Heródoto
e a invenção do outro
Confrontos e conflitos culturais
Maria Aparecida Oliveira Silva
Maria de Fátima Silva
(Coords.)
Série Humanitas Supplementum
Estudos Monográficos
Título Title
Heródoto e a invenção do outro: Confrontos e conflitos culturais
Herodotus and the Invention of the Other: Encounters and Cultural Conflicts
Coord. Ed.
Maria Aparecida Oliveira Silva, Maria de Fátima Silva
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do projeto UIDB/00196/2020
ISBN
978‑989‑26‑2600‑0
ISBN Digital
978‑989‑26‑2601‑7
DOI
https://doi.org/10.14195/978‑989‑26‑2601‑7
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Heródoto e a invenção do outro:
confrontos e conflitos culturais
Herodotus and the Invention of the Other:
Encounters and Cultural Conflicts
editors
Maria Aparecida Oliveira Silva, Maria de Fátima Silva
Affiliation
Universidade Federal do Piauí, Universidade de Coimbra
Resumo
Este título reúne um conjunto de textos, agrupados em duas secções: uma Parte 1, nas questões
suscitadas pela narrativa de Heródoto, e uma Parte 2, sobre a receção que o autor conheceu na
própria Antiguidade.
Suscita, assim, as linhas de força numa discussão hermenêutica que foi somando leituras ao
longo dos séculos, a que o texto de Heródoto – essencialmente focado nas relações entre Oriente
e Ocidente, Ásia e Europa – sempre traz um inesgotável contributo.
Palavras-chave
História, mito, interculturalidade, costumes, regimes políticos
Abstract
This title brings together a series of texts, grouped into two sections: Part 1, on the issues
raised by Herodotus' narrative, and Part 2, on the author's reception in Antiquity itself.
It thus draws the lines of force in a hermeneutic discussion that has been adding readings over
the centuries,
to which Herodotus' text – essentially focused on the relationship between East and West, Asia
and Europe – has always made an inexhaustible contribution.
Keywords
History, myth, interculturalism, customs, political regimes
Editors
Maria Aparecida Oliveira Silva. Pesquisadora do Taphos/MAE/USP. Líder e professora
colaboradora do Grupo LABHAM/UFPI. Pesquisadora do Grupo Linceu/Unesp-Araraquara e do Grupo Retórica Antigua da Universidad de Cádiz. Autora de "Plutarco
Historiador: Análise das Biografias Espartanas", 2006; "Plutarco e Roma: O Mundo
Grego no Império", 2014. Plutarco. "Da Malícia de Heródoto", estudo, tradução e
notas, 2013, todos publicados pela Edusp. Tradutora de Plutarco e Heródoto.
Maria Aparecida Oliveira Silva. Leader and collaborating teacher of the Grupo LABHAM/UFPI. Reseacher of Grupo Heródoto/Unifesp, Taphos/MAE/USP and Grupo
Linceu/Unesp-Araraquara e do Grupo Retórica Antigua da Universidad de Cádiz.
Autor of "Plutarco Historiador: Análise das Biografias Espartanas", 2006; "Plutarco e
Roma: O Mundo Grego no Império", 2014. Plutarco. "Da Malícia de Heródoto", estudo, tradução e notas, 2013, published by Edusp. Translator of Plutarch e Herodotus.
Maria de Fátima Silva é Prof. Catedrática Jubilada do Grupo de Estudos Clássicos da
Universidade de Coimbra. A sua investigação incide sobretudo em matérias de teatro
grego (tragédia e comédia), historiografia, estudos de receção, em particular sobre
literatura dramática e conto de inspiração clássica na Literatura Portuguesa. É autora
de traduções de Aristófanes, Menandro, Heródoto, Cáriton, Aristóteles, Teofrasto,
Pausânias. Coordenou e colaborou em volumes publicados pela Brill – Portrayals
of Antigone in Portugal, Portraits of Medea in Portugal –, pela Cambridge Scholars
Publishing – A Special Model of Classical Reception. Summaries and Short Stories – e
pela Aracne – Heroes and Anti-Heroes.
Maria de Fátima Silva is Professor Emeritus of the Group for Classical Studies at the
University of Coimbra. Her research focuses mainly on Greek theatre (tragedy and
comedy), historiography, reception studies, in particular on dramatic literature and
the classically inspired short story in Portuguese Literature. She is the author of translations of Aristophanes, Menander, Herodotus, Chariton, Aristotle, Theophrastus,
Pausanias. She has coordinated and collaborated on volumes published by Brill - Portrayals of Antigone in Portugal, Portraits of Medea in Portugal -, by Cambridge Scholars
Publishing - A Special Model of Classical Reception. Summaries and Short Stories - and
by Aracne - Heroes and Anti-Heroes.
6
Sumário
Introdução. A historiografia inaugural de Heródoto
Glória Braga Onelley
Greice Drumond
9
Parte 1
Heródoto. O pai da História
Ordering Empire: Visions of Imperial Space in Herodotus’ Historie
Jessica Romney
17
Heródoto e a Democracia
Paulo Butti de Lima
35
Diplomacia de Guerra em Heródoto
Maria de Fátima Silva
55
La Música en Heródoto
Esteban Calderón Dorda
83
Πρῆγμα οὐκ ὅσιον. I Sacrifici Umani Nelle Storie di Erodoto
Francesca Gazzano
105
A Líbia de Heródoto
Maria Aparecida de Oliveira Silva
131
Deyoces el Medo, Espejo de Príncipes en Heródoto
Carmen Sánchez-Mañas
151
A Interpretatio Graeca de Ishtar Segundo Heródoto
Nuno Simões Rodrigues
171
Erodoto e la Tragedia di Troia. A Proposito di 2. 112-120
Roberto Nicolai
183
Parte 2
Receção antiga de Heródoto
Plutarco y la Irreligiosidad de Heródoto: ¿Juicio Severo o Ficción Retórica?
Vicente M. Ramón Palerm
Silvia Vergara Recreo
203
Huellas Herodoteas en la Poesía Helenística Menor
Rafael J. Gallé Cejudo
215
Índice de autores e passos citados
239
Índice de antropónimos, etnónimos e topónimos
255
Participantes
263
(Página deixada propositadamente em branco)
Introdução
A historiografia inaugural de Heródoto
Ἡροδότου Ἁλικαρνησσέος ἱστορίης ἀπόδεξις ἥδε, ὡς μήτε τὰ
γενόμενα ἐξ ἀνθρώπων τῷ χρόνῳ ἐξίτηλα γένηται, μήτε ἔργα
μεγάλα τε καὶ θωμαστά, τὰ μὲν Ἕλλησι τὰ δὲ βαρβάροισι
ἀποδεχθέντα, ἀκλεᾶ γένηται, τά τε ἄλλα καὶ δι᾽ ἣν αἰτίην
ἐπολέμησαν ἀλλήλοισι.
Esta é a exposição da investigação de Heródoto de Halicarnasso,
para que os feitos dos homens não desapareçam com o tempo,
nem as grandes e maravilhosas obras, realizadas tanto pelos
gregos como pelos bárbaros, fiquem sem glória, e, além de outras
coisas, também a causa pela qual guerrearam uns contra os
outros (Hdt.1.1).
Inicia-se, assim, o que se convencionou chamar de proêmio1 das Histórias de
Heródoto de Halicarnasso2 (c.485 a.C.-c.425 a.C.), qualificado pelo filósofo e
orador romano Cícero (Leg. 1.1.5) como o “pai da história” (pater historiae) e
considerado o primeiro autor a reunir relatos desenvolvendo um método
investigativo capaz de reconstituir, descrever e explicar os fatos passados e os de
seu próprio tempo. Além da sphragis, “marca, selo”, em que se imprimem, à maneira
de Hesíodo (Teogonia 22-23)3 e de Teógnis (Theognidea 19-21),4 o nome do autor
e o de sua cidade natal, destaca-se, nesse exórdio, o propósito da apodexis
herodotiana: por meio de uma narrativa ilustrativa de fatos e ações, perenizar os
grandiosos feitos dos homens, para que o tempo não os apague da memória
coletiva, e investigar a causa dos conflitos entre Helenos e Bárbaros.
A busca pela causalidade que opôs Ocidente e Oriente se pauta, a princípio,
de modo análogo à épica homérica, em razões mitológicas que, segundo o historiador de Halicarnasso, foram dadas pelos Persas para explicar as origens remotas
1
Alguns estudiosos, entre os quais Hartog (2001: 43-47), consideram o proêmio das
Histórias não só as cinco primeiras linhas da abertura do Livro I, mas também os cinco primeiros
capítulos da obra. Hartog, F. (ed.) (2001), A história de Homero a Santo Agostinho. Trad. Jacyntho
Lins Brandão. Belo Horizonte: UFMG.
2
As edições críticas pautadas nos nove manuscritos medievais da obra herodotiana indicam
Halicarnasso como a cidade natal do historiador. Outras, no entanto, seguem a referência de
Aristóteles (Rh. 1409a28) que o nomeia como cidadão de Túrio, colônia grega da Magna Grécia
instituída em 444 a.C., de cuja fundação talvez tenha ele tomado parte.
3
Teogonia 22-23: “Elas, um dia, ensinaram um belo canto a Hesíodo/quando ele pastoreava
ovelhas ao pé do Hélicon divino” (tradução nossa).
4
Theognidea 19-21: “Cirno, que o meu selo de poeta seja colocado/ nestes versos – roubados,
jamais serão esquecidos/ ninguém trocará o pior por este excelente que aqui está;/ assim,
qualquer um dirá: ‘São os versos de Teógnis/ de Mégara’, célebre entre todos os homens”
(tradução nossa).
9
Introdução. A historiografia inaugural de Heródoto
dos conflitos: os raptos de Io, Europa, Medeia e Helena (Hdt.1.5.3). No entanto,
não foram esses logoi os eleitos, os preferidos de Heródoto, mas os fatos históricos,
narrados, muitas vezes, com a inserção de aspectos lendários, míticos e fabulosos.
Assim, a despeito de ser o universo dos homens o cenário sobre o qual se desenrolam as narrativas de Heródoto, o mundo mítico não deixa de ser referenciado.
De fato, o historiador atribui a origem dos conflitos entre Gregos e Bárbaros,
primeiramente, ao rei lídio Creso (Hdt. 1.6) – cujo reino é dominado, em 546
a.C., pelos Persas – depois, a Ciro II, o Grande, que subjugou as cidades gregas da
costa da Ásia Menor desde meados do século VI a.C., e a seus sucessores Cambises
e Dario. Com efeito, Heródoto estrutura, nos quatro primeiros livros de suas
Histórias, uma sequência na qual sua narrativa se inicia com o expansionismo do
império persa, desde Ciro até Dario – com a descrição, em pormenor, do domínio
persa na Ásia Menor, na Babilônia e no Egito5 –, e estende-se até as batalhas entre
Gregos e Persas.
A causa recente dessa inimizade começou com a ajuda dos Atenienses aos
Jônios de Mileto (Hdt. 5.97) e culminou nas guerras Médicas, travadas, no
primeiro quartel do século V a.C., entre Gregos e Persas, cujos conflitos redundaram na vitória da liberdade helênica perante o despotismo bárbaro, graças,
mormente, à decisiva participação da cidade de Atenas na luta contra o grandioso
império do Oriente.
Distintamente da maioria dos poetas inspirados pelas Musas, Heródoto
substitui o apelo às divindades detentoras do saber e declara-se, no proêmio, o
autor de suas investigações, entremeadas de diversos logoi, que mostram costumes, pontos de vista e feitos de diferentes povos. Apesar de Heródoto apresentar
versões variadas de um determinado relato, parecendo, algumas vezes, aproximar
suas reflexões ao modo de pensar bárbaro, a leitura pelo viés helenocêntrico ou
pela interpretatio graeca pode ser dominante em alguns momentos. No passo em
que o historiador, e.g., trata da deusa cultuada na Babilônia (Hdt.1.199), chamada
Milita pelos Assírios, a referência a Afrodite, em sua exposição, é o que vai
conduzir a compreensão de sua audiência. O autor jônio também não deixa de
atribuir aos povos bárbaros a origem de alguns deuses gregos, chegando, até
mesmo, a imputar uma procedência egípcia a divindades consideradas tradicionalmente helênicas, como Hera, Héstia e Têmis (Hdt. 2.50.1-3). Desse modo,
a forma de apresentação dos relatos expressa por Heródoto levou Plutarco
(De Herod. malig. 857A) a considerá-lo um philobarbaros.6 Com efeito, Heródoto
5
Após a morte de Ciro, sucede-lhe seu filho Cambises que, desejoso de continuar as
conquistas iniciadas por seu pai sobre bárbaros orientais, realiza, na segunda metade do século
VI a.C., uma expedição contra o Egito, digressão relatada por Heródoto no Livro 2 sobre a
cultura, as instituições e a religião dos Egípcios.
6
De Herod. malig. 857A: “Assim, ele é philobarbaros, de sorte que, tendo livrado Busíris do
chamado sacrifício humano e do homicídio de estrangeiros e tendo testemunhado, em favor dos
10
Glória Braga Onelley | Greice Drumond
respeitava a ideia de antiguidade de um povo, e, por isso, Egípcios, Fenícios e
Babilônios poderiam ser modelos de normas e costumes.
É também no contexto de relatos bárbaros que surge uma das questões mais
discutidas acerca do sistema político do mundo ocidental, tendo sido o histor de
Halicarnasso o primeiro a apresentar um esboço sobre as distintas formas de
governo: a democracia, a oligarquia e a monarquia (Hdt. 3.80-82). Em virtude da
justaposição de juízos de valor presentes na obra herodotiana, na qual, a par de
análises negativas, se encontram também críticas positivas, há autores que
argumentam figurar no texto de Heródoto um posicionamento neutro, por parte
do narrador, acerca da tirania; outros que consideram positiva a ideia que o
historiador faz desse regime, e outros, ainda, que julgam negativa a concepção
sobre a tirania nas Histórias, visto que nelas se caracteriza como despótico e
ultrajante o comportamento do rei para com os seus súditos.
Opondo a tirania à democracia, só compreensível esta última no contexto
ateniense do século V a. C. no qual se consolidou o modelo democrático, Heródoto
destaca a superioridade dessa forma de governo em relação ao regime tirânico,
como se infere do relato de um Coríntio aos Lacedemônios acerca da tirania,
por ele descrita como injusta (Hdt. 5.92). Assim, ainda que Heródoto apresente
sobre cada uma das formas de governo particularidades positivas e negativas e
não realize uma teorização sobre essas diferentes constituições, abriu ele caminho
para que Platão e Aristóteles assim o fizessem.
As Histórias impressionaram os antigos, alcançando grande popularidade
na Atenas de seu tempo, onde o historiador, provavelmente, declamava partes de
sua obra. Sófocles e Aristófanes, e.g., incluem excertos da investigação de Heródoto
em alguns de seus enredos.7 Contudo, depois de Tucídides, com sua noção de
verdade histórica, a obra de Heródoto é revisada. A combinação de dados
factuais, que podiam ser verificados na realidade objetiva, com elementos míticos,
em pontos altos de suas Histórias, é uma característica do texto herodotiano
apontada por Aristóteles, Estrabão e Plutarco. Embora considerado por Cícero
como o “pai da história”, o orador da Roma antiga também o critica pela inclusão
de fábulas em seus relatos. É admirado por Dionísio de Halicarnasso e Luciano
de Samósata graças ao seu estilo, mais do que pela confiabilidade que sua narrativa
pudesse inspirar. Com isso, seu nome é circundado por um certo ceticismo,
tendo em vista Heródoto não preencher o ideal de historiador próprio de quem
tem compromisso estreito com a verdade histórica.
Com a redescoberta dos historiadores gregos na Renascença, Heródoto
volta a ser um autor apreciado. Em virtude da invasão da América, os europeus
Egípcios, o imenso respeito aos deuses e o sentimento de justiça, faz cair sobre Gregos essa
infâmia e a mácula pelo crime de morte” (tradução nossa).
7
Ant. 904-912 = Hdt. 3.119; Trach. 634-639 = Hdt. 7.176; Av. 1124-1162 = Hdt. 1.179.
11
Introdução. A historiografia inaugural de Heródoto
entram em contato com um universo tão fabuloso que a leitura do antigo historiador ajuda no entendimento desse “novo mundo”. Após a Reforma Protestante,
Heródoto preenche a lacuna acerca do mundo oriental, auxiliando teólogos na
compreensão da geografia e da história dos povos relatados na Bíblia (Momigliano
2004: 80-85).8
Contendo uma abordagem política e extrapolítica da história, o interesse que
os séculos XVIII e XIX demonstraram pela obra de Heródoto tem relação com a
disputa entre história política e história da civilização. A questão composicional
também foi um elemento de debate entre os acadêmicos do século XX, especialmente, como ocorre com a obra de Homero, no que tange às escolas unitarista e
analítica. Além desses aspectos, em meados do século passado, a discussão sobre
o vínculo de Heródoto com Atenas criou dois partidos: o que considerava o historiador um porta-voz da cidade e de seu império e aquele que o concebia como
um crítico de Atenas, cujo retrato visava a advertir sobre os perigos do imperialismo.
A etnografia moderna toma Heródoto como ponto de partida de seus pressupostos e suas investigações, visto que foi o autor que mais contrastes apresentou
em sua análise dos costumes de diferentes povos. A perspectiva da antropologia
também contribuiu para uma nova interpretação das Histórias como uma tentativa de se retratar o mundo conhecido pela visão do “outro”. Mais recentemente,
o texto de Heródoto é tratado como um produto de seu tempo e espaço que
deve ser estudado em seu contexto de produção e em sua estrutura narrativa.
Histórias passa também pelo crivo da análise da Teoria da Recepção, pois o
público de Heródoto deve ser levado em conta quando se pensa a forma como a
obra foi composta.
Os capítulos presentes neste livro incorporam alguns aspectos de novas
abordagens do texto herodotiano. A análise de personagens que figuram em
muitos dos relatos é importante para a compreensão da estratégia narrativa de
Heródoto, em especial quando se trata dos responsáveis pela entrega de conteúdos
que auxiliam na tomada de decisão dos soberanos, tais como mensageiros e
arautos, enfatizando-se, assim, a configuração do vínculo emissor-receptor que o
historiador delineia em sua exposição das relações diplomáticas entre os povos.
A figura do soberano oriental também é analisada de acordo com a função que
esse personagem tem em diferentes relatos apresentados pelo autor.
A visão etnográfica e sociológica aplicada à análise dos relatos de Histórias
não deixa de ser, nos textos que leremos a seguir, uma possibilidade de averiguarse o tema da religião na obra de Heródoto. Ao tratar de um ritual babilônico de
natureza erótico-sexual descrito no Livro I (Hdt. 1.199), verifica-se a relação
entre a deusa grega do amor e divindades femininas orientais que têm um papel
8
Momigliano, A. (2004), As raízes clássicas da historiografia moderna. Tradução de Maria
Beatriz Borba Florenzano. São Paulo: EDUSC.
12
Glória Braga Onelley | Greice Drumond
similar ao de Afrodite em seus respectivos ambientes de culto. Além disso,
os relatos interpretados, de modo geral, como práticas de sacrifícios humanos
não se distinguem, por meio de uma terminologia específica, de outras mortes
violentas praticadas tanto por Gregos quanto por Bárbaros. Essa controversa
questão, objeto de análises diversas e divergentes desde a Antiguidade, perpassa
noções antropológicas, éticas e histórico-religiosas.
Apesar de Heródoto destacar as ações humanas, conforme propõe no
proêmio, não deixou ele de descrever o espaço habitado para entender costumes
e modos de vida de diferentes grupos étnicos. Pelo contrário, a geografia ocupa,
em sua obra, um lugar especial, visto que a identidade cultural de um povo é
influenciada, de acordo com a etnografia herodotiana, pelas características do
ambiente natural em que se desenvolve. A variedade de paisagens da Líbia, como
descrita pelo historiador, abrange desde áreas desérticas até regiões com solos
férteis e florestas densas. Essa diversidade geográfica contribui para a formação
de diferentes modos de vida entre os habitantes da Líbia.
A descrição do mundo, em Histórias, passa também pela catalogação,
à maneira de Homero, dos povos dominados pelos Persas. A caracterização do
espaço por ele retratado reproduz uma relação de poder, já que o narrador parte
do centro da Pérsia, o coração do Império, e percorre o território do Norte para
o Oriente e do Sul para o Ocidente. Dessa forma, ele salienta a dimensão e a
magnitude do poderio persa, analisando sua extensão com base em três grandes
blocos: as províncias de tributo de Dario (Hdt. 3.89-98), as descrições da Estrada
Real (Hdt. 5.49.5-53) e a lista dos contingentes étnicos no exército e na frota de
Xerxes (Hdt. 7.61-100).
No estudo lexical de Heródoto, a análise de cunho filológico de termos
referentes à música, ao canto e à dança enriquece nosso olhar sobre as descrições
que o historiador faz dos momentos ritualísticos e festivos tanto de Bárbaros
como de Gregos, especialmente quando mostra as influências recíprocas referentes às inovações musicais.
Não há dúvidas de que Heródoto foi estudado no sistema educacional do
período helenístico, graças a seu estilo retórico, ao uso lexical e às regras gramaticais empregadas. O “poeta em prosa” influenciou também a poesia helenística,
marcando presença nas reminiscências de suas Histórias que podem ser encontradas nos poemas de Calímaco, Apolônio e Licofronte.
Os capítulos que compõem o presente volume apresentam, pois, diferentes e
divergentes abordagens da narrativa histórica que permanece como referência a
estudiosos e interessados na historiografia ocidental. Esperamos que esses textos
sejam apreciados como uma relevante fonte de conhecimentos da obra do
historiador de Halicarnasso.
Glória Braga Onelley (UFF/PPGLC-UFRJ)
Greice Drumond (UFF/PPGLC-UFRJ)
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