Artigo Escritadotempo
Artigo Escritadotempo
Artigo Escritadotempo
1
Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Doutor em História pela UFPE.
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIST). Editor da Revista Escritas do
Tempo.
2
Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Doutor em História pela UFPE.
Diretor da Faculdade de História (FAHIST). Editor da Revista Escritas do Tempo.
3
Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Doutora em História Social pela
PUC-SP. Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIST). Editora da Revista
Escritas do Tempo.
4
Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Doutor em História pela
UFMG. Editor da Revista Escritas do Tempo.
Referências
HAMPATE BA, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (org.). História
Geral da África. Vol. 1. Brasília: MEC/UNESCO, 2010, p. 167-210. Disponível em:
http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-
view/news/general_history_of_africa_collection_in_portuguese_pdf_only/. Acesso em:
07 out. 2019.
Resumo: O presente artigo pretende, por meio dos conjuntos documentais do acervo de Clóvis
Moura, compreender sua produção e a relação com a historiografia sobre as populações negras
no Brasil. Destacamos o perfil do arquivo pessoal de Clóvis Moura (1925-2003), com ênfase
para sua trajetória como intelectual e militante do movimento negro no Brasil. Na perspectiva
de interdisciplinaridade entre a História e a Arquivologia, o estudo está focado nos tipos
documentais que, deliberadamente, Clóvis Moura acumulou em seu arquivo pessoal.
Palavras-Chaves: Patrimônio Documental. Acervo Documental. História do Negro.
Abstract: The present article intends, through the documentary sets of Clóvis Moura 's
collection, to understand its production and its relation with the historiography about black
populations in Brazil. We will highlight the profile of Clóvis Moura's personal archive (1925-
2003), with emphasis on his career as an intellectual and militant of the black movement in
Brazil. From the perspective of interdisciplinarity between history and archivology, the study
focuses on the documentary types that Clóvis Moura deliberately accumulated in his personal
archive.
Key-Words: Documentary Heritage. Documentary Collection. History of black people.
Résumé: Cet article a pour objectif, à travers les ensembles documentaires de la collection de
Clóvis Moura, de comprendre sa production et ses relations avec l’historiographie sur les
populations noires au Brésil. Nous soulignerons le profil des archives personnelles de Clóvis
Moura (1925-2003), en mettant l'accent sur sa carrière d'intellectuel et militant du mouvement
noir au Brésil. Dans la perspective de l'interdisciplinarité entre histoire et archivologie, l'étude se
concentre sur les types de documentaires que Clóvis Moura a délibérément accumulés dans ses
archives personnelles.
Mots-clés: Patrimoine documentaire. Collection documentaire. Histoire nègre.
1
Esse artigo está baseado em pesquisa de Iniciação Científica, no curso de História, com o título: “O
Acervo Documental de Clóvis Steiger de Assis Moura” (1925-2003), orientado pela Profª Drª Célia Reis
Camargo, realizada na Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras – Campus Assis,
desenvolvida no ano de 2009, com bolsa custeada pela FAPESP.
2
Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP (2018).
Atualmente é professora substituta do Instituto Federal de São Paulo – Campus São Paulo/IFSP-SPO,
Coordenadora do curso de Pedagogia da Universidade Brasil – Campus Itaquera e professora do curso de
Serviço Social e Pedagogia pela mesma universidade. Pesquisadora associada da ANPUH-SP desde 2008.
Introdução
O Arquivo Clóvis Steiger de Assis Moura (Fundo Clóvis Moura), doado por sua
filha Soraya Moura ao CEDEM – Centro de Documentação e Memória da UNESP –, é
formado por uma documentação peculiar (MORAES, 2018). O acervo aqui apresentado
deve ser ressaltado pela sua relevância aos estudos sobre a história do negro e/ou do
movimento negro no Brasil. Esta afirmação pode ser constatada com o inventário 3 do
acervo que está à disposição dos pesquisadores no CEDEM.
Para os que desconhecem a figura de Clóvis Moura, é importante ressaltar
alguns dados biográficos de sua trajetória profissional. Sem nenhuma intenção de
monumentalizar esse intelectual, seu percurso documenta, de forma irrefutável, a luta
6
contra a desigualdade racial e social, dentro e fora dos meios acadêmicos, em âmbito
local, regional e nacional. No entanto, antes de iniciarmos a discussão central deste
artigo, passemos por uma breve biografia de Moura.
Clóvis Steiger de Assis Moura (1925-2003) nasceu em 1925, no município de
Amarante, no Piauí (Brasil). Filho de Francisco de Assis Moura e Elvira Moura, era
mestiço e descendente de um “barão prussiano” e de uma escrava da fazenda de
engenho na zona da mata pernambucana. Depois de residir em Natal (RN) e Salvador
(BA), foi para São Paulo onde concluiu o curso de Ciências Sociais no ano de 19534.
Concomitantemente à sua carreira de jornalista e como membro do PCB, Moura
pesquisava história, em particular sobre a rebeldia negra no tempo da escravidão, tendo
como objetivo demonstrar o importante e ativo papel do negro na formação da nação.
Desse modo, em 1959 publicou seu primeiro e marcante livro, Rebeliões da Senzala
(1988) – obra que completou 60 anos agora em 2019 –, dentre vários outros que
publicou posteriormente, todos sobre a questão racial no Brasil. Em seus escritos
3
Inventário: Instrumento de pesquisa que descreve, sumária ou analiticamente, as unidades de
arquivamento de um fundo ou parte dele, cuja apresentação obedece a uma ordenação lógica que poderá
refletir ou não a disposição física dos documentos.
4
Neste período era o Instituto de Ciências Humanas da USP, em Marília – SP.
O Arquivo
5
Prova desse esforço está no tombamento, em 1986, do Quilombo de Palmares pelo IPHAN como
patrimônio histórico e cultural nacional.
No que se refere ao estudo dos arquivos privados, Ariane Ducrot e Priscila Fraiz
defendem que, para se construir uma metodologia arquivística, a primeira coisa a se
fazer é o respect des fonds, ou seja, o respeito à ordem original, articulada ao princípio
da proveniência:
onde emergem novos objetos e fontes para a pesquisa, a qual, por sua vez, tem
que renovar sua prática incorporando novas metodologias, o que não se faz sem
uma profunda renovação teórica, marcada pelo abandono de ortodoxias e pela
aceitação da pluralidade de escolhas. Isto é, por uma situação de marcante e
clara diversidade de abordagens no fazer história (GOMES, 1998, p. 122).
afirma que a memória coletiva só pode ser revelada a partir dos estudos de arquivos
coletivos ou pessoais (VIDAL, 2007, p. 2).
Na obra organizada por Ângela de Castro Gomes, intitulada Escrita de Si,
escrita da História, discute-se a ideia da escrita de si - que abarca diários,
correspondência, biografias e autobiografias -, independentemente de serem memórias
ou, por exemplo, entrevistas de história de vida: “o conjunto da obra é uma amostra
expressiva de como os chamados textos auto-referenciais vêm ganhando terreno no
trabalho de muitos historiadores do país, ilustrando as várias possibilidades e resultados
de se lidar com eles (GOMES, 2004, p. 10).
Definição recente proposta pelo Dicionário de Terminologia Arquivística
destaca o termo “arquivos privados” como “arquivo de entidade coletiva de direito
privado, família ou pessoa. Também chamado arquivo particular” (ARQUIVO
6
O termo utilizado por Cook, “custodiadores jenkinsonianos”, vem dos livros-marcos sobre teoria e
metodologia arquívisticas de Sir Hilary Jenkinson, Eugenio Casanova e Theodore Schellenberg, na
primeira metade do século XX. Os princípios tradicionais da arquívistica derivaram quase que
exclusivamente das experiências pessoais dos autores como custadiodores de arquivos institucionais de
governos, e dos problemas com que se defrontaram na organização e descrição de tais documentos.
7
Estes grupos de estudos “ampliou as perspectivas da pesquisa histórica, introduzindo novas abordagens,
temporalidades e sujeitos” (MIRANDA, 2011, p. 4).
8
Temos trabalhos pioneiros sobre este assunto. Ver: FRAIZ, 1994; HEYMANN, 1997.
9
Os arquivos privados considerados de interesse público e social pelo CONARQ confirma essa ideia da
Angela de Castro Gomes. Ver: Legislação Arquivística Brasileira. Publicação Digital, atualizada em
dezembro de 2012.
10
Para saber mais sobre o assunto, ler: CAMARGO, 2003, p. 21-44.
11
Para saber mais, ver: CAMARGO, 2003, p. 21-44.
12
Gustavo Orsolon também estudou sobre Clóvis Moura em sua dissertação de Mestrado, a saber:
SOUZA, 2013.
13
Ruy defende em seu artigo que as teses de Clóvis Moura tinham profunda influência marxista. Ver
RUY, 2004.
14
Em relação à marginalização dos negros no pós-abolição ver: MOURA, 1977. Mais recentemente
temos, sobre o mesmo assunto: DOMINGUES, 2005.
15
Entrevista concedida por Clóvis Moura publicada em Movimento UNE. Revista Bimensal da União
Nacional dos Estudantes. nov/dez, 1981. p. 35-36.
Em suma, o que pretendemos neste artigo foi expandir nosso olhar crítico para a
própria sociedade em que estamos inseridos, analisando nossos próprios costumes e
representações.
MORAES, Sandra (org.). Guia do Acervo – CEDEM. São Paulo: Cedem / UNESP,
2018.
MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. 4. Ed. São Paulo: Ed. Mercado Aberto, 1988.
______. O Negro: de Bom Escravo a Mau Cidadão? Rio de Janeiro: Ed. Conquista, 24
1977.
RUY, José Carlos. Clóvis Moura investigava o passado histórico para compreender
melhor as lutas do presente. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, v. 1, n. 32, 2004.
Resumo: Este artigo tem como objetivo elucidar as funções e os usos relacionados às
representações de gênero dos cartazes de propaganda chineses do I Plano Quinquenal (1953-7).
As fontes estão disponíveis no site http://chineseposters.net/, mantido pela Leiden University.
Ele reúne pôsteres da coleção de Stefan Landsberger, professor emérito dessa instituição, e de
uma coleção particular anônima. Utilizou-se o método iconológico para a análise imagética e a
Análise Crítica do Discurso para o estudo das legendas dos cartazes. Defende-se que o Partido
Comunista usou os pôsteres para construir hegemonia na sociedade chinesa acerca das relações
de gênero consideradas em acordo com o socialismo, valorizando modelos de mulheres ativas
no mundo do trabalho e de casais harmoniosos. Com isso, esses sujeitos não transportariam seus
problemas pessoais para a esfera da produção, possibilitando o seu incremento, fator tido como
fundamental à transição socialista.
Palavras-chave: China. Gênero. Plano quinquenal. Revolução chinesa. Socialismo.
Abstract: This article aims to elucidate the functions and uses related to gender representations
of the Chinese propaganda posters of the First Five-Year Plan (1953-7). The sources are
available at http://chineseposters.net/ maintained by Leiden University. It collects posters from
the collection of Stefan Landsberger, emeritus teacher of this institution, and from an
25
anonymous private collection. It was used the iconological method to analyze the images and
Critical Discourse Analysis for the study of poster subtitles. It is argued that the Communist
Party used the posters to build hegemony in Chinese society over gender relations considered in
accordance with socialism, valuing models of women active in the working world and
harmonious couples, that would not carry their problems into the sphere of production,.
production sphere, enabling its increase, a factor considered fundamental to the socialist
transition.
Keywords: China. Gender. Five-year plan. Chinese revolution. Socialism.
Résumé: Le But de cet article est élucider les fonctions et les utilisations liées aux
représentations de genre des affiches de propagande chinoise du Premier Plan Quinquennal
(1953-7). Les sources sont disponibles sur http://chineseposters.net/, sur le site de l’Université
de Leiden. Sur cette page il y a les affiches de la collection de Stefan Landsberger, professeur
1
Mestrando em História do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense (PPGH/UFF), com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). Atua como pesquisador do Centro de Estudos Asiáticos (CEA) da UFF e pesquisador
associado do Laboratório de Estudos da Ásia da Universidade de São Paulo (LEA/USP); integrante da
Associação Nacional de História (ANPUH), da Rede Brasileira de Estudos da China (RBChina) e da
Asociación Latinoamericana de Estudios de Asia y África (ALADAA). E-mail: ecparnov@gmail.com.
2
Professora de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense. Possui graduação em
História pela Universidade Federal Fluminense (2004), mestrado (2008) e doutorado (2012) pela
Universidade Federal Fluminense. E-mail: tatiana.poggi@gmail.com.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo dilucidar las funciones y usos relacionados con las
representaciones de género de los carteles de propaganda chino del Primer Plan Quinquenal
(1953-7). Las fuentes están disponibles en el sitio http://chineseposters.net/, mantenido por la
Leiden University. El sitio recoge carteles de la colección de Stefan Landsberger, profesor
emérito de esta institución, y de una colección privada anónima. El método iconológico se
utilizó para el análisis de imágenes y el Análisis Crítico del Discurso para el estudio de
subtítulos de carteles. Se argumenta que el Partido Comunista usó los carteles para construir
hegemonía en la sociedad china sobre las relaciones de género consideradas de acuerdo con el
socialismo, valorando modelos de mujeres activas en el mundo laboral y parejas armoniosas,
que no llevarían sus problemas a la esfera de producción, permitiendo su aumento, un factor
considerado fundamental para la transición socialista.
Palabras-clave: China. Género. Plan quinquenal. Revolución China. Socialismo
Introdução
3
A partir de agora nos referiremos a essa organização pela sigla PCCh.
4
Colocado em prática pelo Partido Comunista Chinês, ele consistiu em um esforço de reconstrução
econômica do país, arrasado após as quase três décadas de lutas que antecederam o triunfo da revolução
chinesa, em 1949. Ele foi inspirado nos planos quinquenais soviéticos do período stalinista, priorizando a
indústria pesada em detrimento dos campos e centralizando as decisões políticas no aparelho estatal
(BELLASEN et. al., 1977, p. 58).
5
De agora em diante, simplesmente, RPC.
6
Disponível em: http://chineseposters.net/. Acesso em: 19 de outubro de 2019.
Os “casais harmoniosos”
7
As traduções das legendas de todos os cartazes foram realizadas pelos autores.
Em relação a esse pôster, trata-se mais uma vez de um casal de camponeses, haja
vista que ambos estão sorrindo e olhando um para o outro com cumplicidade. Contudo,
dessa vez eles são representados na esfera da produção, provavelmente realizando uma 32
colheita, uma vez que, enquanto a mulher carrega um feixe de trigo, o homem segura
uma foice nas mãos. Além disso, ambos estão com roupas leves e de mangas compridas
para se proteger do sol e o camponês usa um grande chapéu de palha preso ao pescoço.
Por conseguinte, trata-se mais uma vez de um casal feliz, possibilitado pela
Nova Lei do Casamento, assim como de um indicativo de que a liberdade de
matrimônio viabilizaria um casal harmonioso, o qual não teria conflitos para transportar
da esfera privada para a da produção, tornando possível o seu incremento, tão
valorizado pelo I Plano Quinquenal (BELLASSEN, 1977, p. 57), em vigência a partir
do ano de produção do cartaz em questão. Ademais, ao falar em casamento feliz em
decorrência da liberdade de escolha, bem como de atrelar felicidade à produção, a
legenda da imagem corrobora essa interpretação.
Figura 6: New view in the rural village, 1953 (Nova visão na aldeia rural)
Figura 7: The hogs of the commune must be raised to be fat and big!, 1956 (Os porcos
da comuna devem ser criados para serem gordos e grandes!)
As “operárias-modelo”
Figura 8: We are grateful for the support of our peasant Brothers for ensuring our
production!, 1956 (Somos gratos pelo apoio de nossos irmão camponeses para garantir
nossa produção!)
As “cuidadoras”
No que concerne ao cartaz acima, na frente vê-se uma mulher com duas
crianças, uma menina em uniforme estudantil em pé ao seu lado segurando um pequeno
livro, provavelmente contendo trechos dos pensamentos de algum dirigente do PCCh, e
um bebê do gênero masculino em seus braços. Os três estão sorrindo e olhando para
frente e o bebê parece acenar para alguém conhecido, talvez se despedindo. Ao fundo,
40
encontram-se várias crianças também usando uniforme escolar, brincando em uma roda
gigante e sendo acompanhadas por uma mulher adulta. Em razão disso, infere-se que o
prédio situado atrás das pessoas representadas em primeiro plano é uma escola e as
crianças que estão brincando em segundo plano encontram-se no pátio da instituição.
Neste sentido, entende-se que as mulheres junto às duas crianças nos dois planos da
imagem são professoras. Além disso, a legenda do cartaz enfatiza que as crianças
crescem felizes sob o socialismo, se referindo à possibilidade de receberem educação
formal e serem ensinados por professores realmente preocupados com elas.
Portanto, observa-se nesse cartaz uma reconfiguração da condição subalterna das
mulheres chinesas, haja vista que a profissão de professora das séries iniciais é atrelada
ao cuidado, concebido como uma característica naturalmente feminina, tanto que
nenhum homem aparece como professor.
Já na imagem acima, uma mãe está arrumando seus filhos para levá-los à escola,
sendo eles uma garota mais velha que está olhando para o espelho enquanto arruma a
gravata de seu uniforme, uma menina mais nova que olha para suas unhas pintadas e um
pequeno garoto segurando a mão da mãe, além de um outro menino ao fundo que se
despede do pai, o qual está indo de bicicleta para o trabalho na indústria. Fato que se
percebe em razão de seu uniforme operário de cor azul escura e de aparecerem
chaminés atrás dele. Somado a isso, a legenda do cartaz enfatiza que o pai está indo
trabalhar e as crianças estudar. 42
Figura 14: A new household that is democratic, peaceful, and engages in united
production, 1954 (Um novo lar que é democrático, pacífico e se engaja na produção
unida)
As “mulheres guerreiras”
Figura 15: Study the battle spirit of the Red Army during the Long March, conquer
nature, build up our nation, 1953 (Estude o espírito de batalha do Exército Vermelho
durante a Longa Marcha, conquiste a natureza, construa a nação)
Figura 16: New China’s female parachuters, 1955 (Paraquedistas do sexo feminino da
nova China)
Figura 17: Parachuters, early 1950s (Paraquedistas, início dos anos 1950)
45
Fonte: The IISH-Landsberger Collections. Disponível em: https://chineseposters.net/posters/d25-202.php.
Acesso: 22 de agosto de 2019.
Seguindo a linha das duas anteriores, essa imagem representa uma mulher
paraquedista com um semblante sério, transmitindo ao observador profissionalismo, à
frente de várias paraquedistas ordenadas em uma fileira, atrás das quais encontram-se
quatro aviões também enfileirados, indicando que elas estão se preparando para realizar
um salto. Além disso, a ideia de que a China socialista propiciou às mulheres a entrada
em áreas outrora majoritariamente masculinas, como a aeronáutica, é reforçada pela
legenda, a qual frisa que a Nova China possibilitou a elas servirem à nação sem
obstáculos e de forma livre.
46
As “mulheres unidas”
Figura 19: We have been pregnant with life, we want to safeguard life!, 1957 (Nós
estivemos grávidas da vida, queremos salvaguardar a vida!)
Por fim, vale ressaltar que não foi possível enquadrar um dos cartazes do I Plano
Quinquenal nas categorias supracitadas, sendo necessário inseri-lo em uma classificação
à parte, a qual chamou-se de “união das mulheres”. Nele, são representadas uma mulher
Conclusões
Referências
BEJA, Flora Botton. La larga marcha hacia la igualdad. Mujer y familia en China. In:
FISAC, Taciana (org.). Mujeres en China. Madri: Agencia Española de Cooperación
Internacional, 1995.
BURKE, Peter. Testemunha ocular: o uso de imagens como evidência história. São
Paulo: Editora Unesp, 2017.
Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a forma como a imprensa pernambucana
representava as festas juninas num período consagrado pela historiografia como República
“Velha”, mais precisamente nas primeiras décadas do século XX. A intenção é analisar quais os
caminhos percorridos pelos profissionais das letras para divulgação da festa na capital do
estado, visando compreender quem era o seu público de leitores, se havia mais de um perfil de
consumidor e quais os efeitos de sentido provocados na sociedade após o consumo das
manchetes e das notícias diárias. A análise da documentação coletada nos dois principais
centros de documentação do Estado - o Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE)
e a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) -, nos leva a perceber que os símbolos comuns à festa
(balões, fogos de artifício, fogueiras, livros de sorte, comidas de milho), transitam no intervalo
de tempo pesquisado, sem necessariamente serem apresentados de forma evolutiva e
exclusivamente locais; pelo contrário, sendo incorporados à imagem nacional da festa (do litoral
ao interior) e convivendo com as novas tendências criadas pelos deslocamentos da História. De
maneira geral, podemos inferir que tais representações constroem elos com o passado rural,
transfigurando o cenário urbano da festa com símbolos e personagens que remetem à vida nas
fazendas e nos engenhos, difundindo traduções de pensamentos, opiniões, imagens e visões
sobre como as festas juninas são e devem acontecer.
Palavras-chave: Festas juninas. Representações. Imprensa pernambucana.
Abstract: This article aims to analyze the way the Pernambuco press represented the June
festivities in a period consecrated by historiography as “Old” Republic, more precisely in the 50
first decades of the twentieth century. The intention is to analyze the paths taken by the letter
professionals to publicize the party in the state capital, in order to understand who their readers
were, if there was more than one consumer profile and what the effects of meaning caused on
society after the event, consumption of headlines and daily news. The analysis of the
documentation collected at the two main state documentation centers - the Jordão Emerenciano
State Public Archive (APEJE) and the Joaquim Nabuco Foundation (Fundaj) - leads us to
realize that the symbols common to the party (balloons, fireworks, bonfires, lucky books, corn
meals), transit in the researched time interval, without necessarily being presented in an
evolutionary and exclusively local way; on the contrary, being incorporated into the national
image of the festival (from the coast to the interior) and living with the new trends created by
the displacements of History. In general, we can infer that such representations build links with
the rural past, transfiguring the urban scene of the party with symbols and characters that refer
to life on farms and mills, spreading translations of thoughts, opinions, images and visions about
how parties juninas are and should happen.
Keywords: June parties. Representations. Pernambuco press.
Résumé: Cet article a pour objectif d’analyser la manière dont la presse pernambuco a
représenté les festivités de juin à une époque consacrée par l’historiographie en tant que
1
Professor Adjunto da Universidade de Pernambuco Campus Mata Norte, onde leciona as disciplinas:
História da África, Educação das Relações Étnico-Raciais, Cultura Negra e Ensino de História, na
Graduação. No ProfHistória ministra a disciplina Ensino de História da África e da Cultura Afro-
Brasileira. Possui Doutorado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar la forma en que la prensa de Pernambuco
representó las festividades de junio en un período consagrado por la historiografía como la
"Antigua" República, más precisamente en las primeras décadas del siglo XX. La intención es
analizar los caminos tomados por los profesionales de la carta para publicitar la fiesta en la
capital del estado, con el fin de comprender quiénes eran sus lectores, si había más de un perfil
de consumidor y cuáles fueron los efectos del significado que causaron en la sociedad después
del evento consumo de titulares y noticias diarias. El análisis de la documentación recopilada en
los dos principales centros de documentación estatales: el Archivo Público del Estado Jordão
Emerenciano (APEJE) y la Fundación Joaquim Nabuco (Fundaj), nos lleva a darnos cuenta de
que los símbolos comunes a la fiesta (globos, fuegos artificiales, hogueras, libros de la suerte, 51
harinas de maíz), tránsito en el intervalo de tiempo investigado, sin necesariamente ser
presentado de una manera evolutiva y exclusivamente local; por el contrario, incorporarse a la
imagen nacional del festival (desde la costa hasta el interior) y convivir con las nuevas
tendencias creadas por los desplazamientos de la Historia. En general, podemos inferir que estas
representaciones construyen vínculos con el pasado rural, transfigurando la escena urbana de la
fiesta con símbolos y personajes que se refieren a la vida en granjas y molinos, difundiendo
traducciones de pensamientos, opiniones, imágenes y visiones sobre cómo las fiestas Las
juninas son y deberían suceder.
Palabras claves: Fiestas de junio. Representaciones. Prensa Pernambuco.
Introdução
2
A documentação sobre o Carnaval é vasta e diversificada nos arquivos do estado de Pernambuco. O
APEJE disponibiliza ao público um conjunto de periódicos impressos pelas próprias agremiações na
segunda metade do século XIX, a exemplo dos jornais O Corta Jaca, A Imprensa, entre outros que
distribuídos entre os foliões dias antes da folia oficial.
55
Essa tragédia bíblica, que motivou notas especiais de periódicos durante o mês
de junho em diferentes épocas, chegou a ser exibida como projeção, no dia 24 de junho 59
de 1913, dentro da programação do Theatro Moderno, localizado na praça da
Concórdia, centro do Recife.
As biografias dos santos seguiram como pauta da imprensa no decorrer de toda a
década de 1920, dividindo espaço com notas de desencantos cada vez mais comuns no
tocante aos rumos que as celebrações vinham tomando. No Diário de Pernambuco de
24 de junho de 1926, a história do precursor, filho de Zacarias e Izabel, nascido na tribo
de Judá e falecido na Palestina, cedeu algumas linhas para o registro do sentimento de
desolação que assolava grande parcela dos moradores da cidade:
63
64
Fonte: A Pilhéria, 22 jun. de 1929, nº. 400. Ano IX. Acervo Fundaj.
Considerações Finais
O conjunto de imagens que se tece em torno dos festejos juninos atribui novos
significados à vivência da celebração na cidade, motivo que nos leva a concordar com
Raimundo Arrais, quando afirma que “um espaço não tem uma natureza cristalizada.
68
Seus significados derivam dos investimentos simbólicos feitos sobre ele, por meio de
rituais promovidos pelo Estado ou certos grupos sociais” (ARRAIS, 2004, p. 15).
Com base nesse pensamento, que reforça a inexistência de espaços sem as
práticas que lhe conferem sentido, nesse estudo, buscamos apresentar o São João do
Recife integrado às práticas cotidianas dos indivíduos, com sinais claros que definem a
cidade e sua gente, e não como uma realidade oposta a este universo (CERTEAU, 2008,
p. 39-40).
Desse modo, torna-se mais fácil perceber a teia de relações sociais que cerca o
fenômeno estudado, possibilitando não elaborar um trabalho meramente pelo ângulo
descritivo, uma vez que estamos diante de um conjunto de ações e atividades que
reverberam para além das fronteiras da espetacularização. Uma prática que interage,
direciona e transforma o cotidiano de diferentes grupos sociais, formados na sua maioria
por comerciantes, artesãos, músicos, jornaleiros, auxiliar de comércio, biscateiros,
desempregados, entre outros personagens de diferentes classes sociais.
Essa maneira de enxergar a festa, como ação coletiva, ultrapassa o sentido de
válvula de escape atribuído por alguns estudiosos. Embora seja possível considerar que
Referências
ARRAIS, Raimundo. O pântano e o riacho: a formação do espaço público no Recife do
século XIX. São Paulo: Humanitas /FFLCH/USP, 2004.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10ª ed. São Paulo:
Global, 2001.
MOURA, Carlos André Silva de. Fé, Saber e Poder: os intelectuais entre a Restauração
Católica e a política no Recife (1930-1937). Recife: Prefeitura da Cidade do Recife,
2012.
MORIGI, Valdir José. Narrativas do Encantamento: o maior São João do mundo, mídia
e cultura regional. Porto Alegre: Armazém Digital, 2007.
SANTOS, Mário Ribeiro dos. Trombones, tambores, repiques e ganzás: a festa das
agremiações carnavalescas nas ruas do Recife. Recife: SESC, 2010.
SILVA, Lucas Victor da. O Carnaval na cadência dos sentidos: uma história sobre as
representações das folias do Recife entre 1910 e 1940. Tese (Doutorado em História),
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, 2009.
71
Abstract: This article proposes to discuss the set of witness narratives from historian and writer
Joel Rufino dos Santos, who was arrested and tortured in the early 1970s due to his political
struggle against the civil-military dictatorship established for twenty-one years in Brazil (1964-
1985). Through interviews by the author, that form a web of memories which singularizes it as a
surviving testimony to the regime, I seek to understand the forms of expression coined by the
writer, facing the (im)possibilities to narrate traumatic experiences like torture, undertaken
during this period of national history by agents of the public power.
Keywords: Joel Rufino dos Santos. Civil-military dictatorship. A testimony. Torture. Memory.
Résumé: Cet article propose de discuter l'ensemble des récits de témoins de l'historien et
écrivain Joel Rufino dos Santos, qui a été arrêté et torture au début des années 1970 en raison de
sa lutte politique contre la dictature civilo-militaire établi depuis vingt et un ans au Brésil (1964-
1985). À travers des interviews de l'auteur, qui forment une toile de souvenirs qui le singularise
comme un témoignage survivant du régime, Je cherche à comprendre les formes d'expression
inventées par l'écrivain, face aux (im)possibilites raconter des expériences traumatiques comme
la torture, entrepris au cours de cette période d'histoire nationale par des agents du pouvoir
public.
Mots-clés: Joel Rufino dos Santos. Dictature civilo-militaire. Témoignage. La torture. La
mémoire.
Resumen: Este artículo propone discutir el conjunto de narraciones de testigos del historiador y
escritor Joel Rufino dos Santos, quien fue arrestado y torturado a principios de la década de
1
Doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Possui Mestrado
em História pela UFRGS (2018) e Graduação (Licenciatura e Bacharelado) em História pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (2015). Leciona em regime ACT pela Secretária de Educação
do Estado de Santa Catarina (SED-SC). É Pesquisadora Associada ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros
da Universidade do Estado de Santa Catarina (NEAB/UDESC). Atua como Assistente Administrativo da
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e Chefe de Edições da Revista da ABPN.
Tem experiência na área de História, atuando principalmente nos seguintes temas: história do Brasil,
história da África e da Diáspora e seu ensino, relações étnico-raciais e diversidade.
Introdução
2
O relatório está disponível em <http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/>. Acesso em: 25 jul. 2019.
3
O projeto “Brasil Nunca Mais” reuniu, por exemplo, o exame de cerca de 850 mil páginas de processos
judiciais movidos contra presos políticos. A publicação retrata as torturas e outras graves violações aos
direitos humanos durante a ditadura civil-militar brasileira, comprovadas a partir do uso de documentos
oficiais do próprio Estado, que institucionalizou a tortura como ferramenta de investigação e repressão
nesse período. O projeto e seu acervo podem ser consultados em http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/.
Acesso em: 27 jun. 2019.
4
No decorrer do artigo informo as fontes de acesso de cada entrevista utilizada.
5
As próximas informações, discorridas nesta parte do texto, foram colhidas no site dedicado à memória
de Joel Rufino dos Santos, disponível em: http://joelrufinodossantos.com.br/paginas/biografia.asp. Foram
cruzadas informações contidas no site, as entrevistas concedidas pelo escritor nos portais de notícias e em
artigos acadêmicos que exploraram as produções do escritor.
6
Vanessa Clemente Cardoso (2016) ressalta que a obra criticava a historiografia tradicional apresentada
nos manuais escolares utilizados no Brasil e, ao mesmo tempo, objetivava uma inovação no seu conteúdo,
possuindo uma dimensão política. Suas páginas apresentavam a necessidade de reformas sociais, em
especial no plano educacional, enquadrando-se no prospecto político que o país vivenciava durante o
governo João Goulart. Contudo, com a instauração do regime civil-militar, os volumes da História Nova
foram queimados e proibidos e seus autores tornaram-se alvo de perseguição.
7
A Ação Libertadora Nacional (ALN) foi uma organização revolucionária criada em 1968 por Carlos
Marighella, Joaquim Câmara Ferreira e Virgílio Gomes da Silva, dissidentes do Partido Comunista
Brasileiro (PCB). Ao lado do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e do Partido Comunista
Brasileiro Revolucionário (PCBR), foi um dos principais grupos que, entre as décadas de 1960 e 1970, se
dedicaram à guerrilha no país, defendendo a necessidade da luta armada para derrubar o regime civil-
militar instaurado no Brasil.
8
Algumas obras mais expressivas do autor: Épuras do social: como podem os intelectuais trabalhar para
os pobres. São Paulo: Global, 2004; Assim foi se me parece: livros, polêmicas e algumas memórias. Rio
de Janeiro: Rocco, 2008; Atrás do muro da noite: dinâmica das culturas afro-brasileiras. Brasília: MINC /
Fundação Cultural Palmares, 1994. (coautoria Wilson dos Santos Barbosa). História política do futebol
brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1981; O que é racismo. São Paulo: Brasiliense, 1982; Gosto de África.
São Paulo: Global, 1998; O caçador de lobisomem, ou, o estranho caso do cussaruim da Vila do
Passavento. São Paulo: Abril Cultural, 1975; Claros sussurros de celestes ventos. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2012. Quando eu voltei, tive uma surpresa. Ed. Rocco, 2000.
As falas de Joel Rufino dos Santos estão conectadas a esse cenário. O intelectual
também irá contribuir com depoimento para a Comissão da Verdade do Estado de São
Paulo – Rubens Paiva, no relatório localizado na seção temática específica denominada
Perseguição à População e ao Movimento Negros, publicado em março de 2015.
Antes disso, contudo, o autor já havia tocado nas memórias do passado quanto a
sua experiência durante a ditadura civil-militar em algumas entrevistas concedidas, que
narram lembranças marcadas por subjetividades, sentimentos e sensações. Tais
entrevistas não foram efetuadas no sentido de investigar ou colher o depoimento do
testemunho, sendo mais gerais e centradas na atuação, na inspiração e na produção do
intelectual negro. Não obstante, a temática evocando o sobrevivente da repressão foi,
por vezes, brevemente tocada nas entrevistas, onde Rufino pode narrar suas memórias.
9
No caso de estudo da pesquisadora, foram analisadas produções literárias, cinematográficas, artísticas e
acadêmicas produzidos pelas/os filhas/os de resistentes à ditadura civil-militar, que expressavam suas
identidades e afirmavam ou negavam as heranças das experiências extremas vividas por elas ou por seus
pais. Sua tese (2018) analisa essas produções, buscando entender e cunhar as formas de expressão do
testemunho de situações-limite e experiências extremas provocadas pela conjuntura ditatorial.
O título Assim foi (se me parece) já sugere que não creio em memória
“verdadeira”. Há uma diferença, uma lacuna entre falar e dizer, aí se instala a
memória. Os fatos que relato aconteceram, mas para outros que os viveram
significaram outras coisas. Mesmo os livros de História andam cheios de ficção,
no sentido em que todo relato introduz uma subjetividade. Com mais razão
ainda num livro como o meu. (SANTOS, 2008, s/p)
dos presos políticos que conheci que passaram por tortura, grosso modo,
dividiam-se em dois grupos. Um grupo achava que a tortura, que o torturador,
são desumanos, que não são gente, que são monstros ou algo parecido; e o outro
grupo achava que, apesar de ser uma forma extrema de crueldade, uma
experiência-limite, o torturador é humano e que, dependendo das circunstâncias,
uma pessoa que não torturaria, tortura.
quem passou pela tortura, quase certamente denunciou alguém, levou à queda
de alguém. Mesmo aqueles que morreram sob tortura, eventualmente, podem ter
entregado alguém, o que não os livrou de morte. [...] durante algum tempo, me
puni muito por ter entregado algumas pessoas. E só me recuperei, cumprindo
pena por alguns meses depois, conforme retomei o processo de luta como preso
político. O preso político, mesmo ali naquelas condições carcerárias, tem
condição de lutar, de prosseguir a sua luta de alguma maneira. [...]
Vamos falar das sequelas desse sofrimento. Esse sofrimento de ter entregado
algumas pessoas, penso quase ter me curado por conta disso, porque não desisti
de lutar, continuo lutando, de alguma maneira, continuo comunista. Isso, então,
me cura, ou quase, dessa sequela. Agora, há sequelas dificílimas, talvez
impossíveis de se curar. Por exemplo, ter visto alguém morrer sob tortura ou ter
visto alguém ser torturado barbaramente, uma pessoa jovem (SANTOS, 2013,
p. 27). 80
Bom, primeiro, eu acho que é inenarrável. Não dá para narrar, que você só
experimenta quando está para morrer. A sensação é essa. Chega uma altura que
não faz mais diferença viver ou morrer. Se morrer é melhor – você chega a
pensar isso. Mas quando você não morre, você se culpa por não ter morrido.
Esse é um problema do torturado. Porque, se você sobreviveu, alguma coisa
você falou. Seja mentira, seja verdade, seja para enganar os torturadores, foi
alguma coisa que você falou que livrou a sua cara. E você aí, depois, fica: “Eu
não devia ter falado, devia ter morrido”. Isso acompanha você durante um
tempo. E passam anos e você parece que não esquece nunca. Você não
consegue superar, tirar aquilo de dentro de você (SANTOS, 2013, p. 506).
Este depoimento não está à altura do que seu autor gostaria de dar. Se o desse
com menos idade, com mais energia e saúde, emergiriam outros fatos
significativos do racismo (ou do que nos habituamos a chamar assim) na
repressão aos que lutaram contra a ditadura. Já esqueci muito, embora não tenha
superado as sessões de choque, em mim e na minha mulher na época, despidos
para acentuar a solidão, os gritos e gemidos das noites infernais, os revólveres
engatilhados em nossas cabeças, a morte de jovens como nós, seus choros,
gritos e excrementos, suas palmas como troncos produzidos por palmatórias
furadas. (SANTOS, 2015, p. 31) 83
Referências
ABREU, Alzira Alves de. Ação Libertadora Nacional (ALN). In: ABREU, Alzira Alves
de et al (coords.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós-1930. Rio de
Janeiro: CPDOC, 2010.
SANTOS, Joel Rufino dos. Entrevista: Joel Rufino dos Santos. Entrevistador: Luciano
Trigo. Entrevista concedida ao Portal G1, 29 de outubro de 2008. 85
Disponível em >http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/2008/10/29/entrevista-
joel-rufino-dos-santos/> Acesso em 24 de julho de 2019.
SANTOS, Joel Rufino dos. Entrevista: Joel Rufino dos Santos. Entrevista concedida a
Revista Democracia Viva, 2013. Disponível em: <http://www.canalibase.org.br/wp-
content/uploads/2015/09/dv_ibase_44_entrevista20-33.pdf >. Acesso em: 28 jul. 2019.
SANTOS, Joel Rufino dos. Entrevista com Joel Rufino dos Santos. Concedida a Amauri
Mendes Pereira, Amilcar Araújo Pereira e Verena Alberti. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 26, nº 52, p. 491-518, julho-dezembro de 2013. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-21862013000200012>.
Acesso em: 25 jul. 2019.
SANTOS, Joel Rufino dos. Joel Rufino, testemunho e reflexão sobre a Ditadura Militar
no Brasil. Entrevista concedida ao Grupo Editorial Global no YouTube, 2014.
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=U8qLH6o2nIo>. Acesso em: 25
jul. 2019.
SANTOS, Joel Rufino dos. Depoimento: um flash do negro sob a repressão da ditadura.
In: SÃO PAULO, Comissão da Verdade “Rubens Paiva”. Relatório - Tomo I - Parte II -
Perseguição à População e ao Movimento Negros, 2015. Disponível em
http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/. Acesso em: 29 jul. 2019.
SINGER, Paul. O processo econômico. In: REIS, Daniel Aarão (Coord). Modernização,
ditadura e democracia: 1964-2010. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
86
Janaína Helfenstein1
1
Doutoranda em História e Cultura Social pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(Unesp campus de Franca) e bolsista pela CAPES. É professora da Faculdade de Ensino Superior de
Marechal Cândido Rondon – Isepe Rondon. Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Paraná (UFPR). É graduada (Licenciatura Plena) em História pela Universidade
Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO-PR). Por fim, atua como pesquisadora nas seguintes áreas
temáticas: Demografia Histórica; História da Família; História do Luteranismo no Brasil; Imigração
alemã para o Brasil. E-mail: janaina_helfenstein@yahoo.com.br.
2
“[...] o parentesco espiritual, que contrahirão, do qual nasce impedimento, que não só impede, mas
dirime o Matrimônio [...] o qual parentesco conforme a disposição do Sagrado Concílio Tridentino, se
contrahe sómente entre os padrinhos, e o baptizado, e seu pai, e mai; e entre o que baptiza, e o baptizado,
e seu pai, e mai.” (VIDE, 2007, p. 26–27).
Referências
92
Entrevistado
Entrevistador
1
Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Doutor em História pela UFPE.
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIST). Editor Chefe da Revista Escritas
do Tempo.
Escritas do Tempo: Gostaria que você começasse falando um pouco sobre os motivos
que o levaram a escolher cursar História.
Rodrigo Patto: A minha primeira opção não foi História; comecei estudando
Administração de Empresas. Na verdade, aos 17 anos eu não sabia bem o que fazer em
termos profissionais e acabei indo para administração de empresas, mas eu sempre
gostei muito de História, minha disciplina preferida no colégio; era a única cujos livros
lia nas férias. Eu gostava muito, mas não concebia como profissão, até porque eu não
me imaginava capaz de ser professor; como adolescente, eu era muito tímido; eu tinha
muita dificuldade de falar em público, então não parecia uma escolha correta para uma
pessoa como eu. Então, quando entrei na Administração de Empresas, vi que não era o
meu perfil porque o curso era muito técnico e não tinha muita leitura, não tinha muita
reflexão. O primeiro período de Administração de Empresas era no ciclo básico de
ciências humanas. Então, no curso básico, eu fiz sociologia, política, filosofia e estudei 94
na faculdade de Filosofia, [...] onde estava o curso de História. E aí, eu gostei dessas
disciplinas e quando eu passei para a Faculdade de Ciências Econômicas, onde está o
curso de Administração de Empresas, vi que não era o meu lugar. Decidi voltar lá, para
a Faculdade de Filosofia, a FAFICH. Mas, fiquei em dúvida se iria para História ou
Ciências Sociais; resolvi assistir algumas aulas dos dois cursos pra fazer a minha
escolha, e entendi que o meu lugar é a História. Então eu mudei. Quando entrei para
História, estava um pouco mais velho, já tinha 20 anos, e foi uma paixão. Logo comecei
a estudar e pensei: eu quero isso, se tiver que ser professor vou se professor, então eu fui
para a História e me encontrei. Logo no começo da graduação, entendi que meu
interesse principal era pela História Política. A História da disputa pelo poder político,
das guerras, revoluções, construção dos sistemas políticos. Eu tive uma bolsa de
iniciação científica, em que estudei o contexto da Revolução de 1930 e a constituição da
aliança liberal de Getúlio Vargas, orientado pela professora Lucília Neves. Ela também
me orientou no mestrado na UFMG, em que estudei o MDB durante a ditadura. Então,
no começo, eu estava interessado por uma História Política mais clássica, instituições
políticas e ação política de líderes, de movimentos, que é um trabalho muito importante.
Rodrigo Patto: É, o doutorado eu fiz na USP; na época, a UFMG ainda não tinha
doutorado, mas também eu entendi que precisava mudar de ares, fazer a formação
completa na mesma instituição não é o ideal para ninguém. E eu também não podia ir
para o exterior, porque já era professor universitário na Federal de Ouro Preto (UFOP)
e, em seguida, na UFMG, e não poderia ter licença de afastamento. Na USP, fiz a tese
sobre o anticomunismo no Brasil, que acabou sendo uma escolha muito feliz pelo
resultado e por sua repercussão. O meu projeto original era estudar o Partido Comunista
e sua cultura política, mas eu já entrei com uma dúvida: se não era melhor inverter o
95
objeto e passar a estudar o contrário do comunismo, os que lutavam contra o
comunismo. Acabei escolhendo a tese sobre o anticomunismo, defendida em 2000 e
publicada como livro em 2002. O objetivo foi estudar ações e representações
anticomunistas e entender o seu impacto na política brasileira, principalmente nos
golpes do Estado Novo de Getúlio Vargas e de 1964, que mobilizaram muito o medo ao
comunismo como estratégia de legitimação política e de construção de alianças; foram
feitas frentes de direita muito fortes que levaram aos dois golpes; aliás, de maneira
muito parecida com os dias de hoje...
Escritas do Tempo: E é sobre esse ponto que vou pedir que você fale um pouco: o tema
da tese que resultou no livro Em Guarda Contra o Perigo Vermelho ― o
anticomunismo no Brasil. As reflexões produzidas por volta dos anos 2000 nos
parecem, hoje, muito presentes. As narrativas de enfrentamento ao anticomunismo, no
País, estão na pauta do dia. Como você percebe essas questões? Porque, hoje, como
você falou, o discurso anticomunista parece ser uma das principais forças dentro do
Rodrigo Patto: Uma das primeiras vezes em que minha atenção foi despertada para o
tema foi aqui no Pará; eu estava fazendo uma palestra em Belém, em 2014, e um
estudante de graduação veio conversar comigo para discutir sobre o comunismo, e
falou: professor, nas redes sociais o anticomunismo está fervilhando, existem muitos
grupos no Facebook. Eu sabia que o discurso anticomunista estava sendo usado, mas
ainda não havia percebido a extensão, aí comecei a prestar um pouco mais de atenção,
até porque eu não frequentava as redes sociais, não tinha Facebook, então eu não
acompanhava esse movimento que estava acontecendo ali, digamos, por fora do mundo
acadêmico, nas redes sociais. De qualquer forma, essa tendência recente confirma o que
eu afirmei na tese, que o anticomunismo, no Brasil, foi muito forte e criou raízes;
estruturou-se em uma tradição. Só que eu não imaginava, na minha tese/livro, que essa
tradição seria reapropriada e daria origem a um novo movimento de direita poderoso,
como está acontecendo agora. Eu acho que estamos vivendo a reapropriação da tradição
anticomunista, uma releitura que inclui coisas novas e temas da tradição anticomunista
que vêm desde os anos 1920, como a religião, o tema da mudança de comportamento, a
questão moral, o argumento de que o socialismo e o petismo são contra a família
96
tradicional. Isso é muito parecido com o que tínhamos nos anos de 1920, assim como a
ideia de que o comunismo e o petismo se conectam a ameaças externas; a diferença é
que, hoje, não é mais a União Soviética, mas ainda é Cuba, e a novidade da Venezuela,
construída como um inimigo externo. Isso ajuda a mobilizar o patriotismo, o
nacionalismo, a mobilização do verde e do amarelo. Esse discurso de que nossa pátria
não pode ser comunista e que nossa bandeira jamais será vermelha, que muita gente da
direita hoje usa, é o mesmo discurso de 1940, 1960. É a reprodução de um discurso
muito, muito antigo. Então, vejo uma conexão forte com outros momentos da História,
mas é claro que há muitas diferenças, hoje, e eu só espero que, ao fim, não terminemos
em ditadura, como nas outras ocasiões. Eu espero que o contexto anticomunista e
antipetista de hoje não acabe degenerando em ditadura clássica.
Escritas do Tempo: ainda nesse ponto, Rodrigo, como é que você percebe essas
questões, em termos de possibilidade de construção? Obviamente, não temos como
prever. Fazemos certas leituras que permitem conjecturar possibilidades no processo de
construção de um estado autoritário. Acredito que você tenha acompanhado outras
manifestações das direitas, outras mobilizações de parte das direitas, em que se
Rodrigo Patto: Pesquisas de opinião mostraram que, ao longo dessa crise, o número de
pessoas que preferem a ditadura foi aumentando. No entanto, os grupos que votaram em
Bolsonaro são heterogêneos; muitos são a favor de manter o congresso aberto, então,
esse pessoal que quer fechar o congresso e fechar o STF é minoritário e, no momento,
parece que não vai ter forças para alcançar isso; parece menos provável. O cenário
autoritário real, no momento, é o poder judiciário que manipula a lei em função de
certos interesses e para atingir adversários, ameaças à liberdade de expressão, com a
tentativa do MEC em interferir nas nossas universidades. Essas são medidas autoritárias
que, em alguns casos, funcionam bem e, em outros casos, não funcionam tão bem. Eu
acho que a questão-chave é o aspecto econômico; o governo Bolsonaro precisaria
oferecer um resultado econômico melhor, crescimento econômico, aumento de
emprego, e, até agora, isso não tem acontecido. Então, a sensação é que, se o governo
não melhorar o quadro econômico, vai ter problemas sérios de governabilidade. Então,
acho que o fator econômico, junto com o político, é muito importante para imaginar o
que vai acontecer.
97
Escritas do Tempo: Eu queria, agora, ainda dentro dessa reflexão, discutir essa questão
sobre a sua produção, que é ampla, tem inúmeros artigos publicados, tem livros... e uma
das principais questões que você enfrenta nas suas pesquisas é o papel da imprensa.
Tanto que, na tese que resultou em livro, você mobiliza um conjunto de jornais de
grande circulação para pensar como esses discursos foram produzidos, como foram
disseminados e utilizados por diferentes segmentos sociais. Ultimamente, você tem
trabalhado com o Estado de São Paulo, como objeto e fonte de pesquisa. Como você
entende essas questões ligadas à imprensa, um espaço de produção de narrativas que,
em certos momentos, colabora de diversas maneiras para que os conflitos políticos se
intensifiquem? Conflitos e disputas que, muitas vezes, contaram com o apoio explícito
de grupos de direita...
Escritas do Tempo: Uma outra questão que eu queria que você comentasse um pouco,
diz respeito às disputas pelo passado recente. São disputas que, provavelmente, não
imaginávamos que fossem retomar com tanto fervor, com tanta intensidade, em torno
dessas narrativas, por exemplo, sobre a ditadura militar. Como você vê no presente
essas disputas sobre a ditadura?
Rodrigo Patto: São disputas muito intensas, exatamente devido à implicação política,
devido aos grupos que demandam a ditadura, aos grupos que apoiaram a eleição de Jair
Bolsonaro, mesmo sabendo que ele é um defensor da ditadura. Hoje, isso tem uma
importância política muito forte e, no nosso caso, aplica-se muito bem aquela famosa
fórmula de ‘passado que não passa’. Não passou mesmo. Para uma parte da direita, é
muito importante convencer as pessoas de que a ditadura foi um momento positivo para
o Brasil, e tentar convencê-las de que a ditadura não foi violenta, e até mesmo de que
não foi uma ditadura. Estamos sob ameaça constante de intervenções de censura ao
nosso trabalho, pois esses grupos vão tentar impor a sua visão sobre a História. Então,
isso é absolutamente atual, no que torna o conhecimento da História, hoje, muito
Escritas do Tempo: Ainda sobre essa questão, gostaria que você falasse um pouco sobre
a “História se encontrar, no momento, no olho do furacão”, expressão que você usou na
palestra. Ou seja, a História está dentro do epicentro das disputas, das disputas
explicativas das experiências de um tempo, com o desafio de produzir outras narrativas
que concorram pra ampliar a interpretação dos homens e mulheres nas suas experiências
de tempo. Nesse sentido, eu queria que você falasse um pouco na perspectiva de pensar
esses desafios da História enquanto ciência que produz um conhecimento que pode
interferir nas formas de interpretar e agir no tempo. Nessa perspectiva, refletir sobre
nossa participação, enquanto pesquisadores, e sobre nossa responsabilidade nesse
espaço que ocupamos. Ou seja, refletir no sentido de, também, pensar na História de
Rodrigo Patto: Acho importante sair do mundo acadêmico, sair do “castelo”, como
você disse, e enfrentar o debate público mais amplo. Eu sempre falo um pouco disso,
porque meus temas de pesquisa normalmente interessam à mídia. Quando eu fiz a
dissertação de mestrado sobre o MDB, a imprensa mineira começou a me procurar para
fazer entrevistas, para minha surpresa. Quando você trabalha com temas políticos, sua
fala vai ser sempre política, não tem como não ser. Só que o quadro político atual é
muito intenso, então a gente se envolve em discussões muito mais acaloradas. Eu acho
que nós temos que nos empenhar mais, até porque as apostas são muito altas, os riscos
hoje são muito altos porque, se os projetos de extrema direita se consolidam, a gente vai
ter o cerceamento da pesquisa histórica. A posição política que eu defendo, como
muitos outros colegas, não é a favor de um projeto de esquerda, é a favor de um projeto
democrático pluralista, em que a sociedade, o Estado e as universidades estejam abertos 100
ao debate público, ao confronto de ideias e que ninguém seja censurado por isso. Então,
acho que é muito importante a nossa mobilização pra derrotar politicamente quem
defende o contrário, quem defende uma visão única, que quer impor uma visão
ideológica sobre a História. Muito engraçado que esses grupos de direita acusem
doutrinação ideológica da esquerda, enquanto quem está fazendo doutrinação
ideológica, na verdade, é a direita. Ela faz a defesa de uma certa visão da História e
tenta convencer as pessoas de que essa é a única e verdadeira; uma visão da História
despolitizada, que esconde conflitos e diferenças sociais. Inclusive, uma coisa tão grave
na História brasileira ― a questão da escravidão ― o discurso de direita tenta
minimizar e tenta apagar. Então, a gente tem que entrar nesse debate político em defesa
da democracia e em defesa, inclusive, da nossa profissão. Os colegas que são meio
despolitizados têm que se dar conta de que seu exercício profissional está em risco e é
preciso participar mais, entrar no debate público, em todas as mídias possíveis. Porque,
se a gente não se mobilizar, vamos nos arrepender. O momento de tentar agir é agora,
inclusive para mostrar a relevância da universidade para a sociedade e (no caso da
História, especificamente) mostrar que a História importa, que vale a pena investir nessa
Escritas do Tempo: realmente, te ouvindo me vem à mente algumas reflexões que nós
estamos enfrentando hoje: ter que justificar a importância da História, ter que justificar a
importância de se ensinar História. Então, nós temos leis que, inclusive, já
inviabilizaram o ensino de História no ensino médio. Proposta que o nosso parlamento
votou e que a maioria aprovou. Trata-se de um projeto que enterra, literalmente, um
conjunto de possibilidades de reflexão e debate para os jovens que estão em processo de
formação, sobretudo na educação básica. Estou colocando essa questão para ouvir como
você pensa, sobretudo, nesses tempos, a importância do ensino de História, a
importância da formação do professor de História, o que nos obriga a justificar o debate
ao ponto de justificar a importância de se trabalhar o ensino de História na sala de aula.
E também trazer isso à reflexão para pensar algumas práticas da nossa ciência e,
especificamente, pensar como as nossas licenciaturas têm enfrentado, no Brasil, o
debate sobre o ensino. Cito, por exemplo, a pesquisa que desenvolvo sobre as
licenciaturas nas universidades federais do Brasil. A pesquisa está no início e tenho
Rodrigo Patto: Isso é algo muito importante, muito estratégico; acho que cabe uma
reflexão crítica por causa da formação dos historiadores no Brasil, porque muitos dos
departamentos de História, dos mais prestigiados, sempre deram mais atenção à
formação de pesquisadores do que de professores. Em muitos lugares, as disciplinas de
formação de professores são oferecidas, exclusivamente, nas faculdades de educação,
como se o tema não importasse aos cursos de História. Tradicionalmente, isso é assim e,
na prática, significa desprestigiar a carreira docente no ensino básico. Então, temos que
valorizar o ensino básico em todas as aulas, inclusive pela razão do impacto que isso
tem no debate político atual, na formação de jovens e na valorização da História como
disciplina escolar. Se algum dia a História não tiver mais lugar no ensino escolar, sua
relevância vai se reduzir no mundo do conhecimento, no mundo da ciência e no espaço
público. Eu acho que, independente disso, nós temos que valorizar mais a educação por 102
103
Entrevistado
Entrevistador
Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
104
SP) e integrante (pós-doutoramento) do Projeto POLITICS - A política de antirracismo
na Europa e na América Latina: produção de conhecimento, decisão política e lutas
coletivas, financiado pela European Research Council, com a referência do projeto:
725402 — POLITICS — ERC-2016-COG.
MABS: Professor Bruno Sena Martins, você poderia falar sobre sua trajetória
acadêmica e pessoal até chegar ao CES?
BSM: A minha história de vida cruza-se muito com aquilo que foi a história colonial
portuguesa, no sentido em que, da parte da minha mãe, sou o resultado de uma relação
entre uma mulher guineense, uma manjaca de Caió, e um administrador colonial
português, um transmontano que esteve a trabalhar para a administração colonial na
Guiné-Bissau, antiga Guiné portuguesa. A minha mãe é o resultado dessa relação e, e
1
MARTINS, Bruno Sena; SANTOS, Boaventura de Souza (orgs). El pluriverso de los derechos humanos
- La diversidad de las luchas por la dignidad. Akal, 2019
2
MARTINS, Bruno Sena; CARDINA, Miguel (orgs). As Voltas do Passado: a guerra colonial e as lutas
de libertação. Madrid: AKAL, 2018.
MABS: Professor Bruno Sena Martins, você lançou um livro que dialoga com esta sua
discussão, poderia falar um pouco sobre este livro?
Américas, até ao colonialismo africano. E esse é um momento que expõe, no fundo, que
é aquela narrativa que Portugal tem sobre si próprio, enquanto um colonialismo não
violento, luso-tropicalista, de um colonialismo benigno, de forma alguma se encaixa
nesta leitura que nós temos, a partir da, daquilo que era a violência nos espaços
coloniais, colonizados, e daquilo que foi essa guerra que, no fundo, era uma guerra
contra a autodeterminação dos povos e uma guerra que tinha como base a afirmação de
uma superioridade branca.
MABS: Professor Bruno Sena Martins, você poderia falar um pouco sobre os debates
pós-coloniais e cidadania global, que fazem parte de suas pesquisas?
BSM: Tais questões têm sido, isto é, existe neste momento, uma efervescência sobre a
questão colonial e como ela repercute nas sociedades contemporâneas. Obviamente, que
são sempre debates muito contextualizados. Um debate que a Portugal chegou tarde,
digamos assim, mas que num contexto, por exemplo, brasileiro, quer pela elevada
percentagem de negros que é diferente aqui, em Portugal. E mesmo nos contextos
africanos é um contexto, é um debate que tem estado muito presente, e é um debate até
Revisores de Tradução
Me. Willian Robson Soares Lucindo (francês)
Dra. Maria Clara Sales Carneiro Sampaio (inglês)