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O Guru indiano e os Sacramentos cristãos

2016, Ibrasa

Segundo a doutrina católica (e também da Igreja Ortodoxa), sete são os Sacramentos ("signos visíveis de uma influência espiritual invisível", segundo Santo Agostinho). Em geral, a exegese convencional dos sacramentos está marcada por certa “exterioridade”; ela os encara como que “de fora”, e não em sua natureza intrínseca. Foi, pois, uma visão mais interior e ‘esotérica’ que me chamou a atenção na interpretação sugerida pelo Jagadguru de Kanchipuran, uma das maiores autoridades tradicionais do Hinduísmo.

O Guru indiano e os Sacramentos cristãos Mateus Soares de Azevedo Capítulo de O Livro dos Mestres: Homens e mulheres notáveis dos tempos modernos (Ibrasa, 2016) Segundo a doutrina católica (e também da Igreja Ortodoxa), sete são os Sacramentos (“signos visíveis de uma influência espiritual invisível”, segundo Santo Agostinho): 1. Batismo 2. Crisma (ou confirmação) 3. Confissão (ou penitência) 4. Eucaristia 5. Matrimônio 6. Ordenação sacerdotal 7. Extrema-Unção (ou unção dos enfermos). Há, certamente, diversas interpretações e classificações dos Sacramentos. A Eucaristia, por exemplo, é considerado o centro em torno do qual giram todos os demais Sacramentos. Já o Batismo é visto como a “porta” para os outros seis. Este último e a Penitência são os “Sacramentos dos mortos”, pois dão “vida” aos que estão espiritualmente mortos pelo erro e o pecado. Os cinco restantes são os “Sacramentos dos vivos”, dado que sua recepção pressupõe o estado de graça. Há ainda os “Sacramentos individuais” – Batismo, Crisma, Penitência, Eucaristia e Extrema-Unção --, que dizem respeito ao indivíduo em seu caráter privado. E há os “Sacramentos sociais” do Matrimônio e da Ordenação, que afetam prioritariamente o homem como ser social. Em suma, as classificações neste campo parecem ser quase tão numerosas como as escolas teológicas. Seja como for, as interpretações acima estão marcadas por certa “exterioridade”; elas vêem os Sacramentos como que “de fora”, e não em sua natureza intrínseca. Foi, pois, uma visão mais interior e ‘esotérica’ que me chamou a atenção na interpretação sugerida pelo Jagadguru indiano, como se verá abaixo. Na década de 1960, William Stoddart fez uma viagem à Índia, onde se encontrou com o Jagdaguru(guru: mestre; jagad: mundo; jagadguru = “mestre universal”) de Kanchi, no sul do país. O Jagadguru é um descendente tradicional de Shânkara e representa a “via do conhecimento”, ou jnâna (gnose), no Hinduísmo. No encontro com o Jagadguru, Stoddart expôs a doutrina dos Sacramentos do Cristianismo. O sábio hindu lhe transmitiu então sua interpretação destes “meios de graça”, segundo a visão vedantina. Ele classificou os ritos hindus como dikshas (“iniciáticos”) ou samskaras (“mediadores de graças”), assinalando que os primeiros correspondem, no Cristianismo, ao Batismo e ao Crisma, ao passo que os demais correspondem à Eucaristia, Penitência e Extrema–Unção (que veiculam “graças santificantes”) e ao Matrimônio e à Ordenação (os quais conferem “graças de estado”). Podemos, assim, encarar os Sacramentos segundo três grupos distintos: 1. Os que conferem uma iniciação; 2. Os que conferem uma “graça de estado”; 3. Os mediadores de “graças santificantes”. Vale lembrar que, de acordo com a doutrina católica, além das graças “iniciática”, santificante” e “de estado”, há a “graça atual”. Enquanto as três primeiras são mediadas pelos Sacramentos, esta última o é diretamente pelo Espírito Santo – inspirando o fiel, por exemplo, a fazer uma oração ou protegendo-o de várias maneiras. Esta me parece uma visão interessante e estimulante de uma doutrina e uma prática que estão no coração da mensagem cristã. Trata-se de um excelente exemplo de autêntico “ecumenismo”, o qual não opera somente no plano “diplomático” ou superficial, mas que pode ser profundamente espiritual. A este respeito, vale notar, com Frithjof Schuon, que as divergências entre as religiões não se devem unicamente à incompreensão dos homens; elas existem nas próprias Escrituras – portanto, na Vontade Divina. Em outras palavras, não são somente os teólogos das distintas confissões que ‘causam’ as divergências, elas estão inscritas nos próprios dogmas. Desta maneira, o autêntico entendimento entre as religiões só pode se dar no plano da pura metafísica, ou na dimensão esotérica, pois é somente aí que há verdadeira convergência. A rigor, pois, não há ecumenismo “exotérico”, dado que somente a sophia perennis pode se colocar no terreno da ‘unidade transcendente das religiões’. Por outro lado, é importante um entendimento básico e uma cooperação entre as grandes religiões mundiais, como Cristianismo, Islã, Budismo e Hinduísmo, na medida em que todas têm de confrontar igualmente poderosos inimigos comuns, como o ateísmo militante, o materialismo, o imoralismo, a pseudoespiritualidade etc. E, mesmo no interior de cada religião, os dois principais inimigos são comuns a todas elas: de um lado, o fanatismo militante e superficial e, de outro, o modernismo diluidor e achatador. Ainda de acordo com Schuon, é infinitamente mais apropriado crer de forma inteligente em uma única religião, e praticá-la com sinceridade, do que sustentar superficialmente e sem comprometimento que todas as tradições são válidas: “O grande mal – Schuon escreveu em uma carta de maio de 1964 – não é que os homens de diferentes religiões não se compreendam, mas sim que um número demasiadamente grande de homens, por influência da mentalidade moderna, não creiam mais [na verdade da religião]”. As graças santificantes da invocação A participação nos Sacramentos, como vimos, implica a recepção de certas graças. Graças ‘iniciáticas’, no caso do Batismo e do Crisma; graças ‘de estado’, no caso do Matrimônio e da Ordenação sacerdotal; e graças ’santificantes’ no caso da Eucaristia, da Confissão e da extrema-unção. Trataremos agora das graças santificantes envolvidas na invocação do Nome de Deus no Cristianismo. Em Comunion et Invocation, Schuon trata da invocação ritual e metódica do Nome Divino como um “sacramento” eficaz espiritualmente, a par com a própria Comunhão. Na verdade, ele sugere que a Eucaristia e a Invocação constituem um só e mesmo Sacramento; a primeira em seu aspecto ‘passivo’ e a segunda, ‘ativo’ (isto porque, na Comunhão, o fiel recebe ‘passivamente’, por assim dizer, o Corpo e o Sangue do Cristo, ao passo que, na Invocação, o fiel recorda ‘ativamente’ o Seu Nome). Simbolicamente, ambas estas ações sagradas têm como órgão de realização a boca, que recebe o alimento do Céu, de uma parte, e pronuncia o Nome Celeste, de outra. Como diz a liturgia tradicional: “Panem caelestem accipiam et Nomen Domini invocabo...”, isto é, ‘Recebe o Pão Celeste e invoca o Nome do Senhor...” Desnecessário enfatizar que, tanto para comungar como para invocar, são necessárias a graça ‘iniciática’ do Batismo; uma graça de ‘estado’ para o invocador; e uma graça ‘atual’ . A invocação requer a graça divina para ser realizada e, simultaneamente, confere divinas graças ao invocador. Em outros termos, a invocação é em si mesma uma graça e confere infinitas graças, Deo gratias. Poder-se-ia dizer que as graças santificantes mediadas pela invocação do Nome podem ser classificadas em três tipos principais. Estes estão relacionados aos três grandes planos de toda espiritualidade: 1. plano da ação; 2. plano da devoção; 3. plano do conhecimento, ou sapiencial. 1. Karma, 2. Bhakti e 3. Jnâna, para falar nos termos hindus do Jagadguru. Cada um destes três planos abrange um modo passivo e outro ativo, perfazendo assim seis ‘tipos’ de graças santificantes, que podem ser classificadas da seguinte maneira: I – Plano da Ação: 1. ‘interiorização purificadora’; 2. ‘perseverança espiritual’. II – Devoção: 3. ‘paz santificante’; 4. ‘misericórdia salvadora’. III – Conhecimento: 5. ‘extinção metafísica’; 6. ‘união divinizante’. Em conclusão: a invocação do Santo Nome confere as graças santificantes do recolhimento (1) e da ação espiritual (2), no que concerne ao plano da ação, ou karma. Graças da serenidade (3) e do fervor (4), no plano da devoção, ou bhakti. E graças de discernimento intelectual (5) e de identidade metafísica (6), no plano da gnose, ou jnâna. 3