FRONTEIRAS
ISSN 2238-8869
Política e Saúde na Capitania do Ceará (1790-1812)
Policy and Health in the Captaincy of Ceará (1790-1812)
Eduardo Henrique Barbosa
de Vasconcelos
VASCONCELOS, Eduardo Henrique Barbosa; SOARES, Ana
Lorym. Política e Saúde na Capitania do Ceará (1790-1812).
FRONTEIRAS: Journal of Social, Technological and Environmental
Science, Anápolis-Goiás, v.3, n.2, jul.-dez. 2014, p.250-259.
Mestrado em História das Ciências
e da Saúde pela Sociedade de
Promoção da Casa de Oswaldo
Cruz, Brasil(2007). Professor
Efetivo da Universidade Estadual
de Goiás , Brasil
eduardo.vasconcelos@ueg.br
Ana Lorym Soares
Mestrado em História Social da
Cultura pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Brasil(2010). Estudante
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro , Brasil
nalorym@gmail.com
Resumo
O presente artigo apresenta as ações relacionadas a saúde e a doença
efetivadas na Capitania do ceará, no período que se estende da última
década do século XVIII e os quinze primeiros anos do século XIX.
Nesse sentido, seja por meio das ações sugeridas pela coroa
portuguesa ou as intervenções feitas pelo poder público local, fica
claro a preocupação e os limites das ações voltadas para proteção da
saúde na realidade histórica cearense.
Palavras-Chave: Ceará. Politica. Saúde. Processo Histórico.
Abstract
This article presents the actions related to health and disease effect
the Captaincy of Ceará, in the period extending from the last decade
of the eighteenth century and the first fifteen years of the nineteenth
century. In this sense, either through the actions suggested by the
Portuguese crown or the interventions made by local authorities, it is
clear the preoccupation and limits of actions for protection of health
in Ceará historical reality.
Keywords: Ceará. Policy. Health. Historical Process.
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Eduardo Henrique Barbosa de Vasconcelos; Ana Lorym Soares
N
o século V a.C. Hipócrates relacionou a ocorrência de doenças aos elementos da
natureza, como água, terra e ar. Esse entendimento gerou a “concepção ecológica e
geográfica” das doenças, que atribuía, por exemplo, aos “ares corruptos” e à
insalubridade a causa de enfermidades (Costa 2002, Edler 2001). Ao correr do século XVIII essas
ideias foram reapropriadas por aqueles que se imbuíam da arte de curar suscitando o
desenvolvimento do chamado neo-hipocratismo, que entre outras, afirmava que:
[...] as doenças e a conformação moral (o lado psíquico do homem) derivam da relação do
corpo com o ambiente no qual este está inserido. Daí vem a força do neo-hipocratismo em
fins do século XVIII e na primeira metade do século XIX. O renascimento de Hipócrates
começara já no século XVII com a atuação dos médicos como Sydenham, chamado de
Hipócrates inglês. No século XVIII, retomado por vários círculos ligados aos philosophes,
a medicina hipocrática é retrabalhada, a partir da valorização da natura medicatrix e da
laicização efetuada dos procedimentos do médico grego, para quem as doenças se
relacionavam com a relação dos homens com o ambiente.
O modelo hipocrático articula a explicação das doenças e da constituição física e moral dos
homens em torno de três eixos: DIETA, HÁBITOS E CLIMA. O meio exterior atua, assim,
no interior (Kury 2002 Grifos da autora).
Eis então que, segundo a orientação neo-hipocrática, cuidar da saúde envolvia estar em
consonância com a natureza; adequar-se ao clima, por meio de uma alimentação conveniente à
realidade local; assim como ter o hábito de se vestir e agir sempre em sintonia com o ambiente. No
entanto, a observância dessas práticas, de cunho estritamente individual, não eram suficientes para
evitar ou debelar os grandes surtos epidêmicos internacionais iniciados nos final do século XVIII e
recorrentes ao longo do século XIX, o que tornava necessário a mobilização intensa por parte da
sociedade civil e dos governos (Porter 1999).
Na esteira dessa discussão o presente texto objetiva refletir sobre como se operou a relação
entre saúde e as ações políticas implementadas no Ceará –especialmente na vila de Fortaleza – na
passagem do século XVIII para o XIX, compreendendo como a concepção neo-hipocrática serviu
de orientação para as ações políticas mais ou menos planejadas que intencionaram minimizar o
impacto das doenças e das epidemias na Vila de Fortaleza, no período em foco.
“Efervecências” No Século XVIII
No transpassar do século XVIII para o XIX, as decisões políticas referentes às questões de
amparo social, especialmente os aspectos ligados à saúde e à doença ganharam maior notoriedade e
importância no mundo ocidental. Assim, cada vez mais o caráter de interdependência humana passa
a ser percebido, como nos sugere Norbert Elias1, dessa maneira, frente as doenças e as epidemias
são um bom exemplo de que não adiantava cuidar apenas de uma parcela da sociedade,
negligenciando os grupos menos favorecidos e, frequentemente, os mais acometidos por
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enfermidades. Isso porque as doenças atingem os humanos independentemente da inserção social,
do credo, da raça, do gênero e da idade.
Nesse sentido, ao nos debruçarmos sobre a realidade cearense desse mesmo período, no
tocante às questões de saúde e doença, percebemos que mesmo já evidenciada a relação de
interdependência entre as práticas e experiências humanas, não havia condições de tratamento,
cuidado e cura dos doentes instituída de forma coletiva tendo em vista o bom funcionamento da
sociedade. Esse fato é usualmente explicado pela precariedade material na qual se encontrava a vila
de Fortaleza, situação verificada na resposta dada à Ordem da ao Rei de Portugal que, em 1798,
determinou a contratação de um médico e um cirurgião por parte do poder local. A resposta,
contudo, foi negativa e justificada pela falta de recursos, visto que:
... as fintas para o estabelecimento de um médico, um cirurgião, contadores (sic) e
hidráulicos, e sendo-lhes lidas as copias das ditas ordens foram de parecer [...] que depois
de agradecer S. Mage. [magestade] o benéfico que queria fazer aos povos desta V.ª e seu
termo, principalmente para o estabelecimento de um médico e um cirurgião, por haver
destes maior precisão do que de hidráulicos e tipógrafos, se respondesse a Sua Majestade,
que muito a seu pesar se não poder fazer imposto, ou finta suficiente para o mesmo
estabelecimento em razão da pobreza a que estão reduzidos os mesmo povo depois da
calamitosa seca de noventa e dois (1792) , que grassou em toda esta Capitania: cuja pobreza
se coadjuva muito mais com a do Senado, por quanto a sua casa é de Taipa, indecente e
quase de todo arruinada, além de não ter mobília de qualidade alguma e de lhe ser
necessário para as funções públicas, como a presente, pedir trastes emprestados por não ter
o mesmo Senado patrimônio suficiente para as suas competentes despesas e para poder
contribuir para a felicidade pública, por meio das obras de que esta V.ª e seu termo
padecem das mais urgentes necessidades e que quando eles tiverem possessões suficientes
as desejarão esgotar em benefício de uma decente casa de câmara, cadeia, mobília, e pontes
de que tanto necessita para a conservação da autoridade do Senado, para punição dos
delinqüentes e para comodidade do comercio por serem os objetos que devem ocupar a
primr.ª consideração do dito Senado (Studart 2001 p.428).
A citação acima nos fornece muitos subsídios para a compreensão dos aspectos
relacionados à saúde e a doença na capitania cearense, na passagem do século XVIII para o XIX,
como a alegada ausência de fundos específicos para a contratação de profissionais específicos, com
formação médica, foi a justificava apresentada frente à impossibilidade do comprimento das ordens
de contratação de um médico e um cirurgião. Mesmo com toda a necessidade e a possibilidade,
recorrente, de novas epidemias, os administradores públicos estavam bem mais preocupados com a
melhoria da Res publica, diretamente relacionado aos interesses dos políticos, isto é, em melhorar a
estrutura física da casa onde funcionava o dito “Senado” e preocupavam-se também com o estado
dos móveis e a necessidade de se obter mobília nova e, por fim, terminam informando que, em caso
de disponibilidade financeira, os recursos seriam empregados em uma casa de câmara, em uma
cadeia e em potes, pois todos esses elementos auxiliariam a detenção dos delinquentes e favoreceria
o comércio, seguramente, o principal elemento para os “homens do povo” que tomavam as decisões
naquele Senado.
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A ordem real foi expedida diretamente de Portugal, em outubro de 1798 endereçada à
Câmara do Ceará, para que se criasse um imposto especifico para o estabelecimento de mestres de
oficio, de um médico e de um cirurgião que deveriam chegar à cidade no último ano do século
XVIII. Nesse sentido, no simbólico ano de 17992 partiu de Portugal com destino ao Ceará um
cirurgião, sem referência ao médico mencionado na correspondência enviado a Capitania cearense
em 1798.
Na documentação pesquisada, consta sobre a vinda do médico que, efetivamente, não veio,
mas o cirurgião, mesmo com a alegada falta de dinheiro para custear o seu salário, no dia 2 de maio
de 1799, desembarcou no Ceará o cirurgião-mor Manoel Joaquim Garcia, o secretário do governo
Francisco Luiz de Mariz Sarmento e o sargento-mor de milícias e bacharel empregado no
descobrimento de salitre e assuntos de história natural nas terras da Capitania, João da Silva Feijó3,
usualmente denominado de naturalista Feijó (Studart 2001 p. 428).
Uma possível explicação para a vinda exclusiva do cirurgião e não do médico,
possivelmente, envolve a distinção social e os valores salariais entre esses dois profissionais, pois
segundo os estatutos franceses do século XVIII os barbeiros e cirurgiões desfrutavam da mesma
importância, mas neste mesmo século os cirurgiões começaram a se mobilizar buscando a
diferenciação frente aos barbeiros causando o desagrado dos médicos que preocupados com o
mercado não viam com bons olhos o ingresso de uma categoria de profissionais considerados de
menor importância (Figueredo 1999).
Outrossim, as condições que condicionaram a distinção entre os médicos e os cirurgiões
foram modificadas e com pouca ou baixa educação, os cirurgiões eram incapazes de atender as
demandas dos hospitais (Piñero 2001 pp. 127-128). Destarte, a historiadora Tânia Pimenta nos
explica que segundo a Fisicatura mor em vigor na América Portuguesa, havia distinção entre
médicos e cirurgiões, pois aos primeiros era permitido prescrição de remédios e aos últimos era
permitido apenas tratar de moléstias externas (Pimenta 2003 p. 93).
Quanto às especificidades da chegada do cirurgião e o desenvolvimento de suas atividades
medicas profissionais, infelizmente não dispomos de informações detalhadas desse profissional4.
Todavia, mediante a consulta aas pesquisas do historiador João Brígido dos Santos, atestam que, no
dia 1 de julho do ano de 1799, foi elaborado o balancete da receita e das despesas da capitania, e na
folha de despesas figurava os nomes do cirurgião-mor Manoel Joaquim Garcia, do secretário
Francisco Luiz do Nascimento e do naturalista João da Silva Feijó (Santos 1889 p.186).
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Mesmo com o estabelecimento na vila de Fortaleza do cirurgião-mor, a Capitania do Ceará
continuava desprovida de médicos e com apenas um único cirurgião para atender a todas as
demandas da população. Dessa forma, a população deveria recorrer às práticas tradicionais e/ou
alternativas de cuidado da saúde e da doença, principalmente durante o advento das epidemias não
só pela existência de um único de médico habilitado para desenvolver suas funções, mas, porque os
médicos e a medicina oficial não detinham a centralidade e a importância social adquirida no último
quartel do século XIX (Carreta 2013).
Ações no Inicio do Século XIX
Debruçando-se sobre a realidade cearense no século XIX, em 28 de outubro de 1804, o
governador da Capitania recebeu, via Carta Régia, a recomendação para efetivar a inoculação das
bexigas (varíola) que grassavam na vila de Aracati, localizada na região leste da Capitania cearense.
Para propagar a vacina no Aracati e cuidar dos enfermos foi enviado à vila João Carlos e o
professor João Lourenço Marques, sobre os quais, infelizmente, não foi possível obtermos maiores
informações a respeito de quem eram e quais as suas relações com as praticas de curas.
Contudo, a preocupação referente à saúde do povo do Ceará não se restringia a seus
habitantes e administradores locais, pois:
... cabe destacar a intervenção do Estado português no que diz respeito á campanha em
torno da vacinação da população colonial contra a varíola. A descoberta de Edward Jennes,
[...] , foi aos poucos provando a sua eficácia, o que levou a ser adotada em todas as posses
portuguesas no Além-mar, a partir de 1802. Não obstante, somente com a pressão da
metrópole, a vacina passou a ser mais difundia, tornando-se obrigatória em algumas
Províncias (Barbosa 2002 p.16).
No ano de 1802, o então governador da Capitania do Ceará, João Augusto d’Oeynhausen
Grevembourg, respondia ao Visconde de Anadia (João Rodrigues de Sá e Melo) sobre assuntos
relacionados aos benefícios da vacina. Posteriormente, dois anos depois, o governador do Ceará e o
Visconde ainda trocavam cartas e Oeynhausen Grevembourg ofereceu resposta ao Visconde em
uma carta resposta de 30 de julho de 1804 afirmando que:
Tendo o príncipe regente Nosso Senhor ordenado aos Comandantes e Capitães Gerais dos
seus domínios ultramarinhos por aviso de 4 de outubro de 1802, que procurassem introduzir
nas suas respectivas capitanias o uso da inoculação das bexigas [varíola], e dessem conta
dos efeitos que produzissem; Participou em conseqüência desta ordem, o atual governador e
capitão geral de Moçambique, que naquela capital, e distritos adjacentes há tanto
conhecimento da inoculação, e da sua utilidade, que esta pratica é muito usual, e que estão
os seus habitante tão familiarizados com ela que uns e outros se inoculam depois que
principiam a sentir as bexigas, mesmo trabalhando, sem experimentar mal efeito pois de
cem inoculados apenas morre um, e que ultimamente se observo um capitão de um navio
francês inoculou com a vacina duzentos e cinqüenta e seis negros de que constava a
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carregação e que só lhe morreu um, e que finalmente todos os carregadores ali inoculam as
suas escravaturas, de que tem tirado muita vantagem.
A vista deste exemplo, de que V. Ex.a se pode servir para [danificado] aos habitantes dessa
capitania a utilidade da inoculação, espera S. A. R que V. S os persuada adotarem este
preservativo de um dos maiores flagelos da humanidade.
Recomendamo-me na primeira[carta] o importante objeto de outra, que em 4 de outubro de
1802 tinha sido dirigida a este Governo sobre a introdução da inoculação da bexiga
[varíola], que S. A. R desejava ver efetuar nesta Capitania me dá V. Ex. conhecimento do
progresso, que a introdução deste útil preservativo tem feito na Capitania de Moçambique,
e os conhecimentos que desta maneira fico tendo, fazendo nascer em mim o maior desejo
de presentear esta Capitania com um igual benefício, me deixam estudando os modos de
propagar, para esse efeito tendo convocado o Cirurgião-Mór, que nela reside, e tenho
encarregado de vigiar o instante mais próprio, de dar um exemplo, que anime os seus
habitantes a fazem da inoculação o mesmo uso, que nessa e em outras capitais da Europa se
tem feito (Studart 1925 pp. 276 - 277).
Continuando o seu relato ao eminente Visconde, Oeynhausen Grevembourg conclui sua
correspondência comunicando as informações obtidas por meio de suas observações empíricas:
Tem-se observado que neste ardente clima, ainda mais que as escravaturas, padecem os
índios naturais do país, para os quais a enfermidade das bexigas e sempre quase geralmente
mortal, e por isso e tal a aversão, que entre eles têm a este flagelo destruidor, e tão
proporcionado ao estrago, e mortandade. Que entre eles causa, que será a introdução desta
salutifero (sic) preservativo o maior beneficio que eles possam receber, à vista do que
continuando V. Ex.a fazer-me a honra de reconhecer, o zelo com que sirvo a S. A. R. e me
emprego em fomentar a prosperidade dos seus vassalos, não poderá V. Ex.a duvidar da
atividade com que procurarei o que por V. Ex.a me fica recomendado sobre essa importante
matéria (Studart 1925 pp. 276 - 277).
As duas passagens são bem ilustrativa da tensão existente na relação saúde e doença que
em favor da primeira, passaram a contar com uma nova aliada, ou seja, a vacinação antivariólica. A
recepção da vacina foi bem fria e na Grã Bretanha começo apenas em 1801, na Espanha a utilização
da vacina teve início dois anos antes, em 1799 (Piñero 200 p. 133). Na prática, a difusão e crescente
utilização da vacinação antivariólica, segundo José Piñero (2001 p.132), foi a primeira arma
biológica eficaz na prevenção de uma doença infecto contagiosa. De uma forma geral, a vacinação
mobilizou o saber médico e a atenção dos representantes da coroa portuguesa ao ponto de estimular
o seu uso no inicio do século XIX, no Ceará e na América portuguesa. Assim:
... a vacina jenneriana foi recebida inicialmente com descrédito e receio que acabaram
sendo relativamente superados, e difundiu-se por todo o mundo, ao mesmo tempo em que
novos estudos se somavam aos originais. Sua propagação se deu inicialmente entre os
países europeus e logo em seguida chegou à América do Norte, alcançando o Brasil ainda
nos primeiros anos do século XIX (Fernades 1999).
Mas, com o transcorrer do tempo e os acontecimentos posteriores a 1810, a preocupação
referente ao bem estar da população solicitou medidas mais enérgicas dos administradores,
principalmente, os meios “preservativos” mais adequados para se o tratar preventivo dos efeitos
nocivos coletivos gerados pelo aparecimento repentino de uma epidemia. Tais ações chamam
atenção, especialmente, por Fortaleza ser na primeira década do século XIX um pequeno
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aglomerado urbano como registrou o viajante Inglês Henry Koster em sua passagem pela vila em
1810. O viajante registrou que havia poucas construções, o Palácio Governamental, a Camará e a
Tesouraria, três igrejas pequenas e uma alfândega igualmente pequena. A população total foi
estimada em 1.200 moradores, quatro ruas centrais e um restrito comércio (Koster 1942 pp. 34-37,
165-167 e 179).
A intervenção urbana foi “a faceta mais explicita da medicina preventiva correspondente
da medicina pública ou coletiva que te seu inicio, também no século XVIII sob a influência do
mercantilismo” (Piñero 2001 p.130) e efetivada sob os auspícios da Higiene que por sua vez
lastreava-se no neo-hipocratismo, caracterizando-se o grande leitmotif do século XIX.
Em Fortaleza, segundo o levantamento de João Brígido dos Santos, “em sessão do Senado
da Câmara, de 21 de novembro do ano de 1812, ... pediu-se efetivamente ao governador que
mandasse fazer uma planta para edificação da cidade’’, e continua o autor, “... na parte oeste da
Praça da Carolina, visto que só havia uma para o lado de leste” (Santos 1979 p. 54). Após e referido
pedido, o acolhimento da proposta foi tamanha que, na sessão do dia “... 15 de maio de 1813, duas
plantas, uma das quais entendia com o oeste dessa praça, a outra modificava o plano já estabelecido
para a parte oposta” (Santos 1979 p. 54).
Como decorrência dessa última planta, um dos membros do senado da Câmara, o boticário
Bernardo José Teixeira, lançou os fundamentos de uma rua em honra do então representante
máximo da administração no Ceará – o Governador Sampaio – por trás da rua dos mercadores, daí
“a forma quadrangular foi adotada desde então pela Câmara, que a mantinha com cuidado” (Santos
1979 p. 55). A construção do mercado na praça da Carolina à época em que “era um pátio sem
edificação regular que demorava ao poente da casa da Câmara, pátio cercado de madeira, no centro
do qual havia alguma edificação má e incorreta”. Concluído o referido mercado, passou-se a alinhar
as ruas pela rua onde este estava localizado, de tal forma e maneira que:
Foi, pois, a frente do mercado que serviu de linha de referência para todas as que se
projetavam. Em outubro de 1814, já estava em começo a rua da Palma, hoje do major
Facundo, incumbindo-se de sua abertura ou traçado o dito boticário Bernardo José Teixeira,
que foi por isso louvado pela câmara com benemérito. (Studart 2001 p 428).
A preocupação com a organização e a configuração do traçado retilíneo da então incipiente
cidade, que se faz presente até os dias atuais, foi delineada, não por mero acaso. Essas
transformações foram sugeridas e executadas tendo à frente um profissional diretamente
relacionado com as questões da saúde e da doença, neste caso o Boticário Bernardo José Teixeira5,
que, possivelmente, atento aos acontecimentos do seu tempo e, conhecedor da agenda médicahigiênica, projeta-se na execução de seu intento. Resultando no “alinhamento da Fortaleza (sic), tal
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qual hoje se vê, cortada em quadras regulares, alinhando pelos quatro pontos cardeais e de modo
que o ar circule perfeitamente e o mar sirva de vista a extensas avenidas ...”.
Vale ressaltar que os frutos desse “planejamento urbano” incipiente em Fortaleza,
coordenado pelo Boticário Teixeira, manteve-se útil ainda na segunda metade do século XIX como
menciona o historiador e cronista da cidade de Fortaleza, Raimundo Girão, ao apresentar um breve
histórico das ruas da cidade:
... na outra esquina desta, com a Rua da Palma (Major Facundo), outro sobrado se levantou,
de propriedade do Comendador José Antônio Machado, o pioneiro, na cidade, das
edificações de mais de dois andares. O seu oitão ajudava os citados alinhamentos da
Travessa Municipal, e a frente – os da aludida Rua da Palma. Esta com o nome de Rua
Nova D’El Rei, teve início em 1814, graças ao interesse do boticário Bernardo José
Teixeira. A denominação de Rua da Palma, adotada em 1842, foi mudada em 1879, em
homenagem ao Major João Facundo de Castro Meneses, político de marcado prestígio,
assassinado em sua própria residência, a 8 de dezembro de 1841 (Girão 1959).
Por fim, faze-se necessário ressaltar que em 1814, no mesmo ano de inicio das primeiras
modificações urbanas, irrompeu em Fortaleza mais um surto de varíola, reafirmando, assim, a
necessidade de rápidas intervenções na cidade.
Conclusão
As ações e a política intervencionistas efetivadas no espaço urbano da vila de Fortaleza,
ainda em formação, sustentadas na concepção de saúde e doença postulada pelo neo-hipocratismo,
efetivadas, dentre outros, pelo homem publico e boticário Bernado Teixeira, nortearam a dinâmica
de intervenção e crescimento da cidade, tonando-se, dessa forma, a base inicial que possibilitou as
reformas e as alterações citadinas após a segunda metade do século XIX, quando a província
cearense foi inserida no sistema econômico capitalista mundial como fornecedora de matéria prima
(algodão) para a produção industrial inglesa (Takeya 1995).
Por fim, após o delineamento do processo histórico relacionado à saúde e a doença da
realidade no período aqui estudado, percebendo as especificidades, dificuldades e os limites dessas
ações em uma realidade especifica. Mormente, faz-se necessário problematizarmos os modismos
acadêmicos que usualmente insistem em associar, anacronicamente, o saber médico exclusivamente
ao controle social, desconsiderando os processos históricos-sociais específicos das realidades não
europeias.
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Notas
1
O entrelaçamento das dependências dos homens entre si, suas interdependências são o que os ligam uns aos outros.
Elas são o núcleo do que é aqui designado como figuração, como figuração dos homens dependentes uns em relação aos
outros. Como os homens são – inicialmente por natureza, e então mediante o aprendizado social, mediante educação,
mediante a socialização, mediante as necessidades espertadas socialmente – mais ou menos mutuamente dependentes
entre si, então eles, se é que se pode falar assim, só existem enquanto pluralidades, apenas em figurações. Esta é a razão
pela qual, como já foi dito, não é muito proveitoso se compreender como imagem dos homens a imagem dos homens
singulares. È mais adequado quando se representa como imagem dos homens uma imagem de vários homens
interdependentes que formam figurações entre si, portanto grupos ou sociedades de tipo variado. A partir desse
fundamento desaparece a discrepância das imagens tradicionais de homens. [...] a sociedade é o próprio entrelaçamento
das interdependências formadas pelos indivíduos. Norbert Elias. O Processo Civilizador. Uma História dos Costumes.
Vol. I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 1994 pp. LXVII-LXVIII.
2
Em 17 de janeiro de 1799 Capitania do Ceará foi alçada ao nível de autônoma, ao menos nos aspectos econômicos e
políticos, pois, com relação a outros aspectos como o militar e o religioso, a provincial do Ceará, inicialmente, ainda
necessitou do amparo formal disponível e oferecido pela Capitania de Pernambuco. Ver sobre o assunto: Frota 1985 p.
98.
3
Para uma visão geral das atividades realizadas pelo naturalista Feijó desenvolvidas no Ceará. ver: Vasconcelos 2011
pp.115-130.
4
Guilherme Studart registrou a vinda conjunta do cirurgião-mór, do secretario do governo e do naturalista Feijó mas
não registrou maiores informações sobre o cirurgião-mor no Ceará, constando apenas que no dia 24 de outubro de 1799,
João da Silva Feijó chegou ao Ceará. ver: Studart 2001 pp. 428-431.
5
Discorrendo sobre a figura do boticário Bernardo José Teixeira, João Brígido dos Santos ainda afirma em tom
peremptório que “o serviço, portanto que se tem atribuído a Antônio Rodrigues Ferreira [Boticário Ferreira], de ter
alinhado a cidade, fica reduzido ao fato de ter contribuído poderosamente, em épocas posteriores, para a observação. A
outro boticário caberia à glória pela execução do traçado de [João da Silva] Paulet, [engenheiro], sendo preciso restituirlhe o que lhe tiraram para ilustrar o nome daquele. Ver: Santos 1970 p. 55.
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