:: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas
Nº 1, Ano I, Outubro de 2004, periodicidade semestral – ISSN 1981-061X.
CONTRA-REFORMA UNIVERSITÁRIA[1]
Roberto Leher*
O governo Lula recolocou em movimento uma reforma universitária
que, se exitosa, estraçalhará a concepção de universidade da Constituição
Federal de 1988 e o futuro dessas instituições.
Este estudo, publicado originalmente na revista Margem Esquerda
Número 3 com o título "Contra-reforma universitária do governo Lula:
protagonismo do Banco Mundial e das lutas antineoliberais", foi gentilmente
cedido pela Editora Boitempo. A revista Margem Esquerda Número 3 foi
lançada durante o seminário "Reflexões sobre o colapso", realizado na
Universidade de São Paulo (USP) nos dias 27 e 28 de abril.
O governo Lula da Silva recolocou em movimento uma reforma
universitária que, se exitosa, estraçalhará a concepção de universidade da
Constituição Federal de 1988 e o futuro dessas instituições. Se, no período de
ascenso das lutas dos trabalhadores, reforma significava "concessões
aceitáveis", recuos, que não alteravam de forma significativa o poder das
classes dominantes, no período de hegemonia neoliberal essa expressão
denota claramente "concessões" pelos "de baixo", portanto, perda de direitos.
Este estudo pretende sustentar que, por apagar as distinções entre as
instituições privadas e as públicas, tal "reforma" está inscrita no escopo das
políticas neoliberais em curso na América Latina desde meados dos 80 e que é
preciso qualificá-la como uma contra-reforma.
Objetivando questionar os pressupostos e os implícitos contidos nos
documentos governamentais, o estudo irá destacar os protagonistas da
1
reforma governamental e indicar a sua congruência com as políticas do Banco
Mundial para o ensino superior e, também, com a política econômico-social dos
setores dominantes no governo Lula da Silva. Será indicado que a contrareforma aprofunda a heteronomia cultural, um desdobramento do capitalismo
dependente operado, desde dentro do país, pela coalizão de classes que
sustenta o atual governo em fina sintonia com as classes capitalistas
internacionalizadas. Ao final, indicações sobre as resistências e alternativas
serão desenvolvidas. Questiona ainda que não bastam boas proposições sobre
a universidade para fazer frente à contra-reforma; será preciso organizar um
amplo arco de forças capazes de empreender as lutas em favor de uma
reforma que signifique avanços efetivos na cidadania dos milhões que não
podem ter acesso ao conhecimento científico e cultural produzido e socializado
nas
universidades
públicas.
Premissas
e
pressupostos
das
ações
governamentais
Em todos os documentos governamentais examinados (1) podem ser
encontradas afirmações no sentido de que:
a) o Estado não dispõe de recursos suficientes para a melhoria das
universidades públicas federais e em especial para a sua ampliação nos
termos do Plano Nacional de Educação que prevê ao menos 40% das
matrículas desse nível de ensino asseguradas pelo setor público; b) uma
universidade coetânea com a revolução científico-tecnológica (RCT) precisa
interagir com o mercado por meio da oferta de P&D, a única alternativa
exeqüível para ampliar as suas verbas e c) a universidade atende aos
privilegiados e, por isso, os seus elevados custos são injustos socialmente. O
corolário, expresso no conteúdo das reformas, pode ser sintetizado nas
seguintes assertivas:
- é preciso diversificar as fontes de financiamento e aumentar a eficiência
dessas
instituições,
adotando
a
modalidade
de
ensino
a
distância;
- a universidade deverá captar recursos no mercado mas, para isso, é preciso
promover mudanças institucionais importantes, capazes de remover obstáculos
impostos pela regulamentação estatal, como, por exemplo, concedendo
2
autonomia financeira; - é preciso fortalecer as atividades de P&D e a prestação
de serviços em geral, bem como promover mudanças curriculares para que a
universidade
se
torne
compatível
com
o
mercado;
-
é
urgente
o
estabelecimento de parcerias público-privadas para que o Estado possa
contratar "serviços" de entes privados de atividades delegadas, pela
Constituição e outras normas jurídicas, ao Estado. Essas parcerias justificamse, conforme o governo Lula da Silva, não apenas porque o Estado carece de
recursos também na área social, mas, inclusive, porque é notório que o setor
privado utiliza os recursos com muito maior eficiência. Quem são e o que
pretendem os protagonistas da reforma do governo Lula da Silva?
A presença do Banco Mundial, enquanto protagonista da reforma
educacional (2) do governo de Lula da Silva, é evidente nos documentos da
área econômica. Não apenas na agenda macroeconômica, mas também no
apreço às políticas de "responsabilidade social", de "atenuação" da pobreza e
de focalização das políticas sociais. Compartilham, igualmente, as mesmas
convicções sobre a reduzida eficácia dos gastos sociais (3) e a crença nas
ações resultantes de parcerias público-privadas (4). Recente "pacote" que vem
sendo operacionalizado entre o Banco e o governo brasileiro tem como
condicionalidade o fim da gratuidade do ensino superior (5), uma posição
encontrada também no documento do Ministério da Fazenda "Gasto Social do
Governo Central: 2001 e 2002" que, conforme o teórico da direita da Escola de
Chicago, Gary Becker, postula que o ensino superior gratuito é o principal
obstáculo à concretização da justiça social no país, sugerindo empréstimos aos
estudantes para que estudem nas escolas privadas. As medidas do Banco dão
seguimento às políticas de ajuste estrutural que anteriormente contribuíram
para inviabilizar as universidades da África subsaariana (6) e, no caso da
América Latina, impediram que os governos as mantivessem entre as
prioridades das políticas públicas, contrapondo o direito aos conhecimentos
científico, tecnológico e artístico à alfabetização e às primeiras letras, estas
últimas tidas apenas como ações focalizadas para aqueles classificados como
os mais pobres. O afastamento do Estado do fomento à produção de
conhecimento estratégico agrava a (e é uma conseqüência da) condição
capitalista dependente dos países periféricos. Conforme o relatório anual da
3
Unctad (2003), países como Argentina e Brasil passaram a conhecer um
processo de desindustrialização e o México, uma industrialização de enclave
(maquilas). Por isso, para o capital, a universidade da periferia que produz
conhecimento não é estratégica. O chefe da Casa Civil, José Dirceu, sugere
que as instituições públicas terão de ser úteis ao setor produtivo, como previsto
na Lei de Inovação Tecnológica (PL 7282/2002), uma iniciativa vigorosamente
criticada na academia: "Vamos mudar toda a relação da universidade com o
empresariado, empresas, fundos de investimento". Citou, como bons exemplos,
o ensino superior da China e da Coréia do Sul (FSP, 5/12/03), casos que não
poderiam ser mais desastrosos para a universidade brasileira: ambos os países
flexibilizaram a gratuidade e não asseguram liberdade de cátedra, sendo que,
no que se refere à relação entre oferta pública e privada, o modelo coreano é
muito semelhante ao existente no Brasil; ademais, na Coréia, grande parte da
pesquisa é direcionada para três grandes conglomerados: Daewoo, Hyundai e
Lucky-Gold Star (7). Com a contra-reforma dois graves problemas que afetam
a governabilidade poderiam ser operados: a despolitização do desemprego
(reconfigurado como um problema de qualificação), ocultando o debate sobre o
modelo econômico adotado por Lula da Silva, e a desestruturação dos
principais loci em que o pensamento crítico sistemático vem sendo produzido.
Mais do que por uma razão econômica concreta, a aquisição de vagas pelo
setor privado, a expansão virtual e a vinculação entre universidade-empresa
atendem aos imperativos políticos no complexo terreno das ideologias. Em um
contexto de terrível desemprego e degradação salarial (8), notadamente entre
jovens, e de impossibilidade - nos marcos da política macroeconômica com
foco na inflação (9) - de políticas que permitam a reversão desse quadro, a
transformação das instituições de ensino em depositárias das esperanças de
inserção social de vastos setores da juventude é - e tem sido - largamente
utilizada pelos governos neoliberais como um importante instrumento de
governabilidade. Vide o programa de Tony Blair: "educação, educação e
educação". Ademais, o setor empresarial que atua no ramo dos "negócios"
educacionais dispõe de significativa representação parlamentar. Desde o
governo militar, esse setor se beneficia de generosos subsídios públicos e,
incentivados pelo mercado aberto com o encolhimento do setor público (10),
aceleraram de forma vertiginosa a expansão de novos cursos; entretanto, a
4
oferta foi muito superior à demanda possível, tendo em vista o encolhimento da
massa salarial, inclusive dos segmentos médios. Esses estabelecimentos
anunciam ter 530 mil vagas não ocupadas (vagas obviamente não existentes,
pois o número de docentes é compatível com as matrículas atuais), e um índice
de inadimplência de cerca de 30%. Com a parceria público-privada, seria
possível um "PROER" para o setor e, em contrapartida, a base política do
governo poderia ser ainda mais robustecida.
Em função do conteúdo privatista da contra-reforma, os conflitos serão
intensos. A exemplo das avaliações feitas pelos operadores do Banco Mundial,
os professores estarão no alvo das retaliações: "The enemy are university
teachers around the world; and war has been declared…". (11) Também o
governo já inseriu a coerção no cálculo político da contra-reforma. É esse o
sentido das ameaças do Chefe da Casa Civil: "o pau vai comer". Parceria
pública-privada: instituição de um sistema de ensino superior sem distinção
entre o público e o privado
A ida de Tarso Genro para o MEC coloca em relevo a importância do
Projeto de Lei PL n. 2546/03 que dispõe sobre a PPP. Na Exposição de
Motivos (12) é mencionado o empenho da Secretaria Especial do Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social - Sedes, então dirigida por Genro, em
sua viabilização. Nos termos da Exposição de Motivos:
A parceria pública-privada constitui modalidade de contratação em que
os entes públicos e as organizações privadas, mediante o compartilhamento de
riscos e com financiamento obtido pelo setor privado, assumem a realização de
serviços ou empreendimentos públicos como sistema de contratação pelo
Poder Público ante a falta de disponibilidade de recursos financeiros e
aproveitamento da eficiência de gestão do setor privado.
A crença de que o setor privado pode fornecer recursos adicionais para
as atividades outrora de responsabilidade do Estado e de que a esfera privada
é eficiente (ao contrário do Estado) são reiteradas, como se os casos da
Parmalat, Enron etc. não existissem, ou como se todas as empresas
5
privatizadas (telefonia, energia elétrica etc.) não tivessem aumentado as suas
tarifas em níveis muito superiores aos da inflação. Cumpre observar que, pelo
PL, toda ordem de "serviços" poderia ser objeto desse tipo de parceria,
conforme manifesto em seu Art.1, Parágrafo Único: Esta Lei se aplica aos
órgãos da administração direta, aos fundos especiais, às autarquias, às
fundações públicas, às empresas públicas, às sociedades de economia mista e
às demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados,
Distrito Federal e Municípios.
O alcance dessas parcerias é ainda mais amplo do que o previsto no
Plano Diretor da Reforma do Estado de Cardoso: Art. 3º Pode ser objeto de
parceria pública-privada: I - a delegação, total ou parcial, da prestação ou
exploração de serviço público, precedida ou não da execução de obra pública.
Conforme observa Juruá (13), "regular, legislar e policiar são os únicos
domínios de responsabilidade governamental aos quais ficam interditados os
PPPs". Com isso, "as decisões e investimentos ficarão por conta dos
investidores privados que os selecionarão de acordo com seus critérios de
poder de mercado e de maximização de lucros". Ademais, as PPPs possuem
condições extremamente vantajosas para o capital, podendo vigir até por trinta
anos (Art.4.,I); além disso, o Estado oferece toda sorte de garantias - a
administração pública poderá oferecer ao parceiro privado contraprestação
adicional à tarifa cobrada do usuário, ou, em casos justificados, arcar
integralmente com sua remuneração (Art.3, 2o Parágrafo), inclusive por meio
da "outorga de direitos sobre bens públicos" (Art.5, 4.). O provedor privado,
rigorosamente, faz capitalismo sem riscos, pois o Estado concederá garantias
até mesmo para as obrigações assumidas pelo parceiro (Art.6), conforme
constata Juruá.
O "Programa Universidade Para Todos" (observe-se a ausência do
adjetivo "pública"), apresentado pelo MEC, é uma PPP. A meta estipulada por
Genro é de 100 a 250 mil vagas gratuitas imediatas, e de 400 mil a 1 milhão ao
final de cinco anos (14). Essas parcerias ampliam a esfera privada em
detrimento da esfera pública. A indução privada estará guiada pelos nichos de
mercado, fragmentando e focalizando a oferta educacional e, conforme aponta
6
o INEP, expandindo matrículas em instituições que sequer atendem aos
requisitos mínimos de qualidade definidos na LDB. Com elas, haverá uma
paulatina indistinção entre as instituições públicas e privadas, um objetivo há
muito reivindicado pelos empresários da educação, atendendo a um dos
principais pontos da agenda do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços da
OMC, o tratamento nacional a toda instituição privada que oferece um serviço
no país, independentemente se pública ou privada, nacional ou estrangeira.
A questão de fundo é, de fato, a diluição das fronteiras entre o público e
o privado (15). Tanto o Ministro Tarso Genro, como o Secretário Executivo do
MEC, um dos proponentes dessa modalidade de parceira prevista nos
documentos do Banco Mundial na Secretaria de Planejamento, sustentam a
necessidade de diluir as diferenças entre a educação pública e a privada, visto
que ambas atendem ao "interesse público". Nos termos do Secretário
Executivo:
Nós pretendemos quebrar um muro que separa hoje as instituições privadas
das públicas, aproximar os dois sistemas com benefícios mútuos. […] Ou seja,
estamos pensando agora o setor em termos sistêmicos, e não mais de forma
compartimentada, sem coesão e sem coerência interna. (16) (destaques RL). O
estabelecimento privado, que tem finalidade mercantil, e a universidade pública
e gratuita, cuja missão é produzir/ difundir conhecimento novo, passam a
compor um único sistema e, naturalmente, ambos deverão possuir o mesmo
direito de receber os recursos do Estado, desde que atendam aos requisitos do
sistema de avaliação e que tenham "compromisso social", conforme previsto no
"Pacto da Educação para o Desenvolvimento Inclusivo". Com as PPP, existirá
um único sistema indiferenciado e, "dada a maior eficiência do setor privado",
conforme reconhece a Exposição de Motivos do mencionado PL, logo o
fornecimento "público", por meio das privadas, alcançará uma proporção tal
que tornará as matrículas das universidades públicas minoritárias até mesmo
dentro do que seria, outrora, a esfera pública, agora redimensionada como
pública-não-estatal. O Secretário Haddad é direto quanto ao lugar secundário
das públicas: "Da mesma forma que, se houver espaço orçamentário, nós
temos que ampliar as vagas das universidades públicas". (17) Autonomia para
desregulamentar a universidade pública como organização social.
7
Após o MEC realizar um grande evento em parceria com o Banco Mundial e
com
uma
ONG
francesa
(Observatoire
International
des
Réformes
Universitaires - ORUS), o governo (18) apresentou o que seriam as primeiras
medidas sistemáticas para o ensino superior do país. Em função da amplitude
de temas, e do tratamento desigual a eles dispensado, é necessário separar o
que são "atrativos" e o que são as orientações políticas mais profundas, como
as apresentadas a seguir, para não se perder no mundo das aparências.
Autonomia e financiamento. O eixo estruturador da proposta é a autonomia
universitária conjugada com o financiamento, a exemplo da PEC-370/96,
encaminhada por Cardoso. São os mesmos pressupostos: é preciso liberalizar
a universidade em função de uma indefinida "revolução tecnológica" que está
na base da igualmente não definida "economia global". O Documento crê estar
"outorgando autonomia" a IFES, como se a autonomia não fosse um preceito
auto-aplicável da Constituição Federal. Em contrapartida, a universidade
deverá "incorporar representações da sociedade em seus órgãos colegiados".
Pierre Bourdieu, criticando o Relatório Attali, nos diria: quando falam em
representações da "sociedade" estão querendo dizer, na verdade, do
"mercado"! A autonomia é instrumental e pragmática: "a crise decorre também
das amarras legais que impedem cada universidade de captar e administrar
recursos". Por isso, a institucionalização definitiva das fundações privadas faz
parte do eixo das propostas. Estas cumpririam o papel das "Organizações
Sociais": "Com esses dois instrumentos (sic!) - autonomia e fundações de
apoio - as universidades federais certamente disporiam de condições […] para
aumentar a captação de recursos …". Com essa proposição, o governo Lula
estaria viabilizando as organizações sociais de Bresser Pereira e Cardoso. As
fundações de apoio privadas, robustecidas e melhor amparadas legalmente,
estabeleceriam "contratos de gestão" eufemisticamente denominados de
"Pacto da Educação para o Desenvolvimento Inclusivo".
Este "pacto" objetiva massificar a oferta de vagas. Aos que aderirem, o
MEC se propõe a ampliar os fluxos de recursos, pagando um determinado per
capita. As metas específicas serão objeto de "edital público aberto à
concorrência entre as instituições públicas e privadas que estão no Sistema
8
Nacional de Avaliação", uma prática largamente utilizada no Chile a partir da
ditadura de Pinochet. A avaliação segue como eixo axial da política
educacional. Após tecer elogios a GED, considerando-a um dos fatores que
evitaram o desmoronamento das universidades, propugna que a forma de
relação da universidade com o Governo e o Estado se daria no momento de
sua avaliação. O futuro da universidade passa a depender da avaliação
definida por uma "Comissão Nacional de Avaliação" constituída por sete
membros, todos escolhidos pelo governo (MP-147). Na autonomia didáticocientífica, o GTI propõe que o referido sistema de avaliação dará
"reconhecimento às universidades comprometidas em realizar pesquisas
voltadas para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do
sistema produtivo nacional e regional". O Documento indica, ainda, que o
sistema de avaliação promoverá a "classificação das instituições e cursos". A
autonomia administrativa é tida como capaz de assegurar "a administração de
seus serviços", a contratação e a exoneração de pessoal e "decidir o seu plano
de carreira", indicando que a carreira única é concebida como um obstáculo à
autonomia. Expansão da oferta: educação à distância como estratégia.
Um dos mais evidentes "atrativos" do Documento é a afirmação de que
as universidades públicas deverão alcançar 40% do total das matrículas do
ensino superior em 2007, conforme meta do Plano Nacional de Educação. A
expansão dar-se-ia pela tríplice combinação de aumento da carga didática dos
docentes, aumento do número de estudantes por classe e, principalmente, pela
educação à distância (EAD). Propõe criar o "Centro Darcy Ribeiro de EAD"
para superar os "conhecidos limites da educação presencial". A meta para
2007 é formar 500 mil estudantes à distância! A duplicação da oferta nas
instituições federais dar-se-ia por meio de ensino massificado e minimalista,
pressupondo graus diferenciados de cidadania e descaracterização da
docência atingindo, portanto, o cerne do fazer universitário. Como observa
Raquel Goulart Barreto, conforme o GTI: A "disseminação" da EAD implica a
ressignificação e o esvaziamento do trabalho docente em "tutoria e avaliação",
já que "planejamento" e "elaboração de conteúdo" não são atividades
atribuídas a todos, cabendo a um grupo de especialistas, na maioria das vezes,
externos. A lógica é a mesma utilizada no mercado: a da substituição
9
tecnológica. [...]. Por meio da intensificação do uso das tecnologias da
informação e da comunicação (TIC), é retomado um processo conhecido nas
fábricas: a conversão da subsunção formal em subsunção real do trabalho ao
capital. Nas universidades, um número cada vez maior de alunos, atendidos
por cada vez menos professores (19). Resistências e agenda alternativa. O
projeto educacional com foco no mercado alterou fortemente a educação em
todos os níveis e modalidades, tanto no plano propriamente educativo currículos, avaliação, materiais didáticos etc. - quanto no plano normativo reformas constitucionais, LDB, Plano Nacional de Educação etc. Entretanto,
apesar da extraordinária expansão do setor privado, as universidades públicas
brasileiras não adotaram o modelo chileno como pretendiam o BM e os
neoliberais. Diversos intentos privatizantes foram freados por movimentos de
resistência, por meio de greves, mobilizações e ações parlamentares. Com
isso, a tentativa de desregulamentação da autonomia, tentada desde Collor, e
a proposta de redefinição dos contratos de trabalho de docentes e técnicos
administrativos foram bloqueadas. A cobrança de taxas não pôde ser
expandida conforme as recomendações do BM e os desejos dos neoliberais.
Após os acordos com o FMI e o Banco Mundial de 1998, 2001, 2002 e 2003,
nova ofensiva - denominada de segunda geração de reformas - vem sendo
empreendida, mas agora com o beneplácito de um antigo opositor: o Partido
dos Trabalhadores. Um novo bloco de poder vem sendo forjado, agregando,
sob a direção do capital financeiro, a burocracia sindical, as oligarquias e
setores econômicos como o agrobusiness e mais genericamente o setor de
exportação de commodities - setores que não necessitam de uma universidade
pública capaz de produzir conhecimento novo. Ao contrário, aprofundam a
condição capitalista dependente e, por conseguinte, a heteronomia cultural e,
por isso, estarão empenhados na contra-reforma. Não é possível nutrir a
esperança de lograr uma "reforma universitária" capaz de assegurar um caráter
civilizatório e social a essas instituições sem transformar esse quadro. O
projeto de nação que preconiza um lugar subordinado à universidade terá de
ser combatido. Como parte da luta contra o capitalismo dependente e a
heteronomia cultural, a realização de uma agenda de mudanças na
universidade é crucial, embora sem a ilusão de que será suficiente manter
apenas a universidade como protagonista dessas lutas, mesmo porque em seu
10
interior haverá forças conservadoras que sairão em defesa do projeto em
curso. Ao longo dos anos 90, o capitalismo acadêmico foi robustecido, por meio
de fundações privadas e, como a contra-reforma pretende institucionalizar as
práticas mercantis, os empreiteiros acadêmicos sairão em defesa desse
intento.
Os defensores de um projeto democrático para a universidade terão de
construir um arco de alianças capaz de colocar em ação forças internas e
externas para fazer frente à ofensiva governamental, tanto no plano teórico
como no plano político, buscando deslocar os embates para os espaços
públicos. Muitas entidades acadêmicas e da chamada sociedade civil estão
cientes das nefastas implicações dessa contra-reforma. Em particular, é
preciso potencializar ao máximo o trabalho do Fórum Nacional em Defesa da
Escola Pública e do Congresso Nacional de Educação. Os sindicatos dos
docentes e dos técnicos administrativos já estão engajados em lutas comuns.
O movimento estudantil e os movimentos sociais igualmente irão desempenhar
um papel crucial nessas lutas. Sob diversos aspectos, a crítica às proposições
do atual governo ainda está por ser feita, mesmo que os dirigentes do governo
e os seus apoiadores vejam com desdém a crítica, alegando que a hora é de
propor, como se fosse possível apresentar uma agenda alternativa nos marcos
conceituais e políticos operados pela ordem. Embora o rompimento com as
concepções e disposições de pensamento que configuram o pensamento
dominante seja uma tarefa complexa, árdua e, sob o ponto de vista do senso
comum, impopular, é preciso um grande esforço teórico e político para alcançar
esse objetivo. Afirmar que o ensino superior universitário é um direito de todos
os cidadãos (e não apenas dos mais aptos, no sentido darwiniano) e um dever
do Estado, em um contexto em que mais de 70% das matrículas são privadas,
pode soar como algo bizarro. Vale lembrar, entretanto, que mesmo nos EUA
muitas instituições de ensino superior privadas foram assumidas pelo Estado
(em 1940, 55% eram privadas, atualmente apenas 22% são particulares).
Igualmente, exigir que as universidades públicas sejam de fato gratuitas pode
parecer uma heresia, mas é a única forma de assegurar a educação como um
direito universal. Se o Estado admitisse outras prioridades socialmente
orientadas, em detrimento dos insaciáveis anseios do capital financeiro, o
11
quadro poderia ser radicalmente outro. Mas somente convencendo os
despossuídos de que cada trabalhador é também um sujeito detentor de
direitos será possível fazer frente ao discurso demagógico das políticas
compensatórias e focalizadas. De fato, os críticos do projeto demagógico em
curso serão impiedosamente desqualificados como corporativistas, elitistas,
privilegiados, insensíveis ao drama social.
Nesse jogo de significações difusas e conflitantes, a exemplo do que
fizera na reforma da previdência, o governo do capital financeiro jogará o povo
de baixa renda contra os "privilegiados" servidores da universidade através de
mensagens como: os jovens pobres não têm acesso à universidade porque os
professores têm muitos privilégios. O ambiente contrário aos servidores e
estudantes ditos privilegiados está sendo criado. O ovo da serpente vem sendo
aninhado pelo bloco de poder. Assim, reformas regressivas, privatistas, antirepublicanas e que beneficiam os ricos, são apresentadas "aos de baixo" como
uma vitória da justiça frente aos privilégios.
Questões como as estratégias de universalização, autonomia,
democracia, articulação ensino-pesquisa, compromisso social, financiamento
público das instituições estatais, condições de trabalho dos trabalhadores da
educação, assistência estudantil, democratização efetiva dos órgãos de
fomento a C&T, colonialidade do saber, integração com os países periféricos e
centrais, criação de um espaço universitário latino-americano, patentes e
propriedade intelectual, controle social das instituições privadas, entre tantos
outros que vêm sendo demandados pela maioria da sociedade brasileira,
podem ser discutidas em congressos universitários convocados pelos setores
democráticos e suas conclusões e consensos poderão compor a agenda do
movimento nacional em defesa do ensino público e gratuito. Toda a experiência
de coalizão dos setores devotados à causa do ensino público terá de resultar
em novos patamares organizativos para que a educação possa se fazer
presente, de forma massiva, no espaço público - nas praças, nas ruas, nas
escolas e universidades. A contra-reforma não passará, apesar do Banco
Mundial e de seus velhos e novos aliados!
12
NOTAS:
(1) BRASIL. Ministério da Fazenda. Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002. Brasília:
[s.n.], 13 de novembro de 2003. Disponível em: . BRASIL. Grupo de Trabalho Interministerial.
Bases para o enfrentamento da crise emergencial das universidades federais e roteiro para a
Reforma Universitária brasileira. Brasília: 15 de dezembro de 2003. (mimeo); BRASIL. Casa
Civil, Exposição de Motivos n. 355/2003, 10 de novembro de 2003/ PL n. 2546/03, Parceria
Público-Privado. BRASIL. PL 7282/02 (Inovação Tecnológica).
(2) Seminário Internacional Universidade XXI: Novos Caminhos Para a Educação Superior,
2003, Brasília. Anais eletrônicos. Disponível em:
(3). BRASIL. Ministério da Fazenda. Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002. Brasília:
[s.n.], 13 de novembro de 2003. Disponível em: . (4)BRASIL, PL n. 2546/03.
(5). Marta Solomon, Gratuidade nas federais ainda provoca debate. FSP, C 4, 3/08/03. Em
contrapartida a possível empréstimo de US$ 8 bilhões (a serem distribuídos nos próximos 4
anos), o Banco espera revisão do princípio da gratuidade.
(6) Para uma apreciação geral das conseqüências das políticas de ajuste estrutural da África,
ver: Giovanni Arrigui, "The African crisis". In: New Left Review, 15, may/june 2002; para um
exame particularizado dos casos da Somália, Ruanda e Etiópia, ver: Michel Chossudovsky,
Globalización de la pobreza. México, Siglo XXI Ed., 2002.; A redefinição das políticas
educacionais da região pode ser vista em: Zaiki Laïdi, Enquête sur la Banque Mondiale, Paris,
Fayard, 1989.
(7) Com as recentes reformas, a China passou a cobrar taxas escolares dos estudantes,
extinguindo a gratuidade; o cerceamento a liberdade de pensamento é rigoroso. A Coréia
segue o modelo estadunidense, 70% das instituições são privadas (correspondendo a cerca de
80% do total de alunos). Neste país, os docentes não dispõem de estabilidade em seus cargos
e é comum afastamento por delitos de opinião (Philip G. Altbach, Educación Superior
Comparada. Bs. As. Universidad de Palermo, 2001, p.113-116, 352-354).
(8) Segundo o IBGE, o rendimento médio da classe trabalhadora caiu 12,9% de dezembro de
2002 a dezembro de 2003. No mesmo período, ainda segundo os dados oficiais do IBGE, o
desemprego aumentou de 10,5% para quase 13%. A economia está estagnada e sufocada
pela dívida pública, cujo principal já ultrapassa metade do PIB, sendo que o pagamento efetivo
dos juros corresponde a 10% de toda a riqueza anualmente produzida. Em 2003, as despesas
com o serviço da dívida pública mais do que dobraram em relação a 2002, tendo superado em
13
22,5% todos os gastos da Previdência Social (ver: Fábio K. Comparato, Até quando,
companheiro?, Carta Aberta ao Presidente Lula, FSP, 8/12/03).
(9) Reinaldo Gonçalves, Política econômica e macrocenários nacionais: 2003-2006
(www.outrobrasil.net)
(10) Das duas mil instituições de ensino superior do País, apenas 11,9% são públicas,
conforme INEP, Censo da Educação Superior. Resumo Técnico 2002. DF, out. 2003.
(11) "O inimigo são os professores universitários de todo o mundo; e a guerra está declarada",
Banco
(12)
Mundial,
BRASIL,
EM
Bulletin,
nº
november
355/2003/MP/MF,
Brasília,
1998,
10
de
Vol.45,
novembro
N.9.
de
2003.
(13) Ceci V. Juruá, PPP - Os contratos de Parceria Públicos-Privados. Outro Brasil,
www.outrobrasil.net, 25/02/04.
(14) Maurício Hashizume, MEC propõe "PPP" para criar vagas públicas em particulares.
Agência Carta Maior, 16/2/04, disponível em www.agenciacartamaior.com.br, acessado em
17/2/04.
(15) Hugo Aboites. "El dilema: la universidad mexicana al comienzo de siglo". México, D.F.,
UCLAT-APN/UAM, 2001. Este autor destaca que a diluição da fronteira entre o público e o
privado está presente no plano para o ensino superior elaborado pela Associação Nacional de
Universidades e Instituições de Educação Superior (ANUIES) e que vem sendo aplicado pelo
governo Fox.
(16) Hashizume, op.cit.
(17) Idem.
(18) O referido GT foi coordenado pela Casa Civil e pela Secretaria Geral da Presidência com a
participação do MEC e dos órgãos de fomento a C&T.
(19) Raquel G Barreto, A educação à distância na reforma universitária, fev. 2004, disponível
em www.outrobrasil.net
[1]
Artigo originalmente publicado no site: <http://www.lpp-uerj.net/outrobrasil/>
* Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Foi presidente do Sindicato Nacional
dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes). Professor Adjunto da Universidade
Federal do Rio de janeiro (UFRJ). Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO)
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