A Saude em Debate Na Educacao Fisica v.2

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A SADE EM DEBATE

NA EDUCAO FSICA
VOLUME 2

Contatos para aquisio do livro E-mail: gttsaude_salus@yahoo.com.br

Marcos Bagrichevsky Alexandre Palma Adriana Estevo Marco Da Ros


(Organizadores)

A SADE EM DEBATE
NA EDUCAO FSICA
VOLUME 2

Blumenau, 2006

Conselho editorial ad hoc Dra. Cludia Miranda


Dr. Edgard Matiello Jnior
Dr. Maurcio Roberto da Silva
Dra. Monique Assis
Dra. Yara Lacerda
Diagramao da capa Adriana Helena Vaz Ilustraes Lor e Mayrink Diagramao e impresso Nova Letra Grfica e Editora

Todos os direitos reservados: proibida a reproduo total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio. A violao dos direitos do autor (Lei n 9.610/98) crime estebelecido pelo artigo 184 do Cdigo Penal.
Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Municipal Fritz Mller

613.7 S255s

A sade em debate na educao fsica - volume 2 / organizadores Marcos Bagrichevsky, Alexandre Palma, Adriana Estevo, Marco Da Ros. Blumenau : Nova Letra, 2006. 240p. : il. ISBN 85-7682-097-8 1. Educao Fsica 2. Corpo 3. Sade Coletiva 4. Sociologia da sade 5. Sade Pblica 6. Sade Brasil - Polticas pblicas I. Bagrichevsky, Marcos II. Palma, Alexandre III. Estevo, Adriana IV. Da Ros, Marco.

A tiragem desta edio (1.000 exemplares) foi parcialmente financiada pelo PR-SADE / Ministrio da Sade / Universidade Federal de Santa Catarina

Sumrio

Apresentao ......................................................... 7
Sobre os colaboradores ....................................... 17
Artigo 1 - Sade Coletiva e Educao Fsica: aproximando
campos, garimpando sentidos Marcos Bagrichevsky,
Adriana Estevo e Alexandre Palma .............................21
Artigo 2 - Polticas pblicas de sade no Brasil Marco
Aurlio Da Ros ..............................................................45
Artigo 3 - A noo estilo de vida em promoo de sade:
um exerccio crtico de sensibilidade epistemolgica - Luis
David Castiel e Paulo Roberto Vasconcellos-Silva .......67
Artigo 4 - Sade como responsabilidade cidad - Maria
Ceclia de Souza Minayo ...............................................93
Artigo 5 - Promoo da vida ativa: nova ordem fsico-
sanitria na educao dos corpos contemporneos Alex
Branco Fraga ............................................................. 105
Artigo 6 - Imagens do corpo em risco Marina Guzzo
................................................................................... 121
Artigo 7 - Reflexes sobre a epidemiologia atual Maria
Lcia F . Penna ............................................................. 139
Artigo 8 - Em defesa do modelo JUBESA (juventude,
beleza e sade) Hugo Lovisolo .............................. 157

Artigo 9 - Concepes de sade nos parmetros


curriculares nacionais Carlos Leal Ferreira Cooper e Jane
Dutra Sayd ................................................................. 179
Artigo 10 - A obesidade como objeto complexo: uma
abordagem filosfico-conceitual Maria Claudia Carvalho
e Andr Martins ......................................................... 203
Artigo 11 - Sade/Doena e triangulao: pontos de vista
e inter-relaes Fernando Lefvre e Ana Maria Cavalcanti
Lefvre ....................................................................... 225

Apresentao

Desde a recente virada do sculo, no somos mais os mesmos diante do vertiginoso surgimento de inovaes biotecnolgicas que inegavelmente, tm produzido intensos efeitos no s materiais como tambm simblicos sobre a humanidade. A fascinao ambivalente da tecnologia claramente posta como a ponta final da pesquisa cientfica revela-se a ns, por inteira. Nunca antes o corpo pode ser reconstrudo, reformatado, reconfigurado, como agora, suscitando sonhos hedonistas de felicidade, promessas de vida eterna e trazendo, ao mesmo tempo, temores de perda da integridade/identidade fsica, emocional e psquica, da autonomia individual e, de sujeio a controle social indevido, levando subjugao. Alis, filmes de fico cientfica como Gattaca, Minority Report, The Final Cut (traduzido para o portugus como Violao de Privacidade), entre outros do gnero, tm, de certa forma, cumprido um papel de sondar a humanidade sobre tais questes emblemticas, naturalizando-as entre ns. A tecnologia sempre esteve vinculada a conflitos de poder e discursos contraditrios, dada a capacidade que proporciona para a interveno no real, potencializando, de maneira diferenciadora, habilidades de pessoas e grupos. O controle do conhecimento e da tecnologia tem sido historicamente um trampolim de acesso ao poder, bem como para seu exerccio. No coincidncia que o registro cronolgico destas trajetrias esteja fortemente entrelaado com a histria das guerras e da dominao de elites em diferentes sociedades no mundo. O corpo e a sade, objetos por excelncia do poder sobre a vida desde a modernidade, tm ocupado um lugar privilegiado como princpio tico, poltico e esttico no exerccio do governo de si e dos outros. Por certo, um outro corpo e uma outra sade, constitudos nos deslocamentos de

uma nova dinmica do poder. Encontramo-nos num contexto poltico que tem por princpio aumentar a vida e prolong-la o quanto possvel, multiplicando suas possibilidades, desviando seus acidentes e compensando suas deficincias e incapacidades. Nesse sentido, pode-se afirmar at que o culto ao msculo tornou-se signo identitrio de um modo de vida e de integrao ou, inversamente, um novo critrio de desfiliao que tem por base a racionalidade do consumo. Para tal perspectiva, ento, a sade pode ser concebida como o prprio estilo de vida, no interior dessa retrica e prtica poltica do uso do corpo. A valorizao aguda de uma tica fugaz da aparncia e dos cuidados para com a exterioridade, como um fim em si mesmo, parece estar em conformidade com a crescente volatilidade de valores humanos na contemporaneidade. Discursos de exaltao competio coletiva e individual (superar a si mesmo) vicejam, cada vez mais, em todas as instncias do cotidiano, entre ns. Variados esteretipos corporais tm, em comum, os caminhos da apologia ao consumo exacerbado de cosmticos, frmacos, alimentos dietticos, prticas de exercitao fsica, cirurgias, entre outros. Contudo, no cabem aqui julgamentos morais. No se trata disso. Mas, fica latente como exerccio de crtica salutar, a constatao da necessidade do desconcerto de certezas cientificadoras e, tambm, da emergncia de novas anlises e pesquisas que remexam o campo da Educao Fsica, extrapolando os limites formais e politicamente problematizveis que a rea tem imposto a si prpria, sobretudo, no trato das questes acerca da sade. Tomando tal panorama como ponto de partida, cabe ento perguntar: qual deve ser a preocupao primeira de uma obra ensastica, dita cientfica, tendo em vista um compromisso tico e poltico com a vida pblica (principalmente, em sua dimenso coletiva), bem como, com o seu correspondente campo acadmico constitutivo? Para o caso de julgarmos pertinente a questo formulada, talvez proceda, ainda, mais uma indagao: que pretenses dialgicas poderia buscar estabelecer tal obra com outras reas afins (e porque no?), considerando a existncia de um suposto avizinhamento de interfaces temticas do conhecimento

abordadas por ela, circunscritas no chamado campo das cincias da sade? Pode-se dizer que o compromisso desta coletnea de trabalhos se alinhava em um horizonte crtico interdisciplinar1, talvez, mais afeito queles pesquisadores, profissionais, estudantes e interessados nos temas da sade2, inclinados a admitir certos sinais de esgotamento da cincia moderna, tanto pela posio conservadora de setores desta, que advogam a manuteno de alguns modelos terico metodolgicos insuficientes aos processos explicativos de sade-doena, quanto pela frgil (seno incua) capacidade de apreender os singulares modos de vida, em seus infinitos significados. Todavia, no podemos ignorar alguns fatos. Sabe-se que a defesa deste status quo acadmico subsume muito mais coisas que, veladamente, esto em disputa nesta arena: interesses pecunirios e de poder, de toda ordem linhas de financiamento de pesquisas, regulao de polticas editoriais de peridicos e livros, possibilidades de ascenso hierrquica nas sociedades cientficas e de maior visibilidade na vida cotidiana, tambm. Ora, mas no interior da cincia normal, os pesquisadores no podem encontrar resultados distintos daquilo que obtm se no procurarem outras coisas3. Foi justamente a inquietao frente a este conjunto de questes, o imperativo desencadeador da organizao deste trabalho, intitulado A SADE EM DEBATE NA EDUCAO FSICA VOLUME DOIS. Nos pareceu imprescindvel reunir abordagens em torno do corpo (e de sua utilizao histrica) e dos modos de ser/estar/sentir-se saudvel e doente, em suas mltiplas determinaes e inter-relaes. em funo de tal perspectiva, que foram articuladas na obra reflexes sobre polticas pblicas de sade, risco, epidemiologia, estilo de vida, educao, atividade fsica e, corpo, obviamente. Por outro lado, necessrio reconhecer, de pronto, que as aspiraes
O convite feito a pesquisadores de diferentes reas do conhecimento, oriundos, sobretudo, da Sade
Coletiva e das Cincias Sociais, tornou o desafio de produzir o livro bastante promissor e estimulante,
especialmente porque a Educao Fsica, a rigor, pouco tem investido nas problemticas que permeiam as
esferas poltica, sociolgica e epistemolgica da sade.
2 Entendida, aqui, sua diversidade, como fio condutor fundamental e enriquecedor, para se discutir e
problematizar dimenses histricas, ticas, biolgicas e culturais da vida social.
3 CASTIEL, Lus David. O buraco e o avestruz: a singularidade do adoecer humano. Campinas: Papirus, 1994.
p. 13.
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(pretensamente crticas) do presente livro resultado do envolvimento generoso do seu coletivo de participantes talvez, sejam muito maiores, do que nossa capacidade de responder s prprias questes que produzimos e compartilhamos com o leitor. Esta espcie de justificativa introdutria cumpre a funo de alertar aos incautos que os ensaios aqui apresentados, provavelmente, no servem a anseios prescritivos e solucionadores de problemas epistemolgicos e praxiolgicos em sade. Isto significa afirmar, portanto, dada a complexidade e subjetividades imbricadas no campo de anlise dos diferentes objetos temticos, retratados e discutidos por cada artigo, que no se recomenda leituras/interpretaes apressadas, muito menos definitivas, do material aqui reunido. importante ressaltar, por ltimo, que a obra segunda de uma srie organizada pelo grupo SALUS4, marca o fechamento de mais um perodo de esforos coletivos empreendidos entre 2004 e 2006, no qual foram produzidos e disponibilizados comunidade acadmica, por meio de diversas estratgias5, debates pertinentes aos objetivos j mencionados. Dito isto, podemos passar ento, a um breve comentrio sobre o teor dos artigos aqui reunidos. O texto que abre o livro, Sade Coletiva e Educao Fsica: aproximando campos, garimpando sentidos, de Marcos Bagrichevsky, Adriana Estevo e Alexandre Palma, busca, de incio, reconhecer as origens disciplinares da Educao Fsica, atreladas ao militarismo e ao higienismo, associando-as ao atual status mercantilizado das prticas corporais e do conceito reducionista de sade, que ainda predomina na rea. Ao final, sugere algumas pistas terico-metodolgicas para ampliao
SALUS - Grupo Inter-Institucional de Trabalho Temtico em Sade, constitudo pelos pesquisadores Marcos Bagrichevsky, Alexandre Palma e Adriana Estevo. e-mail: gttsaude_salus@yahoo.com.br. 5 No podemos deixar de comentar que, tal como no lanamento de nosso livro anterior (2003), a produo desta obra tambm demarca o balano final de um conjunto de aes coletivas do SALUS. Em 2004, foi realizado o II CICLO DE CONFERNCIAS A Sade em Debate na Educao Fsica, no qual tivemos (desta vez, fora do eixo Rio-So Paulo) a presena de trs importantes conferencistas Dr. Naomar de Almeida Filho [ISC-UFBA] que abordou O conceito de sade-doena no mundo ps-genoma [19/11/2004]; Dr. Alex Branco Fraga [ESEF-UFRGS] que tratou do tema Promoo do agito: forma de ativar o corpo e regular a vida [25/ 11/2004]; e Dra. Sandra Caponi [DSP-UFSC] falando sobre a temtica Sade pblica, riscos privados [08/12/ 2004]. No ano de 2005 foi produzida e disponibilizada a COLEO DE VDEOS A Sade em Debate na Educao Fsica Volume 2, composta pelas trs conferncias do evento itinerante (e que permanecem disponveis para aquisio, assim como as conferncias do 1 Ciclo, tanto no formato VHS como em DVD. Contatos pelos e-mail: setlocacoes@terra.com.br).
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crtica do sentido poltico e epistemolgico que a Sade Coletiva abarca no seu movimento constitutivo. Na seqncia, o ensaio produzido por Marco Aurlio Da Ros, Polticas Pblicas de Sade no Brasil, traz uma questo cara ao campo da Educao Fsica, quando este se avizinha Sade Pblica. O passeio histrico proposto pelo autor, traz preciosos esclarecimentos sobre questes centrais no tema, demonstrando a complexa relao existente entre a Poltica de Estado e a conformao do pensamento social em medicina no pas, em cada perodo cronolgico abordado, as quais vieram a influenciar fortemente a constituio e o desenvolvimento do SUS. A partir da considerao de que os conceitos tambm participam da construo de realidades, uma vez que a linguagem erige categorias que passam a descrever e explicar o mundo a partir de determinados prismas, Lus David Castiel e Paulo Roberto Vasconcellos-Silva realizam uma refinada anlise no artigo A noo estilo de vida em promoo de sade: um exerccio crtico de sensibilidade epistemolgica, problematizando aspectos atinentes ao emprego da categoria estilo de vida, instituinte de modelos, retricas e ideologias em prticas de sade na biomedicina, na Sade Pblica e, sobretudo, na promoo de sade. Contudo, segundo os pesquisadores, as concepes de sociedade, de pessoa e suas inter-relaes adotadas predominantemente pelo campo da promoo da sade, parecem ser insuficientes para se alcanar os propsitos de atenuao ou interrupo de comportamentos considerados de risco, supostamente danosos. Por outro lado, a possibilidade de escolhas de estilos de vida dentro do menu scio-cultural dominante, enseja um convite extremamente persuasivo, direcionado ao consumismo de determinados estratos scio-econmicos da populao. O debate acerca da concepo ampliada de sade retomado por Maria Ceclia de Souza Minayo, no texto A sade como responsabilidade cidad. A autora critica a vigncia do modelo medicalizante e hospitalocntrico de Ateno Sade, que, segundo ela, est baseada no conceito reduzido de sade e na prtica fragmentada de assistncia. Por ltimo, lana o desafio para pensar a Sade Pblica como um projeto da sociedade, de modo mais abrangente e menos medicalizada,

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sugerindo a aproximao e colaborao das mais diferentes reas disciplinares e profissionais, para o xito dessa tarefa. No quinto ensaio, Alex Branco Fraga discorre sobre a Promoo da vida ativa: nova ordem fsico-sanitria e a educao dos corpos contemporneos. O autor chama a ateno, com propriedade, para a disseminao das estratgias de pedagogia da culpabilizao individual, que calcadas na idia do comportamento do risco e em lgicas estatsticas de convencimento, tentam propor a necessidade imperativa de adeso dos coletivos populacionais prtica de atividades fsicas, colocando como pano de fundo na pauta do discurso um vis de contingenciamento econmico. Destaca, ainda, a sutil, mas fundamental, inverso na ordem de prioridades de programas como o Agita So Paulo, os quais intentam persuadir os sujeitos a adotarem um estilo de vida ativo, desconsiderando, por vezes, a inexistncia de condies adequadas em espaos pblicos destinados exercitao fsica e, os impedimentos individuais de cada contexto social, alm de no valorizar adequadamente a dimenso cultural, que empresta diferentes significados positivos e negativos a uma mesma prtica corporal dependendo da regio e do momento histrico. Marina Guzzo assina o artigo Imagens do corpo em risco. A autora descreve as prticas corporais do acrobata circense que se arrisca desafiando os limites da condio humana, ao flutuar merc das alturas. A metfora imagtica do trapezista em vo, cujos movimentos so previa e exaustivamente ensaiados para sustentar a iluso de corpos libertos e desconectados do tempo e espao, serve para ludibriar o pblico, pois sugere atravs da plasticidade e leveza dos gestos que no h qualquer esforo muscular aplicado e, oculta o perigo real das manobras em jogo. Marina frisa tambm que ao instituir a fantasia de um corpo surreal, a figura do acrobata areo traz consigo a idia da superao do risco como uma construo esttica, que s pode se configurar numa sociedade de riscos, incertezas, ambivalncias. A esttica do risco, ento, permite a criao de manifestaes como o risco-espetculo e o risco-aventura, ingredientes fundamentais para vendagem de corpos e de vidas, transformando as formas de beleza e de humanidades, dentro de uma lgica societria de consumismo.

No texto Reflexes sobre a epidemiologia atual, a pesquisadora Maria Lcia Fernandes Penna discute os conceitos de populao e doena utilizados pelos epidemiologistas, contemporaneamente. Aponta, tambm, as fragilidades da teoria do estilo de vida (baseada nos fatores de risco), que tem sido defendida como categoria explicativa da etiolgica de doenas crnicas, vivamente presente nos estudos do campo a partir de meados do sculo XX. Como conseqncia, destaca, um progressivo afastamento entre a epidemiologia e a Sade Pblica, em funo da exacerbada tecnificao da primeira e da desconsiderao de preceitos scio-culturais durante a investigao de enfermidades populacionais, crtica que feita, inclusive, dentro da prpria epidemiologia. Tomando a histria da tuberculose como ponto de observao, a autora encerra sua anlise apontando a possibilidade de se encontrar, entre os aspectos postulados pelos cientistas para os mecanismos de produo de doenas, mltiplas razes na escolha de uma causa, incluindo as de ordem social e poltica. O oitavo ensaio do livro, Em defesa do modelo jubesa (juventude, beleza, sade) tem a autoria de Hugo Lovisolo. A partir da idia de que a modernidade nos apresenta paradoxos e contradies latentes, entre elas, a questo da conservao da sade e a busca da beleza e juventude eternas, ele prope desenvolver um conjunto de argumentos ou teses (associando-as no transcorrer do texto, a pensadores) para tentar compreender, por aproximao ou oposio, os desdobramentos e repercusses desta idia central entre ns. Afirma tambm, que o ideal do modelo jubesa tem se firmado como hegemnico, tornando-se uma referncia significativa para as condutas dos sujeitos e para a diversificao e crescimento do mercado/consumo. Comenta ao final, que a submisso a este modelo implica percorrer um caminho de sacrifcios. Sabe-se que os parmetros curriculares nacionais (PCNs) so uma referncia para o atual sistema educacional brasileiro e que a sade est alocada como um de seus contedos, nos chamados temas transversais. A partir de uma detida anlise do documento, Carlos Leal Ferreira Cooper e Jane Dutra Sayd apresentam no ensaio Concepes de sade nos parmetros curriculares nacionais, observaes consistentes

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acerca das adequaes, insuficincias e contradies desses contedos, bem como, sobre os mecanismos de reproduo dos valores scio-culturais presentes nas concepes de sade ali inscritas e, que tm sido utilizadas amplamente nos bancos escolares. O texto subseqente, A obesidade como objeto complexo: uma abordagem filosfico-conceitual, de Maria Cludia Carvalho e Andr Martins, procura examinar a elaborao de conceitos que permeiam a rea da sade e sua utilizao como instrumento metodolgico na desconstruo de dicotomias, como corpo/mente. A partir de uma perspectiva filosfica de Espinosa, os autores buscam uma aproximao com a realidade complexa da Sade Coletiva, aplicada problemtica da obesidade. Nesse contexto, discutem, sob o ponto de vista tico, os conflitos alimentares presentes na situao dual comer porque quero e no comer porque engorda e finalizam apontando a necessidade de se compreender o ser humano em sua integralidade e de se respeitar a capacidade singular das pessoas de estarem potentes e ativas na vida. Fechando o livro, temos o artigo intitulado Sade/ doena e triangulao: pontos de vista e inter-relaes, de Fernando Lefvre e Ana Maria Cavalcanti Lefvre, que tambm nos convidam a uma discusso conceitual. De uma perspectiva sociolgica, sugerem trs pontos de vista, a partir dos quais a sade/doena pode ser compreendida pela tica: i) dos indivduos, ii) do sistema produtivo e; iii) do setor tcnico (profissionais que prescrevem). Segundo os autores, olhada desse modo, a sade/doena permite ser interpretada, ento, como sensao, como mercadoria e como exerccio de poder. As inter-influncias entre cada um destes pontos de vista so exploradas e desenvolvidas, no decorrer do texto, para nos auxiliar a repensar os fenmenos associados sade/doena, que se processam de modo complexo. Por fim, cabe comentar sobre a viabilizao desta obra (e as conotaes intrnsecas da derivadas). O naipe qualificado das discusses aqui registradas, a partir do comprometido exerccio de reflexo desenvolvido pelos(as) autores(as), foi alentador e fundamental aos propsitos primordiais do SALUS, quais sejam, redimensionar as opes terico-metodolgicas

para interpretao e investigao do processo sade-doena, frente ao arcabouo positivista ainda dominante em pesquisas no campo da Educao Fsica. Meno especial tambm deve ser feita aos renomados ilustradores do livro, Lor e Mayrink, que nos emprestaram todo o seu talento criativo, para atravs de refinadas imagens humorsticas, amplificar o contedo crtico das anlises de cada um dos artigos, incorporando um sentido especial ao objetivo do trabalho. Gostaramos de agradecer6 a todos(as) estes(as) colaboradores(as) pelo crdito de confiana que nos foi concedido, na tarefa de reunir, organizar e dar sentido a todo este material. justamente a partir deste tipo de parcerias de que nosso projeto coletivo tem encontrado suporte e estmulo para trilhar e consolidar caminhos ainda pouco enfrentados sistematicamente na comunidade da Educao Fsica, na tentativa de construir e disseminar, de modo perene, debates sobre temas atinentes ao campo da sade. Enxergamos sentido e relevncia em iniciativas organizadas para estabelecimento e compartilhamento de uma rede de saberes, como forma estratgica de se inferir e reprojetar, contextual e criticamente, as aes profissionais, cientficas, polticas e sociais que se relacionam interface Sade Coletiva/ Educao Fsica. Como o caminho se faz caminhando e, no, no ponto de partida ou de chegada, esperamos, vidos, pelo dilogo com a comunidade acadmica, na expectativa de receber crticas e comentrios sobre a consistncia (ou no) dos prpositos do livro que o leitor agora tem em mos.

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Marcos Bagrichevsky Alexandre Palma Adriana Estevo Marco Da Ros

No poderamos deixar de prestar nossa homenagem tambm quelas e queles que foram imprescindveis nos trabalhos de planejamento, organizao e suporte tcnico (de toda ordem), nos permitindo realizar o 2 Ciclo de Conferncias em 2004. Nossos agradecimentos Ana Mrcia Silva, presidenta do Colgio Brasileiro de Cincias do Esporte na gesto 2003/2005; Claudia Miranda e Celi Taffarel, docentes/pesquisadoras da Universidade Federal da Bahia; Maria Denis Schneider, da Universidade Federal de Santa Catarina, alm, obviamente, dos conferencistas Naomar de Almeida Filho, Alex Fraga e Sandra Caponi por suas prestimosas participaes.
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Sobre os colaboradores

ADRIANA ESTEVO Doutora em Cincias Sociais (PUC/SP) e Mestre em Educao


(FURB/SC);
Professora do Departamento de Educao Fsica da FURB/SC;
Lder do Grupo de Pesquisa Ccorposes (Cultura das Prticas
Corporais, Esttica e Subjetividade) na FURB/SC;
Membro do Grupo de Pesquisa Salus (Estudos em Educao
Fsica e Sade - UGF/RJ).
ANA MARIA CAVALCANTI LEFVRE Doutora em Sade Pblica (FSP/USP);
Professora Comissionada na Faculdade de Sade Pblica da
USP;
Pesquisadora-Associada do Instituto de Pesquisa do Discurso
do Sujeito Coletivo (IPDSC/SP).
ANDR MARTINS Ps-Doutorado pela Universit de Provence Aix Marseille I
(Frana);
Ps-Doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro;
Doutor em Filosofia (Universidade de Nice, Frana);
Docente do Mestrado em Sade Coletiva do NESC e
Professor Adjunto da UFRJ.
ALEX BRANCO FRAGA Doutor e Mestre em Educao (UFRGS);
Docente do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu da
ESEF/UFRGS;
Pesquisador-Associado do Grecco (Grupo de Estudo sobre
Cultura Corporal UFRGS).

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ALEXANDRE PALMA Ps-Doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro;


Doutor em Sade Pblica (ENSP/FIOCRUZ) e Mestre em
Educao Fsica (UGF/RJ);
Docente do Programa Stricto Sensu em Educao Fsica da UGF/RJ
Professor dos Cursos de Graduao em Educao Fsica da
UGF/RJ e UNESA/RJ;
Lder do Grupo de Pesquisa Salus (Estudos em Educao Fsica
e Sade - UGF/RJ).
CARLOS LEAL FERREIRA COOPER Doutorando e Mestre em Sade Coletiva (IMS/UERJ). FERNANDO LEFVRE Doutor em Sade Pblica (FSP/USP) e Mestre em Semitica
(Universidade de Paris/Frana);
Docente do Programa Stricto Sensu da Faculdade de Sade
Pblica e Professor Titular da USP .
HUGO LOVISOLO Ps-Doutorado em Sociologia do Esporte pela Universidade
do Porto (Portugal);
Doutor em Antropologia Social (UFRJ);
Docente do Programa Stricto Sensu em Educao Fsica da
UGF/RJ e Professor Adjunto da UERJ.
JANE DUTRA SAYD Doutora em Sade Coletiva (IMS/UERJ);
Docente do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Sade
Coletiva e Pesquisadora do Instituto de Medicina Social da UERJ.

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LUIS DAVID CASTIEL Ps-Doutorado em Sade Pblica pela Universidade de


Alicante (Espanha);
Doutor em Sade Pblica (ENSP/FIOCRUZ);
Pesquisador do Departamento de Epidemiologia e Mtodos
Quantitativos em Sade da Escola Nacional de Sade Pblica
(FIOCRUZ);
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nvel 2.

LUIZ OSWALDO RODRIGUES - LOR Cartunista e Ilustrador Profissional de vrios Jornais, Revistas
e Livros;
Doutor em Cincias Biolgicas (UNIFESP);
Docente do Mestrado em Educao Fsica e Professor Titular
da UFMG;
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nvel 2.
MANOEL CAETANO MAYRINK Diagramador, Cartunista e Ilustrador Profissional premiado
internacionalmente;
Colaborador em vrios Jornais, Revistas e Livros no pas;
Curador de Diversas Exposies e Produes de Humor sobre
Sade, inclusive na FIOCRUZ.
MARCO AURLIO DA ROS Doutor em Educao (UFSC) e Mestre em Sade Pblica
(ENSP/FIOCRUZ);
Docente do Programa de Mestrado em Sade Pblica e
Professor Titular da UFSC;
Consultor do Ministrio da Sade.

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MARCOS BAGRICHEVSKY Doutor em Sade da Criana e do Adolescente (FCM/


UNICAMP);
Mestre em Educao Fsica (FEF/UNICAMP);
Membro do Grupo de Pesquisa Salus (Estudos em Educao
Fsica e Sade - UGF/RJ).
MARIA CECLIA DE SOUZA MINAYO Doutora em Sade Pblica (ENSP/FIOCRUZ);
Professora e Pesquisadora Titular da Fundao Oswaldo Cruz;
Coordenadora Cientfica do Grupo de Pesquisa Claves
(FIOCRUZ);
Editora Cientfica da Revista Cincia & Sade Coletiva da
ABRASCO;
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nvel 1A.

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MARIA CLUDIA CARVALHO Mestre em Sade Coletiva pelo NESC (UFRJ); Professora do Instituto de Nutrio da UERJ. MARIA LUCIA FERNANDES PENNA Doutora em Sade Pblica (USP);
Docente de Ps-Graduao em Sade Coletiva do Instituto
de Medicina Social (UERJ);
Pesquisadora da Escola Nacional de Sade Pblica (FIOCRUZ).
MARINA SOUZA LOBO GUZZO Doutoranda e Mestre em Psicologia Social (PUC/SP); Professora da Pontifcia Universidade Catlica de Campinas (PUCCAMP/SP). PAULO ROBERTO VASCONCELLOS SILVA Doutor em Sade Pblica (ENSP/FIOCRUZ);
Docente da Ps-graduao em Educao e Comunicao em
Sade (ENSP/FIOCRUZ);
Professor Adjunto da Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO).

SADE COLETIVA E EDUCAO FSICA: APROXIMANDO CAMPOS, GARIMPANDO SENTIDOS

Marcos Bagrichevsky Adriana Estevo Alexandre Palma

SADE COLETIVA E EDUCAO FSICA: APROXIMANDO CAMPOS, GARIMPANDO SENTIDOS1


Marcos Bagrichevsky Adriana Estevo Alexandre Palma
Uma crtica no questo de dizer que
as coisas no esto certas da forma como esto;
uma questo de ressaltar em que espcies de suposies,
em que espcies familiares de modos de pensar
no discutidos, no refletidos, se baseiam
as prticas que aceitamos...
(Michel Foucault,1988)

Questes Iniciais Este texto tem como proposta suscitar uma reflexo acerca das concepes sobre sade na Educao Fsica, indicando e problematizando suas limitaes e possibilidades epistemolgicas, com vistas a sugerir elementos para uma anlise contextualizada do fenmeno na rea. Para isso, buscamos considerar tambm alguns referenciais recorrentes na Sade Coletiva e Cincias Sociais, uma vez que esses campos do conhecimento abarcam discusses de grande densidade, amadurecidas no enfrentamento de questes histricas referentes temtica. Desse modo, preocupamo-nos em registrar a emergencial necessidade de se repensar as propostas terico metodolgicas na Educao Fsica que balizam intervenes, ditas de Promoo Sade, buscando coadun-las s perspectivas crticas, fecundamente disseminadas na Sade Coletiva. Um argumento inicial, que parece justificar tal preocupao, reside no fato da Educao Fsica e seus
1 Este ensaio foi desenvolvido a partir das verses anteriores de dois textos diferentes, publicados na Revista da Educao Fsica da UEM, v.15, n.2, p.57-66, 2004 e, na Revista Arquivos em Movimento, v.1, n.1, p.65-74, 2005.

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intelectuais figurarem timidamente nas esferas de formulao de polticas pblicas de sade do pas, nos trs nveis de governo, sobretudo, se considerarmos as ltimas dcadas. O mesmo vem ocorrendo em relao participao da rea nos principais fruns/instncias cientficos e tecnolgicos deliberativos do setor sade (salvo raras excees), como os congressos da ABRASCO 2 e da REDE UNIDA 3 e, os manifestos/movimentos das Conferncias Nacionais de Sade4 e do CEBES5. Essa constatao nos remete ao atual dficit do conhecimento na rea sobre sade pblica, que raramente reconhecido como um saber sociolgico, que expressa necessidades de carter coletivo. Claro que essa tendncia tem relao com a prpria gnese da Educao Fsica enquanto campo profissional, que teve sua orientao formativa guiada por um iderio militar de disciplinamento e controle biopoltico dos corpos (Foucault, 1999), o qual buscava extrair-lhes, ao mximo, uma funcionalidade servil e acrtica. Portanto, no de todo inesperado que a Educao Fsica venha abrigando esse legado em seu contexto histrico brasileiro, tendo como carro-chefe os ideais da exercitao corporal. (Soares, 1994; Fraga, 2003a; Gis Jnior e Lovisolo, 2003). Ainda hoje, notrio a prevalncia de enfoques em pesquisa que exploram mais os determinantes biolgicos, em detrimento da abordagem dos elementos scio-culturais econmicos e polticos intervenientes no processo sadedoena. A dimenso exultada nessa tendncia a da atividade fsica (ou aptido fsica) associada sade, compreenso esta, recorrente em boa parte das publicaes acadmicas na rea e que busca advogar a existncia de uma relao de causa e efeito, quase exclusiva, entre exerccio e sade. Em outras palavras, para tais estudos, a sade poderia ser tomada, a priori, como conseqncia de efeitos fisiolgicos (mensurveis
Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva (www.abrasco.org.br). A Rede Unida (www.redeunida.org.br) conecta pessoas que executam e/ou articulam projetos que tem como objetivo comum o desenvolvimento de Recursos Humanos em Sade. Caracteriza-se pela diversidade de projetos e de experimentos na rea que buscam uma mudana no modelo de ateno sade, no modelo de ensino e na participao social no setor. 4 Espao institucional importante, que tem abrigado debates e avanos fundamentais no projeto da Reforma Sanitria Brasileira e que, inclusive, vem registrando a ascenso efetiva de vrios profissionais advindos das Cincias Humanas e Sociais na conduo de proposies significativas no processo histrico de reformulao de polticas de sade no pas. 5 Centro Brasileiro de Estudos de Sade (http://cedoc.ensp.fiocruz.br/cebes/).
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quantitativamente) produzidos pela prtica regular de atividades fsicas sistemticas. Tal fato traz implicaes delicadas para o campo do conhecimento e da interveno, uma vez que essa interpretao adota um olhar parcial/distorcido da realidade, que no leva em conta, outros fatores contextuais relevantes aos quais as pessoas esto submetidas e que no podem ser dissociados de seus cotidianos: distribuio desigual da renda populacional, nvel de (des)emprego, condies sanitrias bsicas, condies de moradia e alimentao, grau de escolaridade e de saber funcional, (in)disponibilidade de tempo livre, acesso a servios de sade e educao, entre outros. Esses tambm so aspectos que amoldam as condies da vida humana e, portanto, precisam ser igualmente considerados em qualquer pesquisa que busca estabelecer inferncias mais consistentes sobre a sade populacional. O cuidadoso estudo revisional de Palma (2000) corrobora essa idia, ao enunciar que as possveis articulaes entre atividade fsica e sade no so dotadas de uma pressuposta correlao constante de causalidade. Mudar o foco da problemtica de investigaes afins, inserindo no curso da anlise o mapeamento de parmetros scio-econmicos e culturais pode influenciar, sobremaneira, os achados obtidos ao final das pesquisas. Carlos Mira (2000) tambm erige questes interessantes e pertinentes acerca das relaes imbricadas no binmio exerccio fsico-sade. Em seu trabalho, argumenta que o anncio de possveis efeitos de preveno e proteo adicional dos exerccios sobre a sade de pessoas fisicamente ativas no passa de uma hiptese otimista, pois a interao entre os dois fatores no pode ser compreendida de forma linear e determinista. O pesquisador leva a pensar que seria mais razovel considerar, por outro lado, que so os indivduos possuidores de aporte nutricional e financeiro e, de tempo disponvel para atividades de lazer quem buscam a prtica sistemtica de atividade fsica (e no o contrrio). Palma et al. (2003) reforam esse entendimento, ao demonstrar em sua investigao, que a questo da adeso aos exerccios fsicos tem um vis especfico. O acesso regular aos espaos formais mais especializados para as prticas de

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exercitao corporal, como as academias de ginstica, por exemplo, demarcado por algumas caractersticas do pblico freqentador, cujo perfil geral se encaixa nos estratos sociais mais abastados (os quais, por sua vez, representam o percentual minoritrio populacional, se considerarmos a totalidade demogrfica da sociedade brasileira). Portanto, no equivocado conjecturar que os discursos e iniciativas dos programas de promoo da atividade fsica, ditos para a populao bombasticamente preconizados em nosso meio possuem na verdade, alcance e efetividade limitados a um nicho bem restrito da mesma, levando-se em conta as pssimas condies de vida da maior parte dos brasileiros, onde ainda hoje, persevera um quadro estarrecedor de pobreza e iniqidades generalizadas. Ademais, esses programas institucionais, que tm sido difundidos tambm por meio de campanhas publicitrias, buscam enfatizar a exercitao corporal como parte essencial de um estilo de vida, outorgando-lhe um carter de estatuto ou modelo individualista a ser seguido, diante da nfase de combate ao sedentarismo e, ao despejarem um vasto repertrio de comportamentos recomendveis sade, ignoram as injunes scio-polticas e financeiras do pas, nas quais est mergulhada a nossa coletividade (Castiel e Vasconcellos-Silva, 2006). Se por um lado parcialmente aceitvel a generalizao de que h benefcios orgnicos decorrentes de algumas modalidades de exerccio (se respeitados certos preceitos), por outro, esta argumentao torna-se discutvel, na medida que pretende sustentar uma poltica conservadora, uma dimenso moral que responsabiliza cada pessoa por seu prprio adoecimento e desconsidera a dinmica sistmica e multifria que influencia os estados de enfermidade humana. Talvez seja prudente, nesse momento, um esclarecimento. O conjunto de argumentaes levantadas at aqui no intenciona demonstrar que a prtica da atividade fsica incua ou desprovida de qualquer interferncia positiva sobre o corpo humano. A literatura tambm apresenta trabalhos bem conduzidos, que evidenciam sua ao teraputica benfica sobre vrias patologias ou potenciais comprometimentos do organismo e, por isso mesmo, no

nossa pretenso neg-la. Igualmente, no se quer ignorar ou sublimar a considervel tradio que o tema goza junto Educao Fsica, seja como objeto de pesquisa ou forma de interveno, ainda que achemos que algumas reinterpretaes so indispensveis. Todavia, urge a tarefa de se analisar cuidadosamente as tentativas de massificao de uma norma moralizante da aparncia fsica utpica do corpo sarado6, da gerao sade e do estilo de vida ativo7, que esto em curso na sociedade contempornea. Sobretudo, porque se encontram ancoradas na lgica quantificadora e positivista de estudos cientficos publicados na rea, corroborando os slogans de programas institucionais que propagandeiam uma imperiosa e inequvoca necessidade de se exercitar de qualquer modo, em qualquer lugar e a qualquer tempo. Mas, principalmente, complicado consentir na aceitao acrtica de que to simplesmente mantendo-se ativo que se obtm sade. Costa e Venncio (2004) argumentam que:
Nesse momento importante realar a idia central de Habermas sobre o enfraquecimento da ao comunicativa quando uma parte dos profissionais de Educao fsica est deixando de apresentar um posicionamento crtico e tico diante da ao da mdia e dos avanos biotecnolgicos. Estes profissionais esto paulatinamente valendo-se do uso da razo instrumental ao expor e transformar o corpo atravs de atividades fsicas, dietas, drogas e do consumo de imagens ideais de atletas. Eles corroboram os discursos de controle do corpo que a mdia produz ao fazer da atividade fsica (associada biotecnologia) uma possibilidade de corresponder ao padro de beleza em nome da sade (p. 70).
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Seguindo os preceitos difundidos nos meios de comunicao de massa, este seria esteticamente desejvel, como objeto de conquista nas relaes amorosas e como produto modelar para a indstria da beleza, moda, fitness... 7 Tambm propalado como sinnimo de economicamente produtivo, j que para tais discursos, em tese, diminuiria o absentesmo nos postos de trabalho e os custos do Estado na destinao de verbas para a sade pblica. Alm de ser pouco provvel constatar essas premissas por meio de pesquisas srias e com critrios objetivos, preciso afirmar que a vida e a sade das pessoas no podem ser reduzidas a uma perspectiva de contingenciamento financeiro, de relao custo-benefcio. Como nos lembra Castiel (2003), uma crtica comum ao conceito estilo de vida referente a seu emprego em contextos de misria e aplicado a grupos sociais onde as margens de escolha praticamente inexistem. Muitas pessoas no elegem estilos para levar suas vidas. No h opes disponveis. Na verdade, nestas circunstncias, o que h so estratgias de sobrevivncia [grifo do autor] (p.93).
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O Mercado do Corpore Sano As constataes anteriores no esto descontextualizadas historicamente; pelo contrrio, encontram-se demarcadas por uma considervel tradio cultural. Os Movimentos Eugnico e Higienista - corporificados no Brasil no incio do sculo XX (Soares, 1994) podem ser considerados os precursores ideolgicos da apologia ao estilo de vida ativo, cujos ditames impositivos j se encontram de tal modo arraigados no imaginrio popular da atual sociedade, que so capazes de gerar um forte sentimento de culpa nas pessoas que resistem em demonstrar inclinao para descobrir as supostas benesses proporcionadas sade ou, cujos corpos se afastam da normalidade cannica de uma silhueta sempre magra, jovial e esbelta. Para Goldenberg e Ramos (2002) Devido a mais nova moral, a da boa forma, a exposio do corpo em nossos dias, no exige dos indivduos apenas o controle de suas pulses, mas tambm o (auto)controle de sua aparncia fsica (p. 25). Um trecho da obra Da Educao Physica , de Fernando de Azevedo (1920), ilustra bem o legado eugnico da sade, associado prtica de atividades fsicas e aos valores morais, deixado j nas primeiras dcadas do sculo passado:
Demeny afirma que por meio dessa ginstica, assim caracterizada, devem adquirir-se, sobre o ponto de vista fisio-anatmico: [...] a beleza corporal e, sob o ponto de vista psicolgico, a coragem, a iniciativa, a vontade perseverante, ou, em uma palavra, certas aptides morais, alm do equilbrio funcional dos rgos, que a expresso e o ndice da sade do corpo, e, por fim, a beleza na forma e no movimento. Deve ela, pois, na concepo moderna, tender, no ao engrossamento do msculo, mas ao desenvolvimento racional de todos os rgos e de todas as funes, para chegar, por um treinamento, isto , por uma progresso lenta, gradativa e metdica, a favorecer o desenvolvimento do sistema nervoso e a coordenao de suas manifestaes, e a facilitar assim todos os atos da vida, pondo uma alma s num corpo igualmente sadio e vigoroso (p. 70).

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As perspectivas de exercitao fsica ganharam fora mais ao final do mesmo sculo. A partir da dcada de 1980, deu-se grande nfase nos discursos sobre a necessidade de

envolvimento populacional mais abrangente na prtica de atividades fsicas, a qual era escudada pelo argumento utilitarista (econmico) de tornar a sade menos custosa para o Estado. Esse movimento Healthism cujo bero precursor foi nos Estados Unidos da Amrica, anos mais tarde, passa a ser denominado no Brasil de Movimento da Sade (Soares, 1994; Fraga, 2003a). O Movimento da Sade marcado por um perfil de orientao individualista, em detrimento da considerao de questes sociais. Assim, as intervenes fsicas que operam sobre o corpo, perdem o sentido mais coletivizado de outrora (do perodo Higienista, que preconizava a soberania do EstadoNao por intermdio da melhoria da raa) e assumem, declaradamente, priorizaes fundamentais com o privado. O movimento evidencia um carter simbintico com diversos setores miditicos, os quais o percebem como potencial nicho de mercadorizao do consumo (Gis Jnior e Lovisolo, 2003). O personal training seria um dos seus smbolos pontuais na protagonizao do individualismo exacerbado e das preocupaes com o prprio corpo e do acesso apenas para quem pode pagar pelo oferecimento de tal servio. Lovisolo (1999) ilustra tal noo ao afirmar que
Os campos de interveno tm nas sociedades ditas ocidentais, uma forte tendncia a gerar quase que ininterruptamente produtos ou processos, vistos quer como ondas da moda que podem rapidamente desaparecer, quer como inovaes significativas duradouras [...]. Essa dinmica caracteriza reas to dspares quanto as da [...] educao fsica e outras. [...] Os meios de comunicao prestam especial ateno aos lanamentos que realizam promessas relacionadas sade e longevidade. Diversos autores tm apontado que na sociedade dita ps-moderna os valores da sade e da longevidade [grifo do autor] aparecem como sendo quase os nicos consensuais, embora perigosamente separados das discusses sobre o significado da vida boa ou da vida plena que talvez ocupassem um lugar muito mais significativo no passado. Na rea da educao fsica, o ltimo produto lanado no mercado talvez seja o personal training , suscitando discusses, cursos, debates e experimentaes. (p. 17).

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Essa perspectiva de mercadorizao da sade, tambm suscetvel crtica, decorrente do espraiamento desse mote de idias totalizadoras, assume um carter emblemtico e busca, em ltima instncia, materializar a obteno da sade atravs da venda de produtos e servios. Tal argumentao pode ser verificada, por exemplo, nas incontveis ofertas de atividades fsicas em academias de ginstica, suplementos alimentcios, frmacos para emagrecimento, tratamentos em spas, seguros-sade, etc (Illich, 1982; Lefvre 1991; Paim e Almeida-Filho, 2000; Restrepo, 2001). Todavia, Courtine (1995) adverte que essa cultura de consumo no recente e j aparece na dcada de 1960, fortemente circunstanciada nas questes hedonistas do corpo e subscrita no modelo da american way of life (estilo de vida americano). O autor relata que,
As ambigidades desse hedonismo inscrevem-se, ainda, literalmente, em sua linguagem, isto , no carter paradoxal e na fora performtica desses enunciados obrigatrios que levam busca de um bem-estar na atividade fsica. Have fun: a alegria um dever moral, uma forma insistente de obrigao. No mesmo contexto, o bem-estar psicolgico ( feeling good ) entendido como uma conseqncia da forma fsica (being in shape) (Courtine, 1995, p. 101).

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Lefvre (1991) tambm refora que esse fenmeno de mercadorizao da sade no se d de forma repentina; ao contrrio, ele fruto de um longo processo histrico de expropriao da mesma, de perda de sua condio de premissa existencial humana para se transformar em algo apenas recuperado e recupervel no mercado de bens de consumo (p. 21). A idia, intencionalmente suscitada no imaginrio popular, de que seria possvel obter sade, atravs do acesso s atividades corporais oferecidas nesse nicho mercadolgico, ratifica a noo simblica de sade conquistada, quer seja pelo envolvimento em suas prticas, quer seja pela utilizao dos produtos a elas agregadas. Mas tal perspectiva, na sociedade capitalista e globalizada da contemporaneidade8, ambiciona ampliar ainda
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Que se reafirma como a sociedade de fluxo, numa irrefrevel e intensa volatilidade consumista.

mais essa dependncia; ainda segundo Lefvre (1991), para se oferecer a sade como mercadoria, preciso que se amplie o seu grau de necessidade. Alm disso, importante que essa necessidade seja percebida como algo natural, abstrato, igual para todas as classes sociais. Desta forma, o consumo transforma-se num ato unicamente individual de satisfao de necessidades dentro do poder aquisitivo de cada um. Se assumirmos a coerncia dessa noo, torna-se inteligvel a razo pela qual os elementos circunscritos no universo do fitness e da corpolatria alcanaram uma dimenso fetichizadora no contexto sociolgico da atualidade. A publicidade, propaganda e marketing atravs dos meios de comunicao de massa completam a corrente que liga o processo de produo dessas mercadorias ao de criao dos desejos e aspiraes de se obt-las. Outras Demarcaes para o Significado de Sade Ao contrrio do enfoque reducionista de sade que a Educao Fsica9 tem hegemonicamente advogado, permitindo para si um papel difusor de idias rasas e simplistas do tipo pratique exerccio e ganhe sade, as dimenses relacionais entre sade e sociedade tm sido proficuamente debatidas por outras reas do conhecimento. Do ponto de vista das relaes de produo, existem olhares que privilegiam, principalmente, as condies de sade das classes pobres e trabalhadoras (Garrafa, 1983; Engels, 1988; Moura, 1989; Granda e Breilh, 1989; Fleury, 1992; Dejours, 2002). Vrias crticas densas tambm foram formuladas quanto ao processo de tecnificao da medicina, ao poder de monoplio das grandes organizaes corporativas fabricantes de remdios e a medicalizao social (Illich, 1982; Castiel, 1994; Sigolo, 1998; Lefvre 1999; Boltanski, 2004; Bunton e Burrows, 2004). Assim, para no se tornar um exerccio intelectual esvaziado de propsito, conceber sade no pode representar unicamente a busca pela compreenso de terminologias e seus sentidos semnticos, mas antes, a considerao da complexidade de fatores entrecruzados econmicos,
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Por outro lado, preciso ressaltar que j existem debates consistentes na prpria rea, apresentados em estudos que se destacam, pelas perspectivas crticas de anlise acerca do fenmeno sade e suas interfaces (Maia, 1996; Maia, 1997; Della Fonte, 1997; Lovisolo, 2000; Mira, 2000; Carvalho, 2001; Palma, 2001a; Palma, 2001b; Lovisolo, 2002; Matiello Jnior, 2002; Fraga, 2003b; Nogueira e Palma, 2003; Fraga, 2005).

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polticos, e culturais que perpassam-na e a atribuio de sentido s repercusses sociais da decorrentes (Breilh, 1991). E mesmo que se adotem determinadas noes para express la, preciso reconhecer que definies, taxionomias e seus afins, so to somente instrumentos subjetivos empregados para auxiliar na tentativa de capturar o(s) significado(s) de determinado fenmeno, o que nem sempre exeqvel. Desse modo, por mais elaborado que seja o conceito, trata-se apenas de uma representao simblica imperfeita e parcial da realidade. Todavia, um dos ns que persiste no julgamento das prioridades de pesquisa em sade, em algumas reas acadmicas que a subordinam aos seus preceitos definitrios, talvez seja o uso instrumental indiscriminado de noes hierarquizantes e classificatrias, como forma de se enxergar (ou reduzir) os problemas que interferem nas condies da vida humana. Isso se torna ainda mais complicado na perspectiva das formulaes de polticas de interveno social para enfrentamento das agruras da sade, quando os aspectos concretos do cotidiano so, de certo modo, subvalorizados como critrios norteadores das preocupaes, em detrimento da exultao de ferramentas operativas abstratas e de carter perigosamente homogenizador. A ttulo de exemplificao, vale citar o recente emprego, em escala mundial, de inquritos validados para mensurar qualidade de vida10 (o que j , no mnimo, um paradoxo lingstico11), aplicados indistintamente, em pases ricos e pobres (Minayo et al., 2000). Tal quadro evidencia, portanto, opes valorativas de parte da comunidade cientfica, as quais tm determinado um direcionamento preferencial pela operacionalizao desses conceitos em sade (e pela agregao de seu arsenal utilitarista), ao invs da explorao de outras possveis interfaces metodolgicas que tangenciam melhor a realidade, fato este, bastante significativo. Com toda cautela, preciso lembrar que a cincia constitui-se, antes de tudo, como uma das atividades mais genunas e representativas da cultura
10 A respeito da subjetividade desse conceito e das incongruncias inerentes ao seu emprego no contexto
da sade, verificar os comentrios de Segre e Ferraz (1997).
11 Segundo Ferreira (1986), qualidade um substantivo feminino; aspecto sensvel, e que no pode ser
medido [grifo nosso], das coisas (p. 1424).

humana, ainda que sua dimenso iluminista utpica de um promissor progresso estendido a toda populao mundial anunciado, sobretudo pela cincia mdica tenha se perdido no seu discurso histrico. Nesse sentido, ao analisar com maior detalhamento a atuao epidemiolgica nas investigaes em sade, Jos da Rocha Carvalheiro admite que nem sempre ela se dirige, de fato, ao coletivo populacional tomado como objeto de investigao. Ele afirma que freqentemente, este coletivo meramente estratgico para superar a variabilidade biolgica individual. (Granda e Breilh, 1989, p. 1). E continua: uma descrio deste objeto, com base cientfica, nunca neutra [grifo nosso]. Tem que ver com a concepo de mundo do investigador, com a teoria que est por trs de sua concepo da sociedade. Tradicionalmente, a populao tratada, pela Epidemiologia e pela prpria Demografia, como um todo homogneo (Granda e Breilh, 1989, p. 2). Almeida Filho (1992) complementa tal percepo ao tecer comentrios crticos sobre o eixo norteador da epidemiologia na dcada de 1980: para os epidemiologistas, a natureza essencialmente empiricista da sua prtica cientfica apresenta-se como um suposto fundamental, axiomtico, indiscutvel. Empiricismo aqui referido como o referencial [...] que apreenderia a realidade sem mediaes, sendo os conceitos cientficos imediatamente redutveis observao (p. 25). Para o autor, a prtica disciplinar de campo da epidemiologia na atualidade parece no ter abandonado essa percepo, que se destaca no aforismo de John Locke: No direct measurement, no basic concept (p. 26); ou seja, s aquilo que for mensurvel passvel de um tratamento cientfico. Sob esse juzo, s seria possvel conceder uma outorga cientifica para qualquer fenmeno estudado, se fosse vivel criar indicadores quantificveis. Essa crena baseia-se na concepo positivista de cincia, que se considera neutra, livre de julgamentos valorativos. Para Minayo (1993), esse foi o fio condutor que acabou fortalecendo o emprego de termos matemticos nas investigaes da rea, como a linguagem das variveis e a sistematizao dos mtodos quantitativos. Manter um posicionamento crtico, interrogando-nos, permanentemente, sobre os ditames certificadores de

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correntes hegemnicas em pesquisa necessidade premente, no s no campo da sade. At porque, multiplicam-se a todo momento as estratgias de entidades internacionais (OMS12, por exemplo) que, a partir de achados em estudos epidemiolgicos, tm buscado estabelecer em abrangncia global, quais formas de comportamento podem ser consideradas saudveis e de risco s pessoas (vide campanhas de preveno da AIDS, contra o fumo, o sedentarismo, etc). No entanto, mais do que recomendaes sade, tais normas engendram com sutileza, aspectos descontextualizados, preconceituosos e elitistas, j que nem sempre suas preconizaes so factveis a todas as naes e aos diferentes estratos sociais daquelas que as adotam (Castiel, 2002). Em tempos de uma perigosa fuso entre os avanos tecnolgicos da biomedicina, a mdia e o mercado, no h como negar que nossas vidas so assoladas diariamente no cenrio contemporneo, com a profuso de discursos cientificistas quase inexpugnveis, especialmente se olharmos para as questes relativas ao processo sade-doena. Vale lembrar as palavras de Nogueira (2003) quando destaca uma das crticas centrais do sagaz intelectual Ivan Illich, tecida modernidade mdica e sua exacerbada tecnificao instrumental: [...] o consumo intensivo da medicina moderna uma forma de dependncia, no sentido especfico de dependncia a uma droga. Essa forma de dependncia assegurada, de um lado, pela monopolizao do exerccio profissional dos mdicos e, de outro, pela confiana que os leigos depositam gratuitamente nos agentes da medicina (2003, p. 27). Outro aspecto dessa nova configurao hbrida da sade humana no sculo XXI, diz respeito ao Projeto Genoma13, cujas descobertas j alcanaram grande notoriedade pela divulgao nos meios de comunicao em massa. So conhecidas as promessas feitas em pblico pelos cientistas, de como a engenharia gentica poder modificar
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Organizao Mundial da Sade Lucien Sfez (1995), em sua densa obra intitulada A sade perfeita: crtica a uma nova utopia, defende a idia de que frente ao insucesso das promessas iluministas da cincia, surge uma nova dimenso utpica da humanidade na virada do sculo, constituda pelos Projetos Biosfera II, Artificial Life e Genoma, que representariam a busca desenfreada pela juventude eterna e pela cura de todas as enfermidades que assolam o homem e o ecossistema do planeta.

positivamente a sade de toda populao mundial. Esses falaciosos enunciados deixam escapar, intencionalmente, um sentido futurstico de prevalncia quanto a um suposto acesso majoritrio das pessoas s benesses proporcionadas pela manipulao gnica, fato em parte, inverossmil, considerando o alto custo das tcnicas e produtos pertencentes mega indstria de biotecnologia e, a desigualdade scio-econmica instaurada no mundo, sobretudo nos pases mais pobres (Kottow, 2002; Cardoso e Castiel, 2003). Em sntese, razovel dizer que boa parte das pessoas s poder ser beneficiria se tiver poder aquisitivo para pagar pelo consumo de tais servios. Mesmo diante de algumas supostas incongruncias imbricadas no panorama lato sensu da sade (por vezes, veladamente), no seria sensato execrar o papel da cincia e dos pesquisadores na tentativa de conseguir avanos para minimizar males ou doenas da coletividade humana. No se trata disso. Mas, preciso reconhecer que, antes de tudo, o emprego destinado s descobertas cientificas, assim como a deciso do que deve ser pesquisado (onde, porque, para que e para quem), so sim opes valorativas legtimas da vontade humana e, portanto, parciais e intrinsecamente sujeitas a erros e preferncias de julgamento pessoal. tarefa igualmente imprescindvel comunidade acadmica, suscitar mecanismos para que as diferentes reas do conhecimento estabeleam um criterioso e perene exerccio de reflexo, na identificao dos juzos que subjazem as concepes de sade defendidas pelos seus profissionais, uma vez que so esses aspectos que norteiam as prioridades nos respectivos campos de interveno social. Ser que apesar do que foi exposto at aqui, caberia ainda perguntar, mas afinal de contas, o que sade? Mesmo correndo o risco da provvel impreciso, acreditamos na conotao veiculada pelas disciplinas da Sade Pblica e das Cincias Sociais que advogam ser um conjunto de elementos associados ao suprimento das necessidades humanas. Complementarmente, o marco histrico brasileiro poltico e social da VIII Conferncia Nacional da Sade realizada em 1986, empresta um relevante significado ao fenmeno

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(superando inclusive, outras concepes dicotmicas 14 difundidas anteriormente pela OMS): em sentido mais abrangente, a sade resultante das condies de alimentao, habitao, educao, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos servios de sade. assim, antes de tudo, o resultado das formas de organizao social da produo, as quais podem gerar desigualdades nos nveis de vida. (Fleury, 1992, p. 170). Ivan Illich pensa que
[...] a sade designa um processo de adaptao. No o resultado de instinto, mas uma reao autnoma, embora culturalmente moldada, diante da realidade socialmente criada. Ela designa a habilidade de adaptar-se aos ambientes mutveis, ao crescimento e ao envelhecimento, cura quando enfermo, ao sofrimento e expectativa pacfica da morte. A sade abrange o futuro tambm e, portanto, inclui a angstia assim como os recursos internos para conviver com ela (Nogueira, 2003, p. 5).

Sublinhamos uma ltima interpretao, de Dejours


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(1986):
a sade a liberdade de dar ao corpo [...] de comer quando tem fome, de faz-lo dormir quando tem sono, de dar-lhe acar quando baixa a glicemia. No anormal estar cansado ou com sono, no anormal ter uma gripe [...]. Pode at ser normal ter algumas enfermidades. O que no normal no poder cuidar dessa enfermidade, no poder ir para a cama, deixar-se levar pela enfermidade [...] (p. 11).

A complexidade que perpassa o breve panorama de recortes esboado no texto, leva pensar que no tarefa fcil analisar ou tentar conceber a sade. Mas, julgamos que se faz necessrio investir nas perspectivas de compreenso do fenmeno a partir de um olhar menos centrado no paradigma biomdico e mais atento aos corpos sociais. Isto se, de fato, quisermos referendar-lhe seu primordial significado como representante legtimo de aspiraes, idias e prticas
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A Organizao Mundial da Sade (OMS) diz que sade um estado de completo bem-estar fsico, mental e social e no apenas a ausncia de doena ou enfermidade; tal concepo mostra-se esttica e impossvel de ser alcanada, uma vez que no compreende o fenmeno sade a partir de um processo dinmico, onde a doena seria uma nova dimenso da vida e, portanto, no poderiam estar dissociadas uma da outra. De todo modo, h ainda a necessidade de se considerar que completo bem-estar expressa a total ausncia de problemas, idia utpica para a condio humana (Nogueira e Palma, 2003).

convergentes melhoria das condies da vida humana num sentido mais amplo; se, realmente, pretendermos galgar estratgias para superao das agruras e males coletivos da sade social, em detrimento do contexto individualistaprivado que prev e privilegia resoluo dos problemas de sade, priori, para quem pode pagar por ela. Guiar-nos nesta desafiadora tarefa de reinterpretao dos sentidos da sade a partir de alguns pressupostos e experincias produzidos e acumulados pela Sade Coletiva, pode ser bastante auspicioso, especialmente sendo a Educao Fsica uma rea cuja matriz terico-cientfica ainda lacnica e permanece em formao, mas, sobretudo porque, a rigor, pouco tem investido nas problemticas que permeiam a dimenso sociolgica da sade. Nesse sentido, importa esclarecer que o campo da Sade Coletiva designa um agregado de saberes e prticas referido sade como fenmeno social e, portanto, de interesse pblico. As origens do movimento de constituio dessa rea remontam ao trabalho terico e poltico empreendido por pesquisadores de departamentos de instituies universitrias e de escolas de Sade Pblica da Amrica Latina e do Brasil, em particular, ao longo das duas ltimas dcadas. A profcua atividade desenvolvida no campo cientfico da Sade Coletiva deu suporte a um embate poltico iniciado em meados de 1970, em torno da crise da sade, contextualizada nas lutas ideolgicas do pas naquele tempo. Esse movimento difundiu-se entre as mais diferentes instncias organizacionais da sociedade, contribuindo para a formulao e execuo de um conjunto de mudanas identificadas como a Reforma Sanitria Brasileira. As proposies desse movimento incluram significativa alterao na concepo de sade, ao postular mudanas no modelo gerencial, organizativo e operativo do sistema de servios pblicos de sade, na formao e capacitao de pessoal no setor, no desenvolvimento cientfico e tecnolgico nesta rea e, principalmente, nos nveis de participao crtica e criativa dos diversos atores envolvidos no processo de reorientao das polticas econmicas, sociais e sanitrias, tendo em vista a melhoria dos nveis de vida e a reduo das profundas iniqidades j instauradas no pas.

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Feitas essas consideraes, talvez seja prudente ressalvar uma ltima questo. Quando sugerimos um estreitamento interdisciplinar (terico-metodolgico) entre Sade Coletiva e Educao Fsica, no significa que desejamos desconsiderar ou excluir os conhecimentos fisiolgicos inerentes aos aspectos da sade e da doena, sabidamente relevantes. A pretenso, de fato, exultar a promissora aproximao entre as dimenses scio-culturais e econmicas e as de carter individual e biolgico nas incurses investigativas sobre a sade, na expectativa de incitar os pesquisadores da Educao Fsica, a perceberem a possibilidade de se produzir inferncias mais consistentes sobre a realidade, nesses estudos temticos. J h bons indcios entre nossos pares de que talvez a Educao Fsica esteja dando mostras de seu amadurecimento como campo cientfico e de interveno, inclusive, em decorrncia de uma interrogao mais veemente sobre seu pertencimento exclusivo a um papel majoritrio de promotor de atividades fsicas. Entendemos que para poder se reconhecer, efetivamente, como rea pertencente ao campo da Sade Coletiva, a Educao Fsica precisa incorporar uma mudana crtica do prprio conceito de sade que tem defendido, ressaltando antes de tudo, as inter-relaes com a eqidade social, postura que, de forma alguma, a far perder sua especificidade e legitimidade frente s questes da motricidade humana. Parece coerente admitir que para ocorrer tal avano, a rea precise expugnar todo o arsenal de discursos e aes pragmticas moralizantes utilizados para combater o sedentarismo, idia que se tornou to cara rea nas ltimas dcadas. Vivemos um certo paroxismo mensurativo nos dias de hoje, sobretudo, em relao s prticas de preveno a doenas, propaladas pela biomedicina (e suas dimenses correlatas). Contudo, apesar de novos instrumentos conseguirem descrever, cada vez melhor, distintos fenmenos fisiolgicos do processo sade-doena no organismo humano, simultaneamente, essa euforia de sucessivos avanos tecnocientficos tem deixado muito para trs, perdido de vista, a preocupao com a condio da vida humana, sobretudo em sua dimenso coletiva. Ser que a Educao Fsica,

enquanto rea ou disciplina que se pretende cientfica, subjugada e subjacente a essa euforia de conquistas e inovaes tecnoinstrumentais inesgotveis, no tem reforado tal viso (ao invs de interrog-la) ? mais do que passada a hora de nos colocarmos crtica, tentando desenvolver, com toda cautela e perplexidade necessrias, uma anlise dialgica com outros campos do saber, sobretudo aqueles que privilegiam discutir as questes profundamente demarcadas pelas desigualdades sociais dos tempos atuais, no aceitando-as como um curso natural da histria da humanidade. A Educao Fsica postada como campo de atuao social e cientfica, mas que se ancora numa prxis, onde ainda predominam incurses mensurativas que objetivam classificar comportamentos de risco e de sade, precisa se interrogar urgentemente, sobre essas questes. Referncias ALMEIDA FILHO, N. A Clnica e a Epidemiologia. Salvador: Apce/Abrasco, 1992. AZEVEDO, F. Da Educao Physica. So Paulo: Melhoramentos, 1920. BREILH, J. Epidemiologia: economia, poltica e sade. So Paulo: Unesp/Hucitec, 1991. BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. 4. ed. So Paulo: Paz e Terra, 2004. BUNTON, R.; BURROWS, R. Consumption and health in the epidemiological clinic of late modern medicine. In: BUNTON, R.; NETTLETON, S.; BURROWS, R. (Org.). The sociology of health promotion: critical analyses of consumption, lifestyle and risk. London: Routledge, 2004. p.206-222. CARDOSO, M.H.C.A.; CASTIEL, L.D. Sade coletiva, nova gentica e eugenia do mercado. Cadernos de Sade Pblica, v. 19, n. 2, p. 653-662, 2003.

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POLTICAS PBLICAS DE SADE NO BRASIL

Marco Aurlio Da Ros

POLTICAS PBLICAS DE SADE NO BRASIL

Marco Aurlio Da Ros

1. Premissas iniciais
Um referencial importante para iniciar uma reflexo sobre Polticas Pblicas de Sade no Brasil pode ser localizado no Movimento Europeu de Medicina Social do sculo XIX. Rosen (1980) relata que esse Movimento, localizado em termos cronolgicos, aproximadamente entre 1830 e 1870, difundiuse na Europa e coincidiu com os Movimentos pela transformao do capitalismo, que vivia uma de suas fases de maior crueldade. Alguns filmes (produes cinematogrficas) explicitam essas condies como Daens: um grito de justia ou Germinal. Estes, mais o livro de Engels (1986), intitulado A situao da classe trabalhadora na Inglaterra, demonstram a alta mortalidade e superexplorao da fora de trabalho. Em um ambiente sem saneamento, grvidas e menores de 10 anos, trabalhavam mais de 14 horas de trabalho por dia em fbricas sem janelas, em troca de pouca comida. Nesse ambiente grassavam epidemias e os mdicos eram chamados para tentar deter a morbi-mortalidade. E a era evidente que as condies scio-econmicas eram determinantes. Portanto, a proposta de mudar o modo de produo era condio para alterar o processo sade-doena da populao. Villerm na Frana, Grosjahn na Blgica, Chadwick na Inglaterra e Virchow e Neumann na Prssia personificavam alguns dos elaboradores do Movimento de Medicina Social (DA ROS, 2000). Virchow e Neumann, em 1847, conseguem a aprovao da lei de Sade Pblica prussiana que, se fosse apresentada de forma sinttica, poderia ser resumida como: sade, direito de todos, dever do Estado. O Movimento d uma explicao social para o processo sade-doena e tende a tornar-se hegemnico enquanto

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modelo explicativo: mudem-se as condies da sociedade que acabam as epidemias e transforma-se o perfil das patologias. Claro que este Movimento chocava-se com o poder dominante e seus responsveis, que relutavam em aceitar as prescries de Virchow, tais como: reduo da jornada de trabalho, tempo para lazer, salrios suficientes para alimentar toda a famlia com abundncia, menores de 12 anos no trabalharem, saneamento nas fbricas, etc... Isto implicava em afrontar o capitalismo nessa fase de expanso/acumulao. Caso o trabalhador no aceitasse aquelas condies, havia um imenso exrcito de desempregados pronto para substitu lo. Portanto, porque investir em mudana? Com a descoberta da associao causal entre a bactria e a doena, a partir de Pasteur, ao invs de se aumentar o potencial explicativo do processo sade-doena, ocorreu uma ruptura, sintetizada por Behring em 1896, na Prssia, com um sentido que expressava aproximadamente o seguinte: Agora, com a descoberta das bactrias, desnudada a causa das doenas, o mdico no precisa mais se preocupar com a sociedade (ROSEN, 1980). E esse passou a ser o modelo hegemnico ao final do sculo XIX incio do sculo XX: o modelo unicausal de explicao da doena, negador da determinao social do processo. Uma outra reflexo, que se superpe a esta, a forma como se estabelece o modelo mdico norte-americano. A Rockfeller Foundation, um dos pilares do modelo capitalista norte-americano financiou a Johns Hopkins University, no incio do sculo XX (DA ROS, 2000). Nesse local, originou-se um modelo de ensino de medicina centrado na unicausalidade, biologicista, hospitalocntrico, fragmentado, detentor da verdade cientfica, positivista. Dessa universidade foi chamado um professor, Abraham Flexner, para fazer uma investigao sobre as faculdades de medicina dos Estados Unidos da Amrica (EUA). Em 1910, foi publicado um relatrio, chamado de Relatrio Flexner , que em sntese, sugeria o nofinanciamento de faculdades de medicina que contemplassem outros modelos de entendimento do processo sade-doena, diferentes da Johns Hopkins University (MENDES, 1985). Dessa forma, em menos de 5 anos foram fechadas mais de 100

faculdades norte-americanas: aquelas que enfatizavam Sade Pblica, ensinavam homeopatia, acupuntura, fitoterapia ou, que aceitavam negros e mulheres (CUTOLO, 2001). E se estabelecia um modelo claramente hegemnico de medicina especializada medicina/cincia/verdade no hospital. A utilizao de exames e medicamentos passa a ser superestimulada e se desenvolvem as bases para o poderoso complexo mdico-industrial, com imensos lucros por sobre as doenas. Com isso, as Cincias Sociais, definitivamente, no cabiam no entendimento vigente, nem a Sade Pblica, nem a dimenso psicolgica. Essa mesma universidade norteamericana, em 1918, entendeu que Sade Pblica poderia ser ensinada como um curso de especializao, depois da graduao, o que a fez propr, na poca, o primeiro curso nos EUA. Dois professores da Faculdade de Medicina de So Paulo fizeram esse curso e voltaram para o Brasil com a idia de formar uma faculdade de Sade Pblica. A Rockfeller Foundation fez, nesse perodo, uma doao para a construo do prdio, com a exigncia de que o diretor dessa escola fosse indicado pela entidade norte-americana (VASCONCELLOS, 1995). Samuel Darling dirigiu por trs anos o Instituto de Higiene (que no se tornou a Faculdade de Sade Pblica) estabelecendo diretrizes para as investigaes: unicausalidade biologia de vetores em educao e, a culpabilizao da vtima. Isto marcou por muito tempo a lgica da Sade Pblica no Brasil (DA ROS, 2000). Uma terceira reflexo, antes de iniciar propriamente a discusso das Polticas Pblicas de Sade, diz respeito epistemologia ou, resumidamente, como se constri o conhecimento. No desenvolvimento da cincia, o positivismo e os detentores da verdade nica, foram superados desde as contestaes ao crculo de Viena, mas, especialmente, pelo entendimento de que existe um processo permanente de desvelamento, que constri permanentemente novas verdades provisrias. Este novo conhecimento podemos chamar de princpio do conhecimento mximo (FLECK, 1986), o qual teria, supostamente, potencial explicativo para superar ou incorporar os conhecimentos anteriores. Mas, tambm se pode entender, com este autor, que estilos de pensamento antigos tendem a persistir no tempo e, no caso

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do positivismo, sendo impermevel (incomensurvel) a qualquer outra lgica diferente da sua, tornada, ento, como a verdadeira. Portanto, com essas trs premissas que acredito que podemos refletir melhor sobre as Polticas Pblicas de Sade no Brasil. 2. Condies para instalao do Modelo Brasileiro Fao ento, por opo explicativa, um corte histrico que nos remete assim, dcada de 1960, o ponto que considero importante para as definies em pauta, ainda hoje. As Polticas Pblicas de Sade anteriores a essa poca podem ser resumidas ao sanitarismo-campanhista (lgica do Ministrio da Sade) e a um modelo de ateno doena baseado nos IAPs (Institutos de Aposentadoria Privada antigos fundos de aposentadorias e penses) para os trabalhadores organizados. Em 1963, por exemplo, o IAPI (dos industririos), o mais organizado dos institutos, cobrava 3% dos trabalhadores e igual contribuio dos patres. Com esse recurso tinha hospitais prprios, corpo de mdicos e enfermeiros, equipamentos de ltima gerao e ambulatrios gerais. O recurso era suficiente para garantir as penses/ aposentadorias e para financiar casas prprias, as vilas do IAPI (dos industririos) existentes nas cidades industrializadas do Brasil naquela poca. O Ministrio da Sade era encarregado da preveno das doenas. Detinha 8% do oramento da unio e realizava desde perfurao de poos at confeco de fossas e operaes mata-mosquitos, bem como mantinha Centros de Sade para atender as grandes endemias de hansenase, tuberculose, verminose. Caiava casas para a preveno de Doena de Chagas. J a medicina privada no Brasil, naquela poca, apresentava um forte trao europeu, mais ecltico que o modelo fragmentador norte-americano e a nfase ainda centrava-se na atuao de mdicos generalistas e de famlia (DA ROS, 2000). A populao pobre dependia de hospitais de caridade, Santas Casas de Misericrdia, normalmente, sob a responsabilidade da Igreja. Tnhamos at ento, 26 faculdades de medicina no pas. Em 1963, Paulo Freire colaborou com o Ministrio da Educao para estimular o Movimento Estudantil organizado na Unio dos Estudantes (UNE), de forma que

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este colocasse seus conhecimentos disposio da populao na poca das frias escolares. O Movimento Estudantil se iniciava j na primeira srie ginasial (equivalente, hoje, sexta srie do primeiro grau) e se discutia muito um modelo de desenvolvimento para o Brasil. Como em 1959 havia eclodido uma revoluo em Cuba, os norte-americanos se tornaram apreensivos com democracias que permitiam organizaes populares/polticas que contestavam a explorao capitalista. Em 1 de abril de 1964, deu-se um golpe militar contra um presidente legitimamente eleito, o qual foi financiado e pensado, em conjunto, pelo governo dos EUA e pelos militares brasileiros. Instalou-se, a partir da, uma ditadura onde os pensamentos contrrios a ela foram duramente perseguidos com ameaas, cadeia, exlio ou mesmo morte. A censura passou a ser exercida em todos os meios de comunicao. Houve interveno nos sindicatos, fechamento da UNE, tendo inclusive, sua sede queimada. Esse golpe determinou extensas modificaes em relao ao patamar anterior. Proponho colocar mais 10 anos de intervalo, 1973 1974, para tirar outro retrato da situao e avaliar o que ocorreu nesse outro perodo. Os IAPs foram desapropriados e passaram a ser hospitais governamentais submetidos ao MPAS (Ministrio da Previdncia e Assistncia Social) que, em mdia, alocava 25% do que arrecadava para o setor sade. Sua alocao era, em teoria, tripartite e j no mais de 3% e, sim, de 6% do salrio do trabalhador e de 6% do recurso do patro (que nem sempre pagava e que ainda recebia do governo anistia da dvida a cada cinco anos de sonegao, gerando novos no-pagantes). Este recurso do MPAS, (que deveria gerar lastro para o financiamento e assegurar os benefcios no futuro) foi pulverizado: a) financiando as grandes obras do BrasilPotncia (Hidreltrica de Itaipu, Usina de Angra dos Reis, Ponte RioNiteri, Rodovia Transamaznica); b) financiando a construo de hospitais privados e comprando exames e medicamentos do mercado privado; c) com corrupo disseminada em todos os nveis, desde as aposentadorias falsas, pacientes inexistentes at exames inventados, diagnsticos falsos, superfaturamento do material de consumo utilizado e pagamento por Unidades de Servio (US) quanto mais sofisticado o ato, mais caro

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se pagava por ele. O emprstimo com dinheiro da Previdncia para a construo de hospitais consistia em at 10 anos de no-pagamento, para o setor privado. Aps isso, que o recurso comearia a ser pago, sem juros e sem correo monetria; d) porque se hipertrofiou a compra de aparelhos de exames sofisticados (muitos deles desnecessrios), bem como ocorreu uma verdadeira exploso de construo de hospitais e de compra de medicamentos. O Ministrio da Sade teve, ento, reduo no seu oramento de 8% para 0,8% permitindo o ressurgimento de epidemias relativamente controladas. Criou-se uma central de medicamentos cuja principal funo passou a ser a de ampliar a possibilidade do remdio privado chegar populao pobre, aumentando muito os lucros dos fabricantes. Associado ao que ocorre na formao do mdico e do farmacutico isso fez com que o Brasil se tornasse um dos dois pases (junto com o Mxico) com maior nmero de medicamentos com patentes comerciais, absolutamente sem controle. Ento, as grandes bases para o complexo mdico-industrial estavam ali plantadas hospitais, equipamentos e medicamentos. Faltava mexer na formao profissional. Em 1968, a Reforma Universitria, entre outras intenes, buscava reprimir a possibilidade de organizao estudantil, mas, em especial, na rea da sade recomendada para a medicina, alm da adoo do modelo Flexneriano, a supresso da disciplina de teraputica, o que tornou os alunos refns dos representantes de laboratrios (estes, por sua vez, se travestiam de ensinadores do funcionamento dos medicamentos). No curso de Farmcia-Bioqumica foi suprimida a disciplina de Farmacognosia (conhecimentos de onde so extrados os princpios ativos dos medicamentos) e de Farmacotcnica (como se transformam em produto de venda, os princpios ativos) assegurando que tornvamo-nos somente consumidores do medicamento pronto vendido pelas multinacionais (KUCINSKI e LEDOGAR, 1977). Em menos de 10 anos saltamos de 26 para 56 faculdades de medicina e todas essas novas escolas tinham, obrigatoriamente, o modelo biologicista, hospitalocntrico, fragmentado e com estmulo ao positivismo como referncia, em busca da verdade dos exames feitos por aparelhos cada

vez mais sofisticados e com a teoria unicausal (j superada internacionalmente), posando de modernidade. Tudo isso ocorreu sob a impossibilidade de denncia ou de reao, que seria entendida, pelos militares e seus rgos de segurana, como subverso. De 1964 a 1973 foram dez anos de represso forte. Nesses anos, o complexo mdico-industrial brasileiro se fortaleceu em nveis inimaginveis. Elegeu deputados, senadores, governadores. Ministros de Estado viabilizavam seus interesses e a Poltica Pblica de Sade era formulada de acordo com o interesse de fortalecimento desse complexo. O discurso vigente era que, em primeiro lugar, o governo faria o bolo financeiro crescer para depois ser repartido. Mas em 1973, com a primeira crise internacional do petrleo, ocorreram srias conseqncias para os pases capitalistas dependentes, o que acabou desencadeando a primeira grande crise do governo militar. Em funo disso, parte do governo militar comea a buscar outras sadas, inclusive para o modelo de sade, buscando ajuda nos setores at ento proibidos de se falar. A prpria ESG (Escola Superior de Guerra - a base da inteligentzia militar) denunciou a diminuio das condies de sade dos candidatos ao servio militar, dizendo que nesses dez anos aumentara, significativamente, o nmero de cries nos brasileiros, o percentual de verminoses, a altura mdia havia diminudo, alm de terem eclodido epidemias at ento relativamente sob controle, como malria, esquistossomose, Doena de Chagas, febre amarela, em funo da diminuio extrema de recursos para medidas preventivas do Ministrio da Sade. As condies materiais de existncia, na poca, permitiram dessa forma, que surgissem os movimentos contra: a prpria ditadura militar e, na rea de sade, apareceu, ento, a contra-hegemonia ao modelo Flexneriano e ao modelo unicausal e s atividades do complexo mdico-industrial, defendendo um sistema hierarquizado de sade, em que prticas curativas e preventivas estivessem dentro de um comando ministerial nico. A inteno deste artigo caracterizar as Polticas Pblicas de Sade no Brasil da dcada de 1960/1970, como uma proposta positivista, unicausal, Flexneriana, voltada aos

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interesses do capitalismo e que se sustentava na base da ditadura militar, em contraponto s novas foras emergentes a partir da dcada de 1970, que irei caracterizar a seguir. Este novo pensamento, em oposio ao complexo mdico-industrial, pode ser simbolizado pelo chamado Movimento pela Reforma Sanitria ou simplesmente Movimento Sanitrio. Naquele perodo histrico do pas, vrios movimentos, separadamente, iniciaram uma contraposio poltica hegemnica. Os preventivistas do Ministrio da Sade, pleiteavam recursos para reiniciar medicina preventiva e denunciavam o gasto com a ateno curativa. Os publicistas do INAMPS lembravam que nos tempos das IAPs, os recursos eram para a construo de hospitais e compra de equipamentos prprios. Estes conclamavam, ainda, que o dinheiro pblico deveria ser usado para equipamentos pblicos. Denunciavam tambm que a forma de pagamento por unidades de servio (US), era uma fonte incontrolvel de corrupo. Por exemplo, na poca se pagava mais US por parto cesreo do que por parto normal e com isso, na poca, o Brasil foi campeo mundial de cesarianas. A Igreja se organizou nas pastorais de sade, criando os ENEMECs (Encontros Nacionais de Experincias em Medicina Comunitria) e defendendo o uso de fitoterapia. Os antigos militantes da UNE, hoje profissionais e professores universitrios se organizaram em experincias de integrao docente assistencial e produziram resistncias ao Movimento Mdico Privatista, por exemplo, criando o Movimento de Renovao Mdica (REME) e o Centro Brasileiro de Estudos de Sade (CEBES) que passou a ter um vnculo de discusso de situao de sade brasileira e a editar uma revista intitulada Sade em Debate, publicada at hoje. Os antigos estudantes secundaristas, eventualmente na rea da sade, foram proibidos de se reunir para discutir poltica, mas para fazer encontros cientficos havia permisso. Os estudantes de medicina organizaram-se nos ECEMs (Encontros Cientficos dos Estudantes de Medicina) onde os publicistas, preventivistas, pastoral da sade e CEBES foram os palestrantes. Em 1976, nasceu tambm a primeira residncia em Sade Comunitria, na Unidade Sanitria Murialdo, em Porto

Alegre e, rapidamente, junto com outras que se conformaram nessa poca, se tornou mais um Movimento contra hegemnico. Ainda no mesmo ano, todos os Movimentos se encontraram em So Paulo, percebendo que compunham, do ponto de vista ideolgico, um Movimento nico com causas em comum: pleiteavam o fim da ditadura militar, um Sistema nico de Sade e eram contrrios aos interesses do complexo mdico-industrial. Nascia assim, o chamado Movimento pela Reforma Sanitria (DA ROS, 1995). 3. Ventos de mudana Pode-se dizer que desde 1976 at hoje as Polticas de Sade continuam se construindo na tenso entre essas duas foras. At 1985, com vitrias claras do complexo mdico-industrial e, a partir do fim da ditadura, com algum equilbrio de foras. Em 1975, existiu uma primeira tentativa de criar um Sistema Nacional de Sade, tendo sido tema da 5a Conferncia Nacional de Sade. Como conseqncia, formulou-se a Lei 6229, mas a mesma no passa do papel. Em 1980, na 7a Conferncia Nacional, pela primeira vez o CEBES foi convidado a participar e colaborar para a apresentao de uma proposta chamada PREV-Sade, que fundiria dois ministrios e comearia a repassar recursos para os municpios. Essa proposta criou uma porta de entrada (os postos de sade) com alta resolutividade; uma lista de medicamentos prioritrios bsicos; e assalariava os profissionais de sade. Apesar de colocada para discusso nacional com a assinatura dos Ministros da Sade e da Previdncia, os Ncleos do CEBES, que discutiram a proposta, tiveram parte de seus membros presos pela Polcia Federal, pelo fato de quererem um Sistema de Sade decente para a populao. Enquanto se realizava a 7a Conferncia, o presidente do INAMPS foi aos jornais denunciar que a proposta do PREVSade era estatizante, estragava a profisso mdica e era coisa de comunistas. Ato contnuo, foi publicada uma lista de funcionrios de ambos os ministrios com supostas ligaes com partidos de esquerda clandestinos, o que acaba gerando a expurgao de mais de 100 funcionrios dos ministrios. Como efeito cascata, vrios funcionrios estaduais e

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municipais ligados ao Movimento Sanitrio sofreram perseguies polticas. Apesar disso, como a utilizao dos recursos financeiros estatais era crescente no setor sade, naquele momento, faces do governo militar insistiam em apoiar o modelo defendido pelo Movimento Sanitrio. Em 1981 foi criado o Conselho Superior de Previdncia, estabelecendo parmetros de resolutividade para internao e controlando, pelo menos parcialmente, a corrupo reinante nos hospitais privados (que cobravam do dinheiro pblico). Em 1982, criou-se um programa piloto PAIS (Programa de Aes Integradas de Sade) com um municpio em cada estado recebendo recursos dos dois ministrios para viabilizar sade. Em 1983, com a avaliao positiva, este Programa tornou-se estratgia da Poltica Ministerial e as AIS (Aes Integradas de Sade) passaram a ser a Poltica prioritria de ambos os ministrios. Estas centravam-se nos municpios, que para obter recursos, deveriam apresentar um Plano Municipal de Sade e ter uma comisso interinstitucional de sade para acompanhamento do Programa. Considera-se que as AIS foram a grande matriz para o SUS. Algumas experincias dignas de nota, anteriores criao destes Planos, dizem respeito a municpios que iniciaram o investimento na rea da sade por conta prpria, como Londrina e Niteri. E importante relatar tambm, a experincia pioneira de modificao curricular da UFMG, em 1976, que criou o Internato Rural obrigatrio, para estudantes de medicina na regio de Montes Claros, em Minas Gerais. Em Santa Catarina uma experincia pioneira foi levada a cabo pela Cooperalfa, em parceria com o Departamento de Sade Pblica da UFSC, trabalhando um modelo de sade comunitria na rea rural de sete municpios da regio de Chapec, entre 1980 e 1982, com equipes multiprofissionais, agentes comunitrios de sade, envolvendo-se com a mobilizao da comunidade e visitas domiciliares, alm claro da proposta de ateno doena, com a contratao de mdicos e enfermeiros. Com a criao das AIS, Cricima, em Santa Catarina, passou a ser o municpio modelo do Estado, com uma expanso da rede municipal, em convnio com a Secretaria Estadual de

Sade e atuando integrado com o INAMPS. Foi tal a importncia da experincia, que chegou a se promover um curso de especializao em Sade Pblica reconhecido pela ENSP/FIOCRUZ e o professor de planejamento foi Mario Testa (reconhecido como uma das grandes autoridades mundiais no pensamento estratgico em sade). No referido perodo, a ditadura brasileira agonizava e o Movimento Sanitrio crescia nas municipalidades. Isto fugia ao controle do complexo mdico-industrial instalado imperialmente em Braslia e j sem foras locais fortes nos municpios, para enfrentar um Movimento Social organizado. Aps o Movimento pelas Diretas J e os acordos de cpula feitos pelos partidos da poca, ficou estabelecida a eleio presidencial indireta, referendada por um colgio eleitoral. Com a definio da candidatura Tancredo Neves, este montou sua proposta ministerial, colocando em espaos fundamentais da sade, pessoas do Movimento Sanitrio. Com sua morte, ocorreu a posse e ascenso de Jos Sarney, o qual no alterou, inicialmente, os acordos pactuados por Tancredo. Assim, se iniciava a Nova Repblica, com Hsio Cordeiro como presidente do INAMPS e, com Srgio Arouca na presidncia da FIOCRUZ e no Ministrio da Sade. Ambos haviam sido presidentes nacionais do CEBES. Hsio, sabedor que seu cargo era cobiado pelos representantes do complexo mdico-industrial, tratou de radicalizar a proposta das AIS, criando o Sistema Unificado Descentralizado de Sade SUDS e propondo claramente a extino do INAMPS e o repasse dos recursos para as administraes municipais. Arouca, por seu lado, pautou suas aes pela busca de legitimao para as propostas do Movimento, coordenando a 8 a Conferncia Nacional de Sade, a primeira com participao da sociedade organizada, envolvendo desde a presena de Movimentos Sociais Associao de portadores de patologias e profissionais da sade. O tema da conferncia era: Sade direito de todos, dever do Estado. Enfim, o Brasil chegava em 1848 na Europa.

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4. O SUS Dentre os diversos avanos propiciados pela 8a Conferncia Nacional de Sade, um dos mais importantes foi o reconhecimento do chamado Conceito Ampliado de Sade:
Em seu sentido mais abrangente, a sade resultante das condies de alimentao, habitao, educao, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso servios de sade. , assim, antes de tudo o resultado das formas de organizao social da produo, as quais podem gerar grandes desigualdades nos nveis de vida,..., A sade no um conceito abstrato. Define-se no contexto histrico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela populao em suas lutas cotidianas (BRASIL, 1986).

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Tambm foi uma deliberao importante a adio de uma pauta de direcionamentos que convergia para o embate da formao da nova Constituio Brasileira de 1988. Durante os dois anos de Constituinte, os embates foram acompanhados pela Comisso Nacional da Reforma Sanitria, que conseguiu assessorar os deputados, de tal modo que em 1988, pela primeira vez numa Constituio brasileira, apareceram artigos que diziam respeito sade (do 196 ao 200). O primeiro deles assegurou o lema da 8a Conferncia e, o ltimo, que a ordenao dos recursos humanos ficaria a cargo do SUS. Criouse ainda, o Sistema nico de Sade (SUS), pautado nos seguintes pressupostos: universalidade, eqidade, integralidade, hierarquizao e controle social. Para que efetivamente entrassem em vigor os artigos da Constituio foram necessrias leis orgnicas (a 8.080 e a 8.142, homologadas somente em 1990). As leis aprovadas tiveram artigos vetados pelo governo Collor (j era ele ento o presidente), cujo ministro de sade era um diretor de hospital privado do Paran, portanto, membro do complexo mdicoindustrial. Aps diversas tentativas de inviabilizar as premissas do SUS, este ministro caiu por srias suspeitas de corrupo na compra de bicicletas, filtros e guarda-chuvas para o Programa de Agentes Comunitrios de Sade (PACS). E com dois anos de atraso, em 1992, que se realiza

ento a 9a Conferncia, de onde surgiu a compreenso de que para alm da formulao de leis orgnicas, era preciso definir normas operacionais bsicas (NOB) para que o SUS comeasse a funcionar, de fato. Assim, o evento acabou sendo palco de grandes manifestaes polticas, as quais entendiam que com Collor no governo o SUS no avanaria, desse modo, se engajaram na luta pelo Fora Collor. Um parntese importante nesta histria o afastamento de Hsio do INAMPS, dois anos depois de sua nomeao (to logo tomou posse o novo ministro). O novo coordenador do INAMPS, representando os interesses conservadores e do Complexo Mdico-Industrial, tentou reverter o fluxo de recursos, que vertia para os municpios. Mas, a prpria base de seu partido (os redutos municipais) pressionava para que os recursos continuassem no mbito municipal, demonstrando que a estratgia de repassar rapidamente os recursos e extinguir o INAMPS da poca fora a ttica correta. Se fosse aguardado o SUS (em 1988), o ministrio poderia mudar e a iniciao do repasse seria muito dificultada. Em 1993, com o impeachment de Collor, o Movimento Sanitrio dentro do governo Itamar elaborou, ao final desse mesmo ano, a primeira proposta do Programa de Sade da Famlia, tentando dar forma para a Ateno Bsica, porta de entrada do Sistema, com o entendimento de que, enquanto no se resolvesse essa instncia, a demanda recairia sempre nos servios dependentes de hospital, tecnologia pesada e medicamentos (DA ROS, 2000). O ministro da poca era Henrique Santillo, que acatou o nome sugerido pela UNICEF para iniciar um programa de sade comunitria, que foi chamado de Programa de Sade da Famlia (PSF). Em 1994 o novo governo federal, investe inicialmente, pouqussimo em Polticas de Sade. A forma de financiamento do PSF ainda no estava estabelecida e nem existia a formao dos recursos humanos para este novo trabalho, com outra lgica. Somente em 1997, que foram criados os Plos de Capacitao na Estratgia de Sade da Famlia, assim como, uma proposta de ampliao dos recursos para os municpios, que se comprometia com a Estratgia de Sade da Famlia.

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Desse modo, rapidamente comearam a se multiplicar equipes Brasil afora, tendo as premissas do SUS como base e, os princpios de Ateno Bsica/Sade da Famlia como complemento norteador. Algumas dessas caractersticas so o trabalho com promoo de sade, acolhimento, visitas domiciliares, trabalho em equipes multidisciplinares, educao em sade, alta resolutividade e a sim, pode-se dizer que a expanso do SUS rumou ao encontro da universalidade e eqidade. Essas premissas ainda no tinham sido conquistadas em sua totalidade, mas tiveram grande acelerao a partir de 1997. Um fator sem dvida determinante para a manuteno desse modelo de poltica foi o apoio financeiro do Banco Mundial. Embora com lgica completamente diferente do Movimento Sanitrio, este comeou a financiar sua expanso, por entender que tal estratgia poderia baixar o custo total do Sistema de Sade (COSTA, 1996). Contudo, no havia uma preocupao com a equipe multidisciplinar, nem com o salrio dos profissionais, nem com o tamanho da clientela a ser atendida, nem com a qualidade do servio. Logo, pode se dizer que o Banco Mundial um aliado ttico, mas um inimigo estratgico. A luta do Movimento Sanitrio hoje pelo cumprimento do SUS, especialmente no que diz respeito integralidade, por isso mesmo contra a poltica de cesta bsica do Banco Mundial. Tambm no se pode esquecer que o complexo mdico-industrial est a, mais vivo do que nunca. 5. As polticas atuais Ao final da gesto do Ministrio da Sade do governo Fernando Henrique Cardoso (2002), houve uma grande expanso no nmero de equipes de Programa de Sade da Famlia (PSF), mas se evidenciavam problemas de toda ordem. Alguns avanos capitaneados pelo pessoal do Movimento Sanitrio, dentro do Ministrio, eram notrios. Apesar da presso estabelecida pela lgica do Banco Mundial, foram criados Plos de Capacitao para direcionar a formao das Equipes de Sade da Famlia. Nesse perodo, j tinham sido criadas mais de vinte residncias multi-profissionais em Sade

da Famlia, alm de mais de 50 especializaes na mesma rea. Conseguiu-se financiamento para iniciar reestruturao dos cursos de medicina (em outra direo, diferente da Flexneriana). Porm, o MEC no tinha nenhum envolvimento nesse processo. Pesava tambm o fato da organizao interna do Ministrio da Sade ser catica, com diferentes grupos de trabalho boicotando uns aos outros, alm de se ter uma Ateno Bsica dissociada dos outros Modelos de Ateno e uma viso programtica de administrao, na qual cada Programa buscava uma estrutura prpria, completa. Por exemplo: educao em sade era feita de uma forma na sade da mulher, de outra em hansenase, de outra em diabete/ hipertenso. No havia ao menos um entendimento comum do que um processo pedaggico ou do conceito de sade ou o de preveno X promoo. A Ateno Bsica tentava garantir uma formao via Plos, mas isto esbarrava nas dificuldades operacionais de liberao de verbas e, especialmente, na estrutura dos governos estaduais. O diagnstico indicava que era preciso mexer, fundamentalmente, na formao de pessoal. Enquanto no fosse rompida a viso positivista, Flexneriana e unicausal, no se avanaria na direo que o SUS propunha. Um passo muito importante foi dado em 2001, por presso do Movimento Sanitrio, diludo em entidades como Rede Unida, ABEM, ABEn e ABRASCO, que se articularam com o Ministrio da Sade para exercer presso por sobre o MEC, para que o mesmo assinasse uma nova lei de diretrizes curriculares. A partir dessa aprovao, ficou estabelecido que todos os cursos da rea de sade deveriam reorganizar sua base formativa, buscar constituir profissionais crticos, reflexivos, humanistas e de alta resolutividade (REDE UNIDA, 2002), com um horizonte no SUS e com prazo de trs anos para este incio. Nesse sentido, o financiamento conquistado em 2002 para as especializaes e residncias em Sade da Famlia e o PROMED, j apontavam nessa direo. Em 2003, novo governo, novas esperanas. O Ministrio da Sade, pela primeira vez, se assumiu como parte integrante da luta pela Reforma Sanitria (BRASIL, 2004a). Ocorreu, ento, uma reestruturao profunda na organizao do Ministrio, com o entendimento que estamos enfocando:

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as Polticas de Sade, a organizao de todos os esforos da Ateno (da Bsica alta complexidade), sob uma nica secretaria, demonstraram esse avano. Mas foi na Poltica de Educao em Sade que se configurou a modificao mais evidente. Criou-se uma Secretaria (SEGETES) com dois departamentos que unificaram a gesto do trabalho e da educao em sade, esta ltima organizada no DEGES (Departamento de Gesto em Educao e Sade), em suas trs dimenses que envolvem o Ministrio da Sade: educao popular, educao tcnica e educao superior, alm de pensar aes estratgicas que contemplam as mltiplas face da educao. Em fevereiro de 2004 foi publicada a portaria ministerial (BRASIL, 2004a) adotando a Poltica de Educao Permanente com organizao de Plos em todos os estados brasileiros para modificar a formao de pessoas na rea de sade. Atualmente, j mais de cem Plos, que cobrem todo o Brasil (no h nenhum municpio que esteja fora) e se trata agora de viabilizar a mudana na formao com toda a fora necessria. Recursos existem, mas se torna necessrio mudar as prticas, as quais se apresentam com as seguintes caractersticas:

a) clientelistas por exemplo, vendem-se projetos no interesse uni-institucional do Ministrio (que a instncia que tem recursos); b) academicistas especialmente as universidades acreditam que so donas da verdade em relao s necessidades de formao; c ) antidemocrticas os gestores definem as necessidades sem ouvir as universidades, o controle social ou os estudantes dos centros de ensino; d) no integradoras em todas as instncias no se leva em considerao a diversidade. Nas universidades, cada curso ou cada departamento ainda pensa isoladamente, via de regra; e) focais formulam-se Programas sem articulao com outros, etc.

A criao dos Plos de Educao Permanente para o SUS (BRASIL, 2004b) gerou uma nova cultura na busca: de consensos de projetos pactuados com mltiplos interesses; de priorizar a escuta da populao e dos servios; de democratizar decises; de projetos interdisciplinares e interinstitucionais; do entendimento que as reflexes e operacionalizao de solues a partir das necessidades da populao e dos servios constituem um processo permanente. Para ampliar o caminho nessa direo, criou-se o HumanizaSUS, o VER-SUS e o Aprender-SUS. O SUS passou a ser realmente prioridade do governo federal. Desses projetos e, para concluir, vou enfocar um pouco o Aprender-SUS. Na ltima semana de agosto de 2004 (BRASIL, 2004c), apresentou-se para aproximadamente 1000 pessoas vindas dos Plos de todo Brasil a Poltica conjunta do Ministrio da Sade e Ministrio da Educao, na direo de uma mudana da formao profissional nas universidades. Foi realizada uma oficina, onde, a partir das reflexes feitas em conjunto MS LAPPIS (Laboratrio de Pesquisa sobre Integralidade em Sade que envolve instituies como a ENSP, UFRJ, UFF e, centralizados pelo Instituto de Medicina Social da UERJ) e MEC, deflagrou-se o processo de utilizao da Integralidade como eixo para as mudanas curriculares em todo o Brasil. A polissemia do termo Integralidade, entendendo-a como a premissa menos trabalhada do SUS at ento, parecia, justamente, atender as necessidades urgentes de educao superior no Brasil. Os quatorze cursos da rea da sade deveriam, a partir dali, se organizar, respeitar as realidades locais, na busca de projetos intercursos que contemplassem essa nova direo. Esse novo/velho eixo Integralidade tem, entre seus sentidos, o de promover sade, prevenir e atender doenas, simultaneamente e, tambm, comporta o entendimento de que o corpo no um somatrio de fragmentos anatmicos. Igualmente, permite perceber que: sade , ao mesmo tempo, social, biolgica e psicolgica; que as necessidades da populao vo alm do que o que chamamos de necessidades epidemiolgicas; que s podemos produzi-la pensando interdisciplinarmente (isso no se d como uma profisso comandando as aes de outras) e

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intersetorialmente, se estivermos abertos para a pluralidade reconhecer que o outro tem verdades diferentes das nossas. Deflagraram-se, portanto, em 2004, esses dois processos integrados: o dos Plos de Educao Permanente e o Aprender SUS, como um redesenho que se pudesse desentortar o estilo de pensar do setor sade, ainda hegemnico no Brasil. A esperana de manuteno desta Poltica de Sade pode nos fazer imaginar que dentro de alguns anos tenhamos o SUS com o qual tanto sonhamos, como uma coisa concreta, com profissionais comprometidos. H que se resgatar o controle social, demonstrando que a organizao popular, de fato, tem poder. E isso s se faz empoderando as organizaes. H que se preparar gestores comprometidos no s com a direo do SUS, mas tambm com a formao de novas mentalidades. E torna-se necessrio resolver os ns da Ateno Secundria, ou seja, parece que recm comeamos. preciso entrar na luta. E por isso entendo que este artigo foi escrito muito menos para que se saibam siglas e cronologias, mas para que se conhea o processo de luta que aconteceu e continua sendo necessria, para empreender e conquistar novos aliados para esta luta. Bem-vindos! 6. Post Scriptum... Aps 2004 No espao de tempo de espera para a edio deste livro, novas mudanas ocorreram no setor sade. Houve, no incio de 2005, nova troca de ministro e troca da equipe do DEGES. O novo grupo que assumiu tambm apresenta um compromisso histrico com o Movimento Sanitrio, tanto que passou a enfatizar novos aspectos para a execuo de uma Poltica de Sade que aponta para a reestruturao dos Recursos Humanos na rea. As nfases passaram a ser, especialmente, de ampliao das propostas de mudanas nas universidades (para alm dos cursos de medicina), sobretudo, com a criao do PR-SADE, programa que envolve tambm odontologia e enfermagem. Ao todo, foram mais de 90 cursos de graduao no territrio nacional que tiveram seus projetos aprovados, inclusive com financiamento do Ministrio da Sade,

objetivando formar os quadros necessrios para o SUS. Alm disso, foi ampliada a articulao com o MEC, possibilitando a legalizao e o reconhecimento formal das Residncias Multiprofissionais em Sade da Famlia. H uma proposta clara de expanso destas, tanto quanto da Residncia em Medicina de Famlia e Comunidade, preferencialmente trabalhando de forma integrada, mas, preservando as especificidades de atuao de cada profisso. Ou seja, continua sendo um processo em permanente evoluo e existe a possibilidade de quando este livro for efetivamente publicado, tenhamos novas modificaes. O embate continua sendo contra as Polticas de cesta bsica do Banco Mundial e tambm contra o velho inimigo, o Complexo Mdico-Industrial. 7. Referncias BRASIL. Ministrio da Sade. Anais da 8 Conferncia Nacional de Sade. 1986. BRASIL. Ministrio da Sade. Portaria do Ministrio da Sade n. 198. 13 de fevereiro de 2004. 2004a. BRASIL. Ministrio da Sade. Poltica Nacional de Educao Permanente em Sade. Braslia: Ministrio da Sade. 2004b. BRASIL. Ministrio da Sade. Aprender SUS: o SUS e os Cursos de Graduao nas reas da Sade. Braslia: Ministrio da Sade. 2004c. COSTA, N.R. O Banco Mundial e a Poltica Social nos Anos 90. Captulo integrante da Tese de Doutorado Polticas Pblicas e Justia Urbana apresentada no Programa da FAU/USP , junho de 1996. CUTOLO, L.R.A. Estilo de pensamento em educao mdica: um estudo do currculo do curso de graduao em medicina da UFSC. Tese (Doutorado em Educao). Florianpolis: CCE-UFSC, 2001. DA ROS, M.A. Frum Popular Estadual de Sade Expresso Catarinense do Movimento Sanitrio, para os Anos 90. Trabalho produzido para concurso de professor titular no Departamento de Sade Pblica/CCS/UFSC. 1995.

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A noo estilo de vida em Promoo de Sade: um exerccio crtico de sensibilidade epistemolgica

Luis David Castiel Paulo Roberto Vasconcellos-Silva

A noo estilo de vida em Promoo de Sade: um exerccio crtico de sensibilidade epistemolgica


Luis David Castiel1 Paulo Roberto Vasconcellos-Silva2
O problema da condio contempornea de nossa civilizao moderna que ela parou de questionar-se. No formular certas questes extremamente perigoso, mais do que deixar de responder s questes da agenda oficial; Ao passo que responder o tipo errado de questes com freqncia ajuda a desviar os olhos das questes realmente importantes (Zygmunt Bauman, 1999).

Introduo: Sensibilidade epistemolgica? Em uma perspectiva crtica, este estudo pretende enfocar uma matriz conceitual muito poderosa no campo sanitrio estilo de vida. Trata-se de discutir e reconhecer o alcance dessa idia em termos de adequao aos fins propostos no mbito da promoo de sade. A exemplo de outras noes, esta atua como constituinte essencial nos modelos de entendimento dos processos de sade/doena/cuidado/pre veno, nos quais so feitas atribuies de determinados sentidos que sustentaro descries e explicaes do mundo social-histrico e, tambm, modalidades de interveno. Para este exerccio, ser empregada uma adaptao metafrica de um operador epidemiolgico consagrado. Em epidemiologia, para se dimensionar a validade de um teste de screening , podem-se utilizar as seguintes medidas: sensibilidade, especificidade e poder preditivo. Neste caso, interessa-nos abordar apenas sensibilidade: proporo de
Pesquisador do Departamento de Epidemiologia da Escola Nacional de Sade Pblica (ENSP)/FIOCRUZ;
Doutor em Sade Pblica pela ENSP/FIOCRUZ. End.: Rua Leopoldo Bulhes 1480 sala 802 Manguinhos
Rio de Janeiro, RJ CEP 21041-210 Brasil. End. eletrnico: luis.castiel@ensp.fiocruz.br
2 Professor de Clnica Mdica da Universidade do Rio de Janeiro; Mdico e membro do Conselho de Editorao
de Internet; Mdico do Instituto Nacional do Cncer; Doutor em Sade Pblica pela ENSP/FIOCRUZ. End.:
Rua Pereira da Silva 444 / 410 Laranjeiras Rio de Janeiro, RJ CEP 22221-140 Brasil. End. eletrnico:
paulor@inca.org.br

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pessoas verdadeiramente doentes na populao estudada que so identificadas como doentes pelo teste de screening. A sensibilidade uma medida probabilstica para diagnosticar corretamente um caso ou a probabilidade com que um determinado caso pode ser identificado corretamente pelo teste (Last, 1989). A partir da idia de verdade produzida pelo padro mtrico, opera-se, tambm nos domnios epidemiolgicos, com uma imagem metafrica, enfeixada na noo de padro-ouro que serve para atuar como base de referncia dos protocolos de aferio.

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A positivos verdadeiros B falsos positivos C falsos negativos D verdadeiros negativos Sensibilidade A/A+C

Agora, podemos considerar, em termos bastante sucintos, que as caractersticas do mundo podem ser abordadas em termos de: o que isto? ontologia; como se toma conhecimento disto? epistemologia; o que isto causa? causao (Searle, 1997). A sensibilidade epistemolgica (SE) diria respeito a quanto um conceito/noo/categoria/ descreve ou explica aquilo que se pretende conhecer. Ora, tal medida impossvel de ser obtida, pois alm desta questo ser despropositada em sua formulao ao aliar perspectivas no compatveis de distintos mbitos de pertinncia, no cabe pensar que exista no discurso epistemolgico quaisquer padres-ouro para atuarem como referncia mtrica, para ser cotejada em termos da adequao dos conceitos a seus referentes. Este contra-senso tem a funo de assinalar que

so as palavras (e suas contingncias) que iro configurar categorias e teorias para abordar objetos sociolgicos atinentes s cincias da sade como o caso de estilo de vida. Neste caso, a SE consiste em mais um modo de revisitar a relao das palavras com as coisas que iro configurar, seguindo Castoriadis (1999), significaes imaginrias sociais. Uma aguda observao de Georges Balandier (1999) merece ser mencionada aqui para ilustrar a problemtica contempornea de estudar-se aspectos da vida social que podem dar margem a controvrsias e permitir distintos entendimentos e definies. O etnlogo francs enfatiza a fragilidade das palavras quando se tenta explicar as vicissitudes da poca atual. O vocabulrio disponvel parece apreender, parcialmente, partes limitadas do que acontece ao nosso redor. De modo difuso, um aspecto fragmentrio, metonmico confundido com o todo, tornando-se referncia at ser substitudo rapidamente por outro. Essas construes no podem ser consideradas como sendo verdadeiras ou falsas, pois, de alguma forma, referem-se a pores reais do que existe. Todavia, ao mesmo tempo, seu recorte , muitas vezes, tomado no s como representante fidedigno do todo, mas como sendo o prprio todo. Enfim, temos que admitir, a priori, que operamos cada vez mais com conceitos e idias sujeitas a imprecises e polmicas (s vezes inconclusivas). Ademais, na atualidade, as mesmas designaes podem significar coisas distintas. Ora, os conceitos tambm participam da construo de realidades, uma vez que a linguagem erige categorias que passam a descrever e explicar o mundo a partir de determinados prismas. Em especial, trata-se de discutir aqui as questes de pertinncia de determinadas noes e conceitos no terreno de determinadas propostas de promoo de sade e, tambm, ao mesmo tempo, procurar delinear perspectivas que podem estar atuando como matrizes das correspondentes propostas de conhecimento. Este texto pretende desenvolver aspectos conceituais relacionados ao emprego da categoria estilo de vida, instituinte de modelos, retricas e ideologias nas prticas de sade na biomedicina, na sade pblica e, sobretudo, na promoo de sade.

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Breves comentrios sobre Promoo de Sade Norberto Bobbio, ao falar da linguagem dos direitos, afirma: apesar das inmeras tentativas de anlise definitria, a linguagem dos direitos permanece bastante ambgua, pouco rigorosa e freqentemente usada de modo retrico (Bobbio, 1992, p. 9). Ser absurdo substituir direitos por promoo de sade? Para Lupton (1995), o termo promoo de sade (PS) geralmente usado para descrever atividades especficas dirigidas a metas particulares, com uma forte nfase na gesto racional da sade das populaes. A maior nfase da retrica promocional da sade est em estimular a sade positiva, prevenir doenas mais do que trat-las e, desenvolver: i) indicadores de desempenho baseados em objetivos especficos; ii) o uso da mdia para colocar no mercado comportamentos e atitudes (estilos de vida) saudveis; iii) o foco no trabalho com comunidades para estimular a respectiva participao nas proposies, com vistas a desenvolver ambientes saudveis; iv) e, tambm, diminuir os crescentes gastos na assistncia sade. A epidemiologia, disciplina marcada pelo individualismo metodolgico, costuma apresentar as relaes entre os padres de doena e por seus respectivos riscos de adoecimento, principalmente em termos de atributos, propriedades e caractersticas prprias aos agregados de indivduos, sem incluir as interaes recursivas com seus contextos scio-culturais (Frohlich et al., 2001). Conseqentemente, o controle dos riscos relacionados ao estilo de vida tende a seguir a mesma racionalidade, sendo, muitas vezes, apresentado pelos experts da promoo de sade como algo ligado esfera privada, da responsabilidade dos indivduos, colocada em termos de escolhas comportamentais. As respectivas propostas educacionais em sade visam atingir mudanas nesta dimenso. Um exemplo desta descrio pode ser encontrado no Sistema de Vigilncia do Fator de Risco Comportamental (Behavioral Risk Factor Surveillance System- BRFSS) do Centro Nacional para a Preveno de Doena Crnica e Promoo de Sade (National Center for Chronic Disease Prevention and Health Promotion) do reconhecido CDC (Centers for Disease Control) em Atlanta, EUA. Como diz sua publicao Health

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Risks in the United States: Behavioral Risk Factor Surveillance System 2003, h cerca de 20 anos, o CDC faz por telefone, inquritos peridicos de prevalncia (surveys) em adultos norteamericanos para colher informao atualizada sobre uma ampla gama de comportamentos que afetam sua sade (http:// www.cdc.gov/nccdphp/aag/aag_brfss.htm, acessado em 25/11/ 2003). O foco primordial destes estudos tem sido os comportamentos associados a doenas crnicas que se constituem nas maiores causas de morte . Estes comportamentos de alto risco incluem:
Fumar e outras formas de uso de tabaco. Comer alimentos gordurosos e com baixos teores de fibras. No ter atividade fsica suficiente. Abusar de lcool ou outras drogas. No se submeter a mtodos mdicos comprovados para cuidados preventivos e diagnsticos precoces (por exemplo, vacinao contra resfriados, exame de Papanicolaou do colo de tero, mamografia, colonoscopias). Praticar comportamentos violentos ou comportamentos que causem danos no intencionais (dirigir embriagado) (http://www.cdc.gov/nccdphp/ bb_brfss_yrbss/index.htm, acessado em 25/11/03).

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Assim, armados com dados de inquritos cientficos, o CDC e outros profissionais de sade elaboram programas para combater os efeitos dos comportamentos de alto risco. Tais programas tm vrias funes: Informar ao pblico e aos profissionais de sade sobre os perigos de certos comportamentos. Promover comportamento saudvel. Ajudar as pessoas a pararem com seus comportamentos de risco. Tais dados tambm servem para ajudar o CDC e outras organizaes de sade pblica a avaliarem programas de sade pblica e assegurarem que esto na trilha certa na direo da alcanar seus objetivos (http://www.cdc.gov/nccdphp/ bb_brfss_yrbss/index.htm, acessado em 25/11/03). O argumento econmico destacado para justificar o programa: Os custos mdicos para doenas crnicas (a maioria causada por comportamentos de alto risco) atingem 60% do US$ 1 trilho de custo em assistncia mdica. O custo anual com obesidade US$ 100 milhes, com doenas ligadas inatividade fsica, US$ 76 milhes (em 2000) e ao uso

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de tabaco, US$ 50 milhes (http://www.cdc.gov/nccdphp/ bb_brfss_yrbss/index.htm, acessado em 25/11/03). importante considerar a existncia de benefcios nestas abordagens. H, sem dvidas, efeitos positivos na sade das pessoas que, eventualmente, conseguem alterar seus padres de exposio aos riscos atravs das chamadas mudanas comportamentais. Mas, tais intentos no so to bem sucedidos na medida desejada pelas autoridades sanitrias. H algo que resiste a corresponder aos objetivos dos programas de monitoramento de fatores de risco comportamental. Como veremos neste artigo, as concepes de sociedade, de pessoa e de suas inter-relaes adotadas predominantemente pelo campo da sade promocional parecem ser insuficientes para se alcanar as metas almejadas. Importante salientar que a PS adota uma gama de estratgias polticas que abrange desde posturas conservadoras at perspectivas crticas ditas radicais ou libertrias. Sob a tica mais conservadora, a PS seria um meio de direcionar indivduos a assumirem a responsabilidade por sua sade e, ao assim fazerem, reduzirem o peso financeiro na assistncia de sade. Noutra via, reformista, a PS atuaria como estratgia para criar mudanas na relao entre cidados e o Estado, atravs da nfase em polticas pblicas e ao intersetorial. Ou ainda, pode constituir-se numa perspectiva libertria que busca mudanas sociais mais profundas (como so as propostas de educao popular). Em geral, as discusses conceituais sobre PS tendem inconcluso, pois suas atividades transitam sobre terrenos tericos de difcil compatibilizao: paternalismo X participacionismo; individual X coletivo e com os seguintes enfoques ao longo destes dois eixos: conservador (tcnicas persuasivas em sade), reformista (ao legislativa para a sade), libertria (aconselhamento pessoal para a sade) e radical pluralista (educao popular em sade) (Beattie, 1991). Em outras palavras, cada tipo de PS est centrado em uma determinada perspectiva acerca do que deve ser uma boa sociedade (Seedhouse, 1997) e do que seria a natureza/ condio humana. Ora, boa sociedade pode ser concebida de diferentes formas, conforme distintas vias filosficas/scio polticas. Ser humano, da mesma forma, pode ser definido a

partir de variadas ticas/saberes/disciplinas. Para as propostas mais conservadoras, parece haver uma ambivalncia crucial. Uma boa sociedade deveria ser ao mesmo tempo produtiva, competitiva e consumidora no mundo das economias globalizadas, com suas inevitveis tenses e gerao de compulsividades sobre a sade das pessoas e, ao mesmo tempo ser comedida em seu estilos de vida, procurando buscar suportes sociais para compensar a solido e a carncia do esprito de comunalidade, que marcam as relaes nas sociedades ocidentais contemporneas. Alm disto, necessria alguma definio de condio/natureza humana que permita, conforme algumas proposies comportamentais e cognitivistas, alterar condutas (estilos de vida) no saudveis. Para Lupton (1995), na PS, mais especificamente na abordagem educacional dos comportamentos em sade, emprega-se modelos instrumentais, operativos que se tornam prescritivos, com vistas a intervenes. Mas parece haver uma falta de teoria unificada para a PS. O uso da teoria em PS tende a ser empregado para explicar vnculos entre atitudes e comportamentos, adotando um modelo causal mais do que tentando construir uma epistemologia da sade pblica. At agora, a construo de modelos parece ser a fonte primordial para um ncleo terico. O termo modelo costuma se fundir com teoria na literatura da PS. Os muitos modelos aparecem em uma profuso de figuras/esquemas com setas apontando para direo das mudanas ou mostrando alas de retroalimentao ciberntica, em meio a normas, fases, estgios, foras, alvos, barreiras, recursos, necessidade de conhecimentos. Alis, como meta primordial para a mudana de comportamentos em direo sade veiculada pela PS essencial proporcionar informaes/ conhecimentos (no sentido de evidncia cientfica), pela via da razo, como eixo para atingir o desenvolvimento humano, o progresso e a sustentao da ordem social (Lupton, 1995). Os modelos comportamentais de carter conservador que postulam o empoderamento psicolgico dos indivduos (no sentido de capacitao pela exposio a informaes, de modo a proporcionar sensao de controle das situaes) tambm se baseiam no conhecimento como veculo central

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para levar os humanos seres racionais - a fazerem escolhas conscientes. Esta perspectiva iluminista tambm percorre modelos oficiais de participao comunitria. Estilo de vida Nos dias de hoje, estilo de vida (EV) uma concepo consagrada em vrios mbitos da vida contempornea. Podese perceber sua presena constante nos meios de comunicao de massa e na publicidade, elementos centrais da moderna cultura individualista do consumo. Se, por exemplo, pesquisarmos lifestyle epidemiology (epidemiologia do estilo de vida) no buscador Google na internet, iremos encontrar 1.380 resultados afins (24/04/2004). Curiosamente, muitas vezes, junto a tal expresso, costumam co-existir outros vocbulos com a aparente funo de destacar aspectos especficos do macroconceito: como atividade fsica, nutricional e, tambm, famlia. Por sua vez, lifestyle medicine, traz 2.830 resultados (em 24/04/2004). Cabe, aqui, assinalar emblemas que atuam como sintomas da penetrao desta ideologia. Por exemplo, o Rippe Lifestyle Institute, dirigido pelo cardiologista Dr. James M. Rippe na Florida - EUA, que desenvolve, entre outras, atividades editoriais e de pesquisa, a avaliao de sade Rippe (Rippe Health Assessment) que consiste em avaliaes abrangentes para indivduos de alta performance (http://www.rippelifestyle.com/index.shtml, acessado em 27/11/2003) em termos de avaliao de riscos sade, exames de aptido (fitness) e avaliao de riscos do estilo de vida dirigidos a profissionais de alto desempenho (sic). Sua meta : ajudar a empoderar pessoas a levar estilos de vida mais saudveis com paixo, compromisso e desempenho (helping empower people to lead healthier lifestyles with passion, commitment and performance) (http://www.rippelifestyle.com/ index.shtml, acessado em 27/11/2003). Seu Instituto de sade est localizado em um condomnio de alto luxo, localizado em Celebration, Florida. Alm disso, o Dr. Rippe tambm vende a prescrio para sade das articulaes (The Joint Health Prescription) no qual alia um suplemento de gelatina, vitamina C e clcio a um programa constitudo por exerccios de fora, de flexibilidade

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[alongamentos] e de resistncia aerbia [caminhadas] e que mostra uma acentuada melhora na sade das juntas atravs do uso de um suplemento base de gelatina um simples p que pode ser misturado ao suco de laranja da manh. O estudo clnico foi um estudo clnico aleatorizado, duplo cego, controlado com placebo, usando 200 participantes (http:// www.rippelifestyle.com/newscontent/newsstory.shtml, acessado em 27/11/2003). Supondo que o estudo tenha sido feito segundo os cnones metodolgicos dos ensaios clnicos aleatorizados, de se perguntar porque no existe em seus sites nenhuma meno a estudos metanalticos sobre a relao entre articulaes saudveis e compostos de gelatina, vitamina C e Clcio. No Brasil, a expresso medicina do estilo de vida no buscador Google retorna 9 resultados, todos eles relacionados com a difuso popular do livro Enxaqueca finalmente uma sada (Ed. Arx) lanado em 2003 e do programa alimentar do seu criador, Dr. Alexandre Feldman, dono da Clnica com seu nome (www.enxaqueca.com.br consultado em 24/04/2004). A realiza reunies sobre, entre outras coisas, culinria apropriadamente saudvel com seus pacientes conversas ao p do fogo, aparentemente, uma estratgia de proporcionar acolhimento e suporte psicolgico para os que sofrem de enxaqueca, mimetizando uma tradicional atividade de carter comunitrio que visa veicular pertencimento e senso de identidade, aos moldes de outros grupos de apoio. Estas propostas, numa leitura benevolente, mesmo que, porventura, tragam benefcios a seus consumidores, no deixam de se inscrever na mesma perspectiva da cultura de oferta de servios mdicos privados voltados para sade, aptido e qualidade de vida, direcionados a indivduos que possuem poder aquisitivo para a correspondente compra neste mercado. Se esta linha de produtos pode ser criticada em determinados aspectos por discutveis premissas cientficas e por suas tendenciosidades mercadolgicas visivelmente voltadas a determinados grupos de consumidores, por outro lado, mesmo na literatura mdico-epidemiolgica considerada sria, h uma visvel inclinao a enfocar padres comportamentais individuais como sendo responsveis pela sade. Estas condutas

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so destitudas de significados culturais ao serem recortadas de seus contextos e das relaes sociais. O EV seria, via de regra, um estilo de vida arriscado, conceptualizado como uma pr-patologia. So medidos os fatores de risco comportamentais dos indivduos para servir ao planejamento de aes de sade pblica. Alm do Behavioral Risk Factor Surveillance SystemBRFSS) do Centro Nacional para a Preveno de Doena Crnica e Promoo de Sade (National Center for Chronic Disease Prevention and Health Promotion) do CDC (Centers for Disease Control), citado no incio, cabe assinalar, ainda como exemplo, um grande estudo de comparao que avalia a salubridade (healthfulness) de estilos de vida entre China e Estados Unidos da Amrica atravs de um instrumento de mensurao (Lifestyle Index LI - ndice de estilo de vida). Os autores afirmam que esta escala construda com base em recomendaes cientficas atuais acerca dos quatro maiores fatores relacionados a estilo de vida. Estudam duas grandes amostras transnacionais da China (8352 do Inqurito de sade e nutrio de 1993) e EUA (9750 do Inqurito contnuo de ingesta de alimentos por indivduos 1994-1996) atravs de um meticuloso instrumento que procura estabelecer: i) padres de qualidade/quantidade da dieta; ii) nveis de atividade fsica; iii) tabagismo e; iv) consumo de lcool. No importa aqui entrar nos detalhados resultados obtidos, nem na apurada discusso metodolgica envolvendo itens como tratamento estatstico, questes de sinergismo, comparabilidade, vieses. A concluso dos autores destaca que a avaliao da salubridade total de estilos de vida e um melhor entendimento dos respectivos padres entre naes usando o LI, pode proporcionar orientao prtica para desenvolver atividades de promoo de sade para melhorar a sade pblica global (Kim et al., 2004). Apesar de ser possvel admitir pertinncias deste estudo na tentativa de entender formatos individuais de vida de pessoas de dois pases, impressiona o fato dos autores pouco levarem em conta dimenses sociais e culturais de duas tradies histricas ligadas a formas civilizatrias nitidamente distintas. Aes consideradas como hbitos moldam e so moldadas por modos de vida e incluem dieta, atividade fsica

e tabagismo etc. Estas facetas no so mensuradas pelo LI. Quanto ser que a partir destes dados, possvel proporcionar, efetivamente, orientao prtica para desenvolver atividades de promoo de sade para melhorar a sade pblica global? Qual ser o alcance de propostas deste tipo em termos dos seus propsitos? Outro exemplo merecedor de ateno quanto s tendncias definitrias hegemnicas no campo da sade aparece nos trabalhos de investigao de estilos de vida em distrbios psiquitricos em jovens adultos saudveis, idosos e em casos de estados depressivos e distrbios de ansiedade (Monk et al., 2002). A encontramos uma escala que pretende estabelecer a regularidade de estilo de vida. Com esta finalidade, foi elaborada a Social Rhythm Metric (SRM) para quantificar quanto a vida cotidiana de uma pessoa era irregular/ regular (escores de 0-7) em termos de seus horrios e da seqncia dos eventos dirios. Uma verso ampliada consistia em 17 itens: 1-sair da cama; 2-primeiro contato com outra pessoa; 3-bebida matinal; 4-desjejum; 5-sair; 6-iniciar trabalho, trabalho domstico ou atividades voluntrias; 7-almoo; 8 sesta tarde; 9-jantar; 10-exerccios; 11-lanche noturno; 12 assistir notcias na TV; 13- assistir outro programa; 14-atividade idiossincrtica A; 15-atividade idiossincrtica B; 16-ltima hora de volta para casa; 17-ir para cama. Foram feitos estudos que validaram uma verso simplificada da escala com 5 itens (a verso completa como padro-ouro): 1-sair da cama; 2 primeiro contato com outra pessoa; 3-iniciar trabalho, trabalho domstico ou atividades voluntrias (fator manh); 4-jantar; 5- ir para a cama (fator tarde/noite). Podemos supor a existncia implcita de juzos de valor favorveis s rotinas de vida padronizadas nas atividades cotidianas que produzem regularidade no EV. Alm disto, mostra-se como o EV irregular (ou vida desregrada) pode ser quantificado e associado a riscos mais elevados de doenas. Aqui, estudos epidemiolgicos, ao mesmo tempo em que se preocupam em estudar riscos sade, tendem a reforar dois aspectos imbricados: i) a moralizao dos estilos arriscados de vida que envolvem elevaes de risco - correr riscos em funo de comportamentos de pessoas e grupos e dos correspondentes estilos de vida desregrados, pode veicular

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conotaes ligadas aos terrenos do pecado ou da fraqueza de carter. O discurso do risco enfatiza a perspectiva racionalizante (racional aquele que se orienta por estatsticas disponveis de probabilidade ao tomar suas decises), como expresso do puritanismo (comedimento, auto-controle, temperana, prudncia); ii) a responsabilizao individual: o foco voltado para o controle comportamental individual no enfatiza a busca de transformaes de aspectos macro-sociais que estimulam condutas chamadas de risco. Por exemplo, obesidade e a acessibilidade de consumo de fast food considerado inadequado em termos nutricionais (nos EUA) (Alcabes, 2003). Vale mencionar, ainda, estudos de gentica molecular que procuram identificar regies do genoma que hospedariam genes que podem contribuir para a propenso dos indivduos serem fisicamente ativos ou sedentrios (Simonen et al., 2003). Este trabalho se inscreve em uma linha de pesquisa que procura retirar o reconhecido foco cultural (adquirido) do estilo de vida e enfatizar uma suposta determinao gentica (inata) que pode participar da disposio atividade fsica em termos de desempenho fsico e fentipos de aptido ligada sade (Prusse et al., 2003). A atividade fsica como parte essencial do estilo de vida adquiriu especial estatuto diante da presente nfase constituda pelos movimentos de combate ao sedentarismo, dos quais se destacam os vrios programas Agita... que se desdobraram a partir do Agita So Paulo. Tais movimentos ensejam campanhas contra a inatividade fsica escudados por um considervel nmero de artigos na literatura legitimando esta abordagem e procurando demonstrar, mediante estudos quantitativos, a importncia da atividade fsica (definida basicamente por meio de critrios baseados, em geral em atividades musculares que levem queima de calorias) para uma idia de sade centrada em evitao de morbimortalidade por doenas crnicas e aumento de expectativa de vida (Arajo e Arajo, 2000). Apesar das aparentes boas intenes, o enfoque eminentemente individualista: as pessoas, independentemente de seus contextos socioeconmicos e culturais e, portanto, das margens de escolha em seus modos de vida, teriam a

responsabilidade de se exercitarem para viverem mais tempo e com melhor qualidade de vida, da maneira como puderem, no obstante as injunes sociopolticas econmicas que determinam a forma como nosso cotidiano se organiza em termos de trabalho, lazer, segurana etc. Este o discurso predominante do folheto Agita Brasil (Brasil, 2002), onde possvel perceber que a proposta considera o sedentarismo como grande inimigo e prega a importncia da atividade fsica como alicerce de estilos de vida saudveis para prevenir doenas como hipertenso arterial e diabetes. Ademais, estes programas serviriam para colaborar com a diminuio de taxas de violncia ao engajar jovens em atividades que os afastariam de rotas desviantes. Ora, se parcialmente aceitvel a tese geral dos benefcios de aes dirigidas atividade fsica com vistas sade, esta se torna discutvel ao sustentar perspectivas polticas conservadoras, uma moral que responsabiliza cada um por seu adoecimento e um evidente foco individualista descontextualizado, em relao aos fatores sistmicos que colaboram nos modos de adoecer de grandes contingentes populacionais menos privilegiados. Cabe aqui um breve comentrio sobre as origens da categoria EV. Est registrada nas teorias sociolgicas clssicas como componente da estratificao social, ao enfatizar a importncia do conceito na evoluo e manuteno de status dos grupos. (Backett e Davison, 1995). Destaca-se a viso de Max Weber no livro de 1922 Wirtschaft und Gesellschaft (Economia e Sociedade). Para ele, o EV era mais do que uma funo da classe social determinada economicamente. Tratavase de uma concepo totalizante que inclua renda, ocupao, educao, status. Weber no encarava as vicissitudes na vida como resultantes apenas de acasos. E, sim, em funo das oportunidades que o indivduo tinha a partir de sua situao social. As oportunidades e as escolhas na vida de cada um seriam socialmente determinadas (Cockerham et al., 1997). Recentemente, a noo tem sido debatida e polemizada por vrios autores. Giddens (1991), por exemplo, considera-a como um dos aspectos fundamentais da cultura tardo-moderna. Proporcionaria elementos para um senso de unidade e segurana existencial, em um mundo incerto e

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ameaador. No apenas seguiramos EV, mas somos obrigados a faz-lo no h escolha, seno escolher. At porque vivese em um mundo de mltiplas escolhas. Um EV pode ser entendido como um conjunto relativamente integrado de prticas individuais que tanto esto voltadas para necessidades utilitrias como, ao mesmo tempo, conformam narrativas identitrias prprias. Alm do como agir, referem-se a quem ser . Consistem em aes aparentemente automticas, relativas a hbitos de comer, vestir-se, formas de morar, modos de deslocar-se espacialmente, lugares a freqentar, etc. Em uma perspectiva elitizada, pode incluir padres relativos a idias de um bom gosto. Mas, o EV no costuma estar acessvel a consumidores falhos: depende das possibilidades de acesso e de aquisio variedade de opes disponveis (Giddens, 1991). Para Sousa Santos (2000), h duas tenses das mltiplas linhas de construo da identidade (subjetividade): i) na tenso entre a subjetividade individual e subjetividade coletiva, h hegemonia da primeira; ii) na tenso entre uma concepo concreta contextual da subjetividade e uma concepo abstrata genrica, a primazia dada segunda. No parece despropositado considerar que as idias carreadas pela noo EV (entre outras no campo da sade promocional) parecem se afinar bem mais com ambas perspectivas hegemnicas, apontadas pelo socilogo luso. A partir de tal tica, interessam, no interior do dito EV de cada um, aquelas escolhas e comportamentos com repercusses nos respectivos padres de adoecimento das pessoas. Ou seja, no campo da cultura de consumo contempornea, os aspectos perniciosos decorrentes de elementos que conotam individualidade, auto-expresso e uma conscincia de si estilizada. O corpo, as roupas, os entretenimentos de lazer, as preferncias de comida e bebida, a casa, o carro, a opo de frias, etc. (...) (Featherstone, 1995, p. 119). No entanto, tais opes no devem ser vistas como fruto de disposies intencionais, racionais, voluntrias. Cada um de ns a resultante singularizada de complexas configuraes bioqumicas, psicolgicas, socioculturais, onde o estabelecimento e as tentativas de reordenao da idia de

si-mesmo so frgeis e dependem de contribuies genticas, aspectos epigenticos, biografia pessoal, estrutura psicolgica inconsciente, elementos culturais, acasos. Portanto, os estilos de risco, so, a rigor, aspectos que, muitas vezes, participam e constituem os modos possveis com que se lida com o mundo da vida, tal como se faz presente a cada um de ns. Claro que determinados estilos so perigosos, seja para o prprio indivduo, seja, tambm, para os que lhe cercam. Assim, demandam intervenes apropriadas. Mas, essencial no perder de vista a perspectiva descrita, sob o risco de serem adotadas premissas que conduzam a aes insensveis, culpabilizantes, limitadas e, conforme o caso, de efetividade restrita (Castiel, 1999). Para Featherstone (1995), a noo est na moda. Ele pretende desenvolver uma abordagem que v alm da perspectiva de EV equivaler, basicamente, a padro de consumo, manipulado pela chamada cultura de consumo de massa. Ou, ento, que consista em uma categoria bem demarcada, com um domnio autnomo, alm dos mencionados efeitos manipulativos. Neste caso, o conceito de habitus de Bourdieu (1989) permitiria melhor entendimento. Este autor descreve as disposies determinantes dos gostos que definem cada grupo social. Inclui: elementos inconscientes, padres classificatrios, predilees (explcitas ou no) relativas idia que o indivduo faz de seus gostos e escolhas estticas - arte, comida, bebida, indumentria, entretenimento, etc. e, de sua validade e valorizao social. Mais ainda: est encarnado na prpria apresentao corporal de si-mesmo - forma e relao com o prprio corpo, fisionomia, postura, linguajar, padres discursivos, modos de gesticular, andar, sentar, comer, beber, etc. Cada grupo, classe e frao possui um habitus/EV prprio (Featherstone, 1995). Em determinados segmentos sociais, mais favorecidos em termos socioeconmicos, o EV se dirige ao corpo como um bem, cuja aparncia de vigor fsico e juventude deve ser mantida. A idia de boas condies de sade se funde de atratividade sexual. Esta conjugao gera uma grande estrutura industrial e comercial voltadas ao mercado de cosmticos, vesturio, esporte, lazer, alimentao, etc.

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Aqui, importa salientar uma tentativa de demarcao que procura estabelecer uma distino bsica entre EV referido ao plano pessoal/familiar, mas que se inscreve em um modo de vida produto da histria do grupo marcado pelas relaes sociais mais abrangentes, no interior de um sistema de poder, organizado em termos de produo e de propriedade (Breilh, 2003). Uma crtica comum ao conceito EV (e tambm noo de autonomia) referente a seu emprego em contextos de misria e aplicado a grupos sociais onde as margens de escolha praticamente inexistem. Muitas pessoas no elegem estilos para levar suas vidas. No h opes disponveis. Na verdade, nestas circunstncias, o que h so estratgias possveis de sobrevivncia, muitas vezes sem margem de escolhas. No objetivo deste texto desenvolver a complexa temtica relativa discusso do EV como expresso de autonomia. O tpico autonomia, caro aos terrenos bioticos principialistas, mas que se estende por mbitos polticos e sociais, tem um significado mais abrangente que diz respeito capacidade humana de produzir as leis para a prpria autogesto e, tambm, compartilh-las com os demais humanos. H diversas tradies filosficas abordando o problema. Cabe ainda mencionar a polissemia que autonomia sofre. Refere-se a conceitos que expressam idias que englobam privacidade, vontade, auto-suficincia, auto-controle, liberdade de escolha, auto-governo (com responsabilidade pela escolha). preciso distinguir a autonomia em termos de pessoa/aes, graus e condies de autonomia (intencionalidade, compreeenso, ausncia de controles externos). Parece impossvel pensar em autonomia, abstratamente, em termos dicotmicos. Sentidos relacionados autonomia dependem do entendimento vigente sobre a pessoa - em termos absolutos (mondicos) ou relativos (contextuais). Importa enfatizar que a noo de autonomia est vinculada idia de ser humano/sujeito que se tem, de forma a delimitar: quanto se determinado biologicamente/ geneticamente (natureza humana), quanto se construdo nas relaes sociais, em termos situados historicamente (condio humana). Via de regra, as concepes da PS em relao ao comportamento humano no se definem com a

clareza necessria diante do dilema livre-arbtrio X determinismo. As propostas hegemnicas da sade promocional se orientam por uma cincia epidemiolgica que costuma reduzir a realidade da sade ao individual e viso ontolgica da doena, ao universo dos fenmenos empiricamente observveis e ao registro unidimensional de uma ordem mecanicamente articulada por leis determinsticas (Breilh, 2003). Para ultrapassar tais leituras, vale destacar os estudos desenvolvidos por Frohlich e associados (2001, 2002) que procuram considerar, de modo ampliado, as relaes entre contexto e padres de adoecimento. Neste sentido, desenvolvem o promissor conceito de estilos de vida coletivos, a partir da teoria da ao social de Pierre Bourdieu, da teoria da estruturao de Anthony Giddens e da teoria das capacidades de Amartya Sen. (maiores detalhes sobre este arcabouo terico, consultar Frohlich et al., 2001, 2002). Os EV coletivos emergiriam a partir de uma concepo recursiva da relao entre estrutura social e prticas sociais dos agentes que produzem e reproduzem gostos, valores e comportamentos. Seria a expresso de um modo compartilhado de se relacionar e atuar em dado ambiente uma forma de meta-estilo de vida. (Frohlich et al., 2001). Os EV coletivos refletiriam os contextos onde vivem as pessoas, atravs das suas relaes com elementos do local, levando em conta que as aes do indivduo guardam semelhanas com as dos demais, em termos de suas prticas sociais. Ao mesmo tempo, os EV coletivos no apenas incluiriam comportamentos de sade, mas tambm tentariam reconhecer que tais condutas podem ocorrer em contingncias sociais que diferem entre indivduos. A nfase se dirige s formas complexas de interao entre comportamento individual, comportamento coletivo e conjuntos de recursos existentes nas comunidades. Os referidos autores utilizaram este enfoque para desenvolver estudos sobre tabagismo em pr-adolescentes de quatro comunidades de Qubec, no Canad. Os EV coletivos procuram integrar a situao socioeconmica, os recursos das comunidades em relao ao tabagismo e as prticas

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sociais das pessoas diante do hbito de fumar. Entre outras observaes, consideram a necessidade dos programas educativos integrarem os significados locais do tabagismo s estratgias para reduz-lo (Frohlich et al., 2002). Comentrios Finais No campo da sade, estilo de vida uma categoria onipresente nos terrenos da promoo, preveno e da pesquisa das relaes entre aspectos socioculturais e a sade. Entendimentos descontextualizados do estilo de vida individualista so insuficientes para representar satisfatoriamente as determinaes e intermediaes envolvidas nas questes que se relacionam com comportamentos de risco, no nvel individual e, medidas de promoo e preveno, em termos populacionais. Giddens (2002) formulou uma hiptese digna de ateno para pensar certas caractersticas compulsivantes do EV, prprio s sociedades do capitalismo avanado (mas, tambm com repercusses nas naes ocidentais economicamente menos privilegiadas). O socilogo ingls analisa o papel repetitivo dos costumes, rituais e cerimoniais coletivos (em geral, de cunho religioso) nas sociedades ditas tradicionais ou fundamentalistas, para a constituio de identidades culturais estveis dos seus membros. Tais tradies heternomas devem prosseguir na medida em que continuarem sendo sustentadas e legitimadas em sua capacidade de produo de subjetividades, em modalidades de laos sociais e de modos de ordenao social. Nas sociedades cosmopolitas ocidentais, h um significativo recuo no papel das tradies (e enfraquecimento de rituais coletivos). Predominam formas consideradas mais autnomas, dinmicas e individualistas de construir identidades plsticas e, portanto, cambiveis ao longo das trajetrias em aberto da vida. Ora, para este formato identitrio de carter instvel, a idia de escolher estilos de vida dentro do menu sociocultural dominante se constitui em um convite arrebatador. Atua como eixo na constante busca de autoordenao, disponibilizadas pelos ambientes vigentes, onde h proliferao de bens e mercadorias, no mbito da produo,

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alta circulao no setor de distribuio e inevitveis frenesis no plo do consumo. O efeito adverso desta configurao localizar-se-ia no que Giddens chama autonomia congelada: gerao de mltiplos e incessantes rituais individuais que se manifestam como dependncias. H uma epidemia de excessos: estados obsessivo-compulsivos, variados tipos de dependncia e de adices, dificuldades em estabelecer limites e demonstrar adeso a regras. Se nas sociedades heternomas, tradicionais, o passado estrutura o presente atravs de crenas e rituais compartilhados, nas sociedades autnomas, diferentemente do que sugere Giddens (2002, p. 57), o dependente no estaria escravizado ao passado por no escapar do que originalmente eram hbitos de EV livremente escolhidos. Mas, por estar prisioneiro de um presente que no cessa de se reconfigurar em looping, onde prevalece a obrigao de usufruir da liberdade de escolher um frgil vetor identitrio constitudo pelos EV, tomando, medida do possvel, muito cuidados para no optar por escolhas insalubres. Infelizmente, a sade promocional, em suas formulaes cientficas hegemnicas, no costuma dedicar a necessria ateno em relao a dimenses socioculturais cruciais e a questes relativas a seus fundamentos filosficos. Como conseqncia, sofre de graves tenses tericas que as fragilizam grandemente. Seus contedos acabam afetados por afirmaes, cujo significado ou ilimitado, ou destitudo de sentido ou quando h algum sentido, este bastante restrito (Seedhouse, 1997). O mesmo ambiente sociocultural que cria condies coletivas propcias de adeso obsedante a EV insalubres, atua de modo esquizofrenizante ao exortar moralmente os indivduos que tenham comportamentos de comedimento, temperana, prudncia e adotem EV saudveis. Sob o prisma poltico, a PS se tornou um movimento que no lidou satisfatoriamente com os problemas-chave filosficos no ncleo dos pensamentos polticos de direita e esquerda (consideremos que estas categorias ainda tenham uma sensibilidade epistemolgica satisfatria): em explicar a relao do livre arbtrio com o determinismo, nem a concepo de boa sociedade nem do que possa ser a condio humana quanto se livre (autnomo) ou se socialmente

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determinado? Mas o que ser livre? Aqui, mais uma vez, se manifestam os problemas de inteligibilidade das categorias disponveis: o prprio entendimento do que ser livre pode ser ambguo nos tempos atuais: livre para se competir e consumir no livre mercado? Livre das injunes econmicas para recusar, sem prejuzos, encaminhamentos em relao a necessidades sociais e poder escolher trajetrias alternativas? Apesar de suas evidentes limitaes, a proposta de exerccio crtico enfeixada pela sensibilidade epistemolgica do conceito estilo de vida visa ampliar significados do, via de regra, restrito debate terico sobre as propostas de PS. Talvez, assim, seja possvel cogitar em outras perspectivas capazes de superar entendimentos tericos precrios dos processos sade/ doena/cuidado/preveno. Infelizmente, estes enfoques tambm participam da manuteno da inqa situao de sade de grandes contingentes populacionais. Referncias

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SADE COMO RESPONSABILIDADE CIDAD

Maria Ceclia de Souza Minayo

SADE COMO RESPONSABILIDADE CIDAD

Maria Ceclia de Souza Minayo1

1. Introduo Neste texto busca-se discutir o conceito de sade, com o qual a rea de Sade Pblica trabalha. Essa definio fruto de um desenvolvimento muito importante da histria social e da histria do setor no mundo e tambm no Brasil. Autores como Nunes (1999) fazem a histria do longo caminho da evoluo da concepo de sade que, paradoxalmente, cresce na mesma medida em que se aprofunda o campo terico-prtico da medicina, diferenciando-se dela. Na verdade, toda a histria desse conceito vai mostrar que foi do interior da prpria medicina que surgiu a reflexo sobre o sentido ampliado da sade. Porm, tal processo se deu de forma contra hegemnica, a partir de escritores e militantes mdicos, em sintonia com o pensamento poltico e crtico da metade do sculo XIX. Esses autores seminais chamavam ateno para a imbricao entre a situao real vivenciada e as condies mnimas preconizadas para a vida, o trabalho e a sade das sociedades especficas. No Brasil, a histria da Sade Pblica, que teve sua consolidao no sculo XX por meio do pioneirismo de Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Adolpho Lutz e outros, reafirma o conceito e a prtica de sade como fruto de uma conjunto complexo de condicionamentos scio-sanitrios. As idias seminais desses verdadeiros pais da Sade Pblica brasileira tiveram amplo desenvolvimento a partir da metade do sculo XX, representada pelo assim denominado movimento sanitrio. Esse processo social juntou sob sua bandeira de democratizao do direito sade, de universalizao e de eqidade, partidos polticos, movimentos sociais, algumas
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Professora e pesquisadora titular da Fundao Oswaldo Cruz, pesquisadora de carreira do CNPq, Coordenadora cientfica do Claves e Editora cientfica da revista Cincia & Sade Coletiva da Abrasco.

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instituies formadoras de recursos humanos e profissionais do setor. A clebre VIII Conferncia Nacional de Sade realizada em 1986 e a Constituio Brasileira de 1988 consagraram a viso desenvolvida pelo movimento sanitrio na mesma poca em que, internacionalmente, o conceito ampliado de sade era socializado pela Organizao Mundial de Sade, por meio da chamada Carta de Otawa de 1986. Tal concepo se encontra no ttulo VIII Da Ordem Social, no captulo da Seguridade Social e no artigo 196. A a sade definida como um bem da sociedade, do estado e do setor: A sade direito de todos e dever do Estado, garantido mediante polticas sociais e econmicas que visem reduo de riscos de doena e de outros agravos e ao acesso universal e igualitrio s aes e servios para sua promoo, proteo e recuperao. Sade, portanto, um termo bastante genrico, portador de muitos significados e utilizado, segundo interesses especficos, nos mais diferentes sentidos. Dentre as inmeras definies, interessante e relevante a oferecida por uma Comisso criada pelo Congresso Norte-Americano para pesquisar a situao e projetar o futuro da Sade Pblica nos Estados Unidos (1988), exatamente num pas onde a hegemonia da medicina marginaliza o status das intervenes dessa poltica social: Sade Pblica o que a sociedade, coletivamente, faz para assegurar as condies que permitem populao ser saudvel. A definio elaborada pela Comisso NorteAmericana contm a noo de promoo da sade, assumida pelos profissionais da rea e tomada como referncia na j referida Carta de Otawa, em 1986. A idia a defendida de no considerar como sade, apenas a preveno e o tratamento dos agravos, mas tambm e acima de tudo, entend-la como resultante de uma ao da sociedade e da pessoa para proteger-se, para conhecer e superar os riscos de adoecimento e para buscar um estilo de vida saudvel, adequado melhor integrao dos seres humanos no seu scio-eco sistema.

2. A complexidade do conceito de sade dentro desta linha que aqui se encaminha a presen te reflexo. Vrios so os fatores que determinam a sade de uma populao ou que a influenciam. Usa-se aqui, neste texto, a imagem plstica homem de Leonardo da Vinci, como smbolo do ser humano hgido e saudvel, para representar essa complexidade.

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O primeiro parmetro para se dimensionar a sade de uma populao so os indicadores de condies e qualidade de vida, como por exemplo, os nveis de renda, salrio, emprego, trabalho, de segurana e proteo social. Convenciona-se aqui, que esta seria a cabea e a coluna vertebral do homem de Da Vinci. No brao esquerdo (lado direito da figura) estariam as polticas sociais vinculadas aos direitos em geral e, em particular, aquelas que dizem respeito questo de sade. Ou seja, referem-se s interferncias do estado e da sociedade civil para promover a superao das condies adversas. Nesse brao estendido repousam o direito ao trabalho, o acesso educao, moradia, ao sistema de transporte, ao lazer, seguridade social, ao saneamento e infra-estrutura bsica e ambiental, dentre outros elementos de proteo social e da vida. De forma muito especial, citam-se as polticas do setor

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sade, em sentido estrito. Ou seja, esse brao segura tambm as aes preventivas, assistenciais e compensatrias, oferecidas pelo Sistema de Sade. Essas ltimas (as compensatrias) se referem a parcelas muito especficas da sociedade que, por processos de excluso, de incapacitao fsica ou mental, por idade, ou por qualquer outra razo, no geram seus prprios meios de subsistncia, de tratamento ou de reabilitao (Minayo, 2001a; 2003). O brao direito do homem de Da Vinci carrega o sentido e as aes do desenvolvimento cientfico e tecnolgico responsveis pelas descobertas que permitem melhor qualidade de vida, garantindo uma sociedade saudvel. E tambm as teorias, mtodos e tcnicas capazes de ajudar a superar as condies de agravo sade, prevenir e curar doenas. Na perna esquerda (lado direito da figura) repousam as aes, as tcnicas e os conhecimentos organizados dentro da prtica mdica e das outras profisses da rea da sade, capazes de garantir os procedimentos de tratamento, assistncia, alvio e cura dos doentes. Por fim, a perna esquerda do homem de Da Vinci se apoia no cho do conjunto de valores sociais e culturais e da prpria opinio pblica, sustentando-se no sistema de crenas sobre sade-doena e sobre as aes pblicas e privadas realizadas nessa direo. As duas pernas tm uma dinmica coordenada, pois as medidas de Sade Pblica mudam atravs dos tempos, pela compreenso social das causas e do controle das enfermidades. No existe sociedade conhecida que abra mo de combinar a sabedoria da experincia com os conhecimentos cientficos: existe uma relao dialtica entre ambos, s negada pelos positivistas, que consideram o senso comum como um pr-conceito (Durkheim, 1980). Como refere o antroplogo Lvy-Strauss (1974) em uma de suas obras: O esforo irrealizvel, a dor intolervel, o prazer ou o aborrecimento so menos funo das particularidades individuais que de critrios sancionados pela aprovao ou pela desaprovao coletivas. (1974, XIII). Pensar sade, portanto, significa compreender, tambm, as condies gerais de produo e de reproduo que propiciam o aparecimento das patologias, das epidemias e das endemias. Assim como, levar em conta os determinantes

que promovem o bem estar, a longevidade e a qualidade da vida, em todos os sentidos. Por isso, os profissionais de sade nunca podero ser apenas tcnicos. Sua ao se desdobra como num tringulo eqiltero, onde se equilibram o saber tcnico, a ateno especfica para garantir a assistncia e superar os agravos e a militncia poltica e cidad pela mudana das condies sociais, busca da eqidade, transformaes no ambiente de trabalho e nos ritmos e padres da vida. Esse envolvimento tcnico, acadmico e militante sempre foi uma marca caracterstica dos que atuam na Sade Pblica porque, como se constata, a perspectiva referencial com que os sanitaristas trabalham, extrapola as aes mdicas e setoriais. sabido, teoricamente e na prtica, que a maioria das questes que afetam a sade se resolvem longe do poder tcnico ou do envolvimento humanista e muito perto dos gabinetes de outras polticas sociais, como as de saneamento e as da rea econmica. A falta de viso de uma economia da sade especfica e peculiar, por exemplo, freqentemente leva a que as decises sobre aes pblicas do setor sejam tomadas sob presso da opinio pblica ou em momentos de crises, atendendo a grupos de interesses, influncias polticas, em detrimento de conhecimentos e prioridades evidenciadas pelo perfil epidemiolgico da populao ou dos segmentos particulares. 3. O campo da Sade Pblica no Brasil O campo especfico da Sade Pblica aquele para onde confluem os conhecimentos, as prticas e as polticas setoriais para a promoo e proteo sade e, ateno e tratamento dos agravos fsicos e mentais. Quando se analisa o quadro da sade no Brasil nos ltimos 20 anos, constata-se que vrias mudanas aconteceram nos padres de morbi-mortalidade. A expectativa de vida aumentou; diminuiu a incidncia de doenas infecto-parasitrias; diminuram as taxas de mortalidade infantil e de mortalidade materna. No entanto, as taxas das doenas cardiovasculares, das mortes por violncia, dos acidentes de trabalho, das diferentes modalidades de cncer, da incidncia da Aids, das endemias, inclusive da fome, dos bolses de

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mortalidade infantil e materna aumentaram. Mas esse aumento foi diferenciado, refletindo o peso das desigualdades sociais, das disparidades regionais, da explorao indiscriminada da natureza e dos trabalhadores, assim como o privilgio que ainda constitui o acesso ao saneamento, infra-estrutura bsica, educao e aos servios eficazes de sade. Desde a dcada de 1980, trs questes vm se destacando no cenrio dos problemas de sade. O primeiro o crescimento das taxas de mortalidade e de morbidade por violncia. Esse fenmeno social nos ltimos 25 anos tem sido responsvel pela segunda causa de mortalidade da populao em geral e pela primeira, nas faixas de 5 a 49 anos de idade. As maior quantidade de vtimas vivem no contexto urbano, so do sexo masculino e moram em reas perifricas e onde falta a presena significativa de projetos sociais. Outra preocupao emergente vem sendo ressaltada pelo aparecimento da epidemia da Aids, que emergiu no pas nos anos 80 (do sculo XX), cresceu no incio da dcada de 90 e foi se disseminando de forma diferenciada por regies, vitimando mais, no final dessa mesma dcada, as classes sociais mais empobrecidas e aumentando a sua incidncia sobre as mulheres. A Aids tambm passou a configurar um perfil das doenas infecciosas no Brasil: o acometimento das populaes mais desfavorecidas em termos scio-econmicos e de abrangncia das polticas pblicas. O terceiro ponto o envelhecimento da populao, que vinha ocorrendo progressivamente, mas se intensificou na dcada de 1980 e se projeta, neste incio do sculo, com um crescimento acelerado. Os dados para 2002 mostram que j h mais de 16.000.000 de idosos no pas e que em 2020 o Brasil ocupar o 6 lugar no ranking mundial em nmero de pessoas com mais de 60 anos de idade. Isso significa uma inverso da pirmide demogrfica que at agora vinha privilegiando crianas e jovens. Mas igualmente, levanta uma srie de outros problemas e necessidades como aparelhamento de todos os setores de sade para promover o envelhecimento saudvel e para cuidar de agravos associados a enfermidades crnicas e degenerativas. Ao mesmo tempo, a populao brasileira continua sofrendo com endemias e epidemias, muitas delas antes

controladas, que agora reaparecem com nova intensidade e virulncia, como o caso da dengue a da tuberculose. Outras continuam sem que o sistema de sade tenha conseguido propor solues eficazes, como acontece com a hansenase e a malria. Todas reafirmam o padro de incidncia sobre a populao mais pobre e mais desprotegida. Os estudos clssicos de sade pblica assim como as novas abordagens, reafirmam algumas constataes importantes:

Existe uma articulao substantiva entre as


condies de vida e trabalho, tanto na produo da sade como na configurao das doenas mais comuns da populao.

O quadro atual de morbi-mortalidade no pas no


uma fatalidade. Para todos os problemas apresentados pelo perfil epidemiolgico da populao h um largo espao de intervenes tcnicas, sociais a educativas, passveis de serem realizadas. No mbito educativo e social, todas elas necessitam da participao ativa e consciente da comunidade.

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fundamental tomar conscincia de que a Sade


Coletiva depende de mudanas sociais combinadas com mudanas subjetivas que atinjam hbitos, costumes e modos de vida (Minayo, 2001a;2003).

H necessidade urgente de que sejam repensados


os marcos tradicionais de educao a sade, ampliando suas referncias com teorias de participao social, de psicologia social e de aprendizagem, dando-se nfase, sobretudo, qualidade da comunicao institucional sobre a qualidade de vida e a proteo sade.

4. Concluses Do ponto de vista poltico-legal, a Constituio de 1988 consolidou a opo inequvoca da populao brasileira por um sistema de sade universal e eqnime, visando ao atendimento das suas necessidades e melhoria da qualidade de vida, por meio do Sistema nico de Sade (Guimares e Tavares, 1994) O que se constata na prtica, porm, o conflito entre os princpios doutrinrios do SUS, a vigncia de um modelo hospitalocntrico de ateno sade, que se inspira ainda numa prtica fragmentada de assistncia e, uma boa parte de profissionais de sade atuando com uma viso muito reduzida do conceito de sade. O distanciamento entre a teoria e a prtica do SUS no satisfaz nem os profissionais de sade e nem a populao brasileira, que mais necessita desse servio pblico. Alm disso, o reducionismo disciplinar das profisses de sade e a fragmentao e a descoordenao do atendimento tornam dramticas as experincias e os sentimentos de desrespeito sofridos pelos mais pobres (Minayo, 1995; 2001a). Muitos so hoje os problemas do SUS: financiamento ainda insuficiente; irracionalidade no uso do dinheiro pblico, pois seu maior montante se esgota nos servios hospitalares; escassa informao ao pblico sobre a aplicao dos recursos existentes; insuficincia de profissionais capacitados e comprometidos com a populao; baixa qualidade do atendimento e da relao dos profissionais com a populao. Isso redunda na desumanizao da prtica de ateno sade, situao hoje percebida por todos. H, porm, vrios pontos positivos conseguidos desde a Constituio de 1988: o princpio da universalizao fez que os recantos mais longnquos e todos os segmentos da populao pudessem ter acesso aos servios que antes eram prestados apenas aos que possuam a carteira do INPS. O princpio da descentralizao que est sendo pouco a pouco implantado, gerou uma organizao mais eficiente, mais criativa e mais prxima dos usurios em grande parte dos municpios do pas, trazendo melhor qualidade da ateno primria para muitas comunidades. A execuo, na prtica, do princpio do controle social, tem possibilitado a organizao da sociedade em torno

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de seus direitos e reivindicaes, por meio do Conselho Nacional e dos Conselho Municipais e Estaduais de Sade. A existncia de mais de 5.000 desses rgos espalhados por todo o pas, envolvendo milhares de atores sociais e individuais, confere uma nova esperana ao cenrio das polticas de sade. Situando-se na contramo da tradicional tendncia clientelista e autoritria do Estado Brasileiro, os Conselhos so uma contribuio prtica para a construo da democracia no pas, mesmo e apesar de suas enormes deficincias, pois verdade que boa parte deles ainda existe mais como exigncia legal do que exercendo uma efetiva representao social. Apesar disso, sua existncia permite introduzir planos solidrios entre eles, propiciando a melhoria de seu desempenho e, sobretudo, enuncia, no cenrio nacional, a importncia da participao da sociedade na definio dos padres de sade que ela considera adequados e que est disposta a reinvindicar. Em sntese, pensar a Sade Pblica como projeto da sociedade torn-la muito mais abrangente, menos estatal, menos centralizadora e menos medicalizada. O conceito ampliado de sade permite a colaborao de muitas reas disciplinares e profissionais antes colocadas em segundo plano, portanto, devolve sociedade, sua responsabilidade no estabelecimento dos padres e limites de sua prpria sanidade fsica, social e ambiental (Minayo, 2001b). Desta forma, os profissionais de todas as reas da sade e sob a perspectiva da Sade Coletiva, por seus conhecimentos tcnico-cientficos e pela oportunidade de uma compreenso mais abrangente, so sujeitos privilegiados para indicar parmetros e prestar uma colaborao qualificada. Mas, no so nem os donos nem os responsveis nicos pela sade do pas. A sade um bem social que s pode ser alcanado pela construo coletiva de toda a sociedade. 5. Referncias COMMITTEE FOR STUDY OF THE FUTURE OF PUBLIC HEALTH. The future of Public Health in the United States of America. Washington: National Academy Press. 1988. DURKHEIM, E. Durkheim. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1980.

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PROMOO DA VIDA ATIVA: NOVA ORDEM FSICO-SANITRIA NA EDUCAO DOS CORPOS CONTEMPORNEOS

Alex Branco Fraga

PROMOO DA VIDA ATIVA: NOVA ORDEM FSICO-SANITRIA NA EDUCAO DOS CORPOS CONTEMPORNEOS1
Alex Branco Fraga
ESEF/UFRGS

Como restaurar e promover o carter ldico e gregrio da prtica de atividades fsicas e de lazer? Esta foi uma das questes que me foram propostas pelo Conselho Editorial da Revista E do SESC/SP e que procurei tratar no artigo Prtica fsica e cultura juvenil contempornea (FRAGA, 2005b). A questo me pareceu muito fecunda justamente porque toca, de maneira indireta, num dos grandes dilemas do campo da promoo da sade via atividade fsica: cada vez mais aumenta a concordncia geral acerca da importncia de uma vida fisicamente ativa para a manuteno da sade, mas ao mesmo tempo parece que a prtica fsica promovida vem perdendo a graa e deixando de ser um elemento de agregao social. Ali afirmava (e aqui tenho mais espao para reafirmar) que tal fenmeno me parece menos ligado s prticas corporais efetivamente realizadas pela populao nos espaos de lazer e muito mais aos novos significados atribudos atividade fsica, que vm sendo veiculados por programas de promoo de estilos de vida ativo, tais como o Agita So Paulo. A emergncia de um conceito Associaes entre atividade fsica e sade geral so to antigas quanto prpria civilizao. Prticas como o tai chi chuan na China e a yoga na ndia, hoje consideradas capazes de produzir efeitos fisiolgicos benficos sade, j compunham os princpios do bem-viver coletivo a milnios de anos antes de Cristo (USDHHS, 1996). Para a tribo da conservao da sade2, contudo, somente em meados dos
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O presente texto foi estruturado a partir de fragmentos da tese de doutorado Exerccio da informao: governo dos corpos no mercado da vida ativa (FRAGA, 2005a), onde desenvolvi mais detidamente alguns dos argumentos aqui arrolados.

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anos cinqenta do sculo XX foi possvel verificar que o baixo nvel de atividade fsica influenciava negativamente no desenvolvimento de doenas degenerativas. Logo aps a Segunda Guerra Mundial, visando manter em funcionamento a infra-estrutura montada pelos americanos para ampliar a resistncia fsica dos seus soldados, passou-se a investir na difuso de programas de exerccios e na formao de atletas nos Estados Unidos (USDHHS, 1996; SESC, 2003). A relao entre exerccios vigorosos e o aumento da capacidade cardiovascular pautou pesquisas, impulsionou investimentos em laboratrios ao redor do mundo e alimentou encontros acadmicos que tratavam de unificar a retrica fsico-sanitria das cincias da atividade fsica. Ao longo desse perodo, mudava-se apenas de nfase: enquanto nos anos 1950 prevalecia o preparo para competies de esportes coletivos, nos anos 1970 a corrida passou a ser a atividade mais sugerida (SESC, 2003, p. 25). No Brasil do incio da dcada de setenta, cooper havia se tornado marca registrada das corridas de resistncia aerbica. Para Kenneth H. Cooper, o investimento em exerccios predominantemente aerbicos era fundamental para a conservao da sade, pois eles seriam responsveis pela melhoria do sistema cardiorrespiratrio que, por sua vez, repercutiria numa melhora geral do condicionamento fsico e bem-estar geral de quem os praticasse com regularidade. Tais metas seriam resultantes naturais de um programa metodicamente estruturado em exerccios intensos e ininterruptos (50-60 minutos trs vezes por semana), precedidos de avaliao mdica; orientados por especialistas e mensurados pelo consumo de oxignio, considerado na poca a melhor medida de sua aptido fsica (COOPER, 1978, p. 16). J na dcada de oitenta, a fora persuasiva da pregao aerbica comea a declinar. Leses, traumas, estresse, uso de drogas para aliviar a dor ou aumentar o rendimento, mortes sbitas deram visibilidade aos efeitos colaterais desse
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Hugo Lovisolo (2000) utiliza esta terminologia para designar um conjunto de profissionais da educao fsica que relacionam qualidade de vida e bem-estar fsico atividade fsica moderada. Recomendam o controle do esforo para realizar apenas o necessrio e possvel, mandam-nos reconhecer e seguir os sinais das dores do corpo e as indicaes dos sentidos, como conselhos sobre os limites que no devem ser ultrapassados [...] almejam-se, por certo, outros recordes sociais, como a ampliao da esperana de vida dos coletivos humanos, a longevidade dos indivduos, a reduo das taxas de doenas (p. 15).

movimento fsico-sanitrio e se tornaram o alvo preferencial das crticas provenientes de certos setores do campo mdico. Em 1984, o cardiologista nova-iorquino Henry Solomon publica o livro O mito do exerccio, no qual afirmava que somente a dedicao aos exerccios fsicos, predominantemente aerbicos, no seria suficiente para se garantir proteo adicional contra enfermidades cardacas. A seguinte passagem d uma idia do tom das crticas constantes no livro: Voc pode apreciar os exerccios. Eles podem ser teis socialmente, talvez faam voc se sentir e parecer melhor. Mas o resto mito. Os exerccios fsicos no vo torn-lo mais saudvel. No vo prolongar a sua vida. Preparo fsico e sade no so a mesma coisa (SOLOMON, 1991, p. 17). Alm destas e outras crticas oriundas do campo mdico, um episdio ocorrido no mesmo ano em que Solomon publica seu livro, desestabilizou ainda mais a imagem positiva construda em torno da relao exerccio fsico e sade. Em 20 de julho de 1984, James Fixx (popularmente conhecido como Jim Fixx), autor do livro Guia completo de corridas, best seller que ficou entre 1977 e 1981 no topo da lista dos livros mais vendidos nos EUA, morreu fulminado por um ataque cardaco durante uma de suas habituais corridas. A notcia correu o mundo, as manchetes da poca davam conta da dimenso do impacto no imaginrio popular americano: Como pde um homem jovem, que se exercitava regularmente e que pregava os benefcios de uma vida s, sair para uma corrida de fim de tarde, por uma estrada rural em Vermont, e cair morto? (MICHENER apud COOPER, 1987, p. 16). Para tentar responder a esta e a tantas perguntas que seus estarrecidos seguidores lhe faziam, Kenneth Cooper publica em 1985 o livro Correndo sem medo. Seu objetivo era o de minimizar os efeitos negativos da morte de uma personalidade to cara aos pregadores dos exerccios aerbicos. O prprio ttulo j dava a dimenso do estrago junto opinio pblica e do tamanho da tarefa que Cooper se props a realizar. Eu estava convencido que algum, numa posio de saber, teria que dissipar a preocupao reinante e responder a estas indagaes ou todo o movimento pelo exerccio fsico dos ltimos quinze anos estaria em perigo (COOPER, 1987, p. 11). Apesar dos esforos de Cooper para

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tentar dar novo nimo pregao aerbica, Correndo sem medo acabou se tornando uma espcie de epitfio deste movimento miditico que marcou o campo da atividade fsica na dcada de setenta do sculo XX. Para recuperar o terreno perdido e inverter o foco do medo foi preciso moderar as exigncias fsicas, refazer relaes conceituais e, fundamentalmente, estabelecer novas recomendaes sobre a quantidade de atividade fsica ideal para a manuteno da sade. Ainda em meados da dcada de oitenta, mais precisamente em 1988, realizada na cidade de Toronto no Canad3 a Primeira Conferncia Internacional de Consenso sobre exerccio fsico, aptido fsica e sade. Ali comearam a ser traadas as conexes entre atividade fsica e os princpios de promoo da sade delineados na Carta de Otawa4, que acabou resultando na formulao de consensos em torno dos principais conceitos do campo. Atividade fsica, por exemplo, ficou definida como: qualquer movimento produzido pelos msculos esquelticos que resulte em energia fsica despendida (BOUCHARD et al., 1988); diferenciando-se de exerccio: subcategoria da atividade fsica com caractersticas definidas de planejamento, estrutura e repetio com o objetivo do melhoramento ou da manuteno de um ou mais dos componentes da aptido fsica (BOUCHARD et al., 1988). E Active Living: modo de vida que valoriza a atividade fsica como um elemento fundamental nas experincias vividas por cada um. Ela se caracteriza pela integrao de todas as formas de atividade fsica na rotina diria e no lazer, permeando todos os aspectos e estgios da vida (BOUCHARD et al., 1988). Nesta nova configurao discursiva, destaca-se o valor das experincias vividas por cada um nos mais diferentes ambientes, a necessidade de ativar a vida na rotina diria e a incluso do gasto energtico como balizador universal da atividade fsica voltada para a sade. Delineados os principais conceitos, faltava definir um

De acordo com Claude Bouchard, o relatrio de consenso surgido nesta conferncia resultado de um plano de trabalho elaborado em 1985 quando o projeto foi concebido e lanado (BOUCHARD et al., 1988). 4 Elaborada por ocasio do Primeiro Congresso Internacional sobre Promoo da Sade, realizado em 1986 na cidade de Ottawa, no Canad.
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consenso em torno da dosagem ideal. Esse era o objetivo de outra conferncia tambm realizada na cidade de Toronto em 1992 que, no entanto, no chegou a lograr xito nesse quesito. Claude Bouchard (1994), um dos organizadores do documento de sistematizao da conferncia, lamentava a falta de consenso, justamente, em torno desta questo to importante: ainda no temos conhecimento suficiente sobre a melhor combinao entre modo, intensidade, freqncia e durao da atividade relativa sade e bem-estar ou a objetivos de sade especficos (p. 13). em 1995, quando o texto com as recomendaes referendadas de forma conjunta pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) e o American College of Sports Medicine (ACSM) foi lanado nos EUA (PATE et al., 1995), que a dosagem de atividade fsica considerada benfica sade ganha corpo. Ali referendada uma mensagem concisa, cientificamente embasada, fcil de assimilar e, principalmente, ajustada linguagem miditica para poder disseminar de maneira mais efetiva a nova retrica econmico-sanitria. Deixam de ser necessrias trs sesses de 50-60 minutos por semana de exerccios fsicos dispendiosos, extenuantes e muitas vezes traumticos para se obter uma vida saudvel. A partir de ento, basta acumular 30 minutos de atividade fsica de intensidade moderada ao longo do dia, que podem ser fracionados em at trs perodos de 10 minutos, preferencialmente todos os dias da semana, contabilizando um gasto energtico mnimo de 2000 calorias semanais, para que possa adquirir proteo adicional sade. Tal meta pode ser atingida subindo e/ou descendo escadas, caminhando, fazendo alongamentos na fila do supermercado, passeando com o cachorro, descendo do nibus dois pontos antes do destino e percorrendo o trajeto a p, jardinando, varrendo a casa etc.; ou seja, a atividade fsica necessria para manuteno da sade passa estar ao alcance de cada um de ns em meio s tarefas rotineiras. A quantidade de atividade fsica acumulada ao longo do dia mais importante do que a maneira como ela realizada. J no se restringe apenas prtica esportiva ou realizao de sesses de exerccios fsicos sistematizados, no depende de equipamentos especficos ou profissionais especializados, mas sim da

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conscientizao geral sobre a importncia do gasto energtico produzido pela movimentao corporal diria e da responsabilidade de cada um em dar conta de sua prpria condio fsica. Esta nova forma de significar a atividade fsica est diretamente relacionada proeminncia da noo de risco5 na promoo da sade, de um modo geral. Polticas Pblicas especficas para o setor, vm cada vez mais investindo na organizao/disseminao/fixao dos procedimentos inadequados boa conduta de si, ao mesmo tempo em que cada vez mais os sujeitos so responsabilizados/culpabilizados pelos contratempos que lhes advm. Sedentrio, gordo, bbado, fumante, estressado, promscuo, drogado, passam a fazer parte da longa lista de novos marginais que assombram o bem-viver coletivo, seres degradantes constitudos por um discurso mais fludo em sua sanha moralizante e menos solidrio com quem dele se desvia: no faz exerccio porque preguioso; gordo de relaxado; no larga o cigarro porque no tem fora de vontade; bebe de sem-vergonha... Mapear essas identidades clandestinas (SAID, 1996) tem sido a forma privilegiada de apontar caminhos para uma vida mais saudvel, caminhos que se estreitam a cada comportamento desviante agregado, a cada risco incorporado no mapa. Nessa topografia moral os sujeitos so posicionados sobre um fio de navalha, mas permanecem livres para fazerem opes sobre o tipo de vida que querem levar, em contrapartida, devem arcar com os custos de uma escolha catalogada cientificamente como equivocada. Hoje, talvez mais do que em qualquer outra poca, estamos cada vez mais atados a nossa prpria liberdade de escolha, prpria individualidade. A ordem agitar6 Esta maior valorizao das atividades fsicas moderadas est intimamente ligada ascenso do sedentarismo no conjunto de fatores de risco modificveis (tais como fumo,
Para um maior aprofundamento da noo de risco no campo da sade, ver Lupton 1995; Castiel, 1999; Spink,
2003.
6 Ttulo de uma matria publicada na Super Saudvel, revista de divulgao da empresa de alimentos Yakult
S/A (2001).

lcool, drogas, m-alimentao), relacionados ao aparecimento de doenas degenerativas. A bioestatstica contempornea procura no deixar dvidas sobre o poder de corroso do sedentarismo: quase dois milhes de mortes por ano em todo o mundo; em torno de 10% a 16% dos casos de cncer de mama, clon e diabetes, 22% dos casos de doena cardaca isqumica (OPAS, 2003, WHO, 2002a, 2002b, JACOBY; BULL; NEIMAN, 2003); no Brasil, 54% do risco de mortes por enfarto, 50% derrame e 37% cncer, (MATSUDO et. al., 2001; BRASIL, 2002; CELAFISCS, 2002). Uma pequena parcela da epidemia de nmeros que vem fomentando a pedagogia do terror que permeia as polticas de promoo da sade, de um modo geral e, da atividade fsica, de um modo especial. Nmeros que, alm de categorizar uma forma de conduzir o prprio corpo como um fator de risco, tratam cada sujeito que se encontra capturado nessa rede de incidncias, como protagonista desta crnica da morte degenerativa. a propalada eficcia no combate ao desenvolvimento de doenas degenerativas que empresta valor social nova atividade fsica. A morbidez do comportamento sedentrio tem sido especialmente disseminada por (e tem propiciado a disseminao de) programas de promoo em sade, que tomam a atividade fsica como um elemento central. Entre os quais se destaca o Agita So Paulo7. Lanado oficialmente pelo Governo do Estado de So Paulo em dezembro de 1996, o Agita So Paulo fruto de um convnio entre o Centro de Estudos do Laboratrio de Aptido Fsica de So Caetano do Sul (CELAFISCS) e a Secretaria de Sade do Estado. Criado para combater o sedentarismo no Estado de So Paulo promovendo o nvel de atividade fsica e o conhecimento dos benefcios de um estilo de vida ativo (CELAFISCS, 2002, p. 15), o programa adotou a nova recomendao global sobre atividade fsica relacionada sade, sistematizada em 1995 pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC/EUA) e American College of Sports Medicine (ACSM), como sua mensagem principal: trinta minutos de atividade fsica por dia
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O Agita So Paulo funcionou como um lugar de cultivo da tese Exerccio da informao: governo dos corpos no mercado da vida ativa.

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na maior parte dos dias da semana, se possvel todos, de forma contnua ou acumulada e abrangendo trs ambientes bsicos: atividades domsticas, transporte (deslocamento entre casa e trabalho e/ou entre casa e escola) e atividades de lazer (PATE et al., 1995). O Agita So Paulo se prope a aumentar o nvel de conhecimento da populao sobre os benefcios de um estilo de vida ativo, para da incrementar o nvel de atividade fsica da populao de So Paulo (GESP , 1998, p. 14). Esta sutil, mas fundamental inverso na ordem de prioridades, implicou num modo de lidar com a prtica fsica que depende muito mais da habilidade persuasiva para convencer os sujeitos a adotarem um estilo de vida ativo, do que da organizao, conduo e manuteno de espaos concretos destinados exercitao fsica. A responsabilidade dos programas passou a ser deslocada, com a disseminao do palavreado da vida ativa nas estruturas existentes, ficando a execuo por conta e risco de cada sujeito capturado por esse discurso. Dentro desse novo modelo, no h como ampliar a participao geral em atividades fsicas sem passar por um processo de inoculao da mensagem da vida ativa, sem investir em mecanismos de multiplicao de seus agentes transmissores. Ou seja, a preocupao central j no mais com o controle direto sobre o exerccio fsico e, sim, com a regulao do exerccio da informao no campo da atividade fsica. Ocupar a mdia com o palavreado da vida ativa, portanto, passa a ser a forma econmica e politicamente mais eficiente de penetrar de uma s vez no terreno discursivo da promoo da sade e de intervir em diferentes espaos, destinados prtica fsica. Como diz Victor Matsudo e colaboradores (2001): A tendncia contempornea dos programas de interveno de estimular o conhecimento dos benefcios de um estilo de vida ativo. Assim, a divulgao dessa mensagem fundamental para alcanar esse objetivo e nesse sentido a utilizao dos meios de comunicao passa a ser fator crucial para o sucesso dos programas (http:// www.agitasp.com.br/pesquisa2.asp). A exposio positiva na mdia tem sido apontada como

uma das formas mais eficientes de generalizao e aceitao das novas recomendaes sobre atividade fsica (MARCUS et al., 1998; FIGUEIRA JNIOR, 2000). o espao miditico que sustenta os circuitos globais de trocas econmicas, dos quais depende todo o movimento mundial de informao, conhecimento, capital, investimento, produo de bens, comrcio de matria prima e marketing de produtos e idias (HALL, 1997, p. 17). Estar na mdia , de certa forma, estar em todos os lugares de uma s vez, poder permear todos os cantos e ser alcanado de qualquer ponto. A capacidade de articulao poltica, versatilidade miditica e habilidade persuasiva do CELAFISCS permitiu que o Agita So Paulo conquistasse espao em outros estados do pas e fosse adotado pelo Ministrio da Sade no ano de 2000, sob o ttulo de Programa Nacional de Promoo da Atividade fsica Agita Brasil (MS, 2002). Praticamente na mesma poca, consolidou laos associativos com outros programas da mesma estirpe na Amrica Latina atravs da RAFA Rede de Atividade Fsica das Amricas (CELAFISCS, 2002). E em 2002, foi escolhido pela Organizao Mundial da Sade (OMS) como programa referncia nas comemoraes do Dia Mundial da Sade Move for Health, que naquele ano teve a promoo da atividade fsica como forma de sensibilizar a populao para os riscos relativos a doenas crnico-degenerativas e dar maior visibilidade s alternativas disponveis para combat-los (WHO, 2002a). Neste processo de ressignificao de conceitos muita coisa muda, tanto no mbito mais subjetivo das percepes de cada um acerca do corpo em movimento, quanto na aferio mais objetiva dos ndices de sedentarismo numa dada populao. Uma pesquisa realizada com a populao de Tiajin, na China, citada numa publicao do SESC de So Paulo intitulada Escolhas sobre o corpo: valores e prticas fsicas em tempo de mudana (SESC, 2003); d uma idia do impacto que esta alterao de paradigma vem causando. A partir das respostas dadas pelos/as entrevistados/as sobre a rotina diria relativa atividade fsica, foram aplicados dois critrios: primeiramente, foram computados como ativos somente os sujeitos que reportaram realizar exerccios fsicos no tempo de lazer e, num segundo momento, foram

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computadas as atividades fsicas compulsrias conforme as recomendaes contemporneas. Pelo critrio antigo, 89% dos habitantes foram considerados sedentrios, mas quando os novos critrios foram aplicados, 94% da populao poderiam ser considerados sujeitos ativos, j que naquela localidade a bicicleta o meio de transporte predominante no deslocamento ao trabalho (SESC, 2003). De acordo com as anlises do prprio SESC, a atividade fsica realizada de forma compulsria, at pode levar diminuio dos riscos relativos ao sedentarismo em certos grupos sociais e em determinadas circunstncias, mas se ela no fizer parte do conjunto de valores culturais que d sentido vida e no resultar da livre escolha do sujeito, os efeitos deste tipo de promoo podem no ser os esperados. Nesta perspectiva mais utilitria e individualista posta em marcha pela tribo da conservao da sade, a construo de laos de sociabilidade e a ludicidade perdem importncia, no porque estes elementos tenham sido propositalmente banidos do processo de disseminao da vida ativa e, sim, porque o valor maior atribudo prtica fsica est cada vez mais vinculado aos propalados rendimentos orgnicos por ela proporcionados. De certa maneira, parece importar menos o prazer de jogar um futebolzinho com os amigos, por exemplo, do que o gasto energtico que tal movimentao corporal representa na contabilidade geral da semana. A inteno aqui, assim como no texto publicado na Revista E do SESC/SP , (FRAGA, 2005b), no questionar se a dosagem recomendada ou no suficiente para produzir os benefcios apregoados e, sim, apontar que o predomnio do carter utilitrio e individualista no processo de promoo da vida ativa um dos fatores (e h outros tantos) que contribuem para o declnio do carter ldico e gregrio das prticas corporais contemporneas. bem provvel que a possamos encontrar algumas pistas que nos ajudem a entender um pouco mais a resistncia de uma parcela da populao aos apelos em favor da prtica fsica, bem como elaborar estratgias que dem visibilidade cultura de movimento.

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IMAGENS DO CORPO EM RISCO

Marina Guzzo

IMAGENS DO CORPO EM RISCO1


Marina Guzzo
O ar matria pobre. Em compensao, porm, com o ar teremos uma grande vantagem, referente imaginao dinmica. Efetivamente, com o ar o movimento supera a substncia. No h substncia seno quando h movimento (Bachelard, 2001).

Acrobacia As acrobacias podem ser executadas no solo, no ar, em um aparelho especfico. A palavra acrobata vem do grego akrobate, que significa aquele que anda na ponta dos ps. A acrobacia um jogo de preenchimento do espao com o corpo humano, que acontece a partir da medida de distncias, de pesos, de limites, anterior ao surgimento do circo moderno e aparece j em vasos gregos, porcelanas chinesas e outros objetos que representam a antigidade (Starobinski Apud Dufrne, 1997). O acrobata trabalha com os limites do corpo: de fora, de equilbrio, de potncia, de liberdade (Soares, 2001). Limite tambm de risco e de segurana. O corpo do acrobata sustenta o risco de ousar desafiar os limites da condio humana. As prticas, porm, so definidas e esculpidas com disciplina e exausto de treinamento. Nada acontece por acaso: os gestos so precisos e seguros. A acrobacia treinada, planejada para ser vista, para ser desejada pelo pblico. para este que ela se transforma em risco e em inusitado. O acrobata j sabe tudo que lhe acontecer; um artista que domina e coloniza seu futuro, pois um movimento mais forte ou mais fraco pode lev-lo ao cho. O risco da acrobacia no est somente na altura em que realizada ou na sua fora, ou na sua beleza. O risco reside justamente na execuo perfeita de todos esses elementos. O ritmo e o tempo so essenciais para a segurana de quem a executa e so, ao mesmo tempo, essenciais para que o pblico perceba o risco.
1 Este texto foi escrito a partir da pesquisa realizada entre 2002 e 2004, que resultou na dissertao de mestrado intitulada Risco como esttica, corpo como espetculo, defendida no Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social da PUC-SP , sob orientao da Profa. Dra. Mary Jane Spink.

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No solo, as acrobacias desempenham importante papel de fora e de destreza muscular. Um exemplo dessas prticas o nmero de mo com mo (entre duplas, trios ou mais pessoas) e os exerccios olmpicos. Nas acrobacias de solo existe a figura do porteu, que quem sustenta ou suporta o peso de outrem que executar movimentos com equilbrio. O volante o que sobe, o que fica em cima, o peso vivente e consciente do movimento. Essa uma forma pura de atletismo circense, segundo Sebastian Gsh2 , que inclui as chamadas poses plsticas, em que os artistas, com seus corpos definidos e prateados com purpurina, compem figuras belas.

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FIGURA 1 Marzuca fogo de Pina Bausch, s/d. Fotografada por M.


Vanden Abeele.

JANE e MINGUET, 1998.

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FIGURA 2 - Mireilly, Fotografia de Franois Tuefferd, 1942.

Aparelhos Areos As prticas corporais do ar constituem um tipo de transgresso dos limites do corpo. Elas existiram para entreter, encantar e gerar beleza. O mito do homem que voa, desde caro, representa a materializao da transcendncia humana em relao s foras do mundo natural, da fsica, da gravidade. Aquele que voa sugere a potncia de um homem superior, dotado de habilidades maiores e mais possibilidades de ao, viso e experimentao. O circo tambm possui esse objetivo de entreter, de encantar e de gerar beleza, sobretudo, com o corpo como centro, como espetculo. No sculo XIX parece ter havido um esforo por parte das artes circenses para incluir as modalidades areas de acrobacia; em contraposio ao teatro, os espetculos eram feitos para o vero e no para o inverno. No vero as pessoas saiam mais de casa, vestiam roupas mais leves, ficavam acordadas at mais tarde e costumavam ir ao

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circo. As modalidades acrobticas faziam referncia a metforas do ar e de vos e se relacionavam prioritariamente com os equilibristas, trapezistas e acrobacias eqestres que, apesar de acontecerem no cho, por conta dos movimentos circulares constantes e do acrobata em cima do cavalo, davam a idia de leveza e aeridade. O primeiro nmero de trapzio de vo revolucionou a forma dos espetculos circenses. Jules Leotrd apresentouse no Cirque dHiver, em Paris em 1859, com a idade de 21 anos e, chocou e fez brilhar os olhos dos espectadores como descreve um jornal da poca: um pssaro tropical que saltava de galho em galho e deixava nos olhos deslumbrados dos espectadores uma impresso brilhante porm confusa de suas plumas iluminadas3 . Em 1868, o Jornal de espetculos de Nova York, The New York Clipper, escrevendo sobre esse acrobata prope o seguinte contraste: balanando no ar de frente para trs, leve como um pssaro e com um esqueleto de ao que o carrega.4 Essa imagem de Leotrd como um deslumbrante pssaro resultava da tcnica da acrobacia que envolvia a decolagem de um trapzio antes que ele chegasse no ponto mais baixo de seu balano e, desse ponto, parecesse voar e girar at alcanar o segundo trapzio que era balanado em direo a ele. Outros artistas haviam tentado amarrar seus trapzios em bales e atingiam alturas enormes e fatais, segundo Speaight (1980). Essa associao da imagem do trapezista com um pssaro logo tomou conta do pblico e dos artistas circenses, tendo implicaes diretas para artistas que praticavam o aparelho. O vo s era possvel pela grande habilidade ginstica, pela fora fsica do artista e, sobretudo, pela mistura de agilidade e leveza. Nesse nmero, a fora parecia ser vencida pela beleza e, rapidamente, o trapzio passou a ser considerado uma prtica feminina. A tenso entre a beleza e a fora empregada nesse tipo de exerccio, deveria causar a impresso do artista no
3 tropical bird leaping from branch to branch and leaving in the dazzled eyes of the spectators a brilliant but
confuses impression of its bright plumage. G. Speaight. A histoy of circus (London, Tantivy Press 1980. p.
73). Traduo minha.
4 swaying through the air backwards and forwardsas light as a bird with the iron frame which carried him.
7 de Novembro de 1868. New York Clipper. Traduo minha.

estar fazendo esforo para se movimentar ou para realizar as acrobacias.

FIGURA 3 Jules Lotard, 1860.5


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FIGURA 4 - Jules Lotard et la course aux trapzes, 1860.6

Manual do artista circense Em 1890, Hughes Le Roux e Jules Garnier publicaram um manual para nmeros circenses, chamado Acrobats and Mountebancks. O livro consistia de uma srie de descries das formas apropriadas para apresentar e ensaiar um nmero, incluindo receitas de sucesso e de encantamento para o
5 6

Bibliothque Historique De La Ville De Paris. Regard sur le cirque. Paris: Paris Bibliothques, 2001. p.168. Adrian, 1998, p. 71.

pblico, regras de seguranas para o artista e os ingredientes para a composio de um nmero perfeito. O captulo sobre o equilibrismo advertia e comparava a ginstica com o circo:
Os equilibristas so os mais artsticos acrobatas, os verdadeiros Olmpicos. O ginasta excita nossa admirao pelo desenvolvimento de seu trax e sua costela, e por sua confiana pica em seus msculos. O equilibrista no necessita o mesmo esforo em seu trabalho. A beleza de sua performance est na delicadeza, na variedade na facilidade e na graa dos movimentos do artista e no valor que mulheres tm como equilibristas, pois homens no conseguem conciliar-se na supresso de sua fora em suas faanhas e por isso ficam em segundo lugar como equilibristas. Eles preferem ramos especiais da arte e so geralmente ilusionistas, ciclistas7

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Tal afirmao entra em contradio com o perigo e a dificuldade atribuda ao trapzio como prtica corporal e os prprios autores do manual concordam que os trapezistas fazem aes olmpicas. A feminilidade atribuda ao nmero vem de um privilgio esttico e no de fora ou de perigo. O corpo do homem visto como ginasta e possuidor de fora muscular e confiana pica nos msculos, enquanto mulher fica delegada a delicadeza, variedade, facilidade e graa, mesmo ao executar os exerccios areos de grande dificuldade. A fora do corpo da mulher parece no existir. Ela parece conseguir suas faanhas por outras habilidades que no a fora. O manual ainda fala sobre a participao feminina como as danarinas de cordas:
o amor destri o centro da gravidade das danarinas da corda e como uma regra, as equilibristas, ou seja, as verdadeiras artistas []. No s uma questo de averso aos perigos da maternidade que acaba com a carreira artstica de uma equilibrista, mas tambm verdade que aquelas que esto particularmente neste ponto podem

7 The equilibrists are the most artistic acrobats, the true Olympians. The gymnast excites our admiration by the development of his thorax and limbs, and the epic relief of hismuscles. The equilibrist does not require the same effort in his work. The beauty of the performance lies in the delicacy, variety, facility, and grace of the artists movements, and on this account woman excel as equilibrists, for men cannot reconcile themselves to the suppression of their streghts in the feats they acieve, and therefore take a second rank in equilibrium. They prefer special branches of the art and are usually jugglers, bicyclists(Le Roux e Garnier, 1890, p. 210. - Traduo minha).

desfrutar a performance de uma equilibrista sem sentir nenhum desconforto em relao a sua vida privada.8

Existe nessa idia a metfora do corpo feminino acrobata que intocado, consagrado e virginal. Isso contribui para a imagem da transgresso da artista que, alm de romper com uma fronteira social, rompe com fronteiras de seu prprio corpo. O corpo feminino, que o lugar da maternidade, da segurana, da quietude, est pendurado a oito metros de altura, invertido, executando acrobacias de grande dificuldade at para os homens. Le Roux e Garnier declaram que as mulheres predominam nos exerccios areos, em performances de trapzios fixos e que aumentam consideravelmente em nmero, nas trupes de trapzio volante a partir de 1850. Essas apresentaes eram geralmente realizadas em teatros e no em circos. A primeira mulher a ser citada como trapezista voadora foi Mlle Azella, que apresentou-se em Holborn em 1868 (Gossard apud Sttodart, 2000), como retratam os jornais da poca. interessante observar uma preocupao com o risco que essa trapezista corria ao executar suas peripcias no ar, com destaque para suas vestimentas, que poderiam atrapalhar seus movimentos e faz-la cair: os esvoaantes vestidos femininos seriam um perigo para ser pego nas cordas (...) uma quantidade de nervos, ousadia requisito para esses feitos atribudo a alguns homens e ns no pensaramos, antes de ver Azella, a nenhuma mulher9 . As mulheres acrobatas trazem a metfora da mulher andrgina, do corpo andrgino, que faz lembrar a idia de Haraway (1991) sobre os Cyborgs. A fora gerada pelo corpo feminino parecia causar maior emoo no pblico, que assistia com a sensao de estranhamento perante aquele corpo no ar. Existia uma certa empatia e simpatia para com aquela mulher que inspirava certa vulnerabilidade e, talvez por isso, maior aflio no pblico ao realizar o nmero de trapzios de vo.
love destroys the center of gravity of tighope dancers, and as a rule, equilibrists, that is to say the true artists...might rank with the roman vestalit is not just a question of averting the danger o maternity, which ends the artistic career of an equilibrist but is also so that those who are particular on this points can enjoy the performance of an equilibrist without any uneasiness about her private life Traduo minha. (Le Roux e Garnier, 1890). 9 The Liverpool Daily post, 17 Fevereiro 1868. the flowing female dresses would simply be a hazard in getting caught in the ropes () amount of nerve, daring, and muscular strength required for such feats is given but to a few men, and, we should have thought until we saw Azella, to no woman Traduo minha.
8

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Munby, um periodista londrino, registrou suas impresses das figuras femininas que ia assistir ensaiarem ou apresentarem-se. Ele narra um encontro com uma trapezista de dez anos de idade chamada Nathalie Foucart, que ele confundiu com um menino. Segundo sua descrio:
ombros empinados e um rosto redondo e sorridente... ele mostrava destreza e agilidade; ele escalava as cordas e se pendurava no trapzio por uma mo e um p. No havia nada de feminino ou fraco no garoto, mas por me lembrar das muitas garotas acrobatas que existem agora , perguntei garota que sentava do meu lado na multido se o performer era um menino ou uma menina. uma menina ela me respondeu.10

Em 1871 uma artista de circo chamada Lulu revelouse homem. Essa polmica gerou atos polticos e reformistas morais, que criaram o Dangerous Permances Act, em 1879 que especificava e vetava a participao de crianas e mulheres em certos tipos de exerccios ginsticos e nmeros de grande altura em circos e teatros (Speaight, 1980).
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FIGURA 5 ,Miss Lala, Cartaz de Jules Chret, 1880.

Mlle Lala
... o fato de vir a ser uma mulher no parecia pertencer sua vocao. Clarice Lispector

10 broad shoulders and a round plump smiling face....he showed both pluck and skill; he climbed the rope, and hung from the trapeze by one hand or one foot. There was nothing weak or feminine about the boy, but remembering how many female acrobats there are just now, I asked a girl who stood next to me in the crowdwhether the young performer were a boy or a girl. Its a girl sir she answered briskly. Traduo minha. Mumby apud Sttodart, 2000.

Degas, como representante desse momento cultural do meio do sculo XIX, eternizou esse acontecimento da mulher no circo em sua obra. O quadro de Mlle Lala no Circo Fernando (1879) traz os fios estruturais, nos quais a figura de um corpo de mulher parece estar suspensa. O Circo Fernando, fundado em 1875 na Place Fronchot, foi rebatizado em 1890 de Circo Medrano. Era um ponto de atrao para os artistas de Montmatre. Degas passou janeiro de 1879 visitando o circo para ver uma trapezista mulata que se autodenominava Mlle Lala. Ela era tambm conhecida como la femme canon porque seu nmero principal consistia em disparar um canho suspenso em correntes que ela segurava entre os dentes, enquanto pendurada no trapzio pelos joelhos.

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FIGURA 6 Mlle. Lala. At Circus Fernando, Quadro de Edgard Degas, 1879

O quadro de Degas,11 no entanto, mostra-a em uma outra atuao, onde ela se deixa iar at a cpula do circo graas a uma roldana mecnica. O quadro traz uma espontaneidade e uma fugacidade, pois imprime o movimento de rotao que o corpo faz, parecendo estar livre no ar, uma vez que mal se v a corda no quadro.
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Para mais detalhes sobre o quadro de Mlle Lala e a arte impressionista de Degas, ver Growe (2001).

O pintor parece no ter se preocupado em mostrar a audcia, o risco e a ousadia da trapezista. Ao contrrio, ele a subtrai do contexto do circo e concentra ateno na relao entre a artista suspensa no espao e a arquitetura da cpula. O resto no vemos: o trapzio, a altura que ela se encontra do cho, se est com rede de segurana ou no. Tambm no vemos os espectadores. A arte calculada de Degas deu evidncia total ao corpo da mulher que est sim, suspenso: Mlle Lala torna-se objeto de foras e tenses expressas pela contradio de sua posio no ar. Em suspenso descendente e em alongamento ascendente, o corpo parece estar em uma posio arbitrria, porm, fundamentada pela textura da arquitetura e das travas da cpula que anulam o movimento e a toro do corpo da artista. Nessas diagonais e verticais do quadro no encontramos nenhuma base segura onde a acrobata poderia se apoiar, o quadro parece traduzir a condio do corpo merc do acaso, flutuando no ar.

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FIGURA 7 Intrpida Trupe (detalhe). Fotografia de Flavio Colker, s/d.

Risco, gnero e classe social Essa figura da mulher acrobata permite problematizar a organizao do circo. Essa mistura de classes e gnero que existe em algumas prticas circenses, aumenta a contradio do circo como espao do corpo livre, do corpo grotesco e, do corpo transgressor de limites. No circo, como em outros espaos da sociedade em meados do sculo XIX, havia um controle dos corpos e de suas aes (assim como ainda existe

hoje). O circo sempre sobreviveu de seu pblico e de sua boa publicidade. Consagrou-se como uma diverso familiar e, por isso, manteve em sua organizao a ordem e a hierarquia social da burguesia da poca. As mulheres do circo no somente transgrediam as leis da fsica ou dos corpos seguros, como tambm as normas de boa conduta moral do sculo XIX. Elas construam (ou eram construdas) como um espetculo do corpo seminu, que se igualava ao dos homens em performances de fora e de agilidade, apesar da delicadeza e da baixa estatura serem vistas como fundamentais para a beleza do nmero. Assim, por exemplo, Le Roux e Garnier sugeriam que se fizesse um exagero no gesto e uma mscara feminina para os movimentos e para os nmeros areos, para disfarar a fora e o perigo envolvidos na prtica. O corpo era treinado para mascarar de alguma maneira suas aes reais: por trs de um corpo treinado, disciplinado, enrijecido e forte aparecia a leveza, a delicadeza, a liberdade. O artista e acrobata areo constri e opera a fantasia do espao onde o corpo retratado de maneira insubstancial e inclassificvel, desprovido de limitaes impostas por gnero ou raas. o corpo desterritorializado, o corpo desconectado de um lugar, tempo, relaes. O corpo irreal e impossibilitado de ser real. Corpo criado para sustentar a iluso. E por que precisamos da iluso da leveza? Por que no podemos ouvir os sofrimentos desse corpo, seus gritos, seus esforos e suas limitaes? De onde vem esse desejo de superao do corpo?

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FIGURA 8 Deux danseunes de corde tombent dans la cage aux lions,1907.

O risco, no ar A figura do acrobata areo trouxe consigo a idia de superao do risco. O corpo do acrobata em movimento, que se arrisca, supera e transcende, pode ser classificado como anormal ou freak, que supera e se arrisca por causa ou somente porque dotado de caractersticas especficas, de exageros em sua flexibilidade, em sua fora, em sua agilidade. A ele permitido arriscar. Essa representao fica misturada com a iluso de que ele arrisca sem fazer esforo algum; arrisca porque tem o corpo livre, o corpo potente, a coragem. Arrisca porque escolhe arriscar. Mas ser que ele arrisca realmente? O manual de Le Roux e Garnier um dos muitos exemplos de que as prticas circenses esto sempre embasadas em normas e regras de segurana. Existe sempre, por trs de uma acrobacia, anos de trabalho, dedicao e pesquisa. H muitos momentos de prtica e de experimentao. E existe, sobretudo, o momento de sistematizao. At o sculo XIX, o espao de sistematizao do circo, diferentemente da Ginstica, no foi a cincia. O circo viveu e sobreviveu com a passagem de conhecimento pela tradio oral de pai para filho, de gerao para gerao. Quase no mesmo perodo, a Ginstica comeava a se instituir como prtica sistematizada, pensada como conjunto das normas de conduta moral e de pedagogias que se elaboram para formar ou reformar o corpo, regulando corretamente suas manifestaes e educando a vontade. (Soares, 1998a). Amoros (apud Soares, 1998a) publicou sua obra ressaltando itens que achava importante para a construo da Ginstica, como um campo de certezas e slida estrutura cientfica e filosfica sobre o corpo. Segundo Soares (1998b), na primeira metade do sculo XIX foram realizados diversos estudos sobre a anlise dos movimentos, sendo desenvolvidos aparelhos para a Ginstica e melhoria da postura dos indivduos, principalmente para que ele pudesse servir ao Estado em qualquer situao. Essas diferenas do corpo do acrobata no circo e na Ginstica ficam mais claras quando olhamos para a estrutura de segurana que se faz presente nesses dois contextos. No circo isso se deu muito mais por meio de aparelhos externos ao corpo: cintures de segurana, redes, cabos de ao. Na

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Ginstica, essa segurana veio da cincia: os mecanismos que do segurana ao corpo so os estudos fisiolgicos, anatmicos e biomecnicos que garantem a execuo do gesto perfeito e, portanto do gesto seguro, embora h tambm uma srie de aparelhos externos que previnem acidentes e leses. Alm desses equipamentos de segurana, h ainda, profissionais especializados em tcnicas de segurana que ficam ao lado dos ginastas em cada execuo, em cada momento da aquisio da tcnica do movimento e no aperfeioamento de sua execuo. Com a esportivizao do mundo, onde o esporte tornase o grande espetculo do capitalismo e parte da engrenagem do processo civilizador (Lucena, 2001), a figura do ginasta passa a ser vista como realizador de grandes feitos em relao aos saltos, aos vos e execuo perfeita dos movimentos de acrobacias areas. Essa expectativa gera a tenso entre a criao e a competitividade. O aumento do grau de dificuldade dos saltos mortais acontece em cada Competio de Ginstica Artstica de nvel mundial.12 Tal esportivizao tambm se faz presente nos circos, que contam com a maioria das tecnologias de segurana citadas anteriormente, sistematizadas e publicadas pelos estudos realizados na rea da Ginstica e da Educao Fsica, criando uma esttica do risco para seus espetculos. Essa esttica de risco est presente em muitos espaos da contemporaneidade: ps-moderno aquele que busca e vive a vertigem: velocidades, informaes, imagens, quedas, vos. H um leque de opes para arriscar-se hoje, no s com o corpo, mas com a economia, com jogos, com polticas. Todo risco tem, porm, seu duplo: a segurana. O crescimento do mercado de seguros, a preveno e o desejo de uma sade perfeita e cuidados de si so algumas formas de gerenciar e prevenir riscos. Nesses tempos e espaos vertiginosos existe uma lgica contrria segurana, que incentiva o risco, a arriscar-se de alguma forma. A prudncia j no a virtude mais esperada do homem realizador, pro-ativo e moderno (Spink, 2001a, 2001b).
12 No ltimo mundial de Ginstica Artstica a ginasta brasileira Daiane dos Santos conseguiu executar um salto mortal indito na histria da ginstica, que foi nomeado com seu sobrenome DOS SANTOS, um twist duplo mortal carpado de frente, com valor super E.

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Muitos riscos so naturalizados, passam a fazer parte de nosso dia-a-dia. Rapidamente, porm, eles podem ser trazidos de volta nossa vida sendo desnaturalizados e considerados de extrema importncia e urgncia. No corpo, isso fica evidente com as novas descobertas da cincia, a proliferao de um novo vrus ou os inmeros processos de rejuvenescimento. Quem garante a segurana de um corpo? O que permite o processo de naturalizao e desnaturalizao de um risco, em relao ao corpo? O risco hoje um importante gestor de corpos. Gerenciar os riscos e prever o futuro foi exatamente o que determinou a entrada da sociedade no perodo moderno, pois os riscos sempre estiveram presentes na histria da humanidade. Vivemos ento numa sociedade dos riscos, segundo Beck (1993). Neste estudo sobre o corpo do acrobata, o principal entendimento do risco como uma construo esttica. Uma esttica de risco tem como pressuposto a configurao de uma sociedade de riscos, recortada pela sensibilidade humana na perspectiva da vertigem e da incerteza. Esta esttica permite a criao de manifestaes do risco como espetculo, de risco como ingrediente para vendagem de corpos e de vidas, transformando as formas de beleza, de potncia e de humanidades.

FIGURA 9 - Les Mtors, s. d.

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REFLEXES SOBRE A EPIDEMIOLOGIA ATUAL

Maria Lucia F. Penna

REFLEXES SOBRE A EPIDEMIOLOGIA ATUAL

Maria Lucia F . Penna


Para termos alguma garantia de termos a mesma opinio acerca de uma idia particular, preciso pelo menos que tenhamos tido sobre ela opinies diferentes. Se dois homens querem se entender verdadeiramente, tm primeiro que se contradizer. A verdade filha da discusso e no filha da simpatia (Bachelard, 1979a, p. 81).

A definio da epidemiologia como o estudo das doenas e sua distribuio na populao, utiliza dois conceitos centrais: populao e doena. Este trabalho discute a compreenso desses dois conceitos pelos epidemiologistas e tambm a teoria do estilo de vida, enquanto teoria etiolgica implcita nos modernos estudos epidemiolgicos. Aponta, ainda, a relao entre categorias nosolgicas e teorias etiolgicas, enfatizando o carter instrumental dessas categorias e teorias. O afastamento entre a epidemiologia e a sade pblica abordado, assim como sua relao com as cincias sociais. Por fim, aponta a possibilidade de mltiplas perspectivas na escolha de uma causa entre vrios aspectos dos mecanismos de produo de uma doena. Epidemiologia Definio Costuma-se definir a epidemiologia como o estudo da determinao das doenas e de sua distribuio na populao. Pode-se encontrar na literatura uma enorme quantidade de definies desta disciplina. A apresentada acima certamente ser aceita pela maioria dos epidemiologistas, embora possa ser interpretada de diferentes maneiras. Dois conceitos so centrais na epidemiologia: doena e populao. O conceito de doena em epidemiologia o mesmo da nosologia mdica, tomado de forma desproblematizada, como uma verdade a priori. J o conceito de populao varia segundo diferentes abordagens epidemiolgicas. Alguns autores inscrevem o conceito de populao no campo das cincias sociais. Populaes humanas

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so sociedades. Outros, muitas vezes sem explicit-lo, inscrevem o conceito de populao no campo da estatstica, populao enquanto nmeros, ou, no caso especfico da epidemiologia, conjunto de organismos nos quais cada um pode ser traduzido em um nmero segundo o seu estado e/ou exposio. Esta abordagem assume o indeterminismo e, conseqentemente, o instrumental estatstico enquanto mtodo de estudo dos fenmenos de interesse.
Os objetos de uma lei estatstica, ao contrrio, podem ser dados por um mtodo de individuao inteiramente diferente. Seu nico trao distintivo pode ser sua pertinncia a um certo grupo; podem ser tomos de hidrognio ou homens, mas no este tomo de hidrognio ou este homem. S se distinguem dos objetos exteriores a seu grupo, no se distinguem dos objetos interiores. A lei estabelecida na suposio de que um membro do grupo to apropriado quanto qualquer outro para satisfazer certas condies (Ruddick apud Bachelard, 1979b, p. 153).

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Importa salientar que nesta perspectiva o conjunto representa apenas uma possibilidade de verificao emprica da probabilidade ou risco, enquanto probabilidade condicional, individual. O coletivo constitui-se apenas no somatrio de indivduos que possibilita a realizao emprica do conceito abstrato de probabilidade e no em um outro nvel de organizao com propriedades emergentes, como seria o coletivo dentro de uma concepo das cincias sociais. Se a exemplo de Susser (1985), tomarmos os livrostextos de epidemiologia como produtos da consolidao do campo e seus contedos, como resultado de consenso de um conjunto significativo de pesquisadores da disciplina, podemos notar que a abordagem acima descrita hegemnica. Os livros fundados nesta perspectiva (Lilienfeld e Stolley, 1994; Kelsey; Thompson e Evans, 1986; Rothman, 1986; Rumeau-Rouquette et al., 1985) enfatizam, sobretudo, aspectos metodolgicos dos estudos etiolgicos observacionais (coorte e caso controle), com nfase na exposio individual a fatores de risco. Nota-se, ainda, uma confuso entre teoria e metodologia, como no livro de Miettinen (1985) chamado de Epidemiologia terica, embora trate de metolodogia. As

bases tericas para formulao de hipteses etiolgicas no so explicitadas. Teoria etiolgica em epidemiologia Da virada do sculo at o fim da Segunda Guerra Mundial, a epidemiologia estava intrinsecamente ligada a sade pblica, que, por sua vez, se constitua como uma especialidade mdica. Esta epidemiologia tinha como tarefa entender, prevenir e controlar as doenas infecciosas, dentro de um modelo centrado no laboratrio de microbiologia, na teoria do grmen (Oppenheimer, 1995). Neste caso, a epidemiologia complementava o conhecimento produzido em laboratrio. As concluses a partir de modelos animais no podiam sempre ser simplesmente consideradas vlidas para o homem. Era preciso que se produzisse evidncias em humanos. Ao mesmo tempo, os modelos laboratoriais no podiam reproduzir diversos aspectos da experincia real das comunidades. Neste caso, evidncias coletadas em populaes humanas complementavam o conhecimento laboratorial. Era a epidemiologia enquanto cincia bsica da sade pblica. Enquanto pretender orientar a poltica de sade pblica - parte da poltica social - a epidemiologia tem uma interface necessria com as cincias sociais, independente da importncia que diferentes grupos de epidemiologistas dem contribuio das cincias sociais no processo de compreenso dos fenmenos estudados. Um exemplo interessante o fato de um estudo com mtodos qualitativos e de orientao sociolgica (Banerji e Andersen, 1963) ter produzido uma influncia fundamental na reformulao da orientao da Organizao Mundial de Sade para os programas de controle da tuberculose nos pases subdesenvolvidos. (Penna, 1988b). Inaugurando a epidemiologia das doenas crnicas, estudos observacionais evidenciaram, no fim da dcada de 1940, a associao entre o hbito de fumar e doenas. As conseqncias da relao etiolgica do fumo com doenas envolveram a indstria de cigarros e organismos governamentais, o que forou os epidemiologistas a definirem critrios para inferncias causais. Critrios utilizados em 1964 pelo Departamento de Sade dos Estados Unidos da Amrica foram formalizados por Bradford Hill, passando ento a ser

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conhecidos como os critrios de Bradford Hill (Kleinbaum et al., 1982). Entre os sete critrios propostos, o da plausibilidade biolgica aponta para a subordinao dos estudos epidemiolgicos ao conhecimento mdico. Tambm na dcada de 1940, foram iniciados estudos sobre fatores de risco para a doena coronariana, que geraram uma nova teoria etiolgica: estilo de vida determinando a sade (Dawber, 1980). Embora pobre em formulao terica, at mesmo quanto definio de estilo de vida, essa teoria fundou o paradigma presente na maioria dos estudos etiolgicos desenvolvidos pela epidemiologia nas ltimas trs dcadas. Sua fora enquanto paradigma se revela pela ausncia de explicitao de hipteses e discusso terica de achados em grande parte da produo epidemiolgica mais recente. O abandono dos critrios de Bradford Hill pela produo epidemiolgica recente (Wynder, 1996) e o combate a propostas de discusso terica (Savitz, 1997; Maclure, 1995) com a argumentao de que a epidemiologia indutiva e, que podemos encarar o processo de associao entre fatores de risco e doenas como uma caixa preta, na verdade, apontam para um consenso terico implcito. No sendo assim, a produo epidemiolgica careceria de um mnimo de homogeneidade, o que certamente se refletiria em divergncias importantes quanto validade dos achados e dos prprios objetos de investigao. Um outro aspecto importante do paradigma inaugurado com a epidemiologia das doenas crnicas que os determinantes das doenas so mais bem estudados em populaes humanas. A grande quantidade de evidncias epidemiolgicas dos efeitos prejudiciais do tabagismo em comparao com as evidncias geradas a partir de modelos laboratoriais, reforam a importncia dos estudos em populaes humanas com uso de histrias de exposio. Por algum tempo, portanto, os centros de epidemiologia substituram o laboratrio como locus da produo de saber sobre as causas das doenas. A formulao da teoria de multicausalidade, postulando a idia da existncia de causas necessrias, causas suficientes e causas que no so classificveis nem como necessrias nem como suficientes (Susser, 1973), embora raramente traduzida claramente em termos

biolgicos, facilitou a convivncia dos achados epidemiolgicos com as teorias de causalidade biolgicas geradas a partir do laboratrio. A epidemiologia das doenas crnicas, em um primeiro momento, orientava a sade pblica, demonstrando a possibilidade de preveno dessas doenas. O posterior desenvolvimento dos estudos etiolgicos, no entanto, deslocou a ao dos epidemiologistas das instituies governamentais de sade pblica para os centros acadmicos. O resultado foi o afastamento entre a epidemiologia e a sade pblica, junto com a valorizao dos aspectos metodolgicos quantitativos da disciplina (Weed, 1995). Greenland (1987) chega a afirmar que existem duas epidemiologias, uma ligada sade pblica e outra acadmica. Um artigo publicado na revista Science (Taubes, 1995), apontando que a epidemiologia encara seus limites, provocou debates. Em sua resposta a este artigo, Wynder (1996) reafirma a importncia da teoria do estilo de vida e explicita alguns aspectos presentes no paradigma que prope que o estado de sade determinado pelo estilo de vida e que as exposies mais relevantes podem ser medidas atravs do uso adequado de questionrios e entrevistas. Os fracassos recentes da epidemiologia em produzir novas evidncias neste sentido estariam relacionados incapacidade de coletar histrias de exposio adequadas, como o caso das dietas e, a dificuldade de se demonstrar riscos de pequena magnitude. Trata-se, sem dvida, de posies conservadoras, que evitam reconhecer o esgotamento deste paradigma. A partir da dcada de 1980, a expanso do uso da computao permitiu um grande desenvolvimento das tcnicas estatsticas, tambm incorporadas pela epidemiologia, aumentando a sofisticao de seu arsenal quantitativo. No entanto, esta maior sofisticao quantitativa no se refletiu em achados relevantes. Ao mesmo tempo, o avano das tcnicas de engenharia gentica, possibilitando a evidenciao de pequenas quantidades de material gentico de vrus, trouxe de volta a possibilidade de atribuio de doenas a agentes microbiolgicos. Por outro lado, o projeto de mapeamento do genoma humano traz consigo a possvel atribuio de causa gentica a um grande nmero de patologias.

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A epidemiologia encara seus limites ao mesmo tempo em que o laboratrio readquire eficincia, com o status de lugar de onde se fala sobre a causa das doenas. Susser, em 1996, aponta a necessidade de um novo paradigma para a epidemiologia, para uma emergente eco epidemiologia e alerta sobre o risco do afastamento entre a epidemiologia e a sade pblica. A crtica de dentro da prpria epidemiologia Durante as dcadas de 1970 e 1980 a epidemiologia social latino-americana estabeleceu-se como a principal fonte de crticas ao modelo hegemnico da epidemiologia, descrito anteriormente. As argumentaes se centravam em torno da definio da disciplina e seu objeto de estudo. O coletivo humano deveria ser entendido como fato social (Laurell, 1979). A epidemiologia clssica era acusada de biologizar os fatos sociais. O marco terico da epidemiologia social definia o processo sade-doena como produto da organizao da sociedade em classes. A disciplina prope-se, assim, a descrever e explicar os diferentes padres de morbi mortalidade, segundo as classes sociais. As dificuldades da classificao emprica de pessoas e famlias nos estratos sociais da teoria marxista constituram o principal entrave ao desenvolvimento da produo de estudos de campo, sendo, portanto, objeto de anlises e propostas. Uma outra abordagem, ainda dentro do referencial terico marxista, mas incorporando o aspecto dinmico da organizao social, afirma que as leis de reproduo social determinam as condies dentro das quais se d o movimento biolgico subsumido (Breilh, 1990, p. 162). Os problemas empricos, porm, permanecem, o que se reflete em uma diminuio da produo cientfica relacionada com esse movimento, desde o fim da dcada de 1980 (Barreto, 1990). Importa salientar que a discusso no se fazia em torno do conceito de estilo de vida, apesar de toda a sua fragilidade. O conceito de estilo de vida foi raramente explicitado ou discutido pela epidemiologia, embora j fosse claramente condutor da sade pblica nos pases desenvolvidos. A sade pblica na Amrica Latina nos anos 80 do sculo passado,

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ainda era um campo voltado para a mortalidade infantil e o combate s doenas infecciosas. Recentemente, a proposta do estudo da produo social da doena foi retomada (Krieger e Zieler, 1996), em contraposio teoria do estilo de vida. Vale ressaltar que estes autores defendem a teoria da produo social da doena como alternativa teoria do estilo de vida para explicar a distribuio das doenas em populaes, concebendo a existncia de uma teoria etiolgica (theories of causation). H pouca teorizao sobre o conceito de estilo de vida em epidemiologia, sendo sua interpretao muito prxima do senso comum. Na verdade, estilo de vida se refere a exposies cotidianas relacionadas a hbitos e prticas. Dentro de um pensamento liberal simplista, o estilo de vida seria uma escolha individual em uma sociedade democrtica. Seu resultado uma sade pblica que responsabiliza o indivduo por sua sade e cuja ao, centrada, basicamente, no esclarecimento da populao sobre como ter um estilo de vida saudvel. Certamente uma viso que ignore os aspectos culturais e sociais no pode ser aceita pelos cientistas sociais (Badura, 1984). As cincias sociais, podem ter, ento, o papel de problematizar as exposies relevantes segundo a epidemiologia e discutir sua determinao, dentro de uma produo cientfica que vise a colaborar com a eliminao de riscos, meta da sade pblica. Parte dos cientistas sociais que trabalham com a questo sade, no entanto, prefere manter uma posio de independncia crtica quanto s polticas de sade pblica. Uma terceira opo seria a proposta das crticas interna da prpria epidemiologia, ou seja, a incorporao da discusso da determinao social pela prpria disciplina. Artigo de Foxman (2005) sumariza os comentrios de lderes de associaes americanas de epidemiologia, apontando que a crescente especializao dentro do campo provoca uma tenso com potencial para a fragmentao. O espectro das especializaes vai da biologia molecular e gentica, de um lado, ecologia, cincias sociais e polticas pblicas, do outro. A nfase em pesquisas etiolgicas ou na sade pblica tambm um ponto de tenso dentro da disciplina.

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Ento, o que se v, atualmente, a subordinao da pesquisa epidemiolgica ao desenvolvimento das cincias bsicas (ou uma certa descaracterizao da disciplina), articulada com as cincias sociais, com vistas ao desenvolvimento da sade pblica, ou seja, de uma poltica de sade. As doenas tm causas? Franois Jacob (1970) afirma que as duas mais importantes criaes para a evoluo foram o sexo e a morte. O sexo, na sua concepo biolgica, como troca de material gentico que permite que uma gerao seja fenotipicamente diferente da anterior, responsvel pelo aumento da variabilidade genmica das espcies. Uma populao unida pela sexualidade a unidade da evoluo. A morte necessria j que a prpria evoluo a luta do velho contra o novo, devendo haver um equilbrio entre a eficincia da reproduo e o desaparecimento da velha gerao. Para a biologia evolucionista, portanto, a morte e a doena so apenas mecanismos de preservao da vida e no um acidente ou problema. Um outro exemplo de como diversos ramos da biologia encaram a doena: temos, na biologia de populaes um ramo da ecologia estudos sobre a possibilidade de populaes animais serem reguladas por infeces e outros estudos avaliando a contribuio das doenas infecciosas para o polimorfismo e variabilidade gentica de populaes na natureza. Nestes estudos, tanto parasitas como hospedeiros so populaes de seres vivos com seus mecanismos prprios, de regulao, de tamanho, no havendo hierarquia entre eles. O ambiente inclui outros seres vivos. As doenas e a morte no representam um desequilibro ecolgico; ao contrrio, so partes do equilbrio (Anderson e May, 1982). A preocupao com a morte uma necessidade humana de lidar com o horror de morrer. Foucault (1963) aponta que foi a integrao epistemolgica da morte no conhecimento mdico que permitiu o nascimento da medicina moderna, no fim do sculo XVIII. Os conceitos de doena foram desenvolvidos como instrumentos para lidar com o sofrimento e medo humanos. O poder desses conceitos se baseia na sua eficcia e utilidade.

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No seu captulo sobre classificao de doenas, McMahon e Pugh (1970) usaram a tuberculose como um exemplo da definio de uma nova entidade nosolgica, aps a identificao de um fator causal: a base para a criao de novas entidades nosolgicas parece basear-se na sua utilidade, tanto para preveno como para teraputica da categoria assim criada (p. 51). Estes autores reconhecem a dificuldade de se lidar com um conjunto de entidades nosolgicas, baseadas, seja em critrios etiolgicos, seja em critrios manifestacionais. Doenas definidas segundo suas manifestaes so, na verdade, objetos duvidosos para a investigao etiolgica. O epidemiologista, s pode, nesses casos, ter a esperana de que as manifestaes estejam altamente correlacionadas com fatores etiolgicos. A soluo, para esses autores, estaria em encarar a classificao de doenas no apenas como um pr requisito do estudo epidemiolgico, mas tambm como seu objetivo. Um objetivo certamente abandonado, tendo em vista a sua ausncia dos textos epidemiolgicos mais recentes. Abrindo mo da discusso da classificao de doenas, a epidemiologia se subordina ao conhecimento mdico para tanto. A classificao das doenas ser desenvolvida pela medicina e, conservada ou no, segundo um critrio de utilidade dela. Um exemplo interessante o recente desenvolvimento da epidemiologia psiquitrica em decorrncia de nova classificao das doenas mentais (DSM-IV) (Antony et al., 1995). O exemplo da tuberculose serve para tentar mostrar as mltiplas possibilidades do conceito de causa de doenas. O Mycobacterium tuberculosis foi descoberto em 1882, por Robert Koch e a tuberculose foi redefinida, com base na presena ou ausncia do bacilo (Koch, 1981[1882]). Essa reviso, na definio da doena, leva ao preenchimento automtico dos dois primeiros postulados de Henle-Koch, para determinao de causas da doena. A principal evidncia para esta hiptese etiolgica foi, ento, a reproduo da doena em laboratrio. No mesmo artigo em que descreve a descoberta do bacilo, Koch expressa uma dvida. Por que a tuberculose no era mais freqente, j que quase todos que viviam em reas com alta densidade populacional tinham contato com doentes

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tuberculosos e, portanto, com o bacilo? Realmente, a coorte de nascimento da Europa do fim do sculo XIX chegou aos 65 anos com uma prevalncia de infeco por tuberculose maior que 90% (Styblo et al., 1969). Esta evidncia, que refora a dvida apresentada por Koch, no alterou em nada o conceito da doena tuberculose. O bacilo era um bom alvo, mesmo na ausncia de meios realmente eficazes para seu controle. Entretanto, esses fatos podem ser interpretados em uma perspectiva diferente. Dada a alta freqncia da infeco do Mycobacterium tuberculosis em pessoas saudveis, razovel aceitar este agente como parte da flora humana. Neste caso, a produo da doena pode ser considerada como resultado de uma depresso do sistema imunolgico. A depresso imunolgica associa-se ao excesso de estresse fsico, privao nutricional e depresso emocional, o que explica a ocorrncia da doena e sua distribuio na populao. A associao, j demonstrada, entre tuberculose e AIDS mostra que, em determinadas circunstncias, a tuberculose pode ser considerada uma doena oportunista. Se a tuberculose for considerada como sendo causada por uma depresso imunolgica, certamente essa entidade nosolgica ir incluir outras manifestaes, tais como histoplasmose, em rea onde a infeco por Histoplasma capsulatum freqente. Uma terceira abordagem para o estudo da tuberculose seria a determinao gentica. A existncia de resistncia inata doena foi h muito descrita e evidncias recentes sugerem quais seriam os genes responsveis por isto (Skamene, 1989). A retroalimentao gentica considerada como um dos mecanismos que produziram o declnio da incidncia da tuberculose, antes da utilizao da quimioterapia (Penna, 1988b). Novamente, o estudo da ao de genes especficos poderia redefinir a doena. Portanto, a tuberculose definida como a doena causada pelo bacilo de Koch. Todos os fatos discutidos at aqui fazem parte do conhecimento mdico e epidemiolgico da doena. A escolha da causa da doena, entre os fatores citados, depende da perspectiva abordada. O fato das

medicaes que inibem o crescimento do Mycobacterium tuberculosis poderem curar a doena e reduzirem a transmisso, demonstra a eficcia do presente conceito. Contudo, a quimioterapia no estava disponvel at 1944. A vacina BCG foi desenvolvida em 1921 e um acidente na Alemanha, em 1930, reduziu o uso intradrmico at 1945. Hoje se sabe que, em muitos pases, a BCG oral foi utilizada logo aps o nascimento, sem nenhuma eficcia. Discusses sobre a utilidade do conceito de tuberculose como uma doena infecciosa, entre 1882 a 1944 envolvem razes internas prpria cincia, como o desenvolvimento tcnico da microbiologia, imunologia e gentica. Sem dvida, tambm existem razes de ordem social e poltica. As primeiras dcadas do sculo foram marcadas pela luta dos sindicatos pela reduo da jornada de trabalho e a tuberculose era a principal causa de morte. No minha inteno aprofundar essa questo, mas, mostrar que a orientao pragmtica do conhecimento, no sentido da manuteno de hipteses e conceitos devido sua utilidade, no uma simples operao lgica. Envolve valores e escolhas sobre o que ou ser, em curto prazo, til ou no, assim como a legitimidade de quem fala e dos argumentos aplicados. No pode ser esquecido que em 1880, o Instituto Pasteur iniciou um programa de vacinao com base na assertiva: uma doena, um germe, uma vacina, produto da teoria do germe (Moulin, 1991). Mais de cem anos depois da descoberta de Koch, pesquisadores ainda continuam procurando uma vacina de grande eficcia contra a tuberculose, capaz de prevenir todas as formas da doena e interromper sua transmisso. Hoje, as hipteses de determinao gentica, agente infeccioso e depresso imunolgica fazem parte da pesquisa etiolgica de cncer. As doenas, na verdade, so produzidas por um conjunto de mecanismos que envolvem: o meio ambiente (a includos microorganismos, agentes qumicos e fsicos, dieta), a possibilidade de resposta do organismo ao ambiente determinada pelo cdigo gentico e, condies gerais desse

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organismo para que a resposta se realize na sua plenitude ou no. Enquanto o sistema nervoso responsvel pela interao entre o organismo e elementos sensveis do meio ambiente, o sistema imunolgico abarca respostas orgnicas ante elementos no-sensveis do meio ambiente: o mundo microscpico de substncias, radiaes e microorganismos. A escolha de uma causa principal entre esses mecanismos, representa, na verdade, uma escolha qualitativa, envolvendo significados diferentes. A doena tanto pode ser uma contaminao vinda de fora, quanto o cumprimento de um destino geneticamente determinado ou, ainda, uma conseqncia de escolhas individuais de interao com o ambiente. As teorias etiolgicas so instrumentos para uma possvel interveno no processo de adoecimento. Sua eficcia no precisa necessariamente ser demonstrada em todo o espectro de patologias que esta teoria pretende abranger, mas apenas ser verossmil.
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EM DEFESA DO MODELO JUBESA (juventude, beleza e sade)

Hugo Lovisolo

EM DEFESA DO MODELO JUBESA (juventude, beleza e sade)


Hugo Lovisolo

Ao Modo de Introduo Pretendo, de forma sucinta, desenvolver um conjunto de argumentos, que denominarei, provisoriamente, de teses e associarei as mesmas ao nome de um pensador, em alguns casos e, em outros, a mais de um. Nessas poucas teses, utilizarei o nome de movimentos ou marcas que considero importantes para compreender, por proximidade ou oposio, seus desdobramentos no contexto da modernidade na qual tentamos estar e ser. Penso que as teses em questo deveriam sempre subsidiar as idias dos promotores da atividade fsica para a sade; da atividade fsica que posta como ajuda para se resistir aos efeitos devastadores da entropia. Creio que as teses poderiam colaborar para se entender, parcial e precariamente, as relaes entre crenas, desejos e prticas, em suas atuais contradies e paradoxos. A modernidade se caracterizou e ainda se caracteriza, pelas suas tenses ou contradies. Alguns afirmam que ela j fechou seu teatro; outros, embora a qualifiquem, afirmam que est viva e que sua obra ainda est inacabada. Alguns apontam que a globalizao est arrasando a cultura local e outros pensam que ela favorece a universalizao do local. A interveno sobre a sade foi desde cedo globalizada, pois, enquanto cantamos msicas locais, usamos teraputicas universais. No campo da sade, vivemos como se estivssemos entre grandes perigos ou ameaas e solues, no menores, que prolongam a vida e a tornam menos dolorosa. De um lado, os produtos txicos, o sedentarismo, os alimentos inadequados, os vcios, o estresse, a diminuio das florestas, da camada de oznio, das guas potveis e o ar poludo, entre outros perigos. De outro, as solues pelo avano da pesquisa no campo dos tratamentos qumicos e cirrgicos,

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principalmente (e num horizonte prximo), mediante a modificao gentica. Da que oscilamos e nos sentimos, ora no pior dos mundos, ora no melhor dos possveis e podemos ser tremendamente otimistas ou pessimistas quase que ao mesmo tempo. Ser moderno viver nas tenses pelas quais representamos o cotidiano. No meio dessas tenses dar sentido prpria vida e definir o que a vida boa se tornaram tarefas significativas para cada um. Creio estarmos metidos em processos contraditrios, ambguos, que nos obrigam a escolher e a enfatizar as escolhas. Alm dos problemas da opo, que no so simples, temos que reforar as decises.1 Sob a base forte e difusa dos desejos demonstramos adeso a crenas que nos ajudam a optar e a estabelecer preferncias para o agir cotidiano. Torna-se tarefa diria dar sentido vida e s aes. Os atores sociais, assim, podem tanto reforar as crenas que os ajudam a guiar suas prticas quanto mudar, adotando outras. No processo, influenciam e so influenciados, quer por pessoas com as quais mantm relaes de interao face a face, quer pela mdia. H influncia sobre a mdia porque ela depende das recepes ou apropriaes de seus pblicos, mediante processos de aferio de assistncia, de pesquisas de mercados e outras formas, a mdia adapta-se aos seus pblicos para conserv-los e, se possvel, aument-los. um mundo de negcios que devem render lucros. Assim, no pode ser vista nem como instituio educativa, nem como projeto poltico ideolgico de classe. Apenas pode gerar lucros, dizendo com nmeros: eis meu pblico! O Ibope comanda o agir da mdia! Das Teses Comentarei brevemente as teses, sobretudo em termos dos paradoxos que implicam e indicarei seus nomes de batismo. Creio que cada uma destas teses tem condies de ser testada de forma emprica. De fato, sobre muitas delas h evidncias claras. Argumentos vinculados a evidncias e cujas relaes so fundamentadas teoricamente, formam a retrica da cincia. Considero que o principal paradoxo : se
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Como as possibilidades de escolha se multiplicam em todos os campos de ao, bem possvel que estejamos submetidos ao estresse da escolha. No podemos ignorar o poder estressante da proliferao das escolhas.

acreditamos que a atividade fsica faz bem sade e se desejamos conserv-la (a sade), ento, deveramos nos dedicar a sua prtica. O dever ser da prtica precisaria resultar, quase que naturalmente, da juno da crena e o do desejo. Sabemos, no entanto, que apesar da coexistncia de ambos, a juno no ocorre nos percentuais almejados, da a presena dos discursos que insistem sobre a criao de hbitos de adeso. O hbito destina-se a reduzir ou fixar a volatilidade do desejo, de forma a administr-lo. Comeo com a tese mais geral: a valorizao positiva da juventude, da beleza e da sade, em suas inter-relaes, tornou-se dominante ou hegemnica no Ocidente, ao longo de um processo que j conta, minimamente, com dois ou trs sculos de existncia. De modo abreviado, chamaremos de JUBESA, o conjunto de crenas articuladas nos discursos sobre o valor da juventude, beleza e sade. Tal modelo hegemnico no campo cultural. Denomino esta tese de Antonio Gramsci para lembrar, alm de suas contribuies no entendimento da hegemonia, a importncia cultural da mesma. Tanto na mdia como no discurso cotidiano, encontramos a afirmao das crenas e do desejo desses trs elementos, de forma tal que se tornou uma referncia significativa para as condutas das pessoas que procuram atingir um ou todos esses valores e, para uma indstria altamente diversificada e em crescimento, que procura atender a gregos e troianos, elites consumidoras e consumidores populares. Temos cremes de 3 e 300 reais; academias de 25 e 250 reais; tratamento de cabelo de 10 e 300 reais e uma grande variabilidade no preo das intervenes mdicas de beleza ou estticas. Assim, os hbitos recomendados para realizar o modelo especificam suas oportunidades, por classe ou nvel scio-econmico, dos que demonstram adeso e, apelam para os que ainda no foram cooptados pelo modelo. Forma parte das crenas presentes no JUBESA, as funes positivas da atividade fsica sistemtica, tanto para a diminuio dos riscos de sade quanto para a melhoria esttica. A boa forma tem, sem dvida, um sentido duplo: de aptido, sade e desempenho; de proporcionalidade, isto , esttica. ndices baixos de gordura so associados sade, beleza e juventude. Um cabelo bonito um cabelo saudvel. Contudo,

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essas crenas associadas a desejos, no raro, entram em concorrncia com outras crenas, tambm associadas a desejos. Digamos que somos habitados por vontades ou gostos contrapostos e que, nem sempre, temos disponibilidade para a satisfao de todos. Assim, escolhas ou sacrifcios so sempre exigidos pela ao; quem escolhe tambm renuncia. Como j aprendi com Jean Paul Sartre, faz anos, que a escolha uma renncia, lhe dou seu nome a tal tese. Quando estamos cientes da abdicao da escolha, no podemos deixar de sentir a perda que ela implica, talvez a angstia da opo que se agrega ao estresse de faz-lo. Ento, os atores podem se perceber como estando, ao mesmo tempo, puxados por foras opostas ou de difcil compatibilizao. Dedicar-se vida profissional ou cuidar de si e realizar esforos para cuidar da famlia ou de si so duas das tenses recorrentes. As preferncias devem se instalar, pois, os recursos - objetivos e subjetivos -, parecem ser sempre escassos para a diversidade de objetos de desejo. Os atores podem priorizar determinadas realizaes e postergar outras; mais ainda, quando as expectativas de vida crescem. Todavia, por vezes, descobrem que aquilo que foi postergado perdeu sua vez, j no h tempo. Os interventores, sempre otimistas, insistem sobre a tecla de que nunca tarde. As ditas universidades da terceira idade podem ser vistas como exemplos do otimismo da interveno. A propaganda da alfabetizao de idosos reflete snetimento semelhante. O conceito de universidade se deforma por extenso e, ento, ser estudante passa a ser sinnimo de jovem, mesmo para queles que deixaram a juventude para trs h vrias dcadas. As universidades da terceira idade parecem ser um componente institucional e poderoso do modelo JUBESA, pois reforam a idia de uma juventude sem idade para aprender. A escolha implica a renncia, a realizao de alguns desejos e o sacrifcio de outros. A escassez surge da multiplicidade dos desejos. Da a estratgia estica: domine seus desejos para ser feliz, para no ficar preso a uma dinmica que tende ao desenfreio. Administre seus desejos, faa uma gesto adequada, realize um controle eficiente - dizemos hoje, em linguagem semelhante usada no caso do estresse. Da, tambm, o paradoxo moderno: nunca antes tivemos tanta

disponibilidade e recursos para realizar os desejos como no tempo atual e, por outro lado, jamais nos queixamos to intensamente das impossibilidades de realizao. E, alm disso, o conhecido efeito perverso: a abundncia de dispositivos alimentares e tecnolgicos, poupadores de esforo humano, formam a base de condies para a obesidade, que batizada como doena e combatida como um mal, ao invs de ser vista como um trunfo alimentar da sociedade industrial, pois at entre os populares ou pobres cresce a obesidade. Fazemos um uso abundante dos sucos de fruta porque temos mquinas para isso; trocamos freqentemente de roupas porque temos mquinas que as lavam. Nossa vida, at nos atos mais simples, dependem de mquinas que usam motores, evitam dispndio de energia, aumentam e ampliam usos e disponibilidade e favorecem o que se critica: o sedentarismo, a falta de atividade. Se o hedonismo caracteriza de forma ampla e crescente a sociedade moderna, como muitos autores afirmam e, se o JUBESA um modelo cultural ou civilizador forma parte do mesmo, temos que reconhecer que uma parcela das estratgias para sua realizao de natureza estica, isto , implica represso, sublimao e forte autocontrole. Espero que concordem e denominemos a esta tese de Sigmund Freud. Para atingirmos os objetivos do JUBESA temos que reprimir a gula, mantendo alguma forma de dieta, controlar o vcio do cigarro e do lcool, entre outros. Necessitamos, muito especialmente, superar a indolncia, fazendo atividade fsica de forma sistemtica. No sair de casa sem usar protetor solar e tantas outras aes que implicam esforo e autocontrole. Gula, indolncia e preguia so inimigas do JUBESA. O cio ou o lazer, para o JUBESA, deve ser ativo. Nada de ficar dormindo, comendo e bebendo, descansando a toa! Temos que sublimar, mediante a atividade, o instinto do sedentarismo! Para podermos gozar com a beleza produzida em ns, temos que percorrer um caminho de sacrifcios de vontades, no raro, qualificadas como vcios. A finalidade hedonista, portanto, parece implicar uma atitude estica. O prazer do JUBESA, no reconhecimento dos outros, do espelho e da autopercepo, implica na absteno de outros prazeres e, disto, decorre a insistncia dos interventores da atividade fsica, dos

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educadores fsicos, para que as prticas estejam associadas ao prazer ou a ele conduzam. Para que insistir sobre o prazer da prtica se ela fosse, em si mesma, prazerosa? Os interventores no falam com veemncia sobre o prazer de comer, de dormir ou das trocas sexuais. O prazer da prtica deve, supostamente, diminuir a tenso que provocam as foras contraditrias, simplificar o emaranhado de dilemas e contradies. Admitir e propugnar o prazer so concesses dinmica do desejo e no deveria ser entendido apenas como um valor humanista, libertador ou progressista. Digamos que o desejo cobra o prazer. A prtica da atividade fsica que se pretenda duradoura deve gerar prazer. O interventor no pode, portanto, esquecer tal efeito. Eu tenho indicado, em outros trabalhos, que apesar da fora da associao de crenas e desejos do JUBESA, uma boa parcela da populao parece renunciar atividade fsica, atribuindo renncia, quer a condies desfavorveis (econmicas ou sociais, contextuais ou pessoais), quer a custos subjetivos (fisiolgicos e psicolgicos), para sua realizao. Falta de vontade, de conscincia, de autocontrole, diro os interventores, que tentam reduzir os libis tanto das condies ditas adversas, mediante polticas pblicas ou privadas, quanto minar a resistncia fsica e emocional, mediante propostas que reduzam seus custos. Mais ainda: uma parcela significativa das pessoas que realizam atividade fsica parece dar mais importncia ao benefcio esttico (reduo das gorduras, proporo e marcao das formas) do que as suas vantagens em termos de sade ou, simplesmente, ao benefcio emocional do gosto, como o de tantos praticantes de futebol em domingos quentes e regados com cerveja. Isto no deveria nos parecer estranho. De fato, Spencer, entre outros, j tinha salientado que o valor esttico, o gosto, quer em termos de resultado, quer em termos de processo, ainda seria mais forte que os valores ou retornos utilitrios na orientao e explicao da conduta humana. Digamos que os sentimentos estticos sobrepem-se ao clculo utilitrio e, ento, podemos denominar a esta afirmao como tese Herbert Spencer. O protetor solar pode ser recomendado para a preveno do cncer de pele, contudo, a recomendao parece ser mais eficiente quando se diz: olha as rugas, use protetor para reduzi

las! A campanha contra o tabagismo possibilita maior eficincia quando se argumenta: para conservar a pele jovem no se deve fumar! O recurso ao esttico, beleza e juventude, continua sendo relevante, ainda quando se trata de atingir resultados em termos de sade. Sobretudo, se considerarmos que cuidar de si, adornar-se, embelezar-se, parece ser uma tendncia muito antiga.2 Seja um produto da cultura ou um condicionamento gentico, o certo que as atitudes e prticas do JUBESA abrangem culturas bem diferenciadas. Historiadores e antroplogos tm aportado descries suficientes. Ovdio, nascido em 43 a.C., autor, entre outras obras, da Arte de Amar e Os remdios para o amor, escreveu tambm um pequeno opsculo sobre Os produtos de beleza para o rosto da mulher. Neste, recomenda s belas jovens que aprendam os cuidados que embelezam o rosto e os meios de proteger sua beleza. Para Ovdio, a cultura age sobre os frutos, corrige o gosto amargo das rvores com os enxertos. Pessoalmente, creio que seria adequado falarmos, no caso da cirurgia plstica, de enxerto cirrgico. O cirurgio corrige o sabor amargo do fragmento do corpo que nos desagrada. O resultado um fruto agradvel e de novo sabor, embora esteja condenado a degradar-se (com o passar do tempo). Lembremos: Ovdio escreve suas receitas para que cada bela as fabrique (embora no tivssemos ainda indstria da beleza, naquela poca), porque as qualidades da alma se somam com as do rosto. Alma e corpo, interior e exterior, a correspondncia necessria, ela faz a unidade que, hoje, posta em termos de expresso. O enxerto do corpo visto como uma interveno, agindo positivamente sobre o esprito e, um esprito saudvel e equilibrado, se manifesta nos cuidados do corpo. Por vezes, o moderno, atua sob o legado clssico, embora tenha se revoltado contra ele. No seio das crenas do JUBESA, o bom velho, aquele admirado, j no o experiente, o narrador das experincias sob a forma de estrias, mas sim, aquele que parece mais jovem sob o ponto de vista corporal ou pelo estilo de vida. O velho sarado! Aquele que reduz a perda da massa
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Ver o trabalho de Mary Del Priori, uma excelente historiadora que descreve as prticas passadas de embelezamento das mulheres no Brasil e fica exasperada com a dedicao beleza no presente. Corpo a corpo com a mulher. So Paulo: Senac, 2000.

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muscular e da resistncia e prefere morrer na piscina, na quadra ou na esteira, como confessavam os masters da natao para Leonia Santiago (1993). Na atividade fsica se pode procurar a sade e a manuteno da juventude (forca, resistncia e flexibilidade, por exemplo), atingindo-se a beleza da proporcionalidade das formas ou do padro esttico adotado, quer por influncia de pessoas que so significativas ou por escolhas condicionadas de forma no-pessoal (mdia, por exemplo). Destaco que a proporcionalidade das formas, muitas vezes inspirada na arte grega, que no pode ser confundida com os corpos empricos dos gregos, foi objetivo da educao fsica desde a sua fundao. A proporcionalidade um princpio no apenas da morfologia, mas tambm do direito, da moral, enfim, do ideal de vida boa. Assim, o modelo conta com marcantes referncias na fora da tradio. Como foi com Alxis Tocqueville que aprendi a observar a manifestao moderna da tradio, sua perseverana, gostaria de dar a esta tese o seu nome. Essas referncias so objeto da pesquisa histrica sobre o modelo, em suas continuidades e mudanas. Creio que o modelo feminino de mulher magrrima foi uma inflexo na curva da tradio, talvez por incidncias da prpria arte moderna obcecada pelo novo em seu processo de recusa do clssico. Creio que hoje o corpo atltico, forte e proporcionado, ganha cada vez maior espao. De vrias formas estamos retornando ao leito clssico e a Maja Nua no estaria hoje deslocada. A abrangncia e intensidade do modelo JUBESA, sua expanso ou globalizao civilizadora, parece indicar que estamos diante de um relato (ou meta-relato?) que promete para todos, ao invs de emancipao, progresso ou felicidade JUBESA. Esta uma tese impactante se pensarmos que Jean Franois Lyotard entendeu o ps-moderno, centralmente, como desapario dos meta-relatos. Como creio que JUBESA tem muito de meta-relato de progresso, felicidade e realizao, entre outros valores, dei-lhe seu nome em homenagem. Assim, JUBESA narrativa e modelo moderno numa era ps-moderna que, paradoxalmente, afunda suas razes na laborao da tradio. No h ruptura. Desde os gregos, pelo menos, a atividade fsica moderada posta como conservadora, como saudvel. Tudo indica que estamos diante de uma tradio

velha e slida em permanente refundamentao. Digamos que a tradio se expressa na reformulao de modelos de atividade fsica e de cuidados de si que so diferentes, pois as condies de conhecimento e de gerao de tecnologias mudaram significativamente. Hoje, no precisamos fabricar as poes de Ovdio, da mesma forma que podemos alterar geneticamente uma rvore, ao invs de a modificarmos por meio de enxertos. Tambm mudou o treinamento do tenista, que usa uma mquina que lana bolas com velocidade e freqncia regulada pelo treinador ou, ainda, alteramos o rosto mediante uma cirurgia de miopia, em mais um caso que alia sade e beleza. A materialidade da tecnologia incide sobre as formas e contedos das propostas do JUBESA. Creio que o modelo est em expanso e que, de forma crescente, destinaremos recursos e tempo para alcanar JUBESA, um modelo democrtico, para todos, para a sociedade dos consumidores, de massas ou democrtica, embora existam fatores de resistncia a alguma das prticas ou tcnicas, pelo lado das condies ou do poder de compra ou, ainda, pelo custo subjetivo ou gosto negativo, j que algumas prticas implicam esforo fsico e autocontrole psquico para promover o modelo. Ou seja, estabelecem custos subjetivos (para a ao), que levam desistncia. Gostaria de dar o nome de Jon Elster a tal tese. 3 Trata-se, para o interventor, de reduzir os fatores de resistncia, objetivos e subjetivos, das circunstncias e das vontades. O modelo j se expressa na escola, a partir de um de seus ingredientes: adeso a crenas e prticas que promovem a sade ou diminuem os riscos (de adoecimento). Crescentemente, o projeto escolar assume o papel de promoo da sade e a educao fsica escolar o de desenvolver o hbito ou adeso prtica da atividade fsica considerada por alguns autores, fator de maximizao da sade ou de diminuio do risco de doenas. Esta a tese de uma parcela significativa dos Educadores Fsicos, portanto, merecer levar
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possvel atingir os objetivos mediante processos bizarros. A pessoa que resiste ao regime e atividade fsica pode recorrer a meios cirrgicos. No sei se, por exemplo, a cirurgia de reduo do estmago no incita os obesos a aumentar seu peso para poder realiz-la. J ouvi relatos de casos confirmadores. Contudo, no posso garantir o controle das informaes. A reduo de colesterol pode ser feita com meios qumicos que nos liberam das dietas rigorosas. Alis, seria interessante avaliar os custos da reduo via dieta versus drogas. Possivelmente os laboratrios que produzem as drogas j tenham feito esses clculos. Gorduras mal localizadas podem ser removidas ou re-alocadas por meios cirrgicos.

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seu nome. Ela baseia-se no pressuposto de que aquilo que aprendemos de pequeno no esquecido e ser praticado por toda a vida. Tal premissa, de total bom senso, poderia ser falsa. De fato, temos situaes divergentes do pressuposto: i) os esportistas profissionais ao deixarem de s-lo abandonam a atividade fsica, mesmo a moderada, apesar de terem treinado desde crianas ou jovens; ii) adultos fanticos praticantes da atividade fsica que no a experimentaram na infncia, adolescncia ou juventude; e iii) uma ampla gama de situaes intermedirias. Creio que falte pesquisa que torne este bom senso em algo mais slido, mais confivel e menos entusiasta para a interveno. O crescimento da renda e uma distribuio mais adequada dos servios so condies do desenvolvimento das prticas do JUBESA. Esta tese tem a cara, para mim, da poltica da Segunda Internacional ento, assim a denomino. Os Educadores Fsicos trabalham a favor das aes que igualem as oportunidades de prticas mediante a distribuio de recursos adequados. Exemplo: o sistema de sade (SUS) integra a cirurgia de reduo do estmago (com isto pode provocar o efeito colateral do aumento de peso para realizar a cirurgia gratuitamente), sob a base de considerar a obesidade como doena. Essas prticas, que envolvem desde a atividade fsica para formar um corpo belo, forte e resistente, at s prticas mdicas de manuteno e modelagem corporal, passando pelo mundo da cosmtica e da moda, implicam que tudo vale na obteno do modelo e, mesmo, voltar a tcnicas ou processos abandonados no tempo. Esta afirmao lembra o modo de pensar a prtica da cincia de Paul Feyerabend e, por isto, gostaria de lhe dar seu nome. Se tudo vale na gerao do conhecimento, muito mais se aplica o tudo valer para a gerao da juventude, beleza e sade. importante para o modelo JUBESA, sob a tica do tudo vale que o conceito de doena seja ampliado, incluindo condutas e caractersticas que, tempo atrs, no seriam classificadas dessa forma. Esttica e sade se integram nas cirurgias de olhos, de nariz, de seios, na ortodontia e em tantas outras prticas de interveno. Assim, a classificao de sade mostra suas relaes com a economia e o poder manifestos

no plano da elaborao do JUBESA e da interveno a partir dele. Tambm no nvel municipal, nas organizaes sindicais, nas comunidades, nas associaes, se realizam investimentos em infra-estrutura e programas para desenvolver as condies que permitam a expanso do modelo que passa a ocupar espao nas polticas sociais, usando recursos que poderiam ser aplicados para atingirmos outros valores e objetivos. A promoo do JUBESA pode ser assumida tanto pelas foras sociais e polticas que se consideram progressistas, igualitaristas, coletivistas, democrticas e, habitualmente, orientadas para coletividades ou grupos, quanto por aquelas que se definem como conservadoras e que operam com a imagem do indivduo, do cliente. Assim, o modelo JUBESA parece ir alm das ideologias, embora possam existir diferenas nos modos de implementao e no modo de realizar valores do modelo e objetivos de suas prticas. Este ir alm das classes e da ideologia merece, sem dvidas, o nome de Francis Fukuyama.4 JUBESA estaria alm das classes e das ideologias? Apenas alguns segmentos religiosos particulares resistiriam a sua hegemonia? Uma propriedade do modelo que seus termos so intercambiveis, entram em relao como mitemas, elementos bsicos dos discursos mticos, em funo das situaes pragmticas da comunicao. Assim, um velho sarado se torna jovem e at belo. Diria mais: a fora do modelo est na intercambiabilidade dos termos, na circulao que os refora. Claude Lvi-Strauss merece ser o inspirador da tese que, ento, deve leva seu nome. Ou seja, se manter jovem estar saudvel, a beleza da pele indica a sade e a juventude, o rosto sem rugas pode ser visto como jovem e por a ad infinitum. A intercambiabilidade fundamental, faz a unidade do modelo. O modelo insinua que a perda da juventude, da beleza e da sade provocada pelo mal-trato, pela falta de cuidados. Tal tese merece muitos nomes: Helena Rubenstein, Loreal, GNT, Colgate, esteticistas, mdicos e outros. Na linguagem popular, uma boa traduo expressaria: no existem mulheres
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Os objetivos significam a individualizao dos valores. Perder X quilos um objetivo. Reduzir X cm do dimetro do abdmen outro. Controlar a diabetes mediante a prtica de atividade fsica ou reduzir a presso arterial tambm so objetivos. Sobre a relao de valores e objetivos na interveno, ver LOVISOLO, H. A educao fsica: a arte da mediao, Rio de Janeiro: Sprint. 1995.

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feias, existem mulheres mal-tratadas. Programas de televiso se dedicam a provar este ditado, transformando mulheres e homens, na frente dos espectadores, mediante a interveno de especialistas em exerccio, cirurgias estticas, modas e outras ramas dos saberes do JUBESA. Mais ainda: h transformaes para qualquer nvel de recursos ou de possibilidades de gasto e adaptadas por gnero, etnia e idade, entre outras variveis de identidade. Esta a tese de Pietro Marketing, onipresente consultor de todos os que agem dentro do modelo JUBESA. Sob uma tica relativista, seguir o modelo uma forma de dar sentido vida como qualquer outra ao: acumular capital, fazer a revoluo, criar arte ou cincia, colecionar obras de arte ou qualquer outra atividade de dedicao intensiva. A forma de gerar sentido do JUBESA deveria ser entendida em si mesma, a partir da linguagem e cultura nativa e, como sistema. Se na perspectiva relativista os sentidos da vida boa no so comensurveis, possveis de ocuparem posies em uma escala, ento, JUBESA pode ser um modelo to bom como qualquer outro. Gostaria de dar o nome de Cliford Geertz tese relativista sobre JUBESA. Mais ainda, devemos levar em considerao que o modelo tem a vantagem de suas orientaes serem conciliveis com outras, pois no exige dedicao exclusiva, embora demande tempo e recursos. Podemos fazer lipoaspirao e nos dedicarmos pera, cirurgia plstica e pintar quadros. Podemos contratar um professor de canto junto com o esteticista e o nutricionista personal. Podemos transpirar na esteira enquanto acompanhamos no computador as oscilaes da bolsa e, ainda, comandar aplicaes. O modelo, em si mesmo, faz com que renunciemos apenas aos excessos de alimentao e ao sedentarismo. Feita a caracterizao das teses e a defesa passemos s crticas. Das Crticas No entanto, apesar de suas evidentes benesses, o JUBESA recebe trs tipos de crtica principais. A primeira diz respeito dedicao exclusiva ou obsessiva ao modelo que provocaria efeitos colaterais negativos: abandono de outras orientaes valiosas e a criao de compulso, anorexia, culpa,

auto-centramento, entre outros. Creio que esta tese crtica merece o nome de Santo Agostinho. A pessoa pode ficar viciada no modelo, concentrando nele toda sua libido. Viciado, ento, em procurar a sade ou o padro de beleza ou juventude. Seria, portanto, necessria a proporo, o justo termo, a prudncia que se manifesta na diversidade equilibrada das procuras, isto , no-compulsiva. Esta recomendao merece levar o nome de Aristteles. Estamos muito prximos do contrapeso das paixes proposto por Santo Agostinho e analisado por Albert Hirschman (1979). Porm, do mesmo modo, de uma revalorizao de Aristteles. Observo que a crtica, na verdade, apenas observao quanto ao excesso na dedicao e no ao modelo. Excesso que parece estar baseado na impossibilidade da satisfao, porque sempre possvel fazer um novo exame, ingerir mais uma droga protetora, usar mais um creme, ficar mais tempo na academia, tornar o regime mais rigoroso, perder mais uns gramas de peso corporal ou de gordurinhas localizadas, enfim, sempre possvel se exigir mais no caminho do JUBESA. Porm, essa estrutura da crtica j estava presente em Cervantes, quando atribui a loucura do Fidalgo Don Quixote a sua compulso de leitura de obras de cavalaria. A crtica, portanto, no afeta a realizao ponderada, proporcionada, do JUBESA. O prprio Kenneth Cooper escreveu que quem corre mais de 24 quilmetros por semana o faz por razes que no so as da sade.5 Os propagandistas das dietas deixam afrouxar no final de semana e os do exerccio ainda no chegaram a um acordo slido. Assim, podemos escolher desde atividades fsicas curtas, intercaladas durante o dia, at aquelas que nos fazem transpirar pesado, realizadas cinco vezes por semana com crescentes nveis de exigncia. A segunda crtica se centra na utilizao de artifcios ou da artificialidade das tcnicas disponveis para realizar o modelo. Alguns moralistas, que se apiam especialmente na difcil distino entre o natural e o artificial, podem criticar o tudo vale de suas prticas. Sob este enfoque, transpirao e regime podem ser aceitos para emagrecer, lipoaspirao j seria uma perverso tecnolgica ou artificialidade, pura razo
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LOVISOLO, H. Atividade fsica, educao e sade, Rio de Janeiro: Sprint.1997.

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instrumental. A perverso da razo de vida na razo instrumental demanda os nomes de Horkheimer e Adorno. O creme hidratante pode ser aceito, j o botox, a cirurgia plstica, o silicone estratgico, a reduo do estmago, o uso de produtos qumicos para emagrecer, entre outros, devem ser criticados. H neles instrumentalidade em demasia, concentrao insuportvel de tecnologias! A crtica fraca por duas razes: conceitual e prtica. Sob um prisma conceitual quase impossvel traar uma linha que separe o natural do artificial, talvez to difcil como delinear uma divisria entre o humano e o animal ou, entre o dia e a noite. Estamos diante de convenes e no poucas delas esto a servio da elaborao moral. Creio que este o caso da distino entre humano e animal, porm, tambm entre natural e artificial. Neste caso, a diferenciao depende, sobretudo, da forma de definio do que se considera natural. Por vezes, o natural remete ao imaginrio do passado, assim, temos que nos comportar, no extremo, como os homens do paleoltico para manter a sade. J houve propostas de sade baseadas na forma de vida do paleoltico. Em outras ocasies, o natural aquilo que recusa o industrial. As lojas e a mdia transbordam de produtos naturais, isto , no-industriais. Claro, no existe coisa mais artificial ou industrial que o po feito com sete cereais, desde o invlucro massa. De modo geral, o natural, quer como imaginrio do passado, quer como atitude contra o produto com componentes industrializados, de definio fraca e est submetido a processos internos contraditrios. Sob um olhar prtico, entretanto, ingerir comprimidos redutores de colesterol bem mais fcil que fazer um regime sem gordura e sem carboidratos para qualquer um que trabalha e passa o tempo alimentar fora do lar. Em outros casos parece que no existem alternativas. Ter os peitos sonhados por meio de cirurgia plstica parece ser a nica soluo para sua realizao, embora a ao possa ter efeitos colaterais negativos. E, por essa via, at que a morte nos separe. As pessoas escolhem em funo da fora de suas vontades e condies para sua realizao e podem adotar crenas em funo de como viabilizam os desejos ou racionalizam sua no-realizao. Se no tenho dinheiro para

uma plstica posso acreditar que ela tem alguma coisa de imoral, de no-natural, de enganadora. Se minha religio me impede de dedicar-me beleza exterior melhor mostrar adeso a crenas que critiquem moralmente o JUBESA. Se eu pensar que a fome e a pobreza so os problemas reais a serem solucionados, posso agitar crticas ferozes ao JUBESA. Enfim, adotamos crenas que nos ajudam a viver de forma mais fcil, menos cruel e torturante e isto tambm significa, de forma menos contraditria e paradoxal. Contudo, o modelo JUBESA doce, civilizado, limpo e a acumulao de seus valores no implica um universo fechado onde o que um ganha o outro perde, como de praxe representamos a acumulao de capital. Se este for o caso, se a mulher bela acumulou sua beleza deixando outra feia, o mesmo deveria ser aplicado a quem acumula em talento artstico, esportivo, cientfico ou de qualquer outra rea. Enquanto abundam as provas que nos inclinam a pensar que a acumulao de riquezas implica em gerao de pobreza, no temos as mesmas evidncias para o caso da acumulao em juventude, beleza e sade. De fato, sua beleza me faz feio e posso odiar o resultado da comparao e at a voc mesmo. Porm, no consigo sentir que sou feio porque voc belo! Me inclinarei a incriminar Deus, a sorte, o destino, a gentica ou qualquer outra fora no controlvel! A indstria do JUBESA, apesar das crticas, est em franco crescimento e chegar a envolver a modificao gentica. Embora o argumento seja o da sade, rapidamente poder ser expandido para o campo da beleza e da juventude e, at, do doping do atleta. Pensemos, como exemplo, na modificao das clulas musculares dos idosos para diminuir ou eliminar os efeitos de doenas, como o caso da doena de Alzheimer e, imaginemos suas aplicaes na manuteno da juventude e da beleza e no desempenho do atleta. Lembremos, no entanto, que a adeso ao modelo JUBESA pode conduzir a situaes paradoxais ou contraditrias: o exagero de sua procura que pode acarretar anorexia, consumo desesperado, interveno plstica; enfim, o uso imoderado dos recursos que prope pode, at, gerar efeitos contrrios aos desejados. De novo, o modelo clssico para os ibricos o de Don Quixote, sendo a leitura boa seu exagero que o conduziu loucura ou o da boa

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dona-de-casa que, de tanto limpar os mveis, acaba com sua tinta. O modelo deve advogar pelo equilbrio na realizao de seus objetivos. Ou seja, os atores devem saber escapar dos vcios, da paixo ou da compulso em sua realizao. Assim, o modelo bom, alguns, no entanto, o implementam de forma errada ou irresponsvel. Agora podemos falar da terceira crtica. O modelo JUBESA vincula-se ao ponto de vista da ao individual responsvel. Conservar-se ou tornar-se jovem, belo e saudvel, produto da dedicao de cada um. O modelo insinua que existem vrios caminhos e que cada um tem seus custos. Diz que temos que nos tratar bem com os recursos que dispomos: h cremes e formas de atividade fsica para qualquer nvel de renda. O modelo nos diz que somos responsveis por cuidarmos e melhorarmos. Se no demonstrarmos que implementamos prticas nessa direo, seremos suspeitos de que alguma coisa no funciona bem em nosso eu e poderemos ser penalizados por dificuldades na interao social. Se no formos responsveis por cuidarmos de ns mesmos, como poderemos cuidar dos outros ou dos processos? O modelo ento liberal, no sentido de que enfatiza a responsabilidade e liberdade individual em sua realizao pessoal. O liberal pensa que a funo do Estado organizar o trnsito, enquanto cada um vai fazer aquilo que considera bom e sempre que no for ilegal. No plano pessoal, o liberal acredita que o indivduo sabe onde o sapato aperta. Deve procurar pelo sapato que o satisfaz e, de modo geral, procurar a realizao pessoal que considera satisfatria e sempre de modo responsvel. A nfase na liberdade e responsabilidade individual horroriza os coletivistas, comunitaristas ou solidaristas que acreditam que devemos enfrentar problemas, condies, circunstncias, de forma comum, fraternal, solidria. O JUBESA, ao contrrio, apela liberdade e responsabilidade individual. Contudo, temos que reconhecer que, no fundo do JUBESA, se aninham propostas coletivistas. Fazendo uma histria bem rpida, diria que a idia de que a populao a melhor riqueza nacional - uma idia coletivista, desenvolvida amplamente a partir do sculo XIX, especialmente pelos ditos

higienistas e pelas correntes da sade pblica e da medicina social - sustenta a proposta de sade, enquanto disposio fsica e mental, de longevidade e de velhice com qualidade de vida. Inicialmente as obras eram pblicas ou coletivas. Tratamento sanitrio, tratamento das guas, vacinao obrigatria, exames obrigatrios de sade, obrigatoriedade do atendimento mdico e hospitalar por parte do Estado e promoo da atividade fsica. Porm, j no campo da educao fsica, a proporo das formas ocupava um lugar de destaque. Peso e altura, massa muscular, resistncia e ndices de massa muscular eram discutidos e postos como objetivos da ao. Na proporo das formas a beleza j estava presente. Ou seja, latejavam nas propostas coletivistas ou comunitaristas os valores de juventude, beleza e sade. Higienismo, pastoral da sade, higiene pblica, medicina social: sob denominaes e formas diversas de ao tivemos um grande movimento, pblico e social, que assentou as bases do JUBESA. A indstria entrou de chofre no movimento. Cresceu, vertiginosamente, a propaganda das vitaminas, dos laxantes, dos produtos milagrosos do corpo e do sistema nervoso, dos espartilhos, dos banhos rejuvenescedores e curativos, dos cremes para a pele, das pastas para os dentes, das escovas solucionadoras de problemas odontolgicos, dos sabes que dariam aquela pele maravilhosa, dos xampus, enfim, uma parafernlia de produtos que nos fariam mais belos, jovens e saudveis, juntamente com os servios mdicos e colaboradores especializados. O cabelo belo, saudvel e jovem, uma grande metfora de tudo isso, no menos que a boca sadia com dentes proporcionais e de esmalte impecvel. Tudo dizia: juventude, beleza e sade. Sempre parece que estamos diante da intercambiabilidade dos termos e, ainda mais, do deslizamento do coletivo para o individual e vice-versa. Porm, tambm, do artificial que se naturaliza. Por exemplo, a ateno preventiva dos indivduos, alm das aes pblicas ou coletivas. Assim, no necessrio estar (naturalmente) doente para ir ao mdico, tomar vacinas ou ingerir produtos qumicos. Podemos faz-lo como preveno. O artificial mdico e social se torna natural ou, pelo menos, desejvel. Colocar flor na gua bom para os dentes. Este sem dvidas um processo

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artificial de produo da gua preventiva das cries. Porm, tambm naturalizamos a ortodontia, sempre jogando com razes de sade e de beleza, mas tambm de juventude. Que gesto mais jovem do que um sorriso de uma dentadura completa, proporcional e lmpida? Mas, ento, por que no natural o suporte para que os peitos fiquem firmes, cheios e tensos? A interveno sobre os dentes se justifica at por razes estticas. E por que no sobre os peitos flcidos e cados, as gorduras fora de lugar, os narizes e as orelhas imprudentemente desproporcionais, os pnis que no querem se erguer, as vaginas distensas pelos partos, enfim, sobre tudo aquilo que consideramos gasto ou velho, feio, quase doente? As cincias e tcnicas do JUBESA esto presentes para responder as demandas singulares, particulares, individuais. Nada justifica que soframos pelos peitos, pelos narizes, pelas gorduras, pelos dentes, pela pele da qual no gostamos. Assim, as teses acima enunciadas se vo juntando s crenas do modelo JUBESA, em forte associao com os nossos desejos e gostos. O coletivista tem que reconhecer que juntou lenha para o fogo do JUBESA. Tambm que, no fundo, apenas critica os excessos e a distribuio, talvez insuficiente, do modelo. Ainda, que pode apenas estar em confronto com seus prprios temores, diante da desigualdade excessiva na distribuio do JUBESA, diante dos excessos na realizao do modelo, diante do medo de que a dedicao a si quebre a fraternidade, a solidariedade, a ao comum e irm. Seus temores no so nem infundados nem doentios. Mais ainda: sua manifestao e concreo na ao coletiva, talvez, seja o contrapeso necessrio para as potencialidades negativas do JUBESA. Sobretudo, se considerarmos que homens e mulheres, no fazer da histria, raramente andam em linha reta. O reto talvez apenas resulte do balano, do pendular, entre as posies antagnicas de nossas crenas e, tambm, de nossos desejos. Mas, para mal e para bem, o JUBESA veio para ficar. Dentro do modelo, o esttico continuar dominando o utilitrio. A questo medular da moral da distribuio desigual do JUBESA est dentro do debate geral da distribuio moral para a vida boa e coletiva. Este, no entanto, outro captulo, muito mais fundamental do que o tratado neste ensaio.

Referncias DEL PRIORI, M. Corpo a corpo com a mulher. So Paulo: Senac, 2000. LOVISOLO, H. A educao fsica: a arte da mediao. Rio de Janeiro: Sprint, 1995. LOVISOLO, H. Atividade fsica, educao e sade. Rio de Janeiro: Sprint, 1997. HIRSCHMAN, A. As paixes e os interesses, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. SANTIAGO, L. Natao mster: resistindo velhice, Rio de Janeiro. Dissertao de mestrado, UGF-PPGEF , 1993.

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CONCEPES DE SADE NOS PARMETROS CURRICULARES NACIONAIS

Carlos Leal Ferreira Cooper Jane Dutra Sayd

CONCEPES DE SADE NOS PARMETROS CURRICULARES NACIONAIS1


Carlos Leal Ferreira Cooper Jane Dutra Sayd

Introduo No incio de 1998 a Secretaria de Educao Fundamental do Ministrio da Educao e do Desporto distribuiu por todo o territrio nacional um documento denominado Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Os PCNs so uma referncia nacional para o ensino fundamental (primeira oitava srie) e mdio (antigo segundo grau), isto , estabelecem uma meta educacional para a qual devem convergir as aes polticas do Ministrio da Educao e do Desporto, tais como os projetos ligados sua competncia na formao inicial e continuada de professores, anlise e compra de livros e outros materiais didticos e avaliao nacional. Tm como funo principal subsidiar a elaborao ou a reviso curricular dos estados e municpios. Alm da tradicional diviso de contedos em torno de disciplinas bem definidas, os PCNs alocam uma parte de seus contedos no que denominam temas transversais. So assuntos considerados de relevncia social e que se distribuem, ou melhor, atravessam as outras disciplinas, tendo embutido em sua tica, necessariamente, um tratamento interdisciplinar. A sade um deles, j posto h tempos nesta condio:
Em 1977, o Conselho Federal de Educao reafirma a posio de que os Programas de Sade no devem ser encarados como uma matria ou disciplina, mas como uma preocupao geral do processo formativo, intrnseca prpria finalidade da escola, devendo ser trabalhados por meio de uma correlao dos diversos componentes curriculares, especialmente Cincias, Estudos Sociais e Educao Fsica (Saviani, 2000).
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Este trabalho uma sntese da dissertao de mestrado, de mesmo nome, defendida no Instituto de Medicina Social da UERJ em 2000, por Carlos Leal Ferreira Cooper.

Este artigo se prope a fazer um estudo analtico sobre as concepes de sade contidas no tema transversal sade, dos PCNs destinados ao ensino fundamental. A inteno possibilitar uma reflexo sobre as adequaes e insuficincias desses contedos, assim como sobre os mecanismos de reproduo dos valores scio-culturais em sade, desde os bancos escolares.

Estratgia de anlise A leitura dos parmetros foi orientada pelo mtodo de anlise de contedo, sistematizado por Laurence Bardin (1977). Discutiram-se as categorias temticas mais relevantes que emergiram dessa leitura. As unidades centrais da anlise so as concepes, representaes e normas relativas sade, contidas nos PCNs. A anlise de contedo consiste num conjunto de instrumentos metodolgicos utilizado no estudo das comunicaes, podendo ser utilizado na anlise de quaisquer comunicaes que ocorram entre emissor e receptor, sejam indivduos ou grupos. Sua inteno a inferncia de conhecimentos relacionados s condies de produo (ou at recepo) e inferir deduzir de maneira lgica. a partir das variveis inferidas que se d o trabalho de interpretao do analista, etapa final do trabalho de anlise de contedo. Portanto, mais importante que a descrio dos textos em si, so as inferncias que podem ser construdas a partir do tratamento dado a eles. Numa anlise por categorias, como esta, toma-se em considerao a totalidade de um texto, classificando-o segundo a freqncia de presena (ou de ausncia) de itens de sentido. Busca-se introduzir certa ordem, segundo certos determinados, na desordem aparente. Os resultados no se pretendem neutros; a escolha dos critrios de classificao depende daquilo que se procura ou que se espera encontrar. Os PCNs e seu contexto Em 1990, o Brasil participou da Conferncia Mundial de Educao para Todos, em Jomtien, na Tailndia, convocada pela Unesco, Unicef, PNUD e Banco Mundial. Dela participaram governos, agncias internacionais, organizaes

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no-governamentais, associaes profissionais e personalidades destacadas no plano educacional em todo o mundo. Os 155 governos que subscreveram a declarao ali aprovada comprometeram-se a assegurar uma educao bsica de qualidade a crianas, jovens e adultos. Esse evento foi o marco, a partir do qual os nove pases com maior taxa de analfabetismo do mundo (Bangladesh, Brasil, China, Egito, ndia, Indonsia, Mxico, Nigria e Paquisto), conhecidos como E 9, foram levados a desencadear aes para a consolidao dos princpios acordados na Declarao de Jomtien. Tendo em vista o quadro vigente da educao no Brasil e os compromissos assumidos internacionalmente, o Ministrio da Educao coordenou a elaborao do Plano Decenal de Educao para Todos (1993-2003), concebido como um conjunto de diretrizes polticas em contnuo processo de negociao, voltado para a recuperao da escola fundamental, a partir do compromisso com a eqidade e com o incremento da qualidade, como tambm com a constante avaliao dos sistemas escolares. O Plano Decenal de Educao (PDE), de acordo com o que estabelece a Constituio de 1988, afirma a necessidade e a obrigao de o Estado elaborar parmetros claros no campo curricular, capazes de orientar as aes educativas do ensino obrigatrio, de forma a adequ-lo aos ideais democrticos e busca da melhoria da qualidade do ensino nas escolas (Saviani, 2000). Nesse sentido, o texto constitucional vigente mostrava a ampliao das responsabilidades do poder pblico para com a educao de todos, ao mesmo tempo que a Emenda Constitucional n. 14, de 12 de setembro de 1996, dava prioridade ao ensino fundamental, disciplinando a participao de estados e municpios, no tocante ao financiamento desse nvel de ensino. A ltima Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (Lei Federal n 9.394), aprovada em 20 de dezembro de 1996, refora a necessidade de se propiciar a todos a formao bsica comum, o que pressupe a formulao de um conjunto de diretrizes capaz de nortear os currculos e seus contedos mnimos, incumbncia que nos termos do artigo 9, inciso IV, remetida para a Unio. Para dar conta desse amplo objetivo, a LDB consolida a organizao curricular

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conferindo-lhe maior flexibilidade. Nesse contexto, so criados os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs), reafirmando o princpio da base curricular nacional comum, a ser complementada por uma parte diversificada, em cada esfera de ensino e escola na prtica, de acordo com o artigo 210 da Constituio Federal brasileira. Portanto, trs grandes razes tm sido invocadas como justificativa para a criao dos PCNs. Em primeiro lugar, a iniciativa pretendia cumprir o artigo 210 da Constituio de 1988, que determina a fixao de contedos mnimos para o ensino fundamental, a fim de assegurar formao bsica comum e respeito aos valores culturais e artsticos, nacionais e regionais. Em segundo lugar, buscava-se promover o aumento da qualidade do ensino fundamental, cuja necessidade foi enfatizada no Plano Decenal de Educao para Todos (1993 2003). Em terceiro lugar, pretendia-se articular os diferentes esforos de reformulao curricular que vinham sendo desenvolvidos nos distintos estados e municpios da Unio. Durante o ano de 1995, uma equipe constituda por professores de escolas (e no de universidades), responsabilizou-se pela elaborao dos PCNs. Registre-se que os docentes participantes dessa equipe eram, fundamentalmente, professores ligados Escola da Vila, instituio privada, situada em So Paulo (Moreira, 1996; Cunha, 1996). Cabe ainda ressaltar que a experincia, de fato, inspiradora, foi a espanhola: o professor Csar Coll, catedrtico em Psicologia Educacional na Universidade de Barcelona e um dos tericos mais diretamente implicados na reforma educativa da Espanha, foi alado ao posto de principal consultor do trabalho desenvolvido em nosso pas. Ao final do ano de 1995, os mesmos especialistas que participaram do encontro em So Paulo, foram chamados em Braslia para receberem a primeira verso dos PCNs (Moreira, 1996). No incio de 1996, cerca de 400 professores das diferentes reas do conhecimento e especialistas em educao receberam tal verso para exame e parecer.

Crticas aos PCNs Moreira (1996), argumenta que a implantao de um currculo nacional, expresso usada para caracterizar o que no Brasil se denominou de Parmetros Curriculares Nacionais, tem ocorrido em pases como a Espanha, Estados Unidos, Inglaterra e Argentina desde a dcada de 1980, associada viso neoliberal de educao. A primeira crtica relevante idia de currculo nacional deve-se ausncia de consenso em relao ao que isso possa significar. A expresso tem sido usada para indicar os padres a serem atingidos nacionalmente, as estruturas bsicas das disciplinas, assim como o conjunto formado por metas, padres, processo instrucional e avaliao. preciso ter em mente que o currculo s ganha vida nas salas de aula, quando vivenciado pelos estudantes. Em funo disso, muitos consideram impossvel um currculo vivenciado nacionalmente. Alega-se que o proveito seria maior se os esforos se dirigissem para o incentivo a reformas locais, organizadas segundo os interesses e as necessidades do professorado, dos estudantes e da comunidade. Moreira tambm questiona o que se deve conceber por contedos mnimos, em funo da dificuldade de adequar os mesmos s realidades e experincias da comunidade, da escola e do estudante, limitando a autonomia de sistemas escolares e de docentes. Termina-se por sacralizar as disciplinas acadmicas tradicionais, ao invs de se estimular as escolhas de possveis especificidades locais. Uma outra crtica que um currculo nacional, ao buscar construir e preservar uma cultura comum, tida como bsica para o desenvolvimento de um sentimento de identidade nacional, tende a privilegiar os discursos dominantes e a excluir, das salas de aula, os discursos e as vozes dos grupos sociais oprimidos, vistos como no merecedores de serem ouvidos no espao escolar (Cuban, 1995). Cunha (1996), critica a pressa que presidiu a elaborao dos PCNs. Sustenta que foram ignoradas diversas propostas curriculares de boa qualidade, desenvolvidas por estados e municpios brasileiros, desde 1982. O parecer da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, 1996) considera que o processo que levou elaborao dos PCNs, alm de ignorar e

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deixar de fora as mltiplas e diversas vozes que teriam algo a dizer sobre esta questo, preferiu privilegiar um nmero extremamente reduzido de especialistas e consultores. Assim, uma das vozes inexplicavelmente ausentes foi a dos professores de primeiro grau, embora tambm estejam ausentes as vozes de muitos outros grupos sociais que teriam especial interesse na questo do currculo: os sindicatos de trabalhadores, os movimentos sociais dos diversos grupos dominados, as associaes cientficas, etc. Por isso, os PCNs, resultantes de um processo baseado na opinio de um grupo restrito e limitado de especialistas, s podem caracterizar-se como uma idia bastante particular, uma possibilidade, entre muitas outras, sobre o que deve ser um currculo nacional. Outra restrio (Cunha, 1996) a essa poltica educacional, no que tange educao bsica, sua nfase na aplicao de testes nos alunos. O que explicaria tal orientao a progressiva implantao do modelo mercadolgico, isto , a publicao dos rendimentos dos alunos por escola para efeito da orientao dos consumidores da mercadoria educacional. PCNs e a sade como tema transversal Os PCNs optam, em todos os seus volumes, por uma abordagem disciplinar do conhecimento escolar. H, portanto, um volume inteiro (e bastante detalhado) para Lngua Portuguesa, outro para Matemtica, outro para Geografia e assim por diante, contemplando todas as disciplinas to conhecidas por ns, de um currculo tradicional. Essa sua estrutura fundamental, o eixo em torno do qual se desenvolve o desenho curricular. Esse ncleo , ento, perpassado pelos temas transversais (expostos em volumes em separado). Tais temas no so disciplinas, mas devem estar interligadas a elas, em razo de sua relevncia social. Os PCNs esto propondo, assim, a manuteno da lgica das disciplinas e a introduo de temas transversais socialmente importantes, sugerindo uma relao de complementao, porm ainda sem uma integrao mais concreta na prpria formulao dos parmetros. O documento especfico sobre sade d incio sua apresentao, ponderando como o ensino de sade tem sido

um desafio para a educao, no que diz respeito transformao de atitudes e hbitos de vida.
[...] na prtica, pouco se caminhou para romper com a tendncia de restringir essa abordagem aos aspectos informativos e exclusivamente biolgicos. Com efeito, em Cincias Naturais que a temtica continua sendo prioritariamente abordada [...]. Logo, respeitadas as possveis excees, o que se tem, ainda hoje, o ensino de sade centrado basicamente na transmisso de informaes sobre como as pessoas adoecem, os ciclos das doenas, os seus sintomas e as formas de profilaxia (Brasil, 2000, p.258).

Segundo ele, as experincias tm mostrado que: [...] a mera transmisso de informaes a respeito do funcionamento do corpo e descrio de doenas, alm de hbitos de higiene, no suficiente para que os alunos desenvolvam atitudes de vida saudvel (BRASIL, 1998a, pg.245). A esta noo de doena se soma uma concepo de corpo humano que, segundo Peregrino (2000), trabalhada linear e tradicionalmente, numa complexificao crescente, mas sempre segmentada, do estudo das clulas e tecidos at os sistemas, sem que se perceba uma relao entre tais assuntos e a vida dos alunos, j que cada parte do corpo abordada de forma isolada, sem ser relacionada e/ou contextualizada. Os PCNs apresentam uma proposta para fazer face ao problema: Um modelo mais abrangente de anlise do fenmeno sade/doena no nega o fenmeno biolgico, nem tampouco a relao com o meio ambiente, mas prioriza o entendimento de sade como um valor coletivo, de determinao social (Brasil, 2000,. p.250). Inspirado na obra de em Georges Canguilhem2 , o documento prope concepes abrangentes sobre sade:
[...] um indivduo pode ser socialmente saudvel, apesar de possuir reconhecido comprometimento fsico. O fato que sade e doena no so valores abstratos ou situaes absolutas, aonde se possa interpor uma clara linha divisria. No so condies estticas tampouco.
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O livro O Normal e o Patolgico (Canguilhem, 1978) uma das referncias bibliogrficas do Tema Transversal Sade, nos PCNs.

Comumente reduz-se o conceito de doena sua dimenso biolgica: uma disfuno orgnica que afeta um indivduo (ou parte de seu corpo), causada por um agente qumico, fsico ou biolgico, capaz de provocar alteraes nesse organismo (Brasil, 2000,. p.249).

A idia de tema transversal se firma, por fim, como contedo de apreenso cotidiana, por integrao de outros conhecimentos: mais do que uma disciplina ou contedo, um elemento cognitivo de elaborao mais complexa:
Espera-se que os alunos aprendam a lanar mo de conhecimentos de Lngua Portuguesa, Matemtica, Cincias Naturais, Histria, Geografia, etc, na busca de compreenso do assunto e na formulao de proposies para questes reais [...]. O tratamento transversal do tema (sade, no caso) deve-se exatamente ao fato de sua abordagem dar-se no cotidiano da experincia escolar e no no estudo de uma disciplina (Brasil, 2000, p.265).

Cidadania e sade
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No item Brasil: onde necessrio prevenir e remediar, est mencionado que na ltima dcada o pas: [...] incorporou progressivamente cultura e legislao a concepo de que a sade direito de todos e dever do Estado. Um passo importante foi dado ao se promulgar a Constituio de 1988, que legitima o direito de todos, sem qualquer discriminao, s aes de sade, assim como explicita o dever do poder pblico em prover pleno gozo desse direito(Brasil, 2000,. p.252). At este ponto, pode-se verificar que os PCN seguem as idias de sade como direito de todos, em um estado de bem estar social; de direitos sociais como seguridade social; e, tambm de sade como conceito social e, culturalmente, construdo e determinado. Acompanham de perto, portanto, o iderio que norteou os rumos dos principais eventos relativos constituio do SUS nos ltimos anos. No entanto, a seqncia do texto termina por negar, em parte, esta proposta, ao incorporar em suas proposies as noes da carta de Ottawa, de cidade saudvel:
[..] conceito de Cidade Saudvel, originado no Canad na dcada de 80, vem norteando a implementao de

projetos em favor da qualidade de vida em diversas regies do mundo, a partir de sua incorporao pela Organizao Mundial de Sade. Considera-se que uma cidade saudvel deva ter: - uma comunidade forte, solidria e constituda sobre bases de justia social, aonde ocorre alto grau de participao da populao nas decises do poder pblico; - ambiente favorvel qualidade de vida e sade, limpo e seguro; satisfao das necessidades bsicas dos cidados, incluindo alimentao, moradia, trabalho, bem como servios de qualidade em sade, educao e assistncia social; - vida cultural ativa; - economia forte, diversificada e inovadora (Brasil, 2000, P .254).

A Primeira Conferncia Internacional sobre Promoo da Sade, realizada em Ottawa, Canad, em novembro de 1986, focalizou principalmente as necessidades em sade nos pases industrializados. Seu conceito central era a promoo da sade, nome dado ao processo de capacitao da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e sade, incluindo uma maior participao popular no controle deste processo. Ousamos dizer que a proposta de promoo sade, centrada na idia de qualidade de vida, pode ser produtiva em formaes sociais onde o direito ateno mdica e o acesso ao sistema de sade j estejam razoavelmente garantidos como direito de cidadania, mas que tal proposta ainda no pertinente em situaes de maior precariedade, como a brasileira, tomada em seu conjunto. Efetivamente, o Brasil no se fez representar em Ottawa, porque esta Conferncia congregou apenas os pases mais desenvolvidos. O Brasil, no entanto, esteve presente na Conferncia de Bogot (em 1992) e foi signatrio de sua declarao. A Carta de Bogot preconiza a sade como uma conseqncia do desenvolvimento econmico e social da regio, embora enfatize as grandes dificuldades para se chegar a isso, devido extrema iniqidade que se agrava pela prolongada crise econmica e pelas polticas de ajuste macroeconmico. A partir deste momento falaremos de pontos que nos parecem ser problemas nas concepes embutidas nos

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PCNs. Comeam, ao nosso ver, pela citao da carta de Ottawa, em detrimento do documento de Bogot. no mnimo estranho que um documento oficial e de abrangncia nacional esteja pautado por protocolos elaborados sem a participao do pas, enquanto aqueles firmados por ns em solo brasileiro, no apaream como elementos de formulao da poltica mais geral para o setor. Esta seria mais uma marca do carter colonizado do documento, tal como apontado acima pelos crticos da prpria rea da educao. A noo de sade como atributo de cidadania plena Mais estreitamente ligada noo de cidadania encontramos outros aspectos, no mnimo contraditrios, s propostas embutidas nas premissas do Sistema nico de Sade (SUS). Este vem se pautando nos princpios do antigo estado de bem-estar social, no qual a idia de cidadania plena s estaria completa junto noo de direitos sociais como algo inalienvel. Ora, a palavra cidadania, nos textos relativos a sade nos PCNs, no est ligada, salvo na apresentao citada acima, aos termos Estado ou direito. Ao contrrio, encontra-se sim, responsabilizando cada indivduo (atomizado e fragmentado), pelas suas condies de vida e sade. A educao considerada como: [..] um dos fatores mais significativos para a promoo da sade e contribui de maneira decisiva na formao de cidados capazes de atuar em favor da melhoria dos nveis de sade pessoais e da coletividade (Brasil, 2000, p.245). O cidado no algum que tem o direito sade; algum que, se bem educado, trabalhar organizadamente em favor da sua sade e da coletividade. Em primeiro lugar, pelo meio ambiente: permitem perceber a responsabilidade pessoal pela proteo sade coletiva. O sentido de responsabilidade de cada um e de cada grupo social pela produo do ambiente global devem sempre estar presentes (Brasil, 2000, v.9, p.111); participao ativa na conservao de ambiente limpo e saudvel no domiclio, na escola e nos lugares pblicos em geral (Brasil, 2000, v.9, p.114). A proposta, clara no texto, de responsabilizar o cidado pelas condies ambientais na sociedade brasileira absurda, para dizer o mnimo. Em um pas onde a cobertura

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da rede coletora de esgotos na rea urbana no passa de 75% (IDB, 2004) e em que ainda h um ndice elevado de domiclios precrios, tal proposta soa como um acinte. O outro lado, da formao de um pensamento crtico a respeito dos determinantes que envolvem as condies do meio ambiente, est ausente. No se fala de abuso de poder econmico e as decorrentes instncias sociais destrutivas do meio ambiente, por exemplo, do derrame de dejetos industriais nos mares e lagos ou, da ausncia de infraestrutura de saneamento em certos locais. So circunstncias frente s quais o indivduo isolado, em famlia ou em pequenos grupos no detm nenhuma autoridade ou controle. Assim, no se fala em direitos sociais ou em direitos do cidado, apenas na sua responsabilidade e seus deveres. O emprego dos termos solidariedade e coletividade soam um tanto ambguos: Caminha-se progressivamente para a ampliao das relaes espaciais e sociais [...] e da responsabilizao autnoma e solidria pela sade pessoal e coletiva [...] (Brasil, 2000, v.9, p.106). Emergem aqui, com mais clareza, as duas categorias principais associadas noo de cidadania no texto: autonomia e solidariedade. Autonomia De acordo com os PCNs: Entende-se que a sade se expressa no espao e tempo de uma vida, pelos meios que cada ser humano dispe para criar seu prprio trajeto em direo ao bem-estar fsico, mental e social.(Brasil, 2000, v.9, p.106). Percebe-se neste trecho o quanto se pretende responsabilizar o aluno pelas suas prprias condies de sade, apontando para uma trajetria individual, escolhida livremente por cada um. Em decorrncia, sugere-se que servios oferecidos ao cidado seriam atividades de cunho paternalista, nos quais ele estaria posto na condio de objeto passivo ou mesmo de vtima: A sade no tarefa a ser delegada, deixando ao cidado ou sociedade o papel de objeto da interveno da natureza, do poder pblico, dos profissionais de sade ou, eventualmente, de vtima do resultado de suas aes (BRASIL, 1998a, p.250).

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O conceito de autonomia3 , presente nos PCNs, tende a se fundir noo de individualismo e isolamento, em virtude da sistemtica omisso do papel do Estado ao longo de todo o documento. Essa omisso desqualifica o conceito de cidadania - que no existe na contemporaneidade sem um estado que a qualifique e lhe d pertinncia ao mesmo tempo em que desqualifica os direitos sociais, dando-lhes aparncia caritativa, que se concede a indivduos vulnerveis incapazes ou sem iniciativa. Saviani (2000) diz que educar para o exerccio da cidadania significaria transmitir a todos os direitos que formalmente lhes so reconhecidos. A educao, por esse enfoque, seria um mecanismo de difuso, de socializao e de reconhecimento dos direitos (civis, polticos e sociais) que definem o campo da cidadania. Ora, os PCNs se mostram notavelmente omissos quanto a esses direitos, na mesma medida em que tambm omitem a responsabilidade da figura do Estado. Uma ao pedaggica destinada ao aprendizado da Constituio e das leis permitiria, por exemplo, consolidar e desenvolver nos indivduos a auto-percepo de sua condio de cidados e, conseqentemente, o respeito e a proteo do sistema democrtico e de suas instituies. Nessa perspectiva, a cidadania o exerccio de uma prtica indefectivelmente poltica e fundamentada em valores como a liberdade, a igualdade, a autonomia, o respeito diferena e s identidades, a solidariedade, a tolerncia e a desobedincia a poderes totalitrios (Ferreira, 1993). A noo de autonomia s tem sentido junto a de incluso social, onde ela se torna direito de um frente ao dos demais cidados, igualmente includos no pacto social. Sem uma pactuao social clara, sem Estado, no existem cidados autnomos, existem indivduos isolados. Solidariedade Os PCNs substituem, at prova em contrrio, a noo de pacto ou contrato social por solidariedade. Em ltima instncia, aquilo com o qual o indivduo pode contar, na
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Ver em FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo dicionrio da Lngua Portuguesa. 1. ed., 15. reimpresso, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.163.

ausncia do Estado. O ncleo central dessa concepo o indivduo (ou somatrio de indivduos), possuidor de deveres para com seus semelhantes, com a sociedade onde se insere e com o meio ambiente em que vive. Solidariedade diante dos problemas e necessidades de sade dos demais, por meio de atitudes de ajuda e proteo a pessoas portadoras de deficincias e a doentes (Brasil, 2000, v.9, p.115). importante observar que neste trecho do documento, a solidariedade no parece como elemento construtivo de relacionamento entre iguais, mas apenas de apoio aos desvalidos. Stotz (2000), argumenta que solidariedade uma palavra com mltiplos sentidos: preceito moral, palavra de ordem, vnculo de classe, promessa de segurana burguesa, justificativa para redistribuio no interior de um sistema de proteo social. Oriunda do latim solidum, slido, o que lhe confere o sentido de estar sobre bases slidas, significa: tambm estar com os outros na mesma situao, ter interesses comuns, identificar-se com o destino do outro. Assim, solidariedade pode ser compreendida como a relao de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo sinta a obrigao moral de apoiar os outros. Os PCNs suscitam uma solidariedade voluntarista, merc da benemerncia do solidrio para com o seu vizinho carente e, no fazem referncia possibilidade de um pacto slido, formalmente estabelecido o Estado ou, melhor ainda, um estado com perspectivas de aumento de incluso e de expanso de pactos de solidariedade. So da mesma poca dos PCNs, os programas de aes sociais solidrias, como o Comunidade Solidria, os Amigos da Escola, o Criana Esperana. Programas em que, facilmente, se perde o cunho de apoio rumo a um crescimento emancipatrio para que surja forte o carter assistencialista de proviso imediatista ao necessitado, sem a promoo de sua incluso social. Aprender condutas individuais O documento preconiza a importncia da sade como tema transversal de uma forma um tanto parcial: [...] esperase dos alunos que possam estruturar e fortalecer

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comportamentos e hbitos saudveis, tornando-se sujeitos capazes de influenciar mudanas que tenham repercusso em sua vida pessoal e na qualidade de vida da coletividade (Brasil, 1998a, p.262). A idia de comportamentos saudveis bem estruturados no deixa de ser uma boa meta para um programa de educao em sade. O problema est na definio prvia a esta proposta, como se v a seguir:
responsabilidade da escola tambm trabalhar com a educao para a sade? A resposta simples: queira ou no assumir a tarefa da educao para a sade a escola est continuadamente submetendo os alunos a situaes que lhes permitem valorizar conhecimentos, princpios, prticas ou comportamentos saudveis ou no. Quando no inclui, nas vrias reas do currculo, os diferentes contedos relativos ao fenmeno sade/doena, [...] a escola est optando por um tipo de educao que afasta as crianas e os adolescentes de uma tarefa de cidadania, ou seja, afasta-os da discusso e da prtica de aes individuais e coletivas de cuidados em sade (Brasil, 1998a, p.260).

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Considerar que aes individuais de cuidados em sade so tarefa de cidadania algo perigoso, pois reverte imediatamente para a noo de que a culpa do adoecimento do prprio indivduo. Novamente temos uma situao em que os cidados esto postos como isolados e entregues a sua prpria sorte - e culpados pela mesma, caso tenham optado por comportamentos no saudveis. A atitude prescritiva, que no dialoga com o estudante, apenas dita as regras do que fazer est fortemente presente na preconizao dos comportamentos saudveis: valorizao da alimentao adequada para o crescimento [...] ou uso adequado de sanitrios, higiene bucal, banho dirio, uso de vestimentas e calados apropriados [...] (Brasil, 2000, v.9, p.109). A lista , no mnimo, curiosa. Como os PCN pretenderiam ensinar o uso de vestimentas e calados apropriados? O que sero calados inadequados, quem os define como tal, e quem os usaria por ignorncia ou preferncia? Estes itens deixam muito claro que, embora haja todo um texto inicial sobre os PCN qualificando-os como diretrizes

muito gerais a se aplicar localmente, de forma adaptada s distintas identidades culturais e diferenas regionais, no h espao previsto para a escuta das comunidades em que as escolas especficas se inserem, muito menos interesse em saber suas razes pensar que algum use calados inadequados por desconhecimento e no por dificuldades financeiras, manifestar um nvel de prepotncia que beira a imbecilidade. Os PCNs e modelo assistencial no SUS Igualmente curioso perceber que o documento tem opinio formada sobre a proposta do Sistema nico de Sade: A implementao de modelos centrados em hospitais, em exames laboratoriais e consultas mdicas, assim como o incentivo ao consumo abusivo de medicamentos, vem resultando, historicamente, na assistncia baseada em aes curativas, desencadeadas apenas quando a doena j est instalada e o indivduo precisa de socorro (Brasil, 1998a, p.252). Este uma observao com a qual os profissionais de sade concordam em linhas gerais, mas a sua continuidade , para ns, eticamente suspeita e, no mnimo, ambgua: Para reverter essa tendncia, os servios de sade devem funcionar como guardies da sade individual e coletiva, at mesmo para reduzir a dependncia da populao em relao a esses servios, ou seja, devem ampliar a capacidade de auto-cuidado das pessoas e da sociedade (Brasil, 1998a, p.252). Substituir a medicao exacerbada ou internaes desnecessrias por cuidados , em si mesmo, medida importante para a melhoria da qualidade da ateno sade, mas isto no autoriza ningum a taxar a populao de dependente dos servios de sade, muito menos a restringir os cuidados ao auto-cuidado. Dificilmente a populao, tomada em sua maioria, dependente de servios de sade, uma vez que o acesso aos mesmos ainda no satisfatrio. Tais servios de sade devem, outrossim, para cumprir o preceito constitucional de acesso universal a sade, ampliar efetivamente, os cuidados com a populao, incluindo a a educao para o auto-cuidado, mas o objetivo final a sade da populao, no o esvaziamento dos servios de sade.

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Os impasses surgidos ultimamente na rea da sade podem sugerir que o desafio que se impe grande demais para ser enfrentado ou caro demais para ser custeado (Brasil, 1998a, p.253) (grifos nossos). Aqui ento est posta, sem ambigidades, a razo para a nfase no auto-cuidado, ao longo de todo o documento a populao precisa aprender as atividades de auto-cuidado porque a esfera pblica no fornecer, afinal, o acesso universal aos servios de sade. Educao para qu? Palavras de Paulo Renato Souza, Ministro da Educao e do Desporto, no governo FHC: vivemos numa era marcada pela competio e pela excelncia, em que progressos cientficos e avanos tecnolgicos definem exigncias novas para os jovens que ingressaro no mundo do trabalho. Tal demanda impe uma reviso dos currculos [...] (Brasil,1998b, p.6). Segundo Modesto (1996), o que se observa hoje que o Estado e a sociedade civil esperam da escola no a formao do homem-cidado, plenamente desenvolvido como agente poltico e produto-produtor da cultura, mas, sim, a produo do profissional eficiente, o ser economicamente vivel. O sistema educacional diariamente pressionado a adequar o currculo escolar s necessidades do mercado de trabalho. Hoje, todo ensino , de certa maneira, profissionalizante e o que no estiver diretamente vinculado produo, termina por ser considerado suprfluo no currculo. Na grande maioria das recentes reformas educacionais, no mundo ocidental, observa-se a preocupao em buscar, por um lado, responder s exigncias de nveis de escolaridade dos trabalhadores para ingressarem e permanecerem no emprego formal e, por outro, a necessidade de controle e gesto dos que ficaro excludos do mercado de trabalho. Dessa maneira, tais reformas estariam a servio da gesto do trabalho e da pobreza (Oliveira, 2000). Esta autora mostra como o processo de trabalho pedaggico passa a ser definitivamente entendido por nossos governantes, pelos organismos internacionais e pelo empresariado, no seu conjunto, como uma atividade qualquer de produo de valores (no caso, de produo de fora de trabalho). Tambm

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demonstra como, simultaneamente, busca-se atravs dos programas de educao para todos, formas de integrar grandes parcelas da populao estrutura econmico-social, recorrendo a um termo to em voga: empregabilidade. nesta perspectiva que, segundo Apple (2000), as escolas deixam de ser controladas pelo Estado e passam a funcionar de acordo com os princpios do mercado livre, isto , entregando aos pais a escolha das escolas que desejam para os seus filhos. Colocando a nfase no individualismo (autonomia, autodeterminao e liberdade), prope-se que o currculo deve contribuir para a competitividade, meritocracia e eficincia. Apple (2000) aponta, inclusive, como a difuso indiscriminada desse tipo de concepo na educao, pode conduzir ampliao desmedida do mercado consumidor de bens e servios educacionais. Aos empresrios da educao tornam-se promissoras as possibilidades de extrair lucro da desqualificao dos trabalhadores. A situao de instabilidade, incerteza, vulnerabilidade, aos quais esto expostos os cidados, justamente pelo aumento do desemprego, impulsiona o mercado de venda de consultorias, de diplomas, de promessas de empregabilidade. Inaugura-se um promissor nicho de mercado, favorecendo a expanso dos capitalistas do ensino. Discusso: cidadania, estado, educao e sade O ponto central, ao fim dessa anlise, a carncia de menes ao Estado ao longo dos PCNs. Esse fato de especial relevncia, se levado em conta que a cidadania assume papel de destaque durante todo o documento. Porm, uma cidadania rf, porque encontra-se desprovida do Estado com o qual deveria se referenciar, alienada de seus direitos, impossibilitada de reivindicar. O Estado no somente um instrumento de dominao a servio dos dominantes. Ele tambm , sem contradio alguma, o lugar onde so conservadas as conquistas sociais, os direitos adquiridos, enfim, a memria institucional do produto das lutas anteriores. A proposta de cidadania sem Estado associada a uma busca de autonomia a qualquer custo, mostra os PCNs fortemente identificados com o conceito neoliberal de Estado

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mnimo. Aos indivduos, autnomos, restaria apostar nas redes sociais de solidariedade compensatrias, como soluo para suas mais bsicas necessidades. No que tange ao conceito de sade , forte a similaridade dos PCNs com a Promoo da Sade, preconizada na Carta de Ottawa (WHO, 1986). As discusses em torno da carta de Ottawa focalizaram principalmente as necessidades em sade nos pases industrializados e definiram promoo da sade como o processo de capacitao da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e sade, incluindo uma maior participao no controle desse processo. Segundo a Carta de Ottawa, a promoo da sade no responsabilidade exclusiva do setor sade e, considerando que as condies e os recursos fundamentais para a sade so: paz, habitao, educao, alimentao, renda, ecossistema estvel, recursos sustentveis, justia social e eqidade. Para tal documento, o incremento qualitativo das condies de sade requer uma base slida nestes pr requisitos bsicos e por isso, define a sade como o maior recurso para o desenvolvimento social, econmico e pessoal (OPS, 1996). Os PCNs preconizam o desenvolvimento de habilidades pessoais, refora a ao comunitria e propugnam a reorientao dos servios de sade no sentido de compartilhar a responsabilidade pela promoo da sade, entre indivduos, comunidade, grupos, profissionais da sade, instituies que prestam servios de sade e governos. A anlise de contedo realizada nos permite inferir, na verdade, que o tema transversal sade dos PCNs, foi organizado segundo os preceitos da Carta de Ottawa. Tais preceitos podem ser interessantes, ao acenar para maior participao dos indivduos no cuidado prpria sade, na participao comunitria para a construo das cidades saudveis, etc. Para os pases signatrios, possvel at mesmo se pensar em reduo dos gastos em sade, se pactuados e discutidos com a populao. As condies de exeqibilidade deste tipo de projeto esto, no entanto, postas, com clareza, em um contexto bastante diferente do nosso pas. Referem-se, por exemplo, a eqidade, justia social, boas condies de moradia e

educao. Ou, em outros termos, no provvel que a poltica canadense adequada a sua populao com gastos per capita em sade da ordem de US $ 1875/ano seja aplicvel a uma realidade de gastos per capita de cerca de US$80/ano (Brasil, 2006). Diminuir a dependncia da populao em relao aos servios de sade naquele pas pode significar um incio de desmedicalizao, mas aqui , at prova em contrrio, proposta irresponsvel, beirando o cinismo. Vivemos em um pas ainda assolado pela iniqidade, a qual se agrava pela prolongada crise econmica e pelos programas de poltica de ajuste macro-econmico. Segmentos importantes da populao no conseguem ter satisfeitas as suas necessidades bsicas, para garantir condies dignas de vida, quadro agravado pela reduo histrica do gasto social e das polticas de ajuste, onde tambm, na ordem poltica, existem barreiras que limitam o exerccio pleno da democracia, bem como uma participao ampla na tomada de decises. A construo de uma solidariedade neste pas, de forma mais ampla, passa antes por diminuir as iniqidades estruturais, passa por uma discusso poltica de como diminuir os contingentes excludos na nossa sociedade. Ainda estamos muito longe de poder sugerir o auto-cuidado como um progresso suficiente nas nossas promessas de promoo da sade. Concluses breves A educao, entendida como o mecanismo de difuso dos direitos existentes, no forma a cidadania, mas pode e deve torn-la mais consciente. O SUS depende, para se realizar, de que a populao conhea seus direitos. De que se sinta capaz de reivindicar e se fazer representar nas instncias de controle social. uma proposta de poltica de seguridade social, no de estado mnimo em que os cidados esto isolados, entregues competio de mercado. A formao de recursos humanos para a sade necessita de um campo prvio para melhor se realizar; so as noes de que o direito sade universal e o SUS o seu instrumento de realizao, no uma doao ou forma de

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caridade para despossudos. Ainda, necessrio se difundir a noo de que a escuta populao fundamental para que este projeto se realize sem violncias s culturas especficas ou dignidade dos mais carentes de recursos financeiros. Os Parmetros Curriculares Nacionais do Ministrio da Educao e Desporto pretendem difundir no ensino fundamental noes e preceitos distintos e contraditrios em relao a tais perspectivas. Essa constatao nos leva a propugnar a necessidade de discusses intersetoriais. No se avanar mais nas propostas de organizao do SUS sem que outros setores da sociedade avancem nas polticas de seus respectivos segmentos. No se diminuir a iniqidade e a injustia social no Brasil, se a educao no se propuser a construir um projeto de cidadania em que a participao poltica tenha nfase. A autonomia do cidado no significa necessariamente individualismo, isolamento e competio, mas, pode ser o exerccio da liberdade em projetos de participao e incluso.
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A OBESIDADE COMO OBJETO COMPLEXO: UMA ABORDAGEM FILOSFICO CONCEITUAL

Maria Cludia Carvalho Andr Martins

A OBESIDADE COMO OBJETO COMPLEXO: UMA ABORDAGEM FILOSFICO CONCEITUAL1


Maria Cludia Carvalho2 Andr Martins3

Esse artigo examina a construo de conceitos na rea da sade e sua utilizao como um instrumento metodolgico na dissoluo de dicotomias limitantes como a de corpo/mente. O trabalho parte de uma perspectiva da filosofia em busca de uma aproximao com a realidade complexa da Sade Coletiva, aplicada problemtica da obesidade. Discutimos a superao de oposies como a do comer porque quero e no comer porque engorda numa compreenso tica dos conflitos alimentares e agravos nutricionais, de modo a articular teoria e prtica na contemporaneidade. Elaboramos como exerccio de conceituao duas definies de obesidade, levando em conta, primeiramente, a capacidade singular das pessoas de estarem ativas e potentes na vida e, depois, os padres atuais de normalidade para os corpos. Conclumos, descrevendo algumas possibilidades de utilizao desse recurso na rea de alimentao e sade, de forma que o ser humano no seja reduzido a uma metade, seja ela corpo ou alma, mas, que seja compreendido em sua integralidade. Introduo Neste incio do sculo XXI a Sade Coletiva enfrenta uma questionvel, seno falsa oposio entre obesidade e desnutrio, na transio epidemiolgica que ocorre no Brasil. Uma observao apressada pode reduzir a diversidade de uma
A publicao deste ensaio, vinculado originalmente na Revista Cincia & Sade Coletiva 2004, v. 9, n. 4, p. 1003-1012, foi formalmente autorizada pela Editora Cientfica do referido peridico, a quem os organizadores do livro agradecem pela gentileza. 2 Mestre em Sade Coletiva pelo NESC - UFRJ e Professora do Instituto de Nutrio da UERJ / e-mail: maclac@uol.com.br 3 Doutor em Filosofia pela Universidade de Nice, Frana, tendo realizado seu Ps-Doc em 2005 na mesma instituio. Professor Adjunto do Ncleo de Estudos em Sade Coletiva (NESC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) / e-mail: andremar@nesc.ufrj.br
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questo alimentar a uma simples oposio entre desnutrio/ obesidade, criando dicotomias como a associao de desnutrio a baixa renda e de obesidade a seu oposto, assim como da obesidade a um alto valor energtico da dieta e da desnutrio a uma dieta de baixo valor energtico. No entanto, como observa Monteiro (2000), a obesidade tambm est associada baixa renda, mostrando que o universo dos agravos nutricionais complexo. Assim como tambm complexa a construo dos sentidos atribudos a esses agravos em nossa cultura contempornea. E esses sentidos atribudos influem decisivamente nos prprios agravos. O ato de alimentar-se se constitui em uma dimenso ampla do humano e no se limita a um aspecto mecnico e mensurvel. A compreenso do perfil nutricional da populao no pode se reduzir, por conseguinte, a variveis antropomtricas. Obesidade no representa uma simples questo de balano energtico positivo (Monteiro, 2001). A utilizao desta definio de obesidade tem uma orientao determinista que traria, em si, uma soluo: ingerir menos ou gastar mais energia. Entretanto, o aumento progressivo da prevalncia de obesidade na populao impe uma reflexo alm dessa orientao. A objetividade e o pragmatismo da modernidade trouxeram algumas possibilidades de se modelar corpos com cirurgias, implantes, anabolizantes, etc., em formas e estilos diversos; no entanto, distanciam-nos de nossa capacidade criativa, humana, singular, na medida em que submetem a mobilidade da vida a formas estticas como a de uma estampa de revista. Partindo de uma perspectiva da filosofia, buscamos reconstruir uma concepo de corpo capaz de incluir suas inter-relaes com o ambiente, no sentido de absorver a complexidade da alimentao humana. O corpo gordo no como uma mquina mensurvel que ingere e excreta substncias, independente do ambiente. O corpo parte do ambiente em que vive e, como tal, se apropria dele a cada momento, interagindo e modificando os processos de transduo de energia. A conceituao de obesidade se coloca justamente nessa inter-relao e, desse modo, preciso debruar o olhar sobre o prprio conhecimento, sobre nossa forma de construir conceitos, para melhor entendermos o

que est em jogo na construo do conceito de obesidade, no que ele traz dessas dicotomias hegemnicas. O mecanicismo, que aposta em relaes lineares de causa e efeito, est destinado a fazer de um conceito somente uma definio, sem ao transformadora na praxis. O paradigma clssico-moderno, com sua estrutura determinista e mecanicista, no se constitui, a nosso ver, como um instrumental terico-conceitual capaz de enfrentar a complexidade intrnseca ao campo da Sade Coletiva. Quando se baseia numa representatividade numrica e esvaziada de sentidos (supostamente neutra), no permite um aprofundamento nos significados e sentidos que constituem as vrias facetas de um objeto complexo. Mas, se por um lado, o paradigma clssico-moderno no suficiente como sustentao terica para a complexidade, por outro, preciso ainda definir os fundamentos conceituais capazes de superar as dicotomias clssicas corpo/mente, quantitativo/qualitativo, sem que isso represente uma forma de transcender realidade, mas, uma forma de alargar as possibilidades de transformao inerentes ao ser humano e esfera do social. Nesse sentido, entendemos como fundamental a necessidade de se construir referncias tericas que permitam uma abordagem e uma compreenso dos fenmenos complexos, explicitando e justificando estas escolhas e os respectivos pressupostos conceituais. Uma metodologia que tenha por base a natureza complexa de qualquer objeto de estudo, sobretudo na rea da Sade, deve buscar compreender, comparar, analisar e descrever seus pressupostos tericos. A conceituao em nosso mtodo de investigao representa uma possibilidade de flexibilizar definies usuais, at ento estticas, a fim de transpor as barreiras formais da disciplinarizao moderna, articulando a teoria e sua fundamentao, com sua utilizao, atravs da construo de idias operacionais. Um destes conceitos pode ser retirado de uma filosofia do sculo XVII, como a de Espinosa, por exemplo, para ser operacionalizado de forma atual, pois nenhum conceito traz em si a exigncia de ser sempre o mesmo (Deleuze, 1991), bastando que explicitemos o modo como o estamos entendendo, de maneira a que possa ser operacional no contexto em que estar sendo utilizado.

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Um ponto de partida: a filosofia de Espinosa Para a conceituao de nosso objeto, partimos da contraposio de duas racionalidades diferentes, estabelecidas por dois pensadores do sculo XVII, Descartes e Espinosa. Os princpios do cartesianismo inauguraram o determinismo clssico-formal. As verdades cartesianas, visando constituir leis universais, representam as razes da cincia moderna, como ns a conhecemos na rea da sade em particular, na medicina moderna que emergiu como um instrumento tcnico-cientfico de dominao e controle sobre a natureza dos homens (Luz, 1988). As verdades cartesianas se fundam em pressupostos que buscavam a essncia das coisas fora delas, a partir de clculos e de medidas, seguindo uma lgica formal, baseada no mtodo cartesiano (Descartes, 1999). Na concepo espinosana, a essncia das coisas est na existncia delas. No h como separar corpo e alma, ou corpo e ambiente, por exemplo. Diferente da concepo cartesiana, que acreditava em duas substncias diferentes, a do corpo e a da mente (Descartes, 1991), segundo Espinosa, todas as coisas so constitudas por uma s substncia e tomam formas diferentes em seus modos de existncia. A idia de univocidade espinosana que somos todos (diferencialmente) iguais numa origem imanente, a substncia; e somos diferentes, porque somos, cada um, modo nico de ser da substncia (Martins, 1997; 1999; 2000). Assim, um ser humano um ser uno e mltiplo ao mesmo tempo. Na realidade, a substncia que nos une, mas em modos diferentes de existir. Tanto a razo quanto as sensaes so constitudas da mesma substncia. Racional o que corresponde realidade de modo formal, como por exemplo, a matemtica e as leis da fsica. A razo uma etapa no conhecimento que pode ser ultrapassada na busca de uma dimenso humana do conhecimento que conjuga razo e afetos, na vivncia da racionalidade. Nos termos espinosanos, o humano no corresponde a um ideal, a uma idealizao ou projeo, na imanncia e, portanto, no passvel de escala, uma vez que no h um critrio transcendente ou transcendental para medir graus de humanidade. Nestes termos, no somos mais ou menos humanos, assim como tambm o ser humano no vem se tornando evolutivamente mais humano.

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Compreender requer, observa Espinosa, ser afetado de diversos modos (...), [e assim] til ao homem; e -lhe tanto mais til, (...) ser afetado de mais maneiras ou a afetar os outros corpos. E pelo contrrio, -lhe prejudicial aquilo que torna o corpo menos apto para isto (Espinosa, 1992, part IV, prop. 38). Nesse sentido, numa conduta tica que nos aproximamos da realidade complexa. A tica a que estamos nos referindo da ordem do singular, que no se submete a valores externos como o certo e o errado ou, como o bem e o mal, que nada mais so do que modos de imaginar, nos quais a imaginao afetada diversamente (Espinosa, 1992, part I, apnd.). O bem, no sentido tico, no uma qualidade fsica ou metafsica, nem uma espcie de ente parte: o bem apenas o esforo para perseverar no ser (Carvalho, 1992, p. 14). Uma conduta tica se d na existncia, a conduta humana diante da vida e representa a busca de uma forma de estarmos ativos no mundo. A tica a confirmao plena da correlao, seno da subordinao, do pensamento puramente terico finalidade prtica. (Carvalho, 1992, p. 23). Assim, uma concepo tica articula teoria e prtica e implica uma reflexo sobre nossas aes, de forma que nos seja possvel viver um mximo de momentos ativos e criativos, com um mximo do que Espinosa chama de afetos alegres. A conduta tica parte do conhecimento, da capacidade de sermos causa eficiente de nossa prpria fora de ao e, no, de sermos causa de outros (alienus) ou de seguir passivamente causas externas. Sermos os causadores, os responsveis por uma ao que surge na singularidade no implica desobedincia de regras, pois estas so necessrias nossa vida, mas, implica no deixar que outros, ou as regras, isoladamente, determinem nossas aes. Conhecer, para Espinosa, o caminho para aumentar nossa potncia de agir, saber mais sobre ns e estarmos mais ativos e criativos. No conhecer nossas causas internas nos distancia de nosso impulso espontneo para perseverar na existncia, do movimento intrnseco a ns (conatus) e nos coloca numa posio vulnervel, numa submisso s causas externas e, assim, diminui nossa potncia de agir, nos tornando passivos. A atividade est ligada potncia. J a passividade nos leva servido, quando, sem conhecimento de ns

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mesmos, no percebemos que as causas internas foram substitudas pelas externas. Sem conseguirmos reconhecer, no poderio externo, aquele que nos domina, ficamos refm de outrem, escravos sem saber que o somos. Estaramos assim reagindo, alienados de ns, passivos, sem usar nossa capacidade ativa e criativa, o que diminui nossa potncia e nos impulsiona a um crculo vicioso de dependncia, muitas vezes, dependncia daquele ou daquilo que nos domina.
A marca da servido levar o apetite-desejo forma limite: a carncia insacivel que busca interminavelmente a satisfao fora de si, num outro que s existe imaginariamente. (...) A servido (...): do lado do indivduo, (...) coloca-o em contradio consigo mesmo, levando-o a confundir interior e exterior, perdendo a referncia de seu conatus e, justamente por isso provocando a prpria destruio (...), do lado da vida intersubjetiva, torna cada um contrrio a todos os outros, em luta contra todos os outros, temendo e odiando todos os outros, cada qual imaginando satisfazer seu desejo com a destruio do outro, percebido como obstculo aos apetites e desejos de cada um e de todos os outros. (Chau, 2000, p. 17).

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O conhecimento que associa a razo vivncia constitui um caminho para a liberdade. No podemos ser totalmente livres, mas podemos ser otimamente livres se estivermos mais ativos na vida. Seremos mais livres quanto mais compreendermos nossas necessidades singulares quando se apresentam na vida, na corporeidade, atravessadas, inevitavelmente, pelas regras de cada poca. Esse conhecimento tende a aumentar nossa potncia de agir. No Tratado Poltico Espinosa (1979) escreve que (...) nada do que atesta impotncia no homem se pode relacionar com a sua liberdade. Quanto mais consideramos que um homem livre, menos podemos dizer que ele no pode usar da razo e preferir o mal a um bem. Nesse sentido, a liberdade no um livrearbtrio nosso em relao s leis divinas ou natureza ou ao nosso prprio corpo; no uma questo de comer ou no comer a ma do conhecimento. Em primeiro lugar, a liberdade no se confunde com um poder voluntrio para escolher entre alternativas, ou para fazer ou deixar de fazer alguma coisa; em segundo, se a impotncia no pode ter a potncia da liberdade como causa, ento no podemos atribuir

a esta o pecado original ou a culpa originria do homem (Chau, 2000, p.15). Quanto mais intuitivamente cientes das causas que nos afetam, mais poderemos estar ativos, quanto menos cientes delas, mais estaremos ao sabor do acaso no ambiente em que vivemos (um mar de acasos). A racionalidade espinosana se aproxima da complexidade na vivncia da razo, que pode aumentar nossa potncia na realidade, aumentar a possibilidade de estarmos ativos e de estarmos mais livres no mundo. A obesidade e a conduta tica no conflito Segundo o modelo cartesiano, a obesidade tratada hoje, geralmente, segundo uma mecnica, como se o corpo fosse uma mquina de entrada e sada de energia e como se a vontade da pessoa gorda, seu livre-arbtrio, devesse moralmente determinar sua adeso dieta prescrita. Segundo a dicotomia entre corpo e mente, a mente ditaria ao corpo o que este deve fazer, cabendo a esta parte da pessoa, sua res extensa, portanto, submeter-se sua outra parte, res cogitans, usando para isso sua fora de vontade, disciplina e arbtrio. Caso o obeso no siga a dieta, estaria como que no lugar do pecado, na servido da alma perante a compulsividade do corpo. Em nenhum momento, neste modelo, a pessoa vista como una, vivenciando uma dissociao e um conflito de fatores simblicos, muitas vezes contraditrios e paradoxais, cuja complexidade no se reduz a uma luta dicotmica entre corpo e razo. Este conflito, no entanto, pode representar um movimento de vida capaz de aumentar a potncia de agir. Um embate comum na realidade do corpo gordo comer porque gosta ou no comer porque engorda capaz de se agravar com a normalizao nutricional, na forma racionalizada de uma ingesto recomendada, se esta no se articular com a realizao pessoal do indivduo em questo. Tanto uma normalizao nutricional como uma realizao pessoal, isoladas uma da outra, escamoteiam a interao real do corpo com o ambiente em que vive. As recomendaes de ingesto diria de nutrientes representam uma alimentao saudvel se e somente se, possibilitam transformaes, inerentes sua

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corporeidade, em prol do aumento de sua potncia de agir. Em outras palavras, alm de conhecer a razo da norma, preciso conhecer a si prprio para que, tendo cincia de suas necessidades, o indivduo possa adaptar as regras prpria existncia, sem corromper-se ou criar exigncias impossveis de serem vivenciadas de forma potente e saudvel. Uma relao tica entre alimentao, corpo e sade, deve tornar as regras nutricionais flexveis s necessidades da corporeidade singular, uma adaptao que se d na realidade, com a compreenso das vivncias do indivduo, com o devido conhecimento e reflexo sobre seus conflitos internos e ambivalncias. H neste embate uma adaptao das regras, que se propem a manter um corpo em boas condies de funcionamento, mas, que nem sempre coincidem com a necessidade da corporeidade. Uma obedincia rgida s recomendaes nutricionais, certamente restringiria as possibilidades de integrar o conhecimento racional realidade complexa do indivduo e reforaria o mito de que a problemtica da obesidade se resolve, simplesmente, na elaborao de uma dieta que cumpra as recomendaes nutricionais. A nutrio moderna racionalizou as dietas na necessidade urgente de salvar vidas e garantir braos fortes para o trabalho (Rosen, 1994). A fome no mundo excede os limites da compreenso, constituindo um estado de emergncia. No entanto, para elaborar polticas de alimentao preciso compreender que a relao entre alimentao, sade e corpo vai alm da capacidade que o alimento tem de fornecer energia e nutrientes e, vai alm do direito constitucional que temos ao alimento nosso de cada dia. A alimentao possui tambm um significado vital de fraternidade e confiana no ambiente em que vivemos. O sufocamento desse aspecto vitalizador do alimento o que pretendemos evitar quando aplicamos os princpios ticos no aparente impasse comer porque quero ou no comer porque engorda. Uma conduta tica pode sustentar, em um sistema nutricional racionalizado, a abertura de um espao para a imprevisibilidade da vida. Um espao de acolhimento da tenso gerada na contraposio do prazer de alimentar-se e a obedincia s recomendaes nutricionais. Esse conflito pode, positivamente, envolver o incio desordenado de uma nova reapropriao criativa do

ambiente. J a interdio, ao contrrio, pode adoecer um corpo, pois pode representar um impedimento da expanso do movimento intrnseco do sujeito, o conatus, causando uma diminuio de sua potncia de agir, na forma da culpa, da depresso, da angstia, no sentimento de que se est aqum de um ideal, no s de corpo como tambm de conduta e de fora de vontade. As normas nutricionais, culturalmente impostas, quando agregadas pessoa como causas externas, fragmentamno, enfraquecendo-o. Se as regras impostas nas determinaes nutricionais no se constiturem eticamente, no promovero a expanso de seu movimento e assim no promovero corpos potentes e ativos, mas corpos obedientes e passivos. Numa conduta tica, o desafio da nutrio a transformao das regras racionais, concebidas genericamente, num bem para aquele corpo singular, daquela pessoa singular, em seus aspectos fisiolgicos e psquicos, tanto objetiva quanto subjetivamente. Da a importncia em se conhecer aquele corpo bio-psico-social na realidade, pois regras nutricionais, quando isoladas da vida, sero impotentes em si. Quando as causas so internas, quando o indivduo participa da determinao de sua dieta singularizada, constituda sem idealizaes, geram um sentimento de aprovao da vida, uma aceitao dos problemas como ponto de partida para uma transformao real. Na ambivalncia do comer ou no comer, estar ativo implica uma deciso em prol de uma realizao, seja ela comer ou no comer, com cincia que a vida traz em si, inevitavelmente, prazer e desprazer. Uma deciso saudvel envolve o maior prazer e o menor desprazer, dentro da realidade atual da pessoa. Fronteiras conceituais da obesidade Assumir que um indivduo est saudvel no o mesmo que dizer que ele normal. Com a construo de padres de normalidade, a medicina assumiu a definio de sade como uma normalidade e o de doena, como uma anormalidade, estabelecendo com a fisiologia, uma polaridade entre o normal e o patolgico, onde o indivduo ou no normal, de acordo com um padro ideal de sade (Canguilhem, 1995). Como observa Elias (1994)

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grande parte do que chamamos de razes de moralidade ou moral preenche as mesmas funes que as razes higiene ou higinicas para condicionar as crianas a aceitar determinado padro social. A modelagem por esses meios objetiva a tornar automtico o comportamento socialmente desejvel, uma questo de autocontrole, fazendo com que o mesmo parea mente do indivduo resultar de seu livre arbtrio e ser de interesse de sua prpria sade ou dignidade humana. (1994, p. 153)

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A medicina tem se baseado muito mais em padres universais de idealizao do ser humano, do que na condio humana de vida dos corpos, na sua relao com um ambiente particular. Segundo Foucault (1998, p. 229), a medicina simula uma pseudo inovao onde o pensamento contemporneo, acreditando ter escapado a ele [ao positivismo] desde o final do sculo XIX, nada mais fez do que redescobrir, pouco a pouco, o que o tornara possvel. Na realidade, doena alguma est isolada no sujeito, mas dependente do ambiente. Uma normalizao dos corpos construda na racionalidade mdica, de acordo com um padro universal de corpo humano, institudo como o melhor para a espcie. Um padro, porm, no o corpo na realidade, mas uma reproduo deste num suposto outro corpo universalmente idealizado, onde o universal passa a servir de parmetro de julgamento da essncia dos particulares, podendo passar assim a desqualific-los em sua existncia presente, que, no entanto, a nica realidade concreta (...)[e] o faz na forma de mistificao, crena, ideologia e poder em nome de uma verdade transcendente ao real imanente (Martins, 1999, p. 98). A medicina social surgiu ao traar regras de comportamento impostas pelo policiamento mdico; depois, com a medicina cientfica, a construo de um tipo de corpo ideal/normal, em condies experimentais, de laboratrio, incutiu nos corpos uma forma de controle da vida (Rosen, 1980).
Atualmente, o crculo de preceitos e normas traado com tanta nitidez em volta das pessoas, a censura e a presso da vida social que lhes modela os hbitos so to fortes, que os jovens tm apenas uma alternativa: submeter-se ao padro de comportamento exigido pela sociedade, ou ser excludos da vida num ambiente decente. A criana que no atinge o nvel de controle das

emoes exigido pela sociedade considerada como doente, anormal, criminosa ou simplesmente insuportvel. (Elias, 1994, p.146).

Hoje, podemos questionar essa construo de uma normalidade, pois na realidade, o corpo normal no , necessariamente, o corpo saudvel, mas um estado ideal dos rgos, segundo um padro ideal de vida da espcie, que a medicina deseja estabelecer. Enquanto o conceito de normalidade designa tanto o estado habitual dos rgos, quanto seu estado ideal, a normatividade, segundo uma conceituao canguilhemiana (1995), designa a autoproduo dos corpos na realidade complexa. A capacidade de um corpo para agir, tambm sua capacidade normativa, isto , sua capacidade para criar normas interativas com o ambiente. Assim sendo, um indivduo doente, no por ausncia de norma, mas por dificuldade de variar as normas para perseverar o seu ser. O indivduo doente segue normas tambm, mas normas pouco ou nada flexveis, num corpo passivo e impotente para fazer variar suas prprias normas. Na impotncia, a pessoa se torna incapaz de variar suas normas quando se expe ao ambiente. No contexto atual, a obesidade recebe duas definies: uma como um estado desviante dos padres de normalidade na cultura e, nesse sentido, o corpo gordo definido como algo anormal, porque difere da idia de indivduo normal, construda em um contexto social, no qual se atribui normalidade a um modelo de corpo com uma silhueta magra e/ou musculosa; e outra, a obesidade pode ser compreendida como uma doena, se ela representa um fator gerador de impotncia do corpo e reduz as possibilidades de vida de um indivduo no ambiente que lhe prprio. Um corpo gordo, na realidade, pode estar num movimento saudvel e aumentando sua potncia de agir. Se por um lado o corpo gordo se desvia dos padres vigentes de beleza, ele no se desvia, contudo, de sua prpria natureza humana, de sentir e perceber o ambiente sua volta, afetando-se com as impresses do mundo. nesse sentido que uma classificao antropomtrica no avalia a sade nos corpos. Primeiramente, pelo carter esttico e pontual da antropometria, que perde a percepo do movimento; e depois, porque reduz o corpo ao visvel e mensurvel,

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ignorando o psquico, o dinmico, o vivencial, isto , a condio efetiva daquele corpo junto vida e s suas atividades e projetos. O corpo no somente aquilo que se pode ver e, aquilo que se v, nem sempre admite medidas. Segundo Santana (1997, p. 254), Jos Gil define o espao do corpo atravs de uma passagem: Espao do corpo isto: se voc est imerso numa grande banheira tomando banho, cai uma aranha sobre a superfcie da gua perto de seus ps e voc se arrepia! Aquela aranha no lhe tocou, mas tocou. Ora, a cada instante, nesse instante voc tem um espao do corpo: o seu corpo vai alm do corpo prprio, para alm dos limites do seu corpo. A sade de um corpo se d na relao com seu meio. Um ambiente competitivo, com altas expectativas de adequao a um corpo modelar, pode criar muitos problemas de realizao pessoal para uma pessoa. O corpo humano busca aproximaes e afetos no espao social, que aumentem sua potncia de agir. Embora o espao social possa ser desfavorvel expresso e realizao da singularidade das pessoas, impondo, por exemplo, o modelo magro de beleza, desfavorvel ao corpo gordo, , por outro lado, nesta realidade que aquele corpo existe e, portanto, num certo sentido, neste espao, que o corpo pode estar ativo e potente. Entendido desta forma, o conflito passa a ser no mais entre diminuir a potncia do corpo, ao comer demais ou, diminuir a potncia do corpo ao no comer, para adequar-se causa externa do modelo magro, mas sim, entre aumentar a potncia do corpo ao comer menos ou, aumentar a potncia do corpo assumindo ter um corpo potente, mesmo que seja gordo. O estetismo, no sentido que lhe d Maffesolli (1996), atravessa a corporeidade porque o sensvel irreprimvel, embora no caso do corpo gordo, o carter sensvel do corpo e da existncia seja, em geral, marginalizado, como se fosse um privilgio dos corpos adaptados aos padres; como se o pecado da existncia na carne fosse um privilgio dos que no pecam pela gula. As emoes e sensaes so um assentimento de vida, seja por um corpo gordo ou magro, enquanto o medo das aparncias, ao contrrio, constitui uma forma de desprezo ao mundo. A esttica dos corpos pode ser causa adequada e aumentar a potncia de agir de um corpo, pois suscita uma diversidade de emoes, que constituem seu ambiente afetivo.

O estetismo, no sentido que estamos utilizando, denuncia a moralizao que torna os corpos tanto os que se incluem no padro quanto os que dele se excluem impermeveis s emoes, a moralidade que limita o gesto espontneo (Martins, 2000). O desejo de reconhecimento pelo outro, pode sim, representar uma potencialidade capaz de criar uma possibilidade de realizao na busca de afetos e de convivncia com outras pessoas. preciso afetar-se para estar ativo. Bloquear os afetos tambm bloquear a percepo de nossas necessidades. Os dilogos que se do, no que diz respeito corporeidade, entre sade, normalidade e esttica, so um modo de reconhecermos as mltiplas exigncias de um corpo em sua afirmao no ambiente. A desenvoltura social e mesmo a seduo so construdas na relao corprea com o ambiente e guardam a imprevisibilidade caracterstica do humano. Cada indivduo tem um modo prprio de reagir s impresses e s agresses do ambiente, diferente em cada momento de sua vida. A corporeidade pode manter com o ambiente uma plasticidade que gere novas configuraes e novas expresses, na reapropriao que o ambiente oferece. A enfermidade representa o sufocamento e a impossibilidade do corpo reapropriar-se de seu ambiente, independentemente das medidas do corpo. A questo da obesidade: consideraes finais A contemporaneidade traz novas exigncias de transdisciplinaridade e de aproximao com a realidade complexa, onde uma concepo dicotmica do corpo separado da mente se torna um obstculo. O entendimento da obesidade como um excesso de gordura que, positivamente, se localiza na metade material do corpo humano, tem se mostrado cada vez mais limitante no enfrentamento dessa problemtica. Reduzir o problema a uma questo fsica, restringe as possibilidades teraputicas no campo da nutrio. A desconstruo de uma definio determinstica de obesidade, expressa na idia de um balano de energia positivo e sua reconstruo no mbito da complexidade, podem contribuir para operacionalizar teraputicas e polticas de nutrio na rea da sade, sob um novo olhar. A razo espinosana pode contribuir nessa construo

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porque prope uma forma de conhecimento racional que no se destaca do corpreo, do vivencial e do sensvel, nem tampouco, dita verdades ao corpo, como ocorre no cartesianismo. nesta racionalidade vivenciada que somos capazes de nos conhecermos sem idealizaes. Esse conhecimento no se d isolado das variveis do mundo dos sentidos, nem distante da desorganizao do real imanente. No compreendemos o corpo humano afastado dele, mas, quando racionalizamos aquilo que vivenciamos. A corporeidade se constitui na cultura encampando subjetividades e se atualizando nas transformaes do mundo. O ambiente tem um papel decisivo na problemtica da obesidade, onde o corpo transforma e transformado pelo ambiente a partir de sua existncia. Conhecer, nesse sentido, representa uma possibilidade, por exemplo, de discernir entre as supostas necessidades que so criadas e impostas pela mdia na venda de produtos e fetiches e, as necessidades singulares de cada indivduo. Poderamos dizer, num sentido tico, que esse conhecimento se constitui hoje como um instrumento capaz de denunciar os fetiches e os implantes que tentam anular a natureza humana singular, denunciando um aprisionamento do sujeito em ideais de sade distanciados de um corpo singular, efetivamente potente e, portanto, saudvel a seu modo. Assim, a construo de um conceito de obesidade demanda uma concepo tica da vida. Uma tica que no se separa da corporeidade, no implica nem uma justia nos corpos, nem uma justeza nas dietas, mas um conhecimento das causas que aumentam nossa potncia de agir. Conhec las, representa aumentar as possibilidades de estarmos ativos na vida. No conhecer as causas internas, que nos afetam, nos coloca vulnerveis e submissos s causas dos outros e a padres supostamente universais, o que diminui nossa potncia de agir, nos tornando passivos diante da realidade. Essa passividade pode levar servido. Estaramos, desse modo, escravos das dietas, na obedincia de normas que no so as nossas, que no so fruto de nossa normatividade prpria, de nossa atividade e criatividade na interao com o mundo. Quando seguimos obedecendo s normas externas a ns, nutrimos a crena de que a satisfao est fora de ns, o que diminui nossa potncia e nos enreda em um crculo de dependncia. Na alienao de si, o controle social pode levar

a corporeidade a vivenciar e alimentar contradies comer ou no comer e dissociaes imaginrias. Uma conduta tica libertadora, pois a liberdade de um corpo no est em poder escolher os alimentos, mas em aproximar as recomendaes nutricionais s necessidades que desenvolvemos na relao com o ambiente. Nesse sentido, o corpo no livre quando come o que supostamente quer, mas livre quando consegue, conhecendo suas necessidades, realiz-las e quer-las. Isto , querer o que aumenta sua potncia de agir. A necessidade no existe nem s no corpo, nem s na mente, mas no corpo humano inteiro, na unidade somatopsquica que somos. Entender a necessidade de um corpo humano como somente do corpo ou somente da mente um caminho para a escravido e para a reatividade. Uma conduta tica no representa a substituio de um modelo de corpo magro por outro modelo gordo. A impotncia de um corpo gordo no est no reconhecimento dos modelos padronizados de beleza, mas no desconhecimento das necessidades prprias de sua corporeidade singular. A necessidade em seguir um modelo ideal de corpo magro, j uma reao a uma causa externa que diminui sua potncia de agir. O conflito entre comer (porque quero) ou no comer (porque engorda) representa uma tenso vivenciada por um corpo gordo, mas traz, em si, uma possibilidade de transformao. Exercitamos, na tenso existente entre as recomendaes nutricionais modernas, impostas como um controle social e, a realizao pessoal, a utilidade da tica. O conflito representa uma possibilidade de transformao; assim, entendemos que reprimir um conflito alimentar, no resolv lo e que a represso pode gerar doenas. O corpo no decide pelo prazer ou pelo desprazer, mas por um mximo de prazer e um mnimo de desprazer. Deste modo, muitas vezes optar por no comer uma guloseima no negar o prazer, mas optar pelo mnimo de desprazer. Numa tentativa de aproximao com a realidade, construmos duas definies para obesidade. Tanto uma como outra envolvem o corpo com o ambiente. A obesidade pode ser compreendida como uma doena, quando representa um fator gerador de impotncia do corpo, em relao ao ambiente que lhe prprio. Na impotncia a pessoa fica passiva quando

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se expe ao seu ambiente, diminuindo sua potncia de agir. Nesse sentido, defendemos que mesmo um corpo gordo pode, na realidade, estar num movimento saudvel, se no compromete sua potncia de agir. Nessa concepo, uma classificao antropomtrica, isoladamente, no capaz de avaliar a sade nos corpos, pois foraclui a interao do corpo com o ambiente. Por outro lado, a obesidade pode ser definida como um desvio do padro vigente de normalidade, que se baseia em um modelo magro e musculoso de corpo. Um corpo gordo concebido como algo anormal, em uma cultura contempornea que institui um modelo de corpo magro como uma imagem ideal de corpo. A idia de indivduo normal est construda a partir de mdias da espcie humana e do imaginrio coletivo, determinada em um contexto social onde nossa cultura atribui normalidade a um modelo idealizado social e culturalmente, com medidas antropomtricas pr determinadas. Em relao ao modelo de corpo intitulado de normal, o corpo gordo se torna, na verdade, desviante. No entanto, se ele se desvia dos padres de beleza, ele no se desvia, contudo, de sua prpria natureza e capaz de sentir e perceber o ambiente a sua volta, afetando-se com as impresses do mundo e, caso o faa de forma ativa e potente, seria, neste sentido, saudvel. Assim, defendemos o estetismo, no sentido de um assentimento de vida. Embora o modelo magro de beleza seja desfavorvel ao corpo gordo, na realidade sensvel do mundo que um corpo magro ou gordo pode estar ativo e potente. O mito do sucesso profissional e amoroso, a partir de um modelo idealizado de beleza, desmistificado na vida real e singular de cada um, na realizao efetiva de cada corpo. A esttica dos corpos pode aumentar a potncia de agir de um corpo, pois envolve emoes, sensaes e sentimentos que constituem um ambiente afetivo real e no imaginrio. A sensibilidade da corporeidade que se coloca no estetismo, promove encontros entre as pessoas, compartilha afetos e celebra isso numa vida social ativa. O estetismo, nessa perspectiva, amoral, pois permeia uma vivncia cotidiana dos corpos, sendo assim contrrio marginalizao que a sociedade e os padres difundidos pela mdia impem, sobretudo, ao corpo gordo, como se este fosse incapaz de emoes e sensaes.

Conhecendo a ns mesmos, a nossas necessidades, somos livres para buscar os ambientes e as formas mais adequadas para realiz-las. Assim continuamos receptivos ao mundo, mas selecionamos os ambientes que nos afetam. Na realidade, tanto uma atitude otimista como pessimista, no que diz respeito s transformaes da corporeidade, no so muito mais que perspectivas consoladoras, recalcadoras da realidade do corpo, diante do poder da normalizao e da padronizao. A corporeidade mantm com o ambiente uma plasticidade que traz novas configuraes e novas expresses somente quando h uma reapropriao do ambiente, um processamento singular do que o mundo nos traz. Uma conduta tica deve levar em conta as singularidades e a participao dos envolvidos nas mudanas de um comportamento alimentar. No caso da teraputica, tratar-se- de elaborar um esquema alimentar que respeite as singularidades do indivduo e que seja elaborada de forma conjunta, com sua participao. Uma dieta imposta, cerceia a liberdade das pessoas, escravizando-as. Uma vez passivas, compreensvel que, mesmo inconscientemente, rejeitem a dieta que lhes fora imposta. Ademais, a prpria passividade j implica uma diminuio de sua potncia de agir, constituindose, portanto, em uma forma de adoecimento imperceptvel aos procedimentos convencionais da nutrio, que utilizam a antropometria como instrumento fundamental no tratamento da obesidade. No caso do planejamento de polticas de alimentao, tratar-se-ia tambm de respeitar as singularidades, inclusive culturais e locais e, a partir de estudos das vivncias alimentares dos grupos, planejar aes futuras e estratgias de adaptao dessas vivncias s recomendaes nutricionais, de modo a aumentar a potncia das pessoas, tornando-as mais ativas em seu ambiente. No possvel, por exemplo, considerarmos tico formular estratgias para normalizar a alimentao dos grupos, de acordo com um padro global de alimentos supostamente necessrios, pois entendemos que um modelo de assistncia nutricional tambm escravizaria e diminuiria as potencialidades da comunidade, se no contasse com uma participao ativa dos indivduos e da cultura que a compe. Por exemplo, a diversidade alimentar presente em cada regio, constitui um recurso nutricional que nem sempre

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considerado pelos planejadores, que privilegiam uma alimentao globalizada, muitas vezes por falta de informaes nutricionais a respeito de frutas e hortalias cultivadas e nativas da prpria regio. O mesmo podemos dizer de prticas e servios. O que queremos frisar que o planejamento em sade precisa considerar os recursos nutricionais locais, assim como tambm novas prticas em sade, conhecendo, nestes, suas potencialidades que, muitas vezes, j fazem parte da cultura alimentar da regio e no devem ser pacificadas pela automatizao e generalizao de alguns programas em sade. O conceito de obesidade que procuramos reconstruir nesse trabalho, assim como o enfoque conceitual utilizado para isto, tm diante de si, a nosso ver, um vasto campo de aplicao na elaborao de teraputicas particulares, mas tambm, de prticas de sade e polticas de alimentao para as comunidades, onde a recuperao da histria de cada grupo social pode ser uma estratgia para propostas criativas, capaz de destacar as singularidades das populaes, no campo da alimentao. A racionalidade, nesses termos espinosanos, permite uma compreenso de problemas complexos, como a obesidade, de uma forma tica, levando em conta, ao mesmo tempo, as recomendaes nutricionais e a realidade dos indivduos envolvidos. A avaliao nutricional pode estabelecer novos parmetros alimentares baseando-se tambm na compreenso obtida a partir de uma conceituao da problemtica, estendendo sua percepo do corpo humano para alm da antropometria; por exemplo, no que diz respeito aos aspectos subjetivos de interpretao da normalidade/normatividade das pessoas. No caso especfico da obesidade, so variadas as possibilidades de prescrio diettica, mas que, se isoladas das questes ambientais concernentes vida efetiva do indivduo includos seus aspectos psquicos e simblicos , tendem a se tornar frmulas idealizadas e incuas. A definio de conceitos operacionais promove ainda uma interdisciplinaridade nas equipes de sade, na medida em que facilita a comunicao entre as especialidades, atravessando a todas. A conceituao ultrapassa uma diviso dicotmica entre metodologia quantitativa e qualitativa que, num certo sentido, no se sustenta mais diante da assuno da realidade como complexa.

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SADE/DOENA E TRIANGULAO:
PONTOS DE VISTA E INTER-RELAOES

Fernando Lefevre Ana Maria Cavalcanti Lefevre

SADE/DOENA E TRIANGULAO:
PONTOS DE VISTA E INTER-RELAOES

Fernando Lefvre1 Ana Maria Cavalcanti Lefvre2

Introduo: a sade/doena e os pontos de vista A noo eminentemente sociolgica de pontos de vista, entendida, literalmente, como lugar de onde se v, ajuda a compreender que o sentido das realidades, numa sociedade, sempre fortemente influenciado pelo espao de onde os atores sociais correspondentes geram estes sentidos; e que a descrio deles equivale no apenas identificao dos pontos de vista mas, tambm, ao entendimento das vrias relaes entre eles. Trs pontos de vista Assim pensamos nossa hiptese - que, no mundo atual e, particularmente, entre ns brasileiros, a sade/doena3 pode ser entendida a partir de trs pontos de vista: do ponto de vista dos indivduos (PVI), do ponto de vista do sistema produtivo (PVSP) e do ponto de vista tcnico (PVT).
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Porque estas trs abordagens foram as escolhidas?

Prof. Titular da Faculdade de Sade Pblica da USP . Av. Dr. Arnaldo 715. So Paulo. flefevre@usp.br
Doutora em Sade Pblica pela USP . Professora comissionada na Faculdade de Sade Pblica da USP . Av. Dr.
Arnaldo 715. So Paulo. alefevre@usp.br
3 Pretendemos discutir aqui a sade/doena que, na falta de uma denominao mais adequada, chamaremos
de sade/doena individual para distingi-la da sade pblica/coletiva que, a nosso ver, pelas suas especificidades,
merece uma discusso parte.

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Porque a hiptese central dos autores a de que, hoje, entre ns, de um ponto de vista sociolgico, o entendimento da sade-doena ganharia muito se ela fosse vista, basicamente, como uma mercadoria (servio) que se vende, um estado que se tem e uma tcnica que se pratica. Pode-se argumentar: mas, entre ns, a sade, do ponto de vista legal, no um Direito do cidado (e um Dever do Estado)? Sem dvida, mas mesmo sem entrar a fundo na discusso da eficincia e eficcia, entre ns, deste Direito, no parece abusivo dizer que se trata do direito mesma (tambm sem entrar no mrito da qualidade intrnseca) mercadoria ou servio, apenas custeada pelo Estado, de vrias formas. Assim, apesar de no nos mover, de modo algum, qualquer propsito de abarcar toda a sade/doena, na escala individual, neste tringulo, acreditamos que ele pode fornecer um modelo razoavelmente inclusivo que, em si e pelos seus desdobramentos, d conta de boa parte do sentido circulante nesta rea da vida humana, entre ns brasileiros na atualidade. Este modelo triangular busca instituir o que se acredita serem, hoje, 2005, pelo menos em sociedades urbano industriais como a brasileira, os atores sociais/institucionais protagonistas do drama ou do macro discurso da sade/ doena. Estes atores, pelo seu lugar na sociedade, so compelidos a eleger um interesse primordial a ser defendido em relao sade/doena, que institui, para cada um deles, um sentido dominante ou preferencial para esta sade/doena. Assim, do ponto de vista dos indivduos, sade pode4 ser vista como uma estado de um ou de uma parte de um corpo/mente de um indivduo ou de uma coletividade de indivduos, percebida por estes indivduos ou como bem estar, ou ausncia de mal estar, ausncia de doena, ausncia de sintomas ou como qualquer outro estado considerado saudvel, com base em algum critrio socialmente compartilhado, que os indivduos podem ter, ser, estar, ou obter.
Usa-se pode aqui e no texto, como um todo, para indicar, claramente, uma escolha por poder em lugar de ser, uma vez que no se pretende, de modo algum, esgotar a atribuio de sentido sade-doena pelos atores sociais.
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Deste ponto de vista, portanto, sade pode ser percebida como uma sensao: os indivduos sentem que so saudveis, com base em uma srie de indicadores socialmente disponveis (se raramente ou nunca tiverem sido acometidos de doenas graves, se estiverem permanentemente dispostos para o trabalho, etc.). De forma semelhante, estes indivduos esto sentindo-se saudveis quando as sensaes correspondentes, de base igualmente social, tm como referncia um espao de tempo mais delimitado.5 Do ponto de vista do sistema produtivo, sade pode ser entendida como uma mercadoria que incorpora nela um valor intrnseco a ser reificado, cujo uso ou consumo implica entrar na posse do valor. De um ponto de vista tcnico, a sade pode ser compreendida como um tipo especfico de poder ou autoridade, no sentido sociolgico do termo (Bourdieu, 1982), que chamamos PPS, ou Poder de Proporcionar Sade (Lefevre, 1998), poder esse de que so investidos um conjunto de profissionais ou especialistas para: conceituar sade e doena; prescrever sade (comportamentos saudveis); produzir (ou mais comumente, aplicar), tecnologia e aes, as quais, por sua vez, produziro um efeito de sade em indivduos e populaes e, finalmente, poder para atestar que determinada pessoa ou comunidade ou est saudvel ou doente. Evidentemente este PPS no novo, pode-se at dizer que acompanha, desde sempre, o homem vivendo em sociedades organizadas. O que muda, decisivamente, que hoje tal poder, entendido como responsabilidade de um conjunto de atores sociais investidos, pela sociedade, de autoridade para proporcionar sade e/ou no-doena, ganha fora de realidade, j que no encontra mais em Deus ou no sobrenatural seu fundamento, mas, na Cincia e Tecnologia; apesar de se reconhecer que religio e o sobrenatural continuam, ainda hoje, a manter considervel fora, entre ns e alhures, como fundamento de um sem nmero de aes de oferecimento e busca de sade ou no-doena.
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Ver a respeito a diferena entre ser e estar saudvel (Lefvre, 1999). Em paralelo, seria curioso saber se ou como este sentimento de estar com sade se expressa nas pessoas que vivem em culturas cujos idiomas no permitem diferenciar claramente ser de estar.

A sade/doena, em resumo, tem, hoje em dia, entre ns, trs principais atores protagonistas: o Indivduo, o Sistema Produtivo ou Mercado e a Tcnica, o que faz com que seja entendida e vista, respectivamente como Sensao (S), Mercadoria (M) e Poder (P), acrescidos estes sentidos de um sem nmero de sentidos derivados das diversas inter-relaes S-M-P . H, portanto, trs grandes macro-interesses em disputa no jogo (no sentido que Bourdieu confere ao termo) da sade/doena, hoje, entre ns:
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Sentir sade Interesse do Indivduo Vender sade como valor reificado Interesse do Sistema Produtivo ou Mercado Exercer o poder de proporcionar sade Interesse do Tcnico ou Profissional ou Especialista em Sade

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A sade/doena concreta , sempre, do ngulo de seu funcionamento social real, uma resultante de todo tipo de inter-relaes de interesses e sentidos, envolvendo estes atores sociais/ institucionais. Inter-relaes: alguns exemplos Estas trs perspectivas do lugar, pois, a um sistema dinmico de relaes, onde os pontos de vista se inter influenciam das mais variadas formas. Apresentaremos e discutiremos aqui, a ttulo de exemplo, algumas inter-relaes possveis entre os distintos pontos de vista. Vale frisar que a nossa opo pelas inter-relaes tem em vista evitar falar de ou postular relaes fortes de determinao, de causa e efeito: acreditamos, de fato, ser muito mais prudente, no caso da sade-doena, pensar em inter-influncias de pontos de vista.

Primeira Inter-Relao (PVI ? PVSP): existe uma mais sade como um desejo insuflado pelo sistema produtivo No que toca sade, no seria equivocado dizer que os indivduos so, entre outras coisas, feixes de vontades ou de desejos inconscientes, a serem mobilizados pelo sistema produtivo. Como assinalado alhures (Lefvre, 1997) a sade pode ser entendida, tambm, como um desejo, no no sentido de que as pessoas espontaneamente desejem sade mas, sobretudo, como um querer, digamos virtual, a ser, no contexto histrico das sociedade de consumo atuais, insuflado, organizado e at manipulado, de fora, pela publicidade e demais tcnicas de convencimento, enquanto braos simblicos do sistema produtivo. Podemos chamar esta sade desejada de mais sade ou sade elstica, para distingui-la da sade simplesmente, entendida esta ltima como uma espcie de ponto zero, abaixo do qual o indivduo est doente. Estas mais sade e sade elstica sugerem a existncia de um pacto implcito entre, dois interesses, o dos indivduos que desejam sempre mais sade e o do sistema produtivo como um todo, que espera (e precisa) vender sempre produtos e servios de sade ensejando a proposta mercadolgica de flexibilizar a idia de sade, liberando-a de seu engessamento bio-mdico. Esta flexibilizao da sade pode ser externa, quando se busca vender sade fora do campo estritamente ou legalmente sanitrio, procurando, assim, expandir as fronteiras do mercando, fugindo dos controles ou vigilncias legais e corporativas; ou interna, quando o objetivo cooptar os profissionais de sade para flexibilizarem a rigidez das recomendaes mdicas ou tcnicas. A flexibilizao externa pode facilmente ser observada, entre ns e alhures, na emergncia atual e progressiva de uma massa enorme de produtos e servios como vitaminas, alimentos, roupas, spas, servios de malhao, etc., que ingressam a cada dia no mercado de sade.

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Exemplos tpicos de flexibilizao interna podem ser representados pelo assim chamado uso e prescrio recreativos de remdios tipo Viagra e de plsticas estticas e afins (ambos, comportamentos largamente difundidos, hoje, entre ns, brasileiros) que no so, explicitamente, sade negativa, isto no doena, mas um acrscimo ou surplus de sade, desejados por e, prescritos para, indivduos saudveis. Isto, evidentemente, no impede que se pense, ao longo do tempo, num possvel deslizamento que, mais ou menos patrocinado, tolerado ou at mesmo incentivado pelos profissionais de sade, levaria os indivduos a passarem a ver esta mais sade como algo imprescindvel, ou seja, como sade propriamente dita e, conseqentemente, sua ausncia como doena. importante notar que, na histria da humanidade estes desejos, em si mesmos, nada tm de novo; o que muda, hoje, que eles passam a ser administrados por profissionais de sade (mdicos, nutricionistas, psiclogos, etc.), na qualidade de aes, servios, produtos, processos, embasados em cincia e tecnologia. Como conseqncia, impulsos outrora carregados de culpa ou pensveis apenas no plano da fantasia, so hoje legitimados, passando a ser vistos como coisas saudveis, ou seja, no apenas como aspiraes perfeitamente admissveis, mas tambm, mais maquiavelicamente, como estados sem os quais os indivduos passam a ser vistos como quase-doentes: homens acima da faixa dos 50, cuja performance sexual naturalmente decresce, passam, sutilmente, a se sentirem quase-doentes, sendo incitados por uma espcie de publicidade corporativa 6 a consultarem seu mdico, com vistas a restabelecer sua sade sexual; por sua vez, mulheres na mesma faixa tambm so incitadas, pela publicidade e pela medicina, a reporem no organismo os hormnios que naturalmente no produzem mais, sob pena de adoecerem de menopausa.

A este respeito vale mencionar um, o folheto envolvendo o tema da chamada disfuno erctil colhido pelo autor em 2005 em uma prestigiosa unidade de sade de So Paulo pelo seu carter exemplar, que mereceria todo um estudo sobre a inteno medicalizante e o uso descarado e por vezes grosseiro de tcnicas de seduo comunicativa.

Vale ressaltar mais uma vez, que a manipulao do sistema produtivo com a cooperao das corporaes tcnicas s possvel porque esta mais sade toca fundo, no desejo ou impulso humano de ser mais homem, mais mulher.7 Tal perigo ronda tambm a Sade Pblica ou Coletiva, na medida em que esta, para distanciar-se e distinguir-se da Medicina, que tem como objeto a Doena, busca notadamente pela via da Promoo de Sade, aproximar-se de, ou identificarse com uma fantasiosa sade positiva. Ora, assim fazendo, esta sade positiva tende, quase que inevitavelmente, a se confundir com a mais sade propagandeada pelo Mercado. Em nosso livro Promoo de sade: a negao da negao (Lefvre e Lefvre 2004), discutimos em detalhe esta tendncia. Desse modo, cabe colocar que a mais sade representa um estgio avanado e bem sucedido do processo histrico da mercantilizao e medicalizao da vida. Segunda Inter-Relao (PVI?PVT): hoje, para o indivduo, no basta se sentir saudvel, preciso um atestado de sade Nos dias atuais, em muitas circunstncias, em funo do chamado avano do conhecimento cientfico sobre o corpo humano normal e patolgico, os indivduos comuns no tm condies de saber se so saudveis ou esto com sade, j que no basta (ou pode ser enganoso e at perigoso) sentiremse saudveis, bem dispostos para o viver o dia a dia e para o trabalho, j que, pelo fato de serem seres humanos comuns e no profissionais de sade, no tem PPS, ou seja, poder ou autoridade, dado pelo conhecimento cientfico, para saber se so/esto ou no saudveis. Estes indivduos, em muitas circunstncias, para saber se so ou esto saudveis necessitam, ento, de um atestado. Este atestado pode ser formal/legal (para fins de emprego, dispensa de trabalho, etc.) ou para consumo individual, mas sempre uma informao absolutamente necessria para que os indivduos possam viver o dia e para se programarem para o futuro imediato ou remoto.
que pode at, no limite, apontar, porque no, para a quebra das fronteiras de gnero (ver, por exemplo Gebert ) levando a coisas como o travestismo ou mulher sarada na medida em que isto implique em ser mais homem e mulher ao mesmo tempo.
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Acontece que, dadas as contingncias da vida diria nos grandes centros, as dificuldades de todo tipo para acessar os sistemas de sade, a crise de confiabilidade na tecnologia mdica e no tirocnio mdico e, mesmo a mais que legtima vontade dos indivduos de gerirem, com seus recursos prprios, a sua sade, acaba ficando impossvel e mesmo indesejvel estar a todo momento obtendo atestados confiveis de sade. Mas, por outro lado, esta impossibilidade leva os indivduos de hoje a se sentirem, larga e crescentemente, inseguros em relao sua sade. Alm disso, dado o avano cientfico e tecnolgico exponencial da chamada medicina diagnstica, criou-se, em sociedades como a brasileira, com os conhecidos padres de desigualdade de distribuio de renda, um acesso correspondentemente desigual aos meios de obter atestados de sade. Uma reportagem recente da Revista Veja (2003) sobre a concorrncia entre dois gigantes da medicina diagnstica brasileira ilustra bastante bem esta situao, na medida em que indica uma tendncia a nivelar por cima os padres de consumo de servios mdicos desejveis. Terceira Inter-Relao (PVI?PVT): h uma dificuldade estrutural na comunicao entre as autoridades sanitrias/profissionais de sade e a populao/usurios/ clientes/consumidores que decorre de um conflito entre a lgica sanitria, que preside as mensagens e os sentidos emanados do campo sanitrio, e a lgica do senso comum, que preside as mensagens e os sentidos emanados do senso comum8 Populao e profissionais de sade falam e atuam sobre a sade e doena de dois lugares ou espaos sociais bastante distintos. Esquematicamente, podemos dizer que os profissionais de sade falam e atuam sobre sade/doena a partir dos Servios (hospitais, Centros de Sade, clnicas privadas) e/ou das Universidades, e/ou do Aparelho de Estado ligado Sade (Secretarias da Sade, Ministrio da Sade, etc).
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O texto desta terceira inter-relao encontra-se, em parte, no livro Promoo de sade. a negao da negao (Lefvre e Lefvre , 2004)

J as pessoas falam e atuam sobre a sade a partir das suas casas, de seus escritrios, de suas fbricas, de seus servios e at da rua. Nesse sentido, fcil perceber um poderoso conflito na medida em que sendo a sade e a doena entendidas, de acordo com a representao social dominante na poca atual, como um assunto tcnico/cientfico, a fala profissional uma fala legal, socialmente autorizada (Bourdieu, 1982), porque vem de um espao tcnico cientfico (Santos, 1996), enquanto a fala do indivduo comum uma fala leiga, desautorizada, prosaica, ilegal, deseducada, porque proveniente de um espao vivencial, do cotidiano. Sendo assim, no haveria dilogo possvel entre as partes, mas apenas uma prtica discursiva e comportamental regida por relaes assimtricas de mando/obedincia; prescrio/cumprimento da prescrio, podendo estas relaes serem mais autoritrias ou mais gentis (Wilson, 2003) ou, menos participativas ou educativas ou cooperativas, o que no muda em nada sua natureza estruturalmente assimtrica. Mas, um importante componente vem complicar esta assimetria estrutural, deixando, em tese, espao para o seu questionamento. Com efeito, o profissional fala cientfica/tecnicamente sobre um objeto tecnocientfico (a sade/doena), mas este objeto sobre o qual ele fala, com autoridade, se por um lado lhe pertence como objeto cientfico, de estudo e interveno, por outro lhe radicalmente exterior, implicando, alm disso, em alteridade, na medida em que pertence, enquanto sentimento de corporiedade (Turner, 1989), sensao fsica e emocional, objeto de direito, locus de autonomia, pessoa, ao indivduo, dono de seu corpo. Isto , a sade e a doena so objetos tcnicos/ cientficos e de cientistas/tcnicos mas, tambm e contraditoriamente, atributos e condies de sujeitos humanos. Este conflito d nascimento, entre outras coisas, ao campo da Bio-tica como um espao de reflexo e de prtica sobre esta problemtica (Fortes e Zoboli, 2004). Mas, se por um lado, o fato do corpo e da

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corporiedade permitirem, em tese, aos indivduos comuns reapropriarem-se, pelos menos em parte, como sujeitos, da sua sade e da sua doena, ainda sobra amplo espao para a manuteno e reproduo das relaes de dominao anteriormente mencionadas. Temos uma (entre muitas) interessante ilustrao disto num trabalho realizado com estudantes de medicina, sobre as razes por eles alegadas para a escolha do curso de medicina (Ignarra, 2002), quando parte dos estudantes afirmam que sua escolha pelo curso, se deve ao fato da medicina lidar com a vida. Ora, esta representao social, lida de um ngulo menos nobre, pode gerar o seguinte sentido (com seu correspondente efeito prtico): voc, indivduo comum, deve me obedecer porque eu, na qualidade de mdico, tenho a chave da sua vida e, conseqentemente, da sua morte, nas minhas mos tcnicas, o que implica que o exerccio da sua rebeldia ou da sua autonomia como sujeito, ainda que represente uma possibilidade concreta e at um direito pode, na prtica, significar a sua condenao morte ou ao sofrimento. Quarta Inter-Relao (PVSP?PVT): as sociedades contemporneas tendem progressivamente, a gerar grandes quantidades de produtos e servios ditos de sade (consultas mdicas, medicamentos, cirurgias, etc) que podem ou no, pelo seu consumo, produzir os efeitos anunciados ou produzir contra-efeitos no desejados; ou produtos de consumo como alimentos, saneantes, medicamentos, etc., que, pelo seu consumo, podem produzir efeitos no desejados como no cura ou controle, doenas, mal estares, agravos variados, invalidez, morte. Tais sociedades por isso viram-se compelidas a montar ou aperfeioar sistemas pblicos de Vigilncia Sanitria, visando controlar e monitorar estes efeitos positivos e negativos do consumo de produtos e servios, ligados direta ou indiretamente sade-doena. A Vigilncia Sanitria pode, ento, ser vista como uma inter-relao entre o PVST entendido, genericamente, como PPNS (Possibilidade de Produzir No Sade) ou PPD (Possiblidade de Produzir Doena)

e o PVT entendido como PPS sob a forma de PVCS (Poder de Vigiar Consumo de Sade) ou PVCG (Poder de Vigiar o Consumo em Geral) A sade/doena, considerada do ponto de vista do Sistema Produtivo, implica a produo de mercadorias ou servios geradores de sade como anti-doena, por exemplo medicamentos; isto, por sua vez, interagindo com sade/ doena do Ponto de Vista Tcnico, d lugar Vigilncia Sanitria como uma modalidade de PPS (Poder de Proporcionar Sade), que consiste no poder de vigiar sade ou seja, evitar ou controlar os efeitos indesejados do consumo de geradores de sade (=no doena). Por outro lado, de uma forma indireta, o Sistema Produtivo relaciona-se com a sade/doena, na medida em que vrios tipos de mercadorias e servios como alimentos, domos saneantes, inseticidas, etc., bem como os meios ou processos de produo ou ainda os insumos ligados a estas mercadorias ou servios, podem gerar doenas ou agravos de vrias ordens; tambm isto, interagindo com sade/doena do Ponto de Vista Tcnico, d lugar a outra dimenso da Vigilncia Sanitria como uma modalidade de PPS (Poder de Proporcionar Sade), que consiste no poder de vigiar os efeitos sanitrios indesejados do consumo de mercadorias e servios em geral (e, indiretamente, de seus respectivos processos produtivos). Numa pesquisa que vem sendo desenvolvida neste momento (junho de 2005) na qual se busca, entre outras coisas, detectar a conscincia sanitria do vendedor ambulante de alimentos, encontrado um discurso interessante e muito freqente entre eles, de que o principal motivo para preservar a sade e a higiene dos locais onde vendem alimentos o de, com isso, manter ou no perder a clientela. Tal exemplo revela a fora atual da progressiva aceitao pelo PVSP da Vigilncia Sanitria, no como ao meramente legal ou de polcia, mas como uma modalidade PPS em que o sujeito tcnico visto pelo Mercado como um aliado do vendedor, na medida em que capaz, tecnicamente, de agregar valor a um produto, atestando-o como efetivamente saudvel.

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Quinta Inter-Relao (PVSP?PVT?PVI): numa sociedade de consumo, a sade tende a se transformar, progressivamente, em mercadoria/servio gerada pelo sistema produtivo; mas ela , tambm, ao mesmo tempo, um objeto tecno-cientfico subordinado ao conhecimento das cincias da sade, sob o controle e de posse dos profissionais de sade. Isto gera uma situao comunicativa complexa e uma importante tenso comunicacional, com a presena de dois sujeitos emissores das mensagens de sade, falando freqentemente, na mesma mensagem, de dois lugares distintos, para o mesmo destinatrio, que pode ser tanto o paciente quanto o consumidor, ou ainda, as duas coisas reunidas. O indivduo sente dor, o sistema produtivo vende alvio da dor em comprimidos e o profissional de sade avalia, qualifica, define a natureza da dor e prope, em funo disso, uma interveno tcnica diante da dor. H um caminho real, conhecido de todos, para a adequada comunicao entre estas trs esferas: o indivduo que sente a dor comunica este sentimento ao profissional de sade, que qualifica e contextualiza esta informao para, em seguida, indicar um tratamento que pode, eventualmente, consistir em prescrever um medicamento, que por sua vez est disponvel no mercado para ser consumido pelo indivduo. Mas, este apenas um dos caminhos comunicacionais possveis, o da lgica sanitria, de natureza tecnocientfica, que precisa ser socialmente contextualizado, entendendo-se e admitindo-se que ele coexiste em relaes de conflito, cooperao, harmonia, competio, etc., com caminhos comunicacionais alternativos. Por exemplo, com o caminho que comea com o desejo/necessidade do laboratrio farmacutico X de incrementar a venda de seu analgsico e, que segue com a comunicao e o encaminhamento deste desejo para uma agncia de propaganda, que funciona como um apndice ou, na formulao gramsciana, como um intelectual orgnico do sistema produtivo e, que organiza e viabiliza este desejo num discurso eficaz destinado ao pblico-objeto.

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Este pblico, digamos, na situao de expectador de televiso, exposto ao estmulo, cai na rede (ou seja, presta ateno na mensagem) e a decodifica do modo desejado (e induzido na mensagem), que o de identificar-se com o simulacro iconizado na publicidade, o que permite a viabilizao da lembrana do nome do analgsico; com isso est fechado um tipo de cadeia de comunicao na rea da sade, quando o principal interessado e desencadeador do processo o sistema produtivo. Mas, fica claro que este segundo exemplo representa uma violao do caminho real na medida em que ele bypassa o ponto de vista tcnico, estabelecendo uma relao direta (e promscua) entre o ponto de vista do sistema produtivo e o ponto de vista do indivduo, configurando-se, no campo da sade/doena como uma simples relao: produtorconsumidor, deixando a dor de ser vista como uma questo tcnica, da alada e sob o controle do conhecimento cientfico sobre sade/doena. guisa de concluso Evidentemente no cabe aqui, propriamente, uma concluso; o presente trabalho no se encerra em si: busca a permanncia pela via da proposta de modelo (no, por certo do mas de um) que talvez possa ser til para entender a sade/ doena nas formaes urbano industriais ou ps-industriais contemporneas. O modelo triangular postula trs grandes atores sociais e institucionais, o Indivduo, o Mercado e a Autoridade Sanitria, que se intercomunicam a partir de seus lugares/ interesses/pontos de vista maiores, ou seja, respectivamente, Sentir ou Experimentar sade/doena, Vender sade/doena e Atestar ou Garantir sade/doena. Esta intercomunicao leva ao necessrio estabelecimento de uma gama variada de relaes - de consumo, de imposio, de seduo, de encobrimento, de inculcao e tantas outras - entre os atores, da mesma forma que pressupe uma tenso relacional intra-atores - competio mercadolgica pela venda de sade, convergncias e divergncias no interior do campo sanitrio como campo de
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saber e de prtica sobre o que vem a ser sade/doena ou, de como enfrent-las a aceitar o dictak mdico ou cuidar autonomamente da sua sade, etc. O presente modelo busca efetivamente funcionar como modelo, ou seja, constituir uma base ou origem simples, que possa revelar com clareza uma matriz estrutural que, enquanto tal, permita a gerao de todo tipo de desdobramento ou conseqncia, evidenciando com isso, a necessria articulao entre simplicidade e complexidade, ou seja, reconhecendo a inegvel complexidade do mundo, mas entendendo, tambm, que esta no sinnimo de confuso, mas, sim, de desdobramentos ou acrscimos do simples. O uso ou aplicao do presente modelo, no entendimento dos diversos aspectos da sade/doena contempornea poder revelar ou no sua capacidade terico operativa. Referncias
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BOURDIEU, P; PASSERON, JC. A reproduo. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. FORTES, P; ZOBOLI, E. Biotica e Promoo da Sade. In LEFVRE, F .; LEFVRE, A.M.C. Promoo de sade. a negao da negao. Rio de Janeiro: Viera e Lent, 2004. IGNARRA, R. Medicina: representao de estudantes sobre a profisso. Tese (Doutorado). Faculdade de Sade Pblica da USP . So Paulo, 2002. LEFVRE, F . El poder de proporcionar salud. Fermentum, v. 8, n. 22, 1998 LEFVRE, F . Mitologia Sanitria. So Paulo: Edusp, 1999. LEFVRE, F . O medicamento como mercadoria simblica. So Paulo, Cortez, 1991. LEFVRE, F . Sade, este obscuro objeto de desejo. Sade e Sociedade, v. 6, n. 1, 1997 LEFVRE, F; LEFVRE, A.M.C. Promoo de sade: a negao da negao. Rio de Janeiro: Viera e Lent, 2004.

REVISTA VEJA. Edio de 30 de abril de 2003. SANTOS, M. Tcnica, espao, tempo. So Paulo: Hucitec, 1996. TURNER, B. El cuerpo y la sociedad. Mxico: Fondo de Cultura, 1989. WILSON, H.V. Paradoxical porsuits in child health nursing practice: discourse of scientific mothercraft. CPH, v. 13, n. 3, 2003.

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A tiragem desta edio (1.000 exemplares) foi parcialmente financiada pelo


PR-SADE / Ministrio da Sade / Universidade Federal de Santa Catarina

Contatos para aquisio do livro E-mail: gttsaude_salus@yahoo.com.br

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