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Escola de Lutas

O campo da Antropologia do Desenvolvimento possui algumas premissas básicas. A primeira delas é a de que políticas públicas de cima para baixo não são bem sucedidas, pois estão desconectadas com o que acontece no cotidiano das pessoas afetadas por essas transformações. Processos impostos ignoram o que há de mais vital na existência humana, que são as formas como os sujeitos constroem seu pertencimento em relação a um determinado espaço. O segundo ponto é que todos os grupos sociais têm a solução para seus próprios problemas. Portanto, bastaria ouvi-los para se alcançar uma política eficaz, mais democrática e menos custosa. A terceira premissa é a de que as chamadas políticas participatórias geralmente não são participatórias, mas puramente reproduzem um modelo de debates pré-fabricado que, única e exclusivamente, visa cumprir a necessidade de participação. Então temos o quarto ponto: o de que políticas impostas podem ter consequências inesperadas. Poucas vezes um livro demostrou todos esses pontos de uma só vez tão vivamente como o Escola de Lutas. O enredo da obra se desenrola a partir do anúncio realizado pela Secretaria de Educação do Governo Alckmin, de São Paulo, de que as escolas seriam reestruturadas, algumas fechadas, o que implicaria na transferência de um milhão de alunos da rede pública estadual. Essa macrodecisão foi simplesmente comunicada, contando com algumas reuniões nas quais as demandas e as angústias dos alunos não eram levadas em considerações. Objetivava-se apenas " esclarecer dúvidas " – ou nem isso. A política fracassou, mas as consequências inesperadas extrapolaram tudo o que se podia prever ou mesmo imaginar, afinal, o projeto de reestruturação não apenas atingia o cerne da constituição identitária de adolescentes – a sua relação com a escola – como também tentava impor a qualquer custo uma ação em um Brasil pós junho de 2013, que já não tolerava tão facilmente decisões autoritárias. Iniciou-se assim um dos movimentos

Escola de Lutas CAMPOS, Antonia; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio. Escola de Lutas. São Paulo, Ed. Veneta, 2016, 352p. ISBN: 978-85-63137-69-2 Rosana Pinheiro-Machado1 O campo da Antropologia do Desenvolvimento possui algumas premissas básicas. A primeira delas é a de que políticas públicas de cima para baixo não são bem sucedidas, pois estão desconectadas com o que acontece no cotidiano das pessoas afetadas por essas transformações. Processos impostos ignoram o que há de mais vital na existência humana, que são as formas como os sujeitos constroem seu pertencimento em relação a um determinado espaço. O segundo ponto é que todos os grupos sociais têm a solução para seus próprios problemas. Portanto, bastaria ouvi-los para se alcançar uma política eicaz, mais democrática e menos custosa. A terceira premissa é a de que as chamadas políticas participatórias geralmente não são participatórias, mas puramente reproduzem um modelo de debates pré-fabricado que, única e exclusivamente, visa cumprir a necessidade de participação. Então temos o quarto ponto: o de que políticas impostas podem ter consequências inesperadas. Poucas vezes um livro demostrou todos esses pontos de uma só vez tão vivamente como o Escola de Lutas. O enredo da obra se desenrola a partir do anúncio realizado pela Secretaria de Educação do Governo Alckmin, de São Paulo, de que as escolas seriam reestruturadas, algumas fechadas, o que implicaria na transferência de um milhão de alunos da rede pública estadual. Essa macrodecisão foi simplesmente comunicada, contando com algumas reuniões nas quais as demandas e as angústias dos alunos não eram levadas em considerações. Objetivava-se apenas “esclarecer dúvidas” – ou nem isso. A política fracassou, mas as consequências inesperadas extrapolaram tudo o que se podia prever ou mesmo imaginar, ainal, o projeto de reestruturação não apenas atingia o cerne da constituição identitária de adolescentes – a sua relação com a escola – como também tentava impor a qualquer custo uma ação em um Brasil pós junho de 2013, que já não tolerava tão facilmente decisões autoritárias. Iniciou-se assim um dos movimentos 1 Doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Pós-doutora pelo Centro de Estudos Chineses da Universidade de Harvard. Professora Visitante no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo. E-mail: rosanapmachado@gmail.com. Ponto e Vírgula - PUC SP - No. 20 - Segundo Semestre de 2016 - p. 126-128 126 ROSANA PINHEIRO-MACHADO RESENHA: ESCOLA DE LUTAS mais inovadores e extraordinários da história do país, os quais foram protagonizados por jovens autônomos que recriaram uma sociedade mais justa desde as ocupações. Como o livro é uma descrição detalhada que abrange desde o anúncio da reestruturação até o recuo do governo, os recursos didáticos que professores podem explorar nas Ciências Sociais são inindáveis. A obra oferece não apenas um rico exemplo para se problematizar o campo do desenvolvimento e das políticas públicas (e sua insistência em projetos que já nascem fracassados), como também o estudo de movimentos sociais. Trata-se de um dos relatos, de cunho etnográico, mais densos que se tem sobre o tópico. A riqueza dos materiais proporciona uma verdadeira aula prática sobre conceitos fundamentais discutidos no campo acadêmico dos movimentos sociais: (a) os processos políticos, ou seja, as redes e os elos entre junho de 2013, o Movimento do Passe Livre, O Mal Educado e os secundaristas autônomos; (b) repertórios de lutas: a pauta clara e legítima da manutenção das escolas; (c) a produção da emoção: as redes de contágio, inspiração e os momentos de comoção e produção de sentido, quando por exemplo, os estudantes e os professores sofreram violência policial; (d) a mobilização de recursos: das artes às redes sociais e, (e) táticas de lutas de legitimidade: ocupar e cuidar das escolas e dos colegas. O livro traz um relato tão iel e detalhado do movimento secundarista – de suas escolhas, táticas e processos – que suscita algumas discussões éticas em tempos em que os serviços de inteligência do Brasil voltam a se iniltrar nos movimentos sociais. O livro poderia servir como um prato cheio para a repressão. E, nesse sentido, voltamos a uma velha questão que acompanha a antropologia desde o imperialismo da década de 1920: o conhecimento que serve para dominar – princípio, aliás, que funda a própria prática etnográica nas colônias. Um século depois, os autores revivem o risco de verem sua produção apropriada para ins de controle, contenção e dominação. Este não é um dilema novo, mas surpreende constatar como as ondas conservadoras voltam de diferentes formas ao curso da história, fazendo com que ativistas e pesquisadores sejam privados de em seu direito mais primordial de protestar e de se expressar. Diante do cenário atual, uma alternativa ética seria a não publicação do material. Todavia, esta não é uma solução que resolve toda a complexidade das diversas camadas discursivas que compõem o campo de batalhas no qual o conhecimento é produzido hoje no Brasil. São sempre escolhas, ganhos e perdas. É certo que a publicação da obra expõe táticas e estratégias. Mas talvez fosse ingenuidade acreditar que essas formas de lutas poderiam se manter protegidas, quando sabemos que elas circulam e são permanentemente apropriadas Ponto e Vírgula - PUC SP - No. 20 - Segundo Semestre de 2016 - p. 126-128 127 ROSANA PINHEIRO-MACHADO RESENHA: ESCOLA DE LUTAS nos repertórios antagônicos de lutas. O argumento aqui esboçado é que o próprio livro – que se coloca ao lado dos estudantes, pois nenhuma ciência é neutra – é igualmente um instrumento de resistência, de luta e de inspiração. Uma vez que a obra resguarda o anonimato dos estudantes, os ganhos de sua não publicação seriam menores do que os de sua publicação. Só é possível imaginar modelos de sociedades que não se baseiam na mercadoria ou no patriarcado, por exemplo, porque existem relatos etnográicos sobre grupos sociais marcados pela dádiva ou matriarcado. O papel da etnograia tem sido, historicamente, sistematizar modos de vida e de resistência que não são previstos pela modernidade capitalista. Narrar a resistência oferece um risco, mas é igualmente um ato político que conta a história dos “mais fracos” e marginalizados – daqueles cujas vozes silenciosas (e silenciadas) raramente estampam os livros didáticos. Metodológica e teoricamente, o livro apresenta alguns problemas relevantes, como, por exemplo, o excesso descritivo e pouco analítico, bem como a ausência de posicionalidade, que faz com que não saibamos de forma clara quais eram as relações de poder presentes na interação entre pesquisadores e pesquisados. Por outro lado, o livro ganha em sua capacidade temporal narrativa, protagonizada por uma polifonia de estudantes. Pelas vozes dos próprios estudantes, o livro oferece uma contra-narrativa aos discursos hegemônicos que alegam que os estudantes são vândalos, vagabundos e marginais - é isso é precisamente o que as etnograias têm feito há mais de um século, mostrando que as ações humanas, por mais estranhas que possam parecer, são dotadas de lógica e sentido (ainda que sempre de forma contestada e negociada). O maior legado de Escola de Lutas é, sem dúvida, produzir um relato denso sobre a possibilidade do impossível. Nesse sentido, um dos aspectos mais relevantes do movimento secundarista – e que o livro retrata com precisão - é a sua capacidade de radicalizar a democracia desde dentro, ou seja, partindo do princípio de que não se pode lutar por uma sociedade mais justa sem que a própria luta não rompa com a estrutura hierárquica e desigual que predomina no capitalismo. Os jovens estudantes viveram um estado de communitas – um momento marcado por emoção, suspensão da ordem social e luta diária por relações de raça e de gênero mais igualitárias. Eles reconstruíram a sociedade por um momento e inspiraram o surgimento de novos movimentos e a reinvenção dos antigos. Por isso, para além de seu valor cientíico e didático, a obra é também uma arma na luta contra os modelos hegemônicos que violenta e universalmente se impõem na humanidade no século XXI. Ponto e Vírgula - PUC SP - No. 20 - Segundo Semestre de 2016 - p. 126-128 128