O documento descreve a infância difícil de Ludwig van Beethoven em uma pequena família musical em Bonn, Alemanha no século 18. Seu pai era um músico alcoólatra e sua mãe tinha tuberculose, mas Beethoven mostrou talento precoce para a música apesar das circunstâncias familiares desfavoráveis.
O documento descreve a infância difícil de Ludwig van Beethoven em uma pequena família musical em Bonn, Alemanha no século 18. Seu pai era um músico alcoólatra e sua mãe tinha tuberculose, mas Beethoven mostrou talento precoce para a música apesar das circunstâncias familiares desfavoráveis.
O documento descreve a infância difícil de Ludwig van Beethoven em uma pequena família musical em Bonn, Alemanha no século 18. Seu pai era um músico alcoólatra e sua mãe tinha tuberculose, mas Beethoven mostrou talento precoce para a música apesar das circunstâncias familiares desfavoráveis.
O documento descreve a infância difícil de Ludwig van Beethoven em uma pequena família musical em Bonn, Alemanha no século 18. Seu pai era um músico alcoólatra e sua mãe tinha tuberculose, mas Beethoven mostrou talento precoce para a música apesar das circunstâncias familiares desfavoráveis.
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Uma infncia tenebrosa
O personagem de Ludwig van Beethoven parece zombar abertamente dos
supostos determinismos da gentica e da hereditariedade. Esse filho de um cantor alcolatra e de uma me tuberculosa, cercado de irmos ineptos e s vezes maldosos, mais tarde de um sobrinho decepcionante para seus critrios exigentes que beiravam a tirania, esse homem sofrido de carter indomvel s tinha uma soluo para escapar aos vcios do seu meio: ser um gnio. Isso vinha a calhar: o romantismo nascido das Luzes e da Revoluo Francesa estava se apropriando da palavra para seu uso prprio gnio, heri, a mesma coisa. Beethoven no tarda a perceber onde est sua chance. Seus dons so evidentes, sua vontade inabalvel, e ele logo cr no seu destino, como os heris de Schiller ou de Goethe, como os grandes homens cujos modelos encontrar na obra Vidas paralelas, de Plutarco... As condies nas quais aprende msica poderiam t-lo desestimulado para sempre; o papel de macaquinho amestrado ou de menino prodgio que o pai decide faz-lo desempenhar na esteira de Mozart teria sido o melhor meio de lhe cortar as asas se ele no tivesse sabido afirmar, pela fora da vontade e a conjuntura de circunstncias felizes, sua tmpera excepcional, sua personalidade poderosa, mistura de brutalidade e de melancolia, de delicadeza sensvel e de ambio desmedida. Beethoven no pode viver fora do desejo devorador de criar, de oferecer aos homens, a si mesmo, a seus ideais de liberdade, talvez mesmo ideia muito pessoal que faz de Deus, uma obra inusitada, nova, que perturba e surpreende. daqueles raros artistas essenciais que no deixam sua arte no estado em que a encontraram. Em msica, h um antes e um depois de Beethoven, como em pintura h um antes e um depois de Czanne... O jovem compositor segue ainda as pegadas de Mozart e de Haydn, alguns de seus mestres. J o homem amadurecido est totalmente noutra parte, impe composies de uma ousadia e de uma fora que s vezes chocaro seus contemporneos e o afastaro do pblico, embora sua popularidade permanea intacta. O ltimo Beethoven deixa obras testamentrias de uma profundidade assombrosa, inesgotvel, que preparam, anunciam, indicam o caminho da msica para os dois sculos seguintes. Pois ainda no se disse tudo sobre Beethoven, nem sobre sua vida, s vezes enigmtica, nem sobre sua obra, visionria, proftica e, no entanto, to prxima de ns. Ludwig van Beethoven nasceu em Bonn, no nmero 515 da Bonngasse, em 17 de dezembro de 1770. Bonn a capital dos prncipes eleitores de Colnia, que tm uma funo ao mesmo tempo eclesistica e secular. A Alemanha ento um pas sem coeso poltica, dividido numa srie de pequenos Estados. Bonn depende de Viena, sede do Sacro Imprio Romano Germnico e residncia dos Habsburgo. uma pequena cidade de cerca de doze mil habitantes, situada s margens do Reno. Nenhuma indstria: ali vivem artesos, funcionrios, cortesos do prncipe eleitor, nessa provncia tranquila, cercada de uma natureza harmoniosa cuja beleza marcar Ludwig. Esse pequeno Estado dirigido por Maximiliano Frederico, prncipe aberto s ideias novas das Luzes. Como observa o baro Caspar Riesbeck: O governo atual do arcebispado de Colnia e do bispado de Munster sem dvida o mais esclarecido e o mais ativo de todos os governos eclesisticos com que conta a Alemanha. O Ministrio da Corte de Bonn dos melhores. Criar timos estabelecimentos educativos, encorajar a agricultura e a indstria, extirpar toda espcie de monastrio, esses eram os mais notveis empreendimentos do gabinete de Bonn. 1 Nessa pequena cidade, as ideias da Aufklrung so acolhidas com benevolncia, e as artes, sobretudo o teatro e a pera, gozam de uma predileo particular. Apesar de um meio familiar pouco propcio, toda a infncia de Beethoven se banhar nessa atmosfera liberal e esclarecida: nela que se fundam essencialmente seus ideais estticos e humanos. Os homens so mais filhos de seu tempo do que de seus pais. A famlia, justamente. O av de Beethoven, tambm com o prenome Ludwig, instalou-se em Bonn em 1734, vindo de Flandres. Estudou msica em Mechelen, passou um tempo em Leuven e em Lige antes de ser contratado na corte de Bonn e de casar-se com Maria-Josepha Poll. O nome Beethoven, de uma sonoridade grandiosa e sombria, agora ligado para sempre a algumas das mais belas pginas de msica jamais escritas, significa simplesmente, em flamengo, campo de beterrabas. Acontece que o talento salta uma gerao. Ludwig, o av, um homem notvel, unanimemente respeitado em Bonn. a alma da vida musical da cidade e administra com tato um pequeno comrcio de vinhos que lhe garante um confortvel suplemento de renda, sendo seu cargo de msico na corte pouco lucrativo. Do casamento com Maria-Josepha nascem trs filhos, dos quais s um sobreviver, Johann, pai de Ludwig. Sabemos que o jovem Ludwig ter uma grande afeio pela memria desse av, que morre quando o menino tem apenas trs anos de idade. Wegeler, melhor amigo de Ludwig e seu primeiro bigrafo confivel, escreve: A impresso precoce que recebeu dele foi sempre forte em Ludwig, que gostava de falar do av a seus amigos de infncia. [...] Esse av era um homem baixo, robusto, com olhos muito vivos. Era muito estimado como artista.2 Quanto a Johann... Poucos pais de grandes homens tm uma reputao to execrvel como a desse msico sem talento, desse pai descrito seguidamente como um monstro, pelo menos como um bbado irresponsvel, o que parece verdico. Ele teve a quem puxar: a prpria me de Johann, Maria-Josepha, era uma alcolatra conhecida e morreria num asilo de Colnia depois de violentas crises de delirium tremens. Formado em msica pelo pai, Johann comea a vida de modo razovel. Em 1767, apesar da oposio feroz de Ludwig, o velho, ao que ele chama um casamento desigual, desposa Maria Magdalena Keverich, filha de um cozinheiro-chefe do Eleitor de Trier, j viva aos vinte e um anos de um camareiro do mesmo Eleitor, com quem casara aos dezesseis. O velho Ludwig explode: uma filha de cozinheiro, que vergonha! Mas Johann est decidido: uma das raras manifestaes de vontade numa vida que vai se decompor lamentavelmente em bebedeiras nas tavernas. Ludwig recusa-se a assistir s bodas. Depois, como tem bom corao, acaba concedendo ao jovem casal uma bno tardia, at porque Maria Magdalena uma pessoa estimvel, doce, generosa, paciente e profundamente melanclica. Outros testemunhos afirmam que ela s vezes podia demonstrar um mau carter e se enfurecer facilmente. Suas palavras em geral so tingidas de amargura. Assim, numa carta sua amiga Cecilia Fischer, ela defende a vida de solteiro, fonte de uma existncia tranquila, agradvel e confortvel, enquanto, a seu ver, o casamento traz poucas alegrias e muitos dissabores. Essa ascendncia pouco lisonjeira naturalmente suscitou suspeitas sobre a identidade do pai de Beethoven. De ovo ruim, ave ruim, diz um provrbio medieval. Como pode um gnio ter nascido de genitores to medocres? Mais tarde, quando Beethoven for clebre, correr o boato de que ele seria filho natural do rei da Prssia, Frederico II, que, como se sabe, adorava msica. de se perguntar que milagre teria feito o rei da Prssia deter-se um dia em Bonn para fecundar a doce e modesta Maria Magdalena. Mas assim so as lendas. A tais insinuaes, parece que Beethoven respondeu sempre de maneira evasiva, como que lisonjeado por lhe atriburem uma origem real, embora o democrata dentro dele chiasse. Alguns meses antes da sua morte, em 7 de outubro de 1826, ele dirige a seu amigo Wegeler estas linhas no mximo ambguas: Voc diz que em certos lugares me tomam como ilho natural do falecido rei da Prssia; j me falaram disso h muito tempo. Estabeleci uma regra de nunca escrever nada sobre mim, mesmo para responder ao que escrevem a meu respeito.3 Do casamento de Johann e Maria Magdalena nascero sete filhos. Trs chegaro idade adulta. Ludwig o segundo filho do casal: o primeiro morreu um ano antes, aos quatro dias de vida. Chamava-se igualmente Ludwig. Durante a infncia, teria Beethoven tido a impresso de ser o substituto de um irmo morto? Sabemos que distrbios afetivos duradouros tal situao pode ocasionar. Os detalhes que evocam sua infncia so raros. A imagem mais constante, corroborada por alguns testemunhos, especialmente do padeiro Fischer, a de um garoto agitado, no muito asseado, brincando s margens do Reno ou nos jardins do castelo de Bonn com seus irmos, sob a vigilncia distrada de alguma criada. Ludwig vai pouco escola: o pai afirma que ele no aprende nada l e tem outras ambies para o filho. Dessa educao imperfeita e lacunar, Ludwig conservar sequelas pela vida inteira: ortografia deficiente, aritmtica limitada, no indo muito alm da capacidade de fazer adies... Ele sabe o suficiente de latim para compreender os textos sobre os quais ir compor msica, e seu conhecimento do francs progredir ao longo dos anos at se tornar aceitvel, apesar de uma sintaxe vacilante. Mas uma questo permanece: como esse matemtico sofrvel pde adquirir tamanho domnio nessa arte to matemtica que a msica? O poder tcnico e a inspirao de Beethoven, em suas composies, nunca foram barrados pelas exigncias da gramtica musical, nem se submeteram simplesmente aos imperativos das regras clssicas: a vida toda, ele jamais deixou de trabalhar para aprofundar a cincia da sua arte, mas sempre fez isso ao sabor de necessidades ditadas por seus projetos. H duas geraes os Beethoven vivem de suas atividades musicais. Johann, que aprendeu msica com o pai, completou sua formao de cantor na capela do Eleitor. Msico da corte aos dezesseis anos, seus talentos certamente no se igualam aos do pai, a quem no sucede como mestre de capela, e esse tropeo inicial o encaminha a ser o personagem fracassado que em breve se entregar bebida. Desde trs ou quatro anos de idade, Ludwig obrigado por Johann a sentar-se ao teclado para comear sua aprendizagem. a moda dos meninos prodgios. A celebridade de Mozart, cuja glria juvenil deslumbrou a Europa alguns anos antes, produz rivais. O prprio Johann, quando criana, fora apresentado pelo pai em concertos pblicos, com um xito modesto. Um menino prodgio numa famlia pode ser a garantia de rendimentos substanciais. E Johann logo percebe no filho mais velho dons fora do comum e uma inclinao arrebatadora para a msica e os instrumentos. Por isso, decide acelerar sua aprendizagem. No sem trat-lo com aspereza. Pois Johann tem a mo pesada, sobretudo quando resolve cuidar do seu menino prodgio ao sair da taverna, onde se embriaga com frequncia cada vez maior. Assim a infncia de Ludwig, submetido ao fascnio pela msica e brutalidade paterna. Johann no um grande pedagogo, ao contrrio de Leopold Mozart. A bebedeira e a ambio fazem dele um mestre de msica irascvel e impaciente. E a ideia de exibir o filho em pblico no o abandona: chega mesmo a falsificar a data de nascimento de Ludwig, rejuvenescendo-o dois anos. Por muito tempo o compositor viver na certeza de que nasceu em 1772 e no em 1770... Johann faz o filho tocar s vezes diante da corte eleitoral de Bonn, onde tem conhecidos apesar de sua m reputao. Depois, em 1778, decide tentar a sorte na grande cidade, Colnia. Resta-nos um documento sobre esse episdio que foi certamente a primeira apario pblica do garoto: Aviso Hoje, 26 de maro de 1778, na sala das Academias musicais, na Sternengasse, o Hoftenorist da corte do Eleitor de Colnia, Beethoven, ter a honra de apresentar dois de seus alunos: a saber, a srta. Averdonc, contralto da corte, e seu lho de seis anos. Eles tero a honra de se apresentar, a primeira com diferentes rias, o segundo com diferentes instrumentos e trios, e ele tem certeza de que o nobre pblico sentir um prazer completo, ainda mais porque ambos j tiveram a honra de tocar para a corte, para a maior satisfao desta.4 Certamente essa apresentao foi um fracasso, pois foi a nica. Johann decide ento confiar a educao musical de Ludwig a outros, num resqucio de lucidez que lhe permite avaliar suas insuficincias. assim que, durante alguns meses do ano de 1779, um estranho personagem entra na vida do jovem Ludwig. Chama-se Tobias Pfeiffer. um msico viajante que percorre a Alemanha propondo seu talento nas cortes ou nas casas de ricos. E talento ele tem de sobra: tocador de cravo, de obo, resolveu ficar em Bonn por um tempo e foi contratado pela orquestra. Esse artista mundano, como que sado diretamente dos contos de Hoffmann, torna-se assim colega de Johann. Os dois ficam amigos, a tal ponto que Johann convida Pfeiffer a morar em sua casa: ele encontrou um companheiro de taverna, pois Tobias aprecia muito os vinhos do Reno. E tambm percebeu as capacidades musicais extraordinrias de Ludwig. Competente e hbil pedagogo, passa a ser seu professor. Professor pouco acadmico, meio luntico e geralmente bbado tambm, como comprova este testemunho do violoncelista Murer: Pfeiffer [...] passou a dar aulas a Ludwig. Mas no havia horrio ixo para isso; seguidamente, depois de haver bebido uma jarra de vinho com o pai de Beethoven at onze horas ou meia- noite, Pfeiffer voltava com ele para casa, onde Ludwig estava deitado e dormia; o pai o sacudia com violncia, a criana se levantava chorando, punha-se ao teclado, e Pfeiffer icava sentado ao lado dele at quase amanhecer, pois reconhecia seu talento extraordinrio.5 As lies de Pfeiffer duram apenas alguns meses. O msico bomio abandona Bonn e desaparece da vida de Ludwig em 1780, substitudo por outros professores: uma educao incerta, confusa, estudos rapidamente interrompidos. No entanto, sobre essa base frgil que vo ser dados os primeiros passos do gnio musical desse garoto taciturno, tmido, brutal, descuidado para se vestir, a ponto de na escola todos o julgarem rfo de me, e que nunca deixar uma impresso marcante em seus jovens colegas. Um velho organista, Egidius van den Eeden, encarrega-se por um tempo de sua educao musical, antes de morrer dois anos mais tarde. Depois um primo distante, um certo Franz Rovantini, que lhe ensina violino durante alguns meses. Espantosa educao, colhida aqui e ali, to pouco conforme aos costumes pedaggicos em vigor. Porm, quando se pensa no que o compositor far com esse instrumento em suas sonatas, ou seu sublime Concerto para violino... No final de 1781, empreende com a me uma turn de virtuosismo Holanda. inverno, me e filho descem o Reno num frio glacial. A me de Ludwig, segundo uma testemunha, conta que durante a viagem o frio era to intenso que ela precisou aquecer os ps do menino no seu regao para impedi-los de congelar. No total, uma viagem penosa com resultados incertos. Os holandeses se mostram pouco propensos a abrir suas bolsas para gratificar o jovem prodgio. Sovinas6, dir Ludwig, que sempre se recusar a retornar a esse pas de onde vieram seus antepassados... O repertrio musical da corte eleitoral, tanto para os servios religiosos quanto para os concertos e as peras, rico e variado. A msica religiosa conserva seu carter tradicional e reserva um bom espao a obras j antigas, mas tambm a compositores contemporneos. A biblioteca contm uma grande coleo de missas de autores do comeo do sculo, como Antonio Caldara e Georg Reutter, e igualmente composies de Joseph Haydn e Johann Albrechtsberger, celebridades vienenses do momento que sero, ambos, professores de Beethoven em Viena. Em msica instrumental, Bonn, muito bem situada entre a Alemanha, a Frana e a Holanda, recebe da Europa inteira um man musical de qualidade. Os nomes, hoje um pouco esquecidos, de Eichner, Holzbauer, Johann Stamitz so familiares ao pblico culto de Bonn, assim como os dos austracos Dittersdorf, Haydn, Vanhal, e dos franceses Gambini e Gossec. Na pera h representaes, traduzidas em alemo, de obras de Cimarosa ou Salieri, enquanto o teatro da corte apresenta peas de Molire, Goldoni, Voltaire, Shakespeare, junto com as de Lessing e Schiller. Nesse crisol musical e cultural, falta ainda ao talento pouco cultivado do jovem Beethoven um mentor, um guia respeitado que saiba lhe mostrar o caminho. A educao musical decisiva ele comea a receber no ano seguinte, em 1782. Tem doze anos de idade. O novo organista da corte, Christian Gottlieb Neefe, afeioa-se ao rapaz, que logo percebe ser muito promissor. Neefe um msico entusiasta, na falta de ser tecnicamente muito competente, e tambm um homem culto que saber transmitir a Ludwig um pouco do seu gosto pelas belezas literrias e pela poesia. Neefe tem uma teoria original: os fenmenos musicais esto intimamente ligados vida psicolgica e devem tom-la como base. Ele sabe conter a impetuosidade de Ludwig e mostrar-se um professor exigente: faz com que ele estude o Cravo bem temperado de Bach, bem como as sonatas do filho deste, Carl Philipp Emanuel, escola de rigor e de cincia na arte da fuga e do contraponto. Neefe tambm chefe de orquestra do teatro da corte e encontra para seu aluno um emprego modesto, mas til: o acompanhamento ao cravo durante os ensaios, o que permite a Ludwig familiarizar-se com o repertrio e enriquecer sua cultura musical e teatral. assim que ele fica conhecendo as peas de Shakespeare, Otelo, Ricardo III, O rei Lear, junto com as do jovem Schiller e seu Os bandoleiros. Esses dois poetas sero a vida inteira o alfa e o mega das suas paixes literrias: a Ode alegria, do segundo, que ele escolher para o final da Nona Sinfonia. Um outro encontro determinante ocorre nesse mesmo ano de 1782, com Franz-Gerhard Wegeler. Este tem dezessete anos e se dedica medicina, que exercer com brilhantismo: professor na universidade de Bonn aos vinte e cinco anos, decano da faculdade aos vinte e oito, reitor aos trinta. Um esprito superior. E, para Beethoven, o amigo mais constante, o mais fiel ao longo dos anos e que conservar at o final da vida. De Wegeler nos restam preciosos testemunhos sobre Beethoven nas diferentes pocas do seu percurso criador. Wegeler foi o primeiro a notar o jovem Ludwig, ao avist-lo da janela da casa de um de seus amigos. Talvez tenha se compadecido desse rapaz de quem j se diziam maravilhas, sabendo que sofria numa famlia grosseira e brutal. Graas a Wegeler, Ludwig encontrar um segundo lar, onde seus dons excepcionais se desenvolvero mais harmoniosamente numa atmosfera calorosa e esclarecida. Trata-se da famlia Breuning. o prprio Wegeler quem descreve, talvez idealizando um pouco, os membros dessa casta, desembaraados, evoludos, atrados com paixo pelas coisas do esprito e da arte: [A famlia] compunha-se da me, viva do conselheiro ulico eleitoral Von Breuning, de trs lhos homens, mais ou menos da idade de Beethoven, e de uma lha. O lho mais jovem recebeu, assim como sua irm, aulas de Beethoven [...] Reinava nessa casa, com toda a vivacidade da juventude, um tom de boa educao sem rigidez. Christoph von Breuning escrevia desde cedo pequenas poesias. Stephan von Breuning o imitou bem mais tarde, no sem sucesso. Os amigos da casa se distinguiam por uma conversao que unia o til ao agradvel. Acrescente-se a isso que, nesse interior, reinava certa abastana, sobretudo antes da guerra: facilmente se compreender que Beethoven sentiu ali as primeiras e alegres expanses da juventude. Ele logo foi tratado como lho da casa; passava ali no s a maior parte do dia, mas muitas vezes a noite. Ali sentia-se livre, movia-se com facilidade. Tudo concorria para se combinar alegremente com ele e desenvolver seu esprito [...] Sendo cinco anos mais velho do que ele, eu era capaz de observ-lo e de apreci-lo. A sra. Von Breuning, a me, tinha a maior inuncia sobre aquele rapaz com frequncia opinitico e rabugento.7 Sentiu o jovem Ludwig, por essa dama acolhedora e jovial, algo alm de uma afeio filial? Ele tem doze anos. A aspereza familiar e a violncia do pai o amadureceram. Comea a experimentar as primeiras emoes do desejo e de uma vida amorosa que permanecer por muito tempo, e ainda hoje, um dos mistrios da sua existncia. Teria sido Beethoven o perptuo apaixonado por mulheres inacessveis, casadas, j comprometidas, ou insensveis a seus galanteios por o acharem feio, grosseiro, incmodo? Repetio eterna de um esquema original marcado pela proibio? Trata-se de uma hiptese. A sndrome de repetio uma figura corrente da vida psquica. Seriam escolhas deliberadamente impossveis e fadadas ao fracasso, a fim de resguardar sua liberdade de criador e seu modo de viver um tanto desordenado? Idealizao do outro sexo para mascarar, pela no realizao, pulses homossexuais ento inconfessveis? Nada comprova isso inteiramente, nem os documentos, nem o que sabemos da sua vida. Seja como for, Ludwig recebe lies de Neefe, que faz dele seu assistente privilegiado e encoraja suas primeiras tentativas como compositor. assim que no comeo de 1783 aparece a primeira obra musical conhecida do compositor: nove variaes para cravo em d menor, sobre uma marcha de Dessler, variaes s quais Neefe no deixa de dar uma eloquente publicidade, ressaltando na Revista de msica de Cramer que esse jovem gnio merece ser sustentado e poder viajar. Ele certamente se tornar um segundo Wolfgang Amadeus Mozart, se continuar como comeou.8 A obra, verdade, se ainda tem algo de exerccio de escola, no carece de personalidade e tampouco de uma fora real num rapaz de doze anos. Sua execuo requer uma destreza que deixa adivinhar, j nessa idade, o nvel atingido por Beethoven ao cravo. No outono do mesmo ano aparecem trs sonatas para cravo, dedicadas ao Eleitor de Bonn, Maximiliano Frederico, acompanhadas de uma carta Sua Alteza Serenssima, da qual presume-se que Beethoven no seja o nico autor, pelo que h de obsequioso e grandiloquente no estilo: Minha musa o quis, obedeci e escrevi. Ser que posso agora, Alteza Serenssima, me atrever a depositar as primcias dos meus jovens trabalhos nos degraus do seu trono?.9 Johann mergulha cada vez mais no alcoolismo. Sua voz, diz um relatrio administrativo sobre os msicos da corte, se perde completamente. Neefe, sobrecarregado de trabalho, tem necessidade de um auxiliar. Em fevereiro de 1784, Ludwig faz um pedido a Maximiliano Frederico para ser organista adjunto, remunerado, pois exerce por ora suas funes sem ser pago. A tentativa intil, o Eleitor nem sequer responde. Mas algumas semanas mais tarde, em abril, este acaba morrendo. Seu substituto o arquiduque Maximiliano Francisco de Habsburgo, irmo do imperador Jos II. um jovem gordo, de 28 anos. Sua gula j lendria e ele se tornar monstruosamente obeso. As opinies divergem sobre as qualidades dessa figura. Uma carta de Mozart o apresenta sob uma luz das mais contraditrias: brilhante na juventude, Maximiliano Francisco teria virado um asno ao se tornar padre (pois o Eleitor cumpre tambm funes eclesisticas), a estupidez, escreve Mozart, lhe saindo literalmente pelos olhos, o pescoo inchado, e falando sem parar com uma voz de falsete.10 Na verdade, um liberal aberto s ideias das Luzes e um amante de msica. Apaixonado pela cincia, manda instalar em Bonn uma biblioteca pblica e um jardim botnico. Toca viola. Pensou at em propor a Mozart, a quem visitava em Viena, o posto de mestre de capela, projeto que no se realizou talvez porque Mozart no quisesse se enterrar numa cidade de provncia. A situao de Beethoven no tarda a evoluir favoravelmente: em junho nomeado organista suplente, com a soma de 150 florins por ano, enquanto de Johann so retirados 15 florins por conta do seu tratamento. Agora cabe a Ludwig assumir os encargos da famlia, no lugar de um pai pernicioso. Um jovem na corte Ele leva a vida de um jovem msico de corte. Tem catorze anos. A dupla tendncia do seu carter se afirma: alegre, sente um imenso jbilo de existir, gosta de tocar msica, dos ditos chistosos, da liberdade; mas tambm da solido, dos longos momentos de meditao e de devaneio melanclico, disposies acentuadas pelo peso da atmosfera familiar. Com frequncia visto janela, contemplando o Reno, perdido em pensamentos. Quanto s lies que lhe solicitam a dar, elas o aborrecem profundamente e ele se furta o mximo que pode, inventando todos os pretextos. Mal consente em cumprir seu papel de professor junto aos filhos da sra. Von Breuning, a quem deve tanto. O desejo de compor o atormenta. Entre criar e ensinar, no tem dvida da escolha, a no ser quando os alunos so jovens pessoas encantadoras pelas quais, durante toda a juventude e mesmo na idade adulta, ele haver de se apaixonar regularmente, quase sempre sem esperana. Em 1784 ele compe um concerto para piano conhecido sob a estranha denominao de Concerto no 0, pequena pea graciosa bem ao gosto de Haydn e Mozart, os modelos cannicos da poca, mas ainda longe dos procedimentos de composio dos ilustres modelos: trs movimentos, com um rond final muito arrojado de melodia arrebatadora. No ano seguinte exercita-se em quartetos com piano, trs obras jamais publicadas em vida mas que j contm ideias fortes: assim reencontraremos um tema do primeiro quarteto no rond final da Sonata pattica op. 13, treze anos mais tarde! As lies de Neefe produziram resultados. Mas as relaes entre mestre e aluno atravessam algumas turbulncias, pois, para poder pagar a Ludwig 150 florins anuais, o Eleitor nada encontrou de melhor do que diminuir o salrio de Neefe, que ser restabelecido no ano seguinte, em 1785. Essa situao intolervel do artista de corte, que depende da boa vontade dos senhores, no ser uma lio perdida: Beethoven passar sua vida a combat-la. Mas Neefe vai se apagando aos poucos. Outros mestres e de que estatura! logo tomaro seu lugar. Por volta dessa poca, um novo anjo da guarda entra na vida de Ludwig: um jovem de 21 anos, amigo ntimo do eleitor Maximiliano Francisco dizem mesmo seu favorito... Chama-se Ferdinand, conde Waldstein-Wartenberg. Bom pianista, que conhece Mozart e Haydn em Viena, Waldstein rico e generoso. Conhece o jovem Ludwig na casa dos Breuning, que recebem a fina flor da sociedade. Em que momento? No se sabe ao certo. Waldstein juntou-se ao Eleitor em Bonn aps uma carreira militar abortada. Apaixonado por msica, ele seduzido pelos talentos de pianista do jovem Ludwig, a quem ouve tocar nos concertos privados e na corte. De que natureza so esses talentos? Essencialmente a improvisao: trata-se de uma prtica corrente entre os msicos na qual, dizem, o grande Johann Sebastian Bach se destacava em alto grau, ao rgo e ao cravo. A partir de um motivo, de uma melodia, de uma trama musical, o intrprete d livre curso sua habilidade, sua inventividade. E Ludwig est se tornando um mestre nesse jogo. Em alguns anos conquistar os sales vienenses graas a seus talentos de improvisador mpar, a exemplo de alguns gigantes do jazz do sculo XX. Mas, por ora, sua preocupao principal sustentar a famlia. Suas primeiras composies no entusiasmaram o pequeno mundo musical de Bonn. Alis, Neefe no se mexeu para public-las (seus trs primeiros quartetos s sero publicados em 1832, aps sua morte) e certamente lhe renderam pouco. Mas sua reputao de pianista j slida em Bonn: vem gente at mesmo de cidades vizinhas para escut-lo. Seu pai, Johann, organiza sempre que pode concertos em casa e traz outros msicos para acompanhar o filho. O pequeno grupo de admiradores que protegem o talento de Ludwig, entre os quais o conde Waldstein, compreende que preciso faz-lo ser conhecido em Viena e completar sua educao musical. Beethoven quer muito ir para l. Na primavera de 1787, uma permisso lhe dada na forma de licena de trabalho. provavelmente Waldstein quem financia essa viagem durante a qual Ludwig vai conhecer Mozart. H poucos detalhes sobre essa temporada vienense de abril de 1787, curta e por certo decepcionante. Viena a capital do Imprio e o centro mais importante da msica europeia, mesmo no sendo o nico: tambm em Londres e em Paris a vida musical rica. Mas Viena... E Jos II um imperador melmano. Nesse final do sculo XVIII, a cidade conta com duzentos mil habitantes. Exibe a beleza barroca de seus monumentos, o esplendor elegante de seus jardins, a suntuosidade de seus palcios, seduo imediata que deslumbra quem no se d o trabalho de penetrar mais fundo. O imperador Jos II, a quem sugeriam autorizar a abertura de prostbulos, respondia que seria preciso construir um telhado que cobrisse a cidade inteira... Mas ali que preciso estar quando se quer seguir uma carreira artstica e ter o apoio de ricos mecenas. Ludwig chega a Viena por volta de 10 de abril, aps uma viagem de duas semanas. Onde se abriga? Provavelmente fora recomendado a amigos do conde Waldstein. De que maneira conhece Mozart, seu dolo, o homem cujo exemplo embalou sua infncia? Aqui a lenda que prevalece, sem levar muito em conta os fatos: Beethoven teria se encontrado com o imperador Jos (no entanto ausente de Viena nesse momento) e sobretudo com Mozart. O perodo certamente mal escolhido, pois Mozart est compondo Don Giovanni e sabe que seu pai est muito doente, circunstncia pouco propcia para dar lies a um jovem desconhecido. Otto Jahn, um dos bigrafos de Mozart, conta a cena: Beethoven foi levado casa de Mozart e, a seu pedido, lhe tocou algo que Mozart, julgando ser uma pea de virtuosismo preparada para a ocasio, aprovou bastante friamente. Tendo percebido isso, Beethoven pediu a Mozart para lhe dar um tema sobre o qual improvisar. Como tinha o hbito de tocar admiravelmente quando tinha essa disposio, e estimulado pela presena do mestre por quem tinha um respeito to grande, ele tocou de tal maneira que Mozart, cuja ateno e o interesse aumentavam, acabou por se dirigir pea vizinha onde estavam alguns amigos e lhes disse: Prestem ateno nesse rapaz, um dia seu nome ser reconhecido mundialmente.1 Episdio dos mais duvidosos, na certa floreado, talvez apcrifo, assim como, provavelmente, a lenda das lies dadas por Mozart a Ludwig, que se reduziram a alguns conselhos. Teria pelo menos Beethoven ouvido Mozart tocar piano? Ele se queixou que no. O mundo ainda no desconfia do seu gnio. Nessa primeira temporada em Viena, de onde trar somente dvidas e que dura apenas duas ou trs semanas, Ludwig recebe notcias alarmantes: sua me est passando muito mal. Com a morte na alma, ele volta a Bonn, passando por Augsburg, onde conhece Johann Andreas Stein, clebre fabricante de pianos, que est trabalhando na inveno do instrumento moderno. O retorno a Bonn, seja qual for a data (final de abril? final de junho?), triste. A me, Maria Magdalena, morre em 17 de julho, de tuberculose. Essa morte o deixa devastado, angustiado, dominado por sentimentos contraditrios, como atesta esta carta de 15 de setembro enviada ao dr. Schaden, de Augsburg, que lhe emprestou dinheiro para seu regresso, dinheiro que ele ainda no pode devolver: Devo lhe confessar que, desde minha partida de Augsburg, minha alegria e minha sade comearam a piorar; medida que me aproximava de minha cidade natal, recebia cartas do meu pai me aconselhando a viajar mais depressa, pois minha me no se achava num estado de sade favorvel; assim me apressei o quanto pude, embora estando eu mesmo indisposto; o desejo de poder ainda uma vez rever minha me afastou os obstculos e me ajudou a superar as maiores diiculdades. Ainda encontrei minha me, mas num pssimo estado de sade; ela estava com tuberculose e por im morreu, h cerca de sete semanas, aps ter suportado muitas dores e muitos sofrimentos. Ela foi para mim uma me to boa, to amvel, minha melhor amiga. Ah, como eu era feliz quando ainda podia pronunciar o doce nome de minha me! [...] Depois do meu retorno para c, tive somente poucas horas agradveis; o tempo todo sinto falta de ar e receio que possa ser um sinal de tuberculose; a isso se acrescenta a melancolia, que para mim um mal quase to grande quanto minha prpria doena [...].2 Carta essencial, que traduz uma perturbao profunda e nos revela sobretudo a angstia que acompanhar Beethoven ao longo de toda a vida: a doena, aquela da qual sua me acaba de morrer. Testemunhos confirmam essa obsesso, a mania de examinar os escarros para neles reconhecer vestgios de sangue, o pnico de uma morte por asfixia. Mais tarde outras fobias se manifestaro, inclusive o temor de ser envenenado por uma mulher, o que no o sinal de uma relao muito tranquila com o mundo feminino... No vigor dos seus dezoito anos, Ludwig se esfora, porm, em assumir corajosamente o novo encargo de chefe de famlia, pois Johann incapaz de reagir viuvez a no ser embriagando-se cada vez com mais frequncia. Uma irmzinha de um ano de vida, portanto nascida quando Maria Magdalena j estava muito doente, morre em novembro. A essa nova tristeza soma-se o calvrio da vergonha: Ludwig seguidamente obrigado a intervir junto s autoridades para impedir que o pai seja preso. Seus dois irmos, ainda jovens e de carter medocre, no podem ajud-lo nessa via-crcis familiar, e Ludwig quem se torna o tutor desse pai que despreza, que ama, a quem ainda est submetido, mas agora por uma outra violncia que no a das surras. Johann , ao mesmo tempo, vtima e carrasco dele mesmo e dos familiares. Seu estado lastimvel se transforma numa chantagem psicolgica odiosa, que explora a culpa e pratica a tortura mental, ora ameaadora, ora lamurienta, pondo todo o seu peso morto, como Anquises, sobre os ombros do filho mais velho. Com certeza ele no o primeiro pai que, por perversidade ou cime inconsciente, busca estragar a vida do filho e bloquear seu futuro, mas nele, impulsionado pelo alcoolismo, isso adquire propores delirantes. A tal ponto que Ludwig, aps dois anos desse regime que o impede inteiramente de prosseguir seus trabalhos de composio, empreende uma ao junto ao Eleitor, primeiro passo para sua emancipao: ele pede Sua Alteza Serenssima para que os direitos do pai lhe sejam transferidos. O pedido aceito, o decreto assinado, mas Ludwig no levar a ao at o fim: cedendo s splicas do pai, o filho avalia o que representaria simbolicamente essa destituio. Um resqucio de afeio, ou talvez uma violenta crise de autoridade paterna misturada com choradeira, o convence a protelar a ao. Alm disso, parece que Johann furtou o decreto do filho e que Ludwig s veio a saber disso mais tarde, aps a morte do pai, quando quis concretizar sua ao. Seja como for, pai e filho chegam a um acordo: Johann entregar a Ludwig, a cada trimestre, os 25 tleres do seu salrio. A crise desse fim de ano de 1789 acaba sendo fecunda: Ludwig recomea a compor. J no incio de 1790 nascem obras mais que promissoras: ciclos de variaes para piano, um trio para piano, alguns lieder... E uma msica de bal, primeira obra orquestral conhecida como Ritterballet ou Bal cavalheiresco, encomendada pelo conde Waldstein, que se atribuir a paternidade da obra ao ser executada em Bonn, em maro de 1791. A amizade dos prncipes s vezes acompanhada de algumas indelicadezas. Mas a obra mais marcante desse perodo a famosa Cantata sobre a morte de Jos II. O imperador msico havia falecido em 20 de fevereiro de 1790. Beethoven no tarda a responder encomenda que lhe dirige a corte eleitoral: compe febrilmente essa cantata a ser apresentada em Bonn durante uma cerimnia fnebre, em 19 de maro seguinte. Mas a obra nunca ser executada. Difcil demais de interpretar? Impossvel de ensaiar num prazo to curto? Ser preciso esperar cerca de um sculo, 1884, para ouvir sua primeira execuo em Viena. Uma outra cantata, desta vez celebrando o advento de Leopoldo II, conhece a mesma sorte. Humilhaes? Decepo? Isso no atinge em nada a reputao de Beethoven o caro e bom Beethoven, assim que o chamam como virtuose do piano. No pequeno meio musical de Bonn, o jovem j a figura mais em evidncia. Tem vinte anos. Tarde demais para ser o novo Mozart: s lhe resta ser ele mesmo. Dedica-se a isso com afinco, buscando preencher as lacunas da sua instruo ao mesmo tempo em que tenta alguns tmidos namoros. Est matriculado na faculdade de Letras para ter aulas de literatura. Seu professor, Euloge Schneider, um esprito ardoroso que assumir abertamente a defesa da Revoluo Francesa antes de morrer guilhotinado, em 1794. Por natureza, e tambm por causa dos seus encargos, Beethoven mostra-se pouco assduo s aulas. em essncia um autodidata. Mas l com avidez e as ideias novas lhe so familiares. A influncia de Neefe, franco-maom, livre-pensador, marcou sua adolescncia: alis, Neefe pertence ao ramo mais radical da franco-maonaria, ao dos Iluminados da Baviera, dissolvido em Bonn em 1784 aps sua proibio na Baviera e substitudo por uma Sociedade de Leitura (Lesegesellschaft) que conta com uma centena de membros. Essa sociedade nada tem a ver com um grupo de contestao; dela faz parte a fina flor da aristocracia, como o conde Waldstein e amigos prximos de Beethoven. Mas as ideias defendidas por esses Iluminados (que no se deve confundir com os Iluministas, adeptos do esoterismo) continuam as mesmas: progressismo, fraternidade, religio do homem, f na razo e um anticlericalismo que deixar traos em Beethoven. Oriundo de uma famlia catlica praticante, sua religio ntima se voltar mais para uma espiritualidade dominada pela figura de um Cristo muito humano do que para uma estrita observncia dos dogmas. Aos vinte anos, Ludwig van Beethoven um revolucionrio em esprito, embora no em atos, pois o homem da corte ainda dcil. Ele se deixa impregnar pelas ideias do seu tempo, recebe os ecos dos acontecimentos que se desenrolam na Frana. E l tudo que lhe cai nas mos: literatura alem, Goethe e Schiller, autores gregos e latinos, tratados esotricos sobre a teologia e as cincias. Quanto filosofia, em particular a de Immanuel Kant, que domina nessa poca a conscincia intelectual alem, ter acesso a ela sobretudo atravs da divulgao. O mesmo aconteceu na Frana, aps a Segunda Guerra Mundial, quando as pessoas se diziam existencialistas sem terem lido uma linha de Sartre. Do imperativo categrico de Kant ele retm esta frase: Age de tal modo que a mxima da tua ao possa ser erigida como lei universal.3 Ou ainda: Duas coisas enchem o corao de uma admirao e de uma venerao sempre nova e sempre crescente, medida que a reflexo a elas se dedica e se aplica: o cu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim.4 A lei moral... Segundo Kant, o homem s homem quando livre e, por essa razo, no tem necessidade de temer um ser superior a ele, um deus, para conhecer seu dever. Virtude, moral livremente escolhida, confiana na sabedoria do prncipe, contanto que ele seja bom e justo: tal o credo do jovem Beethoven. No que se refere aos prncipes, o mnimo que se pode dizer que haver uma sensvel evoluo ao longo da vida. Uma coisa certa: como muitos dos seus compatriotas, ele fascinado pela Revoluo Francesa. E por um ideal de virtude, no sentido romano do termo, que ser a base fundadora da sua atitude como homem e como artista. Seria esse amor virtude que o bloqueava um pouco nas suas relaes femininas? Sua timidez brutal? Seu fsico pouco atraente para as moas? O jovem Beethoven inegavelmente atrado pelo belo sexo, mas sem conseguir vencer suas inibies. Um exemplo o testemunho de um certo Nikolaus Simrock, msico em Bonn, que conta que em 1791, num restaurante, os msicos incitaram a atendente, uma loira muito apetitosa, a mostrar seus encantos diante de Beethoven. Este acolheu as provocaes com frieza e, como ela insistisse, encorajada pelos outros, perdeu a pacincia e ps fim a suas sedues com uma bofetada.5 Ele vive paixes violentas, em geral breves. A obra Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, imenso sucesso da poca do Sturm und Drang, continua a incendiar coraes e Ludwig, no fundo, um casto. Ele tem namoricos, sucessivamente, com Jeannette von Honrath, amiga da famlia Breuning, uma bela loira jovial, diz Wegeler, de maneiras amveis e carter afetuoso6, infelizmente comprometida com um militar que acabar por desposar; com Maria-Anna von Westerholt, sua aluna; com Barbara Koch, o ideal de uma mulher realizada7, comenta o amigo Wegeler, filha da proprietria de uma hospedagem onde se rene a fina flor da sociedade de Bonn e que se tornar, por seu casamento, a condessa Belderbush, sem nunca ter respondido s cartas inflamadas do jovem msico. Enfim, Ludwig sente tambm uma terna inclinao por Eleonore von Breuning, a filha da sua segunda famlia, que mais tarde se casar com o brilhante Wegeler. Mas sempre, e at o final da vida, a imagem de Eleonore, da sua Lorchen, lhe habitar a memria. Tmidas trocas de cartas entre eles no deixam dvida alguma sobre seus sentimentos profundos, sobretudo seus votos na entrada do ano de 1791: Seja to feliz quanto amada8, escreve Ludwig. , possa a tua felicidade se igualar inteiramente minha, responde Lorchen. Mas parece que os sentimentos de ambos no eram da mesma natureza. Para o aniversrio de Ludwig, Lorchen escreveu: Desejo tua simpatia. A ti, minha considerao Indulgncia e pacincia.9 Indulgncia e pacincia... No exatamente o sinal de um amor ardente, e sim de uma amizade profunda. Muito tempo depois, em 1826, Beethoven escrever a Wegeler estas linhas melanclicas: Tenho ainda comigo o retrato em perfil da tua Lorchen; digo isso para que vejas o quanto me caro todo o amor e a felicidade da minha juventude.10 Esses amores frustrados, apenas esboados, no so um acaso: no fundo da alma ardente de Ludwig h um nico apelo, um desejo profundo, imperioso: alcanar a grandeza, lavar as dores da infncia, elevar-se o mais alto que puder. E h um nico meio para chegar a isso: a msica. Papai Haydn Ludwig est ao piano. Sua reputao de virtuose instrumentista j est bem estabelecida em Bonn. Ele tem uma tcnica poderosa mas, diz Wegeler, desigual e dura.1 O que lhe falta? As nuances, uma certa delicadeza... Nunca saberemos com certeza como realmente ele tocava piano. O instrumento sempre foi o companheiro do seu pensamento musical, das invenes, das construes prodigiosas que vo se elaborar no seu esprito. Quanto s suas performances piansticas, certamente no se parecem em nada s de Schumann, Chopin, Liszt, esses mestres do piano que, ao longo do sculo XIX, levaro o instrumento ao mximo de suas possibilidades tcnicas. Beethoven contemporneo do nascimento e dos primeiros passos do piano moderno. Ele conheceu o cravo, depois o pianoforte, de som ainda spero, vagamente desafinado, digam o que disserem os puristas, os esnobes, os defensores de uma autenticidade musical imaginria: com frequncia Beethoven se queixou de que o instrumento com o qual sonhava, e para o qual compunha, ainda no existia! Seja como for, no comeo dos anos 1790, a tcnica pianstica de Ludwig ainda precisa ser aperfeioada. Em setembro e outubro de 1791, a grande viagem do Eleitor a Mergentheim, da qual ele participa, lhe permitir comparar seu jovem talento ao de Sterkel, pianista mais sutil, mestre de capela do Eleitor de Mainz. Sterkel tocava com muita delicadeza, de um modo extremamente agradvel e, segundo a expresso de Ries, o pai, um pouco feminino. Beethoven manteve-se perto dele com o mais concentrado dos semblantes. Em seguida foi convidado a tocar; ele o fez, embora Sterkel [...] duvidasse que o mesmo compositor das variaes fosse capaz de toc-las com luidez. Mas Beethoven tocou no apenas essas variaes, mas tambm uma srie de outras que no eram menos diceis. Para grande surpresa dos seus ouvintes, tocou-as exatamente da mesma maneira leve e agradvel que o impressionara em Sterkel. Tamanha era a sua facilidade de modificar a tcnica com base na de um outro.2 A Europa est em ebulio. O imperador Leopoldo II, morto em 1o de maro de 1792, substitudo pelo conservador Francisco I da ustria, cujo reinado se estender at a morte de Beethoven e mais alm. Antirrevolucionrio feroz, hostil s ideias novas, ao contrrio do seu tio Jos II e do seu pai Leopoldo II, Francisco I da ustria levar o pas catstrofe e humilhao frente aos exrcitos revolucionrios franceses e depois napolenicos, at que o congresso de Viena, em 1814, lhe permita tirar sua desforra, com a ajuda inspirada do seu fiel Metternich. Em abril de 1792, a Frana, atravs da sua Assembleia Legislativa, declara guerra ao rei da Bomia e da Hungria, o imperador Francisco. No ms de agosto, o rei Lus XVI destitudo. Em 20 de setembro, na batalha de Valmy, o exrcito esfarrapado dos sans-culottes pe em xeque os prussianos e, em novembro, os austracos so expulsos da Blgica, em Jemmapes, pelos soldados do general Dumouriez. A Frana revolucionria, agora o farol da liberdade na Europa, pelo menos em suas intenes proclamadas, ambiciona derrubar as monarquias, vencer as tiranias: um vasto projeto. Esses acontecimentos devem ter entusiasmado o lado revolucionrio de Ludwig. Mas o mais importante para ele, no vero de 1789, foi o encontro com Joseph Haydn. Papai Haydn, como era afetuosamente chamado por Mozart, morto seis meses antes, est de passagem por Bonn. Aos sessenta anos, esse homem sem graa, de uma presena modesta, de uma bondade tingida de f ardente, est enfim livre, em funo da morte do prncipe Nicolau em 1790, da tutela dos prncipes Esterhzy junto aos quais serviu durante mais de trs dcadas. Por certo sua espiritualidade luminosa lhe permitiu resistir s presses de um trabalho esmagador e s decepes de um casamento, pois ele sempre preferiu a companhia da irm... Foi no castelo Esterhzy, na Hungria, que esse gnio discreto mas fecundo comps a maior parte da sua imensa obra, pressionado pela constante necessidade de fornecer partituras orquestra e ao teatro do prncipe, bem como peas musicais de cmara: trios, quartetos, sonatas para piano, inmeros lieder... Esse frenesi criador imposto, e realizado com uma bondade e uma integridade unanimemente louvadas, fez dele um mestre. O nico mestre incontestvel remanescente em Viena aps a morte de Mozart. E, se ele reconheceu no seu jovem amigo Wolfgang o maior msico que a terra j produziu3, sua prpria obra contm fabulosos tesouros e marca uma etapa essencial na histria dos gneros musicais a sinfonia, o quarteto e a sonata, em particular. Muitos pianistas, e alguns melmanos entendidos, afirmam inclusive que suas sonatas para piano so mais interessantes do que as de Mozart, mais inventivas, mais misteriosas. Ele o mestre absoluto do quarteto de cordas. Quanto s suas sinfonias, elas encantam pela graa, surpreendem pela riqueza e pela complexidade na explorao da orquestra, como a famosa srie das sinfonias londrinas. Foi a Londres, justamente, que Haydn se dirigiu no final de 1790, a convite de um empresrio chamado Johann Peter Salomon, natural de Bonn. Ele passou por esta cidade, onde talvez tenha cruzado com Beethoven pela primeira vez. Ludwig teria lhe mostrado uma de suas composies, certamente a famosa Cantata a Jos II. Ou teria sido ao retornar de Londres, onde Haydn conheceu, durante mais de um ano, uma temporada triunfal como uma primeira apoteose aps uma longa vida de servido? Em todo caso, o velho mestre fica impressionado com as qualidades da escrita musical desse quase desconhecido. verdade que Haydn reconhece alguns erros nos primeiros trabalhos do jovem Ludwig, mas tambm suficiente personalidade e grande potencial para aceitar lhe dar lies, a pedido do Eleitor. Em 1o de novembro de 1792, Beethoven parte para Viena. Tem 22 anos, mas continua achando ter apenas vinte. Deixa para trs um pai combalido, dois irmos com o futuro incerto, uma juventude difcil, marcada pela violncia paterna, mas tambm iluminada por belos encontros. Em Bonn se enraizaram seu amor eterno pela msica, sua vocao, suas primeiras paixes, seu carter melanclico e entusiasta, voluntarioso e sonhador. Diante do majestoso Reno, nessa natureza amvel e poderosa, ele descobriu o sentimento profundo da realidade do mundo e de suas foras telricas, concebeu o desejo de ser amado por sua msica, de tornar-se atravs do trabalho, da virtude, da doao de si a seus semelhantes, aquilo que o pai no soube ser: um grande artista. Os telhados de Bonn se distanciam na bruma. Ele no sabe que nunca mais retornar sua cidade natal. Mesmo no momento da morte do pai, que falece em 18 de dezembro de 1792, provavelmente de uma crise cardaca. Beethoven no podia ignorar, ao partir, que Johann vivia seus ltimos dias. Teria precipitado sua partida para no v-lo morrer? Agora ele est sozinho consigo mesmo, sem o superego violento, lamuriento, pouco admirvel que foi seu pai, esse pobre infeliz que com seus destroos foi um fardo para seus ombros durante vinte anos. Receba das mos de Haydn o esprito de Mozart, teria lhe escrito o conde Waldstein no momento da sua partida, num lbum que reunia as despedidas dos amigos. A frase talvez demasiado bela para ser autntica, at porque muitos documentos foram falsificados aps a morte de Beethoven, especialmente por seu zeloso hagigrafo Schindler, de quem falaremos no momento oportuno, com toda a benevolncia que merecem suas ms aes. Pensa Beethoven em Lorchen durante a longa viagem a Viena? Parece que eles se deixaram com algum ressentimento sabemos disso por uma carta que Ludwig dirige jovem ao chegar em Viena, na qual pede para ser perdoado. Quanto a Lorchen, ela nunca exprimiu outra coisa em relao a Ludwig seno uma amizade profunda. Que a amizade, com o bem, cresa como a sombra do entardecer, at se extinguir o sol da vida.4 Ela traou esses versos de Herder no lbum de despedidas. Eis Beethoven em Viena, e pelo resto da vida o que ele est longe de imaginar, pois pensa em retornar a Bonn uma vez terminados seus estudos. Cidade suntuosa e encantadora, de fato mas tambm odiosa, infestada de espies e delatores a servio do imperador, em breve a capital da valsa e do kitsch enjoativo. Da psicanlise igualmente, o que no um acaso: o inconsciente vienense oferece anlise uma mina inesgotvel de recalques. Em Viena teme-se a contaminao das ideias revolucionrias vindas da Frana e que se propagam por toda a Europa. Por que a msica encontra ali um lugar de predileo? Porque julgada inofensiva. Os outros meios de expresso, a filosofia, a literatura, esses refgios de sedio, no so bem-vindos. At o imperador Jos II, vido por fundar uma academia em Viena, ficou chocado com a frivolidade de uma populao que fez pouco-caso do Don Giovanni de Mozart, antes de deixar o compositor morrer na misria. A notcia do falecimento do pai no surpreende Ludwig. Johann j estava morto havia muito tempo no seu corao... O discurso fnebre do Eleitor pelo ex- cantor dispensa comentrios: Beethoven est morto; uma grande perda para o imposto sobre as bebidas.5 O salrio de Johann, transferido a Ludwig, continua a ser pago pelo Eleitor para o sustento dos dois irmos, que podem assim suprir suas necessidades sem a presena dele. Uma volta a Bonn est descartada. Munido de cartas de recomendao de Waldstein e do Eleitor, Ludwig se apresenta ao baro Nikolaus Zmeskall von Domanovecs, secretrio ulico na chancelaria real da Hungria. Esse primeiro contato conveniente: Zmeskall se revelar para Ludwig um amigo precioso e constante ao longo de toda a vida, o mais fiel que ele ter em Viena e o mais generoso, que no lhe nega seu tempo, seu dinheiro nem todas as relaes que tem na capital. H sinais que no mentem: o mal-humorado Beethoven nunca se desentender com ele, pelo menos no mais do que por algumas horas! com Zmeskall que ele vai casa de Haydn. As lies com o velho mestre comeam em seguida. Bastante descontradas na forma, a julgar pelos cadernos de anotaes de Ludwig, elas em geral terminam com um caf, pois papai Haydn um grande apreciador de chocolate quente. Porm, no fundo, no parece ter havido muita afeio nem cumplicidade artstica entre essas duas personalidades to distintas. Beethoven afirmar inicialmente nada ter aprendido com Haydn; bem mais tarde reconhecer que teria cometido muitas extravagncias sem os bons conselhos do papai Haydn e de Albrechtsberger, seu outro professor em Viena. A verdade que h em Beethoven algo de sombrio, de imperioso, de estranho mesmo, que inquieta a natureza clara de Joseph Haydn. Beethoven, diz o flautista Drouet, que testemunhou a cena e nos relata o dilogo a seguir, mostrou a Haydn suas primeiras composies: Voc tem muito talento diz Haydn e vai adquirir ainda mais, muito mais. Tem uma abundncia inesgotvel de inspirao, mas... quer que eu lhe diga francamente? Com certeza, pois vim para ouvir sua opinio resmunga Beethoven. Pois bem, voc far mais do que fez at agora, ter pensamentos que ningum ainda teve, nunca sacrificar (e far muito bem) um belo pensamento a uma regra tirnica, mas sacrificar as regras s suas fantasias; pois voc me d a impresso de um homem de vrias cabeas, de vrios coraes, de vrias almas e... Mas receio aborrec-lo. O senhor me aborrecer se no terminar. Pois bem, j que insiste, digo que na minha opinio sempre haver nas suas obras algo de inslito e de inesperado, de inabitual, certamente em meio a coisas belas, coisas inclusive admirveis, mas aqui e ali haver algo de estranho e sombrio, porque voc mesmo um pouco estranho e sombrio; e o estilo do msico sempre o homem. Observe as minhas composies. Nelas encontrar com frequncia algo de jovial, pois eu mesmo sou assim. Encontrar sempre um pensamento alegre ao lado de um pensamento srio, como nas tragdias de Shakespeare... Pois bem, nada pde destruir em mim essa serenidade natural, nem mesmo meu casamento nem minha mulher!6 Mas as lies de Joseph Haydn decepcionam Beethoven. Haydn envelhece, atinge enfim uma glria pblica universal, pelo menos europeia. Pensa numa segunda viagem a Londres. E no acha muito divertido dar lies, mesmo a um futuro gnio. Alis, ele no se sente vontade com esse Beethoven, decididamente antiptico. Prescreve-lhe exerccios de contraponto, de harmonia, de baixo contnuo, matrias nas quais Beethoven j se julga experiente graas ao ensino de Neefe. Haydn corrige com distrao seus exerccios: h umas quarenta anotaes feitas por ele nos cerca de 250 exerccios que Ludwig lhe confia. O que este busca junto a Haydn? Ser armado cavaleiro por um mestre? Os conselhos de um veterano? Talvez alguns segredos de composio?... Haydn considera esse jovem impaciente com uma indulgncia mesclada de humor. Chama-o, por causa do seu carter e da sua tez mais escura, o Gro-Mogol. Sempre ter por ele uma considerao afetuosa, inquietando-se com os progressos de sua carreira. Mas no h entre os dois a alquimia preciosa, misteriosa, da amizade. Pressentiria Haydn que seu aluno lanaria a msica em territrios desconhecidos, quebrando o equilbrio clssico do qual ele o representante mais acabado desde a morte de Mozart? Abandonando esse mestre evasivo, Beethoven escolhe um outro mentor, Jean-Baptiste Schenk. Este, autor de O barbeiro da aldeia, um reconhecido especialista do contraponto, esse fundamento da msica ocidental que consiste, segundo complexas combinaes, em compor dois motivos musicais diferentes mas tocados ao mesmo tempo e numa perfeita harmonia. Schenk vai visitar Beethoven, de quem lhe enalteceram o grande talento. O quarto do jovem msico mostra uma desordem pouco atraente. H restos de comida sobre as partituras abertas em cima da mesa e no piano, roupas de uma limpeza duvidosa espalhadas no cho. Ser sempre assim, testemunham os visitantes, nas vrias moradas que Beethoven ocupa em Viena durante cerca de quarenta anos. Bem-humorado nesse dia, Beethoven mostra a Schenk alguns exerccios de contraponto. primeira vista, o mestre percebe alguns erros. Beethoven se queixa de Haydn, em quem observou pouca ateno. Ele exigente e apressado. Mas, para no zangar o bom papai Haydn, Beethoven ter a delicadeza de passar a limpo as passagens corrigidas por Schenk. Dizem que Haydn apenas sorriu ao ficar sabendo desse pequeno arranjo... Em muito pouco tempo, em Viena, Beethoven torna-se a febre da aristocracia. Desde a morte de Mozart, que foi maltratado, o pblico procura um novo heri. Esse jovem pianista brilhante, de temperamento fogoso e fsico estranho, chega na hora certa. Mas ele ter de esperar o dia 29 de maro de 1795 para dar seu primeiro grande concerto pblico, ou seja, mais de dois anos aps sua chegada a Viena. At l, faz a felicidade dos sales da aristocracia, onde seus talentos so apreciados no mais alto grau. recebido nas grandes famlias, os Lichnowsky, os Razumovski, os Lobkovitz, os Liechtenstein, nomes que nos so ainda prximos, mas somente porque aparecem nas dedicatrias de suas obras... O prncipe de Lichnowsky o seu anjo da guarda: hospeda-o na sua casa, assegura seu renome junto s pessoas importantes de Viena, encoraja seus trabalhos de composio, tocando-os ele mesmo ao piano. Sua mulher, a princesa Cristina, revela-se uma anfitri zelosa, mas um pouco incmoda. Por pouco, dir Beethoven a Schindler, a princesa no me pe numa redoma de vidro, a fim de que ningum me toque ou aproxime de mim sua respirao.7 Que magnetismo possui esse jovem para ser cercado de tanta solicitude? Ele representa certamente um novo tipo de artista, uma curiosidade no habitual. Enquanto Haydn e Salieri apresentam-se nos sales com peruca, enfeitados de p, com meias de seda e sapatos conforme a moda, Beethoven comparece com roupas comuns. Sua aparncia pouco cuidada, como testemunha uma senhora que assistiu s suas primeiras aparies na sociedade, a sra. Von Bernhardt: Ele era baixo e sem atrativos, com um rosto vermelho e feio, coberto de marcas de varola. A cabeleira era castanha e caa quase em mechas em volta do rosto. As roupas eram muito comuns, sem aquela desenvoltura que estava ento em moda. Alm disso, falava muito em dialeto e com uma maneira de se exprimir bastante vulgar; e, como nada na aparncia lhe ocultava a personalidade, no parecia nem um pouco amaneirado nos gestos e nas atitudes.8 Um ano depois de sua chegada a Viena, Beethoven envia uma carta a Eleonore von Breuning. No apenas no a esqueceu, como o desentendimento entre eles, que precedeu sua partida, continua a atorment-lo. Que palavras irreparveis teriam sido pronunciadas por Ludwig, ou talvez por Lorchen, para que as coisas tivessem se envenenado daquela maneira? Essa carta nos diz muito sobre o carter de Beethoven, irascvel, colrico, questionador, depois lamurioso por seus arrebatamentos e suplicante por perdo: Quando a fatal discusso me voltou ao esprito, a minha conduta de ento me pareceu abominvel! Mas est feito. Oh, quanto eu daria para apagar da minha vida, se fosse possvel, uma maneira de agir to desonrosa e, alis, diametralmente oposta ao meu carter!9 O que teria se passado? Podemos imaginar: uma exploso violenta de Ludwig, cujo carter orgulhoso e ntegro suportava mal a situao vivida na casa dos Breuning, de quase filho adotivo devedor a seus anfitries, humilhado por ser utilizado como professor de msica de uma jovem por quem est apaixonado e que o mantm distncia. Um mal-entendido, atiado por palavras ouvidas e alimentado pela ausncia de explicaes. Uma confuso de sentimentos, em que laos fraternos se misturam a desejos obscuros. O fato que, para obter seu perdo, Ludwig dedica a Lorchen uma obra composta para ela, variaes sobre a ria de Se vuol ballare... das Bodas de Fgaro, de Mozart, na qual Fgaro, coincidentemente, desafia o conde que quer lhe roubar a mulher que ama... Detalhe tocante, na mesma carta ele pede a Lorchen para lhe tricotar um colete de angor, pois o que ela lhe deu em Bonn, e que ele conserva com devoo, est fora de moda! Uma coisa certa: ele permaneceu profundamente enamorado por Eleonore von Breuning. Beethoven, corao pronto a se inflamar, a se desprender e a voltar a antigos amores, como que obcecado pela angstia da perda. Joseph Haydn torna a partir para Londres em janeiro de 1794. Antes da partida, confia seu indcil discpulo ao professor mais reputado de Viena, Johann Georg Albrechtsberger, organista da corte, mestre de capela da catedral. Ele dar lies a Beethoven durante treze meses, de janeiro de 1794 a fevereiro de 1795. Esse msico conheceu um momento de glria como compositor. Quatro anos mais jovem que Haydn, escreveu sinfonias, quartetos, concertos, mas sua reputao de compositor ficou para trs e ele dedica a maior parte do tempo ao ensino um ensino dos mais clssicos: para atingir o domnio da composio, ele preconiza ater-se tradio de Fux, cuja teoria baseada na fuga e no contraponto. Pacientemente, trs vezes por semana, Albrechtsberger ministra suas lies a Beethoven, que tem a particularidade, prpria aos temperamentos fortes e s personalidades que tm uma meta na vida, de no poder suportar nenhuma diretiva, de se furtar s disciplinas acadmicas, entregando-se a elas sozinho, como autodidata, quando necessita delas para seu trabalho de composio. No entanto as lies do novo mestre tero uma influncia real sobre ele, embora considerasse Albrechtsberger um pedante retrgrado, mestre consumado na arte de fabricar esqueletos musicais.10 Influncia sensvel sobretudo no acesso msica religiosa e numa escolha mais ampla do repertrio barroco nesse domnio: Allegri, Bach, Caldara, Fux, Haendel, Lassus, Palestrina, toda a cultura musical que ainda falta ao jovem Ludwig para fazer dele um mestre completo, que recolhe as heranas para ultrapass-las. Falou-se muito que os dois no se entendiam e mal se suportavam. No entanto, vinte anos mais tarde, Beethoven, no auge da glria, dar lies gratuitas ao neto de Albrechtsberger, reconhecendo no velho professor um exemplo cuja influncia o marcou. Por seu lado, Albrechtsberger teria declarado um dia que seu aluno nada havia aprendido e que jamais faria algo de bom. que Ludwig, como todos os impacientes, quer queimar etapas e mandar ao diabo os exerccios de escola. Para ele, a msica no se reduz a uma tcnica de composio j levada por outros ao mais alto grau de perfeio, como a fuga. Como ser um criador maior que Bach? Alis, a fuga um procedimento ausente de suas primeiras composies da juventude e ele s a utilizar em pequenos trechos, livremente, conforme suas necessidades, at que toda a sua aprendizagem se mostre sublimada, por volta do fim da vida, na composio grandiosa da Grande Fuga. Em suma, recusando-se a curvar-se s regras antigas, Beethoven no ter outra escolha seno reinventar certas formas da escrita musical para impor seu prprio mundo, inventar estruturas novas, usar de todos os recursos instrumentais e de orquestra para emitir sonoridades de tons inditos. O mesmo em relao pera, cujo grande mestre em Viena, depois da morte de Mozart, Antonio Salieri. Esse msico estimvel, que uma tradio duvidosa iniciada por Pshkin transformou em assassino de Mozart, na verdade um mestre na arte de composies dramticas grandiloquentes (tentativas recentes de reabilitao confirmam amplamente essa tendncia a uma nfase pouco inventiva). As relaes entre Beethoven e Salieri so boas, talvez porque o msico de corte, intrigante e cioso do seu poder, no veja no jovem virtuose do piano um possvel rival no domnio da pera. O futuro lhe dar razo: Beethoven no tem pelo teatro e pela pera italiana os dons evidentes de um Mozart. Seria porque no gostava da futilidade, do artificialismo da pera? Dez anos mais tarde, porm, ele far uma experincia: ser a longa novela de Fidelio, nica tentativa. Por ora, nesse ano de 1794, ele no passa o tempo todo tomando lies: tambm compe. Trs sonatas para piano, dedicadas a Haydn, certamente por diplomacia. Ao ouvi-las no seu regresso de Londres, em 1795, na casa do prncipe Lichnowsky, Haydn teria dito a Beethoven que ele no carecia de talento, mas lhe faltava ainda instruir-se. Necessidades prementes comeam a surgir. Em Bonn, a situao ruim. A guerra ameaa o funcionamento do imprio. Em junho, os austracos so vencidos em Fleurus pelo exrcito de Sambre-et-Meuse. Em outubro, a margem esquerda do Reno ocupada pelas tropas de Marceau e Klber. O eleitor Maximiliano Francisco, antes de fugir, no tem outra escolha seno dispensar os artistas a seu servio e fechar o teatro: Beethoven no tem mais rendimentos fixos. Como viver? Agora ele um homem sem ter a quem servir, livre e um dos primeiros artistas a gozar dessa liberdade. Poderia de novo se colocar a servio de um desses prncipes mecenas que dispem de um msico particular: ele se recusa. Mesmo na casa de Lichnowsky, que o trata com a maior considerao e busca por todos os meios cativ-lo, mostra-se um hspede independente, recusando-se at a jantar na casa do prncipe porque o horrio no lhe convm! Amigo, tudo bem; lacaio, nunca. Ele d aulas, embora esse trabalho lhe repugne. Para no se aborrecer, tem pequenos namoricos com suas jovens alunas, se forem bonitas. Lorchen no parece mais habitar seus pensamentos. E ele pensa em ganhar algum dinheiro com suas primeiras composies atravs da publicao delas. Essa busca por editores uma das ocupaes principais dos primeiros anos da sua carreira: dedica tempo e energia a isso, pedindo inclusive a colaborao de seus irmos nessa tarefa quando estes forem se encontrar com ele em Viena... Busca contatos em Viena, mas tambm em Praga, em Berlim e mesmo em Bonn, onde seu amigo Simrock acaba de fundar uma editora musical. a ocasio de uma carta muito interessante, datada de agosto de 1794, na qual ele d seu parecer sobre a situao em Viena: Aqui faz muito calor, os vienenses esto inquietos, em breve no podero mais encontrar gelo, pois no inverno fez to pouco frio que o gelo raro. Esto prendendo vrias personalidades aqui; dizem que vai haver uma revoluo mas eu acho que, enquanto o austraco tiver cerveja escura e salsichas, ele no se revoltar. Em suma, os portes dos arrabaldes devem ser fechados s dez da noite. Os soldados tm as armas carregadas. Ningum ousa falar muito, caso contrrio preso.11 O retorno a Bonn est descartado. O que ele faria l? Viena lhe oferece a promessa de uma carreira notvel, no centro do imprio. E, mesmo se houver revoluo, ele saber escrever a msica dos novos tempos. Alis, em outubro o prprio Wegeler que chega a Viena. Na Bonn ocupada pelos franceses, a situao se tornou difcil. Beethoven um pianista reconhecido, admirado, temido pelos colegas, capaz de entusiasmar e comover os sales onde se apresenta e que constroem as reputaes. s vezes, aps ter feito carem lgrimas dos olhos dos ouvintes, ele se levanta, d uma gargalhada e lana, fechando ruidosamente a tampa do piano: Vocs so todos loucos!. Mas ele ainda no se apresentou nenhuma vez numa sala de concertos. Isso acontecer no final de maro de 1795, durante trs concertos sucessivos dados no Burgtheater. Toca ali um concerto de Mozart, improvisa e principalmente, diz uma nota do Wiener Zeitung, recolhe a aprovao unnime do pblico num concerto indito para pianoforte composto por ele mesmo.12 Desse concerto, em si bemol maior op. 19, hoje conhecido como o de nmero 2, ele dir, cinco anos mais tarde, que no o considera como uma de suas melhores obras. Terminou-o s pressas, premido pelo tempo na antevspera da apresentao, doente, com problemas intestinais, preenchendo furiosamente as pautas que ia passando aos copistas, e a parte do piano no estava escrita: isso ser feito mais tarde, para publicao. Trata-se de uma festa para o solista: ele pode improvisar, brilhar o quanto quiser na cadncia, conservando s para si essa parte da obra, maneira de proteg-la e de deflor-la apenas no concerto. Somente a edio, mais tarde, fixar a obra para sempre e para os pianistas do futuro. Esse concerto um grande sucesso, primeiro passo de uma caminhada que Ludwig sonha triunfal. Pouco depois, em maio, ele oferece ao editor Artaria trs trios, os do opus 1. Um testemunho precioso embora indireto, pois seu autor no estava em Viena na poca, nos chegou sobre a apresentao desses trios: o de Ferdinand Ries, futuro aluno de Beethoven e futuro autor, com Franz-Gerhard Wegeler, de um livro de encontros com Ludwig van Beethoven, intitulado Notas biogrficas, no qual lemos o seguinte: A maior parte dos artistas e dos amadores de Viena tinham sido convidados, particularmente Haydn, sobre cujo julgamento tudo se decidia. Os trios foram tocados e provocaram de imediato uma impresso extraordinria. O prprio Haydn concordou, mas aconselhou Beethoven a no publicar o terceiro trio em d menor. Isso surpreendeu Beethoven, que considerava esse trio como o melhor dos trs; desse modo tambm que o consideram ainda hoje, na maioria das vezes; foi o que produziu mais efeito. As palavras de Haydn, portanto, causaram m impresso em Beethoven, levando-o a pensar que Haydn estava com inveja, com cime, e no gostava dele.13 Relaes decididamente pouco serenas entre esses dois gigantes da msica. Apesar da admirao, do respeito, da afeio. Em 1801, os dois voltam a se encontrar. Beethoven ouviu A Criao, uma das ltimas obras-primas do velho mestre, e este o bal de Beethoven, As Criaturas de Prometeu. Ouvi seu bal ontem noite diz Haydn , gostei muito. , caro papai responde Beethoven , est sendo gentil, mas no uma Criao, falta muito para chegar l. E Haydn, dando um tempo para refletir: verdade, no uma Criao, e acho que dificilmente voc faria igual, pois um ateu.14 Amores, amizades... Apesar disso, o ateu, o Gro-Mogol, vai abrindo seu caminho na alta sociedade vienense. Inclusive toma aulas de dana a fim de parecer menos acanhado nos saraus. Mas, embora um pouco mais civilizado, ele nada perde de suas maneiras rsticas e do seu carter difcil. Vi a me da princesa Lichnowsky, a velha condessa Thun, se pr de joelhos diante dele, estendido num sof, implorando para ele tocar alguma coisa1, relata a sra. Von Bernhard. Ele adulado e no recusa o prazer dessa satisfao narcsica. Mesmo suas maneiras rudes contribuem para criar sua lenda: por que se privar disso? Mas seus momentos de clera no so fingidos: na verdade, ele detesta tocar em pblico quando sente que apenas uma das atraes da noite, e quando o tratam como algum que deve nos tocar alguma coisa. Seu orgulho torce o nariz, a ideia elevada que faz da sua arte revolta-se quando deve servir apenas de ornamento e distrao. Acontece-lhe de se levantar furiosamente, de fechar o piano, de sair da pea resmungando, se o pblico se mostra desatento ou tagarela. Beethoven no msica de fundo! Ele vai pera acompanhado de pessoas encantadoras. longa a lista de mulheres jovens que ele corteja de maneira um tanto apressada. Suas tentativas de conquista feminina so breves e variveis. Provavelmente platnicas, quando se referem a moas da nata da sociedade. Mas h tambm criadas e damas menos ariscas. Em Viena, escreve Wegeler, testemunha confivel da vida do amigo, pelo menos enquanto estive l, Beethoven estava sempre envolvido num caso amoroso e, durante esse tempo, obteve conquistas que teriam sido muito difceis, se no impossveis, a mais de um Adnis.2 Ele ama por mpetos, por caprichos, talvez vrias mulheres ao mesmo tempo, o que no uma idiossincrasia masculina to rara. E h tambm o enigma, sobre o qual se acumulam tantas informaes e o trabalho constante dos bigrafos desde mais de um sculo, relativo sua sade. Desde a juventude ele sofre de males diversos, antes mesmo do grande drama da surdez: a varola contrada na infncia lhe deixou, alm do rosto profundamente marcado, uma deficincia oftlmica. Com frequncia vtima de crises de enterite. Sua dupla herana, alcoolismo paterno e tuberculose materna, no contribui em nada para que ele tenha uma boa sade. E hoje mais do que provvel que um outro mal, em Viena, tenha se acrescentado a seus dissabores: a sfilis, pela qual Ludwig teria sido contaminado nos primeiros meses nesta cidade. Ao longo de todo o sculo XIX e mesmo depois, os bigrafos, assustados por essa escabrosa circunstncia na vida do deus da msica ocidental3, usaram de infinitas precaues para evocar essa doena (sem falar da destruio, por Schindler, de inmeros documentos, grande parte deles dos Cadernos de conversao, para nada deixar transparecer das vicissitudes demasiado humanas do seu heri. Esse crime nos priva de informaes essenciais sobre o desenvolvimento do pensamento de Beethoven e sobre sua vida ntima). Essas relaes inconstantes, quando no volveis, com as mulheres no so muito mais amenas com o crculo de amigos que Beethoven frequenta em Viena. Mesmo Wegeler, o mais querido e o mais prximo, sofre s vezes com as violentas mudanas de humor que o eruptivo Ludwig lamenta em seguida. Aps uma discusso cujo motivo nos desconhecido, ele escreve a Wegeler uma carta suplicante na qual se justifica e pede perdo. Assegura que na sua atitude no houve nenhuma maldade premeditada: Sempre fui bom e sempre procurei ser correto e honesto nas minhas aes, caso contrrio voc no poderia ter gostado de mim. Teria eu mudado em to pouco tempo, de maneira to terrvel e em meu desfavor? Impossvel. Teriam os sentimentos do que grande e bom se extinguido todos em mim de repente?4. H nele uma espcie de dupla personalidade que se manifesta por crises, uma violncia temida, difcil de controlar, provavelmente guardada nas lembranas da infncia e na imitao inconsciente do pai. Porm, essa violncia tambm se concentra nos projetos criadores, na vontade de transformar em ouro a lama da infncia, de lhe dar a forma de uma mensagem universal de amor e de fraternidade. No outono de 1795, seus dois irmos, Karl e Johann, agora sem recursos em Bonn, desembarcam em Viena. Essa nova responsabilidade no pequena para Ludwig. Ele ama os irmos, mas na maior parte do tempo estes o exasperam, e sero para ele uma preocupao constante. Karl, o segundo, baixo, de cabelos ruivos, feio, diz uma testemunha, fez estudos musicais em Bonn, mas nem de longe se aproxima do talento do irmo. Quanto a Johann, o caula, descrito como alto, moreno, bonito e s vezes dndi.5 Um pouco tolo, mas de uma bondade natural6, afirma uma certa sra. Karth, que conheceu bem os trs Beethoven. Tolo, com toda a certeza. Em relao bondade natural, o caso de duvidar. Muito foi dito e escrito sobre esses dois personagens vistos como odiosos parasitas, sanguessugas grudados no gnio do irmo. A realidade menos dramtica, e mais medocre como eles. Em Viena, Karl prossegue seus estudos musicais e cuida dos negcios do irmo mais velho, ou seja, desempenha o papel de um secretrio e vagamente de empresrio. Aproveita-se disso para vender as obras de Ludwig, s vezes sem que este saiba disso, a vrios editores ao mesmo tempo. Karl e Johann tm a triste mania de vasculhar fundos de gaveta e trocar por dinheiro obras que Beethoven no quis publicar, julgando-as indignas do seu talento. No raro que as discusses entre Ludwig e Karl terminem em pugilato, como num dia em que Karl resolveu vender a um editor de Leipzig as trs sonatas para piano do opus 31 (que inclui esta obra-prima, a sonata em r menor intitulada A tempestade) que Ludwig prometera a um editor de Zurique. Assim transcorrem as relaes familiares entre os Beethoven: flor da pele, violentas, no entanto indestrutveis, como ocorrer mais tarde no famoso caso do outro Karl, sobrinho de Ludwig. Por ora, nesse ano de 1795, Beethoven trabalha nas sonatas para piano do opus 2, dedicadas a Haydn. Elas j so to singulares, to beethovenianas no estilo, que tempo de nos perguntarmos sobre a maneira prpria e j perceptvel do compositor, com aquela fora e aquele dinamismo amplamente inspirados e condicionados por seus talentos de improvisador, a improvisao relacionada tanto performance musical quanto aos jogos de salo e competio. Em Viena, nas disputas em que o pianista deve medir foras com os recm-chegados e vencer todos os desafios, Beethoven o campeo, como relatam divertidamente Brigitte e Jean Massin: O sculo XVIII adorava os duelos em que se opunham dois executantes rivais; a cada ano um novo campeo chegava a Viena e toda a alta sociedade se comprimia para v-lo medir-se com o heri do momento; assim Beethoven, ao chegar, enfrentou Gelinek. Agora ele, por assim dizer, o detentor do ttulo; em 1797, Steibelt o desaia; em 1798, Joseph Wll; nos anos seguintes, Cramer, Clementi, Hummel. De cada um desses duelos temos um monte de histrias, mas todas se reduzem ao mesmo esquema: a) o outro (do qual somente o nome varia) toca com uma perfeio, uma pureza, uma delicadeza invariavelmente dignas de Mozart; b) Beethoven est de mau humor: pe-se ao piano, bate nas teclas como um bruto, comea a improvisar, faz chorar todo mundo e deixa o rival em frangalhos. Isso aconteceu com Wll, mas este foi talvez quem melhor se defendeu. preciso dizer tambm que ele tinha mos to grandes que era capaz de abarcar treze teclas!7 Uma testemunha da poca, Junker, msico amador e compositor, d suas impresses, em 1791, ao Musikalische Korrespondenz: Tambm ouvi um dos maiores pianistas, o caro e bom Bethofen (sic) [...] A grandeza desse homem amvel e despreocupado, como virtuose, se deve, a meu ver, infatigvel riqueza de suas ideias, ao estilo geral caracterstico da expresso, quando toca, e grande habilidade de execuo. No sei de nada que lhe falte daquilo que leva um artista grandeza. Ouvi Vogler [...] vrias vezes durante mais de uma hora, e nunca deixei de me maravilhar com sua tcnica espantosa; mas Bethofen, alm da execuo, possui mais clareza e peso nas ideias, e mais expresso; em suma, ele fala mais ao corao, to grandioso no adgio quanto no alegro. Sua maneira de tratar o instrumento to diferente da comumente adotada que sugere a ideia de que, por um caminho de sua inveno, ele atingiu o topo da excelncia onde se encontra no presente. Um caminho de sua inveno. o que literalmente se manifesta nas trs primeiras sonatas do opus 2, nas quais nunca se ouviu o instrumento tratado com tal vigor, tal intensidade o que por certo foi estranho e desconcertante para os primeiros ouvintes. No se trata apenas da direo que tende para o ideal, observa Wasielewski, da intensidade de expresso, mas tambm da predominncia de idiotismos muito caractersticos, engendrados pela sensibilidade original de Beethoven. Por exemplo os cruzamentos rtmicos, as sries de sncopas, as acentuaes fortes dos tempos fracos do compasso e a obstinada repetio de certas frases, como na coda do scherzo da Sonata em d menor no 3, com seu motivo de abertura.8 Nunca, de fato, o piano foi utilizado com tamanha amplitude quase orquestral, a mo esquerda ultrapassando seu papel de acompanhamento ou de elemento de contraponto para assumir uma funo autnoma, como um elemento de orquestra. Durante toda a sua vida, repetimos, Beethoven buscar o piano do futuro, pressionando os fabricantes para que concebam um instrumento sua altura. Ele sabe que com suas obras j tomou um caminho que ningum explorou antes dele, e que somente assim encontrar sua salvao artstica. Como ir mais longe, mais alto que Mozart, na linguagem de Mozart? Impossvel. Ao ouvir uma execuo do Concerto K. 491, o 24o, Beethoven disse um dia a Cramer: Cramer! Cramer! Nunca seremos capazes de fazer igual.9 preciso portanto fazer outra coisa, de um outro modo, afirmar a personalidade, elevar o tom, fazer do msico dos novos tempos no mais um escudeiro, mas um heri. O jbilo do virtuose s vezes se traduz em obras ocasionais, mas absolutamente irresistveis. talvez dessa poca, 1795, que data um extraordinrio rond, chamado de O vintm perdido ou Clera a propsito de um vintm perdido. Ainda hoje essa pea humorstica, publicada aps a morte de Beethoven, assegura o sucesso dos pianistas que a tocam em concerto. Beethoven tem amigos em Viena. Mas quem so seus rivais? Quanto virtuosidade pianstica, a causa est resolvida: ningum. Mas quanto composio? Por certo ele no em Viena o nico candidato sucesso de Mozart, ou at de um Haydn envelhecido, que Ludwig vigia com o canto do olho, sonhando ultrapassar sua glria. Um pianista ingls de origem italiana, Muzio Clementi, incontestvel virtuose e hbil compositor, parece por um tempo ser capaz de ofusc-lo. Os dois se cruzam s vezes, se sadam sem se falar. Luigi Cherubini poder tambm lhe causar alguma inquietao, um pouco mais tarde, pela inspirao sinfnica, geralmente tonitruante, de suas peras. Quanto a seus colegas diretos, com quem tem contato, como seu amigo Reicha, eles dificilmente rivalizariam com essa fora em marcha que sente prxima a hora do reconhecimento. Assim, sem muita angstia que ele pode empreender, no comeo de 1796, uma viagem de conquistas rumo a outras cidades europeias. Essa viagem comea por Praga. Depois Dresden, Leipzig, Berlim: uma turn de concertos, como se diz hoje, que se revelar triunfal. A reputao de Ludwig van Beethoven como virtuose do piano o precedeu nessas cidades: ele um pop star. Sua viagem, inicialmente prevista para algumas semanas, vai durar seis meses. Um pop star: a palavra no demasiado forte se aceitarmos o anacronismo semntico. Sua maneira de tocar piano, que combina com a sensibilidade tumultuosa de um tempo voltado aos impulsos das paixes, desbanca a maneira antiga. Era isso que as pessoas esperavam. Elas vm prestigiar o fenmeno dispostas a todas as emoes, a todos os soluos. Ainda no h gritos histricos, mas porque todos se contm. Beethoven ao piano, guardadas as propores e descontados os amplificadores, Jerry Lee Lewis e seu furor, Elvis Presley e seu rebolado, os Beatles no Olympia de Paris: um furaco. Ao ouvi-lo tocar, a velha guarda musical se insurge: um correspondente annimo do Jornal Patritico dos Estados Imperiais e Reais, datado de outubro de 1796, acusa o dolo de um certo pblico, esse Van Beethoven cedo demais admirado, de negligenciar todo canto, todo equilbrio na tcnica, toda delicadeza e toda clareza, de surpreender apenas pela originalidade sem t-la (sic), e de tudo sobrecarregar e exagerar na interpretao e na composio. Ele se apodera de nossos ouvidos, no de nossos coraes. verdade que tamanha fora capaz de desconcertar os rabugentos do conservadorismo e os defensores da boa msica de antigamente: nessas composies, o entusiasmo dionisaco do virtuose se traduz por uma inovao importante, j iniciada por Haydn, mas como que levada incandescncia por um temperamento explosivo: Beethoven substitui o minueto, forma elegante e um tanto ultrapassada das danas da corte, pelo scherzo (brincadeira em italiano), dana popular em que a fora rtmica irrompe como uma pulsao primitiva. Ele vai desenvolver as possibilidades dessa forma at em suas ltimas obras, a sonata Hammerklavier, ou o obsessivo e fabuloso segundo movimento da Nona Sinfonia... Em Praga ele acompanhado por Lichnowsky, que lhe serve de guia e lhe abre as portas da alta sociedade. Essa cidade maravilhosa, uma das mais belas do mundo e das mais melmanas, assegurou o triunfo de Mozart uns dez anos antes: As Bodas de Fgaro, Don Giovanni, A Clemncia de Tito encontraram na capital da Bomia um pblico entusiasta, muito mais do que em Viena. Beethoven segue as pegadas de Mozart. Hospeda-se no mesmo lugar que ele, no Licorne de Ouro, talvez no mesmo quarto. Em 19 de fevereiro, escreve uma carta entusiasmada a seu irmo Johann: Antes de mais nada, vou bem, muito bem. Com minha arte conquisto amigos e renome, o que mais desejar? E desta vez vou ganhar um bom dinheiro.10 Em Praga, onde fica at abril de 1796, Beethoven compe uma importante ria de concerto sobre um texto de Metastsio, Ah, Perfido, para soprano e orquestra, dedicada condessa Josphine Clary, mas na verdade escrita para uma jovem cantora, Josepha Dussek, um dos seus mais belos xitos para a voz... O ambiente acolhedor da cidade lhe inspira tambm um Sexteto para instrumentos de sopro (op. 71) e a encantadora Sonata em sol menor (op. 49, no 2). Em Leipzig ele sada a memria de Johann Sebastian Bach, em Dresden toca diante do Eleitor da Saxnia. Berlim a ltima etapa dessa viagem coroada de sucesso: como os convites se multiplicam, ele fica ali mais tempo do que o previsto, at julho. Talvez seus ltimos meses de verdadeira despreocupao. Para o violoncelista francs Jean-Louis Duport, compe duas de suas belas sonatas para violoncelo e piano. Mas encontra tambm o meio de se desentender passageiramente com o compositor Friedrich Himmel. Tendo este lhe pedido para improvisar diante dele, Beethoven toca e pede a Himmel que lhe faa a mesma cortesia: Himmel cometeu a fraqueza de consentir, mas, depois de tocar durante um tempo bastante longo, Beethoven lhe disse: Muito bem! Mas quando comear para valer?.11 Seguiriam algumas trocas de palavras indelicadas. Achei realmente que Himmel estava apenas preludiando um pouco12, disse depois Beethoven a um aluno, rindo muito. Os dois se reconciliaram. Porm, alguns meses mais tarde, Himmel escreve a Beethoven contando que descobriram em Berlim uma lanterna para os cegos. Ludwig logo pede esclarecimentos, antes de perceber que Himmel estava zombando dele. Despreocupao, sim. Um pouco de embriaguez tambm, a embriaguez do conquistador que pensa que nada lhe resistir. Suas obras so publicadas, seus concertos atraram multides. Mas, ao voltar de Berlim, ele conhece os primeiros sinais da catstrofe que est por vir. Os anos de crise Durante o vero de 1796, Beethoven adoece. Num dia de calor, volta para casa, despe-se e pe-se janela para se refrescar. Ele costuma cometer essas imprudncias e nunca teve muito cuidado com seu fsico vigoroso de forte musculatura, s vezes usando mtodos rpidos. Gerhard von Breuning quem relata: Quando ele icava muito tempo sentado a compor em sua mesa e sentia a cabea ardendo, tinha sempre o hbito de correr ao banheiro e despejar um jarro de gua sobre ela; assim refrescado e secando-se rapidamente, voltava ao trabalho ou fazia um passeio ao ar livre. [...] a gua com que havia molhado sem parar a cabea escorria em tal quantidade no soalho que penetrava e vazava no teto dos locatrios de baixo.1 talvez ligado a esse procedimento que se manifestam os primeiros sinais da surdez, mas nada prova que seja essa a causa. A propsito dessa afeco, que aos poucos se agravar at chegar, em 1818, a uma surdez total, muitas hipteses foram aventadas. Otite seca? Disfuno associada a problemas intestinais, como pensa Wegeler, seu amigo mdico? O corpo de Beethoven uma mistura singular de sade frgil e de robustez, assim como no seu esprito se opem desequilbrio afetivo, melancolia e energia indomvel empenhada em elaborar estruturas musicais rigorosas e grandiosas. Sua capacidade de trabalho sempre foi fora do comum. Desde os catorze ou quinze anos de idade, raramente passou alguns dias sem escrever msica. Alm das obras oficialmente repertoriadas, o catlogo das composies que datam da sua primeira juventude, esse catlogo das obras sem opus (WoO, Werke ohne opus), calculado em cerca de 150 trabalhos: peas menores, esboos, ensaios, mas tambm obras j acabadas, sobretudo variaes para piano. Longa conquista do domnio da sua arte. Mas a surdez, longe de deter esse impulso, ir estimul-lo. Coragem!, ele escreve no comeo do ano 1797. Apesar de todas as fraquezas do corpo, meu gnio deve triunfar. Estou com 25 anos, preciso que este ano revele o homem completo. Nada mais deve restar a fazer. 2 Ele continua a se acreditar dois anos mais jovem do que sua idade real. A confuso vai durar at 1810! A verdade sobre seus problemas auditivos ser guardada por muito tempo em segredo. a, longe das lendas e das hagiografias, que devemos buscar o herosmo de Beethoven, nessa vontade de viver e de criar apesar do sofrimento, da angstia e de uma surdez crescente. Um herosmo altura do homem. Em 29 de junho de 1801, ou seja, quatro anos aps os primeiros sinais, ele escreve a Wegeler relatando que seus ouvidos continuam a zumbir e a mugir noite e dia. E prossegue: Posso dizer que levo uma vida miservel. H quase dois anos evito encontros em sociedade, pois no posso dizer s pessoas: sou surdo. Se eu tivesse outra proisso, ainda seria possvel; mas na minha uma situao terrvel. E o que diriam meus inimigos, que no so poucos? Para te dar uma ideia dessa estranha surdez, direi que no teatro devo me colocar junto orquestra para compreender os atores. No ouo os tons elevados dos instrumentos e das vozes quando me coloco um pouco distante. 3 Nas conversas, suas respostas evasivas ou a ausncia de uma rplica so postas na conta da distrao ou da desenvoltura... Em 1797, a surdez nascente no mais do que um estorvo e uma fonte de angstia. Seu remdio: o trabalho. A produo desses anos mantida: trs sonatas para piano, as do opus 10, o que de melhor escrevi at agora 4, diz ele; os trs trios para cordas do opus 1, trs sonatas para violino e piano; um concerto para piano e orquestra em d maior, que leva hoje o no 1, provavelmente escrito em 1794-1795, mas corrigido mais tarde para publicao. As sonatas, como de resto toda a msica de cmara, so preciosas, revelam a evoluo de Beethoven ao longo da sua vida criadora. O mesmo se aplica ao quarteto de cordas, gnero no qual ele produzir algumas de suas obras mais profundas, mais inovadoras. As sonatas para piano do opus 10 so composies espantosas a terceira, em particular, conhecida como a de no 7 entre as 32 que comps: profundeza meditativa do movimento lento que traduz um estado de intensa melancolia, como uma oposio da sombra e da luz. Muitos reconheceram nela a angstia dos primeiros ataques da surdez. O prprio Beethoven teria dito a seu bigrafo Schindler, que lhe perguntou o sentido desse movimento: Leia A tempestade de Shakespeare. Mas a obra mais marcante e mais clebre desse perodo a Sonata Pattica, dedicada ao prncipe Lichnowsky, na qual se exprime ainda mais nitidamente a oposio, o dualismo que se desenvolve no pensamento musical do Beethoven desses anos. Nessa Sonata Pattica, observa Vincent dIndy de maneira muito esclarecedora, embora um tanto estereotipada, medida que as duas ideias expostas e desenvolvidas nas peas de forma sonata se aperfeioam, constatamos que elas se comportam de fato como seres vivos, submetidos s leis fatais da humanidade: simpatia ou antipatia, atrao ou repulsa, amor ou dio e, nesse perptuo conflito, reflexo da vida, cada uma dessas ideias oferece qualidades comparveis s que sempre foram atribudas respectivamente ao homem e mulher. 5 desse modo, acrescente-se, que no primeiro movimento da Sonata Pattica se opem duas ideias, duas sensibilidades, dois universos: o masculino, brutal, poderosamente ritmado; o feminino, elegante, flexvel, delicadamente meldico. Tal a evoluo da expresso musical de Beethoven antes dos seus trinta anos. E, no plano formal, as inovaes que impe com cada vez mais autoridade, ainda que choquem os conservadores, o fortalecem no seu caminho. As coisas vo indo bem para mim, posso dizer que cada vez melhor 6, ele escreve a Wegeler em 29 de maio de 1797. verdade tambm que novos amores surgem em sua alma. Wegeler empreende junto a Lorchen uma corte assdua que terminar em casamento, e Beethoven dar sua bno. Por seu lado, ele se apaixona por uma de suas alunas, Anna Luisa Barbara von Keglevics, a Babette, a quem dedica sua famosa Sonata no 7, as variaes do opus 32, enquanto prepara seu primeiro concerto para piano. Teria havido entre eles sentimentos compartilhados e Beethoven lhe dava aulas, dizem, vestindo um robe. Alguns meses depois, por uma jovem italiana, Cristina Guardi, que o corao inconstante de Ludwig se pe a bater: filha de um funcionrio toscano, ela uma artista, boa cantora, poetisa nas horas vagas, e desempenhar o papel de Eva em A Criao, de Haydn. Mais dois amores em vo? Em 1801, Babette desposa um prncipe. Quanto a Cristina, ela se casa no ano seguinte com o dr. Franck, filho de um mdico amigo de Beethoven! Instvel, volvel no amor, indiferente aos detalhes materiais do cotidiano. Somente uma coisa lhe importa, a glria. Ele gostaria de encontrar um editor que lhe desse uma renda fixa para no ter de se preocupar com nada, sobretudo para no perder tempo em pedidos estafantes e em discusses com os irmos. Todo aquele que pe seu gnio em dvida violentamente rechaado: Com homens que no tm f nem estima por mim, s porque ainda no sou mundialmente celebrado pela fama, no posso ter relao alguma. 7 A surdez nascente o envergonha. Ele se fecha em si mesmo. Seria por isso que no levaria adiante seus amores? A verdade que seu modo de vida, as variaes de humor, talvez as sequelas de uma doena no confessada, a obsesso devoradora pelo xito artstico, o tornam menos apto do que nunca ao casamento. possvel tambm que a lembrana do casal formado pelos pais, da me sofrendo em silncio, no lhe desse uma imagem radiosa dos laos matrimoniais... A poltica continua a interess-lo. Em fevereiro e maro de 1798, a breve temporada em Viena do general Bernadotte, embaixador da jovem Repblica francesa, rene por um tempo os amigos da Revoluo. Beethoven frequenta os sales da embaixada onde conhece o violinista Kreutzer, a quem dedicar uma famosa sonata. Bernadotte, general jacobino de origem popular, um fervoroso admirador de Bonaparte, smbolo do heri revolucionrio. Testemunhas citadas por Schindler lhe atribuem a ideia de uma sinfonia em homenagem ao grande homem, a qual Beethoven se encarregaria de compor. Afinal, foi Bonaparte que imps a paz ustria, em outubro de 1797, alm de ser o glorioso vencedor da campanha da Itlia. Nesse momento ainda possvel pensar que ele realiza, por suas vitrias militares, os ideais da Revoluo, e no que aproveita os acontecimentos para construir seu imprio. Na verdade, o projeto dessa sinfonia vai se desenvolver lentamente no esprito de Beethoven, e muito provvel que Schindler, como de hbito, manipule os fatos segundo sua convenincia. Nessa poca Bonaparte ainda no Primeiro Cnsul, mas sim um chefe militar de gnio cuja autoridade e o poder se afirmam aos poucos. Mas certo que Beethoven, exasperado pela atmosfera policialesca que reina em Viena, se mostra cada vez mais afeito s ideias da Revoluo. Bernadotte no tarda a deixar Viena. A bandeira da embaixada da Frana foi arrancada. Por quem? Agentes do imperador? Homens do povo, a canalha atiada por emigrados franceses que se abrigaram junto aristocracia europeia ao fugir da Revoluo? Bernadotte exige pedidos de desculpas. No os recebendo, vai embora. Qual ser o futuro de Beethoven, se o estado da sua audio continuar piorando? Ele tomado de angstias vertiginosas que se convertem em clera contra os prximos, mas tambm em gracejos e pilhrias, o que manifesta um temperamento no mnimo desequilibrado. Os bilhetes que escreve aos amigos alternam doura e dureza, so s vezes odiosos, s vezes marcados de um humor selvagem, sinal de uma vitalidade irreprimvel. Ele se zanga e se reconcilia, debocha e protesta da amizade e da ternura. Ningum escapa: Zmeskall, o compositor Hummel, seu rival e amigo. Um dia este um co maldito, no dia seguinte o sada com um beijo na face. 8 talvez em razo desse carter explosivo malcontrolado que ele faz amizade, ao voltar de sua segunda viagem a Praga, onde tocou seus dois primeiros concertos, com um homem que parece ser seu completo oposto. Chama-se Karl-Ferdinand Amenda. Nascido em 1771, estudou teologia e ser pastor na Curlndia, fascinante regio de florestas, lagos e castelos misteriosos na Letnia, essa terra esquecida nos confins do Bltico. Mas por ora o demnio da msica o atraiu a Viena, onde vive e trabalha como leitor na casa do prncipe Lobkowitz e professor de msica dos filhos de Mozart, pois um excelente violinista. Desde sua chegada a Viena sonha conhecer Beethoven. Isso acontece uma noite na casa de Lobkowitz, onde Amenda toca violino num quarteto. Beethoven lhe diz que espera sua visita para fazer msica com ele. 9 Amenda logo comparece e os dois, como Bouvard e Pcuchet, se acompanham reciprocamente at uma hora avanada da noite. Ligao amorosa, dizem alguns. Amizade primeira vista, afirmam outros, certamente mais lcidos[1]. Beethoven dado a esses entusiasmos, quase sempre breves. mil Ludwig, um de seus bigrafos, chegar a evocar a imagem de um Beethoven cercado de jovens favoritos, como foi Alcibades para Scrates: Beethoven teve o estranho hbito, entre os vinte e os cinquenta anos, de se cercar de jovens, em geral diletantes, aventureiros errantes e duvidosos, sempre muito belos e mais jovens do que ele. Ligava-se a eles com facilidade e os abandonava igualmente depressa. O doce Amenda, que tinha algo de So Joo, inaugura o squito. Seguiram-se vrios jovens da nobreza. Em geral Beethoven os tratava com intimidade, os acolhia com entusiasmo, para depois deix-los cair no esquecimento.10 Eis a Ludwig nas vestes de Scrates, um de seus heris. Embora no sejam provas, abrem espao para conjecturas. Mas, como ao mesmo tempo amigos confiveis atestam a frequncia e a riqueza de suas relaes femininas, que j vimos, parece imprudente tirar concluses apressadas. Suas amizades masculinas, numerosas, muitas vezes passionais, podem estar relacionadas a uma forma de bissexualidade ou ser apenas o resultado de um temperamento ardente nos seus afetos, numa poca em que a amizade, como todos os sentimentos, movida pelos tormentos da paixo. No fundo, ele no seria o primeiro, depois de Scrates, Jlio Csar ou Jesus Cristo, a se cercar de uma corte de jovens admiradores, nem a acariciar os dois lados de Vnus. Parece que o convvio com Amenda foi benfico para canalizar os arrebatamentos, as angstias, a inadaptao radical de Beethoven vida cotidiana, suas inabilidades, suas dificuldades financeiras. Num dia em que lamentava no poder pagar o aluguel, Amenda forou-o a escrever algumas variaes, um exerccio muito apreciado e lucrativo, pois havia inmeros estudantes de piano em Viena e esse tipo de composio vendia bem. Muito se falou tambm que Amenda desempenhou um papel, junto a um Beethoven envolvido pela frivolidade da vida em Viena e avesso religio, de conselheiro, contribuindo para lhe dar gravidade, seriedade e profundidade espiritual, como se no as tivesse. Algumas obras que precedem o encontro com Amenda no justificam muito essa tese, mas os carolas sempre tm necessidade de alimentar seus fantasmas de edificao moral. Seja como for, a amizade e a admirao de Amenda so seguramente uma etapa na constituio daquela f inabalvel em si mesmo, combinada com a certeza de ser o depositrio de uma misso heroica ou mesmo messinica. Que o diabo os carregue, nada quero saber da moral de vocs!, ele escreve a Zmeskall em 1798. A fora a moral dos homens que se distinguem dos outros, e essa a minha.11 Beethoven encontrou em Amenda, por um tempo, uma espcie de irmo substituto, j que seus irmos de sangue decididamente sempre cumpriram muito mal essa funo... Alis, pouco depois do comeo dessa amizade, Beethoven pede em casamento Magdalena Willmann, cantora que ele conhecera em Bonn na infncia e que se instalara em Viena em 1794. Ele a corteja desde sua chegada, distncia, segundo suas maneiras de amante volvel, depois se declara sem ter recebido nenhum sinal de retorno. A reao da bela previsvel, com uma dose de caridade: Beethoven? Ele muito feio e meio louco!.12 Para consolar seu corao dilacerado13, Beethoven pensa em aceitar uma viagem Polnia, com todas as despesas pagas, no ms de setembro. Mas acaba desistindo. Pensa tambm, seguindo os conselhos de Amenda, em fazer uma viagem Itlia, onde a msica festejada e os msicos, dizem, adulados. Porm, Amenda no pode acompanh-lo, chamado Curlndia para um funeral: outro projeto abortado. O amigo fiel deixar Viena levando na bagagem o manuscrito do primeiro quarteto de Beethoven. Ludwig no tem uma alma muito peregrina. As viagens so longas e perigosas nesses tempos difceis em que soldados andam pelas estradas, penosas para quem tem a sade frgil e a dele no melhora. Alm do mais, atrativos novos o retm em Viena... [1]Em particular Jean e Brigitte Massin. (N.A.) Uma nova famlia Os Brunsvik no so uma famlia qualquer. Ele os conhece em maio de 1799. Velha linhagem aristocrtica da Hungria, rica, com pendores intelectuais e artsticos. O pai, Antnio II, conde de Brunsvik, morreu prematuramente em 1793, aps ter educado os filhos no culto dos heris da independncia americana. Anna, a condessa, absorvida pela administrao da herana, zela de longe pelos filhos: trs moas, Teresa, Josefina e Charlotte, e um rapaz, Franz. Eles esto em Viena para uma curta temporada de trs semanas. A condessa, mulher de carter e de autoridade, organizou a viagem com a inteno de arranjar marido para as filhas Teresa e Josefina, em idade de casar. Mas h encontros breves dos quais nascem amizades para uma vida inteira. Em Bonn, os Breuning foram para o jovem Ludwig uma segunda famlia. Em Viena, os Brunsvik tero esse papel. Desde sua chegada, a condessa quis conhecer Beethoven, esse prodgio do piano de quem todos falam, para faz-lo dar aulas aos filhos. A mais velha, Teresa, que sofre de um pequeno defeito fsico, apaixonada por literatura e msica. Ela relata de forma encantadora (e pouco modesta) essa temporada em Viena e o encontro do pequeno grupo com Beethoven, que se mostra assduo s aulas e inclusive as prolonga com satisfao: No sentamos fome antes das cinco da tarde.1 Na manso que ocupam, os vizinhos esto furiosos, pois as sesses de msica se prolongam at tarde da noite, depois de saboreados os prazeres de Viena: ramos jovens, vvidas, infantis, ingnuas, acrescenta Teresa. Quem nos via nos amava. No faltavam adoradores.2 Obviamente Beethoven se apaixona. Por qual das duas irms? Ele escreve para elas variaes sobre um poema de Goethe, Ich denke deine Penso em ti. Teresa? Josefina? No desejo seno isto:, escreve ele na dedicatria, ao tocar e ao cantar essa pequena oferenda musical, lembrem-se de vez em quando do vosso muito devotado Ludwig van Beethoven.3 No final do ms de junho, Josefina desposa na Hungria o conde Deym, um aristocrata que se esconde sob o pseudnimo plebeu de Mller, por conta de um duelo, e que mantm uma galeria de arte. Ele tem cinquenta anos, ela vinte. Mas um homem bom. Mesmo assim Josefina, no dia do casamento, conta Teresa, lana-se desesperada a seu pescoo pedindo que se case com Deym em seu lugar. Na famlia Brunsvik, nessa pequena repblica, como diz Teresa, h tambm o irmo, Franz. um jovem ardente, igualmente apaixonado por msica e poesia, bem mais do que por conquistas femininas, o que lhe vale alguns gracejos. As irms, observa Romain Rolland, o apelidavam o cavalheiro insensvel, troando da sua indiferena ao belo sexo. Esse rapaz tmido acabar por sucumbir, quando chegar aos quarenta anos, aos encantos de uma musicista. Teresa permanece na Hungria, em Martonvsr, o domnio familiar. No outono de 1799, Josefina vai morar em Viena com o marido. Beethoven visita o casal, simpatiza com Deym-Mller, o marido que, por seu lado, cultiva a amizade a ponto de lhe dar presentes... Se Beethoven esteve brevemente apaixonado por Josefina no vero de 1799, esse amor, mais uma vez, no passou de fogo de palha. Mas eles tornaro a se encontrar bem mais tarde... Esse fim de sculo tambm uma virada na vida criativa de Beethoven. Ao chegar aos trinta anos, ele ousa enfim se lanar no gnero que vai assegurar sua glria mais duradoura, mais universal: a sinfonia. Esperou muito. Com essa idade, Mozart j havia escrito a maior parte das suas, e nesse momento papai Haydn j comps cerca de cem! Sentiria-se Beethoven intimidado por esse gnero maior ou ainda no preparado para tomar uma deciso? Para que imitar a perfeio? Se ele deve distinguir-se na escrita sinfnica, precisa encontrar sua prpria linguagem, inventar formas inditas, emitir sons novos. possvel tambm, razo menos nobre mas que seria um erro negligenciar, que a escrita de uma sinfonia, tarefa considervel, no fosse financeiramente um bom negcio. Em janeiro de 1801, no momento de publicar sua Primeira Sinfonia por vinte ducados na editora Hoffmeister, ele escreve: O senhor se surpreende por eu no ver nenhuma diferena entre uma sonata, um septeto e uma sinfonia? Mas um septeto ou uma sinfonia encontram menos compradores do que uma sonata, e por isso, me parece, que uma sinfonia deve certamente valer mais.4 Essa primeira sinfonia, esboada desde 1795, abandonada, retomada, realiza em larga medida, apesar de sua evidente dvida a Mozart e Haydn, a ambio de dar um novo sopro a esse gnero que seus predecessores j haviam engrandecido. Ela tocada em 2 de abril de 1800, no National Hoftheater de Viena, num concerto que inclui tambm uma sinfonia de Mozart, trechos de A Criao, de Haydn, um concerto para piano (certamente seu terceiro em d menor), um septeto. Os programas dos concertos costumam ser abundantes. O cartaz promete tambm uma improvisao do sr. Ludwig van Beethoven. Beethoven comea seu ciclo sinfnico por uma ao ousada: dissonncias, rupturas de tonalidade entre o adgio inicial do primeiro movimento e o alegro que segue, escanses poderosas da orquestra, e uma linha meldica no muito perceptvel, a composio privilegiando o dilogo das partes principais da orquestra, com amplas passagens deixadas aos instrumentos de sopro. Claro que essa obra impetuosa fere alguns ouvidos. a exploso desordenada do ultrajante descaramento de um jovem5, escrever um crtico de Leipzig em 1801. No faz outra coisa a no ser dilacerar ruidosamente o ouvido, sem nunca falar ao corao, repetir, desta vez na Frana, um artigo de Tablettes de Polymnie, em 1810. No entanto basta escutar essa sinfonia, j marcadamente pessoal, para nela constatar, mais alm das estranhezas de um temperamento, a mo de um mestre. O concerto um sucesso. Duas semanas mais tarde, seguido de outro no qual Beethoven toca sua Sonata para piano e trompa op. 17 (com o trompista Punto), uma obra sem grande brilho, escrita s pressas, mas feita para no assustar ouvidos tmidos. Novo sucesso, a tal ponto que os intrpretes devem repeti-la na ntegra! Esse triunfo tem desdobramentos. O prncipe Lichnowsky, entusiasmado, fascinado por Beethoven, decide lhe pagar uma penso: seiscentos florins de renda anual. Seria o fim da liberdade para o arisco compositor? No, antes o comeo de uma relao estranha na qual o prncipe o solicitante e Beethoven uma espcie de carrasco resmungo que se comporta com indiferena, quando no com desdm. Lichnowsky visita com frequncia Beethoven para v-lo trabalhar. Como que tal msica pode brotar de um crebro humano? Os dois fazem um pacto: que Lichnowsky venha, se quiser, mas que no espere ser recebido. O prncipe entra, Beethoven continua a trabalhar; s vezes inclusive chaveia a porta, o prncipe espera um momento e depois vai embora sem insistir: singulares relaes. Quem esse prncipe to insistente, to dcil, to paciente, em cuja casa Ludwig se hospedou por vrios anos no comeo de sua vida em Viena? Sua mulher, a princesa Cristina, excelente pianista, para ele uma segunda me o que mostra quantas foram suas famlias substitutas! A me da princesa, a condessa Thun, protegeu Gluck, Haydn e Mozart. Lichnowsky, por sua vez, est convencido do gnio de Beethoven, e sua ociosidade de aristocrata o transforma num anjo da guarda sempre presente, s vezes em excesso, e bastante tolerante para suportar as mudanas de humor do prodgio, to perigosas para sua carreira e sua reputao. Na primavera de 1800, Beethoven vai a Martonvsr, na Hungria, onde fica o domnio de seus amigos Brunsvik. Situado nas proximidades de Budapeste e a 250 quilmetros de Viena, o lugar magnfico. O castelo dos Brunsvik, uma grande construo branca cercada de um jardim imenso, um milagre de equilbrio e de harmonia. Beethoven est encantado, ainda mais porque dois dos membros da pequena repblica, Teresa e Franz, o acolhem com muita alegria. Como no ano anterior em Viena, eles se entregam a jogos e conversas, entremeados de sesses de msica. E aqui no h vizinhos para protestar. Nesse maravilhoso perodo entre 18 de maio e 25 de junho, os jovens Brunsvik tambm anunciam a Ludwig a chegada prxima, em Viena, de uma prima deles: Giulietta Guicciardi, de dezesseis anos. Ele a encontra ao voltar de Martonvsr. Ela no passa despercebida. Uma moreninha charmosa, viva, bonita, coquete. Certamente frequenta a residncia dos Deym, pois prima de Josefina. Cruza com Beethoven, que comparece assiduamente l. Ele toca uma sonata para violoncelo, escreve Josefina num francs bastante impreciso, e tambm seus novos quartetos, essas obras-primas do opus 18, primeiros de uma srie que, por si s, permite acompanhar a trajetria musical e espiritual de Beethoven at o fim da vida, na sua expresso mais ntima e talvez mais profunda. Lembranas da juventude lhe chegam de Bonn na pessoa de um jovem de dezesseis anos, Ferdinand Ries, filho de um de seus amigos, que o acompanha a Viena. Esse Ferdinand Ries ser mais tarde um dos professores de piano de Franz Liszt, o que d uma ideia da sua competncia. Ele uma testemunha preciosa, assim como todos os conhecidos renanos de Beethoven, como Breuning ou Wegeler: amigos de infncia, amigos ntimos que no buscaram, em suas Memrias, passar uma imagem alterada de Ludwig, como o fizeram seus bigrafos vienenses, preocupados em fazer dele um heri sobre-humano ou um santo... Beethoven acolhe os Ries, pai e filho, e, tendo ouvido o jovem tocar piano, aceita de imediato lhe dar aulas. Em relao a ele, mostrar uma pacincia pouco costumeira. Anos mais tarde, Ries ainda se admirar da maneira de tocar to particular e inovadora que descobre em Beethoven e que Czerny, um de seus novos alunos, relata assim: Beethoven possui, de forma nica no mundo, a tcnica do legato, que consiste em ligar as notas segundo um princpio de continuidade, enquanto a tcnica entrecortada e em pequenos golpes breves estava ainda em moda aps a morte de Mozart.6 Do seu primeiro encontro com Beethoven, Ferdinand Ries forneceu uma descrio bastante pitoresca: Num dia de inverno, partimos, meu pai, Krumpholz e eu, da Leopoldstadt, onde ainda morvamos, at a cidade. No Tiefer Graben, onde subimos ao quinto e sexto andares, um empregado, bastante malvestido, nos anunciou e nos introduziu nos aposentos de Beethoven. Um quarto em desordem, abarrotado de papis e de roupas por toda parte, alguns bas, paredes nuas, um nico assento, com exceo daquele, oscilante, que estava diante do pianoforte de Walter (eram os melhores) e, nessa pea, um grupo de seis a oito pessoas [...]. O prprio Beethoven vestia um casaco de um tecido com pelos longos cinza-escuro e uma cala da mesma cor, de modo que me fez pensar de imediato na imagem de Robinson Cruso, que eu lia ento. Seus cabelos pretos como breu, curtos e cacheados, espalhavam-se em redor da cabea. A barba, de vrios dias, tornava ainda mais escura a parte inferior do rosto, j sombreada naturalmente. Com o olhar rpido prprio das crianas, logo notei que ele tinha algodo nos ouvidos, que pareciam midos de um lquido amarelado.7 No entanto esse eremita, de aspecto to pouco agradvel, que est a caminho de se tornar o compositor mais em evidncia de Viena. E que prepara, no rigoroso inverno de 1800-1801, ao mesmo tempo em que enfrenta angustiantes problemas de sade com os ouvidos doloridos e s voltas com terrveis diarreias8, uma obra fundadora. Escuta-se hoje pouco As Criaturas de Prometeu, msica de bal escrita a pedido do coregrafo italiano Salvatore Vigano, mestre de bal do teatro imperial. Os dois j se conhecem: em 1795, Beethoven comps doze variaes para piano sobre o Minueto la Vigano, extrado do bal Le Nozze Disturbate de Jakob Haibel. Em Viena, Vigano representa uma tendncia modernista da dana, buscando reaver nas suas coreografias a eficcia poltica, esttica, emocional da pantomima antiga, a fim de fazer dela um gnero independente9, isto , um pouco menos ftil do que o que o pblico vienense geralmente aprecia. Ele sabe que Beethoven compartilha as ideias novas. E, de fato, o mito de Prometeu no pode seno fascinar o msico: Prometeu aquele esprito forte, em revolta contra os ditames dos deuses, que decide dotar a humanidade das luzes da arte e do conhecimento. A poca prometeica. Em 1797, o poeta italiano Vincenzo Monti publicou Il Prometeo em honra de Bonaparte, libertador da Itlia. Antes dele, Goethe, em 1773, esboou um drama sobre o mesmo tema um Prometeu que no sofre a punio divina e no qual Zeus substitudo por ich, ou seja, eu. A escolha de reativar esse mito no um acaso: Prometeu o homem que decide ter autonomia frente aos deuses, que afirma sua liberdade e prope, sobre as origens da humanidade, uma verso bem diferente daquela do Gnesis, que Haydn acaba de colocar magnificamente em msica em A Criao, baseado no poema de Milton. Representar em Viena, em 1801, um bal prometeico em cujo final entoado o Hino Liberdade, cano popular que busca inspirar um terror profundo a todos os tiranos da terra10[1], um ato poltico. Prometeu, ou a luta contra o despotismo. O bal alegrico. Mostra, como diz o cartaz que anuncia a primeira representao, duas esttuas que vo se animar e que o poder da harmonia tornar sensveis a todas as paixes da existncia humana.11 A obra apresentada com sucesso em 21 de maro de 1801. Os danarinos obtm a consagrao. Ela ser encenada dezesseis vezes, mas nunca retomada ao longo da vida de Beethoven. Durante o vero, ele se retira para o campo, perto da aldeia de Schnbrunn. l, provavelmente, que comea a compor seu nico oratrio, O Cristo no Monte das Oliveiras. Essa composio s vezes situada numa data um pouco mais tardia, e ser apresentada em concerto em 1803. Pouco importa. Nessa obra, tambm um pouco negligenciada, em muitos momentos perturbadora, a figura do Cristo abandonado por Deus devolvida sua humanidade, ao seu sofrimento, sua solido. Como a de Beethoven nesse momento da sua vida, que se isola para dissimular a surdez e que vai conhecer o fundo do desespero. [1] Nota publicada nos Annales patriotiques, Paris, 3 de maio de 1792, e que acompanha um canto intitulado Romana patritica. O texto utilizado por Beethoven como referncia em As Criaturas de Prometeu. (N.A.) Heiligenstadt O que fazer quando o sofrimento tal que se tem a impresso de que a vida diminui, e ser preciso abandonar o mundo prematuramente deixando a obra inacabada? Talvez escrever aos amigos para conjurar o mal e buscar um consolo. J evocamos a carta a Wegeler datada do vero de 1801, na qual Ludwig fala da sua vida miservel. Um outro amigo, Amenda, tambm recebe um apelo aflito, dos mais estranhos, que no causa muita surpresa por ter dado o que falar aos mexeriqueiros: Quanta falta sinto de voc! Pois teu Beethoven vive muito infeliz, em luta com a natureza e com o Criador [...]. Saiba que a mais nobre parte de mim, minha audio, se debilitou muito. J na poca em que voc estava perto de mim eu sentia os sintomas e os ocultava; desde ento a coisa s piorou [...]. Oh, como eu seria feliz se meus ouvidos estivessem em bom estado! Ento eu correria at voc mas devo permanecer afastado de tudo; meus mais belos anos transcorrero sem que eu possa realizar as exigncias da minha fora e do meu talento. [...] Claro, tomei a resoluo de me superar ultrapassando tudo isso, mas como ser possvel? Sim, Amenda, se dentro de seis meses meu mal se revelar incurvel, farei um apelo a voc: ter de abandonar tudo e voltar para perto de mim; viajarei ento (minha performance e minha composio ainda se ressentem pouco da minha decincia; a vida social que ela mais prejudica), e voc dever ser meu companheiro, estou certo de que a felicidade no me faltar [...]. Depois, voc permanecer eternamente junto a mim.1 A Wegeler, no ms de novembro desse ano terrvel de 1801, ele confessa, porm, que vive de novo de uma maneira um pouco mais suave2 e que o amor a causa disso: Essa mudana, uma fada, uma jovem bem-amada a realizou; ela me ama e eu a amo; depois de dois anos, eis de novo alguns instantes de felicidade, e pela primeira vez sinto que o casamento pode trazer alegria; infelizmente ela no da minha classe social e agora para dizer a verdade eu no poderia me casar agora devo ainda cumprir uma tarefa difcil.3 Essa jovem por quem Ludwig est perdidamente apaixonado Giulietta Guicciardi. A bela italiana, que agita os crculos vienenses, entrou no seu corao e desta vez se arraigou a ponto de faz-lo pensar com seriedade em casamento. Mas ele o nico a cogitar isso, e se anuncia difcil a conquista do corao e da mo dessa jovem coquete que uma testemunha, Alfredo Colombani, descreve nestes termos: Ela tinha um andar de rainha, os traos do rosto de uma pureza admirvel, olhos grandes e profundos de um azul escuro, cabelos negros e cacheados.4 Beethoven d aulas de piano a Giulietta. Segundo as prprias palavras da bela, muitos anos mais tarde5, ele se mostra um professor exigente e at mesmo colrico, que joga a partitura no cho quando a donzela no toca direito, o que no a melhor maneira de seduzir uma aristocrata caprichosa, adulada por todos os machos dos arredores. Embora pobre (diz ela), ele no aceita dinheiro, somente roupas, e com a condio de serem costuradas pela prpria jovem condessa. A comdia romntica no o seu forte, seu nico deus a msica, que no admite indulgncia alguma. O que se passou entre eles? Promessas de amor, um pouco de flerte platnico: foi o suficiente para inflamar Ludwig, como se ele tivesse necessidade de acrescentar a seus sofrimentos fsicos a dor de um fracasso anunciado. Pois na famlia Guicciardi, como nas outras famlias aristocrticas, ningum se casa com um msico pobre e feio, ainda por cima , uma espcie de criado de luxo a quem so tolerados alguns desvios. de fato assim que Beethoven considerado, apesar dos seus arrebatamentos, dos seus sobressaltos de revolta, da sua recusa obstinada em assumir esse papel. Giulietta faz o jogo da seduo. Ela gosta de Ludwig, sabe que seus primos Brunsvik o adoram. Sente-se lisonjeada de que esse gnio se interesse por ela. Oferece-lhe um retrato seu, que ele conservar at a morte, como uma relquia. Ela mesma desenha Ludwig. Trocas encantadoras. Mas grande a distncia entre o afeto distrado e o desejo de compartilhar seus dias e suas noites com um homem to pouco gracioso, apesar da nobreza de carter e da delicadeza de sentimentos que ele sabe demonstrar. Alis, o que so os sentimentos de um professor de msica na cabea de uma jovem estouvada? Gente como ele capaz de sentir alguma coisa? Um compositor compe, essa sua funo. O amor se vive com homens da mesma condio que ela, janotas, bonites, no com saltimbancos ou artistas desgraciosos. Beethoven sofre. Em que momento ele dirige a Giulietta um pedido de casamento que ser rejeitado? Talvez no final desse vero de 1801, durante o qual compe obras que traduzem suas perturbaes ntimas: duas sonatas para piano, a no 12 em l bemol maior, sombria e trgica, chamada de Marcha Fnebre, e a famosa Sonata ao Luar (ttulo apcrifo), dedicada a Giulietta. Nem sempre se avalia o que essa obra muitssimo ouvida, esse clssico da msica clssica s vezes caricaturado, contm de dor. melancolia profundamente meditativa do primeiro movimento, massacrado por tantos pianistas ainda verdes, responde a graa de um segundo movimento etreo que talvez um retrato musical de Giulietta, como era moda escrever ento uma flor entre dois abismos, dizia Franz Liszt. Pois o terceiro movimento, impetuoso, de uma violncia inusitada, deixa entrever as vertigens da revolta e da loucura. Essa violncia trgica ouvida tambm e de que maneira! em muitas passagens da Segunda Sinfonia que Beethoven compe, pelo menos em parte, durante o vero e o outono desse ano de 1801. O que no disseram sobre essa obra to mal compreendida no momento de suas primeiras apresentaes, em abril de 1803... verdade que Beethoven no poupa muito os ouvidos sensveis. Alguns meses aps a estreia, em Leipzig, um crtico afeioado a imagens fortes e a metforas floridas descrever essa sinfonia como um monstro mal esboado, um drago ferido que se debate indomvel e no quer morrer, e que mesmo perdendo sangue (no final), enraivecido, bate em vo a seu redor com a cauda agitada.6 Mais tarde, na Frana, a primeira execuo dessa Segunda Sinfonia vai inspirar uma outra pena annima: Parece-me ver, encerrados juntos, pombas e crocodilos.7 Essa pequena amostra de citaes pode parecer v e inutilmente cruel em relao a seus autores. Mas ela esclarecedora sobre as condies de receptividade das obras inovadoras, das rupturas que fundam a modernidade: o artista impe formas, o pblico torce o nariz. Isso vai durar cerca de dois sculos, at que a confuso especulativa da ps-modernidade e o terrorismo crtico, invertendo as perspectivas, faam com que seja admitido o grande vale-tudo. Essa Segunda Sinfonia, no entanto, uma obra muito bela, e seu segundo movimento uma das pginas mais comoventes de nostalgia e de beleza escritas por Beethoven: um larghetto (tempo que o prprio Mozart utilizou para os seus mais belos movimentos lentos) que mergulha no mais profundo, com uma simplicidade que resulta de muitos esforos, numa evocao da felicidade original, com seu tema de abertura confiado s cordas num registro mdio e alto, e sua repetio pelas clarinetas, pelos fagotes e pelas trompas: uma pureza de expresso milagrosa, que Beethoven atingiu depois de muitos esboos, retomadas, correes. Num dia em que Ries, trabalhando sobre o manuscrito, lhe perguntou quais eram as notas de partida, que ele no conseguia decifrar, o mestre respondeu: Est muito melhor assim.8 Giulietta se afasta. Entre todos os pretendentes que lhe fazem uma corte assdua, h um que parece levar vantagem e ganhar sua predileo. Trata-se do conde Robert von Gallenberg, um jovem elegante como convm, que se julga msico e compositor. Na verdade um fracassado, como o futuro mostrar, cuja aparncia vantajosa mascara a insigne mediocridade. Quanto a Giulietta, revelaes tardias de Beethoven num dos Cadernos de conversao9 a fazem aparecer sob uma luz pouco favorvel. Ela flerta com ele durante o vero e o outono desse ano de 1801, ao mesmo tempo em que se envolve numa relao com Gallenberg, com quem se casar na primavera do ano seguinte. Pior ainda, pede a Beethoven, que se consome de amor por ela, para intervir em favor do namorado, que est sem dinheiro. Cavalheiresco, Beethoven ajuda o rival, o que diz muito da sua grandeza de alma. Eu era o amado dela ele escreve, num francs bastante incerto, num caderno de 1823 e mais do que nunca seu esposo. No entanto, ele era mais amante do que eu, e atravs dela eu soube das dificuldades dele e procurei e encontrei um homem de bem que me deu quinhentos florins para ajud-lo. Ele continuava sendo meu inimigo, foi justamente por isso que fiz o melhor possvel.10 Em troca de que favores, por meio de que embustes e sedues Giulietta obteve esse procedimento de Ludwig? Logo aps o casamento, o casal parte para a Itlia, onde Giulietta no tarda a colecionar amantes. A continuao da sua carreira revela uma pessoa intrigante, casada com um imbecil sempre em dificuldades financeiras: em 1814, no momento do Congresso de Viena, que estabeleceu a tarefa de reorganizar a Europa aps as loucuras napolenicas, Giulietta retornar a essa cidade como espi a soldo de Murat. Beethoven se recusar a rev-la, embora ela o procure. Os anos passaram, mas talvez as dores no. Ele escreve esta frase que mostra no fundo o segredo da sua condio de solteiro, a razo das suas reiteradas escolhas por amores impossveis: Se eu quisesse desperdiar minha fora vital com a vida, o que teria restado para o nobre, o melhor?.11 E, com a perda de Giulietta, ele certamente escapou do inferno. Mesmo assim, ficar muito abalado e at desesperado. Schindler, seu pitoresco bigrafo, afirma que, aps o rompimento com Giulietta, ele teria se refugiado junto condessa Erddy e, hospedado no seu castelo, teria sumido durante trs dias para deixar-se morrer de fome. Mas, como nessa poca Beethoven ainda no conhece a condessa Erddy, possvel levantar algumas dvidas... O que parece certo, em troca, que ele se aproxima de Josefina von Brunsvik, esposa de Deym, apelidada Ppi, a quem mostra as duas primeiras sonatas do opus 31, uma delas A Tempestade , ttulo shakespeariano mas, como sempre, apcrifo. Essas obras aniquilam tudo o que foi escrito antes12, escreve Josefina sua irm Teresa. verdade que, em A Tempestade, Beethoven atinge o sublime. Em poltica, ele nada perdeu da sua vivacidade, das suas revoltas de plebeu. Hofmeister, seu editor de Leipzig, lhe transmite a encomenda de uma sonata revolucionria. A resposta no tarda. Num tom furibundo, ele escreve: Querem que eu faa uma tal sonata? No momento da febre revolucionria, sim, em boa hora isso poderia ter sido feito, mas agora, quando todos buscam trilhar de novo os caminhos batidos e Bonaparte fez uma Concordata com o papa uma tal sonata? [...] para esses novos tempos cristos que comeam ho, ho! deixe isso pra l [...]13 Beethoven abomina esses novos tempos cristos, assim como detesta a canalha que se encontra, diz ele, na cidade imperial e na corte imperial.14 Sente-se decepcionado nas suas esperanas (e no s amorosas), desiludido, revoltado. A religio da humanidade na qual acredita decididamente uma utopia distante... Em maio de 1802, Beethoven deixa Viena para se instalar numa pequena localidade vizinha que ele tornou clebre para sempre: Heiligenstadt. ainda hoje um lugar encantador, transformado num bairro rico da periferia de Viena, cercado de vinhedos e bosques. Luxo, calma e suavidade, um lugar de solido e repouso onde ele busca recuperar um pouco do seu equilbrio e curar as feridas. Um lugar silencioso com uma natureza bela e acolhedora. Da casa que ocupa, a vista se estende muito longe, em direo a Viena e ao Danbio; mais adiante, no fundo do horizonte, avista-se com tempo claro a cadeia dos montes Crpatos. Um lugar ideal para esconder sua surdez. Alis, ele nem sempre est sozinho: seus amigos de Viena o visitam com frequncia, como seu querido Reicha, que chegou de Bonn h pouco tempo, Schmidt, seu mdico, Ries, seu aluno, que tambm desempenha um pouco o papel de secretrio. No se sabe se os irmos o acompanharam, mas parece que ele passa muito bem sem eles. durante o vero solitrio de 1802 que ele prossegue, e provavelmente conclui, a composio da Segunda Sinfonia. Depois vem o outono, quando escreve um texto que foi descoberto entre seus papis, alguns dias aps a morte, por Anton Schindler e Stephan von Breuning. Sua autenticidade no deixa dvida alguma. Confiado a Friedrich Rochlitz, um cronista musical que Beethoven no apreciava muito, esse escrito ser publicado em outubro de 1827, seis meses aps o falecimento do compositor. certamente o texto mais clebre de toda a histria da msica e um documento extraordinrio sobre a crise que Beethoven atravessa nesse momento. Para os meus irmos Karl e [Johann] Beethoven. , vocs, que pensam que sou um ser odioso, obstinado, misantropo, ou que me fazem passar por tal, como so injustos! Ignoram a razo secreta do que lhes parece desse modo. Desde a infncia, meu corao e meu esprito se inclinavam bondade e aos sentimentos ternos. E sempre me senti chamado a realizar grandes aes. Mas pensem apenas que h seis anos fui atingido por um mal pernicioso, que mdicos incompetentes agravaram. Enganado ano aps ano na esperana de uma melhora, forado enm a considerar a eventualidade de uma doena permanente cuja cura, se fosse possvel, levaria anos, nascido com um temperamento ardente, ativo, sensvel aos prazeres da vida em sociedade, precisei muito cedo me isolar, viver longe do mundo como solitrio. s vezes quis poder enfrentar essa situao, mas fui ento duramente chamado de volta triste experincia de no mais ouvir. Pois eu no podia dizer aos homens: falem mais alto, gritem, estou surdo! Como poderia confessar a decincia de um sentido que em mim deveria ser mais perfeito do que nos outros, de um sentido que outrora possu em sua mais alta perfeio, uma perfeio que poucos msicos j tiveram? No, no posso. Assim, perdoem-me se me retraio, quando eu gostaria de estar entre vocs. Meu infortnio duplamente penoso, pois me torna objeto de incompreenso; para mim no h nada mais estimulante no convvio dos homens do que conversas inteligentes e recprocas manifestaes de amizade. Absolutamente sozinho, ou quase, apenas quando a mais absoluta necessidade exige que posso me aproximar da sociedade; devo viver como um exilado. Se me aproximo de um grupo, de imediato sofro uma angstia terrvel, a de estar exposto a que percebam meu estado. Foi assim durante esse meio ano que passei no campo, aconselhado por um inteligente mdico a poupar meus ouvidos o mximo possvel. Isso quase melhorou minhas disposies atuais, embora s vezes, pressionado pelo instinto de convivncia, eu me sentisse abandonado. Mas que humilhao quando algum ao meu lado ouvia o som de uma auta ao longe e eu no escutava, ou quando algum ouvia um pastor cantar e eu tambm no escutava. Tais acontecimentos me levavam ao limiar do desespero e por pouco no pus um fim minha vida. Foi a arte, e somente ela, que me reteve. Ah! Me parecia impossvel deixar o mundo antes de ter dado o que eu sentia germinar em mim, e assim prolonguei essa vida miservel realmente miservel, um corpo to sensvel que qualquer mudana um pouco brusca pode me fazer passar do melhor estado de sade ao pior. Pacincia, ela que devo agora tomar por guia, e o que tenho feito. Espero cumprir a resoluo de esperar at que as impiedosas Parcas decidam cortar o o da minha vida. Talvez as coisas melhorem, talvez no, sou corajoso. Sinto-me obrigado a ser lsofo aos 28 anos de idade, o que no fcil; para um artista ainda mais difcil do que para um outro homem. Divindade, vs do alto o que h no fundo de mim e sabes que o amor humanidade e o desejo de fazer o bem me habitam! homens, se algum dia lerem isto, sabero que no foram justos comigo, e que o infortunado se consola encontrando algum que se assemelha a ele e que, apesar dos obstculos da Natureza, fez tudo para ser aceito entre os artistas e os homens de valor. Vocs, meus irmos Karl e [Johann], assim que eu morrer, e se o professor Schmidt ainda estiver vivo, peam-lhe em meu nome para descrever minha doena e lhe entreguem estas pginas, a m de que pelo menos depois da minha morte o mundo se reconcilie comigo. Ao mesmo tempo, eu os declaro, os dois, herdeiros da minha pequena fortuna (se possvel cham-la assim). Dividam-na de maneira justa, entendam-se e ajudem-se mutuamente. O que zeram contra mim eu perdoei h muito tempo, como bem sabem. A voc, irmo Karl, agradeo de modo especial pela afeio que me demonstrou nos ltimos tempos. Meu desejo que a vida de vocs seja melhor e menos dura que a minha; recomendem a seus lhos a Virtude, s ela pode nos trazer felicidade, e no o dinheiro, falo por experincia; foi ela que me amparou na minha aio; devo a ela, assim como minha arte, o fato de no ter me suicidado. Adeus e amem-se! Agradeo a todos os meus amigos, em particular ao prncipe Lichnowsky, ao professor Schmidt. Desejo que os instrumentos dados pelo prncipe L. guardados na casa de um de vocs; mas que isso no seja motivo de conito algum entre vocs; se eles puderem lhes servir para alguma coisa, podem vend-los. Como ficarei feliz se ainda puder, sob meu tmulo, lhes ser til. Assim seja. Com alegria vou ao encontro da morte. Se ela chegar antes de eu conseguir desenvolver todas as possibilidades da minha arte, ento ela vir cedo demais para mim; apesar do meu duro Destino, gostaria que ela tardasse mais a chegar mas mesmo ento serei feliz, pois ela ter me livrado de um sofrimento sem m. Que ela venha quando quiser, irei com coragem ao seu encontro. Adeus e no me esqueam completamente depois da morte, tenho direito a isso da parte de vocs, pois em minha vida pensei com frequncia em faz-los felizes, espero que o sejam. Heiligenstadt, 6 de outubro de 1802. Ludwig van Beethoven Heiligenstadt, 10 de outubro de 1802. Despeo-me de vocs com tristeza. Sim, devo abandonar a esperana que eu tinha, pelo menos de ser curado at certo ponto, completamente. Como as folhas do outono que secam e caem, ela tambm secou para mim; quase como cheguei aqui, devo partir. Mesmo a altiva coragem, que me animou tantas vezes nos belos dias de vero, desapareceu. Providncia, d-me mais um momento de pura alegria. H muito o eco da verdadeira alegria me alheio! Quando, divindade, quando poderei senti-la de novo no templo da Natureza e da humanidade? Nunca? No, seria duro demais!15 O texto se dirige aos irmos, mas o nome de Johann deixado em branco, como indigno de aparecer. Mas fica claro que toda a humanidade que Beethoven interpela nessas linhas, que lembram s vezes pelo tom as Confisses de Jean-Jacques Rousseau, na obsesso de se justificar diante do mundo inteiro. Solido, incompreenso, desespero ligado surdez, estoicismo inspirado nos antigos, confiana extrema na sua religio da arte, da qual gostaria de ser o sacerdote mais eminente... Vocs, irmos humanos... Ele parece dizer que se afastou dessa humanidade contra a vontade, como para melhor servi-la e celebr- la. Resta a tentao do suicdio, evocada duas vezes de forma explcita, que revela um pouco mais da intensidade das dores morais e fsicas sofridas h muito tempo. Uma leitura honesta do texto, repleto desses travesses que so sempre em Beethoven o sinal de um estado emocional intenso, afasta qualquer ideia de afetao ou de maneirismo romntico no sofrimento. o testemunho de uma tristeza profunda. Mas lcito pensar, evitando toda a grandiloquncia, que a evidncia do trgico combina de modo particular com certas existncias... O milagre que esse sofrimento, esse retraimento selvagem devido a uma surdez crescente, no tenha atingido seu imenso desejo de criar. Quando deixa Heiligenstadt, alguns dias depois, ele leva nos seus cadernos de anotaes os primeiros compassos da Sinfonia Eroica. O tempo da Eroica Os novos tempos prometidos pela Revoluo Francesa j vo longe. A desmedida mortfera do Terror, na Frana, afogou os ideais revolucionrios em ondas de sangue, os chefes guilhotinados entre si; e a irreversvel ascenso de Bonaparte, ex-republicano a caminho do despotismo, faz da Frana o Ogro da Europa. A ustria vive uma paz frgil desde o Tratado de Lunville, em 1801. Em Viena as pessoas se distraem para esquecer, buscam furiosamente os prazeres, danam sobre um vulco. O regime austraco confrontado a uma dupla prova: manter uma fora militar para resistir s ambies francesas e sede de conquista de Bonaparte e conter o inimigo interno, os simpatizantes jacobinos da sua populao. A trajetria meterica de Bonaparte povoa os imaginrios. Suas vitrias militares, sua corrida implacvel ao poder fazem dele um novo Alexandre. Antes de se dissolver na epopeia sangrenta e depois na tragdia do fracasso e do exlio, aquele que ainda apenas o primeiro cnsul est construindo um mito, tornando- se um modelo heroico para toda a juventude inflamada da Europa. Nesse meio- tempo haver o assassinato do duque dEnghien, seguido da megalomania da coroao, o que refrear alguns entusiasmos, especialmente entre os liberais. Antes que o estado de guerra permanente substitua os ideais revolucionrios e que Napoleo empreenda, primeiro coagido pela ameaa das coalizes monrquicas, depois afeioado ao poder num gozo exaltado de si mesmo, uma calamitosa poltica de conquista, uma corrida desenfreada suicida, o bonapartismo em seus primrdios suscita um fascnio que dificilmente se pode imaginar. O destino de Napoleo parece o de um deus vivo que desceu do Olimpo, o de um Cristo secular investido de uma misso messinica. Um busto de Napoleo orna o gabinete de trabalho de Goethe. Segundo Hegel, Napoleo uma alma na escala do universo um indivduo que abarca o mundo e o domina.1 Beethoven no deixa por menos e v o Primeiro Cnsul altura dos maiores cnsules romanos.2 Profundamente republicano, democrata, ele pensa como muitos outros que a jovem Repblica francesa realiza os ideais platnicos de que se alimentou. E que a epopeia napolenica capaz de provocar o advento de uma humanidade fraterna e livre. Ao longo de sua vida inteira, a atitude de Beethoven em relao a Napoleo oscilou entre admirao e dio, fascnio e repulsa. Ele sempre teve um forte sentimento de identificao com o vencedor de Austerlitz, esse contemporneo cuja ambio desmedida, cujo desejo de poder e cujos desgnios do destino lhe lembram a imagem de si mesmo. Pena que eu no compreenda a arte da guerra to bem como a da msica disse um dia Beethoven a seu amigo Krumpholz , eu o venceria!3 Mas Beethoven um artista, isto , segundo a expresso de Shelley, um daqueles legisladores no reconhecidos do mundo, daqueles que mostram o caminho pelo esprito. Sua questo no o poder, mas a capacidade o que bem mais nobre e duradouro. Ao voltar de sua temporada em Heiligenstadt, no outono de 1802, ele retoma seu projeto de conquista do mundo musical. A crise passou, como se a escrita do testamento, no qual evoca a morte, lhe permitisse vencer seu espectro, purgando as angstias para partir de novo frente. o comeo de uma dcada prodigiosa, pontuada de um nmero impressionante de obras-primas marcadas pelo estilo heroico. Geralmente se fala, para esse perodo, de segunda poca criadora sobretudo por comodidade. De 1802 a 1813, sua atividade de compositor se desenvolve com uma fecundidade constante, uma energia inabalvel: durante esses dez anos, ele escrever uma pera, uma missa, seis sinfonias, quatro concertos, cinco quartetos de cordas, trs trios para piano, duas sonatas para violino, seis sonatas para piano, sem contar diversos lieder, variaes para piano e aberturas. Uma verdadeira febre criadora, uma vontade permanente, ainda mais notvel porque o trabalho de composio, para Beethoven, nada tem de espontneo nem de fcil. Ao contrrio de Mozart, formado to precocemente na escrita musical que podia, num ritmo muito rpido, criar peas que brotavam de uma imaginao torrencial, Beethoven hesita, tateia, constri, modelando suas composies como Czanne far com suas telas. Seus cadernos de anotaes testemunham esse prodigioso trabalho de elaborao. A forma nasce lentamente, constri-se por camadas sucessivas, ao preo de renncias e de correes. A solidez da sua msica a de um arquiteto, sua profundidade o fruto de incansveis retomadas at encontrar a forma ideal a que ainda no existe. O tempo do brilhantismo e dos sucessos mundanos como virtuose do piano ficou para trs ao menos o que ele gostaria, embora ainda se apresente, de vez em quando, nos sales da aristocracia. H um antes e um depois de Heiligenstadt. Seus problemas auditivos o convencem, cada vez mais, de que seu verdadeiro caminho est na composio. Mas, nesse aspecto, ele est longe de ser unanimemente reconhecido. A estranheza do seu estilo suscita em Viena uma espcie de querela entre os antigos e os modernos. A febre beethoveniana inflama a jovem guarda, enquanto os defensores da tradio se assustam com a ruptura fantstica (segundo Haydn) que Beethoven quer impor. E ele tambm est longe de ser o compositor mais popular em Viena: Mozart, Haydn, Cherubini, Meyer, sem falar de Paisiello ou do admirvel Cimarosa para a pera, so muito mais tocados do que ele. A pera, justamente, o novo desafio que Ludwig vai enfrentar em seu retorno de Heiligenstadt. No final de 1802, o diretor do teatro An der Wien lhe prope compor uma. Esse diretor no um completo desconhecido: chama-se Immanuel Schikaneder e o libretista da Flauta Mgica de Mozart. Esse libreto, de um simbolismo manico bastante primrio, mas para o qual Mozart comps uma msica do outro mundo, fez sua fortuna, enquanto Mozart teve um fim miservel apenas dois meses aps t-lo escrito. Amarga ironia. Schikaneder rico, dirige um grande teatro, busca sangue novo para competir com as celebridades do momento e com os outros teatros de Viena. Esse Beethoven, que vai de vento em popa junto a um certo pblico, lhe parece o homem que procura. Beethoven instala-se com seu irmo Karl num alojamento colocado sua disposio no teatro. Mas logo surgem problemas, junto com um conflito com o editor vienense Artaria, que Beethoven acusa de lhe ter roubado seu Quinteto em d menor (op. 27). O litgio ser resolvido por deciso judicial, em prejuzo do compositor, que se recusa a apresentar pedidos de desculpa pblicos. Alis, as disputas com editores o ocuparo muito nos dez anos vindouros, disputas estafantes e geralmente estreis. Schikaneder tarda a lhe fornecer o libreto de pera anunciado. Ou ento o que lhe prope no satisfatrio: ele fica apenas algumas semanas no alojamento do teatro. D ainda alguns concertos privados na casa de seus ricos protetores e prossegue um intenso trabalho de composio. A realizao do oratrio O Cristo no Monte das Oliveiras situada no comeo do ano de 1803. Mas evidente que Beethoven, improvisador mpar mas compositor pouco espontneo, vinha pensando nele desde o vero precedente. Mais tarde, ele dir ter escrito esse oratrio em quinze dias. A obra apresentada em 5 de abril de 1803, por ocasio de um concerto pblico no qual figuram tambm as duas primeiras sinfonias, bem como o Terceiro Concerto para Piano. dessa poca que data tambm a composio, insolitamente rpida para ele, da famosa sonata para piano e violino chamada A Kreutzer, nome do violinista francs com quem Beethoven fizera amizade na embaixada da Frana, em 1798. O Terceiro Concerto para Piano a primeira composio nesse gnero com a qual Beethoven se declarou satisfeito. Ele precisou de quatro anos para termin-la, entre o projeto inicial e a primeira execuo pblica. Mostra tal confiana nessa obra que, caso nico nele, prepara seu aluno Ries para interpret- la em pblico, ao passo que havia conservado ciosamente essa exclusividade em relao a seus primeiros concertos. Talvez porque seu gnio de improvisador pudesse compensar, ele pensava, as fraquezas da partitura. Mas aqui ele encontrou enfim a forma ideal, o equilbrio desejado entre a fora da orquestra e a virtuosidade do solista. Esse concerto, admirado com razo, de uma beleza sombria e intensa com sua tonalidade em d menor (que faz lembrar, em certos motivos, o Vigsimo Concerto em r menor de Mozart, que Beethoven admirava profundamente), logo se tornar uma espcie de modelo cannico do gnero. Mas ele no est satisfeito com sua vida em Viena. Tem a impresso de no ocupar inteiramente o lugar que merece, dilacerado entre seu desejo de independncia e a angstia da precariedade. Veja que todo mundo ao meu redor tem um emprego e sabe exatamente do que vive mas, meu Deus, que ateno um parvum talentum com (sic) ego (um talento medocre como o meu) pode receber na corte imperial?4, ele escreve ao editor Hofmeister. Beethoven pensa em deixar Viena para se instalar em Paris, to logo tiver terminado seu projeto de pera com Schikaneder. Est seguro de encontrar na Frana um pblico sua altura, e em harmonia com suas ideias polticas e estticas. Seu amigo Reicha, companheiro de estudos dos anos em Bonn, acaba justamente de voltar de uma temporada de trs anos em Paris. Fala-lhe da vida musical na capital francesa. Mostra-lhe inclusive uma composio de sua autoria, concebida segundo um novo sistema de escrita da fuga sabemos que os franceses, desde Rameau e mesmo Jean-Jacques Rousseau at Pierre Boulez, adoram novidades em matria de teoria musical. As pretenses do seu amigo estimulam Beethoven, e em resposta ele compe Quinze Variaes e uma Fuga para Piano em mi bemol maior, onde desenvolve, a partir de um dos motivos de As Criaturas de Prometeu que reaparecer na Sinfonia Eroica, todos os recursos da sua prpria cincia do contraponto e da fuga. Paris lhe parece um destino atraente: no foi celebrada l, em 1797, a aliana da Arte e da Liberdade, quando foram acolhidos com grande pompa objetos de arte vindos da Itlia (ou seja, saqueados), smbolos da liberdade que reina nas repblicas antigas? O universalismo revolucionrio considera que o verdadeiro lugar desses objetos a Frana, ptria da Liberdade. E assim que os museus enriquecem com facilidade. Beethoven, em todo caso, est convencido de que seu lugar em Paris e no em Viena, cidade conservadora onde o Velho Mundo demora a morrer. Ele se lembra da passagem de Bernadotte, em 1798. E a sinfonia que este evocou ento, Beethoven est em via de compor. At o ttulo o mesmo: ela se chamar sinfonia Bonaparte. Considera sua partida a Paris ao longo do ano de 1804. Enquanto espera, uma outra tarefa o retm em Viena. No final de 1803, lana-se ao libreto que Schikaneder finalmente acaba de lhe entregar: Vestas Feuer (Fogo de Vesta). Seu impulso de curta durao: ele julga o projeto inepto. Pouco depois, Schikaneder deve ceder a direo do teatro. Beethoven abandona rapidamente o projeto Vestas e se interessa por um outro tema, talvez proposto pelo baro Von Braun, novo diretor do teatro An der Wien. Trata-se da histria de uma mulher que se fantasia de homem a fim de salvar seu nobre marido, prisioneiro do tirano: Leonora ou o Amor Conjugal, do francs Jean-Nicolas Bouilly. O autor era advogado no Parlamento de Paris e foi promotor pblico durante a Revoluo, orgulhando-se de ter salvo alguns ex-nobres da guilhotina. Ele escreveu esse libreto em 1797, parece que inspirado na histria autntica de uma mulher de Tours que arriscou a vida para libertar seu marido preso. A obra j teve uma apresentao em Paris, com msica de Pierre Gaveau. O texto no muito brilhante, mas o gnero pice sauvetage, em que o amor sublime est disposto a todos os sacrifcios, obteve um certo sucesso em Paris. Beethoven pensa no futuro: se ele for Frana com essa obra, as portas se abriro e ele poder conquistar a cidade. Leonora se transformar em Fidelio. A histria dessa obra uma longa srie de abandonos, retomadas, decepes, antes de um triunfo tardio. Beethoven comea a trabalhar na pea no incio de 1804. Depois a deixa de lado, certamente porque a situao do teatro incerta e ele no tem certeza da representao de sua pera nesse ano. No entanto, continua a trabalhar nela em intervalos, como o mostram seus cadernos de esboos. H outras urgncias. A sinfonia Bonaparte, que est na hora de terminar, requer toda a sua energia. Dedica-se a ela com empenho durante o ano de 1804. Essa sinfonia tem sua histria e at sua lenda. De todas as suas obras, considerando as peripcias da composio e as circunstncias, a que Beethoven mais acalentou o que ele ainda afirmava em 1817. A Revoluo Francesa e seus desdobramentos impuseram o gnero heroico. Beethoven, nessa sinfonia, busca aperfeioar e engrandecer um estilo musical vindo da Frana revolucionria: o de Mhul, de Cherubini, compositores que ele conhece. Robert Schumann, apurado musiclogo, chegou a notar a influncia de uma sinfonia de Mhul sobre a Quinta Sinfonia. Durante dez anos, na Frana, a arte musical se fez zelosa servidora dos ideais revolucionrios, em geral de forma grandiloquente, quando no tonitruante. Beethoven leu ou ouviu essas obras. No certo que as admirasse sem ressalvas, mas so contemporneas e representam uma novidade, uma abertura, um contraponto s suavidades vienenses, abrem o caminho a uma grandiosidade e a uma fora sonora muito prprias do seu temperamento. E, alm disso, vm da Frana... Aos poucos, porm, ele vai perdendo as iluses. J vimos sua reao quando lhe sugeriram compor uma sonata revolucionria. Mesmo assim continua a escrever, ao longo de 1804, sua sinfonia Bonaparte. At ficar sabendo, relata Ries, que Napoleo se declarou imperador dos franceses: Nesse momento, ele icou furioso e exclamou: Ento ele no mais do que um homem ordinrio! Agora vai espezinhar todos os direitos humanos, no obedecer seno sua ambio, vai querer se elevar acima de todos, ser um tirano!. Foi at sua mesa, pegou a folha de abertura, rasgou-a em pedaos e atirou ao cho. A primeira pgina foi escrita de novo, e ento a sinfonia recebeu pela primeira vez seu ttulo: Sinfonia Eroica.5 Tal a histria que a lenda conservou. Mas possvel cogitar hipteses um tanto diferentes. Se Beethoven abandonou sua dedicatria ao imperador dos franceses, talvez seja por razes mais diplomticas tambm. Em 1804, a paz entre a ustria e a Frana est longe de ser alcanada. No outono, as tropas francesas ocupam Viena e a guerra recomear no ano seguinte. A dedicatria da Eroica passar ao prncipe Lobkowitz, que a comprou pela quantia de quatrocentos florins e mandar que a executem na sua residncia de vero em setembro de 1804. Dizem que o prncipe Lus Ferdinando da Prssia, ao passar por Raudnitz, na casa de Lobkowitz, gostou tanto dessa sinfonia que quis ouvi-la trs vezes seguidas. Se o heri da Eroica no mais Napoleo, quem ser? Ningum. Somente uma ideia do herosmo que a Histria incapaz de produzir, os heris se transformando sempre em criminosos. Uma certa concepo da grandeza humana, encerrada em conflitos trgicos. A Eroica uma sinfonia longa sua execuo dura cerca de uma hora, o que ento inusitado para uma obra do gnero. Primeiro movimento grandioso, prometeico, com subidas vertiginosas e momentos de impacto, como um apelo luta; segundo movimento em forma de marcha fnebre com tons trgicos, antecedendo um scherzo, forma definitivamente adotada pelo artista, que exprime uma alegria dionisaca; e uma apoteose final que retoma o famoso tema j utilizado em As Criaturas de Prometeu e nas Quinze Variaes e uma Fuga para Piano, inspirado numa cano popular que evidentemente uma obsesso para Beethoven: de fato um triunfo que somos convidados, a um canto de liberdade, a uma exploso sonora na qual irrompe uma alegria sobre-humana, aps uma sombria descida ao reino dos mortos. Beethoven se sente ludibriado nos seus ideais, e sua obra reflete essa decepo. Como observa Maynard Solomon: Beethoven considerava Bonaparte como a encarnao do chefe esclarecido, mas ao mesmo tempo via suas esperanas frustradas pelo despotismo dele. A ambivalncia de Beethoven reletia uma contradio fundamental da sua poca, e esta encontra sua expresso na Eroica. Essa sinfonia resultava do conlito entre a f das Luzes no prncipe salvador e a realidade do bonapartismo.6 Obviamente est descartado partir para Paris. Intil deixar Viena para encontrar algo pior noutra parte. Beethoven, como artista, bastante inteligente para saber que num tal regime se esperam obras de arte que sirvam, no modo do pathos e do herosmo triunfante (e ridculo), glria do tirano. No contem com ele. A Sinfonia Eroica, portanto, apesar da referncia que por muito tempo prevaleceu, no uma sinfonia Napoleo. o canto de triunfo da humanidade vitoriosa das trevas, a primeira em que Beethoven, para alm das circunstncias fortuitas da Histria e ultrapassando as influncias francesas de uma msica revolucionria marcada de ingenuidade pomposa, atinge realmente o universal. A novela Fidelio Giulietta, casada, desapareceu da sua vida. Ele sofre com isso? Expulsou-a dos seus pensamentos? No sabemos. Ludwig no fica repisando seus fracassos: ele avana. Em troca, Josefina Deym, em solteira Brunsvik, continua muito presente no seu cotidiano, e cada vez mais. Seu casamento foi breve, embora fecundo. Ela enviuvou no comeo de 1804. O conde Deym morreu de uma pneumonia durante uma viagem a Praga, deixando Josefina com trs filhos e grvida de um quarto. Lentamente, Beethoven e Ppi vo se aproximar. Isso provocar algum cime em Teresa, a irm mais velha, presente um pouco em demasia, quando no de forma tirnica, na vida de Josefina. Mas Beethoven no parece demonstrar um apego sentimental real nesse ano de 1804. Ele trabalha. Sabe que, com a Sinfonia Eroica, deu um passo decisivo. Enfim uma obra com seu valor, altura da sua ambio. Sabe tambm que a recepo dessa sinfonia de um gnero novo no est de modo algum garantida. Ela impressiona os primeiros ouvintes, mas nem sempre os seduz: o caminho ser longo. De fato, durante os anos seguintes, as reaes so pouco favorveis, quando no hostis. Uma nota do Allgemeine Musikalische Zeitung, em 1805, a descreve como longa, difcil de executar, espcie de fantasia ousada e selvagem que parece desregrada, repleta de sons agudos e de extravagncias, de modo que impossvel ter uma viso de conjunto. As mesmas crticas se repetem ao longo dos concertos: muito longa, esquisita, colossal, com pouca clareza e unidade. Muitas estranhezas julgadas pouco necessrias per festiggiar il sovenire dun grand uomo[1], como diz a dedicatria. Mas uma obra deve abrir seu caminho, ter sua prpria existncia. Beethoven j est adiante. Durante esse ano, ele se desentendeu de modo violento com seu amigo Stephan von Breuning, rompeu para depois se reaproximar segundo as modalidades habituais: pedidos de desculpa, contrio, demonstraes de estima etc. Por qu? Um motivo ftil como sempre, provavelmente uma incompatibilidade de humor, pois os dois amigos moram no mesmo local nesse momento, e conviver com um Beethoven desordenado e caprichoso no uma tarefa fcil. Em sua baguna ele perde com frequncia objetos, os procura, berra, acusa os outros de os terem pego, pois ele, claro, sempre sabe onde esto. Seus acessos de fria tambm so o sinal de que o processo criador est a caminho. Beethoven censura em Breuning a mesquinharia, a estreiteza de ideias. Refugiado em Baden, depois em Dbling durante o vero, ele escreve a Ries uma carta muito reveladora do seu carter e da sua viso das relaes humanas: Acredite, meu caro, minha clera foi apenas a exploso de inmeras circunstncias fortuitas e desagradveis que aconteceram anteriormente entre ns. Tenho o dom de poder ocultar e reter minhas impresses sobre um monte de coisas; mas se me fazem perder a pacincia num momento em que estou mais propenso clera, ento me enfureo com mais violncia do que qualquer outro. [...] Para haver amizade, preciso uma completa semelhana entre as almas e os coraes dos homens.1 No outono de 1804, Beethoven retorna a Viena. Retoma seu alojamento no teatro An der Wien, pois o projeto Leonora est de novo em andamento. impressionante constatar que cada obra importante nesse artista efervescente adquire o rosto de uma mulher amada, como se ele quisesse pr-se prova. Durante o vero, doente, febril, sofrendo de clicas e com os ouvidos doloridos, ele esboa a composio de uma sonata que ser a Appassionatta, dedicada a Franz von Brunsvik, o cavalheiro insensvel, por certo para reforar seus laos com a famlia. em Josefina que ele pensa? Criao e desejo andam juntos, como se a doao de si que o trabalho impe buscasse sua razo de ser na possvel recompensa do amor e, inversamente, como se os desastres amorosos tornassem necessrio o refgio no trabalho. Nunca uma composio como essa sonata Appassionatta (ttulo que no de Beethoven) havia sido concebida para o piano. O prprio Beethoven a considerou como o seu maior xito, at atingir um novo apogeu com a sonata Hammerklavier (op. 106), quinze anos mais tarde. Como escreve Maynard Solomon, na Appassionatta ele amplia consideravelmente a paleta dinmica, d aos timbres cores estranhas e ricas que os aproximam das sonoridades orquestrais.2 Fruto de uma longa elaborao, a obra de uma ponta outra dominada pelo sentimento do trgico, a expresso da luta contra os elementos, as paixes, a loucura. No final do primeiro movimento, ouve-se como que o anncio do motivo rtmico inicial da Quinta Sinfonia... Aps o doloroso fracasso com Giulietta, ele buscou no fundo de si mesmo as foras necessrias para terminar a composio da Eroica, suprema desforra. Ao retomar a composio de Leonora, Beethoven inicia uma relao cada vez mais terna com Josefina, que estava viva. E mais uma vez empreende um namoro insistente. O momento inoportuno. Aps a morte do marido, Josefina deu luz seu quarto filho, depois entrou numa grave depresso. Ela jovem, bonita, mas com o encargo de uma famlia numerosa, e a condio de viva no das mais invejveis na Viena imperial. Beethoven comparece com frequncia casa dela e volta a lhe dar aulas de piano. O sentimento de afeio que sente por Ppi desde que se conhecem cinco anos se transforma em uma amizade carinhosa, depois em amor ardente. Pelo menos da parte de Ludwig: cartas dessa poca, descobertas e publicadas muito tempo depois, no deixam a menor dvida sobre a natureza dos seus sentimentos. So cartas que dizem coisas como estas: Oh, bem-amada Joseina, no o desejo do outro sexo que me atrai em voc; no, apenas voc, toda a sua pessoa e com todas as suas qualidades individuais... Voc me conquistou... Voc, voc me faz esperar que seu corao venha a bater por mim O meu s deixar de bater por voc quando deixar de bater para sempre.3 Ou esta confisso, caracterstica de um estado amoroso em fase de sublimao: No h linguagem que possa exprimir o que se encontra to acima da simples afeio [...] Somente em msica No, no me orgulho quando creio que domino melhor a msica do que as palavras. Voc, voc, meu tudo, minha felicidade mesmo com minha msica no posso exprimir isso. E esta frase tocante, que deixa entrever que o caso no promete muito: Eu a amo to afetuosamente quanto voc no me ama.4 que a famlia est preocupada. Josefina, aparentemente sofrendo de crises de histeria, est aos cuidados da irm caula, Charlotte, que escreve a Teresa: Beethoven vem quase todo dia nossa casa, d aulas a Ppi: um pouco perigoso, confesso a voc.5 E Teresa, inquieta, responder irm: Mas me diga, Ppi e Beethoven, o que vai acontecer? Ela deveria ter mais cuidado.6 Em suma, a histria se repete: Beethoven no desposvel, pelo menos no mundo da aristocracia. Alm disso, Josefina afirma ter feito um voto de castidade aps a morte do marido, o que talvez explique seu estado de nervosismo. claro que, num primeiro momento pelo menos, ela se recusa totalmente a Beethoven. Esse grande prazer da sua companhia, que voc me concedeu, poderia ser o ornamento mais belo da minha vida se voc me amasse menos sensualmente7, ela lhe escreve em termos prudentes. E acrescenta: Eu teria que violar votos sagrados se cedesse a seu desejo.8 Beethoven finge se curvar a essas razes. Mesmo assim continua a assediar constantemente Josefina, chegando at a lhe atribuir, para acus-la, um caso amoroso. No posso exprimir o quanto ofensivo ser equiparada a criaturas vis, ela responde, nem que seja apenas em pensamento e por uma leve suspeita.9 No vero de 1805, ele se afasta. Com a dignidade ferida, pede a Josefina para devolver as partituras que lhe emprestou. Os dois cortam relaes. Beethoven suprime a dedicatria a Ppi do lied intitulado An die Hoffnung ( esperana), que ele publica em setembro. No final de 1805, Josefina retornar a Martonvsr, depois ir viver em Budapeste. Fim de um amor? No assim to certo. Nesse vero de 1805, em todo caso, passando uma temporada em Hetzendorf, Beethoven est inteiramente absorvido pela composio de Leonora- Fidelio. Essa obra atpica decididamente problemtica. O libreto, j foi dito, tem muitas inverossimilhanas, pesado no plano dramtico, ou simblico, s vezes de um moralismo desagradvel. Mas tambm uma histria forte, um melodrama comovente, que enaltece os ideais da fidelidade conjugal, da liberdade, da luta contra a injustia e contra a arbitrariedade. Os problemas conjugais no fazem parte do cotidiano de Beethoven, mas ele aspira com ardor a eles. E o prprio gnero de pice sauvetage possui um valor catrtico: Florestan, nobre encerrado no crcere, uma vtima do arbitrrio, de todas as tiranias, talvez tambm da m conscincia de uma Revoluo que se extraviou. O tirano, abstrato, no representante de partido algum: o smbolo eterno de um poder cego, uma alegoria do Mal. Originalmente, no libreto de Bouilly, Pizarro, o guarda da priso, no era um papel cantado. Beethoven lhe d uma consistncia musical, amplia o discurso a um confronto entre o poder cego e a humanidade sofredora, como no clebre Canto dos prisioneiros. Quanto a Leonora, disfarada de homem para poder entrar na priso, uma personagem andrgina que tem a pesada tarefa de descer ao inferno do crcere onde vegeta Florestan, com seus colegas prisioneiros, para lhe oferecer um segundo nascimento, como se desse luz o marido verdadeira descida ao tmulo antes da ressurreio, o fim do inverno simbolizado pela morte de Pizarro e pela celebrao do ano novo. Fidelio situa-se na encruzilhada dos caminhos. Ainda enraizada no sculo XVIII, e sem a fluidez fulgurante das peras de Mozart, apesar do seu dueto de abertura to mozartiano em esprito, j anuncia as poderosas peras de Verdi ou de Wagner. Obra elaborada laboriosamente, recomeada, modificada, sem dvida a que causou a Beethoven, pouco vontade na arte dramtica e digamos, mesmo com o risco de perder em definitivo a estima dos beethovenianos na escrita vocal, os maiores tormentos. E uma obra-prima mesmo assim. Ultrapassando a noo de gnero, a msica atinge ali um apogeu inigualvel de emoo e de sublime. Beethoven hesitou e trabalhou muito, buscou, renunciou, retomou. A composio da obra sofreu um atraso. Quando enfim fica pronta, os ensaios so catastrficos: a orquestra ruim, o regente tambm, e o tenor que faz o papel de Florestan, execrvel. De incio indulgente, Beethoven se impacienta e depois explode, censurando o conjunto dos intrpretes por massacrar sua msica. A primeira representao enfim ocorre em 12 de novembro de 1805. O momento mal escolhido. Com a formao da terceira coalizo, a guerra entre a Frana e a ustria recomeou. Em 20 de outubro, o exrcito austraco foi batido em Ulm. Em novembro as tropas francesas ocupam Viena pacificamente, mas a presena de um exrcito estrangeiro numa cidade faz com que at os ambientes mais leves pesem, e a alta sociedade parte em refgio para suas residncias no campo. Em 2 de dezembro ser a Batalha de Austerlitz e a derrota do exrcito austro-hngaro. nessas circunstncias tumultuosas que ocorre a estreia de Leonora. O fracasso retumbante. A pera foi apresentada apenas trs vezes num teatro quase vazio, a maior parte do pblico composta de oficiais franceses que, pouco afeitos s sutilezas da lngua alem, bocejavam e murmuravam durante as partes faladas, que na pera alem substituiro cada vez mais o recitativo. Um comit de crise se rene. Os amigos de Beethoven, Ries, Breuning, o diretor da pera, Von Braun o qual, embora baro, se revela um refinado tratante, espcie de antepassado de alguns empresrios e agentes artsticos de hoje , procuram descobrir as razes desse insucesso. Elas so evidentes: a obra muito longa; o libreto, medocre, impe episdios estticos que se eternizam.[2] preciso encurtar tudo isso, tirar o excesso. Beethoven se insurge, berra, troveja: Nem uma nota!. Ele acusa o tenor que faz o papel de Florestan de responsvel pelo fracasso. Mas acaba aceitando fazer mudanas na obra. Abrevia algumas cenas muito longas, inteis no plano dramtico. Leonora encenada de novo em 29 de maro de 1806. A paz voltou, o pblico tambm. Mas no d para falar de triunfo: duas representaes... Extremamente triste, Beethoven guarda sua partitura, que ficar de molho por muitos anos, no sem ter violentamente discutido e cortado relaes com o baro Von Braun. Mas a novela Fidelio est longe do fim. No faz sentido deixar de lado essa obra que lhe custou tantos esforos. Ao longo dos anos seguintes, ele vai retom- la algumas passagens sero reescritas dezoito vezes , compondo ao todo quatro aberturas, as trs de Leonora e enfim a de Fidelio, trechos orquestrais poderosos, no estilo heroico, que sero vrias vezes retomados nos concertos independentemente da obra, tamanho o entusiasmo sempre suscitado no pblico por sua beleza e sua dinmica dionisaca. Somente em 1814 Fidelio encontrar sua forma definitiva. Dez anos de trabalho, de renncias, de despeito furioso, uma publicao em 1810 e, no comeo de 1814, um renascimento: artistas do teatro da Carntia, no sul da ustria, procuram Beethoven para lhe propor que apresente de novo Fidelio. Escaldado pelos fracassos anteriores, o compositor hesita muito. Acaba aceitando, com a condio de poder retrabalhar a obra, cujas imperfeies os anos de maturao lhe permitiram avaliar e admitir. Ele contrata um novo libretista, Friedrich Treitschke, que tem a misso de dar ao texto mais intensidade e eficcia dramticas. Com grande prazer li as melhorias que fez na pera, isso me anima a reerguer as runas desoladas do velho castelo, lhe escreve Beethoven. Ele observa tambm que no fcil fazer algo novo com o velho.10 De maro a maio de 1814 ir retrabalhar sua pera, com febre, atormentado de novo por pensamentos sombrios: mdicos lhe anunciaram que sofre de uma doena incurvel. Qual? Nenhum documento permite apontar uma certeza. Pensa-se nas consequncias de uma sfilis, num agravamento do seu estado geral de sade, numa doena das vsceras, como se dizia. Nessa poca, sabemos, ele ainda pensa em suicdio. A retomada de Fidelio, em maio de 1814, vivida num estado de tanta febrilidade e urgncia que, na vspera do ensaio geral, a nova abertura ainda no est escrita! Beethoven trabalha nela a noite toda como ocorrera a Mozart na vspera da estreia de Don Giovanni , dorme sobre suas pautas, e no dia seguinte falta ao ensaio durante o qual os msicos deveriam ficar conhecendo a nova partitura. No lugar dela, noite, tocada uma outra, talvez a de As Criaturas de Prometeu. Mas tantos esforos valeram a pena: em 1814, a nova verso de Fidelio um sucesso. O gosto da poca foi enfim ao encontro das intuies e das exigncias do artista. [1]Para celebrar a lembrana de um grande homem. (N.A.) [2] Ver a esse respeito as anlises admirveis das diferentes verses de Fidelio no Guide de la musique de Beethoven, de lisabeth Brisson, Fayard, 2005. (N.A.) Rupturas Retornemos a 1806. O fracasso de Leonora/Fidelio no afeta a vitalidade de Beethoven, muito pelo contrrio. J no ms de maio ele se lana na composio de trs quartetos de cordas, conhecidos pelo ttulo de Quartetos Razumovski, nome daquele a quem so dedicados. O conde Razumovski um rico amante de arte e de msica, embaixador da Rssia na corte de Viena, e figura entre os mecenas de Beethoven desde 1795 e a publicao de seus primeiros trios. Ele mesmo violinista e mantm por conta prpria um quarteto, alm de desempenhar um papel importante na vida musical de Viena. Os quartetos que imortalizam seu nome marcam uma nova etapa na evoluo esttica de Beethoven. Ele os escreve rapidamente, durante o vero de 1806, o que faz supor que vinha refletindo sobre eles h muito tempo. Como em relao aos outros gneros, sinfonia, concerto, sonata, Beethoven quer fazer o quarteto entrar numa nova era. interessante observar que, no momento da composio dos Razumovski, Joseph Haydn, que levou o gnero ao apogeu nos moldes clssicos, ainda tem trs anos para viver. Mas Beethoven faz o quarteto entrar num outro universo sonoro: amplitude sinfnica, utilizao de temas russos inditos, concepo de um verdadeiro ciclo no qual certos movimentos se correspondem de um quarteto a outro, o final do terceiro remetendo ao alegro inicial do primeiro: Se o piano e depois a orquestra desempenharam para Beethoven o papel de laboratrio de criao, observa Maynard Solomon, sua ateno em matria experimental se dirigia agora ao campo do quarteto de cordas.1 O prprio Beethoven, nessa poca, pensa em se dedicar quase exclusivamente a esse tipo de composio, na qual encontra material para aprofundar seu pensamento de grande arquiteto das formas musicais. Claro que esse empreendimento difcil, um tanto austero, essas concepes complexas nas quais se introduzem procedimentos inusitados, essa inveno permanente de novas estruturas, as pulsaes rtmicas, a riqueza meldica desses quartetos melodias desconcertantes, porque decompostas em vrios motivos , tudo isso no favorece uma acolhida imediata. Os intrpretes torcem o nariz diante dessas composies revolucionrias (ainda no se fala de vanguarda!). O violinista Radicati chega a declarar que esses quartetos no so mais msica, e recebe esta resposta do mestre: Oh, isso no para voc, para os tempos vindouros!.2 Ele contrape ainda, dirigindo-se ao grande violinista Schuppanzigh, fiel amigo e admirador moderado dos seus quartetos, que se queixa das dificuldades de execuo: Voc acha que eu penso nas suas miserveis cordas quando o esprito me fala?.3 Os verdadeiros conhecedores no se enganam, mesmo se as reaes de entusiasmo demoram a vir. J em 1808, Johann Friedrich Reichardt, em suas Vertraute Briefe [Cartas ntimas], compara Beethoven a Michelangelo. Em 1811, a propsito dos mesmos quartetos, o Allgemeine Musikalische Zeitung julga que o compositor se entregou sem reserva inspirao mais admirvel e mais inslita da sua imaginao [...] e recorreu a uma arte to profunda e difcil que o esprito sombrio do conjunto repercute sobre o leve e o agradvel. Bons msicos que o apreciam pedem indulgncia, assustados pelas dificuldades de execuo dessas obras, como o caso de um correspondente ingls de Beethoven, um certo George Thompson, que lhe escreve em francs em 1818 estas palavras ingnuas e encantadoras: No possvel mostrar o poder encantador da sua Arte sob uma forma mais simples? No poderia o seu gnio se rebaixar composio de uma msica igualmente soberba, mas menos difcil de ser executada, de modo que os amadores possam partilhar um festim to delicioso?.4 Em suma, um Beethoven ao alcance de todos. No sabemos o que o mestre respondeu nessa ocasio. Prodigioso ano de 1806. Embora o amigo Stephan von Breuning veja Beethoven tristonho, melanclico, decepcionado e ferido aps o fracasso de Leonora, a atividade criadora que o compositor manifesta no de modo algum a de um deprimido. Ele termina o Quarto Concerto para Piano (op. 58), iniciado no ano anterior e muito ligado em sua concepo e sua atmosfera sonora a Leonora, especialmente no clebre segundo movimento, dilogo sombrio, verdadeiro combate entre o piano e a orquestra, cujos tons levam a pensar na grande ria de Florestan, em cujo final ele cai, esgotado. Quanto ao terceiro movimento dessa obra poderosa, uma exploso de sonoridades ritmadas que traduzem uma alegria selvagem, um entusiasmo incontrolvel. Terminado seu concerto, Beethoven vai procurar Ferdinand Ries, com a partitura debaixo do brao. Sem muitas formalidades, tirnico quando se trata de suas obras, lhe anuncia: Voc tem que tocar isto no prximo sbado, no Krntnerthortheater.5 Cinco dias para aprender e ensaiar uma obra complexa e monumental, simplesmente impossvel. Ries recusa. Irritado, Beethoven vai procurar Stein, um outro pianista, que imprudentemente aceita. Claro, no dia do concerto, ele no est preparado. No lugar da pea tocado o Concerto em d maior (o terceiro). Ela s ser apresentada em maro de 1807, junto com a Quarta Sinfonia, com o prprio Beethoven ao piano. Sua sede de criar insacivel. Ele atingiu a idade em que Mozart morreu 35 anos. como um chamado. Quanto tempo lhe resta de vida com esse corpo em perptuo sofrimento? Seria em Mozart que ele pensava ao compor, durante o vero de 1806, a radiosa Quarta Sinfonia, logo aps ter recebido a encomenda do conde Oppersdorff? Obra desconcertante, tensa ao extremo, mas s vezes banhada numa atmosfera de quietude apaziguada: na realidade, observa lisabeth Brisson, uma verdadeira sntese das inovaes de Fidelio, do Stimo Quarteto op. 59 no 1 e da Terceira Sinfonia: uma introduo lenta la Florestan, o recurso a um ritmo tpico dos tmpanos no segundo movimento, como no Stimo Quarteto, e, no final, repetio at a saturao de acordes dissonantes idnticos aos do primeiro movimento da Eroica.6 Uma pausa, em suma e que pausa! , antes de experimentar novas formas. durante esses mesmos meses que ele escreve os primeiros esboos da Quinta Sinfonia e da Sexta, que ser a Pastoral, na clida quietude do vero em Heiligenstadt... Ao chegar o outono ele vai Silsia, a convite do prncipe Lichnowsky. O mnimo que se pode dizer que essa temporada terminar mal. Enquanto ele est na Silsia, no castelo do prncipe, Napoleo se recusa a aceitar o ultimato do rei da Prssia, estipulando que as tropas francesas evacuem a Alemanha. A disputa termina em conflito armado: em 14 de outubro de 1806, Napoleo esmaga o exrcito prussiano em Jena e as tropas francesas vitoriosas ocupam a Prssia. Segundo as leis da guerra, os soldados se instalam nas casas dos plebeus, e oficiais franceses so alojados no castelo do prncipe. Isso teria deixado Beethoven furioso? dessa ocasio que data sua famosa tirada sobre Napoleo, que ele venceria se fosse to bom estrategista quanto bom msico. Como homem de sociedade, o prncipe trata seus hspedes com cortesia, a aristocracia sabe viver. Inclusive pede a Beethoven, uma noite, para tocar diante deles. Ludwig, rabugento, se recusa taxativamente. O prncipe insiste, o msico no cede. Nem pensar em oferecer sua msica a esses soldados, aos oficiais do homem que tanto o decepcionou. Nem pensar tampouco em aceitar de novo o papel de artista-lacaio, que depende da boa vontade dos donos. O prncipe, meio na brincadeira, ameaa pr Beethoven na priso: um gracejo por certo sem fineza, que tambm revela um pouco o autoritarismo atvico do senhor preocupado em no ser desmoralizado diante de militares estrangeiros. Lichnowsky no habituou Beethoven a essas maneiras, ele que ia visit-lo sem fazer rudo, respeitando seu gnio a ponto de tolerar todas as suas extravagncias. Mas a discusso se agrava e Beethoven perde as estribeiras. Ries relata: No fosse o conde Oppersdorff e alguns outros, teria havido uma rixa brutal, pois Beethoven empunhava uma cadeira disposto a quebr-la na cabea do prncipe Lichnowsky, que mandara arrombar a porta do quarto onde Beethoven havia se trancado. Felizmente Oppersdorff se lanou entre eles.7 Beethoven abandona de imediato o castelo do prncipe, na noite e na neblina, a p. Chegando cidade vizinha, pega em seguida a carruagem postal para Viena. Mas, antes de partir, traa numa folha de papel estas palavras raivosas, que remete a Lichnowsky: Prncipe, o que o senhor , o pelo acaso do nascimento. O que eu sou, o sou por mim. Prncipes existem e sempre existiro aos milhares. Mas s h um Beethoven.8 Insolncia semelhante de Beaumarchais. Dizem at que, em Viena, ainda trmulo de raiva, Beethoven quebrou a esttua do busto de Lichnowsky. Sero necessrios o tino e a fineza da princesa Cristina para reconcili-los parcialmente. Mas Lichnowsky deixar, a partir desse dia, de subvencionar Beethoven, um mau negcio. E, claro, este nunca mais tocar msica na casa do prncipe. Inabilidoso Beethoven. No ano seguinte, um episdio penoso o coloca numa situao embaraosa. Desta vez se trata, se podemos dizer, de um caso feminino. To logo volta a Viena, aps a partida retumbante do castelo de Lichnowsky, Beethoven vai casa dos Bigot, um casal de amigos que ele conhece desde 1804. Bigot de Morogues bibliotecrio do conde Razumovski, casado com uma jovem pianista talentosa e encantadora chamada Marie. Ele leva o manuscrito da Sonata Appassionatta, seriamente danificado por um temporal que atingiu sua mala ao voltar da casa de Lichnowsky. A jovem se pe ao piano, consegue decifrar a sonata e a toca sem nenhum erro. Depois pede a Beethoven que lhe d essa partitura de presente. Passam-se os meses. Beethoven cada vez mais ntimo dos Bigot. Na primavera de 1807, ele envia a Marie uma carta na qual a convida, com muita inocncia, a um passeio de carruagem, na ausncia do marido: Como Bigot provavelmente j saiu, no podemos lev-lo, mas renunciar a tal passeio por esse motivo algo que o prprio Bigot com certeza no exigiria. Ele garante, claro, a pureza das suas intenes, aconselha agasalhar Caroline, o beb do casal, dos ps cabea para que nada lhe acontea. E conclui: Faa com que me seja concedido o prazer egosta de compartilhar, com pessoas por quem me interesso tanto, a radiosa alegria da radiosa e bela natureza.9 Natureza qual ele est a caminho de prestar a mais bela das homenagens ao compor a Sinfonia Pastoral. O marido toma conhecimento da carta e se zanga, pouco sensvel ao tato beethoveniano. Ludwig se apressa ento a escrever uma outra longa carta, mistura extravagante de escusas, de juramentos de amizade, de demonstraes de virtude. Nada mais puro que o fundo do seu corao, suas intenes so as melhores: Caro Bigot, cara Marie, nunca, nunca me vero vil. Desde a infncia aprendi a amar a virtude e tudo o que belo e bom.10 Minha moral minha fora11, ele dizia. Mas nos assuntos do corao a espontaneidade dos seus sentimentos no convive bem com a moral habitual. Quando ele ama, nada pode conter a violncia dos seus afetos, mesmo um marido simplrio, mesmo se ele no formula a si mesmo a realidade dos seus desejos. Suas escusas fazem sorrir. As correntes do matrimnio so to pesadas, dizia Alexandre Dumas filho, que preciso dois para carreg-las. Muitas vezes trs.12 Ele gostaria de ser o terceiro. No fim do excepcional ano de 1806, ele escreveu um concerto para violino. O concerto para violino, sua nica obra no gnero, talvez a mais bela j composta, que alia com brilho a fora da orquestra sinfnica e o virtuosismo. Todos os compositores do sculo XIX que faro experincias no gnero, de Mendelssohn a Brahms, de Tchaikvski a Sibelius, buscaro se posicionar em relao a essa obra-prima. O primeiro movimento surpreende desde o incio, com sua introduo entregue aos tmpanos, ritmo que se repete nos dois temas em que a orquestra e o violino mais se fundem do que se opem, num canto de um lirismo emocionante. Ele escreveu esse concerto muito depressa, aps seu retorno da Silsia, para o violinista Franz Clement, Konzertmeister da orquestra do teatro. Mais tarde modificar a parte para violino, inclusive reescrever o primeiro e o terceiro movimentos para adaptar melhor essa obra s possibilidades do instrumento, provavelmente com a colaborao do violinista Pssinger. Alm disso escrever, em 1807, uma bela transcrio para o piano, a pedido de Clementi, tendo em vista uma publicao em Londres. No momento em que escrevia o Concerto para Violino, comps tambm para o piano as Variaes sobre um Tema Original (WoO 80), to pouco estimadas por ele que no figuram nos nmeros de opus das suas obras oficiais. Beethoven, Beethoven, que bobagem fizeste!13, ele chegou a dizer a respeito delas, o que, para quem as escuta, pelo menos injusto... Ele tem preocupaes financeiras. O rompimento com o prncipe Lichnowsky, que lhe cortou a ajuda, s piora a precariedade da situao. por volta dessa poca, no comeo de 1807, que se aproxima mais de um outro membro da alta aristocracia, o arquiduque Rodolfo de Habsburgo, um dos irmos do imperador Francisco. a ele que dedicado o Quarto Concerto. Esse jovem de dezenove anos passa a ser aluno de Beethoven e um pouco tambm seu perseguidor, pois do tipo invasivo, que chega no importa a hora e exige sempre dedicatrias. Uma relao ambgua, como de costume, na qual Beethoven oscila entre a exasperao e o reconhecimento, s vezes beirando uma obsequiosidade muito inabitual nele. Mas, segundo Schindler, o apoio desse prncipe a seu professor admirado ser slido frente a seus inimigos, que gostariam de lhe barrar o acesso corte do imperador por causa das suas opinies polticas. Nem por isso a questo do dinheiro resolvida. O ano de 1807 se passa em diligncias cansativas junto aos editores especialmente Ignaz Pleyel em Paris e ele assina um contrato com Clementi em Londres, cidades, alis, s quais nunca ir. Mas os ganhos das publicaes de suas obras so magros e fortuitos. por essa razo que ele faz um requerimento honorvel direo dos teatros imperiais e reais da corte, propondo seus servios para compor uma pera e at uma opereta, em troca de uma renda anual de 2.400 florins. Pode-se estranhar a ideia de um Beethoven escrevendo operetas, pacto faustiano no qual certamente teria abandonado muito de si mesmo. Mas a pera... Frustrado por seu recente fracasso, ele pensa ainda nela, e cada vez mais. no ano de 1807 que compe a abertura de Coriolano, montando o projeto de musicar essa tragdia da vingana escrita por Shakespeare. E tambm fica profundamente impressionado com a primeira parte do Fausto, de Goethe, um tema que lhe conviria muito bem. Sonhos sem futuro: seu requerimento no obtm resposta. Sua primeira missa, em troca, atende a uma encomenda do prncipe Esterhzy e executada em setembro de 1807 em Eisenstadt, l onde Joseph Haydn viveu durante trinta anos e criou a maior parte da sua imensa obra. Missa de um ateu? E. T. A. Hoffmann, o clebre autor dos Contos, que tambm foi msico e regente de orquestra, v na obra, cujo gnio reconhece, tudo exceto uma missa, no sendo conforme ao severo estilo de igreja14: nenhuma forma fugada, ausncia total daqueles momentos de horror que marcam habitualmente o estilo litrgico. Parece que essa missa no teve a aprovao do prncipe Esterhzy no momento da sua execuo: Afinal, o que voc fez a?, ele pergunta ao compositor num tom de brincadeira que Beethoven leva a mal, ainda mais porque Hummel, um de seus rivais, presente ao lado do prncipe, esboa ento servilmente um sorriso irnico. Como de hbito, Beethoven abandona Eisenstadt na mesma hora. No h mais harmonia na relao com os irmos. Johann, o caula, lhe pede para pagar um emprstimo de 1.500 florins, pois esse Homais[1] moda teutnica acaba de comprar uma farmcia em Linz. Ludwig no tem como pagar e recorre a seu irmo Karl, que recusa. Beethoven, numa carta a Gleichenstein, desabafa seu despeito e sua clera: Pode dizer a meu irmo que com certeza no lhe escreverei mais. [...] Deus me preserve de ter alguma vez que aceitar benefcios dos meus irmos.15 O baro Ignaz von Gleichenstein um dos seus confidentes, redator nos escritrios da corte. Seu papel, novo na vida de Beethoven, importante, pois ele se revela um amigo atento e bom conselheiro, especialmente em matria de finanas. E ele quem apresentar Beethoven famlia Malfatti, para o bem e para o mal: trata-se do mdico que ir trat-lo e de sua sobrinha Teresa, por quem ele se apaixonar. Mas na casa de uma outra mulher, a condessa Marie Erddy, que ele encontra abrigo durante o ano de 1808, o que o poupa, pelo menos por um tempo, da preocupao com moradia. A condessa Anna Marie Erddy uma pessoa estranha. Com vinte e nove anos, muito bela segundo todos os testemunhos, casada aos dezesseis e logo separada do marido, ficou semiparaltica aps o nascimento do primeiro filho: passa a maior parte do tempo estendida e veste um espartilho ortopdico. Musicista apaixonada, ela acolhe Beethoven em casa, desempenhando, segundo Trmont16, um papel semelhante ao de Madame dHoudetot junto a Jean- Jacques Rousseau: uma confidente, uma amiga, uma conselheira. Teria sido amante dele? Pode-se suspeitar. De todo modo, a temporada de Beethoven em sua casa ser curta, e o msico desconfiar que a anfitri paga um empregado em troca de favores sexuais, pois a condessa mantm igualmente em casa um certo Brauchle, ao mesmo tempo seu camareiro, amante e preceptor dos seus filhos: homem, alis, sombrio, que mais tarde ser acusado de ter provocado a morte dos dois filhos da condessa e o suicdio da sua filha. Triste destino teve essa mulher, que morrer em 1837 em consequncia do pio. Beethoven no tardar a deixar essa casa, esse ambiente que ele julga nocivo, no sem dedicar condessa seus dois Trios op. 70. Ele se sente humilhado, ridicularizado, talvez rejeitado uma vez mais como amante. Suas relaes com Marie Erddy sero uma srie de desavenas e reconciliaes: em 1817 dedicar a ela as sonatas para violoncelo em d e em r op. 102. Ele se muda e se instala num prdio da Walfischgasse na verdade, um bordel. Existe em Viena um setor de estudos eruditos muito particular, que recenseia as moradias ocupadas por Beethoven ao longo da sua vida na cidade. Os especialistas calculam que chegam a quarenta, o que permite colocar placas nas construes ainda em p e s vezes criar pequenos museus. De todas, a de Heiligenstadt, que parece autntica, a mais comovente e evocadora. Estranho percurso, o dessas moradas beethovenianas: seguimos os traos de uma vida errante, mesmo no permetro reduzido da cidade imperial, como uma fuga permanente, uma busca jamais terminada. [1] Farmacutico vulgar e moralista de Madame Bovary, de Flaubert. (N.T.) Uma apoteose Na realidade, ele vive um impasse. Viena est longe de lhe oferecer a fortuna e as facilidades que poderia legitimamente esperar. H tambm a hostilidade de alguns membros da aristocracia, que seu comportamento incontrolvel e suas ideias polticas exasperam, as reaes instveis do pblico diante das formas novas que ele procura impor, a aproximao dos quarenta anos, a solido afetiva... Quem ainda se interessaria por ele? Que mulher aceitaria compartilhar sua vida sofrida, atrapalhada, a surdez crescente, os horrios desregrados, os arrebatamentos, o carter colrico? Stephan von Breuning se casou com a filha de um ex-mdico de Beethoven, Julie Vering. Ludwig dedicou ao amigo o Concerto para Violino e, Julie, a transcrio que acaba de fazer dele para a edio londrina. Por um tempo ele frequenta o lar do jovem casal, passando noites a tocar msica com eles, pois Julie uma boa pianista. Depois no aparece mais. Breuning se surpreende: teria Beethoven se enamorado de sua jovem esposa? algo que nele j virou rotina, menos uma fantasia de predador do que uma maneira de se apropriar um pouco dessa felicidade conjugal que lhe recusada. Ele pensa em deixar Viena. Uma proposta estranha lhe foi feita: o cargo de Kapellmeister do Estado da Vestflia, onde Jrme Bonaparte, o irmo mais jovem do imperador, apoderou-se do trono. Estado de opereta, rei de opereta. Napoleo coloca os membros da sua famlia, cercados de alguns funcionrios franceses, frente de Estados conquistados por seu ardor militar e que preciso administrar em tempos de paz. Situao insustentvel, um falso avano: Contanto que dure, dizia Letizia, a me do imperador. Mas no vai durar. Mesmo assim, Beethoven fica muito tentado. Prometeram-lhe um tratamento sedutor. Tudo fracassou em Viena, sua vida, seus amores, seus sonhos de glria e de independncia. Por um tempo ele poderia pr de lado suas pulses antifrancesas e antinapolenicas. Numa carta a Breitkpof e Hrtel, datada de 7 de janeiro de 1809, ele escreve: Enfim, vejo-me obrigado, por intrigas, conluios e baixezas de toda espcie, a deixar a nica ptria alem que nos resta. A convite de Sua Majestade o rei da Vestflia, parto como chefe de orquestra [...].1 O conluio no apenas fruto da sua imaginao. Seu carter ntegro e independente suscita uma hostilidade cega, a estranheza da sua obra, que no pode ser tratada com desprezo, faz com que nasa uma mistura de dio, incompreenso e obscuras invejas. Assim, ele vai ser o msico-valete de um reizinho de araque, incumbido de vigiar a casa como o cachorro da fbula de Esopo. Mas ele quer deixar Viena em grande estilo. Para isso conta ainda com alguns amigos. E, em 22 de dezembro de 1808, no teatro An der Wien, ocorre um dos concertos mais memorveis de toda a histria da msica, aquele que a gente no se conforma por no ter assistido, mesmo que pela simples razo de no ter nascido ainda. O programa, que compreende basicamente peas inditas, imenso, e o concerto vai durar mais de quatro horas. Na primeira parte: a Sinfonia Pastoral, um lied, um trecho da Missa em d e o Quarto Concerto para Piano. Na segunda parte: a Sinfonia em d menor (hoje a Quinta), um outro trecho da Missa em d, uma fantasia para piano solo (op. 77) e, por fim, a Fantasia para Piano, Coro e Orquestra, com o famoso tema que anuncia o Hino Alegria da Nona Sinfonia. o prprio Beethoven quem toca o piano. Uma apoteose, no que ele julga ser sua despedida de Viena. A orquestra do teatro, que lhe hostil, recusa que ele assista aos ensaios. Durante o concerto, na execuo da Fantasia para Piano, Coro e Orquestra, um incidente ocorre, que Ries relata: O clarinetista, chegando a uma passagem em que o belo tema variado do inal j comeou, inadvertidamente retomou oito compassos. Como nesse momento poucos instrumentos tocam, o erro de execuo tornou-se cruelmente sensvel aos ouvidos. Beethoven levantou-se, furioso, injuriou os msicos da orquestra da maneira mais ofensiva e to alto que todo mundo ouviu. Por fim, exclamou: Desde o comeo!. O tema foi retomado. Todos foram bem e o sucesso foi espetacular.2 Eis a uma prova, pelo menos, de que nessa poca Beethoven ainda ouve aceitavelmente. E o pblico, atordoado, escuta essa torrente musical, essa incrvel sucesso de obras-primas, entre as quais a Quinta Sinfonia (ento designada como a Sexta), esse trovo no cu musical com suas quatro notas de abertura lanadas como o destino que bate porta, segundo palavras que o prprio Beethoven teria dito. H muito esse tema musical obceca Beethoven. Alis, ele j aparece em obras anteriores, como se a composio da abertura de Coriolano, pouco tempo antes, tivesse traado o caminho de uma escrita musical realmente trgica. Como a Eroica, a Quinta Sinfonia ultrapassa e transcende a pompa e a nfase do gnero heroico, para atingir, partindo de um nada, como assinala Andr Boucourechliev, o equivalente musical das grandes tragdias antigas ou shakespearianas. Porque nessa obra trata-se, simplesmente, do combate heroico do homem contra as foras do Destino, de uma vitria possvel do criador frente hostilidade da sorte: um argumento prometeico, que pode ser considerado ingnuo ou simplista, mas cuja fora explosiva da obra coloca o ouvinte num estado de transe, de tenso, de terror, de entusiasmo que paralisa de estupor os que primeiro a escutaram. De onde vem o mistrio impactante dessa partitura? Hoffmann, novamente, fez muito cedo uma anlise musicolgica refinada que explica um pouco a obra, sobretudo em relao ao primeiro movimento, ressaltando a unidade temtica do conjunto, esta compacidade e este rigor de execuo inditos at ento: Todas as frases so curtas; compreendem apenas dois, trs compassos e so distribudas entre as cordas e os sopros, sempre a se alternar. Poder-se-ia pensar que essa maneira s capaz de produzir uma justaposio inapreensvel de elementos fragmentados, mas precisamente esse arranjo, bem como a repetio incessante de frases curtas e acordes isolados, que retm a alma prisioneira de uma indizvel nostalgia.3 Em relao ao quarto movimento, quando a orquestra retoma o tema triunfal aps um silncio que imaginvamos definitivo, ele observa: como um fogo que julgvamos extinto e cujas altas chamas claras no cessam de renascer.4 Evitei at agora, de propsito, falar de romantismo a respeito de Beethoven. Contemporneo de Goethe, Schiller, Byron, Chateaubriand, ele est imerso nesse vasto movimento esttico e poltico europeu que busca a emancipao individual pelo culto do eu, a reivindicao da liberdade, a celebrao da natureza; sob certos aspectos, ele ilustra esse movimento e, ao mesmo tempo, o ultrapassa. Pois Beethoven no mais romntico do que Czanne impressionista ou do que Flaubert naturalista. E tampouco menos. A Quinta Sinfonia, por sua tonalidade, suas entonaes que misturam o herosmo individual, o sublime e a melancolia, pode ser apreciada tanto como um manifesto romntico muito pessoal quanto como um ato de violncia que no deixa uma verdadeira herana. Beethoven sabe disso. uma coisa que sempre se sabe, sobretudo quem faz. O mito do artista inconsciente ou irresponsvel, guiado apenas pela inspirao, no passa de uma asneira pseudorromntica: a Quinta Sinfonia o fruto e a recompensa de um trabalho de tit. O que no priva Beethoven do seu senso de humor e da sua lucidez: no momento de corrigir sua obra para publicao, ele declarou que era inteiramente legtimo corrigir as obras quando no nos tomamos por Deus.5 Romntica a Sexta Sinfonia? Essa maravilhosa Pastoral, outra grande pea do concerto de 22 de dezembro de 1808? Certamente a celebrao da natureza, consoladora ou inquietante, hostil ou apaziguadora, reflexo da alma humana, de suas felicidades, de seus tormentos, de sua relao com o mundo e o Criador, um tema romntico por definio, seu prprio ncleo. O ttulo foi realmente dado por Beethoven, fato to raro que merece ser assinalado. Ela simetricamente oposta Quinta Sinfonia: aps a expresso do trgico e da revolta, o consentimento vida; a Pastoral se quer um retrato musical da natureza, influenciado em especial pela leitura de Goethe. Mas Ludwig sabe tambm o quanto ingnua e v a pretenso de imitar a natureza por meios sonoros: Antes expresso da sensao do que pintura6, ele anota margem da sua obra. Ou ainda: A Sinfonia Pastoral no um quadro; nela se acham expressas, em matizes particulares, as impresses que o homem sente no campo.7 Pois o melhor meio de imitar a natureza, como disse Goethe, criar... No entanto a Pastoral , de fato, uma sinfonia que ilustra um tema, na qual se introduzem algumas imitaes, cantos de pssaro, por exemplo, mesmo se todo espetculo perde em querer ser reproduzido demasiado fielmente numa composio musical: Despertar de impresses agradveis ao chegar ao campo, Cenas beira do riacho... A tempestade atraiu os raios de alguns crticos. Claude Debussy, em Monsieur Croche, censura Beethoven por ser responsvel por uma poca em que s se via a natureza atravs dos livros... Isso se verifica em A tempestade [...], na qual o terror dos seres e das coisas se esconde nas dobras do manto romntico, enquanto ressoa uma trovoada no muito sria.8 Debussy, s vezes, pensa melhor em msica do que sobre a msica. Dias de guerra Beethoven, no fim das contas, no deixar Viena. Ou o projeto se perdeu pelo caminho, ou ele renunciou no ltimo momento a ocupar esse cargo em Kassel, na Vestflia, ou seja, em parte alguma. verdade que uma fada madrinha intervm oportunamente: Marie Erddy, com quem ele ainda se relaciona. Ela defende a causa de Beethoven junto a amigos ricos: o arquiduque Rodolfo, o prncipe Kinsky e o prncipe Lobkowitz se unem para pagar ao artista uma penso anual de quatro mil florins, com a condio de que fique em Viena e continue a dar aulas ao arquiduque. Ele escapou na hora certa. O projeto Kassel era um beco sem sada. A guerra ameaa de novo a ustria e a Frana. Tropas se mobilizam em Viena em maro de 1809. A inteno proclamada expulsar os franceses. Beethoven comps um novo concerto para piano que ser seu ltimo, e o mais belo, o chamado O Imperador, ttulo particularmente imprprio, a menos que o compreendam no sentido de imperador dos concertos. Nesse momento, improvvel que ele possa se referir a Napoleo. margem da partitura, Beethoven faz estas anotaes belicosas: Canto de vitria para o combate Ataque! Vitria!. Sabemos que em msica, e em especial em Beethoven, a tonalidade que determina a atmosfera da obra: para o concerto O Imperador ele escolheu a tonalidade de mi bemol maior; a obra, essa catedral do concerto para piano, um canto de triunfo. Uma disputa violenta, mais uma, o afasta do seu querido aluno Ries. Esse ltimo recebeu a proposta do cargo na Vestflia que Beethoven recusou, ou para o qual desistiram dele. Ele leva a mal a coisa, acusando Ries de querer roubar seu lugar. M-f? Mal-entendido? Uma visita de Ries, que quer se explicar, acaba em uma troca de socos com o empregado de Beethoven, que lhe repete a suspeita do patro: Ries estaria agindo s suas costas. Aps a ruptura com a condessa Erddy, Beethoven se instala numa casa, junto s muralhas de Viena, que j havia ocupado brevemente em 1804. Ali encontra-se na primeira fila para assistir aos acontecimentos. Em maio de 1809, Viena cercada pelas tropas francesas, que venceram os austracos na Baviera. A famlia imperial foge. Beethoven gostaria de fazer o mesmo, mas seu contrato o retm em Viena. Ele escreve a Franz von Brunsvik: contrato infeliz, sedutor como uma sereia, ante o qual eu deveria ter tapado os ouvidos com cera e feito me amarrar fortemente como Ulisses para no assin-lo! [...] Adeus, caro amigo, seja isso para mim, no tenho outro a quem possa nomear desse modo. Faz o bem a teu redor, o quanto esse tempo ruim permitir.1 Em 11 de maio de 1809, Viena bombardeada. O rudo do canho uma tortura para os ouvidos doentes do compositor. No dia 13 a cidade ocupada. Napoleo precisar de duas batalhas terrveis, Essling, que ele perde em 22 de maio, depois Wagram, que vence em 6 de julho, antes que suas tropas se instalem realmente em Viena: seis meses de uma ocupao humilhante, marcada por pilhagens, dificuldades de abastecimento, vexaes dirias. Os impostos de guerra baixados por Napoleo assemelham-se a furiosas extorses de mafiosos. Beethoven ser at detido, suspeito de espionagem porque o viram tomando notas no caderno de composio. Seus esboos musicais no seriam mensagens cifradas? desse perodo que data a Sonata para Piano op. 81, Les Adieux. Adeus ao arquiduque venerado, Rodolfo, que deixou Viena em 4 de maio de 1809, com o terceiro movimento, O Retorno, festejando sua volta... Joseph Haydn morre em 31 de maio de 1809, desesperado por essa situao de derrota e de ocupao, ao som do hino nacional que comps e que tocam a seu pedido, enquanto agoniza. Meses sombrios de 1809. Beethoven obrigado a passar o vero na cidade, ele que ama tanto o repouso estival perto da sua querida natureza. Tem muita dificuldade de compor, como se devesse observar uma pausa depois dos anos de trabalho intenso que viram nascer tantas obras-primas. L muito, msica e poesia: Haendel, Mozart, Bach, cujas partituras pede a um editor para lhe enviar; Goethe, Schiller e Homero incansavelmente. Faz amizade com um francs, o baro de Trmont, auditor no Conselho de Estado em misso diplomtica, que admira profundamente sua msica e gostaria de lev-lo Frana. Beethoven patriota, mas ignora as mesquinharias nacionalistas. A Frana inimiga, no todos os franceses. Ele no renunciou a seu projeto matrimonial. Aps a assinatura do contrato que faz dele, supe-se, um partido aceitvel, chegou at a escrever ao amigo Gleichenstein para pedir que encontrasse para ele uma bela que combine talvez os suspiros s suas [dele] harmonias. Mas, acrescenta, preciso que seja bonita, no posso amar seno o belo caso contrrio seria obrigado a amar a mim mesmo.2 Essa bela que saber preencher sua vida madura, ele pensa ter encontrado na pessoa de Teresa Malfatti, a jovem sobrinha do seu mdico. Em que momento o amor o fulminou, a ponto de faz-lo pensar mais uma vez em casamento? Certamente na primavera de 1810, pois passou um inverno sofrido, debilitado pelas privaes impostas pela presena em Viena de 120 mil homens do exrcito napolenico. Ele est desiludido, ferido pelos acontecimentos recentes, pela derrota da ustria... Mas chega a primavera e ele escreve a Teresa uma carta que no deixa dvidas sobre seus sentimentos. Brincando, ele evoca o ser distante que vive em ns, estimula Teresa quanto a seus talentos musicais, d a ela alguns conselhos de leitura. A Zmeskall, pede um espelho para cuidar da sua aparncia, a Wegeler, que lhe envie de Bonn sua certido de batismo! O pedido de casamento est prximo. Mas ele no tarda a receber uma ducha fria. A famlia Malfatti recusa o casamento, a comear certamente por Teresa, que s tem por Ludwig o sentimento de respeito. Depois os pais. E por fim o tio, o mdico, que v em Beethoven um homem de ideias confusas.3 A notcia que voc me d me precipitou das regies do mais alto xtase a uma queda profunda4, ele escreve a Gleichenstein ao tomar conhecimento da sua desgraa. Mas quando acredita que tudo est perdido que ele ter um dos mais belos encontros da sua vida. Bettina e Goethe Bettina Brentano pertence a uma rica famlia de Frankfurt. Seu pai, burgus afortunado que afirma descender dos Visconti, desposou em segundas npcias a bela Maximiliana de Laroche, a me de Bettina. Maximiliana, quando tinha dezesseis anos, foi amada por Goethe antes de se casar com Pierre-Antoine Brentano. Amor platnico? Dizem que seu casamento inspirou a Goethe Os sofrimentos do jovem Werther. Bettina, com 25 anos em 1810, tambm uma amiga de Goethe. uma moa notvel: culta, musicista, apaixonada por poesia, aberta s ideias novas e que vibra com fervor aos ideais do romantismo. Goethe seu mentor intelectual, Beethoven seu dolo. Durante uma temporada em Viena na casa do seu irmo Franz von Brentano, ela procura encontr-lo. Franz von Brentano, banqueiro em Frankfurt que vive em Viena por algum tempo, casado com Antonie von Birkenstock. Beethoven amigo do casal. Visita com frequncia Antonie, que dizem de sade frgil, para lhe tocar piano. talvez com ela que Bettina vai pela primeira vez casa do compositor. Existe toda uma literatura sobre Bettina, uma das candidatas ao ttulo de Bem-Amada Imortal de Beethoven. Do encontro entre eles na primavera de 1810, ela mesma deixou testemunhos cativantes e preciosos sobre o Beethoven daquele ano, quando chegava aos quarenta... O nico problema uma carta supostamente escrita a Goethe em 1810 que, na verdade, teria sido redigida em 1835 motivo de disputas entre os exegetas que, em matria de estudos beethovenianos, lembram s vezes telogos construindo a partir do nada hipteses mirabolantes. Seja como for, os textos deixados por Bettina so os mais belos escritos sobre Beethoven, como mostram os trechos abaixo. Primeiro esta carta a Anton Bihler, datada de 9 de julho de 1810: S conheci Beethoven nos ltimos dias da minha temporada em Viena; por pouco no o teria visto, pois ningum queria me levar at ele, mesmo os que se diziam seus melhores amigos, temerosos da melancolia que o leva a no se interessar por nada e a tratar os estranhos com mais grosseria do que polidez. [...] Ningum sabia onde ele morava; na maior parte do tempo, permanece completamente escondido. Sua casa chama muito a ateno: na primeira pea, dois ou trs pianos, desmontados, bas onde esto seus pertences, uma cadeira de trs ps; na segunda pea, seu leito, que tanto no inverno quanto no vero consiste em um colcho e um no cobertor, uma bacia sobre uma mesa de pinho, as roupas de dormir no cho. Esperamos cerca de meia hora, pois ele estava justamente se barbeando. Por m, chegou. um homem baixo (por mais altos que sejam seu esprito e seu corao), pele escura, com marcas de varola no rosto, em suma o que as pessoas chamam de feio, mas tem uma fronte celeste, modelada de maneira to nobre pela harmonia que poderamos contempl-la como uma magnfica obra de arte, cabelos pretos, compridos e lanados para trs; parece ter apenas trinta anos. Ele mesmo no sabe sua idade, mas pensa ter trinta e cinco anos. [...] Esse homem tem um suposto orgulho que o faz no tocar por complacncia nem para o imperador ou para os duques que lhe pagam uma penso, e em toda a Viena raro ouvi-lo. Quando lhe pedi que tocasse, respondeu: Ora, por que devo tocar? E eu disse: Porque amo encher minha vida de coisas magncas, e porque sua interpretao marcar poca na minha vida. [...] De repente ele esqueceu tudo o que o cercava e sua alma se lanou num oceano de harmonia. Senti por esse homem uma ternura innita. Em matria de arte, mostra-se to senhor e to verdadeiro que artista nenhum o iguala. Mas, no restante da sua vida, to ingnuo que possvel fazer com ele o que se quiser. Sua distrao motivo de troa; os outros se aproveitam tanto disso que raro quando tem dinheiro para obter o estritamente necessrio. Amigos e irmos o exploram; suas roupas esto rasgadas, parece um maltrapilho, mas mesmo assim seu aspecto imponente e magnfico.1 As palavras da jovem revelam um amor nascente, se no uma paixo primeira vista, com certa tendncia para a exaltao e o sublime. Mas o retrato impressionante. Na famosa carta a Goethe, cuja data incerta, Bettina relata frases ditas pelo prprio Beethoven. Trata-se evidentemente de uma reconstituio, talvez a partir de notas tomadas durante as conversas ou pouco depois. O tom dessas frases com frequncia elevado, o que no corresponde muito ao que se sabe do linguajar beethoveniano, bem mais spero. Mas no fundo se desenha a arte musical e potica de Beethoven. Aps uma longa homenagem a Goethe, quem ele sonha conhecer, Ludwig fala da sua viso do mundo pela msica: O esprito se estende at uma generalidade sem limites, forma para si toda uma camada de sentimentos suscitados pelo simples pensamento musical que, de outro modo, se extinguiriam sem deixar vestgios. Eis a a harmonia. o que se acha expresso nas minhas sinfonias; mistura de formas mltiplas que, ao se fundirem e se amalgamarem num todo, se dirigem juntas ao mesmo objetivo. Ento realmente a presena de algo de eterno, de ininito, de inapreensvel se faz sentir e, muito embora penetrado em cada uma das minhas obras pelo sentimento do xito, sinto mesmo assim, no momento em que a ltima batida dos tmpanos impe a meus ouvintes minha convico e meu gozo, sinto como uma criana a eterna necessidade de recomear o que me parece acabado. Fale de mim a Goethe! Diga-lhe que deve ouvir minhas sinfonias! Ele concordar comigo que a msica a nica e imaterial entrada num mundo mais alto do saber, que envolve o homem sem que este possa perceb- lo. Para que o esprito possa conceb-la em sua essncia, preciso que ele tenha o sentimento do ritmo; graas msica, temos o pressentimento, a inspirao das coisas divinas. E o que o esprito recebe dela pelos sentidos uma revelao espiritual encarnada.2 Talvez mais Bettina do que Ludwig. No importa. Beethoven est encantado com o fascnio que exerce sobre essa moa de to grande talento. Alm do mais, ela amiga ntima de Goethe, cuja obra ele venera... Fale de mim a Goethe! Atravs dela ele espera entrar em contato com o grande homem, talvez conhec-lo pessoalmente. Mas ter que esperar ainda dois anos. Ele musicara poemas de Goethe nos anos anteriores: quatro melodias para soprano e piano (WoO 134), reunidas sob o ttulo Sehnsucht (Aspirao); alguns lieder (op. 75), entre os quais Kennst du das Land, que ele mesmo canta a Bettina Brentano quando ela vem visit-lo; e os trs lieder op. 93, que enviar a Goethe por intermdio de Bettina, sem receber resposta nem agradecimentos: para Goethe, a ateno e a cortesia no so virtudes essenciais. E ele acaba de compor a msica de Egmont, baseada na obra do mesmo Goethe, glorificao de um heri que luta pela liberdade. Sobre esse texto, concebeu uma msica grandiosa, pica. Contempornea do concerto O Imperador, ela um pouco negligenciada, injustamente, pelos intrpretes e os melmanos. Egmont o heri do povo que, por fidelidade a seu ideal, recusa as intrigas polticas maquinadas por Maquiavel. Situado em Bruxelas em meados do sculo XVI, o drama de Goethe expe o fracasso dessa atitude frente velhacaria de Guilherme de Orange, seu companheiro que o traiu, e a crueldade do duque de Alba. Egmont aceita morrer pelo povo em nome da liberdade. Sobre esse tema que tanto se assemelha a ele, Beethoven escreveu uma msica de cena tingida de idealismo heroico, tensa ao extremo, uma verdadeira sinfonia em dez trechos que, apesar da morte do heri, termina em canto de vitria. Entre Bettina Brentano, Beethoven e Goethe, se estabelece um jogo do qual Goethe no sai engrandecido, opondo sua indiferena de celebridade consagrada ao entusiasmo admirativo do compositor. A temporada de Bettina em Viena curta, mas Beethoven se sente revigorado por esse encontro. No comeo do vero de 1810, trabalha no seu Dcimo primeiro quarteto, uma obra magnfica e sombria, marcada por fortes oposies, terminando num movimento triunfal que lembra muito a abertura de Egmont. A felicidade me persegue, ele escreve a Zmeskall em 9 de julho de 1810, e j tenho medo, por essa razo, de uma nova infelicidade.3 A felicidade? certamente o encontro com Bettina, cujo encantamento se prolonga. Apesar das preocupaes com dinheiro (seus mecenas, arruinados pela guerra, relutam em lhe pagar a penso: Algo mais pequeno que os nossos Grandes, isso no existe4, ele pragueja), a esperana parece voltar. Estaria apaixonado por Bettina? Uma carta que lhe escreve em 11 de agosto de 1810 no deixa muitas dvidas: No h primavera mais bela do que a deste ano, eu lhe digo e sinto assim, porque a conheci.5 Ela um anjo, ele a chama Bettina querida, perguntando, de passagem, se falou dele a Goethe... Desde que voc partiu, tive horas de tristeza, horas de escurido nas quais nada se pode fazer.6 Se no amor, muito parecido. O que Ludwig ignora que Bettina vem sendo cortejada h muitos meses pelo poeta Achim von Armin. Ela resiste, no se interessa muito por ele. No entanto, acabar se casando com ele no ano seguinte casamento de convenincia, sem amor? Sua carta a Bihler mostra-a muito perturbada, ou mais do que isso, pelo encontro com Beethoven. Mas ela est longe... Nesse ms de agosto de 1810, justamente, Bettina passa uns dias em Teplice, na Bomia, junto a Goethe. A acreditar em Romain Rolland, o comportamento do grande homem com a jovem no muito reluzente: Goethe tem uma velhice lbrica e pouco respeitosa. Bettina aproveita para lhe falar sem cessar de Beethoven, sem que o escritor se mostre interessado. Goethe, mestre da poesia, do teatro, do romance, pensador brilhante, esprito universal, tem um defeito: no entende grande coisa de msica. Ele, cujos versos os maiores compositores, em particular Franz Schubert, ornaro com sublimes melodias, pouco sensvel ao gnio musical. Certamente por ser mal orientado: seu conselheiro musical e amigo, Zelter, professor de harmonia, msico bastante limitado e um tanto carola, v no oratrio O Cristo no Monte das Oliveiras uma falta de pudor cujo fundo e o alvo so a morte eterna.7 Esse solene cretino critica Beethoven por empunhar a maa de Hrcules para esmagar moscas e encolhe os ombros diante da exposio desse talento que nada faz alm de dar consistncia a bagatelas.8 Com tais julgamentos, a reputao de Beethoven junto a Goethe est feita. Bettina se revolta. Em dezembro de 1810, escreve a Goethe uma violenta carta na qual nada esconde do que pensa de Zelter, uma carta inflamada, quase um manifesto: Zelter no deveria se opor a Beethoven; ele se enrijece diante da msica, como uma tbua de madeira. O que conhecido ele tolera, no porque compreenda, mas porque est acostumado, como o asno sua carga diria. [...] Toda arte se empenha em rechaar a morte, em guiar o homem ao irmamento; mas, onde os incultos montam guarda ao redor, ela se mantm humilhada e de cabea tonsurada: o que devia ser livre vontade e vida livre no mais do que mecanismo; e assim, por mais que se espere e acredite, dela nada sair.9 Goethe recebe essa carta com placidez e responde simplesmente a Bettina: Voc est imaginando, nessa sua cabecinha, fantasias inverossmeis em relao s quais no quero te dar lies nem te importunar.10 Alguns meses mais tarde, casada e decidindo enfim a se abrir com Goethe, ela retoma seus arroubos em favor de Beethoven, sem muito mais sucesso: Goethe faz ouvidos moucos. Beethoven um homem sem posio social eminente, sem fortuna. No tem nem a habilidade nem a capacidade da impostura que propulsionam as carreiras. Para Sua Excelncia o Conselheiro Goethe, isso no algo que advogue em seu favor. Alm do mais, sua msica... possvel at que a insistncia devota que Bettina manifesta tenha acabado irritando Goethe, pois as relaes dos dois j no se mostram to estveis. Mas Bettina no a nica a desejar o encontro dessas duas distintas figuras do gnio alemo: Beethoven conta entre seus amigos um jovem de excelente famlia, Franz Oliva, banqueiro de profisso, o que no o impede de ser um msico culto. Ele s vezes desempenha junto a Beethoven, como outros, o papel de secretrio. E encarregado de agir como mensageiro junto a Goethe, levando-lhe uma carta de Ludwig, decididamente obstinado. Uma carta, alis, em que ele demonstra grande humildade: Bettina Brentano me assegurou que o senhor me acolheria com benevolncia e at mesmo com amizade. Mas como eu poderia pensar em tal acolhida, quando mal sou capaz de me aproximar do senhor com o maior respeito, com um inexprimvel e profundo sentimento por suas magnficas criaes?.11 A carta chega s mos de Goethe em 4 de maio de 1811. Desta vez ele vai responder, aps um tempo. E Beethoven tem enfim, dois meses mais tarde, o sinal por que tanto esperou: o grande homem recebeu sua carta amistosa, por intermdio de Herr Von Oliva, com um grande prazer, jamais tendo ouvido suas obras, tocadas por grandes artistas, sem esperar pela ocasio de um dia admirar seu autor ao piano e deleitar-se com seu extraordinrio talento. E ele prossegue: A boa Bettina bem que merece a simpatia que demonstra por ela. Fala do senhor com exaltao e com a mais viva simpatia. Conta as horas que passou em sua companhia entre as mais felizes de sua vida. [...] Certamente o senhor encontrar em Weimar uma recepo digna dos seus mritos. Mas ningum pode estar mais interessado na sua vinda do que eu, que exprimo meu cordial agradecimento por tantos bens que j recebi do senhor.12 Essas palavras so um modelo de hipocrisia diplomtica, mas Beethoven exulta. Goethe, o imenso Goethe, lhe respondeu! Por certo ele moderaria o entusiasmo se soubesse o que o escritor disse da sua msica a Sulpiz Boissere, um dos seus amigos, durante a visita de Oliva, que lhe tocou uma de suas obras ao piano: Isso quer abarcar tudo e se perde sempre no elementar. Na verdade, belezas infinitas no detalhe. [...] Quem oscila desse modo h de perecer ou ficar louco. [...] Ns, velhos, acabaremos loucos furiosos quando tivermos de ver ao nosso redor esse mundo em deliquescncia, que retorna aos elementos, at que sabe Deus quando surja a primavera.13 Um homem das Luzes, que v morrer o mundo antigo sob as invectivas do romantismo que ele ajudou a criar, e que no se consola com isso. Os encontros com Goethe, breves e tempestuosos, s acontecero no ano seguinte. A obra mais marcante do ano de 1811 o trio op. 97 para piano, violino e violoncelo Ao Arquiduque, dedicado ao arquiduque Rodolfo: uma composio importante da msica de cmara, ampla e lrica, com uma expressividade marcada por moderao e nobreza. Ele a escreveu em maro, quando Rodolfo, ferido num dedo e ocupado com festividades, se mostra menos presente e vido de lies. Ele compe tambm duas obras de encomenda, As Runas de Atenas e Rei Estevo, para a inaugurao do Teatro Nacional e Imperial de Pest, na Hungria. Seu projeto interesseiro: est de olho num cargo de mestre de capela, pois a Dieta da Hungria, que deve designar um novo primaz, pensa no arquiduque Rodolfo. Mas ele encurtar uma temporada em Teplice ao saber que o projeto foi abandonado, j que o arquiduque recusara o cargo. Obras que no serviriam para nada? Quem no vibrou s entonaes da marcha turca de As Runas de Atenas no sabe o que o xtase dionisaco em msica... No vero de 1811, portanto, Beethoven passa pela primeira vez uma temporada em Teplice, na Bomia. uma cidade termal para onde vo sobretudo os que sofrem de astenia: o mdico de Beethoven lhe aconselhou essa cura para tratar sua surdez, que se supe devida a uma falta de dinamismo das zonas da audio. Estranhos itinerrios da medicina. Quem disse que ele era apenas um selvagem intratvel? Teplice frequentada pela boa sociedade, pessoas de qualidade que o aproximam um pouco de Goethe, sempre inacessvel. L ele conhece Rahel Levin e seu noivo, o escritor Karl August Varnhagen von Ense. Brilhante, culta, Rahel pertence a uma famlia judaica de comerciantes e mantm em Berlim um renomado salo onde se rene a fina flor do romantismo. Os dois so amigos de Goethe, que aprecia pessoas afortunadas. Rahel cerca de quinze anos mais velha do que o noivo, e forma com ele um casal improvvel e frgil, pois Varnhagen bastante chegado ao belo sexo. Mas eles se aproximam de Beethoven, e Varnhagen escreve sobre o msico palavras extremamente calorosas: Nos ltimos dias do vero, conheci em Teplice Beethoven e encontrei nesse homem, tido injustamente como selvagem e insocivel, um excelente artista de corao de ouro, um esprito sublime e uma amizade generosa. O que ele recusou com obstinao a prncipes nos foi concedido com generosidade: tocou piano para ns. Logo iquei ntimo dele, e seu carter nobre, o elvio ininterrupto de um sopro divino que acreditei perceber com um sagrado respeito no seu crculo mais prximo, alis muito tranquilo, me ligou to fortemente a ele que no prestei ateno, durante os dias, ao incmodo das conversas, que logo se tornam fatigantes por causa da sua surdez.1 Quanto a Rahel... Teria havido um romance entre eles, nesse vero de 1811, enquanto o jovem poeta corria atrs de jovens beldades? Alguns pensam que sim, j que Beethoven gosta de viver sombra dos maridos ou dos noivos, bom pretexto para no se comprometer mais adiante. mais provvel, embora uma coisa no impea a outra, que Beethoven, em Teplice, tenha ficado impressionado e atrado por uma jovem que acompanha o poeta Tiedge, autor de An die Hoffnung [ esperana], que ele musicou em 1804 para Josefina Deym: trata-se de Amalie Sebald, uma cantora pela qual Beethoven alimentou por um breve tempo ternos sentimentos, como o atesta uma carta a Tiedge: A Amalie, um beijo ardente, se ningum nos v.2 Alguns viram mesmo em Amalie a Bem-Amada Imortal, essa mulher misteriosa que vai lhe inspirar, no ano seguinte, a carta que deu tanto o que falar. Essa carta data dos primeiros dias de julho de 1812. Beethoven passou um ano exasperante. As preocupaes com dinheiro o atormentam. A guerra deixou a ustria exaurida e houve uma desvalorizao drstica: as rendas de Beethoven j no valem quase nada. Ele fulmina contra os vienenses, contra a barbrie austraca3, acalenta novos projetos de partida, rapidamente abortados. Pensou em partir para a Inglaterra, mas a guerra ameaa de novo: Napoleo se prepara para marchar em direo Rssia. No comeo de julho, aps uma passagem por Praga, Beethoven vai de novo a Teplice. Aps a morte de Beethoven, foi encontrada entre seus papis com o Testamento de Heiligenstadt esta carta. Se faltava um documento para revestir com um pouco de lenda uma vida em poucas palavras difcil e infeliz, a falta foi preenchida. A carta suscitou quase tantos questionamentos, exegeses, suposies, conjecturas e hipteses quanto um evangelho. Ela nada traz de novo sobre Beethoven, seu carter, suas reaes amorosas, que no suspeitssemos. Simplesmente envolve um momento de sua vida naquele mistrio que completa os destinos. Beethoven chegou em Teplice em 5 de julho, s quatro da manh, aps uma viagem difcil. No dia seguinte escreveu: 6 de julho, de manh. Meu anjo, meu tudo, meu eu, hoje apenas algumas palavras, e mesmo a lpis (com o teu); no ser amanh que meu alojamento estar denitivamente estabelecido; que miservel perda de tempo para tais coisas! Mas por que essa profunda tristeza quando a necessidade fala? Pode nosso amor existir a no ser por sacrifcios, pela obrigao de nem tudo pedir, pode voc no ser toda minha e eu todo seu? Ah, Deus, contempla a bela natureza e tranquiliza teu esprito sobre o que deve ser o amor exige tudo e com toda a razo, assim com voc e comigo mas voc esquece to depressa que devo viver para mim e para voc se estivssemos inteiramente juntos, sentiramos muito pouco essa dor. Minha viagem foi terrvel! S cheguei ontem s quatro horas da manh! Como faltavam cavalos, a diligncia tomou outro caminho, mas que caminho pavoroso; na penltima parada, me aconselharam a no viajar noite me falaram, para me assustar, de uma oresta a transpor, o que me excitou ainda mais, e cometi um erro, o carro teria se partido nesse terrvel caminho de terra intransitvel se no fossem meus postilhes, eu teria cado na estrada. Esterhzy, que seguiu o caminho comum, teve a mesma sorte, ele com oito cavalos, eu com quatro o que me deu certo prazer, como sempre acontece quando consigo superar um obstculo. Mas voltemos depressa do exterior ao interior! Certamente no nos veremos em breve, assim hoje s posso te comunicar observaes que z sobre a minha vida durante esses poucos dias se nossos coraes estivessem sempre apertados um contra o outro, eu no as faria. O corao est repleto demais para poder te dizer alguma coisa ah! h momentos em que acho que a palavra ainda no absolutamente nada alegre-se continue sendo meu el, meu nico tesouro, meu tudo, como eu para voc; quanto ao resto, os deuses decidiro o que deve ser e o que h de vir para ns. Teu fiel Ludwig Sexta-feira, 6 de julho, noite. Voc sofre, voc, minha mais cara criatura h pouco eu soube que as cartas devem ser postadas de manh cedo. Segunda-feira quinta-feira so os nicos dias em que a posta-restante parte daqui para K. [Karlsbad] Voc sofre ah, onde estou voc tambm est, e farei de tudo para que eu possa viver com voc, que vida!!! assim!!! sem voc perseguido aqui e ali pela bondade dos homens que desejo merecer embora pouco a merea humildade do homem diante do homem ela me aige e, quando me considero no conjunto do universo, o que sou eu e o que aquele que chamam de Supremo? No entanto tambm a est o elemento divino do homem Choro quando penso que voc s receber provavelmente no sbado esta minha primeira notcia seja qual for teu amor por mim, te amo ainda mais mas nunca se esconda de mim boa noite como banhista das termas, preciso dormir. Ah, Deus to perto! to longe! Nosso amor no uma verdadeira construo celeste, to slida quanto o firmamento? Manh cedo, 7 de julho no leito os pensamentos j se lanam em tua direo, minha Bem-Amada Imortal, s vezes alegres, depois novamente tristes, perguntando ao destino se ele atender nossos pedidos. Viver, s possvel inteiramente contigo ou impossvel, resolvi mesmo vagar ao longe at o dia em que puder voar para teus braos, quando s ento estarei na minha ptria, pois, cercado por ti, poderei mergulhar minha alma no reino dos espritos. Sim, infelizmente preciso voc se resignar melhor quando souber da minha delidade, nenhuma outra pode possuir meu corao, nunca nunca Deus, por que devemos nos afastar do que amamos? No entanto minha vida em V. [Viena] agora uma vida miservel teu amor fez de mim ao mesmo tempo o mais feliz e o mais infeliz dos homens na minha idade eu precisaria de uma vida mais uniforme, mais estvel pode ela existir, havendo nossa ligao? Anjo, acabo de saber que a posta parte todos os dias assim preciso parar de escrever a m de que receba esta carta em seguida. Fique calma, somente atravs de uma contemplao descontrada da nossa existncia poderemos atingir nossa meta, que viver juntos que calma me ame hoje ontem oh que aspirao banhada de lgrimas por voc voc voc minha vida meu tudo adeus Continue a me amar no esquea nunca o corao muito fiel Do teu amado L. eternamente teu eternamente minha eternamente ns4 A tentativa de resoluo do enigma da Bem-Amada Imortal tornou-se uma passagem obrigatria da exegese beethoveniana. Antes de lembrar as diferentes e numerosas hipteses que foram propostas, para depois assinalar a soluo que parece se impor no momento em que escrevemos e antes da prxima... , nos permitiremos algumas observaes. Em primeiro lugar, j que essa carta foi encontrada na casa de Beethoven, duas possibilidades se impem: ou ele nunca a enviou, ou ela lhe enviou de volta ou devolveu por motivos de discrio. No primeiro caso, pode ser que Beethoven a julgasse deslocada, inconveniente, v, testemunho de um arrebatamento amoroso que se parece muito com um surto. Sabemos que esse eterno apaixonado, e tambm muito volvel, podia conhecer tais crises, s vezes prximas do delrio, que beiram um pouco a mitomania. O prprio tom da carta traduz um estado em que a exaltao ertica se mistura com uma alegoria tradicional dos contos germnicos: passagem numa floresta escura numa noite de tempestade (circunstncia, alis, autntica), provao inicitica antes da revelao do xtase. Quanto ao sonho de vida em comum e de felicidade a dois, o perptuo recusado que Beethoven fez dele o fundamento da sua psique amorosa, ao mesmo tempo desejo e temor, wishful thinking e m-f de que ele por certo no tem uma clara conscincia. Uma vez passada a crise, ele pde guardar a carta entre seus papis, como quem perde as iluses. No segundo caso, ou seja, se a carta lhe foi devolvida, mais simples ainda: uma vez mais, ele se iludiu sobre os sentimentos do objeto de seus desejos. Resta saber quem a mulher a quem se dirige essa prosa incandescente. Aqui os ces de caa entram em cena. Por muito tempo eles no chegaram a um acordo sobre o ano da carta, e nem sempre concordam sobre a identidade da pessoa. Mas verdade tambm que a pesquisa exegtica progrediu consideravelmente em dois sculos: novos documentos apareceram, investigaes que permitem seguir os deslocamentos dos interessados atravs de registros em hotis e cartas, todos concordando hoje em relao ao ano: 1812. Mas para Schindler, que se dizia ntimo de Beethoven e seu nico amigo, que foi seu primeiro bigrafo e o responsvel pelo holocausto de muitos de seus cadernos, o encontro teria se passado em 1806, ou mesmo em 1803, e a Bem- Amada Imortal seria Giulietta Guicciardi. Thayer, o primeiro bigrafo srio de Beethoven, cujo livro foi retomado e completado por Deiters e depois por Elliot Forbes em 1964, no se pronuncia. Para outros bigrafos, as candidatas so as duas irms Brunsvik, Teresa e Josefina. Mas nessa poca as irms Brunsvik, e Josefina em particular, quase no esto mais presentes na vida de Ludwig. Amalie Sebald foi evocada. E mesmo a recm-chegada que ele conheceu em Teplice no ano precedente, Rahel Levin. Numa investigao minuciosa, intelectualmente satisfatria, o que afinal o objetivo da soluo dos enigmas e das charadas, Maynard Solomon, cotejando informaes, procedendo a eliminaes e a dedues que se leem como um romance policial da poca imperial, chega nica soluo que lhe parece verossmil: a Bem-Amada Imortal Antonie Brentano, em solteira Antonie von Birkenstock, a cunhada de Bettina. Essa mulher melanclica, frgil, saudosa da sua terra natal, a quem Beethoven, atento e discreto, vinha a Viena trazer os tesouros de seus talentos de pianista como amigo ntimo, desempenhou na vida sentimental dele um papel considervel. Dez anos mais tarde, ele dedicar a ela suas Variaes para Piano sobre uma Valsa de Diabelli , imponente obra da literatura pianstica. Est provado que Antonie Brentano se encontrava em Praga no comeo de julho de 1812, onde Beethoven pde v-la a prosa do apaixonado conserva o trao de um xtase recente e a seguir em Karlsbad, para onde a carta devia ser enviada. E Beethoven est certo de rev-la em breve: de fato, ele ir a Praga durante esse vero. Claro que esse conjunto de provas no constitui uma certeza definitiva. Alis, isso tem muita importncia? Alguns dias depois, em 19 de julho de 1812, ainda em Teplice, Beethoven encontra-se finalmente com Goethe! o prprio grande escritor, por insistncia de Varnhagen, quem vai visit-lo. um fato que, quando duas personalidades excepcionais se encontram, geralmente tm pouco a se dizer. Universos singulares, rivalidade, caminhos paralelos que no se unem sem contar que a amizade, misteriosa alquimia, no se decreta. Eles so muito diferentes. Goethe, refinado, elegante, mundano, diplomtico e grande escritor ao mesmo tempo; Beethoven, direto, franco, sem cerimnias e descuidado. Alis, os dois no se julgam to mal: O ambiente da corte agrada muito a Goethe escreve Beethoven, lcido mais do que convm a um poeta. Por que rir do ridculo dos virtuoses, se os poetas, que deveriam ser os primeiros educadores de uma nao, esquecem todo o resto por essa quimera?.5 Quanto a Goethe, fica impressionado e, no mesmo dia do primeiro encontro, escreve sua mulher: Eu nunca tinha visto um artista mais fortemente concentrado, mais enrgico, mais interior. Compreendo muito bem que sua atitude deva parecer extraordinria ao resto do mundo. E, no comeo de setembro, Goethe escreve a Zelter: Conheci Beethoven em Teplice. Seu talento me encantou, mas infelizmente uma figura indmita que por certo no se engana de achar o mundo detestvel, mas que no o torna agradvel nem para si nem para os outros.6 O que se passa durante esses encontros? Eles falam, procuram se familiarizar. Beethoven toca piano para Goethe. Ocorre durante esses dias um episdio talvez apcrifo, pois contado muito tempo depois (em 1832) por Bettina Brentano, ento de mal com o escritor e sobretudo com a imponente Frau Goethe: enquanto passeiam de braos dados, conversando nos jardins pblicos, Beethoven e Goethe teriam cruzado com a famlia imperial. Goethe teria se curvado em mesuras, enquanto Beethoven passou no meio dos duques e mal levantou o chapu. Estes, separando- se dos dois lados para lhe dar passagem, o saudaram muito amistosamente. Depois que passaram, Beethoven se deteve e esperou Goethe, que havia se desviado com profundas reverncias. Disse ento a ele: Eu o esperei porque o respeito e o estimo como merece, mas o senhor lhes prestou honras em demasia.7 A histria boa. E, como dizem os italianos, si non vero, ben trovato. Os dois homens no voltaro a se ver. O encontro dos dois alemes mais admirveis do seu tempo no deu em nada. Jamais, em nenhum dos seus escritos, Goethe faz a menor aluso a Beethoven. E todas as cartas do msico, da por diante, ficaro sem resposta. Ele deixa Teplice no final de julho rumo a Karlsbad, onde d um concerto de caridade em 6 de agosto. Teria ento visto a Bem-Amada Imortal? Sabemos que Antonie Brentano encontrava-se ali nesse momento, com o marido. De volta a Teplice, num setembro frio e chuvoso, ele reencontra Amalie Sebald, com quem retoma contato numa atmosfera de camaradagem mesclada com um pouco de flerte. Deixa-se tratar como um tirano, o que ele em alguns momentos, aproveita-se da situao num tom de brincadeira, s vezes de forma mais explcita. Na verdade, no est bem e adoece. Amalie, que vai visit-lo quando ele pode receb-la, procura cuidar dele. Estaria apaixonada? Ela conservar a vida inteira um cacho dos cabelos de Beethoven, cortado de sua cabea em Teplice, por volta do final do setembro de 1812...8 Em meio a esses encontros e a essas excitaes amorosas, ele acha tempo de trabalhar como de costume, isto , constantemente. A arte no admite repouso nem interrupes. Ludwig sempre traz consigo um caderno no qual rabisca as ideias que lhe vm. Nesse ano, d um acabamento sua Stima Sinfonia em l maior. De onde tirou foras para compor, e terminar em abril, essa obra imponente, de uma beleza orquestral e de tamanha energia rtmica que Wagner a cognominar Apoteose da dana? uma verdadeira festa, uma saturnal em que irrompe uma alegria sobre-humana, exprimindo um sentimento de triunfo libertador assim ela recebida pelo pblico do concerto de 8 de dezembro de 1813, quando tocada junto com A Batalha de Vittoria ou A Vitria de Wellington. O alegretto mistura o ritmo majestoso de uma marcha a uma espcie de meditao lrica que se eleva at o sublime, a tal ponto que precisou ser bisado na primeira apresentao para um pblico levado s lgrimas. tambm nesse mesmo vero de 1812, to frtil em acontecimentos, que compe sua Oitava Sinfonia, essa pequena sinfonia em f que parece quase apressada no encadeamento de seus movimentos, mas que traduz um constante jbilo. Beethoven tinha uma predileo por essa sinfonia menos admirada que a Stima e que teve uma acolhida mais discreta. Ficou magoado com isso, por consider-la bem melhor.9 No outono de 1812 acontece um curioso episdio, que lana uma luz um tanto desfavorvel sobre as concepes morais de Beethoven. Seu irmo caula Johann, farmacutico em Linz, inicia um caso amoroso com uma mulher de costumes considerados discutveis, Teresa Obermeyer. Cimes? Sobressalto de pudiccia? Reflexo do cl? Velho rancor que busca apenas um pretexto para explodir em violncia tirnica? Teresa, verdade, me de uma filha de pai desconhecido. Imediatamente, Beethoven corre a Linz. Parece furioso. Injrias, rixa com o irmo: na famlia Beethoven, as diferenas se resolvem mediante punhos. Ele quer que a intrusa desaparea da vida do irmo. Chega at a alertar as autoridades da cidade e o bispo para que a expulsem. O caso dura cerca de um ms. No final, Johann pega o irmo de surpresa: ele se casa com a amante. Ludwig assiste cerimnia praguejando, ele que no consegue se casar, e j no dia seguinte volta a Viena. Pelo menos, durante essa tragicomdia familiar bastante lamentvel, concluiu sua Oitava Sinfonia... Depresso Trabalho demais, tenses demais, demasiadas emoes e decepes sentimentais. Sua obra imensa, magnfica, excepcional e sua vida um desastre. O episdio Johann, do qual ele talvez no se orgulhe muito, lhe deixou um gosto amargo. Famlia confusa. Seu irmo Karl no vale muito mais. Ludwig o acusa de lhe roubar as partituras, que ele perde com frequncia na desordem de seus pertences. Um dia ele irrompe na casa de Karl, o insulta. Os dois se atracam. A esposa de Karl, que reencontraremos em breve, procura separ-los. Karl tira as partituras de uma gaveta. Novos insultos de Ludwig, pedidos de perdo de Karl... Pouco tempo depois, eles voltam a se encontrar na ponte Ferdinando. Karl, j atingido pela tuberculose, parece um morto-vivo. Ludwig o cobre de beijos, chama um fiacre para lev-lo de volta para casa. Transeuntes assistem cena, estupefatos. A falta de dinheiro se torna inquietante. Sua penso s lhe paga esporadicamente. O prncipe Kinsky, um dos mecenas, morre em uma queda de cavalo. Apenas o arquiduque Rodolfo continua a sustent-lo com regularidade. De 1813 a 1818, a produo de Beethoven diminui de forma espetacular. Como se tivesse necessidade de retomar flego aps tamanho esbanjamento de energia criadora e o surgimento de tantas obras-primas. Os acontecimentos da sua vida podem explicar essa pausa relativa. Mas por ora, no final de 1812 e nos primeiros meses de 1813, h uma razo maior para a apatia: ele est abatido. E mesmo deprimido. A palavra ainda desconhecida, mas a coisa no: o que chamam melancolia, ou mal do sculo, no movimento romntico. motivo de algumas mortes, seja por suicdio ou por definhamento fsico. Ele sofre e comea a escrever um dirio. No final de 1812, estas anotaes: Resignao, resignao profunda tua sorte! Somente ela te permitir aceitar os sacricios que o servio exige. Oh, luta penosa! Prepara a distante viagem por todos os meios. Faz tudo que for necessrio para realizar teu maior desejo e acabars por conseguir. No sejas mais homem seno para outrem, renuncia a s-lo para ti mesmo! Para ti no h mais felicidade a no ser em ti, por tua arte. Oh Deus, d-me a fora de me vencer! Daqui por diante nada mais deve me prender vida. Sendo assim, tudo est acabado com A.1 A? Como no pensar em Antonie Brentano? Todos os seus sonhos de felicidade caram por terra. A fonte secou, ele escreve ainda. Inclusive a fonte musical? Ele se deixa abater. No vero de 1813, em Baden, onde passa uma temporada, parece mais um mendigo do que um grande msico em frias. Durante esse ano, porm, compe uma obra que vai dar o que falar, em todos os sentidos da expresso: A Batalha de Vittoria ou A Vitria de Wellington . O mnimo que se pode dizer que essa sinfonia em dois movimentos causa perplexidade. O prprio Beethoven dir a respeito dela: uma estupidez. Espritos maldosos, com os quais evidentemente no nos alinhamos, qualificam- na como msica de surdo. Trata-se de uma encomenda de Johann-Nepomuk Maelzel, espcie de inventor instalado em Viena, titular do cargo de mecnico da corte. Ele fabricou cornetas acsticas para o grande surdo, inventou o metrnomo e um certo nmero de instrumentos bizarros, como o panarmonicon, convencendo Beethoven a utiliz-lo numa obra patritica. Inclusive lhe sopra o plano da obra, o que o far atribuir-se o mrito dela, levando Beethoven a lhe mover um processo que se esvaziar espontaneamente com a partida de Maelzel para a Amrica. Alis, as possibilidades modestas do instrumento obrigam Beethoven a orquestrar toda a obra. A Batalha de Vittoria um naufrgio esttico, uma gigantesca farsa, uma piada musical que arremeda grotescamente seu prprio estilo heroico para terminar com o God Save the Queen! Em todo caso, uma composio que marca uma formidvel regresso, a exemplo de outras obras dessa poca como Germania (WoO 94) ou O Glorioso Momento. Em 8 de dezembro de 1813, dia do concerto, imita-se a Batalha de Vittoria com desfile de tropas na sala e rudos de canho. Essa cacofonia insensata apresentada no mesmo dia da Stima Sinfonia... e obtm um sucesso igual, quando no superior. verdade que a atmosfera patritica carregada que reina em Viena pde cegar, ou ensurdecer, um pblico que sabe que a vitria de Wellington em Vittoria constitui para Napoleo o comeo do fim. Alm disso, o concerto prima pelo pitoresco: Salieri e Hummel esto no canho, Meyerbeer no bumbo, e Beethoven no plpito de regente, onde no ouve nada exceto o bumbo. Isso no impede que A Batalha de Vittoria seja tocada novamente nos dias 12 de dezembro, 2 de fevereiro e 27 de fevereiro, quando Beethoven tambm apresenta sua Oitava Sinfonia. Essa Batalha mesmo a obra que lhe ter rendido mais dinheiro. Em abril de 1814, para voltar a coisas srias, ele mesmo senta-se ao piano para a estreia do trio Ao Arquiduque, durante um sarau organizado pelo violinista Schuppanzigh. E nesse mesmo perodo, sucesso chamando sucesso, solicitam para ele uma reprise de Fidelio no teatro da Carntia. Sabemos que Beethoven nunca aceitou o fracasso de 1805. Ele concorda, mas exige refazer a obra: poucos artistas podem se orgulhar de ter direito assim a uma chance de recuperao aps um fracasso estrondoso. Mas essa obstinao valeu a pena: novo libreto, escrito por Friedrich Treischke, regente da pera imperial, msica vastamente modificada. E, em 23 de maio de 1814, o triunfo, ao preo de muitas mudanas: nova abertura, supresso de duos e trios e, sobretudo, introduo do grande coro final que confere obra uma dimenso de fato grandiosa, como se a Nona Sinfonia j se anunciasse... Isso quer dizer que tudo vai bem? Novos sucessos, ganho enfim! com trabalhos anteriores ou mesmo antigos. Mas as aparncias enganam. A crise est longe de ter terminado. No comeo de 1814, um veredicto mdico inapelvel o arrasou: Deciso dos mdicos sobre minha vida, diz seu dirio. Se no h mais salvao, devo fazer uso de ***?2 Apesar das palavras riscadas por um copista imbecil, a frase clara: ele pensa no suicdio. No a primeira vez. De que mal incurvel acometido? Mistrio. Novo ataque da sfilis? Maynard Solomon prope essa hiptese que, na falta de provas irrefutveis, contm alguns slidos indcios. Durante todo o ano de 1813, aps seus fiascos amorosos, Beethoven manteve com seu amigo Zmeskall uma correspondncia explcita para quem sabe l-la, na qual se fala do relacionamento com prostitutas. Ele as chama de fortalezas, ou fortalezas arruinadas que j receberam muitos tiros de canho. Em palavras pouco veladas, os dois amigos trocam informaes sobre esses lugares srdidos. A hora que prefiro acima de tudo a tarde, por volta das trs e meia ou quatro horas3, escreve Beethoven. No seu dirio ele confessa o desgosto que acabam por lhe inspirar esses folguedos da carne: Sem a unio das almas, o gozo dos sentidos e continua sendo um ato bestial.4 Seja como for, essa crise aguda dissipa-se aos poucos com a ajuda do sucesso. Beethoven faz parte desses homens que o trabalho mantm de p e que pensam estar no mundo para realizar uma tarefa eminente: H muito a fazer na terra. Faa depressa!5, ele escreve no Dirio em 1814. E depois o outono lhe reserva um momento glorioso6, como escreve Schindler, e desta vez no h razes para duvidar dele: Beethoven est no auge de sua carreira no plano do reconhecimento pblico e mundano. Ele agora reconhecido em msica como o principal contemporneo. O momento lhe favorvel. Suas ideias polticas e suas amizades com os liberais ainda o tornam suspeito, mas os acontecimentos parecem lhe dar razo: Beethoven considerado um patriota e o representante ideal da alma alem, e como tal que saudado nas ruas. nessa conjuntura que entra em sua vida, por intermdio do violinista Schuppanzigh, esse jovem que desempenhar um dos papis mais contestveis na herana beethoveniana: o famoso Anton Schindler, j mencionado, notvel exemplo de apropriao, quando no de vampirizao, de uma obra e de uma vida, como encontramos s vezes na rbita dos maiores gnios. tambm o momento do congresso de Viena, organizado com maestria por Metternich, sombra do Imperador. Depois das travessuras de Napoleo, tempo de redesenhar os contornos da Europa e sobretudo de recolocar no lugar a ordem antiga. A Histria com frequncia tem dessas farsas. O Beethoven que honram nessa ocasio, que convidam nos meios aristocrticos como msico oficial, transformado em artista heri do patriotismo austraco, o autor de A Batalha de Vittoria. Ele sabe disso e resmunga. um pouco como se louvassem o gnio de Fellini por causa de uma publicidade para massas, que supostamente realizou. Que impostura! Em 25 de janeiro de 1815, porm, ele d um concerto diante de imperadores e reis reunidos para escut-lo religiosamente. Seu ltimo concerto como pianista. Como no perder a cabea diante de tanta devoo? Permanecendo ele mesmo. Essa reunio de prncipes, reis e imperadores o deixa frio, de mrmore. No se d sequer o trabalho de fingir. O arquiduque Rodolfo chegar at a lhe encomendar uma msica de carrossel, o que lhe arranca algumas zombarias e uma resposta spera. J tempo de acabar com essa comdia. O congresso de Viena marca uma verdadeira virada na sua obra e na sua vida. Ele conheceu a glria: sabe que ela falaciosa, baseada em mal-entendidos e ms razes que ferem seu ser ntimo. O Beethoven que adulam, do qual fazem o estandarte da renovao patritica, no ele, nada tem a ver com ele. H somente um Beethoven. Karl 1815. Aps o sucesso, a solido. Enquanto o congresso de Viena prossegue at junho sob a direo implacvel de Metternich, confrontado ao hbil Talleyrand, que consegue evitar Frana a suprema humilhao, e em meio s festas oferecidas pela corte da ustria, Beethoven se recolhe. a esse preo que ele poder se reencontrar, reencontrar sua msica, buscar no fundo de si mesmo os recursos que o faro conceber as imponentes obras musicais dos ltimos anos e que o consagram realmente como o compositor mais inovador, mais profundo do seu tempo. Ele vive uma espcie de ascese. Aps degustar, no momento oportuno, os frutos duvidosos de uma glria que julga superficial, est como que purgado. A seu amigo Amenda, que lhe manda lembranas de sua distante Curlndia, onde vive casado e com uma srie de filhos, ele escreve estas palavras melanclicas e to reveladoras: Penso seguidamente em voc, na sua simplicidade patriarcal, e no quanto desejei tantas vezes estar cercado de gente como voc. S que o Destino, para o meu bem e para o dos outros, quer contrariar meus desejos. Posso dizer que vivo mais ou menos sozinho nesta cidade que a maior da Alemanha, pois devo viver quase afastado de tudo o que amo ou que poderia amar.1 A diminuio do ritmo criador se mantm. Ele no faria mais do que dissipar a energia em obras pouco dignas dele? J h alguns anos vem trabalhando em uns Cantos escoceses para atender a uma encomenda do editor Thompson. Alguns no desprovidos de mritos nem beleza, mas algo que beira o trabalho de sobrevivncia. como um lutador meio zonzo que deve retomar foras antes de prosseguir o combate. Isso vai durar ainda trs longos anos. No de total esterilidade, mas de meditao, de leituras, de renovao espiritual. A idade da sabedoria se aproxima: ele l textos de filsofos indianos, em particular o Bhagavad-Gita. Seu dirio contm o vestgio dessas preocupaes espirituais: Bem-aventurado aquele que, tendo aprendido a triunfar sobre todas as paixes, pe sua energia no cumprimento das tarefas que a vida impe sem pensar no resultado. O objetivo de todo esforo deve ser a ao e no o que ela produzir. [...] Busca um refgio apenas na sabedoria, pois prender-se aos resultados fonte de infelicidade e de misria. O verdadeiro sbio no se preocupa com o que bom ou mau neste mundo.2 Ele retomou relaes calorosas com a condessa Marie Erddy. Dedicar a ela a Quarta e a Quinta Sonata para Piano e Violoncelo. Como cessou a desavena entre eles? A condessa sempre teve a maior afeio pelo incmodo Ludwig. Ela lhe escreveu, apenas isso. E ele responde com exaltao: nunca a esqueceu, seguidamente quis ter notcias de sua sade frgil. As trocas epistolares dos dois so numerosas nesse ano e em geral traduzem a angstia de Ludwig: ele mesmo no est bem, e seu irmo Karl est muito mal de sade. Karl morrer em 15 de novembro desse ano de 1815, rodo pela tuberculose. Num primeiro testamento, ele fazia do irmo o tutor do seu filho Karl, um pequeno de nove anos de idade. Na vspera da morte, faz um adendo estipulando que a tutela dever ser exercida tanto por sua mulher quanto por Ludwig. o incio de uma longa disputa judicial, como diramos hoje, alis bastante srdida, que vai durar at 1820! Karl se casou em 1805 com uma certa Johanna Reiss, de quem o mnimo que se pode dizer que no conta com a simpatia de Beethoven. Dessa unio nasceu um menino em 1806, ao qual foi dado o nome do pai. A esposa se revela pouco recomendvel, ao menos segundo os critrios beethovenianos: muito leviana, foi condenada em 1811 a um ms de priso por conta de um obscuro caso de falsa acusao. Mas no o nico motivo: a Rainha da Noite, como Ludwig a cognomina em referncia Flauta Mgica de Mozart, , para ele, uma mulher irresponsvel, de uma honestidade duvidosa, aventureira, incapaz de educar o filho. E Beethoven se convence tanto mais facilmente disso porque experimenta o impetuoso desejo de ter a criana somente para si. O desejo de paternidade o atormenta. Os reiterados fracassos de seus projetos de casamento acumularam dentro dele frustraes que se transformam em obsesses. Ele v em Karl, o sobrinho, o filho que no teve. E, para obter sua tutela, vai se mostrar literalmente alucinado, chegando a acusar a cunhada de ter envenenado o irmo. Pobre Karl. Sua nica infelicidade (ou sua sorte?) no ser o filho de Ludwig, mas do irmo dele e de uma me sem grandes qualidades, capaz de se oferecer por vinte florins3, como insinuava maldosamente o compositor, o que sem dvida um exagero. Por muito tempo a posteridade fez de Karl um vagabundo, um imbecil. Julgamento um pouco apressado: Karl apenas uma criana comum, no incio um bom menino, depois um adolescente com comportamentos prprios da idade. Alis, ele far estudos proveitosos, embora sem brilho, e ter uma vida, ao que parece, razoavelmente feliz, depois que o tio tiver desaparecido... Beethoven tem 45 anos. Mesmo j consumido pela doena, cada vez mais surdo e se entregando a excessos (busca um remdio a seus males nas tavernas), ainda um homem jovem. Em Karl ele concentra seu desejo devorador de amor paterno, seus projetos de educador frustrado, influenciados pelas leituras de Jean- Jacques Rousseau. E nada o detm: descrdito sistemtico da me, difamao, insultos, oposio a que Johanna possa ver o filho. Ele no est completamente maduro para a ataraxia pregada pelos sbios orientais. Obtm a tutela em 9 de janeiro de 1816, aps uma batalha judicial na qual ele no aparece sob sua melhor luz. Mas Johanna no se conforma e contra-ataca. Disso resulta que, de processo em processo, repuxado entre a me e o tio, Karl passar uma infncia e uma adolescncia bastante miserveis, em todo caso muito agitadas. Quando fala do que considera como um dever sagrado, Beethoven abusa do sublime: Hs de considerar K. como teu prprio filho e negligenciars todas as misrias e todos os mexericos dentro desse objetivo sagrado. [...] Renuncia s peras e a todo o resto, escreve apenas para teu rfo, depois encontra uma cabana onde terminar tua miservel vida!.4 Em Karl ele espera ao mesmo tempo um filho, uma sustentao e um herdeiro do seu prprio gnio, a ponto de fazer Czerny lhe dar aulas de piano. pedir demais a um menino j crescido, cuja educao fora at ento negligenciada. Ele o ama sua maneira, impetuosa, furiosa, tirnica. Ficamos pensando que foi bom ele mesmo no ter tido filhos, pois grande a distncia entre o ideal fantasiado da paternidade e as vicissitudes do cotidiano. Beethoven logo se d conta de que a presena de um filho em casa no vivel: para Karl, isso significar o internato. Ele escolhe para o garoto, seguindo os conselhos de Karl Bernard, jornalista e novo amigo, o que h de melhor: uma escola particular, o Instituto Giannattasio del Rio. O fato seria apenas anedtico se Cajetano Giannattasio del Rio, seu fundador e diretor, no tivesse duas filhas, Nanni e Fanny. Essa ltima, a menos bonita das duas irms, deixou sobre Beethoven, cuja msica ela adora, lembranas e um dirio de grande preciso. Menos lrica do que Bettina Brentano, menos mulher de letras inclinada aos efeitos de estilo e aos arrebatamentos romnticos, ela mostra um Beethoven no dia a dia, que frequenta o crculo da famlia Del Rio, e nada esconde de suas manias, de seu humor s vezes massacrante, de seu temperamento levado a todos os excessos: Era preciso colocar-se muito perto do seu ouvido para se fazer compreender por ele, e lembro que vrias vezes quei embaraada com sua cabeleira cinzenta que caa sobre as orelhas. Alis, ele mesmo costumava dizer: Preciso que algum me corte os cabelos. primeira vista estes pareciam rgidos e desgrenhados, mas eram muito nos e, quando ele passava a mo por cima, cavam levantados de uma forma cmica. Um dia, ao chegar, quando tirou o casaco, vimos um buraco no cotovelo da blusa: ele percebeu e quis vestir de novo o casaco, depois falou, rindo, enquanto terminava de tir- lo: J que agora vocs viram!!!. [...] Tanto nos momentos de doura quanto nos de tristeza, que alarmavam seus melhores amigos, pelo menos por um tempo, ele tinha com frequncia oscilaes de humor cuja causa no se podia compreender de imediato. Assim, aps voltar a nos ver, e quando vimos, por sua frieza, que algo que acontecera podia t-lo magoado, minha irm lhe perguntou se ainda gostava de ns: Dou muito pouca importncia a mim mesmo para isso. [...] Estava quase todas as noites em nosso crculo familiar. Infelizmente as noites interessantes eram raras, pois ele parecia em geral um Pgaso subjugado. O processo da tutela o deixava de mau humor, quase doente. Ento, durante todo o tempo, cava sentado mesa redonda, junto a ns, aparentemente mergulhado em pensamentos, lanando s vezes uma frase com um sorriso, cuspindo a toda hora no leno e olhando- o cada vez mais, e acreditei por muito tempo que ele temia encontrar sangue ali.5 Nanni, a outra irm, est noiva. Claro, a ela que Beethoven reserva seus galanteios. Mas Fanny quem se apaixona por ele. Certamente num mau momento, pois Beethoven, entregue obsesso da tutela, no parece muito interessado nas mulheres. 2 de maro de 1816. O que se passa comigo? E, se lano esse grito, ser por causa do que Nanni me disse h pouco? Ser que ele j ocupa tanto lugar no meu esprito, mesmo no meu corao, para que esta simples frase, No v se apaixonar por ele!, dita por gracejo, baste para me perturbar e quase me ferir? Pobre Fanny! A sorte no te muito favorvel. [...] E, se cada vez mais ele zer parte do nosso crculo familiar, inevitvel que eu me afeioe, me afeioe infinitamente por ele.[...] 17 de maro. Ontem Beethoven passou a noite em nossa casa. Hoje tarde bateram porta. Era Beethoven. Ele disse: Trago a vocs as primcias da primavera e, esboando um pulo, nos apresentou um buqu de violetas.6 Na verdade, Beethoven no est bem. As clicas o torturam. Ele permanece acamado uma parte da primavera de 1816. Pensa na morte, se esfora por se familiarizar com ela, considerando como um mau homem aquele que no sabe morrer7; apenas a presena de Karl, diz ele, ainda o retm na terra. No entanto, ele no abandonou de modo algum suas ambies criadoras: Coisas muito diferentes se esboam no meu esprito.8 Apenas se esboam: um projeto de missa, que se tornar a monumental Missa Solemnis, com novas sonatas. Mas, ao contrrio do que pensam alguns espritos perdidos, o sofrimento, o mal-estar, as preocupaes com o dinheiro e a vida domstica no so muito propcios atividade criadora. Ao se encarregar do sobrinho, Beethoven atou aos ps uma pesada bola de ferro. Seu desejo de paternidade, assim como as tentativas de casamento, se deve a uma construo fantasmtica e a uma patologia bastante ntida: ele busca criar circunstncias calamitosas, reconhece todos os males nessa realidade decepcionante, para se refugiar na nica verdade que conta, a msica. certo que, atravs do sobrinho, Beethoven recomps seu romance familiar. Ele, que salvou Karl das garras de uma megera, sua me, agora o pai real, natural, do filho do [seu] falecido irmo.9 Em Johanna, que certamente no o monstro que ele constri na sua imaginao perturbada (uma mulher um pouco extravagante, verdade, mas no sem encantos, de temperamento livre e dotada de um certo bom senso), Beethoven v a mulher, malfica, ao mesmo tempo feiticeira e objeto de desprezo, talvez por ele no aceitar, como On, o desejo que ela lhe inspira. Pois uma obstinao dessas suspeita, provm do ninho de neuroses familiar. O pai natural (!!!) sonha que fecundou a me? Farsantes, autores de um filme bastante lamentvel, Minha amada imortal (Beethoven nunca teve muita sorte com os cineastas), fizeram com que Johanna ressurgisse para fazer dela essa misteriosa desconhecida, o que grotesco. Outros, mais prudentes, partindo da premissa de que o dio o amor contrariado, atribuem a Beethoven sentimentos amorosos, ou um desejo sexual, em relao cunhada. verdade que, durante todos esses anos, a atitude dele pelo menos estranha. Nos primeiros tempos ele no rompe o contato. Inclusive organiza encontros com Johanna, em companhia de Karl, sempre na presena de um terceiro. Eles conseguem chegar a um acordo financeiro, com Johanna aceitando destinar metade da penso de viva educao de Karl, o que no faz dela uma me to m... Mas em 1817 ele volta a se enfurecer contra ela, julgando-se trado por palavras ditas a Del Rio. No ano seguinte, aps uma aparente reconciliao, explode de novo porque Karl encontrou-se com a me s escondidas. Sentimento de traio, crise aguda de paranoia: comeam a tom-lo seriamente por louco, o que compreensvel. E tambm no se pode julgar anormal a deciso de Johanna, em 1818, de mover um processo para recuperar o filho. Beethoven seria pelo menos um bom pai para o sobrinho? Podemos duvidar. Ele incoerente, violento, excessivo. Encoraja Giannattasio del Rio a bater em Karl, se necessrio, porque no tempo em que o pai vivia, ele s costumava obedecer quando apanhava.10 toda a infncia de Ludwig que ressurge, com as brutalidades de Johann, seu prprio pai. Ele passa da execrao ao amor desmedido. Pensa at em enviar Karl a uma outra cidade, onde no ver nem ouvir mais nada de sua me bestial.11 Mais tarde, no seu delrio, chegar a imaginar relaes incestuosas entre Karl e Johanna. Com certa perversidade, ele sabe jogar com o sentimento de culpa: E, quando te sentes culpado em relao a mim, no podes ser um homem bom, como se te revoltasses contra teu pai.12 Fanny del Rio est apaixonada, mas ele mal olha para ela e a apelida de sra. Abadessa, o que a magoa. O pai de Fanny, numa temporada de vero em Baden, em 1816, para a qual Beethoven foi convidado a acompanh-lo, o aconselha a casar-se com uma mulher doce, amorosa e devotada, deixando claro o subentendido. Ludwig recusa a proposta, falando da mulher que ele ama h cinco anos sem esperana. Teria sido pensando nela que escreveu o ciclo dos lieder Bem-Amada distante, sobre poemas de Aloys Jeitelles? Essa obra lrica, intimista, to pessoal que ele nunca a menciona diante de seus amigos Del Rio durante o tempo da composio: versos cantam a dor da ausncia, o desejo do reencontro, a certeza de que somente a arte pode aproximar os amantes. O ciclo dedicado ao prncipe Lobkowitz, que perdeu a esposa e no se conforma. Apesar de compor muito pouco, ele no est totalmente inativo. Continua pensando em partir para a Inglaterra, onde Haydn obteve grande sucesso, mas as disputas do caso Karl, entre outras coisas, vo mais uma vez barrar o projeto. Considera tambm, com o editor Steiner, uma publicao das suas obras completas. Algo como o balano de uma vida. Alis, lamentvel que esse projeto no tenha se realizado: Beethoven concebia sua obra como uma estrutura coerente, uma totalidade a recompor dentro de uma orientao esttica global, como fez Balzac com sua Comdia humana. Na realidade, ele est muito confuso. Doente, debilitado, incapaz de assumir sua paternidade e os detalhes materiais do cotidiano, pede auxlio a Nanette Streicher, uma mulher que conhece desde os dezessete anos: a filha do fabricante de pianos de Augsburg, Johann Andreas Stein, ela mesma pianista e compositora, que levou adiante o negcio paterno com o marido. Mais uma fada madrinha na sua vida, como uma me para ele que gostaria tanto de ser pai. Ela atende seu apelo e comparece, a tempo, para conduzir esse barco deriva que a casa de Beethoven, pondo em ordem a vida domstica e, provavelmente, tambm as contas, pois o artista sem dvida no sabe lidar com a realidade e gasta muito. Karl lhe custa caro e ele no um virtuose da administrao do lar: sabe apenas compor obras-primas. Ele confessa a Nanette Streicher seus temores: est mal assessorado, os empregados esto em conluio com Johanna (que agora se disfara de homem para ir ver o filho no internato) e o roubam. Alm disso fazem fofoca, insinuando que Ludwig e Nanette teriam um caso amoroso. Assim essa relao forte e nica cessar quase por completo no comeo do vero de 1818, manchada pela presso social e pelos mexericos. No comeo do ano, ele retirou Karl do Instituto Del Rio para educ-lo em casa. O que uma instituio, comparada solicitude atenta de um pai por seu filho?13, ele escreve condessa Erddy. Ei-lo educador em tempo integral. s vezes se enternece com as delcias da vida em famlia, em outros momentos sonha despachar Karl para longe de Viena. No h bom pai, a regra escrevia Sartre em As palavras. Fazer filhos, nada mais fcil. T-los, que iniquidade!14 As coisas pioram em setembro de 1818. Johanna pede ao Landrecht, o tribunal da nobreza, para retirar de Beethoven a tutela de Karl. Comea uma lamentvel batalha judicial na qual Ludwig e Johanna vo se entredevorar. O tribunal comea por rejeitar o pedido da me. Em dezembro, Karl foge para a casa dela. A polcia vai busc-lo e o coloca no Instituto Giannattasio. O caso levado ao tribunal. O habilidoso advogado de Johanna apresenta seus argumentos: a surdez do tio, seus caprichos de excntrico, sua vida desregrada, o fato de ele impedir Karl de ver a me, os maus-tratos... Karl depe: apesar da vontade da me, ele no quis voltar para junto do tio por medo de ser maltratado. Diante do juiz, abalado, Beethoven se defende sem habilidade nem firmeza. Lana at um argumento insensato: seu projeto de colocar Karl no Theresianum, uma escola reservada aos nobres. Beethoven, nobre? Claro, pois tem no nome a partcula van (que frequente na Holanda)... Em suma, ele incapaz de provar sua nobreza: assim a questo da tutela remetida ao tribunal civil, que se encarrega dos cidados comuns. Isso o deixa arrasado, humilhado: ele, que se sente nobre, um cidado comum! A velha histria de que seria filho natural do rei da Prssia ressurge no seu esprito: ele sempre se recusar a desmenti-la. Seja como for, ele nobre por sua obra. Como poderia no ser? E, ao adotar Karl, elevou-o condio da nobreza: Atravs de mim, meu sobrinho viu-se elevado a um nvel social superior. Nem ele nem eu estamos sujeitos magistratura comum. Apenas donos de hospedaria, sapateiros, alfaiates dependem desse tipo de jurisdio.15 Democrata, progressista, plebeu e imaginando-se nobre (para as necessidades da causa, verdade): ele no o primeiro nem o ltimo a manifestar essa contradio. Mas o tribunal tem outro parecer: em 26 de maro de 1819, a tutela de Karl lhe retirada. O juiz inclusive nega, apesar da interveno de Antonie Brentano, que o rapaz seja enviado Baviera, Universidade de Landshut. Karl ficar por quatro anos num internato em Viena. Beethoven s ter sido pai por um curto perodo. Isso o deixa possesso. Furioso, revoltado, ele passa do amor louco ao dio em relao a Karl. um intil16, escreve a seu amigo Bernard. um monstro!17 Meu amor por ele acabou. Ele precisava do meu amor. Eu no preciso do dele.18 Em outros momentos, continua a am-lo como antes19 e chora seguidamente por ele.20 Finalmente, em 17 de setembro de 1819, a tutela confiada a Johanna, tendo por cotutor um funcionrio municipal, homem honesto e capaz.21 Poderia ser o fim do caso, mas Beethoven no desiste. Gostaria de raptar Karl, renuncia a isso e se lana na redao de um memorial de 48 pginas cuja leitura consternadora por vir de quem vem: difamao, insistncia nas torpezas de Johanna e em seus erros do passado, autojustificao. Essa exposio sobre a senhora Beethoven um verdadeiro retalho de horrores que mostram um dio irracional, temperado de um sentimento de perseguio do qual sorriramos se no fosse o sintoma de uma grande dor: Eu tambm sou um ser humano acuado por todos os lados como um animal selvagem, mal compreendido, geralmente tratado da forma mais vil por essa autoridade vulgar; com tantas preocupaes e em luta constante contra essa me monstruosa que no cessou de querer arrancar tudo o que produzi de bom.22 Ele insiste, com a obstinao dos espritos monomanacos. Aciona seus conhecidos, em primeiro lugar o arquiduque Rodolfo, para obter uma modificao do julgamento. A apelao julgada em 29 de maro de 1820, a seu favor. Desta vez, as splicas de Johanna junto ao imperador no tero efeito. Na primavera de 1820, como se quisesse esquecer essa luta estafante, ela engravida de um homem, alis bastante honrado, que reconhecer a criana uma filha. Beethoven no deixa de ver a uma nova prova da sua imoralidade. Uma missa para a humanidade O miservel caso Karl, que contm algumas outras peripcias menores, nos interessaria muito pouco se no correspondesse, em Beethoven, a um tempo de mutao profunda no plano artstico. Mesmo nesses anos de relativa esterilidade criadora, ele continua sendo a figura dominante da vida musical vienense, e mais do que isso: seu renome se estende agora a toda a Europa. Suas obras so tocadas com regularidade. De 1816 a 1817, dezenas de concertos so testemunhas da importncia que ele adquire. Sonatas, sinfonias, aberturas e quartetos so reapresentados com frequncia diante de pblicos que aceitam suas obras como um todo, ainda que as reaes permaneam desiguais: num concerto de 16 de dezembro de 1816, sua Stima Sinfonia discretamente aplaudida. Estaria saindo de moda? A frieza das reaes sempre provoca em Beethoven respostas cidas de leo ferido: A arte j no se eleva to alto acima do vulgo, j no to estimada e sobretudo to apreciada.1 A surdez agora total. A partir de 1818, nenhum dos aparelhos que ele usa, cornetas acsticas de formas e tamanhos variveis, tratamentos, curas termais, nada capaz de se opor a esta evidncia: seu sistema auditivo est destrudo por completo. O fabricante de pianos Streicher, marido de Nanette, lhe constri uma dupla campnula adaptvel ao piano para aumentar o volume sonoro do instrumento: em vo. Ele no se comunicar mais com o mundo exterior seno por intermdio dos seus Cadernos de conversao. Essa deficincia naturalmente contribuiu muito para aumentar seu mito, sua figura romntica de mrtir da arte. Seu estado lhe impede de se apresentar em pblico como pianista e mesmo como regente, pois est sempre adiantado ou atrasado alguns compassos em relao orquestra, o que pode produzir o efeito tragicmico de um fantoche que continua a gesticular de modo frentico (sua tcnica de regncia bastante demonstrativa) enquanto a msica j silenciou. Em 1822, o ensaio geral de uma reprise de Fidelio, que Beethoven fez questo de reger, no d certo: para seu grande desespero, ele teve de renunciar, segundo Schindler, testemunha do drama. Mas no seu caso a surdez em nada impede o trabalho de composio. A msica para Beethoven o que a pintura para Leonardo da Vinci: una cosa mentale. Construes prodigiosas que ele no tem mais necessidade de ouvir nascem no seu esprito. Tal a fora de um pensamento que se confunde por inteiro com um universo cuja realidade sonora, se lhe falta cruelmente, no indispensvel: no momento em que a surdez se torna total que nascem suas obras mais profundas. No fundo da solido, ele sente a necessidade de voltar aos valores fundamentais da sua arte: retorna ao estudo, leitura dos mestres, sobretudo Bach e Haendel. Em Bach encontra lies de forma, em particular a da fuga, que ele negligenciara um pouco at ento, mas cujas maravilhosas possibilidades esto longe de ter se esgotado, como provaro suas ltimas obras. Sua vida ntima um fracasso: no se casar, nunca ter um filho seu, o pobre Karl sendo apenas, para o infortnio dele, um substituto fantasmtico. Sua vida pblica est terminada: a surdez o impede de se apresentar e de manter relaes normais com os contemporneos. O que lhe resta? Reinventar a msica, abrir caminhos inexplorados. Isso por certo explica, em parte, a rarefao da sua produo: o que ele sabe fazer com virtuosismo a partir de moldes aceitos, inclusive inventados por ele mesmo, o que ele realizou fazendo a sntese de diversas influncias que transcendeu amplamente, tudo isso no o interessa mais. Ao fundo do desconhecido para encontrar o novo2, escrever Baudelaire trinta anos mais tarde. A metamorfose se prepara com lentido. na msica de cmara, nas sonatas para piano e nos quartetos que o ltimo Beethoven concebe as realizaes mais desconcertantes, as construes mais visionrias. Sentimos os primeiros sinais disso na Vigsima oitava Sonata op. 101, na qual ele trabalhou durante dezoito meses, durao que lhe inteiramente inabitual: trata-se de efetuar a difcil fuso entre a renovao de um gnero musical e a herana de Bach: escrita contrapontstica (sua obsesso, sua ideia fixa, seu obstculo, que acabar por vencer de maneira soberana...), simplicidade dos motivos que se desenvolvem em combinaes cada vez mais complexas. Pela primeira vez ele emprega, a propsito dessa sonata, o termo Hammerklavier: por essa palavra alem quer marcar que no se trata mais de uma obra para o pianoforte clssico, mas que a concebeu pensando nas novas possibilidades do instrumento. A vida inteira Beethoven foi um apaixonado pelas tcnicas de fabricao. Muito cedo, j foi dito, ele martirizava o pianoforte, tocado em geral como um cravo. E em alemo, para essa Vigsima oitava Sonata op. 101, que ele d indicaes de interpretao. A sonata seguinte, a Vigsima nona op. 106, j traz claramente o subttulo de Grosse Sonate fr Hammerklavier. Com certeza no a mais popular de Beethoven, mas sem dvida a mais mtica ao lado da Trigsima segunda e o terror dos pianistas: monumental, complexa, essa sonata-sinfonia um pice da literatura pianstica. Beethoven via nela, no momento da composio, sua maior obra. Depois de termin-la, declarou a um amigo: Agora sei escrever.3 como uma ressurreio, aps um longo perodo de incerteza. Ele a compe basicamente durante o vero de 1818, em Mdling, numa daquelas paisagens agrestes que tanto ama. Em Mdling, alis, vive um padre com quem Beethoven vai se indispor e que testemunhar contra ele no processo Karl. Durante essa temporada estival, confiou o sobrinho a esse eclesistico cujos talentos de pedagogo lhe foram enaltecidos. Mas o homem um bruto, e seus mtodos educativos se revelam um tanto sdicos. Beethoven logo retira Karl das garras desse cristo pouco caridoso, que por esse motivo lhe guardar rancor. A sonata Hammerklavier, eriada de dificuldades, intocvel por pianistas de nvel mdio. Ela , escreve Charles Rosen, uma ponta extrema do seu estilo. Nunca mais ele escrever uma obra com tamanha obsesso de concentrar. [...] trata-se de uma tentativa deliberada de criar uma obra nova e original de uma grandeza sem concesses.4 Beethoven sabe que transps um limite, que escreve uma obra para o futuro: Eis a uma sonata que dar trabalho aos pianistas quando a tocarem dentro de cinquenta anos5, ele diz ao editor Artaria. E a Ries, que deve publicar a sonata na Inglaterra, pede quase desculpas pela dificuldade da obra. Que ele no hesite em publicar os movimentos separadamente, se lhe aprouver: A sonata foi criada em condies materiais difceis, pois duro compor quase que apenas para ganhar o po, e tudo o que pude realizar.6 Claro, ele mascara suas verdadeiras intenes, como que assustado por sua audcia. H que escutar a grande fuga do quarto movimento, simples no motivo, mas com incrvel complexidade nos desenvolvimentos: como pde tal msica ser ouvida por ouvintes de 1820? Resposta: ela no foi ouvida, a no ser privadamente. Pianistas como Czerny ou Ries, atemorizados por sua dificuldade, renunciam a toc-la em pblico. Nanette Streicher se esfora por domin-las, mas, ao cabo de trs meses, s consegue tocar o primeiro movimento. Ser preciso esperar at 1836 para que Franz Liszt, nico capaz de enfrentar o monstro e subjug-lo, apresente a obra em Paris. H romances para romancistas, assim como h msicas para msicos. Ainda hoje a sonata Hammerklavier desconcerta. Mas se nos dermos o privilgio, facilmente acessvel, de penetrar suas belezas vertiginosas, em particular a profundidade recolhida do adgio, teremos uma ideia do que pode ser um absoluto da msica, a exemplo das Variaes Goldberg de Bach ou da Sonata em si menor de Liszt: sensvel e desembaraada de todo sentimentalismo, busca apaixonada da forma ideal, com beleza e emoo. A partir de 1819, portanto, Beethoven se comunica com o auxlio de seus famosos Cadernos de conversao. Estranhos documentos. So seus interlocutores que escrevem, j que ele no ouve nada. E ele parece responder com uma voz to forte e frases to tonitruantes que lhe suplicam com frequncia a baixar o tom: a polcia de Metternich est escuta, os espies do imperador circulam por Viena, e as opinies de Beethoven e seus amigos no esto muito de acordo com o regime. At mesmo lhe predizem que acabar no cadafalso se continuar manifestando-se dessa forma em palavras subversivas. Teria sido por isso que Schindler, seu facttum at 1824 (Beethoven, exasperado com suas maneiras possessivas e suas pretenses, acabar por despedi-lo), s conservou 139 desses cadernos dos 400 que recuperou morte do msico, antes de us-los amplamente no sentido que desejava e de vend-los ao rei da Prssia, em 1840, em troca de uma penso vitalcia? H por certo outras razes alm da prudncia poltica: cime, pudiccia (as conversas de Beethoven com os amigos tomavam s vezes um rumo escabroso), vontade de falsificar a imagem do msico num sentido hagiogrfico. No entanto Schindler no destruiu tudo, e as conversas de 1820 contm ecos muito reivindicativos. Beethoven e seus amigos, o jornalista Bernard, Oliva, o advogado Bach que o defendeu durante o processo Karl, trocam frases fulminantes contra Metternich, contra a Sagrada Aliana e at contra o arquiduque Rodolfo, qualificado por Oliva de zero esquerda, embora Beethoven o poupe. Ao evocarem a estupidez do regime e a mesquinharia do imperador, que agrava para seu prazer penas judicirias j pronunciadas, os amigos chegam a lamentar o fracasso de Napoleo, esse grande homem ligado aos direitos dos povos e aos ideais da Revoluo. Sic transit...[1] O arquiduque Rodolfo, justamente, deve ser consagrado arcebispo de Olmtz, em maro de 1820. Beethoven v a uma oportunidade de, enfim, conseguir uma nomeao de mestre de capela. E prope ao arquiduque, j em maro de 1819, compor uma missa para a cerimnia. Ele pensa que pode realizar a tarefa em poucos meses: precisar de quatro anos de trabalho rduo para completar essa Missa Solemnis. A ideia de escrever uma nova missa h muito o persegue desde a leitura de um artigo de E. T. A. Hoffmann, de 1814, invocando a necessidade de um renascimento da msica sagrada: no cerimonial litrgico, mas linguagem espiritual, hino ao Criador que vai muito alm do discurso religioso. A religio, fenmeno histrico e social, no mais a nica instncia capaz de assumir a dimenso espiritual do homem, longe disso. E a Missa Solemnis, sem dvida a obra mais imponente no gnero com a Missa em si menor de Bach, por certo no apenas mais uma missa a servio da instituio catlica, pela qual ele tem sentimentos dbios e frouxos. Beethoven quer ressaltar um ideal espiritual essencialmente humano: a humanidade que chega a um alto grau de espiritualidade encontra ela mesma o caminho da salvao. O autor de As Criaturas de Prometeu no concebe sociedade humana aceitvel que no tenha atingido essa liberdade espiritual e poltica a que ele aspira. Beethoven, que papai Haydn acusava complacentemente de atesmo, no plano religioso um verdadeiro filho das Luzes. Nascido catlico, permanece cristo, mas de um cristianismo no muito conformista. Por pouco mesmo no teria sido preso num caf, em 1819, por ter clamado em voz alta que o Cristo, afinal, era apenas um judeu crucificado. Ele desta, ou seja, cr num Criador, numa transcendncia. Sua f sincrtica e nela se misturam outras influncias. O dogma catlico e sua estrita observncia lhe so indiferentes. Acima da sua mesa de trabalho, leem-se estas inscries do templo da deusa Neit em Sas, que ele copiou mo: Sou o que ; Sou tudo o que , que foi e que ser; nenhum mortal levantou o vu que me cobre; Ele o nico de si mesmo e todas as coisas lhe devem sua existncia. Esse deus voltairiano, incognoscvel, imaterial, ele venera sua maneira: Oh, Deus, d-me a fora de me vencer!7, escreveu em 1812. E, nos momentos de aflio, invoca com frequncia Seu auxlio e Seu perdo. N a Missa Solemnis Beethoven segue com cuidado o texto litrgico. Inclusive mandou traduzi-lo em alemo para ter certeza de no negligenciar nenhuma palavra. Tudo est na maneira de tratar o texto: falando do Credo, Romain Rolland observa o fato paradoxal de que Bach, que era protestante, copiosamente celebrou, numa ria de baixo, com vocalises floridos, a Santa Igreja catlica e apostlica, enquanto o catlico Beethoven estranhamente desembaraou-se disso, num cochicho precipitado do nico tenor, entre o conjunto das vozes que no dizem nada.8 Seria a Missa Solemnis uma obra religiosa, mstica? A bem dizer, sua espiritualidade uma forma transcendida de humanismo: mais uma missa para a humanidade do que para Deus em todo caso, no se trata de uma obra de propaganda para a Igreja catlica, dentro da qual Beethoven jamais teria alcanado esse universalismo, essa profundidade. Da tambm o embarao que ela suscita entre os maiores regentes de orquestra: ressaltar demais seus aspectos barrocos diminu-la; fazer dela uma obra religiosa apagar sua dimenso profana a f que ela exprime no redutvel a categoria alguma. No plano da composio, essa missa fruto de longos estudos realizados nas bibliotecas do prncipe Lobkowitz e do arquiduque Rodolfo, em busca de partituras antigas e de livros sobre a liturgia. Beethoven estuda as obras consagradas de Palestrina, de Haendel, de Bach. O exemplo da Messie de Haendel o leva a considerar sua prpria missa mais como um oratrio do que como uma obra litrgica. o que observa lisabeth Brisson: Ele no se colocava mais como humilde servidor do culto catlico, mas como criador cuja misso era fazer os homens experimentarem a transcendncia.9 Prometeu, mais uma vez... Essas pesquisas, essa elaborao minuciosa e difcil para uma obra que ele quer que seja o pice da sua arte e a sntese de todas as msicas religiosas anteriores, explicam em boa parte porque a Missa Solemnis uma mistura de estilos arcaicos e modernos, mais profundamente enraizada em tradies antigas do que toda a obra de Beethoven, no entanto com a grandeza e o impulso dinmico de um estilo sinfnico oriundo da sonata.10 Em maro de 1820, a missa no est pronta. A lei imperiosa da obra no se coaduna com as obrigaes oficiais: o arquiduque Rodolfo ficar sem a Missa Solemnis. Beethoven s vai termin-la no final de 1822. O que fazer com essa obra imponente? Ele pensa em propor uma subscrio a diferentes soberanos europeus. Escreve a eles, apresentando sua missa como o mais bem-sucedido dos trabalhos do seu esprito.11 Busca tambm vend-la a vrios editores, tem uma desavena sria com Franz Brentano, que lhe adiantou dinheiro em funo de uma promessa de contrato que ele recusa-se a cumprir. Sugere at que a missa pode ser executada como um grande oratrio por ocasio de um concerto profano. A proposta mais do que audaciosa: provocadora. Na Viena imperial proibido tocar missas fora das igrejas. Para contornar a proibio, ele apresentar trechos da obra (o Kyrie, o Credo, o Agnus Dei) no concerto de 7 de maio de 1824, junto com a Nona Sinfonia. E, para evitar problemas com as autoridades, os chamar de hinos... A missa no ocupa inteiramente seu tempo durante todos esses anos. O ltimo Beethoven12, como o chama Rmy Stricker, tambm o autor de obras para piano que a data de composio e o fato de serem suas ltimas importantes para esse instrumento nos fazem considerar como realizaes quase testamentrias. Aps a concluso, a seu favor, do processo que o ops to violentamente cunhada, ele escreve entre 1820 e 1822 suas trs ltimas sonatas e prossegue a composio das 33 Variaes sobre uma Valsa de Diabelli. As trs ltimas sonatas (op. 109, 110 e 111) formam um conjunto de tal homogeneidade estilstica que geralmente so tocadas ou publicadas juntas. Lembro-me de um concerto inesquecvel, com a interpretao dessas trs sonatas, em Londres, por Maurizio Pollini, que no se contentou em tocar essas sonatas inesgotveis, ao mesmo tempo de um lirismo arrebatado e de um implacvel rigor formal: ele as explicava, a inteligncia analtica de seus dedos revelando o mistrio delas. Beethoven trabalha na sonata op. 109 durante o vero de 1820, em Mdling. Sua missa no est terminada, a cerimnia j passou: nada mais o pressiona. Ele se volta para o seu instrumento fetiche, seu refgio, o companheiro de suas confidncias mais ntimas. Est com ictercia, uma doena que o desgosta, ele escreve ao arquiduque. Essas afeces hepticas so os primeiros sinais da cirrose que acabar por mat-lo. O lcool tem a ver com isso. Ele bebe bastante, vinho e cerveja. Nunca mais de uma garrafa por refeio, ele assegura, alis vinho bom da Hungria aconselhado pelos mdicos, que podem ter se enganado: num organismo debilitado, s voltas com clicas constantes, esse regime uma lenta destruio. Tambm gosta de beber cerveja nas tavernas, beliscando arenques defumados e fumando alguns cachimbos. No conjunto, sua dieta alimentar desastrosa, dados seus problemas digestivos e hepticos: muita carne de caa, que ele considera como o alimento mais saudvel porque o mais natural, queijos, outros tipos de carne... Um lento veneno que prepara os males da gota. Isso no altera sua inspirao. A Trigsima Sonata, mistura de improvisao e de escrita contrapontstica, impressiona por uma liberdade cada vez mais afastada das regras clssicas. No ano seguinte ele compe o opus 110, a Trigsima primeira Sonata que costuma ser comparada ao Dcimo quinto Quarteto: obra bastante autobiogrfica, na qual se exprime a luta vitoriosa contra a doena e o aniquilamento, evocao de um drama interior que se resolve em tenses extremas para realar a interveno de uma vontade na origem de um momento (e de um mundo) criado por e para o homem.13 Mas a Trigsima segunda Sonata em d menor op. 111 que reserva o momento mais surpreendente de toda a obra pianstica de Beethoven. Elaborada em dois movimentos, segundo um modo de pensamento dualista ou no conclusivo , a obra uma verdadeira Divina comdia da qual faltaria o Purgatrio: comea por um discurso sombrio e violento como o Inferno, depois h como uma subida aos cus na arietta, longo desenvolvimento de variaes, forma na qual se exprimem as ideias mais livres, elevadas em xtase numa meditao: os trinados do segundo movimento, que chega aps uma longa passagem ritmada que parece uma improvisao de jazz, elevam o pensamento musical at um fervor quase apaziguado. Como escreve Alfred Cortot, tudo esplendor e, no derradeiro fim, esplendor que se perde, se difunde.14 E Romain Rolland acrescenta: Uma das palavras mais altas que saram da boca de Beethoven.15 Essa sonata publicada pela primeira vez em Paris, em 1823, pelo editor Maurice Schlesinger, futuro marido de lisa Schlesinger, que ser o primeiro amor de Gustave Flaubert e o modelo para a sra. Arnoux em A educao sentimental. A Europa da cultura est a caminho... Essa sonata eleva o esprito a culminncias que honram o gnio humano. Mas a vida real do seu autor continua a tropear. No outono de 1821, num caf, provavelmente bbado, ele se exalta, se comporta mal conforme os critrios repressivos da poca. chamada a polcia. Ele berra que Beethoven, o policial responde: e eu sou o imperador. Passa a noite na priso, espumando, antes de ser libertado por Herzog, o diretor musical do conservatrio de Wiener Neustadt. Alguns meses mais tarde, em 1822, ele encontra Gioacchino Rossini, de passagem por Viena. O jovem autor (tem trinta anos) de O Barbeiro de Sevilha triunfa em toda a Europa. Em 1816, foi literalmente carregado nos ombros na estreia do Barbeiro. Sua glria comea mesmo a ofuscar, em Viena, a de Beethoven: uma msica brilhante, viva, extraordinariamente dinmica e inventiva e um senso inato do teatro , o que deseja um pblico vido por reencontrar a sensao de prazer e de despreocupao, aps um longo perodo de guerras e de horrores. O prprio Stendhal, o grande escritor apaixonado por msica, coloca Rossini acima de tudo (junto com Cimarosa e o espinafre), enquanto se mostra muito reservado, ou at mudo, sobre a msica de Beethoven. O que eles se falaram? Beethoven teria dito palavras amveis a Rossini, numa conversa encurtada em funo das barreiras da lngua e da surdez, e teria tambm o desaconselhado a praticar opera seria, pouco adaptada, na sua opinio, ao temperamento e mesmo s competncias musicais dos italianos. claro que ele considera Rossini apenas um simptico msico de entretenimento. A obra dele, Beethoven, adquire um aspecto cada vez mais austero, com exceo de alguns divertimentos musicais que seu humor vai lhe inspirar at o fim, como o famoso exerccio de 1826, Es muss sein [ preciso], cujo motivo reaparece, ampliado, no Dcimo sexto Quarteto. Por ora, em 1823, ele termina a composio das Variaes Diabelli , essa outra imponente obra para piano dedicada a Antonie Brentano. Anton Diabelli um editor de msica que de vez em quando compe; no incio de 1819 ele prope a uns cinquenta compositores, entre os quais Czerny, Schubert, o jovem Liszt, o filho de Mozart, alm de Beethoven, escrever variaes sobre uma pequena valsa de sua autoria: sua ambio, que no carece de inteligncia, suscitar uma espcie de resumo que sintetize o que se faz em msica naquele momento da sua histria e public-lo. A pea inicial uma composio graciosa, saltitante e bastante estpida, um Schusterfleck, diz Beethoven, isto , uma pea de sapateiro fabricada em srie. Sobre essa base sem interesse, Beethoven vai se propor um desafio imenso e compor uma suma pianstica vertiginosa, a mais longa que jamais escreveu. Essa elaborao dura de 1819 a 1823, prova de que ele lhe dava uma importncia considervel, buscando criar um mundo a partir desse nada: mundo complexo, diverso, de uma dificuldade de execuo temvel (as Variaes Diabelli s sero tocadas em pblico em 1856 por Hans von Blow, aluno de Liszt), que leva incandescncia, na esteira do Bach das Variaes Goldberg, a arte da variao, princpio primeiro de toda msica: a ferramenta de permanentes metamorfoses nascidas do tema inicial, que Beethoven no deixa de parodiar com humor at a dissoluo final, quando se eleva a uma pureza celeste. Com o material mais banal e trivial do mundo, Beethoven mostra que a msica uma arte da transfigurao. Conhecemos melhor o Beethoven desses anos graas ao testemunho de um escritor com quem ele no simpatiza: Friedrich Rochlitz. Esse romancista e musiclogo foi redator-chefe do Allgemeine Musikalische Zeitung e nunca conviveu muito com Beethoven. Mas ele passa uns dias em Dbling, no vero de 1822, e pede para v-lo: Haslinger nos apresentou um ao outro. Beethoven pareceu contente, mas estava perturbado. E, se eu no estivesse preparado para isso, sua viso tambm me teria perturbado: no pela aparncia descuidada, quase selvagem, no pela cabeleira espessa, hirsuta, e outras coisas semelhantes, mas pelo conjunto do seu aspecto. Imagine um homem de uns cinquenta anos, de estatura mais baixa que mediana, mas de compleio vigorosa, robusta, concentrada, sobretudo slida, mais ou menos como a de Fichte, porm mais cheia, sobretudo o rosto, mais arredondado; tez avermelhada, olhos inquietos, brilhantes, quase penetrantes quando olham ixamente; nenhum movimento brusco; na expresso da isionomia, em particular do olhar, cheio de vida e de esprito, uma mistura ou uma alternncia perptua de bonomia cordial e de temor; em toda a sua atitude essa tenso, essa inquietao espreita dos surdos que tm uma sensibilidade muito viva, lanando uma frase alegre e descontrada para logo em seguida recair num silncio feroz; no entanto, no se pode deixar de pensar diante dele: Eis a o homem que d alegria a milhes de homens, apenas alegria pura, espiritual!16 Alegria pura o que ele quer agora oferecer humanidade inteira, naquela que ser sua obra mais grandiosa: a Nona Sinfonia. [1]Sic transit gloria mundi, expresso latina que significa: as coisas mundanas so passageiras. (N.T.) A Nona Sinfonia No vero de 1822, Beethoven passa uns dias em Teplice, depois em Baden para uma nova cura termal, acompanhado de Anton Schindler, que virou seu facttum. l que compe, com muita rapidez, a abertura de A Consagrao da Casa, para a reabertura do teatro de Josephstadt uma obra escrita maneira de Haendel, decididamente seu compositor preferido, aquele pelo qual tem uma venerao, tanto por seu rigor de escrita quanto por sua capacidade de elaborar complexas e luminosas retricas musicais a partir de materiais muito simples. Em novembro, em Viena, a reprise de Fidelio um grande sucesso. A jovem intrprete do papel de Leonora, Wilhelmina Schroeder, mostra tanto talento teatral e tanta presena em cena que Beethoven se entusiasma. Mas Schindler conta, no tom lacrimoso e grandiloquente que o caracteriza, que essa representao foi, na realidade, um calvrio para o compositor: ele mesmo quis reger a orquestra no ensaio geral, quando j incapaz, pois no ouve nada. Ele retarda a msica, os cantores aceleram. preciso interromp-lo, explicar-lhe, substitu-lo. Ele deixa o teatro furioso, vai para casa, permanece prostrado por longas horas, desesperado. Esse dia fatal de novembro foi o mais doloroso de toda a carreira do pobre mestre, to duramente testado. Quaisquer que fossem as angstias pelas quais passou, ele nunca havia sido atingido de forma to dura. Com frequncia tive oportunidade de v-lo visitado pela tristeza, e mais de uma vez o vi se curvar ao peso dos infortnios; mas sempre, aps um momento de prostrao, ele reerguia a cabea e superava a adversidade; desta vez ele fora atingido em suas foras vivas, e at o dia da sua morte viver sob o impacto dessa cena terrvel.1 Na noite da representao ele assiste ao espetculo com um olhar enlouquecido, encerrado num mundo de silncio e de zumbidos dolorosos. Na mesma ocasio recebe uma encomenda: o prncipe russo Nicolai Borissovitch Galitzin, violoncelista amador e amante da sua msica, lhe pede para compor trs quartetos, ao preo que ele quiser. Beethoven aceita, explicando que nada pode prometer quanto ao prazo de entrega. Pois um outro projeto o absorve inteiramente: o da Nona Sinfonia. Nenhuma presso pode desvi-lo desse trabalho. Seus amigos Lichnowsky e Dietrichstein suplicam para que componha uma missa para o imperador: ele fica um pouco tentado antes de adiar o projeto para nunca, pois a agenda est de fato sobrecarregada. No assim que ir assegurar a proteo da corte, que mais uma vez lhe recusa o cargo de mestre de capela, suprimindo o posto! Alm do mais, no comeo de 1823, ele termina a composio, estafante, da Missa Solemnis. Do mesmo modo, ele rejeita as reiteradas solicitaes que lhe fazem de escrever uma nova pera. Fidelio no acaba de atingir um grande sucesso? A pera alem tem necessidade de tais obras, para contrabalanar o triunfo dos italianos e suas peras-bufas. Beethoven est bem consciente disso. Alis, ele cercado pelas atenes de Karl-Maria von Weber, que se tornara clebre dois anos antes com seu Freischtz [O franco-atirador] e que, algum tempo depois, o recebe para jantar com amigos: Esse homem grosseiro e repugnante me cortejou e me serviu mesa com tanta ateno como se eu fosse uma dama2, testemunha o msico. Mas, quanto a ele, o projeto de uma nova pera no lhe convm. Lichnowsky lhe prope temas: tragdias de Voltaire, Zaira, Maom, e at uma Fedra que Voltaire jamais escreveu. Seu amigo Bach, o advogado, lhe sugere retomar o velho projeto da Conjurao de Fiesko de Schiller: em vo. At mesmo Gallenberg, o marido de Giulietta Guicciardi, que continua tentando afirmar-se como msico enquanto a sempre bela Giulietta se distrai com seus amantes, busca uma aproximao com Beethoven, que recusa terminantemente. Compreende-se que ele no tivesse vontade de se reaproximar do casal. As velhas feridas ainda sangram. Depois a vez de Franz Grillparzer, o jovem poeta dramtico j clebre, com frequncia em dificuldades com a censura por suas ideias religiosas pouco ortodoxas, que faz amizade com o compositor e lhe prope uma colaborao: uma pera ferica sobre Melusina[1]. Beethoven gosta muito de Grillparzer, que tem por ele uma admirao sem limites. Mas a proposta de uma pera sobre Melusina lhe parece um pouco ftil. Em matria de pera, seu nico verdadeiro desejo, sua ambio suprema, seria compor um Fausto, como ele escreve em abril de 1823: No escrevo apenas o que mais gostaria de escrever, mas o que preciso, por causa do dinheiro. Isso no quer dizer que escrevo unicamente por dinheiro. Passado este momento, espero enfim escrever o que o mais alto para mim e para a arte Fausto.3 E, de fato, nesse momento da histria, haveria um tema mais digno dele, que atingisse o mais fundo da cultura alem, o mago das lendas germnicas e do questionamento metafsico do homem diante da morte, e a escolha do seu prprio destino? A vida e a obra... perturbador pensar na existncia de Beethoven durante esse ano de 1823, no auge da composio da Nona Sinfonia, esse monumento alegria, esse sonho de fraternidade universal. Pois nada funciona. A subscrio para a Missa Solemnis, projeto no qual ele se obstina, encontra raras respostas. O arquiduque e cardeal Rodolfo, passando uma temporada em Viena, o importuna: A temporada do cardeal durou quatro semanas, durante as quais tive de lhe dar diariamente aulas de duas horas e meia a trs horas. Ele me roubou tempo demais4, escreve a Ries. O trabalho de um artista consiste tambm em se proteger dos chatos... Como se a surdez no bastasse, surgem problemas nos olhos. Em abril, uma conjuntivite aguda o impede de ler e de escrever, ordem dos mdicos. Ele a desrespeita, mas o trabalho com a sinfonia afetado. durante esse ms de abril que aceita receber um menino de quem lhe dizem maravilhas, um prodgio, um virtuose chamado Franz Liszt. Tem onze anos de idade e j d concertos nos quais seus dons de improvisador impressionam. Ele sonha apenas conhecer Beethoven. Inclusive roga a Schindler que interceda junto ao mestre para que lhe d um tema, lacrado num envelope, que ele abrir no prximo concerto para dele tirar uma improvisao. Beethoven no ir ao concerto o que ele ouviria? Mas, alguns dias mais tarde, o jovem Liszt bate sua porta, acompanhado do seu professor, Czerny. Meio sculo depois, Liszt deixou o testemunho desse encontro, talvez floreado pelos anos: Ele nos olhou por um momento com um ar sombrio, trocou algumas palavras rpidas com Czerny, depois icou em silncio, enquanto meu bom professor fez sinal para eu me pr ao piano. Toquei primeiro uma pequena pea de Ries. Quando terminei, Beethoven me perguntou se eu poderia tocar uma fuga de Bach. Escolhi a fuga em d menor do Cravo bem temperado. Poderia transp-la num outro tom?, me perguntou Beethoven. Por sorte, pude faz-lo. Depois do ltimo acorde, olhei para ele. Penetrante, o olhar ardente e sombrio do grande mestre pousou em mim. Mas de repente um sorriso suavizou seus traos: Beethoven chegou bem perto, inclinou-se para mim, ps a mo na minha cabea e, acariciando vrias vezes meus cabelos, murmurou: Diabo de garoto! Eis a um tipo raro! [...] V! Voc um afortunado e far outros homens felizes. No h nada de melhor, de mais belo.5 Nesse mesmo ms de abril, ele tem a alegria de reencontrar o violinista Ignaz Schuppanzigh, seu amigo que volta da Rssia. Eles se conhecem h mais de vinte anos. Schuppanzigh sempre defendeu com ardor os quartetos de Beethoven, tocando-os seguidamente com seu conjunto. Beethoven comps para ele um exerccio humorstico, Elogio do Obeso. Pois Schuppanzigh no passa despercebido: enorme, pitoresco, Ludwig o chama Mylord Falstaff. a ele que confidencia os projetos que correspondem a seus desejos mais profundos, escrever novos quartetos: refgio, forma ideal onde dar vazo a suas meditaes e a seu pensamento musical. Longe dos efeitos tonitruantes da orquestra, o quarteto, pela economia dos seus meios e a perfeio ideal de uma formao reduzida, permite atingir a depurao. Logo ao chegar, o bom Schuppanzigh decide organizar concertos com seu grupo para tocar antigos quartetos de Beethoven, o oitavo e o dcimo. O sucesso reduzido. Como se essa msica, austera, grave, profunda, tivesse passado de moda em Viena. Beethoven est longe da cidade. Partiu no vero para Hetzendorf, convidado pelo rico baro de Pronay, que o hospeda luxuosamente em seu castelo. Vero de trabalho intenso, ocupado na tarefa imensa de dar forma a esta sntese de toda uma vida musical, este projeto que ele vem concebendo h dcadas e que ser a Nona Sinfonia. A temporada, que deveria ser divina, logo torna-se insuportvel. Beethoven cometeu o erro de convidar Schindler para juntar-se a ele por alguns dias e o suporta cada vez menos, apesar de alguns servios que este lhe presta. Convm dizer que Schindler de uma fatuidade insuportvel. Em nome de suas competncias musicais, ora entende tratar Beethoven como companheiro, explicando-lhe o que deve compor, ora se mostra de uma servilidade pegajosa particularmente desagradvel que suscita em Beethoven um sentimento de execrao e de desprezo. Passagens dos Cadernos de conversao registram essas questinculas e conselhos que impacientam e irritam Beethoven, que acabar por se desembaraar dele por um momento no ano seguinte. Quanto ao anfitrio, o baro de Pronay, Schindler logo o exaspera, aborrecendo-o, em troca da hospitalidade, com longas conversas, ao mesmo tempo em que lhe pede para no fazer rudo no quarto. Beethoven logo sente um prazer maligno em contrari-lo e abandona essa gaiola dourada para se refugiar em Baden. Nesse momento, ele est compondo os trs primeiros movimentos da sua sinfonia e se mostra especialmente irascvel. Embora suas relaes com Karl tenham se apaziguado e sejam agora mais afetuosas, a coisa no dura: no outono, Karl, aos dezessete anos, tem a m ideia de tomar seu primeiro porre, o que bastante compreensvel na idade. Mas a reao do tio, irracional como sempre, obriga Karl a se desfazer em pedidos de desculpa. As relaes no vo melhores com seu irmo Johann, e sobretudo com a mulher deste. Ele tolera mal a afetao burguesa do irmo que, nas cartas, se vangloria com o ttulo imbecil de proprietrio de terras6 ao que Ludwig, numa carta de Ano-Novo, responde: Proprietrio de um crebro.7 Mas eis que Johann adoece, e sua mulher aproveita-se para engan-lo. A virtude suscetvel de Ludwig, pronta a se inflamar quando se trata dos desvios de outrem, vale a Johann uma carta furibunda na qual ele trata a cunhada de puta e de porca.8 Oh, vergonha e maldio! ele escreve. Ser que no h mais em ti resto algum de um homem?9 Enfim, no meio de todas essas preocupaes, ele termina a Nona Sinfonia. Seu monumento. Se a Missa Solemnis pretendia ser a sntese de todas as msicas sacras, a Nona a apoteose e a sntese do seu prprio universo musical, da sua cincia da orquestra, uma obra que ele oferece tanto a si mesmo quanto humanidade inteira. necessrio reconstituir sua gnese. Fazia trinta anos que Beethoven pensava em musicar a Ode alegria de Schiller, que coloca no topo do seu cnone literrio. Por outro lado, segue profundamente afeioado ao tema musical que j utilizou, em particular, na Fantasia para Piano, Coro e Orquestra op. 80. Em que momento esses dois elementos se juntam? Tardiamente. Primeiro ele considerou uma sinfonia com coros, muito diferente da Nona. A Nona Sinfonia, concebida desde 1812, esboada em 1817, no compreendia, na origem, um final com coros. Em 1822 e 1823, ele compe os trs primeiros movimentos, mas pensa num final instrumental. somente no outono de 1823 que se produz a juno entre os trs primeiros movimentos e o Hino Alegria: ele pode ento, em fevereiro de 1824, terminar essa sinfonia em r menor, coroando-a com esse movimento grandioso. Por sua amplitude, sua complexidade, sua dificuldade de execuo, mas tambm graas acessibilidade imediata do seu hino final a um pblico universal (a tal ponto que se far dele o hino europeu, numa reorquestrao bastante vulgar de Herbert von Karajan), a Nona Sinfonia mais do que uma obra musical: um smbolo, um estandarte e at uma arma poltica, como mostrou muito bem Esteban Buch num ensaio brilhante.10 Conforme as condies de sua execuo e de sua recepo, no se ouve exatamente a mesma obra. No registro de um concerto em Berlim, em 1943, regido por Wilhelm Furtwngler diante de uma assembleia de dignitrios nazistas, marcada a lentido aterrorizante e suntuosa do andamento, a potncia do final... Obra escrita por antecipao para a glria do III Reich? A interpretao dada por Leonard Bernstein pouco antes de morrer, em 1989, no momento da queda do muro de Berlim, veste a obra, de maneira simblica, de um sentido completamente diferente... O que essa sinfonia contm , de fato, a totalidade do gnio orquestral de Beethoven, seu prodigioso senso da dramaturgia musical: um primeiro movimento sombrio, inquietante, que parece surgir das profundezas da terra, como uma lembrana dos tons trgicos da Quinta Sinfonia; um segundo movimento em forma de scherzo fugado, ritmado pelos tmpanos no comeo, depois sucedido por um motivo danante em que os obos e as trompas desempenham um papel essencial; um adgio cantbile, meditativo, lrico, que lembra a Cena beira do riacho da Sinfonia Pastoral; a seguir a exploso final do quarto movimento, ele prprio composto de duas partes: uma abertura instrumental em si bemol menor, antes da introduo do Hino Alegria propriamente dito, na tonalidade triunfal de r maior. Desta vez temos vontade de nos reconciliar com Claude Debussy que, em Monsieur Croche, faz sobre a Nona Sinfonia este julgamento lmpido: Nada nessa obra de propores enormes intil; nem mesmo o andante que estticas recentes acusaram de longo; no ele um repouso delicadamente previsto entre a persistncia rtmica do Scherzo e a torrente instrumental que arrasta de modo irresistvel as vozes rumo glria do Finale? Quanto humanidade transbordante que faz romper os limites habituais da sinfonia, ela brota da sua alma, a qual, sedenta de liberdade, se mortiicava, por um irnico arranjo do destino, com as grades douradas que a amizade pouco caridosa dos poderosos lhe oferecia. Beethoven deve ter sofrido com isso no seu corao e desejado ardentemente que a humanidade comungasse com ele: da esse grito lanado pelos milhares de vozes do seu gnio aos irmos mais humildes e mais pobres. Foi ele ouvido por estes? Questo perturbadora!11 Em Viena, murmura-se que Beethoven acaba de concluir uma obra imensa, grandiosa. Mas a Sociedade Filarmnica de Londres lhe havia encomendado uma sinfonia em 1817, essa mesma, na realidade, que acaba de compor, e ele fortemente tentado, mais uma vez, a partir para Londres com sua sinfonia. ento que alguns membros da alta sociedade vienense, sabendo desses projetos de partida, lembram-se da sua existncia. Enviam ao mestre um pedido, uma carta de splicas. Essa carta, assinada por uns trinta nomes, de uma adulao grandiloquente nos seus termos pomposos: S o senhor pode assegurar a vitria decisiva aos nossos esforos para o bem. A nao espera do senhor uma vida nova, novos lauris e um novo reinado do bem e do belo, apesar da moda atual que quer violentar as leis eternas da arte....12 Estranha, pateticamente, Beethoven acaba seduzido por essa carta melflua. Boas palavras mas nenhuma promessa. Nada que se assemelhe a um contrato, com moeda sonante e bem aferida. Uma manobra dilatria, sem garantias para o interessado. Mas, ao apelar a to nobres sentimentos, sabemos que fibra tocada no destinatrio. Enfim o concerto preparado. No sem dificuldades. A dimenso monumental da obra assusta os executantes. E levanta-se a questo do lugar. Onde tocar tal composio? O diretor do teatro An der Wien, o conde Palfy, concorda em ceder o local com a condio de que seus prprios maestros se encarreguem de dirigir a obra. Beethoven no quer nem ouvir falar disso: exige que sua sinfonia seja regida por Umlauf e Schuppanzigh, os nicos em quem confia. Escolhe um outro teatro, muito menor, o Karntnerthortheater. Torna-se desconfiado, acusa os colaboradores de extorqui-lo, anuncia que abandonar o concerto. Ser preciso todo o tato e a doura do enorme Schuppanzigh para faz- lo mudar de ideia. Quanto s cantoras, Karoline Unger e Henriette Sontag, resmungam diante das dificuldades do canto delas e do texto. Ele as afaga, as paparica, inclusive as convida para jantar em casa: dessa ceia elas sairo mais mortas que vivas, com vmitos, pois o alimento ou o vinho que Beethoven lhes serviu estava com certeza estragado. Todos se metem a dar palpites no empreendimento: Schindler, claro, mas tambm o sobrinho Karl e at o irmo Johann, pouco competente em matria de msica. O concerto acontece finalmente em 7 de maio de 1824. Alm da grande sinfonia com solos e coral, est prevista a apresentao, pela primeira vez, da Missa Solemnis. A polcia intervm, j que proibido tocar msica religiosa num teatro. Os trechos escolhidos, como dissemos, sero hinos. No dia do concerto, o estreito recinto do teatro, essa casca de noz, mal pode conter a multido. Apenas o camarote da famlia imperial permanece vazio. Mas os aristocratas, j em suas frias de vero, tambm no compareceram. O prprio arquiduque Rodolfo chama a ateno por sua ausncia. Na sala a tenso extraordinria. No incio, o pblico escuta religiosamente o sombrio primeiro movimento. Mas, a partir do scherzo, gritos de entusiasmo misturam-se orquestra. Aps a exploso das ltimas notas, uma ovao indescritvel. Ressoam cinco salvas de aplausos. Essa inconvenincia deixa nervosos os policiais presentes: a prpria famlia imperial em geral no recebe mais do que trs. Beethoven no ouve nada. Est de costas viradas para o pblico, ao lado do regente Umlauf, com os olhos perdidos na partitura. Uma das cantoras, Karoline Unger, avana em direo a ele. Toma-o pelos ombros e fora-o a virar-se para a multido. Ele v rostos comovidos, mos que se agitam, e se inclina. Mas essa felicidade de curta durao. A parte da receita do concerto que lhe cabe irrisria: 120 florins. Uma misria para tantos meses de trabalho. Apesar do sucesso, sente-se arrasado. Acaba de oferecer uma obra-prima humanidade e sabe bem o que ela significa. Essa glria no suficiente? No. Acreditar que um artista vive sem dinheiro, fora da realidade do mundo, desprez-lo. Beethoven se recusa a ir jantar com os outros. Permanece horas afundado num div, furioso e desesperado. A obra reapresentada em 25 de maio, com uma ria de Rossini como brinde para atrair o pblico... Mas desta vez a sala est longe de estar cheia. Parece mais o resultado de uma intriga. Seus inimigos conseguiram caluniar a obra junto ao pblico? O jantar aps o espetculo triste, apesar do alegre grupo reunido. Os amigos esto ali, o sobrinho Karl, as duas simpticas cantoras, Karoline Unger e Henriette Sontag. Por brincadeira, pediram a Schuppanzigh para comer antes do jantar, por conta de seu apetite de leo. Mas Beethoven est sombrio. Um comentrio pe fogo na plvora. Algum lhe sugere encurtar a sinfonia. Ele explode de fria. E desta vez Schindler o alvo da sua clera. J no o suporta mais, e a ocasio propcia para livrar-se dele. Responsabiliza-o pelo fracasso, acusa-o de lhe roubar dinheiro. Schindler vai embora. Depois a mesa se esvazia, e Beethoven acaba por jantar sozinho com Karl. Foi assim que nasceu, dolorosamente, na amargura e na discrdia, a obra musical mais clebre do mundo, que canta a fraternidade de todos os homens. [1] Personagem do folclore europeu, esprito das guas doces e das fontes sagradas. (N.T.) Cantos do cisne Schindler, despedido, remi seu despeito. Ele voltar a se aproximar do compositor nos ltimos meses de vida deste, parasita abusivo que colocou no seu carto de visita: Amigo de Beethoven. Ludwig passa o vero de 1824 escrevendo o Dcimo segundo Quarteto op. 127, primeiro em Piesk, depois em Baden, porque em Piesk se sente espionado pelos transeuntes, que podem v-lo no seu quarto. O Dcimo segundo Quarteto uma encomenda do prncipe Galitzin. Fruto de longas pesquisas, de inmeros esboos, a obra tem mais de quarenta pginas! Lenta ruminao que se explica por problemas reais de composio: ele busca uma forma nova, pensa mesmo em lhe dar seis movimentos. A obra se revela de uma dificuldade considervel para os intrpretes, e parece que esse quarteto foi inicialmente mal compreendido por um pblico desconcertado por sua novidade. preciso dizer tambm que a execuo feita por Schuppanzigh, em maro de 1825, catastrfica: os msicos no tiveram tempo de ensaiar nem de assimilar uma obra inapreensvel, com uma variedade de efeitos, invenes meldicas de difcil memorizao, que uma primeira escuta ou uma leitura superficial no conseguem penetrar. Furioso, Beethoven retira a obra de Schuppanzigh, magoado, apesar dos seus veementes protestos, e a confia ao quarteto Bhm, que a apresenta quinze dias mais tarde com sucesso. Mas Schuppanzigh digere mal a afronta, agravada por calnias que Johann, irmo de Ludwig, parece ter lanado contra o violinista, espalhando mexericos imbecis. O desentendimento no vai durar muito tempo. Beethoven terminou esse Dcimo segundo Quarteto em setembro de 1824, no delrio da sua alegria e na alegria do seu delrio1, diz um amigo. Aps o afastamento de Schindler, um novo facttum se estabelece aos poucos junto dele. Trata-se de Karl Holz, um violinista do quarteto Schuppanzigh com quem Beethoven simpatiza, provavelmente porque o faz rir. Holz no tem a cara de enterro e o ar doutoral de Schindler: um jovem de 26 anos, de temperamento alegre e brincalho, que estar ao lado de Beethoven at o final de 1826, poca do seu casamento. Claro que Schindler o retrata como um bbado detestvel e um estouvado poltico, que teria exercido m influncia sobre Beethoven. Na realidade, Holz sobretudo um conselheiro inteligente e dedicado, como testemunha o que resta dos Cadernos, demonstrando por seu mentor uma amizade sem bajulao. Beethoven, por seu lado, vigia as amizades do seu sobrinho. E justamente o amigo de Karl nesse momento, chamado Niemetz, no lhe agrada. Considera-o chato, sem nenhum decoro e convenincia.2 Alm do mais pobre. Por certo pobreza no vcio, mas mesmo assim... Em suma, Beethoven quer que Karl deixe de v-lo. Este se revolta e manda o tio s favas. Poderia ser o momento da sua emancipao. Infelizmente... Nos meses seguintes, e at o drama que se prepara, as discusses entre o tio e o sobrinho so cada vez mais frequentes e violentas. Todo o ano de 1825 traz os vestgios ou os respingos de lama dessa disputa, especialmente nas cartas furiosas do tio, que suspeita de que Karl esteja revendo a me e lhe prega sermes, acusando-o, ameaando abandon-lo sua sorte: Eu no gostaria de ter me esforado tanto para dar ao mundo um homem ordinrio.3 Beethoven chega at a mudar de casa para se aproximar da escola onde Karl estuda comrcio, outra decepo. Nesse vero ele interrompe por alguns dias suas frias para voltar a Viena e procurar uma nova casa. nesse momento que reencontra, quase por acaso, seu amigo de infncia Stephan von Breuning, perdido de vista h anos, acompanhado do filho Gerhard. como se um crculo se fechasse. Os Breuning vo se instalar em Viena. Os dois amigos se abraam e prometem se ver com frequncia. Beethoven est feliz. Ele passou um inverno terrvel, doente dos pulmes e mal do estmago. Mas nesse vero parece particularmente em forma. Quem poderia pensar que s tem mais um ano e meio de vida? Em setembro, um grupo de amigos, entre os quais Holz, Seyfried e o compositor dinamarqus Kuhlau, vai visit-lo em Baden. Beethoven os cansa num passeio pelos caminhos montanhosos mais escarpados, marchando com disposio frente, como se o contato com a natureza multiplicasse suas foras. Depois, leva-os para almoar numa hospedaria onde faz questo de embriag-los com os melhores vinhos. Compe um exerccio de gosto duvidoso a partir do nome de Kuhlau. Todos se levantam da mesa cambaleando. No dia seguinte ele pede desculpas por tais excessos. Essa alegria, esse desejo de festejar se explica: ele acaba de terminar o Dcimo quinto Quarteto op. 132, o segundo dos Quartetos Galitzin. O quarteto tocado em 9 de setembro, em Viena, por Schuppanzigh e seu grupo, do qual Holz faz parte. Beethoven desloca-se de Baden para a ocasio. A execuo feita entre amigos, no quarto de um hotel situado junto ao parque Prater. Faz um calor sufocante. Beethoven rege a obra em mangas de camisa, embora isso no seja muito necessrio para uma pea de msica de cmara. Nesse momento, estaria ele totalmente surdo? Seu mal teria perodos de melhora? Ele arranca o violino das mos de Holz, cuja interpretao no lhe agrada, para tocar alguns compassos em seu lugar. Mas est um quarto de tom abaixo... Depois aceita improvisar ao piano. Ser a ltima vez em pblico. Ele se ouviria tocar ou seus dedos apenas guardariam a lembrana dos anos de virtuosismo? Esse Dcimo quinto Quarteto, hoje uma de suas obras mais mticas, embora no a mais famosa, desde o incio muito apreciado. Seguramente no fcil, mas o adgio de tal beleza, de tal carga emotiva e espiritual que, conta Holz, arrancou lgrimas de um velho amigo de Beethoven, o comerciante de tecidos Johann Wolfmayer... De volta a Baden, ele retoma em seguida seu trabalho com o Dcimo terceiro Quarteto e a Grande Fuga para Quarteto de Cordas, ao mesmo tempo em que envia a Karl cartas extravagantes, ora com censuras, ora com demonstraes de amor apaixonado. Karl sua vergonha e sua preocupao constante. Pede dinheiro emprestado s criadas, tem ms companhias. Uma noite desapareceu, isto , no dormiu em casa. Beethoven se desesperou. Em que braos duvidosos Karl passou a noite? verdade que o rapaz ama o jogo e as mulheres. E o pai no tarda a se arrepender de seus xingamentos, chamando-o de volta: Caro e precioso ilho! Acabo de receber tua carta quando a ansiedade j me roa e eu me dispunha a voltar hoje mesmo a Viena. Graas a Deus no necessrio; apenas me acompanhe, e o amor, a beatitude e a bem-aventurana sero nosso destino. Ele se queixa tambm da sua criada, e em palavras que no esperaramos do autor da Nona Sinfonia: A semana inteira tive de suportar e ter pacincia como um santo. Estou farto dessa gentalha! Que vergonha para a nossa civilizao haver a absoluta necessidade do servio dessa gente, ser preciso ter junto a ns o que desprezamos.4 Em outubro de 1825 ele conclui o Dcimo terceiro Quarteto, de uma riqueza meldica e de uma liberdade de concepo que traduzem uma grande plenitude, tendo, no quinto movimento, aquela passagem de intensidade emocionante que Beethoven confessou a Holz ter composto com lgrimas de dor5; nunca antes, ele acrescentou, sua msica atingira tal expresso, e a lembrana dessa passagem lhe trouxe lgrimas aos olhos. Mas a criao mais radical desse outono de 1825 a famosa Grande Fuga para Quarteto de Cordas, que na origem o final do Dcimo terceiro Quarteto. Beethoven, no momento de publicar a obra, substituiu o trecho por um outro movimento, a pedidos insistentes do seu editor Artaria, assustado pela complexidade to pouco comercial dessa fuga, por sua dificuldade, tanto para ouvir quanto para executar: essa pea extraordinria foi assim publicada separadamente, em 1827. preciso dizer que Beethoven no se preocupa muito com a capacidade de escuta e de compreenso do seu pblico. Como nos surpreendermos com o fato de que a Grande Fuga, que soa de forma to contempornea aos nossos ouvidos, tenha desde o incio assombrado e inquietado os intrpretes? Trata-se de fato, segundo o princpio clssico e mesmo cannico da fuga, de uma msica do futuro. A seu respeito, o maestro Ernst Ansermet, que comps uma adaptao para orquestra, escreveu: sem dvida a obra ininterruptamente mais poderosa pela amplitude da sua forma, a mais densa e a mais rica de significao de toda a msica. Ela um mundo em si; ela nica.6 Karl o evita, tem at vergonha de andar com ele na rua, por causa do seu ar de louco.7 Beethoven sente-se infeliz com isso. Que ingratido!... Em contrapartida, afeioa-se por Gerhard von Breuning, o filho do seu amigo, e este, ao contrrio de Karl, tem orgulho de ser visto com esse homem ilustre. O crculo volta a se fechar um pouco mais. Depois de muitos anos, recebe enfim notcias de seus amigos Wegeler. Por que um to longo silncio? A culpa em parte dele: desde que vive em Viena, h mais de trinta anos, no voltou mais a lhes escrever. De longe eles acompanharam seu magnfico percurso, que deixa Wegeler orgulhoso e feliz. No contribuiu ele modestamente para isso, sua maneira, no tempo da distante juventude? Lorchen, casada com Wegeler desde 1802, junta palavras ternas carta do marido. Ela no esqueceu nada, nem a antiga amizade, nem a desavena, nem a reconciliao... Eles tm uma filha que venera sua msica e a toca maravilhosamente. Tenho ainda o retrato em perfil da tua Lorchen8, responder Ludwig a Wegeler, dez meses mais tarde... Muitas boas almas ficaram desoladas por Beethoven ter dedicado os ltimos meses de sua vida a compor quartetos de cordas, em vez de lanar todas as foras na sua Dcima Sinfonia, que ficar apenas esboada, no rquiem com que ele sonha, ou no projeto magnfico de Fausto. Contudo, no faltam razes para essa escolha, independentemente de qualquer considerao esttica e da paixo marcada de Beethoven pelo gnero do quarteto. Ainda que a Nona Sinfonia faa um grande sucesso nas cidades alems onde tocada, sobretudo em Leipzig, ainda que em breve ela v se espalhar por toda a Europa e conhecer um destino fulgurante, Beethoven continua decepcionado com o fracasso financeiro sofrido em Viena. A msica sua profisso, ele precisa viver dela. Do ponto de vista dos editores, um quarteto que pode ser tocado por bons amadores, ou em concertos pblicos ou privados, especialmente um quarteto do mestre Beethoven, um bom negcio, pois vende bem. Ele mesmo no insensvel a esse argumento. Pagam-lhe agora at oitenta ducados por esse tipo de composio. Por isso, j no outono de 1825, ao mesmo tempo em que toma notas para a Dcima Sinfonia, cujo projeto vai clareando, ele trabalha com afinco no seu Dcimo quarto Quarteto. Mas em janeiro sua sade o trai novamente. Ele sofre com problemas nos olhos e da gota. O dr. Braunhofer, seu novo mdico (ele tentara vrios ao longo dos anos), lhe prescreve uma dieta severa, sem vinho nem kaffeh, e um tratamento base de ablues com leite morno, creme de arroz e chocolate. Os medicamentos, na poca, combatem sobretudo seu prprio efeito nocivo. A medicina do comeo do sculo XIX ainda uma arte primitiva. O Dcimo terceiro Quarteto apresentado em maro de 1826. A Grande Fuga constitui ainda seu movimento final. Schuppanzigh, reconciliado com Beethoven, quem oficia. Mas, apesar de toda a sua experincia, a partitura no fcil de se domar. Holz, que o acompanha e teve a ocasio de ler a obra na casa de Beethoven, testemunha esse calvrio: Schuppanzigh tinha s vezes que se esforar ao mximo para vencer as dificuldades da sua parte de primeiro violino, o que provocava em Beethoven risadas homricas.9 No dia do concerto, como se podia esperar, as reaes so de perplexidade. O terceiro e o quarto movimentos so muito apreciados e repetidos. Mas a fuga... O crtico da Gazeta Musical de Leipzig confessa seu embarao: O sentido do finale fugado, em compensao, escapou completamente ao cronista: era grego, incompreensvel. Quando os instrumentistas devem se agitar de um extremo a outro (como para passar do polo Sul ao polo Norte) em meio a incrveis diiculdades, quando cada um emite uma parte diferente da dos parceiros e assim as vozes se cruzam per transitum irregularem, numa srie de dissonncias, enim, quando o msico perde toda a coniana em si mesmo, no estando mais seguro de tocar com exatido, a coisa vira uma desordem babilnica. [...] Tudo isso talvez no fosse enunciado se o mestre pudesse ouvir o que compe. Mas no queremos concluir de modo prematuro: vir talvez um tempo, quem sabe, em que aquilo que no primeiro momento nos d a impresso de ser confuso e embaralhado parecer claro e agradavelmente construdo.10 Em suma, uma msica de surdo, mas diante da qual, por caridade, se tem a precauo de reserv-la ao futuro... Apesar da sade cada vez mais debilitada, Beethoven escreve o Dcimo quarto Quarteto em d sustenido menor, terminado em julho de 1826. As ideias pululam. Beethoven diz que esse quarteto quase programtico (Richard Wagner chega a descrever seu roteiro, que ele imagina sua maneira propensa hiprbole lrica) feito de peas e trechos roubados aqui e ali.11 a ltima msica que Franz Schubert ouvir, no seu quarto, tocada pelos amigos, cinco dias antes de morrer de tifo, em 14 de novembro de 1828, aos 31 anos. Dizem que ele ficou to emocionado que houve o receio de que morresse antes da hora. No cemitrio central de Viena, que de central s tem o nome, os tmulos de Beethoven e de Schubert acham-se lado a lado, na ala dos msicos. Uma emoo emana desse indescritvel lugar quando sabemos que esses dois gigantes nunca se falaram, embora tenham se visto, se cruzado, pois Schubert, que venerava Beethoven, dava um jeito de ir s mesmas tavernas que ele, s mesmas horas. Schubert no ousava se aproximar, petrificado de timidez diante daquele que ele considerava como seu deus. Um dia atreveu-se a lhe levar variaes para piano, mas o mestre no estava em casa. E Beethoven? Dizem que conhecia algumas obras de Schubert, especialmente os lieder, e que fez um comentrio elogioso a respeito. Mais nada. A histria feita tambm desses encontros frustrados. Matar o pai No ms de outubro de 1825, Beethoven muda-se para o que ser sua ltima moradia, a Schwarzspanierhaus. Pela primeira vez depois de muitos anos ele no parte para o campo quando chega o vero seu ltimo vero. Quer ficar junto de Karl, que deve prestar exames no fim do ano. Na verdade, ele o vigia. E a ideia no nada boa. Habitualmente, a partida do tio para suas frias dava a Karl um pouco de descanso e oxignio. Nesse ano ele ter de suportar seus humores e suas extravagncias, no abafado calor vienense. Em vo tentar evitar essa vigilncia constante, usando artimanhas, assegurando no ter necessidade da presena dele para estudar. Beethoven est cheio de projetos. Comea um novo quarteto, o dcimo sexto, aquele cujo final construdo sobre a famosa pergunta-resposta: Muss es sein? Es muss sein! ( preciso? preciso!). Esse movimento tem uma histria. Em julho ele escreve um exerccio humorstico, inspirado por uma troca com um dos seus mecenas, Ignaz Dembscher. Este deseja o manuscrito da partitura do quarteto op. 130, que Beethoven cedeu a Schuppanzigh. Ele exige ento que Dembscher indenize Schuppanzigh, pagando-lhe a quantia de cinquenta florins. preciso? pergunta Dembscher. preciso!, manda como resposta Beethoven. No Dcimo sexto Quarteto esse motivo retomado, mas o Muss es sein? Es muss sein!, de incio anedtico e objeto de um desses exerccios que Beethoven tinha o hbito de compor de forma brincalhona, adquire o peso de uma verdadeira meditao metafsica, uma fora de resposta s interrogaes tanto sobre a condio humana quanto sobre a inspirao do artista.1 O exerccio humorstico tornou-se assim, algum tempo depois, uma espcie de debate musical entre as foras da resignao e as da vontade. Ou seja, como analisa Milan Kundera em A insustentvel leveza do ser2, o procedimento de Beethoven consistiu aqui em fazer passar o leve para o pesado, um simples bom-dia na lngua de Goethe ele acrescenta com humor que pode adquirir o peso de uma tese metafsica. Muitas outras hipteses foram propostas para comentar essa passagem. Exceto uma, que ousaremos sugerir: no entretempo, Karl tentou se suicidar. Ele disparou duas balas contra a cabea. Uma se perdeu, a outra atingiu a parte esquerda do crnio. A data desse ato desesperado incerta: final de julho ou comecinho de agosto. O gesto vinha sendo premeditado havia algum tempo. Karl anunciara a inteno de se matar. Desequilibrado, atormentado, acuado, ele tinha uma pistola que Schlemmer, seu locatrio, havia encontrado num ba, com munies. Schlemmer confiscou a arma e avisou Beethoven. Mas Karl vendeu seu relgio para comprar uma nova arma. Depois se afastou de Viena, at as runas de Rauhenstein, nos arredores de Baden, para estourar os miolos. Ele no aguentava mais. As importunaes do tio, a vigilncia permanente de que era alvo... Todas as pessoas prximas de Beethoven participavam desse cerco insensato, at Schindler, sempre espreita, espionando-o, perseguindo-o com perguntas sobre o que fazia. Aconteceu, dizem, de Holz embebed-lo para lhe arrancar confidncias. Desesperado, exasperado, sufocado por essa permanente atmosfera de suspeita, Karl buscou voltar-se para a me. Fazia tudo s escondidas, por temor de ser descoberto pelo velho estpido.3 Em relao a esse tio tirnico e, digamos com franqueza, odioso nos tormentos da sua neurose paterna, ele no sentia mais do que uma imensa execrao. Uma outra razo pode explicar seu gesto: as dvidas. Ele jogava e devia dinheiro. Chegou at a desviar a quantia devida a seu locatrio, e Beethoven no abria facilmente a carteira. Karl jaz ensanguentado. Ele no morreu. Ato falho? O suicdio muitas vezes, sobretudo quando fracassa, uma maneira de punir os familiares. No caso, de matar o pai, o que no deixar de acontecer. De manh cedo, um carroceiro o encontra desmaiado. Karl consegue murmurar que quer ir para a casa da me. para l que Beethoven, acompanhado de Holz, se precipita. Karl est consciente e, ao ver o tio, se enfurece. No quer mais ouvir falar dele: Agora est acabado. No me amole com suas censuras e suas queixas: acabou.4 Dez anos de luta, de amor desastrado e selvagem, de decepes e de angstias, de loucura, de incoerncias, de educao ferozmente ciumenta de um Prometeu que sonha moldar sua criatura: tudo isso termina diante desse adolescente hostil e fechado, com a cabea coberta por uma bandagem ensanguentada. Mas o caso no terminou. Na ustria o suicdio considerado um crime, segundo as normas do catolicismo em vigor: o cmulo da estupidez. Devemos despertar os mortos para julg-los, mat-los uma segunda vez? S que dessa vez o ato falhou... Diante dos policiais, Karl acusa o tio: foi por causa dele que quis se matar, ele o maltratou demais. A nica soluo, para escapar justia, seria ele entrar no exrcito e, obviamente, Beethoven renunciar tutela. Pois acabaram descobrindo as razes do desespero de Karl e do seu gesto: a ausncia de instruo religiosa. Alis, no leito do hospital para onde foi transferido, Karl recebe todos os dias a visita de um padre. Beethoven se sente tomado de vergonha, de remorso, de rancor em relao ao sobrinho. De amor tambm, eterno. Ele lhe escreve, busca reconquistar sua confiana, supondo que alguma vez a teve. Mas tudo se passa agora como se Karl, retornando dentre os mortos, no oferecesse esperana alguma a suas tentativas, como se o tio no pudesse mais atingi-lo: ele est calmo, decidido, distante. Aceita, e mesmo escolhe, partir para o exrcito assim que for possvel. Nesses momentos de profunda aflio, Beethoven no est completamente s. Stephan von Breuning cuida das questes judiciais e se encarrega da tutela de Karl. Beethoven, mesmo assim, continua acusando a me, com sua vingana venenosa. No se poderia autoriz-lo a entrar em contato com a me, que uma pessoa corrompida ao extremo. Sua natureza intrinsecamente pervertida e m, sua maneira de sempre incitar Karl a me subtrair dinheiro, para em seguida compartilhar com ele essas rapinas, o escndalo que provocou o nascimento da sua ilha, da qual ainda se busca o pai, a certeza tambm de que o convvio com a me o levaria a encontrar mulheres nem um pouco virtuosas, tudo isso justiica minha apreenso e meu requerimento. Mesmo a coabitao com uma pessoa como ela no poderia conduzir um jovem virtude.5 Pattica obstinao no dio. Como se ele tivesse necessidade de se justificar, para aliviar o peso da prpria culpa processo muito comum nos emotivos primrios. Os que vivem a seu lado, se no o conhecessem, no imaginariam que ele acaba de viver tamanho drama, pois graceja, fala de projetos e trabalha assiduamente no seu Dcimo sexto Quarteto. O efeito dos grandes choques geralmente no imediato: mas o retorno mais violento. Teria sido para estreitar os laos familiares, para agradar a Karl, que j sara do hospital, que ele aceitou sem muito entusiasmo o convite do irmo Johann para passar uns dias na casa deste em Gneixendorf, no outono? Estranha aquiescncia. A Johann, que suplicava sua presena, ele primeiro respondeu: No irei. Teu irmo?!.6 O que uma ducha de gua fria. Mas Johann insiste, junto com Karl, que apesar de tudo o que aconteceu ir at l com ele. Ludwig acaba cedendo. A temporada penosa. Ele est carrancudo, irascvel, queixa-se de tudo. Por mais que a cunhada se esforce para agrad-lo, enfeitando sua janela de flores, ele decididamente no a suporta. Tenta at convencer o irmo a deserd-la em proveito de Karl. Intil dizer que no ser atendido. Ele acha tambm a comida execrvel, no sem m-f e um pouco de mesquinharia. Seria a morte se aproximando? Ele est convencido de que o perseguem, de que falam s suas costas, de que Karl e sua tia tocam de propsito msicas tolas para enfurec-lo. Alm disso, no suporta a vulgaridade de novos-ricos do irmo e da cunhada. Em 1o de dezembro, ele deixa precipitadamente Gneixendorf com Karl, numa carroa de leiteiro que sacoleja sob uma chuva glacial. Como Viena fica a oitenta quilmetros de distncia, preciso fazer uma parada num albergue ruim e sem lareira. Beethoven treme de frio a noite toda, sente-se mal. No dia seguinte noite, em Viena, deita-se, acometido de uma pneumonia dupla. Ficar no seu quarto at a morte. ltimo combate Poucas agonias foram to descritas e comentadas como a de Beethoven. A novela da sua runa fsica, dos sofrimentos, da morte que tarda a se apoderar desse corpo vigoroso penosa de acompanhar: pneumonia, hidropisia, antes que a cirrose, que havia muito o ameaava, o leve em 26 de maro de 1827. Uma lenda, em grande parte caluniosa, diz que Karl teria abandonado o tio sua sorte, teria ido se divertir, negligenciando chamar o mdico logo aps o retorno a Viena. Na realidade ele cuida de Beethoven, no sem dedicao. Pede a ajuda do dr. Braunhofer, que no pode se deslocar. Um segundo mdico contatado tambm no comparece. Holz, finalmente avisado em 5 de dezembro, chama o dr. Wawruch, considerado uma das sumidades da medicina vienense. Certamente esse estimvel professor competente, mas se preocupa com os honorrios; alm disso, como Diafoirus[1], pe-se a falar latim, lngua curativa, como todos sabem: Beethoven no tardar a qualific-lo de idiota. Por enquanto seu estado melhora. A pneumonia regride. Ele se sente melhor e espera mesmo se curar logo. Em 10 de dezembro, uma recada. Mas dessa vez a cirrose que inicia seu lento trabalho de destruio. Uma crise fulminante, causada por um choque, segundo este testemunho deixado pelo dr. Wawruch: Encontrei-o agitado, com ictercia por todo o corpo; uma terrvel colerina por pouco no o levou durante a noite. Uma irritao violenta e um profundo sofrimento causados por um ato de ingratido e por uma ofensa imerecida provocaram essa exploso. Trmulo, ele se contorcia em dores que lhe roam o gado e os intestinos. Os ps, at ento apenas um pouco inchados, icaram enormes. A partir desse momento a pleurisia se desenvolveu, a urina se rarefez, o gado apresentou sinais visveis de ndulos, a ictercia seguiu seu curso. A interveno afetuosa dos amigos acalmou, porm, a terrvel revoluo que se produzira: ele se apaziguou, esqueceu a afronta sofrida. Mas a doena progrediu a passos de gigante.1 Nova discusso com Karl? Punhalada de algum sua volta? No sabemos. Nesse momento, Beethoven est cercado apenas do sobrinho, de Holz e dos Breuning, pai e filho. A presena de Gerhard lhe uma alegria constante, como se ele tivesse encontrado enfim, nos seus ltimos dias, o filho dos seus sonhos. Beethoven era de uma extrema bondade, escreveu mais tarde Gerhard von Breuning, ficava conversando comigo durante horas, eu que era apenas um garoto, alimentando minhas fantasias de criana.2 Nos dias seguintes, como que atrado pelo cheiro da morte, Schindler vem retomar seu lugar junto a Beethoven. Como Holz se ausenta cada vez mais para cuidar do seu casamento que se aproxima, ele recupera o domnio sobre um Beethoven moribundo e empenha-se em deix-lo s, misturando, como de hbito, o autoritarismo e a bajulao. O ventre est inchado de gua. Decidem fazer uma puno. Beethoven operado em 20 de dezembro por Wawruch e se sente um pouco melhor. Mais vale ver correr gua da barriga do que da pena de escrever3, ele graceja. Em 2 de janeiro, Karl vem despedir-se dele. Est partindo para o exrcito e os dois no se vero mais. No dia seguinte, Beethoven escreve a seu advogado, Bach, para fazer de Karl seu herdeiro universal e para pedir que, juntamente com Breuning, cuide do sobrinho como um pai.4 Karl van Beethoven ficou no exrcito at 1832, depois se casou em Jihlava, onde servira como soldado. Tentou a seguir administrar um empreendimento agrcola, atividade na qual s conheceu dissabores. De volta a Viena, onde a me, cada vez mais rabugenta, lhe tornou a vida difcil, viveu modestamente com as rendas deixadas pelo tio. Morreu em 1858. Sua me lhe sobreviveu dez anos. Estava Beethoven de todo enganado nos seus julgamentos sobre a rainha da noite? A melhora breve. Em 8 de janeiro, nova puno. Beethoven no consegue mais suportar o dr. Wawruch e manda chamar o dr. Malfatti, o tio de Teresa, que primeiro reluta em vir, no querendo competir com o colega. Acaba aceitando, com a condio de ser apenas um auxiliar, e prescreve ao doente um estranho remdio: ponche gelado. Beethoven se alegra e bebe de bom grado essa medicao, ultrapassando amplamente a dose prescrita: parece renascer, mas logo mergulha num sono de bbado. O efeito do tratamento de curtssima durao. Seu estado piora. Ele submetido a uma terceira, depois a uma quarta puno. O pior, diz ele, a suspenso completa de [sua] atividade.5 Mal consegue rabiscar, quando a dor lhe d uma trgua, algumas notas de um quinteto para Diabelli. O corpo se recusa a cumprir as ordens do esprito. Pois ele fala ainda dos seus projetos, da sua sinfonia, do seu Fausto, do oratrio que pretende escrever quando estiver curado, Saul e Davi, inspirado no seu mestre Haendel, do qual acaba de receber, ltima e profunda alegria, a edio das obras completas. Teria conscincia do seu estado? O corpo est coberto de feridas, de escaras. Um dia, uma das feridas se abre, deixando escorrer muita gua. Seus ltimos visitantes, entre os quais Hummel e sua mulher, no conseguem reter as lgrimas ao ver esse corpo outrora poderoso que parece agora um esqueleto. Gerhard von Breuning relata: Quando retiraram do leito o corpo de Beethoven para fazer a autpsia, viu-se pela primeira vez que o infeliz estava coberto de chagas. Durante o tempo da doena, ele raramente emitira uma palavra de queixa. Nos Cadernos se encontrou apenas uma passagem a esse respeito, qual meu pai respondeu com a promessa de um unguento para suavizar a pele. Mais de uma vez, porm, ele se queixou a mim das dores que lhe ocasionava a ferida inlamada da puno.6 Quanto a Schindler, ele no perde de vista seus interesses. Ao mesmo tempo em que continua a perturbar Beethoven com conselhos e demonstraes de fidelidade, se oferece, em 27 de fevereiro, para cuidar a partitura da Nona Sinfonia e a do Oitavo Quarteto, jurando que nunca se separaria delas: ele as vender mais tarde ao rei da Prssia, com o que resta dos Cadernos de conversao. Sendo preocupante sua situao financeira, Beethoven dita, em 22 de fevereiro, uma carta para Moscheles, lembrando a antiga proposta da Sociedade Filarmnica de Londres de organizar um concerto em seu proveito. Schindler acrescenta uma carta de sua autoria, na qual descreve um Beethoven agonizante. A resposta da Sociedade Filarmnica de Londres chega rapidamente, na forma de uma quantia de cem libras esterlinas, ou seja, mil florins. Ao saberem dessa doao, os vienenses ficaro indignados por Beethoven ter apelado aos ingleses para ajud-lo. Mas eles no lhe deram quase nenhum apoio durante essa agonia. Em nenhum momento o arquiduque Rodolfo se preocupou com ele. Em 18 de maro, Beethoven dita sua ltima carta, para agradecer a Moscheles e Sociedade Filarmnica de Londres por sua generosa remessa. Em 24 de maro, est muito mal. nesse momento que lhe chegam as garrafas do excelente vinho do Reno que havia encomendado a seu amigo Schott no ms anterior, a conselho do mdico. Beethoven murmura: Que pena... Que pena... Tarde demais!. Cala-se e pouco depois comea a delirar. No mesmo dia, um padre vem lhe administrar os ltimos sacramentos. Em 25 de maro entra em coma. Seu estertor era ouvido de longe7, escreve Gerhard von Breuning. Estava completamente inconsciente. Seu irmo Johann no tarda a aparecer: quer recuperar o que resta dos mil florins enviados pela Sociedade Filarmnica de Londres. Breuning e Schindler o pem brutalmente para fora. No momento da morte, ambos estavam ausentes para se encarregar do enterro prximo, visto como inelutvel. No quarto do agonizante Ludwig havia apenas o jovem Gerhard von Breuning e o compositor Anselm Httenbrenner. Ningum mais? Nem todos so dessa opinio: Segundo o testemunho do compositor Anselm Httenbrenner, de Graz, que assistiu sua morte, Johanna van Beethoven foi a nica outra pessoa presente no quarto nos seus ltimos instantes. Essa informao no deixou de ser uma surpresa quando Thayer teve conhecimento dela em 1860, pois Schindler havia omitido a identidade da mulher presente no quarto. Thayer no podia acreditar que Johanna e Beethoven tivessem se reconciliado, e aparentemente incitou Httenbrenner a corrigir seu testemunho, de modo que este substituiu o nome de Johanna pelo de Teresa van Beethoven. Embora essa questo no possa mais ser resolvida com clareza, a primeira lembrana de Httenbrenner continua sendo o melhor indcio, e provvel que tenha sido Johanna essa sra. Van Beethoven que cortou um cacho de cabelos da cabea da Beethoven para estend-la a Httenbrenner: Como lembrana sagrada da ltima hora de Beethoven.8 Por volta das quatro da tarde, o cu escureceu e caiu uma tempestade, uma tempestade formidvel, acompanhada de granizo e de neve9, escreve Gerhard von Breuning. Beethoven ergue a mo, cerra o punho como se quisesse desafiar o cu, conta Httenbrenner, enfeitando talvez a cena. E acrescenta: Quando a mo caiu sobre o leito, os olhos estavam semifechados. Com a mo direita ergui sua cabea, apoiando a esquerda sobre seu peito. Nenhum sopro saa mais dos seus lbios, o corao havia parado de bater. Fechei seus olhos, sobre os quais depus um beijo, assim como na testa, na boca, nas mos.10 No dia seguinte morte, h uma grande movimentao na casa. Procuram dinheiro, no encontram. Johann logo acusa Breuning e Schindler de o terem roubado. Holz quem revela a gaveta secreta onde Beethoven guardava seus objetos mais preciosos. Ali se encontram papis de crdito, o Testamento de Heiligenstadt, a Carta Bem-Amada Imortal e dois retratos de mulheres: o de Giulietta Guicciardi e o de Marie Erddy. Nos dias que seguem, muitos de seus papis desaparecem. mais do que provvel que o domiclio abandonado tenha sido visitado pela polcia do imperador, em busca de documentos comprometedores: Beethoven era tido como um perigoso contestador do regime. De todos os seus bens, vendidos em leilo em novembro do mesmo ano, obteve-se a soma de 1.140 florins. Ao todo, herana, manuscritos, livros, partituras renderam 10 mil florins toda a fortuna de uma vida de trabalho obstinada em compor uma das maiores obras j concebidas pelo esprito humano. No seu enterro, uma multido de vinte mil pessoas se comprime nas ruas de Viena. O fretro levado igreja da Trindade dos Frades menores, depois ao cemitrio de Whring, na periferia de Viena. A bela orao fnebre de Franz Grillparzer lida pelo ator Heinrich Anschtz. Um coro, acompanhado de trombones, canta o Miserere (WoO 130). Dizem que, aps a sada do padre, na antevspera da morte, Beethoven murmurou: Finita est comoedia. [1]O mdico de O doente imaginrio de Molire. (N.T.) Anexos Cronologia 1770. Nascimento em Bonn, em 17 de dezembro, de Ludwig van Beethoven. 1778. Primeiro concerto em Colnia: Beethoven, apresentado como um menino prodgio, trabalha com seu pai. 1779. Estudos musicais com o msico viajante Tobias Pfeiffer. 1780. Estudos musicais com Egidius van den Eeden e Franz Rovantini. Aluno no Tirocinium de Bonn. 1781. Viagem a Roterd com a me. 1782. Estudos musicais com Christian Gottlieb Neefe. Incio da amizade com Franz-Gerhard Wegeler e os Von Breuning. 1783. Publicao das primeiras obras: as Variaes Dressler e as 3 Sonatinas. 1784. Nomeao como organista assistente em Bonn. 1785. Nomeado para o acompanhamento de ensaios teatrais em Bonn. 1787. Primeira viagem a Viena e encontro com Mozart. 17 de julho: morte de sua me. 1789. Matricula-se na Faculdade de Letras da Universidade de Bonn. 1790. Cantata sobre a Morte de Jos II, primeira obra importante. 1791. Viagem com a orquestra do Eleitor. 1792. Conhece Haydn em Bonn. Novembro: partida definitiva de Bonn e chegada a Viena. 1793. Lies com Joseph Haydn. Encontro com membros da aristocracia vienense: Lichnowsky, Lobkowitz, Razumovski. 1794. Lies com Albrechtsberger. 1795. Primeiros concertos pblicos, primeiros sucessos. Publicao dos Trios do op. 1. 1796. Turn de concertos em Praga, Nuremberg, Berlim e Budapeste. 1798. Frequenta Bernadotte na embaixada da Frana. Sonata chamada Pattica. 1799. Amizade com Amenda. Conhece os Brunsvik. 1800. Execuo da Primeira Sinfonia. Temporada em Martonvsr na casa dos Brunsvik. Termina os seis Quartetos op. 10. 1801. Grave crise provocada pelo avano da surdez. Apaixonado por Giulietta Guicciardi. Sonata chamada Ao Luar. 1802. Rompimento com Giulietta. Composio da Segunda Sinfonia. Temporada em Heiligenstadt (maio- outubro). Outubro: Testamento de Heiligenstadt. 1803. Execuo da Segunda Sinfonia. Sonata chamada A Kreutzer. 1804. Termina a Sinfonia Eroica, suprime a dedicatria a Bonaparte. Sonata Waldstein. 1805. Apaixonado por Josefina Brunsvik. Considera um casamento que no se realizar. Estreia de Fidelio/Leonora em 12 de novembro. Fracasso. 20 de novembro: os franceses ocupam Viena. 1806. Em 29 de maro, nova verso de Leonora, novo fracasso. Quarto Concerto para Piano, Quarta Sinfonia, Concerto para Violino, Sonata chamada Appassionata. Termina os quartetos 7 a 9. Temporada na Silsia (setembro e outubro) na casa de Lichnowsky, com quem se desentende. 1807. Solicita um cargo direo dos teatros da corte: recusado. Abertura de Coriolano. Temporada na Hungria na casa de Esterhzy, execuo da Missa em d e desentendimento com Esterhzy. 1808. Amizade amorosa com Marie Erddy. Compe a Quinta Sinfonia e a Sexta Sinfonia, chamada Pastoral. 22 de dezembro: execuo da Pastoral. 1809. Quinto Concerto para Piano chamado O Imperador. Contrato com o arquiduque Rodolfo e os prncipes Lobkowitz e Kinsky. Bombardeio de Viena e ocupao pelas tropas francesas. Batalhas de Essling e Wagram. Sonata Les Adieux, Dcimo Quarteto. 1810. Egmont. Rejeio do pedido de casamento a Teresa Malfatti. Encontro com Bettina Brentano (maio). 1811. Trio para piano Ao Arquiduque (Rodolfo). 1812. Stima Sinfonia. 6-7 de julho: Carta Bem-Amada Imortal. 19-23 de julho: encontro e conversas com Goethe. Ligao com Amalie Sebald. 1813. A Batalha de Vittoria ou A Vitria de Wellington. Volta a trabalhar em Fidelio. 1814. Reprise de Fidelio: sucesso. Gravemente doente. Outubro: Congresso de Viena. 1815. Morte do seu irmo Karl. Incio da tutela do seu sobrinho Karl. Sonatas para Piano e Violoncelo dedicadas a Marie Erddy. 1816. Agravamento do seu estado de sade. Lieder Bem-Amada Distante. 1817. Doena pulmonar. Crise moral. 1818. Convalescena. Grande Sonata op. 106 (Hammerklavier). Projeto de uma missa solene. 1819. Surdez total. Trabalha na Missa Solemnis. 1820. Continua trabalhando na Missa Solemnis. Compe a Sonata op. 109. 1821. Sonata op. 110. Afeces pulmonar e heptica. 1822. Sonata op. 111. Termina a Missa Solemnis. 1823. Candidatura rejeitada ao cargo de mestre de capela da corte de Viena. Afeco ocular. Trabalha na Nona Sinfonia e nas Variaes sobre uma Valsa de Diabelli. 1824. 7 de maio: execuo da Nona Sinfonia. Dcimo segundo Quarteto. 1825. Doena heptica. Projeto de viagem a Londres. Dcimo terceiro e Dcimo quinto Quartetos. 1826. Dcimo quarto e Dcimo sexto Quartetos. Projeto de escrever uma Dcima Sinfonia. Tentativa de suicdio de Karl. 1827. Agravamento da doena: pneumonia, cirrose. 26 de maro, 17h45: Beethoven morre, velado por Johanna van Beethoven, Gerhard von Breuning e Anselm Httenbrenner. Referncias CARTAS E ESCRITOS DE BEETHOVEN Carnets intimes. Paris: Buchet/Chastel, 1977. Les cahiers de conversation (1819-1827). Paris: ditions Corra, 1946. Lettres. Turim: Ilte, 1968. Briefe. Munique: G. Henle Verlag, 1996. 6 v. Slection de lettres. Paris: Calman-Lvy, 1901. ENSAIOS E TESTEMUNHOS Em francs: Arnim, Bettina von. Correspondance avec Goethe. Paris: Gallimard, 1942. Brisson, lisabeth. Ludwig van Beethoven. Paris: Fayard, 2004. ______. Guide de la musique de Beethoven. Paris: Fayard, 2005. Buchet, Edmond. Beethoven, lgendes et vrits. Paris: Buchet/Chastel, 1966. Debussy, Claude. Monsieur Croche. Paris: Gallimard, 1987. Giannatasio del Rio, Fanny. Journal. In: Tablettes de la Schola, nov. 1912-jun. 1913. Massin, Jean e Brigitte. Ludwig van Beethoven. Paris: Fayard, 1967. Prodhomme, Jacques-Gabriel. Beethoven racont par ceux qui lont vu, textes runis et traduits. Paris: Stock, 1927. Ries, Ferdinand; Wegeler, Franz-Gerhard. Notices biographiques sur Ludwig van Beethoven. Paris: E. Dentu, 1862. Rosen, Charles. Le Style classique. Paris: Gallimard, 2000. Rolland, Romain. Vie de Beethoven. Paris: Hachette, 1909. ______. Beethoven, les grandes poques cratrices. Paris: d. du Sablier, 1928. Solomon, Maynard. Beethoven. Paris: Fayard, 2003. Schindler, Anton. Histoire de la vie et de luvre de Ludwig van Beethoven. Paris: Garnier, 1864. Stricker, Rmy. Le dernier Beethoven. Paris: Gallimard, 2001. Vignal, Marc. Beethoven et Vienne. Paris: Fayard, 2004. Em ingls: Breuning, Gerhard von. Memories of Beethoven. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. Forbes, Elliot (ed.). Thayers Life of Beethoven. Princeton: Princeton University Press, 1967. 2 v. Lockwood, Lewis. Beethoven, the Music and the Life. Nova York Londres: W. W. Norton Company, 2003. Schlosser, Johann Aloys. The First Biography. Londres: Amadeus Press, 1996. Sonneck, O. G. (ed.). Beethoven, Impressions of his Contemporaries. Nova York: Dover Publications, 1967. Em alemo: Adorno. Theodor W. Beethoven. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 2004. Dahlhaus, Carl. Ludwig van Beethoven und seine Zeit. Laaber: Laaber-Verlag, 1999. Geck, Martin. Ludwig van Beethoven. Berlim: Rowohlt, 2001. Huchting, Dietma. Beethoven, ein Biographischer Bilderbogen. Hamburgo: Edel Distribution Gmbh, 2007. Discografia A discografia de Beethoven evidentemente imensa e as indicaes que seguem so apenas sugestes. INTEGRAIS A obra completa. Brilliant Classics, 2008. Sinfonias completas. Orquestra Filarmnica de Berlim; Herbert von Karajan. DG 1976. Concertos para piano completos. Alfred Brendel; Orquestra Filarmnica de Viena; Simon Rattle. Philips, 1998. Sonatas para piano completas. Daniel Barenbom. EMI, 1966. Quartetos de cordas completos. Quarteto Alban Berg. EMI, 1999. Sonatas para violino e piano completas. Itzhak Perlman; Vladimir Ashkenazy. Decca, 1973-1977. OUTRAS GRAVAES Sinfonia no 2. Orquestra Filarmnica Real Britnica; Ren Leibovitz. Scribendum, 1961. Sinfonia no 3 Eroica. Orquestra Filarmnica de Berlim; Herbert von Karajan. DG, 1976. Sinfonia no 5. Orquestra Filarmnica de Viena; Carlos Kleiber. DG, 1974. Sinfonia no 6 Pastoral. Orquestra do Concertgebouw de Amsterd; Erich Kleiber. Decca, 1953. Sinfonia no 7. Orquestra Filarmnica de Viena; Carlos Kleiber. DG, 1976. Sinfonia no 9. Wilhelm Furtwngler. EMI, 1951 (Festival de Bayreuth). Missa solemnis. Orquestra Filarmnica de Berlim; Herbert von Karajan. DG, 1982. Fidelio. Otto Klemperer. EMI, 1962. Concerto para violino. Itzhak Perlman; Orquestra Filarmnica de Berlim; Daniel Barenbom. EMI, 1986. Concerto para piano no 5 O imperador. Edwin Fischer; Philarmonia Orchestra; Wilhelm Furtwngler. EMI. Triplo concerto para piano, violino e violoncelo. David Ostrakh; Mstislav Rostropovich; Sviatoslav Richter; Herbert von Karajan. EMI, 1969. Sonata para piano no 2 op. 27 Ao luar. Stephen Kovacevitch. EMI, 1999. Sonatas para piano no 30, 31, 32. Maurizio Pollini. DG, 1977. Variaes Diabelli. Piotr Anderszewski. Virgin, 2000. Sonata para violino e piano em l maior op. 47 A Kreutzer, Gidon Kremer, Martha Argerich. DG, 1994. Notas UMA INFNCIA TENEBROSA 1. Riesbeck, Baro Caspar. Travels through Germany in a Series of Letters. Londres, 1787. 2. Ries, Ferdinand; Wegeler, Franz-Gerhard. Notices biographiques sur Ludwig van Beethoven. Paris: E. Dentu, 1862. 3. Beethoven, Ludwig van. Lettres. Turim: Ilte, 1968. 4. Texto annimo (apud Massin, Jean e Brigitte. Ludwig van Beethoven. Paris: Fayard, 1964). 5. Apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit. 6. Testemunho do padeiro Fischer (apud Forbes, Elliot (ed.). Thayers Life of Beethoven. Princeton: Princeton University Press, 1964. 2 v). 7. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 8. Neefe, Christian-Gottlieb. In: Revista de msica de Cramer, 2 de maro de 1783 (apud Forbes (ed.), Thayers Life..., op.cit). 9. Beethoven, Lettres, op. cit. 10. Mozart, Wolfgang Amadeus. Correspondance. Paris: Flammarion, 1986-1994. UM JOVEM NA CORTE 1. Jahn, Otto. Biographie de Mozart. Leipzig: 1867 (apud Forbes (ed.), Thayers Life, op.cit). 2. Beethoven, Lettres, op. cit. 3. Kant, Immanuel. Fondements de la mtaphysique des moeurs (1792). Paris: Vrin, 2002. 4. Kant, Immanuel. Critique de la raison pure (1787). Paris: Gallimard, 1990. 5. Forbes (ed.), Thayers Life, op.cit 6. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 7. Ibid. 8. Beethoven, Lettres, op. cit. 9. Ibid. 10. Ibid. PAPAI HAYDN 1. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 2. Ibid. 3. Mozart, Correspondance, op. cit. 4. Apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit. 5. Ibid. 6. Testemunho do flautista Drouet, apud Massin, Jean e Brigitte. (Dilogo reconstitudo pelo autor) 7. Schindler, Anton. Histoire de la vie et de luvre de Ludwig van Beethoven. Paris: Garnier, 1865. 8. Ibid. 9. Beethoven, Lettres, op. cit. 10. Carta de Beethoven ao editor Schott, 22 de janeiro de 1825. In: Chantavoine, Jean. Correspondace de Beethoven. Paris: Calmann-Lvy, 1903. 11. Beethoven, Lettres, op. cit. 12. Apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit. 13. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 14. Episdio relatado por Seyfrid (apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit.). AMORES, AMIZADES... 1. Apud Solomon, Maynard. Beethoven. Paris: Fayard, 2003. 2. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 3. Forbes (ed.), Thayers Life, op. cit. 4. Beethoven, Lettres, op. cit. 5. Jahn, Biographie de Mozart, op. cit. 6. Apud Buchet, Edmond. Beethoven, lgendes et vrits. Paris: Buchet/Chastel, 1966. 7. Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit. 8. Wasielewski, Wilhelm Joseph von. Beethoven. Berlim: 1894. Trad. H. de Curzon 9. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 10. Beethoven, Lettres, op. cit. 11. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 12. Ibid. OS ANOS DE CRISE 1. Breuning, Gerhard von. Memories of Beethoven. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. 2. Beethoven, Ludwig van. Carnets intimes. Paris: Buchet/Chastel, 1977. 3. Beethoven, Lettres, op. cit. 4. Ibid. 5. dIndy, Vincent. Beethoven. Paris: Henri Laurens, 1928. 6. Beethoven, Lettres, op. cit. 7. Ibid. 8. Ibid. 9. Lembranas conservadas na famlia de Amenda (apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit.). 10. Ludwig, mil. Beethoven. Vie dun conqurant. Paris: Flammarion, 1947. 11. Beethoven, Lettres, op. cit. 12. Testemunho recolhido por Thayer em 1860 (apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit.). 13. Beethoven, Lettres, op. cit. UMA NOVA FAMLIA 1. Apud Buchet, Beethoven, lgendes, op. cit. 2. Ibid. 3. Ibid. 4. Beethoven, Lettres, op. cit. 5. Apud Brisson, lisabeth. Guide de la musique de Beethoven. Paris: Fayard, 2005. 6. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 7. Ibid. 8. Carta de Beethoven a Wegeler, 1801, in: Beethoven, Lettres, op. cit. 9. Brisson, Guide de la musique, op. cit. 10. Apud Brisson, in Ibid. 11. Apud Brisson, in Ibid. HEILIGENSTADT 1. Beethoven, Lettres, op. cit. 2. Ibid. 3. Ibid. 4. Apud Schindler, Histoire de la vie..., op. cit. 5. Jahn, Biographie de Mozart, op. cit. 6. Prodhomme, Jacques-Gabriel. Les Symphonies de Beethoven (1800-1827). Paris: Delagrave, 1939. 7. Les Tablettes de Polymnie, 10 de maro de 1811 (apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit.). 8. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 9. Beethoven, Ludwig van. Les cahiers de conversation (1819-1827). Paris: ditions Corra, 1946. 10. Ibid. 11. Ibid. 12. Apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit.. 13. Beethoven, Lettres, op. cit. 14. Carta de Beethoven ao editor Hofmeister, 8 de abril de 1802 (apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit.) 15. Apud Schindler, Histoire de la vie..., op. cit. O TEMPO DA 1. Georg Wilhelm Friedrich Hegel apud Lwitz, Karl. De Hegel Nietzsche. Paris: Gallimard, 1980. 2. Apud Schindler, Histoire de la vie..., op. cit. 3. Ibid. 4. Beethoven, Lettres, op. cit. 5. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 6. Solomon, Beethoven, op. cit. A NOVELA 1. Beethoven, Lettres, op. cit. 2. Solomon, Beethoven, op. cit. 3. Beethoven, Lettres, op. cit. 4. Ibid. 5. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 6. Ibid. 7. Ibid. 8. Ibid. 9. Ibid. 10. Beethoven, Lettres, op. cit. RUPTURAS 1. Solomon, Beethoven, op. cit. 2. Apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit. 3. Beethoven apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit. 4. Apud Brisson, Guide de la musique, op. cit. 5. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 6. Brisson, Guide de la musique, op. cit. 7. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 8. Beethoven, Lettres, op. cit. 9. Ibid. 10. Ibid. 11. Beethoven apud Solomon, Beethoven, op. cit. 12. Evene. Dictionnaire des citations en ligne. 13. Beethoven, Les Cahiers de conversation (1819-1827), op. cit. 14. No peridico semanal dedicado msica Allgemeine Musikalische Zeitung, 1813. 15. Beethoven, Lettres, op. cit. 16. Apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit. UMA APOTEOSE 1. Beethoven, Lettres, op. cit. 2. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 3. Hoffmann, Ernst Theodor Amadeus. crits sur la musique. Paris: Lge dhomme, 1990. 4. Ibid. 5. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 6. Ibid. 7. Ibid. 8. Debussy, Claude. Monsieur Croche. Paris: Gallimard, 1927. DIAS DE GUERRA 1. Beethoven, Lettres, op. cit. 2. Ibid. 3. Apud Schindler, Histoire de la vie..., op. cit. 4. Beethoven, Lettres, op. cit. BETTINA E GOETHE 1. Arnim, Bettina von. Correspondance de Bettina et de Goethe. Paris: Gallimard, 1942. 2. Ibid. 3. Beethoven, Lettres, op. cit. 4. Ibid. 5. Ibid. 6. Ibid. 7. Goethe, Johann Wolfgang Von; Zelter, Carl Friedrich. Briefwechsel zwischen Goethe und Zelter (1799- 1852). Nuremberg: Verlag Hans Carl, 1949. 8. Ibid. 9. Arnim, Correspondance, op. cit. 10. Ibid. 11. Beethoven, Lettres, op. cit.. 12. Ibid. 13. Apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit. A BEM-AMADA IMORTAL 1. Ense, Karl-August Varnhagen von. Obras escolhidas. Leipzig: 1887. (apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit.) 2. Beethoven, Lettres, op. cit. 3. Ibid. 4. Ibid. 5. Ibid. 6. Apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit. 7. Schindler, Histoire de la vie..., op. cit. 8. Apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit. 9. Relatado por Schindler, Histoire de la vie..., op. cit. DEPRESSO 1. Beethoven, Les Cahiers de conversation (1819-1827), op. cit. 2. Ibid. 3. Beethoven, Lettres, op. cit. 4. Beethoven, Les Cahiers de conversation (1819-1827), op. cit. 5. Ibid. 6. Schindler, Histoire de la vie..., op. cit. KARL 1. Beethoven, Lettres, op. cit. 2. Beethoven, Les Cahiers de conversation (1819-1827), op. cit. 3. Carta de Beethoven a Giannattasio, 1o de fevereiro de 1816 (apud Solomon, Beethoven, op. cit.). 4. Beethoven, Lettres, op. cit. 5. Giannattasio del Rio, Fanny. Journal. In: Tablettes de la Schola, nov. 1912-jun. 1913. 6. Ibid. 7. Beethoven, Ludwig van. Carnets intimes. Paris: Buchet/Chastel, 1977. 8. Ibid. 9. Beethoven, Lettres, op. cit. 10. Giannattasio del Rio, Journal..., op. cit. 11. Ibid. 12. Beethoven, Lettres, op. cit. 13. Ibid. 14. Sartre, Jean-Paul. Les Mots. Paris: Gallimard, 1964. 15. Beethoven, Lettres, op. cit. 16. Ibid. 17. Ibid. 18. Ibid. 19. Ibid. 20. Ibid. 21. Ibid. 22. Apud Solomon, Beethoven, op. cit. UMA MISSA PARA A HUMANIDADE 1. Beethoven, Carnets intimes, op. cit. 2. Baudelaire, Charles. Les Fleurs du mal. Paris: Gallimard, 2005. 3. Schindler, Histoire de la vie..., op. cit. 4. Rosen, Charles. Le Style classique. Paris: Gallimard, 2000. 5. Beethoven, Lettres, op. cit. 6. Ibid. 7. Beethoven, Carnets intimes, op. cit. 8. Rolland, Romain. Credo quia verum. In: Le Clotre de la rue dUlm (1886-1889), Cahiers Romain Rolland no 4. Paris: Albin Michel, 1952. 9. Brisson, Guide de la musique, op. cit. 10. Solomon, Beethoven, op. cit. 11. Beethoven, Lettres, op. cit. 12. Stricker, Rmy. Le dernier Beethoven. Paris: Gallimard, 2001. 13. Solomon, Beethoven, op. cit. 14. Cortot, Alfred. Cours dinterprtation. Genebra: Slatkine, 1980. 15. Rolland, Credo quia verum, op. cit. 16. Carta de Friedrich Rochlitz a Hrtel, 9 de julho de 1822, publicada em suas Memrias (apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit.). A NONA SINFONIA 1. Schindler, Histoire de la vie..., op. cit. 2. Apud Forbes (ed.), Thayers Life..., op. cit. 3. Beethoven, Carnets intimes, op. cit. 4. Beethoven, Lettres, op. cit. 5. Ollivier, Daniel (ed.). Correspondance de Liszt et de sa fille madame mile Ollivier. Paris: Grasset, 1936. 6. Beethoven, Lettres, op. cit. 7. Ibid. 8. Ibid. 9. Ibid. 10. Buch, Esteban. La Neuvime Symphonie de Beethoven, une histoire politique. Paris: Gallimard, 1999. 11. Debussy, Monsieur Croche, op. cit. 12. Carta entregue a Beethoven em fevereiro de 1824 (apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit.). CANTOS DO CISNE 1. Apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit. 2. Beethoven, Lettres, op. cit. 3. Ibid. 4. Ibid. 5. Ibid. 6. Ansermet, Ernest. Les Fondements de la musique dans la conscience humaine et autres rcits. Paris: Laffont, 1989. 7. Ries; Wegeler, Notices biographiques, op. cit. 8. Beethoven, Lettres, op. cit. 9. Apud Buchet, Beethoven, lgendes, op. cit. 10. Gazeta Musical de Leipzig, maro de 1826. 11. Beethoven, Lettres, op. cit. MATAR O PAI 1. Brisson, Guide de la musique, op. cit. 2. Kundera, Milan. LInsoutenable Lgret de ltre . Paris: Gallimard, 1984. (Nova edio revista pelo autor em 2007) 3. Apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit. 4. Beethoven apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit. 5. Beethoven, Lettres, op. cit. 6. Ibid. LTIMO COMBATE 1. Solomon, Beethoven, op. cit. 2. Breuning, Memories of Beethoven, op. cit. 3. Solomon, Beethoven, op. cit. 4. Carta de Beethoven a Bach, 3 de janeiro de 1827 (apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit.). 5. Carta de Beethoven a Zmeskall, 18 de fevereiro de 1827 (apud Massin, Jean e Brigitte, Beethoven, op. cit.). 6. Breuning, Memories of Beethoven, op. cit. 7. Idem. 8. Solomon, Beethoven, op. cit. 9. Breuning, Memories of Beethoven, op. cit. 10. Solomon, Beethoven, op. cit. Sobre o autor Bernard Fauconnier publicou seu primeiro romance, que chamou muita ateno, em 1989, intitulado Ltre et le Gant, a histria de um encontro imaginrio entre Jean-Paul Sartre e Charles de Gaulle (Rgine Deforges, reed. ditions des Syrtes, 2000). Desde ento, escreveu vrios outros livros: Moyen exil (Rgine Deforges, 1991), LIncendie de la Sainte-Victoire (Grasset, 1995), Kairos (Grasset, 1997) e Esprits de famille (Grasset, 2003). Cronista e ensasta (Athe grce Dieu, Descle de Brouwer, 2005), ele colaborador da revista Magazine littraire. Atualmente, mora na regio de Aix-en-Provence.