1933 Foi Um Ano Ruim - John Fante PDF
1933 Foi Um Ano Ruim - John Fante PDF
1933 Foi Um Ano Ruim - John Fante PDF
Sobre a obra:
Sobre ns:
Foi um inverno ruim aquele de 1933. Uma noite, arrastando-me para casa
atravs da neve infernal, os dedos dos ps ardendo, as orelhas em fogo, a neve
rodopiando ao meu redor como um bando de pssaros irados, estaquei no meio
do caminho. Era chegada a hora de fazer um balano. Com bom ou mau tempo,
certas foras no mundo estavam em ao tentando me destruir.
Dominic Molise, eu disse, aguente firme. Tudo est andando de acordo com
o planejado? Examine sua condio com cuidado, faa um levantamento
imparcial da sua situao. O que est acontecendo, Dom?
L estava eu em Roper, Colorado, ficando mais velho a cada minuto. Em
seis meses eu estaria com dezoito anos e formado no secundrio. Eu tinha um
metro e sessenta e dois de altura e no havia crescido um s centmetro em trs
anos. Tinha pernas cambotas, ps virados para dentro e orelhas pontudas como as
do Pinocchio. Meus dentes eram tortos, e meu rosto era sardento como um ovo
de passarinho.
Eu era filho de um pedreiro que no trabalhava h cinco meses. Eu no
tinha um sobretudo, usava trs suteres, e minha me j tinha comeado uma
srie de novenas pelo terno novo que eu iria precisar para a formatura em junho.
Senhor, eu disse, porque naqueles tempos eu era um crente que falava
francamente com seu Deus: Senhor, qual ? isso que voc quer? para isso
que voc me ps no mundo? Eu no pedi para nascer. No tenho absolutamente
nada a ver com isso, exceto que estou aqui, fazendo perguntas justas, quais as
razes disso tudo, ento me diga, me d um sinal: esta a minha recompensa por
tentar ser um bom cristo, por doze anos de doutrina catlica e quatro anos de
latim? Alguma vez duvidei da Transubstanciao, da Santssima Trindade ou da
Ressurreio? Quantas missas perdi nos domingos e dias santos de guarda?
Senhor, voc pode contar nos seus dedos.
Est fazendo um jogo comigo? As coisas esto desgovernadas? Voc perdeu
o controle? Lcifer est de volta ao poder? Seja honesto comigo, porque tenho
andado perturbado. Me d uma pista. A vida vale a pena? Tudo vai ficar bem?
Ns morvamos na Arapahoe Street, no sop dos morros que formam a
encosta oriental das Montanhas Rochosas. Eles se projetavam para o alto como
arranha-cus pontudos, encarando nossa cidade ali embaixo, uma nvoa de azul
e verde no vero, branca como acar no inverno, com torrees pontiagudos
envoltos em nuvens. Todo inverno algum se perdia l em cima, preso num
canyon ou enterrado em uma avalanche. Na primavera, a neve derretida
transformava o arroio Roper em um rio selvagem que arrastava cercas e pontes
e alagava as ruas, amontoando lama ao longo da Pearl Street e inundando o
poro da prefeitura. Regio fria, regio intratvel, a crosta terrestre uma camada
de gelo ao longo de abril, neve no domingo de Pscoa, s vezes uma nevasca
repentina em maio: regio ruim para um jogador de beisebol, especialmente
para um lanador que no arremessava uma bola desde outubro.
Mas O Brao me fazia ir em frente, aquele querido brao esquerdo, a coisa
que eu mais amava. A neve no podia machuc-lo, e o frio no podia penetr-lo,
porque eu o mantinha empapado de unguento Sloan, um frasquinho no meu bolso
o tempo todo, eu exalava aquele cheiro, s vezes era mandado para fora da sala
de aula para me lavar e tirar aquele odor custico de pinho, mas eu saa
orgulhosamente, sem sentir vergonha, consciente do meu destino, insensvel s
zombarias dos garotos e s narinas tapadas das garotas.
Naqueles tempos eu tinha uma passada larga, o andar de um pistoleiro, a
ginga tpica do canhoto, o ombro esquerdo pendendo um pouquinho, O Brao
balanando flexvel como uma serpente meu brao, meu bendito e sagrado
brao, vindo de Deus; e se o Senhor criou-me de um pedreiro pobre, cobriu-me
de joias quando encaixou aquela maravilha na minha clavcula.
Que caia a neve ento! E que os invernos sejam longos e frios, e a
primavera uma estao para ser sonhada, porque apesar de tudo este no era o
fim de Dominic Molise, apenas o seu comeo, e o sol quente de vero iria
encontr-lo fazendo o servio de Deus com seu habilidoso brao esquerdo. Esta
Arapahoe Street varrida pela neve era um lugar de honra, um marco, onde certa
vez ele caminhou em noites de desesperana, seu lugar de nascimento, a ser por
isso registrado na Galeria da Fama. Uma placa, por favor, uma placa de bronze
fixada em concreto em um monumento na esquina da Ninth Street com a
Arapahoe Street: Bairro da Infncia de Dominic Molise, o Maior Canhoto do
Mundo.
Deus havia respondido minhas perguntas, clareado minhas dvidas,
restaurado a minha f, e o mundo estava em ordem de novo. O vento
desaparecera, e a neve despencava como confete silencioso. Vov Bettina
costumava dizer que os flocos de neve eram as almas do cu retornando Terra
para breves visitas. Eu sabia que no era verdade mas era possvel, e s vezes eu
acreditava naquilo, quando a ideia me divertia.
Estendi minha mo, e vrios flocos caram sobre ela, vivos e em formato de
estrela por uns poucos segundos, e quem poderia dizer? Talvez fosse a alma do
vov Giovanni, falecido h sete anos, e de Joe Hardt, nosso jogador da terceira
base, morto no vero passado em sua motocicleta, e toda a famlia do meu pai
nas distantes montanhas de Abruzzi, tias-avs e tios que jamais conheci, todos
desaparecidos da Terra. E os outros, os bilhes que viveram um tempo e
partiram, os pobres soldados mortos em batalha, os marinheiros perdidos no mar,
as vtimas de epidemia e terremoto, ricos e pobres, os mortos desde o princpio
dos tempos, ningum escapando exceto Jesus Cristo, o nico em toda a histria
humana que voltou, mas ningum mais, e ser que eu acreditava naquilo?
Eu tinha que acreditar. De onde vinha meu slider[1] e meu knuckle-ball[2] ,
e de onde eu tirava todo aquele controle? Se eu deixasse de acreditar, poderia me
dar mal, perder meu ritmo, comear a dar moleza para os batedores. Que
inferno, havia dvidas, sim, mas eu as rechaava. A vida de um lanador era
dura o suficiente mesmo tendo f em Deus. Um lampejo de dvida podia causar
um treco no Brao, ento para que cutucar a ona com vara curta? Deixe as
coisas assim. O Brao veio do cu. Acredite nisso. No se preocupe com a
predestinao e, se Deus s bondade, por que tanto mal, e, se ele sabe tudo, por
que criou as pessoas e mandou-as para o inferno? Haver muito tempo para isso.
Entre nas ligas inferiores, passe para as grandes, arremesse na World Series,
chegue Galeria da Fama. Ento acomode-se e faa perguntas, pergunte qual
a aparncia de Deus, por que nascem bebs aleijados e quem fez a fome e a
morte.
Atravs da neve sussurrante eu enxergava vagamente as casinhas ao longo
da Arapahoe. Eu conhecia cada um em cada casa, cada gato e cachorro da
vizinhana. Na verdade, eu conhecia quase todas as dez mil pessoas de Roper, e
um dia todas elas estariam mortas. Essa era tambm a sina de cada um na casa
no fim da rua, a casa de madeira com a varanda da frente vergada, a pintura
descascada e o telhado pontiagudo enviesado, a casa do pedreiro Peter Molise,
onde os nicos tijolos estavam na chamin, e at ela estava caindo aos pedaos.
Mas, quando chegasse a hora de morrer, a condio da nossa casa no
importaria, e todos ns teramos que ir vov Bettina seria a prxima, depois
papai, depois mame, depois eu mesmo, uma vez que eu era o mais velho,
depois meu irmo August, dois anos mais novo, depois minha irm Clara e
finalmente meu irmozinho Frederick. Em algum ponto do caminho, nosso
cachorro Rex rastejaria para fora e morreria tambm.
Por que eu estava pensando nestas coisas e transformando o mundo em um
cemitrio? Estava afinal perdendo minha f? Seria porque eu era pobre?
Impossvel. Todos os grandes jogadores de beisebol vinham de famlias pobres.
Quem j tinha ouvido falar de um novato rico tornando-se um Ty Cobb ou um
Babe Ruth? Seria uma garota? No havia garotas em minha vida, exceto Dorothy
Parrish, que mal sabia que eu existia, um reles inseto na vida dela.
Oh, Deus, me ajude! E caminhei mais ligeiro, meus pensamentos me
perseguindo, e comecei a correr, meus sapatos congelados guinchando como
ratos, mas correr no adiantou, os pensamentos a torto e a direito e atrs de mim.
Mas, enquanto eu corria, O Brao, aquele bom brao esquerdo, assumiu o
controle da situao e falou suavemente: acalme-se, Garoto, a solido, voc
est completamente sozinho no mundo; seu pai, sua me, sua f, eles no podem
ajud-lo, ningum ajuda ningum, s voc ajuda a si mesmo, e por isso que
estou aqui, porque somos inseparveis e vamos cuidar de tudo.
Oh Brao! Brao forte e leal, fale docemente comigo agora. Conte-me
sobre o meu futuro, as multides aplaudindo, o arremesso deslizando por entre os
joelhos, os batedores vindo e sendo derrotados, fama, fortuna e vitria, havemos
de ter tudo. E um dia havemos de morrer e jazer lado a lado num tmulo, Dom
Molise e seu lindo brao, o mundo dos esportes chocado, de luto, o telegrama do
presidente dos Estados Unidos para a minha famlia, as bandeiras a meio pau em
todos os campos de beisebol da nao, fs aos prantos sem se constranger,
biografia em quatro partes por Damon Runy on no Saturday Evening Post:
Triunfo sobre a Adversidade, a Vida de Dominic Molise.
Sob um p de olmo, parei para chorar, a amargura pela proximidade da
minha morte era grande demais para suportar; algum to jovem, to talentoso,
ceifado na flor da idade. Oh Deus, seja misericordioso: no me leve to rpido!
Poupe-me por alguns anos, olhe bondosamente para minha juventude. Ali pelos
dezenove estarei pronto para as ligas importantes. D-me estes anos e mais dez,
um total de doze, nada mais, nada menos, no me importo se com os Phillies ou
os Cubs, apenas me d estes anos e pode me abater aos vinte e nove, que tempo
suficiente, meu bom Senhor; calculando trinta jogos por ano, so trezentos e
sessenta jogos, muito beisebol, muitos arremessos para enaltecer o nome de
Dominic Molise entre os imortais.
A casa estava s escuras, as janelas da frente encarando com olhos cegos. A
neve limpa e sem pegadas ao longo do caminho significava que papai ainda
estava no Ony x, jogando sinuca.
Bati a neve dos meus sapatos e entrei na sala da frente, onde Clara dormia
no sof e Frederick em uma cama de campanha. Era uma casa atravancada. A
nica que tinha um quarto s dela era vov Bettina, e aquilo mal era um quarto,
uma pea minscula com teto enviesado perto da cozinha, onde a cama ocupava
todo o espao e no deixava lugar sequer para uma cadeira.
Liguei a luz da cozinha, acendi o forno do fogo a gs e peguei meu dever
de casa histria, um pargrafo de Virglio para traduzir e a redao de um
ensaio curto sobre o corpo mstico de Cristo. Era uma daquelas noites mais
fceis, quando a irm Mary Delphine, cansada de despejar coisas em cima de
ns, concedia-nos um descanso.
Mesmo assim, levei uma hora para traduzir seis frases de latim, e meia-
noite dei incio ao ensaio sobre o corpo mstico de Cristo.
O que o corpo mstico de Cristo?, comecei. Uma boa pergunta, uma
pergunta importante, to importante que, se no soubermos nada mais, isso o
suficiente para nos amparar at os portes do Paraso. E, visto que to
importante, devemos ento dedicar toda a nossa ateno a isso. Todo dogma
importante merece nossa mais profunda reflexo. Esquecemos disso muito
frequentemente, e muitos pecadores, em suas horas finais, antes do ltimo
julgamento, encontram-se arrependidos perante Deus Todo-Poderoso, tremendo
de medo e arrependimento por terem negligenciado as verdades de sua f. Se
pelo menos estudssemos o dogma de nossa abenoada igreja tanto quanto
perdemos tempo lendo livros ordinrios e vendo filmes obscenos, a fim de
ponderar sobre o corpo mstico de Cristo, ento nossa salvao estaria garantida.
O tempo curto, e a hora chegada. Nosso Senhor pede muito pouco de suas
criaturas. Ele nos proporcionou professoras abnegadas, as abenoadas freiras da
Ordem de Santa Catarina, e muito frequentemente fracassamos em perceber a
oportunidade de ouro que nos dada de podermos tirar proveito de sua sabedoria
e conselho. Assim, que ns possamos prestar ateno no sagrado parecer de
nossas amadas irms e pensar cuidadosamente sobre o significado do corpo
mstico de Cristo. So muitos os pecados do mundo, ai de ns, mas nenhum
pecador maior do que aquele que negligencia o estudo de sua santa f, e,
quando um dia formos chamados a prestar contas das ofensas nesta vida,
possamos ns ter a esperana de no sermos acusados de fechar nossos olhos s
sagradas verdades da Santa Igreja de Deus.
Na mosca.
O ensaio renderia um A-mais. No importava que no explicasse o corpo
mstico de Cristo, no importava que estivesse rendilhado de tolices, todas as
frases enganosas estavam ali, irresistveis para a irm Mary Delphine:
arrependidos perante Deus Todo-Poderoso tremendo de medo livros
ordinrios filmes obscenos as abenoadas freiras da Ordem de Santa Catarina
as sagradas verdades da Santa Igreja de Deus. Delphine ficaria molhadinha.
Eu estava estudando histria quando do quarto de Bettina veio um guincho do
estrado de molas da cama. Vov Bettina, inimiga de morte da companhia de
energia eltrica, chegou na porta da cozinha em sua camisola de flanela. Ela era
uma velhinha furiosa, com mos to esquelticas que pareciam garras
encravadas na pequena salincia da sua barriga. O cabelo dela era branco como
linho, a pele da fronte to plida e transparente que quase se podia ver o interior
de sua cabea. Ela falava somente italiano e fingia no entender ingls sempre
que o assunto em questo no era do seu agrado.
Por dez segundos ela apenas ficou ali parada, sacudindo a cabea para mim
com um sorriso desanimado.
L est ele sentado falou, continuando a sacudir a cabea. O brilhante
jovem americano, produto de um ventre americano, orgulho de sua me tola, a
esperana da prxima gerao, l est ele sentado, gastando eletricidade.
Vov, estou tentando estudar.
E o que voc est estudando, sbio e esperto neto? um livro sobre fome
e homens andando pelas ruas procura de trabalho? um livro contando sobre
seu pai sem um servio h sete meses, ou a rica promessa da Amrica
dourada, terra da igualdade e da fraternidade, linda Amrica, que fede como
uma peste?
Estamos em depresso eu disse a ela. Alm do mais, inverno. Papai
no pode assentar tijolos com este tempo.
Ela juntou as mos sua frente.
Como os jovens americanos so espertos! arfou, sacudindo as mos. A
gerao com todas as respostas!
Gemi.
Ela farejou o ar, o unguento Sloan.
Como sempre, voc cheira como uma pestilncia.
um cheiro bom.
O cheiro de um pas doente. Escute minhas palavras: um dia este fedor
cobrir toda a Terra.
Ela desandou a falar: Quem voc engana com esses livros tolos? quis
saber, uma advogada exibindo-se no tribunal. Melhor seria voc cair de joelhos
e rezar por misericrdia! Sua boca estava na minha orelha, seu nariz em meu
cabelo, quando ela sussurrou uma pergunta maliciosa: Voc tem se confessado?
Todo o garoto de dezessete anos deveria faz-lo no mnimo duas vezes por dia.
Foi o que bastou.
Sua velha, v se danar!
Ha! ela latiu. A jovem Amrica fala, mostrando seu respeito pelos
mais velhos! Enfim tenho minha recompensa por ter posto seu pai no mundo! Foi
para isso que eu viajei por oito mil quilmetros de terceira classe para uma terra
brbara!
Os insultos vieram como chumbo grosso: eu era um chacal, um rato, uma
serpente, um monstro sado da barriga da minha me. Eu era um aleijo, um
cotovelo saa da minha nuca, meu nariz estava no meu umbigo, meus olhos
estavam no meu rabo. Minha me era uma burra, uma vaca, uma porca, uma
galinha, uma cabra. Os parentes dela eram covardes, ladres, prostitutas,
lunticos que terminariam seus dias num asilo de loucos. Quanto a mim, acabaria
com uma corda no pescoo num enforcamento pblico, ao lado de meus dois
irmos. A Amrica sucumbiria em chamas, incendiada pela exploso das
companhias de energia eltrica.
De mansinho, como uma gata velha, ela foi at a lmpada eltrica nua
acima da mesa e a desligou com um safano, ento zuniu para seu quarto e bateu
a porta. Acendi a luz e ouvi a voz dela l dentro, invocando Deus aos berros.
Liberte-me deste cativeiro. Ponha-me num caixo e mande-me de volta
para Torricella Peligna!
Eu entendia a sua alma perturbada e sentia pena dela. Era solitria, suas
razes soltas em uma terra estranha. Ela no queria vir para a Amrica, mas meu
av no lhe dera nenhuma outra escolha. Tambm tinha havido pobreza em
Abruzzi, mas uma pobreza mais suave, que todos compartilharam como um po
que se distribui. A morte tambm fora compartilhada, e as aflies, e os bons
momentos, e a aldeia de Torricella Peligna era como um nico ser humano.
Minha av era um dedo arrancado do resto do corpo, e nada na nova vida podia
suavizar sua desolao. Ela era igual a todos os outros que tinham vindo daquela
parte da Itlia. Alguns estavam em melhor situao, e alguns estavam ricos, mas
a alegria fora embora, e o novo pas era um lugar solitrio onde O Sole Mio e
Come Back to Sorrento eram msicas de coraes partidos.
Ento os gritos de Bettina tiraram minha me da cama, seu cabelo castanho
farto solto at a cintura, as mos segurando a camisola. Seus olhos eram enormes
e verdes, e sempre atnitos. Ela nascera em Chicago, mas era de origem italiana
e uma verdadeira camponesa, como vov; tambm nela havia a marca da
solido, indizivelmente estrangeira, nem italiana e muito menos americana, uma
frgil desajustada. Seus parentes eram de Potenza, uma cidade ao norte de
Npoles, um lugar com reputao de ser cheio de gente ruiva.
Na opinio de vov Bettina, os potenzeses, depois dos americanos, eram o
povo mais ridculo do mundo. No que vov alguma vez houvesse ido a Potenza e
visto com seus prprios olhos, mas toda a vida ela ouviu histrias absurdas sobre
os potenzeses.
Uma vez que os abruzzeses precisavam de um lugar que considerassem
abaixo do seu, decidiram-se por Potenza, do mesmo modo que os calabreses
desprezavam os sicilianos, os napolitanos desdenhavam de tudo ao sul de
Npoles, os romanos empinavam o nariz para os napolitanos, e os florentinos
menosprezavam os romanos. Para os abruzzeses, o povo de Potenza era uma
espcie de piada nacional, como se vivessem em barracas e fossem todos
pigmeus. A simples meno de Potenza sempre provocava um sorrisinho
condescendente em meu pai. Ele casara com uma filha de potenzeses, Deus o
abenoe, mas ele estava sempre pronto a rir pacientemente dessa irnica
reviravolta nos acontecimentos, e muitssimo contente por perdoar sua mulher
pelos pais que ela tinha.
Escutando na porta de Bettina os ltimos lamentos da velha, mame estalou
a lngua pacientemente, pois os potenzeses tambm menosprezavam os
abruzzeses.
Ela se esfora, pobre criatura. Ela teve uma vida to dura... toda aquela
gente.
Que gente?
De Abruzzi. No de espantar que sejam grossos e mal-humorados. No
h nada l alm de pedras e umas poucas cabras, sem luz eltrica. Como a
Calbria e a Siclia, e todos aqueles lugares pobres.
Ela jamais estivera l, jamais estivera em lugar nenhum exceto um cortio
de Chicago.
Como voc sabe?
Todo mundo sabe. Voc percebe pelo jeito que eles agem, berrando,
blasfemando, brigando. Est no sangue deles. Olhe o seu pai.
Ela se aproximou, cheirando a sono, um mofo perfumado, talco, sabonete e
os sachs da gaveta mais alta de seu toucador. s vezes, quando eu no conseguia
dormir, ia ao seu quarto e trocava de travesseiro com ela, e o perfume agia
como uma droga. Ela era muito mais velha do que os seus quarenta anos. Era
difcil pensar que j fora jovem. Havia uma fotografia dela aos dez anos, sentada
num balano de uma praa de Chicago, e ela parecia ter quarenta anos ali
tambm, uma garotinha de quarenta anos, de marias-chiquinhas e sapatos
brancos.
Ela foi at a pia e encheu uma xcara de gua, bebendo devagar porque
estava muito gelada; eu podia ouvir a gua rolando dentro dela.
Voc esteve no centro esta noite? perguntou.
Fui ao cinema. No o vi.
Quem? ela perguntou inocentemente.
Papai.
Ele perdeu dez dlares na noite passada.
Se meu pai admitira ter perdido dez, devia ter sido algo em torno de
cinquenta. Era seu jogo de sinuca que nos mantinha durante o inverno. Ele era de
longe o melhor jogador de bilhar em Roper, mas sua habilidade jogava contra
ele porque era difcil atrair competidores, e ele tinha que ceder muitos pontos.
Embora ele fosse astuto para calcular os talentos de um estranho, s vezes topava
com um vigarista de Denver ou Chey enne que o limpava. Ento ele comeava
tudo de novo, jogando por vinte e cinco ou cinquenta centavos, s vezes fazendo
um emprstimo para se reerguer e estabelecer uma nova aposta.
Vo mulheres l? mame perguntou.
Ela perguntava isso constantemente, e eu sempre dizia que no, mas ela
sabia que era o contrrio. O Ony x era um botequim de jogo com um bar na
frente e mesas de sinuca e pquer nos fundos, atrs de uma divisria. No era
permitido mulheres na sala de trs, mas no bar elas eram to numerosas quanto
os homens.
uma parte ruim da cidade falou. Eu teria medo de entrar l.
O que h de ruim por l? A delegacia de polcia fica bem na frente, do
outro lado da rua.
Isto verdade ela disse, com o olhar parado, alguma outra coisa a
perturb-la.
Eu sabia. Ela no conseguia express-lo: suspeitava que meu pai andasse de
caso com algum. Parecia uma ideia muito batida o velho papai, pai de quatro
filhos, um pedreiro sem trabalho e tentando arranjar um troco no bilhar,
assumindo o problema adicional de ter uma outra mulher. A simples verdade era
que meu pai no gostava muito de mulheres. Nem da sua prpria me, e
certamente que no da sua esposa.
O que h de errado com ele? ela continuou. Nunca vou entender. Uma
boa casa, quatro filhos maravilhosos, espaguete na mesa, vinho na adega, e ele
sai toda noite. Mesmo que no se importe comigo, de se pensar que ele teria
alguma considerao pelos filhos. Por que um homem faz isso?
muito simples. Ele detesta mulheres e filhos. Alm disso, o que seria de
ns se ele no arrumasse um dinheiro jogando sinuca?
O tempo todo? Dia e noite, domingos tambm? Nem mesmo uma missa
de vez em quando? Ningum joga tanta sinuca.
o jeito dele, e voc no pode mud-lo.
Ele vai mudar. Deus vai intervir um dia desses. Voc vai ver.
Ela se referia s suas oraes, o desfiar de milhares de contas de rosrio ao
longo de milhares de dias, de joelhos em seu quarto fechado. Os calos nos
joelhos dela estavam ali para provar.
Ela moveu-se lenta e suavemente por trs de mim, e senti seus dedos
gelados no meu cabelo e, a seguir, as palmas das suas mos nas minhas orelhas
de cogumelo.
No eu disse, me afastando aborrecido.
Use a meia. E continue rezando.
O remdio para orelhas de abano, conforme sugesto dos potenzeses, era o
uso de uma meia de mulher na cabea durante a noite. Funcionava bem at
remover-se a meia. A as orelhas saltavam de novo.
Aprendi a viver com minhas orelhas, me. Voc vai, por favor, tentar
fazer o mesmo?
Mas voc tentou a Me Santssima? Tente durante um ms. Se ela pode
fazer aleijados andar, veja como fcil para ela...
Cale a boca! gritei. Deixe-me em paz, deixe minhas orelhas em paz!
Ela me olhou espantada, ferida, de olhos esbugalhados, e, sem uma palavra,
virou-se e voltou silenciosamente para o quarto, seu esprito perturbado
arrastando-se atrs dela como um vu de noiva esfarrapado.
Fiquei arrependido por ter gritado com ela, me odiei por isso, mas a ideia de
rezar me de Deus para achatar minhas orelhas, uma vez que seu filho fizera-
as primeiro salientes, parecia pura loucura. Oraes! Para que serviam? O que
haviam feito por ela? Meu pai ao seu lado na cama toda noite, escutando o
estalido do rosrio dela, encontrando-a de joelhos, tremendo de frio, que diabos
voc est fazendo a, venha para a cama, pelo amor de Deus, antes que morra
congelada, as oraes dela como um chicote a estalar no rabo dele, lembrando-o
de sua inutilidade, sua esposa como uma criana a escrever cartas para o Papai
Noel, a vida em colapso nos braos de Deus, de Santa Teresa, da Virgem Maria.
Oh, minha me era uma boa mulher, uma mulher nobre, nunca enganava ou
mentia, ou decepcionava, ou sequer proferia uma palavra grosseira. Esfregava
pisos e estendia imensas trouxas de roupa lavada, passava a ferro por horas e
horas, cozinhava, costurava, varria e sorria bravamente nas horas difceis, vtima
de Deus, vtima do meu pai, vtima dos seus filhos, vagava com as chagas de
Cristo em suas mos e ps, uma coroa de espinhos em volta da sua cabea. O
sofrimento dela era insuportvel demais de se ver, por isso eu desejava que ela
dissesse oh, merda, ou foda-se, Jasper, ou v se ferrar, Joe. Eu ansiava
pelo dia de revolta, quando ela quebraria uma jarra de vinho na cabea de meu
pai, daria um tapa na boca de Bettina e bateria em ns, seus filhos, com um pau.
Mas em vez disso ela nos punia com Pais-Nossos e Ave-Marias, estrangulava-nos
com um cordo de contas de rosrio.
Orao. Oh, oraes! Oh, o agarrar-se ao nada por pequenos favores, como
um par de sapatos, ou milagres, como acrescentar mais quinze centmetros
minha altura para que pudesse arremessar uma bola realmente rpida. Anos de
oraes e qual era o resultado? Eu at j havia parado de me medir na parede
do quarto. A futilidade daquilo! Se So Francisco de Assis, um dos prncipes da
Igreja, tinha apenas um metro e cinquenta e dois, ento que chance tinha eu de
chegar a um metro e oitenta e trs? Que inferno, era uma total perda de tempo,
um ranger de dentes no deserto.
O velho relgio em cima do fogo seguiu em seu tique-taque, e passava da
uma hora quando acabei de estudar. A casa estava gelada agora, um frio glacial
que se insinuava cozinha adentro por debaixo do assoalho. Ouvi algo, um passo ou
um suspiro, e dei uma olhada no quintal, l fora. O mundo estava branco e
silencioso como a lua. Montes de neve delineavam fileiras de repolhos enterrados
em palha na horta. Aos poucos senti uma presena, algo l fora, em volta de toda
a casa, uma energia viva e invisvel, sinistra como um arrombador, tentando
forar a entrada, espiando pelas janelas, lanando-se contra portas e paredes. Eu
sabia o que era e tinha medo de pensar nisso.
Afastei-me da janela e peguei o frasco grande de Sloan do armrio dos
pratos. Despejei um punhado generoso e massageei o cheiro acre de pinho no
Brao, esfregando, apertando e amassando-o na carne. Besuntei meu peito e
pescoo e dei tapinhas nas narinas at me sentir calmo de novo, e a dor me
deixar destemido.
Que problema! Ser que seria sempre assim? Outras pessoas tinham
pensamentos sobre a morte, e cada um os reprimia a seu modo. Eu no podia
contar com O Brao para sempre, ensopando-o de unguento. Aquilo indicava um
futuro muito incerto. O que aconteceria se eu me perdesse nas montanhas por
uma semana, sozinho e sem Sloan? Eu me via gritando, correndo feito louco pela
floresta.
Da rua, ao longe, o som propagando-se audaciosamente no sossego
congelado, vinham passos rpidos que esmagavam a neve. S podia ser meu pai.
Ele sempre caminhava com determinao e propsito, indo a lugar nenhum. A
varanda da frente tremeu quando ele bateu a neve dos seus sapatos.
Mas que maldio essa coisa ouvi ele resmungar enquanto adentrava na
sala da frente e fungava. Marchou pela casa, seu jeito de informar a todos que
havia chegado, e me encontrou na pia da cozinha, o frasco de unguento na minha
mo.
Quando voc vai crescer? falou, com as narinas tremendo.
Suas bochechas brilhavam como mas. Ele pendurou o chapu e o
sobretudo num cabide atrs da porta. Tinha quarenta e cinco anos, com mos
macias e dedos curtos e grossos. Era um homem alinhado, cuidadoso no vestir
e, mesmo em roupas de trabalho, parecia arrumado por causa das gravatas
brancas que gostava de usar e do bigodinho que mantinha cuidadosamente
aparado. Ele usava um anel de prata grosso no dedo indicador da mo esquerda,
que afirmava ser o segredo de sua habilidade com o taco de sinuca. Embora
raramente estivesse em casa, exceto para comer e dormir, a casa tinha um
modo inequvoco de ficar atenta, como uma mquina comeando a funcionar,
no momento em que ele atravessava a porta.
Observei-o puxar um toco de charuto do bolso da camisa e nele afundar os
dentes enquanto despejava vinho de uma jarra para uma caarola. Ele no
apenas fumava charutos, comia-os pedao por pedao. Riscou um fsforo na
boca do fogo e colocou a panela sobre a chama azul. Ento largou umas folhas
de louro dentro do vinho. Ficou olhando fixo para aquilo em silncio, esperando
aquecer.
Papai eu disse. Voc s vezes pensa sobre a morte?
Ele me olhou surpreso.
Que pergunta essa?
Bem, pensa ou no?
Por qu?
Por nada. Mas isso no passa por sua cabea de vez em quando?
Nunca.
Nunca?
Nunca. No pense nisso. Pense em viver. Pense na escola. Como voc est
indo na escola?
Estou indo bem. Vou me formar.
E a?
No sei. Estou pensando.
O qu?
Na minha carreira.
Que carreira?
No meu futuro.
Que futuro?
Vrias possibilidades.
Beisebol falou. Mas que bobagem.
Eu fiz alguma meno ao beisebol?
Voc conhece Johnny Di Massio?
Eu o conhecia, um pedreiro compatriota de meu pai, tambm craque na
sinuca.
O mais rpido e mais hbil pedreiro do estado. Canhoto tambm, como
voc.
A semelhana no me subjuga eu disse, humilhando-o, j que ele falava
um ingls bastante precrio.
Um dia voc ser mais rpido que Johnny.
Foi um choque. Ergui minha mo esquerda para a luz: O senhor est
pedindo que eu use isto para assentar tijolos? Com certeza no est falando srio.
Claro que estou falando srio. Vou lhe ensinar o ofcio. Trs, quatro anos
misturando argamassa e carregando o balde, e voc estar em cima do andaime
comigo. Seremos parceiros pai e filho, empreiteiros, resolvendo servios
juntos. Ganhando dinheiro.
Durante anos ele tentara me interessar pelo trabalho de pedreiro. O seu pai e
geraes de antepassados haviam sido pedreiros e construtores, e ele acreditava
que o ofcio estava plantado no sangue da linhagem, florescendo a cada gerao.
Quando eu tinha apenas sete anos, ele me levou ao servio pela primeira vez, e
eu ganhava cinco centavos por dia carregando gua para os pedreiros beberem.
Nos ltimos dois veres eu trabalhara de ajudante para ele, operando a betoneira
e enchendo o balde. Fora um trabalho idiota; O Brao se ressentiu e doeu o tempo
todo.
Ele era um pedreiro muito bom, assentava os tijolos to habilmente quanto
jogava sinuca: rpida, caprichada e ritmadamente, mas continuava pobre do
mesmo jeito, no importando quo duro trabalhasse, at que ficou evidente que
ser pobre no era culpa dele, mas culpa do seu ofcio.
Tentei falar calmamente, sensatamente, em respeito a seu mau gnio, que
poderia explodir como uma bomba.
Papai, lamento dizer isto, mas no acho que eu tenha a ndole certa para a
profisso de pedreiro.
ndole. O que a ndole tem a ver com isso? Voc tem apenas que colocar
um tijolo em cima do outro e manter a parede no prumo. Qualquer imbecil pode
fazer isso.
Meu talento reside em outras reas.
Que talento?
Um talento especial. Pode-se dizer que nasci com ele.
Ele me olhou com repulsa, agarrou um copo do guarda-loua e bateu-o na
mesa com estrondo. Ento despejou nele a bebida aquecida, soprando-a para
esfriar, e encarou-me fixamente.
Que talento? ele repetiu.
Eu queria falar a verdade, mas no tinha como dizer beisebol. De vez em
quando ele ainda me dava uns tapas, errando de propsito, mas nunca dava para
ter certeza.
Medicina falei. Ajudar pessoas doentes a ficarem bem, criancinhas
aleijadas, pessoas com problemas cardacos e hidropisia.
A ira deixou seu rosto, e ele ficou pensativo enquanto sorvia o vinho
fumegante.
Isto requer dinheiro ele disse.
E tempo.
Quanto?
Oito anos de faculdade.
melhor voc pensar em outra coisa. No posso pagar isso. Meu Deus,
Garoto, voc tem quase dezoito anos! Quando eu tinha a sua idade, eu j estava
talhando pedra.
Eu no vou ser pedreiro.
Ele suspirou e sentou-se.
Olhe, Garoto falou, passando os dedos pelo cabelo. Eu sei o que est
lhe incomodando, mas voc no precisa largar o beisebol. Pode jogar na Unio
dos Rebocadores. Eles tm um time bom. O jogo de domingo timo.
Oh, grande. Assentar tijolos a semana inteira, rebentar meus dedos e
arremessar nos domingos. a melhor oferta que recebi em anos.
Ele sacudiu a cabea pacientemente, segurando o copo de vinho com as
mos em concha, soprando nele e evitando o meu olhar.
Estamos em dificuldades disse ele calmamente. Devemos para todo
mundo: aluguel, luz, gs, aougueiro, doutor, banco, madeireira. Seus olhos
castanhos ergueram-se como que de uma lagoa profunda e me imploraram para
entender.
No era um reconhecimento fcil da crise. Ele era um homem orgulhoso,
com f em si mesmo e nos bons tempos, e mantinha seus problemas to
escondidos quanto possvel para um homem pobre. Ele jamais havia pedido
ajuda antes. Olhei-o e vi um homem solitrio com uma casa cheia de garotos e
sem sada. Ele nunca possuiria mais do que as roupas do corpo, seu saco de
ferramentas de pedreiro, sua betoneira e seu taco de sinuca favorito. Ele seguiria
trabalhando ano aps ano at as suas foras se esgotarem, at no poder mais
erguer uma parede, e a colher de pedreiro cair de sua mo. Por que viera de to
longe, l de Abruzzi: para isto? Vov Bettina estava certa. Ele devia ter ficado no
velho pas. Se tivesse feito isto, teria mudado minha vida tambm. O que
jogavam em Torricella Peligna futebol, bocha?
Vou ajudar, papai.
Bom menino ele disse, tomando um grande gole do vinho aquecido.
Em junho voc se forma. Ento vamos trabalhar juntos. Vamos mostrar para
eles! Mostrar para todo mundo. Pai e filho. Vamos pagar nossas dvidas,
economizar dinheiro e um dia entraremos no comrcio de madeira.
Comrcio de madeira? me espantei.
onde est o dinheiro.
Estou fora, papai. Vou aprender a assentar tijolos, mas no quero entrar no
comrcio de madeira.
No agora. No futuro. Quatro, cinco anos de pedreiro, depois o comrcio
de madeira.
Mas por que comrcio de madeira? Ser pedreiro no ruim o bastante?
isto que quero dizer. Um homem tem que trabalhar duro para sair disso.
Mas um ofcio, um comeo.
Ento era isso. O livro completo. A Trgica Vida de Dominic Molise, escrita
por seu pai. Parte Um: As Emoes de Ser Pedreiro. Parte Dois: Diverso em
uma Madeireira. Parte Trs: Como Deixar seu Pai Arruinar sua Vida. Parte
Quatro: Aqui Jaz Dominic Molise, Filho Obediente.
Matutei sobre aquilo e decidi no discutir, no quela hora. Fiquei l sentado
agradando meu brao, afagando-o, acalmando-o, enquanto ele choramingava
como uma criana.
Papai esvaziou o copo e lambuzou o bigode com o n do dedo, seu rosto na
luz pela primeira vez. Foi quando a percebi, uma mancha escarlate no lbio
superior, embaixo do bigode. No pude evitar o olhar espantado, e ele percebeu
minha surpresa e incredulidade, seu rosto inchando com o sangue que subia.
Rapidamente foi at o espelho sobre a pia e aproximou bem o rosto.
Aquela maldita navalha falou.
E observou para ver se eu acreditava, mas ento vi em outros lugares.
Voc cortou o queixo tambm, e o pescoo.
No nada.
Nada alm de batom. Fiquei com vergonha e no pude olhar para ele.
Comrcio de madeira. Parceiros. Pai e filho. Queria vomitar em cima dele, sua
covardia, sua baixeza, a traio, a morte, eu mesmo, minha irm Clara e meus
irmos, todos os nossos dias e noites, vomitar todas as nossas vidas nele.
No dissemos nada enquanto eu juntava meus livros e papis. Quando
estava saindo, ele tocou meu ombro, mas me arranquei dali para a sala de jantar
e depois para dentro do meu quarto. Despi-me na luz nevoenta que jorrava
atravs da janela e deslizei para dentro da cama ao lado do meu irmo August.
Ele se contorceu e disse oh, Deus, quando o cheiro do unguento queimou suas
narinas.
A neve cintilante dava ao quarto uma certa fosforescncia. Das beiradas
acima da janela pendiam pingentes de gelo semelhantes s balas puxa-puxa da
minha me, que solidificavam como pedaos de vidro pontudo.
Da cozinha veio um mar de silncio ensurdecedor provocado por meu pai.
No que eu me importasse, no me importava a mnima. Mas eu me importava
mesmo assim. Por que ele no tinha limpado aquilo? Por que tinha sido to
descuidado e me forado a ver as marcas do lbio de alguma mulher que no
era a minha me?
Aquelas mulheres horrorosas do Ony x! Onde mais na cidade meu pai
poderia encontrar outra mulher para beij-lo? Agora eu as via, mulheres
bundudas e beberronas da fbrica de cermica, mulheres divorciadas, mulheres
casadas que abriam o botequim s dez da manh e no iam embora at ele
fechar, s duas. Era uma espcie de clube fechado, uma irmandade de mulheres
beberronas.
Eu podia ouvi-lo na cozinha fazendo espuma com o sabo, inundando o rosto
com gua, arfando e se debatendo como um homem nadando para salvar a sua
vida. Ouvi o som de seus passos, e ele veio at a porta do quarto.
Venha c sussurrou.
Para qu?
Quero falar com voc.
Me levantei de cuecas e o segui at a cozinha. Seu rosto demonstrava dor, a
testa franzida, os olhos suplicantes.
Parei no vo da porta.
No fique com uma ideia errada ele disse. No nada. Apenas uma
mulher maluca vadiando. Nem mesmo sei o nome dela.
Est bem.
Claro que est bem. Foi apenas uma mulher maluca.
Me virei para retornar ao quarto.
Espere um pouco.
Encarei-o de novo.
Voc sabe como a sua me .
No vou dizer nada.
J tenho problemas suficientes. Voc compreende?
Claro, papai.
No ligo para o que voc pensa de mim, mas no machuque a sua me.
Entendo.
Entende o que estou dizendo?
Entendo.
Certo. Seja homem.
Certo.
Voltei para o quarto e me deitei. A luz da cozinha foi desligada, e o assoalho
estalou com seus passos enquanto ele caminhava para o quarto ao lado do nosso.
Houve um estrondo quando o sapato dele caiu no assoalho, e depois outro. Ouvi o
tilintar de moedas e pregos enquanto ele tirava as calas, e a seguir o zunido das
molas do estrado enquanto se acomodava ao lado da minha me.
Imaginei os dois deitados l na escurido de mundos diferentes, dividindo a
mesma manjedoura, como um jumento e uma galinha. Marido e mulher, lado a
lado, em dois leitos de um colcho abaulado, ainda assim separados pelos restos
de seu casamento morto. Aquilo fez eu me contorcer. Certo, muito bem! Ento
minha me no era mais l grande coisa, com dentes doloridos que tinham de ser
arrancados e cabelos raiados de cinza que no iriam cair. Ela no usava rouge ou
batom e seu traseiro pareceria ridiculamente pequeno num daqueles banquinhos
de bar do Ony x, mas ela jamais deixaria a marca de sua boca no rosto de outro
homem. Ela fazia o que tinha de ser feito, submissa vontade de Deus lavar a
roupa, limpar, cozinhar, criar sua famlia. Tudo isso era o suficiente para fazer
um homem sair de casa, e no se podia culpar meu pai por correr para salvar a
sua vida. Mas aquelas mulheres! Aquelas mulheres bundudas e vadias! Elas
sabiam que ele tinha uma esposa e famlia, ainda assim besuntavam-no com
batom, e ele era to ruim quanto elas por permitir.
O sono no vinha enquanto eu me virava de um lado para o outro, e minha
mo acabou esbarrando numa coisa sob o travesseiro de August. Tirei-a
cuidadosamente de l. Era um grande envelope marrom. H meses eu estava
procurando aquele envelope misterioso, sabendo que ele o mantinha escondido,
seu bem mais secreto.
Ele dormia profundamente, de boca aberta; me sentei e abri o envelope.
Eram fotografias brilhantes de Carole Lombard, uma coleo variada,
curiosamente luminosa naquela clara luz gelada. Ela aparecia em trajes de
banho e vestidos de baile, com chapus grandes e trajes de pirata, a cavalo e em
lanchas de corrida, de lingerie na ponta dos ps.
Ento descobri o verdadeiro motivo para o segredo de August. Alguns dos
retratos estavam autografados com a letra dele. Para o meu querido August,
com adorao Carole. Para August, com amor eterno Carole. Para
Augie, lembranas apaixonadas de noites em Malibu Carole. Querido
August: faa o que quiser comigo. Sou sua de corpo e alma. Sua Carole.
de se esperar que voc d risada de tais coisas, porque elas fazem voc
parecer um bobo. Olhei-o de boca aberta, sua respirao soltando vapores no ar
frio. Os autgrafos no eram engraados. Ele havia escrito coisas tristes, coisas
ntimas, sagradas demais para que qualquer outro as visse. Ele estava com quinze
anos, e eu havia me acostumado a trat-lo como se no estivesse com mais de
cinco ou seis. Todavia ali estava ele, apenas dois anos mais moo do que eu,
sonhando com Carole Lombard to intensamente quanto eu sonhava com
beisebol. Me enchi de ternura. Curvei-me sobre ele e beijei sua testa gelada.
Ento coloquei as fotos de volta no envelope e deslizei-o para baixo do travesseiro
dele.
Fiquei l deitado na noite branca, observando minha respirao subir em
plumas enevoadas. Sonhadores, ramos um bando de sonhadores. Vov sonhava
com sua casa na remota Abruzzi. Meu pai sonhava em estar livre das dvidas e
assentar tijolos ao lado do seu filho. Minha me sonhava com sua recompensa
celestial e um marido cordial que no fugisse. Minha irm Clara sonhava em
tornar-se freira, e meu irmozinho Frederick mal podia esperar para crescer e se
tornar um caubi. Fechando os olhos eu podia ouvir o zumbido dos sonhos pela
casa, e ento ca no sono.
CAPTULO DOIS
F216s
Captulo Um
Captulo Dois
Captulo Trs
Captulo Quatro
Captulo Cinco
Sobre o Autor