Academia.eduAcademia.edu

Novas traduções francesas de Opiário e Ultimatum, de Álvaro de Campos

2023, Pessoa Plural―A Journal of Fernando Pessoa Studies

Marques, Fernando Carmino, "Novas traduções francesas de Opiário e Ultimatum, de Álvaro de Campos" (2023). Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies. Brown Digital Repository. Brown University Library. https://doi.org/10.26300/sm0r-6177 Is Part of: Pessoa Plural―A Journal of Fernando Pessoa Studies, Issue 24 Fernando Carmino Marques Novas traduções francesas de Opiário e Ultimatum, de Álvaro de Campos [New French translations of Opiário and Ultimatum, by Álvaro de Campos] Recensão dos livros Opium à bord, 2021, e Ultimatum, 2023 https://doi.org/10.26300/sm0r-6177 PESSOA, Fernando (2021). Opium à bord. Nice: Éditions Unes. 47 pp. [ISBN: 978-2-87704-234-5]. (2023). Ultimatum. Nice: Éditions Unes. 55 pp. [ISBN: 978-2-87704-261-1]

Novas traduções francesas de Opiário e Ultimatum, de Álvaro de Campos [New French translations of Opiário and Ultimatum, by Álvaro de Campos] Fernando Carmino Marques* PESSOA, Fernando (2021). Opium à bord. Nice: Éditions Unes. 47 pp. [ISBN: 978-2-87704-234-5]. (2023). Ultimatum. Nice: Éditions Unes. 55 pp. [ISBN: 978-2-87704-261-1]. Sediada em Nice, sul de França, a Éditions Unes tem no seu catálogo, desde meados dos anos oitenta do século passado, uma dezena de obras de Fernando Pessoa e heterónimos. Porque a língua é um organismo vivo e a tradução de uma obra, sobretudo de poesia, nunca é definitiva, a mesma editora tem vindo a propor novas traduções de títulos que já constavam do seu catálogo ou no de outras editoras. Ao tradutor isolado que se debate com a incerteza na busca da metáfora que expanda o limite do significado, o ritmo fiel do verso, a palavra certa, capaz de transpor numa outra língua a ideia, a emoção e a arte que distingue cada poeta, a tradução coletiva surge como base e modelo de trabalho com o intuito de reduzir quanto possível a subjetividade inerente a cada tradução. Assim, às traduções de Armand Guibert de Ópiário (PESSOA, 1987) e de Michel Chandeigne e J. F. Viegas, de Ultimatum (PESSOA, 1993), juntam-se as traduções de um importante grupo de trabalho, formado por quatro diferentes personalidades: o poeta Jean-Louis Giovannoni e os especialistas em tradução poética Remy Hourcade, Fabienne Vallin e Isabelle Hourcade, todos com uma larga e reconhecida experiência na tradução e familiarizados com a obra pessoana e a língua portuguesa. Seguindo a recente edição da coleção “Pessoa” da editora Tinta-da-china (2014), este grupo, que já tinha realizado uma nova tradução de O Guardador de Rebanhos e dos Poemas Inconjuntos, de Alberto Caeiro, propõe agora novas traduções de Opiário e Ultimatum. Nesta versão bilingue, Opium à bord é precedido pelo prefácio * UDI- Instituto Politécnico da Guarda. Marques Novas traduções que Armand Guibert incluíra na sua tradução de 1987 e por um posfácio de Pierre Hourcade, dois precursores na afirmação da obra pessoana em França. Conforme os tradutores assinalam em nota de rodapé, as 43 quadras em rima interpolada da obra de Álvaro de Campos são traduzidas privilegiando o sentido e não a forma: “Nous avons d’emblée choisi de ne pas traduire ‘Opium à bord’ em vers rimés et comptés, souhaitant privilégier le sens à la forme du poème” (PESSOA, 1987: 37) [Decidimos de início não traduzir ‘Opiário’ em versos rimados e contados, desejando privilegiar o sentido à forma do poema]. Esta opção também foi adotada na tradução do mesmo poema (com o título “Opiarium”), incluída em Oeuvres poétiques, da editora Gallimard (PESSOA, 1991: 193-197). Se bem que compreensível, pela dificuldade em traduzir numa outra língua ritmo e rima, esta escolha não deixa de ser redutora da integridade do poema e da ideia subjacente no espírito de Fernando Pessoa ao criar esta proto-composição de Álvaro de Campos, conforme o posfácio de Pierre Hourcade assinala. O leitor francês tem assim ao seu dispor uma ideia do tema do poema, mas não a maneira como Álvaro de Campos entendeu por bem realizá-la. Esta observação não impede, contudo, de constatar que comparada com versões anteriores (de Guibert, nas Editions Unes, ou da editora Gallimard) a presente edição está muito mais próxima do texto original, basta para isso comparar o terceiro verso da primeira quadra para se ter uma ideia do que afirmamos. Assim, onde Campos escreve “E eu vou buscar ao ópio que consola” na versão Gallimard lemos “Alors je vais chercher dans l’opium qui console” (como se Campos tivesse escrito “então”) e na versão da Editions Unes temos: “Et je vais chercher dans l’opium qui console” (PESSOA, 2021: 15). Um outro exemplo do que afirmamos pode ser visto nas respetivas traduções dos dois primeiros versos da quadra dezanove, uma das mais significativas do poema. Campos escreve: “Pertenço a um género de portugueses | que depois de estar a Índia descoberta | ficaram sem trabalho”, e como se o leitor necessitasse de uma explicação, ou Campos tivesse escrito “Os quais” [Lesquels], na tradução Gallimard lemos: “J’appartiens à une espèce de Portugais | Lesquels, aprés que l’Inde eut été découverte | Ont perdu leur emploi” (PESSOA, 1991: 196). Versos que em Opium à bord (Editions Unes) se podem ler como: “J’appartiens à ce genre de Portugais | Qui aprés avoir découvert l’Inde | Ont fini désouvrés” (PESSOA, 2021: 20). Versão mais em conformidade com o texto original. Pela tentativa de fidelidade ao texto e, quanto possível, ao ritmo do poema, parece-nos que esta recente edição poderá, de agora em diante, constituir uma referência no que a traduções em francês de Opiário diz respeito. Ainda de Álvaro de Campos, o mesmo coletivo de tradutores propõe uma nova tradução de Ultimatum. Obra que a editora havia já lançado no mercado em 1993, na tradução de Michel Chandeigne e J. F. Viegas. Dessa edição bilingue, como a atual, o coletivo entendeu por bem repor a nota introdutória de Pierre Hourcade Pessoa Plural: 24 (O./Fall 2023) 323 Marques Novas traduções datada de 1975.1 As dificuldades relativas à tradução de um texto em verso e em rima são aqui em certa medida atenuadas na medida que se pode considerar Ultimatum como um texto em prosa poética. Todavia, transpor em francês as imagens, expressões próprias de gírias e neologismos utilizados por Álvaro Campos neste texto é um desafio constante para qualquer tradutor. E o que se constata nesta tradução é a quase transposição terminológica que os tradutores oferecem ao leitor francês. Basta citar alguns exemplos para se verificar como esta recente versão segue quando possível de muito perto o texto original: Tu, cultura alemã, Sparta podre com azeite de cristismo e vinagre de nietzschização [...] transbordamento imperialóide de servilismo engatado! [Toi culture allemande, Sparte pourrie à l’hulie d’olive du christisme et au vinaigre de nietzschisation [...] transbordement impérialoïde du servilisme enchainé!] (PESSOA, 2023: 13) Passai, esterco epileptoide sem grandezas [Passez, fumier epileptoïde sans grandeur] (PESSOA, 2023: 16) Passai romantismo póstumo dos liberalões de toda a parte [Passez romantisme posthume des libéralâtres] (PESSOA, 2023: 16) No registo escolhido por Álvaro de Campos em Ultimatum, há palavras e frases que continuam a colocar os tradutores perante a dificuldade da tradução. Assim, o termo “especulatite”, por exemplo, em tradução que não contempla o aspeto depreciativo que Campos dá à palavra: “Agora a religião é [...] a especulatite dos pragmatistas cristãos”, é traduzido por “spectacularité”: “Aujourd’hui la religion c’est [...] la spectacularité des pragmatistes chrétiens” (PESSOA, 2023: 14). Por vezes, é o ritmo desejado pelo poeta que se afigura difícil de transpor numa outra língua. Assim, o verso “Agora é a guerra, jogo do empurra de lado de cá e jogo de porta do lado de lá” é traduzido como uma mera explicação: “Aujourd’hui c’est la guerre, un jeu où on pousse de ce côté et on retient de l’autre!” (PESSOA, 2023: 15). Note-se como a repetição da palavra jogo e o efeito sonoro provocado pelos advérbios de lugar cá e lá desaparecem na versão francesa. Outra situação ainda, resultante talvez da necessidade de esclarecer o leitor por parte dos tradutores, é o acréscimo de palavras (neste caso um nome próprio). Onde no verso original se lê “Agora a filosofia é o ter morrido Fouillée!”, na tradução lê-se “Aujourd’hui la philosophie c’est qu’Alfred Fouillée est mort” (PESSOA, 2023: 14). Este No capítulo sobre a poesia do heterónimo Álvaro de Campos, Pierre HOURCADE (2016: 230-235) analisa pormenorizadamente este poema destacando a sua importância para a compreensão do autor fictício e da sua poesia. 1 Pessoa Plural: 24 (O./Fall 2023) 324 Marques Novas traduções acréscimo leva-nos a pensar, considerando as características específicas do poema e as abundantes referências temporais, se não seria oportuno pensar numa futura edição que contextualize para o leitor atual as inúmeras referências que constituem parte integrante do texto, facilitando deste modo a sua completa compreensão. Desde as traduções de Pierre Hourcade, no início da década de 1930, e Armand Guibert, nos anos 50 do século passado, a poesia de Fernando Pessoa tem vindo a ser traduzida por diferentes tradutores que privilegiam em geral a língua de chegada (foi essa, por exemplo, a opção claramente definida, entre outros, por Armand Guibert). A tradução de uma obra poética exige, contudo, e sempre que possível, que se tenha em consideração a própria especificidade do texto poético na língua de partida; e que se tentem transpor para a língua de chegada as imagens, o ritmo e a musicalidade desse texto. É isso que as recentes traduções francesas de Opiário [Opium à bord] e Ultimato [Ultimatum] propõem agora com maior convicção ao leitor francês. Pessoa Plural: 24 (O./Fall 2023) 325 Marques Novas traduções Bibliografia BALSO, Judith (2005). “Armand Guibert, inventeur de Pessoa”. Lisbonne, Atelier du lusitanisme français. Sous la direction de Jacqueline Penjon e Pierre Rivas. Paris : Presses Sorbonne Nouvelle, pp. 65-73. https://books.openedition.org/psn/9306 BRECHON, Robert (2005). “Armando Guibert et Fernando Pessoa”. Lisbonne: Atelier du lusitanisme français. Sous la direction de Jacqueline Penjon e Pierre Rivas. Paris : Presses Sorbonne Nouvelle, pp. 89-93. http://books.openedition.org/psn/9315 CONDAT, Robert (1991). “Hommage à Armand Guibert”. Littératures, n.º 24, Primavera, pp. 165-177. https://doi.org/10.3406/litts.1991.1549 HOURCADE, Pierre (2016). A Mais Incerta das Certezas, Itinerário Poético de Fernando Pessoa. Edição e tradução de Fernando Carmino Marques. Lisboa: Tinta-da-china. MARQUES, Fernando Carmino (2021). “Armand Guibert e as edições francesas da poesia de Fernando Pessoa (1955-1966)”. Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 20, Outono, pp. 284-366. Brown Digital Repository, Brown University Library. https://doi.org/10.26300/62dvwm80 _____ (2021). “Um século de traduções francesas de O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro”. Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 19, Primavera, pp. 195-214. Brown Digital Repository, Brown University Library. https://doi.org/10.26300/hjym-8107 PESLIER, Julia (2019). “Éléments d’exploration pour une réception française de Fernando Pessoa”. Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 16 (número especial: A Recepção Internacional de Fernando Pessoa; editor convidado, António Sáez Delgado), Outono, pp. 756. Brown Digital Repository. Brown University Library. https://doi.org/10.26300/ncrd-k866 PESSOA, Fernando (2023). Ultimatum. Nice : Éditions Unes. _____ (2021). Opium à bord. Nice : Éditions Unes. _____ (2014). Obra completa. Álvaro de Campos. Edição de Jerónimo Pizarro e António Cardiello. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (1991). Œuvres poétiques. Préface par Robert Bréchon; édition établie para Patrick Quillier. Paris : Gallimard. _____ (1993). Ultimatum. Traduit du portugais par Michel Chandeigne et J. F. Viegas ; édition bilingue. Nice : Éditions Unes. _____ (1987). Opium à bord: poème d'Álvaro de Campos. Traduit du portugais et préfacé par Armand Guibert. Nice : Éditions Unes. Pessoa Plural: 24 (O./Fall 2023) 326 Marques Novas traduções FERNANDO CARMINO MARQUES é Doutor em letras pela Universidade de Paris IV – Sorbonne (1997), onde lecionou, de 1993 a 2002, língua, cultura e literaturas de expressão portuguesa. Colaborou no Instituto Camões em Paris e foi docente responsável pelo ensino do português nas universidades de Versailles – St. Quentin e Marne-la-Vallée. Publicou vários estudos sobre temas e autores portugueses e brasileiros, dos séculos XVI, XIX e XX. Traduziu e editou o estudo inédito de Pierre Hourcade sobre a poesia de Fernando Pessoa: A Mais Incerta das Certezas, Itinerário Poético de Fernando Pessoa (Coleção “Ensaios” sobre Fernando Pessoa; Lisboa: Tinta-da-china, 2016). Foi professor titular de língua e cultura portuguesa no IPG. Professor convidado na Universidade de Atenas, realiza com frequência cursos e palestras sobre a poesia de Fernando Pessoa em diversas universidades. Como autor de ficção publicou vários livros. FERNANDO CARMINO MARQUES holds a Ph.D. in Humanities from the University of Paris IV – Sorbonne (1997), where he taught Portuguese language, culture, and literature from 1993 to 2002. He collaborated with the Camões Institute in Paris and was responsible for Portuguese language instruction at the universities of Versailles – St. Quentin and Marne-la-Vallée. He has published several studies on Portuguese and Brazilian themes and authors from the 16th, 19th, and 20th centuries. He translated and edited Pierre Hourcade’s unpublished study on the poetry of Fernando Pessoa: A Mais Incerta das Certezas, Itinerário Poético de Fernando Pessoa (Collection “Ensaios” on Fernando Pessoa; Lisboa: Tinta-da-china, 2016). As a full professor (IPG) of Portuguese language and culture, he frequently conducts courses and lectures on the poetry of Fernando Pessoa at various universities. He has also authored several fiction books. Pessoa Plural: 24 (O./Fall 2023) 327