32 Lúcio Cunha
Lúcio Cunha é geógrafo e doutor com agregação em Geografia Física. Professor
Catedrático no Departamento de Geografia e Turismo e Investigador do Centro de
Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT) da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, ao longo de cerca de 40 anos de carreira universitária tem
desenvolvido trabalhos na área da Geomorfologia, da Geografia Física Aplicada aos
Estudos Ambientais e dos Sistemas de Informação Geográfica aplicados ao
Ordenamento do Território. É vice-Presidente da Assembleia Geral da Associação
Portuguesa de Geógrafos e foi Presidente da Comissão Nacional de Geografia e da
Associação Portuguesa de Geomorfólogos.
1- Comentário a um livro que o marcou ou cuja leitura recomende
Todos os livros, independentemente do género literário, do autor ou do propósito,
transportam Geografia consigo. Explícita ou implícita, servindo de pretexto locativo
para as acções, apoiando memórias mais ou menos idílicas, criando paisagens, lendo
cidades, percebendo injustiças, resolvendo crimes, a Geografia serve a Literatura, abrelhe os espaços, suaviza-lhe os tempos e dá-lhe a dimensão humana que lhe é
característica.
“Furriel não é nome de pai”, com subtítulo “Os filhos que os militares portugueses
deixaram na Guerra Colonial”, de Catarina Gomes, é o livro que estou a acabar de ler e,
pela Geografia muito própria que tem, é o livro que escolho. Apesar de terem passado
mais de 40 anos sobre o final do conflito, continua a haver um certo tabu sobre a Guerra
Colonial, na literatura, no cinema e na cotidiano dos portugueses, a ponto de as gerações
mais novas pouco saberem sobre ela, onde se desenrolou, durante quantos anos, com
quantos mortos e feridos, com que sequelas para um e para o outro lado...
Mais do que a Guerra, o livro trata uma das suas consequências laterais, os filhos
deixados pelos militares portugueses, oficiais, furriéis e simples soldados, nas barrigas
de “lavadeiras” ou delas já nascidos nas terras da Guiné, de Angola ou de Moçambique.
A autora procurou histórias, contactou os seus dois lados e estabeleceu ligações entre
filhos, mães e pais, histórias quase sempre frustradas, raras vezes felizes.
Os filhos da guerra ou “fidjus di tuga”, curiosamente também chamados, nas suas terras,
“pessoas de cor”, procuram, meio século depois, o pai português e, com ele, a sua
identidade interior e exterior; o pai português, agora velho, quase sempre fragilizado,
que quer esquecer histórias antigas e com elas, a solidão, o medo, a violência, a injustiça
da guerra! Por isso, o importante trabalho de Catarina Gomes foi tão difícil…
Mas o livro tem também uma subtil Geografia dos espaços africanos, em que se
presumem climas, vegetação, picadas e senzalas, fronteiras, cidades e rios. E, sobretudo,
tem implícita a Geografia de Portugal do fim do Estado Novo, da ruralidade, das aldeias
isoladas, do peso da cidade, da injustiça. A Geografia serviu e justificou, entre todas as
outras, também esta guerra, a nossa guerra! Mas manifesta-se, ainda hoje, insuficiente
para reparar alguns os seus males…
2 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no
dia-a-dia, ser geógrafo?
Um professor universitário é, ou deve ser, “um investigador que ensina”. Tentando
seguir este princípio, na minha qualidade de geógrafo e de professor, tenho feito poucas
outras coisas para além de investigar e ensinar.
A investigação em Geografia, apesar de muito condicionada hoje pelas métricas
internacionais que nos levam a escrever sempre mais (não necessariamente melhor) e a
competir mesmo quando colaboramos, continua a ser, pelas suas características
intrínsecas de liberdade e de cooperação, pelo trabalho de campo que lhe é inerente e
pela criação cartográfica na transmissão dos resultados, uma actividade estimulante.
Ser professor é bom, mas ser professor de Geografia (Física) ainda é melhor. De facto, a
transmissão de conhecimento (ou processo de ensino/aprendizagem) tem aspectos muito
positivos e interessantes (viagens de estudo; trabalhos práticos; entre outros), mesmo
quando no final do semestre o professor sente que alguns objectivos ficaram claramente
por alcançar, ou que alguns alunos ficaram para trás… Sei que é polémica a ideia de que
devemos trabalhar (ensinar) sempre para os melhores alunos, mas cada vez acredito
mais nisso. A recompensa desta actividade não é sentida todos os dias, se calhar nem
todos os anos, mas quando vemos o sucesso científico, académico, empresarial ou
técnico de um antigo aluno e sabemos que uma parte, mesmo ínfima, deste sucesso se
deve a nós, às nossas aulas, aos nossos exercícios, aos nossos trabalhos… a recompensa
compensa.
Claro que há outras actividades, dentro da Universidade e fora dela, para além da
investigação pura ou aplicada e do ensino. O facto de sermos geógrafos, o
conhecimento do mundo, da escala local à global e a interdisciplinaridade com que
permanentemente lidamos, dá-nos competências de gestão e liderança, permite-nos
trabalhar com sucesso ao lado de profissionais de diferentes áreas, ajuda-nos a estar
presentes em trabalhos aplicados ligados ao ambiente, aos riscos, ao ordenamento do
território, ao desenvolvimento cultural, ou seja, permite-nos, para além de melhor
entender o Mundo, ajudar a criar um mundo melhor.
3 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é
reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse
reconhecimento?
Sim! A formação em Geografia é reconhecida, ainda que nem sempre suficientemente
valorizada, quando trabalhamos com parceiros de outras áreas científicas, geólogos,
biólogos e engenheiros, ou com outros profissionais das ciências exactas ou naturais,
como com sociólogos, historiadores e arquitectos ou colegas das ciências sociais e
humanas, em trabalhos de investigação mais académica ou mais aplicada.
Pela sua posição de charneira entre as ciências naturais e sociais, a Geografia tem um
papel privilegiado nos estudos teóricos e aplicados sobre o território. Para este papel
privilegiado, o mapa, naquilo que significa em termos de caracterização de base e,
sobretudo, no que representa em termos de modelação e cenarização de propostas
políticas, é essencial. Eu diria que o mapa e os processos cartográficos que lhe são
inerentes são a nossa principal moeda de troca com colegas de diferentes especialidades
para o trabalho em conjunto.
Os tempos que vivemos são tempos em que os conhecimentos atravessam e ultrapassam
todas as especialidades e, mesmo, todas as áreas científicas. Daí que também surjam,
aqui e além, algumas dissonâncias, pequenas divergências e mesmo alguns conflitos
disciplinares. Na Geografia Física, apesar da permanente e frutuosa colaboração com
geólogos, há sempre pequenos pontos de conflitualidade, a que é necessário estar atento,
ler os sinais e, naturalmente, saber responder. Dou apenas um exemplo. Nos últimos 30
anos tem sido muito importante o papel de geólogos, geógrafos, arqueólogos e, mais
recentemente, turismólogos, no estudo de temas como a geodiversidade, geopatrimónio,
geoparques e geoturismo, temas relevantes em termos culturais, de ordenamento do
território e de desenvolvimento local. Apesar da cooperação científica entre todas estas
categorias de profissionais, custa a ler e custa a ouvir que geopatrimónio é sinónimo de
património geológico ou que geoturismo é a mesma coisa que turismo geológico, numa
leitura pretensiosa e claramente redutora do prefixo geo, que significa a Terra sobre a
qual, ainda que a diferentes níveis, todos trabalhamos.
4 - O que diria a um jovem à entrada da universidade a propósito da formação
universitária em Geografia, sobre as perspectivas para um geógrafo na sociedade
do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e
oportunidades?
No processo de recepção aos novos alunos de Geografia já tive oportunidade de
algumas vezes conversar (quase sempre informalmente) acerca das muitas dúvidas que
a entrada na Universidade e no curso de Geografia lhes suscitam: E o curso de
Geografia serve para quê? Arranja-se emprego com facilidade? E a fazer o quê?
As minhas respostas têm sido mais ou menos as seguintes:
1) Hoje, já nenhum curso superior garante directamente emprego. No entanto, o curso
superior em Geografia é um curso de futuro e proporciona a quem o frequenta muitas
competências importantes, que vão desde os estudos ambientais, aos estudos sobre o
território e a sociedade, temas que seguramente marcarão a vida política e social do
século XXI.
2) O estudante universitário tem de aproveitar aqueles que pensa serem os melhores
anos da sua vida. Mas, ao estudante compete, sobretudo, estudar, aprender, treinar…
Aprender bem os conhecimentos teóricos de cada disciplina, conhecer e dominar as
técnicas, particularmente as técnicas de análise quantitativa, assim como a modelação
cartográfica e a produção cartográfica em SIG’s, que são ferramentas importantíssimas
para trabalhar no Ensino, num município, num qualquer serviço público ou privado,
numa empresa, ou mesmo para criar a sua própria empresa.
3) Por falar em Ensino, todos sabemos e sentimos na pela e na alma, dia após dia, a
perda de prestígio social da profissão de professor. E a dificuldade de obter uma
colocação! E a remuneração quase sempre incompleta! No entanto, para quem tenha
gosto, quase que diria vocação para ser professor dos Ensinos Básico e Secundário, o
futuro não se apresenta tão negro como nos querem fazer crer: neste momento há muitas
reformas em curso e muitos lugares irão a concurso nos próximos anos…
Ao estudante de Geografia e a um jovem geógrafo, diria que todas as ciências são úteis
e necessárias. No entanto, face à velocidade com que o Mundo se transforma no plano
ambiental, económico, social, político, face aos impactes que o Ser Humano impõe
numa Natureza cada vez mais descaracterizada, face à relevância dos conflitos
internacionais e locais, face à dificuldade da ordem política internacional em fazer
frentes aos constantes atropelos económicos e sociais, face à dificuldade do nosso
Governo e dos nossos municípios em resolver problemas aparentemente simples de
gestão e ordenamento do território (ordenamento florestal; pedreiras; resíduos
industriais e de agro-pecuárias), a Geografia é não só útil e necessária, como
absolutamente fundamental.
Um grande geógrafo brasileiro, Carlos Augusto Monteiro, num livro a que chamou
“Geografia sempre! O Homem e seus mundos”, escreveu: “A Geografia, vista como
capacitada a entender as intimidades entre a Sociedade e a Natureza, nestes momentos
de grandes crises, poderia adquirir foros de “aplicabilidade” como se fora uma
“Medicina da Terra”. Acho que já não somos capazes de entender o mundo actual sem a
Medicina moderna, tecnológica e inovadora… A Terra precisa tanto ou mais que os
seres humanos de tratamento preventivo e curativo. A Geografia é fundamental!
5 - Queríamos pedir-lhe que escolha um acontecimento recente, ou um tema atual,
podendo ambos ser de âmbito nacional ou internacional. Apresente-nos esse
acontecimento ou tema, explique as razões da sua escolha, e comente-o, tendo em
conta em particular a sua perspectiva e análise como geógrafo.
O tema que escolho, de premente actualidade, é o do abandono a que está votado o
interior português. Os acontecimentos relacionados com as diferentes facetas desse
abandono podem ser tanto os ferozes incêndios de 2017, como o pontual desabamento
de uma estrada municipal associado à exploração das pedreiras de mármore em Borba.
A análise do tema e de alguns dos seus problemas está primorosamente sintetizada no
artigo “Desamparados – para uma geografia emocional do interior” que o nosso colega
Álvaro Domingos escreveu há cerca de um mês no Jornal “O Público”. É um verdadeiro
tratado, em que se caracteriza a situação actual, se elencam injustiças, se sintetizam as
causas, se traça a evolução temporal do processo e se apontam, mesmo, algumas
soluções. Não vou por isso, repeti-lo… Apenas recomendar, a quem não teve
oportunidade de o ler, que o faça agora!
Mas vou chamar a atenção para um problema ao qual sou particularmente sensível e
que, de certo modo, tem a ver com a falta de solidariedade e de coesão entre as cidades,
com natural prejuízo do Interior. Sou de Viseu, e vivo em Coimbra há quase 50 anos…
As minhas duas “terras”, duas cidades que capitalizam municípios não pertencentes ao
chamado Interior (ou aos territórios de baixa densidade, como agora se lhe chama), mas
têm posições muito curiosas no mapa que dá conta das áreas de baixa densidade O
interior em número - bases para um diagnóstico do Programa Nacional para a Coesão
Territorial. Coimbra é uma espécie de baía de desenvolvimento do mar da baixa
densidade interior, cercada que está por Penacova, Condeixa e Montemor-o-Velho.
Viseu corresponde verdadeiramente a uma ilha (a única no conjunto do país) de
desenvolvimento nesse mesmo mar da baixa densidade. Entre as duas cidades que
distam entre si menos de 100Km, a ligá-las, a articulá-las, a puxar pelo
desenvolvimento dos municípios que se localizam entre elas, pelos vistos nada… Ou
um obsoleto IP3, com um traçado perigoso, com acidentes quase diários, um tempo de
viagem exagerado para o século XXI, e com promessas políticas que, mesmo essas, vão
sendo progressivamente enfraquecidas e já só surgem em tempo de eleições… Que tem
isto a ver com o interior? Tudo!
Num país que muitos consideram ter uma rede exagerada de auto-estradas, a má
articulação da rede de transportes entre o Litoral e o Interior, pensada entre Lisboa e
Bruxelas, penalizou fortemente duas das cidades mais importantes do Centro de
Portugal, Coimbra e Viseu, e impediu aquela de exercer a capitalidade regional que lhe
competia (saúde, educação, administração pública, economia). Por outro lado, o
estrangulamento ao desenvolvimento regional que permanece com a obsolescência do
IP3, afasta progressivamente Viseu da região Centro, ligando a cidade directamente ao
Porto (quase sem passar por Aveiro). E Coimbra, sempre a perder…
6 - Que lugar recomendaria para saída de campo em Portugal? Porquê?
Portugal é um país pequeno, mas muito diversificado em termos geológicos,
geomorfológicos, biogeográficos, históricos e paisagísticos. Essa diversidade,
fortemente reconhecida pela Geografia, mas também por outras áreas do saber, diz-nos
que no nosso país todas as áreas geográficas e todos os pequenos recantos têm
características próprias, geossistemas particulares e paisagens únicas para merecerem
saídas de campo e mesmo para utilização turística com os mais diferentes pretextos (do
turismo balnear litoral ao geoturismo, passando por todas as outras formas e/ou
segmentos com que se qualifica esta actividade).
Por (de)formação científica, naturalmente escolheria e escolho muitas vezes os maciços
cársicos do Centro Litoral, de Ançã ao Montejunto, ou mesmo até à Arrábida. O carso,
ou “deserto de pedras” é sempre um meio particular, no seu funcionamento, nas suas
formas de relevo e nas suas paisagens que, apesar de áridas e selvagens, são
humanamente construídas. Na Irlanda, o carso tem a designação de “barren” e diz-se
que um general de Cromwell (séc. XVII) quando combatia os irlandeses se referia a
estas regiões como sendo tão pobres ou tão más que não haveria água para afogar um
homem, árvore para o enforcar ou, mesmo, terra para o enterrar… Ou seja, terras que
nem para guerra são boas…
Assim são os carsos do Centro Litoral, pelo menos aqueles não recobertos por
sedimentos cretácicos ou posteriores, como parece acontecer com a parte ocidental de
Sicó, com o Planalto de Santo António e a Serra dos Candeeiros, no Maciço Calcário
Estremenho, com Montejunto e com grande parte da Arrábida. Os pedregosos campos
de lapiás e as depressões fechadas dão o mote à paisagem superficial, aqui e além
reforçada pelos muros de pedra solta e pelos morouços amontoados pelos agricultores
para despedrega dos magros campos. Abaixo desta paisagem de superfície, todo um
outro mundo de desenha, com grutas enriquecidas no seu significado real e simbólico
pela concreções calcíticas, por morcegos e troglóbios, e por rios de águas imensas que
vão brotar à superfície nas exsurgências das margens baixas do carso.
Deste conjunto de maciços calcários carsificados, o Maciço Calcário Estremenho é,
claramente, o mais interessante para viagens de estudo, quer pelas excelentes
acessibilidades locais, quer pela sua complexidade geológica e geomorfológica, pela
existência de várias grutas abertas ao público, pela pujança das suas nascentes e pelo
didactismo de formas cársicas como o polje de Minde e o sistema
sumidouro/ressurgência do Rio dos Amiais.
Mas, não é só o carso ou a Geografia Física que justificam esta escolha. Ela é justificada
também por se tratar de uma área ambientalmente protegida, no caso o Parque Natural
das Serras de Aire e Candeeiros, com os seus geossítios, particularmente o Monumento
Natural das Pegadas de Dinossáurios da Serra de Aire, o Algar do Pena e a Fórnia de
Alvados. Ela é justificada também pela sua Geografia Humana: Fátima e a Cova da Iria,
desde logo, mas também as actividades industriais tradicionais de Mira de Aire, de
Minde e de Alcanena, as actividades agro-pecuárias da Serra de Candeeiros e do
Planalto de Santo António.
E, finalmente, é justificada pelo conhecimento científico que se tem deste Maciço, onde
se contam pelo menos 3 teses de doutoramento acerca dos problemas geomorfológicos e
hidrológicos cársicos (Alfredo Fernandes Martins, 1949; José António Crispim, 1995; e
Luísa Rodrigues, 1998), para além de muitos outros trabalhos de geologia,
geomorfologia e geografia humana.