O Livro Da Vida
O Livro Da Vida
O Livro Da Vida
Este livro é fruto de uma forte fascinação que certas figuras e certos temas
bíblicos têm exercido em meu espírito. Essas figuras escondem verdades
profundas e consoladoras. Tenho pregado e elaborado estudos sobre a figura
de um Livro de autoria divina, um registro celestial no qual foram gravados
os nomes daqueles a quem o Deus Eterno quis que formassem sua igreja
eterna. A ideia foi se agigantando até amadurecer a ocasião de escrever sobre
o assunto, uma vez que, lendo livros em português e em outras línguas, não
conseguia ver muito interesse no desenvolvimento de temas como este.
Nunca encontrei um enfoque específico do Livro da Vida. Pode ser até que
haja. Todos os escritores e comentaristas fazem uma alusão parcimoniosa,
inclusive os grandes reformadores do século dezesseis, Martinho Lutero e
João Calvino. Portanto, aproveitei a lacuna deixada e a preenchi à moda de
desafio.
Desafio, digo, porque não creio que eu seja a pessoa apta para tal empresa;
muito embora, nos últimos anos, eu tenha exercitado a tarefa de escrever,
contudo não me qualifico de escritor, muito menos de teólogo, pois não tive
um preparo científico e acadêmico nessa área; todavia, o Senhor sempre me
assistiu, e fiz de meu gabinete pastoral uma boa oficina. Foi aí que adquiri
um sólido embasamento para traduzir dezenas de livros e elaborar meus
escritos sobre temas bíblicos, mesmo assim sem perder de vista minha
posição de leigo. Portanto, depois de muita relutância e reflexão, de
constrangimento e pessimismo, senti que chegara o momento de abraçar a
incumbência tão delicada. Saiba o leitor que não escrevi com o intuito de
fazer sucesso; aliás, o sucesso nunca foi a tônica em toda minha áspera
peregrinação; antes, escrevi, olhando para os crentes em Cristo e obreiros
modestos e de parcos recursos na elaboração de seus estudos, em sua tarefa
de apascentar bem o rebanho do Senhor. Se este livro tornar-se útil e
edificante, e é o que espero, então terei alcançado minha meta.
Nestes tempos de confusão ideológica no mundo e na igreja, propus, com a
máxima abrangência que pude, expor a sadia instrução teológica da igreja que
são as doutrinas da graça. A sã doutrina[1], tão enfatizada por Paulo e os
demais apóstolos, cedeu lugar a qualquer coisa, uma vez que dê resultado
positivo. A igreja moderna ama novidades, emoções fortes e movimento
físico. Doutrina mesmo é algo obsoleto, não soando bem aos tímpanos
delicados, modernos e sofisticados da nova geração. Nada de doutrina, nada
de teologia; basta-nos um conhecimento bíblico superficial e açucarado. É
isso que conta na religião moderna. Vivemos numa época em que se
amaldiçoam doutrinas expressamente bíblicas, só porque elas desafiam nossa
tacanha inteligência e nos causam estranheza e não se encaixam no perfil de
igrejas com grande ajuntamento. No meio chamado “evangélico”, Cristo é
descentralizado e o ser humano ocupa o centro. É preciso trazer os cristãos de
volta à sã doutrina – antes que seja tarde demais! Que Deus desperte na
mente do leitor e de todo o povo de Deus paixão pelo estudo profundo e sério
da Bíblia! Estudo que realmente edifique, nutra e console a alma. Porque,
mesmo que um anjo celestial venha nos oferecer outra mensagem além da
que encontramos na Bíblia, podemos, sem medo, chamá-lo de mentiroso e
falsário (Gl 1.6-9). A Bíblia é a religião daqueles cujo nome se acha
registrado no Livro da Vida do Cordeiro. E deve continuar sendo assim para
sempre, até que o Senhor da igreja volte!
Damos graças a Deus porque, nestes últimos dias, tem surgido um
movimento de renovação e despertamento rumo a uma sólida interpretação
bíblica. A história da igreja tem emergido e os Reformadores do século
dezesseis estão falando de novo, através de homens e mulheres que têm se
dedicado a um retorno à pureza da doutrina e dos costumes. Há um grande
volume de livros escritos por grandes estudiosos da verdade bíblica. Sentimo-
nos animados vendo as editoras publicando, em grande escala, obras bíblicas
profundas e amplas, com um enfoque moderno, pelos moldes da nova
pedagogia e metodologia científica. Tudo isso tem promovido a verdade,
precisamente quando esta necessidade se acha assentada sobre bases
solidamente bíblicas. Portanto, a verdade de Deus, cristalina e sem
sombreamento, tem ocupado os púlpitos cada vez mais. Igrejas que outrora
eram avessas à fé reformada, agora estão engajadas na pesquisa dos grandes
vultos cristãos da história da Igreja que mantiveram sempre acesa a tocha das
doutrinas da graça. E neste livro minha preocupação primária é desdobrar
ainda mais essas benditas doutrinas, especialmente pela ótica de um leigo que
escreve para leigos. Meu profundo desejo é desafiar o leitor a declarar que crê
no que está escrito no Santo Livro. Que o Senhor abençoe ricamente os
corações dos leitores!
Notifico ainda que reescrevi todo o livro, dando-lhe nova forma e
agregando-lhe novas matérias, todas elas atinentes às doutrinas da graça.
Minha preocupação primária foi oferecer aos obreiros de pouco recurso
cultural ou de pouco tempo um bom acervo de estudos práticos sobre a
doutrina. Caso este livro seja tido como “raso” demais, isso se deve ao fato
de que ele não foi escrito por um especialista e muito menos foi escrito para
os especialistas. Reiterando, sua composição é de leigo para leigos; ou,
melhor, de pastor para ovelhas. Minha oração é que os genuínos servos de
nosso Senhor Jesus Cristo encontrem neste livro uma forte corroboração ao
seu ministério e muito estímulo no desempenho de seu pastorado. Se minha
modesta vida de meio século de ministério sagrado servir de inspiração aos
amados irmãos e irmãs, então saberei que valeu a pena reescrevê-lo e reeditá-
lo. Tenho que confessar também, com toda sinceridade, que meu profundo
desejo é atrair pessoas ao conhecimento e aceitação das doutrinas da graça, às
quais chamamos Fé Reformada. Muitos têm dificuldade em abraçar a pureza
doutrinal da Santa Escritura por ser forte demais para a mente humana
moderna, a qual se colide com a mentalidade conceitual moderna, quando o
homem é visto como um ser tão glorioso que o próprio Criador lhe faz vênia;
no dizer de um teólogo contemporâneo: “Deus jamais seria feliz sem o
homem.”[2] Por certo que o Deus dele não é exatamente o da Bíblia!
[1] Para o apóstolo Paulo, sã doutrina é aquele ensino profético e apostólico sem mescla humana, tal
como foi dado pelo Espírito Santo à igreja. Ele usa várias vezes o termo em suas cartas pastorais: 1
Timóteo 1.3; 1.10; 6.3; 2 Timóteo 4.3; Tt 2.1; 2.10. Quando nossa interpreteção interfere no fluxo
normal da doutrina, ela é adulterada. Daí, o dever de um genuíno mestre da Bíblia é desvendar cada vez
mais a pureza exata do ensino divino.
[2] William Barclay, Comentario El Nuevo Testamento, Evangelho de Lucas, Editorial La Aurora,
Buenos Aires, p. 76, já traduzido para a língua portuguesa por Valter Graciano Martins, porém ainda
não editado.
Co s tume Antigo
[3] Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, verbete “metáfora”, p. 1907, Rio de Janeiro, 2001, 1ª
edição.
Vis ão Bíblica
Aqui, livro está no singular, todavia não se refere a nome escrito, e sim
“meus dias”, ou, seja, sua vida terrena em atividade. A Bíblia de Jerusalém
expressa numa nota de rodapé:
“O salmista medita sobre a onisciência divina: Deus conhece o homem e seu destino antes mesmo
de seu nascimento (veja Sl 22.11; 71.16), ao passo que, para o homem, o mistério é
impenetrável.”
Essa é causa suprema de nossa salvação: nosso nome já foi arrolado nos
arquivos celestiais, antes da fundação do mundo. Desse fato podemos
acalentar a certeza de que já somos herdeiros da vida celestial.
Relatórios, autoridade, prestígio, saúde e disposição para uma grande obra,
talentos, carismas – tudo tem seu lugar próprio, porém Jesus nos convida a
meditarmos no maior motivo de alegria que um pecador crente pode e deve
ter: seu nome se acha registrado no céu, nos arquivos de Deus. A maioria dos
cristãos não sabe disso! Quanto regozijo sentiria nosso coração se tivéssemos
plena consciência desta verdade divina e celestial!
Agora, é Paulo quem menciona o Livro da Vida, em circunstâncias nas
quais muitos estariam chorando sobre seu fracasso. Da prisão, ele dirige uma
carta à igreja em Filipos, e termina assim:
“Rogo a Evódia, e rogo a Síntique, pensem, concordemente, no Senhor. A ti, fiel companheiro de
jugo, também peço que as auxilies, pois juntas se esforçaram no evangelho, também com
Clemente e com os demais cooperadores meus, cujos nomes se encontram no livro da vida” (Fp
4.2,3).
Ele faz menção de duas mulheres que não conseguiam encontrar o caminho
da concórdia, e menciona companheiros de ministério, afirmando que todos
eles tinham seu nome registrado no Livro da Vida. E prossegue falando de
alegria, alegria e mais alegria, porque “perto está o Senhor”. Percebemos que
a ideia de um livro divino, no qual nosso nome foi registrado, proporciona à
alma profundo júbilo. Não há no mundo motivo mais glorioso para sermos
felizes e otimistas, a despeito de todas as tribulações que porventura nos
sobrevenham.
Entretanto, a maior ênfase sobre a ideia de um livro divino está no
Apocalipse. João começa a mencioná-lo nas cartas dirigidas às igrejas da
Ásia Menor. Eis o registro na carta à igreja de Sardes:
“O vencedor será assim vestido de vestiduras brancas, e de modo algum apagarei seu nome do
livro da vida; pelo contrário, confessarei seu nome diante de meu Pai e diante de seus anjos” (Ap
3.5).
Por quê? Porque ele decretou todas as coisas com perfeita sabedoria,
soberania, poder, justiça e retidão, e com ardente amor. Crente genuíno é
aquele que crê no Deus que já decretou tudo quanto ele quis decretar, não
com base em previsão, mas em decisão livre e soberana! Daí constituir uma
blasfêmia ordenar que ele altere o que decretou na eternidade, como hoje
muitos fazem em suas orações desvairadas e blasfemas. Devemos adorá-lo
humildemente em sua soberania decretiva. Devemos louvá-lo com corações e
lábios sinceros e amantes do Deus único e verdadeiro. O deleite de nosso
coração não deveria ser ordenar o que queiramos e ambicionemos com
egoísmo pecaminoso, e sim em tomar conhecimento cada vez mais profundo
do quanto o Criador foi e é infinito em seus decretos eternos. E nesses
decretos está inclusa nossa existência no tempo e no espaço, principalmente
nós que temos nosso nome registrado no Livro da Vida.
2. Desígnio, intento, projeto, propósito, vontade. Na verdade, isto deveria
vir antes de decreto, porquanto desígnio pressupõe intenção, e decreto
pressupõe o registro dessa intenção e vontade secretas. A ideia humana é que
Deus teria, antes de tudo, ideado, idealizado; só então é que ele agiu,
decretando, pondo por escrito o que ideara. Só entendemos melhor as coisas
de Deus lançando mão de figuras que nos sejam familiares.
Depois de ouvir os desabafos de Jó e as acusações infundadas e injustas de
seus amigos, Deus formula uma pergunta retórica, ou, seja, que não necessita
de resposta expressa, pois esta fica bem clara aos ouvidos de quem a ouve ou
aos olhos de quem a lê.
“Quem é este que escurece meus desígnios com palavras sem conhecimento?” (Jó 38.2).
Ora, tudo quanto Jó sofrera fazia parte dos desígnios do Altíssimo. A
ignorância humana tende a escurecer (obviamente, em nossa ótica) a visão
dos planos divinos. Todas as vezes que os crentes põem em dúvida a doutrina
dos decretos divinos, eles estão escurecendo, estão impedindo que esses
decretos brilhem em seus corações e mentes. Estão se privando de uma
bênção tão preciosa e consoladora! Somente a fé pode impedir esse
escurecimento das verdades divinas. Evidentemente, esse escurecimento se
dá com respeito ao próprio coração humano, e não aos desígnios divinos
propriamente ditos; se dá em nosso próprio íntimo, e não nos propósitos
divinos. Aliás, aquele que obedece a Deus é também iluminado pelo Espírito
Santo para discernir, ao máximo de sua capacidade, as coisas profundas de
Deus.
O salmista teve esta visão inspirada pelo Espírito de Deus:
“O conselho do Senhor dura para sempre, os desígnios de seu coração, por todas as gerações” (Sl
33.11).
Nos dias de Jesus, Lucas registra que a atitude dos fariseus e escribas, de
incredulidade e de perseguição contra Jesus, vinha dos desígnios do
Altíssimo:
“Mas os fariseus e os intérpretes da lei rejeitaram, quanto a si mesmos, o desígnio de Deus, não
tendo sido batizados por ele” (Lc 7.30).
Nada disso foi por acaso ou fortuitamente. Tudo seguiu uma diretriz divina
perfeita e imutável. Jesus não foi surpreendido por nada e por ninguém. Ele
seguiu sereno a trajetória decretada e executada pelo Pai. Tudo fora bem
delineado pelo Deus trino. Nada faltou e nada passou. Esse é o sentido do
grito do Gólgota: “Está consumado!”
Há um maravilhoso versículo que é decorado e recitado por praticamente
todo crente no mundo inteiro e em todos os tempos:
“Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são
chamados segundo seu propósito” (Rm 8.28).
[4] Hinário Novo Cântico, nº 88. Mais adiante veremos o hino completo e daremos alguns dados sob re
ele.
[5] Aquele carneiro era um tipo ou emblema de nosso Senhor Jesus Cristo que viria mais tarde como a
concretização ou antítipo, ou, seja, a realidade do tipo.
A Corrente de Ouro dos
Decretos de Deus na Salvação
dos Eleitos
Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a
Deus, daqueles que são chamados segundo seu propósito. Porquanto aos que
de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à
imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos
irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a
esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou (Rm
8.28-30).
À maneira de introdução ao estudo deste grandioso texto, começaremos
com a perfeita sequência dos cinco elementos desta corrente. Presciência e
predestinação dizem respeito aos tempos eternos. Isso ocorreu antes que o
mundo fosse criado. Aliás, o mundo foi criado em decorrência desses dois
fatos gloriosos. Vocação e justificação são elementos dentro do tempo,
enquanto a humanidade continua sua peregrinação. O evangelho chama e o
tribunal divino justifica os que creem, e isso se dá em Cristo. A primeira é
dupla, isto é, geral e específica. Os eleitos atendem ao chamado do evangelho
e os não-eleitos o ignoram e seguem adiante. A segunda é específica: se
concretiza somente nos eleitos e predestinados, porque somente estes
exercem uma verdadeira fé e obediência, porque são assistidos pelo Espírito
Santo. A glorificação possui duas fases: começa aqui e agora, com a
regeneração e santificação, e se completa com a volta de nosso Senhor,
quando da ressurreição do corpo e a união deste com a respectiva alma.
Somente então é que a vida de cada ser humano salvo se define eternamente.
Cada pessoa é um ser dual: é físico e metafísico; é corpo e alma ou espírito. E
cada pessoa só será perfeita quando for outra vez completa – o corpo
ressurreto se une outra vez ao seu espírito que, no ínterim, esteve na presença
de Deus despido. A volta de nosso Senhor acarretará tudo isso.
Nenhum desses elementos pode falhar, ou, seja, a corrente se compõe de
cinco elos, e neste fato reside a sabedoria divina. Ninguém pode violar esta
corrente sem enfrentar a penalidade divina. Aliás, a perda de um elo equivale
a perda de toda a corrente e compromete radicalmente os eleitos que têm seu
nome gravado no Livro da Vida do Cordeiro. Cada elo corresponde
diretamente aos componentes daquele bendito Livro. Cada um deles é
conhecido, predestinado, chamado, justificado e glorificado. Os cristãos
genuínos precisam ficar bem atentos a isso, para que não venham a sofrer
prejuízo. Nossa perseverança em Cristo depende, em grande medida, da
consciência e perseverança nessas cinco doutrinas tão gloriosas e no fato de
que nosso nome já foi registrado, na eternidade, no Livro da Vida do
Cordeiro.
Em Nome da Prudência
1. O risco de ostentação. Corre-se grande risco na abordagem de um tema
tão pomposo como este. A primeira impressão que fica é que o expositor é
tão profundo em seu conhecimento, que se propõe a encher o leitor com a
visão dos mistérios mais secretos de Deus. Amamos a ideia contida no tema
deste estudo, porém adiantamos que não pretendemos avassalar os decretos
eternos de Deus e trazer a lume para o leitor o que não está na Revelação de
Deus, ou as ideias mirabolantes de nossa mente enfatuada. Ao contrário
disso, nosso intuito é firmar bem os elementos da própria Revelação que se
acham, indelevelmente, incrustados no próprio texto e provocar nos eruditos
da igreja o ensejo de discutirem, com a autoridade que têm, os contra
argumentos dos leitores. Continuo afirmando que gostaria, sinceramente, que
outros livros sejam escritos, contra argumentando estes modestos
argumentos, e assim ampliando cada vez mais a plena verdade do assunto.
2. O risco de extremos. Outro cuidado que qualquer expositor da Bíblia
deve tomar, e que tem sido ressaltado pelos sábios expositores de todos os
tempos, é a necessidade de se evitar dois extremos danosos que se têm
cometido em todo o mundo: (a) Movidos por negligência ou por irreverência,
negarmos os elementos da santa Revelação de Deus que o Espírito Santo nos
deu para sermos cristãos sábios. (b) Movidos por estreiteza ótica de nossos
preconceitos, acharmos que certo, na Bíblia, é aquilo que vemos como certo,
e nada mais. Radicalismo negativo é algo muitíssimo danoso. Radicalismo
positivo é a posição dos sábios estudiosos da Bíblia: Tudo o que o Espírito
Santo nos deu na Bíblia é de nosso interesse: nada mais, nada menos. Não
pretendemos ir além da Bíblia, e muito menos ficar aquém dela. É tempo de
nos aprofundarmos, ao máximo de nossa capacidade, a intenção do Espírito
na santa Bíblia. Enquanto enfrentamos uma era escatológica, oremos para que
“o conhecimento de Deus encha a terra como as águas cobrem o mar” (Is
11.9).
3. Posição correta. Calvinismo ou “fé reformada” é o sistema de
interpretação da Bíblia que tem a ousadia de crer nela toda, sem reserva, sem
escândalo, sem omissão, sem acréscimo e sem artifício ou floreio. Não se
martela um texto de um lado e do outro até que o mesmo se encaixe nas pré-
concepções de nossa mente tacanha. Cremos que a Bíblia toda nos foi dada
por inspiração do Espírito Santo através dos patriarcas, profetas e apóstolos.
O que Deus diz ali é o que devemos crer e queremos praticar. Nossa mente
não é uma forma pré-moldada para caber somente o que caiba nela. Nossa
mente é um recipiente aberto, abençoado e flexível para ser moldado pela
Palavra de Deus e pelo Espírito Santo. Calvino diz que a Bíblia é a cartilha de
Deus para seus filhos que ainda engatinham, e nela ele nos fala balbuciando
ou soletrando. Diz ainda que os verdadeiros filhos de Deus são perenes
alunos da Escola de Jesus Cristo; e o Espírito Santo é nosso bendito
Preceptor imediato e sempre presente.
Estabelecendo as Bases
É oportuno que confrontemos várias versões sobre o texto em pauta, a fim
de aquilatarmos bem o quanto esta é uma parte importantíssima do ensino
bíblico. Talvez seja tedioso repetir o mesmo texto em tantas versões da Santa
Escritura, mas creio que isso fará emergir um maior apreço pelo assunto. Por
isso, apresentamos abaixo o texto elaborado por diversas versões, numa
comprovação maciça de sua veracidade.
Versões Católico-Romanas
Edições Loyola
“Sabemos que todas as coisas concorrem para o bem dos que amam a
Deus, dos que são chamados de acordo com a sua vontade. Os que ele
conheceu previamente, também os predestinou a reproduzirem a imagem de
seu Filho, para que este seja o primogênito entre os muitos irmãos. E aqueles
que ele predestinou também os chamou; e aos que chamou, também os
justificou; e aos que justificou, também os glorificou.”
Antônio Pereira de Figueiredo
“Ora, nós sabemos que, aos que amam a Deus, todas as coisas lhes
contribuem para seu bem, àqueles que, segundo seu decreto, são chamados
santos. Porque, os que ele conheceu em sua presciência, também os
predestinou, para serem conformes à imagem de seu Filho, para que ele seja
o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a estes, também,
chamou; e aos que chamou, a estes, também, justificou; e aos que justificou,
também os glorificou.”
Matos Soares
“Ora, nós sabemos que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que
amam a Deus, para o bem daqueles que, segundo (seu eterno) desígnio,
foram chamados santos. Porque, os que ele conheceu em sua presciência,
também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, para
que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aqueles que predestinou,
também os chamou; e aqueles que chamou, também os justificou; e aqueles
que justificou, também os glorificou.”
Edição Ecumênica
“Aliás, nós sabemos que tudo concorre para o bem dos que amam a Deus,
que são chamados segundo seu desígnio. Aqueles que ele de antemão
conheceu, também os predestinou a serem conformes à imagem de seu Filho,
a fim de que este seja o primogênito de uma multidão de irmãos; os que
predestinou, também os chamou; os que chamou, também os justificou; e os
que justificou, também os glorificou.”
Bíblia de Jerusalém
“E nós sabemos que Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o
amam, daqueles que são chamados segundo seu desígnio. Porque os que de
antemão ele conheceu, esses também predestinou a serem conformes à
imagem de seu Filho, a fim de ser ele o primogênito entre muitos irmãos. E
os que predestinou, também os chamou; e os que chamou, também os
justificou; e os que justificou, também os glorificou.”
Versões que Distorcem Este Texto
Versão Russelita ou dos Chamados “Testemunhas de Jeová”
“Ora, nós sabemos que Deus faz que todas as suas obras cooperem para o
bem daqueles que amam a Deus, os que são os chamados segundo o seu
propósito; porque aqueles a quem deu o seu primeiro reconhecimento, a
[esses] também predeterminou que fossem modelados segundo a imagem de
seu Filho, para que este fosse primogênito entre muitos irmãos. Ademais, os
que ele predeterminou são também os que chamou; e os que ele chamou são
também os que declarou justos. Finalmente, os que ele declarou justos são
também os que glorificou.”
Bíblia Viva (Paráfrase 1981)
“E sabemos que tudo quanto nos acontece está operando para o nosso
próprio bem, se amarmos a Deus e estivermos nos ajustando aos planos dele.
Desde o princípio de tudo Deus decidiu que aqueles que fossem a ele – e no
decorrer dos tempos ele sabia quem iria – se tornassem semelhantes ao seu
Filho, de tal modo que seu Filho fosse o Primeiro, com muitos irmãos. E, ao
nos escolher, ele nos chamou para ir a ele; e quando fomos, ele declarou-nos
‘sem culpa’, encheu-nos com a retidão de Cristo, deu-nos o direito de ficar
com ele e nos prometeu sua glória.”
Versão Inclusiva
“Sabemos que todas as coisas operam juntas para o bem, para aqueles que
amam a Deus, que são chamados segundo o propósito de Deus. Porque
aqueles a quem Deus pré-conheceu foram também predestinados a serem
conformados à imagem da Criança de Deus, a fim de que Cristo fosse o
primogênito entre uma grande família. E aqueles a quem Deus predestinou
também chamou; e aqueles a quem Deus chamou, também justificou; e
aqueles a quem Deus justificou, também glorificou.”
Versões Evangélicas
Versão Brasileira
“Sabemos que aos que amam a Deus, todas as coisas lhes cooperam para o
bem, a saber, aos que são chamados segundo o seu propósito. Porque os que
dantes conheceu, também predestinou para serem conformes à imagem de
seu Filho, a fim de que ele fosse o primogênito entre muitos irmãos; e aos
que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também
justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou.”
Versão Almeida
“Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a
Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porquanto aos
que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à
imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos
irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a
esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou.”
Nova Versão Internacional
“Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o
amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito. Pois aqueles
que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à
imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos
irmãos. E aos que predestinou, também chamou; aos que chamou, também
justificou; e aos que justificou, também glorificou.”
Versão Huberto Rohden
“Sabemos que todas as coisas redundam em benefício dos que amam a
Deus, porque segundo os seus desígnios são chamados. Porque, aos que Deus
de antemão conheceu também os predestinou a se assemelharem à imagem
de seu Filho, para que este seja o primogênito entre muitos irmãos; e aos que
predestinou também os chamou. E aos que chamou justificou-os. E aos que
justifica conduzi-los à glória.”
Bíblia de Estudo Pentecostal
“E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem
daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto.
Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre
muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que
chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também
glorificou.”
O Termo-chave do Texto (v. 28)
1. Versículo precioso. O versículo 28 é muito amado pelo povo crente em
Cristo. É citado no mundo inteiro. É lembrado em ocasiões as mais diversas,
principalmente quando alguém (às vezes incrédulo, que nem mesmo ama e
teme a Deus) está enfrentando uma dura encruzilhada, sem saber que rumo
tomar. Então lemos e comentamos para ele ou para ela este texto como se lhe
fosse mui apropriado, dizemos: “Veja bem, este texto é dirigido ao seu
coração, pois o que está escrito nele é certíssimo para esta ocasião.”
2. Displicência de nossa parte. Em geral, este versículo é lido só em parte
(a primeira): “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles
que amam a Deus ...” O resto é deixado de lado, não por maldade intencional,
mas porque, em geral, não se entende o termo propósito, ou se acredita que o
mesmo não é relevante, enquanto que o fato é precisamente o contrário.
3. Riqueza do termo propósito. Além de o mesmo se referir somente aos
que amam a Deus, o restante do versículo diz: “daqueles que são chamados
segundo seu propósito (seu decreto).” Antes de tudo, este versículo tem a ver
com aqueles cujo coração tem Deus como seu objeto máximo. Não só creem
em Deus, não só o amam, não só o adoram, não só o servem, mas o
reconhecem como seu fim absoluto e supremo e confessam isso abertamente;
sua glória é tudo o que lhes importa na vida. Vivem dia e noite para ele e em
nome dele. O propósito ou desígnio divino é tudo o que lhes interessa.
4. Somente os que amam a Deus. Esta promessa é especificamente
direcionada aos que amam a Deus, aqueles que foram chamados de acordo
com o decreto divino da eleição e renasceram e atenderam positivamente. E
amar a Deus não é mero sentimento, mera emoção; é muito mais que isso.
Esse amor é demonstrado na prática; é uma atitude. Amar a Deus é abraçar
sua palavra revelada, a Bíblia, buscando diária e constantemente conhecê-la,
vivenciá-la, obedecê-la. Todas as coisas cooperam para o bem desses,
somente desses, e não de qualquer pessoa indiscriminadamente. É evidente
que o Senhor conduz o mundo inteiro, porque tudo está sob seu governo. Mas
todo este texto é atinente aos que são dele.
5. Centralidade do decreto divino. Portanto, tudo neste texto, como um
todo (vv. 28-30), gira em torno da ideia de decreto de Deus. E esse decreto
comanda os elos da corrente de ouro. Esta é a ordem divina nos decretos
relativos à salvação dos que o Pai deu ao Filho (Jo 6.39). Este versículo não
deve ser lido separadamente de seu contexto imediato (Rm 8.29,30). Eles
formam um só bloco. Notemos que o versículo 29 começa com a palavra
“Porquanto”. Ela forma um elo que liga o que vem antes. Portanto, sigamos
em frente.
Os Cin co Elo s Inqu ebráveis da
M es ma Corrente
Não concordamos com a ideia nesta mesma nota: “É verdade que Deus
conhece de antemão os eventos.” Jogar esta frase diante dos olhos do leitor é
um grande risco, porque a ideia que fica é que Deus não determina os
eventos, mas simplesmente eles por si sós se concretizam e ele sabe de
antemão. Deus conhece de antemão os eventos, ou ele determina todos os
eventos que vêm à existência neste mundo? Como fica a declaração de nossa
Confissão de Fé?
“Desde toda a eternidade e pelo mui sábio e santo conselho de sua própria vontade, Deus
ordenou, livre e inalteravelmente, tudo o que acontece, porém de modo que nem Deus é o autor
do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou a contingência das
causas secundárias, antes estabelecidas.”
Também:
“Ainda que saiba tudo quanto pode ou há de acontecer em todas as circunstâncias imagináveis,
ele não decreta coisa alguma por havê-la previsto como futura, ou como coisa que havia de
acontecer em tais e tais condições.”
Em Adão, por sua queda, a imagem de Deus foi danificada e quase que
totalmente extinta. Esta imagem é restaurada pela obediência e realização da
obra salvífica de nosso Senhor Jesus Cristo. Quando um pecador perdido crê
em Cristo, ele o recebe em seu coração e o confessa com seus lábios, esta
imagem é restaurada nele pelo Espírito Santo; e é justamente isso que
significa novo nascimento ou regeneração. Nesse propósito supremo estão
em ação os cinco elos desta bendita corrente: presciência, predestinação,
vocação, justificação, glorificação. Nenhum deles pode ser arrancado daí;
todos eles são indispensáveis e relevantes. Se cremos em um deles, então
cremos em todos eles. Se os amamos, damos graças a Deus por eles, pois
todos eles dizem respeito a cada um de nós. Aspiremos ardentemente que um
dia a imagem do Filho de Deus se concretize em nós definitiva e
perfeitamente. Sua restauração já começou, mas sua perfeição só se dará no
regresso do Rei dos reis e Senhor dos senhores.
Em Suma
O cristão que toma ciência dessa grandeza a seu respeito, em vez de se
acomodar, de ser relapso e cristão de vida inferior, que é a ideia tão
falsamente difundida, ele se agiganta, se anima, olha para frente e para o alto,
bendiz o trino Deus dos decretos sábios e eternos, sente um santo impulso
irrefreável provindo da alegria e da gratidão de servir a esse Deus grandioso e
de amor infinito.
Ele não cruza os braços. Quem faz isso é um falso crente, ingrato e
equivocado, não merecedor de tão grandiosa obra em sua vida. Esse tal prova
que não foi predestinado; ou, se o foi, terá que rever seu conceito. Ninguém é
predestinado para nada! A teologia reformada gerou gigantes na fé ao longo
dos séculos. Hoje surgiu uma geração despreparada, superficial e artificial, de
atitude leviana, que acredita que pode negar o que quer e crer no que lhe
agrada. Mas isso não pode ser assim. O cristão que tem ciência dessa bendita
corrente dos decretos de Deus se comove em sua presença e passa a desejar
viver mil vidas para empregá-las no serviço do Deus dos eternos decretos,
que tudo faz para que tudo contribua para o bem daqueles cujos nomes ele
escreveu no Livro da Vida antes da fundação do mundo. Aleluia!
Concluímos com Paulo em sua gloriosa doxologia de Romanos 11.33-36:
“Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os
seus juízos e inescrutáveis os seus caminhos! Quem conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi
seu conselheiro? Quem primeiro lhe deu a ele, para que ele o recompense? Pois dele, por ele e
para ele são todas as coisas. A ele seja a glória para sempre! Amém.”
E entoando louvores.
Amavas-me, Senhor, ainda cintilante
Não irrompera a luz ao mando Criador!
E nem o ardente sol, rompendo no levante,
Trouxera à terra e ao mar a força fecundante.
Meu Deus, que amor!
Meus Deus, que eterno amor!
Amavas-me, Senhor, também quando, imolado,
Por mim sofreu na cruz o meigo Salvador,
O Santo de Israel, o teu Cordeiro amado,
Levando sobre si a culpa do pecado.
Meu Deus, que amor!
Meu Deus, que antigo amor.
Amavas-me, Senhor, quando atingiu meu peito
O Espírito de luz, o meu Consolador.
E com tesouros mil, de teu favor perfeito,
Trouxe à minha alma a fé em que hoje me deleito.
Meu Deus, que amor!
Meu Deus, que antigo amor!
E sempre me amarás, porque jamais inferno
Ou mundo poderão ao teu querer se opor,
Ao teu decreto, ó Deus, ao teu decreto eterno,
Ao teu amor, ó Pai, ao teu amor superno.
Meu Deus, que amor!
És sempre e todo amor![9]
[6] Sinergismo: “Doutrina protestante segundo a qual o homem, apesar do pecado original, conserva o
livre-arbítrio na busca de sua salvação e na obtenção da graça divina” (Dicionário Houaiss, p. 2579).
Monergismo é exatamente o oposto, isto é, o pecado eliminou completamente o livre-arbítrio do
homem e, portanto, sua salvação só é possível pela ação soberana do Espírito de Deus. A regeneração
do pecador é efetuada unicamente pelo Espírito Santo: o homem não toma parte nela. O calvinismo é
monergista; o arminianismo é sinergista.
[7] Trata-se da Confissão de Fé Westminster.
[8] Trata-se da mesma Confissão de Fé Westminster.
[9] Hinário Novo Cântico nº 88. Este hino foi composto pelo Major Guilherme Luiz dos Santos
Ferreira, militar e escritor português, que se converteu através do testemunho de um jovem seu
subalterno que pediu licença para não assistir a missa por ser crente em Jesus Cristo. É difícil um
cântico conter todo ele uma mensagem tão fiel à Santa Escritura.
A Soberania Abs oluta de Deus
Glória Intrínseca
“Porque dele.” Glória, em grego, é doxa. É a palavra escolhida pelo
Espírito Santo, ao inspirar os autores da Bíblia, para expressar o esplendor, a
majestade e o poder intrínsecos e inerentes do único Ser realmente existente
no universo, o único que pode dizer: “Eu sou o que Sou” (Ex 3.14). O que a
Bíblia apresenta de tudo isso é em termos antropomórficos ou figurados. Não
haveria linguagem humana que pudesse expressar com exatidão a glória
infinita da Deidade.[17]O infinito não pode ser expresso em termos finitos.
Essa glória é a infinita perfeição desse Ser singular, sem par, sem paralelo,
isolado em sua auto-existência e em seu Ser intrínseco.
Glória Manifestada
“Por meio dele.” Por isso, o que se manifesta dela é uma pálida
demonstração do que ele realmente é. É o que Moisés viu no Monte Sinai e
quando foi posto numa fenda de pedra. E o pouco que ele viu foi suficiente
para arrancar de si esta declaração: “Senhor, Senhor Deus compassivo,
clemente e longânimo, e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a
misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o
pecado, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniquidade dos pais nos
filhos e nos filhos dos filhos até a terceira e quarta geração” (Ex 34.6,7). Em
vez de descrever tal glória, ele a magnifica. Porque não há como descrever o
indescritível. Não vivemos para compreender ou descrever a glória de Deus,
e sim para adorá-la, apreciá-la e difundi-la.
O que os apóstolos viram no monte da transfiguração (Mt 17) é uma pálida
prelibação da glória do Filho de Deus. E, no entanto, eles não sabiam o que
estavam falando, quando sugeriram que nosso Senhor construísse ali tendas
para ficar perenemente com eles. Sua mente ficou em estado de confusão.
De modo semelhante, o que Isaías viu (Is 6): um trono elevado e sublime,
com Alguém sentado nele, cujas abas das vestes enchiam o templo; o clamor
de serafins (seres celestiais a serviço imediato de Deus) com três pares de
asas cada um, para voar, encobrir os pés e o rosto, com incessante clamor,
“santo, santo, santo”, declarando que “toda a terra se enche com sua glória”.
Isto é, sua glória é vista em toda a criação com suficiente clareza. Daí o
ateísmo ser um comportamento extremamente vil. Mesmo sem a Bíblia, uma
pessoa tem condição de perceber com clareza a Mente suprema que deu
origem a todo esse cosmo grandioso. É impossível que tudo isso haja surgido
sem ser causado. Só de pensar em tal coisa nos causa vertigem.
E o que Ezequiel viu? Apenas isto: “um vento tempestuoso, uma grande
nuvem, com fogo a revolver-se, e resplendor ao redor dela, uma coisa como
metal brilhante que saía do meio do fogo” (Ez 1.4). O profeta se viu
destituído de recursos para descrever o que via.
E o que João viu na Ilha de Patmos? Simplesmente, “Vi um grande trono
branco e aquele que nele se assenta, de cuja presença fugiram a terra e o céu,
e não se achou lugar para eles” (Ap 20.11). Por que a terra e o céu fugiram?
Porque, quando Deus se manifesta em sua inteireza, em sua plenitude, nada e
ninguém suporta sua presença. Toda criatura foge e toda boca emudece.
Mesmo os santos lambem o pó e se revolvem na cinza.
E a glória que ele viu de Cristo não passa de uma alegoria, porquanto é
impossível imaginar sua glória real. Ele viu candeeiros de ouro, um ser
semelhante a homem, com vestes luminosas, cabeça e cabelos alvos como lã
e neve no máximo de sua alvura, olhos como chama de fogo, pés
resplandecentes, voz como o ruído de uma gigantesca catarata.
Glória Reivindicada
“Para ele.” Lemos as palavras de Paulo em 1 Coríntios 10.31 que, tudo
quanto fizermos neste mundo, que vise unicamente à glória de Deus. E
Calvino ajunta que, tudo aquilo que não vise à glória de Deus é pecaminoso e
condenado por ele.[18] Daí, o pecado mais grave no ser humano é a
indiferença para com o Deus eterno.
O fato é que Deus reivindica para si toda a glória universal, isto é, todo o
engrandecimento do mundo inteiro, criado unicamente para a própria glória
do Criador. Esta é uma visão unicamente cristã. Os judeus pensam também
assim, porém excluem a Cristo, o esplendor máximo da glória de Deus. E o
mundo estranha tudo isso, porquanto acredita que Deus criou cada um de nós
para que viva para si o máximo que possa, sem interferência de fora. O fim
principal do homem, no conceito humano, alienado de Deus, é desfrutar para
si de toda a criação. Para os filhos de Deus, esse fim principal é a glória de
Deus e seu desfrute dele mesmo. Ao glorificar a Deus, o homem crente
encontra a fonte da verdadeira felicidade.
Glória Reconhecida
“A ele, pois, a glória eternamente. Amém.” Deus não pretende que o
entendamos plenamente; o que ele quer é que o exaltemos em sua infinitude.
Ele quer que desejemos profundamente glorificá-lo em tudo o que somos, em
tudo o que fazemos, em tudo o que queremos e em tudo o que pensamos. Ele
quer que sua glória seja nossa meta máxima e final. Ele quer que haja uma
descentralização do ego humano para o Ego divino. Ele quer que pensemos
nele continuamente; que o desejemos como nosso Sumo Bem. Estar nele é
usufruir a felicidade máxima e perene. O prazer de Deus é que o
reconheçamos no íntimo, que o declaremos com os lábios e com o viver
diário. Pois fora dele não existe nenhuma fonte de vida e de felicidade.
A coisa primordial que o verdadeiro servo de Deus deseja e busca é que
Deus, somente ele, e ninguém mais, em todo o universo, receba a glória
máxima não só dos lábios de seus filhos, mas de sua própria vida. Aliás, ser
cristão genuíno é não só reconhecer, pessoalmente, que a glória de Deus está
acima de tudo e de todos, mas também levar pessoas e mais pessoas ao
mesmo reconhecimento. É ter genuíno prazer em fazer isso. Ele sente que,
para ser eternamente feliz, para ser eternamente glorioso e venturoso, a
perene fonte de todas as coisas é reconhecer e fazer com que mais pessoas
encontrem em Deus o segredo da verdadeira felicidade; e que isso está no
fato de reconhecermos que somente Deus possui a glória eterna e universal.
Concluindo
Concluamos, dizendo que esta doxologia é de caráter atual e escatológico.
Deus age dentro da história humana e fora dela. Sua glória não pode ser
contida tão-somente dentro da história humana. Aliás, ela se consumará na
glorificação do universo após o juízo final. Então, a Igreja glorificada não só
desfrutará dessa glória em sua plenitude, mas ela mesma será motivo para
que essa glória se sobressaia ainda mais. No capítulo 19 do Apocalipse, a
Igreja canta a glória do Deus que destruiu para sempre os demônios e seres
humanos perversos e purificou a Igreja de todo o mal. Agora ela está livre de
toda mancha e do convívio dos ímpios. Ela já não necessita nem de trancas
nem de muros!
“Para serem conformes à imagem de seu Filho” (Rm 8.29).
[10] Ambas as citações se encontram em seu comentário sobre Romanos, p. 427, 2ª edição de Edições
Parakletos, 2001,tradução de Valter Graciano Martins, São Paulo, SP.
[11] Edição Clássica, 2ª edição, cap. I, p. 41.
[12] “Doutrina filosófica caracterizada por uma extrema aproximação ou identificação total entre Deus
e o universo, concebidos como realidades diretamente conexas ou como uma única realidade integrada,
em antagonismo ao tradicional postulado teológico segundo o qual a divindade transcende
absolutamente a realidade material e a condição humana” (Dicionário Houaiss, p. 2119).
[13] Heber Carlos de Campos, O Ser de Deus, Editora Cultura Cristã, 2ª edição 2002, p. 13.
[14] Já traduzido para o português, por Valter Graciano Martins, porém ainda não publicado.
[15] João Calvino, Romanos, p. 427.
[16] João Calvino, Efésios, p. 217, traduzido por Valter Graciano Martins, Editora Fiel, 2010.
[17] A palavra pode referir-se ao Ser do Deus Trino ou a uma qualidade das três Pessoas em separado.
Por exemplo, a deidade ou divindade de Deus Pai, a deidade de Cristo ou a deidade do Espírito Santo.
Como está no texto supramencionado, em sua forma maiúscula, significa o Ser de Deus. Deidade e
divindade são termos sinônimos, porém às vezes prefiro, pessoalmente, Deidade, pois sinto ser mais
forte que divindade.
[18] João Calvino, 1 Coríntios, Edições Parakletos, 2ª edição, pp. 324-325, traduzido por Valter
Graciano Martins, São Paulo, SP.
Gratid ão pela Eleição Divina
Entretanto, devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados pelo
Senhor, porque Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela
santificação do Espírito e fé na verdade, para o que também vos chamou
mediante nosso evangelho, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus
Cristo. Assim, pois, irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições que vos
foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa. Ora, nosso Senhor
Jesus Cristo mesmo e Deus, nosso Pai, que nos amou e nos deu eterna
consolação e boa esperança, pela graça, consolem vosso coração e vos
confirmem em toda boa obra e boa palavra (2Ts 2.13-17).
Visualizando o contexto, somente um elemento põe o crente de sobreaviso
sobre a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e de nossa reunião com ele, sem
desistência da fé, sem perturbação mental, sem se deixar arrastar por falsas
profecias quanto ao dia de sua vinda; pois ele sabe que antes virá a grande
“apostasia”, a revelação do “homem da iniquidade”, o “filho da perdição”, o
“anticristo”, o qual se levantará contra Deus e seu verdadeiro culto,
assentando-se no santuário de Deus, ostentando-se como se fosse Deus
mesmo (2Ts 2.3,4).
Que elemento é esse? Que verdade é essa que nos guarda de todo engano e
perdição? Por que o crente em Cristo é vitorioso até o fim? Paulo diz que ele
dava graças a Deus por esse elemento ou verdade; e nós, também, devemos
render graças a Deus por esse elemento ou verdade: porque Deus vos
escolheu, vos elegeu, vos predestinou. O que sustenta o verdadeiro crente em
Cristo não é ele mesmo, e sim a eleição divina. Em outras palavras, é o fato
de Deus haver registrado nosso nome no Livro da Vida do Cordeiro (Lc
10.20).
1. Sua Origem
Primeiro, ele mostra que a origem da eleição divina remonta à eternidade.
Ele usa a expressão desde o princípio.
Em Efésios 1.4, ele usa outra expressão para a mesma ideia: “nos escolheu,
nele, antes da fundação do mundo.”
Em referência ao Livro da Vida, no qual os nomes dos perdidos não foram
registrados, João, em Apocalipse 13.8, usa a mesma expressão para a
existência deste Livro: “desde a fundação do mundo” (ver também 17.8).
Tudo isso aponta para a ocasião em que Deus decidiu eleger uns e não
outros. Isso significa que a salvação dos eleitos foi decretada na eternidade,
não no tempo. E o motivo desse decreto estava dentro de Deus, e não fora
dele. Ele não saiu de si e deitou sua vista para longe em busca de uma razão
para fazer isso. A razão estava nele mesmo, em sua decisão soberana e
absoluta.
Infelizmente, muitos ministros do evangelho oram, quando recebe alguém à
membresia da igreja, que agora Deus escreva seu nome no Livro da Vida,
como se ele dependesse da conversão de uma pessoa para, em seguida,
decidir se escreve ou não seu nome naquele Livro. Essa atitude diminui o Ser
de Deus e o equipara a uma pessoa dotada de premonição ou clarividência.
Eu mesmo já vi essa cena e ouvi palavras semelhantes. É doloroso que tantos
ministros da Palavra de Deus sejam tão desatentos.
2. Sua Causa
Reiterando, é inútil buscarmos na previsão ou na presciência de Deus a
causa ou motivação de nossa eleição. Ele não poderia prever em nós nada
que o levasse a nos escolher ou eleger. A causa ou motivação não está em
nós, e sim nele mesmo, “nosso Pai, que nos amou” (2Ts 2.16). Aqui jaz toda
nossa eterna segurança. Quando nossa eleição ou salvação depende de algo
em nós, nossa esperança morre, porque não temos estabilidade. Nossa
estabilidade está no amor eletivo do Deus trino.
Paulo diz que Abraão “esperava contra a esperança” (Rm 4.18). Como
assim? É que ele continuava esperando quando nada mais havia que esperar.
O que levou Abraão a agir assim? Porque ele bem sabia que, além de sua
própria esperança, todos os eleitos de Deus, no futuro, teriam a mesma
esperança contra a esperança, porque a eleição reside em Deus mesmo, em
sua vontade soberana e decretiva. Em nós mesmos não há nenhuma razão
para espera. É nesse sentido que esperamos contra a esperança. A esperança
que nutrimos está além e acima de toda razão humana. Ela é ultra-racional;
desafia qualquer lógica humana. Porquanto esperamos por algo humanamente
impossível. Mesmo assim, temos a convicção de que esse algo existe e dele
nos apropriaremos!
3. Seu Instrumento
3.1. A vocação eficaz por meio do evangelho: “para o que também vos
chamou, mediante o nosso evangelho” (2Ts 2.14).
A eleição divina, decretada na eternidade, se concretiza no tempo, pela
pregação do evangelho do reino de Deus, o evangelho do Senhor Jesus
Cristo, o evangelho da graça: “E assim a fé vem pela pregação, e a pregação
pela palavra de Cristo” (Rm 10.17). O mesmo que elegeu uma pessoa
também elegeu o meio para alcançar essa pessoa – o evangelho!
O evangelho deve ser proclamado no mundo inteiro, pela igreja, para que
os eleitos sejam salvos, porquanto somente esses é que são salvos pela
proclamação da graça de Cristo no evangelho. Pois esta vocação divina é
dupla: ela é geral, deve atingir externamente a todos; e é particular, porque,
salvificamente, se concretiza somente nos eleitos. Somente esses respondem
positivamente. Os demais se vão como vieram. Todo o movimento de
missões teria um enfoque diferente e definido se os missionários pensassem
assim. Vão ao mundo inteiro proclamar o evangelho da graça de Deus para
que os eleitos se manifestem. Não se atormentariam quando veem as
multidões se afastarem indiferentes.
3.2. A santificação do Espírito Santo: “pela santificação do Espírito” (2Ts
2.13).
O Espírito sempre vai na vanguarda da proclamação do evangelho, pois se
ele não operar no coração, na mente, na alma do pecador, este evangelho
jamais será compreendido, jamais será discernido, jamais será aceito, jamais
atingirá o propósito divino na salvação do pecador. É como o martelo que
golpeia a bigorna sem nada embaixo.
Os teólogos chamam este ato do Espírito de justificação judicial, de
regeneração, de transformação, de novo nascimento, de conversão, de filiação
divina. É por este ato do Espírito que o pecador passa realmente a viver; é
uma ressurreição espiritual; é um enxerto do pecador no corpo místico de
Cristo; e o pecador se torna uma nova criação (2Co 5.17). Agora ele vive;
acordou dentre os mortos e se ergueu para a fé e o serviço do Senhor.
3.3. A fé na verdade: “e fé na verdade” (2Ts 2.13).
“A fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo” (Rm 10.17).
Nem a fé é propriamente do homem. Ela é um dom de Deus. Para que todos
os renascidos e salvos saibam que tudo quanto possuem de fato recebem da
parte do Espírito de Deus. Só então ele tem condição de agir e reagir
positivamente em resposta à atuação do Espírito Santo. Este é um santo
monergismo.[19]
4. Seu Fim ou Propósito
4.1. Seu fim imediato: a salvação eterna.
Toda a obra de Cristo e toda a proclamação do evangelho, ou, seja, toda a
obra delegada à Igreja visa a um propósito imediato: a aquisição da vida
eterna, que é chamada a eterna herança que temos em Cristo. Em princípio,
podemos dizer que já fomos salvos, quando cremos; porém é certo dizer que
estamos sendo salvos, isto é, o Espírito continua operando nos salvos para
que vençam o pecado; e também é correto dizer que seremos salvos,
porquanto vivemos ainda no contexto do pecado; somente na volta de Cristo,
quando nossos corpos forem ressuscitados, é que nossa salvação se
concretizará de uma vez e para sempre.
4.2. Seu fim mediato ou remoto: a glória final do Senhor Jesus Cristo em
sua vinda.
Glorioso texto o de Paulo aos Filipenses, onde ele diz: “o qual transformará
nosso corpo de humilhação, para ser igual ao corpo de sua glória, segundo a
eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas” (Fp
3.21). Este texto traz um amplo esclarecimento sobre o que nos acontecerá
quando da segunda vinda de nosso Senhor.
5. Seu Fruto Aqui e Agora
5.1. O conforto na luta: “nosso Pai, que nos amou e nos deu eterna
consolação” (2Ts 2.16).
Tanto o Antigo, como o Novo Testamento, particularmente todo o livro do
Apocalipse, foram escritos para a orientação e fortaleza das almas dos salvos.
Encontramos por toda a Bíblia palavras de ânimo na grande luta terrena.
Alguém disse que vivemos numa grande arena, onde a morte está sempre à
espreita. Mas sua vitória é aparente!
5.2. A boa esperança, pela graça:
Paulo chama esta esperança de boa, porque de fato ela é boa, muito boa,
excelente e maravilhosa, porque ela não é como a esperança do mundo, que
morre; esta boa esperança jamais morre no coração do eleito, porque sustenta
sua fé e porque seu nome está registrado no Livro da Vida do Cordeiro.
A referência que Paulo já fez sobre a esperança de Abraão: ele esperava
contra a esperança. A esperança celestial que nasce do Pai das luzes fica viva
mesmo quando nada existe para se esperar. Ficaríamos neste ponto por muito
tempo, só tentando delinear como nosso pai Abraão já não tinha nada para
esperar, sendo-lhe exigido até mesmo seu filho único, o herdeiro da
promessa. Quando seu horizonte se estreitava de modo a nada ver que
nutrisse sua esperança, ele continuava esperando, porquanto era como se ele
visse aquela cidade cujo fundamento é o próprio Senhor Jesus (Hb 11.10).
5.3. A confirmação em toda boa obra: “e toda boa obra e boa palavra” (2Ts
2.17).
Um dos textos mais lindos e claros sobre as boas obras dos crentes é
Efésios 2.10:
“Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus de antemão
preparou para que andássemos nelas.”
O Deus, absolutamente soberano, não elegeu a ninguém para que viva sua
própria vida, e, sim, viva a vida de Deus. O mesmo Deus que elegeu os que
deveriam ser salvos, elegeu também as obras que ele queria que os salvos
praticassem. Somente as obras que ele elegeu para os eleitos é que são santas
e boas. Qualquer “boa obra” fora de Cristo, isto é, dada para a promoção do
doador, é espúria, pois não visa à sua glória. O doador de uma obra boa, que
agrada a Deus, tenciona que a mesma seja secreta, vista somente por Deus. É
verdade que nem sempre isso acontece, pois o recipiente de uma obra boa
costuma divulgar a pessoa do doador.
5.4. A perseverança: “permanecei firmes e guardai as tradições que vos
foram ensinadas” (2Ts 2.15).
O Apocalipse, para que os salvos saibam que estão seguros nos braços de
Deus, usa a metáfora do selo, que denota posse, garantia e certeza.
“Não danifiques nem a terra, nem o mar, nem as árvores, até selarmos na fronte os servos de
nosso Deus” (Ap 7.3).
[19] Toda a salvação do pecador é função exclusiva do Deus trino. Esta seção constitui um ato
exclusivo do Espírito Santo. Somente no processo de santificação é que o cristão participa. No
sinergismo, toda a salvação do pecador é uma decisão dele; Deus está na retaguarda para ajudar.
O Conteúdo do Livro da Vida
Temos aqui um assunto tão profundo quanto chocante, tão sublime quanto
estranhável, tão consolador quanto revoltante. O mundo não dá a mínima
atenção a ele. Os chocados, os estranhados, os revoltados têm sido os
próprios cristãos, pelo menos em termos, porquanto confessam que são
herdeiros do reino celestial. Não sabemos se tal comportamento se deve a um
amor tão imenso pelos ímpios que se abeiram do abismo eterno, movidos
pelo desdém que dirigem ao céu e ao trono ocupado pelo divino e supremo
Governante do universo. Se este é o caso, juntamente com nosso apreço por
tal atitude cristã amorosa está nossa humilde advertência a que amemos antes
e acima de tudo e de todos Aquele que ordenou que se escrevesse o Livro da
Vida, mesmo que seus atos revelados na Escritura nos choquem e causem
estranheza, porquanto por ora vemos apenas como que através de um espelho
embaçado (1Co 13.12). Alegremo-nos porque vem o dia em que veremos
face a face, de forma nítida e bela. Então não mais acusaremos a Deus de
fazer o que é estranhável, como no caso do Livro da Vida. Ao contrário, nós
o louvaremos e o adoraremos com eterna gratidão por nos haver,
graciosamente, incluído em seu Livro celestial.
Na leitura do Apocalipse, no capítulo 20, deparamos com um quadro
extremamente solene e terrificante. O que João viu? Ele viu um trono branco
– o trono donde emana a justiça cristalina, indubitável e incontestável, o
trono do juízo divino. João notou que esse trono estava ocupado por Alguém,
cuja presença era tão assustadora que ele viu a terra e o céu fugirem. O que
mais João viu? Viu os mortos, ou, seja, os que dantes morreram, mas que
agora estão vivos, grandes e pequenos – de todas as idades, de todas as
classes, de todas as nacionalidades, todo joelho, toda língua se rendem (Fp
2.10,11). Todos se achavam em pé diante do trono. Não faltava ninguém.
Não havia pressa. Ninguém ia a parte alguma; ninguém tinha relógio, nem
compromisso, nem pressa alguma. O tempo atmosférico havia passado.
Contudo, todos tinham consciência de que chegara o grande momento da
prestação de contas e o Juiz daquele supremo tribunal não podia equivocar-
se; não podia cometer injustiça. A sentença seria tão justa que não haveria
nenhum protesto. O julgamento seria realizado sobre que base? Foi o que
João viu a seguir.
“Então se abriram livros. Ainda outro livro, o livro da vida, foi aberto. E os mortos [que até então
estiveram mortos] foram julgados, segundo suas obras, conforme o que se achava escrito nos
livros” (Ap 20.12).
Quanto aos demais, serão julgados à luz do conteúdo dos livros das obras
dos homens. Certamente, ouvirão:
“Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno...” (Mt 25.41).
Por que seus nomes não constavam no Livro da Vida; por que não foram
eleitos; por que o Espírito Santo não mudara sua disposição incrédula e
recalcitrante contra o chamamento divino? Há pessoas que têm oportunidade,
a vida inteira, de abraçar o evangelho e de ser uma bênção no reino de Deus,
porém nunca mudam, nunca glorificam a Deus. Por quê? Porque,
misteriosamente, não são alcançadas e nem transformadas pelo Espírito
Santo. Então, o cristão superficial e apressado afirma: “É porque resistem à
vontade de Deus; este quer salvá-las, porém elas não querem” – fazendo
soberana a vontade do pecador, e frágil e impotente a vontade divina. No
entanto, perguntamos: De todos os que são chamados e transformados pelo
Espírito, porventura algum deles realmente queria? Ou algo terrivelmente
forte e maravilhoso, secreto e irresistível, mudou sua vontade para que esta
queira? É isso que os teólogos chamam de graça irresistível. Ou, seja, esta
graça é irresistível porque ela opera no coração daqueles cujos nomes estão
registrados no Livro da Vida do Cordeiro.
Se lermos a parábola do trigo e o joio (Mt 13.21-30), depararemos com a
eleição divina; se lermos a parábola dos terrenos (Mt 13), depararemos com a
eleição divina; se chegarmos no poço de Jacó (Jo 4.18) encontraremos uma
mulher de vida sombria e degenerada, infeliz e solitária, mas cujo nome
figurava no Livro da Vida, e Jesus foi em seu encalço e a encontrou; se
assistirmos ao diálogo de Jesus com certo jovem rico, ficaremos indagando:
seu nome figurava no Livro da Vida? Só Deus sabe! Se entramos na casa
daquele fariseu que convidou Jesus para um jantar em sua casa e nos
pusermos à mesa ou ao lado, observando, assistiremos uma cena de abalar o
coração: uma pobre mulher de vida desregrada e desgraçada, escória da
sociedade, alvo de motejo e desdém, enfim, um lixo humano, também foi
alcançada pela graça de Jesus e sentiu-se perdoada e abençoada. Por que ela
quis e tantos outros não quiseram? A causa do querer estava nela e a do não-
querer não estava neles mesmos? Entrou furtivamente naquela casa, chegou-
se à roda do banquete, não pediu comida, não falou com ninguém.
Aproximou-se de Jesus, por detrás, tomou seus pés, derramou perfume neles,
misturando-o com suas próprias lágrimas e enxugou-os com seus longos
cabelos. Era o amor que transbordava de seu coração novo e transformado; ao
que Jesus afirma: “Ela muito amou.” Seu nome figurava no Livro da Vida do
Cordeiro.
Se caminharmos para debaixo de uma árvore, ali encontraremos um certo
homem desorientado, engalfinhado num galho de árvore, num grande esforço
para ver o alvo de todas as atenções – Jesus. E ali sua vida mudou de rumo.
Quem o moveu a tudo isso? Ele mesmo, de sua própria vontade, por sua
própria iniciativa, atendendo aos reclamos de sua própria natureza depravada,
alienada de Deus e espiritualmente morta? Ou foi o Espírito daquele que na
eternidade escreveu seu nome no Livro da Vida? Ou foi o chamamento eficaz
e irresistível daquele a quem tudo e todos obedecem? Soberana é a vontade
de Deus ou é a vontade do homem?
Se caminharmos até o Calvário, ali depararemos com a eleição divina, de
forma profundamente concreta, nas pessoas de dois moribundos,
companheiros de infortúnio de Jesus, naquele tétrico cenário. Mateus relata
que
“Os mesmos impropérios lhe diziam também os ladrões que haviam sido crucificados com ele”
(Mt 27.44).
Ele fala em termos gerais e rápidos. Diz que ambos eram incrédulos e
blasfemos. E ambos derramavam sobre Jesus sua revolta, com ofensas
verbais.
“Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também” (Lc 23.39).
O que aconteceu no âmago de sua alma que o levou a (1) reprovar seu
companheiro? (2) a confessar que mereciam justamente o que recebiam? (3) a
declarar a inocência de Jesus? (4) a orar a Jesus, pedindo-lhe que o recebesse
quando viesse em seu reino? Aqueles, cujos nomes constam no Livro da
Vida, serão, finalmente, salvos, mesmo no limiar da eternidade. É um
mistério profundo demais para a mente humana assimilar. E Lucas nada mais
nos fala do outro.
Mas é um homem chamado Saulo que nos assombra. A última coisa que
Saulo de Tarso teria feito na vida era amar a Jesus de Nazaré. Ele mataria
qualquer um que se atrevesse a dizer-lhe: “Ora, Saulo, deixe disso. Mais dia,
menos dia, você acabará se rendendo a Jesus de Nazaré.” No entanto, seu
nome figurava no Livro da Vida. Ele pertencia ao número dos eleitos em
Cristo, estava predestinado a ser um dos maiores cristãos de todos os tempos
(para não dizer o maior). Ele era alvo da soberana graça e do infinito amor
salvífico de Deus em Cristo. No caminho que leva a Damasco, respirando
ameaças e morte, com profundo ódio por Jesus e seu rebanho, munido de
documentação e de autoridade, queria varrer da face da terra esse Nome e
esse povo, ambos, para ele, malditos. Mas chegara sua hora. A luz de Jesus
resplandece do céu, ofuscando a luz do próprio sol, cega e prostra aquele
cruel e sanguinário perseguidor, toca seu coração empedernido, substituindo-
o por um coração novo, de carne, cheio de fé, de esperança, de amor, de
ternura, de sabedoria celestial, de poder revolucionário, de um ardor singular,
incontido, de uma tenacidade irresistível, portando o evangelho
transformador do invencível Galileu! Sim, diria Saulo de Tarso: “Venceste,
Galileu!” O que aconteceu com este homem para fazer tal declaração?
“Mas longe esteja de mim gloriar-me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o
mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo. Quanto ao mais, ninguém me moleste;
porque eu trago no corpo as marcas de Jesus” (Gl 6.14,17).
O que significa, pois, “Deus amou o mundo”? Significa que ele derramou
seu amor no mundo onde o conteúdo do Livro da Vida esteve, está e estará
presente. Extensivamente, o mundo todo se beneficiou com a bênção
salvífica derramada sobre a Igreja. É nesse duplo sentido que
compreendemos a promessa de Deus feita a Abraão:
“... em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12.3).
Noutras palavras,
“vós não podeis crer porque vosso nome não consta no Livro da Vida, e o Pai não vos deu a mim,
como minha propriedade exclusiva” (1Pe 2.9,10).
“Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe aos desejos” (Jo 8.44).
E das palavras mais contundentes que saíram dos lábios de nosso Senhor
encontramos em Mateus:
“Toda planta que meu Pai celestial não plantou, será arrancada” (Mt 15.13).
Concluímos que há plantas que o Pai celestial não plantou. Mas este é o
reverso da doutrina da eleição ao qual os teólogos chamam reprovação.
Aos olhos de um mundo alienado de Deus, um mundo que tem o diabo por
seu pai e príncipe (Jo 8.44), e que jaz no maligno (1Jo 5.19), esta é uma
doutrina absurda e repugnante, enfadonha e intragável, ridícula e desprezível.
Mesmo nós, crentes em Cristo, temos dificuldade em assimilar a lógica de
Deus. Aliás, a lógica de Deus costuma nos chocar, e nossa lógica causa em
Deus profunda náusea.
Enfim, o conteúdo do Livro da Vida fala ainda de justiça divina. Quando
salva um pecador, ele exercita sua graça; quando condena outro, ele exercita
sua reta justiça. Não existe eleição de todos – tal ideia é sinônima de
confusão. O termo eleição, por si só, subentende que houve exceção, houve
exclusão e rejeição. Jamais responderemos às perguntas: Por que Deus não
acolheu a todos com a mesma graça? Por que Cristo não morreu por todos? O
mesmo poder que transforma uns não poderia transformar todos? Assim,
Paulo pressupõe a pergunta de seus opositores ao falar deste assunto:
“Pois quem jamais resistiu à sua vontade?” (Rm 9.19).
Qualquer leitor da Bíblia percebe que aqui Paulo está fazendo uma
pergunta retórica, isto é, que não requer uma resposta verbal, porque quem lê
entende qual é a resposta natural. Além do mais, a pergunta é posta nos lábios
de um questionador incrédulo.
E é ele mesmo quem simula uma resposta:
“Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?” (Rm 9.20).
Aliás, nós mesmos perguntamos: E traz algum proveito discutir com ele?
À primeira vista é como se ele saísse pela tangente. Mas o fato é que todos
quantos tentaram forçar Deus a dar explicação a suas ansiosas inquirições,
não tiveram o prazer de o conseguir. Quanto mais buscava Jó resposta para
sua indignação, mais Deus se omitia de lha fornecer. Em vez de satisfazer-
lhe, Deus formulou, em contrapartida, perguntas às quais Jó não soube
responder.
“Quem é este que escurece meus desígnios com palavras sem conhecimento? Cinge, pois, teus
lombos como homem, pois eu te perguntarei, e tu me farás saber” (Jó 38.2,3).
[20] Paradoxo não significa contradição; significa a “aparente falta de nexo ou de lógica” (Dicionário
Houaiss, p. 2127).
Quando foi Es crito
Se cremos que Deus arquitetou tudo antes que tudo se concretizasse, então
tudo é tudo, inclusive a salvação do homem. Pois Apocalipse 13.8 diz que o
Livro da Vida foi escrito desde a fundação do mundo, expressão que,
naturalmente, se aplica ao sacrifício do Cordeiro, pois o Livro não poderia ser
escrito sem antes haver Salvador para os arrolados ou inscritos nele. O Livro
é do Cordeiro, pois ele é o Salvador daqueles cujos nomes se acham ali
inscritos. O fato é que Deus planejou tudo, nos mínimos detalhes, antes que
criasse qualquer coisa. E que a nova criação, tanto do homem em Cristo
quanto do novo universo, também segue um plano predeterminado.
Esta ideia deve ser muito mais clara para um arquiteto humano que, antes
de lançar as bases de um edifício, e antes de erguer sua estrutura, ele desenha
e faz cálculos matemáticos para que a estrutura suporte o peso. Não pode
haver exagero nessa visão, pois a ciência descreve o corpo humano como
sendo de uma perfeição divina.
A Bíblia fala de Deus como um glorioso Engenheiro que, antes de construir
o universo, arquitetou tudo de forma perfeita e gloriosa, para em seguida
lançar os fundamentos como sábio Edificador, nos mínimos detalhes. Os
astrônomos descrevem a justeza das leis da natureza. Essas leis são de uma
exatidão extraordinária.
Primeiro Propósito
Suscita-se a seguinte pergunta: O que Deus tinha em vista quando, da
massa perdida da humanidade, quis, segundo o beneplácito de sua vontade,
salvar alguns, escrevendo num livro seus nomes para assegurar que seriam
finalmente salvos no tempo e no espaço, quando viessem à existência
concreta? Entendemos que Deus tinha um duplo propósito ao formular o
Livro da Vida. Um dos textos mais belos da Bíblia sobre a igreja foi escrito
por Pedro, em sua primeira carta. É aqui que encontramos o primeiro
propósito do Livro da Vida.
“Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de
Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para sua maravilhosa
luz, vós, sim, que antes não éreis povo, mas agora sois povo de Deus; que não tínheis alcançado
misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia” (1Pe 2.9,10).
Raça Eleita
Pedro, apóstolo, profeta, crente na eleição divina, afirma que a igreja é uma
raça eleita. Ela é a composição de todos quantos, individualmente, foram
eleitos e cujos nomes foram gravados no Livro da Vida. É ela o conteúdo
plenário do Livro – tão-somente ela, e ninguém mais! Pedro está escrevendo
a todos os crentes, de todas as épocas, judeus e não-judeus. Ele está fazendo
menção de Isaías 43.20,21:
“... porque porei águas no deserto, e rios no ermo, para dar de beber a meu povo, a meu eleito, ao
povo que formei para mim, para celebrar meu louvor.”
Raça eleita. Pedro chama a igreja de raça, uma estirpe especial, que tem
um Líder, um Ancestral, uma Cabeça – Jesus Cristo. Nos versículos 4 e 6,
Pedro diz que Jesus Cristo é a Pedra, eleita e preciosa. Paulo, em Efésios 1.4,
diz que fomos eleitos nele, Cristo. Não existe eleição fora de Cristo. Aliás, o
eleito mesmo é Cristo, como o Fundamento da Igreja e, ao mesmo tempo, sua
Cabeça. Ele é, por assim dizer, a raiz de nossa eleição. Pedra de tropeço para
quem não figura no Livro, e Pedra eleita e preciosa para quem se encontra no
Livro. Tudo vem de Deus e tudo volta para Deus. Toda nossa segurança jaz
aí onde nosso futuro se esconde e se estabelece. Este é o ponto para onde se
dirigem nosso louvor e nosso triunfo. É este o estímulo que recebemos no
rigor da luta.
Sacerdócio Real
Nos dias de Pedro, o sacerdócio de Israel, como instituído por Moisés, não
mais funcionava, e o trono de Davi estava vazio. Pedro se vale das duas
figuras para apresentar duas grandes verdades sobre o seguidor de Jesus. A
primeira verdade é que os crentes em Cristo exercem a função sacerdotal.
Como assim? Lembremo-nos de que o sacerdote, em Israel, oferecia
sacrifícios e intercedia pelo povo. Era um mediador entre Deus e o povo. É
Paulo quem se vale deste exemplo para falar da função sacerdotal dos crentes
em Cristo.
“Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis vossos corpos por
sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é vosso culto racional” (Rm 12.1).
Somos uma casta de cultores do Deus vivo, que faz isso “em espírito e em
verdade” (Jo 4.23,24), como um sacrifício vivo, santo e agradável. Vivo,
porque não degola nenhum animal, e sim oferece louvores e ações de graças;
vivo, porque é o Espírito Santo que nos vivifica para servirmos ao Deus vivo;
vivo, porque não servimos a nenhum ídolo sem vida, de invenção e
fabricação humana, mas adoramos diretamente ao Deus que é Espírito
vivente. Santo, porque Deus é santíssimo (Mt 5.48; 1Pe 1.16). Agradável,
porque, em Cristo, Deus se agradou de nós. É um culto racional, não porque
tudo seja explicável, mas porque é tudo feito com lucidez e maturidade, em
plena consciência; não à base de êxtases e fanatismo, mas à base de um santo
equilíbrio emocional. Cristianismo sem equilíbrio emocional e mental deve
receber outro nome, e deve ser classificado na categoria das religiões que se
assemelham à do Monte Carmelo (1Rs 18). A vida cristã, no dia-a-dia, e o
culto cristão, individual e público, se caracterizam por um equilíbrio sadio e
fascinante. O mesmo Deus que criou o coração, criou também a mente para
sentirmos e pensarmos. Aliás, alguém declarou que o cérebro humano está
acima do coração para o governar e o guiar. Quando alguém é governado
pelas emoções e não pelo raciocínio, geralmente alguma coisa fica fora de
lugar.
“Irmãos, não sejais meninos no juízo; na malícia, sim, sede crianças; quanto ao juízo, sede
homens amadurecidos” (1Co 14.20).
“Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito,
mas também cantarei com a mente” (1Co 14.15).
Graças a Deus que temos Jesus Cristo como nosso único Sumo Sacerdote
que se compadece de nós (Hb 4.15) e intercede por nós (Hb 7.25), para que,
igualmente, vivamos intercedendo por todos os homens (1Tm 2.1).
Sacerdócio real. Além de Jesus ser nosso Sumo Sacerdote, e nós,
sacerdotes com ele, da mesma forma ele é nosso Rei, e nós fomos feitos reino
com ele, e reinaremos com ele para sempre (Ap 19.16; 5.9, 10; 2Tm 2.12; Ap
20.4,6; 22.5).
Segundo nossa compreensão de Apocalipse 20.1-6, há três fases no reinado
de Cristo sobre nós, e o nosso com ele.
1. A “primeira ressurreição” (v. 5) não é física, e sim espiritual, ou, seja,
nossa regeneração e conversão pela ação eficaz do Espírito Santo, quando
nos transformamos em herdeiros da glória eterna. Tornamo-nos crentes e
seguidores do Cordeiro de Deus que também já reina sobre nós como nosso
Rei e Senhor. Desde agora, já participamos do domínio eterno de Cristo, pois
nosso pecado de culpa eterna já foi perdoado e já fomos aceitos no Amado –
para sempre! Mas ainda temos, com frequência, o pecado que procura
assenhorear-se de nós, fazendo-nos seus escravos, às vezes até mesmo de
forma catastrófica. Dizer que o crente verdadeiro nunca se deixa escravizar
pelo pecado, por algum tempo, é ser infantil e ignorar a dura realidade da
presente vida. A vida real e o teor da Santa Bíblia nos ensinam algo
realmente chocante sobre a vida dos santos! Há crente genuíno que chega a
viver sob o domínio do pecado por longo tempo. Não obstante, quem reina
mesmo na vida do nascido do alto é o Espírito de Cristo. Por fim, ele será
triunfante!
2. Quando a casa deste tabernáculo se desfaz (2Co 5.1-10), o corpo repousa
na tumba e a alma vai para o seio de Abraão (Lc 16.22), passamos a reinar
com Cristo lá (Ap 20.4), porém despidos, incompletos, porque pessoa não é
só corpo e nem só alma, mas a junção de ambos. Só haverá vida realmente
completa no porvir. Todavia, já reinam com Cristo, em paz, em repouso
seguro, consciente e feliz.
“Bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que
descansem de suas fadigas, pois suas obras os acompanham” (Ap 14.13).
Não era povo, não era nada, era só escuridão e caos, como na criação
primitiva (Gn 1.2). Deus falou do meio da escuridão, do meio da massa
amorfa da humanidade perdida, do meio da podridão moral e cegueira
espiritual. Ele olhou e nada viu que prestasse (Gn 6.5,12). Viu Noé, porém,
mesmo este, não era perfeito (Gn 9.20-29). A diferença estava na graça
divina nele; a diferença estava no fato de que seu nome figurava nas páginas
do Livro celestial. Deus olhou para o mundo e eis que este jazia mergulhado
em densas trevas:
“O povo que jazia em trevas viu grande luz, e aos que viviam na região e sombra da morte,
resplandeceu-lhes a luz” (Mt 4.16).
Lemos que a criação está manchada pela corrupção do homem. Ela está
cansada de sofrer depredação pelas mãos da humanidade dominada pelas
trevas. Assim como a igreja, ela aguarda pela redenção, também, desta
presente corrupção e deterioração, porquanto a redenção de Cristo não se
limita ao conteúdo do Livro da Vida, senão que vale para toda a criação. A
terra e o céu (cósmico ou atmosférico?) serão atingidos pelo fogo. Um
cataclismo irromperá em proporção tal que haverá um incêndio colossal, o
qual lamberá o espaço sideral. Haverá uma renovação tal que o passado será
passado, e a memória passada se apagará. O universo restaurado será morada
de justiça plena. E o mar não vai estar presente na nova terra, pois ele é
sempre emblema de assombro.
Lemos em Apocalipse 21 e 22 que a nova terra terá como capital universal
a Jerusalém celestial, a qual descerá do céu e se assentará na terra. O trono de
Deus e do Cordeiro estará no meio dela. Do trono nasce o rio da água da
vida, e às suas margens estarão as árvores da vida. A maldição, que hoje
ainda se faz presente na terra, será erradicada por completo e será substituída
pela bênção eterna do Deus Trino. Com a maldição, desaparecerão do mundo
a morte, as lágrimas, a doença, o luto, as trevas e todo o mal. Todos os
habitantes da nova Jerusalém contemplarão a face de Cristo, para sempre, e
portarão em suas frontes o novo nome dele. O diabo, os demais demônios, os
ímpios que perseguiam a igreja e viviam na prática da perversidade estarão
para sempre no universo de Deus, no lago que arde com fogo e enxofre,
porém longe da nova Jerusalém, longe dos santos; estarão em seu próprio
lugar, pois não amaram a Deus e nem desejaram morar na presença dele. Irão
para seu lugar merecido e terão a presença de Deus, sim, porém não uma
presença amorosa e amiga, e sim aquela presença que os fará lembrar,
estarrecidos, de todo seu desatino, de suas blasfêmias, de suas desvairadas
ambições, pelas quais mataram e destruíram os indefesos sem piedade ou
consideração. Estarão onde essas coisas ambicionadas não podem estar, e os
objetos de seus deleites mais profundos não mais satisfarão seus apetites
insaciáveis e irrefreáveis. Desejarão ter o que não poderão ter; desejarão
livrar-se da incômoda presença do Juiz supremo e inflexível e não o
conseguirão. O remorso os devorará sem clemência, porém jamais serão
consumidos. Desejarão deixar de existir, porém sofrerão, ininterrupta e
eternamente, sem jamais abafar sua atormentada consciência. Em seu coração
jamais habitará o desejo de fazer a vontade de Deus, de morar no céu, de
amar os semelhantes. Seu coração jamais será morada do amor. Neles
habitará para sempre o ódio insaciável, cada vez mais crescente e voraz.
Em contrapartida, Deus verá sua justiça triunfar sobre a injustiça, a
suprema aspiração dos justos. Hoje, parece que o mal prevalece; naquele dia
eterno, veremos que o triunfo é do bem, da justiça, da perfeição e da
felicidade. Por outro lado, Deus verá consolidar-se o triunfo do bem sobre o
mal. O mal ficará confinado em seu próprio espaço, isolado do glorioso povo
de Deus. O mal nunca entrará pelas portas da nova Jerusalém!
“Nela nunca jamais penetrará coisa alguma contaminada, nem o que pratica abominação e
mentira, mas somente os inscritos no livro da vida do Cordeiro” (Ap 21.27).
“... só o Senhor será exaltado naquele dia” (Is 2.17).
Este é o ponto. Naquele dia eterno, Deus, a Trindade, será o único a ser
exaltado; o único a ser glorificado; o único realmente vitorioso (Fp 2.6-11).
Deus a tudo criou, não por necessidade inerente, como se algo lhe faltasse à
felicidade interior. Ao contrário do que diz William Barclay: “Deus jamais
seria feliz sem o homem.”[23]Dificilmente esse Deus é o da Bíblia. Criar
partiu de sua vontade livre e soberana, não porque lhe faltasse algo. Ele quis
e tudo veio à existência; ele ordenou e tudo obedeceu (Sl 33.9). Todas as
criaturas do universo louvarão o Criador e Redentor. Até o inferno o
glorificará (Sl 76.10).
“Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a honra e o poder, porque todas as coisas
tu criaste, sim, por causa de tua vontade vieram a existir e foram criadas” (Ap 4.11).
[21] Simon Kistemaker, Epístolas de Pedro e Judas, p. 127, Editora Cultura Cristã, 1ª edição, 2006.
[22] Simon Kistemaker, idem, p. 127.
[23] William Barclay, El Noevo Testamento, Evangelho de Lucas, Editorial La Aurora, Buenos Aires,
Argentina, p. 76, já traduzido por Valter Graciano Martins, porém ainda não editado em português.
Alteráv el ou Inalterável?
O Caráter de Deus
Voltando ao diálogo de Moisés com o Senhor Deus, no Monte Sinai, agora
enfatizando o verbo riscar, reiteramos o que já discutimos acima:
“Agora, pois, perdoa-lhe o pecado; ou, se não, risca-me, peço-te, do livro que escreveste. Então,
disse o Senhor a Moisés: Riscarei de meu livro todo aquele que pecar contra mim” (Ex 32.32,33).
Segundo essa nota de rodapé, significa que este livro escrito por Deus se
refere a um registro nacional do povo pactual; isto é, tem relação com a
aliança ou o registro da membresia do povo. De fato, essa ideia está expressa,
principalmente, em todo o Pentateuco. Ser riscado desse livro equivalia
perder a cidadania sacra. Era excluído do rol do povo eleito.
Já numa nota de rodapé da Bíblia Vida Nova, edição de 1976, lemos ser
este “O relatório dos que pertencem a Deus por toda a eternidade.” Equivale
dizer, esse livro escrito por Deus é o mesmo livro da vida, mencionado várias
vezes, no Novo Testamento.
Essa opinião é endossada por João Calvino, quando comenta este texto:
“Por ‘o livro’, no qual lemos que Deus registrou seus eleitos, deve-se
entender, metaforicamente, como sendo seu decreto.” Equivale dizer que esse
livro é sinônimo do livro da vida, alusão feita principalmente ao registro
mencionado por Jesus em Lucas 10.20:
“Alegrai-vos, não porque os espíritos se vos submetem, e sim porque vosso nome está arrolado
nos céus.”
Seja como for, a questão difícil é a ideia de Deus riscar desse livro o nome
de alguém. Uma leitura rápida e superficial de Apocalipse 3.5, palavras de
Jesus dirigidas à igreja de Sardes, parece abonar essa ideia, pois se ele não
risca o nome do vencedor, então risca o nome do derrotado. Se realmente
Deus escrevesse o nome de alguém para depois riscá-lo, a ideia que ficaria do
Ser de Deus é muito ruim. Mas isso não pode ser. Arranharia profundamente
o caráter do Deus infalível. Se existe a ideia de um ser humano infalível, no
caso do papa católico-romano, caso fosse possível, o que pensar de Deus
escrevendo em seu livro e riscando dele nomes de pessoas? Sua ação
decretiva deixaria de ser decretiva, pois seu decreto poderia ser invalidado, se
não pela criatura, seria pelo próprio Criador. Isso é impossível.
Assemelha-se ao caso de Paulo, quando diz:
“eu mesmo desejaria ser anátema, separado de Cristo, por amor de meus irmãos...” (Rm 9.3).
Esta foi a convicção inabalável dos patriarcas, dos profetas e dos apóstolos.
E Jesus nunca ensinou outra coisa. O Pai das luzes é imutável! O que ele
determina é inalterável! Quem muda ou tenta mudar sua verdade é falso
profeta, falso mestre, falso cristão. Portanto, ele é:
1. Imutável em sua natureza essencial. Dizer que a imutabilidade é inerente
ao Ser divino é o mesmo que dizer que seu Ser não varia, não se altera, não se
modifica. No dizer de Tiago, não sofre mudança. Se a natureza do diamante é
inalterável, o que dizer da natureza do Criador do diamante? Se os cientistas
afirmam que as leis da natureza não podem ser alteradas ou interrompidas, o
que dizer do Criador da natureza?
Quando Deus se manifestou a Moisés nas imediações do Monte Horebe,
ele lhe disse:
“Eu Sou o que Sou” (Ex 3.14).
O que é isto? Deus fez uso de nossa pobre linguagem para dizer-nos que
ele é eternamente o mesmo. O único sem origem. Sua existência não se
originou de algo fora dele. Ninguém e nada lhe deu origem.
“Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será para sempre” (Hb 13.8).
Quando parece que Deus cedeu à nossa vontade, o fato é que sua vontade
está sendo satisfeita. Orações atrevidas, irreverentes, desrespeitosas,
arbitrárias, hiper-egoístas são invenções modernas, engendradas pelos super-
pastores, seres tão “poderosos” na oração que, quando oram, Deus baixa a
fronte e atende respeitosamente. Eles ordenam, e ele os atende como o gênio
da lâmpada mágica. Diante desses seres extraordinários, Deus abre mão de
sua soberania a fim de atendê-los e fazê-los soberanos. Para esses poderosos
“Deus tira o chapéu”. Nesses casos, a soberania não é de Deus, e sim do
homem! No entanto, não cremos que o deus deles seja o mesmo Deus dos
antigos profetas e apóstolos, nem o Deus revelado por meio de nosso Senhor
Jesus Cristo. É a esses seres arrogantes e blasfemos que o Juiz dirá no último
dia: “Não vos conheço; apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade”
(Mt 7.23). Pensavam ser suficiente usar e abusar do nome de Jesus sem,
contudo, honrá-lo. Esses homens e mulheres honram a si mesmos, e não ao
Senhor da Igreja.
Por que, então, lemos que Deus risca e não risca o nome que ele mesmo
escreveu no Livro da Vida?
Ele quer dizer que fará assim ou está agindo como se fosse um de nós?
Podemos imaginar Moisés e Deus se digladiando com respeito ao povo de
Israel. Deus, querendo destruí-lo; Moisés, querendo que esse povo fosse
perdoado. Em termos bem humanos, podemos ver aqui como que um
“desabafo” de ambos os lados. Dificilmente um ser humano tenha discutido
com Deus como fez Moisés nessa ocasião, e Deus tenha se portado de um
modo tão humano como aqui. Ele desce quase ao nível de Moisés. Discute
com ele com indignação. Está encolerizado com aquele povo rebelde.
Moisés: “Senhor, já que não queres perdoar este povo, então risca meu nome
de teu livro como uma vítima em sacrifício pelo povo. O povo é perdoado e
eu sou destruído; isso pouco me importa.” E Deus, dando vazão à sua cólera,
responde: “Eu risco de meu livro a quem eu quiser, e você não toma parte
nisso. Não permito que uma criatura diga o que eu tenho de fazer. Se eu risco
ou não alguém de meu livro, o que você tem com isso? Esse é um problema
meu!”
Quanto à igreja de Sardes (Ap 3.5), Jesus quer animar os vencedores com
uma palavra consoladora: “Não apagarei o nome do vencedor.” Daqui não
inferimos que Deus tem o Livro da Vida todo rabiscado! Que o apóstata teve
seu nome registrado naquele livro para mais tarde ser apagado. Que bendita
concessão Deus faz, nivelando-se conosco em nossos dilemas e conflitos! O
Deus infinito se nivela aos seus filhos e lhes fala como se fosse seu igual.
Para fazer isso, ele tem de usar nossas palavras, confrontar nossos conceitos
com os dele, agir e reagir como se tivesse conosco o mesmo sentimento. É
isso que nos espanta no Deus eterno: sua condescendência para conosco!
Assemelha-se a um pai que deita na grama com seu filho para nivelar-se à sua
altura, à sua linguagem e cultura, à sua idade.
O Conselho de Sua Vontade
Paulo, ensinando aos cristãos efésios, declara:
“... nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele
que faz todas as coisas conforme o conselho de sua vontade” (Ef 1.11).
[24] Sincretismo: “Fusão de diferentes cultos ou doutrinas religiosas com reinterpretação de seus
elementos” (Dicionário Houaiss, p. 2577.
[25] Comentário Bíblico Moody, vol. 1, p. 17, 1ª edição em português.
M eu Nome Es tá Lá?
Ora, esse tipo de conflito não é experimentado pelo não-cristão. Este não
pode não querer fazer o mal no mesmo sentido que o cristão não o quer. Em
contrapartida, somente o cristão é que anseia por fazer o bem que agrada ao
coração do Pai celestial. O não-cristão também faz o bem, porém não como o
cristão o faz, nem a que propósito o faz – para a glória de Deus. Por outro
lado, o cristão também faz o mal, porém não como o não-cristão o faz, nem a
que propósito o faz – para o deleite de sua natureza não regenerada pelo
Espírito.
É em Gálatas que Paulo faz um confronto terrível da batalha que se trava
no interior daquele em cujo coração o Espírito Santo implantou a natureza do
novo homem. E ele nos diz que esta batalha é deflagrada com o Espírito
Santo como nosso General (graças a Deus!).
“Porque a carne milita [guerreira] contra o Espírito [Santo], e o Espírito [Santo] contra a carne,
porque são opostos entre si; para que não façais o que porventura seja do vosso querer” (Gl 5.17).
“1. O libertino não experimenta este tipo de luta, uma vez que ele segue
suas próprias inclinações naturais.
2. O legalista, destinado à graça e à glória, que lembra seu estado
pecaminoso à luz da lei, porém recusa aceitar a graça, luta e peleja sem,
contudo, alcançar a vitória ou sem experimentar o sentimento de triunfo
garantido e final. Esta condição persiste até que, finalmente, a graça lance
abaixo todas as barreiras da oposição (Fp 3.7ss.).
3. O cristão crente, enquanto está ainda neste mundo, experimenta um
conflito agonizante em seu próprio coração, porém, em princípio, ele já
alcançou a vitória, como o testifica a própria presença do Espírito Santo em
seu coração. Esta vitória será sua numa medida plenária na vida por vir.
4. Para o cristão redimido, que já está na glória, esta batalha já terminou.
Ele já usa a coroa da vitória” (W. Hendriksen, Gálatas).
Toda essa parafernália carnal está, potencialmente, presente no cristão, na
velha natureza do “velho homem”. No entanto, sua nova natureza, o “novo
homem”, a “nova criatura” ou “criação”, recebe, gerada pelo Espírito, o
“fruto do Espírito”. Este, sim, é que se desenvolve na vida do cristão. As
obras da carne matam; o fruto do Espírito vitaliza. Paulo usa a expressão
“fazer morrer” (Cl 3.5); o quê? “vossa natureza terrena.” Usa ainda para isso
um verbo muito forte e no imperativo: “... despojai-vos ... de tudo isso” (Cl
3.8). O verbo despojar significa “espoliar, privar da posse de; desapossar;
despir, desnudar” (Aulete).
O cristão realmente precisa viver consciente, vigilante, atento. O velho
homem está aí, disposto a ser uma arma do maligno para nossa destruição.
Este é um passo vital. Temos de ser realistas, com os pés no chão e o coração
nas mãos de Deus.
Enfrentando os Altos e Baixos
Volto a recordar ao leitor que, embora nosso nome já esteja gravado no
Livro da Vida do Cordeiro, contudo ainda vivemos no contexto do pecado em
nossa trajetória terrena. É depois de muita luta que tomamos posse,
concretamente, do reino eterno. Nossa herança já está garantida, mas ainda
não a recebemos de modo definitivo.
Por toda a Bíblia e nos fatos vivenciados por cada um de nós, deparamos
com as quedas e fracassos temporários, porém realísticos, dos filhos de Deus.
De vez em quando, deparamos com alguns que nos dão a impressão de que
nunca experimentaram esses reveses e fracassos, como José do Egito, Daniel,
Paulo. Ao lermos suas histórias, a impressão que fica é que não erraram. Por
certo que erraram, porém isso não ficou registrado; o porque, não sabemos.
Em contrapartida, que fila enorme de fracassados detectamos em toda a
Bíblia e, na realidade, em nossa vida pessoal e presente. Ao lermos a história
da Igreja Cristã, que tristeza! Quanta miséria! Nos tempos antigos, lemos de
um Noé, homem bom, justo e crente, mas que se embriagou, se expôs ao
ridículo, foi depreciado pelo filho do meio. Em consequência disso, Noé
amaldiçoou o neto, que diretamente nada tinha a ver com o caso. Mais tarde,
lemos de Abraão, homem de uma fé ímpar, de caráter luminoso, mas que
mentiu, não só uma vez. Mais tarde lemos de Jacó, cujo nome bem que
justificou seu caráter – ludibriador, suplantador. Depois, Davi, “homem
segundo o coração de Deus”, cujos fracassos trouxeram tristeza, ruína, morte
e destruição. Na nova dispensação, sabemos de Pedro, cujo coração queria
ser leal ao Mestre, contudo o negou da forma mais covarde, mais abjeta e
desastrosa que se pode conceber. Bem disse o profeta Jeremias:
“Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto, quem o
conhecerá?” (Jr 17.9).
João quer que saibamos duas coisas: primeiro, que somos de Deus – isto já
vimos sobejamente; segundo, que o mundo inteiro jaz [“permanece, está
deitado, estendido no chão, está imóvel, como quem perdeu a sensibilidade,
está prostrado”] no maligno. É o mundo inteiro, não parte dele – a política, a
filosofia, a diversão, a ciência, toda sociedade criada pelo homem, toda
religião inventada pelos homens que rejeitam o Cristianismo de Jesus Cristo,
todos os projetos malignos, toda a educação que aliena intencionalmente o
ser humano de seu Criador e Redentor, toda riqueza que não é para a glória
de Deus (Ap 17 e 18). Mundo, aqui, é tudo quanto não se rende ao governo
de Cristo. É a sociedade humana alienada do Criador. Este mundo está sob o
governo imediato do príncipe das trevas, porque recebe e acata toda sua
influência maligna e destruidora. Não significa que tal influência seja feia,
repugnante, repulsiva aos olhos nus. Não, ao contrário disso, ela costuma ser
aparentemente muito atraente. O mundo pecaminoso, corrupto, corrosivo,
pestilento é bonito de se ver; é adorável! Só o Espírito de Deus no-lo
apresenta sem máscara. Mesmo assim, ele costuma fascinar o cristão de tal
forma que este é igualmente arrastado. Não, o mundo é terrivelmente maligno
e maléfico, precisamente por ser atraente com o fim de nos afastar de Deus.
Eva não ficou assustada com a aparição da serpente. Quando Satanás tentou
Jesus, ele mostrou a este as glórias do mundo. Israel experimentou muito
mais emoção em adorar um bezerro de ouro do que em adorar e servir ao
Deus invisível e terrivelmente exigente. É mais excitante participar de um
culto de umbanda do que participar de um culto simples, austero, espiritual,
do qual Cristo é o centro; é mais emocionante participar do carnaval do que
de uma festa realmente cristã, celebrada nos moldes da Bíblia, sem aqueles
atrativos que tanto deleitam nossa velha natureza. É por isso que muitos
cultos cristãos tomaram outras formas, a fim de agradar as massas e a igreja
venha a crescer. Fazer isso é entrar na fôrma do mundo. O povo de Deus não
pode cair nesse fracasso. O mundo é fascinante, é excitante, é terrivelmente
deleitável! No entanto, conduz à destruição eterna, porquanto é inimigo de
Deus.
As filosofias, o misticismo, o pietismo exterior, o ocultismo ou esoterismo,
os mistérios criados, expandidos, cridos, confessados pelo mundo costumam
satisfazer muito mais profundamente aos anseios do homem que não teve
ainda um encontro definido e real com o Deus verdadeiro. Muitos cristãos
têm abandonado o Cristianismo por essas coisas, porque elas satisfazem
muito mais os reclamos da alma pecadora do que as filosofias das austeras
doutrinas da Bíblia.
Certa vez um pastor nos afiançou que a Igreja de Jesus Cristo perde muito
por não adotar as sábias, profundas e benéficas filosofias criadas pelas muitas
entidades filosóficas, filantrópicas, esotéricas do mundo. Ele estava se
referindo a uma entidade específica da qual era membro. Ali, há muito mais
união, fraternidade, respeito, justiça e caridade. E, aparentemente, é verdade!
É duro dizer que os cristãos têm deformado a pura e bela religião de Jesus
Cristo. Mas todas as belezas e atrações do mundo o são pelo fato de
precisamente serem aparentes. E o problema do Cristianismo é precisamente
em ser ele o oposto disto. Os cristãos que buscam melhorar a aparência da
igreja com o fim de atrair o mundo estão correndo o risco de deixar de ser
igreja de nosso Senhor Jesus Cristo e passar a ser mais uma partícula do
mundo. O sal se torna insípido; a luz se apaga. A igreja não se integra ao
mundo neste aspecto. Ela se integra ao mundo na busca do bem comum, da
justiça social, da expansão do reino de Cristo. Aliás, nestes aspectos, ela
deveria ser o carro-chefe.
“Não vem o reino de Deus com visível aparência” (Lc 17.20).
“Não julgueis segundo a aparência, e sim pela reta justiça” (Jo 7.24).
“... porque a aparência deste mundo passa” (1Co 7.31).
Deus prima pela realidade das coisas, e o cristão aprende a fazer o mesmo.
O que nos importa são as realidades espirituais em Cristo. O resto, é resto e
fica por aqui mesmo!
O mundo é muito religioso. Não há muitos ateus teóricos no mundo. Ateus
práticos, os há em grande número. O mundo não consegue ver no
Cristianismo bíblico, a religião de Jesus mesmo, a solução lógica e viável. O
Cristo realmente bíblico é estranho, paradoxal. É o Filho de Deus, que se fez
carne impecável; realizou milagres mirabolantes, impossíveis e absurdos para
os critérios da ciência humana. Ele se entregou voluntariamente para morrer
em expiação pelos pecados humanos. Seu sangue foi derramado para lavar
todos os pecados. Sua morte foi a de um cordeiro sacrificial. É tudo muito
estranho para as concepções humanas deste mundo. Suas doutrinas são, quase
sempre, exóticas e mesmo repelentes. Por exemplo, o inferno eterno para os
maus; a existência de um grandioso anjo, príncipe das trevas, que é servido
por miríades de outros anjos malignos, infernais, que vivem a destroçar a
humanidade; a doutrina da graça em lugar das meritórias obras humanas; a
ressurreição de Cristo e a nossa no final dos séculos. Tudo isso é muito
estranho para o entendimento do homem. Não é mais agradável crer apenas
no pai do filho pródigo, representante de Deus, no Deus do bom samaritano,
bondoso, Pai, plenamente complacente, feliz com a raça humana, que não
intenta condenar a ninguém? Há remédio para todo o mundo. Um dia este
mundo se consertará e ficará bom. É uma questão de paciência. É muito
melhor ficar com um Deus que abençoa a todos, igualmente, que salva a
todos, sem exceção. Um Deus que dá chance a todos por meio de
reencarnações é muito mais lógico e aceitável. São religiões aparentemente
maravilhosas. Seus líderes são pessoas agradáveis, piedosas, caridosas,
alegres, felizes, confiáveis; vivem bem consigo mesmas e com todos os
demais; só fazem o bem, são conselheiras maravilhosas, concatenam
pensamentos grandiosos e dignos de respeito e imitação por parte de todos
nós. São chamados de cristãos, ou de outros nomes pomposos. São virtuosos,
respeitáveis, e são seguidos de feitos portentosos. Muitos dentre esses são
escritores prolíferos, de aceitação internacional. Seus livros são lidos por
multidões. São best selers, campeões de vendagens e de leituras. Certamente,
sua leitura agrada muito mais do que a leitura de uma exposição bíblica. Os
escritores cristãos mais famosos fazem parte dessa confraria.
O céu do Cristianismo é menosprezado pelos grandes do mundo como algo
quimérico. Um grande jornalista de renome, muitíssimo respeitado por toda a
mídia, afirmou não crer no céu dos cristãos porque este se lhe afigura como
algo desagradável e sem qualquer atrativo; prefere ir para qualquer outro
lugar do que morar nesse céu. Se continuar assim, certamente não irá gostar
do lugar onde vai morar!
O cristão continua neste mundo louco, mas é aqui que ele desenvolve sua
fé e pratica seu Cristianismo. Se, porventura, sair-se bem, o Cristianismo é
comunicado; caso se saia mal, o Cristianismo se equipara ou se rebaixa às
demais religiões. Pois ele (o cristão) tem que se confrontar constantemente
com as práticas violentas de um mundo sem Deus, sem escrúpulo, sem
piedade, onde vence o mais esperto e mais forte, o mais violento. Vigora-se o
provérbio: “O mundo é dos espertos.” Em contrapartida, o céu é o lugar do
repouso daqueles que peregrinam por aqui sem ter descanso e nem mesmo
um lugarzinho que seja provisoriamente seu. O filho de Deus está de
passagem por aqui. Se conquistar alguma coisa terrena, ele o administra no
temor de Deus; se não, ele prossegue em frente, pois seu registro permanente
está lá, com Deus, de quem ele é o perene herdeiro.
Perdoando as Ofensas
Reiterando, aquele cujo nome já se encontra gravado no Livro da Vida do
Cordeiro tem lutas não só na esfera do mundo; aliás, o que seria
compreensível e suportável. O pior é que suas lutas se deflagram na esfera do
próprio Cristianismo – dentro da própria igreja. Esta prossegue sua jornada,
não em mar de rosas, mas numa arena, num ringue, num campo de batalhas,
no meio de uma tormenta ou de um incêndio. Suas maiores lutas são
domésticas. A igreja se digladia; outros digladiam contra ela. Pensamos na
igreja em termos de escola, de hospital, de campo esportivo, onde se aprende
ouvindo, vendo e fazendo; onde ela cura doenças de outrem, e onde doenças
são curadas; onde se pratica o esforço disciplinado, tentando acertar e corrigir
os desacertos. Nada de placidez, nada de ócio, nada de descompromisso.
Conheci o evangelho em outubro de 1958; em maio de 1959 fui batizado e
professei publicamente minha fé – aliás, meu despreparo era tal, que nem
mesmo sabia responder às perguntas do ministro, pois eu era o único
professando naquela noite. Deus, porém, não levou em conta a formalidade
desformalizada. Assumi os compromissos que envolvem um crente professo
que se ingressa na igreja institucionalizada. É a maneira de a igreja aparecer,
mas é igualmente uma maneira simples de o indivíduo se travestir de um
autêntico hipócrita.
Ninguém nunca me dissera que a igreja é imperfeita enquanto aqui e agora,
e que o crente é alguém que continua no contexto do pecado. Criou-se em
mim um falso conceito de ser crente em Jesus Cristo. Acreditei literalmente
que ser crente era ser perfeito e exemplo de todos os demais. Que Jesus
Cristo protegeria seu seguidor e não o deixaria pecar mais. Por que eu
pensava assim? Porque o pastor que conheci formou em mim essa imagem,
não por culpa sua, direta ou intencionalmente, mas por ser ele um homem
reto, sério, sincero, respeitável, íntegro, muito simpático e amigo. O viver
diário do Rev. Francisco Antonio Maia, um jovem pastor ainda solteiro
naquela época, que não deixou a menor sombra de censura na igreja e na
cidade, me impressionou profundamente. Foi ele quem me inspirou a vida
cristã, embora não tenha jamais conseguido viver como ele vivia (e
certamente ainda vive). Pensei que a igreja toda estava retratada na pessoa
dele. Aos poucos, porém, a desilusão chegou e matou, em grande parte, meu
idealismo utópico – o perfeccionismo. A igreja era pequena, mas meu
desencanto era grande. Fiquei desiludido com alguns membros da igreja – e
sobretudo comigo mesmo! Não deixei de errar; continuei um ser humano
aparentemente normal. No entanto vi sair dali alguns de volta à vida
pregressa. E não vi nenhum deles chorando por cometer tal desdita. Alguns,
inclusive, sorriam e suspiravam de alívio. Eu mesmo várias vezes tive
vontade de dar meia volta e retomar minha vida de outrora. Mas certa Mão
segurava a minha!
O fato lamentável é que me faltou a visão realista que todo novo cristão
precisa ter, sem o dissuadir de seguir os padrões cristãos. Do contrário, o
recém-convertido está fadado ao escândalo, ao perceber o que comumente
acontece numa igreja local.
Para o cristão aperfeiçoar sua vida em Cristo, não careceria de um mundo
sem Deus. A própria igreja de Deus, e ao mesmo tempo instituição humana,
se constitui numa grande provação recíproca. Primeiro, porque cada cristão
continua sendo uma pessoa comum, fraca, sujeita a todo tipo de fraqueza,
como já vimos. Segundo, porque naturalmente a igreja, como entidade
terrena e humana, é mista. Nem todos são de fato convertidos. Infelizmente,
não é possível determinar quem é quem numa igreja local. Nem Jesus
mesmo, o Senhor da igreja, nos legou a faculdade de sabermos algo definido
além de nós mesmos. E assim temos que respeitar como irmãos em Cristo a
todos, sabendo que nem todos merecem tal respeito. Por que Deus age assim?
Dentre os muitos motivos, é para que nossa paciência seja exercitada, bem
como nossa piedade, nosso espírito de perdão, incluindo nossa perseverança.
Por quantos “amigos” Jesus, no Calvário, pediu que o Pai perdoasse! Nossa
função na igreja é perdoar, perdoar e perdoar. Perdoar em casa, na igreja, na
escola, no ambiente de trabalho, na prática dos esportes. Igreja, pois, é um
campo onde mais se exercita o amor que perdoa. Perdoar um incrédulo, com
indiferença e esquecer o que ele me fez não é tão difícil, em comparação com
o perdão exigido ante a bárbara injúria de um querido irmão em Cristo
lançada contra mim. Perdoar equívocos, um mal-entendido, uma exasperação
momentânea, um desabafo precipitado é fácil, em comparação com a calúnia,
com a injustiça impiedosa, com a difamação, a trucidação que um cristão
recebe de outro cristão quando em posição inferior no exercício da profissão.
A maldade premeditada que desferimos uns contra os outros, sem sentir por
isso qualquer laivo de remorso, enchendo o arraial dos santos de tristeza, de
mágoa incontida, de lágrimas ardentes, que doem e queimam fundo. Há
cristãos cuja maldade suplanta a de qualquer inimigo sem Deus, quando sua
posição é superior à do irmão fraco e indefeso. Criou-se até mesmo um
provérbio: “Com um irmão assim não se necessita de inimigo.” O que tem
ocorrido nos arraiais dos santos de Deus, na atualidade, tem servido para
desanimar os fracos, provocar os fortes e espantar os que vão se chegando
para entrar. Vemos isso na antiga e na nova dispensação, nos dias dos
apóstolos de nosso Senhor Jesus Cristo e hoje. É só ler as cartas apostólicas.
Teremos que conviver com esse drama até que Cristo venha outra vez. Que
cada um de nós se conscientize de tão funesta realidade, fugindo de praticar o
mesmo contra outrem. Que Deus nos ajude e nos livre de tamanha tragédia!
Que cultivemos um coração brando, sincero, piedoso. O termo
“espiritualidade” me incomoda; o termo certo que encontro em toda a Bíblia
é “piedade”. Esse cultivo é difícil, porém possível – com a presença viva e
atuante do Espírito Santo. É muito difícil cantar certos hinos, mas é preciso:
Mais pureza dá-me, mais horror ao mal,
Mais calma em pesares, mais alto ideal;
Mais fé em meu Mestre, mais consagração,
Mais gozo em servi-lo, mais grata oração.[27]
Afinando a Esperança
Tudo neste mundo, fora e dentro da igreja, contribui para perdermos a
esperança no triunfo do bem, agora e no porvir. É como se tudo estivesse
perdido. Nossa visão do futuro é mui débil, mui quebradiça, mui evanescente.
Vemos como por um espelho defeituoso, de forma imprecisa e enigmática. É
como se o Senhor demorasse demais em voltar. Já faz dois mil anos desde
que sua promessa de voltar foi pronunciada. Nos dias dos apóstolos, já
parecia demorada.
“Não retarda o Senhor sua promessa, como alguns a julgam demorada. ... para com o Senhor, um
dia é como mil anos, e mil anos como um dia” (2Pe 3.8,9).
Estamos lidando com o Deus para quem o conceito humano de tempo não
faz nenhum sentido, porquanto ele é o Senhor da eternidade. Ele não precisa
ter pressa. Aliás, ele mesmo nos adverte:
“Porque na esperança fomos salvos. Ora, esperança que se vê não é esperança; pois, o que alguém
vê, como o espera? Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos” (Rm
8.24,25).
Alguém pode até corrigir: Ora, Jesus nos manda saudar a todos, porém não
nos manda saudar a todos da mesma forma. Quanta filosofia em nome da
verdade! Que mal é mais grave: chamar de “irmão” àquele que não o é de
fato, ou negar a destra de comunhão àquele que de fato o é, cujo nome está
gravado no Livro da Vida, só porque não anda conosco? Se saudamos alguns
com a “paz de Deus”, por que não saudarmos a todos da mesma forma? O
que estamos tentando preservar? Se chamamos alguém de “irmão”, por que
não fazer o mesmo com todos? Ainda mais: acaso esses “irmãos” superiores
aos demais não sabem que nem todos os seus congregados são de fato
cristãos genuínos? Se todos sabem que, possivelmente, haja algum falso
irmão congregando, tomando a Ceia, sendo chamado de irmão e saudado com
a “paz de Deus”, por que não se arriscar com os de fora?
É preferível que olhemos para todos como se fossem filhos de Deus, em
potencial, eleitos de Deus, candidatos ao céu, seu nome figurando no Livro
da Vida, do que vivermos excluindo do rol dos salvos àqueles que podem ser
mais amados de Deus do que nós, só porque não andam conosco, não
concordam plenamente em tudo conosco, não pertencem à nossa
congregação. Aliás, em nosso conceito, devemos olhar para a multidão que
nos cerca, à qual anunciamos as boas-novas de eterna salvação, como se todo
o mundo fosse potencialmente eleito, e que possivelmente seu nome está
gravado no Livro da Vida. Deus sabe quem é quem; nós, não. Deus conhece
os seus; nós, não. Cada um de nós sabe de si próprio – e com grande
dificuldade! Em termos absolutos, não temos certeza de nada mais.
Longe de nós insinuarmos que todos os homens são irmãos em Cristo, que
são todos salvos, e que seus nomes estão todos gravados no Livro da Vida,
que são eleitos de Deus e por isso não precisam ouvir diligentemente as boas-
novas de salvação. Pelo precedente neste livro, nossa posição é bem clara e
austera. Afirmamos que em matéria de saber quem é quem, precisamente,
não nos pertence. Que é preferível nos equivocarmos tratando bem do que
tratando mal. “Se possível, no que depender de vós, tende paz com todos os
homens” (Rm 12.18). É preferível eu me enganar, chamando de “irmão”
quem de fato não o seja, do que discriminá-lo, sendo que de fato é meu
“irmão” em nosso Senhor Jesus Cristo. Se eu chamar alguém de “irmão”,
equivocadamente, isso não vai modificar a realidade e nem estarei pecando.
A realidade pertence a Deus; a incerteza pertence a nós. É preferível dizer
que alguém está indo para o céu, não estando, do que dizer que um legítimo
filho de Deus, herdeiro da glória eterna, está indo para o inferno, só porque
não anda conosco e não pensa exatamente como nós.
“Não lho proibais”, diz nosso Senhor, “porque ninguém há que faça milagres em meu nome e
logo a seguir possa falar mal de mim. Pois quem não é contra nós, é por nós” (Mc 9.38-41).
[26] Hinário Novo Cântico, nº 93. Este hino é muito popular entre os evangélicos, constando em
diversos hinários das denominações cristãs.
[27] Hinário Novo Cântico nº 121. É um hino da composição de Philip Paul Bliss, traduzido e adaptado
por Antônio Ferreira de Campos, em 1896. Este é um cântico muito popular entre os evangélicos.
[28] Hinário Novo Cântico nº 288. Outro cântico muito conhecido entre o povo evangélico.
[29] Hinário Novo Cântico nº 192. Este cântico figura em quase todos os hinários evangélicos.
Composto por Elizabeth Mills (1805-1829) e George Coles Stebbins (1846-1945), e traduzido por Luiz
Vieira Ferreira, em 1881.
[30] Hinário Novo Cântico nº 185. Composto por Charles Hutchison Gabriel (1900), e traduzido por
Jerônimo Gueiros (1870-1953). Um belo hino, porém não teve muita popularidade entre os cristãos
evangélicos.
Os Três Gemidos de Romanos
8
Devemos notar como nosso mundo animal sofre com isso. Sofre com
doenças, com devastação, com matança. Os animais se tornaram inimigos do
homem. Ou fogem dele, ou o atacam em defesa própria ou para matar a fome.
Quando lemos Gênesis, é como se o homem e os animais se destinassem a
serem amigos e companheiros. O que se deu? Vieram a ser inimigos mortais.
Seria assim, se não fosse o pecado? Tudo indica que não!
3. A criação acalenta expectativa.
Seguindo em frente com a personificação, ele diz que “a ardente
expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus”. É outra
prosopopeia, a saber, ele atribui esperança à criação irracional, como se fosse
humana. Há uma solidariedade existencial entre o habitante e seu habitat. O
habitante deseja um habitat seguro e permanente; o habitat deseja ter em seu
seio um habitante perfeito que não o destrua. Ambos sabem que isso não se
dará agora e já. Sabem que tudo está sujeito ao tempo do Criador. É ele quem
determina o momento certo. Daí, ambos anelam por esse glorioso momento
de Deus. Ambos anelam ser transformados e eternizados. Há um doloroso
anseio que faz ambos gemerem. Há em ambos uma estreita solidariedade
existencial.
“A criação aguarda a revelação dos filhos de Deus.” Então, a criação está
atrelada aos filhos de Deus, não à humanidade perdida que não oferece
nenhuma esperança sólida e eterna, pois o ser humano sem Deus não espera
positivamente aquele eterno viver com Deus no porvir. Aliás, o mundo
incrédulo gostaria mesmo é de viver eternamente aqui no desfruto das coisas
terrenas. Daí, deixar este mundo já lhes constitui um tormento insuportável.
Os cristãos querem partir e estar lá; os incrédulos desejam ficar aqui mesmo.
Enquanto o juízo divino não vem, em termos absolutos, é impossível saber
quem é quem. Em termos morais, muitos descrentes, até mesmo ateus, vivem
uma vida moral decente. Em termos de boas obras, muitos “pagãos”, isto é,
não cristãos, são ricos em boas obras. É só ler a história dos grandes vultos,
dos quais grande número não era cristão. Em termos da confissão de uma
religião, quase toda a humanidade professa algum tipo de crença. De certo
modo, é quase impossível agora afirmar categoricamente quem é filho de
Deus, quem é eleito, quem se destina à glória eterna. Daí, “revelação dos
filhos de Deus” equivale ao Dia do Juízo, quando esses “filhos de Deus” se
manifestarem claramente.
Com certeza, muitos creem que estarão à direita do supremo Juiz naquele
dia; no entanto, estarão à sua esquerda. Notamos isso pela indagação de
ambos os grupos: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de
comer?” etc., perguntarão os que têm o nome no Livro da Vida. “Senhor,
quando foi que te vimos com fome, com sede, forasteiro, nu, enfermo ou
preso e não te assistimos?”, perguntarão aqueles cujos nomes não constam no
Livro da Vida. A mistura agora é tão confusa e difusa que ninguém sabe com
certeza qual é o destino de seu semelhante. Cremos que nossos amigos e
companheiros são salvos, porém não com certeza absoluta. Pela fé, cada um
sabe de si mesmo, com base na imutável promessa do Senhor. No entanto,
não é possível saber absolutamente acerca de nosso semelhante.
Por isso Paulo, com a sabedoria do Espírito, afirma que a criação “aguarda
a revelação [a manifestação, a distinção] dos filhos de Deus”. Somente o
supremo Juiz tem competência para separar a palha do trigo naquele dia.
Podemos ver isso expresso na parábola do joio e o trigo. “Queres que vamos
e arranquemos o joio? Não! Replicou ele, para que, ao separar o joio, não
arranqueis também com ele o trigo” (Mt 13.28,29). Tão precioso é o trigo,
que não se pode correr risco, porquanto, no momento, os dois são muito
semelhantes e estão bem misturados.
É glorioso pensar que a natureza só aguarda a “revelação dos filhos de
Deus”. Isso se dará quando houver a especificação de quem é quem. O juízo
divino fará essa especificação. Então os que se vangloriavam de pertencer a
Deus vão descobrir tarde demais que não eram dele. Os que nutriam alguma
dúvida, movidos por fraqueza, de ser filhos de Deus verão claramente que
eram dele. E, assim, a natureza se regozijará juntamente com os eleitos de
Deus, porquanto é neles e para eles que ela será renovada.
4. A criação será redimida após os filhos de Deus.
A criação se sente profundamente dependente dos filhos de Deus, pois ela
só será redimida em decorrência da redenção destes. Se não fossem os filhos
de Deus, a criação, provavelmente, permaneceria eternamente corrompida,
deteriorada, fragmentada, a caminho da ruína física e final.
Ela geme à espera da redenção final dos filhos de Deus para que ela mesma
também seja redimida. Não cremos que a criação será destruída; cremos, sim,
que ela será reformada ou renovada, porquanto, até então, ela existiu
deformada; a partir de então, passará por uma transformação, isto é, avançará
para além desta presente forma que, embora longa, é temporária, será
permanente:
“Pois eis que eu crio novos céus e nova terra; e não haverá lembrança das coisas passadas, jamais
haverá memória delas” (Is 65.17).
“Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita
justiça” (2Pe 3.13).
“Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe”
(Ap 21.1).
Novo céu e nova terra constituem a morada dos redimidos, que ora gemem
sob seu pesado fardo, porquanto habitam um mundo ainda contaminado e
impróprio à sua felicidade eterna. Pedro, porém, afirma que “esperamos novo
céu e nova terra, nos quais habita justiça”. O presente mundo não distribui
justiça perfeita, porquanto os homens não podem praticá-la com inteireza em
seu presente estado. Mesmo o mais impoluto magistrado não consegue fazer
plena justiça em razão de sua imperfeição pessoal. Quando pensa que está
distribuindo a plena justiça, na verdade falha em algum ponto da lei e por
falta do perfeito conhecimento da realidade do réu. É praticamente
impossível se ter um pleno conhecimento da realidade em torno dos fatos
ocorridos, quando a perícia só conta com dados tomados de sua pesquisa,
ainda quando nos assusta a perfeição da tecnologia moderna. Há casos que
permanecem insolúveis. Somente o Trono ou o Tribunal do supremo Juiz
pode citar com exatidão perfeita cada caso, de modo a ser impossível que o
réu diga: “Não foi exatamente assim.” E de nada valerá a defesa de algum
advogado, por mais hábil seja ele, porquanto os advogados, todos eles, ou
tendem a torcer a lei em benefício próprio, ou em sua limitação, tropeçam em
algum ponto do caso. Todo o conhecimento humano é falho, porquanto
enfrentam o grande problema do ainda desconhecido, que é infinito. O que há
para se conhecer é tão infinito, que o conhecido se torna diminuto ante a
amplidão do que ainda se desconhece. Se eu tiver que definir conhecimento,
direi que este é a apreensão de certos dados que se encontram no seio de uma
infinidade de outros dados, cujo alcance é praticamente impossível até
mesmo para os chamados gênios. O que há para se conhecer é tão imenso,
que o que se conhece redunda praticamente em nada. Nenhum ser mortal
pode conhecer todos os segredos do universo, como nenhum instrumento
jamais poderá detectar todos os elementos constituintes do universo. Quem
confessa isso são os cientistas. Se o universo é infinito, quanto mais seu
Criador!
“Quem na concha de sua mão mediu as águas e tomou a medida dos céus a palmos? Quem
recolheu na terça parte de um efa o pó da terra e pesou os montes em romana e os outeiros em
balanças de precisão? Quem guiou o Espírito do Senhor? Ou, como seu conselheiro, o ensinou?
Com quem tomou ele conselho, para que lhe desse compreensão? Quem o instruiu na vereda do
juízo, e lhe ensinou sabedoria, e lhe mostrou o caminho do entendimento?” (Is 40.12-14).
O Gemido dos Filhos de Deus
E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito,
igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a
redenção de nosso corpo. Porque, na esperança, fomos salvos. Ora, esperança
que se vê não é esperança; pois o que alguém vê, como o espera? Mas, se
esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos (Rm 8.23-25).
Agora, quem geme são os filhos de Deus. E esse gemido não é
inconsciente, não é prosopopéico,[32] mas plenamente consciente, literal e
sentido com todas as veras da alma. Ninguém mais que o cristão sente
constante punção em seu espírito. O descrente também geme, porém não com
a mesma intensidade nem no mesmo sentido que o cristão. A escassez, a
doença, o desamparo, a solidão, a impotência, a profunda miséria em que
vivem alguns, o medo do depois, a velhice e tantas outras coisas fazem toda a
humanidade gemer sob o pesado fardo da presente vida. Paulo, porém, se
volve exclusivamente para os filhos de Deus, aqueles seus eleitos que
aguardam a consumação de todas as coisas. Esses não se conformam com o
presente status de vida e querem outro status de existência, eterno e imutável.
Este mundo não é propriamente o seu; eles aguardam outro. Este não os
contenta; sua plena felicidade não está aqui; está em outro lugar. Ou, melhor,
está neste universo renovado.
1. Os filhos de Deus possuem as primícias do Espírito.
“Também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos
em nosso íntimo.” Aqui, o apóstolo registrou que possuímos “as primícias do
Espírito”. Possivelmente, o apóstolo esteja pensando na habitação especial ou
permanente do Espírito nos eleitos. Pois ele habita também nos não-eleitos,
mas temporariamente, como no caso de Saul, de Judas e de tantos outros. Nos
eleitos, o Espírito habita permanentemente, pelos quais luta com gemidos que
não podem ser expressos com palavras humanas. Não existe um dialeto, nem
um idioma, o mais sofisticado, que possa ser usado para exprimir tal
sentimento. São expressões inarticuladas que emanam dos lábios. Somente o
próprio Espírito é que entende.
Sem dúvida, primícias não significam plenitude, porque, além do sentido
distinto entre os dois termos, estritamente falando, não é possível que um ser
humano possua a plenitude do Espírito Santo, porquanto esta palavra
significa algo completamente cheio, saturado, transbordante, não sobrando
qualquer espaço. E o ser humano, enquanto pecador, jamais poderá ter seu
interior completamente tomado pelo Espírito, porquanto nele ainda habita a
corrupção da natureza. Nesse sentido estrito, nem os profetas, nem os
apóstolos, enquanto pecadores, não possuíram o Espírito em sua plenitude.
Somente o Senhor Jesus Cristo a possuiu em seu sentido pleno e perfeito. Os
santos, no porvir, a possuirão, pois essa corrupção da natureza já terá sido
destruída, já não haverá qualquer espaço ao pecado, à fraqueza, à inclinação
contrária a Deus. O Espírito está em nós, porém nossa natureza carnal ainda
luta contra ele. Esta é a economia divina. Ele determinou que fosse assim, e
assim será até quando a morte fizer a separação de espírito e corpo.
Muitos estão rogando a Deus que lhes dê a plenitude do Espírito Santo.
Cremos ser este tipo de oração uma impossibilidade, para não dizer uma
temeridade, pois esses cristãos teriam que deixar de ser pecadores. Sabemos
que muitos creem que podem alcançar, e alguns, inclusive, creem que já
alcançaram a perfeição moral. Mas toda a Santa Escritura nos dissuade de tal
crença. Enquanto o pecado ocupar espaço na vida terrena dos filhos de Deus
o Espírito Santo também ocupará aí seu espaço, porém não em sua plenitude.
Santificação é justamente a vitória do Espírito sobre o pecado. O que lemos é:
“Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está
em nós. Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos
purificar de toda injustiça. Se dissermos que não temos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso, e
sua palavra não está em nós” (1Jo 1.8-10).
O fato concreto é que o Deus eterno quis salvar seus eleitos no contexto do
pecado. Acaso ele poderia eliminar completamente o pecado quando cremos
e recebemos a regeneração do Espírito? Evidentemente, sim. Mas sua
metodologia não se harmoniza com nossa filosofia. O que garante nossa
permanência nele é a unção que ele nos imprime.
“Quanto a vós outros, a unção que dele recebestes permanece em vós, e não tendes necessidade
de que alguém vos ensine; mas, como sua unção vos ensina a respeito de todas as coisas, e é
verdadeira, e não é falsa, permaneceis nele, como também ela vos ensinou” (1Jo 2.27).
O pecado continua à espreita, porém temos algo maior, que a debela, que a
estrangula, que vai destruindo-a paulatinamente, até alcançarmos aquela
perfeição de que Paulo fala:
“Todos, pois, que somos perfeitos, tenhamos este sentimento; e, se porventura pensais doutro
modo, também isto Deus vos esclarecerá” (Fp 3.15).
Em Filipenses 3.12, ele afirma: “Não que eu o tenha já recebido ou tenha já
obtido a perfeição”; e agora afirma: “Todos, pois, que somos perfeitos”.
Antes, ele nega; depois, o afirma. E então? Antes, ele fala da perfeição moral;
depois, ele fala da perfeição espiritual ou daquele amadurecimento que o
Espírito efetua nos santos. É muito difícil imaginar um eleito salvo que não
cresça, que não amadureça, que não receba aqui e agora aquele status
espiritual que Paulo almejava – “prossigo para conquistar aquilo para o que
também fui conquistado por Cristo Jesus” (Fp 3.12). Esse é o enchimento que
ele requer em outro lugar: “E não vos embriagueis com vinho, no qual há
dissolução, mas enchei-vos do Espírito” (Ef 5.18). Encher não da embriaguez
que o vinho pode causar, e sim do Espírito que nos assiste com intensidade.
Enchimento não equivale a plenitude. Esta extingue aquele, porém aquele
pode não chegar a esta enquanto nesta vida. O enchimento é ativo, enquanto
que a plenitude é passiva, porquanto ocupa todo espaço e para aí. Aquele é
contínuo; esta é estática. Se a plenitude fosse alcançada aqui e agora, então o
cristão não mais teria que lutar. E o Senhor quer justamente que o cristão lute
em dependência dele. Isso é maravilho! A economia divina é perfeita!
Portanto, somente os eleitos possuem as “primícias do Espírito”, isto é, este
jamais os deixará, em hipótese alguma, inclusive em suas quedas e fracassos
temporais. Cremos que é neste sentido que existe apostasia, isto é, só apostata
da fé quem não possui a habitação permanente do Espírito. Este, em sua
soberania, age em e através de certas pessoas para o cumprimento de seu
plano na vida da igreja de nosso Senhor. Os joios também cantam louvores,
oram, pregam o evangelho, plantam igrejas, promovem a conversão de
muitos, vivendo por certo tempo como cristãos genuínos. Como conhecemos
somente a parte externa, nosso Senhor nos advertiu sobre os frutos dos que
professam o nome dele (Mt 7.15-20). A manifestação dos dons espirituais,
pelo menos na aparência, não prova que quem os possui realmente tem a
habitação permanente do Espírito. Estes dons podem ser e têm sido
simulados, enquanto que os frutos constantes dificilmente podem ser fingidos
pelos que os praticam. Portanto, em vez de buscarmos os dons do Espírito,
deveríamos buscar, sim, a produção dos frutos do Espírito. Que o Espírito
nos dê os dons que queira para a santa obra do reino de Deus, mas que nosso
anseio seja que ele nos santifique e nos qualifique para darmos testemunho
real da religião de Jesus.
É nesse sentido que podemos entender textos difíceis, como Hebreus 6.4-8
e 10.26-31. Ali parece que o verdadeiro crente pode perder a salvação. Mas
cremos que ali se fala da manifestação dos crentes temporários,[33]que depois
revelam o que realmente eram. Traz-nos confusão no espírito ver certos
cristãos que pareciam ser o sustentáculo da obra do Senhor. De repente,
ocorre-lhes algo que os faz retroceder, desistindo totalmente de seguir o
Senhor. É por isso que o autor de Hebreus nos adverte, para que sejamos
vigilantes de nós mesmos. Notemos que em 10.29 ele fala de três coisas
terríveis que o apóstata faz: (1) calca aos pés o Filho de Deus; (2) profana o
sangue da aliança com que foi santificado; (3) ultraja o Espírito da graça. Daí,
o juízo inclemente lançado contra eles: “Horrível coisa é cair nas mãos do
Deus vivo” (v. 31).
Todos nós, creio eu, conhecemos alguns apóstatas. Tornam-se pessoas
rancorosas, passam a odiar os crentes, a fugir da igreja, a manter a Bíblia
fechada, a não mais orar, e todo assunto que concerne ao reino de Deus,
falam com amargura, quando não preferem manter silêncio total. É muito
diferente com os crentes jubilosos que, mesmo em meio ao marasmo da vida
cotidiana, prosseguem louvando ao Senhor. O apóstata segue pisoteando o
santo nome de Jesus; vive a profanar constantemente o sangue da aliança que
o havia purificado temporariamente e o fez abraçar, também por algum
tempo, a aliança da graça que o unira, ainda que temporariamente, ao corpo
externo da igreja terrena; e, ao fazer tudo isso, passa a profanar o Espírito da
graça. E o terrível em tudo isso é que o Espírito profanado é o da graça. Por
quê? Porque é impossível haver salvação fora desta graça. Uma vez fora dela,
a perdição é inevitável. Pior, o mundo está cheio de apóstatas. Se fossem
todos eles reunidos de uma só vez, haveria espanto ante tão grande número!
Em Hebreus 6.4-8, lemos ser impossível renovar aqueles que “uma vez
foram iluminados, provaram o dom celestial, tornaram-se participantes do
Espírito Santo, provaram a boa palavra de Deus e os poderes vindouros, e
caíram”. Além de não se arrependerem mais, continuam “crucificando para si
mesmos o Filho de Deus e o expondo à ignomínia”. Pois o mundo
ridiculariza a religião de Jesus por causa deles. É um pecado muito pesado
que carregam. Embrutecem-se, calejam-se, endurecem-se, abismam-se, e eles
mesmos de repente percebem que não há meia volta, já não há nenhum
recurso judicial ante o trono da graça, pois já não podem justificar-se diante
do Juiz. Perdem todo ânimo de clamar: “Tem misericórdia de mim, ó Senhor
Eterno! Por favor, não me olhes como Juiz, e sim como Pai!”
Então, em vez de rogarmos ao Senhor que nos dê a plenitude do Espírito,
deveríamos rogar que ele nos encha mais e mais dele, pois o enchimento
significa que há espaço, enquanto plenitude significa que já não existe
nenhum espaço; tudo está plenamente cheio. A plenitude se consumará com a
ressurreição do corpo e a união, outra vez, de corpo e alma. O pecado já terá
se desvanecido, aniquilado, em nosso ser, existindo em nós somente
santidade, perfeição, grandeza, eternidade. Então, só haverá louvor perfeito,
regozijo sem mescla, adoração sem hipocrisia, comunhão sem interrupção,
contemplação sem ofuscação dos olhos, pois então nossa visão será perfeita,
sem qualquer distorção. No dizer de Paulo:
“Quando, porém, vier o que é perfeito, o que é em parte será aniquilado. Porque, agora, vemos
como em espelho, obscuramente; então, veremos face a face. Agora, conheço em parte; então,
conhecerei como também sou conhecido” (1Co 13.10,12).
Mas, sobre esta esperança falaremos mais adiante. Agora nos basta fixar
bem nossa mente no fato de que o cristão tem uma meta definida, ele tem um
alvo a alcançar. Sua caminhada não é a esmo. Ele não pensa em fracasso.
“Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das
coisas que para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo,
para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” (Fp 3.13,14).
Aqui, confirmar é dar prova de, comprovar, concretizar, selar com a vida, e
não validar, como se nossa eleição e vocação dependessem de nós ou de
nossa vida prática. Nosso viver é que prova se fomos ou não eleitos; se fomos
ou não chamados à vida eterna. Deus quer que nossa filiação divina seja
exteriorizada. Mesmo quando, relativamente, ele queira que nossa realidade
espiritual venha a lume ante os olhos do mundo. E temos isso confirmado na
vida de muitos cristãos, homens e mulheres santos, que viveram e têm vivido
de modo extraordinário, emudecendo o mundo incrédulo pela concretização
do mundo eterno que já reside no coração, na alma dos filhos de Deus.
Aquele que não prova nada do que fala com os lábios, seria preferível que se
emudecesse para sempre, porquanto sua profissão de fé verbal não condiz
com seu modo de viver. Fala uma coisa e faz outra bem diferente. E isso se
dá com a maioria dos cristãos professos.
Há hoje grande urgência de cristãos que provem aos olhos do mundo que
são genuínos filhos de Deus, vivendo como tais. Há grande necessidade da
renovação de um cristianismo já meio morto para um cristianismo vigoroso,
real, que faça o mundo reagir, para o bem ou para o mal. Por enquanto, o
cristianismo que temos no mundo não prova quase nada do que professa, e
assim deixa o mundo adormecido em berço esplêndido, tranquilamente, sem
sentir qualquer ameaça.
2.2 A redenção do corpo.
Em princípio, a redenção eterna já se consumou quando cremos e fomos
recebidos na igreja externa, crendo que também fomos recebidos no seio da
igreja invisível, real, eterna. Aqui lemos que o corpo também será redimido
no último dia, pois redenção do corpo outra coisa não é senão a ressurreição
dos mortos. Eis uma doutrina sem a qual não existe nenhum cristianismo real.
É a marca registrada da religião de Jesus; sem esta marca, evapora-se toda a
fé realmente cristã.
Não existe cristianismo real sem esta grandiosa doutrina. Muitos professam
ser cristãos e, contudo, negam esta doutrina, enganando-se a si mesmos.
Muitas entidades existem neste mundo que reivindicam para si a
autenticidade de Cristo. No entanto, usando de uma liberdade pagã,
constroem seu próprio sistema sem levar em conta todo o fundamento do
cristianismo de Jesus. Além de omitirem tais verdades, afirmam
categoricamente que são falsas, e o que ensinam é que a plena verdade,
transformando, assim, a verdade de Deus em mentira e a mentira do homem
em verdade. O ensino bíblico é o único que constitui a plena verdade
doutrinal e apostólica.
“Não vos maravilheis disto, porque vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos
ouvirão sua voz e sairão: os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem
praticado o mal, para a ressurreição do juízo” (Jo 5.28,29; ver todo o capítulo 15 de 1Co).
São palavras ditas pelos lábios do próprio Senhor Jesus e registradas pelo
apóstolo João. E essa ressurreição se dará no dia final quando nosso Senhor
vier. Todos os Evangelhos e as Epístolas, bem como o Apocalipse declaram
em termos conclusivos e iniludíveis que haverá ressurreição do corpo, tanto
dos salvos quanto dos perdidos. As religiões anti-cristãs afirmam que isso é,
cientificamente, impossível. Ainda quando confessamos que a fé cristã até
certo ponto é racional, histórica, também confessamos que ela é ultra-
racional, isto é, ultrapassa o raciocínio humano, a razão do homem. Para
muitos, o que não se pode provar pela razão é necessariamente falso. Nós,
cristãos de convicção reformada, afirmamos que a própria razão humana, ou
principalmente esta, está afetada pelo pecado e, por isso, é falha, e como tal
não pode apreender plenamente as verdades reveladas pelo Espírito Santo,
pois estas transcendem ao raciocínio humano. A doutrina da depravação
radical do homem aborda isso.
Costumamos dizer que o evangelho deve ser pregado para a salvação da
alma. Isso não é falso, contudo é uma verdade pela metade, pois nosso
Senhor veio e cumpriu tudo que lhe coube cumprir para salvar o homem, não
uma parte dele. O homem integral é pecador, e é o homem integral que deve
crer e ser salvo pelo mesmo Senhor Jesus Cristo. Deveríamos, antes, dizer
que o evangelho deve ser pregado para salvar a pessoa humana por inteiro.
Em princípio, a pessoa integral é salva quando abraça o evangelho e se torna
seguidora de Jesus Cristo; no entanto, enquanto a alma é recolhida para
debaixo do altar celestial, o próprio céu, a própria presença do Senhor, o
corpo vai para o pó e ali fica, temporariamente, até a volta do Senhor, quando
será ressuscitado e eternizado, juntando-se outra vez à sua respectiva alma. O
corpo dorme, a alma, não. Então descobrimos que a salvação em Jesus Cristo
se destina ao ser humano inteiro, e não apenas à sua alma. Nossa
proclamação deve visar ao homem inteiro, em busca de seu bem-estar
espiritual e também físico. A religião de Jesus deve cuidar também deste. A
regeneração do Espírito afeta também o corpo. Daí a luta contra os vícios que
destroem o corpo, a corrupção moral que degenera tanto a alma quanto o
corpo. A igreja de nosso Senhor só cumpre seu mandado quando busca a
renovação da alma e do corpo.
Quando nosso Senhor afirmava que veio para salvar a alma, com certeza
ele não queria dizer que veio para salvar somente a parte espiritual do
homem. Pois quando alguém o abraçava e o seguia, também seu corpo era
abençoado. Temos os casos dos paralíticos, dos leprosos, dos cegos, dos
mudos, dos endemoninhados. Quando eram curados, mudavam também seu
visual externo. Tudo muito simples, mas também tudo muito limpo e
agradável. Certamente ele não veio só para curar as doenças do corpo, e sim
para aquela doença mais profunda, que afeta o homem todo, a depravação da
alma e do corpo. Mas é também certo que essa cura mais profunda atinge a
parte externa e perecível do ser humano, seu corpo. Em geral, os cristãos
genuínos são também reconhecidos por sua parte externa, pois é impossível
abafar um coração regenerado sem que aflore e se exiba automaticamente,
sem que suas novas qualidades sejam visualizadas pelos de nossa
convivência. Aliás, esse é o sentido da metáfora de Jesus: “Sede o sal da
terra; sede a luz do mundo.” “Assim brilhe também vossa luz diante dos
homens, para que vejam vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está
nos céus” (Mt 5.13-16).
Deus é conhecido e reconhecido pelo mundo quando a transformação do
Espírito no interior da pessoa se manifesta no visual externo e em atos de
bondade. As boas obras dos cristãos precisam aflorar-se para que o Senhor
deles seja glorificado até mesmo pelo mundo incrédulo. Não um mero
exibicionismo egoísta, mas uma afloração inevitável do que o Espírito Santo
faz no interior do homem.
2.3 Com inabalável esperança.
Um dos textos mais belos sobre a esperança cristã se encontra em Hebreus
6.18,19.
“Para que, mediante duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, forte alento
tenhamos nós que já corremos para o refúgio, a fim de lançar mão da esperança proposta; a qual
temos por âncora da alma, segura e firme e que penetra além do véu, onde Jesus, como
precursor, entrou por nós...”
O autor diz que a esperança cristã é a “âncora da alma, segura e firme e que
penetra além do véu”, onde Jesus já entrou como nosso precursor. Somente
os eleitos, os salvos pela graça, que possuem as primícias do Espírito é que
podem acalentar tal esperança. A dos incrédulos realmente morre, e morre
fácil, sem muito esforço. Os salvos seguem gemendo, porém não desfalecem,
porquanto já foram selados com o Santo Espírito da promessa, para o dia da
redenção (Ef 4.30). Justamente esta redenção que já temos em princípio,
abstratamente, mas que se revelará de modo esplendoroso no último dia.
Um exemplo clássico desse fato temos na pessoa de Abraão. “Esperando
contra a esperança, creu” (Rm 4.18). Como ele esperava contra a esperança?
Concretamente, não havia nada em que ele pudesse se agarrar. Saiu de casa
sem saber para onde ia; Sara era estéril e não podia dar-lhe o herdeiro do
patriarcado; já eram velhos; a terra que lhe fora prometida e na qual ora
peregrinavam não era sua, tinha dono ou donos, e nunca recebeu sua posse,
além de uma fatia que lhe serviu de sepultura. Viveu sempre em tenda como
peregrino. Em vez de terra fértil, veio a seca e o forçou a descer ao Egito.
Todos tinham inveja dele, e sempre se sentiu escorraçado e evitado. Só levou
consigo um sobrinho, e este lhe deu muito aborrecimento, pois não era tão
crente quanto ele; era mais avarento do que muitos pagãos. Quando veio
Isaque, e já era moço, Deus lho pediu em sacrifício. Podemos dizer que, se há
no mundo alguém que tinha todo o direito de descrer e renunciar a Deus e à
fé, esse era Abraão. Mas aquele homem tinha a graça do Espírito Santo que o
sustentava perenemente. Seguiu resoluto a ordem divina e não vacilou.
Estava pronto a fazer até mesmo aquilo que aos nossos olhos é repulsivo:
oferecer em sacrifício seu próprio e único filho, o filho prometido. Ele
descobriu que o Deus que o chamara é o único, que não existe nenhum outro
e que é perfeitamente fiel ao que promete. Ele agarrou-se a essa fidelidade
divina e não vacilou. Fechou seus olhos e seguiu em frente! Somente o
Espírito Santo concede aos cristãos genuínos uma graça tão tremenda!
E, no próprio texto em pauta, Paulo faz uma contundente afirmação a
respeito da verdadeira esperança:
“Porque, na esperança fomos salvos. Ora, esperança que se vê não é esperança; pois o que alguém
vê, como o espera? Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos” (Rm
8.24,25).
Ele está falando de nós, que não o vimos nem o vemos e, no entanto,
perseveramos em crer e em seguir adiante. Seguir Jesus não é algo para um
dia ou um ano, e depois mudamos de guia. Quando alguém o abraça, com
todas as veras da alma, é para sempre, venha vida ou morte; o bem ou o mal;
aplausos ou feroz perseguição; recompensa ou morte.
E menciona outro elemento que será explanado a seguir. E esse elemento é
vital em nossa jornada pelas veredas desta vida. Sem ele, é difícil, para não
dizer impossível, seguir adiante pacientemente.
2.4 Com resoluta paciência.
Então o apóstolo faz menção da paciência: “Mas, se esperamos o que não
vemos, com paciência o aguardamos.” Esse é um elemento fundamental para
a vitória cristã na vida peregrina. É terrível esperar algo que não chega.
Todos os dias olhamos para o horizonte, e nada! E a paciência é uma virtude
muito rara em nosso tempo. E o Senhor da vida exige de nós que exerçamos
essa virtude porque ele mesmo a exerce para conosco. Se não há muitas
passagens usando a palavra paciência, isso se deve ao fato de lermos na
Santa Escritura outro termo ainda mais belo e mais forte: longanimidade e
longânimo. Deus exerce longanimidade e é longânimo para conosco. E estes
termos, ora como substantivos, ora como adjetivos, possuem uma vasta gama
de emprego em ambos os Testamentos.
Os lexicógrafos[34] definem longânimo como vindo do latim longanimis, de
long(us) + animus = de ânimo longo, demorado, duradouro, daí paciente,
bondoso, magnânimo, corajoso, resignado, generoso.[35]
Se o Senhor eterno não nos fosse longânimo, certamente não subsistiríamos
sequer um dia. Dias, meses, anos, décadas experimentamos sua paciência, sua
longanimidade, seu amor constante e perene. Chegamos a pensar que ele é
indiferente ao que praticamos ou deixamos de praticar. Daí criar-se essa
figura dantesca, burlesca, indiferente ao mal, sempre a sorrir para as pessoas,
denominada de Papai Noel, como representante de Deus ou de Jesus Cristo.
Essa foi uma das inspirações mais abismais inventadas pela cristandade para
retratar a Deus ou a Jesus Cristo. A longanimidade de nosso Senhor não é
absolutamente isso. Por exemplo:
“Não retarda o Senhor sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é
longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao
arrependimento” (2Pe 3.9).
No caso de Pedro, ele não está falando de outros, senão da mesma igreja
que o próprio Jesus está a mencionar aqui. Se Deus quisesse a salvação de
todos, então, certamente, todos seriam salvos. Dizer que ele quer salvar a
todos, porém não pode fazê-lo porque nem todos querem, é transformar o
Deus Onipotente, num ser impotente diante da onipotência da vontade do
homem. Que minha alma não entre nesse conselho! A vontade humana é
escrava, e não soberana; a vontade soberana é a daquele que, quando quer
algo, é impossível que esse algo não lhe pertença. Porventura não lemos em
Isaías
“Ainda antes que houvesse dia, eu era; e nenhum há que possa livrar alguém de minhas
mãos;agindo eu, quem o impedirá?” (Is 43.13).
Dizer, porém, que o apóstolo Pedro está afirmando que Deus quer salvar a
todos (2Pe 3.9), indiferentemente, é pôr em sua boca ou em sua pena o que
ele não tinha em sua mente. O Senhor tem misericórdia do mundo incrédulo
por causa de seus eleitos. Ele poupa o mundo porque sua igreja ainda está no
mundo.
“Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus” (Jo 17.9).
É nosso Senhor quem está falando, e afirma isto em sua oração sacerdotal,
sua oração intercessória. Ele veio salvar o mundo inteiro? Se assim fosse, ele
teria intercedido pelo mundo inteiro. Tanto veio salvar somente sua igreja,
que ora somente por ela. As portas do inferno não prevalecerão contra ela,
justamente porque ele orou por ela, e sua oração foi validada pelo Pai, para
sempre.
Portanto, Pedro está agindo da mesma forma. Ele está dizendo que o
Senhor ainda não regressou ao nosso mundo por ser longânimo para com os
fracos e para com os que ainda não foram alcançados pelo evangelho, ainda
que sejam eleitos, porquanto cremos que o número dos eleitos e salvos é
exato (Ap 7.1-8). Por isso lemos em nossa Confissão de Fé:
“Esses homens e esses anjos, assim predestinados e preordenados, são, particular e
imutavelmente, designados; seu número é tão certo e definido, que não pode ser nem aumentado
nem diminuído” (Confissão de Fé Westminster, 3.4).
Isso vale para todas as filhas de Eva, pois seu sofrimento é comum e
inevitável. Mas Deus, sendo justíssimo, não deixou o homem ileso, mas
também o gravou com um pesado ônus.
“E a Adão disse: Visto que atendeste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te ordenara
não comesses, maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento durante os dias
de tua vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo. No suor do
rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó
tornarás” (Gn 3.17-19).
O ônus com que o homem foi gravado é muito mais pesado do que o da
mulher. Mas é daqui que a raça humana, homens e mulheres, herdou toda sua
trajetória de dores, de lutas, de carências e, sobretudo, de rebelião contra o
Criador. Aliás, o ser humano é formado no ventre e nasce em meio a toda
espécie de sofrimento. Felizes aqueles que são formados perfeitos no ventre
materno. Quantos nascem mutilados, herdeiros de doenças genéticas,
herdadas dos ancestrais, vivem com muitas torturas e infelicidades, pois não
podem desfrutar o que os demais desfrutam, a ponto de se perguntar: por que
o Criador permite que tais seres venham ao mundo? Olhamos e não vemos
nenhum sentido para sua existência. Na aparência, muitos podem usar a
linguagem de Jó:
“Pereça o dia em que nasci e a noite em que se disse: Foi concebido um homem! Converta-se
aquele dia em trevas; e Deus, lá de cima, não tenha cuidado dele, nem resplandeça sobre ele a luz.
Reclamem-nos as trevas e a sombra de morte; habitem sobre ele nuvens; espante-o tudo o que
pode enegrecer o dia. Aquela noite, que dela se apoderem densas trevas; não se regozije ela entre
os dias do ano, não entre na conta dos meses. Seja estéril aquela noite, e dela sejam banidos os
sons de júbilo. Amaldiçoem-na aqueles que sabem amaldiçoar o dia e sabem excitar o monstro
marinho. Escureçam-se as estrelas do crepúsculo matutino dessa noite, que ela espere a luz, e a
luz não venha; que não veja as pálpebras dos olhos da alva, pois não fechou as portas do ventre de
minha mãe, nem escondeu dos meus olhos o sofrimento. Por que não morri eu na madre? Por que
não expirei ao sair dela? Por que houve regaço que me acolhesse? E por que peitos, para que eu
mamasse?” etc. (Jó 3.3-12).
Embora o cristão seja alguém que foi regenerado pelo Espírito Santo,
contudo conserva ainda em si um resto desse estado degenerado em que caiu
a raça humana. Ele labuta constantemente contra suas más inclinações. Sua
nova natureza se digladia contra a velha (Gl 5.17). Mesmo os mais santos
vivem a lutar contra os resquícios da corrupção moral que ficaram neles.
Inclusive Paulo clama com todo o vigor de sua alma crente:
“Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” (Rm 7.24).
Há algo de semelhante entre aquele tempo e o nosso, pois hoje temos medo
até do ruído das folhas movidas pela brisa, pelo assombro que nos afeta e nos
açambarca diariamente. Se há um ruído na porta, estremecemos imaginando
que já são arrombadores. Ao pararmos num semáforo, somos dominados pelo
medo de assaltantes. De noite perdemos o sono pensando que um arrombador
pode achar nossa casa. Vigiamos nossa conta bancária, pois pode ser achada
pelos vilões da informática. Sem falar do dia seguinte quando teremos que
cumprir com nossos compromissos e não sabemos como fazê-lo, pois nosso
dinheiro não é suficiente.
O mundo religioso sempre foi confuso, mas a confusão religiosa de nosso
tempo talvez seja a mais complexa e terrível de todos os tempos. O que
chamam cristandade está do lado avesso; o que chamam “povo evangélico”
nunca conheceu um estado tão caótico como agora. É muito difícil, quase
impossível, o cristão ter o devido discernimento do que é certo e errado.
Quase já não existe um parâmetro definido para se conhecer o que é
heterodoxia e ortodoxia.[40] A heresia é tida como sã doutrina, e esta é
misturada com aquela. Por exemplo, ninguém nunca chegou à minha casa
dizendo que está anunciando um ensino falso; se chegarem à minha porta dez
representantes de religião, cada um totalmente diferente dos demais, todos
eles me apresentam uma verdade bíblica que deve ser crida, abraçada e
praticada. Se eu crer ou aceitar o ensino de todos eles, porventura estarei
aceitando a plena verdade de Deus? Todos eles estão ensinando a plena
verdade de Deus? Certamente, não! Mas, como discernir a verdade da
mentira? Como intuir ser impossível que os dez doutrinadores não podem ao
mesmo tempo estar todos certos? Se um deles estiver ensinando a plena
verdade, não é fácil intuir que os demais estão anunciando mentira ou
falsidade?
Estava preparando-me para a escola dominical como professor de uma
classe, quando o interfone tocou e uma voz feminina do outro lado me disse:
“Eu gostaria que o senhor me recebesse para eu lhe falar das verdades de
Deus.” Evidentemente, o que para ela eram as verdades de Deus, para mim
eram verdades torcidas e retorcidas, deformadas pelos conceitos humanos,
porquanto ela estava ali representando uma das piores seitas que o
Cristianismo já conheceu. Não são nuvens de testemunhas de Deus, e sim
nuvens de discípulos de falsos profetas e falsos mestres, que despacham essas
nuvens pestilentas, de casa em casa, para confundir a mente e o coração dos
cristãos. E muitos são confundidos. Para tais mestres, verdade é o que
pensam, é o que creem, é o que ensinam, é o que proclamam. O que é dito
por eles tem de ser crido, porque são arautos do Senhor, segundo pensam.
Nosso Senhor preveniu constantemente os seus eleitos dessa gravidade:
“Porquanto surgirão falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios para
enganar, se possível, os próprios eleitos” (Mt 24.24).
Que doutrinação! E foi eficaz. Ele (o diabo) disse que Deus não era
transparente para com o casal; ele escondia sua intenção quando fazia
promessas e proibições. Ao contrário do que Deus disse, ao comerem daquele
fruto, ambos teriam uma experiência tão gloriosa, que Deus a vetou deles,
porquanto não queria que fossem como ele. Então Deus não podia ser
honesto; ele não podia ser bom nem ser o glorioso Criador do universo. Era
um Deus falível, matreiro, mal intencionado. Criou o casal para fazê-los seus
escravos. Aparentemente e a curto prazo ele conseguiu seu intento, porém
teve que enfrentar sua sentença e o casal não só não conseguiu ser igual a
Deus, mas perdeu sua integridade, sua felicidade, seu paraíso, sua vida,
inclusive seu Deus e amigo. A serpente, que parecia ser sua amiga, veio a ser
seu pior inimigo. Assim fazem as falsas religiões: em vez de uma orientação
correta, em vez de nos conduzir ao Senhor, em vez de nos trazer felicidade,
desorientam, impõem um pesado ônus, escravizam a si, transformando-nos
em suas marionetes, arrancando de nós a certeza do amor de Deus e da
salvação em Jesus Cristo. Prometem mais do que podem cumprir.
Quando uma falsa religião cresce muito é porque seus mestres e mentores
são servos de Satã, astutos, destemidos, não temem a Deus, não respeitam a
ninguém. A única coisa que lhes importa é a vitória para sua causa. Semeiam
confusão religiosa, porém sua meta não é cumprir um mandado de Deus,
porquanto o Senhor nunca chama tais pessoas para sua obra. A obra que
realizam não é de Jesus, e tampouco isso lhes importa; ao realizarem uma
obra que lhes traga proveito, talvez nem saibam que estão prestando um
serviço ao príncipe das trevas. Jeremias se dirigiu a tais mestres com uma
palavra duríssima:
“Não mandei esses profetas; todavia, eles foram correndo; não lhes falei a eles; contudo,
profetizaram” (Jr 23.21).
O fato é que os cristãos verdadeiros estão mergulhados num profundo
abismo de confusão religiosa. Lembremo-nos bem: quando nosso Senhor
disse que os falsos profetas e mestres cumprem seu desiderato, a saber,
confundir os eleitos de Deus, ele usou a expressão: “se possível.” Uma leitura
apressada pode parecer ser possível que os eleitos se percam. A sã doutrina
nos ensina que isso é impossível, porque quem os guarda não são eles
mesmos, e sim o Espírito Santo, nosso bendito Paracleto. Os eleitos podem
ser confundidos por um momento, porém não para sempre. Se agora estão
seguindo falsos profetas e mestres, amanhã se despertarão e voltarão para o
aprisco do Bom Pastor.
3.4 A presença e certeza da morte.
Além de tudo isso há ainda o constante senso da presença da morte que nos
ronda, nos encara e nos causa estremecimento. Ela nos escancara suas
bocarras e parece que vai nos devorar a cada instante. Ora, a morte é mais
certa do que a vida. Sabemos que vamos morrer um dia. Por que, então, essa
dolorosa sensação que nos oprime, que nos asfixia, nos estrangula, nos
apavora? Isso se deve ao fato de que tudo ao nosso redor nos fala da morte.
Por que a morte causa essa desagradável sensação em todo ser humano? É
porque ela constitui um elemento ou corpo estranho no universo de Deus. A
morte não era para existir.
“No dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2.17).
Ora, entendemos que esta palavra de Deus anuncia que, se homem não
fosse obediente ao Criador, um elemento novo e estranho passaria a existir no
universo: a morte. Em termos, o homem não foi criado para morrer. Ele foi
criado para viver! A morte entrou como decorrência do pecado, a fim de
destruir. Enquanto a vida constrói, a morte destrói. É um elemento negativo
na criação que deveria ser perfeita. O homem desobedeceu, e a morte se
estabeleceu perenemente. Veio para ficar, para destruir, para separar, para
trazer luto, dor e desespero. Curiosamente, ninguém jamais se acostumou
com a morte. Ela não traz alegria; traz sempre tristeza e gemido. É o
momento da despedida de um ente querido; é o momento de o corpo voltar ao
pó. Nunca sabemos, com certeza absoluta, para onde foi a alma de nosso ente
querido, até o dia do juízo. Quando nos perguntam, vacilamos, dizendo que
ele ou ela está no céu; mas, no mais recôndito de nosso ser, nunca temos
plena certeza. Fica sempre uma indagação duvidosa e angustiante. Cada um
tem certeza somente no que diz respeito a si próprio, não, porém, no que diz
respeito aos outros.
Outra razão é que, mesmo quando um ente querido está enfermo, ainda a
morte, de certo modo, é inesperada. É esperada sim, porém nunca sabemos
quando. Para os sadios, então, ela é ainda mais surpreendente. Vem sem
aviso, entra por nossas portas, por nossas janelas (Jr 9.21), não pede licença,
não saúda ninguém, não olha para status nem para beleza física. Não respeita
os palácios, as mais suntuosas residências, o poder econômico, a força da
influência. Não respeitou nem mesmo o eterno Filho de Deus: veio e o levou
de modo incremente. É verdade que também ele a destruiu com sua
ressurreição, mas isso em princípio, e não concretamente, porquanto ela
continua assolando. Mas ela já tem seu momento marcado para desaparecer
eternamente. Já está sentenciada por Aquele que já não pode ter a experiência
da morte, porquanto já a experimentou.
“E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto,
nem dor, porque as primeiras coisas passaram” (Ap 21.4).
Pelo prisma de Deus, o tempo tem um sentido diferente do que tem para
nós, seres criados. Ele não criou o tempo para si, pois isso seria sem qualquer
propósito, porquanto o tempo denota delimitação de existência e isso de nada
lhe serviria, visto ele ser eterno e infinito. O tempo lhe serve na
administração do universo onde os momentos passam e vêm outros. As
criaturas nascem, crescem, envelhecem e se vão e não fica sinal de sua
passagem. É só recordar o dilúvio. Para Deus, tudo ocorreu simultaneamente,
enquanto que, para Noé e sua família, passaram-se cento e vinte anos. E, para
nós, esse é um tempo relativamente longo. Hoje, ninguém mais vive todo
esse período. Naquela época, esse foi o tempo imposto por Deus para a ação
do Espírito Santo na vida de cada ser humano. Daí, enquanto para o Eterno
longevidade ou brevidade não altera absolutamente nada, para nós significa
muito, pois ainda não experimentamos a existência eterna. Devemos crer que
o Senhor está dentro do prazo em que prometera que viria. Além de
continuarmos crendo, continuemos também orando, pois ele só virá quando o
último eleito for alcançado pelo evangelho e introduzido na igreja perfeita e
eterna.
O Gemido do Espírito Santo
Também o Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza;
porque não sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por
nós sobremaneira, com gemidos inexprimíveis. E aquele que sonda os
corações sabe qual é a mente do Espírito, porque, segundo a vontade de Deus
é que ele intercede pelos santos (Rm 8.16,17).
No entanto, estranhamente o apóstolo declara que o Espírito, igualmente,
geme em sua intercessão pelos santos que compõem a igreja real. Temos aqui
uma ponta da doutrina que os teólogos denominam de pneumatologia, isto é,
o estudo da pessoa e obra do Espírito Santo. Pois sua função na dispensação
cristã é dar aos crentes sua constante assistência para que sua fé não se
desvaneça e perseverem em sua trajetória rumo ao lar eterno.
1. Temos aqui uma bela metáfora.
Naturalmente, aqui o apóstolo usa uma figura de linguagem chamada
metáfora.[43] No presente caso, o texto bíblico está atribuindo a Deus
sentimento ou emoção semelhante à do homem. Os teólogos chamam isso de
antropopatismo,[44] isto é, põem em Deus a mesma reação emocional que os
homens experimentam, porém sabemos que, em Deus, isso é impossível, pois
todas as suas ações e reações não podem ter as nossas como parâmetros, pois
suas perfeições não o permitiriam imitar o sentimento dos homens, mesmo
que não fossem pecadores. Mas, a Santa Escritura tem esse procedimento
para que entendamos um pouco mais acerca dele, do contrário jamais o
entenderíamos. Se não fizermos essa discriminação, estaremos crendo em um
Deus à semelhança do homem, o que não pode ser.
Aqui se retrata o glorioso Consolador como a gemer conosco em nossa
grande luta para nos desfazermos do que é mortal e nos revestirmos do que é
imortal. Por isso, o Espírito de Deus tem de nos assistir, pois ele é o
Consolador, o Ajudador, o Socorro dos filhos de Deus. Ele faz isso para que
saibamos que não estamos sós, à deriva, pois sabemos que temos todas as
garantias para sermos mais que vencedores. Se não fôssemos ajudados pelo
glorioso Espírito, com certeza fracassaríamos durante a jornada.
2. O Espírito nos assiste em nossa fraqueza.
Lemos aqui que ele nos assiste em nossa fraqueza. A melhor tradução é o
plural, “nossas fraquezas”, porquanto são muitas. Na verdade, os eleitos são
salvos a despeito das muitas fraquezas. São aperfeiçoados, sim, mas
paulatinamente; mesmo assim grande número morre ainda sendo fracos. É
nesse sentido que o apóstolo escreveu sobre ele mesmo: “Pois o meu poder se
aperfeiçoa na fraqueza.” Então conclui:
“De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de
Cristo” (2Co 12.9).
À direita do trono do Pai, ele está sempre intercedendo pelos seus, muito
embora já fizera isso em João 17, em sua oração intercessória pelos eleitos,
seus seguidores, salvos pela graça, já herdeiros da glória eterna. Ele possui
toda qualificação para isso, pois ele mesmo clamou no Gólgota: “Está
consumado.” Isto é, ele cumpriu absolutamente tudo quanto combinou com o
Pai em sua glória celestial.
Em nosso texto, lemos que “ele intercede por nós”, isto é, o Paracletos, o
Outro Consolador, enviado pelo Pai e pelo Filho. Seu ofício é ajudar-nos em
nossa árdua peregrinação, quando somos tentados, quando pecamos
concretamente, quando a dúvida nos envolve.
“Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8.31).
Por certo que isto não justifica nossa inclinação natural às fraquezas
morais, aos anseios carnais que ainda jazem nos santos, enquanto peregrinos
aqui embaixo. Todos nós temos, uns mais e outros menos, uma inclinação
natural ao pecado. E, os que cedem a essa inclinação costumam pagar um
preço muito alto, ainda quando isso não seja levado em conta em nossa eterna
salvação. Mas o Senhor costuma infligir-nos uma punição tão desagradável
que descobrimos tarde demais que não vale a pena ceder e pecar, só porque,
no momento, nos faz muito bem à carne.
Podemos seguir entoando o hino cujas estrofes afirmam “não sei” e cujo
coro declara “mas eu sei”.
Não sei por que de Deus o amor
A mim se revelou,
Por que Jesus, meu Salvador,
Na cruz me resgatou.
Não sei o modo como agiu
O Espírito eternal
Que, um dia, a Cristo me atraiu
Em convicção real.
Não sei o que de mal ou bem
É destinado a mim;
Se maus ou áureos dias vêm,
Até da vida o fim.
Não sei se ainda longe está,
Ou muito perto vem
A hora em que Jesus virá
Na glória que ele tem.
Mas eu sei em quem tenho crido
E estou bem certo que é poderoso!
Guardará, pois, o meu tesouro
Até o dia final.[45]
Paulo estava dividido, não porque tivesse que partir e quisesse ficar, mas,
ao contrário, porque tinha que ficar um pouco mais, quando queria partir. Ele
nunca foi adepto da falsa doutrina do sono da alma após a morte do corpo.
Ele nunca entendeu que, ao morrer, a alma dorme com o corpo até o dia da
grande ressurreição. Ele cria e ensinava (2Co 51-10) que o corpo, ao dormir,
a alma se desprende dele, temporariamente, e vai desfrutar da presença de
Jesus em plena consciência. Ele diz que isso é incomparavelmente superior
ao permanecer aqui. Todo cristão verdadeiro concorda com ele. Todos nós
temos, crescendo dia a dia em nosso íntimo, este santo desejo. E Deus tudo
faz para que este sentimento aumente cada vez mais em nosso íntimo, nós,
que nele cremos, o amamos e com ele queremos morar.
Qual a importância de sabermos que nosso nome foi gravado por Deus
num livro – o Livro da Vida –, antes que o mundo fosse criado? Ao termos
consciência de que este é o único registro que nenhuma força poderá apagar,
e ao sabermos que nossa origem está no coração de Deus, é possível conter o
santo e ansioso desejo de estar junto ao coração de nosso Pai celestial, e
morar com ele para sempre? Muita gente cogita e se preocupa com a questão
de “como será o céu”. Esta não deve ser a cogitação do filho de Deus. Antes,
seu anseio é estar com Deus, com Cristo, porque “onde Cristo está é céu para
mim”. Não é assim que cantamos? Não é este o desejo de Paulo? – “partir e
estar com Cristo” (Fp 1.23). Não me importa onde fica o céu, como é o céu,
quando irei para lá, quem é que vai para lá, o que encontrarei lá.
Hebreus nos informa que devemos correr a carreira que nos foi proposta
pelo divino Designer (projetista, planejador, arquiteto):
“... desembaraçando-nos de todo peso, e do pecado que tenazmente nos assedia, corramos com
perseverança a carreira que nos está proposta, olhando firmemente para o Autor e Consumador da
fé, Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da
ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus. Considerai, pois, atentamente, aquele que
suportou tamanha oposição dos pecadores contra si mesmo, para que não vos fatigueis,
desmaiando em vossas almas” (Hb 12.1-3).
A segunda vez que me defrontei com uma chamada escolar, não foi diante da
dúvida se meu nome estaria no livro de presença, mas se seria ou não
aprovado. A menção do meu nome não era para eu dizer: “Presente!”, e sim
se a nota que o acompanhava era de aprovação ou reprovação. Aliás, havia
duas chamadas: uma dos aprovados e outra dos reprovados. Estes seriam
convidados a fazer as malas e voltar para casa. A diferença é que eu não tinha
casa para onde voltar! Dali eu poderia tomar qualquer direção, pois não tinha
um lar e ninguém me esperava em lugar nenhum!
Era fevereiro de 1961. Deixara para trás minha cidade natal, Tupaciguara,
Minas Gerais, e partira rumo a Patrocínio, também em Minas, onde há muito
fora estabelecido uma das mais importantes e abençoadas instituições da
Igreja – o Instituto Bíblico Eduardo Lane (IBEL). Era uma classe numerosa
para aquele tempo. De repente me encontrei em um novo e inusitado
ambiente e entre pessoas de várias partes do país, pessoas de diversas
formações e diversos níveis sociais. De repente me senti perdido, confuso, até
mesmo aturdido. Os professores eram pessoas completamente diferentes
daquelas que eu conhecera em minha cidade. Homens e mulheres muito
distintos, polidos, superiores aos demais em simpatia, atitude, santidade e
sabedoria. Aquilo, para mim, era o próprio céu.
De fato, minha formação até então tinha sido muito primária e rudimentar.
Mais especificamente, eu era semi-analfabeto. Fora criado numa família
muito humilde, num ambiente rural e depois semirrural. Minha profissão
fora, originalmente, a agricultura e, depois, a ferraria, com martelo em punho
e diante de uma bigorna, forja e soldagem. Foi assim que o evangelho me
encontrou. E quando ele me encontrou, fazia tempo que já vivia sem família.
Tinha pai, mãe e sete irmãos, todos vivos, porém não vivia com nenhum
deles, desde a adolescência. Eu era a criatura mais introvertida e tímida do
mundo. Tinha vergonha de qualquer estranho, principalmente se fosse
“importante” ou do sexo oposto. O evangelho é que foi mudando esse
doloroso panorama existencial. Concluíra o primário rural há anos. Fiz o
curso chamado “Admissão”, porque o evangelho revoluciona todo nosso ser,
e eu queria ir para o seminário – queria ser pastor como o Rev. Francisco
Antonio Maia e o Rev. Jair Pires de Oliveira, dois pastores amigos que
aumentaram em mim a chama da vocação divina. Devo muitíssimo a esses
dois pastores e amigos e às suas famílias.
Mesmo assim, não possuía qualificação cultural para estudar no IBEL.
Além do incentivo de cristãos amigos e da bênção divina, devo muito à
ingenuidade e temeridade de um jovem sonhador que fui. Ainda fico pasmo
quando medito e me vejo fazendo aquela prova, perdido entre aqueles
inscritos, moços e moças, todos belos e bem apessoados, de linguagem
polida, de aspectos fascinantes e invejáveis – era assim que os via. Algumas
provas, nem mesmo sabia o que responder. À medida que prosseguia, sentia
um forte sabor de derrota e um desagradável desalento e frustração. Tinha
vontade de sair correndo dali e desaparecer.
A classe toda estava diante da deã, Miss Frances Hesser, que lia
pausadamente o nome dos aprovados para o curso bíblico do ano em curso.
Eu tremia e sentia um profundo desvanecimento. “Daqui irei para onde?” – já
era a angustiante indagação que fazia a mim mesmo. “Não tenho lar, não
tenho família. Só tenho a profissão de ferreiro.” Naquele curto espaço de
tempo visualizei minha vida pregressa e atual. Não queria continuar naquele
rumo sem objetivo. Queria ver minha vida canalizada na conquista de almas
para Cristo e no ensino da Palavra. Desejava ardentemente conhecer a Bíblia
de forma profunda e prática. Quando ouvia um sermão ou participava de um
estudo bíblico, ficava fascinado e sentia uma profunda e ardente paixão em
minha alma faminta. Invejava os mestres da Bíblia; ficava fascinado quando
ouvia o atual diretor do IBEL, Rev. Jaime Woodson, e o pastor da Igreja de
Patrocínio, Rev. Saulo de Castro Ferreira, grandes ministros do evangelho, e
mais tarde meus amigos, detentores de muito conhecimento e integridade.
Falavam com muita fluência e uma postura majestosa de causar inveja.
Enquanto Miss Frances Hesser lia os nomes dos aprovados, eu orava para
que meu nome não figurasse na lista negativa – a dos reprovados. Se perdesse
aquela chance, jamais teria outra. “Serei aprovado? Vou viver neste santo
lugar? Vou ter aqui a chance de estudar as maravilhas da teologia bíblica?
Vou ser um dia pregador do evangelho?”
Depois de meu nome só havia Wilson Balisa, meu perene amigo e
companheiro de labores evangélicos. Quase todos os nomes já tinham sido
mencionados e suas notas publicadas. Um pânico interior foi invadindo
minha pobre alma já estropiada pelas tensões da nova experiência; foi me
sufocando e desfibrando minhas poucas energias. O tremor dominava toda
minha estrutura física. Senti-me ir pouco a pouco desfalecendo, tão profundo
era meu desalento. Mais um nome mencionado com sua respectiva nota.
Misteriosamente, como da primeira vez, como que para provar minha frágil
resistência emocional, Miss Frances Hesser tomou fôlego, respirou fundo,
olhou para a classe silenciosa, como gostava de fazer, sem ler meu nome.
Minha visão foi ficando ofuscada e minha respiração ofegava. Meu coração
mais uma vez batia descompassado, a mil por hora. “Meu Deus, tem
misericórdia de mim! Não vou suportar esta prova!” Foi quando meu nome
foi pronunciado. Não me importava a nota. Nunca soube qual foi. Não
guardei em minha mente. Teria sido mínima, porém não ficou gravada em
minha memória. Importava-me, sim, meu nome na lista de chamada, na lista
dos aprovados. Por isso mesmo, nunca me importei com que galardão serei
contemplado no céu. Nem penso nele; mesmo quando analiso essa matéria
com a Igreja, não me preocupo com isso no que me toca. Basta-me estar lá!
Basta-me contemplar o rosto de meu amado Salvador e Senhor!
Uma pergunta angustiante para muitos corações crentes é esta: “Ao chegar
lá, serei aceito?” “Meu nome estará figurando no Livro da Vida do
Cordeiro?” Não sabemos se será um querubim, um anjo, um arcanjo glorioso,
ou se será o próprio Juiz – o Senhor Jesus Cristo – a ler nosso nome, a fazer a
chamada. Pela parábola dos talentos e da separação de ovelhas e cabritos (Mt
25), parece-nos que será o próprio Juiz a ler os nomes dos aprovados, tecendo
encômios ou censuras sobre o portador de cada nome. Não importa muito.
Nosso êxtase será quando soar nosso nome – seja o mesmo de agora, seja
outro, um novo. Sairemos do meio da multidão para receber as boas-vindas
de quem nos comprou com seu próprio sangue (Ap 5.9,10). Ele mesmo vai
declarar a todos os ventos: “Este é meu!” Podemos saber desde já que, com
segurança, com tranquilidade, nosso nome será lido? Já vimos que sim. O
poeta sacro escreveu:
Quando Cristo sua trombeta
Lá no céu mandar tocar,
Quando o dia mui glorioso lá romper,
E aos remidos desta terra
Meu Jesus incorporar,
E fizer-se então chamada, lá estarei.
Quando enfim chegar o dia,
Pela graça de Jesus eu lá estarei.[46]
“Depois destas coisas, ouvi no céu uma como grande voz de numerosa multidão, dizendo:
Aleluia! A salvação, e a glória, e o poder são de nosso Deus, porquanto verdadeiros e justos são
seus juízos, pois julgou a grande meretriz que corrompia a terra com sua prostituição, e das mãos
dela vingou o sangue de seus servos. Então ouvi uma como voz de numerosa multidão, como de
muitas águas, e como de fortes trovões, dizendo: Aleluia! Pois reina o Senhor nosso Deus, o
Todo-Poderoso. Alegremo-nos, exultemos, e demos-lhe a glória, porque são chegadas as bodas do
Cordeiro, cuja esposa a si mesma já se ataviou, pois lhe foi dado vestir-se de linho finíssimo,
resplandecente e puro. Porque o linho finíssimo são os atos de justiça dos santos” (Ap 19.1-3,6-8).
[46] Cantor Cristão nº 108, composto por James Milton Black (1856-1938).
[47] Rev. Roosevelt Guerra, amigo, companheiro, teólogo erudito e revisor deste livro, aperfeiçoando-o
generosa e sabiamente. A ele meu sincero amplexo.
ADQUIRA NOSSO LIVROS NA AMAZON OU LOJA CLIRE!
Acesse loja.clire.org
Instale nosso aplicativo clicando aqui. É de graça!
Projeto Os Puritanos
www.os-puritanos.com