Lives musicais: performances em
rede de corpos em isolamento[1]
Musical live streamings: network performances of isolated bodies
TATIANA RODRIGUES LIMA
Instituição/Afiliação
Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia - UFRB
País Brasil
Doutora em Comunicação e Cultura
Contemporâneas pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e
professora adjunta da Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia
(UFRB). Lidera o grupo de pesquisa
Música e Mediações Culturais MMC. É curadora e organizadora
do Paisagem Sonora - Mostra
Internacional de Arte Eletrônica
do Recôncavo da Bahia. Possui
graduação em Comunicação pela
UFBA, mestrado em Comunicação
e Cultura Contemporâneas pela
UFBA e pós-doutorado no Instituto
de Etnomusicologia - Centro de
Estudos em Música e Dança pela
Universidade Nova de Lisboa
RESUMO
ABSTRACT
As agências dos corpos, dos espaços, das plataformas digitais
e da pandemia do Corona vírus
na poética das lives de música
brasileira realizadas entre 19 de
abril e 29 de junho de 2020 são
o objeto deste texto. Articula-se
o conteúdo observado com um
referencial dos estudos pós-estruturalistas europeus, das mediações comunicativas da cultura,
e com a Teoria Ator Rede (TAR).
Percebeu-se que as plataformas
de transmissão modulam a expressão nas lives e têm agências
significativas na poética e nas
interações entre integrantes do
público e entre a recepção e os
performers. Também se verificou
que os elementos advindos da estética das apresentações ao vivo
tradicionais foram reposicionados
de maneiras ora fluidas, ora controversas nas lives observadas.
The actions of bodies, spaces, digital platforms and the coronavirus
pandemic in the poetics of Brazilian music lives held between April
19 and June 29, 2020 are the object of this text.The content observed is articulated with a reference
of European post-structuralist studies, of the communicative mediations of the culture, and with the
Actor-network theory (ANT). We
realized that the broadcast platforms modulate the expression in
live streams and have significant
agencies in the poetics and in the
interactions between members of
the public and between the reception and the performers. We also
found that in the observed transmissions the elements arising from
the aesthetics of live traditional
performances were repositioned
occurring in away sometimes flowing and sometimes controversial.
Palavras-chave: Lives musicais;
Keywords: Musical
Música pop; Mediações.
live streamings;
Pop music; Mediations
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INTRODUÇÃO
A suspensão do funcionamento de espaços usualmente utilizados para apresentações
culturais e de entretenimento – bares e restaurantes, teatros, arenas, circos etc. – provocada
pela pandemia do Sars-CoV-2 afetou as linguagens artísticas de maneiras distintas. Embora o
impacto do distanciamento social no consumo da música pop tenha sido menor do que o sofrido
pelas artes cênicas – já que parte da fruição musical se dá através de gravações –, houve algumas
reconfigurações no campo da produção, circulação e recepção da música que merecem atenção.
As lives musicais brasileiras “contagiaram” o cotidiano de grande parte das pessoas em reclusão,
o que sugere indagar como e por que esse formato se afirmou. Entre as alternativas culturais e
de lazer encontradas pelo público confinado, há opções pré-produzidas como livros, filmes, séries,
álbuns, games etc. Isso sem mencionar que, para além do campo da arte e do entretenimento,
há transmissões ao vivo em streaming de treinamentos físicos, cursos, oficinas, debates etc.
Cabe também assinalar que a expansão do consumo da música pelas redes telemáticas ocorreu
apenas entre a população que possui hardwares e uma boa conexão de internet, excluindo pessoas
cuja posição socioeconômica impede o acesso aos produtos culturais aqui estudados. Conforme
aponta Janotti Jr. (2020, p. 14), “as articulações entre classe, faixa etária, gênero, língua e raça
operam recortes no consumo cultural, que por sua vez acabam criando poéticas que incorporam as
ambientações digitais ao modo como se escuta e consome conteúdos musicais”.
A transmissão da música de maneira sincrônica à sua execução ocorre desde os primórdios
do rádio e da televisão. Nos anos 1960, os festivais de música popular brasileira exibidos em
tempo real pelas emissoras de TV eram campeões de audiência. Depois, a transmissão de
grandes concertos, de festivais e de eventos com protagonismo musical, como o Carnaval de
Salvador, passou a fazer parte das grades de programação das TVs abertas e por assinatura.
Mas nunca se verificou tanto interesse pelas transmissões sincrônicas de performances musicais
quanto durante a fase mais aguda do distanciamento social em 2020, quando algumas lives
brasileiras no YouTube tiveram alcances superiores a 2,5 milhões de internautas conectados
simultaneamente[2].
O que propomos neste estudo é examinar algumas questões relacionadas às poéticas e às
reconfigurações comunicacionais das transmissões de música ao vivo, com base nas indagações
a seguir: Onde se dá a presença nas lives? Como as plataformas e o aparato de hardwares
e softwares implicados na realização das transmissões exercem mediações nas redes que ali
se estabelecem? De que forma o distanciamento corporal da recepção e sua presentificação
(comentários e outras interações) interferem nos sentidos e na poética das apresentações?
Foram acompanhadas as transmissões ao vivo protagonizadas por nomes da música
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brasileira mais diretamente ligados ao mainstream, como Roberto Carlos e Ivete Sangalo; artistas
posicionados em um expressivo nicho de mercado, como Alcione, Nando Reis, Teresa Cristina,
Marina Lima, Tom Zé e Letrux; e nomes da cena alternativa baiana, como o DJ Môpa e a cantora
Claudia Garcia[3]. A seleção das transmissões busca contemplar o que se chama aqui de música
pop feita no Brasil. O termo música popular contempla a música pop, porém seu escopo inclui
músicas de tradição oral que não fazem parte do nosso recorte. Para Roy Shuker,
a expressão ‘música pop’ desafia uma definição exata ou direta. Culturalmente,
toda música pop é uma mistura de tradições, estilos e influências musicais. É
também um produto econômico com um significado ideológico atribuído por
seu público. De certo modo, a música pop abrange todo estilo musical que
possua seguidores e incluiria, portanto, muitos gêneros e estilos (SHUKER,
1999, p.8-9).
O recorte aqui adotado notadamente dialoga com as definições de música pop e de música
popular massiva (CARDOSO FILHO, JANOTTI JR., 2006; JANOTTI JR., 2014, 2005), pois ambas se
referem às expressões musicais surgidas no século XX e caracterizadas pelo emprego de técnicas
das indústrias culturais tanto em sua produção quanto na sua circulação e consumo. Com alguma
frequência o conceito de música popular massiva tem encontrado interpretações distintas por
parte dos não especialistas, uma vez que “massivo” é lido como relativo ao consumo de massa.
Entende-se aqui, em conformidade com os autores supracitados, que qualquer expressão musical
perpassada pelos ambientes tecnológicos, independentemente do grau de popularidade, pode
ser considerada música popular massiva ou música pop.
As performances observadas foram veiculadas em três plataformas distintas (YouTube,
Instagram e Twitch) e, durante as apresentações, fez-se anotações sobre os seguintes elementos:
1) aspectos técnicos da captação, das plataformas utilizadas e dos sistemas de conexão; 2) figurino,
cenário, arranjo, entre outros elementos estéticos; 3) mediações entre produção e recepção em
comentários e outras formas de interação (emojis, botões de like etc.). As ocorrências mais
relevantes serão comentadas na análise aqui apresentada.
Para entender os corpos e espaços (topoi) configurados nas lives, mobiliza-se três ensaios do
filósofo Michel Foucault (2009; 2013) – Outros espaços, O corpo utópico e As heterotopias[4]. Em
seguida adota-se o método proposto por Bruno Latour (2012) na Teoria Ator Rede: descrever os
objetos envolvidos e rastrear suas conexões, atentando para agências humanas e não humanas.
Discute-se as mediações desses atores a partir das ideias de Jesús Martín-Barbero (2009b, p.153),
para quem as mediações comunicativas da cultura têm “relação com as dimensões simbólicas
da construção do coletivo” e possibilitam pensar a cultura não apenas a partir de seus produtos,
mas também da sociedade e da política.
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O CORPO, O ESPAÇO FÍSICO E AS TELAS
Quando é possível a realização de um show presencial, usualmente alguns integrantes da
plateia captam imagens e as transmitem nas redes sociais, usando funcionalidades chamadas
lives ou “ao vivo”. Também é comum que uma equipe de TV (ou até os próprios promotores de
um espetáculo) capte e transmita ao vivo os eventos musicais. O que distingue essas ocorrências
das transmissões aqui estudadas é o fato de que, em vez de haver uma performance registrada e
veiculada concomitantemente ao seu registro, há a realização de uma performance sem a presença
física da plateia no local da captação e com a finalidade específica da transmissão em rede.
Como ressalta Janotti Jr. (2020, p. 25), “o corpo é um aparato essencial a expressões de
escuta musical, assim como os diversos artefatos não humanos como caixas, fones de ouvidos,
aplicativos, plataformas, sites e smartphones” e, para iniciar a discussão, cabe refletir sobre os
corpos e a configuração da ambiência (ou dos espaços) nas lives. Como o público se representa e
onde ocorrem as agências da recepção durante as performances mediadas pelo aparato digital?
Em Outros espaços, Michel Foucault (2009) aponta que a descoberta feita por Galileu de
que a Terra não era o centro do Sistema Solar dessacralizou teoricamente o espaço, em que pese
na prática haver ainda uma sacralização, na medida em que ocorrem distinções entre o espaço
público e espaço privado, espaço do trabalho e espaço do lazer. “Vivemos no interior de um
conjunto de relações que definem posicionamentos irredutíveis uns aos outros e absolutamente
impossíveis de ser sobrepostos”, afirma (FOUCAULT, 2009, p. 414). Mas o filósofo percebeu e
discutiu a existência de espaços que possibilitam a sobreposição de atividades e de temporalidades,
dividindo esses topoi em dois tipos: as utopias e as heterotopias.
As utopias são, segundo Foucault (2009, p. 414), “os posicionamentos sem lugar real”. Em
Corpo utópico, o autor inicia a argumentação considerando que o corpo é o contrário da utopia,
na medida em que constitui uma imanência à qual estamos presos durante a vida. Contudo o
filósofo considera que por isso mesmo o corpo impele à utopia. “Meu corpo é o lugar sem recurso
ao qual estou condenado. Penso, afinal, que é contra ele e como que para apagá-lo que fizemos
nascer todas as utopias” (FOUCAULT, 2013, p. 8). Mais adiante, diz que essa “gaiola” é também
espaço de projeções utópicas: “a máscara, a tatuagem, a pintura são operações pelas quais o
corpo é arrancado de seu espaço próprio e projetado em um espaço outro” (FOUCAULT, 2013, p.
12). A projeção dos sujeitos para além do espaço material fomenta então um corpo utópico, cuja
potência extrapola os limites físicos.
A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde eu teria um
corpo sem corpo, um corpo que seria belo, límpido, transparente, luminoso,
veloz, colossal na sua potência, infinito na sua duração, solto, invisível, protegido,
sempre transfigurado; pode bem ser que a utopia primeira, a mais inextirpável no
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coração dos homens, consista precisamente na utopia de um corpo incorporal
(FOUCAULT, 2013, p. 8).
Em texto sobre esses conceitos foucaultianos, Philippe Sabot (2012) considera que o corpo
utópico seria uma projeção do corpo físico através de práticas culturais: “é essa virtualidade
utópica que o corpo atualiza em certas experiências ou certas práticas culturais (máscara,
tatuagem, maquiagem, possessão) que confunde a fronteira do sagrado e do profano, do eu e
do outro, do interior e do exterior e que literalmente coloca o corpo fora de si, o torna outro”
(SABOT, 2012, p. 15, tradução nossa).
Fazemo-nos representar nos ambientes digitais através da projeção de um corpo idealizado
a partir de nossas preferências, um corpo cuja imagem escolhemos. A foto e o nome de perfil
utilizados nas plataformas nas quais ocorrem as lives são elementos gráficos que se aproximam
do que Foucault chama de corpos utópicos. As imagens e os textos de perfil podem ser lidos
como corpos incorporais, como signos que: a) muitas vezes guardam semelhanças visuais diretas
com o referente (fotos, desenhos ou outras representações icônicas da aparência do utente); b)
algumas vezes trazem elementos indiciais que remetem ao autor do perfil (animais de estimação,
objetos, elementos da natureza, grafismos abstratos); c) podem empregar elementos simbólicos
(bandeiras, escudos, logomarcas etc.). Os signos linguísticos do nome de perfil (que geralmente
difere do nome civil) também contribuem na projeção utópica digital. Longe de querer esgotar
essa discussão, trazemos as ideias de Foucault como uma hipótese para entender os corpos
velozes e transfigurados que constituem a recepção ativa durante as lives musicais. Também
para perguntar: onde estão esses corpos? Estão na superfície das telas onde todos se reúnem
virtualmente? Estão no ambiente físico de onde as pessoas veem as telas?
O lugar ocupado por boa parte da população mundial durante o distanciamento social
em 2020 foi o seu espaço da moradia que, “dessacralizado”, tornou-se home-office, área de
lazer, sala de aula para crianças e/ou adultos, entre outros posicionamentos. As residências
se transformaram em topoi que, segundo Foucault, são heterotopias: espaços localizáveis que
abrigam multiplicidades. Em “Outros espaços”, o filósofo afirma que heterotopias são “espécies
de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros
posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo
representados, contestados e invertidos” (FOUCAULT, 2009, p. 415).
Os jardins foram os primeiros espaços heterotópicos, segundo Foucault. Ele aponta que são
heterotopias os museus e bibliotecas, por reunir obras realizadas em tempos distintos; espaços
de atividades sazonais, como feiras e colônias de férias; teatros e salas de cinema, porque
abrigam variados cenários montados ou projetados. Sabot (2012, p. 9, tradução nossa) compara:
“utopias formam ou designam lugares sem lugar real, heterotopias formam ou designam lugares
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reais funcionando como contra-lugares”.
Assim como no cinema, onde o aparato de projeção e o conteúdo projetado possibilitam
heterotopias espaço-temporais, a ambiência composta pela tela dos aparelhos através dos quais
vemos as lives e os locais onde estamos fisicamente a olhá-las geram heterotopias espaciais.
Há, diferentemente do que ocorre no cinema, uma sincronia temporal na performance musical
e teatral transmitidas ao vivo pelas plataformas digitais. Ocorre que, no teatro e no cinema, os
corpos da audiência estão presos à materialidade do aqui e agora, partilhando os mesmos aromas,
sujeitos ao calor ou ao frio e ao barulho do ambiente e, diferentemente disso, as presenças nas
lives ocorrem de maneira utópica. Seguindo a hipótese de que há corpos utópicos nas lives, esses
corpos constituem uma plateia ausente fisicamente, cuja materialidade, porém, é levada em
conta na poética de quem transmite e que tem agência na performance através do acionamento
dos recursos de interação (funcionalidades) das plataformas de transmissão.
Isso posto, retoma-se a indagação sobre onde se dá a agência dos corpos utópicos da
audiência: ela ocorre no espaço heterotópico que constitui o cenário de onde são transmitidas as
lives ou na interface gráfica/visual das plataformas? De uma perspectiva foucaultiana, a resposta
pode incluir as duas alternativas. Foucault descreve um lugar em que estão concentrados tanto a
utopia quanto a heterotopia: o espelho. E esse objeto se apresenta como uma metáfora cabível
para pensar o espaço da performance nas lives:
O espelho, afinal, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho, eu me
vejo lá onde não estou, em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da
superfície, eu estou lá longe, lá onde não estou, uma espécie de sombra que me dá
a mim mesmo minha própria visibilidade, que me permite me olhar lá onde estou
ausente: utopia do espelho. Mas é igualmente uma heterotopia, na medida em que
o espelho existe realmente, e que tem, no lugar que ocupo, uma espécie de efeito
retroativo; é a partir do espelho que me descubro ausente no lugar em que estou
porque eu me vejo lá longe (FOUCAULT, 2009, p. 415, grifo nosso).
Vale observar que boa parte das transmissões de lives ocorre com câmeras no modo selfie
e, ainda, que o público também vê um reflexo de si (um corpo utópico) ao interagir utilizando
funcionalidades das plataformas. Em suas transmissões diárias no Instagram, a sambista Teresa
Cristina começou inclusive a usar a tela literalmente como espelho para retocar o batom. As
telas comportam e refletem no mesmo plano bidimensional tanto os corpos do performer (o real
e/ou transfigurado pelo uso de filtros, maquiagem etc.) quanto os corpos utópicos do público, que
se tornam visíveis pelas ações no campo de comentários.
Quando se viu trespassada pelo espelho das telas, Teresa Cristina notou que, ao
contrário do que acontecia nos shows ao vivo tradicionais, nas lives artesanais
não havia a ilusão do palco italiano: ‘Vocês podem até achar graça, mas eu canto
olhando para mim’. (...) Talvez essa seja uma das chaves para se imaginar por
que a temática da negritude tornou-se uma das narrativas modulares das lives de
Teresa Cristina no Instagram ( JANOTTI JR.; QUEIROZ, 2020, p. 11).
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O espaço que se materializa na live é uma heterotopia por refletir – além do ambiente onde
está o performer – os cenários construídos nas canções, conforme o tema das letras, as sonoridades
e a ambiência cultural a eles relacionados. As canções de umbanda, o rock dos anos 1980 ou os
sambas de quadra – que foram temas de lives de Teresa Cristina, por exemplo – sugerem espaços
outros e interagem com o cenário doméstico onde ocorre a transmissão. As telas e o ambiente
concreto no qual cada um estava confinado em distanciamento social compõem também um
espaço utópico, um lugar indefinido onde os corpos se encontram. Nesses espaços, autores de
lives dividem a mesma tela com artistas convidados que se encontram distantes fisicamente
partilhando uma sincronia e com os corpos-signos da plateia. Os músicos frequentemente pedem
que o público deixe comentários para ter um feedbak sobre a qualidade técnica da transmissão e
agir com relação ao microfone e aos demais hardwares. Cantores convocam a recepção a sair do
seu ambiente heterotópico e ingressar em um outro (e um mesmo) espaço utópico quando pedem
para que o público cante “junto” ou faça outro tipo de participação corporal (dançar, bater palmas
etc.) que não se refletirá no espelho audiovisual onde todos se “encontram”. A recepção aciona
espontaneamente os comentários de texto para simular um “cantar junto” digitando versos da
estrofe ou do refrão da canção que está sendo executada, mesmo quando não é estimulada pelo
performer. Nas telas-espelho, utopias-heterotópicas, os corpos dos performers e da recepção
são corpos sem órgãos, no sentido em que formulam Deleuze e Guattari (2000): são corpos em
rede. Os signos-plateia interagem, se reconhecem, se cumprimentam, dialogam na superfície
utópico-heterotópica das respectivas telas, em socialidades e ritualidades que se aproximam e se
distinguem daquelas que ocorrem em uma plateia presencial. Teresa Cristina chegou a criar um
termo para fazer piada com os flertes que ocorrem entre integrantes do público de suas lives no
Instagram: “Cristinder”, uma referência ao aplicativo de encontros Tinder.
As interações entre os performers, seu público e a ambiência onde eles se encontram
durante as lives musicais foram discutidas até aqui. Incluímos a seguir outros agentes dessas
performances a partir da Teoria Ator-Rede (TAR).
VÍRUS, PROVEDORES E PLATAFORMAS
Para Bruno Latour (2012, p. 108, grifo do autor), “qualquer coisa que modifique uma situação
fazendo diferença é um ator – ou, caso ainda não tenha figuração, um actante”. Na perspectiva
da Teoria Ator-Rede (TAR), quando as coisas intermediam processos dentro do esperado, sua
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agência é pouco “visível”; mas quando funcionam de forma alterada as ações das coisas ganham
visibilidade. É como se alguns fatos rompessem caixas-pretas que, assim como os objetos que
gravam todos os comandos e comunicações de uma aeronave, apenas são abertas quando algo
inesperado ocorre. Os atores não humanos ficam ora latentes, participando de complexas relações
invisibilizadas pelo efeito da caixa-preta, ora mais perceptíveis (se provocam controvérsias),
porém integram sempre a composição das redes sociotécnicas. Isso porque, conforme a TAR
(LATOUR, 2012, p. 109), “além de ‘determinar’ e servir de ‘pano de fundo’ para a ação humana, as
coisas precisam autorizar, permitir, conceder, estimular, ensejar, sugerir, influenciar, interromper,
possibilitar, proibir etc.”. Quais seriam os agentes relacionados a esses verbos e às lives?
Um influente ator em vários aspectos da vida mundial a partir do ano de 2020 e para a
convergência de interesses e audiências nas lives musicais é a própria pandemia do Sars-CoV-2,
que restringiu o ir e vir das pessoas nas cidades e gerou um aumento no consumo tanto de
produtos culturais transmitidos via streaming quanto de arquivos digitais, entre as camadas da
população com condições de acesso às redes telemáticas. A agência do Coronavírus, vale pontuar,
intensificou as desigualdades, uma vez que atingiu a população de baixa renda e os trabalhadores
do mercado informal de maneira mais aguda em comparação à condição dos assalariados que
conseguiram se manter empregados e dos integrantes das classes altas. A parcela da população
mundial que logrou manter-se conectada adotou práticas de consumo cultural digital que não
faziam parte de seus hábitos antes da pandemia, ampliando a audiência das lives. Note-se que
serviços de streamings de audiovisuais em tempo real acessíveis aos usuários comuns surgiram
nas plataformas Twitcam, Ustream e Livestream, em 2007. O YouTube lançou uma funcionalidade
de transmissão ao vivo em 2008. O Instagram possibilita a realização de transmissões ao
vivo desde 2016 e o Facebook tem a funcionalidade desde 2017. Esses recursos vinham sendo
utilizados, mas sem o impacto e a repercussão comunicacional que tiveram durante a pandemia.
Também a ação do serviço de conexão nas redes telemáticas e sua interferência na fruição
e na estética das lives se tornaram mais notáveis no primeiro semestre de 2020. Era comum
ouvir sons entrecortados, ver imagens borradas ou pausadas, ouvir cantos e falas sem sincronia
com as imagens, tudo isso devido às falhas ou às limitações técnicas dos provedores das
redes[5]. Observou-se, quando ocorriam interrupções na conexão, que não havia uma diminuição
significativa no número de usuários conectados e que o público inclusive registrava nos chats
comentários sobre a imagem estar “congelada” ou sobre o áudio estar “falhando”, para averiguar
se o problema era do seu provedor ou na rede de quem transmitia. Inferiu-se que as quedas no
sinal suscitam reações com impacto na fruição, mas na maioria dos casos se manteve o interesse
no que estava sendo transmitido, uma vez que não houve alteração importante no número de
pessoas assistindo durante esses episódios. São situações que expandem o padrão do que se
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tolera ou se considera esteticamente aceitável.
Somando-se ao vírus e ao aparato de conexão telemática, outro ator marcante para as
poéticas lives são as próprias plataformas de transmissão. Tais mediações se relacionam, por
exemplo, à monetização das performances (mediante patrocínios e obtenção de dados dos
usuários), à remuneração dos performers, aos pagamentos a autores das composições e a todo o
aparato político-institucional envolvido. As lives de DJs, mesmo os mais próximos do underground,
foram o alvo preferencial dos sistemas de vigilância das plataformas[6]. O DJ Môpa (Marcos
Sandes), por exemplo, teve lives transmitidas a partir de seu perfil no Instagram interrompidas
por utilizar fonogramas em seus sets. Ele parou de fazer transmissões na rede social, na qual
tem 1.065 seguidores[7], e migrou para o site Twitch, bastante utilizado para a interação em
tempo sincrônico entre gamers e outros usuários. Embora ainda estivesse conquistando espaço
na plataforma, em que seu “canal” possui 154 seguidores, conforme a última consulta[8], o DJ
não teve mais problemas de interrupção das transmissões, porque o Twitch apenas silenciava
posteriormente alguns trechos do arquivo em vídeo gerado a partir do streaming quando havia
implicações relacionadas ao copyright.
Já a cantora Claudia Garcia, que tem 1.913 seguidores no Instagram[9], realizou lives
interpretando canções de autores consagrados da MPB no mesmo período e não teve as
transmissões “derrubadas”. Com base em entrevistas com Sandes e Garcia infere-se que (a) o
foco dos sistemas de vigilância das plataformas independe do volume de seguidores, uma vez
que comparamos ocorrências relacionadas a dois artistas do underground que executavam no
Instagram composições de autoria de terceiros, e que (b) o alvo da vigilância é o fonograma e não
o direito dos autores, visto que a cantora interpretou obras de compositores como João Bosco,
Aldir Blanc, Chico Buarque, entre outros, e suas lives não sofreram interrupções, enquanto o
DJ, que utilizava gravações nas lives do Instagram, precisou mudar de plataforma. Isso indica
políticas diferentes com relação aos interesses do capital empresarial (as gravadoras e suas
editoras) e ao Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais (Ecad), órgão brasileiro
responsável por recolher e repassar às associações os direitos de pessoas físicas: autores de
composições, arranjos e performances, que merecem investigações posteriores.
Traçamos na próxima seção um breve comparativo entre duas plataformas bastante usadas
nas lives de música brasileira durante o período observado, o Instagram e o Youtube, a fim de
discutir mais detidamente situações específicas.
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INSTAGRAM E YOUTUBE: MEDIAÇÕES E POÉTICAS
A funcionalidade de lives do Instagram impõe, de pronto, enquadramentos verticais, uma
agência determinante na estética dessas transmissões. A imagem tem interferências gráficas na
parte superior da tela (identificação do perfil de quem transmite e do número pessoas acompanhando)
e enseja interferências gráficas dos usuários na lateral direita (corações). Na parte inferior da tela,
os comentários e os botões relacionados a eles podem ser ativados ou não pelo autor da live (que
pode deixar um comentário fixado também). Embora seja possível assistir às lives pelo computador
pessoal, tablet ou notebook, o Instagram privilegia o uso de aparelhos celulares ou tablets para
a transmissão. Isso confere à poética da maioria das lives um caráter de produção informal, feita
com uma só câmera e sem edição. O enquadramento vertical e o uso do microfone do celular ou
dos headphones com fios desfavorecem planos abertos e quase impõem planos próximos. Para
obter planos do corpo inteiro de um ou mais artistas sem prejudicar a captação do som, é preciso
amplificar a voz e os instrumentos. Nas lives do Instagram observadas, registrou-se variações que
vão dos planos médios (pouco comuns, mas que ocorreram nas lives de Letrux e Marina Lima, que
foram amplificadas) aos closes (os planos fechados no rosto) que foram muito mais frequentes e
ativam sentidos de proximidade ou intimidade.
Percebeu-se que a informalidade e o amadorismo que fazem parte das tecnicidades agenciadas
em lives no Instagram, resultam em mediações que apontam para o “rearranjo do sentido do
discurso e da praxe política, para o novo estatuto da cultura e para os caminhos da estética”
(MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 236). Um manancial de ocorrências nesse sentido foram as lives
diárias de Teresa Cristina, cujo alcance oscilava entre dois mil e 14 mil internautas no período
observado. Embora tenha passado a fazer transmissões com produção mais profissionalizada no
YouTube[10], a sambista destacou-se por ter experimentado e improvisado a partir das tecnicidades
do Instagram, com as quais foi se familiarizando ao longo do tempo.
Teresa Cristina faz da tela um espaço utópico-heterotópico, uma ambiência que é um misto de
mesa de boteco onde ocorre uma conversa íntima e informal entre amigos – ela inclusive se dirige
à audiência e responde o que as pessoas escrevem no chat –, palco de apresentação em barzinho
com direito a canjas dos convidados, programa de entrevista em que a cantora e compositora faz
as vezes de âncora e entrevistadora, diário eletrônico de uma artista na pandemia, palanque para
lideranças ligadas às causas das minorias e aos partidos de esquerda e é possível que alguma
outra descrição escape a este texto pelo fato de que a artista segue experimentando. Há uma
praxe política na própria forma como Teresa Cristina roteiriza suas lives no Instagram. A cantora
frequentemente explicita sua opção por convidar primeiro mulheres ou pessoas negras. Dá espaço
para pessoas que ela nunca viu, mas que mandaram mensagens tratando de temas que considera
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relevantes, como poetas negras, indígenas, militantes LGBTQI+, pessoas envolvidas em ações
humanitárias. Ela mesma se posiciona francamente como de esquerda e tece críticas políticas
durante as transmissões.
Se por um lado o canto à capela de Teresa flexibiliza o padrão de consumo da canção,
configurando uma estética do despojamento e da simplicidade, por outro lado as falas da artista
fornecem um contraponto pela complexidade das discussões, por trazerem muitas informações
sobre as músicas e seus autores, e por incluírem outros aspectos da cultura e da política. Ocorre,
portanto, um rearranjo do discurso nessa plataforma.
No Mapa das Mutações, Martin-Barbero (2009b, p. 153) ressalta a cada vez mais intensa
hibridação de meios e linguagens, tendo em vista que “os gêneros estão sendo reinventados à luz
da interface da televisão com a internet” (MARTIN-BARBERO, 2009b, p. 154). Verificamos durante
a observação das lives hibridações que corroboram para a observação do autor de que “então
estamos ante formas mestiças que começam a ser produzidas, formas incoerentes porque rompem
a norma atuando transversalmente em todos os meios” (MARTIN-BARBERO, 2009b, p. 154).
O YouTube adota um padrão de tela horizontal mais próximo ao dos aparelhos de TV. O
usuário registrado tem páginas chamadas de canal – e não de perfil. Esses são apenas alguns dos
aspectos que aproximam a plataforma das lógicas de produção da televisão. Embora disponibilize
funcionalidades de redes sociais (BURGES; GREEN, 2009), o YouTube inclui também funcionalidades
que têm correspondências mais diretas com recursos técnicos encontrados na TV convencional.
A imagem pode ter edição simultânea à transmissão, com o emprego de hardwares ou softwares
externos à plataforma, o que permite o uso de mais de uma câmera. Encontra-se, então, a
“mestiçagem” (MARTIN-BARBERO, 2009a; 2009b) entre pelo menos dois aspectos: o modelo de
comunicação audiovisual anterior à digitalização e as características inerentes à plataforma e ao
contexto de conectividade digital.
Desde a aquisição do YouTube pelo Google, as aproximações entre a plataforma e a TV se
intensificaram. “Em finais de 2011, o Google anunciou o casamento do YouTube com seu antigo
inimigo, a televisão, e mudou de maneira radical a interface do site” (DIJCK, 2016, p. 118, tradução
nossa). Na live de Nando Reis, por exemplo, houve o uso de duas câmeras e o efeito de fusão
foi bastante empregado na edição. As câmeras realizavam movimentos (pequenos travellings e
panorâmicas) pelo cenário; a edição alternava planos médios, mostrando o artista em seu ambiente,
com closes no artista cantando e planos de detalhe da mão dedilhando o violão em momentos
instrumentais das canções, em franco diálogo com a sintaxe televisiva. Mais de 482 mil pessoas
acompanharam a transmissão, que ocorreu no ambiente de uma sala de música com discos de vinil
e aparelhos de escuta, plantas e uma lareira. A estética seguiu uma gramática comum aos musicais
exibidos pela TV em canais por assinatura e abertos. As lives de Roberto Carlos (com cerca de 568
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mil espectadores) e de Alcione (média de 150 mil espectadores) também contaram com duas
câmeras e as edições privilegiaram o chamado “corte seco”, bastante comum na linguagem da
TV, confirmando a aproximação.
As tecnicidades e audiências no YouTube se refletem ainda na forma de monetização. A
plataforma foi empregada para as chamadas lives “patrocinadas”, nas quais as empresas fazem
publicidade de sua marca ou de produtos durante a transmissão. Isso se dá em parte porque a
inserção de propagandas e de outros conteúdos de texto e gráficos no frame da imagem pode
ser feita pelo usuário do canal, que tem controle sobre o que é exibido no modo de tela cheia.
Comentários, número de views da transmissão, likes e todas as outras informações geradas
pelo YouTube e pela audiência aparecem no entorno da tela de transmissão, diferentemente do
Instagram, em que tais elementos aparecem no interior da imagem principal.
O YouTube é bastante utilizado em produções que envolvem a exibição parcial (ou completa)
do mesmo conteúdo em canais de TV abertos ou por assinatura. Lá a imagem frequentemente
é monitorada por quem edita a performance e não por quem atua. Isso reduz o potencial das
características que Foucault atribui ao espaço do espelho. A tela no YouTube é sem dúvida um espaço
heterotópico, um misto de palco e estúdio ou de palco e espaço doméstico, a depender da locação
da transmissão. Os usuários logados (corpos utópicos) interferem na produção de sentidos apenas
se o espectador e/ou o performer acompanharem os comentários da barra lateral. Por outro lado,
atores não humanos que já faziam parte da estética da música ao vivo ou gravada em formato
audiovisual foram mais vistos no YouTube do que no Instagram. Figurino, cenário, luz, equipamentos
de sonorização, instrumentos e outros elementos que constituem as visualidades da música pop
tiveram reposicionamentos distintos, a depender da plataforma. Acompanhando as lives do Youtube,
percebeu-se que artistas alternativos ou de médio porte conseguiram, no período observado, articular
melhor as necessárias reconfigurações das visualidades em seus roteiros, justamente por estarem
mais acostumados a lidar com formatos concisos em performances intimistas.
Após a polêmica em torno das lives de músicos do sertanejo e de outros gêneros do
mainstream (pela exposição dos profissionais da técnica aos riscos de contaminação nas produções
rebuscadas, pelo consumo de bebidas etc.), a também mainstream Ivete Sangalo quis comunicar
responsabilidade, compondo um cenário doméstico em sua live transmitida parcialmente pela Globo
e pelo Multishow e integralmente pelo Youtube, para a qual atraiu mais de 231 mil internautas.
Simone Pereira de Sá (2020) analisou a live de Ivete, considerando a TAR, e destacou um agente
que foi objeto de repercussão da performance da cantora nas redes sociais: o pijama rosa de
bolinhas. Para Sá, ao se revelar um figurino desconfortável, o traje abriu a caixa-preta. Do ponto
de vista da comunicação, a controvérsia gerada pelo pijama é positiva, uma vez que o figurino foi
assunto para postagens, tuítes e outros desdobramentos midiáticos da performance[11].
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A música pop do Brasil obteve projeção no contexto de reconfiguração comunicacional da
pandemia, tendo em vista os recordes mundiais de audiências das lives brasileiras. Observando
um recorte desse universo, foi possível pensar os corpos e cenários das lives a partir das
definições foucaultianas de espaços utópicos, heterotópicos, de sua conjunção no espelho e
discutir como o reflexo dos corpos nas lives musicais influencia na poética e na política desse tipo
de performance. Pode-se inferir, inclusive, que a ideia de corpos utópicos merece ser discutida
em estudos posteriores para pensar a representação dos usuários de redes sociais para além das
lives, ampliando o debate e de forma a pôr em diálogo concepções outras de corpo, de espaço,
de presença e de performance.
Verificou-se que nas lives estudadas a “tecnicidade está no mesmo nível de identidade,
coletividade” (MARTÍN-BARBERO 2009a, p.18), como proposto no Mapa das Mutações. Também
que a TAR é uma chave para acessar as tecnicidades e as mediações da institucionalidade
exercidas pelas plataformas.
Já no que diz respeito à relação entre as tecnicidades das plataformas e a poética,
percebeu-se, a partir das lives de Teresa Cristina, que o Instagram ensejou maior abertura para
experimentações, em comparação ao Youtube, onde a sambista também realizou performances.
Espelhada na tela, olhando para si e lendo mensagens do público no Instagram, Teresa Cristina
voltou-se para temas relativos à sua condição de mulher negra e tensionou formatos e linguagens,
embora as canções interpretadas por ela sigam um padrão convencional.
O Youtube ensejou algumas lives geradoras de controvérsias que sinalizaram para um
despreparo do segmento mainstream da música pop ao lidar com produções de menor porte e
com a necessidade do improviso, embora isso não signifique uma redução de público e por vezes
até amplie a repercussão das performances. Espelhar o caseiro e incorporar a circunstância
atípica no roteiro da performance foi uma solução adotada por alguns artistas, enquanto outros
tentaram encenar as superproduções dos palcos nas lives.
Notadamente no Youtube, as controvérsias geradas pelo reposicionamento de agentes não
humanos advindos das apresentações convencionais e da TV (cenários, figurinos e equipamentos)
têm interesse do ponto de vista comunicacional na medida em que propiciam a expansão das
performances para além do streaming desdobrando-se em redes sociais como o Twitter, o
Facebook, entre outras. Para além do juízo de valor quanto às opções estéticas (se são acertadas
ou equivocadas), é possível entender os atores não humanos como geradores de fluxos outros –
comentários e debates entre ouvintes, memes, paródias etc. – que convidam a estudos futuros.
De um ponto de vista conjuntural, cabe também examiná-los com atenção para a exclusão,
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já que pandemia (o ator vírus) acirrou as desigualdades econômicas e consequentemente
agudizou a distinção entre quem possui conexões, hardwares e softwares para acompanhar as
transmissões e os corpos que não se fizeram representar utopicamente nas telas-espelhos e, ao
contrário, enfrentaram configurações distópicas que não estão no escopo deste artigo, mas que
requerem debate.
Não se pode perder de vista que o interesse pelas lives foi influenciado substancialmente
pelas agências do isolamento social. A retomada de atividades presenciais resultará em redução
nas audiências das lives, mas o impacto que esse formato cultural obteve no atual contexto
agrega novos elementos e hibridações que podem vir a reverberar na poética dos espetáculos,
dos videoclipes, dos álbuns visuais, entre outros formatos da cultura musical pós-pandemia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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transformou a mídia e a sociedade. Tradução Ricardo Giassetti. São Paulo: Aleph, 2009.
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underground: trajetórias e caminhos da música na cultura midiática. In: FREIRE FILHO, João; JANOTTI JR,
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Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34, 2000. v. 1.
DIJCK, José van. La cultura de la conectividad: Una historia crítica de las redes sociales. Tradução Hugo Salas. Buenos
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música e cinema. Tradução Inês Autran Dourado Barbosa. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 411-422.
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Acesso em: 1 set. 2020.
SHUKER, Roy. Vocabulário de música pop. Trad. Carlos Szlak. São Paulo: Hedra, 1999.
[1] NUma versão preliminar do estudo foi apresentada no 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
[2] Até a dada de finalização deste texto, os cinco maiores alcances de audiências no YouTube eram: 1 – Marília Mendonça, 8
de abril 2019, 3,31 milhões; 2 – Jorge & Mateus, 4 de abril 2019, 3,24 milhões; 3 – Andrea Bocelli (Itália), 12 de abril 2019,
2,86 milhões; 4 – Gusttavo Lima, 11 de abril 2019, 2,77 milhões; 5 – Sandy & Júnior, 21 de abril 2019, 2,55 milhões. Fonte:
Correio Brasiliense. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2020/06/06/
interna_diversao_arte,86 1694/brasil-lidera-o-ranking-mundial-de-lives-no-youtube.shtml. Acesso em: 21 jul. 2020.
[3] Datas das lives que constituem o corpus deste trabalho: Alcione, 21 de abril de 2020; Roberto Carlos, 19 abril de 2020;
Ivete Sangalo, 26 de abril de 2020; Nando Reis, 22 de abril de 2020; Teresa Cristina (lives diárias de 30 de maio a 25 de
junho de 2020); Marina Lima, 29 de abril de 2020; Letrux, 26 de abril de 2020; Tom Zé, 02, 07 e 29 de junho; DJ Môpa,
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26 de abril de 2020; Claudia Garcia, 21 de junho de 2020.
[4] Morto em 1984, Foucault não conheceu a internet comercial, as telas dos hardwares utilizados para navegação, tampouco
outros aparatos tecnológicos digitais. Os textos aqui utilizados foram escritos em 1967 e publicados postumamente nos
anos 1980, sendo as edições brasileiras consultadas as mais atuais.
[5] A instabilidade na conexão ocorreu com mais frequência durante as lives no Instagram de Teresa Cristina (quando
entravam convidados) e na live de Letrux, em 26 de abril de 2020.
[6] Informação obtida em entrevista com o DJ Môpa, que integra a rede brasileira pragatecno em cuja lista de discussão
vários DJs relataram a derrubada de suas transmissões.
[7] Disponível em: https://www.instagram.com/djmopa_pragatecno/?hl=pt-br. Acesso em: 08 jan. 2021.
[8] Disponível em: https://www.twitch.tv/djmopa. Acesso em: 08 jan. 2021.
[9] IDisponível em: https://www.instagram.com/claudiagarciacantora/?hl=pt-br. Acesso em: 08 jan. 2021.
[10] A primeira live de Teresa Cristina no YouTube, patrocinada por uma marca de cerveja, ocorreu no dia 30 de maio de 2020
e teve um alcance de público que oscilou entre 20 mil e 30 mil pessoas.
[11] Não foi objetivo do estudo uma observação sistemática do desdobramento das lives em performances para além das
plataformas de transmissão. Este aspecto abre perspectivas de investigação, como apontado por: GUTMMANN, Juliana.
Cultura audiovisual e pandemia. In: Congresso Virtual UFBA 2020 (MesaDiscussão – CulturaAudiovisual). Disponível
em: <https://youtu.be/yBCqCPb30Fg>. Acesso em: 26 ago. 2021.
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