BIOPOLÍTICA E NIILISMO
Marcos Nalli1
Resumo: Pretendo mostrar como o tema da biopolítica pode se articular com o tema do niilismo. Para isso,
concentrarei a atenção em expor esquematicamente alguns dos principais argumentos de Roberto Esposito que
autorizam aquela articulação. Assim, primeiramente, considerarei os elementos constitutivos da comunidade que
podem ser interpretados como niilistas. Tendo esse dado como ponto de partida, procurarei mostrar de que modo
o paradigma imunitário, longe de resolver a deriva niilista que assombra a comunidade, acaba por acirrá-lo; o que
leva a articulação com a questão da biopolítica que, paradoxalmente, sendo uma política da vida se desvirtua numa
política de morte e aniquilação do sujeito. Por fim, tomando a questão de uma política da negação, implicada na
deriva tanatopolítica, apresento como Esposito crê poder solucionar esse perigo, isto é, por uma assunção da
potência afirmativa da negação.
Palavras-chaves: Roberto Esposito. Biopolítica. Niilismo. Communitas. Immunitas. Política da Negação.
BIOPOLITCS AND NIHILISM
Abstract: I intend to show how the theme of biopolitics can be articulated with the theme of nihilism. For this, I
will focus my attention on schematically exposing some of Roberto Esposito's main arguments that authorize that
articulation. So, first, I will consider the constitutive elements of the community that can be interpreted as nihilistic.
Having this as a starting point, I will try to show how the immune paradigm, far from resolving the nihilistic drift
that haunts the community, ends up intensifying it; which leads to the articulation with the question of biopolitics
which, paradoxically, being a politics of life, is distorted in a politics of death and annihilation of the subject.
Finally, taking the question of a politics of negation, involved in the thanatopolitical drift, I present how Esposito
believes he can solve this danger, that is, by assuming the affirmative power of negation.
Keywords: Roberto Esposito. Biopolitics. Nihilism. Communitas. Immunitas. Denial Policy.
É possível encontrar algum equacionamento permissível entre biopolítica e niilismo?
A se considerar dois pensadores fundamentais para se pensar o tema da biopolítica – Michel
Foucault e Roberto Esposito – não se trata de uma pergunta de fácil resposta.
Ao que parece, Foucault não demonstrou interesse pelo tema do niilismo. Se
consultarmos o índice onomástico de seu Dits et écrits (1994), não há qualquer menção ao
termo niilismo.
Esposito, por sua vez, se interessou pelo tema; no entanto, ainda em sua relação
paradoxal com o tema da comunidade. Essa relação é objeto de sua consideração em pelo menos
duas ocasiões de modo mais detido: em Communitas: Origine e destino della comunità,
publicado originalmente em 1998 e no ensaio publicado em 2000 "Nichilismo e comunità”, que
foi incluso como adendo àquele livro em sua segunda edição de 2006 e numa coletânea de 2008,
intitulada Termini della politica. Só mais recentemente, em 2018, com a publicação de
1
Bolsista PQ do CNPq, Professor do PPG-Filosofia e PPG-Psicologia na Universidade Estadual de Londrina.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6476-1472. E-mail: marcosnalli@yahoo.com
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Biopolitica e negazione, Esposito retoma o tema do niilismo, desta vez ligando com a
biopolítica.
Assim, isto posto, o que procurarei fazer neste artigo é apresentar, ainda que de modo
sumário e um tanto esquemático, de que modo Roberto Esposito estabelece conexões possíveis,
ou até permissíveis, entre biopolítica e niilismo.
Niilismo e comunidade
Consideremos, primeiramente, a leitura espositiana do niilismo em função de sua
relação com a comunidade.
Em 1998, Esposito publica o livro Communitas. Esse livro tem uma estrutura que pode
e deve ser considerada para entender as estratégias discursivas escolhidas pelo filósofo italiano.
Trata-se de cinco capítulos em que Esposito, aliando uma fina análise hermenêutica a uma
potência crítica ímpar, considera cinco pensadores e busca estabelecer sob uma categoria
conceitual específica como o tema da comunidade aparece em cada um daqueles cinco
pensadores. Assim sendo, temos um primeiro capítulo, sobre Hobbes e o medo, o segundo
dedicado a Rousseau e a culpa, um terceiro sobre Kant e a lei, um quarto capítulo sobre
Heidegger e o êxtase, e por fim, Esposito se debruça no último a analisar o tema da experiência
em Bataille.
A meu ver, como já busquei demonstrar anteriormente (NALLI, 2018), essa análise
final é de extrema importância, pois é nela que se percebe a articulação argumentativa e a
demonstração da tese do livro, à medida em que cada capítulo sucessor geralmente está em
diálogo com o anterior; mas o capítulo final de Communitas não é uma resposta crítica ao
capítulo sobre Heidegger e o êxtase, ainda que dialogue com ele. O capítulo sobre Bataille é
uma resposta a toda a história que paulatinamente Esposito monta sobre o tema da comunidade
diante do paradoxo que lhe é inerente, a saber, da presença de um núcleo niilista na ideia de
comunidade, que é chave para se interpretar desde aí toda a matriz que sustenta as relações
sociais e políticas. Bataille parece enfrentar o problema de modo a não apagar o paradoxo, mas
a radicalizá-lo. Por essa razão Bataille é apresentado como “o mais radical anti-Hobbes” (2006,
p. 128).
A estratégia espositiana para considerar aquilo que entende como o núcleo niilista da
comunidade parte da consideração de qual o lugar e estatuto que cabe ao sujeito frente à
comunidade. Primeiramente de um ponto de vista crítico (há que se “limpar” o terreno) trata-se
de perceber que não há uma simetria entre comunidade e sujeito: a comunidade não é uma
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espécie de “mais sujeito”, ou uma propriedade ou qualidade do sujeito, ou ainda seu duplo – o
que no entender de Esposito é uma distorção. Assim, há que se buscar sob que condições se
estabelece os liames entre comunidade e sujeito. E a hipótese interpretativa do filósofo italiano
é que ela reside na análise, já realizada etimologicamente por Émile Benveniste ou
etnologicamente por Marcel Mauss, no que consiste o munus, célula radical do termo
comunidade, que remete à obrigatoriedade da dádiva, e que coloca o sujeito obrigado a retribuir
a dar “qualquer coisa que não pode ter para si” (ESPOSITO, 2006, p. XII); ou seja, dá-se o que
não se pode deter ou ter por não ser, desde o começo da obrigação, seu, sua propriedade, pois
já pertence a outro, não importa o que seja. E a análise que ele dá do prefixo “cum” acirra ainda
mais a complexidade problemática da comunidade realçando assim o seu núcleo niilista, a saber
da simetria da impropriedade.
Resulta que communitas é o conjunto de pessoas unidas não por uma “propriedade”,
mas, de fato, por um dever ou por um débito. Não por um “mais”, mas por um
“menos”, por uma falta, por um limite que se configura como um ônus, ou ainda uma
modalidade defectiva, para aquele que é “afetado”, a diferença daquele que é, ao
contrário, “isento” ou “dispensado”. [...] o munus que a communitas condivide não é
uma propriedade ou uma “pertença”. Não é um ter mas, ao contrário, um débito, um
compromisso, um dom-a-dar. E então o que determinará, que está por vir, que
virtualmente já é uma falta. Os sujeitos da comunidade estão unidos por um “dever”
[...] que lhes tornam não inteiramente senhores de si mesmos. E que mais
precisamente os expropria, em parte ou por inteiro, de sua propriedade inicial, de sua
propriedade mais própria, vale dizer de sua subjetividade mesma (ESPOSITO, 2006,
p. XIII-XIV).
Da mesma forma que a analogia especular não permite explicar a relação entre
comunidade e sujeito de modo que aquela não é este, também não permite um
consequencialismo comunitarista pelo qual o sujeito se determina como tal por viver em
comunidade. A comunidade não institui subjetividade e nem vida; ao contrário, as subtrai, ou
ainda, mais precisamente, “em comunidade, não temos nada em comum, vivemos nela, mas não
somos nela” (NALLI, 2018, p. 244). Ou seja, na argumentação espositiana, se há alguma
possibilidade de se admitir algum tipo de consequencialismo, é aquele que não se caracteriza
por um traço constitutivo de subjetividade, mas em sua necessária supressão ou até mesmo no
seu impedimento constitutivo. Ou há comunidade ou há sujeito. Para que haja comunidade urge
que o sujeito seja destituído, desprovido de algo que, ao fim e ao cabo não lhe pertence como
propriedade e não o caracteriza como próprio e ipse (mas que também não o coloca como um
outro, externo à comunidade). Para que a comunidade exista e cumpra sua constituição
ontológica, é necessário que o sujeito a habite, e nela coabite e compartilhe com outros sujeitos
enquanto suprimidos de si mesmos como propriamente sujeitos, sujeitos in debitum; ou ainda,
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segundo a fórmula mesma de Esposito, “sujeitos da própria falta, da falta de próprio”
(ESPOSITO, 2006, p. XIV).
Eis, em suas linhas mestras, no que consiste o núcleo niilista da comunidade. O que já
nos permite alinhavar os traços que Esposito considera como relevantes em sua caracterização
do niilismo. Para ele, não se trata de uma questão a ser considerada desde a perspectiva moral,
e neste sentido subjetiva, ou até mesmo individualista; tampouco se trata de considerar desde
uma perspectiva de crítica à cultura ou a uma espécie de visão de mundo marcada pelo
desencantamento e pela perda de sentido. Não que tais matizes não devam ser consideradas em
que pese sua relevância, mas a perspectiva escolhida está num entrecruzamento entre ontologia
e política no qual o sujeito está enredado e cuja problemática o atravessa inteiro. Afinal, se
como observava Aristóteles, o homem é zoon polítikon, um animal social (ARISTÓTELES,
Política, I, I, 1253 a, p. 15; III, IV, 1278 b, p. 89), isto se deve por sua existência política, quer
dizer social. E toda sociedade, nos termos do estagirita, toda cidade, toda pólis é um tipo de
comunidade (ARISTÓTELES, Política, I, I, 1252 a, p. 13). Mas se a comunidade qualifica o
homem como ser social, Esposito crê encontrar aí o ponto nevrálgico de seu niilismo, ela o faz
pela supressão de sua subjetividade ou, em outros termos, de sua vida social, uma vez que o
sujeito é o sujeito da falta, marcado pelo dever de retribuição e paga do que, em verdade, se é
portador mas que não possui. Assim, a comunidade não é espaço ou condição de proteção ao
sujeito; ao contrário, é a condição de partida para a mais radical das perdas, não a das posses,
mas de si mesmo numa vertigem de completo aniquilamento de sua subjetividade como
ipseidade e de qualquer ponto de contato com o outro (ESPOSITO, 2006, p. 151).
É a partir deste contexto geral do núcleo niilista da comunidade que Esposito usa a
curiosa fórmula “niente in comune” – “nada em comum” – como título do prefácio ao livro
Communitas. Ao que, numa espécie de trocadilho irônico, ele se pergunta pelo que liga a
comunidade e o niilismo, perguntando justamente pelo que há de comum entre os indivíduos
que habitam a comunidade, e que não a podem deixar de habitar face sua condição social; ao
que responde, “nada” (ESPOSITO, 2006, p. 147). O trocadilho é, obviamente depois do que
aqui expus, de que não se trata em absoluto de ausência de contato ou de vínculo, e sim que o
ponto em comum é exatamente esse vazio que os move. Um vazio que se faz patente ao se
compreender a natureza debitativa do sujeito em comunidade, tendo por contraponto que, não
estando em comunidade, ele não auto-suficiente, sendo assim o mais desgraçado dentre os
animais, como já afirmava Aristóteles (Política, I, I, 1253 a, p. 16). Por isso se fora da
comunidade, o indivíduo não se realiza como sujeito social, em comunidade, ele se
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dessubjetiva. O que é agravada justamente pela reciprocidade dos indivíduos em sua falta e, por
isso, em sua obrigação recíproca. Assim, “o nada não é, em suma, a condição ou êxito da
comunidade – o pressuposto que a libera para a sua verdadeira possibilidade – e sim seu único
modo de ser. Em outras palavras, a comunidade não é interditada, obscurecida, velada – mas
constituída pelo nada” (ESPOSITO, 2006, p. 149).
Niilismo e biopolítica
Agora, é preciso aqui captar como Esposito compreende os esforços e estratégias, o
dispositivo mesmo de escapar e superar essa natureza niilista da comunidade, donde se parte
para pensar a política, a sociedade e o sujeito que a habita. Para isso, temos que considerar,
inicialmente em que consiste o dispositivo imunitário e depois buscar entender o lugar que tal
dispositivo ocupa na problemática da biopolítica.
Para entender a problemática então implicada, é preciso ter em mente uma pergunta,
qual seja, “como pensar – mas também como viver – o ‘comum’ no tempo da imunização?”
(ESPOSITO, 2008, p. 112). Ela implica, portanto, entender que tipo de relação se vislumbra
entre comunidade e imunidade, ou, pensando com as categorias latinas a que Esposito recorre,
communitas e immunitas. De um ponto de vista etimológico, ambos os termos compartilham a
mesma raiz – múnus (dever, obrigação) – diferindo em seus prefixos – cum e im.
O elemento de novidade que eu mesmo propus ao debate no que me parece ser a
primeira elaboração sistemática do paradigma imunitário, atém-se por um lado à
simetria contrastante com o conceito de comunidade, esse mesmo relido à luz de seu
significado originário, e por outro lado à sua específica caracterização moderna. As
duas questões se mostram logo estreitamente entrelaçadas. Reconduzida à sua própria
raiz etimológica, a immunitas se revela a forma negativa, ou privativa, da communitas:
se a communitas é aquela relação que, vinculando seus membros a um empenho de
doação recíproca, põe em perigo a identidade individual, a immunitas é a condição de
dispensa de tal obrigação e então de defesa nos confrontos com seus efeitos
expropriativos (ESPOSITO, 2004, p. 47; 2010, p. 80).
A função, pois do dispositivo imunitário é exatamente neutralizar esse niilismo
inerente à comunidade “que nos ameaça ao mesmo tempo que nos determina” (NALLI, 2013,
p. 85), que nos lança cada vez mais em direção a um aniquilamento de nossa subjetividade, de
nosso eu mesmo. E que se parece nos lançar para uma condição outra, não o é realmente um
outro-eu, uma alteridade residente numa estrutura e num quadro de reconhecimento (o outro
que reconheço, enfim, como especular e análogo a mim), mas a uma constante alteração que
nos dissolve e nos impede qualquer subjetividade, numa completa indiferenciação. O
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dispositivo imunitário, portanto, visa dispensar-nos de nossos compromissos muníficos, de
nossa dívida originária. Vê-se, portanto, que o ponto de partida já é a condição negativa de
nossa existência como seres sociais e membros partícipes de uma comunidade. A lógica de
funcionamento, por assim dizer, do dispositivo é tomar como dado esse negativo tal qual um
mal a ser combatido, evitado ou neutralizado (NALLI, 2013, p. 88). E, para isso, tal como na
moderna imunologia, trata-se de simular, ou ainda mais, inocular controladamente algum mal
– no caso da ontologia política espositiana – o nada que nos atravessa a todos e que todos
compartilhamos em comum, qual seja, o nada. O que pressupõe uma presunção de controle
dessa instanciação negativa, desse nada entendido como uma espécie de mal, com vistas a obter
e induzir estratégias de refração e defesa contra esse mal que é nada mais que o nada. Como
capturar e controlar o nada? Assim sendo, o significa a estratégia imunitária senão que não se
trata de nos livrar do munus e sim de sua reciprocidade tributária – implicada no prefixo “cum”,
como observa Esposito (2002, p. 14; 2009, p. 15). E que ele completa:
A comunidade enquanto tal é literalmente insustentável. Para que possa resistir frente
ao risco entrópico que a ameaça – e com o qual em última instância coincide – deve
ser esterilizada preventivamente contra seu inerente conteúdo relacional. Imunizada
contra o munus que a expõe ao contágio com aquilo que a supera desde seu interior
mesmo (ESPOSITO, 2002, p. 24; 2009, p. 24-25).
Se o munus da comunidade coloca o indivíduo numa dessubjetivação de si, como um
sujeito sempre e de partida em débito, essa potência niilista explicita toda a sua intensidade e
perigo justamente a partir de sua reciprocidade que espraia a todos os recantos da vida comunal;
podemos até dizer, se universaliza, não como um acidente e episódio, mas como a própria
condição fulcral da existência comunitária. Por isso o sistema imunitário deve ser entendido
como não negativo, uma vez que pressupõe o que busca negar, na condição de derivado e
constituído (ESPOSITO, 2004, p. 48, p. 2010, p. 81-82). Isto posto, tem-se a plena
caracterização dramática da aporia que habita o sistema imunitário: concebido para proteger os
indivíduos da vaga niilista da comunidade que os dessubjetiva, o dispositivo imunitário os
empurra ainda mais em direção ao nada, pondo em risco toda a forma de vida quanto de
existência comunitária.
Ter presente essa aporia é fundamental para entender os lastros entre biopolítica e
niilismo, como bem atesta Esposito. Segundo o filósofo, a importância analítica dessa proposta
reside no fato de estabelecer uma articulação imanente e que dispensa qualquer ideia de um
transcendente, isto é, de um elemento estranho, como um argumento “ad hoc”, para explicar a
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deriva niilista da biopolítica. A explicação de sua condição paradoxal e aporética é dada
justamente pela releitura imunitária: a biopolítica entendida desde o paradigma imunitário que
o rege é “uma proteção negativa da vida” (ESPOSITO, 2004, p. 42, 2010, p. 74). Como tal ela
protege e conserva a vida lançando-a ao perigo de se perder no nada para a qual a entrega
(ESPOSITO, 2002, p. 132; 2009, p. 123). A biopolítica imunitária não afirma a vida; apenas a
isola e a envolve numa delgada membrana de proteção sujeita a ruturas a qualquer momento, e
assim sempre sujeita a toda forma de perigo que, em última instância implica em sua
aniquilação. Proteger, nesse caso é cada vez mais fortalecer e enrijecer essa capa protetiva a
partir de uma geração controlada de conflito e de toda sorte de fatores desagregadores para a
comunidade, para os indivíduos subjetivados como tais, e para a vida, protegendo-os preventiva
e precavidamente de possíveis ameaças maiores.
Este é um ponto de bastante interesse na análise então empreendida posto que Esposito
não considera o paradigma imunitário descolado da comunidade e de sua condição ontológiconiilista; antes ele considera aquela como parte inerente do modo próprio de operar da
comunidade, a defesa imunitária “está em sua engrenagem interna. [...] Para sobreviver, a
comunidade, cada comunidade, é constrangida a introjetar a modalidade negativa do próprio
oposto; ainda que tal oposto permaneça um modo de ser, na verdade privativo e contrastante,
da comunidade mesma” (ESPOSITO, 2004, p. 48-49, 2010, p. 82). No entanto, essa introjeção
negativada do oposto, à medida em que é um produto gestado na comunidade mesma pode –
com alguma recorrência que não é da ordem do acidental, mas um traço indicativo de sua
condição estrutural (ESPOSITO, 2002, p. 28; 2009, p. 28) – escapar de toda e qualquer forma
estratégica de controle imunitário. E, assim, dar ampla vazão a seu caráter niilista de modo a,
mais do que falhar como estratégia defensiva, se confirmar em seu poder autodestrutivo e
autodesagregador, símile às doenças autoimunes em que o sistema imunológico ataca o próprio
corpo.
Aliás, é no corpo que se dão todas as batalhas, de vida e morte, ou mais, entre vida e
morte, e que autoriza a biopolítica. Uma vez que a biopolítica toma a vida, sem qualquer
mediação formal, como seu objeto, é sobre o corpo vivo que opera lógica e estrategicamente,
desde uma perspectiva imunitária:
Retardar o quanto é possível a passagem da vida à morte, empurrar a morte ao ponto
mais longe da atualidade da vida. O corpo é a ao mesmo tempo o terreno e o
instrumento desta batalha. Enquanto resistir, não haverá morte. [...] Porque o corpo
não é compatível com a morte por muito tempo. Seu encontro é só momentâneo:
morto, o corpo não dura. Para ser corpo, deve conservar-se em vida. Como já se dizia,
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é a frente de resistência, simbólica e material, da vida nos confrontos com a morte
(ESPOSITO, 2002, p. 174-175; 2009, p. 161).
Corpo este que – desde a emergência intelectual dos saberes biomédicos e das
teorizações e práticas políticas durante o século XIX e começo do XX – pode ser tanto
compreendido em sua dimensão individual quanto social. Afinal, a vida atravessa o corpo,
individual ou social, em todas as suas unidades constitutivas, tal como as células, numa estreita
relação entre unidade e totalidade. É nele, desde suas filigranas que a aporia moderna que
caracteriza a biopolítica imunitária em sua sanha de preservação se dá, qual seja, “a de procurar
o refúgio da vida nas mesmas potências que impedem seu desenvolvimento” (ESPOSITO,
2004, p. 54; 2010, p. 88).
Política da negação
Em Politica e negazione (2018) Esposito volta mais uma vez ao tema da relação entre
biopolítica e niilismo. Logo na introdução ele já explicita sua definição de niilismo. Diz ele
que:
Niilismo não é a negação do ser – como muitas vezes se continua a repetir – mas a
destruição da diferença que o habita. Sua atuação predominante não tem sido a
produção do negativo – e, então, sua duplicação. Negando o negativo que desde
sempre percorre nossa experiência, o que chamamos de niilismo acabou por fortalecêlo exponencialmente, abandonando-nos à sua réplica destrutiva (ESPOSITO, 2018, p.
8).
Facilmente se reconhece aqui que, com essa definição, o dispositivo imunitário que
atravessa toda a biopolítica e que a anima é eminentemente niilista, e que por seu modo
operatório, radicaliza ainda mais o núcleo niilista que sustenta visceralmente a comunidade, e
tudo e todos que lhe estão implicados, justamente pela lógica de eliminação de qualquer lastro
de reciprocidade entre os indivíduos em comunidade. E que, portanto, viver e ser sujeito em
comunidade é desde então estar sob a égide do niilismo, do qual, ao se buscar escapar por sua
negação – ou mais precisamente, a dissolução, o apagamento da negação –, aprofunda-se e se
arraiga ainda mais numa, paradoxalmente, fundação niilista, cuja ameaça não vem
ocasionalmente de fora e de maneira acidental. Antes, é-lhe constitutiva e inerente, como
originária e perpetuamente presente ao mesmo tempo que lhe é seu horizonte de sentido (ou
sem-sentido, quer dizer, desprovido dele) e destino.
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Por isso que, historicamente durante boa parte do século XX, este breve século como
nos diz Eric Hobsbawn (2014), foi o século dos extremos e das experiências totalitárias – essas,
que são exatamente a figuração mais radical da potência destrutiva do niilismo, à medida que é
a negação do negativo e a assunção presunçosa de uma particularidade, de uma singularidade,
a uma universalidade: “A categoria de totalidade, de que o totalitarismo toma o nome, nada
mais é que o artifício usado por aqueles que intentavam eliminar quem não entrava na própria
autoafirmação. Deste modo, liquidando quem não obedecia a uma lógica identitária, a
afirmação tornava-se a máscara brutal de negação mesma, levada ao ápice pela potência
destrutiva” (ESPOSITO, 2018, p. 10). Ora, a presunção de universalidade totalitária, como bem
se sabe pela história do último século, não se realiza apenas como a tentativa de eliminar o
outro, outrora recognoscível como “outro-eu”, mas a partir de então como diferença
indiferenciada; é também a dissolução e aniquilação do sujeito como “eu-mesmo”: mergulhado
no mar da indiferenciação não se reconhece mais a si, nem como mesmo e nem como outro.
Daí que, nos tempos atuais, prevalece uma ambiguidade inerente ao negativo, isto é,
apagada como parte e como singularidade, o negativo se universaliza e globaliza por todo o
mundo, sob a forma de uma indistinção imanente ao mesmo tempo que absoluta. O que em
termos políticos, é retratado por uma espécie de guerra civil mundial, levada ao extremo de sua
abosolutização. “Pode-se dizer que isto seja o êxito, ao mesmo tempo, da ausência e da presença
do negativo – da sua expansão em nível global produzida por seu cancelamento local”
(ESPOSITO, 2018, p. 11). Um absoluto que não admite o individual; o todo contra o particular,
o singular. E que passa, ou devém, numa política da negação, que tem na figura do inimigo a
pedra angular para toda e qualquer relação, inter ou intracomunitária, de modo que, por
exemplo, com Carl Schmitt – mas de modo coetâneo no pensamento de Heidegger e Kojève só a partir do inimigo é possível pensar o amigo, o não-inimigo; quer dizer, toda a relação
comunal só pode ser pensada no “horizonte negativo da inimizade” (ESPOSITO, 2018, p. 13),
cuja realização histórica durante e até desde o século XX, foi pela lógica da guerra como
“modalidade inevitável da ação política” (ESPOSITO, 2018, p. 18), sendo que, depois da Queda
do Muro de Berlin, se pulverizou em guerras étnicas, culturais, religiosas, nos quatro cantos do
mundo, sem poder recorrer aos velhos e clássicos esquemas binários, e simétricos, dos jogos de
guerra. Quer dizer: “se em política se reporta, em última instância, sempre a inimizade, significa
que o ‘não’, além de pressuposto lógico, é o efeito real de uma anulação destinada a fazer-se
“aniquilamento” (ESPOSITO, 2018, p. 18).
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Há alguma saída dessa deriva niilista da política atual que os modos de gestão
biopolíticos acabaram por acirrar? Para Esposito, ao menos no plano do pensamento e da
linguagem, urge recuperar ou construir uma nova semântica que, primeiro, separe, política de
negação, de modo a resgatar a potência afirmativa da primeira e para a segunda recuperar o
caráter afirmativo como determinação lógica e ontológica de limite, de modo a evitar que a
experiência humana seja sufocada numa afirmação absoluta, que não admite e elimina toda
forma de contraposição e contradição. Não se trata, segundo ele, de pensar um uso positivo para
a antítese, mas de pensar afirmativamente a negação, de admitir-lhe sempre à força de oposição
(ESPOSITO, 2018, p. 290). Trata-se de admitir a comunidade e os indivíduos que a integram,
em tempos biopolíticos, como o nosso, numa correlação em que o negativo se faz fulcral para
o estabelecimento da primeira; não pela exclusão e dessubjetivação dos indivíduos, mas sim
que estes apenas se constituem como sujeitos de comunidade a partir do momento e, mais, da
condição estrutural pela qual cada um se devota a receber e acatar, como doação de si, o que o
outro tem de irremediavelmente diferente e opositivo. Urge que o eu não reconheça o outro
como “outro-eu”, mas que assuma, para si e diante de sua relação comunitária com outro, o que
tem de negativo, um outro irredutível, um “outro-não-eu”, que embora sendo nada, é
fundamental.
Referências bibliográficas
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____. Niente in comune - considerações sobre a relação entre niilismo e comunidade
segundo Roberto Esposito. In: SANTOS, R.; GULTEVIL, L. (Org.). Ontologia, Política e
Psicanálise: Discursos acerca da alteridade. Porto Alegre: Editora FI, 2018, 237-261.
Ano 12
n. 30
Maio – Agosto 2023
p. 150 - 159
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