
corporificado na sabedoria popular: “Garota de óculos não convida a cantadas.”
Os óculos intensificam a visão de dentro para fora, saturando a imagem
feminina — sem embargo da imagem antifeminina clássica representada pela
bibliotecária. Já os óculos escuros criam a imagem inescrutável e inacessível
que convida à participação e à complementação.
Numa cultura visual altamente letrada, ao sermos apresentados a
alguém, é comum acontecer que a aparência visual ofusque o som do nome da
pessoa, o que nos obriga a expedientes de autodefesa, tais como perguntar:
“Como é mesmo o seu nome completo?” Já numa cultura auditiva, o que se
impõe é o som do nome da pessoa, como bem sabia Joyce, ao dizer em
Finnegans Wake: “Quem lhe deu esse hipnome?” O nome de alguém é um
verdadeiro passe hipnótico a que a pessoa fica submetida durante toda vida.
Pregar peças e passar trotes também constituem bons testes para a
verificação das diferenças entre os meios frios e quentes. O meio literário
quente exclui os aspectos práticos e participantes das brincadeiras, a ponto de
Constance Rourke, em American Humor (“O Humor Americano”). negar mesmo
a sua qualidade de brincadeira. Para as pessoas letradas, pregar peças, com
seu envolvimento físico integral, e de tão mau gosto quanto o trocadilho, que
nos obriga a sair da linha estabelecida pela ordem tipográfica, com seu avanço
suave e uniforme. Na verdade, para a pessoa letrada, em geral pouco
consciente da natureza altamente abstrata do meio tipográfico, as formas de
arte mais gritantes e participantes é que parecem “quentes”, enquanto que a
forma abstrata, mais intensamente literária, parece fria.” “Bem pode a senhora
perceber — disse o Dr. Johnson, com um sorriso pugilístico — que sou bem
criado a ponto de ter escrúpulos doentios.” E o Dr. Johnson estava certo em
supor que “bem criado” passara a significar o “toque da camisa branca” na
apresentação pessoal, em consonância com o rigor da página impressa. O
“conforto” consiste em abandonar uma disposição visual em favor de uma
disposição que permite a participação informal dos sentidos — um estado que
não se obtém quando se aquece apenas um dos sentidos (o visual em
especial), a ponto de torná-lo dominante numa situação qualquer.
De outro lado, em experiências em que se incluem todas as sensações
externas, a pessoa dá início a um furioso processo de preenchimento e
completação, que redunda em pura alucinação. Dessa forma, o aquecimento de
um dos sentidos tende a produzir hipnose, o esfriamento de todos os sentidos
redunda em alucinação.
3. REVERSÃO DO MEI O SUPERAQUECI DO
Uma manchete de 21/ 6/ 1963 declarava: LI NHA QUENTE WASHI NGTONMOSCOU DENTRO DE 60 DI AS
Do serviço do Times de Londres, em Genebra:
O acordo para o estabelecimento de uma linha de comunicação direta
entre Washington e Mascou, para casos de emergência, foi ontem assinado
aqui. Charles Stelle representou os Estados Unidos e Semyon Tsarapkin a União
Soviética...
A ligação, conhecida como “linha quente”, deverá ser inaugurada dentro
de sessenta dias, de acordo com o porta-voz americano. Utilizará concessões de
circuitos comerciais, um cabo e outros meios sem fio, empregando um
equipamento de teletipo.
A decisão de utilizar um meio quente, o impresso, em lugar de um meio
mais participante, frio, como o telefone, é infeliz em todos os sentidos. Sem
dúvida a decisão foi produto da tendência literária do Ocidente. inclinando-se
para a forma impressa, sob a alegação de que é mais impessoal do que o
telefone. As implicações da forma impressa são bastante diferentes em Moscou
e em Washington. O mesmo acontece com o telefone. A estima dos russos por
este instrumento, tão de acordo com suas tradições orais, deve-se ao rico
envolvimento não-visual que ele propicia. O russo utiliza o telefone para os
mesmos efeitos que nós associamos a uma ansiosa conversa cara a cara.
Tanto o telefone como o teletipo são amplificações de tendências
culturais inconscientes de Moscou e Washington. respectivamente; como tais,
são verdadeiros convites aos mais terríveis desentendimentos. Os russos acham
muito natural a espionagem por via auditiva, mas se sentem ultrajados por
nossa espionagem visual, que eles não consideram nada natural.
É velha doutrina o princípio segundo o qual as coisas se apresentam, nas
fases intermediárias de desenvolvimento, sob formas contrárias às que
apresentarão em seu estágio final. Chistosas ou sérias, muitas e variadas são as
observações que denotam interesse nesse poder que têm as coisas de se
transformarem em seu contrário, por evolução. Assim escrevia Alexander Pope:
O vicio é um monstro de tão feio aspecto,
Que para abominá-lo basta a vista;
Mas se o vemos demais, a face horrenda
De abjeta a familiar, chega a benquista.
E disse o lagarto, contemplando uma borboleta: “Não, você nunca vai
me pegar numa dessas malditas antenas.”
Em outro nível, temos visto, em nosso século, a zombaria aos mitos e
legendas tradicionais transformar-se em estudo reverente. À medida que
começamos a reagir em profundidade à vida e aos problemas sociais de nosso
globo-aldeia, tornamo-nos reacionários. O envolvimento que acompanha nossas
tecnologias imediatas transforma as pessoas mais “socialmente conscientes” em
pessoas conservadoras.
Quando o primeiro Sputnik entrou em órbita, uma professora de ginásio
pediu aos seus alunos da segunda série que escrevessem alguns versos a
respeito. Um deles escreveu:
As estrelas são tão grandes,
A Terra é tão pequena:
Fique como está.
Para o homem, o conhecimento e o processo de obter conhecimento
possuem a mesma magnitude. Nossa habilidade em compreender, ao mesmo
tempo, galáxias e estruturas subatômicas é um movimento de faculdades que
as inclui e transcende. O ginasiano que escreveu os versos acima vive num
mundo muito mais vasto do que aquele que pode ser descrito por conceitos ou
medido por instrumentos de um cientista de nossos dias. Sobre esta reversão,
escreveu W. Butler Yeats: “O mundo visível já não é mais uma realidade e o
mundo invisível já não é mais um sonho.”
Associado a esta transformação do mundo real em ficção científica,
situa-se o processo de reversão, que ora se vai desenvolvendo rapidamente,
pelo qual o Ocidente se aproxima do Oriente, e o Oriente do Ocidente. Joyce
codificou esta reversão recíproca em sua frase críptica:
O Ocidente alerta, o Oriente desperta
Quando se troca a noite pelo dia.
O título de seu Finnegans Wake é um conjunto de trocadilhos de
múltiplos níveis a propósito da reversão pela qual o homem ocidental reingressa
em seu ciclo tribal, ou Finn, seguindo a trilha do velho Finn, bem desperto
desta vez, enquanto tornamos a entrar na noite tribal; é como nossa
consciência contemporânea do I nconsciente.
A aceleração da velocidade da forma mecânica para a forma elétrica
instantânea faz reverter a explosão em implosão. Em nossa atual era elétrica,
as energias de nosso mundo, implosivas ou em contração, entram em choque
com as velhas estruturas de organização, expansionistas e tradicionais. Até
recentemente, nossas instituições e disposições sociais, políticas e econômicas
— obedeciam a uma organização unidirecional. Ainda acreditamos que ela seja
“explosiva” ou expansiva; e embora ela já não impere. ainda falamos em
explosão da população e explosão de ensino. Em verdade, não é o aumento
numérico que cria a nossa preocupação com a população; trata-se antes do
fato de que todo mundo está passando a viver na maior vizinhança. criada pelo
envolvimento elétrico que enreda umas vidas nas outras. Do mesmo modo na
educação, não é o aumento do número daqueles que buscam o conhecimento
que gera a crise. Nossa nova preocupação com a educação vai na esteira da
mudança dos currículos organizados segundo disciplinas estanques rumo à
inter-relação dos conhecimentos. A soberania dos departamentos se dissolve
tão rapidamente quanto as soberanias nacionais, sob as condições da
velocidade elétrica. A obsessão com as velhas estruturas de expansão mecânica
e unidirecional, do centro para a periferia, já não tem mais sentido em nosso
mundo elétrico. A eletricidade não centraliza, mas descentraliza. É como a
diferença entre o sistema ferroviário e o sistema da rede elétrica: um exige
terminais e grandes centros urbanos, enquanto que a energia elétrica, presente
tanto na fazenda quanto na sala do executivo, faz com que todo lugar seja
centro, sem exigir grandes conjuntos e aglomerações. Esta estrutura reversa se
manifestou logo nas primeiras utilidades destinadas a “poupar esforços” —
tostadores, lavadoras ou aspiradores. Em lugar de poupar trabalho, os
eletrodomésticos permitem que cada qual faça seu próprio trabalho. O que o
século XI X delegara a servos e empregadas, agora executamos nós mesmos.
Este princípio se aplica in toto na era da eletricidade. Em política, ele permite
que Fidel Castro exista como núcleo ou centro independente. E permitiria a
Quebec deixar a União Canadense. o que seria totalmente inconcebível sob o
regime das ferrovias. As ferrovias requerem um espaço político e econômico
uniforme. De outro lado, o avião e o rádio permitem a mais completa
descontinuidade e diversidade na organização espacial.
Hoje, o grande princípio da Física, da Economia e da ciência política
clássicas — o da divisibilidade de todo processo — sofreu uma auto-reversão
por simples extensão da teoria do campo unificado; a automação na indústria
substituiu a divisibilidade do processo pelo entrelaçamento orgânico de todas as
funções do complexo produtivo. A fita magnética sucedeu a linha de
montagem.
Na nova Era da I nformação elétrica e da produção programada. os
próprios bens de consumo assumem cada vez mais o caráter de informação,
embora esta tendência se manifeste principalmente nas crescentes verbas
publicitárias. É significativo que os bens de consumo mais usados na
comunicação social — cigarros, cosméticos é sabonetes —sejam também os
maiores responsáveis pela manutenção dos meios de comunicação em geral. À
medida que aumentam os níveis da informação elétrica, praticamente toda e
qualquer espécie de material atenderá a qualquer espécie de necessidade ou
função, obrigando mais e mais o intelectual a investir-se no papel de comando
social e de serviço da produção.
Foi Julien Benda, com Great Betrayal (“A traição dos intelectuais”), quem
contribuiu para esclarecer a nova situação do intelectual, que subitamente
passou a ser o braço-açoite da sociedade. Benda percebeu que os artistas e
intelectuais, há muito alienados do poder e que desde Voltaire estavam na
oposição, passavam a ser convocados para o serviço da tomada de decisões
nos altos escalões. Traíram ao assinar a rendição de sua autonomia, tornandose os lacaios do poder, tal como o físico atômico, hoje, é o lacaio dos senhores
da guerra.
Tivesse Benda conhecido melhor sua história e teria ficado menos furioso
e menos surpreso. Sempre foi papel da inteligência agir como ligação e
mediadora entre os velhos e os novos grupos no poder. É familiar o caso dos
escravos gregos, que foram por muito tempo os confidentes intelectuais e os
educadores do poder romano. E é precisamente este papel servil do intelectual
confidente do tubarão — comercial, militar ou político — que o educador
continuou a interpretar no mundo ocidental, até nossos dias. Na I nglaterra, os
Angries (jovens irados) constituíram um grupo deste tipo de intelectuais, vindos
dos escalões mais baixos por força da válvula-chocadeira da educação. Quando
vieram à tona do mundo do poder descobriram que o ar não era nem puro,
nem estimulante. Mas perderam o sangue-frio mais depressa do que Bernard
Shaw e, como ele, logo se acomodaram às fantasias e bizarrias e ao cultivo de
valores de diversão.
Em seu Study of History (“O Estudo da História”), Toynbee anota
numerosas reversões de forma e dinâmica, como a que ocorreu em meados do
século I V com os germanos a serviço de Roma, os quais, como que de repente,
começaram a sentir-se orgulhosos de seus nomes tribais, que passaram a
conservar. Este momento marca uma nova confiança, originária da saturação
dos valores romanos, momento este assinalado por uma virada romana
complementar no sentido de valeres primitivos. (Os americanos, saturados de
valores europeus, especialmente com o advento da televisão, passaram a
colecionar lanternas de diligências postes de amarrar cavalos e utensílios de
cozinha coloniais, como objetos culturais.) Assim como os bárbaros atingiram o
topo da escala social romana, os romanos começaram a mostrar preferência
pelo vestuário e pelas maneiras esnobes dos homens tribais, dentro daquele
mesmo espírito frívolo e esnobe que atraía os cortesãos de Luís XVI para o
mundo dos pastores e pastoras. Pareceria muito natural que os intelectuais
assumissem o poder, enquanto a classe governante como que se divertia na
Disneylândia — pelo menos para Marx e seus seguidores. Mas os seus cálculos
não levaram em conta a compreensão da dinâmica dos novos meios de
comunicação. Marx baseou sua análise na máquina, extemporaneamente,
quando já o telégrafo e outras formas implosivas haviam começado a reversão
da dinâmica mecânica.
O presente capítulo é dedicado a mostrar que em qualquer meio ou
estrutura existe o que Kenneth Boulding chama de “limite de ruptura, no qual o
sistema subitamente se transforma em outro ou atravessa um ponto irreversível
em seu processo dinâmico”. Vários desses “limites de ruptura”, serão discutidos
mais adiante, inclusive o limite entre a estase e o movimento, e entre o
mecânico e o orgânico no mundo das artes plásticas. Um dos efeitos da
fotografia estática foi o de suprimir o consumo conspícuo ou privilegiado dos
ricos, mas o efeito do movimento na fotografia foi o de fornecer “bens de
fantasia aos pobres do mundo inteiro”.
Hoje, a rodovia que ultrapassa seu limite de ruptura transforma as
cidades em auto-estradas, enquanto estas mesmas vão adquirindo um caráter
urbano continuo. Outra reversão característica do limite de ruptura rodoviário é
que o campo deixa de ser o centro de todo trabalho e a cidade deixa de ser o
centro do lazer. O progresso das estradas e dos transportes provocou a
reversão da antiga estrutura: as cidades se tornaram centros de trabalho, os
campos passaram a servir ao lazer e à recreação.
Primitivamente, o aumento de tráfego propiciado pelo dinheiro e pelas
estradas conduzira à liquidação do estado estático tribal (como Toynbee chama
a cultura de nômades em busca de víveres). É típico da reversão que ocorre
nos limites de ruptura o fato de o homem nômade, caçador em busca de
alimentos, ser socialmente estático. De outro lado, o homem sedentário e
especializado é dinâmico, explosivo e progressista. A nova cidade mundial e
magnética será estática e icônica ou inclusiva.
No mundo antigo, a consciência intuitiva dos limites de ruptura como
pontos de reversão e irreversibilidade estava incorporada na idéia grega de
hubris, que Toynbee apresenta em seu Estudo de História, sob os títulos de “A
Nêmese da Criatividade” e “A reversão dos papéis”. Os dramaturgos gregos
apresentavam a idéia de criatividade como criadora também de sua própria
espécie de cegueira, como no caso de Édipo Rei, que deslindou o enigma da
Esfinge. Foi como se os gregos percebessem que o castigo por uma ruptura era
a obnubilação geral da consciência para o campo total. Numa obra chinesa —
The Way and its Power (“O Caminho e seu Poder”), na tradução de Arthur
Waley — há uma série de exemplos que mostra o fenômeno dos meios
superaquecidos do homem ou cultura superprolongada e da peripécia de
reversão inevitável:
Quem
Quem
Quem
Quem
se mantêm na ponta dos pés não se mantém firme;
dá as mais largas passadas não é o mais rápido...
proclama o que fará não tem êxito em nada;
se orgulha de sua própria obra nada realiza de duradouro.
Uma das causas mais comuns de ruptura em qualquer sistema é o
cruzamento com outro sistema, como aconteceu com a imprensa e a prensa a
vapor, ou com o rádio e o cinema (gerando o cinema falado). Hoje, com o
microfilme e os microcartões, para não falar das memórias eletrônicas, a
palavra impressa de novo assumiu muito do caráter artesanal de um
manuscrito. Mas a imprensa de tipos móveis foi, por si mesma, o maior limite
de ruptura na história da leitura fonética, assim como o alfabeto fonético foi o
limite de ruptura entre o homem tribal e o homem individualista.
Os limites de ruptura ou reversões infindáveis passaram para a tessitura
das estruturas burocráticas e empresariais, inclusive os pontos pelos quais os
indivíduos começaram a ser responsáveis e imputáveis pelas suas “ações
privadas”. Foi este o momento de colapso da autoridade coletiva tribal. Séculos
mais tarde, quando novas explosões e expansões haviam exaurido as forças da
ação privada, a empresa corporativa inventou a idéia da Dívida Pública,
tornando o indivíduo particularmente responsável pela ação do grupo.
No século XI X, quando se aqueceram os processos mecânicos e
dissociativos da fragmentação técnica, os homens voltaram toda a sua atenção
para o associativo e o corporativo. No primeiro grande período da substituição
do trabalho humano pela máquina. Carlyle e os pré-rafaelistas promulgaram a
doutrina do Trabalho como uma comunhão social mística, enquanto milionários
como Ruskin e Morris mourejavam como mineiros, por razões estéticas. A mais
curiosa de todas as reversões da grande época vitoriana da mecanização e da
alta compostura moral foi a contra-estratégia de Lewis Carrol e Edward Lear,
cujo nonsense acabou por se mostrar extraordinariamente duradouro.
Enquanto os Lordes Cardigans tomavam seu banho de sangue no Vale da
Morte, Gilbert e Sullivan anunciavam que o limite de ruptura fora franqueado.
4. O AMANTE DE “GADGETS” - Narciso como Narcose
O mito grego de Narciso está diretamente ligado a um fato da
experiência humana, como a própria palavra Narciso indica. Ela vem da palavra
grega narcosis, entorpecimento. O jovem Narciso tomou seu próprio reflexo na
água por outra pessoa. A extensão de si mesmo pelo espelho embotou suas
percepções até que ele se tornou o servomecanismo de sua própria imagem
prolongada ou repetida. A ninfa Eco tentou conquistar seu amor por meio de
fragmentos de sua própria fala, mas em vão. Ele estava sonado. Havia-se
adaptado à extensão de si mesmo e tornara-se um sistema fechado.
O que importa neste mito é o fato de que os homens logo se tornam
fascinados por qualquer extensão de si mesmas em qualquer material que não
seja o deles próprios. Tem havido cínicos que insistem em que os homens se
apaixonam profundamente por mulheres que reflitam sua própria imagem. Seja
como for, a sabedoria do mito de Narciso de nenhum modo indica que ele se
tenha enamorado de algo que ele tenha considerado como sua própria pessoa.
É claro que seus sentimentos a respeito da imagem refletida teriam sido bem
diferentes, soubesse ele que se tratava de uma extensão ou repetição de si
mesmo. E não deixa de ser um sintoma bastante significativo das tendências de
nossa cultura marcadamente tecnológica e narcótica o fato de havermos
interpretado a história de Narciso como um caso de auto-amor e como se ele
tivesse imaginado que a imagem refletida fosse a sua própria!
Fisiologicamente, sobram razões para que uma extensão de nós mesmos
nos mergulhe num estado de entorpecimento. Pesquisas médicas, como as de
Hans Selye e Adolphe Jonas sustentam que todas as extensões de nós mesmos,
na doença ou na saúde, não são senão tentativas de manter o equilíbrio.
Encaram essa extensão como “auto-amputação” e acham que o dispositivo da
estratégia ou da força auto-amputativa é acionado pelo organismo toda vez que
a energia perceptiva não consegue localizar ou evitar a causa da irritação. Na
linguagem corrente, possuímos várias expressões que se referem a essa autoamputação que nos é imposta pelas mais variadas pressões. Entre elas: “Não
caber em si de contente”, “Estar fora de si”, “Estar baratinado”, “Nem piscou”,
“Falta-lhe um parafuso”, “Ficar possesso”. E muitas vezes criamos situações
artificiais que imitam as irritações e pressões da vida real, sob condições
controladas (esporte e jogo).
Embora não estivesse na intenção de Jonas e Selye fornecer uma
explicação para a invenção e a tecnologia humanas, o certo é que nos deram
uma teoria da doença que chega a explicar por que o homem é impelido a
prolongar várias partes de seu corpo, numa espécie de auto-amputação. Sob
pressão de hiperestímulos físicos da mais vária espécie, o sistema nervoso
central reage para proteger-se, numa estratégia de amputação ou isolamento
do órgão, sentido ou função atingida. Assim, o estímulo para uma nova
invenção é a pressão exercida pela aceleração do ritmo e do aumento de carga.
No caso da roda como extensão do pé, por exemplo, a pressão das novas
cargas resultantes da aceleração das trocas por meios escritos e monetários
criou as condições para a extensão ou “amputação” daquela função corporal.
Em compensação, a roda, como contra-irritante das cargas crescentes, resultou
em nova intensidade de ação pela amplificação de uma função separada ou
isolada (o pé em rotação). O sistema nervoso somente suporta uma tal
amplificação através do embotamento ou do bloqueio da percepção. A imagem
refletida do moço é uma auto-amputação ou extensão provocada por pressões
irritantes. Como contra-irritante, a imagem provoca um entorpecimento ou
choque generalizado que obstrui o reconhecimento. A auto-amputação
impossibilita o auto-reconhecimento.
O princípio da auto-amputação como alívio imediato para a pressão
exercida sobre o sistema nervoso central prontamente se aplica à origem dos
meios de comunicação, desde a fala até o computador.
Fisiologicamente, o sistema nervoso central, essa rede elétrica que
coordena os diversos meios de nossos sentidos. desempenha o papel principal.
Tudo o que ameaça a sua função deve ser contido, localizado ou cortado,
mesmo ao preço da extração total do órgão ofendido. A função do corpo,
entendido como um grupo de órgãos de proteção e sustentação do sistema
nervoso central é a de atuar como amortecedor contra súbitas variações do
estímulo no âmbito físico e social. Um fracasso ou um vexame social é um
choque de que muitos se “ressentem” ou que pode causar distúrbios
musculares generalizados, sinal de que a pessoa deve subtrair-se à situação
ameaçadora.
A terapêutica física ou social é um contra-irritante que colabora para o
equilíbrio dos órgãos físicos que protegem o sistema nervoso central. Enquanto
o prazer é um contra-irritante (esportes, diversões, álcool), o conforto é a
extirpação dos irritantes. Tanto o prazer como o conforto são estratégias de
equilíbrio para o sistema nervoso central.
Com o advento da tecnologia elétrica, o homem prolongou. ou projetou
para fora de si mesmo, um modelo vivo do próprio sistema nervoso central.
Nesta medida, trata-se de um desenvolvimento que sugere uma autoamputação desesperada e suicida, como se o sistema nervoso central não mais
pudesse contar com os órgãos do corpo para a função de amortecedores de
proteção contra as pedras e flechas do mecanismo adverso. Pode muito bem
dar-se que as sucessivas mecanizações dos vários órgãos físicos, desde a
invenção da imprensa, se tenha constituído numa experiência social por demais
violenta e exacerbada para o sistema nervoso central.
E ao falar da única causa plausível para um tal desenvolvimento,
voltamos ao tema de Narciso. Se Narciso se hipnotiza pela sua própria imagem
auto-amputada, há uma boa razão para o hipnotismo. Há um íntimo paralelo de
reações entre as estruturas dos choques ou traumas físicos e mentais. Uma
pessoa que subitamente perde seus entes queridos e uma que cai de uma
altura de poucos metros apresentam ambas sintomas de estado de choque. A
perda da família e a queda física são casos extremos de amputação do próprio
ser. O choque produz um embotamento generalizado ou uma sensibilização do
limiar da percepção. A vítima parece imune à dor e a outros estímulos.
O choque de guerra criado pelo barulho violento foi adaptado à
Odontologia mediante o dispositivo conhecido como audiac. O paciente coloca o
aparelho de escuta e vai aumentando o volume do ruído até o ponto em que
não mais sente a dor do motor. A seleção de um único sentido para
estimulação intensa, ou, em tecnologia, de um único sentido “amputado”,
prolongado ou isolado, é a razão parcial do efeito de entorpecimento que a
tecnologia como tal exerce sobre seus produtores e consumidores. Pois o
sistema nervoso central arregimenta uma reação de embotamento geral ao
desafio de uma irritação localizada.
A pessoa que sofre uma queda apresenta uma espécie de imunidade à
dor ou aos estímulos sensórios porque o sistema nervoso central tem de se
proteger contra os golpes violentos das sensações. Somente aos poucos o
indivíduo reconquista sua sensibilidade normal à visão e ao som, momento em
que pode começar a tremer e transpirar, como o teria feito se o sistema
nervoso central estivesse preparado previamente para a queda que ocorreu
inesperadamente.
Dependendo
de
que
sentido
ou
faculdade
é
prolongado
tecnologicamente, ou “auto-amputado”, o “fechamento” ou a busca de
equilíbrio pelos demais sentidos é facilmente previsto. Ocorre com os sentidos o
mesmo que ocorre com a cor. A sensação se manifesta sempre na base de
100% , e a cor é sempre 100% cor, mas a relação entre os componentes da
sensação ou da cor pode variar infinitamente. Entretanto, se o som, por
exemplo, for intensificado, tato, paladar e visão serão afetados imediatamente.
O efeito do rádio sobre o homem letrado ou visual foi o de reavivar suas
memórias tribais, e o efeito do som acrescido ao cinema foi o de reduzir o papel
da mímica, do tato e da cinestesia. I gualmente, quando o homem nômade se
voltou para os meios sedentários e especializados, os sentidos também se
especializaram. O desenvolvimento da escrita e da organização visual da vida
possibilitou a descoberta do individualismo, da introspecção e assim por diante.
Qualquer invenção ou tecnologia é uma extensão ou auto-amputação de
nosso corpo, e essa extensão exige novas relações e equilíbrios entre os demais
órgãos e extensões do corpo. Assim, não há meio de recusarmo-nos a ceder às
novas relações sensórias ou ao “fechamento” de sentidos provocado pela
imagem da televisão. Mas o efeito do ingresso da imagem da televisão variará
de cultura a cultura, dependente das relações sensórias existentes em cada
cultura. Na Europa tátil, visual, a TV intensificou o sentido visual, forçando-a
em direção aos estilos americanos de acondicionamento e vestuário. Na
América, cultura intensamente visual, a televisão abriu as portas da percepção
audiotátil para o mundo não-visual das linguagens faladas, da alimentação e
das artes plásticas. Como extensão e acelerador da vida sensória, todo meio
afeta de um golpe o campo total dos sentidos, como já o dissera o Salmista, há
muito tempo, no Salmo 113:
Seus ídolos são prata e ouro,
Obras de mão de homem.
Têm boca e não falam;
Têm ouvidos e não ouvem;
Têm narizes e não cheiram;
Têm mãos e não manejam;
Têm pés e não caminham,
Nem falam pelas suas gargantas.
Quem os fez será como eles,
Como eles todos os que neles confiam.
O conceito de “ídolo”, para o Salmista hebreu, é muito semelhante ao de
Narciso para o fazedor de mitos grego. E o Salmista insiste em que a
contemplação dos ídolos. ou o uso da tecnologia, conforma os homens a eles:
“Quem os fez será como eles.” Este é simplesmente um caso de privação ou
“fechamento” de sentidos. O poeta Blake desenvolveu a idéia do Salmista numa
teoria completa da comunicação e da mudança social. Em seu longo poema
Jerusalém, ele explica por que os homens se tomaram naquilo que
contemplaram. O que acontece, diz Blake, é que “o espectro da Força da Razão
do Homem” tomou-se fragmentário, “separado da I maginação e fechado em si
mesmo como em aço”. Numa palavra, Blake vê o homem como que fracionado
por suas tecnologias. Mas ele insiste em que essas tecnologias são autoamputações de seus próprios órgãos. Quando amputado, cada órgão se torna
um sistema fechado de nova e grande intensidade, que lança o homem “nos
martírios e nas guerras”. Além disso. Blake anuncia que o seu tema, em
Jerusalém, é o tema dos órgãos da percepção:
Se os Órgãos Perceptivos se alteram, os Objetos de Percepção perecem
alterar-se;
Se os Órgãos Perceptivos se fecham, seus Objetos também parecem
fechar-se.
Contemplar, utilizar ou perceber uma extensão de nós mesmos sob
forma tecnológica implica necessariamente em adotá-la. Ouvir rádio ou ler uma
página impressa é aceitar essas extensões de nós mesmos e sofrer o
“fechamento” ou o deslocamento da percepção, que automaticamente se
segue. É a contínua adoção de nossa própria tecnologia no uso diário que nos
coloca no papel de Narciso da consciência e do adormecimento subliminar em
relação as imagens de nós mesmos. I ncorporando continuamente tecnologias,
relacionamo-nos a elas como servomecanismos. Eis por que, para utilizar esses
objetos-extensões-de-nós-mesmos. devemos servi-los, como a ídolos ou
religiões menores. Um índio é um servomecanismo de sua canoa, como o
vaqueiro de seu cavalo e um executivo de seu relógio.
Fisiologicamente, no uso normal da tecnologia (ou seja, de seu corpo em
extensão vária), o homem é perpetuamente modificado por ela, mas em
compensação sempre encontra novos meios de modificá-la. É como se o
homem se tornasse o órgão sexual do mundo da máquina, como a abelha do
mundo das plantas, fecundando-o e permitindo o evolver de formas sempre
novas. O mundo da máquina corresponde ao amor do homem atendendo a
suas vontades e desejos, ou seja, provendo-o de riqueza. Um dos méritos da
pesquisa motivacional foi o da revelação da relação entre o Sexo e o carro.
Socialmente, a acumulação de pressões e irritações grupais conduz à
invenção e à inovação como contra-irritantes. A guerra e o temor da guerra
sempre foram considerados os maiores incentivos à extensão tecnológica de
nossos corpos. Lewis Mumford, em sua The City in History (“A Cidade na
História”), chega mesmo a considerar a cidade murada como uma extensão da
pele, a mesmo título da habitação e do vestuário. Mais ainda do que a
preparação para a guerra, o período que sucede a invasão é um período
tecnologicamente rico, porque a cultura tem de readaptar todas as suas
relações sensórias para acomodar-se ao impacto da cultura invasora. Nesse
intensivo e híbrido intercâmbio e luta de idéias e de formas é que são liberadas
as maiores energias sociais, das quais nascem as mais avançadas tecnologias.
Buckminster Fuller estima que desde 1910 os governos já gastaram três trilhões
e meio de dólares em aviões. I sto corresponde a 63 vezes os depósitos de ouro
existentes no mundo.
O princípio do embotamento vem à tona com a tecnologia elétrica, ou
com qualquer outra. Temos de entorpecer nosso sistema nervoso central
quando ele é exposto e projetado para fora: caso contrário, perecemos. A idade
da angústia e dos meios elétricos é também a idade da inconsciência e da
apatia. Em compensação, e surpreendentemente. é também a idade da
consciência do inconsciente. Com nosso sistema nervoso central
estrategicamente entorpecido, as tarefas da consciência e da organização são
transferidas para a vida física do homem, de modo que. pela primeira vez, ele
se tomou consciente do fato de que a tecnologia é uma extensão de nosso
corpo físico. Aparentemente, isto não podia ter acontecido antes da era da
eletricidade, que nos forneceu os meios da consciência imediata do campo
total. Com essa consciência, a vida subliminar, privada e social, foi desvendada
por completo, daí resultando que a “consciência social” nos é apresentada
como a causa dos sentimentos de culpa. O existencialismo nos oferece uma
filosofia de estruturas mais do que de categorias, e de envolvimento social
total, em lugar do espírito burguês do isolamento individual e do ponto de vista.
Na era da eletricidade, usamos toda a Humanidade como nossa pele.
5. A ENERGI A HI BRI DA
LES LI AI SONS DANGEREUSES
“Durante a maior parte de nossa vida, o que vemos é a guerra civil
alastrar-se no mundo da arte e do entretenimento... Cinema, discos, rádio,
cinema falado...". Esta observação é de Donald MacWhinnie, estudioso do
rádio. Esta guerra civil nos afeta no mais profundo de nossa vida psíquica
também, pois a guerra é conduzida por forças que são extensões e
amplificações de nossos próprios seres. Na verdade, inter-relação entre os
meios é um outro nome que podemos dar a essa guerra civil, que avassala
tanto nossas sociedades quanto nossas mentes. Já se disse que “para os cegos,
todas as coisas são repentinas”. O cruzamento ou hibridização dos meios libera
grande força ou energia, como por fissão ou fusão. Não se trata de falar em
cegueira nestes casos, desde que sejamos advertidos previa-mente de que
existe.
Já explicamos que os meios, ou extensões do homem, são agentes
“produtores de acontecimentos”, mas não agentes “produtores de consciência”.
A hibridização ou combinação desses agentes oferece uma oportunidade
especialmente favorável para a observação de seus componentes e
propriedades estruturais. “Assim como o filme silencioso reclamava o som, o
filme sonoro reclama a cor”, escreveu Sergei Eisenstein, em suas Notas de um
Diretor de Cinema. Esse tipo de observação pode ser estendido
sistemáticamente a todos os meios: “Assim como a imprensa clamava pelo
nacionalismo, o rádio clama pelo tribalismo.” Esses meios sendo extensões de
nós mesmos, dependem de nós para sua inter-relação e sua evolução. O fato
de que se inter-relacionem e proliferem em novas progênies tem sido causa de
maravilha através das idades. Deixarão de nos espantar se nos dermos ao
trabalho de inquirir sobre sua ação. Podemos até, se o quisermos, pensar as
coisas antes de as produzirmos.
Platão, em todo o seu esforço para imaginar uma escola de formação
ideal, deixou escapar o fato de que Atenas era mais escola do que qualquer
universidade imaginável. Em outras palavras, a maior escola já estava de
matrículas abertas antes de ter sido concebida. E isto é particularmente
verdadeiro em relação aos meios. Eles começam a funcionar muito antes de
que nos demos conta deles. Na verdade. o simples fato de se apresentarem
fora de nós corta a possibilidade de serem “pensados”.
Todos observam como o carvão, o aço e os carros Metam a organização
da vida diária, de forma que a sociedade começa a apresentar-se como um eco
lingüístico ou como repetição das normas da linguagem, fato este que
perturbou profundamente o Partido Comunista Russo. Ligados que estão à
tecnologia industrial do século XI X como base da libertação das classes, nada
pode ser mais subversivo para a dialética marxista do que a idéia de que os
meios lingüísticos moldam o desenvolvimento social tanto quanto os meios de
produção.
De fato, de todas as grandes uniões híbridas que geram furiosa liberação
de energia e mudança, nenhuma supera o encontro entre as culturas letradas e
as culturas orais. A alfabetização fonética deu ao homem um olho por um
ouvido — e esta. é, social e politicamente, talvez a mais radical explosão jamais
ocorrida em qualquer estrutura social. A esta explosão do olho, que se repete
freqüentemente nas “áreas atrasadas”, chamamos de ocidentalização. Com a
alfabetização agora em vias de hibridizar as culturas dos chineses, dos indianos
e dos africanos, estamos às vésperas de assistir a uma tal liberação de força
humana e de violência agressiva, que torna quase pacífica a história anterior à
tecnologia do alfabeto fonético.
Sabemos, pelo nosso próprio passado, que espécie de energia é liberada,
como que por fissão, quando a alfabetização faz explodir a unidade familiar ou
tribal. E o que sabemos sobre as energias sociais e mentais que se
desenvolvem por fusão elétrica, ou implosão, quando os indivíduos letrados são
subitamente atraídos por um campo eletromagnético, tal como o que está
ocorrendo com a pressão exercida pelo Mercado Comum na Europa? Convém
não enganar-se: a fusão dos povos que conheceram o individualismo e o
nacionalismo é um processo diferente da fissão que ocorre nas culturas orais e
“subdesenvolvidas”, que só agora emergem para o individualismo e o
nacionalismo. É a diferença que vai entre a bomba A e a bomba H. Esta, de
longe, é a mais violenta. Além disso, os produtos da fusão elétrica são
imensamente complexos, enquanto os produtos da fissão são simples. A
alfabetização cria espécies de povos muito mais simples do que aquelas que se
desenvolvem na teia complexa das sociedades orais e tribais comuns. O homem
fracionado cria o mundo ocidental homogeneizado, enquanto as sociedades
orais são constituídas de gente diferenciada, não por habilitações especializadas
ou sinais visíveis, mas por suas singulares misturas emocionais. O mundo
interior do homem oral é um aranzel de emoções e sentimentos complexos,
que o homem prático do Ocidente há muito desmanchou e suprimiu dentro de
si, no interesse da eficiência e da praticabilidade.
A perspectiva imediata para o homem ocidental, letrado e fragmentado,
ao defrontar-se com a implosão elétrica dentro de sua própria cultura, é a de
transformar-se rápida e seguramente numa criatura profundamente estruturada
e complexa, emocionalmente consciente de sua total interdependência em
relação ao resto da sociedade humana. Os representantes do velho
individualismo ocidental vão agora assumindo a aparência, bem ou mal, do
General Bull Moose (“General Tormenta”), de Al Capp, ou dos membros da
sociedade John Bircher, tribalmente empenhados em se opor ao tribal. O
individualismo fragmentado, letrado e visual não tem mais lugar numa
sociedade que implode, eletricamente estruturada. O que deve então ser feito?
Enfrentar os fatos ao nível consciente, ou velar e reprimir esses assuntos até
que alguma violência nos alivie do pesado fardo? A sina da implosão e da
interdependência é mais terrível para o homem ocidental do que a sina da
explosão e da independência para o homem tribal. No meu caso, pode ser mera
questão de temperamento, mas eu encontro algum alivio do fardo
simplesmente no entender e clarificar as questões. De outra parte, como a
consciência e a conscientização parecem ser um privilégio humano, não é
desejável estender essa condição aos nossos conflitos ocultos, tanto pessoais
como sociais?
Este livro, buscando compreender muitos meios, os conflitos dos quais
derivam e os conflitos ainda maiores a que dão corpo, sustenta a promessa de
reduzir esses conflitos mediante um aumento da autonomia humana. Anotemos
agora alguns dos efeitos dos meios híbridos, ou seja, da interpenetração de um
e outro meio.
Por exemplo, a vida no Pentágono ficou bem mais complicada com os
vôos a jato. A cada dez ou quinze minutos: uma campainha convoca
especialistas dos vários departamentos para ouvirem o relatório pessoal de
algum perito recém-chegado de alguma remota parte do mundo. Enquanto
isso, a papelada vai-se empilhando em cada escrivaninha. E cada
departamento, diariamente, despacha algum elemento seu a jato, para áreas
remotas, a fim de colher mais dados e elaborar mais relatórios. Tal é a rapidez
deste processo de junção do avião a jato. do relatório verbal e da máquina de
escrever, que aqueles que vão para os confins do mundo muitas vezes são
incapazes de soletrar o nome do lugar para o qual foram enviados como
peritos. Lewis Carroll observava que, à medida que os mapas de grande escala
se tornavam mais detalhados e extensivos, tendiam a confundir-se com os
campos — o que certamente provocaria o protesto dos fazendeiros... Por que
não usar a terra real como mapa de si mesma? Em matéria de coleta de dados,
chegamos a ponto semelhante a partir do momento em que cada chiclete que
mastigamos é registrado por um computador, que traduz os nossos menores
gestos numa curva de probabilidade ou de algum parâmetro da ciência social.
Nossa vida particular e associativa se transformou em processo de informação
justamente porque projetamos para fora nosso sistema nervoso central, sub
specie de tecnologia elétrica. Esta é a chave para a perplexidade do Professor
Boorstin, em seu livro The I mage, or What Happened to The American Dream
(“A I magem, — ou O que Aconteceu ao Sonho Americano”).
A luz elétrica acabou com o regime de noite e dia, do exterior e do
interior. Mas a energia híbrida é liberada quando a luz se encontra com um
estrutura de organização humana já existente. Os carros podem viajar toda a
noite, há as partidas noturnas de beisebol, e os edifícios podem dispensar as
janelas. Numa palavra, a mensagem da luz elétrica é a mudança total. É
informação pura, sem qualquer conteúdo que restrinja sua força
transformadora e informativa.
Se o estudante da teoria da informação apenas meditar no poder da luz
elétrica em transformar toda e qualquer estrutura de espaço-tempo, de
trabalho ou da sociedade na qual penetra ou com a qual entra em contato,
certamente disporá da chave da forma de energia que preside a todos os meios
e que molda tudo o que toca. À exceção da luz, todos os meios andam aos
pares, um atuando como “conteúdo” do outro, de modo a obscurecer a atuação
de ambos.
É uma característica especial dos que operam os meios para outrem o
fato de se interessarem pelo programa do rádio, da imprensa ou do filme. Os
proprietários, eles mesmos, estão muito mais interessados nos meios como tais
e não muito dispostos a ir além “do que o público quer ou qualquer outra
fórmula mais ou menos vaga. Os donos têm consciência dos meios enquanto
poder. e sabem que esse poder tem pouco a ver com o “conteúdo”, ou seja. os
meios dentro dos meios. Quando a imprensa tocou na tecla do “interesse
humano”, depois que o telégrafo reestruturara o meio da imprensa, o jornal
matou o teatro, tal como a TV atinge duramente o cinema e os clubes
noturnos. George Bernard Shaw teve o espírito e a imaginação de replicar. Pôs
a imprensa no teatro, transpondo para o palco o mundo das controvérsias e do
interesse humano, tal como Dickens fizera com o romance. O cinema
incorporou o romance, o jornal e o palco — todos de uma vez. E a televisão
conquistou o cinema, devolvendo ao público o teatro de arena.
O que estou querendo dizer é que os meios, como extensões de nossos
sentidos, estabelecem novos índices relacionais, não apenas entre os nossos
sentidos particulares, como também entre si, na medida em que se interrelacionam. O rádio alterou a forma das estórias noticiosas, bem como a
imagem fílmica, com o advento do sonoro. A televisão provocou mudanças
drásticas na programação do rádio e na forma das radionovelas.
São poetas e pintores os que reagem imediatamente aos novos meios,
como o rádio e a televisão. O rádio, a vitrola e o gravador nos devolveram a
voz do poeta como uma importante dimensão da experiência poética.
Novamente, as palavras se tornaram uma espécie de pintura com luz. Mas a
televisão, com seu modo de profunda participação. levou os poetas a
apresentarem seus poemas em cafés. parques públicos e outros tantos lugares.
Com a televisão, eles logo sentiram a necessidade do contato pessoal com o
público. (Em Toronto, cidade orientada no sentido da imprensa, a leitura de
poemas em parques públicos constitui ofensa pública. Religião e política são
permitidas. mas não poesia, como os jovens poetas recentemente
descobriram.)
O romancista John O’Hara escreveu na secção de resenha de livros de
The New York Times Book Review, em 27-11-1955:
Com o livro, a gente tem uma grande satisfação. Sabe-se que o leitor
está preso dentro daquelas capas. Mas, como escritor, tem-se de imaginar a
satisfação que ele esta tendo. Já com o teatro — bem, eu costumava ir para
ver ambas as encenações de Pal Joey e observar — não imaginar — como o
público estava apreciando a coisa. Eu bem que gostaria de começar já o
próximo romance sobre uma cidadezinha, mas eu preciso do derivativo de uma
peça.
Em nosso tempo, os artistas conseguem balancear tão facilmente sua
dieta de meios como sua dieta de livros. Um poeta como Yeats utilizou
plenamente sua cultura oral de camponês na criação de seus efeitos literários.
Logo em seus inícios, Eliot causou um grande impacto graças ao emprego
cuidadoso das formas de jazz e do cinema. The Love Song of J. Alfred Prufrock
(“O Canto de Amor de J. Alfred Prufrock”) deriva muito de sua força de
interpenetração das linguagens do filme e do jazz. Mas esta combinação atinge
o máximo de sua força com The Waste Land (“A Terra Estéril”) e Sweeney
Agonistes (“Os Trabalhos de Sweeney”). Prufrock não apenas utiliza a forma
fílmica, mas também o tema cinematográfico de Charlie Chaplin, como James
Joyce fez em Ulisses. O Bloom, de Joyce, é uma incorporação deliberada de
Chaplin (“Chorney Choplain” como ele o chamou em Finnegans Wake). E
Chaplin, assim como Chopin havia adaptado o piano ao estilo do balé, acertou
na prodigiosa mistura de meios — cinema e balé — desenvolvendo aquela sua
alternância à la Pavlova, entre o êxtase e o gingado. Adaptou os passos
clássicos do balé a uma mímica cinematográfica, dosando exatamente o lírico e
o irônico, tal como se vê também no Prufrock e no Ulysses. Os artistas de todos
os setores são sempre os primeiros a descobrir como capacitar um determinado
meio para uso ou como liberar a força latente de outro. De uma forma mais
simples, esta é a técnica empregada por Charles Boyer, naquele seu blend
franco-inglês em que se manifesta seu delírio polido e gutural.
O livro impresso encorajou os artistas a reduzir, tanto quanto possível,
todas as formas de expressão ao simples plano narrativo e descritivo da palavra
impressa. O advento dos meios elétricos liberou, de vez, a arte de sua camisa
de força, criando o mundo de Paul Klee. Picasso, Braque, Eisenstein, dos irmãos
Marx e de James Joyce.
Um tópico da resenha de livros do The New York Times Book Review,
16-9-1962, proclama: “Nada como um best seller para fazer Hollywood vibrar.”
Hoje, naturalmente, as estrelas e astros de cinema só largam a praia, a
ficção científica ou o curso de aperfeiçoamento que estão fazendo quando
atraídos pela possibilidade de encarnar um papel extraído de algum livro
famoso. Este é o modo pelo qual o jogo dos meios hoje afeta a colônia
cinematográfica. E eles não compreendem melhor os seus problemas ligados
aos meios do que o fazem os publicitários da Madison Avenue. Mas do ponto de
vista dos donos da indústria cinematográfica, e dos meios coligados, o best
seller é uma forma de garantia de que algum novo padrão ou gestalt de massa
foi detectado na mente do público. Para o cauteloso processador de enlatados,
é como um jorro de petróleo ou indício de ouro no qual ele pode farejar um
botim de respeitáveis proporções. Vale dizer que os banqueiros de Hollywood
são muito mais espertos do que os historiadores literários, pois estes
desprezam o gosto popular, a não ser depois que tenha sofrido o processo de
decantação que vai das conferências aos compêndios da literatura.
Lillian Ross, em Picture (“Cinema”), deu um falso relato das filmagens de
The Red Badge of Courage (“Glória de Um Covarde”). Obteve elogios fáceis
para um livro tolo sobre um grande filme, simplesmente admitindo, de saída, a
superioridade do meio literário sobre o meio cinematográfico. Seu livro
despertou muita atenção como um produto híbrido.
Agatha Christie escreveu um livro de doze contos sobre Hercule Poirot,
intitulado The Labours of Hercules, e que se situa bem acima de seu bom nível
literário habitual. Reelaborando temas clássicos para efeitos de paralelos
modernos e verossímeis, ela pôde elevar o conto de detetives a uma
intensidade extraordinária.
Nem foi outro o método de James Joyce, em Dubliners (“Dublinenses”),
e em Ulysses, onde paralelos clássicos precisos criam a verdadeira energia
híbrida. Baudelaire, disse O Sr. Eliot, “ensinou-nos a elevar a imagética da vida
comum a uma intensidade de primeira classe”. E isto se obtém, não por alguma
enfatização direta da força poética, mas pela simples adaptação de situações de
uma cultura a outra. sob forma híbrida. É precisamente deste modo que,
durante as guerras e migrações, a mescla cultural se torna a norma da vida
diária. As operações de Pesquisa estabelecem o princípio da hibridização como
técnica de descoberta criativa.
Quando a estória ou o roteiro cinematográficos foram aplicados aos
artigos e matérias de idéias e de temas, o mundo das revistas descobriu um
híbrido que acabou com a supremacia do conto. Quando as rodas foram
dispostas sob a forma de tandem, o princípio da roda se combinou com o
princípio linear da tipografia para criar o equilíbrio aerodinâmico. O cruzamento
da roda com a forma linear industrial liberou a nova forma do avião.
O híbrido, ou encontro de dois meios, constitui um momento de verdade
e revelação, do qual nasce a forma nova. I sto porque o paralelo de dois meios
nos mantém nas fronteiras entre formas que nos despertam da narcose
narcísica. O momento do encontro dos meios é um momento de liberdade e
libertação do entorpecimento e do transe que eles impõem aos nossos sentidos.
6. OS MEI OS COMO TRADUTORES
Ao telefone, a criança neurótica demonstra tendência a perder seus
traços neuróticos — fato que tem intrigado os psiquiatras. Alguns gagos
perdem a gagueira quando falam em língua estrangeira. As tecnologias são
meios de traduzir uma espécie de conhecimento para outra, como observou
Lyman Bryson, ao declarar que “tecnologia é explicitação”. A tradução é, pois,
um desvendamento de formas do conhecimento. O que chamamos de
“mecanização” é uma tradução da natureza, e de nossas próprias naturezas,
para formas ampliadas e especializadas. Assim, a piada de Finnegans Wake, “O
que o passarinho fez ontem, o homem poderá fazer no próximo ano”, é uma
observação estritamente literal sobre a marcha da tecnologia. O poder da
tecnologia, naquilo que se refere à sua dependência do processo alternativo de
agarrar e soltar, a fim de ampliar o objetivo da ação, tem sido comparado ao
poder dos macacos arbóreos em relação aos símios que permanecem no solo.
Elias Canetti estabeleceu a correta associação deste poder de agarrar-e-soltar
dos macacos superiores com a estratégia dos especuladores da Bolsa de
Valores. E tudo isto está sintetizado na variante popular sobre uma idéia de
Robert Browning: “O homem deve alcançar mais do que aquilo que pode
agarrar — e aqui temos a metáfOra.” Todos os meios são metáforas ativas em
seu poder de traduzir a experiência em novas formas. A palavra falada foi a
primeira tecnologia pela qual o homem pôde desvincular-se de seu ambiente
para retomá-lo de novo modo. As palavras são uma espécie de recuperação da
informação que pode abranger, a alta velocidade, a totalidade do ambiente e
da experiência. As palavras são sistemas complexos de metáforas e símbolos
que traduzem a experiência para os nossos sentidos manifestos ou
exteriorizados. Elas constituem uma tecnologia da explicitação. Através da
tradução da experiência sensória imediata em símbolos vocais, a totalidade do
mundo pode ser evocada e recuperada, a qualquer momento.
Nesta era da eletricidade, nós mesmos nos vemos traduzidos mais e
mais em termos de informação, rumo à extensão tecnológica da consciência. ~
justamente isto que queremos significar quando dizemos que. a cada dia que
passa, sabemos mais e mais sobre o homem. Queremos dizer que podemos
traduzir a nós mesmos cada vez mais em outras formas de expressão que nos
superam. O homem é uma forma de expressão da qual se espera, tradicionalmente, que se repita a si mesma para ecoar o louvor ao Criador. “A oração é a
tempestade revertida”, disse George Herbert. O homem tem o poder de fazer
reverberar o trovão divino pela tradução verbal.
Ao colocar o nosso corpo físico dentro do sistema nervoso prolongado,
mediante os meios elétricos, nós deflagramos uma dinâmica pela qual todas as
tecnologias anteriores — meras extensões das mãos, dos pés, dos dentes e dos
controles de calor do corpo, e incluindo as cidades como extensões do corpo —
serão traduzidas em sistemas de informação. A tecnologia eletromagnética
exige dos homens um estado de completa calma e repouso meditativos. tal
como convém a um organismo que agora usa o cérebro fora do crânio e os
nervos fora de seu abrigo. O homem deve servir à tecnologia elétrica com a
mesma fidelidade servomecanística com que serviu seu barco de couro, sua
piroga, sua tipografia e todas as demais extensões de seus órgãos físicos. Com
uma diferença, porém: as tecnologias anteriores eram parciais e fragmentárias,
a elétrica é total e inclusiva. Um consenso ou uma consciência externa se faz
agora tão necessário quanto a consciência particular. Com os novos meios
também é possível armazenar e traduzir tudo; e, quanto à velocidade, não há
problema. Nenhuma aceleração maior é possível aquém da barreira da luz.
Assim como é possível utilizar qualquer coisa como combustível, tecido
ou material de construção, à medida que se elevam os níveis de informação na
Física e na Química. assim, com a tecnologia elétrica, todos os bens sólidos
podem ser convocados a manifestar-se como utilidades sólidas por meio dos
circuitos de informação montados naquelas estruturas orgânicas que
conhecemos pelos nomes de “automação” e de recuperação da informação.
Sob as condições da tecnologia elétrica todo o negócio humano se transforma
em aprendizado e conhecimento. Em termos do que ainda consideramos
“economia” (palavra grega para a casa e seus dependentes), isto significa que
todas as formas de riqueza derivam do movimento da informação. O problema
de descobrir ocupações ou empregos pode se tomar tão difícil quanto a riqueza
é fácil.
A longa revolução pela qual os homens buscaram traduzir a natureza em
arte, há muito estamos acostumados a conhecer como “conhecimentos
aplicados”. “Aplicado” significa traduzido ou conduzido de uma espécie de
forma material para outra. Para os que se interessam por este extraordinário
processo do conhecimento aplicado na civilização ocidental, Shakespeare
fornece um bom material para meditação com seu As You Like I t. O mundo
dourado do bem-estar, sem emprego ou ocupação, de sua floresta de Arden, é
um processo de tradução a que agora estamos dando início através do portal
de automação elétrica.
É como se Shakespeare tivesse entendido a floresta de Arden, nem mais
nem menos, como. um modelo avançado da era da automação, quando todas
as coisas podem ser traduzidas em quaisquer outras que se desejem:
Nossa vida, sem sobressaltos públicos,
Acha línguas nas plantas, e livros nos livres
Regatos, e sermões nas rochas, e o bem
Em toda parte. Eu não a mudaria.
AMI ENS:
Venturosa é sua Graça,
Que pode traduzir a teimosia da fortuna
Em estilo tão calmo e doce.
(As You Like I t, Ato I I , Cena I , 15-21)
Shakespeare fala de um mundo em que — como que por programação
— se pode fazer reverter os materiais do mundo natural numa variedade de
níveis e intensidades de estilo. Nós estamos próximos disso, em escala maciça,
nos tempos eletrônicos que correm. Aqui vemos a imagem da I dade de Ouro
como uma idade de completas metamorfoses, ou traduções da natureza em
arte, e aberta à nossa idade elétrica. O poeta Stephane Mallarmé achava que “o
mundo existe para acabar num livro”. Hoje estamos em posição de ir além,
transferindo todo o espetáculo para a memória de um computador. Pois o
homem, como observa Julian Huxley, diferentemente das criaturas
simplesmente biológicas, possui um aparato de transmissão e transformação
baseado em sua capacidade de armazenar experiência. E esta capacidade de
armazenar — como na própria linguagem, de resto — é também um meio de
transformar a experiência:
“Aquelas pérolas que eram seus olhos.”
Nosso dilema pode tornar-se como o daquele ouvinte que telefonou para
a emissora de rádio: “São vocês que costumam informar duas vezes mais sobre
o tempo? Então desliguem: estou me afogando.”
Ou então podemos voltar ao estado do homem tribal. para o qual os
rituais mágicos são meios de “conhecimento aplicado”. Em lugar de traduzir a
natureza em arte, o nativo não-lembrado procura dotar a natureza de energia
espiritual.
Talvez haja uma chave para alguns desses problemas na idéia freudiana
de que tentamos “recalcar” a experiência ou acontecimento que não
conseguimos traduzir em arte consciente. É este mesmo mecanismo que serve
para entorpecer-nos em presença daquelas extensões de nós mesmos que são
os meios estudados neste livro. Assim como a metáfora transmite e transforma
a experiência, assim fazem os meios. “Mas eu continuo na fila" [ * A expressão
americana é “I ’ll take a rain-check on that”, rain-check indicando a garantia de
revalidação de um ingresso para alguma competição esportiva, em caso de mau
tempo (N. do T.).] e uma expressão com a qual traduzimos um convite social
em acontecimento esportivo, transformando o “Que pena!” convencional numa
imagem de desapontamento espontâneo: “Seu convite não é apenas um
daqueles gestos casuais de que eu possa fazer pouco. Ele me provoca a mesma
frustração que um jogo de futebol interrompido.” Como em todas as metáforas,
temos aqui uma ratio complexa entre quatro partes: “Seu convite está para os
convites comuns como os jogos de futebol para a vida social convencional.” É
assim que, percebendo um conjunto de relações através de outro,
armazenamos e ampliamos a experiência em formas como o dinheiro. Pois o
dinheiro também é uma metáfora. E todos os meios como extensões de nós
mesmos servem para fornecer uma consciência e uma visão transformadoras
“Constitui uma excelente invenção — diz Bacon — o fato de Pá, ou o mundo,
ter escolhido Eco para esposa, em lugar de qualquer outra voz ou fala, pois a
verdadeira filosofia é aquela que fielmente traduz as próprias palavras do
mundo..
Hoje o computador-tradutor Mark I I se propõe traduzir as obras-primas
de qualquer literatura para qualquer língua, traduzindo desta forma as palavras
de um crítico russo sobre Guerra e Paz, de Tolstói: “Guerra e Mundo (paz...
mas nem por isso a cultura se mantém) custa no lugar. Algo traduzido. Algo
impresso.” (Boorstin, 141.)
Palavras como “apanhar” ou “aprender” indicam o processo de chegar-se
a uma coisa através de outra, manipulando e sentindo muitas facetas de uma
vez, através de mais de um sentido. Começa a ficar evidente que “toque” e
“contato” não se referem apenas à pele, mas ao jogo recíproco dos sentidos:
“manter contato” ou “estabelecer comtato é algo que resulta do encontro
frutífero dos sentidos — a visão traduzida em som e o som em movimento,
paladar e olfato. O senso comum por muitos séculos foi tido como o poder
especificamente humano de traduzir a experiência de um sentido isolado para
todos os demais sentidos, de modo a apresentar à mente uma imagem
continuamente unificada da experiência. De fato, esta ratio unificada entre os
sentidos durante muito tempo foi considerada a marca de nossa racionalidade,
bem podendo voltar a ser assim considerada em nossa era de computadores.
Agora é possível programar ratios entre os sentidos que se aproximem da
condição da consciência. Mas esta condição seria necessariamente uma
extensão de nossa própria consciência, tal como a roda é uma extensão dos
pés em rotação. Tendo prolongado ou traduzido nosso sistema nervoso central
em tecnologia eletromagnética, o próximo passo é transferir nossa consciência
para o mundo do computador. Então poderemos programar a consciência, de
forma a que ela não ceda ao entorpecimento e à alienação narcísica provocada
pelas ilusões do mundo do entretenimento que assaltam a Humanidade quando
ela se defronta consigo mesma. projetada em seu próprio arremedo.
Se a obra da cidade é o refazimento ou a tradução do homem numa
forma mais adequada do que aquela que seus ancestrais nômades realizaram,
por que não poderia a tradução, ora em curso, de nossas vidas sob a forma de
informação, resultar numa só consciência do globo inteiro e da família humana?
7. DESAFI O E COLAPSO
A NÊMESE DA CRI ATI VI DADE
Foi Bertrand Russel quem declarou que a grande descoberta do século
XX foi a técnica da suspensão do juízo. A. N. Whitehead, de outro lado, explicou
como a grande descoberta do século XI X foi a descoberta da técnica da
descoberta. Ou seja: a técnica de principiar com a coisa a ser descoberta e
proceder em recuo, passo a passo, como numa linha de montagem, até o
ponto de onde é necessário começar para se atingir o objetivo visado. Nas
artes, isto significa partir do efeito para chegar-se ao poema ao quadro ou à
construção que produzam aquele efeito e não outro.
Mas a “técnica da suspensão do juízo” vai além. Por exemplo, ela
antecipa o efeito de uma infância infeliz no adulto, neutralizando o efeito antes
que ele se produza. Em psiquiatria, é a técnica da permissão total projetada
como um anestésico para a mente, enquanto outras fixações ou efeitos morais
de falsos julgamentos são eliminados, sistematicamente
Como se vê, isto é coisa bastante diferente do efeito narcótico e de
entorpecimento das novas tecnologias, efeito que reduz a atenção enquanto a
nova forma força os portões do julgamento e da percepção. A inserção de uma
nova tecnologia na mente grupal requer uma cirurgia social maciça, e é obtida
embutindo-se o dispositivo de entorpecimento discutido mais atrás. Já a
“técnica da suspensão do juízo" apresenta a possibilidade de rejeitar o narcótico
prorrogando indefinidamente a inserção da nova tecnologia na psique social.
Uma nova estase está em vista.
Werner Heisenberg, em The Physicist’s Conception of Nature (“A
Concepção da Natureza Segundo o Físico”). constitui um exemplo do novo físico
dos quanta, a quem a consciência global das formas sugere que deveríamos
nos manter afastados da maior parte delas. Ele mostra que a mudança técnica
não altera apenas os hábitos da vida mas também as estruturas do pensamento
e da valoração. citando e aprovando a visão do sábio chinês:
Viajando pelas regiões ao norte do Rio Han, Tzu-Gung avistou um ancião
trabalhando em seu horto. Havia cavado um canal de irrigação. Descia a um
poço, colhia uni balde de água e o despejava no canal. Apesar do enorme
esforço, os resultados pareciam bem pobres.
Tzu-Gung disse: “Há um modo de irrigar uma centena de canais num
dia, assim você fará muito com pouco esforço. Não é algo que lhe interesse?”
O horticultor levantou-se, olhou para ele e disse: “E que modo é esse?”
Respondeu Tzu-Gung: “Você apanha uma alavanca de madeira, pesada
numa ponta e leve na outra. Dessa forma você pode puxar água tão depressa
que parecera um riacho. É o que se chama um poço de monjolo.”
Então o sangue subiu ao rosto do velho, e ele disse: “Ouvi de meu
mestre que quem quer que use máquinas acabara por fazer tudo como uma
máquina. Quem trabalha como uma máquina, terá o coração como uma
máquina, e quem leva o coração como uma máquina em seu peito, perdera sua
simplicidade. Quem perde sua simplicidade, se tornara inseguro nas lutas de
sua alma. I ncerteza nas lutas da alma é alguma coisa que não está de acordo
com o senso das coisas honestas. Não é que eu não saiba fazer essas coisas. É
que eu tenho vergonha de usá-las.”
Talvez que o ponto mais interessante desta estória seja o de ela haver
atraído a atenção do físico moderno. Ela não teria interessado a Newton ou a
Adam Smith, grandes peritos e defensores das abordagens fragmentárias e
especializadas. Mas os trabalhos de Hans Selye, com sua idéia de doença
baseada no stress, sem dúvida está bem de açordo com a visão do sábio
chinês. Nos anos 20, ele já ficava intrigado com o fato de os médicos se
empenharem no diagnóstico de moléstias isoladas e na aplicação de remédios
específicos, sem prestar qualquer atenção ao “sindrôme de estar doente”. Os
que se preocupam com o “conteúdo” programado dos meios e não com os
próprios meios se assemelham aos médicos que ignoram o “sindrôme de estar
simplesmente doente”. Empreendendo uma abordagem total e inclusiva do
campo da doença, Hans Selye começou o que Adophe Jonas continuou com seu
I rritation and Counter-I rritation, ou seja, a busca de uma reação à doença
enquanto tal ou a um novo impacto de qualquer espécie. Hoje, dispomos de
anestésicos que nos permitem executar as mais terríveis operações físicas.
Os novos meios e tecnologias pelos quais nos ampliamos e prolongamos
constituem vastas cirurgias coletivas levadas a efeito no corpo social com o
mais completo desdém pelos anestésicos. Se as intervenções se impõem, a
inevitabilidade de contaminar todo o sistema tem de ser levada em conta. Ao se
operar uma sociedade com uma nova tecnologia, a área que sofre a incisão não
é a mais afetada. A área da incisão e do impacto fica entorpecida. O sistema
inteiro é que muda. O efeito do rádio é visual, o efeito da fotografia é auditivo.
Qualquer impacto altera as ratios de todos os sentidos. O que procuramos hoje
é controlar esses deslocamentos das proporções sensoriais da visão social e
psíquica — quando não evitá-los por completo. Ter a doença sem os seus
sintomas é estar imune. Nenhuma sociedade teve um conhecimento suficiente
de suas ações a ponto de poder desenvolver uma imunidade contra suas novas
extensões ou tecnologias. Hoje começamos a perceber que a arte pode ser
capaz de prover uma tal imunidade.
Na história da cultura humana não há exemplo de um ajustamento
consciente dos vários fatores da vida pessoal e social às várias extensões,
excetuados os esforços anódinos e periféricos dos artistas. O artista apanha a
mensagem do desafio cultural e tecnológico décadas antes que ocorra seu
impacto transformador. Constrói então modelos ou arcas de Noé para fazer
frente à mudança iminente. “A guerra de 1870 não teria ocorrido se as pessoas
tivessem lido A Educação Sentimental”, disse Gustave Flaubert.
É este aspecto da nova arte que Kenneth Galbraith recomenda aos
homens de negócio, para meticuloso estudo, se desejarem continuar no ramo.
Na era da eletricidade já não faz sentido falar-se que o artista está adiante de
seu tempo. Nossa tecnologia também está adiante de seu tempo, se tivermos a
habilidade de reconhecê-la tal como ela é. Para prevenir o naufrágio da
sociedade, o artista agora vai-se transferir da torre de marfim para a torre de
controle da sociedade. Assim como a educação superior já não é mais uma
veleidade ou um luxo, mas uma necessidade premente da estrutura produtiva e
operacional da era da eletricidade, assim o artista é indispensável para a
configuração análise e compreensão da vida das formas, bem corno das
estruturas criadas pela tecnologia elétrica.
As vítimas que sofreram o impacto da nova tecnologia invariavelmente
costumam tartamudear lugares-comuns sobre a falta de senso prático dos
artistas e sobre seus gostos fantasiosos. Mas é do reconhecimento geral que,
no século passado — e para usar as palavras de Wyndham Lewis —“o artista
está sempre empenhado em escrever a minuciosa história do futuro, porque ele
é a única pessoa consciente da natureza do presente!” O conhecimento deste
simples fato agora se torna necessário à sobrevivência humana. É secular a
habilidade do artista em furtar-se ao pleno golpe das novas tecnologias,
neutralizando sua violência com plena consciência, assim como é secular a
inabilidade das vítimas atingidas, e que não sabem contornar a nova violência,
em reconhecer a necessidade que têm dos artistas. Premiar os artistas e
transformá-los em celebridades pode também ser um meio de ignorar seu
trabalho profético, impedindo que eles sejam oportunamente úteis à
sobrevivência. O artista é o homem que, em qualquer campo, científico ou
humanístico, percebe as implicações de suas ações e do novo conhecimento de
seu tempo. Ele é o homem da consciência integral.
O artista pode corrigir as relações entre os sentidos antes que o golpe da
nova tecnologia adormeça os procedimentos conscientes. Pode corrigi-los antes
que se manifestem o entorpecimento, o tateio subliminar e a reação. Sendo
assim, como se pode apresentar a questão àqueles que podem fazer algo a
respeito?
Se houvesse uma possibilidade, remota que fosse, de esta análise ser
correta, ela asseguraria um armistício global e um período de compra na Bolsa
de Valores. Se é verdade que o artista possui os meios de antecipar e evitar as
conseqüências do trauma psicológico, o que pensar do mundo e da burocracia
da “apreciação da arte”? I sto não pareceria, de repente, algo assim como uma
conspiração para fazer do artista um pernóstico, um frívolo ou um Milton de
província? Se os homens pudessem ser convencidos de que a arte é um préconhecimento preciso sobre como enfrentar as conseqüências psicológicas e
sociais de uma nova tecnologia, tornar-se-iam todos eles artistas? Ou dariam
início a uma escrupulosa tradução das novas formas das artes em termos de
roteiros de navegação social? Tenho curiosidade em saber o que aconteceria
se, de repente, a arte começasse a ser vista tal como é, ou seja. informação
exata para reordenação das mentes, no sentido de antecipar o próximo golpe
que nos será vibrado pelas nossas faculdades projetadas para fora.
Cessaríamos então de olhar para as obras de arte como um explorador olharia
para o ouro e as pedras preciosas que servem de adorno para os simples nãoletrados? De qualquer forma, na arte experimental os homens encontram as
especificações exatas da violência que se desencadeará sobre suas psiques,
pelos seus próprios irritantes ou tecnologias. Aquelas partes de nós mesmos
que projetamos para fora sob a forma de novas invenções são tentativas de
repelir ou neutralizar pressões e irritações coletivas. Mas o contra-irritante
muitas vezes se revela uma praga maior ainda do que o irritante inicial, tal
como o vício em drogas. E é aqui que o artista nos mostra como “desviar o
golpe”, em lugar de “receber um direto no queixo”. E só nos resta repetir que a
história humana não tem sido senão uma longa série de “diretos no queixo”.
Há bastante tempo já Emile Durkheim exprimiu a idéia de que a tarefa
especializada sempre se furta à ação da consciência social. I sto pareceria
indicar que o artista é a consciência social — e como tal é tratado
convenientemente! “Não temos arte — dizem os nativos de Bali — procuramos
fazer tudo da melhor forma possível.”
Com o impacto do automóvel, a metrópole moderna vai-se espalhando
irremediavelmente. Como resposta ao desafio da rapidez rodoviária, os
subúrbios e as cidades-jardins chegaram tarde demais — ou no tempo
oportuno de se transformarem simplesmente num desastre automobilístico. A
disposição de funções ajustadas para um certo conjunto de intensidades
tornou-se insuportável quando submetida a outra intensidade. Uma extensão
tecnológica de nossos corpos, projetada para aliviar o stress físico, pode
produzir um stress psíquico muito mais grave. A tecnologia especializada do
Ocidente, transferida para o mundo árabe nos últimos tempos de Roma, liberou
uma furiosa descarga de energia tribal.
Os meios de diagnose relativamente ardilosos que devem ser
empregados para sujeitar o impacto e a forma real de um novo meio não são
muito diferentes daqueles indicados nas estórias de detetives, tais como as de
Peter Cheyney. Em You Can’t Keep the Change (“Você Não Vai Ficar Com o
Troco”), escreveu Cheyney:
Para Callaghan, um caso não passava de uma coleção de gente. Algumas
— ou todas — viviam a fornecer informações erradas ou a contar mentiras,
porque as circunstâncias as forçavam ou conduziam a isso.
Mas o fato de terem de contar mentiras e dar falsas impressões
obrigava-as a uma re-orientação de seus pontos de vista e de suas próprias
vidas. Mais cedo ou mais tarde essas pessoas se cansavam ou relaxavam.
Então — e só então — podia o investigador rastrear a pista que o conduziria a
uma possível solução lógica.
É interessante notar que o êxito em manter uma fachada respeitável do
tipo costumeiro somente pode ser conseguido através de um esforço
desesperado de recomposição da fachada. Depois do crime, depois de
executado o golpe, a fachada usual só pode ser sustentada através de um
contínuo conserto dos andaimes. Assim é em nossa vida social, quando a
golpeia uma nova tecnologia, e em nossa vida particular, quando ocorre uma
experiência intensa em relação ao golpe, preparando mais faculdades para a
assimilação do corpo estranho. A observação de Peter Cheyney sobre um dos
processos da ficção detetivesca se constitui num exemplo de uma forma
popular de distração funcionando como modelo mímico do fato real.
Talvez que o “fechamento” ou a conseqüência psicológica mais evidente
de uma tecnologia nova seja simplesmente a sua demanda. Ninguém quer um
carro até que haja carros, e ninguém está interessado em TV até que existam
programas de televisão. Este poder da tecnologia em criar seu próprio mercado
de procura não pode ser desvinculado do fato de a tecnologia ser, antes de
mais nada, uma extensão de nossos corpos e de nossos sentidos. Quando
estamos privados do sentido da visão, os outros sentidos, ate certo ponto,
procuram supri-lo. Mas a necessidade de utilizar os sentidos disponíveis é tão
premente quanto respirar — o que confere sentido à necessidade que sentimos
em manter o rádio ou o aparelho de televisão ligados quase que
continuamente. A pressão para o uso contínuo independe do “conteúdo” dos
programas ou do sentido de vida particular de cada um, testemunhando o fato
de que a tecnologia é parte de nosso corpo. A tecnologia elétrica se relaciona
diretamente com nosso sistema nervoso central, de modo que é ridículo falar
do “que o público quer”, brincando com seus próprios nervos. Seria o mesmo
que perguntar ao público que espécie de luz e som prefere no ambiente urbano
que o envolve! Poucos direitos nos restam a partir do momento em que
submetemos nossos sistemas nervoso e sensorial à manipulação particular
daqueles que procuram lucrar arrendando nossos olhos, ouvidos e nervos.
Alugar nossos olhos, ouvidos e nervos para os interesses particulares é o
mesmo que transferir a conversação comum para uma empresa particular ou
dar a atmosfera terrestre em monopólio a uma companhia. Algo assim já
aconteceu com o espaço exterior, pelas mesmas razões pelas quais arrendamos
nossos sistema nervoso central a diversas firmas. Enquanto adotarmos a
atitude de Narciso, encarando as extensões de nossos corpos como se
estivessem de fato lá fora, independentes de nós, enfrentaremos os desafios
tecnológicos com a mesma sorte, a mesma pirueta e queda de quem escorrega
numa casca de banana.
Arquimedes disse certa vez: “Dê-me um ponto de apoio e eu moverei o
mundo.” Hoje, ele apontaria para nossos meios elétricos e diria: “Eu me
apoiarei em seus olhos, ouvidos, nervos e cérebro e o mundo se moverá em
qualquer compasso e forma que eu desejar.” Nós arrendamos esses “pontos de
apoio” às empresas particulares.
Arnold Toynbee dedicou boa parte de seu Um Estudo de História à
análise dos desafios que as culturas têm enfrentado através dos séculos. É
altamente relevante para o homem ocidental a explicação de Toynbee sobre
como os coxos e aleijados compensam suas deficiências numa sociedade de
guerreiros. Tornam-se especialistas, como Vulcano, o ferreiro e armeiro. E
como reagem as comunidades conquistadas e escravizadas? Empregam a
mesma estratégia do coxo numa sociedade de guerreiros. Especializam-se
tornando-se indispensáveis aos seus amos. O estigma de servilismo e
pusilanimidade que ainda hoje pesa sobre a figura do especialista
provavelmente deriva da longa história da escravização humana e da sua queda
na especialização como contra-irritante. A capitulação do homem ocidental à
sua própria tecnologia, com um crescendo de demanda especializada, sempre
pareceu uma espécie de escravidão aos observadores de nosso mundo. Mas a
fragmentação que daí deriva tem sido voluntária e entusiástica, contrariamente
à consciente estratégia de especialização empregada pelos prisioneiros da
conquista militar.
É claro que a especialização, ou a fragmentação como técnica de obter
segurança em relação à tirania e à opressão vem acompanhada de um perigo.
Para se atingir uma perfeita adaptação a qualquer ambiente, necessário se
torna canalizar para esse fim todas as energias e forças vitais. o que conduz a
uma espécie de limite estático. Qualquer mudança no ambiente dos bem
adaptados encontra-os sem recursos para enfrentar o novo desafio. Esta é a
sina dos representantes da “sabedoria convencional”, em qualquer sociedade.
Apostam toda a sua segurança e condição social numa única forma de
conhecimento adquirido — de forma que a inovação para eles não é inovação,
mas aniquilamento.
A existência de uma fronteira ou muro, atrás do qual existe uma outra
espécie de sociedade, é uma forma semelhante de desafio para as mais
diversas culturas. A simples existência, lado a lado, de duas formas de
organização, é suficiente para gerar tensão em alto grau. De fato, este foi o
princípio das estruturas artísticas simbolistas no século passado. Toynbee
observa que o desafio de uma civilização a uma sociedade tribal demonstra
seguidamente que a sociedade mais simples está condenada a ver sua
economia e suas instituições “desintegradas pela chuva da energia psíquica
gerada pela civilização” de cultura mais complexa. Quando duas sociedades
vivem lado a lado, o desafio psíquico da mais complexa atua como liberação
explosiva de energia em relação à mais simples. Para colher ilustrações
numerosas dessa espécie de problema, não é necessário ir além da vida diária
do adolescente em meio ao complexo dos centros urbanos. Assim como os
bárbaros se tornavam furiosamente inquietos ao contato com os civilizados,
decaindo nas migrações em massa, assim o adolescente, obrigado a partilhar
da vida de uma cidade que não pode aceitá-lo como adulto parte para a
“rebelião sem causa”. Antes, o adolescente dispunha de uma garantia de
revalidação de sua entrada: estava preparado para esperar a sua vez, na fila.
Mas com a televisão, o impulso à participação encerrou a adolescência e todo
lar americano tem o seu muro de Berlim.
Toynbee é generoso em fornecer exemplos numerosos e variados de
desafio e ruína e é especialmente arguto ao apontar o fútil e freqüente recurso
ao futurismo e ao arcaísmo como estratégias para fazer frente às mudanças
radicais. Voltar para o tempo do cavalo ou ansiar pela vinda dos veículos
antigravitacionais não é uma resposta adequada ao desafio do automóvel. Estes
dois meios uniformes de olhar para trás e para a frente são meios comuns de
evitar as descontinuidades da experiência do presente com suas exigências de
exame e avaliação sensíveis. Somente o artista dedicado parece ter o poder de
fazer frente à realidade presente.
Seguidamente, Toynbee insiste na estratégia cultural da imitação do
exemplo dos grandes homens. I sto, naturalmente, significa colocar a segurança
cultural antes nas mãos da vontade do que no poder da percepção adequada
das situações. Qualquer um pode objetar que isto não é senão a crença inglesa
na personalidade, em oposição ao intelecto. Considerando-se o poder infinito
dos homens em hipnotizar-se, inconscientizando-se em presença de um
desafio, pode-se argumentar que, para a sobrevivência, a força de vontade é
tão útil quanto a inteligência. Hoje também necessitamos da vontade para nos
mantermos incomumente informados e conscientes.
Arnold Toynbee dá um exemplo de como a tecnologia renascentista foi
efetivamente enfrentada e criativamente controlada, ao mostrar como a
revivescência do parlamento medieval descentralizado salvou a I nglaterra do
monopólio do centralismo que avassalou o continente. Lewis Mumford, em City
in History (“A Cidade na História”), conta a estranha história de como as
cidades da Nova I nglaterra conseguiram desenvolver a estrutura da cidade
medieval ideal, eliminando as muralhas e misturando campo e cidade. Quando
uma tecnologia de um determinado tempo implica num impulso poderoso numa
direção, a sabedoria aconselha opor-lhe um outro impulso. A implosão da
energia elétrica em nosso século não pode ser neutralizada pela explosão e pela
expansão, mas sim pela descentralização e pela flexibilidade de múltiplos
centros pequenos. Por exemplo, a corrida dos estudantes para a universidade
não é explosão. mas implosão. A estratégia adequada para enfrentar esta força
não é aumentar a universidade, mas criar numerosos grupos de faculdades
autônomas em lugar da universidade centralizada, que se desenvolveu segundo
as linhas das formas de governo européias e da indústria do século XI X.
Da mesma forma, os efeitos excessivamente tácteis da imagem
televisionada não podem ser neutralizados por simples mudanças de
programação. A estratégia criativa baseada num diagnóstico adequado
aconselharia um aprofundamento correspondente e uma abordagem estrutural
nos mundos literário e visual. Se persistirmos numa abordagem convencional a
estes desenvolvimentos, nossa cultura tradicional será posta de lado, como o
foi o escolasticismo no século XVI . Tivessem os Escolásticos, com sua complexa
cultura oral, compreendido a tecnologia de Gutemberg, teriam criado uma nova
síntese da educação escrita e oral, em lugar de submeter-se à imagem e
permitir que à página visual ficasse afeta a missão educacional. Os
Escolástico’~ orais não estiveram à altura do novo desafio visual da imprensa: a
expansão ou explosão da tecnologia de Gutenberg daí resultante só serviu para
contribuir, em muitos aspectos, para o empobrecimento da cultura, como os
historiadores como Mumford começam agora a perceber. Em Um Estudo de
História, Arnold Toynbee, ao considerar “a natureza do crescimento das
civilizações”, não apenas abandona o conceito de ampliação como critério do
crescimento real das sociedades, como afirma: “Mais comumente a expansão
geográfica é concomitante com o declínio real e coincide com os “períodos de
perturbações” ou com o estado universal — ambos constituindo estágios de
declínio e de desintegração.”
Toynbee expõe o principio de que os períodos de agitação ou de
mudanças rápidas produzem o militarismo, e de que este produz o império e a
expansão. O velho mito grego. ensinando que do alfabeto surgiu o militarismo.
(“O Rei Cadmo semeou os dentes do dragão e deles brotaram homens
armados”) na verdade vai muito mais fundo do que a história de Toynbee:
“Militarismo” e apenas uma descrição vaga e não uma análise de causalidade. O
militarismo é uma espécie de organização visual das energias sociais, ao
mesmo tempo especializada e explosiva, de modo que é mera redundância
dizer, como o faz Toynbee, que ele tanto cria os novos impérios como provoca
a débâcle social. Mas o militarismo é uma forma de industrialismo, ou seja, a
concentração de grande quantidade de energia homogeneizada em alguns
poucos tipos de produção. O legionário era um homem com uma pá. Era um
trabalhador e um construtor hábil, que processava e embalava os recursos de
muitas sociedades, expedindo-os para casa. Antes da maquinaria, as únicas
forças maciças para o processamento de materiais eram os soldados e os
escravos. Como indica o mito de Cadmo, o alfabeto fonético foi o maior
processador de homens para a vida militar homogeneizada que existiu na
Antiguidade. O período da sociedade grega que Heródoto declara ter sido
“castigado de mais agitações do que nas vinte gerações precedentes”, foi um
tempo que — em nosso retrospecto literário — se nos afigura como um dos
maiores séculos da história humana. Foi Macaulay quem observou que as
épocas sobre as quais gostamos de ler não eram épocas nas quais fosse
agradável viver. A era que sucedeu a Alexandre viu o helenismo expandir-se na
Ásia e preparou o curso da expansão romana posterior. No entanto, estes
foram exatamente os séculos que assistiram à ruína da civilização grega.
Toynbee se refere à estranha falsificação da história pela arqueologia,
pois a sobrevivência de muitos objetos materiais do passado pouco nos diz da
qualidade da vida e da experiência diária de um tempo determinado.
Melhoramentos técnicos contínuos nos meios de combate são observados
durante todo o período do declínio helênico e romano. Toynbee comprova sua
hipótese testando-a com os melhoramentos da agricultura grega. Quando as
leis de Sólon afastaram os gregos da lavoura mista segundo um programa de
cultivo de produtos especializados para a exportação, uma gloriosa
manifestação de energia na vida grega foi a feliz conseqüência. Na fase
seguinte, quando o impulso da especialização passou a apoiar-se, em grande
parte, no trabalho escravo, houve um aumento espetacular na produção. Mas
as legiões de escravos tecnologicamente especializados no trabalho da terra
estiolaram a existência social dos proprietários independentes e dos pequenos
fazendeiros, o que conduziu ao estranho mundo das cidades romanas, com
suas multidões de parasitas desenraizados.
O especialismo da indústria mecanizada e da organização do mercado
impôs ao homem ocidental — num grau muito maior do que aquele provocado
pela escravidão romana — o desafio da manufatura pela mono fratura, ou seja.
a montagem de todas as coisas e operações peça por peça. Este é o desafio
que permeou todos os aspectos de nossa vida, permitindo-nos a expansão
triunfante em todas as direções e em todas as esferas.
SEGUNDA PARTE
8. A PALAVRA FALADA
FLOR DO MAL?
Eis a transcrição de um trecho de um programa popular de disk-jockey:
Aqui está Patty Baby... e vejam aqui a menina, os pés dela dançam
aquela dança... olá Fredy Canon, meu chá vai ser um negócio... como é que vai
essa força? Plap! Plap! Daqui a pouco estaremos naquela onda, mandando
aquela brasa.
E... bem... eu também estou aqui, dêem uma manjada... é o máximo...
um pão... o próprio: D. M.... dê-me a hora aí, meu velho.., vinte e uma e vinte
e dois. Estamos em cima... bola prá frente... Disco é que eu gosto... oba oba
alô alô... É só chamar WAlnut 5-1151, WAlnut 5-1151 e dizer o que é que está
indo ao ar em Disco é que eu gosto... tá?
Dave Mickie geme, grunhe, rebola, canta, trauteia, entoa, corre, sempre
reagindo às suas próprias ações. Ele se move quase que inteiramente na área
da experiência falada, e não da escrita, criando, desse modo, a participação da
audiência. A palavra falada envolve todos os sentidos intensamente, embora as
pessoas altamente letradas tendam a falar de maneira tão concatenada e
natural quanto lhes é possível. O natural envolvimento dos sentidos nas
culturas onde a palavra escrita não é a norma da experiência vem às vezes
indicado em guias turísticos, como neste guia da Grécia:
Vocês observarão que muitos gregos parecem levar um tempo enorme
para calcular as contas de algo parecido com um rosário de âmbar. Mas este
rosário não tem significação religiosa. São chamados komboloia, ou “contas da
preocupação”; são uma herança dos turcos, e os gregos os fazem tilintar em
terra, no mar ou no ar, como que para se protegerem daquele silêncio
insuportável que ameaça reinar quando a conversação morre. Todos fazem isso
— pastores, policiais, estivadores e comerciantes.
E se você achar curioso o fato de ver tão poucas mulheres usando
colares de contas, ficará sabendo que os seus maridos já se apossaram deles
antecipadamente só pelo prazer de os tatear e fazer soar. Mais estético do que
girar os polegares e mais barato do que fumar, esta obsessão indica a
sensorialidade táctil de uma raça que produziu as maiores obras de escultura
do mundo ocidental...
Quando se observa a ausência da pesada pressão da cultura escrita
numa cultura, ocorre uma outra forma de envolvimento sensório e de
apreciação cultural, como explica espirituosamente nosso guia grego.
... não se surpreenda com a freqüência com que você é abraçado,
acariciado e catucado, na Grécia. Você pode até acabar se sentindo como um
cachorro doméstico... numa família carinhosa. Essa inclinação para o toque e os
tapinhas nos parece uma extensão táctil da ávida curiosidade dos gregos acima
referida. É como se os seus anfitriões estivessem querendo descobrir do que
você é feito.
Os caracteres francamente divergentes das palavras escrita e falada
podem hoje ser mais bem estudados, graças ao contato mais íntimo que hoje
temos com as culturas pré-letradas. Um nativo — o único alfabetizado de seu
grupo — falando da sua função de leitor de cartas para os outros, disse que se
sentia impelido a tapar os ouvidos com os dedos, durante a leitura, para não
violar a intimidade das cartas. Trata-se de um testemunho interessante dos
valores da intimidade alimentados pela pressão visual da escrita fonética. Uma
tal separação dos sentidos, e do indivíduo em relação ao grupo, dificilmente
pode ocorrer sem a influência da escrita fonética. A palavra falada não permite
a extensão e a amplificação da força visual requerida para os hábitos do
individualismo e da intimidade.
É esclarecedor o confronto entre a natureza da palavra falada e da sua
forma escrita. Embora a escrita fonética separe e prolongue a força visual das
palavras, ela o faz de maneira relativamente lenta e rude. Não há muitas
maneiras de se escrever “noite”, mas Stanislavsky costumava pedir aos seus
jovens atores que a pronunciassem em cinqüenta modos e variantes diferentes,
enquanto a audiência ia registrando os diferentes matizes de sentimentos e
significados expressos por eles. Mais de uma página em prosa e mais de uma
narrativa têm sido dedicadas a exprimir o que não é senão um soluço, um
gemido, um riso ou um grito lancinante. A palavra escrita desafia, em
seqüência, o que e imediato e implícito na palavra falada.
Além disso, ao falar, tendemos a reagir a cada situação, seguindo o tom
e o gesto até de nosso próprio ato de falar. Já o escrever tende a ser uma
espécie de ação separada e especializada, sem muita oportunidade e apelo
para a reação. O homem ou a sociedade letrada desenvolve uma enorme força
de atenção em qualquer coisa, com um considerável distanciamento em relação
ao envolvimento sentimental e emocional experimentado por um homem ou
uma sociedade não-letrada.
O filósofo francês Henri Bergson viveu e escreveu dentro de uma
tradição de pensamento que considerava a língua como uma tecnologia
humana que debilitou e rebaixou os valores do inconsciente coletivo. É a
projeção do homem na fala que permite ao intelecto destacar-se da vastidão
real. Bergson sugere que, sem a linguagem, a inteligência humana teria
permanecido totalmente envolvida nos objetos de sua atenção. A linguagem é
para a inteligência o que a roda é para os pés, pois lhes permite deslocar-se de
uma coisa a outra com desenvoltura e rapidez, envolvendo-se cada vez menos.
A linguagem projeta e amplia o homem, mas também divide as suas
faculdades. A consciência coletiva e o conhecimento intuitivo ficam diminuídos
por esta extensão técnica da consciência que é a fala.
Em A Evolução Criativa, Bergson afirma que a própria consciência e uma
extensão do homem que obscurece a felicidade da união no inconsciente
coletivo. A fala separa o homem e a Humanidade do inconsciente cósmico.
Como extensão, manifestação ou exposição de todos os nossos sentidos a um
só tempo, a linguagem sempre foi considerada a mais rica forma de arte
humana, pois que a distingue da criação animal.
Se o ouvido humano pode ser comparado ao receptor de rádio, capaz de
descodificar as ondas eletromagnéticas e recodificá-las como som, a voz
humana pode ser comparada ao transmissor de rádio, ao traduzir o som em
ondas eletromagnéticas. O poder da voz em moldar o ar e o espaço em formas
verbais pode ter sido precedido de uma expressão menos especializada de
gritos, grunhidos, gestos e comandos. de canções e danças. As estruturas dos
sentidos projetadas nas várias línguas são tão diversas como os estilos na moda
e na arte. Cada língua materna ensina aos seus usuários um certo modo de ver
e sentir o mundo, um certo modo de agir no mundo — e que e único.
Nossa nova tecnologia elétrica, que projeta sentidos e nervos num
amplexo global, tem grandes implicações em relação ao futuro da linguagem. A
tecnologia elétrica necessita tão pouco de palavras como o computador digital
necessita de números. A eletricidade indica o caminho para a extensão do
próprio processo da consciência. em escala mundial e sem qualquer
verbalização. Um estado de consciência coletiva como este deve ter sido a
condição do homem pré-verbal. A língua, como tecnologia de extensão
humana, com seus conhecidos poderes de divisão e separação. deve se haver
configurado na torre de Babel pela qual os homens procuraram escalar os céus.
Hoje os computadores parecem prometer os meios de se poder traduzir
qualquer língua em qualquer outra, qualquer código em outro código — e
instantaneamente. Em suma, o computador, pela tecnologia, anuncia o advento
de uma condição pentecostal de compreensão e unidade universais. O próximo
passo lógico seria, não mais traduzir, mas superar as línguas através de uma
consciência cósmica geral, muito semelhante ao inconsciente coletivo sonhado
por Bergson. A condição de “imponderabilidade”, que os biólogos tomam como
promessa de imortalidade física, pode ser acompanhada pela condição de
“infalibilidade”, que asseguraria a paz e a harmonia coletiva e perpétua.
9. A PALAVRA ESCRI TA
UM OLHO POR UM OUVI DO
Sobre o seu encontro com o mundo escrito, na África Ocidental, escreveu
o Príncipe Modupe:
Na casa do Padre Perry, o único lugar totalmente ocupado era o das
estantes de livros. Gradativamente cheguei a compreender que as marcas
sobre as páginas eram palavras na armadilha. Qualquer uni podia decifrar os
símbolos e soltar as palavras aprisionadas, falando-as. A tinta de impressão
enjaulava os pensamentos; eles não podiam fugir, assim como um dumbu não
pode fugir da armadilha. Quando me dei conta do que realmente isto
significava, assaltou-me a mesma sensação e o mesmo espanto que tive
quando vi pela primeira vez as luzes brilhantes de Conacre. Estremeci, com a
intensidade de meu desejo de aprender a fazer eu mesmo aquela coisa
extraordinária.
Em contraste flagrante com a ânsia e a pressa do nativo, temos as atuais
ansiedades do homem civilizado em relação à palavra escrita. Para alguns
ocidentais, a palavra escrita ou impressa se tornou um assunto melindroso. Não
há dúvida de que hoje se escreve, imprime e lê mais do que antes, mas há
também uma nova tecnologia elétrica que ameaça esta antiga tecnologia
construída sobre o alfabeto fonético. Graças à sua ação de prolongar o nosso
sistema nervoso central, a tecnologia elétrica parece favorecer a palavra falada,
inclusiva e participacional, e não a palavra escrita especializada. Nossos valores
ocidentais, baseados na palavra escrita, têm sido consideravelmente afetados
pelos meios elétricos, tais como o telefone, o rádio e a televisão. Talvez seja
por isso que muitas pessoas altamente letradas encontrem dificuldade em
analisar esta questão sem evitar um pânico moral. Acrescente-se ainda a isto a
circunstância de o homem ocidental, em mais de dois mil anos de cultura
escrita, ter realizado muito pouco para estudar ou compreender os efeitos do
alfabeto fonético, responsável pela criação de muitos de seus padrões básicos
de cultura. E não há dúvida que pode parecer um pouco tarde estudar a
questão agora.
Suponhamos que em lugar de ostentar as listras e estrelas, tivéssemos
de escrever as palavras “bandeira americana” num pedaço de pano e exibi-lo
como pavilhão nacional. Embora os símbolos transmitissem o mesmo
significado, o efeito seria bem diferente. Traduzir o rico mosaico visual das
listras e estrelas para a forma escrita significaria privá-la da maior parte de suas
qualidades de experiência e de imagem corporada, embora o vínculo literal
abstrato permanecesse quase o mesmo. Talvez esta ilustração sirva para
sugerir a mudança que ocorre com o homem tribal quando ele se alfabetiza.
Quase todos os sentimentos familiares, emocionais e grupais. se vêem
eliminados nas relações com a comunidade. Ele é livre, emocionalmente, de
separar-se da tribo e de tornar-se um homem civilizado, um indivíduo de
organização visual, com hábitos, atitudes e direitos iguais aos outros indivíduos
civilizados.
Segundo o mito grego, Cadmo, legendariamente o rei que introduziu as
letras do alfabeto na Grécia, semeou os dentes do dragão e deles germinaram
homens armados. Como qualquer outro mito, este também sintetiza um longo
processo numa introvisão fulgurante.
O alfabeto significou o poder, a autoridade e o controle das estruturas
militares, a distância. Quando combinado com o papiro, o alfabeto decretou o
fim das burocracias templárias estacionárias e dos monopólios sacerdotais do
conhecimento e do poder. Diferentemente da escrita pré-alfabética, com seus
inumeráveis signos de difícil assimilação, o alfabeto podia ser apreendido em
poucas horas. Quando aplicados a materiais grosseiros como o tijolo e a pedra,
um conhecimento tão extenso e uma habilitação tão complexa como a escrita
pré-alfabética asseguravam para a casta dos escribas um monopólio de poder
sacerdotal. O alfabeto acessível, juntamente com o papiro transportável, barato
e leve, produziu a transferência do poder da classe sacerdotal para a classe
militar. Tudo isto está implicado no mito de Cadmo e dos dentes do dragão,
incluindo a queda das cidades-estado e a ascensão dos impérios e das
burocracias militares.
Em termos de extensões do homem, o tema dos dentes de dragão no
mito de Cadmo é da maior importância. Em Crowds and Power (“As Multidões e
o Poder”), Elias Canetti nos recorda que os dentes constituem um agente óbvio
da força, no homem, e especialmente em muitos animais. As línguas contêm
muitos testemunhos da força de apreensão, devoração e precisão dos dentes. E
não deixa de ser natural e adequado que a força das letras, como agentes de
ordem e precisão agressivas, seja considerada como extensão dos dentes do
dragão. Os dentes são claramente visuais em sua ordem linear. As letras são
como os dentes, não só visualmente; seu poder de dotar de dentes o negócio
da construção de impérios é manifesto em nossa história ocidental.
O alfabeto fonético é uma tecnologia única. Tem havido muitas espécies
de escrita, pitográficas e silábicas. mas só há um alfabeto fonético, em que
letras semanticamente destituídas de significado são utilizadas como
correspondentes a sons também semanticamente sem significação.
Culturalmente falando, esta rígida divisão paralelística entre o mundo visual e
auditivo foi violenta e impiedosa. A palavra fonética escrita sacrificou mundos
de significado e percepção, antes assegurados por formas como o hieróglifo e o
ideograma chinês. Estas formas de escrita culturalmente mais ricas, no entanto,
não ofereciam ao homem as pontes de passagem do mundo magicamente
descontínuo e tradicional da palavra da tribo para o meio visual, frio e
uniforme. Séculos de emprego do ideograma em nada ameaçaram a trama
inconsútil das sutilezas familiares e tribais da sociedade chinesa. De outra
parte, uma simples geração de alfabetização na África, hoje — como na Gália
há dois mil anos — é suficiente para desligar o indivíduo da teia tribal, pelo
menos no inicio. I sto nada tem a ver com o conteúdo das palavras, mas é o
resultado da súbita ruptura entre as experiências auditiva e visual do homem.
Só o alfabeto fonético produz uma divisão tão clara da experiência, dando-nos
um olho por um ouvido e liberando o homem pré-letrado do transe tribal, da
ressonância da palavra mágica e da teia do parentesco.
Alguém poderia objetar que, neste caso, o alfabeto fonético, sozinho, é
uma tecnologia que dispõe dos meios de criar o “homem civilizado”, indivíduos
separados que são iguais perante a lei escrita. A separação do indivíduo, a
continuidade do espaço e do tempo e a uniformidade dos códigos são as
primeiras marcas das sociedades letradas e civilizadas. As culturas tribais, como
as da Í ndia e da China, podem ser bastante superiores às culturas ocidentais,
na extensão e sutileza de suas percepções e de sua expressão. Mas não
estamos aqui preocupados com a questão de valores, e sim com a configuração
das sociedades. As culturas tribais não podem agasalhar a possibilidade do
indivíduo ou do cidadão separado. Sua idéia de espaço e tempo não é contínua
nem uniforme, mas emotiva e compressiva em sua intensidade. As culturas
sentem a “mensagem” do alfabeto em seu poder de projetar estruturas de
uniformidade e continuidade visuais.
Como intensificação e extensão da função visual, o alfabeto fonético
reduz o papel dos sentidos do som, do tato e do paladar em qualquer cultura
letrada. Que isto não aconteça em culturas como a chinesa, que utiliza uma
escrita não-fonética, é um fato que as capacita à manutenção de um rico
celeiro de percepção inclusiva e profunda da experiência e que tende a se
malbaratar nas culturas civilizadas do alfabeto fonético. Pois o ideograma é
uma gestalt inclusiva, e não uma dissociação analítica dos sentidos e das
funções como a escrita fonética.
Sem dúvida, as realizações do mundo ocidental testemunham os valores
tremendos da cultura escrita. Mas muita gente se sentirá disposta a objetar que
pagamos um preço demasiado alto por nossas estruturas de tecnologias e
valores especializados. É certo que a estruturação linear da vida racional pela
cultura escrita nos envolveu num entrelaçamento de concordância suficiente
para justificar uma indagação mais ampla do que a que fazemos no presente
capítulo. Pode dar-se que haja abordagens mais frutuosas, seguindo-se linhas
bastante diversas; por exemplo, a consciência e considerada como a marca do
ser racional, mas nada existe de linear ou seqüencial no campo total do
conhecimento do tempo presente num momento dado da consciência. A
consciência não é um processo verbal. Todavia, durante os séculos de cultura
fonética, temos considerado a cadeia de inferências como a marca da lógica e
da razão. No entanto, a escrita chinesa dota cada ideograma de uma intuição
total do ser e da razão, permitindo apenas um reduzido papel à seqüência
visual como marca do esforço e da organização mentais. Na sociedade letrada
ocidental, ainda é plausível e aceitável dizer-se que “algo se segue de alguma
coisa, como se houvesse alguma causa operativa responsável por tal seqüência.
Foi David Hume, no século XVI I I , quem indicou que não há causalidade
assinalada em qualquer seqüência, natural ou lógica. A seqüência é meramente
aditiva e não causativa. A argumentação de Hume “acordou-me de meu sono
dogmático”, disse I mmanuel Kant. No entanto, nem Hume nem Kant
localizaram a causa oculta da nossa tendência ocidental para a seqüência
“lógica” na difusa tecnologia do alfabeto. Na era da eletricidade sentimo-nos
tão livres para inventar lógicas não-lineares como para elaborar geometrias
não-euclidianas. Mesmo a cadeia de montagem, como método de seqüência
analítica para a mecanização de toda espécie de realização e produção, vai hoje
cedendo lugar a novas formas.
Somente as culturas letradas dominaram as seqüências lineares
concatenadas como formas de organização psíquica e social. A fragmentação
da experiência em unidades uniformes aptas a produzir ações e mudanças
formais mais rápidas (conhecimento aplicado) tem sido o segredo do domínio
ocidental tanto sobre o homem como sobre a natureza. Esta é a razão por que
o planejamento industrial do Ocidente parece tão militar, ainda que
involuntariamente. enquanto os planos militares têm muito de industrial. Ambos
são moldados pelo alfabeto, em sua técnica de transformação e controle e que
consiste em tornar todas as situações uniformes e contínuas. Este processo,
manifesto inclusive na fase greco-romana, intensificou-se com a uniformidade e
a repetibilidade da descoberta de Gutenberg.
A civilização se baseia na alfabetização porque esta é um processamento
uniforme de uma cultura pelo sentido da visão, projetado no espaço e no
tempo pelo alfabeto. Nas culturas tribais. a experiência se organiza segundo o
sentido vital auditivo, que reprime os valores visuais. A audição, à diferença do
olho frio e neutro, é hiperestética, sutil e todo-inclusiva. As culturas orais agem
e reagem ao mesmo tempo. A cultura fonética fornece aos homens os meios de
reprimir sentimentos e emoções quando envolvidos na ação. Agir sem reagir e
sem se envolver é umas das vantagens peculiares ao homem ocidental letrado.
A estória do The Ugly American (“O Americano Feio:’) descreve a
infindável sucessão de equívocos cometida pelos americanos visualistas e
civilizados quando se defrontam com as culturas orientais, tribais e auditivas. A
água corrente, com sua organização linear de condutos, foi recentemente
instalada em algumas aldeias indianas — uma experiência levada a efeito pela
civilizada UNESCO. Os moradores logo solicitaram que os canos fossem
removidos, pois lhe pareceu que toda a vida social da aldeia ficara
empobrecida, já que não mais se tornara necessária a visita ao poço comunal.
Para nós, a água encanada faz parte do conforto. Não pensamos nela em
termos de cultura ou de cultura escrita, da mesma forma como não pensamos
em alfabetização em termos de mudanças de hábitos, emoções e percepções.
Para os povos pré-letrados é perfeitamente claro que as nossas comodidades
mais comuns representam para eles alterações totais de cultura.
Menos penetrados pelos padrões da cultura letrada do que os
americanos, os russos se sentem mais à vontade para perceber e adaptar as
atitudes asiáticas. No Ocidente, o ler e escrever vem junto com canos,
torneiras, ruas, linhas de montagem e levantamentos de estoques. A mais
formidável expressão da cultura letrada talvez seja o nosso sistema de preços
uniformes, que atinge os mercados distantes e acelera o rodízio dos bens de
consumo. Mesmo as nossas idéias de causa e efeito se manifestam sob a forma
de coisas em seqüência e em sucessão, o que as culturas tribais ou auditivas
consideram bastante ridículo e que já vai perdendo sua posição hegemônica,
inclusive na nova Física e na nova Biologia.
Todos os alfabetos do mundo ocidental, da Rússia e dos Bascos, de
Portugal e do Peru, derivam dos caracteres greco-romanos. A separação única
que introduzem entre o som e a visão, de um lado, e o conteúdo verbal e
semântico, de outro, os transformaram na mais radical das tecnologias, no
sentido da tradução e homogeneização das culturas. Todas as demais formas
de escrita sempre serviram a uma única cultura, bem como a distingui-las de
outras. Só as letras fonéticas podiam traduzir, ainda que grosseiramente, os
sons de qualquer língua para um só e mesmo código visual. Os esforços
recentes dos chineses em aplicar as letras fonéticas à sua língua têm esbarrado
no problema das grandes variações tonais e nos múltiplos significados dos sons
semelhantes. I sto conduziu à prática de articular os monossílabos chineses em
polissílabos, a fim de eliminar a ambigüidade tonal. Desta forma, o alfabeto
fonético ocidental vai transformando os traços fundamentalmente auditivos da
língua e da cultura chinesas, fazendo com que a China possa desenvolver
aquelas estruturas lineares e visuais que conferem força e unidade centralizada
e uniforme à organização e ao trabalho ocidentais. À medida que saímos da era
Gutenberg em nossa própria cultura, mais facilmente podemos discernir os seus
traços fundamentais: homogeneidade, uniformidade e continuidade. Estas
foram as características que deram aos gregos e romanos seu poder de
ascendência sobre os bárbaros não-letrados. O bárbaro ou homem tribal,
ontem como hoje, sentia-se embaraçado pelo pluralismo, pela singularidade e
pela descontinuidade de sua própria cultura.
Para resumir, as escritas pictográfica e hieroglífica —tal como as das
culturas babilônicas, maia e chinesa — representam uma extensão do sentido
visual para armazenar e facilitar o acesso à experiência humana. Todas essas
formas conferiam expressão pictórica a significados orais. Assemelham-se ao
desenho animado e são bastante canhestras, pois requerem numerosos signos
para a infinidade de dados e de operações da ação social. Em contraste, o
alfabeto fonético, com apenas poucos sinais, pode abranger todas as línguas.
Tal realização, no entanto, implicou na separação de ambos os signos, oral e
visual, de seus significados semânticos e emocionais. Nenhum sistema de
escrita jamais havia realizado um tal efeito.
Esta mesma separação entre visão, som e significado, peculiar ao
alfabeto fonético, se estende também aos seus efeitos sociais e psicológicos. O
homem letrado sofre uma compartimentação de sua vida sensória, emocional e
imaginativa, como o proclamaram Rousseau e, mais tarde, os poetas e filósofos
românticos. Hoje, a simples referência a D. H. Lawrence já é suficiente para
trazer à baila os esforços empreendidos no século XX para superar o homem
letrado e recuperar a “integridade” humana. Se o homem ocidental sofre a
dissociação de sua sensibilidade interna pelo emprego do alfabeto, também
conquista a liberdade pessoal de dissociar-se do clã e da família. Esta liberdade
de forjar-se uma carreira individual já se manifestara na vida militar do mundo
antigo. As carreiras estavam abertas aos talentos, tanto na Roma republicana
como na França napoleônica — e pelas mesmas razões. A nova cultura letrada
criara um meio homogêneo e maleável, onde a mobilidade dos grupos armados
e dos indivíduos ambiciosos era tão nova quanto prática.
10. ESTRADAS E ROTAS DE PAPEL
Foi só com o advento do telégrafo que a mensagem começou a viajar
mais depressa do que o mensageiro. Antes dele, as estradas e a palavra escrita
eram estreitamente inter-ligadas. Com o telégrafo, a informação se destacou de
certos bens sólidos, como a pedra e o papiro, tal como o dinheiro se desligara
antes do couro, do lingote de ouro e dos metais, para terminar em papel. O
termo “comunicação” tem sido empregado extensivamente, em conexão com
estradas e pontes, rotas marítimas, rios e canais, antes mesmo de se ver
transformado em “movimento da informação”, na era da eletricidade. Talvez
não haja modo mais adequado de definir a natureza da era da eletricidade do
que estudar, inicialmente, o surgimento da idéia de transporte como
comunicação, e depois da transição da idéia de transporte para a idéia de
informação, por meio da eletricidade. A palavra “metáfora” vem do grego meta
pherein, conduzir através ou transportar. Neste livro estudamos todas as
formas de transporte de bens e de informação, seja como metáfora. seja como
intercâmbio. Toda forma de transporte não apenas conduz, mas traduz e
transforma o transmissor, o receptor e a mensagem. O uso de qualquer meio
ou extensão do homem altera as estruturas de interdependência entre os
homens, assim como altera as ratios entre os nossos sentidos.
O tema constante deste livro é o de que todas as tecnologias são
extensões de nossos sistema físico e nervoso.
Tendo em vista o aumento da energia e da velocidade. Não havendo tais
acréscimos de força e rapidez, novas extensões de nós mesmos não ocorreriam
ou seriam rejeitadas. Um aumento de força ou velocidade, em qualquer
agrupamento, constituído por quaisquer componentes que sejam, já é em si
mesmo uma ruptura que provoca uma mudança de organização. A alteração
dos agrupamentos sociais e a formação de novas comunidades ocorre com a
aceleração do movimento da informação, por meio das mensagens em papel e
do transporte rodoviário. Esta aceleração significa mais controle a maiores
distâncias. Historicamente, representou a formação do I mpério Romano e o
desmantelamento das cidades-estado do mundo grego. Antes que o uso do
papiro e do alfabeto criasse os incentivos para a construção de vias
pavimentadas mais rápidas, a cidade murada e a cidade-estado eram formas
que ainda podiam perdurar.
Essencialmente, a aldeia e a cidade-estado são formas que incluem todas
as funções e necessidades humanas. Com o aumento da velocidade e,
portanto, com o aumento do controle militar à distância, a cidade-estado entrou
em colapso. Outrora inclusivas e auto-suficientes, suas necessidades e funções
se expandiram nas atividades especializadas do império. A aceleração tende a
separar as funções, tanto comerciais como políticas; além de um certo ponto,
ela provoca a ruptura e o colapso do sistema. Quando, em Um Estudo da
História, Arnold Toynbee recorre a uma documentação maciça sobre o “declínio
das civilizações”, começa por asseverar; “Um dos sinais mais salientes da
desintegração, como já fizemos observar, é ....) quando uma civilização em
declínio consegue uma trégua ao preço de submeter-se a uma unificação
política forçada num estado universal.” Desintegração e trégua são
conseqüências de movimentos de informação sempre mais rápidos, graças a
correios circulando por boas estradas. A aceleração cria o que alguns
economistas chamam de estrutura centro-margem. Quando ela se torna
extensiva demais para o centro gerador e controlador, partes dela começam a
destacar-se para se constituírem em novos sistemas centro-margem
autônomos. O exemplo mais familiar é a estória das colônias americanas da
Grã-Bretanha. Quando as treze colônias começaram a desenvolver uma
considerável vida social e econômica própria, sentiram a necessidade de tornarse centros com suas próprias periferias. É o momento em que o centro original
pode empreender um esforço redobrado no sentido de manter o controle
centralizado em relação à periferia, como fez a I nglaterra. Mas a lentidão das
viagens marítimas era totalmente inadequada à conservação de um império tão
vasto, simplesmente numa base centro-margem. Uma estrutura unificada
centro-margem pode ser conseguida mais facilmente por forças terrestres do
que por forças marítimas. É a relativa lentidão da viagem marítima que inspira
as potências marítimas na criação de múltiplos centros, como que por um
processo de semeadura. Potências marítimas tendem a criar centros sem
margens, potências terrestres a criar estruturas do tipo centro-margem. A
velocidade elétrica cria centros por toda parte. As margens já não mais existem
neste planeta.
A falta de homogeneidade na velocidade do movimento informacional
cria diversidades estruturais na organização. Pode-se prever facilmente que
qualquer novo meio de informação altera qualquer estrutura. Se o novo meio e
acessível a todos os pontos da estrutura ao mesmo tempo, há a possibilidade
de ela mudar sem romper-se. Onde há grande discrepância nas velocidades do
movimento — como entre as viagens aéreas e terrestres ou entre o telefone e a
máquina de escrever sérios conflitos podem ocorrer na organização. A
metrópole moderna se tomou um caso típico dessa discrepância. Se a
homogeneidade das velocidades fosse total, não haveria rebeliões nem
rupturas. A unidade política pela homogeneidade se tomou possível pela
primeira vez com a imprensa. Já na Roma antiga havia apenas o papel
manuscrito para romper a opacidade ou reduzir a descontinuidade das aldeias
tribais; quando faltaram os suprimentos de papel, as estradas ficaram vazias,
como ocorreu nos tempos modernos com o racionamento da gasolina. Assim, a
velha cidade-estado voltou à cena e o feudalismo substituiu o republicanismo.
Parece bastante óbvio que os meios técnicos de aceleração acabem com
a independência das aldeias e das cidades-estado. Onde quer que ela ocorra, a
nova força sempre começa a operar no sentido de homogeneizar o maior
número possível de áreas marginais. O processo que Roma realizou através do
alfabeto fonético acoplado às suas estradas de papel vem ocorrendo na Rússia
há um século. E no ‘exemplo da África de hoje podemos acompanhar o
desenvolvimento do processamento visual da psique humana pelo alfabeto
fonético, até que se atinja um grau. de homogeneização apreciável na
organização social. Esse processamento visual foi também realizado no mundo
antigo por meio de tecnologias não-letradas, como sucedeu na Assíria. Mas o
alfabeto fonético não tem rival como tradutor do homem: da câmara de eco da
tribo integrada para o mundo visual e neutro da organização linear.
A situação da África se complica com a nova tecnologia eletrônica. O
próprio homem ocidental se desocidentaliza por seus novos processos de
aceleração, assim como os africanos se destribalizam pela velha tecnologia da
imprensa e da indústria. Se compreendêssemos os meios, antigos e novos,
essas confusões e rupturas poderiam ser programadas e sincronizadas. Mas é o
próprio sucesso que obtemos da especialização e separação de funções, para
conseguir a aceleração, que constitui a causa de nossa inconsciência e
ignorância da situação. Sempre foi assim — no mundo ocidental, pelo menos. A
autoconsciência das causas e limites da própria cultura ameaça a estrutura -do
ego; é. portanto, evitada. Nietzsche dizia que a compreensão paralisa a ação, e
os homens de ação parecem intuir este fato quando repelem os perigos da
compreensão.
O ponto-chave da aceleração pela roda, pela estrada e pelo papel é a
extensão do poder num espaço sempre mais homogêneo e uniforme. O
potencial real da tecnologia romana somente foi avaliado quando a imprensa
propiciou à estrada e à roda uma velocidade muito maior do que a alcançada
no auge de Roma. Mas a aceleração da era eletrônica é tão destrutiva para o
homem ocidental letrado e linear quanto o foram as vias de papel romanas
para as aldeias tribais. A aceleração de hoje não é uma lenta explosão
centrífuga do centro para as margens, mas uma implosão imediata e uma
interfusão do espaço e das funções. Nossa civilização especializada e
fragmentada. baseada na estrutura centro-margem, subitamente está
experimentando uma reunificação instantânea de todas as suas partes
mecanizadas num todo orgânico. Este é o mundo novo da aldeia global. Como
Mumford explica em A Cidade na História, a aldeia chegara a uma extensão
social e institucional de todas as faculdades em formas sempre mais
especializadas. A era eletrônica não pode manter a baixa rotação da estrutura
centro-margem, que tem caracterizado o mundo ocidental nos últimos dois mil
anos. Não se trata de uma questão de valores. Tivéssemos entendido os meios
antigos, como as estradas e a palavra escrita, e se avaliássemos devidamente
seus efeitos humanos, poderíamos reduzir ou mesmo eliminar o fator eletrônico
de nossas vidas. Existe algum exemplo de cultura que tenha compreendido a
tecnologia subjacente à sua estrutura e que estivesse preparada para conservála? Se houve, ela se referiu antes a valores e preferências. Os valores e
preferências que emergem da mera operação automática desta ou daquela
tecnologia agindo em nossa vida social não podem ser perpetuados.
No capítulo dedicado à roda, mostraremos que o transporte sem rodas
desempenhou um grande papel antes dela. sob a forma de trenós, na neve e
no pântano. Muitos deles eram puxados por animais de carga. Mas a maior
parte dos transportes sem rodas do passado se desenvolveu nos rios e no mar,
fato este que se exprime de maneira bastante rica na localização e na forma
das grandes cidades do mundo. Vários escritores observaram que a mais antiga
besta de carga foi a mulher, pois o macho devia estar sempre livre para poder
lutar por ela, assim como um beque de espera, no futebol. Mas esta fase
pertence ao estágio do transporte anterior à roda, ao período do homem
caçador e coletor de comida em terras não delimitadas. Hoje, quando o maior
volume de transporte consiste no movimento da informação, a roda e a estrada
vão sofrendo um processo de recessão e obsolescência; mas no inicio, as
estradas se tornaram necessárias para assimilar as pressões oriundas da roda e
em favor da roda. Os povoados criaram o impulso para as trocas e para o
movimento crescente de matérias-primas e produtos do campo em direção aos
centros de processamento, onde havia divisão do trabalho e ofícios
especializados. O progresso da roda e da estrada aproximou mais e mais a
cidade do campo, numa ação recíproca de esponja, de toma-lá-dá-cá. É o
processo a que assistimos em nosso século, com o automóvel. O
desenvolvimento das estradas aproximou a cidade do campo. Quando as
pessoas começaram a falar em “dar um giro pelo campo”, a estrada já
substituía o campo. Com as auto-estradas, a estrada se tornou um muro entre
o homem e. o campo. Veio então o período da auto-estrada como cidade, uma
cidade esticando-se de maneira contínua pelo continente e dissolvendo as
cidades existentes nesses conglomerados espichados que tanto aborrecem seus
habitantes de hoje.
A ruptura do velho complexo cidade-campo provocada pela roda e pela
estrada, viria a se acentuar com o transporte aéreo. Com o avião, as cidades
começaram a ter uma relação tão tênue com as necessidades humanas quanto
os museus. Tomaram-se corredores de mostruários, reflexos das lojas de linhas
de montagem industriais de que se originaram. A estrada passa a ser utilizada
cada vez menos para viagem e cada vez mais para recreação. O viajante passa
a preferir as rotas aéreas, abandonando a experiência do ato de viajar. Assim
como se costumava dizer que um transatlântico podia ser um hotel numa
grande cidade, o viajante a jato, sobre Tóquio ou Nova I orque, pode sentir-se
como num bar de hotel, no que se refere à experiência de viagem. Ele só
começa a viajar depois que aterrissa.
Enquanto isso, orientado e moldado pelo avião, pela auto-estrada e pela
coleta elétrica da informação, o campo tende a voltar a ser aquela área sem
trilhas do nomadismo anterior à roda. Os beatniks se reúnem na areia para
meditar sabre os hai-cai.
A aceleração e a ruptura são os principais fatores do impacto dos meios
sobre as formas sociais existentes. Hoje a aceleração tende a ser total, dando
fim ao espaço como fator principal das disposições sociais. Toynbee encara o
fator da aceleração como tradutor dos problemas físicos em problemas morais:
a estrada antiga, com seus cabriolés, carroças e riquixás eram cheias de
chateações miúdas, mas os perigos eram também miúdos. Depois, quando
passaram a dominar as forças que aceleram o tráfego, desaparece o problema
de carregar e transportar, mas o problema físico é traduzido em termos de
problema psicológico, uma vez que o aniquilamento do espaço também permite
o aniquilamento do viajante... Este princípio se aplica ao estudo de todos os
meios. Todos os modos de intercâmbio e interassociação humana tendem a
progredir pela aceleração. E por seu turno a velocidade acentua os problemas
de forma e estrutura. As distribuições e disposições antigas não tinham sido
feitas para essa velocidade e quando se tenta adaptá-las a movimentos novos e
mais rápidos, o que ocorre é que as pessoas começam a sentir um
esvaziamento dos valores da vida. No entanto, esses problemas não são novos.
O primeiro ato de Júlio César ao assumir o poder foi o de restringir o
movimento noturno dos veículos de rodas na cidade de Roma, para que não
perturbassem o sono dos moradores. O melhoramento dos transportes durante
o Renascimento transformou em favelas as cidades muradas medievais.
Antes que o alfabeto e o papiro estendessem consideravelmente o
poder, mesmo as tentativas dos reis no sentido de ampliar seus poderes em
termos espaciais tiveram que chocar-se contra as barreiras da burocracia
sacerdotal, na sede do governo. Para seus monopólios estáticos, um meio
complexo e grosseiro como a inscrição em pedra representava um perigo para
os impérios muito amplos. As lutas entre os que exerciam o poder sobre as
almas dos homens e os que buscavam controlar os recursos físicos das nações
não foram privilégio de um só tempo e lugar. No Velho Testamento, um
exemplo deste tipo de luta vem registrado no Livro de Samuel, I , 8, quando os
Filhos de I srael pedem a Samuel que lhes dê um rei. Samuel lhes explica a
natureza da lei real, em oposição à sacerdotal:
Eis, disse ele, como vos há de tratar o vosso rei: Tomará os vossos filhos
para os seus carros e a sua cavalaria, e para correr diante de seu carro. Fará
deles chefes de mil e chefes de cinqüenta, empregá-los-á em sua lavoura e em
suas colheitas, na fabricação de suas armas de guerra e de seus carros. Fará de
vossas filhas suas perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará também o
melhor de vossos campos, de vossas vinhas e de vossos olivais, e dá-los-á aos
seus servos.
Paradoxalmente, o efeito da roda e do papel na organização das novas
estruturas do poder, não foi o de descentralizar, mas o de centralizar. A
aceleração das comunicações sempre permite à autoridade central estender
suas operações a margens mais distantes. A introdução do alfabeto e do papiro
significou o treinamento de um maior número de pessoas como escribas e
administradores. Mas a extensão resultante da homogeneização e do
treinamento uniforme não teve papel de relevo no mundo antigo ou medieval.
O poder intensamente centralizado e unificado só se tornou possível com a
mecanização da escrita, durante o Renascimento. Como este processo ainda
está em desenvolvimento, para nós é fácil ver que foi nos exércitos do Egito e
de Roma que ocorreu uma espécie de democratização pela educação
tecnológica uniforme. Carreiras se abriram para os talentosos treinados na
escrita. No capítulo dedicado à palavra escrita, vimos como a escrita alfabética
traduziu o homem tribal para o mundo visual, convidando-o a empreender a
organização visual do espaço. Nos templos. os grupos sacerdotais estavam
mais preocupados com o registro do passado e com o controle do espaço
interior do invisível do que com a conquista militar externa. Daí o choque entre
os monopolizadores sacerdotais do conhecimento e os que desejavam aplicá-lo
a novas conquistas e a novas extensões do poder. (Este mesmo choque volta a
ocorrer entre a universidade e o mundo dos negócios.) Foi esse tipo de
rivalidade que inspirou Ptolomeu I I a fundar a grande biblioteca em Alexandria,
como centro do poder imperial. O vasto quadro de servidores civis e escribas
necessários às variadas tarefas especializadas funcionava como contrapeso e
força antitética em relação à casta sacerdotal. A biblioteca servia à organização
política do império num sentido que não podia interessar aos sacerdotes. Uma
rivalidade não muito diferente hoje se desenvolve entre os cientistas atômicos e
aqueles cuja preocupação maior é o poder.
Se percebemos que a cidade-centro foi, em primeiro lugar, um
conglomerado de aldeões ameaçados, mais fácil se torna perceber como essas
maltas de refugiados acuados pôde expandir-se em império. A cidade-estado,
enquanto forma, não foi uma resposta a um desenvolvimento comercial
pacífico, mas um amontoamento de segurança em meio à anarquia e à
dissolução. Assim a cidade-estado grega foi uma forma tribal de comunidade
inclusiva e integral. bastante diferente das cidades especializadas que
cresceram como extensões da expansão militar romana. As cidades-estado
gregas viriam depois a se desintegrar pela ação natural do comércio
especializado e pela separação de funções, tal como foi retratado por Mumford,
em A Cidade na História. As cidades romanas começaram como operações
especializadas do poder central. As cidades gregas terminaram neste ponto.
Se a cidade empreende o comércio rural, ela estabelece de imediato uma
relação centro-margem com a área rural em questão. Esta relação implica em
trazer do campo gêneros e matérias-primas em troca das manufaturas
especializadas do artesão. De outra parte, se a mesma cidade procura lançar-se
no comércio marítimo, o mais natural é que venha a “inseminar” outra cidade-
centro, como fizeram os gregos, em lugar de tratar as áreas de além-mar como
margem especializada ou celeiro de matérias-primas.
Eis como podemos resenhar brevemente as mudanças estruturais que
ocorrem na organização do espaço, em virtude da roda, da estrada e do papiro:
No princípio era a aldeia, que não possuía nenhuma dessas extensões
comunitárias do corpo físico individual. Mas a aldeia já era uma forma de
comunidade diferente daquela dos caçadores e pescadores, pois os aldeões
podem ser sedentários, dando assim inicio à divisão do trabalho e das funções.
O simples fato de se congregarem já é uma forma de aceleração das atividades
humanas que cria as condições para a posterior separação e especialização das
ações. Nem são outras as condições para a extensão do pé para a roda, que
acelera a produção e a troca. I gualmente, essas mesmas condições intensificam
as rupturas e conflitos comunais, o que faz com que os homens se aglomerem
em aglutinações sempre maiores, a fim de resistir às atividades aceleradas de
outras comunidades. As aldeias se convertem na cidade-estado por meio da
resistência e tendo em vista a segurança e a proteção.
A aldeia institucionalizou todas as funções humanas em forma de baixa
intensidade. Nesta forma amena, qualquer um podia desempenhar muitos
papéis. Alta participação, baixa organização. Esta é a forma da estabilidade em
qualquer tipo de organização. Todavia, a expansão das formas das aldeias em
cidade-estado reclamava intensidade maior bem como a inevitável separação
de funções para enfrentar essa intensidade e a competição. Todas as aldeias
tomavam parte nos rituais sazonais que na cidade se transformaram no drama
grego especializado. “As medidas e proporções da aldeia prevaleceram no
desenvolvimento das cidades gregas até o século I V a.C. ...“ — diz Mumford em
A Cidade na História. Esta extensão e esta tradução dos órgãos humanos para
o modelo da aldeia, sem perda da unidade corporal, é o critério que Mumford
utiliza para caracterizar a excelência das formas urbanas, em qualquer tempo e
lugar. Esta abordagem biológica do ambiente fabricado pelo homem é de novo
procurada hoje, na era da eletricidade. Não deixa de ser estranho que a idéia
da “escala humana não tenha tido nenhum atrativo para os séculos mecânicos.
A tendência natural da comunidade ampliada, que éa cidade, é a de
intensificar e acelerar as funções de toda ordem — fala, ofícios, moeda e troca.
Por sua vez, isto implica na extensão inevitável dessas ações por meio de
subdivisões. vale dizer, por meio de invenções. A cidade se formou como uma
espécie de abrigo ou escudo protetor do homem, mas essa camada protetora
foi obtida a custo de uma maximalização da luta intramuros. Os torneios
guerreiros, tais como os descritos por Heródoto. começaram como banhos
sangrentos e rituais entre os cidadãos. A tribuna, as cortes e os mercados
adquiriram aquela imagem intensa de competição divisionista, hoje conhecida
como a corrida de ratos”. Mas foi em meio a essas irritações que o homem
produziu suas maiores invenções ou contra-irritantes. Essas invenções eram
extensões de si mesmos obtidas graças a uma labuta concentrada, com a qual
ele buscava neutralizar sua aflição. A palavra grega ponos, “trabalho”, é o
termo que o pai da Medicina, Hipócrates, utiliza para descrever a luta do corpo
enfermo. Hoje, esta idéia leva o nome de homeostase, ou equilíbrio, entendido
como estratégia do domínio corporal. Todas as organizações, especialmente as
biológicas, lutam para se manter constantes em sua condição interna, em meio
às variações dos choques e das mudanças externas. O ambiente social
produzido pelo homem como extensão de seu corpo responde às novas
pressões e irritações lançando mão de novas extensões — sempre no esforço
de manter energia permanente, constância. equilíbrio e homeostase. Formada
para a proteção, inesperadamente a cidade gerou violentas intensidades e
novas energias híbridas, pela acelerada inter-relação de funções e
conhecimentos. Acabou por explodir em agressão. O alarma da aldeia, seguido
pela resistência da cidade, terminou na exaustão e na inércia do império. Esses
três estágios do síndrome da doença e da irritação foram sentidos, por aqueles
que os viveram, como expressões físicas normais da convalescença produzida
pelo contra-irritante.
O terceiro estágio da luta pelo equilíbrio entre forças em jogo na cidade
tomou a forma do império, estado universal que gerou a extensão dos sentidos
humanos sob as formas da roda, da estrada e do alfabeto. Podemos transmitir
nossas condolências àqueles que primeiro consideraram esses instrumentos um
meio providencial de levar a ordem a distantes regiões de turbulência e
anarquia. Decerto terão visto esses instrumentos como formas gloriosas de
“ajuda estrangeira”, distribuindo as bênçãos do centro às margens bárbaras.
Neste momento, por exemplo, estamos no escuro quanto às implicações
políticas do Telstar. O lançamento desses satélites como extensões de nosso
sistema nervoso provoca uma resposta automática em todos os órgãos do
corpo político da Humanidade. Esta nova intensificação da proximidade imposta
pelo Telstar reclama uma redistribuição de todos os órgãos, a fim de que a
energia e o equilíbrio se conservem. Para as crianças, o processo de ensinar e
aprender será afetado mais cedo do que se imagina. O fator tempo adquirirá
novas formas no mundo dos negócios e das finanças. E estranhos turbilhões de
poder aparecerão inesperadamente entre os povos do mundo.
A cidade plenamente desenvolvida coincide com o desenvolvimento da
escrita — especialmente da escrita fonética, forma especializada de escrita que
provoca a dicotomia entre o som e a visão. Foi este instrumento que capacitou
Roma a impor alguma ordem visual nas áreas tribais. A aceitação dos efeitos da
escrita fonética não depende de persuasão ou de adulação. Esta tecnologia
opera automaticamente a tradução do sonoro mundo tribal para a linearidades
e a visualidade euclidianas. As estradas e ruas romanas eram padronizadas e se
repetiam uniformemente em toda parte. Não havia adaptação aos contornos de
uma colina ou aos costumes locais. O tráfego rodante desapareceu dessas
estradas com o declínio dos suprimentos de papiro. Conseqüência da perda do
Egito, a falta de papiro significou o declínio da burocracia, bem como da
organização do exército. E assim surgiu o mundo medieval sem estradas,
cidades ou burocracias uniformes, que combateu a roda, assim como
posteriores formas urbanas iriam combater a ferrovia e como hoje nós
combatemos o automóvel. A velocidade e a força nunca são compatíveis com
as disposições sociais e espaciais existentes.
Escrevendo sobre as novas avenidas retas das cidades do século XVI I ,
Mumford assinala um fator que também estava presente na cidade romana com
seu tráfego rodante, a saber, a necessidade das largas avenidas retas para
acelerar os movimentos militares e ostentar a pompa e as particularidades do
poder. No mundo romano. o exercito era a força de trabalho de um processo
mecanizado de criação de riquezas. Os soldados funcionando como peças
uniformes de reposição, a máquina militar romana produzia e distribuía bens,
muito à semelhança da indústria durante as primeiras fases da revolução
industrial. O comércio acompanhava as legiões. Mais do que isso, as legiões se
constituíam em máquina industrial: numerosas cidades novas eram como novas
fábricas dirigidas por pessoal militar uniformemente treinado. Com a difusão da
imprensa e da leitura, o elo entre o soldado uniformizado e a mão fabril
produtora de riquezas tornou-se menos visível. Este elo era bastante evidente
nos exércitos de Napoleão. Com seus exércitos de cidadãos, Napoleão era a
própria revolução que atingia áreas antes fora de seu alcance.
Além do mais, o exército romano, força móvel e industrial produtora de
riquezas, criou um vasto público consumidor nas cidades romanas. A divisão do
trabalho sempre cria uma separação entre o produtor e o consumidor, pois
tende a separar o local de trabalho do domicílio. O mundo não conheceu nada
de comparável ao especialista consumidor romano, antes do advento de sua
burocracia letrada. Este fenômeno se institucionalizou no tipo chamado de
“parasita” e na instituição social dos torneios de gladiadores (panem et
circenses). A esponja privada e a esponja coletiva, ambas sequiosas de suas
rações de sensação, atingiram uma claridade e uma distinção horríveis, que
rivalizavam com a força crua da máquina militar predatória.
Com o corte dos suprimentos de papiro pelos maometanos, o
Mediterrâneo, antes um lago romano, tornou-se um lago muçulmano, e o
centro romano entrou em colapso. O que antes eram as margens desta
estrutura centro-margem transformou-se em centros independentes, em novas
bases estruturalmente feudais. O centro romano ruiu no século V, enquanto a
roda, a estrada e o papel definhavam, até se transformarem no paradigma
fantasmal do poderio passado.
O papiro não mais voltaria à cena. Como outros centros medievais,
Bizâncio dependia basicamente do pergaminho, material escasso e custoso
demais para acelerar o comércio ou a educação. Foi o papel, vindo da China e
gradualmente abrindo caminho para a Europa, via Oriente Próximo, que
provocou a firme aceleração da educação e do comércio a partir do século XI ,
fornecendo as bases do ‘Renascimento do século XI I ”, popularizando as
reproduções e, finalmente, tornando possível a imprensa no século XV.
Com o movimento da informação sob forma impressa, voltaram à ativa a
roda e a estrada, depois de um recesso de mil anos. Na I nglaterra, a pressão
da imprensa gerou as estradas pavimentadas do século XVI I I , com as
conseqüentes modificações industriais e populacionais. A imprensa, escrita
mecânica, introduziu uma extensão e uma separação das funções humanas
inimagináveis mesmo nos tempos romanos. Era natural, pois, que as
acentuadas velocidades crescentes da roda, na estrada e nas fábricas, se
relacionassem com o alfabeto, que já realizara tarefa similar de aceleração e
especialização no mundo antigo. A velocidade, pelo menos nos estágios mais
baixos da ordem mecânica, sempre opera no sentido da extensão, da
separação e da amplificação das funções do corpo. Mesmo o aprendizado
especializado da alta educação se desenvolve na ignorância das inter-relações.
A complexa consciência destas inter-relações esmorece o impulso em direção à
especialização.
As estradas postais da I nglaterra, em sua maior parte. eram financiadas
pelos jornais. O rápido aumento do tráfego trouxe a estrada de ferro, nova e
mais acentuada especialização da roda. A história da América moderna, que
começa com a descoberta do homem branco pelo índio — como muito bem
observou um gaiato — rapidamente passou da exploração pela canoa para o
desenvolvimento pela estrada de ferro. Durante três séculos, a Europa investiu
nos peixes e peles da América. A escuna de pesca e a canoa precederam a
estrada e as rotas postais como marcos de nossa organização espacial norteamericana. Os investidores europeus no comércio de peles naturalmente não
queriam ver seus roteiros de caça invadidos pelos Toms Sawyers e pelos Hucks
Finns. Combateram os colonizadores e inspetores de terras como Washington e
Jefferson, que simplesmente não estavam interessados em pensar em termos
de arminho. Assim, a guerra da independência se travou em meio a profundas
rivalidades de meios e bens. Qualquer novo meio, por sua aceleração, provoca
rupturas nas vidas e nos investimentos da comunidade inteira. Foi a estrada de
ferro que elevou a arte da guerra a uma intensidade inaudita: a Guerra Civil
Americana foi o primeiro conflito de grandes proporções a envolver a ferrovia,
para a admiração e exame dos estados-maiores europeus, que ainda não
tinham tido a oportunidade de utilizar a estrada de ferro para um
derramamento de sangue geral.
A guerra não é outra coisa senão uma mudança tecnológica acelerada.
Ela ocorre quando as desigualdades dos índices de crescimento provocam um
desequilíbrio acentuado entre as estruturas existentes. A tardia unificação e
industrialização da Alemanha deixou-a fora da corrida pelas colônias e
matérias-primas,
durante
anos.
•Como
as
guerras
napoleônicas,
tecnologicamente, eram algo assim como a tática da França para alcançar a
I nglaterra, também a Primeira Guerra Mundial foi uma fase importante da
industrialização final da Alemanha e da América. Como Roma não mostrara
antes, e a Rússia está mostrando agora, o militarismo e o principal caminho
para a aceleração e a educação tecnológicas nas áreas subdesenvolvidas.
À Guerra de 1812, seguiu-se um entusiasmo quase unânime pelo
melhoramento das vias de transporte terrestre. O bloqueio inglês das costas do
Atlântico obrigara a um volume de transportes terrestres sem precedentes, o
que só serviu para sublinhar o estado insatisfatório das estradas. Sem dúvida, a
guerra é uma forma de ênfase que provoca a atenção social distraída, por mais
de um sinal revelador. No entanto, em plena Paz Quente que se seguiu à
Segunda Guerra Mundial, o que se mostrou inadequado foram as auto-estradas
da mente. Muitas pessoas demonstraram sua insatisfação com nossos métodos
educacionais, após o lançamento do Sputnik. da mesma forma como muitos se
haviam queixado das estradas durante a Guerra de 1812.
Agora que o homem projetou para fora seu sistema nervoso central por
meio da tecnologia elétrica, o campo de batalha se deslocou para a estrutura
mental criadora e destruidora de imagens, tanto na guerra como nos negócios.
Até a era da eletricidade, a educação superior era um privilégio e um luxo das
classes ociosas; hoje ela se tornou uma necessidade da produção e da
sobrevivência. Quando a própria informação se constitui no tráfego mais
importante, a necessidade de conhecimentos avançados se faz sentir mesmo
nos espíritos mais rotineiros. Essa súbita erupção da formação acadêmica no
mercado traz consigo aquela qualidade da reversão clássica, dando como
resultado as sonoras gargalhadas que explodem tanto nas galerias como no
campus. Mas a hilaridade irá esmorecendo à medida em que as Suítes
Executivas forem ocupadas pelos doutorados em Filosofia.
Para se ter uma visão dos meios pelos quais a aceleração da roda, da
estrada e do papel, reordena as estruturas da população e das implantações
urbanas, basta percorrer alguns dos exemplos fornecidos por Oscar Handlin,
em seu estudo Boston’s I mmigrants (“Os I migrantes de Boston”). Diz ele que,
em 1790, Boston era uma unidade compacta, com os trabalhadores e
comerciantes vivendo lado a lado, de modo que não havia tendência à
separação das áreas residenciais em bases classistas: “Mas a cidade cresceu
enquanto os distritos periféricos se tornavam mais acessíveis, a população se
espalhou e, ao mesmo tempo, foi se dividindo por áreas distintas.” Esta simples
sentença encerra o tema deste capítulo. Ela pode ser generalizada, de modo a
incluir a arte da escrita: “À medida que se difundia visualmente e se tornava
mais acessível sob forma alfabética, o conhecimento se foi dividindo e fixando
em especializações.” Até a eletrificação, o aumento de velocidade produz a
divisão das funções, das classes sociais e do conhecimento.
No entanto, com a velocidade elétrica, dá-se a reversão total. A implosão
e a contração substituem a explosão e a expansão mecânica. Estendendo-se a
fórmula de Handlin à energia, teremos: “À medida que a energia crescia e que
dela se iam beneficiando as áreas periféricas. ia-se ela distribuindo por funções
e empregos distintos.” Esta fórmula constitui um princípio da aceleração em
todos os níveis da organização humana. Ela se refere especialmente àquelas
extensões de nosso corpo que se manifestam nas mensagens da roda, da
estrada e do papel. Agora que projetamos para fora não apenas nossos órgãos
físicos, mas o nosso próprio sistema nervoso, mediante a tecnologia elétrica, já
não se aplica o princípio da divisão e da especialização como fator da
aceleração. Quando a informação se desloca à velocidade dos sinais do sistema
nervoso central, o homem se defronta com a obsolescência de todas as formas
anteriores de aceleração, tais como a rodovia e a ferrovia. Começa a aparecer o
campo total da consciência inclusiva. As velhas estruturas dos ajustamentos
psíquicos e sociais tornam-se irrelevantes.
Refere-nos Handlin que, até 1820, os bostonianos andavam a pé ou
utilizavam veículos particulares. Os coletivos de tração animal foram
introduzidos em 1826. para grande expansão e aceleração dos negócios. Nesse
ínterim, o desenvolvimento da indústria na I nglaterra ia levando os interesses
empresariais às áreas rurais, desalojando muita gente de suas terras e
provocando o aumento do índice de imigração. O embarque de imigrantes
tornou-se lucrativo. encorajando a aceleração dos transportes marítimos. O
governo britânico passou então a subvencionar a Cunard Line a fim de
assegurar contatos rápidos com as colônias. As ferrovias viriam logo a ligar-se a
esse serviço da Cunard, tendo em vista o serviço postal e a interiorização dos
imigrantes.
Embora a América tivesse desenvolvido um serviço maciço de canais
internos e de vapores fluviais, ainda não estava engrenada para atender ao
ritmo da nova produção industrial. A necessidade da estrada de ferro se fazia
sentir para dar conta da produção mecanizada e para cobrir as grandes
distâncias do continente. A locomotiva a vapor, como acelerador, mostrou ser
uma das mais revolucionárias extensões de nosso corpo físico, criando um novo
centralismo político e novas proporções e formas urbanas. É à estrada de ferro
que a cidade americana deve sua configuração abstrata de treliça e a sua
separação inorgânica entre a produção, o consumo e o domicílio. O automóvel
aglutinou a forma abstrata da cidade industrial, misturando suas funções
separadas a ponto de deixar perplexos tanto o citadino quanto o urbanista. O
avião viria completar a confusão, aumentando a mobilidade do cidadão a ponto
de tornar irrelevante o espaço urbano. O espaço urbano é igualmente
irrelevante para o telefone, o telégrafo, o rádio e a televisão. O que os
urbanistas chamam de “escala humana”, ao discutir os espaços urbanos, está
desligado dessas formas elétricas. As extensões elétricas de nós mesmos
simplesmente contornam o espaço e o tempo, criando problemas sem
precedentes de organização e envolvimento humanos. Um dia ainda
suspiraremos pelos bons tempos do automóvel e da auto-estrada.
11. NÚMERO
O PERFI L DA MULTI DÃO
Hitler votava um ódio especial ao Tratado de Versalhes, porque ele
esvaziara o exército alemão. Com suas batidas de calcanhares, os membros do
exército alemão, após 1870, se haviam tomado o novo símbolo da unidade e do
poder tribas. Na I nglaterra e na América, o mesmo senso de grandeza
numérica derivado dos números estava associado à crescente produção
industrial, e às estatísticas da riqueza e da produção: “tanques aos milhões”.
Não deixa de ser misterioso o poder dos meros números — refiram-se eles à
população ou à riqueza — no sentido de dinamizar o impulso em direção ao
crescimento e ao engrandecimento. Em As Multidões e o Poder, Elias Canetti
ilustra o profundo liame que existe entre a inflação monetária e o
comportamento da massa. Ele se mostra intrigado ante nosso fracasso em
estudar a inflação como fenômeno de massas, uma vez que seus efeitos no
mundo moderno penetram por toda parte. O impulso para o crescimento
ilimitado, inerente a toda espécie de multidão, aglomerado ou horda, indicaria a
ligação entre a inflação econômica e a inflação populacional. No teatro, num
baile, num jogo ou na igreja, cada pessoa desfruta as demais pessoas
presentes. O prazer de estar na massa é o senso da alegria da multiplicação
dos números, senso este que os membros letrados da sociedade ocidental têm
por suspeito.
Numa sociedade como esta, a separação indivíduo/ grupo, no espaço
(intimidade), no pensamento (ponto de vista) e no trabalho (especialização)
tem contado com o suporte cultural e tecnológico dos letrados, com sua
galáxia-comitiva de instituições fragmentadas, industriais e políticas. Mas o
poder da palavra impressa em criar o homem social homogeneizado cresceu de
maneira segura até nosso tempo, criando o paradoxo da “mentalidade de
massa” e do militarismo de massa dos exércitos de cidadãos. Levadas ao seu
extremo mecanizado, as letras muitas vezes parecem ter produzido efeitos
contrários à civilização, tal como a numeração, nos seus primórdios, parece
haver rompido a unidade tribal, como atesta o Velho Testamento (“E Satã se
ergueu contra I srael e fez Davi contar os I sraelitas”). Os números e as letras
fonéticas foram os primeiros meios que fragmentaram e destribalizaram o
homem.
Tradicionalmente, e com justiça, através da história ocidental, temos
considerado as letras como a conte da civilização e alçado as literaturas à
condição de marcos-padrão das realizações civilizadas. Mas, ao longo do
percurso, tem-nos acompanhado a sombra do número, a linguagem da ciência.
I soladamente, o numero e tão misterioso quanto a escrita. Visto como uma
extensão de nosso corpo físico, ele se torna bastante inteligível. Assim como a
escrita é uma extensão e separação de nosso sentido mais neutro e objetivo —
o sentido da visão — o número é a extensão e a separação de nossa atividade
mais íntima e relacional, o sentido do tato.
A faculdade do tato, chamada sentido “háptico” pelos gregos,
popularizou-se como tal através do programa sensório da Bauhaus, com os
trabalhos de Paul Klee, Walter Gropius e muitos outros da Alemanha da década
de 20. O sentido do tato, propiciando uma espécie de sistema nervoso ou
unidade orgânica à obra de arte, tem obsecado os artistas desde o tempo de
Cézanne. Por mais de um século, os artistas vêm tentando responder ao
desafio da era da eletricidade pelo expediente de investir o sentido tátil com
papel do sistema nervoso unificador dos demais sentidos. Paradoxalmente, isto
foi alcançado pela “arte abstrata”, que oferece um sistema nervoso central para
a obra de arte muito mais adequado do que a casca convencional da velha
imagem pictórica. Cada vez mais as pessoas vão percebendo que o senso do
tato é necessário à existência integral. O ocupante imponderável da cápsula
espacial tem de lutar para conservar o senso integrativo do tato. Nossas
tecnologias mecânicas de extensão e separação das funções de nossos seres
físicos nos têm levado próximos a um estado de desintegração, fazendo com
que percamos o contato conosco mesmos. Pode dar-se muito bem que em
nossa vida consciente interior a interação de nossos sentidos constitua o
sentido do tato. Ou o tato não seria apenas o contato epidérmico com as
coisas, mas a própria vida das coisas na mente? Os gregos tinham a noção de
um consenso ou de uma faculdade do “senso comum”, capaz de traduzir um
sentido em outro, de modo a conferir, ao homem, consciência. Hoje, quando,
pela tecnologia, prolongamos todos os nossos sentidos e todas as partes de
nosso corpo, sentimos a ânsia da necessidade de um consenso externo entre a
tecnologia e a experiência que eleva a nossa vida comunal ao nível de um
consenso mundial. Uma vez atingida uma fragmentação mundial, não deixa de
ser natural pensar numa integração mundial. Dante sonhou essa universalidade
do ser consciente para a Humanidade; ele acreditava que os homens não
passariam de uns cacos quebrados até que se unissem ‘numa consciência
inclusiva. O que hoje vemos, no entanto, em lugar de uma consciência social
eletricamente ordenada, é a subconsciência particular ou o “ponto de vista”
individual, impostos, a rigor, pela velha tecnologia mecânica. Este é o resultado
perfeitamente natural do conflito ou “defasagem cultural”, num mundo
suspenso entre duas tecnologias.
O mundo antigo associava, magicamente, o número às propriedades das
coisas físicas e às necessárias causas das coisas, tal como a Ciência, até há
pouco. buscava reduzir todos os objetos a quantidades numéricas. No entanto.
em todas as suas manifestações, o número parece possuir tanto uma
ressonância auditiva e repetitiva quanto uma dimensão tátil.
É a qualidade do número que explica o seu poder de criar um efeito de
ícone ou de imagem comprimida e inclusiva. Assim é ele usado nos registros
dos jornais e revistas: “Ciclista de 12 anos colide com ônibus” ou “Guilherme
Sansão, 51 anos, é o novo Presidente Superintendente da Limpeza.” Pela regra
do polegar, os jornalistas descobriram a força icônica dos números.
Desde Henri Bergson e do grupo de artistas da Bauhaus, para -não falar
de Jung e Freud, os valores não-letrados e até antiletrados do homem tribal em
geral têm merecido estudos e promoções entusiásticas. Para muitos artistas e
intelectuais europeus, o jazz se tornou um dos pontos de encontro em sua
busca da I magem Romântica integral. O entusiasmo acrítico do intelectual
europeu pela cultura tribal transparece na exclamação do arquiteto Le
Corbusier, ao ver Manhattan pela primeira vez: “É hot-jazz em pedra!” Outro
exemplo é o relato de Moholy-Nagy sobre a visita que fez a um clube noturno
de São Francisco, em 1940. Uma banda de negros tocava com animação e
humor. Lá pelas tantas, um dos músicos entoou: Um milhão e três, recebendo
como resposta: Um milhão e sete e meio; um outro então cantou Onze; tendo
como resposta Vinte e Um. E assim, em meio a “risos felizes e cantos
estridentes, os números tomaram conta do local”.
Para os europeus, observa Moholy-Nagy, a América apresenta-se como
uma terra de abstrações, onde os números parecem adquirir existência própria,
como indicam certas expressões: 57 variedades, 5 e 10, 7up, atrás da bola 8. O
número vira como que signo figurativo. Pode ser que isto seja eco de uma
cultura industrial que depende, e muito, de preços, gráficos e números. Veja-se
um caso como este: 90-55-90. Nada melhor, para tornar os números
sensualmente táteis, do que murmurá-los sob a forma mágica da figura
feminina, enquanto as mãos hápticas a moldam no ar.
Baudelaire possuía a intuição certa do número enquanto mão tátil ou
sistema nervoso para inter-relacionar unidades separadas, ao dizer que “o
número está dentro do indivíduo. A embriaguez é um número”. I sto explica
porque “o prazer de estar numa multidão é uma expressão misteriosa da
satisfação na multiplicação dos números.” Vale dizer, que o número não é
apenas auditivo e ressonante, como a palavra falada, mas que se origina do
sentido do tato. do qual é uma extensão. O conjunto estatístico. ou aglomerado
de números, produz os atuais desenhos de cavernas ou pinturas digitais das
tabelas do especialista em estatística. A coleta estatística de números dá ao
homem um novo influxo de intuição primitiva e de conhecimento mágico e
subconsciente relativamente ao gosto e aos sentimentos do público: “Você se
sente mais satisfeito quando usa produtos de marcas conhecidas.”
Tal como o dinheiro, o relógio e outras formas de medida, os números
adquirem uma vida e uma intensidade à parte como aumento da cultura
escrita. É escasso o emprego dos números nas sociedades pré-letradas; hoje, o
computador digital não-letrado substitui os números por simples sim/ não. O
computador é forte em delineamentos gerais, fraco em dígitos. Com efeito, a
era da eletricidade reintegra o número — para o bem ou para o mal — na
experiência visual e auditiva.
A Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, nasceu, em boa parte,
de suas preocupações com a nova matemática. De um lado, as geometrias nãoeuclidianas e, de outro, o advento das funções na teoria dos números, lhe
pareceram prenunciar o fim do homem ocidental. Ele não percebeu que a
invenção do próprio espaço euclidiano resulta diretamente da ação do alfabeto
fonético nos sentidos humanos. E nem se deu conta de que o número é uma
extensão do corpo físico do homem, uma extensão do nosso sentido do tato. O
"infinito do processo das funções”, no qual, melancolicamente, Spengler via
dissolverem-se a Geometria e o número tradicionais, é, também, uma extensão
de nosso sistema nervoso central nas tecnologias elétricas. Não é o caso de
sermos gratos a escritores apocalípticos, como Spengler. que encaram nossas
tecnologias como visitantes cósmicos dos espaços exteriores. Os Spenglers são
homens tribalmente em transe, que anseiam pelo retorno do inconsciente
coletivo e pela embriaguez do número. Na Í ndia, a idéia de darshan — a
experiência mística de estar em enormes aglomerações — situa-se no extremo
oposto do espectro da idéia ocidental dos vaI ares conscientes.
As mais primitivas tribos da Austrália e da África, assim como os
esquimós de hoje, ainda não chegaram à contagem pelos dedos, nem possuem
números em série. Dispõem de um sistema binário de números independentes
indicativos do um e do dois, com números compostos até seis. Depois de seis,
apenas percebem “montes”. Não possuindo o senso da série, dificilmente
percebem quando dois alfinetes são retirados de uma fileira de sete. Mas logo
se dão conta da falta de um alfinete. Tobias Dantzig, que estudou este assunto,
diz, em sua obra, Number: The Language of Science (“Número: A Linguagem
da Ciência”), que a paridade, ou senso sinestésico, é mais forte do que o senso
numérico nesses povos. I sto certamente indica que, quando o número surge
numa cultura, desenvolve-se o seu sentido visual. Uma cultura tribal
intimamente integrada não se submeterá facilmente à pressão separatista e
individualista do visual, que leva à divisão do trabalho e a certas formas
aceleradas, como a escrita e o dinheiro. Se o homem ocidental estivesse
realmente disposto a não abrir mão de seus padrões fragmentados e
individualistas, derivados da palavra impressa, em particular, teria de apagar de
sua vida toda a sua tecnologia elétrica, desde o telégrafo. O caráter implosivo
(compressivo) da tecnologia elétrica faz girar para trás o disco ou o filme do
homem ocidental, rumo ao núcleo da escuridão tribal — a que Joseph Conrad
chamou de “África interior”. O caráter instantâneo do movimento informacional
elétrico não aumenta e sim envolve a família do homem num estado coesivo de
vida aldeã.
Parece contraditório que o poder de fragmentação e divisão de nosso
analítico mundo ocidental derive de uma acentuação da faculdade visual. Este
mesmo senso visual é igualmente responsável pelo nosso hábito de ver todas
as coisas como se fossem contínuas e interligadas. A fragmentação pela ênfase
visual ocorre naquele isolamento de um momento no tempo, ou de um aspecto
do espaço. situados além do alcance do tato, da audição. do olfato ou do
movimento. Com a implosão de relações não visualizáveis. fruto da velocidade
instantânea, a tecnologia elétrica destrona o sentido visual e nos restaura no
domínio da sinestesia e do interenvolvimento íntimo dos demais sentidos.
Spengler mergulhou no Pântano do Desalento, ao ver o homem ocidental
retirar-se da magnitude Numérica para a Terra Encantada das Funções e das
relações abstratas. “A coisa mais importante da Matemática clássica” — escreve
— “é a sua proposição de que o número é a essência de todas as coisas
perceptíveis aos sentidos. Definindo o número como medida, ela contém todo o
sentimento do mundo de uma alma apaixonadamente devotada ao “aqui e
“agora”. Neste sentido, medir é medir algo próximo e corpóreo.”
O extático homem tribal transparece em cada página de Spengler. Nunca
lhe ocorreu que a ratio entre as coisas corpóreas não pode ser senão racional.
Ou seja. a racionalidade ou consciência é, em si mesma, uma ratio ou
proporção entre os componentes sensórios da experiência, e não algo que se
acrescenta a esta experiência. Os seres sub-racionais não têm meios de
alcançar essa ratio ou proporção na vida de seus sentidos, imas estão como
que codificados para comprimentos fixos de onda, possuindo infalibilidade
apenas em sua própria área de experiência. Complexa e sutil, a consciência
pode ser debilitada ou destruída pela simples aceleração ou desaceleração da
intensidade de um único sentido, tal como acontece na hipnose. E a
intensificação de um único sentido por um único meio pode hipnotizar uma
comunidade inteira. Assim, Spengler proclamou a queda do Ocidente, ao
pensar que estava assistindo ao abandono das relações e construções visuais,
na Ciência e na Matemática, em favor de uma teoria não-visual das relações e
das funções.
Tivesse Spengler se empenhado em descobrir as origens do número e do
espaço euclidiano nos efeitos psicológicos do alfabeto fonético, e A Decadência
do Ocidente não teria sido escrita. Esta obra se baseia na premissa de que o
homem clássico e apolíneo não era produto das tendências tecnológicas da
cultura grega (a saber, o impacto primordial da escrita sobre a sociedade
tribal), mas antes o resultado de uma vibração especial da alma que se
aninhava no seio do mundo grego. É um bom exemplo de quão facilmente os
homens de uma cultura particular entram em pânico quando as balizas e
padrões que lhes são familiares são deslocadas ou borradas pela pressão
indireta dos novos meios. Spengler, como Hitler, a partir do rádio, investiu-se
no mandato de proclamar o fim de todos os valores “racionais" ou visuais.
Estava agindo como Pip, nas Grandes Esperanças, de Dickens. Pip era um
menino pobre, cujo benfeitor anônimo desejava elevá-lo ao status de um
cavalheiro. Pip assim o desejava e a isso se dispunha, quando descobriu que o
seu benfeitor era um condenado foragido. Spengler, Hitler e muitos outros
assim chamados “irracionalistas” de nosso tempo são como os mensageiros de
telegramas, que cantam a sua mensagem candidamente ignorantes sobre o
meio que fornece a canção que cantam.
Voltando ,a Tobias Dantzig e ao seu Número: A Linguagem da Ciência,
vemos que o progresso que vai do tateio dos dedos “ao conceito numérico
homogêneo. que tornou a Matemática possível” é o resultado de uma abstração
visual em relação à operação da manipulação tátil. Em nossa conversação
diária, podemos observar os extremos desse processo. No gangsterismo, a
expressão “pôr as mãos em” indica que a ficha ou “número” de alguém veio a
furo. Nos perfis dos gráficos estatísticos vê-se francamente expressa a
manipulação do público para toda a sorte de manobras que visem ao poder.
Por exemplo, nos escritórios dos grandes corretores de títulos, há um médico
moderno conhecido por “Dr. Avulsos”. Sua função mágica é a de. estudar as
compras e vendas diárias efetuadas pelos pequenos investidores nos grandes
negócios. A experiência revela que esses pequenos investidores erram em 80%
dos casos. Um traçado estatístico do fracasso do “homenzinho a ser procurado”
assegura aos grandes operadores uma certeza de cerca de 80% . Desta forma,
do erro nasce a verdade, e da pobreza, a riqueza — graças aos números. Esta é
a moderna mágica dos números. A atitude mais primitiva ante o mágico poder
dos números vem ilustrada pelo pavor que assaltou os ingleses quando
Guilherme, o Conquistador. os recenseou, juntamente com seus bens móveis,
registrando tudo num livro que o povo batizou de Livro do Juízo Final.
Retornando, uma vez mais, e brevemente, à questão do número em sua
manifestação mais limitada, e tendo antes esclarecido que a idéia de
homogeneidade tinha de preceder a elevação dos números primitivos ao nível
da Matemática, Dantzig assinala um outro fator escrito e visual na velha
Matemática. “Correspondência e sucessão, os dois princípios inerentes a toda
Matemática — antes, a todos os reinos do pensamento exato — se entretecem
no próprio estofo de nosso sistema numérico” — observa Dantzig. Assim
também estão eles presentes na própria trama da lógica e da filosofia
ocidentais. Já vimos como a tecnologia fonética gerou a continuidade visual e o
ponto de vista individual e como estes elementos contribuíram para o
surgimento do espaço euclidiano. Dantzig declara que a idéia de
correspondência é que nos da os números cardeais. Ambas essas idéias
espaciais — linearidade e ponto de vista —surgem com a escrita, especialmente
com a escrita fonética. mas nenhuma delas é necessária à nova Física ou à
nova Matemática. E a escrita também não é necessária à tecnologia elétrica. É
claro que a escrita e a aritmética convencional continuarão a ser da maior
utilidade para o homem. apesar de tudo. Mesmo Einstein não podia encarar a
nova física quântica com tranqüilidade. Newtoniano demais visual para a nova
tarefa, dizia que os quanta não podiam ser manipulados matematicamente. É o
mesmo que dizer que a poesia não pode ser adequadamente traduzida em
forma puramente visual na página impressa.
Dantzig desenvolve suas observações sobre o número dizendo que a
população alfabetizada logo abandona o ábaco e a enumeração digital, embora
os manuais de aritmética do Renascimento ainda contivessem regras para o
cálculo manual. Pode ser verdade que os números tenham precedido a
alfabetização em algumas culturas, mas assim também a pressão visual
precede a escrita. A escrita é apenas a principal manifestação da extensão de
nosso sentido visual, como bem nos lembram a fotografia e o cinema. E bem
antes da tecnologia da escrita, os fatores binários das mãos e pés já eram
suficientes para impulsionar o homem nos caminhos da contagem. O
matemático Leibniz chegou mesmo a ver uma imagem da Criação na mística
elegância do sistema binário do zero e um. A unidade do Ser Supremo
operando no vácuo mediante uma função binária bastaria para extrair do caos
todas as coisas.
Dantzig ainda nos recorda que nos tempos do manuscrito havia uma
caótica variedade de signos para os numerais, a forma estável só sendo
atingida após a invenção da imprensa. Embora este seja um dos menores
efeitos culturais decorrentes da imprensa, ele serve para lembrar-nos de que
um dos fatores mais importantes que influíram sobre os gregos em sua adoção
das letras do alfabeto fonético foi o prestígio e a aceitação do sistema numérico
dos negociantes fenícios. Os romanos adotaram as letras fenícias através dos
gregos, mas mantiveram um sistema numérico bem mais antigo. Os cômicos
Wayne e Shuster nunca falham em fazer rir o público ao alinharem um grupo
de antigos policiais romanos, vestindo togas e declinando seus números, em
algarismos romanos, da esquerda para a direita. Esta piada demonstra como a
pressão dos números obrigou os homens a buscarem métodos de numeração
sempre mais fluentes. Antes do advento dos números ordinais, sucessivos ou
posicionais, os chefes tinham de contar grandes corpos de tropa por métodos
de deslocamento. Em certos casos, eram agrupados em espaços de áreas
aproximadamente conhecidas. O método de fazer os soldados marcharem em
fila e depositarem pedra em recipientes não está afastado do ábaco e da tábua
de somar. Com o tempo, o método da tábua de somar levou à grande
descoberta do principio posicional nos primeiros séculos de nossa era.
Simplesmente colocando na tábua, um após outro, 3, 4 e 2, foi possível
aumentar de maneira fantástica a velocidade e o potencial do cálculo. A
descoberta do cálculo por números posicionais e não por números
simplesmente aditivos conduziu também à descoberta do zero. O simples
posicionamento do 3 e do 2 na tábua podia gerar ambigüidade: 32 ou 302?
Tornava-se necessário um sinal para indicar os vazios entre os números. Só no
século XI I I é que a palavra árabe sifr (“vazio”, "lacuna”) foi latinizada e incluída
em nossa cultura como cifra (ziphirum) transformando-se no zero italiano. O
zero realmente significava uma lacuna posicional. Só viria a adquirir a
indispensável qualidade de “infinito” com a criação da perspectiva do “ponto de
fuga”, na pintura do Renascimento. O novo espaço visual da pintura
renascentista afetou o número tanto quanto o fizera a linearidade de séculos
antes.
Com a ligação entre o zero posicional medieval e o ponto de fuga da
Renascença, chega-se a um fato importante sobre os números. O ponto de
fuga e o infinito eram desconhecidos nas culturas grega e romana, como se
fossem subprodutos da alfabetização. Foi só quando a imprensa prolongou a
faculdade visual a um ponto de alta precisão, uniformidade e intensidade, é que
os demais sentidos, puderam ser contidos ou rebaixados o suficiente para criar
a nova consciência do infinito. Tomado como um aspecto da perspectiva e da
imprensa, o infinito matemático ou numérico serve para ilustrar como as nossas
várias extensões físicas, ou meios, atuam uma sobre as outras através do
agenciamento de nossos próprios sentidos. E é sob esta luz que o homem
aparece como o órgão reprodutor do mundo tecnológico, um fato que Samuel
Butler já anunciara em Erewhon, de maneira pitoresca.
O efeito de qualquer espécie de tecnologia engendra em nós um novo
equilíbrio, que, por sua vez, gera novas tecnologias, como acabamos de ver na
interação do número (formas tátil e quantitativa) com as formas mais abstratas
da cultura visual e escrita. A tecnologia da imprensa transformou o zero
medieval no infinito do Renascimento, não apenas por convergência —
perspectiva e ponto de fuga — mas pelo fato de introduzir, pela primeira vez na
história humana, um fator de repetibilidade exata. A imprensa deu ao homem o
conceito da repetição indefinida, necessária ao conceito matemático de infinito.
Este mesmo fato gutenberguiano das unidades uniformes, contínuas e
repetíveis indefinidamente inspirou também o conceito relacionado do cálculo
infinitesimal, pelo qual se tornou possível traduzir qualquer espécie de espaço
elusivo em termos do reto, do plano, do uniforme e do “racional”. Este conceito
de infinito não nos foi imposto pela lógica. Foi um presente de Gutenberg. E
assim foi mais tarde, na linha de montagem industrial, O poder de traduzir
conhecimentos em produção mecânica, mediante o parcelamento de qualquer
processo em aspectos fragmentados dispostos em seqüência linear de partes
móveis e uniformes, constitui a essência formal da imprensa. Esta espantosa
técnica de análise espacial, duplicando-se a si mesma, numa espécie de eco,
invadiu o mundo dos números e do tato.
Embora não reconhecido, aqui temos mais um exemplo familiar da
capacidade de um determinado meio de traduzir-se em outro meio. Uma vez
que todos os meios não são senão extensões de nosso corpo e de nossos
sentidos, e assim como habitualmente traduzimos uni sentido em outro, em
nossa experiência diária, não deve surpreender-nos o fato de os nossos
sentidos prolongados, ou tecnologias, repetirem o processo da tradução e
assimilação de uma forma por outra. Pode bem dar-se que esse processo seja
inseparável da natureza do tato e da abrasiva ação interfacial das superfícies,
seja na Química, nas multidões ou nas tecnologias. A misteriosa necessidade
que sentem as massas de crescer e superar, igualmente característica das
grandes acumulações de riqueza, pode ser entendida se o dinheiro e os
números forem realmente tecnologias que prolongam o poder do tato e o
aperto de mão. Quer se refiram a gente ou a dígitos, os números e as unidades
monetárias parecem possuir a mesma magia fática no sentido do agarrar e do
incorporar.
Os gregos chocaram-se com o problema de traduzir seus meios novos e
próprios quando tentaram aplicar a aritmética racional a um problema
geométrico. Ergueram-se os espectros de Aquiles e da tartaruga. Essas
tentativas redundaram na primeira crise da história da matemática ocidental.
Era uma crise referente ao problema de determinar a diagonal de um quadrado
e a circunferência de um círculo: um caso claro de número — sentido táctil —
tentando dar conta de um espaço visual e pictórico pela redução do espaço
visual a si mesmo.
Para o Renascimento, foi o cálculo infinitesimal que sobrepôs a aritmética
mecânica à Física e à Geometria. A idéia de um processo infinito, mas contínuo
e uniforme. fundamental para a tecnologia dos tipos móveis de Gutenberg, deu
nascimento ao cálculo. Elimine-se o processo do infinito, e a Matemática, tanto
pura como aplicada, fica reduzida ao estado em que a conheceram os prépitagóricos. Vale dizer, elimine-se o novo meio da imprensa, com sua tecnologia
fragmentária da repetibilidade uniforme e linear. e a matemática moderna
desaparece. Aplique-se, porém esse processo infinito e uniforme à procura do
comprimento de um arco, e tudo o que se requer é inscrever no arco uma
seqüência de contornos retilíneos de um número de lados sempre crescente.
Quando estes contornos se aproximam de um limite, o comprimento do arco se
torna o limite dessa seqüência. O velho método de determinar volumes pelo
deslocamento líquido traduz-se, graças ao cálculo, em termos visuais abstratos.
Os princípios relativos ao conceito de comprimento se aplicam também às
noções de área, volume, massa, momento, pressão, tensão e esforço,
velocidade e aceleração.
Fazedora de milagres, a simples função do infinitamente fragmentário e
repetível se tornou o meio de transformar tudo o que era não-visual em pianos,
retas e uniformidades visuais: o oblíquo, o curvo e o protuberante. Da mesma
maneira, séculos antes, o alfabeto fonético invadira as culturas descontínuas
dos bárbaros, traduzindo suas sinuosidades e obtusidades nas uniformidades da
cultura visual do mundo ocidental. É esta ordem de idéias — uniformes, ligadas
e visuais — que ainda hoje temos por norma do viver “racional”. Na era da
eletricidade, das formas de inter-relação instantânea e não-visual, passamos a
encontrar, pois, a maior dificuldade em definir o “racional”, se mais não fosse
pelo simples fato de nunca havermos percebido de onde nasceu.
12. VESTUÁRI O
EXTENSÃO DE NOSSA PELE
Alguns economistas estimam que uma sociedade despida come 40%
mais do que uma sociedade em roupas ocidentais. Extensão de nossa pele, a
roupa ajuda a armazenar e canalizar energia, e, se o ocidental precisa de
menos comida, precisa também de mais sexo. Mas nem o sexo nem o vestuário
podem ser entendidos como fatores separados e isolados; muitos sociólogos
têm observado que o sexo pode tomar-se uma compensação para a vida em
aglomerações... A intimidade, como o individualismo, é dos. conhecida das
sociedades tribais, coisa que os ocidentais precisam ter em mente todas as
vezes que falam em atrações de nosso modo de vida para os povos nãoletrados.
O vestuário, como extensão da pele, pode ser visto como um mecanismo
de controle térmico e como um meio de definição do ser social. Nisto, o
vestuário e a habitação são parentes próximos, quase gêmeos, embora a roupa
seja o mais próximo e o mais velho. A habitação prolonga os mecanismos
internos de controle térmico de nosso organismo, enquanto a roupa é uma
extensão mais direta da superfície externa de nosso corpo. Hoje, os europeus
começam a vestir-se para o olho, no estilo americano, justo no momento em
que os americanos começam a abandonar seu tradicional estilo visual. O
analista dos meios sabe por que esses estilos opostos como que subitamente
começam a trocar de lugar. Desde a Segunda Guerra Mundial. os europeus vêm
sublinhando os valores visuais, e não é coincidência se a sua economia agora
se volta para os bens uniformes de consumo em larga escala. De sua parte, e
pela primeira vez, os americanos começam a rebelar-se contra os bens de
consumo uniformes. Nos carros, nas roupas. nos livros de capa mole; nas
barbas, nos bebês e nos penteados em colmeia, o americano agora se
pronuncia em favor do tato, da participação, do envolvimento e dos valores
escultóricos. A América, um tempo a terra da ordem visual abstrata, de novo e
profundamente volta ao contato das tradições européias da vida, da
alimentação, e da arte. O que antes foi programa de vanguarda para os
expatriados da década de 20, hoje se converte em norma para os adolescentes.
No entanto, os europeus haviam sofrido uma espécie de revolução do
consumo, nos fins do século XVI I I . Quando o industrialismo era novidade, era
“bem” entre as classes superiores abandonar as ricas roupagens de salão em
favor de materiais mais simples. Foi a época em que os homens, pela primeira
vez, começaram a usar as calças do soldado comum da infantaria (pionnier,
pioneiro, na acepção francesa primitiva), embora o fizessem como uma espécie
de gesto atrevido de “integração” social. Até então, o sistema feudal levara as
classes superiores a vestirem-se como falavam, num estilo cortês bastante
distanciado dos usos populares. A roupagem e a conversação se combinavam
num mesmo nível de esplendor e riqueza de texturas, mais tarde eliminados
completamente, com a alfabetização universal e a produção em massa. A
máquina de costura, por exemplo, criou a linha longa e reta nas roupas, assim
como o linotipo aplanou o estilo vocal do homem.
Um anúncio recente dos Serviços de Computadores C-E-I -R apresentava
um simples vestido de algodão, com o título: “Por que a Sra. K. se veste desse
jeito?” (referindo-se à esposa de Nikita Kruchev). O texto desse anúncio
bastante engenhoso dizia: “Trata-se de um ícone.” Para as suas próprias
populações ainda atrasadas e para os não alinhados do Oriente e do Sul, ele
diz: “Nós somos sóbrios, simples, honestos, pacíficos, caseiros, bons." Para as
nações livres do Ocidente, ele diz: “Nós os enterraremos.”
Esta é exatamente a mensagem que o vestuário simples, e novo, de
nossos ancestrais, levava às classes feudais dos tempos da Revolução Francesa.
A roupa era um manifesto não-verbal de subversão política.
Na América de hoje há uma atitude revolucionária, que se expressa em
nossas roupas, em nossos pátios, em nossos carros compactos. De uma década
a esta parte. os vestidos e os penteados das mulheres vêm abandonando o
acento visual pelo acento icônico — tátil e escultórico. Como as calças de
toureiro e as meias três-quartos, o penteado-colmeia também é icônico e
sensualmente inclusivo, em lugar de abstrato e visual. Numa palavra, pela
primeira vez a mulher americana se apresenta como uma pessoa a ser tocada e
manipulada, e não simplesmente olhada. Enquanto os russos tateiam
vagamente em busca dos valores visuais de consumo, os norte-americanos vão
jovialmente desfrutando os recém-descobertos espaços escultóricos e táteis —
nos carros, nas roupas e nas casas. Por esta razão é-nos relativamente fácil
reconhecer no vestuário uma extensão da pele. Na era do biquíni e da caça
submarina, começamos a compreender que "o castelo da pele” possui um
espaço e um mundo próprios. Foram-se as excitações do strip-tease. A nudez
só era excitante e picante para uma cultura visual divorciada dos valores
audiotácteis de sociedades menos abstratas. Até 1930, chocavam os palavrões
visualizados na página impressa. Palavras que a maioria usa a toda hora
tomavam-se escandalosas como a nudez, quando impressas. Muitos palavrões
são carregados de acentos táteis e envolventes. É por isso que parecem tão
grosseiros e fortes ao homem visual. Para as culturas ainda envolvidas pela
gama completa da vida sensória, isentas da abstração provocada pela escrita e
pela ordem visual e industrial, a nudez é simplesmente patética. O Relatório
Kinsey sobre a vida sexual dos homens revela perplexidade ante o fato de os
camponeses e as pessoas atrasadas não apreciarem a nudez conjugal ou na
alcova. Kruchev não gostou do cancã que lhe ofereceram- como diversão em
Hollywood. Claro que não. Essa espécie de mímica do envolvimento sensorial só
tem sentido para as sociedades letradas há muito. As pessoas atrasadas
encaram a nudez, se tanto, com a mesma atitude que esperamos de nossos
pintores e escultores — a atitude que envolve todos os sentidos de uma vez.
Para uma pessoa que utiliza todo o seu complexo sensório. a nudez é a mais
rica das expressões possíveis da forma estrutural. Mas para a sensibilidade
altamente visual e retorcida das sociedades industriais, a súbita confrontação
com a carne tátil é, de fato, música inebriante.
Hoje há um movimento em direção a um novo equilíbrio, como podemos
perceber pela preferência pelas texturas pesadas e grosseiras e pelas formas
esculturais do vestuário. Vemos também a exposição ritualística do corpo.
dentro e fora de casa. Os psicólogos há muito nos ensinaram que boa parte de
nossa audição se faz através da própria pele. Depois de séculos de roupa até os
dentes e de contenção num espaço visual uniforme, a era da eletricidade nos
introduz num mundo em que vivemos, respiramos e ouvimos com toda a
epiderme. Claro que há muito sabor de novidade neste culto; o equilíbrio entre
os sentidos deixará pelo caminho uma boa parte do novo ritual, tanto no
vestuário como na habitação. Enquanto isso, nas novas roupas e moradias, a
nossa sensibilidade unificada se diverte em meio às mais variadas sortes de
consciência de materiais e cores, o que faz com que a nossa era seja uma das
maiores da História — em Música, Poesia, Pintura e Arquitetura.
13. HABI TAÇÃO
“NEW LOOK" E NOVA VI SÃO
Se a roupa é uma extensão da pele para guardar e distribuir nosso
próprio calor e energia, a habitação é um meio coletivo de atingir o mesmo fim
— para a família ou o grupo. Como abrigo, a habitação é uma extensão dos
mecanismos corporais de controle térmico — uma pele ou roupa coletiva. As
cidades são extensões ainda mais amplas dos órgãos corpóreos, visando a
atender às necessidades dos grandes grupos. Os leitores do Ulysses se
lembram como James Joyce estabeleceu correspondências entre as várias
formas da cidade — muros, ruas, edifícios e meios — com os diversos órgãos
do corpo. Este paralelo entre a cidade e o corpo humano permitiu a Joyce
estabelecer um paralelo suplementar entre a antiga !taca e a moderna Dublin.
criando um sentido em profundidade da unidade humana que transcende a
História.
Originariamente, Baudelaire pensou em chamar de Les Limbes suas
Flores do Mal, tendo em mente as cidades como extensões corporativas ou
coletivas de nossos órgãos físicos. [ 1. Parece-nos que, aqui, McLuhan foi vítima
de um hipnotismo verbal: Les Limbes dificilmente poderia referir-se aos
membros do corpo humano (libs, em inglês), e sim a Os Limbos da teoria cristã.
Estaria dentro de seu estilo paronomástico e das flores malévolas de
Baudelaire, associar Les Limbes aos limbos das folhas e pétalas — mas esta
associação não nos parece calhar no presente caso (N. do T.).] .
Baudelaire considerava florescências do mal os nossos auto-abandonos e
auto-alienações destinados a ampliar ou aumentar o poder das várias funções.
Como amplificação do empenho luxurioso e sensual dos homens, para ele a
cidade possuía uma completa unidade orgânica e psíquica.
O homem letrado e civilizado tende a restringir o espaço e separar as
funções, enquanto o homem tribal livremente projeta a forma de seu corpo
para abranger o Universo. Agindo como um órgão do cosmos, o homem tribal
aceitou as funções corpóreas como modo de participação nos poderes divinos.
O corpo humano, no pensamento religioso dos índios, era ritualmente
relacionado à imagem cósmica, e esta se assimilava em forma de habitação.
Para o homem tribal e para as sociedades não-letradas, a moradia era uma
imagem tanto do corpo quanto do Universo. A construção da casa, com sua
lareira e seu fogo-lar. estava ritualmente associada ao ato da criação. Este
mesmo ritual estava mais profundamente ainda alicerçado na construção da
cidade antiga, cuja configuração e processo haviam sido deliberadamente
modelados como um ato de louvor divino. No mundo tribal (como na China e
na Í ndia de hoje), a cidade e o lar podem ser aceitos como encarnações
icônicas do verbo, do mythos divino, aspiração universal. Mesmo em nossa era
elétrica, muita gente anseia por esta estratégia inclusiva de conquistar
significação para os seus próprios seres particulares e isolados.
Tendo aceitado uma tecnologia analítica da fragmentação, o homem
letrado não encontra acesso às estruturas cósmicas tão facilmente quanto o
homem tribal. Prefere os espaços separados e compartimentados ao cosmos
aberto. Está menos inclinado a aceitar seu corpo como modelo do Universo, ou
a ver a sua casa — ou qualquer outro meio de comunicação — como uma
extensão ritual de seu próprio corpo. Uma vez adotada a dinâmica visual do
alfabeto fonético, começa a perder a obsessão com o ritual e com a ordem
cósmica, recorrentes nos órgãos físicos e em suas extensões visuais. Mas a
indiferença ao cósmico engendra uma intensa concentração em tarefas miúdas,
segmentadas e especializadas, força exclusiva do homem ocidental. Especialista
é aquele que nunca comete pequenos erros rumo à grande ilusão.
O homem vive em casas circulares, até que se torna sedentário e
especializado na organização de seu trabalho. Os antropólogos constantemente
observam essa mudança. sem lhe conhecerem a causa. O analista de meios
pode ajudar o antropólogo nesta matéria, embora a explicação possa não
parecer óbvia às. pessoas de cultura visual. Da mesma maneira, o visualista
não pode ver muita diferença entre o cinema e a TV ou entre um Corvair e um
Volkswagen, pois a diferença não reside entre dois espaços visuais, mas entre
um espaço tátil e um espaço visual. Uma tenda ou uma cabana de índios não
são espaços fechados ou visuais; tampouco uma caverna ou um buraco na
terra. Estas espécies de espaço — tenda, cabana, iglu, caverna — não são
“fechadas” no sentido visual porque seguem linhas de força dinâmicas, como
um triângulo. Quando fechada, ou traduzida em espaço visual, a Arquitetura
tende a perder sua pressão cinética tátil. Um quadrado é o fechamento de um
espaço visual; ou seja, ele consiste de propriedades especiais abstraídas de
tensões manifestas. Um triângulo segue linhas de força, pois este é o meio
mais econômico de manter um objeto vertical. Um quadrado vai além dessas
pressões cinéticas, para encerrar relações espaço-visuais, embora dependendo
de apoios diagonais. Esta separação entre a pressão visual e as pressões táteis,
diretas e cinéticas, e a sua tradução em novos espaços habitacionais, somente
ocorrem depois que’ os homens aprendem a praticar a especialização de seus
sentidos e a fragmentação de suas habilidades de trabalho. A casa ou o quarto
quadrado falam a linguagem do especialista sedentário, enquanto que a cabana
e o iglu redondos, assim como a tenda cônica, falam dos hábitos nômades
integrativos das comunidades empenhadas na busca de víveres.
Toda esta discussão corre um grande risco de má compreensão, porque
estes assuntos são altamente técnicos — espacialmente falando. Todavia,
quando estes espaços são compreendidos, eles fornecem a chave para muitos e
importantes enigmas. passados e presentes. Explicam a mudança da
arquitetura de cúpula circular para as formas góticas, mudança esta ocasionada
pela alteração da ratio ou proporção na vida sensória dos membros da
comunidade. Este deslocamento ocorre com a extensão do corpo em novas
invenções e tecnologias sociais. Uma nova extensão estabelece um novo
equilíbrio entre todos os sentidos e faculdades. de modo a conduzir a uma
“nova visão” — novas atitudes e preferências em muitas áreas.
Nos termos mais simples, como já ficou dito, a habitação é um esforço
destinado a prolongar ou projetar o mecanismo de controle térmico do corpo. O
vestuário
ataca
o
problema
mais
diretamente,
porém
menos
fundamentalmente, em caráter privado mais do que social. Mas tanto uma
como outro armazenam calor e energia, tornando-os acessíveis para a
execução de muitas tarefas, que seriam impossíveis de outra forma. Provendo
de calor e energia a sociedade, a família ou o grupo, a habitação engendra
novas habilidades e novo aprendizado, desempenhando as funções básicas de
todos os outros meios. O controle térmico é um fator-chave na habitação e no
vestuário. A moradia do esquimó é um bom exemplo. O esquimó pode suportar
dias sem comer, a 18º C abaixo de zero; desprovido de alimentos, o nativo sem
roupas morre em poucas horas.
Pode surpreender a muitos saber que a forma primitiva do iglu pode ser
rastreada até o aparecimento do fogão. Os esquimós viveram durante séculos
— e. em parte, ainda vivem — em casas circulares de pedra. O iglu de blocos
de gelo é um desenvolvimento bem recente na vida dessa gente da idade da
pedra. Estas estruturas só se tornaram possíveis com a chegada do homem
branco e seu fogão portátil. melhor, seu fogareiro. O iglu é um abrigo efêmero,
destinado ao uso temporário dos caçadores. O esquimó tornou-se caçador só
depois de haver entrado em contato com o homem branco; até então, fora
simplesmente um apanhador de alimentos. O iglu ilustra o modo pelo qual uma
nova estrutura é introduzida em antigos padrões de vida pela intensificação de
um único fator — o calor artificial. neste caso. Do mesmo modo a intensificação
de um único fator no complexo de nossas vidas conduz a novas relações entre
as nossas faculdades tecnologicamente prolongadas, daí resultando um new
look e uma nova visão, com suas novas invenções e motivações.
No século XX, já estamos familiarizados com as mudanças introduzidas
na habitação e na Arquitetura pela aplicação da energia elétrica aos elevadores.
A mesma energia aplicada à iluminação alterou ainda mais radicalmente os
nossos espaços de vida e de trabalho. Aboliu a divisão entre noite e dia, entre o
interno e o externo, entre o subterrâneo e o terrestre. Alterou todas as
considerações espaciais para o trabalho e a produção, assim como os outros
meios elétricos alteraram a experiência espaço-temporal da sociedade. Tudo
isto é bastante familiar. Menos familiar é a revolução arquitetônica provocada
pelos melhoramentos da calefação há séculos atrás. Com a mineração de
carvão em larga escala, durante o Renascimento, os habitantes dos climas mais
frios descobriram novas fontes de energia pessoal. Os novos meios de
aquecimento permitiram a manufatura do vidro, o aumento dos aposentos e a
elevação dos tetos. A casa do burguês renascentista tornou-se, a um só tempo,
dormitório, cozinha, oficina e venda. Uma vez que se tenha a habitação como
um vestuário grupai de controle térmico, os novos meios de aquecimento
podem ser compreendidos como causadores de mudança na forma espacial.
Mas a iluminação é quase tão decisiva quanto o aquecimento nas mudanças
dos espaços arquitetônicos e urbanos. Esta é a razão por que a história do vidro
está tão intimamente relacionada com a história da habitação. A história do
espelho é um capitulo importante da história da roupa, das maneiras e do
senso de si próprio.
Recentemente, um imaginoso professor de uma escola de favela deu a
cada aluno uma fotografia de si próprio; as classes foram largamente
decoradas com grandes espelhos. O resultado foi um surpreendente aumento
no rendimento do ensino. A criança da favela, em geral, tem pouca orientação
visual. Não vê a si mesma como alguém que possa “ser alguém”. Não
descortina metas e objetives distantes. Profundamente envolvida no seu
mundinho do dia-a-dia, não consegue estabelecer cabeças de ponte para a vida
altamente especializada do homem visual. Através da imagem da televisão, a
condição da criança favelada vai-se projetando mais e mais a toda a população.
O vestuário e a habitação, como extensões da pele e dos mecanismos de
controle térmico, são meios de comunicação — antes de mais nada — porque
moldam e recombinam as estruturas da associação e da comunidade humanas.
As várias técnicas de iluminação e aquecimento não parecem senão dar maior
flexibilidade e alcance ao que já é princípio básico na roupa e na casa — a
saber, a extensão dos mecanismos de contrOle térmico de nosso corpo, de
modo a permitir-nos atingir um certo grau de equilíbrio num ambiente
cambiante.
A engenharia moderna pode produzir meios habitacionais que vão desde
a cápsula espacial até paredes formadas por jatos de ar. Algumas firmas se
estão especializando em grandes construções com paredes e pisos removíveis.
É uma flexibilidade que tende naturalmente para o orgânico. A sensitividade
humana parece uma vez mais harmonizar-se com as correntes universais que
fizeram do homem tribal um mergulhador cósmico.
Não é apenas o Ulysses, de Joyce, que dá testemunho desta tendência.
Estudos recentes sobre as igrejas góticas acentuam as aspirações orgânicas de
seus construtores. Os santos viam seriamente o corpo como o vestuário
simbólico do espírito e encaravam a I greja como um segundo corpo. cuidando
de todos os seus detalhes com o maior apuro. James Joyce forneceu esta
imagem detalhada da metrópole como um segundo corpo e Baudelaire um
“diálogo” semelhante entre as partes do corpo projetadas às formas da cidade,
em suas Flores do Mal.
A luz elétrica trouxe ao complexo cultural da habitação e da cidade como
extensões do homem, uma flexibilidade orgânica desconhecida. Se as fotos em
cores criaram os “museus sem paredes”, a iluminação elétrica criou espaços
sem paredes, e dia sem noite. Na cidade, na estrada ou no jogo de futebol
noturnos, desenhar e escrever com luz saíram do domínio da fotografia
pictórica para os espaços vivos e dinâmicos criados pela iluminação externa.
As vidraças eram luxos desconhecidos, em eras não muito remotas. O
controle da luz pelo vidro forneceu os meios de controlar a regularidade da vida
doméstica, permitindo a dedicação continuada a ofícios e comércios, livre do
frio e da chuva. O mundo foi colocado numa moldura. Com a luz elétrica, não
apenas podemos levar a cabo as mais delicadas operações, sem maiores
preocupações com o tempo, o lugar ou o clima, como podemos fotografar o
submicroscópico tão facilmente quanto penetrar no mundo subterrâneo das
minas e dos pintores das cavernas.
A iluminação como extensão de nossas energias é uru dos exemplos
mais nítidos de como essas extensões alteram a nossa percepção. Quem ainda
se sinta inclinado a duvidar que a roda, a fotografia ou o avião alteram nossos
hábitos de percepção sensível, não pode mais duvidar ante a iluminação
elétrica. Neste domínio, o meio e a mensagem, e, quando a luz está ligada, há
um mundo sensório que desaparece quando a luz está desligada.
“Pintar com luz” faz parte do jargão do mundo da eletricidade do palco.
No carro, no cinema, ou no microscópio, os usos da luz no mundo do
movimento são tão diversos quanto os usos da eletricidade no mundo da
energia. A luz é informação sem “conteúdo”, como o foguete é um veículo sem
os acessórios da roda ou da estrada. Assim como um foguete é um sistema de
transporte autônomo que consome tanto o seu combustível como o seu motor.
assim a luz é um sistema de comunicação autônomo, no qual o meio é a
mensagem.
Os recentes aperfeiçoamentos do raio laser trouxeram novas
possibilidades para a luz. O raio laser é uma amplificação da luz mediante
radiação intensificada. A concentração da energia radiante desvendou novas
propriedades da luz. O raio laser como que torna a luz espessa, permitindo que
ela seja modulada para transmitir informação, como o fazem as ondas
hertzianas. Mas devido a sua grande intensidade, um simples raio laser pode
transportar a informação de todos os canais de rádio e televisão reunidos dos
Estados Unidos. Estes raios escapam ao alcance da visão e, no futuro, podem
servir de mortíferos agentes militares.
Visto do ar, à noite, o caos aparente da área urbana se traduz num
rendilhado delicado sobre um chão de veludo. Gyorgy Kepes desenvolveu esses
efeitos aéreos da cidade noturna transformando-os numa nova forma artística
— uma “paisagem-luz” mais do que uma “paisagem iluminada”. Essas
paisagens elétricas apresentam uma congruência total com a imagem da TV,
que também se manifesta como imagem-luz, mais do que como imagem
iluminada.
O pintor francês André Girard começou pintando diretamente sobre
película antes que os filmes fotográficos se tornassem populares. Naqueles
tempos. era fácil especular sobre a “pintura com luz” e sobre a introdução do
movimento na arte da pintura. Testemunhava Girard:
Não ficarei surpreso se, dentro de cinqüenta anos, ninguém mais quiser
saber de quadros cujos motivos permaneçam parados em suas molduras cada
vez mais apertadas.
A imagem da televisão voltou a inspirá-lo:
Vi certa vez, numa sala de controle, o olho sensível da câmara
apresentando-me, umas após outras, as paisagens, os rostos e as expressões
de um grande quadro meu — numa ordem em que jamais eu havia pensado.
Tive a sensação de um compositor que ouvisse uma de suas óperas com todas
as cenas trocadas. Era como ver um edifício de um elevador ultra-rápido, que
mostrasse o teto antes do térreo, parando rapidamente em alguns andares,
mas não em outros.
Desde então, Girard desenvolveu novas técnicas de controle para pintar
com luz, ajudado pelos técnicos da CBS e da NBC. No que toca à habitação, a
importância de seu trabalho reside em que nos permite conceber possibilidades
totalmente novas para a modulação do espaço artístico e arquitetônico. Pintura
com luz é algo assim como uma casa sem paredes. A mesma tecnologia
elétrica, projetada para a tarefa de receber controles termostáticos globais,
prenuncia a obsolescência da habitação como extensão dos mecanismos de
controle térmico de nossos corpos. Pôde-se igualmente imaginar que a
extensão elétrica do processo da consciência coletiva, produzindo a consciência
sem paredes, venha a tornar obsoletos os muros lingüísticos. As línguas são
extensões tartamudas de nossos cinco sentidos, em diversas proporções e
comprimentos de ondas. Uma simulação imediata da consciência contornaria a
fala, numa espécie de maciça percepção extra-sensória, assim como os
termostatos globais poderiam contornar essas extensões de nossa pele e de
nosso corpo a que chamamos casas. Essa extensão do processo da consciência
por simulação elétrica pode muito bem ocorrer na década de 60.
14. DI NHEI RO
O CARNÊ DO POBRE
A relação entre o complexo monetário e o corpo humano é um tópico
central da moderna teoria psicanalítica. Alguns analistas fazem derivar o
dinheiro do impulso infantil em brincar com as fezes. Ferenezi, particularmente,
considera o dinheiro “nada mais do que bosta desidratada e inodora, revestida
de brilho”. Em seu conceito de dinheiro, Ferenezi desenvolve a idéia de Freud
em Caráter e Erotismo Anal. Embora a ligação entre o "lucro sórdido” e o anal
persista nas principais correntes da Psicanálise, ela não corresponde o
suficiente à natureza e à função do dinheiro na sociedade para guindar-se a
tema do presente capítulo.
O dinheiro começou nas culturas não-letradas como bem de consumo;
vejam-se os dentes de baleia nas I lhas Fiji, ou os ratos na I lha da Páscoa, mais
tarde considerados uma iguaria elevada à categoria de artigo de luxo, e como
tal tomando-se um meio de mediação e troca. Quando os espanhóis estavam
sitiando Leyden, em 1574, foi emitido um dinheiro de couro; tendo aumentado
a "dureza”, a população cozeu e comeu a nova moeda.
Nas culturas letradas, circunstâncias diversas podem patrocinar a volta
do dinheiro como bem de consumo. Depois que os alemães ocuparam a
Holanda, durante a Segunda Guerra Mundial, os holandeses tornaram-se ávidos
de fumo. Como o suprimento era pequeno. uns poucos cigarros eram trocados
por objetos de valor, tais como jóias. instrumentos de precisão e até casas. A
revista Seleções lembrou um episódio curioso ocorrido no início da ocupação
aliada da Europa, em 1945: maços de cigarros fechados serviam como moeda.
passando de mão em mão e traduzindo a habilidade de um trabalhador em
termos da habilidade de outro — desde que o selo estivesse intacto.
O dinheiro sempre mantém algo de seu caráter comunitário e de
consumo. No começo, é muito vaga a sua função de prolongar o anseio do
homem por coisas distantes a partir dos bens e produtos mais próximos. É
pequeno o aumento da mobilidade da posse e do comércio, no início. O mesmo
acontece com o aparecimento da linguagem, na criança. Nos primeiros meses
predomina o reflexo do pegar, o “abrir a mão” voluntário só aparecendo no fim
do primeiro ano. A fala vem com o desenvolvimento do domínio em soltar os
objetos, que dá à criança o poder de desligar-se do ambiente, juntamente com
o poder de dinamizar o seu conhecimento do ambiente. Assim se dá com o
amadurecimento da idéia de dinheiro enquanto moeda e não enquanto bem
útil. A moeda é um modo de abrir mão de produtos e bens imediatos que
servem como dinheiro. inicialmente. em favor da extensão do comércio com
todo o complexo social. O comércio via dinheiro baseia-se no princípio de
apanhar e soltar, num ciclo oscilante. Enquanto uma das mãos segura o artigo,
com o qual se tenta a parte contrária, a outra se estende para o objeto
desejado na troca. A primeira mão abre assim que a segunda é tocada, um
pouco à maneira dos trapezistas ao trocarem de trapézio. E, de fato, em As
Multidões e o Poder, Elias Canetti diz que o comerciante pratica um dos mais
antigos passatempos, qual seja o de trepar em árvores e balançar-se de galho
em galho. Nos atos de agarrar, calcular e ritmar dos grandes antropóides
arbóreos, ele vê uma tradução, em termos financeiros, de um dos mais antigos
padrões do movimento. Assim como a mão entre os galhos de uma árvore
aprendeu um esquema de agarrar, bem distanciado do movimento de levar a
comida à boca, assim o comerciante e o financista desenvolveram fascinantes
atividades abstratas que constituem extensões da ávida mobilidade e agilidade
dos macacos superiores.
Como qualquer outro meio, o dinheiro é uma matéria-prima, um produto
natural. Como forma exterior e visível da necessidade de trocar e intercambiar,
ele é uma imagem corporada ou corporativa que depende da sociedade para
ganhar status institucional. Desligado da participação comunal, o dinheiro não
faz sentido, como o descobriu Robinson Crusoe ao encontrar as moedas no
navio naufragado:
Ao ver o dinheiro, sorri para mim mesmo e comecei a falar em voz alta:
“Porcaria! De que me serve você agora? Você não paga sequer a pena de
apanha-lo do chão: uma daquelas facas vale mais do que todo este monte: no
tenho como usá-lo. Você pode permanecer nas profundezas, como alguém cuja
vida não merece ser salva.”
Pensando melhor, porém, resolvi leva-lo, e embrulhando tudo num
pedaço de pano, comecei a pensar em fazer uma outra jangada...
O dinheiro primitivo, bem de consumo, como as palavras mágicas da
sociedade não-letrada, pode ser um celeiro de energia, que muitas vezes
propicia uma atividade econômica febril. Quando empenhados nessa tarefa, os
nativos dos Mares do Sul não procuram dela extrair vantagem econômica. Uma
intensa atividade produtiva pode ser seguida da destruição deliberada dos
produtos, com vistas à obtenção de prestígio moral. Porém, mesmo nas
culturas onde se observa este fenômeno (potlatch), o efeito dessas moedas é o
de acelerar e dinamizar as energias humanas de um modo que viria a tornar-se
universal no mundo antigo com a tecnologia do alfabeto fonético. Tal como a
escrita, o dinheiro tem o poder de especializar e redistribuir as energias
humanas e de separar as funções, bem como o de traduzir e reduzir um tipo de
trabalho a um outro. Mesmo na era eletrônica, o dinheiro nada perdeu de sua
potência.
O potlatch é bastante difundido, especialmente nos lugares onde há
facilidade de encontrar alimentos. Por exemplo, entre os pescadores da costa
noroeste ou entre os plantadores de arroz de Bornéu, enormes produções
excedentes têm de ser destruídas para evitar o surgimento de diferenças de
classes, que destruiriam a ordem social tradicional. Em Bornéu, o viajante pode
ver toneladas de arroz expostas às chuvas, durante os rituais, bem como
grandes obras públicas destruídas, depois de terem consumido um esforço
tremendo.
Ao mesmo tempo, nessas sociedades primitivas. o dinheiro, que é capaz
de liberar energias frenéticas com o fito de conferir prestígio mágico a um
pedaço de cobre. serve para comprar muito pouco. Necessariamente, ricos e
pobres vivem quase da mesma maneira. Hoje. na era eletrônica, o homem mais
rico partilha, praticamente. com o homem comum as mesmas diversões, os
mesmos alimentos e os mesmos veículos.
O uso de uma utilidade como o dinheiro naturalmente aumenta a sua
produção. A economia não especializada da Virgínia, no século XVI I , tomava as
elaboradas moedas européias bastante dispensáveis. Possuindo pouco capital e
pouco inclinados a convertê-lo em dinheiro, os habitantes de Virgínia, em
alguns casos, recorreram ao dinheiro — bem de consumo. Quando um produto
como o fumo foi convertido em moeda legal, a produção de fumo aumentou,
assim como a instituição de moedas metálicas incrementou a mineração.
Como meio social de expandir e ampliar o trabalho e as habilidades
humanas sob uma forma facilmente acessível e portátil, o dinheiro perdeu
muito do seu poder mágico com o advento do dinheiro representativo, ou
papel-moeda. Assim como a fala perdeu a sua magia com a escrita e. mais
ainda, com a imprensa, o dinheiro impresso, ao suplantar o ouro, perdeu a sua
aura envolvente. Em Erewhon (1872). Samuel Butler deixou claras indicações
sobre o prestígio misterioso que emana dos metais preciosos. A sua sátira ao
meio-dinheiro se manifesta sob a forma de apresentar a antiga atitude
reverente em relação ao dinheiro num nOvo contexto social. Mas esta nova
espécie de dinheiro abstrato de uma sociedade industrial avançada já não pode
sustentar a velha atitude:
Esta é a verdadeira filantropia. Aquele que consegue amealhar uma
fortuna colossal no ramo de malharia e que por sua energia consegue reduzir o
preço dos artigos de lã em um milésimo de penny por libra — este homem vale
dez filantropos profissionais. Os Erewbonianos são tão sensíveis a isto que,
quando um homem faz uma fortuna de mais de 20 mil libras por ano, eles o
desoneram de todos os impostos, considerando-o uma obra de arte, preciosa
demais para sofrer intrusões. Raciocinam eles: “Quanto não deve ele ter dado à
sociedade antes que a sociedade estivesse em condições de lhe dar tanto
dinheiro.” Uma organização tão estupenda os deixa maravilhados e eles a
consideram como algo caído do céu.
E dizem: “O dinheiro é o símbolo do dever, é o sacramento de haver
dado à Humanidade o que a Humanidade desejava. A Humanidade pode não
ser bom juiz — mas não há melhor.” I sto me chocava a princípio, ao me
lembrar que alguém, revestido de suprema autoridade, já dissera que
dificilmente um rico entraria no reino dos céus. Mas a influência de Erewhon
permitiu-me começar a ver as coisas sob nova luz, e eu não pude deixar de
pensar que o homem que não possui riquezas mais dificilmente ainda poderá
entrar no reino dos céus.
Na primeira parte do livro, Butler ridiculariza a moralidade da caixa
registradora e a religião do mundo industrializado, com seus “Bancos Musicais”
e prelados no papel de caixas. Na passagem citada, ele vê o dinheiro como o
“sacramento de haver dado à Humanidade o que a Humanidade desejava”. Ele
quer significar que o dinheiro “é o signo externo e visível de uma graça interior
e invisível”.
Enquanto meio social ou extensão de uma motivação ou de um desejo
interior, o dinheiro cria valores sociais e espirituais, tal como acontece também
na moda. Eis como um anúncio acentua este aspecto do vestido entendido
como dinheiro (vale dizer, como um sacramento social ou um signo externo
visível): “O importante hoje na moda é você parecer que está usando um tecido
popular.” A obediência a esta moda literalmente confere uma qualidade de
moeda corrente a um certo estilo ou padrão de tecido, criando um meio social
que promove a riqueza e lhe dá expressão. E não basta isto para acentuar
como o dinheiro — ou qualquer outro meio — se constitui e opera? Quando os
homens não se sentem à vontade a respeito dos valores sociais alcançados pela
uniformidade e a repetição, dando à Humanidade o que ela deseja, é sinal de
que a tecnologia mecânica vai chegando ao fim. “O dinheiro fala”, por que o
dinheiro é uma metáfora, uma transferência, uma ponte. Como as palavras e a
língua, o dinheiro é um celeiro de trabalho, de experiências e de habilidades
comuns realizadas. No entanto, ele é uma tecnologia especializada, tal como a
escrita; assim como a palavra escrita intensifica os aspectos visuais da fala e da
ordem, assim como o relógio separa visualmente o tempo do espaço, assim o
dinheiro separa o trabalho das demais funções sociais. Mesmo hoje, o dinheiro
é uma linguagem que traduz o trabalho do fazendeiro no trabalho do barbeiro,
do médico, do engenheiro e do encanador. Tal como a escrita, o dinheiro é
uma ponte enorme, um tradutor geral e uma vasta metáfora social, que acelera
a troca e estreita os laços de interdependência das comunidades. Como a
escrita ou como o calendário, ele propicia grande controle e vasta extensão
espacial às organizações políticas. Age a distância, no espaço e no tempo. Nas
sociedades altamente letradas, fragmentadas. “tempo é dinheiro” — e o
dinheiro é o depósito do tempo e do esforço alheios.
Na I dade Média, a idéia de fisco ou de erário do Rei relacionava o
dinheiro à linguagem (“O I nglês do rei”) e às comunicações (“a estrada real”).
Antes do advento da imprensa, era bastante natural que os meios de
comunicação fossem considerados como extensões de um só corpo. Com o
avanço das sociedades letradas, o dinheiro e o relógio passaram a caracterizarse segundo o visual e o fragmentário. Na prática, nosso uso ocidental do
dinheiro como tradutor e celeiro de trabalho comunitário dependeu de
acostumarmo-nos lentamente à palavra escrita e ao seu poder de separar.
especializar e delegar funções dentro de uma organização.
Quando observamos a natureza e o uso que se faz do dinheiro nas
sociedades não-letradas. podemos entender melhor o modo pelo qual a escrita
contribui para o estabelecimento da circulação monetária. A uniformidade dos
bens de consumo, combinada com o sistema hoje corrente dos preços fixos,
não teria sido possível sem a escrita. Os países “atrasados” levam muito tempo
até atingirem o estágio do deslanche (take off), justamente porque não sofrem
o processo extensivo da imprensa, que os condicionaria psicologicamente no
sentido de aceitarem a uniformidade e a repetibilidade. O Ocidente geralmente
não se dá conta do modo pelo qual o mundo dos preços e da numeração se
baseia na cultura visual da palavra escrita.
As sociedades não-letradas não dispõem de recursos psíquicos para criar
e sustentar essas enormes estruturas de informação estatística que nós
chamamos mercado e cotação de preços. Organizar a produção é muito mais
fácil do que treinar populações inteiras no sentido de se habituarem a traduzir
estatisticamente suas aspirações e desejos, de acordo com os mecanismos da
oferta e da procura, e de acordo com a tecnologia visual dos preços. Foi só no
século XVI I I que o Ocidente começou a aceitar essa forma de extensão da vida
interior em termos dos novos padrões estatísticos do mercado e da
mercadologia. Tão extravagante parecia esse novo mecanismo aos pensadores
de então que eles o chamavam de “cálculo hedonístico”. Em termos de
sentimentos e desejos, os preços pareciam então comparáveis ao infinito
mundo do espaço, que já, anteriormente, revelara seus segredos à força
tradutora do cálculo diferencial. Em outras palavras, a fragmentação da vida
interior pelos preços parecia tão misteriosa ao homem do século XVI I I quanto o
estilhaçamento do espaço por meio do cálculo ao homem do século anterior.
O distanciamento e a extrema abstração de nosso sistema de preços é
impensável e inútil para aquelas populações onde a pechincha e o regateio, em
qualquer transação, se constituem num drama dos mais excitantes.
Hoje, quando se vão formando novos turbilhões de poder e domínio, por
força da interdependência elétrica e instantânea de todos os homens do
planeta, o fator visual começa a perder importância na organização social e na
experiência pessoal, e o dinheiro vai sendo cada vez menos um meio de
armazenar e trocar trabalhos e ofícios. A automação, que é eletrônica, não
representa trabalho físico e sim conhecimento programado. À medida que o
trabalho é substituído pelo puro movimento e circulação da informação, o
dinheiro, enquanto depósito de trabalho, vai-se fundindo com as formas
informacionais do crédito e do carnê. Da moeda ao papel-moeda e do papelmoeda ao carnê. caminhamos seguramente para trocas comerciais que se
configuram com o próprio movimento da informação. Esta tendência rumo a
uma informação inclusiva está representada no carnê do crediário e se
reaproxima da natureza do dinheiro tribal. Pois a sociedade tribal,
desconhecendo especialismos de trabalhos ou ofícios, também não especializa o
dinheiro. Seu dinheiro pode ser comido, bebido ou consumido como certas
espaçonaves que agora se projetam e que podem ser devoradas.
“Trabalho” não existe no mundo não-letrado. O pescador, ou o caçador
primitivos não trabalhavam mais do que o fazem o poeta, o pintor ou o
pensador de nossos dias. Onde o homem global está envolvido, não há
trabalho. O trabalho começa com a divisão do trabalho e com a especialização
das funções e tarefas nas comunidades sedentárias agrícolas. Na era do
computador, novamente nos envolvemos totalmente em nossos papéis. Na era
da eletricidade, o “emprego” cede à dedicação e ao empenho, como na tribo.
O dinheiro das sociedades não-letradas se relaciona aos demais órgãos
da sociedade de maneira bastante simples. O papel do dinheiro aumentou
enormemente depois que ele começou a promover a especialização e a
separação das funções sociais. O dinheiro passa então a ser o principal meio de
inter-relacionar as atividades cada vez mais especializadas das sociedades
letradas. O poder fragmentador do sentido visual, depois que a escrita o isolou
dos demais sentidos, é um fato facilmente constatável na era da eletrônica.
Com os computadores e com a programação elétrica, os meios de armazenar e
movimentar a informação tornam-se cada vez menos visuais e mecânicos e
cada vez mais integrais e orgânicos. O campo total criado pelas formas elétricas
instantâneas não pode ser visualizado, assim como não o podem as velocidades
das partículas eletrônicas. O instantâneo cria uma interligação entre o tempo, o
espaço e as ocupações humanas, e para isso as velhas formas de transações
monetárias se vão mostrando cada vez mais inadequadas. Um físico moderno
que tentasse utilizar modelos visuais para apreender os dados da organização
atômica não seria capaz sequer de chegar perto da verdadeira natureza de seus
problemas. Tanto o tempo (visual e segmentariamente medido) como o espaço
(enquanto visual, uniforme e fechado) desaparecem na era eletrônica da
informação instantânea. Na era da informação instantânea, o homem dá por
findo o seu trabalho de especialização fragmentada e assume o papel de
coletor de informações. Hoje, a coleta de informação retoma o conceito
inclusivo de “cultura”, exatamente como o primitivo coletor de alimentos
trabalhava em perfeito equilíbrio com todo o seu meio ambiente. Hoje, neste
mundo nômade e sem “trabalho”, nossa busca se volta para o conhecimento e
a introvisão dos processos criativos da vida e da sociedade.
O homem abandonou o mundo da tribo pela “sociedade aberta”,
trocando um ouvido por um olho através da tecnologia da escrita. O alfabeto,
particularmente, habilitou-o a romper o círculo mágico e encantado, sonoro, do
mundo tribal. Em tempos mais recentes, graças à palavra impressa e à
passagem da moeda metálica para o papel-moeda, um processo similar fez com
que a economia mudasse de uma sociedade fechada para uma sociedade
aberta, do mercantilismo e do protecionismo econômico do comercio nacional
para o mercado aberto ideal do livre câmbio. Hoje, a tecnologia elétrica põe em
xeque o próprio conceito de dinheiro, à medida em que a nova dinâmica da
interdependência humana se desloca de meios fragmentários como a imprensa
para os meios de massa, inclusivos, como o telégrafo.
Posto que todos os meios são extensões de nós mesmos, ou traduções
de alguma parte de nós em termos de materiais diversos, o estudo de um meio
qualquer nos ajuda a compreender os demais. O dinheiro não faz exceção. O
uso primitivo ou não-letrado, do dinheiro, é bastante esclarecedor a esse
respeito, pois nele se manifesta uma fácil aceitação dos produtos naturais como
meios de comunicação. O homem não-letrado pode aceitar qualquer produto
como dinheiro, em parte porque os produtos de uma comunidade não são
apenas utilidades, mas também meios de comunicação. Algodão, trigo, gado,
tabaco, madeira, peixes, peles e muitos outros produtos têm operado como
poderosas forças de formação e configuração da vida da comunidade em
muitas culturas. Quando um desses produtos se torna dominante como liame
social, passa também a servir como celeiro de valores e tradutor de habilitações
e tarefas.
A maldição clássica de Midas, seu poder de traduzir em ouro tudo o que
tocava, de certa forma define o caráter de qualquer meio, incluindo a
linguagem. Este mito chama a atenção para o aspecto mágico de todas as
extensões do corpo e dos sentidos humanos — vale dizer, de toda tecnologia.
Toda tecnologia apresenta o toque de Midas. Quando uma comunidade
desenvolve uma extensão de si mesma, ela tende a permitir que todas as
demais funções se alterem para absorver aquela nova forma.
A linguagem, como a moeda, atua como armazenamento da percepção e
como transmissor das percepções e experiências de uma pessoa ou de uma
geração para outra. Como tradutora e celeiro da experiência, a linguagem é
também redutora e deformadora dessa mesma experiência. As grandes
vantagens da aceleração do processo do aprendizado, tornando possível a
transmissão do conhecimento e da visão através do espaço e do tempo, logo
superam as desvantagens das codificações lingüísticas da experiência. Na
ciência e na matemática modernas, aumentam constantemente as maneiras
não-verbais de codificar a experiência.
Como a linguagem que armazena trabalho e experiência, o dinheiro
também funciona como tradutor e transmissor. De maneira especial. a partir do
momento em que a palavra escrita promoveu a separação das funções sociais;
o dinheiro foi perdendo seu caráter de “armazém de trabalho”. Este caráter, ou
papel, é bastante claro nos casos em que um produto ou utilidade — gado ou
pele — é usado como dinheiro. Quando o dinheiro se separa de sua forma
utilitária, tornando-se um agente especializado de troca (Ou tradutor de
valores), passa a circular com maior velocidade e em maior volume.
Mesmo em tempos recentes, a dramática aparição do papel-moeda, ou
“dinheiro representativo”, como substituto do dinheiro-utilidade, não deixou de
causar confusões. De maneira muito parecida, a tecnologia de Gutenberg criou
uma vasta e nova república das letras, lançando grande confusão e obscuridade
nas fronteiras entre o reino da literatura e o reino da vida. O dinheiro
representativo, baseado na tecnologia da imprensa, criou novas dimensões de
aceleramento do crédito, incompatíveis com a massa inerte dos lingotes de
ouro e do dinheiro-utilidade. Todavia, todos os esforços foram feitos para que o
novo dinheiro, veloz, se comportasse como a lenta diligência do ouro. J. M.
Keynes estabeleceu a nova orientação em seu A Treatise on Money (“Tratado
do Dinheiro”):
Assim, o longo ciclo do Dinheiro-Utilidade cedeu finalmente lugar à era
do Dinheiro Representativo. O ouro deixou de ser moeda, tesouro, forma
tangível de riqueza, da qual o valor não pode escapar enquanto a mão do
proprietário estiver agarrando a sua substância material. Tornou-se uma coisa
muito mais abstrata — apenas um padrão de valor; e para que conserve este
status nominal, basta que circule de tempos a tempos em pequenas
quantidades entre Bancos Centrais agrupados, naquelas oportunidades em que
eventualmente um desses bancos tenha promovido uma inflação ou uma
deflação do dinheiro representativo sob a sua tutela, em níveis diferentes dos
aconselhados pelo comportamento de seus vizinhos.
Dessa forma, o papel-moeda, ou dinheiro representativo, especializou-se,
despindo-se de seu caráter de armazenador de trabalho e revestindo-se da
função, igualmente básica e antiga, de transmissor e acelerador de uma
espécie de trabalho em outra espécie de trabalho. Assim como o alfabeto foi
uma drástica abstração visual da rica cultura hieroglífica dos egípcios, assim
também reduziu e traduziu aquela cultura para o grande turbilhão visual do
mundo greco-romano. O alfabeto é um processo unidirecional de redução das
culturas não-letradas em termos dos fragmentos especializados e visuais de
nosso mundo ocidental. O dinheiro é um adendo a essa tecnologia alfabética
especializada, provocando nova intensidade na forma gutenberguiana da
repetibilidade mecânica. Assim como o alfabeto neutralizou as divergências
entre as culturas primitivas, traduzindo sua complexidade em simples termos
visuais, assim o dinheiro representativo provocou a redução dos valores morais,
no século XI X. Assim como o papel acelerou o poder do alfabeto, no sentido de
reduzir os bárbaros orais à uniformidade da civilização romana, assim o papelmoeda permitiu ao Ocidente industrializar o globo inteiro.
Pouco antes do advento do papel-moeda, o volume crescente do
movimento da informação nos boletins e jornais europeus criou a imagem e o
conceito do Crédito Nacional. Esta imagem corporativa do crédito, então, como
agora, depende do rápido e global movimento da informação — ao qual já
estamos acostumados há mais de dois séculos. Naquele momento, em que
surgia o crédito público, o dinheiro assumiu o papel de traduzir, de uma cultura
para outra, não apenas estoques de trabalho locais, mas estoques de trabalho
nacionais.
Um dos resultados inevitáveis da aceleração do movimento da
informação e do poder tradutor do dinheiro é a oportunidade de
enriquecimento para aqueles que podem prever as transformações, com a
antecedência de horas ou anos, conforme o caso. Já estamos familiarizados
com os exemplos de enriquecimento baseado na antecipação da informação a
respeito de títulos, valores, câmbio e bens de raiz. No passado, quando a
riqueza não estava tão claramente relacionada à informação, uma classe social
podia monopolizar a riqueza resultante de uma mudança na tecnologia. O
relato que Keynes faz de um desses casos. em seu estudo Shakespeare e as
I nflações do Lucro, nos diz que o ouro e a nova riqueza, por beneficiarem antes
as classes governantes, propiciaram a estas um estado de exaltação e euforia,
uma alegre fuga às habituais ansiedades e angústias, fruto de uma
prosperidade que, em troca, inspirava ao artista faminto, em sua água-furtada,
novos ritmos triunfais e novas formas exultantes na poesia e na pintura.
Quando o lucro sobe bem além dos salários, a classe governante se regozija
num tom que inspira as mais elevadas concepções no peito do artista sem
vintém. Mas quando lucros e salários se mantêm em níveis proporcionais
razoáveis, murcha a alegria das classes governantes e a arte não pode
beneficiar-se da prosperidade.
Keynes descobriu a dinâmica do dinheiro enquanto meio. A verdadeira
tarefa relativa ao estudo deste meio é idêntica à do estudo de todos os outros
meios; ou, como escreve o próprio Keynes: “Abordar dinamicamente o
problema, analisando os diferentes elementos em causa, de modo a revelar o
processo causal pelo qual o nível do preço é determinado, bem como o método
de transição de uma posição de equilíbrio para outra.”
Numa palavra, o dinheiro não é um sistema fechado e não possui
significado por si mesmo. Como tradutor e amplificador, o dinheiro dispõe de
poderes excepcionais para substituir uma espécie de coisa por outra. Os
analistas da informação chegaram à conclusão de que o grau de substituição de
um recurso por outro aumenta quando a informação aumenta. À medida em
que sabemos mais, confiamos menos num alimento, num combustível ou numa
matéria-prima. Roupas e móveis hoje podem ser feitos de muitos materiais
diferentes. Principal transmissor e trocador de informação, por muitos séculos,
o dinheiro hoje começa a ver esta função transferida para a Ciência e a
automação.
Em nossos dias, até os recursos naturais apresentam um aspecto
informacional. eles existem em virtude da cultura e da habilitação desta ou
daquela comunidade. Mas a recíproca também é verdadeira. Todos os meios —
ou extensões do homem — são recursos naturais que existem em virtude do
conhecimento e da habilitação partilhados pela comunidade. Foi a tomada de
consciência deste aspecto do dinheiro que chocou Robinson Crusoe ao visitar o
navio naufragado, daí resultando aquela meditação que citamos no inicio deste
capítulo.
Quando há bens, mas não dinheiro, sempre ocorre alguma espécie de
barganha, ou seja, a troca direta de um produto por outro. Mas, nas sociedades
não-letradas, quando os bens são utilizados na troca direta, é fácil notar que
tendem a revestir-se da função monetária. Algum trabalho sempre se concentra
no material, nem que seja o simples transporte. E é nesta mesma medida que o
objeto armazena trabalho, informação ou conhecimento técnico. Quando um
objeto é trocado por outro, ele já assume a função de dinheiro enquanto
tradutor e redutor de coisas múltiplas a algum denominador comum. O
denominador comum ou tradutor também opera como poupa-tempo e
acelerador. Como tal, dinheiro é tempo e seria muito difícil separar a poupança
de trabalho e a poupança de tempo nessa operação.
Há um mistério com os fenícios: embora ávidos mercadores marítimos,
adotaram a cunhagem de moedas depois dos lídios, de economia terrestre. A
razão atribuída a este atraso pode não solver o mistério fenício, mas serve para
sublinhar um fato básico a respeito do dinheiro entendido como meio, a saber:
os mercadores de caravana tinham necessidade de um meio de pagamento
mais leve e portátil. Esta necessidade pesava menos sobre aqueles que, como
os fenícios, comerciavam por mar. A portabilidade, como meio de acelerar e
ampliar a distância real da ação, também é ilustrada, e de maneira notável,
pelo papiro. O alfabeto era uma coisa, quando aplicado à argila ou à pedra, e
outra coisa bem diferente, quando aplicado a algo leve como o papiro. O salto
que disto resultou — em velocidade e em espaço — criou o I mpério Romano.
Na era industrial, a medida cada vez mais precisa do trabalho efetuado
revelou que a poupança do tempo é um dos aspectos mais importantes da
poupança do trabalho. Os meios dinheiro, escrita e relógio começaram a
convergir novamente para um todo orgânico que conduz o homem para o
envolvimento total em seu trabalho, tal como o nativo na sociedade primitiva,
ou o artista em seu estúdio.
Uma das virtualidades do dinheiro é a de propiciar a transição para o
número, porque o tesouro monetário ou o montante em dinheiro têm muito em
comum com a multidão. Além disso, estão intimamente associadas as
estruturas psicológicas da multidão com a acumulação de riquezas. Elias Canetti
acentua que a dinâmica inerente à multidão é o impulso ao crescimento rápido
e ilimitado. A mesma dinâmica de poder é característica das grandes
concentrações de riqueza. De fato, a unidade moderna da riqueza, na voz
popular, é o milhão. É uma unidade aceitável para qualquer tipo de moeda. E
sempre associada ao milhão está a idéia de que ele pode ser alcançado por
meio de um rápido lance especulativo. Da mesma forma, Canetti explica como
a ambição de ver números em ascensão era um dos traços típicos dos discursos
de Hitler.
Montes de gente e de dinheiro aspiram à multiplicação, mas também
alimentam a incerteza sobre as possibilidades de desintegração e inflação. Este
movimento em dois sentidos — expansão e deflação — parece ser a causa da
inquietação das multidões e da incerteza que acompanha toda riqueza. Canetti
se estende longamente na análise dos efeitos psicológicos da inflação alemã,
após a Primeira Guerra Mundial. A depreciação do cidadão acompanhou, passo
a passo, a depreciação do marco alemão. Não ter mais cara e não ter mais
valor se tornaram uma e mesma coisa quando as unidades pessoais e
monetárias se confundiram.
15. RELÓGI OS
A FRAGRÂNCI A DO TEMPO
Em Comunicação na África, escreve Leonard Doob: “O turbante, a
espada e, hoje, o despertador, são usados ou carregados para significar
elevada posição social” Pode-se presumir que muito tempo vai-se passar até
que o africano consulte o relógio, a fim de ser pontual...
Assim como a grande revolução na Matemática se deu quando foram
descobertos os números em tandem, ou posicionais (302 em lugar de 32 etc.),
assim grandes mudanças culturais ocorreram no Ocidente quando se descobriu
a possibilidade de fixar o tempo como algo que acontece entre dois pontos.
Desta aplicação de unidades visuais, abstratas e uniformes, nasceu o nosso
sentimento do tempo como duração. Desta divisão do tempo em unidades
visualisáveis e uniformes vem o nosso sentido de duração e a nossa
impaciência, quando não podemos suportar a delonga entre os acontecimentos.
Este sentido de impaciência, ou do tempo enquanto duração, é desconhecido
nas culturas não-letradas. Assim como o trabalho começou com a divisão do
trabalho, a duração começa com a divisão do tempo e especialmente com
aquelas subdivisões pelas quais os relógios mecânicos regem a sucessão
uniforme do sentido temporal.
Como obra de tecnologia, o relógio e uma máquina quê produz
segundos, minutos e horas em linha de montagem. Processado desta forma
uniforme, o tempo se vê separado dos ritmos da experiência humana. Em
suma, o relógio mecânico contribui para criar a imagem de um universo
numericamente quantificado e mecanicamente acionado. O desenvolvimento
moderno do relógio teve início nos mosteiros medievais, com a sua necessidade
de normas e de regras sincronizadas que guiassem a vida comunal. O tempo
medido, não segundo a singularidade da experiência privada, mas segundo
unidades abstratas e uniformes, gradualmente foi penetrando no sentido da
vida, tal como sucedeu com as tecnologias da escrita e da imprensa. Não
apenas trabalhar, mas também comer e dormir, acabaram por se acomodar
mais ao relógio do que às necessidades orgânicas. À medida que o padrão da
medida uniforme e arbitrária do tempo se foi difundindo por toda a sociedade.
até a roupa começou a sofrer alterações anuais, para atender às conveniências
da indústria. Nesta altura, naturalmente, a medida mecânica do tempo
estabelecida como princípio de conhecimento aplicado juntou suas forças às da
imprensa e da linha de montagem, outros meios de fragmentação uniforme dos
processos.
O sentido de tempo mais integral e envolvente que se possa imaginar é
aquele expresso pelas culturas japonesa e chinesa. Até à chegada dos
missionários no século XVI I . chineses e japoneses, por milhares de anos,
haviam medido o tempo por graduações de incenso. Não somente as horas e
os dias, mas também as estações e os signos zodiacais eram simultaneamente
indicados por uma sucessão de fragrâncias cuidadosamente ordenadas. O
sentido do olfato, há muito considerado a raiz da memória e a base unificante
da individualidade, viria a furo novamente nas experiências de Wilder Penfield.
Durante operações cirúrgicas do cérebro, os testes elétricos aplicados ao tecido
cerebral faziam reviver muitas das memórias dos pacientes. Estas evocações
eram dominadas e unificadas por cheiros e fragrâncias únicas que estruturavam
as experiências passadas. O olfato não é apenas o mais delicado e sutil dos
sentidos humanos; é também o mais icônico, pois envolve toda sensorialidade
humana de maneira mais completa do que qualquer outro sentido. Não
surpreende, pois, que sociedades altamente letradas tomem providências no
sentido de eliminar ou reduzir os odores do ambiente. C. C. (cheiro de corpo) —
assinatura personalizada e declaração da individualidade humana — é uma
palavra que se deve evitar nas sociedades letradas. Ela é envolvente demais
para os nossos hábitos de distanciamento e de atenção especializada. As
sociedades que mediam fragrâncias de tempo tenderiam a mostrar-se sólida e
profundamente unificadas, de modo a resistir a toda espécie de mudanças.
Lewis Mumford é de parecer que o relógio precedeu a imprensa na
ordem de influências sobre a mecanização das sociedades. Mas Lewis Mumford
não leva em conta o alfabeto fonético como tecnologia, tecnologia esta que
tornou possível a fragmentação visual e uniforme do tempo. De fato, ele não vê
o alfabeto como fonte dai mecanização ocidental, assim como não vê a
mecanização como a tradução da sociedade em termos de valores visuais, a
partir de padrões audiotácteis. Nossa nova tecnologia elétrica apresenta
tendências orgânicas e não-mecânicas porque ela projeta e estende, não os
nossos olhos, mas o nosso sistema nervoso central, como uma vestimenta
planetária. No mundo espaço-temporal da tecnologia elétrica, o velho tempo
mecânico começa a se tomar inaceitável, quanto mais não fosse pelo simples
fato de ser uniforme.
Os modernos estudos de lingüística são antes estruturais do que
literários e devem muito às novas possibilidades dos computadores no campo
da tradução. Assim que uma língua é examinada como um sistema unificado,
estranhos bolsões são identificados. Examinando o I nglês corrente, Martin Joos
espirituosamente consignou “cinco relógios de estilo”, cinco diferentes zonas ou
climas culturais independentes. Somente uma dessas zonas forma a área da
responsabilidade e esta é a zona da uniformidade e da homogeneidade que o
cérebro-tinteiro de Gutenberg estabelece como seu domínio. É a zona-estilo do
I nglês-Padrão, permeada pelo Tempo Central-Padrão: dentro dessa zona, os
moradores acusam diversos graus de pontualidade...
Em a Linguagem Silenciosa, Edward T. Hall examina como “O Tempo
Fala: Sotaques americanos”, cotejando o nosso sentido de tempo com o dos
índios Hopi. Para eles, o tempo não é uma duração ou sucessão uniforme, mas
um pluralismo de muitas espécies de coisas coexistentes. “É o que acontece
quando o milho amadurece ou a ovelha cresce... Tem lugar o processo natural
em que substâncias vivas desempenham seu drama vital.” Portanto, para eles
existem tantas espécies de tempo quantas são as espécies de vida. Este, de
resto, também é o sentido de tempo dos modernos físicos e cientistas. Eles já
não tentam conter os acontecimentos no tempo, mas pensam em cada coisa
como produtora de seu próprio espaço. E mais: agora que vivemos
eletricamente num mundo instantâneo, tempo e espaço se interpenetram
totalmente num mundo espaço-temporal. É dessa mesma forma que um pintor,
como Cézanne, recupera a imagem plástica pela qual todos os sentidos passam
a coexistir numa pintura unificada. Cada objeto e cada conjunto de objetos
engendra o seu próprio espaço singular, pelas relações visuais ou musicais que
mantém com outros objetos. Quando este conhecimento retornou ao mundo
ocidental, foi ele denunciado como a fusão de todas as coisas num mesmo
fluxo. Percebemos agora que esta preocupação era uma resposta literária e
visual à nova tecnologia não-visual.
Em Dúvida e Certeza na Ciência, J. Z. Young explica como a eletricidade
não é algo transmitido ou contido em outra coisa, e sim algo que ocorre
quando dois ou mais corpos estão em posições especiais. Nossa linguagem
derivada da tecnologia alfabética não pode dar conta desta nova visão do
conhecimento. Ainda falamos que a corrente elétrica “passa”, ainda falamos da
“descarga” da energia elétrica, como se estivéssemos falando do tiro linear de
uma arma. Mas, com a magia estética do poder pictórico, “a eletricidade é a
condição que constatamos quando há certas relações espaciais entre as coisas”.
O pintor aprende como ajustar as relações entre as coisas, para liberar uma
nova percepção; o químico e o físico aprendem como diferentes relações
liberam diferentes espécies de energia.
Na era da eletricidade, cada vez menos encontramos boas razões para
impormos o mesmo conjunto de relações indiscriminadamente a cada tipo de
objeto ou conjuntos de objetos. No mundo antigo, o único meio de se
conseguir energia ou força era fazer com que mil escravos trabalhassem como
um só homem. Na I dade Média, o relógio comunal, prolongado no sino,
permitia um alto grau de coordenação das energias das pequenas
comunidades. No Renascimento, o relógio se combinou com a respeitabilidade
(sic) uniforme da nova tipografia, para estender o poder da organização social
quase que a uma escala nacional. Já no século XI X, ele propiciara uma
tecnologia de coesão inseparável da indústria e do transporte, permitindo que
uma metrópole inteira passasse à operar como um autômato. Agora, na era
elétrica da informação e do poder descentralizado, já começamos a nos irritar
com a uniformidade do tempo-relógio. Nesta era de espaço-tempo, buscamos
mais a multiplicidade do que a repetibilidade de ritmos. É a diferença que vai
entre soldados em marcha e o balé.
Para a compreensão dos meios e da tecnologia, é necessário ter em
mente que a novidade fascinante de um mecanismo ou de uma extensão de
nosso corpo produz uma narcose, ou seja, um entorpecimento, na região
recém-prolongada. Críticas aos relógios só começaram a surgir quando a era da
eletricidade veio mostrar a incongruência dessa espécie de tempo mecânico.
Em nosso século elétrico, a cidade que segue os horários mecânicos mais
parece um conglomerado de sonâmbulos e zombies, como verificamos na
primeira parte do poema The Waste Land (“A Terra Estéril”), de T. S. Eliot.
Num planeta reduzido a aldeia pelos novos meios. as próprias cidades
parecem bizarras e estranhas, como se fossem formas arcaicas ~ s quais se
tenham sobreposto novos padrões de cultura. Todavia, quando os relógios
mecânicos ganharam nova força e nova visibilidade por influência da escrita
mecânica, como era então chamada a imprensa, a resposta que se deu ao novo
sentido de tempo foi bastante ambígua e até zombeteira. Os sonetos de
Shakespeare estão cheios dos temas paralelos da imortalidade da fama,
assegurada pelo engenho da imprensa, e da mesquinha futilidade da vida diária
medida pelo relógio:
Quando vejo o relógio a ver o tempo,
E o dia afundar-se em noite-breu,
Pergunto se também a tua beleza
Entre as perdas de tempo se perdeu.
(Soneto X)
Em Macbeth, Shakespeare liga as tecnologias gêmeas da imprensa e do
tempo mecânico, no solilóquio famoso, para expressar a desintegração do
mundo de Macbeth:
Amanhã, amanhã, amanhã, amanhã...
Arrasta-se a cadência destes passas, dia-a-dia.
Até a sílaba final do tempo e da memória.
O tempo, picado em pedacinhos uniformes e sucessivos pelo relógio e
pela imprensa, tomou-se tema importante da neurose renascentista,
inseparável do novo culto das medidas precisas nas ciências. No Soneto LX,
Shakespeare começa com o tempo mecânico e termina com o novo engenho da
imortalidade (a imprensa):
Como as ondas na praia pedregosa,
Nossos minutos correm para o fim,
Um seguindo-se ao outro, hora a hora,
E porfiando as carreiras... Confiando
No tempo, meu verso ficará, fiel,
Louvando-te, malgrado a mão cruel.
O poema de John Donne, The Sun Rising (“O Sol Nascente”), explora o
contraste entre o tempo aristocrático e o tempo burguês. A pontualidade, a
devoção pedante ao tempo mecânico e à ordem seqüencial, era um dos traços
mais desprezíveis da bourgeosie do século XI X. Fluindo o tempo-espaço pelos
portões da consciência, na era da eletricidade, toda observância mecânica
tomou-se de mau gosto e, mesmo, ridícula. Donne ironizava a desimportância
do tempo-relógio; no reino do amor, para ele, mesmo os grandes ciclos
cósmicos do tempo não passavam de mesquinhos aspectos do relógio:
Velho sol bobo e atarefado,
Por que você nos chama
Pelas janelas e cortinas?
As estações de quem ama
Seguem teu curso, por acaso?
Vá acordar meninas
Atrasadas para a escola
E aprendizes infelizes,
Seu malandro pedante
E descarado;
Vá dizer aos caçadores reais
Que o rei vai à caça,
E às formigas do campo
Que rio para os trigais.
O amor despreza climas e estações
E são farrapos do tempo
Para ele
As horas, os dias e os meses.
Donne desafiou a autoridade e o direito da nova era de Gutenberg a
marcá-lo com os estigmas da tipografia uniforme e repetitiva e com as
motivações da mensuração visual de precisão; daí a voga que conhece no
século presente. De modo idêntico, em seu poema To his Coy Mistress (“À
Amada Esquiva” — trad. de Augusto de Campos), Andrew Marvell enchia-se de
desprezo pelo novo espírito calculista, que tudo queria medir, tempos e
virtudes:
Dessem-nos tempo e espaço afora,
Não fora crime essa esquivez, senhora.
Sentar-nos-íamos tranqüilos
A figurar de modos mil as
Nossos dias de amor. Eu com as águas
Do Humber choraria minhas mágoas;
Tu podias colher rubis à margem
Do Ganges. Que eu me declarasse
Dez anos antes do Dilúvio! Teus
Não voltar-me-iam a face
Até a conversão dos Judeus.
Meu amor vegetal crescendo vasto,
Mais vasto que os impérios, e mais lento,
Mil anos para contemplar-te a testa
E os olhos levaria. Mais duzentos
Para adorar cada peito
E trinta mil para o resto.
Um século para cada parte,
O último para o coração tomar-te:
Pois, Dama, vales tudo o que ofereço,
Nem te amaria por mais baixo preço.
Marvell fundiu as taxas do câmbio e do comércio com as cotações do
louvor, para atender a visão convenciono] e fragmentada de sua amada à la
mode. Já que ela abordava a realidade em termos da bilheteria, ele introduziu
um novo tempo-estrutura e um modelo diverso de percepção. Coteje-se com o
“Veja esta cena, e veja aquela outra, agora — de Hamlet. Em lugar da tradução
bem burguesa do código medieval do amor cortês em termos da linguagem do
novo comerciante classe-média, por que não um salto byroniano às longas
praias do amor ideal?
Mas ao meu dorso eu ouço o alado
Carro do Tempo, perto, perto,
E adiante há apenas o deserto
Sem fim da eternidade.
Vemos aqui a nova perspectiva linear levada à pintura com Gutenberg,
mas que ainda não havia ingressado no universo verbal — até o Paraíso
Perdido, de Milton. A própria linguagem escrita resistira por dois séculos à
ordem abstrata visual da sucessão linear e do ponto de fuga. A idade que se
seguiu a Marvell, porém, deu-se à poesia paisagística e à subordinação da
linguagem a efeitos visuais especiais.
Mas Marvell concluía sua estratégia de reversão, tendo em vista a
conquista do tempo-relógio burguês, com a observação:
Assim se não sustamos nosso Sol,
Ao menos o incitamos à corrida.
Propunha que ele e a amada se transformassem numa bala de canhão
que, desferida em direção ao Sol, o fizesse apressar-se. Era como se o tempo
pudesse ser derrotado, pela reversão de suas características — ou seja,
acelerando-o suficientemen te. A prova experimental desse fato viria com a era
eletrônica, que descobriu que as velocidades instantâneas abolem o tempo e o
espaço, restituindo o homem a uma consciência integral e primitiva. Hoje não
apenas o relógio, mas também a roda, estão obsoletos, retraindo-se até à
forma animal, sob o impulso de velocidades cada vez maiores. No poema
acima, a intuição de Andrew Marvell de que o tempo-relógio podia ser
derrotado pela velocidade é perfeitamente justificada. No presente, o mecânico
começa a ceder terreno à unidade orgânica, por força das condições das
velocidades elétricas. O homem pode agora olhar para trás e contemplar dois
ou três mil anos de mecanização em vários graus, consciente de que o
mecânico não foi senão um interlúdio entre dois grandes períodos orgânicos da
cultura. Em 1911, o escultor italiano Boccioni disse: “Somos primitivos de uma
cultura desconhecida.” Meio século mais tarde, já podemos saber um pouco
mais da nova cultura da era eletrônica, e este conhecimento levantou o mistério
que envolvia a máquina.)
Em oposição à simples ferramenta, a máquina é uma extensão ou
explicitação de um processo. A ferramenta prolonga o punho, as unhas, os
dentes, o braço. A roda prolonga o pé em rotação ou em movimento
seqüencial. A imprensa, a primeira mecanização completa de um artesanato,
fraciona o movimento da mão numa série de fases discretas [ * Discreto — Que
se manifesta por sinais separados (N. do T.).] tão repetitivas quanto o
movimento circular da roda. Desta seqüência analítica derivou o princípio da
linha de montagem; esta, porém, já é obsoleta na era da eletricidade, porque a
sincronização já não é seqüencial. Graças às fitas elétricas, a sincronização de
qualquer número de atos diferentes pode ser simultânea. Assim chega ao fim o
princípio mecânico da análise em série. Em princípio, a roda também chegou ao
fim, embora o nível mecânico de nossa cultura ainda a conserve como parte de
um momento ou impulso acumulado — uma configuração arcaica.
O relógio moderno, mecânico em princípio, incorporou a roda. Deixou de
ter seus velhos significados e funções. A pluralidade de tempos sucede à
uniformidade de tempo. Hoje é até fácil jantar em Nova I orque e ter uma
indigestão em Paris. Os viajantes também estão familiarizados com a
experiência de estarem, numa hora, em contato com uma cultura do ano 3000
a. C., e, na hora seguinte, em contato com uma cultura do ano de 1900 d. C.
Em suas linhas externas, a maior parte da vida norte-americana se pauta pelo
século XI X. Enquanto isso, nossa experiência interior, cada vez mais defasada
em relação a esses padrões mecânicos, e elétrica, inclusiva e mítica em modo e
tom. O modo mítico ou icônico de consciência substitui o ponto de vista pelo
multifacetado.
Os historiadores são unânimes em atribuir ao relógio um papel
fundamental na sincronização das tarefas humanas da vida monástica. A não
ser em comunidades altamente letradas, a aceitação dessa fragmentação da
vida em minutos e horas é impensável. A disposição de submeter o organismo
humano ao módulo estranho do tempo mecânico era tão dependente da cultura
escrita nos primeiros séculos do cristianismo como o é em nossos dias. Para
que o relógio domine é necessário que se aceite previamente a pressão visual
inerente à alfabetização fonética. A alfabetização, em si mesma, é um
ascetismo abstrato que prepara o caminho para infindáveis padrões de privação
comunitária. Com a alfabetização universal, o tempo pode adquirir o caráter de
um espaço fechado ou pictórico que pode ser dividido e subdividido. Que pode
ser preenchido. “Minha agenda está cheia.” Que pode ser mantido em branco:
“Tenho uma semana livre no próximo mês.” Como Sebastian de Grazia mostrou
em Of Time, Work and Leisure (“Do Tempo, do Trabalho e do Lazer”), todo o
tempo livre deste mundo não é lazer, porque lazer não aceita nem a divisão do
trabalho inerente ao “trabalho”, nem as divisões do tempo que criam o “tempo
integral” e o “tempo livre”. O lazer exclui os tempos-recipientes. Unia vez
mecânica ou visualmente encerrado, dividido e preenchido o tempo, é possível
utilizá-lo de maneira cada vez mais eficiente. O tempo pode ser transformado
em máquina poupa-trabalho, como Parkinson revela em sua famosa “Lei de
Parkinson”.
O estudioso da história do relógio descobrirá que se introduziu um
princípio totalmente novo com o relógio mecânico. Os primeiros relógios
mecânicos conservavam o velho princípio da ação contínua da força propulsora,
tal como era utilizada no relógio d’água e na roda d’água. Por volta de 1300,
deu-se um passo no sentido de sustar momentaneamente o movimento
rotativo, por meio de um pinhão e de uma coroa. Esta função era chamada
“escapo” e foi o meio encontrado para traduzir literalmente a força contínua da
roda em termos do princípio visual da sucessão uniforme, mas segmentada. O
escapo introduziu a ação reversa e recíproca dos ponteiros, pela rotação de um
fuso para a frente e para trás. A conjunção, no relógio mecânico, desta antiga
extensão do movimento da mão com o movimento circular, para a frente, da
roda, redundou, com efeito, na tradução das mãos em pés e dos pés em mãos.
Extensão tecnológica de membros humanos combinados mais difícil do que esta
talvez não pudesse ser inventada. Dessa forma, a fonte de energia do relógio
separou-se dos ponteiros — fonte de informação — por tradução tecnológica. O
escapo como tradução de uma espécie de espaço rotário em termos de um
espaço uniforme e visual antecede diretamente o cálculo infinitesimal, que
traduz qualquer espécie de espaço ou movimento em termos de um espaço
visual. contínuo e uniforme.
Situando-se no limite que separa o uso mecânico do uso elétrico do
trabalho e do tempo, Parkinson nos diverte bastante, ao piscar, ora com um
olho ora com outro, para o quadro do tempo e do trabalho. Culturas como a
nossa, situadas no ponto de transformação, são muito ricas em traços trágicos
e cômicos. É a inter-relação máxima de diversas formas de percepção e
experiência que torna grandiosas as culturas do século V, século XVI e século
XX. Mas poucas são as pessoas que sabem viver esses períodos intensos,
quando se dissolve tudo o que sustenta a familiaridade e a segurança — para
ser reestruturado em poucas décadas.
Não foi apenas o relógio, mas a alfabetização reforçada pelo relógio que
criou o tempo abstrato, levando o homem a comer não quando tinha fome,
mas quando era “hora de come?’. Lewis Mumford observa agudamente que o
sentido de tempo, mecânico e abstrato, do Renascimento, facultava aos
homens viverem no passado clássico, abstraindo-se de seu próprio presente.
Ainda uma vez, foi a imprensa que tornou possível a recriação do passado
clássico. produzindo em massa a sua literatura e os seus. textos. A fixação de
um padrão de tempo abstrato e mecânico logo se estenderia à alternância
periódica dos estilos dos vestuários, da mesma forma como a produção em
massa se prolonga à publicação periódica de jornais e revistas. É ponto pacífico
para nós que a função da revista Vogue é modificar os estilos dos vestidos e
que isto faz parte do processo de que ela tira a sua própria razão de existir.
Quando alguma coisa circula, ela se torna moeda corrente; a moda criou
riquezas modificando os tecidos — para que estejam mais na moda. Já vimos
este processo no capítulo dedicado ao Dinheiro. Os relógios são meios
mecânicos que transformam as tarefas, criando novas riquezas e novos
empregos, pela aceleração entre os homens. Coordenando e acelerando os
encontros e iniciativas dos homens, os relógios fazem aumentar a quantidade
bruta do intercâmbio humano.
Logo, não há nada de estranho em que Mumford associe “o relógio, a
imprensa e o alto-forno” que ele tem por inovações gigantescas do
Renascimento. Tanto o relógio como a fornalha aceleraram a fusão dos
materiais e o aparecimento de uma conformidade sem arestas nos contornos
da vida social. Bem antes da revolução industrial dos fins do século XVI I I , as
pessoas já se queixavam de que a sociedade se tornara uma “maquina
prosaica” que as lançava à vida num ritmo vertiginoso.
O relógio arrancou o homem do mundo dos ritmos sasonais e
recorrentes, assim como o alfabeto o havia desprendido da ressonância mágica da palavra falada e da armadilha tribal. Não se processou sem castigos
essa dupla tradução do indivíduo: dos punhos da natureza e das garras da
tribo. Mas, sob as condições da eletricidade, o retOrno à natureza e o retorno à
tribo são, fatalmente, simples. Devemos nos precaver contra aqueles que
anunciam programas de restituição do homem ao seu estado original e à
linguagem da raça. Esses cruzados nunca se detiveram a examinar o papel dos
meios e da tecnologia na sua capacidade de jogar o homem de uma dimensão
para outra. Eles são como o sonambúlico chefe africano com seu despertador
pendurado às costas.
Em O Sagrado e o Profano, Mircea Eliade, professor de religião
comparada, não percebe que um universo “sagrado”, em seus termos, é um
universo dominado pela palavra e pelos meios auditivos. De outro lado, o
universo “profano”, é dominado pelo sentido visual. O relógio e o alfabeto,
fracionando o universo em segmentos visuais, deram fim à música da inter-
relação. O visual dessacraliza o universo e produz o “homem não-religioso das
sociedades modernas”.
Historicamente, porém, Eliade é útil, ao relembrar como, antes da era do
relógio e da cidade-horário, havia para o homem tribal um relógio cósmico e
um tempo sagrado da própria cosmogonia. Quando o homem tribal queria
construir uma cidade, uma casa, ou curar um malefício, dava corda no relógio
cósmico por meio de palavras mágicas ou de um elaborado ritual que o
repunha em contato com o processo original da criação. Eliade menciona que,
nas I lhas Fiji, “a cerimônia de posse de um novo chefe é chamada criação do
mundo”. O mesmo drama se desenrola para propiciar colheitas abundantes.
Enquanto o homem moderno sente-se obrigado a ser pontual e conservador, o
homem tribal arcava com a responsabilidade de providenciar energia para o
relógio cósmico. Mas o homem elétrico ou ecológico (homem do campo total),
com a África dentro de si, pode alimentar a esperança de superar a velha
preocupação cósmica do homem tribal.
O homem primitivo vivia numa máquina cósmica muito mais tirânica do
que a que o homem letrado ocidental pode conceber. O mundo do ouvido é
muito mais envolvente e inclusivo do que pode pretender ser o mundo do olho.
O ouvido é hipersensível. O olho é frio e distanciado. O ouvido deixa o homem
entregue ao pânico universal, enquanto que o olho, prolongado pela palavra
escrita e pelo tempo mecânico, deixa alguns enclaves e ilhas livres da
incessante reverberação sonora.
16. TI POGRAFI A
COMO MORAR NO ASSUNTO
A arte de formular pronunciamentos pictóricos sob uma forma precisa e
repetitiva é uma conquista ocidental a que nos acostumamos há muito tempo.
Esquecemo-nos, no entanto, de que o mundo das ciências e das tecnologias
modernas dificilmente teria existido, não fossem as imprensas e os projetos
arquitetônicos, os mapas e a Geometria.
Nos tempos de Fernando e I sabel e de outros monarcas marítimos, os
mapas levavam a chancela de “alto segredo”, como as novas descobertas
eletrônicas de hoje. Quando os capitães retornavam de seus cruzeiros, os
dignitários da coroa envidavam todos os esforços para conseguirem originais e
cópias dos mapas executados durante a viagem. Resultava daí um câmbio
negro bastante lucrativo — e os mapas secretos eram vendidos à larga. Esses
mapas não tinham nada em comum com os da cartografia posterior: mais
pareciam diários de aventuras e experiências. A percepção do espaço uniforme
e contínuo era desconhecida do cartógrafo medieval, cujos esforços lembram
mais a arte moderna não figurativa. Ainda hoje, os nativos que se defrontam
pela primeira vez com o novo espaço renascentista levam um verdadeiro
choque. Conta o Príncipe Modupe, em sua autobiografia, Eu Fus Um Selvagem,
como aprendeu a ler mapas na escola e como voltou à sua aldeia com o mapa
de um rio que seu pai percorrera durante anos, como comerciante.
... meu pai achou tudo absurdo. Recusou-se a identificar a correnteza
que ele cruzara em Bomako e cuja profundidade, dizia, não ultrapassava a
altura de um homem, com as grandes águas espraiadas do grande deita do
Níger. As distâncias medidas em milhas não tinham qualquer significado para
ele.... Os mapas eram mentirosos, disse-me ele secamente. Pela seu tom de
voz, percebi que o havia magoado em algum ponto que, então, não percebi. As
coisas que ferem uma pessoa não aparecem num mapa. A verdade de um lugar
reside na alegria e na tristeza que dele provêm. Aconselhou-me a desconfiar de
coisas duvidosas, como um mapa... Compreendo agora, embora não o
percebesse naquele tempo, que o fato de eu devassar com desembaraça e
facilidade
aquelas
desconcertantes
distancias
traçadas
no
mapa
amesquinhavam aqueles caminhos que ele trabalhosamente percorrera e
medira a pé. Com meu papo sobre mapas, eu apagara a grandeza de seus
carros de bois, com suas mercadorias e com seu calor.
Todas as palavras do mundo não bastam para descrever um balde,
embora seja possível dizer, em poucas palavras, como se faz um balde. Essa
inadequação das palavras em transmitir informação visual sobre objetos foi um
entrave real ao desenvolvimento das ciências na Grécia e em Roma. Plínio, o
Velho, registra a inabilidade dos botânicos gregos e latinos no que respeita aos
meios de transmissão de informações sobre plantas e flores:
Por aqui se vê que outros escritores se contentaram com uma descrição
verbal das plantas; em verdade, alguns deles sequer as descreveram,
limitando-se, na maior parte, a alinharem pura e simplesmente os seus
nomes...
Aqui nos defrontamos uma vez mais com a função básica dos meios de
armazenar e transmitir informação. De modo mais simples: armazenar já é
transmitir, pois o que já está armazenado é mais acessível do que o que ainda
deve ser colhido. O fato de informação visual sobre flores e plantas não poder
ser armazenado verbalmente acentua o fato de que a Ciência, no mundo
ocidental, sempre esteve na dependência do fator visual. I sto não deve causar
surpresa numa cultura letrada baseada na tecnologia do alfabeto e que reduz
até a palavra falada a um modo visual. Como a eletricidade criou múltiplos
meios não-visuais de armazenamento e recuperação da informação,
deslocaram-se a base e o caráter tanto da cultura como da Ciência. Para o
educador, como para o filósofo, não se faz necessário ter o conhecimento exato
do que esse deslocamento significa para o ensino e para o processo mental.
Bem antes de Gutenberg desenvolver seus tipos moveis de imprensa,
muita impressão sobre papel já fora executada, utilizando-se a xilogravura.
Talvez que a forma mais popular desta impressão de textos e imagens tenha
sido a da Biblia Pauperum, a Bíblia dos Pobres. Estes impressores xilográficos
precederam os impressores tipográficos. embora não se possa precisar de
quanto tempo, porque essas publicações baratas e populares, desprezadas
pelos eruditos, não foram preservadas como não o são os “gibis” de hoje. A
grande lei da bibliografia se manifesta nesses trabalhos gráficos pré-Gutenberg:
“Quanto mais havia, menos há.” Ela se aplica a muitos outros itens, além da
matéria impressa — aos selos e os primeiros receptores de rádio.
O homem medieval e renascentista sofria pouco da separação e da
especialização das artes, tais como se desenvolveram posteriormente. Os
manuscritos e os primeiros livros impressos eram lidos em voz alta — e a
poesia era cantada ou declamada. Oratória, Música, Literatura e Desenho
estavam intimamente ligados. No mundo das iluminuras, de maneira especial,
as letras ganhavam uma ênfase plástica que as aproximava da escultura.
Millard Meiss, o iluminador de manuscritos, ao estudar a arte de Andrea
Mantegna, diz que, nas margens floridas e ramadas da página, as letras de
Mantegna “se erguem como monumentos de pedras, sólidos, finamente
entalhados... Palpavelmente implantadas e maciças, elas saltam audazes do
fundo colorido, sobre o qual, muitas vezes, projetam a sua sombra..
A mesma sensibilidade para as letras do alfabeto vistas como ícones
gravados, ressurge hoje nas artes gráficas e no display publicitário. Pode ser
que o leitor já tenha percebido essa mudança no soneto sobre as vogais, de
Rimbaud, ou em algumas das telas de Braque. Mas o estilo das manchetes de
jornais tende a impelir as letras para a forma icônica, forma muito próxima da
ressonância auditiva e das qualidades tátil e escultórica.
Talvez que a suprema qualidade da imprensa se tenha perdido para nós,
tão óbvia e espontânea é a sua existência. Essa qualidade reside no fato de ela
ser um pronunciamento pictórico que pode ser repetido precisa e
indefinidamente — pelo menos até que o tipo se gaste. A repetibilidade é o
cerne do princípio mecânico que vem dominando nosso mundo, desde o
advento da tecnologia gutenberguiana. Com a tipografia, o princípio dos tipos
móveis introduziu o meio de mecanizar qualquer artesanato pelo processo de
segmentar e fragmentar a operação total. O que começara com o alfabeto, que
separou os gestos, a visão e o som da palavra falada, atingiu um novo nível de.
intensidade com a xilogravura e, depois, com a tipografia. O alfabeto fez do
fator visual o componente supremo, reduzindo a essa forma todos os demais
fatos sensoriais da palavra falada. É o que ajuda a explicar por que a gravura
em madeira e, mesmo, a fotografia, tiveram tão rápida aceitação no mundo
letrado. Estas formas propiciam um mundo de gestos inclusivos e de
disposições dramáticas necessariamente omitidas da palavra escrita.
A imprensa foi logo aceita como meio de transmitir informação e como
meio de incentivo à piedade e à meditação. Em 1472, a Arte da Guerra, de
Voltúrio, foi impressa em Verona, com muitas xilogravuras para explicar os
engenhos bélicos. Mas a xilogravura, como acólito da contemplação — nos
Livros de Horas, nos Emblemas e nos Calendários de Pastor — continuou por
duzentos anos em larga escala.
Não é irrelevante considerar que as velhas impressões e xilogravuras,
tais como as histórias em quadrinhos e os “gibis” de hoje, poucos dados
fornecem sobre épocas especificas ou aspectos espaciais específicos de um
objeto. O leitor é impelido a participar da contemplação e da interpretação dos
escassos vestígios que são fornecidos pelas linhas de contorno. Semelhante ao
caráter de gravar em madeira, da caricatura e do desenho animado é a imagem
da televisão, que apresenta baixo nível de definição dos objetos, de que resulta
um alto grau de participação por parte do telespectador, no sentido de
contemplar o que se apresenta apenas esboçado na trama mosaica da retícula.
Com o advento da televisão, a história em quadrinhos entrou em declínio.
Exauridos os pools do trabalho escravo greco-romano, o Ocidente teve
de partir para uma intensificação da tecnologia. Assim também o colono
americano, face a novas tarefas e oportunidades e defrontando-se com uma
grande escassez de mão-de-obra, foi levado a uma criação verdadeiramente
frenética de dispositivos poupa-trabalho. A lógica do sucesso nesse setor
pareceria indicar a retirada final da força do trabalho da cena da labuta
obrigatória. Mas se este tem sido o motivo que comanda toda a tecnologia
humana, não se segue que estejamos preparados para aceitar as
conseqüências. Ele contribui com pontos de referência para que enxerguemos o
processo em desenvolvimento nos tempos remotos, quando trabalhar
significava servidão especializada e quando só o lazer significava um vida
humana digna e a participação do homem integral.
Em sua canhestra fase da xilogravura, a imprensa revela um importante
aspecto da linguagem: as palavras não comportam definições precisas no uso
diário. Ao examinar o cenário filosófico nos inícios do século XVI I , Descartes
ficou assombrado com a confusão de línguas e se pôs a trabalhar no sentido de
reduzir a Filosofia a uma forma matemática precisa. Seu esforço em prol de
uma precisão. irrelevante só serviu para excluir da Filosofia a maior parte das
questões filosóficas; e este grande reino da Filosofia logo se fragmentou nessa
vasta gama de ciências e especializações não-comunicantes que hoje
conhecemos. A intensificação do acento visual nos projetos e na precisão é uma
força explosiva que fragmenta tanto o mundo do poder quanto o mundo do
conhecimento. A crescente precisão e quantificação da informação visual
transformou a imprensa no mundo tridimensional da perspectiva e do ponto de
vista fixo. Hieronymus Bosch, em pinturas que difundiam as formas medievais
no espaço renascentista, fala-nos do que era sentir-se escanchado entre um
mundo velho e um mundo novo, no decorrer daquela revolução. Bosch,
simultaneamente, exibia uma plástica mais antiga, uma imagem tátil, e a
colocava na nova perspectiva, intensamente visual.
A velha idéia medieval de um espaço singular e descontínuo se
superpunha à nova idéia de um espaço contínuo e ligado em seqüência. E isto
ele realizou com uma intensidade de pesadelo das mais sinceras.
Lewis Carrol lançou o século XI X num mundo de sonho que se revelou
tão espantoso quanto o de Bosch, embora construído segundo princípios
opostos. Alice no Pais das Maravilhas apresenta como norma aquele espaço e
aquele tempo contínuos que haviam provocado tanta perplexidade na
Renascença. I nvadindo este mundo euclidiano uniforme com um espaço-tempo
familiar, Carrol construiu a fantasia de um espaço-tempo descontínuo que
antecipa Kafka, Joyce e Eliot. Matemático contemporâneo de Clerk Maxwell,
Lewis Carrol era tão de vanguarda que já tinha conhecimento das geometrias
não-euclidianas que começavam a aparecer em seu tempo. Em Alice no País
das Maravilhas ele deu aos confiantes vitorianos um jocoso antegosto do
espaço-tempo einsteiniano. Bosch dera ao seu tempo um antegosto do novo
tempo-espaço contínuo da perspectiva uniforme, encarando com horror o
mundo moderno, como Shakespeare no Rei Lear, e Pope, na Duncíada. Mas
Lewis Carrol saudou com efusão a nova era eletrônica do espaço-tempo.
Os nigerianos que estudam nas universidades americanas às vezes são
solicitados a identificar relações espaciais. Diante de objetos à luz do Sol, eles
muitas vezes não são capazes de indicar em que direção se orientarão as
sombras, pois isto envolve projeção em perspectiva tridimensional. O Sol, o
objeto e o observador constituem-se em experiências separadas. uma
independente da outra. Para o homem medieval, como para o nativo, o espaço
não era homogêneo e não continha os objetos. Cada coisa criava o seu próprio
espaço, como ainda cria para o nativo (e para o físico moderno). Claro que isto
não quer dizer que os artistas nativos não relacionem as coisas. Concebem
muitas vezes as relações mais complicadas e sofisticadas. Artista e observador
não têm qualquer problema em reconhecer e interpretar aquelas estruturas —
desde que se trate de uma estrutura tradicional. Basta que alguém a modifique
ou a traduza para um outro meio (para três dimensões, por exemplo) — e o
artista já não a reconhecerá mais.
Um filme sobre Antropologia mostrava um escultor melanésio a entalhar
um tambor decorado com tal habilidade, coordenação e facilidade, que os
espectadores muitas vezes rompiam em aplausos — que logo se transformavam
em canção e em dança. Mas quando o antropólogo pediu à tribo que
construísse engradados para embarcar as peças entalhadas, os nativos
pelejaram infrutiferamente durante três dias para conseguir encaixar duas
pranchas a 90º — e desistiram, frustrados. Não conseguiam embalar o que
conseguiram criar.
No mundo de baixa definição da xilogravura medieval, cada objeto criava
seu próprio espaço, e não havia nenhum espaço racional e unido em que o
objeto devesse caber. À medida em que a impressão retínica é intensificada, os
objetos deixam de ter coerência num espaço de sua própria criação, devendo
ser contidos num espaço uniforme, contínuo e “racional”. Em 1905, a teoria da
relatividade veio anunciar a dissolução do espaço uniforme newtoniano, como
ilusão, ou ficção — ainda que útil. Einstein pronunciou a condenação do espaço
contínuo ou “racional” — o que limpou o caminho para Picasso, os I rmãos Marx
e MAD.
17. ESTÓRI AS EM QUADRI NHOS
MAD: VESTÍ BULO PARA A TV
Foi graças à imprensa que Dickens se tomou um escritor satírico, pois
começou como redator de um caricaturista popular. O estudo das estórias em
quadrinhos, nesta altura, logo após o capítulo dedicado à I mprensa, visa a
chamar a atenção para a permanência de certas características da imprensa e
mesmo da xilogravura nas estórias em quadrinhos do século XX. Não é fácil
perceber como as qualidades da imprensa e da xilogravura podem reaparecer
na trama mosaica da imagem da TV. A televisão é um assunto tão difícil para
as pessoas letradas que tem de ser abordada de maneira oblíqua. Dos três
milhões de pontos por segundo que bombardeiam o vídeo, o telespectador só
consegue captar, iconicamente, algumas dúzias ou pouco mais de setenta
pontos, com os quais forma a imagem. Esta imagem e tão imprecisa quanto a
das estórias em quadrinhos. É por esta razão que a imprensa e os quadrinhos
favorecem uma abordagem cômoda à compreensão da imagem televisionada,
pois fornecem baixa informação visual ou poucos detalhes em cadeia. Os
pintores e escultores, no entanto, podem facilmente compreender a televisão,
pois sentem o quanto de envolvimento tátil se faz necessário para a apreciação
das artes plásticas.
As qualidades estruturais da imprensa, da gravura em madeira e,
mesmo, da caricatura, implicam num caráter participacional, do tipo "faça você
mesmo”, que caracteriza muitas das experiências facultadas pelos meios
modernos. A imprensa serve de pista para os quadrinhos e estes servem de
pista para a compreensão da imagem da TV.
Muito adolescente enrugado ainda se lembra da fascinação que sobre ele
exerceu aquela maravilha de estória em quadrinhos que se chamou Yellow Kid
(“O Garoto Amarelo”), de Richard F. Outcault. Ao aparecer, ela se chamava
Hogan’s Alley ("A Rua da Cabana”), no New York Sunday World. Mostrava uma
série de aventuras de crianças que ali moravam — como se fossem Pafúncio e
Maricota (Maggie e Jiggs) quando crianças. Esta série fez vender muito jornal
em 1898 e nos anos seguintes. Hearst logo a adquiriu, dando início ao
suplemento em quadrinhos de grande tiragem. As estórias em quadrinhos
(como já explicamos no capítulo dedicado à imprensa), apresentando baixa
definição, possuem uma forma de expressão altamente participante,
perfeitamente adaptada à forma em mosaico do jornal. Dão também um
sentido de continuidade de um dia para o outro. Também as notícias sobre
pessoas são de baixo teor informacional e por isso convidam a que o leitor as
preencha, exatamente como acontece com a imagem da televisão e a
radiofoto. Eis por que a TV constitui um golpe fatal nas estórias em quadrinhos,
das quais foi antes um rival do que um complemento. Mas vibrou um golpe
mais duro ainda no anúncio pictórico, que teve de abandonar o preciso e o
lustroso em favor do impreciso, do escultórico e do tátil. Daí o súbito sucesso
da revista MAD, que oferece um arremedo frio e gozador dos meios quentes,
tais como a fotografia, o rádio e o cinema. MAD não é senão a recorrência das
velhas imagens. impressas e gravadas em madeira, nos meios atuais. Seu tipo
de configuração acabará por moldar todas as mensagens aceitáveis da
televisão.
O maior dano causado pelo impacto da TV foi sobre o Ferdinando (Li’l
Abner), de Al Capp. Durante dezoito anos, Al Capp manteve Ferdinando à beira
do casamento. A fórmula sofisticada empregada em suas personagens era
oposta à utilizada pelo romancista francês Stendhal, que declarava: “Eu apenas
enredo as minhas personagens nas conseqüências de sua própria estupidez —
e depois lhes concedo cérebros para que possam sofrer.” Já Al Capp diria: “Eu
apenas enredo a minha gente nas conseqüências de sua própria estupidez e
depois lhes extraio os cérebros para que nada possam fazer.” A inabilidade
desses caracteres em ajudarem-se a si próprios criou uma espécie de paródia
de todas as estórias em quadrinhos de suspense. Al Capp levou o suspense ao
absurdo. Mas os leitores há muito se vêm deliciando com o fato de os apuros
do pessoal desastrado de Riacho Fundo (Dogpath) funcionarem como
paradigma da situação humana em geral.
Com a chegada da televisão e sua imagem icônica em mosaico, as
situações da vida diária começaram a parecer bem quadradas, de fato. E Al
Capp logo percebeu que a sua fórmula de distorção já não funcionava. Sentiu
que os americanos haviam perdido a capacidade de rir de si mesmos. Ele
estava errado. A televisão simplesmente estava envolvendo todo mundo com
todo mundo de uma maneira mais profunda. Meio frio que é, e comandando a
participação em profundidade, a televisão veio exigir de Al Capp que
reformulasse a imagem de Ferdinando. A confusão e o desconsolo que o
assaltaram retratam os sentimentos da grande empresa americana. Da revista
Life à General Motors, das salas de aula às Suites Executivas, tornava-se
inevitável a reformulação de imagens e objetivos, no sentido de permitir maior
envolvimento e participação do público. Enquanto isso, Al Capp declarava: “A
América mudou. O humorista sente a mudança, talvez, mais do que qualquer
outro. Há coisas agora na América com as quais não podemos brincar.”
O envolvimento em profundidade encorajou todos a se tomarem mais a
sério do que antes. Assim como a televisão esfriou a audiência americana,
dando-lhe novas preferências e nova orientação para os sentidos da visão, do
som. do tato, e do gosto, assim Al Capp deveria ter reduzido a graduação
alcoólica de sua maravilhosa bebida. Já não era mais o caso de gozar Dick
Tracy ou os esquemas de suspense. Como a revista MAD viria a descobrir, a
nova audiência começava a achar as cenas e temas da vida quotidiana tão
hilariantes quanto o que se passava na remota Riacho Fundo. A revista MAD
simplesmente transferiu o mundo dos anúncios para o mundo do livro em
quadrinhos, e o fez justamente quando a imagem da televisão já começava a
eliminar, por emulação direta, as estórias em quadrinhos. Ao mesmo tempo, a
imagem da TV tornou turva e embaçada a imagem clara e bem delineada da
fotografia. A TV esfriou o público leitor de anúncios até que a ênfase
persistente da publicidade e do mundo da diversão do entretenimento acabou
por alimentar o projeto da revista MAD. Por obra da TV, os meios quentes —
fotografia, filme, rádio — se viram convertidos num mundo de estórias em
quadrinhos, pelo simples fato de serem apresentados como embalagens
superquentes. Hoje, o menino e a menina de dez anos grudam no seu MAD
(“Construa o seu ego com MAD”) com o mesmo desvelo com que um beatnik
russo guarda a fita gravada de uma velha canção de Elvis Presley, obtida de
uma emissão de rádio para os pracinhas. Se a “Voz da América” de repente
começasse a programar jazz, o Kremlin teria razões de temer. I gualmente
eficaz seria se os russos pudessem compulsar os catálogos da Sears Roebuck,
em lugar de ouvirem nossa horrível propaganda sobre o modo americano de
vida.
Picasso sempre foi um fã de estórias em quadrinhos americanas. De
Picasso a Joyce, os intelectuais sempre tiveram estima por essa arte popular
americana, porque nela viam uma autêntica reação criativa às iniciativas
oficiais. De outra parte, a arte refinada tende a evitar e condenar as
manifestações artísticas ruidosas numa poderosa sociedade “quadrada”, de alta
definição. A arte refinada é uma espécie de réplica das especializadas façanhas
acrobáticas de um mundo industrializado. A arte popular é um palhaço que nos
desperta para toda aquela vida e todas aquelas faculdades que deixamos de
desenvolver na vida de todos os dias. Agindo como homem integral, ele se
aventura a desempenhar tarefas especializadas da sociedade. Mas o homem
integral é sempre um desastrado numa situação especializada. De qualquer
modo, este é o caminho para se chegar à arte das estórias em quadrinhos e à
arte do palhaço.
Hoje, nossas crianças de dez anos, ao votarem em MAD, estão nos
dizendo à sua moda que a imagem da televisão deu por terminada a fase de
consumo da cultura americana. Eles estão nos dizendo o que os beatniks de
dezoito anos foram os primeiros a dizer, há dez anos atrás. A era pictórica do
consumo está morta. Sobre nós vem a era icônica. Hoje empurramos para os
europeus a embalagem que nos tocou de 1922 a 1952. Enquanto isso, eles vão
entrando na primeira idade do consumo de bens padronizados. Nós
caminhamos parra a nossa primeira e profunda idade de impulso arteprodução. A América se europeíza de modo tão extenso quanto a Europa se
americaniza.
Onde ficam as velhas e populares estórias em quadrinhos? Onde fica
Blondie, onde Bringing Up Father? O seu mundo era um mundo pastoral e
inocente, no qual a jovem América já se diplomou. Ainda havia adolescência
naqueles dias, ainda havia ideais longínquos e sonhos pessoais e metas
discerníveis — e não este vigoroso e onipresente estado de espírito corporativo
que conduz à participação grupal.
No capítulo sobre a imprensa indicamos como a caricatura é uma forma
de experiência do tipo “faça você mesmo” que vem ganhando nova vida à
medida que a era da eletricidade avança. Assim, os eletrodomésticos, longe de
serem dispositivos que poupam trabalho, são novas formas de trabalho
descentralizado e acessível a todos. Assim também é o mundo do telefone e da
imagem da televisão, que exige muito mais de seus usuários do que o rádio ou
o cinema. Como conseqüência direta deste aspecto participante e “faça você
mesmo” da tecnologia elétrica, toda espécie de entretenimento, na era da
eletricidade, tende a favorecer a mesma espécie de envolvimento pessoal. Daí
este paradoxo da era da TV: Joãozinho não lê porque a leitura, como se ensina
usualmente, é uma atividade demais superficial e muito do tipo consumista. Por
esta razão, o livro do intelectual, de caráter mais profundo, pode ter mais apelo
para os jovens, que refugam as narrativas comuns que lhes são oferecidas. Os
professores freqüentemente observam que estudantes, que não conseguem ler
uma página de História, tornam-se peritos em códigos e em analise lingüística.
O problema, portanto, não está em que Joãozinho não consiga ler, e sim em
que, na era do envolvimento profundo, Joãozinho não consegue visualizar
objetivos e metas distantes.
Os primeiros livros de estórias em quadrinhos apareceram em 1935. Não
apresentando nada literário ou em seqüência, e sendo tão difíceis de decifrar
quanto o popular Livro de Kells, logo fascinaram os jovens. Os anciãos da tribo,
que jamais haviam percebido que o jornal diário era tão estranho quanto uma
exposição de arte surrealista, dificilmente poderiam perceber que os livros de
estórias em quadrinhos eram tão exóticos quanto iluminuras do século VI I I .
Não tendo percebido nada sobre a forma, nada podiam perceber do
conteúdo. Violência e agressão era tudo o que percebiam. Em conseqüência,
com uma lógica literária ingênua, prepararam-se para ver a violência inundar o
mundo. Como alternativa, atribuíam os crimes às estórias em quadrinhos. O
mais retardado dos condenados logo aprendia a resmungar: “Fiquei assim por
causa das estórias em quadrinhos.”
Enquanto isso, a violência de um ambiente industrial e mecânico tinha de
ser vivida e ganhar motivação e significado nos nervos e nas vísceras dos
jovens. Viver e ter a experiência de algo é traduzir o seu impacto direto sob
muitas formas indiretas de conhecimento. Damos aos jovens uma estridente e
roufenha selva de asfalto, em comparação com a qual uma selva de animais
tropicais parece mais calma e mansa do que uma coelheira. Achamos isto
normal. Pagamos às pessoas para manter essa coisa em seu máximo de
intensidade, só porque dá lucro. E os olhos se abriram surpresos quando a
indústria do entretenimento se propôs realizar um fac-símile razoável da
agitação urbana comum.
Foi Al Capp quem descobriu que — pelo menos até a TV — qualquer
variação das agressões de um Scragg ou da moralidade de um Phogbound era
considerada engraçada. Ele não achava que fosse engraçado. Punha as coisas
em suas estórias tais como as via. Mas a nossa treinada incapacidade em
relacionar uma situação a outra fazia com que seu realismo sardônico fosse
tomado por manifestação de humor. Quanto mais ele mostrava a capacidade
das pessoas em envolver-se em dificuldades terríveis — a par de sua completa
inabilidade em fazer um gesto que as safasse — mais o risco aumentava. “A
sátira — disse Swift —é um espelho no qual vemos todas as atitudes menos as
nossas.”
Tanto os quadrinhos como o anúncio pertencem ao mundo do jogo, ao
mundo dos modelos e das extensões e prolongamentos das situações que se
passam em outra parte. A revista MAD — mundo da gravura em madeira, da
imprensa e da caricatura — aliou tudo isso a outros jogos e modelos do mundo
do entretenimento. MAD é uma espécie de jornal em mosaico do anúncio
entendido como diversão e da diversão como forma da loucura. Acima de tudo,
é uma forma de expressão e de experiência do tipo imprensa e xilogravura,
cujo apelo imediato é um índice seguro das profundas mudanças que estão
ocorrendo em nossa cultura. Precisamos agora compreender o caráter formal
da imprensa (quadrinhos e caricatura), que desafia e altera a cultura de
consumo do filme, da fotografia e do jornal. Não há uma abordagem únI ca
para esta tarefa; nenhuma observação ou idéia isolada pode resolver um
problema tão complexo, qual seja o da mudança da percepção humana.
18. A PALAVRA I MPRESSA
O ARQUI TETO DO NACI ONALI SMO
“A senhora pode notar — disse o
pugilista — que eu sou bem educado a
supérfluo.” Qualquer que fosse o grau de
moda das camisas brancas ultralimpas de
Dr. Johnson com um sorriso de
ponto de ser escrupuloso até no
adaptação do Dr. Johnson à nova
seu tempo, é certo que ele tinha
plena consciência das crescentes exigências sociais no que respeitava à
representação visual.
A impressão por meio dos tipos móveis foi a primeira mecanização de
um artesanato complexo, tornando-se o arquiteto de todas as mecanizações
subseqüentes. De Rabelais a More, a Mill e a Morris, a explosão tipográfica
estendeu as mentes e as vozes dos homens para reconstituir o diálogo humano
numa escala mundial que atravessou os séculos. Encarada simplesmente como
um armazenamento da informação, ou como um meio de rápida recuperação
do conhecimento, a tipografia acabou com o paroquialismo e com o tribalismo,
tanto psíquica quanto socialmente, tanto no espaço como no tempo. Nos
primeiros dois séculos, a impressão por tipos móveis foi muito mais motivada
pelo desejo de ver os livros antigos e medievais do que pela necessidade de ler
e escrever livros novos. Até 1700, mais de 50 por cento de todos os livros
impressos eram clássicos ou medievais. Ao primeiro público leitor de obras
impressas foram oferecidos livros não apenas na Antiguidade como também da
I dade Média. E os livros medievais eram, de longe, os mais populares.
Como qualquer outra extensão do homem, a tipografia provocou
conseqüências psíquicas e sociais que logo alteraram os limites e padrões de
cultura. Fundindo — ou confundindo, como diriam alguns — os mundos clássico
e medieval, o livro impresso criou um terceiro mundo. o moderno, que agora
ingressa numa nova era de tecnologia elétrica — uma nova extensão do
homem. Os meios elétricos de transmissão da informação estão alterando a
nossa cultura tipográfica tão nitidamente quanto a impressão modificou o
manuscrito medieval e a cultura escolástica.
Recentemente, Beatrice Warde, em Alfabeto, apresentou um mostruário
elétrico de letras pintadas com luz. E a propósito de um filme publicitário de
Norman McLaren, ela declara:
Você se admiraria de eu ter chegado tarde ao teatro naquela noite, se eu
lhe contasse que vi dois AA egípcios com pés de pau... caminhando de braços
dados com aquele inconfundível gingado de dançarinos de teatro de revista? Vi
as cerifas das letras se articularem como sapatilhas de balé... e as letras
dançando literalmente sur les pointes... Depois de quarenta séculos de alfabeto
necessariamente estático, eu vi o que os seus componentes podem fazer na
quarta dimensão do tempo, fluxo, movimento. Você pode muito bem dizer que
eu estava eletrizada.
Nada mais afastado da cultura tipográfica. com seu “lugar para todas as
coisas e todas as coisas em seu lugar”.
A Sra. Warde passou a vida a estudar a tipografia e demonstra um tato
seguro em sua resposta admirativa a letras que não são impressas com tipos e
sim pintadas com luz. Pode dar-se que a explosão que começou com as letras
fonéticas (os “dentes de dragão” semeados pelo Rei Cadmo) sofra uma
reversão no sentido de uma “implosão”, sob o impulso da velocidade
instantânea da eletricidade. O alfabeto (e a sua extensão na tipografia) tornou
possível a difusão da energia que é o conhecimento e rompeu os elos do
homem tribal, fazendo-o explodir em aglomerações de indivíduos. Agora, a
escrita elétrica e a velocidade despejam sobre ele, instantânea e
continuamente, os problemas de todos os outros homens. Ele se torna tribal
novamente. A família humana volta a ser uma tribo.
Qualquer estudante da história social do livro impresso possivelmente
ficará intrigado com a falta de compreensão dos efeitos psíquicos e sociais
causados pela imprensa. São bem escassos os comentários e as observações
explícitas sobre os efeitos da imprensa na sensibilidade humana, desde a sua
descoberta há cinco séculos. Mas a mesma observação pode ser feita a
propósito de todas as extensões do homem, sejam roupas ou computadores.
Toda extensão é uma amplificação de um órgão, de um sentido ou de uma
função que inspira ao sistema nervoso central um gesto autoprotetor de
entorpecimento da área prolongada — pelo menos no que se refere a uma
inspeção e a um conhecimento diretos. Comentários indiretos sobre os efeitos
do livro impresso podem ser colhidos em abundância na obra de Rabelais,
Cervantes, Montaigne, Swift, Pope e Joyce. Eles utilizaram a tipografia para
criar novas formas artísticas.
Psicologicamente, o livro impresso, como extensão da faculdade visual,
intensificou a perspectiva e o ponto de vista fixo. Associada à ênfase visual do
ponto de vista e do ponto de fuga que produzem a ilusão da perspectiva, veio
uma outra ilusão: a de que o espaço é visual, uniforme e contínuo. A
linearidade, a precisão e a uniformidade da disposição dos tipos móveis são
inseparáveis das grandes formas e inovações culturais da experiência
renascentista. A nova intensidade da pressão visual e do ponto de vista
particular, no primeiro século da imprensa, veio associada aos meios de autoexpressão tornados possíveis — pela extensão tipográfica do homem.
Socialmente, a extensão tipográfica do homem trouxe o nacionalismo, o
industrialismo, os mercados de massa, a alfabetização e a educação universais.
A imprensa apresentou uma imagem de precisão repetitiva que inspirou formas
totalmente novas de expansão das energias sociais. Como hoje sucede no
Japão e na Rússia, a imprensa liberou grandes energias psíquicas e sociais no
Renascimento, tirando o individuo de seu grupo tradicional e fornecendo-lhe
um modelo de como adicionar indivíduos para formar uma poderosa
aglomeração de massa. O mesmo espírito de iniciativa privada que encorajou
autores e artistas a cultivar sua expressão particular, levou outros homens à
criação de gigantescas corporações, tanto militares como comerciais.
Talvez que o dom mais significativo da tipografia seja o do desligamento
e do não-envolvimento — o poder de agir sem reagir. Desde o Renascimento a
Ciência exaltou este dom, que se tornou um empecilho na era da eletricidade,
em que todo mundo se vê envolvido com todo mundo, durante todo o tempo. A
própria palavra “desinteressado”, expressando o soberano distanciamento e a
integridade ética do homem tipográfico. passou a ser utilizada na última década
para significar: “Ele pouco se importa.” A mesma integridade indicada pelo
termo “desinteressado”, como símbolo do temperamento erudito e científico de
uma sociedade letrada e ilustrada, agora vai sendo repudiada como
“especialização” e fragmentação do conhecimento e da sensibilidade. O poder
fracionador e analítico da palavra impressa sobre a nossa vida psíquica deu-nos
aquela “dissociação da sensibilidade”, que é o primeiro item que se procura
eliminar nas artes e na literatura, desde Cézanne e Baudelaire, e em qualquer
programa que se proponha reformar o gosto e o conhecimento. Na “implosão”
da era elétrica, a separação entre pensamento e sentimento é tão estranha
quanto a departamentalização do conhecimento nas escolas e universidades. E
foi precisamente esse poder de separar pensamento e sentimento, esse poder
de agir sem reagir, que afastou o homem letrado daquele mundo tribal de
estreitos laços familiares tanto na vida privada como na vida social.
A tipografia não se adicionou simplesmente à arte da escrita, como o
automóvel não se adicionou ao cavalo. A imprensa também teve a sua fase da
“carruagem sem cavalo”, em suas primeiras décadas; mal compreendida e mal
aplicada, não era raro que o comprador de um livro impresso o levasse a um
copista para copiá-lo e ilustrá-lo. Mesmo nos inícios do século XVI I I , um “livro
de texto” ainda era definido como de “Autor Clássico. espaçadamente escrito
pelos Estudantes, para que espaço reste à I nterpretação ditada pelo Mestre, e
outros, e a ser inserida nas Entrelinhas” (Q. E. D. — Quod Erat
Demonstrandum). Antes da imprensa, a maior parte do tempo de aula era
gasto na produção desses textos. A classe tendia a ser um scriptorium com um
comentário. O estudante era um compilador-editor. Por sinal que o mercado de
livros era um mercado de segunda mão e relativamente com poucos títulos. A
imprensa modificou tanto o processo de ensino como o processo do mercado.
O livro foi a primeira máquina de ensinar e também a primeira utilidade
produzida em massa. Amplificando e estendendo a palavra escrita, a tipografia
revelou e amplificou tremendamente a estrutura da escrita. Hoje, com o cinema
e com a aceleração do movimento elétrico da informação; a estrutura formal da
palavra impressa, bem como de todo mecanismo em geral, mais parece um
dejeto que fica entregue às moscas. Um novo meio nunca se soma a um velho,
nem deixa o velho em paz. Ele nunca cessa de oprimir os velhos meios, até que
encontre para eles novas configurações e posições. A cultura do manuscrito
alicerçou os processos orais na educação — o “escolasticismo” — ao nível
máximo; mas ao colocar o mesmo texto diante de um número qualquer de
alunos ou leitores, a imprensa acabou logo com o regime escolástico das
disputas orais. Forneceu uma memória enorme e nova para os escritos do
passado, tornando a memória pessoal inadequada.
Conta Margaret Mead que, quando levou exemplares de um livro para as
ilhas do Pacífico, o fato foi um verdadeiro acontecimento. Os nativos já haviam
visto livros, mas apenas um exemplar de cada, que eles tinham por único. Seu
espanto ante a identidade de vários livros foi a sua resposta natural a algo que
constitui, afinal de contas, o aspecto mais mágico e poderoso da imprensa e da
produção em massa. Ele envolve um princípio de extensão por homogeinização,
que é a chave para o entendimento do poderio ocidental. O livro impresso,
baseado na uniformidade e na repetibilidade segundo uma ordem visual, foi a
primeira máquina de ensinar, assim como a tipografia foi a primeira
mecanização do artesanato. Mas, a despeito da extrema fragmentação e
especialização da atividade humana, necessárias à realização da palavra
impressa. o livro impresso representa um rico compósito de invenções culturais
anteriores. O esforço total incorporado ao livro ilustrado e impresso oferece um
exemplo marcante da variedade de atos inventivos separados que são
necessários ao aparecimento de um novo resultado tecnológico.
As conseqüências psíquicas e sociais da impressão incluíam a extensão
de seu caráter físsil e uniforme à gradual homogeinização de diversas zonas,
daí resultando a amplificação do poder, da energia e da agressão que
costumamos associar aos novos nacionalismos. Psiquicamente, a extensão e
amplificação visual do indivíduo pela imprensa acarretou efeitos de vária ordem.
Um dos exemplos mais impressionantes e o mencionado por E. N. Forster, ao
estudar alguns tipos do Renascimento e ao declarar que a “imprensa, então
com apenas um século, fora tomada como um engenho de imortalidade, e
todos se apressavam em imprimir seus feitos e paixões. para edificação dos
pósteros”. As pessoas começaram a agir como se a imortalidade fosse inerente
à mágica repetibilidade e extensão da imprensa.
Um outro aspecto significativo da uniformidade e da repetibilidade da
página impressa foi a pressão que ela exerceu em relação à soletração, à
sintaxe e à pronúncia “corretas”. Mais notáveis ainda foram os efeitos da
imprensa no que se refere à separação entre Poesia e Canção, entre Prosa e
Oratória, entre o falar popular e o falar culto. Quanto à Poesia, como podia ser
lida sem ser ouvida, os instrumentos também podiam ser tocados sem que
tivessem de acompanhar os versos. A Música se desviou da palavra falada, para
voltar a ela de novo com Bartók e Schoenberg.
Com a tipografia, o processo de separação (ou explosão) das funções
permeou lentamente todos os níveis e esferas; e em nenhuma parte este
assunto foi notado e comentado com maior azedume do que nas peças de
Shakespeare. Especialmente no Rei Lear, Shakespeare apresenta uma imagem
ou modelo do processo de quantificação e fragmentação. que já se fazia sentir
no mundo da política e da vida familiar. Logo na abertura da peça, Lear
apresenta “nossos propósitos mais negros” como um plano de delegação de
poderes e deveres:
E só conservaremos
O nome de Rei e alguns atributos;
Governo, rendas e demais funções
Lhes pertencem, meus queridos. Partilhem
Esta coroa — e assim minhas palavras
Se confirmem.
Este ato de fragmentação e delegação golpeia Lear. seu reino e sua
família. Dividir para reinar era a nova idéia dominante na organização do poder
do Renascimento. “Nosso propósito mais negro” refere-se ao próprio Maquiavel
que desenvolvera uma idéia de poder individualista e quantitativa que causou
mais temor ao seu tempo do que Marx ao nosso. A imprensa desafiou os
padrões das corporações da organização medieval como a eletricidade agora
desafia nossos individualismo fragmentado.
A uniformidade e repetibilidade da imprensa introduziu no Renascimento
a idéia de um tempo e de um espaço entendidos como quantidades contínuas
mensuráveis. O efeito imediato desta idéia foi o de dessacralizar o mundo da
natureza e o mundo do poder. A nova técnica de controle dos processos físicos,
mediante a fragmentação e a segmentação, separou Deus da Natureza, o
Homem da Natureza, e o Homem do Homem. O choque causado por este
afastamento da visão tradicional e do conhecimento inclusivo tem sido atribuído
à figura de Maquiavel, que apenas explicitou as novas idéias de domínio —
quantitativas, neutras, científicas — a serem aplicadas na manipulação dos
reinados.
Toda a obra de Shakespeare vem semeada dos temas das novas
limitações do poder. tanto do rei quanto das pessoas. Seu tempo não podia
conceber horror maior do que o espetáculo de Ricardo I I , o rei sagrado, a
sofrer as indignidades da prisão e do desnudamento de suas prerrogativas
sagradas. Em Troilo e Cressida exibe-se o novo culto do poder físsil e
irresponsável, público e privado, numa charada cínica de competição
atomística:
Vá pelo atalho
Que a honra vai por trilhas tão estreitas
Que mal dão passo a um homem; vá por ele,
Que a emulação tem filhos aos milhares
E todos em disputa; se você cede
Passagem ou se desvia do caminho,
Como maré montante eles virão,
Deixando-o para trás...
(I I I , 3)
A imagem de uma sociedade segmentada numa massa homogênea de
apetites quantificados ensombrece a visão de Shakespeare, em suas últimas
peças.
Dentre as muitas conseqüências imprevistas da tipografia, a emergência
do nacionalismo é, talvez, a mais conhecida. A unificação política das
populações por meio de agrupamentos vernáculos e lingüísticos não foi possível
até que a imprensa transformasse cada idioma em meio de massa extensivo. A
tribo, forma prolongada de família de parentesco consangüíneo, explode com a
imprensa, sendo substituída por uma associação de homens homogeneamente
treinados para serem indivíduos. O próprio nacionalismo surge como nova e
intensa imagem visual dos destinos e do status grupal e vinculado a uma
velocidade do movimento da informação desconhecida antes do advento da
imprensa. Hoje, a imagem do nacionalismo ainda depende da imprensa — mas
com todos os meios elétricos contra ela. Nos negócios e na política, as velhas
associações nacionais de organização social vão-se tornando impraticáveis, sob
o efeito da aviação a jato. No Renascimento, foi a velocidade da imprensa e dos
conseqüentes desenvolvimentos comerciais e de mercado que fez do
nacionalismo algo de natural e novo, pois o nacionalismo implica em
continuidade e competição num espaço homogêneo. Por isso mesmo, as
heterogeneidades e as descontinuidades não-competitivas das corporações e da
organização familiar da I dade Média se transformavam em verdadeiros
entraves, à medida que a aceleração da informação pela imprensa reclamava
mais fragmentação e uniformidade de funções. Os Cellinis, joalheiros-pintoresescultores-escritores-condottieri, tornaram-se obsoletos.
Quando uma nova tecnologia é introduzida num ambiente social, ela não
cessa de agir nesse ambiente até a saturação de todas as instituições. A
tipografia influiu em todas as fases de desenvolvimento das artes e das
ciências, nos últimos quinhentos anos. Seria fácil documentar os processos
pelos quais os princípios da continuidade, uniformidade e repetibilidade se
tornaram as bases do cálculo, da mercadologia, da produção industrial, da
indústria do entretenimento e das ciências. Mas basta apontar que a
repetibilidade conferiu ao livro impresso o estranho e novo caráter de um bem
de consumo de preço uniforme, o que veio a abrir as portas ao sistema de
preços. Além disso, o livro impresso tinha as vantagens da portabilidade e da
acessibilidade em relação ao manuscrito.
Diretamente associada a essas qualidades expansivas tivemos a
revolução na expressão. Sob as condições do manuscrito, o papel de um autor
era tão vago e incerto quanto o de um menestrel. Daí que a expressão própria
fosse de pouco interesse. A tipografia inaugurou um meio que possibilitou falar
alto e bom som ao próprio mundo, como antes fora possível circunavegar o
mundo dos livros devidamente enclausurado no mundo pluralístico das celas
monásticas. A audácia dos tipos criou a audácia da expressão.
A uniformidade também atingiu as áreas da fala e da escrita, as
composições escritas passando a se pautar por um mesmo tom e atitude em
relação ao leitor e em relação ao assunto. Nascera o “homem de letras”.
Estendido à palavra falada, este equitom letrado capacitou os literatos a
manterem um “tom elevado” mesmo em discursos contundentes e facultou aos
prosadores do século XI X a possibilidade de assumirem qualidades morais que
poucos hoje se preocupariam em imitar. A impregnação da linguagem coloquial
pelas qualidades tipográficas uniformes fez baixar o tom do bem falar, até que
este se tornasse um fac-símile acústico aceitável dos efeitos visuais contínuos e
uniformes da tipografia. Conseqüência deste efeito tecnológico, o humor, a gíria
e a força dramática do falar anglo-americano se tornaram monopólio dos
semiletrados.
Para muita gente, estes assuntos tipográficos vêm carregados de valores
controvertidos. Mas em qualquer abordagem que vise à compreensão da
imprensa, necessário se torna apartar-se da forma em questão, se se quiser
observar a sua pressão e a sua vida características. Aqueles que agora entram
em pânico ante a ameaça dos novos meios e ante uma revolução que agora se
processa, mais profunda do que a de Gutenberg, sem dúvida não se mostram
gratos nem dão mostras daquele frio distanciamento visual em relação ao dom
mais poderoso que a alfabetização e a tipografia concederam ao Ocidente: o
poder de agir sem reagir ou envolver-se. Foi esta espécie de especialização por
dissociação que criou a eficiência e o poderio ocidentais. Sem dissociar a ação
dos sentimentos e das emoções, as pessoas se mostram embaraçadas e
hesitantes. A imprensa ensinou os homens a dizerem: “Danem-se os torpedos.
Para a frente, a todo vapor!”.
19. RODA, BI CI CLETA E AVI ÃO
As inter-relações entre a roda, a bicicleta e o avião são deveras
surpreendentes para aqueles que nunca pensaram no assunto. Em seu
trabalho, os eruditos têm a presunção arqueológica de que as coisas devem ser
estudadas isoladamente. Este hábito de especialismo é uma derivação natural
da cultura tipográfica. Quando um erudito como Lynn White se aventura a
estabelecer algumas inter-relações em sua própria área de estudos históricos
especializados, suas observações não deixam de incomodar seus colegas. Em
sua obra, Tecnologia Medieval e Mudança Social, ele explica como o sistema
feudal se constituiu numa extensão do estribo. O estribo apareceu no Ocidente
no século VI I I , vindo do Oriente. Com ele vieram os combates de choque a
cavalo, que provocaram o nascimento de uma nova classe social. A classe dos
cavaleiros armados já existia na Europa mas para armar de modo completo um
cavaleiro faziam-se necessários recursos correspondentes às posses de dez ou
mais camponeses. Carlos Magno pediu a seus homens livres menos prósperos
que fundissem suas propriedades para armar um único cavaleiro. A pressão da
nova tecnologia bélica produziu gradualmente o desenvolvimento de classes e
de um sistema econômico habilitados a armar numerosos cavaleiros com
armadura completa. Pelo ano 1000 a velha palavra miles (mil soldados de
infantaria) já passara a designar “cavaleiros” e não “soldados”.
Lynn White tem ainda muitas coisas a dizer sobre ferraduras e arreios,
entendidos como tecnologias revolucionárias, que aumentaram o poder e
ampliaram o âmbito e a velocidade das ações humanas na baixa I dade Média.
Ele é sensível às implicações psíquicas e sociais de cada extensão tecnológica
do homem; mostra, por exemplo, como o pesado arado de roda introduziu uma
nova ordem, tanto no sistema da lavoura como na dieta daqueles tempos. “A
I dade Média estava literalmente coberta de feijão."
Mais diretamente ligado ao nosso assunto — a roda —Lynn White explica
como a evolução da roda na I dade Média esteve ligada ao desenvolvimento da
coelheira e do arnês. O aumento da velocidade e da resistência do cavalo na
tração de veículos só foi obtido com a invenção da coelheira ou gargantilha.
Uma vez aperfeiçoada, esta parte do arreio levou ao desenvolvimento de
carroças com eixos frontais pivotados e freios. A carroça de quatro rodas, capaz
de suportar cargas pesadas, já era uma realidade corriqueira em meados do
século XI I I . Seus efeitos sobre a vida urbana foram extraordinários. Os homens
do campo começaram a viver nas cidades, indo às suas lavouras diariamente,
quase como os fazendeiros motorizados de Saskatchewan. Estes vivem
praticamente na cidade e não possuem moradia no campo, além dos abrigos
para tratores e demais equipamentos.
Com os ônibus e bondes de tração animal, os alojamentos das cidades
americanas se afastaram das lojas e das fábricas. A proximidade da ferrovia fez
desenvolver os subúrbios; a distância entre a moradia e a estação podia ser
coberta a pé. As lojas e hotéis em volta da estação deram forma e
concentração ao subúrbio. Lewis Mumford sustentava que o automóvel
transformou a dona de casa suburbana em motorista de tempo integral. Sem
dúvida, ainda não se completaram as transformações da roda enquanto
acionadora de tarefas e arquiteta das sempre novas relações humanas, mas a
sua força configuradora vai diminuindo na era da informação, e o fato acima
referido apenas nos alerta para a sua forma característica, que ora tende para o
arcaico.
Antes do aparecimento do veículo de rodas, vigorava o princípio de
tração de arrasto; os trenós e esquis precederam as rodas nos veículos, assim
como o movimento abrasivo semicircular, do fuso e da verruma movidos a mão.
precedeu o livre movimento circular da roda do oleiro. Requer-se um momento
de tradução ou “abstração” para separar os movimentos recíprocos da mão, do
movimento livre da roda. “Sem dúvida, a noção da roda surgiu originaria-mente
da observação de que fazer rolar uma tora era mais fácil do que empurrá-la”,
observa Lewis Mumford. em Técnicas e Civilização. Alguns podem objetar que
fazer rolar um tronco de árvore está mais próximo da operação das mãos em
relação ao fuso do que ao movimento rotatório dos pés, sem que isso
necessariamente tivesse conduzido à sua tradução em termos da tecnologia da
roda. Sob pressão das necessidades, é mais natural fragmentar nossa própria
forma corpórea, de maneira que uma parte dela se traduza em outro material,
do que transferir movimentos de objetos externos em outros materiais. A
extensão das posturas e movimentos de nosso corpo a novos materiais, por
meio da amplificação, é uma tendência constante para a obtenção de maior
energia. A maior parte de nossas pressões corpóreas é interpretada como
necessidade no sentido de prolongar o armazenamento e a mobilidade das
funções, tal como ocorre, de resto, na fala, no dinheiro e na escrita. Todos os
tipos de utensílios são manifestações dessas pressões corpóreas, por meio de
extensões de nosso corpo. A necessidade de armazenamento e portabilidade
pode ser facilmente notada em vasos, jarros e fósforos (fogo armazenado).
A economia de gestos, principal característica de todas as ferramentas e
máquinas, talvez seja a expressão imediata de pressões físicas que nos
impelem a projetarmo-nos ou estendermo-nos a nós mesmos, seja sob a forma
de palavras, seja sob a forma de rodas. O homem pode expressá-lo com flores,
arados ou locomotivas. Em Krazy Kat, I gnatz expressou-o com tijolos.
Um dos mais avançados usos da roda é o da câmara e do projetor de
cinema. Não deixa de ser significante que este agrupamento de rodas
extremamente complexo e sutil tenha sido inventado para que alguém
ganhasse uma aposta sobre se os quatro pés de um cavalo, na corrida,
levantavam-se ou não simultaneamente do chão. Esta aposta foi feita entre o
pioneiro da fotografia, Edward Muybridge e o criador de cavalos Leland
Stanford, em 1889. No início, uma série de câmaras foi disposta, uma ao lado
da outra, para que cada uma fixasse um flagrante das patas em movimento. A
câmara e o projetor de cinema foram desenvolvidos a partir da idéia de
reconstruir mecanicamente o movimento dos pés. A roda, que começou como
extensão dos pés, viria a dar um grande passo evolucionário nas salas de
cinema.
Mediante uma enorme aceleração dos segmentos de uma linha de
montagem, a câmara cinematográfica enrola o mundo num carretel e depois o
desenrola e o traduz numa tela. O cinema recria o movimento e o processo
orgânico levando o principio mecânico até o ponto de reversão — e esta
estrutura comparece em todas as extensões humanas, quando elas atingem o
máximo do desempenho. Quando o avião decola, a estrada desaparece; ele se
torna um míssil, um sistema de transporte auto-suficiente. Nesse ponto. a roda
é reabsorvida na forma de um pássaro ou de um peixe — o avião no ar. Os
mergulhadores não precisam de atalhos ou estradas e costumam declarar que o
seu movimento é igual ao do vôo de um pássaro; seus pés deixam de existir
como movimento progressivo e seqüencial, origem da ação giratória da roda.
Diversa da asa e da nadadeira, a roda é linear e exige estrada para se
completar.
Foi o alinhamento das rodas em tandem que criou o velocípede e a
bicicleta; por aceleração, em conexão com o princípio visual da linearidade
móvel, a roda ganhou um novo grau de intensidade. A bicicleta elevou a roda
ao plano de equilíbrio aerodinâmico, e criou o aeroplano — de maneira não tão
indireta. Não foi por acidente que os irmãos Wright eram mecânicos de
bicicleta, ou que os primeiros aeroplanos mais pareciam bicicletas. As
transformações da tecnologia têm o caráter da evolução orgânica porque todas
as tecnologias são extensões do nosso ser físico. Samuel Butler nutria grande
admiração por Bernard Shaw; este considerava que o processo evolucionário
fora fantasticamente acelerado por transferência ao modo-máquina. Mas Shaw
se dava por satisfeito em deixar as coisas nessa situação comodamente
obscura. O próprio Butler, pelo menos indicara que o homem dera às máquinas
poderes delegados de reprodução, tendo em vista o impacto que elas depois
causariam aos próprios corpos que as haviam criado, por extensão. A resposta
à energia e à velocidade crescente de nossos corpos prolongados gera sempre
novas extensões. Toda tecnologia cria novas tensões e necessidades nos seres
humanos que a criaram. A nova necessidade e a nova resposta tecnológica
nascem do abrangimento da tecnologia já existente — e assim por diante, num
processo incessante.
As pessoas familiarizadas com os romances e peças teatrais de Samuel
Beckett conhecem os ricos efeitos cômicos que ele obtém com o tema da
bicicleta. Para ele, ela representa um símbolo da mentalidade cartesiana, em
sua relação acrobática de mente e corpo em equilíbrio instável. Esta situação
corre paralela à progressão linear que arremeda a própria forma da
independência da ação, engenhosa e objetiva. Para Beckett, o ser integral não
é o acrobata mas o palhaço. O acrobata age como um especialista, usando
apenas um setor limitado de suas faculdades. O palhaço é um homem integral
que arremeda o acrobata numa mímica elaborada da incompetência. Beckett vê
a bicicleta como sinal e símbolo da futilidade especializada na atual era da
eletricidade, quando devemos interagir e reagir. utilizando todas as nossas
faculdades de uma só vez.
Humpty-Dumpty, a personagem de Lewis Carrol, é o exemplo mais
familiar do palhaço inutilmente tentando imitar o acrobata. Apenas porque os
cavalos e todos os homens do Rei não conseguiram juntar as partes de
Humpty-Dumpty, não se segue que a automação eletromagnética não
conseguiria trazê-lo de volta, inteiro. De qualquer modo, ele que era um ovo
unificado e integral, nada tinha a fazer em cima de um muro. Os muros são
feitos de tijolos uniformemente fragmentados, fruto das especializações e das
burocracias. São os inimigos mortais dos seres integrais — como os ovos.
Humpty-Dumpty desafiou o muro — e o resultado foi uma queda espetacular.
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A canção de ninar também serve de comentário às conseqüências da
queda de Humpty-Dumpty. Trata-se, aqui, de novo, dos cavalos e dos homens
do Rei. Eles também são especializados e fragmentados. Não possuindo uma
visão unificada do conjunto, são inúteis. Humpty-Dumpty é um exemplo claro
do todo integral. A simples existência do muro já prenuncia a sua queda. Em
Finnegans Wake, James Joyce entrelaça constantemente esses temas, e o
próprio título do livro indica que, por mais que pareça “da idade da pedra”, a
era da eletricidade vai recuperando a unidade do espaço plástico e icônico —
juntando de novo os pedaços de Humpty-Dumpty.
A roda do oleiro, como todas as tecnologias, foi a aceleração de um
processo já existente. Depois que o nomadismo e a caça aos alimentos foram
substituídos pelo sedentarismo da lavoura, aumentou a necessidade de
armazenamento. As urnas tornaram-se necessárias para os mais diversos fins.
Pelo cultivo da terra, os homens passaram a aplicar suas energias na mudança
da forma das coisas. A mudança para a produção especializada de uma certa
área criou a necessidade do comércio e do transporte. Antes de 5000 a. C., os
trenós já eram usados para esse fim no Norte da Europa. precedidos por
carregadores humanos e lombos de animais. A roda aplicada ao trenó foi uma
aceleração dos pés, não das mãos. Com a aceleração dos pés surgiu a
necessidade da estrada, assim como, com a extensão de nossas costas na
forma da cadeira, surgiu a necessidade da mesa. A roda é um ablativo absoluto
dos pés, como a cadeira é um ablativo absoluto das costas e do assento.
Quando esses ablativos são introduzidos, alteram a sintaxe da sociedade. Não
há ceteris paribus no mundo dos meios e da tecnologia. Toda extensão ou
aceleração imediatamente introduz novas configurações na situação geral.
A roda fez a estrada e transportou mais depressa os produtos dos
campos para os postos de troca. A aceleração criou centros cada vez maiores,
aumentou a especialização, e com ela os incentivos, os dependentes e as
agressões. E assim foi que o veículo de rodas logo fez a sua aparição como
carro de combate, assim como o centro urbano, criado pela roda, logo se
manifestou como um baluarte agressivo. Para explicar o grau crescente de
criatividade e destrutividade humanas, bastaram a formação e a consolidação
das aptidões especializadas em função da aceleração da roda.
Lewis Mumford chama a esta urbanização de “implosão’, mas ela foi, na
realidade, uma explosão. A roda e a estrada expressaram e incrementaram
essa explosão, segundo o esquema radial, ou centro-margem, considerando
que as cidades foram formadas pela fragmentação de esquemas pastoris. O
centralismo depende da periferia acessível pela roda e pela estrada. As
potências marítimas não assumem esta estrutura centro-margem, como não o
fazem as culturas do deserto e da estepe. Hoje, com o jato e a eletricidade, o
centralismo e o especialismo urbanos sofrem uma reversão no sentido da
descentralização e da inter-relação das funções sociais em formas cada vez
menos especializadas.
A roda e a estrada centralizam porque produzem uma aceleração que o
navio não consegue. Mas além de um certo ponto, como acontece com o
automóvel e o avião — a aceleração cria a descentralização em pleno
centralismo antigo. Esta é a origem do caos urbano de nosso tempo. Levada
além de uma certa intensidade de movimento, a roda deixa de funcionar como
fator centralizador. Todas as formas elétricas possuem um efeito
descentralizador, destoando das velhas estruturas mecânicas como uma gaita
de foles numa sinfonia. É pena que o Sr. Mumford tenha escolhido o termo
“implosão” para a explosão especializada das cidades. A “implosão” pertence à
era da eletrônica, como pertenceu às culturas pré-históricas. Todas as
sociedades primitivas são “implosivas”, como o é a palavra falada. Mas
“tecnologia é explicitação”, como disse Lyman Bryson; a explicitação, como
extensão especializada de funções, também é centralismo e explosão de
funções — e não implosão, contração ou simultaneidade.
Um executivo de uma empresa de aviação, bem consciente do caráter
implosivo do mundo aviatório, pediu a cada um dos executivos das companhias
de aviação de todo o mundo uma pedra de cada uma das zonas onde as
mesmas tivessem sedes e agências. Pretendia construir um pequeno
monumento de seixos de todas as partes do mundo. Perguntado: “Prá que essa
história?”, respondeu que, graças à aviação, a gente podia ter contato, num
único lugar, com todos os lugares do mundo. Com efeito, ele havia acertado no
princípio mosaico ou icônico do contato simultâneo e da inter-relação, inerente
à velocidade implosiva do avião. O mesmo principio do mosaico implosivo é
ainda mais típico do movimento da informação elétrica, sob todas as suas
formas.
O centralismo e a extensão da energia da roda e da palavra falada às
margens do império criam forças diretas e, externas às quais nem todos estão
dispostos a se submeter. Pois a implosão é a magia e o encantamento da tribo
e da família, aos quais os homens de bom grado se submetem. Face à
explicitação tecnológica, incluindo a da estrutura urbana centralista, alguns
conseguem romper o círculo encantado da magia tribal. Mumford cita as
palavras do filósofo chinês Mêncio, a esse propósito:
Quando os homens são subjugados pela força, não o são em suas
mentes — e apenas porque a sua própria força é insuficiente. Quando os
homens são subjugados pela força da personalidade, de bom grado entregam
seus corações — e realmente se submetem.
Como expressão das novas extensões especializadas do corpo, a reunião
de pessoas e suprimentos em núcleos centrais, por força da roda e da estrada,
passou a reclamar sempre novas extensões mútuas, numa ação de esponja —
tomar e soltar — que aprisionou todas as estruturas urbanas de qualquer
tempo e lugar. Observa Mumford: “Se interpreto corretamente os dados, as
formas cooperativas da organização urbana foram solapadas e viciadas do
exterior pelos mitos destrutivos e mortais... que obedeciam à expansão
exorbitante da força física e da engenhosidade tecnológica.” Para atingir essa
força por extensão de seus próprios corpos, os homens pagaram com a
explosão, em fragmentos explicitados, da unidade interna de seus próprios
seres. Hoje, na era da implosão, estamos passando a antiga explosão de trás
para diante, como num filme. Podemos observar os fragmentos do homem
recompondo-se de novo, numa era que possui tanto poder destrutivo que
utilizá-lo é coisa sem sentido, mesmo para os mais obtusos.
Os historiadores vêem as formas das grandes cidades do mundo antigo
como manifestações de todas as facetas da personalidade humana. As
instituições, arquitetônicas e administrativas, como extensões de nossos seres
físicos, tendem inevitavelmente para semelhanças universais. O sistema
nervoso central de uma cidade era a cidadela, que incluía o grande templo e o
palácio do rei e estava investida das dimensões e da iconografia do poder e do
prestígio. O alcance da expansão do poderio deste núcleo central dependia da
sua capacidade de agir à distância. Até o aparecimento do alfabeto e do papiro,
a cidade não podia alcançar muito longe com seu poder (V. o capítulo sobre
Estradas e Estradas de Papel). A rapidez de expansão da cidade antiga era
diretamente proporcional à rapidez com que o homem especializado podia
separar suas próprias funções internas no espaço e na arquitetura. Dizer que as
cidades dos astecas e dos incas eram semelhantes às cidades européias
significa apenas que as mesmas faculdades foram partilhadas e projetadas em
ambas as regiões. A questão da influência física direta e da imitação, como que
por difusão carece de importância.
20. A FOTOGRAFI A
O BORDEL SEM PAREDES
Uma fotografia de A Catedral de São Pedro num Momento Histórico
serviu de ilustração para a capa da revista Life, de 14-6-1963. O que caracteriza
de maneira peculiar a fotografia é o fato de ela apresentar momentos isolados
no tempo. A ação de contínuo esquadrinhamento da câmara de TV não
transmite um aspecto ou momento isolado, mas sim o contorno, o perfil icônico
e a transparência. A arte egípcia, como a escultura primitiva de nossos dias,
também nos fornecem um significativo delineamento que nada tem a ver com
um momento no tempo. A escultura tende para o intemporal.
A consciência do poder de transformação da fotografia muitas vezes
transparece nas estórias populares, como a da mulher que exclamou: “Mas que
amor de criança!” — para ouvir da mãe a seguinte resposta: “A senhora tinha
de ver uma fotografia dela.” O poder da câmara fotográfica de estar em toda
parte e de inter-relacionar coisas vem bem indicado pela jactância da revista
Vogue (15-8-1953), nestas linhas: “Hoje, sem precisar sair de seu país, uma
mulher pode ter o que há de melhor no seu banheiro, proveniente de cinco (ou
mais) nações diferentes — e tudo comparável ao requinte e ao sonho de um
estadista.” Eis por que, na era da fotografia, a moda se tornou algo como a
colagem na pintura.
Há um século atrás, a mania inglesa pelo monóculo parecia dar ao
usuário o poder de uma câmara que fixasse as pessoas com um olhar superior,
como se elas fossem coisas. Eric Von Stroheim se tornou famoso com o seu
monóculo, ao criar a figura do altivo oficial prussiano. Tanto o monóculo como
a câmara fotográfica tendem a transformar as pessoas em coisas; a fotografia
estende e multiplica a imagem humana em proporções de mercadoria
produzida em massa. Os astros e estrelas de cinema e os ídolos nas matinês
são levados ao domínio público pela fotografia. Eles se tornam sonhos que o
dinheiro pode comprar; podem ser comprados, abraçados e apontados mais
facilmente do que mulheres públicas. Pelo seu aspecto de prostituição, os bens
produzidos em massa sempre preocupam algumas pessoas. A peça de Jean
Genet, O Balcão, apresenta a sociedade como um bordel cercado de violência e
horror. Face ao caos da revolução, ergue-se o ávido desejo da Humanidade em
prostituir-se. O bordel resiste em meio às mais violentas mudanças. Numa
palavra, a fotografia inspirou Genet em seu tema do mundo como um bordel,
pois a fotografia é um Bordel Sem Paredes.
Ninguém pode desfrutar uma fotografia solitariamente. Ao ler e escrever,
pode-se ter a ilusão de isolamento, mas a fotografia não favorece uma tal
disposição. Se há qualquer razão em deplorar o aparecimento de formas
artísticas coletivas e corporativas, como a imprensa e o cinema, sem dúvida ela
está relacionada ao fato de essas formas novas desgastarem as tecnologias
individuais anteriores. Mas se não tivesse havido a impressão, e as gravuras em
metal e madeira, a fotografia não teria aparecido. Durante séculos as gravuras
em madeira e metal haviam dado configuração ao mundo por uma disposição
especial de linhas e pontos que possuía uma sintaxe extraordinariamente
elaborada. Muitos historiadores dessa sintaxe visual, tais como E. H. Gombrich
e William M. I vins, tiveram grandes dificuldades para explicar como a arte do
manuscrito impregnara a arte da gravura até que, pelo processo do meio-tom,
os pontos e linhas subitamente caíram abaixo do limiar da visão normal. A
sintaxe ou rede da racionalidade desapareceu das últimas gravuras, tal como
tendia a desaparecer da mensagem telegráfica e da pintura impressionista.
Com o pontilhismo de Seurat, finalmente, o mundo apareceu através da
pintura. A orientação do ponto de vista sintático imposto de fora à pintura
chegou ao fim como forma literária nas manchetes de jornais, por via do
telégrafo. Do mesmo modo, com a fotografia, os homens descobriram como
fazer reportagem visual sem sintaxe.
Foi em 1839 que William Henry Fox Talbot, perante a Sociedade Real,
procedeu à leitura de sua comunicação intitulada Notas Sobre a Arte do
Desenho Fotogênico, ou processo pelo qual os Objetos Naturais podem ser
delineados sem a ajuda do lápis do artista. Ele tinha plena consciência de que a
fotografia era uma espécie de automação que eliminava os procedimentos
sintáticos da pena e do lápis. Mas provavelmente não tinha tanta consciência
de haver alinhado o mundo pictórico com os processos industriais. A fotografia
refletia automaticamente o mundo externo, fornecendo uma imagem visual
exata e repetível. Foi esta qualidade suprema da uniformidade e da
repetibilidade que produziu a ruptura gutenberguiana entre a I dade Média e a
Renascença. A fotografia teve um papel quase semelhante na ruptura entre o
industrialismo meramente mecânico e a era gráfica do homem eletrônico. O
passo da era do Homem Tipográfico para a era do Homem Gráfico foi dado com
a invenção da fotografia. Tanto os daguerreótipos como as fotografias
introduziram a luz e a química no processo de elaboração e fabricação. Os
objetos naturais se delineavam sozinhos por uma exposição intensificada pelas
lentes e fixada por produtos químicos. No processo do daguerreótipo, notava-se
a mesma granulação de pontos minúsculos que depois encontrariam eco no
pontilhismo de Seurat e que ainda hoje pode ser observada na trama de pontos
da radio foto dos jornais. Um ano após a descoberta de Daguerre, Samuel F. B.
Morse já estava tirando fotografias de sua mulher e da sua filha na cidade de
Nova I orque. Pontos para o olho (fotografia) e pontos para o ouvido (telégrafo)
encontraram-se assim no alto de um arranha-céu.
Um outro cruzamento ocorreu com a invenção de Talbot, a fotografia,
que ele concebia como uma extensão da câmera obscura, ou figuras no
“quartinho escuro”, como os italianos denominavam a caixa de imagens de
brinquedo do século XVI . Ao mesmo tempo em que se chegava à escrita
mecânica através dos tipos móveis, ganhava corpo o passatempo de olhar
imagens móveis projetadas na parede de uma sala escura. Bastam luz na parte
externa e um furo numa parede para que as imagens do mundo exterior se
projetem numa parede oposta. Esta nova descoberta fascinou os pintores, pois
intensificava a nova ilusão da perspectiva e da terceira dimensão, intimamente
relacionadas à palavra impressa. Mas os primeiros espectadores da imagem
móvel, no século XVI , viam-nas de cabeça para baixo. I ntroduziram-se as lentes
— e as figuras apareceram na posição normal. Nossa visão normal também é
de cabeça para baixo. Fisicamente, aprendemos a endireitar a imagem visual
do mundo traduzindo a impressão retínica do visual para o tátil e o cinético.
Aparentemente, a posição normal é algo que podemos sentir, mas não
podemos ver diretamente.
Para o estudioso dos meios, o fato de a visão normal consistir na
tradução de um sentido para outro é uma indicação útil sobre as formas de
atividade de distorção e tradução a que somos levados por qualquer forma de
linguagem ou cultura. Nada diverte mais o esquimó do que ver o homem
branco torcer o pescoço para ver as fotos de uma revista pregadas nas paredes
do iglu. I sto porque o esquimó, tal como a criança antes de aprender a ler em
linha, não tem necessidade de ver as figuras em posição normal. Sem dúvida é
digno de consideração o fato de os ocidentais se intrigarem com o fenômeno de
os nativos terem de aprender a ler fotografias como nós aprendemos a ler
palavras. A distorção tendenciosa da vida de nossos sentidos por obra da
tecnologia parece ser um fato que preferimos ignorar em nossas vidas diárias.
As provas de que os nativos não percebem em perspectiva e nem em terceira
dimensão parecem ameaçar a imagem do ego e da estrutura ocidental, como
muitos descobrirão depois de uma viagem aos Laboratórios de Percepção
Ames, da Universidade do Estado de Ohio. Este laboratório é montado para
revelar as várias ilusões que criamos para nós mesmos naquilo que
consideramos ser a percepção visual “normal”.
Torna-se claro que aceitamos essa distorção e essa obliqüidade de modo
subliminar através da maior parte da história humana. E porque já não nos
contentamos em deixar nossas experiências em tal estado subliminar e porque
muita gente já começa a ter consciência do inconsciente — são questões que
convidam à investigação. As pessoas de hoje em dia passam a interessar-se
muito mais em pôr suas casas em ordem — um processo de
autoconscientização que recebeu um grande impulso graças à fotografia.
William Henry Fox Talbot, deliciando-se num cenário suíço, começou a
refletir sobre a câmera obscura e se pôs a escrever que “foi durante esses
pensamentos que me ocorreu a idéia... de como seria encantador se se
pudesse imprimir essas imagens naturais de maneira durável, fixas no papel!".
No Renascimento, a imprensa inspirara um desejo semelhante de dar caráter
permanente às nossas experiências e sentimentos diários.
O método que Talbot concebeu foi o de imprimir positivos,
quimicamente, a partir de negativos, de modo a obter imagens exatas e
repetitíveis. Removeu-se, desta forma, o entrave que dificultava os botânicos
gregos e os seus sucessores. Desde as suas origens, a maior parte das ciências
via-se impedida de progredir pela falta de um adequado meio não-verbal de
transmitir informação. Hoje, até a física subatômica não poderia desenvolver-se
sem a fotografia. O New York Times dominical, de 15-6-1958, registrava:
O método microforético pode localizar um milho-bilionésimo de grama —
declara um desenhista industrial de Londres.
Amostras de substâncias pesando menos do que um mílio-milionésimo
de grama podem agora ser analisadas graças a um novo microscópio técnico
britânico. Este é o “método microforético”, de Bernard M. Turner, analista
bioquímico e desenhista industrial londrino. Pode ser aplicado ao estudo das
células do cérebro e do sistema nervoso à duplicação celular, inclusive a do
tecido canceroso do cérebro e acredita-se que prestara valiosa ajuda nas
análises da poluição atmosférica pela poeira...
Correntes elétricas atraem ou repelem os diversos componentes da
amostra para zonas onde possam ser normalmente visíveis.
Mas dizer que a “câmara não pode mentir” é simplesmente sublinhar as
múltiplas ilusões que ora se praticam em seu nome. Na verdade, o mundo do
cinema, que foi preparado pela fotografia, tornou-se sinônimo de ilusão e
fantasia, transformando a sociedade no que Joyce chamou de “notibercário de
noticiário”, substituindo o mundo correto da realidade pela realidade do carretel
de películas. Joyce, mais do que ninguém, sabia dos efeitos da fotografia sobre
os nossos sentidos, nossa linguagem e nossos processos mentais. Aniilamento
do étimo foi o seu veredicto sobre a “escrita automática”, como ele chamava a
fotografia. Via a fotografia como um rival, e, mesmo, um usurpador da palavra,
falada ou escrita. Mas se o étimo (etimologia) é o coração, o cerne e a
substância daquelas coisas que apreendemos com as palavras, Joyce pode
querer significar que a foto era uma nova criação a partir de nada (a-nihil), ou
mesmo a redução da criação a um negativo fotográfico. Se, de fato, há um
terrível niilismo na fotografia e a substituição da substância por sombras, nada
perdemos em sabê-lo. A tecnologia da fotografia é uma extensão de nosso
próprio ser e pode ser retirada da circulação como qualquer outra tecnologia,
se chegarmos â conclusão de que ela e nociva. Mas a mutilação dessas
extensões do nosso ser físico requer tanto conhecimento e perícia quanto uma
amputação física.
Se o alfabeto fonético for um meio técnico de seccionar a palavra falada
de seus aspectos sonoros e gestuais, a fotografia e seu desenvolvimento no
cinema restauraram o gesto na tecnologia humana de registro da experiência.
De fato, os instantâneos dos gestos humanos chamaram a atenção para o
mundo dos gestos físicos e psíquicos, mais do que anteriormente. Freud e Jung
elaboraram suas observações com base na interpretação das linguagens
gestuais individuais e coletivas, seja nos sonhos, seja nos atos da vida de todos
os dias. A era da fotografia tomou-se a era do gesto. da mímica e da dança —
e supera nisso todas as demais. As gestalts físicas e psíquicas, ou instantâneos
— matéria-prima de Freud e Jung — devem muito ao mundo dos gestos tal
como foi revelado pela fotografia. A fotografia é igualmente útil para as
posturas, atitudes e gestos individuais e coletivos, enquanto que a linguagem
escrita e impressa tende a favorecer as atitudes individuais e particulares.
Assim, as tradicionais figuras de retórica fixavam atitudes mentais individuais
do orador particular em relação à audiência, enquanto que os mitos e
arquétipos junguianos são atitudes mentais coletivas, que repelem a forma
escrita. como a repelem a mímica e a dança. Que a fotografia seja bastante
versátil na revelação e fixação de estruturas e gestos mostram-no inúmeros
exemplos, tal como o da análise do vôo dos pássaros. Foi a fotografia que
revelou o segredo do vôo dos pássaros e ajudou o homem a alçar vôo.
Mostrando um momento do vôo, mostrou que ele se baseava no princípio da
fixidez da asa. O movimento da asa se destinava à propulsão e não ao vôo.
Mas a maior revolução introduzida pela fotografia foi, talvez, a observada
no mundo das artes tradicionais. O pintor já não podia pintar um mundo
fotografado em demasia. Dedicou-se, pois, à revelação do processo interno da
criatividade, no expressionismo e na arte abstrata. O escritor também já não
podia descrever objetos e acontecimentos para os seus leitores, já informados
pela fotografia pela imprensa, pelo cinema e pelo rádio. O poeta e o romancista
voltaram-se para os gestos interiores da mente — que nos fornecem a
introvisão e com os quais elaboramos nosso mundo e nós mesmos. A arte se
deslocou da descrição para a fazimento interno. Em lugar de pintar um mundo
correspondente ao já conhecido, os artistas dedicaram-se à apresentação do
processo criativo destinado à participação pública. Forneceram-nos os meios de
nos envolvermos no processo do fazer. Cada desenvolvimento da era elétrica
provoca e exige um elevado grau de orientação produtora. A era do consumidor
de bens processados e embalados já não pertence à era da eletricidade, mas à
era mecânica que a precedeu. Mas, inevitavelmente, ambas se entrelaçam,
como podemos observar claramente no motor de combustão interna, que exige
a centelha elétrica para provocar a explosão que faz mover os cilindros. O
telégrafo é uma forma elétrica; cruzado com a impressão e as rotativas. produz
o jornal moderno. A fotografia não é uma máquina, mas um processo químico e
luminoso; cruzado com a máquina, produz o cinema. Há um vigor e uma
violência nessas formas híbridas que as tornam como que auto-destrutivas. Já
no rádio e na televisão — formas puramente elétricas, das quais o princípio
mecânico foi excluído — observa-se uma relação inteiramente nova entre os
meios e seus usuários. É uma relação de alta participação e envolvimento; para
o bem e para o mal, o mecanismo dela se vê excluído.
I dealmente, a educação é uma defesa civil contra as cinzas radioativas
dos meios de massa. Mas até hoje o homem ocidental não se educou nem se
equipou para enfrentar os meios com suas próprias armas. O homem ocidental
não só se mostra entorpecido e vago em presença do cinema ou da fotografia,
como ainda agrava a sua inépcia através de uma condescendência e de uma
arrogância defensiva despropositais em relação à “cultura popular” e às
“diversões de massa”. Foi com esse mesmo espírito de paquidérmica espessura
que os filósofos escolásticos fracassaram no desafio ao livro impresso, no
século XVI . Os interesses investidos no conhecimento adquirido e na sabedoria
convencional sempre foram superados e engolfados pelos novos meios. Seja
para efeitos de conservação como para efeitos de mudança, o estudo deste
processo, no entanto, mal se iniciou. A noção de que o interesse próprio aguça
o olho no reconhecimento e controle dos processos de mudança carece de
base, como o demonstra a indústria automobilística. Aqui vemos um mundo de
obsoletismo tão condenado à lenta erosão como o foram as empresas
fabricantes de caleças e carruagens, em 1915. Será que a General Motors, por
exemplo, sequer suspeita dos efeitos das imagens da televisão sobre os
possuidores de carro? As empresas jornalísticas também vão sendo minadas
pela imagem da TV e pelos seus efeitos sobre o ícone publicitário. O significado
do novo ícone publicitário ainda não foi apreendido por aqueles que, sob o seu
influxo, arriscam perder tudo. O mesmo se pode dizer da indústria
cinematográfica em geral. Essas empresas não são “alfabetizadas” senão em
relação às linguagens de seus próprios meios e por isso são apanhadas
desprevenidas pelas surpreendentes mudanças que resultam dos cruzamentos
e hibridizações dos meios.
Os estudiosos das estruturas dos meios devem observar que cada
pormenor do mosaico total do mundo contemporâneo é rico de significados. Em
15-3-1953, a revista Vogue já anunciava um novo híbrido, resultante do
cruzamento entre a fotografia e a viagem aérea:
O primeiro número de Moda I nternacional de Vogue marca um novo
tento. É um número que não poderia ter sido feito antes. A moda só tirou a sua
carteira internacional há pouco tempo. Pela primeira vez podemos levar às
leitoras, neste número, uma reportagem sobre as coleções de alta costura em
cinco países diferentes.
As qualidades deste texto publicitário, minério que apresenta um alto
teor aurífero no laboratório do analista dos meios, só podem ser apreciadas
devidamente pelas pessoas treinadas na linguagem da visão e das artes
plásticas em geral. O redator tem de ser um verdadeiro artista de strip-tease
para sentir imediatamente o estado de espírito de seu público. Esta é também a
atitude do escritor popular e do letrista de canções. I sto significa que qualquer
escritor ou artista de larga aceitação popular corporifica e revela um conjunto
de atitudes correntes que podem ser conceituadas pelo analista. “Você lê o que
eu escrevo. Zé?”. Mas o significado das palavras do redator do Vogue se
perderia, se o texto fosse analisado meramente segundo critérios literários ou
editoriais, assim como o texto de um anúncio ilustrado não deve ser tido por
um pronunciamento literário, e sim como uma mímica da psicopatologia da vida
diária. Na era da fotografia, a linguagem adquire um caráter gráfico ou icônico,
cujo “significado” tem pouco que ver com o universo semântico — e nada com
a república das letras.
Se abrirmos um exemplar da revista Life, 1938, as fotos ou os gestos
então considerados normais hoje nos transmitem a sensação de um tempo
mais remoto do que objetos de antiguidade. Hoje, as criancinhas ligam a
expressão “nos velhos tempos” aos chapéus e galochas de ontem, tão
perfeitamente estão elas em sintonia com as abruptas mudanças sazonais das
atitudes visuais do mundo da moda. Mas a experiência básica refere-se ao que
sente a maior parte das pessoas em relação ao jornal do dia anterior: nada
pode estar mais fora de moda do que ele. Os músicos de jazz experimentam o
seu desgosto pelo jazz gravado com a frase: “Está tão “passado” quanto o
jornal de ontem.”
Talvez que este seja o meio mais imediato de apreender o significado da
fotografia enquanto criadora de um mundo em acelerado ímpeto de transição.
A nossa relação com o “jornal de hoje” ou o jazz verbal e direto, é a mesma
que se produz em relação à moda. A moda não é um modo de se estar
informado ou de ter conhecimento, mas um modo de estar com. E isto nos
chama a atenção para o aspecto negativo da fotografia. Positivamente, o efeito
da aceleração da seqüência temporal é o de abolir o tempo, assim como o
telégrafo e o cabo submarino aboliram o espaço. Sem dúvida, a fotografia faz
ambas as coisas. Elimina as fronteiras nacionais e barreiras culturais,
envolvendo-nos na Família do Homem [ * Famoso álbum de fotografias, com
obras de profissionais de renome internacional, executado em fins da década
de 1950, sob o patrocínio da UNESCO. (N.do T.)] sem qualquer ponto de vista
particular. Uma fotografia de um grupo de pessoas de qualquer cor é uma
fotografia de gente e não de “gente de cor”. Esta é a lógica da fotografia,
politicamente falando. Mas a lógica da fotografia não é verbal nem sintática; é
esta condição que torna a cultura literária incapaz de entender a fotografia.
Pela mesma razão, a completa transformação da consciência dos sentidos
humanos por obra da forma fotográfica implica no desenvolvimento de uma
autoconsciência que altera a expressão facial e as máscaras cosméticas de
modo tão imediato quanto altera nossas posturas corporais, em público ou
particularmente. I sto pode ser observado em qualquer revista ou filme de há
uns quinze anos atrás. E não é exagerado dizer, pois, que a fotografia altera
tanto as nossas atitudes externas quanto as nossas atitudes e o nosso diálogo
interno. A idade de Jung e Freud é, acima de tudo, a idade da fotografia, a
idade de todos os matizes das atitudes autocríticas.
Este imenso enxaguamento das nossas vidas interiores, motivado pela
nova cultura da gestalt fotográfica encontra paralelos óbvios em nossas
tentativas de reordenar nossas casas, jardins e cidades. Basta ver a foto de
uma favela para que ela se torne intolerável. A mera equivalência da loto com a
realidade já fornece um novo motivo para mudanças — como novos motivos
para viagens.
Daniel Boorstin, em A I magem: ou O que Aconteceu ao Sonho
Americano, oferece-nos um giro literário pelo novo mundo fotográfico da
viagem. Basta encarar o novo turismo de uma perspectiva literária para
descobrir que ele não faz sentido algum. Para o homem letrado que leu sobre a
Europa, em antecipação de uma viagem, há um anúncio que diz: “Você está a
apenas quinze refinadíssimas refeições da Europa, pelo navio mais rápido do
mundo” — e que lhe parece grosseiro e repugnante. A publicidade de viagens
por via aérea é ainda pior: “Jantar em Nova I orque indigestão em Paris.” A
fotografia inverteu os escopos da viagem, que antes visavam ao encontro conl
o estranho, o pitoresco e o não-familiar. Nos inícios do século XVI I , Descartes
observava que viajar era quase conversar com homens de outros países — um
ponto de vista pouco comum antes de seu tempo. Para os que apreciam
experiências singulares desse tipo, necessário se faz que retornem muitos
séculos atrás, pelos roteiros da Arte e da Arqueologia.
O Professor Boorstin parece sentir-se infeliz com o fato de tantos
americanos viajarem tanto — e mudarem tão pouco. Ele acha que a experiência
da viagem se transformou em algo “diluído, forçado, pré-fabricado”. Não se
preocupa em saber por que a fotografia causou esta mudança. Do mesmo
modo, muita gente inteligente do passado deplorou o fato de o livro se haver
tomado um substituto da indagação, da conversação e da reflexão, sem que se
tenha dado ao trabalho de refletir sobre a natureza do livro impresso. O leitor
de livros sempre tendeu a ser passivo, porque este é o melhor modo de ler.
Hoje, o viajante se tomou passivo. Um travelerscheck, um passaporte e uma
escova de dentes — e o mundo vira uma ostra. A estrada pavimentada, a
ferrovia e o navio a vapor eliminaram todo o trabalho da viagem. Movidas pelos
caprichos mais tolos, as pessoas agora se amontoam nos logradouros
estrangeiros, porque viajar. hoje, difere muito pouco de uma ida ao cinema ou
uma olhada numa revista. A fórmula das agências de viagem, “Viaje agora,
pague depois”, podia bem ser mudada para "Viaje agora, chegue mais tarde”,
já que as pessoas que por ela se orientam nunca saem dos caminhos batidos
de sua falta de percepção, nem, em verdade, chegam a lugar algum. Xangai,
Berlim ou Veneza podem estar nos “pacotes” de seu guia turístico: elas não os
abrirão. Em 1961, a TWA começou a exibir filmes a bordo, em seus vôos
transatlânticos, a fim de que os passageiros pudessem visitar Portugal,
Califórnia, ou outro lugar qualquer — quando em viagem para a Holanda...
Dessa forma, o mundo virou uma espécie de museu de objetos que já
encontramos alguma vez, em outro meio. É sabido que mesmo os cura-dores
de museus muitas vezes preferem reproduções coloridas em lugar dos objetos
originais em suas embalagens próprias. Assim também, o turista que chega
diante da Torre de Pisa ou do Grand Canyon, no Arizona, não faz mais do que
conferir suas reações ante algo com que já está há muito familiarizado — além
de bater algumas fotos...
Lamentar que a viagem turística “em pacote” — como a fotografia —
barateie e degrade tudo, ao tornar tudo acessível, é perder o melhor do jogo. É
emitir julgamentos de valor a partir do ponto de referência fixo que caracteriza
a perspectiva fragmentária da cultura letrada. É a mesma posição de quem
considera uma paisagem literária superior a um filme turístico. Para a
consciência despreparada, todas as leituras, todos os filmes e tódas as viagens
são experiências banais e de poucos frutos. Mas a dificuldade de acesso nunca
conferiu agudeza de percepção, embora possa envolver o objeto numa aura de
pseudovalores — como acontece com uma pedra preciosa, uma estrela de
cinema ou um velho mestre. I sto nos leva ao centro do problema do “pseudoevento’, etiqueta aplicada aos novos meios em geral, graças ao poder que
manifestam em dar nova estrutura às nossas vidas pela aceleração das velhas
estruturas. É necessário lembrar que essa mesma força insidiosa já uma vez se
manifestou em relação aos velhos meios, incluindo as línguas. Todos os meios
existem para conferir às nossas vidas uma percepção artificial e valores
arbitrários.
Todos os sentidos se alteram com a aceleração. porque todos os padrões
da interdependência pessoal e política se alteram com a aceleração da
informação. Alguns sentem agudamente que a aceleração empobreceu o
mundo que conheciam. alterando suas formas de interassociação humana. Não
há nada de novo ou estranho na preferência bairrista por aqueles pseudoeventos que entram na composição da sociedade antes da revolução elétrica
operada neste século. O estudioso dos meios logo verá que os novos meios de
qualquer período não tardam em ser classificados como pseudo, por aqueles
que viviam em função dos padrões de meios anteriores — quaisquer que
tenham sido. O que pareceria I ndicar um traço normal e até amistoso. no
sentido de assegurar um máximo grau de continuidade e de permanência social
em meio à mudança e à inovação. Mas nem todo o conservadorismo do mundo
consegue opor sequer uma resistência simbólica a nova lufada ecológica dos
meios elétricos. Numa auto-estrada em movimento, o veículo que reduz a
marcha está acelerando em relação à situação geral da estrada. Esta parece ser
a situação irônica da cultura reacionária. Quando há uma tendência numa certa
direção, a resistência a ela assegura maior velocidade à mudança. O controle
da mudança consistiria antes em avançar do que em acompanhá-la. A
antecipação confere o poder de desviar e controlar a força. Assim. podemos
nos sentir como o homem que foi arrastado de seu buraco na cerca favorito, de
onde costumava assistir ao jogo, por uma turba fanática de admiradores
entusiasmados pela chegada de uma estrela de cinema. Nem podemos chegar
a nos acomodar para observar um acontecimento, e este lego se vê superado
por outro — assim como a nossa vida ocidental não parece senão uma longa
série de preparações para viver, aos olhos das culturas pré-letradas. Mas a
postura favorita do homem letrado sempre foi a de ‘~ encarar com alarme” ou
“apontar com orgulho” — e sempre ignorando, escrupulosamente, o que se
estava passando realmente.
Uma grande área de influência fotográfica que afeta nossas vidas é o
mundo das embalagens e dos displaya publicitários, bem como a organização
das lojas e magazines em geral. Podendo anunciar toda espécie de produtos
numa única página, o jornal logo inspirou o surgimento dos magazines de
departamentos, que oferecem toda espécie de produtos numa única instalação.
Hoje, a descentralização dessas instituições numa multiplicação de lojas que se
reúnem num shopping center, resulta em parte da introdução do carro, em
parte do aparecimento da TV. Mas o fotografia ainda exerce uma certa pressão
centralizadora nos catálogos de mala-direta. As casas que trabalhavam por
mala-direta ou reembolso sofreram no início as pressões das forças
centralizadoras da ferrovia e dos correios, bem como, simultaneamente, das
forças descentralizadoras do telégrafo. A empresa Sears Roebuck deve a sua
existência diretamente ao uso do telégrafo pelo agente da estação; notando o
desperdício dos produtos nos desvios ferroviários, aqueles comerciantes
perceberam que podiam acabar com isso utilizando o telégrafo para
reencaminhá-los e concentrá-los.
Além da fotografia que comparece nas peças publicitárias genericamente
incluídas sob o rótulo de merchandising (encartes, ampliações, cupons etc.), a
complexa rede dos meios pode ser bem caracterizada no mundo dos esportes.
Num dos casos, o fotógrafo de jornal contribuiu para mudanças radicais no jogo
de futebol americano. Uma foto de jornal mostrando jogadores contundidos,
por ocasião do jogo entre Pensilvânia e Swarthmore, em 1905, chamou a
atenção do Presidente Teddy Roosevelt. Ficou tão irado ante a foto do
desfigurado Bob Maxwell, jogador do Swarthmore, que fez expedir
imediatamente um ultimato: se o jogo bruto continuasse, ele aboliria a prática
desse esporte por decreto presidencial. O efeito foi o mesmo obtido por Russel,
com seus pungentes despachos telegráficos da Criméia, que criaram a imagem
e o papel de Florence Nightingale.
Não menos drásticos foram os efeitos das fotos de jornal que faziam
cobertura da vida dos ricos. O “consumo conspícuo” é menos uma criação da
Veblen do que do repórter fotográfico, que começou a penetrar nos locais de
entretenimento dos milionários. A visão de homens a cavalo ordenando bebidas
nos bares dos clubes imediatamente causou uma indignação popular, que
obrigou os ricos da América a um comportamento mais apagado e, até,
medíocre — e que até hoje não mais abandonaram. A fotografia tornou
desaconselhável a exibição externa da riqueza. pois ela denunciava como
autodestrutivas as dimensões ostensivas do poder. De outro lado, a fase
cinematográfica da fotografia criou uma nova aristocracia de atores e atrizes,
que acentuavam, na tela e fora dela, a fantasia de um consumo conspícuo que
os ricos não podiam alcançar. O cinema veio demonstrar o poder mágico da
fotografia ao apresentar a todas as Cinderelas do mundo um reino consumista
de dimensões plutocráticas.
Minha obra, A Galáxia de Gutenberg, fornece o necessário pano de fundo
para o estudo da rápida ascensão dos novos valores visuais, em virtude do
advento da imprensa de tipos moveis. Um lugar para cada coisa e cada coisa
em seu lugar” não é apenas um programa para o tipógrafo dispor suas fontes
de tipos, mas um programa de largo âmbito para a organização do
conhecimento e da ação. a partir do século XVI . Mesmo a vida interior dos
sentimentos e das emoções começou a ser estruturado, ordenado e analisado
como paisagens pictóricas isoladas, como Cristopher Hussey explicou em seu
fascinante estudo The Pictures que (“O Mundo Pictórico”). Mais de um século
separa esta análise pictórica da vida interior da descoberta da fotografia por
Talbot, em 1839. Acentuando o delineamento pictórico dos objetos naturais
mais do que o poderiam fazer a pintura ou a língua, a fotografia teve um efeito
inverso. Fornecendo um meio de autodelineamento dos objetos, ou de uma
“formulação sem sintaxe”, a fotografia deu impulso ao delineamento do mundo
interior. A formulação sem sintaxe ou verbalização era, em verdade, uma
formulação por meio de gestos. de mímica e de gestalts. Esta nova dimensão
abriu à indagação humana de poetas como Baudelaire e Rimbaud le paysage
intérieur, ou os campos da mente. Poetas e pintores invadiram o mundo da
paisagem interior bem antes que Freud e Jung, com suas câmaras e cadernos
de notas, buscassem captar os estados mentais. Mais espetacularmente ainda,
Claude Bernard, em sua I ntrodução ao Estudo da Medicina Experimental,
introduziu a Ciência no milieu interieur do corpo, exatamente quando os poetas
faziam o mesmo para a vida da percepção e dos sentimentos.
É importante notar que este derradeiro estágio de pictorialização
constituiu-se numa reversão de estruturas. O mundo do corpo e do espírito
observado por Baudelaire e Bernard não era um mundo fotográfico, mas um
conjunto não-visual de relações, tal como o físico, por exemplo, encontra,
graças à nova matemática e à Estatística. Pode-se dizer que a fotografia
também chamou a atenção para o mundo infravisual das bactérias, o que fez
com que Louis Pasteur fosse proibido da prática da Medicina por seus colegas
indignados. Assim como o pintor Samuel Morse sem querer se projetou no
mundo não-visual do telégrafo, assim a fotografia de fato transcende o
pictórico para captar os gestos e atitudes internas tanto do corpo como do
espírito, liberando os mundos da endocrinologia e da psicopatologia.
Sem apreender as suas relações com os outros meios, velhos e novos, é
impossível compreender o meio da fotografia. Como extensões que são de
nossos sistemas físico e nervoso, os meios constituem um mundo de interações
bioquímicas que sempre busca um novo equilíbrio quando ocorre uma nova
extensão. Na América, as pessoas toleram as suas imagens no espelho ou
numa foto, mas sentem-se incomodadas pelo som gravado de suas próprias
vozes. Os mundos visual e da fotografia são áreas de anestesia que conferem
segurança.
21. A I MPRENSA
GOVERNO POR I NDI SCRI ÇÃO JORNALÍ STI CA
A manchete de um despacho da Associated Press (25-2-1963) dizia:
SUCESSO DE KENNEDY: A I MPRENSA É CULPADA
“Kennedy sabe manejar as notícias de maneira audaz, cínica e sutil” —
declara Krock.
Uma outra citação de Arthur Krock diz que “o encargo maior ainda recai
sobre o processo impresso e eletrônico”. O que equivale a dizer que “a culpa
cabe à História”. Mas são as próprias conseqüências instantâneas da
informação eletricamente transmitida que tornam necessária uma deliberada
objetivação artística na distribuição e manejamento das notícias. Na diplomacia,
a mesma velocidade elétrica faz com que muitas decisões sejam anunciadas
antes de expressamente formuladas, a fim de assegurar previamente as
diversas respostas que possam ocorrer quando as decisões forem realmente
tomadas. Este procedimento, inevitável na era da velocidade elétrica, que faz
com que toda a sociedade se envolva no processo da tomada de decisões.
choca os velhos homens da imprensa porque elimina qualquer ponto de vista
definitivo. Na medida em que aumenta a velocidade da informação, a tendência
política é a de afastar-se da representação e delegação de poderes em direção
ao envolvimento imediato de toda a comunidade nos atos centrais de decisão.
Velocidade mais lentas da informação tornam imperativas a representação e a
delegação. Associados a essa delegação vêm os pontos de vista dos diferentes
setores da opinião pública, que devem manifestar-se para serem levados à
consideração do resto da comunidade. Quando se introduz a velocidade elétrica
nessa organização mandatária e representacional, esta obsoleta organização
somente pode sobreviver em função de uma série de subterfúgios e artifícios,
que provocam a indignação de muitos observadores que consideram esses
recursos como traições soezes aos objetivos e propósitos originais das formas
estabelecidas.
O tema maciço da imprensa só pode ser examinado por contato direto
com as estruturas formais do meio em questão. E é necessário declarar, de vez,
que o “interesse humano” e um termo técnico que designa o que é que
acontece quando as muitas páginas de um livro ou os múltiplos itens
informacionais são dispostos em mosaico numa página. O livro é uma forma
privada e confessional que induz ao “ponto de vista”. O jornal é uma forma
confessional de grupo que induz à participação comunitária. Ele pode dar uma
“coloração” aos acontecimentos, utilizando-os ou deixando de utilizá-los. Mas é
a exposição comunitária diária de múltiplos itens em justaposição que confere
ao jornal a sua complexa dimensão de interesse humano.
A forma do livro não é um mosaico comunal ou uma imagem
corporativa, mas uma voz particular. Um dos efeitos inesperados da TV sobre a
imprensa foi o grande aumento de popularidade das revistas Time e Newsweek.
De maneira inexplicável para elas próprias e sem maior esforço de granjear
assinaturas, suas circulações mais do que dobraram desde o advento da TV.
Antes de mais nada, essas revistas noticiosas apresentam, sob forma em
mosaico, imagens corporativas da sociedade em ação — e não simplesmente
janelas para o mundo, como as velhas revistas ilustradas. Enquanto o
espectador de uma revista ilustrada é passivo, o leitor de uma revista noticiosa
se envolve na formação de significados para a imagem corporativa da
sociedade. Assim o hábito televisivo de envolver-se em imagens em mosaico
aumentou enormemente o apelo dessas revistas noticiosas. ao mesmo tempo
em que fazia diminuir a atração pelas velhas revistas de temas, ilustradas.
Mas tanto o livro como o jornal são confessionais quanto ao caráter,
criando o efeito de estória interior pela sua simples forma, descartado o
conteúdo. Assim como a página do livro apresenta a estória interior das
aventuras mentais do autor, a página do jornal apresenta a estória interna da
comunidade em ação e interação. É por esta razão que a imprensa parece estar
desempenhando mais fielmente seu papel justamente quando apresenta o lado
sujo das coisas. Notícia é sempre má notícia — má notícia a respeito de alguém
ou para alguém. Em 1962, quando Mineápolis ficou meses sem jornal, o chefe
de polícia declarou: “Claro, sinto falta de notícias; mas no que se refere à
minha tarefa, espero que os jornais não voltem mais a circular: há menos
crimes quando os jornais não se põem a circular idéias.”
Mesmo antes da aceleração produzida pelo telégrafo, o jornal do século
XI X já havia desenvolvido bastante a sua forma em mosaico. As impressoras
rotativas a vapor surgiram décadas antes da eletricidade, mas a composição
manual mostrou-se superior a qualquer outro meio mecânico até o
desenvolvimento do linotipo, por volta de 1890. Com o linotipo, a imprensa
pôde adequar melhor sua forma à captação da notícia por meio do telégrafo e à
impressão das notícias pelas rotativas. É típico e significante que a resposta do
linotipo à lentidão longeva da composição manual não tenha vindo das pessoas
diretamente envolvidas no problema. Fortunas tinham sido gastas em vão para
a invenção de máquinas componedoras, até que James Clephane, quando
procurava reproduzir as notas taquigráficas encontrou um meio de combinar a
máquina de escrever com o componedor. Foi a máquina de escrever que
resolveu um problema completamente diferente, o da composição. Hoje, tanto
a publicação do livro como a do jornal dependem da máquina de escrever.
A aceleração da captação e edição da informação naturalmente criou
novas formas de disposição do material para os leitores. Já em 1830, o poeta
francês Lamartine dissera: “O livro chegou muito tarde” — chamando a atenção
para o fato de que o livro e o jornal são formas inteiramente diferentes. Basta
tornar mais lenta a composição e a captação da notícia para que ocorra uma
mudança não apenas na aparência física da imprensa. mas também no estilo
redacional dos que escrevem para ela. A primeira grande mudança no estilo
ocorreu no início do século XVI I I , quando os famosos jornais Tatler e Spectator,
de Adison e Steele, descobriram uma nova técnica de redação que respondia à
forma da palavra impressa. Foi a técnica do equitom, ou do tom único.
Consistia ela em manter sempre o mesmo tom e a mesma atitude ante o leitor
em toda a composição. Com esta descoberta. Adison e Steele alinharam o
discurso escrito com a palavra impressa. apartando-o da variedade de tom e
altura da palavra falada e mesmo da palavra manuscrita, este modo de alinhar
a linguagem com a técnica da impressão deve ser entendido de maneira clara.
O telégrafo viria apartar novamente a linguagem da palavra impressa e
começou a produzir estranhos ruídos chamados manchetês, jornalês e
telegrafês — fenômenos que ainda hoje causam espécie à comunidade literária,
com seus maneirismos de tom único que imitam a uniformidade tipográfica. O
“manchetês” produz efeitos assim:
BARBEI RO AMACI A AMÍ DALAS PARA ENCONTRO COM VETERANOS
A manchete refere-se ao jogador de beisebol Sal Maglie, trigueiro artista
da bola curva dos velhos Dodgers de Brooklyn, por alcunha O Barbeiro, por
ocasião da homenagem que recebeu num jantar do Ball Club. A mesma
comunidade admira o vigor e a rica variedade de tons de Aretino. Rabelais e
Nashe, que escreveram antes que a pressão da imprensa fosse forte o
suficiente para reduzir os gestos da linguagem à linearidade uniforme.
Conversando com um economista que integrava uma comissão sobre
desemprego perguntei-lhe se alguma vez havia considerado a leitura de jornais
como forma de emprego remunerado. Não errei ao supor que se mostraria
cético a respeito. Todavia, todos os meios que incluem a publicidade são
formas de “ensino pago”. Em anos não muito distantes, quando a criança for
paga para aprender, os educadores terão de reconhecer que a imprensa
“sensacionalista” foi a precursora do ensino pago. O que nos impedia de ver
isto antes era o fato de o processamento e o movimento da informação ainda
não se haverem constituído no principal negócio do mundo mecânico e
industrial. No mundo da eletricidade, no entanto facilmente eles se constituem
no principal negócio e no mais importante meio de riqueza. No fim da era
mecânica. as pessoas ainda imaginavam que a imprensa, o rádio e, mesmo, a
televisão, não passassem de formas de informação pagas pelos fabricantes e
usuários de bens de consumo, tais como carros, sabonetes e gasolina. À
medida que a automação avança, vai ficando claro que a informação é o bem
de consumo mais importante e que os produtos “sólidos” são meramente
incidentais no movimento informacional. As fases iniciais do processo pelo qual
a informação se tornou o bem econômico básico da era elétrica foram
obscurecidas pelos modos com que a publicidade e o entretenimento
desencaminharam o público. Os anunciantes pagam tempo e espaço nos
jornais, nas revistas, no rádio e na TV, comprando, assim, um pedaço do leitor,
do ouvinte e do telespectador, como se tivessem alugado nossas casas para um
encontro público. De bom grado pagariam diretamente ao leitor, ao ouvinte e
ao telespectador, por sua preciosa atenção e seu não menos precioso tempo...
se soubessem como fazê-lo. A única maneira que encontraram até agora foi a
de promover espetáculos gratuitos. Na América, a publicidade nos intervalos
das sessões não “pegou” simplesmente porque o próprio filme é a maior de
todas as formas de publicidade para os bens de consumo.
Aqueles que deploram a frivolidade da imprensa e sua forma natural de
exibição grupal e “lavagem de roupa” comunitária, simplesmente ignoram a
natureza desse meio: exigem que ele seja livro, como tende a ser na Europa. O
livro chegou à Europa Ocidental bem antes do que o jornal; já a Rússia e a
Europa Central desenvolveram-nos quase que ao mesmo tempo, daí resultando
que até hoje ambas as formas permaneçam misturadas. O jornalismo deixa
transpirar o ponto de vista particular do mandarim literário. Mas o jornalismo
inglês e americano sempre tendeu a explorar a forma em mosaico da
paginação, a fim de apresentar a variedade e a incongruência descontinuas da
vida diária. Os monótonos reclamos da comunidade literária, no sentido de que
o jornal utiliza a sua forma em mosaico para apresentar um ponto de vista fixo,
num único plano de perspectiva, significam simplesmente a sua incapacidade
de enxergar a forma da imprensa como tal. É como se o público de repente se
pusesse a exigir que uma loja de departamentos passasse a ter um só
departamento.
Os anúncios classificados (e as cotações do mercado de títulos)
constituem o alicerce da imprensa. Se se encontrar uma outra fonte de fácil
acesso para a obtenção diária dessas informações, a imprensa cerrará as
portas. O rádio e a TV podem ficar com os esportes, as notícias, os desenhos e
os filmes. A não ser quando sob forma de notícias ou de matéria paga. a
matéria do tipo editorial — uma das características de livro que notamos no
jornal — continuará a ser ignorada.
Se a nossa imprensa é o principal serviço de entretenimento livre, pago
pelos anunciantes que buscam aliciar leitores, a imprensa russa é, in toto, o
modo básico de promoção industrial. Se utilizamos notícias, políticas e pessoais,
como diversão para atingir leitores de anúncios, os russos as utilizam como
meio de promoção de sua economia. Suas notícias têm o mesmo tom e a
mesma firmeza agressiva da voz do patrocinador de um anúncio americano.
Uma cultura onde o jornal ingressou tardiamente (pelas mesmas razões que
postergaram a industrialização) e que aceita a imprensa como uma forma de
livro, encarando a indústria como uma ação política de grupo, não é de molde a
deleitar-se com notícias. Mesmo na América, as pessoas letradas têm pouca
habilidade em compreender a variedade iconográfica do mundo da publicidade.
Os anúncios são ignorados ou lamentados, mas raramente estudados e
apreciados.
Quem quer que pense que a imprensa exerce a mesma função na
América e na Rússia, ou na França e na China.
Em verdade não percebeu a natureza do meio. Seria o caso de supormos
que essa espécie de analfabetização em relação aos meios seja uma
característica exclusiva dos ocidentais. e que os russos conheçam como corrigir
os desvios do meio para lê-los corretamente? Ou as pessoas vagamente
supõem que os chefes de Estado dos vários países do mundo sabem que o
jornal tem efeitos totalmente diferentes em culturas diversas? Esses
presupostos carecem de base. O desconhecimento da natureza da imprensa,
em sua atuação latente ou subliminar, é coisa tão comum entre os políticos
como entre os cientistas políticos. Por exemplo, na Rússia das tradições orais,
tanto o Pravda como o I zvestia veiculam notícias nacionais, enquanto que os
grandes temas internacionais chegam ao Ocidente pelas ondas da Rádio
Moscou. Na América das tradições visuais, compete ao rádio e à televisão a
manipulação das estórias domésticas, ficando o tratamento formal dos assuntos
internacionais a cargo da revista Time e do New York Times. Como noticiário
para o exterior, a “grossura” da voz da América de nenhum modo pode
comparar-se à sofisticação da BBC e da Rádio Moscou; mas o que lhe falta em
conteúdo verbal é compensado pelo valor de entretenimento do jazz. As
implicações desta diferença de tom são importantes para a compreensão das
opiniões e decisões naturais a uma cultura oral, em oposição à cultura visual.
Um amigo meu que tentou ensinar alguma coisa sobre as formas dos
meios em escolas de nível médio, ficou surpreso ante a resposta unânime dos
alunos; nenhum deles, em nenhum momento, podia aceitar a sugestão de que
a imprensa ou qualquer outro meio de comunicação pública pudesse ser
utilizado com intenções desonestas. Achavam que isto seria o mesmo que
poluir a atmosfera ou os suprimentos de água, e jamais podiam conceber que
amigos e parentes, trabalhando nesses meios, cedessem a uma tal corrupção.
A falha na percepção ocorre precisamente quando se dá atenção ao “conteúdo”
dos programas de nossos meios desprezando-se a sua forma — seja no rádio,
na imprensa ou no próprio idioma inglês. Tem havido um sem-número de
Newton Minows (ex-chefe da Comissão de Comunicações Federais) a falarem
sobre a Terra Estéril dos Meios — gente que não sabe absolutamente nada
sobre a forma de qualquer meio que seja. Julgam eles que um tom mais
escorreito e temas mais austeros elevariam o nível do livro, da imprensa, do
cinema e da TV. Seu erro atinge um grau farisaico. Que experimentem a sua
teoria com apenas 50 palavras de um meio de comunicação de massa chamado
língua inglesa: que faria o Sr. Minow, que faria um anunciante qualquer sem os
surrados e gastos lugares-comuns da fala popular? Tentemos, em algumas
sentenças impregnadas de sóbrios e sérios sentimentos, elevar o nível de nossa
conversação diária: seria este o meio de focalizar os problemas relacionados ao
aperfeiçoamento do meio? Se o I nglês for sempre enunciado num tom
mandarínico de elegância uniforme e sentenciosa. isto trará algum benefício à
linguagem e aos seus usuários? E aqui nos vem à lembrança a observação de
Artemus Ward de que “Shakespeare escreveu boas peças, mas teria sido um
fracasso como correspondente em Washington de um diário novaiorquino.
Faltavam-lhe os requisitos da fantasia e da imaginação”.
O homem ligado ao livro tem a ilusão de que a imprensa seria melhor
sem os anúncios e sem a pressão dos anunciantes. As pesquisas têm espantado
até os diretores de jornais. ao revelarem quê os olhos erráticos dos leitores de
jornais se deliciam por igual com os anúncios e os textos noticiosos. Durante a
Segunda Guerra Mundial, o U.S.O. (United States Office — Ministério do
I nterior) enviou números especiais das principais revistas americanas às Forças
Armadas... com os anúncios cortados. Os soldados insistiram em receber as
revistas com os anúncios. Claro, os anúncios são, de longe, a melhor parte de
qualquer jornal ou revista. Um anúncio requer mais esforço e pensamento,
mais espírito e arte do que qualquer texto de jornal ou revista. Anúncios são
notícias. O que há de mal neles é que são sempre boas notícias. Para
contrabalançar o efeito e vender boas notícias, é necessária uma boa dose de
más notícias, tendo em vista a intensidade por contraste e a participação do
leitor. Como já se observou, notícia de verdade é má noticia — e os jornais,
desde o início do jornalismo, podem testemunhá-lo. I nundações, incêndios e
outras calamidades públicas em terra, mar e ar, enquanto notícias, superam
toda e qualquer espécie de miséria e horror particulares. Por contraste, para
neutralizar a força penetrante das más noticias, os anúncios têm de emitir a sua
mensagem em tom alto e claro.
Comentaristas de imprensa e senadores têm notado que desde que o
Senado começou a investigar assuntos desagradáveis, passou a assumir um
papel superior ao do Congresso. De fato, a grande desvantagem da Presidência
e dos setores executivos, em relação à opinião pública, é que eles tentam
sempre ser uma fonte de boas notícias e de diretrizes sábias. De outro lado, os
deputados e senadores têm a liberdade de revirar a “roupa suja” — o que é
sempre necessário à vitalidade da imprensa.
Superficialmente, isto pode parecer cínico, especialmente para aqueles
que imaginam que o conteúdo de um meio é assunto de planos de ação e de
preferência pessoal e para os quais todos os meios corporativos — não apenas
rádio e imprensa, mas também a fala popular ordinária — não passam de
formas degeneradas da experiência e da expressão humanas. Devo aqui repetir
que o jornal, desde o seu início, tendeu para uma forma participante, em
mosaico — e não para a forma livresca. Com a aceleração das técnicas de
impressão e da captação de notícias, esta forma em mosaico tornou-se um
aspecto dominante da associação humana, isto porque a forma em mosaico
significa uma participação em processo — e não um “ponto de vista” particular.
Por esta razão, a imprensa é inseparável do processo democrático — mas
perfeitamente sacrificável de um ponto de vista literário ou livresco.
Ainda: o homem, que se orienta pelos livros mostra a sua
incompreensão com respeito à coletiva forma em mosaico da imprensa, quando
se põe a lamentar suas infindáveis reportagens sociais. Pelo seu próprio
formato, tanto o livro como o jornal e a revista se prestam ao trabalho de
revelar estórias interiores, seja a de Montaigne, fornecendo aos leitores os
delicados contornos de sua mente, seja a de Hearst ou Whitman, fazendo
ressoar seus rugidos bárbaros sobre os tetos do mundo. É a forma impressa, de
alta intensidade e endereçada ao público, com suas uniformidades de repetição
precisa, que confere ao livro e à imprensa em geral esse caráter peculiar de
confessionário público.
Os primeiros tópicos que atraem a atenção dos homens são aqueles que
se referem às coisas que eles já conhecem. Se presenciamos algum
acontecimento, seja ele uma partida de futebol, um estouro de Bolsa ou uma
tempestade de neve, logo tratamos de ler notícias sobre ele, em primeiro lugar.
Por quê? A resposta é da maior importância para a compreensão dos meios.
Por que é que uma criança gosta de falar sobre os acontecimentos que
encheram o seu dia, ainda que de modo balbuciante? Por que preferimos
romances e filmes sobre cenas e figuras familiares? Por que, para os seres
racionais, ver e reconhecer a própria experiência sob uma nova forma material
é um dom gratuito da vida. A experiência traduzida num novo meio fornece,
literalmente, uma agradável rememoração, um delicioso play-back de um
conhecimento anterior. A imprensa repete o prazer que sentimos no uso de
nossas faculdades espirituais, pelas quais traduzimos o mundo externo em
termos da tessitura de nossos próprios seres. Esse prazer de traduzir explica
porque as pessoas, muito naturalmente, estão sempre inclinadas a utilizar
todos os seus sentidos a toda hora. Estas extensões dos sentidos e das
faculdades a que chamamos meios, são por nós utilizadas tio constantemente
quanto nossos olhos e ouvidos — e pelos mesmos motivos. De sua parte, o
homem livresco considera esse uso ininterrupto dos meios como algo de
degradado — pois não está familiarizado com ele no mundo dos livros.
Até agora temos discutido a imprensa como uma sucessora em mosaico
da forma do livro. O mosaico é o modo da imagem corporativa ou coletiva e
implica em participação profunda. Esta participação é antes comunitária do que
privada, e antes inclusiva do que exclusiva. Alguns traços característicos de sua
forma podem ser mais bem apreendidos através de exemplos colhidos ao acaso
e fora do âmbito do jornalismo atual. Por exemplo: historicamente. os jornais
ficaram esperando que as noticias chegassem a eles. O primeiro jornal
americano, impresso em Boston por Benjamin Harris, em 25 de setembro de
1690, anunciava que “circularia mensalmente (ou mais amiúde, se ocorrer
algum excesso de ocorrências)”. Nada indica mais claramente a idéia de que as
notícias constituíam algo que estava fora e além do jornal. Sob condições de
consciência jornalística tão rudimentares, a principal função de um jornal era a
de corrigir rumores e informes pessoais, assim como um dicionário indicaria
pronúncias e significados de palavras há muito existentes sem o benefício dos
dicionários. Logo a imprensa começou a perceber que as notícias deviam não
apenas ser registradas mas também captadas — e, até, em verdade,
fabricadas. O que ia para o jornal era notícia. O resto não era notícia. "Ele é
notícia” e uma expressão estranhamente ambígua, uma vez que estar no jornal
é tanto ser como fazer notícia. Assim. “fazer notícia”, como “fazer carreira”,
implica tanto um mundo de ações como um mundo de ficções. Mas a imprensa
é uma ação e uma ficção quotidianas, uma coisa que se faz com tudo o que
sucede numa comunidade. Pela sua disposição em mosaico, o jornal é uma
imagem em corte da comunidade.
Quando um crítico convencional como Daniel Boorstin lamenta que os
modernos “escritores-fantasmas”, o teletipo e os serviços noticiosos criam um
mundo incorpóreo de “pseudo-eventos”, certamente está demonstrando que
jamais estudou a natureza de qualquer meio anterior aos da era da eletricidade.
A verdade é que o caráter fictício ou “falso” é inerente aos meios — e não
somente aos mais recentes.
Bem antes que o mundo das grandes empresas e dos altos negócios
percebessem que suas operações formavam uma imagem fictícia a ser
meticulosamente tatuada na pele do público, a imprensa já criara a imagem da
comunidade como série de ações em processo unificadas por datas. À parte seu
uso vernacular, a data é o único princípio organizativo da imagem jornalística
da comunidade. Elimine-se a data, e o jornal de um dia se torna igual ao do dia
seguinte. Ler um jornal de uma semana atrás sem perceber que não é de hoje
é uma experiência desconcertante. Assim que a imprensa reconheceu que a
apresentação de notícias não era uma repetição de ocorrências e registros, mas
uma causa direta dos acontecimentos, muitas coisas começaram a acontecer. A
publicidade e a promoção, limitadas até então, saltaram para a primeira página
como estórias sensacionais — com a colaboração de Barnum. Hoje, um
noticiarista encara o jornal como o ventríloquo encara o seu boneco. Consegue
fazê-lo dizer o que quer. Olha para ele como um pintor olha para a sua paleta e
seus tubos de tinta; dos recursos infindáveis de acontecimentos disponíveis,
uma variedade imensa de manipulados efeitos em mosaico pode ser obtida.
Qualquer cliente pode ser encaixado numa vasta variedade de diferentes
padrões e tons de negócios públicos ou em tópicos mais específicos de
interesse humano.
Se prestarmos a devida atenção ao fato de que a imprensa e um
mosaico, uma espécie de organização participante e um mundo do tipo “faça
você mesmo”, podemos ver por que ela é tão necessária a um governo
democrático. Em seu estudo sobre a imprensa, The Fourth Branch of
Government (“O Quarto Poder”), Douglas Cater surpreende-se com o fato de
que a imprensa consiga relacionar consigo mesma e com a nação,
departamentos e setores governamentais extremamente fragmentados.
Enfatiza o paradoxo de a imprensa se dedicar ao processo de lavagem dos
acontecimentos, dando-os à publicidade, ao mesmo tempo em que muitos
acontecimentos devem ser mantidos em segredo, no mundo eletrônico da
trama inconsútil dos eventos. O alto segredo é traduzido em termos de
participação e responsabilidade públicas por meio da mágica flexibilidade de
deixar “transpirar” as notícias controladamente.
É graças a esta engenhosa adaptação quotidiana que o homem ocidental
começa a se ajustar ao mundo elétrico da interdependência total. Em nenhum
lugar como na imprensa é visível este processo de adaptação transformador. A
própria imprensa apresenta a contradição de uma tecnologia individualística
aplicada à moldagem e à revelação de atitudes grupais.
Cabe agora observar como a imprensa tem sido modificada pelas
recentes inovações do telefone, do rádio e da TV. Já vimos que o telégrafo é o
fator que mais contribuiu para criar a imagem em mosaico da imprensa
moderna, com sua massa de tópicos descontínuos e desconexos. É esta
imagem grupal da vida comunal, mais do que o Ângulo ou a visão da matéria
editorial, que constitui o que é participante neste meio. Ao homem livresco de
cultura privativa e desligada, este é o escândalo da imprensa: seu descarado
envolvimento nas profundidades dos sentimentos e dos interesses humanos. Ao
eliminar o tempo e o espaço na apresentação das notícias, o telégrafo turvou a
intimidade da forma do livro, acentuando, em compensação, a nova imagem
pública na imprensa.
A primeira experiência aflitiva para o homem de imprensa que vi~ ita
Moscou é a ausência de listas telefônicas. Uma outra revelação horrificante é a
ausência de painéis telefônicos centrais (PBX, PAX etc.) nos departamentos do
governo. Ou você sabe o número... ou está perdido. O estudioso dos meios
pode dar-se por feliz se descobrir dois fatos como estes numa centena de
volumes. Eles iluminam uma vasta área obscura do mundo da imprensa.
esclarecendo sobre o papel do telefone visto através de uma outra cultura. O
jornalista americano em boa parte reúne suas estórias e processa seus dados
por via telefônica, dada a velocidade e o imediatismo do processo oral. Nossa
imprensa popular se aproxima muito do boato. Em comparação, o jornalista
russo e europeu é um literato. Embora seja uma situação paradoxal, a verdade
é que a imprensa na América letrada, apresenta um caráter intensamente oral,
enquanto que na Rússia e na Europa de cultura oral, a imprensa é
marcadamente literária em seu caráter e em sua função.
O inglês detesta tanto o telefone que, para substitui-lo. criou numerosas
entregas postais. O russo utiliza o telefone como símbolo de status, assim como
o despertador é usado pelos chefes de tribos africanas como artigo de adorno
pessoal. Na Rússia, o mosaico da imagem da imprensa e sentido como uma
forma imediata de participação e unidade tribal. Os traços que, para nós, são os
mais aberrantes dos austeros padrões individuais de uma cultura letrada na
imprensa, são justamente os que mais a recomendam ao Partido Comunista.
“Um jornal — disse Lênin em certa ocasião — não é apenas um propagandista
e um agitador coletivo; é também um organizador coletivo.” Stalin chamou-a “a
mais poderosa arma de nosso Partido”. Para Kruschev, ela é “nossa principal
arma ideológica”. Estes homens estão mais voltados para a forma coletiva do
mosaico da I mprensa, com seu poder mágico de impor suas próprias
afirmativas, do que para a palavra impressa como expressão de um ponto de
vista particular. Na Rússia oral a fragmentação dos poderes governamentais é
coisa desconhecida. Para eles não faz sentido a função de nossa imprensa
como unificadora dos departamentos fragmentados, O monólito russo tem
empregos bem diferentes para o mosaico da imprensa. A Rússia agora tem
necessidade da imprensa (como antes tivemos do livro) para traduzir uma
comunidade oral e tribal numa certa cultura visual e uniforme capaz de manter
p sistema de mercado.
No Egito, a imprensa é necessária para o nacionalismo — esta espécie de
unidade visual que faz os homens saltarem fora dos padrões locais e tribais.
Paradoxalmente o radio surge no Egito como rejuvenescedor das antigas tribos.
O rádio de pilha levado no camelo dá às tribos beduínas uma força e uma
vitalidade antes desconhecida, de modo que usar a palavra “nacionalismo” para
designar a fúria da agitação oral que os árabes têm sentido pelo rádio é ocultar
de nós mesmos toda a situação. A unidade do mundo de fala árabe só pode vir
através da imprensa. O nacionalismo era desconhecido do mundo ocidental até
o Renascimento, quando Gutenberg tornou possível ver a língua materna
uniforme. O rádio em nada contribui para esta unidade visual uniforme tão
necessária ao nacionalismo. Para restringir as audições de rádio aos programas
nacionais, alguns governos árabes promulgaram lei proibindo o uso de fones de
cabeça particulares daí resultando uma acentuação do coletivismo tribal na
audiência. O rádio restaura a sensibilidade tribal e o envolvimento exclusivo na
trama do parentesco. De outro lado, a imprensa cria uma espécie de unidade
visual não muito envolvente, que acolhe a inclusão de muitas tribos e as
diversidades das visões particulares.
Se o telégrafo abreviou a sentença, o rádio abreviou as estórias
noticiosas e a TV injetou o tom interrogativo no jornalismo. De fato, a imprensa
é hoje não apenas um mosaico de todas as tecnologias da comunidade. Mesmo
na seleção dos que fazem notícia, a imprensa prefere aqueles que já
alcançaram alguma notoriedade no cinema, no rádio, na TV e no teatro. Por
aqui se pode testar a natureza do meio-imprensa, pois aquele que aparece
apenas no jornal é, pela razão acima, um cidadão comum.
Os fabricantes de papel de parede recentemente começaram a produzir
um padrão que apresenta semelhança com o jornal francês. O esquimó prega
páginas de revista no teto de seu iglu para estancar gotejamentos. Mas mesmo
um jornal ordinário no chão de uma cozinha revelará notícias que haviam
passado despercebidas quando o jornal estava nas mãos. Quer se use o jornal
ou a revista para resguardar a intimidade nos transportes coletivos, ou para
envolvimento na comunidade sem prejuízo da intimidade o mosaico da
imprensa opera uma complexa função de muitos níveis, uma função de
consciência e participação grupais que o livro nunca foi capaz de realizar.
A diagramação da imprensa, seu formato — isto é, suas características
estruturais — foi utilizado de maneira bastante natural por poetas depois de
Baudelaire, para evocar uma consciência inclusiva. A página de jornal comum
de hoje não é apenas simbolista e surrealista num sentido de vanguarda, como
também foi a primeira inspiração do simbolismo e do surrealismo na arte e na
poesia, como qualquer um pode descobrir lendo Flaubert ou Rimbaud.
Aproximada à forma do jornal, qualquer parte do Ulysses, de Joyce, ou
qualquer poema de T. S. Eliot antes dos Quartets, pode ser apreciada mais
facilmente. Mas é tal a austera continuidade da cultura livresca que ela
desdenha perceber essas liaisons dangéreuses entre os meios, especialmente
os casos escandalosos que tratam da página do livro com criaturas eletrônicas
do outro lado do linotipo.
Tendo em vista a inveterada preocupação da imprensa com a purificação
por meio da publicação, é o caso de se perguntar se isto não conduzirá a um
inevitável choque com o meio do livro. Enquanto imagem coletiva e comunal, a
imprensa assume uma postura natural de oposição a toda manipulação privada.
Qualquer indivíduo que começa a se comportar como se fosse "alguém” público
acaba parando nas páginas de um jornal. Qualquer indivíduo que manipula o
público para o seu bem pessoal também acabará sentindo o poder de
purificação pela publicidade. O manto da invisibilidade, portanto, parece calhar
melhor naqueles que são proprietários de jornais ou que os utilizam
extensivamente para fins comerciais. I sto não ajudaria a definir como
essencialmente corrupta a estranha obsessão do homem livresco com os barões
da imprensa? O ponto de vista puramente pessoal e fragmentário assumido
pelo escritor e pelo leitor de livros cria pontos naturais de hostilidade em
relação à grande força comunal da imprensa. Como formas, ou meios, o livro e
o jornal parecem ser verdadeiros exemplos de completa incompatibilidade. Os
donos dos meios sempre se empenham em dar ao público o que o público
deseja, porque percebem que a sua força está no meio e não na mensagem ou
na linha do jornal.
22. O AUTOMÓVEL
A NOI VA MECÂNI CA
Eis aqui alguns tópicos que captam bastante bem o significado do
automóvel em relação à vida social.
Eu estava bárbaro. Ali ia eu no meu Continental branco, com minha
camisa rendada de seda pura, superbranca, e minhas calças de gabardine
preta. Ao meu lado, a minha jet-black Grande Dinamarquesa, importada da
Europa, chamada Dana Von Krupp. Não há nada melhor do que isso.
Embora seja correto dizer-se que o americano é uma criatura de quatro
rodas, e que para o jovem americano e muito mais importante chegar à idade
da carteira de motorista do que à idade de votar, é também verdade que o
carro se tornou uma peça de roupa sem o qual nos sentimos inseguros,
despidos e incompletos no complexo urbano. Alguns observadores insistem
que, como símbolo de status, a casa já está superando o carro. Se assim for,
esta mudança da rodovia aberta e móvel para as raízes manicuradas do
subúrbio pode significar uma verdadeira reviravolta na orientação americana.
Até onde os carros já se tornaram a verdadeira população das cidades, com a
conseqüente perda da escala humana, tanto em poder como em distância, é
motivo de crescente inquietação. Os urbanistas estão procurando meios e
modos de afastar nossas cidades dos grandes interesses dos transportes,
recuperando-os para os pedestres.
Lynn White conta a estória do estribo e do cavaleiro em armadura, em
sua obra Tecnologia Medieval e Mudança Social. Tão claro e tão imperativo era
o cavaleiro em armadura para os choques dos combates, que para pagá-lo
surgiu o sistema feudal cooperativo. A pólvora e o material bélico do
Renascimento deram fim ao papel do cavaleiro, restituindo a cidade ao burguês
pedestre.
Se o motorista, tecnológica e economicamente, é muito superior ao
cavaleiro armado, pode muito bem dar-se que as mudanças elétricas na
tecnologia venham a desmontá-lo, restituindo-nos à escala pedestre. “I r para o
trabalho” pode ser uma fase transitória, como “ir às compras”. Os interesses
das mercearias há muito que anteviram a possibilidade de compras por meio de
uma TV em dois sentidos, ou seja, de um vídeo-telefone. William M. Freeman,
escrevendo para Secção de Serviços do New York Times (em 15-10-1963, 3ª
feira) relata que certamente haverá “uma alteração decisiva na distribuição dos
veículos de hoje... A Sra. Cliente poderá ligar para várias lojas. Sua
identificação-crediário será estabelecida automaticamente através da televisão.
Artigos em toda gania de cores fielmente reproduzidas lhe serão mostrados. A
distância não oferecerá problemas, já que, pelo fim do século, o consumidor
poderá estabelecer ligações diretas, independentemente das distâncias.”
O que há de errado em todas as profecias desse tipo é que elas partem
de uma situação de fato estável — a casa e a loja, no caso — que, comumente,
é a primeira a desaparecer. As mudanças de relação entre clientes e lojistas são
quase nada em comparação com as mudanças da estrutura do próprio trabalho,
na era da automação. É quase certo que ir e vir do trabalho são atos que
perderão seu caráter atual. Neste sentido, o carro, enquanto veículo, seguirá o
mesmo rumo do cavalo. O cavalo perdeu a sua função no transporte, mas
retornou triunfante como entretenimento. Assim com o automóvel. Seu futuro
não pertence à área dos transportes. Se a nascente indústria automobilística,
em 1910, tivesse convocado uma conferência para estudar o futuro do cavalo,
a discussão teria girado em torno da descoberta de novos empregos para o
cavalo e de novas espécies de treinamento para prolongar a sua utilidade. A
completa revolução nos transportes, na habitação e no urbanismo teria sido
ignorada. Ninguém teria pensado na revolução econômica da produção e
prestação de serviços aos carros e na dedicação de tanto tempo de lazer a sua
utilização no sistema de auto-estradas. Em outras palavras, é a estrutura que
muda com a nova tecnologia, e não apenas o quadro na moldura. Em lugar de
pensar em fazer compras pela televisão, seria melhor que tivéssemos
consciência de que a intercomunicação televisionada significa o fim das
“compras”, e o fim do trabalho, tal como hoje conhecemos. A mesma ilusão
bloqueia o pensamento sobre a TV e a educação. Pensamos na TV como um
auxiliar incidental, quando em verdade ela já transformou o processo de
aprendizado dos jovens, independentemente da escola e do lar.
Na década de 30, quando milhões de revistas em quadrinhos estavam
despejando sangue sobre as cabeças dos jovens, ninguém parecia perceber
que, emocionalmente, a violência de milhões de carros em nossas ruas era
incomparavelmente mais histérica do que qualquer coisa impressa. Todos os
hipopótamos, rinocerontes e elefantes do mundo reunidos numa cidade não
dariam nem para começar a criar a ameaça e a intensidade explosiva da
experiência horária e diária do engenho de combustão interna. Julgam as
pessoas que podem realmente internalizar, ou seja, viver com toda esta força e
esta violência explosiva sem processá-la e canalizá-la para alguma forma de
fantasia que sirva de compensação e equilíbrio?
Nos filmes mudos dos anos 20, muitas seqüências envolviam automóveis
e policiais. Como então o filme era aceito como uma ilusão ótica, o tira era o
principal lembrete da existência de normas no jogo da fantasia. Como tal,
tomava surras memoráveis. Os carros dos anos 20 mais pareciam engenhosas
geringonças montadas às pressas numa loja de ferramentas. Sua semelhança
com a “aranha” era bastante forte e evidente. Vieram então os pneus-balão, os
interiores maciços, e os bojudos pára-lamas. Alguns vêem o carro grande como
uma espécie de meia-idade inflada, que se seguiu ao acanhado período da
primeira paixão entre a América e o carro. Por engraçada que seja a
interpretação dos psicanalistas vienenses, que viram o carro como objeto
sexual, não há dúvida de que chamaram a atenção para o fato de que — como
as abelhas no mundo vegetal — os homens sempre foram os órgãos sexuais do
mundo tecnológico. O carro não é mais, ou menos, objeto sexual do que a roda
ou o martelo. Onde as pesquisas motivacionais falharam inteiramente foi no
fato de que o sentido da forma espacial dos americanos mudou muito desde o
advento do rádio, e drasticamente desde o advento da TV. Embora inofensivo,
é incorreto tentar identificar esta mudança com um homem de meia-idade em
busca da sílfide Lolita.
Sem dúvida têm havido programas de enérgica limitação para os carros,
recentemente. Mas se tivéssemos de perguntar: “Será que o carro vai durar?”,
ou “O carro veio para ficar?”, haveria muita confusão e dúvida. É estranho que
numa era tão progressista como a nossa, em que a mudança se tornou a única
constante de nossas vidas, nunca nos perguntemos: “O carro veio para ficar?”.
A resposta. naturalmente. e Não”. Na era da eletricidade, a própria roda é
obsoleta. No coração da indústria automobilística há homens que sabem que o
carro está passando com a mesma certeza que se podia ter de que a
escarradeira estava condenada, a partir do momento em que a datilógrafa
entrou em cena no escritório. Que medidas tomaram eles para facilitar a saída
da indústria automobilística do centro do palco? A mera obsolescência da roda
não significa o seu desaparecimento. Significa apenas que, como a caligrafia ou
a tipografia, a roda passará a desempenhar um papel secundário na cultura.
Em meados do século XI X, os carros a vapor em plena estrada
alcançaram grande sucesso. Foram só os impostos sobre veículos pesados
decretados pelas autoridades rodoviárias que desencorajaram os engenhos a
vapor nas estradas. Em 1887, já havia pneumáticos para carros a vapor na
França. A American Stanley Steamer (Steamer — veículo a vapor) começou a
florescer em 1899. Ford já construíra seu primeiro carro em 1896 e a Ford
Motor Company foi fundada em 1903. Foi a vela de centelha elétrica que deu a
vitória do motor a gasolina sobre o motor a vapor. O cruzamento da
eletricidade, forma biológica, com a forma mecânica, não viria mais a liberar
uma força maior.
Foi a TV que vibrou o maior golpe no carro americano. O carro e a linha
de montagem se haviam tornado a última expressão da tecnologia de
Gutenberg; ou seja, da tecnologia de processos uniformes e repetitivos
aplicados a todos os aspectos do trabalho e da vida. A TV pôs em questão
todos os pressupostos mecânicos sobre a uniformidade e a padronização, bem
como sobre todos os valores do consumidor. A TV trouxe também a obsessão
com o estudo e a análise em profundidade. Oferecendo-se para fisgar tanto o
anúncio como o id, a pesquisa motivacional imediatamente se tomou aceitável
para o frenético mundo executivo, que tinha as mesmas idéias de Al Capp
sobre o gosto dos americanos, quando a TV atacou. Algo acontecera. A América
não era mais a mesma. Durante quarenta anos, o carro fora o grande nivelador
do espaço físico e da distância social. A conversa sobre o carro americano como
símbolo de status sempre passou por cima do fato básico de que é a força do
automóvel que nivela as diferenças sociais, transformando o pedestre num
cidadão de segunda classe. Muita gente tem observado que o verdadeiro
integrador ou nivelador de brancos e negros do Sul foi o carro particular e o
caminhão, e não a manifestação de pontos de vista morais. É simples e óbvio
que o carro, mais do que qualquer cavalo, é uma extensão do homem que
transforma o cavaleiro num super-homem. É um meio de comunicação social
quente e explosivo. A TV, esfriando os gostos do público americano e criando
novas necessidades para
europeu imediatamente
autocavaleiro americano.
status de quase pedestre
numa calçada.
um espaço único e envolvente — coisa que o carro
forneceu — praticamente derrubou do cavalo o
Os pequenos carros europeus reduziram-no a um
novamente. Há pessoas que conseguem manobrá-los
O carro produziu o nivelamento social por virtude exclusiva de seus
cavalos-vapor. Criou auto-estradas e logradouros que não apenas eram muito
parecidos em todas as partes da Terra como também acessíveis a todos. Com a
TV, naturalmente começa a tornar-se freqüente a queixa sobre esta
uniformidade de veículos e de cenários de férias. Como afirmou John Keats, em
sua diatribe contra o carro e a indústria The I nsolent Chariots (“As Carruagens
I nsolentes”), aonde um automóvel pode ir, os demais também podem, e onde
quer que o automóvel vá, a versão-automóvel da civilização o acompanha com
toda certeza. Ora, este é um sentimento orientado pela TV, não apenas anticarro e antipadronização, mas também anti-Gutenberg — e, portanto,
antiamericano. Claro que eu sei que John Keats não quis significar isto. Ele
nunca pensou sobre os meios ou sobre a maneira pela qual Gutenberg criou
Henry Ford, a linha de montagem e a cultura padronizada. Tudo o que sabia é
que era popular atacar o uniforme, o padronizado e as formas quentes de
comunicação em geral. Por esta razão, Vance Packard pôde criar bastante
confusão com seu The Hidden Persuaders (“A Nova Técnica de Convencer”).
Vaiou o velho caixeiro-viajante e os meios quentes, como MAD faz. Antes da
TV, essas atitudes não teriam sentido. Não pagariam a pena. Hoje, é rendoso
rir do mecânico e do meramente padronizado. John Keats podia questionar a
principal glória da sociedade americana sem classes, dizendo: “Basta ver uma
parte da América para ter visto tudo” — e acrescentando que o carro deu ao
americano a oportunidade “de se tornar cada vez mais comum”, em lugar de
viajar e enriquecer a sua experiência. Desde a TV, tornou-se popular encarar os
produtos industriais cada vez mais uniformes e repetitivos com o mesmo rancor
que um requintado intelectual como Henry James teria votado à sua dinastia de
penicos, em 1890. Sem dúvida, a automação está em vias de produzir o objeto
único, sob medida, ao mesmo preço e velocidade do produto seriado. A
automação pode produzir um carro ou um capote sob encomenda com menos
confusão do que ao produzir os mesmos produtos padronizados. Mas o produto
único não pode circular em nosso mercado ou em nossos pontos de venda.
Como resultado, estamos caminhando para um período dos mais
revolucionários no setor da mercadologia (marketing) — como em tudo o mais,
de resto.
Quando os europeus costumavam visitar a América, antes da Segunda
Guerra Mundial, exclamavam: “Mas isto aqui é comunismo!”. O que queriam
dizer é que não apenas tínhamos produtos padronizados, como todo mundo os
tinha. Nossos milionários não apenas comiam flocos de milho e cachorroquente, como também se consideravam gente da classe média. E que mais
podiam ser? Como podia um milionário ser outra coisa além de um “classe
média” na América — a não ser que tivesse a imaginação criativa de um artista
para fabricar uma vida única para si mesmo? Será estranho que os europeus
associem uniformidade de ambiente e de bens com o comunismo? E que Lloyd
Warner e seus colegas associados, em seus estudos sobre as cidades
americanas, falem de sistema de classes americano em termos de renda? A
mais alta renda não pode liberar um norte-americano de sua vida “classe
média”. A renda mais baixa propicia a todos uma considerável parcela da
mesma existência da classe média. Ou seja, de fato homogeneizamos nossas
escolas, fábricas, cidades e diversões em larga medida, simplesmente porque
somos letrados e aceitamos a lógica da uniformidade e da homogeneidade
inerente à tecnologia de Gutenberg. Esta lógica, que a Europa nunca aceitou
até há bem pouco, subitamente começa a ser contestada na América — desde
que a trama tátil do mosaico da televisão começou a penetrar no sensorium
americano. Quando um escritor popular pode com toda a confiança investir
contra o emprego do carro para viajar, pois isto transforma o motorista em
alguém “cada vez mais comum” — é porque a própria contextura da vida
americana foi posta em questão.
Há poucos anos atrás, a Cadillac anunciou as características de seu “El
Dorado Brougham”: controle anti-submersão guinchos, estilo sem coluna, párachoques em asa de gaivota e forma de projétil, aberturas externas de exaustão
e várias outras características exóticas emprestadas a outros setores que não o
do automóvel. Éramos como que convidados a associar o carro aos surfistas do
Havaí, a gaivotas planando no ar como conchas de 40 cm e à alcova de
Madame de Pompadour. Poderia a revista MAD fazer melhor? Na era da TV,
esses contos dos bosques de Viena imaginados pelos pesquisadores
motivacionais constituem um script cômico ideal para MAD. Na verdade, o script
sempre existiu, mas só pôde ser devidamente apreciado depois que a audiência
foi condicionada pela TV.
Confundir o carro com símbolo de status, só porque dele se exige que
seja tudo menos um carro, é confundir o significado integral desse derradeiro
produto da era mecânica que ora vai cedendo a sua forma à tecnologia elétrica.
O carro é um estupendo exemplar de mecanismo uniforme e padronizado,
inseparável da tecnologia de Gutenberg e da escrita, que criou a primeira
sociedade sem classes do mundo. O carro deu ao cavaleiro democrático, numa
embalagem única, seu cavalo, sua armadura e sua altaneira insolência,
transformando-o magicamente num míssil errático. O carro americano não
nivelou por baixo, mas por cima, visando à idéia aristocrática. O enorme
aumento e distribuição da força também havia agido como fator de equalização
entre a técnica da escrita e as demais formas de mecanização. A inclinação de
aceitar o carro como uni símbolo de status, limitando sua forma mais expansiva
ao desfrute dos executivos de alto escalão, não constitui uma característica do
carro e da idade mecânica, mas das forças elétricas que agora estão liquidando
esta era mecânica de uniformidade e padronização — para recriar as normas de
status e dos papéis que serão redistribuídos a cada um.
Quando o carro ainda era coisa nova, exerceu a típica pressão mecânica
de explosão e de separação de funções. Rompeu os laços da vida familiar — ou
assim pareceu agir — nos anos 20. Separou trabalho e domicilio, como nunca
antes se observara. Fragmentou cada cidade em dezenas de subúrbios e
estendeu muitas das formas da vida urbana ao longo das auto-estradas, até
que estas viessem a parecer cidades ininterruptas. Criou as selvas de asfalto,
cobrindo de asfalto e concreto 60 000 Km2 de áreas verdes e agradáveis. Com
o advento das viagens aéreas, uniram-se o carro e o caminhão para acabar
com as estradas de ferro. Hoje as crianças pedem uma viagem de trem como
se este fosse uma carruagem, um cavalo ou um veleiro: “Antes que acabe,
paizinho.”
O carro deu fim ao campo, substituindo-o por uma nova paisagem onde
era uma espécie de cavalo saltador de barreiras. Ao mesmo tempo, destruiu a
cidade como ambiente espontâneo onde as famílias podiam criar-se. As ruas, e
mesmo as calçadas, tornaram-se cenários por demais agitados para o jogo
espontâneo do crescimento das crianças. A cidade encheu-se de passantes
estranhos. Esta é a estória do automóvel — e já não há muito o que contar. A
partir da TV, começou a mudar a maré do gosto e da tolerância: o meio quente
do carro torna-se cada vez mais cansativo. Veja-se o prodígio da travessia das
ruas, onde uma criancinha pode parar um caminhão de concreto. A mesma
mudança tornou a cidade insuportável para muitos que não pensariam assim há
dez anos atrás, da mesma forma como há dez anos atrás não teriam apreciado
a leitura de MAD.
O poder contínuo do carro em transformar os padrões da habitação pode
ser plenamente observado no modo como a nova cozinha urbana adquiriu o
mesmo caráter social, múltiplo e central, da velha cozinha de fazenda. Esta era
o ponto principal de acesso à casa — e dela se tornou também o centro social.
O novo lar suburbano transformou novamente a cozinha em centro —
idealmente acessível ao carro. O carro tomou-se a carapaça, a concha protetora
e agressiva do homem urbano e suburbano. Mesmo antes do Volkswagen, os
observadores a cavaleiro da rua já notavam a semelhança dos carros com
insetos de casca reluzente. Na era do mergulhador tátil-orientado, esta
carapaça brilhante é um dos mais fortes testemunhos contra o carro. Os
centros de compra surgiram para o homem motorizado, São ilhas estranhas,
onde o pedestre se sente deslocado e sem amigos. O carro o repele.
Numa palavra, o carro remodelou todos os espaços que unem e separam
os homens, e assim continuará a fazer por mais uma década — quando
manifestar-se-ão os sucessores eletrônicos do automóvel.
23. ANÚNCI OS
PREOCUPANDO-SE COM OS VI ZI NHOS
A pressão contínua é a de criar anúncios cada vez mais à imagem dos
motivos e desejos do público. A importância do produto é inversamente
proporcional ao aumento de participação do público. Um exemplo extremo é o
da série de anúncios dedicado ao espartilho, onde se afirma que “o que você
sente... não é o espartilho”. Trata-se de fazer com que o anúncio inclua a
experiência do público. O produto e a resposta do público se tornam uma única
estrutura complexa. A arte da publicidade acabou por preencher à maravilha a
antiga definição de Antropologia, como “a ciência do homem abraçando a
mulher”. A firme tendência da publicidade é a de declarar o produto como parte
integral de grandes processos e objetivos sociais. Dispondo de grandes verbas,
os artistas comerciais passaram a desenvolver o anúncio como um ícone — e os
ícones não são fragmentos ou aspectos especializados, mas imagens
comprimidas e unificadas de natureza complexa. Focalizam uma grande área da
experiência dentro de limites reduzidos. Os anúncios, pois, tendem a se afastar
da imagem que o consumidor faz do produto, aproximando-se da imagem de
um processo do produtor. A chamada imagem corporativa do processo inclui o
consumidor no papel de produtor, igualmente.
Esta poderosa e nova tendência dos anúncios em direção à imagem
icônica enfraqueceu bastante a posição das indústrias editoriais de revistas, em
particular das revistas ilustradas. As chamadas revistas de temas há muito que
vêm dando tratamento pictórico aos seus temas e notícias. Ao lado destas
revistas, que apresentam tomadas e pontos de vista fragmentários, surgem os
novos e grandes anúncios com suas imagens comprimidas que incluem o
produtor e o consumidor, o vendedor e a sociedade numa única imagem. Os
anúncios tornam os temas e tópicos pálidos, fracos e anêmicos. A revista de
temas pertence ao velho mundo pictórico anterior à imagética em mosaico da
TV.
É a poderosa arremetida icônica em mosaico sobre nossa experiência —
a partir da TV — que explica o paradoxo do ressurgimento do Time, do
Newsweek e de revistas semelhantes em mosaico, que corre paralelo ao mundo
dos anúncios. A notícia em mosaico não é narrativa, ponto de vista, explicação
ou comentário. É uma imagem corporativa em profundidade da sociedade em
ação e convida à máxima participação no processo social.
Os anúncios parecem operar segundo o avançado princípio de que uma
bolinha — ou estrutura — numa barragem redundante de repetições, acabará
por se afirmar gradualmente. Os anúncios levam o princípio do ruído até ao
nível da persuasão — bem de acordo, aliás, com os processos de lavagem
cerebral. Este princípio de profundidade da investida no inconsciente pode
muito bem ser “a razão por que , tema de tantos anúncios.
Muita gente se inquieta a propósito das agências de publicidade de nosso
tempo. Para colocar a coisa de maneira brutal: a indústria de publicidade é uma
grosseira tentativa de estender os princípios da automação a todos os aspectos
da sociedade. Como ideal, a publicidade aspira ao objetivo de harmonizar
programadamente todos os esforços, impulsos e aspirações humanas.
Utilizando métodos artesanais, ela visa à derradeira meta eletrônica de uma
consciência coletiva. Quando toda a produção e todo o consumo se unirem
numa harmonia pré-estabelecida, então a publicidade se liquidará pelo seu
próprio sucesso.
Com o advento da TV, a exploração do inconsciente pelo anunciante
deparou com um empecilho. A experiência da TV favorece muito mais a
consciência a respeito do inconsciente do que as formas de apresentação e
venda agressivas no jornal. na revista, no cinema e no rádio. Mudou a
tolerância sensória da audiência — e assim também mudaram os métodos de
apelo pelos anunciantes. No novo mundo frio da TV, o velho mundo quente da
venda agressiva e da argumentação convincente do vendedor se revestem
daquele antigo encanto das canções e trajes da década de 20. Mort Sahl e
Shelley Berman, de MAD, estão apenas seguindo, e não criando uma tendência,
ao fazerem piada do mundo dos anúncios. Descobriram que basta desenrolar
ou recitar um anúncio ou uma notícia para que o público se torça de rir. Há
muitos anos, Will Rogers descobriu que qualquer jornal lido em voz alta, do
palco de um teatro, é sempre hilariante. Dá-se o mesmo com os anúncios, hoje.
Qualquer anúncio deslocado para um novo cenário se torna engraçado. I sto
vale dizer que qualquer anuncio e cômico quando apreciado conscientemente.
Os anúncios não são endereçados ao consumo consciente. São como pílulas
subliminares para o subconsciente, com o fito de exercer um feitiço hipnótico,
especialmente nos sociólogos. Este é um dos mais edificantes aspectos da vasta
empresa educacional a que chamamos publicidade, cuja verba anual de doze
bilhões de dólares se aproxima do orçamento escolar nacional. Qualquer
anúncio dispendioso representa o esforço, a atenção, a experiência, o espírito,
a arte e a habilidade de muita gente. Muito mais pensamento e esmero vai na
composição de qualquer anúncio de importância inserido num jornal ou revista
do que na redação dos tópicos e editoriais dos mesmos veículos. Qualquer
anúncio caro é criado e construído sobre os alicerces testados de estereótipos
públicos ou “conjuntos” de atitudes estabelecidas, assim como um arranha-céu
é construído sobre rocha. Posto que equipes de talentos altamente treinados e
argutos entrem na produção de um anúncio sobre qualquer linha de produtos
conhecidos, é claro que qualquer anúncio aceitável é a dramatização vigorosa
de uma experiência comunal. Nenhum grupo de sociólogos pode comparar-se a
uma equipe de publicitários na coleta e processamento de dados sociais
exploráveis. As equipes de publicidade possuem milhões para gastar
anualmente na pesquisa e na testagem das reações, e seus produtos são
magníficas acumulações de materiais sobre as experiências e os sentimentos
partilhados por toda a comunidade. É claro que se os anúncios se afastassem
do centro desta experiência partilhada em comum, entrariam rapidamente em
colapso, por perderem a possessão de nossos sentimentos.
É verdade também que os anúncios utilizam o mais básico e comprovado
da experiência de uma comunidade de modo grotesco. Examinados
conscientemente, são tão despropositais como tocar “Fios de Prata em Tecidos
de Ouro” para um ato de strip-tease. Mas as anúncios são cuidadosamente
projetados pelos homens-rãs da mente, localizados na Madison Avenue, para
serem expostos ao semiconsciente. Sua simples existência é um testemunho —
e uma contribuição — do estado sonambúlico de uma metrópole cansada.
Depois da Segunda Guerra Mundial, um oficial do exército americano,
publicitariamente consciente, observava com desconfiança que os italianos
podiam dizer os nomes dos ministros do gabinete, mas não os nomes das
utilidades preferidas pelas celebridades italianas. Além do mais, dizia ele, o
espaço dos muros e paredes da I tália era mais utilizado por slogans políticos do
que comerciais. Predizia que havia poucas esperanças de que os italianos
viessem a atingir qualquer espécie de tranqüilidade ou prosperidade doméstica
enquanto não começassem a se preocupar mais com os apelos concorrentes de
ciganos e flocos de milho do que com a capacidade dos homens públicos.
Chegou até a dizer que a liberdade democrática consiste largamente em ignorar
a política e preocupar-se, em troca, com a ameaça da caspa, pernas peludas,
intestinos preguiçosos, seios flácidos, retração das gengivas, excesso de peso e
sangue cansado.
O oficial provavelmente estava com a razão. Qualquer comunidade que
deseje acelerar e maximalizar a troca de bens e serviços tem que simplesmente
homogeneizar sua vida social. A decisão de homogeneizar ocorre facilmente às
populações altamente letradas do mundo de fala inglesa. Mas é difícil para as
culturas orais concordarem num tal programa de homogeneização, pois estão
muito mais inclinadas a traduzir a mensagem do rádio em política tribal do que
num novo meio de tração para Cadillacs. Esta é uma das razões por que foi
fácil aos retribalizados nazistas sentirem-se superiores aos consumidores
americanos. O homem tribal pode muito facilmente detectar as lacunas da
mentalidade do homem letrado. De outro lado, é uma ilusão particular das
sociedades letradas o considerarem-se altamente conscientes e individualistas.
Séculos de condicionamento tipográfico segundo padrões de uniformidade
linear e repetibilidade fragmentada começam a merecer uma atenção crítica
crescente da parte do mundo artístico, na era da eletricidade. O processo linear
vai sendo expulso da indústria, não apenas na administração e na produção,
mas também na indústria do entretenimento. É a nova imagem em mosaico da
TV que substitui os pressupostos estruturais de Gutenberg. Os resenhistas de
The Naked Lunch (“O Almoço Nu”), de William Burroughs, aludiram à
importância do termo e do método “mosaico” em seu romance. O mundo das
marcas padronizadas e dos bens de consumo se torna simplesmente divertido à
luz da imagem da televisão. Basicamente, a razão disto reside no fato de as
malhas em mosaico da imagem da TV compelirem a uma tal participação por
parte do telespectador, que ele acaba sentindo nostalgia dos tempos e modos
do pré-consumo. Lewis Mumford é ouvido com atenção quando louva a forma
coesiva das cidades medievais, propugnando-a para os nossos dias e
necessidades.
A publicidade só ganhou impulso nos fins do século passado, graças à
invenção da fotogravura. Anúncios e fotografias tornaram-se intercambiáveis —
e assim têm continuado até hoje. O que é mais importante, os clichês tornaram
possível o aumento da circulação do jornal e da revista, o que também fez
aumentar a quantidade e a rentabilidade dos anúncios. Hoje é inconcebível que
qualquer publicação, diária ou de qualquer outra periodicidade, consiga mais do
que alguns poucos milhares de leitores, sem as fotos. Tanto o anúncio como a
estória fotográfica propiciam grandes quantidades de informações e fatos
humanos imediatos, sempre necessárias para se manter a atualização em nosso
tipo de cultura. E não seria natural e necessário que se desse aos jovens o
mesmo treino de percepção gráfica e fotográfica que eles recebem em relação
ao tipográfico? Na verdade, o treinamento gráfico é mais importante, porque a
arte de organizar um elenco de atores e dispô-lo num anúncio é complexa e,
também, forçosamente insidiosa.
Alguns autores argumentavam que a Revolução Gráfica deslocou nossa
cultura dos ideais particulares para as imagens corporadas. É o mesmo que
dizer que a fotografia e a imagem da TV nos arrebatam do ponto de vista
particular e letrado, levando-nos para o mundo complexo e inclusivo do ícone
grupal. É isto exatamente o que faz a publicidade. Em lugar de apresentar um
argumento ou uma visão particular, ela oferece um modo de vida que é para
todos ou para ninguém. Apresenta esta perspectiva com argumentos que só se
referem a assuntos triviais e irrelevantes. Por exemplo, o anúncio de um carro
de luxo apresenta o chocalho de um bebê sobre o luxuoso tapete do piso
traseiro, dizendo que o indesejável rateio do carro foi eliminado do mesmo
modo como o usuário poderia retirar o chocalho da criança. Esta espécie de
texto não tem nada que ver com rateios e chocalhos [ * Rattles, em inglês, para
ambos os casos. (N. do Tr.)] . O texto é simplesmente um jogo de palavras que
distrai as faculdades críticas, enquanto a imagem do carro vai atuando
hipnoticamente sobre o leitor. Aqueles que passam suas vidas protestando
contra os “falsos e enganosos textos publicitários” são sempre bem-vindos aos
anunciantes, assim como os abstêmios são úteis às destilarias e os censores
aos livros e filmes. Os que protestam são os melhores aclamadores e
aceleradores. Desde o advento das fotos, a tarefa do texto publicitário é tão
incidental e latente quanto o “significado” de um poema o é para um poema,
ou as palavras de uma canção para a canção. As pessoas altamente letradas
não entendem a arte não-verbal do pictórico — e se põem a saltitar
impacientemente para exprimir desaprovações tão desenxabidas e fúteis que
apenas servem para reforçar o poder e a autoridade dos anúncios. As
mensagens dos anúncios, mensagens de profundidade ao inconsciente, nunca
são atacadas pelos letrados e literatos, graças à sua incapacidade de perceber
ou discutir formas não-verbais de estruturação e significação. Eles não possuem
a arte de discutir com fotografias. Quando se emitiram anúncios subliminares
nos inícios da TV, os letrados entraram em pânico — e só saíram dele depois
que os anúncios foram excluídos. O fato de os efeitos da tipografia serem em
boa parte subliminares, tanto quanto os das fotos, é um segredo que está além
do alcance da comunidade orientada pelos livros.
Quando veio o cinema, todo o padrão da vida americana foi para as telas
como um anúncio ininterrupto. O que um ator ou atriz usava ou comia era um
anúncio — como nunca se sonhara antes. O banheiro, a cozinha, o carro e tudo
o mais recebeu o tratamento das Mil e Uma Noites. Em conseqüência, todos os
anúncios publicados em jornais ou revistas tinham de parecer cenas extraídas
de um filme. E ainda parecem — só que o enfoque se abrandou com o advento
da TV.
Com o rádio, os anúncios se abriram ao encantamento do comercial
cantado. Como técnica de obter a inesquecibilidade, o ruído e a náusea
tornaram-se universais. A criação de anúncios e imagens tornou-se — e
permaneceu — o único setor realmente dinâmico e progressista da economia.
Mas o cinema e o rádio são meios quentes, e seu advento excitou todo mundo
a um alto grau, dando-nos os turbulentos anos 20 (The Roaring Twenties). O
efeito foi o estabelecimento de uma plataforma maciça para as ações da
promoção de vendas como meio de vida — coisa que só terminou com A Morte
do Caixeiro Viajante e com o aparecimento da TV. Estes dois acontecimentos
não são meras coincidências. A TV introduziu um padrão de vida apoiado na
“experiência em profundidade” e no “faça você mesmo”, que destruiu a
imagem do vendedor agressivo e individualista e do consumidor passivo, assim
como empanou as nítidas figuras das estrelas e astros de cinema. Não estamos
querendo sugerir que Arthur Miller desejasse explicar a TV para a América
antes de seu aparecimento, embora ele, com toda a propriedade, pudesse ter
intitulado sua peça com o nome de O Nascimento do Relações Públicas.
Aqueles que viram O Mundo da Comédia, de Harold Lloyd, certamente se
lembrarão da surpresa que tiveram ao verificar o quanto haviam esquecido da
década de 20. E também se surpreenderam ao notar quão ingênuos e simples
foram realmente os anos 20. A era das vamps, dos xeques e dos homens da
caverna era um berçário bulhento comparado ao nosso mundo de hoje, quando
as crianças lêem MAD para rir sozinhas. Era um mundo ainda inocentemente
empenhado na expansão e na explosão, na separação, na provocação e no
rompimento. Hoje, com a televisão, experimentamos o processo oposto, o da
integração e da inter-relação, que é tudo menos inocente. A fé simplória do
vendedor na irresistibilidade da sua linha (de produtos e de argumentação)
cede agora ao complexo conjunto das atitudes, do processo e da organização
corporada.
Os anúncios mostraram ser uma forma de entretenimento comunitário
autodestrutiva. Vieram na esteira do evangelho vitoriano do trabalho, e
prometiam a terra da perfeição, a Terra Buscada do profeta I saias, onde seria
possível “passar camisas sem detestar seu esposo”. E agora estão
abandonando o produto para o consumidor individual, em favor de um
processo todo-inclusivo e interminável, que é a I magem de qualquer grande
empresa corporada. A Container Corporation of América não apresenta sacos e
copos de papel em seus anúncios, mas a função do recipiente, lançando mão
dos melhores recursos artísticos. Os historiadores e arqueologistas um dia
descobrirão que os anúncios de nosso tempo constituem os mais ricos e fiéis
reflexos diários que uma sociedade pode conceber para retratar todos os seus
setores de atividades. A este respeito, os hieróglifos egípcios ficam bastante
atrás. Com a TV, os anunciantes mais espertos livraram-se de suas peles e
peliças, de seus zumbidos e nebulosidades. E partiram para a caça submarina.
Pois o telespectador é isso: um caçador submarino, e já não gosta da radiosa
luz diurna sobre endurecidas superfícies epidérmicas, embora deva continuar a
suportar uma barulhenta e dolorosa trilha sonora de rádio.
24. JOGOS
AS EXTENSÕES DO HOMEM
O álcool e o jogo têm significados diferentes em culturas diferentes. Em
nosso mundo ocidental intensamente individualista e fragmentado, “encher a
cara” é um liame social e um meio de envolvimento festivo. Em contraste,
numa sociedade tribal solidamente unida, “encher a cara’ e um fator destrutivo
de toda a estrutura social e é mesmo utilizado como meio de experiência
mística.
De outra parte, nas sociedades tribais, o jogo de azar é um caminho bem
visto para os esforços de realização e de iniciativa particular. Numa sociedade
individualista, os mesmos jogos e loterias parecem ameaçar toda a ordem
social. O jogo leva a iniciativa individual a um ponto de zombaria de toda a
estrutura social individualista. A virtude tribal é o vício capitalista.
Quando os pracinhas vieram dos banhos de lama e sangue da frente
ocidental, em 1918 e 1919, encontraram a Lei Seca (Volstead Prohibition Act).
Era o reconhecimento social e político de que a guerra nos tinha fraternalizado
e tribalizado a ponto de o álcool passar a ser uma ameaça à sociedade
individualista. Quando estivermos também preparados para legalizar o jogo,
anunciaremos ao mundo. como os ingleses, o fim da sociedade individualista e
o retorno às memórias tribais.
Costumamos pensar no humor como um sinal de sanidade. por boa
razão: na graça e na brincadeira recuperamos a pessoa integral, já que só
podemos utilizar uma pequena parcela de nosso ser no mundo de trabalho ou
na vida profissional. Philip Deane, em Prisioneiro na Core’ia. conta uma estória,
sobre jogos durante as sucessivas lavagens de cérebro, que vem a calhar:
Chegou um momento em que tive de parar de ler aqueles livros, parar
de praticar o russo porque o estudo da língua nas absurdas e constantes
argumentações começavam a deixar a sua marca, começavam a encontrar um
eco e senti que meu processo mental se enredava, minhas faculdades mentais
se obnubilavam... e então eles cometeram um erro. Deram-nos para ler A I lha
do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, em inglês. Então eu pude ler Marx de
novo, interrogando a mim mesmo sem medo. Robert Louis Stevenson deixounos de coração leve, e começamos lições de dança.
Os jogos são artes populares, reações coletivas e sociais às principais
tendências e ações de qualquer cultura. Como as instituições, os jogos são
extensões do homem social e do corpo político, como as tecnologias são
extensões do organismo animal. Tanto os jogos como as tecnologias são
contra-irritantes ou meios de ajustamento às pressões e tensões das ações
especializadas de qualquer grupo social. Como extensões da resposta popular
às tensões do trabalho, os jogos são modelos fiéis de uma cultura. I ncorporam
tanto a ação como a reação de populações inteiras numa única imagem
dinâmica.
Em 13-12-1962, a Reuters despachava de Tóquio:
O NEGÓCI O É UM CAMPO DE BATALHA
A última moda entre os homens de negócios nipônicos é estudar a
estratégia e a tática militares clássicas para aplicá-las as operações de seus
negócios... Conta-se que uma das maiores empresas publicitárias do Japão
chegou a tornar obrigatória a leitura desses livros para todos os funcionários.
Séculos de estreita organização tribal dão aos japoneses uma posição
favorável na indústria e no comércio da era da eletricidade. Há poucas décadas
atrás, submetidos à fragmentação da indústria e da escrita, liberaram
agressivas energias individuais. O estreito trabalho em equipe e a lealdade
tribal ora exigidos pela intercomunicação elétrica fazem com que os japoneses
agora retomem suas positivas relações com as antigas tradições. Nossos
próprios rumos tribais são ainda muito vagos para nos servirem de ajuda.
Começamos a nos retribalizar com o mesmo tateio doloroso com que uma
sociedade pré-letrada se inicia na leitura e na escrita e na organização visual de
sua vida, em termos de espaço tridimensional. A busca do desaparecido Michael
Rockefeller revelou a existência de uma tribo da Nova Guiné, que mereceu uma
atenção especial da revista Life, há um ano atrás. Eis como os editores
explicavam os jogos guerreiros desses nativos:
Os inimigos tradicionais dos Willigiman-Wallalua são os Wittaia, um povo
que se lhes assemelha em tudo: língua, trajes e costumes... Semanalmente, ou
cada duas semanas, os Willigiman-Wallalua combinam com seus inimigos uma
batalha formal, num de seus tradicionais campos de combate. Comparadas com
os catastróficos conflitos das nações “civilizadas”, essas escaramuças mais
parecem um perigoso esporte campestre do que uma guerra de verdade. Cada
batalha dura apenas um dia, terminando ao cair da noite (devido à ameaça dos
espíritos) ou quando começa a chover (ninguém quer molhar seus cabelos e
seus adornos). Os homens são muito precisos no uso de suas armas —
praticam esses jogos bélicos desde crianças — mas como são igualmente
hábeis na esquiva, raramente são atingidos.
A parte de fato mortal desta guerra primitiva não é a batalha formal,
mas a constituída pelas emboscadas e incursões sorrateiras, nas quais não
apenas homens, mas também mulheres e crianças são impiedosamente
massacrados...
Este perpétuo derramamento de sangue não é praticado por nenhuma
das razões habituais que promovem as guerras. Nenhum território é
conquistado ou perdido; não há prisioneiros, nem pilhagem. Lutam por que
gostam de lutar, entusiasticamente; a luta é para eles uma função vital do
homem integral e porque sentem que devem agradar aos espíritos dos
companheiros assassinados.
Em suma, essa gente vê nesses jogos um modelo do universo, em cuja
dança mortal podem participar mediante o ritual dos jogos guerreiros.
Os jogos são modelos dramáticos de nossas vidas psicológicas, e servem
para liberar tensões particulares. São formas artísticas populares e coletivas,
que obedecem a regras estritas. As sociedades antigas e não-letradas
encaravam naturalmente os jogos como modelos vivos e dramáticos do
universo ou do drama cósmico exterior. Os jogos olímpicos eram emanações
diretas do agon, ou luta do deus-sol. Os corredores percorriam uma trilha
circular onde estavam inscritos os signos do zodíaco, à imitação do circuito
diário da carruagem do sol. Nas disputas e jogos, emanações dramáticas da
luta cósmica, o papel do espectador era evidentemente religioso. A tribo ou a
cidade era uma vaga réplica daquele cosmos, tal como os jogos, as danças e os
ícones. A transformação da Arte numa espécie de substituto civilizado dos jogos
e rituais mágicos é a estória da destribalização que ocorreu com a
alfabetização. A Arte, como os jogos, tornou-se uma catarse e um eco mimético
da velha magia do envolvimento total. À medida que a audiência dos jogos e
disputas mágicas se foi tornando mais individualista, o papel da Arte e do ritual
se deslocou do cósmico para o psicológico humano, como na tragédia grega. O
próprio ritual se tornou mais verbal, menos mimético e mais afastado da dança.
Finalmente, a narrativa verbal de Homero e Ovídio se tornou o substituto
literário romântico da liturgia corporada e da participação grupal. Muito do
esforço erudito do século passado, nos mais variados campos, foi dedicado à
minuciosa reconstrução das condições da arte e do ritual primitivos, pois se
percebeu que esse caminho fornece a chave para a compreensão da mente do
homem primitivo. No entanto, a chave desta compreensão também pode ser
encontrada em nossa nova tecnologia eletrônica que, de modo rápido e
profundo. vai recriando em nós mesmos as condições e atitudes do primitivo
homem tribal.
Torna-se compreensível o enorme apelo exercido pelos jogos nos tempos
recentes — beisebol, rugby e hóquei no gelo — se os encararmos como
modelos externos da vida psicológica interna. Na qualidade de modelos, são
antes dramatizações coletivas do que particulares da vida interior. Como nossos
idiomas vernáculos. todos os jogos são meios de comunicação interpessoal e
podiam não possuir existência nem significado a não ser como extensões de
nossas vidas interiores imediatas. Se tomamos uma raquete de tênis na mão,
ou 13 cartas de baralho, consentimos em ser parte de um mecanismo dinâmico
numa situação deliberadamente artificial. Não será esta a razão por que
gostamos mais daqueles jogos que imitam situações de nosso trabalho e de
nossa vida social? Os nossos jogos favoritos não propiciam uma liberação da
tirania monopolística da máquina social? Numa palavra, a idéia aristotélica
sobre a tragédia como reapresentação e catarse mimética das pressões
angustiosas não se aplica perfeitamente a todas as espécies de jogos, danças e
diversões? Para que as brincadeiras e jogos sejam bem aceitos é necessário
que transmitam um eco da vida e do trabalho diários. De outro lado, um
homem ou uma sociedade sem jogos se afunda no transe morto-vivo dos
zumbis e da automação. A Arte e os jogos nos facultam permanecer à margem
das pressões materiais da rotina e das convenções, para observar e interrogar.
Os jogos como formas artísticas populares oferecem a todos um meio imediato
de participação na vida plena de uma sociedade — coisa que nenhum papel ou
emprego isolados podem oferecer a nenhum homem. Daí a contradição do
esporte "profissional”. Quando a porta dos jogos que abre para a vida livre
conduz a uma tarefa meramente especializada, qualquer um percebe que há
um contra-senso nisso.
Os jogos que uma pessoa joga revelam muito sobre ela. O jogo é uma
espécie de paraíso artificial, como a Disneylândia, ou uma visão utópica pela
qual completamos e interpretamos o significado de nossa vida diária. Nos
jogos. divisamos meios de participação não especializada no drama mais amplo
de nosso tempo. Para o homem civilizado, a idéia de participação tem limites
estritos. Não é para ele a participação em profundidade, que apaga os limites
da consciência individual, como o culto indiano do darshan, a experiência
mística da presença física numa multidão.
O jogo é uma máquina que começa a funcionar só a partir do momento
em que os participantes consentem em se transformar em bonecos
temporariamente. Para o homem individualista ocidental, muito de seu
“ajustamento” à sociedade tem o caráter de uma rendição pessoal aos
imperativos coletivos. Nossos jogos nos auxiliam tanto a aprender esta espécie
de ajustamento como a nos libertar dele. A incerteza do resultado de nossas
disputas constitui uma justificativa racional para o rigor mecânico das regras e
procedimentos do jogo.
Quando as normas sociais mudam abruptamente. então os ritos e
maneiras sociais anteriormente aceitos de repente passam a assumir os
delineamentos rígidos e os padrões arbitrários de um jogo. Gamesmanship, (“A
Arte e Técnica do Jogo”), de Stephen Potter, trata de uma revolução social na
I nglaterra. Os ingleses caminham para a igualdade social e para a intensa
competição pessoal que acompanha a igualdade. Os antigos ritos de
comportamento da velha classe já começam a parecer cômicos e irracionais.
trapaças num jogo. O Como Fazer Amigos e I nfluenciar Pessoas, de Dale
Carnegie, pareceu um manual de solene sabedoria social — bastante ridículo
para os sofisticados. O que Carnegie oferecia como descobertas sérias não
pareciam senão um ingênuo ritual mecânico àqueles que já se moviam num
ambiente de consciência freudiana, carregada com toda a psicopatologia da
vida quotidiana. Os próprios padrões de percepção freudianos já se tornaram
um código gasto, mais próximo do divertimento catártico de um jogo do que de
um guia de vida.
As práticas sociais de uma geração tendem a ser codificadas sob as
formas de “jogos” pela geração seguinte. Finalmente, o jogo é transmitido
como uma piada, tal como um esqueleto limpo de suas carnes. I sto é
particularmente verdadeiro nos períodos de mudanças súbitas de atitudes,
resultantes de alguma tecnologia radicalmente nova. A condenação do beisebol,
no momento, parece vir da trama inclusiva da imagem da TV. O beisebol é um
jogo de uma coisa cada vez, de posições fixas e de tarefas visivelmente
especializadas, tais como as da era mecânica agora em fase de superação, com
suas funções particularizadas e seus elementos de staff e de linha na
organização empresarial. A TV é a própria imagem dos novos modos
corporativos e participantes da vida elétrica e, como tal, gera hábitos de
consciência unificada e de interdependência social que nos afastam do estilo
peculiar do beisebol, com sua tensão posicional para especialistas. Mudam as
culturas, mudam os jogos. O beisebol, que se tornara a elegante imagem
abstrata de uma sociedade industrial vivendo em ritmo cronométrico, perdeu
sua relevância psíquica e social, em nosso novo modo de vida da década da TV.
Foi deslocado do centro social para a periferia da vida americana.
Em compensação, o futebol americano não é posicional: qualquer um
dos jogadores pode trocar de função durante o jogo. Hoje ele vai suplantando o
beisebol na aceitação geral. Vai bem com as novas exigências do jogo em
equipe descentralizado — com o jogo da era da eletricidade. Assim, de repente,
poder-se-ia supor que a estreita unidade tribal do futebol americano o tornaria
atraente para os russos. Sua devoção ao hóquei sobre gelo e ao futebol. duas
formas de jogo muito individualistas, pareceria contrariar as necessidades
psíquicas de uma sociedade coletivista. Acontece que a Rússia ainda é um
mundo oral e tribal em fase de destribalização e só agora começa a descobrir o
individualismo como novidade. Para eles, o futebol e o hóquei sobre o gelo
possuem a qualidade de uma promessa exótica e utópica que aqueles jogos
não transmitem ao Ocidente. É uma qualidade que nos inclinamos a chamar de
“valor snob” — e nós também poderíamos atribuir este “valor” ao cavalos de
corrida, aos pôneis de pólo ou aos iates de doze metros.
Os jogos, portanto, propiciam uma multiplicidade de satisfações. Aqui os
encaramos em seu papel de meios de comunicação numa sociedade, como um
todo. Assim, o pôquer é um jogo muitas vezes citado como a manifestação de
todos os valores não expressos e de todas as complexas atitudes de uma
sociedade competitiva. Lembra dureza, agressão, trapaça e avaliações pouco
lisonjeiras do caráter. Diz-se que as mulheres não podem jogar pôquer porque
é um jogo que estimula a curiosidade — e a curiosidade é fatal no pôquer. O
pôquer é intensamente individualista; nele não há lugar para a bondade ou a
consideração, mas apenas para o máximo bem-estar-para-o-maior-número, o
número um. Desta perspectiva, é fácil ver por que a guerra tem sido
considerada o esporte dos reis. Ou reinos são para os monarcas o que o
patrimônio e a renda individual são para o cidadão particular. Os reis podem
jogar pôquer com seus reinos, como os generais com suas tropas. Podem blefar
e iludir o oponente a respeito de suas forças e ia-tenções. O que desqualifica a
guerra como jogo de verdade é provavelmente o que desqualifica também a
Bolsa de Valores e o mundo dos negócios — as regras. não são suficientemente
conhecidas nem aceitas pelos jogadores. Além disso, o público participa em
demasia da guerra e dos negócios, assim como numa sociedade de nativos
onde não há arte, verdadeiramente, porque todo mundo está empenhado em
fazer arte. A arte e os jogos precisam de regras. convenções e espectadores.
Precisam manter-se à parte da situação geral como modelos dela, para que se
conserve a qualidade do jogo. “Jogar”, na vida como numa roda, implica em
inter jogar. Deve haver um toma-lá-dá-cá, um diálogo, como entre duas ou
mais pessoas ou grupos. Mas esta qualidade pode ser reduzida ou perdida em
certas situações. Os grandes times treinam sem público. I sto não e esporte, tal
como o entendemos, porque muito da qualidade do interjogo — o verdadeiro
meio do interjogo — são as emoções do público. Rocket Richard, o jogador de
hóquei canadense, costumava lamentar a má acústica de alguns ginásios. Tinha
a sensação de que seu bastão fazia deslizar o disco sabre o clamor da multidão.
O esporte, forma de arte popular, não é apenas auto-expressão, mas,
necessária e profundamente, um meio de inter-relação de toda uma cultura.
A Arte não é apenas jogo, mas uma extensão da consciência humana em
padrões inventados e convencionais. Corno arte popular, o esporte é uma
reação profunda à ação típica de uma sociedade. De outra parte, a arte elevada
não é uma reação, mas o reexame de um complexo estado cultural. O Balcão,
de Jean Genet, é para alguns a esmagadora resenha lógica da loucura humana
em sua orgia autodestrutiva. Genet apresenta um bordel envolvido pelo
holocausto da guerra e da revolução como uma imagem inclusiva da vida
humana. Seria fácil objetar que Genet é histérico e que o futebol americano o
supera na crítica da vida. Vistos como modelos vivos de complexas situações
sociais, os jogos podem carecer de firmeza moral. como tem sido admitido.
Talvez por esta razão mesma haja uma desesperada necessidade de jogos
numa cultura industrial altamente especializada, pois eles constituem a única
forma de arte acessível a muitas mentalidades diferentes. O interjogo
verdadeiro é reduzido a quase nada num mundo especializado de funções
delegadas e empregos fragmentados. Algumas sociedades atrasadas ou tribais.
quando traduzidas para formas de mecanização industrial e especializada, não
encontram facilmente o antídoto dos esportes e dos jogos como forças de
equilíbrio. Tendem a levar tudo melancolicamente a sério. Sem arte, e sem as
artes populares dos jogos, o homem tende a afundar-se no automatismo.
Um comentário sobre as diversas espécies de jogo levadas a efeito pelo
Parlamento Britânico e pela Câmara de Deputados da França poderá corroborar
a experiência política de muitos leitores. Os ingleses tiveram a sorte de
estabelecer um padrão de duas agremiações em suas bancadas, enquanto que
os franceses, buscando o centralismo pela disposição dos deputados num
semicírculo frente à mesa, acabaram apresentando uma multiplicidade de
agremiações jogando uma grande variedade de jogos. Tentando a unidade, os
franceses tiveram a anarquia. Os ingleses, organizando a diversidade,
chegaram ao que se poderia chamar um excesso de unidade. O representante
inglês, jogando pela “camisa" de seu time, não sofre a tentação de um esforço
mental particular, nem se vê obrigado a acompanhar os debates — enquanto a
bola não lhe for passada. Como disse um comentarista, se as bancadas não
estivessem frente a frente, os ingleses não poderiam distinguir o verdadeiro do
falso, nem a sabedoria da loucura — a não ser que prestassem atenção a tudo.
Mas como a maior parte dos debates tende ao nonsense, seria estupidez
acompanhá-los integralmente.
A forma de qualquer jogo é de primordial importância. A teoria do jogo,
como a teoria da informação, ignorou este aspecto do jogo e do movimento
informacional. Ambas as teorias têm tratado do conteúdo informativo dos
sistemas, limitando-se a observar os fatores de “ruído” e de “fraude” que
destorcem os dados. É como abordar um quadro ou uma composição musical
do ponto de vista do conteúdo. Em outras palavras, este é o caminho mais
seguro para ignorar o cerne estrutural da experiência. Pois assim como é o
padrão de um jogo que lhe confere relevância para a nossa vida interior — e
não quem joga ou o resultado do jogo — assim também se dá com o
movimento da informação. É a seleção dos sentidos humanos utilizados que faz
a diferença, digamos, entre uma fotografia e o telégrafo. Nas artes, a
combinação particular dos sentidos envolvidos é de importância básica. O
conteúdo ostensivamente declarado não funciona senão como um acalantodistração para que a forma estrutural atravesse as barreiras da atenção
consciente.
Qualquer jogo, como qualquer meio de informação, é uma extensão do
indivíduo ou grupo. O seu efeito sobre o grupo ou sobre o indivíduo se traduz
pela reconfiguração daquelas partes do grupo ou do indivíduo que não são
prolongadas ou estendidas. Uma obra de arte não tem existência ou função
fora dos efeitos que produz sobre os observadores. E a Arte, como os jogos, as
artes populares ou qualquer outro meio de comunicação, tem o poder de impor
seus próprios pressupostos, reordenando a comunidade humana por meio de
novas relações e atitudes.
Como os jogos, a Arte é um tradutor de experiências. O que já sentimos
ou vimos numa certa situação nos é oferecido, como que de repente, numa
nova espécie de material. Da mesma maneira, os jogos deslocam a experiência
conhecida para novas formas, iluminando o lado turvo e desolado das coisas.
As companhias telefônicas costumam gravar fitas de certas conversas
particularmente grosseiras, que despejam sobre as indefesas telefonistas as
mais diversas variedades de expressões revoltantes. Tocadas para as
telefonistas. essas conversas se tornam um jogo e uma diversão salutares, que
as ajudam a manter o equilíbrio.
O mundo da Ciência tem plena consciência da I mportância do elemento
lúdico em seus infindáveis experimentos com modelos de situações que de
outra forma não poderiam ser observadas. Os centros de treinamento de
administração de empresas há muito tempo utilizam os jogos como meios de
desenvolver novas percepções no mundo dos negócios. John Kenneth Galbraith
acha que os chefes de empresa devem estudar Arte, pois o artista produz
modelos de problemas e situações que ainda não vieram a furo na vasta matriz
da sociedade; o homem de negócios dotado de percepção artística levará uma
década de vantagem em seus planejamentos.
Na era da eletricidade, o preenchimento do vácuo entre a Arte e os
negócios, ou entre o campus universitário e a comunidade, faz parte da
implosão generalizada que aproxima todos os especialistas, em todos os níveis.
Flaubert, o escritor francês do século XI X, achava que a Guerra FrancoPrussiana teria sido evitada se as pessoas tivessem lido A Educação
Sentimental. Desde então, o mesmo sentimento é compartilhado pelos artistas.
Eles sabem que estão empenhados na criação de modelos vivos de situações
que ainda não amadureceram na sociedade como um todo. No seu jogo
artístico, descobrem o que realmente está acontecendo — e por isso parecem
estar “à frente de seu tempo”. Os que não são artistas sempre olham para o
hoje através dos óculos de ontem, ou da era precedente. Os estados-maiores
estão sempre magnificamente preparados para a guerra que passou.
Os jogos, pois, são situações inventadas e controladas extensões da
consciência grupal, que permitem uma suspensão dos padrões costumeiros,
como se a sociedade entabulasse uma conversação consigo mesma. E
conversar com seus botões é uma forma de jogo reconhecida e indispensável
para o amadurecimento da autoconfiança. Em tempos recentes, ingleses e
americanos têm desfrutado de uma enorme autoconfiança, nascida do espírito
lúdico, do humor e dos jogos. Quando se defrontam com a ausência desse
mesmo espírito em seus rivais, sentem-se embaraçados. Tomar as coisas do
mundo mortuariamente a sério revela um lamentável defeito de consciência e
conhecimento. Já nas origens do Cristianismo se observava o hábito da
brincadeira espiritual, da “representação do néscio em Cristo”, como diz S.
Paulo. Paulo também associava este senso de confiança espiritual e do jogo
cristão com os jogos e esportes de seu tempo. Jogar implica na consciência da
grande desproporção que existe entre a situação visível e os dados reais. Um
senso similar preside à situação lúdica, como tal. Sendo o jogo, como qualquer
forma artística, o simples modelo tangível de uma situação menos acessível, há
sempre um senso espicaçante de estranheza e graça nos jogos e brincadeira,
que faz com que as pessoas ou sociedades muito sérias e sombrias se tornem
risíveis. Quando o inglês vitoriano começou a inclinar-se para o pólo da
seriedade, Oscar Wilde, Bernard Shaw e G. K. Chesterton encarregaram-se de
contrabalançar a situação, habilidosamente. Os eruditos muitas vezes têm
apontado para o fato de Platão conceber o jogo como algo oferecido à
Divindade e como a mais, elevada manifestação do impulso religioso do
homem.
O famoso tratado sobre o riso, de Bergson, se apóia na noção de um
mecanismo que arrebata os valores vitais, chave do risível. Ver um homem
escorregar numa casca de banana é ver um sistema racionalmente estruturado
traduzido de repente numa máquina giratória. Como o industrialismo criara
uma situação semelhante na sociedade de seu tempo, a idéia de Bergson foi
logo aceita. Ele parece não ter notado que o que fez foi apresentar,
mecanicamente, uma metáfora mecânica numa era mecânica, para explicar
uma coisa bem pouco mecânica como um riso, “o espirro da mente”, como o
definiu Wyndham Lewis.
O espírito do jogo sofreu uma derrota há alguns anos atrás, por ocasião
da fraude que ocorreu no programa do tipo “o céu é o limite”. I sto porque o
prêmio maior parecia zombar do dinheiro. Como concentração do poder e
habilitação, e como acelerador e agente de intercâmbio e troca, o dinheiro
ainda tem para muita gente a virtude de produzir um transe dentro da maior
seriedade. Os filmes de cinema, num certo sentido, também são espetáculos
“arranjados”. Qualquer peça, poema ou romance também é “arranjado”, para
produzir um efeito. E assim foi “o céu é o limite” da televisão americana. Mas o
efeito da televisão é no sentido de uma profunda participação da audiência. O
cinema e o teatro não permitem tanta participação como a propiciada pela
trama em mosaico da imagem da televisão. Tão grande foi a participação da
audiência naqueles shows que seus diretores foram processados como
vigaristas. Além disso, os interesses publicitários da imprensa e do rádio —
feridos pelo sucesso do novo meio da TV — não sentiam senão prazer nesse
laceramento de sua rival. Claro, os fraudadores se haviam mostrado
completamente ignorantes sobre a natureza do meio que utilizavam, dando-lhe
um tratamento cinematográfico de intenso realismo em lugar do ameno
enfoque mítico adequado à TV. O ganhador-perdedor da disputa, Charles Van
Doren, simplesmente foi envolvido como um transeunte inocente — e as
investigações levadas a efeito não revelaram nada sobre a natureza ou os
efeitos do meio da TV. Só serviram, lamentavelmente. para levar água ao
moinho dos moralizadores empedernidos. Um ponto de vista moral muitas
vezes não serve senão como sucedâneo da compreensão dos assuntos
tecnológicos.
Creio que deixamos claro que os jogos são extensões de nosso “eu”
particular, e que eles se constituem em meios de comunicação. Se se
perguntar, finalmente: “Os jogos são meios de comunicação de massa?” — a
resposta tem de ser: “Sim”. Os jogos são situações arbitradas que permitem a
participação simultânea de muita gente em determinada estrutura de sua
própria vida corporativa ou social.
25. TELÉGRAFO
O HORMÔNI O SOCI AL
O telégrafo sem fio ganhou uma publicidade espetacular em 1910, ao
contribuir para a prisão, em pleno mar, do Dr. Hawley H. Crippen, um médico
americano estabelecido em Londres, que assassinara a mulher, enterrando o
corpo na adega da casa e fugindo com sua secretária a bordo do transatlântico
Montrose. A secretária se disfarçara como um menino, e ambos viajavam com o
nome de Sr. Robinson e filho. O Capitão George Kendall, do Montrose, passou a
suspeitar dos Robinsons, pois havia lido sobre o caso Crippen nos jornais
ingleses.
O Montrose era então um dos poucos navios equipados com o telégrafo
sem fio de Marconi. Sob sigilo, fez seu telegrafista enviar uma mensagem à
Scotland Yard, que enviou o I nspetor Dews (num navio mais rápido) na esteira
do Montrose através do Atlântico. O I nspetor Dews. trajado como piloto,
abordou o Montrose antes que ele atracasse no porto e prendeu Crippen.
Passados dezoito meses da prisão, o Parlamento Britânico promulgou uma lei
tornando obrigatória a instalação do telégrafo em todos os navios de
passageiros.
O caso Crippen ilustra o que acontece aos melhores planos dos homens
e ratos de qualquer organização quando ocorre a velocidade instantânea do
movimento informacional. Dá-se o colapso da autoridade delegada e começa a
dissolução da pirâmide hierárquica e das estruturas administrativas constantes
dos organogramas. A separação das funções e a divisão de fases, espaços e
tarefas, são características da sociedade visual e letrada e do mundo ocidental.
Estas divisões tendem a dissolver-se pela ação das inter-relações instantâneas e
orgânicas da eletricidade.
O antigo Ministro dos Armamentos alemão, Albert Speer, num de seus
pronunciamentos durante o julgamento de Nuremberg,
comentou
amargamente os efeitos dos meios elétricos na vida alemã: “O telefone, o
teletipo e o telégrafo permitiam que as ordens emanadas dos mais altos
escalões chegassem diretamente aos escalões mais baixos. onde eram
executadas sem maiores ponderações, dada a autoridade absoluta em que se
estribavam...
Os meios elétricos tendem a criar uma espécie de interdependência
orgânica entre todas as instituições da sociedade, o que dá nova ênfase ao
parecer de Chardin de que a descoberta do eletromagnetismo deve ser
considerada como um “prodigioso acontecimento biológico”. Se as instituições
políticas e comerciais adquirem um caráter biológico por força dos meios
elétricos de comunicação, é agora explicável que biologistas como Hans Selye
pensem no organismo físico em termos de rede de comunicação: “O hormônio
é uma específica substância-mensageira química secretada por uma glândula
endócrina e injetada no sangue para regular e coordenar as funções dos órgãos
distantes.”
Esta peculiaridade da forma elétrica, que encerra a era mecânica das
fases individuais e das funções especializadas. comporta uma explicação direta.
Enquanto todas as tecnologias anteriores (exceto a fala em si) constituíam. com
efeito, extensões de alguma parte do corpo, a eletricidade pode ser
considerada como a extensão de nosso próprio sistema nervoso central,
incluindo o cérebro. Nosso sistema nervoso central é um campo unificado sem
segmentos. Como escreve J. Z. Young, em: Doubt and Certainty in Science: A
Biologist’s Reflections on the Brain — Galaxy, Oxford University Press, Nova
Torque, 1960 (“Dúvida e Certeza na Ciência: Reflexões de um Biologista sobre
o Cérebro”)
Pode dar-se que grande parte do segredo do poder cerebral resida na
enorme possibilidade da interação entre os efeitos dos estímulos de cada parte
dos campos receptores. É esta provisão de lugares-de-interação ou de lugaresde-mistura que nos permite reagir ao mundo como um todo num grau muito
maior do que o facultado a quase todos os outros animais.
A falta de compreensão do caráter orgânico da tecnologia elétrica se
evidencia em nossa constante preocupação com os perigos da mecanização do
mundo. Acontece que corremos o risco maior de anular todo o investimento na
tecnologia pré-elétrica de tipo mecânico e letrado por meio do uso
indiscriminado da energia elétrica. O que caracteriza um mecanismo é a
separação e a extensão de partes isoladas de nosso corpo — mão, braço, pés
— em pena, martelo, roda. E a mecanização de uma função se efetua pela
segmentação de cada fase de uma ação comum numa série de partes
uniformes, repetíveis e móveis. O que caracteriza a cibernação (ou automação)
é exatamente o oposto, pois e um processo que tem sido descrito como um
meio de pensar e um meio de fazer. Em lugar de se preocupar com máquinas
separadas, a cibernação encara o problema da produção como um sistema
integrado de manipulação da informação.
É esta mesma provisão de lugares de interação nos meios elétricos que
hoje nos leva a reagir ao mundo como um todo. Acima de tudo, no entanto, é a
velocidade do envolvimento elétrico que cria o todo integral da consciência
particular e pública. Vivemos hoje na Era da I nformação e da Comunicação,
porque os meios elétricos criam, instantânea e constantemente, um campo
total de eventos interagentes do qual todos os homens participam. Ora, o
mundo da interação pública tem o mesmo escopo inclusivo do interrelacionamento integral, que, até agora, fora apenas característica de nosso
sistema nervoso particular. I sto porque a eletricidade é orgânica quanto ao
caráter e mantém o liame orgânico social pelo seu emprego no telégrafo, no
telefone, no rádio e outras formas. A simultaneidade da comunicação elétrica —
também característica de nosso sistema nervoso — torna cada um de nós
presente e acessível a qualquer pessoa. Em larga medida, a nossa co-presença
em toda parte e ao mesmo tempo constitui um fato de experiência antes
passivo do que ativo, na era da eletricidade. Ativamente falando, temos maior
possibilidade de perceber isto durante a leitura de um jornal ou enquanto
assistimos a um show de TV.
Uma maneira de apreender a passagem da era mecânica para a elétrica
é a de observar a diferença entre a diagramação de um jornal literário e de um
jornal telegráfico, digamos entre o Times, de Londres e o Daily Express, ou
entre o The New York Times e o Daily News, de Nova I orque. É a diferença que
vai entre colunas representando pontos de vista e um mosaico de recortes
desconexos num campo unificado por uma data. Num mosaico de itens
simultâneos pode haver de tudo — menos o ponto de vista. O mundo do
impressionismo, associado à pintura das últimas décadas do século XI X, atingiu
sua forma mais extrema com o pontilhismo de Seurat e com as refrações
luminosas dos mundos de Monet e Renoir. O pontilhismo de Seurat se aproxima
da técnica atual da transmissão de fotos pelo telégrafo e da imagem em
mosaico da TV, resultante da ação perscrutadora do dedo. Tudo isto antecipa
as posteriores formas elétricas porque. como o computador digital com suas
inúmeras seleções de tipo sim-não, tudo isto implica em acariciar os contornos
de todas as coisas pelos múltiplos toques desses pontos. A eletricidade oferece
um meio de se manter em contato com todas as facetas de um ser,
imediatamente, como o próprio cérebro. Apenas incidentalmente a eletricidade
é visual e auditiva; basicamente, ela é tátil.
À medida em que a era da eletricidade se foi firmando, nos fins do
século passado, todo o mundo das artes começou a rumar de novo para as
qualidades icônicas do tato e das correspondências entre os sentidos
(sinestesia. como era chamado o fenômeno) — na Poesia como na Pintura. O
escultor alemão Adolf von Hildebrand inspirou a Berenson a observação de que
“o pintor só pode realizar sua tarefa emprestando valores táteis às impressões
retinicas”. Tal orientação implica em dotar a forma plástica de uma espécie de
sistema nervoso próprio.
A forma elétrica da impressão difusa é profundamente tátil e orgânica,
dotando cada objeto de uma espécie de sensibilidade unificada, como na
pintura das cavernas. A tarefa inconsciente do pintor na nova era da
eletricidade era a de elevar este fato ao nível do conhecimento consciente. A
partir de então, o simples especialista, em qualquer campo, estava condenado
à esterilidade e à inanidade ecos de uma forma arcaica da era mecânica que se
findava. Depois de séculos de sensibilidade dissociadas, a consciência
contemporânea viria a tornar-se de novo integral e inclusiva. A Bauhaus, escola
de desenho industrial alemã, tornou-se um dos grandes centros de esforços no
sentido de uma consciência humana inclusiva; mas a mesma tarefa foi aceita
pela raça de gigantes que surgiu na Música e na Poesia, na Arquitetura e na
Pintura. A ascendência que deram às artes deste século em relação às artes de
outras eras só pode ser comparada às ascendência, há longo tempo
reconhecida, da ciência moderna.
Em seus inícios, o telégrafo estava subordinado à ferrovia e ao jornal —
extensões imediatas da produção e do mercado industriais. Quando as ferrovias
começaram a cortar o continente, a sua coordenação passou a depender em
grande parte do telégrafo, a ponto de as imagens do chefe da estação e do
telegrafista se identificarem no pensamento dos americanos.
Foi em 1844 que Samuel Morse inaugurou a linha telegráfica entre
Washington e Baltimore, graças aos 30.000 dólares obtidos do Congresso.
Como sempre, a empresa particular aguardou que a burocracia administrativa
esclarecesse a visão e os objetivos da nova operação. Quando esta se mostrou
lucrativa, a fúria da promoção e da iniciativa privada se tomou impressionante,
a ponto de provocar episódios selvagens. Nenhuma tecnologia nova, nem
mesmo a estrada de ferro, apresentou um crescimento tão rápido quanto o
telégrafo. Em 1858, o primeiro cabo submarino já cruzava o Atlântico; em 1861
os fios telegráficos já atravessavam a América. Não é de surpreender que todo
novo método de transporte de bens ou de informação marque o seu
aparecimento com duras batalhas competitivas em relação aos meios
anteriores. Toda inovação não apenas provoca rupturas comerciais, mas
também corrosões sociais e psicológicas.
É instrutivo acompanhar as fases embrionárias de qualquer
desenvolvimento, pois em geral elas são muito mal compreendidas — quer se
refiram à imprensa, ao automóvel ou à TV. Justamente porque as pessoas, no
início, não se dão conta da natureza do novo meio, a nova forma vibra alguns
golpes reveladores nos espectadores de olhos mortos-vivos. A primeira linha
telegráfica entre Baltimore e Washington incentivou jogos de xadrez entre os
peritos das duas cidades. Outras linhas eram utilizadas para loterias e para
jogos em geral, assim como o rádio se desenvolveu sem quaisquer
compromissos comerciais, graças, em verdade, à atuação de radioamadores —
até que os grandes interesses o empolgaram.
Há poucos meses atrás, John Crosby remeteu um despacho, de Paris,
para o New York Herald Tribune, que bem ilustra a obsessão “conteudística” do
homem de cultura da imprensa, obsessão essa que lhe dificulta noticiar fatos
sobre a formo de um novo meio:
O Telstar, como vocês sabem, é aquela bola que gira no espaço,
transmitindo emissões de televisão, telefonemas e tudo o mais — exceto bomsenso. Quando ele foi lançado, as trombetas soaram. Os continentes passariam
a compartilhar dos prazeres intelectuais. Os americanos poderiam apreciar
Brigitte Bardot. Os europeus partilhariam do inebriante estímulo intelectual de
“Ben Casey”. ... O efeito fundamental deste milagre das comunicações é o
mesmo que sempre perturbou todos os milagres da comunicação, desde os
hieróglifos e as pedras gravadas. Que é que se diz nele? O Telstar entrou em
operação em agosto, quando nada de importante acontecia na Europa. Todas
as cadeias foram solicitadas a se manifestar, de qualquer forma que fosse,
através desse miraculoso instrumento. “Era um brinquedo novo e eles tinham
de usá-lo” — dizia-se por aqui. A CBS devassou a Europa em busca de notícias
quentes e veio com um concurso de comedores de salsichas, logo transmitido
pela bola milagrosa — embora essa notícia pudesse ter sido enviada em dorso
de camelo, que nada perderia de sua essência.
Qualquer inovação ameaça o equilíbrio da organização existente. Na
grande indústria, as novas idéias são incentivadas e convidadas a se manifestar
para que possam logo ser malhadas. O departamento de criação de uma
grande firma e uma espécie de laboratório destinado a isolar um vírus perigoso.
Quando um deles é localizado, é logo passado a um grupo encarregado do
tratamento de neutralização e imunização. Não há nada mais cômico do que
alguém apresentar-se a uma grande firma com uma nova idéia destinada a
promover um grande “aumento de produção e de vendas”. Um tal aumento
resultaria num desastre para a administração no poder. Teriam de abrir
caminho para uma nova administração. Logo, nenhuma idéia nova se
desenvolve dentro de uma grande operação. Ela deve assaltar a organização do
lado de fora, através de alguma organização pequena mas competitiva. Do
mesmo modo, a projeção ou extensão de nosso corpo e de nossos sentidos
numa “nova invenção” obriga o todo de nosso corpo e de nossos sentidos a se
deslocar para novas posições a fim de manter o equilíbrio. Toda nova invenção
efetua um novo “fechamento” em nossos órgãos e sentidos, privados e
públicos. A visão e a audição assumem novas posturas — como todas as
demais faculdades. Com o telégrafo, deu-se uma revolução no método de
captar e apresentar as notícias. Naturalmente, foram espetaculares os efeitos
causados na linguagem, no estilo literário e nos assuntos.
No mesmo ano de 1844, quando os americanos jogavam xadrez e
apostavam na loteria pela primeira linha telegráfica, Soren Kierkegaard
publicava o seu O Conceito da Angústia. Começara a Era da Angústia. Com o
telégrafo, o homem dera início à projeção e extensão de seu sistema nervoso
central, que agora vai-se identificando com a extensão da consciência — graças
às emissões por satélites. Pôr para fora os próprios nervos, e para dentro do
sistema nervoso, ou cérebro, os próprios órgãos físicos, é o mesmo que dar
início à situação — senão ao conceito — de angústia.
Após o exame do trauma provocado pelo telégrafo na vida consciente e
após verificar que ele nos introduz na Era da Angústia e da Ansiedade Difusa,
podemos voltar-nos para alguns exemplos específicos desta inquietação e deste
nervosismo crescentes. Quando aparece um novo meio ou ocorre uma nova
extensão humana, este meio cria um novo mito por si mesmo, em geral
associado a alguma personalidade histórica: Aretino, o Flagelo dos Príncipes e o
Boneco da I mprensa; Napoleão e o trauma da revolução industrial; Chaplin, a
consciência pública do cinema; Hitler, o totem tribal do rádio; e Florence
Nightingale, a primeira cantora da miséria humana pelo fio telegráfico.
Florence Nightingale (1820-1910), abastado e refinado membro de um
novo e poderoso clã inglês engendrado pelo poder industrial, começou a captar
sinais de aflição humana quando ainda era jovem. No início, eram quase
indecifráveis. Eles revolucionaram todo o seu meio de vida e não se
identificavam com a imagem que fazia dos pais, amigos e cortejadores. Foi uma
pura inspiração de gênio que a habilitou a traduzir a nova e difusa angústia e
ansiedade da vida na idéia do profundo envolvimento humano e da reforma
hospitalar. Começou a pensar — e a viver — o seu tempo, e descobriu a nova
fórmula da era eletrônica: o Medicare (Previdência de Saúde). O tratamento do
corpo era um bálsamo para os nervos, numa idade que projetara para fora seu
próprio sistema nervoso, pela primeira vez na história humana.
É bastante simples exprimir a estória de Florence Nightingale em termos
dos novos meios. Chegou a um cenário remoto, onde os controles que se
manifestavam do centro londrino se enquadravam numa estrutura comum,
hierárquica e pré-elétrica. A divisão minuciosa, a delegação de funções e a
separação de poderes, normais na organização militar e industrial de então (e
por muito tempo ainda), criavam um sistema imbecil de desperdício e
ineficiência, que, pela primeira vez, eram registrados diariamente pelo
telégrafo. Diariamente, no quintal de casa — no fio telegráfico — empoleiravase o legado da fragmentação letrada e visual:
Na I nglaterra, a fúria crescia. Uma tormenta de ódio, humilhação e
desespero se vinha armando desde o terrível inverno de 1854-55. Pela primeira
vez na História, através dos despachos de Russel, o público via com que
“majestade lutavam os soldados ingleses”. E estes heróis estavam mortos. Os
homens que haviam assaltado como um tufão as elevações do Alma, que
haviam carregado com a Brigada Ligeira, em Balaclava... haviam perecido de
fome e abandono. Até mesmo os cavalos que haviam participado da Carga da
Brigada Ligeira tinham morrido de fome (O Cruzado Solitário, Cecil WoodhamSmith, McGraw-Hill).
Os horrores que William Howard Russel transmitia pelo fio para The Times
eram normais na vida militar britânica. Ele foi o primeiro correspondente de
guerra, porque o telégrafo deu às notícias aquela imediata e inclusiva dimensão
do “lado humano” e que não pertence ao “ponto de vista”. Que, depois de mais
de um século de despachos telegráficos, ninguém tenha visto que o “lado
humano” não é senão a dimensão eletrônica ou profunda do envolvimento
imediato nas notícias, não contribui senão para salientar a nossa distração e a
indiferença geral. Com o telégrafo, termina aquela separação de interesses e
aquela divisão de faculdades que, certamente, deixaram alguns monumentos
magníficos da capacidade e da engenhosidade humanas. Mas com o telégrafo
vieram a insistência e a totalidade integrais de Dickens, de Florence Nightingale
e de Harriet Beecher Stowe. A eletricidade dá força às vozes dos fracos
sofredores, afastando do caminho os especialismos burocráticos e as
discriminações de empregos — típicos das mentalidades amarradas a manuais
de instruções. A dimensão do “lado humano” é simplesmente a do imediatismo
da participação na experiência alheia e que ocorre com a informação imediata.
As pessoas também se tornam instantâneas em suas respostas de compaixão
ou furor, quando devem compartilhar com o todo da Humanidade a mesma
extensão comum do sistema nervoso central. Nessas condições, o “desperdício
conspícuo” e o “consumo conspícuo” se tornam causas perdidas e mesmo o
mais empedernido milionário se encolhe em modestas maneiras de tímidos
serviços à Humanidade.
Nesta altura, muitos podem perguntar por que o telégrafo haveria de
criar o “lado humano” e a imprensa não. O capítulo dedicado à I mprensa pode
ajudar esses leitores. Pode dar-se também que exista um obstáculo oculto à
percepção. O tudo-de-uma-vez instantâneo e o envolvimento total da forma
telegráfica ainda provocam a repulsa de alguns letrados sofisticados. Para eles,
a continuidade visual e o “ponto de vista” fixo tornam a participação imediata
dos meios instantâneos tão desagradável e mal-vinda quanto os esportes
populares. São também vitimas dos meios, despercebidamente mutilados por
seu trabalho e seus estudos, tal como as crianças numa fábrica de produtos
graxos da era vitoriana. Para muita gente que teve a sensibilidade
irremediavelmente deformada e obturada pelas posturas fixas da escrita e da
imprensa mecânica, as formas icônicas da era da eletricidade são tão opacas
ou, mesmo, invisíveis quanto os hormônios ao olho nu. A tarefa do artista
consiste em deslocar os velhos meios para posições que permitam que a
atenção se volte para os novos. Para tanto, o artista deve sempre jogar e
experimentar com novas maneiras de estruturar a experiência, mesmo que a
maioria da audiência prefira continuar em suas velhas e fixas atitudes
perceptivas. O máximo que um crítico-prosador pode fazer é surpreender
tantas atitudes características e reveladoras dos meios quantas ele é capaz de
descobrir. Examinemos uma série desses comportamentos do telégrafo em suas
relações com outros meios, tais como o livro e o jornal.
Em 1848, o telégrafo, então com apenas quatro anos de I dade, obrigou
vários dentre os maiores jornais americanos a se organizarem coletivamente
para a captação de notícias. Essa iniciativa se tornou a base da Associated
Presa, que passou a prestar serviços noticiosos pagos a seus subscritores. De
certo modo, o real significado desta forma de cobertura elétrica e instantânea
foi obscurecido pelo revestimento mecânico das formas visuais e industriais da
imprensa e da impressão gráfica. Neste caso, o efeito especificamente elétrico
pode parecer uma força de compressão centralizadora. Para muitos analistas, a
revolução elétrica tem sido encarada como uma continuação do processo de
mecanização da Humanidade. Mas um exame mais atento revela um caráter
diferente. Por exemplo, a imprensa regional, que tinha de depender dos
correios e do controle político exercido através dos correios, logo se livrou
desse tipo de monopólio centro-margem, graças aos novos serviços
telegráficos. Mesmo na I nglaterra, onde as breves distâncias e a concentração
da população fizeram da ferrovia um poderoso agente centralizador, o
monopólio de Londres se dissolveu com a invenção do telégrafo, que passou a
encorajar a competição da província. O telégrafo libertou a imprensa
provinciana marginal da dependência da grande imprensa metropolitana. No
campo total da revolução elétrica. esta estrutura da descentralização
comparece sob múltiplas formas. Sir Lewis Namier é de opinião que o telefone
e o avião constituem as maiores causas das perturbações de nosso tempo. Os
diplomatas profissionais, com poderes delegados, foram suplantados pelos
primeiros ministros, presidentes e ministros do exterior, que julgam poder
conduzir pessoalmente todas as negociações importantes. Este é também o
problema que ocorre no mundo dos grandes negócios, onde se verificou que é
impossível exercer qualquer autoridade delegada quando se utiliza o telefone. A
própria natureza do telefone, como de todos os meios elétricos, é a de
comprimir e unificar o que antes era dividido e especializado. Só a “autoridade
do conhecimento” funciona por telefone, devido à velocidade que cria um
campo total e inclusivo de relações. A velocidade exige que as decisões sejam
inclusivas e não fragmentárias ou parciais; daí que os letrados — tipicamente —
resistam ao telefone. Mas o rádio e a TV, como veremos, possuem o mesmo
poder de impor uma ordem inclusiva, como se fosse uma organização oral. No
pólo oposto está a forma centro-margem das estruturas visuais e escritas da
autoridade.
Muitos analistas se vêem desorientados pelos meios elétricos devido à
aparente habilidade com que esses meios estendem os poderes espaciais de
organização. Os meios elétricos, no entanto, antes abalem do que aumentam a
dimensão espacial. Graças à eletricidade, em toda a parte retomamos os
contatos pessoa a pessoa como se atuássemos na escala da menor das aldeias.
É uma relação em profundidade, e sem delegação de funções ou poderes. Em
toda parte, o orgânico suplanta o mecânico. O diálogo supera a conferência. Os
dignitários privam com a juventude. Quando um grupo de universitários de
Oxford soube que Rudyard Kipling recebia dez shillings por cada palavra que
escrevia, enviaram-lhe dez shillings por telegrama, durante a reunião que
realizavam: “Por favor, envie-nos uma de suas melhores palavras.” Que veio
em poucos minutos: “Obrigado.”
Os híbridos da eletricidade e dos velhos mecanismos têm sido
numerosos. Alguns deles, como o fonógrafo e o cinema, são discutidos mais
adiante. Hoje, o casamento das tecnologias elétrica e mecânica chega ao fim,
com a TV substituindo o cinema e o Telstar ameaçando a roda. Há um século
atrás, o efeito do telégrafo foi o de acionar mais rapidamente as máquinas
impressoras, assim como a aplicação da faísca elétrica, com sua precisão
instantânea, tornou possível o motor de combustão interna. Levado adiante, no
entanto, o princípio elétrico dissolve em toda a parte a técnica mecânica da
separação visual e da análise de funções. Os tapes ou fitas eletrônicas. com
informação exatamente sincronizada, substituem a velha seqüência linear da
cadeia de montagem.
A aceleração é a fórmula para a dissolução e a ruptura de qualquer
organização. Como toda a tecnologia mecânica do mundo ocidental se vinculou
à eletricidade, foi conduzida a velocidades sempre mais altas. Todos os
aspectos mecânicos de nosso mundo parecem estar em vias de liquidação. Os
Estados Unidos chegaram a um alto grau de controle político central graças ao
entrosamento da ferrovia, dos correios e do jornal. Em 1848, O Chefe Geral dos
Correios escreveu, em seu relatório, que os jornais “sempre têm sido
considerados de primordial importância para o público, como o melhor meio de
disseminar a inteligência no povo, e por isso são onerados com as mais baixas
tarifas possíveis, de modo a propiciar o aumento de sua circulação”. O telégrafo
logo enfraqueceu esta estrutura centro-margem e, o que é mais importante,
tirou muito da força representada pelas opiniões editoriais, intensificando o
volume das notícias. As notícias superaram claramente os pontos de vista nas
modelagens de atitudes públicas, embora poucos exemplos desta mudança
sejam tão notáveis como o súbito agigantamento da imagem de Florence
Nightingale no mundo britânico. Contudo, nada tem sido mais mal
compreendido do que o poder do telégrafo nesse assunto. Talvez que o seu
traço mais decisivo seja o seguinte: A dinâmica natural do livro — e também do
jornal — é a de criar uma visão nacional unificada segundo uma estrutura
centralizada; todas as pessoas letradas,, portanto, sentem o desejo de ver
estendidas às “regiões mais atrasadas" e às mentalidades menos letradas os
benefícios das opiniões iluminadas — e dentro de um padrão horizontal,
uniforme e homogêneo. O telégrafo acabou com essa esperança.
Descentralizou o mundo do jornal de maneira tão completa que as visões
nacionais uniformes se tornaram impossíveis, mesmo antes da Guerra Civil.
Conseqüência talvez de maior importância, o telégrafo, na América, atraiu os
talentos literários mais para o jornalista do que para o livro. Pöe, Twain e
Hemingway são exemplos de escritores que não podiam encontrar nem
experiência nem saída, a não ser no jornal. Em contraposição, na Europa, os
numerosos e pequenos grupos nacionais estavam organizados num mosaico
descontínuo que o telégrafo não fez senão intensificar. O resultado foi que, na
Europa, o telégrafo reforçou a posição do livro e obrigou mesmo a imprensa a
assumir um caráter literário.
Um dos desenvolvimentos nada desprezíveis que o telégrafo propiciou foi
o da previsão do tempo, talvez um dos itens mais popularmente participantes
da imprensa diária. Nos primórdios do telégrafo, a chuva criava problemas para
a ligação dos fios à terra. Esses problemas chamaram a atenção para a
dinâmica do tempo. Um relatório canadense de 1883, declarava: "Logo se
descobriu que quando o vento de Montreal soprava de leste ou nordeste, as
tempestades vinham do oeste, e que, quanto mais forte as correntes terrestres,
mais rapidamente vinha a chuva da direção oposta.” Torna-se claro que o
telégrafo, fornecendo um largo leque de informação instantânea, podia revelar
as correntes metereológicas além da observação acessível ao homem préelétrico.
26. A MÁQUI NA DE ESCREVER
NA ERA DA MANI A DO FERRO
Os comentários de Robert Lincoln O’Brien, no Atlantic Monthly, em 1904,
constituem um campo rico de material social ainda inexplorado. Por exemplo:
A invenção da máquina de escrever deu um enorme impulso ao hábito
do ditado... I sto não significa apenas mais palavrório... mas sim a revelação do
ponto de vista daquele que profere o ditado. Há uma disposição do orador no
sentido de explicar as coisas como se estivesse observando as expressões
faciais de seus ouvintes, para observar como estão seguindo suas palavras. E
esta atitude não desaparece quando a audiência esta acompanhando. Não é
raro, nas cabines de datilografia do Capitólio, em Washington, ver congressistas
ditando cartas e gesticulando vigorosamente, como se os métodos retóricos de
persuasão pudessem ser transmitidos para a página impressa.
Em 1882, anúncios proclamavam que a máquina de escrever podia ser
usada como auxiliar no aprendizado da leitura, da escrita, da pronúncia e da
pontuação. Passados oitenta anos, a máquina de escrever é utilizada apenas
em classes experimentais. A escola tradicional ainda a mantém à margem,
como um brinquedo que atrai e distrai. Mas poetas como Charles Olson
proclamam eloqüentemente o poder da máquina de escrever em ajudar o poeta
na indicação exata da respiração, das pausas, das suspensões — margem —
das sílabas, e da justaposição — margem — de partes de frases, observando
que, pela primeira vez, o poeta dispõe da pauta e das barras de que dispunham
os músicos.
A mesma espécie de autonomia e independência que Charles Olson
atribui à máquina de escrever em relação à voz do poeta, era atribuída pelo
elemento feminino dos escritórios, há 50 anos atrás. Dizia-se que as mulheres
inglesas haviam ganho uma “aparência de 12 libras”, assim que as máquinas de
escrever começaram a ser vendidas a 60 dólares. Esta aparência, de certo
modo, pode ser relacionada ao gesto viking de Nora Helmer, a personagem de
I bsen, ao bater a porta de sua casa de bonecas e pôr-se em busca de sua alma
e de sua vocação. Começara a era, não apenas da vontade, mas dos caprichos
de ferro.
O leitor decerto está lembrado de que já fizemos menção ao fato de o
aparecimento da primeira onda de datilógrafas nos escritórios, a partir de 1890,
haver decretado a desgraça dos fabricantes de escarradeiras. E assim foi. Mais
importante ainda, as fileiras uniformes de datilógrafas na moda tornaram
possível uma revolução na indústria do vestuário. O que uma datilógrafa usava,
toda filha de fazendeiro queria usar, pois a datilógrafa tornou-se uma figura
popular da empresa e da habilitação profissional. Fazia a moda e estava sempre
inclinada a seguir a moda. Tanto quanto a máquina de escrever, a datilógrafa
trouxe para o mundo dos negócios uma nova dimensão do uniforme, do
homogêneo e do contínuo, que tornou a máquina datilográfica indispensável
nas mais diversas manifestações da indústria mecânica. Um moderno navio de
guerra necessita de dúzias de máquinas de escrever para suas operações
comuns. Um exército precisa de mais máquinas de escrever do que de peças de
artilharia leves e médias, mesmo quando em campanha — o que pode sugerir
que a máquina de escrever agora funde as funções da pena e da espada... Mas
o efeito da máquina- de escrever não é sempre dessa espécie. Se ela contribui
grandemente para as formas familiares do especialismo e da fragmentação
homogeneizada que constituem a cultura impressa, também causou uma
integração de funções e a criação de uma certa independência particular. G. K.
Chesterton levantava objeções a esta nova independência, observando que “as
mulheres se recusavam ao ditado e se retiravam para tornar-se estenógrafas”.
O poeta e o romancista agora escrevem com a máquina de escrever. A
máquina funde composição e publicação, o que altera a atitude em relação à
palavra escrita e impressa. Compor na máquina de escrever alterou as formas
da linguagem e da literatura, como se pode observar pelos últimos romances
de Henry James, ditados a Miss Theodora Bosanquet, que não os taquigrafava
e sim datilografava. Seu livro de memórias, Henry James no Trabalho, deveria
ter sido seguido por outros estudos — sobre como a máquina de escrever
modificou a prosa e o verso ingleses e mesmo, os próprios hábitos mentais dos
escritores.
Com Henry James a máquina se tornou um hábito, por volta de 1907, e
seu novo estilo passou a caracterizar-se por uma espécie de qualidade mais
livre e encantatória. Sua secretária conta como ele achava que ditar era mais
fácil e mais inspirador do que escrever a mão: “Tudo parece muito mais efetiva
e incessantemente arrancado de mim quando falo do que quando escrevo.” De
fato, ele ficou de tal maneira ligado ao som de sua máquina de escrever que,
em seu leito final, exigia que sua Remington estivesse sempre próxima à cama.
Até que ponto a máquina de escrever, através de seu injustificável
marginador direito, contribui para o desenvolvimento do verso livre, é difícil de
dizer, mas o verso livre, realmente, foi uma recuperação dos acentos falados e
dramáticos da poesia — e a máquina de escrever veio incentivar exatamente
essas qualidades. Sentado à máquina de escrever, o poeta, muito à maneira do
músico de jazz, tem a experiência do desempenho enquanto composição. No
mundo não-letrado, esta fora a situação do bardo e do menestrel. Ele tinha
temas, mas não textos. À máquina de escrever, o poeta comanda os recursos
da imprensa e da impressão. A máquina é como um sistema de dirigir-se ao
público, imediatamente ao alcance da mão. O poeta pode gritar, murmurar e
assobiar — e fazer engraçadas caretas tipográficas para a audiência, como o
faz E. E. Cummings neste tipo de poema: [ * Em lugar do poema reproduzido
pelo autor, transcrevemos um outro poema de E. E. Cummings, de mesmo
efeito, na tradução de Augusto de Campos e extraído de seus 10 Poemas de E.
E. Cummings, Ministério da Educação e Cultura, Serviço de Documentação, Rio
de Janeiro, 1962. (N. do T.).]
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E. E. Cummings aqui usa a máquina de escrever para produzir um
poema como uma partitura musical para fala em coro. O poeta antigo,
separado da forma impressa pelos diversos estágios técnicos, não dispunha
desta liberdade de acentos orais propiciada pela máquina de escrever. Com a
máquina de escrever, o poeta pode dar saltos como Nijinsky e meneios e
passinhos de dança chaplinianos. Justamente porque ele é o público para suas
próprias audácias mecânicas, nunca deixa de reagir ao seu próprio
desempenho. Compor na máquina de escrever é como empinar papagaio.
O poema de E. E. Cummings, quando lido em voz alta, com todas as
variáveis e possíveis pausas e inflexões, duplica o processo perceptivo de seu
criador datilográfico. Como Gerard Manley Hopkins teria gostado de escrever
numa máquina de escrever: As pessoas que acham que a poesia é para o olho
e que é para ser lida silenciosamente, dificilmente irão muito longe em Hopkins
ou Cummings. Lida em voz alta, esta poesia se torna perfeitamente natural.
Botar nomes próprios em caixa baixa, como e. e. cummings, ou eddiebill
perturbou bastante os literatos de há 40 anos. Devia perturbar mesmo.
Eliot e Pound utilizaram a máquina de escrever para uma grande
variedade de efeitos importantes em seus poemas. Também para eles ela era
um instrumento mimético e oral que lhes abria a liberdade coloquial do mundo
do jazz e do ragtime. Por ocasião de sua primeira publicação, Sweeney
Agonistes, o mais coloquial e jazzístico dos poemas de Eliot, trazia a seguinte
nota: From Wanna Go Home Baby? (“Vamos Voltar prá Casa, Nenê?”).
Que a máquina de escrever, que levou a tecnologia de Gutenberg a
todos os cantos de nossa cultura e de nossa economia, também tenha
provocado efeitos opostos ao efeito oral, é uma reversão característica. Esta
reversão de forma acontece em todos os casos extremos de uma tecnologia
avançada, tal como se passa com a roda hoje.
Como acelerador, a máquina de escrever associou estreitamente a
escrita, a fala e a publicação. Embora fosse uma simples forma mecânica, sob
certos aspectos sua atuação foi antes implosiva do que explosiva.
Em seu caráter explosivo, homologando os processos existentes dos
tipos móveis, a máquina de escrever teve um efeito imediato na uniformização
da pronúncia e da gramática. A pressão da tecnologia de Gutenberg no sentido
de uma gramática e de uma pronúncia “corretas” ou uniformes, logo se fez
sentir. As máquinas de escrever provocaram um enorme aumento na venda de
dicionários e criaram os inumeráveis e repletos arquivos que deram nascimento
às companhias de racionalização burocrática de hoje. No início, no entanto, a
máquina de escrever não foi considerada indispensável aos negócios. O toque
pessoal da letra manuscrita era considerado tão importante que a máquina de
escrever era rejeitada no uso comercial pelos “bonzos”. Achavam eles, contudo,
que ela podia ser útil aos escritores, clérigos e telegrafistas. Até mesmo os
jornais, por algum tempo, permaneceram reticentes em relação a esta
máquina.
Quando uma parte da economia acelera o passo, todo o resto tem de
acompanhar. Em pouco tempo, nenhum escritório podia permanecer indiferente
à aceleração provocada pela máquina de escrever. Paradoxalmente, foi o
telefone que apressou a adoção comercial da máquina de escrever. A frase:
“Mande-me um memorando sobre o assunto”, repetidas em milhões de fones
diariamente, ajudou a expandir enormemente a função da datilógrafa. A lei de
Parkinson, segundo a qual “o trabalho aumenta para preencher o tempo
disponível à sua realização” reflete precisamente a dinâmica doida produzida
pelo telefone. O telefone aumentou o trabalho a ser datilografado em
proporções gigantescas. Pirâmides de papel se erguem sobre a base de uma
pequena rede telefônica, em qualquer escritório. Como a máquina de escrever,
o telefone funde funções, permitindo, por exemplo, que a call-girl seja o seu
próprio contato e a sua própria cafetina.
Northcote Parkinson descobriu que qualquer negócio ou estrutura
burocrática funciona por si mesma, independentemente do “trabalho a ser
feito”. O número do pessoal e “a qualidade do trabalho não têm absolutamente
nenhuma relação um com a outra”. Em qualquer estrutura, o índice de
acumulação do staff não está relacionado ao trabalho feito, mas à
intercomunicação entre os elementos que compõem o próprio staff. (Em outras
palavras, o meio e a mensagem). Matematicamente falando, a Lei de Parkinson
estipula que o índice de acumulação do staff de escritório, por ano, deve variar
entre 5,17% e 6,56% . independentemente de qualquer variação do volume de
trabalho (se houver) a ser executado. “O trabalho a ser executado”,
naturalmente, significa a transformação de uma espécie de energia material em
alguma nova forma — assim como as árvores se transformam em caibros ou
papel. a argila em tijolos ou pratos, e o metal em canos. Em termos desta
espécie de trabalho, a acumulação do pessoal burocrático na Marinha, por
exemplo, é ascensional, à medida que o número de navios diminui. O que
Parkinson prudentemente oculta de si mesmo e de seus leitores é simplesmente
o fato de que, na área do movimento da informação, o principal “trabalho a ser
feito”, na realidade, é o movimento da informação. A simples inter-relação de
pessoas pela informação selecionada é a principal fonte de riquezas na era da
eletricidade. Na era mecânica precedente, o trabalho a ser feito não era
absolutamente dessa espécie. Significava o processamento de vários materiais
pela fragmentação de operações na linha de montagem e pela autoridade
hierarquicamente delegada. Os circuitos elétricos. em relação ao mesmo
processo. eliminam tanto a linha de montagem como a autoridade delegada.
Com o computador, em especial, o esforço do trabalho se aplica ao nível da
“programação” — e é um esforço de informação e de conhecimento. No que se
refere aos aspectos de tomadas de decisões e de “fazer acontecer”, na
operação de trabalho, o telefone e outros aceleradores da informação
acabaram com as divisões da autoridade delegada, em favor da “autoridade de
conhecimento”. É como se o compositor de uma sinfonia, em lugar de enviar
seu manuscrito para um impressor e depois para o regente e para os
componentes individuais da orquestra, passasse a compor diretamente num
instrumento eletrônico que tocasse cada nota ou tema como se fosse o
instrumento indicado. I sto acabaria de uma vez por todas com a delegação e o
especialismo da orquestra sinfônica, por isto mesmo um modelo natural da era
mecânica e industrial. No que respeita ao poeta e ao romancista, a máquina de
escrever se aproxima muito da promessa da música eletrônica, na medida em
que comprime ou unifica as várias tarefas da composição e da publicação
poéticas.
O historiador Daniel Boorstin se escandaliza pelo fato de, na era da
informação, a celebridade não se basear no que uma pessoa fez, mas
simplesmente no ser ela conhecida por ser bem conhecida. O Professor
Parkinson se escandaliza com o fato de a estrutura do trabalho humano parecer
não ter relação com qualquer trabalho a ser feito. Como economista, ele revela
a mesma incongruência e a mesma comicidade que se observa entre o velho e
o novo segundo a visão do Dr. Stephen Potter, em Gamesmanship. Ambos
revelam o vazio e o ridículo que significa “fazer carreira” no velho sentido. Nem
a labuta honesta, nem a viveza servem para promover o executivo ansioso. A
razão é simples. A guerra posicional chegou ao fim, tanto na ação privada como
na ação corporada. Nos negócios, como na sociedade. “abrir caminho” pode
levar à porta da rua. Não há mais isso de ser “bem-sucedido” num mundo que
é uma câmara de eco da celebridade instantânea.
Com suas promessas de carreira para todas as Nora Helmers do
Ocidente, a máquina de escrever, tudo somado acabou por se revelar uma
carruagem-abóbora bem ilusória.
27. O TELEFONE
METAI S SONOROS OU SÍ MBOLO TI LI NTANTE?
O Evening Telegram, de Nova I orque, informava aos seus leitores em
1904: “Phony (fajuto) implica em que uma coisa assim considerada não tem
mais substância do que uma conversa de telefone com um amigo hipotético.” O
folclore do telefone na canção e no anedotário popular ficou enriquecido com as
memórias de Jack Paar; escreve ele que sua ojeriza em relação ao telefone
começou com o telegrama cantado. Conta ainda como recebeu um telefonema
de uma mulher que declarava sentir-se tão sozinha que passara a tomar três
banhos por dia na esperança de que o telefone tocasse.
Em Finnegans Wake, James Joyce dá à manchete: TELEVI SÃO MATA
TELEFONE EM RI XA DE I RMÃOS, apresentando um tema fundamental na
batalha da extensão tecnológica dos sentidos — batalha essa que há mais de
uma década vem sendo travada em nossa cultura. Com o telefone, temos a
extensão do ouvido e da voz, uma espécie de percepção extra-sensória. Com a
televisão, vem a extensão do sentido do tato ou da inter-relação dos sentidos,
que envolve mais intimamente ainda todo o nosso mundo sensorial.
A criança e o jovem compreendem o telefone. envolvendo o fio e o
aparelho como se fossem animais de estimação. O que chamamos de “telefone
francês”, a união do emissor e do receptor numa só peça, é uma indicação
significativa da ligação dos sentidos pelos franceses — sentidos que os povos
de fala inglesa tendem a manter firmemente separados. O francês é a “língua
do amor” porque ela une a voz e o ouvido de uma maneira íntima especial, ao
modo do telefone. É por isso que é natural beijar pelo telefone — mas não é
fácil visualizar enquanto se telefona.
Uma das conseqüências sociais mais inesperadas do telefone tem sido a
gradual eliminação das zonas de meretrício e a criação da call-girl. Para o cego
todas as coisas são inesperadas. A forma e o caráter do telefone, como de toda
tecnologia elétrica, se manifesta integralmente neste desenvolvimento
espetacular. A prostituta era uma especialista, a call-girl não é. Uma “casa” não
era um lar; mas a call-girl não apenas vive no lar, como pode ser até dona de
casa. Mas não é todo mundo, longe disso, que compreende o poder do telefone
em descentralizar todas as operações e acabar com a guerra de posições... e
com a prostituição localizada.
No caso da call-girl, o telefone é a máquina de escrever que funde as
funções da composição e da publicação. A call-girl dispensa o cafetão e a
cafetina. Tem de ser uma pessoa desembaraçada, sociável e de conversação
variada. pois dela se espera que esteja à altura de qualquer companhia, numa
base de igualdade social. Se a máquina de escrever separou a mulher de seu
lar, transformando-a numa especialista de escritório, o telefone a trouxe de
volta ao mundo dos executivos, como um fator geral de harmonia, um convite à
felicidade e uma combinação de confessionário e muro de lamentações para o
imaturo executivo americano.
Com dureza e crueldade tecnológicas, a máquina de escrever e o
telefone, gêmeos bem pouco parecidos, levaram a efeito o recondicionamento
da garota americana.
Como todos os meios são fragmentos de nós mesmos projetados no
domínio público, a ação que qualquer meio exerce sobre nós tende a aglutinar
os demais sentidos numa nova relação. Quando lemos, imaginamos uma trilha
sonora para a palavra impressa; quando ouvimos rádio, imaginamos um
acompanhamento visual. Por que não conseguimos visualizar ao telefone? O
leitor logo protestará “Mas eu visualizo enquanto telefono!” Basta que ele tenha
a oportunidade de experimentá-lo deliberadamente, e verá que simplesmente
não conseguirá visualizar enquanto telefona, embora todas as pessoas letradas
o tentem — acreditando, com isso, que o estão conseguindo. Mas não é isto o
que mais irrita o homem ocidental, letrado visual, no que respeita ao telefone.
Algumas pessoas não conseguem evitar o mau humor quando conversam ao
telefone com seus melhores amigos. O telefone exige uma participação
completa, diferentemente da escrita e da página impressa. O homem letrado se
ressente dessa pesada exigência de atenção total, pois há muito que está
habituado apenas à atenção fragmentária. I gualmente, o homem letrado só
aprende a falar outra língua com grande dificuldade, pois o aprendizado de
uma língua exige a participação de todos os sentidos simultaneamente. De
outro lado, o hábito de visualizar faz com que o homem ocidental se sinta
desamparado no mundo não-visual da física avançada. Só os teutônicos e
eslavos, viscerais e audiotáteis, possuem a necessária imunização à visualização
que lhes permite trabalhar com a matemática não-euclidiana e a física quântica.
Se ensinássemos Matemática e Física por telefone, então até um ocidental
altamente letrado e abstrato poderia eventualmente competir com os físicos
europeus. I sto não interessa ao departamento de pesquisas da Bell Telephone,
pois, como todos os grupos que se orientam pelos livros, eles também não se
dão conta do telefone enquanto forma, e estudam apenas o seu aspecto
conteudístico. Como já foi mencionado, a hipótese de Shannon e Weaver sobre
a Teoria da I nformação, assim como a Teoria do Jogo, de Morgenstern,
afundaram em banalidades estéreis — enquanto as mudanças psíquicas e
sociais que resultaram dessas formas foram alterando o total de nossas vidas.
Muita gente sente um forte impulso de rabiscar, enquanto está
telefonando. Este fato se relaciona muito à característica desse meio, a saber,
que ele exige a participação de nossos sentidos e faculdades. Diferentemente
do rádio, ele não pode ser usado como pano de fundo. Como o telefone
propicia uma imagem auditiva bastante pobre, nós a reforçamos e
completamos mediante o uso dos demais sentidos. Quando a imagem auditiva
é de alta definição, como acontece com o rádio, visualizamos a experiência ou a
completamos com o sentido da visão. Quando a imagem visual é de alta
definição ou intensidade, nós a completamos com o som. o que explica a
profunda perturbação artística que ocorreu quando se acrescentou a trilha
sonora ao filme. A perturbação foi quase igual à produzida pelo próprio cinema.
I sto porque o cinema é um rival do livro; sua trilha visual de descrição e
formulação narrativa é mais rica do que a palavra escrita.
Tornou-se popular, na década de 20, a canção, All Alone by the
Telephone, All Alone Feeling Blue (“Sozinho(a) ao Telefone, Sozinho(a) e
Triste”). Por que criaria o telefone um tal intenso sentimento de solidão? Por
que sentimos o impulso de atender ao tilintar de um telefone público, quando
sabemos que a chamada não pode ser para nós? Por que um toque de telefone
num palco cria uma tensão imediata? Por que essa tensão é bem menor para
uni telefone que não se atende, numa cena cinematográfica? A resposta para
todas essas questões é: o telefone é uma forma participante que exige um
parceiro, com toda a intensidade da polaridade elétrica. Simplesmente não
funciona como instrumento de fundo — coisa que acontece com o rádio.
Um dos trotes-padrão das cidadezinhas, nos primeiros tempos do
telefone, chamava a atenção para o telefone como forma de participação
comunal. Nenhuma fofoca de comadres vizinhas poderia rivalizar com a
calorosa participação propiciada pela linha telefônica coletiva. O trote em
questão assumia a seguinte forma: ligava-se para diversas pessoas, com voz
disfarçada, informando que o departamento de engenharia iria proceder à
limpeza das linhas telefônicas, e dizendo: “Recomendamos que você cubra o
seu aparelho com um lençol ou fronha, para evitar que a sujeira e a graxa
espirrem pela sala.” Em seguida, o gozador percorria as casas dos amigos aos
quais havia telefonado e ficava apreciando os preparativos, na expectativa do
zunido e do estrondo que certamente ocorreriam quando as linhas fossem
sopradas do outro lado. Hoje, a brincadeira serve para recordar-nos de que,
não há muito tempo, o telefone não passava de uma engenhoca, mais utilizada
para diversão do que para negócios.
A invenção do telefone foi um incidente no esforço maior que se efetuou
no século passado no sentido de tornar a fala visível. Melville Bell, o pai de
Alexander Graham Bell, passou a vida toda elaborando um alfabeto universal,
que fez publicar em 1867, com o título de A Fala Visível. Além do escopo de
tornar todas as línguas imediatamente acessíveis sob uma forma visual única,
os Bells, pai e filho, estavam empenhados em aliviar a situação dos surdos. A
fala visível parecia a promessa de uma imediata libertação da prisão da surdez.
A luta para aperfeiçoar a fala visível para os surdos levou os Bells a estudarem
os novos dispositivos elétricos que deram nascimento ao telefone. Da mesma
maneira, o sistema Braille de pontos em substituição às letras tivera início como
um método de leitura de mensagens militares no escuro, depois utilizado na
música e, finalmente, na leitura pelos cegos. Antes que o Código Morse tivesse
sido elaborado para uso telegráfico, as letras já tinham sido codificadas em
pontos para os dedos. E é importante notar como, desde o início da
eletricidade, e da mesma maneira, a tecnologia elétrica convergiu para o
mundo da fala e da linguagem. A primeira grande extensão de nossos sistema
nervoso central — os meios de massa da palavra falada — veio a casar-se com
a segunda grande extensão do sistema nervoso central — a tecnologia elétrica.
O Daily Graphic, de Nova I orque, datado de 15-3-1877, trazia na
primeira página: Os Terrores do Telefone — O Orador do Futuro. Em clichê, um
desgrenhado mistagogo à la Svengali perorando num estúdio junto a um
microfone. O mesmo microfone é mostrado em Londres, São Francisco, nas
pradarias e em Dublin. É curioso que o jornal desse tempo encarasse o telefone
como um rival da imprensa, como um sistema de agentes de imprensa — como
o rádio haveria de ser, de fato, meio século mais tarde. Mas o telefone. íntimo e
pessoal, é um dos meios que mais se afastam da forma das agências
noticiosas. Assim, a interceptação de mensagens telegráficas parece mais
odiosa do que ler cartas alheias.
A palavra “telefone” surgiu em 1840, antes do nascimento de Alexander
Graham Bell. Era aplicada a um dispositivo destinado a transmitir notas
musicais através de bastões de madeira. Na década de 70, muitos inventores
estavam tentando descobrir processos de transmissão elétrica da fala e o
American Patent Office recebeu, no mesmo dia, dois projetos de telefone, um
de Elisha Gray e outro de Graham Bell — mas este com a vantagem de uma ou
duas horas. Esta coincidência beneficiou enormemente a profissão de
advogado. Graham Bell ganhou fama — e seus rivais se transformaram em
notas ao pé da página. O telefone se destinava a oferecer serviços ao público
em 1877, paralelamente à telegrafia. O grupo telefônico era insignificante em
comparação com os vastos interesses do telégrafo, e a Western Union logo se
movimentou para estabelecer controle sobre os serviços telefônicos.
Uma das ironias do homem ocidental é que ele nunca se preocupa com a
possibilidade de uma nova invenção se constituir em ameaça à sua vida. E
assim tem sido do alfabeto ao automóvel. O homem ocidental tem sido
continuamente remodelado por uma lenta explosão tecnológica que se estende
por mais de 2500 anos. A partir do telégrafo, no entanto, começa a viver uma
implosão. Com despreocupação nietzscheana, começa a rodar o filme de sua
explosão de 2500 anos da frente para trás, embora ainda desfrute dos
resultados da extrema fragmentação dos componentes originais de sua vida
tribal. É graças a esta fragmentação que ele se permite ignorar as relações de
causa e efeito entre a tecnologia e a cultura. No mundo dos Grandes Negócios,
a coisa é bem diferente. Ali, o homem tribal está de atalaia para qualquer sinal
de mudança. Eis por que William H. Whyte pôde escrever O Homem da
Organização como um romance de terror. Comer gente é errado. Mesmo
enxertar gente na úlcera de uma grande empresa parece errado a quem quer
que tenha sido criado segundo a liberdade fragmentada, visual e letrada.
"Costumo chamá-los à noite, quando estão desprevenidos”, disse um diretor de
alto escalão.
Na década de 20, o telefone produziu muitos diálogos humorísticos, que
eram vendidos em discos. Mas o rádio e o cinema sonoro não tiveram piedade
para com o monólogo, mesmo quando o artista era W. C. Fields ou Will Rogers.
Estes meios quentes puseram de lado as formas mais frias, que agora retornam
em larga escala com a televisão. A nova safra de humoristas de clubes noturnos
(Newhart, Nichols e May) tem um sabor dos primeiros tempos do telefone que
os torna realmente bem-vindos. Se a mímica e o diálogo voltaram, devemos
agradecer à TV, com seu apelo de alta participação. Os nossos Mort Sahls,
Shelley Bermans e Jack Paars são quase uma variedade do “jornal vivo”, tal
como o elaborado para as massas revolucionárias chinesas por equipes teatrais,
nos anos 80 e 40. As peças de Brecht tem a mesma qualidade participacional
do mundo das estórias em quadrinhos e do mosaico do jornal que a TV tornou
aceitável como pop art.
O bocal do telefone resultou diretamente da longa tentativa, iniciada no
século XVI I , de imitar a fisiologia humana por meios mecânicos. É, pois, da
natureza do telefone elétrico possuir uma tal concordância natural com o
orgânico. Foi por conselho de um médico de Boston, o Dr. C. J. Blake, que o
receptor do fone foi diretamente modelado sobre a estrutura do osso e do
diafragma do ouvido do homem. Graham Bell acompanhou com a maior
atenção o trabalho do grande Helmholtz, cujas pesquisas cobriram muitos
campos. E por acreditar que Helmholtz conseguira transmitir vogais pelo
telégrafo é que ele perseverou em seus esforços. Constatou-se depois que essa
impressão otimista não derivava senão de seu mau conhecimento da língua
alemã: Helmholtz fracassara em suas tentativas de obter efeitos vocais pelo fio.
Graham Bell raciocinou: Se as vogais podem ser enviadas, por que não as
consoantes? “Pensei que o próprio Helmholtz já houvera conseguido isso, e que
o meu fracasso somente era devido, à minha ignorância em matéria de
eletricidade. Foi um engano bem valioso, deu-me confiança. Se eu soubesse ler
alemão naquele tempo, nunca teria dado início às minhas experiências!”.
Uma das mais notáveis conseqüências do telefone foi a introdução de
uma “trama inconsútil”, feita de padrões entrelaçados, na administração e nos
centros de decisão. A estrutura piramidal da divisão e caracterização do
trabalho e dos poderes delegados não pode manter-se ante a velocidade com
que o telefone contorna as disposições hierárquicas e envolve as pessoas em
profundidade. Do mesmo modo, as divisões blindadas equipadas com rádiotelefones abalaram as estruturas tradicionais do exército. E já observamos
como o repórter, ligando a página impressa ao telefone e ao telégrafo, uniu os
fragmentados departamentos governamentais numa imagem corporada.
Hoje um jovem executivo de empresa pode chamar pelo primeiro nome
seus superiores, nas mais diferentes partes do país. “O jeito é começar a
telefonar. Qualquer um pode entrar no escritório do diretor por telefone. Às dez
horas do dia em que ingressei no escritório de Nova I orque eu já estava
chamando todo mundo pelo primeiro nome.”
O telefone é um “entrão” irresistível em qualquer tempo e lugar; os
diretores executivos só conseguem imunidade em relação a ele quando estão
jantando à cabeça da mesa. Por sua natureza, o telefone é uma forma
intensamente pessoal que ignora todos os reclamos da intimidade visual tão
prezada pelo homem letrado. Recentemente, uma firma de títulos e valores
aboliu todas as salas particulares para seus executivos, dispondo-os em torno
de uma espécie de mesa de seminário. Sentiam que as decisões imediatas que
deviam ser tomadas com base no fluxo contínuo do teletipo e de outros meios
elétricos somente podiam contar com uma rápida aprovação do grupo se o
espaço particular fosse abolido. Quando de prontidão, até o pessoal da aviação
militar que permanece em terra não se perde de vista em nenhum momento. É
um fator meramente temporal. Mais importante é a necessidade de
envolvimento total no papel de cada um, envolvimento este provocado pela
estrutura instantânea. Os dois pilotos de uni caça a jato canadense são
escolhidos com o mesmo cuidado empregado numa empresa de casamentos.
Depois de muitos testes e uma prolongada convivência, o comandante oficial os
casa oficialmente, “até que a morte os separe”. Exclua-se a malícia no caso.
Trata-se da mesma espécie de integração total num papel e que provoca
arrepios em todo homem letrado quando se defronta com as exigências
implosivas da trama inconsútil da tomada elétrica de decisões. A liberdade no
mundo ocidental sempre tomou a forma do explosivo e do dividido,
patrocinando a separação entre o indivíduo e o estado. Assim como a grande
explosão ocidental se deveu antes de mais nada, à alfabetização fonética, a
reversão do movimento unidirecional do centro para a margem se deve à
eletricidade.
Se a autoridade delegada da cadeia de comando não funciona por
telefone, mas apenas mediante instruções escritas, que espécie de autoridade é
a que vem a furo? A resposta é simples, mas não é fácil de transmitir. Ao
telefone só funciona a autoridade do conhecimento. A autoridade delegada é
visual, linear, hierárquica. A autoridade do conhecimento é não-linear, nãovisual e inclusiva. Para agir, a pessoa delegada deve sempre obter “via livre” da
cadeia de comando. A situação elétrica elimina esses padrões. Essas
“checagens” e cálculos são estranhos à autoridade inclusiva do conhecimento.
Em conseqüência, restrições ao poder elétrico absolutista só podem ser
impostas por um pluralismo de centros e não pela separação de poderes. Este
problema foi levantado a propósito da linha direta entre o Kremlin e a Casa
Branca. Numa demonstração de sua natural inclinação ocidental, o Presidente
Kennedy manifestou sua preferência pelo teletipo em relação ao telefone.
A separação de poderes foi uma técnica destinada a restringir a ação
numa estrutura centralista, ação que se irradia para as margens — pelo menos
até onde podemos conceber o espaço e o tempo deste planeta. Logo, só pode
haver diálogo entre centros iguais. As pirâmides das cadeias de comando não
podem contar com o apoio da tecnologia elétrica. O papel a desempenhar
tende a voltar ao primeiro plano, com os meios elétricos, em lugar do poder
delegado. Uma pessoa pode revestir-se de novo de todas as espécies de
personagens. O rei e o imperador estavam legalmente autorizados a agir como
o ego coletivo de todos os egos particulares de seus súditos. Até o momento, o
homem ocidental vai restaurando o seu papel aos tateios — e ainda consegue
manter indivíduos em tarefas ou empregos delegados. No culto das estrelas e
astros de cinema, permitimo-nos, meio sonambulicamente, abandonar nossas
tradições ocidentais, conferindo a essas imagens sem emprego um papel
místico. Elas são corporificações coletivas das multifárias vidas particulares de
seus súditos.
Um exemplo extraordinário do poder que o telefone tem de envolver a
pessoa inteira é o relatado pelos psiquiatras: as crianças neuróticas não
apresentam sintomas neuróticos quando telefonam. The New York Times, de 79-1949, traz um tópico que fornece um bizarro testemunho do “frio” caráter
participacional do telefone:
A 6 de setembro de 1949, um psicótico veterano de guerra, Howard B.
Unruh, numa correria louca pelas ruas de Camden, Nova Jérsei, matou treze
pessoas e depois voltou para casa. Equipes de emergência, armadas de
metralhadoras, pistolas e bombas de gás lacrimogêneo, abriram fogo. A certa
altura, o editor do Camden Evening Courier procurou o nome de Unruh na lista
telefônica e ligou para ele. Unruh parou de atirar e respondeu:
— Alô.
— É Howard?
— Sim...
— Por que você está matando gente?
— Não sei. Ainda não posso responder. Falo com você mais tarde. Agora estou
muito ocupado.
Art Seidenbaum, num recente artigo publicado no Los Angeles Times e
intitulado, Dialética dos Números que Não Constam da Lista Telefônica, conta o
seguinte:
Há muito tempo que as celebridades se estão escondendo.
Paradoxalmente, à medida que seus nomes e imagens incham em telas cada
vez mais largas, elas mais se empenham em ser inabordáveis, pessoalmente ou
por telefone... Muito nome famoso jamais atende quando se liga para o seu
número; alguém anota os chamados e só entrega as mensagens acumuladas
quando solicitado... "Não me chame” podia ser o verdadeiro código da área da
Califórnia do Sul
All Alone by the Telephone completou o círculo. Não tardará muito e o
próprio telefone estará all alone, and feeling blue.
28. O FONÓGRAFO
O BRI NQUEDO QUE ESVAZI OU A CAI XA (TORÁCI CA) NACI ONAL
O fonógrafo, que deve a sua origem ao telégrafo e ao telefone elétricos,
não tornou manifestas sua forma e sua função basicamente elétricas enquanto
o gravador de fita não o liberou de seus acessórios mecânicos. O mundo do
som é, essencialmente, um campo unificado de relações imediatas, o que o
torna semelhante ao mundo das ondas eletromagnéticas. Foi isto que
aproximou o fonógrafo e o rádio.
Com que suspeição o fonógrafo foi a princípio recebido, mostra-o a
observação do compositor e chefe de banda John Philip Sousa, ao comentar:
“Com o fonógrafo os exercícios vocais ficarão fora de moda! E o que vai
acontecer com a garganta nacional? Não ficará mais fraca? E o peito nacional?
Não vai esvaziar?”
Uma coisa Sousa percebeu: o fonógrafo é uma extensão e uma
amplificação da voz, que pode muito bem ter diminuído a atividade vocal
individual, assim como o carro reduziu a atividade pedestre.
Como o rádio, cuja programação ele ainda alimenta, o fonógrafo é um
meio quente. Sem ele, o século XX do tango, do ragtime e do jazz teria tido um
ritmo diferente. Mas o fonógrafo foi envolvido em muitas concepções falsas,
como indica um de seus primeiros nomes — gramofone. Era concebido como
uma forma de escrita auditiva (gramma — letras). Foi também denominado
“grafofone”, com a agulha no papel da pena. A idéia de que se tratava de uma
“maquina falante” tornou-se bastante popular. Edison demorou para chegar à
solução do problema, porque achava que o aparelho devia funcionar como uma
espécie de “repetidor telefônico”, ou seja, como um armazém de dados colhidos
ao telefone, de modo a permitir que o telefone “fornecesse registros de valia,
em lugar de ser o recipiente de comunicações momentâneas e fugidias”. Estas
palavras de Edison, publicadas na North American Review, de junho de 1878,
ilustram como a invenção recente do telefone já tinha o poder de colorir o
pensamento em outros campos. Assim, o tocador de discos tinha de ser uma
espécie de registro fonético da conversação telefônica. Daí os nomes de
“fonógrafo” e “gramofone”.
Atrás da popularidade imediata do fonógrafo estava toda a implosão
elétrica, que concorreu com uma nova tensão e uma nova importância para os
ritmos da fala natural, na Música, na Poesia e na dança. Mas o fonógrafo era
apenas uma máquina. Não utilizava, no inicio, nenhum circuito ou motor
elétrico. Mas ao propiciar uma extensão mecânica da voz humana e as novas
melodias do ragtime, o fonógrafo foi projetado para um ponto central pelas
correntes predominantes do tempo. A aceitação de uma nova frase, de uma
nova forma falada ou um novo ritmo de dança são provas diretas de
manifestações às quais ele está relacionado de maneira significativa. Veja-se,
por exemplo, o deslizamento do I nglês para um tom interrogativo, desde o
aparecimento do How about that? (“Que acha você?”). Nada induziria as
pessoas a começar a empregar de repente, e seguidamente, uma frase como
essa, não fosse uma nova tensão, um novo ritmo, um novo matiz nas relações
interpessoais e que lhe deram relevância.
Foi quando manipulava uma fita de papel, com os traços do código
Morse, que Edison observou que o som produzido pela fita em alta velocidade
se assemelhava à “conversação humana ouvida indistintamente”. Ocorreu-lhe
então que a fita gravada poderia registrar uma mensagem telefônica. Edison
teve consciência dos limites da linearidade e da esterilidade da especialização
assim que ingressou no campo da eletricidade. Dizia: “Veja, é assim, Começo
neste ponto com a intenção de chegar a este outro, numa experiência,
digamos, aumentar a velocidade do cabo atlântico; mas, a meio caminho, dou
com um fenômeno que me desvia da linha reta e me impele para outra direção
e que acaba dando no fonógrafo.” Nada podia expressar mais dramaticamente
o divisor de águas entre a explosão mecânica e a implosão elétrica. A própria
carreira de Edison corporificou essa mudança em nosso mundo e ele próprio
muitas vezes ficou entre as duas formas de procedimento.
Foi no fim do século XI X que o psicólogo Lipps revelou, mediante uma
espécie de audiógrafo elétrico, que o simples clangor de um sino continha
concentradamente todas as sinfonias possíveis. Foi mais ou menos da mesma
forma que Edison abordou seus problemas. A experiência prática lhe tinha
ensinado que todos os problemas continham embrionariamente todas as
respostas, desde que se descobrisse o meio de explicitá-los. No seu caso, sua
determinação de dar ao fonógrafo, como ao telefone, uma praticabilidade direta
que interessasse ao mundo dos negócios levou a negligenciar as possibilidades
do invento como meio de entretenimento. A incapacidade de antever o
fonógrafo como meio de entretenimento era realmente uma incapacidade de
apreender o significado da revolução elétrica em geral. Hoje, temos o fonógrafo
por um brinquedo e um bálsamo; mas a imprensa, o rádio e a TV também já
adquiriram a mesma dimensão de entretenimento. Outrossim, o entretenimento
levado ao extremo se transforma na principal forma de negócio e de política. Os
meios elétricos, dado o seu caráter de “campo” total, tendem a eliminar as
especializações fragmentadas de forma e função, a que já estamos há muito
acostumados como herança do alfabeto, da imprensa e da mecanização. A
estória breve e concentrada do fonógrafo inclui todas as fases do escrito, do
impresso e da palavra mecanizada. Foi o aparecimento do gravador elétrico. há
apenas alguns anos, que liberou o fonógrafo de seu temporário compromisso
com a cultura mecânica. A fita gravada e o long-playing fizeram do fonógrafo
um meio de acesso a todas as músicas e falas do mundo.
Antes de tratarmos da revolução do long-playing e da fita gravada,
gostaríamos de notar que o período inicial da gravação da reprodução sonora
mecânica tinha um importante fator em comum com o cinema mudo. Os
primeiros fonógrafos produziam unia experiência vivida e estridente. não
diferente da de um filme de Mack Sennett. Mas a corrente subterrânea da
música mecânica é estranhamente triste. Foi o gênio de Charles Chaplin que
captou em seus filmes essa melancólica qualidade de profunda tristeza (blues),
sobrepondo-lhe um requebrado e um balanço saltitantes. Os poetas pintores e
músicos dos fins do século passado insistiram numa espécie de melancolia
metafísica, que sub jazia ao grande mundo industrial da metrópole. A figura de
Pierrô é tão decisiva na poesia de Laforgue como na arte de Picasso ou na
música de Satie. Em seu melhor, não constitui o mecânico uma notável
aproximação ao orgânico? E uma grande civilização industrial não está
capacitada a produzir de tudo em abundância para todos? A resposta é “Sim”.
Mas Chaplin, e os poetas, pintores e músicos de Pierrô levaram esta lógica até
o fim e chegaram à imagem de Cyrano de Bergerac, o maior de todos os
amantes, mas ao qual estava vedada a correspondência amorosa. Esta mágica
imagem de Cyrano, o amante mamado e inamável, foi captada no culto
fonográfico do blues. Talvez seja um tanto falso fazer derivar o blues da música
popular negra; Constant Lambert, o regente e compositor inglês, em seu Music
Ho!, dá-nos um histórico do blues que precedeu o jazz do primeiro pós-guerra,
para concluir que o grande florescimento do jazz na década de 20 era uma
resposta popular à riqueza dos intelectuais e à sutileza orquestral do período
Debussy-Delius. O jazz parece ter sido uma ponte eficaz entre a música erudita
e a música popular, assim como Chaplin o foi em relação à arte pictórica. Os
literatos logo aceitaram essas pontes, e James Joyce levou Chaplin para o
Ulysses, na personagem de Bloom, assim como Eliot levara o jazz para os
ritmos de seus primeiros poemas.
O Cyrano-palhaço de Chaplin faz parte de uma profunda melancolia,
assim como o Pierrô na arte de Picasso e Satie. Essa melancolia não será
inerente ao próprio triunfo do mecânico e sua omissão do humano? Poderia o
mecânico ter atingido um nível mais alto do que a máquina falante, com sua
mímica da voz e da dança? Os famosos versos de T. S. Eliot sobre a datilógrafa
da era do jazz não captam todo o pathos da era de Chaplin e do blues do
ragtime?
Quando a bela mulher cede à tolice
E vaga pelo quarto, outra vez só,
Passa as mãos nos cabelos, maquinal,
E põe um disco na vitrola.
Lido como uma comédia chapliniana, o poema Prufrock, de Eliot, logo se
torna claro. Prufrock é um Pierrô completo, o bonequinho da civilização
mecânica em vias de dar um salto para a sua fase elétrica.
Não há como exagerar a importância de formas mecânicas complexas,
como o filme e o fonógrafo, enquanto prelúdios à automação da canção e da
dança do homem. À medida que esta automação da voz e do gesto chegava à
perfeição, a força de trabalho do homem chegava à automação. Na era da
eletricidade, a linha de montagem, com suas mãos humanas, desaparece, e a
automação elétrica vai retirando da indústria a força do trabalho. Em lugar de
se automatizarem — fragmentados em tarefas e funções conforme a tendência
de mecanização — os homens da era da eletricidade caminham aceleradamente
para o envolvimento em diversos trabalhos simultaneamente, para o trabalho
do aprendizado e para a programação de computadores.
Esta lógica revolucionária, inerente à era da eletricidade, tornou-se bem
clara nas primeiras formas elétricas do telégrafo e do telefone, que inspiraram a
“máquina falante”. Estas novas formas, que muito contribuíram para recuperar
o mundo vocal, auditivo e mimético que vinha sofrendo a repressão da palavra
impressa, também inspiraram os estranhos e novos ritmos da era do jazz,
aquelas varias formas de síncope e de descontinuidade simbolista que como a
relatividade e a física quântica, anunciaram o fim da era de Gutenberg, com
suas macias e uniformes linhas tipográficas e organizativas.
A palavra jazz vem do francês jaser, bater papo. O jazz de fato, é uma
forma de diálogo entre instrumentistas e entre dançarmos. Representou uma
ruptura brusca em relação aos ritmos homogêneos e repetitivos da valsa
deslizante. Nos tempos de Napoleão e de Lorde Byron, a valsa era uma forma
nova e foi saudada como realização bárbara do sonho rousseauniano do nobre
selvagem. Embora esta idéia hoje nos pareça grotesca, é de fato uma pista das
mais valiosas para o entendimento da aurora da era mecânica. A dança coral e
impessoal do antigo padrão cortês foi abandonada quando os valsistas se
enlaçaram no salão. A valsa é precisa, mecânica e militar, como a sua história
revela. Para que ela se revele em todo o seu significado, impõe-se o traje
militar. “Pela noite soava um som de festa” e como Lorde Byron se refere ao
baile que precedeu Waterloo. Para o século XVI I I e para o tempo de Napoleão,
os exércitos de cidadãos pareciam ser uma libertação individualista da moldura
feudal das hierarquias palacianas. Daí a associação da valsa com o nobre
selvagem, querendo significar a libertação do status e da deferência
hierárquica. Os valsistas eram todos iguais e uniformes, com movimentos livres
em qualquer parte do salão. Que esta fosse a noção romântica da vida do
nobre selvagem, hoje nos parece bizarro, mas os românticos sabiam tanto da
vida real dos selvagens quanto das linhas de montagem.
Em nosso próprio país, a voga do jazz e do ragtime foi também tida
como uma invasão dos nativos rebolativos. As pessoas indignadas
contrapunham ao jazz a beleza mecânica e repetitiva da valsa, que outrora fora
saudada como pura dança nativa. Se o jazz é considerado como ruptura com o
mecanismo, em direção ao descontínuo, ao participante, ao espontâneo e ao
improvisado, também pode ser visto corno retorno a uma espécie de poesia
oral cujo desempenho é ao mesmo tempo criação e composição. É um truísmo
entre os instrumentistas de jazz que o jazz gravado é tão amanhecido quanto o
jornal de ontem”. O jazz é coisa viva, como a conversação — e como ela
depende de um repertório de temas disponíveis. Mas o desempenho é
composição. Esse desempenho assegura a máxima participação dos
executantes e dançarmos. Neste sentido, torna-se imediatamente claro que o
jazz pertence àquela família de estruturas em mosaico que reapareceram no
mundo ocidental com os serviços telegráficos. Ele está ao lado do simbolismo
na Poesia e de todas as formas correspondentes na Pintura e na Música.
O elo entre o fonógrafo, de um lado, e a canção e a dança, de outro,
não é menos forte do que as suas primitivas relações com o telégrafo e o
telefone. Com a impressão das primeiras partituras musicais, no século XVI , as
palavras e a música se divorciaram. As virtuosidades separadas das vozes e dos
instrumentos tornaram-se a base dos grandes desenvolvimentos musicais dos
séculos XVI I I e XI X. A mesma espécie de especialismo e fragmentação nas
artes e nas ciências tornou possíveis os mastodônticos resultados dos
empreendimentos industriais e militares, bem como dos empreendimentos
cooperativos de massa, tais como o jornal e a orquestra sinfônica.
Como produto da organização e da distribuição industriais em linha de
montagem, sem dúvida que o fonógrafo pouco mostrou das qualidades
elétricas que haviam inspirado o seu nascimento na mente de Edison. Profetas
houve que previam o grande dia em que o fonógrafo auxiliaria a Medicina,
fornecendo meios médicos de identificação entre o “soluço da histeria e o
suspiro da melancolia... o estalido da tosse comprida e a tosse seca da
tuberculose. Será um perito em paranóia, distinguindo entre a risada do
maníaco e o esgar do idiota. E isto realizará na ante-sala, enquanto o médico
atende um novo paciente”. Na realidade o fonógrafo ficou com as vozes do
Signor Foghornis, dos baixos-tenores e dos robustos-profundos.
As facilidades de gravação não acoroçoavam a presunção de que
viessem a beneficiar algo mais sutil — como uma orquestra, por exemplo — até
o imediato pós-guerra (a primeira). Antes disto, um entusiasta considerava o
disco como um rival do álbum de fotografias e antevia o dia feliz em que as
“futuras gerações pudessem condensar no espaço de vinte minutos, o retrato
sonoro de uma vida inteira: cinco minutos de balbucio de um bebê, cinco de
expressões exultantes de um menino, cinco de reflexões do homem e cinco de
expressões quase inaudíveis do moribunda”. Um pouco mais tarde, James
Joyce fez melhor. Em Finnegans Wake, compôs um poema sonoro que
condensou numa única sentença todos os balbucios, exultações, observações e
remorsos de toda a raça humana. Não poderia ter concebido este trabalho em
nenhuma outra era a não ser naquela que produziu o fonógrafo e o rádio.
Foi o rádio que finalmente injetou uma carga elétrica completa no
mundo do fonógrafo. O rádio-receptor de 1924 já era superior em qualidade de
som, e logo superou o negócio do fonógrafo e do disco, endereçando o gosto
popular rumo aos clássicos.
O rompimento definitivo veio depois da Segunda Guerra Mundial, com o
gravador de fita, que significou o fim da gravação por incisão e dos ruídos que
a acompanhavam. Em 1949, começa a era da alta-fidelidade elétrica, que
representa mais um salvador do negócio fonográfico. Buscando "o som
realista”, o hi-fi logo se fundiu com a imagem da televisão, como parte da
recuperação da experiência tátil. A sensação de ter os instrumentos tocando
“bem na sala junto a você” é um passo na direção da união do auditivo e do
tátil, numa sutileza de violinos que constituem, em boa parte, a experiência
escultural. Estar em presença de executantes é experimentar o toque e a
manipulação dos instrumentos, não apenas sonoramente, mas também tátil e
cineticamente. Pode-se pois dizer que a alta-fidelidade não é uma busca de
efeitos abstratos, em que o som se separa dos demais sentidos. Com a alta
fidelidade, o fonógrafo responde ao desafio tátil da TV.
O som estereofônico, um desenvolvimento a mais, é o “som em torno”
ou envolvente. Antes, o som emanava de uma única fonte, de acordo com a
tendência da cultura visual com seu ponto de vista fixo. A mudança introduzida
pela alta-fidelidade na Música corresponde à do cubismo na Pintura e à do
simbolismo na Literatura; vale dizer a aceitação de múltiplas facetas e planos
numa só experiência. Outro modo de colocar a questão é dizer que o estéreo é
o som em profundidade, assim como a TV é o visual em profundidade.
Talvez não seja muito contraditório dizer que quando um meio de
comunicação se toma um meio de experiência em profundidade, as velhas
categorias — “clássico” e “popular”, “erudita” e “popular” — já não têm razão
de ser. Assistir à operação do coração de uma criança “azul” (fator RH) pela TV
é uma experiência que não cabe em nenhuma das categorias. Quando o longplaying, a alta-fidelidade e o estéreo chegaram, também chegou o tempo da
abordagem profunda da experiência musical. Todo o mundo perdeu suas
inibições em relação aos “eruditos”, e a gente séria deixou de lado o mal-estar
que sentia ante a música e a cultura popular. Qualquer coisa que seja abordada
em profundidade adquire tanto interesse quanto o suscitado pelos grandes
temas. “Profundidade” significa “em inter-relação”, e não em isolamento.
Profundidade significa introvisão, não ponto de vista; e introvisão é uma
espécie de envolvimento mental no processo que faz com que o conteúdo de
algo seja algo bem secundário. A própria consciência não postula a consciência
de nada em particular.
Em relação ao jazz, o LP trouxe muitas mudanças, como a do culto do
jazz cool, porque o aumento de duração significava que o jazz band passava a
poder ter, realmente, um longo e improvisado bate-papo entre os seus
instrumentos. Devido a isso, o repertório dos anos 20 reviveu com nova
profundidade e complexidade. Mas o gravador, em combinação com o LP,
revolucionou o repertório da música clássica. Como a fita significou um novo
estudo das linguagens faladas, e não-escritas, ela reuniu toda a cultura musical
de muitos séculos e países. Onde antes havia uma limitada seleção de períodos
e compositores, passou a haver — com o gravador combinado ao LP — um
completo espectro musical, que tomou acessível tanto o século XVI como o XI X,
a canção popular chinesa e a húngara.
Um breve sumário dos eventos tecnológicos relacionados ao fonógrafo
poderia ser assim:
O telégrafo traduziu a escrita em som, fato diretamente relacionado à
origem tanto do telefone como do fonógrafo. Com o telégrafo, os únicos muros
que permaneceram foram os lingüísticos, facilmente superados pela fotografia,
o cinema e a telefoto. A eletrificação da escrita foi um passo quase tão grande
em direção ao espaço não-visual e auditivo quanto os passos que iriam logo dar
o telefone, o rádio e a TV.
Telefone: fala sem paredes.
Fonógrafo: music-hall sem paredes.
Fotografia: museu sem paredes.
Luz elétrica: espaço sem paredes.
Cinema, rádio, TV: sala de aulas sem paredes.
O homem-coletor de comida reaparece incongruentemente como coletor
de informação. Neste seu papel, o homem eletrônico não é menos nômade do
que seus ancestrais paleolíticos.
29. O CI NEMA
O MUNDO REAL DO ROLO
Na I nglaterra, as casas de cinema eram conhecidas originalmente como
“O Bioscópio”, por apresentar visualmente o movimento real das formas da vida
(do grego bios, modo de vida). O cinema, pelo qual enrolamos o mundo real
num carretel para desenrolá-lo como um tapete mágico da fantasia, é um
casamento espetacular da velha tecnologia mecânica com o novo mundo
elétrico. No capítulo dedicado à Roda, contamos a estória de como o cinema
teve uma espécie de origem simbólica nas tentativas de fotografar os cascos
voadores dos cavalos a galope: assestar uma série de câmaras para estudar o
movimento animal não é senão fundir o mecânico e o orgânico de um modo
particular. Curiosamente, no mundo medieval, a idéia da metamorfose dos
seres orgânicos se expressava pela substituição de uma forma estática por
outra, em seqüência. Eles imaginavam a vida de uma flor como uma espécie de
quadrinhos cinematográficos de fases ou essências. O cinema é a consecução
total da idéia medieval da mudança, sob a forma de uma ilusão de
entretenimento. Foi grande a contribuição dos fisiólogos para o
desenvolvimento do filme, tal como aconteceu com o telefone. Na fita, o
mecânico comparece como orgânico e o crescimento de uma flor pode ser
ilustrado tão fácil e livremente como o movimento de um cavalo.
Se o cinema funde o mecânico e o orgânico num mundo de formas
ondulantes, liga-se também à tecnologia da impressão tipográfica. O leitor
como que projeta as palavras, seguindo as seqüências de tomadas em preto e
branco — e que constituem a tipografia — fornecendo sua própria trilha sonora.
Tenta acompanhar os contornos da mente do autor, em velocidades diversas e
com vários graus de ilusões de compreensão. Não há como exagerar a ligação
entre a impressão e o cinema, no que se refere ao poder de ambos em gerar
fantasias no espectador e no leitor. Cervantes dedicou todo o seu Dom Quixote
a esta faculdade da palavra impressa e ao seu poder de criar o que James
Joyce chama, no Finnegans Wake, de “ABCinto da mente” (ausência ou
distração, sentido e sentimento, hipnotismo e condicionamento da mente), ou
seja, o controle alfabético, ou aquilo que é alfabeticamente controlado.
A tarefa do escritor e do cineasta é a de transportar o leitor e o
espectador, respectivamente, de seu próprio mundo para um mundo criado
pela tipografia e pelo filme. Este fato é tão claro e se realiza tão completamente
que os que passam pela experiência aceitam-na subliminarmente e sem
consciência crítica. Cervantes viveu num mundo em que a impressão tipográfica
era tão nova quanto o cinema de nossos dias: para ele, parecia óbvio que a
impressão, como as imagens cinematográficas, usurpava o mundo real. Sob o
feitiço desses meios, o leitor e o espectador se tornaram sonhadores — como
René Clair já o dissera em 1926, a propósito do cinema.
Sendo uma forma de experiência não-verbal, o cinema, como a
fotografia, é uma forma de expressão sem sintaxe. No entanto, como a
impressão e a fotografia, o cinema pressupõe um alto índice de cultura escrita
em seus apreciadores, ao mesmo tempo em que intriga os analfabetos, ou nãoletrados. Nossa aceitação letrada do simples movimento do olho da câmara, em
cujo campo as figuras aparecem e desaparecem de vista, é incompreensível
para uma audiência africana. Se alguém desaparece de algum dos lados do
campo cinematográfico, o africano quer saber o que aconteceu com ele. Uma
audiência letrada, porém, acostumada a acompanhar as imagens impressas,
linha a linha, sem pôr em questão a lógica da linearidade, aceitará a seqüência
fílmica sem protesto.
René Clair observou certa vez que quando duas ou três pessoas se
encontram sobre um palco, o autor ou diretor se vê sempre na contingência de
motivar ou explicar a razão de sua presença ali. Mas o espectador de cinema
como o leitor de livros, aceita a seqüência como coisa racional. A audiência
aceita tudo o que a câmara quer mostrar. Somos transportados para um outro
mundo. Como observou René Clair, a porta branca da tela dá para um harém
de belas visões e sonhos adolescentes, comparada a qual a mais bela anatomia
parece deixar a desejar. Yeats via o cinema como um mundo de ideais
platônicos, o projetor lançando “um manto de espuma sobre o modelo
espectral das coisas”. Este foi o mundo que assombrou Dom Quixote, que o
descobriu através das folhas da porta dos in-folios das narrativas recentemente
impressas.
Segue-se que a íntima relação entre o mundo do rolo fílmico e a
experiência da fantasia pessoal propiciada pela palavra impressa é
indispensável à aceitação da forma cinematográfica, no Ocidente. A própria
indústria cinematográfica considera que seus maiores sucessos derivaram de
romances — o que é perfeitamente razoável. O filme, seja em forma de rolo,
seja em forma de roteiro ou script, está perfeitamente entrelaçado com a forma
do livro. Basta imaginar, por um momento, a possibilidade de um filme baseado
na forma do jornal, para se perceber o quanto o cinema se aproxima do livro.
Teoricamente, não ha razão para não se utilizar a câmara para fotografar
grupos complexos de matérias em configurações datadas, como o faz uma
página de jornal. Em verdade, a poesia, mais do que a prosa, tende a efetuar
esta configuração ou “enfeixamento”. A poesia simbolista tem muito em comum
com a página em mosaico de um jornal, mas são bem poucas as pessoas que
conseguem livrar-se o suficiente do espaço uniforme e em cadeia para poder
apreender um poema simbolista. Já os nativos, que têm muito pouco contato
com a alfabetização e a tipografia linear, têm de aprender a “ler” fotografias ou
filmes, tal como aprendemos nossas primeiras letras. De fato, depois de haver
tentado, durante anos, alfabetizar certas tribos africanas pelo cinema, John
Wilson, do I nstituto Africano da Universidade de Londres, descobriu que era
mais fácil ensiná-los a ler e a escrever como meio de “alfabetizá-los” em
cinema. Mesmo quando os nativos aprendem a ver fotos ou filmes, não podem
aceitar nossas “ilusões” de espaço e tempo. Ao assistir a O Vagabundo, de
Charles Chaplin, a audiência africana chegou à conclusão de que os europeus
eram mágicos capazes de ressuscitar gente: ali se apresentava um tipo que
conseguia sobreviver depois de levar um tremendo golpe na cabeça... sem dar
mostras de ter sido ferido. Quando a câmara se desloca, eles vêem árvores em
movimento e edifícios crescendo ou encolhendo, pois não podem partir da
pressuposição dos povos letrados de que o espaço é contínuo e uniforme. Os
povos não-letrados simplesmente não “entendem” a perspectiva ou efeitos de
distâncias em luz e sombra — coisas que julgamos serem inatas ao
equipamento humano. As pessoas letradas pensam em causa e efeito em
termos seqüenciais, como se uma coisa puxasse a outra por meio de força
física. Os povos não-letrados manifestam bem pouco interesse por esta espécie
de causa e efeito “eficiente”, mas ficam fascinados pelas formas ocultas que
produzem resultados mágicos. Causas internas, mais do que causas externas,
são as que interessam às culturas não-letradas e não-visuais. E esta é a razão
por que o letrado ocidental vê o resto do mundo como que enredado na trama
inconsútil da superstição.
Como o russo oral, o africano não aceita a visão e o som juntos. O
cinema falado marcou o fim da produção cinematográfica russa porque, como
qualquer outra cultura atrasada ou oral, os russos mostram uma necessidade
irresistível de participação, que se frustra quando acrescentamos o som à
imagem. Tanto Pudovkin como Eisenstein combateram o filme sonoro, mas
achavam que se o som fosse utilizado simbólica e contrapuntisticamente — e
não realisticamente — o resultado seria menos nocivo à imagem visual. A
insistência dos africanos na participação grupal, em cantar e gritar durante as
sessões de cinema, sofre a maior frustração com a trilha sonora. Nosso próprio
cinema falado não passava de mera contemplação da embalagem visual
entendida como bem de consumo. No tempo do silencioso, nós mesmos
fornecíamos o som automaticamente, por meio da completação, do fechamento
ou “pregnância”. E quando isto já nos é também fornecido, há menos
participação no trabalho da imagem.
Além disso, descobriu-se que os não-letrados não sabem como manter
os olhos fixos a pouca distância da tela ou de uma foto, como fazem os
ocidentais. Eles movem os olhos sobre a foto ou sobre o filme como o fariam
com as mãos. É este hábito de usar os olhos como mãos, de resto, que torna
os europeus tão sexy às mulheres americanas. Só uma sociedade altamente
letrada e abstrata aprende a fixar os olhos, tal como aprendemos a fazer ao ler
uma página impressa. A perspectiva só pode existir para os que fixam os olhos.
Na arte nativa, há muita sutileza e sinestesia — mas não há perspectiva. É
errônea a velha crença de que todo mundo vê em perspectiva e que apenas os
pintores do Renascimento haviam aprendido a pintá-la. Nossa primeira geração
da TV vai rapidamente perdendo este hábito de perspectiva visual enquanto
modalidade sensória; com esta mudança, surge um novo interesse pelas
palavras — não como visualmente uniformes e contínuas, mas como mundos
singulares em profundidade. Daí a mania por trocadilhos e piadas, mesmo em
anúncios “sérios”.
Comparado a outros meios, como a página impressa, o filme tem o
poder de armazenar e transmitir uma grande quantidade de informação. Numa
só tomada, apresenta uma cena de paisagem com figuras que exigiriam
diversas páginas em prosa para ser descritas. Na seqüência imediata, e nas
seguintes, a cena pode repetir-se, propiciando novos pormenores em bloco, ou
gestalt. Assim como a fotografia impeliu o pintor na direção da arte abstrata,
escultórica, assim o cinema levou o escritor à economia verbal e ao simbolismo
em profundidade, onde o filme não pode fazer-lhe concorrência.
Uma outra faceta da quantidade de dados que um filme pode fornecer
numa única tomada é exemplificada por filmes históricos, tais como Henrique V
ou Ricardo I I I . A pesquisa em profundidade levou à confecção de cenários e
figurinos que qualquer garoto de seis anos pode apreciar de modo tão direto e
imediato quanto um adulto. T. S. Eliot relatou que, na produção
cinematográfica baseada em seu Crime na Catedral, tomou-se necessária não
só a confecção de figurinos da época, como estes tiveram que ser
confeccionados segundo as técnicas empregadas no século XI I — tão grande é
a precisão e a tirania do olho cinematográfico. Hollywood produziu muita ilusão
falsa, mas também réplicas autênticas e eruditas de muitas cenas do passado.
O palco e a TV só podem fazê-lo em aproximações grosseiras, porque
apresentam uma imagem de baixa definição que refoge à análise detalhada.
No início, contudo, foi o realismo minucioso de escritores como Dickens
que inspirou certos pioneiros do cinema, como D. W. Griffiths, que costumava
levar um exemplar de um romance de Dickens nas filmagens de exteriores.
Surgido da forma jornalística da apresentação em corte da comunidade, e das
coberturas de interesse humano, do século XVI I I , o romance realista foi uma
antecipação perfeita da forma fílmica. Mesmo os poetas passaram a dedicar-se
ao mesmo estilo panorâmico, com variantes de vinhetas e primeiros-planos de
interesse humano. Elegy, de Gray; The Cotter’s Saturday Night, de Burns;
Michael, de Wordsworth, e o Childe Harold, de Byron, são como roteiros de
tomadas de cena para um filme documentário da época.
“Foi a chaleira que começou.. .“. Assim começa O Grilo e a Lareira, de
Dickens. Se o romance moderno nasce com O Capote, de Gogol — diz
Eisenstein — o cinema saiu fervendo daquela chaleira. Deveria ser fácil
entender por que a abordagem americana e mesmo, a inglês, à arte do cinema,
parece ressentir-se da falta daquele livre interjogo entre os sentidos e os meios,
tão naturais em Eisenstein ou René Clair. I sto porque para os russos, em
especial, é fácil a abordagem estrutural, vale dizer, escultórica, de uma
situação. Para Eisenstein, o fato dominante do cinema é o de ele ser um “ato
de justaposição”. Mas para uma cultura que atingiu o extremo do
condicionamento tipográfico, a justaposição só pode referir-se a traços e
qualidades uniformes e encadeados. Não deve haver saltos do espaço
específico do bule de chá para o espaço específico do gatinho ou da botina. Se
estes objetos aparecem, devem ser nivelados por alguma narrativa contínua, ou
“contidos” por algum espaço pictórico uniforme. Tudo o que Salvador Dali
precisou fazer para provocar furor e celeuma foi apresentar uma cômoda com
gavetas ou um piano de cauda em seu próprio espaço mas em convívio com
um fundo alpino ou saariano. Basta libertar os objetos do espaço tipográfico,
continuo e uniforme, para que tenhamos a arte e a poesia modernas. Podemos
medir a pressão psíquica da tipografia pela grita e o clamor gerados por aquela
libertação. Para a maior parte das pessoas, a imagem de seu próprio ego
parece ter sido condicionada tipograficamente: promovendo a volta à
experiência inclusive, a era da eletricidade ameaça a sua idéia do eu. Estas são
as pessoas partidas, cuja labuta especializada transforma em pesadelo a
simples possibilidade de uma segurança no lazer ou no trabalho. A
simultaneidade elétrica acaba com a atividade e com o aprendizado
especializado, passando a exigir inter-relações em profundidade, mesmo ao
nível da personalidade.
A questão dos filmes de Charles Chaplin ajuda a iluminar este problema.
Tempos Modernos foi realizado como sátira ao caráter de fragmentação das
tarefas modernas. Como palhaço, Chaplin apresenta o feito acrobático numa
mímica de elaborada incompetência, pois toda tarefa especializada deixa de
fora a maior parte de nossas faculdades. O palhaço nos lembra nosso estado
fragmentário, ao realizar tarefas acrobáticas ou especializadas dentro do
espírito do homem total ou integral. Esta é a fórmula da incompetência
indefesa ou impotente. Na rua, em situações sociais ou tia linha de montagem,
o trabalhador continua, como que compulsivamente, a apertar parafusos com
uma chave inglesa imaginária. A mímica deste e de outros filmes de Chaplin é,
precisamente, a mímica do robô, do boneco mecânico cujo pathos profundo é o
aproximar-se tão intimamente da condição da vida humana. Em toda a sua
obra, Chaplin fez um balé de marionetes do tipo Cyrano de Bergerac. Chaplin
(devoto do balé e amigo pessoal de Pavlova), para captar este pathos da
marionete adotou desde o início a posição dos pés do balé clássico. Assim podia
ter a aura do Espectro da Rosa bruxuleando em torno de sua figura de palhaço.
Com um seguro toque de gênio, absorveu dos teatros musicais ingleses, onde
começou certas imagens como a de Mr. Charles Pooter, um joão-ninguém que
impressionava. Revestiu esta imagem de cavalheiro-mendigo com um
envoltório de conto de fadas romântico, graças à adoção das posturas do balé
clássico. A nova forma do cinema adaptava-se perfeitamente a esta imagem
compósita, pois o próprio filme não é senão um balé mecânico de movimentos
rápidos que produz um mundo de sonhos e de ilusões românticas. Mas a forma
fílmica não é apenas uma dança de marionetes de tomadas paradas. pois
consegue aproximar-se e, mesmo, superar a vida real por meio da ilusão. Esta
é a razão por que Chaplin, pelo menos em seus filmes mudos, nunca se sentiu
tentado a abandonar seu papel ciranesco de boneco incapaz de ser um amante
verdadeiro. Neste estereótipo, Chaplin descobriu o cerne da ilusão do cinema,
manipulando com desenvolta mestria esta chave do pathos da civilização
mecânica. O mundo mecânico está sempre em processo de preparar-se para a
vida; para tanto, produz o mais espantoso aparato de habilidades, métodos e
recursos.
O cinema levou este mecanismo ao seu ápice mecânico — e mesmo
além, ao produzir um surrealismo de sonhos que o dinheiro pode comprar.
Nada é mais afim da forma fílmica do que este pathos de superabundância e
poder, dote de uma boneca que nunca poderá se transformar em realidade.
Esta é a chave para O Grande Gatsby. cujo momento da verdade é aquela cena
em que Daisy se sente arrasada ao contemplar a magnífica coleção de camisas
de Gatsby. Daisy e Gatsby vivem num mundo de ouropéis, corrompido pelo
poder, mas, ao mesmo tempo, inocentemente pastoral em seu sonhar.
O cinema não é apenas a suprema expressão do mecanismo;
paradoxalmente, oferece como produto o mais mágico de todos os bens de
consumo, a saber: sonhos. Não é por acaso que o cinema se caracterizou como
o meio que oferece, aos pobres, papéis de riqueza e poder que superam os
sonhos de avareza. No capítulo dedicado à Fotografia, mostramos como a
fotografia da imprensa, em especial, desencorajou os milionários de trilharem o
caminho do consumo conspícuo. A vida de ostentação que a fotografia tirou dos
ricos, deu-a o cinema aos pobres com mão generosa:
Sou feliz, um felizardo:
Possa viver à larga,
Pois tenho um punhado de sonhos.
Não estavam errados os tycoons de Hollywood quando se apoiavam na
pressuposição de que o cinema dava ao imigrante americano um meio de autorealização a curto prazo. Esta estratégia, por deplorável que seja à luz do “bem
ideal absoluto”, estava perfeitamente de acordo com a forma do cinema.
Graças a ela, na década de 20, o modo de vida americano foi exportado para
todo o mundo, enlatado. O mundo logo se dispôs a comprar sonhos enlatados.
O cinema não apenas acompanhou a primeira grande era do consumo, como
incentivou-o, propagou-o, transformando-se, ele mesmo, num dos mais
importantes bens de consumo. Em termos do estudo dos meios, torna-se
patente que o poder do cinema em armazenar informação sob forma acessível
não sofre concorrência. A fita gravada e o video-tape viriam a superar o filme
como armazenamento de informação, mas o filme continua a ser uma fonte
informacional de primeira grandeza, um rival do livro que tanto fez para
alcançar e, mesmo, ultrapassar. Nos dias atuais, o cinema como que ainda está
em sua fase manuscrita; sob a pressão da TV, logo mais, atingirá a fase portátil
e acessível do livro impresso. Todo mundo poderá ter seu pequeno projetor
barato, para cartuchos sonorizados de 8 mm. cujos filmes serão projetados
como num vídeo. Este tipo de desenvolvi. mento faz parte de nossa atual
implosão tecnológica. A dissociação do projetor e da tela é um vestígio do
nosso velho mundo mecânico da explosão e da separação de funções, ora em
fase de desaparecimento ante a ação da tecnologia elétrica.
O homem tipográfico adaptou-se logo ao cinema, porque o filme, como o
livro, oferece um mundo interior de fantasia e sonho. O espectador de cinema
senta-se em solidão psicológica como o leitor de livros. I sto não aconteceria
com o leitor de manuscritos, nem acontece com o telespectador. Não é
agradável ligar a TV quando se está sozinho num quarto de hotel ou mesmo
em casa. A imagem em mosaico da TV solicita complementação social e
diálogo. Assim também o manuscrito, antes da fotografia pois a cultura do
manuscrito é oral e solicita o diálogo e o debate. como o demonstra toda a
cultura do mundo antigo e medieval. Uma das maiores pressões da TV é no
sentido de encorajar as "máquinas de ensinar”. De fato, estes dispositivos
constituem adaptações do livro na direção do diálogo. As máquinas de ensinar
são, na verdade, preceptores particulares; o nome errado que lhe deram, com
base no mesmo princípio que gerou os nomes “sem fio” e “carruagem sem
cavalos”, serve de mais um exemplo na longa lista que ilustra como toda
inovação deve passar por uma primeira fase em que o novo efeito é
encampado pelo velho método, ampliado ou modificado por uma nova
característica.
O cinema não é um meio simples, como a canção ou a palavra escrita,
mas uma forma de arte coletiva, onde indivíduos diversos orientam a cor, a
iluminação, o som, a interpretação e a fala. A imprensa, o rádio, a TV e as
estórias em quadrinho também são formas de arte que dependem de equipes
completas e de hierarquias de capacidade empenhadas em ação corporada.
Antes do cinema o exemplo mais claro dessa ação artística corporada pode ser
colhido nos primórdios da industrialização: é a grande orquestra sinfônica do
século XI X. Paradoxalmente, à medida que seguia um curso cada vez mais
fragmentado e especializado a indústria passava a exigir, mais e mais, o
trabalho em equipe tanto nas vendas como nos fornecimentos. A orquestra
sinfônica tornou-se uma expressão maiúscula da força que derivou de um tal
esforço coordenado, embora este efeito não se manifestasse para os próprios
instrumentistas — na sinfônica ou na indústria.
Recentemente, os editores de revistas introduziram técnicas de roteiro
cinematográfico na elaboração de matérias temáticas — e estas matérias de
temas superaram os contos e estórias. Neste sentido, o filme rivaliza com o
livro (em troca, a TV rivaliza com a revista, dado o seu poder-em-mosaico). Os
temas ou idéias, apresentados como uma seqüência de tomadas ou situações
filmadas acabaram por expulsar o conto do campo das revistas.
Hollywood combateu a TV para tornar-se uma subsidiária da TV. A maior
parte da indústria cinematográfica agora se dedica a atender aos programas da
TV. Tentou-se uma nova estratégia — a superprodução. O fato é que o
Technicolor é a coisa mais próxima do efeito da imagem da TV que o cinema
consegue obter. O Technicolor rebaixa bastante a intensidade fotográfica,
criando, em parte, as condições visuais para um acompanhamento participante.
Se Hollywood tivesse compreendido as razões do sucesso de Marty, a TV nos
teria dado uma revolução cinematográfica. Marty era um show de televisão
transposto para a tela sob a forma de realismo visual de baixa definição ou
baixa intensidade. Não era uma estória de sucesso, nem tinha astros ou
estrelas, pois a imagem de baixa intensidade da TV é incompatível com a alta
intensidade da imagem do estrelismo. Marty, que mais parecia um filme mudo
dos primeiros tempos ou um velho filme russo, oferecia à indústria do cinema
todas as pistas de que ela necessitava para enfrentar o desafio da TV.
Esta espécie de realismo frio e improvisado logo deu superioridade aos
novos filmes ingleses. Room at the Top (“Almas em Leilão”) apresenta o novo
realismo frio. Não só é uma estória de sucesso, como ainda anuncia o fim da
embalagem-Cinderela, assim como Marylin Monroe foi o fim do sistema do
estrelismo. A estória de Room at The Top: quanto mais a gente sobe, mais a
bunda fica à mostra. Moral da estória: o sucesso não só e mau como constitui a
fórmula para a miséria. É muito duro para um meio quente como o cinema
aceitar a mensagem fria da TV. Mas os filmes de Peter Sellers, I 'm All Right,
Jack e Only Two Can Play estão perfeitamente sintonizados com as novas
inclinações criadas pela imagem fria da TV. Da mesma forma se explica o
sucesso ambíguo de Lolita. Como romance sua aceitação anunciou a
abordagem anti-heróica ao lirismo. A indústria do cinema sempre trilhara a
estrada real do lirismo e das estórias de amor, pari passu com a estória de
sucesso. Lolita vinha anunciar que, afinal, essa estrada real não passava de
uma trilha de vacas; quanto ao sucesso, é coisa que a gente não deseja nem
para um cachorro.
No mundo antigo e nos tempos medievais, as estórias mais populares
eram as que tratavam da Queda dos Príncipes. Com o advento do meio
ultraquente da impressão tipográfica, a preferência mudou em ritmo crescente
para contos de sucesso e de rápida ascensão na vida. Era como se tudo se
tivesse tomado possível graças ao novo método tipográfico da segmentação
minuciosa e uniforme dos problemas. O cinema viria surgir com base nesse
mesmo método. Enquanto forma, o filme era a concretização final do grande
potencial contido na fragmentação tipográfica Mas agora a implosão elétrica
reverteu o processo todo da expansão por fragmentação. A eletricidade trouxe
de volta o mundo da implosão, frio e em mosaico, do equilíbrio e da estase. Em
nossa era elétrica, a explosão unidirecional do indivíduo frenético que quer
subir na vida agora nos parece mais com a imagem horrenda de vidas
espezinhadas e de harmonias desfeitas. Não é outra a imagem subliminar de
mosaico da TV com o seu campo total de impulsos simultâneos. A fita e a
seqüência nada podem fazer senão inclinarem-se ante esta força superior. Os
jovens tomaram a imagem da TV a peito, em sua rejeição beatnik dos
costumes consumistas e das estórias de sucessos pessoais.
Como o melhor modo de se chegar ao cerne de uma forma é estudar
seus efeitos num ambiente pouco familiar, vejamos o que o Presidente
Sukarno, da I ndonésia, anunciou, em 1956, a um grande grupo de executivos
de Hollywood. Disse que os considerava políticos radicais e revolucionários, que
muito haviam contribuído para as mudanças políticas no Oriente. O que o
Oriente via no cinema de Hollywood era um mundo em que todas as pessoas
comuns possuíam carros, aquecedores e refrigeradores. E o homem oriental
agora se considera uma pessoa comum à qual se sonegaram os direitos do
homem comum.
Este não é senão um modo de ver o meio do cinema como um anúnciomonstro de bens de consumo. Na América, este aspecto fundamental do
cinema é meramente subliminar. Longe de olharmos nossos filmes como
incentivos à agressão e à revolução, nós os temos por lenitivos e compensações
ou como uma forma de pagamento adiado aos sonhos que sonhamos
acordados. Nesta questão, o homem oriental está com a razão e nós estamos
errados. De fato, o cinema é o braço poderoso do gigante industrial. Que ele
esteja sendo amputado pela imagem da TV não indica senão que uma
revolução de maior envergadura ainda está ocorrendo no coração da vida
americana. É mais do que natural que o velho Oriente sinta o lado político e o
desafio industrial de nossa indústria cinematográfica. Como o alfabeto e a
palavra impressa, o cinema é uma forma agressiva e imperiosa que explode em
direção a outras culturas. Sua força explosiva era significativamente maior no
tempo do silencioso do que no do sonoro, pois a trilha sonora eletromagnética
já prenuncia a substituição da explosão mecânica pela implosão elétrica. Ao
contrário dos filmes falados, os filmes silenciosos não criavam barreiras
lingüísticas e eram imediatamente aceitos. O rádio juntou-se ao filme para nos
dar o cinema falado e para nos conduzir até a reversão do curso atual, quando
a implosão ou reintegração começa a suceder à era mecânica da explosão e da
expansão. A forma extrema desta implosão ou contração é a imagem do
astronauta trancado em seu espaçozinho capsular envolvente. Longe de
expandir nosso mundo, ele anuncia a sua contração a proporções de aldeia. O
foguete e a cápsula espacial estio acabando com, a lei da roda e da máquina,
tal como, de resto, os serviços telegráficos, o rádio e a TV.
Podemos agora deter-nos num aspecto conclusivo da influência do
cinema. Na literatura moderna, provavelmente não há técnica mais celebrada
do que o fluxo da consciência ou monólogo interior. Em Proust, Joyce ou Eliot,
esta forma de seqüência permite ao leitor uma extraordinária identificação com
personalidades de todos os tipos e espécies. O fluxo de consciência se
manifesta, de fato, pela transferência da técnica cinematográfica para a página
impressa, onde, em sentido profundo, ele realmente se originou pois, como
vimos, a tecnologia dos tipos móveis de Gutenberg é indispensável a qualquer
processo industrial ou cinematográfico. O cálculo infinitesimal finge tratar do
movimento e da mudança por meio de uma fragmentação acentuada, o cinema
realiza o movimento e a mudança por meio de uma série de tomadas estáticas.
O mesmo faz a tipografia, pretendendo e fingindo tratar de todo o processo
mental em ação. Mas tanto o filme como o fluxo de consciência pareciam
propiciar uma profunda e desejada libertação do mundo mecânico, com sua
crescente padronização e uniformidade. Ninguém nunca se sentiu oprimido pela
monotonia ou uniformidade do balé de Chaplin ou pelos monótonos e
uniformes devaneios de seu irmão gêmeo literário, Leopold Bloom.
Em 1911, Henri Bergson, em sua Evolução Criativa, causou sensação ao
associar o processo mental com a forma do cinema. No ponto extremo da
mecanização, representado pela fábrica, pelo filme e pela imprensa, os homens
pareciam livres para ingressar num mundo de espontaneidade, de sonhos e de
singulares experiências pessoais graças ao fluxo de consciência, ou cinema
interior. Dickens talvez tenha sido o inicio de tudo, com o seu Mr. Jingle, de
Pickwick Papers. Já em David Copperfield ele fizera uma grande descoberta
técnica, pois ali, pela primeira vez, o mundo se desdobra realisticamente aos
olhos-câmara de uma criança que amadurece. Aqui talvez esteja o fluxo de
consciência em sua forma original, antes de ser adotado por Proust, Joyce e
Eliot. I sto indica como a experiência humana pode enriquecer-se
inesperadamente pelo cruzamento e entrelaçamento da vida das formas dos
meios.
Os filmes importados, especialmente os dos Estados Unidos, são muito
populares na Tailândia, graças, em parte, à hábil técnica Thai de contornar o
obstáculo das línguas estrangeiras. Em Bangkok, em lugar dos letreiros, eles
utilizam o que é chamado de "AdamEvisão”, técnica que toma a forma de um
diálogo em Thai, ao vivo, lido através de um alto-falante por atores escondidos
na platéia. Uma sincronização de micro-segundos e uma grande resistência
permitem a estes atores exigir mais do que os mais bem pagos astros e estrelas
de cinema da Tailândia.
Muita gente, alguma vez na vida, terá desejado possuir um equipamento
que fornecesse o seu próprio sistema sonoro durante uma sessão de cinema,
para poder fazer comentários. Na Tailândia pode-se atingir grandes níveis de
interpolação interpretativa durante os diálogos supérfluos dos grandes astros e
estrelas.
30. RÁDI O
O TAMBOR TRI BAL
A I nglaterra e a América opuseram certas resistências ao rádio,
longamente expostas que estavam à cultura letrada e ao industrialismo. Estas
formas implicam numa intensa organização visual da experiência. As culturas
européias. mais terra-a-terra e menos visuais, não ficaram imunes ao rádio. A
magia tribal ainda não havia desaparecido nelas e a antiga trama do parentesco
voltou a ressoar de novo com as notas do fascismo. A inabilidade dos povos
letrados em apreender a linguagem e a mensagem dos meios como tais
ressalta involuntariamente dos comentários do sociólogo Paul Lazarsfeld, ao
discutir os efeitos do rádio:
O último grupo de efeitos pode ser chamado de efeito monopolístico do
rádio. Eles atraíram a atenção do público, na maior parte dos casos, devido à
importância que adquiriram nos países totalitários. Monopolizando o rádio, o
governo pode orientar as opiniões da população, pela simples repetição e pela
exclusão dos pontos de vista conflitantes. Não sabemos muito sobre como
opera realmente este efeito monopolístico, mas é importante notar a sua
singularidade. Nada se pode inferir sobre os efeitos do rádio como tal. Esquecese muitas vezes de que Hitler não obteve o controle da situação através do
rádio, mas antes a despeito do rádio, pois na época de sua ascensão ao poder
o rádio era controlado por seus inimigos. Os efeitos monopolísticos
provavelmente têm menos importância social do que é geralmente admitido.
O total desconhecimento do Professor Lazarsfeld em relação à natureza
e aos efeitos do rádio não é um mero defeito pessoal, mas uma incapacidade
que se manifesta universalmente.
Num discurso pronunciado no rádio de Munique, em 14-3-1936, Hitler
declarou: “Sigo o meu caminho com a segurança de um sonâmbulo” Suas
vítimas e seus críticos também apresentavam sintomas sonambúlicos.
Dançavam como que em transe, ao som do tambor tribal do rádio, que
produzia a extensão de seu sistema nervoso central para criar um envolvimento
em profundidade que atingia a todos. “Quando ouço rádio, parece que vivo
dentro dele. Eu me abandono mais facilmente ao ouvir rádio do que ao ler um
livro” — declarou uma pessoa consultada, por ocasião de uma pesquisa de
opinião sobre o rádio. O poder que tem o rádio de envolver as pessoas em
profundidade se manifesta no uso que os adolescentes fazem do aparelho de
rádio, durante seus trabalhos de casa, bem como as pessoas que levam consigo
seus transístores, que lhes propiciam um mundo particular próprio em meio às
multidões. Um pequeno poema do dramaturgo alemão Brecht diz:
Pequena caixinha que carreguei quando em fuga
Para que suas válvulas não pifassem,
Que levei de casa para o navio e o trem
Para que os meus inimigos continuassem a falar-me
Perto de minha cama, e para a minha angústia,
As últimas palavras da noite e as primeiras da manhã
Sobre suas vitórias e sobre meus problemas
— Prometa-me não ficar muda de repente.
Um dos muitos efeitos da televisão sobre o rádio foi o de transformá-lo
de um meio de entretenimento numa espécie de sistema nervoso da
informação. Notícias, hora certa, informações sobre o tráfego e, acima de tudo,
informações sobre o tempo agora servem para enfatizar o poder nativo do rádio
de envolver as pessoas umas com as outras. O tempo é um meio que envolve
todas as pessoas por igual. As variações do tempo constituem o tópico principal
do rádio, banhando-nos em fontes de espaço auditivo — ou lebensraum.
Que o Senador McCarthy tenha durado tão pouco tempo, assim que
passou do rádio para a TV, não foi coisa acidental. A imprensa logo decidiu:
"Ele não é mais notícia." Nem McCarthy, nem a imprensa souberam exatamente
o que acontecera. A TV é um meio frio. Ela rejeita as personalidades, os
assuntos e as pessoas quentes do meio quente da imprensa. Fred Allen foi uma
vítima da TV. E Marylin Monroe? Se a TV já existisse em índice ponderável
durante o reinado de Hitler, ele teria desaparecido logo. E se a TV tivesse
surgido antes, não teria havido Hitler. Quando Kruschev apareceu na TV
americana, foi mais aceito do que Nixon, dado o seu tipo de garotão amável e
cômico. Na TV, sua figura se transformava numa charge. Mas o rádio é um
meio quente e leva a sério as figuras das caricaturas. No rádio, o Sr. K. teria
causado impressão bem diversa.
Os que ouviram os debates Kennedy-Nixon pelo rádio ficaram com a
idéia da esmagadora superioridade de Nixon sobre seu opositor. Foi fatal a
Nixon apresentar uma imagem e uma atividade bem definidas, de alta
definição, através de um meio frio como a TV, que traduziu aquela imagem
numa impressão de coisa falsa, “fajuta”. Para mim, “fajuto” se refere a algo que
não soa bem, a algo que não soa como verdade. F. D. R. talvez não se tivesse
dado bem com a TV. Mas pelo menos aprendeu como usar o meio quente do
rádio para a sua fria conversa ao pé do fogo. Primeiro, porém, ele tinha de
aquecer o meio da imprensa contra si próprio, a fim de criar a atmosfera
apropriada aos seus bate-papos. Aprendeu como usar a imprensa em íntima
relação com o rádio. A TV o colocaria diante de um complexo de problemas
políticos e sociais inteiramente diferente. É possível que teria tido prazer em
resolvê-los, pois era capaz daquela espécie de abordagem brincalhona
necessária à compreensão de relações novas e obscuras.
O rádio afeta as pessoas, digamos, como que pessoal-mente, oferecendo
um mundo de comunicação não expressa entre o escritor-locutor e o ouvinte.
Este é o aspecto mais imediato do rádio. Uma experiência particular. As
profundidades subliminares do rádio estão carregadas daqueles ecos ressoantes
das trombetas tribais e dos tambores antigos. I sto é inerente à própria natureza
deste meio, com seu poder de transformar a psique e a sociedade numa única
câmara de eco. A dimensão ressonadora do rádio tem passado despercebida
aos roteiristas e redatores, com poucas exceções. A famosa emissão de Orson
Welles sobre a invasão marciana não passou de uma pequena mostra do
escopo todo-inclusivo e todo-envolvente da imagem auditiva do rádio. Foi Hitler
quem deu ao rádio o real tratamento wellesiano.
Hitler só teve existência política graças ao rádio e aos sistemas de dirigirse ao público. I sto não significa que estes meios tenham retransmitido de fato
seus pensamentos ao povo alemão. Seus pensamentos eram de curto alcance.
O rádio propiciou a primeira experiência maciça de implosão eletrônica, a
reversão da direção e do sentido da civilização ocidental letrada. Para os povos
tribais, para aqueles cuja existência social constitui uma extensão da vida
familiar, o rádio continuará a ser uma experiência violenta. As sociedades
altamente letradas, que há muito subordinaram a vida familiar à ênfase
individualista nos negócios e na política, têm conseguido absorver e neutralizar
a implosão do rádio sem revolução. Mas o mesmo não acontece com as
comunidades que ainda não possuem senão uma breve e superficial experiência
de cultura letrada. Para estes, o rádio é absolutamente explosivo.
Para entender estes efeitos, é necessário ver a alfabetização como
tecnologia tipográfica, aplicada não só à racionalização dos processos de
produção e de exploração do mercado, como também às leis, à educação e ao
urbanismo. Na I nglaterra e na América, os princípios de uniformidade,
continuidade e repetibilidade derivados da tecnologia da impressão tipográfica
há muito que já penetraram em todas as camadas da vida comunal. Naqueles
países, a criança se alfabetiza vendo o tráfego e a rua, o carro, o brinquedo e a
roupa. Aprender a ler e a escrever é um aspecto secundário da cultura letrada
no ambiente uniforme e contínuo do mundo de fala inglesa. A ênfase na cultura
letrada é um traço distintivo das áreas que lutam por iniciar-se no processo de
padronização que conduz à organização visual do trabalho e do espaço. Sem a
transformação psíquica da vida interior em termos visuais segmentados pela
cultura letrada, não pode haver o deslanche (take-off) econômico que assegura
o movimento contínuo da constante aceleração.
Pouco antes de 1914, os alemães estavam obsecados pela ameaça do
“cerco”. Seus vizinhos haviam desenvolvido elaborados sistemas ferroviários
que facilitavam a mobilização dos recursos de mão-de-obra. O cerco é imagem
visual e constituía uma grande novidade para aquela nação recentemente
industrializada. Nos anos 30, a obsessão germânica já era o lebensraum, o
espaço vital. Esta já não é uma questão visual. É claustrofobia, gerada pela
implosão do rádio e a compressão do espaço. A derrota dos alemães na
Primeira Guerra apartou-os de novo da obsessão visual, levando-os a acalentar
a África que ressoava dentro deles. O passado tribal nunca deixou de ser uma
realidade para a psique germânica.
O fácil acesso que alemães e povos da Europa Central sempre tiveram às
fontes não-visuais das formas auditivas e táteis permitiu-lhes enriquecer o
mundo da Música, da dança e da Escultura. Mais do que tudo, seu modo tribal
lhes deu fácil acesso ao novo mundo não visual da física subatômica, onde as
sociedades há muito letradas e industrializadas sofrem visível desvantagem. As
ricas áreas de vitalidade pré-letrada logo sentiram o impacto quente do rádio. A
mensagem do rádio é uma mensagem de ressonância e de implosão unificada e
violenta. Para a África, a Í ndia, a China e, mesmo, a Rússia, o rádio é uma
força profundamente arcaica, um liame temporal com o passado mais
longínquo e a experiência há muito soterrada na memória.
Numa palavra, a tradição é o sentido do passado total enquanto agora.
Seu ressurgir é um estado natural do impacto do rádio e da informação elétrica,
em geral. Para uma população intensamente letrada, no entanto, o rádio
engendra um profundo sentimento de culpa que não se consegue localizar e
que às vezes se exprime na atitude do companheiro de jornada (simpatizante
político). Um envolvimento humano recentemente descoberto gera ansiedade,
insegurança e imprevisibilidade. Como a cultura letrada incentivou um
individualismo extremo e o rádio atuou num sentido exatamente inverso, ao
fazer reviver a experiência ancestral das tramas do parentesco do profundo
envolvimento tribal, o Ocidente letrado procurou encontrar uma espécie de
compromisso com a responsabilidade coletiva, em sentido amplo. O impulso
subitâneo para este fim foi tão subliminar e obscuro quanto a prévia pressão
literária em prol da irresponsabilidade e do isolamento individual; em
conseqüência, ninguém se sentiu satisfeito com nenhuma das posições
alcançadas. A tecnologia de Gutenberg produzira uma nova espécie de entidade
nacional visual, no século XVI , e que gradualmente se mesclou à produção e à
expansão industrial. O telégrafo e o rádio neutralizaram o nacionalismo, mas
fizeram reaparecer arcaicos fantasmas tribais de tremendo poder. Este é
precisamente o encontro do olho com o ouvido, de explosão e implosão, ou,
como disse Joyce em seu Wake, “Naquele orelhopeu o fim vai para I ndo”. A
abertura do ouvido europeu acabou com a sociedade aberta, reapresentando o
mundo Í ndico do homem tribal à mulher da Zona Oeste (West End). Joyce o diz
mais de forma dramática e mimética do que críptica. Basta que o leitor apanhe
uma frase como esta e a arremede em mímica até que ela se torne inteligível.
Não é um processo longo ou tedioso — se abordado com aquele espírito de
jocosidade artística, que assegura "montes de diversões no despertar de
Finnegan”.
O rádio possui o seu manto de invisibilidade, como qualquer outro meio.
Manifesta-se a nós ostensivamente numa franqueza íntima e particular de
pessoa a pessoa, embora seja, real e primeiramente, uma câmara de eco
subliminar cujo poder mágico fere cordas remotas e esquecidas. Todas as
extensões tecnológicas de nós mesmos são subliminares, entorpecem; de outra
forma, não suportaríamos a ação que uma tal extensão exerce sobre nós. Mais
do que o telégrafo e o telefone, o rádio é uma extensão do sistema nervoso
central, só igualada pela própria fala humana. Não é digno de meditação que o
rádio sintonize tão bem com aquela primitiva extensão de nosso sistema
nervoso central, aquele meio de massas aborígine — que é a língua vernácula?
O cruzamento destas duas e poderosas tecnologias humanas não poderia
deixar de fornecer algumas formas extraordinariamente novas à experiência
humana. I sto ficou provado com Hitler, o sonâmbulo. Mas pode o destribalizado
e letrado homem ocidental imaginar que ganhou imunidade permanente à
magia tribal do rádio? Nossos adolescentes dos anos 50 começaram a exibir
alguns dos estigmas tribais. O adolescente, enquanto oposto ao jovem hoje
pode ser entendido como um fenômeno da cultura letrada. Não é significativo
que o adolescente só se tenha manifestado como fenômeno nativo naquelas
áreas da I nglaterra e da América onde a cultura letrada revestira até os
alimentos com valores abstratos e visuais? A Europa nunca teve adolescentes.
Teve damas de companhia. Hoje, o rádio propicia intimidade ao jovem,
juntamente com os estreitos laços tribais do mundo do mercado comum, da
canção e da ressonância. Comparando ao olho neutro, o ouvido é hiperestésico.
O ouvido é intolerante, fechado e exclusivo, enquanto que o olho é aberto,
neutro e associativo. As idéias de tolerância só começaram a aparecer no
Ocidente depois de dois ou três séculos de cultura letrada e visual
gutenberguiana. Até 1930, ainda não se dera na Alemanha uma tal saturação
de valores visuais. E a Rússia ainda está longe de se ver envolvida com ordem
e com valores visuais.
Se sentamos e conversamos no escuro, as palavras de repente adquirem
novos significados e texturas diferentes. Tornam-se mais ricas até do que a
Arquitetura, que, segundo Le Corbusier, é melhor sentida à noite. Todas as
qualidades gestuais que a página impressa elimina da linguagem retornam à
linguagem no escuro — e no rádio. Quando se oferece apenas o som de uma
peça teatral, nós a preenchemos com todos os sentidos e não apenas com a
visão da ação. Este faça-você-mesmo, esta completação ou “fechamento” da
ação desenvolve no jovem uma espécie de isolamento independente que o
torna remoto e inacessível. A tela mística e sonora com que se revestem,
ouvindo seus rádios, fornece intimidade para seu trabalho caseiro e imunidade
em relação às ordens paternas.
Com o rádio, grandes mudanças ocorreram na imprensa, na publicidade,
no teatro e na poesia. O rádio propiciou um novo âmbito para piadas e
gozações, como as de Morton Downey, na CBS. Um cronista esportivo mal
começara a ler sua crônica de 15 minutos, quando chegou o Sr. Downey e
começou a despi-lo, a começar pelos sapatos e meias, seguindo-se o paletó, as
calças e a roupa de baixo. Sem poder fazer nada, o cronista continuou a sua
irradiação, o que não deixa de constituir uma prova da força imperativa do
microfone, que fez prevalecer a lealdade sobre a modéstia e sobre o instinto de
defesa.
O rádio criou o disk-jockey e promoveu o escritor de piadas a um papel
de importância nacional. Com o advento do rádio, a gag, o caco, superou a
simples anedota, não por obra dos escritores de gags, mas porque o rádio é um
meio quente e rápido que racionou o espaço de que dispunha o repórter para
contar estorietas.
Jean Shepherd, da cadeia WOR, de Nova I orque, considera o rádio como
um novo meio para uma nova espécie de novela — que ele escreve à- noite. O
microfone é a sua pena e o seu papel. Sua audiência e o conhecimento que
tem dos acontecimentos diários do mundo lhe fornecem as personagens, as
cenas e o clima. Ele acha que, assim como Montaigne foi o primeiro a usar a
página para registrar suas reações ante o novo mundo dos livros impressos, ele
é o primeiro a usar o rádio como forma de ensaio e de romance destinados a
registrar a consciência comum de um mundo totalmente novo, um mundo de
universal participação humana em todos os acontecimentos humanos,
particulares ou coletivos.
É difícil explicar, ao estudante dos meios, a indiferença humana aos
efeitos sociais dessas forças radicais. O alfabeto fonético e a palavra impressa
que em sua explosão liquidaram o mundo tribal em benefício da sociedade
aberta de funções fragmentadas e de ações e conhecimentos especializados,
nunca foram estudados em seus papéis de transformadores mágicos. A força
elétrica, antitética, da informação instantânea, que reverte a explosão social em
implosão, a empresa particular em homem de organização e impérios em
expansão em mercados comuns, tem sido tão pouco considerada quanto a
palavra escrita. Passou despercebido o poder do rádio em retribalizar a
Humanidade, bem como a quase imediata reversão que produziu do
individualismo para o coletivismo, fascista ou marxista. Esta inconsciência é tão
extraordinária que ela é que precisa de explicação. O poder de transformação
dos meios é fácil de explicar, mas a ignorância desse poder não o é de modo
algum. Para não falar que a ignorância universal da atuação psíquica da
tecnologia responde a certas funções inerentes, a um entorpecimento nuclear
da consciência, tal como ocorre nos estados de choque e tensão.
A história do rádio é instrutiva como indicadora das distorções e da
cegueira que uma tecnologia pré-existente produz numa sociedade. A palavra
“sem fio” ainda é empregada para designar o rádio na Grã-Bretanha, o que dá
prova da mesma atitude negativa em relação a uma nova forma presente na
expressão “carruagem sem cavalo”. O sem-fio inicial era considerado como uma
forma do telégrafo. e não se estabelecia sequer sua relação com o telefone. Em
1916, David Sarnoff, então empregado da American Marconi Company, enviou
um memorando à Diretoria defendendo a idéia da produção de caixas de
música para o lar. Foi totalmente ignorado. Naquele mesmo ano, deu-se a
rebelião da Páscoa I rlandesa e a primeira emissão de rádio. Até então, o semfio fora utilizado pelos barcos, como "telégrafo” mar-terra. Os rebeldes
irlandeses utilizaram o sem-fio de um barco, não para uma mensagem em
código, mas para uma emissão radiofônica, na esperança de que algum barco
captasse e retransmitisse a sua estória à imprensa americana. E foi o que se
deu. A radiofonia já existia há vários anos, sem que despertasse qualquer
interesse comercial. Foram os radioamadores e seus fãs que conseguiram as
primeiras providências práticas nesse sentido. Houve relutância e oposição no
mundo da imprensa que, na I nglaterra, levou à criação da BBC e ao
acorrentamento do rádio pelos interesses da publicidade e dos jornais. Esta
rivalidade óbvia ainda não foi discutida abertamente. As pressões restritivas da
imprensa sobre o rádio e a TV ainda constituem um tópico “quente”, tanto na
I nglaterra como no Canadá. Mas é típico que a incompreensão da natureza do
meio tenha tornado bem fúteis as medidas restritivas. Sempre foi assim,
particularmente no que se refere à censura governamental da imprensa e do
cinema. Embora o meio seja a mensagem, as medidas de controle vão além da
programação. As restrições são sempre dirigidas contra o “conteúdo” — que é
sempre um outro meio. O conteúdo da imprensa é o pronunciamento literário,
assim como o conteúdo do livro é a fala, e o conteúdo do cinema é o romance.
Assim, os efeitos do rádio são perfeitamente independentes da sua
programação. Para aqueles que nunca estudaram os meios, este fato causa
tanta perplexidade quanto a cultura letrada para os nativos, que costumam
perguntar “Por que você escreve? Você não consegue lembrar?”.
Assim, os interesses comerciais que pensam subjugar os meios
universalmente aceitos, invariavelmente apelam para o “entretenimento” como
estratégia de neutralidade. Difícil imaginar uma técnica de avestruz mais
espetacular, pois é ela justamente que garante a máxima penetração de
qualquer meio. A comunidade letrada sempre se baterá pelo direito à
controvérsia e ao ponto de vista, na imprensa, no rádio e no cinema, o que
redunda num enfraquecimento da atuação da imprensa, do rádio, do cinema —
e também do livro. A estratégia do entretenimento comercial automaticamente
assegura a máxima velocidade e força de impacto a qualquer meio de
comunicação, tanto ao nível psicológico como ao nível social. Torna-se, assim,
uma cômica estratégia de auto-liquidação involuntária, levada a efeito
exatamente por aqueles que preferem a permanência à mudança. No futuro, o
único controle efetivo dos meios deverá adquirir a forma termostática do
racionamento quantitativo. Assim como agora tentamos controlar as cinzas
radiativas, um dia teremos de controlar a radiatividade dos meios. A educação
será reconhecida como defesa civil contra as cinzas radiativas dos meios. O
único meio contra o qual nossa educação hoje oferece alguma defesa civil é o
meio da impressão tipográfica e gráfica. O sistema educacional, baseado na
impressão, ainda não se dispõe a arcar com qualquer outra responsabilidade.
O rádio provoca uma aceleração da informação que também se estende
a outros meios. Reduz o mundo a uma aldeia e cria o gosto insaciável da aldeia
pelas fofocas, pelos rumores e pelas picuinhas pessoais. Mas, ao mesmo tempo
em que reduz o mundo a dimensões de aldeia, o rádio não efetua a
homogeneização dos quarteirões da aldeia, Bem ao contrário. Na Í ndia, onde o
rádio é a forma de comunicação suprema, há mais de uma dúzia de línguas
oficiais e um número igual de cadeias de rádio oficiais. O efeito do rádio no
sentido de ressuscitar arcaísmos e velhas memórias não se limitou à Alemanha
de Hitler. Com o advento do rádio, velhas línguas ganharam nova vida na
I rlanda, na Escócia e no País de Gales, enquanto I srael pode servir de exemplo
extremo de revivescência lingüística. Os israelenses falam agora uma língua
que estivera morta nos livros durante séculos. O rádio não é apenas um
poderoso ressuscitador de animosidades, forças e memórias arcaicas. mas
também uma força descentralizadora e pluralística — tal como acontece com
todos os meios e forças elétricas.
O centralismo organizativo baseia-se na estruturação contínua, visual e
linear que nasce da alfabetização fonética. No início, os meios elétricos apenas
acompanharam os padrões estabelecidos das estruturas letradas. O rádio foi
liberado das pressões dessa cadeia centralizadora por obra da TV. A carga da
centralização passou para a TV, que dela pôde livrar-se graças ao Telstar.
Como a TV aceitou o encargo da cadeia central derivado de nossa organização
industrial centralizada, o rádio passou a ter liberdade de diversificação,
prestando serviços locais e regionais que antes não conhecera, mesmo nos
primeiros tempos dos amadores de rádio-galena. Com a TV, o rádio se voltou
para as necessidades individuais do povo, em diferentes horas do dia, bem em
sintonia com a multiplicidade de aparelhos receptores nos quartos, banheiros,
cozinhas, carros e — agora — bolsos. Programações diferentes são fornecidas
para atender às mais diversas atividades. O rádio, que antes foi uma forma de
audiência grupal que enchia as igrejas, reverteu ao uso pessoal e individual —
com o advento da TV. O adolescente se afasta da TV grupal para o seu rádio
particular.
Esta tendência natural do rádio em ligar intimamente os diferentes
grupos de uma comunidade manifesta-se claramente no culto dos disk-jockeys
e no uso que faz do telefone, forma glorificada da velha interceptação de
notícias na linha-tronco.
Platão, cujas idéias tribais de estrutura política estavam bem fora de
moda, dizia que o tamanho certo de uma cidade era indicado pelo número de
pessoas ao alcance da voz de um orador. Até o livro impresso, para não falar
do rádio, torna bem irrelevantes, para efeitos práticos, as pressuposições
políticas de Platão. Mas o rádio, dada a sua facilidade de relações íntimas e
descentralizadas, tanto ao nível pessoal como ao de pequenas comunidades,
poderia facilmente realizar o sonho político de Platão numa escala mundial.
A união do rádio com o fonógrafo — que forma a média das
programações radiofônicas — produz uma estrutura muito especial e mais
poderosa do que a resultante da combinação do rádio e das agências
noticiosas, que nos fornecem as notícias e as informações sobre o tempo. E
curioso como os informes sobre o tempo atraem mais a atenção do que o
noticiário, tanto no rádio como na TV. Não será por que o “tempo” é agora,
totalmente, uma forma eletrônica de informação, enquanto o noticiário ainda
conserva muito dos padrões da palavra escrita? Devido provavelmente às suas
inclinações livrescas, a BBC e a CBS mostram-se bastante canhestras em suas
apresentações radiofônicas e televisionadas. Em contraste, as emissoras
americanas, mais por premência comercial do que por tirocínio artístico, viriam
a se caracterizar por uma vivacidade febril.
31. A TELEVI SÃO
O GI GANTE TÍ MI DO
Talvez que o efeito mais comovente e familiar da TV seja o
comportamento das crianças que cursam o primário. Desde o aparecimento da
TV, as crianças costumam ler com os olhos a apenas 15 centímetros, em
média, da página — independentemente das condições de suas vistas.
Procuram levar para a página impressa os imperativos da total envolvência
sensória da imagem da TV. Com uma perfeita habilidade psicomimética,
executam as ordens da imagem televisionada. Prestam atenção, investigam,
aquietam-se e envolvem-se em profundidade. É o que aprenderam a fazer na
fria iconografia do meio das estórias em quadrinhos. A TV levou o processo
bem mais adiante. E de repente as crianças se vêem transportadas para o meio
quente da palavra impressa, com seus padrões uniformes e rápido movimento
linear. I nutilmente tentam ler em profundidade. Lançam na palavra impressa
todos os seus sentidos — e ela os rejeita. A imprensa exige a faculdade visual
nua e isolada, não a sensorialidade unificada.
A câmara de cabeça de Mackworth, quando aplicada a crianças que
assistem à televisão, revela que seus olhos acompanham, não as ações, mas as
reações. Os olhos quase não se desviam dos rostos dos atores, mesmo durante
as cenas de violência. Esta câmara mostra em projeção a cena que se
desenrola no vídeo e o movimento do olho, simultaneamente. Este
comportamento extraordinário é mais um fator que vem corroborar o caráter
frio e envolvente deste meio.
No show de Paar de 8-3-1963, Richard Nixon foi paarificado e
remodelado de acordo com a imagem da TV. Revelou-se que o Sr. Nixon era
também pianista e compositor. Com o tato seguro de quem conhece o caráter
do meio que usa, Jack Paar mostrou o lado pianoforte do Sr. Nixon, com
excelentes resultados. Em lugar de um Nixon habilidoso, escorregadio e
jurídico, vimos um esforçado executante criativo e modesto. Uns poucos toques
oportunos deste tipo teriam alterado o resultado da campanha Kennedy-Nixon.
A TV é um meio que rejeita as personalidades muito delineadas e favorece mais
apresentação de processos do que de produtos.
A adaptação da TV a processos, mais do que a produtos nitidamente
acondicionados, explica a frustração da experiência de muita gente ante sua
utilização para fins políticos. Num artigo da TV-Guide (18-24 de maio de 1963),
Edith Efron chamou a TV de "Gigante Tímido”, porque ela não se adapta aos
temas quentes e aos tópicos rígidos e controvertidos: “Apesar da liberdade
concedida pela censura oficial, um silêncio auto-imposto torna os
documentários das grandes cadeias quase que mudos a respeito dos grandes
assuntos do dia.” Acham alguns que a TV, como meio frio que é, trouxe uma
espécie de rigor mortis ao corpo político. É o extraordinário grau de
participação da audiência no meio da TV que explica o seu insucesso na
abordagem de temas candentes. Howard K. Smith observou: “As redes de
televisão acham ótimo que se travem discussões a 20.000 Km de distância. O
que não querem são dissenções reais no âmbito doméstico.” O comportamento
da TV é inexplicável para as pessoas condicionadas pelo meio quente do jornal,
que vive do conflito de opiniões e não do envolvimento em profundidade numa
situação.
Uma notícia quente sobre um tópico que se referia diretamente à TV,
trazia o seguinte título: “Acabou acontecendo — filme inglês com letreiros em
I nglês para explicar os dialetos.” O filme em questão era a comédia Sparrows
Don't Sing ("Os Pardais Não Cantam"). Um glossário dos falares Yorkshire e
Cockney e de outras frases de gíria foi impresso para distribuição aos
telespectadores, a fim de que pudessem traduzir os letreiros do filme. Esses
subletreiros são uma clara indicação do efeito, de profundidade da TV, a
mesmo título que o estilo “brutalista” na moda feminina. Uma das mais
extraordinárias conseqüências da TV na I nglaterra foi o ressurgimento dos
dialetos regionais. Um sotaque regional ou um “r” gutural constituem
equivalentes vocais da antiga botina de abotoar. Esses sotaques sofrem uma
contínua erosão por parte da cultura letrada. Seu súbito ressurgimento na
I nglaterra, em regiões onde antes apenas se ouvia o I nglês-padrão, é um dos
acontecimentos culturais mais significantes do nosso tempo. Até nas salas de
aulas de Oxford e Cambridge se ouvem de novo os dialetos. Os universitários já
não se empenham numa pronúncia uniforme. Com a TV, a fala dialetal se
revelou um laço social em profundidade, antes impossível devido ao “I nglêspadrão" artificial que começara há apenas um século.
Um comentário sobre o cantor Perry Como classificava-o de "rei de baixa
pressão para um reino de alta pressão. O sucesso de um artista de TV depende
de um estilo de apresentação em baixa-pressão, embora se possa fazer
necessária uma organização em alta pressão para levar o seu número ao ar.
Fidel Castro pode servir de exemplo. De acordo com a estória de Tad Szulc, “O
Homem-Show da Televisão Cubana”, em A Oitava Arte, “em seu estilo
aparentemente improvisado “naquela base”, ele pode discutir política e
governar o país — pela câmara”. Tad Szulc tem a ilusão de que a TV é um meio
quente e sugere que, no Congo, “a televisão poderia ter ajudado Lumumba a
incitar as massas a um tumulto e a um derramamento de sangue ainda
maiores”. Ele está completamente errado. O rádio é o meio para as coisas
frenéticas e tem sido o meio mais importante para esquentar o sangue tribal na
África, na Í ndia e na China. A TV esfriou Cuba, como está esfriando os E.E.U.U.
O que se passa com os cubanos em relação à TV é a experiência da
participação direta nas tomadas de posições políticas. Fidel Castro apresenta a
si mesmo como professor e, como diz Szulc, “consegue combinar liderança
política, educação e propaganda de maneira tão hábil que às vezes é difícil
dizer-se onde começa uma e termina outra.” Exatamente, a mesma combinação
é utilizada pelo mundo do entretenimento, na Europa e nos Estados Unidos.
Visto fora dos Estados Unidos, um filme americano parece uma disfarçada
propaganda política. O entretenimento válido tem de lisonjear e explorar os
pressupostos culturais e políticos de sua terra de origem. Estes pressupostos
não declarados também servem para tornar as pessoas cegas aos fatos mais
evidentes de um meio novo como a TV.
Há poucos anos atrás, a TV deu uma boa surpresa num grupo que
estava preparando emissões simuladas de diversos meios, em Toronto. A
estudantes universitários agrupados ao acaso, foi fornecida uma mesma
informação ao mesmo tempo, referente à estrutura das línguas pré-letradas.
Um grupo foi informado pelo rádio, outro pela TV, outro por uma conferência e
um outro por escrito. Excetuado este último, todos os demais grupos
receberam a informação através do mesmo locutor e das mesmas frases, sem
perguntas, debates ou uso do quadro-negro. Em seguida, cada grupo teve meia
hora para expor a questão, ao que se seguiu o preenchimento do mesmo
questionário. Qual não foi a surpresa dos experimentadores ao verificarem a
superioridade do grupo da TV e do rádio, em relação aos dois outros — com a
singularidade de que o grupo da TV estava bem acima do grupo do rádio!
Como nada havia sido feito para enfatizar este ou aquele meio, a experiência
foi repetida com outros grupos organizados ao acaso. Mas desta vez, cada um
dos meios podia lançar mão de todos os seus recursos próprios para expor a
questão. No rádio e na TV, o material foi dramatizado com muitos recursos
auditivos e visuais. O conferencista utilizou ao máximo o quadro-negro e as
discussões em classe. A forma impressa foi adornada com o emprego
imaginativo da fotografia e do layout da página. de modo a acentuar todos os
pontos importantes na leitura. Como a experiência já fora feita uma vez, meios
foram intensificados a um alto grau. Ainda desta vez, a televisão e o rádio
apresentaram resultados bem superiores em relação à conferência e à leitura.
Mas, para nova surpresa dos pesquisadores. desta vez o rádio superou bastante
a televisão. Passou-se algum tempo até que o óbvio se manifestasse: a TV é
um meio frio, participante. Quando aquecida por dramatizações e aguilhoadas,
seu desempenho decresce, porque passa a oferecer menos oportunidade à
participação. O rádio é um meio quente. Quando intensificado, seu
desempenho é melhor. Não convida seus usuários ao mesmo grau de
participação. O rádio pode servir como cortina sonora ou como controle do nível
de ruído: é assim que o adolescente o utiliza para desfrutar de uma certa
intimidade. A TV não funciona como pano de fundo. Ela envolve. É preciso
estar com ela. (Esta frase se tornou corrente com o advento da TV.)
Depois da TV muitas coisas já não funcionam tão bem. Tanto o cinema
como as revistas de âmbito nacional foram duramente golpeados por esse novo
meio. Até as estórias em quadrinhos declinaram bastante. Antes da TV, o fato
de Joãozinho não ler causava muita preocupação; depois da TV, Joãozinho
passou a dispor de todo um novo conjunto de percepções. Já não é o mesmo.
Otto Preminger diretor de Anatomy of a Murder (“Testemunha de Acusação”) e
de outros sucessos, data do primeiro ano de programação televisionada
completa a grande mudança que ocorreu na feitura e na apreciação dos filmes.
“Em 1951 — escreveu ele — tive uma luta para a distribuição de The Moon I s
Blue, depois que a censura impugnara o roteiro de produção. Era uma guerra
pequena — e eu ganhei” (Toronto Daily Star, 19-10-1963).
Disse ele ainda: “Que a palavra “virgem” tivesse sido o motivo para a
impugnação de The Moon I s Blue é coisa que hoje nos parece risível, quase
incrível.” Otto Preminger acha que o cinema americano amadureceu graças a
influência da TV. O meio frio da TV incentiva a criação de estruturas em
profundidade no mundo da arte o do entretenimento, criando ao mesmo tempo
um profundo envolvimento da audiência. Quase todas as tecnologias e
entretenimentos que se seguiram a Gutenberg não têm sido meios frios, mas
quentes; fragmentários, e não profundos; orientados no sentido do consumo e
não da produção. Muito poucas são as áreas de relações já estabelecidas — lar,
igreja, escola, mercado — que não tenham sido profundamente afetadas em
seu padrão e em sua tessitura.
A perturbação psíquica e social criada pela imagem da TV — e não por
sua programação — provoca comentários diários na imprensa. Raymond Burr,
que encarna Perry Mason, falando à Associação Nacional dos Juizes Municipais,
lembrou-os de que “Sem a compreensão e a aceitação dos leigos, as leis que os
senhores aplicam e as cortes que os senhores presidem não podem continuar a
existir”. O que o Sr. Burr esqueceu de observar é que o programa Perry Mason,
de que ele é a figura principal, é um exemplo típico daquela espécie de
experiência televisionada intensamente participacional e que tanto tem alterado
nossas relações com as leis e as cortes.
O modo da imagem da TV nada tem em comum com o filme ou a
fotografia — exceto a disposição de formas ou gestalt não-verbal. Com a TV, o
espectador é a tela. Ele é bombardeado por impulsos luminosos iguais aos que
James Joyce chamou de “Carga da Brigada Ligeira”, que impregnam sua
“pelalma de tintuagens soluconscientes”. A imagem da TV, visualmente,
apresenta baixo teor de informação. Ela não é uma tomada parada. Não é
fotografia em nenhum sentido — e sim o incessante contorno das coisas em
formação delineado pelo dedo perscrutador. O contorno plástico resulta da luz
que atravessa e não da luz que ilumina, formando uma imagem que tem a
qualidade da escultura e do ícone, mais do que a da pintura. Três milhões de
pontos por segundo formam a imagem-chuveiro que o telespectador recebe.
Destes, de capta algumas poucas dúzias, com as quais forma uma imagem.
A imagem do filme apresenta muitos milhões mais de dados por
segundo, e o espectador não tem de reduzi-los drasticamente para formar sua
impressão. Ao contrário, tende a aceitar a imagem integral, como uma entrega
já encaixotada. Em contraste, o espectador do mosaico da TV, com o controle
técnico da imagem, inconscientemente reconfigura os pontos numa obra de
arte abstrata, que se aproxima das estruturas de Seurat ou Roualt. Se alguém
perguntasse se tudo isso não mudaria, caso a tecnologia acelerasse o caráter
da imagem da TV até aproximá-la do nível de dados-informação do cinema,
bastaria responder com a pergunta: “Podemos alterar uma caricatura,
acrescentando detalhes de perspectivas, de luz, e de sombras?.” A resposta é
“Sim” — só que já não seria mais uma caricatura. Nem a TV “aperfeiçoada”
seria mais televisão. A imagem da TV é agora uma trama mosaica de pontos de
luz e sombra, coisa que a tomada de cinema nunca é, mesmo quando a
qualidade da fotografia é pobre.
Como em qualquer outro mosaico, a terceira dimensão é estranha à TV,
embora lhe possa ser imposta. Na TV, a ilusão da terceira dimensão é sugerida
de leve pelo cenário do estúdio; mas a sua imagem, propriamente, e um
mosaico plano, bidimensional. Muito da ilusão tridimensional é uma
transferência efetuada pela visão habitual do filme e da fotografia. A câmara de
TV não tem um Angulo de visão embutido como a câmara cinematográfica. A
Eastman Kodak já possui uma câmara bidimensional, com a qual se obtêm os
efeitos planos da TV. Mas é difícil para as pessoas letradas — com seus hábitos
de pontos de vista fixos e de visão tridimensional — compreender as
propriedades da visão bidimensional. Se fosse fácil, não teriam dificuldades com
a arte abstrata, a General Motors não teria feito a confusão que fez com o
desenho industrial dos carros e as revistas ilustradas não teriam as dificuldades
de agora com as relações entre os anúncios e a matéria editorial. A imagem da
TV exige que, a cada instante, “fechemos” os espaços da trama por meio de
uma participação convulsiva e sensorial que é profundamente cinética e tátil,
porque a tatilidade é a inter-relação dos sentidos, mais do que o contato
isolado da pele e do objeto.
Muitos diretores distinguem a tomada fílmica da imagem da TV,
referindo-se a esta como imagem de “baixa definição”, para significar que ela
oferece poucos detalhes e um baixo teor de informação — tal como acontece
com a caricatura. Um primeiro plano da TV dá tanta informação quanto uma
pequena secção de um plano geral na tela de cinema. Por não terem observado
um aspecto tio fundamental da imagem da TV, os críticos da programação
“conteudística” só têm falado bobagens a propósito da "violência na TV”. Os
porta-vozes do ponto de vista da censura são em geral indivíduos semiletrados,
que se orientam pelos livros e que não conhecem a gramática do jornal, do
rádio ou do cinema, tendendo a olhar torto para todos os meios não-livrescos.
Uma pergunta das mais simples sobre um aspecto psíquico qualquer dos meios,
incluindo o meio do livro, deixa essa gente tomada do pânico da incerteza. Eles
confundem a vigilância moral com veemência da projeção de uma única atitude
isolada. Tivessem esses censores de perceber que, em todos os casos, "o meio
e a mensagem”, ou seja, a fonte básica de efeitos, e certamente propugnariam
pela supressão de todos os meios assim entendidos, em lugar de procurar
controlar o seu conteúdo”. Seu pressuposto habitual de que o conteúdo, ou a
programação, é que constitui o fator de influência sobre a visão e a ação, se
estriba no livro enquanto meio, com sua nítida clivagem entre forma e
conteúdo.
Não é estranho que a TV tenha sido um meio tio revolucionário na
América dos anos 50, quanto o rádio na Europa, nos anos 30? O rádio
ressuscitou as tramas tribais e de parentesco na mente européia dos anos 20 e
30 — mas não teve o mesmo efeito na I nglaterra ou na América. Foi tão
profunda a erosão dos elos sociais levada a efeito pela cultura letrada e pelas
extensões industriais, entre nós, que o rádio não provocou nenhuma reação
tribal de relevo. Mas bastaram dez anos de TV para europeizar até os Estados
Unidos, do que são testemunhas nossos novos sentimentos para com as
relações espaciais e pessoais. Há uma nova sensibilidade para a dança, para as
Artes Plásticas e para a Arquitetura, bem como para a preferência do carro
pequeno, do livro em brochura, dos penteados esculturais e dos efeitos de
modelação dos vestidos — para não falar da nova preocupação dos efeitos
complexos da culinária e do uso dos vinhos. No entanto, seria incorreto dizer-se
que a TV promoverá a retribalização da I nglaterra e da América. A ação do
rádio sobre o mundo da fala e da memória sonora foi desenfreada. A I nglaterra
e a América gozavam de um alto grau de imunização em relação ao rádio, mas
a TV, sem dúvida, as tornou vulneráveis àquele meio. Para o bem ou para o
mal, a imagem da TV exerceu uma força sinestésica unificadora sobre a vida
sensória dessas populações intensamente letradas — coisa que há séculos elas
não conheciam. É aconselhável suspender todos os julgamentos de valor no
exame dos assuntos referentes aos meios, pois os seus efeitos nunca são
isolados.
A sinestesia — unificação dos sentidos e da vida imaginativa — sempre
pareceu um sonho inatingível aos poetas e artistas ocidentais. Olhavam com
tristeza e desconsolo para a vida imaginativa fragmentada e empobrecida do
homem letrado ocidental do século XVI I I — e seguintes. Nem foi outra a
imagem de Blake, Pater, Yeats, D. H. Lawrence e de outras grandes figuras.
Não estavam preparados para ver seus sonhos realizados na vida diária pela
ação estética do rádio e da televisão. Mas essas extensões de massa de nosso
sistema nervoso central envolveram o homem ocidental numa sessão contínua
de sinestesia. O modo ocidental de vida, conseguido depois de séculos de
rigorosa separação e especialização dos sentidos — com o sentido da visão
dominando a hierarquia — não resiste à ondas do rádio e da TV que devassam
a grande estrutura visual do Homem I ndividual abstrato. Aqueles que, por
motivos políticos, tendem a somar suas forças à ação antiindividual de nossa
tecnologia elétrica, não passam de pobres autômatos subliminares que
macaqueiam as estruturas das pressões elétricas dominantes. Há um século
atrás, com o mesmo sonambulismo, ter-se-iam voltado para a direção oposta.
Os poetas e filósofos românticos alemães invocaram, em coro tribal. o retorno
ao inconsciente obscuro, por mais de um século —até que o rádio e Hitler
tornaram esse retorno inevitável. Que pensar de gente que deseja o retomo
aos tempos pré-letrados, mas que não tem idéia de como o modo visual
civilizado substituiu a magia tribal auditiva?
Agora, quando os americanos vão, alimentando uma nova paixão pela
caça submarina e pelo espaço envolvente do carro pequeno — graças à
inelutável instigação tátil da imagem da TV — esta mesma imagem inspira a
muitos ingleses sentimentos raciais de exclusivismos tribais. Os ocidentais
altamente letrados sempre idealizaram condições de integração racial — mas a
sua própria cultura letrada é que tornava impossível uma real uniformidade das
raças. O homem letrado propõe naturalmente soluções visuais para os
problemas das diferenças entre os homens. Nos fins do século XI X, esta espécie
de sonho chegou a sugerir o mesmo tipo de roupas e de educação tanto para
homens como para mulheres. O fracasso dos planos de integração sexual
alimentou tematicamente muita literatura e muita psicanálise do século XX. A
integração racial, empreendida com base na uniformidade visual, é uma
extensão da mesma estratégia cultural do homem letrado, para quem as
diferenças devem ser sempre eliminadas, no sexo, na raça, no espaço e no
tempo. O homem eletrônico, envolvendo-se cada vez mais profundamente nas
realidades da condição humana, não pode aceitar a estratégia da cultura
escrita. Os negros rejeitarão os planos da uniformidade visual com a mesma
veemência com que as mulheres 6 fizeram antes, e pelas mesmas razões. As
mulheres perceberam que haviam sido esbulhadas de seu papel distintivo e
transformadas em cidadãs fragmentadas no “mundo do homem”. Toda
abordagem a esses problemas em termos de uniformidade e de
homogeneização social não representa senão uma derradeira pressão da
tecnologia mecânica e industrial. Sem pretender deitar moral, pode-se dizer que
a era da eletricidade, envolvendo profundamente os homens uns nos outros,
terminará por rejeitar essas soluções mecânicas. É mais difícil prover a
singularidade e a diversidade do que impor padrões uniformes de educação em
massa; mas as condições elétricas, mais do que em qualquer outra época,
tendem a engendrar justamente essa singularidade e essa diversidade.
Todos os grupos pré-letrados do mundo já começaram a sentir as
energias explosivas e agressivas que foram liberadas pela arremetida da
mecanização e da alfabetização, ainda que isto seja temporário. Estas
explosões se manifestam justamente quando a nova tecnologia elétrica faz com
que compartilhemos delas numa escala global.
O efeito da TV, a mais recente e espetacular extensão elétrica de nosso
sistema nervoso central, ainda não se deixa apreender em toda a sua
profundidade por razões varias. Como ela afeta a totalidade de nossas vidas —
pessoal, social e política — seria utópico tentar uma apresentação “sistemática",
ou visual, de sua influência. É mais praticável “apresentar” a TV como uma
gestalt complexa de dados colhidos quase que ao acaso.
A imagem da TV é de baixa intensidade ou definição; diferentemente do
filme, portanto, ela não fornece informação detalhada sobre os objetos. A
diferença é parecida à que se observa entre os velhos manuscritos e a palavra
impressa. Onde antes não havia mais do que uma textura difusa, passou a
haver intensidade e precisão uniforme, graças à imprensa, que pôs em voga o
gosto pela medida exata e pela repetibilidade, - características que agora
associamos à Ciência e à Matemática.
Um produtor de televisão dirá que a fala na TV não deve ter aquela
precisão meticulosa, necessária no teatro. O teleator não tem de projetar sua
voz ou a si mesmo. Assim, a interpretação na TV é extremamente intima,
porque o telespectador, por ela envolvido de maneira marcante, tende a
completar ou “concluir” a imagem televisionada; segue-se que o teleator deve
representar como quem estivesse improvisando, coisa que não teria muita
significação no cinema e estaria deslocada no teatro. A audiência participa da
vida íntima do teleator de modo tão pleno quanto da vida exterior de um astro
de cinema. Tecnicamente, a TV tende a ser um meio de primeiros-planos. No
cinema, o close-up dá ênfase; na TV, é coisa normal. Uma foto brilhante do
tamanho do vídeo pode mostrar uma dúzia de caras com muitos pormenores,
mas uma dúzia de caras no vídeo forma apenas uma mancha.
A natureza particular da imagem da TV, em sua relação com o ator,
provoca reações tão familiares que chegamos a não reconhecer na rua pessoas
que vemos toda semana no vídeo. Não são muitos aqueles dentre nós que se
mostram tão vivos quanto as crianças do jardim da infância que perguntaram a
Garry Moore: “Como você saiu da televisão?” Noticiaristas e atores relatam que
freqüentemente são abordados por pessoas que declaram já os terem visto
antes. Durante uma entrevista, perguntaram a Joanne Woodward qual a
diferença que sentia entre ser uma estrela de cinema e uma atriz de TV. Ela
respondeu: “Quando eu trabalhava no cinema, ouvia as pessoas dizendo: “Lá
vai Joanne Woodward.” Agora elas dizem: “Acho que conheço aquela moça.”
O proprietário de um hotel de Hollywood, situado numa zona onde
residem muitos astros e estrelas do cinema e da TV, diz que os turistas já
demonstraram maior preferência pelos artistas de televisão. A maior parte dos
artistas de TV é composta de homens, ou seja, de “personagens frias”; Já no
cinema, as estrelas são maioria, pois ali podem ser apresentadas como
personagens “quentes”. Os astros e estrelas de cinema, assim como todo o
sistema do estrelismo, se reduziram a um status mais moderado, desde o
advento da TV. O cinema é um meio quente, de alta definição. Talvez que a
observação mais interessante do hoteleiro tenha sido a de que os turistas
muitas vezes manifestam o desejo de conhecer Perry Mason ou Wyatt Earp.
Não querem ver Raymond Burr ou Hugh O’Brian. Os fãs do velho cinema
queriam ver como eram seus favoritos na vida real, e não nos papéis que
encarnavam. Os fãs do meio frio da TV querem ver seus astros nos papéis que
representam, os fãs de cinema querem a coisa palpável.
Uma reversão semelhante de atitudes ocorreu com o livro impresso. No
tempo da cultura manuscrita ou dos escribas, a vida privada dos autores
despertava pouco interesse. Hoje, as estórias em quadrinhos estão mais
próximas da gravura de antes da imprensa e da forma manuscrita de
expressão. O Fogo, de Walt Kelly, parece de fato uma página gótica. A despeito
do grande interesse do público pela forma da estória em quadrinhos, há tão
pouca curiosidade pela vida privada de seus criadores quanto pela dos
compositores da música popular. Com a imprensa, a vida privada tornou-se
assunto do maior interesse para os leitores. A imprensa é um meio quente.
Projeta o autor no público, como o cinema. O manuscrito é um meio frio, que
mais envolve o leitor do que projeta o autor. Assim acontece com a TV. O
telespectador é envolvido e ativamente participante. É por isso que o papel do
artista de televisão é mais fascinante do que a sua vida privada. É assim que o
estudante dos meios, como o psiquiatra, obtém mais dados dos seus
informantes do que estes são capazes de perceber. A experiência de uma
pessoa é sempre superior à sua compreensão, e é a experiência, mais do que a
compreensão, que influencia o comportamento, especialmente nas questões
coletivas que dizem respeito aos meios e à tecnologia, de cujos efeitos, quase
inevitavelmente, o indivíduo raramente se dá conta.
Pode parecer paradoxal que um meio frio como a TV seja mais
comprimido e condensado do que um meio quente como um filme. Sabe-se, no
entanto, que meio minuto de televisão equivale a três minutos de teatro ou de
revista musical. O mesmo se diga do manuscrito em relação à imprensa. O
manuscrito “frio” tende a expressões formais condensadas, aforísticas e
alegóricas. A imprensa, meio quente, expandiu a expressão no sentido da
simplificação e da “exorcização” ou decifração do significado. A imprensa
acelerou e fez “explodir” o manuscrito condensado em fragmentos mais
simples.
Um meio frio — palavra falada, manuscrito ou TV — dá muito mais
margem ao ouvinte ou usuário do que um meio quente. Se um meio é de alta
definição, sua participação é baixa. Se um meio é de baixa definição, sua
participação é alta. Talvez seja por isso que os amantes sussurrem tanto...
Como a baixa definição da TV assegura um alto envolvimento da
audiência, os programas mais eficazes são aqueles cujas situações consistem
de processos que devem ser completados. Assim o uso da TV no ensino da
poesia permitiria ao professor concentrar-se no processo poético do fazer real
de um poema determinado. A forma de livro é inadequada a este tipo de
apresentação envolvente. O mesmo realce do processo do “faça você mesmo” e
do envolvimento em profundidade da imagem da TV se estende à arte do
teleator. Nas condições da TV, ele deve estar sempre pronto a improvisar e
adornar cada frase e cada sonoridade verbal com detalhes de gestos e
posturas, mantendo aquela intimidade com o telespectador que não é possível
manifestar-se na imponente tela de cinema ou no palco.
Conta-se que depois de assistir a um bangue-bangue pela TV, um
nigeriano observou, deliciado: “Eu não pensava que vocês do Ocidente davam
tão pouco valor à vida humana.” Para equilibrar esta observação, veja-se o
comportamento de nossas crianças enquanto assistem a um bangue-bangue
pela TV. Quando equipadas com as novas câmaras de cabeça experimentais
(que acompanham os movimentos dos olhos), vê-se que elas mantêm os olhos
fixos nos rostos dos atores da TV. Mesmo nas cenas de violência física, seus
olhos se concentram nas reações faciais — mais do que na ação tumultuosa.
Pistolas, facas, punhos, são ignorados em favor da expressão facial. A TV não é
tanto um meio de ação quanto de reação.
A inclinação do meio da TV pelos temas que envolvem processos e
reações complexas favoreceu um novo desenvolvimento para os filmes
documentários. O cinema pode manipular processos extraordinariamente, mas
o espectador de cinema está mais inclinado a ser um consumidor passivo de
ações do que um participante de reações. O western e o filme documentário
têm sido formas secundárias. Com a TV, o western adquiriu nova importância,
pois o seu tema é sempre: “Vamos erguer uma cidade.” A audiência participa
da formação e do processamento de uma comunidade a partir de reduzidos e
modestos componentes. Além disso, a imagem da TV é generosa para com as
variadas e rudes texturas das selas, roupas, couros e com os pretensiosos
bares e saguões de hotel feitos de madeira de caixa de fósforo. Em contraste, a
câmara de cinema está mais à vontade no mundo cromado e polido dos clubes
noturnos e dos lugares luxuosos de uma metrópole. O que era preferência pela
câmara cinematográfica nos anos 20 e 30, passou a ser preferência pela
câmara de TV nos anos 50 e 60, e este deslocamento abrangeu toda a
população. Nestes dez anos, o povo gosto americano em matéria de roupa,
alimentação, alojamento, diversão e veículos exprime o novo padrão de interrelação de formas de desenvolvimento do tipo “faça você mesmo” gerado pela
imagem da TV.
Não foi por mero acaso que grandes estrelas de cinema, como Rita
Hayworth, Liz Taylor e Marilyn Monroe começaram a ter dificuldades sérias, na
nova era da TV. Entravam numa era que punha em questão todos os valores
dos meios “quentes” dos tempos de consumo anteriores à TV. A imagem da TV
desafia os valores da fama e os valores dos bens de consumo. Marilyn Monroe
declarou em certa ocasião: “Para mim a fama é apenas uma felicidade
temporária e parcial. Não pode entrar na dieta diária, não nos satisfaz... Acho
que quando a gente é famosa, todas as fraquezas se exageram. Esta indústria
devia comportar-se, em relação a suas grandes estrelas como a mãe que vê o
filho quase ser atropelado por um carro. Em lugar de abraçar o filho, ela se põe
a repreendê-lo.”
A comunidade do cinema está sendo massacrada pela TV e não poupa
ninguém em sua perplexidade e seu mau-humor. Estas palavras da grande
boneca do cinema, que se casou com o Sr. Baseball e com o Sr. Broodway, sem
dúvida constituem um presságio e um prodígio. Se tivessem de pôr em
questão, publicamente, o valor absoluto do dinheiro e do sucesso como meio
de se atingir o bem-estar e a felicidade humana, as ricas e famosas figuras
americanas não encontrariam um antecessor mais lancinante do que Marilyn
Monroe. Durante quase 50 anos. Hollywood ofereceu à “decaída” um meio de
chegar ao topo e aos corações. De repente, a deusa do amor emite um grito
pavoroso, exclama que comer gente é errado e denuncia todo um modo de
vida. Este é exatamente o estado de espírito dos beatniks suburbanos. Rejeitam
a vida de consumo especializada e fragmentada, buscando algo que ofereça
envolvimentos humildes e compromissos profundos. É o mesmo estado de
espírito que, em tempos recentes, vai fazendo com que as moças abandonem
carreiras especializadas em favor de casamentos precoces e de famílias
numerosas. Elas se deslocam dos empregos para os papéis.
Esta mesma preferência nova pela participação em profundidade é uma
força que impele os jovens rumo à experiência religiosa. com suas ricas
sugestões litúrgicas. A revivescência litúrgica da era do rádio e da TV afeta até
as mais austeras seitas protestantes. O canto coral e as roupagens ricas
começaram a aparecer em todos os bairros. O movimento ecumênico é
sinônimo da tecnologia elétrica.
Assim como a trama em mosaico da TV não favorece a perspectiva na
arte, também não favorece a linearidade no viver. Com a TV, a linha de
montagem desapareceu da indústria. As estruturas de staff e de linha se
dissolveram na administração. Acabou-se a fila de moços nos bailes a linha do
partido, a fila de recepção e a linha da parte posterior das meias de nylon.
Com a TV, chegou ao fim a votação em legendas partidárias, uma forma
de especialismo e fragmentação que já não funciona. Em lugar da votação no
partido, temos a imagem icônica e inclusiva. Em lugar do programa ou do
ponto de vista político, temos a atitude e a posição política inclusivas. Em lugar
do produto, o processo. Em período de novo e rápido crescimento observa-se
uma imprecisão nos limites. Na imagem da TV, temos a supremacia dos
delineamentos imprecisos, incentivo máximo ao crescimento e a uma nova
completação ou “fechamento”, especialmente para uma cultura de consumo há
muito ligada a nítidos valores visuais separados dos de outros sentidos. É tão
grande a mudança na vida americana, resultante do abandono da fidelidade da
embalagem-para-o-consumidor, tanto no entretenimento como no comércio,
que as empresas de publicidade da Madison Avenue, a General Motors,
Hollywood, a General Foods e tantas outras, profundamente abaladas, foram
obrigadas a procurar novas estratégias de ação. O que a implosão ou contração
elétrica produz no nível internacional, a imagem da TV produz nos níveis
intrapessoal e intra-sensorial.
Não é difícil explicar essa revolução sensória a pintores e escultores,
pois, desde que Cézanne abandonou a ilusão da perspectiva em favor da
estrutura, na Pintura, eles vêm lutando precisamente pela mudança que a TV
agora vem de efetuar — e numa escala fantástica. Com patrocínio comercial e
total extensão tecnológica, a TV é o pro grama de design e de vida proposta
pela Bauhaus ou pela estratégia educacional de Montessori. Através da TV, a
agressiva arremetida da estratégia artística para a remodelação do homem
ocidental se transformou num entrevero vulgar e numa badalação
contristadora, na vida americana.
É impossível exagerar o grau a que a imagem da TV predispôs a América
aos modos europeus de sentido e sensibilidade. Hoje, a América se europeíza
tão furiosamente quanto a Europa se americaniza. Durante a Segunda Guerra
Mundial, a Europa desenvolveu a maior parte da tecnologia necessária à sua
primeira fase de consumo em massa. De outro lado, foi a Primeira Guerra
Mundial que preparou a América para o seu take-off consumista. Foi necessária
a implosão eletrônica para dissolver as diversidades nacionalistas de uma
Europa estilhaçada e para fazer a ela o que a explosão industrial fizera à
América. A explosão industrial que acompanha a expansão fragmentária da
cultura escrita e da indústria teve pouco efeito unificador no mundo europeu,
com suas numerosas línguas e culturas. O ímpeto napoleônico utilizou as forças
combinadas da nova cultura escrita e do industrialismo primitivo. Mas Napoleão
dispunha de um menor conjunto de materiais homogeneizados do que a própria
Rússia de hoje. A força homogeneizadora do processo da cultura escrita já
estava mais avançada na América, em 1800, do que em qualquer outra parte
da Europa. A América tomou a peito a tecnologia da imprensa para impulsionar
sua vida educacional, industrial e política, e foi recompensada por um pool de
trabalhadores e consumidores padronizados que nenhuma outra cultura jamais
possuíra. Que os nossos historiadores culturais tenham negligenciado a força
homogeneizadora da tipografia e o poder irresistível das populações
homogeneizadas, nada acrescenta a seus lauréis. Os cientistas políticos têm
ignorado os efeitos dos meios em todos os tempos e lugares, simplesmente
porque ninguém se dispõe a estudar os efeitos sociais e pessoais dos meios
separadamente de seu “conteúdo”.
Há muito que a América realizou o seu Mercado Comum pela
homogeneização mecânica e letrada da organização social. A Europa vai agora
ganhando unidade sob os auspícios elétricos da compressão e da inter-relação.
O que ninguém ainda se perguntou é quanta homogeneização, via cultura
escrita, se torna necessária para formar um grupo consumidor-produtor eficaz
na era pós-mecânica da automação. Ninguém ainda reconheceu devidamente o
papel básico e arquetípico da cultura letrada na formação de uma economia
industrial. A alfabetização (cultura escrita) é indispensável aos hábitos da
uniformidade, em qualquer tempo e lugar. Acima de tudo, ela é necessária para
a funcionalidade dos sistemas de preços e dos mercados. Este fator está sendo
ignorado exatamente como a TV está sendo ignorada, pois a TV engendra
muitas preferências que discrepam da uniformidade e da repetibilidade
letradas. Levou os americanos a saírem à cata de toda espécie de objetos
singulares e bizarros de seu passado armazenado. Muitos americanos já não
poupam trabalho nem dinheiro para provar um novo vinho ou um novo prato. O
uniforme e o repetível deve ceder ao único e ao singular, fato que vai levando o
desespero e a confusão à nossa economia padronizada.
O poder do mosaico da TV em transformar a inocência americana em
sofisticação profunda, independentemente de “conteúdo”, não é tão misterioso
assim, se examinado diretamente. A imagem em mosaico da TV já fora
prenunciada pela imprensa popular que se desenvolveu com o telégrafo. O uso
comercial do telégrafo teve início em 1844, na América, e um pouco antes na
I nglaterra. O princípio elétrico e suas implicações comparecem com destaque
na poesia de Shelley. O empirismo artístico muitas vezes antecipa de uma ou
mais gerações a Ciência e a tecnologia. O significado do mosaico telegráfico em
suas manifestações jornalísticas não escapou à mente criadora de Edgar Allan
Pöe. Utilizou-o em duas invenções notáveis: o poema simbolista e a estória de
detetive. Ambas estas formas exigem uma participação do leitor, participação
do tipo “faça você mesmo.” Apresentando uma imagem ou processo
incompleto. Põe envolvia seus leitores no processo criativo, coisa que
influenciou e provocou a admiração de Baudelaire, Valéry, T. S. Eliot e muitos
outros. Pöe percebeu de imediato que a dinâmica elétrica era uma participação
coletiva na criatividade. Todavia, mesmo hoje, o consumidor homogeneizado se
queixa quando solicitado a participar da criação ou preenchimento de um
poema ou quadro abstrato, ou de uma escultura qualquer. Já naquela época
Pöe sabia que a participação em profundidade derivava imediatamente do
mosaico telegráfico. Os bonzos lineares e letrados do mundo literário
simplesmente “não podiam ver”. E ainda hoje não conseguem ver. Preferem
não participar do processo criativo. Acomodaram-se a embalagens já prontas,
na prosa, na Poesia e nas Artes Plásticas. E é essa gente que deve defrontarse, em todas as salas de aulas do mundo, com os estudantes que se ajustaram
aos modos táteis e não-pictóricos das estruturas simbolistas e míticas — graças
à imagem da TV.
A revista Life, de 10-8-1962, trouxe uma reportagem com o título:
Crianças Demais Amadurecem Cedo e Rápido Demais. Nada se dizia sobre o
fato de uma tal precocidade e rapidez de crescimento ser coisa normal nas
culturas tribais e nas sociedades não-letradas. A I nglaterra e a América
engendraram a instituição da adolescência prolongada através da negação da
participação tátil que é o sexo. Não houve uma estratégia consciente nisto, e
sim a aceitação geral das conseqüências da hegemonia da palavra impressa e
dos valores visuais na organização da vida pessoal e social. Esta ênfase deu os
triunfos da produção industrial e do conformismo político, que por si mesmos já
constituíam justificações suficientes.
A respeitabilidade — ou habilidade de suportar a inspeção visual de sua
vida — tornou-se dominante. Nenhum pais europeu permitiu tal precedência à
imprensa. Aos olhos americanos, a Europa sempre pareceu inferior,
visualmente falando. De outro lado, as mulheres americanas, sem concorrentes
em qualquer cultura no que se refere ao visual sempre pareceram bonecas
mecânicas e abstratas aos europeus. A tatilidade é o valor supremo na vida
européia. Por esta razão, no continente europeu não há adolescência, mas
apenas um salto da infância à vida adulta. Esta é também a situação americana
desde o advento da TV, e este estado de fuga da adolescência tende a
continuar. A vida introspectiva dos loucos pensamentos e metas distantes, a
serem como que perseguidas por estradas de ferro transiberianas, não pode
coexistir com a forma em mosaico da imagem da TV, que exige participação
imediata em profundidade e não admite delongas. As determinações dessa
imagem são tão várias — mas tão consistentes — que mencioná-las é descrever
a revolução ocorrida na última década.
O fenômeno do livro de capa mole, do livro em versão “fria”, pode
encabeçar a lista de mandatos da TV, porque a transformação televisionística
da cultura do livro em algo diferente é claramente manifesta. Desde o inicio, os
europeus sempre tiveram livros em brochura. Desde os inícios do automóvel,
preferiram o espaço envolvente do carro pequeno. O valor pictórico do “espaço
fechado”, em livros, carros ou casas nunca teve maior apelo para eles. O livro
de capa mole, especialmente em sua forma intelectualizada, foi tentado na
América dos anos 20, 30, 40. Mas só a partir de 1953 é que eles se tomaram
aceitáveis — como que de repente. Nenhum editor sabe realmente por quê. É
que o livro de capa mole não apenas é uma embalagem mais tátil do que
visual, como pode referir-se igualmente a assuntos profundos ou frívolos. Com
a TV, a América perdeu suas inibições e sua inocência em relação à cultura em
profundidade. O leitor de brochuras descobriu que pode apreciar Aristóteles ou
Confúcio simplesmente moderando a marcha da leitura. O velho hábito letrado
de correr pelas linhas impressas uniformes cedeu lugar à leitura em
profundidade. Certo, a leitura em profundidade não é característica da palavra
impressa enquanto tal. A investigação profunda das palavras e da linguagem é
um traço norma! das culturas orais e manuscritas, e não da cultura impressa.
Os europeus sempre acharam que os ingleses e americanos careciam de
profundidade em sua cultura. Desde o rádio e, especialmente, desde a TV, os
críticos literários ingleses e americanos têm superado de longe, em
profundidade e sutileza, o desempenho de qualquer crítico europeu. A busca de
Zen pelos beatniks é apenas o cumprimento de um mandado do mosaico da TV
no mundo das palavras e da percepção. O próprio livro em brochura tomou-se
um vasto e profundo mundo em mosaico, que exprime a mudança da vida
sensória dos americanos, para os quais a experiência profunda, nas palavras
como na física, tomou-se inteiramente aceitável e, mesmo, procurada.
É difícil saber por onde começar a examinar a transformação das
atitudes americanas desde o advento da TV, como pode ser visto por uma
mudança tão considerável como o súbito declínio do beisebol. A mudança dos
Brooklyn Dodgers para Los Angeles já era um prenúncio. O beisebol deslocouse para o Oeste numa tentativa de conservar o seu público, depois do golpe da
TV. A principal característica do jogo de beisebol é que nele as coisas
acontecem uma de cada vez. É um jogo linear e expansivo que, como o golfe,
se adapta perfeitamente à visão de uma sociedade individualista e voltada para
dentro. O cálculo do tempo e a espera formam-lhe a essência, com todo o
campo em suspenso a espera do desempenho de um único jogador. Em
contraste, o rugby, o basquete e o hóquei sobre o gelo são jogos nos quais
muitas coisas ocorrem simultaneamente, com todo o time envolvido ao mesmo
tempo. Com o advento da TV, um tal isolamento do desempenho individual, tal
como ocorre no beisebol, tomou-se inaceitável. O interesse pelo beisebol
diminuiu e os seus astros, como os astros de cinema, descobriram que a fama
tem dimensões bem exíguas. Como o cinema, o beisebol é um meio quente que
apresenta a virtuosidade individual dos “cobras”. O torcedor de beisebol é um
celeiro de informações estatísticas sobre as explosões anteriores de batedores e
lançadores, em numerosos jogos. Nada pode indicar mais claramente a especial
satisfação proporcionada por um jogo que pertenceu à metrópole industrial de
populações crescentes. de títulos e valores e de recordes de produção e
vendas. O beisebol pertence à era das primeiras investidas dos meios quentes
como a imprensa e o cinema. Permanecerá sempre como um símbolo da era
das “mamães quentes”, das garotas do jazz, dos xeques e sabás, das vamps,
dos cavadores de ouro e do dinheiro fácil. Numa palavra, o beisebol é um jogo
quente que esfriou no clima da TV, como aconteceu com a maior parte dos
políticos e assuntos quentes das décadas anteriores.
Não há meio mais frio nem assunto mais quente do que o do carro
pequeno. É como um alto-falante mal instalado num circuito de Hi-Fi e que
produz uma tremenda vibração no fundo. O carro pequeno europeu, como o
livro em brochuras europeu e a “mariposas" européia, não é uma embalagem
visual. Visualmente, toda a fornada de canos europeus é uma coisa tão pobre
que, certamente. os seus fabricantes nunca pensaram neles como algo que
devesse ser olhado. São como coisas que a gente veste, uma calça ou uma
malha. Seu espaço é o mesmo dos mergulhadores, dos esquiadores aquáticos e
dos remadores de pequenos botes. Num sentido imediatamente tátil, este novo
espaço tem parentesco com o proporcionado pela moda da janela panorâmica.
Em termos de “vista”, a janela panorâmica nunca fez muito sentido. Mas em
termos de tentativa de descobrir uma nova dimensão na paisagem, como se a
gente fosse um peixinho de aquário, então realmente ela tem um significado.
Assim também são os esforços de rusticizar as texturas e paredes internas,
como se fossem a parte externa da casa. O mesmo impulso leva os espaços e
moveis interiores para os pátios, na tentativa de experimentar o externo como
se fosse interno. O telespectador está justamente investido nesse papel,
durante todo o tempo. Ele é submarino. É bombardeado por átomos que
revelam o exterior como se fosse interior numa aventura sem fim, em meio a
imagens borradas e contornos misteriosos.
Mas o carro americano foi modelado de acordo com os mandados visuais
que lhe conferiram as imagens tipográficas e cinematográficas. O carro
americano era um espaço fechado, não um espaço tátil. O espaço fechado nós
n abordamos no capítulo dedicado à I mpressão, é aquele cujas qualidades
espaciais foram reduzidas a termos visuais. No carro americano, como os
franceses observaram há décadas atrás, “a gente não está na estrada. e sim no
carro”. Em oposição, o cano europeu parece querer arrastar a gente ao longo
da estrada, propiciando uma boa vibração nos fundos... Brigitte Bardot se
tomou notícia quando se descobriu que ela gostava de dirigir descalça para
obter o máximo de vibração. Mesmo os canos ingleses, por pobre que seja a
sua aparência visual, surgem na publicidade de maneira condenável. “A 90 Km,
você pode ouvir o tique-taque do relógio.” Anúncio bem pobre para a geração
da TV, que tem de estar com todas as coisas e que tem de cavar as coisas para
tê-las. O telespectador é tão ávido de ricos efeitos táteis, que facilmente se dá
bem com esquis. Já a roda, para ele, carece dos devidos requisitos abrasivos.
Na primeira década da TV, as roupas repetem a mesma estória dos
veículos. A revolução foi prenunciada pelas garotas-soquete. que despejaram
toda a carga de efeitos visuais em troca de um conjunto de efeitos táteis,
levados a um tal ponto que acabaram por criar uma zona morta de caradurismo
inflexível. Faz parte da dimensão fria da TV a fria cara-de-pau que surge nos
adolescentes. No tempo dos meios quentes — rádio, cinema, livro encadernado
— a adolescência era uma fase de expressões louçãs, ativas e expressivas.
Nenhum velho estadista ou executivo dos anos 40 ter-se-ia aventurado a se
apresentar com uma cara tio “morta” e escultural como o faz a criança da era
da TV. As danças que vieram com a TV combinavam com essa atitude,
culminando com o twist, que é simplesmente uma forma de diálogo bastante
inanimado, cujos gestos e esgares indicam envolvimento em profundidade, irias
“nada o que dizer”.
A moda e o estilo da última década tornaram-se tão táteis e esculturais
que apresentam uma espécie de prova exagerada das novas qualidades do
mosaico da TV. A extensão televisível da estrutura hirsuta de nossos nervos
tem o poder de evocar uma enchente de imagens relacionadas no vestuário, no
penteado, no caminhar e nos gestos.
Tudo isso se acrescenta à implosão compressiva — o retomo às formas
não especializadas de roupas e espaços, a busca de usos múltiplos para
aposentos, coisas e objetos, ou seja, numa palavra — o icônico. Na Música, na
Poesia e na Pintura, as implosões táteis significam a insistência nas qualidades
próprias da conversação informal. E é assim que Schönberg, Stravinsky, Carl
Orff e Bartok, longe de serem pioneiros de efeitos esotéricos, hoje parecem ter
trazido a Música bem próxima da fala humana comum. Este ritmo coloquial é
que parecia tão pouco melodioso em suas obras. Quem ouvir as obras
medievais de Perotinus ou Dufay perceberá que eles estão bem próximos de
Stravinsky e Bartok. A grande explosão do Renascimento, que separou os
instrumentos musicais do canto e da fala, dando-lhes funções especializadas,
agora parece estar sendo tocada ao contrário, nesta era de implosão eletrônica.
Um dos exemplos mais vivos da qualidade tátil da imagem da TV ocorre
no mundo médico. Numa emissão de cirurgia em circuito fechado, os
estudantes de Medicina relataram um estranho efeito: pareciam estar
realizando a operação e não assistindo a ela. Sentiam como se estivessem
empunhando o bisturi. Alimentando a paixão pelo envolvimento profundo em
todos os aspectos da experiência humana, a imagem da TV cria uma obsessão
com o bem-estar físico. É perfeitamente natural o súbito aparecimento na TV
dos “enlatados” sobre médicos e pavilhões hospitalares, em concorrência com
os Westerns. Seria possível organizar-se uma lista de programas que jamais
foram tentados e que se mostrariam imediatamente populares, pelas mesmas
razões. Tom Dooley e sua épica do Medicare (Previdência de Saúde) para os
países atrasados, foi um produto natural da primeira década da TV.
Agora que já examinamos a força subliminar da imagem da TV numa
dispersão redundante de amostras, poder-se-ia perguntar: Que imunidade é
possível contra a atuação subliminar de um novo meio como a televisão? A
maior parte imagina que uma opacidade asinina, apoiada numa desaprovação
firme, pode constituir proteção suficiente contra qualquer nova experiência. O
objetivo deste livro é mostrar que nem mesmo a mais lúcida compreensão da
força particular de um meio pode evitar o comum “fechamento” dos sentidos
que nos conforma aos padrões da experiência apresentada. A mais íntegra
pureza mental não serve de defesa contra as bactérias, embora os confrades de
Louis Pasteur o tivessem expulso da profissão médica, por haver feito torpes
alegações sobre a ação invisível das bactérias. Para haver resistência à TV, é
preciso haver o anticorpo de meios relacionados, como a imprensa.
Uma área muito sensível é a que se descobre quando se faz a pergunta:
“Qual tem sido o efeito da TV em nossa vida política?.” Aqui, pelo menos, uma
grande tradição de consciência e vigilância críticas dá testemunho das
salvaguardas que temos erigido contra os desmandos do poder.
O estudante de TV terá uma decepção se abrir o livro de Theodore
White, The Making of the President: 1960 (“Como se Faz um Presidente”), no
capitulo sobre “Os Debates na Televisão”. White fornece estatísticas sobre o
número de aparelhos nos lares americanos e sobre o número de horas que
permanecem ligados diariamente, mas não diz um “A” sobre a natureza da
imagem da TV ou sobre os seus efeitos nos candidatos e espectadores. White
examina o “conteúdo” dos debates e o comportamento dos debatedores, mas
nunca lhe ocorre perguntar por que a TV seria um desastre para a imagem
intensamente recortada de Nixon e uma dádiva para a textura imprecisa e
áspera de Kennedy.
No fim dos debates, Philip Deane, do Observer, de Londres, expôs minha
idéia sobre o próximo impacto da TV sobre as eleições no Toronto Globe and
Mail, com o título de “O Xerife e o Advogado” (15-10-1960). A idéia central era
a de que a TV se mostraria tão a favor de Kennedy que ele venceria as
eleições. Sem a TV, Nixon teria sucesso. No fim de seu artigo, Deane escreveu:
A tendência da imprensa é a de dar o Sr. Nixon como ganhador nos dois
últimos debates, tendo-se saído mal no primeiro. O Professor McLuhan adia que
o Sr. Nixon vem-se tornando progressivamente mais definido; sem considerar o
valor dos princípios e pontos de vista do Vice-Presidente, o certo é que ele os
vem defendendo com excessiva retórica para o meio da TV. As nítidas
intervenções do Sr. Kennedy têm sido um erro, mas ele ainda apresenta uma
imagem mais próxima do herói da TV — algo assim como um jovem xerife
tímido, enquanto o Sr. Nixon com seus olhos negros e fixos e seus circunlóquios
de velha raposa mais se aproxima do advogado da companhia de estrada de
ferro que assina contratos de arrendamento contra os interesses da gente da
cidadezinha — conclui o Prof. McLuhan.
De fato, ao contra-atacar e ao reclamar para si as mesmas metas do
Partido Democrático, como tem feito nos debates televisionados, o Sr. Nixon
talvez esteja ajudando o seu oponente, ao borrar-lhe a imagem e ao lançar a
confusão exatamente sobre aquilo que o Sr. Kennedy quer mudar.
Dessa forma, o Sr. Kennedy não fica prejudicado no debate de assuntos
bem definidos; visualmente, ele é uma imagem menos definida e parece mais
descontraído. Parece menos ansioso de vender o seu peixe do que o Sr. Nixon.
Por isso, o Prof. McLuhan confere a dianteira ao Sr. Kennedy, sem subestimar a
formidável atração que o Sr. Nixon exerce sobre as ponderáveis forças
conservadoras dos Estados Unidos.
Um outro modo de explicar a personalidade-de-TV-aceitável, em
contraposição à personalidade inaceitável, é dizer que aquele cuja aparência
denuncia claramente seu papel e seu status na vida não combina com a TV.
Todo aquele que parece capaz de ser um professor, um médico, um homem de
negócios ou de uma dúzia de habilitações ao mesmo tempo, é um tipo indicado
para a TV. Quando uma pessoa parece classificável, como o Sr. Nixon, o
telespectador não tem nada a preencher. Ele se sente incomodado com a
imagem da TV. Sente-se inquieto, como a dizer: "Há qualquer coisa de errado
com esse sujeito.” O telespectador sente a mesma coisa ante uma garota
demasiadamente linda na TV, ou ante qualquer imagem ou mensagem de “alta
definição” intensa, proposta pelo patrocinador. Não é por outro motivo que a
publicidade se tomou uma nova e poderosa fonte de efeitos cômicos, desde o
advento da TV. O Sr. Kruschev é uma imagem bastante completa e
“preenchida”, mas que aparece na TV como uma caricatura cômica. Nas
telefotos e na TV, o Sr. Kruschev é um cômico jovial, uma presença que
desarma. Assim, precisamente a mesma fórmula que recomenda alguém para
um papel no cinema desqualifica-o para a TV. O meio quente do cinema requer
gente que pareça um tipo definido. O meio frio da TV não pode abrigar o típico,
porque ele frustra o telespectador em seu trabalho de “fechamento” ou
conclusão da imagem. O Presidente Kennedy não parecia um homem rico ou
um político. Ele poderia ter sido tudo, desde um vendeiro ou um professor, até
um técnico de futebol. Não era tão preciso nem tão pronto a falar a ponto de
prejudicar a agradável textura tweed de seu comportamento e de sua linha. Foi
do palácio para a lincolniana cabana de madeira, da riqueza para a Casa
Branca, invertendo e contrariando o percurso habitual, segundo o padrão da
TV.
Os mesmos componentes se encontram em qualquer figura popular da
TV. Ed Sullivan, “O grande cara de pedra”, como era conhecido no início,
possuía a necessária aspereza de textura e aquela qualidade escultural que
atrai a atenção na TV. De outra parte, a sua presença é inteiramente aceitável
na TV graças à sua agilidade verbal absolutamente fria e informal. O show de
Jack Paar revelou a necessidade, inerente à TV, do bate-papo espontâneo e do
diálogo. Jack Paar descobriu como estender a imagem em mosaico da TV à
programação inteira do seu show, aparentemente sabendo somar quem quer
que fosse de onde quer que fosse. Mas em verdade ele compreendeu muito
bem como criar em mosaico a partir de outros meios — jornalismo, política,
livros, artes em geral — até se tornar um temível rival do próprio mosaico da
imprensa. Assim como Amos e Andy fizeram reduzir a freqüência aos serviços
religiosos dos domingos à noite, nos velhos tempos do rádio, assim Jack Paar
certamente reduziu a clientela dos clubes noturnos, com seu show da noite.
E sobre a Televisão Educacional? Quando uma criança de três anos
assiste a uma conferência de imprensa do Presidente, junto com o papai e o
vovô, temos uma ilustração do sério papel educacional da TV. Se perguntarmos
qual a relação da TV com o processo do ensino, a resposta é que a imagem da
TV, com sua ênfase na participação, no diálogo e na profundidade, provocou na
América uma nova demanda maciça de programas educacionais. Saber se
haverá um televisor em cada classe é coisa de menor importância. A revolução
já ocorreu em casa. A TV mudou nossa vida sensória e nossos processos
mentais. Criou um novo gosto por experiências em profundidade, que afeta
tanto o ensino da língua como o desenho industrial dos carros. Com a TV,
ninguém se contenta com um mero conhecimento livresco da poesia francesa
ou inglesa. O clamor geral hoje é “Vamos falar Francês” e “É a vez e a voz do
poeta”. É bastante curioso que as exigências de profundidade acarretem
exigências de programas maciços e concentrados, em colchas de retalhos e de
execução imediata (crash-programming). Mais fundo e mais adiante, em todos
os campos, o conhecimento passou a ser o reclamo popular normal, desde o
aparecimento da TV. Muito já dissemos sobre a natureza da imagem da TV e
que pode explicar por que as coisas se passam assim. Como pode ela difundirse em nossas vidas mais do que já faz? O emprego da TV nas salas de aulas
não aumentará sua influência. Claro, em classe seu papel obriga a uma
reordenação dos assuntos, aproximando-se deles. Simplesmente transferir a
atual sala de aulas para a TV seria como colocar o cinema na TV. O resultado
seria um híbrido, que não é nem uma coisa nem outra. A abordagem correta é
perguntar: “Que é que a TV pode fazer pelo Francês ou pela Física e que a sala
de aulas não pode?”. A resposta é: “A TV pode ilustrar a inter-relação dos
processos e o crescimento das formas de todos os tipos como nenhum outro
meio pode.”
O outro lado da estória se refere ao fato de a criança-TV ser um
excepcional ou hemiplégico, em confronto com o mundo social e educacional
organizado visualmente. Uma indicação marginal desta espantosa reversão é
dada pela obra de William Golding, Lord of the Flies (“O Senhor das Môscas”).
De um lado, não deixa de ser uma lisonja dizer às hordas de crianças submissas
que, uma vez fora do alcance do olhar de suas governantas, as paixões
selvagens que fervilham dentro delas acabarão por ferver deveras e
transbordar... arrastando berços e chiqueirinhos em sua fúria incontida. De
outro lado, a parabolazinha moral do Sr. Golding faz algum sentido em termos
das mudanças psíquicas da criança-TV. Este assunto é tão importante para
qualquer futura estratégia cultural ou política, que está a exigir uma dimensão
de manchete, que pode ser assim sumariada em comprimido:
PORQUE A CRI ANÇA-TV NÃO PODE ENXERGAR ADI ANTE
O mergulho na experiência profunda, através da imagem da TV, só pode
ser explicado em termos das diferenças entre o espaço visual e o espaço em
mosaico. A capacidade de distinguir entre essas duas formas radicalmente
diferentes é muito rara em nosso mundo ocidental. Já foi observado que em
terra de cegos quem tem um olho não é rei. Será antes um lunático alucinado.
Numa cultura altamente visual, é tão difícil comunicar propriedades não-visuais
de formas espaciais como explicar a visualidade aos cegos. No ABC da
Relatividade, Bertrand Russell começa por explicar que não há maior dificuldade
nas idéias de Einstein, mas que elas reclamam uma total reorganização de
nossa vida imaginativa. E é precisamente esta reorganização imaginativa que
ocorreu com a imagem da TV.
A inabilidade corrente em distinguir entre a imagem fotográfica e a
imagem da TV não é apenas um fator de emperramento no processo de ensino
atual, mas também um sintoma do longo fracasso da cultura ocidental. O
homem letrado, habituado a um ambiente em que o sentido visual se projeta
por toda parte como um principio de organização, às vezes supõe que o mundo
em mosaico da arte primitiva, ou mesmo o mundo da arte bizantina, represente
apenas uma diferença de grau, uma espécie de incapacidade de conferir aos
seus retratos visuais toda uma completa e verdadeira eficácia visual. Nada mais
longe da verdade. Trata-se de uru erro de concepção que tem impedido a
compreensão entre o Leste e o Oeste por muitos séculos. Assim como hoje
impede as relações entre a comunidade branca e a comunidade negra.
A maior parte das tecnologias efetua uma amplificação que se torna bem
explícita na separação que exerce sobre os sentidos. O rádio é uma extensão
do aural, a fotografia de alta fidelidade uma extensão do visual. Mas a TV,
acima de tudo, é uma extensão do sentido do tato, que envolve a máxima
inter-relação de todos os sentidos. Para o homem ocidental, no entanto, a
extensão totalizante ocorreu por meio da escrita fonética, que é uma tecnologia
de extensão do sentido da visão. Em contraposição, todas as formas nãofonéticas de escrita são modos artísticos que conservam muito da variedade da
orquestração sensorial. A escrita fonética, por si mesma, tem o poder de
separar e fragmentar os sentidos do processo literário, que se caracteriza pela
fragmentação analítica da vida sensória.
A ênfase visual na continuidade, na uniformidade e no nexo seqüencial.
derivando da cultura letrada, leva-nos aos grandes meios tecnológicos de
implementar a continuidade e a linearidade mediante a repetição fragmentada.
O mundo antigo encontrou esses meios no tijolo, para muros ou estradas. O
tijolo uniforme ou seriado, agente indispensável das estradas, muralhas e
paredes das cidades e impérios, é uma extensão — via letras — do sentido
visual. A parede de tijolos não é uma forma em mosaico, nem a forma em
mosaico é uma estrutura visual. O mosaico pode ser visto, como a dança, mas
não é estruturado visualmente, assim como não é uma extensão do poder
visual. Pois o mosaico não é contínuo, uniforme, repetitivo. É descontínuo,
assimétrico, não linear — como a tatuimagem da TV. Para o sentido do tato,
todas as coisas são súbitas, opostas, originais, únicas. estranhas. A “Beleza
Malhada” (Pied Beauty), de G. M. Hopkins é um catálogo dos sons do sentido
do tato. O poema é um manifesto do não-visual e — como Cézanne, Seurat ou
Rouault — permite-nos a abordagem indispensável à compreensão da TV. As
estruturas em mosaico não-visual da arte moderna, como as da física moderna
e as da informação elétrica, não permitem muito distanciamento. A forma em
mosaico da TV exige a participação e o envolvimento em profundidade de todo
o ser, como o faz o sentido do tato. Em oposição. a cultura letrada. estendendo
o poder visual à organização uniforme do tempo e do espaço, confere, tanto
psíquica como socialmente, o poder de distanciamento e de não-envolvimento.
Quando estendido pela alfabetização fonética, o sentido visual engendra
o hábito analítico de perceber facetas isoladas da vida das formas. O poder
visual nos capacita a isolar um único incidente no tempo e no espaço, como
com a arte figurativa. Na representação visual de uma pessoa ou objeto, uma
única fase, momento ou aspecto é isolado de numerosas fases, momentos e
aspectos conhecidos e sentidos de uma pessoa ou objeto. Contrariamente, a
arte iconográfica utiliza o olho como nós utilizamos a mão no empenho de criar
uma imagem inclusiva, feita de muitos momentos, fases e aspectos da pessoa
ou objeto considerado. Dessa forma, o modo icônico não é uma representação
visual que se definisse por um único ponto de visão. O modo tátil de perceber é
imediato, mas não especializado. É um envolvimento total e sinestésico de
todos os sentidos. Permeada pela imagem em mosaico da TV, a criança-TV
enfrenta o mundo num estado de espírito antitético à cultura letrada.
Vale dizer que a imagem da TV, mais do que o ícone, é uma extensão do
sentido do tato. Quando se defronta com uma cultura letrada, ela torna mais
densa a mistura dos sentidos, transformando as extensões fragmentadas e
especializadas numa trama inconsútil da experiência. Uma tal transformação, é
claro, constitui um “desastre” para a cultura letrada e especializada. Ela turva
muitas atitudes e procedimentos de estimação, obscurece a eficácia das
técnicas pedagógicas básicas e a importância do currículo. Se outras razões não
bastassem, deveria bastar o interesse pela compreensão da vida dessas formas,
à medida em que elas penetram em nós e nas demais formas. A TV paga pela
miopia.
Os jovens que já tiveram a experiência de uma década de TV estão
naturalmente impregnados da urgência de envolvimento em profundidade, que
faz com que as remotas metas visualizáveis da cultura tradicional pareçam não
apenas irreais, mas também sem importância, e não apenas sem importância,
mas também pobres e anêmicas. É o envolvimento total numa agoridade todoinclusiva que se está passando com os jovens através da imagem em mosaico
da TV. Esta mudança de atitude não tem nada que ver com a programação do
veículo, seja ela qual for, e dar-se-ia do mesmo modo ainda que os programas
fossem do mais alto nível cultural. A mudança de atitude, ao contato com a
imagem em mosaico da TV, ocorreria igualmente, não importando a natureza
dos acontecimentos. É nossa tarefa, naturalmente, não apenas compreender
esta mudança, mas também explorá-la por sua riqueza pedagógica. A criançaTV aspira por um envolvimento e não por um trabalho especializado no futuro.
Ela quer um papel e um profundo compromisso com sua sociedade. Soltas e
incompreendidas, as ricas necessidades humanas podem manifestar-se
segundo as formas distorcidas retratadas em West Side Story.
A criança-TV não pode ver longe porque deseja envolvimento e não pode
aceitar um objetivo ou um destino, no aprendizado ou na vida, puramente
fragmentário e meramente visualizado.
ASSASSI NATO PELA TELEVI SÃO
Jack Ruby alvejou Lee Oswald quando este se encontrava fortemente
cercado por guardas paralisados pelas câmaras de televisão. O fascínio e a
força envolvente da televisão certamente não precisavam desta prova adicional
de seu raro modo de agir sobre a percepção. Por uma parte, o assassinato de
Kennedy deu ao povo um senso imediato da força da televisão no sentido de
criar envolvimento; de outra parte, um senso de seu efeito de adormecimento,
tão profundo quanto a própria dor. Muita gente se admirou com a profundidade
de significação que o acontecimento lhes transmitiu. E um número muito maior
de pessoas se surpreendeu com a frieza e a calma da reação popular. O mesmo
acontecimento, manipulado pela imprensa ou pelo rádio (na ausência da TV)
teria proporcionado uma experiência totalmente diferente. A “cuca” do Tio Sam
teria “fundido”. A agitação teria sido muito maior e a participação profunda
numa consciência comum muito menor.
Como foi dito anteriormente, Kennedy era excelente imagem de TV.
Usou o meio com a mesma eficácia que Roosevelt aprendera a obter do rádio.
Com a TV Kennedy achava natural envolver a nação no gabinete da
presidência. seja como modo operacional, seja como imagem A TV combina
com os atributos corporativos do gabinete. Potencialmente, pode transformar a
presidência numa dinastia monárquica. Um presidente meramente eletivo
dificilmente propicia a profundidade de dedicação e compromissamento exigida
pela forma da TV. Até os professores, na TV e aos olhos dos estudantes,
parecem dotados de um halo místico e carismático, que supera de muito os
sentimentos que desperta na sala de aulas ou no salão de conferências. Este
fato intrigante veio à tona ao longo de muitos estudos sobre as reações da
audiência. Os telespectadores sentem que o professor ganha uma dimensão
quase sagrada. Este sentimento não se apóia em conceitos e idéias, mas
parece insinuar-se inexplicavelmente... e sem convite, intrigando tanto os
estudantes quanto os seus analistas. Sem dúvida, não há índice mais seguro
para indicar-nos o caráter da TV. A televisão é menos um meio visual do que
tátil-auditivo, que envolve todos os nossos sentidos em profunda inter-relação.
Para as pessoas há muito habituadas à experiência meramente visual da
tipografia e da fotografia, parece que é a sinestesia, ou profundidade tátil da
experiência da TV, que as desloca de suas atitudes correntes de passividade e
desligamento.
A observação banal e ritual dos letrados convencionais de que a TV
proporciona uma experiência para espectadores passivos, se extravia
completamente do alvo. Acima de tudo, a TV é um meio que exige respostas
criativas e participantes. Os guardas que fracassaram na proteção de Lee
Oswald não eram passivos. Estavam de tal modo envolvidos pela simples visão
das câmaras de TV que perderam o senso de suas tarefas práticas e
especializadas.
Talvez tenha sido o funeral de Kennedy o que mais fortemente
impressionou o público no que se refere ao poder da TV em revestir os
acontecimentos de um caráter de participação corporativa. Nenhum
acontecimento nacional, a não ser nos esportes, jamais teve uma tal cobertura
ou uma audiência tão numerosa, o que veio revelar o poder sem rival da TV em
conseguir o envolvimento da audiência num processo complexo. O funeral,
como processo corporativo, fez empalidecer a imagem do esporte, reduzindo-a
a proporções minúsculas. O funeral de Kennedy, em suma, tornou manifesto o
poder da TV em envolver toda a população num processo ritual. Em
comparação, a imprensa, o cinema, e, mesmo, o rádio, se reduzem a meras
embalagens para consumidores.
Mais do que tudo, porém, o caso Kennedy propicia uma oportunidade
para salientar um traço paradoxal do meio “frio” da TV, a saber: ela nos
envolve numa profundidade móvel e comovente, mas que não nos excita, agita
ou revoluciona. Presume-se que seja esta a característica de toda experiência
profunda.
32. ARMAMENTOS
A GUERRA DOS Í CONES
Quando Valentina Tereshkova, sem maior treinamento de pilotagem, foi
lançada em órbita, a 16 de junho de 1963, seu feito, tal como foi traduzido na
imprensa e outros meios, teve o efeito de empalidecer a imagem dos
astronautas masculinos, especialmente os americanos. Desprezando a
habilidade dos astronautas americanos, todos eles qualificados pilotos de
provas, os russos parecem ter dado mostras de que, para eles, a viagem
espacial não está tão ligada ao avião a ponto de requerer as “asas” de um
piloto. Como a nossa cultura proíbe o envio de uma mulher ao espaço, nossa
saída seria a de colocar em órbita um grupo de crianças espaciais, para indicar
que, afinal de contas, tudo não passa de um brinquedo de crianças.
O primeiro sputnik, ou pequeno “companheiro de jornada”, foi uma
gozação espirituosa ao mundo capitalista por meio de uma nova espécie de
imagem ou ícone tecnológico; um revide expressivo seria o de colocar em
órbita um grupo de crianças. A primeira mulher astronauta foi apresentada ao
Ocidente como uma pequena Valentina (valentine — prova de amor), bem
adequada à nossa sentimentalidade. Na verdade, a guerra dos ícones — ou o
solapamento dos padrões coletivos do adversário — há muito que se vem
desenvolvendo. A tinta e a fotografia estio suplantando os soldados e os
tanques. Diariamente, a pena se torna mais poderosa do que a espada.
A expressão francesa, guerre des nerfs, forjada há 25 anos atrás, passou
a receber o tratamento de “guerra fria”. Trata-se realmente de uma batalha
elétrica de informações e imagens, muito mais profunda e obsessiva do que as
velhas guerras quentes da indústria pesada.
As guerras “quentes” do passado utilizavam armas que punham o
inimigo fora de combate um a um. Mesmo as guerras ideológicas dos séculos
XVI I I e XI X eram levadas a cabo para persuadir os indivíduos a adotarem novos
pontos de vista, um de cada vez. Mas a persuasão elétrica, pela fotografia, o
cinema e a TV, age impregnando de novas imagens populações inteiras. A
consciência dessa mudança tecnológica foi despertada na Madison Avenue há
uns dez anos atrás, quando os “cobras” da publicidade mudaram a tática da
promoção do produto individual em favor do envolvimento coletivo da “imagem
corporada”, agora alterada para “atitude corporada”.
Paralela ao novo intercâmbio de informação da guerra fria é a situação
comentada por James Reston, num despacho de Washington transcrito pelo
New York Times:
A política se tornou internacional, O líder trabalhista inglês está
realizando aqui a sua campanha para Primeiro Ministro da I nglaterra, e logo
mais John F. Kennedy estará na I tália e na Alemanha fazendo campanha para a
sua reeleição. Todo mundo está praticando auto-stop em país alheio — em
geral, o nosso.
Washington ainda não se adaptou a este papel de “terceiro homem” e
continua esquecendo que tudo o que se diz aqui pode ser usado tanto por um
lado como pelo outro numa campanha eleitoral — podendo calhar, por
acidente, que isto venha a constituir um fator decisivo na votação final.
Se a guerra fria de 1964 está sendo empreendida pela tecnologia
informacional, é porque todas as guerras sempre têm sido levadas a efeito com
a última tecnologia disponível nas culturas em duelo. Num de seus sermões,
John Donne expendeu comentários agradecidos à bênção dos armamentos
pesados:
E pelo dom desta luz da razão, eles descobriram a Artilharia, graças à
qual as guerras, agora, chegam antes ao seu fim...
O conhecimento científico necessário ao uso da pólvora e à calibragem
do canhão pareceram a Donne manifestações da "luz da razão”. Escapou-lhe,
porém, uma outra conquista da mesma tecnologia, que acelerou e ampliou os
objetivos do morticínio humano. A ela se refere John U. Nef, em sua obra, A
Guerra e o Progresso Humano:
O abandono gradual da armadura como parte do equipamento da tropa
no século XVI I liberou suprimentos de metais para a manufatura de armas e
petardos.
É fácil descobrir aqui uma trama inconsútil de eventos entrelaçados,
assim que nos voltamos para as conseqüências psíquicas e sociais da extensões
tecnológicas do homem.
Nos anos 20, o Rei Amanula parece ter posto dedo nesta trama ao
declarar, depois de disparar um torpedo:
“Já me sinto meio inglês”.
O mesmo sentido da incessante textura entrelaçada dos fatos e fados
humanos ressalta da observação daquele aluno:
— Pai, não gosto da guerra.
— Por que, meu filho?
— Porque a guerra faz a História e eu não gosto de História.
As técnicas desenvolvidas através dos séculos para a perfuração de
canos de armas de fogo forneceram os meios que tornaram possível o motor a
vapor. O cilindro do pistão e o canhão apresentavam o mesmo problema de
perfuração e calibragem do aço duro. No início, fora a ênfase linear da
perspectiva que canalizara a percepção em rumos que conduziriam à criação da
arma de fogo. Antes desta, a pólvora fora utilizada de forma explosiva, como a
dinamite. O emprego da pólvora para a propulsão de projéteis teve de esperar
pela descoberta da perspectiva na pintura. A ligação de acontecimentos
tecnológicos e artísticos pode ajudar-nos a explicar um assunto que há muito
vem intrigando os antropologistas. Repetidamente eles têm tentado dar uma
explicação para o fato de as pessoas não-letradas geralmente não possuírem
boa pontaria com rifles; o arco e a flecha estão mais próximos do jogo e este
seria mais importante do que a precisão à distância, coisa quase impossível de
conseguir. Daí, dizem alguns antropologistas, seus disfarces constantes com
peles de animais, que lhes permitem chegar mais próximo da caça. Além disso,
trata-se de uma arma silenciosa: quando uma flecha erra o alvo, raramente os
animais fogem.
Se a flecha é uma extensão da mão e do braço, a espingarda é uma
extensão do olho e dos dentes. Cabe aqui anotar que foram os colonos
americanos letrados os primeiros a insistirem na necessidade de canos raiados
e alças de mira aperfeiçoadas. Aperfeiçoaram os velhos mosquetões, criando o
rifle do tipo Kentucky. Foram os bostonianos altamente letrados que superaram
os soldados regulares ingleses. A boa pontaria não é dom do nativo ou do
homem do mato e sim do colono alfabetizado. E é assim que se pode
estabelecer o elo entre a arma de fogo e o surgimento da perspectiva, bem
assim com a extensão do poder visual na alfabetização e na cultura escrita. No
Corpo de Fuzileiros Navais descobriu-se que há uma correlação definida entre a
educação e a pontaria. Não é para o não-letrado a nossa facilidade de escolha
de um alvo isolado e separado no espaço e a nossa facilidade de manejo do
rifle, extensão do olho.
Se a pólvora já era conhecida bem antes de ser utilizada em armas, o
mesmo também se pode dizer em relação ao emprego do ímã ou pedra
magnética. Seu emprego na bússola, para a navegação linear, também teve de
esperar pela descoberta da perspectiva linear nas artes. Os navegadores
levaram muito tempo para aceitar o espaço como algo uniforme, contínuo e
unido. Na física moderna, como na Pintura e na Escultura, o progresso consiste
em abandonar a idéia de um espaço uniforme, contínuo ou unido. A visualidade
perdeu a sua primazia.
Na Segunda Guerra Mundial, o perito atirador foi substituído pelas armas
automáticas que atiram cegamente nos chamados “perímetros” ou “faixas de
fogo”. Os veteranos lutaram pela manutenção do fusil Springfield, de ferrolho,
que incentivava a pontaria e a precisão do tiro único. Viu-se que devassar o ar
com chumbo numa espécie de abraço tátil era tão eficiente à noite como de dia
e que a visão se tornava desnecessária. No atual estágio da tecnologia, o
homem letrado se encontra na posição daqueles veteranos que defendiam o
rifle Springfield contra o fogo perimétrico. É este mesmo hábito visual que
dificulta e obstacula o homem letrado na física moderna, como explica Milic
Capek, em O I mpacto Filosófico da Física Moderna. Os homens das sociedades
orais da Europa Central estão mais habilitados a conceber as velocidades e
relações não-visuais do mundo subatômico.
As nossas sociedades altamente letradas se desconcertam quando se
defrontam com novas estruturas de opinião e sentimento resultantes da
informação instantânea e global. Ainda estão presos nas garras do “ponto de
vista” e do hábito de abordar uma coisa de cada vez. Hábitos deste tipo têm
função paralisante em qualquer estrutura elétrica de movimento informacional,
mas poderiam ser neutralizados se tivessem plena consciência de sua fonte de
origem. Mas as sociedades letradas consideram suas artificiais tendências
visuais como algo natural e inato.
A alfabetização, ou cultura escrita, até hoje constitui a base e o modelo
de todos os programas de mecanização industrial; ao mesmo tempo, porém,
obstrui a mente e os sentidos de seus usuários na matriz mecânica e
fragmentária tão necessária à manutenção da sociedade mecanizada. Esta é a
razão por que a transição da tecnologia mecânica para a elétrica é tão
traumatizante e contundente para todos nós. Há muito tempo temos utilizado
as técnicas mecânicas. com seus poderes limitados, como armas. As técnicas
elétricas não podem ser empregadas agressivamente, a não ser para acabar de
uma vez com a vida, como quem apaga uma luz. Conviver com ambas estas
tecnologias ao mesmo tempo constitui o drama singular do século XX.
Em seu Educação-Automação, R. Buckminster Fuller considera os
armamentos como fonte de avanço tecnológico para a Humanidade, porque
exigem continuamente desempenhos sempre melhores com recursos sempre
menores. “Ao passarmos das naves do mar para as naves do ar, o desempenho
por libra de equipamento e combustível se tomou ainda mais importante do que
no mar.”
Essa tendência para o aumento de força com menos material é a
característica da era elétrica da informação. Fuller calcula que no primeiro meio
século de aeronavegação, as nações de todo mundo investiram cerca de 2,5
trilhões de dólares para o financiamento do avião enquanto arma. Acrescenta
que este montante corresponde a 52 vezes o valor de todo o ouro do mundo.
Fuller aborda os problemas de maneira mais tecnológica do que os
historiadores, que amiúde tendem a achar que a guerra nada produz de novo
no campo da invenção.
“Este homem nos ensinará como derrotá-lo” — disse, ao que consta,
Pedro, o Grande, depois que seus exércitos foram batidos por Carlos XI I , da
Suécia. Hoje, os países atrasados podem aprender conosco como derrotar-nos.
Na nova era elétrica da informação, os países subdesenvolvidos desfrutam de
certas vantagens específicas em relação às culturas altamente letradas e
industrializadas. I sto porque os países atrasados têm o hábito e a compreensão
da persuasão e da propaganda oral, que há muito tempo foi solapada nas
sociedades industriais. Os russos só têm que adaptar suas tradições orientadas
de produção de imagens e ícones aos novos meios elétricos para se tomarem
mais agressivamente eficazes no mundo moderno da informação. A idéia de
I magem, que a Madison Avenue teve de aprender pelo caminho mais difícil, era
a única idéia disponível à propaganda russa. Os russos não mostraram
imaginação ou criatividade em sua propaganda. Apenas fizeram o que as suas
tradições religiosas e culturais lhes ensinaram, ou seja, construir imagens.
A cidade, em si mesma, é tradicionalmente uma arma militar, um escudo
ou armadura coletiva, uma extensão do castelo de nossa própria pele. Antes do
amontoamento urbano, tivemos a fase do caçador à cata de comida; agora, na
era da eletricidade, o homem volta, psíquica e socialmente, ao estado nômade.
Só que agora a fase se caracteriza pela cata de informações e pelo
processamento de dados. É um estado global, que ignora e substitui a forma da
cidade — que tende a se tornar obsoleta. Com a tecnologia elétrica
instantânea, o próprio globo não passará de uma aldeia e a própria natureza da
cidade, enquanto forma de grandes dimensões, deve inevitavelmente dissolverse como numa fusão cinematográfica. A primeira circunavegação do globo, no
Renascimento, deu ao homem um sentimento novo de abarcamento e
possessão da Terra, assim como os astronautas alteraram a relação entre o
homem e o planeta, que agora dá a impressão de um bairro que a gente pode
percorrer numa caminhada.
A cidade, como o navio, é uma extensão coletiva do castelo de nossa
pele como a roupa e uma extensão de nossa pele individual. Mas os
armamentos propriamente ditos são extensões das mãos, unhas e dentes e
surgem como ferramentas necessárias à aceleração do processamento da
matéria. Hoje, quando vivemos num tempo de súbitas transições da tecnologia
mecânica para a tecnologia elétrica, é mais fácil perceber o caráter das
tecnologias anteriores, já que delas nos sentimos desligados, pelo menos por
um certo tempo. Como a nova tecnologia elétrica não é uma extensão do
corpo. mas do nosso sistema nervoso central, agora encaramos todas as
tecnologias, incluindo a linguagem, como meio de armazenar e acelerar a
informação. Nesta situação, toda tecnologia pode perfeitamente ser encarada
como armamento. As guerras anteriores podem ser consideradas como
processamento de materiais difíceis e resistentes por meio da tecnologia mais
avançada da época — o rápido dumping de produtos industriais sobre o
mercado inimigo levado ao ponto de saturação social. De fato, a guerra pode
ser vista como um processo de equilibrar duas tecnologias desiguais, o que
explica a perplexa observação de Toynbee de que a invenção de uma nova
arma é uma desgraça para a sociedade e de que o próprio militarismo é a
causa mais comum do esfacelamento das civilizações.
Pelo militarismo, Roma levou a civilização, ou individualismo, a
alfabetização e a linearidade a muitas tribos orais e atrasadas. Mesmo hoje, a
simples existência do Ocidente letrado e industrializado parece, muito
naturalmente, uma terrível ameaça às sociedades não-letradas; da mesma
forma, a simples existência da bomba atômica representa um estado de
agressão universal às sociedades industriais e mecanizadas.
De um lado, toda nova arma ou ideologia surge como uma ameaça a
todos aqueles que não a possuem; de outro, quando todo mundo dispõe dos
mesmos recursos tecnológicos, tem início a fúria competitiva dos padrões
homogeneizados e igualitários, contra a qual muitas vezes se utilizou no
passado a estratégia da classe e da casta. A casta e a classe são técnicas de
arrefecimento social que tendem a criar a estase das sociedades tribais. Parece
que hoje nos situamos entre duas eras — uma de destribalização e outra da
retribalização.
Entre a ação de um ato tenebroso
E o primeiro passo, o que se passa
É um pesadelo horrível como espectros:
Confabulam o engenho e os instrumentos
Mortais. E o estado de alma do homem
É como um reino reduzido, às voltas
Com uma rebelião tumultuosa.
(Julio César, Brutus, Ato I I , Cena 1)
Se a tecnologia mecânica como extensão de partes do corpo humano
exerce uma força de fragmentação, psicológica e socialmente, nenhum exemplo
o atesta mais vividamente do que o exemplo dos armamentos mecânicos. Com
a extensão do sistema nervoso central pela tecnologia elétrica, até os
armamentos tomam mais vivido este fato que é a unidade da família humana. A
própria inclusividade da informação, enquanto arma, constitui um lembrete
diário de que a Política e a História podem ser remodeladas sob a forma de
uma “concretização da fraternidade humana
Este dilema dos armamentos ressalta claramente do Cristianismo e
Revolução de Leslie Dewart, que naquela obra aponta a obsolescência das
técnicas fragmentadas de equilíbrio de forças. Como instrumento político, a
guerra moderna passou a significar “a existência e o fim de uma sociedade,
com exclusão de outra”. Nesta altura, os armamentos constituem um autoexterminador.
33. AUTOMAÇÃO
APRENDENDO A GANHAR A VI DA
Uma recente manchete de jornal dizia: “Escolinha Desaparece com Boa
Estrada”. As escolas de uma classe só, onde todas as matérias eram ensinadas
a todos os anos simultaneamente, desaparece quando melhora a condução,
que passa então a permitir espaços e ensino especializados. Mas o movimento
da aceleração levado ao extremo, no entanto, tende a liquidar com a
especialização do espaço e dos assuntos. Com a automação, não apenas os
empregos desaparecem e os papéis complexos reaparecem. Séculos de ênfase
especializada na Pedagogia e na ordenação dos dados chegam agora ao fim
com a imediata recuperação da informação propiciada pela eletricidade. A
automação é informação e não apenas acaba com as qualificações no mundo
do trabalho, como acaba com as “matérias” no mundo do ensino. Mas o mundo
do ensino continua. O futuro do trabalho consiste em ganhar a vida na era da
automação. Esta é uma situação familiar na tecnologia elétrica em geral.
Chegam ao fim as velhas dicotomias entre cultura e tecnologia, entre arte e
comércio, entre trabalho e lazer. Enquanto na era mecânica da fragmentação,
lazer significava ausência de trabalho, ou simples ociosidade, o contrário passa
a ser verdade na era elétrica. Como a era da informação exige o emprego
simultâneo de todas as nossas faculdades, descobrimos que os momentos de
maior lazer são aqueles em que nos envolvemos mais intensamente — tal como
sempre aconteceu com os artistas.
Em termos da era industrial, pode-se dizer que a diferença entre a era
mecânica precedente e a nova era elétrica reside nos modos diferentes de
estoque e armazenamento. Com a eletricidade, os estoques não são tanto
feitos de bens armazenados quanto de materiais em continuo processo de
transformação em lugares especialmente afastados. A eletricidade não apenas
dá primazia ao processo — na produção ou no aprendizado — como torna
independente a fonte de energia em relação ao lugar do processo. Nos meios
de entretenimento, referimo-nos a isso como “meios de massa” porque a fonte
do programa e o processo da experiência são independentes no espaço, mas
simultâneos no tempo. Na indústria, este fenômeno fundamental provoca a
revolução científica que leva o nome de automação, ou cibernação.
Na educação, a divisão convencional do currículo em matérias já está tão
superada quanto o trivium e o quadrivium medievais na época do
Renascimento. Qualquer matéria examinada em profundidade logo se relaciona
a outras matérias. A Aritmética, na primeira ou na quarta série, quando
ensinada em termos de teoria dos números, lógica simbólica e história cultural,
logo deixa de ser mera questão de exercícios e problemas. A continuar em seus
padrões atuais de desrelações fragmentadas, os currículos de nossas escolas
não farão senão garantir a formação de cidadãos incapazes de entender o
mundo cibernético em que vivem.
A maior parte dos cientistas sabe que, desde que se adquire um certo
conhecimento sobre a eletricidade, já não é mais possível falar-se dos átomos
como partículas de matéria. Quanto mais se sabe sobre energia e “descarga”
elétrica, menor é a tendência a falar de eletricidade como algo que “flui”, como
água, por um fio, ou como algo que está contido” numa bateria. A tendência é
mais a de falar da eletricidade como os pintores falam de espaço, ou seja: uma
condição variável que envolve posições especiais de dois ou mais corpos. Já
não se fala mais que a eletricidade está “contida" em algo. Os pintores de há
muito sabem que os objetos não estão contidos no espaço, mas geram o seu
próprio espaço. Foi o surgimento deste conhecimento no mundo matemático de
há um século atrás que permitiu a Lewis Carroll, o matemático de Oxford, a
criação de sua Alice no Pais das Maravilhas, onde tempos e espaços não são
uniformes nem contínuos como pareciam ser desde a descoberta da
perspectiva no Renascimento. Quanto à velocidade da luz, trata-se
simplesmente da velocidade da causalidade total.
Um dos aspectos principais da era elétrica é que ela estabelece uma rede
global que tem muito do caráter de nosso sistema nervoso central. Nosso
sistema nervoso central não é apenas uma rede elétrica; constitui um campo
único e unificado da experiência. Como os biólogos apontam, o cérebro é o
lugar de interação, onde todas as espécies de impressões e experiências se
intercambiam e se traduzem, permitindo-nos reagir ao mundo como um todo.
Naturalmente, quando a tecnologia elétrica entra em ação, as operações da
indústria e da sociedade, por variadas e amplas que sejam, rapidamente
assumem uma posição unificada. Mas esta unidade orgânica de interprocessos,
que o eletromagnetismo inspira nas mais diversas e especializadas áreas e
órgãos de ação, está no pólo oposto da organização numa sociedade
mecanizada. A mecanização de qualquer processo se atinge por fragmentação,
a começar pela mecanização da escrita mediante tipos móveis e que já
mereceu o nome de “monofratura da manufatura”.
O telégrafo elétrico, ao cruzar-se com a tipografia, criou esta forma nova
e estranha que é o jornal moderno. Uma página qualquer da imprensa
telegráfica é um mosaico surrealista de pedaços da “condição humana" em viva
interação. Assim foi também a forma artística de Chaplin e os primeiros filmes
do silencioso. Mas aqui também a extrema aceleração da mecanização — uma
linha de montagem de fotogramas no celulóide — produziu uma estranha
reversão. O mecanismo do cinema, auxiliado pela luz elétrica, criou a ilusão de
uma forma e de um movimento orgânicos, assim como a posição fixa criara a
ilusão da perspectiva numa superfície plana, 500 anos antes.
Quando o princípio da eletricidade se cruza com as linhas mecânicas da
organização industrial, ocorre o mesmo fenômeno — só que menos
superficialmente. A automação só conserva do caráter mecânico o que o
automóvel conservou das formas do cavalo e da carruagem. No entanto, as
pessoas discutem a automação como se ainda não tivéssemos atravessado a
barreira da alfafa e como se um voto de cabresto, nas próximas eleições,
pudesse dar cabo do regime da automação.
A automação não é uma extensão dos princípios mecânicos da
fragmentação e da separação de operações. Trata-se antes da invasão do
mundo mecânico pela instantaneidade da eletricidade. É por isso que todos
aqueles que estão envolvidos na automação insistem em que ela é tanto um
modo de pensar quanto um modo de fazer. A sincronização instantânea de
operações numerosas acaba com o velho padrão mecânico do arranjo das
operações em seqüência linear. A linha de montagem teve o mesmo destino
das filas de homens nas reuniões sociais. Mas não é apenas o aspecto linear e
seqüencial da análise mecânica que se apaga ante a aceleração elétrica e a
exata sincronização da informação que constituem a automação.
A automação, ou cibernação, opera com todas as unidades e
componentes do processo industrial e mercadológico exatamente como o rádio
ou a TV combinam com os indivíduos de uma audiência num novo
interprocesso. A nova espécie de inter-relação que se observa na indústria e no
mundo do entretenimento é o resultado da velocidade elétrica instantânea.
Nossa nova tecnologia elétrica vai agora produzindo a extensão do
processamento instantâneo do conhecimento mediante aquela inter-relação que
há muito se manifesta em nossos sistema nervoso central. É esta mesma
velocidade que constitui a “unidade orgânica” e que acaba com a era mecânica
que atingira alta velocidade com Gutenberg. A automação traz uma real
“produção em massa” — não em termos de tamanho mas de abrangimento
inclusivo e instantâneo. Este também é o caráter dos “meios de massa”. Eles
indicam, não o tamanho de suas audiências, mas o fato de que todo mundo se
envolve neles ao mesmo tempo. Dessa maneira, sob a automação, as indústrias
de utilidades compartilham do mesmo caráter estrutural das indústrias do
entretenimento, naquilo em que ambas se aproximam da condição da
informação instantânea. A automação não afeta somente a produção, mas
também o consumo e o mercado; pois, no circuito da automação, o consumidor
se transforma em produtor — assim como o leitor da imprensa telegráfica em
mosaico produz as suas próprias notícias ou simplesmente é suas próprias
notícias.
Mas há um componente na estória da automação que é tão básico
quanto a tatilidade da imagem da TV. Este componente se refere ao fato de
que, em qualquer máquina automática, ou galáxia de máquinas e funções, a
geração e transmissão de energias são separadas das operações de trabalho
que utilizam a energia. O mesmo se diga de todas as estruturas
servomecânicas que envolvem feed back (realimentação). A fonte de energia é
separada do processo de tradução da informação ou aplicação do
conhecimento. I sto é bastante claro no telégrafo, no qual a energia e o canal
são independentes do fato de o código escrito ser em I nglês ou Francês. A
mesma separação de energia e processo ocorre na indústria automatizada, ou
“cibernação”. A energia elétrica pode ser aplicada, indiferente e rapidamente, a
muitas espécies de tarefas.
Este jamais foi o caso dos sistemas mecânicos. A energia e o trabalho
realizado estavam sempre em relação direta — quer se tratasse de mão e
martelo, água e roda, cavalo e carroça ou vapor e pistão. A eletricidade trouxe
uma estranha elasticidade nesse setor, assim como a própria luz ilumina um
campo total sem ordenar o que deve ser feito. Uma mesma luz torna possível
uma multiplicidade de tarefas, assim como o faz a energia elétrica. A luz é uma
espécie não especializada de energia ou força que se identifica com a
informação e o conhecimento. Esta também é a relação da eletricidade com a
automação, pois tanto a informação como a energia podem ser aplicadas num
sem-número de maneiras.
Apreender este fato é indispensável à compreensão da era eletrônica —
e da era da automação, em particular. Energia e produção tendem agora a
fundir-se com a informação e o aprendizado. O mercado e o consumo tendem a
formar um corpo único com o aprendizado, o esclarecimento e a absorção da
informação. Tudo isto faz parte da implosão elétrica que agora se segue e
sucede aos séculos de explosão e de especialização crescente. A era eletrônica,
literalmente, é uma era de iluminação e esclarecimento. Assim como a luz é, ao
mesmo tempo, energia e informação, assim a automação elétrica une a
produção, o consumo e o ensino num processo inextricável. É por isto que os
professores já constituem o maior grupo de funcionários da economia dos
Estados Unidos — podendo vir a tornar-se o único grupo.
O mesmo processo de automação que provoca uma retirada de força de
trabalho da indústria faz com que o próprio aprendizado se’ transforme na
principal espécie de produção e consumo. Daí o desarrazoado do alarme em
relação ao desemprego. O aprendizado pago já se vai transformando tanto no
emprego como na fonte dominante de novas riquezas em nossa sociedade.
Este é o novo papel dos homens na sociedade, enquanto que a velha idéia
mecanística de “emprego” — tarefa fragmentada ou vaga especializada para
“trabalhadores” — vai perdendo o sentido sob o regime da automação.
Os engenheiros muitas vezes têm declarado que, à medida que se eleva
o nível da informação, quase que toda sorte de materiais pode ser adaptada a
toda espécie de utilização. Este princípio é a chave para a compreensão da
automação elétrica. No caso da eletricidade, à medida que a energia para a
produção se torna independente da operação de trabalho, não apenas o fator
velocidade opera no sentido de uma inter-relação total e orgânica, como ocorre
que a eletricidade, sendo informação pura, na prática ilumina tudo o que toca.
Todo processo que se aproxima da inter-relação instantânea de um campo total
tende a elevar-se ao nível do conhecimento consciente — daí que os
computadores pareçam “pensar”. Em verdade, nos dias atuais, eles são
altamente especializados, carecendo ainda de muita coisa para o completo
processo de inter-relação necessário à consciência. Obviamente, eles podem
chegar a simular o processo da consciência, assim como a rede elétrica global
já começa a simular as condições de nosso sistema nervoso central. Mas um
computador consciente ainda seria uma extensão de nossa consciência, como
um telescópio é uma extensão do olho, ou um boneco de ventríloquo é uma
extensão do ventríloquo.
A automação sem dúvida incorpora o serviço mecânico e o computador;
vale dizer que incorpora a eletricidade como estoque e acelerador da
informação. Estas características de armazenamento, ou e de acelerador.
constituem traços básicos de qualquer meio de comunicação. No caso da
eletricidade, o que se armazena e desloca não é uma substância corpórea, mas
percepção e informação Quanto à aceleração tecnológica, ela já se aproxima da
velocidade da luz. Todos os meios não-elétricos simplesmente haviam acelerado
as coisas em pequena medida. A roda, a estrada, o navio, o avião e mesmo o
foguete espacial carecem totalmente das características do movimento
instantâneo. É, pois, de admirar que a eletricidade confira a toda a organização
humana anterior um caráter inteiramente novo? O próprio esforço do homem
agora se torna uma espécie de esclarecimento. Assim como a Adão no Paraíso
fora dada a tarefa da contemplação e da nomeação das coisas — assim se dá
com a automação. Agora não temos senão que nomear e programar um
processo ou um produto para que ele se realize. Não é o mesmo caso do
Schmoo, de Al Capp? Bastava olhar para o Schmoo e pensar numa remota
costeleta de porco ou em caviar, e o Schmoo logo se transformava no objeto de
desejo. A automação nos leva para o mundo do Schmoo. O sob-medida supera
o produto em massa.
Como dizem os chineses: vamos chegar nossas cadeiras mais para perto
do fogo para ver o que estamos dizendo. As mudanças elétricas associadas à
automação nada tem a ver com ideologias ou programas sociais. Se o tivessem,
poderiam ser retiradas ou controladas. Ao invés disso, a extensão tecnológica
de nosso sistema nervoso central — e que nós chamamos de meios elétricos —
começou há mais de um século, subliminarmente. Os efeitos têm sido
subliminares. E permanecem subliminares. Em nenhum período da cultura
humana os homens compreenderam os mecanismos psíquicos envolvidos na
invenção e na tecnologia. Hoje, é a velocidade instantânea da informação
elétrica que, pela primeira vez, permite o fácil reconhecimento dos padrões e
dos contornos formais da mudança e do desenvolvimento. O mundo todo,
passado e presente, agora se desvenda aos nossos olhos como uma planta a
crescer num filme extraordinariamente acelerado. A velocidade elétrica é
sinônimo de luz e do entendimento das causas. Assim, o emprego da
eletricidade em situações anteriormente mecanizadas faz com que os homens
facilmente descubram padrões e relações causais, antes impossíveis de serem
observadas devido aos lentos índices das mudanças mecânicas. Se fizermos
correr para trás a fita do longo desenvolvimento da cultura letrada e da
impressão gráfica, poderemos ver facilmente como essas formas trouxeram um
alto grau de uniformidade e homogeneidade sociais, indispensáveis à indústria
mecânica. Contemplando-as da frente para trás. sentimos aquele choque da
não-familiaridade no familiar necessário a compreensão da vida das formas. A
eletricidade nos impele a fazer correr nosso desenvolvimento mecânico da
frente para trás, pois tende a produzir a reversão desse desenvolvimento. A
mecanização depende do estilhaçamento de um processo em partes
homogeneizadas mas não relacionadas. A eletricidade unifica esses fragmentos
novamente porque a sua velocidade de operações exige um alto grau de
interdependência entre todas as fases de uma operação. Esta aceleração e esta
interdependência elétricas acabaram com a linha de montagem na indústria.
Esta mesma necessidade de inter-relação orgânica trazida pela
velocidade da sincronização elétrica agora nos concita — indústria por indústria
e país por país — a levar a efeito exatamente a mesma inter-relação orgânica
levada a afeito na primeira unidade individual automatizada. A velocidade
elétrica exige a estruturação orgânica da economia global, assim como a
mecanização primitiva — imprensa e estrada — conduziu à aceitação da
unidade nacional. Não esqueçamos que o nacionalismo foi uma invenção e uma
revolução poderosa; durante o Renascimento, ele riscou do mapa muitas
regiões e aliados locais. Foi uma revolução conseguida quase que inteiramente
pela aceleração da informação graças aos uniformes tipos móveis da imprensa.
O nacionalismo praticou um corte na maior parte das forças tradicionais e
grupos culturais que se haviam formado lentamente nas várias regiões. Os
multinacionalismos sempre impediram a unidade econômica da Europa. O
Mercado Comum só apareceu depois da Segunda Guerra. A guerra é mudança
social acelerada, tal como uma explosão é uma reação química e um
movimento de matéria acelerados. Com as velocidades elétricas governando a
indústria e a vida social, a explosão, no sentido de desenvolvimentos
esmagadores, torna-se coisa normal. De outro lado, os velhos e superados tipos
de “guerra” se tornam tão impraticáveis quanto jogar amarelinha com bull
dozers. A interdependência orgânica significa que a ruptura de qualquer parte
do organismo pode ser fatal para o todo. Cada indústria teve de “repensar
fundo” (a estranheza desta expressão já indica o quanto o processo é
doloroso), função por função, o seu lugar na economia. A automação não
obriga apenas a indústria e os urbanistas a se relacionarem com os fatos sociais
— mas também o governo e mesmo a educação.
Com a automação, os vários setores militares tiveram de alinhar-se
rapidamente. Desapareceram as pesadas formas mecânicas da organização
militar. Pequenas equipes de peritos substituíram os exércitos de cidadãos de
outrora mais rapidamente ainda do que fizeram em relação à reorganização
industrial. Cidadãos uniformemente treinados e homogeneizados de preparação
demorada e tão necessários a uma sociedade mecanizada, vão-se tornando
verdadeiro encargo e um sério problema para a sociedade automatizada. Pois a
automação e a eletricidade solicitam abordagens em profundidade. em todos os
campos e a todos os momentos. Daí a súbita rejeição dos bens, das paisagens,
dos modos de vida e da educação padronizados, na América, a partir da
Segunda Guerra. É uma mudança imposta pela tecnologia elétrica em geral — e
pela imagem da TV, em particular.
A automação foi primeiro sentida e aplicada em larga escala nas
indústrias petroquímicas e metalúrgicas. As grandes alterações nesse setor, que
foram possibilitadas pela energia elétrica, já começaram a se manifestar, graças
aos computadores, em todas as áreas da administração e dos colarinhos
brancos. Em conseqüência, muitas pessoas começaram a encarar a sociedade
inteira como uma máquina unificada destinada à criação de riquezas. Esta
sempre foi a visão normal do corretor da Bolsa, habituado a manipular títulos e
informações com o auxílio dos meios elétricos da imprensa, do rádio, do
telefone e do teletipo. Mas a manipulação especial e abstrata da informação
como meio de criar riqueza não é mais um monopólio do corretor de títulos. Já
é partilhada pelos engenheiros e por todas as indústrias da comunicação. Com
a eletricidade, energética e sincronizadora, todos os aspectos da produção, do
consumo e da organização estão sujeitos à comunicação. A própria idéia de
comunicação corno inter-relação é inerente ao elétrico, que combina a energia
e a informação em sua multiplicidade concentrada.
Quem quer que se ponha a examinar os padrões da automação logo
descobre que o aperfeiçoamento de uma máquina, no sentido de torná-la
automática, envolve o feedback (realimentação). I sto, significa introduzir um
loop ou circuito informacional onde antes havia um fluxo unidirecional, ou
seqüência mecânica. O feedback significa o fim da linearidade introduzida no
mundo ocidental pelo alfabeto e pelas formas contínuas do espaço euclidiano.
O feedback, ou diálogo entre o mecanismo e sua ambiência, acarreta o
entrelaçamento de máquinas isoladas numa galáxia de máquinas que toma
conta de toda a planta ou layout da fábrica. Daqui deriva um novo
entrelaçamento entre plantas isoladas e fábricas, no sentido de toda uma
matriz industrial dos materiais e serviços de uma cultura. Naturalmente, este
último estágio depara com um mundo de diretrizes, uma vez que tratar todo o
complexo industrial como um sistema orgânico afeta o mercado de trabalho, a
segurança, a educação e a política, demandando plena compreensão previa das
mudanças estruturais iminentes. Nessas organizações elétricas e instantâneas,
não há lugar para pressuposições tolas e fatores subliminares.
Assim como, há um século, os artistas começaram a construir suas obras
da frente para trás, começando com o efeito, assim agora se dá com a indústria
e o planejamento. Em geral, a aceleração elétrica exige completo conhecimento
dos efeitos finais. As acelerações mecânicas, por radicais que fossem em sua
ação de remodelar a vida pessoal e social ainda tinham margem para se
manifestar seqüencialmente. Em sua maioria, os homens podiam preencher o
espaço normal de uma vida com base num único conjunto de habilitações. A
aquisição de novos conhecimentos e habilitações básicas, por parte de
executivos graduados e de meia-idade, constitui uma das necessidades mais
comuns e um dos fatos mais aflitivos da tecnologia elétrica. Os executivos
graduados, ou de “alta roda”, como são arcaica e ironicamente designados,
formam entre os grupos mais duramente pressionados e mais persistentemente
acossados de toda a história humana. A eletricidade não apenas passou a exigir
um conhecimento mais profundo e uma inter-relação mais rápida, como tornou
a harmonização dos programas de produção tão rigorosa quanto a dos
membros de uma grande orquestra sinfônica. E as satisfações que os
executivos e os músicos derivam dessa situação são igualmente pequenas, pois
o executante de uma grande orquestra nada pode ouvir da música que delicia a
assistência. Tudo o que ouve é ruído.
O resultado da aceleração elétrica da indústria em geral é a criação de
uma intensa sensibilidade para com a inter-relação e o interprocesso do todo, a
ponto de exigir a renovação constante dos tipos de organização e dos talentos.
Vista das velhas perspectivas da era da máquina, esta rede elétrica de plantas
industriais e de processos parece frágil e apertada. De fato, ela não é mecânica
e começa a desenvolver a sensibilidade e a flexibilidade do organismo humano.
Para isso, exige os mesmos cuidados de nutrição e criação exigidos pelo
organismo animal.
Com os interprocessos complexos e instantâneos da forma orgânica, a
indústria automatizada também adquire a capacidade de adaptar-se a múltiplos
usos. Uma maquinaria para a produção automática de lâmpadas elétricas
representa combinação de processos que antes se dividiam por diversas
máquinas. Com um único operador, ela pode funcionar continuamente como
uma árvore, da entrada à saída. Diversamente da árvore, porém, possui um
sistema embutido de gabaritos e dispositivos que lhe permite fabricar toda uma
série de produtos, desde copos e válvulas de rádio até ornamentos de árvore
de Natal. Embora uma fábrica automatizada seja quase igual a uma árvore, no
que diz respeito à entrada e saída contínuas, trata-se de uma árvore que pode
passar de carvalho a castanheiro e a nogueira, conforme se queira. Para a
automação, ou a lógica elétrica, a especialização já não se limita a uma única
especialidade. A máquina automática pode operar de maneira especializada,
mas não se limita a uma única linha. Assim como nossas mãos e dedos são
capazes de numerosas tarefas, a unidade automática incorpora um poder de
adaptação inexistente no estágio da tecnologia mecânica e pré-elétrica.
Qualquer coisa que se torna mais complexa, torna-se menos especializada. O
homem é mais complexo e menos especializado do que um dinossauro. As
antigas operações mecânicas eram projetadas para ser mais eficientes. na
medida mesma em que se tornavam maiores e mais especializadas. A unidade
elétrica e automatizada, no entanto, é bem outra coisa. Uma nova máquina
automática para fabricar escapamentos de automóveis tem o tamanho de duas
ou três escrivaninhas. O painel de controle do computador é do tamanho de
uma estante de leitura. A máquina não possui moldes, acessórios ou armações
de qualquer espécie, mas apenas certas coisas de finalidade genérica, tais
como tenazes, encurvadeiras e aceleradores. Começando com comprimentos de
tubos padronizados, ela pode produzir 80 tipos diferentes de escapamentos,
sucessivamente, com a mesma rapidez, facilidade e economia com que poderia
produzir 80 escapamentos do mesmo modelo. A característica da automação
elétrica tende para a volta à flexibilidade artesanal geral que nossas mãos
possuem. A programação pode agora incluir inúmeras mudanças de programa.
É o feedback elétrico, ou estrutura-diálogo, da ‘‘máquina" automática e
programada pelo computador, que a distingue do velho princípio mecânico do
movimento unidirecional. Por suas características, o computador serve de
modelo para a automação. Da entrada do material até a saída do produto
acabado, as operações tendem a ser independentemente, bem como
interdependentemente, automáticas. A harmonia sincronizada das operações
está sob o controle de instrumentos e indicadores, que podem ser modificados
pelo painel de controle — estes também eletrônicos. O material de entrada é
relativamente uniforme em forma, tamanho e propriedades químicas, bem
como o material de saída. Sob estas condições, o processamento possibilita o
mais elevado nível de capacidade em qualquer uma das fases de produção.
Comparando com as máquinas tradicionais, é a diferença que vai entre um
oboé numa orquestra e o mesmo timbre num instrumento musical eletrônico.
Neste, qualquer timbre ou tom pode ser atingido em qualquer intensidade e por
qualquer espaço de tempo. Cumpre observar que a orquestra sinfônica
tradicional, em comparação, pode ser tida como uma máquina de instrumentos
separados que produziam o efeito de uma unidade orgânica. Com o
instrumental eletrônico, começa-se com a unidade orgânica como um fato
imediato de sincronização perfeita. I sto faz com que a busca de efeitos de
unidade orgânica careça de maior sentido. A música eletrônica deve buscar
outras metas.
Esta também é a dura lógica da automação industrial. Tudo o que antes
era conseguido mecanicamente, por meio de grande empenho e coordenação,
agora é obtido eletricamente sem maiores esforços. Daí o espectro do
desemprego e da ausência de propriedade na era da eletricidade. A riqueza e o
trabalho se tomam fatores informacionais e estruturas totalmente novas se
tornam necessárias para dirigir um negócio e relacioná-lo aos mercados e às
necessidades sociais. Com a tecnologia elétrica, os novos tipos de
interdependência e interprocesso instantâneos que comandam a produção
ingressam também nas organizações sociais e de mercado. Por esta razão, o
mercado e o ensino projetados para serem atendidos pelos produtos do
trabalho servil e da produção mecânica, já não são mais adequados. Há muito
tempo já que a nossa educação está marcada pelo caráter fragmentário e
parcelado do mecânico. E sofre agora a pressão crescente das forças que a
impelem para a profundidade e a inter-relação indispensáveis no mundo deuma-vez da organização elétrica.
Paradoxalmente, a automação torna obrigatória a educação liberal. A era
elétrica dos servomecanismos passa a liberar os homens da servidão mecânica
e especializada da era maquinizada anterior. Assim como a máquina e o
automóvel liberaram o cavalo e o projetaram no plano do entretenimento,
assim faz a automação em relação aos homens. De repente somos como que
ameaçados por uma libertação que põe à prova nossos recursos internos de
auto-emprego e de participação imaginativa na sociedade. Muita gente passará
a perceber o quanto estava na dependência das rotinas monótonas e
fragmentadas da era mecânica. Há milhares de anos atrás, o homem, coletor
de comida, assumiu tarefas posicionais ou relativamente sedentárias. Começou
a especializar-se. O desenvolvimento da escrita e da imprensa marcou fases
importantes desse processo. Tornaram-se extremamente especializados em
separar os papéis do conhecimento dos papéis da ação, embora às vezes
pudessem dar a impressão de que “a pena era mais poderosa do que a
espada”. Mas com a eletricidade e a automação, a tecnologia dos processos
fragmentados de repente fundiu-se com o diálogo humano e com a
necessidade de levar em consideração integral a unidade humana. De repente,
os homens passaram a ser nômades à cata de conhecimentos — nômades
como nunca, informados como nunca, livres como nunca do especialismo
fragmentário, mas envolvidos como nunca no processo social total; com a
eletricidade, efetuamos a extensão de nosso sistema nervoso central,
globalmente, inter-relacionando instantaneamente toda a experiência humana.
Já acostumados a esta situação pela leitura das notícias sobre a Bolsa de
Valores e das notícias sensacionais de primeira página, podemos apreender
mais rapidamente o significado desta nova dimensão quando sabemos que é
possível fazer “voar” aviões ainda não construídos, por meio de computadores.
As especificações de um avião podem ser programadas e o avião testado por
meio de provas as mais diversas antes mesmo que ele tenha deixado a
prancheta. O mesmo se passa com muitos produtos novos e muitas novas
organizações. Graças ao computador, podemos agora abordar necessidades
sociais complexas com a mesma certeza arquitetônica anteriormente
conseguida para a habitação particular. A indústria, como um todo, tornou-se
uma unidade de cálculo, o mesmo se dando com a sociedade, a política e a
educação consideradas como globalidades.
Os meios elétricos de armazenar e movimentar a informação com
velocidade e precisão fazem com que as grandes unidades sejam tão
manipuláveis quanto as pequenas. Assim, a automação de uma fábrica ou de
um conjunto industrial fornece um pequeno modelo das mudanças que devem
ocorrer na sociedade por força da mesma tecnologia elétrica. O fato inicial é a
interdependência total. Todavia. o âmbito de escolha — no projeto, na
prioridade e na finalidade dentro do campo total do interprocesso
eletromagnético é muito maior do que aquele que poderia ser propiciado pela
mecanização.
Como a energia elétrica é independente do lugar ou da espécie de
trabalho operacional, cria padrões de descentralização e de diversificação no
trabalho a ser executado. Esta lógica se torna meridianamente clara na
diferença entre a luz do fogo e a luz elétrica, por exemplo. As pessoas que se
agrupam em torno de um fogo ou de uma vela, para aquecerem-se ou
iluminarem-se, são menos capazes de desenvolver pensamentos, ou mesmo
tarefas, independentes, do que as pessoas que se beneficiam da luz elétrica. Do
mesmo modo, os padrões sociais e educacionais latentes na automação são
aqueles do auto-emprego e da autonomia artística. O temor pânico ante a
automação, encarada como uma ameaça de uniformidade em escala mundial, é
uma projeção no futuro do especialismo e da padronização mecânica — que
agora pertencem ao passado.
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