O Jardim Dos Finzi-Contini - Giorgio Bassani
O Jardim Dos Finzi-Contini - Giorgio Bassani
O Jardim Dos Finzi-Contini - Giorgio Bassani
Parte 1
1
2
3
4
5
6
Parte 2
1
2
3
4
5
Parte 3
1
2
3
4
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6
7
Parte 4
1
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7
8
9
10
Epílogo
Autor
Créditos
Prólogo
Ai!
GUIDO FINZI-CONTINI
(1908-1914)
eleito em forma e espírito
seus pais se preparavam
para amá-lo cada vez mais
e não para chorá-lo
A primeira vez que de fato consegui entrar ali, atravessando o muro externo
do Barchetto del Duca e me adentrando entre as árvores e clareiras da
grande selva privada, até alcançar a magna domus e a quadra de tênis,
aconteceu cerca de dez anos mais tarde.
Foi em 1938, uns dois meses depois da promulgação das leis raciais.
Lembro-me bem. Em uma tarde de fins de outubro, minutos depois de
termos deixado a mesa, recebi uma chamada de Alberto Finzi-Contini. Era
verdade ou não — perguntou-me à queima-roupa, negligenciando qualquer
preâmbulo (note-se que, fazia mais de cinco anos, não tivéramos ocasião de
trocar uma única palavra) —, era verdade ou não que eu e “todos os
outros”, com cartas assinadas pelo vice-presidente e secretário do Círculo
de Tênis Eleonora d'Este, o marquês Barbicinti, tínhamos sido expulsos em
bloco do clube: “enxotados”, enfim?
Neguei em tom decidido: não era verdade, não tinha recebido nenhuma
carta do tipo; eu pelo menos não.
Mas ele, como se não reconhecesse nenhum valor em meu desmentido,
ou não o tivesse nem mesmo escutado, logo me propôs que eu fosse
encontrá-los em sua casa, para jogar. Se eu me contentasse com um campo
de terra branca batida — continuou —, com poucos outs, e se acima de tudo
eu, que com certeza jogava bem melhor que eles, me “dignasse a bater uma
bolinha” com ele e Micòl, ambos ficariam muito felizes e “honrados”. E, se
a coisa me interessasse, podia ser em qualquer tarde, acrescentou. Hoje,
amanhã, depois de amanhã: eu podia ir quando achasse melhor, e levar
quem quisesse, inclusive aos sábados, é claro. Afora o fato de que ele
ficaria pelo menos mais um mesinho em Ferrara, já que as aulas no
Politécnico de Milão não começariam antes de 20 de novembro (Micòl
sempre levava tudo com mais calma e, nesse ano, com o pretexto de que
não estava matriculada e não precisava estar em Veneza mendigando
presença, quem sabe se poria os pés na Ca' Foscari), e os dias não estavam
esplêndidos? Enquanto o tempo continuasse assim, seria um verdadeiro
crime não aproveitar.
Pronunciou as últimas palavras com menor convicção. Parecia ter sido
tocado de repente por um pensamento pouco alegre, ou que uma súbita e
gratuita sensação de tédio o fizesse desejar que eu de fato não fosse, que
não levasse em conta seu convite.
Agradeci sem prometer nada de específico. Por que aquele telefonema?,
perguntei a mim mesmo ao desligar, não sem espanto. No fundo, desde que
ele e a irmã passaram a estudar fora de Ferrara (Alberto em 1933, Micòl em
1934: mais ou menos na mesma época em que o professor Ermanno
obtivera da comunidade a permissão de restaurar, “para uso da família e de
eventuais interessados”, a ex-sinagoga espanhola incorporada ao prédio do
templo da Via Mazzini, de modo que desde então o banco atrás do nosso, na
escola italiana, ficou sempre vazio), no fundo, nunca mais nos
encontráramos, senão raras vezes, e mesmo assim de passagem e de longe.
Enfim, durante todo aquele tempo nos tornáramos a tal ponto estranhos que,
em uma manhã de 1935, na estação de Bolonha (eu já cursava o segundo
ano de letras e vivia para cima e para baixo de trem, quase todo dia), ao ser
violentamente abalroado rente ao banco da primeira plataforma por um
jovem alto, moreno e pálido, com um plaid sob o braço e um carregador
cheio de malas em seu encalço, o qual se dirigia a passos largos rumo ao
expresso para Milão que estava prestes a partir, no momento nem reconheci
que aquele sujeito era Alberto Finzi-Contini. Chegando à fila do trem,
virou-se para chamar o carregador e em seguida sumiu dentro do vagão.
Naquela ocasião — continuei a refletir —, ele nem sequer sentiu a
necessidade de me cumprimentar. Quando me virei para protestar pela
trombada, dirigiu-me um olhar distraído. E agora, ao contrário, qual o
motivo da cortesia tão insistente?
“Quem era?”, perguntou meu pai, assim que voltei à saleta de jantar.
Era o único que permanecia ali. Estava sentado na poltrona ao lado da
mesinha do rádio, em sua espera habitual e ansiosa pelo noticiário das duas.
“Alberto Finzi-Contini.”
“Quem? O rapaz? Quanta deferência! E o que ele queria?”
Perscrutava-me com os olhos azuis, perdidos, que havia muito tinham
renunciado à esperança de me impor qualquer coisa, de tentar imaginar o
que se passava em minha cabeça. Tinha perfeita consciência — dizia-me
com os olhos — de que suas perguntas me aborreciam, que a contínua
pretensão de se imiscuir em minha vida era indiscreta, injustificada. Mas,
meu Deus, ele não era meu pai? E eu não via como ele tinha envelhecido
naquele último ano? Não era o caso de ele se abrir com mamãe e Fanny:
eram mulheres. Nem com Ernesto: ainda putìn.[6] Então, com quem ele
podia falar? Será que eu não entendia que ele precisava justamente de mim?
Contei de má vontade o assunto da conversa.
“E você vai?”
Nem me deu tempo de responder. Na sequência, com a animação que
demonstrava toda vez que se lhe apresentava um pretexto para me arrastar a
uma conversa qualquer, melhor ainda se de política, já mergulhara de
cabeça em uma “análise da situação”.
Lamentavelmente era verdade, começou recapitulando, incansável: no
último 22 de setembro, depois do primeiro anúncio oficial do dia 9, todos os
jornais haviam publicado aquela tal circular do secretário do Partido
listando as várias “medidas práticas” que as federações das províncias
teriam de aplicar imediatamente em relação a nós. No futuro,
“permanecendo vetadas a celebração de casamentos mistos e a exclusão de
qualquer jovem, reconhecido como pertencente à raça judia, de todas as
escolas públicas de quaisquer ordem ou grau”, além da dispensa, para os
mesmos, da obrigação “altamente honorífica” do serviço militar, nós,
“judeus”, não poderíamos publicar necrológios nos jornais, constar das
listas telefônicas, manter empregadas domésticas de raça ariana nem
frequentar “círculos recreativos” de nenhum tipo. No entanto, apesar
disso…
“Espero que você não me venha repetir a história de sempre”, eu o
interrompi naquele ponto, balançando a cabeça.
“Que história?”
“Que Mussolini é melhor que Hitler.”
“Entendi, entendi”, retrucou ele. “Mas você deve admitir que Hitler é
um doido sanguinário, enquanto Mussolini é isso aí que se vê, um
maquiavélico e vira-casaca de mão-cheia, mas…”
De novo o interrompi. Ele estava ou não estava de acordo — perguntei,
olhando bem na cara dele — com a tese do ensaio de Liev Trótski que eu
lhe “passara” dias antes?
Eu me referia a um artigo publicado em um antigo número da Nouvelle
Revue Française, revista da qual eu guardava em meu quarto, com bastante
zelo, vários anos completos. O episódio foi o seguinte: não me lembro por
qual motivo, acabei tratando meu pai de modo pouco gentil. Ele se ofendeu,
fez cara feia, de modo que eu, desejando restabelecer relações normais, a
certa altura não encontrei nada melhor que envolvê-lo em minha leitura
mais recente. Lisonjeado pela manifestação de estima, meu pai não se fez
de rogado. Leu no mesmo instante, aliás, devorou o artigo, assinalando
muitas linhas a lápis e cobrindo as margens das páginas com densas
anotações. No fim das contas, disse-me explicitamente, o texto do “raposão
ex-parceiro de Lênin” também foi para ele uma autêntica revelação.
“Mas é claro que estou de acordo”, exclamou, contente e ao mesmo
tempo desconcertado por me ver disposto a engatar uma discussão. “Sem
dúvida, Trótski é um polemista magnífico. Que vivacidade, que língua! Era
bem provável que tivesse escrito o artigo diretamente em francês. Sim”, e
sorriu com orgulho: “talvez os judeus russos e poloneses não sejam muito
simpáticos, mas sempre tiveram um verdadeiro gênio para as línguas.
Trazem isso no sangue.”
“Deixe a língua de lado e vamos nos concentrar nos conceitos”, cortei,
seco, com uma ponta de azedume didático da qual logo me arrependi.
O artigo era claro, continuei, mais cordial. Na fase de expansão
imperialista, o capitalismo se mostra necessariamente intolerante em
relação a todas as minorias nacionais, em particular contra os judeus, que
são a minoria por antonomásia. Ora, à luz dessa teoria geral (o ensaio de
Trótski era de 1931, é bom não esquecer: ou seja, o ano em que começara a
verdadeira ascensão de Hitler), que importava se Mussolini como pessoa
fosse melhor que Hitler? E afinal Mussolini era mesmo melhor como
pessoa?
“Entendi, entendi…”, meu pai continuava repetindo, submisso, enquanto
eu falava.
Estava com as pálpebras baixas, o rosto contraído em uma careta de
resistência dolorosa. Por fim, quando teve certeza de que eu não tinha mais
nada a acrescentar, pousou uma mão em meu joelho.
Ele tinha entendido, repetiu mais uma vez, reabrindo lentamente as
pálpebras. De todo modo, precisava me dizer: em sua opinião, eu via as
coisas sombrias demais, era demasiado catastrófico.
Por que eu não reconhecia que, após o comunicado de 9 de setembro, e
até depois da circular adicional do dia 22, as coisas, pelo menos em Ferrara,
seguiram em frente quase como antes? Era a plena verdade, admitiu,
sorrindo melancólico: durante aquele mês, entre os setecentos e cinquenta
membros da comunidade, não houve óbitos de tal importância que valessem
a pena ser noticiados no Padano (salvo engano, só tinham morrido duas
velhinhas do asilo da Via Vittoria: uma Saralvo e uma Rietti; e esta última
nem sequer era de Ferrara, mas vinha de uma cidadezinha da província de
Mântua, Sabbioneta, Viadana, Pomponesco ou algo assim). Mas sejamos
justos: o catálogo telefônico não tinha sido confiscado para ser substituído
por uma reedição expurgada; ainda não houvera havertà, camareira,
cozinheira, babá ou velha governanta a serviço de alguma de nossas
famílias que, descobrindo de repente em si uma “consciência racial”,
tivesse realmente pensado em fazer a trouxa; o Círculo dos Comerciários,
onde havia mais de dez anos o cargo de vice-presidente era ocupado pelo
advogado Lattes — e que ele mesmo, como eu devia saber, continuava
frequentando sem nenhum problema quase todos os dias —, não tinha até
hoje promovido afastamentos de nenhum tipo. E por acaso Bruno Lattes,
filho de Leone Lattes, tinha sido expulso do Eleonora d'Este? Sem pensar
nem por um segundo em meu irmão Ernesto, coitadinho, que ficava sempre
ali, olhando-me boquiaberto e me imitando como se eu fosse quem sabe um
grande hahàm,[7] eu tinha parado de ir ao clube de tênis; e eu errava feio,
deixasse ele dizer, errava feio em me fechar, em me segregar, em não ver
mais ninguém, para depois, com a desculpa da universidade e do passe
ferroviário, escapar continuamente para Bolonha (nem com Nino
Bottecchiari, Sergio Pavani e Otello Forti, até o ano passado meus amigos
inseparáveis, nem com eles eu queria mais estar, aqui em Ferrara; e mesmo
assim, ora um, ora outro, pode-se dizer que não passava mês sem que um
deles me ligasse, pobres coitados!). Em vez disso, que eu prestasse atenção
no jovem Lattes, por favor. Pelo que dizia o Padano, ele não só pôde
participar normalmente do torneio social, mas também da dupla mista,
jogando com aquela moça bonita, Adriana Trentini, filha do engenheiro-
chefe da província, e estavam indo muito bem: tinham avançado três
rodadas e agora treinavam para a semifinal. Ah, não: podia-se falar de tudo
do bom Barbicinti, ou seja, que ele dava valor demais à sua modesta quarta
parte de nobreza, e valorizava de menos a gramática dos artigos de
propaganda esportiva que o secretário do Partido o fazia escrever de vez em
quando no Padano. Mas que ele era um cavalheiro, de modo nenhum hostil
aos judeus, muito moderadamente fascista — e, ao dizer “muito
moderadamente fascista”, a voz de meu pai tremeu, um leve tremor de
timidez —, sobre isso não havia nenhuma dúvida ou controvérsia.
De resto, quanto ao convite de Alberto e ao comportamento dos Finzi-
Contini em geral, o que significava agora, da noite para o dia, toda aquela
agitação deles, aquela necessidade quase espasmódica de contatos?
Já havia sido bastante curioso o que acontecera semana passada no
templo, para o Rosh Hashaná (eu não quisera ir, como sempre: e mais uma
vez tinha agido mal). Sim, tinha sido bastante curioso, justo no ápice do
culto e com os bancos já quase todos ocupados, ver a certa altura Ermanno
Finzi-Contini, a esposa e até a sogra, acompanhados pelos dois filhos e
pelos indefectíveis tios Herrera de Veneza — ou seja, a tribo inteira, sem
nenhuma distinção entre homens e mulheres —, fazerem seu regresso
solene à sinagoga italiana depois de cinco anos de desdenhoso isolamento
na espanhola: e com umas expressões tão satisfeitas e benevolentes como se
pretendessem, com sua simples presença, premiar e perdoar não só os que
estavam ali, mas também toda a comunidade. De todo modo, é claro que
aquilo não tinha sido suficiente. Agora chegavam ao cúmulo de convidar
pessoas à sua casa: ao Barchetto del Duca, imagine!, onde desde os tempos
de Josette Artom nenhum concidadão ou forasteiro pusera os pés senão em
casos de estrita emergência. E eu queria saber por quê? Porque estavam
contentes com o que estava se passando! Porque para eles, halti como
sempre foram (contrários ao fascismo, tudo bem, mas acima de tudo halti),
as leis raciais no fundo lhes davam prazer! Mas se pelo menos fossem bons
sionistas! Já que aqui, na Itália e em Ferrara, sempre se sentiram tão
incomodados, tão deslocados, que pelo menos tivessem aproveitado a
situação para se transferir de uma vez por todas para Erez! Mas que nada.
Além de reservar de vez em quando um pouco de dinheiro para Erez (em
todo caso, nada de extraordinário), nunca quiseram fazer nenhuma coisa
além disso. Sempre preferiram gastar sua verdadeira fortuna em futilidades
aristocráticas: como quando, em 1933, para conseguir um ehàl e um
parochèt dignos de figurar em sua sinagoga pessoal (meros mobiliários
sefarditas, meu Deus, e que não fossem portugueses, ou catalães, ou
provençais, mas autênticos espanhóis, e na justa medida!), foram de carro,
escoltados por um Carnera,[8] até nada menos que Cherasco, na província
de Cuneo, um povoado que até 1910, ou pouco antes, fora a sede de uma
pequena comunidade já extinta, e onde apenas o cemitério continuava ativo
porque algumas famílias de Turim originárias do local, Debenedetti,
Momigliano, Terracini etc., continuavam sepultando seus mortos ali. Josette
Artom, a avó de Alberto e de Micòl, também importava ininterruptamente
palmeiras e eucaliptos do Jardim Botânico de Roma, aquele aos pés do
Janículo: e para isso, a fim de que as carroças passassem com toda a
comodidade, mas também por razões de prestígio, nem é o caso de explicar,
ela impôs ao marido, o coitado do Menotti, que alargasse em pelo menos o
dobro o já grande portão da casa que dá para a avenida Ercole I d'Este. A
verdade é que, à força de fazer coleções de coisas, de plantas, de tudo,
acaba-se pouco a pouco querendo colecionar pessoas também. Oh, mas se
eles, os Finzi-Contini, sentiam falta do gueto (era no gueto que obviamente
sonhavam em ver todo mundo enclausurado, e talvez até se dispusessem,
em vista daquele belo ideal, a lotear o Barchetto del Duca para fazer
daquilo uma espécie de kibutz submetido a seu alto patronato), que o
fizessem, em total liberdade. Quanto a ele, teria preferido mil vezes a
Palestina. E, melhor ainda que a Palestina, o Alasca, a Terra do Fogo ou
Madagascar…
Era uma terça-feira. Eu não saberia dizer como, dali a poucos dias, no
sábado daquela mesma semana, me decidi a fazer justamente o contrário do
que meu pai desejava. Não creio que se tratasse do habitual mecanismo de
contradição e desobediência típico dos filhos. Talvez o que tenha me dado
vontade de tirar de repente a raquete e o uniforme de tênis que dormiam em
uma gaveta havia mais de um ano tenha sido simplesmente o dia luminoso,
o ar leve e afetuoso de uma primeira tarde outonal com um sol
extraordinário.
Mas naquele meio-tempo tinham acontecido várias coisas.
Primeiro de tudo, acho que dois dias depois do telefonema de Alberto,
portanto na quinta-feira, a carta que “aceitava” meu desligamento como
sócio do Círculo de Tênis Eleonora d'Este de fato chegou a mim. Escrita à
máquina, mas com uma esvoaçante assinatura do marquês Barbicinti ao pé
da página, o expresso registrado não se demorava em considerações
pessoais e particulares. Em poucas linhas muito secas, que ecoavam
canhestramente o estilo burocrático, ia direto ao ponto, declarando sem
mais nem menos “inadimissível” [sic] qualquer frequentação futura do
círculo por parte de minha “V. Sa. Ilma.”. (Será que o marquês Barbicinti
poderia alguma vez eximir-se de condimentar sua prosa com uns deslizes
ortográficos? Vê-se que não. Mas se dar conta disso, e ainda rir, tinha sido
dessa vez um pouco mais difícil que nas anteriores.)
Em segundo lugar, no dia seguinte eu tinha recebido uma nova chamada
telefônica proveniente da magna domus; e dessa vez não mais da parte de
Alberto, mas de Micòl.
O resultado foi uma longa, aliás, uma interminável conversa cujo tom se
manteve, sobretudo graças a Micòl, na linha de um bate-papo normal,
irônico e divagante de dois universitários veteranos entre os quais, na
adolescência, pode até ter havido certa ternura, mas que agora, passados
cerca de dez anos, não tinham outra finalidade senão a de efetuar um
honesto reencontro.
“Quanto tempo faz que não nos vemos?”
“Uns cinco anos, no mínimo.”
“E como é que você está?”
“Feia. Uma solteirona de nariz vermelho. E você? A propósito, eu li,
li…”
“Leu o quê?”
“Claro, uns dois anos atrás, no Padano, acho que na terceira página, que
você participou dos Littoriali[9] da Cultura e da Arte em Veneza. Quanta
honra, hein? Meus parabéns! Pois é, você sempre foi excelente em italiano,
desde o ginásio. Meldolesi ficava realmente encantado com certas redações
suas na classe. Acho até que levou algumas para lermos.”
“Mas também não precisa fazer chacota. E você, o que tem feito?”
“Nada. Eu devia ter me formado em inglês na Ca' Foscari em junho
passado. Mas que nada. Tomara que eu consiga este ano, se a preguiça
deixar. Acha que vão permitir aos estudantes que ultrapassaram o prazo se
formar também?”
“Eu não queria lhe dar uma má notícia, mas não tenho a menor dúvida
quanto a isso. Você já definiu o tema da tese?”
“Definir, eu defini: vai ser sobre Emily Dickinson, sabe?, aquela poeta
americana do século XIX, um tipo de mulher terrível… Mas como vou
fazer? Precisaria grudar no meu orientador, passar uns quinze dias seguidos
em Veneza; mas para mim, depois de um tempo, a Pérola da Laguna…
Nesses anos todos, fiquei lá o mínimo possível. De resto, convenhamos,
estudar nunca foi meu forte.”
“Mentirosa. Mentirosa e esnobe.”
“Não mesmo, eu juro. E neste outono ando menos animada ainda de
ficar lá, boazinha. Sabe o que eu queria fazer em vez de me enterrar numa
biblioteca, querido?”
“Diga.”
“Jogar tênis, dançar e paquerar: já pensou?!”
“Se você quisesse, poderia muito bem se entregar a essas dignas
diversões, inclusive ao tênis e à dança, lá em Veneza.”
“Com certeza. Com a governanta do tio Giulio e do tio Federico o tempo
todo no meu pé!”
“Bom, quanto ao tênis, não me diga que não daria para jogar. Eu, por
exemplo, assim que posso pego o trem e vou direto para Bolonha…”
“Vai direto, hein, confesse: vai direto é ver a namorada.”
“Não, não. Eu também preciso me formar no ano que vem, só não sei
ainda se em história da arte ou italiano (mas a esta altura, acho que em
italiano…) e, quando me dá vontade, me permito uma hora de tênis. Alugo
uma ótima quadra na Via del Cestello ou no Littoriale, e ninguém pode falar
nada. Por que você não faz o mesmo em Veneza?”
“A questão é que, para jogar tênis e dançar, é preciso um partner, e em
Veneza eu não conheço ninguém que sirva. Afora isso, Veneza é linda, nem
vou discutir, mas não me sinto bem lá. Me sinto provisória, fora de lugar…
um pouco como no exterior.”
“Você dorme na casa dos tios?”
“Ah, sim: durmo e como lá.”
“Entendo. De todo modo, obrigado por ter ido me ver quando estive há
dois anos na Ca' Foscari, para os Littoriali. Sinceramente. Aquilo foi a
página mais terrível da minha vida.”
“Mas por quê? No fim das contas… Aliás, confesso que a certa altura,
quando soube que você estaria lá, bem que eu quis ir torcer… pela nossa
bandeira. Mas ouça: se lembra daquela vez na Muralha degli Angeli, aqui
fora, no ano em que você ficou de recuperação em matemática? Chorava
que nem um bezerro, pobre coitado: e tinha uns olhos! Eu queria te
consolar. Até insisti para você pular o muro e entrar no jardim. Mas por que
foi mesmo que você acabou não entrando? Só sei que não entrou, mas não
lembro o motivo.”
“Porque alguém nos flagrou bem na hora H.”
“Ah, é verdade, Perotti, aquele cachorro do Perotti, o jardineiro.”
“Jardineiro? Achava que fosse cocheiro.”
“Jardineiro, cocheiro, chofer, porteiro, tudo.”
“Ainda está vivo?”
“E como!”
“E o cachorro, o cachorro de verdade, o que ficou latindo?”
“Quem? Jor?”
“Esse, o dinamarquês.”
“Também continua vivinho da silva.”
Ela repetiu o convite do irmão (“Não sei se Alberto já lhe ligou: por que
você não vem bater uma bolinha aqui em casa?”), mas sem insistir e sem
fazer referência, ao contrário dele, à carta do marquês Barbicinti. Não
mencionou senão o puro prazer de nos revermos depois de tantos anos e de
aproveitarmos juntos, bem na cara de todas as proibições, tudo de bom que
restava da bela estação.
2
Não fui o único a ser convidado. Naquela tarde de sábado, quando dobrei ao
fundo da avenida Ercole I (para evitar a Giovecca e o centro, eu vinha da
Piazza della Certosa, ali perto), imediatamente percebi o pequeno grupo de
tenistas que se aglomerava à sombra, diante do portão dos Finzi-Contini.
Eram cinco, todos de bicicleta, como eu: quatro rapazes e uma garota. Meus
lábios se contraíram em uma careta de decepção. Que gente era aquela?
Com exceção de um deles, que eu mal conhecia de vista, um cara mais
velho, de seus vinte e cinco anos, cachimbo entre os dentes, calças
compridas de linho branco e blazer marrom de fustão, os demais, vestindo
pulôveres coloridos e bermudas, tinham toda a pinta de assíduos
frequentadores do Eleonora d'Este. Tinham chegado havia pouco e
aguardavam permissão para entrar. Porém, como o portão demorava a se
abrir, de vez em quando todos paravam de falar em voz alta e de rir e, em
sinal de alegre protesto, começavam a tocar ritmicamente as campainhas
das bicicletas.
Fiquei tentado a dar meia-volta. Tarde demais. Já não tocavam as
campainhas e me olhavam curiosos. Então um deles — que, ao me
aproximar, logo vi se tratar de Bruno Lattes — começou a me fazer sinais
com a raquete erguida acima do braço longo e magérrimo. Queria que eu o
reconhecesse (nunca fomos muito amigos: era dois anos mais novo que eu
e, mesmo estudando letras em Bolonha, pouco nos encontramos) e,
simultaneamente, me incentivava a chegar mais perto.
Agora eu estava parado, cara a cara com Bruno, a mão esquerda apoiada
no liso carvalho do portão.
“Bom dia”, comecei com um sorrisinho. “Qual o motivo de tanta gente
nessas bandas hoje? Será que o torneio do clube já terminou? Ou me vejo
diante de uma tropa de eliminados?”
Falei calibrando meticulosamente a voz e as palavras. Enquanto isso,
observava-os um a um. Olhava Adriana Trentini, seus lindos cabelos muito
louros, as pernas compridas e bem torneadas: magníficas, sem dúvida, mas
cuja pele, branca demais, estava frequentemente pintada por estranhas
manchas vermelhas quando fazia calor; olhava o rapaz taciturno de calças
de linho e blazer marrom (não podia ser de Ferrara, eu pensava); olhava os
outros dois jovens, bem mais novos do que este último e do que a própria
Adriana, talvez ainda alunos do ensino médio ou do instituto técnico, e
justamente por isso, por terem “crescido” durante o último ano, enquanto eu
aos poucos me afastava dos círculos de convívio da cidade, me eram
praticamente desconhecidos; e por fim olhava Bruno, bem na minha frente,
cada vez mais alto e seco, de tez sempre escura, cada vez mais parecido
com um jovem negro, vibrante e apreensivo, tomado naquele dia por tal
agitação nervosa que chegava a transmiti-la com o simples contato dos
pneus traseiros de nossas bicicletas.
Entre nós correu aquela mirada furtiva e inevitável de cumplicidade
judaica que, meio ansioso e meio descontente, eu já previra. Então
acrescentei, continuando a olhá-lo:
“Quero crer que, antes de terem ousado vir jogar num lugar diferente do
habitual, vocês tenham pedido permissão ao sr. Barbicinti.”
Seja porque estivesse espantado com meu tom sarcástico, seja porque se
sentisse incomodado, o desconhecido não ferrarense teve um leve
sobressalto ao meu lado. Em vez de me fazer moderar, aquilo me espicaçou
ainda mais.
“Sejam justos, me tranquilizem”, insisti. “Trata-se de uma escapada
consentida ou, ao contrário, de uma evasão em grupo?”
“Como assim?!”, rebateu Adriana com a usual leviandade: inocente, é
verdade, mas nem por isso menos ofensiva. “Você não sabe o que aconteceu
quarta passada, na final das duplas mistas? Ora, não vá me dizer que não
estava lá, e pare com esse seu eterno ar de Vittorio Alfieri! Vi você entre o
público enquanto jogávamos. Vi perfeitamente.”
“Eu não estava lá de jeito nenhum”, retruquei, seco. “Não frequento a
área há pelo menos um ano.”
“E por quê?”
“Porque tinha certeza de que mais cedo ou mais tarde seria expulso de
qualquer jeito. De fato, não estava enganado. Olhe aqui a cartinha de
desligamento.”
Tirei o envelope do bolso do blazer.
“Imagino que você tenha recebido uma igual”, acrescentei, dirigindo-me
a Bruno.
Só então Adriana pareceu se lembrar. Torceu a boca. Mas a simples
perspectiva de poder me pôr a par de um evento tão importante, que eu
evidentemente ignorava, foi o bastante para que ela esquecesse todo o resto.
Ergueu uma mão.
“É o caso então de explicar”, disse.
Bufou e revirou os olhos para o céu.
Tinha ocorrido um fato muito antipático, começou a me contar em tom
professoral, enquanto um dos rapazes mais novos tornava a apertar o
pequeno e saliente botão de osso preto da campainha do portão. Tudo bem,
eu não sabia, mas ela e Bruno, no torneio de encerramento do clube iniciado
justo no meio da semana anterior, tinham conseguido nada mais, nada
menos que ir à final: um resultado que eles nunca teriam sonhado alcançar.
Ponto. O confronto decisivo ainda estava em andamento quando as coisas
começaram a tomar o rumo mais inesperado (era de arregalar os olhos,
palavra de honra: Désirée Baggioli e Claudio Montemezzo, com trinta,
penavam contra uma dupla de não classificados; tanto que perderam o
primeiro set por dez a oito e estavam indo muito mal no segundo também),
e de repente, em uma decisão exclusiva e imprevisível do marquês
Barbicinti, que como sempre era o árbitro do torneio e, mais uma vez, agiu
como Grande Chefe, a partida teve de sofrer uma brusca interrupção. Já
eram seis da tarde e se enxergava bem pouco, é verdade. Mas não a ponto
de impossibilitar pelo menos mais dois games. Isso é coisa que se faça? Em
pleno quatro a dois do segundo set de um jogo importante, não se tem o
direito, até prova em contrário, de se começar a gritar “parem!”, de se entrar
na quadra de braços abertos, proclamando a suspensão da partida por
“patente escassez de luz”, e postergar seu prosseguimento e conclusão para
a tarde do dia seguinte. De resto, o senhor marquês não agia de boa-fé, de
jeito nenhum! E mesmo que ela não tivesse notado, já no final do primeiro
set, o marquês confabulando direto com aquela “alma negra” do Gino
Cariani, secretário do GUF (os dois se puseram um pouco à parte das
pessoas, ao lado dos vestiários), Cariani que, talvez para dar menos na vista,
estava completamente de costas para a quadra, bastaria ver a cara do
marquês no instante em que se inclinou para abrir a cancela de acesso,
pálida e transtornada como nunca se viu igual (“uma cara de quem viu
fantasma, apavorado!”), para se dar conta de que a patente falta de luz não
passava de uma desculpa esfarrapada, pura enrolação. Aliás, tinha como
duvidar? E não se falou mais do match interrompido, já que, na manhã do
dia seguinte, Bruno também recebeu uma carta idêntica à minha: “como
queríamos demonstrar”. E ela, Adriana, ficou tão enojada e indignada com
toda essa história que jurou não pôr mais os pés no Eleonora d'Este: pelo
menos por um tempo. Tinham algo contra Bruno? Se tinham, podiam
perfeitamente ter vetado sua inscrição no torneio. Dizer com franqueza:
“Como as coisas estão assim e assado, lamentamos, não é possível aceitar
sua inscrição”. Mas em plena competição, com o torneio já no final, aliás, a
um triz de ele vencer uma das finais, não podiam de jeito nenhum se
comportar como se comportaram. Quatro a dois. Que indecência! Esse tipo
de atitude era coisa de zulus, não de pessoas de bem, civilizadas!
Adriana Trentini falava cada vez mais exaltada; e de vez em quando
Bruno também intervinha, acrescentando detalhes.
Segundo ele, a partida fora interrompida sobretudo por causa de Cariani,
e quem o conhecia não podia esperar outra coisa dele. Era evidente até
demais: um “zé-ninguém” daquele tipo, com peito de tuberculoso e ossos
de passarinho, cujo único pensamento desde que pôs os pés no GUF foi o de
fazer carreira lá dentro, e por isso mesmo não perdia uma oportunidade, em
público ou reservadamente, de lamber as botas do Federal (eu já não o vira
no Café da Bolsa, nas raras vezes que conseguia sentar-se à mesa dos
“velhos chacais da Bombamano”? Ficava todo inflado, vociferava, exibia-
se, recorrendo a palavras mais pesadas que ele, mas assim que o cônsul
Bolognesi, o Sciagura ou qualquer outro hierarca do grupo falava mais alto,
rapidamente metia o rabo entre as pernas, pronto a cumprir os serviços mais
humildes a fim de ser perdoado e recuperar o favor de seus superiores,
como ir à tabacaria e comprar um maço de Giubek para o Federal, ou
telefonar para a “casa Sciagura” anunciando o iminente regresso do grande
homem à “patroa ex-lavadeira”…): um “verme daquele calibre” não
deixaria escapar, e ele apostava a própria cabeça, a oportunidade de uma
vez mais se destacar aos olhos da Federação! O marquês Barbicinti era
aquilo que já se sabia: um senhor distinto, sem dúvida, mas acima de tudo
um terra a terra, sem “autonomia de voo”, o oposto de um herói. Se o
mantinham à frente do Eleonora d'Este era porque se apresentava bem, mas
acima de tudo pelo sobrenome, que na cabeça deles devia funcionar como
um ouro de tolo. Então deve ter sido moleza para Cariani dar uma
tremedeira no pobre M.es. Vai ver que lhe disse: “E amanhã, marquês? Já
pensou amanhã à noite, quando o Federal vier aqui, para a festa baile, e
tiver de premiar um… Lattes com uma bela taça prateada e a saudação
romana de praxe? Eu, por mim, já prevejo um escândalo enorme. E
pepinos, pepinos sem fim. Se eu fosse o senhor, aproveitando que já começa
a ficar escuro, não pensaria duas vezes e interromperia a partida”. Não foi
preciso mais que isso, “batata!”, para induzir o outro à irrupção penosa e
grotesca que se viu ontem.
Antes de Adriana e Bruno terminarem de me relatar esses
acontecimentos (a certa altura, Adriana até achou um pretexto para me
apresentar ao jovem de fora, um tal de Malnate, Giampiero Malnate,
milanês, químico recém-contratado por uma das novas fábricas de borracha
sintética da zona industrial), o portão finalmente se abriu. Na soleira surgiu
um homem de uns sessenta anos, forte e atarracado, de cabelos grisalhos
cortados curtos, dos quais o sol das duas e meia, jorrando em fluxos através
do vão vertical às suas costas, extraía reflexos de nitidez metálica, e bigodes
também curtos e grisalhos sob um nariz carnudo e arroxeado: um pouco à
Hitler — me veio à cabeça —, nariz e bigodes. Era ele mesmo, o velho
Perotti, jardineiro, cocheiro, chofer, porteiro, tudo, como dissera Micòl: no
geral, nem um pouco mudado desde os tempos do Guarini, quando, sentado
na boleia, aguardava impassível que o antro escuro e ameaçador pelo qual,
impávidos, com um sorriso nos lábios, seus “senhorzinhos” tinham sido
engolidos, se decidisse enfim a restituí-los, não menos serenos e seguros de
si, ao coche que era todo cristais, vernizes, niquelados, estofados felpudos,
madeiras de lei — realmente como um relicário precioso —, por cuja
conservação e condução apenas ele era o responsável. Os olhos miúdos, por
exemplo, também eles cinzentos e pungentes, cintilantes de uma dura e
camponesa argúcia vêneta, riam benevolentes sob espessas sobrancelhas
quase pretas: como antigamente, tal qual. Mas de que riam agora? De
termos sido largados ali, esperando pelo menos dez minutos? Ou de si
mesmo, que se apresentara em casaca de riscado e luvas de fio branco: estas
novinhas em folha, talvez estreadas para a ocasião?
Fomos então inseridos, todos acolhidos, para além do portão
imediatamente fechado pelo solerte Perotti com uma grande pancada, pelos
pesados latidos de Jor, o dinamarquês branco e preto. O canzarrão vinha
pela alameda de acesso, trotando cansado ao redor da gente com um jeito
nem um pouco amedrontador. Apesar disso, Bruno e Adriana silenciaram
de pronto.
“Ele não morde?”, indagou Adriana, atemorizada.
“Não se preocupe, senhorita”, respondeu Perotti. “Com os três ou quatro
dentes que lhe sobraram, o que é que ele pode morder agora? No máximo
uma polenta…”
E enquanto o decrépito Jor, detendo-se no meio da alameda em pose
escultórica, nos observava com os dois olhos gelados e sem expressão, um
escuro e outro azul-claro, Perotti começou a se desculpar. Lamentava nos
ter feito esperar, disse. Mas a culpa não era dele, e sim da corrente elétrica
que de vez em quando falhava (sorte que a srta. Micòl percebeu e logo o
mandou ver se por acaso os convidados já não haviam chegado), além da
distância de mais de meio quilômetro. Ele não sabia andar de bicicleta,
infelizmente. Mas quando a srta. Micòl mete uma coisa na cabeça…
Suspirou, levantou os olhos ao céu e sorriu de novo, sabe-se lá por quê,
descobrindo entre os lábios finos uma fieira de dentes bem mais compacta e
forte que a do dinamarquês; enquanto isso, com o braço erguido, nos
indicava a alameda que, depois de uns cem metros, se adentrava em um
denso juncal. Mesmo podendo ir de bicicleta — advertiu —, de todo modo
eram três ou quatro minutos só para chegar ao “palácio”.
3
Tivemos realmente muita sorte naquela estação. Durante dez ou doze dias o
tempo se manteve perfeito, firme naquela espécie de suspensão mágica, de
uma imobilidade vítrea e luminosa que é típica de certos outonos nossos.
Fazia calor no jardim: apenas um pouco menos que no verão. Quem
quisesse, podia continuar jogando tênis até umas cinco e meia da tarde ou
mais, sem temer que a umidade da noite, já tão intensa em novembro,
danificasse as cordas das raquetes. Àquela hora, naturalmente, não se via
quase nada na quadra. Mas a luz que continuava dourando lá nas lonjuras os
declives relvosos da Muralha degli Angeli, repletos, em especial aos
domingos, de uma sossegada multidão colorida (garotos correndo atrás da
bola, babás sentadas a tricotar ao lado dos carrinhos de bebê, militares de
folga, casais de namorados procurando lugares onde se abraçar), aquela
última luz convidava a insistir nas partidas, não importa se agora quase às
cegas. O dia ainda não havia acabado, valia a pena jogar mais um pouco.
Voltávamos todas as tardes, de início avisando com um telefonema,
depois nem isso; e sempre os mesmos, às vezes com a exceção de
Giampiero Malnate, que conhecia Alberto desde 1933, de Milão, e ao
contrário do que eu pensara no primeiro dia, ao vê-lo em frente ao portão
dos Finzi-Contini, não só jamais vira os quatros jovens que estavam com
ele, como tampouco tinha qualquer relação com o Eleonora d'Este ou com
seu vice-presidente e secretário, o marquês Ippolito Barbicinti. Os dias se
mostravam bonitos demais e, ao mesmo tempo, insidiados pelo inverno
iminente. Perder um só deles parecia um crime. Sem marcarmos um
encontro, chegávamos sempre por volta das duas, logo depois do almoço. A
princípio, a cena de todos nós diante do portão tornou a repetir-se com
frequência, à espera de que Perotti viesse abri-lo. Porém, depois de uma
semana, a instalação de um interfone e de uma fechadura comandada à
distância fez com que, como a entrada do jardim não era mais problema,
chegássemos em horários variados, quando desse. De minha parte, não
deixei de comparecer um só dia; nem para dar uma de minhas habituais
escapadas até Bolonha. Nem os outros, se bem me lembro: nem Bruno
Lattes, nem Adriana Trentini, nem Carletto Sani, nem Tonino Collevatti,
aos quais sucessivamente se juntaram, sem contar meu irmão Ernesto,
outros três ou quatro rapazes e moças. O único que, como disse, vinha com
menor regularidade era o Giampiero Malnate (Micòl começou a chamá-lo
assim, e logo virou uso geral). Precisava conciliar os horários na fábrica,
explicou certa vez: não muito rígidos, é verdade, já que o estabelecimento
Montecatini onde ele trabalhava ainda não havia produzido nem um quilo
de borracha sintética, mas eram sempre horários. Seja como for, suas
ausências nunca duravam mais de dois dias seguidos. De resto, ele era o
único que, além de mim, não demonstrava grande apego ao tênis (na
verdade, jogava muito mal), muitas vezes se contentando, quando chegava
de bicicleta por volta das cinco, depois do laboratório, em arbitrar uma
partida ou se sentar à parte com Alberto para fumar cachimbo e conversar.
Nossos anfitriões eram até mais assíduos que nós. Às vezes aparecíamos
antes que o relógio da praça batesse as duas, lá longe: por mais cedo que se
chegasse, tinha-se a certeza de que eles já estavam na quadra, agora não
mais jogando entre si, como naquele sábado em que desembocamos no
gramado atrás da casa, onde se localizava a quadra, mas empenhados em
verificar que tudo estivesse em ordem, a rede no lugar certo, o terreno bem
aplainado e umedecido, as bolas em boas condições, ou então estirados nas
espreguiçadeiras com amplos chapéus de palha na cabeça, imóveis,
tomando sol. Como anfitriões, não podiam se comportar melhor. Embora
fosse claro que o tênis, entendido como puro exercício físico, como esporte,
só lhes interessava até certo ponto, mesmo assim eles permaneciam ali até o
final da última partida (sempre um dos dois, às vezes ambos), sem jamais se
ausentar antecipadamente com a desculpa de um compromisso, de algum
afazer, de um mal-estar. Aliás, em certas noites eram eles mesmos que, no
escuro quase completo, insistiam em “bater mais umas bolinhas, as
últimas!”, impelindo para dentro da quadra quem já estivesse saindo.
Como Carletto Sani e Tonino Collevatti logo declararam, sem nem
mesmo baixar um pouco a voz, não se podia dizer que a quadra fosse
grande coisa.
Adolescentes de quinze anos, práticos, novos demais para terem
frequentado quadras de tênis diversas das que enchiam de justo orgulho o
marquês Barbicinti, logo começaram a listar os defeitos daquela espécie de
“campo de batatas” (assim se expressou um deles, contraindo os lábios com
um esgar de desprezo). Ou seja: quase nenhum out, sobretudo atrás das
linhas de fundo; mal drenado, de modo que bastaria uma chuvinha para
transformá-lo em um charco; e nenhuma cerca viva circundando as grades
metálicas do perímetro.
Entretanto, assim que Alberto e Micòl se viram em um “confronto de
morte” (ela não conseguira impedir que o irmão a alcançasse em um cinco
iguais, e nesse ponto interromperam a partida), apressaram-se em denunciar
os mesmos defeitos sem nenhuma cerimônia, como em uma disputa, diria
até com um entusiasmo bizarro e autodepreciativo.
Ah, sim, disse Micòl, enquanto passava uma toalha no rosto para
enxugar o suor: para gente como nós, “mimada” com as quadras vermelhas
do Eleonora d'Este, era bem difícil sentir-se à vontade naquele campo de
batatas que eles tinham! E os outs? Como era possível jogar com tão pouco
espaço, especialmente às nossas costas? Em que abismo de decadência
havíamos caído, pobres de nós! Mas ela estava com a consciência tranquila.
Repetira infinitas vezes ao pai que as redes metálicas precisavam ser
deslocadas ao menos três metros para além do recinto. Mas que nada! Toda
vez papai vinha com aquela típica visão dos agricultores, de que a terra, se
não lhes servia para o plantio, lhe parecia um desperdício (é claro que
também contava com o fato de que ela e Alberto jogaram naquela quadra
horrível desde crianças, e que por isso podiam perfeitamente continuar
jogando na idade adulta), e assim ele, papai, sempre foi se esquivando.
Puxa, quanto esforço naquilo! Mas agora era diferente. Agora eles tinham
convidados, “convidados ilustres”. Motivo pelo qual ela voltaria à carga
com força total, azucrinando e atormentando tanto o “encanecido pai” que,
para a próxima primavera, já era capaz de garantir que ela e Alberto
poderiam nos oferecer “algo digno”.
Falava mais que nunca em seu estilo costumeiro, cheio de ironia. Quanto
a nós, só nos restava desmentir e assegurar em coro que tudo, inclusive a
quadra, estava bom demais, acrescentando elogios ao recinto verde do
jardim, diante do qual os parques privados da cidade, inclusive o do duque
Massari (foi Bruno Lattes quem o disse, justo na hora em que Micòl e
Alberto saíam juntos da quadra, de mãos dadas), decaíam à categoria de
aparados jardinetes burgueses.
Mas a quadra de tênis realmente não era “digna”; além disso, por ser a
única, obrigava a turnos de repouso muito longos. Assim, às quatro da tarde
em ponto, sobretudo visando a que, talvez, os dois jovens de quinze anos de
nosso heterogêneo grupo não fossem induzidos a lamentar as horas bem
mais intensas, do ponto de vista esportivo, que poderiam transcorrer sob as
asas do marquês Barbicinti, eis que Perotti invariavelmente surgia com o
pescoço taurino rubro e retesado devido ao esforço de carregar nas mãos
enluvadas uma grande bandeja de prata.
Vinha transbordante, a bandeja: de pãezinhos amanteigados em conserva
de anchova, em salmão defumado, no caviar, no fígado de ganso, no
presunto de porco; de pequenos vol-au-vents recheados com pasta de frango
ao bechamel; de minúsculos buricchi vindos certamente da prestigiosa
lojinha kosher que a sra. Betsabá, a famosa sra. Betsabá (Da Fano),
administrava havia décadas na Via Mazzini para glória e delícia de toda a
comunidade. E não terminava aí. O bom Perotti ainda estava dispondo o
conteúdo da travessa na mesinha de vime posta para a ocasião na entrada
lateral da quadra, sob um largo ombrelone de faixas vermelhas e azuis,
quando era alcançado por uma de suas filhas, Dirce ou Gina, as duas mais
ou menos da mesma idade de Micòl e ambas a serviço “da casa”, Dirce
como camareira e Gina como cozinheira (por sua vez, os dois filhos, Titta e
Bepi, o primeiro de uns trinta anos, o segundo de dezoito, cuidavam do
parque, cumprindo a dupla função de jardineiro e horticultor: às vezes os
víamos de relance, à distância, trabalhando encurvados, rápidos ao dirigir a
nós, que corríamos nas bicicletas, o lampejo de seus olhos azuis e irônicos;
nunca tivemos mais que esse contato). Ela, a filha, vinha por seu turno
descendo a vereda que partia da magna domus até a quadra de tênis,
empurrando um carrinho de rodas emborrachadas, também repleto de jarras,
bules, copos e xícaras. E dentro dos bules de porcelana e de estanho havia
uma variedade de chás, leite e café; dentro das peroladas jarras de cristal da
Boêmia, limonada, sucos de fruta e Skiwasser, uma bebida refrescante
composta de água e xarope de framboesa, em partes iguais, acrescida de
uma fatia de limão e algumas bagas de uva, que Micòl preferia a qualquer
outra e da qual se mostrava especialmente orgulhosa.
Ah, o Skiwasser! Nos intervalos das partidas, além de mordiscar aqui e
ali algum sanduíche, dentre os quais sempre escolhia os de presunto de
porco, não sem ostentar certo inconformismo religioso, com frequência
Micòl tragava de um só gole um copo inteiro de sua querida “beberagem”,
incitando-nos com insistência a bebermos um também, “em louvor” —
dizia rindo — “ao falecido Império Austro-Húngaro”. A receita — dissera-
nos — lhe havia sido dada justamente na Áustria, em Hofgastein, no
inverno de 1934: o único inverno em que ela e Alberto, “em coalizão”,
conseguiram escapar sozinhos por umas duas semanas, para esquiar. E
embora o Skiwasser, como o nome testemunhava, fosse uma bebida de
inverno, razão pela qual devia ser servida escaldante, mesmo na Áustria
havia pessoas que, para não deixar de bebê-la, a tomavam assim, em
“versão” gelada e sem a fatia de limão, chamando-a naquele caso de
Himbeerwasser.
De todo modo, era para tomarmos nota, acrescentou com uma ênfase
cômica, o dedo erguido: as bagas de uva, “importantíssimas!”, tinha sido ela
que, por iniciativa própria, acrescentara à clássica receita do Tirol. Aquilo
fora uma ideia dela: e fazia questão de enfatizar, não era para rir. A uva
representava a peculiar contribuição da Itália à santa e nobre causa do
Skiwasser, ou, mais precisamente, constituía sua peculiar “variante italiana,
para não dizer ferrarense, para não dizer… etc. etc.”.
4
Foi Micòl quem quis me mostrar o jardim. Fazia questão. “Acho que tenho
um certo direito”, disse, irônica, olhando para mim.
No primeiro dia, não. Joguei tênis até tarde, e foi Alberto que, ao
terminar a disputa com a irmã, me acompanhou até uma espécie de cabana
alpina em miniatura (Hütte, como a chamavam Micòl e ele), semioculta em
meio a um bosque de abetos e a uns cem metros da quadra, em cuja cabana
ou Hütte, adaptada para vestiário, pude me trocar e mais tarde, ao anoitecer,
tomar uma ducha quente e me vestir.
Mas no dia seguinte as coisas tomaram um rumo diferente. Uma partida
de duplas que opunha Adriana Trentini e Bruno Lattes aos dois
adolescentes de quinze anos (com Malnate sentado na cadeira de árbitro,
fazendo as vezes do paciente contador de pontos) logo se transformou em
um daqueles confrontos que não acabam nunca.
“O que vamos fazer?”, Micòl me perguntou a certa altura, pondo-se de
pé. “Para esses daí darem lugar à gente, tenho a impressão de que eu, você,
Alberto e o amigo milanês teremos de esperar uma boa hora. Escute: e se,
enquanto esperamos, a gente fosse dar uma volta para ver umas árvores?”
Assim que a quadra estiver livre, acrescentou, com certeza Alberto vai dar
um jeito de nos chamar. Era só meter três dedos na boca, e tome-lhe seu
famoso assobio!
Virou-se sorrindo para Alberto, que, espichado ali perto em uma terceira
espreguiçadeira, com o rosto coberto por um chapéu de palha da roça,
cochilava ao sol.
“Não é verdade, senhor paxá?”
Debaixo do chapéu, o senhor paxá assentiu com um movimento de
cabeça, enquanto nos afastávamos. Sim, o irmão dela era formidável —
continuava me explicando Micòl. Sempre que preciso, sabia dar uns
assovios tão potentes que, em comparação, os dos pastores eram coisa de
criança. Estranho, né?, ainda mais em um tipo como ele. Quem olhasse para
ele não lhe daria um tostão furado. No entanto… Vai saber onde arranjava
todo aquele fôlego!
Foi assim que começaram, quase sempre para matar o tempo entre uma
partida e outra, nossas longas incursões a dois. Nas primeiras vezes, íamos
de bicicleta. Tendo o jardim “uns” dez hectares, com alamedas maiores e
menores que perfaziam em seu conjunto uns doze quilômetros, a bicicleta
era no mínimo indispensável, decretara prontamente minha acompanhante.
É verdade que hoje — ela admitira — vamos nos limitar a “inspecionar”
apenas a parte lá ao fundo, para as bandas do pôr do sol, aonde ela e
Alberto iam com muita frequência quando crianças a fim de ver os trens
manobrando na estação. Porém, se estivéssemos a pé, mesmo hoje, como é
que conseguiríamos nos safar? Corríamos o risco de ser colhidos pelo
“olifante” de Alberto sem conseguir nos reapresentar com a necessária
prontidão.
Assim, naquele primeiro dia fomos ver os trens manobrando na estação.
E depois? Depois voltamos, passamos rente pela quadra de tênis,
atravessamos a esplanada em frente à magna domus (deserta, como sempre,
mais triste que nunca), percorrendo de novo em sentido inverso, de lá da
escura ponte de traves que cruzava o canal Panfilio, a alameda de acesso; e
desta até o túnel de bambus e o portão da avenida Ercole I. Chegando ali,
Micòl insistiu pare que tomássemos a trilha sinuosa que contornava de fora
a fora os muros externos: primeiro à esquerda, do lado da Muralha degli
Angeli, tanto que em quinze minutos tínhamos de novo alcançado a área do
parque de onde se avistava a estação, ou seja, o lado oposto, bem mais
selvático, sombrio e melancólico, adjacente à Via Arianova. Vimo-nos
precisamente ali, abrindo passagem com dificuldade em meio a arbustos de
samambaias, urtigas e sarças espinhosas, quando de súbito, por trás do
denso acúmulo de troncos, o assovio camponês de Alberto irrompeu muito
longe, a nos chamar depressa ao “duro trabalho”.
Com poucas variantes de percurso, nas tardes seguintes repetimos várias
vezes essas explorações de amplo raio. Quando o espaço permitia,
pedalávamos emparelhados. Enquanto isso, conversávamos: em geral sobre
árvores, ao menos a princípio.
Eu não sabia nada ou quase nada da matéria, o que causava um contínuo
espanto em Micòl. Ela me esquadrinhava como se eu fosse um monstro.
“Será possível que sua ignorância seja tanta?”, exclamava. “No liceu,
com certeza você viu um pouco de botânica!”
“Vejamos”, então indagava, já se preparando para arquear as
sobrancelhas diante de algum novo despautério. “Posso saber, por favor,
que espécie de árvore o senhor pensa que é aquela ali?”
Ela podia apontar seja honestos olmos e tílias de nossas paragens, seja
raríssimas plantas africanas, asiáticas ou americanas, que apenas um
especialista seria capaz de identificar, uma vez que no Barchetto del Duca
havia de tudo, realmente de tudo. Quanto a mim, respondia sempre a esmo:
em parte, porque de fato não sabia distinguir um olmo de uma tília, em
parte porque percebi que nada lhe dava mais prazer que me ver errar.
Parecia-lhe absurdo, a ela, que no mundo houvesse um tipo como eu,
que não nutrisse pelas árvores, “as grandes, quietas, fortes, pensativas”, os
mesmos sentimentos seus, de apaixonada admiração. Como eu podia não
entender, meu Deus, e não sentir? Havia ao fundo da área de tênis, por
exemplo, a oeste em relação à quadra, um grupo de sete delgadas e
altíssimas Washingtonia gracilis, ou palmeiras do deserto, separadas do
resto da vegetação posterior (árvores normais, de grosso fuste, típicas de
florestas europeias: carvalhos, azinheiras, plátanos, castanheiras etc.), com
um belo trecho de prado circundante. Pois bem, toda vez que passávamos
por aquela área, Micòl sempre tinha novas palavras de ternura para o grupo
solitário das Washingtonia.
“Lá estão meus sete anciãos”, às vezes dizia. “Veja que barbas
venerandas eles têm!”
A sério, insistia: eu também não as achava semelhantes a sete eremitas
da Tebaida, enxutos pelo sol e por jejuns? Quanta elegância, quanta
santidade em seus troncos castanhos, secos, curvos, escamosos! Pareciam
verdadeiramente vários são Joões Batista, nutridos só de gafanhotos.
Mas suas simpatias, como já disse, não se restringiam às árvores
exóticas.
Por um plátano enorme, de tronco esbranquiçado e grumoso maior que o
de qualquer outra árvore do jardim e, creio, de toda a província, sua
admiração beirava a reverência. Naturalmente não foi a “vovó Josette” que
o plantara, mas Ercole I d'Este em pessoa, ou quem sabe Lucrécia Bórgia.
“Tem quase quinhentos anos, compreende?”, sussurrava, arregalando os
olhos. “Imagine só quantas coisas deve ter visto desde que veio ao mundo!”
E parecia que também ele, o plátano gigantesco, tivesse olhos e ouvidos:
olhos para nos ver e ouvidos para nos escutar.
Pelas árvores frutíferas, às quais era reservada uma larga faixa de terreno
ao abrigo dos ventos boreais e exposta ao sol, logo à frente da Muralha
degli Angeli, Micòl nutria um afeto muito semelhante — como notei — ao
que demonstrava em relação a Perotti e a todos os membros da casa. Falava
deles, dessas humildes plantas domésticas, com a mesma afabilidade, com a
mesma paciência, e muitas vezes recorrendo ao dialeto, que ela adotava
apenas ao tratar com Perotti, ou com Titta e Bepi, nas vezes em que os
encontrávamos e parávamos para trocar umas frases. Tornara-se um ritual
nos determos diante de um grande abrunheiro de tronco poderoso como o
de um carvalho: o seu predileto. Il brogn sèrbi que aquele abrunheiro ali
produzia — me contava — lhe pareciam extraordinárias na infância. Na
época, ela as preferia a qualquer chocolate Lindt. Depois, por volta dos
dezesseis anos, de repente parou de querê-las, já não lhe agradavam mais, e
hoje, às brogne, preferia chocolatinhos Lindt e outros (mas os amargos,
exclusivamente os amargos!). Assim, as maçãs eram i pum, os figos, i figh,
os abricós, il mugnàgh, os pêssegos, il pèrsagh. Não havia senão o dialeto
para falar dessas coisas. Apenas a palavra dialetal lhe permitia, nomeando
árvores e frutas, dobrar os lábios no trejeito entre enternecido e desdenhoso
que o coração sugeria.
Mais tarde, exauridas as catalogações, tiveram início “as pias
peregrinações”. E como todas as peregrinações, segundo Micòl, deviam ser
feitas a pé (do contrário, que espécie de peregrinos eles seriam?), paramos
de usar as bicicletas. Então íamos a pé, quase sempre acompanhados passo
a passo por Jor.
Para começar, fui levado a conhecer um pequeno e isolado
embarcadouro no canal Panfilio, escondido em meio a uma densa vegetação
de salgueiros, choupos-brancos e copos-de-leite. Era provável que daquele
minúsculo porto, todo cercado por bancos musgosos de cerâmica vermelha,
antigamente se zarpasse para chegar tanto ao Pó quanto à Fossa do Castelo.
Ela e Alberto também zarpavam dali quando garotos — disse Micòl —, em
longas remadas em uma canoa de pagaia dupla. Nunca haviam chegado de
barco aos pés das torres do Castelo, em pleno centro urbano (como eu bem
sabia, atualmente o Panfilio só se comunicava com a Fossa do Castelo por
via subterrânea). Mas até o Pó, bem na frente da Isola Bianca, eles já
tinham chegado, e como! Hoje, “ça va sans dire”, não era mais o caso de
tentar recuperar a canoa: semidestruída, coberta de pó, reduzida a um
“espectro de canoa”, quem sabe um dia eu poderia ver sua carcaça na
garagem, caso ela se lembrasse de me levar até lá. Mas ela nunca deixou de
frequentar os bancos do embarcadouro: ia ali sempre, sempre. Talvez
porque ainda se servisse deles a fim de preparar-se para os exames em santa
paz, quando começava a fazer calor, e talvez porque… O fato é que aquele
local continuou sendo de algum modo seu, exclusivamente: seu refúgio
pessoal e secreto.
Em outra ocasião, fomos parar nos Perotti, que moravam em uma
autêntica habitação colonial, com celeiro e estábulo anexos, a meio
caminho entre a casa dos patrões e a área do pomar.
Fomos recebidos pela esposa do velho Perotti, Vittorina, uma pálida
arzdóra[12] de idade indefinível, triste, magra e seca; e por Italia, a esposa
do filho mais velho, Titta, uma trintona de Codigoro, gorda e robusta, com
olhos de um azul-celeste aquoso e cabelo ruivo. Sentada à soleira de casa
em uma cadeira de palha, circundada por uma multidão de galinhas, a
mulher amamentava, e Micòl se inclinou para acariciar o menino.
“E aí, quando é que me convida de novo para tomar aquela sopa de
feijão?”, ela perguntou a Vittorina, em dialeto.
“Quando quiser, signurina. Só espero que esteja do seu agrado…”
“Num desses dias precisamos combinar mesmo”, respondeu Micòl,
grave. “Saiba”, fez, dirigindo-se a mim, “que Vittorina faz umas sopas de
feijão animais. Com pururuca de porco, é claro…”
Riu, e acrescentou:
“Quer dar uma olhada no estábulo? Temos bem umas seis vacas.”
Vittorina à frente, fomos até o estábulo. A arzdóra abriu a porta para nós
com uma grande chave que trazia no bolso do avental preto, e então se pôs
de lado para nos deixar passar. Enquanto atravessávamos a soleira do
estábulo, percebi de sua parte um olhar furtivo, dirigido a nós: pareceu-me
uma mirada cheia de preocupação, mas também de um secreto
contentamento.
Uma terceira peregrinação foi dedicada aos lugares consagrados ao “vert
paradis des amours enfantines”.[13]
Tínhamos passado várias vezes por aquelas bandas nos dias anteriores;
mas de bicicleta, sem nunca parar. Olhe lá o ponto exato do muro exterior
— dizia-me Micòl, indicando-o agora com o dedo — onde ela costumava
apoiar a escada; e lá estavam os “entalhes” (“entalhes, sim senhor!”), dos
quais se servia nas vezes em que a escada não estava disponível.
“Não acha que seria justo pôr uma placa comemorativa neste local?”,
perguntou-me.
“Suponho que você já tenha em mente a frase que será gravada.”
“Mais ou menos. ‘Por aqui — esquivando a vigilância de dois cães
ferozes…'.”
“Chega. Você disse uma placa, mas nesse ritmo temo que precise de uma
lápide daquelas como o Bollettino della Vittoria. A segunda linha é longa
demais.”
Daí nasceu uma discussão. Eu fazia o papel do cabeça-dura importuno, e
ela, erguendo a voz e bancando a criança, me acusava do “pedantismo
habitual”. Era evidente — gritava —, eu devia ter farejado sua intenção de
nem me inserir na frase, em sua placa, e assim, por puro ciúme, eu me
recusava a ouvi-la.
Depois nos acalmamos. Micòl recomeçou a me falar de quando ela e
Alberto eram crianças. Se eu queria mesmo saber a verdade, tanto ela
quanto Alberto sempre sentiram uma enorme inveja de quem, como eu, teve
a sorte de estudar em uma escola pública. Eu não acreditava? Chegaram a
ponto de esperar ansiosamente, todos os anos, o período das provas só pelo
gosto de também poderem ir à escola.
“Mas, se vocês gostavam tanto de ir à escola, por que estudavam em
casa?”, perguntei.
“Papai e mamãe, principalmente mamãe, não queriam de jeito nenhum.
Mamãe sempre teve obsessão por micróbios. Dizia que as escolas são feitas
de propósito para espalhar as doenças mais horríveis, e não adiantava nada
tio Giulio, toda vez que vinha aqui, explicar-lhe que não era verdade. Tio
Giulio zombava dela; acontece que, apesar de médico, ele não acredita tanto
na medicina, ao contrário, acredita na inevitabilidade e na utilidade das
doenças. Imagine se podia fazer mamãe entender, ela que, depois da
desgraça de Guido, nosso irmãozinho mais velho que morreu antes de
Alberto e eu nascermos, em 1914, praticamente nunca mais pôs os pés para
fora de casa! Mais tarde a gente se rebelou um pouco, claro: nós dois
conseguimos ir para a universidade e, certo inverno, até fomos esquiar na
Áustria, como acho que já lhe contei. Mas na infância, o que a gente podia
fazer? Eu muitas vezes escapava (Alberto, não, ele sempre foi bem mais
tranquilo que eu, muito mais obediente). Por outro lado, num dia em que
fiquei um tempo a mais circulando pela Muralha, depois de pegar carona na
barra das bicicletas de um grupo de garotos com quem fizera amizade,
quando voltei para casa, eles estavam tão desesperados, mamãe e papai, que
desde então (porque Micòl é uma boa moça, um verdadeiro coração de
ouro!), desde então decidi que seria impecável e nunca mais escapei. A
única recaída foi aquela em junho de 1929, em vossa homenagem, egrégio
senhor!”
“E eu que acreditava ser o único!”, suspirei.
“Bem, se não o único, o último com certeza. Além disso, jamais
convidei outra pessoa a entrar no jardim!”
“Será verdade?”
“Verdadeiríssimo. Eu sempre espiei onde você estava, no templo…
Quando você se virava para falar com papai ou Alberto, tinha uns olhos tão
azuis! Até lhe dei um apelido só para mim.”
“Um apelido? Qual?”
“Celestino.”
“Que por vileza fez a alta recusa…”,[14] resmunguei.
“Pois é!”, exclamou, rindo. “De todo modo, acho que por um certo
período eu tive uma quedinha por você.”
“E depois?”
“Depois a vida nos separou.”
“E que ideia foi aquela de construir um templo só para vocês! Por quê?
Sempre o medo dos micróbios?”
Abanou a mão.
“Ah… quase…”, disse.
“Quase como?”
Mas não houve jeito de induzi-la a confessar a verdade. Eu sabia
perfeitamente por que o professor Ermanno solicitara, em 1933, a
permissão de restaurar para si e os seus a sinagoga espanhola: foi a
vergonhosa “celebração decenal”, vergonhosa e grotesca, que o convenceu.
Entretanto, ela insistia que o motivo determinante, mais uma vez, tinha sido
a vontade da mãe. Em Veneza, os Herrera pertenciam à escola espanhola. E
como mamãe, vovó Regina e os tios Giulio e Federico sempre prezaram
muito as tradições de família, então papai, para agradar mamãe…
“Mas, me desculpe, por que vocês então voltaram para a escola
italiana?”, objetei. “Eu não estava no templo na noite de Rosh Hashaná: não
ponho os pés ali há pelo menos três anos. Porém meu pai, que estava
presente, me contou a cena tim-tim por tim-tim.”
“Oh, não duvide, vossa ausência foi enormemente sentida, senhor livre-
pensador!”, respondeu ela. “Por mim também.”
Então prosseguiu, séria:
“O que você queria… agora estamos todos no mesmo barco. A essa
altura, também acho que continuar fazendo tantas distinções seria bastante
ridículo.”
Em outro dia, o último, começara a chover e, enquanto o pessoal se
abrigava na Hütte jogando baralho e pingue-pongue, nós dois, sem temor de
nos encharcar, atravessamos correndo meio parque e fomos nos refugiar no
depósito. O depósito atualmente funcionava apenas como depósito — disse-
me Micòl. Porém, em outros tempos, uma boa metade do vão interno fora
equipada à maneira de um salão de ginástica, com barras fixas, cordas,
barras de equilíbrio, argolas, espaldar sueco etc.; e isso só para que ela e
Alberto também pudessem se apresentar bem preparados nos exames anuais
de educação física. É claro que as aulas que o professor Anacleto Zaccarini,
aposentado havia séculos e hoje com mais de oitenta anos (imagine!), lhes
dava uma vez por semana não eram muito sérias. Mas eram divertidas,
talvez as mais divertidas de todas. Ela nunca se esquecia de levar para a
ginástica uma garrafa de vinho de Bosco. E o velho Zaccarini, já
normalmente de nariz e bochechas vermelhas, ia ficando roxo à medida que
a esvaziava devagar, até a última gota. Certas noites de inverno, quando ele
ia embora, dava até a impressão de emanar luz própria…
Tratava-se de uma construção de tijolos escuros, baixa e comprida, com
duas janelas laterais protegidas por robustos gradeados, de teto inclinado
coberto de telhas, e as paredes externas forradas quase por inteiro de hera.
Não distante do celeiro dos Perotti e do paralelepípedo envidraçado de uma
estufa, chegava-se até ali atravessando um amplo portão pintado de verde,
que dava para a parte oposta à Muralha degli Angeli, na direção da casa dos
patrões.
Paramos um momento na soleira, rente ao portão. Chovia a cântaros,
formando linhas de água oblíquas e muito longas sobre os campos, sobre os
grandes volumes negros das árvores, sobre tudo. Fazia frio. Batendo os
dentes, ambos olhávamos à nossa frente. O encanto em que até agora a
estação estivera suspensa se rompeu irreparavelmente.
“Vamos entrar?”, propus afinal. “Lá dentro deve estar mais quente.”
No interior do amplo salão, em cujo fundo, na penumbra, tremeluziam
as extremidades de duas barras douradas e brilhantes de ginástica que
chegavam até o teto, pairava um odor estranho, uma mistura de gasolina,
óleo lubrificante, poeira antiga e cítricos. O cheiro era mesmo bom, disse
logo Micòl, notando que eu farejava o ar. Ela também gostava muito do
aroma. E me indicou, encostada em uma das paredes laterais, uma espécie
de estante alta em madeira escura, cheia de grandes frutas amarelas e
redondas, maiores que limões e laranjas, que até então eu nunca tinha visto.
Tratava-se de toranjas, postas ali para maturar — explicou-me —,
produzidas na estufa. Eu nunca experimentei?, perguntou ela, pegando uma
e oferecendo-a para que eu cheirasse. Pena que ela não tivesse ali uma faca
para cortá-la em dois “hemisférios”. O sabor do suco era híbrido:
assemelhava-se ao da laranja e ao do limão, com uma ponta de amargor
bem peculiar.
O centro do depósito estava ocupado por dois veículos emparelhados:
uma comprida Dilambda cinza e uma carruagem azul cujos varais,
levantados, mostravam-se pouco mais baixos que as barras ao fundo.
“Hoje não nos servimos mais da carruagem”, acrescentou Micòl. “As
poucas vezes que o papai precisa ir ao campo, é conduzido de automóvel.
Alberto e eu fazemos o mesmo quando temos que ir embora: ele para
Milão, eu para Veneza. É o eterno Perotti quem nos leva à estação. Em casa,
os únicos que sabem guiar são ele (dirige muito mal) e Alberto. Eu não,
ainda não tirei a carteira, tenho que tomar coragem na próxima primavera…
contanto que… O problema é que esse carrão bebe tanto!
Aproximou-se da carruagem, de aspecto não menos lustroso e eficiente
que o automóvel.
“Reconhece?”
Abriu uma porta, subiu, sentou. Por fim, batendo com a mão no forro do
assento a seu lado, me convidou a fazer o mesmo.
Subi e, por minha vez, sentei à sua esquerda. Acabara de me acomodar
quando, girando lentamente nas dobradiças por pura força de inércia, a
porta se fechou por si com o estalo seco e preciso de uma armadilha.
Agora o fragor da chuva no telhado do depósito era quase imperceptível.
De fato, parecia que estávamos em uma saleta: uma saleta pequena e
sufocante.
“Como está bem conservada”, falei, sem conseguir controlar uma
repentina emoção que se refletiu em um leve tremor da voz. “Ainda parece
nova. Só faltam as flores no vaso.”
“Ah, quanto às flores, Perotti ainda as coloca quando sai com vovó.”
“Então vocês ainda a usam!”
“Não mais que duas ou três vezes ao ano, e somente para algum passeio
no jardim.”
“E o cavalo? É sempre o mesmo?”
“O mesmo Star de sempre. Tem vinte e dois anos. Você não o notou
outro dia, ao fundo do estábulo? Agora está cego, mas, atrelado aqui, ainda
faz… uma péssima presença.”
Caiu na risada, balançando a cabeça.
“Perotti tem uma verdadeira paixão por essa carruagem”, continuou com
amargura, “e é sobretudo para agradar a ele (que odeia e despreza os
automóveis: você não faz ideia quanto!) que, de quando em quando, o
deixamos passear com vovó para cima e para baixo pelas alamedas. A cada
dez, quinze dias, ele vem aqui com baldes d'água, esponjas, escovas e
batedor de tapete: eis a explicação do milagre, eis por que a carruagem,
melhor ainda se vista no lusco-fusco, ainda parece dar bem para o gasto.”
“Dar para o gasto?”, protestei. “Mas parece nova!”
Bufou, entediada.
“Não diga bobagens, por favor!”
Movida por um impulso imprevisto, afastou-se bruscamente e se
encolheu em seu canto. Sobrancelhas franzidas, os traços do rosto afilados
naquela mesma expressão de estranho rancor quando certas vezes, jogando
tênis, se concentrava inteira para ganhar, olhava fixo diante de si. Pareceu
ter envelhecido dez anos em um instante.
Ficamos alguns segundos assim, em silêncio. Depois, sem mudar de
posição, os braços recolhidos em torno dos joelhos bronzeados como se
sentisse um grande frio (estava de bermuda e malha de fio, com um pulôver
amarrado pelas mangas ao pescoço), Micòl recomeçou a falar.
“Perotti quer gastar nesta espécie de traste lamentável”, disse, “muito
tempo e muito suor! Não, acredite em mim: aqui, nesta penumbra, pode-se
até proclamar que é um milagre, mas lá fora, à luz natural, não há o que
fazer: infinitas imperfeições saltam aos olhos imediatamente, o verniz aqui
e ali está gasto, os raios e os cubos das rodas são um cupim só, o forro deste
estofado (agora não dá para notar, mas posso lhe garantir) está reduzido em
certos pontos a uma teia de aranha. Por isso é que me pergunto: para que
toda essa struma[15] de Perotti? Vale a pena? Ele, coitado, queria arrancar de
papai a permissão para repintar tudo, restaurando-a e remodelando-a a seu
gosto. Mas papai, como sempre, faz de conta que nada e não se decide…”
Calou-se. Fez um leve movimento.
“Mas olhe ali a canoa”, prosseguiu, enquanto me indicava através do
vidro da porta, que nossa respiração começava a embaçar, uma forma parda,
oblonga e esquelética escorada na parede oposta à da estante repleta de
toranjas. “Olhe ali a canoa e admire, por favor, com quanta honestidade,
dignidade e coragem moral ela soube extrair da sua absoluta perda de
função todas as consequências necessárias. As coisas também morrem, meu
querido. Portanto, se até elas devem morrer, é melhor deixá-las ir. De resto,
há muito mais estilo nisso, não acha?”
Parte 3
1
depois veremos. De resto, basta olhar para ele: está na cara que, no fundo,
não aspira a outra coisa senão à dor.”
“Você é de um cinismo revoltante. Faz um belo par com Adriana.”
“Aí é que você se engana. Aliás, me ofende. Adriana é um anjo
inocente. Caprichosa, vá lá, mas inocente como ‘tutte — le femmine di tutti
— i sereni animali — che avvicinano a Dio'.[19] Já Micòl, como eu lhe disse
e repito, é boa e sempre sabe o que faz, lembre-se.”
Embora com menor frequência, ela também mencionava Giampiero
Malnate, diante de quem sempre manteve uma atitude curiosa, basicamente
crítica e sarcástica: como se tivesse ciúmes da relação dele com Alberto
(um tanto exclusiva, para ser sincero), mas ao mesmo tempo se aborrecesse
por ter de admiti-lo, e justamente por isso se empenhasse em “demolir o
ídolo”.
Na opinião dela, Malnate não era grande coisa nem no aspecto físico.
Grande demais, largo demais, muito “pai” para ser levado em consideração
desse ponto de vista. Era um desses tipos demasiado peludos que, por mais
que façam a barba várias vezes ao dia, sempre têm um ar meio sujo, pouco
lavado; e assim não dava, vamos ser sinceros. Talvez, pelo que se podia
entrever através dos pesados óculos e lentes de um dedo de espessura, atrás
dos quais se disfarçava (parece que o faziam suar, e dava vontade de tirá-
los), talvez tivesse olhos passáveis: cinzentos, “de aço”, de homem forte.
Mas muito sérios e severos, aqueles olhos. Muito constitucionalmente
matrimoniais. Apesar da desdenhosa misoginia aparente, eles ameaçavam
sentimentos tão eternos de fazer congelar qualquer garota, mesmo a mais
tranquila e morigerada.
Tinha uma cara bonita, tudo bem; mas não tão original quanto ele
parecia supor. Quer apostar que, se interrogado de jeito, ele acabaria
confessando se sentir desconfortável em trajes urbanos, preferindo a eles
um casaco corta-vento, bombachas e as botas dos infalíveis fins de semana
no Mottarone ou no Rosa? A propósito, o fiel cachimbo era bastante
revelador: valia por todo um programa de austeridade masculina e
subalpina, uma bandeira.
Alberto e ele eram grandes amigos, se bem que Alberto, com seu caráter
mais passivo, de punching ball, sempre fosse amigo de todos e de ninguém.
Passaram anos inteiros juntos, em Milão: e isso decerto tinha seu peso. Seja
como for, eu também não achava um tanto exagerada aquela permanente
confabulação entre os dois? Era um nhe-nhe-nhem só: mal acabavam de se
encontrar e logo começavam, nada podia tirá-los daquela conversa infinita.
E vai saber sobre quê! Mulheres? Ora! Conhecendo Alberto, que nesse
campo sempre foi muito reservado, para não dizer misterioso, ela não
apostaria muito nisso, sinceramente.
“Vocês o têm visto?”, decidi um dia perguntar, lançando a questão com o
tom mais indiferente que eu podia.
“Mas claro… acho que ele vem de vez em quando visitar seu Alberto”,
respondeu tranquila. “Eles se fecham no quarto, tomam chá, fumam
cachimbo (Alberto começou a dar umas pitadas de uns tempos para cá) e
falam, falam, sorte deles, só fazem falar.”
Ela era inteligente e sensível demais para não ter adivinhado o que eu
ocultava sob aquela indiferença, ou seja: o desejo subitamente agudíssimo e
sintomático de revê-la. Entretanto se comportou como se não houvesse
entendido, sem acenar sequer de modo indireto à possibilidade de que, mais
cedo ou mais tarde, eu também pudesse ser convidado a visitar sua casa.
2
Foi assim que desde então comecei a ser recebido pode-se dizer diariamente
no apartamento particular de Alberto (que ele chamava de estúdio; e de fato
era um estúdio, com quarto de dormir e banheiro contíguos): aquele famoso
quarto atrás de cuja porta, passando pelo corredor ao lado, Micòl ouvia
ressoar as vozes misturadas do irmão e do amigo Malnate, e onde, afora as
criadas quando chegavam com o carrinho de chá, durante todo o inverno
jamais me ocorreu de encontrar qualquer outro membro da família. Oh, o
inverno de 1938-39! Recordo aqueles longos meses imóveis, como
suspensos acima do tempo e do desespero (em fevereiro nevou, Micòl
demorava a regressar de Veneza), e ainda agora, há mais de vinte anos de
distância, as quatro paredes do estúdio de Alberto Finzi-Contini voltam a
ser para mim o vício, a droga tão necessária quanto inconsciente de cada dia
de então…
O certo é que eu não estava nem um pouco desesperado naquela
primeira tarde de dezembro em que tornei a atravessar de bicicleta o
Barchetto del Duca. Micòl havia partido. Entretanto eu pedalava pela
alameda de entrada, na pouca luz e em meio à névoa, como se dali a pouco
fosse reencontrar Micòl, e apenas Micòl. Estava emocionado, alegre, quase
feliz. Olhava à minha frente, buscando com o farol os locais de um passado
que me parecia remoto, mas ainda recuperável, não ainda perdido. E eis o
pequeno bosque de bambus e mais acima, à direita, a sombra incerta da casa
colonial dos Perotti, de onde uma das janelas do primeiro andar vazava uma
luz amarelada; eis que mais à frente vem ao meu encontro a fantasmática
estrutura da ponte sobre o Panfilio; e eis por fim, prenunciada pelo rangido
dos pneus no pedrisco da esplanada, a massa gigantesca da magna domus,
inacessível como um penhasco isolado, completamente escura, exceto por
uma luz branca e vivíssima que saía em fluxos de uma pequena porta térrea,
aberta evidentemente para me acolher.
Desci da bicicleta e fiquei parado por um instante, olhando a soleira
deserta. Cortada na transversal pela folha esquerda da porta que
permanecera fechada, eu podia entrever uma escada pequena e íngreme,
recoberta por uma faixa de tapete vermelho: de um vermelho vivo,
escarlate, sanguíneo. A cada degrau, uma barra de latão polida e cintilante,
como se fosse de ouro.
Depois de apoiar a bicicleta na parede externa, inclinei-me para prendê-
la com o cadeado. E ainda estava ali, na sombra, inclinado rente à porta
através da qual, além da luz, emanava uma boa quentura de aquecedor (no
escuro, não conseguia manejar bem o cadeado, de modo que já pensava em
acender um fósforo), quando de repente a voz familiar do professor
Ermanno ressoou próxima.
“O que você está fazendo? Está trancando à chave?”, dizia o professor,
parado na soleira. “Mas faz muito bem. Nunca se sabe, prudência nunca é
demais.”
Como sempre sem compreender se ele zombava veladamente de mim
com sua gentileza um tanto lamuriosa, levantei-me de pronto.
“Boa tarde”, falei, tirando o chapéu e estendendo-lhe a mão.
“Boa tarde, meu caro”, respondeu ele. “Mas pode ficar com o chapéu,
pode ficar!”
Senti sua mão pequena e gorducha insinuar-se quase inerte na minha e
retirar-se imediatamente. Estava sem chapéu, com uma velha boina
esportiva baixada até os óculos e uma echarpe de lã em torno do pescoço.
Espreitou desconfiado em direção à bicicleta.
“Você a trancou, não é?”
Respondi que não. Então ele, contrariado, insistiu que eu voltasse atrás e
fizesse o favor de trancá-la à chave, porque — repetiu — nunca se sabe.
Um furto era improvável, continuava dizendo da soleira, enquanto eu de
novo tentava introduzir entre os raios da roda posterior o gancho do
cadeado. Todavia não era possível confiar plenamente no muro externo do
jardim. Ao longo do perímetro do muro, em especial nos flancos da
Muralha degli Angeli, havia pelo menos uma dezena de pontos em que uma
escalada não seria de nenhuma dificuldade para um garoto razoavelmente
esperto. De resto, tornar a ultrapassá-lo, mesmo com o peso de uma
bicicleta a tiracolo, seria para o mesmo garoto uma operação também
bastante fácil.
Por fim, consegui acionar o cadeado. Ergui os olhos, mas na soleira não
havia ninguém.
O professor me aguardava no vestíbulo, aos pés da escada. Entrei, fechei
a porta, e somente então me dei conta de que ele me olhava perplexo,
arrependido.
“Eu me pergunto”, disse, “se não teria sido melhor você trazer a
bicicleta para dentro… Aliás, confie em mim. Da próxima vez que vier,
pode entrar com a bicicleta. Se deixá-la ali, debaixo da escada, não vai dar o
mínimo incômodo a ninguém.”
Virou-se e começou a subir. Mais que nunca encurvado, sempre com a
boina na cabeça e a echarpe ao pescoço, avançava com vagar, agarrando-se
ao corrimão. Enquanto isso falava, ou melhor, balbuciava: como se, mais
que a mim que o seguia, se dirigisse a si mesmo.
Foi Alberto quem dissera a ele que hoje eu viria visitá-lo. De modo que,
como Perotti acusara de manhã um pouco de febre (tratava-se apenas de
uma leve bronquite, mas que precisava ser tratada a fim de evitar possíveis
contágios), e como não dava para contar com Alberto, sempre
desmemoriado, distraído, nas nuvens, ele mesmo assumira a tarefa de “estar
de sentinela”. Claro, se Micòl estivesse em casa, ele não teria nenhum
motivo de preocupação, já que Micòl, sabe-se lá como fazia, sempre achava
tempo para cuidar de tudo, dedicando-se não só aos próprios estudos, mas
também ao andamento geral da casa, e até aos “fogões”, isso mesmo, pelos
quais nutria uma paixão quase igual à que lhe suscitavam os romances e as
poesias (era ela que fazia as contas nos fins de semana com Gina e
Vittorina, ela que, quando necessário, se incumbia de sciachtare as galinhas
com as próprias mãos: e isso apesar de amar tanto os bichos, coitada!). Mas
hoje Micòl não estava (Alberto me avisara que Micòl não estava em casa?),
infelizmente precisou partir para Veneza ontem à tarde. E lá ia ele me
explicando todos os motivos pelos quais, não podendo contar com Alberto
nem com seu “anjo da guarda”, e como se não bastasse diante da
indisposição de Perotti, teve de fazer as vezes também de porteiro.
Disse ainda outras coisas que não recordo. Mas me lembro de que, ao
final, voltou a falar de Micòl, dessa vez para se queixar de uma “recente
inquietude” por parte dela, devida, percebe-se, a “tantos fatores”, se bem
que… E aqui se calou de repente. Durante todo aquele tempo, não só
subimos até o topo da escada, mas também enveredamos e seguimos por
dois corredores, atravessando vários aposentos com o professor Ermanno
sempre me servindo de guia e apagando uma a uma as luzes por onde
passávamos.
Absorvido como estava pelo que ouvia a respeito de Micòl (o detalhe de
que era ela quem, com as próprias mãos, esganava os frangos na cozinha
estranhamente me fascinara), eu observava, mas quase sem ver. De resto,
passávamos por ambientes não muito diversos dos de outras casas da boa
sociedade ferrarense, judaica ou não, invadidos também estes pelo habitual
mobiliário: armários monumentais, pesados baús seiscentistas de pés com
formato leonino, mesas tipo refeitório, “savonarolas” de couro com
guarnições em bronze, poltronas frau, rebuscados lampadários de vidro ou
ferro batido pendentes no centro de tetos em caixotões, espessos tapetes de
cor tabaco, cenoura e sangue de boi, estendidos em toda parte sobre
parquetes de um brilho fosco. Ali talvez houvesse uma maior quantidade de
quadros do século XIX, paisagens e retratos, e de livros, na maior parte
encadernados e enfileirados atrás dos vidros de enormes estantes de mogno
escuro. Além disso, dos grandes radiadores da calefação se desprendia um
calor que em nossa casa meu pai qualificaria de delirante (eu tinha a
impressão de escutá-lo!): mais que de uma casa particular, um calor de hotel
luxuoso, e de fato, quase de imediato, comecei a suar e precisei tirar meu
casaco.
Ele na frente e eu atrás, atravessamos pelo menos uma dúzia de
cômodos de tamanho desigual, ora amplos como autênticas salas, ora
pequenos e até minúsculos, conectados um ao outro às vezes por corredores
nem sempre retos nem no mesmo nível. Por fim, quando chegamos à
metade de um desses corredores, o professor Ermanno se deteve diante de
uma porta.
“Aqui estamos”, disse.
Apontava a entrada com o indicador, convidativo.
Desculpou-se por não poder entrar comigo, porque — explicou —
precisava repassar certas contas das propriedades rurais; e prometeu que
dali a pouco mandaria “uma das moças com alguma coisa quente”; depois
disso, assegurando-se de que eu voltaria (continuava guardando para mim
as cópias de seus artiguinhos sobre a história veneziana, que eu não me
esquecesse!), apertou minha mão e desapareceu rapidamente no fundo do
corredor.
Entrei.
“Ah, você está aqui!”, cumprimentou-me Alberto.
Estava afundado em uma poltrona.
Levantou-se apoiando ambas as mãos nos braços, ficou de pé, deixou
sobre uma baixa mesinha de canto o livro que estava lendo, aberto e com o
dorso para cima, e por fim veio ao meu encontro.
Trajava uma calça de vicunha cinza e um de seus belos pulôveres cor de
folha seca, sapatos ingleses marrons (Dawsons autênticos, depois me disse,
que encontrara em Milão em uma lojinha perto de San Babila), uma camisa
de flanela aberta no colarinho sem gravata, e trazia um cachimbo entre os
dentes. Apertou minha mão sem excessiva cordialidade. Enquanto isso,
mirava um ponto além de meus ombros. O que estava atraindo sua atenção?
Eu não entendia.
“Me desculpe”, murmurou.
Desviou-se de mim inclinando o longo dorso de lado e, no instante em
que passava ao meu lado, me dei conta de ter deixado a dupla porta aberta
pela metade. Todavia Alberto já estava lá, pronto para fechá-la. Pegou a
maçaneta da porta externa, mas, antes de puxá-la para si, espichou a cabeça
para fora e escrutou o corredor.
“E Malnate?”, perguntei. “Ainda não chegou?”
“Não, ainda não”, respondeu enquanto voltava.
Fez que lhe passasse o chapéu, a echarpe, o casaco, e então desapareceu
no cômodo ao lado. Deste, entrevisto pela porta comunicante, me foi dado
perceber já alguma coisa: parte da cama coberta por uma colcha de lã
xadrez em vermelho e azul, de tipo esportivo, aos pés dela um pufe de
couro e, pendurado na parede lateral à estreita passagem que dava no
banheiro, também este semiaberto, um pequeno nu masculino de De Pisis
enquadrado em uma moldura simples e clara.
“Sente-se”, disse Alberto. “Volto logo.”
De fato, ele logo reapareceu, e agora, sentado à minha frente na mesma
poltrona de onde o vi levantar-se pouco antes com uma levíssima
ostentação de cansaço, talvez de tédio, me examinava com uma estranha
expressão de simpatia destacada, objetiva, que nele, como eu sabia, era
sinal do máximo interesse pelos outros de que era capaz. Sorria para mim
revelando os grandes incisivos da família materna: grandes e fortes demais
para seu rosto comprido e pálido, e mesmo para as gengivas que os
encimavam, não menos exangues que o rosto.
“Quer ouvir um pouco de música?”, propôs, acenando para um rádio-
gramofone disposto no canto do estúdio, ao lado da entrada. “É um Philips,
realmente muito bom.”
Fez que ia se levantar de novo da poltrona, mas o detive.
“Não, espere”, falei, “talvez depois.”
Olhei ao redor.
“Que discos você tem?”
“Ah, um pouco de tudo: Monteverdi, Scarlatti, Bach, Mozart,
Beethoven. Também disponho de bastante jazz, mas não se assuste:
Armstrong, Duke Ellington, Fats Waller, Benny Goodman, Charlie
Kunz…”
Continuou listando nomes e títulos, gentil e equânime como de costume,
mas com indiferença: nem mais nem menos como se me deixasse escolher
em um cardápio de pratos que ele mesmo se absteria de experimentar. Só se
animou, e moderadamente, ao me exibir as virtudes de seu Philips. Era —
ele disse — um aparelho bastante notável, devido a certos “dispositivos”
especiais que, planejados por ele, depois foram executados por um ótimo
técnico de Milão. Tais modificações influíam sobretudo na qualidade do
som, que era emitido não por um único alto-falante, mas por quatro fontes
sonoras distintas. Havia de fato o alto-falante reservado aos sons graves,
outro aos médios, o terceiro aos agudos e o quarto aos agudíssimos; de
modo que, por meio do alto-falante destinado, suponhamos, aos sons
agudíssimos, até os assovios — fez sorrindo — “saíam” à perfeição. E eu
não pensasse que estivessem dispostos todos juntos, pelo amor de Deus!
Dentro do móvel do rádio-gramofone ficavam apenas dois: o alto-falante de
sons médios e o dos agudos. O dos agudíssimos ele teve a ideia de esconder
lá ao fundo, perto da janela, ao passo que o quarto, o dos graves, foi
instalado bem debaixo do sofá onde eu estava sentado. E tudo isso com o
objetivo de se alcançar certo efeito estereofônico.
Naquele momento Dirce entrou, vestindo um uniforme de tecido azul e
avental branco, estreito na cintura, arrastando atrás de si o carrinho de chá.
Vi surgir no rosto de Alberto uma ligeira expressão de contrariedade. A
jovem também deve ter percebido.
“Foi o professor quem mandou que o trouxesse logo”, disse.
“Não se preocupe. Vamos então beber uma xícara de chá.”
De cabelos louros e encaracolados, com as bochechas avermelhadas das
vênetas pré-alpinas, a filha de Perotti preparou em silêncio e de olhos
baixos as duas xícaras e as pousou na mesinha, retirando-se em seguida. No
ar do aposento permaneceu um cheiro bom de sabonete e talco. Até o chá,
assim me pareceu, sabia levemente a ele.
Enquanto eu bebia, continuava olhando ao redor. Admirava a decoração
do quarto, tão racional, funcional, moderna, tão diferente do resto da casa, e
no entanto não conseguia entender por que me sentia invadido por uma
crescente sensação de desconforto, de opressão.
“Gosta de como arrumei meu estúdio?”, indagou Alberto.
De repente, parecia ansioso sobre meu consenso: que eu naturalmente
não lhe neguei, derramando-me em elogios à simplicidade da mobília
(pondo-me de pé, fui examinar de perto uma grande mesa de desenhista,
disposta de viés perto da janela e encimada por uma perfeita luminária
articulável, de metal) e sobretudo às luzes indiretas, que — asseverei — me
pareciam não só muito repousantes, mas também adequadíssimas ao
trabalho.
Ele me deixava falar e parecia contente.
“Foi você quem desenhou os móveis?”
“Na verdade, não. Copiei um pouco da Domus e da Casabella, e um
pouco da Studio, sabe, aquela revista inglesa… Quem os fez para mim foi
um marceneiro da Via Coperta.”
Ouvir que eu aprovava seus móveis — acrescentou — só podia enchê-lo
de satisfação. De fato, seja para descansar ou trabalhar, que necessidade
havia de se cercar de coisas feias ou quem sabe de antiguidades? Quanto a
Giampi Malnate (e ao nomeá-lo enrubesceu um tantinho), aquele vivia
insinuando que o estúdio, decorado como estava, parecia mais uma
garçonnière que um estúdio; e ainda dizia, como bom comunista, que as
coisas podem no máximo oferecer paliativos, sucedâneos, sendo ele
contrário por princípio a paliativos e sucedâneos de qualquer espécie, e
contrário até à técnica, inclusive, sempre que a técnica tivesse a pretensão
de atribuir a um gaveteiro de fechadura perfeita, só para dar um exemplo, a
solução de todos os problemas do indivíduo, inclusive aqueles morais e
políticos. De todo modo, ele — e tocou o próprio peito com um dedo —
tinha uma opinião diferente. Mesmo respeitando as convicções de Giampi
(era comunista, e como: eu não sabia?), ele achava a vida já muito confusa
e tediosa para que também o fossem os objetos e o mobiliário, esses nossos
mudos e fiéis companheiros de quarto.
Foi a primeira e última vez que o vi acalorar-se, tomar partido por certas
ideias em vez de outras. Bebemos uma segunda xícara de chá, mas agora a
conversa definhava, tanto que foi preciso recorrer à música.
Escutamos uns dois discos. Dirce voltou trazendo uma bandeja de
guloseimas. Finalmente, por volta das sete, o telefone que estava sobre uma
escrivaninha ao lado da mesa de desenho começou a tocar.
“Quer apostar que é Giampi?”, resmungou Alberto, indo atender.
Antes de erguer o fone do gancho, hesitou um instante: como o jogador
que, tendo recebido as cartas, retarda o momento de olhar a sorte de frente.
Mas era mesmo Malnate, como logo percebi.
“E então, o que você está fazendo? Não vem mais?”, dizia Alberto
decepcionado, com uma queixa quase infantil na voz.
O outro falou longamente (colado ao ouvido de Alberto, o receptor
vibrava sob o choque de sua grave e calma pronúncia lombarda). Por fim,
pude distinguir um “tchau”, e a comunicação foi interrompida.
“Ele não vem”, disse Alberto.
Voltou lento para a poltrona, deixou-se cair nela, esticou-se e bocejou.
“Parece que ficou preso na fábrica”, acrescentou, “e que ainda vai ficar
lá umas duas ou três horas. Pediu desculpas. E me disse que lhe mandasse
saudações.”
4
Mais que o genérico “até logo” que troquei com Alberto ao me despedir, foi
uma carta de Micòl, postada dias depois, que me convenceu a voltar lá.
Tratava-se de uma cartinha espirituosa, nem muito longa nem muito
curta, escrita nas quatro faces de duas folhas de papel azul que uma
caligrafia ao mesmo tempo impetuosa e leve preenchera rapidamente, sem
incertezas ou correções. Micòl iniciava com um pedido de desculpas:
viajara de repente, sem nem me dar tchau, e isso não tinha sido elegante de
sua parte, estava prontíssima a admiti-lo. Porém, antes de partir —
acrescentava —, havia tentado me ligar, mas infelizmente não me
encontrou; além disso, recomendara a Alberto que, se por acaso eu não me
fizesse vivo, ele mesmo me procurasse. Se foi assim que se passou, isso
quer dizer que ele, Alberto, manteve o juramento de me resgatar “custasse o
que custasse”? Ele, com sua famosa fleuma, sempre deixava todos os
contatos se perderem, e no entanto precisava tanto desses contatos, o
desgraçado! A carta prosseguia por mais duas páginas e meia, discorrendo
sobre a tese agora “de velas soltas rumo ao porto final”, referindo-se a
Veneza que no inverno “simplesmente fazia chorar”, e encerrando de
surpresa com a tradução em versos de um poema de Emily Dickinson.
Esta:
Nos primeiros tempos, Alberto não parava de anunciar sua iminente partida
para Milão. Depois, pouco a pouco, parou de tocar no assunto, e sua tese de
graduação acabou se tornando uma questão embaraçosa, a ser evitada com
cautela. Ele não falava sobre o tema e, evidentemente, desejava que nós
também deixássemos essa conversa de lado.
Como já mencionei, as intervenções dele em nossos debates eram raras e
sempre irrelevantes. Tomava o partido de Malnate, quanto a isso não havia
dúvida, mostrando-se alegre se ele triunfava e, ao contrário, preocupado
quando eu prenunciava uma vitória. Mas no mais das vezes se calava. No
máximo, de quando em quando se saía com alguma exclamação (“Ah, essa
é boa!…”; “Bem, em certos aspectos…”; “Um momento: vejamos com
calma…”), acrescentando às vezes uma breve risada ou um pigarro
discreto.
Até no aspecto físico ele tendia a escapar, apagar-se, desaparecer. Em
geral, Malnate e eu nos sentávamos frente a frente, no centro do cômodo,
um no sofá e o outro em uma das duas poltronas: com uma mesinha no
meio, ambos sob o foco de luz. Levantávamos apenas para ir ao pequeno
banheiro contíguo ao quarto, ou para verificar o tempo pelas vidraças da
ampla janela que dava para o parque. Alberto, por sua vez, preferia ficar à
distância, abrigado por trás da dupla barricada da escrivaninha e da
prancheta. Nas vezes que se levantava, nós o víamos andar de lá para cá
pelo quarto, na ponta dos pés, os cotovelos colados aos flancos. Substituía
continuamente os discos do rádio-gramofone, sempre atento a que o volume
do som não excedesse nossa voz, verificava os cinzeiros, esvaziando-os no
banheiro quando estavam cheios, regulava a intensidade das luzes indiretas,
perguntava em voz baixa se queríamos mais um pouco de chá, retificava a
posição de certos objetos. Enfim, tinha o ar atarefado e discreto do dono de
casa que se preocupa apenas com uma coisa: permitir que os importantes
cérebros de seus hóspedes pudessem funcionar nas melhores condições
ambientais possíveis.
Todavia, estou convencido de que o responsável por difundir no
aposento aquela sensação de vaga opressão que se respirava ali era
justamente ele, com sua organização meticulosa, suas iniciativas cuidadosas
e imprevisíveis, seus estratagemas. Bastava, sei lá, que nas pausas durante a
conversa ele passasse a ilustrar as virtudes da poltrona em que eu estava
sentado, cujo espaldar “garantia” às vértebras uma posição
“anatomicamente” mais correta e vantajosa; ou que, abrindo a pequena
bolsa de couro escuro do tabaco para cachimbo e oferecendo-a para mim,
ele me fizesse notar a variada qualidade dos cortes, a seu ver indispensável
para que se obtivesse o máximo rendimento de nossos Dunhill e GBD (um
tanto de doce, um tanto de forte, um tanto de Maryland); ou que, por
motivos nunca muito claros, que só ele conhecia, anunciasse com um vago
sorriso, erguendo o queixo em direção ao rádio-gramofone, a temporária
suspensão do som de algum dos alto-falantes: em cada uma dessas
circunstâncias, em mim sempre se punha em alerta um ataque de nervos,
sempre a ponto de explodir.
Certa noite, não consegui me conter. Claro, gritei, dirigindo-me a
Malnate: sua atitude diletante, no fundo a de um turista, lhe permitia
assumir em relação a Ferrara um tom de longanimidade e de indulgência
que eu invejava nele. Mas de que modo ele via, ele, que falava tanto em
tesouros de retidão, de bondade etc., um caso que acontecera comigo,
precisamente comigo, apenas uns dias atrás?
Eu tinha tido a bela ideia — comecei a contar — de me transferir com
papéis e livros para a sala de consulta da Biblioteca Municipal da Via delle
Scienze: um local que vira e mexe eu frequentava desde os tempos de
ginásio, e onde me sentia quase como em casa. Entre aquelas antigas
paredes, todos muito gentis comigo. Depois que me inscrevi em letras, seu
diretor, o dr. Ballola, começou a me considerar do ramo. Bastava me avistar
e logo vinha sentar-se a meu lado, para me pôr a par dos avanços em sua
pesquisa já de décadas acerca do material biográfico de Ariosto, conservado
em seu gabinete particular, com a qual ele se declarava certo de “superar
decididamente os consistentes resultados alcançados nesse campo por
Catalano”. Quanto aos vários funcionários da biblioteca, eles agiam em
relação a mim com tanta confiança e familiaridade que não só me
dispensavam de preencher as fichas para os livros, mas até me deixavam
fumar um cigarro de vez em quando.
Então, como eu dizia, naquela manhã me veio a bela ideia de passá-la na
biblioteca. No entanto, mal tive tempo de me sentar a uma das mesas da
sala de consulta e de separar o que iria usar, e um dos funcionários, um tal
Poledrelli, sujeito de uns sessenta anos, grande, jovial, famoso devorador de
espaguetes e incapaz de juntar duas palavras que não fossem em dialeto, se
aproximou de mim para me intimar que eu me retirasse, de imediato. Todo
empertigado, encolhendo a pançona e conseguindo até se exprimir em
língua italiana, o ótimo Poledrelli explicou em alto e bom som, oficial, que
o senhor diretor estabelecera ordens taxativas a esse respeito: de modo que
— repetiu — eu fizesse urgentemente o favor de me levantar e desaparecer
dali. Naquela manhã, a sala de consulta estava especialmente lotada de
alunos do segundo ciclo fundamental. A cena foi assistida num silêncio
sepulcral por não menos de uns cinquenta pares de olhos e outras tantas
orelhas. Pois bem, até por isso — continuei — não tinha sido nada
agradável me levantar, recolher minhas coisas da mesa, enfiar tudo aquilo
dentro da pasta e então alcançar, um passo após o outro, o portão
envidraçado da entrada. Tudo bem: aquele desgraçado do Poledrelli só
havia seguido as ordens. Mas que ele ficasse muito atento, ele, Malnate, se
por acaso lhe ocorresse de conhecê-lo (vai saber se esse mesmo Poledrelli
não pertencia ao círculo da professora Trotti!), ficasse muito atento a fim de
não se deixar enrolar pela falsa aparência de benevolência daquele carão de
plebeu. Dentro daquele peito vasto como um armário, ele abrigava um
coração desse tamanhinho: rico em linfa popular, sem dúvida, mas nada
confiável.
E tem mais, e tem mais! — insisti. Não era pelo menos despropositado
que ele agora viesse fazer sermões não digo a Alberto, cuja família sempre
se manteve à parte da vida social da cidade, mas a mim que, ao contrário,
nasci e cresci em um ambiente disposto até demais a abrir-se, a misturar-se
com os outros em tudo? Meu pai, voluntário de guerra, tirara a carteira do
Partido Fascista em 1919; e eu mesmo tinha pertencido ao GUF até ontem.
Portanto, como sempre fomos gente muito normal, aliás, eu diria até banal
em nossa normalidade, teria sido de fato absurdo que agora, da noite para o
dia, pretendessem de nós um comportamento fora da norma. Convocado
pela Federação a fim de ouvir pessoalmente a própria expulsão do Partido, e
depois expulso do Clube dos Comerciários como indesejável, teria sido
realmente estranho se meu pai, pobre coitado, opusesse a tal tratamento um
rosto menos angustiado e abatido que aquele que me era familiar. E meu
irmão Ernesto, que, se quisesse entrar na universidade, precisaria emigrar
para a França, inscrevendo-se no Politécnico de Grenoble? E Fanny, minha
irmã de apenas treze anos, obrigada a continuar o ginásio na escola israelita
da Via Vignatagliata? Arrancados bruscamente de seus colegas de escola,
dos amigos de infância, por acaso se esperava também da parte deles um
comportamento de exceção? Esqueça! Uma das formas mais odiosas de
antissemitismo era justamente esta: lamentar que os judeus não fossem
suficientemente como os outros e depois, em sentido oposto, constatada sua
assimilação quase total ao ambiente comum, lamentar que fossem tal qual
os outros, nem um pouco diferentes da média comum.
Eu me deixara transportar pela raiva, desviando-me bastante dos termos
do debate, e Malnate, que continuara me ouvindo com atenção, ao final fez
que eu o notasse. Antissemita, ele?, murmurou: era a primeira vez,
francamente, que tinha de escutar uma acusação semelhante! Ainda
alterado, eu já estava pronto a rebater e a dobrar a carga. Mas naquele
instante, enquanto passava por trás das costas de meu adversário com a
deselegante rapidez de um pássaro assustado, Alberto me lançou uma
mirada suplicante. “Chega, por favor!”, dizia seu olhar. Que ele, às
escondidas do amigo do peito, apelasse de modo inesperado ao que havia de
mais secreto entre nós dois me atingiu como um evento extraordinário. Não
repliquei, não disse mais nada. No mesmo instante, as primeiras notas de
um quarteto de Beethoven interpretado pelos Busch se elevaram na
atmosfera esfumaçada do quarto, selando minha vitória.
Mas aquela noite não foi importante apenas por isso. Por volta das oito,
começou a chover com tal violência que Alberto, depois de uma rápida
consulta telefônica em linguagem cifrada, talvez com a mãe, propôs que
ficássemos para jantar.
Malnate logo disse que aceitava de bom grado. Quase sempre jantava no
Giovanni — disse —, “sozinho feito um cão”. Nem podia acreditar que
passaria uma noite “em família”.
Também aceitei. Mas perguntei se poderia ligar para casa.
“Mas é claro!”, exclamou Alberto.
Sentei-me onde habitualmente ele se sentava, atrás da escrivaninha, e
disquei o número. Enquanto esperava, olhei de lado, através dos vidros da
janela riscados de chuva. No escuro denso, as massas das árvores mal se
distinguiam. Para além do negro intervalo do parque, sabe-se lá onde,
bruxuleava uma fraca luz.
Por fim, a voz lamentosa de meu pai atendeu.
“Ah, é você?”, disse. “Já estávamos ficando preocupados. De onde você
está ligando?”
“Vou jantar fora”, respondi.
“Com esta chuva!”
“Pois é.”
“Ainda está nos Finzi-Contini?”
“Estou.”
“Quando voltar para casa, não importa a hora, venha falar comigo um
minuto, combinado? De todo modo, não consigo pegar no sono, você
sabe…”
Deitei o fone no gancho e ergui os olhos. Alberto me observava.
“Feito?”, perguntou.
“Feito.”
Saímos os três para o corredor, atravessamos várias salas e saletas,
descemos por uma escadaria em cujos pés, de casaca e luvas brancas,
Perotti nos aguardava, e de lá passamos diretamente à sala de jantar.
O resto da família já estava lá. O professor Ermanno, dona Olga, a sra.
Regina e um dos tios de Veneza, o tisiólogo, que, ao ver Alberto entrar,
levantou-se e foi ao seu encontro, beijou-o em ambas as faces e então,
enquanto lhe baixava distraidamente com o dedo a borda de uma pálpebra
inferior, começou a lhe contar por que se encontrava ali. Precisara ir a
Bolonha para uma consulta — dizia — e então, no caminho de volta,
pensou em parar e jantar com eles, entre um trem e outro. Quando
entramos, o professor Ermanno, a esposa e o cunhado estavam sentados
diante da lareira acesa, com Jor espichado a seus pés em todo o seu
comprimento. A sra. Regina, por sua vez, estava sentada à mesa, bem
debaixo do lampadário central.
É inevitável que a lembrança de meu primeiro jantar na casa dos Finzi-
Contini (ainda estávamos em janeiro, acho) tenda a confundir-se um pouco
com lembranças dos muitos outros jantares de que participei ao longo do
mesmo inverno na magna domus. Entretanto, recordo com estranha
precisão o que comemos naquela noite, ou seja: um caldo de arroz com
iscas de fígado, polpettone de peru com geleia, língua salgada com
acompanhamento de azeitonas pretas e talos de espinafre ao vinagre, uma
torta de chocolate, frutas frescas e secas, nozes, avelã, passas e pinoli.
Recordo ainda que, tão logo nos sentamos à mesa, Alberto tomou a
iniciativa de contar a história de minha recente exclusão da Biblioteca
Municipal, e que uma vez mais me espantei com a pouca surpresa que tal
notícia suscitou nos quatro idosos. De fato, os sucessivos comentários por
parte deles sobre a situação geral, e também sobre a dupla Ballola-
Poledrelli, invocada de tanto em tanto durante toda a refeição, não foram
nem um pouco amargos, mas, como sempre, elegantemente sarcásticos e
quase alegres. E alegre, decididamente alegre e satisfeito, foi o tom de voz
com que mais tarde o professor Ermanno, tomando-me pelo braço, propôs
que eu aproveitasse a partir de então, com total liberdade, como e quando
quisesse, os quase vinte mil livros de sua casa, um número notável dos
quais — me disse — relativo à literatura italiana de meados e final do
século XIX.
Mas o que mais me espantou desde aquela primeira noite foi sem dúvida
a sala de jantar em si, com seus móveis de madeira avermelhada, em estilo
floreal, sua ampla lareira de boca arqueada e sinuosa, quase humana, suas
paredes forradas de couro, exceto aquela, inteiramente envidraçada, que
emoldurava a escura e silenciosa tempestade do parque como a escotilha do
Nautilus: tão íntima, tão protegida, quase diria tão sepultada, mas acima de
tudo tão condizente com o que eu era então, agora entendo!, a abrigar
aquela espécie de brasa preguiçosa que é tantas vezes o coração dos jovens.
Ao atravessarmos a soleira, tanto eu quanto Malnate fomos recebidos
com grande amabilidade, não só pelo professor Ermanno, gentil, jovial e
animado como sempre, mas até por dona Olga. Foi ela quem distribuiu os
lugares à mesa. Malnate sentou-se à sua direita; eu, na outra ponta da mesa,
à direita de seu marido; ao irmão Giulio coube o lugar à sua esquerda, entre
ela e a velha mãe. Mesmo esta última, bonita nas faces rosadas, nos alvos
cabelos de seda mais cheios e luminosos que nunca, mesmo ela de vez em
quando olhava ao redor com ar benigno e divertido.
O lugar à minha frente, cheio de pratos, taças e talheres, parecia à espera
de um sétimo convidado. Enquanto Perotti ainda estava circulando com a
sopeira do caldo de arroz, perguntei em voz baixa ao professor Ermanno a
quem estava reservada a cadeira à sua esquerda. E ele, também em voz
baixa, me respondeu que aquela cadeira “presumivelmente” não estava
reservada a mais ninguém (conferiu o horário em seu grande Omega de
pulso, balançou a cabeça e suspirou), sendo de fato a cadeira normalmente
ocupada por Micòl: “minha Micòl”, como ele disse, para ser exato.
6
O professor Ermanno não vendeu gato por lebre. Entre os quase vinte mil
livros da casa, a imensa maioria de assunto científico, histórico ou
variamente erudito (grande parte destes últimos em alemão), havia de
verdade muitas centenas referentes à literatura da Nova Itália. Pode-se dizer
que não faltava nada do que saíra do ambiente literário carducciano de fins
do século, nas décadas em que Carducci lecionou em Bolonha. Havia os
volumes em verso e prosa não só do Mestre, mas também os de Panzacchi,
Severino Ferrari, Lorenzo Stecchetti, Ugo Brilli, Guido Mazzoni, do jovem
Pascoli, do jovem Panzini, do novíssimo Valgimigli: em geral primeiras
edições, todas trazendo dedicatórias autógrafas à baronesa Josette Artom di
Susegana. Reunidos em três estantes isoladas e envidraçadas que ocupavam
toda uma parede do vasto salão do primeiro andar, contíguo ao escritório
pessoal do professor Ermanno, diligentemente catalogados, não há dúvida
de que esses livros representavam em seu conjunto uma coleção que
qualquer biblioteca pública, inclusive a do Archiginnasio de Bolonha,
almejaria poder ostentar. Do acervo não estavam ausentes nem mesmo os
quase inencontráveis livrinhos de prosa lírica de Francesco Acri, o famoso
tradutor de Platão, que até ali eu só conhecia como tradutor: não tão
“santo”, pois, como nos garantira no quinto ano de ginásio o professor
Meldolesi (porque ele também, Meldolesi, fora aluno de Acri), já que suas
dedicatórias à avó de Alberto e Micòl se mostravam dentre todas talvez as
mais galantes, as mais masculinamente cônscias da altiva beleza a que se
dirigiam.
Podendo dispor de toda uma biblioteca especializada, e além disso
estranhamente ávido por estar ali todas as manhãs, na grande, aquecida e
silenciosa sala que recebia a luz vinda de três altos janelões adornados com
sanefas de seda branca com linhas vermelhas verticais, em cujo centro,
recoberta por um forro de cor cinza, se alongava uma mesa de bilhar, nos
dois meses e meio que se seguiram consegui levar a termo minha tese sobre
Panzacchi. E talvez eu tivesse podido terminá-la até antes, quem sabe, se de
fato quisesse. Mas era isso mesmo que eu buscava? Ou buscava sobretudo
estender, pelo maior tempo possível, o direito de me apresentar na casa
Finzi-Contini também nas manhãs? O certo é que, em meados de março
(enquanto isso, chegara a notícia da formatura de Micòl: aprovada com nota
máxima), eu continuava indolentemente apegado àquele meu pobre
privilégio de uso também matutino da casa de onde ela insistia em manter-
se distante. Agora estávamos a poucos dias da Páscoa católica, que naquele
ano coincidiu mais ou menos com o Pessach, a Páscoa judaica. Embora a
primavera já estivesse às portas, uma semana antes nevara com
extraordinária abundância, trazendo de volta um frio intenso. Quase parecia
que o inverno não quisesse ir embora. E eu também, o coração habitado por
um obscuro e misterioso lago de medo, me agarrava à pequena escrivaninha
que o professor Ermanno, desde o último janeiro, mandara dispor para mim
debaixo da janela central do salão de bilhar, como se, fazendo isso, me
fosse permitido frear a irrefreável progressão do tempo. Eu me levantava,
aproximava-me da janela, olhava o parque lá embaixo. Sepultado por um
manto de neve de meio metro, todo branco, o Barchetto del Duca surgia
transformado em uma paisagem de saga nórdica. Às vezes, eu me
surpreendia esperando justamente isto: que a neve e o gelo nunca mais
derretessem, que durassem pela eternidade.
Por dois meses e meio, meus dias foram mais ou menos iguais. Pontual
como um funcionário, saía de casa no frio das oito e meia quase sempre de
bicicleta, mas às vezes também a pé. Depois de no máximo vinte minutos,
lá estava eu, tocando a campainha do portão nos fundos da avenida Ercole I
d'Este, para depois atravessar o parque que, nos primeiros dias de fevereiro,
era invadido pelo perfume delicado das flores amarelas do calicanto. Às
nove, já estava sentado à mesa do salão de bilhar, onde permanecia até a
uma da tarde e para onde retornava por volta das três. Mais tarde, lá pelas
seis, passava no estúdio de Alberto com a certeza de que encontraria
Malnate lá. Por fim, como já disse, ambos éramos convidados para o jantar
com frequência. Aliás, esse costume de jantar fora se tornara tão normal
para mim que já nem me telefonavam de casa. Se tanto, ao sair de casa eu
dizia a minha mãe: “Acho que esta noite vou jantar lá”. Lá: e nem precisava
acrescentar mais nada.
Trabalhava por horas e horas sem que ninguém aparecesse ali, exceto
Perotti, que por volta das onze me trazia em uma bandejinha de prata uma
xícara de café. Também isso, o café das onze, transformou-se quase
imediatamente em um ritual cotidiano, um hábito adquirido sobre o qual
não valia a pena que nem eu nem ele gastássemos uma única palavra. O que
Perotti de vez em quando se permitia falar, enquanto aguardava que eu
terminasse de sorver o café, era sobre o “andamento” da casa, a seu ver
gravemente comprometido pela ausência demasiado prolongada da
“senhorita”, que tudo bem, claro, havia de se tornar professora, se bem
que… (e aquele “se bem que”, acompanhado de um trejeito dubitativo,
podia aludir a muitas coisas: à nenhuma necessidade de que os patrões,
sorte deles, tinham de ganhar a vida, assim como às leis raciais, que em
todo caso tornariam nossos diplomas de formatura meros pedaços de papel,
sem qualquer serventia prática)… mas pelo menos umas escapadas, já que
sem ela a casa estava indo rapidamente “para as cucuias”, umas escapadas
rápidas, quem sabe uma semana sim e outra não, ela deveria poder dar.
Comigo, Perotti sempre achava um jeito de se queixar dos patrões. Em sinal
de desconfiança e desaprovação, apertava os lábios, piscava o olho,
balançava a cabeça. Quando se referia a dona Olga, chegava a tocar a testa
com o áspero indicador. Eu não dava corda a ele, naturalmente, firmíssimo
em não aceitar aqueles seus recorrentes convites a uma cumplicidade servil
que, além de me repugnar, me feria. Mas em pouco tempo, diante de meus
silêncios e dos sorrisos frios, só restava a Perotti ir embora e me deixar mais
uma vez sozinho.
Certo dia, em vez dele, quem se apresentou foi sua filha mais nova,
Dirce. Também ela aguardou, ao lado da escrivaninha, que eu terminasse de
tomar o café. Eu bebia e a olhava de soslaio.
“Como é que você se chama?”, perguntei, devolvendo-lhe a xícara vazia,
com o coração que começara a disparar.
“Dirce”, sorriu, e seu rosto se cobriu de vermelho.
Vestia o costumeiro avental de um grosso tecido azul, curiosamente
cheirando a nursery. Então escapou, evitando corresponder ao meu olhar
que buscava cruzar com o dela. No instante seguinte, eu já me
envergonhava pelo que havia acontecido (mas o que havia acontecido,
afinal?), como se se tratasse da mais vil e mais sórdida traição.
O único da família que de vez em quando aparecia era o professor
Ermanno. Com extrema cautela, abria a porta do estúdio lá no fundo e
então, na ponta dos pés, avançava pelo salão de modo que muitas vezes eu
só percebia sua presença quando ele já estava ali, de lado, inclinado
respeitosamente sobre os papéis e os livros espalhados à minha frente.
“Como vai?”, perguntava satisfeito. “Parece-me que estamos indo a
velas soltas!”
Eu me preparava para levantar.
“Não, não, pode continuar trabalhando”, exclamava. “Já estou de saída.”
Na maioria das vezes, ele não ficava mais que cinco minutos, e nesse
intervalo sempre achava um meio de me manifestar toda a simpatia e toda a
consideração que minha tenacidade no trabalho lhe inspiravam. Ele me
observava com olhos acesos e brilhantes: como se de mim, de meu futuro
de literato e estudioso, ele esperasse quem sabe o quê, como se contasse
comigo para algum desígnio secreto seu, que transcendia não apenas a ele,
mas também a mim mesmo… E, nesse sentido, lembro-me de que essa
atitude dele em relação a mim, embora me lisonjeasse, me fazia sofrer um
pouco. Por que ele não pretendia o mesmo de Alberto — eu me perguntava
—, que aliás era seu filho? Por qual motivo aceitava, sem protestar, que ele
houvesse renunciado a se diplomar? E Micòl? Em Veneza, Micòl estava
fazendo exatamente a mesma coisa que eu fazia aqui: terminando de
escrever a tese. No entanto, ele nunca mencionava o nome dela, Micòl, ou,
se mencionava, era sempre com um suspiro. Era como se dissesse: “Ela é
uma garota, e é melhor que as mulheres pensem na casa, e não em
literatura!”. Mas eu devia mesmo acreditar nele?
Certa manhã, deteve-se e conversou mais demoradamente que o
habitual. Depois de alguns rodeios, tornou a falar das cartas de Carducci e
de seus “trabalhinhos” relativos a Veneza: tudo coisa — falou, acenando ao
seu gabinete, atrás de minhas costas — guardada por ele “bem ali”.
Enquanto isso sorria misteriosamente, com o rosto imobilizado em uma
expressão astuta e convidativa. Era claro: queria conduzir-me “bem ali”, e
ao mesmo tempo queria que fosse eu a lhe propor que me conduzisse.
Apressei-me a contentá-lo.
Assim nos transferimos para o gabinete, que era uma sala pouco menos
ampla que o salão de bilhar, mas reduzida, ou melhor, atravancada por um
incrível amontoado de objetos díspares.
Para começar, aqui também havia muitíssimos livros. Os de assunto
literário misturados com os de ciências (matemática, física, economia,
agricultura, medicina, astronomia etc.); os de história nacional, ferrarense
ou veneziana com os de “antiguidades judaicas”: os volumes lotavam sem
ordem, ao acaso, as mesmas estantes envidraçadas, e ocupavam boa parte
da grande mesa de nogueira atrás da qual, sentado, provavelmente o
professor Ermanno não conseguiria despontar senão com o topo da boina,
amontoando-se em pilhas vacilantes sobre as cadeiras e até no chão, tomado
aqui e ali por eles. Além disso, um grande mapa, um atril, um microscópio,
meia dúzia de barômetros, um cofre de aço pintado de vermelho-escuro,
uma cândida maca de ambulatório médico, várias ampulhetas de diversas
dimensões, um tímpano de latão, um pequeno piano vertical alemão
encimado por dois metrônomos fechados em seus estojos piramidais e
muitos outros objetos além desses, de duvidosa utilidade e dos quais não me
lembro, conferiam ao ambiente um ar de gabinete faustiano do qual ele, o
professor Ermanno, foi o primeiro a sorrir e a desculpar-se, como se tudo
aquilo fosse uma fraqueza pessoal sua, particular: quase como um resíduo
de bizarrices juvenis. Mas ia me esquecendo de dizer que aqui, à diferença
do que ocorria em todos os cômodos da casa, geralmente sobrecarregados
de quadros, só havia um: um enorme retrato de Lenbach em tamanho
natural, assomando como um retábulo da parede atrás da mesa. A
esplêndida dama loura figurada nele, em postura ereta, ombros nus, um
leque na mão enluvada, com a cauda sedosa do vestido branco arrematada à
frente, a ressaltar a esbelteza das pernas e a plenitude das formas, só podia
ser, obviamente, a baronesa Josette Artom de Susegana. Que fronte de
mármore, que olhos, que lábios desdenhosos, que busto! Realmente parecia
uma rainha. Das inúmeras coisas presentes no gabinete, o retrato da mãe foi
o único objeto do qual o professor Ermanno não sorriu: nem naquela manhã
nem nunca.
De todo modo, naquela mesma manhã fui finalmente presenteado com
dois opúsculos venezianos. Em um deles — explicou-me o professor —
estavam reunidas e traduzidas todas as inscrições do cemitério israelita do
Lido. Já o segundo tratava de uma poeta judia que vivera em Veneza na
primeira metade do século XVII, tão famosa em sua época quanto hoje,
“infelizmente”, caída em esquecimento. Chamava-se Sara Enriquez (ou
Enriques) Avigdòr. Em sua casa no Gueto Velho, ela mantivera aberto por
algumas décadas um importante salão literário, assiduamente frequentado
pelo eruditíssimo rabino ferrarense-veneziano Leone da Modena e por
vários expoentes literários do período, e não só italianos. Escrevera uma
quantidade considerável de “ótimos” sonetos que ainda hoje esperavam a
pessoa capaz de reivindicar sua beleza. Durante mais de quatro anos,
manteve uma brilhante correspondência epistolar com o célebre Ansaldo
Cebà, nobre genovês autor de um poema épico sobre a rainha Ester, o qual
metera na cabeça que a converteria ao catolicismo, mas depois, vendo que
toda insistência era inútil, se viu por fim obrigado a renunciar a isso. Em
resumo, uma grande mulher: honra e glória do judaísmo italiano em plena
Contrarreforma, e em certa medida também da “família” — acrescentou o
professor Ermanno enquanto se sentava para me escrever duas linhas de
dedicatória —, uma vez que parecia comprovado que sua esposa, por parte
de mãe, descendia justamente dela.
Levantou-se, circundou a mesa, pegou-me pelo braço e conduziu-me até
o vão da janela.
No entanto havia algo — continuou, baixando a voz como se temesse
que alguém pudesse escutar — de que ele se sentia obrigado a me advertir.
Se no futuro acontecesse de eu também me interessar por essa Sara
Enriquez, ou Enriques, Avigdòr (e o assunto era desses que mereciam um
estudo bem mais acurado e aprofundado do que ele foi capaz de fazer na
juventude), a certa altura eu toparia fatalmente com algumas vozes
contrárias… discordantes… enfim, com determinados textos de literatos de
quinta categoria, na maior parte contemporâneos da poeta (panfletos
transbordantes de inveja e antissemitismo), que tendiam a insinuar que nem
todos os sonetos em circulação com a assinatura dela, e nem todas as cartas
escritas por ela a Cebà, eram… hum… de seu próprio punho. Pois bem, ao
redigir sua biografia, ele certamente não pôde ignorar a existência de tais
boatos e, de fato, como eu veria, as registrara de modo pontual. Em todo
caso…
Interrompeu a fim de perscrutar meu rosto, incerto sobre minhas
reações.
Em todo caso — retomou —, se eu também, “no futuro”, pensasse…
hum… me decidisse a tentar uma reavaliação… uma revisão… ele desde já
me aconselhava a não dar excessivo crédito a certas maledicências talvez
pitorescas, talvez saborosas, mas no fundo fora de propósito. No fim das
contas, o que deve fazer um bom historiador? Propor-se, sim, como ideal, o
objetivo da verdade, mas sem jamais perder pelo caminho o sentido da
oportunidade e da justiça. Eu não estava de acordo?
Inclinei a cabeça em sinal de concordância, e ele, aliviado, bateu
levemente em meu ombro com a palma da mão.
Feito isso, afastou-se de mim, atravessou encurvado o gabinete,
inclinou-se para o cofre e o abriu, extraindo dele um estojo forrado de
veludo azul.
Virou-se, regressou todo sorridente à janela e, antes mesmo de abrir o
estojo, disse que ele adivinhava o que eu havia adivinhado: ali dentro
estavam de fato conservadas as famosas cartas de Carducci. Eram quinze: e
nem todas — acrescentou — eu julgaria de grande interesse, já que cinco
delas tratavam unicamente de certo embutido para molhos, “feito em nossos
campos”, que o poeta, presenteado com ele, manifestara apreciar
“altamente”. Apesar disso, havia ali uma que seguramente me
surpreenderia. Tratava-se de uma carta do outono de 1875, ou seja, escrita
quando já se delineava no horizonte a crise da direita histórica. No outono
de 1875, a posição política de Carducci se mostrava a seguinte: como
democrata, como republicano, como revolucionário, afirmava não poder
alinhar-se senão com a esquerda de Agostino Depretis. Por outro lado, o
“hirto vinhateiro de Stradella”[23] e as “turbas” de seus amigos lhe pareciam
gente vulgar, “homúnculos”. Eles nunca seriam capazes de reconduzir a
Itália à sua missão, de fazer da Itália uma grande nação, digna dos antigos
Pais…
Continuamos a conversa até a hora do almoço. E, feitos todos os
cálculos, o resultado final foi o seguinte: a partir daquela manhã, a porta de
comunicação entre a sala de bilhar e o gabinete contíguo, em vez de sempre
fechada, ficou frequentemente aberta. Cada qual continuou passando a
maior parte do tempo em seus respectivos aposentos. Mas nos
encontrávamos muito mais vezes que antes, o professor Ermanno vindo me
ver, e eu indo encontrá-lo. Quando a porta estava aberta, até trocávamos
umas frases por ela: “Que horas são?”, “Como está indo o trabalho?”, e por
aí vai. Poucos anos depois, durante a primavera de 1943, na cadeia, as
frases que eu trocaria com um vizinho de cela desconhecido, gritando-lhe
no alto pelas frestas do respiradouro, seriam desse mesmo tipo: lançadas
assim, mais pela necessidade de ouvir a própria voz, de se sentir vivo.
7
Dentro do espelho oval posto acima do lavabo, eu via minha cara refletida.
Examinava-a atentamente, como se não fosse minha, como se
pertencesse a outra pessoa. Embora a tivesse mergulhado várias vezes na
água fria, ainda se mostrava toda vermelha, vermelha impizàda — como
Micòl tinha dito —, com manchas mais escuras entre o nariz e o lábio
superior, em cima e ao redor das maçãs do rosto. Perscrutava com
minuciosa objetividade aquele grande rosto iluminado, ali, diante de mim,
atraído pouco a pouco pelo pulsar das artérias sob a pele da fronte e das
têmporas, pela rede cerrada de pequenas veias escarlate que, arregalando os
olhos, parecia apertar em uma espécie de assédio os discos azuis das íris,
por alguns pelos da barba mais densos no queixo e ao longo das
mandíbulas, por uma minúscula espinha quase imperceptível… Não
pensava em nada. Através da fina parede divisória, ouvia Micòl falando ao
telefone. Com quem? Com o pessoal da cozinha, era de supor, para avisar
que lhe trouxessem a sopa. Bem. A próxima despedida decerto seria bem
menos embaraçosa. Para ambos.
Entrei quando ela estava pondo o fone no gancho, e mais uma vez, não
sem espanto, compreendi que ela não tinha nada contra mim.
Espichou-se da cama para encher uma xícara de chá.
“Agora, por favor, sente-se”, falou, “e beba alguma coisa.”
Obedeci em silêncio. Bebia devagar, em sorvos lentos, sem levantar os
olhos. Deitado às minhas costas no parquete, Jor dormia. Seu pesado ronco
de mendigo bêbado enchia o quarto.
Pousei a xícara.
E foi então que Micòl começou a falar. Sem se referir minimamente ao
que acontecera pouco antes, iniciou dizendo como havia muito tempo,
talvez muito mais tempo do que eu pudesse imaginar, ela se dispusera a
conversar francamente comigo sobre a situação que aos poucos se criara
entre nós. Eu não me lembrava mais — prosseguiu — do outubro passado,
quando, para não nos molharmos, fomos parar no depósito e ali nos
sentamos dentro do coche? Pois bem, foi justamente a partir daquela vez lá
que ela se deu conta do mau rumo que nossas relações estavam tomando.
Ela entendera de imediato que entre nós nascera algo de falso, de errado, de
muito perigoso: e a culpa maior tinha sido dela, estava dispostíssima a
admitir, se a encosta continuou desmoronando ainda por um bom tempo
pela ribanceira. O que ela deveria ter feito? Simples, chamar-me de lado e
falar francamente comigo logo, sem demora. Mas que nada: em vez disso,
como uma verdadeira covarde, tomou o partido da pior solução, e fugiu.
Ah, sim, cortar a corda é fácil. Mas a que leva isso, quase sempre,
sobretudo quando se trata de “situações mórbidas”? Em noventa e nove por
cento das vezes a brasa continua viva sob as cinzas, com o esplêndido
resultado de que mais tarde, quando os dois se reveem, conversar
tranquilamente como dois amigos se torna dificílimo, praticamente
impossível.
Eu também entendia — intervim naquele ponto —, e no fim das contas
era muito grato por sua sinceridade.
Mas havia um fato que eu gostaria que ela me explicasse. Ela partira de
um dia para outro sem sequer se despedir de mim, e depois disso, assim que
voltou de Veneza, teve uma só preocupação: garantir que eu não parasse de
visitar seu irmão Alberto.
“Por que isso?”, perguntei. “Se você queria mesmo, como acaba de
dizer, que eu a esquecesse (desculpe o fraseado, não ria na minha cara!),
não podia me deixar em paz completamente? Era difícil, claro. Mas não
seria impossível que por falta de alimento, digamos, a brasa aos poucos
fosse se apagando de todo, por si.”
Ela me olhou sem dissimular um movimento de surpresa, talvez
espantada de que eu achasse forças para passar ao contra-ataque, ainda que,
feito o balanço final, com tão pouca convicção.
Eu não estava errado — assentiu então, pensativa, sacudindo a cabeça
—, não estava errado de modo nenhum. Seja como for, pedia-me que
acreditasse nela. Ao agir da maneira como agiu, não teve a mínima intenção
de pescar em águas turvas. Prezava minha amizade, aí está, de um modo até
exagerado demais. Além disso, falando sério, mais que em mim ela pensara
em Alberto, que, exceto pela presença de Giampiero Malnate, ficara aqui
sem ter ninguém com quem conversar de vez em quando. Pobre Alberto!,
suspirou. Eu não tinha mesmo percebido, frequentando-o nos meses
passados, como ele necessitava de companhia? Para alguém que, como ele,
já se habituara a passar os invernos em Milão, com teatros, cinema e todo o
resto a seu dispor, a perspectiva de permanecer bloqueado aqui, em Ferrara,
fechado em casa por meses e meses, e além disso sem ter quase nada para
fazer, não era nada alegre, eu tinha de convir. Pobre Alberto!, repetiu. Ela,
em comparação, era muito mais forte, muito mais autônoma: capaz, se
necessário, de suportar as solidões mais ferozes. De resto, tinha a impressão
de já ter dito a mim: em matéria de desolação, Veneza no inverno talvez
fosse ainda pior que Ferrara, e a casa dos tios não era menos triste que todo
o conjunto.
“Esta aqui não é nem um pouco triste”, falei, comovendo-me de repente.
“Você gosta?”, perguntou animada. “Então vou lhe confessar uma coisa
(mas depois não venha me recriminar, hein, não venha me acusar de
hipocrisia, ou até de ambiguidade!). Desejava muito que você a
conhecesse.”
“E por quê?”
“Isso eu não sei. Realmente não saberia lhe dizer por quê. Suponho que
pela mesma razão pela qual, quando era menina, no templo, tinha vontade
de puxá-lo para debaixo do taled do papai… Ah, se eu pudesse! Ainda o
vejo lá, debaixo do taled do seu pai, no banco em frente ao nosso. Que pena
você me dava! É absurdo, eu sei: no entanto, quando o espiava, sentia a
mesma pena como se você fosse um órfão, um menino sem pai nem mãe.”
Calou-se por uns instantes, os olhos fixos no teto. Então, apoiando-se
com o cotovelo em um travesseiro, retomou a fala — mas agora séria,
grave.
Disse que lamentava me magoar, que lamentava muitíssimo. Por outro
lado, era preciso que eu me convencesse: não era absolutamente o caso de
estragarmos, como estávamos arriscando fazer, as belas lembranças de
infância que tínhamos em comum. Começarmos a fazer amor, nós dois! Eu
achava realmente possível?
Indaguei por que lhe parecia tão impossível.
Por infinitas razões — respondeu —, mas sobretudo porque a ideia de
fazer amor comigo a desconcertava, embaraçava: tal como se imaginasse
fazê-lo com um irmão, sim, com Alberto. É verdade, quando menina ela
tivera uma “quedinha” por mim; e quem sabe era justamente por isso que,
agora, se sentia tão bloqueada em relação a mim. Eu… eu estava “ao lado”
dela, entendia?, não “de frente”, ao passo que o amor (assim ao menos ela o
imaginava) era coisa para gente decidida a oprimir-se reciprocamente, um
esporte cruel, feroz, bem mais cruel e feroz que o tênis!, a ser praticado sem
exclusão de golpes e sem jamais se importar, para mitigá-lo, com bondade
de alma e honestidade de propósitos.
Maudit soit à jamais le rêveur inutile
Qui voulut le premier, dans sa stupidité,
S'éprenant d'un problème insoluble et stérile
Aux choses de l'amour mêler l'honnêteté![24]
Mas o pior só começou uns vinte dias depois, quando voltei de uma viagem
à França que fiz na segunda quinzena de abril.
Tinha ido a Grenoble, na França, por um motivo muito preciso. As
poucas centenas de liras mensais que podíamos mandar pelos meios legais a
meu irmão, Ernesto, só davam para pagar, como ele mesmo repetia
continuamente em suas cartas, o aluguel do quarto onde dormia, na Place
Vaucanson. Portanto, era urgente abastecê-lo com mais dinheiro. E foi meu
pai, em uma noite em que voltei para casa mais tarde que de costume (ele
me esperara acordado só para falar comigo), quem insistiu para que eu fosse
lá, levar esse adicional pessoalmente. Por que eu não aproveitava a ocasião?
Respirar umas lufadas de ar diferente “deste aqui”, ver um pouco o mundo,
me distrair: era isso que eu deveria fazer! Seria de grande proveito para
mim, tanto físico quanto moral.
E assim viajei. Parei duas horas em Turim, quatro em Chambéry, e por
fim cheguei a Grenoble. Na pensão que Ernesto frequentava para as
refeições, logo fiquei conhecendo vários estudantes italianos, todos nas
mesmíssimas condições de meu irmão e todos inscritos no Politécnico: um
Levi de Turim, um Segre de Saluzzo, um Sorani de Trieste, um Cantoni de
Mântua, um Castelnuovo de Florença, uma jovem Pincherle de Roma. Não
me liguei a ninguém. Durante os doze dias que passei ali, concentrei a
maior parte de meu tempo na Biblioteca Municipal, folheando manuscritos
de Stendhal. Fazia frio em Grenoble, chovia. As montanhas em frente ao
casario raramente deixavam entrever seus picos escondidos pela névoa e
pelas nuvens, ao passo que, à noite, testes de blecaute total desencorajavam
a sair. Ferrara me parecia muito distante: como se eu não fosse voltar nunca
mais. E Micòl? Desde que eu tinha partido, trazia constantemente nos
ouvidos a voz dela, a voz de quando me dissera: “Por que você faz assim?
Seja como for, é inútil”. Mas um dia aconteceu algo. Lendo por acaso em
um dos cadernos stendhalianos estas palavras isoladas: All lost, nothing
lost, de repente, como por milagre, me senti livre e curado. Então peguei
um cartão-postal, escrevi nele a linha de Stendhal e o enviei para ela, Micòl,
tal e qual, sem acrescentar nada, nem sequer a assinatura: que ela pensasse
o que bem quisesse. Tudo perdido, nada perdido. Como era verdade!, dizia
a mim mesmo. E respirava.
Era uma ilusão. Nos primeiros dias de maio, voltando à Itália, encontrei
a primavera em pleno desabrochar, os campos entre Alessandria e Piacenza
amplamente manchados de amarelo, as estradas rurais da Emília-Romanha
percorridas por garotas em bicicletas, de pernas e braços nus, as grandes
árvores das muralhas de Ferrara carregadas de folhas. Havia chegado em
um domingo, por volta do meio-dia. Assim que entrei em casa, tomei um
banho, almocei com a família e respondi com suficiente paciência a uma
lista infindável de perguntas. Mas o repentino frenesi que me tomou no
mesmo instante em que avistei, do trem, as torres e os campanários de
Ferrara despontarem no horizonte não me consentiu, por fim, outras
delongas. Às duas e meia eu já partia de bicicleta pela Muralha degli
Angeli, os olhos fixos na imóvel germinação vegetal do Barchetto del Duca
pouco a pouco mais próximo, à esquerda. Cada coisa voltara a ser como
antes, quase como se eu tivesse passado os últimos quinze dias dormindo.
Lá embaixo, na quadra de tênis, Micòl estava jogando uma partida com
um jovem de calças brancas, no qual não me foi difícil identificar Malnate;
e logo fui notado e reconhecido por eles, já que os dois, parando de jogar,
começaram a agitar as raquetes levantadas em grandes acenos. Mas não
estavam sós, Alberto também estava lá. Emergindo além da orla da
folhagem, eu o vi acorrer ao meio da quadra, olhar para mim e então levar
as mãos à boca. Assoviou duas, três vezes. Podia-se saber o que eu estava
fazendo no alto da Muralha?, cada um deles parecia, a seu modo, perguntar.
E por que diabos eu não entrava logo no jardim, que cara mais estranho que
eu era?! Agora eu me dirigia para a saída da avenida Ercole I d'Este, agora
pedalava rente ao muro externo, já estava me aproximando do portão, e
Alberto continuava soando seu “olifante”. “Olhe lá, não vá fugir!”, diziam
seus assovios sempre potentíssimos, mas agora em certa medida
benevolentes, de leve advertência.
“Salve!”, gritei como sempre, saindo ao ar livre da galeria de rosas
trepadeiras.
Micòl e Malnate tinham recomeçado a partida e, sem interrompê-la,
responderam juntos com outro “Salve”. Alberto se pôs de pé e veio ao meu
encontro.
“Quer nos dizer onde você se escondeu esses dias todos?”, perguntou.
“Telefonei várias vezes para sua casa, mas você nunca estava.”
“Ele foi para a França”, Micòl respondeu por mim, da quadra.
“França!”, exclamou Alberto, os olhos cheios de um espanto que me
pareceu sincero. “E para fazer o quê?”
“Fui encontrar meu irmão em Grenoble.”
“Ah, sim, é verdade, seu irmão estuda em Grenoble. E como ele está?
Como está se virando?”
Enquanto isso, sentamo-nos em duas espreguiçadeiras postas uma ao
lado da outra, de frente para a entrada lateral da quadra, em ótima posição
para poder seguir o andamento da partida. Ao contrário do outono passado,
Micòl não estava de shorts. Vestia uma saia de lã branca e pregueada, bem
old style, uma camisa também branca, de mangas arregaçadas, e estranhas
meias compridas de fio cândido, quase uma enfermeira da Cruz Vermelha.
Toda suada, o rosto vermelho, obstinava-se em lançar as bolas nos cantos
mais remotos da quadra, forçando os golpes. Mas Malnate, embora tivesse
engordado e arfasse, rebatia com afinco.
Uma bola, rolando, veio parar a pouca distância de nós. Micòl se
aproximou para pegá-la, e por um átimo meu olhar cruzou com o dela.
Vi que fez uma careta. Claramente contrariada, virou-se de modo brusco
para Malnate.
“Vamos tentar um set?”, gritou.
“Podemos tentar”, murmurou o outro. “Quantos games de vantagem
você me daria?”
“Nenhum”, rebateu Micòl, carrancuda. “Posso no máximo lhe conceder
a vantagem do serviço. Você serve, vamos!”
Jogou a bola por cima da rede e foi se posicionar para rebater o saque do
adversário.
Por alguns minutos, Alberto e eu os observamos jogar. Eu me sentia
tomado de mal-estar e infelicidade. O “você” informal de Micòl a Malnate e
o fato de ela me ignorar ostensivamente me davam, de súbito, a medida do
longo tempo em que estive distante. Quanto a Alberto, ele como sempre
não tinha olhos senão para Giampi. Mas agora, como notei, em vez de
admirá-lo e elogiá-lo, não parava um momento sequer de criticá-lo.
Lá estava um tipo — ele me confidenciava cochichando, e isso era tão
surpreendente que, embora angustiado, eu não perdia uma sílaba de suas
palavras —, lá estava um tipo que, mesmo se tivesse aulas de tênis todo
santo dia com um Nüsslein ou um Martin Plaa, nunca seria capaz de se
tornar um jogador, nem sequer passável. O que lhe faltava para progredir?
Vejamos. Pernas? Pernas não, com certeza, caso contrário não teria se
tornado aquele razoável alpinista que sem dúvida ele era. Fôlego? Fôlego
também não, pelos mesmos motivos. Força muscular? Isso ele tinha para
dar e vender, bastava um aperto de mão para notar. E então? A realidade é
que o tênis — sentenciou com extraordinária ênfase —, além de ser um
esporte, é também uma arte, e como toda forma de arte, exige um talento
particular, quem não o possui continuará sendo sempre um “perna de pau”,
pelo resto da vida.
“Mas por favor!”, gritou Malnate a certa altura. “Querem ficar um pouco
em silêncio, vocês dois?”
“Jogue, jogue”, retrucou-lhe Alberto, “e acima de tudo tente não ser
derrotado por uma mulher!”
Eu não acreditava em meus ouvidos. Será possível? Onde estava toda a
brandura de Alberto, toda a sua submissão ao amigo? Olhei atentamente
para ele. De repente seu rosto se revelou abatido, emaciado, como enrugado
por uma velhice precoce. Será que estava doente?
Fiquei tentado a lhe perguntar, mas me faltou a coragem. Em vez disso,
perguntei se aquele era o primeiro dia em que voltavam a jogar tênis, e por
que motivo não estavam presentes Bruno Lattes, Adriana Trentini e o resto
da zòzga, como no ano passado.
“Mas você está mesmo por fora de tudo!”, exclamou, descobrindo as
gengivas em uma gargalhada.
Há mais ou menos uma semana — passou imediatamente a me contar
—, constatada a beleza da estação, ele e Micòl tinham decidido dar uns dez
telefonemas com o nobre objetivo, justamente, de renovar as glórias
tenísticas do último outono. Telefonaram para Adriana Trentini, Bruno
Lattes, para o jovem Sani, o jovem Collevatti, e para vários e magníficos
exemplares de ambos os sexos das novas levas, que no ano anterior haviam
ficado de fora. Todos eles, “velhos e jovens”, tinham aceitado o convite
com louvável presteza, de modo a garantir ao dia de abertura, no sábado 1o
de maio, um sucesso francamente triunfal. Não apenas jogaram tênis:
conversaram, paqueraram etc., e até houve dança, lá na Hütte, ao som do
Philips “oportunamente instalado ali”.
Sucesso ainda maior — prosseguiu Alberto — aconteceu na segunda
session de domingo à tarde, 2 de maio. Mas já na manhã de segunda-feira, 3
de maio, os ares começaram a ficar carregados. Fazendo-se preceder por um
sibilino cartão de visita, eis que por volta das onze se apresentou em
bicicleta o advogado Tabet, sim, justamente aquele grande fascistoide do
Geremia Tabet, em pessoa, que, depois de ter se trancado com papai no
gabinete, lhe transmitiu a ordem taxativa por parte do secretário federal de
interromper imediatamente o escândalo das recepções diárias e
provocatórias, aliás privadas de qualquer conteúdo esportivo sadio, que
havia um bom tempo tinham lugar em sua residência. Com efeito, não era
admissível — fazia saber o cônsul Bolognesi por intermédio do amigo “em
comum”, Tabet —, não era admissível que o jardim da casa Finzi-Contini
estivesse aos poucos se transformando em uma espécie de clube
concorrente do Círculo de Tênis Eleonora d'Este, uma instituição, esta, tão
benemérita do esporte ferrarense. Portanto, alto lá: a fim de evitar sanções
oficiais, do tipo “temporada obrigatória em Urbisaglia por um período de
tempo a ser determinado”, de agora em diante nenhum associado do
Eleonora d'Este poderia ser distraído de seu ambiente natural.
“E seu pai”, perguntei, “como ele reagiu?”
“Como você queria que ele reagisse?”, riu Alberto. “Só lhe restou se
comportar como Don Abbondio. Inclinar-se e murmurar: ‘Sempre disposto
à obediência'. Acho que se expressou mais ou menos assim.”
“Para mim, a culpa é de Barbicinti”, gritou Micòl da quadra, a quem a
distância obviamente não impedira de acompanhar nossa conversa.
“Ninguém nunca vai me tirar da cabeça que foi ele quem correu à alameda
Cavour para se queixar. Até vejo a cena. Mas, afinal de contas, é preciso
compreendê-lo, coitadinho. Quando entra o ciúme no meio, a gente é capaz
de tudo…”
Apesar de talvez pronunciadas sem uma intenção específica, aquelas
palavras de Micòl me atingiram dolorosamente. Estive a ponto de me
levantar e ir embora.
E quem sabe eu até tivesse agido assim se justo naquele momento,
enquanto eu me virava para Alberto quase a invocar seu testemunho e sua
ajuda, mais uma vez não parasse para observar o tom cinzento de seu rosto,
a magreza sofrida de seus ombros perdidos dentro de um pulôver já amplo
demais para ele (que piscava o olho para mim, como pedindo que eu não
me aborrecesse, enquanto já partia para outro assunto: a quadra de tênis, os
trabalhos para melhorá-la “desde a base”, que, apesar de tudo, começariam
dali a uma semana…), e se naquele mesmo instante eu não tivesse visto
surgir lá longe, às margens da clareira, as escuras e dolentes figurinhas
emparelhadas do professor Ermanno e de dona Olga, vindas do passeio
vespertino no parque e rumando lentamente em nossa direção.
5
Recordo o longo período de tempo que se seguiu até os últimos dias fatais
de agosto de 1939, ou seja, até as vésperas da invasão nazista da Polônia e
da drôle de guerre, como uma espécie de lenta e progressiva descida no
funil sem fundo do Maelström. Proprietários exclusivos da quadra de tênis,
que logo foi recoberta por uma boa camada de terra vermelha de Ímola,
tínhamos sobrado só nós quatro: eu, Micòl, Alberto e Malnate (quanto a
Bruno Lattes, provavelmente perdido atrás dos rastros de Adriana Trentini,
não se podia contar com ele). Variando as composições, gastávamos tardes
inteiras em longas partidas de duplas, com Alberto, mesmo de fôlego curto
e cansado, sempre disposto, sabe-se lá por quê, a recomeçar, sem nunca se
dar ou nos dar trégua.
Por que motivo eu insistia em voltar todos os dias a um local onde, com
certeza, só poderia recolher humilhações e amargura? Não saberia dizer
exatamente. Talvez esperasse por um milagre, uma mudança brusca da
situação, ou talvez, quem sabe, eu fosse ali justamente em busca de
humilhações e amargura… Jogávamos tênis ou então, deitados à sombra em
quatro chaises longues, diante da Hütte, discutíamos sobre os mesmos
assuntos, arte e política. Porém, quando eu propunha a Micòl, que no fundo
continuara sendo gentil e às vezes até afetuosa, uma volta pelo parque, era
bem raro que ela dissesse sim. Quando concordava, nunca o fazia de bom
grado, mas toda vez estampava no rosto uma expressão entre desgostosa e
paciente, o que logo me induzia a lamentar o fato de tê-la arrastado para
longe de Alberto e Malnate.
No entanto eu não me desarmava, não me conformava. Dividido entre o
impulso de romper, de desaparecer para sempre, e seu oposto, de não
renunciar a estar lá, de não ceder de jeito nenhum, na prática eu acabava
não faltando nunca. É verdade que, às vezes, bastava um olhar mais frio que
o normal por parte de Micòl, um gesto seu de intolerância, um trejeito de
sarcasmo ou de tédio para que eu acreditasse com plena sinceridade ter me
decidido a romper. Mas quanto tempo eu conseguia ficar afastado? Três,
quatro dias no máximo. No quinto, lá estava eu de novo, ostentando a cara
risonha e desenvolta de quem regressa de uma viagem enormemente
proveitosa (ao reaparecer, eu sempre falava de viagens, viagens a Milão, a
Florença, a Roma: e ainda bem que os três pareciam acreditar naquilo!),
mas com o coração dilacerado e olhos que já recomeçavam a buscar nos de
Micòl uma resposta impossível. Era o momento dos “ataques conjugais”,
como ela os chamava. Nessas horas, quando se apresentava uma ocasião, eu
tentava até beijá-la. E ela se adaptava, nunca se mostrava deselegante.
Mas em uma noite de junho, em meados do mês, as coisas tomaram um
rumo diferente.
Estávamos sentados um ao lado do outro nos degraus externos da Hütte
e, embora já fosse umas oito e meia, ainda se conseguia enxergar. Eu olhava
Perotti à distância, ocupado em desmontar e enrolar a rede da quadra cujo
terreno, desde que chegara da Romanha a nova terra vermelha, nunca lhe
pareceu suficientemente cuidado. Malnate estava tomando uma ducha
dentro da cabana (podíamos ouvi-lo assobiar ruidosamente às nossas costas
sob o jato de água quente); Alberto se despedira pouco antes com um
melancólico “bye-bye”. Enfim, tínhamos ficado só nós dois, Micòl e eu, e
logo aproveitei para recomeçar com meu eterno, absurdo e tedioso assédio.
Insistia, como sempre, na tentativa de convencê-la de que ela estava errada
ao considerar inoportuna uma relação sentimental entre nós dois; como
sempre, eu a acusava (de má-fé) de ter mentido para mim quando, nem um
mês atrás, me garantira que entre mim e ela não havia nenhum outro. Na
minha opinião, no entanto, havia um terceiro em cena; ou pelo menos tinha
havido, em Veneza, durante o inverno.
“Vou lhe repetir pela enésima vez que você está enganado”, disse Micòl
em voz baixa, “mas sei que não adianta, sei perfeitamente que amanhã você
vai voltar à carga com as mesmas histórias. O que quer que eu lhe diga: que
trepo em segredo, que levo uma vida dupla? Se é isso mesmo que você
quer, posso até satisfazer sua vontade.”
“Não, Micòl”, respondi com a voz também baixa, porém mais exaltada.
“Posso ser tudo, menos um masoquista. Se você soubesse como minhas
aspirações são normais, terrivelmente banais! Pode rir. Se há uma coisa que
eu desejo é esta: ouvi-la jurar que o que me disse é verdade, e acreditar em
você.”
“Por mim, eu lhe juro agora mesmo. Mas você acreditaria?”
“Não.”
“Então pior para você!”
“Certo, pior para mim. No entanto, se eu pudesse realmente acreditar…”
“O que você faria? Vamos lá.”
“Oh, coisas sempre muito normais, banais, esse é o problema! Estas, por
exemplo.”
Agarrei suas mãos e comecei a cobri-las de beijos e lágrimas.
No início, ela não me interrompeu. Eu escondia o rosto contra seus
joelhos, e o cheiro de sua pele lisa e tenra, levemente salgada, me
atordoava. Beijei-a bem ali, sobre as pernas.
“Agora chega”, falou.
Escapuliu as mãos das minhas e se pôs de pé.
“Tchau, estou com frio”, continuou, “preciso entrar. A mesa já deve estar
posta, e ainda tenho que tomar banho e me vestir. Levante-se, vamos, não se
comporte feito um menino.”
“Adeus!”, gritou em seguida, virada para a Hütte. “Estou indo.”
“Adeus”, respondeu Malnate de dentro. “Obrigado.”
“Até mais. Você vem amanhã?”
“Amanhã não sei. Vamos ver.”
Separados pela bicicleta cujo guidom eu apertava espasmodicamente,
encaminhamo-nos em direção à magna domus, alta e escura no ar cheio de
pernilongos e morcegos do crepúsculo de verão. Íamos calados. Uma
carroça cheia de feno, puxada por uma parelha de bois, vinha em sentido
contrário ao nosso. Sentado em cima dela estava um dos filhos de Perotti,
que, ao cruzar por nós, tirou o chapéu e nos desejou boa-noite. Ainda que
eu acusasse Micòl sem acreditar, mesmo assim queria gritar que ela parasse
com aquela comédia, queria insultá-la, quem sabe enchê-la de tapas. Mas e
depois? O que eu conseguiria com isso?
Errei do mesmo modo.
“É inútil negar”, falei, “de todo modo, sei até quem é a pessoa.”
Tinha acabado de pronunciar aquela frase e já estava arrependido.
Ela me olhou séria, magoada.
“Pronto”, ela disse, “e agora, segundo suas previsões, eu deveria quem
sabe desafiá-lo a desembuchar o nome e o sobrenome que você tem
guardados no estômago, se é que tem. Seja como for, chega. Não quero
mais saber disso. Só sei que, a este ponto, lhe agradeceria se de agora em
diante você fosse um pouco menos assíduo… sim… que você viesse a
nossa casa com menor frequência. E lhe digo francamente: se eu não
temesse desencadear um falatório na família, como assim?, por quê? etc.,
lhe pediria que não viesse aqui nunca mais.”
“Desculpe-me”, murmurei.
“Não, não posso desculpar”, ela replicou balançando a cabeça. “Se
fizesse isso, daqui a uns dias você começaria tudo de novo.”
Acrescentou que, de uns bons tempos para cá, meu modo de me
conduzir não era mais digno: nem comigo nem com ela. Ela me dissera e
repetira mil vezes que era inútil, que eu não tentasse transferir nossas
relações para outro plano que não o da amizade e do afeto. Não adiantou.
Ao contrário, assim que eu podia, atacava-a com beijos e outras coisas,
como se não soubesse que, em situações como a nossa, não há nada mais
antipático e contraindicado. Meu Deus! Será possível que eu não conseguia
me controlar? Se anteriormente tivesse havido entre nós uma ligação física
um pouco mais profunda que aquela baseada em alguns beijos, aí sim, ela
poderia entender que eu… que ela por assim dizer entrara em minha pele.
Mas, tendo em vista as relações que sempre existiram entre nós, minha
ânsia de beijá-la, de esfregar-me nela, era mais provavelmente o sinal de
uma só coisa: de minha substancial aridez, de minha constitucional
incapacidade de querer bem de verdade. E tem mais! O que significavam
aquelas ausências repentinas, os regressos inesperados, as miradas
inquisitórias ou “trágicas”, os silêncios emburrados, as grosserias, as
insinuações mirabolantes: todo o repertório de atos irrefletidos e
embaraçosos que eu exibia incansavelmente, sem o mínimo pudor?
Paciência se eu tinha reservado os “ataques conjugais” apenas para ela, em
separado. Mas que também o irmão dela e Giampi Malnate fossem
espectadores disso, aí não, não, de jeito nenhum.
“Acho que agora você está exagerando”, falei. “Quando é que eu fiz
cena diante de Malnate e de Alberto?”
“Sempre, o tempo todo!”, rebateu.
Toda vez que eu voltava de uma semana de ausência — prosseguiu —,
declarando, sei lá, que tinha estado em Roma, e tome-lhe risada, umas
risadas nervosas, de maluco, sem a mínima razão, por acaso eu achava que
Alberto e Malnate não notavam que eu estava contando lorotas, que eu não
tinha absolutamente estado em Roma, e que meus frouxos de riso “tipo a
Cena delle beffe”[26] eram dirigidos a mim? E nas discussões, quando eu me
metia a gritar e a imprecar como um possesso, criando caso por qualquer
coisa (mais dia, menos dia, Giampi acabaria se irritando com isso, e não
sem motivos, coitado dele também!), por acaso eu pensava que os outros
não percebiam que ela era a causa, ainda que inocente, daqueles meus
ataques?
“Entendi”, falei, baixando a cabeça. “Entendi perfeitamente que você
não quer mais me ver.”
“A culpa não é minha. Você é que aos poucos foi se tornando
insuportável.”
“Mas você disse”, balbuciei depois de uma pausa, “você disse que eu
posso vir de vez em quando, aliás, que eu deveria vir. Não é?”
“É.”
“Bem… então você decide. Como devo me comportar para não cometer
erros?”
“Ah, não sei”, respondeu, dando de ombros. “Acho que, no início, você
deveria ficar pelo menos uns vinte dias afastado. Para depois recomeçar a
vir, se quiser. Mas, por favor, mesmo depois não apareça mais de duas vezes
por semana.”
“Terça e sexta, tudo bem? Como nas aulas de piano.”
“Cretino”, murmurou sorrindo, sem querer. “Você é mesmo um cretino.”
6
e dá-lhe a declamar com sua voz grave e meio rouca, milanesa, todas as
noites em que, passeando, nos aproximávamos da Via Sacca, da Via
Colomba, ou subíamos bem lentamente a Via delle Volte, espiando através
das portas entreabertas os interiores iluminados dos puteiros. Sabia “La
ninetta del Verzee” por inteiro, e passei a conhecê-la por causa dele.
Ameaçando-me com o dedo, piscando o olho para mim em uma
expressão marota e alusiva (alusiva a algum episódio remoto de sua
adolescência em Milão, eu supunha), ele muitas vezes sussurrava:
Embora já fosse bem tarde, meu pai ainda não tinha apagado a luz.
A partir do verão de 1937, desde que a campanha racista começara em
todos os jornais, ele foi acometido de uma forma grave de insônia, que
atingia os picos mais agudos com o calor do verão. Passava noites inteiras
sem pregar o olho, em parte lendo, em parte circulando pela casa, em parte
ouvindo na copa as transmissões em língua italiana de rádios estrangeiras,
em parte conversando com mamãe no quarto dela. Se eu voltava depois da
uma, era difícil conseguir atravessar o corredor ao longo do qual se
sucediam um após o outro os quartos de dormir (o primeiro era o de papai,
o segundo, o de mamãe, depois vinham os de Ernesto e de Fanny, e por fim,
ao fundo, o meu) sem que ele percebesse. Eu avançava na ponta dos pés, às
vezes chegava a tirar os sapatos; o ouvido finíssimo de meu pai captava os
mínimos rangidos e rumores.
“É você?”
Como era de esperar, também naquela noite não escapei à sua sentinela.
Em geral, ao seu “É você?” eu acelerava rapidamente o passo sem
responder, fingindo não ter escutado. Mas naquela noite, não. Mesmo
imaginando não sem aborrecimento o tipo de perguntas a que eu teria de
responder, há anos sempre as mesmas (“Por que tão tarde?”, “Sabe que
horas são?”, “Onde você esteve?” etc.), preferi me deter. E enfiei o rosto na
fresta da porta entreaberta.
“O que você está fazendo aí?”, perguntou logo meu pai, da cama,
espiando por cima dos óculos. “Entre, entre um momento.”
Mais que deitado, estava sentado de pijama, apoiado com o dorso e a
nuca na cabeceira de madeira clara e entalhada, coberto apenas pelo lençol
até mais ou menos a base do estômago. Espantei-me ao constatar que tudo
nele e ao seu redor era branco: prateados os cabelos, pálido e abatido o
rosto, alvos o pijama, o travesseiro atrás dos flancos, o lençol, o livro
pousado aberto sobre o ventre; e como aquela brancura (uma brancura de
hospital, eu pensava) se harmonizava com a serenidade surpreendente e
extraordinária da inédita expressão de bondade cheia de sabedoria que
irradiava de seus olhos claros.
“Que tarde!”, comentou sorrindo, enquanto dava uma olhada no Rolex
de pulso à prova d'água, do qual não se separava nem na cama. “Sabe que
horas são? Duas e vinte e sete.”
Talvez tenha sido a primeira vez que, tendo eu completado dezoitos anos
e recebido a chave da casa, a frase não me irritou.
“Eu estava dando um giro”, falei, tranquilo.
“Com aquele seu amigo de Milão?”
“Sim.”
“O que é que ele faz? Ainda é estudante?”
“Que estudante que nada. Já tem vinte e seis anos. Está empregado…
Trabalha como químico na zona industrial, em uma fábrica de borracha
sintética da Montecatini.”
“Olhe só. E eu que pensava que ainda estivesse na faculdade. Por que
nunca o convidou para jantar?”
“Ah… achei que não era o caso de dar a mamãe mais trabalho do que
ela já tem.”
“Nãããoo, imagine! Qual seria a diferença? Uma tigela a mais de sopa
não é nada. Convide, convide. E… onde vocês jantaram? No Giovanni?”
Assenti.
“Me conte o que vocês comeram de bom.”
Sujeitei-me de bom grado, não sem me surpreender eu mesmo com
minha condescendência, a listar os vários pratos para ele: os escolhidos por
mim, os de Malnate. Enquanto falava, sentei-me.
“Bom”, meu pai concordou por fim, satisfeito.
“E então”, continuou depois de uma pausa, “duv'èla mai ch'a si 'ndà a
far dann, tutt du?[33] Aposto” (e aqui ergueu uma mão, como a prevenir
minha eventual negativa), “aposto que foram às mulheres.”
Entre nós nunca houvera intimidade em relação ao assunto. Um pudor
feroz, uma necessidade violenta e irracional de liberdade e de
independência sempre me impeliram a bloquear no nascedouro todas as
tímidas tentativas dele de abordar esses temas. Mas naquela noite, não. Eu
olhava para ele, tão branco, tão frágil, tão velho, e no entanto era como se
algo dentro de mim, uma espécie de nó, de um antigo caroço secreto, fosse
aos poucos se desfazendo.
“É verdade”, respondi. “Acertou em cheio.”
“Devem ter ido a um bordel, imagino.”
“Fomos.”
“Excelente”, aprovou. “Na idade de vocês, especialmente na sua, os
bordéis são a solução mais benéfica sob qualquer ponto de vista, inclusive o
da saúde. Mas me diga: e como você se arranja com o dinheiro? A mesada
que sua mãe lhe dá é suficiente? Se lhe faltar dinheiro, pode pedir a mim.
No limite do possível, vejo o que posso fazer.”
“Obrigado.”
“Onde vocês estiveram? Na Maria Ludargnani? Na minha época ela já
estava no ramo.”
“Não, fomos a um local na Via delle Volte.”
“A única coisa que lhe recomendo”, continuou, assumindo de repente a
linguagem da medicina, que ele só exerceu na juventude, para depois, com
a morte de vovô, se dedicar exclusivamente à administração das terras de
Masi Torello e dos dois estabelecimentos que tinha na Via Vignatagliata, “a
única coisa que lhe recomendo é não descuidar nunca das necessárias
medidas profiláticas. É uma aporrinhação, eu sei, seria bem melhor sem
isso. Mas basta um nada para se pegar uma blenorragia feia, vulgo
pingadeira, ou coisa pior. E acima de tudo: se de manhã, ao acordar, você
perceber algo estranho, venha imediatamente ao banheiro me mostrar.
Nesse caso, eu lhe digo como deve proceder.”
“Entendi. Fique tranquilo.”
Eu sentia que ele buscava um modo mais adequado de me perguntar
outra coisa. Agora que eu estava formado — supus que estivesse a ponto de
me indagar —, por acaso eu tinha alguma ideia para o futuro, algum
projeto? Em vez disso, divagou sobre política. Antes de eu voltar para casa
— falou —, entre uma e duas da manhã, ele havia conseguido sintonizar
várias estações de rádio estrangeiras: Monteceneri, Paris, Londres,
Beromünster. Agora, baseado nas últimas notícias, ele estava convencido de
que a situação internacional piorava rápido. Ah, sim, infelizmente: tratava-
se de um verdadeiro “afàr negro”. Parece que a essa altura as missões
diplomáticas anglo-francesas em Moscou tinham regredido ao ponto de
partida (sem terem conseguido tirar nenhum coelho da cartola, é claro!).
Será que sairiam mesmo de Moscou desse jeito? Era um perigo. Depois
disso, só restaria a todos recomendar a alma a Deus.
“O que você acha?!”, exclamou. “Stálin não é um sujeito de tantos
escrúpulos. Se for conveniente a ele, tenho certeza de que não vai pensar
um minuto antes de fechar um acordo com Hitler!”
“Um pacto entre a Alemanha e a União Soviética?”, sorri fracamente.
“Não, não acredito. Não me parece possível.”
“É o que vamos ver”, ele replicou, sorrindo por sua vez. “Que o Senhor
Deus o escute!”
Nesse ponto, do quarto ao lado veio um lamento. Minha mãe tinha
acordado.
“O que você disse, Ghigo?”, perguntou. “Hitler morreu?!”
“Quem dera!”, suspirou meu pai. “Durma, durma, meu anjo, não se
preocupe.”
“Que horas são?”
“Quase três.”
“Mande seu filho para a cama!”
Mamãe ainda pronunciou umas palavras incompreensíveis e então se
calou.
Meu pai me fixou demoradamente nos olhos. Depois, em voz baixa e
quase sussurrando:
“Desculpe se me permito falar dessas coisas”, disse, “mas você vai
entender… tanto eu quanto sua mãe percebemos muito bem, desde o ano
passado, que você se apaixonou por… por Micòl Finzi-Contini. Não é
verdade?”
“É.”
“E como vão as coisas entre vocês? Continuam mal?”
“Não podiam estar piores”, murmurei, subitamente me dando conta de
que estava dizendo a perfeita verdade com extrema clareza, que de fato
nossas relações não podiam estar piores e que nunca, apesar da opinião
contrária de Malnate, eu conseguiria subir o poço onde há meses me debatia
em vão.
Meu pai soltou um suspiro.
“Eu sei, são decepções profundas… Mas no fim das contas é bem
melhor assim.”
Eu estava de cabeça baixa e não disse nada.
“Com certeza”, continuou ele, falando um pouco mais alto. “O que você
pretendia fazer? Ficar noivo?”
Naquela noite em seu quarto, Micòl também me fizera a mesma
pergunta. Dissera: “O que você queria? Que noivássemos? Me desculpe”.
Não dei um pio. Não tive nada a responder. Como agora — refletia —,
como agora com meu pai.
“Por que não?”, contestei, olhando para ele.
Balançou a cabeça.
“Acha que não o compreendo?”, falou. “Eu também gosto da moça.
Sempre gostei: desde que era uma menina… que descia no templo para
pegar a berahá do pai. Graciosa, aliás bonita (bonita até demais!),
inteligente, cheia de espírito… Mas noi-var!”, disse escandindo e
arregalando os olhos. “Noivar, meu querido, quer dizer se casar. E nessas
belas noites que correm, sobretudo sem contar com uma profissão segura,
me diga se você… Imagino que para sustentar a família você não buscaria
minha ajuda (que aliás eu nem seria capaz de dar, não na medida
necessária), muito menos a sua… a dela. A moça com certeza terá um
magnífico dote”, acrescentou, “e como! Mas não penso que você…”
“Deixe o dote fora disso”, falei. “Se a gente se amasse, que importava o
dote?”
“Você tem razão”, concordou meu pai. “Você está coberto de razão. Eu
também, quando fiquei noivo da sua mãe, em 1911, não me importava com
essas coisas. Mas naquela época os tempos eram diferentes. Era possível
olhar em frente, para o futuro, com certa serenidade. E, apesar de o futuro
não ter afinal de contas se mostrado tão alegre e fácil quanto nós dois
imaginávamos (como você sabe, nos casamos em 1915, com a guerra já
começada, e logo em seguida eu me alistei e parti como voluntário), a
sociedade era diferente, uma sociedade que garantia… Além disso, eu tinha
feito medicina, enquanto você…”
“Enquanto eu?”
“Certo. Você, em vez de medicina, preferiu fazer belas-letras, e sabe
que, quando veio o momento de decidir, eu não criei nenhum tipo de
obstáculo. Sua paixão era essa, e nós dois, você e eu, cumprimos nosso
dever: você, escolhendo o caminho que sentia que tinha de escolher, e eu,
não o impedindo de fazer isso. Mas e agora? Ainda que, como professor,
você aspirasse a uma carreira universitária…”
Fiz que não com a cabeça.
“Pior”, retomou ele, “pior! É bem verdade que nada, nem mesmo agora,
pode impedi-lo de continuar estudando por conta própria… de continuar se
cultivando para tentar, um dia, se for possível, a carreira bem mais difícil e
aleatória de escritor, de crítico militante tipo Edoardo Scarfoglio, Vincenzo
Morello, Ugo Ojetti… ou, por que não?, de romancista, de…”, e sorriu, “…
de poeta… Mas justamente por isso: como você podia, na sua idade, com
apenas vinte e três anos, e com tudo ainda a ser feito… como podia pensar
em se casar, em sustentar uma família?”
Ele falava de meu futuro literário — eu pensava comigo — como de um
sonho bonito e sedutor, mas não traduzível em algo de concreto, de real.
Falava como se eu e ele já estivéssemos mortos e agora, de um ponto fora
do espaço e do tempo, discorrêssemos juntos a respeito da vida, de tudo o
que ao longo de nossas respectivas vidas poderia ter sido e não foi. Hitler e
Stálin fariam um pacto?, eu também me perguntava. Por que não? Era
muito provável que Hitler e Stálin entrassem em um acordo.
“Mas afora isso”, continuava meu pai, “e afora um monte de outras
considerações, permita que lhe exponha com franqueza… que lhe dê um
conselho de amigo?”
“Pode dizer.”
“Sei bem que, sobretudo na sua idade, quando se perde a cabeça por
uma garota, a pessoa não fica ali, calculando… Também sei que você tem
um caráter um tanto especial… e não ache que dois anos atrás, quando o
desgraçado do dr. Fadigati…”
Desde que Fadigati tinha morrido, nunca mais faláramos o nome dele
em casa. O que Fadigati tinha a ver com a conversa de agora?
Olhei-o no rosto.
“Sim, me deixe falar!”, fez ele. “Seu temperamento (tenho a impressão
de que você puxou sua avó Fanny), seu temperamento… Você é sensível
demais, é isso, e assim não se contenta… vai sempre procurar…”
Não concluiu. Acenava com a mão a mundos ideais, povoados de puras
quimeras.
“De todo modo, me perdoe”, retomou, “mas mesmo como família os
Finzi-Contini não eram adequados… não eram gente para nós. Casando-se
com uma jovem daquele tipo, estou convencido de que mais cedo ou mais
tarde você ficaria mal… Mas claro, claro”, insistiu, talvez temendo algum
gesto ou palavra de protesto meu, “você sabe bem qual foi sempre minha
opinião a respeito. É uma gente diferente… nem parecem judìm de verdade.
Ah, eu sei: Micòl, talvez você gostasse tanto dela justo por isso… porque
era superior a nós… socialmente. Mas escute o que lhe digo: foi melhor
terminar assim. Diz o provérbio: ‘Cada macaco no seu galho'. E aquela lá,
apesar das aparências, não era mesmo do seu galho. Nem um pouco.”
Baixei de novo a cabeça, olhando para minhas mãos abertas e pousadas
nos joelhos.
“Vai passar”, prosseguia, “vai passar, e bem mais cedo do que você
pensa. Claro, lamento muito: e imagino o que você está sentindo neste
momento. Mas até o invejo um pouquinho, sabe? Na vida, se a gente quer
entender, entender de verdade como estão as coisas deste mundo, deve
morrer pelo menos uma vez. Então, visto que a lei é esta, melhor morrer
jovem, quando ainda se tem muito tempo pela frente para se levantar e
ressuscitar… Entender quando se está velho é terrível, bem mais terrível.
Como se faz? Não há tempo para recomeçar do zero, e nossa geração levou
tantas, tantas bordoadas! Seja como for, se o bom Deus quiser, você é tão
jovem! Daqui a uns meses, aposto que nem vai parecer verdade que passou
por tudo isso. Vai ficar até contente. Vai se sentir mais rico, não sei… mais
maduro…”
“Tomara”, murmurei.
“Estou feliz de ter desabafado, de ter tirado esse peso do estômago… E
agora uma última recomendação. Posso?”
Assenti.
“Não vá mais à casa deles. Volte a estudar, ocupe-se com alguma coisa,
quem sabe dando umas aulas particulares, que ouço dizer por aí que há
muita procura… E não vá mais lá. De resto, é uma atitude mais masculina.”
Tinha razão. Era uma atitude mais masculina, de resto.
“Vou tentar”, falei reerguendo o olhar. “Vou fazer de tudo para
conseguir.”
“Muito bem!”
Olhou a hora.
“E agora vá dormir”, acrescentou, “que você está precisando. Eu
também vou tentar fechar os olhos um pouquinho.”
Levantei-me e inclinei-me sobre ele para beijá-lo, mas o beijo que
trocamos se transformou num abraço longo, silencioso e muito terno.
10
capa
Flávia Castanheira
imagem de capa
Buyenlarge/ Getty Images
composição
Jussara Fino
preparação
Silvia Massimini Felix
revisão
Jane Pessoa
Ana Maria Barbosa
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
——
Bassani, Giorgio (1914-2000)
O jardim dos Finzi-Contini: Giorgio Bassani
Título original: Il giardino dei Finzi-Contini
Tradução: Maurício Santana Dias
São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2021
280 páginas
ISBN 978-65-5692-116-7
CDD 850
——
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura italiana: Romance 850
todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
www.todavialivros.com.br
1. Canzone di Legnano: “O bionda, o bella imperatrice, o fida”; “Onde
venisti? Quali a noi secoli/ sì mite e bella ti tramandarono…”. [Esta e as
demais notas são do tradutor.]
[ «« ]
6. “Criança.”
[ «« ]
7. “Sábio”, em hebraico.
[ «« ]
11. Verso de abertura do canto viii do Purgatório de Dante: “Era già l'ora
che volge il disìo”.
[ «« ]
14. Citação do verso 60 do canto iii do Inferno de Dante (“che fece per
viltade il gran rifiuto”), em que se condena o papa Celestino v por ter
renunciado ao pontificado em 1294, até então o único papa a abdicar do
trono — o outro é o papa Bento xvi, que renunciou em 2013.
[ «« ]
15. “Esforço.”
[ «« ]
22. Poema 449, de Emily Dickinson: “I died for Beauty—but was scarce/
Adjusted in the tomb/ When One who died for Truth, was lain/ In an
adjoining Room— // He questioned softly ‘Why I failed?'/ ‘For Beauty', I
replied—/ ‘And I—for truth—Themself are One—/ We Brethren, are', He
said—// And so, as Kinsmen, met a Night—/ We talked between the Rooms
—/ Until the Moss had reached our lips—/And covered up—our names—”.
Na tradução de Maurício Santana Dias e Silvana Moreli Vicente Dias:
“Morri pela Beleza — mas mal/ Me habituara ao Túmulo/ Quando Alguém,
morto pela Verdade,/ Foi posto no Cômodo ao lado —// Suave me
perguntou ‘Por que morreu?'/ ‘Pela Beleza', repliquei eu —/ ‘E eu — pela
Verdade — Ambas iguais' —/ Disse ele — ‘Assim somos fraternais' —//
Então, como Parentes na Noite —/ Conversamos entre as Paredes —/ Até
que o Musgo nos chegou aos lábios —/ E nossos nomes — recobriu —”.
[ «« ]
23. Citação de um verso de “Roma”, poema das Odi barbare (1877), em
que Carducci interpela Depretis: “Che importa a me se l'irto spettral
vinattier di Stradella” [Que me importa se o hirto e espectral vinhateiro de
Stradella].
[ «« ]
24. “Amaldiçoado seja esse sonhador vão/ Que em primeiro lugar, em sua
estupidez,/ Apegado a problemas assim sem solução,/ Quis às coisas do
amor misturar a honradez!” Tradução de Júlio Castañon Guimarães dos
versos 61-4 do poema “Femmes damnées (Delphine et Hippolyte)”
[Mulheres condenadas (Delfina e Hipólita)], do livro As flores do mal
(Penguin-Companhia das Letras, 2019, p. 475), de Charles Baudelaire.
Trata-se de um dos poemas que foram excluídos, por censura, da edição
original de 1857 e reinseridos na edição póstuma, de 1868.
[ «« ]
28. “Nò Ghittin: no sont capazz/ de traditt: nò, stà pur franca./ Mettem
minga insemma a mazz/ coj gingitt e cont'i s'cianca…”, primeira quartina
do longo poema homônimo.
[ «« ]
30. “Pensa ed opra, varda e scolta/ tant se viv e tant se impara;/ mi, quand
nassi on'altra volta,/ nassi on gatt de portinara!// Per esempi, in
Rugabella,/ nassi el gatt del sur Pinin…/ …scartoseij de coradella,/ polpa e
fidegh, barettin// del patron per dormigh sora…”, versos iniciais do poema
“El gatt del sur Pinin”, de Delio Tessa (1886-1939).
[ «« ]
32. “Finalment l'alba tance voeult spionada/ l'è comparsa anca lee di
filidur…”, versos 152-3 do poema “Lament del Marchionn di gamb avert”,
de Carlo Porta.
[ «« ]