colec;ao TRANS
Isabelle Stengers
A INVENC;Ao DAS
CIENCIAS MODERNAS
Tradu~i o
Max Altman
EDITORA34
Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
Sao Paulo - SP Brasil TeVFax (11) 3816-6777 editora34@uol.com.br
Copyright © Editora 34 Ltda. (edi,ao brasileira), 2002
L'invention des sciences modernes © Editions La Decouverte, Paris, 1993
eet ouvrage, publie dans ie cadre du programme de participation a fa
publication, beneficie du soutien du Ministere franfais des Affaires
Etrangeres. de l'Ambassade de France au Bresil et de La Maison Franfaise
de Rio de Janeiro.
A INVEN<;:Ao DAS
CIf-NCIAS MODERNAS
Este livro, publicado no ambito do programa de parricipa'fao apublicac;ao,
contou com 0 apoio do Ministerio frances das Rela<;oes Exteriores,
cia Embaixada cia Fran<;a no Brasil e cia Maison Fram;aise do Rio de Janeiro.
I. EXPLORANDO
A FOTOC6PlA DE QUALQUER FOLHA OESTE LIVRO Eo ILEGAL, E CONFIGURA UMA
1. As ciencias e seus interpretes
.
2. Ciencia e nao-ciencia .......................................................
3. A for,a da historia ...........................................................
APROPRIA<;:AO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTIJAIS E PATRIMONIAIS DO AlITOR.
Capa, projeto gdfico e editoralfao eletr6nica:
Bracher & Malta Produfiio Gra{ica
II. CONSTRUINDO
Revisao tecnica:
Bento Prado Neto
4. Ironia ou humor?
.
S. A ciencia sob 0 signo do acontecimento
.
6. Fazer historia ...................................................................
Revisao:
Adrienne de Oliveira Firmo
Alexandre Barbosa de Souza
Isabella Mareatti
73
89
108
III. PROPONDO
l' Edi,ao - 2002
Catalogalfao na Fonte do Departamento Nacional do Livro
7. Urn rnundo disponivel?
.
..
8. 0 sujeito e 0 objeto
9. Devires .............................................................................
135
158
182
Indice onornastico
203
(Funda,ao Biblioteca Nacional, RJ, Brasil)
S668i
11
30
51
Stengers, Isabelle, 1949A inve~ao
das ciencias modernas I Isabelle
Stengers; tradw;ao de Max Altman. - Sao Paulo:
Ed. 34, 2002.
208 p. (Colelj:ao TRANS)
ISBN 85-7326-249-4
Tradulj:ao de: L'invention des sciences modernes
1. Filosofia da dencia. I. Altman, Max.
II. Titulo. III. Serie.
CDD - 501
•
.
Para Felix Guattari e Bruno Latour,
como recordayao de urn encontro que nao aconteceu.
I.
EXPLORANDO
1.
AS CIENCIAS E SEUS INTERPRETES
EscANDALOS
Urn rumor inquietante se espalha pelo mundo dos cientistas. Existern, ao que parece, pesquisadores, ainda por cima especialistas em
cieocias humanas, que investem contra 0 ideal de uma ciencia pura.
Urn campo esta em forma<;ao, nascido na Inglaterra ha cerca de vinte
anos 1, evoluindo em paises anglo-saxonicos, e doravante presente tambern na Franc;a2 . Este campo, batizaclo com nomes diversos, "social
studies in science", "antropologia das ciencias", questionaria rada se-
para<;ao entre as ciencias e a sociedade. Os pesquisadores agrupados
a maneira de urn
projero social como outto qualquer, nem rnais descolado das preocupa<;oes do mundo, nem mais universal ou racional do que qualquer
nesse campo ousariam pretender estudar a ciellcia
Dutro. Eles DaD mais denunciariam as numerosas infidelidades que os
cientistas cometem contra as flOfffias de autonomia e objetividade, mas
as considerariam vazias, como se tada ciencia fosse "impura" por na-
tureza e nao por estar distante do ideal
Os pensadores da ciencia afiam suas armas e vao em defesa de
uma causa amea<;ada. Alguns se fiam no argumento bastante classico
da retorsao. Ele ja foi bastante util, e continua sendo. Afirmar que a
ciellcia
e urn projeto social, nao seria submete-la as categorias da so-
1 Ver a antologia La science telle qu'elle se fait (sob a dire'rao de Michel
Callan e Bruno Latour), col. Textes al'Appui, Paris, La Decouverte, 1991.
2 Principalmente no Centro de Sociologia da Inova'rao da Escola das Minas, dirigido por Michel CalIon. Ver Michel Calion (sob a dire'rao de), La science
et ses reseaux, Paris, La Decouverte, 1989, e, de Bruno Latour: Les microbes,
guerre et paix, seguido de [rreductions, Paris, A.-M. Metailie, 1984; La vie de
laboratoire (com Steve Woolgar), Paris, La Decouverte, 1988; La science en action,
Paris, La Decouverte, 1989; Nous n'avons jamais ele modernes, Paris, La Decouverte, 1991 [ed. bras.: Jamais fomos modernos, Sao Paulo, Editora 34, 1994].
As crencias e seus interpretes
11
ciologia? Ora, a sociologia e uma ciencia e, no caso, uma ciencia que
ambiciona tornar-se super-ciencia, aquela que explica todas as demais.
Mas como escaparia da desqualifica<;ao que lan<;a sobre as outras? Ela
se desqualifica portanto a si propria e nao pode pretender impor 0 seu
proprio plano de leitura. Outros jogam 0 jogo do realismo: como, se
tudo nao passa de vinculo social, ou seja, convencional e arbitra.rio,
pudemos enviar homens a Lua (e, poderiamos acrescentar, fazer explodir bombas atomicas)? Os soci610gos das ciencias nao correm, como
todo mundo, em caso de necessidade, para 0 medico, que lhes prescrevera. esses produtos das ciencias que sao as vacinas e os antibi6ticos? Outros ainda prop5em identificar 0 questionamento da objetivi-
aos seus felizes colegas que nesse caso a ciencia nao tern 0 poder de
par os cientistas de acordo. Nao falamos nem de biologia "crickiana"
nem de mecanica quantica "heisenberguiana", nao e mesmo?
Os filosofos das ciencias manifestaram urn consideravel descontentamento. Eles recorrem, e claro, ao argumento da retorsao: Kuhn
propae urn paradigma ao historiador e ao filosofo das ciencias, e portanto ele nao tern, de acordo com os seus pr6prios terrnos, 0 direito
de pretender descrever as ciencias "tais como sao". Os fil6sofos das
ciencias lembraram a impossibilidade de por num mesmo plano uma
dade cientifica com a justificativa de uma brutal lei do rnais forte. A
ciencia ultrapassada, como aquela que identificava a agua como urn
elemento, e a ciencia atual, que a agua confirma ao se deixar sintetizar
e decompor avontade. Eles denunciaram 0 drama que seria para a civi-
civilizac;ao esta em perigo!
liza<;ao a redu<;ao da ciencia a uma mob psychology, uma psicologia
o que essa inquieta<;ao do mundo cientifico tern de estranho e
que repete, deslocada no tempo, 0 desassossego que tinha se apoderado do pequeno mundo dos filosofos das ciencias quando 0 historiador Thomas Kuhn propos, em 1962, a categoria "ciencia normal".
Nao, afirmava Kuhn, 0 cientista praticante de uma tal ciencia nao e a
ilustra<;ao gloriosa do espirito critico e da racionalidade lucida que os
filosofos tentavam caracterizar por seu intermedio. 0 cientista faz 0
que aprendeu a fazer. Ele trata os fenomenos que parecem cair sob 0
ambito de sua disciplina segundo urn "paradigma", urn modelo pdtico e teorico a urn so tempo, que se imp5e a ele pela forc;a da evidencia, em rela~o
ao qual a sua possibilidade de recuo e minima. Pior,
de massas irracionais, submetidas aos efeitos da moda e da imitac;ao.
Entretanto, a maioria dos cientistas nao teve, em absoluto, a
mesma rea<;ao. Eles gostam bastante dos "paradigmas" de Kuhn. Ate
reconhecem neles uma descri<;ao afinal pertinente de sua atividade. A
no~a
de "revoluc;ao paradigmatica", em conseqiiencia da qual urn
paradigrna substitui outro, lhes serve para contar a hist6ria de sua
disciplina. E muitas das ciencias humanas se puseram a sonhar com 0
paradigma que lhes conferisse urn dia 0 modo de progressao de seus
felizes colegas. Vimos florescer urn pouco par todo lado "novos paradigmas" , da sistemica
aantropologia ou a sociologia.
ja que cada paradigma define as questaes legftimas e os criterios pe-
Por que aquilo que escandalizou os filosofos satisfez tanto os
cientistas? E por que se escandalizam agora? Kuhn ja nao havia salien-
los quais sao identificadas as respostas aceitaveis, e impossive! construir uma terceira posic;ao, "fora de paradigma", a partir da qual 0
tado a dimensao social das ciencias, mostrando que 0 cientista deve
ser descrito como membro de uma comunidade e nao como individuo
filosofo poderia avaliar os meritos respectivos de interpreta<;aes conflitantes (tese da nao-comensurabilidade). Pior ainda, a submissao do
cientista ao paradigma da sua comunidade nao e urn defeito. Segundo Kuhn, e a ela que devemos 0 que chamamos de "progresso cienti-
racional e lucido? E a questao deste curioso descompasso que sera
meu ponto de partida.
fico", 0 modo cumulativo de ,ra~nv
grac;as ao qual cada vez mais
fenomenos tornam-se inteligiveis, tecnicamente controlaveis e teorica-
0
AUTONOMIA
mente interpretaveis. E Kuhn descreve de forma cruel a lucidez dos cientistas que pertencem a uma disciplina sem paradigma: brigam entre
descric;ao de Kuhn preserva 0 essencial: a autonomia de uma comuni-
Pode-se afirmar, acredito, que do ponto de vista dos cientistas a
si, se entredevoram, acusam-se mutuamente de desvios ideologicos ou
dade cientifica em rela<;ao ao seu ambiente politico e social. A descri-
coexistem na indiferen<;a de escolas apoiadas na autoridade de seus fun-
c;ao faz mais do que preserva-la, ela a institui como norma e condi~a
dadores. Fala-se de psicologia "piagetiana", de lingiiistica "saussureana", de etnologia "levi-straussiana" eo proprio adjetivo assinala
de possibilidade do exercicio fecundo duma ciencia, quer se trate da
12
As ciencias e seus interpretes
Explorando
pratica de uma ciencia normal ou das se5~ulovr
-".
paradigmaticas que
13
a renovam. Nao somente deixaremos de pedir explica~6s
ao cientista
quanto a sua escolha e suas prioridades de pesquisa, como e justo e
normal que nao as possa dar. Pois e 0 carater amplamente tiicito do
paradigma, transmitido pelo artificio pedagogico de problemas a resolver e de exemplos tratados nos manuais, que the confere esta sua fecundidade. E pelo fate de 0 paradigma nao ser objeto de urn recuo
os fenomenos mais
cdtico que os cientistas abordam com confian~
desconcertantes, desvendam-nos sem vertigem pelo modo da semelhan<;a com 0 seu objeto paradigmatico. Ademais, esta confian<;a explica
igualmente 0 escandalo fecundo associado por Kuhn a no<;ao de anomalia, ponto de bascula em que uma diferen<;a e tida como significativa, pondo em cheque 0 paradigma e nao a competencia do cientista.
De acordo com Kuhn, 0 paradigma explica portanto nao somente
a conquista cumulativa, mas tambem a inve~ao
do novo. A anomalia, a urn s6 tempo agente provocador e ponto de fixa<rao, "submete a
tensao" 0 cientista, transformado em vetor de uma criatividade que
talvez nao teria inspirado uma atitude lucida, ou seja, cetica, quanto
ao poder das teorias. De modo correlate, justifica-se a indiferen<;a de
uma comunidade em rela<;ao as dificuldades ou aos resultados pouco
compreensiveis. Nenhum "fato" bruto anormal tern em si mesmo 0
poder de ser reconhecido como anomalia. E nenhuma anornalia confere aquele que a identifica 0 poder de exigir a aten<;ao da coletividade. A "crise paradigmatica" torna-se coletiva quando 0 cientista tiver
conquistado 0 poder de contra-interpretar os resultados de seus colegas, quando urn novo paradigma, portador de urn novo tipo de inteligibilidade, impuser uma escolha. A lucidez e urn produto de crise,
deve ser conquistada e nao pode ser considerada normal.
A leitura proposta por Thomas Kuhn justifica portanto uma difer ncia~ o
radical entre uma comunidade cientifica, criada por sua
propria hist6ria, dotada de instrumentos que incluern indissociavelmente a produ<;ao (pesquisa) e a reprodu<;ao (forma<;ao daqueles que
estao autorizados a participardessa pesquisa) e urn meio que, se pretende beneficiar-se dos subprodutos dessa atividade, deve limitar-se a
falar sem pedir-Ihe explica<;6es. Ninguem deve, com rela<;ao ao cientista
em atividade, beneficiar-se de uma rela<;ao de for<;a que the permita
impor quest6es que nao sao as "boas" quest6es de sua comunidade.
Todo ataque a autonomia de uma comunidade trabalhando sob paradigrna redunda, com efeito, em "matar a galinha dos ovos de ouro",
em profligar a condi<;ao de possibilidade do progresso cientifico.
14
Explorando
Thomas Kuhn nao inventou, na verdade, 0 argumento que impede
se6~acilpxe
aos cientistas de suas escolhas e suas prioridades. Em 1958, 0 fisico Michael Polanyi ja havia vinculado a fecundidade da pesquisa cientifica a urn "conhecimento tacito", bastante distinto
de urn conhecimento que levaria aos conteudos explicitos ou explicitciveis da ciencia. 0 cientista de Polanyi esta proximo de urn "expert",
no sentido ingles de connoisseur (conhecedor, perito), e sua competencia einseparavel de urn compromisso (commitment) que implica a ina paixao, a cren~a3.
teligencia, mas tambem as atitudes, a perc~ao,
Polanyi punha enfase na descri<;ao "fenomenologica" do cientista
em atividade bern mais do que sobre a maneira como as comunidades
cientificas asseguram a transmissao de seu modo de compromisso. Mas
sua posi<;ao nem por isso estava despida de qualquer preocupa<;ao
socio-politica. Muito pelo contrario. Sua obra se inscrevia no centro
de urn debate que se travou na Inglaterra quando do II Congresso Internacional de Historia da Ciencia e da Tecnologia (Londres, 1931).
Por ocasiao desse congresso, Nicolai Bukharin, a frente da delega<;ao
russa, tinha valorizado as "perspectivas absolutamente novas" abertas em seu pais pelo funcionamento racional da produ<;ao cientffica
nos quadros de uma economia planificada 4 . Jovens cientistas marxistas, tais como John D. Bernal e Joseph Needham, tinham ficado entusiasmados com essa perspeetiva, e, em 1939, Bernal publicava 0 seu
The social function of scienceS, em que a produ<;ao cientifica e os interesses sociais e economicos sao mostrados como solidarios de fato e
de direito. Bernal concluia pela necessidade de uma profunda reorganiza<;ao da ciencia que a tornasse capaz de responder as verdadeiras necessidades sociais. Econtra 0 "bernalismo" que Michael Polanyi criou,
no come<;o da guerra, uma Society for Freedom in Science.
que se ma~ep
3 Michael Polanyi, Personal knowledge: towards a post·critical philosophy,
Londres, Routledge and Kegan Paul, 1958. Em La structure des revolutions sciencientificas,
tifiques (Paris, F1ammarion, 1983 [ed. bras.: Estrutura das seo~ulvr
Sao Paulo, Perspectiva, 1982]), Kuhn ressalta a similaridade entre a descri~ao
de
Polanyi e a sua.
4 As atas do congresso foram reeditadas sob
roads, Londres, Frank Cass, 1971.
5
0
titulo Science at the cross
John D. Bernal, The social function of science, Londres, Routledge and
Kegan Panl, 1939.
As ciencias e seus interpretes
15
Apos a guerra, 0 debate retorna ainda mais vigoroso, mas 0 perigo nao provinha, desta feita, dos intelectuais marxistas. Tratava-se
de protestar contra os projeros de planifica,ao de escolhas cientfficas
pe!os governos ocidentais. Em 1962, Polanyi publicava urn artigo doutrinario, "The Republic of Science,,6, em que estavam explicitamente
vinculadas a reivindicac;ao de "extraterritorialidade" da ciencia e a
figura do cientista "competente",
0
unico capaz de avaliar uma pes-
quisa num terreno que e 0 seu, sem poder, apesar disso, prestar contas de seus criterios de avaliac;ao. Mais precisamente, Polanyi sustentava que as comunidades cientificas realizam, "em seu sentido mais
elevado", urn principio que e reduzido ao mecanismo de mercado quan-
do aplicado as atividades economicas. Todo cientista se insere numa
rede de avalia,6es mutuas que se estende bern alem de seu pr6prio
horizonte de competencia. "A republica da ciencia nos mostra uma associac;ao de iniciativas independentes, dispostas em vista de uma con-
cretiza,ao indeterminada. Sua disciplina e motiva,ao advem-Ihe de sua
obediencia a uma autoridade tradicional, porem esta autoridade e dinamica; sua existencia continuada depende da auto-renovac;ao conti-
nua pela originalidade daque!es que a e!a obedecem."7
Nao se trata aqui de recuperar 0 conjunto dessa historia, que
remete, de urn lado, aquestao da concepc;ao marxista, mais tarde sta-
linista, da ciencia (basta lembrar as teses sobre a ciencia burguesa e a
ciencia proletaria na Franc;a do pos-guerra), e, de outro, a discussao
dos historiadores sobre a historia "interna" ou "externa" das ciencias,
a qual estao associados nomes como os de Alexandre Koyre e de Charles Gillispie. Eu me limitarei a ressaltar que a defesa da hist6ria "interna", para a qual 0 conhecimento cientifico se desenvolve segundo
os seus proprios criterios, e os fatores "externos" desempenham ape-
nas urn pape! subalterno, nao deve ser confundida com a defesa de uma
A novidade da obra de Thomas Kuhn e portanto bern relativa.
Reside antes de mais nada na explicitac;ao da divergencia entre os interesses dos cientistas e os dos filosofos das ciencias. Os primeiros nao
tern qualquer necessidade de passar pela defesa e esclarecimento da
racionalidade das ciencias para reivindicar a iniciativa nas quest5es e
a exclusividade nos julgamentos de valor e de prioridade. Os outros
perdem por conseguinte todo status privilegiado: nao sao nem arbitros nem testemunhas, nao sao sequer aqueles que saberiam deslindar
as normas que funcionam implicitamente no interior das ciencias e que
permitem distinguir a ciencia da nao-ciencia.
o que dizer entao da nova "antropologia", ou "historia social"
das ciencias, que escandaliza os cientistas? Ela se inscreve explicitamente na esteira aberta por Kuhn, mas nao manifesta 0 mesmo respeito
que ele pela produtividade cientffica. Urn novo discurso foi construido,
que distingue explicitamente 0 que interessa aos cientistas e 0 que deve
interessar aqueles que estudam os cientistas. Estes ultimos, se quiserem
ser reconhecidos como participes legftimos do novo campo, devem se
submeter a uma disciplina que tern 0 nome de "principio de simetria".
Trata-se de tirar conseqiiencias do fato de que nenhuma norma merodol6gica geral pode justificar a diferen,a entre vencedores e vencidos criada pelo encerramento de uma controversia. Kuhn, nesse ponto, fiava-se numa certa racionalidade dos cientistas, que avaliam a
fecundidade,
0
poder dos paradigmas competindo entre si. A diferen-
c;a, para ele, nada tinha de arbitraria. 0 princfpio da simetria exige que
nao nos fiemos na hip6tese desta racionalidade, que conduz 0 historiador a tomar emprestado 0 vocabulario do vencedor para contar a
hist6ria de uma controversia. Enecessario, ao contra.rio, tornar explfcita a situac;ao de profunda indecisao, ou seja, tambem 0 conjunto dos
fatores eventualmente "nao-cientfficos" que participaram da criac;ao
ciencia "racional", no sentido em que a compreendia a maioria dos
da rela,ao de for,a final que herdamos quando imaginamos que a crise
fil6sofos das ciencias da epoca. Eo que afirmava a filosofia "p6s-critica" de Polanyi. E e 0 que sera explicitado em A estrutura das revolur;oes cientificas, de Kuhn.
fez, efetivamente, a diferenc;a entre vencedores e vencidos.
o paradigm" garantia a auronomia das comunidades e se limitava a interpretar de outro modo aquilo que caracteriza tradicionalmente
6
"The Republic of Science: its political and economic theory", Minerva, vol.
16
ideal de uma "verdadeira" ciencia,
0
progresso cumulativo,
nalmente, econsiderado como desvio, defeito com relac;ao e esse ideal:
1,1962, pp. 54-73.
7
0
a possibilidade de consenso, a irreversibilidade da distin,ao entre 0
passado obsoleto e 0 futuro inediro. 0 principio da simetria exige do
pesquisador que ele permane,a atento a tudo que, tam bern tradicioas rela,6es de for,a e os jogos de poder francamente sociais, as dife-
Idem, p. 72.
Explorando
As ciblcias e seus interpretes
17
ren~as
frar.
de recursos e de prestigio entre laboratorios concorrentes, as
possibilidades de a~nil
com interesses "impuros", ideologicos, industriais, estatais etc. Enquanto a imagem das ciencias construida por
uma coorte de aliados, todos aqueles cujo interesse foi capaz de criar
nas controversias que 0 opoem aos seus rivais.
uma a~nerfid
Polanyi correspondia ao mercado livre ideal, a imagem kuhniana da
ciencia, menos centrada no cientista individual, remete aideia hegeliana
da "astucia da razao": constroi-se uma historia, por meios "irracio-
UMA CI~NCIA
nais", que corresponda ponro por ponro, da melhor maneira possivel,
ao que se espera de urn trabalho de cunho racional. A nova imagem
associada a sociologia das ciencias poe em evidencia a nossa incapaoa~is p
cidade de julgar desse modo a historia de que somos os herdeiros: na
medida em que somos herdeiros dos vencedores e que recriamos, no
que diz respeito ao passado, urn discurso em que os argumentos internos de uma comunidade cientifica seriam suficientes para apontar
esses vencedores; visto que esses argumentos nos convencem como
herdeiros eque nos lhes atribuimos retrospectivamente 0 poder de ter
feito a difern~a.
a cientista, aqui, em vez de se privar heroicamente de todo re-
curso it autoridade politica ou ao publico, aparece acompanhado de
~ito
DESTRUTlVA?
A maior parte dos sociologos "relativistas" nega qualquer disde "denunciar" a ciencia. Eles pretendem apenas exercer 0 seu
de principio entre a inrerpretaoficio, que pressup6e uma difern~a
que uma pratica social prop6e de si propria e aquela construida
pelo sociologo. Os cientistas nao deveriam, de direito, estar mais es-
candalizados do que qualquer outro grupo social ou profissional ob-
comunidades cientificas sob duplo titulo de fonres de financiamento
e beneficiarios dos subprodutos uteis? As quest6es da historia "externa"
jeto de interesse dos sociologos, e se 0 estao, acabam por denunciarse a si proprios, confessam aspirar a uma autoridade indevida e confirmam por isso mesmo a legitimidade da investga~o.
Enesse ponto, no entanto, que 0 argumento da retorsao - nao e a sociologia, ela
propria, uma ciencia? - pode ser aplicado. Com que direito, senao
em nome da ciencia, poderia 0 sociologo ignorar que dentre todas as
seo~at rp ni
de que os cientistas sao objeto as do sociologo sao as
que mais dolorosamente os chocam? Porque, certamente, ele nao e 0
unico a interpretar as pniticas cientfficas, e outros poem em causa de
maneira bern rnais determinada 0 sentido das ciencias e 0 que nelas
esta em jogo. Tomarei como exemplo a crftica da ciencia como "tecnociencia" e a crftica feminista radical da racionalidade cientffica, e
tentarei uma primeira caracterizar;ao das ciencias a partir desse primeiro problema: por que, para as cientistas, as interp a~os
que
das ciencias ressurgem aqui, mas elas se tornam bern mais temfveis.
colocam em xeque a racionalidade cientifica estao longe de ser codas
Nito se trata mais de uma tese geral sobre a solidariedade entre as prati-
cas cientificas e seu ambiente. a cientista nao e mais 0 produto de uma
historia social, tecnica, economica, politica como qualquer ser humano.
tao inquietantes?
Poderfamos imaginar que as cientistas protestariam unanime-
mente conrra a apresn~o
Ele tira partido ativo dos recursos desse ambiente para fazer prevalecer suas teses e ele esconde suas estrategias sob a mascara da objetivi-
cia" e "cultura humana" manifestada pela critica das tecnociencias.
Como se pode aceitar que se enxergue nas ciencias a expressao de uma
dade. Em outros termos, 0 cientista, de produto de sua epoca, tornouse ator, e, se nao se deve confiar, como havia afirmado Einstein, no
dicada a negar, a submeter ou a destruir tudo
De modo correlato, 0 tema da "grande divisao", da difern~a
entre os "quatro seculos europeus" , quando se erigiu a moderna ciencia, e todas as outras civlza~oes,
perde 0 carcher de acontecimento
que Kuhn e 0 conjunto dos historiadores "internalistas" the haviam
conferido. Segundo Kuhn, acontece que eai, e nito em qualquer outra
parte, que se concretizou a condi~t
de possibilidade da ciencia, a
existencia de sociedades que oferecern as comunidades cientificas, sem
intervir em suas discussoes, os meios de existir e trabalhar. Porem, outras seo~avni
singulares marcaram esses quatro seculos. Industria,
Estado, exercito, comercio so entrariam, na verdade, na historia das
18
de oa~isp
radical entre "cien-
racionalidade em livre curso, escapando ao conrrole dos homens, de0
que ela nao pode re-
e absoluta-
duzir ao calculavel e ao manipulavel? Ora, bern raros sao os protes-
cientifica excederia as palavras, mas porque
estrategica que e necessario saber deci-
tos dos cientistas, como se reconhecessem a dolorosa legitimidade de
uma hipotese que consagra 0 divorcio entre seu projeto e as valores
que ele diz que faz, mas observar
mente porque a inve~ao
as palavras tern uma fun~ao
da rela~o
0
que ele faz, isto nito
Explorando
As ciencias e seus interpretes
19
do Seculo das Luzes, entre 0 servi~o
prestado a ciencia e aquele prestado a humanidade.
A critica das "tecnociencias" identifica a "racionalidade cientifica" com uma racionalidade puramente operat6ria, que reduz ao calculo e ao dominio tecnico 0 que ela conquistou. Nega toda possibilidade de se distinguir entre prodUi;6es cientificas, tecnicas, tecnologicas, e se refere tanto aos dispositivos s6cio-tecnicos que efetivamente
transformam as praticas humanas, como a informatica, quanto as
"vis6es cientificas do mundo", que reduzem, por exemplo, a realidade a uma troca de informac;6es.
A critica feminista radical parte do mesmo tipo de descric;ao,
porem identifica esta racionalidade, nao a destruic;ao de todo valor,
mas ao triunfo dos valores "masculinos". Urn born numero de autoras feministas tinha, ha tempos, salientado 0 quanta a pesquisa cientifica esta dominada pelos ideais de competic;ao, de rivalidade polemica, de envolvimento sacrificial por uma causa abstrata, enfim, por
uma forma de organizac;ao que eu abordarei mais adiante sob 0 titulo
de mobiliza,iio. Entretanto, elas nao punham em causa 0 proprio modo
de conhecimento inventado pelas ciencias. No maximo tinham por
objetivo os dominios- medicina, hist6ria, biologia, psicologia etc. que dizem respeito aos seres sexuados, e em que e possivel mostrar que
as quest6es podem efetivamente sofrer "desvios" pelos pressupostos
conscientes ou inconscientes no que tange as mulheres. Ea essa critica por vezes qualificada de "empirista" 8 que se contrapos urn ponto
de vista feminista radical, para 0 qual 0 conjunto das ciencias e urn
"produto social sexuado", fruto de uma sociedade dominada pelos
homens. Neste casto, da matematica a quimica, da ffsica a biologia
molecular, nada deve escapar a critica feminista.
Nos dois casos, tecnocientifico e feminista, a perspectiva e de
resistencia, mas nos dois casos descreveu-se aquilo contra 0 que cabe
resistir de maneira tal que 0 apelo a resistencia assume tintas profeticas. Que a racionalidade seja um "conjunto" dotado de dinamica propria ou que ela expresse um modo sexuado de relac;ao com 0 mundo
e com os outros, ela tem 0 poder de definir os seus atores e so pode
ser limitada, regulada ou transformada do exterior por urn "inteira-
8 Ver Sandra Harding, The science question in feminism, Ithaca/Londres,
Cornell University Press, 1986.
mente outro", livre de todo comprometimento. Seria possivel uma "outra" ciencia, feminina ou feminista? 0 onus da prova recai sobre as
mulheres, e 0 cientista, trocista ou sincero, pode se dec1arar extremamente interessado na perspectiva de uma matematica OU de uma ffsica diferentes. Poderia uma nova consciencia etica fazer contrapeso a
potencia tecnocientifica? 0 onus da prova cabe asociedade ou as instancias que representam seus valores, e 0 cientista nao fara cara feia
em participar das "comissoes de etica" em que representara os "fins
da ciencia" diante de representantes diversos e frente a frente com os
"fins da humanidade".
De fato, 0 prec;o pago pelo carater radical da critica, tecnocientifica ou feminista, e 0 respeito pelo cientista na qualidade de interprete privilegiado do que pode sua ciencia. A racionalidade cientifica
tal como e aqui discutida nao e da ordem do respeito por uma norma, que poderia ser verificado. Ela remete antes a urn destino e e a
verdade desse destino que se traduz em toda visao da realidade como
manipulavel, seja qual for a distancia entre as pretensoes dessa visao
e as praticas que a autorizam. Nesse sentido, a critica "radical" da ciencia concede aos cientistas todas as suas pretensoes. Ela reconhece as
mutac;6es s6cio-tecnicas que afetam nosso mundo como os produtos
da racionalidade - (tecno)cientifica ou masculina - e tende a aceitar pelo seu valor de face 0 que os cientistas "dizem", ate em suas
extrapolac;oes as mais arriscadas. Estes sao portanto tratados nao como suspeitos, mas como testemunhas veridicas.
Nao sera surpresa portanto que a questao da tecnociencia possa, se for 0 caso, ser retomada pelos pr6prios cientistas. Ela os instala
firmemente no papel doloroso porem honroso de representantes de uma
mudanc;a radicalmente nova, sem paralelo na hist6ria humana, expressoes de urn imperativo talvez desumano, mas que os depura e os preserva de todo questionamento vulgar. Se a tecnociencia consagra a
terrivel dinamica que cria a comunicac;ao do cacional COm 0 irracional, 0 imperativo de controlar e calcular com 0 estabelecimento de um
sistema aut6nomo, incontrolavel do interior, que faz coincidir potencia e ausencia de sentido, entao os cientistas, os tecnicos e os experts
nao estao em questao, estao a espera, como todos os demais, dos limites do poder de expansao de uma dinamica que os define para alem
das suas intenc;6es e de seus mitos.
Paralelamente, ao contrario dos soci610gos relativistas, a critica
radical das ciencias preocupa-se pouco em acompanhar os detalhes
20
As ciencias e seus inrerpretes
Explorando
21
das controversias cientfficas ou fazer funcionar 0 ~'prindo
da simetria" entre vencedores e vencidos. Sejam quais forem as teses com que
se defronta, a partir do momento em que caem sob 0 ambito da tecnociencia (ou da ciencia ~'masculin"),
pouco importa saber qual vencera e como. De toda maneira, a vito ria sancionara urn novO avanr;o
de uma racionalidade puramente operatoria, dominadora, que faz
coincidir a verdade com 0 criterio unico de "isto funciona", em detrimento da cultura, de seus valores, de seus significados, 0 que traz
conseqliencias bastante concretas para aqueles que, hoje, sustentam,
em nome do progresso ou da racionalidade, a necessidade de tal ou
qual programa de pesquisa. Em especial, e1es nao tern que se haver,
no seio das comiss6es bioeticas por exemplo, com contestadores pouco respeitosos, persuadidos a priori de que os argumentos dos cientistas sao na verdade relativos aos seuS interesses, mas sim com protagonistas que aceitam, por principio, seu estatuto de representantes
de uma "16gica operat6ria", e discutem eventuais limites a se estabe-
lecer para esta logica.
A grande diferen,a entre a descri,ao relativista das pdticas cientfficas e as criticas radicais da ciencia prende-se, portanto, a urn contraste que pode ser tornado como uma primeira abordagem da singularidade das ciencias. 0 argumento segundo 0 qual 0 progresso cientifico
serve aos fins da humanidade pode, se for 0 caso, ser utilizado pelos
cientistas, contudo esse argumento nao parece traduzir 0 sentido intrinseco que dao asua atividade. 0 argumento segundo 0 qual a ciencia e
uma atividade critica e llicida e utilizado em determinadas circunstancias, quando se trata de estabelecer a diferen,a com a astrologia ou a
parapsicologia, por exemplo, mas pode igualmente ser abandonado
em proveito da imagem de urn sonambulo fecundo. Em contrapartlda, parece crucial 0 argumento segundo 0 qual os saberes prodUZldos
pelas ciencias nao estao vinculados as situa,oes de rela,oes de for,a
sociais e podem prevalecer-se de uma rela,ao privilegiada com os fenomenos que lhes dizem respeito. Que essa re1a,ao nao seja neutra,
que ela se reduza ao calculive1 e ao controlavel, va la. Mas que possa
ser considerada arbitraria, que seja 0 simples resultado de urn "acordo" entre cientistas e nao prove nada mais que uma conven\ao humana qualquer, isto sim e insustentavel. Que as ciencias estejam plenas de impurezas, de situa\oes em que efeitos de moda, interesses ~o
ciais ou economicos desempenharam urn papel, va lao 0 que susclta
os protestos mais veementes e que seja negada toda distin\ao entre a
..
22
Explorando
"verdadeira ciencia", idealmente autonoma em rela\ao a interesses nao
cientfficos, e os desvios em rela\ao a este ideal, previsiveis e lamentaveis.
problema especifico da abordagem sociologica relativista das
eiencias e portanto que ela parece dever colidir frontalmente com a
conep~a
de ciencia que os proprios cientistas alimentam. Certamente,
este poderia ser motivo de gloria. Ao passo que a critica radical da
racionalidade cientffica pode, ocasionalmente, estabilizar aqueles sobre os quais incide na convic\ao - ou no mito - de urn destino temfvel porem honroso, nos teriamos enfim os instrumentos de uma
verdadeira contesta\ao do poder das ciencias. Mas estariamos tao seguros da pertinencia desses instrumentos? Desejariamos de fato que
os cientistas aceitassem parecer-se com estrategistas indiferentes a"verdade", interessados unicamente em se aliar aos poderes que os possam ajudar a fazer a diferen\a? Gostariamos realmente que esses poderes, em paga, pudessem exigir dos cientistas que deixem de procurar
pelo em ovo e se alinhem com as exigencias da normaliza\ao, do interesse e da rentabilidade 9 ? Em nome de que a reivindica,ao de autonomia deve ser ridicularizada?
Pode-se entender como urn "grito" 0 protesto dos cientistas contra
a abordagem dos sociologos, como a expressao a urn so tempo de urn
ferimento, de uma revolta e de uma inquieta\ao.
ferimento, porque "e1es bern sabern" que sua atividade nao
apenas uma atividade social "como as outras", que ela implica em
riscos, em exigencias e em paixoes sem os quais nao passaria de burocracia de numeros ou constru\ao obsessiva de redes metrologicas. Eles
sao os primeiros a reconhecer que ela e isso "tambem", mas sabem
que ela nao e "somente iS50".
Revolta, porque se sentem traidos por aqueles que tern a sua disposi\ao infinitamente mais "palavras", referencias, capacidade de argumenta\ao - e 0 seu ofieio - para por as ciencias em cena. Enquan-
o
e
9 Hoje em dia, muitos pesquisadores, especialmente fisicos e quimicos, afirmam que e exatamente isso 0 que esta acontecendo. As institui'1oes financiadoras s6 se interessariam pelo que promete "aplica'1oes". Numerosos pesquisadores nao poriam seus instrumentos a funcionar a nao ser para angariar "mimeros" que pudessem ser uteis a industria. Os estudiosos ca'1oariam quando lhes
falam de "questoes fundamentais". Eu nao levarei aqui adiante 0 tema da "finalidade da verdadeira pesquisa", que necessitaria de estudos de campo. S6 queria
assinalar seu brutal desenvolvimento nO curso dos ultimos anos.
As ciencias e seus interpretes
23
estrategicos, mas isso nao pode ser suficiente para justificar, como
castigo bern merecido, uma descri~ao
que os escandaliza, parece-Ihes
negar a verdade de seu envolvimento e de sua paixao. E as boas inseo~n t
daqueles que esperam "desmitificar" tambem nao sao suficientes. Poderiam assegurar que outrOS protagonistas nao estarao interessados em toma-Ias ao pe da letra, quer dizer, utilizar suas teses para
por as ciencias ainda urn pouco rna is a servi~o
de seus interesses?
to esses "falastr6es" utilizavam suas habilidades para edificar uma
estava equilibrada. Um
imagem privilegiada da ciencia, a situa~o
cientista podia ate - como Einstein naD se privati de fazer - criticar a imagem demasiado racional conferida a sua ciencia. Contudo
se, como nos dias de hoje, aqueles cujo ofkio e falar das ciencias voltam seus recursos de argument~o
"contra" os cientistas, aproveitam-se de maneira revoltante dos podeces cia rerorica para direcionalos contra a realidade, muda e proba, da ciencia.
Inquieta<;:1o, por fim, porque os recursos retoricos dos discursos
sobre a ciencia fazem parte dos recursos da ciencia, no que diz respeito
tanto as controversias internas quanta aos entendimentos entre as
disciplinas e nas suas fronteiras. Os recentes paradigmas e tambem,
hci mais de urn seculo, a distio<;ao epistemol6gica entre ciencias "puras"
e "aplicadas" constam cia argumenta<;ao que permite resistir, defender,
protegee-se, atrair interesse, exigir ajuda. Esses argumentos, se forem
entendidos como recurso estrategico, e nao como expressao epistemologicamente fundada da realidade cientifica, se tornado sem dtivida
inutilizaveis. Se 0 saber cientffico nao e considerado a partir de entao
como mais desinteressado que os outros, se ele s6 existe gra~s
aos
aliados que sabe recrutar, como urn cientista minoritcirio pode defender sua causa? Como podera resistir a pressao para que se conforme?
Hi portanto uma grande difer n~a
entre as posi~6e
respectivas
dos fil6sofos e dos cientistas por mim apresentadas no inkio deste
capitulo. Os fil6sofos exigiam que as ciencias, que eles nao praticam,
fossem tais que justificassem a pratica do fil6sofo das ciencias. Que
ilustrassem ou implicassem uma defin ~ao
da racionalidade cientifica
que caberia aos fil6sofos extrair e que lhes daria 0 poder de saber, melhor que os pr6prios cientistas, 0 que define os cientistas como tais.
Ser decepcionado por aquilo a que se esperava poder conferir 0 papel
de fundamento faz parte dos riscos do ofkio do fil6sofo. Ap6s os protestos e as manifest~6
de indga~o
pode advir 0 tempo de cria~ao
de novas questoes, quem sahe mais pertinentes, talvez capazes de
transformar, para melhor ou para pior, a decp~ao
em problema.
Os cientistas, em contrapartida, nao tem essa liberdade. Sao eles
que descrevemos, e sua atividade que tentamos caracterizar e, desde
que as ciencias modernas se impuseram como referencia no cenario
de nossas praticas e de nosSOS saberes, eles nao mais deixaram de ser
assim descritos e caracterizados. Certamente, na maior parte do tempo, descri~ao
e carteiz~o
constitufram-se para eles em recursos
A RESTRlc;:Ao
LEIBNIZIANA
Enunciado algum, tenha sido ele emitido em nome da verdade,
do bom senso ou pouco se importando com 0 que dele vao pensar, pode
as conseqiiencias de sua enu cia~ o.
deixar de levar em considera~ o
Quis, em todo caso, submeter minha interp ta~ o
das ciencias a este
principio. Mais precisamente, esta deveria responder a "resti~ao
leibniziana" segundo a qual a filosofia nao deve ter por ideal "subverter
os sentimentos estabelecidos"lO.
Poucos enunciados filos6ficos foram tao malvistos como este. Ate
de
Gilles Deleuze falou, a esse respeito, da "vergonhosa declar ~ o"
Leibniz. E, no entanto, e tao fcicil "dizer a verdade" contra os sentimentos estabelecidos, e depois vangloriar-se dos efeitos de 6dio, de ressentimento, de rigidez aterrorizada suscitados: prova de que 0 "mal
foi atingido", ainda que ao pre~o
da pers gui~ao,
visto que martirio e
verdade casam-se. Leibniz, 0 diplomata que procurava desesperadapara uma paz entre as religioes, sabia bern
mente criar as condi~es
disso naquela Europa vergada sob a heran~
de tantos martires. Se ele
tinha por objetivo "respeitar" os sentimentos estabelecidos, parece-me
que conferem senque e como urn matematico "respeita" as seo~irt
tido e interesse ao seu problema. E essa resti~ao
- nao ferir, nao
subverter os sentimentos estabelecidos - nao significa nao ferir ninguem, por todo 0 mundo de acordo. Como poderia Leibniz nao ter
ocidental iria
sabido que 0 uso que fazia das referencias da tradi~ao
10 Alfred North Whitehead, cuja audacia especulativa 56 tern igual na rnonadologia leibniziana, considera tam bern que "voce pode dar lustro ao senso comum, voce pode contradize-Io aqui e ali, voce pode surpreende-lo. Mas, em ultima insdncia, sua tarefa e satisfaze-Io". The aims of education and other essays,
Nova York, The New American Library, 1957, p. 110.
As ciencias e seus interpretes
Explorando
~
..
25
chocar-se contra todos aqueles que se servem dos "sentimentos esta-
de acordo com Bruno Latour, a quem este livro e dedicado, eu cha-
belecidos" para manter e firmar as mobiliza<;oes cheias de odio? 0 problema para 0 qual aponta a restri<;ao leibniziana liga verdade e devir,
confere ao enunciado daquilo que se pensa como verdadeiro a responsabilidade de nao obstruir 0 devir: nao ferir os sentimentos estabelecidos a fim de poder tentar abri-Ios aquilo que sua identidade estabe-
marei de urn "principio de ."oa~uderi
Este principio constitui-se ao
mesmo tempo numa advertencia e numa exigencia, cujo alvo e 0 con-
lecida os obriga a recusar, combater, desconhecer.
Que nao se identifique rapido demais esse projeto com urn otimismo ingenuo. Trata-se antes de urn otimismo tecnico, que traduz
0
saber tecnico do diplomata a proposito dos crimes que 0 heroismo da
junto das teses que se prestam a uma ligeira modifica<;ao, e mesmo implicitamente a reclamam: a passagem de "isto e aquilo" a "isto so e
aquilo", ou "e somente aquilo". Falar de ciencia com urn enfoque
politico, por exemplo, se transformaria em "a ciencia nao e mais que
political', urn projeto cuja aposta e 0 poder, protegido por uma ideoparticulares como
logia mentirosa, que consegue impor suas cren~as
verdades universais. Protestar, ao contnirio, que a ciencia transcende
verdade acarreta. Se a natureza nao da saltos, nada e mais temivel,
as divisoes politicas seria implicitamente identificar a politica com as
como nota Samuel Butler, que 0 ser humano que acredita ter dado urn,
o convertido que se volta ferozmente ou devotamente contra aqueles
que permaneceram na ilusao da qual ele acaba de se afastar l l .
Nao matamos nem morremos, hoje em dia, para defender a objetividade cientifica ou 0 direito de leva-la ao tribunal. Mas as pala-
correntes arbitrarias, tumultuosas, irracionais das controversias huma-
vras que empregamos trazem em si 0 poder de ferir, de escandalizar,
de suscitar 0 mal-entendido raivoso. Eu ousarei, neste livro, associar
a razao cientifica arazao polftica. Sei que corro 0 risco de ofender todos aqueles para quem nada e mais importante existencialmente, in-
telectualmente, politicamente do que manter uma diferen<;a. Porem,
em nome desse sentimento estabelecido, eminentemente respeitavel, seria preciso conservar categorias que, diariamente, dao prova de sua
vulnerabilidade? "Em nome da ciencia", "em nome da objetividade
cientifica", vemos serem criadas defin~5s
e redfin~5s
de problemas que implicam a historia humana. Nao seria necessario inventar
as palavras que permitam tornar discutivel esta referencia, na verdade poHtica, a ciencia?
nas que vern lamber os pes da fortaleza cientifica, e, ocasionalmente,
arrastam em dire~ao
a utilza~6es
perversas, nefastas, irresponsaveis,
elementos de saber que surgiram inocentes. Cada tese que anuncia uma
redutibilidade ou nega uma possibilidade de redu<;ao em nome de uma
transcendencia implica que aquele que fala sabe do que fala, ou seja,
esta ele mesmo na oa~isp
de juiz. Sabe, no presente caso, 0 que e "a
ciencia", "a poHtica", e confere ou recusa a urn dos termos 0 poder
de explicar 0 outro. 0 principio da irredu<;ao prescreve urn recuo frente
a essa pretensao de saber e de julgar. Ese 0 que nos hoje chamamos
"poHtica" estivesse marcado tanto pela tendencia de exc1uir de si as
ciencias quanto 0 que nos chamamos "ciencias" pela tendencia de se
apresentarem como "apoHticas"? 0 que efeito destas ,~'sarvlp"
objetividade, realidade, racionalidade, verdade, progresso, se elas nao sao
tomadas nem como simulacro, dissimulando urn projeto humano "como outro qualquer", nem como garantias de uma diferen<;a essencial?
o desafio deste livro e portanto conseguir articular aquilo que
A irredw;ao significa portanto desconfia~
em rela<;:ao ao conde
junto das "palavras" que levam quase automaticamente atena~o
nos entendemos por ciencia e 0 que entendemos por poHtica, sem ferir, nao todos os "sentimentos", mas aquilo que eu chamarei, a exemplo
explicar reduzindo, ou de estabelecer uma diferen<;a entre dois termos
de Leibniz, os sentimentos estabelecidos, aqueles que marcam, aque-
e sigo aqui de novo a exigencia feita por Latour em lamais fomos
modernos 12 , trata-se de aprender a utilizar as palavras que nao dao,
como por voca<;ao, 0 poder de revelar (a verdade por detras das aparencias) ou de denunciar (as aparencias que ocultavam a verdade). 0
les que nao se pode ame ~ar
sem acarretar a rigidez do panico, a in-
digna<;ao, 0 mal-entendido. Tentarei, para tanto, fazer funcionar 0 que,
que os reduz a uma rela~o
de oa~isop
irredutivel. Em outros termos,
que nao significa, epreciso deixar claro, chegar a urn mundo onde todos
11 "Nao existe pior perseguidor de urn grao de milho que urn outro grao
de milho quando esta totalmente identificado com uma galinha.» Life and habit,
Landre" A. C. Fifield, p. 137.
26
12
Explorando
Bruno Latour, Nous n'avons jamais
As cien.cias e seus interpretes
ete modernes, op. cit.
27
nunca e insignificante. Quanto tempo e energia aqueles e aquelas que
fossem belos e gentis. Espero ser detestada, mas gostaria de tentar nao
ser execrada por aqueles que nao desejo ofender. au seja, 0 conjunto
daqueles que sofrem a poder mobilizador das palavras que as recruda it manuten,ao desse antagonismo.
a que esta em jogo em uma abordagem das ciencias que respeite
tern razoes para lutar despendem hoje em dia, lan,ando-se na dire,ao
dos panos vermelhos agitados sob a seu nariz e que levam a nome de
"racionalidade cientifica" au "objetividade"? a riso de quem devia
estar impressionado complica sempre a vida do poder. E e sempre a
poder que se dissimula atras da objetividade au da racionalidade quan-
leibniziana" pode igualmente ser enunciado sob a forma
a "resti~ao
do risa que, a proposito das ciencias, conviria "reaprender". Houve
urn tempo, oem tao distante, em que as ciencias eram discutidas nos
do elas se tornam argumento de autoridade.
Porem interessa-me, sobretudo, a qualidade do riso. Nao quero
urn riso de tro~a
ou urn riso que seja de desprezo, da ironia que iden-
tam em campos antagonicos, sem apesar disso tomar parte ativa liga-
tifica sempre e sem risco a mesmo para alem das diferen,as. Eu gos-
saloes. Naquela epoca, Denis Diderot imaginava a matematico d'Alembert em meio as vivas emo\oes de urn sonha em que ele seria materia,
eo doutor Bordeu conversando com Mlle. de Lespinasse sabre as "ten-
taria de tornar possivel 0 riso de humor que compreende, aprecia sem
e pode recusar sem se deixar aterrorizar. Queria toresperar a salv~o
nar possive! urn riso que nao se abra as expensas dos cientistas, mas
de
tativas variadas e sucessivas" de criar, eventualmente, uma ra~
"cabra-montes" inteligente, incansavel e veloz... que daria excelentes
que possa, idealmente, ser compartilhado com eles.
Eis, sucintarnente esbo~ad,
a paisagern problematica em que este
livro se insere. Nao pretendo nem demonstrar, com a ajuda de referencias, nem descrever de maneira objetiva, completa, exaustiva. Procederei ami6de par estudos de caso, mas os casos tern aqui 0 estatuto
de "caso ilustrativo", como se diz em matematica: eles nao estao ai
domesticos 13. Que filosofo ousaria em nossos dias a fic,ao de urn
matematico conhecido habitado par urn sonho delirante, e quem se
atreveria a rir daquilo que juristas, moralistas, teologos e medicos discutem e regulamentam no que chamamos "comiss5es de etica"? No
entanto, naD teoho vontade de ser mobilizada em uma coorte denunciadora antes de ter aprendido a rir, antes de ter aprendido como nao
me deixar redefinir como membro de urn grupo com voca~ o
majoritaria que busca, ele tambem, impor seus "valores" , seus "imperativos",
sua "visao de mundo". Eu nao quero sentar-me huma "comissao de
para provar e sim para explorar a maneira pela qual descrevemos as
situa,oes. Porque minha inten,ao e explorar as possibilidades de utilizar 0 registro politico para descrever as ciencias, sem me excluir deste
registro, quer dizer, tendo consciencia de que 0 "sentimento da verdade" em caso algum e desculpa para nao se levar em conta as conse-
;;rica", ao lado de urn teologo, de urn psicanalista, de urn filosofo es-
qiiencias do que nos consideramos verdadeiro.
pecialista em tecnociencia e de urn medico mandarim douto e moralizador. Quero tornar-me capaz - e estimular outras pessoas a tornarem-se capazes - de intervir nessa historia sem ressuscitar urn passado em que outras maiorias morais dominavam.
a rei nao estd nu: urn pouco por toda a parte, os procedimentos, os experts, as burocracias autorizadas pe!a ciencia funcionam e
nao desaparecerao por milagre se nos reencontrarmos a moda que se
cultivava nos saloes do seculo XVIII,
pelas ciencias e tecnicas,
0
0
prazer de nos interessarmos
que quer dizer tambern, pois os dois sao
indissociaveis, a liberdade de rir delas. No entanto, reaprender a rir
13 Denis Diderot, Le reve de d'Alembert, e as discuss5es que se seguem. Ver,
por exemplo, a edi~ao
lan~d
em Livre de Poche, Le reve de d'Alemhert et autres
ecrits philosophiques, Paris, Libraire Generale ,esia~n rF
1984.
28
Explorando
[
l.
As saicn~
e seus interpretes
-
..
.. "';:
29
2.
CltNCIA E NAO-CltNCIA
EM NOME DA AICN~
Na obra The science question in feminism, Sandra Harding opoe
a critica "empirista" e acritica "radical" das ciencias, uma perspectiva
que poderia nos remeter ao caminho do risa: "Seria passive! que 0
feminismo e outros comportamentos igualmente minoritarios sejam
as verdadeiros herdeiros de Copernico, Galileu e Newton? E que isto
se de exatamente na medida em que 0 feminismo e outros movimentos minoritarios colocam em questao a epistemologia que Hume,
Locke, Descartes e Kant desenvolveram para justificar, nos termos de
sua cultura, 0 novo ripo de conhecimento produzido pelas ciencias
modernas? "1.
Nos tratamos "Hume, Locke, Descartes, Kant" ... e tantos outros
como os teoricos do conhecimento aos quais a epistemologia tradicionalmente se rdefe como sendo seu ponto de partida. Com eles, a
pratica cientffica pretende dizer-se pratica "objetiva", extensiva, de direito, ao conjunto dos campos de saber positivo: "0 mesmo cientista"
poderia estender "0 mesmo tipo de objetividade" a tudo aquilo a que
se dirige. Contra esse "continuum metodol6gico e ontol6gico" que
toma as praricas teorico-experimentais par modelo, Sandra Harding
invoca urn outro continuum, aquele da lucidez etica, politica e hist6-
1 Sandra Harding, op. cit., pp. 248-9. Nesse contexto, evidentemente e preciso entender "minoria" no sentido que the deu Deleuze e Guattari (ver especialmente Mille plateaux: capitalisme et schizophrenie, Paris, Minuit, 1980 [ed. bras.:
Mil plat6s: capitalismo e esquizofrenia, Sao Paulo, Editora 34, 1995-97,5 vols.]),
em que a minoria nao difere quantitativamente mas qualitativamente da maioria. Desse modo, "s6 hoi devir minorirario. As mulheres, seja qual for 0 seu numero, sao uma minoria [...] elas s6 criam tornando possive! urn devir, do qual
nao detem a propriedade, no qual elas proprias tern de entrar, urn devir-mulher
que diz respeito ao homem por inteiro, homens e mulheres inclusive" (p. 134).
30
Explorando
rica exigida dos cientistas pela ciencia que exercitam: "Vma ciencia
maximamente objetiva, seja ela natural ou social, sera aquela que incIua urn exame consciente e critico da rela~ o
entre a experiencia social de seus criadores e os tipos de estruturas cognitivas privilegiadas
pela sua conduta".2 Nessa perspectiva, as ciencias experimentais nao
sao absolutamente representativas da totalidade do campo cientifico.
Com efeito, as "estruturas cognitivas" que nelas sao privilegiadas correspondem a uma "experiencia social" bastante especffica, aquela do
laborat6rio, e elas sao a tal ponto solidarias, como veremos adiante,
que a inclusao de urn exame "consciente e critico" de sua rela~ o
e ai
mais dificil do que alhures. Por isso Harding pode considerar-se descendente de Copernico, Galileu e Newton,. recusando-os ao mesmo
tempo como modelos, e afirmar que seus verdadeiros herdeiros sao
aqueles e aquelas, feministas e outros movimentos minorirarios, que
se recusam a estender "para fora do laborat6rio", em nome da ciencia, as normas de objetividade as quais a laboratorio confere sentido.
"Hume, Locke, Descartes, Kant" evidentemente nada explicam
por si mesmos. A imagem que eles criam, em termos filos6ficos, de uma
conduta cienrifica objetiva dirigindo-se a urn mundo submetido a suas
exigencias, nao teria qualquer pertinencia se ela nao tivesse encontrado urn grande numero de protagonistas, pouco interessados na filosofia
mas muito interessados nas vantagens da etiqueta de cientificidade
fornecida pela semelhan<;a com essa imagem. Quer esta se refira a Deus
ou a- teoria do conhecimento, a epistemologia ou a filosofia transcendental, a razao operacional au as condi<;oes constitutivas do progresso das ciencias, e seu desdobramento que conta: 0 cientista transaforma-se em representante acreditado de uma conduta em rela~ o
qual toda forma de resistencia podera ser considerada obscurantista
ou irracional.
o interesse dos cientistas no entanto nada explica por si mesmo,
isolado de outros interesses tambern orientados para a coloca<;ao em
disponibilidade do mundo, ou seja, para a desqualifica<;ao de tudo 0
que se aparente com urn obstaculo. Voltaremos ao assunto. Detenharno-nos antes no problema posto pela coexistencia, no interior da ciencia contemporanea, de praticas que 0 criterio de Harding permite diferenciar, embora todas elas reivindiquem para si urn mesmo modelo
2
Sandra Harding, op. cit., p. 250.
Ciencia e nao-ciencia
31
Ultimo caso ilustrativo: aquele em que as estruturas cognitivas
privilegiadas pelos cientistas, longe de serem pensadas de maneira
consciente e critica, pretendem se impor a todo mundo, ou seja, em
que 0 publico, definido como "nao-cientifico", e solicitado a fazer causa
comum com os interesses da racionalidade cientifica. E 0 caso, par
exemplo, do canflito que contrap6e a medicina aficial, dita cientifica,
e as medicinas conhecidas como "alternativas" ou paralelas.
Que a medicina seja urn dos setores em que os limites sao mais
rigorosos, em que 0 publico e exortado a aderir aos valores da ciencia, nao e urn acaso. Contrariamente a outras praticas ditas cientificas, presume-se que a medicina persiga 0 "mesmo" fim, curar, desde
a noite dos tempos, e a questao de saber quem 0 tern direito de exercer a medicina e bern mais antiga que a refereneia a ciencia. 0 confhto, indissociavel da "experiencia social" do medico, entre medicos
diplomados e aqueles que sao denunciados como charlataes, nao foi
criado "em nome da ciencia", mas a referencia a ciencia deu-lhe novas .seo~if
0 teor dessa referencia, num campo que sempre associou
diretamente praticantes e publico, visto que a den uncia de charlatanismo teve sempre por alvo 0 "publico enganado", e tao mais interessante que ninguem aqui deveria ser tentado a "relativizar" a diferen,a entre os medicos do seculo XVII, por exemplo, e aqueles a quem
procuramos hoje em dia. A "medicina cientifica" cavou, de faro, uma
diferen,a cujo sentido podemos avaliar.
Em que momento a referencia a ciencia modifica 0 conflito entre "medicos" e "charlataes"? Arriscarei aqui a hip6tese de que nao e
medica que conferiu a medicina os meios de reital ou qual inova~
vindicar 0 titulo de ciencia, mas a maneira pela qual diagnosticou 0
poder do charlatao e explicitou as razees para desqualificar esse poder. A "medicina cientifica" come~ari,
segundo essa hip6tese, no momento em que os medicos "descobrem" que nem todas as curas sao
equivalentes. 0 restabelecimento como tal nada prova; urn simples p6
de pirlimpimpim ou uns tantos fluid os magneticos3 podem ter urn efei-
de objetividade: pra.ticas experimentais criadoras - pensemos na deoa~ rfic
do codigo genetico nos anos 60 -, praticas centradas no poder
de uminstrumento - seja qual for 0 cerebro, 0 desenvolvimento de
tecnicas instrumentais cada vez mais sofisticadas permite a acumula,ao de dados que urn dia haverao de ser bern compreendidos - e praticas que imitam nitidamente a exprimnta~o,
com a produ~a
sistematica de seres obrigados a "obedecer" ao dispositivo que os quantificara, como os mui famosos ratos e pombos dos laboratorios de
psicologia experimental. "Em nome da ciencia", incontaveis animais
foram viviseccionados, descerebrados, torturados, a fim de produzir
dados "objetivos". "Em nome da ciencia", urn certo Stanley Milgram
assumiu a responsabilidade de "repetir" uma experiencia ja realizada
pela hist6ria humana e mostrou que se podia "em nome da ciencia"
fabricar torturadores como outros 0 fizeram "em nome do Estado"
ou "em nome do bern da especie humana".
Terei, evidentemente, de definir aquilo que entendo por "praticas experimentais criadoras". Mas posso desde ja caracterizar 0 deslocamento de sentido que afeta 0 termo "objetividade" cientifica nos
diferentes casos citados.]a a acuml~o
de dados instrumentais sofisticados tern necessidade de uma experiencia social especifica, que
eta nao ecapaz de eriar por si 56, pois esta experiencia se constroi sobre
a cren~a
num modelo unieo de progresso: toda ciencia air~emoc
de
maneira empirica, e depois, por "matura~ o",
adquiriria 0 modo de
prodw;ao caracteristico de suas irmas rnais velhas. A imagem epistemol6gica garante, aqui, que urn dia a inteligibilidade nascera dos
dados; urn paradigma ou uma teoria vira recompensar 0 esfor~
empirico. Quando os pr6prios dados sao relativos a urn dispositivo que
"cria" unilateralmente a possibilidade de submeter qualquer urn ou
qualquer coisa a medidas quantitativas, 0 proprio sentido da opera,ao ja pressupee uma defini,ao do que e a ciencia: 0 que ela permite,
o que proibe, de que forma autoriza a mutilar. Enfim, quando, "em
nome da ciencia" , urn experimentador reproduz as condi\=oes sob as
quais os seres humanos obedeceram instru~oe
que criam os carrascos, demonstra a existencia de uma experiencia social na qual, em nome
da ciencia, podem ser confundidos os diferentes significados dos termas "obedecer" ou "ser submetido". "Em nome da ciencia", as pacientes de Milgram obedeceram a instru,ees que faziam deles torturadores. "Em nome da ciencia" , Milgram submeteu-os a urn dispositivo que
o instala, a ele pr6prio, no papel de Himmler ou Eichmann.
32
3 Ver Leon Chertok e Isabelle Stengers, Le coeur et fa raison, Paris, Payot,
1989 led. bras.: 0 corafaO e a razao , Rio de Janeiro, Zahar, 1990], em que nos
levada a efeito em 1784 por uma comissao em que
apresentamos a investga~o
figuravam os maiores cientistas da epoca, entre os quais Lavoisier, sobre as pdticas magneticas de Mesmer como 0 ato inaugural dessa oa~infed
da medicina cien·
ti'fica , e examinamos 0 seu o~erp
atraves do problema da hipnose e da psicoterapia.
Explorando
Cienc)a e nao-ciencia
L
'- .....
-.
33
L
to, embora nao possam ser considerados causa. 0 charlatao e definido desde entao como aquele que considera esse efeito como prova.
Essa defini,ao da diferen,a enrre medicina "racional" e charlatanismo e importante. Ela deu origem ao conjunto das praticas de
teste de medicamentos baseadas numa compara\=ao com os "efeitos
placebo". Entretanto, tern a particularidade de transformar uma singularidade do corpo vivo, sua capacidade de curar pelas "mas razoes",
em obstaculo. 0 que implica que a pratica medica cientifica, longe de
apresenrar, para tentar entende-la, a singularidade daquilo de que a
medicina tern de cuidar, procura inventar como urn corpo doente poderia, apesar de tudo, diferenciar 0 "verdadeiro remedio" do "remedio falso". Ela considera portanto efeito parasita, importuno, 0 que
distingue urn corpo vivo de urn sistema experimental, a singularidade
de "tornar verdadeira" , ou seja, eficaz, uma fic\=ao. "Em nome da ciencia", identificada com 0 modelo experimental, as "estruturas cognitivas" privilegiadas pela conduta medica, quer se trate de pesquisa ou
de forma,ao de terapeutas, sao portanto determinadas pela "experiencia social" de uma pratica que se define contra os charlataes, isto e,
tambem contra 0 poder, que os charlataes atestam, que a fic\=ao parece ter sobre os corpos.
Quando a medicina cientifica solicita ao publico que compartilhe
de seus valores, pede que resista a tenta\=ao de curar "pelas mas razoes", e em especial que saiba fazer a diferen\=a entre restabelecimentos nao reproduziveis, que dependem das pessoas e das circunstancias, e restabelecimentos produzidos pelos meios ja comprovados, que,
pelo menos estatisticamente, sao ativos e eficazes para qualquer um.
Mas por que urn doente, a quem so interessa sua propria cura, aceitaria esta distn~ao?
Ele nao e "qualquer urn", membro anonimo de
uma amostragem estatistica. Que the importa se 0 restabelecimento
ou a melhora de que se ira beneficiar eventualmente nao se constituir
nem numa prova nem numa ilustra\=ao da eficacia do tratamento a
que se submeteu?
o corpo vivo, sensivel aos magnetizadores, charlataes e outros
efeitos placebo, cria obsticulo a conduta experimenral, que exige a
cria,ao de corpos com 0 poder de dar testemunho da diferen,a entre
as "verdadeiras causas" e as aparencias destituidas de interesse. A
medicina, que extrai sua legitimidade do modele teorico-experimental, tende a remeter esse obstaculo aquilo que resiste "ainda", mas que
urn dia se submetera. 0 funcionamento efetivo da medicina, definido
34
por uma rede de restri\=oes administrativas, gestionarias, industriais,
profissionais, privilegia sistematicamente 0 investimento pesado, tecnico e farmaceutico, pretenso vetor do futuro quando 0 obstaculo
estani dominado. 0 medico, que nao quer se assemelhar a urn chariatao, vive com mal-estar a dimensao taumaturgica de sua atividade. 0
paciente, acusado de irracionalidade, intimado a se curar pelas "boas"
razoes, hesita. Onde, nesse emaranhado de problemas, de interesses,
de constrangimentos, de temores, de imagens, esta a "objetividade"?
o argumento "em nome da ciencia" se encontra por toda parte, mas
nao para de mudar de senrido.
RUPTURA ou DEMARCACAo?
A defini\=ao da "ciencia" nunca e neutra, ja que, desde que a ciencia dita moderna existe, 0 titulo de ciencia confere aquele que se diz
"cientista" direitos e deveres. Toda defini\=ao, aqui, exclui e inclui,
justifica ou questiona, cria ou proibe urn modelo. Deste ponto de vista,
as estrategias de defini\=ao por ruptura ou por procura de urn criterio
de demarca\=ao distinguem-se de maneira muito interessante. A "ruptura" procede estabelecendo urn contraste entre "antes" e "depois" que
desqualifica 0 "anres". A busca de urn criterio de demarca,ao procura
qualificar positivamente os pretendentes legitimos ao titulo de ciencia.
o termo "ruptura epistemo16gica" deve-se a Gaston Bachelard,
mas sua extraordinaria carreira na epistemologia francesa mostra-se
menos ligada ao conteudo espedfico que este autor the forneceu, a
partir de exemplos tirados da fisica e cia quimica, do que a sua fun,ao
estrategica nos dominios que ele mesmo nao abordou. Tornada "corte", ela permitiu a Louis Althusser confirmar 0 carater cientifico da
teoria marxista. Permite ainda hoje estabelecer como ponto de naoretorno a institui\=ao da "racionalidade freudiana", sejam quais forem
os problemas vulgarmente empiricos postas pela cura4 Desse ponto
de vista estrategico, e possivel afirmar cum grana salis (dadas as intenr;oes e as distinr;oes dos autores) que a definir;ao de aicn~(j
por sua
4 Ver a esse respeito a obra "de hist6ria" de Elisabeth Roudinesco, bern como
de Leon Chertok, Isabelle Stengers e Didier Gille, Memoires d'un hiritique (Paris,
La Decouverte, 1990), para 0 pape1 da "ruptura" au do "corte" na questao das
re1a~6 s
entre hipnose e psicanalise.
Explorando
~.
35
ruptura com a que a precede enrra no terreno das defini,oes "positivistas" cia cieneia.
Por que tra<;o, nessa perspectiva, se reconhece uma defini<;ao
positivista da ciencia? Pelo fato de que esta age, anres de mais nada,
pela desqualifica,ao da "nao-ciencia" a qual sucede. Essa desqualificacrao, para Gaston Bachelard, esta associada a 00<;30 de "opioiao"
que "pensa mal", "naa pensa", "traduz necessidades em conhecimento,,5. A ciencia constitui-se portanto sempre "contra" oobstaculo
constituido pela opiniao, urn obstaculo que Bachelard definiu como
urn dado quase antropo16gico. A lura cia ciencia contra a opioiao torna-se, nos momentos mais Ifricos, 0 canfronto entre os "interesses cia
vida" (aos quais a opioiao esta sujeita) e os "interesses do espfrito"
(vetores da ciencia). Neste sentido, Bachelard esta mais proximo do
"grande positivismo" associado a Augusto Comte do que do positivismo epistemol6gico associado ao cfrculo de Viena. Para os "vienenses", tais como Moritz Schlick, Philip Frank au Rudolf Carnap, a
distincrao entre "ciencia" e "nao-ciencia" nao tern 0 ar fascinante de
uma revolta criadora do espirito contra a escravizac;ao a vida. Ela se
parece antes com uma depurac;ao, com a eliminac;ao de toda proposic;ao desprovida de conteudo empirico, ou seja, primeiro e antes de tudo
as proposic;6es "metafisicas", que nao podem ser deduzidas dos fatos
par urn procedimento logico legitimo.
Minha "definic;ao" de positivismo recobre portanto pensamentos
nao apenas heterogeneos mas explicitamente opostos quanto aos seus
objetivos. Enquanto os teoricos do drculo de Viena buscavam uma definic;ao da ciencia que seja tambem uma promessa de unificac;ao das ciencias, todas submetidas a criterios validos independentemente de seu
campo de aplica,ao, Gaston Bachelard celebra as mudan,as conceituais
associadas a obra de "genios", ao mesmo tempo inventores e ilustrac;6es da diferenc;a entre ciencia e opiniao. Entretanto, 0 ponto comum
que minha defini,ao explicita, a desqualifica,ao do que nao e reconhecido como cientifico, tern por interesse ressaltar nao a verdade dos
autores, mas os recursos estrategicos que eles oferecern aqueles para
quem 0 titulo de ciencia e urn alvo. Desse ponto de vista, a "ruptura" , seja ela da ordem da depurac;ao ou da mutac;ao, cria uma assime-
tria radical que retira daquele contra 0 qual a "ciencia" se constituiu
toda possibilidade de contestar-lhe a legitimidade au a pertinencia 6
Esta assimetria, caracteristica do que eu chamo de positivismo,
permite arriscar que, entre esse modo de caracterizac;ao das ciencias e
sua denuncia como "tecnociencia", a diferenc;a nao e muito grande.
Resulta antes de mais nada de uma inversao. Aquila que a positivismo
desqualifica pode tambern ser descrito como sendo objeto de uma perda
irrepara.vel, vitima de uma destruic;ao de significac;ao e valor. Urn outro trac;o tipico desta assimetria e que a caracterizac;ao da "nao-ciencia" e bern rna is clara e segura que aquela da "ciencia". Bachelard
realc;ava que a historia "historica" das ciencias e permeada pela opiniao, au, segundo as termos de Althusser, pela ideologia. 0 problema e que a imagem de uma historia "lenta e hesitante", retardada
continuamente pela "pressao concreta da ciencia popular que efetua
[...] todos as ettos,,7, pressupoe uma moralidade que a historia das ciencias nao manifesta, a saber, 0 cara.ter separa.vel, porque nao fecundo,
do erro ou do ideologico que, em conseqiiencia, se autodenunciam.
Caso se imagine que, por definic;ao, uma "pretensao ideologica" nao
possa fazer historia no sentido propriamente cientifico, terminaremos
rapidamente por ter de passar a faca em sec;6es inteiras de ciencia que
gozam de pleno reconhecimento nos nossos dias 8.
o fato de que a dentincia da nao-ciencia, na qualidade de opiniao,
seja mais segura, no texto de Bachelard, que a definic;ao de ciencia, tern
conseqiiencias bastante serias: a desqualifica,ao da opindo impede que
se oponha a definic;ao que uma ciencia da de seu "objeto" tudo aqui6 Exceto, e claro, nova produ~a
de ciencia. Remetamo-nos por exemplo
ao argumento do psicanalista o. Mannoni a prop6sito da questao da hipnose,
em Memoires d'un heretique (op. cit.): e preciso "esperar 0 genio"', aquele que
fara da hipnose urn objero de ciencia. Enquanto se tratar de urn fenomeno "incomodo", sem oa~ziretca
positiva, seu interesse nao e "uma causa a ser de·
fendida", ele nao tern autoridade para questionar as categorias de praticas que,
elas sim, conquistaram 0 poder de definir seu objeto.
7
Gaston Bachelard, La formation de fesprit scientifique, op. cit., p. 251.
8 Ver Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, Entre Ie temps et I'hernite, Paris,
Fayard, 1988 [ed. bras.: Entre 0 tempo e a eternidade, Sao Paulo, Companhia das
Letras, 1992]: a redu~ao
da enrropia termodinamica a uma interp a~o
dinamica dificilmente pode ser julgada de outra maneira senao como uma "pretensao ideol6gica", mas ela esta na origem de uma hist6ria sem a qual a ffsica do seculo xx
nao poderia ser contada.
5 Gaston Bachelard, La formation de ['esprit scientifique (1938), Paris, Vrin,
1975, p. 14 led. bras.: Forma~
do espirito cientifico, Rio de Janeiro, 'Contraponto, 19961.
I
I
36
Explorando
I
L
Cienda e nao-ciencia
3.7
a que 0 objeto assim definido nao confere sentido ou nega. Pois seria
entao a "opiniao", interessada naquilo que 0 objeto nega, que seria
chamada a testemunhar contra a ciencia. No limite, essa negativa pode,
em si mesma, "ser prova da ciencia": esta demonstra sua ruptura ousando menosprezar aquilo que "antes" interessava a todo mundo.
Quanto rnais 0 trabalho do luto com relac;iio ao passado exigido parec;a penoso e mutilador, mais 0 tema da ruptura se mostra eficaz.
o interesse da tradic;ao demarcacionista, cuja origem esta associada ao nome de Karl Popper, e ter como ponto de partida uma critica do positivismo (em sua forma 16gica desenvolvida em Viena). E
isto em dois aspectos. De urn lado Popper niio aceita a identificac;iio
entre proposic;oes nao-cientfficas e proposic;oes destituidas de sentido.
Para ele, as questoes "metafisicas" nao pertencem a urn passado desqualificado, mas refletem uma procura de sentido que as ciencias nao
podem substituir. Por outro lado, a definic;iio vienense das proposic;6es
cientificas e muito ampla. Ela admite na condic;ao de ciencia pretendentes que Popper tern por ilegitimos. No caso em questiio, os pretendentes erarn, antes de mais nada, para Popper, 0 marxismo e a psicanalise. Mas, para cettos epistem610gos contemporiineos, como Alan Chalmers 9 , trata-se antes da populac;iio proliferante dos projetos academicos, desde as ciencias da comunicac;ao ate as ciencias administrativas,
desde a economia ate as ciencias pedag6gicas, que procurarn nos fatos, na medida, na logica ou nas correlac;oes estatisticas a garantia de
que sao sem qualquer dtivida ciencias. E nessa perspectiva que eu me
debruc;arei aqui sobre a tradic;ao demarcacionista. Nao me deterei
portanto nas teses "politicas" de Popper sobre a "sociedade aberta",
nem tampouco sobre suas opinioes em materia de ciencias sociais. Vou
ater-me ao imperativo que nele habita desde A 16gica da descoberta
cientifica (1934): epreciso fazer vir atona a diferenc;a entre "Einstein"
e urn candidato ilegitimo ao titulo de cientista.
Que Popper tenha tornado Einstein como "cientista tipo" nao
se deve somente ao sucesso da relatividade que apaixona 0 jovem fil6sofo. Einstein expressa igualmente 0 fracasso do positivismo vienense.
Este havia atribuido para si duas figuras tutelares, Ernst Mach e
Albert Einstein: 0 segundo, pela supressiio da teoria do espac;o e tempo absolutos, parecendo confirmar as teses do primeiro sobre a ne-
10
9 Ver
38
Alan Chalmers,
Qu'es~c
que fa science?, Paris, La Decouverte, 1987.
Explorando
cessidade de depurar a ciencia de todo pressuposro metafisico. Ora,
nos anos 1920, Einstein rompeu a alianc;a que lhe havia sido propostao Qualificou Mach de "fil6sofo deploravel", negou toda influencia,
no sentido fecundo desse termo: a filosofia de Mach e rigorosamente
boa para "rnatar a canalha". E confessou urn motivo verdadeiramente
metafisico, a busca apaixonada de urn acesso verdadeiro a realidadelO. Einstein, que para Popper sera sempre 0 "verdadeiro cientista",
questiona portanto explicitamente a leitura positivista da ciencia.
o interesse da busca de urn criterio de oa~crmed
entre ciencia
e nao-ciencia reside, portanto, para mim na tentativa de dar uma deoa~in f
"positiva" cia "verdadeira" ciencia. Que essa tentativa tenha
desembocado, como veremos, num malogro, revela nao a falta de pertinencia da questao, essencial para resistir ao que e sustentado "em
nome da ciencia", mas sim 0 problema dos meios empregados. Nesse
sentido, 0 malogro, ao contrario das estrategias de oa~cifluqsed
daquilo que uma ciencia, para se impor, ja superou, sera em si mesmo instrutivo.
A QUESTAo
DE POPPER
Da obra A 16gica da descoberta cientifica, conservamos na memoria com excessiva freqliencia a posi~ae
"falsificacionista" de Popper:
ao passo que nenhum acurnulo de fates, seja qual for, basta para confirmar uma prosi~a
universal, urn unico fato basta para refutar
(falsear) tal proposiC;iio. E a ambic;iio de fundar urna rnetodologia das
clencias sobre esta posiC;iio que lhe sera atribufda pelos seus adversaries. Seu discipulo Imre Lakatos 11 propos de reste distinguir "tres"
10 Ver Gerald Holton, "Mach, Einstein and the Search for Reality", in Thematic origins of scientific thought: Kepler to Einstein. Cambridge, Mass., Harvard
University Press, 1973.
11 Ver "Falsification and the Methodology of Research Programmes", in Imre
Lakatos e Alan Musgrave (orgs.), Criticism and the growth of knowledge, Cambridge, Cambridge University Press, 1970. Esse Iivro, nao traduzido em frances,
pode ser considerado COmo 0 ponto de "acabamento", no duplo sentido do termo, da tradi~ o
demarcacionista. Efrute de urn co16quio realizado em 1965 para
confrontar as posi'1oes de Popper e de seus principais discipulos com aquelas de
Thomas Kuhn.
Giencia e nao-ciencia
39
Poppers: Poppero, 0 falsificacionista "dogmatico" ou· "naturalista",
que teria tido esta ambi\ao porem jamais esereveu uma linha sequer,
Poppert, 0 falsificacionista "ingenuo" de 1920, e Popperz, 0 falsificacionista "sofisticado" que 0 vetdadeito Popper de fato jamais foi,
mas de quem Lakatos precisa para chegar Ii sua propria solu~a.
o "triplo Popper" , oriundo da reconstru\ao racional de Lakatos,
assinala nao a complexidade do pensamento de Popper, que sempre
foi perfeitamente explfcito, mas uma tensao propria a essa posi\ao
quanto ao alcance e ao poder do "criterio de demarca\ao" buscado.
Deveria, certamente, tornar visivel uma diferen\a, mas deveria ele, por
causa disso, garantir a possibilidade de que toda ciencia respeite essa
difer n~a?
Se fosse este 0 caso, a defin~ao
da difer n~a
entre ciencia e
nao-ciencia poderia engendrar uma defini\ao "metodologica" da con-
duta produtora da ciencia. Esta e a
posi~a
atribuida ao Poppero, e
ela conduz a uma variante do positivismo, uma vez que toda conduta
que transgride 0 criterio se encontraria por isso mesmo desqualificada.
Contudo, se nao for esse 0 caso, de que depende a possibilidade de urn
campo de pesquisa tornar-se "cientifico"? A posi~a
Ii qual 0 filosofo
podera almejar em rela\ao as ciencias depende dessa questao: deve ele
abandonar qualquer pretensao de julgar, de ptoduzir normas que lhe
permitam dizer ao cientista "voce deveria ter. .. ", para se assemelhar
ao "cdtico de arte", que sabe que nao tern como dar li\oes aos artistas, mas dedica-se a comentar, para os nao-artistas, a singularidade
da obra artistica?
Popper adotou sempre uma posi\ao proxima daquela do "cdtico
de arte", pois, antes de mais nada, ele "amou" a ciencia tal como
Einstein the parecia simbolizar. A constante de sua carreira sempre foi:
seja qual for 0 criterio, ele deve permitir compreender por que Einstein
urn cientista e por que os marxistas e os psicanalistas nao 0 sao. Seus
discipulos, de outro lado, buscaram criar normas que pudessem, senao explicar a ciencia, pelo menos demonstrar que 0 cientista deve se
submeter a certas restri\6es que permitam verificar sua racionalida-
e
A 16gica da desde. Em todo caso, 0 ponto de partida dessa tradi~o,
coberta cientifica, publicada em 1934, e decididamente "antinaturalista": a ciencia nao se prende a uma defini\ao "natural" da racio-
nalidade. Popper, apos ter estabelecido a difern~a
l6gica entre confirma~ o
e refuta~o,
mostra, com efeito, que ela e insuficiente a partir do momenta em que nos afastamos do universo 16gico em que as
sao definidas de maneira univoca. A 16gica jamais sera
seo~i p r
40
Explorando
suficiente para impor a conclusao segundo a qual uma proposi\ao foi
0 que Pierre Duhem ji havia explicado
refutada por uma observa~,
em La theorie physique. Nenhuma observa~ o,
com efeito, pode ser
enunciada sem reeorrer a uma linguagem que Ihe confira signfca~o
e que permita sua confrta~:3.
com a teoria - diz-se hoje que todo
fato esti "impregnado" de teoria. 0 cientista esti portanto perfeitamente livre para invalidar uma eventual contradi~
entre observa~ao
e teoria: pode redefinir os termos te6ricos ou introduzir novas condi~6es
de oa~cilp
o "fato" embar ~os .
quer desta teoria quer do instrumento que produz
Ele pode, segundo 0 vocabulirio popperiano,
"imunizar sua teoria" gra<;as a urn "estratagema convencionalista".
Este termo carrega em si mesmo
0
juizo que Popper faz da interpreta-
\ao "convencionalista" da ciencia, que e associada a Henri Poincare,
o adversario de Einstein. Se todas as nossas defin~6s
cientificas nao
passassem de conven<;6es, que portanto podedamos modificar a nosso talante, Einstein nao poderia jamais ter triunfado contra a interpreoa~ t
rival de Lorentz, sustentada por Poincare. A demarc~o
resulta desde entao na recusa da liberdade que a l6gica deixa ao cientista:
56 e cientista de verdade aquele que sabe renunciar a livre redefini\:3.o
dos "enunciados de base" (que tornam possivel 0 enunciado da observa~ o)
e aceita expor deliberadamente sua teoria Ii ptova dos fatos
assim estabilizados.
A assimetria entre confirma<;ao e falsifica<;ao nao da origem por-
tanto a nenhuma regra logica. Para Popper, ela tern antes 0 estatuto
de oportunidade para uma etica: e porque ele explora esta assimetria,
o que a logica nao 0 obriga a fazer mas que ele pode decidir-se a fazer,
que 0 cientista e cientista. Esta decisao encontra seu sentido na "finalidade" da ciencia: a produ<;ao de novidade, novas experiencias, novos
argumentos, novas teorias. Aquele que, como 0 marxista ou 0 psicana-
lista, segundo Popper, aptoveita-se da rela~o
de a~rof
que the permitira
interpretar sempre urn fato de maneira a deixar a sua teoria intacta,
permanecera logicamente irrepreensivel, mas nunca criara uma ideia
nova. Aquele que, como 0 Einstein popperiano, escolhe expor-se Ii
oa~ tufer
tomara a unica via aberta na busca da verdade, que Popper
conjuga portanto com uma estetica de risco e de audacia. Com rela<;ao a "finalidade" da ciencia, nossas convic<;6es subjetivas, nossa procura de certezas sao definidas como idolos venerados, como obstaculos.
Nao ha, portanto, em 1934, teoria popperiana da ciencia, mas
uma caracteriza<;ao do cientista que se poderia bern dizer etica, esteti-
Ci&1cia e nao-ciencia
41
0 que permite a Raymond Boudon, em L'art de se persuader (col. Essais,
Paris, Fayard, 1990), definir 0 criterio de oa~ cramed
como subsidiario de uma
"teoria hiperb6Iica", ou seja, uma teoria que desemboca em conclusoes cuja generalidade dissimula os a priori implicitos discutfveis. Boudon, de sua parte, se
satisfaz com uma caracterizar;ao tranqiiila ("politetica") das ciencias, que the permite acolher na qualidade de "teorias", e mesmo "leis", 0 conjunto dos enunciados gerais aceitos pelas ciencias sociais e economicas. A questao da singularidade das ciencias, questao que compartilho com Popper, se esvazia entao em proveito de uma visao ecumenica: poderfamos dizer que em cada dominio, "faz-se 0
melhor possivel", e 0 born senso e suficiente para reconhecer a mulriplicidade dos
significados de que sao revestidos as termos que servem de criterio para esse "melhor": progresso, verdade, teoria, racionalidade etc.
vel, pode-se perguntar qual 0 sentido ao qual 0 criterio de demarca<;ao pode aspirar. Trata-se de urn criterio "realista", que ambicionaria caracterizar normas as quais, de fato, os verdadeiros cientistas se
conformam? Esse criterio e suficiente para definir a atividade do cientista? Permite compreender a historia das ciencias que estamos inclinados a reconhecer como "verdadeiramente cientificas"? E a questao
que 0 principal discipulo de Popper, Imre Lakatos, ira examinar.
o proprio Popper reconheceu bern rapidamenre que, se nao houvesse 0 rata que constitui 0 "progresso", 0 fato de que os cientistas
conseguem produzir teorias que resistem durante urn certo tempo a
falsic~o
e substituir teorias falseadas por teorias "melhores", que
preveem com sucesso efeitos novos, a pratica da falsifica<;ao faria da
historia das ciencias urn cemiterio de teorias muito pouco divertido.
Estas, como escreveu Popper, teriam tido exito em provar seu carater
cientifico fazendo-se refutar, todavia a tediosa repti~ao
desta prova
nao constitui uma perspectiva muito grandiosa. 0 herofsmo do cientista que aceita "expor" sua teoria implica certamente a aceita<;ao de
urn risco, mas nunca a resigna<;a.o a refuta<;ao permanente. Para ser
urn "verdadeiro" cientista, segundo Popper, e necessario portanto
pertencer a urn campo que da ao cientista razoes para ter esperan<;as
que sua teoria resistira, urn campo em que a possibilidade de "progresso" seja considerada estabelecida. Contudo, a analise torna-se entao
tautologica. Se a condi<;ao que perrnite aos cientistas conduzirem-se
como tais e apenas 0 progresso, nao se pode explicar pela conduta dos
cientistas 0 carater "progressivo" das ciencias, a possibilidade que elas
encarnam de aprender e produzir 0 novo. Ora, e exatamente isso que
se tratava de cornpreender.
Como veremos mais adianre, 0 proprio Popper chegou a adotar, a proposito das ciencias, uma perspectiva que afirma do modo
mais radical essa tautologia e the confere urn sentido "cosmlgi"~
A singularidade das ciencias em oa~ler
a busca psicologica de certezas e de seo~amrifnoc
nao deve ser explicada por uma psicologia propria do sabio. Ela deve ser constatada, como surgimento da vida a
partir dos processos materiais, e e ela que explica a difern~a
subjetiva entre Einstein e 0 marxista ou 0 psicanalista. Em contrapartida, a
escola demarcacionista procurou construir urn "criterio melhor", que
possa pretender descrever de maneira normativa as restri<;oes as quais,
mesrno na ffsica, a racionalidade cientifica esta subordinada "fora da
tautologia" .
42
Ciencia e nao-ciencia
ca e etologica. A questao nao e "como ser cientista?", mas "como se
reconhece urn cientista?". Que paixoes 0 distinguem? Que compromisso, que ninguem the imp6s racionalmente, confere valor a sua busca?
Que expectativas caracterizam a maneira como ele aborda os faros?
Em suma, qual e a sua "pratica", no sentido em que esse termo une 0
que Kant pretendia distinguir com a Critica da raziio pura e aquela
da raziio pratica 12 ? 0 que faz existir 0 cientista popperiano nao e uma
verdade que seria p.ossivel possuir, por meio do respeito a certas regras, e sim a verdade como "objetivo" (aim), autenticada por uma maneira de se relacionar com mundo, de se expor aos seus desafios, de
aceitar a possibilidade de que nossas previsoes sejam conrrariadas.
Muitas questoes podem ser levantadas a partir dessa caracteriza~ o
popperiana. A primeira, que nao sera formulada nem por Popper
nem pela oa~idrt
demarcacionista, e a questao de saber 0 que essa
oa~ ziretc
tern por objetivo de fato: 0 cientista em geral ou 0 especialista em ciencias experimentais? Porque, como 0 reconhece por
exemplo Alan Chalmers 13 , 0 conjunro dos exemplos discutidos pela
escola demarcacionista remete a ffsica e a qufmica, e 0 proprio Popper
interessa-se pela historia e pelas ciencias sociais antes de mais nada para
criticar as teorias historicistas, dialeticas, hermeneuticas e outras, mas
ele jamais encontrou neste campo 0 equivalente a urn "Einstein" 14. Entretanto, mesmo nas ciencias cujo carater experimental e incontesta-
°
12 Ligar erica, estetica e erologia como 0 fa~o
aqui nao deixa de ter relacom a nor;ao de "territorio existencial" introduzida por Felix Guatrari (ver
Chaosmose, Paris, Galilee, 1992 red. bras.: Caosmose, Rio de Janeiro, Edirora
34, 1992]).
~oes
13
Alan Chalmers, Qu'est-ce que fa science?, op. cit.
14
Explorando
. -.~
43
o CRITERIO IMPOSSfvEL DE ACHAR
sucedida; e ela constitui, na verdade, uma execu\=ao publica e altamente
ritualizada de uma hip6tese rival.
A singularidade da rradi<;ao demarcacionista que tern sua origem
em Popper e 0 uso que ela fez da hisr6ria das ciencias: essa hist6ria
desempenha urn importante papel de "campo de provas" para os distintas criterios de demarcac;ao propostos. Esses criterios, segundo Lakatos, que tomo aqui por guia, devem permitir uma reconstrur;ao racional dessa hist6ria que estabele<;a a diferen<;a entre a dimensao aned6rica e 0 progresso. Urn criterio que desqualifica uma posi<;ao que julgamos util e necessaria ao progresso cientffico nao passa portanto pela
prova cia hist6ria. E a primeira vftima dessa prova
e0
"falsificacio-
nismo her6ico" de Popper.
Que aconteceria se Copernico tivesse sido urn falsificacionista
her6ica? Urn desastre, pais iria abandonar heroicamente sua teoria
heliocentrica, refutada notadamente pelo fato de que esta teoria prescreve que Venus tenha, como a Lua, fases, 0 que os astronomos jamais haviam observado. Como diz Lakatos, tada teoria "nasce refutada", e ela precisa, para ter a sua chance, ser protegida e acarinhada
pe10s seus promotores. Pode-se entao tentar definir urn "falsificacionismo sofisticado", orientado pela no\=ao de progresso. 0 que deve
nortear as avalia\=oes dos cientistas sobre as teorias e doravante a pos-
sibilidade de confirmar conjeturas audaciosas, como a teoria heliocentrica, ou de falsear as conjeturas prudentes, aquelas que decorrem de
urn saber que se pode considerar como estabelecido. A primeira con-
seqiiencia dessa posi<;ao e que se deve proceder it avalia<;ao da racionalidade segundo os referenciais da epoca, que define tanto a audacia
quanto 0 saber estabelecido.
Entretanto, 0 falsificacionismo, ingenue ou sofisticado, permanece centrado numa "cena" tfpica, a confronta\=ao entre uma proposi\=ao teorica e uma observa\=ao. Esta cena e diretamente inspirada no
positivismo do tipo logicista, que reduz a ciencia a uma dupla fonte
de conhecimento, que sao os fatos, observaveis, particulares, e 0 raciodnio, que constroi uma proposi\=ao teorica geral a partir dos fatos, seja
este raciodnio do tipo indutivista ou falsificacionista. Porem, protesta Lakatos, a historia das ciencias so oferece tais cenas por reconstru\=ao artificial a posteriori. A "experiencia crucial", na qual 0 cientista
expoe deliberadamente sua teoria a prova da experiencia, e provavelmente a cena mais retorica e artificial da historia: 0 mais freqiiente e
que seja apresentada como crucial apos a experiencia, quando bem-
44
Explorando
e
Em outros termos, nao suficiente dizer que os fatos estao "impregnados de teoria" e podem portanto ser reinterpretados a vontade. Essa maneira de apresentar as coisas tende a transformar em difi-
culdade, em obstaculo it "cena primordial", aquela da confronta<;ao
entre fato e teoria, aquilo que, segundo Lakatos, e 0 objeto mesmo da
hist6ria das ciencias. Historicamente, urn fato observavel nao e eonfrontado com uma proposi\=ao, que ele verifica ou refuta, ele eneon-
tra seu sentido num programa de pesquisa.
A exemplo do "falsifieacionismo sofisticado", que implica que
"conjeturas audaciosas" sejam comprovadas, a no\=ao de programa de
pesquisa pressupoe, e precise ressalta-lo, 0 sucesso das ciencias que ela
caraeteriza. Com efeito, esta no\=ao traduz uma diferenciar;iio que nao
teria sentido se uma teoria se limitasse a "sobreviver" sem eriar a eon-
vic<;ao de que ela constitui indubitavelmente uma via privilegiada de
acesso aos fen6menos que the dizem respeito: a diferen\=a entre 0 "nueleo duro" ao qual este privilegio sera remetido e a "cinto protetor"
no qual os significados relativos dos ~'fatos"
e dos enunciados que remetem ao nueleo duro estao em perpetua negocia\=ao.
Na perspectiva dinamica institufda pelo programa de pesquisa,
nao ha portanto confronta<;ao entre urn fato e esse programa de pesquisa como tal, pais a fato nao e nunca capaz, par si mesmo, de por em
causa 0 Dueleo do programa. A confronta\=ao s6 oeorre com as teorias
que pertencem ao "cinto", teorias que podem ser modificadas de mul-
tiplas formas, ainda assim confirmando a veracidade do nueleo. No
seio de urn programa, 0 modo de negocia<;ao enquadra-se portanto
muito naturalmente nos "estratagemas convencionalistas" que Popper
havia denunciado, imunizando 0 nueleo contra toda refuta\=ao pelos
fatos. cientista nao tern de· "decidir", segundo criterios dogmaticos;
ingenuos ou sofisticados, se houve ou nao refuta\=ao. Ele deve, no interior de seu programa de pesquisas, "acomodar" os fatos e tal ou qual
parte do cinto protetor de maneira a restabelecer a coerencia do conjunto. Mas oode entao incidira a demarca\=ao, a diferen\=a entre programa verdadeiramente cientffico e a "falsa ciencia"?
local decisi-
a
a
vo, para Lakatos, e 0 da avalia<;ao do modo de transforma<;ao a lon-
a
go prazo do programa: progressivo ou degenerativo.
eientista nao
tern de tomar uma decisiio instantanea, como na cena de confronta-
<;ao, mas deve se perguntar se as modifica<;6es trazidas ao longo do
Ciencia e nao-ciencia
45
tempo ao cinto protetor de seu progtama ampliatam seu poder preditivo, deram acesso a novos tipos de fatos, foram passiveis de testes
independentes de sua fun\a.o de acomodac;ao, ou se, ao contrario, 0
programa foi continuamente sobrecarregado por acomodac;6es ad hoc,
acomodac;6es as quais nenhuma outta significac;ao pode set atribuida
senao a de tet protegido 0 nuc1eo duro. Se ele conc1ui que 0 seu programa se degenera, 0 cientista cacional 0 abandonara por urn Dutro
programa, em fase de progresso.
quisa rivais - 0 que permite ao cientista exercer sua capacidade crftica. Aqui, 0 estilo historico de Lakatos e seus discipulos se choca com -
o estilo de Kuhn e seus discipulos, que tessaltam a solidariedade entre
a "crise" que urn programa atravessa e a invenc;ao de urn programa
alternativo. Contudo, 0 ponto mais importante, aquele que marca aos
meus olhos 0 fim da ttadic;ao demarcacionista, ainda e a impossibilidade de formulat explicitamente ctiterios que, informados pelo passado, valessem para
0
presente. Em outras palavras, nao e a explicita-
Lakatos preserva portanto a necessidade de uma decisao e sobtetudo a definic;ao de ctitetios que petmitam julgar 0 cientista pela de-
c;ao da racionalidade operando na ciencia, mas a historia que da ao
filosofo das ciencias 0 podet de julgar e isto na exata medida em que
cisao por ele tamada, no caso, 0 abandono ou naD de urn programa.
Eai, de fato, que a tradi\ao demarcacionista reconhece seus adeptos:
se pode ler essa historia, como na fisica ou na quimica, no modo do
quem diz imperativo de decisao diz possibilidade de avaliat 0 "verdadeico" cientista pela sua lucidez, pela relac;ao critica que mantem com
a sua ptoptia atividade. 0 verdadeiro cientista nao esta subordinado
que e a recompensa da "verdadeira" ciencia, acaba por comentar a maneira pela qual as "verdadeiras ciencias" progrediram.
a uma norma, como e 0 caso do cientista normal de Kuhn, ele se submete a uma norma e assim garante que a ciencia se afaste de uma descric;ao s6cio-psico16gica e passe a depender de uma tearia cia racio-
nalidade. Entretanto, essa norma, para poder assim garantir uma pos-
sibilidade de julgar, deve ser explicitavel. E e ai que os progtamas de
pesquisa de Lakatos se deparam por seu turno com a prova da histo-
ria. 0 proprio Lakatos terminou por teconhecet, pouco antes de sua
morte, que 0 julgamento do homem de ciencia so podia ter lugar a titulo retroativo 15 . Somos nos que sabemos agora que tal programa se
degenerava. Porem, nesse caso, e a propria historia que concede ao
filosofo 0 poder de julgar, de detetminat "em que momento" era tacional abandonat tal ptOgrama por tal outtO. E este podet, confetido
pela historia, e de fato redundante: 0 filosofo confirma aos "vencidos"
que estes estao indubitavelmente vencidos, mas nao hoi nenhum recurso
apropriado para avaliar e julgar as razoes pelas quais esses vencidos
se mantiveram presos ao seu programa, ele pode apenas dizer que a
historia nao guardou essas razoes.
As concepc;6es de Lakatos deparam-se com outtas dificuldades
sobte as quais eu nao me deterei. Elas implicam notadamente que a
situac;ao notmal em ciencia e a competic;ao entre ptOgramas de pes-
15 Imre Lakatos, "Replies to Critics", in Boston Studies in Philosophy of
Science, vol. VIII, 1971.
46
Explorando
ptOgtesso. A tradic;ao demarcacionista, longe de explicat 0 progresso
UMA TRADl<;:AO HIST6RICA ENTRE OUTRAS?
Existem muitas leituras possfveis para essa palavra que persegue
a filosofia, "razao". Poderemos dizer, e a justo tftulo, que a racionalidade normativa, a busca do criterio ao qual aquele que se pretende
cientista deve aceitar submeter-se, e uma das mais pobres. Todavia,
ela tern isto de interessante, que e tet nascido da pteocupac;ao de demonstrar que a ciencia e perfeitamente irredutfvel aos registros a partir dos quais nos habituamos a decodificar as atividades humanas, quer
dizer,de demonstrar explicitamente 0 que os cientistas afirmam acerca da ciencia.
E a essa pteocupac;ao, de resto, que ela deve 0 ftacasso de sua
fOtmulac;ao. Tal ftacasso nao ameac;a os pensadotes que selecionam
na prodw;:ao cientffica tal obra, tal momento em que se apreende '0
ttabalho da "razao", tal como eles a concebem. Deve-se dizer de tais
leituras da ciencia que sao edificantes na medida em que, assim como
a vida dos santos ilustta
0
poder da grac;a, a vida das ciencias ou dos
conceitos ilustra uma ideia da razao. 0 filosofo atribui-se 0 direito e
o dever de selecionar nas ciencias determinadas mutac;oes conceituais
que ele julga, com ou sem fundamento, significativas, e de construir
sobre este alicerce uma caracterizac;ao filosofica da razao. A essa visao certamente estimulante, tenho a fraqueza de preferir uma abor-
dagem vulneravel da histotia a fim de que, a despeito do poder de
,Ciencia e nao-ciencia
47
avaliar que os julgamentos da historia conferem a nos, herdeiros, se
possa falar de "fracasso"
o que fazer, entretanto, desse fracasso? Que fazer da impossibi-
lidade de formular criterios que possam valer de maneira geral e, portanto, criar a possibilidade de urn discurso sobre a ciencia que a distinga daquilo que apenas se parece com ela? Podemos, a exemplo de
Paul Feyerabend, disdpulo desenganado de Popper, concluir que toda
pretensao de definir "a" diferen<;a nao passa de propaganda?
Em sua obra Contra 0 metodo l6 , Feyerabend feriu os sentimentos estabelecidos ao comparar a atividade cientffica a astrologia, ao
vudu, ou mesmo amafia, e ele pagou 0 prec;o por essa estrategia: aque-
les a quem feriu reduziram 0 problema que ele punha a esta compara<;ao escandalosa. Ora, 0 alvo da posi<;ao "relativista" de Feyerabend
nao era assemelhar Einstein a urn astrologo, ou Galileu a urn mafioso.
Ele procurava demonstrar que, para conseguir fazer historia, fazer
aceitar 0 que ele propoe como conhecimento "objetivo", urn cientista
nao pode se ater aquilo que os fil6sofos consideram "objetivo". A
constru<;ao da objetividade nao tern nada de objetivo 17 : ela envolve
uma maneira singular mas nao exemplar de se re1acionar com as coisas e com outros, como a atividade mafiosa. 0 que nao quer dizer que
ela se origine do mesmo tipo de envolvimento que a atividade mafiosa.
A tese de Feyerabend nao e portanto dirigida contra a pratica
cientifica 18, mas contra a identifica<;ao da objetividade com 0 produto
de uma conduta objetiva. Malgrado seu aparente caniter de truismo,
c
i
se nao for cientifica: conhecimento objetivo, cientifico, de urn lado,
projetos, valores, significac;oes, intenc;ao, de outro.
Nesse sentido, 0 primeiro alvo de Feyerabend e 0 positivismo tal
como eu 0 defini, inclusive sua variante denunciadora, na medida em
que esta assimila 0 avanc;o da "tecnociencia" a urn destino determina-
do por sua inexoravel identidade, mais forte que as (boas) inten<;oes dos
cientistas. Figura igualmente entre seus alvos 0 discurso maravilhosamente cientificista sustentado por tantos teoricos da subjetividade humana que entrega aciencia objetiva 0 conjunto do que nao e "0 sujeito", seus direitos, seus valores, sua liberdade etc. Este gesto nada tern
de neutro: dar a Cesar 0 que e de Cesar e tambern reivindicar para si
tudo aquilo que nao Ihe pertence. Do triunfo generalizavel da objetividade, reconhecido de direito, depende a possibilidade de se instituir como representante da subjetividade como tal, reconhecida entao como
o outro p6lo, indestrutive1 e inalienavel, do modo da existencia humana.
Econtra essa divisao, em que os aparentes
poem de acordo como almas gemeas, que Feyerabend escreve: "As
decisoes que dizem respeito ao valor e autilizaC;ao da ciencia nao sao
decisoes cientfficas; constituem 0 que nos poderiamos chamar de decis6es 'existenciais'; sao decisoes sobre a maneira de viver, pensar, sentir
e se comportar".1 9 Em outros termos, a objetividade, quando produzida, nao permite de forma alguma determinar como seu outro polo,
afinal depurado e livre para se autodefinir, a subjetividade. 0 "momento subjetivo"ZO assim definido nada mais e do que urn "resto",
0
esta identificaC;ao e, com efeito, urn temive1 instrumento de poder. Ela
produto do esquecimento da "decisao" geradora da objetividade e de
faz da objetividade 0 destino comum de nossos conhecimentos, 0 ideal
suas conseqiiencia para as nossas maneiras de "viver, pensar, sentir e
se comportar".
que estes devem ter por alvo. Toda pratica de conhecimento sera instada a submeter-se it diferencia<;ao daquilo que ela tende a confundir
Entretaoro, a estrategia de Feyerabend, na medida em que se
enrafza num malogro,
16 Contre fa methode, Paris, Le Seuil, 1979 red. bras.: Contra 0 metodo, Rio
de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1989].
17 Bruno Latour, em Nous n'avons jamais ete modernes (op. cit.): "As palavras ciencia, tecnica, organiza'rao, ecooomia, abstr ~ao,
formalismo, universalidade apontam realmente os efeitos reais que nos devemos de fato respeitar e dos
quais devemos dar coota. Mas des oao apontam de modo algum as causas desses mesmos efeitos. sao belos substantivos, mas maus adjetivos e execraveis adverbios" (p. 157).
18 Reporte-se ao capitulo "La banalisation du savoir", em Adieu
son, Paris, Le Seuil, 1989.
j
irmaos inimigos se
48
a la rai-
Explorando
0
da formulaC;ao de criterios gerais de cien-
tificidade, tern suas fraquezas. Ela destr6i efetivamente a rela<;ao de
crenc;a na objetividade, mas a tese segundo a qual "nao existe nenhurna razao 'objetiva' para se preferir a ciencia e 0 racionalismo ocidental a outras tradic;6es",21 por saudave1 que seja, e uma soluC;ao urn
19
Idem, p. 39.
20 Para falar como Luc Ferry, em Le Nouvel Ordre ecofogique (Paris, Grasset, 1992), que constitui urn belo exemplo de humanismo cientifico.
21
Adieu
a la raison, op. cit., p. 338.
Ciencia e nao-ciencia
49
pouco abstrata para 0 problema da "grande divisao", que separa as
nossas sociedades, que produziram "a ciencia", de todas as outras. Cer-
[
3.
A FORGA DA HIST6RIA
tamente, aquestaa pasta por Feyerabend a prop6sito das tradi,aes naa
cientificas - "foram elas eliminadas com base numa escolha racional, depois de uma competi\=ao imparcial e controlada com a ciencia,
au entaa foi seu desaparecimenta 0 resultada de pressaes militares (politicas, economicas)?"22 - , e diffcil responder de outro modo, porem,
a alternativa nao e das mais pertinentes. Seria 0 fato de a "ciencia ocidental ter contaminado agora 0 mundo inteiro como uma doen\=a con-
A SINGULARIDADE DA HIST6RIA DAS ClfNCIAS
tagiasa"Z3, tatalmente determinada pelas rela,aes de far,a militares,
economicas, politicas? Nada se deve as pr6prias ciencias? Nao seria
As ciencias dao com freqiiencia a impressao de uma obra "a-historica". Se Beethoven tivesse morrido no ber~o,
suas sinfonias nao teriam vindo a luz. Em contrapartida, se Newton tivesse morrido aos
quinze anos, urn outro em seu lugar. .. Essa diferen\=a remete evidente-
0
relativista Feyerabend ainda demasiada racianalista quanda apresenta "uma competi\=ao imparcial e controlada" como a unica arena onde
as ciencias paderiam fazer valer a papel apropriada que desempenharam no triunfo sobre as outras tradi~6es?
Em outras palavras, a tese
segundo a qual a ciencia constitui uma tradi~o
historica entre outras
e vulneravel com rela\=ao a sua expressao reducionista: a ciencia e sohistorica entre outras, as unicas "verdadeiras"
mente uma tradi~o
difer n~as
dizem respeito a fatores externos, politicos, militares, economicos. Estrategia de revelar;ao e de denuncia.
o primeiro livro assinado pelo Feyerabend "relativista", Contra
o metoda, era dedicado a Imre Lakatos, "amigo e irmao no anarquisrno": e do malogro de Lakatos em construir uma demarc~o,
por-
tanta, tambem da honestidade lucida pela qual Lakatas recanheceu a
seu malagro, que Feyerabend se pretendia herdeiro. A vulnerabilidade
de sua tese em rela\=ao a sua variante reducionista e tam bern herdeira
da epistemologia demarcacionista: se a ciencia nao pode aspirar a
nenhum privilegia epistemal6gico, ela perde tada autaridade para
afirmar sua diferen,a do ponta de vista da epistemalagia. Em lugar
de dizer "adeus arazao", Feyerabend teria podido dizer "adeus aepistemologia". E 0 que aqui farei, restando dessa investga~o
a impos-
sibilidade de campreender a atividade da cientista individual indepenhistorica em que se enraiza seu comprornisso
dentemente da oa~idrt
e, talvez, sua singularidade.
50
22
Idem, p. 346.
23
Idem, p. 339.
Explorando
mente em parte a estabilidade de certas prablemas, neste casa a regularidade que pode ser observada nos movimentos celestes, cujo pro-
blema era sem duvida capaz de persistir. Ela naa e, de resta, taa geral
como se pode pensar. Desse modo, creio poder afirmar que se Carnot
tivesse morrido em crian\=a, a termodinamica nao seria 0 que e. Mas
a impressaa de a-histaricidade e, naa abstante, uma singularidade da
historia das ciencias que contribui para explicar por que, ate aqui, ela
fai taa pauco frequentada pelas histariadares profissionais.
A propria existencia, ha alguns anos, de uma disputa entre historiadores "internalistas" e "externalistas" e urn sintoma. Que outro
campo do conhecimento suscitaria a ideia de uma divisao desse gene-
ro entre a hist6ria das pradu,aes cientificas propriamente dita de urn
lada e, de autra, aquela das institui,aes, das rela,aes das cientistas com
o seu meio, das se6~irt
ou das oportunidades sociais, economicas,
institucionais, afetando urn campo cientffico em tal ou qual epoca?
Pode-se certamente afirmar em principio que as ciencias devem, como
qualquer outra pratica humana, ser inseridas na historia e que, deste
ponto de vista, nao pode haver nem compromisso, nem meio-termo.
Cantuda este ideallegitima naa permite elidir a problema: par que essa
oa~resni
na hist6ria nao e tranqiiila?
Nao e suficiente invocar aqui 0 carater "tecnico" das quest6es
cientificas, ou 0 fato de que os historiadores se teriam deixado impressionar pelos cientistas ou pelos epistemologos. Esses argumentos que
desembocam em solu~6e
do tipo "e so uma questao de", a mim parecem mascarar urn problema bern mais interessante, imediatamente
A focc;:a da hist6ria
51
vinculado aconviq:ao que e a de tantos participantes da aventura das
ciencias modernas: as ciencias nao sao uma pratica social como as
outras. Em outros termos, 0 problema da historia das ciencias me ira
permitir uma nova abordagem da singularidade das ciencias: como
meio de por aprova a pta.tica historica.
De maneira geral, urn historiador serio ira protestar se suspeitarmos que ele utiliza 0 recuo no tempo como urn instrumento de poder,
que the permite julgar uma situa~o
passada, fazer a triagem entre 0
que aqueles que ele traz a cena sabiam, acreditavam, queriam, pensaYam. Porem, habitualmente, esta disciplina que ele se impoe tornouse mais facil pelo recuo no tempo, 0 que ja permitiu "estabelecer a igualdade" entre aqueles que, no passado, puderam acreditar-se vencedores
ou imaginar-se vencidos. Todos foram objeto, no futuro a que deram
lugar, das interpreta,aes e das redu,aes multiplas que permitem ao historiador construir sua propria posi~a:
ele e aquele que recusa essa
facilidade e tenta recompor aquilo que foi decomposto.
pode ate tentar tornar inteligfveis suas convicc;oes; pode igualmente
ressaltar a maneira pela qual os vencedores eram "apesar de tudo" os
filhos de sua epoca, mostrando 0 contraste entre aquilo que acreditavam ter descoberto e 0 que a ciencia nos diz agora que eles descobriram; porem exatamente esse COntraste traduz 0 poder da verdade descoberta, porque 0 historiador, aqui, se define ele proprio pelo recuo
do tempo, pela difern~a
entre 0 que a hist6ria das ciencias 0 torna
capaz de questionar e
0
que eSSa hist6ria definiu como incontestavel.
Assim, nos Etudes sur Helene Metzger!, Bernadette BensaudeVincent mostrou que 0 estilo "historia das ideias e das doutrinas"
adotado pela historiadora das ciencias Helene Metzger, em um de seus
livros, La chimie, era brutalmente substitufdo, para a qufmica posterior a 1830, por um relatorio pedagogico das descobertas e das teorias que se sucedem e se acumulam. Nesta mesma obra, G. Freudenthal
ligava 0 estilo de narra,ao que Metzger adotou para a quimica antehermeneutica: trata-se de "fazer "a~itsuj
a
rior a 1830 com a tradi~o
Ora, a historia das ciencias poe em cena atores cuja singularida-
urn autor, de reabilita-lo, de torna-Io interessante, situando-o em sua
de parece ser precisamente a de cuidar que 0 recuo do tempo nao possa
epoca, reconstituindo seu horizonte de pensamento. 0 estilo da his-
criar a igualdade. Vma maneira de enunciar 0 imperativo da objetividade, ao qual, de urn modo ou outro, deve corresponder uma proposic;ao reconhecida como cientffica, e: "Que ninguem, no presente, e se
t6ria hermeneutica deixaria entao de convir quando a qufmica tornase "seria", "verdadeiramente cientifica"? Nao haveria mais necessidade de "compreender" 0 qufmico? Tornou-se ele "objetivo"? Esca-
possivel no futuro, seja capaz de reduzir 0 que eu proponho, de distinguir em minhas proposi,aes 0 que dependia das minhas ideias, das
minhas ambic;oes e das coisas; que ninguem possa identificar-me como
autor no sentido usual do termo". Os cientistas inovadores nao estao
somente subordinados a uma historia que definiria seus graus de liberdade, eles assumem, ao contrario, 0 risco de se inscrever numa hist6ria e tentar modifica-Ia. A historia das ciencias nao tern por atores
seres humanos "a servic;o da verdade", se essa verdade deve se definir
segundo criterios que fogem a hist6ria, e sim seres humanos "a servi~o
da hist6ria" , que tern como problema transformar a hist6ria e trans-
forma-Ia de maneira tal que seus colegas, mas tambem aqueles que,
apas eles, forem escrever a histaria, sejam obrigados a falar de sua inven,ao como de uma "descoberta" que outros teriam podido fazer.
A verdade, portanto, e aquilo que consegue fazer historia sob esta
rest i~ao.
pa ele ao espirito do tempo? Tal era a tese de Hans Gadamer, que exdufa as praticas cientfficas do campo hermeneutico. Mas esta exdusao e em si mesma uma confissao que expoe 0 poder de que 0 historia-
dor habitualmente se beneficia a proposito de seus atores, poder que
o recuo no tempo the confere.
Como observou Judith Schlanger, nos mesmos estudos, esta situa,ao poe em questao 0 estilo de Metzger ate mesmo onde ela 0 pode
utilizar. Esse estilo, Com efeito, tende, como ocorre toda vez que os
historiadores das ciencias se inspiram nos procedimentos dos historiadores da arte, a superestimar 0 surgimento de urn novo modo de per-
cep,ao e a subestimar as praticas da argumenta,ao. Ele revela portanto
que, na verdade, n6s nao levamos mais a serio os argumentos troca-
dos pelos atores da epoca (visto que a historia que se segue tornou-os
obsoletos... ). Para Schlanger, nao pode haver conduta historiografica
Na medida em que 0 produto de urn autor consegue efetiva-
mente fazer historia, essa historia, longe de facilitar a trabalho do historiador, criara uma diferenciac;ao cada vez mais diffcil de questionar.
o historiador tern plena liberdade no que concerne aos "vencidos" e
1 Compilados par Gad Freudenthal, Corpus, revista de textos informativos das obras de filosofia em lingua francesa, nOS 8-9, 1988.
52
A fo.I~a
Explorando
da hist6ria
..
~
53
aplicavel igualmente a historia da filosofia, da arte e da ciencia, pois
cada uma dessas areas se define por relac;oes especificas quanto ao seu
passado. No caso presente, podemos concIuir que, contrariamente ao
que pensava Gadamer, praticas cientificas e praticas hermeneuticas
mantem uma relaC;ao bastante estreita, mas no sentido de que a primeira pode se definir pelo seu anragonismo face ao que a segunda exige.
Quando 0 historiador "consegue" reabilitar urn autor situando-o em
sua epoca, ele exprime a derrota deste autor como cientista, porquanto
mostra que podemos doravante entrar em seu laboratorio como se entra
na casa da sogra, aberto a todas as influencias da epoca2 .
Existe portanto no coraC;ao da historia das ciencias, inspire-se ela
na hermeneutica ou na sociologia, uma dificil relaC;ao de forc;a entre 0
historiador e seus atores. Trata-se de uma rela<;ao tao rnais diffeil que
o proprio historiador tern a maior dificuldade em nao aderir, nem que
seja as escondidas, a ideia de que ha incontestavelmente progresso nas
ciencias. A assimetria estabelecida na hist6ria entre vencedores e vencidos nao e apenas urn aspecto da situac;ao que 0 historiador deve examinar, e igualmente urn aspecto da heranc;a que 0 constitui. Como, de
fato, nao haveria ele de pensar, a exemp/o de todos nos, que a Terra
gira em torno do Sol, que os micr6bios sao transmissores da epidemia
e que os antiatomistas nao tinham razao de ver nos atomos uma especula<;ao irracional da qual a quimica deveria ser depurada? E facil
para 0 historiador inserir Cristovao Colombo na historia porque Cristovao Colombo, em todo caso, nao sabia que ia "descobrir a America".
Ediffeil para 0 historiador, ao relatar 0 trabalho de Jean Perrin tentando
impor 0 atomo aos seus contempora.neos mostrando que e possivel
conta-los, nao repetir as palavras de Perrin, ou seja nao ratifIcar 0 sucesso do que se poderia dizer a "vocac;ao" do cientista: obrigar 0 historiadar a passar pelas suas praprias razoes para cantar 0 seu trabalho.
Por a prova nao significa levantar obstaculo. A historia das ciencias nao e obstaculo a historia dos historiadores, mas exige desta ultima
que se conforme efetivamente ao "principio da irreduc;ao", a recusa
de reduzir uma situaC;ao aquilo que 0 recuo no tempo nos permite dizer hoje a seu respeito. A grande diferen<;a e que esse principio nao e,
aqui, sinonimo de "decisao metodologica", exigindo do historiador
2 Para uma tentativa de levar ativamente em conta este antagonismo, ver
Bernadette Bensaude-Vincent e Isabelle Stengers, Histoire de la chimie, Paris, La
Decouverte, 1993.
54
Explorando
que ele se abstenha de por em a<;ao 0 poder que the conferiu 0 recuo
no tempo. Ele pode, certamente, como 0 fez Feyerabend e como 0 faz
a maior parte dos soci610gos das ciencias, ater-se a parte indeterminada
de uma controversia ou aos casos em que uma disputa nao tenha sido
encerrada de maneira salida 3 . Mas que ele nao se espante, entao, de
"chocar os sentimentos" daqueles que descreve, que acham, de seu
lado, que a histaria nao deveria demonstrar seu metodo no caso em
que 0 adversario efraco, e sim quando ele se anuncia como 0 mais forte
(0 que tentarei fazer com Galileu).
Os TRtS MUNDOS
Abordemos a questao da "forc;a da historia" construida pelos
cienristas do ponro de vista de seus efeitos sobre urn representante da
tradi<;ao epistemologica, Karl Popper. A teoria dos "tres mundos" desenvolvida a partir de 1968 por Popper e ao mesmo tempo uma ex3 Mencionemos aqui 0 belissimo livro de Trevor Pinch, Confronting nature: the sociology of solar-neutrino detection (Dordrecht, D. Reidel Pub. Comp.,
1986), que a~rt
de maneira totalmente apaixonante a constru~a
por Ray Davis,
pioneiro especialista na detc~ao
dos neutrinos, do objeto "neutrino solar", no
sentido em que esta concretiza urn novo encontro entre disciplinas fisicas ate aqui
separadas. Ocorre que a medida do £luxo de neutrinos emitidos pelo sol nao
apresentou os valores previstos pelos modelos implicando a astrofisica, ciencia
das rea~6s
nucleares, fisica do neutrino. Qual estaria em causa? Hi 25 anos a
questao esti aberta: a medida foi confirmada, e a anomalia e, portanto, reconhecida. 0 livro de Pinch e urn bela exemplo de como historiar, mas ele se aproveita
da incerteza dos atores para demonstrar que a ciencia e uma questao de interpreta~ o.
0 que ele nao ressalta, em contrapartida, e que a atividade interpretativa dos atores teria sido muito diferente - e a questao, sem dlivida, nao teria
restado aberta - se esses atores nao tivessem sido convencidos de que a anomalia pode ser resolvida, ou seja, que podera ser produzida uma resposta que torne, apos uma ou outra modif ca~ o,
0 encontro das disciplinas coerente com a
medida. Aquele que levar a cabo este "progresso" recebera, indubitavelmente, urn
premio Nobel, porem 0 estudo do mesmo caso por urn futuro soci610go Ihe propiciara menos facilmente 0 poder de diferenciar sua posi~a
daquela dos atores:
"Certamente, para os cientistas a natureza surge como urn reino independente,
existindo objetivamente. Mas para 0 soci610go a natureza s6 pode se tornar acessivel por processos discursivos" lop. cit., pp. 19-20).0 cientista podera replicar:
"Certo, mas aqui novamente ela se tornou 'verdadeiramente' acessivel; nem todos os processos discursivos se equivalem".
A f01'<;a da hist6ria
55
pressao radical do problema criado pela for,a desta hist6ria e uma
muira curiosa tentativa de soluc;ao que abandona a epistemologia em
favor de uma forma de filosofia generalizada da evolu,ao.
Tuda come<;a de maneira aparentemente an6dina, com 0 que
Popper chama "0 princfpio de transferencia". As teacias psicofilos6ficas da aquisic;ao individual de conhecimento, as teacias cia racionaIidade cientifica e do crescimento coletivo do conhecimento, e as teacias bio16gicas cia evoluc;ao tentam radas caracterizar urn progresso,
a prodw;ao de alga novo e interessante. Mas como caracterizar 0 que
assim "Sf produz"? A tentac;ao eevidentemente de buscar urn fundamenta positivo que explicite em que 0 novo pode efetivamente pretender sec "melhor", au seja, que permita julgar e autenticar a legitimidade dessa pretensao. E 0 que a epistemologia logicista procurou
fazer a prop6sito das ciencias: fundamentar as pretensoes a validade
das teorias produzidas e portanto justificar 0 fato de que umas sejam
mais validas do que outras. Ora, lembra Popper, a l6gica fracassa
porque, se nela confiassemos, nenhuma proposi,ao geral poderia decorrer dos fatos de maneira valida: 0 procedimento de indw;ao, que
permite passar de urn conjunto de enunciados particulares a urn enunciado geral, nao permite provar esse enunciado, isto e, excluir a possibilidade de urn fato que venha, mais dia menos dia, falsifica-Io. Ora,
o que e verdadeiro em /6gica e verdadeiro a/hures, este e 0 prindpio
de transferencia. Todos os nossos modos de caracteriza,ao do progresso deverao portanto submeter-se a que nunca uma novidade encontre
urn fundamento positivo, que garanta 0 valor (adaptativo), a certeza
(psicoI6gica) ou a verdade (cientifica).
Ja a descri,ao do cientista her6ico, se ela tivesse sido adotada
como "explicar;ao" do progresso, teria posto a epistemologia em contato com uma teoria psicol6gica de aprendizagem por tentativa e erro
e com uma versao "mutacionista" do darwinismo: a proliferar;ao e a
eliminar;ao dos mutantes. A seler;ao elirnina aqueles de quem nada se
pode dizer a nao ser que: "eles nao foram capazes de resistir a seler;ao". Dos sobreviventes podemos apenas dizer: "eles nao foram ainda eliminados". A inconsistencia geral desta tripla teoria Ii que ela define tentativas, mutantes e teorias como provisoes indefinidamente renovaveis, que nunca estao em falta 4 • Porem, no momento em que in-
4
56
Em biologia, esse prindpio de oa~refilop
e por vezes pertinente, espeExplorando
troduziu explicitamente 0 principio da transferencia, Popper ja aderia a uma versao nao mutacionista da evolur;ao darwiniana: 0 sucesso de urn ser vivo nao e a "sobrevivencia", mas uma co-invenr;ao de
urn mundo de recursos possiveis e de uma maneira de se relacionar com
esse mundo. Do mesmo modo, observa Popper em sua obra La quete
inachevee, as crianc;as de peito aprendem porque estao predispostas
desde 0 nascimento a aprender, 0 sucesso das predisposir;5es inatas para
aprender implica 0 mundo humano sem 0 que elas nao teriam sentido algum. Do mesmo modo ainda, as teorias cientificas exigem uma
caracterizar;ao positiva: para que se aprenda algo com sua refutac;ao,
e preciso primeiramente que elas tenham tido urn certo sucesso, que
tenham significado urn avanr;o do conhecimento, a invenr;ao de urn
mundo que elas tornam (parcialmente) inteligivel. Nos tres casos, a
novidade nao tern significar;ao independentemente da situafao, devendo
o conjunto ser descrito, e nao julgado a partir de crithios mais gerais
que essa situar;ao.
Mas como descrever uma situar;ao? Segundo Popper, em termos
de antecipac;ao, que dao sentido ao mundo ao selecionar e interpretar
alguns de seus aspectos, e em termos dos riscos que essas antecipac;5es
acarretam. 0 termo primeiro tornou-se 0 "problema", que cria uma
situar;ao nova (ainda que a novidade do problema, com freqiiencia,
nao possa ser percebida independentemente da formula,ao de urn novo
tipo de solu,ao). 0 "problema" se reconhece pela sua capacidade de
persistir atraves das "tentativas de solur;ao", das "conjeturas" (fisio16gicas, comportamentais ou conscientes) e e esta persistencia que permite compreender a eliminar;ao de solur;5es "erroneas" e a eventual
criar;ao de novos problemas. De acordo com 0 esquema doravante
onipresente em Popper, Pj da origem a IT (tentative theory, ou seja,
"teoria arriscada") que da origem a EE (elimina,ao de erros), que pode
dar origem a P2.
Urn movimento decisivo ocorreu aqui. 0 sujeito da evolur;ao da
ciencia nao erna is 0 individuo, psicol6gico ou etico. 0 cientista define-se pela situar;ao. A partir de entao, a prescrir;ao etica nao e mais
pecialmente no que concerne as bacterias. E este principio que e posto em oa~
los procedimemos dos laboratorios onde a pesquisa de uma matriz mutante particular se faz pressupondo que e1a "deve com certeza" existir entre a poula~
e
submetendo essa oa~lup
a condi~es
tais que so esses mutantes sobrevivem.
A fw~a
da historia
". --0
57
necessaria para definir a ciencia e a desqualificaC;ao do adversario se
efetua nesses novos termos: marxista ou psicanalista, ele eaquele que
se agarra as suas hip6teses e rejeita os problemas postos por sua situac;ao no mundo. Porem esta desqualificaC;ao e doravante "ontologica". 0 marxista ou 0 psicanalista estao, como a ameba ou outro animal, encerrados no "segundo muncio", das crenc;as, das convicc;5es,
dos desejos e das intenc;oes, enquanto 0 "verdadeiro" cientista define-se pela emergencia de urn "terceiro mundo", 0 do conhecimento
objetivo. 0 contraste fundamental se deslocou, ele se assenta doravante
na diferenc;a entre Einstein e a ameba: esta se identifica com suas pr6prias hipoteses e morre junto com elas, enquanto Einstein deixa suas
hipoteses morrerem em seu lugar.
A primeira vista, 0 leitor podera considerar a solU';ao de Popper
calamitosa, porque a diferenc;a entre ciencia e nao-ciencia, urn problema
que os cientistas parecem, afinal de contas, nao ter muita dificuldade
em resolver, implica aqui uma diferenc;a ontologica entre 0 segundo
mundo, aquele dos seres vivos COm suas convicc;oes, seus temores, seus
desejos, suas intenc;oes, suas crenc;as, conscientes ou nao, psiquicas ou
encarnadas em seus 6rgaos de percepc;ao e em seu metabolismo, e 0
terceiro mundo, do conhecimento objetivo. Mas equivocar-se-ia ao
pensar que, agindo assim, Popper reata pura e simplesmente com a tradic;ao do "grande positivismo", pouco parcimonioso em paineis cosmicos que poem em cena a ascensao do ser humano em direc;ao a razao. Escapar-lhe-ia entao a singularidade do percurso de Popper, cujo
ponto de partida Ii a incapacidade da logica em dar conta do conhecimento cientifico e a generaliza<;ao desta incapacidade pelo "principio
da transferencia". Este ponto de partida tern a singularidade de colocar 0 problema da "forc;a das ciencias" a partir da questao da pertinencia de nossas antecipac;oes quando as desejamos descrever. Antes de examinar os resultados de uma situac;ao dada, e necessario identificar as referencias que ela mesma fez surgir. Como a logica nao pode
justificar a ciencia, nao se deve conduir que a ciencia e ilogica, mas
que, com a ciencia, veio a tona uma l6gica de situac;ao em relac;ao a
qual a logica nao Ii pertinente.
A diferen<;a entre 0 segundo mundo e 0 primeito, aquele dos processos materiais, geol6gicos, Hsico-quimicos, meteorologicos etc., e
exemplar a esse respeito. A partir do momenta em que lidamos com
urn ser vivo, nos sabemos que 0 modo de descric;ao pertinente deve
induir 0 "ponto de vista" do ser vivo sobre seu mundo, quer este
58
Explorando
r
ponto de vista seja indissociavel de seu metabolismo, como e 0 caso
da ameba, quer ele possa ser remetido a uma dimensao psiquica, como
parece ser 0 caso dos mamiferos. Quer se trate da ameba, do chimpanze ou de nos mesmos, nos nao podemos ser descritos sem que seja le-
vado em conta a fato de que as meios ambientes nao sao todos equivalentes para nos. Em outras palavras, a distinc;ao entre 0 primeiro e
o segundo mundo consagra a emergencia de seres que podem certamente ser analisados em termos de processos pertencentes ao primeiro
mundo, mas que impoem, para serem compreendidos de maneira pertinente, uma linguagem nova. E nessa linguagem que se pode hesitar
a justo titulo entre "causa" e "razao", quer dizer, falar, sem metafora nem projec;ao antropomorfica, de "diferenc;as que fazem uma diferenc;a", como teria dito Gregory Bateson. 0 segundo mundo e aquele
da emergencia do sentido.
Ha muitas maneiras de distinguir sentido de significado. Uma
dessas maneiras, que aqui adotarei, cria 0 espac;o exigido pela distinC;ao popperiana entre segundo e terceiro mundo: contrariamente ao
sentido, 0 significado implica que aquele para quem ele faz referencia
nao se espante que se the pe<;a para explicira-Io ou justifica-Io. Essa
distinc;ao e estetica, etica e etol6gica: ela diz respeito a uma maneira
de existir em urn modo que implica que se possa, se for 0 caso, "ter
de prestar contas" da maneira pela qual existimos. 0 significado implica a emergencia de uma possibilidade de descrever, de examinar,
de discutir que, por vocac;ao, atribui ao sujeito que fala uma postura
anonima e impessoal. Esta possibilidade corresponde a urn problema
novo, a uma logica de situac;ao nova - e com frequencia ainstaurac;ao
de uma rela<;ao de for<;a nova entre aqueles que reelamam ou procuram
explica<;6es e aqueles que sequer sabiam que as haviam que prestar:
que se pense nos gramaticos e outros organizadores da linguagem em
sua relac;ao com aqueles que, como 0 senhor Jourdain, falavam como
respiram. Mas ela nao corresponde em caso algum a garantia de que
as explica<;6es prestadas sejam capazes de estabelecer sua propria adequac;ao, que a explicac;ao seja satisfatoria, coerente ou veridica.
Eevidente que, para Popper, tudo que Ii humano mesela sentido
e significado. Mas, para ele, a singularidade da ciencia reside em fazer
emergir, neste "campo" constituido peIos seres vivos que "procuram
prestar contas" e colocam portanto 0 problema da verdade, da legitimidade, da certeza, uma dinamica que transcende esta preocupac;ao.
Para dar urn exemplo, e possivel que a demonstrac;ao matematica in-
A- for<;a da hist6ria
59
ventada pelos gregos tenha sido no inicio apenas urn modo de estabelecer a certeza do enunciado, porem 0 proprio exercicio da defin ~ao
e da demonstra~o
envolveu toda uma outra historia. Com os "numeros irracionais", escandalo para a razao grega, produz-se 0 exemplo arquetipico da cria<;ao de urn habitante do terceiro mundo, capaz
de se impor apesar das inten<;6es e da convic<;6es dos sujeitos do segundo mundo.
da hist6ria construida pelos cientistas esta
Para Popper, a for~a
portanto Iigada ao fato de que os sujeitos "psicoI6gicos" nao a dominam, mas sofrem a coer<;ao dos problemas que oles fazem emergir. E
paralolamente, esta hist6ria impi5e aqueles que a querem descrever levar
0 terceiro mundo e sua autonomia relativa em relaem considera~
~ao
aos sujeitos dotados de ,seo~nti
de ,seo~civn
em busca de
de urn umbral a partir do
certezas. A ciencia consagra a transpoi~
qual eimpossivel deixar de reconhecer que 0 ator central da evolu<;ao
nao e mais 0 sujeito pertencente ao segundo mundo, e sim 0 problema objetivo, habitante do terceiro mundo. Aquoles que nao 0 reconhecem tentam buscar 0 conhecimento cientifico conforme os criterios de legitimidade, de prova, que correspondem it busca da certeza
dos habitantes do segundo mundo. Sob pena de, caso fracassem, se tornarem relativistas como Feyerabend em vez de perguntar se suas questoes eram pertinentes.
A articul~o
entre 0 segundo e 0 terceiro mundo reproduz portanto aquela que prevalece entre 0 primeiro e 0 segundo mundo. Todo
problema tern como condi~ao
de emergencia a atividade (nao intencional relativamente ao evento da emergencia) de urn sujeito, mas, desde
o momento em que existe, ele persiste e estimula os que estarao a paraqueles de quem nos nao mais poderemos
tir de entao a seu servi~o,
descrever as ,seo~nti
,seo~civn
projetos independentemente deste
novo tipo de .50a~utis
Eantes a titulo de desafio que de solu<;ao, que acabo de apresentar
a teoria dos "tres mundos" de Popper. 0 desafio epertinente. Ele leva
a radicalidade maxima a questao do poder que 0 recuo no tempo concede ao historiador em rela<;ao aos problemas de seus atores e a seus
argumentos, e coloca a singularidade da hist6ria das ciencias sob 0
signa cia confrontac;ao entre dois poderes, 0 da interpretac;ao, que identifica em toda parte as ,sa~nerc
as ,seo~civno
as ideias, e 0 do proble6
ma, cujo imperativo fez existir 0 cientista . Todavia, se este e0 desafio,
a solu<;ao proposta por Popper esta "impregnada" pelas preocupa<;6es
epistemol6gicas que foram seu ponto de partida. Eu ressaltarei aqui
tres deficiencias maiores, que indicam ao mesmo tempo tres exigencias para 0 equacionamento da solu~ao
que proporei em seguida.
De urn lado, a apresenta<;ao de Popper e feita de modo a desembocar numa perspectiva que conserva 0 ideal de uma ciencia pura e a
definic;ao correlata do "meio externo" enquanto impuro, ameac;ando
sempre contaminar a pureza cientifica, por a ciencia em perigo. Em
outros termos, uma das voca<;6es do mundo dos problemas popperianos eevidentemente a de esvaziar toda dimensao politica, que Popper
com 0 segundo mundo. Seria possivel transidentificaria sem oa~tiseh
formar tao radicalmente 0 usa das palavras "politica" e "problema
cientifico" que eles nao tenham mais por voca~
mobilizar argumentos
numa perspectiva de confrontafao?
flito possam criar divergencias cientfficas. Ver especialmente a resposta de Alan
Chalmers, em La fabrication de la science (Paris, La Decouverte, 1991), ao estudo de Donald Mackenzie, "Comment faire une sociologie de la statistique... " (retornado em La science telle qu'elle se fait, sob a dire~ao
de M. Callon e de B.
Latour, op. cit.).
5 Popper justifica assim 0 triunfo da historia "interna" sobre a historia "externa". Toda vez que urn partidario da historia "externa" quer estabelecer uma
cor ela~
entre a posi~a
de urn cienrista participante de uma controversia e os
seus interesses culturais, sociais e politicos, 0 historiador interno pode dizer que
a primeira razao de ser da conrroversia prende-se a urn problema objetivo. A maneira pela qual os atores se dividem em torno desse problema pode certamente
estar vinculada aos seus interesses, porem 0 conflito depende primeiro da existencia do problema, e este que cria a possibilidade de que os interesses em con-
6 Outros modos de historia sao pertinentes, e especialmente aque1e que
Daniel Bensaid (em Walter Benjamin, sentinelle messianique: a la gauche du
possible, Paris, PIon, 1990) chama de "materialismo historico", em que 0 historiador sabe que se trata bern menos de reconstituir do que de se lembrar e de espreitar, em urn presente "chamado a tomar parte na troca das sentinelas extenua·
das diante do deserto vazio, para 0 caso em que urn Godot em andrajos apare~a"
(p. 94). Esse presente, "que nao eem absoluto passagem mas que se mantem
imovel no limiar do tempo [...] e 0 tempo da politica. Todo acontecimento do
passado pode al adquirir ou encontrar urn grau mais alto de atualidade que aquele
que tinha no momento em que ocorreu. A historia que pretende mostrar como
as coisas realmente se passaram esra. animada de uma conep~a
policial que se
constitui no 'mais poderoso narcotico do seculo'" (p. 68).
60
A.for~a
Explorando
da historia
61
Por outro lado, 0 terceiro mundo popperiano ratifica 0 privilegio das ciencias matematicas e experimentais, na medida em que e
nestas ciencias que a historia ou 0 progresso parecem remeter da maneira mais plausivel ao problema como produto que emerge da atividade humana, tendo este mundo por func;ao submeter-se as questoes
inspiradas por esses problemas. A ideia de que 0 pr6prio mundo possa levantar problema, no sentido que poderia tornar-se ele mesmo este
"ator central" que persiste e suscita aqueles que 0 descrevem, e estranha a teoria de Popper, mas pode, como veremos, intervir na questao
da diferenc;a entre ciencias experimentais e ciencias de campo. Seria
possivel campreender as diferen(as praticas entre ciencias sem ratificar sua hierarquiza<:ao?
Por fim, e acima de tudo, os tres mundos popperianos formam
uma perspectiva ao mesmo tempo ampla demais, permitindo criar urn
contraste entre Einstein e a ameba, pobre demais, calando-se sobre a
diferen<;a entre a maneira pela qual urn problema, cientifico OU nao, e
capaz de impor suas condi,6es e a maneira pela qual uma produ,ao
cientifica se impoe historicamente, e determinista demais, conferindo
ao problema 0 poder de estabelecer a diferen,a entre aqueles que serao seus veto res e todo
0
resto, que recebera
0
titulo de obstaculos
provindos do segundo mundo. Seria possivel evitar conferir ao problema a poder de definir a ciencia, au seja, transformar sua histaria
em modelo ontoI6gico-evolucionista?
o que se pode, enfim, conservar de Popper? Que 0 historiador
das ciencias certamente nao tern de se sentir obrigado a contar a historia como a contam seus atores, mas que tambem nao tern de decidir
a priori que aquilo que dizem seus atores, quando prestam testemunho de seu envolvimento, e mitico, ideol6gico, mentiroso ou por de-
mais carregado de epistemologia. Vma situa,ao, na medida em que provoca os atores que se referem explicitamente as coen;oes que ela faz
existir, nao e redutfvel ao meio no qual ela emerge. Assim como a
maneira que uma nova especie inventa de se relacionar com 0 muncio
nao pode ser reduzida as restri<;oes que, nos 0 sabemos a priori, deverao ser satisfeitas: reproduzir-se, encontrar uma alimenta<;ao suficiente, ter uma boa chance de escapar aos predadores etc. 0 que nao significa, e claro, que a inven<;ao ou a situa<;ao possam ser separadas do
meio em que elas se produzem. E, creio, porque respeitou esta irredu-
o AJUSTE DO PARADIGMA
o mal-entendido que envolveu a no,ao de "paradigma", introduzida por Kuhn, remete a imagem reducionista que assimila a uma
simples norma profissional institucionalizada, uma conven<;ao puramente humana que se imp6e com dogmatismo ao perseguir e sufocar
a lucidez e 0 espirito critico. Pode-se igualmente falar de "psicologia
das multid6es", como Lakatos, propor-se a fundar uma disciplina
fazendo reinar uma ordem repressiva suficientemente estrita para poder
eliminar a prolifera,ao de hip6teses rivais ou afirmar que a no,ao de
paradigma nos poupa de uma vez por todas da preocupa,ao de ter de
determinar de que forma a natureza vern a emitir opiniao no que tange as ciencias: ela nao 0 faz ali mais do que em qualquer outra area.
Kuhn, nesse sentido, anunciaria e prepararia 0 terreno para Feyerabend.
Kuhn relata como urn colega entusiasta disse-lhe por ocasiao de
urn col6quio: "'Ei, Tom, parece-me que 0 seu maior problema agora
mostrar em que sentido a ciencia pode ser empirica.' Meu queixo caiu
e
e ele ainda esraligeiramente caido. Tenho uma lembran,a visual integral (total visual recall) da cena e de nenhuma outra desde a entrada
de De Gaulle em Paris em 1944".7 Esta lembran,a imperecivel traduz
a profundidade do mal-entendido entre 0 autor e aqueles que se ap6iam
em sua autoridade. Kuhn desempenhou, desde 0 come,o, urn papel
central na minha apresenta<;ao em virtude da rea<;ao totalmente diver-
gente que ele suscitou entre os fil6sofos epistem610gos, de urn lado, e
os cientistas, de outro. Contudo a satisfa<;ao dos cientistas nao diz
respeito somente a autonomia das comunidades cientfficas que Kuhn
preserva; como iremos ver, ela se explica tambem peIo vinculo intrfn-
seco que ele estabeleceu entre essa autonomia e a impossibilidade de
reduzir 0 paradigma a uma leitura sociol6gica ou psicol6gica qualquer.
Independentemente de tudo 0 que se pode nele reprovar, ha uma
coisa sobre a qual Kuhn e perfeitamente claro: e que 0 paradigma nao
pode ser interpretado como uma decisao "puramente humana", seja
qual for a teoria da decisao que se queira invocar. Nenhuma decisao
humana, nenhuma regra, nenhuma doutrina,ao podera eliminar a diferen<;a entre as ciencias para as quais "aconteceu" urn paradigma e as
,ao que Thomas Kuhn foi tao bern compreendido pelos cientistas, ao
passo que escandalizou os epistem610gos, entre eles Karl Popper.
cit., p. 263.
62
A f.oI~a
Explorando
7
"Reflections on my critics", Criticism and the growth of knowledge, op.
da historia
63
outras, para as quais isto nao se deu. E isto porque urn paradigma nao
euma simples maneira de "ver" as coisas, de interrogar ou de'interpretar resultados. Urn paradigma e, antes de mais nada, da ordem da
prdtica 8• 0 que se transmite nao e uma visao de mundo, mas uma
maneira de (azer, uma maneira nao somente de avaliar os fen6menos,
de lhes conferir urn significado te6rico, mas tambern de intervir9, de
submete-Ios a situa<;6es ineditas, de explorar a menor das conseqiiencias ou 0 menor efeito implicado pelo paradigma para criar uma nova
situa<;ao experimental. E tudo isto que Kuhn denominou "quebra-cabe<;as". Este termo significa que, em periodos normais, urn fracasso
na solu<;ao de urn problema deste genero colocan, em causa a competencia do cientista e nao a pertinencia do paradigma, exatamente como
num jogo de sociedade. Mas a mentalidade de urn "amador de quebra-cabe<;as" nao se forma nem por doutrina<;ao nem pela rarefa<;ao
repressiva das "regras do jogo" rivais. Nao e suficiente que, para onde
quer que nos viremos, vejamos por toda parte situa<;6es que se assemelham a urn modelo, que confirmam uma teoria, e necessario que 0
apetite seja agu<;ado pelo desafio: nao por urn cenario monotono e
unanime, em que "reconhecemos" sempre a mesma coisa, e sim por
uma paisagem acidentada, rica de diferen<;as sutis a inventar, na qual
o termo "reconhecer" nos remete nao a constata<;ao de uma semelhan<;a, mas ao desafio de atualiza-la.
Lakatos, a exemplo de Kuhn, destacou 0 carcher altamente artificial da apresenta<;ao logicista confrontando uma proposi<;ao isoIavel
e dados que a confirmam ou invalidam. Porem sua propria apresenta<;ao, na medida em que permanecia orientada pela confronta<;ao entre
"fatos observaveis" e "programa de pesquisa" (munido de seu cinto
protetor destinado a negociar com os fatos), permanecia tam bern de-
8 Conforme Margaret Masterman ressalta em Criticism and the growth of
knowledge, op. cit., a definir;ao do paradigma, em La structure des revolutions
scientifiques, e bastante imprecisa (ela enumera vinte e urn sentidos distintos).
Contrariamente ao que amiude se sustenta, Kuhn modificou menos sua nor;ao
diante dessa crftica do que compreendeu ate que ponto devia tormi-Ia precisa a
fim de evitar mal-entendidos. Strictu sensu, a questao do paradigma esta ligada
a das ciencias modernas. Em outros termos, ela exclui a possibilidade de se falar
de "paradigmas aristotelicos do movimento".
pendente do logicismo. Ela inspira, com efeito, a ideia de uma colheita de faros, que poderiamos definir independentemente da tearia para
em seguida confronta-los e negociar. Kuhn introduziu, contra essa ideia,
a no<;ao da incomensurabilidade da referencia empirica de paradigmas
rivais. 0 que, e 16gico, escandalizou os fil6sofos: que nenhuma linguagem comum possa criar 0 cemirio de uma "competi<;ao imparcial e controlada" de duas teorias diante dos mesmos fatos nao provaria que 0
cientista esta fanaticamente recluso em sua visao de mundo? a malentendido provem de que it no<;ao de paradigma corresponde nao uma
nova versao da "impregna<;ao" dos fatos pelas teorias, mas a no<;ao
de invenr;iio de fatos. Falar de impregna<;ao e conservar 0 ideal de urn
fato puro, colhido tal qual, e assinalar a distancia, 0 defeito, superavel ou nao, em rela<;ao a esse ideal. Falar de inven<;ao e abandonar esse
ideal e afirmar que os fatos experimentais estao "autorizados" pelos
paradigmas, no duplo sentido de fonte de legitimidade e de responsabilidade do "autor". Os fatos perdem toda rela<;ao com a ideia de uma
materia comum cuja voca<;ao ideal teria sido assegurar a possibilidade de uma compara<;ao ou de uma confronta<;ao (apresenta<;ao logicista
e normativa). Sua primeira defini<;ao nao e a de serem observaveis, e
sim de constituir produr;6es ativas de observabilidade, que exigem e
pressupoemalinguagemparadigmaticalO.Porisso.segundoKuhn.dois
"paradigmas" ou "programas de pesquisa" nao costumam coexistir
de tal sorte que 0 cientista possa avaliar seus respectivos modos de
desenvolvimento. Uma tal coexistencia implica a ideia de que, de maneira geral, os fatos preexistem e podem alimentar urn ou diversos
programas, e ela nao faz jus a sua inven<;ao. A ciencia normal explica
menos 0 que preexiste a ela do que cria aquilo que ela explica.
Em resumo, e precisamente porque urn paradigma deve ter 0
poder de inventar praticamente, operacionalmente os fatos que ele
mesmo nao se inventa, pelo menos nao no mesmo sentido. A inven-
9 Tema central da descriC;ao que Ian Hacking faz da experimentac;ao. Ver
Concevoir et experimenter, Paris, Christian Bourgois, 1989.
10 Como diz Kuhn em "Reflections on my critics" (Criticism and the growth
of knowledge), a incomensurabilidade nao e nem mais nem menos dramatica na
ciencia do que entre idiornas naturais diferentes: uma tradUl;;:ao, jamais perfeita,
e sempre possivel; simplesmente nao faz intervir uma terceira linguagem "neutra", mas tradutores que falam os dois idiomas e buscam negociar 0 melhor compromisso entre as coerc;6es e os possiveis que singularizam cada urn deles. 0 que
impIica que a aprendizagem de urn paradigma nao e, nao mais que aquela das
linguas naturais, integralmente Iingiiistica.
64
A fQrc;a da historia
Explorando
65
~ao
dos fatos e competente, discutivel, astuciosa, enquanto a "invende urn paradigma se imp6e, para Kuhn, a maneira de urn acontecimento, criando 0 seu antes e 0 seu depois. Urn acontecimento raro,
~ao"
pois ele consiste na descoberta de urn modo de apreender, de dizer e
de fazer que estabelece uma relafiio de forfa singular com 0 campo
fenomenico correspondente. A tradi,ao da demarca,ao trope,ou num
problema geral, 0 do poder de interpreta,ao, poder que toda linguagem possui de sujeitar os fatos, de negociar os significados. 0 paradigma de Kuhn designa urn poder-acontecimenro: urn modo de mobiliza,ao dos fenomenos revelou-se de maneira inesperada, quase escandalosamente, fecundo. Bern mais do que uma doutrina,ao qualquer,
eeste escandalo que alimenta a convi~a
do cientista: esta mobilza~
deve encontrar nos fen6menos uma verdade mais ou menos independente do poder de interpreta,ao e deve, portanto, poder ser estendida
cada vez mais lange (mentalidade do puzzle solver). 0 cientista, trabalhando sob urn paradigma, nao pode deixar de ser "realista".
A questao do progresso ja havia mudado de sentido na tradi,ao
demarcacionista: de conseqiiencia de uma sa metodologia ele tinha se
tornado condi~a,
privilegiando de fato a ffsica e outras ciencias experimentais em sentido estrito. Aqui a inversao dos termos e completa, pois a condi,ao perdeu toda aparencia de generalidade. 0 paradigma celebra urn acontecimento e e este acontecimento que e vivido
pelos historiadores que, como Helene Metzger, buscam reconstituir as
ideias e os sistemas interpretativos de seus atores. Repentinamente, 0
a solidarieacesso se fecha e, para localizar a parte da ,oa~terp ni
dade com 0 espirito do tempo, sera necessario passar pelos proprios
cientistas, pelo seu trabalho de reformula,ao e nao mais pelo "contexto". Pois a linguagem, aqui, perde seu poder geral de interpreta~ao
para entrar numa rela~o
de oa~nevi
de risco com as coisas.
Identifica-se uma ciencia paradigmatica, te6rico-experimental,
pela singularidade de seu modo de fabrica,ao dos fatos, mas tambern
pela sua preocupa,ao com 0 artefato. Poderiamos dizer que aqui todo
fato e urn artefato, urn "fato da arte", mas e justamente par isso que
e essencial distinguir os fatos conforme remetam a uma forma de poder geral, unilateral ou ao poder-acontecimento. 0 artefato que 0
experimentador teme e 0 fato observavel, inculpado de ter sido determinado pelas condifoes experimentais, reconhecidas entaD nao como
condi,6es de apresenta,ao, mas como condi,6es de produ,ao, criadoras
do fenomeno observado. 0 risco do artefato singulariza as ciencias
66
Explorando
paradigmaticas com rela<;ao ao conjunto das outras ciencias em que
os fenomenos estao subordinados is praticas de laboratorio. As primeiras exaltam urn fenomeno que se deixa ser encenado, as demais
valem-se do poder geral de submeter nao importa 0 que a urn imperativo de medida e quantifica,ao.
Qual 0 luero deste ajuste da no,ao de paradigma, que 0 vincula
asingularidade das ciencias te6rico-experimentais? Muito precisamente
uma primeira abordagem daquilo que Popper punha sob a signo da
emergencia, uma descri~ao
da oa~zingro
social das disciplinas pa-
radigmaticas como conseqiiencia daquilo que doravante lhes faz referencia. "Antes" do acontecimento, no estagio "pre-paradigmatico",
uma pratica cientifica esta, segundo Kuhn, em estado de dupla dependencia: com rela,ao aos fatos de todo tipo, que se prestam a toda sorte de se6~atrpni
discordantes; com rela<;ao a urn ambiente social e
cultural igualmente interessado nos fatos, propondo interp ta~oes,
questoes, visoes de mundo. 0 cientista, entao, deve tentar cultivar as
virtudes da lucidez e do espirito critico, unico modo de fazer a diferen,a com rela,ao aos multiplos outros interpretes dos faros. Apos 0
acontecimento, a diferen<;a com esses multiplos outros
transforma,ao do modo de produ,ao dos faros.
e criada pela
E do acontecimento
que as comunidades se aproveitam para se fechar em torno de si mes-
mas e estabelecer suas condi,6es de reprodu,ao (transmissao do paradigma). A rela,ao social de for,a - a comunidade cientifica, unico
juiz das "boas quest6es" - redobra uma rela,ao de for,a irredutivel
ao social, pelo menos no sentido de puramente humano. Compreende-se assim por que os praticantes das ciencias paradigmaticas se re-
conheceram tao bern na descri,ao de Kuhn. A dimensao psicossocial
nao os preocupou, porque ela traduz ll , sanciona e, como veremos
adiante, amplia uma diferen,a irredutivel a analise social.
Porem 0 problema se renova, pois urn dos atributos essenciais do
paradigma, sua raridade, parece ser negada par urn atributo igualmente
essencial da ciencia enquanto tradi<;ao hist6rica, a pretensao de se cons-
tituir num empreendimento geral de produ,ao de inteligibilidade. Os
fil6sofos das ciencias, que fracassaram em especificar os criterios que
11 Lembremo-nos que uma oa~udrt
saria. Ela apenas aponta "aquilo que"
r;ao necessaria.
A forlfa da historia
e0
nao tern nada de conseqiiencia necesobjeto de urna tradur;ao como condi-
67
fundamentam essa pretensao, nao a inventaram. A estrutura academica que divide aquilo com que deparamos em territorios levando cada
urn 0 nome de uma ciencia nao e 0 simples produto de urn erro filosofico. A nor;ao de paradigma pode, entao, por seu turno, desembocar
em uma posir;ao de denuncia: todas as ciencias que nao provem de urn
paradigma nao passam de pretensao ideologica. a que, de resto, nao
esta muito distante da posi~a
de Kuhn, exceto que ele nao denuncia
e sim se apieda das infelizes ciencias humanas "pre-paradigmaticas".
Coisa que, por outro lado, os praticantes das ciencias teorico-experimentais estao, 0 mais das vezes, dispostos a admitir.
Na verdade, a descri~ao
historica de Kuhn nao e suficientemente hist6rica. Ela nao nos ensina a rir, somente a celebrar. Ela confunde em particular a colebra~
do acontecimento, no sentido em que
este cria urn antes e urn depois, com a celebra\=ao do tipo de "progresso" que se segue ao acontecimento. Ela confunde igualmente "crise"
e "revolu\=ao" e nao leva em conta que se as crises sao, em certa medida, padecidas pelos cientistas, as revolu\=oes, por sua vez, sao construidas pelos cientistas: nem toda crise sera anunciada como "revolucionaria", algumas serao ao contrario contadas num estilo que acentua a continuidade do desenvolvimento, nao a ruptura. Ela confunde,
enfim, a cria\=ao das fronteiras entre 0 dominio disciplinar e "exterior"
com urn desenvolvimento naturalmente autonomo da disciplina, que
o "exterior" deveria respeitar sob pena de entravar a inventividade dos
cientistas. Certamente, sem 0 paradigma, os cientistas nao poderiam
estabolecer a difern~a
entre as "boas" questiies, aquolas que 0 paradigrna autoriza, e as quest6es que interessam seus contemporaneos. Neste sentido, 0 paradigma inspira ao cientista uma paixao certa par tudo
aquilo que the permita fazer com que se a~ehnocer
esta difern~a.
Mas
isto nao significa em absoluto que uma ciencia que funcione sob paradigma "e" autonoma, no sentido de que estaria separada do resto
da sociedade por uma especie de "fechamento informacional"12, que
deixa fluir os recursos materiais, mas determinada apenas pela paisagem' dos quebra-c~s
que ola engendra pola sua propria dinamica.
Em todos os casos, a descri~ao
de Thomas Kuhn acentua a imagem de uma ciencia que se desenvolve it maneira de urn fenomeno
natural, evolu<;:6es "normais" pontuadas par crises, uma imagem com
rela~ o
it qual se pode perguntar se ola nao e, se nao produzida, polo
menos estabilizada pelas estrategias retoricas dos cientistas: descrever
a vida das ciencias como urn fenomeno natural e afirmar que existe
uma unica escolha, entrava-la ou dar-Ihe os meios de seguir adiante.
Contudo, se 0 historiador reconhecesse que 0 anuncio de uma revolu<;:ao assim como a reivindica<;:ao da autonomia consistem em alvos
estrategicos, se ele recobrasse sua liberdade frente a cientistas, eles
mesmos rnais livres do que dao a entender, que riso estaria ele aprendendo, aquele da ironia ou 0 do humor?
12 No sentido da teoria da autopoiesis de Umberto Maturana e de Francisco Varela.
68
Explorando
A fo~a
da historia
69
II.
CONSTRUINDO
4.
IRONIA au HUMOR?
CONSTRUIR UMA DIFEREN<;:A
Que li,ao tirar dessas poucas abordagens da ciencia ate aqui sinalizadas, senao a de que este trabalho singular parece destinado a
colocar seus interpretes contra a parede? au se busca, como os filosofos epistemologos, como Thomas Kuhn, como Karl Popper, urn meio
de ratificar a diferen,a pretendida pelos cientistas, ou entiio, como
Feyerabend e a maioria dos soci61ogos das ciencias contemporaneos
que praticam 0 programa dito "forte"l, procura-se negar-lhe qualquer
alcance "objetivo".
Nos dois casos, os instrumentos e as finalidades variam. Karl
Popper jamais admitiu sua proximidade com Thomas Kuhn, embora
os dois exaltem a pratica cientifica como produto de uma novidade
e aos calculos humanos, transformando-os
que escapa as se6~n t i
irreversivelmente. Num certo sentido, 0 cientista "normal", trabalhando segundo urn paradigma, e indubitavelmente urn exemplo tipico de
sujeito do "segundo mundo" redefinido por urn habitante do "terceifO mundo" ao qual suas antecip~6s,
suas espran~,
sua pnitica
estao sujeitas. Popper queria, de acordo com a tradi,ao epistemologica, fazer coincidir a pratica cientifica e 0 ideal de lucidez critica. Kuhn
descreveu, para grande escandalo dos popperianos2 , uma organiza,ao
10 programa "forte" foi definido por David Bloor em 1976 no Knowledge
and social imagery (Londres, Routledge and Kegan Paul. Trad. francesa: Sociologie de La logique au [es limites de l'epistemo[ogie, Paris, Pandore, 1982). Esse programa declara que a totalidade da pratica cientifica, inclusive a distn~ao
entre
verdade e erro, eda competencia da analise sociol6gica, e que a adesao a uma teoria cientifica depende do mesmo tipo de explica~o
(psicol6gica, social, economica, poHtica etc.) que toda cren~a.
Este programa forte esd vinculado as escolas de
Bath (Harry Collins, Trevor Pinch) e de Edimburgo (Barry Barnes, David Bloor).
ta~ o
2 Criticism and the growth of knowledge retira seu interesse desta confronentre "os vizinhos mais pr6ximos".
Ironia ou humor?
73
poder maximo visto que ela faz dos sujeitos do segundo mundo vetores
diz respeito a difern~a
criada par mim, sem pretena difernca~o
sao de definir 0 espectro das praticas efetivas 3 .
de urn "modo de colocar os problemas" Sem "se questionar". Da mesrna maneira, de Feyerabend aos partidarios do "programa forte" na
Eu partirei de urn contraste aparentemente an6dino. Existem
muito poucas "teorias" verdadeiras no campo das ciencias politicas,
sociologia das ciencias, as finalidades e as enfases variam. Feyerabend
den uncia as rela<;oes de for<;a e a fraude, os soci610gos pretendem
que se voltam hoje preferencialmente para os estudos hist6ricos ou para
exercer 0 seu ofkio, apenas 0 seu ofkio. Eles nao denunciam a ilusao ,
ja que, segundo eles, toda atividade humana tende a se apresentar de
pre dependente das situa<;oes e dos motivos criados pela hist6ria. Em
contrapartida, a sociologia continua obsedada pelo modelo das cien-
urn modo que lhe
cias positivas, aquelas que podem reivindicar urn objeto estavel em
social das ciencias que confere aos habitantes do terceiro mundo urn
e peculiar, a dar de si mesma uma imagem equi-
vocada. Eles reivindicam "apenas" a liberdade de fazer, a prop6sito
das praticas cientificas, 0 que eles fazem a prop6sito de outras praticas, apresentar a difern~a
si mesmas.
entre essas pniticas e a imagem que dao de
A singularidade das ciencias que, de meu lado, eu procuro COnstruir sera rejeitada pelos soci610gos em questao porque ela leva a serio 0 escandalo dos cientistas quando Suas pretensoes a objetividade
sao assimiladas a urn "folclore particular", suscetivel do mesmo tipo
de analise que os foldores de Outras praticas humanas. Cabe ressaltar, aqui, que meu projeto nao procura criar urn privilegio para as
ciencias, que seriam as unicas a escapar da analise sociol6gica. 0 mes-
mo tipo de questao deveria ser colocado com rela<;ao as outras praticas. Sabe-se que certos etn6logos, como Jean Rouch, apresentam seus
urn trabalho de comentario mais ou menos especulativo, porem sem-
rela<;ao a hist6ria, autorizando 0 cientista a definir a priori as questoes que convem colocar para toda sociedade.
Esse contraste pode ser atenuado. 0 ideal das ciencias positivas
nao define toda a sociologia e muitos soci610gos levam em conta na
sua pratica 0 carater irredutivelmente hist6rico e politico de toda de-
fini<;ao de 0 que "e" uma sociedade. Alguns levam igualmente em considera<;ao 0 fato de que sua pr6pria atividade de soci610go contribui
ativamente para esta defini<;ao. 0 aspecto importante, do ponto de vista
da diferen<;a que eu proponho, e que, hoje, nenhum soci610go envolvido neste tipo de pratica ignora que ele participa de uma sociologia
"reflexiva", "nao positivista" ou "nao objetivista". Em outros termos,
o ideal de uma sociologia calcada no modelo das ciencias positivas
acaba sendo dominante demais para que algum soci610go 0 ignore.
filmes a membros "especialistas" das popula<;6es filmadas e aceitam
e suas crfticas. A "resti~ao
leibnio teste fornecido por suas rea~os
ziana" , nao "ferir os sentimentos estabelecidos", torna-se, neste caso,
em que se poe em risvetor de saber: ela constitui uma das seo~irt
co a pertinencia da .oa~ terp tni
A fim de consolidar a diferen<;a entre a "abordagem sociol6gica" , COmo a define 0 programa forte da sociologia das ciencias, e a
abordagem que procuro praticar, recorrerei a urn contraste entre "sonao aponta para uma difeciologia" e "polftica". Essa oa~isprtnoc
ren~a
estavel entre 0 que n6s chamamos de "sociologia" e de "ciena fim de moscias polfticas". Trata-se antes de "criar" esta difern~a
trar uma divergencia de interesses. Quero mostrar que nao enecessa-
Resolvi explorar este contraste porque ele me parece poder tra-
duzir uma diferen<;a menos empirica.
Epreciso dizer que a sociologia
e a ciencia dos soci6logos: a "sociedade" como tal reune atores mul-
tiplos, mas nenhum desses atores, salvo os soci610gos, tern interesse
especial em definir 0 que "e" uma sociedade. A situa~o
no campo
politico e muito diferente. A politica, no sentido prdtico, no sentido
que podemos dizer que hoje ela e, ou deveria ser, 0 "assunto de todos", ecertarnente 0 que as especialistas em ciencias politicas procuram
compreender; mas eles sao sempre precedidos por praticas que se ma-
nifestam de forma explicita como praticas politicas. Em outros termos,
a posi~a
de comentarista "acompanhando" a hist6ria, que e a posi~ao
do especialista em ciencias politicas, nao
e, a meu ver, uma defi-
rio negar a singularidade das ciencias para torna-la passivel de discussao. Com 0 fim de fazer dos cientistas atores Como os outros na
vida da cidade (preocua~
"politica"), nao e necessario descrever
"sosua pratica como "semelhante" a todas as outras (preocua~
cioI6gica). As aspas (que em seguida deixarei de lado) assinalam que
74
Construindo
3 Para uma eoneepc;ao das "ciencias humanas" que embaralha deeididamente a diferenc;a que aqui erio, ver as diversos livros do fil6sofo marxista Roy Bhaskar, e espeeialmente The possibility of Naturalism: a philosophical critique of the
contemporary human sciences, Brighton (Sussex), The Harvester Press, 1979.
Ironia au humor?
75
ciencia, e sim 0 reflexo de que esse especialista se situa entre outros
atores que colocam questoes similares as suas. E que nao cessam de
inventar 0 modo como sao discutidas e decididas as referencias a legitimidade e a autoridade, assim como a divisao dos direitos e dos deve-
responde em si mesma a uma criac;ao de definic;oes: quem e cidadao?
Quais sao seus direitos e deveres? Onde termina 0 privado? Onde
come,a 0 publico? Estas sao questaes modernas, e claro. Mas 0 fato
de ver como sao enunciados e agenciados em outras sociedades os pro-
"politica" tern primeiramente 0 intuito de explicar a inquietac;ao dos
cientistas face a ideia de uma "sociologia das ciencias". Edificil falar
blemas que colocamos nesses termos nao confere ao especialista 0 poder
de julgar, mas apenas a possibilidade de acompanhar a constru,ao das
4
solu,aes que cada coletividade traz ao problema •
Num determinado sentido, a denuncia por Feyerabend dos pri-
res, e a distn~ao
entre aqueles que tern direito a palavra e os outros.
A op,ao que fizemos por acentuar a diferenp entre sociologia e
E difieil tranqiiilizar os
vilegios que as ciencias ocidentais reivindicam e, em si, politica, mas
cientistas, praticantes de ciencias positivas, com relac;ao as pretensoes
dos soci610gos de "fazer de seu ofkio, apenas 0 seu oHcio". Eles conhecem 0 cara.ter ativamente seletivo que permite a uma ciencia "encontrar urn objeto". Eles talvez temam que aquilo que, em sua atitu-
no sentido de que, longe de acompanhar a constru,ao desta reivindica,ao, contesta-a. Feyerabend nao pratica uma abordagem politica das
ciencias, ele faz politica. A decep,ao sofrida pe!o epistem610go quanto a impossibilidade de fundamentar a legitimidade das ciencias, e, cer-
de, lhes interessa, seja deliberadamente eliminado pela sociologia das
tamente, tambem
ciencias, como obstaculo a sua propria definic;ao de 0 que e urn "objeto social". Nao e fato que 0 "programa forte" da sociologia das ciencias toma como principio a assimilac;ao de suas "provas" e suas "refutac;oes" a simples efeitos de crenc;a?
ciencia" fizeram-no passar do pape! de analista para 0 de atar. A abor-
Deparamo-nos aqui novamente com 0 poder mobilizador das palavras que aspiram ao poder de julgar ou de explicar. A sociologia tal
como eu a defini aqui se outorga por ideallegitimo 0 poder de julgar,
dimensao politica das praticas que a razao supostamente regulava.
a urn a,ougueiro sobre a qualidade da carne.
0
espetaculo dos danos provocados "em nome da
dagem "politica" que eu gostaria de tentar tern por alvo nao proibir
esta mudan,a de pape!, mas esclarece-Ia. 0 engajamento politico e uma
escolha, nao 0 resultado de uma decep,ao vinculada a descoberta da
de desvendar "0 mesmo", acima das diferenc;as que dizem respeito
somente as vivencias de vida dos atores. Que importa 0 que pensa urn
cientista, que importam os "mitos" da verdade ou da objetividade que
o habitam? 0 soci610go das ciencias tern por dever ignorar essas cren,as
nos marcou por implicar numa explicita,ao do problema como tal.
a fim de revelar aquilo de que 0 cientista participa, saiba ele ou nao, 0
e eu me reporto aqui a Jean-
tipo de projeto que 0 caracteriza, quer se acredite ou nao ator "autonomo". Desse ponto de vista, as diferenc;as metodol6gicas, por exem-
GRANDES DIVIS6ES
Dentre as formulac;5es, definic;oes e invenc;5es da politica, uma
euma palavra grega, porem -
~'Polit ca"
dimensao das sociedades humanas que nao e passivel de defini,ao
4 Note~s
0 paralelo entre este questionamento do poder de julgar e a sin~
gularidade da ciencia dos seres vivos tal como 0 "segundo mundo" de Popper
pretende caracteriza-Ia. 0 que esse segundo mundo visa e indicar que 0 bi610go
deve acompanhar a inve~ao
pelo ser vivo do sentido que terao para ele ou para
sua especie quest5es tais como "como se reproduzir?", "que se5~alr
manter com
os congeneres, as presas, os predadores?", "que parte da individualidade vincular ao aprendizado, que outra arepti~ao
de uma identidade espedfica?". Neste
sentido, a ciencia dos seres vivos, como a da politica, nao pode ser redutora porque nem uma nem outra podem "preceder" aquilo de que tratam por uma defini~ao
geral do que sao as boas variaveis a levar em conta, e as dimens5es aned6ticas negligenciaveis: ambas tratam de urn conjunto de "seres" que consistem
em se5~alumrof
deste problema, em se5~in fed
de suas variaveis, em inve~5s
"objetiva", exercida "em nome da ciencia", porque essa dimensao cor-
de sua .oa~uls
plo aquelas que opaem os soci6Iogos que partem dos atores e aqueles
que partem das estruturas, importam bern menos que a ambic;ao comum: definir 0 objeto "social" em geral e utilizar essa definiC;ao para
selecionar tra,os comuns para alem das diferen,as que serao chamadas entao de "empiricas".
De acordo com a "diferenc;a" entre sociologia e politica por mim
proposta, que confesso ser radicalmente assimetrica, a ausencia relativa de teoria em materia de ciencias politicas assume uma significac;ao positiva. 0 especialista em ciencias politicas defronta-se com uma
76
Construindo
IroRia ou humor?
77
Pierre Vernant - a cidade grega e menos 0 lugar admidvel da invenc;ao do "n0580" ideal democnitico do que a expressao em palavras e a
problematiza<;ao dos diferentes meios pelos quais uma sociedade humana 5e constitui. Com que especie de ardem, de "arranjo" entre as
que sao reconhecidos como atores (no caso presente, serao os homenscidada.os, DaD as mulheres au os escravos), 0 pader politico sera edi-
ficado? A essa dessacraliza<;ao, que retira do poder 0 poder de justificar-se a si mesmo, corresponde a defini<;ao aristotelica do hornem como "animal politico".
Ocorre que Aristoteles tambem definiu
0
homem como
e
0
"ani-
mal racional". A tensaa entre essas duas defini<;oes altamente significativa para 0 nosso proposito. Se e a "razao", 0 logos que impera, a
propria polftica sed subordinada, julgada pela qualidade de suas rela<;6es com uma instancia nao polftica, Bern ou Verdade, que permite
silenciar as opini6es discordantes e incertas. Os sofistas, experts do
logos que desvia, ordena, cria a opiniao, devem ser condenados. Esta
foi a posi<;ao de PIatao, e a leitura de Aristoteles que Heidegger propoe, e tambem 0 "sentimento estabelecido" que preside a definic;ao
moderna de uma ciencia "fora da polftica" que s6 pode apreender 0
jogo eventual da polftica em seu amago em termos de impureza, de
defeito, de distanciamento do ideal. Mas 0 que acontece se questionamos, como Hannah Arendt, a oposi<;ao entre (falsa) verdade dos
sofistas, da qual
0
homem e a medida, e verdade racional, se se admi-
te como ponto de partida que "os homens vivem juntos no modo da
que pretende falar por mais de urn, assim como a proposito da teoria
que pretende representar os fatos, a mesma questao se coloca: "Por
que trac;o reconhecemos 0 pretendente legitimo?". Pode-se, nesse sen-
tido, falar do nascimento, a urn so tempo, de uma politica do saber e
de uma ciencia da politica. As solu<;6es encontradas poderao divergir,
escolher criterios essencialmente distintos; sempre se tratara de "arranjar" e de repartir, de definir os direitos e de prescrever os deveres.
Que, desde Aristoteles, a politica tenha sido tradicionalmente definida pela preocupa<;ao de organizar a vida em comum dos seres humanos (praxis), enquanto aquilo que se dirige as coisas (poiesis) diria
respeito a uma atividade definida por fins utilit:irios, isto faz parte,
nessa perspectiva, das soluc;6es espedficas, nao do problema. A esta-
bilidade desta solu<;ao depende das pretens6es, dos direitos e dos deveres que a relac;ao com as coisas pode ou nao suscitar.
Nessa perspectiva, a dupla defini<;ao do politico e do racional
oferecida pelos gregos e nova na medida em que explicita 0 duplo problema da legitimidade do poder e da legitimidade do saber. As solu<;6es mliltiplas e controversas propostas para esses problemas nao dividem a hist6ria humana entre aqueles que ignoravam a poHtica e a
razao e aqueles que "descobriram" 0 problema, mas elas sinalizam uma
diferenc;a cujas conseqiiencias cumpre acompanhar: as pretens6es ao
poder e ao saber terao doravante de se explicar a si mesmas. Para 0
politologo, a politica nao nasce com a cidade grega, mas a cidade grega obriga 0 politologo a reconhecer que seus atores formulam expli-
palavra"s? N6s nos descobrimos numa situac;ao de "irreduC;ao" em
que as palavras "opiniao" e "razao" perdem 0 poder de se autodefinir
ao oporem-se uma a outra. Epreciso entao acompanhar a maneira pela
citamente quest6es similares as suas.
qual opiniao e razao se interdefinem e especialmente 0 tipo de teste
que preside a sua diferencia<;ao.
Cumpre observar que esta interdefini<;ao diz respeito ao mesmo
referimos aos gregos para a definic;ao de razao que usamos, nos que
inventamos as ciencias ali onde todas as outras sociedades humanas
tempo a polftica e ao saber, que se acham nao confundidos e sim as-
humanas para a definic;ao da "cultura", n6s, humanos, que somas se-
sociados pelo mesmo tipo de problematiza<;ao. A proposito daquele
res de cultura ali onde todas as outras "sociedades animais" se deixam definir por codigos especificos aos quais estao submetidas. Na ver-
Muito curiosamente, urn problema analogo se coloca a proposito
da segunda "grande divisao" que obseda nossa modernidade. Nos nos
se deixavam definir pela sua tradi<;ao. Nos nos referimos as tradi<;6es
Hannah Arendt, La condition de /'homme moderne (Paris, CaIman-Levy,
1983, p. 36), citada no artigo de Barbara Cassin no qual aqui me inspiro, "De
I'organisme au pique·nique", Nos Crees et leurs modernes, textos reunidos por
B. Cassin, Paris, Seuil, col. Chemins de Pensee, 1992, pp. 114-48. Ver tambem
Jacques Taminiaux, La fille de Thrace et Ie penseur professionnel: Arendt et
Heidegger, Paris, Payot, 1992, para a discussao a proposito de Arist6teles.
.
dade, as duas quest6es sao, na visao moderna, apenas uma. Como se
a definic;ao de ser humano em contraposic;ao ao animal encontrasse
sua plena atualizac;ao "conosco", as modernos, que nos sabemos, segundo certos auto res, "livres", segundo outros, "racionais", contudo
os dois criterios convergem naquilo em que os dois se op6em, conforme
esteticas distintas, as mesmas "ilus6es" de pertinencia e de determina-
78
Ironia au humor?
5
Construindo
79
<;3.0. Ora, a problematiza<;ao da "grande divisao" entre opiniao e razao que a leitura "politica" de Arist6teles produz encontra seu analo-
o relato de Strum apresenta uma busca de pertinencia ao cabo da qual
ela deve, uma vez que se define como cientista, sustentar que seu estudo
go na problematiz~
e 0 animal e, seguramente, a primatologia. A primacologia elassica
aderia it tese da grande divisao, visco que se atribuia a missao de iden-
dos babuinos imp6e que deelare suas observa~6
como incompativeis
com a ideia de uma submissao a regras estabelecidas na especie.
Se os babuinos "fazem politica" no sentido de que nao param
de constituir suas sociedades, 0 que se passa, podemos perguntar, com
tificar as regras as quais obedecia a organiza<;ao especifica de urn grupo de primatas, chimpanzes ou babufnos, por exemplo. Nesse sentido, a sociedade primata era 0 sonho do "soci61ogo" tal como eu 0
as formigas ou os ratos? "Onde deverfamos localizar com certeza os
primeiros passos do comportamento politico? Deverfamos excluir os
insetos sociais sob pretexto de que as negocia<;oes maiores tern lugar
defini: urn objeto cuja estabilidade e garantida pela identidade da especie, it qual estao subordinados tanto os individuos como suas rela-
antes da apri~o
dos fenotipos?,,8 A esta questao em cascata, uma
so resposta e solida, aquela que se relaciona com 0 problema das palavras que aquilo com que nos deparamos nos obriga a empregar. Por
da grande divisao entre 0 humano e 0 animal.
o ambito privilegiado em que se discute a divisao entre 0 homem
<;oes. Ora, certos primatologos contemponineos prop6em uma "heresia" bern interessante. Os babufnos sao "superdotados sociais", con-
ora, foram os primatas que puderam obrigar seus especialistas a neles
eluiu Shirley Strum, apos sua estadia entre eles6 . Os babuinos por ela
observados lhe parecem, em sua atividade, nao parar de criar respostas
reconhecer explicitamente urn comportamento de tipo politico. Em
contrapartida, nao puderam (ainda?) impor-Ihes palavras que reconhe-
as quest6es colocadas a seu respeito pela primatologia classica: quais
sao os aliados, como fazer aliados, a quem recorrer para ser aceito,
<;am neles a presen<;a de uma atividade "espeeulativa", de estrategias
de quem desconfiar. Eles nao se cansariam de negociar e renegociar
ciedade a criar ou a manter. Neste sentido, 0 "polit6logo" dos primatas
poueo se distingue do "etnometodologo", para 0 qual sao as rela<;oes
entre os atores que constroem ininterruptamente a sociedade, exceto
que nao se trata aqui de "metodologia". Apenas os humanos, por ora,
puderam impor aos seus especialistas urn estado de controversia permanente quanto questao de saber 0 que vern antes, os atores ou as
estruturas. Porque sao eles que impuseram a si mesmos diferencia<;oes
"pesadas" como a que desqualifica explicitamente certos atores sociais
seus papeis, suas rela<;oes mutuas, suas redes de alian<;as, os testes que
identificam 0 aliado confiavel ou 0 poem em causa, em suma, a estru-
tura de sua sociedade. Em outros termos,
0
primatologo deve aban-
donar a pesquisa dos invariantes aos quais os indivfduos obedecem na
qualidade de membros de uma sociedade, para acompanhar a constru~ao
de urn liame social na medida em que ele e, para os primatasatores, urn problema e nao urn dado.
Notar-se-a que emprego aqui uma estrategia do tipo "popperiano", no sentido de que Popper caracterizava os tres mundos a partir
da difern~a
entre as quest6es que eles obrigam a formular. Seguramente, os babuinos nao se dirigiram a Shirley Strum para pedir-Ihe que identificasse neles urn comportamento politico e nao ficaram escandalizados
de ver este pedido recusado pelos primatologos elassicos. Voltaremos
individuais levando em conta ativamente uma
no~a
abstrata de so-
a
na qualidade de atores politicos (as mulheres, escravos e estrangeiros
entre os gregos, os tra balhadores imigrantes e os menores de idade,
entre nos)9.
a essa interessante diferen<;a que singulariza as rela<;oes que os seres
humanos tern com seus interpretes, cientistas ou na0 7 . Nao obstante,
aos crentes, urn etn6logo culpado, na opiniao deles, per ter descrito 0 seu ritual
(suspender por ganchos presos as cOstas voluntarios longamente preparados e
"miraculosamente" insensiveis a dor) de urn modo que nega a presenr;a de Deus,
confirmada, para eles, por essa insensibilidade. E preciso refletir antes de protestar contra 0 esdndalo obscurantista.
Shirley Strum, Presque humain: voyage chez les babouins, Paris, Eschel,
1990.
Shirley Strum e Bruno Latour, "Redefining the social link: from baboons
Social Science Information, vol. XXVI, 4, 1987, pp. 783-802, em
especial, p. 797.
7 Destaquemos no entanto urn desdobramento curioso dessa diferenl';a. Os
frades de Kataragama, no sui do Sri Lanka, processaram com sucesso, por insulto
9 Em "Redefining the social link: from baboons to humans", op. cit., Shirley
Strum e Bruno Latour ressaltam que 0 "handicap" dos babuinos em relar;ao a
8
6
80
Construindo
to humans",
Ironia au humor?
81
A INVEN<;:Ao POLtrICA DAS clliNCIAS
mente tolerantes, ou mesmo indiferentes, para com os meios utiliza-
dos por seus interpretes para dar conta desta distn~ao.
Eles mesmos
N6s estamos, aparentemente, bern longe da questao das ciencias.
Estariamos tao longe assim? Quer se trate da ind gna~ o
dos cientistas face i ideia de que sua atividade possa ser reduzida a urn objeto
da sociologia ou da questao da difernca~o
entre aqueles que tern
e sim objeto de conflito. Dai 0
e mais uma questiio de oa~terp ni
interesse de uma abordagem po/itica dessa ,oa~nitsd
uma abordagem
autoridade para intervir num debate cientffico e as que devem ser exclufdos, a questao evidentemente posta e a da distinc;ao entre ciencia
que permita criar urn espa.;o problematico em que a constru~a
da
difer n~a
entre ciencia e nao-ciencia podera ser acompanhada, do mes-
e opiniao. 0 que esta em jogo nessa questao toda da autonomia das
ciencias e a distinc;ao entre aqueles que tern 0 direito de intervir nos
debates cientificos, de propor criterios, prioridades, questoes, e aqueles que nao tern esse direito. A opsi~a
dos cientistas a toda sociologia das ciencias pode entao ser entendida em termos politicos. A singularidade dos primatas expressa-se, como vimos, pelo fato de que
puderam impor aos primat610gos a nao-pertinencia de urn olhar que
mo modo que 0 polit6logo pode acompanhar as conseqiiencias, na vida
politica, da inve~ao
grega da politica como problema.
Apontar urn cenario problematico de modo algum autoriza a
adiantaram a esse respeito toda sorte de interpreta.;oes, do positivisrno
puro a busca mistica. Questionar a distin.;ao, em contrapartida, nao
redu.;ao das solu~e
que vern nele se inscrever a urn criterio unico.
Os eventuais tra.;os comuns, as rela~os
de semelhan.;a remetem acompar ~ o
entre solu~e,
destas solu~e.
nao a uma identfca~o
do problema a partir
0 que significa igualmente que a analise dos testes nos
quais sao inventadas as solu~e
as submetesse aos c6digos e regras dos quais seus comportamentos seriam decorrentes; a singularidade das comunidades cientfficas manifesta-se, por sua vez, no faro de que elas exigem de seu mcio que este
vir de regra? - nao confere ao analista nenhuma superioridade a priori,
reconh ~a
nenhuma posi~a
a distn~ao
entre os resultados de sua atividade e a totalidade das outras produ~ es
humanas.
Tanto quanto nao se pode reduzir a politica humana i dos babufnos, as "polfticas da razao" que eu procuro caracterizar tambem
naD sao redutiveis aos jogos de pader aos quais associamos hoje a
"polftica politiqueira". Reconhecer uma dimensao polftica constitutiva das ciencias e, antes de tudo, compreender por que 0 conflito entre as ciencias e seus interpretes e previsivel assim que esses ultimos
comecem a julgar, ou seja relativizar, a distn~ao
entre ciencia e naociencia. Os cientistas, ao longo de sua historia, mostraram-se notave1-
de tipo politico -
res legitimos? como sao selecionadas as seo~ipr
quem sao os ato-
que possam ser-
firme de julgamento. Este pode submeter-se a urn
"principio de simetria", mas isto no sentido de que se trata de uma
exigencia que ele volta contra si mesmo, de urn teste que ele se impoe
a fim de tentar escapar aos julgamentos da hist6ria da qual e herdeiroo Mas nao no sentido de que isto the conferiria urn direito de julgar,
de reconduzir as difern~as
a urn "mesmo" compartilhado igualmen-
A multiplicidade, como multiplicidade de
te por todas as .seo~ul
inventadas, nao confere superioridade alguma a quem a desvenda como tal. Ela antes institui uma rela~o
de proximidade com
seo~ul
aqueles que, por nao compartilharem os testes que inventamos para
nos mesrnos, nos parecem, a nos modernos, tao faceis de ser desqua-
lificados. E aqui cruzamos 0 caminho de ]amais fomos modernos, gra~as
ao qual Bruno Latour pode, exito diffcil, colocar como perspecti-
nos, que constitui igualmente a dificuldade do oficio de primat610go, e a precarie
dade dos vinculos: estes devem ser incessantemente alimentados, postos aprova,
confirmados. A "sociedade" dos babuinos seria neste sentido mais complexa que
a nossa, em que marcas estabilizam os vinculos, estratificam as interac;6es e portanto simplificam 0 trabalho de situar relativamente os indivfduos, uns em relac;ao
aos outros. Nesse sentido, sao os individuos humanos que se caracterizam entao
por sua (relativa) obediencia, por sua submissao aos simbolos de autoridade e legitimidade. Mas tambem, sem dtivida, os primatas cativos que vivem em urn universo estavel e delirnitado, onde se tornam capazes de criar novos tipos de vinculos,
especialrnente os que nos levam a discutir a questao de saber se eles "falarn".
nao sabiamos ainda» que ea Terra que gira ao redor do Sol para aquela
82
Ironia ou humor?
M
Construindo
va para os novos testes que teremos de inventar 0 fato de que "nos
nao estamos tao longe dos pre-modernos".
Epor isso, alias, que a historia das ciencias constitui-se no teste
por excelencia para as praticas hist6ricas. Porquanto tambern 0 historiador esta tentado a se acreditar "moderno", herdeiro da grande
divisao politica entre pratica cientifica e opiniao. Com 0 intuito de
inserir na historia, por exemplo, a passagem da epoca em que "nos
83
temporaneos: a Terra e indubitavelmente urn planeta. 0 que aconte-
dpio exige do autor uma referencia (estavel ou dinamica) a uma transcendencia, urn poder de julgar mais lucido, mais universal, que garanta
sua diferenc;a com relaC;ao aos autores que ele estuda.
humor, por sua vez, e uma arte da imanencia. Nos nao podeentre ciencia e nao-ciencia em nome de uma
mos avaliar a difern~a
transcendencia que nos definiria a nos mesmos como livres em rela-
ceu com as nossas historias humanas quando
Sol estabeleceu com
,ao a ela, so sao livres aqueles que permane,am indiferentes a ela. Mas
elas essa nova rela,ao que nos proibe, daqui por diante, de duvidar
esta dependencia em que nos encontramos em relac;ao a ela em nada
em que "nos sabemos", ele pode imaginar suficiente uma soluC;ao "modesta" que consistiria em complicar 0 relato habitual, mostrando-se
que a "descoberta" nao tern a simplicidade Ifmpida que nos lhe atri-
bufmos. Mas parar por af nao esuficiente, pois 0 historiador nao deixa em suspenso as certezas que ele mesmo compartilha com seus con0
que e a Terra e nao 0 Sol que "gira"? E em que medida ele proprio,
como historiador, nao seria a herdeiro das transformac;oes sociais,
politicas, eticas, afetivas, esteticas par que todos nos passamos, cientistas au nao, e que, no frigir dos ovos, permitem dizer: "E preciso ser
louco, dramaticamente ignorante, espfrito de porco au retardado cul-
tural para par em duvida 0 movimento da Terra"?
Por isso Bruno Latour pode fazer da historia social da construC;ao dos saberes cientfficos 0 eixo de sua argumentac;ao segundo a qual
"nos nunca fomos modernos" . 0 que implica, correspondentemente,
que so podenl escrever esta historia
historiador que souber 0 que
significava para ele "ter sido moderno", sem por isso denunciar 0 que
0
ele foi, desvendar as seo~aciftsm
e ilus6es de que foi vftima. Quer dizer,
sem opor as verdades construfdas pelas ciencias uma outra verdade de
maior poder - mesmo que na forma da nega,ao a priori de toda verdade que nao se reduza a uma crenc;a "como as outras".
o
diminui nossos graus de liberdade, nossa escolha quanto a maneira de
acompanharmos os problemas criados pela elabora,ao dessa diferen,a. A situa,ao e a mesma que a do politologo que sabe que seu problema nao teria nenhum sentido se os gregos nao tivessem inventado
uma "arte da poHtica". Ele mesmo e produto desta invenC;ao, que ele
nao pode, por conseguinte, reduzir a nada. Todavia esta livre para par
em historia esta invenc;ao.
Ironia e humor constituem, neste sentido, dois projetos politicos
distintos de discutir as ciencias e de provocar 0 debate com os cientistas. A ironia contrapoe 0 poder ao poder. 0 humor produz, na medi-
da em que consegue produzir-se, a possibilidade de uma perplexidade compartilhada, que estabelece efetivamente uma igualdade entre
aqueles que consegue reunir. A esses dois projetos correspondem duas
vers6es distintas do principio de simetria, instrumento de oa~uder
vetor de incerteza.
ou
Chamarei de "humor" a capacidade de se reconhecer como produto da historia cuja construc;ao procuramos acompanhar, e isto num
sentido em que 0 humor se distingue antes de tudo da ironia.
Como bern mostrou Steve Woolgar 10, a leitura sociologica das
ciencias de tipo relativista confere ao seu especialista uma postura
"ironica". Ele e aquele que nao se deixa enganar, que ini desvendar
as se6~nti
das ciencias. 0 especialista sabe que encontrara sempre
entre ele e os cientistas a mesma diferenc;a de ponto de vista, aquela
que garante que ele conquistou, de uma vez por todas, os meios de os
entender sem se deixar impressionar. Certos autores podem preconizar uma leitura "ironica" de seus proprios textos visto que estes sao
Do ACONTECIMENTO
Existe urn conto talmudico muito bonito que mostra tres rabi-
nos defrontando-se com a interpreta,ao de uma passagem da Lei 11.
o rabino Eliezer, para fazer prevalecer seu ponto de vista, recorre aos
milagres: uma alfarrobeira e arrancada da terra, urn rio se poe a correr ao contra.rio, as paredes da sinagoga se inc1inam, mas nenhum
tambem cientificos (ironia dinamica). Ocorre que a posi,ao de prin-
desses argumentos e considerado admissivel. 0 rabino Eliezer faz entao urn apelo ao Altissimo e uma voz celestial confirma sua autoridade. Contudo, 0 rabino Josue se levanta e cita 0 Deuteronomio: a Tora
10 "Irony in the social study of science", Science observed, Karin KnorrCetina e Michael Mulkay (orgs.), Londres, Sage Publications, 1983, pp. 239-66.
11 Aggadoth du Talmud de Babylone: la source de Jacob, trad. Arlette £1kaim·Sartre, Lagrasse, Editions Verdier, col. Les Dix Paroles, 1982. pp. 887-8.
84
Construindo
Ir-onia ou humor?
85
"nao esta nos ceus". 0 Altfssimo entregou 0 texto aos homens para
que eles 0 discutissern. Ele nao tern rnais que intervir na discussao da
significa<;ao desse texto.
A escansao, 0 acontecimento constitufdo pela doa<;ao do texto
divino faz a diferen<;a entre 0 antes e 0 depois, mas qual e essa diferen<;a? Sobre 0 que, ate onde, como essa diferen<;a se instala? a acon-
Na medida em que 0 acontecimento nao tern em si mesmo 0 poder
de ditar a maneira como devera ser narrado, nem as consequencias que
Ihe poderao atribuir, nao tern tambern 0 poder de selecionar seus narradores. Figurarn entre estes tanto aqueles que tentarao aumentar ao
maximo 0 alcance e os direitos que 0 acontecimento autoriza, quanta
os que procurariio minimiza-Ios. Quem empreender esse trabalho tera
tecimento nao 0 diz ecabe a tradi<;ao judaica dizer-nos que e assim
que deve ser. Urn grande numero de atores, que foram todos, a urn ou
outro titulo, produzidos pelo texto, tratarao de tirar suas li<;6es. To-
por unica restri<;ao identificar em que ele e herdeiro do que aconteceu, em que 0 acontecimento 0 situa, queira ele au nao (d. a retorsao
a qual a relativista em materia de ciencias se exp6e quando pede urn
das se localizam no espa<;o que ele abriu, nenhuma pode redamar uma
rela<;iio de verdade privilegiada com ele.
A no<;iio de acontecimento que acabo de introduzir permite pre-
exame de tomografia ou a prescri<;iio de antibioticos), ou seja, de se
cisar as posi<;6es relativas entre os cientistas e seus interpretes. 0 ponto
decisivo, aqui, nao e rnais 0 de negar as diferen<;as pretendidas pelos
cientistas, mas evitar toda forma de descreve-Ias que implique urn conhecimento privilegiado dos cientistas quanto ao que significam essas
diferen<;as que os singularizam.
o acontecimento abre esta perspectiva se declararmos que, cria-
reconhecer como construtor da hist6ria que se segue ao acontecimento, urn dentre outros construtores de significado.
Esse carater indeterminado do acontecimento estabelece 0 sen-
tido da diferen<;a, da qual partimos, entre filosofos e cientistas, face a
descri<;iio de Thomas Kuhn. as cientistas reconheceram ai 0 quinhiio
do acontecimento e se reconheceram, eles mesmos, como praticantes
de uma ciencia normal, 'Isuscitados pelo acontecimento". Os fil6so£os, em contrapartida, exigiarn mais: exigiam que a historia suscitada
acontecimento nem por isso e portador de signifi-
pelo acontecimento fosse capaz de estabelecer sua legitimidade. En-
ca<;ao. A inven<;ao da "arte da politica" pelos gregos foi urn acontecimento, criou uma diferen<;a, mas a significa<;ao que essa difern~a
vai
assumir, as solu<;6es trazidas ao problema aberto, os comentarios e as
criticas que essas solu<;6es suscitarao, fazem parte dos desdobramentos do acontecimento e nao de seus atributos. 0 acontecimento nao
se identifica com os significados que os que 0 seguirem elaborarao a
seu respeito e nem mesmo determina a priori aqueles para quem 0
acontecimento fara. uma diferen<;a. Ele nao tern nem representante
contramos af 0 contraste proposto por Gilles Deleuze entre "funda<;ao"
[fondation] e "fundamento" [fondement]: "A funda<;iio diz respeito
ao solo e mostra como algo se estabelece sobre este solo, ocupa-o e
dele toma posse; mas 0 fundamento vern antes do ceu, vai da cumeeira
as £unda<;6es, mede 0 solo e 0 possuidor urn pelo outro conforme urn
privilegiado nem alcance legitimo. a alcance do acontecimento faz
parte dos seus desdobramentos, do problema posto no futuro que ele
direitos dos cientistas de possuir 0 "solo" que ocupam. Ele se convence,
cria. Sua dimensao torna-se objeto de interpreta<;6es multiplas, mas
do como cienti£ico e capaz, em caso de controversia, de deterrninar a
op<;ao que 0 "verdadeiro cientista" deveria escolher. Na perspectiva
dor da diferen<;a,
0
ela pode tambem ser auferida pela propria multiplicidade destas interpreta<;6es: todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, se referem a ele inventam urn modo de se servir dele para montar sua propria posi<;ao, dao sequencia ao acontecimento. Em outros termos, toda
leitura, mesmo aquela que denuncia e diz a falsa aparencia, situa de
titulo de propriedade"l2.
o relativista ironico nao para de citar e comemorar 0
fracasso
dos filosofos do fundamento. Nenhum titulo de propriedade mede os
para sua propria satisfa<;iio, de que nenhum procedimento reconheci-
que eu defendo, 0 alcance da demonstra<;iio e nulo pois ela supae que
o acontecimento de funda<;iio possa dar conta de si mesmo. a que
sabem os cientistas, que eu procuro singularizar - excluindo-se portanto as produtores sistematicos de artefatos "em nome da ciencia"
novo aquele que a propae na qualidade de herdeiro, como pertencente
ao futuro que 0 acontecirnento contribuiu para criar, e nenhuma pode
pretender "provar" que, na verdade, nada de especial se passou. 50mente a indiferen<;a "prova" os limites do alcance do acontecimento.
86
Construindo
12 Gilles De1euze, Difference et repetition, Paris, PDF, 1972, p. 108 [ed.
bras.: Diferenfa e repetic;iio, Rio de Janeiro, Graal, 1988J.
Ironia ou humor?
87
ou "em nome da objetividade" - , 0 que sua tradic;ao Ihes diz e que a
fundac;ao ja ocorreu diversas vezes, que os solos foram ocupados, ou
5.
A CIENCIA SOB 0 SIGNO DO ACONTECIMENTO
seja, tambern que 0 acontecimento pode ser repetido. Nenhuma conduta por mais racional que seja, nenhuma submissao a urn criterio, seja
ele qual for, assegura essa repetic;ao. Mas esta nao acharia 0 terreno
onde se produzir se os cientistas nao agissem com vistas asua .oa~udrp
Se pudermos arriscar urn paralelo com a teoria da gra~
(uma
interessante teoria do acontecimento), eu localizaria ai a posic;ao dos
cientistas fora tanto da dura perspectiva de Sao Paulo e Santo Agostinho, na qual so Deus decide, sejam quais forem as ,se6~a
as vontades
e os trabalhos humanos, quanto da doce perspectiva semipelagiana,
segundo a qual a gra~
responde invariavelmente ao movimento da
alma em oa~erid
a Deus (0 que permite afirmar que, ainda que 0 homem seja incapaz, sem a grac;a, de alcanc;ar a salvac;ao, basta urn primeiro movimento, de que e capaz, para que 0 caminho da salvac;ao
lhe seja franqueado). Eles se localizam muito mais na perspectiva inventada pela monadologia de Leibniz: nenhum ser finito tern 0 poder
de saber como agir, a incerteza reina sem apelo; mas nos sabemos que,
de uma maneira ou de outra, este e0 melhor mundo possivel; a unica
atitude coerente eportanto tentar estar em harmonia com 0 principio
da escolha de Deus no que diz respeito ao mundo, de procurar 0 meIhor de que somos capazes, esperando que a conretiza~
desse meIhor fa~
parte da defin~ao
divina do mundo. A ideia do melhor dos
mundos possiveis corresponde aqui a ideia de se6~iopr
cujo carater cientffico poderia ser decidivel. Sem garantia nem promessa de
EM BUSCA DE UM RECOME<;:O
Colocar a questao da ciencia sob
aceitar -
0
signa do acontecimento e
contra os crithios a-historicos de racionalidade -
a possi-
bilidade de urn paralelo com a maneira pela qual Gilles Deleuze e Felix
Guattari caracterizam a filosofia como processo contingente.
A filosofia nasceu na Grecia. Caberia atribuir a singularidade
historica grega 0 poder de explicar este fato? Caberia, ao contrario,
remeter essa singularidade as se6~idnoc
gerais que permitiram ao pensamento descobrir-se a si mesmo, condic;6es para urn nao-aconteci-
mento, para a passagem a realidade de urn possivel que so tire de si
mesmo seus direitos e deveres? A filosofia grega, respondem Deleuze
e Guattari em a que ea filosofia?, nao era mais "amiga" da cidade,
do que a filosofia moderna e amiga do capitalismo, porem nem a cidade nem 0 capitalismo sao contextos "neutros" para uma filosofia
cuja existencia seria entao legitimada por urn imperativo universal a-
historico. 0 filosofo, na cidade grega, leva ao extremo 0 problema de
sucesso. Porem nao sem precedente.
Resta, evidentemente, compreender 0 tipo de acontecimentos
que, para os cientistas, criam urn precedente, e compreende-los de
modo que nos permitam acompanhar a construc;ao das ciencias sem
ratifica-Ia nem denuncia-Ia, apreciar 0 envolvimento e a paixao dos
uma comunidade de homens que querem ser livres e rivais. Por que
trac;o reconhecer 0 verdadeiro amigo do pensamento ou do conceito?
cientistas sem perder a possibilidade de rir. Com humor ou ironia,
a opiniiio? A todas essas quest6es, as da filosofia plat6nica, a vida da
cidade oferece bern mais do que urn contexto, pois elas nao teriam tido
conforme
0
modo como eles pr6prios se situam no interior da tradi-
~ao
cientifica: conforme inventem os meios para prolonga-Ia ou procurem sua chancela para desqualificar os obsticulos interpostos ao
seu prolongamento.
Como diferencia-lo de seus rivais simuladores? A que testes submeter
seus enunciados para os distinguir da opiniao? Como esses testes traduzem 0 poder inerente ao conceito de afirmar sua diferenc;a para com
sentido alhures ou antes, entretanto constituem urn acontecimento:
inventadas pela cidade para outros problevoltam contra as se6~ulo
mas as exigencias de urn problema que essas se6~ulo
nem impunham
nem previam, mas das quais elas constituiram 0 campo de invenc;ao.
A ideia de processo contingente exclui a explicac;ao, que transforma a descric;ao em deduc;ao, assim como 0 arbitrario, que se apo-
dera da contingencia para declarar de maneira monotona que nada
88
Construindo
A<.iencia sob
0
signo do acontecimento
89
ocorreu, que os significados construfdos, os problemas engendrados
equivalem-se todos por serem todos relativos aos seus contextos. 0
processo contingente nos convida a "segui-Io", cada seqiiencia sendo
ao mesmo tempo prolongamento e reinvenc;ao. "Recomec;o contingente
de urn mesmo processo contingente, com outros dados... 1
Como caracterizar a hist6ria das ciencias modernas como processo contingente? Nao basta falar, como Kuhn, da existencia contingente
de sociedades que admitiram ou respeitaram a autonomia das comuni-
dades cientificas. Tampouco basta assinalar, a exemplo de Kuhn, 0
advento contingente de urn paradigma. Nos dois casos, a contingencia
presidiria 0 advento de urn processo, que a partir do momento em que
encontrou a oportunidade para sua estreia, ganha uma necessidade
propria. Para evitar ratificar aquilo que e, e 0 conjunto das ciencias
modernas, as que sao e as que poderiam ser, que me cabe tentar interpretar, ou seja, tambem prolongar, inventar, "recomec;ar com outros
dados". Por isso me e necessario, a esse respeito, inventar uma nova
forma de espanto, urn ponto de interroga,ao que nao me condene a
privilegiar as ciencias experimentais e a identificar urn "motivo", no
duplo sentido, musical e desejante, que singularizaria "a ciencia", a
tornaria capaz de vir a ser certamente nao objeto de definiC;ao, mas
materia da historia.
Meu espanto assim como minha motivac;ao me van remeter a
Galileu. Como ocorreu com tantos outros, pois a obra cientffica de Galileu, mas tambem 0 "caso Galileu", sua condenaC;ao pela Igreja, constituem a referencia quase obrigat6ria dos relatos de origem da ciencia
moderna. E essa referencia nao eurn artefato historico: 0 proprio Galileu mostra-se perfeitamente consciente do fato de que, com ele, algurna coisa de novo estava em vias de se concretizar. Sua obra publica
consagra urn acontecimento, nao somente urn "novo sistema do mundo", mas tarnbem uma nova maneira de argumentar a qual ele confe-
re 0 poder de fazer os adversarios cairem no ridiculo e de obrigar Roma
a se curvar e a mudar a interpretac;ao das Escrituras. Em outros ter-
mos, Galileu nos apresenta ao mesmo tempo 0 problema de urn acontecimento e uma primeira exploraC;ao de seus seguimentos, da signifi-
ca,ao que Galileu, tal como ele e criado-situado-produzido pelo acontecimento, the confere.
Que motivo de assombro vern a tona a proposito de Galileu? Eu
gostaria de situa-Io "antes" da controversia astronomica e, portanto,
do "caso" Galileu propriamente dito. Considero, pelo menos numa
primeira abordagem, que Galileu-astronomo se inscreve numa hist6ria nao inventada por ele. Certamente, a luneta permite-Ihe observac;5es
inacessfveis a outros e, em conseqiiencia, argumentos originais. Porem
basta ouvir 0 tom ansioso de Kepler que suplica por uma luneta, que
daria sua alma por uma luneta, para conduir que, apesar das con-
troversias que suscitou, a utiliza,ao da luneta por Galileu nao foi suficiente para singulariza-lo. A obra de Galileu-astronomo pode, sem
grandes dificuldades, ser avaliada pelo historiador que puser 0 problema de suas recusas - aquelas das elipses de Kepler, por exemplo
-
e admire a temfvel inteligencia de seus argumentos. Em contra-
partida, diante da obra do Galileu criador da descri,ao matematica
do movimento acelerado dos corpos pesados, 0 historiador hesita.
Como contar a criaC;ao daquilo que, no essencial, os ffsicos sempre
aceitam, que sempre se ensina nas escolas? Como historiar 0 que parece ter, desde entao, resistido a hist6ria? Como explicar que, quando n6s nos deparamos com urn plano indinado, nos somos sempre urn
pouco contemporaneos de Galileu?
Este poderia ser meu motivo de assombro: essa forc;a de uma obra
que permaneceu estavel, capaz de levar a melhor sobre a relatividade
das opinioes e dos pontos de vista. Este foi 0 motivo de assombro de
muitos filosofos desde 0 momenta em que, a come,ar por Kant, eles
avaliaram 0 que a ciencia que come,a com Galileu implica e impoe:
urn novo tipo de verdade. Contudo e exatamente 0 exemplo de Kant
que nos avisa dos perigos desse assornbro, dos caminhos aos quais ele
nos leva. Porque 0 problema kantiano - como retraduzir para urn
modo filosoficamente admissivel 0 fato de que Galileu (e Newton) parece indubitavelmente ter feito a natureza falar, ter-Ihe feito confessar suas leis? - manifesta uma desproporr;ao assombrosa com 0 que
Galileu efetivamente fez: descrever urn movimento cujo prototipo e a
descida de bolas bern polidas ao longo de urn plano inclinado bern liso,
ou a oscila,ao eterna de urn pendulo ideal.
Meu motivo de assombro ver-se-a, portanto, ligeiramente des-
Gilles Deleuze e Felix Guattari, Qu'est-ce que la philosophie?, Paris, Editions de Minuit, 1991, p. 94 red. bras.: 0 que ea filosofia?, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992J.
locado: como compreender, seja qual for 0 interesse de bolas que rolam ou do pendulo que oscila, que nos, herdeiros como Kant do acon-
90
Aciencia sob
1
Construindo
0
signo do acontecimento
91
tecimento de sua descri<;ao, sejamos tao facilmente levados a descreve-
10 como "a descoberta das leis do movimento", e nao, por exemplo,
como "a identifica<;ao pd.tica da classe (restrita) dos movimentos ace-
lerados que tern por prot6tipo 0 movimento pendular OU a queda dos
corpos na ausencia de atrito"?
Passemos agora ao motivo que me parece singularizar as ciencias modernas como tais. Se a epistemologia normativa malogrou na
identifica<;ao de urn criterio· de demarca<;ao entre ciencia e nao-ciencia, e precise reconhecer que a busca de tal criterio poderia parecer
justificada. A partir do momento em que Galileu constitui a referencia para
0
que chamamos desde entao "a ciencia moderna", poder
na<;ao,o risco. Se a resposta aquestao "e isto cientifico?" e uma constru<;ao dos cientistas, isto nao e fruto de urn acordo entre os cientis-
tas, decidindo entre oles 0 que urn observador desvinculado sabe reconhecer como permanentemente indecidivel. 0 olhar que ve 0 mesmo, 0 indecidivel, ali onde aquoles que 0 olhar observa tern por raziio
de ser criar a diferen<;a, e 0 olhar do poder.
De fato, como mostrarei agora, 0 ceticismo relativista, que reconduz ao mesmo, ao indeciclivel, a diferen<;a que 0 cientista pretende criar nada tern de novo. Constitui ate, se poderia dizer, a "cena primordial" onde nasceu a singularidade do que chamamos "as ciencias
modernas".
diante do qual urn outro poder, 0 da Igreja, deve se inelinar, a questiio
"e isto cientffico?" torna-se a questao decisiva, aquela que atrai as
paixoes e estimula a inven<;iio, aquela da qual depende, aparentemen-
o PODER DA oA~clF
te, a razao de ser das ciencias. Esta questao nao se identifica com a da
validade ou falsidade de uma proposi<;iio, ela a precede, 0 que Popper
tinha apropriadamente percebido, quando tinha, desde 0 come<;o, se
recusado a identificar proposi<;iio cientifica com proposi<;iio valida.
As normas que a questao "e isto cientifico?" parece evocar, se
niio podem ser identificadas pelo epistem610go-juiz, seriam elas por
isso simples afirma<;oes que 0 soci610go ironico teria liberdade para
interpretar, ou seja, reduzir a "urn repertorio de discursos disponiveis
para justificar as a<;oes levadas a efeito por razoes completamente diver-
sas,,?2 Em outras palavras, Galileu teria "fabricado" a referencia aciencia para tentar veneer 0 poder romano? au entao Galileu e sua /uta
contra Roma foram suscitados pelo acontecimento que econstituido
pela possibilidade de se afirmar "isto e cientifico!"? E esta segunda
perspectiva que tentarei adotar. Nessa perspectiva, 0 que singulariza
a ciencia nao e a submissao a criterios que definiriam uma conduta
cientifica. a "motivo" comum, retomado em moldes e regimes pd.ticos diferentes, repete a inven<;ao que torna deciclivel- num momento e num terreno clados - a resposta a questao: "E isto cientifico?".
Evidentemente, nos nao acertamos as contas com 0 ironizador,
que poded., e logico, apontar ai uma notavel tautologia: e cientifico 0
que os cientistas, num dado momento, decidem que seja. A postura
E no curso da terceira jornada do Discurso a respeito das duas
ciencias novas que Galileu, sob
0
disfarce de Salviati, seu porta-voz,
enuncia a defini<;iio do movimento uniformemente acelerado do qual
gostaria de entender como e por que "tornou-se urn acontecimento":
"Eu digo que urn movimento e igualmente ou uniformemente acele-
rado quando, partindo do repouso, ole recebe momentos iguais de
volocidade". 3 Niio e destituido de interesse ver como 0 pr6prio Galileu
vai apresentar
0
acontecimento, ou seja, como vao reagir os interlo-
cutores que Galileu deu a Salviati, Sagredo e Simplicio. A questiio e
tanto mais interessante visto que houve mudan<;a nos papeis de Sagredo
e de Simplicio entre 0 Did/ogo e 0 Discurso, escrito apos sua conde-
na<;iio, entre 1633 e 1637.
No Didlogo, Simplicio representa todos os adversarios de Galileu,
enquanto Sagredo e 0 homem de born senso, aque!e com 0 qual os
leitores devem se identificar. Estrategia, de resto, de uma temivol efidcia, porque quando Sagredo, esquecendo sua suposta imparcialidade, se alia com Salviati para cobrir de insultos 0 infeliz Simplicio, e com
ele todos os que representa, os leitores sao arrastados ao mesmo tem-
po a cometer urn verdadeiro linchamento intolectual. A verdade de tipo
novo inventada por Galileu se anuncia abertamente no Did/ogo como
do humorista, que tento fazer minha, leva em conta a paixao, a obsti-
2
92
3 Galileu, Discours concernant deux sciences nouvelles, Paris, Armand Colin, 1970, p. 131.
Trevor Pinch, Confronting Nature, op. cit., p. 18.
Consrruindo
A_cjencia sob
0
signo do acontecimento
93
uma verdade de combate, confirmando-se pela sua capacidade de fazer calar ou de ridicularizar aqueles que a contestam. Mas, na minha
hipotese de leitura, que privilegia a ciencia do movimento em oa~ler
acontroversia astron6mica, eia Se anuncia tambem de maneira quase
clandestina. A compsi~a
do Didlogo concentra a aten~o
na questao astron6mica, e e a seu servi'ro, especialmente para mostrar que a
Terra poderia estar em movimento sem que nos nos dessemos conta,
que sao apresentados as enunciados sabre 0 movimento.
No Discurso 0 tom mudou. Galileu tinha sido condenado. Envelhecido, ele sabe que sua morte esta proxima. Escreve clandestinamente para leitores que nao conhecera. Escreve para 0 futuro, para seus
sucessores mais que para 0 publico. Teoremas, se6~iopr
e corolarios
se alinham em ordem apropriada. Simplicio e Sagredo tornaram-se simples coadjuvantes, apondo as questaes e opondo as sea~jbo
de que
Galileu tinha necessidade para ressaltar a novidade e a signfca~o
do
que propunha.
Quando Galileu enuncia sua defin~ao
de movimento uniformemente acelerado, e Sagredo que reage: "Ainda que nada tenha, racionalmente falando, contra esta defini<;ao ou contra outra qualquer, seja
quem for 0 autor, vista que elas sao radas arbitra.rias, possa entretanelato duvidar, que se diga sem vos ofender, que uma tal defin~ao,
borada e aceita in abstracto, se adapte e convenha ao tipo de movi-
Esta constatac;ao nos autoriza a que? A nada, se se tratasse de
construir uma tese historica. A urn pouco mais, se nos lembrarmos que
Sagredo nao e urn autor, e sim urn personagem de fic~ao,
e traduz por
conseguinte 0 diagnostico oferecido pelo proprio Galileu nao sobre uma
situac;ao "neutra", mas sobre 0 ponto de encontro otimo entre a forc;a e novidade de sua exposic;ao e as reac;oes do publico instrufdo, as
"sabios" aos quais ele se dirige. No Didlogo, Sagredo nunca deixou
de tirar as conclusoes mais realistas das demonstrac;oes astronomicas
de Salviati, que nao cessava de Ihe recomendar prudencia. Galileu podia
portanto sustentar que ele mesmo (Salviati) nao encorajava, e sim
desestimulava aqueles excessos contrarios as decisoes de Roma. Nao
era sua culpa se 0 "publico", representado por Sagredo, recusava-se
a olivi-lo. No Discurso, onde se trata ·de ciencia, nao de sistema do
mundo, Galileu parece antecipar uma rea~o
bern diferente do publico
bern diferente que ele busca interessar. Ele deve impor-se "malgrado"
de temer - toda proposio ceticismo relativista que ira acolher -
e
~ao
abstrata, seja quem for
0
autor.
A reac;ao "relativista", que Galileu apresenta, guarda analogia
com 0 argumento que a Santa Se tinha contraposto a suas proprias pre-
tensaes. Monsenhor Oreggi, que se tornou 0 teologo pessoal do papa
Urbano VIII, nos deixou
0
testemunho da entrevista que este, entao
0
cardeal Maffeo Barberini, teve com Galileu depois da primeira condena~ o
de 1616. "Ele Ihe perguntou se estava alem do poder e da
sabedoria de Deus dispor e mover de urn ou outro modo as orbes e os
que deve primordialmente ser desfeito, decorra de uma reac;ao cetica.
Seu enunciado pode ser confundido com uma defin~ao
abstrata, que
remeta a urn autor no sentido em que este autor, seja quem for - nao
astros, e isto, no entanto, de tal sorte que todos os fenomenos que se
manifestam nos ceus, que tudo 0 que se ensina no tocante ao movimento dos astros, sua ordem, sua situac;ao, suas distancias, sua dis-
mento acelerado ao qual os pesados obedecem ao cair naturalmente" .4
Parece portanto que Galileu espera que
0
principal mal-entendido,
ha lugar para ofensas - nao tern 0 poder de franquear a distancia entre
posi~a ,
a abstrac;ao que ele criou e
caem naturalmente.
mar que Deus nao
0
mundo onde, notadamente, os corpos
possam nao obstante ser resguardados. Se 0 senhor quer afir0
poderia fazer, cabe-Ihe demonstrar, acrescentou
o santo prelado, que tudo isto nao poderia, sem implicar contradi~,
Em Outros termos, Sagredo e urn "relativista" antes do tempo:
nenhum autor de sea~iopr
abstratas tern meios de arrolar a natu-
ser obtido por urn sistema distinto do que
reza por testemunha para obter uma decisao favoravel, no que diz
respeito a sua verdade. A rivalidade dos pontos de vista humanos,
puramente humanos, e intransponfvel. Toda definic;ao e arbitd.ria.
sabio, conclui monsenhor Oreggi, permaneceu em silencio.
Toda definic;ao, diremos,
4
94
e uma ficf-ao, que remete a urn autor.
pode, com efeito, tudo
0
que nao implica contradi~.
0
senhor concebeu; Deus
»5
0 grande
Que Urbano VIII, reconhecendo seus argumentos no final do Didlogo, na boca de Simplicio, tenha considerado que Galileu pretendia
5 Citado em Pierre Duhem, Sozein ta phainomena: essai sur la notion de
theorie physique de Platon a Galilee, Paris, Vrin, reeditado em 1982, p. 134.
Idem, pp. 131-2.
Construindo
A ciencia sob 0 signo do acontecimento
95
ridiculariza-Io, porquanro tudo 0 que Simplicio diz e por defini<;ao ridiculo, pertence il legendatia historia da condena<;ao de Galileu, so-
dos fatos e ao raciocinio logico (fazendo-se funcionat
bre a qual
e da ordem da fic,ao, mais ou menos bern consttuida, "elaborada no
abstrato". Em outros tetmos, a defini<;ao logicista da ciencia contta a
qual Poppet ttavou guerta, aquela que considetava proposi<;ao cien-
DaD
me deterei. 0 argumento, em contrapartida, me inte-
ressa porque ele destroi a apresenta<;ao elaborada pelo proprio Galileu
e com excessiva freqiH:;ncia retomada por aqueles que procuram caracterizar a singularidade das ciencias ditas modernas. Os adversarios
de Galileu nao foram somente os herdeiros retatdararios de Aristoteles, 0 que teria pot efeito colocar a Idade Media entre parenteses. A
verdade anunciada por Galileu
DaD
tern apenas que
Sf
impor contra
outra verdade que ela contradiga. Devia antes de mais nada impot-se
e
contra a ideia de que todo conhecimento geral, "abstrato", essencialmente uma ficc;ao, au seja, que naD cabe ao pader cia razao humana
encontrar a razao das coisas, quer esta remeta ardem das causalidades aristotelicas au amatematica.
a
Sabe-se que quando Barberini, fututo papa Utbano VIII, evoca
a onipotencia de Deus, "Deus pade tudo que nao implica contradic;ao",
ele tetoma 0 celebte atgumento de Etienne Tempiet, bispo de Paris,
que, em 1277, condenou com base nisra 0 canjunro das teses CO$-
0
ptincipio da
nao-contradi\ao que ate Deus respeita) a partir dos fatos constatados,
tifica uma proposi\ao logicamente derivada dos fatos, nao era mais
do que a unica forma de conhecimento nao-ficticio segundo as pres-
cti<;6es de Tempiet. Ora, de Poppet a Feyerabend, de Lakatos a Kuhn,
o grupo de autores que percorremos esta de acordo num unico ponto: a pratica cientifica nao se conforma a essas prescri\oes; nenhum
"fato" intervindo no raciocinio "cientifico" e "constatavel" de modo
neutro e nenhum raciocinio cientifico se reduz a uma opera\ao 10gicamente admissivel sobre os "fatos"; todos comportam uma parte
de "elabora\ao no abstrato".
Que pensar do carater aparentemente tao contempora.neo do
debate com que nos depatamos na otigem das ciencias modernas? E
antes de tudo, patece-me, 0 indicio do fato de que, entte a Antiguidade e esta origem, moderna, algo ocorreu. Se os gregos tivessem sido
mo16gicas ll:ascidas da doutrina aristotelica. Foi em particular conde-
confrontados com
nada a proposi<;ao segundo a qual "Deus nao poderia imprimit ao Ceu
ausencia de restri\oes, eles, sem duvida, teriam denunciado a feiura
urn movimento de transla\ao", porque a demonstra\ao desta propo-
da hybris, do orgulho que excede todo limite, da decisao despotica que
si<;ao repousava sobre 0 absutdo da hipotese do vazio cuja cria<;ao tal
movimento implicaria. 0 absurdo nao e a contradi\ao. 0 que para nos
patece absutdo talvez nao 0 seja para Deus. A autoridade do argumento
que teCOtte ao absurdo temete il ideia de uma racionalidade que podetia
valer-se, de uma maneira ou outra, do poder de fazet a diferen<;a en-
tira sua gloria do arbitrio. Eu nao discutirei aqui nem as diversas maneiras pelas quais os fil6sofos - e eu penso certamente em primeiro
lugar em Leibniz - tentaram restituir ao Deus despota as virtudes da
sabedoria, nem tampouco a espinhosa questao de saber como contar
tre 0 possivel e 0 impossive!, 0 conveniente e 0 inconveniente,
0
imagi-
navel e 0 inconcebivel. E este poder que a referencia il onipotencia do
divino autor da cria\ao vern refutar. Se Deus tivesse desejado, 0 que
nos parece normal nao 0 seria, 0 que nos parece inconcebivel ou miraculoso seria a norma. A onipotencia de Deus exige que pensemos em
tisco latente, que ousemos por exemplo, como 0 fez Samuel Butler em
Erewhon, pensat que uma sociedade teria podido existir na qual a enfermidade e a rna sorte seriam severamente punidas, enquanto os crimes
e os delitos atrairiam a piedade e os cuidados medicos mais atentos.
Se entre os mundos ficcionais imaginaveis e 0 nosso mundo nenhuma outra diferen\a pode ser legitimamente invocada, a nao ser a
unica vontade de Deus, que escolheu criar este mundo e nao os outros,
todo modo de conhecimento que nao se resume a mera constata\ao
96
Construindo
0
postulado da onipotencia divina, definido pela
a histotia que ctia esta figura do poder em rela<;ao il qual a tazao humana e instada a se posicionar. Para Pierre Duhem, fisico-filosofo, e a
gloria propria do cristianismo a de ter criado, contra as certezas da
tradit;ao, uma distancia dramatica entre verdades necessarias e verda-
des de fato, que e possivel negar sem contradi<;ao. Para 0 filosofo Etic
Alliez, essa histotia e antes de mais nada a das cidades onde, desde 0
final da Idade Media, a difeten<;a entte 0 possivel e 0 impossivel passa a set uma questao de vontade, de especula<;ao, de espitito empreendedor, rebelde a tudo 0 que pudesse fazer coincidit POt ptincipio 0 que
e com 0 que deve ser 6 . De resto, num caso como este, provavelmente,
6 Eric Alliez, Les temps capitaux, t. I - Recits de fa conquete du temps,
Paris, Les Editions du Cerf, 1991 [ed. bras.: Tempos capitais, vol. 1- Relatos
da conquista do tempo, Sao Paulo, Siciliano, 1991].
A cRncia sob
0
signa do acontecimento
97
nao ha escolha a fazer. Se as palavras e os atores se apoiam na autori-
dade da fe crista, eles naa nas revelam par que e este apaia que pro-
mas igualmente aquila que etas proprias contribuiraa para estabilizar
para me/hor dele se distinguir. Em outros termos, a contingencia da
curam e encontram na fe.
origem - e cabe lembrar que 0 ceticismo nominalista esta, certamente,
Ressaltemas entretanto que a enunciada da bispa Tempier, que
pronuncia estas palavras e atualiza esta autoridade, depende de uma
problematica po/{tica: trata-se de administrar a "heran~
grega", paga,
lange de definir tatalmente a pensamento medieval- naa define aqui
(no caso presente,
que retoma, ou seja, decidir que partes desta a~nreh
sera a 16gica, quer dizer, as matematicas) podem ser consideradas como
produto de uma "razao nua", nao contaminada pelo paganismo, e que
outras devem ser consideradas como suspeitas, marcadas por sua ori-
uma "oportunidade" que podera em seguida ser esquecida, mas se
encontra presa pela 16gica processual que a constitui como uma de suas
:se6~idnoc
quando se der 0 "novo uso da razao", na qual proponho
identificar a singularidade das ciencias modernas, ela implicara e afir-
mara a incapacidade da razaa de vencer sozinha 0 poder da
fic~ao.
gem paga. Urn problema que mantem analagia cam a questao maderna
das seo~alr
entre ciencia "pura" e ideologia.
Seja como for, nao se deve subestimar a importancia deste fato:
a Idade Media criou uma nova figura de ceticismo, uma figura em que
esse tra~o,
que provavelmente esta presente em todas as se6~azilvc
humanas, nao e mais formulado por urn pensamento minoritario, que
aceita 0 risco da exc1usao ou da marginalidade, mas por urn pensamento que mantem os vinculos explicitos nao somente com 0 poder,
mas com uma dimensao repressiva do poder. Este ceticismo que desqualifica aquilo que nao se submete as suas normas negativas, em vez
de solapar, por sua conta e risco, a evidencia, pode faze-Io porque se
UM NOVO
usa DA RAZAo?
que eu acabo de fazer nao ambiciona 0 titulo de
A apresnt~o
verdade hist6rica, mas 0 de oa~urtsnc
de urn ponto de vista a partir
do qual as ciencias modernas possam inquestionavelmente ser com-
preendidas como processo contingente. Que Galileu tenha delibera-
impasta pela propria pader, que candena cama
damente suscitado, no momento em que entrega aposteridade a ciencia do movimento uniformemente acelerado, uma referencia ao que
eu chamo de "poder da fic~ao"
seria para mim entao 0 signa do acontecimento: a for~a
e a novidade de seu enunciado residiriam em poder operar um curto-circuito no argumento que apresenta este poder,
erroneo, do ponto de vista da fe, todo uso da razao que limite a abso-
em poder opar-lhe urn contra-poder que cale os ceticas... inclusive os
luta liberdade de Deus. De mada carrelata, este pensamento imp6e
coma harizonte intransponivel de nassas argumentas 0 pader da fic-
relativistas de hoje. "Recom~ar
com outros dados."
Entre esses outros dados, figura primeiramente a nova insepa-
faO, 0 poder que a linguagem tern de inventar "argumentos racionais"
rabilidade entre ciencia e fic~ao.
que submetem os fatos, que criam ilus6es de necessidade, que produzem a aparente submissao da munda a defin~6s
"elabaradas no abstrata". Toda defin ~a
au tada explica~
que, ultrapassanda as fa-
seria da ambita da
apoia numa
caer~
tos e a 16gica, pode, por isso mesmo, ser inculpada de oa~prus
da
plena liberdade de Deus, j:i cedeu aa pader da fic~a.
Que este pader da fic~a
tenha se tornado a principal arma das
relativistas contemporaneos, que os louvadores positivistas da raciona-
lidade cientifica tenham tentada provar que esta naa caia sab seu alcance, que 0 proprio Sagredo a ele tenha recorrido, indica que 0 argumento pode adquirir uma plausibilidade autonoma, nao sendo mais
necessaria para apoia-Io a referencia "exotica" a onipotencia divina.
Na perspectiva que eu elabaro, e esta evidencia da poder da fic~a
constitui nao apenas
98
0
"campo de "oa~nevi
que
das ciencias modernas,
Construindo
Nenhuma
zao podenl mais garantir a difern~a
fic~ao.
util za~ o
legitima da ra-
entre 0 que ela permitiria e 0 que
Diferentemente da filosofia moderna do-
minante, que busca urn "sujeito" filos6fico suficientemente depurado,
suficientemente despojado de tuda aquila que 0 leva afic~ao
para poder
oferecer esta garantia, as ciencias positivas nao exigem de seus enun-
ciados que eles sejam de essencia distinta das criaturas de .a~cif
Elas
exigem - e e a "motivo" das ciencias - que se trate de se6~cif
muito
especiais, capazes de fazer calar aqueles que pretendessern que "isto
nao passa de ."oa~cif
Este e, a meu ver, 0 primeiro sentido da afirrnaoa~
"isto e cientifico". Por isso a busca de normas era va. A decisao
quanta "ao que ecientifico" depende, sem sombra de duvida, de uma
politica constitutiva das ciencias, porgue ela tern par escopo os testes
que qualificam urn enunciado entre outros enunciados, pretendentes
Ac.iencia sob
0
signa do acontecimento
99
e rivais. Nenhum enunciado obtem sua legitimidade de urn direito
epistemo16gico, que desempenharia urn papel analogo ao direito divino da politica tradicional. Todos pertencem a ordem do possivel, e
56 se diferenciam a posteriori, consoante uma 16gica que DaD eaquela
do juizo, em busca de urn fundamento, e sim a cia fundac;ao: "Aqui,
nos podemos" .
o acontecimento galileano lido desta forma pode igualmente dar
sentido ao espanto cuja repro aceitei. Pais seria realmente um novo
c'U50
da rawo", capaz de fazer 0 que DaD se acreditava mais set passive!,
Galileu sofreram diferentes modifica<;oes, mas seus autores sao cientistas, pertencendo a ciasse daqueles que se reconhecem como seus
descendentes. Estas modifica<;aes tern portanto estatuto de progresso.
Em contrapartida, logo que se trata do "porque", 0 cientista admite
que a cena se preencha com todos aqueles que haviam sido excluidos:
os fil6sofos e mesmo pessoas comuns (se uns sao admitidos, como
excluir as outros!). Ele nao mais exige exclusividade, porem exige, e
claro, que 0 "porque", que e uma questao de todos, seja 0 "porque"
cujo "como" ele identificou. Quando se trata do universo segundo
que os enunciados comemorariam transpondo alegremente a distan-
Hawking, por exemplo, que 0 fi16sofo que pensa 0 futuro ou 0 acon-
cia entre as bolas polidas deslizando par urn plano inclinado liso e a
"natureza". 0 que e apresentado como reconquistado de direito, se
nao (ainda) de fato, e precisamente 0 que acreditavamos perdido: a
poder de fazer a natureza falar, OU seja, de estabelecer a diferen<;a entre
"suas" razoes e aquelas que a fiCl;;:ao tao facilmente cria a seu respeito.
Falta determinar a que singularidade 0 enunciado de Galileu, a
tecimento se cale. A cena em que ele tera. enfim direito a voz sera de-
0 fato de DaD ser "somente uma
fiq:ao" .
Esta questao foi freqiientemente respondida de modo generico.
Destarte, todos disseram e repetiram, a ciencia do movimento de Galileu seria nova no sentido de que ela nao diz por que os corpos pesados caem como caem, mas indica somente como caem. Esta oa~nitsd
esta ainda presente nos dias de hoje. Quando Stephen Hawking anteve
o "fim da fisica", a montagem da equaC;ao que nos did. 0 que e 0 universo, ele se apressa em encenar urn ate final, em que filosofos, cientistas e pessoas comuns se reunirao para discutir "por que" 0 universo e tal qual e, e por que nos outros, que 0 identificamos, existimos. E
entao, e somente entao - caso tenhamos conseguido nos por de acordo
a esse respeito - , que iremos conhecer 0 pensamento de Deus?
Este exemplo e suficiente para mostrar que a questao do "como"
nao pode se confundir com uma humilde tomada de posi<;ao, fiadora
em si mesma de uma diferenc;a entre ciencia e ficc;ao. Trata-se antes
de rnais nada de urn principio de divisao do direito a voz. Tao longe
quanto possa ir quando inventa as modalidades da questao "como",
e com outros cientistas que 0 cientista trabalha. Os enunciados de
proposito dos carpas que caem, cleve
7 Stephen Hawking, Une breve histoire du temps, Paris, Flammarion, 1989
led. bras.: Uma breve hist6ria do tempo, Rio de Janeiro, Rocco, 1988].
100
Construindo
finida pela equa<;ao que permite afirmar que
0
universo
E.
o "como" cientffico nao tern portanto outros limites a priori que
os das questoes reconhecidas com ou sem razao, como cientificas. 0
"porque", nesta cena, nao pode ser autonomamente formulado. 56
transcende 0 "como" na aparencia: primeiro precisa descobrir junto
a este ultimo ao qual ele est:i autorizado a endere<;ar-se.
A diferencia<;ao entre como e por que nao e portanto uma divisao simetrica, mas uma distinc;ao entre urn poder dinamico, aquele da
ciencia, e 0 restante que, em conseqiiencia, nao cessa de se reformu-
lar. Urn imbroglio que encontrou suas regras quando Kant entregou
ao poder da ciencia 0 conjunto do mundo fenomenico, inclusive
0
su-
jeilO na qualidade de "patoI6gico", quer dizer, explic:ivel por razaes,
por motivos, por opini6es, por paix6es: tudo aquilo de que 0 sujeito
"agente", "livre", "inteligivel" deve se abstrair para determinar 0 que
deve fazer s .
o novo "uso da razao" que 0 acontecimento galileano consagra
possui, portanto, dois aspectos interessantes. Ele inventa, a respeito
das coisas, urn "como" que define 0 "porque" como seu resto. 5eleciona aqueles que poderao participar da discussao do "como", de sua
extensao e de suas modifica<;aes, e define os outros, fil6sofos e pessoas comuns, como aqueles que vern depois, num quadro estruturado
por uma divisao estabilizada entre 0 que e "cientifico", assunto dos
8 A possibilidade de dizer simultaneamente que 0 sujeito e "patoI6gico",
ou seja, que aquilo que fez e explidvel, e que ele e "livre", isto e, que de poderia nao te-Io feito, e a solu~a
que Kant prop6e na Critica da razao pura ("Soluoa~
das ideias cosmo16gicas que fazem derivar de suas causas a totalidade dos
acontecimentos do mundo").
A ,:i~nca
sob
0
signo do acontecimento
101
cientistas, e 0 restante. Esses aspectos sao, ambos, politicos. 0 primeiro
diz respeito as coisas e prescreve a maneira como convem trata-Ias. 0
e contra esse poder que a ciencia deve se diferenciar e gra~s
segundo se destina aos seres humanos e distribui as competencias e as
responsabilidades neste tratamento. Roma, afirma Galileu, nao deve
ela define-desqualifica tudo 0 que nao e ciencia.
Em seguida Galileu-autor, ou seja, 0 trio gra<;as ao qual ele ex-
entrar no territorio das ciencias, pois somente elas estao habilitadas a
discutir qual deles, a Terra ou 0 Sol, gira em torno do outro. 0 "criterio de demarca\ao" que os disdpulos de Popper buscaram em vao
definir e portanto indubitavelmente consubstancial aciencia. Mas seu
merito nao se deve ao uso "racional" da razao, e sim a demarca\ao
poe seus argumentos, desaparece. Irao se suceder teoremas, coroHrios,
proposi\oes e problemas. Uma sucessao que poucos historiadores relativistas, como Feyerabend, se atreveram a comentar, mas na qual 0
fIsico, par sua vez, sente-se perfeitamente a vontade: a diferenc;a esta
definida, e 0 "seu" Galileu come\a a trabalhar. "Reduzam isto a sociologia" , tentem mostrar em que e por que e relativa a resposta de
dos territ6rios fortificados contra 0 poder da fic,ao por aqueles que
se inscrevem na tradi<;ao inaugurada por Galileu.
Mas como Galileu provaria que sua fic<;ao nao e uma fic<;ao como
as outras? Que argumento opos ele it obje<;ao de Sagredo, que desconfia
que sua defini\ao do movimento acelerado e arbitraria, como todas
as defini<;oes elaboradas no abstrato? Ele aceita de born grado a obje\ao, e faz inclusive dizer a Salviati que se trata de urn problema que
ele ja discutiu com 0 autor (Galileu). Depois, ele precisa 0 que entende por "momentos de velocidade". a relato de Galileu estabelece aqui
A conduta de Galileu exige portanto a afirma<;ao do poder da fic<;ao:
a ele que
Galileu a esse problema, por exemplo: "Dados uma perpendicular e
urn plano inclinado tendo a mesma altura e mesma extremidade superior, encontrar sobre a perpendicular e acima da extremidade comum urn ponto tal que urn move!, ao descer e prosseguir em seu movimento sobre a plano inclinado, percorrera esse plano no mesmo
intervalo de tempo em que ele atravessa a perpendicular, partindo do
repouso" (Problema XII). Galileu desapareceu para ceder a "palavra"
itquele que fara calar os outros. Entra em cena 0 plano inclinado.
uma ruptura de estilo com a qual se verao confrontados os historia-
dores que 0 tomarem por objeto: hii 0 Galileu cujas "ideias" a prop6sito do movimento procurarnos reconstituir, e 0 Galileu que, doravante,
se explica pessoalmente e cujas teses, que correspondem as nossas, convern aparenternente parafrasear. Urn Galileu que se da ate ao luxe de
se fazer historiador de suas pr6prias ideias, das dificuldades que "no
come<;0,,9 teve de enfrentar. Galileu elabora em seguida a diferencia\ao entre as causas da acelr~o
(0 "porque"), acerca das quais "fi16sofos diferentes exprimiram diferentes opini6es", "irnaginac;6es" cujo
exame nao teria "grande proveito", e as propriedades do movimento
acelerado, com relac;ao as quais ele vai mostrar - e isto que esta em
jogo - que se aplicam realmente "aos pesados animados de urn movimento de queda naturalmente acelerado".
Em outros termos, Galileu nao somente expos a obje<;ao de Sagredo e 0 "poder da fic\ao" que ele irnplica, mas tambem reclama este
poder para desqualificar aquilo que, com rela<;ao ao movimento, e uma
questao de opiniao, e anunciar
0
que sera materia de demonstra\ao.
9 Discours concernant deux sciences nouvelles, op. cit., p. 132, e depois as
pp. 135-6.
102
Construindo
a PLANO INCLINADO
Segundo Stilman Drake, foi em 1607 que Galileu se tornou 0
"nosso" Galileu 10 . Eem 1608, pelo menos, que aparece em suas anota\oes de trabalho urn esquema que fez correr muita tinta historiografica. Se, segundo Drake, esse esquema tern por autor 0 "nosso"
Galileu 11, para outros ele e0 seu registro de nascimento. Em todo caso,
trata-se de urn "n6", de uma experiencia efetivamente realizada, com
rela<;ao it qual quem a levou a cabo devia ou bern ja saber ou bern
10 Nao retomarei aqui a discussao entre Pierre Duhem, Alexandre Koyre e
Stilman Drake sobre as raizes medievais das concepc;6es galileanas e sobre a rna·
neira pela qual convem ler a famosa carta de 1604 em que Galileu anuncia pela
primeira vez que ele detem a definic;ao matemcitica do movimemo acelerado, como
todas as experiencias observadas confirmam, e ele "se engana". Para tudo isso,
ver Isabelle Stengers, "Les affaires Galilee", Elements d'histoire des sciences, Paris, Bordas, 1989, pp. 223-49.
11 Ver Galileo at work: his scientific biography, Chicago, The University
of Chicago Press, 1978.
A ciencia sob
0
signo do acontecimemo
103
perceber na experiencia, "como" convem descrever 0 movimento dos
corpos que caem 12.
o esquema que figura it folha 116v representa as disrancias entre
o ponto de impacto no solo e a borda de uma mesa de onde cairam as
bolas que, antes de rolar sobre a mesa, (provavelmente) desceram ao
longo de urn plano inclinado colocado sobre esta mesa: Galileu, com
nos calculos que figuram no texto entre
efeito, estabelece uma oa~lerc
as distancias do solo e as alturas verticais de onde a bola caiu antes de
rolar sabre a mesa 13. Em todo caso, a esquema articula tres tipos de
movimento: 0 primeiro movimento de queda, que s6 e caracterizado
pe!a altura da queda,
0
movimento horizontal sobre a mesa e 0 movi-
mento de queda livre, caracterizado, por sua vez, pela distancia hori-
zontal que a bola consegue percorrer (para uma mesa de altura dada).
Esse esquema representa urn dispositivo experimental no sentido moderno do termo, urn dispositivo do qual Galileu e 0 autor, no
sentido estrito do termo, visto que se trata de uma montagem artificial,
premeditada, produtora de artis factum, de artefatos no sentido positivo. E a singularidade desse dispositivo, como veremos adiante, e que
ele permite ao seu autor que se retire, que deixe 0 movimento testemunhar em seu lugar. E0 movimento, encenado pelo dispositivo, que
fara calar os outros autores, que desejariam compreende-lo de outro
modo. 0 dispositivo opera, portanto, em urn duplo registro: "fazer
falar"
0
fenomeno para "calar" os rivais.
Aquilo de que
0
fenomeno assim encenado e testemunha nada
tern de trivial. Os tres tipos de movimento que ele articula sao carac-
terizados de tres modos distintos. A primeira queda permite caracterizar 0 move! como tendo ganho uma velocidade e sugere que a velocidade ganha seja determinada somente pela altura da queda. 0 movimento horizontal e caracterizado como uniforme e 0 dispositivo
prop6e atribuir-Ihe como velocidade (no sentido tradicional de rela-
12 E preciso destacar, portanto, que, ainda que 0 Discurso siga ao Did/ago, ele relata trabalhos que tiveram lugar antes da disputa astronomica com Roma.
Por isso nada impede de pensar que 0 Galileu polemista, que resolve fon;ar Roma
a se inclinar diante da verdade heliod~ntrca,
nasceu no laborat6rio, conseqtiencia entre outras daquilo que eu chamo de "acontecimento galileano".
13 A bola deve ter descido ao longo de urn plano inclinado, porque se Galileu
a tivesse deixado cair, ela teria quicado em lugar de prosseguir de maneira (aproximadamente) continua seu movimento sobre a mesa.
104
Construindo
~ao
entre distancia percorrida e tempo que se levou em percorre-la) a
velocidade ganha por ocasiao da queda precedente. 0 terceiro movimento, 0 da queda livre, so pode medir essa ve!ocidade se for admitido que ele e composto de dois movimentos que nao interferem entre
si, 0 movimento acelerado de queda vertical, num tempo que depende
somente da altura da mesa, e 0 movimento horizontal uniforme que
prossegue durante
0
mesmo tempo.
o dispositivo de Galileu nao somente articula tres tipos de movimento diferentes, como tambem pressup6e e afirma a possibilidade
de definir tres conceitos distintos e articulados de velocidade: a ve!ocidade no sentido em que e!a e ganha, ligada a urn passado em que 0
movel mudou de altura; a velocidade no sentido em que 0 corpo a
"tern" em urn momento dado, e, por exemplo, ao cabo desta queda,
no momento em que
0
corpo passa do plano inelinado it mesa hori-
zontal; e a velocidade do movimento que caracteriza
0
movimento
horizontal, uniforme, do movel. 0 dispositivo prop6e uma rela<;ao operacional de equivalencia entre essas tres velocidades: a ve!ocidade instantanea que caracteriza 0 move! no final de sua queda e igual itquela
que e!e ganhou no passado e e tambern igual itque!a que no futuro ira
caracterizar seu movimento uniforme.
Explicitei tudo
0
que 0 dispositivo de Galileu implica e afirma a
fim de mostrar que a "lei do movimento" nao esta vinculada aobserva~ o,
mas e relativa a uma ordem de "fato" criada, a urn artefato de
laboratorio. Porem esse artefato tern uma singularidade:
0
dispositi-
vo que 0 cria e igualmente capaz nao certamente de explicar por que
razao 0 movimento pode ser assim caracterizado, e sim de impedir qualEle pode com efeito variar os tres movimenquer outra carteiz~o.
tos que 0 constituem: altura e deelividade do plano inelinado, disrancia entre 0 fim do plano e a borda da mesa, altura da mesa. A toda
contes a~ o
pode-se imediatamente inventar uma resposta (se for 0 caso
gra<;as a dois pianos inelinados ou a uma compara<;ao entre queda livre parabolica e queda livre vertical).14 0 dispositivo pode portanto
ser visto como gerador de urn conjunto de casos, respondendo cada
qual a uma possive! duvida, e reafirmando invariavelmente que somente
a descri<;ao de Galileu Ihe e fiel. Os diferentes movimentos de queda
14 E 0 que foi encenado por Didier Gille e Isabelle Stengers em "Faits et preuyes: fallait-ille croire?", Les Cahiers de Science et Vie: Les -Grandes Controverses
Scientif;ques, nO 2, "Galilee: naissance de la physique", abri11991, pp. 52-71.
A-ciencia sob
0
signa do acontecimento
105
que se observa derarn lugar a urn movimento ao mesmo tempo unico
e decomponfvel em termos de varidveis independentes, controlaveis
pelo operador e capazes de fazer 0 cetico admitir que existe uma unica maneira legftima de articula-los.
mum, por exemplo, a ffsica e as matematicas. Ora, a abstr~o
traduz aqui nao urn procedimento geral, mas urn acontecimento: 0 triunfo
local, condieional e seletivo sobre 0 cetieismo. Abstrata, nessa acep~o
geral, separavel dos corpos moveis que ela qualifiea, era mais a no~a
Nada disso figura evidenremenre a folha 116v, e Galileu inventou outras cenas bern mais pitorescas no Did/ogo. Mas 0 dispositivo
criado em 1608 faz existir em laboratorio 0 mundo que Galileu abre
medieval de velocidade: de-me um meio de medir
aos seus leitores em termos de experiencias de pensamento. Pode-se
certamente dizer que se trata de urn mundo abstrato, idealizado, geometrizado. Mas nao se tera dito nada, pois se estarci simplesmente, re-
petindo a obje,ao cetica de Sagredo: e apenas um mundo que responde a uma defini,ao elaborada no abstrato. A questao e antes saber 0
que foi abstraido, 0 que singulariza essa fic,ao. 0 mundo fictfcio proposto por Galileu nao e somente 0 mundo que Galileu sabe como
questionar, e urn mundo que ninguem pode questionar de um modo
outro que 0 dele. E urn mundo cujas categorias sao praticas visto que
derivam do dispositivo experimental que ele inventou. E na verdade
urn mundo concreto no sentido em que este mundo permite acolher a
quantidade de fic,6es rivais que dizem respeito aos movimentos que
o comp6em e estabelecer a diferen,a entre elas, definir aquela que 0
representa de maneira legitima.
o mundo de Galileu surge como "abstrato" porque muitas coisas foram nele eliminadas, das quais 0 dispositivo experimental nao
permite definir as categorias. Todavia, a "abstr~o
e neste caso a
cria~o
de urn ser concreto, entrecruzamento de referencias, capaz de
e voce poderci esquecer a difern~a
0
espa,o e 0 tempo
entre a pedra que eai,
0
passaro
que voa ou 0 cavalo que, esgotado, ja sem f6lego, vai logo desabareu the direi sua velocidade, a rela,ao entre 0 espa,o percorrido e 0
tempo que se levou a percorre-Io. Para Galileu nem todos os movimentos sao iguais. Seu dispositivo permite encenar 0 movimento da pedra,
mas nao 0 do passaro. A velocidade dos corpos galileanos - a velocidade que, diriamos hoje, define a dinamica classica - e inseparavel
dos moveis que ela define, ela pertence unicamente aos corpos galileanos, a esses corpos definidos pela existencia de urn dispositivo experimental que permite sustentar, face a multiplicidade concreta das
pro si~6e
rivais, que essa ve10cidade nao seja somente urn modo
dentre outros para definir 0 comportamento desse corpo.
A abstr~o
nao e 0 produto de uma "maneira abstrata de ver
as coisas". Ela nada tem de psicologico ou de metodologico. Ela diz
de uma pratica experimental que a distingue de
respeito a inve~ao
uma fie~ao
entre outras, ao mesmo tempo em que "eria" urn fato que
singulariza uma classe de fenomenos entre outros. Por isso a diferen~a entre 0 que pode ser "objeto de "oa~tnesrp
eo que pareee "eseapar" a repsnta~o
nao pode estar fundado a priori numa teoria,
filosofica au nao. Fundar signifiea sempre referir-se a urn criterio que
calar os rivais daquele que 0 concebe. Sagredo nao se calou porque
teria ficado impressionado pela autoridade subjetiva de Salviati, nem
tampouco porque teria sido levado, por uma pratica intersubjetiva
qualquer da discussao racional, a reconhecer 0 bem-fundado da defini,ao proposta. 0 dispositivo experimental fez Sagredo calar-se, impediu-o de opor uma outra fic,ao aquela que Salviati prop6e, porque
pretende escapar a hist6ria para constituir-Ihe a norma. Antes de Galileu, quem teria defendido como "representavel" a velocidade galileana, uma velocidade instantanea pela qual um corpo nao percorre
nenhum espa,o em nenhum tempo? Quem acredita poder "represen-
era precisamente esta a sua fun~ao:
fazer calar todas as outras fic~5es.
Ese, depois de tres seculos e meio, ensinamos ainda as leis do movimento galileano e os dispositivos que permitem encena-Io, pianos in-
seja de uma partfcula? As ciencias nao dependem de uma possibilidade de representar que caberia a filosofia fundar, elas inventam as possibilidades de representar, de constituir um enunciado (que nada a
priori distingue de uma fic,ao) na qualidade de representa,ao legiti-
clinados e pendulos, e que ate aqui nenhuma outra interpreta,ao conseguiu desfazer a asoci~
inventada por Galileu entre 0 plano in-
clinado e 0 comportamento dos corpos pesados.
Quando falamos de "representa,ao cientffica abstrata", referimo-nos com excessiva freqiiencia a uma no~a
106
geral da ,oa~rtsb
tar" a luz, que nao e nem onda oem particula, mas que pode, segundo as eircunstancias, eorresponder a repsnta~O
seja de uma onda
rna de urn fenomeno. Como Bruno Latour ressalta, a "repsnta~o
cientffica tem aqui um sentido mais proximo do que ela tem na politica do que daquele que ela tem na teoria do conhecimento.
co-
Construindo
1\ ciencia sob
0
signa do acontecimento
107
6.
Se devemos definir 0 novo tipo de "verdade", para 0 qual a definit;ao matematica do movimento criada por Galileu me serve de modelo, seria precise pensar numa verdade negativa antes que na celebre distint;ao entre como e por que: uma verdade cujo primeiro sentido e de resistir ao teste da controversia, de nao poder ser inculpada
da ciencia exde ser apenas uma fict;ao entre outras. A ~'autoride"
FAZER HIST6RIA
perimental, sua pretensao a objetividade nao tem outra fonte alem da
negativa: urn enunciado adquiriu - numa dada epoca, e claro, e nao
no absoluto - os meios de demonstrar que ele nao If uma simples fic-
VERDADE NEGATIVA
c;ao, relativa as intent;5es e as convict;5es de seu autor. Mas 0 enunciado
Pode-se perceber nas ciencias modemas a invem;ao de uma pnitica
original de oa~iubrt
da qualidade de autor, tirando partido dos dois
sentidos que ela contrapoe: 0 autor, como individuo animado de inten~6 s,
de projetos, de ambi~6es,
e 0 autor que encarna autoridade.
Trata-se naD de uma ingenuidade, que os teoricos contemporaneos cia
literatura, por exemplo, poderiam criticar, mas de uma regra do jogo
e de urn imperativQ cia invenc;ao. Todo cientista se reconhece, e a seus
colegas, como "autor" no primeiro sentido do termo. 18to pOlleD importao 0 que importa e que seus colegas sejam obrigados a reconhecer que
nao podem fazer dessa qualidade de autor urn argumento COntra ele,
que nao podem localizar a falha que lhes permitiria afirmar que aquele
que tern a pretensao de "ter feito a natureza falar" na verdade falou
e
em seu lugar. Este 0 proprio sentido do acontecimento constituido
pela inve~ao
experimental: a inven(ao do poder de conferir as coisas
a poder de conferir ao experimentador a poder de falar em seu nome.
Pode-se compreender porque Karl Popper estava convicto de que
ele atingia urn aspecto essencial da pritica
com 0 tema da falsif ca~ o
cientifica experimental. Ele viu claramente que 0 desafio (e portanto
a possibilidade de principio) da falseabilidade era crucial. 0 que, sem
e
duvida, ele viu menos claramente que naD Sf tratava de uma decisao
que urn cientista estaria livre para assumir a prop6sito de uma proposit;ao teorica. De igual modo, com a nOt;ao de "estratagema Convencionalista", ele viu claramente que 0 poder da fic~ao
era aquilo contra 0 que 0 cientista se define. 0 que ele nao viu claramente e que a
nao se diferencia da
fic~ao
por nada alem do que seu poder de fazer
calar as rivais.
enunciado experimental e portanto mudo quanto ao seu alcance positivo. Tanto mais que 0 rival que ele condena ao silencio nao e
qualquer urn. E aquele que aceita uma situat;ao de controversia, quer
o
dizer, 0 desafio do dispositivo experimental. 0 dispositivo de Galileu,
por exemplo, e incapaz de calar aquele que se recuse a considerar que
o movimento dos objetos pesados tern algum interesse, aquele para
quem compreender a movimento, significa em primeiro lugar com-
preender
0
crescimento das plantas ou
0
galope de urn cavalo. Este
"exclui-se a si mesmo" do laborat6rio, do local que reline as rivais em
tomo do dispositivo experimental que irao por a prova. Contudo,
nao se limita a estabelecer a difern~a
processo de oasulcxe-~
0
entre "cientistas" e "nao-cientistas". Ele nao tern outros criterios que
o da dina mica mesma dos campos cientificos que se formam ao pro-
duzi-lo.
E urn processo que se trata de seguir, no sentido de que ele e
a urn s6 tempo alvo e produto, criat;ao da coletividade dos "colegas",
cujas objet;5es, as criticas, 0 interesse sao reconhecidos como pertinentes 1. Os outros, que 0 aceitem au nao, permanecern, como os filosofos e os historiadores, "fora do laboratorio", s6 podendo nele entrar
onde a invent;ao experimental nao teve lugar, sejam quais forem as boas
0 poder da fic~ao.
1 Esse processo pode, de resto, constituir-se num problema para os proprios
cientistas, quando a selel;ao-exclusao e feita muito radicalmente. E 0 caso, hoje
na fisica, das altas energias, em que a sel~aoxcu
e incorporada ao proprio
dispositivo experimental: 0 tratamemo informatico dos dados e dirigido pela teoria
que qualifica os diferentes acontecimentos e s6 retem aqueles que julga significativos. Nesse caso, os proprios fisicos acabam se perguntando "para onde" a sua
propria historia os conduziu. Sem que, apesar disso, tenham os meios de proceder de outro modo.
108
Pazer historia
possibilidade de falar de estratagema, ou seja, de denunciar este poder tambem dependia do contra-poder que 0 dispositivo experimental cria. Do ponto de vista instituido por Galileu e seus sucessores, ai
vontades ou as decisoes her6icas, reina
Construindo
109 '
segundo duas modalidades totalmente distintas: seja confundindo-o
com a casa cia sogra, isto e, denunciando nele uma arbitrariedade que,
para as freqiientadores legftimos 56 uma prova cia incompetencia dos
e suas contraque ficaram de fora; seja conseguindo que suas obje~6s
pro si~6e
sejam admitidas, ocorrencia rara que sera. saudada como
au pelo menos uma inflexao no curso cia hist6ria.
uma "revolu~a"
A inve~ao
de urn dispositivo experimental empresta pertinencia
e
ao principio da irredw;ao de Latour: e urn operador que age ao mesrna tempo sabre as coisas e sabre os seres humanos. Ele prop6e ao
de desquamesma tempo uma encena<;ao das coisas e uma opera~ o
lifica<;ao daqueles, entre as seres humanos, que DaD aceitam 0 desafio
desta encena<;ao. Exige, para ser compreendido, que seja descrito de
acordo com uma perspectiva que segue ados "colegas" que ele quali-
fica (perspectiva que, por defini<;ao, e adotada pela historia e pela
epistemologia dos vencedores), e portanto pode sempre ser taxado de
arbitririo pelos outros. Por isso toda racionalidade epistemologica que
pede a uma norma que justifique a hist6ria, na qual
Sf
inventam e
Sf
estabilizam os criterios de legitimidade cientifica, pode levar diretamente, como vimas no caso de Feyerabend, ao relativismo: esses criterios
reclamam, como as anamorfoses, a localizac;ao cla perspectiva (no caso,
da historia) em rela<;ao a qual des fazem sentido.
E ainda mais importante sublinhar que 0 enunciado experimental nao tern 0 poder de obrigar os protagonistas a adentrar 0 laboratorio, pela fato de que esta proposic;ao tern uma conseqiiencia simetrica inversa. 0 enunciado experimental DaD dispoe de nenhuma prova positiva que permita estabelecer e fazer aceitar sua significac;ao fora
do laborat6rio, que permita identificar, por exemplo, em meio a multiplicidade de fen6menos distintos que af proliferam, aqudes para os
a
quais ele ofereee uma via de acesso privilegiada.
enunciado, com
efeita, 56 tern pertinencia Sf a propria selec;ao das caracteristicas ope-
rada pelo dispositivo experimental e reconhecida como pertinente. Ele
propoe avaliar urn fenomeno em tefmos de ideal, as categorias que correspondem ao dispositivo experimental, em termos de desvio do ideal,
as efeitos parasitas, secundarios que complicam a situac;ao e que e
preciso aprender a administrar. Todavia, de nao pode impor este juIgamento. Fora do laboratorio, nada impede aqudes a quem de gostaria de se dirigir de pretender que, no seu campo de atuac;ao, 0 enunciado nao passe de uma ficc;ao, isto e, como dizia Sagredo, "uma definic;ao elaborada e aceita no abstrato". Foi assim que os "engenhei-
110
Construindo
ros mecanicos" franceses protestaram, ao longo de todo 0 seculo XVIII,
contra a arrogancia dos academicos "matematicos" que queriam submete-los as suas "leis", no duplo sentido do termo.
Em outros termos, 0 acontecimento experimental nao consegue
se constituir numa resposta sem colocar urn problema. Ele nao cria uma
diferen<;a entre aqudes que de agrupa e aquoles que permanecem indiferentes, sem colocar a questao, polftica, de saber se e como esta indiferenc;a sera rompida, se e como as conseqiiencias do acontecimen-
to se propagarao para fora do laboratorio. 0 acontecimento experimental faz uma diferen<;a, porem nao diz quem deve levar em conta
essa diferen<;a.
A primeira coisa que cabe dizer daqudes que aceitaram se juntar
em torno do dispositivo experimental e reconhecer sua eventual pertinencia, e que eles aceitaram se deixar interessar. Reunir todo e qual-
quer urn dentro de urn laboratorio nao e urn direito. Identifica-se naqueIe que acredita ter esse direito urn "cientista louco": segue em frente
sozinho, armado de fatos que, segundo de, deveriam logicamente valerlhe 0 assentimento geral, exige que oles sejam levados a serio como 0
recomendam os tratados de epistemologia e se indigna, em nome dos
valores da ciencia, de que sua proposic;ao nao seja reconhecida como
cientifica. Mas conhecemos tambem disciplinas que fracassam em fazer
com que se admita que elas possam produzir algo alem de fic<;6es. Eo
que ocorre com a parapsicologia que, desde a funda<;ao do laboratorio
de Joseph B. Rhine em 1930, dedicou todos os seus esfor<;os a inventar urn conjunto de protocolos experimentais, cada urn mais rigoroso
que 0 outro, mas se choca com os "nao" -interlocutores, dispostos a
admitir nao importa que hipotese, desde que da permita concluir que
nao ha fatos. As regras da controversia cientifica desabam: os criticos
recusam-se a mostrar interesse, a se reunir no laborat6rio. Limitamse a lembrar alguns casos, supostamente validos para todos, em que
"todos sabem" que s6 ha at artefato, no sentido negativo, OU truque2 .
2 Nao deixa de ter interesse, entretanto, 0 fato de que a New Scientist (II
de julho de 1992) tenha publicado, a proposito de urn livro do atual diretor de
pesquisa do Instituto de Parapsicologia de Durham, Carolina do Norte, Richard
Broughton, Parapsychology: the controversial science (Londres, Rider, 1992), uma
critica positiva 0 bastante para se concluir com "only time will tell...". E em 15
de maio de 1993, a mesma New Scientist dedicava sua primeira pagina a questao ("Telepathy takes on the sceptics"), com 0 artigo de John McCrone, "Roll
Fazer historia
111 .
Este exemplo, entre muitos outros, mostra que a simples abertura de uma controversia experimental ja e urn sucesso: urn enunciado conseguiu interessar colegas tidos como preparados para po-Io it
prova. "Interessar-se" e a condi~a
previa necessaria a toda controversia, a todo teste.
Isto nada tern de espantoso, porque interessar-se e urn risco. Urn
cientista interessado e urn cientista que se pergunta se urn enunciado
experimental pode intervir em seu campo problematico, que diferen~a
produzira, que novas resti~o
minara. Em suma, de que
sign f ca~ o
e que novas possibilidades deterele podera se revestir. Aceitar
participar de urn teste nao e somente aceitar a eventualidade de uma
nova pratica - no sentido de que se trata de uma simples possibilidade instrumental nova - , e aceitar a eventualidade de urn novo envolvimento pratico. Conduta experimental, verdade e realidade vao eventualmente entrar num novo regime de envolvimento mutuo. Eexatamente de envolvimento que convem falar, no sentido estetico, afetivo
e etol6gico, pois os tres termos articulados, conduta, verdade e reali-
dade so se conjugam sob 0 modo de uma nova maneira de exisrir e de
fazer existir, em que a conduta produz a verdade a respeito de uma
realidade que ela descobre-inventa, em que a realidade garante a produ~o
da verdade se as restri(oes da conduta sao respeitadas, em que
o pr6prio eientista padece um devir que nilo pode se resumir a simples posse de um saber (0 que Kuhn bern percebeu). Por isso 0 interesse, no sentido em que ele e sensibilidade a urn futuro possfvel, e 0
que urn cientista inovador deve, questao de vida ou morte, buscar criar.
res que sao convocados a manifestar-se sobre uma determinada quesc,
tao fazem-no sob forma de se6~atic
abstratas de seu contexto. 0 jogo
e 0 premio consiste em coloca-Ios de acordo, atendo-se, 0 mais das
vezes, a letra da ,oa~tic
sem discutir 0 sentido que the emprestou 0
autor. Em outros termos, 0 autor impoe "autoridade", parem Tamas
de Aquino se faz juiz e trata 0 autor-autoridade como testemunha convocada a comparecer: ele deve pressupor que a testemunha disse a
verdade, e 0 julgamento devera levar em conta seu testemunho, mas e
Tomas de Aquino quem decide ativamente a maneira pela qual esse
testemunho sera levado em conta.
A difern~a
entre pratica escolastica e pratica cientifica nao e
portanto tao radical como se poderia pensar. Sao Tomas de Aquino
reconhece que os "autores" sao autoridade, mas ele se comporta como
se tivesse consciencia de estar livre para determinar a maneira pela qual
devem ser levados em conta. Os cientistas reconhecem como unica
"autoridade" a "natureza", os fen6menos com as quais eles tern de
lidar, mas sabern que a possibilidade desta "autoridade" de exercer
autoridade nao esta dada. Cabe a eles fazer da natureza autoridade.
A grande difern~a
reside, na verdade, na liga~ o
entre auroridade e historia. Os escolasticos tentam par os autores - filosofos
- de acordo.
pagaos, doutores cristaos e autor divino da rev1a~o
Sua oa~ibm
e de estabilizar, de harmonizar a historia. Em materia de
ciencias, obter exito em fazer da natureza autoridade e fazer hist6ria
sao sinonimos. 0 poder de "fazer a difern~a"
esea do lado do acontecimento, criador de sentido mas it espera de significados. 0 laboratario, onde urn novo dispositivo experimental resiste as provas que a
farao ser reconhecido como capaz de atribuir a urn fenomeno
INTERESSANDO AUTORES
Autor e autoridade tern, lembremos, a mesma raiz, e as praticas
medievais, ditas escolasticas, conferiam-Ihes significados solidarios. Os
"autores" no sentido medieval saO aqueles cujos textos revestem au-
toridade, aqueles que podem ser comentados mas nao contraditados.
o que nao significa em absoluto uma pratica de leitura submissa, muito
pelo contrario. Destarte, na Suma de Sao Tomas de Aquino, os auto-
up for the Telepathy Test", concluindo que num futuro proximo talvez a bola
esteja com os ceticos. Caso a ser acompanhado.
112
Construindo
0
po-
der de conferir autoridade a seu representante, e mudo quanta aos campos em que esse representante tera direito a voz. Em outros termos, 0
acontecimento coloca 0 problema da seqiiencia, e confere sentido ahistaria, aqual apenas cabe a resposta.
Pode-se ver nesta
liga~ o
singular entre autoridade e historia a
principal caracterfstica da "potitica" inventada pe1as ciencias: a soli-
dariedade alardeada entre 0 que Arist6teles havia distinguido como
praxis, tendo par virtude a phronesis, a sabedoria pea.tica, e poiesis,
tendo por virtude a techne, 0 know-how. A distn~ao
aristotelica pastendo par fim urn produto, e a a~o
sava entre a obra de ,oa~cirbf
humana, aberta, ilimitada porque dizia respeito a urn campo definido
pela pluralidade -
Faz.er hist6ria
rivalidade, conflito, complementaridade - dos
113
.-..."
seres humanos que tern de viver juntos 3 . Aparentemente, 0 laboratoda poiesis, pois af se produz urn "fato" cuja voca~
e
rio e 0 espa~o
exercer autoridade, constituir a unidade do fim, 0 enunciado que 0 re-
presenta, e do meio,
0
dispositivo experimental. Mas e igualmente
0
espac;o de uma praxis, porquanto esse "fato" nao e urn fim, ele abre,
como dizem os epistem610gos, urn "programa de pesquisa", ou seja,
mais concretamente, ele se dirige a outros autores aos quais ele propoe "viver junto" de urn modo novo.
entre poiesis e praxis, entre "fato" e "historia", eviA liga~o
dentemente nao e uma novidade absoluta. Pode-se, retroativamente,
contestar a distin<;ao de Aristoteles. A novidade e que essa liga<;ao define doravante uma categoria de atores que a exploram sistematicamente. Eessa novidade que escapa as concepc;oes apolfticas da "racionalidade" inventada pelas ciencias teorico-experimentais. Quer se trate
de Alexandre Koyre, colocando a fisica de Galileu e Newton sob 0 signo
de Platao (inteligibilidade matem:arica do mundo), ou das criticas da
tecnociencia pondo em cena 0 caniter "somente operatorio" dos conceitos cientificos ("a ciencia nao pensa"), a analogia (com uma visao
plat6nica de mundo) ou a oposi<;ao (com as exigencias de inteligibilidade filosiifica ou simbolica) oculta a mudan<;a de cenario que transforma 0 significado das palavras. A "materia", 0 "eletron", 0 "vacuo"
nao recebem defin~ao
"operatoria", como se bastasse decidir submetelas a uma opera~,
mas sao aquilo sobre 0 que, doravante, nos podemos operar, e e 0 "nos" que e decisivo, a cria~o
de uma coletividade com a qual materia, eletron ou vacuo farao hist6ria daqui por
diante. E a partir da defini<;ao politica desta coletividade que ganham
sentido termos epistemologicos como objetividade ou teoria.
As pniticas cientificas implicam, paralelamente, uma phronesis,
uma sabedoria pratica que versa sobre a pluralidade dos seres humanos e a diversidade de seus interesses, mas de urn tipo novo. Por isso
torna-se possivel fazer da no~a
de interesse que deve ser criado urn
imperativo cientifico sem com isso ferir urn "sentimento estabelecido",
aquele que designa 0 "consenso desinteressado" dos cientistas como
garante de suas proposi<;oes. 0 interesse e aqui redefinido pela liga-
"nolo
3 Ver a esse respeiro a Etica a Nicomano, bern como a apresnt~o
heideggeriano-plat6nica" feita por Jacques Taminiaux em La fille de Thrace et
Ie penseur professionel: Arendt et Heidegger, op. cit.
114
Construindo
1
em que se reinventam conjuntamente poiesis e praxis, techne e
phronesis, (ato e histaria.
Interesse deriva de inter-esse: estar entre. Isto e, nao apenas interpor-se, mas sobretudo estabelecer um liame. Aqueles que concordam
em se deixar interessar por urn enunciado experimental aceitam a hipotese de urn liame que compromete e este vinculo e definido por uma
pretensao muito precisa, que prescreve urn dever e confere urn direito.
Aqueles que a aceitam devem pader sustentar que 0 fizeram na exata
medida em que esse vinculo nao os unia a urn autor "como os outros",
na medida que esse vinculo nao significava uma rela<;ao de dependenambi~6es
que seriam ingredientes clancia aos interesses, convi~6es,
destinos da proposi<;ao deste autor. 0 que significa tambern que os que
aceitam comprometer-se, que admitem em seu laboratorio 0 dispositivo experimental no qual esse enunciado se apoia, tern 0 direito de
conservar sua posi~a
de rivais independentes, nao tern de se tornar
discipulos submetidos a unanimidade de uma ideia. Reconhecem apenas que 0 dispositivo conseguiu permitir ao fenomeno "exercer autoridade", depor sobre 0 modo pelo qual ele deve ser descrito.
A possibilidade dessa redefini<;ao separa, na verdade, a questao
das ciencias do conjunto das leituras filosiificas que desqualificaram
o interesse e fundamentaram, de uma maneira ou outra, seu jufzo acerca
do verdadeiro ou do bern em uma ordem transcendente (leituras herdeiras, sob este aspecto, de Platao, 0 primeiro "pensador profissional",
segundo Arendt e Taminiaux). 0 interesse e entao aquilo que alimenta 0 poder da fic<;ao, separa 0 homem daquilo que deveria ser, de uma
0 interesse e aquilo que se trata de ulforma ou outra, sua voca~.
trapassar, aquilo em rela~o
ao qual se trata de se purificar, aquilo
contra 0 qual se trata de se converter. A singularidade das ciencias tais
como eu tento caracteriza-Ias reside menos em romper com essa no<;ao de interesse na qualidade de escudo que de em coloca-Ia em jogo.
o interesse em si mesmo nao e desqualificado, so e punido 0 fracasso
daquele que, pretendendo interessar os outros, nao consegue faze-los
admitir que seus interesses podem ser esquecidos. 0 futuro aberto pelo
enunciado deve estar disponivel para "todos", deve criar uma comunidade de herdeiros "iguais e diferentes" para a qual se poe 0 problema da historia.
Se a pratica das ciencias faz operar na imanencia dos testes 0 que
as doutrinas filosoficas remetem ao ceu dos ideais, ela, apesar disso,
nem por isso dissipa uma das raz6es de suspeita que tradicionalmente
'j-3.0
Fazer historia
115
pairam sobre a no~a
de interesse. Enquanto a verdade, 0 bern, a lei
moral ou qualquer outra instancia que transcenda os interesses trazem
neles mesmos a pretensao de poder orientar as seres humanos numa
dire~ao
unanime, de garantir 0 seu acordo, os interesses nao tern esse
poder. Um cienrista niio pedira a seu colega que se interesse pela sua
pro si~ao
pelas mesmas razoes que ele, apenas que aceite as condi~oes
sob as quais essa oa~ispr
the interessa. E mais, ele mesmo
podera procurar suscitar 0 maximo de interesses heterogeneos, suscetfveis de conferir a sua pro si~a
0 maximo de significados. Eprecisamente pelo fato de que, contrariamente a "verdade", 0 interesse nao
aspira ao poder de criar unanimidade, porem se presta a prolifera,iio
com outros interesses discordantes 4 , que ele pode unir
e a asoci~
autores para os quais 0 acontecimento poe 0 problema da hist6ria.
Desse modo, 0 cientista, na qualidade de autor, dirige-se nao a
leitores, mas a outros autores, procura nao criar uma verdade terminante e sim criar uma difern~a
no trabalho de seus "autores-Ieitores".
E e em termos dessa difern~a,
em termos dos riscos e das promessas
de hist6rias que 0 enunciado constitui, que esse enunciado e avaliado
e posto a prova. a que significa, certamente, que 0 cientista nao trata
com leitores imparciais, que dariam a toda pro si~ao,
venha ela de
onde vier e implique ela 0 que implicar, a mesma "oportunidade" de
lhes interessar. as analistas das controversias cientifIcas tern toda razao em ressaltar a maneira bastante distinta com que 0 onus da prova
e suscetivel de se repartir, certas prosi~e
tendo desde 0 infcio 0
beneficio da plausibilidade, enquanto outras, aparentemente comparaveis, nao conseguem sequer vencer 0 muro da ind fer n~a.
Contudo as proposi,oes niio siio uns humildes submetidos a justi,a, a reivindicar tiio somente que lhes seja atribuido aquilo a que tem direito.
Para os leitores a quem se dirige, um texto cientifico esta longe de ser
"frio", de ser urn mero relat6rio de experiencias e das conclusoes as
quais elas conduzem racionalmente. E urn dispositivo arriscado que
expoe de uma s6 vez e indissociavelmente os "fatos" e os leitores,
propondo-Ihes papeis - critico pertinente, autoridade incontestavel,
aliado, rival infeliz - que ele procura fazer com que aceitem, numa
historia que ele procura fazer passar pela diferen,a que pretende ter
conseguido criar.
Ver, sob a dire~ao
Decouverte, 1989.
4
116
de Michel Callon, La science et ses reseaux, Paris, La
Construindo
1
Distinguir aconrecimenro e historia, na verdade, e da ordem da
experiencia de pensamento. Urn cientista nunca esta s6 em seu laborat6rio, como se fosse urn sujeito isolavel. Seu laborat6rio, como seus
textos, como suas repsnta~oe,
sao povoados de referencias nao
somenre a todos aqueles que podem questiona-Ios, mas tambem a todos
aqueles para quem poderiam fazer uma diferen,a. Como Pasteur concebe urn micr6bio? Como escreveu Bruno Latour, "este novo ser microsc6pico e a urn s6 tempo anti-Liebig (os fermentos sao seres vivos)
e anti-Pouchet (eles niio nascem espontaneamente)5". Todavia Pasteur
ja preve muitos outros significados possiveis, muitas outras pdticas
em que seus micro bios poderiam fazer a diferen,a. Nos efetivamenre
multiplicamos os modos de interv~ao
dos micr6bios em nossos saberes e em nossas praticas, contudo a identidade cientffica desses micr6bios continua sendo a soma do que os autores conseguiram fazer
com que eles afirmassem contra outros autoreS.
FAZER EXISTIR
"as micr6bios existem, Pasteur os descobriu." Eis 0 enunciado
para 0 qual se trata de dar um significado que niio infrinja a restri,iio
leibniziana que me impus - niio ferir os sentimentos estabelecidos.
o que niio significa, cabe lembra-Io, niio ferir os sentimentos daqueles cuja posi,iio depende das rela,oes de for,a hoje dominantes. No
caso em tela, terei de conseguir descrever a atividade apaixonada dos
cientistas de modo tal que eia nao seja den6ncia e sim que torne inteligivel sua vulnerabilidade especifica em rela,ao as tenta,oes do poder. Esta vulnerabilidade, gostaria de mostra-Io, parece-me ligada a
ambi~o
de fazer hist6ria, ou seja, tambem de tornar "verdadeiramente
verdadeiros", descobertos e nao inventados, os seres cujo testemunho
fidedigno 0 laboratorio cria.
Do ponro de vista da epistemologia construtivista, a no,iio de
descoberta e detestavel. Ela implica com efeito que aquilo a que os
cientistas se referem preexistia como tal a constru~a
dessa referencia. Nem mesmo a America, insiste-se, foi descoberta, mas sim inven5 Bruno Latour, "D'ou: viennent les microbes", Les Cahiers de Science et
Vie: Les Grandes Controverses Scientifiques, nO 4, "Pasteur: la tumultueuse naissance de labiologie modeme", agosto 1991, p. 47.
Fazer'hist6ria
117
tada. E, e claro, e do ponto de vista de Crist6viio Colombo e de seus
sucessores que se fala de descoberta. as astecas nao sabiam que deviam
sec "descobertos". E "aquila" que foi descoberto nunca foi uma America "preexistente", mas uma multiplicidade de Americas emaranhadas
tos, das voca~6es,
dos sonhos e das conviq;:oes que ela tern 0 poder de
fazer existir. Para 0 melhor e (sobretudo) para 0 pior, do ponto de vista
de seus habitantes.
Que outra defini,iio pode-se dar da realidade a niio ser esta, de
ter 0 poder de manter junto uma multiplicidade heterogenea de prari-
e em situat;ao confliruosa como as interesses, os significados, as interse6~at rp
e os alvos que se inrerligaram a seu respeito e a capturaram
numa historia sem retorno. Parem os sentimentos estabelecidos podem,
cas que, todas e cada uma, testemunham de urn modo diferente a existencia daquilo que as mantem unidas? Praticas humanas, mas tambem
e necessaria atravessar
tra si nao somente 0 testemunho dos astronomos e 0 de nossa experiencia cotidiana, como tambem 0 das nossas· retinas, criadas para
aqui, se rebelar e salientar como e dificil urilizar uma sintaxe que evite
pressupor a preexistencia de algo que chamaremos talvez niio de America, mas, digamos, "uma terra habitada, que
urn oceano para atingir quando se parte cia Europa". Se essa terra nao
preexistisse, 0 que terfamos nos capturado em nossas historias? A proposito de que nossos interesses, alvos, interp ta~6es
se interligaram?
£ possivel dizer, acredito, que a America foi descoberra e isto
mesmo dentro de uma perspectiva construtivista. A descoberta nao
assinala nesse caso uma identidade entre "aquilo" que preexistia e
"aquilo" que designaremos como descoberta, a America. Ela assinala
o fato de que, para nos europeus, nao somente a America constituiuse em acontecimento, mas ela 0 fez sem que seja necessaria, apos as
viagens de Colombo, designar as artesiias labariasas que teriam con-
seguido inventar os meios de fon;ar nosso inreresse pela America. £
claro, 0 acontecimento remete entao tambem a nos. Sabe-se, por exem-
"priiticas bioI6gicas": quem duvidasse da existencia do Sol teria con-
detectar a luz, e 0 da clorofila dos vegetais, inventada para caprar-Ihe
a energia. £-nos, em contrapartida, perfeitamente possivel duvidar da
existencia do "Big Bang", pois depoem em seu favor apenas alguns
indicios que so tern sentido para uma classe muito especial e homagenea de especialistas cientificos.
A paixiio desses cosm6logos pode ser dita "fazer existir 0 Big
Bang", ou seja, tambem poder falar dele em termos de descoberta. Por
isso, cabe-Ihes tentar multiplicar os la,os enrre 0 Big Bang e os cientistas que nao pertencem asua propria especialidade, como diz Latour,
multiplicar os "aliados" do Big Bang, aqueles para quem ele faz uma
diferen,a, aqueles que rem necessidade dele para-dar sentido a sua
pnitica. Porque importa menos a numero que 0 carater heterogeneo
plo, que no come,o do seculo xv 0 imperador chines Yung-lo enviou
uma giganresca frota a fim de estabelecer rela,oes diplomaticas com
dos aliados, quando se trata de "fazer existir". 0 numero pode expressar 0 efeito de moda, instavel e inconstante. Se os aliados pertencem a
os reinos africanos, e que, apos Sua morte, a iniciativa foi pura e simplesmente abandonada. Para os chineses, senao para 0 imperador, urn
acontecimento analogo ao da "descoberta da America" nao teve lugar. De que modo 0 "mundo exterior" existia para os chineses?
Nao e, portanto, num sentido absoluto, mas para a Europa do
uma categoria homogenea, a estabilidade da referencia s6 depende de
final do seculo XV, que a viagem de Colombo pode ser chamada "descoberta da America". Contudo a "America" manifesta que ela "exis-
tia eferivamente" antes de Colombo pela mulriplicidade de recursos
que para n6s ela concentra, ou seja, pela prolifera,iio incontrolavel das
conseqiiencias de sua "descoberta". Teologos, soberanos, narradores,
marinheiros, mercadores, defensores dos indios, aventureiros, tern literalmente para todo mundo. A America faz com que se aceite que te-
nha sido "descoberta" niio par uma adequa,iio qualquer entre as palavras que inventamos para dize-Ia e 0 que preexistia as nossas palavras, mas pela multiplicidade transbordanre das palavras, dos proje-
118
Construindo
urn unico tipo de teste. A America sustenta sua preexistencia
adesco-
berta de Colombo numa multiplicidade de provas pelas quais a fizeram passar os que definiram sua pratica por referencia a ela. A tarefa
do cientista de laborat6rio e rnais trabalhosa, porque niio se descobre
a America no fundo de uma proveta. Cria-se 0 mais das vezes urn fenameno inedito. Localiza-se, por vezes, uma nova maneira de se tra-
tar urn fen6meno bern conhecido, ja sobrecarregado de significados e
base de praticas mulriplas. £ por isso que e necessario, 0 mais das
vezes 6 , trahalhar para fazer existir urn ser cientffico novo, e a "desco6 0 mais das vezes, mas nao sempre. Se a "fusao a frio" tivesse correspondido as expectativas, seria similar a descoberta da America. A rede de aliados interessados, prontos a toma-la como meio e referencia de sua pratica, preexistia
com uma forfa tal que as conseqliencias desta "descoberta" ja tinham come~ad
Fazer hist6ria
119
berta" cientifica tern entao por condi\=ao uma hist6ria muito diferente da explosao quase instantanea das conseqiiencias da descoberta da
America, uma historia na qual os interesses devem ser mobilizados,
isto e, ao mesmo tempo estimulados e alinhados de tal sorte que estabele\=am vinculo entre urn ser que eles determinam unanimemente e a
multiplicidade heterogenea dos locais em que este ser esta doravante
ativamente implicado.
o paradoxo do modo de existencia cientifico e que 0 carater
penoso da constru\=ao nao contradiz a busca do "verdadeiramente
verdadeiro"7. Com efeito, essa constru\=ao e posta sob 0 signo do risco: os aliados, capazes de depor em favor, na sua pratica, da existencia de urn "ser cientifico", nao se deixarao recrutar "em nome da ciencia"; e necessario que a referencia criada ahra efetivamente sua pratica a novos possiveis. Este paradoxo e analogo "quele, ja ressaltado,
do "artefato". E16gico, todos os fatos experimentais sao "artefatos",
mas e precisamente par isso que dao sentido aos testes cuja voca\=ao e
a se desdobrar quando os colegas-rivais de Martin Fleischmann e de Stanley Pons
anunciaram que do seu ponto de vista a diferenc;:a entre enunciado experimental
e ficc;:ao nao tinha sido ainda estabelecida. 0 interesse ativo dos advogados, ligados a questao das patentes, ou a referencia interessada as suas exigencias confemari~
de resto a controversia urn caracterfstica bastante originaL Nesse caso, a
\. J'roibic;:ao de "entrar no laboratorio como se entra na casa da sogra" estava enderec;:ada nao aos incompetentes, mas aos colegas competentes, que teriam podido reivindicar em seguida direitos sobre a descoberta para a qual teriam colaborado. As praticas cientificas sao, hoje, tao pouco equipadas para integrar esse novo
quanto para lutar contra as fraudes que questionam 0 conjuntipo de edailv~
to das regras do jogo entre autores-rivais.
7 Longe de ser urn defeito, este carater laborioso da construc;:ao da realidade
com oa~ler
as se6~iut snoc
"unilaterais" de "realidacientifica faz a difern~a
de" que podem ser invocadas tanto por certos descendentes de Kant quanto por
pensadores que se referem a uma constitui<;ao neurobiologica de nossas "maneiras" de ver e de antecipar. Penso antes de mais nada, aqui, na posi<;ao do biologo
chileno Umberto Maturana, largamente inspirada em seus trabalhos sobre a peroa~pec
das ras. Arrisquemos urn paralelo batraquiano. E.-nos tacil considerar que
a "mosca" percebida pela ra nao passa de uma ficc;:ao determinada pelo seu aparelho neuronal. Em contrapartida quando a mosca e digerida, 0 biologo tern de
reconhecer que sao realmente as propriedades qUlmicas de seus componentes, tal
como a quimica as descobriu, que sao "levadas em conta", respeitadas e exploradas pelo metabolismo batraquiano. Poderfamos dizer que a "realidade" que os cientistas buscam fazer existir esta mais proxima da realidade da mosca digerida que
daquela da mosca percebida.
120
Construindo
de fazer a diferen<;a entre os artefatos: desqualificar aquoles que serao
chamados puramente relativos ao conjunto de opera\=oes que os criou;
aceitar os que serao chamados de "depurados", "encenados" por esse
conjunto de opera<;6es, e que poderao portanto, sem ser destruidos,
suscitar outros modos de ,oa~ ruped
serem postos a prova por outros
problemas. Eclaro, todos os seres que as ciencias fazem existir sao "inventados" no sentido de que todos os seus atributos sao relativos as
nossas hist6rias, mas e precisamente por isso que sua existencia depende da multiplica<;ao das hist6rias que tern por tra<;o comum 0 fato
de remeterem a oles, de defini-los como condi<;ao se nao suficiente polo
menos necessaria a sua possibilidade.
MEDIAD ORES
Para falar dos "hibridos" que, simultaneamente, remetem a natureza e a atividade humana, inventados por esta para dar testemunho daquela, Bruno Latour prop5e que evitemos 0 termo "intermediarios" - que implica uma problematica de pureza, de fidolidade ou de
distor<;ao em rola<;ao a algo desde sempre presente - e utilizemos 0
de "mediadores". E entao a atividade de oa~idem
que vern primeiro,
que cria nao somente a possibilidade de traduzir, mas tambern "aqui10" que e traduzido, enquanto suscetivel de tradu<;ao. A media<;ao
remete ao acontecimento na medida em que sua eventual justifica\=ao
pelos termos em que se situa vern depois deste, mas sobretudo na medida em que esses proprios termos, desde entao, se dizem, se situam,
fazern hist6ria em sentido novo.
Em lamais fomos modernos, a bomba a ar de Robert Boyle 8
ocupa urn lugar similar ao que eu conferi ao plano inclinado de Galileu: a urn so tempo mediadora e, como tal, centro de urn conflito entre
Boyle e 0 fi16sofo e polit610go Thomas Hobbes, que contesta a possibilidade daquilo que ola testemunha. "Hobbes rejeita a possibilidade
do vacuo por motivos ontol6gicos e politicos 9 cujos principios sao fi8 Estudada por Steven Shappin e Simon Schaffer em Leviathan and the airpump, Princeton, Princeton University Press, 1985 (trad. francesa: Leviathan et
fa pompe aair, Paris, La Decouverte, 1993).
90 "vacuo" dependeria de urn espac;:o privado, os laboratorios dos "cavalheiros experimentadores", enquanto Hobbes pretende unificar os saberes sob a
Fazer historia
121
losoficos, e continua a alegar a existencia de urn eter invisivel que deve
estar presente, mesmo quando 0 operario de Boyle esta cansado demais para acionar sua bomba. Em outras palavras, ele exige uma resposta macroscopica a seus 'macro'- argumentos,uma demonstra<;ao
que provaria que sua ontologia nao e necessaria, que 0 vacuo e politicamente aceira.vel. E como Boyle responde? Escolhe, ao contrario, tornar sua experiencia mais sofisticada, para mostrar 0 efeito que 0 vento
de eter postulado por Hobbes (na esperan<;a de invalidar a teoria de
seu detrator) tern sobre urn detector - uma simples pena de galinha!
Ridiculo! Hobbes levanta urn problema fundamental de filosofia politica e desejam refutar suas teorias com uma pena no interior de urn
recipiente de vidro no interior do castelo de Boyle!"lO
A media<;ao cientifica difere da "descoberta da America" no sentido de que ela consiste em urn trabalho de redistribui<;ao e de redefini<;ao que tern por protagonistas atores submetidos ao principio
da "irredm;ao": aquilo que a media<;ao afirma, e preciso que ninguem
possa remete-Io ao poder da fic<;ao. 0 que significa, de modo corr.Iato, que 0 trabalho e tambem politico, porque se trata de definir que
protagonistas poderiam, em sendo 0 caso, remeter a media~o
a fic<;ao. "Em torno do trabalho da bomba reorganizam-se urn novo Boyle,
uma nova natureza, uma nova teologia dos milagres, uma nova sociabilidade cientifica, uma nova sociedade que incIuira doravante 0 vacuo, os sabios e 0 laboratorio."l1
A existencia do vacuo, portanto, jamais foi "provada" no sentido em que esta demonstra<;ao teria satisfeito os adeptos do ideal de
intersubjetividade, de acordo entre os sujeitos racionais capazes de se
entender e chegar a urn acordo estavel acerca de urn problema, de uma
situa<;ao ou de uma coisa. A intersubjetividade faz repousar sobre os
sujeitos, sobre sua "razao comunicativa", como diria Habermas, a possibilidade e 0 dever do acordo. A intersubjetividade implica elevar-se
forma de uma axiomarica capaz de coagir todo e qualquer urn a se submeter, do
mesmo modo como pretende unificar a sociedade civil sob a autoridade de urn
soberano criado por contrato. Hobbes eportanto, inquestionavelmente, "herdeiro
de Tempier": tanto 0 axioma quanto 0 soberano caem sob 0 ambito do poder
nesse caso, para evitar a guerra civil, cria a pseudo-transda fie<;:ao, mas a fic~ao,
cendencia de urn ponto fixo.
122
10
Nous n'avons jamais he modernes, op. cit., pp. 35-6.
11
Idem, pp. 110-1.
Construindo
a uma forma de universal que permite situar, compreender e discutir
calmamente as ;sa~nerfid
ela implica uma referencia a verdade que,
mesmo sem conteudo, conserva seu poder tradicional de estabelecer
o unissono, para alem dos interesses divergentes. Ora, ninguem jamais
respondeu aos argumentos de Hobbes, nem ninguem, nos dias que correm, tenta responder ao argumento kantiano quanto a impossibilidade
de tomar 0 universo por objeto de ciencia. "Hobbes" e "Kant" foram
colocados diante de uma escolha dnistica: ou bern .Ies entram no laboratorio - Hobbes descobre urn detector confiavel para 0 seu vento
de eter e os kantianos descobrem uma maneira de contra-interpretar
a radia<;ao residual do corpo negro - ou entao .Ies se calam. A menos
que protestem, a maneira de Heidegger, que "a ciencia nao pensa".
A existencia, no sentido cientifico do termo, tern muito pouco a
ver com a "intersubjetividade", com a fic~ao
ideal de protagonistas
humanos fitando-se firmemente nos olhos uns aos outros e conseguindo
desentranhar juntos aquilo que os une, valores, pressupostos, prioridades, acima de suas disputas desde entao secundarias. Os dentistas
raramente se olham nos olhos. De preferencia dao-se as costas, cada
qual em seu laboratorio, apressando-se em inventar meios para criar
urn fato que cale 0 adversario. Suas discussoes dificilmente se elevam
na dire~ao
de uma referenda mais potente que aquela que articula sua
12
disputa , e mergulham antes nos "detalhes" aparentemente insignificantes, repentinamente reinventados como capazes de fazer a dife,a~ner
capazes de constituir urn novo mediador.
Ha entretanto grandes diferen<;as entre esses dois mediadores que
sao 0 plano inclinado de Galileu e a "bomba a ar" de Boyle, diferensa~
que permitem torna-los os dois dispositivos tutelares da pratica
teorico-experimental.
12 De fato, quanto rna is potente a referencia, menos soluvel 0 conflito. Destarte, para defender a existencia dos ,homos contra 0 ceticismo de Ernst Mach,
Max Planck colocou em campo "a fe do ffsico na unidade do mundo ffsico", sem
a qual a ffsica nao teria sido possivel, e tratou Mach como "faIso profeta" que
afasta os ffsicos de sua vocac;ao. Do mesmo modo, foi quando Einstein compreendeu que nao poderia construir uma critica interna da mecanica quantica que propos condena-la em nome da esp ran~ ,
que caracteriza 0 fisico, de construir uma
rep s nta~ o
objetiva do mundo, independente da observa~ o.
Ver a esse respeito Isabelle Stengers, "Le theme de l'invention en physique", Isabelle Stengers
e Judith Schlanger, Les concepts scientifiques, Paris, La Decouverte, 1988 (reFolio/Essais, Paris, Gallimard, 1991).
publicado na cole~a
Fazer historia
123
o plano inclinado poe em cena urn movimento bern conhecido,
aquele dos corpos que caem. Ele nao "faz existir" esse movimento dos
corpos, mas 0 determina em sua nova singularidade: e 0 movimento
que, doravante, e identificado como capaz de "dizer" como ele deve
ser descrito, capaz de impor uma articul~o
entre tres conceitos distintos de velocidade. Em contrapartida, a "bomba a ar", de seu lado, produz uma baixa da pressao atmosferica, que "faz existir" 0 vacuo como
ponto-limite, correspond,ente a uma bomba ideal, mas nao diz como
a vacuo deve ser descrito. De resto, a plano inclinado de Galileu pode
fazer variar aquilo que ele define como as variaveis do movimento, mas
esta preso ao movimento de queda dos corpos pesados. A bomba a
ar, de seu lado, consiste na inve~ao
de urn instrumento cientifico, disponivel para outras quest5es. Neste sentido, ela cria uma pratica que
e a ancestral do que nos hoje denominamos de fisico-quimica ou a fisica
fenomenologica. Ela nao fornece as razoes do fenomeno que cria, mas
pode estar incluida em todas as se6~auti
em que a pressao, que ela
institui enquanto varia-vel, pode intervir. Como variam a temperatura de ,oa~ilube
0 calor especifico, a velocidade da rea~o,
a rela~o
entre
temperatura e dilat~o
etc., em funr;iio da vari ~ao
da pressao?
A esta difern~a
entre os dois acontecimentos de oa~idem
correspondem dois "estilos" distintos, que propoem duas maneiras distintas de "contar" as se6~alr
entre os novos protagonistas que 0 laboratorio reline e aqueles que, a sua porta, reclamam justifca~6e
e
demonstra~6.
Desse modo, a historia do plano inclinado de Galileu
e 0 mais das vezes narrada como 0 triunfo de uma conduta que encontraria sua verdade numa filosofia mecanicista a Descartes. Na verdade, Descartes absolutamente nao gostara da fisica galileana 13, e a
"querela das for~as
vivas", que viria a ocupar a primeira metade do
seculo XVIII, opod as herdeiros de Descartes aos de Galileu, entre as
quais Leibniz. 0 que nao obsta a que a estilo do acontecimento galileano, inventado pelo proprio Galileu l 4, encoraje uma leitura filo13 Em seus Etudes galiteennes (Paris, Hermann, 1966, pp. 127~36
e 1456), Alexandre Koyre descreve esta opsi~a
e mostra que a posi~
de Descartes
diante de Galileu e de fato similar aquela de Hobbes diante de Boyle: nesses dois
casos, 0 filosofo acusa 0 cientista de "nao pensar", ou seja, de criar no labor.at6rio uma oa~utis
que nao e capaz de dar conta de si mesma em termos filosoficamente aceidveis.
14
124
Esse estilo ja estava em oa~
quando Galileu se apresenta como urn "par-
Construindo
s6fica, cujo estatuto se manifesta no proprio nome, "mecanica racional" , da ciencia que dela proveio: os representantes da razao nao somente estao autorizados, mas convidados a entrar no laboratorio para
desvendar na descric;ao do movimento mecanico as categorias do pensamento objetivo. Em contrapartida, 0 estilo "bomba a ar" consagra
a ruptura entre fil6sofos e habitantes de laboratorios, ou seja, a capacidade que as matters of fact, as fatos criados em laboratorios, tern
de se impor apesar dos argumentos racionais. Os laboratorios, nesse
caso, ao mesmo tempo se fecham, isto e, excluem aqueles que nao
aceitam 0 "veredito dos fatos" e se organizam em rede, quer dizer,
entram numa historia em que proliferarao as se6~aziltu
da bomba,
ou seja, as media<;5es entre 0 "vacuo" e os fenomenos.
Observemos de passagem que as se6~alr
entre esses dais dispositivos tutelares, 0 plano inclinado e a bomba, sao tambem materia de
historia, desta vez com refereneia imediata nao a cria<;ao de diferen<;as entre cientistas e "nao-cientistas", e sim entre os pr6prios cientistas. Destarte, 0 acontecimento "os atomos existem", que marca a fisica do come~
do seculo, celebra a diferen<;a entre os fisicos que vao
"alem dos fenomenos" e aqueles que poderiamos chamar de "descendentes de Boyle", que tiveram a demerito de se prender aos matters
of fact imediatamente observaveis e de recusar os atomos por serem
especulativos. Do mesmo modo que Galileu coloca sua inova~
sob
a signa de Platao e Boyle coloca a sua sob a signa do "fato", as fisicos teoricos do seculo XX colocam a difern~a
par eles criada entre
fisica teorica e fisica "fenomenoI6gica" sob a signa da liberdade do
espirito alimentado pela fe na inteligibilidade do mundo l5 Todavia,
nem Platao, nem 0 "veredicto dos fatos", nem a fe do fisico permite
teiro", no sentido plat6nico, pretendendo, na verdade, que seus interlocutores ja
"saibam" aquilo que ele vai sehl~rani
(ver Koyre, op. cit. Especialmente pp.
225-6). Entretanto, contrariamente a Alexandre Koyre, penso que este argumento plat6nico nao e a verdade do acontecimento galileano (a ffsica moderna como
novo platonismo), mas caracteriza seu estilo, neste caso a mane ira pela qual
Galileu distribui, em tome do movimento, adversarios e aliados.
15 Ver Isabelle Stengers, "Le theme de l'invention en physique", op. cit. Podese sustentar que, mesmo em seus aspectos mais "tecnicos", a mecanica quantica
carrega 0 estigma desta desqualifc~o,
no que concerne aos alvos "de ponta",
dos representantes da flsica "fenomenologica". Vee a esse respeito Nancy Cart·
wright, How the laws of physics lie, Oxford, Clarendon Press, 1983.
Fazer hist6ria
125
comentar 0 acontecimento em termos de influencia ou de convicc;;:6es
filosoficas, criar uma continuidade ou a possibilidade para 0 historiador
das ideias de falar em termos de eterno retorno das "mesmas ideias".
que os mobiliza
Foram antes "capturados", redefinidos pela oa~rep
a servi~o
de uma nova historia.
Vma derradeira diferen<;a distingue 0 plano inclinado da bomba
a ar. 0 plano inclinado so persiste nos laboratorios pedagogicos, porquanto seu depoimento esta inclufdo nas equac;;:6es de ffsica matematica, na propria defini<;ao do objeto dinamico. Par isso ninguem pode
tratar do plano inclinado de Galileu sem "voltar a ser Galileu", sem
ser posto em presen<;a do dispositivo que impee 0 modo de descrever
o movimento que 0 plano encena. A bomba a ar, por sua vez, nao
parou, desde a epoca de Boyle, de se transformar. A partir do momento
em que 0 significado de seu depoimento foi aceito, essa transforma<;ao pode ser descrita como "aperfei<;oamento". Falar de urn progresso tecnico a seu respeito, e dar-se 0 direito de chama-Ia "bomba a vacuo" e admitir que 0 vacuo que ela determina, existe. Ela e doravante
urn habitante classico de todos os laboratorios onde a ffsica e a qufmica
tern entrada garantida, e todos estes laboratorios admitem a existencia do vacuo, pelo menos no sentido em que a bomba a define l6
A bomba a ar, assim que foi reconhecida como bomba a vacuo,
transformou-se no exemplo tipico daquilo que Bruno Latour chamou
de "caixa preta,,17: urn dispositivo que estabelece entre os dados que
entram e os dados que saem uma rela<;ao cuja significa<;ao nenhum
cientista pensaria em contestar porque ele deveria, assim agindo, oporse a uma multidao heterogenea de usuarios satisfeitos e reescrever
capitulos inteiros de milltiplas disciplinas. Podemos nos servir de uma
bomba a vacuo estando na mais perfeita indiferenc;;:a tanto ao seu funcionamento quanto a sua pre-historia. A maior parte daqueles que a
utilizam so conhecem seu modo de utilizac;ao e se preocupam apenas
com seu desempenho. Sua propria evolu<;ao traduz essa voca<;ao: distinc;ao cada vez mais clara entre 0 que diz respeito ao construtof, daqui por diante 0 industrial, e ao usuario, cuja capacidade esta limitada a alguns manuseios ultra-simples e a leitura de urn mostrador. Em
outros termos, 0 dispositivo "bomba a vacuo" exprime uma relac;ao
de a~fO
que parece, ou pelo menos se afirma, praticamente irreversivel. Ele qualifica seus usuarios, sejam eles cientistas ou nao, como nao
suscetiveis de questionar seu depoimento, nao suscetiveis de colocar
em questao 0 "fato" que ele estabelece. Salvo oa~ecx
concebfvel porem rara, a controversia ficara a montante ou se localizara a jusante
do processo. Aquele que desejar faze-Ia recair sobre 0 proprio dispositivo tera contra si a multidao dos usuarios satisfeitos. Ele deveria
"desfazer", isto e, interpretar de modo diverso, a multidao de fatos
dos quais a bomba foi parte integrante.
QUESTOES POLITICAS
A diferen<;a entre 0 plano inclinado e a bomba a ar assinala os
limites da analise "politica" centrada ate aqui em uma verdade negativa, enunciado que nao traz em si 0 poder de definir seu alcance "fora
do laboratorio". Mais precisamente, nos nos concentramos num modo
de descric;ao "democratico": a produc;ao de existencia cientffica depende, nesse registro, de uma historia em que os aliados a interessar sao
definidos como "iguais", que dep6em espontaneamente pela diferena~ que lhes permitiu criar 0 vinculo por eles aceito. Historia ideal, se
quisermos, cuja relac;ao com a pratica efetiva das ciencias coloca tantos problemas quanto a que une 0 ideal democratico com 0 modo de
gestio politico de nossas sociedades.
o plano inclinado de Galileu nos impee 0 problema da hierarquia das ciencias no sentido em que seu testemunho, integrado na sintaxe das equac;6es da ffsica matematica, prevaleceu ate agora sobre 0
testemunho dos movimentos, e meSillO, desde 0 fim do seculo XIX,
sobre 0 das transfom~6e
ffsico-qufmicas que parecem exigir uma
outra sintaxe 18 . A diferenc;a entre "ffsica fundamental" e ffsica "apenas fenomenologica" nao foi aceita sem conflitos. Ela e inseparavel de
uma historia em que se cria uma desigualdade entre fisicos, uma redistribui<;ao de direitos pretendidos por uns e outros face aos objetos
que eles representam.
A bomba a ar de Boyle nos impee, por sua vez, 0 problema da
16
0 que nao contradiz 0 aparecimento deste outro vacuo, 0 vacuo quantico, que responde a dispositivos experimentais totalmente diferenres.
17
126
Ver Bruno Latour, La science en action, op. cit.
18
Consrruindo
Fa~er
Ver, lIya Prigogine e Isabelle Srengers, Entre Ie temps et l'iternite, op. cit.
hist6ria
127
"saida" dos laboratarios cientificos. Quem quer que abra urn pacote
de cafe e ou,a urn "pshhht" sabe que esta lidando com uma embalagem "a vacuo" e, queira ou nao, depoe contra Hobbes quanto ao poder
da bomba de Boyle. A saida do laborat6rioe urn trabalho bastante diferente daquele que produz a alian,a ou a hierarquiza,ao dos laboratarios. Nao se trata mais de excluir, de selecionar os protagonistas, e
sim de incluir, de fazer existir 0 acontecimento para urn maximo de
interessados, competentes e niio competentes.
Nos dois casos, certamente, coloca-se 0 problema do poder, quer
se trate do poder de uma disciplina sobre outros campos de saber ou
do poder de redefini,ao das praticas sociais, culturais, administrati-
devesse construir os meios de fazer com que se reconhe<;a que
to em questao cai sob 0 alcance de sua ciencia.
0
pon-
Colocar este tipo de questao cria uma nova perspectiva sobre a
"autonomia" das comunidades cientificas. A autonomia, nao mais que
a objetividade ou a pureza, constitui urn atributo da pratica cientifica. Todos estes saO alvos que tornam esta pratica singular. Esta nao
pressup6e que 0 cientista possa se "depurar" do que faz dele urn autor. Bern ao contrario, os estudos contempora.neos sobre as praticas
das ciencias fazem vir a tona 0 extraordinario processo de improvisa-
,ao e de negocia,ao que determina tanto a escolha do problema (exeqiiibilidade, em fun,ao dos recursos financeiros existentes ou possi-
vas ou produtivas. A mobiliza<;ao nao diz mais respeito somente aqueles
veis, dos instrumentos disponiveis, das alian<;as existentes ou a criar
que farao proliferar os mediadores, ou seja, os atributos que podem
ser conferidos it realidade it qual se referem; ela diz respeito tam bern
etc.) quanto 0 trabalho propriamente dito (modifica,oes do objeto da
pesquisa, do aparelho, da interpreta,ao... ). Aqueles que estudam os
aqueles cuja atividade estara submetida a esta referencia, e aqueles que
cientistas no laboratario encontram "autores" que disp6em de todos
a utilizarao segundo modos de compromisso em que
imperativo de
os graus de liberdade que a analise literaria reconstitui, fazendo-os
"fazer existir" muda de sentido.
Esta questao do poder nao e, no entanto, urn parasita da pratica
das ciencias. Eimportante, aqui, nao fazer agir d.pido demais a oposi<;ao entre "verdadeira ciencia" e "ideologia", uma responsavel pela
inven<;ao propriamente cientifica, e portanto pela histaria das ciencias
como "progresso", a outra concebida como uma "impureza", mais ou
operar "como 0 senhor Jourdain *", sem conhecer os termos tecnicos
que correspondem a sua pratica cotidiana. 0 que torna a ciencia singular e a questao: poderia esta qualidade de autor ser "esquecida"?
0
menos fatal, mas em todo caso separavel do progresso. A questao do
poder, tal como espero aborda-Ia aqui 19, faz parte dos "desdobramentos" do acontecimento. Ela responde a uma pergunta que se coloca
aos atores-autores suscitados por esse acontecimento: a que os faculta a diferen<;a entre ciencia e nao-ciencia em que se apaiam? Ate onde
poderao faze-la valer? Ate onde essa diferen,a sera reconhecida como
fonte de autoridade? Em que dominios ela se constituira apenas numa
restri,ao para urn problema que ela nao define?
Destas quest6es que sao todas indisssociavelmente cientificas e
polfticas, a no,ao de paradigma, por exemplo, fomece uma versao por
demais determinista, como se
0
cientista fosse livre para avaliar a luz
da rela,ao da similitude com sua pratica todo fenameno com que se
depara; como se esses fenomenos lhe estivessem naturalmente disponiveis sem que ninguem oponha resistencia a sua a<;ao; como se nao
19 Isro e, excluindo as praticas pseudo-cientificas que obtem seu poder "em
nome da ciencia".
128
Construindo
Poderia 0 enunciado ser separado de quem 0 formulou e retomado por
outros? Urn enuneiado cientifico, se e finalmente aceito, sera entao tido
por "objetivo", nao falando mais de quem 0 propos, e sim do feno-
meno na condi,ao de disponivel para outros trabalhos. Do mesmo
modo, a autonomia das ciencias nao implica absolutamente que os
cientistas fiquem indiferentes aoS interesses do mundo "nao-cientifico", nem tampouco que se proibam de explorar os recursos financeiros, ret6ricos, administrativos ou outros que ele pode lhes oferecer, ou
que des praprios podem concretizar. 0 que torna singular a ciencia
que ninguem poderia dizer: esta hip6tese, esta maneira de tratar urn
problema, foi reconhecida como "cientifica" porque caminhava no
sentido dos interesses economicos, industriais ou politicos. 0 cientista que fizesse valer tais interesses em lugar de urn argumento "propriamente cientifico", que manifesta a autonomia da ciencia, seria acusado. Urn cientista que conseguir fazer convergir esses interesses e os de
sua disciplina, e alem disso aproveitar plenamente os recursos que essa
convergencia the confere, sera reverenciado.
e
• Person.gem de
Fazer historia
a burgues (ida/go (1670), de Moliere. [N. do R·I
129
Com uma expressao como "conseguir fazer convergir", ingressamos no dominio em que as ciencias nao podem mais pretender definir, por si s6s, 0 cenario em que sao criadas suas hist6rias e em que
o cientista pode colecar urn problema politico para a sociedade. Enessa
perspectiva que deve em particular ser colocada a questao da hierarquia usual entre os cientistas, traduzida pelas possibilidades de publica~ o
e de financiamento, e retomada por Kuhn, que privilegia a "convergencia bem-sucedida" em que as categorias de uma disciplina sao
aceitas como determinantes "fora de laborat6rio"20. Voltaremos a esse
assunto. Ressaltemos desde ja que esse problema longe de opor, aproxima a politica da ciencia da politica em seu sentido habitual: quer se
trate da hierarquia entre as ciencias ou da maneira como as ciencias
saem dos laborat6rios, poderemos sempre nos perguntar se, ate onde
se estende sua autoridade, 0 cientista realmente pode, e deve encontrar os rnais suscetfveis de por em perigo as categorias em cujos termos sugere tratar urn determinado fenomeno. Eigualmente desse ponto
de vista, que une esses dois "tipos" de polftica, que podem ser ana lisados certos componentes do discurso sobre as ciencias aos quais os
epistem610gos procuraram, em vao, conferir sentido.
Devem, por exemplo, ser tidos por opera~6s
politicas, que visam assegurar urn o~apse
de expansao sem risco, a totalidade dos discursos metodol6gicos gra~ s
aos quais os cientistas eliminam os ras-
tros do acontecimento que lhes credita autoridade. Galileu ja havia
declarado - discurso platanico no qual Alexandre Koyre se baseou
em demasia -
que
0
dispositivo experimental esta ai somente para
ilustrar a verdade dos fatos, verdade racional que como born parteiro
ele levara Sagredo e Simplicio a reconhecer por si sas logo que estiverem liberados das ilusaes dos sentidos e da indevida autoridade da tradi<;ao. Por seu lado, Lavoisier afirma, em seu Methode de nomenclature chimique (1787), que 0 quimico deve se despojar da imagina<;ao
que 0 leva para alem da verdade, em dire<;ao a fic<;ao, e de todas as
caracteristicas que fariam dele urn "autor", a fim de permitir que a na-
tureza dite a descri<;ao adequada. Nos dois casos
0
cientista se apre-
Esta hierarquia nao e absoluta. Em certos casos, por exemplo quando 0
prestigio do "grande programa" (conquista espacial, guerra nas estrelas) 0 justifica,
as disciplinas aceitam uma divisao mais ou menos igualitaria das responsabilidades. Da-se 0 mesmo na pesquisa industrial, mas, nesse caso, 0 cientista corre 0 risco
de perder, aos olhos de seus colegas, 0 que 0 diferencia de urn simples "assalariado".
20
130
Construindo
senta como representante de uma "abordagem cientifica" ou "racio-
nal" que deveria ser valida em geral, que deveria ter urn alcance por
principio indefinido. Aquela que os epistemologos tentaram em vao
decifrar. Nos dois casos, a objetividade pretende se definir como resultado de uma conduta finalmente objetiva, e, como mostrou Feyerabend, esta pretensao permite aO cientista enfraquecer aqueles que po-
deriam par em perigo a validade geral de suas categorias, ao identificar suas obje~6s
com uma resistencia irracional
aobjetividade.
Se 0 discurso metodologico e 0 relatario de uma especie de vitoria que busca suscitar
0
esquecimento da questao dos seus limites, a
produ<;ao de juizos teoricos acerca da realidade leva a cabo a mesma
oa~ rep
por outros meios. Desde "a natureza e escrita em termos
matematicos" de Galileu ate "unicamente 0 acaso esta na origem de
toda novidade, de toda cria<;ao na biosfera" de Jacques Monod, certos enunciados conceituais produzidos pelos cientistas tern ressonancias metaffsicas. Na verdade, sao casos extremos de uma transforma~ao
de oa~icnue
que toda teoria, em escalas mais reduzidas, realiza.
Falei ate aqui de enunciado, nao de teoria, a fim de reservar esse
cientfficas que constroem uma repsnta~o
da
termo as se6~arob le
realidade, tal como existe "fora do laborat6rio". Essa representac;ao tern
por voca~
explicar, justificar 0 acontecimento que consiste na inven-
<;ao de uma pratica experimental, e portanto fazer esquecer a eventual
singularidade daquilo que tornou essa pratica possive!. Assim, quando,
durante os anos 60 e 70, as rela<;aes codificadas entre DNA e proteinas
sao identificadas e 0 codigo genetico e decifrado, sao enunciados experimentais que proliferam. Porem, quando se fala de informa<;ao genetica, e se define 0 ser vivo pdo seu "programa", trata-se de teoria.
Falar, como ja a fiz, de ciencias te6rico-experimentais e subentender que na pratica das ciencias modernas a produ~a
teorica e esperada
e legitima. Ela nao e, no entanto, 0 apanagio de todo enunciado: pode
ocorrer que uma rela~o
experimental, reconhecidamente confiavel,
sem por isso revestir-se de signifitorne-se urn instrumento de oa~idem
ca<;ao teorica determinada (caso dos espectros especificos de absor<;ao
e de emissao dos elementos quimicos antes de Bohr), ou mesmo que
ela receba seu significado de uma outra teoria (caso dos "dados" quimicos em quimica quantica)21. De resto, ocorre com muita freqiiencia
21
Este caso mostra bern a dimensao politica da situa<;ao. Presume-se que
Faut hist6ria
131
que enunciado e teoria, no sentido que estou procurando definir, nao
sejam explicitamente distintos. Muitos chamariam de teoria aquilo que
eu considero enunciado, outros identificariam no que eu chamo de
teoria 0 "nueleo duro" de urn programa de pesquisa a Lakatos. Outros ainda, caso se oponham a uma das proposi<;aes que eu denomino
tearicas, falarao de pretensoes ideolagicas irracianais. 0 que a defini<;ao que eu apresento tern de interessante e remeter a questao da tearia
nao a urn problema de estatuto epistemologico, mas as ciencias como
praticas coletivas, e evitar toda oposic;ao epistemol6gica entre uma
"verdadeira" teoria, legitima, e uma pretensao teorica " ideol6gica " .
Consoante minha defini<;ao, identifica-se uma tearia pelas pretensoes de seus representantes: estes pretendem que, em tal ou qual caso
nota-vel, 0 fen6meno encenado pelo dispositivo experimental nao se
limitou a oferecer urn testemunho fidedigno, e sim testemunhou a sua
verdade. A bacteria testemunhou que, enquanto ser vivo, sua verdade
era ser programada geneticamente. E entao que 0 fenomeno deixa de
ser apenas uma testemunha fidedigna, e torna-se objeto no sentido
forte, 0 que significa que as categorias experimentais perdem sua referencia ademonstrac;ao experimental enquanto pra-tica, para tornaremse categorias de avaliac;ao, validas por principio, independentemente
do laboratorio onde elas poderiam ser postas a prova.
A produc;ao de uma teoria, no sentido em que eu a defini aqui, nao
tern de ser denunciada, ela constitui para os cientistas urn "outro meio"
de fazer historia. Mas ela propi5e igualmente outros meios de fazer histaria com os cientistas, e antes de mais nada contar suas hist6rias e aquelas que nos ligam a eles estando atentos a certas questoes: como foi constituido 0 duplo poder, sobre as coisas, cujas modalidades de testemunho
podemos doravante antecipar, e sobre os colegas, cujas questaes pudemos doravante avaliar e hierarquizar? Surgem entao muitos problemas
que dizem respeito ao tipo de narrativa da historia que podemos propor e as possiveis varia<;i5es desta historia. Devedamos dispor agora dos
meios de abordar a questao de Feyerabend e dos cdticos da tecnociencia, a do poder virulento que as ciencias parecem ter quando se trata
de destruir aquilo que elas so podem entender como "nao-ciencia".
a quimica quantica e "dedutivel" da mecanica quantica, enquanto a rela~o
efetiva esra mais proxima da negocia~
que da deu~ao.
Ver a esse respeito Bernadette Bensaude-Vincent e Isabelle Stengers, Histoire de fa chirnie, op. cit.
132
Construindo
III.
PROPONDO
7.
UM MUNDO DISPONfVEL?
o PODER EM HIST6RIAS
Tomei
0
cuidado, desde
0
comec;o deste livro, de dissociar as
hist6rias cientificas das hist6rias que se constroem "em nome cia ciencia". Mostrei, a partir do exemplo cia medicina, como podia transfor-
mar-se
0
imperativo de produC;ao de testemunhas fidedignas que sin-
gulariza as ciencias te6rico-experimentais. De veto! de risco, este im-
perativo tornou-se aqui palavra de ordem, definindo como obstaculo
a singularidade do carpo vivo com a qual a medicina tern de lidar, sua
capacidade de sarar por mas razoes.
Ressaltei igualmente a difereo\a entre "paradigma" e ~'visao
do
muncio", orientada pelo reconhecimento das rela<;6es de semelhan<;a.
Ora, a historia das ciencias nos obriga a constatar, tambem nesse caso,
a possibilidade de uma transformaC;ao do paradigma em "visao do
muncio", caracterizada nao pela capacidade de inventar problemas e
sim pela capacidade de desqualifica-los. Desse modo, se 0 programa
genetica e a verdade do ser vivo, tese defendida por Jacques Monod
em Le hasard et fa necessite, 0 essencial ea similitude entre uma bacteria, urn elefante e urn homem, todos programados geneticamente. 0
que as distingue pode certamente ser interessante, contucia devera ser
redefinido a partir da nOC;ao de programa genetico. A embriologia, ciencia comprometida com urn tra<;o que diferencia 0 elefante da bacteria
(nao existe embriao de bacteria), tinha sido, na primeira metade do
seculo XX, uma ciencia de ponta. Tornou-se, com 0 triunfo da biologia
molecular, urn conjunto de resultados empiricos, pouco confiaveis, a
espera do momenta em que se conseguira fazer com que os processos
embriol6gicas deem testemunho de sua relaC;ao essencial com a informa<;ao genetica 1.
1 E de se notar, por exemplo, que, em La logique du vivant (Paris, Gallimard, 1970), Fran<;ois Jacob nao conceda praticamente nenhuma aten<;ao a em-
Um-mundo disponivel?
135
E para conferir sentido a esse problema que eu introduzi a dis-
Conferi, por fim, ao meu trabalho a ambi<;ao de retomar, a prop6sito das ciencias, 0 riso que foi de Diderot, capaz de gostar de d'Alem-
tin<;ao entre enunciado experimental e teoria. Urn enunciado experi-
bert e de respeita-lo sem por isso se deixar impressionar por ele. 0 riso
trocista de Feyerabend nao pode atingir do mesmo jeito Laplace, quan-
conectar regioes, desconectar outras, mas define possiveis disponiveis
do este anuncia que s6 haveni urn Newton porque so havia urn universo a descobrir, e Galileu ou Newton "no laborat6rio", inventando
urn modo de questionar os fen6menos e sendo eles proprios inventa-
dos na cria,ao desta nova liga,ao. 0 tom profetico dos leitores da
tecnociencia, ao denunciar a redu<;ao da natureza a urn tratamento da
mental pode transtornar, subverter a paisagem dos conhecimentos,
para todos, restri,aes que todos deverao levar em conta, mas que todos poderao aproveitar, se inventarem os meios para tanto. Em contrapartida, uma teoria necessita que a hierarquiza<;ao da paisagem dos
saberes que ela propoe seja socialmente ratificada. Tal ciencia, que
coloca as quest6es essenciais, e uma ciencia de ponta. Tal outra pode
informa,ao, nao e apropriado a paixao do informatico que deve, para
inventar 0 modo pelo qual uma situa,ao pode tornar-se "traravel" por
urn computador, sofrer urn devir que 0 transforme em mediador, lu-
ser util, porque as questaes que ela endere,a ao objeto podem prepa-
gar de co-inven<;ao da situa<;ao e da linguagem. A "razao operatoria"
nao tern 0 mesmo sentido quando Jean Perrin anuncia "os atomos
existem, eu os posso contar", e quando Jean-Pierre Changeux escreve: "Doravante, nada mais se opoe, no plano te6rico, a que as condutas dos homens sejam descritas em termos de atividades neuronais".2
teressa seja definido pela ciencia pura como parasita ou complica,ao
secundaria 3 . Tal outra, por fim, deve ser denunciada como parasita
ou ideologica, ou nao objetiva, porque as quest6es que ela coloca, os
testemunhos que ela busca, se fossem levados a serio, poriam em cau-
Acompanhar a maneira pela qual a referencia a ciencia muda de
tencem ao campo da teoria atestassem uma outra especie de verdade.
sentido, vai do risco ao metodo, da cria<;ao de uma rela<;ao singular
com a coisa ao juizo que constitui a singularidade da coisa como obs-
Do ponto de vista de Jacques Monod, a no,ao de auto-organiza,ao,
taculo, da celebra,ao de uma conquista
a afirma,ao de urn direito de
conquista, implica uma questao recorrente: como 0 "mundo", ou seja,
o conjunto das rela<;oes pra.ticas e das significa<;oes que unern os seres
humanos entre si e com as coisas, tornou-se disponivel para as estrategias conduzidas "em nome da ciencia"? Como aqueles cuja ativida-
de, saber, significados foram redefinidos ou destruidos nao puderam
fazer valer esta mudan,a de sentido? Por que nao puderam protestar
que, longe de serem reconhecidos como "aliados" que se trata de in-
teressar, reconhecidos em sua liberdade de avaliar as proposi,aes segundo as novas possibilidades que elas lhes oferecern, eles foram julgados e desqualificados?
briologia do seculo xx. Na perspectiva criada pela nar~o
do triunfo da biologia molecular, esse campo, outrora de ponta, nada tern a ensinar, visto que em
nada contribuiu para a historia que leva ao programa genetico. A embriologia se
localiza no futuro, ou seja, deve esperar tudo da "subida" que a biologia molecular
deveria efetuar, da "bacteria" ao "rato".
2
136
L'homme neuronal, Paris, Fayard, 1983, p. 169.
rar 0 terreno para a ciencia de ponta. Tal outra torna-se ciencia aplicada, subordinada a uma ciencia mais pura, e admite que 0 que a in-
sa
0
objeto te6rico, implicariam que alguns dos fenomenos que per-
criada pelos embriologistas, nao era mais que uma sobrevivencia irracional de velhas doutrinas romanticas.
Toda teoria afirma urn poder social, urn poder de julgar 0 valor
das praticas humanas, e nenhuma se imp6e sem que, em algum mo-
mento, 0 poder social, economico ou politico tenha agido. Mas 0 fato
de ele ter participado nao e suficiente para desqualificar a teoria. 0
passado que herdamos esra saturado de "boas questaes" esquecidas
em nome de pretensoes teoricas triunfantes, mas tamhem de pretensoes teoricas que, contra toda expectativa moral, engendraram historias fecundas. 0 "crime" pode compensar no campo das ciencias como
em outros campos. A distin<;ao entre enunciado experimental e teoria
3 0 fato de que a ciencia dos engenheiros tenha sido redefinida como "ciencia apHcada" cujas bases teoricas saO a mecanica galileana, ou seja, tenha aceitado
situar seus problemas "a disrancia do ideal" que se constituiria num mundo sem
atrito (urn mundo em que 0 engenheiro nao teria como trabalhar), passa por uma
historia institucional pesada (conflito entre os "inventores" e a Academia de
Ciencias de Paris, no seculo XVIII, oa~irc
da Escola Politecnica que se tornaria,
0 vetor da oa~ zinagroe
do oficio de engenheiro a servi~o
do
apos a Revolu~a,
Est.do).
Propondo
Um,mundo disponivel?
137
nao nos transforma entao em justiceiros, mas da 0 direito de nos interessarmos pelas estrategias cientificas, no passado e no presente. Vma
teoria pode e deve ser avaliada segundo seu alcance e as efeitos a que
visa. Quem sao aqueles que ela tern inten,ao de reunir de maneira positiva, em nome de uma conviq:ao? Estao eles ja reunidos por urn dispositivo experimental (a1cance minima) ou encerram participantes de
areas cientfficas em que esse dispositivo nao produziu ate agora qualquer difern~a?
Paralelamente, que apelo as pretensoes tearicas fazem
a temas gerais - progresso, objetividade, ir alem das aparencias -,
eles proprios indicios de urn apelo a urn poder "social" (0 publico, ai
incluidos as colegas nao implicados, socios capitalistas etc.) para dobrar os ceticos e os rebeldes? Conforme 0 a1cance de uma pretensao
tearica, ou seja, 0 carater heterogeneo daquilo que ela pretende unificar e hierarquizar, pode-se esperar que 0 relato se complique, fa~
com
que intervenham cada vez mais argumentos, sempre mais construc;oes
ativas de alianc;as, sempre mais interesses coligados. A unidade teorica nao unifica a rede dos interesses que proliferam, soma-se a ela a maneira do "julgamento de Deus" em Mil plat6s4 ,
Examinadas sob este angulo, duas teorias podem ser perfeitamente diferentes ainda que utilizem a mesmo tipo de formalismo. Par exemplo, a teoria quantica do atomo reline ffsicos e quimicos, todos a priori
ativamente interessados em suas possibilidades de representa,ao. Em
contrapartida, a teoria quantica da medida se dirige por prindpio a
4 Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille plateaux, op. cit., por exemplo p.
197.0 julgamento de Deus inspira, p. 199, uma advertencia que pode lembrar 0
principio leibniziano de nao procurar transtornar os sentimentos estabelecidos:
"Liberte Io eso, 0 corpo sem orgaos, quer dizer, aquilo que e 'divinamente' considerado em termos de organismoJ com urn gesto excessivamente violento, fac;:a
saltar as camadas sem cautela, voce ted. se suicidado, mergulhado num buraco
negro, ou mesmo se deixado levar a uma catastrofe, em vez de trac;:ar 0 plano.
pior nao e ficar estratificado - organizado, significado, sujeitado - e sim precipitar as camadas num desabamento suieida ou demencial, que as faz tombar sobre nos, mais pesadas do que nunea". Para a meditac;:ao dos soeiologos-ir6nieos:
o que caid. sobre nos, mais pesado do que nunca, se eles conseguirem convencer
os cientistas de que sua atividade e inquestionavelmente redutivel a jogos de poder? Para evitar submetr~
a esse julgamento e explorar prudentemente os regimes de coexistencia com a rede que ele subsume, e reeomendavel inspirar-se nas
"sete regras do metodo" enos "seis principios" enunciados por Bruno Latour em
La science en action, op. cit.
°
138
Propondo
toda a humanidade. Ela pressupoe, com efeito, que tudo a que existe
(par exemplo a celebre "gato de Schroedinger") pode ser representado a maneira de urn ,homo de hidrogenio (isolado) e coloca entao, de
modo tao tecnico quanta se deseje, a questao da emergencia das propriedades de "nosso mundo" (par exemplo, da emergencia de urn gato
que estaria morto ou vivo e nao morto e vivo). Parece entao que a propria existencia do mundo onde vivemos esta subordinada ao "julgamento de Deus", depende do veredicto da mecanica quantica, que subsume e unifica 0 conjunto dos conhecimentos sobre 0 mundo. Quando se trata de fazer a publico interessar-se pela meciinica quiintica, e
evidentemente pelo gato de Schroedinger de preferencia ao ,homo de
hidrogenio que as vulgarizadores passam.
Podemos rir do "gato de Schroedinger", e continuar nos divertindo com a forma como aquila que para Schroedinger era a ilustra,ao de uma insuficiencia da tearia quiintica (ela niio da conta das propriedades do mundo observavel, de que urn gato deve estar au marta
ou vivo), tornou-se sfmbolo da capacidade que a mecanica quantica
teria de por em causa as evidencias do senso comum. Mas da para rir
quando os medicos afirmam que aquilo que, de momento, e obstaculo
ao progresso da medicina sera urn dia ultrapassado? Em nome do que
se deve chamar de uma "crenc;a mobilizadora" - a fe num futuro em
que 0 corpo dara plena razao aos seus representantes racionais e lhes
permitira varrer as pretensoes dos charlataes a exemplo da astronomia que permitiu varrer as pretensoes dos astrologos - , que saberes
e que praticas os medicos destroem ou impedem que se invente? 0 riso
nao e suficiente, por certo, mas e necessario. Sem ele podem articularse impunemente a for,a dos exemplos do passado e a jogo dos poderes que constroem 0 futuro, urn referindo-se ao outro para conferir a
este futuro a aparencia de urn destino.
MOBILIZA<;AO
Ha muitas maneiras de contar a historia das ciencias e de nela
fundar as politicas do futuro. A que estou propondo da destaque ao
acontecimento, ao risco, a proliferaC;ao das praticas. Aquela que a medicina racional exige, par exemplo, funda no passado a promessa de
uma redutibilidade daquilo que, de momenta, the cria obstaculo (como
a efeito placebo). Nesse sentido, ela constitui urn modelo mobilizador,
Urn-mundo disponivel?
139
que mantem a ordem nas fileiras dos pesquisadores, inspira neles uma
molecular tornou-se capaz de decifrar 0 "codigo genetico", pela mes-
confian,a quanto ao futuro pelo qual lutam e os arma contra 0 que,
de outro modo, poderia dispersar seus esfor,os ou leva-los a duvidar
das boas razoes de sua conduta.
Poderiamos dizer, il. maneira de Feyerabend, que a produ,ao de
um modele mobilizador e assunto dos cientistas, como a lei do silencio 0 e da Mafia. Mas antes de poder dize-lo, e precise poder dispor
ma razao tornou-se capaz de fazer explodir a unidade aparente do
gene, responsavel pela transmissao da hereditariedade, em uma multiplicidade de intervenientes, ou seja tambem inventar para cada um
dentre eles um modo distinto de interven,ao experimental que faz
de outras palavras para descrever a que fazem as cientistas e e tambern necessaria que os proprios cientistas disponham (como as membros da Mafia) de outras palavras possiveis para, se for 0 caso, trair
seu modelo. Para apresentar essas outras palavras, essa outra possibi-
lidade de narrar
0
progresso das ciencias, eu gostaria antes de subli-
nhar 0 estranho contraste entre os efeitos da pd.tica experimental e a
retarica mobilizadora que se apodera desses efeitos.
Os efeitos da invenc;ao sao sempre a criac;ao de distinc;6es insus-
peitas, a possibilidade de variar 0 que aparecia como "dado". Aquilo
que e definido como testemunha fidedigna nao explica nunca apenas
o que todos sabiam - coisa de que e capaz toda fic,ao bem construida -; e a possibilidade de fazer um fenomeno testemunhar de formas
novas, ineditas, que confere aos seus representantes a capacidade de
diferenciar esse testemunho de uma ficc;ao. Mesmo nos casos em que
uma pretensao teorica da origem a uma historia fecunda, esta historia
nao "concretiza" a pretensao sem inventar para ela urn significado
inesperado, que a transforma mais do que a obedece 5. Desse modo,
quando, em 1912, Jean Perrin imp6e aos ceticos a visao de urn mundo em que os fen6menos macroscopicos podem ser interpretados em
termos de acontecimentos e de movimentos de atomos imperceptiveis,
Perrin nao lhes impoe um mundo redutivel aos atomos. Impoe-lhes a
multiplicidade de situac;6es em que os atomos, ao se decompor, ao se
ionizar, e as moleculas, ao entrar em reac;ao, ao se entrechocar, ao
determinar 0 movimento erratico de uma particula browniana, testemunham sua existencia de urn modo que nao podeni ser remetido a
ficc;ao pois ele permite, a cada vez, enumerar esses atores, atribuir 0
mesmo valor ao celebre "numero de Avogadro". Quando a biologia
50 exernplo tipico poderia ser a pretensao teorica da "redutibilidade" da
que vigora a partir do seculo xvnI.
quirnica afisica do rnovirnento e das ,se6~artni
Cada etapa da historia em que esta pretensao parece se justificar assinala antes de
tudo urna a~n du r
radical da fisica.
140
Propondo
variar a transmissao. Retroativamente pode-se, e evidente, dizer que
os atomos, as moleculas, a transmissao genetica, sao condic;6es dadas
de nossa historia, mas eles so "fazem historia" no sentido de referentes cientificos ao se tornar tam bern condic;6es para outras hist6rias,
transformando aquilo que devia ser explicado em urn "caso" em meio
a uma variedade de casos.
Ora, a retorica que se apodera do acontecimento consagra 0 po-
der da redu,ao. Os processos fisico-quimicos podem ser reduzidos ao
jogo dos atomos enumeriveis; a biologia molecular reduziu a hereditariedade il. transmissao de uma informa,ao codificada nas moleculas
de DNA. Esta retarica modifica 0 significado da "explica,ao". Nao
se trata mais de "ex" -plicar no sentido de "fazer sair" daquilo a que
nos referimos, mas tambem aquilo, e ainda aquiloutro - varias "conseqi.H~nc a "
que testemunham por sua vez a existencia do referente.
Trata-se de afirmar que este referente tern 0 poder geral de reconduzir a diversidade ao mesmo. Passa assim em brancas nuvens 0 fato de
que a diversidade "explicada" normalmente nao preexistia aexplicac;ao, que ela e menos conquista do que produto de uma invenc;ao pratica que vern se somar a outras praticas.
o contraste entre a proliferac;ao de novos possiveis que 0 acontecimento suscita e que the confere seu significado e seu alcance, de
urn lado, e a retorica reducionista que nela se apoia, de outro, nao e
nem necessario nem insignificante. Traduz uma encenac;ao que faz da
diversidade inventada-explicada
0
garante da redutibilidade geral de
urn campo fenomenico a investir. Encenac;ao mobilizadora que identifica ao mesmo tempo 0 exercito conquistador e a paisagem definida
como disponivel para sua conquista. Em outros termos, a encenac;ao
nao e apenas retorica, mas tambem nao pode ser identificada com uma
conseqiiencia inelutivel da politica constitutiva das ciencias. Ela constitui uma forma de organiza,ao politica particular, da qual e preciso
aprender a rir para aprender a the resistir, se for
0
caso.
Mobiliza,ao quer dizer coloca,ao em disponibilidade da paisagem cujas caracteristicas sao negadas ou identificadas exclusivamen-
te do ponto de vista do obstaculo por elas constituido com rela,ao ao
Um.rnundo disponivel?
141
ideal de uma paisagem homogenea da qual todos os pontos deveriam
ser igualmente acessiveis: na Idade Media os campos eram batidos em
marcha ape, hoje as pontes sao construidas sobre os rios rapido 0
bastante para que a velocidade de avan<;o de urn exercito nao seja afetada. Mobiliza<;ao quer igualmente dizer coerencia do conjunto, transmissao idealmente instantanea entre as diferentes panes e 0 posta central que disp6e de uma imagem global da situa<;ao. (Sabe-se que na
sao dirigidos e dirigem-se sempre aquilo com que lidamos, que "introduz 0 mundo entre nos enos".
Pode-se perguntar se esta forma de mobiliza<;ao nao esta em dedinio, pelo menos em certas disciplinas. A no<;ao de ciencia normal
implica com efeito uma certa lentidao, uma estabilidade relativa dos
das horas locais teve por principal vetor 0 mi-
jufzos, que constitui uma norma para muitas gera~6es
de cientistas.
Ela implica igualmente 0 acontecimento, que alinha os interesses, mas
incomoda do ponto de vista da mobiliza<;ao vencria uma difern~a,
nisterio do Exercito.) Mobiliza<;ao, por fim, quer dizer disciplina. E
necessario que as diferentes partes obede<;am as ordens recebidas, tornem-se partes de urn so corpo, sendo a responsabilidade de suas ativi-
cedora, entre os campos em que a medida tern urn significado e uma
releviincia, e aqueles em que ela e uma correla<;ao empirica disponivel
para multiplas interpreta<;6es. Com efeito, a velocidade com a qual sao
clades remetida a urn unico cerebra que as camanda. Tocla iniciativa
local, mesma coroada de exita, e suspeita.
Como mobilizar, alinhar os interesses, sem os destruir, sem transformar os rivais interessados em urn exercito marchando em ordem
propostos hoje novos instrumentos tecnicos que tornam os anteriores
obsoletos cria uma forma de mobiliza<;ao que, doravante, nao tern mais
Alemanha a unifca~o
unida? Como disciplinar as cientistas de modo que suas inve~6s
locais e seletivas possam ser contadas pelo modo da dedu<;ao vencedora,
remetendo a responsabilidade da opera<;ao a insrancia de poder em
nome cia qual
0
cientista age? Como preservar no membra cia comu-
nidade cientifica urn sentido de iniciativa ou de oportunidade que pertence antes ao guerrilheiro, mas de tal modo que esse guerrilheiro pense
pertencer a urn exercito disciplinado e remeta 0 sentido e a possibilidade
de suas iniciativas localizadas as palavras de ordem do Estado-Maior?
Pade-se ler na descri~ao
cia "ciencia normal" segundo Kuhn a
nem necessidade nem tempo de forjar urn paradigma. Encontrar os
meios de adquirir 0 instrumento mais recente a fim de permanecer na
corrida, isto e, ter acesso as publica<;6es em que sao obrigatorios os
tipos de dados que ele produz, constitui em muitos laboratorios contemporaneos uma palavra de ordem suficiente para alinhar os interesses, sem constituf-los porem em herdeiros do acontecimento, sem que
este os suscite, habitantes de urn territorio balizado por convic<;6es e
praticas que 0 consagram.
Ha uma grande diferen<;a entre a mobiliza<;ao paradigmatica e a
mobiliza<;ao somente pela velocidade da inova<;ao tecnica. A primeira disp6e do tempo - no duplo sentido da oportunidade consubstanciada no acontecimento e da temporalidade propria a inven<;ao de
inven<;ao desta forma original de mobiliza<;ao tal como foi criada no
curso do seculo XIX com a instala<;ao dos locais modemos de pesquisa academica. Pode-se ler 0 paradigma como operador dessa mobiliza<;ao: ele cria uma homogeneidade de antecipa<;ao maxima; deixa
cada urn dos membras da comunidade inventar 0 meio pelo qual ele
que
suas conseqiiencias - necessario para construir uma rep s nta~ o
podemos dizer "territorial", pois ela permite fazer a diferen<;a entre 0
interior e 0 exterior, contar a historia da funda<;ao e a constiu~a
dos
fundamentos, construir a dinamica dupla do saber "puro", autoriza-
podera. ser efetivamente estendido, mas permite a comunidade uma
av lia~ o
d.pida dessas inve ~6 s;
leva a se atribuir a disciplina a responsabilidade pelos sucessos, e ao pesquisador "incompetente" ados
do pelo paradigma, e de seus subprodutos, que testemunham sua fecundidade. A segunda e vivida por muitos cientistas no modo da insatisfa<;ao, da nostalgia e de uma nova sensibilidade a vulnerabilidade:
fracassos; ele se transmite de urn modo amplamente implicito que pauperiza 0 que Judith Schlanger chamou de "memoria cultura],,6: a copresen<;a densa de significados multiplos, que impede uma adesao sem
volta a urn deles, a sensibilidade para 0 fato de que outros interesses
dados, cor ela~6es
altamente sofisticadas se acumulam, mas ninguem
tern verdadeiramente tempo de nelas pensar; a diferen<;a entre "antes"
e "depois" torna-se cada vez mais rapida, todavia nao diz mais respeito a cria<;6es que afirmariam a autonomia e sim a obsolescencia
acelerada dos instrumentos que tomam a pesquisa datada; a qualida6
142
Judith Schlanger, Penser fa bouche pleine, Paris, Fayard, 1983.
Propondo
de dos pesquisadores conta menos que seu acesso aos recursos que Ihes
permitem atender aos imperativos do momento; sua identidade nao
Um.mundo disponivel?
143
remete mais ao acontecimento que autoriza suas convicc;6es, e sim ao
poder de insrrumentos 0 mais das vezes oriundos de outras disciplinas; e-lhes portanto cada vez mais dificil resistir as injun<;6es e as press6es, cada vez mais insistentes, que procuram fazer com que eles fornec;am informac;6es ditas "utilizaveis", meSillO que, do seu ponto de
vista, elas nao tenham qualquer interesse. Em suma, a ameac;a que e
vivida e a de que a pesquisa cientifica venha a assemelhar-se com 0
que a sua leitura "tecnocientifica" ja a identifica. E que, paralelamente, desaparec;a a diferenciaC;ao entre "ciencia pura", orientada sornente
pelos interesses territoriais, e "subprodutos", em que esses interesses
comp6em-se com outros, em proveito de uma dupla indfercia~o:
dos fenomenos que nao sao mais capazes de autentificar os interesses
porque postos a disposi<;ao pelo poder do instrumento; dos cientistas
que nao tern mais por que resistir as instancias que Ihes sugerissem que
se interessem por tal fenomeno de preferencia a tal outro.
A forma de mobiliza<;ao descrita pelo funcionamento de uma
"ciencia normal" foi uma inve~ao
cientifica, e ela se deu num con-
texto em que a autonomia da pesquisa devia ser definida e negociada
nao mais em rela~o
a poderes tradicionais, hostis ou indiferentes, e
a poderes modernos, Estados ou industrias, potencial
sim em rela~o
ou ativamente interessados pelos saberes e pelas pra.ticas cientificas.
o
se adianta em nome da ciencia, desprezo pelas "opini6es" daqueles que
ocupam 0 terreno a ser dominado. Eles sempre omitiram 0 fato de que,
na maior parte do tempo, nao somente as zonas em que se investiu nao
eram virgens, mas os saberes locais, longe de se terem tornado obsoletos, permitiram guiar a cria~o
de novas pertinencias, retroativamente
descritas como dedu<;6es autorizadas pelo paradigma.
Para adotar uma imagem lingiifstica, 0 paradigma afirma a unani-
midade dos fen6menos que falam a rnesma lingua, contudo esta lingua
eenriquecida clandestinamente por coerc;6es locais, que nao constam
do dicionario oficial, e que e preciso aprender in loco. Tomando-se uma
imagem geografica, 0 paradigma afirma a homogeneidade da paisagem,
mas cala-se quanto a existencia de estreitos e fendas pelos caminhos
que ligam as diferentes regi6es, e cala-se, no relato de viagem oficial,
a respeito da ajuda local sem a qual 0 viajante que chega nao teria
podido improvisar-inventar urn modo de passagem 8. Esta politica de
submissao do local ao global nao tern por pre<;o apenas uma hierarquiza<;ao dos saberes que privilegia sistematicamente a conduta teorico-experimental, a unica que equipa seus praticantes com avaliac;6es
que mobilizam os fenomenos e os seres humanos, ela assegura tam-
bern urn modo de comprometimento com a verdade que, localizando
a verdade do lado do poder, torna-a vulneravel a todos os poderes.
poder do paradigma mobilizador e igualmente urn contra-poder,
oposto a ame~
de oa~iejus
da pesquisa aos interesses "utilitarios"7.
Pode-se compreender a inquieta<;ao dos cientistas confrontados com
a precariedade deste contra-poder, mas pode-se compreende-la sem
compartilhar por isso de sua nostalgia. Pois a constru<;ao de disciplinas
territoriais normatizadas por urn paradigma
einseparavel da imagem
de uma conquista redurora que afirma a disponibilidade de direito
daquilo que se trata de investir. Os grandes relatos mobilizadores sempre definiram 0 progresso pelo modo da assimetria, poder daquele que
o OF!CIO DO CHEFE
Entre a constitui<;ao de urn campo disciplinar e a constru<;ao social
de urn mundo que permite aos frutos da disciplina "fazer hist6ria" com
os interesses sociais, economicos, politicos e industriais, a rela~o
ea
urn so tempo intensa e encoberta. Eque urn duplo movimento bastante
delicado tern de ocorrer: 0 trabalho de constitui<;ao disciplinar deve
excluir e selecionar, enquanto a constru~a
de urn mundo que deseja,
acolhe, antecipa, recolhe, deve incluir, fazer existir 0 que
Em Lord Bacon (Paris, Librairie J.-B. Bailliere et fils, 1894), Justus von
Liebig, urn dos inventores da pratica da ciencia normal, levanta urn verdadeiro requisitorio contra a no~a
de uma ciencia "util" que reinava entao, segundo ele,
na Inglaterra, e liga 0 progresso cientifico, como 0 ilustra a quimica alema, a recusa da dispersao em casos emplricos considerados interessantes por raz6es estranhas aciencia. "Uma experiencia que nao se prende antecipadamente a uma teoria, au seja, a uma id6ia, parece-se tanto com uma verdadeira oa~gitsevn
quanto
o barulho de uma matraca de a~nirc
parece-se com musica" (p. 114).
7
144
Propondo
rio cria para
0
0
laborato-
maximo de interessados, competentes ou nao.
Em tres paginas deslumbrantes, Bruno Latour abre a possibilidade
de colocar 0 problema a luz do trabalho e da estrategia, e nao do desti-
da quimica afisica quantica, ver Bernadette
8 Para 0 exemplo da "redu~ao
Bensaude-Vincent e Isabelle Stengers, Histoire de fa chimie, op. cit.
Urn mundo disponivel?
145
no, da inevitivel mobiliza,ao do mundo pelos resultados da ciencia.
o autor descreve, a maneira de fic,ao (porem sem nada inventar), uma
semana da vida do "chefe", diretor de urn laborat6rio onde acaba de
ser identificado urn hormonio secretado pelo cerebro, que se chama
pandorina 9 .
o que ea pandorina? Ela DaD eurn artefato. Isto, nos 0 sabemos,
porque a semana descrita ocorre apes a controversia que opos 0 chefe
aos seus colegas competentes, dotados de urn laborat6rio que lhes permite por sua molecula a prova. A pandorina isolada, purificada, identificada, e indubitavelmente uma molecula produzida pelo cerebro,
nao 0 resultado de contamina,ao ou de degrada,ao da molecula autentica. Entretanto, ela pode ser 0 produto de uma simples pesquisa
honesta em neuroendocrinologia ou 0 ponto de partida de uma "revolu~ao"
nas ciencias do cerebra e valer ao chefe urn premia Nobel; ela
pode ser uma molecula biol6gica entre outras ou entao ser capaz de
mobilizar, confederar e representar 0 conjunto dos harmonios que testemunham a existencia de urn "cerebra umido" al oode 0 "cerebra
seea" dos circuitos neuronicos predomina. Em resumo, nos DaD sabemas "0 que e" a pandorina e como Sf cantara a hist6ria de sua "descoberta", e e a esse problema que sao dedicadas as energias do chefe,
que ira. passar a semana a viajar, a negociar, a tomar a palavra, a prometer, a intrigar.
Hi em especial urn colega muito promissor, porque ele desenvolve
urn aparelho que permite visualizar trac;os de pandorina no cerebro
pantes da nova disciplina permanecerao dispersos entre a fisiologia e
a neurologia. E na propria Universidade, urn novo curso deveria atrair
jovens brilhantes para essa disciplina em plena expansao.
o chefe e de origem francesa, e a Fran,a, preocupada em compartilhar do prestfgio deste filho expatriado, a quem a Sorbonne acaba de outorgar urn doutorado honoris causa, nao deveria fazer urn
gesto, abrandar os regulamentos da politica cientifica para favorecer
a criac;ao de urn laboratorio bern frances, especializado na pesquisa dos
peptideos do cerebro? Ji nos Estados Unidos 0 presidente e submetido as press6es dos representantes dos diabeticos que aguardam 0 progresso espetacular anunciado pelo chefe: eles se fazem seus aliados para
exigir que the seja concedida a prioridade e que seja amenizado 0 "obs-
ticulo" da "papelada" implicada por eventuais testes clinicos. Outros
testes que dizem respeito aos esquizofrenicos ja estao sendo discutidos. E, e claro, 0 chefe esta em discussao com os dirigentes de uma
companhia farmaceutica: a pandorina, patenteada, produzida industrialmente, submetida a testes clinicos, sera ela urn medicamento?
Ao longo de seus deslocamentos, 0 chefe vai anunciando aos jornalistas que uma revoluc;ao na pesquisa sobre 0 cerebro esta em curso,
da qual a pandorina e 0 sinal precursor. Mas ele tambem os exorta a
nao dar uma imagem sensacionalista da ciencia. E, no aviao, redige, a
pedido de urn amigo jesuita, urn artigo que liga a pandorina aos arroubos de Sao Joao da Cruz. Em nota, e anunciada a morte da psicanilise.
o chefe faz 0 que deve fazer caso pretenda conferir a pandorina
de ratos. 0 aparelho e urn prot6tipo e 0 pesquisador precisa da ajuda
todo
do chefe para interessar a industria, mas se a industria se interessasse,
o aparelho poderia, rapidamente, tornar-se uma "caixa preta ", tanto
possive!. Isto nao quer dizer que esta existencia depende somente de
0
alcance possivel, faze-Ia existir no maior numero de registros
cializados poderiam exigir que toda pesquisa neuroquimica digna desse
suas estrategias: nos laboratorios de pesquisa academica e industrial,
a pandorina devera defrontar-se com testes severos. Contudo, nada
confere a molecula "em si", independentemente do "chefe", 0 poder
nome coloque
problema da taxa de pandorina secretada por cada
de suscitar esses testes dos quais a pandorina depende, de impor aos
regime de funcionamento cerebral estudado, e torne portanto possi-
outros pesquisadores, as industrias, aos jornais cientificos, urn interesse
sem 0 qual ela permaneceria uma simples molecula, nua, com func;ao
mais indispensivel nos laborat6rios que os referees dos jornais espe0
vel a multiplica,ao de seus atributos. Logo surge tambem a questao
dos comites de leitura: a revista Endocrinology nao reconheceu ainda
a nova especialidade; "bons" artigos foram rejeitados pelos referees
que nada conhecem do assunto. A Academia Nacional de Ciencias
e possibilidades indefinidas. Em contrapartida, sua existencia reduzi-
deveria igualmente reconhecer uma sub-sec;ao, sem
dos cidadaos, a atividade das industrias,
0
que os partici-
da nao se limita a "vestir" a molecula de func;5es e usos, mas modifica 0 panorama das relac;5es que articulam 0 cerebro, as inquietac;5es
0
prestfgio das disciplinas e
os recursos que sao alocados junto aos pesquisadores.
9
146
Caberia denunciar 0 chefe? Como observa Latour, a humilde
colaboradora desinteressada, que nao abandona 0 laborat6rio, e a
La science en action, op. cit.
Propondo
Urn mundo disponivel?
147
beneficiaria desse trabalho aparentemente interessado: "E porque
0
chefe esta constantemente fora, buscando novos recursos e apoios, que
ela pode permanecer dentra e se dedicar exclusivamente a seu traba-
lho de pesquisa na bancada do laboratorio. Quanto mais ela exige fazer
'somente ciencia', mais custosas e demoradas sao suas experiencias, e
mais 0 chefe deve correr 0 mundo para explicar a cada urn que a coisa mais importante do mundo e 0 trabalho dela"lO.
o chefe e coagido a se interessar pelo mundo, a transforma-lo,
para que esse mundo fa,a a sua molecula existir. Ele faz 0 que deve
fazer se deseja ver a pandorina existir, e 0 faz com grande talento. Nossos pesquisadores oem sempre sao coroinhas ingenuos, e aqueles cujos
nomes guardamos deram prova, 0 mais das vezes, e por razoes eviden-
tes, de tremenda capacidade estrategica. Porem essa propria capacidade
<;ador, escandaloso, cujo avans:o reducionista e autenticado pelos protestos dos representantes de saberes fadados a desaparecer.
A singularidade do chefe remete menos a uma identidade da ciencia do que a liberdade com a qual ele pode construir 0 triplo campo
em nome do qual transforma 0 muncio: a molecula, a futura ciencia
do "cerebro umido" eo progresso experimental dissipando as trevas
irracionais. Nada parece capaz de dete-lo, de faze-lo saber por exemplo que, em determinado ponto, a "ciencia" para e comes:a a "propa-
ganda". Ele e respeitado ou temido. Se os jornalistas tro,am dele, nao
podem faze-Io abertamente. A revista jesuita acolhe com gravidade essa
"reuniao de ciipula" entre 0 cumulo do racional e 0 cumulo do espiri-
tual. Os enfermos estao prontos a fazer causa comum com aquele que
lhes da esperan,a. Os psicanalistas, sem duvida, irao protestar que, lon-
remete as estratifica'l;oes desse muncio oode coexistem interlocutores
bern distintos. Com uns, as negociat;5es seeao "cluras" - os laboratorios industriais, em particular, naD se deixarao dobrar. Com outros,
ge de estarem mortos, representam "este sofrimento humano que os
saberes positivos nao podem entender, mas somentecalar". Ate os co-
o jornal Endocrinology, a Academia ou a Universidade, trata-se de organizar uma atividade de lobbying. Outros ainda, os representantes
em marcha, que lhes vai impor novas restri<;6es e novas exigencias. Cabera, ainda que se seja cetico, angariar fundos para adquirir 0 novo
detector de pandorina e produzir a esse respeito estatisticas eventualmente sem interesse. Isto sera preciso, a fim de que os anigos sejam
dos diabeticos, sao utilizados como alavanca: 0 sofrimento dos doentes e urn argumento temfvel e quando os proprios enfermos sao recrutados em nome da esperam;a, as decis6es podem elevar-se "ao nivel rnais
alto", pondo em curto-circuito as redes usuais em que se negociam as
legas cientistas do chefe sabem que uma reorganiza,ao disciplinar esta
aceitos na nova sub-se,ao do jornal Endocrinology. Alguns desses colegas poderao se lamentar, in petto, do desvio de sua area cientifica em
dires:ao a uma simples pratica instrumental, mas onde fazer valer as
prioridades da pesquisa. Os jornalistas devem ser mantidos em seu lugar: devem divulgar a noticia da futura revolu,ao sem no entanto esque-
eventuais duvidas? Como, sem provocar perguntas perigosas do publi-
cer que 0 chefe e urn cientista desinteressado, que os colocou em guarda
contra todo sensacionalismo. Enfim, todos aqueles que, de uma maneira au outra, estao interessados na subjetividade humana devem saber
que 0 progresso da ciencia vai varrer as falsas diferem;as entre "ciencia
de laboratorio" e "ciencias humanas". A psicanalise e ritualmente leva-
cerebro disponivel para 0 progresso?
o chefe exerce seu oficio de cientista, faz proliferar as identidades potenciais da pandorina, as possibilidades de historia que, se for
o caso, a farao existir. E so 0 indicio de que nao cessa de mudar de
da ao cadafalso e Sao Joao da Cruz anuncia que nao e mais somente
a inteligencia que sed. investida, mas tambern a vida emocional. As
ral, de uma pandorina que reune disciplinas numa nova disciplina a
co, dos enfermos, dos socios capitalistas, resistir aquele que aponta urn
meio, de passar de uma pandorina bioqufmica a uma pandorina cultu-
pretens6es do chefe nao acarretarao, neste ultimo caso, a necessidade
uma pandorina futuro medicamento milagre, de uma pandorina me-
de qualquer teste. Nao tern por objetivo reunir seus colegas em torno
de urn mistico em extase que se tornou testemunha fidedigna da pan-
diatica a uma pandorina que atrai os estudantes que se destinam a pesquisa de ponta, e a diferen,a qualitativa entre os argumentos: da nego-
dorina que nele age, e sim inquietar, aparecer, como Jean-Pierre Changeux e tantos outros, no papel de representante do laborat6rio, amea-
cias:ao cerrada a retorica. Como se, desta vez, lidassemos realmente
com uma assimetria radical. 0 chefe recruta aliados para 0 seu laboratorio, que simboliza ele proprio a neuroqufmica do cerebro, que simbo-
liza ela propria
10
148
0
progresso da ciencia, porem alguns desses aliados
sao definidos por exigencias a serem satisfeitas, outros por uma logica
Idem, p. 254.
Propondo
Um-mundo disponive1?
149
competitiva aqual deverao afinal de contas se submeter, e outros ainda
por cren<;as, temores e esperan<;as a serem alimentados. Paralelamente, os diferentes atributos da pandorina se constroem segundo diferentes
coer<;6es: os que a ligam aos aliados exigentes serao eventualmente
conquistados ao pre<;o de continuas remodela\=oes que a fara.o existir
de urn modo que a chefe se sabe incapaz de prever; em contrapartida,
a pandorina saida do laboratorio, "nua" mas desde ja interessante gra<;as ao chefe, e em si mesma suficiente para come<;ar as opera<;6es de
reorganiza<;ao disciplinar e para funcionar como maquina de guerra
reducionista, que pretende reunir em si uma multiplicidade de trac;os
disponiveis pais que do ambiro de saberes au praticas que a ciencia
de laboratorio define como destinados por principia a redu<;ao.
Alem disso, as aliados exigentes do chefe tern todo interesse em
participar desta construc;ao assimetrica. A rentabilidade economica do
futuro detector depende dessa assimetria, assim como a reputa<;ao da
nova gerac;ao de medicamentos que, urn dia, talvez apare<;a no merca-
do. A exemplo do chefe, esses aliados tern par preocupa,ao primeira
"fazer existir", mas a existencia, nesse caso, depende de outros testes, que incluem as restri<;6es legais, comerciais, economicas, e implicam uma instancia que, oficialmente, nao intervem nas controversias
cientificas: 0 publico que deve ser tornado consumidor. Porem e uma
diferen,a que procura ser elidida. Melhor respeitar e alimentar a tese
segundo a qual a industria e aqui urn simples intermediario que concretiza os subprodutos beneficos da pesquisa fundamental, visto que,
em nome dessa tese, 0 chefe captura 0 interesse do publico, impressiona os medicos que prescrevem, induz a demanda pel os doentes, em
suma, cria 0 mercado...
A pandorina e uma fic,ao e toda semelhan,a com a maneira pela
qual as verdadeiros cientistas, par exemplo aqueles que trabalham na
decodifica<;ao do genoma humano, saem de seus laboratorios, e mera
coincidencia.
cidade, todos eles termos que explicam a constrw;:ao a partir do atri-
buto cuja posse foi conquistada par aquila que foi construido. E ele
tern razao, mas ele tambem se recusa a falar em "poder". Se a referencia ao poder tern por voca<;ao fazer esquecer a rede das alian<;as 10cais, aquelas, por exemplo, que 0 "chefe" se empenha em criar em nome
da pandorina, esquecer a massa de mediadores, de seus representantes e dos testes por que passam, a fim de ordenar 0 conjunto sob 0 signo
de urn megaprojeto coerente e todo-poderoso. 0 poder, quando lhe
ocorre urn "p" maiusculo, transforma 0 rizoma 11 em arvore: cada ramo
"se explica" por sua rela<;ao com outro, mais proximo do tronco ou
mesmo das raizes, ou seja, do lugar - ocupado por uma "logica" se-
nao por alOres - a partir do qual todo a reslO pode ser denunciado
como fantoche, agindo alem de suas inten,oes e de seus projelOs. 0
"chefe", e claro, nao sabe 0 que ele poe em movimento, como tampouco os pesquisadores que, para alimentar suas pesquisas, nutrem 0
publico de esperanc;a num futuro em que as "doen<;as geneticas" se-
rao curaveis. Porem ele faz tudo a que pode, dados as graus de liberdade de que dispoe, e nao existe a alem a partir do qual a que para
ele e iniciativa poderia tornar-se dedutivel.
Entretanto, e dificil par, como as vezes ]amais fomos modernos
parece nos convidar a fazer, 0 "erro dos epistemologos" em lugar do
poder no papel de grande responsavel par tudo aquila que nao funciona. Certamente, epistemologos, filosofos e outros pensadores da politica e do campo social, destacam-se pelo seu desprezo pelos hibridos, pela assimilac;ao dos mediadores a intermediarios que transfere
para a sociedade e/ou a natureza a explicac;ao desses elementos. Mas
o "erro" nao deve ser mais denunciado que 0 poder. 0 erro nada ex-
plica, exceto como produto da rede, caracteristico do eslilo de rede
proprio a nossa epoca e do problema politico que ele coloca.
Seria culpa do epistemologo, se a maior parte dos cientistas fala
diversas llnguas, a que reservam aos seus colegas, a que destinam aos
seus socios capitalistas potenciais, aquela que empregam quando se di-
POLITICA DE REDES
Como evitar de remeter a paisagem de nossas praticas, de nossas a<;oes e de nossas paixoes a uma instancia global que teria 0 poder
de explica-la e que bastaria denunciar? Bruno Latour recusa-se nao so
a falar em termos de racionalidade, efidcia, calculabilidade, cientifi-
150
Propondo
11 Vee Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille plateaux, op. cit. 0 rizorna
irnplica a conexao entre heteeogeneos: qualquer ponto pode sec conectado com
qualquer outro; ele nao pode sec cornpreendido por rela~o
ao Urn, irnagern, projeto, J6gica; pode sec rornpido em qualquee Jugae e dividie-se segundo outras orienta~6 s;
nao pode ser resurnido em nome de urn principio genetico, mas sornente
mapeado.
Um-mundo disponivel?
151
rigem ao "publico", definido como incompetente? Seria culpa do fi16sofo, se ele aprendeu nos bancos escalares que a ciencia desvendaria "leis" que caracterizam "objetivamente" as fenomenos e que sua
tarefa, dele filosofo, seria a de tentar refletir sobre esta situac;ao? Seria culpa do sociologo ou do politologo, se as inovac;6es socio-tecnicas au as decisoes que eles comentam sao sempre apresentadas sob 0
signa de uma separabilidade entre 0 que e - as coerc;6es que e preciso racionalmente levar em conta - e a que deve ser - a escolha que
resta entre essas possiveis ?se5~rac-p
Elogico, pode-se reprovar neles
uma certa pregui~a,
urn certo conformismo, urn respeito mal direcionado. Mas cabe pensar a rede enquanto ela suscita, em certos aspectos, a necessidade heroica de nao se ser nem ,os~iugerp
nem conforrnista, nem respeitoso para nao ser tala.
o erro aparece nao em qualquer lugar, e sim nos momentos em
que, de fato, cessam as ,se6~aicogn
em que as palavras nao mais se
dirigem a atores que nao se deixarao lograr, mas sim aqueles que sao
ipso facto definidos como "incompetentes", aqueles de quem se fala,
aqueles sobre cujas cren~as,
desejos, temores, exigencias se especula,
porem no sentido em que sao definidos como "influenciaveis", alvo
de estrategias e nao protagonistas de uma estrategia. Quem erra comete simplesmente 0 erro de acreditar na retorica que se dirige ao
publico, aos alunos das escolas, aos leitores das revistas de vulgariza~ao,
e a de nao perceber que, como esses ultimos, tern acesso a uma
"informa~ "
que os reduz a impotencia 12 .
Eclaro, acontece com freqi.iencia nos enganarmos" . Aqueles que,
por exemplo, desejam ressaltar que os consumidores nao sao impotentes, submetidos ao poder da oferta, podem contar numerosas historias de produtos recusados ou desviados de seus fins pelos consumidores, de estrategias comerciais que precisaram ser redefinidas, de
pedidos imprevistos a serem satisfeitos com urgencia. A questao politica, da diferenc;a entre os atores qualificados e os outros, nao implica
I'
12 Pode oconer que 0 "erro" afete aqueles que deveriam ser-Ihe infensos.
Ver 0 soberbo Aramis ou l'amour des techniques (Paris, La Decouverte, 1992)
de Bruno Latour, em que a "morte de Aramis", futuro sistema revolucionario de
transporte comum, remere finalmente ao fato de que seus "pais" nao gostam da
tecnica, ou foram eles pr6prios enganados pela confusao entre inova~
s6cio~
tecnica e a efetiva'rao de uma ideia, que se sup6e ter em si mesma 0 poder de se
concretizar.
152
Propondo
a onipotencia dos primeiros, a passividade submissa dos segundos. Ela
se exprime em palavras que enunciam esse tipo de :oa~utis
0 publico
eimprevisivel, suas rea~os
sempre nos surpreenderao. Essas palavras
pertencem ao repertorio que comentaria com igual pertinencia os fenomenos meteorol6gicos. Estabelecem a distn~ao
entre os que, ativamente, buscam preyer, determinar as variaveis pertinentes, articulalas segundo as coerc;5es que tornam decidivel 0 que restara como ficc;ao e 0 que experimentara as possibilidades de existir de urn lado, e,
de outro, aqueles que, por suas rea~6,s
refutarao ou confirmarao as
d:lculos de que foram objeto.
a poder nao esta "para alem" da rede, qual uma verdade que
nos pouparia de ter de acompanhar a construc;ao de ramificac;6es e
permitiria deduzi-Ia. Mas ele qualifica a rede e estabelece seus limites,
ou seja, os pontos onde a noc;ao de interesse muda de sentido, onde
cessamos de nos dirigir aos protagonistas que se trata de conseguir interessar e onde come~a
as estrategias que pressup6em que 0 interesse possa "ser comandado", ou, pelo menos, ser tratado como tal, por
conta e risco dos estrategistas. Esses pontes sao numerosos e trac;am
fronteiras que se sobrepoem, que devem elas proprias ser mapeadas.
Elas nao Cortam na metade, mas criam desniveis. Elas sao assinaladas
sempre que surge, na qualidade de referentes de uma relaC;ao entre duas
posic;6es, uma instancia a qual se atribui 0 poder - salvo dificuldades de determinar seus pr6prios efeitos, e urn mundo potencialmente
disponivel - salvo resistencias - ao desdobramento desses efeitos.
A hierarquia da paisagem dos conhecimentos cientificos, 0 papel
de modelo da conduta teorico-experimental como tambern as estrategias de ,oa~ zil bom
que nao cessam de selecionar 0 que se constitui
na "boa" abordagem, 0 que se constitui na dificuldade secundaria
"ainda nao suplantada", indicarn que os desniveis do poder se estenclem pelo terreno cientifico. Porem des nao sao do ambito exclusivo
da ciencia. Os desniveis tambem fazem rizomas. Quao mais ficil e
utilizar urn cientista ja habituado a imaginar que sua abordagem "comanda 0 interesse"! Quao mais manipulaveis sao os experts cientificos representantes de urn campo onde reina 0 desprezo por aquilo que
nao pode ser reproduzido em laboratorio! Quao mais aptos a transmitir a invenc;ao cientifica como "firmando autoridade" sao aqueles
que a aprenderam pelo modo da evidencia! Quao mais dispostos a
justificar a passagem para a existencia, em nome da ciencia, de uma
inova~
socio-tecnica estao aqueles, finalmente, cuja atividade apai-
Um..mundo disponivel?
153
xonada e precisamente de "fazer proliferar" , de "fazer existir" , para
o maximo de protagonistas, a difern~a
entre fic~ao
e testemunho fidedigno que esta inova<;ao criou.
Nao e fatalidade que as ciencias sejam aliadas do poder, porem
elas sao, por defini<;ao, vulneriveis a todos aqueles que podem contribuir para criar as ,sa~nerfid
firmar os interesses, desqualificar as
quest6es incomodas, facilitar a safda dos laboratorios. A singularidade que eu propus atribuir-lhes, inventar os meios de veneer 0 poder
da fic~ao,
de submeter as razoes que inventamos a urn terceiro capaz
de estabelecer a difern~a
entre elas, torna-as tecnicamente solidarias
com urn "compromisso com 0 verdadeiro" que define 0 que nao e cientHico como apenas fictfcio, disponive1 para testes. Esta singularidade
poe 0 problema politico de sua coexistencia com a de outros atores,
para quem os termos de submissao e de disponibilidade tern urn sentido completamente diverso, que nao se dirige a atores rivais e interessados e sim a urn mundo concebido como campo de manobra.
Por que e que a den uncia de uma "racionalidade operatoria",
especifica da ciencia, e que teria efeitos sistematicamente destruidores tao logo a ciencia saia dos laboratorios e parta para conquista do
mundo, e tao convincente? Por que e que nos somos, e os cientistas
tambern, tao freqiientemente levados a opor a formula~
cientifica,
ou racional, de urn problema aos seus aspectos "subjetivos", "culturais", "psicologicos", os quais cabe, aparentemente, considerar sob
outro prisma? Senao porque "fora do laboratorio", na paisagem das
praticas humanas, prevalece a mesma estrategia mobilizadora que na
paisagem dos saberes, a desqualifica<;ao daquilo que e considerado
"obstaculo", 0 privilegio sistematicamente concedido aquilo que permite afirmar 0 poder de uma conduta?
Cabe lembrar aqui, a titulo emblemitico, aquele fim do seculo
XIII em que Etienne Tempier proclamou, em nome da onipotencia
divina, 0 poder invencivel da fic<;ao. Quem falava pela sua boca? Uma
Igreja preocupada em recriar os instrumentos de sua autoridade face
aautoridade rival dos saberes pagaos, sem duvida. Mas esses proprios
instrumentos, como compreende-los? Assim como, segundo De1euze
e Guattari, a filosofia nao era amiga da cidade grega onde nasceu, assim
como a ciencia nao 0 e do capitalismo, a Igreja de Tempier nao era
amiga dos mercadores que, a epoca, aprendiam a definir 0 mundo nao
rnais por referencia a uma ordem inte1igfvel, mas por referencia ao
possivel: mundo transformivel, campo de manobra e de especula<;ao.
Se a referencia a "ciencia moderna" nasce, como tentei mostrar, da
dos meios para contornar a proib~a
de Tempier, ela 0 faz
nao na perspectiva de uma "volta atras" em oa~erid
a urn mundo capaz de impor suas razaes, e sim pela descoberta de que 0 poder da fic,oa~
a inve~ao
do laborat6rio, pode ser voltado contra 0 arbitrario
da fiq:ao. Porem a proib~a
contornada pode se achar por isso mesmo :ad~rofe
pode ser do interesse das ciencias remeter ao arbitrario
da fio;ao tudo 0 que nao eciencia. Cabe portanto pensar em termos
de conivencia a defin~ao
de urn "mundo disponivel para a fiq:ao" que
parece reunir as praticas mercantilistas, depois capitalistas, e as praticas cientificas. Nao ha entre os dois tipos de pratica, uma identidade oculta, que transformaria Sua cumplicidade em destino, mas uma
convergencia relativa de interesses que coloca urn problema politico
que pode receber solu<;aes bern diferentes.
A priori, nada impede de imaginar cientistas conscientes do fato
de que, ao mudar de meio, ao nao se dirigir mais a colegas, ao participar da invenc;ao de inovac;6es irredutivelmente tecnicas e sociais,
devem igualmente mudar de estilo "etico-estetico-etologico". Pois tudo
muda quando se sai do laborat6rio, lugar onde os fen6menos sao inventados como testemunhas fidedignas, capazes de fazer a diferen<;a
entre verdade e fic<;ao. No laboratorio de Galileu, por exemplo, reunem-se aqueles que concordam em se interessar pelo movimento que
o plano inclinado inventa e encena. Fora do laborat6rio, encontramos
o atrito, 0 vento, a irregularidade dos solos e a densidade dos meios
materiais, tudo aquilo cuja oa~nimle
permitiu a Galileu firmar autoridade. Encontra-se tambem urn mundo em que operam outros atores, perseguindo outros projetos, que implicam igualmente uma difeoa~ icner
entre 0 que deve ser levado em conta e aquilo que convem
deixar de lado. A proposito desses atores, 0 cientista consciente de que
muda de meio colocaria a questao: "Por que sou tao interessante para
eles? Onde estao os outros, os capazes de levar em conta aquilo que,
para me autorizar a falar, meu laborat6rio se obriga a eliminar?".
Ninguem propora, normalmente, que se ratifique a eliminac;ao
do vento quando se trata de construir uma ponte, por exemplo. Nesse caso, 0 ideal de laborat6rio deve se compor com a "for~a
das coisas", pois as conseqiiencias da negligencia se pagam de urn modo que
faz claramente a diferenc;a entre 0 sucesso e 0 erro. Do mesmo modo,
toda industria se ve obrigada a levar em conta urn conjunto de riscos
conhecidos, que evolui com a legislac;ao e os regulamentos, isto e, a
154
Urn !TIundo disponfvel?
Propondo
oa~nev i
155
fazer inrervirem os legitimos representantes do aspecto do problema
para 0 qual 0 risco aponta 13 . Mas os cienristas que soubessem que
ao sair do laboratario mudam de meio e devem mudar de pritica nao
esperariam que a lei os obrigasse a nao ignorar 0 que seus laboratarios eliminam. Saberiam que 0 estilo que conveffi aos riscos do teste,
de modo a constia inveo'r3.o dos meios para purificar uma situa~ o
tui-la em testemunha fidedigna, muda de sentido quando se trata de
irremediavelmente concretas, code as paescolhas relativas a situa~oe
lavras, se nao nos acautelarmos, tern 0 poder de desqualificar, de fazef calar, de ratificar as amalgamas e as confusoes, au seja funcionar
como slogans.
Esses cientistas definiriam como "racional" a necessidade de que,
a proposito de urn problema "fora de lahorat6rio", rodos as que sao
suscetiveis de representar e de fazer valer as dimens6es desse problema, que des pr6prios naD levam em canta, sejam sistematicamente
procurados e reunidos. Eles avaliariam que e de sua responsabilidade
cientifica, etica e politica afirmar 0 caniter seletivo de seu saber e exigir que sejam reunidos rodos as que podem contribuir para a inven,ao de urn modo pertinente de colocar 0 problema. Saberiam tam bern
que devem, assim agindo, lutar contra as fi,,;oes do poder, contra os
juizos que desqualificam certos interesses, constituem-nos em obstaculos obscurantistas ou em reiv ndica~6es
inaceitaveis 14 . E, acima de
tudo, saberiam que, quando se trata de devir social, a difern~a
entre
sucesso e malogro nao e capaz de impor a pertinencia na escolha dos
experts: ao contrario da ponte que, mal calculada, desaba, uma solu~ao
"social" raramente e desmentida pelos seus efeitos. Simplesmen13 Para 0 duplo registro dos riscos, os que nao se tern 0 direito de desprezar
e os que podem ser relegados a urn futuro em que tudo se arranjad. "por si so", e
para suas conseqiiencias na historia recente da medicina nos Estados Unidos, ver
Diana B. Dutton, Worse than the disease: pitfalls of medical progress, Cambridge,
Cambridge University Press, 1988.
te, entre esses efeitos, encontramos com freqiiencia 0 devir monstruoso, desesperado, clandestino ou dilacerado daquilo que nao foi levado em considera~ o
... e que confirma, justamente por esse devir, a
desqualifica,ao de que foi objeto.
A diferenc;a entre esses cientistas e aqueles que, nos dias atuais,
aceitam deixar-se selecionar como representantes legitimos de urn problema, sem se perguntar onde estao todos os outros e que meios lhes
foram concedidos para fazer valer sua competentia, nao depende de
uma identidade qualquer da ciencia, mas da identidade cientifica construida pela ciencia mobilizada. 0 cientista mobilizado ficara feliz e
orgulhoso de ser convocado enquanto expert por urn poder que 0 reconhece como unico representante legitimo de urn problema. Ele aprendeu a desprezar, como obstciculo "ainda nao" minimizado, 0 que seu
laboratario nao pode levar em conta e ele julgara normal que aquele
que Ihe da os meios de sair do laboratario defina, ele tambom, se for
o caso, estas dimens6es do problema como despreziveis, irracionais ou
fadadas a se ajustarem por si sas. Ele considerara essencial que 0 valor de sua pesquisa seja reconhecido e receba (por fim) 0 financiamento
que merece. E ele desencorajara ativamente seus colegas que tenham
"estados d'alma", que busquem imaginar as conseqiiencias "possiveis",
nao representadas "cientificamente", daquilo para 0 que trabalham.
Jean Bernard, presidente da comissao francesa de etica, "tranqiiilizou"
o publico quando Jacques Testart ousou ressaltar as conseqiiencias perigosamente incontrolaveis das tecnicas de procriac;ao artifical 15 . Daniel Cohen, diretor do programa Genethon, desqualifica hoje como "irracionais" as preocupac;6es do mesmo Jacques Testart quanto as conseqiiencias sociais, pollticas e subjetivas dos metodos de diagn6stico
genetico e op6e as quest6es colocadas pelos pesquisadores em ciencias
humanas a distin,ao entre aqueles que se dedicam a fazer a doen,a
recuar, a aliviar os sofrimentos e aqueles que complicam seus esforC;os em virtude de receios obscurantistas.
14 Ver, por exemplo, Isabelle Stengers e Olivier Ralet, Drogues, Ie defi hoIlandais, col. Les Empecheurs de Penser en Rond, Paris, Editions des Laboratoire
Delagrange, 1991, em que nos mostramos que as polfticas repressivas a proposito das drogas ocultaram, pela sele\=ao dos especialistas adequados, 0 fato de que
nao atribuiam nenhum "interesse" aos toxicomanos que nao se definem como
necessitando de suspensao da droga. Ver tambem Drogues et droits de I'homme,
sob a dire\=ao de Francis Caballero, col. Les Empecheurs de Penser en Rond, Paris, Editions des Laboratoire Delagrange/Synthelabo, 1992.
15 Para 0 estudo lucido dessas conseqiiencias, cujo caniter pouco controIavel e doravante reconhecido... mas posta na conta da "irracionalidade" do publico, ver Michel Tort, Le desir froid: procreation artificielle et crise des reperes
symboliques, Paris, La Decouverte, 1992.
156
DIP,mundo disponivel?
Propondo
157
8.
o SUJEITO E 0
OBJETO
QUE SINGULARIDADE ATRIBUIR As crtNcIAs?
as instrumentos de analise de que me vali ate aqui sao insuficientes, e essa insuficiencia se expressa por uma conseqiiencia bastante
deploravel do ponto de vista politico. Tenho centrado, com efeito,
minha descric;ao naS praticas te6rico-experimentais, como se a definic;ao cia singularidade cia ciencia, inventar os meios de fazer a diferenc;a entre fiq:oes, se confundisse com a produc;ao das testemunhas fidedignas criadas pelos laborat6rios. A conseqiiencia deploravel e a
aparente impossibilidade de se dirigir aos cientistas de outro modo
senao do ponto de vista de sua vulnerabilidade em rela~ o
ao poder.
Teriam de impor limites a sua paixao por "fazer existir", e reconhecer suas responsabilidades na escolha dos aliados que lhes oferecern
as meios para esta paixao.
Nunca e born definir urn grupo por uma contradi~ao
entre seus
interesses imediatos e exigencias eticas e politicas as quais deveria se
submeter. A cena e excessivamente drama-tica e nao se presta a risas.
Em contrapartida, e interessante transformar uma contradi~ao
aparente em tensao, ja habitando 0 grupo em questao, suscitando em seu
seio interesses divergentes. Certos aspectos da exigencia etica ou politica sao entao suscetiveis de se tornar questoes internas, vetores de
inve ~ao
e nao motivos de autolim~.
Outras conseqiiencias lamentaveis decorrem ainda da quase-identidade entre ciencia e ciencia teorico-experimental que, na verdade, ate
aqui aceitei. Poderiamos ser tentados a utiliza-Ia para solucionar de
uma vez por todas a questao do alcance das ciencias e de sua autoridade. Diriamos que s6 existe ciencia ali onde se pade inventar 0 disde teste em que
positivo capaz de calar os rivais, de criar uma situa~ o
se poe em jogo 0 poder de representar. Esta defin~ao
possivel da ciencia
e tanto mais aceitavel por muitos dos praticantes das ciencias teoricoexperimentais que ela congela a oposir;ao entre "ciencia" e "simples
158
Propondo
opiniao" que pressup6e a enca~o
experimental. Para alem do veredito do dispositivo, nada de diferenc;as, somente a turba de opinioes
reduz, portanindefmidamente variaveis e arbitd.rias. Essa defin~ao
to, a impotencia, assim que se trate de discutir ciencias que sao produzidas fora do laborat6rio. Por exemplo, ela efetivamente favoreceu
a tese dos "criacionistas" americanos, que nao aceitam ver 0 discurso
darwiniano substituir a nar~o
biblica da cria~ o
das especies. Os
criacionistas pregaram que a ciencia da evolu~ao
nao podia arrogarse 0 titulo de ciencia, porquanto nao podia vangloriar-se de nenhuma
do poder teorico-experidas caracteristicas que exprimem a inve~ao
mental. E, de resto, esta defin~ao
da ciencia nao fornece outros meios
senao os do desdem e da denuncia quando se trata de ciencias pseudo-experimentais, que produzem artefatos sistematicamente.
Se 0 problema hist6rico posto par urn processo contingente e
aquele de seu recomer;o contingente com outros dados, nao e contraditorio afirmar 0 carater primordial do acontecimento experimental
ao mesmo tempo em que se contesta a hierarquia das ciencias baseada no modelo teorico-experimental. Tratar-se-ia entao de tentar "estender" a singularidade das praticas cientificas, inventada a proposito das ciencias experimentais, a outros campos, ou seja, tam bern de
desvincular esta singularidade da invenc;ao de urn poder, da invenc;ao
de meios para criar testemunhas fidedignas.
A inve~ao
de uma singularidade abstrata 0 bastante para ser
separada de seu campo de nascimento nao deve ser confundida com
a busca de uma "nova ciencia", por exemplo, desta ciencia "holista",
que respeita 0 mundo tal como nos e dado, procurando reconciliar e
reparar clivagens e conflitos, com que nos martelam os ouvidos hoje
em dia 1. Na perspectiva por mim proposta, a atividade cientifica integra uma forma de polemica e de rivalidade, promove urn "compromisso" que liga interesse, verdade e historia de urn modo que nao e
1 Observemos a esse respeito que La nouvelle alliance, publicada bern antes que se falasse de "nova ciencia", nao defendia tal perspectiva. A expressao
"escuta poetica da natureza" escandalizou aqueles que "esqueceram" de ler 0 que
se seguia: "no sentido etimol6gico em que 0 poeta e urn fabricante". E que de
novo confundiram a ideia da "capacidade", para a f!sica, de "respeitar a natureza que ela faz falar" com a idfia de respeito a natureza tal como e1a se apresenta
(ver Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, La nouvelle alliance: metamorphose de La
science, republicada na col. FoliolEssais, Paris, Gallimard, 1986, p. 374 red. bras.:
A nova aLianfa, Brasilia, VnB, 1997J).
o sujeito e 0
objeto
,"":-.
159
nem 0 dos saberes tradicionais, nem aquele tradicionalmente vinculado a imagem feminina, toda doc;ura, conciliac;ao, respeito pelos sentimentos do outro, confian,a numa intui,ao fragil mas profunda. Por
isso ressaltei 0 interesse da proposi,ao de Sandra Harding, que associa a luta do movimento feminista ao contraste entre a atividade apaixonada de Newton e Galileu, de urn lado, e os discursos sobre 0 metodo e a objetividade, que se apoiam na sua autoridade, de outro. Se a
imagem "antipolemica" da mulher devesse ser veridica, ela teria por
conseqiiencia a auto-exclusao das "verdadeiras mulheres", aquelas
que corresponderiam a essa imagem, do conjunto dos herdeiros do
acontecimento "criac;ao das ciencias modernas", que estaria entao associada a uma concepc;ao "viril" da verdade. Porem, em compensac;ao, minha posic;ao me compromete. Terei que mostrar que a singularidade que proponho para as "ciencias modernas" separa efetivamente verdade e poder e nao ratifica a tese da "grande divisao" em nome
da qual nos reconhecemos que, infelizmente, os saberes tradicionais
estao condenados, por desequilibrio de for,as, pela simples existencia
de saberes modernos.
o desafio a que me proponho, separar ciencia e poder, sem no
entanto separar ciencia de polemica, pode se repetir na linguagem que
distingue 0 sujeito do objeto. A concep,ao classica do sujeito e do
objeto e0 resultado de uma divisao polemica. 0 sujeito "livre" eaquele
que se depurou da opiniao de uma vez por todas. Ele sabe que salida
com objetos, cujo modo de existencia e absolutamente diferente do seu.
Sabe como se relacionar com esses objetos, no sentido em que essa
relac;ao nada tern de comum com a maneira pela qual se relaciona a
urn outro sujeito. De uma forma ou outra, 0 poder, a iniciativa, 0 problema estao do lado do sujeito, estando 0 objeto do lado da "causa",
daquilo a proposito do que os sujeitos discutem e emitem julz0 2 .
A distin,ao classica entre sujeito e objeto supoe, e claro, 0 poder, 0 poder do sujeito capaz de convocar 0 objeto ao tribunal onde
sua causa sera discutida. 0 laboratario onde as condi,oes em que 0
objeto pode dar seu testemunho sao definidas e onde este e posto a
prova, e a imagem por excelencia deste tribunal, local em que 0 inculpado e ouvido segundo as categorias que permitirao julga-lo. E ate
2 Ver, para a emergencia mftica e antropol6gica do objeto, Michel Serres,
Statues, Paris, Editions Franfois Bourin, 1987.
160
Propondo
possivel ir mais longe e dizer que 0 "tribunal experimental" e 0 lugar
onde a distinc;ao classica entre sujeito e objeto estabilizou-se, enquanto 0 discurso filosafico, especialmente 0 de Kant, Ihe atribuia urn alcance geral.
Na perspectiva em que a experimentac;ao se afirma como pratica
singular, que nao pressupoe mas cria tanto 0 sujeito e 0 objeto quanto
suas relac;5es, nenhuma versao dessas relac;5es, por exata que seja, pode
mais aspirar a uma validade geral. Paralelamente, a questao de saber
o que acontece com a distinc;ao entre sujeito e objeto em pniticas cientificas que nao seriam orientadas pela experimentac;ao ja nao e uma
questao filosofica, e sim uma questao imanente as ciencias, ou seja,
uma questao pratica.
Para desvincular a ciencia do poder, caberia contestar a distin,ao entre sujeito e objeto ou entao modific:i-la? A tese que defenderei
neste capitulo e que a singularidade das ciencias modernas implica a
manutenc;ao da distinc;a.o, porque e desta distinc;a.o que nasce 0 risco 3.
A partir do momento em que se trata de ciencia, todos os enunciados
humanos devem deixar de equivaler-se, e 0 teste, que deve criar uma
diferenc;a entre eles, implica a criac;ao de uma referencia que os enunciados determinam e que deve ser capaz de fazer a diferenc;a entre ciencia
e fic,ao. A distin,ao entre sujeito e objeto, na medida em que ela enuncia esta relac;ao de teste, nao pode portanto ser pura e simplesmente
eliminada4 • A questao de saber quem deve se submeter aprova perma-
3 A manutenfao da distinfao entre sujeito e objeto implica a manutenfao
duma distinfao entre produfoes cientificas e tecnicas. A invenfao de urn dispositivo tecnico nao pode, em nenhuma medida, ser esdarecida pela distinfao entre
sujeito e objeto, porque ela tern por materia e alva nao a indicafao daquilo que
pertence a urn e a outro, e sim a criafao de novos modos de distribuifao, que se
justificam por sua mera possibilidade (ver Bruno Latour, Aramis ou f'amour des
techniques, op. cit.).
4 A tese construtivista segundo a qual toda experimentafao e "performativa", quer dizer, cria ativamente aquilo que the serve de objeto, e "verdadeira"
do ponto de vista filosOfico e desastrosa do ponto de vista pratico. Ela pode, se
esta distinfao entre pontos de vista for desprezada, desembocar no enfraquecimento de toda resistencia as "patologias" cientificas. Tomemos, por exemplo, 0
debate aberto nos Estados Unidos a prop6sito das personalidades multiplas seriam elas eriadas au nao pelo tratamento eujo objetivo e revela-Ias? 0 eonstrutivista poderia ser tentado a ridiculariza-lo pelo fato de que nunea urn tratamento "revela" aquilo que preexistia a ele. Mas ele nao leva em conta, entao, que
o sujeito e 0
objeto
161
nece entretanto em aberto. Esta questao vai ao encontro da tese de
Sandra Harding sobre a ligac;ao entre "objetividade" e questionamento
critico, pelas proprias pd.ticas cientificas, da relaC;ao entre a "experiencia social" dos cientistas e os "tipos de estruturas cognitivas" privilegiados pela sua conduta. A tese mantem a distinc;ao entre 0 sujeito e 0
e reconhecida nao como
objeto, porem modifica seu sentido: a distn~ao
urn direito, e sim como urn vetor de risco, urn operador de "desalinhamento" . Ela nao atribui ao sujeito 0 direito de conhecer 0 objeto, mas
atribui ao objeto 0 poder (a ser construido) de por a prova 0 sujeito.
Tal e portanto a defini<;ao abstrata da singularidade das priticas
cientificas modernas que eu irei propor: se nao se trata mais de suplantar 0 poder da fic<;ao, trata-se ainda de por a prova, de submeter as
razoes por nos inventadas a urn terceiro capaz de coloca-las em risco.
Em outros termos, trata-se ainda de inventar as praticas que tornarao
nossas opinioes vulneraveis em oa~ler
a algo irredutivel a uma outra
opiniao. Se, como diziam os sofistas, "0 homem e a medida de todas
as coisas", trata-se ainda de inventar as praticas gra~s
as quais esse
enunciado perde seu carater estatico, relativista, e entra numa dina-mica
em que nem 0 homem nem a coisa tern 0 dominio da medida, em que
de novas medidas, ou seja, de novas rela~6s
e de novos
e a inve~ao
testes, que distribui as respectivas identidades do homem e da coisa.
A fim de mostrar que esta singularidade nao para na verdade de
ser reinventada pela historia das ciencias modernas com outros dados,
quer dizer tambem com outros meios e outras modalidades de comprometimento, eu irei selecionar primeiro urn problema posto hoje no
centro das proprias ciencias teorico-experimentais, 0 surgimento de urn
novo tipo de protagonistas que p6em em questao qualquer possibilidade de distin<;ao entre teoria e modelo.
FIO;:OES MATEMATICAS
os especialistas das personalidades multiplas acrerutam que seu tratamento concede a uma verdade "verdadeiramente verdadeira" 0 poder de se manifestar, e
que 0 conjunto de sua pratica se justifica por esse "verdadeiramente verdadeiro".
Filosoficamente, 0 problema das personalidades multiplas coloca, sem duvida, em
questao aquilo que nos entendemos por "personalidade", artefato ou verdade
intima (ver a esse respeito Mikkel Borch-Jacobsen, "Pour introduire a la personnalite multiple", Importance de l'hypnose, sob a direr;ao de Isabelle Stengers, col.
Les Empecheurs de Penser en Rond, Paris, Synthelabo, 1993). Na pd.tica, esse
problema deve ser discutido no terreno em que se coloca, ou seja, urn terreno constituido pela autoridade do "verdadeiramente verdadeiro".
A distin<;ao entre teoria e modele, que pode parecer artificial do
ponto de vista epistemologico, tern geralmente urn sentido muito claro do ponto de vista da pratica coletiva das ciencias. Urn modelo se
define pela ausencia, pelo menos oficialmente, de pretensao de julgar:
ele prodama a ausencia de uma rela<;ao de for<;a que the permitiria se
apresentar como representante do fen6meno, e pode, paralelamente,
ficar explicitamente vinculado as escolhas de urn autor. Diversos modelos, definidos por distintas variaveis, podem coexistir sem problemas para urn mesmo fenomeno, cada qual tendo sua zona de validade privilegiada, OU suas vantagens especificas.
Como compreender, nos termos que nos introduzimos, a utilizaoa~
dos modelos? as modelos dizem espontaneamente que sao fiq:6es,
a serem tratadas como tais. Contudo constituem tam bern uma maneira
de por a prova as fiCl;6es que nao tern por alvo a eliminac;ao dos rivais,
e sim 0 controle e a explicta~o
das consequeneias. Desse modo, Erewhon de Samuel Butler pode ser considerado COmo urn modelo. Considere-se a hipotese de uma inversao de nossas categorias quanto aqueles
que convem ajudar e aqueles que vale a pena condenar. Em que isto
resulta? a que ira variar e 0 que permanecera invariante na sociedade,
ou rnais precisamente na soeiedade vitoriana Como Butler a coneebe?
Desde a [dade Media, esse uso regrado, exploratorio, da fic<;ao
descobriu nas matematicas urn instrumento privilegiado. Considerese a earidade uma grandeza "uniformemente disforme" (variando de
maneira linear em relaC;ao a uma variavel extensiva, no easo, 0 tempo). 0 que se pode conduir dessa defini<;ao? 0 que ela permite "salvar", quer dizer, reproduzir enquanto eonseqiiencia, dentre todos os
enunciados sobre a caridade que possamos defender?
Esem duvida para se diferenciar desta utiliza<;ao da matematica
que Galileu se preocupou tanto em salientar que sua defini<;ao matematiea do movimento uniformemente aeelerado nao era uma fiec;ao
devida a urn autor. 0 fenomeno que ele inventou e capaz de calar as
eontra-interpretac;6es, porque ele e praticamente definido em termos
de variaveis que permitem a urn s6 tempo descreve-lo e controla-lo:
sao as varia<;6es pelas quais ele responde as mudan<;as de valor dessas
variaveis que eonfirmam a legitimidacle daque1e que 0 representa. Nesse senticlo, a ligac;ao entre representac;ao matematiea e repsnta~o
experimental e urn misterio poueo profunda. Tocla vez que se eria uma
162
o suj.::ito e 0
Propondo
objeto
163
quia entre 0 fenomeno depurado, correlato da inteligibilidade ideal inventada pela representa<;ao experimental, e as complica<;6es anedoticas.
De fato, a simula<;ao coloca no mesmo nivel aquilo que ela leva em
considera<;ao: as "leis" tornam-se coer<;oes cujos efeitos nao apresentam qualquer interesse independentemente das circunstancias que fazem de cada simula<;ao urn novo caso. Alem do mais, a defini<;ao de
"caso" s6 guarda da representa<;ao matematica a coer<;ao de uma defini<;ao precisa, formalizavel, das rela<;oes, e nao obrigatoriamente a
de uma defini<;ao das variaveis que correspondam a possibilidade de
se colod-Ia sob controle experimental. A arte do simulador e a do roteirista: colocar em cena uma multiplicidade heterogenea 6 de elementos, definir de urn modo que e 0 do "se ... entao ..." temporal, narrativo,
a maneira como esses elementos atuam juntos, depois acompanhar as
historias que essa matriz narrativa e capaz de originar. Sao essas hist6rias que poem a rnatriz aprova, e fazem da simula<;ao uma experimenta<;ao sobre nOssos enunciados. Elas os "colocam em pratica" sem nos
conceder a oportunidade de intervir, de retificar a narrativa na dire<;ao
do que nos desejamos ou consideramos plausivel. Em outros termos,
o tra<;o caracterfstico da linguagem rnatematica, 0 fato que os enuneiados comprometem, estende-se, aqui, ao conjunto das descri<;oes que
nos irnaginamos ser a "explica<;ao" de urn processo e as poe a prova:
a explica<;ao, expressa na forma de urn programa que ira desdobrar
suas conseqiiencias, pode revelar que ela certamente implicava aquilo
que tinha por meta, mas talvez tambern, em eircunstancias ligeiramente
diferentes, urn processo bern distinto, e mesmo, se a "dinamica" a qual
corresponde for caotica, ser praticamente qualquer coisa.
Se a simula<;ao poe em contato sob urn modo novo, experimental, a descri<;ao, a explica<;ao e a fic<;ao, e isto em todos os campos em
que urn autor ere poder propor "razoes" para uma historia, ela coloca urn problema espedfico nos campos teorico-experirnentais. Nao e
sem razao que aqui se discute a necessidade de uma "etica" da simula<;ao, pois a maneira pela qual urn prograrna "adultera" as leis (ao
definir seu aleance em vez de exprimir seu poder) questiona 0 modo
de comprometimento mutuo entre conduta, verdade e realidade. Olaboratorio informatico e com efeito bern mais rapido, flexivel e docil
"testemunha fidedigna", capaz de definir seu representante, instituise igualmente uma representa<;ao de tipo matematico, que poe em cena
seu testemunho como uma fun<;ao das variaveis por intermedio das
quais e interrogada.
o uso da matematica, que nao expressa nem confere poder algum a representa<;ao matematica, nos remete entao a uma outra historia possivel, na qual os matematicos teriam estabelecido la<;os privilegiados com as for<;as especulativas da imagina<;ao e nao com uma
"verdade teorica " do mundo. Essa historia, de resto, esta presente na
nossa, inclusive na historia das ciencias experimentais, porque a imagina<;ao matematica tern incessantemente ultrapassado as possibilidades
ou as necessidades da representa<;ao do objeto. Todavia, nos assistimos, no curso desses ultimos anos, a produ<;ao de uma nova possibilidade de historia. Aos olhos de alguns, 0 uso da matematica como instrumento de fic<;ao bern poderia constituir 0 novo porvir, que relegaria
nosso passado e nossO presente "'galileanos" a urn status de perfodo
transitorio cujo parentese esta prestes a se fechar.
Esta nova perspectiva esta ligada ao desenvolvimento das tecnicas informaticas. Com efeito, a for<;a do computador como instrumento
de simula<;ao faz surgir, entre os cientistas, 0 que poderfamos chamar
de "novos soflstas", pesquisadores cujo compromisso nao remete mais
a uma verdade que calaria as fic<;6es, e sim a possibilidade, seja qual
for 0 fenomeno, de construir a fic<;ao matematica que 0 reproduz.
Quando Steve Wolfram, por exemplo, escreve que 0 universo poderia ser urn gigantesco computadorS, epreciso primeiro entender que
esse universo nao promete mais fundamentar uma posi<;ao de juiz, consagrar uma teoria como aquela que unifica urn campo variegado sob
a unidade de urn ponto de vista hierarquizante, que separa 0 essencial
do aned6tico. Com efeito, 0 universo-computador estabelece uma rela<;ao direta entre fenomeno e simula<;ao, sem urn alem da simula<;ao,
sem promessa de teoria para alem dos modelos. Ele e a imagem do ideal
de uma matriz idealmente versatil, capaz de engendrar todas as evolu<;oes possiveis.
As simula<;6es em computador nao prop6em apenas 0 advento
do uso ficcional da matematica, elas subvertem igualmente a hierar-
5 Ver
Ed Regis, Who got Einstein's office?, Reading (Mass.), Addison-Wes-
ley, 1988.
164
6
o~alumis
Propondo
°
Remerendo, se for caso, a diferenres disciplinas,
uma prarica "inrerdisciplinar".
o sujeiro e 0
objero
-.
...,.
0
que pode fazer da
165
1
trar. Ele poe, entretanto, a prova as fic<;6es simplistas que servem de
que 0 laboratorio material. Nele podemos encenar fenomenos que nao
poderiamos produzir em laboratorio, aumentar escalas, diminuir ou-
base a grande perspectiva de uma vida cujo segredo poderia ser desvendado, pondo a prova as rela<;6es entre explica<;ao e delega<;ao: "Se
tras, simular 0 comportamento de uma popula<;ao de mil moleculas,
ou submeter a provas interessantes urn cristal dotado de falhas espe-
de fato 'para se fazer isso, basta...', construa-me aquilo que, por sua
atividade, 'fara' 0 que voce acredita ter explicado".
Que as ciencias da simula<;ao possam tomar 0 partido da diversidade, e nao 0 da redu<;ao ao mesmo, nao e, em si, uma garantia de
inocuidade. Os robos, ainda que nao respondam mais a uma voca<;ao
ciais. Mas a que corresponde uma "experiencia" efetuada em urn cristal
"informatico"? Produziria ela uma fiq:ao ou justificaria urn enuncia-
do experimental? Como lidar com os enunciados do tipo "a experiencia
mostra que... " quando nao se trata mais de urn acontecimento, liga<;ao conquistada entre palavras e coisas, mas de uma cena que e inteiramente definida em termos de representa<;6es?
o "caso Galileu" estabeleceu 0 compromisso das ciencias experimentais contra 0 poder da fic<;ao, contra a ideia de que a unica voca<;ao racional para uma teoria e "salvar os fenomenos", ou seja, si-
de reprodu<;ao da vida e sim de inven<;ao dos meios de delegar a urn
dispositivo maquinico urn ou outro de seus aspectos, nao se tornaram
por isso amaveis e tranqiiilos. A novidade reside antes em que a conduta teorico-experimental e confrontada com outras praticas, inven-
tivas e arriscadas, que colocam em duvida, pela sua propria existencia, 0 poder da verdade que define essa conduta. Nao se trata de re-
mula-los sem pretender penetrar em seu sentido. Pode-se doravante
conceber a possibilidade de uma histaria em que 0 parentese entao
aberto estaria a ponto de se fechar, em que 0 poder da fic<;ao, afir-
nunciar a distin<;ao entre "artefato" e "fato criado para demonstrar",
mas de se interessar por outra coisa, pelo artefato como tal, capaz
made e vencido pelo acontecimento experimental, voltaria a ser 0
horizonte das pniticas cientfficas. Este novo possivel constitui, para
os proprios cientistas, urn problema politico: como regular as rela<;6es
entre os integrantes de dois tipos de laboratorios, vetores de modos
divergentes de compromisso? Porem ele ja contribui para transformar
tambern de fazer a diferen<;a entre as fic<;6es humanas quanto as possibilidades de explicar. Em virtude de elas utilizarem tecnicas de ponta, e diffeil avaliar estas ciencias em termos de defeito, obstaculo ou
falta de maturidade. De fato, pelas alian<;as criadas com os especialis-
a maneira pela qual certos alvos-chave na histaria das ciencias moder-
que Ihes interessam, elas ja subvertem a ordem das disciplinas. Em par-
nas se prop6em, isto e, para introduzir uma forma de humor ai onde
reinava a estetica tragica de uma ciencia redutora devotada a nivelar
ticular, elas podem apoiar a critica apaixonada do modele teorico-ex-
tas de campo, os unicos capazes de lhes propor os tra<;os espedficos
perimental a qual, em nome das ciencias de campo, Stephen J. Gould
se consagrou em Vida maravilhosa7 .
as diferen<;as.
Bastante significativo, por exemplo, e 0 surgimento recente de urn
campo chamado artificial life. Criar a vida artificial era 0 sonho do
experimentador, a demonstra<;ao do poder conquistado pelo ser hu-
OS HERDEIROS DE DARWIN
mano sobre suas proprias condi<;6es de engendramento. Ora, esse cam-
Ha varios anos, Stephen J. Gould vern publicando ensaios cujos
titulos, 0 polegar do panda 8, 0 sorriso do (/aming0 9, A galinha e seus
po agrupa hoje uma multidao heterogenea de cientistas, todos aqueles que conseguem, gra~s
as recentes tecnicas (rob6tica, simula<;ao em
computador), capturar e reproduzir algum tra<;o de ser vivo. Nao mais
se trata de reduzir, mas de fazer proliferar, e, paralelamente, as alian7 La vie est belle, Paris, Le Seuil, 1991 led. bras.: Sao Paulo, Companhia
das Letras, 1990].
<;as nao passam mais pela "cupula": nenhuma disciplina e rainha, terra
prometida onde a vida se tornara objeto de ciencia. Os robaticos e simuladores interessam-se profundamente pelo que os etalogos sabem
sobre tal tra<;o de comportamento, proprio a tal especie, em tais con-
8 Le pouce du panda, Paris, Grasser, 1982 [ed. bras.: Sao Paulo, Martins
Fontes, 1989J.
di<;6es. 0 artiffeio faz existir, e para faze-Io tern necessidade de uma
descri<;ao perspicaz daquilo que 0 desafia, mas ele nao procura demons-
9 Le sourire du {lamant rose, Paris, Le Seuil, 1988 led. bras.: Sao Paulo,
Martins Fontes, 1990].
166
Propondo
1
O..s.!1jeito e oobjeto
167
dentes 10, eonstituem em si mesmos manifestos em favor da novidade
singular da biologia evolucionista herdeira de Darwin. Novidade em
rela\ao a duas tradi\oes distintas, das cieneias teorico-experimentais,
tecno-social dos seres vivos, predominante
de urn lado, e da conep~a
pelo menos desde Arist6teles, de outro.
Avaliada a partir do modelo te6rico-experimental, pode-se perguntar se a biologia darwiniana e realmente uma eieneia. Os criacionistas amerieanos nao se enganam ao ataca-la e nao mais a astronomia, como fez a Igreja aepoca de Galileu. Que "teoria" os darwinianos hao de aerescentar ao seu ativo, que poderia dar credito a sua
capacidade de julgar, de diferenciar 0 essencial do aned6tico num episodio da evolu\ao? Os grandes conceitos aparentemente explieativos
- adapta\ao, sobrevivencia dos mais aptos etc. - nao se revelariam
vazios de poder explicativo a priori: simples palavras que comentam
uma hist6ria depois desta ter sido reconstitufda?
seio da variedade fecunda dos mutantes. Gould batizou essa forma de
darwinismo de "adaptacionismo panglossianb". "Tudo vai bern no
melhor dos mundos", repetia 0 doutor Pangloss a Candido. Toda caraeterfstica do ser vivo deve ser ou ter sido util, porque e sua utilidade
dizem os neo-darwinianos l l .
que explica a sel~ao,
A critica ao "paradigma adaptacionista" nao se faz em nome de
outro paradigma, mas eonstitui antes 0 adeus da ciencia da evolu\ao
a ambi~o
de julgar segundo urn paradigma. Porquanto esta ambi~o
estava na base do poder coneedido asele\ao: se ea unica instancia que
pode legitimamente dar sentido ao que e, ela justifica a elimna~o,
na
qualidade de falsa aparencia, de tudo aquilo que parece incompativel
com a especie de temporalidade inventada por Darwin. A inova~
maior de Darwin foi sem duvida a inven\ao da hist6ria dos seres vivos como historia tenta, "deriva" dizia, no sentido em que ela esta
olho: como urn proeesso acidental como aquele que Darwin invoca
desprovida do motor que uma capacidade intrinseca de oa~tpda
pr6pria a vida ou a heran~
dos caracteres adquiridos proposta por
Lamarck teria constituido. E e em nome desta lentidao, da a~o
continua e infinitamente progressiva da sel ~ao,
que Darwin tinha desqualificado, como enganadores, os dados da paleontologia, porque
pode produzir urn dispositivo como 0 olho, quando se sabe que a
menor defeito faz esse 6rgao perder toda utilidade? 0 olho represen-
tempo geoI6gico). A teoria dos equilibrios pontuais de Gould e Eldredge
Avaliada a partir das questoes tradicionais suscitadas pela diferen\a entre os seres vivos e os nao-vivos, a resposta darwiniana tambern se mostra fraca. Quantos cdticos nao retomaram a problema do
ta por exceleneia a coneep\ao ~'tecno-s cial"
do ser vivo. Exige que
seja definido como instrumento, meio com vistas a urn fim. 0 olho e
feito para ver. Clarna por uma eoneep\ao do ser vivo que enearnaria
a ideal de uma sociedade regida por uma divisao harmoniosa do trabalho. Cada 6rgao, a maneira do olho, faz a que tern de ser feito pelo
bern maior do organismo, e este confere portanto sua inteligibilidade
final as suas partes. Como nao exigir uma forma de poder finalista para
dar eonta dessa harmonia?
Existem, entre os herdeiros de Darwin, bi610gos que aceitam 0
estes parecem ser testemunhos de muta\oes "bruscas" (em escala de
questionou esta avalia\ao, e implica que a paleontologia possa tornar-
se fonte de problemas em vez de ser colocada na dependencia da narra\ao "adaptaeionista". Paralelamente, a tese segundo a qual extin\oes
maci\as pontuariam a historia dos seres vivos questiona toda moral
adaptacionista: aeabaram-se as historias monotonas e pobres, euja
moral correspondia tao bern aos nossos julgamentos naturais. Nao,
os mamfferos nao venceram os dinossauros porque estes eram demasiado grandes, demasiado estupidos, um been sem safda na evolu\ao,
enquanto os mamfferos, que evoluem ate nos, ja manifestavam a su-
perioridade que nos distingue.
desafio tal qual se apresenta. Sao os assim chamados neo-darwinianos,
que conferem a sel~ao
darwiniana urn poder tao completo que ela pode
assumir 0 lugar do grande Arquiteto que teria planejado 0 organismo
tendo em vista seus interesses bern concebidos. Seja qual for a carac-
ponto de vista a partir do qual todos os casos dariam no mesmo, teriam a mesma moral adaptacionista, 0 bi610go perde 0 poder de jul-
10 Quand les poules auront des dents, Paris, Fayard, 1984 [ed. bras.: Sao
Paulo, Paz e Terra, 1992].
11 Ver 0 artigo doravante cIassico de Stephen J. Gould e Richard C. Lewontin. "The spandrels of San Marco and the panglossian paradigm: a critique
of the adaptationisr programme", Proceedings of the Royal Society, Londres,
B205, 1979, pp. 581-98.
terfstica de qualquer ser vivo, sua razao de ser e a sele\ao, agindo no
168
Propondo
Se a sele\ao nao
o -sujeito e 0
objeto
-,..
e todo-poderosa, se ela nao permite construir 0
169
gar e deve aprender a narrar. Entramos aqui numa problematica pr6-
pria
mentos cada vez mais heterogeneos, que nao cessam de complicar e
singularizar a intriga que e contada. as seres vivos nao sao mais "objetos da representa<;:ao darwiniana", avaliados em nome de categorias
as eieneias de campo, que as distingue das ciencias de laborato-
rio. Encontra-se, na pnitica de "campo", nas profundezas do oceano,
nos museus onde sao examinados os f6sseis recolhidos, nas florestas
onde as amostras sao colhidas, tantos instrumentos sofisticados quanto
num laboratorio experimental, a mesma inve~ao
no que concerne ao
significado de uma medida. Porem nao se encontram dispositivos experimentais no sentido galileano, que conferem ao cientista 0 poder
de por em cena sua propria questao, ou seja, de depurar urn fename-
que separam 0 essencial do anedotico. as "conceitos" de ,oa~tpd
de sobrevivencia do mais apto, nao tern mais 0 poder de tornar 0 cientista capaz de antecipar a maneira pela qual, em tal situa<;:ao, eles serao aplicados. Nas historias darwinianas, nenhuma causa tern mais em
si mesma 0 poder geral de causar, cada qual esta tomada em uma his-
toria e e dessa historia que ela retira sua identidade de causa. Cada
no e de Ihe conferir a poder de depor a esse respeito; as instrumentos
do naturalista, au do cientista de campo, abrem-lhe a possibilidade de
reunir os indicios que 0 orientarao na tentativa de reconstituir uma
situa~ o
eonereta, de identificar rela~6s,
nao de representar urn fe-
testemunha, cada grupo de seres vivos, e doravante concebido como
tendo de cantar uma historia singular e local. as cientistas nesse caso
nao sao juizes e sim investigadores, e as fic<;:oes que propoem tern 0
estilo dos romances policiais e implicam intrigas cada vez mais ines-
nameno como uma fun<;:ao munida de suas variaveis independentes 12 .
Eclaro, 0 indicio, tanto quanta 0 testemunho experimental, nao pode
peradas. as narradores darwinianos trabalham juntos, mas a maneira dos autores que se revezam na condu<;:ao da intriga, aprendem uns
com os outros a possibilidade de fazer intervir causas cada vez mais
heterogeneas, a desconfian<;:a em rela<;:ao a toda causa que carregue com
ela a pretensao de determinar como ela causa. Em suma, a desconfian<;:a
em rela<;:ao ao que, paralelamente, e visto como armadilha: os diver-
ser definido como neutro, independente do interesse de urn autor e de
suas previsoes. Contudo
0
autor, aqui, sabe que seu campo nao fani
dele urn juiz. Nenhum campo vale por todos, nenhum pode dar credino sentido experimental do termo. a que urn campo perto a ~'fatos"
mite afirmar, um outro campo pode contradizer sem que por isso urn
dos testemunhos seja falso, au sem que as duas situa<;:oes possam ser
julgadas intrinsecamente diferentes. Outras circunstancias entraram em
jogo. Todos os testemunhos em favor dos poderes da sel ~ao
dar-
sos modos de identificar a historia com urn progresso. Em Vida maravilhosa,o "papel" de Simplicio e exercido por "nossos habitos de
pensamento" que tendem sempre a definir aquila que aconteceu como
aquilo que devia acontecer.
winiana nao podem calar os outroS testemunhos que poem em duvi-
A singularidade pela qual me propus definir as ciencias moder-
da a generalidade de seu poder explicativo. a biologo evolucionista
nao sabe mais a priori nem como a sele<;:ao funciona em cada caso, nem,
sobretudo, 0 que se deve a sel~ao.
Vida maravi/hosa de Stephen]. Gould pode, por mais de urn motivo, ser comparado ao Did/ogo de Galileu. a poder desafiado nao
nas, inventar os meios de par como problema e risco 0 poder da fiq:ao,
e, aqui, Roma, e sim
0
modelo de ciencias te6rico-experimentais. A
ciencia da evolu~a
aprende a reafirmar sua singularidade de eieneia
hist6riea face aos experimentadores que, ali onde nao h" "produ~ao
de fatos", so podem ver uma atividade do tipo "cole~a
de selos".
as relatos darwinianos nao tern mais hoje em dia a monotonia
moralizante que destinava
0
"melhor" ao triunfo. Fazem intervir ele-
12 Ver, a respeito, 0 contraste entre ciencias da prova e ciencias do indicio
proposto por Carlo Ginzburg, "Signes traces pistes", Le Debat, n° 6, 1980, pp. 2-
44.
170
Propondo
e porranto indubitavelmente aqui reiventada com outros dados. Enquanto 0 dispositivo experimental instituia urn compromisso que pode-
mos colocar sob 0 signa do "poder de julgar", 0 do "biologo darwiniano" se inscreve numa estrategia de desalinhamento e de "desmoraliza~ao":
a conduta tern por alva permitir a realidade por a prova de for-
ma ativa nossas fic<;:oes, mas ela apenas recebe os meios para intervir
e fazer a diferen<;:a num movimento de "desmoraliza<;:ao" da hist6ria.
DESMORALIZAR A HIST6RIA
Cabe aqui entender moral no sentido em que uma explica~o
"moral" busca uma causa que seja "digna" de explicar, que carregue
em si a justificativa de seu efeito: "melhor adaptado", "mais apto" ...
O..sujeito e 0 objeto
171
A moral se inscreve sempre, assim sendo, numa perspectiva de progresso e tende, 0 mais das vezes, a colocar 0 homem no centro da historia. Como nao estar tentado a considerar que entre as mamfferos
contempora.neos dos dinossauros e estes devia haver uma difern~a
digna de explicar 0 desaparecimenro desses ultimos, e a historia que
leva dos primeiros ate nos? A realidade no sentido darwiniano intervern na medida em que, enquanto se trata de compreender a historia
que leva ate nos, ela chama a nossa aten,ao para algo distinto daqui/0 que remete a nos.
E, de fato, os "evolucionistas" continuam sem poder nos contar como 0 olho foi criado, mas eles conseguiram "fazer hist6ria" com
os seres vivos de uma maneira que reinventa 0 olhar que lan~mos
sobre eles. A efetividade darwiniana e a possibilidade de se interessar, como 0 ressaltam os titulos das diferentes coletaneas de Gould,
pelas caracterfsticas "bizarras", pelas bizarrices da natureza. Oolho
vini mais tarde, quando formos capazes de livra-lo de sua imagem de
instrumento para urn fim e de compreende-lo em termos de historias
bern mais bizarras. Enquanto nao podemos enxergar 0 olho como
produto de uma historia, deixamos 0 olho de lado enos interessamos
pelo polegar do panda, pelo sorriso do flamingo rosa, pela migra,ao
das tartarugas, por tudo aquilo que nao vfamos quando pensavamos
a vida em termos de fins. Verdade, realidade e conduta se envolvem
mutuamente numa operac;:ao que cria relatos ali onde antes compreendiamos por meio de juizo 13 .
o procedimento da narrativa, como 0 da exprimenta~o,
e uma
conduta arriscada, submetida it possibilidade sempre presente de criar
urn artefato. 0 risco especifico do narrador prende-se it prolifera,ao
dos indicios que, sabe-se, podem alimentar 0 poder da fic,ao tanto
quanto limiti-lo. De 0 nome da rosa, onde os pseudo-indicios, a correla~ o
entre as circunstancias dos primeiros crimes e 0 desenrolar do
Apocalipse, orientam igualmente a investigador e 0 criminoso, ao a
pendulo de Foucault, onde uma simples lista de entregas a cumprir
faz existir a sociedade secreta cuja existencia parecia revelar, Umberto
Eco erige-se em mitologo deste novo tipo de artefato.
Nao e de se espantar que a paleoantropologia seja urn terreno privilegiada hist6ria, no caso aquela que "levou" ao surgimento
do para a «desmoraliz~"
do Homo sapiens. Ver, a esse respeito, Roger Lewin, Bones of contention, Nova
York, Simon and Schuster. 1987 (reeditado sob 0 selo Penguin Books. 1991).
13
172
Propondo
E 0 problema colocado pela incerteza dos indicios e refor,ado
por aquele posto pelo caniter instavel, sensivel a menor variac:;ao quantitativa, dos modelos de simulac:;ao. Tal e 0 novo horizonte de risco
aberto hoje par esses cientistas que podemos denominar "as historiadares da Terra" e que ilustram a perfi~ao
as controversias conternpora.neas a prop6sito do "efeito estufa".
A hist6ria da Terra e posta doravante sob 0 signo da roteiza~
e nao rnais do julgar, e esta novidade se traduz no surgimento de cientistas estimulados por urn compromisso de novo tipo, hoje controverso
porque parece leva-los a intervir em historias nas quais os cientistas
"nao deveriam se meter". No infcio dessa historia bern interessante, a
rela,ao, proposta em 1979 por urn fisico e urn geologo, Luis Alvarez
e seu filho Walter, entre urn indicio, uma delgada camada de iridio
espalhada de modo especialmente homogeneo pelas camadas geologicas correspondentes ao final do perfodo cretaceo, e urn "macrofato",
a extinc:;ao aparenternente brutal a mesma epoca de 650/0 a 70% das
especies vivas l 4, entre as quais os dinossauros. Teria realmente urn
meteorito gigante se chocado contra a Terra naquela oportunidade?
Poderia a colisao ter desencadeado uma transfom~
dos regimes
meteorologicos em toda a extensao da Terra? Teria podido esta transforma~
provocar a extin~ao
das especies envolvidas? 0 roteiro imaginado peios Alvarez e em sua essencia interdisciplinar porque exige
urn discurso que integra £luxo solar, vari~6es
climaticas, regimes meteorologicos, comportamento das nuvens de po, pesquisa das crateras,
estatfsticas sobre as ,se6~nitxe
escavac:;6es paleontologicas etc. Constitui
tam bern urn campo privilegiado aberto it simula,ao por computador,
no sentido de que, como ja vimos, a simula~o
e naturalmente interdisciplinar, abarcando 0 papel de atuantes (actantes)15 heterogeneos.
Mas tambem foi ocasiao para que uma coletividade cientifica identificasse a singularidade de sua pritica, e a possibilidade de novos la,os
14 Ver, a esse respeito, David M. Raup, Extinction: bad genes or bad luck?,
Oxford, Oxford University Press, 1993.
15 Expressao proposta por Bruno Latour para poder falar do mesmo modo
de controdos seres humanos e dos nao-humanos articulados por uma situa~ o
no computador. A defin~ao
do atuante ere.
versia. Ou, no caso, uma simula~o
lativa a cena em que age, e1a pode mudar no curso da nar ~o
e aparecer sob a
forma de distintos atores.
o sujeito e 0
objeto
173
entre historias humanas e historias de processos encenados pelas ciencias. E isto, primeiramente, a partir de uma questao inesperada: as simula<;5es produzidas a respeito da hipotese formulada pelos Alvarez
nao poderiam (voltar a) ser pertinentes em caso de guerra nuclear?
o caso do "inverno nuclear", que teve inicio em 1983, juntou
biologos, meteorologistas e matematicos modelizadores (regime de
funcionamento interdisciplinar), acima das divis6es decorrentes da
guerra fria (modelizadores de todos os paises, uni-vos!), e semeou a
confusao entre politicos e militares. A ame~
de guerra nuclear nao
constitui nesse caso uma "causa" que teria em si mesma a capacidade
de explicar 0 modo pelo qual afetou esses cientistas (outros, antes deles, tinham protestado, se haviam reunido). Aqueles que a amea<;a de
guerra nuclear reuniu em torno do tema "inverno nuclear" nao eram
em primeiro lugar cidadaos eticos ou responsaveis, e sim cientistas estimulados por urn acontecimento, "produzidos" pelo encontro entre
uma nova possibilidade cientffica e a descoberta da ame~
imprevista contida numa possibilidade historica. E os desdobramentos desse
acontecimento transcenderam, nos Estados Unidos, os quadros "psicossociais" normais previstos para os protestos antinucleares: a camada
de iridio e os fosseis de dinossauros, 0 regime atmosferico e as conseqiiencias multiplas das "ari~6es
climaticas, tornaram-se testemunhas
de hist6rias possiveis para uma nova coletividade que desconcertou os
calculos dos estrategistas, enlouqueceu 0 Pentagono e estabeleceu sob
o nariz e as barbas da CIA contatos com 0 Leste, a respeito de modeliza<;5es, de simples modeliza<;5es espeeulativas (nada de segredos militares, que teriam propiciado 0 bloqueio desses contatos).
E na qualidade de cientistas que, nos dias atuais, aque!es que
tentam modelizar a "efeito estufa", as conseqiiencias do desflorestamento, os efeitos da polui~ao,
se comprometem e contribuem para
desordenar os calculos politico-economicos. Contudo as "novos dados" que este novo "processo contingente" inventa suscitam igualmente
novas se6~auti
de controversia. Os cientistas, aqui, nao sao mais aqueIes que trazem "provas", estaveis, e sim incertezas.
A incerteza irredutive1 e a marca das ciencias de campo. Ela nao
diz respeito a uma inferioridade e sim a uma modifica<;ao das relase6~
entre "sujeito" e "objeto", entre aquele que formula as quest6es
e aquilo que as responde. Paralelamente, a proposito das ciencias de
campo, e dificil falar de "descoberta", e a paixao por "fazer existir"
assume desde logo urn outro sentido. Ninguem, com efeito, duvida
174
Propondo
que 0 "campo" existe, preexiste a quem 0 descreve. Ainda que possa
ser considerado como inventado pelos numerosos procedimentos que
o codificam e 0 decifram, ele preexiste a seu deciframento no sentido
de que the e pressuposta uma estabilidade que 0 torna capaz de acolher prciticas interdisciplinares. Ele preexiste na medida em que essas
praticas sup5em que seja suscetive! "por principio" de po-las de acordo. Mas, por outro lado, esta prexisd~nca
veda a mobilza~
tal
como a havfamos descrito. 0 carater "artificial" do modo de existencia experimental permite uma prolifera~o
de hist6rias em todos os
locais em que as condi<;5es de produ<;ao deste modo de existencia
possam ser criadas, e se esse processo de ,oa~irc
como ja vimos, torna as ciencias te6rico-experimentais vulneraveis ao poder, confere
igualmente a referencia experimental uma existencia mais "pesada"
que aquela do campo16. 0 campo, com efeito, nao autoriza os seus
representantes a faze-Io existir fora dos locais em que ja existe. Tamque permitem descrevebern nao os autoriza a provar que as se6~alr
10 sejam esraveis com rela~o
a uma a~ndum
de circunstancias ou a
intrusao de urn elemento novo. A dinamica do "fazer existir" e a da
prova nao sao mais assunto de poder, e sim questao de processos que
se trata de acompanhar. 0 tempo da prova, que no laboratorio pertencia exclusivamente a temporalidade cientffica, ve-se aqui, com efeito, associado ao proprio tempo dos processos diagnosticados, ao tempo que, eventualmente, transformara urn indicio incerto em processo
quantificavel, mas talvez irreversivel. Nesse sentido, os cientistas de
campo sao bern mais desmancha-prazeres do que aliados interessantes
para 0 poder, porque se interessam precisamente por aquilo que 0 poder, quando se dirige as ciencias teorico-experimentais, faz esquecer
"em nome da ciencia".
politica, estetica, afetiva e etoE portanto uma transfom~
logica do pape! desempenhado pela ciencia ao lange da historia humana que esta engatilhada, em meio ao som e a furia, as se6~auc
de
desonestidade, de parcialidade, ou de irresponsabilidade. Os cientistas representam doravante entre nos a questao dos tempos longos e
16 0 que explica urn contraste a proposito do qual Stephen J. Gould expressou amiude sua surpresa e sua decepc;:ao: os mesrnos interlocutores que nao
teriam ideia de por em duvida a teoria heliocentrica ou a existencia de ,homos
considerarn com freqiiencia como irremediavelrnente especulativo 0 conjunto das
reconstituic;:6es da historia dos seres vivos oriundos da paleontologia.
~
..
o sujeito e 0
objeto
175
reu. antes da interven\=ao do investigador. A regra do genera, nas narratlvas historiogr:Hicas, e do mesmo tipo: os tra\=os que lhes interesao tipo de interven,ao que
sam tern uma identidade estavel em oa~ler
entrla~dos
it origem das coisas e poem it prova as seo~cif
segundo
as quais 0 tempo do progresso humano poderi ignori-los ou manipulalos it vontade.
permite estuda-los.
Completamente outra, entretanto, e a situa\=ao do autor cientffico quando aqueles com quem lida, ratos, babufnos, au seres humanos, sao suscetfveis de "se interessar" pel as questoes que lhes sao
"0 QUE ELE QUER DE MIM?"
propostas, ou seja, de interpretar de seu proprio ponto de vista 0 sen-
A pca.rica das ciencias te6rico-experimentais passa pela invem;aoacontecimento dos meios de fazer com que urn fenomeno testemunhe,
tido .d~
e esta oa~nev i
implica sempre uma variac;ao sistematica: urn fen6meno
torna-se capaz de designar seu representante legitime quando erecriado
em laboratorio como uma fun(iio que obedece a variaveis. Uma tal
vari ~ o
esta ausente quando se trata das pdticas de ciencias de campo, nas quais cada situa~ o
pode determinar suas variaveis pertinenres, aqui e agora, sem por isso conferir ao cientista 0 poder de dominar a variedade dos casos. Esta variedade como tal constitui entao 0
.
~lS O
Mas a inve~ao
de priticas que se dirigem a
teste de nossas fic~oes.
seres cujo modo de existencia eem si mesmo testemunho do poder da
Se 0 i?verno nuclear pode ser emblematico para 0 novo compros~ cltado
pelas historias da Terra, a aventura dos macacos que
falam , Sarah, Washoe, Lucy e tantos outros, pode servir de emblema ao problema suscitado pelo carater inseparivel das produ~6es
de
fief-Cia implica, como veremos adiante, urn terceiro tipo de vari ~ .o
Desta vez, a variac;ao afeta 0 proprio cientista enquanto "moderno",
segundo os termos de Bruno Latour, ou seja, enquanto procura opor
conheCImento e de existencia. Poderiam os chimpanzes aprender a
falar? As respostas trazidas a esta pergunta suscitaram e suscitam ainda
que, alias, so fizeram enriquecer a descri\=ao
numerosas co~tr ve sia
verdade e fic~ao.
que damos da hng,:agem humana e de seu aprendizado. 0 mesmo pode
N6s podemos pressupor da Terra, doravante tema dos nossos
roteiros, uma (mica coisa: ela faz pouco caso das perguntas que formulamos a seu respeito. 0 que dissermos "catastrofe" ela dira contingencia. Os micr6bios, assim como os insetos, sobreviverao ao movimento que pudermos desencadear. Em outros termos, e so porque
as seo~amrfnt
dispositivo que os examina com aten\=ao, ou ainda de passar
a eXIsnr num modo que integra ativamente 0 problema. Totalmente
outra e a situa,ao quando a historia pela qual aquele que investiga
autor constitui igualmente hist6ria para 0 investigabusca torn~-se
do, quer dlzer, quando as seo~idnc
de produ¢o de conhecimento
de. u ~
s~o
igualmente, inevitavelmente, condi\=oes de produfao de
extstencta para 0 outro.
ser dtto com rela\=ao ao ttpo de "consciencia" que podemos atribuir
aos chi.~panzes,
ao~
gorilas e a nos mesmos. Todavia, 0 pre\=o desta
produ~a
de saber e a produ~a
de seres novos, aqueles cuja capaci-
dade potencial nos "revelamos", ao mergulha-Ios num universo intensamente h.umano, em que as quest6es que fazem sentido para nos to-
ecologicas globais que podemos provocar sao even-
dos quais dependemos, que podemos considerar que a Terra esta em
jogo em virtude de nossas historias. Do ponto de vista da historia longa
mam sentld? para e1es. Os "psicoprimatologos" tem problemas que
an~m ts
nao tern: e1es nao podem se desembara\=ar
de seu matenal expenmental depois do uso, devolve-los ao seu habitat
da propria Terra, isto sera urn "acontecimento contingente" a mais
em uma longa serie. Esta estetica da contingencia define ao mesmo tem-
natural ou ao zoologico, porque sao seres hfbridos, literalmente "vind?s ~o mundo h~ma.no",
com re1a\=ao aos quais se sentem tao respon-
tualmente capazes de par em risco os regimes terrestres de existencia,
outros PSICO~ gos
savels quanto palS dlante de seus filhos. Os la,os criados em nome do
po a for~a
e os limites intrinsecos do estilo de ciencia praticada pelos
historiadores da Terra, assim como pelos historiadores das historias
humanas que se dirigem a estas como "fazendo parte do passado". Esse
estilo tern urn analogo entre os generos de fiq:ao: 0 que e caracterfstico no romance policial classico, por exemplo, e que a diferen\=a entre
o investigador e os suspeitos e estavel. 0 crime, se ele ocorreu, ocor-
176
Propondo
saber a ser produzido vinculam e comprometem os seres humanos com
os seres ineditos que eles fizeram existir.
oa~
t~n o
o suj~ito
Quando a questao posta interessa, embora de modo distinto
a qu~m
a coloca quanto a quem ela e colocada, 0 poder da fie:
mtervem ele proprio duas vezes: do lado do cientista, que deve
e 0 objeto
177
inventar uma pratica que ponha a prova suas ficc;5es, e do lade daquilo que ji nao e mais exatamente urn campo (embora se fale de campo
em ciencias sociais),17 pois a questao "0 que ele (este Clentlsta) quer
de mim?" e urn prodigioso recurso de especulac;ao e de autoproduc;ao,
quer e1a possa ser verbalizada, quer ela se traduza em comportamentos conjecturais ou perplexos. A no~a
de testemunha torna-se nesse
caso ambigua, pouco dissociivel do artefato (no sentido negativo). Paralelamente, "fazer existir" e "provar a existencia de" deixam de ser
correlatos. E aqui que 0 cientista encontra, em seus proprios dominios,
o "charlatao", aquele que, por exemplo, considera uma cura como
prova, e e nesse ponto que 0 proprio cients~a
para nao se rec~ap
com
urn charlatao, pode ser tentado a desquahhcar toda questao que se
relacione com a difern~a
entre urn corpo fisico-quimico e urn ser VIVO
(nao passa de placebo... ).
_
_
".."
Mais uma vez, portanto, a questao da rela~o
entre sUleito e
"objeto" se modifica. Aquele que, como Stanley Milgram, mantem 0
papel habitual de sujeito, que toma iniciativa de por questaes as quais
aqueles com os quais ele lida deverao, de uma manelra ou outra, responder, pode, em nome da ciencia, "fazer existir" os carrascos ;.ue .el.e
acreditava estar apenas "revelando". 0 novo teste, ao qual 0 SUjeIto" e submetido, consiste em lidar com seres suscetiveis de obedece10, de procurar satisfaze-lo, de aceitar, em nome da ciencia, responder a quest6es sem interesse como se elas fossem ,setni~rp
e es mo deixar-se persuadir de que elas realmente 0 sao, VistO que 0 clentista "sabe melhor"; em todo caso, com seres que nenhum expediente
pode tornar indiferentes ao fato de que sao interrogados. 0 ser interrogado, posto a servic;o do saber, nao se deixa questionar s~m
que,
incontroladamente, a questao cientifica tome igualmente sentIdo para
ele. 0 "objeto", aqui, olha, escuta e interpreta 0 '''sujeito''.
Epouco surpreendente que, na maior parte dos casos, a rela~.o
entre prodw;ao de saber e prodw;ao de existencia se apresente hOIf
como obsticulo a cientificidade, da psicologia experimental a peda-
n:
17 Em que se conhece, de resto, a ambigiiidade do termo. Que. am~
equipe
de campo busque os meios para melhorar a produtividade de u.ma oftcma e quase
todo meio empregado sera bem·sucedido (transitoriamente): 0 mteresse dos m~
bros da oficina pelo interesse de que sao objeto e mais determinante que os dlferentes fatores de sua "qualidade de vida".
178
Propondo
gogia, da sociologia a medicina, da etologia animal a psicologia social.
Mesmo a psicanalise, cujo campo parece delimitado por essa relac;ao,
pode ser descrita a partir do desejo de contornar suas implicac;5es, pois
e exatamente isto que faculta a entrada em cena do inconsciente freudiano. Ao longo de todas as suas mutac;6es teoricas, foi sempre capaz
de garantir a diferenc;a entre 0 que diria respeito a simples sugestao,
isto e, ao poder ilegitimo da ficc;ao, e 0 que seria "verdade", irredutivel a essa ficc;ao 18 . Eque, de fato, encontra-se aqui posto em questao
a ideal que as ciencias modernas ao mesmo tempo conquistaram, apesar
do veredito de Etienne Tempier, e levaram a uma inedita intensidade,
o ideal de uma verdade capaz de se opor a ficc;ao, ou seja, tambem 0
ideal de uma "realidade" capaz de por a prova 0 poder da ficc;ao.
A questao do direito das ciencias de destruir ou de mutilar 0 que
e incapaz de lhes opor resistencia foi ate aqui colocada sobretudo em
termos eticos: destarte, nos nao temos 0 direito de submeter, em nome
da ciencia, os seres humanos, e mesmo os seres vivos, a nao importa
que tipo de exame. Porem as quest6es e as procedimentos que ferem
a dignidade ou lesam a saude nao sao os unicos a apresentar problema. Toda questao cientifica, vista que ela e vetor de devir, envolve uma
responsabilidade. "Quem e voce para me formular esta questao?";
"Quem sou eu para te formular esta questao?", estas sao as interrogac;aes de que nao pode fugir 0 cientista que sabe que a ligaC;ao entre
produC;ao de saber e produC;ao de existencia e irredutivel.
Mais do que uma questao estritamente etica, trata-se com efeito
da invenC;ao daquilo que Felix Guattari chamou de "urn novo paradigma estetico", 19 em que estetica designa de preferencia uma produc;ao de existencia que depende do poder de sentir: poder ser afetado
pelo mundo de urn modo que nao e 0 da interac;ao a qual se submete
e sim de uma dupla criaC;ao de sentidos, de si e do mund02o .
Recomec;o contingente "com outros dados"? Se nos nos lembrarmos do problema, repetido a exaustao a prop6sito de Marx, das rela-
18 Ver Leon Chertok e Isabelle Stengers, Le coeur et la raison, op. cit., elsabelle Stengers, La volante de faire science: a propos de fa psychanafyse, col. Les
Empecheurs de Penser en Rond, Paris, Editions SynthelabolDeiagrange, 1993.
19
Felix Guattari, Chaosmose, op. cit.
20 Veja-se a respeito 0 capitulo "Retournements", Leon Chertok, Isabelle
Stengers e Didier Gille, Memoires d'un hiretique, Paris, La Decouverte, 1990.
O_sJ1jeito e 0 objeto
179
lfoes entre "ciencia" e "alfao engajada"21, como tambem da obsessao
de Freud de esrabelecer uma esrrita distin<;ao entre psicanalise e sugestao, pode-se dizer que 0 recome<;o ja come<;ou. A dificuldade escancarada marea a pertinencia da questao. Vma das maneiras de enunciar 0 desafio que nos herdamos seria entao: tornarmo-nos capazes,
urn dia, de ler Marx ou Freud como os bi610gos podem hoje ler Darwin. Com ternura.
De fato, e profundamente significativo que seja na etnopsicanahse, tal como a define Tobie Nathan22 , que se explorem da maneira a mais explicita os riscos de urn tal recomelfo: conseguir pensar nos
Djinns, nos espiritos dos ancestrais ou nas divindades as mais exoticas como nem "verdadeiramente verdadeiros" nem ficticios, mas,
como a inconsciente freudiano, parte constituinte de urn dispositivo
psicoterapeutico; e conseguir evitar de pensar 0 conjunto aberto desses
dispositivos e dos espa<;os culturais que eles pressup6em e instituem
sob 0 signo de uma relatividade mais ou menos ironica (qualquer coisa funciona), para nele identificar 0 campo onde se constroi 0 saber
que convem ao que denominamos "psiquismo". Quer dizer, antes de
mais nada 0 terreno onde se formam aqueles que deveriam ser capazes de experimentar e transmitir a pratica23 .
Eis 0 que pode ofender 0 nosso desejo ocidental de fazer ciencia,
de criar uma teoria que permita distinguir 0 racional do irracional.
]oga-se aqui, no entanto, com a possibilidade de uma pratica que, ao
mesmo tempo em que poe a prova nossas ficlfoes como 0 exige a singularidade das ciencias modernas, cria uma postura de humor, em que
a cultura ocidental, produtora de ciencia, submete-se a prova mais
exigente, aquela que a reinventa como cultura entre outras. Porque a
nossa fic<;ao que e assim posta ii prova pelo problema dos seres capa-
zes de transformar toda teoria em ficlfao, e certas fiq:6es em vetores
de devir, nao e outra senao nossa crenlfa no poder da verdade, caso
seja verdadeiramente verdadeira, em denunciar a ficlfaO.
E inutil dizer que os cientistas envolvidos na inven<;ao de pniticas deste genero mio se constituiriam mais apenas em desmancha-prazeres, portadores de incertezas, mas em verdadeiros traidores, capazes, em nome da ciencia, de acompanhar os efeitos de todas as divisoes, pequenas e grandes, que nos permitem classificar, avaliar, julgar,
identificar, fazer calar e fazer falar. Epouco surpreendente que sejam,
hoje em dia, decididamente marginais aqueles que devem ser chamados "maximamente objetivos" segundo 0 criterio proposto por Sandra
Harding - a indusao na pratica cientifica de teste da rela<;ao entre a
"experiencia social" dos cientistas e os "tipos de estruturas cognitivas" que sua conduta privilegia.
21 Ver, a respeito, a liga~o
intrinseca que Roy Bhaskar propoe estabelecer
entre ciencia social e problematica de ,oa~ picname
Scientific realism and human
emancipation, Londres, Verso, 1986.
22 Tobie Nathan, ... Fier de n'avoir ni pays, ni amis, queUe sottise c'hait:
principes d'ethnopsychanalyse, Paris, La Pensee Sauvage, 1993.
23 E deste ultimo ponto de vista que se pode sem duvida falar, em contrapocom as tecnicas psicoterapeuticas tradicionais, de urn "nao-saber" proprio
a psicanaIise, baseada pela questao do arbitrario da ficc;ao, e as outras tecnicas
contempod.neas, como a hipnose eriksoniana, que se valeram desse arbitrio.
si~ao
180
Propondo
I
--L
o-sujeito e 0 objeto
181
9.
DEVIRES
COMO RESISTIR?
"0 sentimento de vergonha", escreveram Deleuze e Guattari, "e
uma das mais poderosas motiva,oes da filosofia".1 Contudo 0 que "os
livros de filosofia e as obras de arte tern em coroum e resistir, resistir
a morte, a servidao, a intolera.ncia, a vergonha, ao presente,,2. Eu naa
estou certa de rer sido capaz de escrever urn livro de filosofia, mas em
todo caso teotei trabalhar na experimentac;ao de conceitos que permitam resistir ao presente, reeOffer a urn futuro em cuja espelho nosso
presente e nosso passado "se deformam de maneira singular"3.
Nao e facit resistir sem referencia a urn passado que conviria lamentar, ainda mais que se trata de resistir a alga que define esse passado como obsoleto e 0 futuro como promessa que desde ja desqualifica 0 presente.
Entretanto, apesar da vergonha que aquilo que foi cometido em
nome do progresso assim definido deve provocar, teriamos os meios
de adotar como referencia a nostalgia de urn passado "que nao progredia"? Teriamos os meios de dispensar qualquer referencia ao progresso?
Quer falemos da ciencia ou da sociedade, 0 progtesso e a imagem dominante, aquela que permite estruturar a historia, separar 0
essencial do anedotico, fazer se comunicarem narrativa e significado.
a progresso constitui verdadeiramente para nos a urn so tempo uma
medida da marcha do tempo e a marca identificadora que autotiza
quem fala a julgar. Que autoriza tambem a simplificar os relatos, uma
vez que 0 progresso permite selecionar numa dada situa<;ao os que vivern a ilusao e os que estao com a verdade. a progresso faz a triagem
182
1
Qu'est-ce que fa philosophie?, op. cit., p. 103.
2
Idem, p. 105.
3
Idem, p. 106.
entre aquilo que merece ser conservado e amplificado e 0 que pode,
com algumas dores passageiras, ser relegado ao passado. 0 progresso seleciona e condena 0 que Ihe opoe obstaculo. Ele nos autoriza portanto a tratar de duas maneiras radicalmente distintas os problemas
do presente conforme estes anunciem 0 futuro ou representem urn passado fadado a ser superado.
A imagem do progresso e poderosa. Mesmo as denuncias de tal
ou qual episodio outrora considerados por muitos como "progressista" - coloniza<;ao, desenvolvimento das tecnicas, mobilizaC;ao ideo16gica - se fazem em seu nome, pois e dificil evitar frases que podem
ser abreviadas na forma do tipo: "Antes, nos acreditavamos que..., hoje
nos sabemos que... ". Ate a denuncia da arrogancia ocidental, que se
acreditou intrinsecamente distinta das outras culturas, nao anula a
diferenc;a: somos nos que estamos em movimento, que fizemos sofrer
e que agora nos tornamos capazes de reconhecer nossos exageros. Nenhuma conclusao "relativista" pode fazer esquecer que, racionalistas
ou "relativistas", somos sempre nos que falamos.
"Antes nos nao sabiamos que acreditavamos, hoje nos sabemos
que nao podemos mais acreditar." A forma especial de expressao que
sinaliza 0 progresso esta sempre presente. E ela subsiste ainda atraves
das astucias e do contorcionismo sinra,tico dos "pos-modernos", que
se vangloriam de nao mais acreditar e dedicam sua ironia a descriC;ao
daqueles que "ainda acreditam", pequenos jogos academicos reservados aos herdeiros do esp6lio daquilo em que supostamente eles nao
mais acreditam. De fato, penso que nos nao podemos renunciar a referencia ao progresso, porgue nao temos escolha; no momento em que
a q uestao se coloca para n6s, somos definidos como herdeiros desta
referencia, livres talvez para redefini-Ia mas nao para anula-Ia. E 0 interesse de "n6s sabemos que nos nao podemos mais acreditar" passa
a ser entao 0 problema que esta frase anuncia. Saber que nao se pode
rna is acreditar nao significa "deixar de crer", desembara<;ar-se da heranc;a - nem vista nem conhecida, seria urn mal-entendido, au urn erro
- , mas aprender a estende-la de outro modo.
a problema portanto e saber do que este "nao acreditamos mais"
pode nos tornar capazes, a que sensibilidades, a que riscos, a que devires, pode nos conduzir. Poderiamos conferir urn sentido positivo ao
"nos nao podemos mais acreditar", transformar a vergonha daquilo
que nossas crenc;as permitiram em capacidade de questionar e inventar, au seja, resistir?
Propondo
183
.~
Numa pagina de ressonancias profeticas, Bruno Latour evoca 0
"Parlamento das coisas". Em seu recinto, "nao ha mais verdades nuas,
mas tambem nao hi mais cidadaos nus. 0 espa,o e todo dos mediadores. As luzes tern enfim sua morada. As naturezas estao presentes,
representadas pelos cientistas, que falam em seu nome. As sociedades
estao presentes, mas com os objetos que as completam des~
sempre.
Que urn dos mandatarios fale do buraco da camada de ozomo, que
outro represente as indtistrias quimicas da regiao Rhone-Alpes, urn
terceiro, os trabalhadores desta mesma industria quimica, urn outro,
os eleitores de Lion, urn quinto, a meteorologia das regioes polares,
que outro ainda fale em nome do Estado, que importa, desde que todos eles se manifestem sobre a mesma coisa, sobre esse quase-obJeto
que todos eles criaram, esse objet-discurna~ez-socid
cujas
rede se estende da
novas propriedades nos espantam a todos e ~uJa
minha geladeira aAnrartida, passando pela qUlmlca, pelo dlrelto, pelo
Estado, pela economia e os sateIites,,4.
.
.
.
Esta imagem barroca do Parlamento das COlsas, que dlscute aqUl
o buraco da camada de ozonio, remete a uma perspectlva reformlsta
todavia eles conviveriam de maneira estavel com os representantes da
mistica, do inconsciente, do conjunto das praticas que eles definem
como terrenos baldios, abertos ao seu avan<;o. Seu ardor nao deveria
ser refreado por limites impostos do exterior, em nome de uma instancia a respeito da qual se decidiu que ela deveria impor respeito,
fic<;ao instituida como tabu. Ele teria de criar os meios de se interessar pelos outros e de os interessar, sem esperan<;a de poder substituilos "em nome da ciencia". 0 principio da conquista, em que 0 indi-
gena e a priori definido do ponto de vista de sua disponibilidade a submissao, teria dado lugar ao principio da multiplicidade: todo novo representante se soma aos demais, complica 0 problema que os agrupa
ainda que pretenda simplifica-Io; e de s6 pode fazer existir aquilo que
representa se conseguir situa-Io "entre" ele e os outros, e portanto interessar-se ativamente pelos outros para compreender como ele mesmo pode interessar aos outros.
Se "Boyle", nessa fic,ao, ganha de "Hobbes", se a multiplicidade dos representantes de interesses particulares suplanta 0 Leviata de
urn interesse geral ficticio ao qual
0
particular deveria se submeter,
0
ou revolucionaria? Eurn problema freqiientemente colocado por meus
alunos e para 0 qual nao ha resposta. 0 grande interesse dessa ima-
transformado em "centro" do duplo poder natural e social, sera mais
no
lento. A vdocidade, principio de mobiliza,ao, pressupunha um mun-
efeito de urn futuro de exigencias sem bmltes. Desde
do disponivel, cujo relevo se desvendaria em termos de obstaculos, a
contornar, a reduzir ou a ignorar. Se os relevos se povoam de "colegas" cujos interesses e praticas podem ser modificados, mas cuja legi-
gem eque ela suscita uma "deforma<;ao" que opera ime~a nt
presente sob
0
logo, poe em comunica<;ao paradoxal aquilo que 0 progresso, no sen-
tido classico do termo, nos propunha contrapor, de urn lado 0 reformismo que humaniza e organiza 0 processo e do outro a revolw;ao que
denuncia e provoca a ruptura.
pre,o a pagar esta claro. 0 trabalho de media,ao, como escreve Latour,
timidade nao pode ser contestada, esse modo de mobiliza,ao tornase contraproducente. Os cientistas que "saem de seus laboratorios"
Poderiamos dizer que 0 Parlamento das coisas consagra de fato
o triunfo das praticas cientificas. Porque ele constitui 0 teste generabzado de nossas fic,oes e, em primeiro lugar, daquela de um mteresse
geral em nome do qual deveriam se submeter os interesses particulares. Porem identifica essas praticas na medida em que elas fazem mul-
para fazer valer 0 interesse publico daquilo que des representam, saberiam que os cliches - progresso, sofrimento, possibilidade de agir,
objetividade - gra,as aos quais des hoje separam 0 que conta e 0 que
tiplicar os representantes, cada vez mais variados e exigentes, e nao
tornar-se tao diferente do perfil do "chefe", ou do cientista formado
porque das afirmam um direito.
.
hoje na certeza de uma ciencia "normal", quanto
No seio do "Parlamento das coisas", 0 "chefe", Jean-PIerre Changeux ou Daniel Cohen, representaria tanto ~ pandorina, quanto a popula<;ao de neuronios interconectados, e amda 0 genoma humano,
4
184
nao conta, vao desqualifica-Ios tao certamente quanto urn artefato experimental. Eo" perfil" do cientista poderia entao se transformar,
Nous n'avons ;amais ete modernes, op. cit., p. 197.
e hoje do perfil
o "Parlamento das coisas" tern as virtudes do humor, tinico capaz
de resistir sem odiar, sem denunciar em nome de uma for<;a superior
>}
Propondo
0
do professor Girassol*.
Devires
Personagem de As aventuras de Tintim,
cria~ o
de Herge. [N. do R.}
185--
aguilo ague se trata de op6r-se. Como declara Latour, ele nao e "revolucionario" visto que ja existe, no sentido de que existem as multiplas redes onde os representantes discutem, negociam, se interessam
mutuamente. Mas tampouco e "reformista", porque opera uma passagem ao limite: a rede se afirma como rizoma, sem limites, sem principio de exclusao, sem "julgamento de Deus" que determine urn desnivel delimitando exterior e interior ou desqualifique a priori urn interesse particular como "corporativista"S. E e na medida em que solapa 0 chao esravel de uma serie de evidencias e suscira problemas ali
onde reinam as solu<r6es que ele constitui urn "conceito", no sentido
de Deleuze e Guattari, para quem "a cria<rao de conceitos reclama em
si mesma uma forma futura, pede por uma nova terra e urn povo que
ainda nao existe,,6.
"Nao nos falta comunica<rao, pelo contrario, nos a temos bastante, falta-nos cria<rao. Falta-nos resistencia ao presente.,,7 0 Parlamento das coisas nao pertence ao futuro como uma utopia a se concretizar - nao e "realiz<lvel"; pertence ao presente na qualidade de
vetor de devir ou "experiencia de pensamento", isto e, como instrumento de diagnostico, de cria<rao e de resistencia.
N6MADES DO TERCEIRO MUNDO
Em determinado sentido, 0 "Parlamento das coisas" e popperiano. Ele consagra a dinamica de emergencia desses habitantes do
"terceiro mundo" que identificarnos pela sua capacidade de suscitar
problemas acima das cren<ras, convic<r6es e projetos. Sornente seres
hurnanos ai tern lugar, mas esses seres humanos nao sao definidos como
5 A ideia de uma representa<;ao "corporativista" nolo tern evidentemente na~
da a ver com aquela do Parlamento das coisas, visto que se inscreve numa perspectiva estitica em que grupos estaveis e bern diferenciados representam de maneira legftima interesses qualificados. A grande for~a
do Parlamento dos "cidadaos nus reunidos em nome do interesse geral" reside em poder utilizar a ideia
corporativista como contraste. Eo grande interesse dos hibridos de Latour e dos
rizomas de Guattari, que tern por principio comum a prolifera<;ao e a ausencia
de identidade estavel, reside em permitir escapar dessa armadilha.
186
6
Qu'est-ce que La philosophie?, op. cit., p. 104
7
Idem, p. 104.
sujeitos livres, caracterizados por conviq:6es e ambic;6es, mas como
representantes de urn problema que os compromete e situa. Somente
os seres humanos tern af lugar, mas esses seres humanos nao estao
reunidos por uma dinamica de intersubjerividade: oles devem, ao contrario, encontrar os lac;os na heterogeneidade, fazer existir prolongamentos rizomaticos que naa se referem a nenhum interesse geral mais
forte que cada urn deles, mas a novas interesses suscitados pela sua
reuniao. Ou seja, 0 Parlamento das coisas impoe aos habitantes do
terceiro muncio uma mutac;ao dnistica, que os destitui de rada pretensao
de diferenciar "conhecimento objerivo" e politica.
Para Popper, 0 habitante-tipo do terceiro mundo era 0 enunciado matematico. A definic;ao teorematica do numero racional apropriase de urn conjunto de praticas matematicas, destaca-as do campo em
que ganhavam sentido e as transforma em conseqiiencias autorizadas
por uma forma ideal de cujo ponro de vista 0 conjunto desses campos
torna-se urn espa<ro homogeneo. Contudo, esta defini<rao abre urn novo
campo a matematica, suscita uma mudan<ra da matematica e dos matemaricos gue expressa a transforma<;ao da rola<;ao de for<;a entre problema e convic<r5es. Em outros termos, 0 habitante popperiano do terceiro mundo remete ao que Deleuze e Guattari chamaram, em sua obra
Mil plat6s, a ciencia "real". "A ciencia real nao pode ser separada de
urn 'modelo hilomorfico', que implica ao mesmo tempo uma forma
organizadora para a materia e uma materia preparada para a forma." 8
A ciencia real nao faz desaparecer 0 que a precedia, as ciencias
"itinerantes" ou "nomades"; estas nao vinculavam ciencia e poder, nao
reservavam a ciencia para urn desenvolvimento aut6nomo, porque
eram dependentes de seu campo de explora<;ao, porgue suas praricas
se repartiam segundo os problemas suscitados por uma materia singularizada, sem ter 0 poder de fazer a diferen<ra entre 0 que, nas singularidades, remete a "materia em si", e 0 que remete as convic<r6es e
as ambi<;6es dos praticantes (gue pertencem entao ao segundo mundo). A ciencia real "mobiliza" a conduta itinerante. "No campo de
intera<rao das duas ciencias, as ciencias itinerantes contentam-se em
inventar problemas, cuja solu<rao remeteria a todo urn conjunto de
atividades coletivas, e nao cientificas, mas cuja solu{iio cientifica depende ao contrario da ciencia real, e da maneira pela qual a ciencia
8 Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille plateaux: capitalisme et ~erhpozics
nie, op. cit., p. 457.
Propondo
Devices
187.
real rransformou primeiro 0 problema fazendo-o passar pelo seu aparelho reorematico e sua organiza,iio do trabalho."9
Esta mobiliza<;ao naG e portanto simplesmente rerorica. Pressupoe 0 acontecimento, a possibilidade inventada-descoberta de redefinir as singularidades e os problemas que elas punham, e isto de urn
duplo ponto de vista: de urn primeiro ponto de vista, estas singulariclades sao avaliadas em nome de uma "forma" que tern 0 pader de
coloca, em si mesma,
tcrna-Ias inteligfveis, de as "integrar", e portanto de Ihes conferir urn
logo
estatuto intrinseco gra,as ao qual elas podem ser deduzidas ou antecipadas; porem, de urn segundo ponto de vista, estas singularidades
siio entiio julgadas e desqualificadas no sentido em que elas criavam
pois extensoes e junliroes sao, hoje, 0 rnais das vezes redefinidas como
antecipadamente 0 campo de uma pnitica, porque esta, incorporada
ao seu principia, e doravante qualificada pelos interesses "particulares", "acidentais", apenas "pniticos", que the asseguram uma certa
autonomia de fato. A diferencia<;ao entre ciencia real e itinerante nao
e, de resto, desses dais pontos de vista, absoluta e siro relativa: assim,
para 0 fisico te6rico, a qufmica e "itinerante", interessada por exem-
plo na diversidade dos elementos quimicos, para fomecer 0 modele
inteligivel dos quais 0 atomo de hidrogenio sozinho ja e suficiente,
segundo ele (a fisica se compreende, a quimica se aprende 10 ). Em suma,
nos reencontramos aqui a paisagem hierarquizada dos saberes cientificos contempora.neos, em que as conexoes sao descritas como conquista e redU(rao, em que 0 status se mede pelo alcance "de direito"
dos juizos que fazem a diferenc;a entre 0 "mesmo" inteligivel e a dife-
ren,a anedotica e subordinada.
das ciencias modernas a
Remeter, como tentei fazer, a inve~ao
ordem do acontecimento e nao do direito, e em primeiro lugar trazer
para 0 primeiro plano a difern~a
entre as "mathias" cuja disponibilidade a ciencia real pressupoe e, as vezes, cria. Se 0 laborat6rio e 0
buir 0 poder de ratificar sua propria identifica,iio. Mas esse poder, caso
a mobiliza,iio niio 0 transforme em poder de desqualificar, pode tambern definir 0 campo de uma pratica que vern se juntar as outras e que
0
problema de sua extensao, de suas possibili-
dades de se juntar as outras.
A mutaliraO e ao mesmo tempo nula, porque os cientistas, na medida em que eles nao imitam a ciencia, nao cessam de colocar desde
0
problema da extensiio e das jun,oes, e ela tam bern e drastica,
confirma,iio do poder de urn polo, da subordina,iio de outro. Assim,
o teorema, que "e da ordem das razoes", nao para de fazer esquecer
o problema "afetivo, e insepad.vel das metamorfoses, geralir0es e cria~oes"l1
atraves das quais se negociam extensao e junlirao. Paralelamente, 0 que a ciencia real "faz existir" nao e exaltado como uma
historia, a atualizalirao de urn novo existente por meio de metamorfo-
ses multiplas e adi,iio de significa,oes sempre novas em meios sempre
novos. A atualizalirao esta reduzida a uma revelalirao: os atomos, 0 vacuo, a for~a
da ,oa~tivrg
0 acido nucleico, as bacterias tinham em
si mesmos a capacidade de existir "para n6s" no modo que a ciencia
se limitou a "descobrir".
Pode-se inversamente conceber os habitantes do terceiro mundo
como n6mades, produtores e produtos de maneiras "objetivas", pon-
do em risco 0 poder da fic,iio de colocar os problemas, porem sem
apontar urn mundo disponivel, a espera de sua redu,iio objetiva? Niio
e sem interesse
meira aproi~
0
fato de que a propria matematica, criadora da priteorematica, parece levar a isso, pelo menos para
certos matematicos.
E assim que Rene Thorn defende uma forma de
matematica "nomade", cuja voca~
seria nao a de reduzir a multi-
plicidade de fen6menos sensiveis a unidade de uma descri,iio matema-
lugar onde se efetua a co-apropria,iio da materia e da ideia, onde se
inventa urn "tertium objetivo" capaz de impor aos seres humanos 0
tica que os pudesse submeter a ordem da similitude, e sim de criar a
por em risco suas fic~oes,
s6 e "real" na medida em que a pnitica das
uma folha, entao, nao seria mais urn caso muito complicado de que-
ciencias e regida pela mobiliza,iio. Ele e 0 lugar de uma opera,iio bastante singular: a cria,iio de urn tertium objetivo ao qual se pode atri-
da de objeto pesado galileano, mas deveria suscitar sua propria matematica. Pode-se tam bern citar a matematica fractal de Benoit Mandelbrot. Nesse caso tambem, compreender significa criar uma lingua-
inteligibilidade matematica de sua diferen,a qualitativa. A queda de
gem que abra a possibilidade de "encontrar" as distintas formas sen9
Idem, p. 463.
10 Ver, sobre esta questao, Bernadette Bensaude-Vincent e Isabelle Stengers,
Histoire de Ja cbimie, op. cit.
11
Propondo
pevires
188
MiJJe plateaux: capitalisme et schizophrenie, op. cit., p. 448.
189.
sfveis, de reproduzi-las, sem por isso submete-las a uma lei geral que
forneceria suas razoes e permitiria manipula-las.
Entretanto, assim como a inven<;ao da matematica teorematica
nao anuncia nem explica a inven<;ao das ciencias modernas, as muta<;oes esteticas, tecnicas e praticas da matematica contemporanea nao
bastam para garantir uma "desmobiliza<;ao" das ciencias positivas 12 .
E papel do Parlamento das coisas ressaltar 0 teor antes de mais nada
politico do problema (no sentido, e claro, em que a politica e, ela propria, reinventada a partir da explicita<;iio dos problemas suscitados por
certos habitantes do terceiro mundo). Ja que sabemos agora da conivencia dos cientistas mobilizados com todas as formas de poder suscetfveis de estender 0 alcance de seus jufzos, e com uma defini<;ao geral, belicosa e abjeta da verdade - so e verdadeiro aquele que tern 0
poder de resistir ao teste -, novas coer<;oes devem condicionar a legitimidade das interven<;oes "em nome da ciencia". E primeiro aquela que declara antidemocrdtica, ou seja, irracional, toda estrategia que
vise mascarar uma mudan<;a de meio ou de significa<;ao, isto e, de passar
de uma problematica de jun,ao a uma pretensao de unifica,ao. E pre-
12 Em L'invention des formes (Paris, Odile Jacob, 1993), Alain Boutot reune
essas se6~avoni
matematicas e fisicomatematicas {catastrofes de Thorn, estru~
ras dissipativas de Prigogine, fractais de Mandelbrot, caos de Ruelle e cia.} sob 0
signo de urn ,"omsiletosira~oen"
oposto no caso presente a "tecnociencia domi~
nante" identificada pelo autor a partir de Alexandre Koyre e de Martin Heidegger.
Esta leitura, que associa imediatamente 0 estilo cientifico dos te6ricos e 0 estilo
filosOfico de suas referencias, cria entretanto uma falsa simetria: como de resto
Koyre e Heidegger, Boutot nao leva em conta a dimensao pratica (fazer hist6ria)
da atividade cientffica. Vislumbra nessas novas matemaricas "0 instrumento que
faltava [as ciencias da natureza] para apreender, em sua especificidade, 0 mundo
mutavel das formas, que sua complexidade torna inacessivel a analise quantitativa ordinaria" (p. 314). Ele omite, porem, uma "pequena" diferenc;a. A novidade do instrumento matematico e clara quando diz respeito a formas que ate aqui
nao tinham interessado a ninguem: a queda de uma folha, a rachadura de uma
parede, 0 trac;ado das costas da Bretanha etc.; em contrapartida, este ~nemurtsi"
to" nao tern por si mesmo 0 poder de suscitar outras maneiras de trabalhar em
conjunto a prop6sito de "formas" ja abordadas por outras praticas (d. as ~aler
se6~
polemicas de Thorn com as bi6Iogos). De resto, as apresentac;6es que op6em
a hybris da ciencia de ontem a nova apreensao, matematica e pacifica, do mundo em nossa escala (cuidadosamente despovoado daqueles, sempre igualmente desqualificados, que ja 0 ocupam), nada tern em si mesmas de pacifico, mas pertencern a retorica ordinaria da mobilizaC;ao cientifica.
190
Propondo
ciso falar aqui de coer<;ao e nao de limite, porque 0 limite separa dois
possfveis que, sem ele, teriam sido considerados equivalentes. 0 limite impoe uma diferen<;a. A coer<;ao implica inven<;ao e risco. Sem coer<;ao as redes de inven<;ao-discussao irao parar sempre, ou mudarao de
natureza, ali onde 0 interesse possa ser exigido e nao deva mais ser estimulado, ali onde a estratifica<;ao social e polftica autorize a denunciar a resistencia como obscurantista, irracional, pregui<;osa, e a exigir que 0 interlocutor ensine "primeiro" a ciencia que convem. Se nao
sao coagidos a isso, por que os cientistas recusariam a alian<;a com poderes que Ihes permitam desqualificar aquilo que complica a historia
que buscam construir, confirmando-lhes sua propria racionalidade e
a inepcia daqueles que duvidam?
"E a mesma coisa, mas mais complicado" era 0 slogan da ciencia mobilizada, 0 que poe a diferen<;a, 0 "mais complicado", sob 0 signa
do "nao ainda", do futuro em que 0 "mesmo" tera de fato triunfado
como se propoe desde ja a triunfar de direito. "Que riscos esta situa<;ao
faz nossos jufzos correrem, que devires e que sensibilidades nos impoe?", tal seria a questao que organiza 0 Parlamento das coisas 13 .
PRODUZINDO COMPET£NCIA
Eescusado dizer que a conduta teorico-experimental nao tern aqui
mais status de modelo. Porem 0 desafio do Parlamento das coisas nao
se limita a acolher juntos os descendentes de Galileu, os de Darwin,
aque!es, por fim inventados, de Marx e de Freud. Porque os cientistas, e logico, nao sao os unicos representantes legftimos das coisas. Eles
representam as coisas apenas na medida em que nos conseguimos inventar a seu respeito questoes que Ihes permitam por a prova as fic<;6es que lhes dizem respeito. Porem a maior parte das inova<;6es tecnosociais, nos dias de hoje, afetam as coisas em modos bern mais variados do que nossas questoes permitem antecipar e criar portanto uma
disdncia entre as "coisas" como estao af implicadas e sua representa<;ao cientffica.
13 Deste ponto de vista, a "desmobilza~
da ciencia pode ser ligada a
questao da complexidade. Ver, sobre este assunto, Isabelle Stengers, "Complexite: effet de mode au probleme?", D'une science a['autre: des concepts nomades,
sob a direc;ao de Isabelle Stengers, Paris, Le Seuil, 1987.
Devires
191
Esta distancia nao esta prestes a diminuir, bern ao contrario,
porque cada nova questao revela uma multiplicidade ali onde nossas
Esta distancia imfiq:6es previam uma realidade a sua semlhan~.
plica que toda inova~ o
se faz com urn certo risco e que nos nao estamos na verdade nem mesmo certos do que inova~:
a intensifica~ao
quantitativa de uma rela~o
ja existente, e mesmo sua manuten~ao
em circunstancias ligeiramente distintas podem, retroativamente,
inscrever-se sob 0 signa do novo e do imprevisto. E evidentemente 0
caso por excelencia das controversias sobre 0 meio-ambiente - buraco na carnada de ozonio, efeito-estufa... - em que se descobre, diante
das quest6es que elas nao nos colocaram, mas que se imp6em a nos,
que nao 0
em outras historias. Os especialistas em "prote~a
contra os lobos destruidores" iriam redargiiir, e claro, que essas outras historias sao arriscadas, e mesmo impossiveis. Mas eles deveriam reconhecer pronta-
diante de seo~autis
que nao se deixam encenar em laborat6rio porque
mente que nao estao qualificados para falar das outras hist6rias, e nem
elas integram urn mimero pouco definido de variaveis sobrepostas,
quanto os conhecirnentos cientificos sao parciais, hesitantes, incapazes de perrnitir a econornia do risco da decisao.
da hist6ria por eles preconizada. Pode 0 lobo ser definido como uma
tres porquinhos, como hist6ria moral, tern como certo. Nao teria sido
possivel criar outras rela~os
oa~
do lobo como ame~,
blema de ?"oa~etrp
e
com 0 lobo? De que depende a definiisto e, a defin~ao
do problema como "pro-
No "Parlamento das coisas", a primeira prioridade seria buscar,
e mesmo estimular, os representantes que pudessem fazer valer a distinoa~
eventual entre
lobo que e destruidor e outros lobos possiveis,
seriam, ou 0 seriam menos, ou de outra forma, implicados
0
tampouco para acompanhar em todas as suas conseqiiencias a logica
lhadores e cidadaos: outras sensibilidades implicando a formula~
de
outros problemas, exigindo a explicta~o
de outros significados do
ame ~
pontual, ou entao, se nos nao aprendemos a defini-Io de outro
modo, podemos entrar numa hist6ria em que outros lobos, mais amea~adores
ainda, entrado em a~o,
em que os tijolos e 0 cimento nao
serao mais suficientes, em que estaremos presos a uma corrida interminavel em dire~ao
a modos de oa~et rp
cada vez mais custosos e rigidos?
Eis que de maneira urn pouco inesperada as "politicas da razao"
e as da cidade, num sentido rnais classico, entrecruzarn suas exigencias,
que aqueles que os cientistas sao levados a considerar. Mas, nesse caso
e e nesse sentido que eu pude empregar mais acima 0 duplo qualifica-
polftica pode suprimir esse risco. Em contraNenhuma coer~ao
partida, ele pode ser ativamente levado em conta. E neste sentido que
Bruno Latour previa, no Parlarnento das coisas, representantes nao
sornente cientificos, mas tarnbem industriais, administrativos, traba-
tambern, a perspectiva criada e a de urn desafio. Porque a coer~a
polftica - que toda pro si~ao
passe por aqueles que sao os mais qualificados para coloca-la em risco - supoe que a produ~a
de competencia publica seja ativamente estimulada.
Para ilustrar 0 sentido desse desafio, you me valer da hist6ria dos
tres porquinhos e
tivo, urn tanto inusitado, "antidemocratico, isto
efeito, desde que se de urn passo de lado em oa~ler
e, irracional". Com
adivisao classica
das responsabilidades, que confere as ciencias e aos seus experts a tarefa de "informar" 0 politico, de the dizer "0 que e", com a condi~a
da politica decidir 0 que "deve ser", esta-se diante de uma insepara-
lobo mau. Enquanto as casas dos dois primeiros
bilidade de principio entre a qualidade "democratica" do processo de
porquinhos, feitas de palha ou de galhos secos, constituem apenas so-
decisao politica e a qualidade "racional" da controversia competente
se6~ul
ficticias diante da necessidade de "estar protegido", e nao irao
resistir a prova concreta que fara 0 lobo mau "verdadeiramente" entrar em a~o,
a casa do terceiro porquinho, de tijolo e cimento, "resiste de verdade". Nao se trata portanto de se abandonar a ironia re-
que 0 "Parlamento das coisas" simboliza. Esta dupla qualidade depende
da maneira pela qual sera estimulada a produ~a
de competencia da
0
nos estimula a esquecer
parte de todos aqueles que, cientistas ou nao, estao ou poderiam estar interessados numa decisao.
Nao se trata aqui de "fazer 0 cidadao votar", e sim de inventar
ou seja, a esquecer
dispositivos tais que os cidadaos de que falam os experts cientificos
que nossas praticas devem enfrentar uma realidade que, como 0 lobo,
possam estar efetivarnente presentes, aptos a colocar as questoes sensiveis ao seu interesse, exigir explicta~6s,
impor condi~es,
sugerir modalidades, em suma participar da inve ~ao.
0 que pressupoe que os
cidadaos envolvidos sejam eles tambem representantes de uma instancia
lativista que, remetendo toda difern~a
que
0
afic~ao,
lobo nao esta subrnetido as nossas fic~6es,
as poe efetivamente aprova. Entretanto, antes de ouvir os experts que
discutirao tijolos e cimento, e necessario poder questionar 0 que a
solu~a
tijolos e cimento considera incontestavel, 0 que a hist6ria dos
192
Propondo
Devires
19'3
do "terceiro mundo", que tern 0 poder de situar e de submeter a risco
suas opinioes e convi~6es
pessoais: eles pr6prios devem poder falar
por mais de urn, representar uma coletividade que tornau seus membros capazes de fazer valer os interesses pelos quais ela se definiu.
Ainda nesse caso, nao se trata de uma utopia, mas do que ja existe.
Conhecemos 0 papel dos grupos homossexuais nas negociac;oes das
medidas tomadas face it epidemia da Aids. as holandeses, que em mais
de urn ponto configuram 0 exemplo da inseparabilidade entre democracia e racionalidade, souberam encorajar a asoci~
de toxicomanos, os junkiebonden, que, ao mesmo tempo, complicam com suas reivindicac;oes 0 problema dos experts em materia de droga ilfeita e tomam parte na inve~ao
da solu~ao:
os toxic6manos, ao se tornarem
capazes de "tomar posic;ao" a proposito das medidas que Ihes dizem
respeito, tornam-se aptos a sugerir po11ticas que nao os definam simplesmente como vftimas a serem protegidas e a serem "curadas" ou
como delinqiientes a serem punidos, mas que se dirijam a des como a
"cidadaos como os demais"14.
Em outros casos, a produ~a
de competencia diz respeito a cidadaos que nenhuma singularidade previa permite distinguir. Destarte
em 1976, em Cambridge (Massachusetts), 0 prefeito Alfred Vellucci,
tomando conhecimento de que na Universidade de Harvard estavam
ocorrendo experiencias de recombinacrao genetica, pes a poula~.
em
alerta, e os cientistas tiveram de aceitar negociar com urn grupo de
cidadaos escolhidos por seus pares para formar 0 "Cambridge Experimentation Review Board" 15. Contrariamente aos temores expressos pela maioria dos especialistas face a intrusa.o desses incompetentes, 0 grupo realmente se impos como interlocutor valido aos cientistas que ele fez comparecer na qualidade de testemunhas. Segundo Dan
Hayes, seu presidente, "todas as recomendac;oes [que figuram no relatorio final], inclusive certas medidas sofisticadas esquecidas ou negligenciadas pelos funcionarios e experts da NIH, vieram de membros
do grupo de cidadaos e nao de seus conselheiros cientificos. Durante
os trabalhos, 0 grupo adquiriu de uma s6 vez competencia tecnica e
confia ~
em si. Certos membros, que no come~
'nao conseguiam
sequer formular uma pergunta', aprenderarn nao so a articular questoes pertinentes como tambern obrigar a ser elaros os que davam respostas insatisfat6rias. Alguns ate puderarn assinalar casos em que uma
testemunha mencionava algo fora de propOsito,,16.
Cidadaos "incompetentes", quando nao tern de "aprender" ciende exigir que os cientiscia "como na escola", mas estao em oa~utis
tas respondam as suas perguntas, se esforcem por tornar a "informa~ao"
que possuem pertinente e utilizavel, em suma, se dirijam a eles
como a interlocutores de quem seu trabalho depende, revelaram-se,
portanto, capazes de tomar posic;ao quanto a urn problema tecnicamente muito diffeil, 0 das normas de seguranc;a dos laboratorios de
pesquisa em oa~nibmcer
genetica. Nao ha af nada de inesperado,
somente 0 poder do contexto que qualifica ou desqualifica, antecipa
e sugere a impotencia e a submissao, ou habilita e autoriza a pensar.
No devir coletivo do grupo de cidadaos de Cambridge, Como no de
muitos outros, 0 ponto-chave foi que os cidadaos nao tiveram de bater a porta dos laboratorios, mas tiveram 0 poder de trazer os cientistas, nao tiveram de escuta-Ios como autoridacles neutras que contam
o que "e", mas puderam interroga-Ios como representantes de interesses determinados com rela~o
ao que "cleve ser". A rede de negoseo~aic
tecnicas e cientfficas nao tern outros limites que nao os dos lugares onde, por razoes que amitide nao dependem dos cientistas, e 11cito aos cientistas "firmar autoridade".
o Parlamento das coisas nao aponta a utopia da intersubjetividade, mas obriga ao desafio daquilo que Felix Guattari chamou de
"produc;ao coletiva da subjetividade". "as diversos nlveis da pratica
nao somente nao tern de ser homogeneizados, ligados uns aos outros
sob uma tutela transcendente, como convem compromete-Ios em processos de heterogenese. ]amais as feministas estarao implicadas 0 bastante num devir-mulher, e nao ha nenhuma razao para pedir aos imigrados que renunciem as caracterfsticas culturais inerentes ao seu ser
ou entao a sua fila~o
nacional." 17 Este processo de heterogenese DaO
16
14 Ver Isabelle ,5tengers e Olivier Ralet, Drogues, Ie defi hollandais, op. cit.;
e F. Caballero (org.), Drogues et droits de ['homme, op. cit.
lS Ver Diana B. Dutton, Worse than the disease: pitfalls ofmedical progress,
op. cit., pp. 189-92 e 319-20.
194
Propondo
Idem, p. 320.
17 Felix Guattari, Les trois ecologies, Paris, Galilee, 1989, p. 46 led. bras.:
As tres ecologias, Campinas, Papirus, 1990]. E de caso pensado que escolhi aqui
a cita~o
que permite a Luc Ferry, em Le Nouvel Ordre ecologique (op. cit., p.
216), acusar Guattari de atentar Contra os "valores da res publica".
Devires
195 .
deve, evidentemente, ser confundido com a forma~
de urn universo
de "guetos" diferenciados, encerrados em uma particularidade cultivada de maneira fetichista ou reivindicada no modo do ressentimento. Por isso ele se comunica com 0 desafio do "Parlamento das coisas", onde cada qual "se pronuncia" sobre urn "quase-objeto que todos criaram", mas que so e representado de maneira legitima pela
as oci ~
heterogenea das pra.ticas atraves das quais eles 0 criaram e
que os conecta. Trata-se portanto de uma emergencia "popperiana"
bern aquele que se torna capaz de a medir, aquele que 0 vinculo criado com a coisa suscita em sua singularidade etica, estetica, pratica e '
etol6gica.
Poderiamos prosseguir nesta questao em termos ontol6gicos, pois
o termo medida nao tern qualquer razao de permanecer estritamente
solidario as praticas humanas. A medida expressa urn la<;o que nao se
confunde com uma ,"oa~retni"
que confere aos seus dais po-
los dois papeis distintos que os divide em (quase- )sujeito e (quase-)objeto. Tanto quanto 0 carro nao e medido por aquele que ele acaba de
atropelar, a tempestade nao e medida pelas arvores que derruba. Mas
de modos de subjetiva<;ao que, tomando-se capazes de se afirmarem
como coen;ao para os outros e de serem identificados como tais, tornam-se igualmente aptos para urn processo em que se poem em risco
as conseqiiencias do devir que os compromete, da maneira de colocar
talvez possa se dizer que a sol e "medido" pelas plantas, cujo ser inven-
tou-se ao defini-lo como fonte de vida. Nao e 0 que se confirma quando
medimos os comprimentos de onda bern definidos da luz solar absor-
os problemas que lhes sao inseparaveis, da filia<;ao a uma tradi<;ao que
os singulariza.
o processo de heterogenese, neste sentido, nada tern de utopico,
visto que ja esta em andamento nas controversias cientfficas. Pode-se
dizer com efeito que os participantes de tais controversias devem estar a espreita de toda "tutela transcendente", que os constituiria em
disdpulos daqueles cujo enunciado aceitam, porem igualmente a espreita das conseqiiencias transversais em seu campo daquilo que e
proposto num outro campo, heterogeneo. A prodw;ao de existencia,
no sentido cientifico, como tam bern as exigencias da nova utilza~o
da razao por nos inventada, e que, sem duvida, nos inventou irreversivelmente, nos envolveram numa hist6ria em que 0 processo da
heterogenese encontrou seu registro politico. 0 "Parlamento das coisas" expressa esta nova defin~ao
da politica.
urn o~al
oa~ n
entre germivida pelos vegetais, au quando caracterizamos a rela~o
e periodo diurno? Porem esta e uma outra historia, que nao nos
deve fazer esquecer a singularidade daquela que eu tentei aqui caracterizar, a rela<;ao entre medida e politica l8 .
"Nem todas as medidas se equivalem" e urn enunciado geral que
diz respeito ao que diferencia a medida de outros tipos de rela<;ao e
dele se podera formular uma versao distinta em todos os campos em
que 0 termo "medida" puder adquirir sentido. Sua formula<;ao propriamente politica explicita seu problema: trata-se entao de construir
os crithios de uma medida legitima, ou seja, que permita decidir 0
modo de determina<;ao daquele que, legitimamente, podera falar por
mais de urn.
E talvez
porque os seres humanos, contrariamente aos
babuinos de Shirley Strum, criaram formas de legitimidade mais esta-
sentido dinamico, construtivista. Neste caso, medida e clevir se conjugam, porque 0 termo medicla nao designa a coisa sem designar tam-
18 Em Nous n'avons jamais ele modernes, op. cit., p. 216, Bruno Latour
anuncia a possibilidade de pensar numa sem esquecer a outra a partir do concei..
to de "transcendencia sem contrario": "0 mundo do sentido e 0 mundo do ser
sao urn 56 e mesmo mundo, 0 da tradw;ao, da subsrituir;ao, da delegar;ao, da passagem"(p. 176). A obra de Gilbert Simondon cria uma perspecriva analoga a partir
do conceito de transdw;ao, sob condir;ao de que a tarefa "filosofo-tecn610ga" pela
qual ele c1ama nao seja (como teme Gilbert Hottois em sua proveitosa apresentar;ao, Simondon et fa philosophie de la «culture technique", Bruxelas, De BoeckUniversite, 1993) uma simples questao de "pensamento", de eliminar dissociar;6es
devidas apenas insuficiencia da cultura tradicional, e sim a "transposir;ao transdutiva" duma murar;ao efetiva, estetica, etica e politica, que remete ao desafio do
"Parlamenro das coisas". No que me diz respeito. essa perspectiva se explicitara
urn dia em termos safdos da filosofia de A. N. Whitehead.
196
.D.evires
RETORNO AOS SOFISTAS
Nos aprendemos que
0
sofista Protagoras sustentava que
"0
ho-
mem e a medida de todas as coisas". 0 significado desse enunciado
nao e bern definido. Ele e tornado, 0 mais das vezes, no sentido relativista, e claro, e desqualificado em nome de urn apelo a verdade que
por voca<;ao caberia ao homem ouvir - seja qual for 0 sentido que,
em seguida, se dara ao termo "verdade", de Platao a Heidegger, de
Santo Agostinho a Lacan. Ele pode igualmente ser entendido num
Propondo
a
197·.
veis do que os fluxos das relac;5es interindividuais incessante.mente
confirmadas, alimentadas, postas a prova ou submetidas a desafIo, que
eles puderam - heran<;a grega - tematizar este problema em urn registro laico. E estabelecer, paralelamente, uma distin<;ao entre "politica" e "opiniao", uma criando, de uma maneira ou Dutra, uma m~
tancia que define a outra como normalmente irresponsavel, movedlc;a, inconstante.
Segundo a tese que percorre este livro, nos estamos sob 0 peso
da inven<;ao de outro modo de fazer politica, que faz a integra<;ao do
que a cidade havia separado, os assuntos humanos (praxis) e a gestao-produ<;ao das coisas (ttichne). 0 acontecimento, ,do qual somos
herdeiros eo fato de que a inven<;ao de uma nova pratlca de medlda
das coisa~
pelos seres humanos, orientada pela diferenc;a entre "fato"
e "ficc;ao", criou uma "outra maneira" de fazer polftica, isto e, urn
outrO principio de distinc;ao entre representac;ao legitima e opiniao, e
urn novo tipo de atores habilitados a por a prova os pretendentes a
essa distinc;ao. Este acontecimento nao eurn advento; com a invenc;ao
dos laboratorios nao nasce uma pritica geral de diferencia<;ao entre
as medidas das coisas que os homens podem propor. Pode-se conceber que, num mundo humano em que 0 conjunto da.s medidas ~rat
cas e conceituais que nos ligam as coisas ja nao se tena tornado mstavel, onde 0 conjunto dos nossos saberes e de nossas praticas ja nao teria
sido posto sob 0 signo da ficc;ao, quer dizer, da opiniao, as ~alob
rolando sobre 0 plano inclinado de Galileu teriam sido urn gadget mteressante, porem sem grande conseqiiencia. As "leis da natureza", cujo
carater acessivel elas anuneiaram em nossO mundo, significam que as
ciencias modernas retomam de urn modo novo 0 antigo projeto de
Platao de criar uma rela~o
com a verdade em cujo nome os sofistas
poderiam ser expulsos da cidade.
. '
"Se os ocidentais nao tivessern feito rnais que negoclar e conqUlstar, pilhar e escravizar, eles nao se distinguiriam radicalmente de u~.
tros comerciantes e conquistadores. Mas eis que eles inventaram a Clencia , atividade totalmente distinta da conquista e do comercio,
da
.
, politica e da moral." 19 0 autor dessas linhas diz duas COlsas a urn so tempo. De urn lado, ele nao acha que a ciencia seja "uma at.iv da e~to a
mente distinta" e comenta portanto a crenc;a que permlte, a nos OC1-
19
198
Bruno Latour, Nous n'avons jamais ete modernes, op. cit., p. 113.
Propondo
dentais, nos imaginar tao diferentes dos outros. Todavia, por outro
lado, ele explieita a arrna realmente temivel consubstanciada na nossa forma espedfica de crenc;a, nossa crenc;a na ciencia como "totalmente
distinta" a nos assegurar de direito urn aeesso inteiramente diferente
ao mundo e a verdade.
Eclaro, todo povo se ere muito diferente dos outros, mas a nossa crenc;a nos permite a urn so tempo definir os outros como interessantes - nos inventamos a etnologia - e como condenados antecipadamente em nome cia terrivel diferenciac;ao, da qual somos os vetores, entre aquilo que e cia ordem das cieneias e 0 que e da ordem da
cultura, entre objetividade e ficc;5es subjetivas. Nos nao cessamos de
denunciar os saqueadores e os comerciantes que exploram e escravizam, mas nos acreditamos saber que "os outros" deverao, de uma maneira ou outra, passar pela renuncia as "crenc;as" culturais que misturam aquilo que nos separamos.
A perspectiva que este livro tenta descortinar e aquela em que nos
teriamos de nos tornar ainda mais "diferentes", ou seja, em que nos
terfamos de inventar, com nossos proprios termos, urn antidoto a cren<;a que nos torna temiveis, aquela que define verdade e fic<;ao em termos de oposi<;ao, em termos do poder de que uma disp6e para destruir a outra, crenc;a rnais antiga que a invenc;ao das ciencias modernas, mas da qual essa invenc;ao constituiu-se num "recomec;o". Essa
perspectiva satisfaz, a meu juizo, a dupia coerc;ao do acontecimento:
ele faz uma diferen<;a entre passado e futuro em rela<;ao a qual todo
sonho de "volta atras" e vetor de monstruosidade; ele nao tern 0 poder de ditar aos seus herdeiros como leva-la em conta. 0 acontecirnento
constituido pela invenc;ao de urn novo sentido do enunciado sofista,
"0 hornem e a medida de todas as coisas", nao tern 0 poder de nos
constituir em herdeiros tresloucados desta possibilidade de medida, ele
nos define em termos de exigencia e nao de destino.
Contrariamente aos habitos de pensamento que devemos a uma
tradic;ao vagamente hegeliana, eu nao busquei numa referencia mais
"forte" a possibilidade de "sobrepujar" nossa crenc;a na verdade objetiva. Nao se trata de criar a posi<;ao a partir da qual nos poderiamos julga-Ia, mas de inventar os meios de a civilizar, de torna-Ia capaz de coexistir com 0 que nao e ela, sem considerar, aberta au veladamente, que ela tern - au teria de direito se nao se autolimitasse
0 poder de reconduzir 0 heterogeneo ao homogeneo. "Urn modo
de medida a mais" que se soma as outras e cria novas possibilidades
Devires
199
de historia , e nao 0 "modo de medida" que afinal adveio. Para ressal.
xao, como capaz de vir a ser "afetado por todas as coisas" de urn modo
que nao e 0 da interac;ao contingente, mas da criac;ao de sentido. Ai .
de autolimita,ao (vetor daquilo que nos podemos chamar de "pater-
onde 0 enunciado sofista, entendido de um modo relativista, parecia
definir um direito esdtico da opiniao, 0 triunfo do poder da fic,ao,
tar a difern~a
entre a perspectiva que tento criar e uma perspectlva
nalismo", porgue uma difer n~a
radical Sf abre entre a inst~ca
que
se autolimita para naG destruir a Dutra e a Dutra que sobreVlve grac;as
a primeira), tentei coloca-la sob 0 signo do humor. 0 humor que nos
permitisse tratar os avatares de nossa a~nerc
na verdacle como processos
contingentes, abertos a uma reinveo'rao com "outros clados", f, parece-me, vital para resistir a vergonha do presente.
._
o humor enecessaria para nOS preservar da superstlma~o
do
heroismo do desafio: nos nao temos de nos inventar radicalmente diferentes daquilo que somos, porque somos joi bem diferentes daquilo
que acreditamos ser. Desse modo, nos nao temos que .nos flxar a tafe-
fa heroica de estabelecer vinculos entre as duas manelras de fazer politica que inventamos, aquela que, oficialmente, 56 diz respeito aos s~e
humanos, e aquela que, aparentemente, nada tern a ver com a POh:lca. Esses vinculos sempre existiram, e nossa crenc;a na verdade obJed~rig -s
aos
tiva jamais foi obsniculo. Os cientistas sempre soubera~
politicos, e os politicos rapidamente aprenderam as m_ulnplas e mteressantes possibilidades de alianc;a com os Clentlstas..Nao se tra ~
por-
nos podemos ler uma caracterizac;ao da aventura humana que liga verdade e ficc;ao, enrafza as duas na paixao que nos torna capazes tanto
de fic,ao quanto de por a prova nossas fic,6es.
e
Nao urn "conteudo" que desqualifica a opiniao, mas uma diferenciac;ao de tipo politico entre dois sentidos do termo "paixao". Pai-
xao significa submissao quando uma estrategia de diferencia,ao antecipa, sugere - e, por isso mesmo, constitui - aqueles que ela qualifica como submissos. Tampouco eurn "conteudo" que qualifica os enunciados que n6s identificamos como cientfficos, e sim a invenc;ao de paix6es ativas, que implicam, sugerem e antecipam uma exigencia que,
ate aqui, os cientistas batizaram de "autonomia": a criac;ao de modos
de controversias que pressup6em uma paixao partilhada por seus participantes, e portanto urn meio espedfico - 0 laborat6rio, 0 "campo" - onde nao se entra comO se na casa da sogra. Nao denunciandoa que se pode civilizar esta paixao da diferenciac;ao, mas acolhendo-a
com humor, ou seja, pressupondo, antecipando, sugerindo que os cientistas sejam capazes de perceber que sua paixao muda de sentido quan-
e
tanto de estabelecer la,os, mas de os inventar-tematlzar na quahdade
de politicos. [sto nao significa, evidentemente, que as escolhas que nos
do eles proprios mudam de meio. 0 que implica, joi 0 vimos, um pro-
dias atuais se fazem "em nome das ciencia", "em nome da raclOnah-
sejam a priori definidos como disponiveis, isto e, como regidos pela
dade", poderiam, como por milagre, ser devolvidas aqu~les
a quem
as escolhas dizem respeito. Isto remete a uma outra histona, para a
qual nossa crenc;a na verdade e no prog e~so
p6de"servir :~ ,~bl.a
mas
que preciso ser heideggeriano ou denunclante da tecnoi~la
para
e
blema politico -
que os "meios" nao inventados pelas ciencias nao
opiniao e aespera da racionalidade, mas ativamente identificados como
estando povoados por distintas maneiras de "medir": de colocar os
problemas, de avaliar as conseqiiencias, de inventar os significados.
o que exige tambem que, ao se falar da maneira pela qual as ciencias
assimilar a da submissao do mundo a racionalidade operaclOnal das
inventam suas "medidas", noS as relacionemos ao estilo de paixao que
ciencias e das tecnicas.
. 20
Mas 0 humor arte de uma resistencia sem transcendencla ,tern
define seu meio especifico, problema afetivo de um humor da verdade.
sobretudo uma pa;te ligada com um segundo sentido do enunciado
sofista
"0
hornem
e a medida de todas as coisas": ele aponta 0
devir
daqueie que se torna capaz de medir, ou seja, tambem, que se toma
aquilo que dele exige a medida da coisa, aquilo a que esta 0 obrzga.
"Ser medida de todas as coisas" define entao 0 ser humano como pal-
A invenc;ao primeira das ciencias modernas, aquela das ciencias
experimentais, exigiu urn estilo de paixao que fez do autor cientffico
urn hibrido singular, entre juiz e poeta. 0 cientista-poeta "cria" seu
objeto, "fabrica" uma realidade que nao existia tal e qual no mundo,
mas que pertence antes a ordem da fic,ao. 0 cientista-juiz deve conseguir que se admita que a realidade que ele produziu e capaz de prestar um testemunho fidedigno, isto e, que sua fabrica,ao pode aspirar
acondi<;ao de simples depurac;ao, elirninac;ao de parasitas, encenac;ao
Ou melhor, segundo Latour, arte duma resistencia que nao pode se e~p,
valecer de nenhuma transcendencia, visto que a transcendencia e sem contrano.
20
pratica das categorias segundo as quais convem interrogar
Devires
200
Propondo
0
objeto.
201
o artefato deve ser identificado como nao podendo ser reduzido a um
artefato. Do poeta-juiz, que participa com paixao de urn jogo tido por
muitos como humor astucioso - transformar urn detalhe aparenteque faz 0 colega rival tropel,ar - ,
mente insignificante em difern~a
ao profeta, que anuncia 0 que sera ou 0 que deveria ser, nos sabemos
que a distancia ecurta, tanto mais que e 0 "profeta" que e esperado e
antecipado pelo publico. 0 humor dos teoricos e experimentadores nao
tern 0 direito de figurar fora cia rede homogenea dos colegas-rivais, este
Ii um dos prec;os que eles proprios pagam ao regime de mobilizac;ao
que erige sua conduta como modelo.
A paixao dos "narradores darwinianos" nao faz deles oem poetas, no sentido de fabricantes, nem jUlzes, nem profetas, mas os tarna
vulneraveis a ironia, porque a "medida" das hist6rias cia Terra que eles
aprendem a caotar exige cieles uma "estetica cia contingencia", urn
compromisso que as obriga a tratar como "h:ibitos de pensamento",
fontes de ficc;6es moralizantes, tudo aquilo que nos levaria a superestimar a questao dos devires humanos. As historias darwinianas estao
povoadas de inovac;6es cuja significac;ao se transforma, de circunstancias que criam, a partir de pequenas diferenc;as, sem motivo superior,
o desaparecimento de umas e 0 sucesso, quem sabe momentaneo, de
outras. 0 humor do narrador darwiniano prende-se a maneira pela
qual ele pode enunciar simultaneamente a contingencia e a exigencia
nao contingente que 0 faz existir e 0 liga a aventura humana.
o humor nao tern de ser apenas uma protec;ao as paix6es cientfficas. Ele pode ser condic;ao constitutiva dessas paix6es. E sera este 0
caso se se inventarem exigencias segundo as quais os cientistas poderiam tornar-se "medida" dos devires que nao autorizam a distinc;ao
entre produc;ao de saber e produc;ao de existencia. Pois e sem duvida
aqui que os do is sentidos do enunciado sofista eonvergem, aquele que
conjuga medida e polftica, e aquele que conjuga medida e devir. Nos
dois casos, a fiec;ao torna-se vetor de devir, e a difernca~o
entre
rep senta~ o
legftirna e opiniao, 0 poder atribufdo a verdade para veneer a fic~ao,
torna-se 0 "habito de pensarnento" que nos temos de
aprender a par em risco. Nos do is casos, nossa paixao oeidental pela
verdade viria entao ela propria exigir que sejam desvinculados verdade e poder, e entrelac;ados verdades e devires.
202
Propondo
lNDICE ONOMASTICO
Alembert, Jean Ie Rand, chamado d',
28, 136
Alliez, Eric, 97
Althusser, Louis, 35, 37
Alvarez, Luis, 173-4
Alvarez, Walter, 78, 173-4
Arendt, Hannah, 78, 14~5
Arist6teles, 64, 78, 96, 113, 190
Agostinho, (Santo), 88, 196
Bachelard, Gaston, 35-7
Barnes, Barry, 73
Bateson, Gregory, 59
Bensaude-Vincent, Bernadette 53-4
132, 145, 188
"
Bernal, John Desmond, 15
Bernard, Jean, 157
Bhaskar, Roy, 75, 180
Bloor, David, 73
Bohr, Niels, 131
Borch-Jacobsen, Mikkel, 162
Boudon, Raymond, 42
Boutot, Alain, 190
Boyle, Robert, 121-7, 185
Broughton, Richard, 111
Bukharin, Nikolai, 15
Butler, Samuel, 26, 96, 163
Caballero, Francis, 156, 194
Callan, Michel, 11, 116
Carnap, Rudolf, 36
Carnot, Sadi, 51
Cartwright, Nancy, 125
Cassin, Barbara, 78
Chalmers, Alan, 38, 42, 61
Changeux, Jean-Pierre, 136, 148,
184
Chertok, Leon, 33, 179
fndice onomastico
Cohen, Daniel, 157, 184
Collins, Harry, 73
Colombo, Crist6vao, 54, 118-9
Comte, Augusto, 36
Copernico, Nicolau, 30-1, 44
Darwin, Charles, 56-7, 167-9, 180,
191,202
Davis, Ray, 55
Deleuze, Gilles, 25, 30, 87, 89·90,
138,151,154,182,186-7
Descartes, Rene, 30-1, 124
Diderot, Denis, 28 136
Drake, Stilman, 103
Duhem, Pierre, 41, 95, 97, 103
Dutton, Diana B., 156, 194
Eco, Umberto, 172
Einstein, Albert, 18 24 38-41 43
58,62, 123, 164'
"
Eldredge, Niles, 169
Eliezer, (Rabino), 85
Ferry, Luc, 49, 195
Feyerabend, Paul, 48-50, 55, 60, 63,
73-4,77,97,103,110,131_2,
136, 140
Fleischmann, Martin, 120
Frank, Philip, 36
Freud, Sigmund, 35, 179-80, 191
Freudenthal, Gad, 53
Gadamer, Hans-Georg, 53-4
Galileu (Galileo Galilei), 30-1, 48,
55,90-6,99-109,114,121,
123-7,130-1,136,155,160,
163, 166, 168, 170, 191, 198,
203
Gaulle, Charles de, 63
Gille, Didier, 35, 105, 179
203
Gillispie, Charles Coulston, 16
Ginzburg, Carlo, 170
Gould, Stephen Jay, 167, 169-70,
172,175
Guattari, Felix, 30, 42, 89-90,
138,151,154,179,182,186-7,
195
Habermas, Jurgen, 122
Hacking, Ian, 64
Harding, Sandra, 20, 30-1, 160,
162, 181
Hawking, Stephen, 100-1
Hayes, Dan, 194
Heidegger, Martin, 78,114,190,
196
Hobbes, Thomas, 121-3, 128, 185
Holton, Gerald, 39
Hottois, Gilbert, 197
Hume, David, 30-1
Jacob, Franc;ois, 135
Joao da Cruz, (Sao), 147-8
Josue, (Rabino), 85
Kant, Immanuel, 30-1, 42, 91,101,
120,123,161,204
Kepler, Johannes, 39, 91
Koyre, Alexandre, 103, 114, 124-5,
130, 190
Kuhn, Thomas, 12-8,39,46-7,
62-8, 73, 87, 90, 97, 112, 130,
142,204
Lacan, Jacques, 196
Lakatos, Imre, 39, 43-6, 50, 63-4,
97, 131
Latour, Bruno, 72,48,61,81,83-4,
107,110,117,119,121,126,
138,145, 147, 150, 152, 161,
173, 176, 184-6, 192, 197-8,
200
Leibniz, Gottfried Wilhelm, 25-6.
74,97, 124, 138
Lewin, Roger, 172
Lewontin, Richard c., 169
Liebig, Justus Von, 144
Locke, John, 30-1
Mach, Ernst, 38-9, 123
Mackenzie, Donald, 61
204
Mandelbrot, Benoit, 189-90
Mannoni, Octave, 37
Marx, Karl, 179-80, 191
Masterman, Margaret, 64
Maturana, Umberto, 68, 120
McCrone, John, 111
Mesmer, Anton, 33
Metzger, Helene, 53, 66
Milgram, Stanley, 32, 178
Monod,Jacques, 131, 135, 137
Nathan, Tobie, 180
Needham, Joseph, 15
Newton, Isaac, 30-1, 51, 91,114,
136
Pasteur, Louis, 117
Paulo, (Sao), 88
Perrin, Jean, 54, 136, 140
Pinch, Trevor, 55, 73, 92
Planck, Max, 123
Platao, 78,114-5,196,198
Poincare, Henri, 41
Polanyi, Michael, 15-6, 18
Pons, Stanley, 120
Popper, Karl, 38-45, 48, 55-62, 67,
73,77,80,92,97,102, 108,
187, 196
Pouchet, Georges, 117
Prigogine, IIya, 37, 127, 159, 190
Protigoras, 196
Ralet, Olivier, 156, 194
Raup, David M., 173
Regis, Ed, 164
Rhine, Joseph Bank, 111
Rouch, Jean, 74
Roudinesco, Elisabeth, 35
Schaffer, Simon, 121
Schlanger, Judith, 53, 123, 142
Schlick, Moritz, 36
Schroedinger, Erwin, 139
Serres, Michel, 160
Shappin, Steven, 121
Simondon, Gilbert, 197
Stengers, Isabelle, 33, 35, 37, 54,
103, 105, 123, 125, 127, 132,
145,156,159,162,179,188,
191, 194
indice onomastico
Strum, Shirley, 80-1, 197
Taminiaux, Jacques, 78, 114-5
Tempier, Etienne, 96-8, 122, 154-5,
179
Testart, Jacques, 157
Thorn, Rene, 189-90
Tomas de Aquino, (Santo), 112
Tort, Michel, 157
Urbano VIII {Maffeo Barberini,
Papa), 95-6
Varela, Francisco, 68
Vellucci, Alfred, 194
Vernant, Jean-Pierre, 78
Whitehead, Alfred North, 25, 197
Wolfram, Steve, 164
Wooigar, Steve, 11, 84
Yung-Io, 118
indice onomastico
20S
COLEGAO TRANS
direfiio de Eric Alliez
Para alem do mal-entendido de urn pretenso "fim cia filasafia" intervindo
no contexte do que se admire chamar, ate em sua alteridade "tecno-cientifica",
a crise cia razao; contra urn cerro destino cia tarefa crftica que nos incitaria a escoIher entre ecletismo e academismo; nO ponto de estranheza oode a experiencia
ramada intriga cia acesso a novas figuras do sec e cia verdade... TRANS quer dizef transversalidade das ciencias exatas e anexatas, humanas e nao humanas,
transdisciplinaridade dos problemas. Em 5uma, transformal):ao numa pratica cuja
primeiro contetido e que hi linguagem e que a linguagem nos cauduz a dimensoes heterogeneas que nao tern nada em comum com 0 processo cia medfora.
A urn 56 tempo arqueol6gica e construtivista, em todo caso experimental,
essa afirmar;ao das indagar;oes voltadas para uma explorar;ao polifonica do real
leva a liberar a exigencia do conceito da hierarquia das quesroes admitidas, agur;ando 0 rrabalho do pensamento sobre as praricas que articulam os campos do
saber e do poder.
Sob a responsabilidade cientifica do Colegio Internacional de Estudos Fi~
losOficos Transdisciplinares, TRANS vern propor ao publico brasileiro numerosas rradur;oes, induindo textos ineditos. Nao por urn fascinio pe10 Outro, mas
por uma preocupar;ao que nao hesitariamos em qualificar de politica, se porventura se verificasse que s6 se forjam insrrumentos para uma outra realidade, para
uma nova experiencia da historia e do tempo, ao arriscar-se no horizonte multiplo das novas formas de racionalidade.
Gilles Deleuze e Felix Guattari
a que e a filosofia?
Pa ul Virilio
o espa~o
critico
Felix Guattari
Caosmose
Antonio Negri
A anomalia selvagem
Gilles Deleuze
Conversafoes
Andre Parente (org.)
Imagem-mdquina
Barbara Cassin, Nicole Loraux,
Catherine Peschanski
Gregos, bdrbaros, estrangeiros
Bruno Latour
]amais fomos modernos
Pierre Levy
As tecnologias da inteligencia
Nicole Loraux
Inve ~ao
de Atenas
Eric Alliez
A assinatura do mundo
Maurice de Gandillac
Geneses da modernidade
Gilles Deleuze
Critica e clinica
Gilles Deleuze e Felix Guattari
Mil platos (Vols. 1,2,3, 4 e 5)
Stanley Cavell
Esta America nova, ainda inaborddvel
Pierre Clastres
Cronica do indios Guayaki
Richard Shusterman
Vivendo a arte
Jacques Ranciece
Politicas da escrita
Andre de Muralt
A metafisica do fenomeno
Jean-Pierre Faye
A razao narrativa
Franr;ois Jullien
Tratado da eficdcia
Monique David-Menard
A loucura na r.lzao pura
o que vemos, 0
Jacques Ranciere
o desentendimento
Pierre Levy
Cibercultura
Eric Alliez
Da impossibilidade da fenomenologia
Gilles Deleuze
Bergsonismo
Michael Hardt
Gilles Deleuze
Alain de Libera
Pensar na Idade Media
Eric Alliez
Deleuze filosofia virtual
Eric Alliez (org.)
Gilles Deleuze: uma vida filos6fica
Pierre Levy
o que e 0 virtual?
Gilles Deleuze
Empirismo e subietividade
Franr;ois Jullien
Figuras da imanencia
Isabelle Stengers
das ciencias modernas
A inve~ao
Georges Didi-Huberman
que nos olba