1) This thesis examines the artistic production of Cornélio Pires and the historical context of Brazil, focusing on the tensions between popular and erudite culture.
2) It analyzes how movements like Regionalism and Modernism helped valorize the culture of rural São Paulo after it faced stigma.
3) Pires used humor in his works to help popular culture penetrate elite spaces and facilitate communication across divisions in Brazilian society.
1) This thesis examines the artistic production of Cornélio Pires and the historical context of Brazil, focusing on the tensions between popular and erudite culture.
2) It analyzes how movements like Regionalism and Modernism helped valorize the culture of rural São Paulo after it faced stigma.
3) Pires used humor in his works to help popular culture penetrate elite spaces and facilitate communication across divisions in Brazilian society.
1) This thesis examines the artistic production of Cornélio Pires and the historical context of Brazil, focusing on the tensions between popular and erudite culture.
2) It analyzes how movements like Regionalism and Modernism helped valorize the culture of rural São Paulo after it faced stigma.
3) Pires used humor in his works to help popular culture penetrate elite spaces and facilitate communication across divisions in Brazilian society.
1) This thesis examines the artistic production of Cornélio Pires and the historical context of Brazil, focusing on the tensions between popular and erudite culture.
2) It analyzes how movements like Regionalism and Modernism helped valorize the culture of rural São Paulo after it faced stigma.
3) Pires used humor in his works to help popular culture penetrate elite spaces and facilitate communication across divisions in Brazilian society.
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A memria de Cornlio Pires e sua aventura caipira.
"O olho v, a memria rev e a imaginao transv."
Manoel de Barros
As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC-SP
Arlete Fonseca de Andrade
AS ESTRAMBTICAS AVENTURAS DE CORNLIO PIRES e a cultura caipira no cenrio hegemnico da cultura brasileira
Doutorado em Cincias Sociais
So Paulo 2012 As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC-SP
Arlete Fonseca de Andrade
AS ESTRAMBTICAS AVENTURAS DE CORNLIO PIRES e a cultura caipira no cenrio hegemnico da cultura brasileira
Doutorado em Cincias Sociais
Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutora em Cincias Sociais - Antropologia, sob a orientao da Prof. Doutora Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira.
So Paulo 2012 As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
A construo desta tese contou com a participao e apoio de vrias pessoas queridas. Sem elas, no haveria nem emoo, nem brilho no decorrer desta trajetria.
Agradeo em primeiro lugar e de todo corao a minha me, Alzira da Fonseca Andrade, que nos meus bons e maus momentos me apoiou e no desistiu de confiar em mim e me incentivar para a finalizao desta pesquisa. E ao meu pai, Areno Csar de Andrade, por me ensinar que temos que ser firmes em nossas decises e lutar sempre para alcanar nossos objetivos. Muito obrigada.
Ao meu querido e amado Thor, companheiro de todos os momentos (anos, meses, dias, horas, minutos e segundos) que, quando na exausto, me consolava e me distraa, restabelecendo minhas foras para voltar ao trabalho.
A minha orientadora Prof. Dr. Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira, que aceitou esse desafio comigo. Seus ensinamentos possibilitaram o desenvolvimento da presente pesquisa.
A Ktia Cristina da Silva, funcionria competente e dedicada do Programa de Ps- graduao em Cincias Sociais da PUC-SP e querida amiga. Sou imensamente grata por toda a ajuda que concedeu, com informaes fundamentais em todo o processo do doutorado, com todo carinho e ateno. Muito obrigada.
A querida amiga Isabela Pennella, que me apoiou durante toda a trajetria desta pesquisa. Leu pacientemente os textos contribuindo com sugestes relevantes. No h palavras que possam traduzir meu agradecimento pelo carinho e ateno que concedeu. Muito obrigada.
A querida amiga Ana Maria Augusta da Silva, pelo apoio em todos os momentos e contribuio nas ideias e discusses sobre este tema, o que fez com muito carinho. Muito Obrigada. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
A Prof. Dr. Eliana Gouveia e a Prof. Dr. Silvia Borelli, por participarem da minha qualificao com sugestes fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa.
CAPES, pelo apoio financeiro para realizar a pesquisa.
Ao SENAR-AR/SP, pelo apoio financeiro.
A Dlia Corredoni, Sr. Paulo Bonater, Nilson Kikuty e Carlos Antonio Rodrigues, pelo carinho e apoio de sempre comigo, e na brevidade da restituio dos recursos financeiros na inteno de no me prejudicar. Muito obrigada.
Ao Andr Lorente, pela responsabilidade, ateno e brevidade na reviso ortogrfica.
A Inezita Barroso, pela entrevista que concedeu generosamente e pelas informaes preciosas no que se refere cultura caipira.
Ao Sr. Benedito Silvestrin, Fuzilo, In Memorian, que me atendeu com muita ateno em Tiet, quando estive l para visitar o Museu Cornlio Pires. Alm das informaes relevantes, me presenteou com os dois documentrios de Cornlio Pires. Material raro que guardarei com todo carinho e divulgarei.
Ao Sr. Luiz Paladini, por ceder gentilmente fotos histricas de Tiet.
A minha irm, Eliana de Andrade Olivieri, aos amigos queridos, Ricardo dos Santos Malafronte, Flvia Campanini e aos funcionrios dos departamentos de Ps-graduao da PUC-SP, enfim, a todos que torceram por mim, o meu carinho e mais sincero agradecimento.
As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
RESUMO
A presente pesquisa refere-se produo artstica e cultural de Cornlio Pires (1884-1958) e ao contexto histrico do pas a partir dos efeitos da colonizao no campo socioeconmico e cultural, da presena de diferentes etnias e suas inter-relaes que contriburam para a formao da cultura regional paulista, a caipira. Essa contextualizao relevante em funo dos estigmas atribudos ao caipira em vista da pobreza de So Paulo e seus habitantes at fins do sculo XIX, comparado a outras localidades nacionais e o reverso dessas concepes distorcidas com a retomada da cultura popular por parte de intelectuais e artistas por meio de movimentos como o Regionalismo e o Modernismo, na busca de uma possvel identidade nacional. As justificativas dessas questes referem-se tenso histrica que existe entre cultura popular e cultura erudita e na mediao dessas duas concepes, a contribuio do riso, do humor como forma de suavizar a comunicao e insero do popular no espao hegemnico da sociedade. Assim fez Cornlio Pires, com seu estilo voltado para a temtica rural acrescido do humor em sua produo, adentrando espaos hegemnicos e possibilitando a comunicao entre os antagonismos presentes em nossa sociedade como: rural e urbano, tradio e modernidade, popular e erudito.
Palavras-Chave: Cornlio Pires, Cultura Caipira, Histria do Brasil, Regionalismo, Modernismo, Cultura Popular, Cultura Erudita, Mediao Cultural, Humor.
As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
ABSTRACT
This research refers to the artistic and cultural production of Cornelius Pires (1884-1958) and the historical context of the country from the effects of colonization in the socio- economic and cultural, the presence of different ethnic groups and their inter-relations that have contributed to the formation of the regional culture paulista, the rustic. This background is relevant in the light of the stigmas attached to the rustics in view of "poverty" of So Paulo and its inhabitants by the end of the nineteenth century compared to other national locations and the downside of these distorted views with the resumption of popular culture on the part of intellectuals and artists by means of movements such as regionalism and the Modernism in search of a possible national identity. The justifications of these questions relate to historical tension that exists between popular culture and erudite culture and in the mediation of these two notions the contribution of laughter, humor as a way to smoothen the communication and insertion of the popular space in hegemonic society. Thus did Cornelius Pires, with his style facing the rural theme plus the humor in its production and penetrated hegemonic spaces allowing communication between the antagonisms present in our society such as: rural and urban, tradition and modernity, popular and erudite.
Key Words: Cornelius Pires, Rustic Culture, History of Brazil, Regionalism, Modernism, Popular Culture, Erudite Culture, Cultural Mediation, Humor.
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As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
SUMRIO
INTRODUO 11
CAPTULO I 22 Cenrio Histrico: A cultura caipira.
CAPTULO II 47 volta por cima: Distores, crticas, movimentos e valorizao da cultura regional paulista.
CAPTULO III 66 Em Tiet nasce um poeta caipira.
Captulo IV 110 Tenso entre cultura popular e cultura erudita e o riso como mediador. Breve histria do riso e a contribuio de Cornlio Pires na mediao entre cultura popular e cultura erudita. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
CONSIDERAES FINAIS 138
ANEXOS 140
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 171
As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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INTRODUO
As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Toda pesquisa acadmica tem por objetivo contribuir para a produo do conhecimento cientfico, reflexo e entendimento dos acontecimentos e fenmenos que ocorrem na sociedade, como tambm esclarece perguntas e dvidas como o porqu da escolha do tema, qual relevncia para a rea de estudo, quando surgiu o interesse, o que a faz ser original, entre outras.
So algumas das perguntas que surgem durante seu desenvolvimento e apresent-las ser esclarecedor e fundamental para a compreenso do leitor. Nesse sentido, no sero medidos esforos para alcanar o propsito de dar conta na argumentao no decorrer da presente pesquisa.
A temtica a ser tratada sobre a vida e obra de Cornlio Pires, divulgador da cultura regional paulista, e sua contribuio no campo dos estudos culturais sobre o caipira do incio do sculo XX, suas tradies e costumes. A inteno ser contextualizar questes relevantes sobre os feitos de sua produo na cultura regional paulista, dialogar a partir do contexto social e histrico de sua poca, contando com seus interlocutores e autores que iro nortear a reflexo da pesquisa e situar o leitor sobre quem foi Cornlio Pires.
Meu contato com o autor e sua obra iniciou-se na dcada de 1990. Nesse perodo, trabalhava na Secretaria de Estado da Cultura do Estado de So Paulo, na rea de projetos e programas culturais, e meu primeiro desafio foi a produo de um espetculo teatral que se chamava A Estrambtica Aventura da Msica Caipira.
A estreia ocorreu no Teatro Srgio Cardoso - So Paulo, percorrendo depois 10 cidades do interior paulista. O projeto foi concebido por Robinson Borba a pedido de Arrigo Barnab, que era assessor do ento Secretrio de Estado da Cultura, Fernando de Morais, e teve roteiro e direo de Carlos Alberto Sofredini.
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1 Arte criada para o espetculo. Ficha tcnica: roteiro original - Robinson Borba, roteiro final e direo - Carlos Alberto Soffredini, roteiro musical - Wandy Doratiotto, direo de produo - Robinson Borba e Jlia Vieira, assistente de produo - Arlete Fonseca de Andrade, cenrio e figurino - Irineu Chamiso Jr., iluminao - Abel Kopanski, programao grfica - Carlos Matuck. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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O espetculo, que era baseado nos causos de Cornlio Pires, contava a histria da msica caipira, desde seu aparecimento at os popstars breganejos, com um elenco que trazia a dupla Pena Branca e Xavantinho e Adilson Barros, no papel do caipira que narrava as estrias intercaladas com as msicas. Os msicos Passoca, Capenga Ventura, Laert Sarrumor e Wandi Doratiotto interpretavam as duplas Alvarenga e Ranchinho e Milionrio e Jos Rico.
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2 Em p: Cristina Gui, Laert Sarrumor, Paulo Vasconcelos, Kapenga, Luiz Violeiro, Beto Sodr, Passoca e a acordeonista Rosa. Sentados: Pena Branca e Xavantinho. Agachados: Adilson Barros, Lucinha, Wandi Doratiotto, Alberto Soffredini, o mmico Eduardo Coutinho e Zana de Oliveira. Foto de Vera Albuquerque.
As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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A continuidade em estudar o rural paulista tambm foi um dos motivos da escolha do tema, uma vez que minha dissertao de mestrado tratou dos trabalhadores rurais de So Paulo no corte da cana-de-acar 3 e um dos captulos abordava os aspectos histricos na formao do povo paulista, e a obra de Cornlio Pires foi fundamental para o entendimento do cotidiano e da cultura dessa populao.
No final do ano de 2006, iniciei pesquisa bibliogrfica e busca pelos livros de Cornlio Pires. No entanto, a oferta da maioria encontrava-se muito limitada por no serem reeditados desde suas primeiras publicaes, restringindo, assim, sua aquisio e tornando- se raridades bibliogrficas disputadas por pesquisadores, estudiosos e colecionadores.
Entre tantas livrarias, encontrei uma que comercializava obras raras e alguns de seus livros e outros que versavam sobre a cultura paulista em diferentes pocas e ticas de igual valor, possibilitando o comeo de um entendimento sobre sua obra. Iniciou-se, ento, a reflexo e o dilogo entre pesquisa e pesquisadora e seus diferentes momentos e tempos.
Pesquisa e tempo so palavras que, apesar de ter significados diferentes, esto unidas e so fundamentais para o processo da construo do conhecimento. A ao dessas duas palavras pode tanto estar em sincronia como em situaes opostas.
A pesquisa segue o tempo da anlise, da reflexo. Seu tempo est mais relacionado com o tempo da tradio do que com o das sociedades modernas. O tempo da pesquisa, da criao, no determinado apenas pelo tempo das horas de um dia ou de dias de produo, das regras sociais, institucionais, como ocorre na atualidade, e sim envolve compreenso, reflexo, elaborao das ideias, no podendo ser medido e contabilizado.
Apesar do campo da construo do saber encontrar-se dentro do contexto social marcado pelo tempo da produo, a pesquisa no deixa de ser tambm um trabalho marcado em outro tempo, o tempo do trabalho artesanal que leva em considerao o estado de esprito
3 Andrade, F. A. Cana e Crack: sintoma ou problema? Um estudo sobre os trabalhadores no corte de cana e o consumo do crack. Dissertao de Mestrado, 2003. PUC-SP. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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do pesquisador, seu cotidiano, suas relaes e prticas sociais que iro determinar seu ritmo e sua complexidade.
Pontuo essa questo para mostrar o quanto comum no finalizar, dar luz pesquisa. Mant-la o tempo mais que necessrio perto, sempre acrescentando ou excluindo textos, ideias, passagens, com a finalidade de entregar um trabalho lapidado. Curioso que numa dessas situaes descobri um livro intitulado O Tempo de Cada Um 4 que me chamou a ateno. Por coincidncia ou no, era de Cornlio Pires e me levou a refletir sobre isso.
Pesquisar Cornlio Pires (1884-1958), seu tempo, sua obra um desafio pela diversidade e riqueza que apresenta sua produo e perodo, fundindo a relao entre o tradicional e o moderno, rural e urbano. Foi escritor de contos, prosas e poesias, colaborador em diversos jornais e revistas, compositor e precursor na divulgao da tradicional msica do interior paulista - a moda de viola - e responsvel pela gravao em vinil deste estilo musical no ano de 1929.
Tal universo, que at ento era restrito aos que ali nasciam e habitavam, comea a ser conhecido e valorizado, principalmente por estudiosos e intelectuais que ansiavam, nas primeiras dcadas do sculo XX, (re)descobrir o Brasil e uma possvel identidade nacional.
O recorte scio-histrico em So Paulo se d entre as dcadas de 1900 e 1930 e os acontecimentos polticos e sociais como o fim da Repblica Velha, a expanso e queda na agricultura, resignificao cultural com movimentos em prol do nacional e popular, como a Semana de Arte Moderna e outros.
nesse contexto que Cornlio Pires d sua contribuio, revelando expresses, manifestaes e significados da cultura caipira at ento desconhecidos por alguns segmentos da sociedade brasileira e que justificam a relevncia deste estudo pelo vis da antropologia.
4 Pires, C. e Filho, A. C. O Tempo de Cada Um. Petit Editora e Distribuidora LTDA, So Paulo, 2003. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Apesar das diversas citaes sobre Cornlio Pires nos livros daqueles que dedicaram seus estudos cultura regional paulista, duas biografias sobre o autor: Cornlio Pires Criao e Riso, de Macedo Dantas, e A Vida Pitoresca de Cornlio Pires, de Joffre Martins Veiga, e alguns artigos, no h atualmente um estudo acadmico que acolha uma pesquisa centrada no tieteense e sua produo, o que o faz assim um tema importante e indito no campo das Cincias Sociais.
Assim, alguns fatores relevantes devem ser considerados. Um deles refere-se anlise sobre a intencionalidade de Cornlio Pires em divulgar a cultura caipira por meio do segmento artstico. Ser que seu objetivo estava em desfazer o estigma negativo atribudo historicamente ao caipira visando sua incluso e reconhecimento social?
Outra se refere ao riso presente em sua produo literria e artstica. Sabe-se que o riso suaviza situaes de tenso e propicia, muitas vezes, a aproximao e o dilogo entre os diferentes. Assim, ser que existe a possibilidade da cultura popular penetrar os espaos hegemnicos da sociedade utilizando como recurso essa expresso? 5
So questes que pretendo desenvolver, entre outras que surgiro no decorrer da pesquisa, dialogando com tericos das cincias humanas e sociais, em particular os da antropologia, histria, filosofia e sociologia.
O material bibliogrfico que ser utilizado compe as biografias de Cornlio Pires e livros e artigos que escreveu no decorrer de sua vida. A partir desse material, pretende-se analisar o contedo de algumas de suas obras e sua interface com os aspectos sociais e histricos da poca, a stira presente em produes e textos, o movimento modernista, a expresso do caipira, entre outros.
Dentre a produo literria de Cornlio Pires, considero trs livros um dos melhores momentos da prosa regionalista do autor, os quais aqui sero abordados. So eles: Musa Caipira (1910), seu livro de estreia contendo poesias e diversos sonetos na expresso
5 Grifo meu As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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falada do caipira, Conversas ao P do Fogo (1921), que trata dos costumes e tradies do povo do interior paulista, e As Estrambticas Aventuras de Joaquim Bentinho (O Queima Campo) (1924), que criou o personagem-ttulo.
Alm das biografias sobre o tieteense e bibliografia nos estudos de base, outros materiais tericos foram pesquisados, como: livros, artigos em revistas e peridicos, dissertaes e teses que se referem ao autor, cultura popular e aos aspectos cultural, artstico e social entre as dcadas de 1900 e 1930, para traar uma leitura crtica a fim de contribuir com a reflexo da presente pesquisa.
O acervo das Bibliotecas do Centro Cultural So Paulo, Mrio de Andrade e Arquivo do Estado de So Paulo e do Museu Cornlio Pires foram consultados na inteno de fotografar as revistas O Sacy e O Pirralho. A revista O Sacy, relevante nesta pesquisa, encontra-se na Biblioteca Mrio de Andrade e est indisponvel ao pblico, pois seu estado de conservao precrio, no podendo ser manuseada. Assim consegui xerocopiar algumas imagens que estavam em microfilme na mesma biblioteca para ilustrar a criao deste projeto do tieteense, as caricaturas e temas da poca. Por este motivo, as imagens no esto com qualidade.
Outro material importante que consta aqui a entrevista com a cantora e professora Inezita Barroso, cone da msica regional tradicional paulista, realizada em 2004. Inezita relata sua vivncia no interior paulista, sua iniciao na viola, a vida do caipira e a contribuio de Cornlio Pires e Mrio de Andrade para a cultura regional. Trechos de sua entrevista sero inseridos no decorrer da tese para exemplificar e enriquecer a discusso.
Somada entrevista de Inezita Barroso, h os dados fornecidos pelo senhor Benedito Pedro Silvestrim, Coordenador do Patrimnio do Museu Cornlio Pires, localizado em Tiet, na ocasio em que fui cidade no ano de 2006 para conhecer e colher material. Benedito, ou Fuzilo, como era conhecido, forneceu vrios dados e materiais, como jornais e filmes, importantes para a pesquisa e demonstrou ser um admirador incondicional de Cornlio Pires, mantendo, sua maneira, a obra viva e conservando o que j existia. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Nesta ocasio, Fuzilo presenteou-me com um vdeo que realizou sobre a vida de Cornlio Pires e com o mais surpreendente de tudo que poderia ter sobre ele, os dois filmes/documentrios realizados por Cornlio Pires, Brasil Pitoresco, de 1923, e Vamos Passear, de 1934, ambos em VHS, que passei imediatamente para DVD. Estes dois documentrios so obras raras e acredito que s a Cinemateca de So Paulo deva ter cpias.
Infelizmente Fuzilo faleceu no dia 04/09/2007, deixando sua contribuio para a cultura regional ao preservar e valorizar um dos ilustres filhos de sua terra. Registro aqui meu agradecimento pela ateno e carinho com que me recebeu para auxiliar nesta pesquisa.
Quanto ao referencial terico de questes nacionais, as obras de autores brasileiros como: Antonio Candido, Nelson Werneck Sodr, Srgio Buarque de Holanda, Carlos Rodrigues Brando, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Sylvia Helena T. de Almeida Leite, Lcio Kowarick, Elias Thom Saliba, Renato Ortiz, entre outros, sero estudadas enfocando a formao histrica e cultural do pas, a cultura regional paulista, seus hbitos, manifestaes, costumes, linguagem, entrelaando com a contribuio de Cornlio Pires.
No campo terico macro, os pensadores escolhidos para contribuir sobre cultura popular, cultura erudita, a tenso existente entre ambas e a importncia do riso como mediador so: Mikhail Bakhtin, Antonio Gramsci, Peter Burke, Pierre Bourdieu, entre outros. Cada qual estar relacionado com os captulos e tpicos nas suas reas de competncia. Mesmo que esses autores tenham na base de seu pensamento princpios tericos que os diferenciem, a finalidade aqui fazer com que as ideias se aproximem e dialoguem no campo social e cultural.
As principais obras que sero estudadas nesta pesquisa so: A Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento, de Mikhail Bakhtin, Literatura e Vida Nacional, de Antonio Gramsci, Cultura Popular na Idade Moderna, de Peter Burke. Em relao a Pierre Bourdieu, pretende-se abordar as ideias de habitus, poder simblico e capital cultural e relacion-las aos aspectos individual, cultural e artstico de Cornlio Pires. Sobre o riso, a As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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stira, a obra Razes do Riso, de Elias Thom Saliba, ser contemplada para abordar o aspecto da histria social e cultural dessa expresso presente no contedo de suas produes.
A escolha desses autores se deve ao fato de suas obras irem ao encontro das questes que aqui sero abordadas, como: linguagem, cultura erudita e popular, tenses, ideologia e o riso. Dos aspectos biogrficos de Cornlio Pires, os livros consultados so: Cornlio Pires: Criao e Riso, de Macedo Dantas, e A Vida Pitoresca de Cornlio Pires, de Joffre Martins Veiga, alm de alguns textos publicados em revistas daquele perodo.
Entendo que os conceitos apresentados so muito abrangentes e envolvem questes histricas em perodos especficos; assim, optou-se pelo campo multidisciplinar das cincias sociais e humanas para enriquecer a presente tese, oferecendo maior embasamento s questes que sero apresentadas.
A presente tese est composta dos seguintes captulos:
Cenrio Histrico: A Cultura Caipira. Na inteno de melhor compreender Cornlio Pires, sua produo e a quem ele a dedica, faz-se necessrio abordar o contexto histrico do pas, os efeitos da colonizao no campo socioeconmico, as diversas etnias aqui presentes e suas inter-relaes, diferenas e conflitos que contriburam no perfil do caipira.
Assim, o primeiro captulo aborda o campo histrico da formao da cultura brasileira, sobre a Provncia de So Paulo antes e depois da rpida urbanizao, a formao da cultura regional e os estigmas atribudos ao povo paulista em vista da pobreza do local comparado a outras localidades nacionais e a explicao de tal concepo vinda de diversos autores que estudaram e compreenderam as questes especficas do pas.
O segundo captulo, A Volta por Cima: distores, movimentos e valorizao da cultura caipira, tratar do reverso das concepes distorcidas sobre o caipira, a produo As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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literria do Regionalismo e a viso dos autores e crticos em relao a este segmento e o Modernismo com sua retomada na valorizao da cultura popular.
O terceiro captulo, Em Tiet Nasce um Poeta Caipira, apresenta a trajetria de vida do autor e o conjunto de sua produo artstica: literatura (contos, versos, poemas), msica, cinema, entre outras, focada na temtica dos costumes, hbitos e expresso cultural do povo do interior paulista.
O quarto captulo, Tenso entre Cultura Popular e Cultura Erudita e o Riso como Mediador, abordar, alm dessa temtica, o contexto histrico da cultura erudita e popular, suas contradies e a relao com a cultura regional paulista, levando em considerao o estilo de Cornlio Pires, o humor, a stira nos contos e prosas e as questes sociais e culturais que esto presentes em sua estrutura.
Ao cabo, as consideraes finais articularo as ideias e anlises apresentadas nos captulos citados, bem como buscaro proporcionar respostas s questes levantadas no decorrer da presente tese.
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CAPTULO I
CENRIO HISTRICO: A CULTURA CAIPIRA
As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Neste primeiro momento, as questes histricas sobre a formao do povo brasileiro, do povo paulista, quem o caipira, sua raiz, geografia, organizao, bem como a viso de escritores e pesquisadores sero abordadas na inteno de oferecer uma melhor compreenso sobre o propsito da presente pesquisa.
Para alcanar esse objetivo, autores como Nelson Werneck Sodr, Gilberto Freyre, Srgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Antnio Candido, Carlos Rodrigues Brando, Rubens Borba de Moraes, Auguste Sant-Hillaire e o prprio Cornlio Pires sero contemplados na sustentao terica desse perodo histrico e construir o pensamento sobre o caipira.
Quando o colonizador chega a terras brasileiras, vido por fazer fortuna, constata que nada havia de interessante em se tratando de mercadorias para explorar e comercializar. Nesse perodo, a Europa encontrava-se na fase mercantilista, com olhos voltados para a criao de riqueza por meio de produo e comercializao de mercadorias, bem diferente do que ocorria aqui nos trpicos.
O territrio era ocupado pelos diversos povos indgenas vivendo em sistema de comunidade tribal, base de subsistncia e sem atrativos em termos de explorao comercial. Assim, a contribuio do territrio descoberto foi somente a terra em si. A colnia torna-se objeto porque, para a produo, s pode proporcionar o objeto (Sodr, 2003, 11).
Para que o objeto pudesse se tornar produtivo e atender aos objetivos do colonizador, a estratgia foi transplantar uma cultura na colnia trazendo os povos da frica, para trabalhar na condio de escravos. Assim, Numa produo transplantada e montada em grande escala, para atender as exigncias externas, surge naturalmente uma cultura tambm tranplantada (Sodr, 2003, 11).
Diferente do que ocorria em outros continentes, como no Oriente e parte da frica, em que algumas reas j se encontravam colonizadas e inseridas no sistema de comrcio, no Brasil, a sada foi transplantar 6 uma cultura baseada na relao entre senhores e escravos e na
6 Termo utilizado por Nelson W. Sodr no livro Sntese de Histria da Cultura Brasileira. Ed. Bertrand Brasil, So Paulo, 2003, pg.17. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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explorao do trabalho. Um modelo implantado pelo colonizador para obter resultados rpidos.
A transplantao da cultura teve como objetivo queimar etapas entre a sociedade primitiva que aqui existia e o mercantilismo, no importando a destruio das comunidades indgenas, sua forma de vida, cultura e valores (Sodr, 2003, 17). Havia uma heterogeneidade tnica entre os habitantes que compunham o novo territrio, com seus conflitos e acomodaes. O indgena vivia em sistema de comunidade de subsistncia, o europeu em transio do feudalismo para o mercantilismo e o africano, trazido para c na condio de escravo, vivia tambm em sistema de comunidade.
A transplantao da cultura no Brasil deu-se em trs etapas:
1 etapa: cultura transplantada anterior ao aparecimento da camada social intermediria, a pequena burguesia; 2 etapa: cultura transplantada posterior ao aparecimento da camada intermediria, a pequena burguesia; 3 etapa: surgimento e processo de desenvolvimento da cultura nacional, com o alastramento das relaes capitalistas. (Sodr, 2003, 13)
As duas primeiras referem-se classe dominante na fase escravista (relao entre senhores e escravos). Na etapa seguinte a classe dominada comea a ter um papel importante na esfera social, pois se transforma em mercadoria. A terceira etapa refere-se burguesia como a classe dominante e abolio dos escravos.
Esse modelo do colonizador voltado para o desenvolvimento econmico e social deu-se de forma mais efetiva e rpida em algumas Provncias como Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. No caso de So Paulo, o imenso territrio coberto pela floresta permaneceu durante mais de trs sculos isolado e sem sinal de progresso econmico e social.
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A Provncia paulista no tinha relao com povos estrangeiros, como ocorria nas outras, e nem ligao com o oceano, que favorecia o desenvolvimento do comrcio local atravs da importao e exportao de alguns produtos. As justificativas que alguns historiadores deram sobre o isolamento de So Paulo at metade do sculo XIX fundamentam-se nas dificuldades de acesso Provncia, pois ainda no existia o caminho do mar, o que tornava o meio pobre e sem atrativos para as pessoas vindas de fora, comparando com as provncias mais desenvolvidas. Essa pobreza, na opinio de Rubens Borba de Moraes, era uma consequncia e no a causa. Para ele, a causa da pobreza paulista estava na falta de comunicao com o mar. 7
Alm disso, a colonizao, no princpio, teve como estratgia fixar-se em regies geogrficas mais favorveis visando seu rpido crescimento. Em algumas, como a regio nordeste, havia at atividades destinadas aos engenhos de cana-de-acar e criao de gado, resultado da cultura transplantada, mo-de-obra escrava e materiais vindos de fora (Sodr, 2003, 11).
O isolamento entre regies intensificou-se em fins do sculo XVI, outra estratgia que fazia parte do processo da colonizao com o objetivo de estabelecer uma relao servil e monopolizar a comercializao. Isso fez com que cada populao criasse seus prprios vnculos, hbitos e costumes, sem contato com as outras regies.
As Provncias que estavam localizadas prximas ao mar tinham uma relao de sociabilidade maior do que as que viviam distantes e cobertas pela floresta, como no caso de So Paulo. Alm disso, h o fator que se refere lngua, fundamental no processo de interao entre os diferentes grupos sociais, e a que o isolamento privou das populaes que habitavam o imenso territrio descoberto.
Sobre essa questo estratgica da colonizao em relao ao isolamento entre regies, Nelson Werneck Sodr explica:
7 Esta citao de Rubens Borba de Moraes est no prefcio do livro de Auguste Saint-Hillaire, Viagem a Provncia de So Paulo, 1972, Ed. Biblioteca Nacional. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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O primeiro deles o da distncia entre o Brasil e a metrpole e os mercados a que sua produo se destina; disso decorre o segundo, que a da servido ocenica, impedidas as reas produtoras de internamento, permanecendo dependentes do transporte martimo; outro consiste no isolamento entre as diversas reas produtoras, sem ligao entre si, vivendo autnomas e esquecidas. Sobre essa fragmentao de ncleos de ocupao humana, de reas produtoras que conferem colnia o aspecto econmico e demogrfico de arquiplago gigantesco, que o pas herda e conserva at o sculo XIX para o opaco manto da clausura, decorrente do regime de monoplio de comrcio exercido pela metrpole, e que veda o contato com os estrangeiros. A identidade de fins, de propsitos e de mtodos neutraliza a disperso e o isolamento, estabelecendo condies para a unidade cultural; a clausura sanciona e acoberta essa unidade cultural. Alicera-a, ainda, a lngua - espao social das idias, como a definiu o filsofo que estabelece a comunidade no meio de transmisso da cultura, apesar do bilingismo inicial e natural. (Sodr, 2003,18)
Em particular, no territrio paulista, no havia nenhum tipo de produo, contato com outros povos, regies e com o oceano, enfim, isolada das relaes econmicas e sociais, esquecida e autnoma durante um longo perodo, contribuindo para que os paulistas se adaptassem s condies dadas do local, tornando-se aventureiros e errantes em seu espao. Assim, aos olhos daqueles que no pertenciam a essa dinmica da Provncia Paulista, comparava a populao a um estgio primitivo. Porm, Darcy Ribeiro explicar que:
Esse modo de vida, rude e pobre, era o resultado das regresses sociais do progresso desculturativo. Do tronco portugus, o paulista perdera a vida comunitria da vila, a disciplina patriarcal das sociedades agrrias tradicionais, o arado e a dieta baseada no trigo, no azeite e no vinho. Do tronco indgena perdera a autonomia da aldeia igualitria, toda voltada para o provimento da prpria subsistncia, a igualdade do trato social de sociedades no estratificadas em classes, a solidariedade da famlia extensa, o virtuosismo As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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de artesos, cujo objetivo era viver ao ritmo em que os seus antepassados sempre viveram. (Ribeiro, 1997, 366)
Esse trao aventureiro do paulista, Ribeiro dir que d-se em funo das consequncias econmicas e culturais. Ele adentrava o serto para guerrear com os indgenas situados na costa da provncia, cativava-os para trabalhar em suas terras ou comercializ-los com os senhores de engenho, e procurava ouro em seu prprio territrio e tambm em terras mineiras. Isso permaneceu durante quase trs sculos (Ribeiro, 1997, 366, 367).
O paulista era de pouca conversa independente e possua qualidades e defeitos devido ao isolamento, diferente dos que estavam nas provncias mais ricas do pas, em decorrncia do cultivo da cana-de-acar e to bem descritas pelos estrangeiros.
A populao vivia em regime de direito comum, no havia privilgios, como tambm no havia produtos para capitalizar, e sim produzir o necessrio para seu consumo. A base do trabalho do paulista no estava voltada para o comrcio e sim para o sustento de suas famlias. s mulheres cabiam tarefas como as domsticas, criao dos filhos, plantio, colheita, transportes de cargas, etc. J aos homens cabiam o roado, a caa e a guerra, porm no era a todo o momento que a isso se aplicavam. Grandes eram os perodos de descanso, semelhantes aos das aldeias indgenas (Ribeiro, 1997, 370).
A respeito do modo de ser do paulista, Inezita Barroso diz que a cultura indgena foi a principal influncia tanto na subsistncia quanto no cotidiano.
... O paulista antigo pegou muito isso dos hbitos indgenas. Voc v que os bandeirantes saam... pra viajar, pra caar, pra descobrir terras e tudo. As mulheres ficavam praticamente trancadas! Tinha at aquela janelinha de trelia pra espiar um pouquinho pra fora, nem abria a porta pra ningum... Ficavam dentro de casa fazendo coisas no tear, bordando... Agora os rapazes j podiam se expandir mais...
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Tropa atravessa o vau (de um rio) - Annimo 8
O biblifilo Rubens Borba Moraes, no prefcio do livro de Auguste Saint-Hilaire, descreve o caso de um estrangeiro que precisava de uma canastra e, para conseguir que o carpinteiro a fizesse, teve de solicitar ao governador para que colocasse uma sentinela na porta com ordem de no deix-lo sair enquanto no terminasse a encomenda (Saint-Hilaire, 1972, XVII).
A explicao da negao ao trabalho vista pelo estrangeiro como indolncia, preguia e desapego, porm, o que no se compreendia, na opinio de Rubens Borba de Moraes, que no estavam inseridos na lgica capitalista, com base no comrcio, compra e venda de mercadorias, e sim numa economia de subsistncia. Para Darcy Ribeiro, o desamor ao trabalho estava mais ligado falta de necessidade, de estmulo e de conhecimento de tcnicas para produo do que indolncia, utilizando-se de outras prticas para suprir suas necessidades bsicas (Ribeiro, 1997, 388,389).
8 Fonte da imagem: http://www.asminasgerais.com.br/zona%20da%20mata/Biblioteca/Personagens/Tropeiros/Tropei0001. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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J Srgio Buarque de Holanda dir que esse carter aventureiro foi uma das heranas deixadas pelo colonizador para a civilizao brasileira. A anlise que o autor faz sobre a formao da nossa sociedade baseada nos tipos sociais de Max Weber e nos tipos ambguos de Georg Simmel, pensadores que o influenciaram para compor sua teoria dos pares antagnicos: trabalho e aventura, mtodo e capricho, rural e urbano, norma impessoal e impulso afetivo e burocracia e caudilhismo 9 .
Srgio Buarque de Holanda explicar que esse carter aventureiro pertence aos povos da Pennsula Ibrica, marcados fortemente pela cultura da personalidade e pela presena inquebrantvel da moral catlica. O tipo aventureiro visa ao resultado final, ignora fronteiras, no valoriza esforos nem trabalho que no resultem em proveitos materiais imediatos e aprecia a atividade mercantil ou qualquer outra que aparente garantir lucros rpidos com o menor esforo (Holanda, 1999, 2).
Diferente dos povos do norte da Europa que passaram pela Reforma na igreja e de moral protestante, o tipo trabalhador tem apreo pela organizao do trabalho, pelo esforo, privilegia os meios ao invs do resultado final e considera imoral tudo que possa ser realizado de forma aventureira, imprudente e imediatista. O autor explicar que:
... compreensvel que jamais se tenha naturalizado entre gente hispnica a moderna religio do trabalho e o apreo atividade utilitria. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e at mais nobilitante, a um bom portugus, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo po de cada dia. O que ambos admiram como ideal uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforo, de qualquer preocupao. E assim, enquanto os povos protestantes preconizam e exaltam o esforo manual, as naes ibricas colocam-se largamente no ponto de vista da Antiguidade clssica. O que entre elas predomina a concepo antiga de que o cio importa mais que o negcio
9 Srgio Buarque de Holanda passou alguns anos na Alemanha e conheceu as obras dos filsofos Max Weber e Georg Simmel, influenciando de modo significativo seu pensamento. De Max Weber, a influncia foi em relao metodologia do tipo ideal presente na obra A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo que Srgio Buarque de Holanda relaciona aos tipos scio-psicolgicos em nossa cultura. Em relao a Georg Simmel, refere-se construo das relaes cotidianas. Simmel um pensador da interdisciplinaridade, da interao social em que tudo est ligado a tudo. Para ele, a sociedade existe a partir de interaes, de conscincia dessa interao, de uns para com e contra os outros. (Tedesco, 2007:58) As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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e de que a atividade produtora , em si, menos valiosa que a contemplao e o amor. (Holanda, 1999, 38)
Assim como o aventureiro e o trabalhador, outro par antagnico que Holanda faz referncia o ladrilhador e o semeador. O primeiro refere-se colonizao espanhola na Amrica e que se destaca pelo comportamento preventivo e de clculo das aes futuras; da a formao de grandes ncleos de povoao estveis, e a preferncia por fixar-se no interior e nos planaltos de clima mais ameno.
No caso do semeador, que refere-se colonizao portuguesa, h uma tendncia de agir conforme se apresentam os problemas cotidianos, e sem planejamento; da o carter de feitorizao em que predominaram os poderes regionais e a distribuio desigual da populao (Holanda, 1999, 4).
Foi nesse modelo baseado no tipo aventureiro e semeador que ocorreu a colonizao do pas, adaptando-se s circunstncias locais e copiando formas que davam bons resultados dentro da sociedade indgena. Essa tica aventureira da colonizao ibrica acabou influenciando de forma significativa o carter e a cultura do povo brasileiro 10 (Mota, 2011, 242).
A implantao da cana-de-acar no Brasil um exemplo do tipo aventureiro transplantando uma cultura em regime de escravido, trazida da frica em grande nmero para o plantio em diversas regies do territrio. Antonio Candido, no prefcio de Razes do Brasil, diz:
A lavoura de cana, nesse sentido, seria uma ocupao aventureira do espao, no correspondendo a uma civilizao tipicamente agrcola (p.49), mas a uma adaptao antes primitiva ao meio, revelando baixa capacidade tcnica e docilidade s condies naturais. (Holanda, 1999, 15)
10 Georg Simmel, em Sobre a Aventura: ensaios filosficos, dir sobre a facilidade que o aventureiro tem em termos de mobilidade espacial e de ruptura com a sua comunidade de origem. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Esse modelo de colonizao, com razes fundadas no personalismo ibrico, dificultou e retardou o processo de transio de uma sociedade rural patriarcal para uma sociedade com base na racionalidade, resultando no plano psicossocial, de acordo com Buarque de Holanda, no homem cordial (Mota, 2011, 250)
O homem cordial avesso a formalidades e estreita a distncia nas relaes pessoais, diferente de outros povos ocidentais em que o espao individual e a vida privada so preservados. A cordialidade com o que possa ser visto como virtude e civilidade, na realidade, demonstra uma total falta de compromisso com normas sociais, subvertendo as regras em nome de interesses individuais comportamentos onde prevalece o personalismo (Holanda, 1999,17).
A cordialidade, pois, tentativa de reconstruo fora do ambiente familiar, no plano societrio, do mesmo tipo de sociabilidade da famlia patriarcal, de um tipo de sociabilidade dependente de laos comunitrios. (Mota, 2011, 251)
Os apontamentos de Srgio Buarque de Holanda sobre o tipo aventureiro e o homem cordial, uma das heranas da colonizao, aproximam-se muito do perfil do paulista em relao aos hbitos e costumes, desinteresse e desconhecimento no trabalho disciplinar e desejo de romper fronteiras na busca de novos rumos. Alm desse fator, foram submetidos a uma nova ordem social com base no mandonismo, acarretando num processo de excluso e numa relao de submisso.
Diante desse cenrio, no h de estranhar que o povo brasileiro seja dotado de criatividade e humor principalmente quando precisa lidar com questes mais racionais e objetivas, pois essas caractersticas driblam situaes de conflito e de formalidade.
A economia baseada na subsistncia e o isolamento que faziam parte do cotidiano paulista iro modificar-se radicalmente a partir da construo do caminho do mar no final do sculo XVIII, gerando o contato com outros povos e com o comrcio vindos pelo Atlntico, exigindo mudanas em seus hbitos e costumes. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Em 1807, com a abertura dos portos para o comrcio, vrios povos estrangeiros comeam a chegar, principalmente europeus. Uns interessados em estabelecer uma rota comercial, outros a fim de aprofundar pesquisas cientficas. Entre esses, um em particular, o botnico francs Auguste Saint-Hilaire, 11 vem ao Brasil em 1816 para estudar a rica flora existente no pas. Viaja para vrios lugares, comarcas, distritos e provncias como Rio de Janeiro, Santa Catarina, Minas Gerais e So Paulo (Saint-Hilaire, 1972, XXIII).
Ao lado de pesquisas na rea da botnica, fez descries de viagens do interior do Brasil, que vieram a ser publicadas em livros posteriormente. Um deles, Viagem a Provncia de So Paulo, originou um trabalho etnogrfico no intencional sobre a populao da provncia paulista. As descries que fez dos cidados foram realizadas de forma minuciosa, assim como estava habituado a fazer com plantas, enfocando seus hbitos, costumes, vestimentas, comportamento sem levar em considerao questes histricas e sociais sensveis ao pesquisador social.
Seu olhar do estrangeiro num espao adverso ao de sua origem e cultura. Entretanto, seu livro oferece uma riqueza de dados num perodo histrico importante sobre as populaes locais. O povo paulista de acordo com o botnico era formado por:
Escravos negros, uns crioulos, outros africanos; negros livres, africanos e crioulos; alguns indgenas batizados; um nmero considervel de indgenas selvagens; mulatos livres e mulatos escravos; homens livres, todos considerados, perante a lei, como da raa caucsica, entre os quais se encontra, porm, grande quantidade de mestios de brancos e indgenas tais so os habitantes da provncia de So Paulo. Estranha confuso de raas, do que resultam complicaes embaraosas e perigosas, quer para a administrao pblica, quer para a moral social. (Saint-Hilaire,1972, 95)
11 Jovem botnico francs, Auguste Saint-Hilaire (1779-1853) percorreu vrias provncias do Brasil, entre elas So Paulo. Ao lado de suas pesquisas na rea da botnica, Saint-Hilaire fez descries de viagens ao interior do Brasil, que vieram a ser publicadas posteriormente. Uma delas est no livro Viagem a Provncia de So Paulo, que relatou de forma minuciosa hbitos e costumes sobre a populao paulista, em especial o caipira, cidado do interior e de vida simples.
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Gilberto Freyre dir que justamente essa mistura de diferentes etnias, sua integrao e convivncia, descritas pelo botnico como confuso de raas e grande quantidade de mestios que habitavam a Provncia de So Paulo, que caracterizar o hibridismo cultural, proporcionando nao um aspecto nico. (Alves, 2004)
A ideia de hibridismo cultural a chave do pensamento freyriano, e presente em todo o conjunto de sua obra. Alves complementa.
... ele entende que a sociedade brasileira, bem como sua cultura, so hbridas devido fuso natural das culturas europeia, indgena e africana. No h como pensar em brasileiro isentando-o dessas influncias, ou melhor, sem entender que ele o novo, formado a partir da mistura dos trs elementos. (Alves, 2004, 128)
Alm do destaque negativo de Saint-Hillaire sobre o hibridismo presente na formao do povo paulista, ele aborda outras particularidades do caipira.
Estes ltimos, quando percorrem a cidade, usam calas de tecido de algodo e um grande chapu cinzento, sempre envolvidos no indispensvel poncho, por mais forte que seja o calor. Denotam os seus traos alguns dos caracteres da raa americana; seu andar pesado, e tm o ar simplrio e acanhado. Pelos mesmos tm os habitantes da cidade pouqussima considerao, designando-os pela alcunha injuriosa de caipiras, palavra derivada possivelmente do termo curupira, pelo qual os antigos habitantes do pas designavam demnios malfazejos existentes nas florestas (Brando, 1983, 10,11)
Para o botnico e outros viajantes, tais cidados (homens livres e pobres) no so nem sujeitos da histria como os conquistadores, personalidades da Coroa ou bandeirantes que desbravavam as matas paulistas e caavam populaes indgenas, nem pertencentes a uma cultura, como as populaes indgenas e africanas. Para ele, esses homens estavam mais As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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distantes da cultura civilizadora do que os ndios catequizados e os escravos integrantes das fazendas (Brando, 1983,140), como apresenta a descrio a seguir:
Enquanto descrevia e examinava as plantas, aproximou-se um homem do rancho, permanecendo vrias horas a olhar-me, sem proferir qualquer palavra. Desde a Vila Boa at Rio das Pedras, tinha eu tido qui cem exemplos dessa estpida indolncia. Esses homens, embrutecidos pela ignorncia, pela preguia, pela falta de convivncia com seus semelhantes, e, talvez, por excessos venreos prematuros, no pensam: vegetam como rvores, como as ervas dos campos. Obrigado, pela ventania, a deixar o rancho, fui procurar abrigo numa das cabanas principais, mas admirei-me da desordem e da imundice reinantes na mesma. Grande nmero de homens, mulheres e crianas desde logo rodeou-me. Os primeiros s vestiam uma camisa e uma cala de tecido de algodo grosseiro; as mulheres, uma camisa e uma saia simples. Os goianos e, mesmo, os mineiros de classe inferior vestem-se com muito pouco apuro, mas, pelo menos, so limpos; a indumentria dos pobres habitantes de Rio das Pedras era to imunda quanto suas cabanas. (Brando, 1983,15,16)
Essa viso no se refere apenas do botnico francs. Outros viajantes, estrangeiros e nacionais, tambm compartilharam essas ideias sem conhecer as questes e marcas histricas deixadas na sociedade brasileira. Alguns pesquisadores nem sequer mencionam o paulista.
Com tais adjetivaes, passa a ser estigmatizado 12 incorporando atributos como no civilizado, indolente, avesso ao trabalho, privado ao mesmo tempo de produo de cultura sobre a natureza (a agricultura) e da criao de uma cultura na sociedade, dificultando uma relao social cotidiana fora de seu meio (Brando, 1983,22). Em um dos raros momentos que Saint-Hillaire consegue ir alm e enxergar o caipira, diz:
12 O termo estigma ser usado em referncia a um atributo profundamente depreciativo, mas o que preciso, na realidade, uma linguagem de relaes e no de atributos. Um atributo que estigmatiza algum pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele no , em si mesmo, nem honroso nem desonroso. (Goffman,1988, 23) As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Esses mestios, relativamente inteligncia, esto muito abaixo dos mulatos, e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da Provncia de Minas Gerais. Estes so homens mais ou menos abonados, que possuem escravos e no cultivam a terra com as prprias mos; nos colonos brancos, ou pretensos brancos, da parte da Provncia de So Paulo de que me vou ocupando, no se podem ver seno verdadeiros camponeses: no possuem escravos e so eles prprios que plantam e colhem, vivendo, geralmente, em grande penria. Tm toda a simplicidade e os modos grosseiros dos nossos camponeses, mas no possuem, seja sua alegria, seja sua atividade. Se quinze camponeses de Frana se renem num domingo, cantam, riem, discutem, os de que trato apenas falam, no cantam e no riem e mantm-se to tristes depois de ter bebido cachaa, como estavam antes da ingesto dessa bebida alcolica. (Brando, 1983, 22)
No final do sculo XIX, alguns historiadores e cientistas sociais identificaram que, assim como o caiara, existia no interior paulista o caipira. Apesar de separados pela serra do mar, estes dois povoados tinham caractersticas muito semelhantes. O caipira passa a ser objeto de estudo, pois uma cultura reinventada a partir da herana adquirida dos povos indgenas e ensinamentos dos jesutas (Brando, 1983). Entre os que melhor compreendiam a cultura caipira, destaca-se Cornlio Pires.
Nos primeiros anos do sculo (XX) ningum ter estudado o caipira de So Paulo como Cornlio Pires, que entre contos e resumos de costumes dedicou a eles uma notvel coleo de escritos. (Brando, 1983, 26)
O caipira no se refere apenas ao habitante do interior paulista, mas a uma cultura, conhecedor da natureza e que possui organizao cultural e social com base na herana indgena, africana e europeia. Cornlio retrata o caipira da seguinte forma:
Por mais que rebusque o timo de caipira, nada tenho deduzido com firmeza. Caipira seria o aldeo; neste caso encontramos o tupi-guarani As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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capibigura. Caipirismo e acanhamento, gesto de ocultar o rosto: neste caso temos a raiz ca que quer dizer: gesto de macaco ocultando o rosto. Capipiara que quer dizer o que do mato. Capi, de dentro do mato: faz lembrar o Capiau mineiro. Caapi- trabalhar na terra, lavrar a terra - Caapira, lavrador. E o caipira sempre lavrador. Creio ser este ltimo caso o mais aceitvel, pois Caipira quer dizer roceiro, isto , lavrador... Homem da terra. 13
(Brando, 1983, 11)
No livro Conversas ao P do Fogo (1921), Cornlio Pires publicou um pequeno estudo sobre o caipira e que remete ideia do hibridismo cultural, classificando-os em caipira branco, caboclo, preto e mulato, descrevendo-os com suas particularidades tnicas e culturais dentro e fora de seu meio. Inicia pelo caipira branco dizendo que entre todos o de melhor estirpe e condies, pois descende de estrangeiros brancos, referindo-se aos colonizadores.
... gente que possa destrinar a genealogia da famlia at o trisav, confirmando pelo procedimento o nome e a boa fama dos seus genitores e progenitores. ... Descendem geralmente dos primeiros povoadores, fidalgos ou nobres decahidos de suas pompas, ou de brancos europeus attrahidos para a nossa terra pela rvore das patacas e que, nos sertes de ento, fecundos latinos, deixaram a sua descendncia. (Pires,1987, 11, 12)
Branco no apenas em funo da pele, podendo ser morena tambm, mas a referncia a ascendncia predominantemente europeia, em particular a portuguesa. Em sua maioria, os caipiras brancos so proprietrios de terras, seus filhos frequentam a escola e apesar de pobres so limpos. As mulheres so asseadas, discretas e pudicas. Riem abertamente e so bondosos, sossegados e seus filhos educados. Suas casas, apesar de serem de cho e telha van, so limpas, asseadas e organizadas (Pires, 1987, 12,13).
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A morada do caipira branco localizava-se em geral perto do rio, ribeiro ou crrego. Isso porque os bairros caipiras nasceram a partir dos antigos pousos dos bandeirantes e tropeiros que precisavam de gua em suas paradas. O rio era de grande serventia: alm do peixe, a gua era utilizada para beber, fazer comida, dar aos animais, lavar roupa e tomar banho.
Sobre a lida no campo, o branco dentre os outros tipos era o que mais estava prximo da lgica e organizao do trabalho.
O caipira branco trabalhava de segunda a sexta-feira. Dedicava a manh do sbado a pequenos servios: consertos na casa ou em outras dependncias; reparos de arreios e instrumentos de trabalho; cuidados especiais aos animais; preparo dos apetrechos de caa ou pesca no domingo de manh: a patrona de couro, a espingarda, chumbo, plvora, pios; ou varas, linhas, sondas, anzis, remo, farelo, iscas (minhoca, milho cozido, vsceras de frango ou de porco), pegando na margem do rio, onde costumava deix-los, o varejo, a poita, a canoa de peroba. (Rovai, 1978, 64)
O caipira caboclo era descendente de bugres - na concepo de Cornlio Pires, ndios catequizados por jesutas - e de colonizadores, portugueses, espanhis ou aventureiros europeus que vieram em busca de riquezas.
Intelligentes e preguiosos, velhacos e mantosos, barganhadores como os ciganos, desleixados, sujos e esmulambados, do tudo por um encosto de mumbava ou de capanga; so valentes, brigadores e ladres de cavallos... Sua vida caar (com aviamentos arranjados aqui e ali a custa de pedinchices), pescar, dormir, fumar, beber pinga e tocar viola, enquanto a mulher, guedelhuda e imunda, vae pelos vizinhos, pidonha e descarada, filar dos bons trabalhadores o feijo, o toicinho, o assucre, o caf, a farinha e... um manojo de couve. (Pires, 1987, 20, 22)
13 Negrito inserido por mim para dar destaque no texto sobre a definio de caipira por Cornlio Pires. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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A vida do caboclo era muito precria, no possua terras, em geral era posseiro sem ttulo, ocupava-as por terra devoluta ou por invaso, que em muitos casos os proprietrios preferiam tolerar a se indispor com sucessivas expulses; alm do mais, tinha serventia. Era usado como mumbava, o informante, que avisava o proprietrio sobre a presena de estranhos e em poca de eleies servia de capataz para ameaar aqueles que eram contrrios poltica governista. Em geral o proprietrio presenteava-o com uma caa pelos servios prestados. (Rovai, 1978, 68)
Tudo na vida do caboclo era de extrema pobreza, desde sua casa, de pau a pique, sem moblia, quando muito uma mesa e cadeira, sem muitos utenslios, somente faces, foice, varas de pescar, enxadas, coador de caf, pote de gua de barro, algumas panelas de barro e talheres, cuias e o pilozinho. Atrs da casa tinha algumas plantaes que no necessitavam de muito trabalho, como couve, salsa, batata doce, mamo, abbora, banana e limo, espcies vegetais encontradas com facilidade na natureza. Na rotina:
O caboclo no tinha pressa para nada. Pressa no paga a pena, era o seu refro favorito. Era inaltervel o seu sossego na rotina diria: de manhzinha, o caf com mandioca cozida, de manh, o almoo (arroz, feijo, couve rasgada, torresmo, substitudo, s vezes, por caa ou peixe); em seguida, uns tratos lavourinha; no pino do sol, a sesta; tarde, conforme a ocasio ou a necessidade entrava pelo mato em busca de frutas, de favos de mel, de material para o seu artesanato; na boca da noite, a janta, repetio do almoo. Comida preparada com gua do rio, colhida no mesmo local que servia para o banho e para lavadouro de roupas. (Rovai, 1978, 70)
O tipo caboclo era o que menos se adequava viso do caipira para Cornlio Pires. Alm da falta de higiene, so preguiosos e sem apreo pelo trabalho. Saint-Hillaire e Monteiro Lobato tambm salientaram estas caractersticas, com a diferena que generalizam o caipira no tipo caboclo.
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O estudo do autor, sem pretenses acadmicas e de conhecimento cientfico, classifica os caipiras em etnias, e compara uns com os outros, atribuindo-lhe caractersticas sociais, fsicas e culturais negativas e positivas, principalmente em relao ao branco e ao caboclo, o que induz a hiptese da influncia do pensamento dominante com base na questo racial sobre o atraso social do pas.
A respeito das explicaes de o caboclo no ter motivao, apego ao trabalho e apresentar atributos negativos como preguia, indolncia, h referncias de vrios tericos, a iniciar por Gilberto Freyre, que defendem a ideia do problema dessa debilidade, dessa fraqueza ter origem social e cultural, visto a subnutrio e doena presente na populao brasileira, e no racial como nos apontamentos do racismo cientfico de que a aparente tristeza, preguia, luxria, eram resultado da mestiagem entre raas inferiores (Mota, 2011, 222). Para Rubens Borba de Moraes, deve-se ao fato da provncia paulista estar isolada durante sculos de outros povos, baseada numa cultura de subsistncia e no inserida na lgica capitalista do trabalho. Darcy Ribeiro, por outro lado, fundamenta que o motivo era mais a falta de necessidade, estmulo e conhecimento de tcnicas do que por indolncia ou preguia.
A fundamentao de Nelson Werneck Sodr ser em decorrncia de uma cultura transplantada baseada na relao entre senhores e escravos e que os homens livres no pertenciam nem a uma classe nem a outra, ficando assim excludos do processo social. E Srgio Buarque de Holanda basear sua tese nos tipos ideais/sociais a partir do aventureiro, semeador e do homem cordial presentes na cultura ibrica e deixados de herana para a nao.
As ideias apresentadas sobre cultura, raa, hibridao, tipos sociais, tipos de caipira, podem ser relacionadas com o famoso personagem Jeca Tatu criado por Monteiro Lobato. O Jeca Tatu nada mais do que as aproximaes do paulista do interior descrito por Saint- Hillaire e Monteiro Lobato no que se referem indolncia, falta de higiene e preguia e com as mesmas caractersticas do tipo caboclo de Cornlio Pires.
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Ele o resultado da mistura entre os ndios catequizados e o branco europeu, com hbitos e costumes herdados de uma cultura baseada em princpios de comunidade indgena e da herana incorporada da cultura ibrica, na busca de resultados imediatos, fadado prpria sorte. Porm numa sociedade formada na relao entre senhores e escravos sua condio social por si j excludente, mantendo assim uma relao com outros base da cordialidade como recurso para preservar-se de opresses.
Essa imagem sobre o caipira permaneceu at meados do sculo XX, pois nesse perodo, alm dos estigmas a ele atribudos, nasce no Brasil o movimento higienista ou sanitarista com a proposta da defesa da sade pblica, reformulando os hbitos de higiene da populao para colaborar com o aprimoramento da sade coletiva e individual. Porm, esse movimento foi muito discutido por pesquisadores como um instrumento aliado ao pensamento da elite e do poder pblico para perseguir as populaes pobres. A respeito dessa ideia, Paulo Csar Garcez Marins diz:
Acusadas de atrasadas, inferiores e pestilentas, essas populaes seriam perseguidas na ocupao que faziam das ruas, mas, sobretudo ficariam fustigadas em suas habitaes. (Marins, 1998, 133)
As ilustraes em livros e revistas tambm demonstraram esse pensamento em que a imagem do caipira torna-se alvo de propagandas para comercializar medicamentos, como Biotnico Fontoura. O caipira passa de um sujeito avesso ao trabalho e indolente vtima da verminose, explicando seu comportamento no adequado lgica do trabalho capitalista e reiterada pelos segmentos elitizados da sociedade.
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Como um passe de mgica aps o uso do medicamento, ele torna-se forte, saudvel e transforma-se em empreendedor rural, como se pode notar na ilustrao a seguir.
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14 Ambas as caricaturas so do ilustrador Belmonte. Benedito Carneiro Bastos Barreto (S.P, 15 de maio de 1896 S.P, 19 de abril de 1947). Foi caricaturista, pintor, cartunista, cronista, escritor e ilustrador brasileiro. Fonte: http://pit935.blogspot.com/2011/03/semana- de-arte-moderna-e-o-cartaz-bem.html As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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O caipira preto descendente de africanos vtima da cultura transplantada pelos colonizadores. pobre e com a sade comprometida em funo da condio de escravo e excesso de trabalho.
E elle, o pobre negro velho, nos sorri contando histrias de outros tempos, humilde, cabisbaixo, sem gestos, ou s gesticulando de quando em quando, tentando extender a mo engruvinhada, de dedos encrcados, entravada pelo rheumatismo, mo com que tenta mostrar o porte de uma criana ou apontar o quartel de canna ou o talho de caf-velho, para alm, muito alm, onde elle conheceu a mata-virgem e ouviu o estrondar dos jequitibs nas derribadas; onde elle viu erguer-se a lavoura nova do sinh e onde amou a sua crioula... (Pires, 1987, 28)
Apesar da estrema pobreza, Cornlio Pires dir que o caipira preto velho criou bem seus filhos, ensinando-os a superar essa condio por meio do trabalho. Ele tem um pequeno pedao de terra onde construiu sua casa de sap e sua pequena horta. So educados, limpos, batuqueiros e sambadores (Pires, 1987,30, 31).
Os mais velhos ainda ficaram na roa na condio de colonos ou pequenos sitiantes, pois diante das transformaes econmicas, sociais e polticas aps a abolio e o grande contingente de trabalhadores livres, e falta de recursos financeiros, no tinham condies de comprar terras e expandir-se. Quanto aos mais jovens, foram para as cidades a fim de exercer trabalho domstico e aqueles que exigiam fora fsica, como na estiva, em Santos, por serem extremamente fortes (Rovai, 1978, 73).
O caipira mulato descendente de africanos ou de brasileiros negros com a unio de portugueses ou de brasileiros brancos. So bons trabalhadores, no so proprietrios de terras e em sua maioria so muito cordiais. O autor sinaliza para o fato de o caipira mulato no misturar-se com o negro, tratando-o em geral com descaso, e estar sempre luctando contra a preveno do branco e fugindo, repelindo o preto, ficou numa situao especial e As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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porisso procura sempre e sempre se elevar e se distinguir pelas suas aes. (Pires, 1987, 32)
Na descrio deste tipo de caipira, fica evidente o preconceito do mulato em relao ao preto na possibilidade de ser identificado como descendente do escravo africano, junto com os atributos sociais negativos e legitimados por uma sociedade agrria escravocrata.
O caipira mulato era minoria entre os outros tipos, pois no tinha apreo pela lida agrcola que recordava a escravido, e assim prefere ir para os centros urbanos. Rovai diz que o mulato tinha grande apreo pelo trabalho em rgos pblicos.
O mulato de condio modesta tinha irresistvel pendor para o funcionalismo publico, no qual cobiava duas posies que acabava conquistando: contnuo de gabinete e motorista de secretrio do Estado, posies que lhe permitiam ir encaminhando para melhor destino os filhos, parentes e amigos. (Rovai, 1978, 74)
O termo caipira no se refere a um tipo racial e sim designa sua cultura, porm Antonio Candido dir que a classificao de Cornlio Pires faz sentido devido ao processo do acaipiramento da populao rural.
a maneira justa de usar os termos, inclusive porque sugere a acentuada incorporao dos diversos tipos tnicos ao universo da cultura rstica de So Paulo processo a que se poderia chamar acaipiramento, ou acaipirao, e que os integrou de fato num conjunto bastante homogneo. (Candido, 1987, 22, 23)
Em meados de 1800 o cenrio econmico e social paulista muda radical e rapidamente aps trs sculos de isolamento. Vrias cidades do interior paulista passam a ter engenhos e produo de acar, porm o que fortalecer a agricultura paulista ser o caf, que ganha As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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visibilidade junto com o surgimento da primeira estrada de ferro com ligao ao porto de Santos, suplantando a era do acar.
Tal se d com o surgimento de novos cultivos comerciais de exportao, com o algodo e o tabaco e mais tarde o caf, que reativariam as regies caipiras. As estradas melhoram e se refazem os sistemas de transportes por tropas. Simultaneamente, uma reordenao institucional se vai implantando no nvel civil e no eclesistico: as vizinhanas se transformam em distritos, os arraiais em cidades, providos j de certo aparato administrativo que entra a examinar a legalidade das ocupaes de terras. (...) Assim, o domnio oligrquico que remonopolizava a terra e promovia o desenraizamento do posseiro caipira, com a ajuda do aparelho legal administrativo e poltico do governo, ganha fora e congruncia, passando a exigir tambm as lealdades do caipira. (Ribeiro, 1997, 386, 387)
Essa ordem econmica e social legitimada pelo aparelho do Estado mais uma vez exclui o paulista, o pequeno agricultor, o trabalhador rural desse processo por no pertencer s formas de produo mais desenvolvidas, surgindo assim uma vasta camada inferior de cultivadores fechados em sua vida cultural (Candido, 1964, 55). Alm da excluso nesse processo, a posse de sua terra era irregular. Os latifundirios adquirem cada vez mais fora poltica e proteo, expropriando-o da terra, do trabalho, de seu meio de vida e de sua cultura em funo do grande contingente de mo-de-obra imigrante contratada. O caipira se v novamente margem do desenvolvimento e sem perspectiva e esperana de reverter essa situao.
O atraso do pas na organizao social do trabalho, na produo, o mandonismo dos donos de latifndios e o apreo destes por privilgios, caractersticas herdadas da cultura e do personalismo ibrico, impossibilitaram os vnculos de solidariedade, coeso no trabalho entre os homens e igualdade na competio. O resultado de privilgios concedidos ser sempre desigual, sendo sempre alguns homens mais, outros menos e outros mais ou menos As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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dependentes de outros, pois entre os povos ibricos, a vontade de mandar e de cumprir ordens so-lhes igualmente peculiares. (Mota, 2011, 241)
A ausncia de disciplina e organizao do trabalho e atributos negativos como indolncia, preguia, ignorncia, entre outros, acabaram recaindo sobre o caipira, responsabilizando-o pelo atraso no desenvolvimento socioeconmico e cultural do pas.
Desse modo, o caipira marginalizado por no integrar a lgica do trabalho dirigido que para ele comparado escravido. Darcy diz:
... o caipira esfoliado de suas propriedades e sucessivamente expulsado de suas posses continua resistindo a submeter-se ao regime da fazenda. Toda a sua experincia o faz identificar o trabalho de ritmo dirigido como uma derrogao de sua liberdade pessoal, que o confundiria com o escravo. Confinado nas terras mais sfaras, enterrado na sua pobreza, o caipira v, impassvel, chegarem e se instalarem, como colonos das fazendas, multides de italianos, de espanhis, alemes, poloneses para substiturem o negro no eito, aceitando uma condio que ele rejeita. (Darcy, 1997, 389)
Enfim, o to esperado reverso na condio econmica e social dessas populaes - do paulista, que o foco neste tema - e valorizao de seu trabalho visto at aqui no ocorreu. Esses cidados ainda continuam invisveis aos olhos daqueles que no (re)conhecem sua histria, seu trabalho, seu modo de vida, por ser o contrrio do que se considera como padro de civilizao (Brando, 1983,12).
O reverso dessa condio pode-se dizer que se deu pelo reconhecimento e interesse de vrios intelectuais, artistas, escritores, estudiosos, que pertenciam a uma nova intelectualidade brasileira em (re) ver, (re) conhecer e (re) descobrir o caipira como sujeito e que resultou numa coleo de obras a ele dedicadas desde fins de 1800 at os dias atuais.
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15 Charge na Revista O Sacy sobre a explorao do caipira pelos grandes latifndios. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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CAPTULO II
A VOLTA POR CIMA: Distores, Crticas, Movimentos e Valorizao da Cultura Regional Paulista
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No incio do sculo XIX, ainda havia diferentes concepes de mundo e de prticas sociais convivendo no mesmo espao territorial do pas, a dos que aqui habitavam e a dos que aqui chegavam. Os daqui ainda viviam em um tempo em que a vida social era baseada na comunidade, no trabalho em conjunto, na economia de subsistncia, nos laos de parentesco. J os estrangeiros estavam integrados num tempo onde esses vnculos no pertenciam tanto a sua dimenso cotidiana, e sim a atividades voltadas para o mundo do trabalho disciplinado com finalidade na produo de bens e comercializao.
Nessa convivncia de espao e tempo, ambos no compreendiam suas diferenas e lgicas de mundo. Muitos habitantes daqui, principalmente homens livres 16 , resistiram a integrar a nova ordem, que era baseada na explorao econmica e social imposta pelo sistema. Essa resistncia foi interpretada como indolncia, preguia, deformao na cultura. Essas distores foram incorporadas no imaginrio social do povo brasileiro, como tambm do estrangeiro.
Muitos pesquisadores e escritores desse perodo no compreendiam os fatores histricos que influenciaram de forma negativa a formao do povo brasileiro, do povo paulista. Os equvocos nas descries de Saint-Hillaire permaneceram at meados do sculo XX, como se pode constatar no artigo de Monteiro Lobato intitulado Velha Praga, publicado no jornal O Estado de So Paulo e includo na segunda edio de "Urups (1918) 17 .
O artigo uma crtica sobre a destruio do ecossistema e descaso das autoridades pblicas em no fiscalizar e punir os responsveis pelas queimadas que ocorriam nas matas da Serra da Mantiqueira. Monteiro Lobato aponta e acusa o caboclo por esse dano ambiental e o condena a uma condio de no pertencimento ao mundo civilizado. Ele escreve:
16 Homens livres se referem aos que no estavam nem na condio de senhor ou de escravo e/ou de populaes indgenas. 17 Urups sm. (tupi urup) Bot. Espcie de cogumelo da famlia das Poliporceas (Polyporus sanguineus); orelha-de-pau, pironga. U.- vermelho: planta brasileira (Tremetes sanguineus). As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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A nossa montanha vtima de um parasita, um piolho da terra, peculiar ao solo brasileiro como o Argas 18 o aos galinheiros ou o Sarcoptes mutans 19
perna das aves domsticas. Poderamos, analogicamente, classific-lo entre as variedades do Porrigo decalvans 20 , o parasita do couro cabeludo produtor da pelada, pois que onde ele assiste se vai despojando a terra de sua coma vegetal at cair em morna decrepitude, nua e descalvada. (Lobato, 2009:160). Este funesto parasita da terra o CABOCLO 21 , espcie de homem baldio, seminmade, inadaptvel civilizao, mas que vive beira dela na penumbra das zonas fronteirias. medida que o progresso vem chegando com a via frrea, o italiano, o arado, a valorizao da propriedade, vai ele refugindo em silncio, com o seu cachorro, o seu pilo, a pica-pau 22 e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteirio, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para no adaptar-se. de v-lo surgir a um stio novo para nele armar a sua arapuca de agregado; nmade por fora de vagos atavismos, no se liga terra, como o campnio europeu: agrega-se, tal qual o sarcoptes, pelo tempo necessrio completa suco da seiva convizinha; feito o que, salta para diante com a mesma bagagem com que ali chegou ... Chegam silenciosamente, ele e a sarcopta fmea, esta com um filhote no tero, outro ao peito, outro de 7 anos ourela da saia este j de pitinho na boca e faca cinta. Completam o rancho um cachorro sarnento Brinquinho, a foice, a enxada, a pica-pau, o pilozinho de sal, a panela de barro, um santo encardido, trs galinhas pevas e um galo ndio. Com estes simples ingredientes, o fazedor de sapezeiros perpetua a espcie e a obra de esterilizao iniciada com os remotssimos avs. (Lobato, 2009, 161)
18 Sm. (gr Args, np) Entom Gnero (Argas) de carrapatos, da famlia dos Argasdeos, que inclui o cosmopolita carrapato das galinhas (Argas persicus), sria praga das aves domsticas nos pases quentes, inclusive o Brasil, onde age tambm como vetor da espiroquetose das galinhas. 19 Sm. Zool. Gnero (Sarcoptes) de caros, tipo da famlia dos Sarcoptdeos, que inclui a espcie Sarcoptes scabiei, que produz a escabiose no homem. 20 Sf. (lat. tinea) 1 Med. Micose dos plos, especialmente dos cabelos, na qual o parasito atinge o plo na sua raiz e invade o folculo, bem como a epiderme da superfcie; porrigem. 2 Zool. Lagarta de uma espcie de borboleta, que ataca as colmeias, devorando a cera. 3 Vcio, mcula, defeito. T. favosa: dermatose parasitria, contagiosa, devida a um cogumelo denominado Tricophyton schoenleinii; favo. T. falsa: nome de diversas afeces do couro cabeludo, no contagiosas. T. tonsurante: existncia, na cabea, de placas em que os cabelos so extremamente curtos. T. verdadeira: nome vulgar da tinha favosa. 21 O autor escreveu a palavra caboclo em maiscula para dar nfase. 22 Pica-pau: espingarda de carregar pela boca. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Este artigo reflete o pensamento no s de Monteiro Lobato, mas de uma sociedade baseada no sistema patriarcal e escravocrata que ignorou os fatores histricos daqueles que no pertenciam condio de senhor nem de escravo. Eram homens pobres e livres, no integrados ordem social e econmica, caindo-lhes o estigma de vadios e imprestveis para o exerccio do trabalho disciplinar, baseado na explorao e violncia.
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Em defesa do caipira, do caboclo, Lcio Kowarick explica de forma brilhante que:
Marginalizado desde os tempos coloniais, o homem livre e liberto tende a no passar pela escola do trabalho, sendo frequentemente transformado num itinerante que vagueia pelos campos e cidades, visto pelos senhores como a encarnao de uma corja intil que prefere o cio, a vagabundagem, o vcio ou mesmo o crime, disciplina do trabalho nas fazendas... Na medida em que as relaes de produo fossem marcadas pelos rigores e horrores imperantes no regime de trabalho escravo, nada mais natural que a populao livre encarasse o trabalho, definido dessa forma como alternativa mais degradada da existncia. (Kowarick, 1987, 65, 66)
23 Jeca Tatu Criado pelo ilustrador Belmonte, que aps o falecimento de Voltolino passou a desenhar para vrias revistas e escritores, inclusive para Cornlio Pires. Aqui o caipira foi ilustrao a pedido de Monteiro Lobato para o livro Urups e aparece de forma estilizada na aparncia do caboclo ou bugre, mistura entre o indgena catequizado e o branco europeu. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Na contramo desses atributos negativos, Cornlio Pires, apesar de valorizar a cultura caipira, tambm no deixou de estiliz-lo na aparncia e comportamento com as velhas descries citadas por Saint-Hillaire, em relao ao caipira caboclo que tambm no era bem visto por ele, a notar pela classificao que fez dos tipos de caipira, mas no o compara a uma praga como fez Monteiro Lobato, e sim tenta explicar sua condio.
Curiosamente, mesmo ao apresentar o caipira de modo mais abrangente, com uma observao que se declara isenta, Cornlio Pires no discrepa muito da caricatura traada por Lobato. Quando se refere ao "caipira caboclo", reitera a imagem fixada pelo criador do Jeca, no fsico: Cabelos grossos e espetados que no tiveram contato com o pente, a barba rala, "sameada" no queixo, fios espetados aqui e ali... (CPF, p.20) no comportamento: Inteligentes e preguiosos, velhados e "mantosos", barganhadores como ciganos, desleixados, sujos e esmulambados ... so valentes, brigadores e ladres de cavalos... (Leite, 1996, 123)
Contudo, apesar da vertente satrica, Cornlio Pires no faz nenhum tom risvel em relao ao caboclo; pelo contrrio, seu estudo puramente emprico enfatiza a preocupao com seus patrcios e prope alternativa, mesmo que ingnua, para melhorar sua condio de vida. Sylvia Helena Leite complementa.
O objetivo do ensasta procurar causas e solues, ainda que ingnuas, paternalistas, certamente motivadas pelo iderio do liberalismo, to forte na dcada de 1910, com a campanha higienista, a defesa da alfabetizao em massa, a apologia da educao e da sade pblica como solues para os males sociais, a bandeira da moralizao da poltica etc.: Ainda no esto perdidos os caipiras caboclos. Para salv-los bastam duas coisas tomadas a srio: a escola e a obrigatoriedade do ensino... mas de verdade! (CPF, p.26). (Leite, 1996, 123)
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Ao caboclo recaram todos os sentidos e imaginrios pejorativos, que em muitos estudos e na prpria literatura desqualificaram-no, seja em virtude de sua herana cultural ou de seu modo de ser e agir, porm h os que identificaram seu legado importante para nossa sociedade. Pela ascendncia indgena e sincretismo religioso - preceitos da religio catlica e crendices e mitos - resultou nos personagens e estrias surreais que o prprio Monteiro Lobato tanto explorou em seus livros, como o Saci-Perer, Boitat, Caapora e as superties que se fazem presentes at os dias de hoje. Alberto Rovai descreve a riqueza cultural do caboclo.
A sua mais aparente do que real aculturao fazia com que os preceitos da igreja se misturassem com as crendices oriundas do sincretismo religioso luso- afro-indgena. Do rosrio de contas de capim, que invariavelmente trazia no pescoo, pendiam o santinho, a fava-de-santo-incio, o dente de jacar ou de porco-do-mato, o patu talisms poderosos contra mal feito, mordedura de cobras, tiros e facadas. No cabo do porrete de piva, seu companheiro inseparvel, desenhava a fogo (reminiscncia totmica) a figura de um bicho, o que muito o ajudava no ataque e na defesa. s crendices juntavam-se as superties: cuspir no fogo faz secar a boca; varrer a casa de noite sinal de morte prxima de algum da famlia; matar sapo traz seca brava; guardar a vassoura atrs da porta com o cabo pra baixo afugenta visitas em resumo, uma infinidade de superties alusivas ao nascimento, vida, morte, sade, prosperidade, desgraa, amizade e inimizade, ao bom e ao mau tempo, etc. Os mitos o Saci-Perer, o lobisomem, o boitat, o caapora, a mula-sem- cabea, a me dgua, etc. no eram para o caipira caboclo entidades abstratas, mas seres vivos cuja origem ele conhecia e cuja atuao ele via ou sentia. (Rovai, 1978, 67)
Excludos pela sua condio cultural, econmica e racial, que ainda se fazia presente em funo dos estudos baseados no racismo cientfico, estes conceitos foram aos poucos contestados, por diversos intelectuais, artistas, pesquisadores, defendendo a tese de que o As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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problema no estava na origem da raa e mestiagem, e sim nas razes histricas e sociais mencionadas no captulo anterior.
A repercusso do artigo de Monteiro Lobato entre a nova classe intelectual paulista foi muito negativa, e, para suavizar essa tenso, Monteiro Lobato escreve uma carta a Godofredo Rangel dizendo que a inteno foi de provocar Cornlio Pires.
Aquilo (o caboclismo) foi fabricao histrica para bulir com o Cornlio Pires, que anda convencido de ter descoberto o caboclo. (...) O caboclo de Cornlio Pires uma bela estilizao sentimental, potica, ultra-romntica, fulgurante de piadas e rendosa. O Cornlio vive, e passa bem, ganha dinheiro gordo, com as exibies que faz do seu caboclo. D caboclo em conferncias a 5 mil-ris a cadeira e o pblico mija de tanto rir. E anda ele agora por aqui, Santos, a dar caboclo no Miramar e no Guarani. Ora, o meu Urups veio estragar o caboclo do Cornlio estragar o caboclismo. (Saliba, 2002, 176)
Cornlio Pires rebate, criticando no s Monteiro Lobato, mas todos que sintetizaram no caipira os equvocos das constantes anlises negativas desde os tempos de Auguste Saint- Hilaire. O tieteense inverte a crtica ao caipira e esclarece porque ele tornou-se um ator subalterno da prpria histria.
Nascidos fora das cidades, criados em plena natureza, infelizmente tolhidos pelo analfabetismo, agem mais pelo corao do que pela cabea. Tmidos e desconfiados ao entrar em contato com os habitantes da cidade, no seu meio so expansivos e alegres, folgazes e francos; mais francos e folgazes que ns outros, os da cidade. De rara inteligncia no vai nisso um exagero so incontestavelmente mais argutos, mais finos que os camponeses estrangeiros. Compreendem e aprendem com maior facilidade; fato, alis, observado por estrangeiros que com eles tm tido ocasio de privar. fato: o caipira puxador de enxada, com a maior facilidade se transforma em As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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carpinteiro, ferreiro, adomador, tecedor de taquaras e guemb, ou construtor de pontes... Os caipiras no so vadios: timos trabalhadores tm crises de desnimo quando no trabalham em suas terras e so forados a trabalhar como camaradas, a jornal. Nesse caso o caipira , quase sempre, uma vtima. O trabalhador estrangeiro tem suas cadernetas, seus contratos de trabalho, a defesa do Patronato Agrcola e seus cnsules Trabalha e recebe dinheiro. Ao nacional, com raras excees o patro paga mal e em vales com valor em determinadas casas, onde os preos so absurdos e os pesos arrobalhados; nesse caso, o caipira no tem direito a reclamaes nem pechinchices, est comprando fiado com o seu dinheiro, o fruto do seu suor transformado em pedao de caderneta velha rabiscada a lpis. E querem que o brasileiro tenha mais nimo! nimo no lhe falta, quando trabalha em suas prprias terras. As suas algibeiras e o seu crdito nas lojas e vendas o confirmam... (Pires, 1987, 5, 6,7)
Monteiro Lobato mais tarde rev sua posio e escreve uma carta a Cornlio Pires para elogiar a criao de seu personagem Joaquim Bentinho.
... J comprei as "Aventuras" e li-as e venho dar-te um abrao e ao mesmo tempo confirmar-lhe minha imensa admirao pela tua obra, inda no bem compreendida pela crtica. Voc, Cornlio, um dos pouqussimos que vo ficar. H tanta verdade nos teus tipos, tanta vida, h tanto humanismo na tua obra, h tanta beleza, e tanta originalidade em teu estilo que ests garantido, ests prova do tempo que varre impiedosamente o que medocre. Um sincero abrao! (Leite, 19,116)
Estes dois autores tinham formao e viso bem diferentes sobre o rural. Um descendia da elite, donos de fazenda, educao clssica, hbitos e costumes europeus, o outro era de origem simples, famlia de sitiantes e sem titulaes acadmicas, to valorizadas na poca, assumindo, desde cedo, sua condio e identidade caipira. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Mesmo com limitaes no campo do conhecimento cientfico, Cornlio Pires captura o saber da cultura popular, da cultura caipira, das diferenas tnicas que compunham nossa sociedade, de forma efetiva, compartilhando o cotidiano construdo no decorrer da histria desses paulistas, suas estrias, vestimentas, alimentao, seu trabalho, seus contos e provrbios.
A estes apontamentos estereotipados do caipira, soma-se um longo perodo em que a sociedade privilegiou a cultura europeia, principalmente a francesa, para ditar padres em relao aos hbitos, costumes, comportamento, numa perspectiva do que era culto e civilizado, alm da supervalorizao e consumo no campo cultural (msica, dana, literatura, artes plsticas).
A mudana deste cenrio dar-se- a partir das primeiras dcadas de 1900 com a iniciativa de um grupo de intelectuais e artistas nacionais como: Oswald de Andrade, Mrio de Andrade, Tarsila do Amaral, Guilherme de Almeida, Villa-Lobos e tantos outros atravs de movimentos nas artes e na literatura como o Regionalismo, o Modernismo, a Semana de Arte Moderna em 1922, o Movimento Antropofgico, Pau-Brasil 24 e outros em prol da valorizao da cultura nacional e popular. 25
A ausncia que havia na comunicao entre as regies colaborou no desconhecimento de artistas e intelectuais sobre as diferentes formas de manifestaes culturais populares existentes no pas, porm houve aqueles que declararam sua falta de interesse nesse segmento por no pertencer ordem culta dominante, que tinha como referncia a Europa.
O interesse da nova intelectualidade por temas nacionais como o serto, o rural, a busca de uma cultura brasileira, na explicao de Elias Thom Saliba, ocorreu porque ... havia
24 O Movimento Pau-Brasil foi lanado em 1924 por Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral e procurou resgatar a poesia ingnua, de redescoberta do mundo e do Brasil, e foi inspirada nos movimentos de vanguarda europeus, devido s viagens que Oswald fazia a Europa. Esse movimento foi levado ao pblico com a publicao do livro Pau-Brasil, escrito por Oswald de Andrade e ilustrado por Tarsila do Amaral. O movimento exaltava o progresso e a era presente, ao mesmo tempo em que combatia a linguagem retrica e vazia. Convivem dialeticamente o primitivo e o moderno, o nacional e o cosmopolita. 25 Em 1922, Oswald, Tarsila, Olvia Penteado e Blaise Cendras viajam para a cidade do Rio de Janeiro com o objetivo de conhecer o cotidiano e as manifestaes populares, como o samba, e depois para vrias cidades de Minas Gerais. Essa viagem chamou-se Viagem de Redescoberta do Brasil e foi um marco importante, pois muitos intelectuais e artistas brasileiros e estrangeiros no conheciam at ento a arte popular realizada pelos cidados dessas localidades. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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cansao da cultura francesa que h um sculo comandava o nosso pensamento, nosso processo artstico. (Saliba, 2002)
O Regionalismo no Brasil ocorreu em duas fases. A primeira no final do sculo XIX com autores de maior expresso como Jos de Alencar, com os romances coloniais, e Gonalves Dias com as poesias indianistas, cuja inteno estava em aspiraes patriticas, e a segunda no comeo do sculo XX, quando o tema sobre o rural aparece de forma mais intensa, retratando o meio a partir dos aspectos fsicos e sociais em forma de prosa. Essa segunda fase marcada pela caracterstica de alguns autores transporem para a linguagem escrita o modo de falar das populaes regionais e do interior das grandes metrpoles. Nesse segmento os autores que se destacaram so Simes Lopes Neto, Valdomiro Silveira e Cornlio Pires.
Em se tratando da produo literria de Cornlio Pires, ela ocorre entre as dcadas de 1910 e 1940, e durante esse perodo possvel notar trs fases distintas. A primeira corresponde a 1910, com a publicao de Musa Caipira, at 1921, com Cenas e Paisagens da Minha Terra. Nesta fase inaugural seus textos eram compostos de versos e sonetos e seu estilo j tende para o Regionalismo, abordando a cultura rstica e inovando com a incluso da linguagem falada do caipira em seus textos. nesse perodo que adquiriu reconhecimento pblico e de alguns crticos.
A seguinte ocorre a partir de 1921, com Conversas ao P do Fogo e a publicao de As Estrambticas Aventuras de Joaquim Bentinho, em 1924. Esta fase composta de estudos, contos, anedotas, crticas e stiras aos que desconsideravam essa forma de cultura.
No final da dcada de 1920 e incio de 1930, sua produo literria comea a entrar em decadncia e seus contos e anedotas tornam-se repetitivos e sem a originalidade inicial. Suas publicaes deixam de ser propriamente sobre o caipira, que passa a se misturar com temas urbanos. Porm, no abandona seu propsito de exaltar a cultura regional paulista seja na literatura, na msica, em apresentaes humorsticas e palestras. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Cornlio Pires se declarava um Regionalista, pois nesse campo encontrou o meio de dar vazo fala de sua gente e de sua cultura at ento desconhecida por outros segmentos sociais.
Escrevendo para a minha gente, para os meus caipiras, quer sejam da cidade quer dos stios, desde 1910 me dedico ao regionalismo, e no procuro fazer literatura para a alta crtica... A pretexto de narrar casos e mentiras, registro o linguajar do roceiro, expondo consideraes ligeiras sobre as necessidades dos nossos caipiras e procuro dar uma plida ideia da nossa gente, da vida rstica e da nossa paisagem. Talvez a obra no saia ao sabor de certos leitores... Pacincia... Quem d o que tem... (Pires, 1985, 81)
Muitos crticos literrios no apreciavam a produo literria dos autores dessa vertente, com exceo a Guimares Rosa, Graciliano Ramos e Euclides da Cunha, e criticaram a intensa publicao de livros e autores que surgiram na poca abordando essa temtica predominantemente popular.
... o regionalismo correspondia, inequivocamente, a um grande avano no sentido da criao de uma literatura nacional. Os primeiros traos desta encontram-se, sem dvida alguma, nos melhores regionalistas, naqueles que conseguiram superar as deficincias ligadas principalmente ao geografismo e ao linguajar. Eles nos deram, dentro do regional mais genuno, o sentido universal que denuncia a presena da qualidade literria, quando esta alguma coisa mais do que simples virtuosismo formal. (Sodr, 1982, 408)
A viso destes crticos e estudiosos da literatura como Lcia Miguel Pereira, Nelson Werneck Sodr, Antonio Candido, Afrnio Coutinho, entre outros, sobre a produo do Regionalismo em seu segundo momento foi implacvel em suas consideraes negativas. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Suas justificativas se basearam por se tratar, em sua maior parte, de narrativas por demais ingnuas e pitorescas em relao ao cotidiano das populaes regionais e composies em muitos casos simplrias e artificiais.
Para Afrnio Coutinho esse segmento literrio pecava em supervalorizar o pitoresco, a cor local do tipo, ao mesmo tempo em que procura encobri-lo, atribuindo-lhe qualidades, sentimentos, valores que no lhe pertencem, mas cultura que se lhe sobrepe. (Freitas, autores, 1998, 321)
Mesmo Antonio Candido, buscando afastar-se de interferncias em relao aos esteretipos dominantes ao caipira, no reconhece a maior parte da produo literria regional em sua segunda fase e a critica quanto ao gnero e contedo.
O regionalismo, que desde o incio do nosso romance constitui uma das principais vias de autodefinio da conscincia local, com Jos de Alencar, Bernardo Guimares, Franklin Tvora, Taunay, transforma-se agora no conto sertanejo, que alcana voga surpreendente. Gnero artificial e pretensioso, criando um sentimento subalterno e fcil de condescendncia em relao ao prprio pas, a pretexto de amor da terra, ilustra bem a posio dessa fase que procurava, na sua vocao cosmopolita, um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais tpicas. Forneceu-lho o conto sertanejo, que tratou o homem rural do ngulo pitoresco, sentimental e jocoso, favorecendo a seu respeito ideias-feitas perigosas tanto do ponto de vista social quanto, sobretudo, esttico. a banalidade dessorada de Catulo da Paixo Cearense, a ingenuidade de Cornlio Pires, o pretensioso exotismo de Valdomiro Silveira ou Coelho Neto de Serto; toda a aluvio sertaneja que desabou sobre o pas entre 1900 e 1930 e ainda perdura na subliteratura e no rdio. (Candido, 2000, 104,105).
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A partir da crtica de Antonio Candido e de outros sobre o Regionalismo, algumas questes surgem como: Ser que possvel escrever um conto, uma estria sem que haja qualquer referncia do imaginrio do autor, especificamente em relao ao Regionalismo, considerando seu perodo e a temtica que era sobre o rural?
Ainda em se tratando do imaginrio, possvel descart-lo da literatura regional levando em considerao o perodo em que o serto, o rural eram cenrios at ento desconhecidos por diversos segmentos dominantes da sociedade brasileira, portanto vistos como exticos, pitorescos e buclicos? 26
Os adjetivos como pitoresco, extico, ingnuo, sentimental, jocoso, buclico, entre outros, presentes nos textos dos Regionalistas que na maioria so ficcionais, so significativos em se tratando dos estudos antropolgicos, pois partem de uma viso mais popular, e do imaginrio do autor envolvendo o ambiente, a cultura que no correspondia ao interesse da elite, e dos literatos, que estavam mais preocupados com a forma e o contedo do gnero do que com a temtica. So questes de reflexo em relao ao Regionalismo e sua contribuio na divulgao e valorizao da cultura deste gnero literrio.
O posicionamento destes crticos literrios infelizmente deu base a um corpo acadmico influente e de crticas severas ao Regionalismo, inibindo assim retomadas de anlises e releituras mais aprofundadas no que se refere a vises socioculturais. Como se pode constatar, no sculo XX, h uma grande produo de estudos sobre a Histria da Literatura Brasileira 27 e em sua maioria no h referncias satisfatrias sobre o regionalismo.
Em suma, no s em relao a este gnero literrio em si, mas na produo de seu contedo seja com estilizaes e supervalorizao na exposio sentimental, ingnua, pitoresca, extica com que tratou o homem rural, atribuindo valores que alguns crticos acreditavam no lhes pertencer, no se pode descartar o salto qualitativo que foi dado em relao queles que durante sculos no foram nem sequer vistos e reconhecidos no contexto social
26 Vale ressaltar como exemplo a obra de Euclides da Cunha, Os Sertes que quando publicado em 1902 foi sucesso em funo da obra em si e do desconhecimento de, que havia das populaes tradicionais vivendo de modo diferente dos que viviam no meio urbano das cidades mais prosperas pelo processo de modernizao.
27 Grifo meu. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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e muito menos citados como sujeitos pertencentes histria. Quando descritos eram comparados a uma condio primitiva e margem da sociedade devido aos fatores negativos presentes em sua cultura que no integrava os padres sociais dominantes.
Mesmo que a crtica literria no conceda valor forma ou contedo da produo Regionalista, deve-se levar em considerao o aspecto de que pela primeira vez a elite, crticos e intelectuais a partir de 1900, tomaram conhecimento de que existia um saber local, uma cultura popular no submetida ordem hegemnica do que considera o que culto e civilizado, uma produo cultural autnoma, tendo como base a tradio de suas origens.
Para contrapor a tica dos crticos em relao produo literria regionalista, a citao de Marisa Lajolo esclarece que a desvalorizao deste gnero por parte dos literatos foi em decorrncia de suas narrativas abordarem uma dimenso e linguagem sem preocupao com os padres estticos dominantes no campo literrio e cultural. Em particular, o Regionalismo em sua segunda fase estava focado no rural, com estrias curtas, objetivas e pitorescas e sobre a mestiagem cultural presente na formao da sociedade brasileira. Lajolo diz:
Mas a incluso de um texto na categoria regionalismo no neutra: no limite, regionalismo e regionalista so designaes que recobrem, desvalorizando, autores e textos que no fazem parte da cidade moderna matriz de sua inspirao, nem da narrativa urbana padro de linguagem. Obras e autores regionalistas salvo excees como alguns romancistas de 30 e as veredas sertanejas de Guimares Rosa costumam ser vistos pela crtica (e consequentemente pelas histrias literrias) como esteticamente inferiores, sendo a superioridade da produo literria no regionalista vinculada sua universalidade, categoria tambm responsvel pela redeno de escritores como Graciliano Ramos e Guimares Rosa que em nome da abrangncia de sua obra alam voo da vala comum do regionalismo. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Distino homloga vige no resto da literatura latino-americana e tambm na africana, contextos dos mais promissores para estudar a questo do regionalismo. Nesse mbito maior, o regionalismo pode ser visto de outra maneira: ele talvez constitua uma dissidncia da matriz literria europeia e atravs de procedimentos literrios pouco ortodoxos busque articular-se ao hibridismo mestio das vrias culturas latino-americanas. nesse sentido que apontam instigantes trabalhos de Angel Rama, Cornejo Polar, Fernandes Retamar e Walter Mignolo. E tambm desta perspectiva que os preconceitos com que a crtica e a histria literria brasileira lidam com o regionalismo podem desvelar seus contornos ideolgicos e sua dimenso poltica: seus protocolos de leitura literria so urbanos e ortodoxos e talvez codifiquem no rtulo regionalismo/regionalista sua incapacidade de dar conta do modo de ser mestio da literatura regionalista que, produto cultural crioulo como o pas, carimbado como estrangeiro pelos olhos urbanos e europeizados da crtica... (Freitas, 2011, 327)
Neste contexto, importante referenciar o pensamento de Mikhail Bakhtin sobre gnero e linguagem e suas relaes no campo da cultura. Bakhtin tinha grande apreo pela noo de gnero e isso se explica pelo fato de ir ao encontro de suas ideias no campo metodolgico que consiste na no separao entre forma e contedo e a predominncia do social sobre o individual. Isto porque o gnero est em primeiro lugar do lado do coletivo e do social. (Campos, 2011, 50)
A linguagem no pensamento bakhtiniano fundamental. Isto porque desde cedo, conviveu com diferentes culturais e expresses dialetais integradas no mesmo espao conforme a descrio a seguir:
Mikhail Mikhilovitch Bakhtin nasceu em Oriol, pequena cidade ao sul de Moscou, no dia 16 de novembro de 1895. Com nove anos de idade mudou-se com a famlia para Vilma, capital da Litunia, que se caracterizava por uma As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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animada mistura de classes, lnguas e grupos tnicos, fato que, certamente, proporcionou a Bakhtin seu primeiro modelo real de poliglossia e heteroglossia. Em Vilma havia poloneses e lituanos, lado a lado com uma numerosa populao de judeus que falava o idiche. Desse modo, Vilma personificava o ideal cultural de Bakhtin, de um lugar sem voz predominante no discurso, onde as linguagens culturais, de classe e profissionais existissem em perptua troca e confronto. (Stam, 1992, 15)
A viso de mundo de Bakhtin organiza-se com base na concepo de homem como um ser que constri suas relaes e interage a partir do seu meio e da rede de relaes sociais que estabelece. Por isso, ele considera a linguagem uma atividade fundamentalmente sociossemitica (Campos, 2011, 51), e s pode ocorrer entre sujeitos sociais participativos do processo histrico e no entre indivduos isolados, em que as condies subjetivas so dadas a priori. Desse modo, crtica em relao ao gnero Regionalista quanto forma e contedo cabe dizer que:
Bakhtin reconhece que da Antiguidade aos nossos dias eles (gneros) foram estudados num corte da sua especificidade artstico-literria, nas distines diferenciais entre eles (no mbito da literatura) e no como determinados tipos de enunciados, que so diferentes de outros tipos, mas tm com estes uma natureza verbal (lingustica) comum. (Campos, 2011,51)
O Regionalismo de certa forma em sua segunda fase abordou as origens tnicas, mestiagem, expresses dialetais, manifestaes, a lida no campo, formas de organizao social, geografia local at ento silenciadas e/ou desconsideradas pela hegemonia dominante na cultura. Entre esses autores destaca-se Cornlio Pires, autentico interprete da chamada cultura caipira e de grande sucesso popular, alcanando a tiragem de mais de 10.000 exemplares 28 em algumas de suas publicaes.
28 Essa informao consta na apresentao do livro Conversas ao P do fogo, de Cornlio Pires. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Assim, se alguns escritores pecaram pela unilateralidade em seus textos em relao supervalorizao do rural, at de forma saudosista e romntica, como Cornlio Pires, Monteiro Lobato tambm o fez no sentido contrrio, com a figura estereotipada do caipira, que reconheceu mais tarde, e, com ele, se encerra este perodo. (Sodr, 1982, 417).
Na sequncia, o Modernismo chega ao seu auge no comeo de 1920, rompe com o tradicionalismo e a arte acadmica inspirada nos valores europeus, com a linguagem formal, e abandona o soneto e a fala coloquial, transformando as regras dominantes da escrita, como incluindo o verso livre, ausncia de pontuao e a valorizao do cotidiano de populaes locais na busca de uma sntese da brasilidade.
O Modernismo foi um movimento no somente voltado para a esttica artstica e literria; nele havia influncias ideolgicas, pois no perodo entre 1917, pr-modernismo, e 1945 ocorreram diversos eventos no cenrio poltico de mbito nacional e mundial, como as duas guerras mundiais e a crise econmica em 1929, e, no Brasil, a Revoluo de 1924, a Coluna Prestes e a Revoluo de 1930, entre outros. A citao de Werneck Sodr relata os acontecimentos importantes que estiveram presentes no perodo em que se deu o Modernismo no Brasil.
Balizado entre 1917 e 1945, o Modernismo est inserido entre as duas Guerras Mundiais e acompanha a crise no Brasil, com o seu capitalismo em lento crescimento, de incio, para acelerar-se com os dois conflitos e a crise de 1929, que to profundos reflexos encontrou aqui. uma fase tormentosa, em escala mundial, e no apenas pelas guerras, mas tambm pelas revolues, pelas contradies em todos os nveis, pelas inovaes autnticas e pelas simulaes. No Brasil, compreende o Tenentismo, os movimentos de massa operria e crescimento do Partido Comunista, a derrocada da Repblica Velha, marcada pela dominao oligrquica, a crise de 1929, o movimento de 1930, os levantes de 1932 e de 1935, a tentativa de arregimentao fascista e putsh de 1938, a Aliana Nacional Libertadora, a ditadura do Estado Novo e a As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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represso poltica e cultural, a entrada do Brasil na guerra e a derrocada do Estado Novo. (Sodr, 1982, 535)
Com as questes que se consolidaram em nosso pas no plano histrico, fruto da colonizao europeia, o Modernismo rompe com as ideias de inferioridade tnica e cultural e das teorias raciais arcaicas e desastrosas na literatura e no campo ideolgico.
O nosso Modernismo importa essencialmente, em sua fase herica, na libertao de uma srie de recalques histricos, sociais, tnicos, que so trazidos triunfalmente tona da conscincia literria (Candido, 2000, 110).
Apesar de ser identificado como um movimento oriundo da intelectualidade nacional e apoiado pela elite, pois a maioria de seus protagonistas pertencia a esse segmento, e, claro, legitimado pela ordem hegemnica, o Modernismo inaugura um novo momento saudando nossa brasilidade, nossa herana cultural, resultado da mistura tnica, transformando nossas deficincias culturais em smbolos de superioridade.
A inteligncia tomou finalmente conscincia da presena das massas como elemento construtivo da sociedade; isto, no apenas pelo desenvolvimento de sugestes de ordem sociolgica, folclrica, literria, mas sobretudo porque as novas condies da vida poltica e econmica pressupunham cada vez mais o advento das camadas populares. (Candido, 2000, 123)
Ele representou a quebra de um estado de coisas no plano cultural, poltico, esttico, inaugurando uma posio dialtica no plano universal e particular em nossa sociedade. (Candido, 2000, 123)
Os papis se invertem. As matrizes tnicas presentes na formao da cultura brasileira, principalmente o indgena e o africano, seus costumes, tradies que antes eram depreciados, passam a servir de inspirao na obra de diversos artistas e segmentos. Macunama, uma das obras smbolo do Modernismo, exemplo no campo literrio que As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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valoriza as razes brasileiras, a cultura indgena, seus mitos e lendas, a linguagem e provrbio popular, a crtica linguagem culta, e satiriza a figura do colonizador europeu.
No se precisaria mais dizer e escrever, como no tempo de Bilac ou do Conde Afonso Celso, que tudo aqui belo e risonho: acentuam-se a rudeza, os perigos, os obstculos da natureza tropical. O mulato e o negro so definitivamente incorporados como temas de estudo, inspirao, exemplo. O primitivismo agora fonte de beleza e mais um empecilho elaborao da cultura. Isso, na literatura, na pintura, na msica, nas cincias do homem. (Candido, 2000, 110).
Alm disso, o Modernismo apresenta em sua estrutura uma espiritualidade lrica e o lado satrico principalmente no campo literrio, ridicularizando o etnocentrismo e a poltica ultrapassada da poca, provocando uma mudana nesse cenrio. O Regionalismo e o Modernismo no Brasil inauguraram uma fase de tenso e provocao no campo da cultura, buscando no segmento popular uma possvel identidade do povo brasileiro.
A partir desses apontamentos sobre as razes histricas presentes na formao do pas, distores e movimentos de valorizao da cultura popular e do caipira, chega o momento de apresentar quem foi Cornlio Pires e sua contribuio cultural nesse perodo e nos movimentos como o Regionalismo e o Modernismo, ao lado de cones como Oswald de Andrade, Dolor de Brito, Guilherme de Almeida, Alexandre Marcondes Machado e tantos outros.
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29 Ilustrao de Belmonte para a Semana de Arte Moderna em 1922. Fonte: http://pit935.blogspot.com/2011/03/semana-de-arte-moderna- e-o-cartaz-bem.html As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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CAPTULO III
EM TIET NASCE UM POETA CAIPIRA
Cornlio, e assim ficou...
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Acredito que a melhor maneira de apresentar Cornlio Pires atravs do relato do senhor Simo Francisco de Carvalho, um sitiante de 80 anos do Vale do Paraba que assistiu a uma de suas apresentaes humorsticas e que diz assim:
Por volta de 1935, um grupo circense apresentou-se num improvisado salo localizado na cidade de Cruzeiro. O nome da trupe era Turma Teatral do Capito Cornlio Pires e, no dia agendado para o espetculo, compareceu tanta gente que muitos no puderam ingressar no prdio onde se realiza a encenao, tendo que se contentarem em apenas ouvir o show, atravs de precrios alto-falantes instalados na rua. Contrastando com a fama que j tinham angariado, os forasteiros dispunham de poucos e modestos pertences: em vez de cenrios, apenas um pano vermelho desbotado cobria a parede do fundo do palco montado s pressas: as roupas utilizadas pelos artistas eram os trajes tpicos da populao rural pobre Ranchinho, que formou dupla com Alvarenga, informou que o uniforme de cena adotado por Cornlio era composto pelos seguintes itens: o chapeuzinho de palha, a camisa xadrez, calcinha curta, sapato - e os instrumentos musicais restringiam-se a algumas violas caipiras e uma sanfona. Dentre os artistas no palco, destacava-se o lder da comitiva, Cornlio Pires, panudo e feioso, mas falador que nem uma matraca, que tomara o cuidado de pintar com lpis crayon alguns dentes para causar a impresso de que era praticamente banguela. O espetculo teve incio com o mestre de cerimnia saudando os presentes e tecendo elogios premeditadamente exagerados cidade e ao Vale do Paraba como um todo; aps projetar um filminho na parede recentemente caiada de branco, entoar algumas modas caipiras e fazer propaganda de seus discos (que poderiam ser adquiridos ao fim da apresentao), o comediante disparou anedotas de efeito, uma atrs da outra, que a gente nem se recuperava de uma risada para cair em outra. L pelas tantas, Cornlio veio com mais esta: na Guerra de 32, um caipira cunhense estava de ccoras beira de uma estrada, pitando to tranquilamente que parecia que nem percebeu que estava no meio de um tiroteio entre as foras As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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paulistas e as leais a Getlio Vargas. Alertado pelos gritos dos soldados de ambos os exrcitos em duelo, mesmo assim o jeca permaneceu impvido, continuando a pitar seu cigarrinho de palha. Foi inevitvel que uma bala atingisse o caboclo, o que de alguma forma consternou as foras em litgio a ponto de a ao militar ser suspensa momentaneamente. E com voz retumbante, o piadista completou o enredo que recitava perante a atenta platia: correram os soldados de ambos os lados que, por um instante, irmanaram-se para socorrer a vtima civil, sendo que ao se aproximarem do homem, perceberam que ele estava morto e com as calas arriadas, concluindo os militares que ele no se afastara da linha de fogo cruzado porque estava se desapertando. A prodigiosa memria do depoente permitiu que o agricultor ainda rememorasse com um riso gostoso a frase a qual Cornlio arrematou o causo: o coitado bateu as botas obrando! 30
Homem verstil nas artes, atuava em diversos segmentos. Foi escritor, apresentador, ator, compositor, jornalista, conferencista, produtor e divulgador cultural, entre outras atividades. De tudo que fez pode-se dizer com certeza que, alm de grande carisma e popularidade, atraindo a todos, sabia como ningum arrancar gargalhadas do pblico.
Antonio Candido definiu bem quem foi este defensor da cultura caipira paulista 31 .
Cornlio Pires foi, mais do que escritor eminente que seria preciso defender, uma extraordinria personalidade de ativista cultural. Meio escritor, meio ator, meio animador; generoso, combativo, empreendedor, simptico - a sua maior obra foi ao nos palcos, nas palestras, na literatura falada, que perde bastante quando lida. Como os oradores, como certo tipo de poetas, como os repentistas e os velhos glosadores do mote, a dele foi uma literatura de ao e comunho, feita para o calor do momento e a comunicao direta, eletrizante, com o pblico. (Dantas, 1976, 03)
30 Um Fragmento da Histria da Comunicao no Brasil: Cornlio Pires e o Caipira Paulista, pg. 2 e 3. Artigo de Cludio Bertolli Filho. 31 Prefcio do livro Cornlio Pires: Criao e Riso - Macedo Dantas. Ed. Duas Cidades, So Paulo, 1976. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Cornlio Pires nasceu na cidade de Tiet, interior do Estado de So Paulo, no dia 13 de julho de 1884. Alceu Maynard Arajo menciona que sua famlia 32 descendia de bandeirantes e de monoeiros 33 (Dantas, 1976, 20).
O pitoresco e o riso sempre estiveram presentes na vida do poeta tieteense, a comear pelo dia de seu batizado, em que, ao invs do padre entender Rogrio, nome escolhido por uma de suas tias, entendeu Cornlio, por causa de sua surdez, e assim ficou (Dantas, 1976, 2).
Em sua meninice, viveu no stio de sua madrinha, s margens do Rio Tiet, seu lugar predileto, at ser matriculado no 1 grupo escolar da cidade. Porm, acostumado a ter liberdade, brincar nas matas e rio, no conseguiu se adaptar ao novo estilo de vida. Seu pai percebendo a dificuldade contratou professores para alfabetizar e ensinar matrias bsicas ao filho.
32 Segundo Cornlio Pires e seus bigrafos, era dcimo quarto neto de Piquerobi, chefe dos ndios Guaianazes, stimo neto de Brs Cubas, stimo neto de Pedro Taques, dcimo stimo neto de Martim Leme, tronco dos famosos Lemes, da cidade de Burges, capital da Flandres Ocidental, dcimo terceiro neto do velho Chefe ndio Tibiri, oitavo neto do governador lvares Cabral, que por sua vez era sobrinho de Pedro lvares Cabral, descobridor do Brasil; descendia tambm de Joo Ramalho e Antonio Rodrigues, portugueses que provavelmente faziam parte das expedies de Joo Dias Solis, ou de Fernando de Magalhes, que vieram Amrica, o primeiro em 1513 e o segundo em 1519, "ficaram nas praias de So Vicente por causas ainda hoje ignoradas". Cornlio Pires deixou ainda registrado ter possudo sangue Espanhol, Escocs, Belga, Portugus, ndio e Francs, este ltimo via Gurgel e Missel. Numa conversa com amigos, em uma noitada, disse "Pelo lado portugus, descendo de Antnio Rodrigues e Joo Ramalho, por isso sempre me atraram os Fados e Viras, o Castelhano me deixou especial inclinao para os trocadilhos, do Holands me ficou a tendncia para o fumo, a cerveja e a genebra, dos meus antepassados Belgas herdei a bonacheirice moleirona, dos meus ancestrais Escoceses (os Drummond), no cheguei nem a herdar a sovinice, dos Franceses (Gurgel e Missel), ficou-me uma parcela insignificantssima de cortesia". Agora, seu sobrinho Mauro Pires quem diz: - De seu pai, Raimundo Pires, homem de sete instrumentos, pois sabia fazer tudo com perfeio, Cornlio herdou o bom humor inesgotvel, a graa para contar piadas e anedotas, com as quais divertiam-se os scios de clubes e freqentadores de teatros quando de suas apresentaes. 33 No ano de 1693, nas terras de Antnio Cardoso Pimentel, um povoado comeou a se formar junto margem esquerda do Rio Anhemby (atual Tiet), num ponto distante pouco mais de 100 km de So Paulo. O local era conhecido como "Araritaguaba" (que significa: "lugar onde as araras comem areia") - nome dado pelos ndios Guaianazes que habitavam a regio, em virtude da freqncia com que bandos dessas aves bicavam um salitroso paredo ali existente. O povoamento teve incio quando o dono das terras resolveu habit-las, juntamente com seus familiares e empregados, numa poca em que vrios sertanistas decidiram abandonar o Bandeirismo pela Agricultura. Era uma comunidade simples, que cultivava o solo apenas para a sua subsistncia. No entanto, quando a notcia da descoberta de ouro em Mato Grosso (1719) e Gois (1725) espalhou-se pelos quatro cantos, a movimentao no vilarejo e o seu conseqente progresso foram inevitveis. Por sorte, ele havia-se desenvolvido em torno de um estratgico porto natural junto ao primeiro trecho navegvel do rio depois de Salto. Um local que serviria de ponto de partida, ainda no sculo XVII, de inmeros bandeirantes, em busca das riquezas anunciadas. No sculo XVIII, partiriam tambm as famosas mones - expedies comerciais e cientficas. Todos se aventuravam pelo grande manancial, repleto de perigosas corredeiras e obstculos, rumo ao desconhecido oeste. As fronteiras do Brasil- Colnia, ainda bastante limitadas pelo Tratado de Tordesilhas, comearam desse modo a expandir-se, tendo incio um processo de crescimento que, apoiado tambm sobre outros fatores ao longo da Histria, levou o Pas a chegar ao que hoje territorialmente: o quinto maior do mundo. Da se v a importncia do tal porto de Araritaguaba - que tambm era conhecido como o "porto feliz", cujos moradores chamavam a ateno por sua alegria e hospitalidade, principalmente quando as expedies fluviais retornavam, ocasies estas em que havia no pequena comemorao. Mones: De origem rabe, a palavra mono significa "estao do ano em que se d determinado fato". No Brasil, o termo deu nome s grandes expedies fluviais que se realizavam no sculo XVIII com destino s terras do Oeste, aps a descoberta das minas em Cuiab (MT). Era organizada entre os meses de abril e setembro, poca considerada mais propcia. http://www.promoventos.com.br/site/?page_id=129 As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Ao saudoso Rio Tiet de sua infncia comps o seguinte verso:
Por que no hei de am-lo? Se esse rio o amigo dos tempos de criana, que meu primeiro pranto repetiu, levando-o em eco na corrente mansa!
Foi ele, esse Tiet, quem mais me viu cheio de sonhos, cheio de esperanas... e muita vez comigo repartiu sua calma ideal, sua bonana.
De dia, ele a passar todo escorreito, era parceiro meu de correria. Eu pela margem e ele pelo leito.
Ao luar, pela noite, ele passava e estrelado de espumas se estendia e tal qual eu, tranquilo repousava. (Veiga, 1961, 12)
At metade do sculo XIX, So Paulo era uma aldeia sem grande importncia econmica ou poltica que contava, em 1872, apenas trinta mil habitantes. (Campos, 2011, 24, 25). Em pouco tempo, nos primeiros anos de 1900, passa por um processo de modernizao que se apresenta a cada dia, com mudanas significativas em funo da industrializao acelerada, a expanso do caf, o surgimento das estradas frreas, o surto imigratrio. A cidade passa por uma remodulao urbana.
A cidade convivia com coronis e caipiras, bares decadentes e novos ricos, com automvel e carro de boi, abandonando assim, sua posio modesta para tornar-se um grande centro cultural e intelectual do pas (Campos, 2011, 25).
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Seduzido pelas vrias estrias, Cornlio Pires decide vir para a capital a fim de estudar. Apesar da surpresa, pois no era adepto aos estudos, seu pai incentivou-o a conquistar seu objetivo. Embarca, com 17 anos em 1901, rumo a capital e, quando chega, vai morar na penso de sua tia Belisria, que recebia jovens vindos do interior a fim de estudar. (Veiga, 1961, 28). As penses nesse perodo tinham a caracterstica de abrigar amigos e familiares vindos do interior, uma maneira de manter os laos entre seus semelhantes.
Quanto aos estudos, optou por farmcia, porm foi reprovado nos exames da faculdade. Diante do insucesso, Joo Lcio Brando, um amigo que conheceu na penso de sua tia, percebeu que o jovem tinha dom para as letras e lhe conseguiu trabalho como reprter no jornal O Comrcio de So Paulo (Veiga, 1961, 31). Cornlio retoma ento seu projeto de vida e trilha um novo caminho em direo ao que sabia fazer de melhor, escrever poemas, prosas, contos sobre o caipira, tema que o acompanhou por toda vida.
Entusiasmado com a vertente jornalstica, sai do jornal indicado pelo amigo e vai para o jornal A Cidade de Santos. Pouco tempo depois retorna para So Paulo e ingressa no jornal O Movimento, semanrio poltico de Botucatu que circulava na regio da cidade. Mas foi obrigado a sair s pressas, pois estava sendo perseguido por capangas de coronis da regio por fazer poltica de oposio ao partido local, o extinto PRP (Leite, 1996, 119). Novamente vem para So Paulo e ingressa no jornal O Estado de So Paulo, por intermdio do amigo e primo Amadeu Amaral (Veiga, 1961, 75).
Apesar de escrever versos e sonetos a partir de 1902, a primeira publicao ocorre em 1910, com o livro Musa Caipira, coletnea de sonetos e prosas. Ideal de Caboclo foi seu primeiro soneto e at hoje o mais conhecido. Nele descreve a cobia e a simplicidade do caipira.
A, seu moo, eu s quiria pra minha filicidade, um bo fandango por dia e uma pala de qualidade. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Prva, espingarda e cutia, um faco fala-verdade e uma viola de harmunia pra chor minha sdade.
Um rancho na bra dgua, vara de anz, pca mgua, pinga boa e bo caf... Fumo forte de sobejo...
Pra compret meu desejo, cavalo bo... e mui! (Veiga, 1961, 62).
O tieteense foi um dos primeiros a publicar a expresso falada do caipira 34 , assim como fez Ju Bananre 35 com a expresso falada do talo-paulista. Ambos estabeleceram uma abertura na literatura nacional, possibilitando o conhecimento dessas expresses lingusticas e culturais incrementadas pelo humor e pela stira. Estes dois autores tinham grande popularidade, como descreve Sud Mennucci a seguir.
Cornlio Pires e Ju Bananre so os dois mais legtimos representantes de duas correntes do falar paulista: a do tipo indgena... e a do tipo aliengena. E Cornlio Pires e Ju Bananre so humoristas. Literatos lidos com a avidez por toda a populao de So Paulo, com diversos livros publicados por ambos. (Leite, 1996, 142)
34 O dialeto caipira surgiu no sculo XVIII quando a lngua geral foi proibida pela Coroa portuguesa e passou-se a falar portugus com sotaque nheengatu, como o caso de "mui", "cui", "zio", "oria", "fal", "diz", "com", dado que o nheengatu estranhava os infinitivos dos verbos e as consoantes duplas. A fala caipira no um erro de linguagem, um dialeto, uma legtima variante da lngua portuguesa 35 Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (Pindamonhangaba/SP, 1892 - So Paulo/SP, 1933). Poeta, cronista e engenheiro civil. Fez seus estudos primrios e preparatrios em Araraquara e Campinas. Em 1911, inicia sua colaborao na revista O Pirralho, criada por Oswald de Andrade (1890 - 1954), com As Cartas D'Abax'o Piques, escritas numa linguagem macarrnica, mistura de portugus e italiano, inspirada na fala dos imigrantes do bairro Bela Vista (Bixiga), de So Paulo. Publica, em 1915, uma stira ao discurso do poeta Olavo Bilac (1865 - 1918) na Faculdade de Direito do Largo So Francisco e demitido da revista. Torna-se ento redator da pgina Sempr'Avanti!! da revista quinzenal O Queixoso, editada por Monteiro Lobato (1882 - 1948). Forma-se em engenharia civil na Escola Politcnica de So Paulo em 1917, e paralelamente ao exerccio da profisso volta a colaborar em O Pirralho, no qual mantm a pgina O Fxa. Em 1924, seus poemas dispersos so recolhidos no livro La Divina Increnca. Cria o jornal semanal Dirio do Abax'o Piques em 1933. Fonte: http://www.itaucultural.org.br As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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A citao de Mennucci lembra que tanto o linguajar do caipira como o do imigrante italiano so expresses vindas das classes populares e se misturam, se compreendem e se identificam. Sobre essas expresses populares, importante dar a palavra a Mikhail Bakhtin, que v a linguagem popular como a oficial, pois ela que se expressa nas ruas, nas igrejas, nas feiras, nos bailes, e no a adotada pela classe dominante que circula de forma restrita aos que pertencem ao meio.
Para Bakhtin, a lngua no apenas um conjunto de formas (signos) e suas regras de combinao (sintaxe), como para os linguistas. A linguagem para ele refere-se a um mundo em movimento, um mundo social onde todos modificam, acrescentam expresses, ideias, sentidos e onde o dilogo se faz fundamental e permanente, principalmente no que diz respeito cultura popular, valorizando a oralidade e suas transformaes. (Bakhtin...) Nesse contexto, Cornlio Pires e Ju Bananre, personagem de Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, muito popular nesse perodo, enfatizaram a linguagem popular vinda do caipira e do operrio descendente de italianos, numa poca em que s havia espao para a linguagem culta, e ausncia de termos regionais.
A notar o contedo e a linguagem do caipira transposta para a escrita, h dois exemplos ilustrativos da coluna do Tieteense intitulada Cartas de Um Caipira e trechos delas redigidos a seguir. Ambos foram publicados na revista O Pirralho, fundada por Oswald de Andrade e Dolor de Brito, que o convidaram a ser colaborador da revista 36 .
36 A Revista O Pirralho foi fundada por Oswald de Andrade e Dolor de Brito, que tambm eram os responsveis pela redao e direo. Sua publicao era semanal e ocorreu entre os anos de 1911 a 1918. Os ilustradores eram Voltolino, Di Cavalcanti e Ferrignac e os colaboradores eram Jayme Gama, Ju Bananere (Alexandre Ribeiro Marcondes Machado), Cornlio Pires, Emlio de Menezes, Guilherme de Almeida e Amadeu Amaral. A publicao possua sees dedicadas ao cinema e ao teatro, comentando os filmes e atividades artsticas em cartaz e dando nfase a movimentao social provocada por tais eventos. Dentre as sees especialmente dedicadas a vida social em S.P, destaca-se Vida Mundana, que comentava os acontecimentos da semana nos pontos chics da cidade. Havia ainda uma seo de esportes que comentava a atuao de clubes e equipes de remo e futebol. No que diz respeito ainda s sees fixas da revista, cabe destacar trs delas que, atravs da crnica poltica e de costumes, incorporavam revista o clima cultural de convivncia de nacionalidades de S.P no perodo. As cartas dAbaxo Piques e A Birralha Xornal Allemong, escritas por Ju Bananre, respectivamente em portugus macarrnico e portugus com sotaque alemo e cartas de um caipira, escrita por Cornlio Pires com vocbulos e articulaes da fala regional do interior. Fora dos espaos fixos, distribudos ao longo da revista, encontramos poemas, trechos de obras literrias e artigos de crtica literria. Com um tom humorstico, irreverente e moderno, O Pirralho traz sees que abordam contedos que vo da crnica mundana a comentrios polticos e sobre aspectos da vida artstica e cultural da cidade. Esto presentes desde a crtica poltica institucional at concursos de beleza para mulheres e de talento para homens, onde aparecem nomes conhecidos da alta sociedade paulistana. Fonte: S.P. em revista: catlogo de publicaes da imprensa cultural e de variedades paulistana 1870 1930 / Heloisa de Faria Cruz (organizadora). (Coleo Memria, Documentao e Pesquisa, 4) So Paulo: Arquivo do Estado, 1997. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Na primeira, o caipira Fidncio Jus da Costa, pseudnimo de Cornlio, vem com a famlia morar em So Paulo e conta as dificuldades em se adaptar cidade grande. Faz uma citao a Ju Bananre, provocando-o intencionalmente. Na segunda, Fidncio 37 diz ao redator que saiu noite com um amigo escondido de Nha Chica, e quando chegou em casa passou por apuros ao dar satisfao esposa.
Fomo assistir um cinema, que num ai na Xiririca, mais quage dei num taliano, s pra mor de mea Tudica, que vive tudo nervoza, e um quage tudo imprica.
o causo que o tar sojeito, no seu cachimbo pitano, na cara da minha fia, as fumaa ia sortando, injoano o estamo da pobre o marvado carcamano!
Eu virei disse pra elle, ... o catinguento anim! Num v que aqui tem famia? Vire seu pito pra l! ...Num amolle - ele fal - Num s pedra de amoli!
Garremo na discusso, que quage dava im porquera,
37 O uso de pseudnimos era uma prtica muito comum na poca. Alguns possuam at mais de um como era o caso do prprio Cornlio Pires que, alm de Fidncio Jus da Costa, tinha o pseudnimo de Vadosinho Cambar.
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quano cheg-se um mocinho! co seu jeito de capoera, e disse pro tar taliano, v embora J u Bananre!
Ahi que eu sube quem era o intaliano atrevido! Mais porem comigo nove; num s nenhum Capito, nem Piadade, nem Brotero que num sabem cheg a mo!
Vassunc faa o favo de dize prsse canaia, que eu s cabroco valente, que eu num s fogo de paia, e que fao a barba delle co faco feito navaia!
Puis adonde j se viu um home sabelizado, i num treato de luxo, co caximbo pindurado, sortando sarro na cara dos que to avisinhado! (...) 38
38 Trecho da carta de Fidncio Jus da Costa (Cornlio Pires) endereada ao redator da Revista O Pirralho, fundada por Oswald de Andrade. Acervo da Biblioteca Mrio de Andrade. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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... Depois da premera carta, sahi de noite escondido, sem as hora serem arta, sui cum allamo destrocido, lembr o tempo de perarta que eu nunca tenho esquecido.
Sahi co tar allamo, e fui um chope porv na casa do Barbaro, despois descemo pra l, e entremo num barraco, as coiza boa aperci.
Ota inferno! O buniteza! Fui v as mui cantadera tavan fazeno proeza, mostrano aquellas pernera aquellas diaba franceza que era a semvergonhra!
Cantavum atrapaiado; e eu mermo nada intendia: mais cs io arregalado, eu seno um pai de famia j fui ficano inlevado cos mui da cumpania!...
...Quando tive de i simbora s achei o bonde Recie; cheguei de ap as duas hora! As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Puis meu caro amigo! Oie, minti que foi a caipora, que mui num h o que arroie.
Fidncio, onde que oc ando? E eu, loco por se deit: - Passei hoje muita d... o Serafim do Juqui, que antonte se amofin, foi percizo eu I vel...
Si eu num passasse o mingau, de certo entrava in sarmora, tomava cui-de-pu pra cabea. As tar cantora... U into. seria mais mau apanhava cum vassora!... 39
39 Trecho da carta de Fidncio Jus da Costa ao redator da revista. Acervo da Biblioteca Mrio de Andrade As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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40 Revista O Pirralho. Edio de 9 de novembro de 1916. A arte da capa de Voltolino. Acervo do Arquivo do Estado. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Cornlio Pires viveu um perodo em que ocorreram diversas mudanas no cenrio poltico, econmico e social do pas. Quando nasceu (1884), a monarquia e a escravido estavam com seus dias contados. Vivenciou os primeiros passos da cidade de So Paulo rumo modernizao, o fim da Repblica Velha, mais tarde a revoluo de 1932, entre outros episdios importantes da histria nacional e mundial.
Seus primeiros versos publicados ocorreram entre os anos de 1909 e 1910 na revista O Malho, fundada por Crispim do Amaral e muito conhecida por satirizar fatos polticos da poca 41 . A publicao na realidade foi uma brincadeira que um amigo quis fazer a Cornlio Pires furtando alguns de seus sonetos e enviando revista, que tinha uma coluna que ridicularizava os maus poetas. Mas acabou acontecendo o contrrio, a revista publicou os quatro sonetos enviados em pgina especial, rendendo boa repercusso ao jovem poeta (Veiga, 1961, 51).
Musa Caipira abre a srie de livros que viriam a ser publicados, obtendo logo de incio a ateno da crtica pelo contedo originalmente brasileiro. Slvio Romero, em carta endereada a Cornlio Pires, diz o seguinte sobre a publicao de Musa Caipira:
Apreciei imensamente, o chiste, a cor local, a espontaneidade de suas produes, que alm do seu valor intrnseco, so um timo documento para o estudo dos brasileirssimos da nossa linguagem. ....o gnero que cultiva , muito ao contrrio do que geralmente se pensa.... (Veiga, 1961, 63)
41 O projeto da revista criao de Crispim do Amaral, irmo do caricaturista Amaro do Amaral e do pintor e fotgrafo Libanio do Amaral. Nascido em Olinda/PE, em 1845, e falecido no Rio de Janeiro em 1911. Msico, ator, decorador, cengrafo, jornalista, cronista, desenhista e caricaturista. Em 1879 funda no Par o jornal O Estafeta, totalmente ilustrado por ele. Abandona o Par por Paris e este pelo Rio de Janeiro, onde funda vrias revistas: O Malho, A Avenida, O Pau e O Sculo. Acompanhando a proposta do primeiro editorial, a revista trabalhou com caricaturistas como: J. Carlos, ngelo Agostini, Max Yantok (pseudnimo de Nicolau Cesarino, que no se sabe era brasileiro ou italiano), Kalixto e Theo (pseudnimo de Djalma Pires Ferreira), Lobo, Adolf Aizem, Guimares Passos, H. Peixoto, Lenidas Freitas e Nssara. A revista deu tambm abrigo a jovens e talentosos caricaturistas, como foi o caso de Raul Pederneiras e Alfredo Storki. Na parte literria, teve colaborao de Olavo Bilac, Pedro Rabelo, Emlio Rabelo, Arthur de Azevedo, lvaro Moreyra e tantos mais. http://www.joaodorio.com/site/index.php?option=com_content&task=view&id=422&Itemid=117
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42 Revista O Malho. Edio de 13 de fevereiro de 1904. http://www.joaodorio.com/site/index.php?option=com_content&task=view&id=422&Itemid=117 As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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A cada dia, conquistava mais popularidade e apreo de intelectuais, amigos e pblico, porm isso no se restringia apenas sua produo literria e artstica, mas tambm sua vida bomia, bonacho e de aparncia no muito atraente. Era conhecido tambm em sua terra natal por Tibrcio 43 , apelido que recebeu dos colegas. Tibrcio era o nome de um mico que pertencia a uma companhia de circo que passou pela cidade de Tiet, conquistando a ateno do pblico por suas micagens e esperteza.
Era gordo, de estatura regular, cabelos louros em abundncia, nariz um pouco arrebitado, bochechas estufadas e rosadas, lbios grossos, testa curta, maxilar inferior saliente, Cornlio Pires nunca pretendeu ser elegante e bonito. Consciente de sua falta de beleza fsica, sempre dizia aos amigos: feio que bom... chama mais ateno. E a propsito de seu fsico chegou a escrever Gemidos de um Feio. (Veiga, 1961, 40)
Cornlio no se importava com a falta de atributos estticos e ainda brincava a respeito, como descrito no verso a seguir.
Agora que estou vendo o quanto ruim ser feio! Se acaso uma menina eu torno preferida, e lhe fao amoroso um termo de galanteio, ela faz uma carranca e se sente ofendida!
Agora que estou vendo o quanto ruim ser feio! Ser pobre e sem beleza a coisa pior da vida! Deus para ser perfeito em tudo, agora eu creio, que ao me dar esta feio que s belas intimida, devia me fazer sem alma e corao.
43 O hbito de colocar apelidos nas pessoas era bastante comum nas cidades do interior nessa poca. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Um homem como eu, que um fardo assim carrega, (pois tenho como fardo o meu feio caro) nas lutas pelo amor sua alma no sossega!
Se acaso eu no morrer sozinho ou solteiro, por certo hei de casar com velha surda e cega! (Veiga, 1961, 40)
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Apesar de no possuir uma formao culta como muitos de seus amigos, admiradores e crticos, o conhecimento que obtinha do caipira paulista era natural e sem o idealismo pretensioso de muitos escritores. O poeta Martins Fontes em uma de suas palestras referiu- se a ele como um bandeirante puro, um artista incansvel, enobrecedor da Ptria e enriquecedor da lngua e que merece o nosso aplauso caloroso e o nosso afeto, fraternal. (Veiga, 1961, 41)
Em viagens s cidades de Botucatu, Laranjal Paulista, Tiet, entre outras, fez amizade com vrios patrcios, pernoitando nos finais de semana em stios e ouvindo suas estrias, o que possibilitou conhecer com propriedade o jeito de ser do caipira.
44 Fonte da imagem: http://www.marisacajado.com/corneliopires.htm As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Suas constantes peregrinaes pela zona rural contriburam, em pouco tempo, para torn-lo amigo de todos os caipiras daquela regio. No lhe faltavam convites para almoos e para passar o dia em casas de roceiros, onde muitas vezes pernoitava. A hospitalidade desses modestos brasileiros comovia o poeta. Antes de ir para a cama, Cornlio Pires sentava-se na melhor cadeira da casa e ali ficava a prosear com a caipirada at alta hora da noite. Cada amigo tinha seu causo para contar. (Veiga, 1961, 60)
Nesses passeios e conversas, ele observou hbitos, linguajar e costumes dos caipiras de Botucatu, que eram os mesmos de sua terra natal, e de outras cidades em que residiu, concluindo ento que o caipira era um s. Assim, inicia sua produo literria inspirada nesse universo, preservando seu linguajar tpico. Assim como Cornlio, outros escritores regionalistas transportaram para a escrita linguagem falada.
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45 Foto histrica do Livro Musa Caipira de Cornlio Pires (Contendo algumas produes em dialeto paulista) - S. Paulo, Livraria Magalhes, 1910. Na foto, na pg. 3 do livro, o folclorista picando fumo, com um canivete, para fechar o palheiro, e ouvindo um velho caipira, barbudo, tocando uma viola autntica. (Acervo de Leonardo Arroyo: doado Biblioteca da Academia Paulista de Letras) Fonte: http://www.recantocaipira.com.br/cornelio_pires_100_anos_musa_caipira.html As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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A atuao e persistncia de Cornlio Pires em divulgar a cultura caipira no segmento hegemnico da sociedade brasileira podem-se aproximar do que a sociologia gramsciana define sobre o intelectual do tipo orgnico. O intelectual orgnico, para Gramsci, aquele que est em todos os segmentos da sociedade e relaes sociais - no meio urbano, rural, tcnico, acadmico, na fbrica, indstria - defendendo o saber popular e a socializao do conhecimento. Ele est entre o povo, nas ruas, nos partidos, nos sindicatos, na esfera cultural, levando uma nova concepo tica-poltica para que haja desenvolvimento de novas atividades culturais, educativas e organizativas, garantindo o interesse da classe que representa dentro da hegemonia social. A respeito deste tipo de intelectual na concepo de Gramsci, Semeraro diz:
... so os intelectuais que fazem parte de um organismo vivo e em expanso. Por isso, esto ao mesmo tempo conectados ao mundo do trabalho, s organizaes polticas e culturais mais avanadas que o seu grupo social desenvolve para dirigir a sociedade. (Gramsci, 1975, p. 1.518) (Semeraro, 2006, 163,164)
O Intelectual orgnico prioriza a universalizao do saber, sujeito ativo no que se refere reflexo, criatividade e esprito democrtico porque acredita que todos tm capacidade de pensar e agir, de acumular conhecimentos e experincias diferentes dos intelectuais tradicionais compostos na concepo de Gramsci pelo:
... clero, os funcionrios, a casa militar, os acadmicos voltados a manter os camponeses atrelados a um status quo que no fazia mais sentido. ... os intelectuais tradicionais ficavam empalhados dentro de um mundo antiquado, permaneciam fechados em abstratos exerccios cerebrais, eruditos e enciclopdicos at, mas alheios s questes centrais da prpria histria. Fora do prprio tempo, os intelectuais tradicionais consideravam-se independentes, acima das classes e das vicissitudes do mundo, cultivavam uma aura de superioridade com seu saber livresco (Semeraro, 2006, 163).
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Provavelmente Cornlio Pires no conheceu o pensamento de Antonio Gramsci e no se pode dizer que sua inteno foi consciente no sentido poltico e ideolgico, de motivar uma ao libertadora das classes populares em relao hegemonia cultural. Porm, a partir do universo e da realidade histrica do pas, Cornlio Pires muito contribui para que o segmento rural sasse da condio de total excluso vislumbrando a possibilidade do reconhecimento dessa forma de cultura.
A trajetria de Cornlio Pires foi marcada de elogios, mas tambm de crticas de alguns intelectuais. Uma delas est registrada na carta que o escritor Paulo Duarte enviou a Mrio de Andrade, na qual expe sua opinio sobre o conjunto da obra literria:
Querer voc que eu compare, por exemplo, o Camara Cascudo com o Cornlio Pires? No, no consigo. Mas o engraado e analfabeto Cornlio est consagrado como o melhor novelista do mundo... E o Cascudo, apesar das irremediveis lacunas do autodidatismo e falta de cultura humanstica de base, quase supre tudo com intuio, observao honesta e at talento. (Leite,1996, 117)
A insatisfao de alguns crticos e literatos em relao produo corneliana se dava em funo do contedo de suas publicaes, pois achavam mal escritos, ingnuos, e tambm por no ter uma formao clssica, como bem pontuou Paulo Duarte quando diz na carta que ele analfabeto. Isso, porm, no abalou a criatividade e a continuidade de seus projetos. Cornlio Pires sabia bem o que estava fazendo. Quando certa vez lhe perguntaram qual o motivo de seu sucesso, ele respondeu:
Fcil de explicar, meus amigos, que no escrevo para letrados... escrevo para o povo... sei que muita gente comeou lendo minhas borracheiras e acabou evoluindo para melhores livros. Ao menos, meus trabalhos tem essa utilidade. (Pires, 1987, prefcio)
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Essa afirmao pode ser analisa tanto de forma populista ou defensiva, mas, diante de um pas em que a maioria da populao originria do rural e sem recursos sociais e ateno das autoridades pblicas, Cornlio Pires desempenha papel fundamental para difundir a cultura popular do rural paulista e essa populao que de certa forma pode ser vista atravs dele.
Caricaturas e ilustraes naquele perodo eram muito comuns nas pginas dos jornais e revistas, satirizando situaes polticas e sociais e as prprias contradies sobre a existncia de uma cultura e identidade nacional, relativizando a conscincia nacional do homem brasileiro. Buscava-se diminuir a distncia entre o que se pensa e o que se , como pontuaram alguns escritores como Mrio de Andrade em Macunama, Oswald Andrade em Memrias Sentimentais de Joo Miramar, Alexandre Marcondes Machado, Ju Bananre, em La Divina Increnca e Cornlio Pires em As Estrambticas Aventuras de Joaquim Bentinho.
Um dos principais ilustradores chamava-se Joo Paulo Lemmo Lemmi (13 de julho de 1884 - 22 de agosto de 1926), mais conhecido como Voltolino. Alm das ilustraes, escrevia pequenos textos na revista O Pirralho e assinava com o pseudnimo de Lul. Voltolino foi um dos maiores caricaturistas brasileiros da poca. Criador de um trao inconfundvel, tinha na essncia um fino humor e por isso preferiu a caricatura como expresso de sua arte e pensamento. Colaborou em diversas revistas e jornais com trao satrico, sobre os caminhos e rumos que a poltica e sociedade tomavam naquele perodo. Fundou junto com Cornlio Pires, em janeiro de 1926, a revista semanal O Sacy, destinada ao grande pblico.
A revista adquiriu sucesso popular j em seu segundo nmero, com tiragem de 14.000 exemplares. Porm, em agosto do mesmo ano, Voltolino faleceu precocemente, abalando no somente o poeta tieteense mas todos da imprensa paulista (Veiga, 1961, 119).
Entristecido com a morte do amigo, publica na revista o seguinte texto em sua homenagem:
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Um dos maiores caricaturistas brasileiros, talvez o maior deles, pois criou o seu trao, inconfundvel e inimitvel. Ningum como ele era capaz de, em dois rabiscos, apanhar o trao caricatural ou ridculo do indivduo. Voltolino foi um criador! ... ... Os polticos paulistas mais populares devem a Voltolino a sua popularidade e aqueles que no foram tocados pelo lpis do artista, a vivem ou vegetam desconhecidos. ... (Veiga, 1961, 120)
Cornlio Pires ainda deu continuidade revista, aps esse episdio, por quase um ano, mas, saudoso do amigo e de sua arte, encerrou as atividades do semanrio, dando sequncia a outros projetos (Veiga, 1961, 132).
As ilustraes de Voltolino eram famosas pela audcia e trao marcante e gil, despreocupados esteticamente em ser bem contornados. Pelo aspecto cmico, seus desenhos eram objetivos e sintticos, combinando com os textos de Cornlio Pires. Alm das caricaturas nas revistas O Piralho, O Malho, A Cigarra, O Queixoso, O Sacy, entre outras, criou o desenho de vrios personagens, entre eles o de Ju Bananre, capas e personagens do Stio do Pica-Pau Amarelo.
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46 Ilustraes de Voltolino. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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47 O Sacy. Edio de 12 de fevereiro de 1926. Acervo da Biblioteca Mrio de Andrade. Carnavalendo o anno inteiro, O Sacy no se encoruja! Faz o , a cavorteira, mas a baldes dagua suja... As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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48 O Sacy. Edio de 12 de maro de 1926. Acervo da Biblioteca Mrio de Andrade. Vai gentes! Metade intaliano metade brasileiro... Cruis Credo! As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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49 O Sacy. Edio de 08 de fevereiro de 1926. Acervo da Biblioteca Mrio de Andrade. Como o gordo sempre quis a madama...
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50 O Sacy. Edio de 1926. Acervo da Biblioteca Mrio de Andrade. No querem acreditar... So Paulo aguentar mais 4 meses e meio? As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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51 O Sacy. Edio de 19 de fevereiro de 1926. Acervo da Biblioteca Mrio de Andrade. Motivos extraordinrios Vm-lhe mente... inspirao! Mas chegam os secretrios... Meu Deus, que aporrinhao! As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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52 O Sacy. Edio de 19 de maro de 1926. Acervo da Biblioteca Mrio de Andrade. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Criador e criao em muitos momentos misturam-se a ponto de no se identificar exatamente qual um e qual outro. Ora se v o autor descrevendo o personagem, ora se v o autor como personagem. Bigrafos, escritores e msicos que tiveram ligao com a obra do tieteense retratam esse perfil.
Inezita Barroso, representante viva da cultura caipira, d seu relato sobre esse aspecto em uma passagem que compe a questo:
Meu pai falava muito, queria que eu lesse sobre ele. Parece incrvel, mas tinha mais coisa pra ler naquele tempo sobre ele do que hoje. E a fiquei conhecendo, apaixonada por aquilo, mas no conhecia pessoalmente. E a fui crescendo assim com essa vontade de tocar viola, de ficar na fazenda... mas no podia n? Estudava em So Paulo, tinha que voltar pra c. E eu sempre falando e comecei a notar que pouca gente conhecia. Ento bem mais tarde, j com uns 14, 15 anos... eu nunca abandonei essa minha paixo pela viola... e o Raul Torres era colega do meu pai na Estrada de Ferro Sorocabana e meu pai trouxe o Raul Torres... presente de aniversrio. Que a meninada toda tinha razes caipiras e... Ai, que bom, que bom! E ele j era um cartaz nessa poca. E ele vinha pra tocar l em casa, me ensinou o rasqueado e eu fiquei muito orgulhosa que s eu que sabia (risos)... violo assim, tipo de Mato Grosso, que um toque de Mato Grosso. Ento eu fui crescendo com esse amor por essas coisas. A, alguns anos depois eu fui pra Tiet. J era profissional, j cantava em rdio, comeando a televiso, e eu fui assistir uma festa do Divino, aquela... No rio, a coisa mais linda do mundo. Que desce os romeiros depois o resto da festa nos barcos, nos bateles... A casa do Cornlio era na beira do rio, do lado oposto onde a gente ficava pra assistir. E a casa toda fechada. Mas o qu acontece ali que ele no vem pra festa? Eu quero falar com ele de qualquer jeito! No, ele no vem porque ele brigado com o padre e o padre no deixa assistir festa, que ele protestante e o padre catlico, e o padre acha que a festa do divino catlica e no pra ele ir. 53
53 Na fase adulta, Cornlio converteu-se religio Protestante, e depois ao Kardecismo. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Esse trecho em negrito muito se aproxima no somente de questes sobre a vida de Cornlio Pires, mas tambm em relao ao imaginrio que seus personagens inspiram, como no caso de Joaquim Bentinho, que est sempre em meio a confuses e contando a seus ouvintes passagens fantsticas e duvidosas.
Ainda sobre a aproximao entre autor e personagem na obra de Cornlio Pires, Elias Thom Saliba pontua que:
Um dos mais notveis por assumir a funo de retratar o mundo caipira, ainda que filtrado e estilizado pela tica do humor, foi Cornlio Pires, cuja trajetria de vida, por si mesma, j poderia ser vista como prxima da comdia. Mesmo seus bigrafos dificilmente conseguem separar a realidade do folclore envolvendo a figura de Cornlio Pires... (Saliba, 2002, 176)
Alm da literatura e apresentaes humorsticas, realizou dois filmes documentrios: Brasil Pitoresco - 1923 e Vamos Passear 1934.
Brasil Pitoresco um documentrio mudo, ou melhor, um travelogue 54 , gnero do perodo oitocentista que registrava cenas cotidianas e que virou atrao como objeto de interesse, estudo e representao da reproduo da vida.
Inicia-se na cidade de So Paulo, no Monumento do Ipiranga, e depois segue para a cidade de Santos. No porto, parte de navio para o Rio de Janeiro e filma a Baa de Guanabara e o Po de Acar. Viaja na sequncia para Bahia, filma os bondes da cidade, o Mercado Modelo, a populao e suas caractersticas principais, as baianas com roupas tpicas vendendo iguarias e os pescadores no mar.
54 Travelogue um termo usado geralmente para filmes de viagens, anteriores aos documentrios. Filmes que invariavelmente eram centrados na figura do viajante-explorador-realizador, ilustrando visualmente um relato em 1 pessoa. Era da tradio dos filmes de viagem organizar sequncias segundo o fio cronolgico do roteiro fisicamente percorrido. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Na Bahia, Cornlio Pires faz diversas tomadas de cenas em lugares como So Felix, Ilhus, Santo Amaro, Feira de SantAnna, enfocando o cotidiano da populao, seus afazeres na rua, os locais de trabalho e o contato com a natureza. Depois da Bahia vai para Sergipe, porm a estada curta pelo fato de o operador ter adoecido, havendo apenas pequenas tomadas de Aracaju e da pesca 55 . O outro documentrio que realizou, Vamos passear, desta vez, sonoro, retrata a cultura dos caipiras de So Paulo, suas vestimentas, conversas e msicas. (Veiga, 1961, 108)
O interesse de Cornlio Pires na busca por manifestaes populares de diferentes localidades do pas e de diferentes contextos culturais, tambm foi o de Mrio de Andrade. Entre 1937/38, o escritor idealizou e organizou no perodo em que chefiava o Departamento de Cultura da Cidade de So Paulo uma Misso de Pesquisas Folclricas ao Norte e Nordeste do Brasil, coletando gravaes, filmes, fotografias e instrumentos musicais com o objetivo de documentar tais expresses que posteriormente foram publicados em 1946 por Oneyda Alvarenga e que se encontram at hoje no Centro Cultural So Paulo.
A Misso representou no s a documentao de diferentes prticas culturais destas regies, mas o conhecimento e incluso de um projeto popular nos segmento hegemnico visando uma perspectiva democrtica e uma possvel (re)elaborao de polticas pblicas voltadas para este campo.
Em 1929, Cornlio Pires realiza outro projeto pioneiro. Consegue da indstria fonogrfica a gravao de msicas caipiras e anedotas em discos de 78 RPM. Atravs do selo Columbia Records, representado no Brasil por Byington & Company, encomendou com recurso prprio um total de 25 mil discos que integravam cinco sries com cinco mil cpias cada.
55 Esse documentrio possui informaes divergentes sobre sua realizao, uma verso de seu bigrafo e outra da Cinemateca Brasileira. Macedo Dantas diz que o contato de Cornlio Pires com o cinema teve incio aps uma viagem que fez cidade do Rio de Janeiro no ano de 1922. L pela primeira vez v uma cmera de filmar, comprando-a de um cidado alemo que conheceu na cidade carioca. Em 1923, junto com o cinegrafista Flamnio de Campos Gatti, inicia o experimento cinematogrfico pelas cidades do Brasil, registrando diversas paisagens naturais e pitorescas (Dantas, 1976, 112). Na Cinemateca Brasileira consta uma cpia e a filmografia descrita pelo Jornal O Estado de So Paulo, de Jean Claude Bernardet (1979). O filme foi realizado em 1925, tendo como operador Jos Palcios (Schvarzman, 2002).
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Aps um curto perodo, muda de gravadora, devido ao grande sucesso e procura do pblico pelos discos, sendo a Odeon a nova empresa fonogrfica. A Odeon criou um selo vermelho para diferenciar os discos caipiras em funo do valor, pois custavam dois mil ris a mais que os outros estilos musicais (Veiga, 1961, 145). O projeto fonogrfico, alm de atenuar a tenso entre fronteiras do rural e o urbano, do erudito e o popular, abriram portas para que esse estilo fosse conhecido e valorizado por vrios segmentos da sociedade.
A origem da msica caipira, assim como a formao histrica do pas, teve a contribuio das culturas portuguesa, indgena e africana em sua base. Dos portugueses veio a viola, os contos populares e de aventureiros, dos ndios a contribuio foi na dana (batiam ps e mos - que originou a Catira) e dos africanos, a musicalidade e o ritmo.
A msica caipira antes de retratar o cotidiano dos paulistas era presente somente na liturgia do catolicismo popular, como na Folia do Divino, no cateret, na catira (dana ritual indgena e catolicizada no sculo XVI pelos padres jesutas) e no cururu (dana indgena transformada pelos missionrios em dana de Santa Cruz). Depois, as letras passaram a abordar o cotidiano das populaes rurais formadas por trabalhadores pobres e cuja sobrevivncia vinha da terra, do contato com a natureza. Sem condies de ter outra atividade seno a lida do trabalho para sustentar suas famlias e sem ateno das polticas pblicas, analfabetos em sua maioria, a msica foi a forma encontrada pelos caipiras para registrar seus momentos, estrias, contos, amores, tristezas, costumes, passando para as futuras geraes e at hoje.
Inezita Barroso, em trecho de sua entrevista, explica a origem da msica caipira.
Ela nasceu duma mistura dos ndios com os jesutas. Por isso que durante at certo tempo da msica caipira, as letras nunca falavam de amor, falavam de coisas assim mais pesadas. Era s animal, a casa da fazenda, a saudade que ele sentia... Mesmo quando ele falava de amor, era uma coisa muito leve, muito delicada... As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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A vm os jesutas e ensinam pra eles, a fim de catequizar atravs da msica... O qu? Msicas deles, rituais traduzidos, ensinaram coisas europeias traduzidas para a lngua deles. Anchieta era mestre nisso. Teatro ele escrevia na lngua deles e em portugus. Ou espanhol, porque ele era espanhol. Ento aqui tem um grande lastro da Espanha, muito grande. E mais do que portugus... Porque portugus no se juntava. Eles achavam ndio... inferiores, tipo bicho. No Pateo do Colgio eles no deixavam os filhos frequentarem, era s filho de ndio. uma coisa sria isso da. E essas coisas ficam e voc no sabe por qu. Eu falo mas por qu? Por que a moda era assim? (Moda de Viola) Comprida, com tragdia... Quase todas era morte, era no sei o que. Ento ele saa (o paulista) com a viola, que ele amava. Veio de Portugal, j com os jesutas. Portugal e Espanha. Ento a viola... pendurada no cavalo, no arreio, sempre... costume que tem at hoje. Ento eles tm um saco, limpinho, alvejado, pe a viola dentro, pendura no arreio. Por isso que tem aquela expresso botar a viola no saco... Vem da! Botou a viola no saco e some. Por exemplo, quando ele perde o desafio de rimas, como era o Cururu, que era um desafio de sabedoria... ento j... ponho a viola no saco e sumiu! Que ele tem que ir embora, que ele perdeu,... mas s homem. A mulher ficava muito de longe. Assistia muito de longe, no participava que costume indgena. Qual era a letra dessas modas? Era acontecimentos dirios ou religio. Por isso que o Cururu, o nosso desafio, no comeo foi religioso. Ento, at hoje, tem em Piracicaba o que eles chamam Cantar na Escritura. Quer dizer, cantar sobre a vida de santo, sobre o evangelho... Ou ento histria, eles liam muito, falam muito dos Doze pares de Frana! De onde que vem isso? Que eram aqueles livros velhssimos que eles... liam e cantavam aquilo pra se exibir, pra dizer que eles sabiam. Ento as letras eram assim, e a moda mudou muito, porque a moda, mesmo s com viola, elas falavam sempre de um assunto comprido, a moda era enorme, no acabava mais... E se voc esquecer um detalhe, voc perde... As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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As msicas se cantavam no sereno e ficavam roucos, com neblina, com chuva... sapo que canta grosso... P (imitando o som do sapo). Est sempre meio rouco. Ento o cururu ficou chamado cururu (Sapo Cururu)... Que era ao ar livre. E engraado... Ai, cururu uma coisa interessantssima. Porque voc no ofende ningum. Voc fala sobre um assunto. E muito difcil de contar. E tem uma segunda voz, porque vem dos jesutas, tinha que cantar em vozes, que era lindo. Essa segunda voz da dupla, que a dupla caipira, vem de l, da igreja. Sempre tem dupla. Agora, desafio improvisado. Ento a segunda voz no sabe o que vai falar. Mas sabe a rima. Ento ele enrola, a o cantador no canta o assunto. (Cantando) Voc me ofendeu, no sei o que, no sei o que l... Rima em Eu, que dificlimo. E o outro em segunda voz: (cantando) Nheu, nheu, nheu, nhu... Na, n, na, nanan. A voc morre de rir... Quem no sabe... ai meu Deus, pra quem no sabe, tinha que ensinar isso pra criana... O Bero So Paulo (se referindo msica caipira). Os caipiras eram todos descendentes dos ndios... Porque demorou pro portugus misturar... Demorou muito. Depois que comeou a misturar e a depois que vieram os negros. Ento... Voc viu que... ndio uma msica muito pobre, no tem ritmo. Nem a escala eles no conheciam. Ento era assim, um negcio (canto), quase um misto, meio falado. A os portug... os jesutas... Aprimoraram mais um pouquinho, comearam a ensinar, deixar cantar na igreja, tocar... A se apaixonaram pelo coral, por isso que tem duas vozes, sempre dupla. Embora ele no saiba ler (risos)... A viola portuguesa... A flauta indgena importantssima. Porque tinha... a flauta... que ainda permanece no Nordeste a flauta, que so os pfaros, que so feitos em casa, eles no compram os pfaros. Ento fabricado de taquara, fica no sei quanto tempo no sol, toma chuva pra curtir, a fura os buraquinhos com ferro quente em brasa... e toca em duas vozes. Tocam duas flautas sempre. Duas vozes. Primeira e segunda. A quando no acerta, jogam fora pra acertar o som, de duas vozes... Por isso que o pfaro meio desafinado, nunca ele afina que nem uma flauta. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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O negro j veio com... Ento ele chegou j com o batuque... E era proibido tocar msica deles. Mas era to bom que depois... muito tempo depois, no Nordeste principalmente, eles mostravam pros estrangeiros... o batuque e tudo...
Ainda no segmento musical, em 1929, Cornlio Pires criou um grupo que se chamava a Turma Caipira de Cornlio Pires, que viajou pelo Brasil combinando msicas caipiras e anedotas em suas apresentaes.
... composto de oito caipiras, escolhendo os diversos tipos de roceiros, desde o loiro de olhos azuis, aos caboclos tapuio, cafuso, sarar, mulato, fusco e preto. Levou, com surpreendente interesse das platias, sempre repletas, demonstraes de: fandango, cateret, cururu, passa-pachola, cana verde, roda morena, So Gonalo, mandado, samba-leno, sambacaipira. (Leite, 1978, 118)
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56 Turma Caipira Cornlio Pires: da esquerda para a direita, em p: Ferrinho, empunhando a "puta" ou cuca, Sebastio Ortiz de Camargo (Sebastiozinho), Caula, Arlindo Santana; sentados: Mariano, Cornlio Pires e Zico Dias. Foto histrica de 1929. Fonte: www.violatropeira.com.br As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Sobre o projeto musical de Cornlio Pires, Inezita Barroso diz:
Foi o pioneiro, foi muito corajoso porque ele peitou tudo o que ele fez sozinho. Ele trouxe as primeiras violas, os primeiros violeiros pra So Paulo Capital, que tinha bem uma civilizao francesa na poca. So Paulo era cheia de tric tric. Ento se no falasse francs era horrvel. Os colgios de freira, tudo era francs, ensinava francs. E ele enfrentar, assim, aqueles cafs, aqueles teatros com coisa francesa... acho que ele foi muito corajoso. Ele trazia um albinho, um livrinho e tal, sentava numa mesa, com uma moringa dgua, e fazia palestras. E cada vez enchia mais a sala. Chamava caf- concerto esses teatrinhos... ... Tinha um no Anhangaba que meu pai falava muito... s vezes a cobertura era de lona, mas no era circo, era... umas cadeiras assim enfileiradas como teatro e tal e eles... Um silncio do co, e ele falando sobre a msica caipira, sobre a viola, sobre... declamando. Ele foi um grande poeta caipira, e era um sucesso e depois ele apresentava os violeiros. E dava exemplo dos estilos de toque da viola, como que era? ... Ento eu acho que ele teve uma coragem muito grande. Depois ele foi convidado para gravar um disco, que foi o primeiro disco caipira gravado, que foi o Jorginho do Serto... (Inezita Barroso canta): O Jorginho do Serto/Rapazinho de talento/Numa carpa de caf/Ele enjeit treis casamento (risos). Olha voc v de onde vm as coisas... Da, assim, (Inezita Barroso canta) Logo veio a do meio, cheia de toque de fita/Jorginho case comigo/que das trs s a mais bonita. (risos) Logo veio a mais nova... ai, ento, vieram as trs. A mais velha diz que mais trabalhadeira, pra casar com ela 57
57 Jorginho do Serto - Cornlio Pires. A letra da msica : O Jorginho do Serto/Rapazinho de talento/Numa carpa de caf/Enjeit treis casamento/Logo veio o seu patro/Cheio de contentamento/(tenho treis filhas "sorteira/que ofereo em casamento)/Logo veio a mais nova/Vestidinho cheio de fita/Jorginho case comigo/Que das treis/S a mais bonita/Logo veio a do meio/Vestidinho cor de prata/Jorginho case comigo/Ou ento voc me mata/Logo veio a mais veia/Por ser mais interesseira/Jorginho case comigo/Sou a mais trabaiadeira/Jorginho pegou o cavalo/Ensilh na mesma hora/Foi diz pra morenada/Adeus que eu j vou me embora/Na hora da despedida,/Ai, ai, ai/ que a morenada chora/Ai, ai, ai/O Jorginho arresorveu/ melhor que eu mesmo suma/No posso cas cum as treis, ai/Eu num caso cum nenhuma. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Ai, eu cantei isso muito tempo, essa moda, que foi a primeira a ser gravada. A depois eu falei Meu Deus, eu j conheo essa histria. Essa histria da Nau Catarineta 58 , aquele que o capito... ficou perdido com a nau portuguesa, uma histria portuguesa, que ele mandou o menino subir na... no mastro pra ver se avista a terra. Da o menino desce e fala... quando ele avista a terra ele diz: Tem trs donzelas, uma est a correre, outra est no sei o qu e outra est no sei o que, ele quer dar uma das trs em casamento pro menino. Ento falou: Voc pode escolher: essa cozinha, aquela faz isso, aquela faz aquilo. Ele falou: eu num quero nenhuma das trs, eu quero a Nau Catarineta pra viajar at morrer. Voc v de onde vm as coisas? Voc l, l, l... e no
58 O Romance da Nau Catrineta ou da Nau Catarineta um romance popular - uma composio potica ligada tradio oral. Provavelmente foi inspirado pela tumultuada viagem do navio Santo Antnio, que transportou Jorge de Albuquerque Coelho (filho de Duarte Coelho Pereira, donatrio da capitania hereditria de Pernambuco), desde o porto de Olinda, no Brasil, at o porto de Lisboa, em 1565. O poema narra as desventuras dos tripulantes durante a longa travessia martima - os mantimentos que esgotaram, a presena de tentao diablica e, afinal, a interveno divina, que leva a nau a seu destino. Uma das verses do poema foi recolhida por Almeida Garrett e includa em seu Romanceiro. http://pt.wikipedia.org/wiki/Nau_Catrineta Lenda recolhida por Almeida Garrett, a qual conta a viagem da nau portuguesa que, em 1565, transportava Jorge de Albuquerque Coelho para Lisboa. H quem diga que esta histria foi verdica e era contada pelo prprio Jorge A. Coelho, quando, j idoso, se sentava frente ao mar, rodeado de amigos. L vem a nau Catrineta/Que tem muito que contar!/ Ouvide, agora, senhores,/ Uma histria de pasmar./Passava mais de ano e dia/Que iam na volta do mar/J no tinham que comer,/ J no tinham que manjar./Deitaram sola de molho/Para o outro dia jantar;/Mas a sola era to rija/ Que a no puderam tragar./Deitaram sorte ventura/ Qual se havia de matar;/ Logo foi cair a sorte/ No capito general./Sobe, sobe, marujinho,/ quele mastro real,/ V se vs terras de Espanha,/ As praias de Portugal./"No vejo terras de Espanha,/ Nem praias de Portugal;/ Vejo sete espadas nuas/ Que esto para te matar"./Acima, acima gajeiro,/ Acima ao tope real!/ Olha se enxergas Espanha,/ Areias de Portugal/ "Alvssaras, capito,/ Meu capito general!/ J vejo terra de Espanha,/Areias de Portugal./ Mais enxergo trs meninas/Debaixo de um laranjal:/ Uma sentada a coser,/ Outra na roca a fiar,/ A mais formosa de todas/Est no meio a chorar". / Todas trs so minhas filhas,/ Oh! quem mas dera abraar!/ A mais formosa de todas/ Contigo a hei-de casar./ A vossa filha no quero,/ Que vos custou a criar"./ -- Dar-te-ei tanto dinheiro,/ Que o no possas contar./ "No quero o vosso dinheiro,/ pois vos custou a ganhar!/ -- Dou-te o meu cavalo branco,/ Que nunca houve outro igual./ "Guardai o vosso cavalo,/Que vos custou a ensinar"./ --Dar-te-ei a nau Catrineta/ Para nela navegar./ "No quero a nau Catrineta/ Que a no sei governar"./ Que queres tu, meu gajeiro,/ Que alvssaras te hei-de dar?/ "Capito, quero a tua alma/ Para comigo a levar"./ Renego de ti, demnio,/ Que me estavas a atentar!/ A minha alma s de Deus,/ O corpo dou eu ao mar./ Tomou-o um anjo nos braos,/No o deixou afogar./ Deu um estouro o demnio,/ Acalmaram vento e mar;/ E noite a nau Catrineta/ Estava em terra a varar. ROMANCE DA NAU CATARINETA: Melodia: Antnio Jos Madureira, Recriao literria: Ariano Suassuna e Interpretao: Antnio Nbrega O "Romance da Nau Catarineta" uma cano de 19 estrofes que narra as peripcias de uma longa travessia martima de Brasil para Portugal, as calmarias que esgotaram os mantimentos, a sorte para sacrificar um dos tripulantes, a presena de tentao diablica e a interveno divina, levando a nau a um bom porto. "O comandante dessa viagem verdica foi o navegador Jorge de Albuquerque Coelho, filho de Duarte Coelho, fundador de Olinda e donatrio da capitania hereditria de Pernambuco de 1534 a 1554; a Nau Catarineta, inclusive, partiu do porto de Olinda para Portugal", segundo narra Ariano Suassuna. Ouam, meus senhores todos, uma histria de espantar/L vem a Nau Catarineta que tem muito o que contar/H mais de um ano e um dia que vagavam pelo mar/J no tinham o que comer, j no tinham o que manjar/Deitam sortes ventura a quem se havia de matar/Logo foi cair a sorte do Capito-General/Tenham mo, meus marinheiros, prefiro ao mar me jogar/Antes quero que me comam, ferozes peixes do mar/Do que ver gente comendo carne do meu natural/Esperemos um momento, talvez possamos chegar/Assobe, assobe, gajeiro, naquele mastro real/V, se vs terras de Espanha e areias de Portugal/- No vejo terras de Espanha e areias de Portugal/Vejo sete espadas nuas que vm para vos matar/Vai mais acima, gajeiro, sobe no topo real/V, se vs terras de Espanha, gajeiro, e areias de Portugal/- Alvssaras, Capito, meu Capito-General/J vejo terras de Espanha, areias de Portugal/Enxergo mais trs donzelas debaixo de um laranjal/Uma sentada a coser, outra na roca a fiar/ A mais mocinha de todas est no meio a chorar/Todas trs so minhas filhas... Ah, quem me dera as beijar!/A mais mocinha de todas, contigo hei de casar/- Eu no quero a vossa filha que vos custou a criar/Dou-te meu cavalo branco que nunca teve outro igual/- No quero o vosso cavalo, meu Capito-General/Dou-te a Nau Catarineta, to boa em seu navegar/- No quero a Catarineta que naus no sei navegar/Que queres, ento, gajeiro? Que alvssaras hei de dar?/- Capito, eu sou o diabo e aqui vim pra vos tentar/O que eu quero vossa alma para comigo a levar/S assim chegais ao porto, s assim eu vou vos salvar/Renego de ti, demnio, que estavas a me tentar/A minha alma eu dou a Deus, e o meu corpo eu dou ao mar/ E logo salta nas guas o Capito-General/Um anjo o tomou nos braos, no o deixou se afogar/D um estouro o demnio, acalmam-se o vento e o mar/E, noite, a Catarineta chegava ao porto do mar. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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percebeu... mas de onde que vem esse Jorginho do Serto? Ele quer dar suas filhas em casamento e ele no quer... , e o Jorginho a mesma histria. Da ele diz (Inezita Barroso canta) Na hora da despedida, ai, ai, ai, que a morenada chora, ai, ai, ai, J orge encilhou seu cavalo e partiu na mesma hora, no posso.... No assim, primeiro tem um verso assim: No sei o que l, eu no posso casar com as trs, ento no caso com nenhuma (risos). Mas a mesma histria! Como vem de longe! Vem de longe... Europa... No adianta no querer... E... me perdi. O que eu tava falando? Ah, do teatrinho, depois do disco. Ento foi o Jorginho do Serto e mais... Disco de dois lados que eu cheguei a gravar tambm aquele trechinho... Ele teve que bancar, teve que pagar 500 discos. Naquele tempo!... A companhia queria dinheiro. A ele ps no porta-malas do carro e saiu com aquele cheveco cheio de disco no porta-malas, 500 discos, naquele tempo pra vender era difcil e... Percorria vrias cidades e vendeu primeira partida dos 500. Voltou, e eles imprimiram mais 2.000. Foi tudo. Voc v da ficou supervitorioso. Foi corajoso tambm! Arriscar um dinheiro grande...
Cornlio Pires escreveu um total de 23 livros entre contos, prosas, poesias e estudos, todos com grande tiragem e sucesso de pblico. Apesar do no reconhecimento de alguns expoentes que integravam a crtica brasileira da poca, que viam suas obras como secundrias, o tieteense tinha apoio de muitos escritores de prestgio e de pblico, que foi cativado pela linguagem simples, popular e engraada, constante em suas publicaes.
Joffre Veiga comenta:
Enquanto a maioria dos livros publicados no Brasil vinha recheada de francesismo, os trabalhos de Cornlio Pires traziam uma mensagem de sabor eminentemente nacional. A forma e o contedo de seus escritos ressumavam a brasilidade. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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O francesismo que imperava nas rodas literrias e elegantes da poca estava fora da compreenso do povo. Da a vigorosa preferncia do leitor comum por livros autenticamente brasileiros, como Juca Mulato, de Menotti Del Picchia, Cana, de Graa Aranha, D. Guidinha do Poo, de Manuel de Oliveira Paiva, Isaas Caminhas, de Lima Barreto e, sobretudo, pela obra de Jos de Alencar (Veiga, 1961, 103, 104).
Ao encerrar a carreira jornalstica, seu projeto seguinte foi a criao do Teatro Ambulante Gratuito Cornlio Pires (1946), com espetculos de variedades e apresentaes humorsticas e educativas, de bonecos ventrloquos e sesses cinematogrficas em praas pblicas das capitais e cidades do interior. Esse projeto foi posteriormente patrocinado pela Companhia Antrtica Paulista, de quem recebeu uma perua equipada para viajar pelo pas e um cach pela propaganda (Veiga, 1961, 174, 175) (Dantas, 1976, 190, 191).
Aps essa aventura cultural e artstica, Cornlio Pires falece em 17 de fevereiro de 1958, numa segunda-feira de carnaval, sob a alegria dos folies. Nada mais justo para um artista que tinha o humor como trao marcante em sua vida e obra (Dantas, 1976, 196) (Veiga, 1961, 178).
Em qualquer tempo em que eu deixe este corpo, que tanto me serviu para minha estada aqui na terra, para me consertar um pouco, desejo que ele seja sepultado descalo e de pijama. No por vaidade, mas que se aproveitem (alguns pobres) das roupas e calados que usei. Nisso no h caridade. Como no posso us-los, os dou... (Dantas, 1976,196) (Veiga, 1961, 178)
Cornlio Pires participou de um perodo muito importante da histria do pas, centrado na busca da identidade nacional. Possibilitou ecoar a voz do povo do interior paulista, trazendo-a para a cidade em verso e prosa, em msica e pelcula, em anedotas e humor. Ele reinventa a identidade do caipira rompendo e unindo fronteiras e no somente no que se refere ao espao rural e urbano, mas entre o tradicional e o moderno, entre o popular e o erudito. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Nas primeiras dcadas do sculo XX estes espaos eram bem definidos e intransponveis, principalmente para algum que no tinha recursos financeiros e encontrava dificuldades frente a uma sociedade elitizada e carregada de estigmas daqueles que no pertenciam ao meio.
Vrios intelectuais e artistas brasileiros tambm se fizeram presentes nessa questo voltada para a valorizao da cultura popular, suas manifestaes e tradies. Autores como Gilberto Freyre, Nelson Werneck Sodr, Srgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Antonio Candido, Carlos Rodrigues Brando, entre tantos outros, buscaram explicar um Brasil que carrega diferenas tnicas e culturais presentes em sua formao.
Estes autores mostram o lado inverso ao revelar a grande riqueza cultural gerada nas prprias diferenas que se mesclam e formam uma cultura prpria e original, alm da contribuio no campo da memria e do imaginrio que muitos trazem de sua infncia e juventude.
Antonio Candido foi um deles. A partir do que leu de Cornlio Pires em sua meninice, relata:
Em menino e moo, li muito os livros que ele publicou, bastante correntes nas cidades do Sul de Minas onde me criei. Posso, com um esforo de memria, reconstituir o impacto que tinham na vida cotidiana, contribuindo para um bom humor que ajudava os adultos e os meninos a viverem melhor alguns momentos. (Dantas, 1976, 12)
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CAPTULO IV
TENSO ENTRE CULTURA POPULAR E CULTURA ERUDITA E O RISO COMO MEDIADOR
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Aps a apresentao e discusso dos captulos anteriores, chega-se ao fim, e a abordagem aqui a ser tratada ser sobre os aspectos significativos e tenses existentes entre a cultura erudita e a cultura popular, o riso como elemento mediador e a contribuio de Cornlio Pires nesse campo.
Quando se fala em cultura, a ideia que vem no pensamento da grande maioria das pessoas e que predomina nas sociedades ocidentais o sentido de erudio, centrado no academicismo, exigindo muito estudo para se obter conhecimento, recursos para investir e, por fim, inacessvel maioria das pessoas. Porm, no sentido amplo, conforme a definio de Peter Burke que escolhi:
Cultura uma palavra imprecisa, com muitas definies concorrentes; a minha definio a de um sistema de significados, atitudes e valores partilhados e as formas simblicas (apresentaes, objetos artesanais) em que eles so expressos ou encarnados. A cultura nessa acepo faz parte de todo um modo de vida, mas no idntica a ele. (Burke, 2010,11)
Em termos sociolgicos, a sociedade ocidental capitalista no decorrer de seu desenvolvimento histrico foi privilegiando alguns grupos sociais conforme seu interesse em relao a bens e fortuna. Por sua condio privilegiada, estes grupos adquirirem poder de dominao em relao aos grupos menos privilegiados que acabam sendo submetidos condio de dominados dentro dessa ordem econmica e social. Disso resulta uma cultura hegemnica, contribuindo na separao entre o que de carter popular e o que erudito.
Para dar sentido a esse respeito, cito o relato de Alfredo Bosi sobre uma experincia pessoal que teve quando era estudante em uma universidade italiana. Bosi diz que no perodo em que morou em Florena, hospedou-se em uma casa muito antiga e alguns cmodos no tinham instalaes adequadas para suprir suas necessidades bsicas. Foi ento at uma loja comprar um objeto para adaptar ao que precisava e o trouxe at sua casa. Quando chegou com o objeto a proprietria olhou-o seriamente e indagou: Foi o senhor que carregou da As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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loja at aqui? Aps a resposta positiva, ela com espanto disse: O senhor tem cultura, mas muito democrtico. (Bosi, 1997, 34)
O exemplo de Bosi esclarece bem a concepo de cultura que predomina h muito tempo e em muitos segmentos da sociedade at os dias de hoje. Ela vista como um bem de luxo, um bem que se herda e quem possui pertence a uma elite. A expresso tem cultura, mas muito democrtico faz sentido, pois o pensamento hegemnico na perspectiva da sociedade ocidental enfatizou durante sculos que cultura est relacionada a bons modos, costumes, educao, posse de bens materiais, conhecimento, valores ligados aristocracia e recebidos por herana.
Pierre Bourdieu explicar esta concepo dizendo que a sociedade ocidental hierarquizada a partir de uma diviso desigual entre grupos ou indivduos com base nas relaes de bens materiais e/ou econmicos e de bens simblicos, status e/ou culturais. Desse modo, h uma distribuio desigual de recursos e poderes e consequentemente privilgios so para os que pertencem a especficos grupos dentro da estrutura social hegemnica.
Por recursos e poderes, Pierre Bourdieu entende a questo a partir de um conjunto de capitais que so: econmico, que se refere renda, imveis; cultural, aqueles que possuem conhecimento por meio de diplomas e ttulos; social, so as relaes que o indivduo possui e que podem ser revertidas em capital; e por fim, o simblico, que se refere a prestgio e honra. Assim, a posio de privilgios, ou no, de um determinado grupo social ou indivduo d-se a partir do volume de capitais (nas dimenses material, simblica e cultural) que adquiriu e incorporou ao longo de sua trajetria social.
Nas dcadas de 60 e 70 do sculo passado, Pierre Bourdieu realizou uma srie de pesquisas sobre prticas culturais e de lazer entre diversos segmentos sociais, em particular a classe operria na Frana, e constatou que o gosto pela cultura e as prticas culturais esto ligados ao meio em que o indivduo vive no mbito familiar e escolar e incorporado por ele. A isso Pierre Bourdieu denominou de capital cultural incorporado. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Em outras palavras, se um indivduo vive em um ambiente culto em que o aprendizado inicia-se com a famlia desde a primeira infncia e depois completado pelo aprendizado escolar, ele ter familiaridade maior com a produo cultural do que aquele que inicia o aprendizado tardio e metdico somente nas instituies de ensino e fora do ncleo familiar. Esses dois tipos de aprendizado seriam os responsveis pela formao do gosto cultural do indivduo.
O capital cultural incorporado, como o prprio nome diz, est ligado ao corpo e conquistado sob um trabalho continuado de assimilao, empenho, dinheiro e tempo por parte do investidor. Por ser um trabalho de aquisio pessoal ele torna-se parte integrante da pessoa, um habitus. 59 Esse capital conquistado de forma individual e no transmitido de maneira instantnea como o capital econmico, que ligado a bens materiais, dinheiro, propriedade, doao, compra ou troca e at ttulos de nobreza, alm da predisposio pelo gosto de diversos produtos ligados cultura culta.
Esses apontamentos so importantes na medida em que esclarecem que a escolarizao cobra de todos os indivduos somente o que alguns detm, que o conhecimento e acesso a uma cultura culta obtida antes da escolarizao no ncleo familiar das classes privilegiadas, no levando em considerao aqueles que pertencem ao segmento popular. Ao invs da escolarizao promover o acesso ao ensino de forma democrtica aos indivduos, ela acaba reforando as diferenas e distines existentes entre aqueles que possuem capital cultural daqueles que no o tem.
Pierre Bourdieu denominou a essa cobrana de violncia simblica, pois impe a todos uma nica forma de cultura que reconhecida e legitimada pela elite e pelo Estado, menosprezando outras formas e segmentos de cultura e de classe. A violncia simblica
59 O habitus uma noo mediadora, que nos ajuda a revogar a dualidade que h no senso comum entre o individual e o social, capturando a interiorizao da externalidade e a externao da internalidade, ou seja, a maneira pela qual a sociedade depositada nas pessoas sob a forma de disposies durveis, ou, ainda, capacidades treinadas e propenses estruturadas de pensar, sentir e agir de um determinado modo, as quais ento as orientam em suas respostas criativas s restries e solicitaes do meio em que se encontram. Habitus Instituto Goiano de Pr-histria e Antropologia v.2, n.1, p.12 - jan./jun. 2004. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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tem suas ramificaes no gosto cultural, que resulta da diferena entre os indivduos e classifica o que de bom ou mau gosto, hierarquizando assim o campo da cultura 60 .
Tal apresentao sobre os estudos culturais de Pierre Bourdieu importante para compreender as contradies e tenses existentes entre cultura popular e cultura erudita e a relao de dominao e de subordinao entre elas. A existncia da cultura popular s interessa cultura erudita para servir de termmetro, na medida em que legitima seus interesses, mas ao mesmo tempo a incomoda pela ausncia de um conjunto de capitais. Sobre essa contradio, Nstor Garca Canclini diz que:
O povo comea a existir como referente do debate moderno no fim do sculo XVIII e incio do XIX, pela formao na Europa de Estados nacionais que trataram de abarcar todos os estratos da populao. Entretanto, a ilustrao acredita que esse povo ao qual se deve recorrer para legitimar um governo secular e democrtico tambm o portador daquilo que a razo quer abolir: a superstio, a ignorncia e a turbulncia. Por isso, desenvolve-se um dispositivo complexo, nas palavras de Martm Barbero, de incluso abstrata e excluso concreta. O povo interessa como legitimador da hegemonia burguesa, mas incomoda como lugar do inculto por tudo aquilo que falta. (Canclini, 2006, 208)
Iniciei este captulo com as ideias sobre a noo do segmento erudito na cultura, pois a cultura popular (re)descoberta pelos intelectuais no perodo Romntico na Europa no final do sculo XVIII e incio do XIX.
Quando se fala em cultura popular, importante deixar claro que no a relacionada ideia de povo, e sim a de grupos portadores de uma cultura distinta da elite em termos ideolgicos, na perspectiva gramsciana, econmicos e polticos, podendo ter em si uma busca pela essncia nacional. Porm, a inteno aqui no fazer uma arqueologia do
60 Os conceitos de Capital Cultural, Habitus, Violncia Simblica basearam-se nas obras de Pierre Bourdieu e no livro de Maria da Graa Jacintho Setton, intitulado A Produo da Crena. Ed. Zouk, So Paulo, 2002.
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conceito de popular ou de erudito, mas uma reflexo entre elas e a contribuio de Cornlio Pires para o reconhecimento da cultura caipira a partir da nossa realidade social. Para isso, fundamental recorrer no campo terico dessas ideias e conceitos a Antonio Gramsci, Mikhael Bahktin, Peter Burke e Renato Ortiz.
Cultura popular, como prope Peter Burke, uma cultura no oficial, a cultura da no elite. A no elite no incio da Idade Moderna na Europa era composta por todo um conjunto de grupos sociais mais ou menos definidos, entre os quais destacavam-se os artesos e os camponeses. (Burke, 2010,11).
Para Gramsci, assim como Bakhtin, cultura popular a que est ligada s classes subalternas, porm Gramsci ir defender a proposta de uma cultura nacional-popular (Ortiz, 1992, 6), vislumbrando nela uma possvel ao transformadora na sociedade para um futuro socialista. J para Bakhtin a cultura popular uma concepo de mundo baseada na vida cotidiana que adquire sentido nas manifestaes e tradies populares, e no como conceito de civilizao e arte pura e cristalizada. Cultura para Bakhtin no algo homogneo, assim como os povos no o so. mais do que isso; um modo de vida, porm no idntico a ela. So atitudes, valores e formas simblicas compartilhadas.
Bakhtin aborda o carter polifnico em que o dilogo nunca se conclui, porque h diversas linguagens interagindo e absorvendo as diversas caractersticas de cada povo, cultura, linguagem, que para alguns pensadores denominado de hibridismo cultural ou multiculturalismo. J Gramsci v nas classes populares a verdadeira transformao social e poltica atravs do intelectual orgnico, sujeitos presentes em todos os segmentos da sociedade na defesa da socializao do conhecimento e no somente privilgio das classes hegemnicas.
Entre as pginas mais clebres dos seus escritos esto as que descrevem de maneira original e insupervel a relao entre intelectuais e povo-nao (Gramsci, 1975, p. 361-362; 1.042; 1.382-1.387; 1.505-1506; 1.635). Nessas pginas, podemos perceber claramente o abismo que separa a concepo dos As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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intelectuais populares que sentem com paixo a vida dos subalternos e os intelectuais convencionais, funcionais elite e especializados na administrao e no controle da sociedade. (Semeraro, 2006, 164)
Gramsci retrata a osmose profunda dos intelectuais com as camadas populares, reconhecidas como sujeitos ativos imbudos de esprito criativo, porque promove a universalizao da intelectualidade. Quer dizer, est convencido de que todos tm a capacidade de pensar e agir, de elaborar conhecimentos, de acumular experincia, de ter uma sensibilidade, um ponto de vista prprio. Nesse sentido, combatendo a noo abstrata, aristocrtica e restrita de intelectual, Gramsci afirma que Todos so intelectuais (...). Porque no existe atividade humana da qual se possa excluir alguma interveno intelectual. (Gramsci, 1975, p. 1.516) (Semeraro, 2006, 165)
Esses dois filsofos vm de uma formao no pensamento marxista que v as transformaes histricas em que no se separam a produo das ideias e as condies sociais e histricas nas quais so produzidas. Tanto para Gramsci como para Bakhtin, a origem e o sentido da realidade como cultura esto nas relaes dos homens com a natureza pelo desejo, pelo trabalho e pela linguagem.
Em se tratando da realidade histrica brasileira no que tange ao pensamento bakhtiniano, um dos primeiros pesquisadores que conseguiram enxergar a pluralidade cultural existente no pas e a convivncia entre elas foi Gilberto Freyre, em seu ensaio Casa Grande e Senzala, que retrata a interao de diversas etnias na vida domstica, nos hbitos, costumes, na linguagem, nas relaes entre senhores e escravos, entre cultura popular e erudita, crenas que circulam entre o sagrado e o profano, resultando um misto de signos, significados e uma nova textura cultural.
Tais apontamentos aproximam-se de Bakhtin em relao construo de sua teoria da cultura, a partir da teoria literria em que ressalta as mais diversas manifestaes sociais, As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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das tradies eruditas a festas populares realizadas nas ruas e praas pblicas pelo segmento popular no perodo da Idade Mdia ao Renascimento da Europa.
Sobre a relao do pensamento desses dois estudiosos, Alves diz:
A noo de cultura nacional apontada assemelha-se ideia de cultura popular levantada por Bakhtin; uma cultura formada pela absoro de todas, bem dirigidas, formando uma unidade na diversidade. Nesta vertente, Mrio de Andrade foi o pioneiro, no Brasil, ao abordar a cultura brasileira desta forma, ao sugerir a imagem de um tupi tangendo um alade. Freyre caminha nesta perspectiva ao entender que nossa cultura est inserida dentro de uma diversidade social, psicolgica e espiritual. (Alves, 2004:131)
Tanto Freyre como Bakhtin entende que a cultura popular parte de uma unidade hbrida. Assim como na obra Casa Grande e Senzala, que a temtica engloba diferentes etnias e a vida privada tanto do senhor como do escravo, em Rabelais, por exemplo, h as mais diversas manifestaes da sociedade medieval e renascentista, que vo desde as tradicionais festas eruditas s populares em praa pblica (Alves, 2004).
Em se tratando de cultura popular, as discusses a respeito ocorrer a partir do comeo do sculo passado ganhando a ateno nos estudos, anlises e ensaios dos pesquisadores. Isto porque no incio da era moderna, fundamentalmente, ela no era uma preocupao dos historiadores e pesquisadores europeus. Eles estavam mais interessados em pesquisar sociedades primitivas como os Celtas, Druidas, Africanos e Astecas ao invs de camponeses (Ortiz, 1992, 10).
Estes antiqurios, como denomina Renato Ortiz, tinham grande desdm em relao ao popular, salientando que sua fala era formada por erros gramaticais que a afasta dos cnones reconhecidos da lngua oficial. Alm disso, a religio (catlica e protestante) desempenhou papel fundamental para que a cultura popular ficasse margem da sociedade e do que se pode ser considerado cultura, devido a suas crenas e superties. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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No final do sculo XIX alguns pesquisadores comeam a voltar seu olhar e estudos para o campo popular. Muitos deles acreditavam que no sculo XVI e comeo do XVII a cultura popular formava um sistema de vida coeso, ao abrigo de interferncias externas (Ortiz, 1992, 15). Outros avanam em suas ideias e concluem que a partir dos sculos XVII e XVIII cultura popular e cultura de elite mantinham uma vivncia sem fronteiras rgidas e ntidas. A elite participava de diversas manifestaes, de suas crenas e jogos que muitas vezes eram patrocinados pelos nobres. Os romances e a literatura como a de Cordel eram partilhados entre todos. Nesta perspectiva, a hiptese de Bakhtin a de que existe uma influncia recproca ou uma circularidade entre a cultura das classes subalternas e a das classes dominantes, especialmente durante a Idade Mdia e at a metade do sculo XVI. Porm, a elite no partilhava seu universo com o segmento popular (Ortiz, 1992, 16).
O distanciamento entre essas duas culturas se intensifica depois do sculo XVII, e com isso manifestaes populares so cada vez mais reprimidas, alm de se incutir preceitos pejorativos que vo se cristalizando, acarretando em estigmas. Os fatores e motivos que contriburam para que isso ocorresse so vrios, como descreve Renato Ortiz:
A igreja catlica e protestante implementa uma poltica de submisso das almas com base na doutrina oficial definida pela Teologia. Os objetivos propostos podiam ser atingidos tanto pela catequese, pela distribuio e leitura da Bblia, como atravs de iniciativas mais violentas: os tribunais de Inquisio e a caa feitiaria so exemplos tpicos do uso de uma estratgia mais forte no combate s heresias populares. Existem no entanto causas mais amplas, como a centralizao do Estado (ele era desmembrado durante a idade Mdia), o que significa o advento de uma administrao unificada dos impostos, da segurana e da lngua. A luta contra os dialetos regionais revela uma integrao forada no interior do Estado-nao, e exige a imposio de uma lngua legtima sobre as falas locais. A constituio dos Estados nacionais requer tambm a mudana da poltica em relao as classes subalternas. Se o Estado surge agora como instituio provedora, em contrapartida ele demanda os impostos, o servio militar, enfim, reclama os deveres atribudos a seus As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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sditos. As autoridades se preocupam ainda com as prticas que geram protesto, como o futebol, o carnaval, o charivari, que muitas vezes terminam em distrbios, quando no exprimem uma contestao aberta ao poder constitudo. (Ortiz, 1992, 16)
Ortiz salienta que, alm desses diversos fatores, o iluminismo teve participao fundamental no processo ao promover a racionalidade com base nos estudos cientficos, penetrando junto s elites dirigentes da Europa, indo de encontro s prticas populares em relao s tradies, principalmente em seus hbitos e crenas. O que mudar neste cenrio tradicional e enrijecido o surgimento do Romantismo a partir do final do sculo XVIII, que tem como proposta se libertar dos padres academicistas e dos segmentos da elite e instituies legitimadoras do conhecimento universal. O popular retorna romantizado, tendo gosto pelo exotismo, por temas nacionais e contrapondo as ideias iluministas e o historicismo (Ortiz, 1992,18). A revoluo francesa foi uma aliada nesse processo, pois propiciou que a cultura popular se transformasse em ator da situao, acarretando numa mobilizao de concepo de cultura que incorpora o popular.
Todas essas concepes chegam ao Brasil junto com a colonizao, tardiamente em termos de valorizao da cultura popular em funo da particularidade que aqui encontram, pois o territrio era habitado pelas populaes indgenas e posteriormente a vinda da populao africana com suas prticas culturais e costumes diferenciados, aqum das transies histricas e avano do capitalismo na Europa.
Do perodo colonial at a dcada de 1940, houve no Brasil um rigoroso controle das instncias dominantes em relao a prticas populares, principalmente em relao s festas religiosas que eram vistas pelos segmentos hegemnicos como atraso e falta de civilizao. Assim, exigem das instituies pblicas providncias para reprimi-las por meio da polcia. O Estado intervm e impe condies para realizar tais manifestaes obrigando os praticantes a adquirir uma licena para exerc-las, como exemplificam os registros policiais do Maranho.
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Ilustrando o controle policial sobre festas populares em So Lus, Emanuela Ribeiro (1998) localizou no Arquivo Pblico do Estado do Maranho, entre documentos da Secretaria de Polcia, grande quantidade de pedidos de licenas para a realizao de festas, concentrados, sobretudo no perodo entre 1885 e 1930, sendo 44 com registro de pedido para festa de mina, 14 com registro de tambor e 70 com registro de festa do Divino. Entre 1876 e 1913 localizou 59 pedidos de licena para bumba meu boi. H pedidos de licena formulados por conhecidas mes de- santo como me Hosana e me Andresa que a sucedeu na Casa das Minas, V Severa, no Terreiro do Caminho Grande, dona Anastcia, do Terreiro da Turquia, no Sacavm, e muitas outras. Na dcada de 1930 os pedidos de licena para a realizao de festas populares e religiosas passaram a ser publicados na imprensa, na coluna de casos policiais, como por exemplo, em O Imparcial de 05 de janeiro de 1932, informando que Noemi Fragoso obteve permisso da polcia para tocar tambor de mina no Cutim Grande durante este ms; no dia 06 de janeiro de 1932, que (Nh) Alice Cruz, residente no Caminho do Sacavm, obteve licena para tocar tambor de mina durante este ms; Jos de Ribamar Gomes obteve licena para tocar tambor de mina no Piranhenga. Estas autorizaes feitas a conhecidas autoridades religiosas populares da poca, aparecem junto com outras: para ensaiar Chegana que percorrer as ruas nos dias de carnaval, para sair pelas ruas com o reis denominado Filhos de Israel, o cordo de reis Flor da Cana (Caninha Verde), para visitar diversas casas. Tais autorizaes eram divulgadas junto com outras, para funcionamento do Place Clube, para jogo de domin e dama num botequim e outras, como mostrou Danusa Ribeiro Soaresv. Encontramos em O Pacotilha, de 18/04/1935, licenas dadas pela 1 Delegacia para a Festa do Divino para Julieta da Paixo, Severa Soeiro, Porfiro Batista, Leopoldina Meireles e Andresa Sousa. Consta das licenas que s podero tocar foguetes pela manh, ao meio dia e noite, por ocasio das ladainhas. Verificamos assim que o controle era rigoroso e severo.
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Por estes documentos constatamos que, conforme o D.O. de 07/06/1920, o Delegado Geral da Segurana tornava pblico que: expressamente prohibido tocar bombas no permetro urbano, fazer brincadeiras de bumba- meu-boi, bem assim como tocar a caixa do Divino Esprito Santo. (Ferretti, 2007, 05)
Sobre a tenso existente entre a ordem hegemnica em relao s festas populares, Bakhtin dir que:
Na prtica, a festa oficial olhava apenas para trs, para o passado de que servia para consagrar a ordem social presente. ... Sob o regime feudal existente na Idade Mdia, esse carter de festa, isto , a relao da festa com os fins superiores da existncia humana, a ressurreio e a renovao, s podia alcanar sua plenitude e sua pureza, sem distores, no carnaval e em outras festas populares e pblicas. Nessa circunstncia a festa convertia-se na forma de que se revestia a segunda vida do povo, o qual penetrava temporariamente no reino utpico da universalidade, liberdade, igualdade e abundncia. (Bakhtin, 1999, 8)
A transformao da sociedade brasileira em prol da cultura popular ocorrer lentamente a partir das primeiras dcadas do XX, com o Modernismo e a busca dos intelectuais nacionais por temas voltados para o rural, servindo de inspirao aos diversos segmentos artsticos, e tambm por uma identidade nacional. Porm, se a tenso que existe entre cultura popular e erudita clara em relao aos espaos que ocupam, no Brasil isso foi mais intensificado em funo da colonizao e suas ideologias deixadas nova nao.
Para Ortiz o debate sobre cultura popular, em particular na Amrica Latina e no Brasil, uma temtica mais voltada para o aspecto conservador do que transformador. Porm, a partir da nossa realidade histrica, com um processo de transio e transformao social tardio e lento, penso que, de 1920 em diante, houve um grande salto no Brasil, principalmente em So Paulo e Rio de Janeiro, com autores e artistas nacionais e a nova As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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intelectualidade brasileira que despontava dando nfase principalmente ao segmento rural/regional e propostas de transformao no campo sociocultural.
Cornlio Pires, apesar de pertencer ao segmento popular, inova ao produzir e divulgar seus projetos entre diversos segmentos, possibilitando acesso a todos, o que lhe rendeu sucesso e popularidade. Claro que a almejada transformao no campo social, poltico e econmico no ocorreu em funo dos aspectos histricos que formaram a sociedade brasileira, apresentados nos captulos anteriores.
No entanto, o elemento que ir interagir para suavizar possveis tenses entre as crticas da nova gerao de intelectuais em relao aos caminhos que tomava a sociedade brasileira no aspecto poltico e social ser o riso, a stira, que tem como princpio a contestao social, poltica e moral, apaziguando os maus humores e rigidez no campo das ideias e concepes conservadoras que muitas vezes mantm-se inalteradas para proteger seus interesses. A carnavalizao, Bakhtin salienta que um exemplo disso: atravs do humor, da stira, grupos hegemnicos da sociedade transformam-se em mote de stira e crtica pelo popular e so aceitos sem represlias durante o perodo em que ocorre. Como o prprio Bakhtin diz:
... durante o carnaval nas praas pblicas a abolio provisria das diferenas e barreiras hierrquicas entre as pessoas e a eliminao de certas regras e tabus vigentes na vida cotidiana criavam um tipo especial de comunicao ao mesmo tempo ideal e real entre as pessoas, impossvel de estabelecer na vida ordinria. (Bakhtin, 1999, 14)
Para Bakhtin o riso ambivalente, pois ao mesmo tempo em que cmico, e muitas vezes ingnuo, pode ser burlador e sarcstico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente (Bakhtin, 1999, 10).
O riso e o carnaval, so unos, pois propiciam que os homens sintam-se em si mesmos e tornem-se semelhantes no mesmo espao. Isso, na teoria bakhtiniana, o autntico humanismo que se d de forma concreta e real (Bakhtin, 1999, 9). As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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O RISO Breve histria do riso e a contribuio de Cornlio Pires na mediao entre a cultura popular e a cultura erudita.
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61 Foto histrica: Pblico assistindo a show humorstico de Cornlio Pires em praa pblica. Foto cedida pelo Sr. Luiz Paladini, fotgrafo de Tiet.
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O riso 62 desde a antiguidade tem despertado interesse de diversos pensadores e em diferentes perodos da histria humana, a comear pelos gregos, que muito escreveram sobre essa expresso. Aristteles foi um dos primeiros a se interessar e a escrever a seu respeito.
o homem o nico animal que tem capacidade de rir; o riso existe nele e s nele em estado potencial. (Minois, 2003:72)
O riso varia no tempo e espao, como tambm de uma sociedade para outra. Na Idade Mdia no ocidente, por exemplo, essa expresso foi reprimida pela igreja em funo do seu carter gozador. Para o clero o riso estava ligado ao profano, ao pecado. Rir nesse perodo tinha significado hertico. Assim, passa a pertencer s camadas mais populares da sociedade, subjugadas pela viso do poder dominante.
Essa expresso vem acompanhada de uma gama de sentimentos, podendo ser agressivo, sarcstico, escarnecedor, amigvel, angelical, irnico, burlesco, grotesco, expressar alegria ou maldade, orgulho ou simpatia. Tem como princpio o gosto pelo prazer, pela diverso, pela stira poltica e social da esttica burguesa. Sua condio restrita desde a poca pr- romntica, e em particular no ocidente, por estar relacionado s classes populares.
Problematizando a partir dos apontamentos histricos em relao condio que a cultura popular ocupa no mundo ocidental, qual seja, ligada s classes subalternas, cultura no oficial, merecendo ateno dos historiadores somente a partir do final do sculo XIX, o riso nesse contexto ocupa menos ateno ainda desses estudiosos, pois, alm dessa expresso estar relacionada s classes populares, dentre suas temticas, no considerada uma questo relevante de estudo. Quando citado nas anlises dos pesquisadores, o riso aparece
62 Entender o Riso no contexto de Stira. A stira uma tcnica literria ou artstica que ridiculariza um determinado tema (indivduos, organizaes, estados), geralmente como forma de interveno poltica, social ou moral para provocar ou evitar uma mudana. Uma das caractersticas mais importantes da stira antiga a irreverncia que est ligada figura mtica do Stiro. O objetivo da stira atacar os males da sociedade, o que deu origem expresso: castigat ridendo moris, que se pode traduzir livremente como "castigar os costumes pelo riso". Por seu carter denunciador, a stira essencialmente pardica, pois se constri satirizando personalidades (reais ou fictcias), instituies e temas que, segundo as convenes clssicas, deveriam ser tratadas com reverncia, porm ela expe o que h de podre por trs da fachada nobre impingida sociedade. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A1tira As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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de forma distorcida em funo do popular e subjugada pela tica esttica da cultura erudita e burguesa. Recorro a Bakhtin para esclarecer melhor esta questo:
... O riso popular e suas formas constituem o campo menos estudado da criao popular. A concepo estreita do carter popular e do folclore, nascida na poca pr-romntica e concluda essencialmente por Herder e os romnticos, exclui quase totalmente a cultura especfica da praa pblica e tambm o humor popular em toda a riqueza das suas manifestaes. Nem mesmo posteriormente os especialistas do folclore e da histria literria consideram o humor do povo na praa pblica como um objeto digno de estudo do ponto de vista cultural, histrico, folclrico ou literrio. Entre as numerosas investigaes cientficas consagradas aos ritos, mitos e s obras populares lricas e picas, o riso ocupa apenas um lugar modesto. Mesmo nessas condies, a natureza especfica do riso popular aparece totalmente deformada, porque so-lhes aplicadas ideias e noes que lhe so alheias, uma vez que se formaram sob o domnio da cultura e da esttica burguesas dos tempos modernos. (Bakhtin, 1999, 03)
No entanto, o riso tem conotaes relevantes na Idade Mdia e no Renascimento, conforme Bakhtin, por opor-se condio oficial e seriedade religiosa e feudal da poca. Como o prprio filsofo diz, graas sua existncia extra-oficial, o riso destacar-se- por seu contedo radical e libertrio. Sua ao dar-se- de forma autnoma, possibilitando libertar- se do controle das autoridades da cultura oficial.
O riso um mundo complexo que nos permite penetrar na natureza profunda do ser humano e tambm da prpria arte e literatura satrica de todos os tempos. (Bakhtin, 1999)
Em sua clebre obra sobre Rabelais, Bakhtin aborda o riso, a comicidade atravs da carnavalizao como ato de transformao das relaes sociais e de poder que, desde os tempos mais antigos, o tem como uma de suas fontes de inspirao. Sobre isso, Bakhtin As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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salienta em Rabelais que o princpio carnavalesco abole as hierarquias e nivela todas as classes sociais, livrando-as de regras e restries sociais convencionais, criando nesse perodo uma nova vida.
Durante o carnaval, tudo o que marginalizado e excludo, o insano, o escandaloso, o aleatrio se apropria do centro, numa exploso libertadora. O princpio corpreo material fome, sede, defecao, copulao torna-se uma fora positivamente corrosiva, e o riso festivo celebra uma vitria simblica sobre a morte, sobre tudo o que considerado sagrado, sobre tudo aquilo que oprime e restringe. (Stam, 1992, 43)
Na literatura brasileira encontramos vrias obras que abordam a cultura popular, o nacional e a comicidade, como Memrias de um Sargento de Milcias, de Manuel Antnio de Almeida, que originalmente foi publicado em folhetins no Correio Mercantil do Rio de Janeiro, em 1853. A linguagem desse romance a no oficial, a que falada nas ruas pelas classes baixa e mdia, rompendo com os padres romnticos que retratavam o ambiente da classe aristocrtica.
Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, despeja um humor cido em cima das tradies e valores da burguesia paulistana e Macunama, de Mrio de Andrade, retrata pela vertente cmica o heri sem carter ou o anti-heri, que tem como frase caracterstica Ai que preguia. No dialeto indgena aique significa preguia, ento ele seria duplamente preguioso.
Os livros e artigos escritos por Cornlio Pires enfatizam tambm esse contexto atravs de suas anedotas, estrias e personagens da cultura nacional e popular. No folclore portugus, assim como h o personagem popular Pedro Malazartes (Pedro das Malas-Artes), famoso graas tradio oral que personifica o sujeito bom de conversa e que com jeitinho engana as pessoas pelas regies que passa, h no mesmo sentido o personagem Joaquim Bentinho, que foi sucesso de vendagem durante anos e reeditado vrias vezes, que tambm sempre tem um caso a contar, uma mentira na ponta da lngua, de forma cmica e pitoresca. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Joaquim Bentinho a princpio parece uma verso nacional de Pedro Malazartes, mas tratando de perto esses dois personagens, Bentinho est como narrador das anedotas, o contador de causos, utilizando todas as possibilidades da narrativa oral alm do recurso do pitoresco e da mentira. (Saliba, 2002, 184)
... Joaquim Bentinho personagem hbil nas patranhas e que ainda apela sempre para testemunhas j falecidas, incapaz de confirmar suas histrias. Algumas dessas histrias so to inverossmeis que por pouco no transformam Joaquim Bentinho em um mago aquele que pela mgica das palavras e do riso suprime quaisquer traos de dor ou de crueldade social. (Saliba, 2002, 184)
As mentiras de Joaquim Bentinho so sempre inusitadas. Num de seus episdios ele relata que o cunhado sofria de bronquite e foi ajudar aparando os pelos (cabelo) de seu nariz, porm desastradamente o corta, e como num procedimento cirrgico coloca-o de volta, mas ao contrrio, e diz: ponhei revirardo, cos buraco das venta pr riba!... Quanno o Sarafim t pitano, vanc v: sorta aquela fumacera pra riba, pro nari, que nem chaminr... E quano ele taca um espirro, fais vu o chapu da cabea! (Saliba, 2002, 184, 185)
Na aparncia Joaquim Bentinho era:
Um caboclinho mirradinho, olhinhos vivos, barbicha em trs capes: dois de banda e um no queixo; bigodes podados a dente, desiguais e sarrentos; nariz de bodoque, aquilino, recurvo, fino, entre bochechinhas chupadas; dois dentes amarelos, os caninos, que s aparecem quando ri, quase velhos moires de porteira abandonados; rosto em longo tringulo; cabeudinho, cabelos emaranhados; orelhinhas cabanas, cada qual suportando o seu toco de cigarro, amarelentos e babados. De camisa, de algodo riscado, aberta ao peito, deixa ver pendurada no magro pescoo de cordeveias salientes, uma penca de bentinhos, favas de Santo As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Igncio e patus com rezas que servem para fechar o corpo e evitar mordedura de cobras. (Pires, 1985, 89)
A comicidade, a stira que alguns autores exploraram em seus textos nesse perodo podem ser tratadas como um recurso utilizado para aliviar a tenso entre o preconceito da elite em relao cultura popular, e tambm fazer sua crtica. Sobre isso Oswald de Andrade diz que:
Rir deflagra um estado de conteno, dribla o nervosismo, os autoritarismos e a pose. Instaura o inslito, o bizarro, o anormal 63 .
Um exemplo dessa questo pode-se encontrar no livro As Estrambticas Aventuras de Joaquim Bentinho, em que o personagem-ttulo, em uma de suas passagens, diz ao interlocutor seu pensamento sobre a poltica brasileira de seu tempo. Cornlio Pires utiliza seu personagem para fazer a crtica aos polticos que nada contriburam para o desenvolvimento social do pas e das populaes menos privilegiados, usando da expresso dialetal do caipira e da stira, tornando a mensagem mais direta e engraada, suavizando uma possvel indignao dos destinatrios.
A Repblica para Joaquim Bentinho Reunidos no terreiro da Fazenda Velha ramos dez ou doze caipiras e semi- caipiras... Num acesso de sonho e de ingenuidade, julguei que seria possvel o reerguimento do brio e da vergonha poltica do Brasil, alistando quanto mais eleitores ignorantes ou no e tratei de lanar a ideia entre os roceiros.
- Vocs precisam se alistar; precisamos meter o peito na poltica... Quem sabe se lavradores e operrios unidos no endireitariam essa Repblica de Bacharis... - Qu... num deanta s votante...
63 Oswald de Andrade. A Stira na Literatura Brasileira, conferncia proferida na Biblioteca Municipal Mrio de Andrade em 21/08/1945, in Fonseca, C. Ju Bananre O abuso em blague. Ed. 34, So Paulo, 2001. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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- S serve pra quem qu ganh... - Despois, a gente se apura: vae vot cum, outro zanga... Num paga a pena ranja nimigo... - Mas a Repblica... - Qu... Interveio o Joaquim Bentinho. O mei mec larg mo disso... Oi, eu j fui monacrista... virei repurbicano; desvirei... revirei... E hoje nem num sei o que s! - Negocio de guverno, pra mim, a mesma coisa que criao de porco! - Ora... o senhor pessimista... - Isso que mec falou eu num sei o que : mais isso eu num s! Puis vac veja: vac recie um capado magro no chiqueiro; pincha um jac de mio de minh; outro jac de mio no meio do dia; vai simbora; outro na boca da noite; de minham cedo t pudo? O cho, t limpo... - O porco vae cumeno, vae cumeno e vae ingordano, ingordano, int num pod mais, de gordo: oreia cada, zio impapuado, buchecho estufado... t gordo; qu s durmi, ronc... Vanc pincha ua espiguinha de mio cateto ele esprementa e larga; inda sobra mio na espiga pras galinha pinic... J cumeu muito... t gordo, t infarado; par de cum... - Esse o imperad... Incheu, par de cum... Mais coa Repurbica!... Mec recoie um; ante desse ingord, sae, entra outro... - Num hai mio que chegue... (Pires, 1985, 136, 137)
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A Repblica para Joaquim Bentinho aproxima-se do que Bakhtin conceitua em relao lngua: que ela no algo imvel ou fixo e presa em normas e regras gramaticais, e sim viva e d-se nas relaes entre os seres humanos que elaboram seus enunciados possibilitando a comunicao entre si. Dessa forma, um dos conceitos centrais na obra bakhtiniana refere-se ao enunciado (Campos, 2011,54).
A lngua passa a interagir a vida atravs de enunciados concretos (que a realizam); igualmente atravs de enunciados concretos que a vida entra na lngua (Campos, 2011, 54)
O enunciado para Bakhtin dialgico e social, voltado para o pblico, recebendo naturalmente uma interao de seus interlocutores, diferente da orao lingustica que isolada e monolgica.
64 Ilustrao de Voltolino. Cornlio Pires ouvindo as estrias de Joaquim Bentinho. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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O enunciador do discurso escolhe suas palavras e formula uma estrutura sinttica com base em sua avaliao de uma situao. Sua expresso verbal no reflete s aquele contexto, uma soluo valorativa. A avaliao no se fecha no contedo do enunciado, mas se enraza na fronteira viva do momento em que o dito se produz. A cada nova situao, o enunciado (at a mesma palavra) outro e sua significao determinada pela interao verbal entre o enunciador (o autor), o ouvinte (o leitor) e o tpico do discurso (o que, ou quem). (Campos, 2011, 56)
Alm do enunciado, a entonao outro conceito importante para o pensamento bakhtiniano no que diz linguagem. Juntos, so fundamentais no processo das relaes sociais, pois marcam de forma enriquecedora a comunicao e o entendimento dos signos em diferentes contextos. por meio da entonao que o enunciador expressar sentimentos de alegria, graa, tristeza, raiva, carinho, entre outros. Para Bakhtin a entonao social por excelncia. (Campos, 2011, 57)
Toda entonao expressiva (...) a encarnao de uma avaliao social no seio de um material sonoro. (Campos, 2011, 61)
Importante frisar que o enunciado e a entonao esto intrinsecamente ligados aos fatores culturais e sociais vividos em uma sociedade e processam-se de forma coletiva, e no isoladamente. Relacionando tais conceitos bakhtinianos com as transformaes histricas que ocorreram em So Paulo no comeo do sculo XX, nota-se que a cidade passava por uma transio, pois no deixar de ser totalmente uma provncia com suas caractersticas coloniais, mas j convivia com a rpida modernizao. Um espao em que haviam italianos vindos com a imigrao, ex-escravos, fazendeiros, caipiras, intelectuais, artistas, polticos, enfim, como bem descreveu Maria Odila Silva Dias:
um mundo no substitui o outro mas foi sutilmente brotando um de dentro do outro, sob formas de convvio assduo, s vezes de concorrncia aberta, outras de preconceitos disfarados, porm sobrepostos num entrelaar de As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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simultaneidades de tempos sociais que se cruzaram e se urdiram juntos na urbanizao incipiente de So Paulo no pr-guerra. (Saliba, 2002, 155)
Este cenrio de relao entre culturas to diversas, surge um grande volume de peridicos com ilustraes caricaturais e crnicas de variados estilos descrevendo as novas situaes cotidianas da cidade, bem como crticas de cunho poltico e social aos segmentos hegemnicos da sociedade paulistana. Esse meio de comunicao popular utilizou em seus enunciados a entonao humorstica como possvel forma de apaziguar conflitos desses segmentos.
O editorial da revista O Malho, fundada pelo grupo de Bartolomeu de Souza e Silva em setembro de 1902, uma das mais importantes no gnero da stira poltica e social, denota essa caracterstica. Cita Franois Rabelais, importante autor que na Idade Mdia serviu-se da imaginao popular, narrativas e riqueza de vocabulrio para escrever sua obra-prima Pantagruel e Gargantua, abordando a decadncia desse perodo com entonao de um humor prximo ao escatolgico.
de praxe que um jornal que se apresenta desfile perante o leitor boquiaberto um rosario de promessas a que se chama pomposamente o programma. Iconoclasta de nascena, o Malho comea por atacar e destruir a praxe: no tem programma. Ou, mais exactamente, tem todos, como o seu nome bem o indica: elle o Malho; tudo que passar a seu alcance ser a bigorna. O povo rir ao ver como se bate o ferro nesta officina e s com isso ficaremos satisfeitos, com a tranquilla consciencia de quem cumpre um alto dever social e concorre efficazmente para o melhoramento e progresso da raa humana. J o grande rato que era Rabelais annunciou gravemente esta inestimavel verdade: que rire est le propre d lhomme. Pondo em contribuio todos os elementos necessarios ao desenvolvimento do riso, ainda que se riam uns custa dos outros e ns custa de todos, temos prestado ao homem em geral e aos que habitam este canto do planeta, em particular, to relevante servio, que no haveria remedio sino crear o governo uma medalha de As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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merito para nos galardoar, j que a esta Republica que tambm no a que sonhmos, quando mammavamos, teve a infeliz ida de abolir o habito de Christo, ficando totalmente desarmada para testemunhar a gratido da patria pelos filhos que assim abnegadamente a sabem servir. Em materia de abnegao, porm, no ha ninguem que nos exceda e, j que nos mettemos nisso, iremos at o fim: faremos esta salutar reforma de costumes e numa quadra em que todos choram pitangas, estalaremos o riso so, o riso honesto, o riso proprio do homem, sem reclamarmos siquer do Sr. Campos Salles que se sujeite a apanhar mais tres duzias de descomposturas por cumprir o o seu elementar dever de conecorar nos! Cremos que quem assim falla, merece s por isso a mais completa confiana do publico. Tambem si elle no nol-a conceder desde logo, que difcil. Em torno delle, s ha quem lhe falle de coisas tristes; o financeiro apregoa que o paiz est de novo a beira daquelle nosso conhecidissimo abysmo: o padeiro declara-lhe que no lhe fia nem mais uma semana; o jornalista apregoa que s diz a verdade, que uma senhora to rabujenta e miseravel que, apezar de velha, s anda nua, como si tivesse ainda alguma cousa que mostrar; o senhorio ameaa-o com o mandado de despejo; o deputado denuncia-lhe que este e aquelle comeram, cousa que s a elle denunciante - pobrezito! ainda no aconteceu; e at a Santa Casa da Misericordia reclama este mundo e o outro para dar-lhe sepultura decente. Gra, no meio desse cro funebre de tristezas e lamentaes, sa acantante o bimbalhar do Malho, tirando dessas bigornas sons alegres! um cartaz de cores vivas no meio de uma decorao de pompa funebre; a nota vibrante de uma canoneta bregeira a interromper um requiescat de gatos pingados; o verde da esperana a reflorir os espiritos abatidos e desolados; o vermelho da blague a dissipar a melancolia geral; um z-pereira formidavel entrando audacioso e impiamente pela solemnidade de uma semana santa; a audacia, a alegria, a satyra, a crtica, a mocidade mordaz e irreverente, a saude, com a breca! disso que os senhores esto precisando, podem crl-o! s disso que o paiz precisa, palavra donra! No de dinheiro que os senhores tm necessidade: largent ne fait pas le bonheur! No de um homem que a As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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salve da borda do abysmo que a Nao carece: Deus no manda mais juizes terra! Todo esse mal estar, individual e collectivo, que todos e cada um sentem - e por sobre modo se aggrava na rua do Ouvidor, por causa do calamento Santa Engracia - s tem uma cousa: a falta do Malho! Pois ahi est esta maravilhosa panaca, superior em politica queima do papel-moeda, em litteratura ao Tiradentes do Sr. Jos Agostinho, em rethorica aos discursos do Sr. Fausto Cardoso, em arte ao cavallo do General Osrio! Os senhores nunca imaginaro o que nos custou de sacrificios de todo o genero, de noites mal dormidas e de jantares mal digeridos esta gloriosa concepo! Mas que querem? o patriotismo isso mesmo: - ahi lhe damos esta maravilha por... uns miseraveis duzentos ris. 65
Alm dos folhetins, h uma produo literria prxima ao realismo abordando a vida cotidiana, acontecimentos polticos, amenidades da burguesia e a condio de vida das classes populares despertando o interesse das populaes mais pobres pela leitura.
Em se tratando da realidade paulista e produes no campo literrio e artstico com expresses satricas, a contribuio de Cornlio Pires foi fundamental para a reflexo no campo social a partir das contradies de uma sociedade que almejava a modernizao, porm trazia em si ranos de uma formao histrica patriarcal e excludente, em se tratando de populaes no consideradas como no caso o rural. A seu respeito Saliba diz:
Um dos mais notveis por assumir a funo de retratar o mundo caipira, ainda que filtrado e estilizado pela tica do humor, foi Cornlio Pires, cuja trajetria de vida, por si mesma, j poderia ser vista como prxima da comdia. Mesmo seus bigrafos dificilmente conseguem separar a realidade do folclore envolvendo a figura de Cornlio Pires... (Saliba, 2002, 178)
65 Fonte do editorial: http://www.joaodorio.com/site/index.php?option=com_content&task=view&id=422&Itemid=117 As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Dotado do talento humorstico, Cornlio Pires conhecia como ningum o ponto do riso, interagindo com seu pblico, que lotava auditrios para ver suas apresentaes e palestras, alm do sucesso de vendagem de seus livros, que tinham uma linguagem simples, direta, popular, com enunciados atrativos sobre a vida cotidiana das populaes menos privilegiadas, principalmente sobre o caipira, e entonao voltada para a stira, divulgando em todos os segmentos da sociedade: popular, erudito, rural, urbano, intelectuais, trabalhadores, polticos, entre outros.
O tieteense no explorava personagens ligados aos mitos e lendas do Brasil, das origens indgenas e africanas, que muitos autores utilizaram em seus livros como O Guarani, de Jos de Alencar, e que depois Carlos Gomes transps para a msica. A temtica de Cornlio Pires retratava questes relacionadas s desventuras cotidianas do caipira, suas origens, memrias, estrias e stiras de vises distorcidas e sua viso frente modernizao da capital. Leite complementa:
... No so investidas as personagens de carter simblico mais abrangente; o escritor tende a explorar diferenas individuais ou tnicas, registrando peculiaridades de subgrupos que se englobam no grupo maior, o caipira. (Leite, 1996,121)
Um de seus textos mais conhecidos que une a stira com a temtica popular, uma pardia humorstica que comps a partir do poema macarrnico de Neri Tanfcio (pseudnimo de Renato Fuccini), A Origem do Homem, de 1910, satirizando a viso urbana e preconceituosa sobre a ascendncia das populaes rurais. (Saliba, 2002, 179)
O Senhor por acaso no descende dos bugres que moravam por aqui? Homeu num sei diz, vanc cumpreende que essa gente int hoje nunca vi.
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Mais, porm o Bernardo dis-que intende que os morad antigo do Brasi gerava de macaco!... Int me ofende v um veio cumo ele, assim, minti.
Doutra feita um cabocro ahi um caiara dis-que nascium de dois e int de treis, quano estalava um gommo de taquara!
Nis num tem parente portugueis nem mico, nem cuaty, nem capivara... Semo fio de Deus cumo vancis! (Pires, 1985, 63)
No campo da pardia, Bakhtin destaca na literatura medieval as de estilo sacro, abordando do culto ao dogma religioso, e que, para o filsofo uma das mais ricas e menos compreendidas. Ele diz:
Sabemos que existem numerosas liturgias pardicas (Liturgia dos beberres, Liturgia dos jogadores, etc.), pardias das leituras evanglicas, das oraes, inclusive as mais sagradas (como o pai-nosso, a ave maria, etc.), das litanias, dos hinos religiosos, dos salmos, assim como de diferentes sentenas do Evangelho, etc. Escreveram-se testamentos pardicos (Testamento do porco, Testamento do burro), epitfios pardicos, decises pardicas dos conclios, etc. Esse gnero literrio quase infinito estava consagrado pela tradio e tolerado em certa medida pela igreja. (Bakhtin, 1999, 12 e 13)
Arrisco-me a dizer que se Cornlio Pires tivesse vivido no perodo de Franois Rabelais, com certeza seria citado pelo autor em sua clebre obra, devido s caractersticas que possua tanto na stira como na percepo e conhecimento do popular presente em sua trajetria de vida e produo. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Cornlio Pires, assim como seu personagem Joaquim Bentinho, era hbil em suas faanhas, quebrando determinismos, ideias feitas sobre o rural e a cultura popular, e o rano incutido pelas elites nacionais e estrangeiras, sempre atravs do riso. Saliba diz:
Cornlio Pires..., hbil nas patranhas, farcista de inmeras sagas, tudo em funo de produzir o riso: quebrar o determinismo frreo da vida, diluir as contradies pela eliminao das aparncias... (Saliba, 2002, 182).
Retratou atravs de seu personagem, contos e estudos, as mazelas do cotidiano das populaes rurais, suas expresses lingusticas e formas de cultura, estabelecendo uma abertura para a linguagem popular, desmistificando o falar bem e conquistando espao na sociedade tornando essa forma de cultura popular compreensvel, obtendo a ateno e reconhecimento de alguns segmentos da cultura hegemnica nacional.
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CONSIDERAES FINAIS
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Face ao exposto nos captulos apresentados, chega-se ao momento final desta pesquisa. Em primeiro lugar, importante esclarecer que o propsito aqui no est em fornecer concluses ou respostas fechadas aos apontamentos que se fizeram presente no decorrer deste tema, em funo da complexidade e riqueza que o envolve, e sim dar margem a inmeras possibilidades no campo das ideias, no s aos pesquisadores da rea de cincias humanas, mas ao leitor interessado em conhecer o universo caipira a partir deste pequeno comeo sobre Cornlio Pires, sua contribuio cultural e perodo histrico, que deixou heranas positivas para diversos escritores e artistas, principalmente da rea musical, que at hoje buscam referncia e inspirao na composio de suas obras.
Importante abordar nesse momento, alguns apontamentos iniciais sobre a intencionalidade de Cornlio Pires em divulgar a cultura caipira por meio do segmento artstico como recurso em desfazer o estigma negativo atribudo historicamente ao caipira, na possibilidade de sua incluso e reconhecimento social.
Outro, refere-se ao riso, presena constante em sua produo literria e artstica para suavizar possveis tenses entre o popular e erudito, e com isso penetrar nos espaos hegemnicos da sociedade.
As discusses, tendo como ponto de partida o cenrio histrico sobre a formao do povo paulista e os aspectos negativos incutidos desde o perodo da colonizao, o que, consequentemente, gerou uma sociedade patriarcal escravocrata, so fatores que impossibilitaram cidados comuns, trabalhadores e familiares da zona rural, que viviam em sistema de comunidade com modos e costumes prprios, do reconhecimento e incluso no sistema que despontava no pas rumo a nveis mais avanados do capitalismo e com ele um conjunto de capitais legitimados dessa ordem, dado o legado cultural, econmico e social dessas populaes.
Cornlio Pires era um caipira, no como os tipos menos privilegiados que destacou no tipo caboclo, preto e mulato, modelados pelos preconceitos raciais da poca, mas um caipira branco, de ascendncia europeia e famlia dotada de condies econmicas razoveis. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Porm, como o prprio disse mais tarde, com base em suas andanas pelo interior de So Paulo e integrao com as populaes rurais, o caipira um s.
De acordo com os dados biogrficos de Cornlio Pires, pode-se notar que possua pouca escolarizao em funo de seu desinteresse e no por falta de recursos. Assim, no era nem um intelectual nem um pesquisador de acordo com os padres hegemnicos da sociedade; era, se assim se pode descrever, um show man, com talento nato para observao e reflexo de sua gente, inventivo, com cadncia para o teatro e comdia. Apaixonado por sua cultura, fez dela seu ofcio a partir de suas caractersticas pessoais, o que lhe rendeu fama, prestgio e meio de sustento. Enfim, um criar ou re(criar) em si mesmo com o que sabia fazer de melhor.
Algumas pessoas j sabem desde a primeira infncia o que faro no decorrer da vida, como acontece em muitos casos no meio artstico, quando exibem talento desde cedo e dedicam- se a ele por toda sua vida. Assim foi com Cornlio Pires. Um artista autnomo, que investiu em si mesmo, no dependendo de patrocinadores para concretizar seus projetos.
Nas citaes de escritores, pesquisadores, historiadores e msicos, em referncia a Cornlio Pires, constam os adjetivos: bandeirante da cultura paulista, pioneiro da msica caipira, ativista cultural, conhecedor da lngua e cultura caipira, grande humorista, e assim por diante. Porm, a partir das discusses tericas pontuadas nesta pesquisa, h de aproxim-lo ao que Antonio Gramsci se refere ao intelectual orgnico, que, atravs de seus projetos voltados para a temtica rural e popular, possibilitou o conhecimento e entendimento desse segmento nos diversos espaos da sociedade.
A teoria da linguagem de Mikhail Bakhtin tambm permite ver Cornlio Pires como artfice de temas atraentes sobre o cotidiano caipira, interagindo com variados pblicos com seus enunciados e entonao atraentes, e voltados para a graa e humor. Como excelente palestrante e humorista que era, conhecia o ponto do riso.
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Em sua poca, conviviam em So Paulo, imigrantes de diversas localidades, principalmente italianos, e caipiras, ex-escravos, fazendeiros, artistas, polticos; um espao em que fervilhavam diversas lnguas e culturas, tanto na proximidade como na adversidade. Cornlio Pires captou essa essncia e foi seduzido pelo frenesi da cidade que passava por um momento de transio e transformao no cenrio poltico, social e cultural.
Criou inmeros projetos. Alguns fracassaram por falta de recursos financeiros e outros se transformaram em sucesso, como suas publicaes. Mas foi na msica que Cornlio Pires deixou seu maior legado, rendendo-lhe at os dias de hoje o ttulo do pai da msica caipira por sua iniciativa, que transformou a partir de 1929 a indstria fonogrfica nacional.
O pioneirismo de Cornlio Pires rendeu bons frutos. A msica caipira passou a ocupar importante espao no meio artstico chegando a atrair o interesse de estudiosos em aprofundar seus conhecimentos neste estilo.
Aps sua morte, Cornlio Pires foi reconhecido por diversos segmentos da sociedade, fazendo-lhe homenagens como a Semana Cornlio Pires em Tiet, que todo ano promovida pela Secretaria de Cultura do municpio; os filmes Serto em Festa (1970) e A Marvada Carne (1985), inspirados em seus contos; o espetculo teatral A Estrambtica Aventura da Msica Caipira (1990), produo da Secretaria de Estado da Cultura, que teve estreia no Teatro Srgio Cardoso - So Paulo e percorreu 10 cidades do interior paulista, contando a trajetria musical de Cornlio Pires; a homenagem do Centro Cultural Banco do Brasil de So Paulo (CCBB-SP) em 2007, com o projeto O Brasil Caboclo de Cornlio Pires, com apresentaes musicais de grandes nomes da msica caipira, como Cacique e Paj e as Irms Galvo; e o Grupo Andaime de Teatro, que vem apresentando desde 2008 a pea As Patacoadas de Cornlio Pires Uma Estrepolia Musical em Dois Atos e Uma Chegana, em vrios teatros brasileiros.
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Somada a tais homenagens, no municpio de Tiet foi criado o Parque Ecolgico e Cultural Cornlio Pires e o Museu Histrico, Folclrico e Pedaggico Cornlio Pires, no local em que havia o stio de sua tia, onde ele nasceu e morou durante muito tempo.
Suas estrias e contos sobre o rural e seu humor irreverente e original, abriram portas para integrar o grupo da nova intelectualidade paulista que tambm tinha apreo por temas nacionais e populares e tendiam para a stira em suas obras e produes.
Essa a caracterstica da produo corneliana, que conquistou, mesmo que por um determinado perodo da histria do Brasil, a ateno das elites, e de forma apaziguadora no que se refere s diferenas, ou seja, propiciou o enorme riso renovador, irrisrio, criativo, que compreende os fenmenos do processo de transio, e acha em cada vitria uma derrota e em cada derrota uma vitria em potencial. (Stam, 1992, 87)
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Parque Ecolgico e Cultural Cornlio Pires
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66 Parque Ecolgico e Cultural Cornlio Pires - Tiet So Paulo. Stio em que nasceu Cornlio Pires. Foto: Arlete Fonseca de Andrade As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Museu Histrico, Folclrico e Pedaggico Cornlio Pires
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67 Museu Histrico, Folclrico e Pedaggico Cornlio Pires localizado no Parque Ecolgico e Cultural Cornlio Pires no bairro de Sapopemba em Tiet So Paulo. Neste stio hoje transformado em Parque e esta casa, hoje transformada em Museu, foi onde nasceu Cornlio Pires. Foto: Arlete Fonseca de Andrade 68 O Museu abriga os pertences de Cornlio Pires. Fotos: Arlete Fonseca de Andrade As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Museu Histrico, Folclrico e Pedaggico Cornlio Pires
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Museu Histrico, Folclrico e Pedaggico Cornlio Pires
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ANEXOS
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BIBLIOGRAFIA DE CORNLIO PIRES
Musa Caipira - Livraria Magalhes, So Paulo, 1910. Monturo - Editores Pocai-Weiss, So Paulo, 1911. Versos - Empresa Grfica Moderna, So Paulo, 1912. Tragdia Cabocla So Paulo, 1914. Quem Conta um Conto... - Seo de Obras do "O Estado de S. Paulo, So Paulo, 1916. Cenas e Paisagens da Minha Terra - Monteiro Lobato & Cia. Editores, So Paulo, 1921. Conversas ao P do Fogo - Tipografia Piratininga, So Paulo, 1921. As Estrambticas Aventuras de Joaquim Bentinho - Imprensa Metodista, So Paulo, 1924. Patacoadas - Livraria Alves, So Paulo, 1926. Seleta Caipira - Irmos Ferraz, So Paulo, (?). Mixrdia - Companhia Editora Nacional, So Paulo, 1927. Meu Sambur - Companhia Editora Nacional, So Paulo, 1928. Continuao das Estrambticas Aventuras de Joaquim Bentinho - Companhia Editora Nacional, So Paulo, 1929. Tarrafadas - Companhia Editora Nacional, So Paulo, 1932. Sambas e Caterets - Grfica Editora Unita Ltda., So Paulo, 1932. Chorando e Rindo... - Companhia Editora Nacional, So Paulo, 1933. S Rindo - Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro, 1934. T no Boc - Companhia Editora Nacional, So Paulo, 1934. Quem Conta um Conto... e Outros Contos - Livraria Liberdade, So Paulo, 1943. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Coisas d'outro Mundo - (?), So Paulo, 1944. Onde Ests, Morte? - Edio do Autor, So Paulo, 1944. Enciclopdia de Anedotas e Curiosidades - Editora Cornlio Pires Ltda., So Paulo, 1945.
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DISCOGRAFIA DE CORNLIO PIRES
Srie Caipira: Gravadora Columbia
MAIO DE 1929 ANEDOTAS NORTE AMERICANAS: Anedotas - Cornlio Pires ENTRE ITALIANO E ALEMO: Anedotas - Cornlio Pires REBATIDAS DE CAIPIRAS: Anedotas - Cornlio Pires ASTCIA DE NEGRO VELHO: Anedotas - Cornlio Pires SIMPLICIDADE e NUMA ESCOLA SERTANEJA: Anedotas - Cornlio Pires COISAS DE CAIPIRA: Anedotas - Cornlio Pires BATIZADO DO SAPINHO: Anedotas - Cornlio Pires DESAFIO ENTRE CAIPIRAS - Turma Caipira Cornlio Pires VERDADEIRO SAMBA PAULISTA - Turma Caipira Cornlio Pires ANEDOTAS CARIOCAS: Anedotas - Cornlio Pires DANAS REGIONAIS PAULISTAS: Cana - Verde e Cururu - Turma Caipira Cornlio Pires
OUTUBRO DE 1929 COMO CANTAM ALGUMAS AVES: Imitaes - Arlindo Sant'Anna JORGINHO DO SERTO: Moda de Viola - Mariano & Caula - Turma Caipira Cornlio Pires A FALA DOS NOSSOS BICHOS - Imitaes: Arlindo Sant'Anna As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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MODA DO PEO: Moda de Viola - Cornlio Pires e Turma Caipira Cornlio Pires OS CARIOCAS E OS PORTUGUESES: Anedota - Cornlio Pires MEC DIZ QUE VAI CAS: Moda de Viola, Nitinho Pinto - Zico Dias e Sorocabinha - Turma Caipira Cornlio Pires TRISTE ABANDONADO: Moda de Viola - Zico Dias e Sorocabinha NO MERCADO DOS CAIPIRAS: Anedota - Cornlio Pires AGITAO POLTICA EM SO PAULO: Anedotas - Cornlio Pires CAVANDO VOTOS: Anedotas - Cornlio Pires
SEM DATA UM BAILE NA ROA - Cornlio Pires & Arruda UMA LIO COMPLICADA - Cornlio Pires & Arruda AS TRS LGRIMAS: Declamao - Campos Negreiros PUXANDO A BRASA: Anedota - Cornlio Pires & Arruda MODA DA REVOLUO: Moda de Viola - Cornlio Pires e Arlindo Sant'Anna VIDA APERTADA: Anedota - Cornlio Pires & Arruda CATERET PAULISTA: Cornlio Pires e Arlindo Sant'Anna NITINHO SOARES: Moda de Viola - Cornlio Pires, Mariano & Caula - Turma Caipira Cornlio Pires O BONDE CAMARO - Moda de Viola S CABOCRO BRASILRO: Moda de Viola - Cornlio Pires, Mariano & Caula - Turma Caipira Cornlio Pires
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ABRIL 1930 NAQUELA TARDE SERENA: Contradana Mineira - Cornlio Pires, Antnio Godoy e sua Mulher TOADA DE CURURU: Contradana Paulista - Cornlio Pires, Mariano & Caula - Turma Caipira Cornlio Pires SABI ME FAIZ CHOR: Contradana Mineira - Cornlio Pires, Antnio Godoy e sua Mulher A BRIGA DOS VIO: Moda de Viola - Cornlio Pires, Mariano & Caula - Turma Caipira Cornlio Pires TRISTE APARTAMENTO: Moda de Viola Mineira - Antnio Godoy e sua Mulher PORFIANDO: Desafio - Antnio Godoy e sua Mulher BATE PALMA: Contradana Mineira NAS ASAS DE UM BEJA-FL: Moda de Viola - Cornlio Pires, Antnio Godoy e sua Mulher TOADA DO CATERET - Cornlio Pires, Mariano & Caula - Turma Caipira Cornlio Pires TOADA DE SAMBA - Cornlio Pires, Mariano & Caula - Turma Caipira Cornlio Pires SITUAO ENCRENCADA: Moda de Viola ESCOIENO NOIVA: Moda de Viola - Caipirada Barretense
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JUNHO DE 1930 BIGODE RASPADO: Moda de Viola - Cornlio Pires, Mariano & Caula - Turma Caipira Cornlio Pires ESTRAGUEI A SAPAIADA: Anedota - Cornlio Pires A MINHA GARCINHA BRANCA: Toada - Antnio Godoy e sua Mulher TOADA DE CANA-VERDE - Cornlio Pires, Mariano & Caula - Turma Caipira Cornlio Pires RECORTADO - Caipirada Barretense A FESTA DO GENARO - Cornlio Pires UMA SESSO SOLENE e NAS TOURADAS: Anedotas - Cornlio Pires.
JULHO DE 1930 O ZEPELIM: Moda de Viola O SUBMARINO: Moda de Viola - Cornlio Pires e Joo Negro CABOCLA MALVADA: Declamao - Campos Negreiros A PLATAFORMA DO PREFEITO: Anedota - Arruda MODA DO RIO TIET: Moda de Viola - Cornlio Pires e Joo Negro CORAO MAGUADO: Moda de Viola - Antnio Godoy e sua Mulher CAMPO FORMOZO: Moda de Viola - Cornlio Pires, Antnio Godoy e sua Mulher MODA DA MARIQUINHA: Moda de Viola - Cornlio Pires e Joo Negro O LEILO DAS MOAS: Moda de Viola JARDIM FLORIDO: Moda de Viola - Cornlio Pires e Joo Negro As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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AGOSTO DE 1930 A INCRUZIADA: Cano de Angelino de Oliveira - Maracaj e Os Bandeirantes BOIADA CUIABANA - Jos de Messias e Os Parceiros AGENTA MANECO - Maracaj e Os Bandeirantes FOLIA DE REIS - Folies do Z Messias CANTANDO O ABOIO: Cano de Cornlio Pires e Angelino de Oliveira - Maracaj e Os Bandeirantes TOADA DE MUTIRO - Z Messias e Os Parceiros O CABOCLO APANHA: Contradana - Z Messias e Os Parceiros PASSA MORENA: Contradana - Z Messias e Os Parceiros
SETEMBRO DE 1930 O JOGO DO BICHO: Moda de Viola: Mariano & Caula ARMINDA: Moda de Viola: Mariano & Caula O SALIM FOI NO EMBRULHO: Anedota - Luizinho FUTEBOL DA BICHARADA: Moda de Viola - Mariano & Caula MULHER TEIMOSA - Arruda NOITES DE MINHA TERRA: Valsa - Jos Eugnio Campanha e Seu Quinteto CAIPIRA VELHACO: Anedota - Arruda O SONHO DE MARIA: Valsa - Jos Eugnio e Seu Quinteto O MEU BURRO SAUDOSO - Moda de Viola SER OS IMPOSSVE - Mariano & Caula - Turma Caipira Cornlio Pires
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OUTUBRO DE 1930 SERENATA: Choro - Canrio e Seu Grupo QUANDO AS MISSES DESFILAVAM: Anedota - Luizinho BEATRIZ: Valsa - Canrio e Seu Grupo O SALIM TOREADOR: Anedota - Luizinho
SEM DATA GALO SEM CRISTA: Batuquinho do Norte - Bico Doce e Sua Gente do Norte COPARAES: Anedota - Cornlio Pires QUANDO O ZIDORO VORT: Anedota - Cornlio Pires OS DESCONTENTES: Anedota - Cornlio Pires GAVIO DE PENACHO: Embolada QUE MOA BONITA: Variao de Samba - Bico Doce e Sua Gente do Norte RECULUTANDO: Samba do Norte - Bico Doce e Sua Gente do Norte BOM REMDIO: Anedota - Cornlio Pires O MEU VIVA EU QUERO D: Moda de Viola SE OS REVORTOSOS PERDESSE: Moda de Viola - Mariano & Caula LEGIONRIOS, ALERTA!: Marcha - Jos Eugnio e Seu Grupo QUI-PRO-QU: Anedota - Cornlio Pires TRISTE ABANDONADO: Moda de Viola MEC DIZ QUE VAI CAS: Moda de Viola - Zico Dias e Sorocabinha - Turma Caipira Cornlio Pires MODA DA REVOLUO: Moda de Viola As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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BIGODE RASPADO: Moda de Viola - Cornlio Pires e Mariano & Caula VOU ME CAS COM CINCO MUI: Moda de Viola VANC UM PANCADO: Moda de Viola - Turma Caipira Cornlio Pires
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FILMOGRAFIA DE CORNLIO PIRES
1923 - Brasil Pitoresco Documentrio focalizando aspectos de Santos, Rio, Bahia e outros Estados do Norte e Nordeste.
1934 - Vamos Passear Filme sonoro, produzido aps ter feito pequenos documentrios. Vamos Passear focaliza cenas do folclore paulista com participao de violeiros, cantadores e sertanejos.
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CRONOLOGIA DE CORNLIO PIRES
1884 Nasce Cornlio Pires em 13 de julho na cidade de Tiet So Paulo, na chcara de sua tia, Dona Isabel Pires de Campos, Nh B, irm de seu pai, Sr. Raimundo Pires de Campos Camargo, no bairro de Sapopemba, onde sua famlia morava. Cornlio foi batizado nesta chcara por seus tios, Dona Isabel e Eliseu de Campos, Chico Eliseu.
1895 Na casa de Fa Vieira, Cornlio Pires, com 11 anos, improvisa um circo em prol da Santa Casa Local. Na apresentao ele faz o cavalo na primeira parte e o padre no fim. Foi sua primeira apresentao teatral.
1896 Sr. Raimundo Pires muda-se com a famlia para o centro da cidade de Tiet, na Rua Ladeira Porto Geral, 25. Neste ano, seu pai resolve iniciar a educao de Cornlio, j que naquela poca a idade escolar comeava aos 11 anos.
1897 Entre 1897 e 1899, Cornlio Pires teve vrios professores particulares, pois no se adaptou ao grupo escolar da cidade.
1899 Concluda a fase de estudos, passa a trabalhar no Semanrio O Tiet como aprendiz de tipgrafo.
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1899 Com o surto de febre amarela em Tiet, seu pai resolve mudar com a famlia para Laranjal Paulista. L Cornlio consegue emprego na loja do Srio Joo Salomo, na funo de auxiliar.
1901 A famlia regressa para Tiet e Cornlio, com 17 anos, pede ao pai para estudar em So Paulo. Embarca rumo a capital e vai morar na penso de sua tia, Dona Belisria Camargo de Campos do Amaral, irm de sua me, Dona Ana Joaquina de Campos Pinto, conhecida como Dona Nicota. A penso de Dona Belisria, Nh Zaia, situava-se na Rua da Quitanda 11, e l se hospedavam vrios fazendeiros, polticos, comerciantes e principalmente estudantes, alguns dos quais se tornaram depois ilustres em suas profisses. O regime da penso era rgido e familiar, comandado por Nh Zaia. Cornlio Pires conhece na penso Joo Lcio Brando, excelente jornalista e romancista que lhe consegue trabalho como reprter no O Comrcio de So Paulo, aps ter sido reprovado nos exames do curso de farmcia. Joo Lcio Brando ajudou muito Cornlio Pires a adquirir conhecimentos gerais, portugus e tcnica jornalstica, uma vez que o tieteense tinha pouca formao escolar.
1904 No jornal, fez uma boa reportagem sobre a revolta contra a vacina obrigatria no Rio de Janeiro.
1905 Publica seu primeiro soneto no semanrio O Tiet. Cesrio Vaz o convida a trabalhar como reprter em Santos no jornal A Cidade de Santos, onde torna-se amigo de Martins Fontes.
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1907 Retorna para a penso de sua tia, em So Paulo. Passa a frequentar rodas literrias e de bomia, contando anedotas e sendo apreciado por todos por sua graa extraordinria. Conhece no Caf Guarany Dr. Vieira, advogado e poltico que o convida a dirigir um pequeno jornal na cidade de So Manuel, O Movimento.
1908 Cornlio Pires deixa o jornal e a cidade por questes polticas, pois fez matrias rechaando os polticos da situao da regio. Ameaado, foge a p para Botucatu, onde toma o trem para a capital.
1909 Em Tiet monta uma escola primria em sociedade com o prof. Batista de Sanctis, tio do historiador e folclorista Benedito Pires de Almeida, para alunos reprovados em estabelecimentos oficiais, porm o projeto fracassado e volta para a vida de bomia.
1910 Na revista O Malho, uma das mais prestigiadas na poca, publicado em destaque quatro sonetos do tieteense no gnero dialetal por intermdio de um amigo que quis fazer uma brincadeira com Cornlio. O primeiro soneto publicado na expresso falada do caipira chama-se A Origem do Homem. Isso o animou a prosseguir o que Valdomiro Silveira vinha fazendo desde fins de 1800 regionalismo integral, com aproveitamento esttico da lngua cabocla. Publica Musa Caipira, seu livro de estreia, que em parte est escrito no dialeto caipira. Apresenta-se no Mackenzie College num festival com uma dupla de violeiros para divulgar as manifestaes culturais do caipira. De acordo com Joffre Veiga e Alceu Maynard Arajo, esta foi a primeira apresentao de Cornlio Pires e de caipiras em palcos pblicos no meio urbano no Brasil.
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1911 Em Tiet, Cornlio Pires apresenta-se pela primeira vez ao pblico com espetculo humorstico. Publica o livro Monturo.
1912 Publica o livro Versos. nomeado professor de ginstica na Escola Normal de Botucatu.
1914 Envolve-se com a poltica local e, devido inimizade dos polticos da regio, demitido da escola. Muda-se para Piracicaba e l consegue um emprego de despachante. Torna-se colaborador em vrias revistas paulistas e cariocas e no Jornal de Piracicaba. Publica a novela Tragdia Cabocla. Estreia no Cine Campos Elseos, com palestras humorsticas imitando os caipiras de Piracicaba, com a presena de Antonio Prado, Washington Lus e outras personalidades, sendo sucesso de pblico.
1916 convidado a fazer conferncias em Santos, no Miramar e no Guarani. Publica seu primeiro livro em prosa, Quem Conta um Conto...
1917 Cornlio continua a realizar espetculos na capital e interior e torna-se colaborador da revista O Pirralho, fundada por Oswald de Andrade em 1911. Estava famoso em So Paulo e o jornal de Botucatu A Verruma dedica-lhe um nmero especial, com seu retrato a cores criado por Voltolino. Vai morar no Rio de Janeiro por causa dos espetculos que realiza com grande sucesso, onde fica at 1919. Conhece escritores de renome como Coelho Neto, Olavo Bilac, Emlio de Menezes e participa intensamente da Bomia Carioca. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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1918 Lanamento do filme Curandeiro, baseado no conto Passe os Vinte, do livro Quem Conta um Conto... de Cornlio Pires.
1919 Terceira edio do livro Quem Conta um Conto... Candidata-se Academia Paulista de Letras, mas no eleito.
1921 Publica um de seus melhores livros, Conversas ao P do Fogo, um estudo que trata da vida do caipira paulista, elogiado por crticos e estudiosos. Rene toda a sua obra potica e publica o livro Cenas e Paisagens da Minha Terra. Funda com Amadeu Amaral, seu primo, e outros, a Sociedade de Estudos Paulistas.
1922 Vai para o Rio de Janeiro por motivo do Centenrio da Independncia para apresentar-se em vrios locais. Conhece o maestro Eduardo Souto e formam uma dupla, apresentando- se com sucesso em todo o estado do Rio. Compra um filmador no Rio de Janeiro com a ideia de fazer documentrios.
1923 Realiza o documentrio Brasil Pitoresco, uma incurso a diversas capitais e cidades brasileiras registrando as manifestaes culturais locais.
1924 Publica As Estrambticas Aventuras de Joaquim Bentinho, ttulo sugerido por Amadeu Amaral.
1926 Amadeu Amaral publica no jornal O Estado de So Paulo um artigo em que ressalta o valor da obra corneliana e sua contribuio para o folclore. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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Publica o livro Patacoadas. Funda a revista O Sacy, semanrio humorstico em sociedade com Voltolino. Nela publica em captulos a novela Tragdia Cabocla, j esgotada em 1924. A revista foi publicada at o nmero 52, depois Cornlio Pires deixa a revista em funo do falecimento de Voltolino. Publica Seleta Caipira.
1927 Publica os livros Almanaque dO Sacy e Mixrdia. Filia-se ao Partido Democrtico, adversrio do PRP, partido da situao e ultraconservador.
1928 Publica Meu Sambur. Associa-se a um ventrloquo em suas apresentaes humorsticas, narrando estrias de italianos, alemes, entre outros, com seus respectivos sotaques. Vai para o Recife e conhece dois artistas. Leva-os para o Rio de Janeiro, apresentando- os como Jararaca e Ratinho. Traz para So Paulo mais dois violeiros, Caula e Mariano, alm de outros. Com eles faz apresentaes em So Paulo com temas folclricos e regionais como cateret, cururu, fandango, etc.
1929 Publica a continuao das Estrambticas Aventuras de Joaquim Bentinho. Com os msicos nordestinos e paulistas organiza a Turma Caipira Cornlio Pires. Inicia em maio com o grupo gravaes em discos na Gravadora Columbia. Funda a Casa Cornlio Pires na Rua 15 de novembro 4, que vendia discos, rdios, vitrolas, etc., porm o projeto fracassa.
1930 No adere Revoluo de 30 de incio; porm, com a morte de Joo Pessoa, integra-se ao movimento. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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1931 Escreve no Dirio Nacional, em 2 de maro, o primeiro artigo de uma srie contra a ditadura e a ocupao militar de So Paulo, com grande repercusso.
1932 Publica Sambas e Caterets e Tarrafadas. Participa da Revoluo Constitucionalista, como oficial de ligao, na patente de capito.
1933 Publica Chorando e Rindo... que trata da guerra paulista.
1934 Publica S Rindo. Cornlio Pires faz seu segundo documentrio, Vamos Passear. Filme sonoro que focaliza o folclore paulista.
1935 Publica T no Boc. Principia suas famosas palestras na Rdio Difusora, de So Paulo, narrando causos e piadas de caipiras, com transmisso de gravaes musicais humorsticas e folclricas. O programa era tambm largamente ouvido no interior do Estado e noutros pontos do Brasil.
1937 Inventa um cantil a que d o nome de Decantil CP, porm era um projeto avanado poca e o invento abandonado.
1939 Concede entrevista a Silveira Peixoto, a qual est inserida no livro Falam os Escritores, publicado em 1941 pelo Conselho Estadual de Cultura de So Paulo. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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1940 Vai para Minas Gerais e diversas cidades brasileiras para apresentar seus shows humorsticos. Torna-se esprita kardecista.
1942 a 1944 Faz vrias viagens com o Mdium Cesrio e publica Coisas dutro Mundo e Onde Ests, Morte?
1943 Publica Quem Conta um Conto... e Outros Contos.
1944 Funda a Editora Cornlio Pires, e publica trs livros, mas novamente o projeto no tem seguimento.
1945 Publica seu ltimo livro, Enciclopdia de Anedotas e Curiosidades.
1946 Funda o Teatro Ambulante Gratuito de Cornlio Pires, em praas pblicas da Capital e interior.
1949 Obtm o patrocnio da Companhia Antrtica Paulista para seu projeto de Teatro Ambulante, que conquista grande sucesso para melhores condies em suas apresentaes.
1951 A Cmara Municipal de Tiet aprova um projeto de lei doando um pequeno terreno a Cornlio Pires. Nele constri uma modesta casa para sua residncia definitiva, apesar de estar sempre em viagens com o Teatro Ambulante. As Estrambticas Aventuras de Cornlio Pires
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1955 Reedio do livro de Amadeu Amaral, Dialeto Caipira, publicado em 1920. Neste livro Amadeu Amaral faz diversas referncias obra corneliana e aproveita os 581 verbetes do livro Quem Conta um Conto...
1957 Cornlio Pires faz sua nica apario na TV Tupi na srie Veja o Brasil, documentrios feitos pelo folclorista Alceu Maynard Arajo. O documentrio sobre Cornlio foi o de nmero 132. Compra em Tiet uma chcara a fim de transform-la na Granja de Jesus, obra social destinada a abrigar meninos rfos e desamparados. Neste mesmo ano, doa formalmente o terreno para a Granja de Jesus. A obra concluda em 1967.
1958 Cornlio Pires falece em 17 de fevereiro aos 74 anos no Hospital das Clnicas, vtima de cncer de laringe. sepultado em Tiet. criado em Tiet o Museu Histrico, Pedaggico e Folclrico Cornlio Pires, subordinado Secretaria de Estado da Cultura.
1959 instituda, em 4 de setembro em Tiet, A Semana Cornlio Pires, em sua homenagem.
1961 Joffre Martins Veiga publica A Vida Pitoresca de Cornlio Pires.
1962 Meu Sambur reeditado. Rossini Tavares de Lima publica O Folclore na Obra de Escritores Paulistas, em que h um ensaio sobre Cornlio Pires.
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1965 Hlio Damante publica o ensaio Cornlio Pires, Seu Tempo, Seu Meio, na Revista Brasileira de Folclore do MEC.
1966 Palestra proferida por Alceu Maynard Arajo na Academia Paulista de Letras publicada na Revista da Academia, com o ttulo Cornlio Pires, O Bandeirante do Folclore Paulista.
1967 Patrocinada a Semana Cornlio Pires pela Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo do Estado, Decreto n. 48.226, de 11/07/67.
1970 lanado Serto em Festa, filme da Servicine, baseado em conto de Cornlio Pires.
1985 lanado A Marvada Carne, filme inspirado nos contos de Cornlio Pires. Direo de Andr Klotzel e Roteiro de Andr Klotzel e Carlos Alberto Soffredini.
1990 Espetculo teatral A Estrambtica Aventura da Msica Caipira, produo da Secretaria de Estado da Cultura, estreia no Teatro Srgio Cardoso - So Paulo, percorrendo 10 cidades do interior paulista. O projeto foi concebido por Robinson Borba a pedido de Arrigo Barnab, que era assessor do ento Secretrio de Estado da Cultura, Fernando de Morais, e teve roteiro e direo de Carlos Alberto Soffredini. O espetculo, baseado nos causos de Cornlio Pires, contava a histria da msica caipira, desde seu aparecimento at os popstars breganejos.
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2007 Homenagem do Centro Cultural Banco do Brasil, de So Paulo (CCBB-SP), a Cornlio Pires. Na programao de 05 de junho a 17 de julho, o projeto "O Brasil Caboclo de Cornlio Pires", apresentao musical de grandes nomes da msica caipira, como Cacique e Paj e as Irms Galvo.
2008 O Grupo Andaime de Teatro ligado UNIMEP (Universidade Metodista de Piracicaba), desde julho de 2008, vem apresentando a pea As Patacoadas de Cornlio Pires Uma Estrepolia Musical em Dois Atos e Uma Chegana, em vrios teatros brasileiros at o atual momento.
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