A natureza da guerra
em três atos
A maior parte das peças teatrais é composta por três
atos. Cada ato é composto por várias cenas, marcadas pela entrada e pela saída de personagens. No
final de cada ato, cai a cortina e pode haver mudança de cenário. Este texto, sobre a natureza da guerra,
deverá assim ser lido ao longo de três atos: com a
respetiva exposição, clímax e desenlace.
O «Ato I», introdutório, tem como cenário o ano
de 1932, uns anos depois do primeiro grande conflito
à escala mundial. A trama anda em torno da impossibilidade de definição da causa da guerra. Os personagens principais são Einstein e Freud. O «Ato II»,
mais longo, interrompe a sequência cronológica e,
em analepse, coloca-nos em 1832, à procura da resposta para a questão colocada no ato anterior. Agora, o pano de fundo é a Europa depois de Napoleão
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e do Congresso de Viena. O personagem principal é
Clausewitz. Por fim, temos o desenlace. O «Ato III»
reflete então a contemporaneidade e a pós-humanização da guerra. O protagonista será o
guerreiro contemporâneo.
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p orquê a guerra?
Ato I:
«Existe alguma forma de livrar a humanidade
da ameaça da guerra?»
Esta questão foi colocada por Albert Einstein e espoletou a correspondência com Sigmund Freud. O diálogo entre os dois data de 1932, como já dissemos.
Temos assim um contexto específico: estamos no pós-Primeira Grande Guerra e em Genebra ainda vai
funcionando a Sociedade das Nações de Woodrow
Wilson, criada em 1919 e extinta em 1942.
Primeira cena – A suspeita
Estas cartas estão entre a memória de uma destruição sem precedentes e a esperança de um contrato
social originário entre as nações que as obrigue a não
se imiscuírem nos conflitos internos de cada uma,
mas somente a proteger-se de ataques exteriores.
Ainda não refletem a sombra dos ímpetos de Adolf
Hitler. Veja-se que são dois intelectuais judeus que
pensam o homem e a guerra antes da shoah e da
perda da ingenuidade ocidental. Depois de Auschwitz e Hiroxima/Nagasaki, o mundo deixou de ser o
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mesmo. Mas eles estavam longe de o saber. Assim,
entre um passado de violência extrema e o devir de
uma paz duradoura, Einstein e Freud pensaram a
natureza bélica do homem. Mas não tiveram grande
sucesso na certeza. E o seu debate serviu de pouco
para a década vindoura.
Tal como Nietzsche e Marx, Freud suspeitava da
relação entre a verdade e a palavra. Partindo de um
desdobramento do sujeito, os três estabeleceram
uma crítica à ideia moderna e cartesiana de que o
sentido e a consciência coincidem. Puseram assim
em causa a capacidade da razão humana para apreender o sentido do mundo. Paul Ricoeur definia-os
como os mestres da suspeita. Eles mudaram o pensamento moderno ocidental. Apontaram a dúvida e
a suspeita na certeza. Einstein poderia ser incluído
neste trio. Ao inconsciente freudiano, à vontade de
poder nietzschiana e ao imperialismo da vontade
social dominante de Marx, podemos introduzir a
relatividade geral de Einstein.
Ou seja, a refletir o porquê da guerra temos então
dois pensadores que deram um golpe decisivo na
pretensão soberana da racionalidade moderna. Mas,
se em Freud assistimos a um ceticismo antropológico, em Einstein temos um certo otimismo preocupado. Ainda que de uma forma abrupta, podemos
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p orquê a guerra?
dizer que no primeiro antevemos Thomas Hobbes
– continuador de Maquiavel –, que escreveu o famoso Leviathan (1615), e, no segundo, Immanuel Kant,
que escreveu Zum Ewigen Frieden. Ein Philosophischer Entwurf, ou Paz Perpétua. Um Projecto Filosófico (1796). Nenhum deles se supera. Não conseguem responder se algum dia terminará a guerra.
Segunda cena – A impossibilidade
O físico considera um Governo mundial que livre a
humanidade da ameaça de conflitos armados. O psicanalista vê a guerra como uma expressão de um
impulso destrutivo consubstancial ao humano e,
como tal, a sua erradicação é impossível.
Mas atenção: ambos parecem considerar a segurança como sendo obtida através de um contrato
social. Contudo, não obstante os estados anteriores
à formação e ao exercício da soberania, nestas cartas
subjaz que, tanto para Einstein como para Freud, as
relações internacionais demonstram que esse estado
prévio necessita de uma permanente racionalização
que o submeta e o dispense do uso da força. Portanto, não obstante os avanços do Direito Internacional,
a liberdade e a legitimidade de fazer a guerra carac-
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terizavam a comunidade internacional em 1932.
Discutir a guerra é discutir o cerne das relações internacionais, das entidades políticas que tendem a
não reconhecer um poder político superior.
Veja-se que até à Primeira Grande Guerra não
havia uma proibição do uso da força nas relações
entre as nações. Aos estados cabia o direito de fazer
a guerra. Porém, a mortandade de 1914-18 levou a
que se ponderasse uma perspetiva que tivesse em
conta os interesses superiores da humanidade, para
além da ideia clássica de Estado soberano.
Foi na memória do número de intervenientes da
guerra, das tecnologias militares e dos ataques às
populações civis que, com certeza, estas cartas foram
escritas. Porém, deste diálogo retiramos que o permanente conflito entre eros e thanatos de Freud impossibilita a cosmo polis de Einstein. À semelhança
de Nietzsche ou até de Georges Sorel, para o psicanalista a violência imanente ao homem é fruto do
seu instinto. E isso parece impossibilitar o projeto
humanista de uma paz perpétua contratual. Em
Einstein há um misto de reflexões ingénuas com algumas ideias radicais. A ingenuidade, por exemplo,
por considerar que a alteração de métodos educativos poderia eliminar os obstáculos psicológicos que
servem de base para a guerra. Radicalismo, ao ver
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p orquê a guerra?
numa minoria política e social o grupo dominante
que controla o sistema educacional, a imprensa e as
instituições religiosas – capaz de influenciar as emoções das massas e de as tornar uma ferramenta para
seu benefício.
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Ato II:1
«Antes estar certo com Clausewitz, que errado
com todos os outros?...»
Precisamente 100 anos antes desta troca de cartas, é
publicado o magistral Vom Kriege, ou Da Guerra.
Neste tratado, o general prussiano Carl von Clausewitz
(1780-1831) empreende uma fuga ao engodo intelectual de Einstein e Freud. Na ambiciosa procura de uma
fenomenologia da guerra, superam-se os opostos.
Primeira cena – A maravilhosa trindade
O leitor atento reconhecerá neste título o bordão
soixante huitard, que opunha Raymond Aron a Jean-Paul Sartre. Foi roubado para, indiretamente, resgatar Aron – o sintetizador contemporâneo do pensamento de Carl von Clausewitz, para quem não é
possível eliminar a guerra e evitá-la sempre.
Os parágrafos que se seguem tiveram como ponto de partida um
artigo do autor intitulado «Trindade de Clausewitz: Uma Revisitação Dialéctica»; Estratégia, vol. xxi, 2012, Lisboa: Instituto Português da Conjuntura Estratégica; pp. 281-295.
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p orquê a guerra?
Em Clausewitz (e, por inerência, também em
Aron) há uma subordinação da guerra à ação política. Porém, nenhum pensa a política por referência
à guerra – como fez Carl Schmitt, em Der Begriff des
Politischen, ou O Conceito do Político (1931). Clausewitz afirmava que a guerra é a continuação da política, mas por outros meios. Ou seja, a vontade de
poder, associada a ideias que a catalisem, é a razão
para a guerra. Logo, enquanto houver exercício de
domínio, haverá conflito e guerra. Neste sentido, não
é despiciendo lembrar que, no alemão, o substantivo
gewalt significa força, violência, poder ou autoridade
– um pormenor muito bem explorado no ensaio Zur
Kritik der Gewalt, ou Para Uma Crítica à Violência
(1921), de Walter Benjamim.
Ao longo de 30 anos, Clausewitz foi reunindo as
suas ideias sobre a natureza da guerra nesta obra que
nunca chegou a concluir. Neste ato, referir-nos-emos
apenas à última parte do «Livro I» (a única considerada como finalizada), onde está a matriz que influenciará todo o pensamento de Vom Kriege.
Entrando agora em detalhe: o prussiano sugere
um modelo interpretativo da guerra que assenta na
chamada «maravilhosa» trindade (wunderliche Dreifaltigkeit). Falamos da dinâmica entre três elementos: a violência primordial, o ódio e a inimizade; o
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jogo entre o acaso e a probabilidade; e, por último,
a racionalidade, que poderá ser representada pela
dimensão política. Clausewitz compara ainda a
guerra a um camaleão, porque altera a sua cor; dependendo de cada situação em particular, adapta-se.
Temos assim três categorias que, em jeito dialético, poderão ser interpretadas como uma combinação entre força, paixão e razão. Ou, se quisermos,
um sistema que, em abstrato, deverá encontrar equilíbrio entre fatores irracionais, arracionais e racionais. Posteriormente, e conceptualizando um pouco
mais, Clausewitz associa cada uma destas variáveis
a formas estruturadas de ação humana. No caso da
violência primordial, ao povo. No que toca ao acaso
e à probabilidade, às forças armadas. E, por fim, no
que diz respeito à racionalidade política, há uma associação ao Governo e ao Estado.
O povo é identificado com as forças irracionais,
que têm como motor a violência primordial e instintiva do homem, as emoções imediatas de ódio e inimizade. As forças armadas, através da criatividade
e/ou da genialidade dos seus comandantes, surgem
nesta dinâmica como uma forma de superação de
variáveis que, fruto da probabilidade e do acaso (fatores arracionais), ou da «fricção» do ódio primordial, são parte inerente do conflito. E, sendo a guer-
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p orquê a guerra?
ra a continuação da política por outras formas, a sua
condução deriva de uma determinada noção política, que, por sua vez, derivará, mesmo com todos os
erros que possa ter, de uma dimensão racional. Os
governos e os estados capitalizariam esse fator.
As forças que levam a cabo a ação armada estão
sempre sujeitas àquilo a que o prussiano chamou
«fricção». Trata-se de uma premissa que poderá expor a condução da guerra aos desígnios do acaso,
perturbando a aplicação da força para a vitória. Mas
a aplicação de força acarreta sempre a possibilidade
de a ação nem sempre correr de acordo com o previsto. Aí, a decisão do comandante revela-se essencial para superar estes atritos e contornar os problemas da «fricção» e do «acaso».
Contudo, não são só estes os fatores que condicionam a aplicação da força. Ao comando estratégico também cabe o refrear colérico do povo, ou a irracionalidade da violência primordial. A força extrema tem de ser condicionada na condução da guerra.
A razão surge agora como uma espécie de moderação, ou antítese, da paixão inicial. Há, portanto, uma
subordinação do esforço militar aos desígnios da
razão. Não se empurra o uso da força para o extremo. A motivação para o uso da violência também
pode exercer uma influência moderadora sobre o
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caráter da guerra. Isto é, há uma exigência que impõe proporção do uso da força. Esta subordinação
está bem plasmada no adágio clausewitziano que
entende a guerra como a continuação da política por
outros meios.
Daqui transitamos facilmente para a questão da
paixão, ou para o combustível fundamental para pôr
a funcionar o «motor» racional. A vontade de vitória, de acordo com a interpretação do prussiano, é
fruto dessa paixão. E é essa mesma paixão irracional
que a dimensão racional deverá burilar, por forma a
tornar plausível o caminho para o triunfo bélico.
Agora podemos perceber porque é que no mesmo confronto armado há diferentes graus de empenhamento beligerante. E também porque é que uma
das partes pode interpretar a ação da outra como
sendo irracional. Tudo depende da intensidade valorativa que é atribuída à vitória pelas fações em
confronto.
Também é fácil ver porque é que objetivos políticos muito ambiciosos se poderão tornar um obstáculo na condução da guerra, pois nem sempre
acatam suficiente «paixão» que permita a persecução da vitória. Mas guerras que tenham como pano
de fundo motivações consideradas vitais (catalisadas
em princípios políticos, ou seja, de acordo com a
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p orquê a guerra?
razão) levam a que a «paixão» se transforme numa
ação estratégica implacável, facilmente aniquiladora
de um adversário que não tenha o mesmo grau motivacional – é o caso, por exemplo, de guerras de
caráter revolucionário. Portanto, as motivações menos pungentes poderão restringir a influência da
vertente irracional como ação estratégica, mas retiram força anímica à motivação de combate.
Segunda cena – A conjugação trinitária
A conjugação destes três elementos (violência primordial, o jogo entre o acaso e a probabilidade e a
dimensão racional) é, para o general prussiano, a
marca da imprevisibilidade da guerra.
Comparando-a com o dinamismo da atração
magnética, Clausewitz sugere que o desenrolar da
guerra é como um pêndulo sobre os três pontos de
atração que compõem esta trindade: balançam sobre
eles de uma forma não padronizada. O percurso deste balancear nunca é determinado por uma força só,
mas pela interação das três, sendo que a intensidade
de cada uma é bastante variável. Desta forma,
demonstra-se o comportamento não linear da guerra, pois, consoante o contexto onde se desenrola o
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conflito, mais peso terá determinado fator – por
exemplo, numa guerra justificada por ocupação territorial, o peso da violência primordial é muito diferente entre as partes beligerantes, como foi o caso
dos movimentos anticoloniais. Ou seja, para um líder militar, o desafio na condução de uma guerra
assenta na relação funcional entre a «maravilhosa»
trindade.
Terceira cena – A dialética e o Estado
A perspetiva trinitária assenta em duas bases: numa
estrutura dialética e numa centralização do Estado
no desencadear da guerra.
É fácil associar a visão trinitária de Clausewitz à
dialética do idealismo germânico. À semelhança de
Hegel, o prussiano procurou unificar uma determinada forma de conhecimento que, previamente, se
lhe aparecia dualisticamente, dividida entre teoria e
prática. Ele tentou unificar o dualismo das abordagens iluministas sobre da guerra. Tanto Hegel como
Clausewitz acreditavam na unidade final de um pensamento racional. E foram precursores da análise
fenomenológica – um método que vê como possível
a abordagem do fenómeno como um todo, chegando
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p orquê a guerra?
assim à sua estrutura essencial, que, de outra forma,
nunca se revelaria. O general procurou fazer uma
síntese dialética entre a teoria e a prática da guerra,
em que uma afeta a outra. Duas ideias formam uma
antítese lógica exata, isto é, se uma coisa é o complemento da outra, então cada uma está implícita na
outra, dizia o prussiano. Em jeito de tese, Clausewitz
coloca a guerra como violência absoluta. Contrapõe-na, por sua vez, à atividade racional, ou seja, à antítese. Sinteticamente, surge então o balanço trinitário, que, em si, tem também uma estrutura dialética.
A outra base para a trindade é a associação direta da guerra ao Estado. Mas aqui é preciso lembrar
duas coisas: a primeira é que a obra tem como pano
de fundo a queda do paradigma do Estado absolutista e do ancient regime; e a segunda é que foi pensada aquando do despertar dos nacionalismos pós-napoleónicos. Temos então uma transição que se
vai consolidando com a crescente importância do
conceito de Estado-nação.
Desde meados do século xvii que o Estado reivindicou para si o monopólio legal e legítimo da
violência armada. A guerra entre estados passou a
ser encarada como um paradigma de todos os conflitos militares. Dos ímpetos imperialistas napoleónicos à implosão da União Soviética, os grandes
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conflitos armados que assolaram o mundo foram,
em grande medida, confrontos entre estados. E é bebendo então desse zeitgeist que Max Weber (Politik
als Beruf, ou A Política como Vocação, 1919) aponta
como umas das características principais do Estado
moderno a monopolização da violência.
Quarta cena – A natureza da guerra
O colapso da União Soviética e o fenómeno da globalização reuniram condições para que novas ameaças surgissem. As guerras hoje tendem a desenrolar-se mais dentro dos estados do que entre eles. Ou
então são desencadeadas por atores não estatais. Os
confrontos armados assumem características irregulares e são de baixa intensidade. A incapacidade
dos exércitos mais bem equipados do mundo perante milícias com armamento considerado básico e
sem grande preparação militar levou a que se concluísse que a natureza da guerra teria mudado. O
argumento veio a solidificar-se com os atentados de
11 de setembro de 2001, com a globalização do terrorismo jihadista e com o surgimento do Daesh.
Clausewitz pareceu, assim, cingir-se aos livros de
história.
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p orquê a guerra?
Mas a guerra, de acordo com o general, sendo
um camaleão, é constante na essência. O seu caráter
é que sofre alterações, porque se adapta ao contexto.
Um camaleão será sempre camaleão – a cor é que vai
mudando. Alterações tecnológicas, inovações táticas
ou estratégicas (como poder aéreo, nuclearização,
etc.) não alteram a essência de uma guerra. A forma
de a fazer é que está (e estará) em permanente mudança. E isso depende de fatores conjunturais, e não
de fatores essenciais. Consoante o contexto, as partes
em confronto hão de variar, assim como os objetivos
de luta e as armas utilizadas. Contudo, a guerra, na
sua essência, frisamos, não muda. Cada guerra deverá ser entendida de acordo com o contexto em que
se insere, e não isoladamente.
Uma teoria geral da guerra, como a de Clausewitz, apenas dá o mote sobre aquilo que se deve procurar. Não aponta particularidades que apenas deverão ser encontradas caso a caso. E não especifica o
que se deve fazer – aborda o como pensar acerca do
que se deve fazer. A guerra é, portanto, um fenómeno
em si. A dimensão bélica ou geopolítica é apenas um
dos vários aspetos que a compõem. E esses, naturalmente, sofrem processos de mutação e adaptação.
Agora, se aprofundarmos um pouco mais o argumento clausewitziano, vemos que a «maravilhosa»
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trindade está presente mesmo no confronto entre
duas singularidades. Aqui também há uma combinação entre razão, paixão irracional e acaso, inclusivamente. E, se nos afundarmos em conceitos mais
abstratos e metafóricos, podemos fazer paralelismo
com a relação entre o «estado de natureza» hobbesiano (estado anterior à constituição da sociedade
civil) e o exercício de governação (bem comum, organização política…) – o último refreia, porque racionaliza, as relações do primeiro. N’A República, de
Platão, está a visão tripartida – divide-se o Estado
em governantes, soldados e negociantes, o que é um
reflexo da divisão platónica da alma entre razão, espírito e apetite. A justiça será a saúde da alma, que
depende da interação destes três fatores. Portanto, o
sistema trinitário está presente em todos os atores
estratégicos, sejam eles individuais, grupais, estatais
ou não estatais.
O caráter multifacetado e o dinamismo fazem da
«maravilhosa» trindade uma ferramenta analítica
eficaz para abordar o fenómeno da guerra. Realça
que as forças que espoletam e conduzem uma guerra desenrolam-se entre o racional e as influências
irracionais da emoção humana, passando pelos tais
efeitos arracionais da sorte e do «acaso». Estes três
elementos estão bem presentes em todos os conflitos
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p orquê a guerra?
armados de caráter político, mesmo nos de baixa
intensidade e/ou com atores não estatais.
Neste sentido, as guerras que não são conduzidas
por um Estado também são passíveis de uma análise trinitária. Os movimentos que as desencadearam
também estão providos de líderes, combatentes e
apoiantes. É uma boa fórmula para perceber a dinâmica que gere a relação entre o ódio primordial e a
população, a ideologia e os líderes políticos, e os
combatentes e a superação do acaso pelos estrategas
e líderes militares. Agora, se à semelhança do que fez
Clausewitz, reificarmos sociopoliticamente a «maravilhosa» trindade, associando-a não ao Governo,
às forças armadas e ao povo, mas sim a líderes populares (ou organizações), a combatentes e apoiantes, encontramos facilmente a sua atualização.
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Ato III:2
«Sobrevalorizamos a eficiência técnica
em detrimento de um ideal sacramental
da guerra?»
Desde os inícios do século xx que praticamente todos
os cientistas, criadores de novas tecnologias, consideraram que o seu dispositivo iria acabar com a guerra.
Einstein não foi exceção. Tal como outros, o físico teve
a sua imagem associada à guerra. Neste caso, associada à criação da bomba atómica, que causou cerca de
duzentos mil mortos.
Com isto quer-se dizer duas coisas. A primeira é
que a forma de fazer guerra evolui em paralelo com a
tecnologia, ganhando em capacidade destrutiva e
poupando o guerreiro do sofrimento físico, procurando até retirá-lo do campo de batalha. A segunda, mais
perversa, reflete que, não obstante o avanço tecnológico e a eventual evolução do Homem, o que é discutível é paz e não guerra.
Os parágrafos que se seguem tiveram como ponto de partida um
artigo do autor publicado no jornal Expresso do dia 10 de junho
de 2016, intitulado «Guerras pós-humanas?»
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p orquê a guerra?
Primeira cena – O ethos do guerreiro
A guerra, já se viu, é uma parte de quem somos. A
ideia de querer acabar com ela é, na melhor das hipóteses, ingénua. Muitas das alterações da cultura
humana foram conduzidas pela guerra, e ela própria
também evoluiu com a humanidade. Portanto, parece, pois, que a cultura e a guerra partilham um
relacionamento bastante fértil, em particular no
Ocidente. Mas a cultura altera-se, a guerra é que não.
Logo, facilmente concluímos que o ethos do guerreiro é mutável.
Hoje, fruto da eficiência técnica, assistimos em
primeira fila a esta alteração. A distância física do soldado da guerra poderá significar uma dissociação de
sensibilidade, logo ética e moral. A longo prazo, as
consequências poderão ser muito perversas – o guerreiro acaba por não ter noção do que efetivamente se
está a fazer. Uma coisa é o que se vê – num ecrã, por
exemplo –, outra é o que realmente aconteceu na linha da frente. A ausência física altera a perspetiva da
guerra. Ainda estamos muito longe, mas quase se aponta o futuro à distância – uma guerra sem emoções,
uma guerra sem envolvimento humano.
Veja-se que o Ocidente se foi forjando numa forma particular de fazer guerra: a heroicidade do guer-
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reiro no confronto com o inimigo. Podemos ir à
Ilíada, texto fundador da épica ocidental, e relembrar Ajax, Aquiles ou Heitor; ler a poesia heroica de
Gabriel D’Annunzio; ou, a partir de Hollywood, assistir à valentia de John Rambo. Pelo meio, ficam as
gestas dos cavaleiros medievais. Todos têm em comum a generosidade: põem em causa a segurança
física em nome da memória eterna ou de determinados valores. É mais um legado grego que nos marca. Curiosamente, a etimologia de Arete, conceito de
virtude moral dos gregos, poderá ser associada a
Ares, deus da guerra.
No nosso imaginário coletivo, procuramos a presença da honorabilidade no conflito armado. Há
uma ética do guerreiro muito associada ao contacto
humano e à proximidade no combate. Mas isso hoje
tende a acabar. E a perda desse legado está a trazer
repercussões estratégicas e éticas na forma de fazer
guerra.
Segunda cena – A guerra pós-humana
Já vimos que os conflitos armados evoluíram em paralelo à tecnologia. Marcaram-se por um distanciamento cada vez maior do inimigo, da lança ao drone.
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p orquê a guerra?
A progressiva «desumanização» da guerra já fora
facilitada com o domínio aéreo. Agora a tecnologia
permite uma pós-humanização da guerra. O teatro
de operações está cada vez mais distante da frente de
combate. Não obstante as missões de paz e as forças
especiais nas zonas de conflito, a proximidade humana tende a deixar de existir.
Porém, não havendo botas no terreno, não se
apanham as dimensões psicossociais da destruição.
Do ressentimento causado pela morte distante de
civis, ou outros danos colaterais, mais inimigos surgirão. Vemos isso em guerras de caráter subversivo.
Assim acontece na Síria, no Iraque, na Líbia, na Somália, no Iémen… onde a destruição das infraestruturas e a eliminação das lideranças não são suficientes para aniquilar o inimigo. A prova disso está no
insucesso da doutrina Obama da «guerra contra
o terrorismo», conduzida essencialmente com ataques de drones – não anteviu o crescendo do Daesh.
A ameaça também está na ideia. Para a erradicar, é
necessária uma presença física de continuidade. Disto deu sinal Sergei Lavrov, o ministro dos Negócios
Estrangeiros de Vladimir Putin, que, em 2016, disse
que os americanos na Síria são como um gato que
quer pescar um peixe num lago, mas sem molhar as
patas.
sigmund freud • albert einstein
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Há uma espécie de higienização do conflito armado. Evita-se ao máximo o contacto físico com o
inimigo. Mas os efeitos da morte à distância são
imprevisíveis. E com consequências éticas, morais
e, claro, geopolíticas. A guerra ocidental está a perder o rosto. E nós ainda refletimos o suficiente sobre isso.
Através de um joystick posso bombardear um
campo de treino de terroristas no Iémen com dois
mísseis hellfire lançados por drones e a seguir jantar
com a família no Arizona. Esta condição, embora
segura, pode ser perniciosa. O soldado faz a guerra
num simulacro da própria guerra. Não há intersubjetividade. Na ausência de contacto humano, entre
outras coisas, a violência da morte deixa de ter um
peso transformativo, que é característico do soldado. Temos assim uma alteração ontológica do guerreiro ocidental, pois o excesso de tecnologia afasta-o da verdadeira essência da guerra.
Tal como os cigarros light, os cafés descafeinados
ou os doces sem açúcar, as guerras higiénicas ou
pós-humanas descansam-nos física e moralmente.
Mas têm um lado perverso. A sua aparente inofensividade leva a que prescrevam mais amiúde. Ao
mesmo tempo, convencemo-nos de que a versão
original já não existe, espantando-nos quando al-
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p orquê a guerra?
guém nos afronta com ela. Para nós, a natureza na
guerra está a alterar-se. Para outros, não. É também
este desfasamento que permite atentados terroristas
na Europa, ou outro tipo de guerras subversivas em
várias partes do mundo. O Ocidente pareceu ter posto de lado Clausewitz, e, por isso, pareceu ter esquecido a verdadeira natureza da guerra.
Ao mesmo tempo, ficámos linguisticamente desarmados! A nossa linguagem perdeu capacidade de
ação. A violência terrorista, por exemplo, impingiu
abruptamente sobre nós uma perspetiva sanguinária
que já não somos capazes de contemplar. Recusamos
uma denominação clara e distinta dos termos que
definem um conflito, há um pânico linguístico da
emergência de expressões que considerem a violência e a guerra. Se não as assumirmos, podemos perder o controlo da realidade.
Terceira cena – Guerra e paz
Mais que uma vez, a tecnologia foi pensada para tornar a guerra impossível, desde a metralhadora de
Hiram Maxim, no século xix, passando pelas armas
nucleares no século passado. Mas essas invenções
passaram a fazer parte de arsenais e a esperança de
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que a guerra se torne impossível permanece sempre
distante. Portanto, o facto de haver alteração da forma de fazer a guerra não quer dizer que ela possa vir
a ter um fim. Além disso, a própria higienização da
guerra acaba também por ser uma luta pela manutenção da paz no coração do soldado, ainda que não
no seu alvo.
Se relacionarmos a história da humanidade com
a história da guerra, somos levados a crer que a resposta à pergunta que conduz o diálogo entre Einstein e Freud é negativa. Vemos que os laços mais
fortes de identidade e amor entre populações acabaram por ser forjados na diferença e na vingança
contra um inimigo comum. Concluímos também
que o domínio do instinto por um pensamento crítico foi apenas alcançado numa pequena parte da
humanidade. O ressurgimento do fervor tribal e da
sede de sangue na história recente dos Balcãs, no
Darfur, na guerra civil da Síria, na Índia e no Paquistão, com a tensão nuclear na Coreia do Norte,
ou nos vários extremismos violentos só pode reforçar o julgamento de que o mundo está muito longe
de um qualquer cenário de paz.
Em História da Guerra do Peloponeso, entre Esparta e Atenas, Tucídides descreveu a guerra como
sendo uma coisa humana. Recusou-se a dar outra
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p orquê a guerra?
definição. É qualquer coisa que só os seres humanos fazem. Embora seja algo que, efetivamente,
não queremos, é central na nossa condição. Ver a
guerra como sendo simplesmente errada, como
uma má ideia, ou até como o oposto da paz, é muito simplista.
Já a paz parece ser um conceito construído, e
não essencial. É culturalmente específico e, de certa forma, assume que um determinado conjunto
geopolítico de valores seja universal. Talvez por
isso seja tão contestada. Susan Sontag lembra-nos
que a paz tem vários significados. E na verdade o
que é a paz? Apenas a ausência de guerra? O perdão? A vitória? O esquecimento? A paz pela imposição de poder (como a Pax Romana, a Pax Mongolica, a Pax Britannica, ou a Pax Americana)? Há
paz sem liberdade?
Em 1932, Einstein e Freud discordaram nos seus
argumentos. Mas foram unânimes no desejo de um
futuro em que a belicosidade não fosse a maneira
normal de resolver uma disputa entre interesses
conflituantes. Não tendo resolvido o problema –
em 1939, rebentou a Segunda Grande Guerra –,
deixaram pistas e sugestões para se continuar a
abordar esta questão, nem que seja no nosso raio
de ação quotidiano.
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A guerra existe e faz parte da nossa condição. É
norma. A paz, sendo ideia, é uma exceção. Mas deverá ser almejada por todos. Pois é o considerar dessa possibilidade que nos humaniza. Einstein e Freud
deram-nos isso.
Felipe Pathé Duarte
Lisboa, 5 de outubro de 2017
Felipe Pathé Duarte é professor auxiliar no Instituto Superior de
Ciências Policiais e Segurança Interna e na Universidade Autónoma de Lisboa, onde também desenvolveu um projeto de pós-doutoramento sobre segurança euromediterrânica. É ainda consultor na VisionWare para as áreas de geopolítica, análise de risco
e segurança. É comentador residente de assuntos de segurança
internacional na RTP. É autor dos livros No Crepúsculo da Razão
(2007, Ed. Prefácio; 223 p.), sobre o terrorismo do pós-Guerra
Fria, e Jihadismo Global: das Palavras aos Actos (2015, Marcador
Editora; 311 p.), sobre o pensamento estratégico jihadista. Prepara outro sobre violência política, subversão e ação direta.
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p orquê a guerra?