O Jardim Dos Finzi-Contini - Giorgio Bassani

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"Quando o mundo estiver


unido na busca do
conhecimento, e não mais
lutando por dinheiro e poder,
então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um
novo nível."
Giorgio Bassani

O jardim dos Finzi-Contini


tradução
Maurício Santana Dias
Para Micòl
Certo, quem dá ouvidos ao coração tem sempre algo a falar sobre o que vai
ser. Mas o que sabe o coração? Apenas um pouco daquilo que já
aconteceu.
Alessandro Manzoni, Os noivos, capítulo VIII
Prólogo

Parte 1
1
2
3
4
5
6

Parte 2
1
2
3
4
5

Parte 3
1
2
3
4
5
6
7

Parte 4
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10

Epílogo

Autor

Créditos
Prólogo

Há vários anos eu desejava escrever a respeito dos Finzi-Contini — sobre


Micòl e Alberto, sobre o professor Ermanno e dona Olga — e tantos outros
que moravam ou frequentavam, como eu, a casa da avenida Ercole I d'Este,
em Ferrara, pouco antes de estourar a última guerra. Mas só tive o impulso
e a determinação de fazê-lo efetivamente um ano atrás, em um domingo de
abril de 1957.
Foi durante um de meus passeios habituais de fim de semana. Com um
grupo de uns dez amigos distribuídos em dois automóveis, seguimos pela
estrada Aurelia logo depois do almoço, sem um rumo preciso. A poucos
quilômetros de Santa Marinella, atraídos pelas torres de um castelo
medieval que haviam despontado de repente à esquerda, viramos em uma
estradinha de terra batida e então nos pusemos a passear a esmo pelo areal
desolado que se estendia aos pés da fortaleza: esta, examinada de perto, era
bem menos medieval do que nos parecera à distância, quando a avistáramos
da autoestrada, perfilando-se à contraluz sobre o deserto azul e ofuscante do
Tirreno. Atingidos em cheio pelo vento, com areia nos olhos, ensurdecidos
pelo estrondo da ressaca e sem nem ao menos podermos visitar o interior do
castelo, pois não tínhamos a permissão de não sei que instituição de crédito
romana, nos sentimos profundamente frustrados e irritados por termos
querido sair de Roma em um dia como aquele, que agora, à beira-mar, nos
parecia de uma inclemência pouco menos que invernal.
Caminhamos à toa por cerca de vinte minutos, seguindo a curvatura da
praia. A única pessoa contente da comitiva parecia ser uma menina de nove
anos, filha do jovem casal em cujo carro eu viajava. Galvanizada pelo
vento, pelo mar, pelos loucos remoinhos de areia, Giannina desafogava
livremente sua natureza alegre e expansiva. Embora a mãe tivesse tentado
proibi-la, ela tirara os sapatos e as meias. E avançava contra as ondas que
vinham bater na orla, deixando-se banhar as pernas até acima dos joelhos. E
tinha todo o ar de uma intensa diversão: tanto que dali a pouco, quando
regressamos ao carro, vi passar em seus olhos negros e vívidos, cintilando
sobre duas bochechas tenras e afogueadas, uma nítida sombra de lamento.
Voltamos à Aurelia e, instantes depois, chegamos ao entroncamento de
Cerveteri. Como tínhamos decidido regressar imediatamente a Roma, eu
estava certo de que seguiríamos em frente. Mas justo naquele ponto nosso
carro reduziu a marcha mais que o necessário, e o pai de Giannina pôs o
braço para fora da janela. Fazia sinal ao segundo carro, atrás de nós uns
trinta metros, de que tinha a intenção de virar à esquerda. Mudara de ideia.
Assim, vimo-nos percorrendo a lisa estradinha asfaltada que leva em um
instante a um pequeno vilarejo de casas em sua maioria novas, e que dali,
enveredando em serpentina pelas colinas da parte interna, conduz à famosa
necrópole etrusca. Ninguém pedia explicações, e eu também permaneci
calado.
Saindo do povoado, a estrada em leve aclive fez o carro ir mais devagar.
Agora passávamos perto dos chamados montarozzi, que se espalham até
Tarquinia e além, mais concentrados na área das colinas que no litoral,
recobrindo todo aquele trecho de território do Lácio ao norte de Roma, que
não é, pois, senão um imenso e quase ininterrupto cemitério. Aqui a grama
é mais verde, mais densa e mais escura que na planície circundante, entre a
Aurelia e o Tirreno: prova de que o eterno siroco que sopra do mar chega
aqui em cima depois de perder grande parte da salsugem, e que a umidade
das montanhas não distantes começa a exercer seu influxo benéfico na
vegetação.
“Aonde estamos indo?”, perguntou Giannina.
Marido e mulher sentavam-se ambos no assento da frente, com a menina
no meio. O pai tirou a mão do volante e a pousou nos cachos castanhos da
filha.
“Vamos dar uma olhada nuns túmulos de quatro ou cinco mil anos
atrás”, respondeu com o tom de quem começa a contar uma fábula e por
isso não se preocupa em exagerar nos números. “Túmulos etruscos.”
“Que tristeza!”, suspirou Giannina, apoiando a nuca no encosto.
“Por que tristeza? Na escola lhe disseram quem foram os etruscos?”
“No livro de história os etruscos estão no início, perto dos egípcios e dos
judeus. Mas escute, papai: quem você acha que eram mais antigos, os
etruscos ou os judeus?”
O pai caiu na risada.
“Tente perguntar a este senhor”, disse, com o polegar apontado para
mim.
Giannina se virou. Com a boca ocultada pela borda do encosto, lançou-
me uma rápida mirada, severa, cheia de desconfiança. Esperei que repetisse
a pergunta. Mas nada: no mesmo instante voltou a olhar para a frente.
Seguindo pela estrada, sempre em suave aclive e ladeada por uma fila
dupla de ciprestes, grupos de moradores locais, rapazes e moças, vinham ao
nosso encontro. Era o passeio de domingo. Andando de braços dados,
algumas jovens às vezes formavam correntes femininas de cinco ou seis.
Estranhas, dizia a mim mesmo enquanto as observava. No instante em que
passávamos por elas, todas nos perscrutavam através dos vidros com olhos
risonhos, nos quais a curiosidade se misturava a uma espécie de orgulho
bizarro e mal dissimulado desprezo. Realmente estranhas. Bonitas e livres.
“Papai”, Giannina perguntou de novo, “por que os túmulos antigos dão
menos tristeza que os mais novos?”
Um bando ainda mais numeroso de jovens que ocupavam boa parte da
via, cantando sem se importar em dar passagem, forçou o carro a quase
parar. O interpelado engrenou a segunda.
“Dá para entender”, respondeu. “Os mortos recentes estão mais
próximos de nós, e justamente por isso gostamos mais deles. Mas os
etruscos, veja, morreram há tanto tempo”, e mais uma vez ele ia contando
uma fábula, “que é como se nunca tivessem existido, como se sempre
tivessem estado mortos.”
Outra pausa, mais longa. Ao fim da qual (já estávamos bem perto da
clareira em frente à entrada da necrópole, cheia de automóveis e de ônibus)
coube a Giannina ministrar sua lição.
“Mas agora que você falou isso”, proferiu com doçura, “me fez pensar
que os etruscos viveram de verdade, e também gosto deles como de todos
os outros.”
Assim, a visita à necrópole transcorreu sob o signo da extraordinária
ternura dessa frase. Foi Giannina quem nos predispôs a entender. Foi ela, a
mais nova, que de algum modo nos levou pelas mãos.
Descemos então ao túmulo mais importante, reservado à nobre família
Matuta: uma sala baixa e subterrânea, que acolhe uns vinte leitos fúnebres
dispostos em seus nichos nas paredes de tufo, densamente adornada de
estuques coloridos representando os objetos queridos e fiéis da vida de todo
dia, enxadas, cordas, machados, tesouras, pás, facas, arcos, flechas, até cães
de caça e pássaros do pântano. Enquanto isso, afastada de bom grado toda
veleidade residual de escrúpulo filológico, eu tentava imaginar
concretamente o que poderia significar para os etruscos tardios de
Cerveteri, etruscos de tempos posteriores à conquista romana, a
frequentação assídua de seu cemitério urbano.
Exatamente como ainda hoje, nas cidades da província italiana, a
cancela do campo-santo é o término obrigatório de todo passeio vespertino,
vinham das habitações vizinhas quase sempre a pé — eu fantasiava —,
reunidos em grupos de parentes ou consanguíneos, de simples amigos,
quem sabe em bandos de jovens semelhantes às que encontramos agora há
pouco na estrada, ou em duplas com a pessoa amada, e mesmo sós, para
depois adentrar entre os túmulos cônicos, sólidos e maciços como os
bunkers de que os soldados alemães constelaram em vão a Europa durante
essa última guerra, túmulos que decerto se pareciam, tanto externa quanto
internamente, com as moradias fortificadas dos vivos. Sim, tudo estava
mudando — deviam dizer a si mesmos enquanto caminhavam pela rua
calçada que atravessava o cemitério de uma ponta a outra, em cujo centro as
rodas de ferro dos transportes gravaram pouco a pouco, durante séculos,
dois profundos sulcos paralelos. O mundo não era mais o de outrora,
quando a Etrúria, com sua confederação de cidades-Estado livres e
aristocráticas, dominava a península Itálica quase por inteiro. Novas
civilizações, mais rústicas e populares, mas também mais fortes e
aguerridas, agora dominavam o campo. Mas, no fundo, o que importava?
Ultrapassada a soleira do cemitério onde cada um deles possuía uma
segunda casa, e dentro dela o leito já pronto sobre o qual, em breve,
repousaria ao lado dos pais, a eternidade já não devia parecer uma ilusão,
uma fábula, uma promessa de sacerdotes. O futuro atropelaria o mundo a
seu talante. Ali, no entanto, no breve recinto consagrado aos mortos
familiares; no coração daquelas tumbas onde, junto aos mortos, houvera o
cuidado de baixar muitas das coisas que tornavam a vida bela e desejável;
naquele canto de mundo protegido, abrigado, privilegiado; pelo menos ali
(e seu pensamento e sua loucura ainda sopravam, depois de vinte e cinco
séculos, ao redor dos túmulos cônicos, recobertos de relva selvagem), pelo
menos ali jamais poderia mudar.
Quando fomos embora, já estava escuro.
De Cerveteri a Roma a distância é curta, em geral basta uma hora de
carro para fazer o percurso. Contudo, naquela noite a viagem não foi tão
breve. No meio do caminho, a Aurelia começou a se congestionar de carros
vindos de Ladispoli e de Fregene. Fomos forçados a avançar quase como
quem anda.
E então, mais uma vez, na tranquilidade e no torpor (Giannina já tinha
até adormecido), eu regressava com a memória aos anos de minha primeira
juventude, a Ferrara e ao cemitério judaico situado ao fundo da Via
Montebello. Revia os prados extensos pontilhados de árvores, as lápides e
os cipos mais densos ao longo das muralhas e das divisões internas, e, como
se o tivesse diante dos olhos, o mausoléu monumental dos Finzi-Contini:
um túmulo feio, é verdade — sempre ouvi esse comentário em minha casa,
desde criança —, mas ainda assim imponente e significativo, se mais não
fosse pela própria importância da família.
E meu coração se apertava como nunca ao pensar que naquele túmulo,
erigido, ao que parece, para garantir o repouso perpétuo de seu primeiro
construtor — dele e de sua descendência —, apenas um, dentre todos os
Finzi-Contini que eu conhecera e amara, ao final alcançara esse repouso.
Com efeito, fora sepultado ali somente Alberto, o filho mais velho, morto
em 1942 de um linfogranuloma; ao passo que Micòl, a segunda filha, e o
pai, o professor Ermanno, e a mãe, dona Olga, e dona Regina, a velhíssima
mãe paralítica de dona Olga, deportados todos para a Alemanha no outono
de 1943, sabe-se lá se tiveram uma sepultura qualquer.
Parte 1
1

O túmulo era grande, maciço, de fato imponente: uma espécie de templo


entre o antigo e o oriental, como era moda nos cenários da Aída e do
Nabuco em nossos teatros de ópera até poucos anos atrás. Em qualquer
outro cemitério, inclusive no contíguo Campo-Santo Municipal, um
mausoléu tão pretensioso não teria chamado a atenção; ao contrário,
confundido na massa, talvez até passasse despercebido. Mas, no nosso, era
o único. E assim, embora surgisse bastante longe do portão de entrada, ao
fundo de um campo abandonado onde havia mais de meio século ninguém
era enterrado, ele despontava e logo saltava aos olhos.
Quem confiara a construção a um distinto professor de arquitetura,
responsável na cidade por vários outros massacres contemporâneos, tinha
sido Moisè Finzi-Contini, bisavô paterno de Alberto e Micòl, morto em
1863, logo após a anexação dos territórios das legações pontifícias ao Reino
da Itália e da sucessiva abolição definitiva, também em Ferrara, do gueto
dos judeus. Grande proprietário de terras, “reformador da agricultura
ferrarense” — como se lia na lápide que a prefeitura, a fim de eternizar seus
méritos de “italiano e judeu”, mandara afixar ao longo da escadaria do
templo da Via Mazzini, no alto do terceiro andar —, mas de gosto artístico
obviamente não muito refinado, uma vez tomada a decisão de erigir um
mausoléu sibi et suis, por fim o deixou a cargo de outros. Os anos pareciam
belos, exuberantes: tudo convidava à esperança, a ousar livremente.
Tomado de euforia pela recém-conquistada igualdade civil, a mesma que na
juventude, durante a República Cisalpina, lhe permitira adquirir seus
primeiros mil hectares de áreas aterradas, era compreensível que o rígido
patriarca fosse induzido a não poupar com as despesas naquela ocasião
solene. É muito provável que houvesse dado carta branca ao distinto
professor de arquitetura. E com tanto mármore de qualidade à disposição,
branco de Carrara, rosa-carne de Verona, cinza manchado de preto,
mármore amarelo, mármore azul, mármore esverdeado, ele por sua vez
perdeu totalmente a cabeça.
O resultado foi um inacreditável pastiche que misturava ecos
arquitetônicos do mausoléu de Teodorico em Ravena, dos templos egípcios
de Luxor, do barroco romano e até da Grécia arcaica de Cnossos, como
evidenciam as colunas atarracadas do peristilo. Mas assim foi. Aos poucos,
ano após ano, o tempo, que, a seu modo, sempre ajusta tudo, acabou pondo
em harmonia aquela inverossímil mescla de estilos heterogêneos. Moisè
Finzi-Contini, aqui nomeado “têmpera austera de trabalhador incansável”,
se foi em 1863. Sua esposa, Allegrina Camaioli, “anjo da casa”, partiu em
1875. Em 1877, ainda jovem — seguido vinte anos depois, em 1898, pela
esposa Josette, dos barões Artom do ramo de Treviso —, se foi seu filho
único, o engenheiro Menotti. Por fim, a manutenção da capela, que acolhera
em 1914 apenas mais um membro da família, Guido, um menino de seis
anos, passou claramente a mãos cada vez menos dedicadas à limpeza, ao
conserto e ao reparo dos danos que se faziam sempre necessários, mas
sobretudo a conter o assédio tenaz da vegetação circunstante. Os tufos de
mato, um mato escuro, quase preto, de consistência pouco menos que
metálica, e as samambaias e urtigas, os cardos, as papoulas foram então
avançando e invadindo o espaço com liberdade crescente. De modo que em
1924, 1925, a uns sessenta anos de sua inauguração, quando eu, menino,
pude vê-la pela primeira vez, a capela fúnebre dos Finzi-Contini (“um
verdadeiro horror”, como sempre a definia minha mãe, cuja mão eu
segurava) já se mostrava mais ou menos como é agora, pois havia tempos
não sobrara mais ninguém diretamente interessado em cuidar dela. Meio
afundada no verde selvático, com a superfície de seus mármores coloridos,
originalmente lisa e brilhante, agora opaca e cinzenta pelo acúmulo de
poeira, desgastada no teto e nos degraus externos por canículas e geadas, já
então ela aparecia transformada naquele algo indefinível, rico e
maravilhoso em que se transmuda qualquer objeto deixado muito tempo
submerso.
Quem sabe como e por que nasce uma vocação à solidão. O fato é que o
mesmo isolamento, a mesma separação que os Finzi-Contini impuseram a
seus defuntos também circundava a outra casa que eles possuíam, aquela
que ficava ao fundo da avenida Ercole I d'Este. Imortalizada por Giosue
Carducci e Gabriele d'Annunzio, essa via de Ferrara é tão conhecida pelos
apaixonados por arte e poesia em todo o mundo que qualquer descrição que
se fizesse dela seria necessariamente supérflua. Estamos, como se sabe,
bem no coração da parte norte da cidade que foi acrescentada durante o
Renascimento ao estreito burgo medieval, e que justo por isso se chama
Addizione Erculea. Ampla; reta como uma espada do Castelo à Muralha
degli Angeli; margeada em toda a extensão por escuros volumes de
habitações senhoriais; com aquela sua tonalidade distante e sublime de
vermelho-tijolo, verde-vegetal e céu que parece realmente nos levar ao
infinito, a avenida Ercole I d'Este é tão magnífica, tal é seu apelo turístico,
que a administração social-comunista, responsável pela prefeitura de
Ferrara há mais de quinze anos, se deu conta da necessidade de não tocar
nela, de defendê-la com todo o rigor de qualquer especulação imobiliária ou
comercial, enfim, de conservar íntegro seu original caráter aristocrático.
A avenida é célebre; e está substancialmente intacta.
Todavia, no que diz respeito em específico à casa Finzi-Contini, embora
até hoje se chegue ali pela Ercole I — se bem que, para alcançá-la, seja
preciso percorrer mais de meio quilômetro suplementar através de um
imenso espaço pouco ou nada cultivado; embora ela incorpore até hoje
aquelas históricas ruínas de um edifício quinhentista, outrora residência ou
“mansão de férias” da família d'Este, adquiridas pelo mesmo Moisè em
1850 e que mais tarde, à força de adaptações e de sucessivos restauros
feitos pelos herdeiros, foram transformadas em uma espécie de castelo
neogótico, à inglesa; malgrado todos os motivos de interesse
remanescentes, quem sabe algo sobre ela, eu me pergunto, quem ainda se
lembra? O Guia do Touring não a menciona, e isso justifica os turistas de
passagem. Porém, na própria Ferrara, nem mesmo os poucos judeus que
restaram da minguante comunidade israelita parecem recordá-la.
O Guia do Touring não a menciona, e isso sem dúvida é ruim. Mas
sejamos justos: o jardim, ou mais precisamente o enorme parque que
circundava a casa Finzi-Contini antes da guerra e se estendia de um lado,
por quase dez hectares, até o pé da Muralha degli Angeli e, de outro, até a
barreira da Porta San Benedetto, constituindo por si só algo raro e
excepcional (os guias do Touring do início do século nunca deixavam de
mencioná-lo com um tom curioso, entre o lírico e o mundano), hoje não
existe mais, literalmente. Todas as árvores de tronco largo, tílias, olmos,
faias, choupos, plátanos, castanheiros, pinheiros, abetos, lariços, cedros-do-
líbano, ciprestes, carvalhos, azinheiras e até palmeiras e eucaliptos,
plantadas às centenas por Josette Artom, foram derrubadas nos últimos dois
anos da guerra para produzir lenha, e há um bom tempo o terreno voltou a
ser como era antes, quando Moisè Finzi-Contini o adquiriu dos marqueses
Avogli: um dos tantos hortos existentes dentro das muralhas urbanas.
Restaria a casa principal. Mas o grande e singular edifício, severamente
danificado por um bombardeio em 1944, ainda hoje está ocupado por umas
cinquenta famílias de desabrigados, pertencentes àquele mesmo
subproletariado semelhante à plebe das periferias romanas, que continua se
espremendo sobretudo nas passagens do Palazzone da Via Mortara: gente
embrutecida, selvagem, intolerante (meses atrás, pelo que eu soube,
receberam a pedradas o inspetor municipal de Saúde, que fora até ali de
bicicleta para uma vistoria), pessoas que, tentando desencorajar qualquer
plano eventual de despejo por parte da Superintendência dos Monumentos
da Emília-Romanha, parecem ter tido a bela ideia de raspar das paredes os
últimos resquícios de pinturas antigas.
Ora, por que mandar pobres turistas para uma cilada dessas? — imagino
que se perguntaram os organizadores da edição mais recente do guia. E,
aliás, para ver o quê?
2

Se era possível dizer que o túmulo de família dos Finzi-Contini era um


“horror” e debochar dele, já sobre a casa, isolada entre os mosquitos e as rãs
do canal Panfilio e as fossas de esgoto, invejosamente apelidada de “magna
domus”, sobre essa, não, nem mesmo depois de cinquenta anos era possível
escarnecê-la. Ah, mas não precisava muito para ainda se sentir ofendido
com aquilo! Bastava, sei lá, ter de passar ao longo do interminável muro
que delimitava o jardim pelo lado da avenida Ercole I d'Este, muro
interrompido, mais ou menos na metade, por um solene portão de carvalho
escuro desprovido de qualquer tipo de puxador; ou, do outro lado, pelo alto
da Muralha degli Angeli sobre o parque, penetrar com a vista no
emaranhado selvático dos troncos, dos galhos e da folhagem abaixo, até
entrever o estranho e agudo perfil da morada patrícia, tendo muito atrás de
si, às margens de uma clareira, a mancha parda da quadra de tênis — e logo
a velha indelicadeza do desconhecimento e da separação tornava a
machucar, a queimar quase como no princípio.
Que ideia de novo-rico, que ideia bizarra!, meu próprio pai costumava
repetir com uma espécie de exaltado rancor, toda vez que lhe ocorria tocar
no assunto.
Certo, certo, admitia: os ex-proprietários do lugar, os marqueses Avogli,
tinham sangue “azulíssimo” nas veias; jardim e ruínas hasteavam ab
antiquo o mui decorativo nome de Barchetto del Duca: tudo coisa
excelente, é claro!, tanto mais que Moisè Finzi-Contini, a quem era
reconhecido o indubitável mérito de ter “visto” a ocasião, ao fechar o
negócio não deve ter desembolsado mais que os proverbiais dois tostões.
Mas e daí?, acrescentava no mesmo instante. Era realmente preciso que,
apenas por isso, o filho de Moisè, Menotti, chamado, não sem sentido, pela
cor de seu excêntrico casaco forrado de marta, “al matt mugnàga”, o
damasco maluco, tomasse a decisão de transferir-se com a mulher, Josette,
para uma zona da cidade tão fora de mão, hoje insalubre, imagine então na
época!, e além disso tão deserta, melancólica e acima de tudo inadequada?
E que eles, os pais, tivessem paciência, pois pertenciam a outra época e
no fundo podiam perfeitamente bancar o luxo de investir todo o dinheiro
que quisessem em pedras antigas. Que tivesse paciência sobretudo ela,
Josette Artom, dos barões Artom do ramo de Treviso (mulher magnífica em
seus melhores dias: loura, seios fartos, olhos azul-celeste, e de fato a mãe
era de Berlim, uma Olschky), que, além de delirar pela casa Savoia a ponto
de em maio de 1898, pouco antes de morrer, ter tomado a iniciativa de
mandar um telegrama aplaudindo o general Bava Beccaris, que canhoneou
aqueles pobres-diabos socialistas e anarquistas milaneses, além de
admiradora fanática da Alemanha e do elmo pontiagudo de Bismarck,
nunca tivera o cuidado, desde que o marido, Menotti, eternamente a seus
pés, a dispusera em seu Walhalla, de disfarçar sua aversão ao ambiente
judeu de Ferrara, para ela demasiado estreito — como dizia — e, no fundo,
embora a coisa fosse bastante grotesca, seu fundamental antissemitismo. No
entanto, o professor Ermanno e dona Olga (ele, um homem de estudos, ela,
uma Herrera de Veneza, ou seja, nascida em uma família sefardita ocidental
muito boa, sem dúvida, mas bastante arruinada, e de resto observantíssima),
que raça de gente eles meteram na cabeça que também eram? Nobres
autênticos? Mas se entende, ah, se entende: a perda do filho Guido, o
primogênito morto em 1914 com apenas seis anos, após um ataque de
paralisia infantil de tipo americano, fulminante, contra o qual nem mesmo
Corcos pôde fazer nada, devia ter sido para eles um golpe duríssimo:
especialmente para ela, dona Olga, que desde então não tirou mais o luto.
Mas afora isso havia algum motivo para que — ora, ora —, de tanto
viverem apartados, também lhes subisse à cabeça uma ideia dessas,
recaindo nas mesmas manias absurdas de Menotti Finzi-Contini e de sua
digníssima esposa? Aristocracia coisa nenhuma! Em vez de se dar tantos
ares, seria bem melhor, ao menos para eles, não se esquecerem de quem
eram, de onde vinham, se é certo que os judeus — sefarditas ou
asquenazitas, ponentinos ou levantinos, tunisinos, berberes, iemenitas e até
etíopes —, em qualquer parte da terra e sob qualquer céu que a história os
tenha dispersado, são e sempre serão judeus, vale dizer, parentes próximos.
Mas o velho Moisè não se dava ares, longe disso! Não tinha nuvens
nobiliárquicas na cabeça! Quando morava no gueto, na Via Vignatagliata,
número 24, na casa onde, resistindo às pressões da arrogante nora de
Treviso, impaciente por se mudar o mais rápido possível para o Barchetto
del Duca, desejara a todo custo morrer, era ele mesmo quem ia fazer as
compras, carregando sua boa cesta debaixo do braço: justo ele que,
apelidado por isso mesmo de “al gatt”, o gato, tirara sua família do nada.
Porque uma coisa era certa: se não havia dúvida de que “la” Josette descera
a Ferrara fazendo-se acompanhar de um grande dote, que consistia em uma
villa na zona de Treviso afrescada por Tiepolo, em um polpudo cheque e, é
claro, em joias, muitas joias, que nas estreias do Municipal, contra o fundo
de veludo vermelho de seu camarote, atraíam ao seu reluzente decote os
olhares de todo o teatro, não menos acertado era que tinha sido al gatt, e
apenas ele, quem amealhara nos baixios ferrarenses, entre Codigoro, Massa
Fiscaglia e Jolanda di Savoia, os milhares de hectares nos quais ainda hoje
se fundava o grosso do patrimônio familiar. O jazigo monumental no
cemitério: aí estava o único erro, o único pecado (sobretudo de gosto), do
qual se podia acusar Moisè Finzi-Contini. Além disso, nada.
Era o que dizia meu pai, sobretudo na Páscoa, durante os longos jantares
que continuaram ocorrendo em nossa casa mesmo depois da morte do
nonno Raffaello, para os quais vinham uns vinte parentes e amigos; mas
também no Kippur, quando os mesmos parentes e amigos voltavam para
romper o jejum.
Mas me lembro de um jantar de Páscoa em que, às costumeiras críticas
— amargas, genéricas, sempre as mesmas, feitas sobretudo pelo gosto de
evocar as velhas histórias da comunidade —, meu pai acrescentou algumas
novas e surpreendentes.
Foi em 1933, ano da chamada “celebração Decenal”. Graças à
“clemência” do Duce, que de repente, quase inspirado, decidira abrir os
braços a todo “agnóstico ou adversário de ontem”, no âmbito de nossa
comunidade o número de inscritos no Partido Fascista também pôde subir
de repente a noventa por cento. E meu pai, que se sentava na ponta da mesa,
em seu posto habitual à cabeceira, o mesmo posto de onde o nonno
Raffaello pontificara por várias décadas com bem mais autoridade e rigor,
não deixara de regozijar-se com o evento. O rabino, dr. Levi, fizera muito
bem — dizia — ao mencionar o fato em seu discurso, pronunciado
recentemente na escola italiana, quando, na presença das maiores
autoridades locais — o prefeito, o secretário federal, o interventor, o general
de brigada e comandante da guarnição —, comemorou o Estatuto!
Apesar disso, papai não estava de todo contente. Em seus olhos azuis de
menino, cheios de ardor patriótico, eu lia uma sombra de desapontamento.
Ele devia ter percebido um embaraço, um pequeno obstáculo inesperado e
incômodo.
De fato, tendo a certa altura começado a contar nos dedos quantos de
nós, “judìm ferrarenses”, haviam continuado de fora, e chegando por fim a
Ermanno Finzi-Contini, que na verdade nunca se filiara, mas no fundo,
levando ainda em conta o conspícuo patrimônio agrícola de que era
proprietário, nunca se entendeu muito bem o porquê; subitamente, como se
irritado consigo e com a própria discrição, decidiu dar notícia de dois
acontecimentos curiosos, talvez não relacionados entre si — advertiu —,
mas nem por isso menos significativos.
Primeiro: que quando o advogado Geremia Tabet, em sua condição de
Sansepolcrista e amigo íntimo do secretário federal, dirigiu-se ao Barchetto
del Duca precisamente para oferecer ao professor a carteirinha já
preenchida com seu nome, não só teve de aceitá-la de volta, mas dali a
pouco, muito gentilmente, sem dúvida, porém de modo decidido, viu-se
convidado a se retirar do local.
“E com que desculpa?”, indagou alguém, em surdina. “Nunca se soube
que Ermanno Finzi-Contini fosse um leão.”
“Com que desculpa recusou?”, meu pai desandou a rir. “Ah, com alguma
das suas, quer dizer, que ele é um estudioso (aliás, queria muito saber de
qual matéria!), que é velho demais, que nunca tratou de política em sua vida
etc. etc. De resto, o amigo foi esperto. Deve ter notado a expressão enfezada
de Tabet e então, paf!, deixou deslizar no bolso do outro cinco cédulas de
mil.”
“Cinco mil liras!”
“Com certeza. A serem remetidas em favor das Colônias Marítimas e
Montanhesas da Obra Nacional Balilla. Uma bela ideia, não? Mas escutem
a segunda novidade.”
E passou a informar aos comensais como o mesmo professor, com carta
endereçada alguns dias antes ao conselho da comunidade por meio do
advogado Renzo Galassi-Tarabini (podia ter escolhido um representante
mais hipócrita, papa-hóstia e mais carola que esse?), havia solicitado de
modo oficial a permissão para restaurar às próprias custas, “para uso da
família e de eventuais interessados”, a pequena e antiga sinagoga espanhola
da Via Mazzini, havia pelo menos três séculos subtraída do culto e
transformada em depósito de despejo.
3

Em 1914, quando o pequeno Guido morreu, o professor Ermanno tinha


quarenta e nove anos, e dona Olga, vinte e quatro. O menino se sentiu mal,
foi posto na cama com febre altíssima e logo caiu em profundo torpor.
O dr. Corcos foi chamado às pressas. Depois de um mudo e interminável
exame, feito com o cenho fechado, Corcos ergueu bruscamente a cabeça e
cravou os olhos, grave, primeiro no pai e em seguida na mãe. As duas
miradas do médico da família foram longas, severas, estranhamente
desdenhosas. Entretanto, sob os grossos bigodes umbertinos já totalmente
grisalhos, seus lábios se dobraram na careta amarga, quase de vitupério, dos
casos sem solução.
“Não há mais nada a fazer”, foi o que quis dizer o dr. Corcos com
aqueles olhares e aquela careta. Mas, quem sabe, talvez fosse algo mais. Ou
seja, que também ele, dez anos atrás (e vai saber se mencionou o episódio
naquele mesmo dia, antes de se despedir, ou se, como acontece, apenas
cinco dias depois, dirigindo-se ao nonno Raffaello, enquanto ambos
seguiam passo a passo o imponente funeral), também ele havia perdido um
menino, o seu Ruben.
“Também conheci esse sofrimento, sei bem o que significa ver morrer
um filho de cinco anos”, disse de repente Elia Corcos.
De cabeça baixa e com as mãos apoiadas no guidão da bicicleta, o nonno
Raffaello caminhava a seu lado. Parecia estar contando um a um os
pedriscos da avenida Ercole I d'Este. A essas palavras, de fato inusitadas na
boca do amigo cético, virou-se espantado para olhá-lo.
Afinal, o que é que sabia o próprio Elia Corcos? Tinha examinado com
vagar o corpo inerte do menino, decretado para si o prognóstico infausto, e
então, ao erguer os olhos, os cravara na expressão petrificada dos dois
genitores: o pai, já um velho, a mãe, ainda jovem. Por quais caminhos teria
podido descer e ler naqueles corações? E quem mais o faria, no futuro? O
epitáfio dedicado ao pequeno morto no túmulo-monumento do cemitério
israelita (sete linhas brandamente gravadas e pintadas em um humilde
retângulo vertical de mármore branco…) diria apenas:

Ai!
GUIDO FINZI-CONTINI
(1908-1914)
eleito em forma e espírito
seus pais se preparavam
para amá-lo cada vez mais
e não para chorá-lo

Cada vez mais. Um soluço contido, e só. Um peso no coração não


compartilhado com nenhuma outra pessoa no mundo.
Alberto nascera em 1915; Micòl, em 1916: tínhamos mais ou menos a
mesma idade. Não foram mandados nem para a escola judaica da Via
Vignatagliata, onde Guido frequentara o primeiro ano preparatório sem o
concluir, nem, mais tarde, para o liceu-ginásio público G. B. Guarini,
precoce caldeirão da melhor sociedade judaica e não judaica da cidade, e
também um local de convívio. Em vez disso estudavam em casa, tanto
Alberto quanto Micòl, com o professor Ermanno interrompendo de vez em
quando seus estudos de geografia, física e história das comunidades
judaicas da Itália a fim de vigiar seus progressos de perto. Eram os anos
loucos, mas a seu modo generosos, do primeiro fascismo na Emília-
Romanha. Cada ação e cada comportamento eram julgados — inclusive por
quem, como meu pai, citava de bom grado Horácio e sua aurea mediocritas
— por meio do crivo grosseiro do patriotismo ou do derrotismo. Mandar os
próprios filhos à escola pública era em geral considerado patriótico. Não
mandá-los, derrotismo: e, portanto, para todos os que os mandavam, uma
atitude de certo modo ofensiva.
Não obstante, apesar de tão segregados, Alberto e Micòl Finzi-Contini
sempre mantiveram uma frágil ligação com o ambiente externo e com os
garotos que, como nós, frequentavam a escola pública.
Eram dois os professores do Guarini que nos serviam de ponte.
O professor Meldolesi, por exemplo, nosso docente no quarto ginasial de
italiano, latim, grego, história e geografia, pegava a bicicleta em tardes
alternadas e, do bairro de casinhas que surgira naqueles anos além da Porta
San Benedetto, onde morava sozinho num cômodo mobiliado de cuja vista
e exposição ele frequentemente se gabava, ia até o Barchetto del Duca e lá
ficava às vezes três horas seguidas. O mesmo fazia a sra. Fabiani, titular de
matemática.
Na verdade, da professora nunca se soube nada. De origem bolonhesa,
viúva sem filhos já passada dos cinquenta anos, muito devota, durante as
sabatinas sempre a víamos como se estivesse a ponto de ser arrebatada em
êxtase. Arregalava continuamente os olhos azul-celeste, flamengos, e
balbuciava para si. Rezava. Rezava por nós com certeza, coitados, quase
todos incapazes para a álgebra; mas talvez também para apressar a
conversão ao catolicismo dos senhores israelitas cuja casa ela visitava duas
vezes por semana. A conversão do professor Ermanno e de dona Olga, mas
também a dos dois garotos, sobretudo Alberto, tão inteligente, e Micòl, tão
viva e graciosa, devia parecer-lhe uma missão muito importante, muito
urgente, para que se arriscasse a comprometer sua probabilidade de êxito
com alguma indiscrição banal na escola.
Ao contrário, o professor Meldolesi não omitia absolutamente nada.
Nascido em Comacchio de uma família camponesa, educado em seminário
até o liceu (tinha muito do pároco, do pequeno, arguto e quase feminino
pároco de aldeia), passou depois a estudar letras em Bolonha a tempo de
assistir às últimas lições de Giosue Carducci, de quem se vangloriava ser
“humilde discípulo”; as tardes transcorridas no Barchetto del Duca, em um
ambiente saturado de memórias renascentistas, com o chá das cinco tomado
em companhia de toda a família — e dona Olga frequentemente voltava do
parque àquela hora, os braços cheios de flores —, e até mais tarde, em
certas ocasiões, na biblioteca, gozando até o anoitecer da douta conversa do
professor Ermanno, aquelas tardes extraordinárias evidentemente
representavam para ele algo de muito precioso para que não as
transformasse em matéria, inclusive conosco, de contínuos discursos e
divagações.
Seu entusiasmo e agitação ultrapassaram todos os limites desde a noite
em que o professor Ermanno lhe revelou que Carducci, em 1875, foi
hóspede de seus pais por uns dez dias, mostrando-lhe então o aposento que
ele havia ocupado, deixando-o tocar a cama em que ele dormira e
entregando-lhe por fim, para que levasse para casa e assim pudesse
examiná-lo confortavelmente, um “maço” de cartas autógrafas enviadas
pelo poeta à sua mãe. A ponto de convencer-se, e de tentar nos convencer
também, de que o famoso verso da Canção de Legnano:

Ó loura, ó bela imperatriz, fiel

no qual são claramente prenunciados os ainda mais famosos:

De onde vieste? E quais a nós séculos


tão branda e bela te transmitiram…[1]

e, ainda, que a clamorosa conversão do grande filho da Maremma ao


“eterno feminino real” de Savoia tivessem sido justamente inspirados pela
avó paterna de seus alunos particulares Alberto e Micòl Finzi-Contini. Ah,
que magnífico tema seria — suspirara certa vez na aula o professor
Meldolesi — para um artigo a ser enviado à mesma Nuova antologia em
que Alfredo Grilli, o amigo e colega Grilli, vinha publicando havia tempos
seus agudos comentários sobre Renato Serra! Mais cedo ou mais tarde,
usando toda a delicadeza necessária ao caso, é claro, ele pensaria em um
modo de tocar no assunto com o proprietário das cartas. E quisera o céu que
o professor, levando em conta a quantidade de anos passados, e dada a
importância e, obviamente, o perfeito decoro de uma correspondência em
que Carducci se dirigia à dama apenas em termos de “amável baronesa”, de
“anfitriã gentilíssima” e semelhantes, quisera o céu que ele não recusasse!
Na feliz hipótese de um sim, ele, Giulio Meldolesi — contanto que, além
disso, lhe fosse dado o explícito consentimento por parte de quem tinha
todo o direito de dá-lo ou negá-lo —, cuidaria de copiar uma a uma as
cartas, fazendo acompanhar aqueles santos fragmentos, aquelas centelhas
venerandas, de um comentário mínimo. Com efeito, o texto da
correspondência carecia de quê? De nada mais que uma introdução de
caráter geral, integrada se tanto por uma discreta nota histórico-filológica de
rodapé…
Mas, além dos docentes que tínhamos em comum, também havia as
provas reservadas aos alunos particulares — provas que ocorriam em junho,
simultaneamente a outros exames, como os de Estado e os dos alunos
internos —, as quais nos punham ao menos uma vez por ano em contato
com Alberto e Micòl.
Para nós, alunos internos, em especial se aprovados nos exames, aqueles
talvez fossem nossos melhores dias. Como se de repente já sentíssemos
saudades do tempo recém-terminado das aulas e dos deveres de casa, em
geral não achávamos melhor lugar para nos encontrarmos que o átrio do
instituto. Demorávamo-nos no hall vasto, fresco e penumbroso como uma
cripta, aglomerando-nos diante das grandes folhas brancas com as
avaliações finais, fascinados com nossos nomes e os de nossos colegas, que
só de lê-los assim, transcritos em preciosa caligrafia e expostos sob o vidro
por trás de uma leve grade de ferro, não acabavam nunca de nos espantar.
Era ótimo não ter mais nada a temer quanto à escola, era bom poder sair
dali a pouco para a luz límpida e azul das dez da manhã, sedutora, lá fora,
através do portão de entrada, bom ter pela frente longas horas de ócio e
liberdade a serem gastas como bem quiséssemos. Tudo magnífico, tudo
estupendo naqueles primeiros dias de férias. E que felicidade ao pensar
continuamente na partida próxima rumo ao mar ou à montanha, onde quase
se perdia a lembrança dos estudos que ainda esgotavam e angustiavam
tantos outros!
E lá estavam, dentre esses outros (em sua maioria, rústicos garotos do
campo, filhos de lavradores preparados para os exames pelo pároco do
vilarejo, que antes de transpor a soleira do Guarini miravam ao redor,
perdidos como bezerros levados ao matadouro), lá estavam Alberto e Micòl
Finzi-Contini, em pessoa: esses não iam nem um pouco perdidos,
acostumados que estavam, por anos, a se apresentar e triunfar. Talvez
levemente irônicos, sobretudo em relação a mim, quando, atravessando o
átrio, me notavam entre meus colegas e me cumprimentavam de longe com
um aceno e um sorriso. Mas sempre educados e gentis, talvez até em
excesso: como se fossem os anfitriões.
Nunca vinham a pé, muito menos de bicicleta, mas em uma carruagem:
um brum azul-escuro, de grandes rodas emborrachadas, os varais
vermelhos, e todo ele lustroso de vernizes, cristais e cromados.
A carruagem esperava em frente ao portão do Guarini por horas e horas,
só se deslocando para buscar uma sombra. E é preciso dizer que examinar
aquela estrutura de perto, em todos os seus detalhes, do corcel poderoso que
de quando em quando pisoteava calmamente, a cauda cortada e a crina
aparada curta, em escova, até a minúscula coroa nobiliárquica que
despontava prateada contra o azul das portinholas, obtendo às vezes do
cocheiro em uniforme simples, mas sentado na boleia como em um trono, a
permissão de subir em um dos estribos laterais a fim de que pudéssemos
admirar à vontade, narizes esmagados contra o vidro, o interior todo cinza e
felpudo, na penumbra (parecia uma sala de recepção: em um canto havia até
algumas flores dentro de um fino vaso oblongo, em forma de cálice…), isso
também podia ser um prazer, e sem dúvida era: um dos tantos prazeres
aventurosos de que sabiam ser pródigas aquelas manhãs maravilhosas,
adolescentes, da primavera tardia.
4

No que concerne a mim, pessoalmente, em minhas relações com Alberto e


Micòl sempre houve algo de mais íntimo. Os olhares de entendimento, os
acenos de confidência que irmão e irmã me endereçavam toda vez que nos
encontrávamos nos arredores do Guarini só aludiam a isso, eu bem sabia, e
diziam respeito a nós, apenas a nós.
Algo de mais íntimo. Mas o quê, exatamente?
Entende-se: em primeiro lugar, éramos judeus, e em todo caso isso seria
mais que suficiente. Na prática, entre nós podia nunca ter havido nada, nem
sequer o pouco que decorria de termos trocado algumas palavras de tempos
em tempos. Mas a circunstância de sermos quem éramos, de ao menos duas
vezes por ano, na Páscoa e no Kippur, nos apresentarmos com nossos
respectivos pais e parentes próximos diante de certo portão na Via Mazzini
— e amiúde ocorria que, depois de termos ultrapassado a entrada todos
juntos, o átrio seguinte, estreito e um tanto escuro, obrigasse os mais velhos
a chapeladas, apertos de mão e mesuras obsequiosas que no resto do ano
não tinham nenhuma oportunidade de trocar —, a nós, jovens, não era
preciso mais nada para que, encontrando-nos em outros lugares, sobretudo
na presença de estranhos, corresse imediatamente em nossos olhos a sombra
ou o riso de certa cumplicidade e conivência especiais.
Entretanto, em nosso caso, o fato de sermos judeus e de estarmos
inscritos nos registros da mesma comunidade israelita ainda contava bem
pouco. Porque, afinal de contas, o que significava a palavra “judeu”? Que
sentido podia ter, para nós, expressões como “comunidade israelita” ou
“universidade israelita”, uma vez que prescindiam completamente da
existência dessa intimidade ulterior, secreta, apreciável em seu valor apenas
por quem participava dela, decorrente do fato de nossas duas famílias, não
por escolha, mas em virtude de uma tradição mais antiga que qualquer
memória possível, pertencerem ao mesmo rito religioso, ou melhor, à
mesma “escola”? Quando nos encontrávamos no portão do templo, em
geral ao entardecer, após os laboriosos rapapés trocados na penumbra do
pórtico, quase sempre acabávamos subindo em grupo as íngremes escadas
que conduziam ao segundo andar onde, lotada de um povo misto, ecoando
sons de órgão e cantos como em uma igreja — e de tetos tão altos que, em
certas tardes de maio, com os janelões laterais abertos para a banda do sol
declinante, a certa altura nos víamos imersos em uma espécie de névoa
dourada —, se erigia a ampla sinagoga italiana. Pois bem, apenas nós,
judeus, crescidos na observância de um mesmo rito, podíamos realmente
nos dar conta do que significava ter o próprio banco de família na sinagoga
italiana, lá no segundo andar, e não embaixo, no primeiro, onde ficava a
sinagoga alemã, tão diferente em sua severa aglomeração, quase luterana,
de ricos chapéus de feltro burgueses. E havia mais: porque, embora se
soubesse, fora do ambiente estritamente judeu, que uma sinagoga italiana
era diversa de uma alemã, com tudo de específico que tal distinção
implicava no plano social e no plano psicológico, quem, além de nós, seria
capaz de fornecer informações precisas sobre “a gente da Via Vittoria”, só
para dar um exemplo? Era com essa frase que muitas vezes nos referíamos
aos membros das quatro ou cinco famílias que tinham o direito de
frequentar a pequena e separada sinagoga oriental, também chamada de
“fanese”, situada no terceiro andar de um antigo edifício de moradias da Via
Vittoria: os Da Fano da Via Scienze, os Cohen da Via Gioco del Pallone, os
Levi da Piazza Ariostea, os Levi-Minzi da alameda Cavour e não sei mais
que outros núcleos familiares isolados — em todo caso, tudo gente meio
estranha, tipos sempre um tantinho ambíguos e esquivos, para os quais a
religião, que na escola italiana assumira formas de popularidade e
teatralidade quase católicas, com reflexos evidentes até no caráter das
pessoas, na maioria extrovertidas e otimistas, muito padane,[2] permanecera
essencialmente um culto a ser praticado por poucos, em oratórios
semiclandestinos aos quais era mais adequado ir à noite, e passando de
esguelha pelas vielas mais escuras e menos conhecidas do gueto. Não, não,
apenas nós, nascidos e crescidos intramuros, podíamos realmente saber e
compreender essas coisas: sutilíssimas, irrelevantes, mas nem por isso
menos reais. Quanto aos outros, todos os outros, em primeiro lugar meus
muito queridos colegas de estudo e de brincadeiras diárias, era inútil pensar
em iniciá-los em matéria tão privada. Pobres almas! Nesse sentido, deviam
ser considerados seres simples e toscos, condenados até o fim da vida a
abismos irremediáveis de ignorância, não passando — como até meu pai
dizia, com sarcasmo benevolente — de “góis negros”.
Portanto, quando aparecia uma ocasião, subíamos juntos as escadas e
juntos fazíamos nossa entrada na sinagoga.
E, como nossos bancos eram próximos, ao fundo do recinto semicircular
delimitado em sua extensão por uma balaustrada de mármore em cujo
centro surgia a tevá, ou atril, do oficiante, e ambos com uma ótima visão
para o monumental armário em madeira negra esculpida que custodiava os
rolos da Lei, os chamados sefarim, atravessávamos juntos também o sonoro
pavimento em losangos brancos e cor-de-rosa do grande salão. Mães,
esposas, avós, tias, irmãs etc. se separavam de nós, homens, já no vestíbulo.
Desaparecidas em fila indiana por uma estreita passagem na parede que
dava em um cubículo, de lá, valendo-se de uma escadinha em caracol,
subiam mais acima, ao matroneu, e dali a pouco podíamos vê-las espiando
do alto de sua gaiola, situada logo abaixo do teto, pelas frestas das grades.
Mas mesmo assim, estando reunidos apenas os homens — vale dizer, eu,
meu irmão Ernesto, meu pai, o professor Ermanno, Alberto e, às vezes, os
dois irmãos solteiros de dona Olga, o engenheiro e o dr. Herrera, vindos de
Veneza para a ocasião —, mesmo assim formávamos um grupo bem
numeroso. De todo modo, significativo e importante: tanto é que jamais,
não importa em qual momento do culto surgíssemos na soleira, podíamos
chegar ao nosso posto sem suscitar a mais viva curiosidade nos
circunstantes.
Como já disse, nossos bancos eram próximos, um atrás do outro.
Ocupávamos o banco da frente, na primeira fila, e os Finzi-Contini, o que
ficava imediatamente atrás. Mesmo que quiséssemos, teria sido muito
difícil nos ignorarmos.
De minha parte, atraído pela diversidade na mesma medida em que meu
pai era repelido por ela, eu estava sempre muito atento a qualquer gesto ou
cochicho que viesse do banco de trás. Não ficava quieto um instante. Seja
porque conversasse em surdina com Alberto, que era dois anos mais velho
que eu, é verdade, mas ainda precisava “entrar no minyan”,[3] e mesmo
assim, tão logo chegava, já se envolvia no grande taled de lã branca e linhas
pretas que antes pertencera ao “nonno Moisè”; seja porque o professor
Ermanno, sorrindo gentilmente para mim através das lentes grossas, me
convidasse com um sinal do dedo a observar as gravuras em cobre que
ilustravam a antiga Bíblia tirada por ele da gaveta especialmente para mim;
seja porque, fascinado, escutasse boquiaberto os irmãos de dona Olga, o
engenheiro das ferrovias e o tisiólogo, conversarem entre si meio em vêneto
e meio em espanhol (“Cossa xé che stas meldando? Su, Giulio, alevantate,
ajde! E procura de far star in píe anca il chico”),[4] e depois parar de
repente para unir-se com voz altíssima, em hebraico, às litanias do rabino
— de um modo ou de outro, eu estava quase sempre com a cabeça virada
para trás. Perfilados em seus assentos, os dois Finzi-Contini e os dois
Herrera estavam ali, a pouco mais de um metro entre si, e no entanto muito
distantes, inatingíveis: como se estivessem protegidos por uma redoma de
cristal. Não se pareciam uns com os outros. Altos, magros, calvos, de rostos
pálidos e compridos sombreados pela barba, vestidos sempre de azul ou de
preto, e além disso habituados a pôr em sua devoção uma intensidade e um
ardor fanáticos, de que o cunhado e o sobrinho nunca seriam capazes,
bastava observá-los, os parentes de Veneza pareciam pertencer a uma
civilização completamente estranha aos suéteres e meiões cor de tabaco de
Alberto, às lãs inglesas e aos tecidos bege, típicos do estudioso e da
aristocracia rural, do professor Ermanno. Todavia, mesmo tão diferentes
como eram, eu os sentia profunda e reciprocamente ligados. O que havia
em comum — os quatro pareciam perguntar-se — entre eles e a plateia
distraída, falante, italiana, que mesmo no templo, diante da Arca
escancarada do Senhor, continuava tratando de todas as mesquinharias da
vida em sociedade, de negócios, de política, até de esporte, mas não da alma
e de Deus? Na época eu era um meninote: entre os dez e os doze anos. Uma
intuição confusa, é verdade, mas substancialmente exata, vinha
acompanhada em mim do despeito e da humilhação, também confusos mas
candentes, de fazer parte daquela plateia, da gente vulgar a ser mantida
afastada. E meu pai? Diante da parede de vidro além da qual os Finzi-
Contini e os Herrera, sempre gentis mas distantes, continuavam no fundo a
ignorá-lo, comportava-se de maneira oposta à minha. Em vez de tentar
aproximações, eu o via exagerar, por reação — ele, formado em medicina e
livre-pensador, voluntário de guerra, fascista com carteirinha de 1919,
apaixonado por esportes, enfim, um judeu moderno —, sua saudável
repulsa perante qualquer exibição de fé demasiado servil ou exagerada.
Quando passava ao longo dos bancos a alegre procissão dos sefarim
(envoltos nas finas capas de seda bordada, com as coroas de prata
inclinadas e os sininhos titilantes, os rolos sagrados da Torá pareciam um
cortejo de infantes reais exibidos ao povo a fim de reforçar alguma
monarquia periclitante…), o médico e o engenheiro Herrera ficavam a
postos e inclinavam-se impetuosamente para fora do banco, beijando
quantas bordas de capa pudessem com uma avidez e uma gula quase
indecentes. Que importava se o professor Ermanno, imitado pelo filho, se
limitasse a cobrir os olhos com uma ponta do taled, murmurando de leve
uma oração com os lábios?
“Quanta afetação, quanto haltùd!”,[5] meu pai comentaria mais tarde à
mesa, com desgosto, sem que isso o impedisse, às vezes logo em seguida,
de voltar mais uma vez à soberba hereditária dos Finzi-Contini, ao absurdo
isolamento em que viviam, ou até ao subterrâneo e persistente
antissemitismo aristocrático deles. Mas por ora, não tendo à mão outra
pessoa com quem desabafar, era comigo que ele implicava.
Como sempre, eu me virara para olhar.
“Quer me fazer o santo favor de ter compostura?”, ele sibilava entre os
dentes, observando-me exasperado com seus olhos azuis e coléricos. “Nem
no templo você sabe se comportar direito. Olhe aqui seu irmão: é quatro
anos mais novo e poderia lhe ensinar bons modos!”
Mas eu nem dava ouvidos. Pouco depois já estava de novo lá, virando as
costas ao salmodiante dr. Levi, esquecido de qualquer proibição.
Agora, se ele quisesse reaver-me por alguns minutos sob seu domínio —
físico, sejamos claros, apenas físico! —, a meu pai só restava esperar a
bênção solene, quando todos os filhos se recolheriam sob os taletód
paternos como debaixo de outras tantas tendas. Eis, por fim (o bedel
Carpanetti já havia circulado com sua pértiga, acendendo um a um os trinta
candelabros de prata e de bronze dourado da sinagoga: o salão resplandecia
de luzes), eis, ansiosamente esperada, a voz do dr. Levi, quase sempre tão
incolor, assumir de chofre o tom profético adequado ao momento supremo e
final da berahá.
“Jevarehehá Adonai veishmeréha…”, entoava de modo solene o rabino,
curvo, quase prostrado sobre a tevá, depois de ter recoberto seu alto barrete
branco com o taled.
“Vamos, meninos”, dizia então meu pai, alegre e despachado, estalando
os dedos. “Venham aqui embaixo!”
É verdade que, mesmo naquelas circunstâncias, a evasão era sempre
possível. Papai agarrava com suas duras mãos esportivas nossas costelas, as
minhas em particular. Embora amplo como uma toalha, o taled do nonno
Raffaello, do qual ele se servia, era liso e vazado demais para lhe garantir a
clausura hermética de seus sonhos. De fato, através dos furos e dos rasgos
produzidos pelos anos no tecido muito frágil, que cheirava a coisa velha e
fechada, não era difícil, ao menos para mim, observar o professor Ermanno
ali ao lado, as mãos pousadas sobre os cabelos castanhos de Alberto e os
finos, louros e leves de Micòl, que descera às pressas do matroneu,
pronunciar igualmente, uma após outra, acompanhando o dr. Levi, as
palavras da berahá. Sobre nossas cabeças, meu pai, que não conhecia mais
que uns vinte vocábulos do hebraico, os mesmos das conversas em família
— e a mais que isso não se dobraria nunca —, mantinha-se calado. Eu
imaginava a expressão subitamente embaraçada de seu rosto, seus olhos,
entre sardônicos e intimidados, erguidos para os modestos estuques do teto
ou para o matroneu. Entretanto, de onde eu estava, mirava de baixo para
cima, com espanto e inveja sempre renovados, o rosto enrugado e arguto do
professor Ermanno naquele momento como transfigurado, mirava seus
olhos que, por trás das lentes, me pareciam cheios de lágrimas. A voz dele
era frágil e canora, afinadíssima; sua pronúncia hebraica, dobrando com
frequência as consoantes, e com os zês, os esses e os agás bem mais
toscanos que ferrarenses, ouvia-se filtrada através da dúplice distinção da
cultura e da classe…
Eu o observava. Debaixo dele, por todo o tempo que durava a bênção,
Alberto e Micòl não paravam de explorar também eles entre as frestas de
sua tenda. E me sorriam e faziam sinais, ambos curiosamente convidativos:
sobretudo Micòl.
5

Porém certa vez, em junho de 1929, no mesmo dia em que expuseram no


átrio do Guarini as notas do exame de conclusão do ginásio, acontecera algo
muito mais direto e peculiar.
Eu não tinha ido muito bem nas provas orais.
Embora o professor Meldolesi tivesse feito muito em meu favor,
inclusive assumindo para si, contra todas as regras, o encargo de me
examinar, quase nunca me mostrei à altura dos numerosos sete e oito que
enfeitavam meu boletim nas disciplinas literárias. Ao ser questionado, em
latim, sobre a consecutio temporum, acabei fazendo uma série de
trapalhadas. Em grego também respondi de modo muito trôpego, em
especial quando puseram debaixo de meu nariz uma página da edição
Teubner da Anábase para que eu traduzisse algumas linhas à primeira vista.
Mais tarde, consegui me reabilitar um pouco. Em italiano, por exemplo,
além de ter exposto com razoável desenvoltura o conteúdo tanto de Os
noivos quanto o de As recordações, recitei de cor as primeiras três oitavas
do Orlando furioso sem tropeçar uma única vez: e ao final Meldolesi
prontamente me premiou com um “bravo!” tão entusiástico que fez toda a
banca sorrir, até a mim. Mas no conjunto, repito, nem na área de letras meu
rendimento correspondeu à reputação de que eu gozava.
Contudo, o verdadeiro fiasco aconteceu em matemática.
Desde o ano anterior, a álgebra teimava em não me entrar na cabeça.
Pior. Contando com o apoio indefectível que eu teria do professor
Meldolesi nos exames finais, sempre agi de modo bastante mesquinho com
a professora Fabiani: estudava o mínimo necessário para arrancar um seis e
muitas vezes nem sequer aquele mínimo. Que importância podia ter a
matemática para alguém que na universidade se inscreveria em letras?,
continuava repetindo a mim mesmo naquela manhã, enquanto subia a
avenida Giovecca rumo ao Guarini. Infelizmente, tanto em álgebra quanto
em geometria eu quase não abri a boca. Mas e daí? A pobre Fabiani, que
durante os últimos dois anos nunca ousara me dar menos de seis, com
certeza no conselho de professores não teria a coragem de… — e eu evitava
pronunciar a palavra até mentalmente — me “reprovar”, a tal ponto a ideia
de reprovação, com a consequente tortura das aulas de reforço maçantes e
vergonhosas a que eu teria de me submeter em Riccione durante todo o
verão, me parecia absurda se referida a mim. Eu, justo eu, que nunca sofrera
uma única vez o vexame da recuperação em outubro, ao contrário, do
primeiro ao terceiro ginasial fui distinguido “por aproveitamento e boa
conduta” com o almejado título de “Guarda de honra dos monumentos aos
mortos na guerra e dos parques da recordação”, eu reprovado, reduzido à
mediocridade, forçado a voltar à massa mais anônima! E papai? Se por
acaso Fabiani me mandasse para a recuperação em outubro (ela ensinava
matemática também no liceu, e por isso mesmo me sabatinara: era um
direito dela!), onde eu acharia a coragem de voltar para casa dali a poucas
horas, sentar à mesa diante de papai e começar a comer? Talvez ele me
batesse: e no fim das contas seria até melhor. Qualquer punição seria
preferível à censura que pudesse vir de seus mudos e terríveis olhos azul-
celeste…
Entrei no átrio do Guarini. Um grupo de meninos, dentre os quais logo
notei vários colegas, parava tranquilo diante da tabela com as notas. Apoiei
a bicicleta na parede ao lado do portão de entrada e me aproximei, trêmulo.
Ninguém parecia ter notado minha chegada.
Olhei por trás de uma sebe de ombros obstinadamente de costas. Minha
vista se anuviou. Olhei de novo: e o cinco vermelho, único número em tinta
vermelha em uma longa lista de números em tinta preta, se imprimiu em
minha alma com a violência e a abrasão de uma marca de fogo.
“O que é que você tem?”, perguntou Sergio Pavani, dando-me um
tapinha amigo nas costas. “Não me diga que vai fazer um drama por causa
de um cinco em matemática! Olhe para mim”, e riu, “latim e grego.”
“Coragem”, acrescentou Otello Forti. “Também fiquei numa matéria:
inglês.”
Olhei para ele estupefato. Tínhamos sido colegas de turma e de banco
desde o primeiro ano do fundamental, habituados desde então a estudar
juntos, um dia na casa de um, outro na do outro, e ambos estávamos certos
de minha superioridade. Não passava ano sem que eu fosse aprovado em
junho, ao passo que ele, Otello, sempre precisava recuperar alguma matéria.
E agora, de repente, me sentir igualado a um Otello Forti, e pelo próprio!
Ser de uma hora para outra rebaixado ao nível dele!
Não vale a pena contar detidamente o que fiz e pensei nas quatro ou
cinco horas seguintes, a começar pelo efeito que teve sobre mim, assim que
saí do Guarini, o encontro com o professor Meldolesi (o bom homem sorria,
sem chapéu e sem gravata, o colarinho da camisa listrada revirado sobre a
gola do paletó, e se apressava em confirmar a “birra” de Fabiani em relação
a mim, sua recusa categórica em “fazer vista grossa só mais uma vez”),
continuando com a descrição do longo e desesperado vaguear sem rumo a
que me abandonei logo depois de ter recebido do mesmo professor
Meldolesi um tapinha na bochecha a título de despedida e de
encorajamento. Basta dizer que, por volta das duas da tarde, eu ainda
perambulava de bicicleta ao longo da Muralha degli Angeli, lá pelas bandas
da avenida Ercole I d'Este. Nem sequer telefonei para casa. Com o rosto
manchado de lágrimas, o coração transbordando de uma imensa piedade por
mim, pedalava quase sem saber onde estava, meditando confusos projetos
suicidas.
Parei debaixo de uma árvore: uma dessas árvores antigas, tílias, olmos,
plátanos, castanheiras, que dali a uns doze anos, no gélido inverno de
Stalingrado, seriam sacrificadas para fazer lenha de estufa, mas que em
1929 ainda erguiam bem altas, acima dos bastiões da cidade, suas grandes
copas de folhas.
Em torno, deserto absoluto. A viela de terra batida que eu, como um
sonâmbulo, percorrera até ali vindo da Porta San Giovanni prosseguia
serpenteando entre os troncos seculares rumo à Porta San Benedetto e à
estação ferroviária. Deitei de bruços na grama, ao lado da bicicleta, com o
rosto pegando fogo, escondido entre os braços. Ar quente e ventilado ao
redor do corpo estendido, desejo exclusivo de permanecer assim o maior
tempo possível, de olhos fechados. Em meio ao coro narcotizante das
cigarras, alguns sons não distantes despontavam isolados: um canto de galo,
um bater de panos provavelmente produzido por alguma lavadeira que se
atrasara à beira da água esverdeada do canal Panfilio, e por fim, muito
próximo, a poucos centímetros do ouvido, o tiquetaquear cada vez mais
lento da roda posterior da bicicleta, ainda em busca de um ponto de
imobilidade.
Em casa — eu pensava —, agora com certeza já sabiam: talvez até por
Otello Forti. Teriam sentado à mesa? Era possível, embora depois, logo em
seguida, tenham parado de comer. Talvez estivessem me procurando. Talvez
tivessem acionado imediatamente o próprio Otello, meu bom amigo, o
amigo inseparável, encarregando-o de percorrer com a bicicleta a cidade
inteira, inclusive Montagnone e as muralhas, de modo que não seria nada
improvável se num piscar de olhos eu topasse com ele na minha frente, com
a cara triste, de circunstância, mas no fundo bem feliz, daria para ver ao
primeiro olhar, por ter sido reprovado apenas em inglês. Nada disso: talvez
tomados pela angústia, a certa altura meus pais tenham decidido recorrer
diretamente à delegacia. Papai é quem foi falar com o delegado no Castelo.
Parecia até que o estava vendo: balbuciante, envelhecido de modo
assustador, reduzido à sombra de si mesmo. E chorava. Ah, mas se por volta
da uma, em Pontelagoscuro, ele tivesse podido me observar enquanto eu
observava a correnteza do Pó, do alto da ponte de ferro (fiquei ali um bom
tempo, olhando para baixo. Quanto? No mínimo uns vinte minutos!), aí sim
é que se assustaria… aí sim ele entenderia… aí sim…
“Psiu.”
Despertei sobressaltado.
“Psiu! ”
Ergui lentamente a cabeça, virando-a para a esquerda, para o lado do sol.
Pisquei os olhos. Quem estava me chamando? Otello não podia ser. Mas
quem?
Eu estava mais ou menos na metade daquele trecho da muralha urbana,
de uns três quilômetros de extensão, que começa no ponto onde a avenida
Ercole I d'Este termina para acabar em Porta San Benedetto, em frente à
estação. O local sempre foi bastante solitário. Era assim trinta anos atrás, e
o é ainda hoje, embora mais à direita, ou seja, na parte da zona industrial,
tenham surgido a partir de 1945 dezenas e dezenas de casinhas coloridas de
operários, diante das quais, e das chaminés e dos galpões que lhes serve de
fundo, o esporão semiderruído, escuro, coberto de mato e selvagem do
baluarte quatrocentista parecia a cada dia mais absurdo.
Eu olhava e procurava, semicerrando os olhos ao clarão. A meus pés
(apenas agora eu me dava conta), as frondes das nobres árvores,
entranhadas de luz meridiana como as de uma floresta tropical, estendia-se
o Barchetto del Duca: imenso, realmente interminável, tendo ao centro,
meio ocultos na vegetação, as torrezinhas e os pináculos da magna domus, e
delimitado em todo o perímetro por um muro externo interrompido
duzentos e cinquenta metros mais à frente, a fim de deixar passar o canal
Panfilio.
“Ei! Mas você também é cego?!”, disse uma voz alegre de menina.
Por causa dos cabelos louros, daquele louro peculiar, estriado em cachos
nórdicos, de fille aux cheveux de lin, e que só pertenciam a ela, reconheci
imediatamente Micòl Finzi-Contini. Surgia no alto do muro como se
estivesse em uma sacada, despontando com ambos os ombros e se apoiando
nos braços cruzados. Devia estar a não mais que uns vinte e cinco metros de
distância (portanto bastante próxima para que eu pudesse enxergar seus
olhos, que eram claros, grandes, talvez grandes demais naquela época, no
rosto pequeno e magro de menina), e me observava de cima a baixo.
“O que é que você está fazendo aí? Estou de olho em você há dez
minutos. Se estava dormindo e o acordei, me desculpe. E… meus
pêsames!”
“Pêsames? Como assim? Por quê?”, murmurei, sentindo que meu rosto
se cobria de rubor.
Fiquei de pé.
“Que horas são?”, perguntei, aumentando a voz.
“Acho que umas três”, disse, com um trejeito gracioso da boca. E
depois: “Imagino que você esteja com fome”.
Fiquei abismado. Então quer dizer que eles também sabiam! Por um
instante, cheguei a acreditar que eles teriam recebido a notícia de meu
sumiço por meu pai ou minha mãe: por telefone, como decerto tantas outras
pessoas. Mas foi a própria Micòl que rapidamente me pôs nos eixos de
novo.
“Hoje de manhã fui ao Guarini com Alberto. Queríamos ver os
resultados. Você se saiu mal, hein?!”
“E você? Passou de ano?”
“Ainda não se sabe. Talvez estejam esperando que todos os alunos das
particulares terminem para liberar as notas. Mas por que você não vem para
cá? Chegue mais perto, venha, assim eu não preciso me esgoelar.”
Era a primeira vez que me dirigia a palavra, aliás, a primeira vez que eu
ouvia sua voz. E notei imediatamente como a pronúncia dela se parecia com
a de Alberto. Ambos falavam do mesmo modo: destacando as sílabas de
certas palavras cujo verdadeiro sentido, cujo peso, apenas eles pareciam
conhecer, e deslizando bizarramente sobre outras, que as pessoas
considerariam muito mais importantes. Demonstravam uma espécie de
orgulho enfático ao se expressarem assim. Essa peculiar, inimitável e
singular deformação do italiano era a verdadeira língua deles. Davam a ela
até um nome: o finzi-contínico.
Deixando-me escorregar pelo declive relvoso, aproximei-me do pé do
muro. Embora houvesse sombra — uma sombra que cheirava agudamente a
urtigas e esterco —, lá embaixo fazia mais calor. E agora ela me olhava do
alto, a cabeça loura ao sol, tranquila como se nosso encontro não tivesse
sido casual, absolutamente fortuito, mas como se, quem sabe desde a
primeira infância, tivéssemos nos reunido tantas vezes naquele local que até
perdêramos a conta.
“Mas você está exagerando!”, ela disse. “Qual é o grande drama de ficar
numa matéria em outubro?”
Mas era claro que estava zombando de mim, e em parte também me
desdenhava. No fim das contas, era bastante normal que um enrosco
daquele tipo ocorresse a alguém como eu, que veio ao mundo de gente tão
comum, tão “assimilada”: um quase gói, enfim. Que direito eu tinha de me
lamentar tanto?
“Acho que sua cabeça anda com umas ideias estranhas”, respondi.
“Ah, é?”, debochou ela. “Então quer me explicar, por favor, como é que
você não foi almoçar em casa hoje?”
“Quem lhe disse isso?”, me escapou.
“A gente sabe, a gente sabe. Nós também temos nossos informantes.”
Tinha sido Meldolesi — pensei —, só podia ter sido ele (e de fato eu
estava certo). Mas e daí? De repente me dei conta de que o problema da
reprovação se tornara secundário, uma coisa infantil, que se resolveria por
conta própria.
“Como é que você consegue ficar aí em cima?”, perguntei. “Parece que
está na janela.”
“Estou montada na minha excelente escada de madeira”, respondeu,
escandindo as sílabas de “minha excelente” como de hábito, com orgulho.
Nesse momento, para lá do muro ecoou um latido: grave e curto, meio
rouco. Micòl virou a cabeça, lançando por trás do ombro esquerdo um olhar
cheio de tédio e ao mesmo tempo de afeto. Fez careta com a boca para o
cão e em seguida tornou a olhar para mim.
“Ufa!”, resmungou tranquila. “É Jor.”
“De que raça ele é?”
“É um dinamarquês. Só tem um ano, mas pesa quase cem quilos. Está
sempre atrás de mim. Às vezes eu tento disfarçar meus rastros, mas ele logo
me acha, pode ter certeza. É terrível.”
Sorriu.
“Quer vir para cá?”, acrescentou, retomando a atitude séria. “Se quiser,
eu lhe ensino como é que se faz.”
6

Quantos anos se passaram desde aquela tarde longínqua de junho? Mais de


trinta. No entanto, se fecho os olhos, Micòl Finzi-Contini ainda está lá, no
alto do muro externo de seu jardim, me olhando e conversando comigo. Em
1929, Micòl era pouco mais que uma menina, uma adolescente de treze
anos, magra e loura, de olhos grandes e claros, magnéticos; eu era um
rapazinho de calças curtas, muito burguês e muito vaidoso, que um pequeno
inconveniente escolar bastara para lançar ao desespero mais infantil. Ambos
nos mirávamos. Sobre sua cabeça o céu estava azul e compacto, um sol
quente já de verão, sem nenhuma nuvem. Parecia que nada poderia mudá-
lo, e de fato nada mudou, ao menos na memória.
“Então, quer ou não quer?”, insistiu Micòl.
“Bem… Não sei…”, comecei a falar, apontando para o muro. “Acho que
é muito alto.”
“É porque você não olhou direito”, rebateu impaciente. “Olhe ali… e
ali… e ali”, e indicava com o dedo, para que eu observasse melhor. “Há um
monte de entalhes, e até um prego, aqui em cima. Fui eu que botei.”
“É verdade, até que tem uns pontos de apoio”, balbuciei hesitante,
“mas…”
“Apoios?!”, ela me interrompeu, caindo na risada. “Eu chamo isso de
entalhes.”
“Errado, porque isso aqui são pontos de apoio”, insisti, teimoso e ácido.
“Dá para ver que você nunca esteve na montanha.”
Desde menino sempre sofri de vertigem, e, apesar de modesta, a
escalada me preocupava. Na infância, quando mamãe, com Ernesto no colo
(Fanny ainda não havia nascido), me levava ao Montagnone, e ela se
sentava na grama da ampla esplanada que dava para a Via Scandiana, de
onde se podia avistar o telhado de nossa casa mal distinguível no mar de
telhados em volta do grande volume da igreja de Santa Maria in Vado, não
era sem muito temor, me lembro, que eu ia me debruçar no parapeito que
delimitava a esplanada da banda dos campos e olhava lá para baixo, no
precipício de trinta metros. Ao longo do paredão pendente sempre havia
alguém subindo ou descendo: camponeses, operários, jovens pedreiros,
cada um com sua bicicleta a tiracolo; e também velhos, pescadores
bigodudos de rãs e de peixes-gato, carregados de caniços e cestos: tudo
gente apressada de Quacchio, de Ponte della Gradella, de Coccomaro, de
Coccomarino, de Focomorto, que, em vez de passar pela Porta San Giorgio
ou pela Porta San Giovanni (porque na época os bastiões estavam intactos
naquele lado, sem brechas praticáveis por uma extensão de pelo menos
cinco quilômetros), preferia tomar, como diziam, “o caminho das Muralha”.
Saíam da cidade: nesse caso, depois de atravessar a esplanada, passavam ao
meu lado sem me olhar, cavalgando o parapeito e descendo até apoiar a
ponta do pé na primeira saliência ou reentrância da muralha decrépita para
depois alcançar em poucos instantes o prado logo abaixo. Vinham dos
campos: e então subiam com uns olhos esbugalhados, que me pareciam
fixos nos meus, aflorando timidamente da borda do parapeito, mas é claro
que eu me enganava, estavam apenas concentrados em achar o melhor
ponto de apoio. De todo modo, durante o tempo em que estavam assim,
suspensos sobre o abismo — em geral em duplas, um atrás do outro —,
sempre os escutava conversar calmamente em dialeto, como se estivessem
apenas caminhando pelas trilhas em meio à campina. Como eram
tranquilos, fortes e corajosos!, pensava comigo. Depois de se avizinharem
menos de um metro do meu rosto, tanto que muitas vezes, além de me
espelhar em suas escleróticas, recebia o bafo de vinho de sua respiração,
agarravam a borda interna do parapeito com os dedos grossos e calejados,
emergiam do vazio com todo o corpo e, upa!, já pisavam em local seguro.
Eu nunca seria capaz de fazer aquilo, repetia a mim mesmo toda vez
enquanto os olhava se afastar, cheio de admiração, mas também de repulsa.
Nunca, nunca.
Pois bem, agora, diante do muro de onde Micòl Finzi-Contini me
convidava a subir, eu também experimentava algo semelhante. Com certeza
a parede não parecia tão alta quanto a dos bastiões do Montagnone. Porém
era mais lisa, bem menos corroída pelos anos e intempéries. E se,
equilibrando-me lá no alto — pensava, os olhos fixos nos entalhes pouco
marcados que Micòl me indicara —, me desse uma tontura e eu caísse? Eu
podia perfeitamente morrer do mesmo jeito.
Seja como for, não era tanto por esse motivo que eu continuava
hesitando. O que me detinha era uma repugnância diversa daquela
puramente física da vertigem; análoga, porém diferente e mais forte. Por um
instante, cheguei a ter saudades de meu desespero de pouco antes, de meu
choro tolo e pueril de menino reprovado.
“Além disso, não entendo por que”, continuei, “eu deveria bancar o
alpinista justo aqui. Se é para entrar na sua casa, muito obrigado, com o
maior prazer, mas, francamente, acho bem mais cômodo passar por ali”, e,
ao dizer isso, ergui o braço na direção da avenida Ercole I d'Este, “pelo
portão de entrada. É coisa rápida. Pego a bicicleta e num instante dou a
volta.”
Logo vi que a proposta não lhe agradava.
“Não, não…”, disse, deformando o rosto em uma expressão de intenso
desgosto, “se passar por lá, com certeza Perotti vai vê-lo, e aí adeus,
acabou, não tem mais graça.”
“Perotti? Quem é Perotti?”
“O porteiro… você sabe, talvez já o tenha notado, aquele que também
nos serve de cocheiro e de chofer… Se ele o vir — e com certeza o verá,
porque, tirando as vezes que sai com o coche ou com o carro, o maldito
sempre está lá, de guarda —, depois eu vou ter que convidá-lo para minha
casa, de qualquer jeito… E me diga você… Já pensou?”
Ela me olhava direto nos olhos: agora séria, mas calmíssima.
“Tudo bem”, respondi, virando a cabeça e acenando com o queixo para a
barreira, “mas como é que eu faço com a bicicleta? Não posso deixá-la
aqui, abandonada! É novinha, uma Wolsit: com farol elétrico, caixa de
ferramentas, bomba de ar, imagine… Se eu ainda por cima perder a
bicicleta…”
E não disse mais nada, tomado de novo pela angústia do encontro
inevitável com meu pai. Naquela mesma noite, no mais tardar, eu precisaria
voltar para casa. Não tinha outra escolha.
Tornei a virar os olhos para Micòl. Enquanto eu falava, ela se sentou no
muro, virando as costas para mim; e agora levantava uma perna, montando
sobre ele.
“O que você está aprontando?”, perguntei surpreso.
“Tive uma ideia para a bicicleta; enquanto isso, eu lhe mostro os pontos
onde é melhor você pôr os pés. Preste atenção onde eu ponho os meus. Olhe
bem.”
Deu um giro muito desenvolto lá em cima e então, agarrando-se ao
grande prego enferrujado que me indicara pouco antes, começou a descer.
Baixava bem devagar, mas segura, procurando os pontos de apoio com o
bico do tênis, ora um, ora outro, e sempre os encontrando sem muito
esforço. Descia bem. Entretanto, antes de pisar no chão, perdeu o apoio e
escorregou. Caiu de pé. Mas machucou os dedos de uma mão. Além disso,
ao raspar contra o muro, o vestidinho de tecido rosa, praieiro, descosturou
de leve sob uma axila.
“Que idiota”, resmungou, levando a mão à boca e soprando em cima. “É
a primeira vez que me acontece isso.”
Também tinha ralado um joelho. Ergueu uma ponta do vestido até
descobrir a coxa estranhamente branca e forte, já de mulher, e se inclinou
para ver o machucado. Duas longas mechas louras, daquelas mais claras,
vieram abaixo, escapando pelo arco que usava para prender os cabelos e lhe
encobrindo a testa e os olhos.
“Que idiota”, repetiu.
“Precisa passar álcool”, falei de modo mecânico, sem me aproximar, no
tom meio lamentoso que todos usávamos em família naquelas
circunstâncias.
“Álcool coisa nenhuma.”
Lambeu rapidamente a ferida, uma espécie de beijo breve e afetuoso, e
logo se empertigou.
“Venha”, disse, toda vermelha e desgrenhada.
Então se virou e começou a escalar de banda, ao longo da face
ensolarada do muro. Ajudava-se com a mão direita, agarrando-se aos tufos
de mato; ao mesmo tempo, erguendo a esquerda à altura da cabeça, ia
tirando e ajeitando de novo o arquinho nos cabelos. Repetiu a manobra
várias vezes, rápida como quem se penteia.
“Está vendo aquele buraco ali?”, disse-me assim que chegamos ao topo.
“Você pode esconder a bicicleta ali dentro.”
A uns cinquenta metros de distância, me indicava um desses montículos
cônicos cobertos de mato, de cerca de dois metros de altura e com uma
abertura quase sempre enterrada, com os quais topamos frequentemente ao
circundar as muralhas de Ferrara. Olhando bem, eles se parecem um pouco
com os montarozzi etruscos dos campos romanos; em escala muito menor, é
claro. Com a diferença de que a câmara subterrânea, muitas vezes bem
ampla, a que alguns deles davam ainda acesso, nunca serviu de casa para
nenhum defunto. Os antigos defensores da muralha punham armas ali:
colubrinas, arcabuzes, pólvora etc. E talvez até aquelas estranhas balas de
canhão em mármore nobre, que nos séculos XV e XVI tornaram a artilharia
ferrarense tão temida na Europa, das quais alguns exemplares ainda podiam
ser vistos no Castelo, dispostos lá como ornamento no pátio central ou nos
terraços.
“Você acha que alguém vai pensar que tem uma Wolsit novinha lá
embaixo? Seria preciso saber. Você já esteve num deles?”
Fiz que não com a cabeça.
“Não? Eu já, um montão de vezes: é fantástico.”
Partiu decidida, e eu, pegando a Wolsit do chão, a segui em silêncio.
Alcancei-a no limiar da abertura. Era uma espécie de fissura vertical,
talhada vivamente no manto de relva compacta que revestia o montículo:
tão estreita que não permitia a passagem de mais de uma pessoa por vez.
Logo além do limiar começava a descida, e era possível enxergar por oito,
dez metros, não mais. Mais adiante só havia a escuridão. Como se o
cunículo terminasse em uma cortina preta.
Inclinou-se para olhar e de repente se virou.
“Desça você”, sussurrou sorrindo de leve, embaraçada. “Prefiro esperar
aqui fora.”
Afastou-se e cruzou as mãos atrás das costas, rente à parede relvosa, de
lado na entrada.
“Não me diga que está assustado”, exclamou, sempre sussurrando.
“Não, não”, menti, e me inclinei para erguer a bicicleta e apoiá-la no
ombro.
Sem acrescentar uma palavra, passei por ela e fui entrando no cunículo.
Tinha de ir devagar até por causa da bicicleta, cujo pedal direito batia
sem parar na parede; no início, por pelo menos três ou quatro metros, fiquei
como cego, sem enxergar absolutamente nada. Porém, a uns dez metros da
boca da entrada (“Tome cuidado”, gritou a essa altura a voz já distante de
Micòl, às minhas costas, “fique atento com os degraus!”), comecei a
distinguir alguma coisa. O cunículo terminava logo adiante: faltava pouco
mais de um metro de descida. E era justamente naquele ponto, a partir de
uma espécie de patamar em torno do qual eu já adivinhava um espaço
totalmente diverso, antes mesmo de chegar, que começavam os degraus
mencionados por Micòl.
Ao atingir o patamar, parei um momento.
O medo infantil do escuro e do desconhecido que senti no instante em
que me separei de Micòl foi sendo substituído em mim, à medida que eu
avançava pelas entranhas subterrâneas, por uma sensação não menos
infantil de alívio: como se, subtraindo-me a tempo da companhia de Micòl,
eu tivesse escapado de um grande perigo, o maior perigo que um rapaz da
minha idade (“Um rapaz da sua idade” era uma das expressões favoritas de
meu pai) pudesse enfrentar. Ah, sim, eu pensava: nesta noite, quando eu
voltar para casa, talvez papai me dê uma surra. Mas agora eu podia encarar
suas pancadas tranquilamente. Uma matéria em outubro: Micòl tinha razão
em rir daquilo. O que era uma matéria em outubro em comparação com o
resto — eu tremia — que lá embaixo, no escuro, podia acontecer entre nós?
Talvez eu achasse a coragem de dar um beijo em Micòl: um beijo na boca.
Mas e depois? O que ocorreria depois? Nos filmes que vi, e nos romances,
os beijos deviam ser sempre longos e apaixonados! Na realidade, em
comparação com o resto, no fundo os beijos só representavam um instante
negligenciável, uma vez que, depois de os lábios se juntarem e as bocas
quase entrarem uma na outra, na maioria das vezes o fio da narrativa só era
retomado na manhã seguinte, ou mesmo vários dias mais tarde. Se Micòl e
eu chegássemos a nos beijar daquela maneira — e com certeza o escuro
facilitaria a coisa —, depois do beijo o tempo continuaria correndo
tranquilamente, sem que nenhuma intervenção estranha e providencial
pudesse nos ajudar a alcançar a manhã seguinte. Nesse caso, o que eu
deveria fazer para ocupar os minutos e as horas? Oh, mas por sorte isso não
aconteceu. Ainda bem que eu estava salvo.
Comecei a descer os degraus. Atrás de mim, infiltrando-se pelo
cunículo, vinham uns raios tênues de luz, agora eu os percebia. E em parte
com a vista, em parte com o ouvido (bastava bater a bicicleta na parede, ou
meu calcanhar deslizar em um degrau, e logo o eco agigantava e
multiplicava o som, medindo espaços e distâncias), rapidamente me dei
conta da vastidão do ambiente. Devia tratar-se de uma sala de uns quarenta
metros de diâmetro, redonda, com uma abóbada em cúpula de altura
parecida. Vai ver que, por meio de um sistema de corredores secretos, se
comunicava com outras salas subterrâneas do mesmo tipo, aninhadas às
dezenas no corpo dos bastiões. Era bem provável.
O fundo da sala era de terra batida, liso, compacto, úmido. Enquanto eu
avançava tateando a curva da parede, esbarrei em um tijolo e pisei em um
chão de palha. Por fim me sentei, mantendo a mão agarrada ao quadro da
bicicleta que apoiei no muro, e passei um braço em torno dos joelhos. O
silêncio só era rompido por leves rumores, guinchos: provavelmente de
ratos, morcegos…
E se no entanto acontecesse?, eu pensava. Seria realmente tão terrível se
acontecesse?
Quase com certeza eu não voltaria para casa, e meus pais, Otello Forti,
Sergio Pavani e todo mundo, inclusive a polícia, teriam um belo trabalho
em me procurar! Nos primeiros dias, vasculhariam em todos os cantos. Os
jornais também comentariam o assunto, levantando as hipóteses de sempre:
sequestro, acidente, suicídio, expatriação clandestina etc. Aos poucos,
porém, as águas se aquietariam. Meus pais ficariam em paz (no fundo,
continuavam com Ernesto e Fanny), e as buscas seriam suspensas. No fim
das contas, quem iria pagar por isso era sobretudo ela, aquela estúpida e
intolerante da Fabiani, que por punição seria transferida “para outra sede”.
Mas onde? Sicília ou Sardenha, é claro. E bem feito para ela. Assim
aprenderia na própria pele a ser menos pérfida e canalha.
Quanto a mim, já que os outros estariam em paz, eu também faria o
mesmo. Podia contar com Micòl, lá fora: ela cuidaria de me fornecer
comida e tudo quanto eu precisasse. E viria me ver todos os dias, pulando o
muro externo de seu jardim, tanto no verão quanto no inverno. E todo dia
nos beijaríamos, no escuro: porque eu era seu homem, e ela, minha mulher.
Mas isso não quer dizer que eu nunca mais sairia lá fora! Durante o dia
eu dormiria, é claro, só interrompendo o sono quando sentisse os lábios de
Micòl tocando os meus, voltando a dormir em seguida com ela em meus
braços. Mas de noite, de noite eu poderia perfeitamente dar longas saídas,
sobretudo depois da uma, depois das duas da madrugada, quando todo
mundo está dormindo e não há praticamente ninguém nas ruas. Seria
estranho e terrível, mas ao mesmo tempo divertido, passar pela Via
Scandiana e rever minha casa, a janela do meu quarto de dormir agora
transformado em uma saleta, avistar de longe, oculto na sombra, meu pai
voltando naquele instante do Círculo dos Comerciários, sem nem lhe passar
pela cabeça que estou vivo e o observo. De fato, ele tira a chave do bolso,
abre, entra, e então, tranquilo, como se eu, seu filho mais velho, nunca
houvesse existido, bate o portão sem hesitar.
E mamãe? Mais cedo ou mais tarde eu não podia, quem sabe por meio
de Micòl, fazer que ao menos ela soubesse que eu não estava morto? E até
revê-la, antes que, cansado de minha vida subterrânea, eu fosse embora de
Ferrara e sumisse definitivamente? Por que não? É claro que eu podia!
Não sei quanto tempo fiquei ali. Talvez dez minutos, talvez menos. Mas
lembro com precisão que, enquanto subia os degraus e me enfiava pelo
cunículo (agora, aliviado do peso da bicicleta, eu seguia depressa),
continuava pensando e devaneando. E mamãe?, perguntava-me. Ela
também se esqueceria de mim como todo mundo?
Por fim me vi ao ar livre; Micòl já não estava me esperando onde eu a
deixara pouco antes, mas, como vi quase na mesma hora, protegendo os
olhos da luz do sol com uma mão, estava de novo lá em cima, sentada a
cavalo no muro externo do Barchetto del Duca.
Parecia empenhada em discutir e argumentar com alguém do outro lado
do muro: provavelmente o cocheiro Perotti, ou talvez o próprio professor
Ermanno. Claro: ao perceberem a escada apoiada no muro, imediatamente
se deram conta de sua pequena evasão. Agora a convidavam a descer. E ela
hesitava em obedecer.
A certa altura, ela se virou e me avistou no alto do barranco. Então
encheu as bochechas como se dissesse:
“Ufa! Até que enfim!”
Antes de desaparecer de cima do muro, seu último olhar (acompanhado
de um trejeito sorridente, igual àquele de quando me espiava no templo sob
o taled paterno) tinha sido para mim.
Parte 2
1

A primeira vez que de fato consegui entrar ali, atravessando o muro externo
do Barchetto del Duca e me adentrando entre as árvores e clareiras da
grande selva privada, até alcançar a magna domus e a quadra de tênis,
aconteceu cerca de dez anos mais tarde.
Foi em 1938, uns dois meses depois da promulgação das leis raciais.
Lembro-me bem. Em uma tarde de fins de outubro, minutos depois de
termos deixado a mesa, recebi uma chamada de Alberto Finzi-Contini. Era
verdade ou não — perguntou-me à queima-roupa, negligenciando qualquer
preâmbulo (note-se que, fazia mais de cinco anos, não tivéramos ocasião de
trocar uma única palavra) —, era verdade ou não que eu e “todos os
outros”, com cartas assinadas pelo vice-presidente e secretário do Círculo
de Tênis Eleonora d'Este, o marquês Barbicinti, tínhamos sido expulsos em
bloco do clube: “enxotados”, enfim?
Neguei em tom decidido: não era verdade, não tinha recebido nenhuma
carta do tipo; eu pelo menos não.
Mas ele, como se não reconhecesse nenhum valor em meu desmentido,
ou não o tivesse nem mesmo escutado, logo me propôs que eu fosse
encontrá-los em sua casa, para jogar. Se eu me contentasse com um campo
de terra branca batida — continuou —, com poucos outs, e se acima de tudo
eu, que com certeza jogava bem melhor que eles, me “dignasse a bater uma
bolinha” com ele e Micòl, ambos ficariam muito felizes e “honrados”. E, se
a coisa me interessasse, podia ser em qualquer tarde, acrescentou. Hoje,
amanhã, depois de amanhã: eu podia ir quando achasse melhor, e levar
quem quisesse, inclusive aos sábados, é claro. Afora o fato de que ele
ficaria pelo menos mais um mesinho em Ferrara, já que as aulas no
Politécnico de Milão não começariam antes de 20 de novembro (Micòl
sempre levava tudo com mais calma e, nesse ano, com o pretexto de que
não estava matriculada e não precisava estar em Veneza mendigando
presença, quem sabe se poria os pés na Ca' Foscari), e os dias não estavam
esplêndidos? Enquanto o tempo continuasse assim, seria um verdadeiro
crime não aproveitar.
Pronunciou as últimas palavras com menor convicção. Parecia ter sido
tocado de repente por um pensamento pouco alegre, ou que uma súbita e
gratuita sensação de tédio o fizesse desejar que eu de fato não fosse, que
não levasse em conta seu convite.
Agradeci sem prometer nada de específico. Por que aquele telefonema?,
perguntei a mim mesmo ao desligar, não sem espanto. No fundo, desde que
ele e a irmã passaram a estudar fora de Ferrara (Alberto em 1933, Micòl em
1934: mais ou menos na mesma época em que o professor Ermanno
obtivera da comunidade a permissão de restaurar, “para uso da família e de
eventuais interessados”, a ex-sinagoga espanhola incorporada ao prédio do
templo da Via Mazzini, de modo que desde então o banco atrás do nosso, na
escola italiana, ficou sempre vazio), no fundo, nunca mais nos
encontráramos, senão raras vezes, e mesmo assim de passagem e de longe.
Enfim, durante todo aquele tempo nos tornáramos a tal ponto estranhos que,
em uma manhã de 1935, na estação de Bolonha (eu já cursava o segundo
ano de letras e vivia para cima e para baixo de trem, quase todo dia), ao ser
violentamente abalroado rente ao banco da primeira plataforma por um
jovem alto, moreno e pálido, com um plaid sob o braço e um carregador
cheio de malas em seu encalço, o qual se dirigia a passos largos rumo ao
expresso para Milão que estava prestes a partir, no momento nem reconheci
que aquele sujeito era Alberto Finzi-Contini. Chegando à fila do trem,
virou-se para chamar o carregador e em seguida sumiu dentro do vagão.
Naquela ocasião — continuei a refletir —, ele nem sequer sentiu a
necessidade de me cumprimentar. Quando me virei para protestar pela
trombada, dirigiu-me um olhar distraído. E agora, ao contrário, qual o
motivo da cortesia tão insistente?
“Quem era?”, perguntou meu pai, assim que voltei à saleta de jantar.
Era o único que permanecia ali. Estava sentado na poltrona ao lado da
mesinha do rádio, em sua espera habitual e ansiosa pelo noticiário das duas.
“Alberto Finzi-Contini.”
“Quem? O rapaz? Quanta deferência! E o que ele queria?”
Perscrutava-me com os olhos azuis, perdidos, que havia muito tinham
renunciado à esperança de me impor qualquer coisa, de tentar imaginar o
que se passava em minha cabeça. Tinha perfeita consciência — dizia-me
com os olhos — de que suas perguntas me aborreciam, que a contínua
pretensão de se imiscuir em minha vida era indiscreta, injustificada. Mas,
meu Deus, ele não era meu pai? E eu não via como ele tinha envelhecido
naquele último ano? Não era o caso de ele se abrir com mamãe e Fanny:
eram mulheres. Nem com Ernesto: ainda putìn.[6] Então, com quem ele
podia falar? Será que eu não entendia que ele precisava justamente de mim?
Contei de má vontade o assunto da conversa.
“E você vai?”
Nem me deu tempo de responder. Na sequência, com a animação que
demonstrava toda vez que se lhe apresentava um pretexto para me arrastar a
uma conversa qualquer, melhor ainda se de política, já mergulhara de
cabeça em uma “análise da situação”.
Lamentavelmente era verdade, começou recapitulando, incansável: no
último 22 de setembro, depois do primeiro anúncio oficial do dia 9, todos os
jornais haviam publicado aquela tal circular do secretário do Partido
listando as várias “medidas práticas” que as federações das províncias
teriam de aplicar imediatamente em relação a nós. No futuro,
“permanecendo vetadas a celebração de casamentos mistos e a exclusão de
qualquer jovem, reconhecido como pertencente à raça judia, de todas as
escolas públicas de quaisquer ordem ou grau”, além da dispensa, para os
mesmos, da obrigação “altamente honorífica” do serviço militar, nós,
“judeus”, não poderíamos publicar necrológios nos jornais, constar das
listas telefônicas, manter empregadas domésticas de raça ariana nem
frequentar “círculos recreativos” de nenhum tipo. No entanto, apesar
disso…
“Espero que você não me venha repetir a história de sempre”, eu o
interrompi naquele ponto, balançando a cabeça.
“Que história?”
“Que Mussolini é melhor que Hitler.”
“Entendi, entendi”, retrucou ele. “Mas você deve admitir que Hitler é
um doido sanguinário, enquanto Mussolini é isso aí que se vê, um
maquiavélico e vira-casaca de mão-cheia, mas…”
De novo o interrompi. Ele estava ou não estava de acordo — perguntei,
olhando bem na cara dele — com a tese do ensaio de Liev Trótski que eu
lhe “passara” dias antes?
Eu me referia a um artigo publicado em um antigo número da Nouvelle
Revue Française, revista da qual eu guardava em meu quarto, com bastante
zelo, vários anos completos. O episódio foi o seguinte: não me lembro por
qual motivo, acabei tratando meu pai de modo pouco gentil. Ele se ofendeu,
fez cara feia, de modo que eu, desejando restabelecer relações normais, a
certa altura não encontrei nada melhor que envolvê-lo em minha leitura
mais recente. Lisonjeado pela manifestação de estima, meu pai não se fez
de rogado. Leu no mesmo instante, aliás, devorou o artigo, assinalando
muitas linhas a lápis e cobrindo as margens das páginas com densas
anotações. No fim das contas, disse-me explicitamente, o texto do “raposão
ex-parceiro de Lênin” também foi para ele uma autêntica revelação.
“Mas é claro que estou de acordo”, exclamou, contente e ao mesmo
tempo desconcertado por me ver disposto a engatar uma discussão. “Sem
dúvida, Trótski é um polemista magnífico. Que vivacidade, que língua! Era
bem provável que tivesse escrito o artigo diretamente em francês. Sim”, e
sorriu com orgulho: “talvez os judeus russos e poloneses não sejam muito
simpáticos, mas sempre tiveram um verdadeiro gênio para as línguas.
Trazem isso no sangue.”
“Deixe a língua de lado e vamos nos concentrar nos conceitos”, cortei,
seco, com uma ponta de azedume didático da qual logo me arrependi.
O artigo era claro, continuei, mais cordial. Na fase de expansão
imperialista, o capitalismo se mostra necessariamente intolerante em
relação a todas as minorias nacionais, em particular contra os judeus, que
são a minoria por antonomásia. Ora, à luz dessa teoria geral (o ensaio de
Trótski era de 1931, é bom não esquecer: ou seja, o ano em que começara a
verdadeira ascensão de Hitler), que importava se Mussolini como pessoa
fosse melhor que Hitler? E afinal Mussolini era mesmo melhor como
pessoa?
“Entendi, entendi…”, meu pai continuava repetindo, submisso, enquanto
eu falava.
Estava com as pálpebras baixas, o rosto contraído em uma careta de
resistência dolorosa. Por fim, quando teve certeza de que eu não tinha mais
nada a acrescentar, pousou uma mão em meu joelho.
Ele tinha entendido, repetiu mais uma vez, reabrindo lentamente as
pálpebras. De todo modo, precisava me dizer: em sua opinião, eu via as
coisas sombrias demais, era demasiado catastrófico.
Por que eu não reconhecia que, após o comunicado de 9 de setembro, e
até depois da circular adicional do dia 22, as coisas, pelo menos em Ferrara,
seguiram em frente quase como antes? Era a plena verdade, admitiu,
sorrindo melancólico: durante aquele mês, entre os setecentos e cinquenta
membros da comunidade, não houve óbitos de tal importância que valessem
a pena ser noticiados no Padano (salvo engano, só tinham morrido duas
velhinhas do asilo da Via Vittoria: uma Saralvo e uma Rietti; e esta última
nem sequer era de Ferrara, mas vinha de uma cidadezinha da província de
Mântua, Sabbioneta, Viadana, Pomponesco ou algo assim). Mas sejamos
justos: o catálogo telefônico não tinha sido confiscado para ser substituído
por uma reedição expurgada; ainda não houvera havertà, camareira,
cozinheira, babá ou velha governanta a serviço de alguma de nossas
famílias que, descobrindo de repente em si uma “consciência racial”,
tivesse realmente pensado em fazer a trouxa; o Círculo dos Comerciários,
onde havia mais de dez anos o cargo de vice-presidente era ocupado pelo
advogado Lattes — e que ele mesmo, como eu devia saber, continuava
frequentando sem nenhum problema quase todos os dias —, não tinha até
hoje promovido afastamentos de nenhum tipo. E por acaso Bruno Lattes,
filho de Leone Lattes, tinha sido expulso do Eleonora d'Este? Sem pensar
nem por um segundo em meu irmão Ernesto, coitadinho, que ficava sempre
ali, olhando-me boquiaberto e me imitando como se eu fosse quem sabe um
grande hahàm,[7] eu tinha parado de ir ao clube de tênis; e eu errava feio,
deixasse ele dizer, errava feio em me fechar, em me segregar, em não ver
mais ninguém, para depois, com a desculpa da universidade e do passe
ferroviário, escapar continuamente para Bolonha (nem com Nino
Bottecchiari, Sergio Pavani e Otello Forti, até o ano passado meus amigos
inseparáveis, nem com eles eu queria mais estar, aqui em Ferrara; e mesmo
assim, ora um, ora outro, pode-se dizer que não passava mês sem que um
deles me ligasse, pobres coitados!). Em vez disso, que eu prestasse atenção
no jovem Lattes, por favor. Pelo que dizia o Padano, ele não só pôde
participar normalmente do torneio social, mas também da dupla mista,
jogando com aquela moça bonita, Adriana Trentini, filha do engenheiro-
chefe da província, e estavam indo muito bem: tinham avançado três
rodadas e agora treinavam para a semifinal. Ah, não: podia-se falar de tudo
do bom Barbicinti, ou seja, que ele dava valor demais à sua modesta quarta
parte de nobreza, e valorizava de menos a gramática dos artigos de
propaganda esportiva que o secretário do Partido o fazia escrever de vez em
quando no Padano. Mas que ele era um cavalheiro, de modo nenhum hostil
aos judeus, muito moderadamente fascista — e, ao dizer “muito
moderadamente fascista”, a voz de meu pai tremeu, um leve tremor de
timidez —, sobre isso não havia nenhuma dúvida ou controvérsia.
De resto, quanto ao convite de Alberto e ao comportamento dos Finzi-
Contini em geral, o que significava agora, da noite para o dia, toda aquela
agitação deles, aquela necessidade quase espasmódica de contatos?
Já havia sido bastante curioso o que acontecera semana passada no
templo, para o Rosh Hashaná (eu não quisera ir, como sempre: e mais uma
vez tinha agido mal). Sim, tinha sido bastante curioso, justo no ápice do
culto e com os bancos já quase todos ocupados, ver a certa altura Ermanno
Finzi-Contini, a esposa e até a sogra, acompanhados pelos dois filhos e
pelos indefectíveis tios Herrera de Veneza — ou seja, a tribo inteira, sem
nenhuma distinção entre homens e mulheres —, fazerem seu regresso
solene à sinagoga italiana depois de cinco anos de desdenhoso isolamento
na espanhola: e com umas expressões tão satisfeitas e benevolentes como se
pretendessem, com sua simples presença, premiar e perdoar não só os que
estavam ali, mas também toda a comunidade. De todo modo, é claro que
aquilo não tinha sido suficiente. Agora chegavam ao cúmulo de convidar
pessoas à sua casa: ao Barchetto del Duca, imagine!, onde desde os tempos
de Josette Artom nenhum concidadão ou forasteiro pusera os pés senão em
casos de estrita emergência. E eu queria saber por quê? Porque estavam
contentes com o que estava se passando! Porque para eles, halti como
sempre foram (contrários ao fascismo, tudo bem, mas acima de tudo halti),
as leis raciais no fundo lhes davam prazer! Mas se pelo menos fossem bons
sionistas! Já que aqui, na Itália e em Ferrara, sempre se sentiram tão
incomodados, tão deslocados, que pelo menos tivessem aproveitado a
situação para se transferir de uma vez por todas para Erez! Mas que nada.
Além de reservar de vez em quando um pouco de dinheiro para Erez (em
todo caso, nada de extraordinário), nunca quiseram fazer nenhuma coisa
além disso. Sempre preferiram gastar sua verdadeira fortuna em futilidades
aristocráticas: como quando, em 1933, para conseguir um ehàl e um
parochèt dignos de figurar em sua sinagoga pessoal (meros mobiliários
sefarditas, meu Deus, e que não fossem portugueses, ou catalães, ou
provençais, mas autênticos espanhóis, e na justa medida!), foram de carro,
escoltados por um Carnera,[8] até nada menos que Cherasco, na província
de Cuneo, um povoado que até 1910, ou pouco antes, fora a sede de uma
pequena comunidade já extinta, e onde apenas o cemitério continuava ativo
porque algumas famílias de Turim originárias do local, Debenedetti,
Momigliano, Terracini etc., continuavam sepultando seus mortos ali. Josette
Artom, a avó de Alberto e de Micòl, também importava ininterruptamente
palmeiras e eucaliptos do Jardim Botânico de Roma, aquele aos pés do
Janículo: e para isso, a fim de que as carroças passassem com toda a
comodidade, mas também por razões de prestígio, nem é o caso de explicar,
ela impôs ao marido, o coitado do Menotti, que alargasse em pelo menos o
dobro o já grande portão da casa que dá para a avenida Ercole I d'Este. A
verdade é que, à força de fazer coleções de coisas, de plantas, de tudo,
acaba-se pouco a pouco querendo colecionar pessoas também. Oh, mas se
eles, os Finzi-Contini, sentiam falta do gueto (era no gueto que obviamente
sonhavam em ver todo mundo enclausurado, e talvez até se dispusessem,
em vista daquele belo ideal, a lotear o Barchetto del Duca para fazer
daquilo uma espécie de kibutz submetido a seu alto patronato), que o
fizessem, em total liberdade. Quanto a ele, teria preferido mil vezes a
Palestina. E, melhor ainda que a Palestina, o Alasca, a Terra do Fogo ou
Madagascar…
Era uma terça-feira. Eu não saberia dizer como, dali a poucos dias, no
sábado daquela mesma semana, me decidi a fazer justamente o contrário do
que meu pai desejava. Não creio que se tratasse do habitual mecanismo de
contradição e desobediência típico dos filhos. Talvez o que tenha me dado
vontade de tirar de repente a raquete e o uniforme de tênis que dormiam em
uma gaveta havia mais de um ano tenha sido simplesmente o dia luminoso,
o ar leve e afetuoso de uma primeira tarde outonal com um sol
extraordinário.
Mas naquele meio-tempo tinham acontecido várias coisas.
Primeiro de tudo, acho que dois dias depois do telefonema de Alberto,
portanto na quinta-feira, a carta que “aceitava” meu desligamento como
sócio do Círculo de Tênis Eleonora d'Este de fato chegou a mim. Escrita à
máquina, mas com uma esvoaçante assinatura do marquês Barbicinti ao pé
da página, o expresso registrado não se demorava em considerações
pessoais e particulares. Em poucas linhas muito secas, que ecoavam
canhestramente o estilo burocrático, ia direto ao ponto, declarando sem
mais nem menos “inadimissível” [sic] qualquer frequentação futura do
círculo por parte de minha “V. Sa. Ilma.”. (Será que o marquês Barbicinti
poderia alguma vez eximir-se de condimentar sua prosa com uns deslizes
ortográficos? Vê-se que não. Mas se dar conta disso, e ainda rir, tinha sido
dessa vez um pouco mais difícil que nas anteriores.)
Em segundo lugar, no dia seguinte eu tinha recebido uma nova chamada
telefônica proveniente da magna domus; e dessa vez não mais da parte de
Alberto, mas de Micòl.
O resultado foi uma longa, aliás, uma interminável conversa cujo tom se
manteve, sobretudo graças a Micòl, na linha de um bate-papo normal,
irônico e divagante de dois universitários veteranos entre os quais, na
adolescência, pode até ter havido certa ternura, mas que agora, passados
cerca de dez anos, não tinham outra finalidade senão a de efetuar um
honesto reencontro.
“Quanto tempo faz que não nos vemos?”
“Uns cinco anos, no mínimo.”
“E como é que você está?”
“Feia. Uma solteirona de nariz vermelho. E você? A propósito, eu li,
li…”
“Leu o quê?”
“Claro, uns dois anos atrás, no Padano, acho que na terceira página, que
você participou dos Littoriali[9] da Cultura e da Arte em Veneza. Quanta
honra, hein? Meus parabéns! Pois é, você sempre foi excelente em italiano,
desde o ginásio. Meldolesi ficava realmente encantado com certas redações
suas na classe. Acho até que levou algumas para lermos.”
“Mas também não precisa fazer chacota. E você, o que tem feito?”
“Nada. Eu devia ter me formado em inglês na Ca' Foscari em junho
passado. Mas que nada. Tomara que eu consiga este ano, se a preguiça
deixar. Acha que vão permitir aos estudantes que ultrapassaram o prazo se
formar também?”
“Eu não queria lhe dar uma má notícia, mas não tenho a menor dúvida
quanto a isso. Você já definiu o tema da tese?”
“Definir, eu defini: vai ser sobre Emily Dickinson, sabe?, aquela poeta
americana do século XIX, um tipo de mulher terrível… Mas como vou
fazer? Precisaria grudar no meu orientador, passar uns quinze dias seguidos
em Veneza; mas para mim, depois de um tempo, a Pérola da Laguna…
Nesses anos todos, fiquei lá o mínimo possível. De resto, convenhamos,
estudar nunca foi meu forte.”
“Mentirosa. Mentirosa e esnobe.”
“Não mesmo, eu juro. E neste outono ando menos animada ainda de
ficar lá, boazinha. Sabe o que eu queria fazer em vez de me enterrar numa
biblioteca, querido?”
“Diga.”
“Jogar tênis, dançar e paquerar: já pensou?!”
“Se você quisesse, poderia muito bem se entregar a essas dignas
diversões, inclusive ao tênis e à dança, lá em Veneza.”
“Com certeza. Com a governanta do tio Giulio e do tio Federico o tempo
todo no meu pé!”
“Bom, quanto ao tênis, não me diga que não daria para jogar. Eu, por
exemplo, assim que posso pego o trem e vou direto para Bolonha…”
“Vai direto, hein, confesse: vai direto é ver a namorada.”
“Não, não. Eu também preciso me formar no ano que vem, só não sei
ainda se em história da arte ou italiano (mas a esta altura, acho que em
italiano…) e, quando me dá vontade, me permito uma hora de tênis. Alugo
uma ótima quadra na Via del Cestello ou no Littoriale, e ninguém pode falar
nada. Por que você não faz o mesmo em Veneza?”
“A questão é que, para jogar tênis e dançar, é preciso um partner, e em
Veneza eu não conheço ninguém que sirva. Afora isso, Veneza é linda, nem
vou discutir, mas não me sinto bem lá. Me sinto provisória, fora de lugar…
um pouco como no exterior.”
“Você dorme na casa dos tios?”
“Ah, sim: durmo e como lá.”
“Entendo. De todo modo, obrigado por ter ido me ver quando estive há
dois anos na Ca' Foscari, para os Littoriali. Sinceramente. Aquilo foi a
página mais terrível da minha vida.”
“Mas por quê? No fim das contas… Aliás, confesso que a certa altura,
quando soube que você estaria lá, bem que eu quis ir torcer… pela nossa
bandeira. Mas ouça: se lembra daquela vez na Muralha degli Angeli, aqui
fora, no ano em que você ficou de recuperação em matemática? Chorava
que nem um bezerro, pobre coitado: e tinha uns olhos! Eu queria te
consolar. Até insisti para você pular o muro e entrar no jardim. Mas por que
foi mesmo que você acabou não entrando? Só sei que não entrou, mas não
lembro o motivo.”
“Porque alguém nos flagrou bem na hora H.”
“Ah, é verdade, Perotti, aquele cachorro do Perotti, o jardineiro.”
“Jardineiro? Achava que fosse cocheiro.”
“Jardineiro, cocheiro, chofer, porteiro, tudo.”
“Ainda está vivo?”
“E como!”
“E o cachorro, o cachorro de verdade, o que ficou latindo?”
“Quem? Jor?”
“Esse, o dinamarquês.”
“Também continua vivinho da silva.”
Ela repetiu o convite do irmão (“Não sei se Alberto já lhe ligou: por que
você não vem bater uma bolinha aqui em casa?”), mas sem insistir e sem
fazer referência, ao contrário dele, à carta do marquês Barbicinti. Não
mencionou senão o puro prazer de nos revermos depois de tantos anos e de
aproveitarmos juntos, bem na cara de todas as proibições, tudo de bom que
restava da bela estação.
2

Não fui o único a ser convidado. Naquela tarde de sábado, quando dobrei ao
fundo da avenida Ercole I (para evitar a Giovecca e o centro, eu vinha da
Piazza della Certosa, ali perto), imediatamente percebi o pequeno grupo de
tenistas que se aglomerava à sombra, diante do portão dos Finzi-Contini.
Eram cinco, todos de bicicleta, como eu: quatro rapazes e uma garota. Meus
lábios se contraíram em uma careta de decepção. Que gente era aquela?
Com exceção de um deles, que eu mal conhecia de vista, um cara mais
velho, de seus vinte e cinco anos, cachimbo entre os dentes, calças
compridas de linho branco e blazer marrom de fustão, os demais, vestindo
pulôveres coloridos e bermudas, tinham toda a pinta de assíduos
frequentadores do Eleonora d'Este. Tinham chegado havia pouco e
aguardavam permissão para entrar. Porém, como o portão demorava a se
abrir, de vez em quando todos paravam de falar em voz alta e de rir e, em
sinal de alegre protesto, começavam a tocar ritmicamente as campainhas
das bicicletas.
Fiquei tentado a dar meia-volta. Tarde demais. Já não tocavam as
campainhas e me olhavam curiosos. Então um deles — que, ao me
aproximar, logo vi se tratar de Bruno Lattes — começou a me fazer sinais
com a raquete erguida acima do braço longo e magérrimo. Queria que eu o
reconhecesse (nunca fomos muito amigos: era dois anos mais novo que eu
e, mesmo estudando letras em Bolonha, pouco nos encontramos) e,
simultaneamente, me incentivava a chegar mais perto.
Agora eu estava parado, cara a cara com Bruno, a mão esquerda apoiada
no liso carvalho do portão.
“Bom dia”, comecei com um sorrisinho. “Qual o motivo de tanta gente
nessas bandas hoje? Será que o torneio do clube já terminou? Ou me vejo
diante de uma tropa de eliminados?”
Falei calibrando meticulosamente a voz e as palavras. Enquanto isso,
observava-os um a um. Olhava Adriana Trentini, seus lindos cabelos muito
louros, as pernas compridas e bem torneadas: magníficas, sem dúvida, mas
cuja pele, branca demais, estava frequentemente pintada por estranhas
manchas vermelhas quando fazia calor; olhava o rapaz taciturno de calças
de linho e blazer marrom (não podia ser de Ferrara, eu pensava); olhava os
outros dois jovens, bem mais novos do que este último e do que a própria
Adriana, talvez ainda alunos do ensino médio ou do instituto técnico, e
justamente por isso, por terem “crescido” durante o último ano, enquanto eu
aos poucos me afastava dos círculos de convívio da cidade, me eram
praticamente desconhecidos; e por fim olhava Bruno, bem na minha frente,
cada vez mais alto e seco, de tez sempre escura, cada vez mais parecido
com um jovem negro, vibrante e apreensivo, tomado naquele dia por tal
agitação nervosa que chegava a transmiti-la com o simples contato dos
pneus traseiros de nossas bicicletas.
Entre nós correu aquela mirada furtiva e inevitável de cumplicidade
judaica que, meio ansioso e meio descontente, eu já previra. Então
acrescentei, continuando a olhá-lo:
“Quero crer que, antes de terem ousado vir jogar num lugar diferente do
habitual, vocês tenham pedido permissão ao sr. Barbicinti.”
Seja porque estivesse espantado com meu tom sarcástico, seja porque se
sentisse incomodado, o desconhecido não ferrarense teve um leve
sobressalto ao meu lado. Em vez de me fazer moderar, aquilo me espicaçou
ainda mais.
“Sejam justos, me tranquilizem”, insisti. “Trata-se de uma escapada
consentida ou, ao contrário, de uma evasão em grupo?”
“Como assim?!”, rebateu Adriana com a usual leviandade: inocente, é
verdade, mas nem por isso menos ofensiva. “Você não sabe o que aconteceu
quarta passada, na final das duplas mistas? Ora, não vá me dizer que não
estava lá, e pare com esse seu eterno ar de Vittorio Alfieri! Vi você entre o
público enquanto jogávamos. Vi perfeitamente.”
“Eu não estava lá de jeito nenhum”, retruquei, seco. “Não frequento a
área há pelo menos um ano.”
“E por quê?”
“Porque tinha certeza de que mais cedo ou mais tarde seria expulso de
qualquer jeito. De fato, não estava enganado. Olhe aqui a cartinha de
desligamento.”
Tirei o envelope do bolso do blazer.
“Imagino que você tenha recebido uma igual”, acrescentei, dirigindo-me
a Bruno.
Só então Adriana pareceu se lembrar. Torceu a boca. Mas a simples
perspectiva de poder me pôr a par de um evento tão importante, que eu
evidentemente ignorava, foi o bastante para que ela esquecesse todo o resto.
Ergueu uma mão.
“É o caso então de explicar”, disse.
Bufou e revirou os olhos para o céu.
Tinha ocorrido um fato muito antipático, começou a me contar em tom
professoral, enquanto um dos rapazes mais novos tornava a apertar o
pequeno e saliente botão de osso preto da campainha do portão. Tudo bem,
eu não sabia, mas ela e Bruno, no torneio de encerramento do clube iniciado
justo no meio da semana anterior, tinham conseguido nada mais, nada
menos que ir à final: um resultado que eles nunca teriam sonhado alcançar.
Ponto. O confronto decisivo ainda estava em andamento quando as coisas
começaram a tomar o rumo mais inesperado (era de arregalar os olhos,
palavra de honra: Désirée Baggioli e Claudio Montemezzo, com trinta,
penavam contra uma dupla de não classificados; tanto que perderam o
primeiro set por dez a oito e estavam indo muito mal no segundo também),
e de repente, em uma decisão exclusiva e imprevisível do marquês
Barbicinti, que como sempre era o árbitro do torneio e, mais uma vez, agiu
como Grande Chefe, a partida teve de sofrer uma brusca interrupção. Já
eram seis da tarde e se enxergava bem pouco, é verdade. Mas não a ponto
de impossibilitar pelo menos mais dois games. Isso é coisa que se faça? Em
pleno quatro a dois do segundo set de um jogo importante, não se tem o
direito, até prova em contrário, de se começar a gritar “parem!”, de se entrar
na quadra de braços abertos, proclamando a suspensão da partida por
“patente escassez de luz”, e postergar seu prosseguimento e conclusão para
a tarde do dia seguinte. De resto, o senhor marquês não agia de boa-fé, de
jeito nenhum! E mesmo que ela não tivesse notado, já no final do primeiro
set, o marquês confabulando direto com aquela “alma negra” do Gino
Cariani, secretário do GUF (os dois se puseram um pouco à parte das
pessoas, ao lado dos vestiários), Cariani que, talvez para dar menos na vista,
estava completamente de costas para a quadra, bastaria ver a cara do
marquês no instante em que se inclinou para abrir a cancela de acesso,
pálida e transtornada como nunca se viu igual (“uma cara de quem viu
fantasma, apavorado!”), para se dar conta de que a patente falta de luz não
passava de uma desculpa esfarrapada, pura enrolação. Aliás, tinha como
duvidar? E não se falou mais do match interrompido, já que, na manhã do
dia seguinte, Bruno também recebeu uma carta idêntica à minha: “como
queríamos demonstrar”. E ela, Adriana, ficou tão enojada e indignada com
toda essa história que jurou não pôr mais os pés no Eleonora d'Este: pelo
menos por um tempo. Tinham algo contra Bruno? Se tinham, podiam
perfeitamente ter vetado sua inscrição no torneio. Dizer com franqueza:
“Como as coisas estão assim e assado, lamentamos, não é possível aceitar
sua inscrição”. Mas em plena competição, com o torneio já no final, aliás, a
um triz de ele vencer uma das finais, não podiam de jeito nenhum se
comportar como se comportaram. Quatro a dois. Que indecência! Esse tipo
de atitude era coisa de zulus, não de pessoas de bem, civilizadas!
Adriana Trentini falava cada vez mais exaltada; e de vez em quando
Bruno também intervinha, acrescentando detalhes.
Segundo ele, a partida fora interrompida sobretudo por causa de Cariani,
e quem o conhecia não podia esperar outra coisa dele. Era evidente até
demais: um “zé-ninguém” daquele tipo, com peito de tuberculoso e ossos
de passarinho, cujo único pensamento desde que pôs os pés no GUF foi o de
fazer carreira lá dentro, e por isso mesmo não perdia uma oportunidade, em
público ou reservadamente, de lamber as botas do Federal (eu já não o vira
no Café da Bolsa, nas raras vezes que conseguia sentar-se à mesa dos
“velhos chacais da Bombamano”? Ficava todo inflado, vociferava, exibia-
se, recorrendo a palavras mais pesadas que ele, mas assim que o cônsul
Bolognesi, o Sciagura ou qualquer outro hierarca do grupo falava mais alto,
rapidamente metia o rabo entre as pernas, pronto a cumprir os serviços mais
humildes a fim de ser perdoado e recuperar o favor de seus superiores,
como ir à tabacaria e comprar um maço de Giubek para o Federal, ou
telefonar para a “casa Sciagura” anunciando o iminente regresso do grande
homem à “patroa ex-lavadeira”…): um “verme daquele calibre” não
deixaria escapar, e ele apostava a própria cabeça, a oportunidade de uma
vez mais se destacar aos olhos da Federação! O marquês Barbicinti era
aquilo que já se sabia: um senhor distinto, sem dúvida, mas acima de tudo
um terra a terra, sem “autonomia de voo”, o oposto de um herói. Se o
mantinham à frente do Eleonora d'Este era porque se apresentava bem, mas
acima de tudo pelo sobrenome, que na cabeça deles devia funcionar como
um ouro de tolo. Então deve ter sido moleza para Cariani dar uma
tremedeira no pobre M.es. Vai ver que lhe disse: “E amanhã, marquês? Já
pensou amanhã à noite, quando o Federal vier aqui, para a festa baile, e
tiver de premiar um… Lattes com uma bela taça prateada e a saudação
romana de praxe? Eu, por mim, já prevejo um escândalo enorme. E
pepinos, pepinos sem fim. Se eu fosse o senhor, aproveitando que já começa
a ficar escuro, não pensaria duas vezes e interromperia a partida”. Não foi
preciso mais que isso, “batata!”, para induzir o outro à irrupção penosa e
grotesca que se viu ontem.
Antes de Adriana e Bruno terminarem de me relatar esses
acontecimentos (a certa altura, Adriana até achou um pretexto para me
apresentar ao jovem de fora, um tal de Malnate, Giampiero Malnate,
milanês, químico recém-contratado por uma das novas fábricas de borracha
sintética da zona industrial), o portão finalmente se abriu. Na soleira surgiu
um homem de uns sessenta anos, forte e atarracado, de cabelos grisalhos
cortados curtos, dos quais o sol das duas e meia, jorrando em fluxos através
do vão vertical às suas costas, extraía reflexos de nitidez metálica, e bigodes
também curtos e grisalhos sob um nariz carnudo e arroxeado: um pouco à
Hitler — me veio à cabeça —, nariz e bigodes. Era ele mesmo, o velho
Perotti, jardineiro, cocheiro, chofer, porteiro, tudo, como dissera Micòl: no
geral, nem um pouco mudado desde os tempos do Guarini, quando, sentado
na boleia, aguardava impassível que o antro escuro e ameaçador pelo qual,
impávidos, com um sorriso nos lábios, seus “senhorzinhos” tinham sido
engolidos, se decidisse enfim a restituí-los, não menos serenos e seguros de
si, ao coche que era todo cristais, vernizes, niquelados, estofados felpudos,
madeiras de lei — realmente como um relicário precioso —, por cuja
conservação e condução apenas ele era o responsável. Os olhos miúdos, por
exemplo, também eles cinzentos e pungentes, cintilantes de uma dura e
camponesa argúcia vêneta, riam benevolentes sob espessas sobrancelhas
quase pretas: como antigamente, tal qual. Mas de que riam agora? De
termos sido largados ali, esperando pelo menos dez minutos? Ou de si
mesmo, que se apresentara em casaca de riscado e luvas de fio branco: estas
novinhas em folha, talvez estreadas para a ocasião?
Fomos então inseridos, todos acolhidos, para além do portão
imediatamente fechado pelo solerte Perotti com uma grande pancada, pelos
pesados latidos de Jor, o dinamarquês branco e preto. O canzarrão vinha
pela alameda de acesso, trotando cansado ao redor da gente com um jeito
nem um pouco amedrontador. Apesar disso, Bruno e Adriana silenciaram
de pronto.
“Ele não morde?”, indagou Adriana, atemorizada.
“Não se preocupe, senhorita”, respondeu Perotti. “Com os três ou quatro
dentes que lhe sobraram, o que é que ele pode morder agora? No máximo
uma polenta…”
E enquanto o decrépito Jor, detendo-se no meio da alameda em pose
escultórica, nos observava com os dois olhos gelados e sem expressão, um
escuro e outro azul-claro, Perotti começou a se desculpar. Lamentava nos
ter feito esperar, disse. Mas a culpa não era dele, e sim da corrente elétrica
que de vez em quando falhava (sorte que a srta. Micòl percebeu e logo o
mandou ver se por acaso os convidados já não haviam chegado), além da
distância de mais de meio quilômetro. Ele não sabia andar de bicicleta,
infelizmente. Mas quando a srta. Micòl mete uma coisa na cabeça…
Suspirou, levantou os olhos ao céu e sorriu de novo, sabe-se lá por quê,
descobrindo entre os lábios finos uma fieira de dentes bem mais compacta e
forte que a do dinamarquês; enquanto isso, com o braço erguido, nos
indicava a alameda que, depois de uns cem metros, se adentrava em um
denso juncal. Mesmo podendo ir de bicicleta — advertiu —, de todo modo
eram três ou quatro minutos só para chegar ao “palácio”.
3

Tivemos realmente muita sorte naquela estação. Durante dez ou doze dias o
tempo se manteve perfeito, firme naquela espécie de suspensão mágica, de
uma imobilidade vítrea e luminosa que é típica de certos outonos nossos.
Fazia calor no jardim: apenas um pouco menos que no verão. Quem
quisesse, podia continuar jogando tênis até umas cinco e meia da tarde ou
mais, sem temer que a umidade da noite, já tão intensa em novembro,
danificasse as cordas das raquetes. Àquela hora, naturalmente, não se via
quase nada na quadra. Mas a luz que continuava dourando lá nas lonjuras os
declives relvosos da Muralha degli Angeli, repletos, em especial aos
domingos, de uma sossegada multidão colorida (garotos correndo atrás da
bola, babás sentadas a tricotar ao lado dos carrinhos de bebê, militares de
folga, casais de namorados procurando lugares onde se abraçar), aquela
última luz convidava a insistir nas partidas, não importa se agora quase às
cegas. O dia ainda não havia acabado, valia a pena jogar mais um pouco.
Voltávamos todas as tardes, de início avisando com um telefonema,
depois nem isso; e sempre os mesmos, às vezes com a exceção de
Giampiero Malnate, que conhecia Alberto desde 1933, de Milão, e ao
contrário do que eu pensara no primeiro dia, ao vê-lo em frente ao portão
dos Finzi-Contini, não só jamais vira os quatros jovens que estavam com
ele, como tampouco tinha qualquer relação com o Eleonora d'Este ou com
seu vice-presidente e secretário, o marquês Ippolito Barbicinti. Os dias se
mostravam bonitos demais e, ao mesmo tempo, insidiados pelo inverno
iminente. Perder um só deles parecia um crime. Sem marcarmos um
encontro, chegávamos sempre por volta das duas, logo depois do almoço. A
princípio, a cena de todos nós diante do portão tornou a repetir-se com
frequência, à espera de que Perotti viesse abri-lo. Porém, depois de uma
semana, a instalação de um interfone e de uma fechadura comandada à
distância fez com que, como a entrada do jardim não era mais problema,
chegássemos em horários variados, quando desse. De minha parte, não
deixei de comparecer um só dia; nem para dar uma de minhas habituais
escapadas até Bolonha. Nem os outros, se bem me lembro: nem Bruno
Lattes, nem Adriana Trentini, nem Carletto Sani, nem Tonino Collevatti,
aos quais sucessivamente se juntaram, sem contar meu irmão Ernesto,
outros três ou quatro rapazes e moças. O único que, como disse, vinha com
menor regularidade era o Giampiero Malnate (Micòl começou a chamá-lo
assim, e logo virou uso geral). Precisava conciliar os horários na fábrica,
explicou certa vez: não muito rígidos, é verdade, já que o estabelecimento
Montecatini onde ele trabalhava ainda não havia produzido nem um quilo
de borracha sintética, mas eram sempre horários. Seja como for, suas
ausências nunca duravam mais de dois dias seguidos. De resto, ele era o
único que, além de mim, não demonstrava grande apego ao tênis (na
verdade, jogava muito mal), muitas vezes se contentando, quando chegava
de bicicleta por volta das cinco, depois do laboratório, em arbitrar uma
partida ou se sentar à parte com Alberto para fumar cachimbo e conversar.
Nossos anfitriões eram até mais assíduos que nós. Às vezes aparecíamos
antes que o relógio da praça batesse as duas, lá longe: por mais cedo que se
chegasse, tinha-se a certeza de que eles já estavam na quadra, agora não
mais jogando entre si, como naquele sábado em que desembocamos no
gramado atrás da casa, onde se localizava a quadra, mas empenhados em
verificar que tudo estivesse em ordem, a rede no lugar certo, o terreno bem
aplainado e umedecido, as bolas em boas condições, ou então estirados nas
espreguiçadeiras com amplos chapéus de palha na cabeça, imóveis,
tomando sol. Como anfitriões, não podiam se comportar melhor. Embora
fosse claro que o tênis, entendido como puro exercício físico, como esporte,
só lhes interessava até certo ponto, mesmo assim eles permaneciam ali até o
final da última partida (sempre um dos dois, às vezes ambos), sem jamais se
ausentar antecipadamente com a desculpa de um compromisso, de algum
afazer, de um mal-estar. Aliás, em certas noites eram eles mesmos que, no
escuro quase completo, insistiam em “bater mais umas bolinhas, as
últimas!”, impelindo para dentro da quadra quem já estivesse saindo.
Como Carletto Sani e Tonino Collevatti logo declararam, sem nem
mesmo baixar um pouco a voz, não se podia dizer que a quadra fosse
grande coisa.
Adolescentes de quinze anos, práticos, novos demais para terem
frequentado quadras de tênis diversas das que enchiam de justo orgulho o
marquês Barbicinti, logo começaram a listar os defeitos daquela espécie de
“campo de batatas” (assim se expressou um deles, contraindo os lábios com
um esgar de desprezo). Ou seja: quase nenhum out, sobretudo atrás das
linhas de fundo; mal drenado, de modo que bastaria uma chuvinha para
transformá-lo em um charco; e nenhuma cerca viva circundando as grades
metálicas do perímetro.
Entretanto, assim que Alberto e Micòl se viram em um “confronto de
morte” (ela não conseguira impedir que o irmão a alcançasse em um cinco
iguais, e nesse ponto interromperam a partida), apressaram-se em denunciar
os mesmos defeitos sem nenhuma cerimônia, como em uma disputa, diria
até com um entusiasmo bizarro e autodepreciativo.
Ah, sim, disse Micòl, enquanto passava uma toalha no rosto para
enxugar o suor: para gente como nós, “mimada” com as quadras vermelhas
do Eleonora d'Este, era bem difícil sentir-se à vontade naquele campo de
batatas que eles tinham! E os outs? Como era possível jogar com tão pouco
espaço, especialmente às nossas costas? Em que abismo de decadência
havíamos caído, pobres de nós! Mas ela estava com a consciência tranquila.
Repetira infinitas vezes ao pai que as redes metálicas precisavam ser
deslocadas ao menos três metros para além do recinto. Mas que nada! Toda
vez papai vinha com aquela típica visão dos agricultores, de que a terra, se
não lhes servia para o plantio, lhe parecia um desperdício (é claro que
também contava com o fato de que ela e Alberto jogaram naquela quadra
horrível desde crianças, e que por isso podiam perfeitamente continuar
jogando na idade adulta), e assim ele, papai, sempre foi se esquivando.
Puxa, quanto esforço naquilo! Mas agora era diferente. Agora eles tinham
convidados, “convidados ilustres”. Motivo pelo qual ela voltaria à carga
com força total, azucrinando e atormentando tanto o “encanecido pai” que,
para a próxima primavera, já era capaz de garantir que ela e Alberto
poderiam nos oferecer “algo digno”.
Falava mais que nunca em seu estilo costumeiro, cheio de ironia. Quanto
a nós, só nos restava desmentir e assegurar em coro que tudo, inclusive a
quadra, estava bom demais, acrescentando elogios ao recinto verde do
jardim, diante do qual os parques privados da cidade, inclusive o do duque
Massari (foi Bruno Lattes quem o disse, justo na hora em que Micòl e
Alberto saíam juntos da quadra, de mãos dadas), decaíam à categoria de
aparados jardinetes burgueses.
Mas a quadra de tênis realmente não era “digna”; além disso, por ser a
única, obrigava a turnos de repouso muito longos. Assim, às quatro da tarde
em ponto, sobretudo visando a que, talvez, os dois jovens de quinze anos de
nosso heterogêneo grupo não fossem induzidos a lamentar as horas bem
mais intensas, do ponto de vista esportivo, que poderiam transcorrer sob as
asas do marquês Barbicinti, eis que Perotti invariavelmente surgia com o
pescoço taurino rubro e retesado devido ao esforço de carregar nas mãos
enluvadas uma grande bandeja de prata.
Vinha transbordante, a bandeja: de pãezinhos amanteigados em conserva
de anchova, em salmão defumado, no caviar, no fígado de ganso, no
presunto de porco; de pequenos vol-au-vents recheados com pasta de frango
ao bechamel; de minúsculos buricchi vindos certamente da prestigiosa
lojinha kosher que a sra. Betsabá, a famosa sra. Betsabá (Da Fano),
administrava havia décadas na Via Mazzini para glória e delícia de toda a
comunidade. E não terminava aí. O bom Perotti ainda estava dispondo o
conteúdo da travessa na mesinha de vime posta para a ocasião na entrada
lateral da quadra, sob um largo ombrelone de faixas vermelhas e azuis,
quando era alcançado por uma de suas filhas, Dirce ou Gina, as duas mais
ou menos da mesma idade de Micòl e ambas a serviço “da casa”, Dirce
como camareira e Gina como cozinheira (por sua vez, os dois filhos, Titta e
Bepi, o primeiro de uns trinta anos, o segundo de dezoito, cuidavam do
parque, cumprindo a dupla função de jardineiro e horticultor: às vezes os
víamos de relance, à distância, trabalhando encurvados, rápidos ao dirigir a
nós, que corríamos nas bicicletas, o lampejo de seus olhos azuis e irônicos;
nunca tivemos mais que esse contato). Ela, a filha, vinha por seu turno
descendo a vereda que partia da magna domus até a quadra de tênis,
empurrando um carrinho de rodas emborrachadas, também repleto de jarras,
bules, copos e xícaras. E dentro dos bules de porcelana e de estanho havia
uma variedade de chás, leite e café; dentro das peroladas jarras de cristal da
Boêmia, limonada, sucos de fruta e Skiwasser, uma bebida refrescante
composta de água e xarope de framboesa, em partes iguais, acrescida de
uma fatia de limão e algumas bagas de uva, que Micòl preferia a qualquer
outra e da qual se mostrava especialmente orgulhosa.
Ah, o Skiwasser! Nos intervalos das partidas, além de mordiscar aqui e
ali algum sanduíche, dentre os quais sempre escolhia os de presunto de
porco, não sem ostentar certo inconformismo religioso, com frequência
Micòl tragava de um só gole um copo inteiro de sua querida “beberagem”,
incitando-nos com insistência a bebermos um também, “em louvor” —
dizia rindo — “ao falecido Império Austro-Húngaro”. A receita — dissera-
nos — lhe havia sido dada justamente na Áustria, em Hofgastein, no
inverno de 1934: o único inverno em que ela e Alberto, “em coalizão”,
conseguiram escapar sozinhos por umas duas semanas, para esquiar. E
embora o Skiwasser, como o nome testemunhava, fosse uma bebida de
inverno, razão pela qual devia ser servida escaldante, mesmo na Áustria
havia pessoas que, para não deixar de bebê-la, a tomavam assim, em
“versão” gelada e sem a fatia de limão, chamando-a naquele caso de
Himbeerwasser.
De todo modo, era para tomarmos nota, acrescentou com uma ênfase
cômica, o dedo erguido: as bagas de uva, “importantíssimas!”, tinha sido ela
que, por iniciativa própria, acrescentara à clássica receita do Tirol. Aquilo
fora uma ideia dela: e fazia questão de enfatizar, não era para rir. A uva
representava a peculiar contribuição da Itália à santa e nobre causa do
Skiwasser, ou, mais precisamente, constituía sua peculiar “variante italiana,
para não dizer ferrarense, para não dizer… etc. etc.”.
4

Foi preciso um tempo para que os outros da casa começassem a aparecer.


Aliás, a propósito, já no primeiro dia ocorrera um fato curioso, tanto
que, ao pensar nele dias depois, em meados da semana seguinte, quando
nem o professor Ermanno nem dona Olga ainda tinham dado as caras, fui
levado a suspeitar de que todos os que Adriana Trentini chamava de o
“côté-idosos”, em bloco, tivessem tomado a decisão unânime de manter-se
afastados da quadra de tênis: talvez para não causar constrangimento, quem
sabe, ou para não desnaturar com sua presença aquelas recepções que no
fundo não eram recepções, mas simples encontros de jovens no jardim.
O fato curioso ocorrera logo no início, depois de nos despedirmos de
Perotti e de Jor, que ficaram lá, olhando para nós, enquanto nos
distanciávamos nas bicicletas pela alameda de acesso. Ultrapassado o canal
Panfilio por uma estranha e maciça ponte de traves negras, nossa patrulha
ciclística chegou então a uns cem metros de distância da solitária
construção neogótica da magna domus, ou, para ser mais exato, à esplanada
de pedriscos, triste espaço que se estendia à frente da casa completamente
na sombra, quando a atenção de todos foi atraída por duas pessoas imóveis
bem no meio da esplanada: uma velha senhora sentada em uma poltrona,
com um monte de almofadas sustentando suas costas, e uma jovem loura e
viçosa, provavelmente uma camareira, empertigada atrás dela. Tão logo nos
viu avançar, a senhora estremeceu em uma espécie de sobressalto. Passou
então a fazer grandes sinais com os braços como a dizer que não, não
devíamos nos aproximar ainda mais da esplanada onde ela estava, uma vez
que atrás dela só havia a casa, mas que tínhamos de virar à esquerda e
seguir um caminho coberto por uma galeria de rosas trepadeiras que ela nos
indicava, ao fim do qual (Micòl e Alberto já estavam jogando: no ponto em
que estávamos, já não se ouviam as batidas regulares de suas raquetes
rebatendo a bola?) acharíamos automaticamente a quadra de tênis. Era a sra.
Regina Herrera, mãe de dona Olga. Reconheci-a na hora pela peculiar e
intensa alvura dos fartos cabelos recolhidos em um coque sobre a nuca,
cabelos que eu sempre admirava toda vez que, no templo, durante minha
infância, conseguia entrevê-los através das grades do matroneu. Agitava os
braços e as mãos com caprichosa energia, fazendo ao mesmo tempo um
gesto à jovem, que depois se soube que era Dirce, a fim de ajudá-la a se
levantar. Estava cansada de ficar ali e queria voltar para casa. Ao que a
camareira obedeceu com instantânea solicitude.
Certa tarde, porém, contra todas as expectativas, foram o professor
Ermanno e dona Olga que apareceram. Tinham o ar de quem passava pela
quadra de tênis por mero acaso, voltando de um longo passeio pelo parque.
Estavam de braços dados. Menor que a esposa, e bem mais encurvado do
que era dez anos antes, na época de nossas sussurradas conversas na escola
italiana de um banco a outro, o professor vestia um de seus habituais trajes
de tecido leve e claro, com um panamá de fita preta baixado até as grossas
lentes do pincenê, apoiando-se em um bastão de bambu para caminhar.
Trajando luto, a senhora levava nos braços um grande buquê de crisântemos
colhidos ao longo do passeio em alguma parte remota do jardim.
Pressionava-os contra o peito de través, cingindo-os com o braço direito em
um gesto ternamente possessivo, quase maternal. Embora ainda
empertigada, e uma cabeça mais alta que o marido, ela também parecia
muito envelhecida. Os cabelos haviam se tornado uniformemente grisalhos:
de um grisalho feio, sombrio. Sob a fronte ossuda e saliente, os olhos
pretíssimos brilhavam com o ardor fanático e sofrido de sempre.
Quem de nós sentava-se em torno do guarda-sol se levantou; e quem
jogava parou.
“Tranquilos, tranquilos”, fez o professor com sua voz gentil e musical.
“Não se incomodem, por favor. Podem continuar o jogo.”
Não foi atendido. Micòl e Alberto se apressaram em nos apresentar;
especialmente Micòl. Além de anunciar nomes e sobrenomes, demorava-se
a ilustrar o que, de cada um, supunha suscitar o interesse do pai: estudos e
ocupações em primeiro lugar. Começou por mim e por Bruno Lattes,
falando tanto de um quanto de outro com um modo destacado,
marcadamente objetivo; como para, naquela circunstância específica,
impedir o pai de uma eventual atitude de reconhecimento ou preferência
especiais. Éramos “os dois literatos da quadrilha”, “tipos excelentes”. Então
passou a Malnate. Eis um belo exemplo de devoção científica! — exclamou
com ênfase irônica. Apenas a química, pela qual nutria uma paixão
evidentemente irresistível, poderia induzi-lo a deixar para trás uma
metrópole tão cheia de recursos como Milão (“Milán l'è on gran Milàn!”) e
vir enterrar-se em uma “cidadezinha qualquer” como a nossa.
“Trabalha na zona industrial”, explicou Alberto, simples e sério. “Num
estabelecimento da Montecatini.”
“Deveriam produzir borracha sintética”, riu Micòl, “mas parece que até
agora não conseguiram.”
O professor Ermanno tossiu. Apontou um dedo para Malnate.
“O senhor foi colega de universidade de Alberto”, indagou, gentil. “Não
é verdade?”
“Bem, em certo sentido”, respondeu o outro, assentindo com um aceno
de cabeça. “Afora as faculdades diferentes, eu estava três anos mais
adiantado. Mas mesmo assim fizemos ótima companhia.”
“Sei, sei. Meu filho nos falou com frequência do senhor. Inclusive nos
disse que esteve várias vezes na sua casa e que seus pais, em diversas
ocasiões, trataram-no com grande gentileza e atenção. Poderia agradecer-
lhes em nosso nome, quando os reencontrar? Estamos muito felizes por tê-
lo aqui, na nossa casa. E trate de voltar, hein… volte todas as vezes que
tiver vontade.”
Virou-se para Micòl e lhe perguntou, indicando Adriana:
“E esta senhorita, quem é? Se não estou enganado, deve ser uma
Zanardi…”
O colóquio continuou nesse tom até o término completo das
apresentações, incluindo as de Carletto Sani e de Tonino Collevatti,
definidos por Micòl como “as duas esperanças” do tênis de Ferrara. Por
fim, o professor Ermanno e dona Olga, que permanecera por todo o tempo
ao lado do marido sem dizer uma só palavra, limitando-se a sorrir
benevolente de vez em quando, se afastaram, sempre de braços dados, rumo
à casa.
E embora o professor se despedisse com um “até logo!” mais que
cordial, ninguém pensou seriamente que ele viesse a cumprir sua promessa.
Entretanto, no domingo subsequente, enquanto Adriana Trentini e Bruno
Lattes de um lado da quadra, e Désirée Baggioli e Claudio Montemezzo, do
outro, estavam disputando com enorme empenho uma partida cujo
resultado, segundo o declarado propósito de Adriana, que a promovera e
organizara, deveria recompensar a ela e a Bruno, “ao menos moralmente”,
pelo golpe torpe que o marquês Barbicinti lhes infligira (mas dessa vez a
coisa parecia não seguir os mesmos trilhos: Adriana e Bruno estavam
perdendo, e de modo incontestável), eis que, mais para o final da disputa,
despontaram um a um do caminho das rosas trepadeiras todo o “côté-
idosos”. Formavam um pequeno cortejo a observá-los. À frente, o professor
Ermanno e senhora. Depois vinham, a curta distância, os tios Herrera de
Veneza: o primeiro, de cigarro entre os grossos lábios salientes e mãos
enlaçadas atrás das costas, olhando em torno com o ar um tanto embaraçado
do citadino que se vê de súbito imerso no campo, a contragosto; o segundo,
poucos metros atrás, segurando pelo braço a sra. Regina e ajustando o
próprio passo à andadura lentíssima da mãe. Se o tisiólogo e o engenheiro
estavam em Ferrara — dizia a mim mesmo —, devem ter vindo por causa
de alguma solenidade religiosa. Mas qual? Depois do Rosh Hashaná, que
caíra em outubro, não me lembrava de nenhuma outra festividade no
outono. Sucot, talvez? Provável. A menos que a igualmente provável
dispensa do engenheiro Federico das FF.SS.[10] tivesse sugerido a
convocação de um conselho extraordinário de família…
Sentaram-se compostos, quase sem ruído nenhum. A única exceção foi a
sra. Regina. No instante em que estava sendo acomodada em uma
espreguiçadeira, pronunciou com voz forte, de surda, duas ou três palavras
no jargão de casa. Lamentava-se da “mucha” umidade do jardim àquela
hora. Mas a seu lado vigiava seu filho Federico, que, com voz não menos
forte (porém neutra, a dele: um tom de voz que meu pai também exibia toda
vez que, em um ambiente “misto”, buscava se comunicar com uma pessoa
da família, e apenas com ela), prontamente a fez silenciar. Tinha de se
manter “callada”, sem dar um pio. Havia o “musafir”.
Aproximei a boca do ouvido de Micòl.
“O callada eu consigo entender. Mas o que significa musafir?”
“Hóspede”, sussurrou ela de volta. “Mas gói.”
E riu, cobrindo infantilmente a boca com uma mão e piscando os olhos:
estilo Micòl 1929.
Mais tarde, ao final da partida, e depois que as “novas aquisições”,
Désirée Baggioli e Claudio Montemezzo, foram por seu turno apresentadas,
por acaso me vi à parte com o professor Ermanno. No parque, o dia estava,
como de costume, se apagando em uma sombra difusa e leitosa. Eu me
afastara umas dezenas de metros da cancela de entrada. Com os olhos fixos
na distante Muralha degli Angeli iluminada de sol, ouvia às minhas costas a
voz aguda de Micòl dominando todas as outras. Quem sabe com quem ela
implicava, e por quê.
“Era já a hora em que volve o desejo…”,[11] declamou uma voz irônica e
em surdina, muito próxima.
Virei-me espantado. Era justamente o professor Ermanno, que, todo
contente por ter me pregado um susto, sorria benévolo. Tomou-me com
delicadeza pelo braço e então, muito lentamente, mantendo-nos sempre à
distância da rede metálica que cercava a quadra e parando de vez em
quando, começamos a caminhar em torno dela. Demos um giro quase
completo e depois, por fim, percorremos o caminho inverso. Para a frente e
para trás. No escuro que aos poucos se adensava, repetimos a manobra
várias vezes. Enquanto isso, conversávamos; ou melhor, falava
predominantemente ele, o professor.
Começou me perguntando o que eu achava da quadra de tênis, se de fato
a considerava tão ruim assim. Micòl era taxativa: na opinião dela, era
preciso refazê-la de cabo a rabo, segundo critérios modernos. Mas ele
continuava em dúvida. Talvez, como sempre, seu “querido terremoto”
exagerasse, talvez não fosse indispensável botar tudo abaixo, como ela
pretendia.
“Em todo caso”, acrescentou, “daqui a uns dias vai começar a chover,
não adianta se iludir. Melhor adiar qualquer iniciativa desse tipo para o ano
que vem, não acha?”
Dito isso, passou a me perguntar o que eu andava fazendo, quais minhas
intenções para o futuro próximo. E como meus pais estavam.
Enquanto me indagava sobre “papai”, notei duas coisas. Primeiro de
tudo, que ele achava difícil me tratar com intimidade, tanto é que dali a
pouco, detendo-se de modo brusco, declarou-me isso explicitamente, e eu
logo lhe pedi com grande e sincera efusão que me tratasse por “você”, que
não usasse o “senhor” comigo, caso contrário eu me ofenderia. Em segundo
lugar, que o interesse e o respeito evidentes em sua voz e no rosto enquanto
se informava sobre a saúde de meu pai (sobretudo nos olhos: as lentes dos
óculos, engrandecendo-os, acentuavam a gravidade e a bondade de sua
expressão) não pareciam nem um pouco forçados ou hipócritas. Pediu que
eu lhe mandasse lembranças de sua parte. E também seu “elogio”: pelas
muitas árvores que foram plantadas em nosso cemitério desde que ele
passara a cuidar do local. Aliás, seriam úteis alguns pinheiros? Uns cedros-
do-líbano? Abetos? Alguns salgueiros-chorões? Que eu fizesse essa
pergunta a papai. Se por acaso servissem (nos dias de hoje, com os meios de
que a agricultura moderna dispõe, transplantar árvores de grosso calibre se
tornara uma brincadeira), ele ficaria muito feliz em pôr à disposição a
quantidade que ele quisesse. Ideia estupenda, tive de admitir! Repleto de
belas e grandes árvores, com o tempo nosso cemitério seria capaz de
rivalizar até com o de San Niccolò, no Lido de Veneza.
“Não o conhece?”
Respondi que não.
“Ah, mas deve, deve tentar visitá-lo assim que puder!”, fez ele, com vivo
entusiasmo. “É um monumento nacional! De resto, você, que é um literato,
com certeza se lembra do começo do Edmenegarda, de Giovanni Prati.”
Fui mais uma vez forçado a confessar minha ignorância.
“Pois bem”, retomou o professor Ermanno, “Prati inicia sua
Edmenegarda precisamente ali, no cemitério israelita do Lido, considerado
no século XIX um dos lugares mais românticos da Itália. Mas atenção: se e
quando você for, não se esqueça de dizer imediatamente ao vigia do
cemitério (é ele quem tem a chave do portão) que quer visitar o antigo, veja
bem, o cemitério antigo, onde não se sepulta ninguém desde o século XVIII,
e não o outro, o moderno, adjacente a ele, mas separado. Eu o descobri em
1905, imagine. Embora eu tivesse quase o dobro da idade que você tem
hoje, ainda era solteiro. Morava em Veneza (vivi dois anos lá), e o tempo
que não passava no Arquivo do Estado, no Campo dei Frari, vasculhando
manuscritos relativos às várias chamadas nações em que se dividia a
comunidade veneziana nos séculos XVI e XVII — a nação levantina, a
ponentina, a alemã, a italiana —, eu passava lá, às vezes até no inverno.
Mas é verdade que eu quase nunca ia sozinho”, e aqui sorriu, “e que de
algum modo, decifrando uma a uma as lápides do cemitério, das quais
muitas remontam ao início do século XVI e são escritas em espanhol e
português, eu prosseguia ao ar livre meu trabalho no arquivo. Ah, eram
tardes deliciosas… Que paz, que serenidade… com o portãozinho bem na
frente da laguna, que se abria apenas para nós. Ficamos noivos justo ali
dentro, Olga e eu.”
Ficou um pouco em silêncio. Aproveitei para perguntar qual era o tema
específico de suas pesquisas de arquivo.
“A princípio, tinha a ideia de escrever uma história dos judeus de
Veneza”, respondeu: “uma matéria que me foi sugerida pela própria Olga, e
que Roth, o inglês Cecil Roth (judeu), desenvolveu com brilhantismo uma
década depois. Até que, como muitas vezes acontece com historiadores
demasiado… apaixonados, certos documentos do século XVII que me caíram
nas mãos absorveram totalmente meu interesse e me levaram por outro
caminho. Eu lhe conto, eu lhe conto, se você voltar… Um verdadeiro
romance, sob todos os aspectos. Seja como for, ao final de dois anos, em
vez do grande tratado histórico que eu almejava, só consegui arranjar (além
de uma esposa, claro) dois opúsculos: um, que considero ainda útil, em que
recolho todas as inscrições do cemitério, e outro, em que dou notícia
daqueles documentos do século XVII que lhe mencionei antes, mas apenas
expondo os fatos, sem arriscar nenhuma interpretação sobre eles. Tem
interesse em vê-los? Tem? Um desses dias, tomarei a liberdade de arranjar-
lhe um exemplar. Mas, independentemente disso, ouça meu conselho, vá lá,
vá ao cemitério israelita do Lido (à parte antiga, repito)! Merece a visita,
pode acreditar. Vai encontrá-lo tal qual era trinta e cinco anos atrás: igual,
idêntico.”
Voltamos devagar à quadra de tênis. A uma primeira vista, não havia
mais ninguém ali. No entanto, na escuridão quase completa, Micòl e
Carletto Sani ainda jogavam. Micòl se queixava: de que “Cochet” a fazia
correr demais, de que se mostrava bem pouco “cavalheiro”, e também do
escuro, “francamente excessivo”.
“Soube por Micòl que você está em dúvida entre se formar em história
da arte ou em italiano”, disse-me o professor enquanto voltávamos. “Já se
decidiu?”
Respondi que sim, que optara por fazer uma tese em italiano. Minha
incerteza, expliquei, se deveu sobretudo ao fato de que, até poucos dias
atrás, eu esperava poder me formar com o professor Longhi, titular de
história da arte; entretanto, no último momento, o professor Longhi
solicitou um afastamento da docência por dois anos. A tese que eu gostaria
de fazer sob a orientação dele era a respeito de um grupo de pintores
ferrarenses da segunda metade do século XVI e início do XVII: Scarsellino,
Bastianino, Bastarolo, Bonone, Caletti, Calzolaretto e outros. Trabalhando
em um tema desse gênero, eu só teria feito algo de bom sob a orientação de
Longhi. E assim, visto que ele, Longhi, obteve os dois anos de afastamento
do ministério, me pareceu mais oportuno escrever uma tese qualquer, em
italiano.
Ele ficou me escutando, meditativo.
“Longhi?”, perguntou por fim, torcendo os lábios em uma dúvida.
“Como assim? Já nomearam o novo titular para a cátedra de história da
arte?”
Não entendi.
“Mas claro”, insistiu. “Sempre ouvi dizer que, em Bolonha, o professor
de história da arte é Igino Benvenuto Supino, um dos máximos expoentes
do judaísmo italiano. Então…”
Era — eu o interrompi —, era: até 1933. Porém, desde 1934, o cargo de
Supino, que se aposentou ao atingir o limite de idade, foi ocupado
justamente por Roberto Longhi. O senhor não conhecia — prossegui,
contente de, por minha vez, flagrá-lo em uma lacuna de informação — os
fundamentais ensaios de Longhi sobre Piero della Francesca e sobre
Caravaggio e sua escola? Não conhecia a Officina ferrarese, obra que
suscitara tanta discussão em 1933, na época da Mostra do Renascimento
ferrarense exibida naquele ano, no Palazzo dei Diamanti? Para desenvolver
minha tese, eu me basearia nas últimas páginas da Officina, que se
limitavam apenas a tocar no tema: magistralmente, mas sem aprofundá-lo.
Eu falava, e o professor Ermanno, mais encurvado que nunca, se
limitava a me ouvir em silêncio. Em que estaria pensando? No número de
“expoentes” acadêmicos de que o judaísmo italiano se orgulhara desde a
Unificação até nossos dias? Era provável.
Foi aí que o vi se animar.
Olhando ao redor e reduzindo a voz a um murmúrio abafado, como se
estivesse a ponto de me confidenciar um segredo de Estado, nem mais nem
menos, comunicou-me a grande novidade: que ele possuía um conjunto de
cartas inéditas de Carducci, cartas escritas pelo poeta à mãe dele em 1875.
Se eu tivesse interesse em vê-las, e se as considerasse dignas de se tornarem
tema de uma tese de graduação em italiano, ele as cederia a mim com o
maior gosto.
Pensando em Meldolesi, não pude deixar de sorrir. E o ensaio que ia
mandar para a Nuova antologia? Depois de tanto discutir sobre o assunto,
acabou não fazendo nada? Pobre Meldolesi. Havia alguns anos, tinha sido
transferido ao Minghetti de Bolonha: o que o deixou satisfeitíssimo, claro!
Mais cedo ou mais tarde, tinha de ir visitá-lo…
Apesar do escuro, o professor Ermanno percebeu que eu estava sorrindo.
“Ah, eu sei”, disse, “eu sei que, de uns tempos para cá, vocês jovens dão
pouca bola a Giosue Carducci! Eu sei que preferem um Pascoli e um
D'Annunzio.”
Mas foi fácil convencê-lo de que meu sorriso tinha um motivo bem
diferente, ou seja, desapontamento. Quem dera eu soubesse que havia cartas
inéditas de Carducci em Ferrara! Em vez de ter proposto ao professor
Calcaterra uma tese sobre Panzacchi, como infelizmente já tinha feito,
poderia perfeitamente ter sugerido a ele um “Carducci-ferrarense”, de
interesse decerto maior. Mas quem sabe? Se eu falasse com franqueza sobre
a coisa com o professor Calcaterra, que era uma ótima pessoa, talvez ainda
conseguisse passar de Panzacchi a Carducci sem comprometer demais
minha dignidade.
“Quando você pretende se formar?”, perguntou-me por fim o professor
Ermanno.
“Bem, espero que no próximo ano, em junho. Não se esqueça de que eu
também sou um estudante não regular.”
Assentiu várias vezes, em silêncio.
“Não regular?, suspirou por fim. “Ah, pouco importa.”
E fez um gesto vago com a mão, como se dissesse que, diante do que
estava acontecendo, tanto eu quanto seus filhos ainda teríamos muito tempo
pela frente.
Mas meu pai tinha razão. No fundo, ele não parecia muito angustiado
com isso. Ao contrário.
5

Foi Micòl quem quis me mostrar o jardim. Fazia questão. “Acho que tenho
um certo direito”, disse, irônica, olhando para mim.
No primeiro dia, não. Joguei tênis até tarde, e foi Alberto que, ao
terminar a disputa com a irmã, me acompanhou até uma espécie de cabana
alpina em miniatura (Hütte, como a chamavam Micòl e ele), semioculta em
meio a um bosque de abetos e a uns cem metros da quadra, em cuja cabana
ou Hütte, adaptada para vestiário, pude me trocar e mais tarde, ao anoitecer,
tomar uma ducha quente e me vestir.
Mas no dia seguinte as coisas tomaram um rumo diferente. Uma partida
de duplas que opunha Adriana Trentini e Bruno Lattes aos dois
adolescentes de quinze anos (com Malnate sentado na cadeira de árbitro,
fazendo as vezes do paciente contador de pontos) logo se transformou em
um daqueles confrontos que não acabam nunca.
“O que vamos fazer?”, Micòl me perguntou a certa altura, pondo-se de
pé. “Para esses daí darem lugar à gente, tenho a impressão de que eu, você,
Alberto e o amigo milanês teremos de esperar uma boa hora. Escute: e se,
enquanto esperamos, a gente fosse dar uma volta para ver umas árvores?”
Assim que a quadra estiver livre, acrescentou, com certeza Alberto vai dar
um jeito de nos chamar. Era só meter três dedos na boca, e tome-lhe seu
famoso assobio!
Virou-se sorrindo para Alberto, que, espichado ali perto em uma terceira
espreguiçadeira, com o rosto coberto por um chapéu de palha da roça,
cochilava ao sol.
“Não é verdade, senhor paxá?”
Debaixo do chapéu, o senhor paxá assentiu com um movimento de
cabeça, enquanto nos afastávamos. Sim, o irmão dela era formidável —
continuava me explicando Micòl. Sempre que preciso, sabia dar uns
assovios tão potentes que, em comparação, os dos pastores eram coisa de
criança. Estranho, né?, ainda mais em um tipo como ele. Quem olhasse para
ele não lhe daria um tostão furado. No entanto… Vai saber onde arranjava
todo aquele fôlego!
Foi assim que começaram, quase sempre para matar o tempo entre uma
partida e outra, nossas longas incursões a dois. Nas primeiras vezes, íamos
de bicicleta. Tendo o jardim “uns” dez hectares, com alamedas maiores e
menores que perfaziam em seu conjunto uns doze quilômetros, a bicicleta
era no mínimo indispensável, decretara prontamente minha acompanhante.
É verdade que hoje — ela admitira — vamos nos limitar a “inspecionar”
apenas a parte lá ao fundo, para as bandas do pôr do sol, aonde ela e
Alberto iam com muita frequência quando crianças a fim de ver os trens
manobrando na estação. Porém, se estivéssemos a pé, mesmo hoje, como é
que conseguiríamos nos safar? Corríamos o risco de ser colhidos pelo
“olifante” de Alberto sem conseguir nos reapresentar com a necessária
prontidão.
Assim, naquele primeiro dia fomos ver os trens manobrando na estação.
E depois? Depois voltamos, passamos rente pela quadra de tênis,
atravessamos a esplanada em frente à magna domus (deserta, como sempre,
mais triste que nunca), percorrendo de novo em sentido inverso, de lá da
escura ponte de traves que cruzava o canal Panfilio, a alameda de acesso; e
desta até o túnel de bambus e o portão da avenida Ercole I. Chegando ali,
Micòl insistiu pare que tomássemos a trilha sinuosa que contornava de fora
a fora os muros externos: primeiro à esquerda, do lado da Muralha degli
Angeli, tanto que em quinze minutos tínhamos de novo alcançado a área do
parque de onde se avistava a estação, ou seja, o lado oposto, bem mais
selvático, sombrio e melancólico, adjacente à Via Arianova. Vimo-nos
precisamente ali, abrindo passagem com dificuldade em meio a arbustos de
samambaias, urtigas e sarças espinhosas, quando de súbito, por trás do
denso acúmulo de troncos, o assovio camponês de Alberto irrompeu muito
longe, a nos chamar depressa ao “duro trabalho”.
Com poucas variantes de percurso, nas tardes seguintes repetimos várias
vezes essas explorações de amplo raio. Quando o espaço permitia,
pedalávamos emparelhados. Enquanto isso, conversávamos: em geral sobre
árvores, ao menos a princípio.
Eu não sabia nada ou quase nada da matéria, o que causava um contínuo
espanto em Micòl. Ela me esquadrinhava como se eu fosse um monstro.
“Será possível que sua ignorância seja tanta?”, exclamava. “No liceu,
com certeza você viu um pouco de botânica!”
“Vejamos”, então indagava, já se preparando para arquear as
sobrancelhas diante de algum novo despautério. “Posso saber, por favor,
que espécie de árvore o senhor pensa que é aquela ali?”
Ela podia apontar seja honestos olmos e tílias de nossas paragens, seja
raríssimas plantas africanas, asiáticas ou americanas, que apenas um
especialista seria capaz de identificar, uma vez que no Barchetto del Duca
havia de tudo, realmente de tudo. Quanto a mim, respondia sempre a esmo:
em parte, porque de fato não sabia distinguir um olmo de uma tília, em
parte porque percebi que nada lhe dava mais prazer que me ver errar.
Parecia-lhe absurdo, a ela, que no mundo houvesse um tipo como eu,
que não nutrisse pelas árvores, “as grandes, quietas, fortes, pensativas”, os
mesmos sentimentos seus, de apaixonada admiração. Como eu podia não
entender, meu Deus, e não sentir? Havia ao fundo da área de tênis, por
exemplo, a oeste em relação à quadra, um grupo de sete delgadas e
altíssimas Washingtonia gracilis, ou palmeiras do deserto, separadas do
resto da vegetação posterior (árvores normais, de grosso fuste, típicas de
florestas europeias: carvalhos, azinheiras, plátanos, castanheiras etc.), com
um belo trecho de prado circundante. Pois bem, toda vez que passávamos
por aquela área, Micòl sempre tinha novas palavras de ternura para o grupo
solitário das Washingtonia.
“Lá estão meus sete anciãos”, às vezes dizia. “Veja que barbas
venerandas eles têm!”
A sério, insistia: eu também não as achava semelhantes a sete eremitas
da Tebaida, enxutos pelo sol e por jejuns? Quanta elegância, quanta
santidade em seus troncos castanhos, secos, curvos, escamosos! Pareciam
verdadeiramente vários são Joões Batista, nutridos só de gafanhotos.
Mas suas simpatias, como já disse, não se restringiam às árvores
exóticas.
Por um plátano enorme, de tronco esbranquiçado e grumoso maior que o
de qualquer outra árvore do jardim e, creio, de toda a província, sua
admiração beirava a reverência. Naturalmente não foi a “vovó Josette” que
o plantara, mas Ercole I d'Este em pessoa, ou quem sabe Lucrécia Bórgia.
“Tem quase quinhentos anos, compreende?”, sussurrava, arregalando os
olhos. “Imagine só quantas coisas deve ter visto desde que veio ao mundo!”
E parecia que também ele, o plátano gigantesco, tivesse olhos e ouvidos:
olhos para nos ver e ouvidos para nos escutar.
Pelas árvores frutíferas, às quais era reservada uma larga faixa de terreno
ao abrigo dos ventos boreais e exposta ao sol, logo à frente da Muralha
degli Angeli, Micòl nutria um afeto muito semelhante — como notei — ao
que demonstrava em relação a Perotti e a todos os membros da casa. Falava
deles, dessas humildes plantas domésticas, com a mesma afabilidade, com a
mesma paciência, e muitas vezes recorrendo ao dialeto, que ela adotava
apenas ao tratar com Perotti, ou com Titta e Bepi, nas vezes em que os
encontrávamos e parávamos para trocar umas frases. Tornara-se um ritual
nos determos diante de um grande abrunheiro de tronco poderoso como o
de um carvalho: o seu predileto. Il brogn sèrbi que aquele abrunheiro ali
produzia — me contava — lhe pareciam extraordinárias na infância. Na
época, ela as preferia a qualquer chocolate Lindt. Depois, por volta dos
dezesseis anos, de repente parou de querê-las, já não lhe agradavam mais, e
hoje, às brogne, preferia chocolatinhos Lindt e outros (mas os amargos,
exclusivamente os amargos!). Assim, as maçãs eram i pum, os figos, i figh,
os abricós, il mugnàgh, os pêssegos, il pèrsagh. Não havia senão o dialeto
para falar dessas coisas. Apenas a palavra dialetal lhe permitia, nomeando
árvores e frutas, dobrar os lábios no trejeito entre enternecido e desdenhoso
que o coração sugeria.
Mais tarde, exauridas as catalogações, tiveram início “as pias
peregrinações”. E como todas as peregrinações, segundo Micòl, deviam ser
feitas a pé (do contrário, que espécie de peregrinos eles seriam?), paramos
de usar as bicicletas. Então íamos a pé, quase sempre acompanhados passo
a passo por Jor.
Para começar, fui levado a conhecer um pequeno e isolado
embarcadouro no canal Panfilio, escondido em meio a uma densa vegetação
de salgueiros, choupos-brancos e copos-de-leite. Era provável que daquele
minúsculo porto, todo cercado por bancos musgosos de cerâmica vermelha,
antigamente se zarpasse para chegar tanto ao Pó quanto à Fossa do Castelo.
Ela e Alberto também zarpavam dali quando garotos — disse Micòl —, em
longas remadas em uma canoa de pagaia dupla. Nunca haviam chegado de
barco aos pés das torres do Castelo, em pleno centro urbano (como eu bem
sabia, atualmente o Panfilio só se comunicava com a Fossa do Castelo por
via subterrânea). Mas até o Pó, bem na frente da Isola Bianca, eles já
tinham chegado, e como! Hoje, “ça va sans dire”, não era mais o caso de
tentar recuperar a canoa: semidestruída, coberta de pó, reduzida a um
“espectro de canoa”, quem sabe um dia eu poderia ver sua carcaça na
garagem, caso ela se lembrasse de me levar até lá. Mas ela nunca deixou de
frequentar os bancos do embarcadouro: ia ali sempre, sempre. Talvez
porque ainda se servisse deles a fim de preparar-se para os exames em santa
paz, quando começava a fazer calor, e talvez porque… O fato é que aquele
local continuou sendo de algum modo seu, exclusivamente: seu refúgio
pessoal e secreto.
Em outra ocasião, fomos parar nos Perotti, que moravam em uma
autêntica habitação colonial, com celeiro e estábulo anexos, a meio
caminho entre a casa dos patrões e a área do pomar.
Fomos recebidos pela esposa do velho Perotti, Vittorina, uma pálida
arzdóra[12] de idade indefinível, triste, magra e seca; e por Italia, a esposa
do filho mais velho, Titta, uma trintona de Codigoro, gorda e robusta, com
olhos de um azul-celeste aquoso e cabelo ruivo. Sentada à soleira de casa
em uma cadeira de palha, circundada por uma multidão de galinhas, a
mulher amamentava, e Micòl se inclinou para acariciar o menino.
“E aí, quando é que me convida de novo para tomar aquela sopa de
feijão?”, ela perguntou a Vittorina, em dialeto.
“Quando quiser, signurina. Só espero que esteja do seu agrado…”
“Num desses dias precisamos combinar mesmo”, respondeu Micòl,
grave. “Saiba”, fez, dirigindo-se a mim, “que Vittorina faz umas sopas de
feijão animais. Com pururuca de porco, é claro…”
Riu, e acrescentou:
“Quer dar uma olhada no estábulo? Temos bem umas seis vacas.”
Vittorina à frente, fomos até o estábulo. A arzdóra abriu a porta para nós
com uma grande chave que trazia no bolso do avental preto, e então se pôs
de lado para nos deixar passar. Enquanto atravessávamos a soleira do
estábulo, percebi de sua parte um olhar furtivo, dirigido a nós: pareceu-me
uma mirada cheia de preocupação, mas também de um secreto
contentamento.
Uma terceira peregrinação foi dedicada aos lugares consagrados ao “vert
paradis des amours enfantines”.[13]
Tínhamos passado várias vezes por aquelas bandas nos dias anteriores;
mas de bicicleta, sem nunca parar. Olhe lá o ponto exato do muro exterior
— dizia-me Micòl, indicando-o agora com o dedo — onde ela costumava
apoiar a escada; e lá estavam os “entalhes” (“entalhes, sim senhor!”), dos
quais se servia nas vezes em que a escada não estava disponível.
“Não acha que seria justo pôr uma placa comemorativa neste local?”,
perguntou-me.
“Suponho que você já tenha em mente a frase que será gravada.”
“Mais ou menos. ‘Por aqui — esquivando a vigilância de dois cães
ferozes…'.”
“Chega. Você disse uma placa, mas nesse ritmo temo que precise de uma
lápide daquelas como o Bollettino della Vittoria. A segunda linha é longa
demais.”
Daí nasceu uma discussão. Eu fazia o papel do cabeça-dura importuno, e
ela, erguendo a voz e bancando a criança, me acusava do “pedantismo
habitual”. Era evidente — gritava —, eu devia ter farejado sua intenção de
nem me inserir na frase, em sua placa, e assim, por puro ciúme, eu me
recusava a ouvi-la.
Depois nos acalmamos. Micòl recomeçou a me falar de quando ela e
Alberto eram crianças. Se eu queria mesmo saber a verdade, tanto ela
quanto Alberto sempre sentiram uma enorme inveja de quem, como eu, teve
a sorte de estudar em uma escola pública. Eu não acreditava? Chegaram a
ponto de esperar ansiosamente, todos os anos, o período das provas só pelo
gosto de também poderem ir à escola.
“Mas, se vocês gostavam tanto de ir à escola, por que estudavam em
casa?”, perguntei.
“Papai e mamãe, principalmente mamãe, não queriam de jeito nenhum.
Mamãe sempre teve obsessão por micróbios. Dizia que as escolas são feitas
de propósito para espalhar as doenças mais horríveis, e não adiantava nada
tio Giulio, toda vez que vinha aqui, explicar-lhe que não era verdade. Tio
Giulio zombava dela; acontece que, apesar de médico, ele não acredita tanto
na medicina, ao contrário, acredita na inevitabilidade e na utilidade das
doenças. Imagine se podia fazer mamãe entender, ela que, depois da
desgraça de Guido, nosso irmãozinho mais velho que morreu antes de
Alberto e eu nascermos, em 1914, praticamente nunca mais pôs os pés para
fora de casa! Mais tarde a gente se rebelou um pouco, claro: nós dois
conseguimos ir para a universidade e, certo inverno, até fomos esquiar na
Áustria, como acho que já lhe contei. Mas na infância, o que a gente podia
fazer? Eu muitas vezes escapava (Alberto, não, ele sempre foi bem mais
tranquilo que eu, muito mais obediente). Por outro lado, num dia em que
fiquei um tempo a mais circulando pela Muralha, depois de pegar carona na
barra das bicicletas de um grupo de garotos com quem fizera amizade,
quando voltei para casa, eles estavam tão desesperados, mamãe e papai, que
desde então (porque Micòl é uma boa moça, um verdadeiro coração de
ouro!), desde então decidi que seria impecável e nunca mais escapei. A
única recaída foi aquela em junho de 1929, em vossa homenagem, egrégio
senhor!”
“E eu que acreditava ser o único!”, suspirei.
“Bem, se não o único, o último com certeza. Além disso, jamais
convidei outra pessoa a entrar no jardim!”
“Será verdade?”
“Verdadeiríssimo. Eu sempre espiei onde você estava, no templo…
Quando você se virava para falar com papai ou Alberto, tinha uns olhos tão
azuis! Até lhe dei um apelido só para mim.”
“Um apelido? Qual?”
“Celestino.”
“Que por vileza fez a alta recusa…”,[14] resmunguei.
“Pois é!”, exclamou, rindo. “De todo modo, acho que por um certo
período eu tive uma quedinha por você.”
“E depois?”
“Depois a vida nos separou.”
“E que ideia foi aquela de construir um templo só para vocês! Por quê?
Sempre o medo dos micróbios?”
Abanou a mão.
“Ah… quase…”, disse.
“Quase como?”
Mas não houve jeito de induzi-la a confessar a verdade. Eu sabia
perfeitamente por que o professor Ermanno solicitara, em 1933, a
permissão de restaurar para si e os seus a sinagoga espanhola: foi a
vergonhosa “celebração decenal”, vergonhosa e grotesca, que o convenceu.
Entretanto, ela insistia que o motivo determinante, mais uma vez, tinha sido
a vontade da mãe. Em Veneza, os Herrera pertenciam à escola espanhola. E
como mamãe, vovó Regina e os tios Giulio e Federico sempre prezaram
muito as tradições de família, então papai, para agradar mamãe…
“Mas, me desculpe, por que vocês então voltaram para a escola
italiana?”, objetei. “Eu não estava no templo na noite de Rosh Hashaná: não
ponho os pés ali há pelo menos três anos. Porém meu pai, que estava
presente, me contou a cena tim-tim por tim-tim.”
“Oh, não duvide, vossa ausência foi enormemente sentida, senhor livre-
pensador!”, respondeu ela. “Por mim também.”
Então prosseguiu, séria:
“O que você queria… agora estamos todos no mesmo barco. A essa
altura, também acho que continuar fazendo tantas distinções seria bastante
ridículo.”
Em outro dia, o último, começara a chover e, enquanto o pessoal se
abrigava na Hütte jogando baralho e pingue-pongue, nós dois, sem temor de
nos encharcar, atravessamos correndo meio parque e fomos nos refugiar no
depósito. O depósito atualmente funcionava apenas como depósito — disse-
me Micòl. Porém, em outros tempos, uma boa metade do vão interno fora
equipada à maneira de um salão de ginástica, com barras fixas, cordas,
barras de equilíbrio, argolas, espaldar sueco etc.; e isso só para que ela e
Alberto também pudessem se apresentar bem preparados nos exames anuais
de educação física. É claro que as aulas que o professor Anacleto Zaccarini,
aposentado havia séculos e hoje com mais de oitenta anos (imagine!), lhes
dava uma vez por semana não eram muito sérias. Mas eram divertidas,
talvez as mais divertidas de todas. Ela nunca se esquecia de levar para a
ginástica uma garrafa de vinho de Bosco. E o velho Zaccarini, já
normalmente de nariz e bochechas vermelhas, ia ficando roxo à medida que
a esvaziava devagar, até a última gota. Certas noites de inverno, quando ele
ia embora, dava até a impressão de emanar luz própria…
Tratava-se de uma construção de tijolos escuros, baixa e comprida, com
duas janelas laterais protegidas por robustos gradeados, de teto inclinado
coberto de telhas, e as paredes externas forradas quase por inteiro de hera.
Não distante do celeiro dos Perotti e do paralelepípedo envidraçado de uma
estufa, chegava-se até ali atravessando um amplo portão pintado de verde,
que dava para a parte oposta à Muralha degli Angeli, na direção da casa dos
patrões.
Paramos um momento na soleira, rente ao portão. Chovia a cântaros,
formando linhas de água oblíquas e muito longas sobre os campos, sobre os
grandes volumes negros das árvores, sobre tudo. Fazia frio. Batendo os
dentes, ambos olhávamos à nossa frente. O encanto em que até agora a
estação estivera suspensa se rompeu irreparavelmente.
“Vamos entrar?”, propus afinal. “Lá dentro deve estar mais quente.”
No interior do amplo salão, em cujo fundo, na penumbra, tremeluziam
as extremidades de duas barras douradas e brilhantes de ginástica que
chegavam até o teto, pairava um odor estranho, uma mistura de gasolina,
óleo lubrificante, poeira antiga e cítricos. O cheiro era mesmo bom, disse
logo Micòl, notando que eu farejava o ar. Ela também gostava muito do
aroma. E me indicou, encostada em uma das paredes laterais, uma espécie
de estante alta em madeira escura, cheia de grandes frutas amarelas e
redondas, maiores que limões e laranjas, que até então eu nunca tinha visto.
Tratava-se de toranjas, postas ali para maturar — explicou-me —,
produzidas na estufa. Eu nunca experimentei?, perguntou ela, pegando uma
e oferecendo-a para que eu cheirasse. Pena que ela não tivesse ali uma faca
para cortá-la em dois “hemisférios”. O sabor do suco era híbrido:
assemelhava-se ao da laranja e ao do limão, com uma ponta de amargor
bem peculiar.
O centro do depósito estava ocupado por dois veículos emparelhados:
uma comprida Dilambda cinza e uma carruagem azul cujos varais,
levantados, mostravam-se pouco mais baixos que as barras ao fundo.
“Hoje não nos servimos mais da carruagem”, acrescentou Micòl. “As
poucas vezes que o papai precisa ir ao campo, é conduzido de automóvel.
Alberto e eu fazemos o mesmo quando temos que ir embora: ele para
Milão, eu para Veneza. É o eterno Perotti quem nos leva à estação. Em casa,
os únicos que sabem guiar são ele (dirige muito mal) e Alberto. Eu não,
ainda não tirei a carteira, tenho que tomar coragem na próxima primavera…
contanto que… O problema é que esse carrão bebe tanto!
Aproximou-se da carruagem, de aspecto não menos lustroso e eficiente
que o automóvel.
“Reconhece?”
Abriu uma porta, subiu, sentou. Por fim, batendo com a mão no forro do
assento a seu lado, me convidou a fazer o mesmo.
Subi e, por minha vez, sentei à sua esquerda. Acabara de me acomodar
quando, girando lentamente nas dobradiças por pura força de inércia, a
porta se fechou por si com o estalo seco e preciso de uma armadilha.
Agora o fragor da chuva no telhado do depósito era quase imperceptível.
De fato, parecia que estávamos em uma saleta: uma saleta pequena e
sufocante.
“Como está bem conservada”, falei, sem conseguir controlar uma
repentina emoção que se refletiu em um leve tremor da voz. “Ainda parece
nova. Só faltam as flores no vaso.”
“Ah, quanto às flores, Perotti ainda as coloca quando sai com vovó.”
“Então vocês ainda a usam!”
“Não mais que duas ou três vezes ao ano, e somente para algum passeio
no jardim.”
“E o cavalo? É sempre o mesmo?”
“O mesmo Star de sempre. Tem vinte e dois anos. Você não o notou
outro dia, ao fundo do estábulo? Agora está cego, mas, atrelado aqui, ainda
faz… uma péssima presença.”
Caiu na risada, balançando a cabeça.
“Perotti tem uma verdadeira paixão por essa carruagem”, continuou com
amargura, “e é sobretudo para agradar a ele (que odeia e despreza os
automóveis: você não faz ideia quanto!) que, de quando em quando, o
deixamos passear com vovó para cima e para baixo pelas alamedas. A cada
dez, quinze dias, ele vem aqui com baldes d'água, esponjas, escovas e
batedor de tapete: eis a explicação do milagre, eis por que a carruagem,
melhor ainda se vista no lusco-fusco, ainda parece dar bem para o gasto.”
“Dar para o gasto?”, protestei. “Mas parece nova!”
Bufou, entediada.
“Não diga bobagens, por favor!”
Movida por um impulso imprevisto, afastou-se bruscamente e se
encolheu em seu canto. Sobrancelhas franzidas, os traços do rosto afilados
naquela mesma expressão de estranho rancor quando certas vezes, jogando
tênis, se concentrava inteira para ganhar, olhava fixo diante de si. Pareceu
ter envelhecido dez anos em um instante.
Ficamos alguns segundos assim, em silêncio. Depois, sem mudar de
posição, os braços recolhidos em torno dos joelhos bronzeados como se
sentisse um grande frio (estava de bermuda e malha de fio, com um pulôver
amarrado pelas mangas ao pescoço), Micòl recomeçou a falar.
“Perotti quer gastar nesta espécie de traste lamentável”, disse, “muito
tempo e muito suor! Não, acredite em mim: aqui, nesta penumbra, pode-se
até proclamar que é um milagre, mas lá fora, à luz natural, não há o que
fazer: infinitas imperfeições saltam aos olhos imediatamente, o verniz aqui
e ali está gasto, os raios e os cubos das rodas são um cupim só, o forro deste
estofado (agora não dá para notar, mas posso lhe garantir) está reduzido em
certos pontos a uma teia de aranha. Por isso é que me pergunto: para que
toda essa struma[15] de Perotti? Vale a pena? Ele, coitado, queria arrancar de
papai a permissão para repintar tudo, restaurando-a e remodelando-a a seu
gosto. Mas papai, como sempre, faz de conta que nada e não se decide…”
Calou-se. Fez um leve movimento.
“Mas olhe ali a canoa”, prosseguiu, enquanto me indicava através do
vidro da porta, que nossa respiração começava a embaçar, uma forma parda,
oblonga e esquelética escorada na parede oposta à da estante repleta de
toranjas. “Olhe ali a canoa e admire, por favor, com quanta honestidade,
dignidade e coragem moral ela soube extrair da sua absoluta perda de
função todas as consequências necessárias. As coisas também morrem, meu
querido. Portanto, se até elas devem morrer, é melhor deixá-las ir. De resto,
há muito mais estilo nisso, não acha?”
Parte 3
1

Voltei infinitas vezes ao longo do inverno, da primavera e do verão que se


seguiram àquilo que ocorrera (ou melhor, não ocorrera) entre mim e Micòl
dentro da carruagem dos sonhos do velho Perotti. Se naquela tarde chuvosa
em que terminara de chofre o luminoso verão de San Martino de 1938 eu
tivesse conseguido ao menos me declarar — pensava com amargura —,
talvez as coisas entre nós tivessem seguido um rumo diverso do que
tomaram. Falar com ela, beijá-la: era naquele momento, quando tudo ainda
podia acontecer — não cessava de remoer comigo —, que eu deveria ter
agido! E me esquecia de indagar o essencial a mim mesmo: se naquele
instante supremo, único, irrevogável — um instante que, talvez, tivesse
definido minha vida e a dela —, eu de fato teria sido capaz de tentar um
gesto, uma palavra qualquer. Então eu já sabia, por exemplo, que estava
realmente apaixonado? Bem, não, não sabia. Não sabia então e não o
saberia por mais duas longas semanas, quando o mau tempo, tornando-se
permanente, dispersou sem remédio nossa ocasional companhia.
Eu me lembro: a chuva insistente, sem interrupções por dias e dias — e
em seguida viria o inverno, o rigoroso e sombrio inverno da Val Padana —,
tornou imediatamente improvável qualquer futura frequentação do jardim.
No entanto, apesar da mudança de estação, tudo continuou a avançar de
modo a me iludir que nada substancialmente mudara.
Às duas e meia do dia seguinte à nossa última visita à casa Finzi-Contini
— mais ou menos a hora em que despontávamos um após o outro da galeria
de rosas trepadeiras, gritando “Salve!”, “Olá!” ou “Viva!” —, a campainha
do telefone de casa soou para de algum modo me pôr em contato com a voz
de Micòl. Na mesma noite, fui eu que liguei para ela; e de novo ela, na tarde
do dia sucessivo. Enfim, pudemos continuar nossa conversa tal como
fizemos nos últimos tempos, agradecidos, agora tal como antes, pelo fato de
Bruno Lattes, Adriana Trentini, Giampiero Malnate e os outros nos
deixarem em paz, sem dar sinal de se lembrarem de nós. Além disso,
quando é que Micòl e eu pensamos neles durante nossas longas escapadas
pelo parque: tão longas que muitas vezes, ao voltar, não víamos mais
vivalma nem na quadra nem na Hütte?
Seguido pelos olhares preocupados de meus pais, eu me fechava no
compartimento do telefone. Discava o número. Quase sempre era ela quem
respondia, e com tal rapidez que me fazia suspeitar que tivesse o receptor
sempre ao alcance da mão.
“De onde você está falando?”, arrisquei perguntar a ela.
Começou a rir.
“Ora… de casa, suponho.”
“Obrigado pela informação. Só queria saber como você consegue
responder zás-trás, quero dizer, com tanta prontidão. O que é? O telefone
fica na sua escrivaninha, como o de um homem de negócios? Ou você
circula dia e noite em volta do aparelho com as pisadas do tigre na jaula do
Noturno de Machatý?”[16]
Tive a impressão de captar do outro lado da linha uma leve hesitação. Se
ela chegava ao telefone antes dos outros — respondeu por fim —, isso
decorria, além da lendária eficiência de seus reflexos musculares, da
intuição que lhe era própria: intuição que, toda vez que me passasse pela
cabeça ligar para ela, lhe permitia estar passando perto do telefone. Depois
mudou de assunto. Como ia minha tese sobre Panzacchi? E quanto a
Bolonha, à parte as eventuais mudanças de ares, quando eu calculava
retomar meu habitual vaivém?
Mas às vezes eram outras pessoas que atendiam: ou Alberto, ou o
professor Ermanno, ou uma das duas criadas, e certa vez até dona Regina,
que ao telefone demonstrou uma surpreendente capacidade de audição.
Nesses casos eu não podia me eximir de revelar meu nome, claro, nem de
dizer que era com a “senhorita” Micòl que eu desejava falar. Depois de uns
dias, no entanto (a coisa a princípio me embaraçava demais, mas aos
poucos fui me habituando), depois de uns dias me bastou deixar cair no
microfone meu “Alô?” para que na outra ponta se apressassem a me passar
quem eu buscava. O próprio Alberto, quando era ele quem atendia a
chamada, não se comportava de outro modo. E Micòl sempre ali, roubando
o receptor da mão de quem estava com ele: nem se cada um estivesse
sempre recolhido dentro de um único aposento, living, saleta ou biblioteca
que fosse, cada qual afundado em uma grande poltrona de couro e com o
telefone a poucos metros de distância. Aquilo era muito suspeito, de
verdade. Para avisar Micòl, que ao toque do telefone (era como se eu a
visse) levantava os olhos no ato, talvez se limitassem a oferecer de longe o
receptor, quem sabe Alberto, acrescentando um aceno entre irônico e
afetuoso.
Certa manhã, decidi lhe pedir que confirmasse a exatidão de minhas
suposições, e ela ficou me ouvindo em silêncio.
“Não é assim?”, insisti.
Não era assim. Já que eu fazia tanta questão de saber a verdade — ela
disse —, aqui está. Cada um deles dispunha em seu quarto de uma extensão
telefônica (depois que ela conseguira uma para si, o resto da família
também acabou adotando isso): mecanismo de grande utilidade e muito
recomendável, com o qual se podia telefonar a qualquer hora do dia ou da
noite sem incomodar nem ser incomodado, e, sobretudo à noite, sem tirar os
pés da cama. Mas que ideia!, por fim acrescentou, rindo. De onde eu podia
ter tirado que eles estivessem sempre todos juntos, como em um hall de
hotel? E afinal, por que motivo? De todo modo, parecia estranho que,
quando não era ela a responder diretamente, eu nunca tivesse percebido o
clique do comutador.
“Não”, repetiu categórica. “Para defender a própria liberdade, não há
nada melhor que uma boa extensão telefônica. Falo sério: você também
deveria instalar uma no seu quarto. Você ia ter que me aguentar por horas,
especialmente à noite!”
“Quer dizer que agora você está me ligando do seu quarto.”
“Com certeza. Da minha cama, ainda por cima.”
Eram onze da manhã.
“Você não é das mais madrugadoras”, observei.
“Ah, você também!”, se queixou. “Que papai, aos setenta anos feitos e
com tudo o que está acontecendo, continue a se levantar todos os dias às
seis e meia para dar o bom exemplo, como ele diz, e nos induzir a não ceder
à preguiça em plumas macias, transeat;[17] mas que até os melhores amigos,
agora, se metam a pedagogos, me parece francamente excessivo. Sabe
desde que horas está de pé esta que vos fala, meu querido? Desde as sete. E
ainda ousa se espantar, às onze, ao me pegar de novo na cama! De resto,
não durmo: leio, rabisco umas linhas da tese, olho pela janela. Sempre faço
um monte de coisas quando estou na cama. O calor das cobertas me deixa
incomparavelmente mais ativa.”
“Me descreva seu quarto.”
Estalou várias vezes a língua contra os dentes, em sinal de negação.
“Isso nunca. Verboten. Privat. Posso, se você quiser, descrever o que
vejo pela janela.”
Através dos vidros, em primeiro plano, via as copas barbudas de suas
Washingtonia gracilis, que a chuva e o vento estavam castigando
“indecorosamente”: vai saber se os cuidados de Titta e Bepi, que já tinham
começado a enfaixar seus troncos com as habituais camisas de palha de
todos os invernos, seriam suficientes para preservá-las nos próximos meses
da morte por congelamento iminente a cada regresso da má estação — algo
que até hoje, por sorte, sempre foi evitado. Depois, mais adiante,
escondidas aqui e ali por farrapos de névoa vagante, via as quatro torres do
Castelo, que o aguaceiro tornara negras como tições apagados. E, por trás
das torres, pálidos de dar arrepio e também ocultos parcialmente pela
névoa, os mármores longínquos da fachada e do campanário da catedral…
Oh, a névoa! Quando ficava assim, ela não gostava: fazia-lhe pensar em
trapos sujos. Mas cedo ou tarde a chuva passaria; e então a névoa,
atravessada pelos fracos raios de sol da manhã, se transformaria num quê de
precioso, de delicadamente opalescente, com reflexos muito semelhantes
em sua mutação aos làttimi de que seu quarto estava repleto. O inverno era
tedioso, é claro, até porque impedia as partidas de tênis. Mas tinha suas
compensações. “Porque não há situação, por mais triste ou tediosa que
seja”, concluiu, “que no fundo não ofereça alguma compensação, e muitas
vezes substanciosa.”
“Làttimi?”, perguntei. “Que troço é esse? É de comer?”
“Não, não”, balbuciou, mais uma vez estarrecida com minha ignorância.
“São vidros. Copos, cálices, jarras, jarrinhos, caixinhas: pequenos objetos,
em geral refugos de antiquário. Em Veneza são chamados de làttimi; fora de
Veneza, opalines ou flûtes. Você nem imagina o quanto eu adoro essas
coisas. Sei literalmente tudo a respeito delas. Pode me perguntar, você vai
ver.”
Foi em Veneza — prosseguiu —, talvez por sugestão da neblina local,
tão diferente de nossas névoas sombrias do vale do Pó, neblina
infinitamente mais luminosa e vaga (apenas um pintor no mundo soube
retratá-las: mais que o Monet tardio, o “nosso” De Pisis), foi em Veneza que
ela começara a se apaixonar pelos làttimi. Passava horas e horas rondando
pelos antiquários. Havia alguns, sobretudo nas vizinhanças de San Samuele,
em torno de Campo Santo Stefano ou no gueto, lá longe, rumo à estação,
que praticamente não tinham outros artigos para vender. Os tios Giulio e
Federico moravam na Calle del Cristo, perto de San Moisè. À noitinha, sem
ter mais o que fazer, e naturalmente com a governanta em seu encalço, a
srta. Blumenfeld (uma distinta jodé sessentona de Frankfurt am Main, na
Itália havia mais de trinta anos, um verdadeiro xarope!), ela saía para a
Calle XXII Marzo à caça de làttimi. Campo Santo Stefano fica a poucos
passos de San Moisè. Não é o caso de San Geremia, local do gueto ao qual,
pegando San Bartolomeu e a Lista di Spagna, se gasta pelo menos meia
hora para chegar, embora esteja muito perto, basta pegar um vapor no Gran
Canale, na altura do Palazzo Grassi, e depois se embrenhar pelos Frari…
Mas, voltando aos làttimi, que calafrio rabdomântico toda vez que
conseguia desencavar alguma peça nova e rara! Quero saber quantas ela
conseguiu juntar? Quase duzentas.
Tomei todo o cuidado de não lhe chamar a atenção para o fato de que
tudo quanto me dizia mal se coadunava com sua declarada aversão a
qualquer tentativa de subtrair, ao menos por pouco tempo, as coisas e os
objetos à morte inevitável que também os aguardava, e à mania
conservadora de Perotti em particular. Queria que me falasse de seu quarto;
que se esquecesse de que pouco antes me dissera “verboten”, “privat”.
Fui atendido. Ela continuava discorrendo sobre seus làttimi (organizara-
os ordenadamente em três estantes de mogno escuro que cobriam quase por
completo a parede em frente à qual sua cama ficava encostada), e enquanto
isso o quarto, não sei a que ponto ela se dava conta, ia aos poucos tomando
forma e se definindo em todos os detalhes.
Resumindo: as janelas eram precisamente duas. Ambas davam para o sul
e eram tão altas em relação ao piso que, quem se aproximasse delas e
olhasse a extensão do parque lá embaixo, com os telhados se estendendo
além dos limites do jardim a perder de vista, teria a impressão de estar
mirando da ponte de um transatlântico. Entre as duas janelas, uma quarta
estante: a dos livros ingleses e franceses. Contra a janela da esquerda, uma
escrivaninha tipo escritório, flanqueada de um lado pela mesinha da
máquina de escrever portátil e, do outro, por uma quinta estante, a dos
livros de literatura italiana, clássicos e contemporâneos, e das traduções: as
do russo, em sua maioria Púchkin, Gógol, Tolstói, Dostoiévski e Tchékhov.
No chão, um grande tapete persa, e no centro do quarto, que era comprido
mas algo estreito, três poltronas e um récamier onde ela se deitava para ler.
Duas portas: uma de entrada, no fundo, ao lado da janela da esquerda, que
se comunicava diretamente com a escada e o elevador, e outra a poucos
centímetros do canto oposto e contrário do cômodo, que dava no banheiro.
À noite, ela dormia sem nunca fechar completamente as persianas,
mantendo na mesa de cabeceira uma pequena lâmpada sempre acesa e
tendo ainda, ao alcance da mão, um carrinho de chá com a térmica do
Skiwasser (e o telefone!), acessível a um movimento do braço. Caso
acordasse durante a noite, bastava tomar um gole do Skiwasser (era tão
cômodo tê-lo sempre bem quentinho e à disposição: por que eu também não
providenciava uma térmica para mim?) e depois cair de novo na cama,
deixando a vista vagar entre a névoa luminescente de seus queridos làttimi.
Até que o sono, insensível como uma acqua alta de Veneza, tornava bem
devagar a submergi-la e apagá-la.
Mas não eram apenas esses os assuntos de nossas conversas.
Como se também ela quisesse me iludir de que nada havia mudado, de
que tudo entre nós continuava como era “antes”, isto é, quando podíamos
nos encontrar todas as tardes, Micòl não perdia a oportunidade de me
reconduzir àquela sucessão de dias memoráveis, “incríveis”.
Sempre falamos de muitas coisas naquele período, enquanto
circulávamos pelo parque: de árvores, de plantas, de nossa infância, nossos
parentes. Enquanto isso, Bruno Lattes, Adriana Trentini, o Malnate,
Carletto Sani, Tonino Collevatti e todos os outros que foram chegando
depois eram referidos apenas de passagem, com alguma alusão de tanto em
tanto, às vezes contemplados em conjunto por um cortante e muito
desdenhoso “aquela turma lá”.
Já agora, por telefone, nossas conversas voltavam a eles com insistência,
especialmente a Bruno Lattes e Adriana Trentini, que, segundo Micòl,
tinham com certeza alguma coisa. Como assim?!, ela não parava de me
dizer. Será possível que eu nunca percebi que os dois andavam juntos? Era
tão evidente! Ele não desgrudava os olhos dela um momento sequer, e ela
também, embora o maltratasse feito um escravo, enquanto bancava a
coquete com quase todos, comigo, com o urso do Malnate e até com
Alberto, ela também flertava com ele. Querido Bruno! Com a sensibilidade
dela (um tantinho mórbida, vamos admitir: para se dar conta disso, bastava
observar como venerava dois simpáticos bobinhos do calibre do pequeno
Sani e daquele outro, o menino Collevatti!), com sua sensibilidade, com
certeza viriam meses difíceis para eles, dada a situação. Adriana sem dúvida
estava nessa (aliás, certa noite, na Hütte, ela os flagrara meio deitados no
sofá, beijando-se a toda), mas, que ela fosse um tipo capaz de manter de pé
uma coisa tão compromissada, a despeito das leis raciais e dos parentes dele
e dela, isso eram outros quinhentos. Realmente Bruno não teria um inverno
fácil, de jeito nenhum. E não que Adriana fosse uma garota ruim, nada
disso! Quase da altura de Bruno, loura, com aquela pele esplêndida à la
Carole Lombard que tinha, em outras circunstâncias talvez fosse mesmo a
mulher adequada para Bruno, o qual, pelo que se vê, gostava do gênero
“bem ariano”. De resto, que ela fosse um tanto leviana e vazia, e
inconscientemente cruel, ah, sim!, isso era incontestável. Eu não me
lembrava da cara enfezada que ela fez para o coitado do Bruno quando, em
dupla com ele, perdeu a famosa partida da revanche contra a dupla Désirée
Baggioli e Claudio Montemezzo? Foi principalmente ela quem perdeu o
confronto, com aquela enfiada de duplas faltas que cometeu (pelo menos
três em cada game), e não Bruno! No entanto, como é uma inconsequente,
durante toda a partida não parou de dizer poucas e boas a ele, como se o
próprio Bruno, coitado!, já não estivesse suficientemente abatido e triste
com o resultado. Teria sido o caso de rir, sério; embora, pensando bem, a
história toda tenha deixado um gosto amargo! Mas não tem jeito. Parece de
propósito, moralistas feito Bruno sempre se apaixonam por tipinhos como
Adriana, e daí os ataques de ciúmes, as perseguições, surpresas, lágrimas,
juras, quem sabe uns tapas… e chifres, olhe só, chifres que não acabam
mais. Não, não: no fim das contas, Bruno deveria acender uma vela às leis
raciais. Ele tinha pela frente um inverno difícil, é verdade. Mas as leis
raciais, nem sempre imprevidentes, como se vê, o impediram de cometer
uma bobagem maior: a de ficar noivo.
“Não acha?”, acrescentou. “Além disso, assim como você, ele também é
das letras, um tipo com pretensões literárias. Acho que há uns dois ou três
anos vi uns versos dele publicados na página de cultura do Padano, com o
título de ‘Poesias de um vanguardista'.”
“Veja só!”, suspirei. “De todo modo, o que você quer dizer com isso?
Não estou entendendo.”
Ela ria em silêncio, pude notar perfeitamente.
“Mas, claro”, emendou, “no fim das contas, uma afliçãozinha não vai
fazer mal a ele. Como diz Ungaretti, ‘Non mi lasciare ancora, sofferenza'.
[18] Ele não quer escrever? Pois então que cozinhe bastante seu caldo, e

depois veremos. De resto, basta olhar para ele: está na cara que, no fundo,
não aspira a outra coisa senão à dor.”
“Você é de um cinismo revoltante. Faz um belo par com Adriana.”
“Aí é que você se engana. Aliás, me ofende. Adriana é um anjo
inocente. Caprichosa, vá lá, mas inocente como ‘tutte — le femmine di tutti
— i sereni animali — che avvicinano a Dio'.[19] Já Micòl, como eu lhe disse
e repito, é boa e sempre sabe o que faz, lembre-se.”
Embora com menor frequência, ela também mencionava Giampiero
Malnate, diante de quem sempre manteve uma atitude curiosa, basicamente
crítica e sarcástica: como se tivesse ciúmes da relação dele com Alberto
(um tanto exclusiva, para ser sincero), mas ao mesmo tempo se aborrecesse
por ter de admiti-lo, e justamente por isso se empenhasse em “demolir o
ídolo”.
Na opinião dela, Malnate não era grande coisa nem no aspecto físico.
Grande demais, largo demais, muito “pai” para ser levado em consideração
desse ponto de vista. Era um desses tipos demasiado peludos que, por mais
que façam a barba várias vezes ao dia, sempre têm um ar meio sujo, pouco
lavado; e assim não dava, vamos ser sinceros. Talvez, pelo que se podia
entrever através dos pesados óculos e lentes de um dedo de espessura, atrás
dos quais se disfarçava (parece que o faziam suar, e dava vontade de tirá-
los), talvez tivesse olhos passáveis: cinzentos, “de aço”, de homem forte.
Mas muito sérios e severos, aqueles olhos. Muito constitucionalmente
matrimoniais. Apesar da desdenhosa misoginia aparente, eles ameaçavam
sentimentos tão eternos de fazer congelar qualquer garota, mesmo a mais
tranquila e morigerada.
Tinha uma cara bonita, tudo bem; mas não tão original quanto ele
parecia supor. Quer apostar que, se interrogado de jeito, ele acabaria
confessando se sentir desconfortável em trajes urbanos, preferindo a eles
um casaco corta-vento, bombachas e as botas dos infalíveis fins de semana
no Mottarone ou no Rosa? A propósito, o fiel cachimbo era bastante
revelador: valia por todo um programa de austeridade masculina e
subalpina, uma bandeira.
Alberto e ele eram grandes amigos, se bem que Alberto, com seu caráter
mais passivo, de punching ball, sempre fosse amigo de todos e de ninguém.
Passaram anos inteiros juntos, em Milão: e isso decerto tinha seu peso. Seja
como for, eu também não achava um tanto exagerada aquela permanente
confabulação entre os dois? Era um nhe-nhe-nhem só: mal acabavam de se
encontrar e logo começavam, nada podia tirá-los daquela conversa infinita.
E vai saber sobre quê! Mulheres? Ora! Conhecendo Alberto, que nesse
campo sempre foi muito reservado, para não dizer misterioso, ela não
apostaria muito nisso, sinceramente.
“Vocês o têm visto?”, decidi um dia perguntar, lançando a questão com o
tom mais indiferente que eu podia.
“Mas claro… acho que ele vem de vez em quando visitar seu Alberto”,
respondeu tranquila. “Eles se fecham no quarto, tomam chá, fumam
cachimbo (Alberto começou a dar umas pitadas de uns tempos para cá) e
falam, falam, sorte deles, só fazem falar.”
Ela era inteligente e sensível demais para não ter adivinhado o que eu
ocultava sob aquela indiferença, ou seja: o desejo subitamente agudíssimo e
sintomático de revê-la. Entretanto se comportou como se não houvesse
entendido, sem acenar sequer de modo indireto à possibilidade de que, mais
cedo ou mais tarde, eu também pudesse ser convidado a visitar sua casa.
2

Passei a noite seguinte em grande agitação. Dormia, acordava, tornava a


dormir. E sempre voltava a sonhar com ela.
Sonhava, por exemplo, que eu estava exatamente como no primeiro dia
em que pus os pés no jardim, olhando-a enquanto ela jogava tênis com
Alberto. Mesmo em sonho, não tirava os olhos dela nem por um instante.
Voltava a dizer a mim mesmo que ela era esplêndida, assim suada e
vermelha, com aquele vinco de empenho e decisão quase feroz que lhe
dividia verticalmente a fronte, tensa como estava no esforço de derrotar o
irmão mais velho, sorridente, pouco vigoroso e entediado. Agora, porém, eu
me sentia oprimido por um incômodo, uma amargura e uma dor quase
insuportáveis. Da menina de dez anos antes — eu me indagava desesperado
—, o que restara nessa Micòl de ar tão livre, esportivo, moderno (sobretudo
livre!), a ponto de fazer pensar que havia passado os últimos anos
circulando pelas mecas do tênis internacional, Londres, Paris, Côte d'Azur,
Forest Hills? Sim, eu comparava: da menina lá estavam os cabelos louros e
finos, estriados de mechas quase brancas, as íris azul-celeste, quase
escandinavas, a pele cor de mel e, sobre o peito, o pequeno disco de ouro do
shaddai. O que mais?
Depois nos encontrávamos fechados dentro da carruagem, naquela
penumbra cinzenta e rançosa: com Perotti sentado na boleia em frente,
imóvel, mudo, ameaçador. Se Perotti estava lá em cima — eu pensava —,
virando-nos as costas com obstinação, decerto o fazia para não ser obrigado
a ver o que estava acontecendo ou o que poderia acontecer no interior da
carruagem, ou seja, por discrição servil. No entanto, mesmo assim o velho
malandro estava a par de tudo, e como estava! Sua esposa, a desbotada
Vittorina, espiando pelos batentes semicerrados do portão do depósito (de
vez em quando eu percebia a pequena cabeça réptil da mulher, lustrosa de
cabelos lisos, corvinos, avançar cautelosa além da margem do batente), sua
esposa estava lá, facciosa, a mirá-lo com seu olho escuro e descontente,
preocupado, lançando-lhe de esguelha gestos e trejeitos convencionais.
E estávamos até no quarto dela, Micòl e eu, e mais uma vez não a sós,
mas “constrangidos” (foi ela quem sussurrou) pela inevitável presença
estranha, que dessa vez era a de Jor, agachado no centro do cômodo como
um enorme ídolo de granito; Jor, que nos encarava com seus dois olhos de
gelo, um preto e outro azul. O aposento era comprido e estreito, apinhado
como uma despensa de alimentos, com toranjas, laranjas, tangerinas e
sobretudo làttimi, organizados em fila como livros nas prateleiras de
grandes estantes negras, austeras, eclesiásticas, que iam até o teto; e os
làttimi não eram absolutamente os objetos de vidro descritos por Micòl,
mas, como eu havia suposto, queijos, pequenas e gotejantes figuras de
queijo esbranquiçado, em formato de garrafa. Rindo, Micòl insistia para que
eu provasse e saboreasse um deles. E eis que se espichava na ponta dos pés
e já estava quase tocando com o indicador estendido da mão direita um dos
que estavam postos mais no alto (os de lá de cima eram os melhores — ela
me explicava —, os mais frescos), mas eu não, não aceitava de jeito
nenhum, angustiado não só pela presença do cão, mas também pela
consciência de que lá fora, enquanto conversávamos, a maré lacustre estava
subindo rapidamente. Se eu demorasse mais um pouco, a água alta me
imobilizaria, impedindo-me de sair de seu quarto sem ser notado. De fato,
eu entrara ali de noite e às escondidas, no quarto de Micòl: escondido de
Alberto, do professor Ermanno, de dona Olga, da avó Regina, dos tios
Giulio e Federico, da cândida sra. Blumenfeld. E Jor, que era o único a
saber, testemunha exclusiva da coisa que entre nós também havia, este não
podia dizer nada.
Sonhava ainda que agora nos falávamos finalmente às claras, sem mais
fingimentos, com as cartas na mesa.
Como sempre, estávamos no meio de uma discussão, Micòl afirmando
que a coisa entre nós começara desde o primeiro dia, isto é, desde que ela e
eu, ainda muito surpresos de nos reencontrar e reconhecer, tínhamos
escapado para ver o jardim, e eu contestando que não, que a meu ver a coisa
começara bem depois, por telefone, quando ela me dissera que se tornara
“feia”, uma “solteirona de nariz vermelho”. Eu não acreditara, é claro. No
entanto, ela nem podia imaginar — eu acrescentava, com um nó na garganta
— como suas palavras me fizeram sofrer. Nos dias seguintes, antes de
reencontrá-la, eu havia pensado continuamente nisso, sem conseguir me
apaziguar.
“Bem, talvez seja verdade”, Micòl concordava nesse ponto, pousando
sua mão na minha. “Se a ideia de que me tornei feia e de nariz vermelho
ficou atravessada em você, então me rendo, quer dizer que você tem razão.
Mas como faremos agora? A desculpa do tênis já não se sustenta, e aqui em
casa, com o perigo de ficarmos bloqueados pela água alta (está vendo como
é Veneza?), em casa não seria conveniente nem adequado que você
entrasse.”
“E para que isso?”, eu rebatia. “No fim das contas, você poderia sair.”
“Eu, sair?”, exclamava ela, arregalando os olhos. “E me diga, dear
friend: para ir aonde?”
“Não… não sei”, eu respondia balbuciando. “Ao Montagnone, por
exemplo, ou à praça de Armas nos lados do Aqueduto, ou então, se for
incômodo se comprometer, à Piazza della Certosa, do lado da Via Borso. É
lá que todo mundo sempre foi namorar (não sei seus pais, mas os meus, nos
velhos tempos, também iam). E, tenha paciência, namorar um pouco juntos,
que mal tem? Não é como fazer amor! É ficar no primeiro degrau, à beira
do abismo. Mas até tocar o fundo do abismo, ainda há uma longa descida
pela frente!”
E eu estava a ponto de acrescentar que, se nem a Piazza della Certosa
lhe agradava, como parecia, também poderíamos quem sabe pegar dois
trens diferentes e nos encontrarmos em Bolonha. Além disso eu não ia,
faltando-me a coragem até em sonho. Mas ela, balançando a cabeça e
sorrindo, já me declarava que era inútil, impossível, “verboten”: nunca
sairia da casa e do jardim comigo. O que é?, provocava-me, divertida.
Depois que ela se deixasse levar por aí, circulando nos costumeiros locais
“ao ar livre” propícios ao “eros do natío borgo selvaggio”,[20] por acaso
seria em Bolonha, quem sabe em algum “hotelzão” daqueles preferidos por
vovó Josette, tipo o Brun e o Baglioni[21] (de todo modo, mediante a prévia
apresentação na réception de nossas excelentes e perfeitamente homólogas
credenciais de raça), que eu planejava a partir de agora conduzi-la?
Na noite do dia seguinte, assim que voltei de uma ida imprevista a
Bolonha, à universidade, tentei ligar para ela.
Alberto atendeu.
“Como vai?”, cantarolou irônico, logo demonstrando reconhecer mais
uma vez minha voz. “Faz um bom tempo que não nos vemos. Tudo bem? O
que tem feito?”
Desconcertado e com o coração em tumulto, desandei a falar
precipitadamente. Juntei um monte de coisas: notícias sobre a tese de
graduação, que se avolumava à minha frente como uma muralha
intransponível; considerações sobre a estação, que, depois dos últimos
quinze dias de mau tempo, parecia prometer algum respiro (mas não havia
muita esperança: o ar pungente falava por si, já estávamos em pleno
inverno, e os belos dias de outubro passado, era melhor esquecê-los); e
principalmente histórias sobre minha rápida passagem por Bolonha.
De manhã — relatei — eu tinha passado na Via Zamboni, onde, depois
de ter acertado algumas coisas na secretaria, pude consultar na biblioteca
certo número de títulos da bibliografia panzacchiana que eu estava
preparando. Mais tarde, por volta da uma, fui comer no Papagallo: mas não
no assim chamado “seco”, aos pés dos Asinelli, que além de caríssimo tinha
uma cozinha a meu ver nitidamente inferior à fama, mas no outro, o
Papagallo “ensopado”, que ficava em uma ruazinha lateral à Via Galliera e
era especial justamente pelos ensopados e caldos, e também pelos preços,
de fato modestos. Depois, à tarde, fui encontrar uns amigos e fiz a ronda
pelas livrarias do centro, tomei chá no Zanarini, o da Piazza Galvani, ao
final do Pavaglione; resumindo, passei muito bem — concluí —, “quase
como quando frequentava regularmente a cidade”.
“Imagine que”, acrescentei em seguida, inventando do nada, e quem
sabe que demônio me inspirou a contar de repente uma história daquelas,
“antes de voltar à estação, tive até tempo de dar uma passadinha na Via
dell'Oca.”
“Na Via dell'Oca?”, perguntou Alberto, animando-se de pronto, mas
com certa timidez.
Não precisei de outro incentivo para me sentir tomado daquele mesmo
impulso rude que às vezes levava meu pai a se mostrar diante dos Finzi-
Contini bem mais grosseiro e “assimilado” do que realmente era.
“Como!”, exclamei. “Não vá me dizer que não sabe que na Via dell'Oca,
em Bolonha, há uma das… pensõezinhas de família mais famosas da
Itália!”
Ele tossiu.
“Não, não sabia”, falou.
Então, com um tom de voz diferente, acrescentou que dali a uns dias ele
também teria de viajar para Milão. Ficaria lá uma semana, pelo menos.
Afinal de contas, junho não estava tão longe quanto parecia, e ele ainda não
achara um professor que lhe permitisse remendar “um trapo de tese
qualquer”; para ser sincero, nem procurara um.
Depois disso, mudando de novo de assunto, perguntou se por acaso,
agora há pouco, eu não tinha passado de bicicleta pela Muralha degli
Angeli. Naquele momento ele estava no jardim, tinha ido ver o estrago que
a chuva causara à quadra de tênis. Mas um pouco pela distância, um pouco
pela luz já escassa, não conseguiu apurar se de fato fosse eu o tipo que, sem
descer do selim e apoiando-se com a mão ao tronco de uma árvore, estava
lá, parado, a observar. Ah, então era eu?, continuou, depois que admiti, não
sem titubear, que, ao voltar para casa da estação, tinha tomado o caminho
da Muralha: e isso, expliquei, por uma íntima repulsa que sempre
experimentei ao topar com certas “caras de réu” reunidas em frente ao Caffè
della Borsa, na avenida Roma, ou dispersas ao longo da Giovecca. Ah,
então era eu?, repetiu. Bem que ele tinha desconfiado! De todo modo, se era
eu, por que não respondi aos chamados dele, aos seus assovios? Não
escutei?
Não escutei — voltei a mentir —, aliás, nem tinha notado que ele estava
no jardim. E agora não tínhamos mais nada a nos dizer, mais nada com que
preencher o repentino silêncio que se abrira entre nós.
“Mas você… você queria falar com Micòl, não é?”, ele disse afinal,
como se recordando.
“Pois é”, respondi. “Poderia chamá-la, por favor?”
Ele a chamaria com o maior prazer, replicou. Acontece que (e era muito
estranho que, pelo visto, “aquele anjo” não me tivesse avisado) Micòl tinha
ido no início da tarde para Veneza, com o mesmo propósito de salvar seu
pescoço da tese. Descera para o almoço já vestida para a viagem, com
malas e tudo, anunciando sua intenção à “família boquiaberta”. Não
aguentava mais, declarou, sentir aquele trabalhinho pesando no estômago.
Em vez de junho, ela se formaria em fevereiro: o que em Veneza, com as
bibliotecas Marciana e Querini-Stampalia à disposição, seria a coisa mais
fácil do mundo, ao passo que em Ferrara, não; por um monte de motivos,
sua tese sobre Dickinson nunca avançaria no ritmo necessário. Foi o que ela
disse. Mas quem sabe se resistiria à atmosfera depressiva de Veneza, e de
uma casa (a dos tios) que ela não amava. O mais provável é que, dali a uma
ou duas semanas, a víssemos voltar à base com a viola no saco. Nem em
sonho ele imaginaria Micòl passando mais de vinte dias seguidos longe de
Ferrara, nunca…
“Ah”, concluiu. “Seja como for, o que você diria (nesta semana é
impossível, na próxima, também, mas na outra daria, acho que seria
possível), o que você diria de combinarmos uma ida de carro até Veneza?
Seria divertido aparecermos do nada na frente da irmãzinha: eu, você e o
Giampi Malnate, por exemplo!”
“É uma ideia”, respondi. “Por que não? Podemos falar sobre o assunto.”
“Enquanto isso”, ele retomou com um esforço no qual eu sentia sua
vontade de me oferecer imediatamente uma compensação pelo que me
revelara, “enquanto isso, por favor, se você não tiver nada melhor a fazer,
por que não vem me encontrar aqui em casa, digamos amanhã, por volta das
cinco da tarde? Acho que amanhã Malnate virá também. Vamos tomar
chá… ouvir uns discos… bater papo… Não sei se lhe interessa, a você, que
é um literato, ficar com um engenheiro (que serei mais tarde) e um químico
industrial. Mas, se você se dignar, não faça cerimônia: venha, que nos dará
um grande prazer.”
Continuamos a conversa mais um pouco, Alberto cada vez mais
animado e entusiasta com aquele seu projeto, que parecia intempestivo, de
me receber em sua casa, e eu, atraído, mas também repelido. Era a mais
pura verdade, lembrei-me: pouco antes, da Muralha, passei quase meia hora
olhando o jardim e sobretudo a casa, que, do ponto onde eu estava, e através
dos ramos quase nus das árvores, eu via incidir no céu crepuscular fina e
elevada como um emblema heráldico. Duas janelas do mezanino, ao nível
do terraço do qual se descia ao parque, já estavam iluminadas, e uma luz
elétrica também filtrava lá de cima, da única e altíssima janelinha que se
abria imediatamente abaixo da cumeeira do telhado em forma de cúspide.
Por longo tempo, com os bulbos dos olhos doloridos na cavidade das
órbitas, continuei fixando o pequeno lume da janelinha superior (um quieto
e trêmulo lampejo suspenso no ar cada vez mais escuro, como o de uma
estrela); e somente os assovios distantes e os gritos tiroleses de Alberto,
suscitando em mim, além do temor de ter sido reconhecido, a ânsia de
tornar a ouvir ao telefone a voz de Micòl, puderam a certa altura arrastar-me
de lá…
Mas e agora?, eu me perguntava, desconsolado. Que me importava ir
agora à casa deles, se eu não encontraria mais Micòl?
Até que a notícia que recebi de minha mãe enquanto eu saía do
compartimento do telefone, ou seja, que por volta do meio-dia Micòl Finzi-
Contini telefonara perguntando por mim (“Me pediu que lhe avisasse que
ela precisou viajar para Veneza, que lhe manda lembranças e que vai lhe
escrever”, acrescentou mamãe, desviando o olhar), foi suficiente para me
fazer mudar logo de ideia. Desde aquele instante, o tempo que me separava
das cinco do dia seguinte começou a passar com extrema lentidão.
3

Foi assim que desde então comecei a ser recebido pode-se dizer diariamente
no apartamento particular de Alberto (que ele chamava de estúdio; e de fato
era um estúdio, com quarto de dormir e banheiro contíguos): aquele famoso
quarto atrás de cuja porta, passando pelo corredor ao lado, Micòl ouvia
ressoar as vozes misturadas do irmão e do amigo Malnate, e onde, afora as
criadas quando chegavam com o carrinho de chá, durante todo o inverno
jamais me ocorreu de encontrar qualquer outro membro da família. Oh, o
inverno de 1938-39! Recordo aqueles longos meses imóveis, como
suspensos acima do tempo e do desespero (em fevereiro nevou, Micòl
demorava a regressar de Veneza), e ainda agora, há mais de vinte anos de
distância, as quatro paredes do estúdio de Alberto Finzi-Contini voltam a
ser para mim o vício, a droga tão necessária quanto inconsciente de cada dia
de então…
O certo é que eu não estava nem um pouco desesperado naquela
primeira tarde de dezembro em que tornei a atravessar de bicicleta o
Barchetto del Duca. Micòl havia partido. Entretanto eu pedalava pela
alameda de entrada, na pouca luz e em meio à névoa, como se dali a pouco
fosse reencontrar Micòl, e apenas Micòl. Estava emocionado, alegre, quase
feliz. Olhava à minha frente, buscando com o farol os locais de um passado
que me parecia remoto, mas ainda recuperável, não ainda perdido. E eis o
pequeno bosque de bambus e mais acima, à direita, a sombra incerta da casa
colonial dos Perotti, de onde uma das janelas do primeiro andar vazava uma
luz amarelada; eis que mais à frente vem ao meu encontro a fantasmática
estrutura da ponte sobre o Panfilio; e eis por fim, prenunciada pelo rangido
dos pneus no pedrisco da esplanada, a massa gigantesca da magna domus,
inacessível como um penhasco isolado, completamente escura, exceto por
uma luz branca e vivíssima que saía em fluxos de uma pequena porta térrea,
aberta evidentemente para me acolher.
Desci da bicicleta e fiquei parado por um instante, olhando a soleira
deserta. Cortada na transversal pela folha esquerda da porta que
permanecera fechada, eu podia entrever uma escada pequena e íngreme,
recoberta por uma faixa de tapete vermelho: de um vermelho vivo,
escarlate, sanguíneo. A cada degrau, uma barra de latão polida e cintilante,
como se fosse de ouro.
Depois de apoiar a bicicleta na parede externa, inclinei-me para prendê-
la com o cadeado. E ainda estava ali, na sombra, inclinado rente à porta
através da qual, além da luz, emanava uma boa quentura de aquecedor (no
escuro, não conseguia manejar bem o cadeado, de modo que já pensava em
acender um fósforo), quando de repente a voz familiar do professor
Ermanno ressoou próxima.
“O que você está fazendo? Está trancando à chave?”, dizia o professor,
parado na soleira. “Mas faz muito bem. Nunca se sabe, prudência nunca é
demais.”
Como sempre sem compreender se ele zombava veladamente de mim
com sua gentileza um tanto lamuriosa, levantei-me de pronto.
“Boa tarde”, falei, tirando o chapéu e estendendo-lhe a mão.
“Boa tarde, meu caro”, respondeu ele. “Mas pode ficar com o chapéu,
pode ficar!”
Senti sua mão pequena e gorducha insinuar-se quase inerte na minha e
retirar-se imediatamente. Estava sem chapéu, com uma velha boina
esportiva baixada até os óculos e uma echarpe de lã em torno do pescoço.
Espreitou desconfiado em direção à bicicleta.
“Você a trancou, não é?”
Respondi que não. Então ele, contrariado, insistiu que eu voltasse atrás e
fizesse o favor de trancá-la à chave, porque — repetiu — nunca se sabe.
Um furto era improvável, continuava dizendo da soleira, enquanto eu de
novo tentava introduzir entre os raios da roda posterior o gancho do
cadeado. Todavia não era possível confiar plenamente no muro externo do
jardim. Ao longo do perímetro do muro, em especial nos flancos da
Muralha degli Angeli, havia pelo menos uma dezena de pontos em que uma
escalada não seria de nenhuma dificuldade para um garoto razoavelmente
esperto. De resto, tornar a ultrapassá-lo, mesmo com o peso de uma
bicicleta a tiracolo, seria para o mesmo garoto uma operação também
bastante fácil.
Por fim, consegui acionar o cadeado. Ergui os olhos, mas na soleira não
havia ninguém.
O professor me aguardava no vestíbulo, aos pés da escada. Entrei, fechei
a porta, e somente então me dei conta de que ele me olhava perplexo,
arrependido.
“Eu me pergunto”, disse, “se não teria sido melhor você trazer a
bicicleta para dentro… Aliás, confie em mim. Da próxima vez que vier,
pode entrar com a bicicleta. Se deixá-la ali, debaixo da escada, não vai dar o
mínimo incômodo a ninguém.”
Virou-se e começou a subir. Mais que nunca encurvado, sempre com a
boina na cabeça e a echarpe ao pescoço, avançava com vagar, agarrando-se
ao corrimão. Enquanto isso falava, ou melhor, balbuciava: como se, mais
que a mim que o seguia, se dirigisse a si mesmo.
Foi Alberto quem dissera a ele que hoje eu viria visitá-lo. De modo que,
como Perotti acusara de manhã um pouco de febre (tratava-se apenas de
uma leve bronquite, mas que precisava ser tratada a fim de evitar possíveis
contágios), e como não dava para contar com Alberto, sempre
desmemoriado, distraído, nas nuvens, ele mesmo assumira a tarefa de “estar
de sentinela”. Claro, se Micòl estivesse em casa, ele não teria nenhum
motivo de preocupação, já que Micòl, sabe-se lá como fazia, sempre achava
tempo para cuidar de tudo, dedicando-se não só aos próprios estudos, mas
também ao andamento geral da casa, e até aos “fogões”, isso mesmo, pelos
quais nutria uma paixão quase igual à que lhe suscitavam os romances e as
poesias (era ela que fazia as contas nos fins de semana com Gina e
Vittorina, ela que, quando necessário, se incumbia de sciachtare as galinhas
com as próprias mãos: e isso apesar de amar tanto os bichos, coitada!). Mas
hoje Micòl não estava (Alberto me avisara que Micòl não estava em casa?),
infelizmente precisou partir para Veneza ontem à tarde. E lá ia ele me
explicando todos os motivos pelos quais, não podendo contar com Alberto
nem com seu “anjo da guarda”, e como se não bastasse diante da
indisposição de Perotti, teve de fazer as vezes também de porteiro.
Disse ainda outras coisas que não recordo. Mas me lembro de que, ao
final, voltou a falar de Micòl, dessa vez para se queixar de uma “recente
inquietude” por parte dela, devida, percebe-se, a “tantos fatores”, se bem
que… E aqui se calou de repente. Durante todo aquele tempo, não só
subimos até o topo da escada, mas também enveredamos e seguimos por
dois corredores, atravessando vários aposentos com o professor Ermanno
sempre me servindo de guia e apagando uma a uma as luzes por onde
passávamos.
Absorvido como estava pelo que ouvia a respeito de Micòl (o detalhe de
que era ela quem, com as próprias mãos, esganava os frangos na cozinha
estranhamente me fascinara), eu observava, mas quase sem ver. De resto,
passávamos por ambientes não muito diversos dos de outras casas da boa
sociedade ferrarense, judaica ou não, invadidos também estes pelo habitual
mobiliário: armários monumentais, pesados baús seiscentistas de pés com
formato leonino, mesas tipo refeitório, “savonarolas” de couro com
guarnições em bronze, poltronas frau, rebuscados lampadários de vidro ou
ferro batido pendentes no centro de tetos em caixotões, espessos tapetes de
cor tabaco, cenoura e sangue de boi, estendidos em toda parte sobre
parquetes de um brilho fosco. Ali talvez houvesse uma maior quantidade de
quadros do século XIX, paisagens e retratos, e de livros, na maior parte
encadernados e enfileirados atrás dos vidros de enormes estantes de mogno
escuro. Além disso, dos grandes radiadores da calefação se desprendia um
calor que em nossa casa meu pai qualificaria de delirante (eu tinha a
impressão de escutá-lo!): mais que de uma casa particular, um calor de hotel
luxuoso, e de fato, quase de imediato, comecei a suar e precisei tirar meu
casaco.
Ele na frente e eu atrás, atravessamos pelo menos uma dúzia de
cômodos de tamanho desigual, ora amplos como autênticas salas, ora
pequenos e até minúsculos, conectados um ao outro às vezes por corredores
nem sempre retos nem no mesmo nível. Por fim, quando chegamos à
metade de um desses corredores, o professor Ermanno se deteve diante de
uma porta.
“Aqui estamos”, disse.
Apontava a entrada com o indicador, convidativo.
Desculpou-se por não poder entrar comigo, porque — explicou —
precisava repassar certas contas das propriedades rurais; e prometeu que
dali a pouco mandaria “uma das moças com alguma coisa quente”; depois
disso, assegurando-se de que eu voltaria (continuava guardando para mim
as cópias de seus artiguinhos sobre a história veneziana, que eu não me
esquecesse!), apertou minha mão e desapareceu rapidamente no fundo do
corredor.
Entrei.
“Ah, você está aqui!”, cumprimentou-me Alberto.
Estava afundado em uma poltrona.
Levantou-se apoiando ambas as mãos nos braços, ficou de pé, deixou
sobre uma baixa mesinha de canto o livro que estava lendo, aberto e com o
dorso para cima, e por fim veio ao meu encontro.
Trajava uma calça de vicunha cinza e um de seus belos pulôveres cor de
folha seca, sapatos ingleses marrons (Dawsons autênticos, depois me disse,
que encontrara em Milão em uma lojinha perto de San Babila), uma camisa
de flanela aberta no colarinho sem gravata, e trazia um cachimbo entre os
dentes. Apertou minha mão sem excessiva cordialidade. Enquanto isso,
mirava um ponto além de meus ombros. O que estava atraindo sua atenção?
Eu não entendia.
“Me desculpe”, murmurou.
Desviou-se de mim inclinando o longo dorso de lado e, no instante em
que passava ao meu lado, me dei conta de ter deixado a dupla porta aberta
pela metade. Todavia Alberto já estava lá, pronto para fechá-la. Pegou a
maçaneta da porta externa, mas, antes de puxá-la para si, espichou a cabeça
para fora e escrutou o corredor.
“E Malnate?”, perguntei. “Ainda não chegou?”
“Não, ainda não”, respondeu enquanto voltava.
Fez que lhe passasse o chapéu, a echarpe, o casaco, e então desapareceu
no cômodo ao lado. Deste, entrevisto pela porta comunicante, me foi dado
perceber já alguma coisa: parte da cama coberta por uma colcha de lã
xadrez em vermelho e azul, de tipo esportivo, aos pés dela um pufe de
couro e, pendurado na parede lateral à estreita passagem que dava no
banheiro, também este semiaberto, um pequeno nu masculino de De Pisis
enquadrado em uma moldura simples e clara.
“Sente-se”, disse Alberto. “Volto logo.”
De fato, ele logo reapareceu, e agora, sentado à minha frente na mesma
poltrona de onde o vi levantar-se pouco antes com uma levíssima
ostentação de cansaço, talvez de tédio, me examinava com uma estranha
expressão de simpatia destacada, objetiva, que nele, como eu sabia, era
sinal do máximo interesse pelos outros de que era capaz. Sorria para mim
revelando os grandes incisivos da família materna: grandes e fortes demais
para seu rosto comprido e pálido, e mesmo para as gengivas que os
encimavam, não menos exangues que o rosto.
“Quer ouvir um pouco de música?”, propôs, acenando para um rádio-
gramofone disposto no canto do estúdio, ao lado da entrada. “É um Philips,
realmente muito bom.”
Fez que ia se levantar de novo da poltrona, mas o detive.
“Não, espere”, falei, “talvez depois.”
Olhei ao redor.
“Que discos você tem?”
“Ah, um pouco de tudo: Monteverdi, Scarlatti, Bach, Mozart,
Beethoven. Também disponho de bastante jazz, mas não se assuste:
Armstrong, Duke Ellington, Fats Waller, Benny Goodman, Charlie
Kunz…”
Continuou listando nomes e títulos, gentil e equânime como de costume,
mas com indiferença: nem mais nem menos como se me deixasse escolher
em um cardápio de pratos que ele mesmo se absteria de experimentar. Só se
animou, e moderadamente, ao me exibir as virtudes de seu Philips. Era —
ele disse — um aparelho bastante notável, devido a certos “dispositivos”
especiais que, planejados por ele, depois foram executados por um ótimo
técnico de Milão. Tais modificações influíam sobretudo na qualidade do
som, que era emitido não por um único alto-falante, mas por quatro fontes
sonoras distintas. Havia de fato o alto-falante reservado aos sons graves,
outro aos médios, o terceiro aos agudos e o quarto aos agudíssimos; de
modo que, por meio do alto-falante destinado, suponhamos, aos sons
agudíssimos, até os assovios — fez sorrindo — “saíam” à perfeição. E eu
não pensasse que estivessem dispostos todos juntos, pelo amor de Deus!
Dentro do móvel do rádio-gramofone ficavam apenas dois: o alto-falante de
sons médios e o dos agudos. O dos agudíssimos ele teve a ideia de esconder
lá ao fundo, perto da janela, ao passo que o quarto, o dos graves, foi
instalado bem debaixo do sofá onde eu estava sentado. E tudo isso com o
objetivo de se alcançar certo efeito estereofônico.
Naquele momento Dirce entrou, vestindo um uniforme de tecido azul e
avental branco, estreito na cintura, arrastando atrás de si o carrinho de chá.
Vi surgir no rosto de Alberto uma ligeira expressão de contrariedade. A
jovem também deve ter percebido.
“Foi o professor quem mandou que o trouxesse logo”, disse.
“Não se preocupe. Vamos então beber uma xícara de chá.”
De cabelos louros e encaracolados, com as bochechas avermelhadas das
vênetas pré-alpinas, a filha de Perotti preparou em silêncio e de olhos
baixos as duas xícaras e as pousou na mesinha, retirando-se em seguida. No
ar do aposento permaneceu um cheiro bom de sabonete e talco. Até o chá,
assim me pareceu, sabia levemente a ele.
Enquanto eu bebia, continuava olhando ao redor. Admirava a decoração
do quarto, tão racional, funcional, moderna, tão diferente do resto da casa, e
no entanto não conseguia entender por que me sentia invadido por uma
crescente sensação de desconforto, de opressão.
“Gosta de como arrumei meu estúdio?”, indagou Alberto.
De repente, parecia ansioso sobre meu consenso: que eu naturalmente
não lhe neguei, derramando-me em elogios à simplicidade da mobília
(pondo-me de pé, fui examinar de perto uma grande mesa de desenhista,
disposta de viés perto da janela e encimada por uma perfeita luminária
articulável, de metal) e sobretudo às luzes indiretas, que — asseverei — me
pareciam não só muito repousantes, mas também adequadíssimas ao
trabalho.
Ele me deixava falar e parecia contente.
“Foi você quem desenhou os móveis?”
“Na verdade, não. Copiei um pouco da Domus e da Casabella, e um
pouco da Studio, sabe, aquela revista inglesa… Quem os fez para mim foi
um marceneiro da Via Coperta.”
Ouvir que eu aprovava seus móveis — acrescentou — só podia enchê-lo
de satisfação. De fato, seja para descansar ou trabalhar, que necessidade
havia de se cercar de coisas feias ou quem sabe de antiguidades? Quanto a
Giampi Malnate (e ao nomeá-lo enrubesceu um tantinho), aquele vivia
insinuando que o estúdio, decorado como estava, parecia mais uma
garçonnière que um estúdio; e ainda dizia, como bom comunista, que as
coisas podem no máximo oferecer paliativos, sucedâneos, sendo ele
contrário por princípio a paliativos e sucedâneos de qualquer espécie, e
contrário até à técnica, inclusive, sempre que a técnica tivesse a pretensão
de atribuir a um gaveteiro de fechadura perfeita, só para dar um exemplo, a
solução de todos os problemas do indivíduo, inclusive aqueles morais e
políticos. De todo modo, ele — e tocou o próprio peito com um dedo —
tinha uma opinião diferente. Mesmo respeitando as convicções de Giampi
(era comunista, e como: eu não sabia?), ele achava a vida já muito confusa
e tediosa para que também o fossem os objetos e o mobiliário, esses nossos
mudos e fiéis companheiros de quarto.
Foi a primeira e última vez que o vi acalorar-se, tomar partido por certas
ideias em vez de outras. Bebemos uma segunda xícara de chá, mas agora a
conversa definhava, tanto que foi preciso recorrer à música.
Escutamos uns dois discos. Dirce voltou trazendo uma bandeja de
guloseimas. Finalmente, por volta das sete, o telefone que estava sobre uma
escrivaninha ao lado da mesa de desenho começou a tocar.
“Quer apostar que é Giampi?”, resmungou Alberto, indo atender.
Antes de erguer o fone do gancho, hesitou um instante: como o jogador
que, tendo recebido as cartas, retarda o momento de olhar a sorte de frente.
Mas era mesmo Malnate, como logo percebi.
“E então, o que você está fazendo? Não vem mais?”, dizia Alberto
decepcionado, com uma queixa quase infantil na voz.
O outro falou longamente (colado ao ouvido de Alberto, o receptor
vibrava sob o choque de sua grave e calma pronúncia lombarda). Por fim,
pude distinguir um “tchau”, e a comunicação foi interrompida.
“Ele não vem”, disse Alberto.
Voltou lento para a poltrona, deixou-se cair nela, esticou-se e bocejou.
“Parece que ficou preso na fábrica”, acrescentou, “e que ainda vai ficar
lá umas duas ou três horas. Pediu desculpas. E me disse que lhe mandasse
saudações.”
4

Mais que o genérico “até logo” que troquei com Alberto ao me despedir, foi
uma carta de Micòl, postada dias depois, que me convenceu a voltar lá.
Tratava-se de uma cartinha espirituosa, nem muito longa nem muito
curta, escrita nas quatro faces de duas folhas de papel azul que uma
caligrafia ao mesmo tempo impetuosa e leve preenchera rapidamente, sem
incertezas ou correções. Micòl iniciava com um pedido de desculpas:
viajara de repente, sem nem me dar tchau, e isso não tinha sido elegante de
sua parte, estava prontíssima a admiti-lo. Porém, antes de partir —
acrescentava —, havia tentado me ligar, mas infelizmente não me
encontrou; além disso, recomendara a Alberto que, se por acaso eu não me
fizesse vivo, ele mesmo me procurasse. Se foi assim que se passou, isso
quer dizer que ele, Alberto, manteve o juramento de me resgatar “custasse o
que custasse”? Ele, com sua famosa fleuma, sempre deixava todos os
contatos se perderem, e no entanto precisava tanto desses contatos, o
desgraçado! A carta prosseguia por mais duas páginas e meia, discorrendo
sobre a tese agora “de velas soltas rumo ao porto final”, referindo-se a
Veneza que no inverno “simplesmente fazia chorar”, e encerrando de
surpresa com a tradução em versos de um poema de Emily Dickinson.
Esta:

Morii per la Bellezza: e da poco ero


discesa nell'avello,
che, caduto pel Vero, uno fu messo
nell'attiguo sacello.

“Perché sei morta?”, mi chiese sommesso.


Dissi: “Morii pel Bello”.
“Io per la Verità; dunque è lo stesso,
— disse —, son tuo fratello.”

Da tomba a tomba, come due congiunti


incontratisi a notte,
parlavamo cosi; finché raggiunti
l'erba ebbe nomi e bocche.[22]

Em seguida, um postscriptum que dizia textualmente: “Alas, poor Emily.


Eis o tipo de compensação com que deve contentar-se a abjeta solteirice!”.
Gostei da tradução, mas foi sobretudo o postscriptum que me tocou. A
quem eu deveria referi-lo? À “poor Emily” ou, mais ainda, a uma Micòl em
fase depressiva, de autocomiseração?
Ao responder, mais de uma vez tive o cuidado de me ocultar atrás de
espessas cortinas de fumaça. Depois de mencionar minha primeira visita à
casa dela, omitindo quão decepcionante tinha sido para mim e prometendo
que voltaria em breve, mantive-me prudentemente colado à literatura.
Estupendo o poema de Dickinson — escrevi —, mas ótima também a
tradução que ela fizera, e precisamente porque de um gosto um tanto
ultrapassado, um pouco “à la Carducci”. Tinha apreciado acima de tudo sua
fidelidade. Dicionário na mão, eu a cotejara com o texto inglês, não
encontrando nela nada discutível, com a exceção, talvez, de um ponto, ou
seja, onde ela traduziu moss, que significa propriamente “musgo, mofo”,
por “relva”. Quer dizer, continuei: mesmo assim como estava, a tradução
dela funcionava muito bem, já que nessa matéria é sempre preferível uma
bela infidelidade a uma feiura rasteira. De todo modo, o defeito que eu
assinalava era plenamente remediável. Bastaria ajustar a última estrofe
assim:

Da tomba a tomba, come due congiunti


incontratisi a notte,
parlavamo cosi; finché il muschio raggiunti
ebbe i nomi, le bocche.

Micòl respondeu dali a dois dias com um telegrama em que me agradecia


“de todo coração, de verdade!” por meus conselhos literários e então, no dia
seguinte, me mandou um aerograma contendo duas novas redações
datiloscritas da tradução. Eu, por minha vez, enviei-lhe uma missiva de
umas dez páginas que contestava palavra por palavra o aerograma. No fim
das contas, por carta nos revelamos bem mais desajeitados e sem brilho que
por telefone, de modo que logo interrompemos nossa correspondência. Mas
nesse meio-tempo voltei a frequentar o estúdio de Alberto, agora com
regularidade, mais ou menos todos os dias.
Giampiero Malnate também ia, assíduo e pontual, quase com a mesma
frequência. Conversando, discutindo, muitas vezes brigando (enfim,
odiando-nos e ao mesmo tempo nos amando desde o primeiro momento),
foi assim que pudemos nos conhecer a fundo e passar muito rapidamente a
um tratamento informal.
Eu me lembrava do modo como Micòl se expressara a respeito do
“físico” dele. Eu também achava Malnate corpulento e opressivo; eu
também, assim como ela, experimentava com frequência uma espécie de
autêntico desgosto por aquela sinceridade, aquela lealdade, aquele eterno
protesto de franqueza viril, aquela pacata confiança em um futuro lombardo
e comunista que brilhava em seus olhos cinzentos e demasiado humanos.
Apesar disso, desde a primeira vez que me sentei diante dele, no estúdio de
Alberto, tive um único desejo: que ele se afeiçoasse a mim, que não me
considerasse um intruso entre ele e Alberto, enfim, que não considerasse
mal-arranjado o trio cotidiano em que, decerto não por iniciativa sua, ele se
viu embarcado. Creio que a adoção do cachimbo por minha parte também
remonte àquela época.
Falávamos de muitas coisas entre nós dois (Alberto preferia ficar
ouvindo), mas sobretudo de política, é claro.
Eram os meses imediatamente sucessivos ao acordo de Munique, e justo
este, o acordo de Munique e suas consequências, era o assunto mais
recorrente em nossas discussões. Qual seria o próximo passo de Hitler,
agora que a região dos Sudetos havia sido incorporada ao Grande Reich?
Em que flanco ele atacaria? Quanto a mim, eu não era pessimista, e pelo
menos dessa vez Malnate me deu razão. A meu ver, o pacto que a França e
a Inglaterra foram forçadas a assinar ao final da crise do último setembro
não seria duradouro. Sim. Hitler e Mussolini tinham induzido Chamberlain
e Daladier a abandonar a Tchecoslováquia de Benes à própria sorte. Mas e
depois? Quem sabe trocando Chamberlain e Daladier por homens mais
jovens e mais decididos (aí estava a vantagem do sistema parlamentar!, eu
dizia), daqui a pouco a França e a Inglaterra seriam capazes de fincar os
pés. O tempo só podia jogar a seu favor.
Mas bastava que a conversa derivasse para a guerra da Espanha, já em
seus lances finais, ou tangenciasse de algum modo a União Soviética para
que a atitude de Malnate em relação às democracias ocidentais, e a mim em
especial, considerado com ironia seu representante e paladino, logo se
tornasse menos flexível. Ainda o vejo avançar a grande cabeça morena para
a frente, com a testa lustrosa de suor, cravando o olhar no meu com a
mesma e insuportável tentativa de chantagem, entre moral e sentimental, a
que recorria com tanto gosto, enquanto a voz assumia um tom grave,
caloroso, persuasivo, paciente. Por favor, quem foram — perguntava — os
verdadeiros responsáveis pela revolta franquista? Por acaso não foram as
direitas francesa e inglesa, as quais não apenas a toleraram de início, mas
depois, na sequência, até a apoiaram e aplaudiram? Do mesmo modo que o
comportamento anglo-francês, correto na forma, mas na verdade ambíguo,
permitiu que Mussolini abocanhasse a Etiópia em 1935, também na
Espanha foi sobretudo a hesitação culpável dos Baldwin, dos Hallifax e do
próprio Blum que fez a balança pender para o lado de Franco. Inútil culpar
a União Soviética e as Brigadas Internacionais — insinuava cada vez mais
suavemente —, inútil imputar à Rússia, que se tornou o confortável bode
expiatório de todos os imbecis, se os acontecimentos ali estavam se
precipitando. A verdade é outra: apenas a Rússia entendeu desde o início
quem eram o Duce e o Führer, somente ela previu com clareza o inevitável
acordo entre os dois e agiu a tempo, por conseguinte. Ao contrário, as
direitas francesa e inglesa, subversivas da ordem democrática como todas as
direitas de todos os países e de todos os tempos, sempre olharam a Itália
fascista e a Alemanha nazista com uma simpatia mal disfarçada. Para os
reacionários da França e da Inglaterra, o Duce e o Führer podiam parecer
tipos com certeza meio incômodos, um tantinho mal-educados e excessivos,
mas preferíveis sob todos os aspectos a Stálin, já que Stálin, como se sabe,
sempre foi o demônio. Depois de ter atacado e anexado a Áustria e a
Tchecoslováquia, a Alemanha já começava a pressionar a Polônia. Pois
bem, se França e Inglaterra estavam reduzidas a pacientes espectadoras, era
preciso impingir a responsabilidade por sua impotência atual àqueles
cavalheiros valentes, dignos, decorativos, todos de cartola e redingote (tão
condizentes, ao menos na maneira de vestir, com as nostalgias oitocentistas
de tantos literatos decadentes…), que agora mesmo continuavam a
governá-las.
Mas a polêmica de Malnate se tornava ainda mais viva toda vez que a
conversa recaía sobre as últimas décadas da história italiana.
Ele dizia: era evidente que, para mim, e no fundo para o próprio Alberto,
o fascismo não era senão uma doença repentina e inexplicável, que ataca à
traição o organismo saudável, ou, para usar uma frase cara a Benedetto
Croce, “mestre de ambos vocês” (e nessa altura Alberto nunca deixava de
balançar a cabeça desolado, em sinal de negação, mas o outro nem o
notava), a invasão dos hicsos. Resumindo, para nós dois, a Itália liberal dos
Giolitti, dos Nitti, dos Orlando, e até a dos Sonnino, dos Salandra e dos
Facta, tinha sido toda bela e santa, o produto milagroso de uma espécie de
idade do ouro para a qual, se possível, seria oportuno voltar passo a passo.
Mas acontece que estávamos errados, e como estávamos! O mal não tinha
chegado de repente, de modo nenhum. Ao contrário, vinha de muito longe,
ou seja, desde os primeiríssimos anos do Risorgimento, caracterizados por
uma ausência, digamos sem meios-termos, total de participação popular, do
povo de verdade, na causa da Liberdade e da Unificação. Giolitti? Se
Mussolini conseguiu superar a crise causada pelo assassinato de Matteotti
em 1924, quando tudo em volta dele parecia desmoronar e até o rei
vacilava, devemos agradecer justamente ao nosso Giolitti, e a Benedetto
Croce também, ambos dispostos a engolir qualquer sapo desde que o
avanço das classes populares encontrasse barreiras e adiamentos. Foram
eles mesmos, os liberais dos nossos sonhos, que concederam a Mussolini o
tempo necessário para que ele recuperasse o fôlego. Nem seis meses depois,
o Duce os recompensou pelos serviços prestados, suprimindo a liberdade de
imprensa e dissolvendo os partidos. Giovanni Giolitti se retirou da vida
política, abrigando-se em suas terras no Piemonte; e Benedetto Croce
voltou a seus queridos estudos filosóficos e literários. Mas houve quem,
sendo muito menos culpado, aliás, sem culpa nenhuma no cartório, pagou
um preço bem mais salgado. Amendola e Gobetti foram espancados até a
morte; Filippo Turati morreu no exílio, longe de sua Milão onde poucos
anos antes enterrara a pobre companheira, Anna; Antonio Gramsci tomou o
rumo das nossas patrióticas prisões (morreu no ano passado, na cadeia: nós
não sabíamos?); os operários e os camponeses italianos, levados de roldão
com seus líderes naturais, perderam qualquer esperança efetiva de redenção
social e de dignidade humana, e agora, fazia quase vinte anos, vegetavam e
morriam em silêncio.
Não era fácil me contrapor a essas ideias, e por várias razões. Em
primeiro lugar, porque a cultura política de Malnate, que respirara
socialismo e antifascismo dentro de casa desde a primeira infância, era
superior à minha. Em segundo lugar, porque o rótulo que ele queria colar
em mim (o de literato decadente ou “hermético”, como ele dizia, formado
em política pelos livros de Benedetto Croce) me parecia inadequado, não
condizente e, portanto, algo a ser refutado antes mesmo de se começar
qualquer discussão entre nós. O fato é que eu preferia me manter calado,
esboçando um sorriso vagamente irônico. Suportava em silêncio.
Quanto a Alberto, ele também ficava calado: em parte por,
habitualmente, não ter nada a objetar, mas sobretudo para deixar o amigo
encarniçar-se contra mim, o que o satisfazia acima de tudo. Entre três
pessoas fechadas por dias e dias discutindo em um quarto, é quase fatal que
duas delas terminem se alinhando contra a terceira. Querendo mostrar-se
em concordância com Giampi e expressar sua solidariedade a ele, Alberto
parecia pronto a aceitar tudo que o viesse do outro, inclusive o fato de que
ele, Giampi, muitas vezes o metia junto comigo no mesmo saco. Era
verdade: Mussolini e seus comparsas estavam acumulando contra os judeus
italianos infâmias e abusos de todo tipo, dizia por exemplo Malnate; o
famigerado Manifesto da Raça de julho passado, redigido por dez dos
chamados “estudiosos fascistas”, nem se sabia bem como qualificá-lo, se
mais vergonhoso ou mais ridículo. Mas, isso posto — acrescentava —, nós
éramos capazes de lhe dizer quantos eram os “israelitas” antifascistas na
Itália antes de 1938? Bem poucos, receava, uma minoria exígua, pois na
própria Ferrara, como Alberto lhe dissera várias vezes, o número de judeus
filiados ao Partido Fascista sempre foi altíssimo. Eu mesmo, em 1936, tinha
participado dos Littoriali da Cultura. Naquela época eu já estava lendo a
História da Europa “do” Croce? Ou esperara, para mergulhar nela, o ano
seguinte, o ano do Anschluss e dos primeiros alertas de um racismo
italiano?
Eu suportava e sorria, às vezes me rebelando, mas quase sempre sem
reagir, conquistado à minha revelia, repito, por sua franqueza e sinceridade,
de fato um tanto rudes e implacáveis demais, demasiado góis — pensava
comigo —, mas no fundo realmente piedosas porque realmente igualitárias,
fraternas. E quando Malnate a certa altura passava a maltratar Alberto, às
vezes acusando nem tão de brincadeira a ele e a sua família de serem “no
fim das contas” donos de terra imundos, porcos latifundiários e ainda por
cima uns aristocratas obviamente saudosos do feudalismo medieval, razão
por que não era “no fim das contas” tão injusto se agora pagavam de
alguma maneira tributo pelos privilégios gozados por eles até aquele
momento (dobrado em dois como para defender-se das rajadas de um
furacão, Alberto ria até as lágrimas, balançando a cabeça em sinal
afirmativo, ele mesmo pagaria de bom grado por tudo aquilo), não era sem
um secreto regozijo que eu o escutava trovejar contra o amigo. O menino
dos anos anteriores a 1929, aquele que, caminhando ao lado da mãe pelas
alamedas do cemitério, sempre a ouvira definir o solitário mausoléu
monumental dos Finzi-Contini como “um verdadeiro horror”, de repente se
insurgia do mais profundo de mim e aplaudia com maldade.
Mas às vezes parecia que Malnate quase se esquecesse de minha
presença. E isso em geral ocorria quando ele se punha a relembrar com
Alberto os “tempos de Milão”, as amizades daquela época, masculinas e
femininas, os restaurantes que costumavam frequentar juntos, as noites no
Scala, as partidas de futebol na Arena ou em San Siro, os passeios de fim de
semana na montanha ou na Riviera. Ambos tinham feito parte de um
“grupo” — dignou-se a me explicar certa noite — que exigia unanimemente
dos participantes um só requisito: a inteligência. Grandes tempos aqueles,
de verdade!, disse suspirando. Marcados pelo desprezo a qualquer forma de
provincianismo e de retórica, aqueles anos podiam ser definidos não só
como o auge de sua juventude, mas também como os tempos da Gladys,
uma bailarina do Lírico que foi sua amiga por alguns meses (é sério, nada
mal, a Gladys: alegre, “boa acompanhante”, no fundo desinteressada,
convenientemente safada… mas depois, tendo se interessado por Alberto
sem ser correspondida, acabou deixando os dois plantados).
“Nunca entendi bem por que Alberto sempre a rejeitou, pobre Gladys”,
acrescentou com uma piscadela de olho.
Então, virando-se para Alberto:
“Coragem. De lá para cá já se passaram mais de três anos, estamos a
quase trezentos quilômetros da cena do crime. Podemos finalmente pôr as
cartas na mesa?”
Entretanto Alberto se esquivou, corando; e não se falou mais da Gladys.
Ele gostava do trabalho que o levara para nossas bandas — repetia com
frequência —, gostava também de Ferrara, como cidade, e achava um
verdadeiro absurdo que Alberto e eu pudéssemos considerá-la uma espécie
de túmulo ou prisão. Sem dúvida, nossa situação era um tanto peculiar. Mas
estávamos errados ao nos vermos como membros da única minoria
perseguida na Itália. Imaginem! Os operários da fábrica onde ele
trabalhava, por exemplo, o que eles achavam que eram: uns brutos sem
sensibilidade? Ele poderia citar para nós vários que não só jamais tiraram a
carteira do Partido, mas também, socialistas ou comunistas, e por esse
motivo espancados e “subornados” muitas vezes, continuavam firmes,
apegados às suas ideias. Tinha ido a algumas das reuniões clandestinas que
eles promovem e teve a grata surpresa de encontrar lá, além de operários e
camponeses vindos só para aquilo, alguns de bicicleta desde Mésola e de
Goro, também três ou quatro advogados dos mais conhecidos da cidade:
uma prova de que também aqui, em Ferrara, nem toda a burguesia estava do
lado do fascismo, nem todos os setores dela eram traidores. Algum de nós
já tinha ouvido falar de Clelia Trotti? Não? Bem, tratava-se de uma ex-
professora da escola fundamental, uma velhinha que, na juventude, pelo que
lhe contaram, tinha sido a alma do socialismo ferrarense; aliás, continuava
sendo, e como! Aos setenta anos completos, animada e alegre, não havia
reunião de que não participasse. Ele a conhecera justamente assim. Quanto
ao seu socialismo de tipo humanitário, à la Andrea Costa, melhor nem
comentar: obviamente não se tiraria grande coisa dali. Mas quanto ardor
naquela mulher, quanta fé, quanta esperança! Ela o fizera se lembrar, até no
aspecto físico, em especial nos olhos azuis de ex-loura, da sra. Anna, a
companheira de Filippo Turati, que ele conhecera na infância, em Milão,
por volta de 1922. O pai dele, advogado, cumpriu com o casal Turati quase
um ano de prisão em 1898. Íntimo de ambos, foi um dos poucos que
ousaram continuar visitando o casal, nas tardes de domingo, em seu
modesto apartamento na Galeria. E muitas vezes ele acompanhava o pai.
Não, por favor, Ferrara não era de modo nenhum aquela prisão que
alguém podia pensar que fosse, caso lhes desse ouvidos. Claro, se
observada da zona industrial, fechada como surgia no círculo de suas
antigas muralhas, especialmente em dias de tempo ruim, era fácil que desse
uma impressão de solidão, de isolamento. No entanto, ao redor de Ferrara
havia uma zona rural rica, viva, operosa, e mais ao fundo, a nem quarenta
quilômetros de distância, estava o mar, com praias desertas orladas de
estupendas selvas de azinheiras e pinhos: o mar, sim, que é sempre um
grande recurso. Mas afora isso, a cidade em si, quando se entra dentro dela
como ele decidira fazer, ao examiná-la de perto e sem preconceitos,
encerrava intimamente, como qualquer outra, tantos tesouros de retidão, de
inteligência, de bondade e até de coragem que apenas gente cega e surda, ou
então endurecida, podia ignorá-los ou desconhecê-los.
5

Nos primeiros tempos, Alberto não parava de anunciar sua iminente partida
para Milão. Depois, pouco a pouco, parou de tocar no assunto, e sua tese de
graduação acabou se tornando uma questão embaraçosa, a ser evitada com
cautela. Ele não falava sobre o tema e, evidentemente, desejava que nós
também deixássemos essa conversa de lado.
Como já mencionei, as intervenções dele em nossos debates eram raras e
sempre irrelevantes. Tomava o partido de Malnate, quanto a isso não havia
dúvida, mostrando-se alegre se ele triunfava e, ao contrário, preocupado
quando eu prenunciava uma vitória. Mas no mais das vezes se calava. No
máximo, de quando em quando se saía com alguma exclamação (“Ah, essa
é boa!…”; “Bem, em certos aspectos…”; “Um momento: vejamos com
calma…”), acrescentando às vezes uma breve risada ou um pigarro
discreto.
Até no aspecto físico ele tendia a escapar, apagar-se, desaparecer. Em
geral, Malnate e eu nos sentávamos frente a frente, no centro do cômodo,
um no sofá e o outro em uma das duas poltronas: com uma mesinha no
meio, ambos sob o foco de luz. Levantávamos apenas para ir ao pequeno
banheiro contíguo ao quarto, ou para verificar o tempo pelas vidraças da
ampla janela que dava para o parque. Alberto, por sua vez, preferia ficar à
distância, abrigado por trás da dupla barricada da escrivaninha e da
prancheta. Nas vezes que se levantava, nós o víamos andar de lá para cá
pelo quarto, na ponta dos pés, os cotovelos colados aos flancos. Substituía
continuamente os discos do rádio-gramofone, sempre atento a que o volume
do som não excedesse nossa voz, verificava os cinzeiros, esvaziando-os no
banheiro quando estavam cheios, regulava a intensidade das luzes indiretas,
perguntava em voz baixa se queríamos mais um pouco de chá, retificava a
posição de certos objetos. Enfim, tinha o ar atarefado e discreto do dono de
casa que se preocupa apenas com uma coisa: permitir que os importantes
cérebros de seus hóspedes pudessem funcionar nas melhores condições
ambientais possíveis.
Todavia, estou convencido de que o responsável por difundir no
aposento aquela sensação de vaga opressão que se respirava ali era
justamente ele, com sua organização meticulosa, suas iniciativas cuidadosas
e imprevisíveis, seus estratagemas. Bastava, sei lá, que nas pausas durante a
conversa ele passasse a ilustrar as virtudes da poltrona em que eu estava
sentado, cujo espaldar “garantia” às vértebras uma posição
“anatomicamente” mais correta e vantajosa; ou que, abrindo a pequena
bolsa de couro escuro do tabaco para cachimbo e oferecendo-a para mim,
ele me fizesse notar a variada qualidade dos cortes, a seu ver indispensável
para que se obtivesse o máximo rendimento de nossos Dunhill e GBD (um
tanto de doce, um tanto de forte, um tanto de Maryland); ou que, por
motivos nunca muito claros, que só ele conhecia, anunciasse com um vago
sorriso, erguendo o queixo em direção ao rádio-gramofone, a temporária
suspensão do som de algum dos alto-falantes: em cada uma dessas
circunstâncias, em mim sempre se punha em alerta um ataque de nervos,
sempre a ponto de explodir.
Certa noite, não consegui me conter. Claro, gritei, dirigindo-me a
Malnate: sua atitude diletante, no fundo a de um turista, lhe permitia
assumir em relação a Ferrara um tom de longanimidade e de indulgência
que eu invejava nele. Mas de que modo ele via, ele, que falava tanto em
tesouros de retidão, de bondade etc., um caso que acontecera comigo,
precisamente comigo, apenas uns dias atrás?
Eu tinha tido a bela ideia — comecei a contar — de me transferir com
papéis e livros para a sala de consulta da Biblioteca Municipal da Via delle
Scienze: um local que vira e mexe eu frequentava desde os tempos de
ginásio, e onde me sentia quase como em casa. Entre aquelas antigas
paredes, todos muito gentis comigo. Depois que me inscrevi em letras, seu
diretor, o dr. Ballola, começou a me considerar do ramo. Bastava me avistar
e logo vinha sentar-se a meu lado, para me pôr a par dos avanços em sua
pesquisa já de décadas acerca do material biográfico de Ariosto, conservado
em seu gabinete particular, com a qual ele se declarava certo de “superar
decididamente os consistentes resultados alcançados nesse campo por
Catalano”. Quanto aos vários funcionários da biblioteca, eles agiam em
relação a mim com tanta confiança e familiaridade que não só me
dispensavam de preencher as fichas para os livros, mas até me deixavam
fumar um cigarro de vez em quando.
Então, como eu dizia, naquela manhã me veio a bela ideia de passá-la na
biblioteca. No entanto, mal tive tempo de me sentar a uma das mesas da
sala de consulta e de separar o que iria usar, e um dos funcionários, um tal
Poledrelli, sujeito de uns sessenta anos, grande, jovial, famoso devorador de
espaguetes e incapaz de juntar duas palavras que não fossem em dialeto, se
aproximou de mim para me intimar que eu me retirasse, de imediato. Todo
empertigado, encolhendo a pançona e conseguindo até se exprimir em
língua italiana, o ótimo Poledrelli explicou em alto e bom som, oficial, que
o senhor diretor estabelecera ordens taxativas a esse respeito: de modo que
— repetiu — eu fizesse urgentemente o favor de me levantar e desaparecer
dali. Naquela manhã, a sala de consulta estava especialmente lotada de
alunos do segundo ciclo fundamental. A cena foi assistida num silêncio
sepulcral por não menos de uns cinquenta pares de olhos e outras tantas
orelhas. Pois bem, até por isso — continuei — não tinha sido nada
agradável me levantar, recolher minhas coisas da mesa, enfiar tudo aquilo
dentro da pasta e então alcançar, um passo após o outro, o portão
envidraçado da entrada. Tudo bem: aquele desgraçado do Poledrelli só
havia seguido as ordens. Mas que ele ficasse muito atento, ele, Malnate, se
por acaso lhe ocorresse de conhecê-lo (vai saber se esse mesmo Poledrelli
não pertencia ao círculo da professora Trotti!), ficasse muito atento a fim de
não se deixar enrolar pela falsa aparência de benevolência daquele carão de
plebeu. Dentro daquele peito vasto como um armário, ele abrigava um
coração desse tamanhinho: rico em linfa popular, sem dúvida, mas nada
confiável.
E tem mais, e tem mais! — insisti. Não era pelo menos despropositado
que ele agora viesse fazer sermões não digo a Alberto, cuja família sempre
se manteve à parte da vida social da cidade, mas a mim que, ao contrário,
nasci e cresci em um ambiente disposto até demais a abrir-se, a misturar-se
com os outros em tudo? Meu pai, voluntário de guerra, tirara a carteira do
Partido Fascista em 1919; e eu mesmo tinha pertencido ao GUF até ontem.
Portanto, como sempre fomos gente muito normal, aliás, eu diria até banal
em nossa normalidade, teria sido de fato absurdo que agora, da noite para o
dia, pretendessem de nós um comportamento fora da norma. Convocado
pela Federação a fim de ouvir pessoalmente a própria expulsão do Partido, e
depois expulso do Clube dos Comerciários como indesejável, teria sido
realmente estranho se meu pai, pobre coitado, opusesse a tal tratamento um
rosto menos angustiado e abatido que aquele que me era familiar. E meu
irmão Ernesto, que, se quisesse entrar na universidade, precisaria emigrar
para a França, inscrevendo-se no Politécnico de Grenoble? E Fanny, minha
irmã de apenas treze anos, obrigada a continuar o ginásio na escola israelita
da Via Vignatagliata? Arrancados bruscamente de seus colegas de escola,
dos amigos de infância, por acaso se esperava também da parte deles um
comportamento de exceção? Esqueça! Uma das formas mais odiosas de
antissemitismo era justamente esta: lamentar que os judeus não fossem
suficientemente como os outros e depois, em sentido oposto, constatada sua
assimilação quase total ao ambiente comum, lamentar que fossem tal qual
os outros, nem um pouco diferentes da média comum.
Eu me deixara transportar pela raiva, desviando-me bastante dos termos
do debate, e Malnate, que continuara me ouvindo com atenção, ao final fez
que eu o notasse. Antissemita, ele?, murmurou: era a primeira vez,
francamente, que tinha de escutar uma acusação semelhante! Ainda
alterado, eu já estava pronto a rebater e a dobrar a carga. Mas naquele
instante, enquanto passava por trás das costas de meu adversário com a
deselegante rapidez de um pássaro assustado, Alberto me lançou uma
mirada suplicante. “Chega, por favor!”, dizia seu olhar. Que ele, às
escondidas do amigo do peito, apelasse de modo inesperado ao que havia de
mais secreto entre nós dois me atingiu como um evento extraordinário. Não
repliquei, não disse mais nada. No mesmo instante, as primeiras notas de
um quarteto de Beethoven interpretado pelos Busch se elevaram na
atmosfera esfumaçada do quarto, selando minha vitória.
Mas aquela noite não foi importante apenas por isso. Por volta das oito,
começou a chover com tal violência que Alberto, depois de uma rápida
consulta telefônica em linguagem cifrada, talvez com a mãe, propôs que
ficássemos para jantar.
Malnate logo disse que aceitava de bom grado. Quase sempre jantava no
Giovanni — disse —, “sozinho feito um cão”. Nem podia acreditar que
passaria uma noite “em família”.
Também aceitei. Mas perguntei se poderia ligar para casa.
“Mas é claro!”, exclamou Alberto.
Sentei-me onde habitualmente ele se sentava, atrás da escrivaninha, e
disquei o número. Enquanto esperava, olhei de lado, através dos vidros da
janela riscados de chuva. No escuro denso, as massas das árvores mal se
distinguiam. Para além do negro intervalo do parque, sabe-se lá onde,
bruxuleava uma fraca luz.
Por fim, a voz lamentosa de meu pai atendeu.
“Ah, é você?”, disse. “Já estávamos ficando preocupados. De onde você
está ligando?”
“Vou jantar fora”, respondi.
“Com esta chuva!”
“Pois é.”
“Ainda está nos Finzi-Contini?”
“Estou.”
“Quando voltar para casa, não importa a hora, venha falar comigo um
minuto, combinado? De todo modo, não consigo pegar no sono, você
sabe…”
Deitei o fone no gancho e ergui os olhos. Alberto me observava.
“Feito?”, perguntou.
“Feito.”
Saímos os três para o corredor, atravessamos várias salas e saletas,
descemos por uma escadaria em cujos pés, de casaca e luvas brancas,
Perotti nos aguardava, e de lá passamos diretamente à sala de jantar.
O resto da família já estava lá. O professor Ermanno, dona Olga, a sra.
Regina e um dos tios de Veneza, o tisiólogo, que, ao ver Alberto entrar,
levantou-se e foi ao seu encontro, beijou-o em ambas as faces e então,
enquanto lhe baixava distraidamente com o dedo a borda de uma pálpebra
inferior, começou a lhe contar por que se encontrava ali. Precisara ir a
Bolonha para uma consulta — dizia — e então, no caminho de volta,
pensou em parar e jantar com eles, entre um trem e outro. Quando
entramos, o professor Ermanno, a esposa e o cunhado estavam sentados
diante da lareira acesa, com Jor espichado a seus pés em todo o seu
comprimento. A sra. Regina, por sua vez, estava sentada à mesa, bem
debaixo do lampadário central.
É inevitável que a lembrança de meu primeiro jantar na casa dos Finzi-
Contini (ainda estávamos em janeiro, acho) tenda a confundir-se um pouco
com lembranças dos muitos outros jantares de que participei ao longo do
mesmo inverno na magna domus. Entretanto, recordo com estranha
precisão o que comemos naquela noite, ou seja: um caldo de arroz com
iscas de fígado, polpettone de peru com geleia, língua salgada com
acompanhamento de azeitonas pretas e talos de espinafre ao vinagre, uma
torta de chocolate, frutas frescas e secas, nozes, avelã, passas e pinoli.
Recordo ainda que, tão logo nos sentamos à mesa, Alberto tomou a
iniciativa de contar a história de minha recente exclusão da Biblioteca
Municipal, e que uma vez mais me espantei com a pouca surpresa que tal
notícia suscitou nos quatro idosos. De fato, os sucessivos comentários por
parte deles sobre a situação geral, e também sobre a dupla Ballola-
Poledrelli, invocada de tanto em tanto durante toda a refeição, não foram
nem um pouco amargos, mas, como sempre, elegantemente sarcásticos e
quase alegres. E alegre, decididamente alegre e satisfeito, foi o tom de voz
com que mais tarde o professor Ermanno, tomando-me pelo braço, propôs
que eu aproveitasse a partir de então, com total liberdade, como e quando
quisesse, os quase vinte mil livros de sua casa, um número notável dos
quais — me disse — relativo à literatura italiana de meados e final do
século XIX.
Mas o que mais me espantou desde aquela primeira noite foi sem dúvida
a sala de jantar em si, com seus móveis de madeira avermelhada, em estilo
floreal, sua ampla lareira de boca arqueada e sinuosa, quase humana, suas
paredes forradas de couro, exceto aquela, inteiramente envidraçada, que
emoldurava a escura e silenciosa tempestade do parque como a escotilha do
Nautilus: tão íntima, tão protegida, quase diria tão sepultada, mas acima de
tudo tão condizente com o que eu era então, agora entendo!, a abrigar
aquela espécie de brasa preguiçosa que é tantas vezes o coração dos jovens.
Ao atravessarmos a soleira, tanto eu quanto Malnate fomos recebidos
com grande amabilidade, não só pelo professor Ermanno, gentil, jovial e
animado como sempre, mas até por dona Olga. Foi ela quem distribuiu os
lugares à mesa. Malnate sentou-se à sua direita; eu, na outra ponta da mesa,
à direita de seu marido; ao irmão Giulio coube o lugar à sua esquerda, entre
ela e a velha mãe. Mesmo esta última, bonita nas faces rosadas, nos alvos
cabelos de seda mais cheios e luminosos que nunca, mesmo ela de vez em
quando olhava ao redor com ar benigno e divertido.
O lugar à minha frente, cheio de pratos, taças e talheres, parecia à espera
de um sétimo convidado. Enquanto Perotti ainda estava circulando com a
sopeira do caldo de arroz, perguntei em voz baixa ao professor Ermanno a
quem estava reservada a cadeira à sua esquerda. E ele, também em voz
baixa, me respondeu que aquela cadeira “presumivelmente” não estava
reservada a mais ninguém (conferiu o horário em seu grande Omega de
pulso, balançou a cabeça e suspirou), sendo de fato a cadeira normalmente
ocupada por Micòl: “minha Micòl”, como ele disse, para ser exato.
6

O professor Ermanno não vendeu gato por lebre. Entre os quase vinte mil
livros da casa, a imensa maioria de assunto científico, histórico ou
variamente erudito (grande parte destes últimos em alemão), havia de
verdade muitas centenas referentes à literatura da Nova Itália. Pode-se dizer
que não faltava nada do que saíra do ambiente literário carducciano de fins
do século, nas décadas em que Carducci lecionou em Bolonha. Havia os
volumes em verso e prosa não só do Mestre, mas também os de Panzacchi,
Severino Ferrari, Lorenzo Stecchetti, Ugo Brilli, Guido Mazzoni, do jovem
Pascoli, do jovem Panzini, do novíssimo Valgimigli: em geral primeiras
edições, todas trazendo dedicatórias autógrafas à baronesa Josette Artom di
Susegana. Reunidos em três estantes isoladas e envidraçadas que ocupavam
toda uma parede do vasto salão do primeiro andar, contíguo ao escritório
pessoal do professor Ermanno, diligentemente catalogados, não há dúvida
de que esses livros representavam em seu conjunto uma coleção que
qualquer biblioteca pública, inclusive a do Archiginnasio de Bolonha,
almejaria poder ostentar. Do acervo não estavam ausentes nem mesmo os
quase inencontráveis livrinhos de prosa lírica de Francesco Acri, o famoso
tradutor de Platão, que até ali eu só conhecia como tradutor: não tão
“santo”, pois, como nos garantira no quinto ano de ginásio o professor
Meldolesi (porque ele também, Meldolesi, fora aluno de Acri), já que suas
dedicatórias à avó de Alberto e Micòl se mostravam dentre todas talvez as
mais galantes, as mais masculinamente cônscias da altiva beleza a que se
dirigiam.
Podendo dispor de toda uma biblioteca especializada, e além disso
estranhamente ávido por estar ali todas as manhãs, na grande, aquecida e
silenciosa sala que recebia a luz vinda de três altos janelões adornados com
sanefas de seda branca com linhas vermelhas verticais, em cujo centro,
recoberta por um forro de cor cinza, se alongava uma mesa de bilhar, nos
dois meses e meio que se seguiram consegui levar a termo minha tese sobre
Panzacchi. E talvez eu tivesse podido terminá-la até antes, quem sabe, se de
fato quisesse. Mas era isso mesmo que eu buscava? Ou buscava sobretudo
estender, pelo maior tempo possível, o direito de me apresentar na casa
Finzi-Contini também nas manhãs? O certo é que, em meados de março
(enquanto isso, chegara a notícia da formatura de Micòl: aprovada com nota
máxima), eu continuava indolentemente apegado àquele meu pobre
privilégio de uso também matutino da casa de onde ela insistia em manter-
se distante. Agora estávamos a poucos dias da Páscoa católica, que naquele
ano coincidiu mais ou menos com o Pessach, a Páscoa judaica. Embora a
primavera já estivesse às portas, uma semana antes nevara com
extraordinária abundância, trazendo de volta um frio intenso. Quase parecia
que o inverno não quisesse ir embora. E eu também, o coração habitado por
um obscuro e misterioso lago de medo, me agarrava à pequena escrivaninha
que o professor Ermanno, desde o último janeiro, mandara dispor para mim
debaixo da janela central do salão de bilhar, como se, fazendo isso, me
fosse permitido frear a irrefreável progressão do tempo. Eu me levantava,
aproximava-me da janela, olhava o parque lá embaixo. Sepultado por um
manto de neve de meio metro, todo branco, o Barchetto del Duca surgia
transformado em uma paisagem de saga nórdica. Às vezes, eu me
surpreendia esperando justamente isto: que a neve e o gelo nunca mais
derretessem, que durassem pela eternidade.
Por dois meses e meio, meus dias foram mais ou menos iguais. Pontual
como um funcionário, saía de casa no frio das oito e meia quase sempre de
bicicleta, mas às vezes também a pé. Depois de no máximo vinte minutos,
lá estava eu, tocando a campainha do portão nos fundos da avenida Ercole I
d'Este, para depois atravessar o parque que, nos primeiros dias de fevereiro,
era invadido pelo perfume delicado das flores amarelas do calicanto. Às
nove, já estava sentado à mesa do salão de bilhar, onde permanecia até a
uma da tarde e para onde retornava por volta das três. Mais tarde, lá pelas
seis, passava no estúdio de Alberto com a certeza de que encontraria
Malnate lá. Por fim, como já disse, ambos éramos convidados para o jantar
com frequência. Aliás, esse costume de jantar fora se tornara tão normal
para mim que já nem me telefonavam de casa. Se tanto, ao sair de casa eu
dizia a minha mãe: “Acho que esta noite vou jantar lá”. Lá: e nem precisava
acrescentar mais nada.
Trabalhava por horas e horas sem que ninguém aparecesse ali, exceto
Perotti, que por volta das onze me trazia em uma bandejinha de prata uma
xícara de café. Também isso, o café das onze, transformou-se quase
imediatamente em um ritual cotidiano, um hábito adquirido sobre o qual
não valia a pena que nem eu nem ele gastássemos uma única palavra. O que
Perotti de vez em quando se permitia falar, enquanto aguardava que eu
terminasse de sorver o café, era sobre o “andamento” da casa, a seu ver
gravemente comprometido pela ausência demasiado prolongada da
“senhorita”, que tudo bem, claro, havia de se tornar professora, se bem
que… (e aquele “se bem que”, acompanhado de um trejeito dubitativo,
podia aludir a muitas coisas: à nenhuma necessidade de que os patrões,
sorte deles, tinham de ganhar a vida, assim como às leis raciais, que em
todo caso tornariam nossos diplomas de formatura meros pedaços de papel,
sem qualquer serventia prática)… mas pelo menos umas escapadas, já que
sem ela a casa estava indo rapidamente “para as cucuias”, umas escapadas
rápidas, quem sabe uma semana sim e outra não, ela deveria poder dar.
Comigo, Perotti sempre achava um jeito de se queixar dos patrões. Em sinal
de desconfiança e desaprovação, apertava os lábios, piscava o olho,
balançava a cabeça. Quando se referia a dona Olga, chegava a tocar a testa
com o áspero indicador. Eu não dava corda a ele, naturalmente, firmíssimo
em não aceitar aqueles seus recorrentes convites a uma cumplicidade servil
que, além de me repugnar, me feria. Mas em pouco tempo, diante de meus
silêncios e dos sorrisos frios, só restava a Perotti ir embora e me deixar mais
uma vez sozinho.
Certo dia, em vez dele, quem se apresentou foi sua filha mais nova,
Dirce. Também ela aguardou, ao lado da escrivaninha, que eu terminasse de
tomar o café. Eu bebia e a olhava de soslaio.
“Como é que você se chama?”, perguntei, devolvendo-lhe a xícara vazia,
com o coração que começara a disparar.
“Dirce”, sorriu, e seu rosto se cobriu de vermelho.
Vestia o costumeiro avental de um grosso tecido azul, curiosamente
cheirando a nursery. Então escapou, evitando corresponder ao meu olhar
que buscava cruzar com o dela. No instante seguinte, eu já me
envergonhava pelo que havia acontecido (mas o que havia acontecido,
afinal?), como se se tratasse da mais vil e mais sórdida traição.
O único da família que de vez em quando aparecia era o professor
Ermanno. Com extrema cautela, abria a porta do estúdio lá no fundo e
então, na ponta dos pés, avançava pelo salão de modo que muitas vezes eu
só percebia sua presença quando ele já estava ali, de lado, inclinado
respeitosamente sobre os papéis e os livros espalhados à minha frente.
“Como vai?”, perguntava satisfeito. “Parece-me que estamos indo a
velas soltas!”
Eu me preparava para levantar.
“Não, não, pode continuar trabalhando”, exclamava. “Já estou de saída.”
Na maioria das vezes, ele não ficava mais que cinco minutos, e nesse
intervalo sempre achava um meio de me manifestar toda a simpatia e toda a
consideração que minha tenacidade no trabalho lhe inspiravam. Ele me
observava com olhos acesos e brilhantes: como se de mim, de meu futuro
de literato e estudioso, ele esperasse quem sabe o quê, como se contasse
comigo para algum desígnio secreto seu, que transcendia não apenas a ele,
mas também a mim mesmo… E, nesse sentido, lembro-me de que essa
atitude dele em relação a mim, embora me lisonjeasse, me fazia sofrer um
pouco. Por que ele não pretendia o mesmo de Alberto — eu me perguntava
—, que aliás era seu filho? Por qual motivo aceitava, sem protestar, que ele
houvesse renunciado a se diplomar? E Micòl? Em Veneza, Micòl estava
fazendo exatamente a mesma coisa que eu fazia aqui: terminando de
escrever a tese. No entanto, ele nunca mencionava o nome dela, Micòl, ou,
se mencionava, era sempre com um suspiro. Era como se dissesse: “Ela é
uma garota, e é melhor que as mulheres pensem na casa, e não em
literatura!”. Mas eu devia mesmo acreditar nele?
Certa manhã, deteve-se e conversou mais demoradamente que o
habitual. Depois de alguns rodeios, tornou a falar das cartas de Carducci e
de seus “trabalhinhos” relativos a Veneza: tudo coisa — falou, acenando ao
seu gabinete, atrás de minhas costas — guardada por ele “bem ali”.
Enquanto isso sorria misteriosamente, com o rosto imobilizado em uma
expressão astuta e convidativa. Era claro: queria conduzir-me “bem ali”, e
ao mesmo tempo queria que fosse eu a lhe propor que me conduzisse.
Apressei-me a contentá-lo.
Assim nos transferimos para o gabinete, que era uma sala pouco menos
ampla que o salão de bilhar, mas reduzida, ou melhor, atravancada por um
incrível amontoado de objetos díspares.
Para começar, aqui também havia muitíssimos livros. Os de assunto
literário misturados com os de ciências (matemática, física, economia,
agricultura, medicina, astronomia etc.); os de história nacional, ferrarense
ou veneziana com os de “antiguidades judaicas”: os volumes lotavam sem
ordem, ao acaso, as mesmas estantes envidraçadas, e ocupavam boa parte
da grande mesa de nogueira atrás da qual, sentado, provavelmente o
professor Ermanno não conseguiria despontar senão com o topo da boina,
amontoando-se em pilhas vacilantes sobre as cadeiras e até no chão, tomado
aqui e ali por eles. Além disso, um grande mapa, um atril, um microscópio,
meia dúzia de barômetros, um cofre de aço pintado de vermelho-escuro,
uma cândida maca de ambulatório médico, várias ampulhetas de diversas
dimensões, um tímpano de latão, um pequeno piano vertical alemão
encimado por dois metrônomos fechados em seus estojos piramidais e
muitos outros objetos além desses, de duvidosa utilidade e dos quais não me
lembro, conferiam ao ambiente um ar de gabinete faustiano do qual ele, o
professor Ermanno, foi o primeiro a sorrir e a desculpar-se, como se tudo
aquilo fosse uma fraqueza pessoal sua, particular: quase como um resíduo
de bizarrices juvenis. Mas ia me esquecendo de dizer que aqui, à diferença
do que ocorria em todos os cômodos da casa, geralmente sobrecarregados
de quadros, só havia um: um enorme retrato de Lenbach em tamanho
natural, assomando como um retábulo da parede atrás da mesa. A
esplêndida dama loura figurada nele, em postura ereta, ombros nus, um
leque na mão enluvada, com a cauda sedosa do vestido branco arrematada à
frente, a ressaltar a esbelteza das pernas e a plenitude das formas, só podia
ser, obviamente, a baronesa Josette Artom de Susegana. Que fronte de
mármore, que olhos, que lábios desdenhosos, que busto! Realmente parecia
uma rainha. Das inúmeras coisas presentes no gabinete, o retrato da mãe foi
o único objeto do qual o professor Ermanno não sorriu: nem naquela manhã
nem nunca.
De todo modo, naquela mesma manhã fui finalmente presenteado com
dois opúsculos venezianos. Em um deles — explicou-me o professor —
estavam reunidas e traduzidas todas as inscrições do cemitério israelita do
Lido. Já o segundo tratava de uma poeta judia que vivera em Veneza na
primeira metade do século XVII, tão famosa em sua época quanto hoje,
“infelizmente”, caída em esquecimento. Chamava-se Sara Enriquez (ou
Enriques) Avigdòr. Em sua casa no Gueto Velho, ela mantivera aberto por
algumas décadas um importante salão literário, assiduamente frequentado
pelo eruditíssimo rabino ferrarense-veneziano Leone da Modena e por
vários expoentes literários do período, e não só italianos. Escrevera uma
quantidade considerável de “ótimos” sonetos que ainda hoje esperavam a
pessoa capaz de reivindicar sua beleza. Durante mais de quatro anos,
manteve uma brilhante correspondência epistolar com o célebre Ansaldo
Cebà, nobre genovês autor de um poema épico sobre a rainha Ester, o qual
metera na cabeça que a converteria ao catolicismo, mas depois, vendo que
toda insistência era inútil, se viu por fim obrigado a renunciar a isso. Em
resumo, uma grande mulher: honra e glória do judaísmo italiano em plena
Contrarreforma, e em certa medida também da “família” — acrescentou o
professor Ermanno enquanto se sentava para me escrever duas linhas de
dedicatória —, uma vez que parecia comprovado que sua esposa, por parte
de mãe, descendia justamente dela.
Levantou-se, circundou a mesa, pegou-me pelo braço e conduziu-me até
o vão da janela.
No entanto havia algo — continuou, baixando a voz como se temesse
que alguém pudesse escutar — de que ele se sentia obrigado a me advertir.
Se no futuro acontecesse de eu também me interessar por essa Sara
Enriquez, ou Enriques, Avigdòr (e o assunto era desses que mereciam um
estudo bem mais acurado e aprofundado do que ele foi capaz de fazer na
juventude), a certa altura eu toparia fatalmente com algumas vozes
contrárias… discordantes… enfim, com determinados textos de literatos de
quinta categoria, na maior parte contemporâneos da poeta (panfletos
transbordantes de inveja e antissemitismo), que tendiam a insinuar que nem
todos os sonetos em circulação com a assinatura dela, e nem todas as cartas
escritas por ela a Cebà, eram… hum… de seu próprio punho. Pois bem, ao
redigir sua biografia, ele certamente não pôde ignorar a existência de tais
boatos e, de fato, como eu veria, as registrara de modo pontual. Em todo
caso…
Interrompeu a fim de perscrutar meu rosto, incerto sobre minhas
reações.
Em todo caso — retomou —, se eu também, “no futuro”, pensasse…
hum… me decidisse a tentar uma reavaliação… uma revisão… ele desde já
me aconselhava a não dar excessivo crédito a certas maledicências talvez
pitorescas, talvez saborosas, mas no fundo fora de propósito. No fim das
contas, o que deve fazer um bom historiador? Propor-se, sim, como ideal, o
objetivo da verdade, mas sem jamais perder pelo caminho o sentido da
oportunidade e da justiça. Eu não estava de acordo?
Inclinei a cabeça em sinal de concordância, e ele, aliviado, bateu
levemente em meu ombro com a palma da mão.
Feito isso, afastou-se de mim, atravessou encurvado o gabinete,
inclinou-se para o cofre e o abriu, extraindo dele um estojo forrado de
veludo azul.
Virou-se, regressou todo sorridente à janela e, antes mesmo de abrir o
estojo, disse que ele adivinhava o que eu havia adivinhado: ali dentro
estavam de fato conservadas as famosas cartas de Carducci. Eram quinze: e
nem todas — acrescentou — eu julgaria de grande interesse, já que cinco
delas tratavam unicamente de certo embutido para molhos, “feito em nossos
campos”, que o poeta, presenteado com ele, manifestara apreciar
“altamente”. Apesar disso, havia ali uma que seguramente me
surpreenderia. Tratava-se de uma carta do outono de 1875, ou seja, escrita
quando já se delineava no horizonte a crise da direita histórica. No outono
de 1875, a posição política de Carducci se mostrava a seguinte: como
democrata, como republicano, como revolucionário, afirmava não poder
alinhar-se senão com a esquerda de Agostino Depretis. Por outro lado, o
“hirto vinhateiro de Stradella”[23] e as “turbas” de seus amigos lhe pareciam
gente vulgar, “homúnculos”. Eles nunca seriam capazes de reconduzir a
Itália à sua missão, de fazer da Itália uma grande nação, digna dos antigos
Pais…
Continuamos a conversa até a hora do almoço. E, feitos todos os
cálculos, o resultado final foi o seguinte: a partir daquela manhã, a porta de
comunicação entre a sala de bilhar e o gabinete contíguo, em vez de sempre
fechada, ficou frequentemente aberta. Cada qual continuou passando a
maior parte do tempo em seus respectivos aposentos. Mas nos
encontrávamos muito mais vezes que antes, o professor Ermanno vindo me
ver, e eu indo encontrá-lo. Quando a porta estava aberta, até trocávamos
umas frases por ela: “Que horas são?”, “Como está indo o trabalho?”, e por
aí vai. Poucos anos depois, durante a primavera de 1943, na cadeia, as
frases que eu trocaria com um vizinho de cela desconhecido, gritando-lhe
no alto pelas frestas do respiradouro, seriam desse mesmo tipo: lançadas
assim, mais pela necessidade de ouvir a própria voz, de se sentir vivo.
7

Naquele ano, a Páscoa em nossa casa foi comemorada apenas com um


jantar.
Foi meu pai quem quis assim. Até por causa da ausência de Ernesto —
ele disse —, vamos esquecer uma Páscoa como as dos anos anteriores. De
resto, afora isso, como poderíamos? Eles, meus Finzi-Contini, mais uma
vez se mostraram excelentes. Com a desculpa do jardim, haviam
conseguido manter todas as criadas, da primeira à última, fazendo-as passar
por camponesas empregadas no cultivo das hortaliças. Mas e nós? Desde
que fomos forçados a dispensar Elisa e Mariuccia, e a substituí-las por
aquele peixe morto da velha Cohen, na prática já não dispúnhamos de
ninguém. Nessas condições, nem mesmo nossa mãe seria capaz de operar
milagres.
“Não é verdade, meu anjo?”
Meu anjo não nutria pela srta. Ricca Cohen, sessentona distinta e
aposentada da prefeitura, sentimentos muito mais afetuosos que os de meu
pai. Além de sempre se regozijar quando ouvia algum de nós falar mal da
coitada, mamãe aderira com sincera gratidão à ideia de uma Páscoa em tom
menor. Está bem, aprovara: um jantar é o suficiente, o da primeira noite,
não era preciso muita coisa para prepará-lo. Ela e Fanny se virariam quase
sozinhas, sem que “aquela lá” — e acenava com o queixo na direção de
Cohen, fechada na cozinha — tivesse de armar sua habitual cara amarrada.
Mas havia um problema: justamente porque “aquela lá” não seria obrigada
a muitos vaivéns com pratos e travessas, aliás, sob o risco de aprontar
algum desastre, já que tinha as pernas fracas, seria necessário talvez pôr a
mesa não na sala, que ficava muito afastada da cozinha — e sobretudo neste
ano, por causa da neve, mais fria que a Sibéria —, não na sala, mas aqui, na
copa…
Não foi um jantar alegre. No centro da mesa, a cesta que trazia em meio
aos “manjares” rituais a terrina de charosset, os maços de erva amarga, o
pão ázimo e o ovo cozido reservado a mim, o primogênito, imperava
inutilmente sobre o lenço azul e branco de seda que vovó Ester havia
bordado com as próprias mãos quarenta anos antes. Apesar de todo o
cuidado, aliás, precisamente por isso, a mesa assumira um aspecto muito
semelhante àquela oferecida nas noites do Kippur, quando era posta apenas
para Eles, os mortos familiares, cujos ossos jaziam no cemitério ao final da
Via Montebello, e no entanto estavam bem presentes, aqui, em espírito e
efígie. Aqui, em seus lugares, nessa noite sentávamos nós, os vivos. Mas
em número reduzido em relação aos de outrora, e nem todos alegres,
sorridentes, falantes, e sim tristes e pensativos como os mortos. Eu olhava
meu pai e minha mãe, ambos muito envelhecidos em poucos meses. Olhava
Fanny, que já estava com quinze anos, mas, como se um arcano temor
tivesse impedido seu desenvolvimento, não aparentava ter mais que doze.
Olhava ao redor, um a um, tios e primos dos quais a maior parte seria dali a
alguns anos engolida pelos fornos crematórios alemães, e com certeza não
imaginavam que acabariam assim, como de resto nem eu imaginava, mas,
apesar disso, já desde então, naquela noite, embora os visse tão
insignificantes em seus pobres rostos cobertos por chapeuzinhos burgueses
ou emoldurados em permanentes burguesas, embora os soubesse de mente
tão obtusa, tão inaptos para avaliar a real dimensão do hoje e para ler no
amanhã, já então me pareciam envoltos na mesma aura de misteriosa
fatalidade estatuária que os envolve agora, na memória. Olhava a velha
Cohen, nas raras vezes que se arriscava a botar a cabeça na porta da
cozinha: Ricca Cohen, a distinta solteirona de sessenta anos que saíra do
asilo da Via Vittoria para vir ser criada em uma casa de correligionários
abastados, mas que não desejava outra coisa senão voltar ao asilo e, antes
que os tempos piorassem mais ainda, morrer lá. Por fim olhava a mim
mesmo, refletido na água opaca do espelho em frente, eu também já um
pouco encanecido, preso também na mesma engrenagem, porém relutante,
ainda não resignado. Eu não estava morto — dizia a mim mesmo —, eu
ainda estava bem vivo! Mas então, se ainda vivia, por que continuava ali,
reunido com os outros, para quê? Por que não me furtava logo àquele
desesperado e grotesco encontro de espectros, ou pelo menos não tapava os
ouvidos para não ouvir mais falar de “discriminação”, de “méritos
patrióticos”, de “atestados de terceira idade”, de “quartos de sangue”, para
não ouvir mais a lamúria mesquinha, a monótona, cinzenta e inútil trenodia
que parentes e consanguíneos entoavam em surdina ao redor? O jantar teria
se arrastado assim, entre discursos batidos, sabe-se lá por quantas horas,
com meu pai evocando a cada minuto, amargo e deliciado, as várias
“ofensas” que teve de suportar ao longo dos últimos meses, a começar de
quando, na Federação, o secretário federal, cônsul Bolognesi, lhe anunciara
com olhos culpados, doridos, que se via forçado a “cancelá-lo” da lista dos
filiados ao Partido, para terminar com quando, de olhos não menos
entristecidos, o presidente do Círculo dos Comerciários o convocou para lhe
anunciar que devia considerá-lo um “demissionário”. Ele teria muitas para
contar! Até meia-noite, até uma, até duas! E depois? Depois haveria a
última cena, a das despedidas. Eu já podia até ver. Tínhamos todos descido
em grupo pelas escadas escuras, como um rebanho oprimido. Chegados ao
pórtico, alguém (talvez eu) se adiantou para entreabrir o portão da rua e aí,
pela última vez antes de nos separarmos, se renovaram por parte de todos,
inclusive minha, os boas-noites, as felicitações, os apertos de mão, os
abraços, os beijos nas faces. Até que de repente, do portão que ficara
semiaberto, ali, contra a escuridão da noite, eis que irrompeu dentro do
pórtico uma rajada de vento. É vento de furacão, e vem do meio da noite.
Investe contra o pórtico, atravessa-o, ultrapassa assoviando as cancelas que
separam o pórtico do jardim, e enquanto isso já dispersou à força quem
ainda teimava em demorar um pouco mais, calando de golpe, com seu uivo
selvagem, os que ainda pretendiam conversar. Vozes sumidas, gritos frágeis
logo abafados. Soprados para longe, todos: como folhas sem peso, como
pedaços de papel, como fios de cabelo envelhecidos pelos anos e pelo
terror… Ah, no fundo Ernesto tivera a felicidade de não poder cursar a
faculdade na Itália. Escrevia de Grenoble dizendo que passava fome, que as
aulas no Politécnico, com o pouco francês que sabia, eram quase
ininteligíveis para ele. Mas sorte dele que passava fome e temia não se sair
bem nos exames. Eu continuei aqui, e para mim, que fiquei e que mais uma
vez escolhera por orgulho e aridez uma solidão alimentada de esperanças
vagas, nebulosas e impotentes, para mim já não havia de fato esperança,
nenhuma esperança.
Mas quem é capaz de prever?
Com efeito, por volta das onze, enquanto meu pai, com o evidente
propósito de dissipar o mau humor geral, acabava de puxar a alegre cantiga
do “Caprêt ch'avea comperà il signor Padre” (era a sua preferida, seu
“cavalo de batalha”, como dizia), a certa altura, erguendo por acaso os
olhos ao espelho à minha frente, pude notar a porta da cabine de telefone se
entreabrindo bem devagar às minhas costas. Da fresta despontou, cauteloso,
o rosto da velha Cohen. Olhava para mim, justo para mim; e quase parecia
pedir ajuda.
Levantei e me aproximei.
“O que foi?”
Acenou ao receptor do aparelho pendendo do fio e desapareceu pelo
outro lado, através da passagem que levava ao vestíbulo.
Sozinho no escuro mais absoluto, antes mesmo de encostar o receptor no
ouvido, reconheci a voz de Alberto.
“Estou ouvindo uma cantoria”, gritava estranhamente festivo. “A que
ponto vocês estão?”
“No ‘Caprêt ch'avea comperà il signor Padre'.”
“Ah, bem. Nós já acabamos. Por que você não aparece?”
“Agora?!”, exclamei espantado.
“Por que não? Aqui a conversa já está minguando, e você, com seus
famosos recursos, com certeza poderia dar uma animada.”
Soltou um risinho.
“Além disso…”, acrescentou, “lhe preparamos uma surpresa.”
“Uma surpresa? E o que poderia ser?”
“Venha e verá.”
“Quantos mistérios.”
Meu coração batia furiosamente.
“Cartas na mesa.”
“Vamos, não se faça implorar. Vou repetir: venha e verá.”
Fui imediatamente para o vestíbulo, peguei casaco, echarpe e chapéu,
pus a cabeça na cozinha, recomendando a Cohen, em voz baixa, que ela
dissesse, se por acaso me procurassem, que eu precisara sair um momento,
e dois minutos depois já estava na rua.
Esplêndida noite de lua, gélida, limpidíssima. Pelas ruas não passava
quase ninguém, a avenida Giovecca e a avenida Ercole I d'Este, lisas,
desimpedidas e de um alvor quase salino, se abriam diante de mim como
duas grandes pistas. Eu pedalava no meio da estrada, em plena luz, com as
orelhas doloridas de frio; mas no jantar eu tinha bebido várias taças de
vinho, e não sentia aquele gelo, até suava. O pneu da roda da frente mal
aflorava a neve endurecida, e o pó enxuto que saltava me enchia de um
sentimento de alegria imprudente, como se estivesse esquiando. Ia depressa,
sem medo de derrapar. Enquanto isso, pensava na surpresa que, nas
palavras de Alberto, me aguardava na casa dos Finzi-Contini. Será que
Micòl tinha voltado? Mas seria estranho. Por que ela mesma não me
telefonaria? E por que, antes do jantar, ninguém a vira no templo? Se ela
tivesse ido ao templo, eu já teria sabido. Meu pai, quando estava à mesa
fazendo o costumeiro relato dos presentes à função (fizera-o inclusive por
minha causa: para indiretamente me recriminar por não ter comparecido),
com certeza não se esqueceria de nomeá-la. Ele nomeara todos, um por um,
os Finzi-Contini e os Herrera, mas não Micòl. Será que ela havia chegado
por conta própria, no último momento, com o trem rápido das nove e
quinze?
Em um clarão ainda mais intenso de neve e de lua, embrenhei-me pelo
Barchetto del Duca. No meio do caminho, pouco antes de pegar a ponte
sobre o canal Panfilio, repentinamente parou diante de mim uma sombra
gigantesca. Era Jor. Reconheci sua figura com um átimo de atraso, quando
já estava para gritar. Mas, tão logo vi que era ele, o susto se transformou em
mim em uma sensação quase igualmente aterradora de presságio. Então era
verdade — dizia a mim mesmo —, Micòl tinha voltado. Avisada pela
campainha da rua, ela se levantara da mesa, descera ao andar térreo e agora,
tendo mandado Jor ao meu encontro, me esperava na soleira da portinha
secundária, que servia exclusivamente aos domésticos e aos íntimos. Mais
umas poucas pedaladas e então Micòl, ela mesma, figurinha escura gravada
num fundo de luz branquíssima, de central elétrica, acariciada nos ombros
pelo sopro protetor do calorífero. Mais alguns segundos e eu ouviria sua
voz, seu “oi”.
“Oi”, disse ela, parada na soleira. “Que bom que você veio.”
Eu tinha previsto tudo com muita precisão: tudo, menos que iria beijá-la.
Desci do selim, respondi: “Oi, desde quando você está aqui?”, e ela ainda
teve tempo de dizer: “Desde hoje à tarde, fiz a viagem com meus tios”, e
então… então lhe dei um beijo na boca. Aconteceu de repente. Mas como?
Eu ainda estava com o rosto escondido em seu colo morno e perfumado
(um perfume estranho, um cheiro misturado de pele infantil e talco) e já me
perguntava. Como pôde acontecer? Depois a abracei, ela esboçou uma fraca
tentativa de resistência, e por fim se deixou beijar. Foi assim? Talvez tenha
sido assim. Mas e agora?
Afastei-me lentamente. Agora ela estava ali, o rosto a vinte centímetros
do meu. Eu a observava sem dizer nada, imóvel, incrédulo, já incrédulo.
Encostada no batente da porta, os ombros cobertos por um xale de lã preto,
ela também me olhava em silêncio. Mirava meus olhos, seu olhar entrava
direto em mim, duro, seguro: com a inexorabilidade límpida de uma espada.
Fui o primeiro a desviar a vista.
“Desculpe”, murmurei.
“Desculpe por quê? Talvez eu é que tenha errado ao vir encontrá-lo. A
culpa é minha.”
Balançou a cabeça. Depois esboçou um sorriso bom, afetuoso.
“Que beleza de neve!”, fez, acenando ao jardim com a cabeça. “Imagine,
em Veneza nunca, nem um centímetro. Se soubesse que tinha nevado tanto
aqui…”
Terminou com um gesto da mão: da mão direita, que ela tirou de
debaixo do xale, e logo notei um anel.
Peguei seu pulso.
“O que é isso?”, perguntei, tocando o anel com a ponta do indicador.
Fez uma careta, como de desprezo.
“Fiquei noiva. Não sabia?”
Imediatamente caiu em uma sonora risada.
“Mas que nada, vamos…”, fez, “não vê que estou brincando? É um
anelzinho de nada. Olhe.”
Tirou-o do dedo movimentando muito os cotovelos, passou-o para mim,
e de fato era um anelzinho de nada: um fino aro de ouro com uma pequena
turquesa. Presente de muitos anos atrás, dado pela avó Regina — explicou
—, que o tinha escondido dentro de um “ovinho” de Páscoa.
Recebido de volta o anel, enfiou-o de novo no dedo e então me pegou
pela mão.
“Agora venha”, sussurrou, “porque se não, lá em cima, é capaz” — e riu
— “de ficarem preocupados.”
Durante o trajeto, sempre me segurando pela mão (nas escadas ela
parou, examinou meus lábios sob a luz e concluiu com um desenvolto
“ótimo!”), não parou de falar um momento sequer.
Sim, dizia: a história da tese tinha andado melhor do que ela podia
imaginar. Ao longo de toda a arguição, ela “botou banca” por uma boa hora,
“discursando para lá e para cá”. Ao final da sessão, pediram-lhe que se
retirasse, e ela, por trás da porta de vidro esmerilhado do Salão Nobre, pôde
escutar confortavelmente tudo o que a comissão de professores falava a seu
respeito. A maioria tendia a lhe dar o “louvor”, mas havia um, o professor
de alemão (um nazista de marca maior!), que não queria ceder aos
argumentos. Ele foi bastante explícito, o digníssimo senhor. Na opinião
dele, o louvor não podia ser concedido a ela sem causar um gravíssimo
escândalo. Mas como!, gritava. A senhorita era judia, aliás, não parecia ter
sido discriminada, e agora ainda queriam lhe conferir o louvor! Ora! Devia
dar graças por terem permitido que se formasse… O presidente da banca,
meu professor de inglês, apoiado pelos outros, rebateu com muita energia
que a faculdade era uma faculdade, que inteligência e preparo (bondade
dele!) não tinham nada que ver com grupos sanguíneos etc. etc. Porém,
quando chegou o momento de apurar o resultado, era óbvio e certo o triunfo
do nazista. E a ela não restara outra satisfação, salvo as desculpas que mais
tarde, seguindo-a pelas escadas da Ca' Foscari, o professor de inglês lhe
pedira (coitado: com o queixo tremendo e os olhos rasos…), a ela não
restara outra satisfação senão a de acolher o veredicto com a mais
impecável das saudações romanas. Ao proclamá-la doutora, o diretor da
faculdade tinha erguido o braço. Como ela deveria se comportar? Limitar-se
a uma graciosa mesura de cabeça? Ah, não!
Ria contentíssima, e eu também ria, eletrizado, contando-lhe por minha
vez, com riqueza de detalhes cômicos, minha expulsão da Biblioteca
Municipal. Mas quando perguntei a ela por que motivo tinha permanecido
mais um mês em Veneza depois da formatura (em Veneza — acrescentei —,
onde, segundo ela, nunca se sentira bem como cidade, nem contava com
nenhum amigo, mulher ou homem que fosse), nessa altura ficou séria e
retirou a mão da minha, dando-me como resposta apenas uma rápida mirada
lateral.
Uma antecipação da feliz acolhida que receberíamos na sala de jantar
nos foi dada por Perotti, à espera no vestíbulo. Assim que nos viu despontar
da escadaria, seguidos por Jor, dirigiu a nós um sorriso extraordinariamente
satisfeito, quase cúmplice. Em outra circunstância, o comportamento dele
teria me chocado, quase como uma ofensa. Mas havia alguns minutos eu
me via em um estado de espírito muito peculiar. Sufocando dentro de mim
qualquer motivo de inquietude, eu seguia em frente cheio de uma estranha
leveza, como transportado por asas invisíveis. No fundo, Perotti é um bom
homem, eu pensava. Ele também estava contente de ver a “senhorita” em
casa de novo. Era possível recriminá-lo, pobre velho? De agora em diante,
com certeza pararia de resmungar.
Aparecemos lado a lado na soleira da sala de jantar, e à nossa presença,
como eu dizia, foi dedicada a mais franca das festas. Os rostos de todos os
comensais estavam rosados, acesos; todos os olhares, apontados para nós,
expressavam simpatia e afeição. Até a sala, tal como subitamente se
mostrou a mim naquela noite, me pareceu bem mais acolhedora que de
hábito, em certo sentido também ela rosada na madeira polida de seus
móveis, nos quais a labareda alta e ondulante da lareira suscitava suaves
reflexos encarnados. Nunca a vira tão iluminada. À parte o brilho que
emanava dos cepos ardentes, sobre a mesa coberta por uma bela toalha
alvíssima (pratos e louças já tinham sido retirados, evidentemente) a grande
corola invertida do lampadário central despejava uma verdadeira cascata de
luzes.
“Venham, venham!”
“Bem-vindo!”
“Estávamos começando a achar que você tivesse desistido de vir!”
Quem pronunciou a última frase foi Alberto, mas eu podia perceber,
minha chegada o enchera de um contentamento autêntico. Todos olhavam
para mim: uns, como o professor Ermanno, virando-se completamente para
trás; outros, aproximando-se com o peito da mesa ou, ao contrário,
afastando-se dela de braços estendidos; outros, por fim, como dona Olga,
sentada sozinha lá na frente com o fogo da lareira às suas costas, avançando
o rosto e semicerrando as pálpebras. Observavam-me, examinavam-me,
esquadrinhavam-me da cabeça aos pés, e todos pareciam muito satisfeitos
comigo, com a impressão que eu causava ao lado de Micòl. Apenas
Federico Herrera, o engenheiro das ferrovias, ficou surpreso e como
perplexo, demorando a harmonizar-se com o contentamento geral. Mas foi
questão de segundos. Depois de receber informações do irmão Giulio (eu os
vi confabular rapidamente atrás da velha mãe, aproximando ambas as
cabeças calvas), logo se desdobrou em manifestações de simpatia dirigidas
a mim. Além de fazer um trejeito com a boca que lhe descobriu os grandes
incisivos superiores, ergueu o braço em um gesto, mais que de saudação, de
solidariedade, de estímulo quase esportivo.
O professor Ermanno insistiu para que eu sentasse à sua direita. Era meu
lugar habitual, ele explicou a Micòl, que enquanto isso se sentava à sua
esquerda, de frente para mim: que eu ocupava “normalmente” quando
ficava para jantar. Já Giampiero Malnate — acrescentou em seguida —, o
amigo de Alberto, sentava “do outro lado, lá”, à direita da mamãe. E Micòl
escutava com um ar curioso, entre despeitada e sardônica: como se lhe
incomodasse perceber que, em sua ausência, a vida da família tomara rumos
não exatamente previstos por ela, e ao mesmo tempo feliz de que as coisas
tivessem caminhado justo daquele jeito.
Sentei e apenas então, surpreso de ter visto mal, me dei conta de que a
toalha não estava desocupada. No meio da mesa havia uma bandeja de
prata, baixa, circular e bastante ampla, e no centro dela, contornado a dois
palmos de distância por um raio de cartõezinhos brancos, cada um dos quais
trazendo uma letra do alfabeto escrita a lápis vermelho, despontava um
solitário cálice de champanhe.
“E o que é isso?”
“Isso é a grande surpresa que eu lhe disse!”, exclamou Alberto. “É
simplesmente formidável. Basta que três ou quatro pessoas em círculo
ponham um dedo na sua borda, e imediatamente ele, para lá e para cá, uma
letra depois da outra, responde.”
“Responde?!”
“Certo! Escreve bem devagar todas as respostas. E sensatas, sabe, você
nem imagina como são sensatas!”
Havia tempos eu não via Alberto tão eufórico, tão animado.
“E de onde veio essa bela novidade?”, perguntei.
“É apenas um jogo”, interveio o professor Ermanno, pondo uma mão em
meu braço e balançando a cabeça. “Coisa que Micòl trouxe lá de Veneza.”
“Ah, então você é a responsável!”, falei, dirigindo-me a Micòl. “E essa
sua taça também lê o futuro?”
“Como não?!”, exclamou ela, rindo. “Aliás, lhe digo que a especialidade
dela é precisamente essa.”
Naquele momento entrou Dirce, trazendo no alto, equilibrado em uma só
mão, um disco de madeira escura repleto de docinhos de Páscoa (até as
bochechas de Dirce estavam rosadas, reluzentes de saúde e bom humor).
Como convidado e último a chegar, fui o primeiro a ser servido. Os
docinhos, os famosos zucarìn, feitos de massa podre misturada com bagos
de uva-passa, pareciam ser quase iguais aos que eu tinha experimentado de
mau grado meia hora antes, em casa. No entanto, os zucarìn dos Finzi-
Contini logo me pareceram muito melhores, bem mais gostosos: e eu disse
isso me dirigindo a dona Olga, que, concentrada em escolher da travessa
que Dirce lhe oferecia, não pareceu notar meu cumprimento.
Em seguida, veio Perotti com as mãos grossas de camponês agarradas às
bordas de uma segunda bandeja (esta, de peltre), trazendo uma jarra de
vinho branco e várias taças. Assim, enquanto continuávamos todos sentados
em volta da mesa, cada qual bebendo o Albana em pequenos goles e
beliscando os zucarìn, Alberto ia me explicando em detalhes as “virtudes
divinatórias do receptáculo”, que agora estava em silêncio, é verdade, mas
até pouco antes respondera com uma verve excepcional e admirável a todos
que o interrogaram.
Indaguei o que perguntaram a ele.
“Ah, de tudo um pouco.”
Tinham perguntado, por exemplo — continuou —, se mais cedo ou mais
tarde ele conseguiria se formar como engenheiro; e o cálice prontamente
rebateu com um sequíssimo “não”. Depois Micòl quis saber se ela se
casaria, e quando; e aqui o cálice foi bem menos peremptório, aliás,
bastante confuso, dando a resposta de um autêntico oráculo clássico, ou
seja, passível das interpretações mais diversas. Até sobre a quadra de tênis o
interrogaram, “pobre cálice santo!”, tentando descobrir se papai deixaria de
lado sua eterna ladainha para adiar ano a ano o início das obras de
recuperação. A esse respeito, dando prova de uma boa dose de paciência, a
“Pítia” voltou a ser bem explícita, assegurando que as desejadas melhorias
seriam realizadas “logo”, isto é, ainda no corrente ano.
Mas foi sobretudo em matéria de política que o cálice cumpriu
maravilhas. Em breve, daqui a poucos meses, sentenciara, a guerra
estouraria: uma guerra prolongada, sangrenta, dolorosa para todos, a ponto
de abalar o mundo inteiro, mas que por fim, depois de muitos anos de
batalhas incertas, terminaria com a vitória completa das forças do bem. “Do
bem?”, a essa altura indagou Micòl, que era sempre a especialista em gafes.
“E quais seriam, por favor, as forças do bem?” Ao que o cálice, deixando
todos os presentes embasbacados, replicou com uma única palavra:
“Stálin”.
“Imagine só”, exclamou Alberto em meio à gargalhada geral, “imagine
como Giampi ficaria contente se estivesse no jogo. Vou escrever para ele.”
“Ele não está em Ferrara?”
“Não. Viajou anteontem. Foi passar a Páscoa em casa.”
Alberto continuou contando por um bom tempo o que o cálice dissera, e
então o jogo foi retomado. Também pus o indicador na borda do
“receptáculo”, também fiz perguntas e aguardei as respostas. Mas agora,
sabe-se lá por quê, do oráculo já não saía nada que fosse compreensível.
Alberto, teimoso e obstinado como sempre, insistiu bastante. Nada.
De todo modo, eu me fazia de desentendido. Mais que prestar atenção
nele ou no jogo, observava sobretudo Micòl: Micòl, que de tanto em tanto,
sentindo meu olhar sobre si, descontraía o cenho carregado de quando
jogava tênis para me lançar um rápido sorriso pensativo, tranquilizador.
Eu observava seus lábios suavemente tingidos de batom. Eu mesmo os
beijara, eu, agora há pouco. Mas não seria tarde demais? Por que não o
fizera seis meses antes, quando tudo ainda seria possível, ou pelo menos
durante o inverno? Quanto tempo tínhamos perdido: eu aqui, em Ferrara, e
ela em Veneza! Eu poderia perfeitamente ter pegado o trem em um
domingo para ir encontrá-la. Havia um direto que partia de Ferrara às oito
da manhã e chegava a Veneza às dez e meia. Assim que descesse do trem,
telefonaria para ela propondo que me levasse ao Lido (assim, aliás — teria
dito a ela —, eu poderia finalmente visitar o famoso cemitério israelita de
San Niccolò). Por volta da uma, almoçaríamos algo juntos, sempre naquelas
bandas, e depois, tendo ligado para a casa dos tios a fim de amansar a
Fräulein (oh, a cara de Micòl enquanto telefonava para ela, as contorções da
boca, as caretas de palhaço!), depois iríamos passear pela praia deserta. Até
para isso haveria todo o tempo. Quanto à volta, eu teria dois trens à
disposição: o das cinco e o das sete, ambos ótimos para que nem os de casa
percebessem qualquer coisa. Ah, sim: se tivesse feito isso quando devia,
tudo teria sido bem mais fácil. Uma brincadeira.
Que horas eram? Uma e meia, talvez duas. Daqui a pouco eu precisaria
ir, e provavelmente Micòl me acompanharia na descida, até a porta do
jardim.
Talvez fosse nisso que ela também estava pensando, isso que a
inquietava. Sala após sala, corredores após corredores, caminharíamos um
ao lado do outro sem ter mais a coragem nem de nos olharmos, nem de
trocar uma palavra. Ambos temíamos a mesma coisa, eu sentia: a
despedida, o ponto cada vez mais próximo e sempre menos imaginável da
despedida, do beijo de adeus. E no entanto, caso Micòl renunciasse a me
acompanhar, deixando que Alberto ou até Perotti se incumbisse da tarefa,
com que ânimo eu poderia enfrentar o resto da noite? E o dia seguinte?
Mas talvez não; já voltava a sonhar, teimoso e desesperado: levantar-me
da mesa talvez se mostrasse inútil, desnecessário. Aquela noite não acabaria
nunca.
Parte 4
1

Rapidamente, já no dia seguinte, comecei a me dar conta de que para mim


seria muito difícil restabelecer as antigas relações com Micòl.
Depois de uma longa hesitação, arrisquei telefonar por volta das dez.
Responderam (Dirce) que os “jovens” ainda estavam no quarto, e que eu
fizesse a gentileza de chamar “por volta do meio-dia”. Para enganar a
espera, joguei-me na cama. Tinha pegado um livro ao acaso, Le Rouge et le
noir, mas, por mais que tentasse, não conseguia me concentrar. E se ao
meio-dia eu não telefonasse para ela? Mas logo mudei de ideia. De repente,
tive a impressão de que agora eu só desejava uma coisa de Micòl: sua
amizade. Em vez de desaparecer — dizia a mim mesmo —, era muito
melhor que eu agisse como se na noite anterior não tivesse acontecido nada.
Ela compreenderia. Sensibilizada por meu tato, plenamente apaziguada, em
pouco tempo me restituiria toda a sua confiança, a cara e a antiga
intimidade.
Ao meio-dia em ponto, tomei coragem e disquei o número da casa Finzi-
Contini pela segunda vez.
Tive que esperar bastante, mais que o habitual.
“Alô”, falei por fim, com a voz embargada de emoção.
“Ah, é você?”
Era mesmo a voz de Micòl.
Bocejou.
“O que foi?”
Desconcertado, vazio de argumentos, não achei nada melhor do que
dizer que eu já havia telefonado para ela, duas horas antes. Foi Dirce —
acrescentei gaguejando — que me sugeriu tornar a ligar por volta do meio-
dia.
Micòl ficou escutando. Então começou a se queixar do dia que tinha
pela frente, cheio de coisas para arrumar depois de meses e meses de
ausência, malas a desfazer, papéis de todo tipo a reordenar etc., e no final
com a perspectiva nada animadora para ela de um segundo “ágape”. O
problema de todo afastamento prolongado era esse, resmungou: para
retomar o ritmo e recuperar a rotina de sempre, era preciso empregar uma
energia ainda maior do que a já notável que tivera de gastar para “sair de
campo”.
Perguntei se ela apareceria mais tarde no templo.
Respondeu que não sabia. Talvez sim, mas também talvez não. Nesse
momento não se sentia em condições de garantir.
Desligou sem me convidar a ir visitá-los de noite, e sem estabelecer
como e quando nos reencontraríamos.
Naquele dia, evitei ligar de novo para ela e nem fui ao templo. Mas por
volta das sete, passando pela Via Mazzini e notando a Dilambda cinza dos
Finzi-Contini parada atrás da esquina da Via delle Scienze, com Perotti de
quepe e uniforme de motorista sentado ao volante, à espera, não resisti à
tentação de me postar na embocadura da Via Vittoria e aguardar. Fiquei ali
um bom tempo, sob um frio cortante. Era a hora de pico do passeio
vespertino, logo antes do jantar. Ao longo das duas calçadas da Via
Mazzini, atravancadas de neve suja e já semidesfeita, a multidão se
apressava em ambas as direções. Por fim, fui premiado. De repente, mesmo
estando longe, eu a vi despontar inesperadamente do portão do templo e
parar na soleira. Vestia um curto casaco de leopardo, estreitado na cintura
por um cinto de couro. Os cabelos louros brilhando na luz das vitrines, ela
olhava para cá e para lá como se procurasse alguém. Era a mim que
procurava? Eu estava para sair da sombra e me apresentar quando os
parentes, que na certa a seguiram à distância pelas escadas, chegaram em
grupo às suas costas. Estavam todos lá, inclusive a avó Regina. Dei meia-
volta e me afastei a passos rápidos, descendo a Via Vittoria.
No dia seguinte e nos sucessivos, insisti nos telefonemas, mas só
raramente consegui falar com ela. Quase sempre algum outro atendia, ou
Alberto, ou o professor Ermanno, ou Dirce, ou mesmo Perotti, os quais,
com exceção de Dirce, breve e passiva como uma telefonista, e
constrangedora e fria justamente por isso, me enredavam em conversas
longas e inúteis. Tanto que a certa altura eu interrompia Perotti. Mas com
Alberto e o professor a coisa era mais complicada. Eu os deixava falar. E
sempre esperava que eles mencionassem Micòl. Mas nada. Como tivessem
decidido evitar o tema e agissem de comum acordo, pai e irmão deixavam
toda a iniciativa em minhas mãos. O resultado é que muitas vezes eu
desligava sem sequer ter achado forças para pedir que a chamassem.
Então retomei as visitas: seja de manhã, com o pretexto da tese, seja à
tarde, quando ia encontrar Alberto. Nunca fazia nada para alertar Micòl de
que eu estava na casa. Tinha certeza de que ela sabia, e que mais cedo ou
mais tarde apareceria.
Quanto à tese, embora já estivesse terminada, eu ainda precisava passá-
la a limpo. Por isso, carregava comigo a máquina de escrever, cujo
tiquetaquear, assim que rompeu pela primeira vez o silêncio no salão de
bilhar, atraiu imediatamente o professor Ermanno à soleira de seu gabinete.
“Como vão as coisas? Já está recopiando?”, gritou alegre.
Veio até mim e quis ver a máquina. Tratava-se de uma portátil italiana,
uma Littoria, que meu pai me dera de presente anos antes, quando eu tinha
passado no exame de conclusão do ensino médio. O nome da marca não
provocou seu riso, como eu tinha temido. Ao contrário. Constatando que a
Itália “também” já estava produzindo máquinas de escrever que, como a
minha, pareciam funcionar perfeitamente, deu a impressão de estar
satisfeito. Eles tinham três em casa — disse-me —, uma usada por Alberto,
outra por Micòl e a terceira por ele: todas americanas, da marca
Underwood. As dos rapazes eram portáteis bem robustas, sem dúvida, mas
não tão leves como esta (enquanto isso a sopesou, segurando-a pela alça).
Já a dele era de tipo normal: de escritório, se quisermos. Mas…
Teve uma espécie de pequeno sobressalto.
Eu sabia quantas cópias ela permitia fazer de uma só vez, se quisesse?,
acrescentou com ar cúmplice. Até sete.
Então me levou ao gabinete e a mostrou para mim, erguendo não sem
esforço um estojo preto e lúgubre, talvez metálico, que até ali eu nunca
havia notado. Diante de tal peça de museu, evidentemente bem pouco usada
mesmo quando nova, sacudi a cabeça. Não, obrigado, falei. Com minha
Littoria eu só conseguiria tirar três cópias, duas das quais em papel velino.
No entanto, preferia continuar assim.
Batia nas teclas capítulo após capítulo, mas a cabeça estava em outro
lugar. E também ia para outro lugar quando, de tarde, eu descia para o
estúdio de Alberto. Malnate tinha voltado de Milão uma semana depois da
Páscoa, cheio de indignação pelo que estava ocorrendo naqueles dias (a
queda de Madri: ah, mas não ficaria assim!; a tomada da Albânia: que
vergonha, que palhaçada!). Quanto a este último fato, reproduzia o que
certos amigos dele e de Alberto lhe disseram em Milão. Mais que
promovida pelo “Duce” — contava —, a incursão albanesa tinha sido
desejada por “Ciano Galeazzo”, que, com ciúmes de Von Ribbentrop,
valeu-se daquela patifaria asquerosa para mostrar ao mundo que não ficava
atrás do alemão em matéria de diplomacia-relâmpago. Era inacreditável!
Parece que até o cardeal Schuster se manifestara a respeito, deplorando o
episódio e advertindo; e embora o tivesse dito em um círculo muito estreito,
toda a cidade ficou sabendo depois. Giampi também relatava outras coisas
de Milão: uma apresentação do Don Giovanni de Mozart no Scala, à qual
por sorte ele não tinha faltado; uma mostra de quadros de um “grupo novo”,
na Via Bagutta; e sobre Gladys, ela mesma, que encontrara por acaso na
Galleria toda coberta de vison e de braços dados com um famoso industrial
do aço — a qual, como sempre simpaticíssima, ao passar por ele lhe lançara
um discreto aceno com o dedo, que sem dúvida significava “me telefone”
ou “lhe telefono”. Pena que tivesse de voltar logo “ao batente”! Meteria
com muito gosto um par de chifres no conhecido industrial do aço, iminente
aproveitador de guerra… Falava e falava, como sempre se dirigindo
sobretudo a mim, mas, no fundo, se mostrava um pouco menos didático e
peremptório que nos meses anteriores: como se de sua escapada a Milão,
feita para reencontrar a família e os amigos, ele tivesse extraído uma nova
disposição à indulgência em relação aos outros e às suas opiniões.
Com Micòl, como já disse, eu só tinha raras conversas por telefone,
durante as quais ambos evitávamos aludir a qualquer coisa de muito íntimo.
Entretanto, alguns dias depois de tê-la esperado por mais de uma hora
diante do templo, não pude resistir à tentação de me queixar de sua frieza.
“Sabe”, falei, “vi você na noite seguinte à Páscoa.”
“Ah é? Você também estava no templo?”
“Não. Estava passando na Via Mazzini e notei o carro de vocês, mas
preferi esperar do lado de fora.”
“Que ideia.”
“Você estava muito elegante. Quer que lhe diga como estava vestida?”
“Acredito, acredito na sua palavra. Onde você estava estacionado?”
“Na calçada em frente, na esquina da Via Vittoria. A certa altura, você
começou a olhar na minha direção. Diga a verdade: me reconheceu?”
“Pare com isso. Por que eu deveria lhe dizer uma coisa em vez de outra?
Mas o que eu não entendo é por que você… Me desculpe, mas não poderia
ter mexido os pés?”
“Estava para fazer isso. Depois, quando notei que você não estava
sozinha, acabei desistindo.”
“Bela descoberta que eu não estava sozinha! Mas você é mesmo um tipo
esquisito. Podia vir falar comigo do mesmo jeito, acho.”
“Sim, claro, pensando bem. O problema é que nem sempre é fácil
pensar. De resto, você gostaria?”
“Meu Deus, quanta história!”, suspirou.
Na vez seguinte em que consegui falar com ela, quase duas semanas
mais tarde, me contou que estava doente, com um forte resfriado e um
pouco de febre. Que chatice! Por que eu nunca ia visitá-la? Eu a esquecera
totalmente.
“Você está… está na cama?”, balbuciei desconcertado, sentindo-me
vítima de uma injustiça enorme.
“É claro que estou, e ainda por cima debaixo dos lençóis. Confesse: você
se recusa a vir por medo da gripe.”
“Não, não, Micòl”, respondi, amargo. “Não me creia mais frouxo do que
sou. Só me espanto de que você me acuse de tê-la esquecido, quando ao
contrário… Não sei se você se lembra”, continuei, com a voz que ia se
apagando, “mas antes da sua partida era muito fácil nos falarmos por
telefone, porém agora, você deve admitir, se tornou uma espécie de desafio.
Sabe que estive várias vezes na sua casa nesses dias? Alguém lhe contou?”
“Sim.”
“E então! Se quisesse me ver, sabia muito bem onde me achar: de manhã
na sala de bilhar e à tarde no estúdio do seu irmão. A verdade é que você
não tinha nenhuma vontade.”
“Quanta bobagem! Nunca gostei de ir ao estúdio de Alberto,
principalmente quando ele recebe amigos. Quanto a ir vê-lo de manhã, você
não está trabalhando? Se tem uma coisa que detesto é justamente incomodar
as pessoas quando elas estão no trabalho. De todo modo, se você realmente
quiser, amanhã ou depois de amanhã passo um instante para dizer um oi.”
Na manhã do dia seguinte ela não veio, mas à tarde, enquanto eu me
encontrava com Alberto (deve ter sido por volta das sete: Malnate se
despedira bruscamente fazia uns minutos), Perotti entrou trazendo uma
mensagem dela. A “senhorita” gostaria que eu subisse um momento,
anunciou impassível, mas, tive a impressão, de mau humor. Ela se
desculpava. Ainda estava de cama, do contrário teria descido. O que eu
preferia: ir vê-la imediatamente ou ficar para jantar e subir depois? A
senhorita preferiria que fosse imediatamente, visto que estava com um
pouco de enxaqueca e queria apagar a luz bem cedo. Porém, caso eu
decidisse ficar…
“Não, por favor”, falei, olhando para Alberto. “Vou agora mesmo.”
Levantei disposto a seguir Perotti.
“Não faça cerimônias, olhe lá”, disse Alberto, acompanhando-me gentil
até a porta. “Acho que hoje à noite papai e eu vamos jantar sozinhos. Até
vovó está de cama com gripe, e mamãe não se afasta de perto dela nem por
um minuto. Então, se quiser ficar um pouco conosco e subir para ver Micòl
depois… Papai ficaria feliz.”
Respondi que não podia, que precisava encontrar uma “pessoa” às nove,
“na Piazza”, e corri atrás de Perotti, que já estava no final do corredor.
Sem trocarmos uma palavra, logo chegamos à base da longa escada
helicoidal que levava bem ao alto, até a torre-lucerna. O apartamento de
Micòl, como eu sabia, era o situado no ponto mais alto da casa, apenas meio
lance abaixo do último andar.
Sem me dar conta do elevador, encaminhei-me para subir a pé.
“Tudo bem que o senhor é jovem”, escarneceu Perotti, “mas cento e
vinte e três degraus são muita coisa. Não prefere ir de elevador? Funciona,
sabe?”
Abriu a cancela da negra gaiola externa, depois a porta corrediça da
cabina, e por fim se pôs de lado para que eu entrasse.
Atravessar a soleira da cabina, que era um caixote antediluviano, todo
em madeiras reluzentes cor de vinho, placas cintilantes de cristal adornadas
com um M, um F e um C elaboradamente entrelaçados, ser tomado na
garganta pelo cheiro pungente e meio sufocante de algo entre o mofo e a
aguarrás que impregnava o ar naquele espaço estreito, e perceber de repente
um imotivado senso de calma, de tranquilidade fatalista, de distanciamento
até irônico foi uma coisa só. Onde eu tinha sentido um cheiro desse tipo?,
perguntava a mim mesmo. Quando?
A cabina começou a erguer-se devagar pelo vão da escada. Eu farejava o
ar e, enquanto isso, olhava Perotti diante de mim, seus ombros revestidos de
riscado. O velho tinha deixado à minha completa disposição o assento
forrado de um veludo macio. Em pé a dois palmos de distância, absorto,
empertigado, com uma mão agarrada à maçaneta de latão da porta corrediça
e a outra apoiada no painel de botões, também este reluzente de um bem
polido latão, Perotti voltara a fechar-se em um silêncio carregado de todos
os sentidos possíveis. Mas foi então que me lembrei e compreendi. Perotti
se calava não tanto porque desaprovasse, como a certo ponto me passou
pela cabeça, que Micòl me recebesse em seu quarto, mas porque a
oportunidade que se lhe oferecia de manobrar o ascensor (oportunidade
talvez rara) o enchia de uma satisfação tão mais intensa quanto mais íntima,
mais secreta. O ascensor não lhe era menos caro que o coche lá no depósito.
Eram nessas coisas, nessas venerandas testemunhas de um passado que já
era também o seu, que ele desafogava o aguerrido amor pela família a que
ele servia desde que era rapaz, sua fidelidade raivosa de velho animal
doméstico.
“Ele sobe bem”, exclamei. “De que marca é?”
“É americano”, respondeu, virando o rosto pela metade e torcendo a
boca no típico esgar de desprezo atrás do qual os camponeses
frequentemente mascaram a admiração. “El gà mais de quarenta anos, mas
ainda seria capaz de levantar um regimento inteiro.”
“Deve ser um Westinghouse”, arrisquei ao acaso.
“Bem, sogio mì…”, balbuciou. “Um desses nomes aí.”
Daí ele começou a me contar como e quando o dispositivo foi “posto de
pé”. Só que a cabina, parando de chofre, obrigou-o com evidente desgosto a
interromper-se quase no mesmo instante.
2

No estado de ânimo em que eu me encontrava naquele momento, de


serenidade provisória e sem ilusões, a acolhida de Micòl me surpreendeu
como uma dádiva imprevista, imerecida. Tive o temor de que me tratasse
mal, com a mesma indiferença cruel dos últimos tempos. Mas bastou entrar
em seu quarto (depois de me deixar ali, Perotti havia fechado discretamente
a porta às minhas costas) para ver que ela me sorria amável, gentil, amiga.
Então me aproximei da cama, apoiando ambas as mãos na grade. Com
dois travesseiros sustentando as costas, Micòl estava com todo o busto para
fora dos cobertores. Vestia um pulôver verde-escuro, de gola alta e mangas
compridas. Em cima do peito, a medalhinha de ouro do shaddai cintilava
sobre a lã da malha… Quando entrei, ela estava lendo: um romance francês,
como logo percebi ao reconhecer de longe o tipo da capa, branca e
vermelha; e provavelmente foi mais a leitura do que o resfriado que lhe
estampou sob os olhos um sinal de cansaço. Não, ela estava sempre bonita
— dizia a mim mesmo então, ao contemplá-la —, talvez nunca tivesse
estado tão bonita e atraente.
Rente à cama, na altura da cabeceira, havia um carrinho de nogueira
com dois níveis, o de cima ocupado por uma lâmpada articulada acesa, pelo
telefone, por uma chaleira de cerâmica vermelha, um par de xícaras de
porcelana branca com a borda dourada e uma térmica de alpaca. Micòl se
espichou para apoiar o livro no nível inferior e então se virou, buscando o
interruptor da luz elétrica que pendia no lado oposto da cabeceira. Pobre
coitada — ia dizendo entre os dentes —, não era mesmo o caso de ficar em
um mortório como esse! E, assim que surgiu, a luz mais intensa foi saudada
por ela com um “aah” de satisfação.
Depois continuou a falar: do “esquálido” resfriado que a prendia na
cama fazia mais de quatro dias; dos comprimidos de aspirina com que, às
escondidas de papai e do tio Giulio, ferrenho inimigo dos antipiréticos (na
opinião deles, faziam mal ao coração, mas isso não era verdade!), tinha
tentado sem sucesso apressar o término da doença; o tédio das horas
intermináveis de convalescença, que lhe tiravam até a vontade de ler. Ah,
ler! Antigamente, na época das famosas gripes com febre cavalar de seus
treze anos, ela era bem capaz de devorar em poucos dias todo o Guerra e
paz ou o ciclo completo dos Três mosqueteiros de Dumas, ao passo que
agora, durante um miserável resfriado com dor de cabeça, tinha de
agradecer se conseguia “despachar” algum romancezinho francês, desses
impressos fininhos. Eu conhecia Les Enfants terribles de Cocteau?,
perguntou, retomando o livro do carrinho e o estendendo para mim. Não era
nada mau, era divertido e chique. Mas eu iria comparar com Os três
mosqueteiros, Vinte anos depois e O visconde de Bragelonne? Esses, sim, é
que eram romances! E vamos ser claros: mesmo “no aspecto do chiquê”,
eles funcionavam “muitíssimo melhor”.
De repente, ela se interrompeu.
“Ué, mas por que você continua aí parado?”, exclamou. “Meu santo
Deus, você é mesmo pior que um menino pequeno! Pegue aquela
poltroninha” (a indicava para mim), “e venha se sentar mais perto.”
Apressei-me em obedecer, mas não era o suficiente. Agora eu devia
beber alguma coisa.
“Posso lhe oferecer alguma coisa?”, dizia. “Quer um chá?”
“Não, obrigado”, respondi. “Antes do jantar não me dá vontade. Me
embrulha o estômago e tira o apetite.”
“Talvez um pouco de Skiwasser?”
“Me causa o mesmo efeito.”
“Está fervendo, sabe? Se não estou enganada, você só experimentou a
versão de verão, a gelada, no fundo uma heresia: o Himbeerwasser.”
“Não, não, obrigado.”
“Meu Deus”, se lamuriou. “Quer que eu toque a campainha e lhe mande
trazer um aperitivo? Nós não o bebemos nunca, mas acho que em algum
lugar da casa há uma garrafa de Bitter Campari. Perotti, honni soit, sabe
com certeza onde encontrar…”
Balancei a cabeça.
“Não quer mesmo nada!”, exclamou decepcionada. “Mas que tipo é
você!”
“Prefiro não.”
Falei “prefiro não”, e ela caiu na risada.
“Por que esse riso todo?”, perguntei, um tanto ofendido.
Ela me observava como se visse minhas verdadeiras feições pela
primeira vez.
“Você disse ‘prefiro não' como Bartleby. Com a mesma cara.”
“Bartleby? E quem seria esse senhor?”
“Já se vê que você não leu os contos de Melville.”
De Melville — falei — eu só conhecia Moby Dick, traduzido por Cesare
Pavese. Então ela quis que eu me levantasse, que fosse buscar na estante ali
em frente, aquela entre as duas janelas, o volume dos Piazza Tales e o
levasse para ela. Enquanto eu procurava entre os livros, ela ia me contando
o enredo do conto. Bartleby era um escrevente — ela dizia —, um
escrevente contratado por um conhecido advogado de Nova York (este, um
ótimo profissional: ativo, competente, “liberal”, “um desses americanos do
século XIX que Spencer Tracy representa tão bem”) a fim de recopiar a
papelada do escritório, alegações finais e assim por diante. Acontece que
ele, Bartleby, quando lhe davam o que escrever, trabalhava que era uma
beleza. Porém, se Spencer Tracy resolvesse delegar a ele alguma tarefinha a
mais, como anexar uma cópia ao documento original, ou dar um pulo na
tabacaria da esquina para comprar um selo, ele nada; limitava-se a sorrir
evasivo, respondendo com educada firmeza: “I prefer not to”.
“E por que motivo?”, perguntei, voltando com o livro na mão.
“Porque só queria trabalhar como escrevente. Escrevente e ponto-final.”
“Mas, me desculpe”, objetei. “Imagino que Spencer Tracy pagava um
salário regular a ele.”
“Claro”, respondeu Micòl. “Mas e daí? O salário paga o trabalho, não a
pessoa que o executa.”
“Não entendo”, insisti. “Bartleby, no escritório, sem dúvida Spencer
Tracy o contratara como copista, mas também, suponho, para que ajudasse
a tocar o barco no geral. No fundo, o que ele lhe pedia? Um a mais que,
talvez, fosse um a menos. Para alguém obrigado a ficar sentado, o pulo na
tabacaria da esquina pode representar um desvio útil, a pausa necessária:
em todo caso, uma magnífica ocasião para estender um pouco as pernas.
Não, sinto muito. A meu ver, Spencer Tracy tinha todas as razões para
pretender que seu Bartleby não ficasse ali, bancando o turrão, e cumprisse
prontamente o que lhe era pedido.”
Discutimos muito longamente sobre o pobre Bartleby e Spencer Tracy.
Ela me acusava de não compreender, de ser um banal, o conformista
inveterado de sempre. Conformista? Ela continuava zombando. Mas o fato
é que antes, com ar de comiseração, ela me comparara a Bartleby. Agora, ao
contrário, vendo que eu estava ao lado dos “empregadores abjetos”,
começara a exaltar em Bartleby o “inalienável direito de todo ser humano à
não colaboração”, isto é, à liberdade. Enfim, continuava me criticando, mas
por motivos inteiramente opostos.
A certa altura, o telefone tocou. Chamavam da cozinha para saber se e
quando deveria levar para cima a bandeja com o jantar. Micòl declarou que
por ora não estava com fome, que ela mesma ligaria mais tarde. Se aceitaria
um caldo de legumes?, respondeu com uma careta a uma pergunta precisa,
que lhe veio do outro lado da linha: Naturalmente. De todo modo, não
precisavam prepará-lo já, por favor: ela nunca suportara “comida
requentada”.
Assim que desligou, virou-se para mim. Ficou me observando com olhos
ao mesmo tempo doces e graves, e por uns segundos não disse nada.
“Como você está?”, perguntou por fim, em voz baixa.
Engoli em seco.
“Assim, assim.”
Sorri e passei os olhos ao redor.
“É estranho”, continuei. “Cada detalhe deste quarto corresponde
exatamente a como eu o tinha imaginado. Olhe lá o récamier, por exemplo.
É como se eu já o tivesse visto. Aliás, eu já o vi.”
Contei-lhe o sonho que eu tinha tido seis meses antes, na véspera de sua
partida para Veneza. Indiquei as fileiras de làttimi reluzindo na penumbra,
sobre as prateleiras das estantes: os únicos objetos ali dentro — falei —
que, no sonho, me pareceram diferentes do que eram na realidade.
Expliquei de que forma os tinha visto, e ela me escutava séria, atenta, sem
me interromper em nenhum momento.
Quando terminei, ela afagou a manga de meu paletó com uma leve
carícia. Então me ajoelhei ao lado da cama, abracei-a, beijei-a no pescoço,
nos olhos, sobre os lábios. E ela me deixava fazer, mas sempre com os
olhos fixos em mim e, com deslocamentos mínimos da cabeça, tentando
sempre me impedir de beijá-la na boca.
“Não… não”, era só o que dizia. “Pare… por favor… Seja bonzinho…
Não, não… alguém pode vir… Não.”
Inútil. Pouco a pouco, primeiro com uma perna e depois com a outra,
subi na cama. Agora me deitava sobre ela com todo o meu peso.
Continuava a beijá-la cegamente no rosto, não conseguindo senão
raramente encontrar seus lábios, sem jamais conseguir que fechasse os
olhos. Por fim, escondi o rosto em seu pescoço. E enquanto meu corpo,
quase por conta própria, se agitava convulsivo sobre o dela, imóvel sob as
cobertas como uma estátua, de golpe, em um desabamento súbito e terrível
que me atingiu por inteiro, tive a precisa sensação de que a estava perdendo,
de que a tinha perdido.
Foi ela a primeira a falar.
“Levante-se, por gentileza”, escutei-a dizendo, muito próxima ao meu
ouvido. “Assim não consigo respirar.”
Eu estava aniquilado, literalmente. Descer daquela cama me parecia uma
empresa acima de minhas forças. Mas não tinha outra escolha.
Fiquei de pé. Dei alguns passos pelo cômodo, vacilando. Por fim,
deixei-me cair de novo na poltroninha ao lado da cama e escondi o rosto
entre as mãos. Minhas faces ardiam.
“Por que você faz assim?”, disse Micòl. “Seja como for, é inútil.”
“Inútil por quê?”, perguntei, erguendo vivamente os olhos. “Pode-se
saber por quê?”
Ela me olhava, com uma sombra de sorriso vagando em torno da boca.
“Não quer ir um momento ali?”, disse, acenando à entrada do banheiro.
“Você está todo vermelho, vermelho impizà. Lave o rosto.”
“Sim, obrigado. Talvez seja melhor.”
Levantei em um impulso e me dirigi ao banheiro. Mas eis que, justo
naquele instante, a porta que dava para as escadas foi sacudida por um
baque vigoroso. Parecia que alguém estivesse tentando entrar por
arrombamento.
“O que foi?”, sussurrei.
“É Jor”, Micòl respondeu calma. “Vá abrir para ele.”
3

Dentro do espelho oval posto acima do lavabo, eu via minha cara refletida.
Examinava-a atentamente, como se não fosse minha, como se
pertencesse a outra pessoa. Embora a tivesse mergulhado várias vezes na
água fria, ainda se mostrava toda vermelha, vermelha impizàda — como
Micòl tinha dito —, com manchas mais escuras entre o nariz e o lábio
superior, em cima e ao redor das maçãs do rosto. Perscrutava com
minuciosa objetividade aquele grande rosto iluminado, ali, diante de mim,
atraído pouco a pouco pelo pulsar das artérias sob a pele da fronte e das
têmporas, pela rede cerrada de pequenas veias escarlate que, arregalando os
olhos, parecia apertar em uma espécie de assédio os discos azuis das íris,
por alguns pelos da barba mais densos no queixo e ao longo das
mandíbulas, por uma minúscula espinha quase imperceptível… Não
pensava em nada. Através da fina parede divisória, ouvia Micòl falando ao
telefone. Com quem? Com o pessoal da cozinha, era de supor, para avisar
que lhe trouxessem a sopa. Bem. A próxima despedida decerto seria bem
menos embaraçosa. Para ambos.
Entrei quando ela estava pondo o fone no gancho, e mais uma vez, não
sem espanto, compreendi que ela não tinha nada contra mim.
Espichou-se da cama para encher uma xícara de chá.
“Agora, por favor, sente-se”, falou, “e beba alguma coisa.”
Obedeci em silêncio. Bebia devagar, em sorvos lentos, sem levantar os
olhos. Deitado às minhas costas no parquete, Jor dormia. Seu pesado ronco
de mendigo bêbado enchia o quarto.
Pousei a xícara.
E foi então que Micòl começou a falar. Sem se referir minimamente ao
que acontecera pouco antes, iniciou dizendo como havia muito tempo,
talvez muito mais tempo do que eu pudesse imaginar, ela se dispusera a
conversar francamente comigo sobre a situação que aos poucos se criara
entre nós. Eu não me lembrava mais — prosseguiu — do outubro passado,
quando, para não nos molharmos, fomos parar no depósito e ali nos
sentamos dentro do coche? Pois bem, foi justamente a partir daquela vez lá
que ela se deu conta do mau rumo que nossas relações estavam tomando.
Ela entendera de imediato que entre nós nascera algo de falso, de errado, de
muito perigoso: e a culpa maior tinha sido dela, estava dispostíssima a
admitir, se a encosta continuou desmoronando ainda por um bom tempo
pela ribanceira. O que ela deveria ter feito? Simples, chamar-me de lado e
falar francamente comigo logo, sem demora. Mas que nada: em vez disso,
como uma verdadeira covarde, tomou o partido da pior solução, e fugiu.
Ah, sim, cortar a corda é fácil. Mas a que leva isso, quase sempre,
sobretudo quando se trata de “situações mórbidas”? Em noventa e nove por
cento das vezes a brasa continua viva sob as cinzas, com o esplêndido
resultado de que mais tarde, quando os dois se reveem, conversar
tranquilamente como dois amigos se torna dificílimo, praticamente
impossível.
Eu também entendia — intervim naquele ponto —, e no fim das contas
era muito grato por sua sinceridade.
Mas havia um fato que eu gostaria que ela me explicasse. Ela partira de
um dia para outro sem sequer se despedir de mim, e depois disso, assim que
voltou de Veneza, teve uma só preocupação: garantir que eu não parasse de
visitar seu irmão Alberto.
“Por que isso?”, perguntei. “Se você queria mesmo, como acaba de
dizer, que eu a esquecesse (desculpe o fraseado, não ria na minha cara!),
não podia me deixar em paz completamente? Era difícil, claro. Mas não
seria impossível que por falta de alimento, digamos, a brasa aos poucos
fosse se apagando de todo, por si.”
Ela me olhou sem dissimular um movimento de surpresa, talvez
espantada de que eu achasse forças para passar ao contra-ataque, ainda que,
feito o balanço final, com tão pouca convicção.
Eu não estava errado — assentiu então, pensativa, sacudindo a cabeça
—, não estava errado de modo nenhum. Seja como for, pedia-me que
acreditasse nela. Ao agir da maneira como agiu, não teve a mínima intenção
de pescar em águas turvas. Prezava minha amizade, aí está, de um modo até
exagerado demais. Além disso, falando sério, mais que em mim ela pensara
em Alberto, que, exceto pela presença de Giampiero Malnate, ficara aqui
sem ter ninguém com quem conversar de vez em quando. Pobre Alberto!,
suspirou. Eu não tinha mesmo percebido, frequentando-o nos meses
passados, como ele necessitava de companhia? Para alguém que, como ele,
já se habituara a passar os invernos em Milão, com teatros, cinema e todo o
resto a seu dispor, a perspectiva de permanecer bloqueado aqui, em Ferrara,
fechado em casa por meses e meses, e além disso sem ter quase nada para
fazer, não era nada alegre, eu tinha de convir. Pobre Alberto!, repetiu. Ela,
em comparação, era muito mais forte, muito mais autônoma: capaz, se
necessário, de suportar as solidões mais ferozes. De resto, tinha a impressão
de já ter dito a mim: em matéria de desolação, Veneza no inverno talvez
fosse ainda pior que Ferrara, e a casa dos tios não era menos triste que todo
o conjunto.
“Esta aqui não é nem um pouco triste”, falei, comovendo-me de repente.
“Você gosta?”, perguntou animada. “Então vou lhe confessar uma coisa
(mas depois não venha me recriminar, hein, não venha me acusar de
hipocrisia, ou até de ambiguidade!). Desejava muito que você a
conhecesse.”
“E por quê?”
“Isso eu não sei. Realmente não saberia lhe dizer por quê. Suponho que
pela mesma razão pela qual, quando era menina, no templo, tinha vontade
de puxá-lo para debaixo do taled do papai… Ah, se eu pudesse! Ainda o
vejo lá, debaixo do taled do seu pai, no banco em frente ao nosso. Que pena
você me dava! É absurdo, eu sei: no entanto, quando o espiava, sentia a
mesma pena como se você fosse um órfão, um menino sem pai nem mãe.”
Calou-se por uns instantes, os olhos fixos no teto. Então, apoiando-se
com o cotovelo em um travesseiro, retomou a fala — mas agora séria,
grave.
Disse que lamentava me magoar, que lamentava muitíssimo. Por outro
lado, era preciso que eu me convencesse: não era absolutamente o caso de
estragarmos, como estávamos arriscando fazer, as belas lembranças de
infância que tínhamos em comum. Começarmos a fazer amor, nós dois! Eu
achava realmente possível?
Indaguei por que lhe parecia tão impossível.
Por infinitas razões — respondeu —, mas sobretudo porque a ideia de
fazer amor comigo a desconcertava, embaraçava: tal como se imaginasse
fazê-lo com um irmão, sim, com Alberto. É verdade, quando menina ela
tivera uma “quedinha” por mim; e quem sabe era justamente por isso que,
agora, se sentia tão bloqueada em relação a mim. Eu… eu estava “ao lado”
dela, entendia?, não “de frente”, ao passo que o amor (assim ao menos ela o
imaginava) era coisa para gente decidida a oprimir-se reciprocamente, um
esporte cruel, feroz, bem mais cruel e feroz que o tênis!, a ser praticado sem
exclusão de golpes e sem jamais se importar, para mitigá-lo, com bondade
de alma e honestidade de propósitos.
Maudit soit à jamais le rêveur inutile
Qui voulut le premier, dans sa stupidité,
S'éprenant d'un problème insoluble et stérile
Aux choses de l'amour mêler l'honnêteté![24]

advertiu Baudelaire, que entendia do assunto. E nós? Ambos estupidamente


honestos, iguais em absolutamente tudo como duas gotas d'água (“e os
iguais não se dão combate, creia em mim!”), nós seríamos mesmo capazes
de oprimir um ao outro, de desejar de fato “nos dilacerarmos”? Não, tenha
dó. Vendo o modo como o bom Deus nos fabricou, essa história não seria
nem desejável nem possível.
Mas, mesmo admitindo por pura hipótese que fôssemos diferentes
daquilo que somos, enfim, que houvesse entre nós uma possibilidade ainda
que mínima de uma relação de tipo “cruento”, como deveríamos nos
comportar? “Noivarmos”, por acaso, com a respectiva troca de anéis, as
visitas dos pais etc.? Que história edificante! Se ainda fosse vivo e tivesse
conhecimento do caso, garanto que Israel Zangwill em pessoa teria extraído
disso um suculento apêndice para o seu Sonhadores do gueto. E que
satisfação, que “abençoada” satisfação para todos, quando aparecêssemos
juntos na escola italiana, no próximo Kippur: de rostos um tanto emaciados
por causa do jejum, mas apesar disso bonitos, dignissimamente
combinados! Com certeza não faltaria quem, ao nos ver, daria graças às leis
raciais, proclamando que, perante a realidade de tão bela união, só restaria
uma coisa a dizer: há males que vêm para o bem. E quem sabe até o
secretário federal não ficasse comovido, lá na alameda Cavour! Ainda que,
em segredo, aquela pessoa de bem que era o cônsul Bolognesi não fosse lá
um grande filossemita! Argh!
Eu me mantinha calado, opresso.
Ela aproveitou para tirar o fone do gancho e dizer à cozinha que podiam
trazer-lhe o jantar: mas daqui a uma meia horinha, não antes disso, já que
— tornou a repetir — naquela noite ela estava com “zero fome”. Só no dia
seguinte, repensando em tudo, eu recordaria de quando estava fechado no
banheiro e a escutei falar ao telefone. Então eu me enganara, disse a mim
mesmo. Ela podia estar falando com qualquer um, da casa (ou até de fora),
mas não com a cozinha.
Agora estava imerso em pensamentos bem diversos. Quando Micòl
repôs o fone no gancho, levantei a cabeça.
“Você disse que nós dois somos iguais”, falei. “Em que sentido?”
Mas claro, claro — exclamou —, no sentido de que eu, assim como ela,
não dispunha daquele gosto instintivo das coisas que caracteriza as pessoas
normais. Podia intuir perfeitamente: para mim, não menos do que para ela,
mais que o presente, o que contava era o passado, mais que a posse, o
recordar-se dela. Diante da memória, toda posse não pode parecer senão
decepcionante, banal, insuficiente… Como ela me entendia! Minha ânsia de
que o presente se tornasse “logo” o passado, para que eu pudesse amá-lo e
contemplá-lo à minha vontade, era também a sua, tal e qual. Este era o
“nosso” vício: seguir em frente com a cabeça sempre virada para trás. Não
era assim?
Era assim — eu não poderia deixar de reconhecer a mim mesmo —, era
exatamente assim. Quando é que eu a abraçara? No máximo uma hora
antes. E tudo já se tornara irreal e fabuloso, como sempre: um
acontecimento inacreditável, ou de causar medo.
“Quem sabe”, respondi. “Talvez seja mais simples. Talvez eu não lhe
agrade fisicamente. Só isso.”
“Não diga tolices”, protestou. “Não tem nada a ver.”
“Claro que tem!”
“You are fishing for compliments,[25] e sabe muito bem disso. Mas não
vou lhe dar essa satisfação, você não merece. De resto, mesmo se agora eu
tentasse lhe repetir toda a admiração que sempre tive por seus famosos
olhos glaucos (e não só pelos olhos), que resultado obteria? Você seria o
primeiro a me julgar mal, uma hipocritona infame. Pensaria: veja só, depois
do porrete a cenoura, o agradinho…”
“A menos que…”
“A menos que o quê?”
Hesitei, mas afinal me decidi.
“A menos que”, repeti, “não haja algum outro no meio.”
Fez que não com a cabeça, os olhos fixos em mim.
“Não tem coisíssima nenhuma no meio”, respondeu. “E quem deveria
ser?”
Acreditava nela. Mas estava desesperado, e queria feri-la.
“E você pergunta a mim?”, disse, fazendo um bico. “Pode ser qualquer
coisa. Quem me assegura que durante todo esse inverno, em Veneza, você
não conheceu alguém?”
Caiu na risada: uma risada alegre, fresca, cristalina.
“Que ideia”, exclamou. “Se eu só fiz labutar todo esse tempo na tese!”
“Não vá me dizer que nesses cinco meses de universidade você nunca
transou com ninguém! Vamos lá: deve ter havido algum fulano, na
faculdade, que corria atrás de você!”
Eu tinha certeza de que ela negaria. Mas estava enganado.
“É verdade, eu tive alguns paqueras”, admitiu.
Foi como se uma mão me apertasse o estômago e o torcesse.
“Muitos?”, consegui perguntar.
Deitada como estava com as costas apoiadas, os olhos fixos no teto,
ergueu levemente o braço.
“Ah… não saberia dizer”, falou. “Me deixe pensar.”
“Então foram tantos assim?”
Ela me olhou de viés com uma expressão esperta, decididamente
malandra, que eu não conhecia nela e que me aterrorizou.
“Bem… digamos três ou quatro. Aliás cinco, para ser exata… Mas todos
pequenos flertes, não me entenda mal, coisas muito inócuas… e até bastante
chatas.”
“Flertes como?”
“Você sabe… passeios pelo Lido… duas ou três idas a Torcello… uns
beijos de vez em quando… muita mão na mão… e muito cinema. Orgias de
cinema.”
“Sempre com colegas de faculdade?”
“Mais ou menos.”
“Católicos, imagino.”
“Naturalmente. Mas não por questão de princípio, é claro. Você entende:
a gente tem de se virar com o que encontra.”
“Mas com…?”
“Não. Com judìm, realmente não. Não que na faculdade não houvesse
alguns. Mas eram tão sérios e feios!”
Virou-se de novo para me olhar.
“De todo modo, neste inverno, nada”, acrescentou sorrindo: “Posso até
lhe jurar. Não fiz mais nada senão estudar e fumar, tanto que era a srta.
Blumenfeld, logo ela, que me incentivava a sair”.
Pegou de debaixo do travesseiro um maço de Lucky Strike, intacto.
“Quer um? Como vê, comecei pelos mais fortes.”
Indiquei em silêncio o cachimbo que eu trazia enfiado no bolso do
paletó.
“Você também!”, riu, em uma diversão extraordinária. “Mas esse vosso
Giampi realmente semeia discípulos!”
“Era você quem se lamentava de não ter amigos em Veneza!”, deplorei.
“Quantas mentiras. É igualzinha a todas as outras, vá.”
Balançou a cabeça, não sei se com pena de mim ou de si mesma.
“Mas nem os flertes, nem mesmo aqueles menores, são coisas que se
arranjem com amigos”, disse melancólica; “por isso mesmo, falando de
amigos, você deve reconhecer que eu lhe mentia até certo ponto. Mas você
tem razão. Também sou como todas as outras: mentirosa, traidora, infiel…
No fundo, não muito diferente de uma Adriana Trentini qualquer.”
Tinha dito “infiel” escandindo as sílabas como de costume, mas
acrescentando uma espécie de orgulho amargo. Prosseguindo, disse ainda
que, se eu havia cometido algum erro, era o de sempre tê-la superestimado
demais. Com isso, não é que ela tivesse a mínima intenção de justificar-se,
imagine. Todavia, ela sempre leu tanto “idealismo” em meus olhos que se
sentia em certa medida compelida a parecer melhor do que era na realidade.
Não restava muito a ser dito. Dali a pouco, quando Gina entrou com o
jantar (já passara das nove), fiquei de pé.
“Desculpe, mas agora tenho que ir”, falei, estendendo-lhe a mão.
“Conhece o caminho, não é? Ou prefere que Gina o acompanhe?”
“Não, não é preciso. Consigo sozinho.”
“Pegue o elevador, olhe lá.”
“Certo.”
Na soleira, virei-me. Ela já estava levando a colher aos lábios.
“Tchau”, falei.
Me sorriu.
“Tchau. Amanhã lhe telefono.”
4

Mas o pior só começou uns vinte dias depois, quando voltei de uma viagem
à França que fiz na segunda quinzena de abril.
Tinha ido a Grenoble, na França, por um motivo muito preciso. As
poucas centenas de liras mensais que podíamos mandar pelos meios legais a
meu irmão, Ernesto, só davam para pagar, como ele mesmo repetia
continuamente em suas cartas, o aluguel do quarto onde dormia, na Place
Vaucanson. Portanto, era urgente abastecê-lo com mais dinheiro. E foi meu
pai, em uma noite em que voltei para casa mais tarde que de costume (ele
me esperara acordado só para falar comigo), quem insistiu para que eu fosse
lá, levar esse adicional pessoalmente. Por que eu não aproveitava a ocasião?
Respirar umas lufadas de ar diferente “deste aqui”, ver um pouco o mundo,
me distrair: era isso que eu deveria fazer! Seria de grande proveito para
mim, tanto físico quanto moral.
E assim viajei. Parei duas horas em Turim, quatro em Chambéry, e por
fim cheguei a Grenoble. Na pensão que Ernesto frequentava para as
refeições, logo fiquei conhecendo vários estudantes italianos, todos nas
mesmíssimas condições de meu irmão e todos inscritos no Politécnico: um
Levi de Turim, um Segre de Saluzzo, um Sorani de Trieste, um Cantoni de
Mântua, um Castelnuovo de Florença, uma jovem Pincherle de Roma. Não
me liguei a ninguém. Durante os doze dias que passei ali, concentrei a
maior parte de meu tempo na Biblioteca Municipal, folheando manuscritos
de Stendhal. Fazia frio em Grenoble, chovia. As montanhas em frente ao
casario raramente deixavam entrever seus picos escondidos pela névoa e
pelas nuvens, ao passo que, à noite, testes de blecaute total desencorajavam
a sair. Ferrara me parecia muito distante: como se eu não fosse voltar nunca
mais. E Micòl? Desde que eu tinha partido, trazia constantemente nos
ouvidos a voz dela, a voz de quando me dissera: “Por que você faz assim?
Seja como for, é inútil”. Mas um dia aconteceu algo. Lendo por acaso em
um dos cadernos stendhalianos estas palavras isoladas: All lost, nothing
lost, de repente, como por milagre, me senti livre e curado. Então peguei
um cartão-postal, escrevi nele a linha de Stendhal e o enviei para ela, Micòl,
tal e qual, sem acrescentar nada, nem sequer a assinatura: que ela pensasse
o que bem quisesse. Tudo perdido, nada perdido. Como era verdade!, dizia
a mim mesmo. E respirava.
Era uma ilusão. Nos primeiros dias de maio, voltando à Itália, encontrei
a primavera em pleno desabrochar, os campos entre Alessandria e Piacenza
amplamente manchados de amarelo, as estradas rurais da Emília-Romanha
percorridas por garotas em bicicletas, de pernas e braços nus, as grandes
árvores das muralhas de Ferrara carregadas de folhas. Havia chegado em
um domingo, por volta do meio-dia. Assim que entrei em casa, tomei um
banho, almocei com a família e respondi com suficiente paciência a uma
lista infindável de perguntas. Mas o repentino frenesi que me tomou no
mesmo instante em que avistei, do trem, as torres e os campanários de
Ferrara despontarem no horizonte não me consentiu, por fim, outras
delongas. Às duas e meia eu já partia de bicicleta pela Muralha degli
Angeli, os olhos fixos na imóvel germinação vegetal do Barchetto del Duca
pouco a pouco mais próximo, à esquerda. Cada coisa voltara a ser como
antes, quase como se eu tivesse passado os últimos quinze dias dormindo.
Lá embaixo, na quadra de tênis, Micòl estava jogando uma partida com
um jovem de calças brancas, no qual não me foi difícil identificar Malnate;
e logo fui notado e reconhecido por eles, já que os dois, parando de jogar,
começaram a agitar as raquetes levantadas em grandes acenos. Mas não
estavam sós, Alberto também estava lá. Emergindo além da orla da
folhagem, eu o vi acorrer ao meio da quadra, olhar para mim e então levar
as mãos à boca. Assoviou duas, três vezes. Podia-se saber o que eu estava
fazendo no alto da Muralha?, cada um deles parecia, a seu modo, perguntar.
E por que diabos eu não entrava logo no jardim, que cara mais estranho que
eu era?! Agora eu me dirigia para a saída da avenida Ercole I d'Este, agora
pedalava rente ao muro externo, já estava me aproximando do portão, e
Alberto continuava soando seu “olifante”. “Olhe lá, não vá fugir!”, diziam
seus assovios sempre potentíssimos, mas agora em certa medida
benevolentes, de leve advertência.
“Salve!”, gritei como sempre, saindo ao ar livre da galeria de rosas
trepadeiras.
Micòl e Malnate tinham recomeçado a partida e, sem interrompê-la,
responderam juntos com outro “Salve”. Alberto se pôs de pé e veio ao meu
encontro.
“Quer nos dizer onde você se escondeu esses dias todos?”, perguntou.
“Telefonei várias vezes para sua casa, mas você nunca estava.”
“Ele foi para a França”, Micòl respondeu por mim, da quadra.
“França!”, exclamou Alberto, os olhos cheios de um espanto que me
pareceu sincero. “E para fazer o quê?”
“Fui encontrar meu irmão em Grenoble.”
“Ah, sim, é verdade, seu irmão estuda em Grenoble. E como ele está?
Como está se virando?”
Enquanto isso, sentamo-nos em duas espreguiçadeiras postas uma ao
lado da outra, de frente para a entrada lateral da quadra, em ótima posição
para poder seguir o andamento da partida. Ao contrário do outono passado,
Micòl não estava de shorts. Vestia uma saia de lã branca e pregueada, bem
old style, uma camisa também branca, de mangas arregaçadas, e estranhas
meias compridas de fio cândido, quase uma enfermeira da Cruz Vermelha.
Toda suada, o rosto vermelho, obstinava-se em lançar as bolas nos cantos
mais remotos da quadra, forçando os golpes. Mas Malnate, embora tivesse
engordado e arfasse, rebatia com afinco.
Uma bola, rolando, veio parar a pouca distância de nós. Micòl se
aproximou para pegá-la, e por um átimo meu olhar cruzou com o dela.
Vi que fez uma careta. Claramente contrariada, virou-se de modo brusco
para Malnate.
“Vamos tentar um set?”, gritou.
“Podemos tentar”, murmurou o outro. “Quantos games de vantagem
você me daria?”
“Nenhum”, rebateu Micòl, carrancuda. “Posso no máximo lhe conceder
a vantagem do serviço. Você serve, vamos!”
Jogou a bola por cima da rede e foi se posicionar para rebater o saque do
adversário.
Por alguns minutos, Alberto e eu os observamos jogar. Eu me sentia
tomado de mal-estar e infelicidade. O “você” informal de Micòl a Malnate e
o fato de ela me ignorar ostensivamente me davam, de súbito, a medida do
longo tempo em que estive distante. Quanto a Alberto, ele como sempre
não tinha olhos senão para Giampi. Mas agora, como notei, em vez de
admirá-lo e elogiá-lo, não parava um momento sequer de criticá-lo.
Lá estava um tipo — ele me confidenciava cochichando, e isso era tão
surpreendente que, embora angustiado, eu não perdia uma sílaba de suas
palavras —, lá estava um tipo que, mesmo se tivesse aulas de tênis todo
santo dia com um Nüsslein ou um Martin Plaa, nunca seria capaz de se
tornar um jogador, nem sequer passável. O que lhe faltava para progredir?
Vejamos. Pernas? Pernas não, com certeza, caso contrário não teria se
tornado aquele razoável alpinista que sem dúvida ele era. Fôlego? Fôlego
também não, pelos mesmos motivos. Força muscular? Isso ele tinha para
dar e vender, bastava um aperto de mão para notar. E então? A realidade é
que o tênis — sentenciou com extraordinária ênfase —, além de ser um
esporte, é também uma arte, e como toda forma de arte, exige um talento
particular, quem não o possui continuará sendo sempre um “perna de pau”,
pelo resto da vida.
“Mas por favor!”, gritou Malnate a certa altura. “Querem ficar um pouco
em silêncio, vocês dois?”
“Jogue, jogue”, retrucou-lhe Alberto, “e acima de tudo tente não ser
derrotado por uma mulher!”
Eu não acreditava em meus ouvidos. Será possível? Onde estava toda a
brandura de Alberto, toda a sua submissão ao amigo? Olhei atentamente
para ele. De repente seu rosto se revelou abatido, emaciado, como enrugado
por uma velhice precoce. Será que estava doente?
Fiquei tentado a lhe perguntar, mas me faltou a coragem. Em vez disso,
perguntei se aquele era o primeiro dia em que voltavam a jogar tênis, e por
que motivo não estavam presentes Bruno Lattes, Adriana Trentini e o resto
da zòzga, como no ano passado.
“Mas você está mesmo por fora de tudo!”, exclamou, descobrindo as
gengivas em uma gargalhada.
Há mais ou menos uma semana — passou imediatamente a me contar
—, constatada a beleza da estação, ele e Micòl tinham decidido dar uns dez
telefonemas com o nobre objetivo, justamente, de renovar as glórias
tenísticas do último outono. Telefonaram para Adriana Trentini, Bruno
Lattes, para o jovem Sani, o jovem Collevatti, e para vários e magníficos
exemplares de ambos os sexos das novas levas, que no ano anterior haviam
ficado de fora. Todos eles, “velhos e jovens”, tinham aceitado o convite
com louvável presteza, de modo a garantir ao dia de abertura, no sábado 1o
de maio, um sucesso francamente triunfal. Não apenas jogaram tênis:
conversaram, paqueraram etc., e até houve dança, lá na Hütte, ao som do
Philips “oportunamente instalado ali”.
Sucesso ainda maior — prosseguiu Alberto — aconteceu na segunda
session de domingo à tarde, 2 de maio. Mas já na manhã de segunda-feira, 3
de maio, os ares começaram a ficar carregados. Fazendo-se preceder por um
sibilino cartão de visita, eis que por volta das onze se apresentou em
bicicleta o advogado Tabet, sim, justamente aquele grande fascistoide do
Geremia Tabet, em pessoa, que, depois de ter se trancado com papai no
gabinete, lhe transmitiu a ordem taxativa por parte do secretário federal de
interromper imediatamente o escândalo das recepções diárias e
provocatórias, aliás privadas de qualquer conteúdo esportivo sadio, que
havia um bom tempo tinham lugar em sua residência. Com efeito, não era
admissível — fazia saber o cônsul Bolognesi por intermédio do amigo “em
comum”, Tabet —, não era admissível que o jardim da casa Finzi-Contini
estivesse aos poucos se transformando em uma espécie de clube
concorrente do Círculo de Tênis Eleonora d'Este, uma instituição, esta, tão
benemérita do esporte ferrarense. Portanto, alto lá: a fim de evitar sanções
oficiais, do tipo “temporada obrigatória em Urbisaglia por um período de
tempo a ser determinado”, de agora em diante nenhum associado do
Eleonora d'Este poderia ser distraído de seu ambiente natural.
“E seu pai”, perguntei, “como ele reagiu?”
“Como você queria que ele reagisse?”, riu Alberto. “Só lhe restou se
comportar como Don Abbondio. Inclinar-se e murmurar: ‘Sempre disposto
à obediência'. Acho que se expressou mais ou menos assim.”
“Para mim, a culpa é de Barbicinti”, gritou Micòl da quadra, a quem a
distância obviamente não impedira de acompanhar nossa conversa.
“Ninguém nunca vai me tirar da cabeça que foi ele quem correu à alameda
Cavour para se queixar. Até vejo a cena. Mas, afinal de contas, é preciso
compreendê-lo, coitadinho. Quando entra o ciúme no meio, a gente é capaz
de tudo…”
Apesar de talvez pronunciadas sem uma intenção específica, aquelas
palavras de Micòl me atingiram dolorosamente. Estive a ponto de me
levantar e ir embora.
E quem sabe eu até tivesse agido assim se justo naquele momento,
enquanto eu me virava para Alberto quase a invocar seu testemunho e sua
ajuda, mais uma vez não parasse para observar o tom cinzento de seu rosto,
a magreza sofrida de seus ombros perdidos dentro de um pulôver já amplo
demais para ele (que piscava o olho para mim, como pedindo que eu não
me aborrecesse, enquanto já partia para outro assunto: a quadra de tênis, os
trabalhos para melhorá-la “desde a base”, que, apesar de tudo, começariam
dali a uma semana…), e se naquele mesmo instante eu não tivesse visto
surgir lá longe, às margens da clareira, as escuras e dolentes figurinhas
emparelhadas do professor Ermanno e de dona Olga, vindas do passeio
vespertino no parque e rumando lentamente em nossa direção.
5

Recordo o longo período de tempo que se seguiu até os últimos dias fatais
de agosto de 1939, ou seja, até as vésperas da invasão nazista da Polônia e
da drôle de guerre, como uma espécie de lenta e progressiva descida no
funil sem fundo do Maelström. Proprietários exclusivos da quadra de tênis,
que logo foi recoberta por uma boa camada de terra vermelha de Ímola,
tínhamos sobrado só nós quatro: eu, Micòl, Alberto e Malnate (quanto a
Bruno Lattes, provavelmente perdido atrás dos rastros de Adriana Trentini,
não se podia contar com ele). Variando as composições, gastávamos tardes
inteiras em longas partidas de duplas, com Alberto, mesmo de fôlego curto
e cansado, sempre disposto, sabe-se lá por quê, a recomeçar, sem nunca se
dar ou nos dar trégua.
Por que motivo eu insistia em voltar todos os dias a um local onde, com
certeza, só poderia recolher humilhações e amargura? Não saberia dizer
exatamente. Talvez esperasse por um milagre, uma mudança brusca da
situação, ou talvez, quem sabe, eu fosse ali justamente em busca de
humilhações e amargura… Jogávamos tênis ou então, deitados à sombra em
quatro chaises longues, diante da Hütte, discutíamos sobre os mesmos
assuntos, arte e política. Porém, quando eu propunha a Micòl, que no fundo
continuara sendo gentil e às vezes até afetuosa, uma volta pelo parque, era
bem raro que ela dissesse sim. Quando concordava, nunca o fazia de bom
grado, mas toda vez estampava no rosto uma expressão entre desgostosa e
paciente, o que logo me induzia a lamentar o fato de tê-la arrastado para
longe de Alberto e Malnate.
No entanto eu não me desarmava, não me conformava. Dividido entre o
impulso de romper, de desaparecer para sempre, e seu oposto, de não
renunciar a estar lá, de não ceder de jeito nenhum, na prática eu acabava
não faltando nunca. É verdade que, às vezes, bastava um olhar mais frio que
o normal por parte de Micòl, um gesto seu de intolerância, um trejeito de
sarcasmo ou de tédio para que eu acreditasse com plena sinceridade ter me
decidido a romper. Mas quanto tempo eu conseguia ficar afastado? Três,
quatro dias no máximo. No quinto, lá estava eu de novo, ostentando a cara
risonha e desenvolta de quem regressa de uma viagem enormemente
proveitosa (ao reaparecer, eu sempre falava de viagens, viagens a Milão, a
Florença, a Roma: e ainda bem que os três pareciam acreditar naquilo!),
mas com o coração dilacerado e olhos que já recomeçavam a buscar nos de
Micòl uma resposta impossível. Era o momento dos “ataques conjugais”,
como ela os chamava. Nessas horas, quando se apresentava uma ocasião, eu
tentava até beijá-la. E ela se adaptava, nunca se mostrava deselegante.
Mas em uma noite de junho, em meados do mês, as coisas tomaram um
rumo diferente.
Estávamos sentados um ao lado do outro nos degraus externos da Hütte
e, embora já fosse umas oito e meia, ainda se conseguia enxergar. Eu olhava
Perotti à distância, ocupado em desmontar e enrolar a rede da quadra cujo
terreno, desde que chegara da Romanha a nova terra vermelha, nunca lhe
pareceu suficientemente cuidado. Malnate estava tomando uma ducha
dentro da cabana (podíamos ouvi-lo assobiar ruidosamente às nossas costas
sob o jato de água quente); Alberto se despedira pouco antes com um
melancólico “bye-bye”. Enfim, tínhamos ficado só nós dois, Micòl e eu, e
logo aproveitei para recomeçar com meu eterno, absurdo e tedioso assédio.
Insistia, como sempre, na tentativa de convencê-la de que ela estava errada
ao considerar inoportuna uma relação sentimental entre nós dois; como
sempre, eu a acusava (de má-fé) de ter mentido para mim quando, nem um
mês atrás, me garantira que entre mim e ela não havia nenhum outro. Na
minha opinião, no entanto, havia um terceiro em cena; ou pelo menos tinha
havido, em Veneza, durante o inverno.
“Vou lhe repetir pela enésima vez que você está enganado”, disse Micòl
em voz baixa, “mas sei que não adianta, sei perfeitamente que amanhã você
vai voltar à carga com as mesmas histórias. O que quer que eu lhe diga: que
trepo em segredo, que levo uma vida dupla? Se é isso mesmo que você
quer, posso até satisfazer sua vontade.”
“Não, Micòl”, respondi com a voz também baixa, porém mais exaltada.
“Posso ser tudo, menos um masoquista. Se você soubesse como minhas
aspirações são normais, terrivelmente banais! Pode rir. Se há uma coisa que
eu desejo é esta: ouvi-la jurar que o que me disse é verdade, e acreditar em
você.”
“Por mim, eu lhe juro agora mesmo. Mas você acreditaria?”
“Não.”
“Então pior para você!”
“Certo, pior para mim. No entanto, se eu pudesse realmente acreditar…”
“O que você faria? Vamos lá.”
“Oh, coisas sempre muito normais, banais, esse é o problema! Estas, por
exemplo.”
Agarrei suas mãos e comecei a cobri-las de beijos e lágrimas.
No início, ela não me interrompeu. Eu escondia o rosto contra seus
joelhos, e o cheiro de sua pele lisa e tenra, levemente salgada, me
atordoava. Beijei-a bem ali, sobre as pernas.
“Agora chega”, falou.
Escapuliu as mãos das minhas e se pôs de pé.
“Tchau, estou com frio”, continuou, “preciso entrar. A mesa já deve estar
posta, e ainda tenho que tomar banho e me vestir. Levante-se, vamos, não se
comporte feito um menino.”
“Adeus!”, gritou em seguida, virada para a Hütte. “Estou indo.”
“Adeus”, respondeu Malnate de dentro. “Obrigado.”
“Até mais. Você vem amanhã?”
“Amanhã não sei. Vamos ver.”
Separados pela bicicleta cujo guidom eu apertava espasmodicamente,
encaminhamo-nos em direção à magna domus, alta e escura no ar cheio de
pernilongos e morcegos do crepúsculo de verão. Íamos calados. Uma
carroça cheia de feno, puxada por uma parelha de bois, vinha em sentido
contrário ao nosso. Sentado em cima dela estava um dos filhos de Perotti,
que, ao cruzar por nós, tirou o chapéu e nos desejou boa-noite. Ainda que
eu acusasse Micòl sem acreditar, mesmo assim queria gritar que ela parasse
com aquela comédia, queria insultá-la, quem sabe enchê-la de tapas. Mas e
depois? O que eu conseguiria com isso?
Errei do mesmo modo.
“É inútil negar”, falei, “de todo modo, sei até quem é a pessoa.”
Tinha acabado de pronunciar aquela frase e já estava arrependido.
Ela me olhou séria, magoada.
“Pronto”, ela disse, “e agora, segundo suas previsões, eu deveria quem
sabe desafiá-lo a desembuchar o nome e o sobrenome que você tem
guardados no estômago, se é que tem. Seja como for, chega. Não quero
mais saber disso. Só sei que, a este ponto, lhe agradeceria se de agora em
diante você fosse um pouco menos assíduo… sim… que você viesse a
nossa casa com menor frequência. E lhe digo francamente: se eu não
temesse desencadear um falatório na família, como assim?, por quê? etc.,
lhe pediria que não viesse aqui nunca mais.”
“Desculpe-me”, murmurei.
“Não, não posso desculpar”, ela replicou balançando a cabeça. “Se
fizesse isso, daqui a uns dias você começaria tudo de novo.”
Acrescentou que, de uns bons tempos para cá, meu modo de me
conduzir não era mais digno: nem comigo nem com ela. Ela me dissera e
repetira mil vezes que era inútil, que eu não tentasse transferir nossas
relações para outro plano que não o da amizade e do afeto. Não adiantou.
Ao contrário, assim que eu podia, atacava-a com beijos e outras coisas,
como se não soubesse que, em situações como a nossa, não há nada mais
antipático e contraindicado. Meu Deus! Será possível que eu não conseguia
me controlar? Se anteriormente tivesse havido entre nós uma ligação física
um pouco mais profunda que aquela baseada em alguns beijos, aí sim, ela
poderia entender que eu… que ela por assim dizer entrara em minha pele.
Mas, tendo em vista as relações que sempre existiram entre nós, minha
ânsia de beijá-la, de esfregar-me nela, era mais provavelmente o sinal de
uma só coisa: de minha substancial aridez, de minha constitucional
incapacidade de querer bem de verdade. E tem mais! O que significavam
aquelas ausências repentinas, os regressos inesperados, as miradas
inquisitórias ou “trágicas”, os silêncios emburrados, as grosserias, as
insinuações mirabolantes: todo o repertório de atos irrefletidos e
embaraçosos que eu exibia incansavelmente, sem o mínimo pudor?
Paciência se eu tinha reservado os “ataques conjugais” apenas para ela, em
separado. Mas que também o irmão dela e Giampi Malnate fossem
espectadores disso, aí não, não, de jeito nenhum.
“Acho que agora você está exagerando”, falei. “Quando é que eu fiz
cena diante de Malnate e de Alberto?”
“Sempre, o tempo todo!”, rebateu.
Toda vez que eu voltava de uma semana de ausência — prosseguiu —,
declarando, sei lá, que tinha estado em Roma, e tome-lhe risada, umas
risadas nervosas, de maluco, sem a mínima razão, por acaso eu achava que
Alberto e Malnate não notavam que eu estava contando lorotas, que eu não
tinha absolutamente estado em Roma, e que meus frouxos de riso “tipo a
Cena delle beffe”[26] eram dirigidos a mim? E nas discussões, quando eu me
metia a gritar e a imprecar como um possesso, criando caso por qualquer
coisa (mais dia, menos dia, Giampi acabaria se irritando com isso, e não
sem motivos, coitado dele também!), por acaso eu pensava que os outros
não percebiam que ela era a causa, ainda que inocente, daqueles meus
ataques?
“Entendi”, falei, baixando a cabeça. “Entendi perfeitamente que você
não quer mais me ver.”
“A culpa não é minha. Você é que aos poucos foi se tornando
insuportável.”
“Mas você disse”, balbuciei depois de uma pausa, “você disse que eu
posso vir de vez em quando, aliás, que eu deveria vir. Não é?”
“É.”
“Bem… então você decide. Como devo me comportar para não cometer
erros?”
“Ah, não sei”, respondeu, dando de ombros. “Acho que, no início, você
deveria ficar pelo menos uns vinte dias afastado. Para depois recomeçar a
vir, se quiser. Mas, por favor, mesmo depois não apareça mais de duas vezes
por semana.”
“Terça e sexta, tudo bem? Como nas aulas de piano.”
“Cretino”, murmurou sorrindo, sem querer. “Você é mesmo um cretino.”
6

Se bem que, sobretudo no início, o esforço tenha sido duríssimo, eu me


impus uma espécie de questão de honra e me submeti escrupulosamente às
interdições de Micòl. Basta dizer que, tendo me formado em 29 de junho e
recebido, logo em seguida, um bilhetinho caloroso do professor Ermanno,
no qual me parabenizava e também me convidava para jantar, achei
conveniente não aceitá-lo, respondendo que lamentava, mas não poderia ir.
Escrevi que estava com uma leve amigdalite, e que meu pai me proibira de
sair à noite. Entretanto, se recusei o convite, fui induzido a isso apenas
porque dos vinte dias de separação impostos por Micòl só haviam
transcorrido dezesseis.
O esforço era duríssimo. E embora eu esperasse mais cedo ou mais tarde
ser recompensado em alguma medida, minha esperança permanecia vaga, já
que estava satisfeito em obedecer a Micòl e, por meio da obediência, me
reunir a ela e aos lugares paradisíacos dos quais ainda me via excluído. Se
antes eu sempre tinha algo a recriminar em relação a Micòl, agora mais
nada, o único culpado era eu, apenas eu. Quantos erros tinha cometido!,
dizia a mim mesmo. Repensava todas as vezes que, frequentemente com
violência, tinha conseguido beijá-la na boca, mas apenas para dar razão a
ela, que, mesmo me repelindo, me suportara por tanto tempo, e também
para me envergonhar de minha libido de sátiro, mascarada de
sentimentalismos e idealismos. Os vinte dias se passaram e me arrisquei a
reaparecer, depois me atendo disciplinadamente a duas visitas semanais.
Mas nem por isso Micòl desceu do pedestal de pureza e de superioridade
moral em que eu a pusera desde minha partida para o exílio. Ela continuou
firme ali, lá em cima. E eu me considerava afortunado só de poder
continuar admirando a imagem distante, tão bela por dentro quanto por fora.
“Como a verdade/ como ela triste e bela…”: estes dois primeiros versos de
um poema que nunca terminei, apesar de escritos muito mais tarde, em
Roma, logo depois da guerra, se referem à Micòl de agosto de 1939, à
maneira como eu a via então.
Expulso do Paraíso, aguardava em silêncio ser readmitido. Mas sofria:
certos dias, de modo atroz. E foi buscando aliviar de algum jeito o peso de
uma distância e de uma solidão muitas vezes intoleráveis que, cerca de uma
semana após minha última e desastrosa conversa com Micòl, tive a ideia de
procurar Malnate e manter contato ao menos com ele.
Sabia onde encontrá-lo. Assim como o professor Meldolesi antigamente,
ele também morava no bairro de casinhas situado logo na saída da Porta
San Benedetto, entre o Canil e a curva do Doro. Naqueles tempos, antes que
a especulação imobiliária dos últimos quinze anos a deformasse, a zona,
embora um tanto cinza e modesta, não parecia nada desagradável. Todas de
dois andares, e cada uma dotada de seu jardinzinho, as casas pertenciam no
geral a magistrados, professores, funcionários, empregados da prefeitura
etc., os quais, caso acontecesse de se passar no verão por aquelas bandas
depois das seis da tarde, não era difícil avistar para além das barras de
cancelas pontudas, concentrados, às vezes de pijama, regando, podando e
sachando animadamente. O senhorio de Malnate era justamente um juiz do
Tribunal: um siciliano de seus cinquenta anos, magérrimo, com uma vasta
cabeleira grisalha. Tão logo se apercebeu de mim, que, sem descer da
bicicleta e agarrado com ambas as mãos às lanças da cancela, olhava
curioso o interior do jardim, abandonou no chão o tubo de borracha que
usava para regar os canteiros.
“O que o senhor deseja?”, perguntou, aproximando-se.
“O dr. Malnate mora aqui?”
“Mora. Por quê?”
“Ele está em casa?”
“Quem sabe? O senhor marcou uma visita?”
“Sou amigo dele. Estava passando por aqui e pensei em parar um
momento, para cumprimentá-lo.”
Nesse meio-tempo, o juiz terminara de percorrer a dezena de metros que
nos separava. Agora eu enxergava apenas a parte superior de seu rosto
ossudo, obstinado, os olhos pretos e pungentes feito agulhas, aflorando
acima da chapa metálica que enfaixava as lanças do portão na altura de um
homem. Ele me perscrutava, desconfiado. Todavia o exame deve ter
pendido a meu favor, porque quase imediatamente a fechadura estalou e eu
pude entrar.
“Pode entrar por aquele lado”, disse por fim o juiz Lalumìa, levantando
o braço esquelético, “e siga a calçada que dá a volta atrás da casa. A
pequena porta no térreo é a do apartamento do doutor. Toque a campainha.
Pode ser que o doutor esteja. Se não estiver, minha esposa lhe abrirá a
porta: ela deve estar lá embaixo neste momento, arrumando a cama dele
para esta noite.”
Dito isso, virou-me as costas e voltou para seu tubo de borracha, sem se
preocupar comigo.
Em vez de Malnate, quem surgiu na entrada da portinha indicada pelo
juiz foi uma mulherona madura, loura e transbordante, vestindo um
penhoar.
“Boa noite”, falei. “Estou procurando o dr. Malnate.”
“Ele ainda não voltou”, respondeu muito gentil a sra. Lalumìa, “de todo
modo, não deve demorar. Quase todas as tardes, quando sai da fábrica, vai
jogar tênis na casa dos srs. Finzi-Contini, sabe?, aqueles que moram na
avenida Ercole I d'Este… Mas, como lhe disse, a qualquer momento ele
deve estar aqui. Antes do jantar”, sorriu, baixando as pálpebras absorta,
“antes do jantar ele sempre passa em casa para ver se chegou
correspondência.”
Eu disse que voltaria mais tarde e me movi para pegar a bicicleta que
deixara apoiada no muro, ao lado da porta. Mas a senhora insistia para que
eu ficasse. Quis que eu entrasse, que me acomodasse em uma poltrona, e
enquanto isso, em pé diante de mim, me falava que era ferrarense,
“ferrarense puro-sangue”, que conhecia muito bem minha família,
sobretudo minha mãe, “sua mamãe”, de quem “uns quarenta anos atrás” (ao
dizer isso, voltou a sorrir, baixando docemente as pálpebras) tinha sido
colega de classe na escola fundamental Regina Elena, aquela perto da igreja
de San Giuseppe, na Carlo Mayr. Como ela estava, minha mãe?, perguntou,
pedindo que eu não me esquecesse de mandar lembranças da parte de
Edvige, Edvige Santini, que ela com certeza saberia. Mencionou a guerra
talvez iminente, aludiu às leis raciais com um suspiro e, sacudindo a cabeça,
acrescentou que, estando havia algum tempo impedida de ter uma “criada”,
tinha ela mesma de pensar em tudo, inclusive na cozinha, e depois disso
pediu licença e me deixou sozinho.
Após sua saída, olhei ao redor. Espaçoso, mas de teto baixo, o cômodo
devia servir de dormitório, estúdio e saleta. Já passava das oito. Entrando
por uma larga janela horizontal, os raios do pôr do sol iluminavam a poalha
do ar. Observava o mobiliário à minha volta: o sofá-cama, metade cama e
metade sofá, como confirmavam o grosso cobertor de algodão em estampa
de flores vermelhas, dissimulando o colchão, e o grande travesseiro branco,
descoberto e isolado de um lado; a mesinha escura, de gosto vagamente
oriental, disposta entre o sofá-cama e a única poltrona, de couro, onde eu
estava sentado; os abajures de falso pergaminho, espalhados meio a esmo; o
aparelho telefônico de cor bege, que sobressaía do preto fúnebre de uma
escrivaninha gasta de advogado, cheia de gavetas; os quadrinhos a óleo
pendurados nas paredes. E apesar de dizer a mim mesmo que Giampi era
bem petulante ao torcer o nariz aos móveis “Novecento” de Alberto (será
possível que o moralismo dele, que o fazia censor tão rigoroso dos outros,
lhe permitisse ser tão indulgente em relação a si e às suas coisas?), de
repente, sentindo meu coração apertar inesperadamente ao pensar em Micòl
— e era como se ela própria o apertasse com sua mão —, renovei o solene
propósito de ser bom com Malnate, de não discutir nem brigar mais com
ele. Quando viesse a saber de meu ato, Micòl também levaria isso em conta.
Ao longe, soou a sirene de uma das fábricas de açúcar de
Pontelagoscuro. Imediatamente depois, um passo pesado fez o pedrisco do
jardim ranger.
A voz do juiz ressoou muito perto, do outro lado da parede.
“Olá, doutor”, dizia, com entonação marcadamente nasal, “em casa há
um amigo que o está esperando.”
“Um amigo?”, fez Malnate, frio. “E quem será?”
“Vá, vá…”, o outro encorajou-o. “Eu disse que é um amigo.”
Alto, grande, mais alto e grande que nunca talvez por efeito do teto
baixo, Malnate apareceu na soleira.
“Olhe só!”, exclamou, arregalando os olhos de espanto e ajustando os
óculos no nariz.
Aproximou-se, apertou vigorosamente minha mão, bateu várias vezes
em meu ombro, e era muito estranho para mim, que desde que nos
conhecemos sempre o percebi hostil, reencontrá-lo tão gentil, solícito,
disposto a conversar. O que está acontecendo?, eu me perguntava confuso.
Será que, também da parte dele, maturara a decisão de mudar radicalmente
a atitude quanto a mim? Vai saber. O certo é que agora, na casa dele, não
havia mais nada em sua figura do oponente áspero com quem, sob os
olhares atentos de Alberto e Micòl, tínhamos tantas vezes batalhado.
Bastou-me olhar para ele, e logo compreendi: entre nós dois, fora da casa
Finzi-Contini (e pensar que, nos últimos tempos, havíamos brigado a ponto
de nos ofendermos e quase chegarmos às vias de fato!), qualquer motivo de
divergência estava fadado a ceder, a dissolver-se como neblina ao sol.
Enquanto isso, Malnate falava: verborrágico e inacreditavelmente
cordial. Perguntou-me se, ao atravessar o jardim, eu tinha topado com o
dono da casa e se ele por acaso agira de modo gentil. Respondi que o
encontrara e descrevi a cena, rindo.
“Ainda bem.”
Continuou me informando sobre o juiz e a esposa, sem me dar tempo de
avisar que eu já tinha trocado umas palavras com ambos: ótimas pessoas —
disse —, apesar de, no geral, serem um tanto maçantes em sua pretensão
uníssona de protegê-lo contra as insídias e os perigos do “vasto mundo”.
Embora francamente antifascista (era um monarquista roxo), o senhor juiz
não queria aporrinhações, e por isso ficava sempre alerta, temendo, claro,
que ele, reconhecível até pelo cheiro como probabilíssimo futuro cliente no
Tribunal Especial (assim se expressara várias vezes), levasse às escondidas
para sua casa certos tipos perigosos: antigos eLivross, gente sob vigilância,
subversivos. Quanto à sra. Edvige, ela também estava sempre alerta.
Passava dias inteiros empoleirada atrás das frestas das persianas do
primeiro andar, acontecendo até de vir à sua porta de noite, depois que o
escutava voltar para casa. Mas suas ansiedades eram de natureza bem
diversa. Como boa ferrarense (porque a senhora, nascida Santini, era
ferrarense), ela sabia perfeitamente, garantia, como eram as mulheres da
cidade, casadas ou solteiras. Segundo ela, um jovem solitário, diplomado,
de fora, fornido de um apartamentinho com entrada independente, podia-se
dizer que estava arruinado em Ferrara: insiste, insiste, em pouco tempo as
mulheres lhe reduziriam a coluna vertebral a um verdadeiro “oss boeucc”. E
ele? Ele obviamente sempre fez o que pôde para tranquilizar a dona da casa.
Mas era evidente: apenas quando conseguisse transformá-lo em um triste
pensionista em camisa regata, calças de pijama e chinelos, com o nariz
eternamente metido nas panelas da cozinha, apenas aí “madame” Lalumìa
ficaria em paz.
“Bem, afinal de contas, por que não?”, objetei. “Acho que o escutei
esbravejar várias vezes contra restaurantes e trattorias.”
“É verdade”, admitiu com extraordinária rendição: uma rendição que
não parava de me espantar. “Por outro lado, é inútil. A liberdade é sem
dúvida uma maravilha, mas, se a certa altura não se topa com limites” (ao
dizer isso, piscou para mim), “onde se vai parar?”
Começava a ficar escuro. Malnate se levantou do sofá-cama onde se
deitara todo espichado e foi acender a luz, indo em seguida ao banheiro.
Estava sentindo a barba um pouco áspera, disse de lá. Eu lhe daria um
tempo para fazê-la? Depois sairíamos juntos.
Continuamos conversando assim: ele do banheiro, eu da sala.
Falou que naquela tarde tinha estado na casa dos Finzi-Contini, que
acabara de vir de lá. Tinham jogado por mais de duas horas: primeiro ele e
Micòl, depois ele e Alberto, e no final os três juntos. Eu gostava de partidas
à americana?
“Não muito”, respondi.
“Entendo”, assentiu. “Para você, que sabe jogar, entendo que as
americanas não façam muito sentido. Mas são divertidas.”
“Quem ganhou?”
“A americana?”
“Sim.”
“Micòl, é claro!”, ele riu. “Sorte de quem está com aquela lá. Até na
quadra é um verdadeiro míssil de guerra…”
Depois me perguntou por que de uns dias para cá eu não aparecia. O que
foi, estava viajando?
E eu, recordando o que Micòl me dissera, ou seja, que ninguém
acreditava quando, depois de cada período de ausência, eu contava que
tinha estado fora, em viagem, respondi que perdera a paciência, que
frequentemente, nos últimos tempos, tivera a impressão de não ser bem-
vindo, sobretudo por Micòl, e que por isso resolvera “manter certa
distância”.
“Mas o que você está dizendo!”, fez ele. “Na minha opinião, Micòl não
tem absolutamente nada contra a você. Tem certeza de que não está
enganado?”
“Certeza total.”
“Ah”, suspirou.
Não acrescentou nada, e também fiquei calado. Dali a pouco saiu do
banheiro, barbeado e sorridente. Percebeu que eu estava examinando os
feios quadros pendurados nas paredes.
“E aí”, perguntou, “que tal minha ratoeira? Você ainda não me deu sua
opinião.”
Sorria irônico, à sua velha maneira, esperando minha resposta na
passagem, mas ao mesmo tempo decidido a não atacar, como eu podia ver
em seus olhos.
“Eu o invejo”, respondi. “Quem dera também pudesse ter uma coisa
assim à disposição! Sempre sonhei com isso.”
Lançou-me um olhar satisfeito. Certo, concordou, ele também se dava
conta dos limites do casal Lalumìa em matéria de decoração. Mas o gosto
deles, típico da pequena burguesia (“a qual, não por acaso”, observou entre
parênteses, “constitui o nervo, a espinha dorsal da nação”), tinha de todo
modo algo de vivo, de vital, de saudável: e isso provavelmente em razão
direta de sua própria banalidade e vulgaridade.
“No fim das contas, os objetos são apenas objetos”, exclamou. “Por que
se tornar escravo deles?”
Nesse sentido, era só olhar Alberto, prosseguiu. Caramba! De tanto se
cercar de coisas refinadas, perfeitas, impecáveis, mais cedo ou mais tarde
até ele acabaria se tornando…
Encaminhou-se para a saída, sem concluir a frase.
“Como ele está?”, perguntei.
Enquanto isso, levantei-me e fui até ele, na soleira.
“Quem, Alberto?”, fez, estremecendo.
Assenti.
“Ah, pois é”, continuei. “Nos últimos tempos ele me pareceu meio
cansado, um pouco abatido. Não acha? Tenho a impressão de que não está
bem.”
Ele deu de ombros e então apagou a luz. Já do lado de fora, seguiu à
minha frente, no escuro, sem dizer uma palavra até a cancela, exceto para
responder a meio caminho ao “boa-noite” da sra. Lalumìa na janela e para
me propor, já no portão, jantar com ele no Giovanni.
7

Não, eu não me iludia. Malnate tinha perfeito conhecimento de todos os


motivos, sem excluir nenhum (eu me dava conta disso perfeitamente, já
naquela época), que me mantinham longe da casa Finzi-Contini. Todavia, o
assunto nunca vinha à tona em nossas conversas. Sobre o tema Finzi-
Contini, éramos ambos de uma discrição e de uma delicadeza excepcionais,
sendo que eu estava especialmente grato por ele fingir acreditar no que lhe
disse a respeito na primeira noite: grato por se prestar ao meu jogo, enfim, e
por me secundar.
Víamo-nos quase todas as noites. Desde os primeiros dias de julho, o
calor, que de repente se tornara sufocante, tinha esvaziado a cidade. Na
maioria das vezes era eu quem ia encontrá-lo, entre as sete e as oito.
Quando não o encontrava em casa, esperava-o pacientemente, às vezes
entretido com as histórias da sra. Edvige. Mas quase sempre lá estava ele,
sozinho, deitado no sofá-cama em camisa regata, as mãos cruzadas atrás da
nuca e os olhos fixos no teto, ou então sentado, escrevendo uma carta para a
mãe, a quem era unido por um afeto profundo, um pouco exagerado. Assim
que notava minha presença, apressava-se em ir ao banheiro para se barbear,
e depois saíamos juntos, estando implícito que também jantaríamos juntos.
Íamos ao costumeiro Giovanni e ocupávamos uma mesa do lado de fora,
em frente às torres do Castelo que se erguiam sobre nossa cabeça como
paredes dolomíticas, e, assim como aquelas, banhadas nos picos pela última
luz do dia; ou então ao Voltini, uma trattoria fora da Porta Reno, de cujas
mesas, alinhadas sob um leve pórtico voltado para o sul e então aberto ao
campo, era possível estender o olhar até os imensos prados do aeroclube.
Contudo, nas noites mais quentes, em vez de nos dirigirmos para a cidade,
dela nos afastávamos indo pela bela estrada de Pontelagoscuro,
atravessávamos a ponte de ferro sobre o Pó e, pedalando lado a lado sobre a
barragem, com o rio à direita e a campina vêneta à esquerda, alcançávamos
depois de mais quinze minutos, a meio caminho entre Pontelagoscuro e
Polesella, o isolado casarão da Dogana Vecchia, famoso pela enguia frita.
Comíamos sempre muito lentamente. Ficávamos à mesa até tarde, bebendo
lambrusco, vinho do Bosco e fumando cachimbo. Mas no caso de jantarmos
na cidade, a certa altura deixávamos os guardanapos na mesa, pagávamos
cada um a própria conta e então, montados em nossas bicicletas,
começávamos a passear ao longo da Giovecca, para cima e para baixo do
Castelo à Prospettiva, ou pela alameda Cavour, do Castelo até a estação.
Depois era ele quem, por volta da meia-noite, se oferecia para me
acompanhar até minha casa. Dava uma olhada no relógio, anunciava que
estava na hora de ir dormir (embora para eles, “técnicos”, a sirene da
fábrica só tocasse às oito — dizia com frequência, solene —, era preciso
levantar da cama sempre às quinze para a sete, “no mínimo”…), e apesar de
eu às vezes insistir para acompanhá-lo, não havia jeito de ele aceitar. A
última imagem que me restava dele era invariavelmente a mesma: parado
no meio da rua sobre a bicicleta, ficava ali, esperando que eu fechasse bem
o portão na sua frente.
Depois de jantar, em duas ou três noites fomos parar nos bastiões de
Porta Reno, onde naquele verão, bem no espaço aberto entre o Gasômetro,
de um lado, e a Piazza Travaglio, de outro, tinham montado um parque de
diversões. Tratava-se de um parquinho reles, meia dúzia de barracas de tiro
ao alvo reunidas em torno do cogumelo de lona cinza e remendada de um
pequeno circo equestre. O lugar me atraía. Atraía-me e comovia-me a
melancólica sociedade de prostitutas pobres, da garotada, de soldados, de
miseráveis pederastas da periferia que habitualmente o frequentavam. Eu
citava em voz baixa Apollinaire, citava Ungaretti. E embora Malnate me
acusasse de “crepuscularismo decadente” com o ar de quem foi arrastado a
contragosto, no fundo ele também gostava, depois de termos jantado no
Voltini, de ir até lá e, naquela praça poeirenta, deter-se para comer uma fatia
de melancia perto da lâmpada de acetileno de um ambulante, ou de passar
uns vinte minutos no tiro ao alvo. Giampi era um ótimo atirador. Alto e
corpulento, elegante na bem passada jaqueta saariana de tecido cáqui que eu
o via vestir desde o início do verão, calmíssimo ao mirar através das grossas
lentes na armação de tartaruga, ele decerto atingira a fantasia da garota
toscana maquiada e desbocada — uma espécie de rainha do lugar —, em
cuja barraca, assim que despontávamos da escadinha de pedra que conduzia
da Piazza Travaglio ao topo do bastião, éramos imperiosamente convidados
a parar. Enquanto Malnate atirava, ela, a garota, não o poupava de elogios
sarcásticos com sentido obsceno, aos quais ele reagia com muito senso de
espírito, aquela tranquila desenvoltura típica de quem passou várias horas
da primeira juventude em prostíbulos.
Já em uma noite particularmente abafada de agosto, fomos parar em uma
arena ao ar livre, onde, lembro-me bem, estavam passando um filme alemão
com Kristina Söderbaum. Entramos com a sessão já iniciada, e sem dar
atenção a Malnate, que me repetia para ficar quieto e parar de bausciare, já
que, de todo modo, não valia a pena, antes mesmo de nos sentarmos
comecei a cochichar comentários irônicos. De fato, levantando-se de
repente contra o fundo leitoso da tela, um sujeito da fileira em frente me
intimou, ameaçador, a fazer silêncio. Rebati com um insulto, o outro gritou:
“Pra fora, seu judeu safado!”, e ao mesmo tempo se lançou sobre mim,
agarrando-me pelo pescoço. Minha sorte foi que Malnate, sem dizer uma
palavra, rapidamente empurrou meu agressor de volta à sua cadeira e me
levou embora.
“Você é um verdadeiro cretino”, gritou para mim, depois de termos
pegado às pressas nossas bicicletas no estacionamento. “E agora vá!,
pedale, e reze a seu Deus para que aquele canalha lá tenha adivinhado por
acaso.”
Assim passávamos nossas noites, uma após outra, sempre com a
sensação de nos congratularmos porque agora, ao contrário do que ocorria
quando Alberto estava presente, conseguíamos conversar sem nos atracar, e
por isso mesmo sem nunca cogitar a possibilidade de que ele também,
Alberto, convocado por um simples telefonema, pudesse sair de casa e vir
passear com a gente.
A essa altura, já havíamos deixado de lado os temas políticos. Ambos
plenamente convictos de que França e Inglaterra, cujas missões
diplomáticas dialogavam havia tempos com Moscou, acabariam se
entendendo com a União Soviética (o acordo que considerávamos
inevitável teria salvado tanto a independência da Polônia quanto a paz,
provocando por tabela, além do fracasso do Pacto de Aço, pelo menos a
queda de Mussolini), agora era de literatura e arte que quase sempre
conversávamos. Mesmo se mantendo moderado no tom, sem nunca
extrapolar para a polêmica (de resto, sobre arte — ele afirmava — entendia
até certo ponto, não era seu ofício), Malnate se mantinha inflexível ao negar
em bloco o que eu mais amava: tanto Eliot e Montale quanto García Lorca e
Iessiênin. Ele me ouvia recitar, comovido, “Não me peçam a palavra que
esquadre de todo lado” ou trechos do Pranto por Ignacio Sánchez Mejías, e
toda vez eu esperava entusiasmá-lo e convertê-lo ao meu gosto, mas em
vão. Balançando a cabeça, declarava que não, que para ele o “aquilo que
não somos, o que não queremos” de Montale o deixava frio, indiferente, já
que a verdadeira poesia não podia se fundar na negação (e que eu deixasse
Leopardi fora disso, por favor! Leopardi era outra coisa, além do mais tinha
escrito A giesta, era bom não me esquecer…), mas, ao contrário, na
afirmação, no sim que o Poeta em última análise não pode deixar de opor à
Natureza e à Morte. Tampouco os quadros de Morandi o convenciam, dizia:
coisas finas, sem dúvida delicadas, mas na opinião dele muito “subjetivas”
e “desancoradas”. O medo da realidade, o medo de errar: eis o que as
naturezas-mortas de Morandi no fundo exprimiam, seus famosos quadros
de garrafas e de florzinhas; e o medo sempre foi péssimo conselheiro,
inclusive na arte… Diante disso, não sem execrá-lo em segredo, eu nunca
encontrara um argumento para contrapor. Só a ideia de que no dia seguinte
ele, o sortudo, seguramente veria Alberto e Micòl, e talvez até lhes falasse
de mim, bastava para que eu desistisse de qualquer veleidade de rebelião,
forçando-me para dentro de minha casca.
Apesar disso, eu mordia o freio.
“Ora, mas no fim das contas você também”, objetei uma noite, “você
também pratica em relação à literatura contemporânea, a única literatura
viva, aquela mesma negação radical que, por outro lado, você não suporta
quando ela, nossa literatura, a exercita diante da vida. Acha isso justo? Seus
poetas ideais continuam sendo Victor Hugo e Carducci. Admita.”
“Por que não?”, respondeu. “A meu ver, as poesias republicanas de
Carducci, aquelas anteriores à conversão política dele, ou melhor, ao seu
infantilismo neoclássico e monárquico, estão todas por redescobrir. Você as
leu recentemente? Experimente, vale a pena.”
Rebati que não as tinha relido, que não tinha nenhuma vontade de relê-
las. Para mim, essas também continuavam sendo “fanfarronices”, cheias de
retórica patrioteira. Incompreensíveis, no limite. E talvez engraçadas
justamente por isso: porque incompreensíveis e, no fim das contas,
“surreais”.
Porém, em outra noite, não tanto porque eu quisesse me mostrar, mas
movido quem sabe por uma vaga necessidade de me confessar, de esvaziar
o fardo cuja pressão sentia dentro de mim havia tempos, cedi à tentação de
recitar para ele um poema meu. Tinha escrito no trem, voltando de Bolonha
depois da defesa da tese, e, embora por algumas semanas eu continuasse
acreditando que ele refletia fielmente minha profunda desolação naqueles
dias, o horror que então sentia por mim mesmo, agora, à medida que o dizia
para Malnate, enxergava com clareza, mais com incômodo que desânimo,
toda a sua falsidade, sua literariedade. Caminhávamos pela Giovecca, lá na
ponta, nas bandas da Prospettiva, além da qual a escuridão dos campos
parecia densa, uma espécie de muralha negra. Eu declamava lentamente,
tentando pôr em evidência o ritmo, carregando a voz de páthos na tentativa
de passar por boa minha pobre mercadoria avariada, mas cada vez mais
convencido, enquanto me aproximava do final, do fracasso inevitável de
minha exibição. No entanto, enganava-me. Assim que terminei, Malnate
olhou para mim com extraordinária seriedade e então, para meu espanto, me
garantiu que gostara muito do poema, muitíssimo. Pediu que o recitasse
uma segunda vez (coisa que fiz imediatamente). Depois disso, começou a
falar que, em seu modesto parecer, minha “lírica” valia, sozinha, bem mais
que todos os “penosos esforços de Montale e Ungaretti juntos”. Sentia-se
neles uma dor verdadeira, um “engajamento moral” absolutamente novo,
autêntico. Estava sendo sincero? Pelo menos naquela ocasião, eu diria sem
dúvida que sim. O certo é que, a partir daquela noite, ele passou a repetir
continuamente meus versos em voz alta, afirmando como naquelas poucas
linhas era possível entrever uma “abertura” para uma poesia que, como a
italiana contemporânea, estava encalhada nos tristes atoleiros do
caligrafismo e do hermetismo. Quanto a mim, não me envergonho de
confessar que, enquanto escutava o que ele dizia, agora o poema me
desagradava muito menos. Diante de seus elogios hiperbólicos, eu me
limitava a arriscar de vez em quando algum frágil protesto, o coração cheio
de uma gratidão e de uma esperança bem mais comoventes que abjetas,
pensando agora.
Seja como for, no que diz respeito aos gostos de Malnate em matéria de
poesia, sinto aqui a obrigação de acrescentar que nem Carducci nem Victor
Hugo eram de fato seus autores preferidos. Como antifascista, como
marxista, ele respeitava Carducci e Victor Hugo. Mas, sendo um bom
milanês, sua grande paixão era Carlo Porta: um poeta do qual eu, antes de
então, sempre gostara menos que de Giuseppe Belli; mas não, eu estava
enganado — sustentava Malnate —, eu ia querer comparar a fúnebre e
“contrarreformista” monotonia de Belli com a humanidade variada e
calorosa de Porta?
Ele podia recitar de cor centenas de versos do milanês:

Bravo, meu Baltazar! Bravo, garoto!


Já era hora de vir me encontrar:
Sabe, seu safado porco, que aos poucos
faz quase um mês que não me vem trepar?
Ah, Cristo! Que mãos frias de rachar![27]

e dá-lhe a declamar com sua voz grave e meio rouca, milanesa, todas as
noites em que, passeando, nos aproximávamos da Via Sacca, da Via
Colomba, ou subíamos bem lentamente a Via delle Volte, espiando através
das portas entreabertas os interiores iluminados dos puteiros. Sabia “La
ninetta del Verzee” por inteiro, e passei a conhecê-la por causa dele.
Ameaçando-me com o dedo, piscando o olho para mim em uma
expressão marota e alusiva (alusiva a algum episódio remoto de sua
adolescência em Milão, eu supunha), ele muitas vezes sussurrava:

Não, Tina, não sou capaz


de te trair: fique em paz.
Não me meta nesse saco
com rufiões e outros porcos…[28]

etc. Ou então, em um tom sofrido, amargo, atacava:

Franceses que se vão da Lombardia…[29]

sublinhando cada verso do soneto com acenos, referindo-se naturalmente


não aos franceses de Napoleão, mas aos fascistas.
Também citava com igual entusiasmo e comoção alguns poemas de
Ragazzoni e de Delio Tessa; sobretudo de Tessa, que no entanto — como
tive de fazê-lo notar certa vez — a meu ver não podia ser qualificado de
poeta “clássico”, transbordante que era de sensibilidade crepuscular e
decadente. Mas a verdade é que qualquer coisa que tivesse a ver com Milão
e seu dialeto sempre o predispunha a uma extraordinária indulgência. De
Milão ele aceitava tudo, sorria benevolente de tudo. Em Milão, até o
decadentismo literário, até o fascismo tinham algo de positivo.
Declamava:

Pense e faça, escute e veja


tanto se vive e se aprende;
eu, se renascer, que seja
então gato de porteira!

Por exemplo, em Rugabella,


nasço gato de seu Pinho…
… trouxinhas de bons miúdos,
bucho e fígado, gorrinho

do dono onde durmo em cima…[30]

e ria sozinho, ria cheio de ternura e de saudade.


É claro que eu nem tudo entendia de milanês, e quando não entendia,
perguntava.
“Desculpe, Giampi”, perguntei certa noite, “mas o que é Rugabella? Já
estive em Milão, claro, mas não conheço tanto a cidade. Acredita? Acho
que é o lugar onde me localizo pior: pior que em Veneza.”
“Como assim?!”, reagiu com estranho ímpeto. “É uma cidade tão clara,
tão racional! Não entendo como você tem a coragem de compará-la a essa
espécie oprimente de latrina molhada que é Veneza!”
Mas depois, logo se acalmando, me explicou que Rugabella era uma rua:
a velha ruazinha, não muito longe do Duomo, onde ele tinha nascido e onde
seus pais ainda moravam; e onde dali a poucos meses, talvez antes do fim
do ano (supondo que na sede central, que fica em Milão, eles não tivessem
jogado seu pedido de transferência no lixo!), ele esperava voltar a viver
também. Porque vamos ser claros, enfatizou: Ferrara era uma grande e bela
cidadezinha, viva, interessante sob vários aspectos, inclusive político. Aliás,
ele considerava uma experiência importante, para não dizer fundamental, os
dois anos que passara ali. Mas a casa é sempre a casa, nossa mãe é sempre
nossa mãe, e o céu da Lombardia, “tão bonito quando é bonito”, não havia
outro céu no mundo, pelo menos para ele, que pudesse se comparar.
8

Como já disse, passado o vigésimo dia de exílio, recomecei a frequentar a


casa Finzi-Contini todas as terças e sextas. Porém, não sabendo como
passar meus domingos (se quisesse reatar relações com os antigos colegas
de liceu, Nino Bottecchiari e Otello Forti, por exemplo, ou com os mais
recentes, da universidade, que conheci nos últimos anos em Bolonha, não
teria sido possível: todos haviam saído em férias), a certa altura comecei a
ir lá aos domingos também. E Micòl deixou para lá, sem nunca pretender
que eu respeitasse nosso acordo literalmente.
Agora éramos muito respeitosos um com o outro, até demais. Ambos
conscientes da precariedade do equilíbrio que tínhamos alcançado,
estávamos atentos a não rompê-lo, a nos manter em uma zona neutra, da
qual se excluíam tanto as friezas excessivas quanto as confidências
exageradas. Se Alberto queria jogar — o que era cada vez mais raro —, eu
me prontificava de bom grado a compor a dupla. Mas na maioria das vezes
eu nem me trocava. Preferia servir de árbitro às intermináveis e ferrenhas
partidas entre Micòl e Malnate, ou então, sentado sob o guarda-sol ao lado
da quadra, fazer companhia a Alberto.
A saúde dele me preocupava, me angustiava. Não parava de pensar
nisso. Observava o rosto dele, que o emagrecimento fazia parecer mais
comprido, surpreendia-me ao notar sua respiração difícil pelo pescoço
engrossado, inchado, e me dava um aperto no coração. Eu me sentia
oprimido por uma misteriosa sensação de remorso. Havia momentos em
que daria tudo para vê-lo revigorado.
“Por que você não dá uma viajada?”, perguntei um dia.
Ele se virou para me examinar.
“Está me achando pra baixo?”
“Bem, pra baixo eu não diria… Talvez um pouco mais magro, isso sim.
Não se incomoda com esse calor?”
“Muito.”
Levantou os braços para acompanhar uma longa inspiração.
“De uns tempos para cá, meu querido, tenho puxado o fôlego com os
dentes. Dar uma viajada… Mas viajar para onde?”
“Acho que a montanha lhe faria bem. O que seu tio acha? Teve uma
consulta com ele?”
“Como não? Tio Giulio me garantiu que não tenho absolutamente nada;
e deve ser verdade, não acha? Do contrário, teria me receitado algum
tratamento, com certeza… Aliás, segundo meu tio, posso perfeitamente
jogar tênis quando quiser. O que mais? Na certa é o calor que está me
deixando assim abatido. De fato, não como quase nada, o que é uma
bobagem.”
“Então, já que se trata do calor, por que não vai passar uns quinze dias
na montanha?”
“Na montanha em agosto? Faça-me o favor. Além disso…” (e aqui
sorriu), “… além disso, Juden sind em todo canto unerwünscht.[31] Já se
esqueceu?”
“Conversa fiada. Em San Martino di Castrozza, por exemplo, não. Ainda
é possível ir a San Martino, e também ao Lido de Veneza, aos Alberoni.
Estava no Corriere della Sera da semana passada.”
“Que tristeza. Passar as férias de agosto num hotel, esbarrando em
bandos esportivos de Levis e de Cohanins, não me anima nem um pouco,
me desculpe. Prefiro aguentar firme até setembro.”
Na noite seguinte, aproveitando o novo clima de intimidade que se criara
entre mim e Malnate depois que tomei coragem de expor meus versos à
avaliação dele, decidi falar sobre a saúde de Alberto. Não havia dúvida,
comecei: a meu ver, Alberto tinha alguma coisa. Não percebeu como ele
respira com dificuldade? E não achava pelo menos estranho que ninguém
na casa dele, nem o tio nem o pai, tivesse tido até agora a mínima iniciativa
para tratá-lo? O tio médico, aquele de Veneza, não acreditava em remédios,
e tudo bem. Mas e os outros, inclusive a irmã? Todos calmos, sorridentes,
seráficos: ninguém movia uma palha.
Malnate ficou me ouvindo em silêncio.
“Não queria que você se alarmasse demais”, disse por fim, com a voz
levemente embaraçada. “Acha mesmo que ele está tão abatido assim?”
“Meu Deus do céu!”, reagi. “Ele deve ter perdido uns dez quilos em dois
meses!”
“Calma, calma! Olhe que dez quilos são muita coisa!”
“Se não forem dez, devem ser sete ou oito. Pelo menos.”
Ficou calado, pensativo. Então admitiu que, de uns tempos para cá, ele
também tinha notado que Alberto não estava bem. Por outro lado —
acrescentou —, será que não estávamos nos preocupando à toa? Se os
parentes mais próximos não faziam nada, se o rosto do professor Ermanno
não traía a mínima inquietação que fosse, bem… Sim, o professor
Ermanno: caso Alberto estivesse realmente mal, era de imaginar que ele
nunca teria pensado em trazer aqueles dois caminhões de terra vermelha lá
de Ímola! E ainda sobre a quadra de tênis, eu estava sabendo que dali a uns
dias começariam as obras para alargar os famosos outs?
Assim, partindo de Alberto e de sua suposta doença, sem perceber
fomos introduzindo em nossas conversas noturnas o assunto até então tabu
dos Finzi-Contini. Ambos tínhamos consciência de que caminhávamos
sobre um terreno minado, e justamente por isso sempre avançávamos com
muita cautela, atentíssimos para não perder o equilíbrio. Mas é preciso dizer
que toda vez que se falava deles como família, como “instituição” (não sei
exatamente quem usou primeiro esse termo: só me lembro de que gostamos,
de que nos fez rir), Malnate não os poupava de críticas, nem mesmo as mais
duras. Que gente impossível!, dizia. Que nó curioso e absurdo de
contradições insanáveis eles representavam “socialmente”! Às vezes,
pensando nos milhares de hectares de terras que possuíam, pensando nos
milhares de trabalhadores braçais que capinavam suas terras disciplinados,
escravos submissos do regime corporativo, às vezes quase preferia a eles os
truculentos latifundiários “normais”, aqueles mesmos que em 1920, 1921,
1922, decididos a pôr de pé e alimentar as esquadras de torturadores e
corruptos em camisas-negras, não hesitaram um momento sequer em
engordar suas bolsas. Esses “pelo menos” eram fascistas. Quando se
apresentasse a ocasião, certamente não haveria dúvidas sobre como tratá-
los. Mas e os Finzi-Contini?
E balançava a cabeça com o ar de quem, se quisesse, até poderia
entender, mas não queria, não estava a fim: as sutilezas, as complexidades,
as distinções infinitesimais, por mais interessantes e divertidas que sejam —
a certo ponto, chega —, elas também precisam acabar.
Uma noite, depois do feriado de Ferragosto, já tarde, paramos para beber
vinho em uma tasca da Via Gorgadello, ao lado da catedral, a poucos passos
de distância de onde até um ano e meio antes havia sido o ambulatório
médico do dr. Fadigati, o famoso otorrino. Entre um copo e outro, contei a
Malnate a história do doutor, de quem, nos cinco meses anteriores ao seu
suicídio “por amor”, me tornei muito amigo, o último que eu tinha mantido
na cidade (eu disse “por amor”, e Malnate não conseguiu conter um risinho
sarcástico, de tipo expressamente cafajeste). Entre falar de Fadigati e do
homossexualismo em geral, o passo foi breve. Sobre esse assunto, Malnate
tinha ideias muito simples: as de um autêntico gói, eu pensava comigo. Para
ele, os pederastas eram apenas uns “infelizes”, pobres “obcecados” que ele
só cogitava tratar sob a ótica da medicina ou da prevenção social. Eu, ao
contrário, sustentava que o amor justifica e santifica tudo, inclusive a
pederastia; e mais: que quando o amor é puro, isto é, totalmente
desinteressado, ele é sempre anormal, antissocial etc., justamente como a
arte — acrescentei —, que quando é pura, e portanto inútil, desagrada aos
padres de todas as religiões, inclusive a socialista. Deixando de lado nossos
belos propósitos de moderação, daquela vez entramos em uma discussão
implacável, quase como nos velhos tempos, até que, ambos percebendo que
já estávamos meio bêbados, de comum acordo caímos em uma sonora
gargalhada. Depois disso, ao sairmos da tasca, atravessamos o Listone
semideserto, subimos a San Romano e por fim nos vimos caminhando sem
rumo preciso pela Via delle Volte.
Sem calçada, o pavimento pedregoso cheio de buracos, a rua parecia até
mais escura que de hábito. Enquanto avançávamos quase tateando, guiando-
nos apenas pela luz que vinha dos portõezinhos entreabertos dos bordéis,
Malnate como sempre passou a recitar alguma estrofe de Porta: não era da
“Ninetta”, lembro-me bem, mas uma do “Marchionn di gamb avert”.
Declamava a meia-voz, no tom amargo e doloroso que costumava
assumir quando escolhia o “Lament”:

Por fim o alvorecer tão vasculhado


despontou igualmente em fios dourados…[32]

mas então se calou de repente.


“O que você acha”, perguntou, acenando com o queixo para a porta de
um puteiro, “se entrarmos para dar uma olhada?”
A proposta não tinha nada de excepcional. No entanto, tendo partido
dele, com quem até ali eu só tivera conversas sérias, a coisa me deixou
surpreso e constrangido.
“Não é dos melhores”, respondi. “Deve ser desses de menos de dez
liras… De todo modo, vamos entrar.”
Era tarde, quase uma da manhã, e tivemos uma acolhida não
propriamente calorosa. Começou com uma velha, uma espécie de
camponesa sentada em uma cadeira de palha atrás do batente do portão,
criando problema porque não queria as bicicletas. Depois veio a cafetina,
uma mulherzinha de idade indefinível, seca, pálida, de óculos, vestida de
preto como uma freira, que também se queixou das bicicletas e do horário.
Em seguida, uma criada que estava limpando os cômodos carregada de
vassouras e espanadores, com a alça da lixeira debaixo do braço, nos lançou
um olhar cheio de desprezo enquanto atravessávamos a saleta de entrada.
Mas nem mesmo as garotas nos deram bola, todas recolhidas conversando
sossegadamente em uma sala com um grupinho de frequentadores assíduos.
Nenhuma delas veio até nós. E durante uns bons dez minutos Malnate e eu
ficamos sentados na frente um do outro, em uma saleta separada para onde
a cafetina nos conduzira, sem trocarmos praticamente uma palavra (pelas
paredes nos chegavam os risos das meninas, os acessos de tosse e as vozes
sonolentas de seus clientes-amigos), até que uma lourinha de ar fino, com
os cabelos recolhidos na nuca e vestida sobriamente como uma colegial de
boa família, resolveu aparecer na soleira da porta.
Nem parecia muito irritada.
“Boa noite”, cumprimentou.
Ela nos examinou com tranquilidade, os olhos azuis cheios de ironia.
Então falou, dirigindo-se a mim:
“E então, olhinhos azuis, alguma sugestão para hoje?”
“Como você se chama?”, consegui balbuciar.
“Gisella.”
“E de onde é?”
“Bolonha!”, exclamou, arregalando os olhos como se prometesse vai
saber o quê.
Mas não era verdade. Calmo, senhor de si, Malnate se deu conta no ato.
“Bolonha coisa nenhuma”, interveio. “Acho que você é da Lombardia, e
nem é de Milão. Deve ser da zona do lago de Como.”
“Como é que você adivinhou?”, perguntou a outra, espantada.
Naquele momento, por trás de seus ombros despontou a cara de fuinha
da cafetina.
“Ora, ora”, resmungou, “parece que aqui estamos em uma grande
enrolação.”
“De modo nenhum”, protestou a garota, sorrindo e apontando para mim.
“Aquele de olhinhos azuis tem sérias intenções. Podemos ir?”
Eu me virei para Malnate. Ele também me olhava com uma expressão
encorajadora, afetuosa.
“E você?”, perguntei.
Fez um gesto vago com a mão e se saiu com uma breve risada.
“Não se preocupe comigo”, acrescentou. “Vá lá, que eu espero aqui.”
Tudo aconteceu muito rapidamente. Quando descemos, Malnate estava
papeando com a cafetina. Tinha pegado o cachimbo: falava e fumava.
Estava se informando sobre o “tratamento econômico” dispensado às
prostitutas, sobre o “mecanismo” de revezamento quinzenal, sobre os
“exames médicos” etc., e a dona lhe respondia com igual empenho e
seriedade.
“Bom”, disse por fim Malnate notando minha presença, e se pôs de pé.
Passamos para a antessala em direção às bicicletas, que tínhamos
encostado uma à outra na parede ao lado da saída, enquanto a cafetina,
agora muito gentil, se apressava em nos abrir a porta.
“Até logo”, despediu-se Malnate.
Pôs uma moeda na palma estendida da porteira e saiu primeiro.
Gisella estava mais atrás.
“Tchau, amor”, disse em uma cantilena. “Volte, hein!”
Bocejava.
“Tchau”, respondi, saindo em seguida.
“Boa noite, senhores”, sussurrou respeitosa a cafetina às nossas costas; e
ouvi que passava a tranca na porta.
Apoiando-nos nas bicicletas, tornamos a subir passo a passo a Via delle
Scienze até a esquina da Via Mazzini, e então dobramos à direita, pela
Saraceno. Agora era principalmente Malnate quem falava. Em Milão, coisa
de uns anos antes — contava —, ele tinha sido um frequentador bastante
habitual do famoso bordel de San Pietro all'Orto, mas somente nessa noite
lhe ocorrera a ideia de obter informações mais precisas sobre as leis que
regulavam o “sistema”. Meu Deus, que vida é essa que as prostitutas
levavam! E como o Estado, o “Estado ético”, era abjeto ao organizar um
mercado de carne humana como aquele!
Percebeu naquele instante meu silêncio.
“O que foi?”, perguntou. “Não está se sentindo bem?”
“Não, nada.”
Pude ouvi-lo suspirar.
“Omne animal post coitum triste”, disse melancólico. “Mas não se
preocupe”, prossegui depois de uma pausa, mudando o tom de voz. “Pode
apostar que, depois de uma boa noite de sono, tudo vai ficar ótimo.”
“Eu sei, eu sei.”
Viramos à esquerda, na Via Borgo di Sotto, e Malnate acenou às
casinhas da direita, para os lados da Via Fondo Banchetto.
“A professora Trotti deveria estar por estas bandas”, disse.
Não respondi. Ele tossiu.
“Bem…”, acrescentou, “e como vão as coisas com Micòl?”
De repente, fui tomado por uma intensa necessidade de me abrir, de
revelar meu estado de ânimo a ele.
“Vão mal. Peguei uma gamação terrível.”
“Ah, isso a gente percebeu”, riu de bom humor. “Já faz tempo. Mas
agora, como está? Ela continua te maltratando?”
“Não. Como você deve ter notado, nas últimas semanas alcançamos
certo modus vivendi.”
“É verdade, eu vi que vocês já não estão se bicando como antigamente.
Gosto de ver que estão retomando a amizade. Era absurdo.”
Minha boca se deformou em uma careta, enquanto as lágrimas me
enevoavam a vista.
Malnate percebeu imediatamente o que estava se passando comigo.
“Vamos, vamos”, exortou embaraçado, “não é o caso de se deixar levar
assim.”
Engoli com esforço.
“Não acredito que vamos reatar a amizade”, murmurei. “É inútil.”
“Bobagem”, rebateu ele. “Se você soubesse o quanto ela gosta de você!
Na sua ausência, quando se menciona seu nome, ai de quem ousar atacá-lo.
Ela pula que nem uma cobra. Alberto também o admira e lhe quer bem.
Aliás, preciso lhe contar que dias atrás (talvez eu tenha sido um tanto
indiscreto, me desculpe…) recitei seu poema para eles também. Caramba!
Você nem imagina o quanto ela gostou: os dois gostaram, sim, os dois…”
“Não sei o que fazer com a admiração e o afeto deles”, falei.
Enquanto isso, tínhamos desembocado na praceta em frente à igreja de
Santa Maria in Vado. Não se via vivalma: nem ali, nem pela Via Scandiana
até o Montagnone. Seguimos em silêncio até a pequena fonte que fica ao
lado do adro. Malnate se inclinou para beber; depois dele, eu também bebi e
lavei o rosto.
“Veja”, continuou Malnate, retomando a caminhada, “na minha opinião,
você está enganado. Em épocas como esta, nada pode contar mais entre as
pessoas do que o afeto e a estima recíprocos, do que a amizade. Por outro
lado, não me parece que… Pode acontecer perfeitamente que, com o
tempo… Olhe, por exemplo: por que não vem jogar tênis com mais
frequência, como uns meses atrás? Ninguém garante que a tática das
ausências seja a melhor escolha! Tenho a impressão de que você conhece
pouco as mulheres, meu caro.”
“Mas se foi ela mesma quem me obrigou a diminuir as visitas!”,
estourei. “Acha que eu vou desobedecer? Afinal de contas, a casa é dela!”
Ficou uns segundos calado, pensativo.
“Acho que é impossível”, disse por fim. “Eu até entenderia se entre
vocês tivesse havido algo de… grave, de irreparável. Mas o que foi que
aconteceu?”
Me perscrutou, incerto.
“Desculpe a pergunta pouco… diplomática”, retomou sorrindo: “mas
você pelo menos chegou a beijá-la?”
“Ah, sim, muitas vezes”, suspirei desesperado, “infelizmente para mim.”
Então lhe contei com detalhes a história de nossa relação, começando
desde o início e sem omitir o episódio de maio passado, no quarto dela,
episódio que eu considerava, expliquei, um divisor de águas em sentido
negativo, e irremediável. Quis ainda descrever o jeito como a beijava, ou
pelo menos como em várias ocasiões, e não só naquela vez em seu quarto,
eu tentei beijá-la, relatando as diversas reações dela, às vezes mais
incomodada, às vezes menos.
Ele me deixou desabafar, e eu estava tão absorto, tão perdido nessas
evocações amargas, que prestei pouca atenção no silêncio dele, que
entretanto se tornara hermético.
Estávamos parados diante de minha casa havia quase meia hora.
De repente, vi-o estremecer.
“Puxa”, balbuciou verificando o relógio. “Já são duas e quinze. Tenho
que ir: se não, quem acorda amanhã?”
Subiu no selim.
“Tchau, né…”, despediu-se, “e pra cima com a vida!”
Notei que seu rosto estava estranho, mais pálido. Será que minhas
confidências o tinham aborrecido ou irritado?
Fiquei olhando enquanto ele se afastava depressa. Era a primeira vez que
me largava ali daquele jeito, sem nem esperar que eu fechasse o portão.
9

Embora já fosse bem tarde, meu pai ainda não tinha apagado a luz.
A partir do verão de 1937, desde que a campanha racista começara em
todos os jornais, ele foi acometido de uma forma grave de insônia, que
atingia os picos mais agudos com o calor do verão. Passava noites inteiras
sem pregar o olho, em parte lendo, em parte circulando pela casa, em parte
ouvindo na copa as transmissões em língua italiana de rádios estrangeiras,
em parte conversando com mamãe no quarto dela. Se eu voltava depois da
uma, era difícil conseguir atravessar o corredor ao longo do qual se
sucediam um após o outro os quartos de dormir (o primeiro era o de papai,
o segundo, o de mamãe, depois vinham os de Ernesto e de Fanny, e por fim,
ao fundo, o meu) sem que ele percebesse. Eu avançava na ponta dos pés, às
vezes chegava a tirar os sapatos; o ouvido finíssimo de meu pai captava os
mínimos rangidos e rumores.
“É você?”
Como era de esperar, também naquela noite não escapei à sua sentinela.
Em geral, ao seu “É você?” eu acelerava rapidamente o passo sem
responder, fingindo não ter escutado. Mas naquela noite, não. Mesmo
imaginando não sem aborrecimento o tipo de perguntas a que eu teria de
responder, há anos sempre as mesmas (“Por que tão tarde?”, “Sabe que
horas são?”, “Onde você esteve?” etc.), preferi me deter. E enfiei o rosto na
fresta da porta entreaberta.
“O que você está fazendo aí?”, perguntou logo meu pai, da cama,
espiando por cima dos óculos. “Entre, entre um momento.”
Mais que deitado, estava sentado de pijama, apoiado com o dorso e a
nuca na cabeceira de madeira clara e entalhada, coberto apenas pelo lençol
até mais ou menos a base do estômago. Espantei-me ao constatar que tudo
nele e ao seu redor era branco: prateados os cabelos, pálido e abatido o
rosto, alvos o pijama, o travesseiro atrás dos flancos, o lençol, o livro
pousado aberto sobre o ventre; e como aquela brancura (uma brancura de
hospital, eu pensava) se harmonizava com a serenidade surpreendente e
extraordinária da inédita expressão de bondade cheia de sabedoria que
irradiava de seus olhos claros.
“Que tarde!”, comentou sorrindo, enquanto dava uma olhada no Rolex
de pulso à prova d'água, do qual não se separava nem na cama. “Sabe que
horas são? Duas e vinte e sete.”
Talvez tenha sido a primeira vez que, tendo eu completado dezoitos anos
e recebido a chave da casa, a frase não me irritou.
“Eu estava dando um giro”, falei, tranquilo.
“Com aquele seu amigo de Milão?”
“Sim.”
“O que é que ele faz? Ainda é estudante?”
“Que estudante que nada. Já tem vinte e seis anos. Está empregado…
Trabalha como químico na zona industrial, em uma fábrica de borracha
sintética da Montecatini.”
“Olhe só. E eu que pensava que ainda estivesse na faculdade. Por que
nunca o convidou para jantar?”
“Ah… achei que não era o caso de dar a mamãe mais trabalho do que
ela já tem.”
“Nãããoo, imagine! Qual seria a diferença? Uma tigela a mais de sopa
não é nada. Convide, convide. E… onde vocês jantaram? No Giovanni?”
Assenti.
“Me conte o que vocês comeram de bom.”
Sujeitei-me de bom grado, não sem me surpreender eu mesmo com
minha condescendência, a listar os vários pratos para ele: os escolhidos por
mim, os de Malnate. Enquanto falava, sentei-me.
“Bom”, meu pai concordou por fim, satisfeito.
“E então”, continuou depois de uma pausa, “duv'èla mai ch'a si 'ndà a
far dann, tutt du?[33] Aposto” (e aqui ergueu uma mão, como a prevenir
minha eventual negativa), “aposto que foram às mulheres.”
Entre nós nunca houvera intimidade em relação ao assunto. Um pudor
feroz, uma necessidade violenta e irracional de liberdade e de
independência sempre me impeliram a bloquear no nascedouro todas as
tímidas tentativas dele de abordar esses temas. Mas naquela noite, não. Eu
olhava para ele, tão branco, tão frágil, tão velho, e no entanto era como se
algo dentro de mim, uma espécie de nó, de um antigo caroço secreto, fosse
aos poucos se desfazendo.
“É verdade”, respondi. “Acertou em cheio.”
“Devem ter ido a um bordel, imagino.”
“Fomos.”
“Excelente”, aprovou. “Na idade de vocês, especialmente na sua, os
bordéis são a solução mais benéfica sob qualquer ponto de vista, inclusive o
da saúde. Mas me diga: e como você se arranja com o dinheiro? A mesada
que sua mãe lhe dá é suficiente? Se lhe faltar dinheiro, pode pedir a mim.
No limite do possível, vejo o que posso fazer.”
“Obrigado.”
“Onde vocês estiveram? Na Maria Ludargnani? Na minha época ela já
estava no ramo.”
“Não, fomos a um local na Via delle Volte.”
“A única coisa que lhe recomendo”, continuou, assumindo de repente a
linguagem da medicina, que ele só exerceu na juventude, para depois, com
a morte de vovô, se dedicar exclusivamente à administração das terras de
Masi Torello e dos dois estabelecimentos que tinha na Via Vignatagliata, “a
única coisa que lhe recomendo é não descuidar nunca das necessárias
medidas profiláticas. É uma aporrinhação, eu sei, seria bem melhor sem
isso. Mas basta um nada para se pegar uma blenorragia feia, vulgo
pingadeira, ou coisa pior. E acima de tudo: se de manhã, ao acordar, você
perceber algo estranho, venha imediatamente ao banheiro me mostrar.
Nesse caso, eu lhe digo como deve proceder.”
“Entendi. Fique tranquilo.”
Eu sentia que ele buscava um modo mais adequado de me perguntar
outra coisa. Agora que eu estava formado — supus que estivesse a ponto de
me indagar —, por acaso eu tinha alguma ideia para o futuro, algum
projeto? Em vez disso, divagou sobre política. Antes de eu voltar para casa
— falou —, entre uma e duas da manhã, ele havia conseguido sintonizar
várias estações de rádio estrangeiras: Monteceneri, Paris, Londres,
Beromünster. Agora, baseado nas últimas notícias, ele estava convencido de
que a situação internacional piorava rápido. Ah, sim, infelizmente: tratava-
se de um verdadeiro “afàr negro”. Parece que a essa altura as missões
diplomáticas anglo-francesas em Moscou tinham regredido ao ponto de
partida (sem terem conseguido tirar nenhum coelho da cartola, é claro!).
Será que sairiam mesmo de Moscou desse jeito? Era um perigo. Depois
disso, só restaria a todos recomendar a alma a Deus.
“O que você acha?!”, exclamou. “Stálin não é um sujeito de tantos
escrúpulos. Se for conveniente a ele, tenho certeza de que não vai pensar
um minuto antes de fechar um acordo com Hitler!”
“Um pacto entre a Alemanha e a União Soviética?”, sorri fracamente.
“Não, não acredito. Não me parece possível.”
“É o que vamos ver”, ele replicou, sorrindo por sua vez. “Que o Senhor
Deus o escute!”
Nesse ponto, do quarto ao lado veio um lamento. Minha mãe tinha
acordado.
“O que você disse, Ghigo?”, perguntou. “Hitler morreu?!”
“Quem dera!”, suspirou meu pai. “Durma, durma, meu anjo, não se
preocupe.”
“Que horas são?”
“Quase três.”
“Mande seu filho para a cama!”
Mamãe ainda pronunciou umas palavras incompreensíveis e então se
calou.
Meu pai me fixou demoradamente nos olhos. Depois, em voz baixa e
quase sussurrando:
“Desculpe se me permito falar dessas coisas”, disse, “mas você vai
entender… tanto eu quanto sua mãe percebemos muito bem, desde o ano
passado, que você se apaixonou por… por Micòl Finzi-Contini. Não é
verdade?”
“É.”
“E como vão as coisas entre vocês? Continuam mal?”
“Não podiam estar piores”, murmurei, subitamente me dando conta de
que estava dizendo a perfeita verdade com extrema clareza, que de fato
nossas relações não podiam estar piores e que nunca, apesar da opinião
contrária de Malnate, eu conseguiria subir o poço onde há meses me debatia
em vão.
Meu pai soltou um suspiro.
“Eu sei, são decepções profundas… Mas no fim das contas é bem
melhor assim.”
Eu estava de cabeça baixa e não disse nada.
“Com certeza”, continuou ele, falando um pouco mais alto. “O que você
pretendia fazer? Ficar noivo?”
Naquela noite em seu quarto, Micòl também me fizera a mesma
pergunta. Dissera: “O que você queria? Que noivássemos? Me desculpe”.
Não dei um pio. Não tive nada a responder. Como agora — refletia —,
como agora com meu pai.
“Por que não?”, contestei, olhando para ele.
Balançou a cabeça.
“Acha que não o compreendo?”, falou. “Eu também gosto da moça.
Sempre gostei: desde que era uma menina… que descia no templo para
pegar a berahá do pai. Graciosa, aliás bonita (bonita até demais!),
inteligente, cheia de espírito… Mas noi-var!”, disse escandindo e
arregalando os olhos. “Noivar, meu querido, quer dizer se casar. E nessas
belas noites que correm, sobretudo sem contar com uma profissão segura,
me diga se você… Imagino que para sustentar a família você não buscaria
minha ajuda (que aliás eu nem seria capaz de dar, não na medida
necessária), muito menos a sua… a dela. A moça com certeza terá um
magnífico dote”, acrescentou, “e como! Mas não penso que você…”
“Deixe o dote fora disso”, falei. “Se a gente se amasse, que importava o
dote?”
“Você tem razão”, concordou meu pai. “Você está coberto de razão. Eu
também, quando fiquei noivo da sua mãe, em 1911, não me importava com
essas coisas. Mas naquela época os tempos eram diferentes. Era possível
olhar em frente, para o futuro, com certa serenidade. E, apesar de o futuro
não ter afinal de contas se mostrado tão alegre e fácil quanto nós dois
imaginávamos (como você sabe, nos casamos em 1915, com a guerra já
começada, e logo em seguida eu me alistei e parti como voluntário), a
sociedade era diferente, uma sociedade que garantia… Além disso, eu tinha
feito medicina, enquanto você…”
“Enquanto eu?”
“Certo. Você, em vez de medicina, preferiu fazer belas-letras, e sabe
que, quando veio o momento de decidir, eu não criei nenhum tipo de
obstáculo. Sua paixão era essa, e nós dois, você e eu, cumprimos nosso
dever: você, escolhendo o caminho que sentia que tinha de escolher, e eu,
não o impedindo de fazer isso. Mas e agora? Ainda que, como professor,
você aspirasse a uma carreira universitária…”
Fiz que não com a cabeça.
“Pior”, retomou ele, “pior! É bem verdade que nada, nem mesmo agora,
pode impedi-lo de continuar estudando por conta própria… de continuar se
cultivando para tentar, um dia, se for possível, a carreira bem mais difícil e
aleatória de escritor, de crítico militante tipo Edoardo Scarfoglio, Vincenzo
Morello, Ugo Ojetti… ou, por que não?, de romancista, de…”, e sorriu, “…
de poeta… Mas justamente por isso: como você podia, na sua idade, com
apenas vinte e três anos, e com tudo ainda a ser feito… como podia pensar
em se casar, em sustentar uma família?”
Ele falava de meu futuro literário — eu pensava comigo — como de um
sonho bonito e sedutor, mas não traduzível em algo de concreto, de real.
Falava como se eu e ele já estivéssemos mortos e agora, de um ponto fora
do espaço e do tempo, discorrêssemos juntos a respeito da vida, de tudo o
que ao longo de nossas respectivas vidas poderia ter sido e não foi. Hitler e
Stálin fariam um pacto?, eu também me perguntava. Por que não? Era
muito provável que Hitler e Stálin entrassem em um acordo.
“Mas afora isso”, continuava meu pai, “e afora um monte de outras
considerações, permita que lhe exponha com franqueza… que lhe dê um
conselho de amigo?”
“Pode dizer.”
“Sei bem que, sobretudo na sua idade, quando se perde a cabeça por
uma garota, a pessoa não fica ali, calculando… Também sei que você tem
um caráter um tanto especial… e não ache que dois anos atrás, quando o
desgraçado do dr. Fadigati…”
Desde que Fadigati tinha morrido, nunca mais faláramos o nome dele
em casa. O que Fadigati tinha a ver com a conversa de agora?
Olhei-o no rosto.
“Sim, me deixe falar!”, fez ele. “Seu temperamento (tenho a impressão
de que você puxou sua avó Fanny), seu temperamento… Você é sensível
demais, é isso, e assim não se contenta… vai sempre procurar…”
Não concluiu. Acenava com a mão a mundos ideais, povoados de puras
quimeras.
“De todo modo, me perdoe”, retomou, “mas mesmo como família os
Finzi-Contini não eram adequados… não eram gente para nós. Casando-se
com uma jovem daquele tipo, estou convencido de que mais cedo ou mais
tarde você ficaria mal… Mas claro, claro”, insistiu, talvez temendo algum
gesto ou palavra de protesto meu, “você sabe bem qual foi sempre minha
opinião a respeito. É uma gente diferente… nem parecem judìm de verdade.
Ah, eu sei: Micòl, talvez você gostasse tanto dela justo por isso… porque
era superior a nós… socialmente. Mas escute o que lhe digo: foi melhor
terminar assim. Diz o provérbio: ‘Cada macaco no seu galho'. E aquela lá,
apesar das aparências, não era mesmo do seu galho. Nem um pouco.”
Baixei de novo a cabeça, olhando para minhas mãos abertas e pousadas
nos joelhos.
“Vai passar”, prosseguia, “vai passar, e bem mais cedo do que você
pensa. Claro, lamento muito: e imagino o que você está sentindo neste
momento. Mas até o invejo um pouquinho, sabe? Na vida, se a gente quer
entender, entender de verdade como estão as coisas deste mundo, deve
morrer pelo menos uma vez. Então, visto que a lei é esta, melhor morrer
jovem, quando ainda se tem muito tempo pela frente para se levantar e
ressuscitar… Entender quando se está velho é terrível, bem mais terrível.
Como se faz? Não há tempo para recomeçar do zero, e nossa geração levou
tantas, tantas bordoadas! Seja como for, se o bom Deus quiser, você é tão
jovem! Daqui a uns meses, aposto que nem vai parecer verdade que passou
por tudo isso. Vai ficar até contente. Vai se sentir mais rico, não sei… mais
maduro…”
“Tomara”, murmurei.
“Estou feliz de ter desabafado, de ter tirado esse peso do estômago… E
agora uma última recomendação. Posso?”
Assenti.
“Não vá mais à casa deles. Volte a estudar, ocupe-se com alguma coisa,
quem sabe dando umas aulas particulares, que ouço dizer por aí que há
muita procura… E não vá mais lá. De resto, é uma atitude mais masculina.”
Tinha razão. Era uma atitude mais masculina, de resto.
“Vou tentar”, falei reerguendo o olhar. “Vou fazer de tudo para
conseguir.”
“Muito bem!”
Olhou a hora.
“E agora vá dormir”, acrescentou, “que você está precisando. Eu
também vou tentar fechar os olhos um pouquinho.”
Levantei-me e inclinei-me sobre ele para beijá-lo, mas o beijo que
trocamos se transformou num abraço longo, silencioso e muito terno.
10

Foi assim que renunciei a Micòl.


Na noite do dia seguinte, mantendo a promessa que eu tinha feito a meu
pai, me abstive de ir ver Malnate e no dia sucessivo, que era uma sexta-
feira, não me apresentei na casa Finzi-Contini. Assim passou uma semana,
a primeira, sem que eu reencontrasse ninguém: nem Malnate nem os outros.
Por sorte, durante todo esse tempo ninguém me procurou, e tal
circunstância seguramente me ajudou. Do contrário, é provável que não
tivesse resistido, que acabasse caindo na armadilha.
Uns dez dias depois de nosso último encontro, por volta do dia 25 do
mês, Malnate me telefonou. Foi a primeira vez que ele me ligou, e como
não fui eu que atendi a chamada, fiquei tentado a mandar dizer que não
estava em casa. Mas logo me arrependi. Já me sentia forte o suficiente: se
não para reencontrá-lo, pelo menos para falar com ele.
“Você está bem?”, ele começou. “Mas você me abandonou mesmo.”
“Eu estive fora.”
“Onde? Em Florença? Em Roma?”, perguntou, não sem uma ponta de
ironia.
“Dessa vez um pouco mais longe”, respondi, já arrependido da frase
patética.
“Bon. Não vou fazer perguntas. Então: vamos nos ver?”
Falei que naquela noite eu não podia, mas que no dia seguinte quase
com certeza passaria na casa dele, na hora de sempre. Mas, se ele visse que
eu estava demorando — acrescentei —, não precisava me esperar. Se fosse
o caso, podíamos até nos encontrar direto no Giovanni. Não era lá que ele
iria jantar?
“É provável”, confirmou, seco. E disse:
“Ouviu as notícias?”
“Ouvi.”
“Que situação! Apareça, olhe lá, assim falamos de tudo.”
“Então até amanhã”, fiz cordial.
“Até.”
E desligou.
Na noite seguinte, logo depois do jantar, saí de bicicleta e, depois de
percorrer toda a Giovecca, fui parar a uns cem metros da entrada do
restaurante. Queria verificar se Malnate estava lá, só isso. De fato, tão logo
constatei que estava (sentado como sempre a uma mesa ao ar livre, vestindo
a eterna saariana), em vez de ir encontrá-lo, recuei e subi para me postar no
alto de uma das três pontes levadiças do Castelo, justamente a ponte de
frente para o Giovanni. Calculei que desse modo eu poderia observá-lo
melhor, sem correr o risco de ser notado. E assim foi. Com o peito apoiado
na ponta de pedra do parapeito, eu o observei longamente enquanto comia.
Olhava lá embaixo, ele e os outros clientes enfileirados com as costas
contra o muro, olhava o rápido vaivém dos garçons de casaca branca entre
as mesas, e me parecia, suspenso como estava, no escuro, sobre a água
vítrea do fossado, que estivesse quase em um teatro, espectador clandestino
de uma apresentação agradável e insensata. Malnate já estava na sobremesa
de fruta. Despelava de má vontade um grande cacho de uvas, uma baga
depois da outra, e de vez em quando, com certeza esperando me ver chegar,
virava vivamente a cabeça para a direita e para a esquerda. Ao fazer isso, as
lentes de seus “óculos pesadões”, como Micòl os chamava, brilhavam:
palpitantes, nervosas… Terminada a uva, chamou o garçom com um gesto,
confabulando um instante com ele. Achei que tivesse pedido a conta; e já
me preparava para ir embora quando vi o garçom voltando com uma xícara
de café. Bebeu de um só gole. Depois disso, de um dos dois bolsos da frente
da saariana tirou algo bem pequeno: um caderninho, no qual começou a
escrever depressa com um lápis. Que diabos estava escrevendo?, sorri. Ele
também faz poesias? E então o deixei, concentrado a escrever todo curvo
naquele caderninho do qual, a raros intervalos, levantava a cabeça para
tornar a espiar de um lado e de outro, ou a olhar para cima, para o céu
estrelado, como buscando nele inspiração e ideias.
Nas noites seguintes, insisti em perambular a esmo pelas ruas da cidade,
notando tudo, atraído imparcialmente por tudo: pelos títulos dos jornais que
forravam as bancas do centro, títulos em letras garrafais sublinhados de
tinta vermelha; pelas fotografias dos filmes e das pré-estreias expostas ao
lado da entrada dos cinemas; pelas corriolas de bêbados parados no meio
dos becos da cidade velha; pelas placas dos automóveis alinhados na Piazza
del Duomo; pelos tipos diversos das pessoas que saíam dos bordéis ou que
despontavam aos poucos da escura galharia do Montagnone para ir tomar
um sorvete, uma cerveja ou refrigerantes nos balcões de zinco de um
quiosque que apareceu de repente nas encostas de San Tomaso, ao fundo da
Scandiana… Uma noite, por volta das onze, me vi nas bandas da Piazza
Travaglio, espiando o interior semiescuro do famoso Caffè Shangai,
frequentado quase exclusivamente por prostitutas de rua e por operários do
não distante Borgo San Luca; e logo em seguida, no alto do bastião
sobrestante, assistindo a uma fraca competição de tiro ao alvo que dois
rapazotes estavam disputando sob os olhos duros da garota toscana
admiradora de Malnate.
Eu ficava ali, à parte, sem dizer nada, sem sequer desmontar da
bicicleta: tanto que a certa altura a toscana me interpelou diretamente.
“Rapazinho, aí em cima”, disse. “Por que também não vem aqui e tenta
alguns disparos? Força, coragem, não tenha medo. Venha mostrar a esses
fracotes o que você sabe fazer.”
“Não, obrigado”, respondi.
“Não, obrigado”, repetiu a outra. “Meu Deus, que juventude! Onde você
escondeu seu amigo? Aquele, sim, que é um jovem! Me diga: onde você o
enterrou?”
Eu me mantinha calado, e ela caiu na risada.
“Coitadinho!”, fez com dó de mim. “Vá logo pra casa, vá, senão papai
lhe pega de cinto! Vá nanar, vá nanar!”
Na noite seguinte, lá pela meia-noite, sem que nem mesmo eu soubesse
por quê, que coisa estava procurando de fato, me vi na parte oposta da
cidade, pedalando pela trilha de terra batida que corria lisa e sinuosa sobre a
borda interna da Muralha degli Angeli. Havia uma lua cheia magnífica: tão
clara e luminosa no céu perfeitamente sereno que tornava supérfluo o uso
do farol. Eu pedalava devagar. Deitados na grama, podia ver uma sucessão
sempre nova de amantes. Alguns se agitavam uns sobre os outros, seminus.
Outros, já separados, permaneciam próximos, de mãos dadas. Outros ainda,
abraçados mas imóveis, pareciam dormir. Contei pouco a pouco mais de
trinta casais. E embora passasse tão perto deles a ponto de às vezes quase
roçá-los com a roda, em nenhum momento ninguém deu sinal de notar
minha presença silenciosa. Eu me sentia, e era, uma espécie de estranho
fantasma de passagem: cheio de vida e morte misturadas, de paixão e
piedade.
Ao chegar à altura do Barchetto del Duca, desci da bicicleta, apoiei-a no
tronco de uma árvore e por alguns minutos, voltado para a extensão imóvel
e prateada do parque, fiquei ali, a olhar. Não pensava em nada preciso.
Olhava, escutava a gritaria fina e imensa dos grilos e das rãs, e me
surpreendia eu mesmo com o leve sorriso embaraçado que me repuxava os
lábios. “Aqui está”, falei baixinho. Não sabia o que fazer, o que tinha ido
fazer ali. Uma vaga sensação de inutilidade me invadia a cada ato da
memória.
Comecei a caminhar na borda do declive relvoso, os olhos fixos na
magna domus. Tudo apagado na casa Finzi-Contini, e embora eu não
pudesse ver as janelas do quarto de Micòl, que davam para o sul, apesar
disso tinha a certeza de que também delas não filtrava nenhuma luz.
Quando por fim cheguei a dominar do alto o ponto exato do muro
“sagrado”, como dizia Micòl, “au vert paradis des amours enfantines”, fui
tomado por uma ideia repentina. E se eu entrasse escondido no parque,
escalando o muro? Na infância, numa remotíssima tarde de junho, não ousei
fazê-lo, tive medo. Mas e agora?
Em um instante eu já estava lá embaixo, na base do muro, reconhecendo
de imediato na sombra abafada o mesmo cheiro de urtigas e de esterco. Mas
a parede do muro não, estava diferente. Talvez justamente por ter
envelhecido dez anos (eu também tinha envelhecido dez anos nesse meio-
tempo, estava mais alto e mais forte), não me pareceu nem tão alta nem tão
insuperável como a recordava. Depois de uma primeira tentativa fracassada,
acendi um fósforo. Apoios não faltavam; aliás, havia muitos ali. Inclusive
ainda estava ali o grande prego enferrujado, despontando da parede. Na
segunda tentativa o alcancei e, agarrando-o, depois foi muito fácil chegar ao
topo.
Quando me sentei lá no alto, com as penas penduradas do outro lado,
não tardei a notar uma escada apoiada no muro, pouco abaixo de meus
sapatos. Mais que me surpreender, a circunstância me divertiu. “Tome”,
murmurei sorrindo, “até a escada.” Mas antes de descer por ela me virei
para trás, para a Muralha degli Angeli. Lá estava a árvore e, aos pés da
árvore, a bicicleta. Que bobagem. Era um ferro-velho que dificilmente
atrairia o apetite de alguém.
Toquei o chão. Em seguida, deixando o caminho paralelo ao muro,
cortei pelo bosque de árvores frutíferas com a ideia de alcançar a alameda
de acesso num ponto equidistante entre a casa colonial dos Perotti e a ponte
de traves sobre o Panfilio. Pisava a grama sem fazer barulho: tomado, é
verdade, a cada passo, por um início de escrúpulo, mas toda vez removendo
com uma sacudida de ombros, no nascedouro, a irrupção de qualquer temor
ou angústia. Como o Barchetto del Duca era bonito de noite — pensava —,
como a lua o iluminava com doçura! Entre aquelas sombras leitosas,
naquele mar de prata, eu não buscava nada. Mesmo se eu fosse
surpreendido vagando por ali, ninguém poderia me repreender
excessivamente. Ao contrário. Feitas todas as somas, agora eu tinha até
certo direito àquilo.
Saí na alameda, atravessei a ponte sobre o Panfilio e então, dobrando à
esquerda, cheguei à clareira do tênis. O professor Ermanno tinha mantido a
promessa: já estavam aumentando o terreno da quadra. A rede metálica de
proteção, derrubada, jazia em um confuso amontoado luminoso na lateral
do campo, do lado oposto a onde os espectadores habitualmente se
sentavam; por uma faixa de ao menos três metros nas linhas laterais e de
cinco nas linhas de fundo, o campo parecia estar em fase de desbaste…
Alberto estava doente, restava-lhe pouco tempo de vida. Era preciso
ocultar-lhe de alguma maneira, ainda que daquela maneira, a gravidade de
seu mal. “Perfeito”, concordei. E segui adiante.
Avancei a descoberto, pretendendo dar uma larga volta em torno da
clareira, e não me espantei quando a certo ponto vi se aproximar, vindo em
um breve trote dos lados da Hütte, o vulto familiar de Jor. Esperei com os
pés plantados, e o cão, quando estava a uns dez metros de distância,
também parou. “Jor!”, chamei com a voz abafada. Jor me reconheceu.
Depois de ter abanado a cauda em um curto e pacífico movimento de festa,
voltou devagar sobre os próprios passos.
De vez em quando se virava, como para se assegurar de que eu o seguia.
Mas eu não o seguia, ou melhor, mesmo me aproximando progressivamente
da Hütte, não me afastava da margem extrema da clareira. Caminhava a uns
vinte metros da linha curva formada pelas árvores altas e escuras daquela
zona do parque, o rosto sempre voltado para a esquerda. A lua agora estava
às minhas costas. A clareira, o tênis, o cego esporão da magna domus e
depois, lá ao fundo, pairando sobre as copas frondosas das macieiras,
figueiras, ameixeiras, pereiras, o contraforte da Muralha degli Angeli. Tudo
parecia claro, nítido, como em relevo, em maior evidência do que à luz do
dia.
Assim prosseguindo, de repente percebi que estava a poucos passos da
Hütte: não na frente dela, isto é, no lado que dava para a quadra de tênis,
mas atrás, entre os troncos dos jovens abetos e dos lariços que a
resguardavam. Aqui eu parei. Observava a forma negra e despojada da
Hütte à contraluz.
“O que fazer?”, dizia comigo a meia-voz. “O que fazer?”
Olhava sempre para a Hütte. E agora pensava — mas sem que a esse
pensamento meu coração acelerasse os batimentos: indiferente ao acolhê-lo
como uma água morta se deixa atravessar pela luz —, agora pensava que,
sim, se no fim das contas era aqui, com Micòl, que Giampi Malnate vinha
todas as noites depois de me deixar no portão de casa (por que não? Não
seria por isso, talvez, que ele sempre se barbeava com tanto cuidado antes
de sair comigo para jantar?), bem, nesse caso, o vestiário de tênis sem
dúvida seria para eles um refúgio magnífico, o mais adequado.
Mas claro, continuava raciocinando calmamente em uma espécie de
rápido sussurro interno. Mas claro. Ele circulava comigo apenas para passar
o tempo, até ficar tarde, e então, depois de ter por assim dizer me enfiado na
cama, vinha pedalando depressa encontrá-la, que já o esperava no jardim…
Mas claro. Como eu entendia, agora, aquele seu gesto no bordel da Via
delle Volte! Com certeza. Quando se faz amor todas as noites, ou quase
todas, logo vem o momento de sentir saudades da mãe, do céu da
Lombardia etc. E a escada apoiada no muro externo? Só podia ter sido
Micòl que a dispusera ali, naquele ponto exato.
Eu estava lúcido, sereno, tranquilo. Todas as contas batiam. Como em
um jogo de paciência, cada carta se encaixava milimetricamente.
Micòl, sim. Com Giampi Malnate. Com o amigo íntimo do irmão
doente. Às escondidas do irmão e de todos os outros da casa, pais, parentes,
criados, e sempre tarde da noite. Normalmente na Hütte, mas às vezes até lá
em cima, no quarto de dormir, o quarto dos làttimi. Mas seria mesmo às
escondidas? Ou os outros, como sempre, fingiam não ver, deixavam passar,
aliás, no fundo, no fundo até favoreciam, sendo afinal justo e humano que
uma jovem de vinte e três anos, se não quer ou não pode se casar, de todo
modo tenha tudo aquilo que a natureza manda? Na casa, demonstravam não
enxergar nem mesmo a doença de Alberto. Era o sistema deles.
Apurei os ouvidos. Silêncio absoluto.
E Jor? Aonde Jor tinha ido?
Dei alguns passos na ponta dos pés em direção à Hütte.
“Jor!”, chamei forte.
E eis que, como resposta, me chegava de muito longe, através do ar
noturno, um som lamentoso e dorido, quase humano. Imediatamente o
reconheci: era o som da antiga e querida voz do relógio da praça, batendo as
horas. O que estava dizendo? Dizia mais uma vez que eu havia chegado
tarde demais, que era tolo e errado de minha parte continuar torturando
assim meu pai, que também naquela noite, inquieto por eu não voltar,
provavelmente não conseguia pegar no sono, e que finalmente era tempo de
pôr o ânimo em paz. De verdade. Para sempre.
“Que belo romance”, ri escarnecendo e sacudindo a cabeça como diante
de um menino incorrigível.
E, dando as costas para a Hütte, me afastei entre as plantas da parte
oposta.
Epílogo

Minha história com Micòl Finzi-Contini termina aqui. Sendo assim, é o


caso de que também este relato termine, se é verdade que tudo o que eu
pudesse acrescentar não diria mais respeito a ela, mas somente a mim
mesmo.
Sobre ela e sua família, já disse desde o início qual foi seu destino.
Alberto morreu de linfogranuloma maligno antes dos outros, em 1942,
depois de uma agonia longuíssima que, apesar do profundo sulco escavado
na cidade pelas leis raciais, interessou de longe toda Ferrara. Ele sufocava.
Para ajudá-lo a respirar havia necessidade de oxigênio, oxigênio em
quantidades cada vez maiores. E como na cidade, por causa da guerra, os
cilindros escasseavam, nos últimos tempos a família havia acumulado um
verdadeiro estoque deles, recorrendo a toda a região, mandando gente
comprá-los a qualquer preço em Bolonha, em Ravena, em Rimini, em
Parma, em Piacenza…
Os outros foram presos pelos soldados fascistas, em setembro de 1943.
Depois de uma breve permanência no presídio da Via Piangipane, já em
novembro foram conduzidos ao campo de concentração de Fòssoli, perto de
Carpi, e de lá, mais tarde, para a Alemanha. Entretanto, no que diz respeito
a mim, devo dizer que, durante os quatro anos que se passaram entre o
verão de 1939 e o outono de 1943, não vi mais nenhum deles. Nem mesmo
Micòl. No funeral de Alberto, por trás dos vidros da velha Dilambda
adaptada para funcionar a gás metano, que acompanhava o cortejo ao ritmo
das passadas e que depois, assim que o carro fúnebre atravessou a entrada
do cemitério ao fundo da Via Montebello, logo deu meia-volta, tive por um
instante a impressão de reconhecer o louro-acinzentado dos cabelos dela.
Nada mais. Mesmo em uma cidade pequena como Ferrara é perfeitamente
possível, quando se quer, sumir por anos e anos uns dos outros, convivendo
juntos como gente morta.
Quanto a Malnate, que fora convocado a Milão em novembro de 1939
(ele tinha me procurado inutilmente por telefone em setembro, até me
escreveu uma carta…), depois de agosto daquele ano, também não o
encontrei mais. Pobre Giampi. Ele acreditava no honesto futuro lombardo e
comunista que então lhe sorria para além do escuro da guerra iminente: um
futuro distante — admitia —, porém seguro, infalível. Mas o que é que o
coração sabe, de verdade? Se penso nele, que partiu para o front russo com
o CSIR em 1941 e não voltou mais, trago sempre viva na memória a maneira
como Micòl reagia todas as vezes que, entre uma partida e outra, ele
recomeçava a “nos catequizar”. Falava com sua voz tranquila, baixa e
sonora. Mas Micòl, ao contrário de mim, nunca prestava muita atenção.
Não parava de rir, de provocá-lo, de zombar dele.
“Mas você está de que lado, afinal? Dos fascistas?”, lembro que ele lhe
perguntou um dia, sacudindo a grande cabeça suada. Não entendia.
Então o que houve entre eles dois? Nada? Quem sabe?
O certo é que, quase prevendo o fim próximo, dela e de todos os seus,
Micòl repetia continuamente, também a Malnate, que ela não estava nem aí
para o futuro democrático e social dele, que ela abominava o futuro em si,
preferindo a ele muito mais “le vierge, le vivace et le bel aujourd'hui”,[34] e
o passado mais ainda, “o querido, o doce, o pio passado”.
E como estas, eu sei, não eram senão palavras, as mesmas palavras
enganosas e desesperadas que só um verdadeiro beijo poderia impedi-la de
proferir, com estas, pois, e não com outras, seja selado aqui aquele pouco
que o coração soube recordar.
Giorgio Bassani nasceu em 1916, em Bolonha, mas passou a infância na
cidade de Ferrara, palco de praticamente todos os seus livros. A partir de
1938, envolveu-se em atividades antifascistas, pelas quais foi preso em
1943. É autor de diversos romances sobre a Segunda Guerra e o fascismo.
Morreu em 2000, em Roma, consagrado como um dos grandes romancistas
de seu tempo.
Il giardino dei Finzi-Contini © Giorgio Bassani, 1962, 1974, 1976, 1980.
Todos os direitos reservados.

Todos os direitos desta edição reservados à Todavia.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de


1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

capa
Flávia Castanheira
imagem de capa
Buyenlarge/ Getty Images
composição
Jussara Fino
preparação
Silvia Massimini Felix
revisão
Jane Pessoa
Ana Maria Barbosa
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
——
Bassani, Giorgio (1914-2000)
O jardim dos Finzi-Contini: Giorgio Bassani
Título original: Il giardino dei Finzi-Contini
Tradução: Maurício Santana Dias
São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2021
280 páginas

ISBN 978-65-5692-116-7

1. Literatura italiana 2. Romance 3. Segunda Guerra Mundial 4. Perseguição política 5. Nazifascismo


I. Dias, Maurício Santana II. Título

CDD 850
——
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura italiana: Romance 850
todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
www.todavialivros.com.br
1. Canzone di Legnano: “O bionda, o bella imperatrice, o fida”; “Onde
venisti? Quali a noi secoli/ sì mite e bella ti tramandarono…”. [Esta e as
demais notas são do tradutor.] 
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2. Referente à Pianura Padana, a planície do rio Pó que corta parte da


Emília-Romanha. 
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3. No judaísmo, minyan designa o quórum de dez judeus adultos


necessários a certas obrigações religiosas. 
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4. “Está recitando o quê? Vamos, Giulio, se levante, vá! E tente pôr de pé o


menino também.” 
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5. Em hebraico, devoção exagerada, beatice. 


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6. “Criança.” 
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7. “Sábio”, em hebraico. 
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8. Primo Carnera (1906-67) foi um famoso pugilista, campeão mundial dos


pesos pesados em 1933, e seu nome acabou sendo dicionarizado para
designar pessoas muito fortes — como guarda-costas, no caso. Carnera
também foi utilizado por Mussolini para a propaganda fascista. 
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9. Disputas esportivas e culturais promovidas pelo regime de Mussolini, das
quais podiam participar os estudantes inscritos nos Grupos dos
Universitários Fascistas (guf). 
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10. Sigla para Ferrovie dello Stato (Ferrovias do Estado). 


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11. Verso de abertura do canto viii do Purgatório de Dante: “Era già l'ora
che volge il disìo”. 
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12. No dialeto de Ferrara, “dona de casa”. 


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13. “Verde paraíso dos amores infantis”, verso 21 do poema “Moesta et


errabunda”, das Flores do mal de Charles Baudelaire. 
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14. Citação do verso 60 do canto iii do Inferno de Dante (“che fece per
viltade il gran rifiuto”), em que se condena o papa Celestino v por ter
renunciado ao pontificado em 1294, até então o único papa a abdicar do
trono — o outro é o papa Bento xvi, que renunciou em 2013. 
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15. “Esforço.” 
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16. Filme de 1934 do cineasta tcheco Gustav Machatý (1901-63). 


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17. Em latim: “passa”, “ainda vai”. 


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18. “Não me deixe ainda, sofrimento.” O verso de Ungaretti, o último do
poema “Auguri per il proprio compleanno”, do livro Sentimento del tempo
(1936), é: “Non mi lasciare, resta, sofferenza!” [Não me deixe, fique,
sofrimento!]. 
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19. “Todas/ as fêmeas de todos/ os serenos animais/ que se aproximam de


Deus.” Versos finais do poema “A mia moglie” (1911), do Canzoniere de
Umberto Saba. 
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20. “Selvagem vilarejo natal” é um verso do poema “Le ricordanze” [As


recordações], de Giacomo Leopardi (1798-1837). 
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21. Os dois melhores hotéis de Bolonha antes da Segunda Guerra. 


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22. Poema 449, de Emily Dickinson: “I died for Beauty—but was scarce/
Adjusted in the tomb/ When One who died for Truth, was lain/ In an
adjoining Room— // He questioned softly ‘Why I failed?'/ ‘For Beauty', I
replied—/ ‘And I—for truth—Themself are One—/ We Brethren, are', He
said—// And so, as Kinsmen, met a Night—/ We talked between the Rooms
—/ Until the Moss had reached our lips—/And covered up—our names—”.
Na tradução de Maurício Santana Dias e Silvana Moreli Vicente Dias:
“Morri pela Beleza — mas mal/ Me habituara ao Túmulo/ Quando Alguém,
morto pela Verdade,/ Foi posto no Cômodo ao lado —// Suave me
perguntou ‘Por que morreu?'/ ‘Pela Beleza', repliquei eu —/ ‘E eu — pela
Verdade — Ambas iguais' —/ Disse ele — ‘Assim somos fraternais' —//
Então, como Parentes na Noite —/ Conversamos entre as Paredes —/ Até
que o Musgo nos chegou aos lábios —/ E nossos nomes — recobriu —”. 
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23. Citação de um verso de “Roma”, poema das Odi barbare (1877), em
que Carducci interpela Depretis: “Che importa a me se l'irto spettral
vinattier di Stradella” [Que me importa se o hirto e espectral vinhateiro de
Stradella]. 
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24. “Amaldiçoado seja esse sonhador vão/ Que em primeiro lugar, em sua
estupidez,/ Apegado a problemas assim sem solução,/ Quis às coisas do
amor misturar a honradez!” Tradução de Júlio Castañon Guimarães dos
versos 61-4 do poema “Femmes damnées (Delphine et Hippolyte)”
[Mulheres condenadas (Delfina e Hipólita)], do livro As flores do mal
(Penguin-Companhia das Letras, 2019, p. 475), de Charles Baudelaire.
Trata-se de um dos poemas que foram excluídos, por censura, da edição
original de 1857 e reinseridos na edição póstuma, de 1868. 
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25. Em inglês, algo como: “Você está querendo confetes”. 


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26. A ceia dos bufões, ópera de Umberto Giordano estreada em dezembro


de 1924, com libreto de Sem Benelli. 
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27. “Bravo el mè Baldissar! Bravo el mè nan!/ L'eva poeù de vegnì a


trovamm:/ t'el seet mattascion porch che maneman/ l'è on mes che no te
vegnet a ciollamm?/ Ah Cristo! Cristo! com'hin frecc sti man!”: cinco
versos iniciais de “La ninetta del Verzee”, poema fescenino de Carlo Porta
(1775-1821), escrito em milanês.  
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28. “Nò Ghittin: no sont capazz/ de traditt: nò, stà pur franca./ Mettem
minga insemma a mazz/ coj gingitt e cont'i s'cianca…”, primeira quartina
do longo poema homônimo. 
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29. “Paracar che scapee de Lombardia…”, primeiro verso do soneto


homônimo. 
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30. “Pensa ed opra, varda e scolta/ tant se viv e tant se impara;/ mi, quand
nassi on'altra volta,/ nassi on gatt de portinara!// Per esempi, in
Rugabella,/ nassi el gatt del sur Pinin…/ …scartoseij de coradella,/ polpa e
fidegh, barettin// del patron per dormigh sora…”, versos iniciais do poema
“El gatt del sur Pinin”, de Delio Tessa (1886-1939). 
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31. “Os judeus são indesejáveis em todo canto.” 


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32. “Finalment l'alba tance voeult spionada/ l'è comparsa anca lee di
filidur…”, versos 152-3 do poema “Lament del Marchionn di gamb avert”,
de Carlo Porta. 
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33. “Aonde é que vocês dois foram aprontar?”, em dialeto de Ferrara. 


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34. “O virgem, o vivaz e o belo agora”, verso inicial de soneto homônimo


de Stéphane Mallarmé (1842-98). 
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