Estado Penal e Neoliberalismo na Obra de
Löic Wacquant
Ana Paula Ornellas Mauriel1
Introdução
“A maior de todas as violências do Estado é o próprio Estado. Ele é,
antes de tudo, uma força que sai da sociedade e se volta contra ela
como um poder estranho que a subjuga, um poder que é obrigado a se
revestir de aparatos armados, de prisões e de um ordenamento jurídico
que legitime a opressão de uma classe sobre outra.”
(Mauro Iasi, O Estado e a violência)2
Os trabalhos de Loïc Wacquant já se tornaram referência e
ocupam importante espaço na produção das ciências sociais
contemporâneas, incluindo algumas áreas aplicadas, como o Serviço
Social. Seus estudos - particularmente concentrados nas obras Punir
os Pobres, As Prisões da Miséria e Os Condenados da Cidade - não só
ajudaram a avançar no debate sobre as políticas criminais, mas
contribuíram para novas injunções no que tange às políticas sociais e
ao Estado, ao provocar uma leitura inovadora com o que ele chama
de “nova gestão da miséria” (WACQUANT, 2001) e “novo governo
da insegurança social” (WACQUANT, 2007).
O contexto das preocupações de Wacquant se encaixa no último
quartel do século XX, cenário que ele caracteriza tanto a partir do
1
Graduada e mestra em Serviço Social pela UFRJ, Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP,
Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional
da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense, coordenadora do Grupo de Pesquisa
sobre Política Social e Desenvolvimento (GPODE/UFF). apmauriel@gmail.com
2
http://blogdaboitempo.com.br/2013/10/16/o-estado-e-a-violencia/ acesso em 10 de novembro de 2013.
Ana Paula Ornellas Mauriel
“abandono do contrato social fordista e do compromisso keynesiano
em meados nos anos 70” como pela “crise do gueto”, que adveio
como resposta às lutas por direitos civis e dos confrontos urbanos
deflagradas no final dos anos 1960. Assim, o cenário em que situa a
passagem para o “Estado penal” é justamente o momento em que as
ideias neoliberais ganham sua base material de sustentação
(ANDERSON, 1995).
Em artigo recente, Wacquant (2012)3 apresenta um panorama das
principais chaves analíticas de suas obras para pensar sobre o que ele
denomina “uma especificação sociológica do neoliberalismo”, indo
além de uma concepção qualificada por ele como “estritamente
econômica”.
O texto busca apreender as contribuições do autor para entender
o papel do Estado no neoliberalismo, explicitando alguns
fundamentos teórico-metodológicos básicos presentes em suas
obras e os principais conceitos que preenchem de sentido a noção de
“Estado Penal”. Para isso, a primeira parte do texto apresenta a
aproximação que o autor tem do tema das prisões e os elementos
que fundam a noção de Estado Penal. Em seguida, aponta a dinâmica
e a funcionalidade desse Estado no que Wacquant qualifica de
neoliberalismo, ressaltando questões-chave para o debate das
políticas sociais nesse contexto.
1 . Wacquant, a Onda Punitiva e o Estado Penal
Loïc Wacquant iniciou seus estudos sociológicos como aluno de
Pierre Bourdieu no início dos anos 1980, e confirmou sua conversão
à sociologia, especialmente à sociologia histórica, ao ganhar uma
bolsa para realizar o mestrado na Universidade da Carolina do Norte,
O texto “Crafting the Neoliberal State: Workfare, Prisonfare, and Social Insecurity”, publicado pela
revista Sociological Forum, Vol. 25, No. 2, em junho de 2010, foi traduzido para o português sob o título
“Forjando o estado neoliberal: trabalho social, regime prisional e insegurança social” e compõe parte de
uma coletânea organizada por Vera Malaguti Batista, “Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo
neoliberal”, editada pela Revan em 2012, onde vários autores fazem uma análise dessa abordagem mais
recente do autor.
3
16
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nos Estados Unidos4. Depois, retoma seus estudos na França
durante o cumprimento do serviço militar em Nova Caledônia,
quando, ao final, obtém uma bolsa para realizar o doutorado na
Universidade de Chicago, berço da sociologia norte-americana. Foi
então quando se defrontou com a realidade dos “guetos”, os quais
despertaram em Wacquant forte curiosidade antropológica5. Diante
das condições em que se defrontava naquela grande metrópole na
passagem dos anos 1980 para os 1990, vai desenvolver pesquisas
sobre as cidades, sobre os guetos e sobre a questão étnico-racial. É
com o acúmulo a partir desses estudos que realiza uma crítica ao mito
científico de “underclass”6, noção que dava o tom do main stream da
sociologia na época nos Estados Unidos.
Para entrar no gueto, usou o boxe como meio etnográfico de
aproximação. As histórias de vida dos boxeadores acabaram por
levá-lo à prisão, pois eram, em sua maioria, negros e latinos que
cometiam atos de resistência, ou pequenos delitos, e eram presos,
porém com penas extensas, consideradas por Wacquant como
desproporcionais aos atos cometidos. Estas punições geravam
prejuízos pessoais para as vidas familiares e prejuízos políticos para
a dinâmica dos bairros e comunidades onde viviam, pois muitas
vezes esses “infratores” eram líderes natos locais.
Esses fatos levaram Wacquant a se deparar com as estatísticas
carcerárias norte-americanas, que demonstravam um aumento do
encarceramento no período pós 1970. Concomitantemente, realizase a virada para a Direita na política americana que pode ser
constatada por Bill Clinton no Ato de Reconciliação da
4
Realizou a passagem pela Universidade Carolina do Norte entre 1982-83.
O corpo, o gueto e o Estado penal: entrevista com Loïc Wacquant por Susana Durão. In: Etnográfica
vol. 12 (2) (2008). Miscelânea e dossiê "European Christianities at the turn of the millenium:
ethnographic approaches".
6
O termo "underclass" (subclasse) foi popularizado durante a última metade do século XX, pela primeira
vez por cientistas sociais da América preocupados com a “luta contra a pobreza”, em seguida, por
jornalistas americanos. O conceito tem sido alvo de muitas controvérsias entre os cientistas sociais que
buscam definições e explicações da “subclasse” e possíveis soluções para sua gestão ou combate. O
termo é originalmente atribuído a Gunnar Myrdal, embora não tenha permanecido exclusivo a ele, e, de
forma geral, referem-se a um conjunto de desempregados, não empregáveis e subempregados que cada
vez mais se separam das condições gerais de vida do país e de suas realizações, muitas vezes tem servido
de base para fundamentar a noção de “exclusão social”. Para uma crítica a noção de “underclass”
consultar Bourdieu, Pierre e Wacquant, Loïc. Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista. In: Estudos
Afro-Asiáticos, Ano 24, nº 1, 2002, pp. 15-33.
5
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Responsabilidade Individual e Oportunidade de trabalho de 19967,
marcando o fim do New Deal de Roosevelt, concomitantemente à
valorização da retórica do “New Labour” (Novo Trabalhismo) na
Grã-Bretanha, marcos legais e institucionais, que conciliaram os
valores das reformas dos esquemas de proteção social e promoção
do bem-estar com os princípios da individualização, de forma que os
possíveis “beneficiários” sejam movidos em direção ao mercado.
Isso é feito por meio da perpetuação de mitos sobre a pobreza que
culpabilizam as vítimas (os pobres) por suas próprias penúrias.
Esses determinantes constituíram peças-chave para Wacquant
incorporar a prisão como instituição política e componente central
do Estado no contexto contemporâneo, compondo uma política de
penalização da miséria, que vem para responder ao crescimento da
insegurança salarial e ao aprofundamento do gueto como mecanismo
de controle de uma população duplamente “marginalizada” (material
e simbolicamente).
Em Punir os Pobres (A Onda Punitiva), Wacquant apresenta a ideia
de que a preocupação com a segurança, que atinge a maior parte dos
países avançados no último quartel do século XX, constitui uma
reação à generalização da insegurança social e mental produzida pela
precarização das condições de assalariamento. Ou seja, as políticas
de segurança não surgem pelo aumento da criminalidade ou uma
mudança do perfil do crime no momento atual, mas sim pela
mudança no “olhar que a sociedade dirige para [...] as populações
despossuídas e pra o local que elas ocupam na cidade” (2007, p.29)
Essas categorias – refugos – jovens desempregados deixados à sua
própria sorte, mendigos e “sem teto”, nômades e toxicômanos à
deriva, imigrantes pós-coloniais sem documentos ou amparo –
tornaram-se muito evidentes no espaço público, sua presença
indesejável e seu comportamento intolerável porque são a
7 Complementada por Violent Crime Control and Enforcement Law Act de 1993, considerada a maior
lei do crime na história dos Estados Unidos, que consistia em 356 páginas que previam mais 100 mil
oficiais de polícia, US$6.1 bilhões em programas de prevenção do crime e US$9.7 bilhões de
investimento nas prisões, e foi apresentada por Jack Brooks do Texas; e No Frills Prision Act, 1995,
introduzida por Dick Zimmer e tinha por objetivo banir das prisões federais qualquer tipo de “frescura”
(frills), consideradas televisões a cabo, projeção de filmes, músicas eletrônicas ou instrumentos
musicais, instruções ou qualquer tipo de treinamento em artes marciais, pontos de café ou de
aquecimento.
18
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encarnação viva e ameaçadora da insegurança social generalizada,
produzida pela erosão do trabalho assalariado estável e homogêneo
(WACQUANT, 2007, p. 29)
Essa insegurança social e mental mistura o medo do futuro, o
horror do declínio e da degradação sociais com a angústia de não ser
capaz de transmitir às novas gerações familiares seus propósitos e
valores, convivendo com uma competição cada vez mais acirrada por
posições cada vez mais incertas. Essa sensação difusa socialmente,
reforçada pela cultura do medo e da delinquência deflagrada pela
mídia oficial, atinge largas parcelas da classe trabalhadora, as quais
desprovidas de acúmulo cultural acabam por incorporar a bandeira
da defesa da necessidade crescente de segurança e punição aos
crimes.
O novo “governo da insegurança social” implementado nos
Estados Unidos, mas que é oferecido de modelo para outros países
avançados, apresenta uma tripla transformação do Estado:
amputando seu braço econômico, retraindo seu braço social e
expandindo seu punho penal (WACQUANT, 2007). A preocupação
de Wacquant com a reformatação do Estado está justamente em
mostrar que a expansão de seu “braço penal” encerra um projeto
político, ao servir como componente central da remontagem da
autoridade pública para o avanço e manutenção do neoliberalismo.
Como se dá essa reformatação do Estado? Partindo da
observação da experiência norte-americana, o primeiro movimento
narrado por Wacquant é o declínio do Estado caritativo, porém
considerando as características da formação sócio-histórica norteamericana e os determinantes fundamentais envolvidos na
conformação do Estado americano, o qual foi
fundado no mito do individualismo possessivo, na
descentralização e fragmentação do campo burocrático, na divisão
estanque entre social insurance e o maldito welfare (tutelados e
estigmatizados pela “ética do trabalho”) e residual (intervém caso
a caso nas categorias precárias consideradas como merecedoras).
(BATISTA, 2001, p. 9)
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O declínio do Estado caritativo é realizado por um conjunto de
passos articulados: primeiro, pelo corte de orçamentos para a área
social, associando um discurso ideológico de “guerra contra a
pobreza”, o que para Wacquant é na realidade uma guerra contra os
pobres, uma vez que estes são intimados a assumir a responsabilidade
por si mesmo, sob pena de medidas vexatórias com o sentido de
realocá-los em empregos precários. Um segundo passo são as
“barreiras administrativas e burocráticas” (WACQUANT, 2001,
p.24-25), para evitar ou diminuir a possibilidade de acesso dos
possíveis usuários aos programas e benefícios. Em seguida, outro
manejo, considerado mais brutal, é a eliminação da ajuda por meio
do fechamento de programas e projetos sociais sem substituição por
outro tipo de medida assistencial semelhante.
O avanço do Estado Penal, ao contrário do que se pode pensar
num primeiro momento, não é sinônimo de simples aumento de
encarceramento como substituição às políticas sociais em sua
totalidade, ou mesmo das medidas assistenciais.
A política estatal de criminalização da pobreza, ou a gestão da
miséria, se dá em duas modalidades organicamente articuladas e que
conformam o que Wacquant classifica como Estado penal. O
primeiro componente do Estado penal, menos visível, é a
transformação da Assistência (e dos próprios serviços sociais) em
instrumentos de controle e vigilância das chamadas “novas classes
perigosas”8, com o objetivo de fazer com que esse público aceite
qualquer emprego, não importa quais as condições de trabalho e a
remuneração que sejam oferecidas (comporiam medidas do workfare).
A isso se aliam formas assistenciais com condicionalidades à
assiduidade escolar das crianças e à formação técnica voltada para
um mercado de trabalho sem medidas reais de inserção em postos
de trabalho (medidas que comporiam o learnfare).
8
Wacquant menciona o termo “classes perigosas”, usado pelo discurso da insegurança social, para
considerar o público alvo das políticas punitivas que são aqueles que compõem o que ele considera como
subproletariado ou aqueles setores mais deserdados da classe operária, cujo perfil da população mais
atingida é os working poors, famílias com histórias de vida marcadas pela pobreza, precariedade
material, privação cultural, indigência social, violência física, em sua maioria negros. (WACQUANT,
2001, p. 33 e seguintes).
20
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O segundo componente do Estado penal é o encarceramento ou
a “contenção repressiva” dos pobres. Essa ação atinge
prioritariamente negros e jovens de bairros pobres e a justificativa
ideológica subjacente é a “guerra contra as drogas”. Wacquant
demonstra empiricamente a força desse segundo dispositivo como
tendência crescente do Estado e como traço característico do
neoliberalismo por meio de vários dados: pela comparação entre os
orçamentos para área social, que veio diminuindo em comparação ao
orçamento para políticas penais/criminais e para as políticas de
segurança, o qual apresentou aumento (WACQUANT, 2001, p. 2930); pela ampliação do número de prisões privadas como nicho
lucrativo (WACQUANT, 2001, p.31); pelas estatísticas de jovens
detidos e dos tipos de delitos, que mostram um aumento da detenção
de jovens por mais tempo por delitos menos graves comparados há
décadas passadas e pelo aumento absoluto da população carcerária
(WACQUANT, 2001, p.32).
Cabe, portanto, ressaltar que o Estado penal possui um duplo
movimento, mesmo quando se pensa a gestão penal para além dos
muros dos Estados Unidos. Em As Prisões da Miséria, Wacquant
assevera,
A gestão da precariedade não se resume contudo ao
aprisionamento, como se pode constatar no caso americano, onde
a promoção do encarceramento ao nível primum remedium para a
miséria não impediu um vigoroso aumento da vigilância “externa”
das famílias e bairros deserdados. Nos países da Europa de
tradições estatais fortes, católica ou social-democrata [...] a
regulamentação punitiva das parcelas pauperizadas do novo
proletariado pós-fordista efetua-se principalmente por intermédio
de dispositivos panópticos cada vez mais sofisticados e intrusivos,
diretamente integrados aos programas de proteção e assistência.
(WACQUANT, 2011, p.129, grifos do autor)
Ao assumir essa dupla regulação por parte do Estado penal
(assistencial e penal, ambas punitivas), Wacquant também avança ao
demonstrar que ocorrem mudanças não só na assistência, mas
também no papel e na função do sistema penal.
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Na assistência, para minimizar os “riscos” colocados pelas
populações das quais são responsáveis e torná-las compatíveis com
os dispositivos de seguranças e inserção no trabalho precário, os
serviços sociais ganham um teor de social-panoptismo
(WACQUANT, 2011, p.130), reafirmando a “ética do trabalho” e
estabelecendo uma demarcação categórica entre pobres merecedores
e pobres indolentes. Esse esquema de cortes e de reforma da
assistência no sentido de “vigiar e punir” é recebido facilmente
porque historicamente o welfare nos Estados Unidos é percebido pela
opinião pública como um conjunto de políticas que beneficiam
negros, porque aparece associado a uma concepção de assistência
relacionada à ociosidade e à dependência do Estado. Com isso,
assistência e raça estabeleceram historicamente uma relação
estereotipada, conduzindo a uma ideia de que o pobre do gueto é um
tipo de “parasita social” (WACQUANT, 2001).
Ao enquadrar os pobres em princípios que os definem como
“alguém fora da lei” e imputar isso como regra para famílias menos
favorecidas, criam condições de expropriação em que a pessoa que
perde e não acessa mais o benefício precisa e é obrigada a sobreviver
de qualquer forma (WACQUANT, 2001, p.44-45). Esse é o link
entre a dimensão assistencial e a punitividade do “braço penal” do
Estado para gestão da miséria no neoliberalismo.
Em relação à dimensão penal propriamente dita, Wacquant
mostra, contrariando discursos oficiais, que as taxas de
encarceramento não crescem na mesma proporção que as taxas de
criminalidade. Como, então, se justifica essa hipertrofia carcerária? O
autor demonstra que o recurso à reclusão sofre um deslocamento:
uma série de delitos e crimes que antes não incorriam em prisão
passam a ser enquadrados como tal; percebe-se a imputação de
maiores punições para pequenos delitos; o aumento da duração da
detenção e do volume de condenados; maior variedade de ações
punitivas e multiplicações de infrações que motivam encarceramento
fechado; a aplicação de legislação criminal adulta em menores de 16
anos, entre outras medidas que demonstram um claro
endurecimento da dimensão punitiva do Estado. (WACQUANT,
2001, p. 61 e seg.)
22
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Estado Penal e Neoliberalismo na Obra de Löic Wacquant
Como alerta Mike Davis (2008, p.208) ao mencionar o tratamento
reservado aos afro-americanos por parte do Estado, este se
caracteriza pelo “desemprego estrutural, superencarceramento com
base na raça, brutalidade policial, arrefecimento da ação afirmativa e
escolas decadentes”.
2 . Estado Penal, neoliberalismo e políticas sociais
Para Wacquant o entendimento das transformações em curso,
particularmente a partir dos anos 1990, não pode ser desatrelado da
centralidade da instituição penal, pois o neoliberalismo é pensado
como um “projeto político transnacional que visa refazer o nexo
entre mercado, estado e cidadania a partir de cima” (2012, p.31).
Assim, a fase persuasiva de adesão consentida foi substituída por
uma lógica do controle em larga escala, que faz “das prisões um
‘órgão central do Estado’, dando visibilidade a um laço estruturante
da ordem burguesa” (MENEGAT, 2012, p.207).
Para Batista (2012), a noção de Estado estruturada por Wacquant
nesse contexto neoliberal tem por base uma retomada da proposta
desenvolvida por Bourdieu no livro “A Miséria do Mundo”, obra
conjunta onde Wacquant é um dos autores colaboradores. Nesse
livro, o Estado não é pensado como um “conjunto monolítico e
coordenado, mas como um espaço fragmentado de forças que
disputam a definição e a distribuição de seus públicos” (BATISTA,
2012, p.310), o que Bourdieu denomina “campo burocrático”. É
justamente no âmbito dessa luta travada no interior desse “campo
burocrático” que Wacquant vai constituir sua tese do “Estado
Penal”, observando que essa luta se dá por meio de duas forças: “a
nobreza estatal direcionada à gestão do mercado”; e, aquilo que
classifica como a “mão feminina do Leviatã”, que se define como o
governo dos pobres ou gastos com as políticas sociais. (BATISTA,
2012, p.310).
Para Batista (2012), “a tese de Wacquant é de que o
neoliberalismo transformou o sentido da assistência na direção do
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tratamento penal da marginalidade urbana”, dirigindo um olhar
criminalizante aos pobres.
Em relação ao entendimento de Wacquant sobre o
neoliberalismo, o autor esclarece que a noção predominantemente
econômica – que enfatiza as políticas de ajuste favoráveis ao mercado
– é reducionista e incompleta, e busca elaborar uma noção mais
ampla que “identifique o mecanismo institucional e os limites
simbólicos através dos quais os princípios neoliberais estão sendo
atualizados”, ou o que ele denomina “especificação sociológica do
neoliberalismo” (WACQUANT, 2012, p. 31). Contudo, nessa
definição, a ênfase na disciplina seria uma dimensão insuficiente, pois
“o neoliberalismo está intimamente associado à difusão internacional
de políticas punitivas, tanto no domínio da assistência social quanto
no domínio criminal” (WACQUANT, 2012, p. 30)
Para Wacquant, a aparência do Estado no neoliberalismo é de um
Estado mínimo, de um suposto encolhimento do welfare state em
direção a um Estado ágil, gerencial, que faz investimentos em capital
humano e ativa habilidades individuais para o consumo e para o
trabalho. Contudo, em sua essência, o Estado neoliberal se revela
muito diferente, pois para liberar o capital das restrições de circulação
e os detentores de capital para as oportunidades de investimento,
necessita implantar um governo autoritário aos trabalhadores e ditar
seu comportamento, particularmente quando se tratam dos mais
precários. Assim, “o estado penal, insidioso, expansivo e caro não é
um desvio do neoliberalismo, mas um de seus ingredientes
constitutivos” (WACQUANT, 2012, p.33).
Para demonstrar isso, Wacquant aponta que o Estado penal
engendrou pelo menos quatro novas formas sobre o funcionamento
da sociedade punitiva que divergem da clássica visão prevista por
Foucault. Primeiro, afirma que embora as disciplinas tenham
realmente se diversificado e se expandido, não fizeram a prisão sair
de cena como instrumento de controle sociomoral. Ao contrário, “o
confinamento penal fez um surpreendente retorno e reafirmou-se
como uma das missões centrais do Leviatã exatamente quando
Foucault e seus seguidores estavam prevendo seu fim”
(WACQUANT, 2012, p. 21). O segundo ponto está no fato de que
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ao invés de adestramento, no sentido de moldar “corpos dóceis e
produtivos” tal como postulado por Foucault, “a prisão
contemporânea é direcionada para a neutralização brutal, uma
retribuição automática e a um simples armazenamento”
(WACQUANT, 2012, p. 22). Em terceiro, a ampliação da rede penal
sob o neoliberalismo foi seletiva e discriminatória em termos sociais,
territoriais e étnico-raciais, desviando-se da lógica prevista por
Foucault de que os dispositivos penais se espalhariam ou se diluiriam
por toda a sociedade. Wacquant afirma que a penalização é uma
“técnica distorcida que não se aplica por igual nos diferentes níveis
de classe, etnicidade e lugar e que opera para dividir populações e
diferenciar categorias de acordo com concepções estabelecidas de
valor moral” (WACQUANT, 2012, p. 22). Por fim, ao contrário do
que previra Foucault, não houve uma diluição da economia da
punição das vistas do público, mas “sua realocação institucional, sua
elaboração simbólica e sua proliferação social numa intensidade
muito acima de tudo que alguém podia prever quando Vigiar e Punir
foi publicado” (WACQUANT, 2012, p. 23), ou seja, a teatralização
da penalidade ganhou a mídia comercial naquilo que Wacquant
classifica como “pornografia da lei e da ordem”9.
De uma maneira mais ampla, Wacquant entende que a ascensão
da hegemonia neoliberal nos países centrais vem ocorrendo
concomitantemente ao que ele classifica como “onda punitiva”, cujo
principal agente promotor é o Estado (o “Estado Penal”). A
ideologia neoliberal vem ocultando as estratégias para tratar as
condições e condutas que as classes dominantes julgam ofensivas,
ameaçadoras ou mesmo indesejáveis. Dentre essas estratégias, a
penalização acaba por servir como “técnica para invisibilização dos
‘problemas’ sociais que o Estado [...] não pode ou não se preocupa
em tratar de forma mais profunda” (WACQUANT, 2007, p. 21).
9
A gestão da segurança é concebida e executada não apenas com a finalidade de contenção, mas também
para ser exibida e vista, examinada e espionada, com a prioridade absoluta de fazer dela um espetáculo
midiático. “Para tal, as palavras e ações anti-crime devem ser metodicamente colocadas em cena,
exageradas, dramatizadas e mesmo ritualizadas. Isso explica porque, a exemplo dos confusões carnais
pré-planejadas que povoam os filmes pornográficos, elas são extraordinariamente repetitivas,
mecânicas, uniformes e, portanto, eminentemente previsíveis” (WACQUANT, 2007, p.9-10)
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Ao lado da penalização funciona também como estratégia de
contenção dos indesejados, a medicalização (WACQUANT, 2007),
que configura um movimento de enquadramento de
comportamentos ao “império da normalidade” com a criação de
síndromes, transtornos, distúrbios e produção de novos
medicamentos no sentido de categorização dos sujeitos e
psiquiatrização da cultura, reforçando a ideia de que há uma saída
médica e cura farmacológica para tudo (LUCENA; SEIXAS, 2016).
Tais assertivas ajudam a promover uma determinada concepção
de sociedade e de vida em comum, onde o único caminho para
restauração da ordem e da segurança está na gestão punitiva e
carcerária dos “problemas sociais e mentais”, que resultam da
fragmentação das condições de trabalho e pela polarização dos
espaços urbanos. Essa complacência com o discurso de que não
dispomos de nenhuma outra alternativa para a contenção dos
problemas é, para Wacquant, um dos meios estratégicos centrais de
socialização da naturalização “onda punitiva” e de legitimação do
“Estado Penal”.
Nesse sentido, Menegat (2012) assevera que
Esta mudança estrutural de sentimentos auxilia o entendimento, se
aceitarmos a ampliação do seu raio explicativo para além da esfera
da cultura, de porque a “insegurança social” se tornou um modo
não apenas de se sentir que algo desmorona, sem, contudo, se saber
efetivamente o que, como também, um modo de perceber o uso
que deste sentimento é feito pelo campo burocrático, do qual retira
boa parte da legitimação para suas políticas. (MENEGAT, 2012,
p. 209)
Embora parta de um fundamento diferente, Wacquant percebe
que o “Estado Penal” compõe parte de uma estratégia das classes
dominantes que ganhou hegemonia quando as vitórias eleitorais da
socialdemocracia,
metamorfoseadas
em
Terceira
Via,
protagonizaram as mudanças mais profundas dos ajustes neoliberais
em direção a esse estado de exceção. Ou seja, a mesma
socialdemocracia que na Europa liderou a conformação dos estados
de bem-estar social, passou a fazer os ajustes regressivos para que a
26
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Estado Penal e Neoliberalismo na Obra de Löic Wacquant
os processos contemporâneos de valorização do valor se
mantenham.
Tais assertivas aparecem figuradas em algumas das tendências
recentes das políticas sociais contemporâneas, e embora as
referências de Wacquant sejam os países centrais, é possível fazer
uma correlação com processos que vem ocorrendo com a proteção
social nos países dependentes ou mesmo se pensamos no cenário
latino-americano.
O recrudescimento da ação estatal aparece tanto na ofensiva
militarizada – com a formação de tropas, investimento em segurança
privada e na “inteligência” da polícia, aumento do encarceramento
em massa de negros e segmentos mais pauperizados (BRITO, 2010)
–, como na subversão de valores sobre direitos humanos ou
cidadania, operacionalizando ações assistenciais de viés policialesco
(LIMA, 2013) – com investigação, mapeamento e categorização de
segmentos “pobres” da população, para averiguar o cumprimento de
condicionalidades, ameaças de supressão de benefícios, abordagens
autoritárias, paternalistas ou neo-higienistas, sob discursos que
garantem assegurar a proteção social.
Wacquant, de forma muito particular, conjuga naquilo que
classifica de “Estado Penal”, um modo neoliberal de governo das
populações empobrecidas. Um modo particular de gestão da pobreza
compatível e funcional à implementação do capitalismo
mundializado, que amplia as condições de exploração da força de
trabalho, por meio da desregulamentação das leis trabalhistas, da
destruição dos direitos sociais e da precarização das condições de
vida e de trabalho das maiorias trabalhadoras, apoiado na
implementação de programas de assistência de cunho disciplinador
e behaviorista, os quais funcionam para empurrar estes segmentos
populacionais para determinados territórios (periferias) e setores
onde o trabalho é desprotegido, desregulamentado, sempre beirando
a informalidade. Acompanhando essas ações assistenciais tem-se o
desenvolvimento de uma rede policial e penal, que reforça suas ações
justamente sobre esses territórios periféricos e sobre estas
populações, sempre com uma filosofia disciplinadora e, claramente,
seletiva.
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Considerações finais
Poulantzas já assinalava em sua obra “O Estado, o poder, o
socialismo”, que a lei, como meio de repressão e coerção, era
elemento constitutivo fundamental do Estado moderno. Para isso ele
dedicou um capítulo à análise da lei como “código da violência
pública organizada” (POULANTZAS, 2000). Ou seja, violência e
coerção são elementos constitutivos do Estado burguês que se
manifestam historicamente de diferentes formas.
Na atual conjuntura, é justamente buscando reprimir a gigantesca
massa de miseráveis criada pela reestruturação contemporânea do
capital, que o Estado fortalece ainda mais seu aparelho de coerção,
com o objetivo final de manutenção da ordem social. Este é o quadro
no qual se constitui a relação entre aparelho coercitivo estatal e
pobreza, sob a vigência do neoliberalismo.
A ideia fundamental do texto foi mostrar os fundamentos do
Estado penal – que comungam elementos de política social e de
instituições penais –, como ele compõe um conjunto categorial mais
amplo na obra de Wacquant e como contribui como chave analítica
importante para pensar o papel do Estado neoliberalismo. Contudo,
é importante ressaltar que em momento nenhum da obra de
Wacquant o Estado penal aparece como sinônimo exclusivo de puro
encarceramento, numa relação exclusiva de substitutibilidade das
políticas sociais pelo sistema prisional. O que aparece em várias
passagens é que o aparato penal é visto como um órgão essencial do
Estado na atual quadra histórica, porém, aliado a uma nova forma de
política social de viés assistencial que também é vista como
fundamental na lógica vigilante e controladora dos trabalhadores
precários.
Referências
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Estado Penal e Neoliberalismo na Obra de Löic Wacquant
Recebido em 20/11/2016 e
aceito em 25/11/2016.
Resumo: O texto tem por objetivo apontar as principais contribuições de Loïc Wacquant para
entender o Estado no neoliberalismo. O foco central está na conjugação que o autor faz entre as
políticas econômicas e sociais do projeto neoliberal com a reorganização da prisão e da assistência,
levando a uma reconfiguração do próprio Estado, que se converte em Estado penal.
Palavras-chave: Estado Penal, neoliberalismo, prisão, políticas sociais.
Title: Criminal State and neoliberalism: notes on the Loic Wacquant work
Abstract: The study aims to point out as major contributions from Loïc Wacquant to understand
the State under neoliberalism. The focus is in the conjunction between economic and social policies
of neoliberal project with the reorganization of the prison and assistance taking the reconfiguration
of the State, which is converted into a penal State.
Keywords: Criminal State, neoliberalism, imprisonment, social policies.
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