Francisco Mignone: vivência, pesquisa e criação
Flavio T. Barbeitas
Publicado em MusicaHoje, Belo Horizonte, v. 8, p. 52-61, 2002
Breve análise do percurso criador de Francisco Mignone em articulação com as condições de produção musical
de sua época e com as exigências estéticas do movimento nacionalista. O texto examina, principalmente, o
possível papel de mediador entre cultura erudita e cultura popular exercido por Mignone e, nesse sentido, é
dada particular atenção à chamada "fase negra", na qual o compositor fez largo uso de materiais musicais afrobrasileiros.
Brief analysis of Francisco Mignone’s composing route related to the conditions of musical production from his
time and the aesthetic demands of the nationalist movement. The text discourses about Mignone’s possible role
as a mediator between erudite and popular culture, and special attention is given to his so called “fase negra”
(African-Brazilian period), when the composer made large use of African-Brazilian musical elements.
Ao propormos a análise do trinômio vivência, pesquisa e criação em um compositor
como Francisco Mignone, necessariamente nos situamos diante do vigor de uma questão
fundamental, a qual pergunta pelas provocações do contexto cultural em que o compositor se
inseria e pela forma como Mignone respondeu – ou correspondeu – a essas provocações.
Simultaneamente, para a própria compreensão desse contexto cultural, impõe-se a reflexão
sobre pelo menos dois temas fundamentais já aqui antecipados: 1) as condições da produção
musical no Brasil e 2) o nacionalismo que, como um projeto intelectual e estético, visava
interferir nessas mesmas condições de produção e reorientar os agentes musicais para a
consecução de objetivos precisos e bem definidos. O nosso olhar sobre Mignone pretende,
fugindo do tradicional biografismo, articular esses elementos na medida da sua ação sobre o
percurso artístico do compositor, verificando de que maneira determinaram a sua pesquisa e a
sua criação.
Francisco Mignone, como se sabe, não participou da Semana de Arte Moderna de
1922. Àquela época, encontrava-se na Itália, como bolsista do governo de São Paulo, com a
finalidade de aperfeiçoar os seus estudos musicais. Estava, pois, distante da polêmica que
desvairava a Paulicéia com debates acalorados entre os jovens artistas modernistas e os
representantes de uma minguante tradição romântica. A Semana de 22, como evento, figura
adequadamente no quadro clássico dos manifestos e do espírito revolucionário característicos
2
da Modernidade. Representava, nesse sentido, aquele mesmo anseio de instaurar
imediatamente o novo, quebrando práticas hegemônicas do fazer artístico e buscando uma
radical antecipação do futuro. Octavio Paz definiu bem essa característica moderna como
constituinte de uma “tradição da ruptura”, por ele considerada uma expressão da consciência
histórica da nossa civilização, “que procura seu fundamento, não no passado nem em nenhum
princípio imóvel, mas na mudança”1. De fato, os modernistas brasileiros eram movidos por
um ardente desejo de mudança. Mudança, porém, entendida não apenas como rejeição ou
superação da tradição, mas, dadas as particularidades do contexto, como um necessário gesto
de afirmação. Uma das questões centrais na ocasião, aqui muito grosseiramente abordada, era
a eliminação, ou pelo menos a diminuição, da abissal distância existente entre intelectuais e
povo no Brasil, ou, dito de outra forma, entre cultura erudita e cultura popular. Um problema
cuja solução, para os modernistas, passava por uma intensa dedicação à compreensão da
realidade cultural brasileira a fim de alicerçar em bases populares a construção de uma
autêntica arte nacional. Inegavelmente embutido na proposta, encontrava-se um mal
disfarçado drama existencial, algo como uma crise de identidade, que esclarecia a urgência
em definir a nacionalidade e em localizar o verdadeiramente brasileiro. A contradição,
contudo, permanecia na determinação da postura em relação à cultura popular,
tradicionalmente concebida pela intelectualidade brasileira ora como uma fascinante fonte de
energia, ora como uma pedra bruta à espera de lapidação; um nó que, embrionário na Semana,
acentuou-se dramaticamente na elaboração e execução do projeto estético nacionalista.
O esforço modernista de aproveitamento da cultura popular havia sido antecipado,
reconheça-se, por tendências artísticas anteriores – como, por exemplo, o regionalismo
literário de Coelho Neto – que procuravam incorporar ao código culto registros e coloridos
populares. Ali, o resultado, em geral, pouco superava uma prática de citações que, não
1
Octavio Paz, Os Filhos do barro: do romantismo à vanguarda, p. 25.
3
encontrando espaço para uma real integração, jamais se desvencilhavam do estranhamento em
relação ao ambiente geral do texto. Acabou constituindo-se, no dizer de Antonio Cândido,
um estilo esquizofrênico, puxando o texto para dois lados e mostrando em grau máximo o
distanciamento em que se situava o homem da cidade, como se ele estivesse querendo marcar pela
dualidade de discursos a diferença de natureza e de posição que o separava do objeto exótico que é
o seu personagem2
José Miguel Wisnik flagra essa mesma concepção alienadora presente na literatura de
Coelho Neto na produção musical brasileira da época, marcada também por uma tentativa de
aproveitamento do material popular na qual este aparecia praticamente como uma
curiosidade, como uma sonoridade alienígena no seio de uma obra cuja essência provinha de
uma fonte muito distante.
Tendo em vista experiências como a do regionalismo na literatura e a dos primeiros
compositores ditos nacionalistas na música, é que os modernistas se colocaram diante do
problema central da assimilação da cultura popular a um código culto a partir de uma nova
perspectiva. Dado o efetivo malogro das tentativas anteriores, a questão não podia ser
reapresentada apenas como mero aproveitamento de um material exótico, mas sim desde a
consideração das potencialidades que este mesmo material oferecia para a constituição de
uma nova técnica e mesmo para a eclosão de uma nova linguagem. Se antes a cultura popular
participava de forma completamente passiva na constituição da obra, sujeitando-se a uma
elaboração técnica que lhe era completamente estranha, a proposta modernista visava a uma
fusão de códigos de cujo caldeirão surgiria enfim uma arte autenticamente nacional e
representativa do que se entendia naquele momento por “raça brasileira”.
O período após a Semana de 22 é caracterizado exatamente pela elaboração e pela
sistematização desse projeto. No que concernia à produção musical, Mário de Andrade
lançaria, em 1928, o Ensaio sobre a música brasileira, misto de análise e exemplificação da
2
Antônio Cândido citado por José Miguel Wisnik, O coro dos contrários: a música em torno da semana de 22, p. 27.
4
complexidade musical do país com um manual de orientações para os compositores eruditos.
Ali se encontra a exposição de suas principais teses por meio de uma sucessão de comentários
críticos a respeito da maneira como a música popular/folclórica se apresentava na cultura. São
identificados os elementos constituidores dessa música (ritmo, melodia, instrumentação, etc.)
e discutidas as formas de seu aproveitamento pelos compositores eruditos. Anunciam-se
possibilidades de constituição de uma técnica própria para a música nacional desde a
observação dos procedimentos populares e criticam-se posturas artísticas que atritavam com a
funcionalidade social que a música deveria exercer. Pode-se dizer que com o Ensaio, lançamse efetivamente os fundamentos de uma verdadeira escola de composição nacionalista,
fundamentos esses que seriam a cada vez reafirmados por Mário de Andrade ao longo de sua
vida.
Um ano após a publicação do Ensaio sobre a música brasileira, retorna Francisco
Mignone definitivamente ao Brasil. Na bagagem trazia composições à moda italiana, francesa
e espanhola, frutos de suas andanças pela Europa. O cenário que encontra em São Paulo,
todavia, é marcado por forte contraste com a realidade européia. As condições da produção
musical no Brasil sempre se estabeleceram em bases muito pouco favoráveis para a música de
concerto e, particularmente naqueles anos, eram caracterizadas pelo reduzidíssimo número de
orquestras, pelo mercado inexistente para compositores e pelas possibilidades de atuação
restritas ao ensino. Nada, portanto, que desse a Mignone a oportunidade de explorar os
conhecimentos obtidos no velho continente. Some-se a estes problemas contextuais, o
questionamento feroz das suas próprias composições por Mário de Andrade, àquela época
crítico musical atuante, demonstrado nos comentários sobre a ópera L’innocente, estreada em
São Paulo ainda em 1928. Francisco Mignone via-se, pois, premido de todos os lados. Do
ponto de vista da própria sobrevivência como músico, pela árida realidade musical brasileira
e, principalmente, paulista; do ponto de vista artístico, pela ácida crítica modernista,
5
personificada em Mário, que lhe cobrava o afastamento das influências européias que por toda
a vida o haviam cercado, desde a infância transcorrida no seio de uma família de imigrantes
italianos. As respostas de Mignone não tardariam muito. Em 1933 decide transferir-se para o
Rio de Janeiro a fim de lecionar Regência no então Instituto Nacional de Música (atual Escola
de Música da UFRJ), organismo em cuja órbita gravitavam, desde os tempos do Império, os
principais nomes da música erudita brasileira. Por outro lado, a sua primeira Fantasia
Brasileira, para piano e orquestra, estreada em 1931, é a resposta às críticas de Mário e
representa a sua adesão ao projeto nacionalista.
É possível interpretar as atitudes de Mignone como pseudo-opções, pois, na verdade,
advinham da unidirecionalidade das alternativas que se lhe apresentavam à época. As
condições de produção musical no Brasil não lhe permitiam uma dedicação, por exemplo, ao
cultivo do gênero operístico em meio ao qual ele, de certa forma, se educara, não só em
família, mas também na própria Itália. Como ele próprio afirmou em seu Depoimento no
Museu da Imagem e do Som, após L’Innocente sentiu um grande desânimo em escrever
óperas devido ao fato de o trabalho de composição ser muito grande para tão poucas
representações nos teatros brasileiros. Essas mesmas condições tampouco lhe permitiam uma
vida dedicada somente à composição, exigindo-lhe tempo para o ensino, sua principal fonte
de renda. A própria música que ele estava habituado a compor, a música que estudara durante
nove anos na Europa, originada da escola francesa de Massenet; esta música era
violentamente atacada pela intelectualidade brasileira, empenhada, como vimos, na
constituição de uma música erudita que expirasse brasilidade.
A aceitação, portanto, dos postulados do nacionalismo constituía, na prática, o único
caminho possível a ser tomado por um compositor ainda jovem e carente de um brilho próprio
que lhe assegurasse uma carreira independente da normatização estética que o nacionalismo
propunha. A partir da Fantasia Brasileira e dos conseqüentes elogios de Mário de Andrade,
6
inicia-se um processo de estreita colaboração entre o escritor e o compositor. Propostas e
argumentos de Mário resultariam em importantes obras de Mignone como o bailado
Maracatú do Chico-Rei, as Valsas de Esquina, a Sinfonia do Trabalho, o poema sinfônico
Festa das Igrejas, o projeto da ópera O café. Para Luiz Heitor Corrêa de Azevedo (1947)
o autor de Macunaíma via (em Mignone) o compositor ideal para o povo; (aquele) que, segundo as
suas concepções da arte em função da sociedade nova, apresentava as características mais
adequadas a esse destino: acessibilidade de expressão e robustez de técnica, honestidade artesanal.
A integralidade da adesão de Mignone ao nacionalismo teve, a nosso ver, um caráter
mais definitivo do que comumente se considera. Mesmo após a morte de Mário, quando
Mignone, livre das doutrinações do amigo, dedicou-se ao cultivo de experiências
composicionais diferentes daquelas estabelecidas pela tradição nacionalista, ele o fez movido
muito menos por um convencimento estético do que por uma natural propensão ao
conhecimento de novas técnicas e novos meios de expressão musical. A sua trajetória pelo
atonalismo, por exemplo, nunca chegou a indicar uma efetiva mudança de rumo, seja porque
Mignone jamais abandonou totalmente os gêneros ligados ao nacionalismo, seja porque
tratou-se mesmo de uma fase efêmera em sua carreira de compositor. Quando completou 80
anos, em entrevista ao Jornal do Brasil3, o compositor dizia condenar toda a sua fase
atonalista, embora reconhecesse que aquele período muito o havia ajudado a melhorar sua
técnica de composição. Na verdade, em todos os seus depoimentos, é nítida a sensação de que
o compositor não encontrou nada nem ninguém que substituísse a fortíssima referência
intelectual representada por Mário de Andrade. Por isso, mesmo com o desaparecimento do
autor de O Banquete e mesmo com a perda de vigor do movimento nacionalista, nota-se em
Mignone sempre a nostalgia daquele projeto e de seu mentor. Um exemplo da filiação
incondicional ao pensamento andradeano evidencia-se no pequeno livro intitulado A parte do
anjo, escrito por Francisco Mignone aos cinqüenta anos de idade, no qual estão contidas
7
algumas reflexões a respeito da sua trajetória musical. Os escritos de Mignone, mais do que
uma simples convergência, sinalizam para uma aceitação dócil das principais orientações
constantes do Ensaio sobre a música brasileira. É exemplo disso a concepção de uma
orientação social para a música em oposição ao individualismo romântico:
Si sou um ser social tenho necessariamente que contribuir para a comunidade (...). Como artista,
sou obrigado a mais um e mais sublime imposto: contribuir para a cultura e o aperfeiçoamento
artístico da humanidade, na medida maior de todas as minhas forças4.
Essa orientação social, no caso brasileiro, estaria ainda fortemente relacionada à idéia
de nação:
Si eu fosse gênio inato, o meu destino era atingir toda a humanidade. (...) Mas si eu sou gênio
feito, o meu destino é mais realista, mais prático, mais qualificado, e tenho que elevar a
humanidade naquilo em que ela é condicionada pelos seus imperativos pragmáticos e transitórios,
isto é, tempo, raça, país, escola. É curioso como os gênios feitos são nacionais5.
No que se refere ao conteúdo da pesquisa composicional, as idéias de Mignone
parecem desenvolvimentos tímidos das idéias do Ensaio:
Tenho pesquisado muito porque sempre me dou uma porção de problemas técnicos por resolver
(...). Por exemplo: faço uma “Valsa de esquina” em três partes e pesquiso a possibilidade de ir
acrescentando contrapontisticamente as melodias das partes. Será essa uma pesquisa legítima?
Não! Não passa de um treinamento técnico, útil mas ineficaz, porque não atinge a essência do
problema “valsa brasileira”. (...) Mas preciso esclarecer bem o que quer dizer pesquisar sobre
problemas essenciais. Eis um: a expressividade psicológica da música brasileira. Todos têm
fracassado nesta pesquisa, caindo a maioria na quadratura da modinha. Só mesmo o Villa-Lobos
nas Serestas (algumas) e o Guarnieri em algumas canções conseguiram alguma coisa. O que fazer?
Estudar o populário e esses autores. (...) Deve-se estudar tudo e aproveitar de todos. Bem.
Percebidos os elementos psicologicamente expressivos da atual música brasileira, então pesquisar
como desenvolvê-los. Pegar nos elementos da modinha e fugir sistematicamente da forma canção,
da forma toada, de qualquer espécie de quadratura, atacando sistematicamente o processo da
melodia infinita.6
A percepção e o domínio dos “elementos psicologicamente expressivos” da música
brasileira visando a um posterior desenvolvimento formam um conjunto previsto nas três
fases do caminho de nacionalização da arte vislumbrado por Mário (tese nacional, sentimento
nacional e inconsciência nacional). A exortação andradeana para que os compositores
3
Cf. Priscila Paes, A utilização do elemento afro-brasileiro na obra de Francisco Mignone, p. 59
Francisco Mignone. A parte do anjo, p. 44
5
Idem, p. 45
6
Idem, pp. 41-42
4
8
pesquisassem materiais e procedimentos populares (pesquisa apenas esboçada no Ensaio) foi
tomada por Mignone como referência fundamental do seu trabalho como compositor. “Não há
dúvida: meu nacionalismo tem de ser inflexível. Intransigente.”, diria ele em A parte do anjo.
A pesquisa de Mignone das tradições musicais brasileiras é marcada, em muitos casos, mais
favoravelmente pela abrangência do que pelo aprofundamento. Comparecem nas suas obras a
exploração fecunda dos elementos afro-brasileiros, a marca da tradição rural paulista da toada,
do cateretê e da moda de viola, e a música popular urbana. Cada um desses elementos
constituintes da música brasileira foi tomado por Mignone como um verdadeiro universo de
possibilidades, levando-o a uma produção caracterizada inegavelmente pela extensão e pela
variedade. Cabe aqui perguntar pela maneira como se processa a imersão de Mignone na
cultura popular e como se dá, neste compositor, o objetivo do nacionalismo de apropriação
dos materiais populares para posterior reelaboração.
A chamada “fase negra” de Mignone marca o período imediatamente posterior à sua
opção nacionalista. Há um largo emprego do elemento afro-brasileiro, inspirando a
composição de numerosas obras, dentre as quais vale citar os poemas sinfônicos Babaloxá e
Batucajé, as quatro Fantasias Brasileiras para piano e orquestra, a Suíte Brasileira para
piano, os Cânticos de Obaluayê para canto e piano, além do famoso bailado Maracatú do
Chico-Rei. Não obstante a fertilidade da produção nesse período, a “fase negra” iria culminar
numa grande crise artística de Mignone, traduzida em ceticismo e na incapacidade de
enxergar originalidade em suas composições. Essa crise preocuparia muito Mário de Andrade
que, em artigo publicado sobre Mignone em O Estado de São Paulo7 apontava as “poucas
possibilidades artísticas” da “música negra” – devido a um suposto “excesso de caráter” –
como causa do desânimo do compositor para com a sua produção. Em outro artigo8, o escritor
enxergaria na exploração do filão negro da música brasileira por parte de Mignone um certo
7
Mário de Andrade, Música, doce música, pp. 309-313.
9
“brasileirismo intencional”, saudando a sua superação no bailado O espantalho. Guardemos
por um instante essa análise de Mário e busquemos olhar sob um outro prisma a “desilusão
negra” de Francisco Mignone. Tomemos um trecho de uma entrevista concedida a Priscila
Paes, na qual o compositor lembra que sua relação com a “música negra” remontava aos
tempos de infância:
Minha mãe contratava essas pretas, negras, pra fazer a limpeza de casa e tal, a faxineira... e eu
ouvia esses cantos todos e sempre ficava muito embevecido com esses cantos, achava que eles
tinham um quê de nostálgico9.
Um exame de sua biografia não permite encontrar nenhum vínculo mais forte do que
esse com a tradição musical afro-brasileira. Embora através de suas obras tenhamos a certeza
de que Mignone foi um ouvinte e um espectador atento das manifestações negras, não se pode
deixar de perceber o afastamento natural existente entre compositor e matéria-prima. Um
elevado grau de exotismo presente desde a “Congada” da ópera “O contratador de diamantes”
permanece presente nas demais obras da “fase negra” denunciando uma aproximação apenas
superficial do homem urbano de família italiana com uma manifestação popular de raízes nãoeuropéias. É importante esclarecer que o exotismo de que falamos diz respeito à postura
daquele que se posiciona a partir de uma ótica exterior (daí ex-ótica) ao fenômeno que
observa. Aliás, o exotismo é exatamente um fato ligado ao observador estrito, na medida em
que acusa a inexistência da efetiva participação e integração, relativizando, por conseguinte, a
forma como se dá a apropriação do fenômeno. Não espanta, pois, que o entusiasmo de
Mignone com o filão negro da música brasileira tenha logo arrefecido. Havia ali uma
impossibilidade de se estabelecer uma mediação convincente e um diálogo frutífero. Voltando
a Mário de Andrade, vemos que ele também capta o artificialismo presente na “fase negra” de
Mignone ao falar de um “brasileirismo intencional”. Todavia, ele mesmo, num movimento
8
9
Idem, pp. 349-353
Cf. Priscila Paes, op. cit., p.65
10
contraditório recorrente em sua teoria, acaba traindo-se logo em seguida ao mencionar a tal
“pobreza artística” da música negra. Ora, a ótica de Mário, neste e em muitos outros casos,
caracteriza-se exatamente pela externalidade, pela distância, pela incapacidade de conceber
uma lógica de constituição da arte diferente daquela de sua tradição cultural. Eis mais um
passo onde se expõe a principal debilidade do projeto nacionalista e algo de seu caráter
elitista.
Encontramos um Mignone muito mais autêntico e com muito mais fôlego nos
momentos de sua obra onde estão presentes elementos de tradições musicais das quais ele
efetivamente participou. Ainda antes de sua viagem à Europa, quando compunha sob o
pseudônimo de Chico Bororó, a cidade de São Paulo, como bem demonstra Aluísio de
Alencar Pinto10, tinha o seu ambiente musical dividido entre cançonetas italianas e a música
caipira do interior do estado. Chico Bororó, em nítido e curioso contraste com o italianizado
Mignone, posicionava-se nesse cenário como um cultor de cateretês, canções sertanejas e
gêneros urbanos como a valsa e o tango. Músico prático e versátil, tocava em confeitarias,
bailes e cinemas exatamente esse repertório que acabaria por conformar-lhe a musicalidade e
a expressão. Anos mais tarde, em suas composições maduras, Mignone abordaria novamente
aqueles gêneros com notável autoridade. De um lado, a sonoridade da música caipira que
percorre boa parte de sua produção, marcando-lhe o caráter melódico; de outro, a nostalgia da
seresta e do choro, presente, por exemplo, no grande repertório de valsas. Francisco Mignone,
enfim, andou bem por um terreno onde foi capaz de realizar uma mediação efetiva entre a
tradição popular de que participou e a cultura de elite da qual foi um representante.
Bibliografia
10
Cf. Aloísio de Alencar Pinto, “Francisco Mignone e a música popular brasileira”, in Francisco Mignone, o
homem e a obra, Vasco Mariz (org.), pp.137-146
11
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1962.
_______. Música, doce música. São Paulo: Livraria Martins, 1963.
BARBEITAS, Flávio Terrigno. Circularidade cultural e nacionalismo nas Doze valsas
para violão de Francisco Mignone. Rio de Janeiro: UFRJ/Escola de Música, 1995.
Dissertação de Mestrado.
_________. “A música e a história na ‘Pequena história da música’ de Mário de
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CONTIER, Arnaldo Daraya. Música e ideologia no Brasil. São Paulo: Novas metas,
1985.
JARDIM, Antonio. Re-pensando Mário musicólogo. Rio de Janeiro: Faculdade de
Letras/UFRJ, 1993.
MARIZ, Vasco (org.). Francisco Mignone, o homem e a obra. Rio de Janeiro: Funarte:
Editora UERJ, 1997
MIGNONE, Francisco. A parte do anjo, autocrítica de um cinqüentenário. São Paulo:
Mangione, 1957.
________. Depoimento. Rio de Janeiro: Fundação Museu da Imagem e do Som, 1991
PAES, Priscila. A utilização do elemento afro-brasileiro na obra de Francisco
Mignone. São Paulo: USP, 1999. Dissertação de Mestrado.
PAZ, Octavio. Os Filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984
WISNIK, José Miguel. O coro dos contrários: a música em torno da semana de 22. São
Paulo: Duas cidades, 1983
Flavio Terrigno Barbeitas é professor assistente da Escola de Música da UFMG. Violonista,
graduou-se na Escola de Música da UFRJ onde também obteve o grau de Mestre com a
dissertação Circularidade Cultural e Nacionalismo nas Doze valsas para violão de Francisco
Mignone.