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Introdução. A historiografia inaugural de Heródoto

2024, Heródoto e a invenção do outro Confrontos e conflitos culturais

https://doi.org/10.14195/978‑989‑26‑2601‑7

Este título reúne um conjunto de textos, agrupados em duas secções: uma Parte 1, nas questões suscitadas pela narrativa de Heródoto, e uma Parte 2, sobre a receção que o autor conheceu na própria Antiguidade. Suscita, assim, as linhas de força numa discussão hermenêutica que foi somando leituras ao longo dos séculos, a que o texto de Heródoto-essencialmente focado nas relações entre Oriente e Ocidente, Ásia e Europa-sempre traz um inesgotável contributo.

Heródoto e a invenção do outro Confrontos e conflitos culturais Maria Aparecida Oliveira Silva Maria de Fátima Silva (Coords.) Série Humanitas Supplementum Estudos Monográficos Título Title Heródoto e a invenção do outro: Confrontos e conflitos culturais Herodotus and the Invention of the Other: Encounters and Cultural Conflicts Coord. Ed. Maria Aparecida Oliveira Silva, Maria de Fátima Silva Editores Publishers Imprensa da Universidade de Coimbra Coimbra University Press www.uc.pt/imprensa_uc Contacto Contact imprensa@uc.pt Vendas online Online Sales http://livrariadaimprensa.uc.pt Coordenação Editorial Editorial Coordination Imprensa da Universidade de Coimbra Conceção Gráfica Graphics Rodolfo Lopes, Nelson Ferreira Infografia Infographics Pedro Bandeira Impressão e Acabamento Printed by KDP ISSN 2182‑8814 Financiado com Fundos Nacionais através da FCT ‑ Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00196/2020 ISBN 978‑989‑26‑2600‑0 ISBN Digital 978‑989‑26‑2601‑7 DOI https://doi.org/10.14195/978‑989‑26‑2601‑7 Depósito Legal Legal Deposit 534682/24 © Julho 2024 Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis http://classicadigitalia.uc.pt Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra Trabalho publicado ao abrigo da Licença This work is licensed under Creative Commons CC‑BY (http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/pt/legalcode) Heródoto e a invenção do outro: confrontos e conflitos culturais Herodotus and the Invention of the Other: Encounters and Cultural Conflicts editors Maria Aparecida Oliveira Silva, Maria de Fátima Silva Affiliation Universidade Federal do Piauí, Universidade de Coimbra Resumo Este título reúne um conjunto de textos, agrupados em duas secções: uma Parte 1, nas questões suscitadas pela narrativa de Heródoto, e uma Parte 2, sobre a receção que o autor conheceu na própria Antiguidade. Suscita, assim, as linhas de força numa discussão hermenêutica que foi somando leituras ao longo dos séculos, a que o texto de Heródoto – essencialmente focado nas relações entre Oriente e Ocidente, Ásia e Europa – sempre traz um inesgotável contributo. Palavras-chave História, mito, interculturalidade, costumes, regimes políticos Abstract This title brings together a series of texts, grouped into two sections: Part 1, on the issues raised by Herodotus' narrative, and Part 2, on the author's reception in Antiquity itself. It thus draws the lines of force in a hermeneutic discussion that has been adding readings over the centuries, to which Herodotus' text – essentially focused on the relationship between East and West, Asia and Europe – has always made an inexhaustible contribution. Keywords History, myth, interculturalism, customs, political regimes Editors Maria Aparecida Oliveira Silva. Pesquisadora do Taphos/MAE/USP. Líder e professora colaboradora do Grupo LABHAM/UFPI. Pesquisadora do Grupo Linceu/Unesp-Araraquara e do Grupo Retórica Antigua da Universidad de Cádiz. Autora de "Plutarco Historiador: Análise das Biografias Espartanas", 2006; "Plutarco e Roma: O Mundo Grego no Império", 2014. Plutarco. "Da Malícia de Heródoto", estudo, tradução e notas, 2013, todos publicados pela Edusp. Tradutora de Plutarco e Heródoto. Maria Aparecida Oliveira Silva. Leader and collaborating teacher of the Grupo LABHAM/UFPI. Reseacher of Grupo Heródoto/Unifesp, Taphos/MAE/USP and Grupo Linceu/Unesp-Araraquara e do Grupo Retórica Antigua da Universidad de Cádiz. Autor of "Plutarco Historiador: Análise das Biografias Espartanas", 2006; "Plutarco e Roma: O Mundo Grego no Império", 2014. Plutarco. "Da Malícia de Heródoto", estudo, tradução e notas, 2013, published by Edusp. Translator of Plutarch e Herodotus. Maria de Fátima Silva é Prof. Catedrática Jubilada do Grupo de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra. A sua investigação incide sobretudo em matérias de teatro grego (tragédia e comédia), historiografia, estudos de receção, em particular sobre literatura dramática e conto de inspiração clássica na Literatura Portuguesa. É autora de traduções de Aristófanes, Menandro, Heródoto, Cáriton, Aristóteles, Teofrasto, Pausânias. Coordenou e colaborou em volumes publicados pela Brill – Portrayals of Antigone in Portugal, Portraits of Medea in Portugal –, pela Cambridge Scholars Publishing – A Special Model of Classical Reception. Summaries and Short Stories – e pela Aracne – Heroes and Anti-Heroes. Maria de Fátima Silva is Professor Emeritus of the Group for Classical Studies at the University of Coimbra. Her research focuses mainly on Greek theatre (tragedy and comedy), historiography, reception studies, in particular on dramatic literature and the classically inspired short story in Portuguese Literature. She is the author of translations of Aristophanes, Menander, Herodotus, Chariton, Aristotle, Theophrastus, Pausanias. She has coordinated and collaborated on volumes published by Brill - Portrayals of Antigone in Portugal, Portraits of Medea in Portugal -, by Cambridge Scholars Publishing - A Special Model of Classical Reception. Summaries and Short Stories - and by Aracne - Heroes and Anti-Heroes. 6 Sumário Introdução. A historiografia inaugural de Heródoto Glória Braga Onelley Greice Drumond 9 Parte 1 Heródoto. O pai da História Ordering Empire: Visions of Imperial Space in Herodotus’ Historie Jessica Romney 17 Heródoto e a Democracia Paulo Butti de Lima 35 Diplomacia de Guerra em Heródoto Maria de Fátima Silva 55 La Música en Heródoto Esteban Calderón Dorda 83 Πρῆγμα οὐκ ὅσιον. I Sacrifici Umani Nelle Storie di Erodoto Francesca Gazzano 105 A Líbia de Heródoto Maria Aparecida de Oliveira Silva 131 Deyoces el Medo, Espejo de Príncipes en Heródoto Carmen Sánchez-Mañas 151 A Interpretatio Graeca de Ishtar Segundo Heródoto Nuno Simões Rodrigues 171 Erodoto e la Tragedia di Troia. A Proposito di 2. 112-120 Roberto Nicolai 183 Parte 2 Receção antiga de Heródoto Plutarco y la Irreligiosidad de Heródoto: ¿Juicio Severo o Ficción Retórica? Vicente M. Ramón Palerm Silvia Vergara Recreo 203 Huellas Herodoteas en la Poesía Helenística Menor Rafael J. Gallé Cejudo 215 Índice de autores e passos citados 239 Índice de antropónimos, etnónimos e topónimos 255 Participantes 263 (Página deixada propositadamente em branco) Introdução A historiografia inaugural de Heródoto Ἡροδότου Ἁλικαρνησσέος ἱστορίης ἀπόδεξις ἥδε, ὡς μήτε τὰ γενόμενα ἐξ ἀνθρώπων τῷ χρόνῳ ἐξίτηλα γένηται, μήτε ἔργα μεγάλα τε καὶ θωμαστά, τὰ μὲν Ἕλλησι τὰ δὲ βαρβάροισι ἀποδεχθέντα, ἀκλεᾶ γένηται, τά τε ἄλλα καὶ δι᾽ ἣν αἰτίην ἐπολέμησαν ἀλλήλοισι. Esta é a exposição da investigação de Heródoto de Halicarnasso, para que os feitos dos homens não desapareçam com o tempo, nem as grandes e maravilhosas obras, realizadas tanto pelos gregos como pelos bárbaros, fiquem sem glória, e, além de outras coisas, também a causa pela qual guerrearam uns contra os outros (Hdt.1.1). Inicia-se, assim, o que se convencionou chamar de proêmio1 das Histórias de Heródoto de Halicarnasso2 (c.485 a.C.-c.425 a.C.), qualificado pelo filósofo e orador romano Cícero (Leg. 1.1.5) como o “pai da história” (pater historiae) e considerado o primeiro autor a reunir relatos desenvolvendo um método investigativo capaz de reconstituir, descrever e explicar os fatos passados e os de seu próprio tempo. Além da sphragis, “marca, selo”, em que se imprimem, à maneira de Hesíodo (Teogonia 22-23)3 e de Teógnis (Theognidea 19-21),4 o nome do autor e o de sua cidade natal, destaca-se, nesse exórdio, o propósito da apodexis herodotiana: por meio de uma narrativa ilustrativa de fatos e ações, perenizar os grandiosos feitos dos homens, para que o tempo não os apague da memória coletiva, e investigar a causa dos conflitos entre Helenos e Bárbaros. A busca pela causalidade que opôs Ocidente e Oriente se pauta, a princípio, de modo análogo à épica homérica, em razões mitológicas que, segundo o historiador de Halicarnasso, foram dadas pelos Persas para explicar as origens remotas 1 Alguns estudiosos, entre os quais Hartog (2001: 43-47), consideram o proêmio das Histórias não só as cinco primeiras linhas da abertura do Livro I, mas também os cinco primeiros capítulos da obra. Hartog, F. (ed.) (2001), A história de Homero a Santo Agostinho. Trad. Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: UFMG. 2 As edições críticas pautadas nos nove manuscritos medievais da obra herodotiana indicam Halicarnasso como a cidade natal do historiador. Outras, no entanto, seguem a referência de Aristóteles (Rh. 1409a28) que o nomeia como cidadão de Túrio, colônia grega da Magna Grécia instituída em 444 a.C., de cuja fundação talvez tenha ele tomado parte. 3 Teogonia 22-23: “Elas, um dia, ensinaram um belo canto a Hesíodo/quando ele pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino” (tradução nossa). 4 Theognidea 19-21: “Cirno, que o meu selo de poeta seja colocado/ nestes versos – roubados, jamais serão esquecidos/ ninguém trocará o pior por este excelente que aqui está;/ assim, qualquer um dirá: ‘São os versos de Teógnis/ de Mégara’, célebre entre todos os homens” (tradução nossa). 9 Introdução. A historiografia inaugural de Heródoto dos conflitos: os raptos de Io, Europa, Medeia e Helena (Hdt.1.5.3). No entanto, não foram esses logoi os eleitos, os preferidos de Heródoto, mas os fatos históricos, narrados, muitas vezes, com a inserção de aspectos lendários, míticos e fabulosos. Assim, a despeito de ser o universo dos homens o cenário sobre o qual se desenrolam as narrativas de Heródoto, o mundo mítico não deixa de ser referenciado. De fato, o historiador atribui a origem dos conflitos entre Gregos e Bárbaros, primeiramente, ao rei lídio Creso (Hdt. 1.6) – cujo reino é dominado, em 546 a.C., pelos Persas – depois, a Ciro II, o Grande, que subjugou as cidades gregas da costa da Ásia Menor desde meados do século VI a.C., e a seus sucessores Cambises e Dario. Com efeito, Heródoto estrutura, nos quatro primeiros livros de suas Histórias, uma sequência na qual sua narrativa se inicia com o expansionismo do império persa, desde Ciro até Dario – com a descrição, em pormenor, do domínio persa na Ásia Menor, na Babilônia e no Egito5 –, e estende-se até as batalhas entre Gregos e Persas. A causa recente dessa inimizade começou com a ajuda dos Atenienses aos Jônios de Mileto (Hdt. 5.97) e culminou nas guerras Médicas, travadas, no primeiro quartel do século V a.C., entre Gregos e Persas, cujos conflitos redundaram na vitória da liberdade helênica perante o despotismo bárbaro, graças, mormente, à decisiva participação da cidade de Atenas na luta contra o grandioso império do Oriente. Distintamente da maioria dos poetas inspirados pelas Musas, Heródoto substitui o apelo às divindades detentoras do saber e declara-se, no proêmio, o autor de suas investigações, entremeadas de diversos logoi, que mostram costumes, pontos de vista e feitos de diferentes povos. Apesar de Heródoto apresentar versões variadas de um determinado relato, parecendo, algumas vezes, aproximar suas reflexões ao modo de pensar bárbaro, a leitura pelo viés helenocêntrico ou pela interpretatio graeca pode ser dominante em alguns momentos. No passo em que o historiador, e.g., trata da deusa cultuada na Babilônia (Hdt.1.199), chamada Milita pelos Assírios, a referência a Afrodite, em sua exposição, é o que vai conduzir a compreensão de sua audiência. O autor jônio também não deixa de atribuir aos povos bárbaros a origem de alguns deuses gregos, chegando, até mesmo, a imputar uma procedência egípcia a divindades consideradas tradicionalmente helênicas, como Hera, Héstia e Têmis (Hdt. 2.50.1-3). Desse modo, a forma de apresentação dos relatos expressa por Heródoto levou Plutarco (De Herod. malig. 857A) a considerá-lo um philobarbaros.6 Com efeito, Heródoto 5 Após a morte de Ciro, sucede-lhe seu filho Cambises que, desejoso de continuar as conquistas iniciadas por seu pai sobre bárbaros orientais, realiza, na segunda metade do século VI a.C., uma expedição contra o Egito, digressão relatada por Heródoto no Livro 2 sobre a cultura, as instituições e a religião dos Egípcios. 6 De Herod. malig. 857A: “Assim, ele é philobarbaros, de sorte que, tendo livrado Busíris do chamado sacrifício humano e do homicídio de estrangeiros e tendo testemunhado, em favor dos 10 Glória Braga Onelley | Greice Drumond respeitava a ideia de antiguidade de um povo, e, por isso, Egípcios, Fenícios e Babilônios poderiam ser modelos de normas e costumes. É também no contexto de relatos bárbaros que surge uma das questões mais discutidas acerca do sistema político do mundo ocidental, tendo sido o histor de Halicarnasso o primeiro a apresentar um esboço sobre as distintas formas de governo: a democracia, a oligarquia e a monarquia (Hdt. 3.80-82). Em virtude da justaposição de juízos de valor presentes na obra herodotiana, na qual, a par de análises negativas, se encontram também críticas positivas, há autores que argumentam figurar no texto de Heródoto um posicionamento neutro, por parte do narrador, acerca da tirania; outros que consideram positiva a ideia que o historiador faz desse regime, e outros, ainda, que julgam negativa a concepção sobre a tirania nas Histórias, visto que nelas se caracteriza como despótico e ultrajante o comportamento do rei para com os seus súditos. Opondo a tirania à democracia, só compreensível esta última no contexto ateniense do século V a. C. no qual se consolidou o modelo democrático, Heródoto destaca a superioridade dessa forma de governo em relação ao regime tirânico, como se infere do relato de um Coríntio aos Lacedemônios acerca da tirania, por ele descrita como injusta (Hdt. 5.92). Assim, ainda que Heródoto apresente sobre cada uma das formas de governo particularidades positivas e negativas e não realize uma teorização sobre essas diferentes constituições, abriu ele caminho para que Platão e Aristóteles assim o fizessem. As Histórias impressionaram os antigos, alcançando grande popularidade na Atenas de seu tempo, onde o historiador, provavelmente, declamava partes de sua obra. Sófocles e Aristófanes, e.g., incluem excertos da investigação de Heródoto em alguns de seus enredos.7 Contudo, depois de Tucídides, com sua noção de verdade histórica, a obra de Heródoto é revisada. A combinação de dados factuais, que podiam ser verificados na realidade objetiva, com elementos míticos, em pontos altos de suas Histórias, é uma característica do texto herodotiano apontada por Aristóteles, Estrabão e Plutarco. Embora considerado por Cícero como o “pai da história”, o orador da Roma antiga também o critica pela inclusão de fábulas em seus relatos. É admirado por Dionísio de Halicarnasso e Luciano de Samósata graças ao seu estilo, mais do que pela confiabilidade que sua narrativa pudesse inspirar. Com isso, seu nome é circundado por um certo ceticismo, tendo em vista Heródoto não preencher o ideal de historiador próprio de quem tem compromisso estreito com a verdade histórica. Com a redescoberta dos historiadores gregos na Renascença, Heródoto volta a ser um autor apreciado. Em virtude da invasão da América, os europeus Egípcios, o imenso respeito aos deuses e o sentimento de justiça, faz cair sobre Gregos essa infâmia e a mácula pelo crime de morte” (tradução nossa). 7 Ant. 904-912 = Hdt. 3.119; Trach. 634-639 = Hdt. 7.176; Av. 1124-1162 = Hdt. 1.179. 11 Introdução. A historiografia inaugural de Heródoto entram em contato com um universo tão fabuloso que a leitura do antigo historiador ajuda no entendimento desse “novo mundo”. Após a Reforma Protestante, Heródoto preenche a lacuna acerca do mundo oriental, auxiliando teólogos na compreensão da geografia e da história dos povos relatados na Bíblia (Momigliano 2004: 80-85).8 Contendo uma abordagem política e extrapolítica da história, o interesse que os séculos XVIII e XIX demonstraram pela obra de Heródoto tem relação com a disputa entre história política e história da civilização. A questão composicional também foi um elemento de debate entre os acadêmicos do século XX, especialmente, como ocorre com a obra de Homero, no que tange às escolas unitarista e analítica. Além desses aspectos, em meados do século passado, a discussão sobre o vínculo de Heródoto com Atenas criou dois partidos: o que considerava o historiador um porta-voz da cidade e de seu império e aquele que o concebia como um crítico de Atenas, cujo retrato visava a advertir sobre os perigos do imperialismo. A etnografia moderna toma Heródoto como ponto de partida de seus pressupostos e suas investigações, visto que foi o autor que mais contrastes apresentou em sua análise dos costumes de diferentes povos. A perspectiva da antropologia também contribuiu para uma nova interpretação das Histórias como uma tentativa de se retratar o mundo conhecido pela visão do “outro”. Mais recentemente, o texto de Heródoto é tratado como um produto de seu tempo e espaço que deve ser estudado em seu contexto de produção e em sua estrutura narrativa. Histórias passa também pelo crivo da análise da Teoria da Recepção, pois o público de Heródoto deve ser levado em conta quando se pensa a forma como a obra foi composta. Os capítulos presentes neste livro incorporam alguns aspectos de novas abordagens do texto herodotiano. A análise de personagens que figuram em muitos dos relatos é importante para a compreensão da estratégia narrativa de Heródoto, em especial quando se trata dos responsáveis pela entrega de conteúdos que auxiliam na tomada de decisão dos soberanos, tais como mensageiros e arautos, enfatizando-se, assim, a configuração do vínculo emissor-receptor que o historiador delineia em sua exposição das relações diplomáticas entre os povos. A figura do soberano oriental também é analisada de acordo com a função que esse personagem tem em diferentes relatos apresentados pelo autor. A visão etnográfica e sociológica aplicada à análise dos relatos de Histórias não deixa de ser, nos textos que leremos a seguir, uma possibilidade de averiguarse o tema da religião na obra de Heródoto. Ao tratar de um ritual babilônico de natureza erótico-sexual descrito no Livro I (Hdt. 1.199), verifica-se a relação entre a deusa grega do amor e divindades femininas orientais que têm um papel 8 Momigliano, A. (2004), As raízes clássicas da historiografia moderna. Tradução de Maria Beatriz Borba Florenzano. São Paulo: EDUSC. 12 Glória Braga Onelley | Greice Drumond similar ao de Afrodite em seus respectivos ambientes de culto. Além disso, os relatos interpretados, de modo geral, como práticas de sacrifícios humanos não se distinguem, por meio de uma terminologia específica, de outras mortes violentas praticadas tanto por Gregos quanto por Bárbaros. Essa controversa questão, objeto de análises diversas e divergentes desde a Antiguidade, perpassa noções antropológicas, éticas e histórico-religiosas. Apesar de Heródoto destacar as ações humanas, conforme propõe no proêmio, não deixou ele de descrever o espaço habitado para entender costumes e modos de vida de diferentes grupos étnicos. Pelo contrário, a geografia ocupa, em sua obra, um lugar especial, visto que a identidade cultural de um povo é influenciada, de acordo com a etnografia herodotiana, pelas características do ambiente natural em que se desenvolve. A variedade de paisagens da Líbia, como descrita pelo historiador, abrange desde áreas desérticas até regiões com solos férteis e florestas densas. Essa diversidade geográfica contribui para a formação de diferentes modos de vida entre os habitantes da Líbia. A descrição do mundo, em Histórias, passa também pela catalogação, à maneira de Homero, dos povos dominados pelos Persas. A caracterização do espaço por ele retratado reproduz uma relação de poder, já que o narrador parte do centro da Pérsia, o coração do Império, e percorre o território do Norte para o Oriente e do Sul para o Ocidente. Dessa forma, ele salienta a dimensão e a magnitude do poderio persa, analisando sua extensão com base em três grandes blocos: as províncias de tributo de Dario (Hdt. 3.89-98), as descrições da Estrada Real (Hdt. 5.49.5-53) e a lista dos contingentes étnicos no exército e na frota de Xerxes (Hdt. 7.61-100). No estudo lexical de Heródoto, a análise de cunho filológico de termos referentes à música, ao canto e à dança enriquece nosso olhar sobre as descrições que o historiador faz dos momentos ritualísticos e festivos tanto de Bárbaros como de Gregos, especialmente quando mostra as influências recíprocas referentes às inovações musicais. Não há dúvidas de que Heródoto foi estudado no sistema educacional do período helenístico, graças a seu estilo retórico, ao uso lexical e às regras gramaticais empregadas. O “poeta em prosa” influenciou também a poesia helenística, marcando presença nas reminiscências de suas Histórias que podem ser encontradas nos poemas de Calímaco, Apolônio e Licofronte. Os capítulos que compõem o presente volume apresentam, pois, diferentes e divergentes abordagens da narrativa histórica que permanece como referência a estudiosos e interessados na historiografia ocidental. Esperamos que esses textos sejam apreciados como uma relevante fonte de conhecimentos da obra do historiador de Halicarnasso. Glória Braga Onelley (UFF/PPGLC-UFRJ) Greice Drumond (UFF/PPGLC-UFRJ) 13