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Estado Penal e Neoliberalismo na obra de Loïc Wacquant

2016

O texto tem por objetivo apontar as principais contribuicoes de Loic Wacquant para entender o Estado no neoliberalismo. O foco central esta na conjugacao que o autor faz entre as politicas economicas e sociais do projeto neoliberal com a reorganizacao da prisao e da assistencia, levando a uma reconfiguracao do proprio Estado, que se converte em Estado penal.

Estado Penal e Neoliberalismo na Obra de Löic Wacquant Ana Paula Ornellas Mauriel1 Introdução “A maior de todas as violências do Estado é o próprio Estado. Ele é, antes de tudo, uma força que sai da sociedade e se volta contra ela como um poder estranho que a subjuga, um poder que é obrigado a se revestir de aparatos armados, de prisões e de um ordenamento jurídico que legitime a opressão de uma classe sobre outra.” (Mauro Iasi, O Estado e a violência)2 Os trabalhos de Loïc Wacquant já se tornaram referência e ocupam importante espaço na produção das ciências sociais contemporâneas, incluindo algumas áreas aplicadas, como o Serviço Social. Seus estudos - particularmente concentrados nas obras Punir os Pobres, As Prisões da Miséria e Os Condenados da Cidade - não só ajudaram a avançar no debate sobre as políticas criminais, mas contribuíram para novas injunções no que tange às políticas sociais e ao Estado, ao provocar uma leitura inovadora com o que ele chama de “nova gestão da miséria” (WACQUANT, 2001) e “novo governo da insegurança social” (WACQUANT, 2007). O contexto das preocupações de Wacquant se encaixa no último quartel do século XX, cenário que ele caracteriza tanto a partir do 1 Graduada e mestra em Serviço Social pela UFRJ, Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP, Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense, coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Política Social e Desenvolvimento (GPODE/UFF). apmauriel@gmail.com 2 http://blogdaboitempo.com.br/2013/10/16/o-estado-e-a-violencia/ acesso em 10 de novembro de 2013. Ana Paula Ornellas Mauriel “abandono do contrato social fordista e do compromisso keynesiano em meados nos anos 70” como pela “crise do gueto”, que adveio como resposta às lutas por direitos civis e dos confrontos urbanos deflagradas no final dos anos 1960. Assim, o cenário em que situa a passagem para o “Estado penal” é justamente o momento em que as ideias neoliberais ganham sua base material de sustentação (ANDERSON, 1995). Em artigo recente, Wacquant (2012)3 apresenta um panorama das principais chaves analíticas de suas obras para pensar sobre o que ele denomina “uma especificação sociológica do neoliberalismo”, indo além de uma concepção qualificada por ele como “estritamente econômica”. O texto busca apreender as contribuições do autor para entender o papel do Estado no neoliberalismo, explicitando alguns fundamentos teórico-metodológicos básicos presentes em suas obras e os principais conceitos que preenchem de sentido a noção de “Estado Penal”. Para isso, a primeira parte do texto apresenta a aproximação que o autor tem do tema das prisões e os elementos que fundam a noção de Estado Penal. Em seguida, aponta a dinâmica e a funcionalidade desse Estado no que Wacquant qualifica de neoliberalismo, ressaltando questões-chave para o debate das políticas sociais nesse contexto. 1 . Wacquant, a Onda Punitiva e o Estado Penal Loïc Wacquant iniciou seus estudos sociológicos como aluno de Pierre Bourdieu no início dos anos 1980, e confirmou sua conversão à sociologia, especialmente à sociologia histórica, ao ganhar uma bolsa para realizar o mestrado na Universidade da Carolina do Norte, O texto “Crafting the Neoliberal State: Workfare, Prisonfare, and Social Insecurity”, publicado pela revista Sociological Forum, Vol. 25, No. 2, em junho de 2010, foi traduzido para o português sob o título “Forjando o estado neoliberal: trabalho social, regime prisional e insegurança social” e compõe parte de uma coletânea organizada por Vera Malaguti Batista, “Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal”, editada pela Revan em 2012, onde vários autores fazem uma análise dessa abordagem mais recente do autor. 3 16 Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 Estado Penal e Neoliberalismo na Obra de Löic Wacquant nos Estados Unidos4. Depois, retoma seus estudos na França durante o cumprimento do serviço militar em Nova Caledônia, quando, ao final, obtém uma bolsa para realizar o doutorado na Universidade de Chicago, berço da sociologia norte-americana. Foi então quando se defrontou com a realidade dos “guetos”, os quais despertaram em Wacquant forte curiosidade antropológica5. Diante das condições em que se defrontava naquela grande metrópole na passagem dos anos 1980 para os 1990, vai desenvolver pesquisas sobre as cidades, sobre os guetos e sobre a questão étnico-racial. É com o acúmulo a partir desses estudos que realiza uma crítica ao mito científico de “underclass”6, noção que dava o tom do main stream da sociologia na época nos Estados Unidos. Para entrar no gueto, usou o boxe como meio etnográfico de aproximação. As histórias de vida dos boxeadores acabaram por levá-lo à prisão, pois eram, em sua maioria, negros e latinos que cometiam atos de resistência, ou pequenos delitos, e eram presos, porém com penas extensas, consideradas por Wacquant como desproporcionais aos atos cometidos. Estas punições geravam prejuízos pessoais para as vidas familiares e prejuízos políticos para a dinâmica dos bairros e comunidades onde viviam, pois muitas vezes esses “infratores” eram líderes natos locais. Esses fatos levaram Wacquant a se deparar com as estatísticas carcerárias norte-americanas, que demonstravam um aumento do encarceramento no período pós 1970. Concomitantemente, realizase a virada para a Direita na política americana que pode ser constatada por Bill Clinton no Ato de Reconciliação da 4 Realizou a passagem pela Universidade Carolina do Norte entre 1982-83. O corpo, o gueto e o Estado penal: entrevista com Loïc Wacquant por Susana Durão. In: Etnográfica vol. 12 (2) (2008). Miscelânea e dossiê "European Christianities at the turn of the millenium: ethnographic approaches". 6 O termo "underclass" (subclasse) foi popularizado durante a última metade do século XX, pela primeira vez por cientistas sociais da América preocupados com a “luta contra a pobreza”, em seguida, por jornalistas americanos. O conceito tem sido alvo de muitas controvérsias entre os cientistas sociais que buscam definições e explicações da “subclasse” e possíveis soluções para sua gestão ou combate. O termo é originalmente atribuído a Gunnar Myrdal, embora não tenha permanecido exclusivo a ele, e, de forma geral, referem-se a um conjunto de desempregados, não empregáveis e subempregados que cada vez mais se separam das condições gerais de vida do país e de suas realizações, muitas vezes tem servido de base para fundamentar a noção de “exclusão social”. Para uma crítica a noção de “underclass” consultar Bourdieu, Pierre e Wacquant, Loïc. Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista. In: Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, nº 1, 2002, pp. 15-33. 5 Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 17 Ana Paula Ornellas Mauriel Responsabilidade Individual e Oportunidade de trabalho de 19967, marcando o fim do New Deal de Roosevelt, concomitantemente à valorização da retórica do “New Labour” (Novo Trabalhismo) na Grã-Bretanha, marcos legais e institucionais, que conciliaram os valores das reformas dos esquemas de proteção social e promoção do bem-estar com os princípios da individualização, de forma que os possíveis “beneficiários” sejam movidos em direção ao mercado. Isso é feito por meio da perpetuação de mitos sobre a pobreza que culpabilizam as vítimas (os pobres) por suas próprias penúrias. Esses determinantes constituíram peças-chave para Wacquant incorporar a prisão como instituição política e componente central do Estado no contexto contemporâneo, compondo uma política de penalização da miséria, que vem para responder ao crescimento da insegurança salarial e ao aprofundamento do gueto como mecanismo de controle de uma população duplamente “marginalizada” (material e simbolicamente). Em Punir os Pobres (A Onda Punitiva), Wacquant apresenta a ideia de que a preocupação com a segurança, que atinge a maior parte dos países avançados no último quartel do século XX, constitui uma reação à generalização da insegurança social e mental produzida pela precarização das condições de assalariamento. Ou seja, as políticas de segurança não surgem pelo aumento da criminalidade ou uma mudança do perfil do crime no momento atual, mas sim pela mudança no “olhar que a sociedade dirige para [...] as populações despossuídas e pra o local que elas ocupam na cidade” (2007, p.29) Essas categorias – refugos – jovens desempregados deixados à sua própria sorte, mendigos e “sem teto”, nômades e toxicômanos à deriva, imigrantes pós-coloniais sem documentos ou amparo – tornaram-se muito evidentes no espaço público, sua presença indesejável e seu comportamento intolerável porque são a 7 Complementada por Violent Crime Control and Enforcement Law Act de 1993, considerada a maior lei do crime na história dos Estados Unidos, que consistia em 356 páginas que previam mais 100 mil oficiais de polícia, US$6.1 bilhões em programas de prevenção do crime e US$9.7 bilhões de investimento nas prisões, e foi apresentada por Jack Brooks do Texas; e No Frills Prision Act, 1995, introduzida por Dick Zimmer e tinha por objetivo banir das prisões federais qualquer tipo de “frescura” (frills), consideradas televisões a cabo, projeção de filmes, músicas eletrônicas ou instrumentos musicais, instruções ou qualquer tipo de treinamento em artes marciais, pontos de café ou de aquecimento. 18 Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 Estado Penal e Neoliberalismo na Obra de Löic Wacquant encarnação viva e ameaçadora da insegurança social generalizada, produzida pela erosão do trabalho assalariado estável e homogêneo (WACQUANT, 2007, p. 29) Essa insegurança social e mental mistura o medo do futuro, o horror do declínio e da degradação sociais com a angústia de não ser capaz de transmitir às novas gerações familiares seus propósitos e valores, convivendo com uma competição cada vez mais acirrada por posições cada vez mais incertas. Essa sensação difusa socialmente, reforçada pela cultura do medo e da delinquência deflagrada pela mídia oficial, atinge largas parcelas da classe trabalhadora, as quais desprovidas de acúmulo cultural acabam por incorporar a bandeira da defesa da necessidade crescente de segurança e punição aos crimes. O novo “governo da insegurança social” implementado nos Estados Unidos, mas que é oferecido de modelo para outros países avançados, apresenta uma tripla transformação do Estado: amputando seu braço econômico, retraindo seu braço social e expandindo seu punho penal (WACQUANT, 2007). A preocupação de Wacquant com a reformatação do Estado está justamente em mostrar que a expansão de seu “braço penal” encerra um projeto político, ao servir como componente central da remontagem da autoridade pública para o avanço e manutenção do neoliberalismo. Como se dá essa reformatação do Estado? Partindo da observação da experiência norte-americana, o primeiro movimento narrado por Wacquant é o declínio do Estado caritativo, porém considerando as características da formação sócio-histórica norteamericana e os determinantes fundamentais envolvidos na conformação do Estado americano, o qual foi fundado no mito do individualismo possessivo, na descentralização e fragmentação do campo burocrático, na divisão estanque entre social insurance e o maldito welfare (tutelados e estigmatizados pela “ética do trabalho”) e residual (intervém caso a caso nas categorias precárias consideradas como merecedoras). (BATISTA, 2001, p. 9) Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 19 Ana Paula Ornellas Mauriel O declínio do Estado caritativo é realizado por um conjunto de passos articulados: primeiro, pelo corte de orçamentos para a área social, associando um discurso ideológico de “guerra contra a pobreza”, o que para Wacquant é na realidade uma guerra contra os pobres, uma vez que estes são intimados a assumir a responsabilidade por si mesmo, sob pena de medidas vexatórias com o sentido de realocá-los em empregos precários. Um segundo passo são as “barreiras administrativas e burocráticas” (WACQUANT, 2001, p.24-25), para evitar ou diminuir a possibilidade de acesso dos possíveis usuários aos programas e benefícios. Em seguida, outro manejo, considerado mais brutal, é a eliminação da ajuda por meio do fechamento de programas e projetos sociais sem substituição por outro tipo de medida assistencial semelhante. O avanço do Estado Penal, ao contrário do que se pode pensar num primeiro momento, não é sinônimo de simples aumento de encarceramento como substituição às políticas sociais em sua totalidade, ou mesmo das medidas assistenciais. A política estatal de criminalização da pobreza, ou a gestão da miséria, se dá em duas modalidades organicamente articuladas e que conformam o que Wacquant classifica como Estado penal. O primeiro componente do Estado penal, menos visível, é a transformação da Assistência (e dos próprios serviços sociais) em instrumentos de controle e vigilância das chamadas “novas classes perigosas”8, com o objetivo de fazer com que esse público aceite qualquer emprego, não importa quais as condições de trabalho e a remuneração que sejam oferecidas (comporiam medidas do workfare). A isso se aliam formas assistenciais com condicionalidades à assiduidade escolar das crianças e à formação técnica voltada para um mercado de trabalho sem medidas reais de inserção em postos de trabalho (medidas que comporiam o learnfare). 8 Wacquant menciona o termo “classes perigosas”, usado pelo discurso da insegurança social, para considerar o público alvo das políticas punitivas que são aqueles que compõem o que ele considera como subproletariado ou aqueles setores mais deserdados da classe operária, cujo perfil da população mais atingida é os working poors, famílias com histórias de vida marcadas pela pobreza, precariedade material, privação cultural, indigência social, violência física, em sua maioria negros. (WACQUANT, 2001, p. 33 e seguintes). 20 Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 Estado Penal e Neoliberalismo na Obra de Löic Wacquant O segundo componente do Estado penal é o encarceramento ou a “contenção repressiva” dos pobres. Essa ação atinge prioritariamente negros e jovens de bairros pobres e a justificativa ideológica subjacente é a “guerra contra as drogas”. Wacquant demonstra empiricamente a força desse segundo dispositivo como tendência crescente do Estado e como traço característico do neoliberalismo por meio de vários dados: pela comparação entre os orçamentos para área social, que veio diminuindo em comparação ao orçamento para políticas penais/criminais e para as políticas de segurança, o qual apresentou aumento (WACQUANT, 2001, p. 2930); pela ampliação do número de prisões privadas como nicho lucrativo (WACQUANT, 2001, p.31); pelas estatísticas de jovens detidos e dos tipos de delitos, que mostram um aumento da detenção de jovens por mais tempo por delitos menos graves comparados há décadas passadas e pelo aumento absoluto da população carcerária (WACQUANT, 2001, p.32). Cabe, portanto, ressaltar que o Estado penal possui um duplo movimento, mesmo quando se pensa a gestão penal para além dos muros dos Estados Unidos. Em As Prisões da Miséria, Wacquant assevera, A gestão da precariedade não se resume contudo ao aprisionamento, como se pode constatar no caso americano, onde a promoção do encarceramento ao nível primum remedium para a miséria não impediu um vigoroso aumento da vigilância “externa” das famílias e bairros deserdados. Nos países da Europa de tradições estatais fortes, católica ou social-democrata [...] a regulamentação punitiva das parcelas pauperizadas do novo proletariado pós-fordista efetua-se principalmente por intermédio de dispositivos panópticos cada vez mais sofisticados e intrusivos, diretamente integrados aos programas de proteção e assistência. (WACQUANT, 2011, p.129, grifos do autor) Ao assumir essa dupla regulação por parte do Estado penal (assistencial e penal, ambas punitivas), Wacquant também avança ao demonstrar que ocorrem mudanças não só na assistência, mas também no papel e na função do sistema penal. Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 21 Ana Paula Ornellas Mauriel Na assistência, para minimizar os “riscos” colocados pelas populações das quais são responsáveis e torná-las compatíveis com os dispositivos de seguranças e inserção no trabalho precário, os serviços sociais ganham um teor de social-panoptismo (WACQUANT, 2011, p.130), reafirmando a “ética do trabalho” e estabelecendo uma demarcação categórica entre pobres merecedores e pobres indolentes. Esse esquema de cortes e de reforma da assistência no sentido de “vigiar e punir” é recebido facilmente porque historicamente o welfare nos Estados Unidos é percebido pela opinião pública como um conjunto de políticas que beneficiam negros, porque aparece associado a uma concepção de assistência relacionada à ociosidade e à dependência do Estado. Com isso, assistência e raça estabeleceram historicamente uma relação estereotipada, conduzindo a uma ideia de que o pobre do gueto é um tipo de “parasita social” (WACQUANT, 2001). Ao enquadrar os pobres em princípios que os definem como “alguém fora da lei” e imputar isso como regra para famílias menos favorecidas, criam condições de expropriação em que a pessoa que perde e não acessa mais o benefício precisa e é obrigada a sobreviver de qualquer forma (WACQUANT, 2001, p.44-45). Esse é o link entre a dimensão assistencial e a punitividade do “braço penal” do Estado para gestão da miséria no neoliberalismo. Em relação à dimensão penal propriamente dita, Wacquant mostra, contrariando discursos oficiais, que as taxas de encarceramento não crescem na mesma proporção que as taxas de criminalidade. Como, então, se justifica essa hipertrofia carcerária? O autor demonstra que o recurso à reclusão sofre um deslocamento: uma série de delitos e crimes que antes não incorriam em prisão passam a ser enquadrados como tal; percebe-se a imputação de maiores punições para pequenos delitos; o aumento da duração da detenção e do volume de condenados; maior variedade de ações punitivas e multiplicações de infrações que motivam encarceramento fechado; a aplicação de legislação criminal adulta em menores de 16 anos, entre outras medidas que demonstram um claro endurecimento da dimensão punitiva do Estado. (WACQUANT, 2001, p. 61 e seg.) 22 Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 Estado Penal e Neoliberalismo na Obra de Löic Wacquant Como alerta Mike Davis (2008, p.208) ao mencionar o tratamento reservado aos afro-americanos por parte do Estado, este se caracteriza pelo “desemprego estrutural, superencarceramento com base na raça, brutalidade policial, arrefecimento da ação afirmativa e escolas decadentes”. 2 . Estado Penal, neoliberalismo e políticas sociais Para Wacquant o entendimento das transformações em curso, particularmente a partir dos anos 1990, não pode ser desatrelado da centralidade da instituição penal, pois o neoliberalismo é pensado como um “projeto político transnacional que visa refazer o nexo entre mercado, estado e cidadania a partir de cima” (2012, p.31). Assim, a fase persuasiva de adesão consentida foi substituída por uma lógica do controle em larga escala, que faz “das prisões um ‘órgão central do Estado’, dando visibilidade a um laço estruturante da ordem burguesa” (MENEGAT, 2012, p.207). Para Batista (2012), a noção de Estado estruturada por Wacquant nesse contexto neoliberal tem por base uma retomada da proposta desenvolvida por Bourdieu no livro “A Miséria do Mundo”, obra conjunta onde Wacquant é um dos autores colaboradores. Nesse livro, o Estado não é pensado como um “conjunto monolítico e coordenado, mas como um espaço fragmentado de forças que disputam a definição e a distribuição de seus públicos” (BATISTA, 2012, p.310), o que Bourdieu denomina “campo burocrático”. É justamente no âmbito dessa luta travada no interior desse “campo burocrático” que Wacquant vai constituir sua tese do “Estado Penal”, observando que essa luta se dá por meio de duas forças: “a nobreza estatal direcionada à gestão do mercado”; e, aquilo que classifica como a “mão feminina do Leviatã”, que se define como o governo dos pobres ou gastos com as políticas sociais. (BATISTA, 2012, p.310). Para Batista (2012), “a tese de Wacquant é de que o neoliberalismo transformou o sentido da assistência na direção do Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 23 Ana Paula Ornellas Mauriel tratamento penal da marginalidade urbana”, dirigindo um olhar criminalizante aos pobres. Em relação ao entendimento de Wacquant sobre o neoliberalismo, o autor esclarece que a noção predominantemente econômica – que enfatiza as políticas de ajuste favoráveis ao mercado – é reducionista e incompleta, e busca elaborar uma noção mais ampla que “identifique o mecanismo institucional e os limites simbólicos através dos quais os princípios neoliberais estão sendo atualizados”, ou o que ele denomina “especificação sociológica do neoliberalismo” (WACQUANT, 2012, p. 31). Contudo, nessa definição, a ênfase na disciplina seria uma dimensão insuficiente, pois “o neoliberalismo está intimamente associado à difusão internacional de políticas punitivas, tanto no domínio da assistência social quanto no domínio criminal” (WACQUANT, 2012, p. 30) Para Wacquant, a aparência do Estado no neoliberalismo é de um Estado mínimo, de um suposto encolhimento do welfare state em direção a um Estado ágil, gerencial, que faz investimentos em capital humano e ativa habilidades individuais para o consumo e para o trabalho. Contudo, em sua essência, o Estado neoliberal se revela muito diferente, pois para liberar o capital das restrições de circulação e os detentores de capital para as oportunidades de investimento, necessita implantar um governo autoritário aos trabalhadores e ditar seu comportamento, particularmente quando se tratam dos mais precários. Assim, “o estado penal, insidioso, expansivo e caro não é um desvio do neoliberalismo, mas um de seus ingredientes constitutivos” (WACQUANT, 2012, p.33). Para demonstrar isso, Wacquant aponta que o Estado penal engendrou pelo menos quatro novas formas sobre o funcionamento da sociedade punitiva que divergem da clássica visão prevista por Foucault. Primeiro, afirma que embora as disciplinas tenham realmente se diversificado e se expandido, não fizeram a prisão sair de cena como instrumento de controle sociomoral. Ao contrário, “o confinamento penal fez um surpreendente retorno e reafirmou-se como uma das missões centrais do Leviatã exatamente quando Foucault e seus seguidores estavam prevendo seu fim” (WACQUANT, 2012, p. 21). O segundo ponto está no fato de que 24 Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 Estado Penal e Neoliberalismo na Obra de Löic Wacquant ao invés de adestramento, no sentido de moldar “corpos dóceis e produtivos” tal como postulado por Foucault, “a prisão contemporânea é direcionada para a neutralização brutal, uma retribuição automática e a um simples armazenamento” (WACQUANT, 2012, p. 22). Em terceiro, a ampliação da rede penal sob o neoliberalismo foi seletiva e discriminatória em termos sociais, territoriais e étnico-raciais, desviando-se da lógica prevista por Foucault de que os dispositivos penais se espalhariam ou se diluiriam por toda a sociedade. Wacquant afirma que a penalização é uma “técnica distorcida que não se aplica por igual nos diferentes níveis de classe, etnicidade e lugar e que opera para dividir populações e diferenciar categorias de acordo com concepções estabelecidas de valor moral” (WACQUANT, 2012, p. 22). Por fim, ao contrário do que previra Foucault, não houve uma diluição da economia da punição das vistas do público, mas “sua realocação institucional, sua elaboração simbólica e sua proliferação social numa intensidade muito acima de tudo que alguém podia prever quando Vigiar e Punir foi publicado” (WACQUANT, 2012, p. 23), ou seja, a teatralização da penalidade ganhou a mídia comercial naquilo que Wacquant classifica como “pornografia da lei e da ordem”9. De uma maneira mais ampla, Wacquant entende que a ascensão da hegemonia neoliberal nos países centrais vem ocorrendo concomitantemente ao que ele classifica como “onda punitiva”, cujo principal agente promotor é o Estado (o “Estado Penal”). A ideologia neoliberal vem ocultando as estratégias para tratar as condições e condutas que as classes dominantes julgam ofensivas, ameaçadoras ou mesmo indesejáveis. Dentre essas estratégias, a penalização acaba por servir como “técnica para invisibilização dos ‘problemas’ sociais que o Estado [...] não pode ou não se preocupa em tratar de forma mais profunda” (WACQUANT, 2007, p. 21). 9 A gestão da segurança é concebida e executada não apenas com a finalidade de contenção, mas também para ser exibida e vista, examinada e espionada, com a prioridade absoluta de fazer dela um espetáculo midiático. “Para tal, as palavras e ações anti-crime devem ser metodicamente colocadas em cena, exageradas, dramatizadas e mesmo ritualizadas. Isso explica porque, a exemplo dos confusões carnais pré-planejadas que povoam os filmes pornográficos, elas são extraordinariamente repetitivas, mecânicas, uniformes e, portanto, eminentemente previsíveis” (WACQUANT, 2007, p.9-10) Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 25 Ana Paula Ornellas Mauriel Ao lado da penalização funciona também como estratégia de contenção dos indesejados, a medicalização (WACQUANT, 2007), que configura um movimento de enquadramento de comportamentos ao “império da normalidade” com a criação de síndromes, transtornos, distúrbios e produção de novos medicamentos no sentido de categorização dos sujeitos e psiquiatrização da cultura, reforçando a ideia de que há uma saída médica e cura farmacológica para tudo (LUCENA; SEIXAS, 2016). Tais assertivas ajudam a promover uma determinada concepção de sociedade e de vida em comum, onde o único caminho para restauração da ordem e da segurança está na gestão punitiva e carcerária dos “problemas sociais e mentais”, que resultam da fragmentação das condições de trabalho e pela polarização dos espaços urbanos. Essa complacência com o discurso de que não dispomos de nenhuma outra alternativa para a contenção dos problemas é, para Wacquant, um dos meios estratégicos centrais de socialização da naturalização “onda punitiva” e de legitimação do “Estado Penal”. Nesse sentido, Menegat (2012) assevera que Esta mudança estrutural de sentimentos auxilia o entendimento, se aceitarmos a ampliação do seu raio explicativo para além da esfera da cultura, de porque a “insegurança social” se tornou um modo não apenas de se sentir que algo desmorona, sem, contudo, se saber efetivamente o que, como também, um modo de perceber o uso que deste sentimento é feito pelo campo burocrático, do qual retira boa parte da legitimação para suas políticas. (MENEGAT, 2012, p. 209) Embora parta de um fundamento diferente, Wacquant percebe que o “Estado Penal” compõe parte de uma estratégia das classes dominantes que ganhou hegemonia quando as vitórias eleitorais da socialdemocracia, metamorfoseadas em Terceira Via, protagonizaram as mudanças mais profundas dos ajustes neoliberais em direção a esse estado de exceção. Ou seja, a mesma socialdemocracia que na Europa liderou a conformação dos estados de bem-estar social, passou a fazer os ajustes regressivos para que a 26 Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 Estado Penal e Neoliberalismo na Obra de Löic Wacquant os processos contemporâneos de valorização do valor se mantenham. Tais assertivas aparecem figuradas em algumas das tendências recentes das políticas sociais contemporâneas, e embora as referências de Wacquant sejam os países centrais, é possível fazer uma correlação com processos que vem ocorrendo com a proteção social nos países dependentes ou mesmo se pensamos no cenário latino-americano. O recrudescimento da ação estatal aparece tanto na ofensiva militarizada – com a formação de tropas, investimento em segurança privada e na “inteligência” da polícia, aumento do encarceramento em massa de negros e segmentos mais pauperizados (BRITO, 2010) –, como na subversão de valores sobre direitos humanos ou cidadania, operacionalizando ações assistenciais de viés policialesco (LIMA, 2013) – com investigação, mapeamento e categorização de segmentos “pobres” da população, para averiguar o cumprimento de condicionalidades, ameaças de supressão de benefícios, abordagens autoritárias, paternalistas ou neo-higienistas, sob discursos que garantem assegurar a proteção social. Wacquant, de forma muito particular, conjuga naquilo que classifica de “Estado Penal”, um modo neoliberal de governo das populações empobrecidas. Um modo particular de gestão da pobreza compatível e funcional à implementação do capitalismo mundializado, que amplia as condições de exploração da força de trabalho, por meio da desregulamentação das leis trabalhistas, da destruição dos direitos sociais e da precarização das condições de vida e de trabalho das maiorias trabalhadoras, apoiado na implementação de programas de assistência de cunho disciplinador e behaviorista, os quais funcionam para empurrar estes segmentos populacionais para determinados territórios (periferias) e setores onde o trabalho é desprotegido, desregulamentado, sempre beirando a informalidade. Acompanhando essas ações assistenciais tem-se o desenvolvimento de uma rede policial e penal, que reforça suas ações justamente sobre esses territórios periféricos e sobre estas populações, sempre com uma filosofia disciplinadora e, claramente, seletiva. Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 27 Ana Paula Ornellas Mauriel Considerações finais Poulantzas já assinalava em sua obra “O Estado, o poder, o socialismo”, que a lei, como meio de repressão e coerção, era elemento constitutivo fundamental do Estado moderno. Para isso ele dedicou um capítulo à análise da lei como “código da violência pública organizada” (POULANTZAS, 2000). Ou seja, violência e coerção são elementos constitutivos do Estado burguês que se manifestam historicamente de diferentes formas. Na atual conjuntura, é justamente buscando reprimir a gigantesca massa de miseráveis criada pela reestruturação contemporânea do capital, que o Estado fortalece ainda mais seu aparelho de coerção, com o objetivo final de manutenção da ordem social. Este é o quadro no qual se constitui a relação entre aparelho coercitivo estatal e pobreza, sob a vigência do neoliberalismo. A ideia fundamental do texto foi mostrar os fundamentos do Estado penal – que comungam elementos de política social e de instituições penais –, como ele compõe um conjunto categorial mais amplo na obra de Wacquant e como contribui como chave analítica importante para pensar o papel do Estado neoliberalismo. Contudo, é importante ressaltar que em momento nenhum da obra de Wacquant o Estado penal aparece como sinônimo exclusivo de puro encarceramento, numa relação exclusiva de substitutibilidade das políticas sociais pelo sistema prisional. O que aparece em várias passagens é que o aparato penal é visto como um órgão essencial do Estado na atual quadra histórica, porém, aliado a uma nova forma de política social de viés assistencial que também é vista como fundamental na lógica vigilante e controladora dos trabalhadores precários. Referências ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. Em: Pósneoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. 28 Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 Estado Penal e Neoliberalismo na Obra de Löic Wacquant SADER, Emir; GENTILI, Pablo (orgs.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. BATISTA, Vera Malaguti. Prefácio. In: WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres. A nova gestão da Miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, F. Bastos, 2001. Coleção Pensamento Criminológico. BATISTA, Vera Malaguti. Adesão subjetiva à barbárie. In: BATISTA, Vera Malaguti (org.) Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012. BRITO, Felipe Mello da Silva. Acumulação (democrática) de escombros. 2010. 223 f. Tese (Doutorado em Serviço Social), Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. DAVIS, Mike. Pobres, negros e esquecidos. In: DAVIS, Mike. Apologia aos bárbaros: ensaios contra o império. São Paulo: Boitempo, 2008. DURÃO, Susana. 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Rio de Janeiro: Revan, 2012. 30 Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 Estado Penal e Neoliberalismo na Obra de Löic Wacquant Recebido em 20/11/2016 e aceito em 25/11/2016. Resumo: O texto tem por objetivo apontar as principais contribuições de Loïc Wacquant para entender o Estado no neoliberalismo. O foco central está na conjugação que o autor faz entre as políticas econômicas e sociais do projeto neoliberal com a reorganização da prisão e da assistência, levando a uma reconfiguração do próprio Estado, que se converte em Estado penal. Palavras-chave: Estado Penal, neoliberalismo, prisão, políticas sociais. Title: Criminal State and neoliberalism: notes on the Loic Wacquant work Abstract: The study aims to point out as major contributions from Loïc Wacquant to understand the State under neoliberalism. The focus is in the conjunction between economic and social policies of neoliberal project with the reorganization of the prison and assistance taking the reconfiguration of the State, which is converted into a penal State. Keywords: Criminal State, neoliberalism, imprisonment, social policies. Sociedade em Debate, 22(2): 15 - 31, 2016 31